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Fragmentos do Porvir

2022, Editora Ape'Ku

FRAGMENTOS DO PORVIR miolo.indd 1 24/03/2022 16:03:24 Comitê Editorial Rafael Haddock-Lobo - Universidade Federal do Rio de Janeiro (organizador da Coleção X) Conselho Editorial Ana Luisa Mallet - Universidade Estácio de Sá & Universidade Federal do Rio de Janeiro Carlos Dimas Martins Ribeiro - Universidade Federal Fluminense Carolina Magalhães de Pinho Ferreira - Universidade Federal do Rio de Janeiro Cinara Maria Leite Nahra - Universidade Federal do Rio Grande do Norte Cristiane Maria Amorim Costa - Universidade do Estado do Rio de Janeiro Diana Inés Pérez - Universidad de Buenos Aires | Argentina Diogo G Vianna Mochcovitch - Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de Goiás Fabio Alves Gomes de Oliveira - Universidade Federal Fluminense Gabriela Alejandra Veronelli - Universidad Nacional de San Martin | Argentina Guilherme Dias da Fonseca – Université Clermont Auvergne | França Heloisa Buarque de Hollanda - Universidade Federal do Rio de Janeiro Joshua M. Price - State University of New York | EUA Manuel Villoria Mendieta - Universidad Rey Juan Carlos | Espanha Maria Andréa Loyola - Universidade do Estado do Rio de Janeiro Maria Clara Dias - Universidade Federal do Rio de Janeiro Martina Davidson - Universidade Federal Fluminense Mary Garcia Castro - Facultad Latino Americana de Ciencias Sociales Michelle Cecille Bandeira Teixeira - Universidade Federal Fluminense Miriam Pillar Grossi - Universidade Federal de Santa Catarina Murilo Mariano Vilaça - Fundação Oswaldo Cruz Paula Gaudenzi – Fundação Oswaldo Cruz Rafael Haddock-Lobo - Universidade Federal do Rio de Janeiro Rafael Ioris – University of Denver | EUA Rita Leal Paixão - Universidade Federal Fluminense Suane Felippe Soares - Universidade Federal do Rio de Janeiro Suely Messeder - Universidade do Estado da Bahia Vanessa Neitzke Montinelli - Instituto Nacional do Câncer Wallace dos Santos de Moraes - Universidade Federal do Rio de Janeiro Yuderkys Espinosa Miñoso - Facultad Latino Americana de Ciencias Sociales miolo.indd 2 24/03/2022 16:03:24 Vinícius da Silva FRa GMEN TOs miolo.indd 3 do porvir 24/03/2022 16:03:24 Copyright desta edição ©2021 by Ape’Ku Editora e Produtora Ltda Foi feito o depósito legal conforme Lei 10.994 de 14/12/2004 Proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem autorização da editora Produção de capa: Ape’Ku Editora Arte: “Sem título”, acrílica sobre tecido, 2021 - Vinícius da Silva Produção gráfica: Ape’Ku Editora Direitos de reprodução desta edição reservados à Ape’Ku Editora e Produtora Ltda [email protected] www.apeku.com.br dados internacionais de catalogação na publicação (cip) D111f da Silva, Vinícius Fragmentos do porvir / Vinícius da Silva (Coleção X, coordenação de Rafael Haddock-Lobo)– Rio de Janeiro: Ape’Ku, 20212 168 p. ; 23 cm. ISBN 978-65-80154-38-8 versão impressa Inclui bibliografia. 1. Filosofia. 2. Ética (moral). 3. Racismo. I. Título. II. Autor. CDD 170 miolo.indd 4 24/03/2022 16:03:24 Eu dedico este livro às redes de solidariedade que foram tecidas pela WinnieTeca desde o começo da escrita deste livro, à memória de todas as pessoas que morreram ou foram mortas em nome de seus sonhos, às pessoas que lutam por um outro amanhã e àquelas que, mesmo que de forma indireta, também assinam este livro comigo. miolo.indd 5 24/03/2022 16:03:24 Sumário 11 AGRADECIMENTOS 15 APRESENTAÇÃO POR WANDERSON FLOR DO NASCIMENTO 19 PREFÁCIO POR WINNIE BUENO 23 INTRODUÇÃO 31 POLÍTICAS DO AMOR E SOCIEDADES DO AMANHÃ 47 TEM SAÍDA? CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS SOBRE RACISMO AMBIENTAL E HORIZONTES PARA A CONSTRUÇÃO DE UM NOVO MUNDO miolo.indd 6 24/03/2022 16:03:24 61 “NÃO É MONSTRUOSIDADE, É RACISMO”: ENTREVISTA COM VINÍCIUS DA SILVA E WANDERSON FLOR DO NASCIMENTO 75 “A GENTE COMBINAMOS DE NÃO MORRER”: CORPOS EM ALIANÇA, RESISTÊNCIA POLÍTICA E DISPUTAS DE NARRATIVAS 83 AMOR, SIGNIFICANTE DESPÓTICO – UM DIÁLOGO COM HELENA VIEIRA 107 POR UMA POLÍTICA DO PORVIR: ONTOLOGIAS DE UM FUTURO (IM)POSSÍVEL 161 PÓSFACIO POR ROBERTA RIBEIRO CASSIANO 165 SOBRE O AUTOR miolo.indd 7 24/03/2022 16:03:24 miolo.indd 8 24/03/2022 16:03:24 “O Brasil não é mais o país do futuro, porque, a rigor, não existe mais futuro. O novo não para de nos afogar, mas o futuro já foi conhecido. O novo não para de nos sufocar, mas o futuro já foi conhecido. O novo não para de nos refogar, mas o futuro já foi conhecido. São mil milhões de novidades, mas nenhuma vem redimir o futuro. Ficção e realidade se misturam. Ficção e realidade são uma mesma coisa. O futuro é narrado no tempo presente. O presente – esse tempo em que é possível fazer coisas – é por onde começamos a destruir o futuro. Mas o futuro já foi conhecido.” (Lara Ovídio, “Notas sobre o desperdício: uma investigação sobre a experiência do tempo na contemporaneidade”, p. 83) miolo.indd 9 24/03/2022 16:03:24 miolo.indd 10 24/03/2022 16:03:24 AGRADECIMENTOS Agradecer é o ato de afeto e reconhecimento mais importante de um acontecimento positivo. Meus agradecimentos, neste livro, não se limitam a alguns parágrafos, pois o livro que você tem em mãos é fruto de um projeto coletivo que, finalmente, ganha forma a partir de minha escrita esperançosa. Por isso, cito nominalmente apenas as pessoas mais importantes (e que se envolveram diretamente) para a concretização deste projeto. Agradeço imensamente ao apoio de minha família: Cristina, Nilzete e Gustavo, minha mãe, avó e irmão, respectivamente, três pessoas importantes em minha vida que vêm acompanhado de perto o passo-a-passo dessa trajetória. Expresso, também, profunda gratidão ao apoio de familiares mais distantes, mas que também acompanham meu trabalho. Queridos professores, vocês foram e são cruciais em minha trajetória. Dedico cada linha deste livro aos ensinamentos que vocês passaram a mim, através de aulas, orientações e diálogos afetuosos. Sou grato por cada aula que tive, sem a qual não seria quem sou, especialmente no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ) - Campus Nilópolis. Vocês acreditaram em mim e em meus sonhos quando parecia não haver como realizá-los. Às minhas amigas mais próximas – Angie, Karine, Kelly, Lidiane, Nicole e Vitória –, que provam que “família” não é uma instituição estabelecida por laços consanguíneos, mas sim por afeto, reconhecimento e companhia. Vocês me ensinaram que as pedras que carregamos não precisam ser levadas em nossas costas. Agradeço à recepção e equipe da Ape’Ku Editora, ao professor Rafael Haddock-Lobo por ter criado as condições para a publicação deste livro e às pessoas que aceitaram tecer diálogos para a construção deste projeto – Andressa Dutra, Helena Vieira, João Pedro Monteiro, Luana Luna e Matheus Chagas. À Winnie Bueno, quem me ensinou que teoria crítica pode ser pro- miolo.indd 11 24/03/2022 16:03:24 duzida em primeira pessoa e me apresentou a potência do pensamento feminista negro, pela contribuição em forma de prefácio; Roberta Cassiano, cuja orientação filosófica foi crucial para o meu desenvolvimento acadêmico e afeto ultrapassa as paredes da Instituição, pelo posfácio que encerra esta obra. À assessoria de Lucas Abreu que, gentilmente, auxiliou-me em meus cursos ao longo do ano, enquanto eu dava aula, estudava e escrevia. Agradeço ao excelente trabalho de transcrição de Creolla Andrade. Agradeço às amizades do nosso grupo “Filosofia Africana”, no WhatsApp – Adilbênia Machado, Lorena Oliveira, Katiúscia Ribeiro, Aline Matos, e tantas outras pessoas que, de alguma forma, são importantes para este trabalho; agradeço especialmente ao professor wanderson flor, querido amigo e parceiro que confiou e motivou desde o início (n)a realização de meus projetos acadêmicos em meio à pesquisa solitária sobre bell hooks no Brasil. Por fim, de forma mais ampla, agradeço ainda o imenso apoio que recebo de pessoas que, fielmente, têm acompanhado meu trabalho através das redes; muitíssimo obrigado pela confiança. 12 miolo.indd 12 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:24 miolo.indd 13 24/03/2022 16:03:25 miolo.indd 14 24/03/2022 16:03:25 Apresentação O livro de Vinícius da Silva é um presente. Em muitos sentidos. Em tempos mortais, em que adoecimentos de todo tipo nos rondam intensamente, pensar em outros futuros, futuros menos opressivos, mais amorosos é um ímpeto político, um alívio, um motivo de esperança. As sociedades ocidentais resolveram pensar que as pessoas jovens são o futuro. E aqui, Vinícius traz sua contribuição para esse projeto de futuro de uma maneira crítica, lúcida, amorosa. Sem cair na pieguice poliânica de um amor que tudo remedia, em um romantismo ingênuo, o livro propõe uma abordagem política do amor, em diálogo com algumas das bibliografias mais recentes e arrojadas sobre o tema. O amor aqui é uma atitude e um desafio. Um desafio consciente de que tipo de mundo vivemos e de que tipo de mundo recusamos, mesmo sem a certeza de que tipo de mundo teremos. A proposta de Vinícius sabe que há uma tensão em torno do poder e que isso determina, também, um jeito de querer o futuro e de recusar o amor como afeto político de resistência, fortalecimento, enfrentamento de formas múltiplas de opressão como o racismo, o sexismo, as LGBTfobias, o classismo, a destruição ambiental etc. E sabe que buscar futuros outros implica em disputar os projetos de mundo, frente a essa proposta hegemônica, odiosa e mortal, em que o aqui e o agora, destrutivo de subjetividades e de mundos, se torna o objetivo final. Percorreremos, aqui, as páginas oferecidas por um jovem e refinado intelectual que está atento às disputas e discursos sobre o poder; sem fascínios, com os pés no chão, instruído pelas propostas de uma ancestralidade negra e indígena que possam nos auxiliar a criticar as estruturas perversas do tempo presente e buscar alternativas para um futuro, que seja diferente desta atualidade mortificadora. Essa aposta no futuro parte de um presente. O livro-presente é também um livro-convite, um livro-conclame, um livro-provocação, que nos chama à responsabilidade enquanto herdeiras e herdeiros de um colonialismo que miolo.indd 15 24/03/2022 16:03:25 resiste em nos abandonar, enquanto formadas e formados por um cis-heteropatriarcado, que insiste em controlar corpos e mentes de modo violento, enquanto imbuídas e imbuídos de um antropocentrismo destrutivo da natureza, enquanto desejantes uma branquitude que ordena o mundo, segregando vidas, mortificando existências. É um livro-resistência, um livro quilombista que nos convoca a sermos novamente quilombos. Algumas linhas diretrizes atravessam o argumento de Vinícius ao longo destes textos com os quais somos brindados. A necessidade do enfrentamento ao racismo e ao patriarcado como condição de possibilidade de construir um mundo minimamente acolhedor dos diversos sujeitos humanos que habitam este mesmo mundo; o imperativo de amar como gesto transformador de quem somos e do mundo que buscamos, de modo crítico, engajado, potencializador das existências; a consciência de que a natureza não é nossa casa, não é recurso, não é uma coisa aí, dada às nossas vontades e que é extremamente perigoso estabelecer com a natureza as mesmas relações de poder opressivo que manejamos entre os seres humanos. Estas linhas nos trazem elementos para a crítica, mas também para propostas de um pensar conjunto, na busca disso que o livro chama de “política do porvir”. Não basta apenas saber que as coisas não vão bem. É preciso agir, fazer algo, e evitar, na resistência, a lógica bélica e mortal de um nós contra eles, que faz circular a violência de uma maneira particularmente atroz. Seguindo bell hooks e Cornel West, Vinícius da Silva aposta que essa ação, esse gesto, deve ser amoroso, fundado em uma política do amor. Um fazer outro, uma ação que nos afaste do contexto mórbido da necropolítica, pode aparecer, nesse cenário, como antídoto para as nefastas prática e lógica políticas de transformar o mundo em um tabuleiro de mortos-vivos, em desamor, prestes a morrer, matar ou matar-se. Um fazer amoroso que tem um inexorável compromisso com a justiça – que é ao mesmo tempo restaurativa e redistributiva –, que sabe que o caminho para a liberdade caminha pela articulação fundamental entre o individual e o coletivo, portanto, evitando as lógicas individualistas que sustentam a competição entre os sujeitos humanos e sua subjugação. Essa dimensão comunitária das sociedades do amanhã está em forte alinhamento com o pensamento negro africano e diaspórico, além do pensa16 miolo.indd 16 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:25 mento dos povos originários, seja pela presença da heroína teórica do livro, bell hooks, seja pelas outras referências trazidas ao livro que nos fazem pensar que a ênfase no individualismo é umas das sendas pelas quais os tempos mortais se reproduzem. Ao fim e ao cabo, o amor aparece como uma maneira de aprender a viver com, a viver junto, a viver em revoada. Nestes tempos necropolíticos em que a aversão aos outros se mostra como uma norma, retomar um senso comunitário é revolucionário. E se a trilha para essa proposta é o amor, temos um bonito e potente instrumento para lidar com os inevitáveis conflitos que se dão na vivência coletiva. Os outros, o mundo, a política não são apenas pretextos para pensarmos no amor como lógica política, mas também para não cairmos em imagens meramente utópicas da dimensão política do amor. Não estamos no campo do meramente especulativo de afirmar que as vidas negras, de mulheres, das pessoas LGBTs e de todas as outras vidas expostas à morte importam. Este livro é um chamado para fazer outros mundos, em que a diferença não implique em um desejo de extermínio. Um chamado para que o amor nos atravesse como força-ação, como um dínamo espiritual, político, moral e epistêmico para a construção de um mundo justo, equânime, transgressor de normas opressivas, plural. wanderson flor do nascimento Professor de filosofia da Universidade de Brasília Brasília, junho de 2021. Vinícius da Silva miolo.indd 17 17 24/03/2022 16:03:25 miolo.indd 18 24/03/2022 16:03:25 Prefácio Durante muito tempo os processos de produção de conhecimento estavam engessados às normas acadêmicas que subestimaram, silenciaram e ocultaram os saberes de pessoas negras. Tudo aquilo que era tido como conhecimento crítico engessava a métodos e formas que excluíam o conhecimento produzido pela negritude. Esse cenário foi alterado pelas próprias lutas e estratégias da intelectualidade negra. O livro que Vinícius nos apresenta agora é resultado direto dessas lutas. O saber que Vinícius produz é fruto das estratégias de valoração e validação da intelectualidade negra. As palavras que você está prestes a conhecer são oriundas de esforços autônomos de um jovem negro que entende o tamanho do legado que carrega. Trata-se de um exercício bonito de solidariedade epistêmica que envolve múltiplos campos de saberes e múltiplos sujeitos de conhecimento. Vinícius nos propõe um exercício de reflexão que não se encerra nas páginas do livro, nos convida a pensar o conhecimento em circularidade, nos instiga a pensar o saber como e em movimento. Coisa de quem tem o coração tomado pelas esperanças da juventude e a mente aguçada com o compromisso de apontar outros caminhos. Os caminhos de Vinicius são caminhos que negam ao essencialismo. Caminhos que buscam dialogar com as epistemologias feministas negras, com a filosofia e com outros saberes que não necessariamente foram nomeados. Os caminhos de Vinicius são construídos a partir de uma disposição ao diálogo. A partir desses caminhos, ele fala sobre o amor. E falar sobre o amor desde o lugar que Vinícius fala significa falar de amor a partir de uma perspectiva de ruptura com o que já está posto sobre o amor. A própria construção desse livro é um exercício prático do que Vinícius afirma sobre o amor. Os afetos dele estão neste livro de várias formas e em vários lugares diferentes propondo uma teoria política que se articula a partir destes afetos. Além disso, ele exerce os aprendizados da própria vivência para, como quem aponta um espelho, refletir um contínuo de conhecimento. miolo.indd 19 24/03/2022 16:03:25 O primeiro convite reflexivo que se estabelece nesta obra parte da premissa de bell hooks sobre o amor. Vinícius é mais que um leitor de hooks, é um especialista na obra da autora que se fez por sua própria vontade e pelas conexões afetivo-intelectuais que construiu antes mesmo de ingressar efetivamente na academia. A leitura que é feita de bell hooks nessa obra se dá sem atalhos, é forjada em um compromisso real em compreender, analisar, desdobrar e espraiar o trabalho intelectual de bell hooks. Uma escolha que só pode ser feita por alguém que é desprendido das vaidades acadêmicas, por alguém que realmente se compromete com o conhecimento como ferramenta de resistência e emancipação. Vinícius coloca o amor de bell hooks para dialogar com Achille Mbembe, Sobonfu Somé e Sueli Carneiro, e revela seu apreço por extrair conexões possíveis entre a intelectualidade da diáspora, apresenta uma leitura do amor a partir de bell hooks que não se encerra nela mesma e, tampouco, na própria interpretação que ele destina aos escritos de hooks termina. Este livro também tem o condão de apresentar a potência intelectual do próprio Vinícius, um dos teóricos mais promissores que já conheci. Vinicius é um jovem intelectual em vários sentidos, mas a sua juventude é uma das forças mais bonitas de seu pensamento. Sua sede de conhecimento é tão imensa quanto sua juventude. Contudo, apesar de jovem, Vinicius já realizou muito. De forma bonita, entrega parte de suas realizações como pesquisador a partir de diálogos sobre racismo ambiental que desaguam em reflexões políticas e filosóficas que apontam saídas para esse tipo de violência que muitas vezes é secundarizada. Há nesta obra, ainda, uma possibilidade de compreender detalhadamente do que é feito o que o Vinícius pensa. Quem são suas principais referências intelectuais, seus mentores, professores, amigos e apoiadores. É do afeto e do compartilhamento que é feito o pensamento de Vinícius e isso está bastante evidente no livro que você tem em mãos. Quisera que todos os jovens pesquisadores fossem capazes de respeitar com tanto carinho e reportar de maneira tão genuína sua gratidão àqueles que lhes ajudaram a pensar. Aqui também conhecemos o futuro que Vinícius almeja, do que ele quer fazer parte, para onde ele quer caminhar, formas que ele acredita que é possível lutar e resistir sendo um jovem homem negro LGBT. Assim, como 20 miolo.indd 20 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:25 grandes ativistas da luta negra, Vinicius propõe alianças, políticas de coalizão a partir da solidariedade e de uma leitura crítica do quilombismo de Abdias do Nascimento. Há uma infinidade de diálogos postos e explícitos nesse livro e tantos outros diálogos que se tornam possíveis a partir da leitura dele. Eu tenho tido a honra de dialogar com Vinicius já há alguns anos, espero que você se permita a este diálogo e que seja permeado por ele. É uma experiência reveladora que nossas expectativas com a juventude e seu potencial político-crítico não são em vão. Boa leitura. Winnie Bueno Iyalorixá, pesquisadora, escritora e idealizadora da Winnieteca, um projeto de democratização do acesso à leitura para pessoas negras Vinícius da Silva miolo.indd 21 21 24/03/2022 16:03:25 miolo.indd 22 24/03/2022 16:03:25 Introdução Este livro é fruto de uma coletividade e de uma mutualidade revolucionária sem as quais estas linhas não ganhariam forma. De um lado, a teoria – produzida a partir, sobretudo, da práxis política de intelectuais negras – e de outro, a contribuição de pessoas queridas que, ao longo das aulas, palestras e discussões, forneceram elementos cruciais para o desenvolvimento desta obra, meu primeiro e talvez único livro de não-ficção. Primeiramente, é importante salientar que este livro apresenta uma tese que tem sido pensada e repensada desde 2019. As premissas apresentadas nos capítulos iniciais serão, gradativamente, pensadas e articuladas ao longo dos capítulos de maneira capilar. Isto porque parto do pressuposto de que um conhecimento que se pretende encerrado não fornece elementos para a transformação social efetiva. Por isso, ressalto que este livro se trata de um pontapé inicial para a construção de um pensamento sobre amor e futuro. Nesse sentido, este livro é um dos resultados das inúmeras articulações teóricas e políticas de um jovem negro que busca construir, a partir da filosofia e da ação coletiva, outros fins de mundo que não a morte. Repito: aqui, vocês encontrarão uma série de proposições que não se pretendem enquanto finalizadas, mas que organizo neste livro para que elas sirvam, de alguma forma, a quem objetiva buscar caminhos. Afinal, é isto que este livro fornece: caminhos. Nunca um destino. E buscando caminhos, escrevi este livro porque gostaria de tê-lo em mãos quando comecei a estudar a questão do amor – à época, a partir do pensamento da intelectual negra estadunidense bell hooks, cujo pensamento é meu “objeto” de pesquisa desde 2017. Eu comecei a escrever – ou melhor, organizar (e reescrever) os ensaios que o compõem – este livro, ainda no final de 2019. Eu pretendia publicá-lo em 2020, mas, com o tempo, percebi que as ideias contidas nesta obra ainda não estavam “prontas” – ou melhor, bem-organizadas –, era preciso mais. De- miolo.indd 23 24/03/2022 16:03:25 cidi, então, reescrever e reorganizar estes ensaios que hoje chegam às suas mãos com uma edição/publicação cuidadosa da Editora Ape’Ku. Ainda sobre o processo de escrita, escrevi este livro no intervalo entre as aulas, no tempo livre entre as tarefas da pesquisa, no descansar das minhas traduções, em madrugadas que passei em claro... e mesmo assim, é preciso reconhecer que este livro não foi escrito só por mim, seja devido às coautorias de alguns ensaios e diálogos aqui presentes, seja devido às construtivas discussões que tive em aulas, cursos e palestras que dei ao longo dos dois últimos anos. Nesse sentido, este livro é a materialização de um projeto coletivo. Quando comecei a estudar a questão do amor, com Salvation: black people and love (2001),1 em 2017, de bell hooks, percebi que não tínhamos, em solo nacional, um material tão conciso como a obra de hooks – que foi traduzida para o português, pela primeira vez, em 2013, 32 anos após sua primeira publicação (1981) no Brasil. Por isso, considero ter sido importante o meu trabalho de tradução e difusão dos escritos de hooks sobre amor durante, principalmente, os anos de 2018 e 2019, e o trabalho de tradução de Carol Correia, que começou a traduzir hooks no Medium antes de mim; hoje trabalhamos em conjunto. Infelizmente, ainda hoje, as obras de intelectuais negras são pouco ou mal traduzidas devido à lógica capitalista de um mercado editorial que não preza pela qualidade do trabalho produzido por pessoas negras ao longo das últimas décadas. Falar de amor no Brasil, um dos países que mais mata pessoas negras e LGBTs, é sempre um desafio, pois não se costuma enxergar no amor uma potencialidade política e ética que nos conduzirá à mudança. É normal que entendamos o amor como “gostar” de ou estar apaixonado por alguém. No entanto, segundo hooks, pensar em amor não é pensar em relações românticas. O amor ultrapassa a dimensão subjetivo-psicológica do sujeito e emerge como estratégia política frente às políticas de morte (o argumento central deste livro). Nesse sentido, como vocês observarão ao longo dos ensaios, talvez o assunto do qual estejamos falando não possa ser chamado de amor. Essa é uma das armadilhas da linguagem, nem sempre a sua estrutura binária é capaz de significar as dinâmicas do ativismo e da busca por justiça social – que é o caso da “ética do amor” de hooks. 1 HOOKS, bell. Salvação: pessoas negras e amor. Trad. Vinícius da Silva. São Paulo: Editora Elefante, no prelo (quando da publicação deste). 24 miolo.indd 24 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:25 hooks entende o amor enquanto uma prática (política) e diz que nossa dificuldade em amar é consequência do fato de não definirmos o que é amor. O primeiro passo para se conhecer a dimensão ético-política do amor é pensar um novo projeto de sociedade. Pensar novos paradigmas sociais é uma tarefa coletiva. A comunidade é um lugar a partir do qual teorias potentes podem nascer. Teorias que pensem um novo amanhã, que construam mundos habitáveis para a humanidade. Nesse sentido, o filósofo Severino Ngoenha2 afirma que o futuro é agora, que o futuro deve ser encarado como um desafio para o nosso tempo presente. Para Ngoenha, o futuro é compreendido enquanto um conjunto de projetos, possibilidades, esperanças e liberdades. Dessa forma, defende-se, aqui, que uma teoria que se proponha a pensar novos amanhãs deva ser, necessariamente, antirracista e anticapitalista (tendo em vista que o capitalismo brasileiro se articula profundamente com o racismo e outros sistemas de dominação, de modo a não ser possível operar a partir de paradigmas duplos ou triplos). O exercício de pensar uma política do porvir (não necessariamente do futuro) surge, então, como um exercício de disputa pela sobrevivência ou pela busca de outros fins possíveis para a humanidade. Como diria Cornel West, é a esperança o motor da busca pela mudança. O que chamamos de amanhã (ou novos amanhãs) emerge, então, como uma metáfora para dias melhores, menos ruins. Salientando a esperança3 como escolha política, como o princípio operante de um novo projeto, em Amanhã vai ser maior, a antropóloga Rosana Pinheiro-Machado levanta um ponto importante: o estar no coletivo. Como dito, a comunidade emerge como um local de fazer teorias e sendo esse local, o fato de estarmos juntos é essencial para se pensar um amanhã maior e 2 NGOENHA, Filosofia africana das independências às liberdades, 1993. 3 Sobre isso, Helena Vieira aponta algo interessante (que será aprofundado e discutido posteriormente): “E justamente alguns tendem a dizer que a esperança seria um sentimento para se contrapor a esse período. Eu discordo. A esperança é uma paixão triste. A esperança é a certeza de um final feliz. A esperança é absolutamente colonizada. Os europeus têm esperança. Para nós, esse sentimento não cabe. Nós temos nossa vida constituída a partir de inúmeras mortes, da história, do fim de inúmeros mundos, do fim de inúmeros povos, e justamente por isso não nos cabe ter esperança, nos cabe imaginação. E nesse sentido, pensar a imaginação é pensar que temos de encontrar alguma coisa que ainda não está aqui. Se imaginar uma saída é o que nos resta, significa que ela não existe. Significa que não há saída, a não ser aquela que nós vamos ter de inventar.” (No debate “A imaginação como potência, realizado na 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em janeiro de 2020, com a participação de Bernardo Oliveira, Helena Vieira e Ivana Bentes, com mediação de Francis Vogner dos Reis). Vinícius da Silva miolo.indd 25 25 24/03/2022 16:03:25 melhor, como sugere Pinheiro-Machado. Nesse sentido, hooks também pensa a importância da mutualidade na construção daquilo que, a partir do pensamento de Martin Luther King Jr., a autora chama de “comunidade amada”. Em suas palavras: Os indivíduos que fazem parte da comunidade amada já estão em nossas vidas. Nós não precisamos buscar por essas pessoas. Nós podemos começar onde estamos. Nós começamos nossa jornada com amor e o amor sempre nos levará de volta para onde começamos. Escolher o amor pode curar nossos espíritos feridos e nosso corpo político. Esta é a mais profunda revolução, o afastamento do mundo tal como o conhecemos em direção a um mundo que devemos construir se formos um só para com o planeta (...). O amor é a nossa esperança e a nossa salvação.4 Pensar em um outro fim de mundo pode ser uma utopia? Sim, mas utopias não devem mirar o impossível, como sugere Felwine Sarr.5 Para o filósofo, as utopias não nos entregam a um doce devaneio, mas servem como instrumentos para se pensar configurações dos possíveis e os espaços do real a serem alcançados através do pensamento e da ação. Trata-se, portanto, de uma tarefa coletiva e que necessita de mobilização, caso contrário, para onde iremos nós? Tendo em vista que a coletividade é o centro da ação política, considero ser o amor (esse termo que ao longo do livro pode ser renomeado) o princípio ético e político necessário para que não cometamos mais os erros do passado ao pensarmos novos projetos de sociedade que se baseiam na pluralidade e comunitarismo. Estamos falando do amor enquanto estratégia política. Com este livro, busco teorizar o amor enquanto uma tecnologia/técnica política. Aqui, tomo emprestado a definição de “técnica/tecnologia” de Foucault.6 Para Foucault, as tecnologias (do poder) têm como função principal gerenciar e regular a vida. Foucault estaria, então, mais preocupado em compreender as dinâmicas das tecnologias de disciplina do corpo através dos 4 HOOKS, Salvation, p. 225. Todas as traduções de obras em línguas estrangeiras são nossas, a não ser que o título da obra esteja sendo referenciado em português. 5 SARR, Afrotopia, 1960. 6 CASTRO, Vocabulário de Foucault, p. 412. 26 miolo.indd 26 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:25 diferentes dispositivos do poder, mas aqui estou preocupado em compreender como o amor é, também, uma tecnologia política, no que tange a articulação de múltiplas técnicas de cuidado e mutualidade. Talvez possamos chamar isto de deslocamento epistemológico, mas quero propor uma expansão – ou talvez uma ressignificação nos moldes foucaultianos. Nesse sentido, uma tecnologia política compreende um conjunto de práticas (políticas), as quais podemos chamar de técnicas, que possuem um objetivo específico. Para fins de distinção terminológica, podemos assumir técnicas enquanto meios e táticas, e tecnologias enquanto estratégias políticas, em termos foucaultianos. Com isso, quero chamar atenção para o fato de que o amor pode ser uma tecnologia de produção da vida. A vida não somente enquanto uma categoria biológica, mas também como um ato performativo produzido na prática social, sobretudo, dos movimentos sociais que lutam por justiça social. Se quisermos uma definição, podemos assumir: o amor é uma tecnologia política performativa, pois ao ser enunciado (coletivamente) produz as condições de significação da vida; torna-se possível no coletivo, na evocação mútua de uma ética de preservação e produção da vida. Em outras palavras, trata-se da hipótese inicial de hooks. Em última análise, o amor é o que produz a vida e a produz, somente, no encontro. Nesse sentido, a ética do amor é uma ética da vida e do encontro. Estamos falando, portanto, de tecnologias do encontro e de enfrentamento. Tecnologias de produção da vida, mesmo quando insistem em nos matar. E, a partir do que observamos em Jota Mombaça (“não vão nos matar agora”), Conceição Evaristo (“a gente combinamos de não morrer”) e Danez Smith (“não digam que estamos mortos”), só é possível enunciar a vida com uso da ética do amor – que produz, performativamente, a própria vida. Afinal, amor não é sentimento. Mais recentemente, no Brasil, Henrique Vieira tem realizado um importante trabalho em relação a isso. Em seu livro O amor como revolução, ele aponta que o amor é uma atitude, que “amor é amar, e amar é agir para que o outro possa ser em liberdade.”7 Assim, o amor surge como categoria ética necessária para humanizar nossas relações sociais – uma das condições importantes para o pleno reconhecimento de sujeitos que têm sido historicamente silenciados e destituídos. Nesse sentido, na esteira do pensamento de hooks, 7 VIEIRA, O amor como revolução, p. 41. Vinícius da Silva miolo.indd 27 27 24/03/2022 16:03:25 salientamos que o amor e a dominação não podem coexistir e que o amor passa por um processo de decisão política, logo, decidir amar alguém é criar justificativas éticas, mas não de violência, e sim de valorização da vida. O amor é, portanto, também, uma estratégia política, pois ele guia nossas visões de mundo e permite com que disputemos novos espaços e perspectivas rumo a um novo amanhã. Uma das maiores dificuldades quando se fala de amor é compreender como seria a dimensão das práticas do amor, sobretudo nos dias de hoje. Dessa forma, falar de uma ética do amor é afirmar que o amor em sua dimensão prática pode ser observado em pequenas atitudes do nosso cotidiano como, por exemplo, respeitar as pessoas, a integridade pessoal delas, priorizar o bem-estar humano, e até mesmo na formulação de políticas públicas etc. “Uma ética do amor pressupõe que todos têm o direito de ser livre [e] de viver plenamente e bem,” sugere hooks.8 Nesse sentido, cada ensaio deste livro constitui uma linha de pensamento que se propõe a pensar o papel do amor na teoria política contemporânea, mas que, ao mesmo tempo, não o faz da maneira mais adequada – de acordo com a epistemologia binária ocidental. Nesse sentido, este livro reflete um modo de produzir conhecimento que se efetiva no estar com as pessoas e na coletividade, ao contrário do solipsismo moderno. Estes ensaios são também autobiográficos, eles espelham as minhas experiências e aspirações teóricas. Por isso, há momentos em que os sonhos (e as experiências) se disfarçam de articulações teóricas e há momentos em que as articulações teóricas parecem ser sonhos. Mas, como sugere Paul Preciado, “não se trata aqui de ver que a vida é um sonho, mas de ver que os sonhos também são vida.”9 Por fim, é bom salientar que minha intenção com este livro não é construir bases prontas e teorias finalizadas, mas sim fornecer caminhos para que possamos pensar em novas possibilidades e até mesmo em formas de preencher as lacunas propositalmente deixadas por este projeto. Mesmo não sendo minha intenção construir uma teoria ou organizá-la, este livro apresenta um programa filosófico. Eu lhes apresento uma filosofia do porvir, do amor e da desidentificação, portanto, um projeto antifilo8 HOOKS, All About Love, p. 87. 9 PRECIADO, Um apartamento em Urano, p. 19. 28 miolo.indd 28 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:25 sófico, de certa forma, pois sequer chamarei este livro de um livro de filosofia – o que não retira a importância do programa filosófico apresentado, embora talvez ele ainda não possua consistência ontológica. Nesse sentido, este livro é, ainda assim, um livro de filosofia, pois aqui “a filosofia transforma-se numa linguagem de ficção política, que procura imaginar um mundo”, como diz Preciado.10 Que linguagem é esta, que mundo é este, são questões que talvez – mas somente talvez – sejam respondidas nas próximas páginas. Este livro chega às suas mãos para que estas perguntas ganhem sentido. Boa leitura! 10 PRECIADO, Um apartamento em Urano, p. 41. Vinícius da Silva miolo.indd 29 29 24/03/2022 16:03:25 miolo.indd 30 24/03/2022 16:03:25 Políticas do amor e sociedades do amanhã11 Uma das hipóteses centrais da teoria hooksiana do amor12 é a de que as pessoas precisam de amor. E, no contexto das dores e dos impactos do racismo na vida das pessoas que herdaram histórias coloniais, frisa-se que, para as pessoas negras, essa necessidade é imperante. Nesse sentido, entendemos o amor enquanto uma experiência que possibilita outros modos de viver menos mortificadores, que constrói e nutre laços afetivos entre nós, através de uma mutualidade sem a qual não há sujeito, pois “nós somos o resultado de nosso encontro”, como sempre afirma Luana Luna. Como salienta hooks, o amor ultrapassa a dimensão afetiva e, se valendo da metáfora da receita de bolo, requer a mistura de vários ingredientes: “cuidado, afeto, reconhecimento, respeito, comprometimento e confiança, bem como comunicação aberta e honesta.”13 Ou seja, o amor é muito mais do que um mero sentimento, como alardeado, e nem pode ser reduzido ao erotismo, embora não seja este um tipo dispensável de amor. Para mim, parece haver, ainda, uma dimensão psíquica do amor, como sugere M. Scott Peck,14 mas isso será explorado nos próximos ensaios. Voltando ao argumento, Maya Angelou, por exemplo, também afirma que o amor ultrapassa a dimensão do sentimentalismo: 11 Versão revisada e ampliada de SILVA, Vinícius Rodrigues Costa. & NASCIMENTO, Wanderson Flor. Políticas do amor e sociedades do amanhã. Voluntas: Revista Internacional de Filosofia, v. 10 (Edição Especial: Interfaces da Filosofia Africana), pp. 168-182, 2019. DOI: https://doi. org/10.5902/2179378639954 12 Como não é meu objetivo aprofundar a discussão sobre o pensamento de bell hooks neste livro, eu gostaria de fazer uma breve observação sobre a relação entre feminismo e amor, para hooks. Em O feminismo é para todo mundo (2000), especificamente, hooks salienta a relação entre amor e política feminista, uma vez que se trata de políticas antidominação. Com isso, considero ser importante salientar que hooks é necessariamente uma autora que deve ser lida como feminista revolucionária e a sua teoria feminista não deve ser apagada, sobretudo quando falamos de amor. A teoria feminista de hooks é, em certa medida, uma teoria sobre amor. Promover o apagamento destas formulações teóricas em seu pensamento é colaborar com a manutenção da supressão do pensamento feminista negro transnacional. 13 HOOKS, All about love, p. 5. 14 PECK, The Road Less Traveled, 1978. miolo.indd 31 24/03/2022 16:03:25 O amor cura. Cura e liberta. Eu uso a palavra amor não como sentimentalismo, mas como uma condição tão forte que pode muito bem ser o que mantém as estrelas em seus lugares no firmamento e faz o sangue fluir disciplinadamente por nossas veias.15 Nos dias de hoje, não nos faltam discursos sobre o amor, mas, como aponta hooks, há uma falência nas práticas do amor, sobretudo, na vida de pessoas negras. Em outras palavras, há diversos discursos e múltiplas abordagens sobre amor atualmente, mas não há uma práxis amorosa. Não há, hoje, uma política do amor. Acreditamos que falar de amor hoje é nadar contra a corrente, é desafiar o status quo16 que nos prega uma visão completamente essencialista do amor, isto é, o amor como apenas sentimento, além da alta disseminação de discursos ocidentais individualistas que tendem a nos afastar de uma ética e uma política do amor. Para hooks, o amor tem um poder transformador que é o fundamento de toda mudança social significativa e, sendo assim, sem o amor, nossas vidas não possuem significado algum, afinal, o amor é “o coração da questão”.17 Em 1963, o reverendo Martin Luther King Jr., se posicionou perante cerca de 250 mil pessoas e proferiu o seu mais famoso discurso, I Have a Dream, no qual falou sobre seu sonho de ver uma sociedade sem distinção racial, sem racismo. Embora Luther King não deixasse isso explícito nesse discurso, o sonho do reverendo só se tornaria realidade se ele estivesse fundamentado numa política do amor. Os objetivos de King sempre estiveram fundamentados sob uma ética e uma política do amor, mas a cultura dominante não. Em 1967, King salientou que: Quando falo de amor, não estou falando de uma resposta sentimental e fraca. Estou falando da força que todas as grandes religiões viram como o supremo princípio unificador da vida. O amor é de alguma forma a chave que abre a porta que leva à realidade suprema.18 15 16 17 18 32 miolo.indd 32 ANGELOU, Mamãe & Eu & Mamãe, p. 8. HOOKS, Love as the practice of freedom, p. 244. HOOKS, Salvation, p. 17. KING apud HOOKS, Salvation, p. 7. FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:25 Nesse sentido, quando o reverendo King assume e destaca a centralidade do amor em seus discursos e experiência de vida, ele se posiciona contra a cultura dominante, a qual está alicerçada em epistemologias binárias e antiamor. Assim, hooks aponta que: Luther King acreditava que o amor é, “em última análise, a única resposta” para os problemas enfrentados por esta nação e por todo o planeta. [...]. É realmente surpreendente que Luther King tivesse a coragem de falar, tanto quanto ele fez, sobre o poder transformador do amor, em uma cultura na qual esse discurso é muitas vezes visto como meramente sentimental.19 No entanto, embora King ressaltasse a extrema importância de amar nossos inimigos, ele não falava sobre o amor-próprio e a autoestima. Por isso, hooks salienta que o amor-próprio é a base do amor mútuo – isto é, é preciso que nos reconheçamos (enquanto sujeitos) e autodefinamos antes de articularmos uma dimensão coletiva e, portanto, política do amor. Segundo hooks: [...] grande parte do foco de King no amor como princípio fundamental que deve guiar a luta pela liberdade foi direcionado para defender sua crença na não violência. Enquanto ele advertia os negros repetidamente para reconhecerem a importância de amar nossos inimigos, de não odiar as pessoas brancas, ele não deu tanta atenção à questão do amor-próprio e do amor comunal entre os negros.20 Dessa forma, por mais que, para nós, os discursos de Luther King nem sempre deixassem isso nítido, eles (assim como King) se baseavam naquilo que há de mais importante entre nós e para nós: o amor. E hooks enxergava em King, e em suas práticas, a centralidade explícita do amor. Com este livro, estou interessado em explicitar o caráter político do amor enquanto uma saída para a crise que, segundo nossa autora, faz com que nós, enquanto povo, 19 HOOKS, Love as the practice of freedom, p. 247. 20 HOOKS, Salvation, p. 7. Vinícius da Silva miolo.indd 33 33 24/03/2022 16:03:25 percamos o nosso coração. “Nossa crise coletiva é uma crise tanto emocional quanto material. Não pode ser solucionada simplesmente com dinheiro.”21 A partir disso, seguindo a linha de pensamento de hooks, uma política do amor se basearia em permitir que o amor guie nossas visões de mundo ao disputarmos o bem comum a todas as pessoas que vivem numa comunidade. A política do amor e a ética do amor são categorias dialéticas, uma vez que se complementam na medida em que servem de instrumentos para o convívio social, no que tange às condições de reconhecimento. Em última análise, a ausência do amor enquanto política desencadearia a falta de esperança generalizada. No entanto, conforme hooks: O amor permanece para os negros um caminho crucial para a cura. Em retrospecto, é claro que, se não criarmos uma base de amor sobre a qual construirmos nossas lutas pela liberdade e autodeterminação, as forças do mal, da ganância e da corrupção minam e acabam destruindo todos os nossos esforços. Não é tarde demais para os negros retornarem ao amor, para perguntar de novo as questões metafísicas comumente levantadas por artistas e pensadores negros durante o auge das lutas pela liberdade, questões sobre a relação entre desumanização e nossa capacidade de amar, questões sobre racismo internalizado e autoódio.22 As ideias postas em jogo na percepção que hooks nos traz sobre o amor depreende sua dimensão ética na medida em que oferece elementos para que os valores que utilizamos para guiar nossas relações com os outros e conosco mesmos seja balizado pela dimensão de uma decisão, de um ato de amar – e de se deixar ser amado. Na dimensão política, permite que as feridas abertas – e que precisam ser curadas – pelo racismo deixado pela história colonial, e cotidianamente reforçadas em dinâmicas de poder, possam ser enfrentadas em uma dimensão coletiva, que permita um fortalecimento mútuo na construção de sociedades mais justas e menos opressivas. Neste momento, essa articulação nos parece suficiente. Quando essa meta (ter o amor enquanto política) não é alcançada, a falta de uma práxis do amor desencadeia o que Achille Mbembe chama de “sociedades de inimizade”. O processo de construção e consolidação das so21 HOOKS, Salvation, p. 4. 22 HOOKS, Salvation, p. 14. 34 miolo.indd 34 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:25 ciedades de inimizade remonta ao colonialismo, ou seja, essas sociedades são, por definição, herdeiras das dinâmicas de poder colonial. Segundo Achille Mbembe, a finalidade do colonialismo “era inscrever os colonizados no espaço da modernidade.”23 Inscrever determinados corpos no espaço da modernidade significa, forçosamente, objetificá-los e tratá-los com violência, afinal, esses corpos não eram vistos enquanto humanos, já que precisam ser inscritos num espaço dolorosamente colonial. É também no colonialismo que das dificuldades coletivas de saber o que é amar começam, como enfatiza bell hooks: Nossas dificuldades coletivas com a arte e o ato de amar começaram a partir do contexto escravocrata. Isso não deveria nos surpreender, já que nossos ancestrais testemunharam seus filhos sendo vendidos; seus amantes, companheiros, amigos apanhando sem razão. Pessoas que viveram em extrema pobreza e foram obrigadas a se separar de suas famílias e comunidades, não poderiam ter saído desse contexto entendendo essa coisa que a gente chama de amor. Elas sabiam, por experiência própria, que na condição de escravas seria difícil experimentar ou manter uma relação de amor.24 O que acontece, de acordo com hooks, é que nos resta uma herança colonial que nos impede de amar, pois esta promove uma imagem da alteridade que se instala na forma do inimigo, pois produz “uma gama de sofrimentos que não desencadeavam como resposta nem uma tomada de responsabilidade, nem solicitude, nem simpatia e nem sequer piedade”.25 Desde o século XIX, os Estados modernos garantem sua efetiva ação através da política de morte, aquilo que Mbembe nomeia de necropolítica. De lá para cá, os Estados são Estados, necessariamente, de guerra, onde a busca maior é por exterminar o Outro. Em sua obra Políticas da Inimizade, Achille Mbembe argumenta que, numa sociedade de inimizade: Já não passa claramente por alargar o círculo, mas por tornar as fronteiras formas primitivas para afastar inimigos, intrusos e estrangeiros – todos aqueles que não são dos 23 MBEMBE, Crítica da razão negra, p. 175. 24 HOOKS, Vivendo de Amor, p. 189. 25 MBEMBE, Políticas da Inimizade, p. 13. Vinícius da Silva miolo.indd 35 35 24/03/2022 16:03:25 nossos. Num mundo mais do que nunca caracterizado pela desigualdade no acesso à mobilidade e onde, para muitos, o movimento e a circulação são a única hipótese de sobreviver, a brutalidade das fronteiras é agora um dado fundamental do nosso tempo. As fronteiras deixam de ser lugares que ultrapassamos, para serem linhas que separam. (...). A guerra não só se instalou como fim e como necessidade na democracia, mas também na política e na cultura. Tornou-se o antídoto e o veneno – o nosso pharmakon. A transformação da guerra em pharmakon da nossa época, em contrapartida, libertou paixões funestas que, pouco a pouco, empurram as nossas sociedades para fora da democracia, transformando-as em sociedades da inimizade, como aconteceu durante o colonialismo.26 Em sociedades de inimizade, que também são sociedades onde o poder necropolítico atua incessantemente, o inimigo é o Outro, aquele que está marcado com um “signo da morte.”27 A pele negra, nesse contexto, é um signo da morte. Ou seja, o negro é o inimigo. Nesse contexto, o “inimigo” não é somente o oposto do “amigo”, mas aquele que deve ser, a qualquer custo, exterminado. E este morto, exterminado, não tem sua morte entendida como trágica, como algo que mereça ser sentido, chorado, é “uma morte à qual ninguém se sente obrigado a responder. Ninguém tem qualquer sentimento de responsabilidade ou de justiça no que respeita a esta espécie de vida ou esta espécie de morte.”28 Esse cenário instaura “uma guerra que opõe as espécies entre si, e a natureza, aos seres humanos.”29 Sobre isso, a partir do pensamento de Carl Schmitt, Mbembe salienta que: O inimigo de que Schmitt fala não é um simples concorrente ou adversário, nem um rival privado que odiamos ou por quem temos antipatia. Remete para um antagonismo supremo. No seu corpo e na sua carne, é aquele a quem se pode provocar a morte física, porque ele nega, de modo existencial, o nosso ser.30 26 27 28 29 30 36 miolo.indd 36 MBEMBE, Políticas da Inimizade, p. 10-11. CARNEIRO, A construção do Outro como não-ser como fundamento do ser, p. 72. MBEMBE, Políticas da Inimizade, p. 65. MBEMBE, Políticas da Inimizade, p. 31. MBEMBE, Políticas da Inimizade, p. 82. FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:25 Uma sociedade de inimizade tem como paradigma organizador uma(s) política(s) de morte, para a qual o desejo fundamental, nas relações humanas, torna-se aquele de exterminar aqueles que não são iguais a “nós”. A partir disso, devemos estar atentos para uma das principais características da sociedade de inimizade: a substituição da relação de cuidado pela relação sem desejo. Nas palavras de Mbembe, “no interior de sociedades que não param de multiplicar os dispositivos de separação e de discriminação, a relação de cuidado foi substituída pela relação sem desejo”.31 Em sociedades de inimizade, as condições de reconhecimento, como sabemos, são organizadas a partir de uma dialética da outrificação, ou seja, é preciso que haja um outro para que eu me reconheça enquanto sujeito. Na história das teorias da sujeição, desde Hegel,32 por exemplo, nem sempre as condições de reconhecimento e, portanto, de tomada de consciência foram estabelecidas a partir de condições de satisfação, digamos assim, do sujeito. A consciência das contradições do ato de se tornar um sujeito, por exemplo, é o que Hegel chama de consciência infeliz. Nesse sentido, chamo atenção para o fato de que, mesmo que as condições de reconhecimento (a menos que atuemos a partir de outra gramática ontológica) sejam sempre hierárquicas, as relações das quais Mbembe falam se configuram a partir de condições incompletas de sujeição ou de um não-reconhecimento do indivíduo. Dessa forma, as relações de cuidado são relações em que há um pleno reconhecimento e as relações sem desejo são relações de não-reconhecimento, onde a vida deste Outro não possui um estatuto ontológico que a classifique enquanto vida. As sociedades de inimizade estão intrinsecamente ligadas a Estados genocidas de modo que os signos da morte sejam marcadores centrais para o estabelecimento de uma política da diferença e do des/reconhecimento. Por isso, a política do amor não é consoante à sociedade de inimizade, não há coexistência possível. A nossa hipótese evidencia a construção de uma nova sociedade na qual o amor seja, de fato, profundamente político. Essa sociedade, portanto, não existe. Devemos imaginá-la. E por conta disso, ainda não tem nome, mas, por ora, a chamaremos de sociedade do amanhã, na qual a prática do amor possa ser o esteio para relações das pessoas consigo e com as 31 MBEMBE, Políticas da Inimizade, p. 104-105. 32 HEGEL, A fenomenologia do espírito, seção IV. Vinícius da Silva miolo.indd 37 37 24/03/2022 16:03:25 outras. A sociedade do amanhã é uma sociedade em que a política é baseada em um desejo amoroso de que os encontros, mesmo quando atritados, não precisem ser destinados ao ímpeto de exterminar a figura do outro entendido como inimigo. O amor, então, não deixa de ser conflito,33 mas não organiza mais relações de poder e de opressão. Nesse sentido, enquanto as políticas do amor não forem inseridas diretamente em nossas vidas e relações, não avançaremos enquanto militantes, professores, teóricos, mas, sobretudo, não avançaremos enquanto seres humanos, rumo à outra gramática ontológica e operadora. Assim, falar e defender a aplicabilidade da ética e da política do amor nas sociedades de inimizade (transformando-as em sociedades do amanhã), e de termos o amor enquanto orientação moral, é romper com o silêncio imposto pelo projeto colonial. Aquele que, por mais que nos digam o contrário, sabemos que não acabou. bell hooks salienta que: O amor é profundamente político. Nossa revolução mais profunda virá quando entendermos essa verdade. Só o amor pode nos dar força para avançar no meio do desgosto e da miséria. Somente o amor pode nos dar o poder de reconciliar, redimir, o poder de renovar os espíritos cansados e salvar as almas perdidas. O poder transformador do amor é o fundamento de toda mudança social significativa. Sem amor nossas vidas são sem significado. O amor é o coração da questão. Quando tudo mais se for, o amor sustenta.34 Dito isso, é preciso, então, que nos voltemos à outra questão importante para hooks: o espírito. Ao contrário da tradição moderna ocidental que insiste em distinguir espírito e matéria, razão e emoção, a questão do espírito diz respeito à nossa capacidade de estarmos em comunidade.35 Abordando o amor romântico, Sobonfu Somé ressalta que: 33 VIEIRA, O amor como revolução. 34 HOOKS, Salvation, p. 17. 35 Ressaltando a importância do espírito na construção da comunidade, Somé aponta que: “Quando povos tribais falam de espírito, estão, basicamente, referindo-se à força vital que há em tudo. (...). Espírito é a força que nos ajuda a nos unir.” (O Espírito da Intimidade, p. 26). 38 miolo.indd 38 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:25 A separação do espírito, como vemos aqui no Ocidente, tem como consequência fazer as pessoas darem uma importância desmedida ao amor romântico. Essa separação cria um forte desejo por outra pessoa, faz ansiar por uma forma de conexão. O amor romântico, porém, é apenas uma forma de descobrir essa outra conexão, que é a do espírito, aquela que de fato estamos procurando.36 Nesse sentido, ao buscarmos uma ética e uma política do amor, devemos, necessariamente, estar conectados com o nosso espírito, o qual tem um papel muito importante na construção da mutualidade revolucionária. A compreensão de Somé ressalta que “não se pode ser nada sem o espírito”.37 Nesse sentido, as “necessidades do espírito só podem ser satisfeitas quando cuidamos da alma. Nossos ancestrais sabiam disso.”38 Em outras palavras, para construirmos sociedades do amanhã, nas quais as políticas do amor ocupam um lugar central nas relações humanas, precisamos, antes, cuidar do nosso espírito. Nesse sentido, o espírito ocupa um lugar central em nossa busca por uma política do amor. É a partir dele que nossas relações podem ser humanizadas deixando, assim, de ser relações sem desejo. O espírito possibilita, a partir dessa perspectiva, a efetividade da relação de cuidado, onde a vida do outro importa tanto quanto a minha. Esse é um fator importante para as sociedades do amanhã. Nestas sociedades a mutualidade deve ocupar um lugar central, por isso devemos compreender as sociedades do amanhã enquanto baseadas numa lógica comunitária. O que nos interessa, de certa forma, aqui é o fato de que essa noção de comunidade não existe em sociedades de inimizade. O poder necropolítico jamais seria admitido nas sociedades do amanhã, afinal, as vidas possuiriam valor imprescritível e central, sendo a condição para que a prática do amor se exercesse: não seria possível conciliar o desejo e necessidade de viver em comunidade com uma política da morte. Nesse sentido, para a construção de sociedades do amanhã, precisamos, necessariamente, deslocar nossas compreensões ontológicas existenciais rumo à proposta de uma nova gramática ontológica e operadora. 36 SOMÉ, O Espírito da Intimidade, p. 33. 37 WELLER & WELLER, Prefácio de O Espírito da Intimidade, p. 7. 38 HOOKS, Salvation, p. 15. Vinícius da Silva miolo.indd 39 39 24/03/2022 16:03:25 Nesse sentido, vale ressaltar ainda que quando nós, a partir de uma percepção biocêntrica da realidade, falamos do valor da vida e que, em nossos projetos de sociedade, todos os seres vivos devem existir com a mesma dignidade, devemos chamar atenção para o fato de que a concepção de vida não se restringe somente às “pessoas”. A filosofia indígena, por exemplo, salienta que “os organismos da Mãe Terra são partes do corpo, extensões do espírito e [da] consciência.”39 Em última análise, ao pleitearmos a consolidação de uma sociedade do amanhã, devemos estar, obrigatoriamente, pautados numa política e numa ética do amor. bell hooks salienta que “uma cultura de dominação é antiamor. Exige violência para se sustentar. Escolher o amor é ir contra os valores predominantes dessa cultura.”40 Isso significa que sociedades do amanhã não se pretendem enquanto sociedades de dominação, pois não há uma lógica violenta organizando este projeto. É importante salientar o papel do amor neste processo construtivo e que isso, como é de se esperar, pode levar tempo. No entanto, parafraseando hooks, quando nada mais tivermos, ainda assim teremos o amor e é através dele que nosso projeto de sociedade se consolidará. Políticas de conversão e ética do amor Tendo em vista o contexto político e espiritual das comunidades afro-estadunidenses dos anos 90, presente na análise de Cornel West, surge a proposta das políticas de conversão, as quais buscam pôr fim às “ameaças do niilismo41 concreto.”42 De acordo com West, “novos modelos de liderança negra coletiva devem promover uma versão dessas políticas.”43 Trata-se da promoção de um contexto fértil para a mobilização coletiva e articulação de mudanças sociais. Sobre as ameaças do niilismo, West dirá que: 39 MACHADO, Comunicação ancestral e filosofia indígena: a educação da mãe terra, p. 515. 40 HOOKS, Love as the practice of freedom, p. 246. 41 Para West, em sua obra, o niilismo deve ser compreendido não como uma doutrina filosófica, mas como a condição de viver uma vida “sem significado, sem esperança e (mais importante) sem amor.” (Race Matters, p. 23). 42 WEST, Race Matters, p. 29. 43 WEST, Race Matters, p. 29. 40 miolo.indd 40 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:25 De fato, o maior inimigo da sobrevivência do negro na América foi, e ainda é, não a opressão nem a exploração, mas a ameaça niilista – ou seja, a perda de esperança e a ausência de propósito. Isso porque, enquanto a esperança perdura o significado da vida preservado, a possibilidade de sobrepujar a opressão permanece viva. A ameaça niilista encerra uma profecia que se cumpre justamente porque foi feita: sem esperança não pode haver futuro; sem propósito, não pode haver luta.44 A articulação de West sobre os efeitos do niilismo é importante porque é justamente a partir desse contexto de falência espiritual e subjetiva que hooks articula o amor enquanto sendo, principalmente, uma categoria que dá sentido à vida. E se o amor é o que dá sentido à vida, ele é, também, a resposta direta às ameaças niilistas. Conforme hooks, “mesmo quando não podemos mudar a exploração e dominação em curso, o amor dá sentido, propósito e direção à vida.”45 Nesse sentido, as políticas de conversão são, também, políticas de responsabilidade ética, de modo que haja uma nova articulação da dialética do reconhecimento entre os indivíduos. Para as políticas de conversão, a “relação de cuidado” de Mbembe é central. A minha hipótese com noção de amor é a de que a conversão de West se relaciona diretamente com a proposição de uma nova gramática ontológica, que articula necessariamente um horizonte a partir do qual a mutualidade revolucionária fundada na ética do amor poderá ser reconstituída. No entanto, a abordagem fundamentada em conceitos cristãos coloca algumas pedras no nosso caminho... Para a teoria do amor, portanto, esta discussão deve ser feita de modo que compreendamos a importância das políticas de conversão na proposição, sobretudo a partir do pensamento de hooks, de um novo paradigma social que organizará as relações humanas a partir de outros princípios ontológicos, de modo que as diferenças não mais articulem sistemas de opressão e dominação, como sugere hooks em Killing Rage. A proposta de uma ética do amor nasce com a proposta das políticas de conversão – ou, melhor dizendo, é a condição para as políticas de conversão. De acordo com Cornel West, as políticas de conversão se propõem a construir um novo paradigma civilizatório. 44 WEST, Race Matters, p. 29. 45 HOOKS, Salvation, p. xxiv. Vinícius da Silva miolo.indd 41 41 24/03/2022 16:03:25 Mas há sempre uma chance para a conversão – uma chance para as pessoas acreditarem que há esperança para o futuro significado para a luta. Essa chance não se baseia em um acordo sobre no que consiste a justiça tampouco em uma análise de como o racismo, o sexismo ou a subordinação de classe opera. Tais argumentos e análises são indispensáveis. Mas uma política de conversão exige mais.46 Os apontamentos de West mobilizam um horizonte complexo de análise, onde precisamos pensar as determinações e articulações práticas da responsabilidade ética. No entanto, o filósofo já fornece o caminho que devemos seguir: o amor. Segundo West, “a ética do amor deve ser o centro da[s] política[s] de conversão.”47 Nesse mesmo sentido, hooks afirma que “somente uma política de conversão onde retornamos ao amor pode nos salvar.”48 O amor, nesse sentido, não se refere a “sentimentos ou conexões tri49 bais,” mas sim ao princípio ético a partir do qual as políticas de conversão se organizam. Para hooks, é preciso saber o que queremos dizer quando falamos de amor – é preciso estabelecer um enquadramento linguístico a partir do qual os sentidos do amor serão estabelecidos. Por isso, hooks reivindica uma definição clara e concisa do amor para que a partir disso possamos avançar enquanto coletividade. O movimento que hooks faz é um dos princípios básicos da ação política, conforme pensada por Hannah Arendt, por exemplo, o estabelecimento de consensos e acordos. O amor no pensamento de bell hooks O amor é um termo em disputa. Não há postulados corretos ou errados acerca de sua existência. Nesse sentido, a única pretensão que articulo é a de fornecer os enquadramentos epistemológicos necessários para que possamos abordar o assunto dentro do âmbito das disputas políticas e do debate 46 47 48 49 42 miolo.indd 42 WEST, Race Matters, p. 29. WEST, Race Matters, p. 29. HOOKS, Salvation, p. 15. WEST, Race Matters, p. 29. FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:25 qualificado sobre amor. Conforme Scott M. Peck, “o amor é um ato de desejo – nominalmente, tanto uma intenção quanto uma ação. O desejo implica, também, em [realizar] escolha[s]. Nós não temos que amar. Nós escolhemos amar.”50 Isto estabelecido, considero ser importante compreender o amor enquanto um produto de nossos acordos coletivos, a partir dos quais escolhemos um novo princípio organizador das nossas dialéticas do reconhecimento diárias. No entanto, há alguns desafios, de acordo com Henrique Vieira: O desafio é retirar o amor de um lugar romântico, circunscrito à vivência de um casal. Pensem em como algumas palavras, de tão usadas, tornaram-se vazias de significado. “Amor” não pode ser uma delas. (...) Essa ideia do amor como um sentimento abstrato e relacionado unicamente à vivência de um casal pode criar alguns paradoxos. Se o amor fica circunscrito, pode conviver com as maiores atrocidades do mundo. Como um mero sentimento, vazio de uma ética generosa, o amor pode coexistir com o racismo, o machismo, a LGBTfobia, a violência, e por aí vai.51 A análise de Vieira é importante, pois ela dialoga com um aspecto essencial do pensamento de hooks, o de reduzir o amor ao status de sentimento, desprovido de ação política. Para hooks, essa compreensão do amor impossibilita a sua articulação coletiva, pois o coloca na mesma dimensão da dominação capitalista e patriarcal. Fazendo isso, como bem aponta Vieira no trecho citado, permitimos que o amor seja justificativa para estratégias de dominação. Isso revela a imperante necessidade que as pessoas parecem ter em relação ao amor, de modo que elas precisam ser amadas para viverem bem – e não importa o “preço” deste amor. Distanciando-se dessas compreensões e apropriações liberais – a partir das quais o amor se torna produto –, hooks nos alerta para não nos sentirmos atraídos por abordagens reducionistas do amor que o restringe a dimensões afetivas. É preciso, nesse sentido, entender o amor enquanto um princípio 50 PECK, The Road Less Traveled, p. 83. 51 VIEIRA, O amor como revolução, p. 38. Vinícius da Silva miolo.indd 43 43 24/03/2022 16:03:25 básico das transformações sociais. O amor é tudo aquilo que permite com que nos unamos para disputar o bem comum. Conforme hooks, “em nossa sociedade, todos os grandes movimentos sociais por libertação e justiça promoveram uma ética do amor,”52 reafirmando que o amor é uma prática da liberdade, uma vez que, como sugere Vieira, “amar é agir para que o outro possa ser em liberdade.”53 Nesse sentido, para hooks e Vieira, a teoria do amor é uma teoria da libertação do sujeito. “Assim, o amor desobedece às regras e leis injustas, posicionando-se contra o que maltrata a vida.”54 Significativamente, sempre foi o amor que criou a motivação para uma profunda transformação interna e externa. O amor era a força que capacitava as pessoas a resistir à dominação e criar novas formas de viver e estar no mundo. (...). Engajar-se na prática do amor é opor-se à dominação em todas as suas formas. Amar nos levará necessariamente além da raça, além de todas as categorias que visam limitar e confinar o espírito humano. A dominação nunca terminará enquanto formos ensinados a desvalorizar o amor. (...). O amor como um modo de vida torna possível a todos nós vivermos humanamente dentro de uma cultura de dominação enquanto trabalhamos pela mudança.55 A partir dessa compreensão, hooks revela uma das principais características da teoria do amor – a desmantelação das matrizes de dominação. O amor é um movimento de libertação, é uma categoria que, embora seja nomeada, não se restringe aos enquadramentos linguísticos produzidos pelo exagerado desejo classificatório que atravessa as nossas percepções. A partir da obra de hooks, Nancy E. Nienhuis aponta que “uma ética do amor [faz com que nos comprometamos] com a transformação social, onde a injustiça contra qualquer grupo [precarizado] é intolerável.”56 Nesse 52 HOOKS, All About Love, p. 98. 53 VIEIRA, O amor como revolução, p. 41. 54 VIEIRA, O amor como revolução, p. 46. 55 HOOKS, Trechos de Writing Beyond Race, 2013. 56 NIENHIUS, “Revolutionary Independence”: bell hooks’s Ethic of Love as a Basis for a Feminist Libera-tion Theology of the Neighbor. In: DAVIDSON & YANCY (eds.). Critical Perspectives on bell hooks. New York, Routledge, 2009, p. 206. 44 miolo.indd 44 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:25 sentido, Nienhuis contribui para a nossa proposta de formulação de uma teoria do amor que se mobiliza a partir das políticas de conversão, sugerindo que o amor possui um grande potencial para desmantelar o patriarcado e, assim, faz com que reconheçamos do Outro como nosso semelhante, desfazendo a possibilidade de dominação violenta. Embora nosso horizonte de análise nos coloque um problema complexo, não obstante fornece caminhos para seguir em direção a outros futuros. O amor, certamente, não resolverá todos os problemas colocados ao longo de nossas análises, e não se sabe até que ponto apenas resolver problemas auxilia em alguma coisa. “Mas ele certamente cria as condições que propiciarão uma mudança significativa.”57 57 GLASS, Love Matters: bell hooks on Political Resistance and Change. In: Davidson & Yancy (eds.). Critical Perspectives on bell hooks, 2009, p. 182. Vinícius da Silva miolo.indd 45 45 24/03/2022 16:03:25 miolo.indd 46 24/03/2022 16:03:25 Tem saída? considerações introdutórias sobre racismo ambiental e horizontes para a construção de um novo mundo Quando tive meu primeiro contato com os estudos sobre racismo ambiental, eu buscava respostas à grande pergunta “por que minorias étnicas estão mais propensas a serem impactadas negativamente por acontecimentos da natureza [deslizamentos, chuvas fortes, etc.]?” A partir da bibliografia adequada, articulei-me para escrever aquilo que se tornaria, pouco tempo depois, um projeto de pesquisa sobre racismo ambiental - o qual escrevi com Luara Magano, sob orientação dos professores Luiggia Girardi e Elton Simões. De alguma forma, para além de todas as análises e levantamentos de dados que realizamos, nosso projeto buscava responder à outra questão, igualmente importante, “o que legitima a precarização dessas populações [afetadas pelo racismo ambiental] e a condição de inevitabilidade das situações de desumanização às quais essas populações são submetidas?” O que se segue é um diálogo, realizado em novembro de 2020, que é fruto de uma articulação mais antiga. Aqui, converso com Andressa Dutra – gestora ambiental, pesquisadora e uma das minhas principais interlocuções no campo do racismo ambiental - sobre as dinâmicas das injustiças e do racismo ambiental e sobre os possíveis horizontes de resistência que temos pensado a partir disso. Vale ressaltar que essas interlocuções, aqui transcritas, também são informadas pelos extensos diálogos que tecemos em nossa rede de ambientalistas negros, com Luara Magano, Rafaela Dornelas, Victor de Jesus, Ciro Brito e Erley Bispo. Vinícius da Silva: Acredito que, talvez, um dos pontos de partida para a discussão sobre injustiças ambientais seja a compreensão das dinâmicas do desenvolvimento capitalista no Brasil e no mundo. A globalização capitalista e miolo.indd 47 24/03/2022 16:03:25 suas múltiplas formas de acumulação de capital têm afastado a maioria da população do planeta da natureza. Em nome do “desenvolvimento” explora-se os recursos naturais e mercantiliza-se a vida. A partir desse processo, a natureza torna-se um commodity, um produto do capitalismo neoextrativista, algo a ser explorado, comercializado e convertido em lucro, para que o “desenvolvimento” (neocolonial) se materialize. Nesse sentido, é interessante observar como essas comodificações acontecem, o que acha? Andressa Dutra: É por esse caminho que acredito que devemos seguir. Até cabe ressaltar nesse primeiro momento um termo de Jason Moore - Capitaloceno, que se porta como um produtor de crises e catástrofes, abandonando qualquer traço de historicidade. Esse termo propõe que além do antropoceno, o sistema econômico é o que de fato domina e deteriora os sistemas terrestres, nesse período, a ciência é desenvolvida para subjugar a natureza como “substrato de dominação”. Os problemas atuais existentes na terra tratam-se então, do resultado impensado da valorização dos muitos capitais individuais no mercado mundial. Sendo assim, o capital vai colaborar para o estudo e a compreensão das “leis” da natureza para aplicá-las na produção de mercadorias. Um dos reflexos do modo como o homem se desenvolveu no seu meio ambiente, impulsionado pelo atual modelo econômico, é a perda de habitats naturais, de cobertura vegetal original dos ambientes, que acabam por precarizar a vida. De acordo com Alberto Acosta, a racionalidade desenvolvimentista faz parte de um projeto colonial de exploração, onde um marco desse processo é a ruptura moderna entre humanidade e natureza; “[p] rodução e consumo se tornam, assim, uma espiral interminável, esgotando os recursos naturais da maneira irracional e acirrando ainda mais a tensão criada pelas desigualdades sociais.” Vinícius da Silva: De fato, o atual modelo econômico parece ter tido (para não assumir uma totalidade) uma grande influência na construção das nossas relações com a natureza e, consequentemente, com os outros, de forma que o critério de reconhecimento e valorização seja estabelecido por uma espécie de rentabilidade que divide e classifica a vida na Terra. A exploração intensa dos recursos naturais, que marcou os séculos XIX e XX e deu origem a um 48 miolo.indd 48 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:25 modelo de sociedade urbano-industrial, culminou em impactos socioambientais negativos, tais como a crise ecológica que vivemos hoje, as desigualdades socioambientais, a (in)capacidade de resposta de populações mais vulneráveis e sua própria vulnerabilidade. Eu acredito, nesse sentido, que a discussão sobre injustiças ambientais e racismo ambiental deve ter como ponto de partida o questionamento “o que é uma vida?”. Realizar essa pergunta pressupõe, por um lado, que ao definirmos vida, deixaremos de lado aquilo que não é uma vida; mas, por outro lado, trata-se de um questionamento importante, pois é a partir dele que podemos analisar e avaliar as formas pelas quais as políticas públicas, os serviços de saneamento básico, o acesso a condições básicas de moradia, apenas para citar alguns exemplos, são distribuídas de acordo com as populações. Andressa Dutra: Essa distribuição que hierarquiza e gerencia as populações tem como consequência a vulnerabilização e precarização da vida, esse fator se porta como um projeto de organização populacional. Sendo assim, a distribuição desses exemplos que você citou não é feita de acordo com as regiões nobres do estado. Essas regiões são nobres necessariamente porque a distribuição de equipamentos, serviços e direitos públicos é feita de forma a construir tais valores simbólicos e econômicos atribuídos a essas regiões. A partir dessa compreensão acerca da distribuição de serviços de manutenção à vida, podemos então levantar a hipótese de que as regiões com maior concentração percentual de minorias raciais serão, consequentemente, mais afetadas. Realmente, o termo desigual é muito expressivo para essas análises, pois como trata Juan Martínez Alier, “os impactos são desiguais diferindo quando as áreas são habitadas por ricos e pobres, por brancos e por minorias étnicas”. Configura-se assim uma relação lógica entre a acumulação de riqueza e a contaminação do ambiente. O desenvolvimento se mantém desigual e combinado ao processo de acumulação capitalista, gera o uso desigual dos recursos naturais pelos países de renda mais elevada. Vinícius da Silva: Exatamente. Acho que a este ponto, é importante contextualizar a questão da produção de vida e como sua precarização ocorre. A passagem do século XVIII para o século XIX é marcada, como diria o Vinícius da Silva miolo.indd 49 49 24/03/2022 16:03:25 filósofo francês Michel Foucault, por algumas mudanças governamentais no que tange à soberania e, necessariamente, o poder sobre as populações e gestão dessas. De acordo com Judith Revel, a forma pelo qual o poder se transformou entre o fim do século XVIII e início do século XIX, com a finalidade de governar não apenas os indivíduos, através de procedimentos disciplinares, mas também o conjunto de pessoas constituídas em população. Nesse sentido, a ausência de um determinado tipo de política pública configura um quadro biopolítico de modo que parte da população sofra de forma desigual com a sua ausência, por exemplo. Nas palavras de Silvio Almeida: “A saúde pública, o saneamento básico, as redes de transporte e abastecimento, a segurança pública, são exemplos do exercício do poder estatal sobre a manutenção da vida, sendo que sua ausência seria o deixar morrer.” Na transição do século XIX para o século XX, os contornos se tornaram ainda mais específicos, de modo que coubesse à atuação do Estado não somente governar os corpos e segregar as populações, mas também tangenciar o extermínio de determinados segmentos populacionais. Isso é o que Achille Mbembe chama de necropolítica, ou seja, o poder de ditar quem deve viver e quem deve morrer. É um poder de determinação sobre a vida e a morte ao desprover o status político e ontológico dos sujeitos. O Estado moderno neoliberal utiliza da necropolítica para mercantilizar os corpos e os corpos não rentáveis deverão ser deixados à morte. Nas palavras de Mbembe, “na economia do biopoder, a função do racismo é regular a distribuição da morte e viabilizar as funções criminosas do Estado.” Esse “novo” modo de governar é uma função do Estado com o sentido de promover a exclusão/eliminação das populações mais pobres (que no Brasil e/ou na diáspora africana, são, também, as populações negras e mais vulneráveis) por não serem rentáveis. A necropolítica existe para que a dominação da elite seja mais efetiva. É uma estratégia de extermínio onde as populações, predominantemente negros e pobres, são cada vez mais marginalizados, esquecidos no que diz respeito à disponibilidade de recursos essenciais à vida. A necropolítica fere diretamente a constituição brasileira que garante qualidade de vida, direitos humanos e equidade social. Um conjunto de ações políticas permite a existência da necropolítica. Em sua essência, sempre direcionada a corpos vulnerabilizados e em sua maioria, negros ou pertencentes a alguma comunidade tradicional. Dentro desses grupos, a iminência de tais ações é alarmante. 50 miolo.indd 50 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:25 Podendo-se destacar como exemplo, os inúmeros casos de racismo ambiental existentes. Por fim, é necessário compreender a existência de uma lógica de poder, por exemplo, na escolha das áreas que serão exploradas e como essas áreas serão exploradas, danificando a vida e saúde de povos marcados por sua identidade racial, como negros, indígenas, latinos e asiáticos. Podemos trazer à tona a discussão sobre o que hoje em dia chamamos de gentrificação climática para nos referir a estratégia de escolha dessas áreas exploradas, áreas que passam a se tornar interessantes para a classe média e/ou elite e geram a expulsão de antigos moradores com o aumento do preço da terra. Em uma escala global, com a mudança de clima e aumento do calor, os que detém mais poder vão migrar para áreas mais frescas, menos inóspitas e com menores impactos de desastres. Isso aumentaria, certamente, o valor da terra nesses territórios, expulsando nativos e impedindo o acesso de pessoas mais pobres. Em outras palavras, nós estamos vivendo um momento extremamente complexo e crítico no que se diz respeito à produção e gestão da vida (ou da morte, né?). Andressa Dutra: Essa fala do Silvio Almeida que você cita tem muitos significados, historicamente, as populações negras vêm sofrendo com a falta de saneamento básico em diversas regiões, um exemplo disso pode ser observado quando analisamos as condições de precarização da vida na Região Hidrográfica da Baía de Guanabara – RHBG, no Rio de Janeiro, e apesar deste debate acerca da produção de vida e como sua precarização ocorre estar sendo racializado de forma mais acentuada atualmente, saneamento e raça/ racismo possuem uma relação tão antiga quanto a colonização, como diria Victor de Jesus. Diante disso que você expôs, podemos entender então como o racismo ambiental atua de forma conjunta à necropolítica, e essa “cumplicidade” é importante para considerar essas e tantas outras questões, levando em consideração a relação entre raça/racismo e meio ambiente, Bem Viver e território. Nesse sentido, o genocídio da população negra não se dá somente pela “morte matada”, por assim dizer, mas constitui também toda uma lógica de exclusão baseada na nossa identidade racial (criando intersecções com gênero, classe, idade etc.) que faz com que vidas sejam descartadas dentro do sistema. Isso se concretiza pelo não acesso a tratamentos de saúde, por contaminação do meio, pelo não cuidado com doenças psicológicas etc. Nesse sentido, é Vinícius da Silva miolo.indd 51 51 24/03/2022 16:03:25 importante contextualizar o termo Racismo Ambiental que surgiu em 1981, criado pelo Dr. Benjamin Franklin Chavis Jr a partir de suas investigações e pesquisas entre a relação de resíduos tóxicos e a população negra norte-americana. Retrocedendo um pouco, historicamente falando, temos o conceito de Justiça Ambiental, que surge nos Estados Unidos, no ano de 1978, a partir da tomada de consciência de uma comunidade de operários, residentes em Love Canal, em Niagara Falls, que estavam vivendo acima de um aterro de resíduos tóxicos, articulando-se posteriormente para exigir reparação de danos ao poder público quanto à saúde dos que ali viviam e o direito à informação. Marcelo Lopes de Souza em seu livro Ambientes e territórios, salienta que as ocorrências de injustiças ambientais podem ser classificadas em termos de racismo e classismo ambiental, no entanto, a ocorrência de racismo ambiental é mais violenta e recorrente, sobretudo, no Brasil, um país estruturalmente racista. O conceito de justiça ambiental ganha maior importância política a partir do “Movimento Contra o Racismo Ambiental”, a perspectiva surge exatamente a partir de mobilizações que se opuseram a casos locais de racismo ambiental. A pesquisadora Selene Herculano define racismo ambiental como sendo o conjunto de ideias e práticas das sociedades e seus governos, que aceitam a deterioração ambiental e humana, justificando-se na busca pelo desenvolvimento e pela naturalização implícita da inferioridade de determinados segmentos da população afetados – negros, índios, migrantes, extrativistas, pescadores, trabalhadores pobres, que sofrem os impactos negativos do crescimento econômico e a quem é imputado o sacrifício em prol de um benefício para os demais. O conceito está relacionado às injustiças sociais e ambientais que recaem desproporcionalmente sobre os grupos mais vulneráveis. Segundo Herculano, o racismo ambiental está principalmente ligado à injustiça racial e na evidência de que grupos racializados sofrem de forma desequilibrada os custos sociais de maneira geral. Vinícius da Silva: Voltando à discussão sobre os processos de validação e constituição da vida, é importante salientar que o racismo ambiental ainda parece desempenhar um papel importante na distribuição do direito à vida e ao território, como você bem aponta, inclusive. Sabemos que o racismo é um sistema de poder e dominação e, a partir dessa compreensão, por isso 52 miolo.indd 52 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:25 existem entrelaçamentos no que se refere a questão do meio ambiente. E há quem diga, por exemplo, que a discussão sobre populações precarizadas (mobilizando o racismo como categoria de análise) não é importante, pois se trata de uma condição de vulnerabilidade generalizada; mas como a precariedade e a vulnerabilidade são construídas e distribuídas, sob que critérios? Trata-se, realmente, de uma questão somente concernente à vulnerabilidade, quando os dados revelam uma intersecção entre raça-classe-meio ambiente-gênero… na condição de ausência desses serviços? Nós não precisamos responder a estas questões, por ora, mas é importante estabelecê-las. Outro ponto importante para a nossa discussão é sobre as inúmeras dificuldades que o atual contexto socioambiental nos coloca quando precisamos imaginar um novo mundo, como diria Helena Vieira, “a sucessão triste de acontecimentos trágicos parece sugerir que o futuro é impossível.” Como podemos imaginar um novo mundo a partir disso? Eis a questão. Andressa Dutra: Essa questão do direito ao território é algo muito forte nos meus discursos, porque não acredito no combate aos desafios globais sem a escuta das pautas locais - onde se territorializam as consequências do “desenvolvimento”, sem considerar a vivência daqueles que estão expostos a vulnerabilidade e são afetados constantemente pela violência. Essa lógica potencializa diversas injustiças ambientais, perpetuando práticas como a queima de florestas, aumento das desigualdades e a exploração dos povos que ocupam a base da pirâmide social. No Brasil, tem-se a característica de um país de dimensões continentais, onde o território é dotado de grande e rica diversidade cultural, socioeconômica e ambiental, e ainda com marcas de desigualdades sociais e regionais. Pensando a partir de uma abordagem desenvolvimentista, configurou-se então no país um padrão de desenvolvimento muito bem concentrado e ainda excludente. Isso se dá por razões históricas, fazendo com que parte do território brasileiro permaneça com seu potencial de desenvolvimento subexplorado. As maiores dificuldades de acesso a empregos de qualidade e aos serviços básicos se concentram nas regiões menos desenvolvidas e contribuem para alimentar o círculo vicioso do atraso e para trazer limitações às oportunidades de crescimento pessoal e profissional dos brasileiros que ali vivem. Buscar um desenvolvimento mais equilibrado territorialmente, respeiVinícius da Silva miolo.indd 53 53 24/03/2022 16:03:25 tando e explorando sua diversidade, é fundamental para a integração e a coesão econômica, social e territorial do Brasil. Você trouxe questões que exigem uma profunda reflexão, primeiro, como a precarização da vida é distribuída e construída, a partir disso podemos pensar mais uma vez na produção da vida e a imposição da vulnerabilidade sobre a mesma, e como pensar/acreditar/ enxergar novas possibilidades? Nesse momento, eu penso muito em Ailton Krenak que sempre frisa em suas exposições como é necessário mudar as estruturas, descolonizar o pensamento e reinventar novas formas de estar nesse mundo. Vinícius da Silva: Por que discutir futuro, sobretudo em um cenário pandêmico, é tão difícil? Para algumas pessoas, as discussões sobre futuro emergem como criações utópicas, mirabolantes e distantes da nossa realidade social e, por isso, trata-se de uma conversa complexa que nos obriga a encarar nossa realidade e construir caminhos a partir disso, como você bem disse ao citar Krenak. É preciso criar formas de estar neste mundo, com ele e não contra ele, né? Nesse sentido, proponho uma discussão sobre futuro justamente para podermos refletir sobre as razões que nos levam a constituir alianças e disputar um novo projeto de sociedade. “Mas sob qual justificativa uma população que carece de equipamentos de saneamento básico, por exemplo, teria interesse em discutir futuro, uma vez que essas pessoas estariam preocupadas somente em sobreviver?”, podem perguntar-me, mas sem a intenção de responder esta pergunta, gostaria de estabelecer uma provocação: como as vidas que não são consideradas, de fato, vidas ou vivas poderiam estar lutando por sobrevivência? A reflexão que proponho com este questionamento é simples: precisamos compreender que a distribuição desigual de recursos ambientais e públicos, como, por exemplo, a água e o acesso a esgotamento sanitário, não é feita somente articulando a manutenção de um projeto de poder, mas sim porque as populações que mais sofrem com essas ausências não são consideradas populações vivas. Embora a Constituição Federal da República Federativa do Brasil, promulgada em 1988, garanta que a saúde e segurança são direitos sociais (artigo 6º), que é dever do Estado assegurar o direito à saúde pública de qualidade à toda população brasileira (artigo 196) e que todos nós temos direito à 54 miolo.indd 54 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:25 qualidade de vida e de ocupar um meio ambiente ecologicamente equilibrado (artigo 225), na dimensão prática da nossa realidade, não observamos essas garantias constitucionais sendo cumpridas de forma proporcional e bem distribuída. Uma discussão que tem surgido com bastante frequência e uma certa importância no debate público sobre saneamento básico no Brasil é a pauta da universalização desses serviços. No entanto, como discutir a questão da “universalização”, por exemplo, se cerca de 55% da população brasileira não tem acesso a condições adequadas de esgotamento sanitário e 45% não possui acesso ao tratamento desse mesmo esgoto sanitário? Como analisar a distribuição de serviços de saneamento básico no Norte e Nordeste (regiões com população negra majoritária), ao passo que outras regiões usufruem desses serviços, de forma mais ampla e “universal”? O que seria essa “universalização”? O que estaria sendo universalizado, então? Certamente, não é o direito à vida. No Brasil, uma pessoa negra morre a cada uma hora e meia por falta de saneamento. “E, como se não bastasse o genocídio por homicídios dos jovens negros de periferia, a morte por saneamento tem afetado enormemente bebês e idosos negros, além dos jovens. É como se morrer fosse o nosso destino, na infância por saneamento, na juventude por bala, na velhice por saneamento”, aponta Victor de Jesus. Essa “sucessão triste de acontecimentos trágicos”, diria Helena Vieira, “parece sugerir que o futuro é impossível.” A partir desse contexto, compreendendo a distribuição de serviços de manutenção da vida, levantamos uma hipótese: a de que as regiões com maior concentração percentual de minorias raciais serão, consequentemente, mais afetadas com os desastres ambientais, poluição industrial e com a omissão do Estado, como apontam Acselrad, Mello e Bezerra, em O que é justiça ambiental: “os impactos dos acidentes ambientais estão desigualmente distribuídos por raça e por renda: áreas de concentração de minorias raciais têm uma probabilidade desproporcionalmente maior de sofrer com riscos e acidentes ambientais.” Por que as populações negras e indígenas, no Brasil, estão mais propensas a serem negativamente impactadas com as desigualdades socioambientais? Isto significaria dizer que a legislação ambiental brasileira não é eficaz? Há saída para o quadro esboçado, e se sim, qual? Por que é tão difícil, repito, pensar em estratégias de enfrentamento e mobilização coletiva a partir dessa realidade? O futuro é realmente impossível? Vinícius da Silva miolo.indd 55 55 24/03/2022 16:03:25 Andressa Dutra: Tecer um futuro em meio a essa realidade em que o racismo se porta como uma ideologia presente na sociedade brasileira, e ao mesmo tempo como um instrumento que reforça e perpetua estruturas de desigualdade realmente é um desafio. O preconceito praticado é o que se referencia na cor, neste contexto temos a iminência de políticas higienistas e eugenistas entranhadas na composição da sociedade, a ideologia do branqueamento promove a precarização de sujeitos negros e exaltação de sujeitos brancos numa tentativa de promover o branqueamento da população. Quando eu penso em particular nessa questão que você levanta sobre “como uma população que carece de equipamentos de saneamento básico, por exemplo, teria interesse em discutir futuro?”, eu visualizo uma articulação política forjada para que esses corpos não sejam, de forma alguma, considerados vivos. Corpos lançados à precariedade, sem tempo de respirar, corpos esgotados diariamente, sem direito à saúde, à cidade, à cultura, ao meio ambiente, à vida. Como, mesmo depois desse esgotamento, esses corpos pensarão em futuro sem se quer lhes ser oferecido o direito de viver? Como eu, uma mulher negra periférica, penso em um novo amanhã se nem o hoje me é garantido, se a cada dia me é tirado o direito de usufruir dos direitos mais básicos? E é justamente isso que você pontuou, é mais que uma articulação baseada na dominação, é sobre deixar viver. Quem merece viver? Temos essa resposta ao nos deparar diariamente com os corpos não rentáveis sendo lançados a morte, e vemos isso quando Foucault diz que “o corpo só se torna útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso” ou quando Mbembe expressa sua preocupação com a “instrumentalização generalizada da existência humana e a destruição material de corpos humanos e populações”. E essa questão do saneamento básico é certamente, como trata Victor de Jesus, um indicador de desigualdade, uma vez que o acesso a esse equipamento público possui um perfil racial, é um serviço que se constitui como privilégio - e não direito - e mecanismo de controle racial. A partir dessa pauta da universalização do serviço de saneamento é possível visualizar as estratégias por trás dessa privatização. Essas estratégias políticas não pensam no bem-estar social, nem se quer na população que vive em vulnerabilidade social sem acesso a recursos ambientais e públicos que exprimem qualidade de vida. Ou seja, como você mesmo evidenciou através de dados, temos uma população 56 miolo.indd 56 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:26 que morre por não acesso a água com qualidade, esgotamento sanitário, coleta de lixo, com a privatização do serviço, teremos um verdadeiro extermínio, a execução da necropolítica, e trago à tona mais uma vez uma reflexão do Victor de Jesus, em que “o Estado tem utilizado o saneamento como um sofisticado dispositivo político para violentar e assassinar os corpos considerados matáveis,” começamos então a visualizar a morte como ferramenta de atuação do Estado. No Brasil, o status econômico acompanha a classificação racial e os equipamentos e serviços públicos aparentam seletividade, mesmo com as garantias constitucionais. A partir disso, eu repito sua pergunta: será mesmo possível a existência de um futuro para as vidas negras? Será possível um novo amanhã? Vinícius da Silva: Sem ter a intenção de responder às perguntas colocadas, saliento que é a partir desse contexto que a discussão sobre futuro adquire uma importância singular, de modo que possamos construir alianças de resistência e enfrentamento às articulações (necro)políticas que informam os contextos sociais esboçados. Mas não nos enganemos, porém, com a promessa solucionadora que as discussões sobre futuro, à primeira vista, podem nos oferecer. Sempre que me proponho a realizar esta discussão, realizo-a com a intenção de articular frentes de resistências e novos modos de distribuição do poder que não impliquem na construção e manutenção de sistemas e matrizes de opressão. As alianças, diria Butler a partir de uma leitura do pensamento de Hannah Arendt, são o fundamento da nossa sobrevivência. Formar alianças é estar com as pessoas e, portanto, disputar - nesse sentido - formas de bem viver. As alianças de Butler são uma resposta das populações precárias às condições de precarização. Historicamente, a construção de alianças tem organizado diversas mobilizações sociais por justiça social, por exemplo, como nos Estados Unidos na década de 80 e em diversos países da América Latina uma região que tem sido, sistematicamente, afetada -, ou no Egito, em 2011. O futuro é uma metáfora temporal que nos chama à mudança, que nos revela que, sim, nós temos a ver com tudo isso, também é de nossa responsabilidade. Não devemos nos assustar com o imaginário do amanhã, por mais distante que ele pareça estar. Nesse sentido, insisto na promessa de um novo tempo como sendo a nossa principal motivação para continuar lutando por isso. Não Vinícius da Silva miolo.indd 57 57 24/03/2022 16:03:26 devemos cair nos devaneios, devemos nos ater a construções coletivas reais e à formação de alianças para enfrentarmos a precariedade desigual que nos assola. Este deve ser o caminho para o amanhã. E precisamos agir já, para que de fato haja um amanhã, um outro dia, um novo nascer do sol. Andressa Dutra: De fato, construir alianças de resistência é um passo muito importante contra as políticas de morte impostas sobre os nossos corpos, alianças entre as vidas precárias, como você bem citou, a partir do pensamento de Butler. E, nesse sentido, realmente a formação da aliança se torna o pré-requisito para que um corpo permaneça vivo. A aliança se coloca então como condição para sobreviver, para estar ou ser. Vendo por esse lado, podemos então pensar propostas para um novo amanhã, a partir da formação de alianças políticas que permitam o rompimento das necropolíticas coloniais que estão enraizadas na sociedade. Quando se trata de alianças baseadas em uma formação que resiste à precariedade, existem efeitos positivos, efeitos revolucionários. Isso gera resultado, porque a união de vivências gera revolução. E é nesse sentido que acredito nas alianças, quando falo de alianças me refiro ao encontro, ir com o outro, o outro pode ser alguém tão distante, mas que entende sua vivência e se coloca na luta. Essa aliança é baseada na experiência, na vivência. Essa aliança possibilita a existência do amanhã. Eu recorro a essa aliança para a construção de um novo amanhã. Pois quando voltamos a discussão do “olhar para o futuro”, certo tom de negatividade e desesperança surge, pois ao firmar os olhos em um horizonte com base no hoje, no agora, eu penso “como acreditar em uma promessa de um novo amanhã, um novo mundo se não tenho nem o hoje?”. Porém, quando baseio a expectativa, ou essa promessa a partir das alianças de resistência e enfrentamento, eu tenho motivação para um novo amanhã. Debater o futuro de vidas negras permanece sendo um desafio, ainda mais quando falamos de Brasil, onde negros morrem mais, são os mais expostos a doenças sanitárias e quando buscam atendimento médico, pessoas negras não recebem um tratamento isonômico, são a maior porcentagem em imóveis insalubres, os que mais sofrem com o desemprego, e quando empregados são os que recebem menor salário, além de serem vítimas de outros atos discriminatórios isolados. Porém, nesse debate de alianças, encontramos a possibilidade de obter o Bem Viver, e quando falo de bem viver, não me restrinjo a pros58 miolo.indd 58 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:26 peridade financeira, eu falo de ir contra essa racionalidade desenvolvimentista, que exprime opressão, da qual nós já falamos aqui. Quando Acosta fala sobre Bem Viver, ele fala sobre uma filosofia de construção, e eu diria de reconstrução também, abandonando as noções violentas, excludentes e opressoras do progresso, e criando princípios de solidariedade, cumplicidade, reciprocidade, e como diria Antônio Bispo, grande referência para mim nessa perspectiva de pensamento decolonial, confluência. Até mesmo o Bispo traz um termo, repensando um pouco sobre as alianças, de formação de alianças cosmológicas para a organização política das comunidades, e isso é muito interessante, porque segundo ele, dentro dessa aliança, povos que se comunicam de forma diferente conseguem se entender, pelos seus modos, eles se entendem. Vinícius da Silva: Este é um ponto importante. O Bem Viver, tal como teoriza Acosta, promove um deslocamento na compreensão e apreensão do ser, de uma vida. Eu diria que, nesse sentido, ao retomar a discussão sobre Bem Viver, estaríamos, também, nos engajando em uma construção de uma noção de vida que parta do que Butler chama de interdependência ou coabitação, isto é, o fato de que o sujeito não existe na solidão. O sujeito se torna sujeito no encontro, nas alianças. E o Bem Viver promove essa compreensão, de alguma forma. Andressa Dutra: O Bem Viver é um ponto fundamental para discutir novas possibilidades, um novo amanhã. Nesse ponto que você traz sobre a interdependência ou coabitação, eu lembro muito de algumas palavras do Nego Bispo, em que ele coloca o poder quilombola baseado na palavra, e como essa palavra falada é tão cheia de significações e relação entre os seres vivos e não vivos. Para além disso, ele traz uma reflexão de como as comunidades tradicionais mantêm sua organização política, baseada na reciprocidade, no que há em comum, de como essa organização é horizontal. Diferente da organização política do colonizador que tem um olhar vertical, linear, que não faz curvas, as comunidades tradicionais pensam e agem de forma circular, para eles não existe um fim, sempre há chance para um recomeço, sempre é possível um futuro. Então, quando Butler vai contra essa forma de organização pautada na autossuficiência e soberania desenfreada, e propõe que uma nova forma de organização política pensada a partir do reconhecimento de uma Vinícius da Silva miolo.indd 59 59 24/03/2022 16:03:26 interdependência inevitável e o apelo da precariedade da vida, acredito eu que ela traz essa visão horizontal. E nesse pensamento, eu reflito sobre o que somos sem quem está perto de nós. O que podemos ser com o outro ao nosso lado? Qual futuro podemos esperar como consequência da confluência das vivências, da coabitação ou interdependência? Vinícius da Silva: Uau! Não sei se consigo responder às questões colocadas, mas faço algumas breves e finais considerações. Uma vez que a disputa pelo futuro se baseia numa ética da coabitação e da coletividade, seus resultados são imprevisíveis. Este é um dos princípios da ação política, conforme Hannah Arendt. Não dá para saber qual vai ser o fruto das nossas disputas e reivindicações, uma vez que estamos falando dos dilemas do plural. E isso faz parecer que o futuro é um terreno de incertezas e disputas talvez inférteis, mas aí entra outro papel fundamental, a meu ver, da política: a esperança e o entusiasmo. “Não se faz política sem entusiasmo”, já diria Paul Preciado. E, por política, entendemos: a qualidade do estar com os outros disputando um projeto de sociedade. Nesse sentido, a política está aí para todos nós, resta fazermos bom uso dela. E numa discussão sobre futuro, o bom uso da política se exemplifica nas disputas coletivas pelo Bem Viver. Por isso, tendemos a conceber a discussão sobre futuro, sobretudo a partir do panorama das injustiças ambientais, enquanto desesperançosa, mas eu me recuso a sucumbir à falta de esperança. Andressa Dutra: É isso, Vini, complemento sua fala dizendo que carecemos de um futuro menos opressivo, menos violento, e muito mais acolhedor. Olho para esse futuro, seguindo o diálogo que tivemos aqui, com muita esperança, e nessa projeção, retorno sempre ao passado, resgatando saberes tradicionais que dão significado à minha vida. Que possamos permanecer lutando a cada dia pelo abandono do antropocentrismo, entendendo que há muito vida além de nós. Olho com esperança para um futuro que valorize a vida ao invés de precarizá-la, no qual haja mais opções que não seja produzir as condições para se manter vivo ou produzir as condições para morrer. Que a esperança resista a este sistema hegemônico, agressivo e assassino. Que possamos construir um presente baseado nas relações de reciprocidade, amor e poder ensinadas por nossos ancestrais, para que o futuro seja vivível. 60 miolo.indd 60 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:26 “Não é monstruosidade, é racismo”: entrevista com Vinícius da Silva e wanderson flor do nascimento58 Esta é um registro de um diálogo singular que eu tive com o professor wanderson, a convite da jornalista Brenda Vidal. Considero ser esta entrevista um registro importante de meu pensamento, mas também um instrumento didático para a compreensão das dinâmicas do racismo. De forma didática e exemplificada, mobilizamos categorias essenciais para se compreender as dinâmicas de opressão das sociedades de inimizade e, com isso, esperamos que esta entrevista possa servir enquanto material de análise que ela cumpra um papel central nas discussões estabelecidas nesta obra. Brenda Vidal: São incontáveis os casos de jovens brancos que cometem ataques de violência física contra sujeitos negros e que, muitas vezes, acabam no assassinato destes. Estes jovens são monstros, que demonstram uma brutalidade que destoa da sociedade “civilizada”? Eles são a exceção desta sociedade, eles apresentam uma pré-disposição biológica, como naturalizou-se no imaginário social, para a violência? Vinícius da Silva: A meu ver – e vários autores estão discutindo isso, inclusive –, essa pré-disposição biológica não existe, não é algo de fato com58 Esta entrevista foi realizada no dia 21 de julho de 2020, três dias após os aniversários de Brenda e Vinícius e na véspera do aniversário de wanderson, na ocasião da construção de uma matéria sobre o livro My Life as a Rat, de Joyce Carol Oates, para a revista da TAG Livros de outubro de 2020. Para estar neste livro, esta entrevista foi transcrita e editada por Brenda Luíza Ferreira Vidal e Vittoria Polastro Ben (UFRGS) e revisada por Brenda, Vinícius e wanderson. Brenda é graduada em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação e Biblioteconomia (FABICO) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e repórter no site e na revista NOIZE, já tendo contribuído para a revista da TAG Livros. miolo.indd 61 24/03/2022 16:03:26 provado. Eu busco sempre compreender essas dinâmicas a partir do âmbito dos imaginários sociais; penso que existe toda uma construção social, ideológica e cultural (e, na prática, são fatores que não se dissociam) que, de certa forma, tangencia esses fenômenos. Por exemplo, quando se fala do assassinato/genocídio de jovens negros, o modo como essas mortes são tratadas é diferente. E essa diferença em como essas mortes são concebidas e, consequentemente, como essas vidas são concebidas, está sendo informada por toda uma construção que permeia os nossos “valores morais”, digamos assim, embora eu não goste deste termo. wanderson flor: Como que a gente fala sobre isso? A perspectiva que está em jogo nesse evento é uma perspectiva absolutamente corriqueira do racismo. O problema do racismo é que ele joga uma espécie de véu em cima dos fenômenos, o que faz com que a gente sequer perceba que a violência está acontecendo. Esses jovens não são monstros. O racismo não é uma experiência de monstruosidade, mas seu efeito é um efeito monstruoso. Esse é um ponto fundamental. Esses jovens [brancos] são jovens comuns que, muito provavelmente, não conseguiam ver nos sujeitos negros uma vida humana, uma vida que valesse a pena ser vivida. Se você esbarra numa barata, numa mosca, num animal que você não considere digno de viver, e desse encontro tem-se, como resultado, a morte, você não vai imaginar que dali saiu um gesto violento. Isso não é entendido como um gesto violento. Não há monstruosidade nesse caso, há uma situação absolutamente corriqueira do que é o racismo, de que o racismo desumaniza. E desumaniza tanto o sujeito que é a vítima quanto o sujeito que agride. Isso é uma coisa que o Aimé Césaire aponta: o racismo transforma em monstro mais quem atinge do que quem é atingido. Brenda Vidal: Por que as pessoas brancas se sentem autorizadas a cometer violências contra pessoas negras? E por que ainda encontram justificativas para tal ato? wanderson flor: Eu não diria que elas se sentem autorizadas, mas diria que eles se sentem compelidas a fazer isso. Existe um fator nos proces62 miolo.indd 62 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:26 sos de subjetivação que o Ocidente cismou em fazer funcionar que é o fato de que um sujeito só se torna, de fato, um sujeito, quando transforma algo em objeto. É preciso objetificar para ser sujeito; só quem transforma algo em objeto se torna um sujeito. Esta é uma condição necessária. Por isso que, por exemplo, você pode também dizer isso em relação ao machismo, ao racismo, ao classismo, à homofobia, enfim, em relação a todos os sistemas de opressão: você só se entende como sujeito se você consegue colocar o outro no lugar de objeto. O homem só se entende homem negando a mulher e transformando-a em objeto. Um branco só se entende como sujeito branco quando ele nega o não-branco. Isso não é uma escolha, isso é uma determinação da lógica racista. A violência racial é o que constitui o sujeito branco; a branquitude é o resultado desse processo violento. Por isso, a violência, a branquitude e o racismo estão eternamente ligados. E esse é um grande problema. E o grande problema do racismo é a diferenciação do outro, não como uma forma de dizer “sou diferente de você”, mas porque não só eu noto essa diferença, como eu preciso transformá-la em uma hierarquia, e uma hierarquia que se expressa na forma da violência. Só que um assassinato violento já é um gesto radical, no qual a violência acaba consumindo uma vida. Mas isso está no racismo cotidiano, nas brincadeiras, nessas muitas formas que o cotidiano nos oferece de transformar o outro em objeto. Ele [sujeito branco] é compelido e sente que precisa se reafirmar o tempo inteiro nessa branquitude. A branquitude não é só o fato de que alguém tem a pele branca, ela é uma lógica na qual o branco precisa se diferenciar do não-branco de uma forma violenta. É uma hierarquização. Vinícius da Silva: Eu acrescentaria à fala do professor uã o fato de que essas relações entre sujeito e objeto, como sugere o pensamento de Patricia Hill Collins, fundamentam o que a socióloga chama de matrizes de dominação, as quais se organizam a partir de sistemas de opressão, ou também de signos da morte [conceito da filósofa Sueli Carneiro], dependendo do referencial teórico. E são justamente essas dialéticas entre sujeito e objeto construídas no domínio ideológico (Collins chamaria isso de “domínio cultural do poder”), como eu disse anteriormente, que dão (também) o suporte necessário para a manutenção das matrizes de dominação. E acrescento ainda que essa estrutura é algo muito difícil de se reconstruir, de se discutir uma possível reforma, pois Vinícius da Silva miolo.indd 63 63 24/03/2022 16:03:26 a forma pela qual ela se organiza é algo que está impregnado na racionalidade ocidental, algo que foi historicamente construída pela filosofia ocidental e que, por sua vez, construiu também muitas das nossas percepções acerca da questão do sujeito e do objeto. Brenda Vidal: Sublinhando isso que vocês trouxeram tão bem, relaciono com o processo do sujeito branco estabelecer uma relação de Outridade com esse indivíduo negro. Por que não é só uma questão de dificuldade e de não assimilação da diversidade, correto? Vinícius da Silva: Uma das principais características do racismo moderno é que, como ele se orienta a partir dessa relação entre sujeito e objeto, é justamente essa outrificação do diferente que surge enquanto problemática, onde a diferença implica não só na informação de uma diferença comum, por exemplo. Não é como se a gente distinguisse a cor azul da cor vermelha, mas é uma significação da diferença que também informa determinados objetos que podem ou não influenciar na organização social num contexto de “pós-colonialismo”, digamos assim, apesar de eu não saber se esse é o termo mais adequado para o momento. A partir dessas relações pós-escravidão, partindo daquilo que o Achille Mbembe analisa em uma perspectiva entre pessoas brancas e pessoas negras, sem falar de pessoas indígenas e pessoas asiáticas, por exemplo, os contornos do racismo serão muito diferentes. Essa relação, a partir da outrificação vai ser tão crítica que essa existência do Outro implica em uma vontade de exterminá-lo em prol de uma organização social, em prol de um projeto de sociedade que só se executará, de fato, sem a existência desse “objeto” que desorganiza a ordem social.59 Esses objetos são, justamente, as 59 Em relação ao pensamento de Mbembe, após a publicação do artigo “Políticas do Amor e Sociedades do Amanhã” (Voluntas: Revista Internacional de Filosofia, v. 10, pp. 168-182. DOI: https:// doi.org/10.5902/2179378639954) – também presente nesta obra –, muitas pessoas questionaram-me acerca do conceito “relações sem desejo”, presente em Politiques de l’inimitié (Paris, La Découverte, 2011). Para fins de elucidação, como este conceito é importante para o desenvolvimento desta entrevista (embora já o tenhamos explorado anteriormente neste livro), costumo o relacionar com a violência ética de Butler, que compreende formas nem sempre físicas de desumanização e abjeção. Nesse sentido, as relações sem desejo seriam caracterizadas, não somente como relações sem afeto, mas pela total aniquilação da responsabilidade ética (da qual Butler também tanto fala) e do reconhecimento do Outro enquanto sujeito. 64 miolo.indd 64 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:26 pessoas negras e essas pessoas que são sujeitos dessa sociedade são as pessoas brancas, numa perspectiva binária. É uma lógica que, de alguma forma, está tão impregnada no nosso imaginário social e cultural que justifica a falta de comoção com a morte de pessoas negras. Se observarmos os comentários, nas redes sociais, de notícias sobre adolescentes negros e brancos que são assassinados - exercício este que eu não faço mais - existe uma diferença de justificativas éticas para tentar legitimar essa morte no caso de pessoas negras, o que não acontece no caso de pessoas brancas. Isso está tão impregnado em nossas relações e em nosso imaginário social que todos nós estamos propensos a reproduzir esse tipo de julgamento em algum momento das nossas vidas, se não fizermos uma reflexão crítica. wanderson flor: Eu reforço que o racismo é uma estrutura paradoxal pois, ao mesmo tempo que ele transforma o outro em objeto, essa violência só faz sentido na presença do outro. Não faz sentido você ficar com raiva de um poste e ficar dando porrada nele, isso não faz sentido… é preciso que o poste seja gente para que se faça sentido eu querer me vingar, tornar desafeto, querer atacar, humilhar, envergonhar, etc. Ou seja, o racismo é um sistema paradoxal porque, ao mesmo tempo que ele desumaniza para que eu esteja confortável em exterminar esse outro humano... porque não é simples, né? Essa ideia de matar a pessoa. O rosto do outro nos diz: “Olha o que é que você está fazendo comigo?”, o rosto do outro desmonta. Então, é preciso desumanizar e sumir com esse rosto humano quando estamos no limiar da morte, no limiar da violência extrema. Mas no limiar das outras relações mais cotidianas que tenham a ver com a crueldade, com a humilhação, com o rebaixamento, eu preciso que essa pessoa seja um humano para que eu possa dizer “Eu sou melhor do que você”. Eu preciso estabelecer essa diferença que é paradoxal, porque, para desumanizar o outro, eu preciso humanizá-lo para rebaixá-lo. Porque eu não rebaixo um poste, eu não vou ficar batendo boca com uma pedra, isso não faz sentido, sobretudo não faz sentido, para o imaginário ocidental; dizer que a minha vida importa mais do que a vida de uma pedra. O racismo tem essa característica contraditória e paradoxal que faz com que, ao mesmo tempo que você tem uma relação com a recusa da diversidade, você também tem uma relação de acolhimento tenso da diversidade para poder inferiorizar. Eu, enVinícius da Silva miolo.indd 65 65 24/03/2022 16:03:26 quanto branquitude, encarnando o signo da branquitude, preciso de alguém para subalternizar e inferiorizar. E preciso que esse alguém seja humano. Essa relação tem a ver com os processos históricos da colonização que atravessam a história do ocidente. Os seres humanos foram desumanizados, mas para que ele fosse inserido em uma lógica de internalização do racismo, eu precisava que eles fossem humanos para entender que eles eram inferiores. Porque, senão, a rebelião estava feita, porque se ele entendesse que era uma pedra que se rebelava, ele não tinha o que fazer porque eu não me comunico com uma pedra, eu me comunico com outras pessoas. Brenda Vidal: Esses recursos vão se atualizando e se expressando ao longo dos tempos. A branquitude implica em um outro subjugado, ela está sempre nessa relação de gangorra, certo? Vinícius da Silva: As próprias relações entre sujeito e objeto se baseiam nessa lógica, é algo que se organiza justamente dessa forma. wanderson flor: É algo que se encaminha, inclusive, para a possibilidade de nós podermos pensar aquilo que Judith Butler chama de abjeção. Ou seja, já não basta transformar em objeto, mas, sim, banir do mundo, das relações humanas. Nós temos nossos relógios, por exemplo, nós temos uma relação muito boa com os nossos objetos, ninguém quer sair por aí dando porrada no seu relógio. Sobretudo os homens, os “machos” da nossa espécie, têm uma fixação por carros, ou seja, não é qualquer objeto com o qual você estabelece uma relação de exclusão total. E a objeção implica não só em banir do mundo sujeitos, transformando-os em objetos, mas também banir do mundo da convivencialidade na forma da abjeção. O prefixo “a” é o processo de negação, inclusive da possibilidade de ser, não só de ser humano, mas a possibilidade de ser. Ninguém em seu juízo vai querer exterminar o próprio carro, você protege um certo campo de existência, agora a abjeção bani inclusive do âmbito da existência. Logo, a abjeção é muito mais grave, nesse sentido, porque contempla o âmbito da não existência, então, aí, a morte não vai ser lamentável. A nossa própria sensibilidade é treinada para isso. Se um relógio parar de funcionar, você vai lamentar porque vai ter que gastar comprando 66 miolo.indd 66 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:26 outro, ou de repente você até tem um afeto com ele, mas você pode guardar esse relógio antigo que não funciona, porque nós temos memórias afetivas com objetos que, muitas vezes, nós não temos com as pessoas negras porque a gente baniu do mundo da existência, a gente transformou isso no âmbito da abjeção. Não a pessoa branca, especificamente, mas esse ser da branquitude é atravessado completamente por isso. É por isso que não se chora – não tem por que, não faz sentido – a morte de uma pessoa negra, porque não se chora a morte do que não morreu, porque ela já foi banida do âmbito da existência das coisas. Vinícius da Silva: E essa abjeção da qual uã fala tem seus desdobramentos. Um exemplo que a Butler nos dá, em “Atos performáticos e a formação dos gêneros: um ensaio sobre fenomenologia e teoria feminista” (1988), é justamente a aceitabilidade seletiva de uma performance dissidente, por exemplo, de uma travesti. Sua performance será aceita no âmbito teatral, mas não é aceita dentro das relações sociais. E, de certa forma, penso que isso está ligado a uma lógica da espetacularização, a qual cria nuances para que isso seja de fato sentido ou não, porque essa existência ou não-existência requer aquilo que a Butler vai chamar de “enquadramentos” – isto é, contextos de produção de sentido –, ela vai falar de enquadramentos epistemológicos, enquadramentos ontológicos, enquadramentos visuais etc., que são justamente os contextos nos quais se produz essa percepção, e o contexto teatral é um desses capaz de produzir essa aceitabilidade dentro dessa cena do (des)reconhecimento, o que não será aceito em outros contextos. Por isso, a Butler utiliza muitas metáforas do teatro, do visual, da performance. E eu acho que isso tem uma utilidade didática muito bacana para nós. Brenda Vidal: É muito interessante pensar em tudo isso que vocês trouxeram sobre lugares em que toleramos pessoas negras e lugares que não. Justamente para manter essa hierarquia de lugares secundários ou menores que aquele sujeito que eu – sujeito dominante – objetifico pode ocupar. Na experiência do atleta ou do sambista, podemos tolerar a pessoa negra porque há uma utilidade. Agora, enquanto uma vereadora que enfrenta a milícia, como Marielle Franco, já é demais... Vinícius da Silva miolo.indd 67 67 24/03/2022 16:03:26 wanderson flor: No sentido ainda do que a Lélia Gonzalez chamava de racismo por denegação, ou seja, essa noção de espetáculo. E aí eu acho que essa noção de performance é pedagógica, mas é política também, já que eu sou o agente que confere legitimidade ao espetáculo como espetáculo. Na minha convivência cotidiana, a presença de uma pessoa não é controlada por mim, e aí eu sou um agente reativo, enquanto no palco é o meu olhar que confere ao palco a legitimidade de ser um palco. O sujeito que está ali é político porque é ele quem confere legitimidade. Por isso que aqui, no Brasil, se fala com muita facilidade coisas como “Não sou racista porque tenho uma empregada negra” ou “Meu filho era amamentado por uma pessoa negra”. Esse tipo de reflexão está o tempo todo mostrando que isso está no controle dela, porque ela escolheu, ela contratou a empregada, e a pessoa não percebe que já está numa situação de hierarquia. Essa espetacularização não deixa ver que quem paga é que está no controle. É uma questão de poder. Brenda Vidal: Vocês acreditam que exista no ato violento, no limiar extremo da violência, a vontade dessa branquitude “expurgar” certas coisas que ela não enxerga nela, mas enxerga no outro? wanderson flor: Eu acho que existe, de novo, esse aspecto paradoxal de que a branquitude performa a violência ao transformar o negro em marginal. O negro é marginal porque ela quer que seja. E aí, qualquer coisa que o negro faça, qualquer coisa que o indígena faça, qualquer coisa que alguém não-branco faça, é a marginalidade para a branquitude. É esse campo do limite da legitimidade de que coisas podem e não podem. Isso confere a ela o poder de classificar, inclusive. Não é só a classificação em si, mas o poder de classificar. Porque não é o negro que se classifica como marginal. Vinícius da Silva: Essa dimensão da violência nem sempre é física, trata-se de uma violência ética também. Podemos entender um ato de violência enquanto uma negação daquilo que outra pessoa pode ser, nesse primeiro momento, em linhas gerais. Porque quando a gente fala em discursos, sobre esses comentários, essas constantes justificativas de desumanização desses sujeitos, estamos falando de justificativas éticas da violência, utilizando o conceito que 68 miolo.indd 68 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:26 a Butler usa também. A violência ética pode ter seu desdobramento físico, mas considero que até alcançarmos a dimensão física dessa violência, existem etapas de violência ética, que são discursos/ações (não se separam), atos muito sutis que de alguma forma corroboram com essa construção ética. E quando falamos dos estereótipos, isso mobiliza um outro conceito, que é o conceito de “imagens de controle” de Patricia Hill Collins. O estereótipo é uma representação física – está na esfera do visível. Eu diria, ainda, principalmente a partir do contributo de bell hooks, que o estereótipo é uma manifestação penúltima, digamos assim, da dimensão ideológica do imaginário social, e aí a gente mobiliza o conceito de imagens de controle nesse sentido justamente porque é o que está informando, por exemplo, o estereótipo de traficante, o estereótipo da empregada doméstica negra. Esses estereótipos informam imagens de controle. A partir da minha leitura da obra de Hill Collins, entendo que o estereótipo pode ser remontado a um determinado contexto histórico, já a imagem de controle não necessariamente, embora Hill Collins faça essa genealogia – há uma gênese, mas não há uma fixidez na história –, ela se molda para garantir a manutenção disso que nós estamos chamando de matrizes de dominação. É uma dimensão ideológica que constrói esses lugares sociais. Eu gosto muito de tratar esses lugares como lugares de aprisionamento social, que mantém o sujeito físico naquele local. E ele mantém os jovens negros dentro de uma imagem que está convocando a hiperssexualização, a violência, a desumanização e uma série de fatores que possibilitam essa ocorrência última, que é a morte desse jovem. wanderson flor: Porque os corpos mortos estão no chão o tempo inteiro, os corpos negros estão tombados em todo canto. A quem isso mobiliza? Brenda Vidal: É correto afirmar que a branquitude se beneficia das mortes de jovens negros mesmo quando ela própria não comete a violência física em si? Vinícius da Silva: Eu não sei até que ponto isso vai ser um benefício, mas, neste momento, acredito que a gente pode tratar o direito à vida como um benefício. E aí sim, a pessoa branca se beneficia porque ela tem o direito Vinícius da Silva miolo.indd 69 69 24/03/2022 16:03:26 de estar viva, de poder transitar a qualquer hora na rua, de não ter seu direito à cidade barrado. wanderson flor: Eu estou absolutamente convencido de que sim. Eu entendo por onde foi o argumento de Vinícius, mas, para mim, tem uma questão muito simples: quem tem o poder de determinar quem vive e quem morre é a branquitude. E a cada vez que esse poder se realiza, ou seja, quem ela determinou que morra, morre, a sua própria manutenção está garantida. Não é só um benefício, ele é sustentado por essa violência. Não importa que uma pessoa branca jamais tenha visto uma pessoa negra e se beneficiado dela, a própria lógica da branquitude continua se beneficiando de cada corpo negro que tomba, porque esse corpo negro que tomba foi projetado para isso pela branquitude, esse é o ponto fundamental. E aí não se trata de privilégio, de benefício, se trata do funcionamento do poder. Quando tem uma lógica funcionando, uma engrenagem funcionando bem, quando morre um negro, isso significa que essa máquina de moer carne preta continua funcionando, e esse é que é o ponto fundamental. A própria lógica da branquitude se sustenta nisso. É preciso que as pessoas negras estejam morrendo, é preciso que elas estejam subalternizadas, é preciso que elas estejam sendo desumanizadas. E não importa por quem, porque o problema não é o agente que provoca isso, é a vida que sofre. Por isso que quando uma pessoa negra está sendo exterminada por outra pessoa negra por uma razão racista, ele está simplesmente executando a ordem que o racismo deu. Então quando a gente olha que a maioria da Polícia Militar, que é quem mais mata jovens negros, é formada por pessoas negras, a gente pensa que não pode ser racismo porque é um negro matando outro negro, mas o problema é que eles estão simplesmente fazendo essa máquina funcionar. Inclusive, quando um policial negro mata um jovem negro, a branquitude está se fortalecendo com isso. Porque ele não está ali como um homem negro executando outro homem negro; ele está ali como uma espécie de reprodutor de uma lógica mandatária pela branquitude, e esse é o ponto fundamental. Brenda Vidal: Após o assassinato de George Floyd, o jargão “não basta ser racista, é necessário ser antirracista”, eternizado pela Angela Davis, tem 70 miolo.indd 70 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:26 sido bastante compartilhado. Que possíveis estratégias de brancos e pretos podem dar forma a essa ideia? Vinícius da Silva: Antes de pensarmos essas possíveis estratégias, eu vejo esse grande compartilhamento em redes sociais é de certa forma legal, mas é algo que me deixa preocupado porque a gente não reflete sobre o que de fato é o antirracismo. Eu parto de uma leitura muito influenciada por bell hooks nesse sentido, e penso a ética antirracista enquanto algo que se fundamenta em uma ética também anticapitalista. Então, quando a gente fala de antirracismo, estamos falando da substituição de um paradigma social (não uma reforma, mas sim uma revolução). Nós estamos falando, por exemplo, daquilo que a bell hooks vai chamar de “comunidade amada” [Beloved Community], a partir do pensamento de Martin Luther King Jr., mas que eu prefiro usar o termo Sociedades do Amanhã, mas isso sempre vai estar de alguma forma se orientando a partir de uma ética anticapitalista. Isso não é discutido, isso sequer é reconhecido. Abro um parêntese: uma crítica que eu faço que é sempre que a gente fala de mulheres negras, sobretudo as mulheres negras que estão sendo mais lidas hoje, como bell hooks e Angela Davis, invisibiliza-se ou não se reconhece a abordagem anticapitalista que essas autoras trazem (com exceção de algumas poucas pessoas que estão nas redes sociais preocupadas em criar uma esfera de divificação, isto é, de transformar uma pessoa em diva, em torno dessas autoras). A Angela Davis é uma autora socialista, ela reivindica isso. A bell hooks é uma autora anticapitalista e ela também está falando isso em vários momentos da sua obra. E quando a gente discute antirracismo, quando a gente discute projetos de sociedade, principalmente através de bell hooks, ela está falando de um anticapitalismo que busca erradicar isso que ela está nomeando enquanto um sistema patriarcal, capitalista e imperialista de supremacia branca. É um sistema de dominação que precisa ser erradicado para que, de fato, o antirracismo ganhe forma. E uma outra leitura que eu faço é que o antirracismo não nega essa diferença que a gente tem de diferença racial, ele não se orienta nessas diferenças para fundamentar essas relações de poder. Isso é algo crucial para a gente entender porque não basta as pessoas brancas usarem a fala da Angela Davis como token, não basta as pessoas brancas postarem uma foto preta com #BlackLivesMatter, é preciso haver uma Vinícius da Silva miolo.indd 71 71 24/03/2022 16:03:26 ação anticapitalista, e o antirracismo precisa ser anticapitalista, senão ele não estará promovendo nenhuma mudança. E se a gente não promove nenhuma mudança, a gente está fazendo um “carinho” nesse sistema, e isso, para mim, não é válido, não causa uma fratura sistêmica, e penso que a partir disso que precisamos começar a discutir a questão do antirracismo enquanto algo que é crucial para isso que a gente está chamando aqui de transformação sistêmica, o que a Angela Davis, por exemplo, pode chamar de “reforma sistêmica”, que tem a ver com todo um projeto de sociedade, tem a ver com repensar o que orienta as relações sociais, repensar a questão da segurança pública, repensar como os imaginários culturais vão estar sendo formados e o que eles informam também, então é todo um projeto de sociedade. Pensar um projeto de sociedade é algo difícil e é algo que precisa ser feito na coletividade. Uma primeira estratégia é justamente pensarmos a importância da coletividade dos movimentos sociais, principalmente o movimento de pessoas negras e de mulheres negras, que é um espaço de coletividade que passa para nós muitos ensinamentos e muitos caminhos a serem seguidos. wanderson flor: Eu concordo totalmente com o que Vinícius falou. Para mim, uma coisa muito explícita é entender primeiro que nem toda pessoa negra se compreende como negro, isso é o primeiro ponto. Não há um povo negro ainda, eu acho que o grande ponto seria talvez apostar na construção de um povo onde as pessoas consigam se enxergar como povo negro, ou seja, que ocupou um lugar na História, que isso tem a ver com o modo como as coisas foram acontecendo com o tempo. E a outra coisa fundamental é compreender - todo mundo precisa compreender isso, as pessoas negras, as pessoas brancas, as pessoas orientais, as pessoas indígenas, as pessoas de qualquer outra configuração racial do planeta - o lugar o racismo ocupa. Quando a gente fala que o racismo organiza as sociedades modernas, isso não é uma questão meramente retórica e a maioria das pessoas tão pensando que isso é panfletário. Que lugar organiza o racismo, como é que o racismo ensinou o capitalismo a ser como é. O capitalismo era uma teoria de emancipação, a gente tem que lembrar disso, contra as formas de opressão do antigo regime, regimes feudais em que você tinha uma nobreza que não trabalhava e que tinha toda a potência de política, e não tinha nenhuma propriedade. Esse é um ponto fundamental, ou seja, o 72 miolo.indd 72 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:26 capitalismo nasceu como uma teoria, como uma economia emancipatória, por que não foi para a frente? Porque ele foi educado pelo racismo, o racismo informou para ele como o capitalismo deveria funcionar. O racismo fundou o patriarcado moderno, e aí mostrou como as mulheres deveriam ser tratadas. O racismo ensinou como a gente deve se relacionar com pessoas de idades diferentes, ou seja, o etarismo surge daí, toda essa forma de capacitismo… inclusive, a nossa relação com a própria natureza e todo esse especismo, o antropocentrismo, tudo isso foi informado pelo racismo. Então a gente precisa compreender como o racismo se organiza nas sociedades. E ele faz reproduzir essa mesma lógica de expulsão do mundo dos humanos e de abjeção, em algum momento, da natureza, das mulheres, das pessoas que não são heterossexuais, das pessoas que são trabalhadoras, enfim, de todas essas figuras que ocupam o lugar do outro, do inferiorizado, do subalternizado. Talvez levar um pouco mais a sério aquilo que o Achille Mbembe chama de “devir-negro do mundo”. Ele não está dizendo que todo mundo é negro, ele está chamando atenção de que essa lógica colonial que o racismo criou para a figura do negro vai se encarnando na mulher, no estrangeiro, na pessoa homossexual, na criança, ou seja, em todas essas figuras que são desumanizadas e, de alguma maneira, expulsas do âmbito da existência nessa onda da abjeção. Acho que esse é o primeiro ponto. A gente está tentando pensar tanto em alternativas quando a maioria das pessoas não entenderam nem o problema, eu acho que esse é o ponto fundamental. Não é possível, exatamente pela razão que o Vinícius chamou atenção, de que essa deva ser uma alternativa pensada coletivamente, se a maior parte das pessoas não tem ideia de que isso sequer é um problema. Então isso está em um núcleo muito pequeno de intelectuais, de ativistas, que não são os informantes. Queria eu viver num mundo onde a principal referência cultural fosse Angela Davis. No Brasil, Olavo de Carvalho tem muito mais influência política. Então, no dia que a gente puder se guiar por Angela Davis, aí a gente pode pensar em alternativas, porque a gente estará no melhor dos mundos possíveis, né? E por enquanto a gente ainda está no pior, então é preciso ainda fazer o problema aparecer como problema para coletivamente nós possamos poder pensar - pessoas brancas e pessoas não-brancas, pessoas negras e pessoas não-negras - em alternativas de forma coletiva. Primeiro passo: reconhecer o problema. E isso implica estudar, ver como é que as pessoas Vinícius da Silva miolo.indd 73 73 24/03/2022 16:03:26 negras, indígenas e orientais estão falando suas experiências, há tanto tempo, e as pessoas estão achando que é “mimimi”. Chamando produção de ciência de “mimimi”. Acredito que a gente só vai poder pensar em alternativas quando a gente entender qual é o problema. Vinícius da Silva: E, por fim, eu acrescentaria à fala do wanderson a questão da comunicação. Uma vez que pensamos no poder político, nessa questão de quem realmente constitui isso que a gente chama de população brasileira, por exemplo, nós estamos falando de pessoas que constituem uma massa de trabalhadores, e que é preciso comunicar esse problema também para esses trabalhadores. Um dos meus maiores desafios de pesquisa, por exemplo, é a comunicação do racismo ambiental – que é meu tema de pesquisa. Porque é muito fácil eu me sentar ao meu computador e escrever um texto, mobilizar todos os autores para falar sobre como o saneamento básico é um serviço desproporcional no Brasil, mas se eu mostrar esse texto para minha vó, por exemplo, que é empregada doméstica, talvez ela não entenda, embora ela já tenha me acompanhado em aulas. A comunicação, em si, não é o problema, mas como isso vai ser comunicado. Esta era a preocupação de Foucault, por exemplo, em relação à forma do discurso e não necessariamente em relação a seu conteúdo, embora estejamos falando de discursos específicos. A gente precisa pensar, e eu acho que isso de certa forma precede essa compreensão do problema, como comunicar esse problema sem subestimar a capacidade intelectual dessas pessoas. E aí quando a gente fala de como comunicar tanto o problema como a mudança, e os termos são muito importantes. A gente não precisa usar os termos “antirracista”, “anticapitalista”, mas a gente precisa de alguma forma mobilizar um tipo de comunicação que leve a essa questão da mudança. E por fim, uma outra coisa que eu acho muito importante também é a questão da solidariedade política, tema importante para hooks, que possibilita a compreensão de que essas diferenças não precisam implicar uma separação, um tipo de conflito, mas que a gente pode usar instrumentos para a construção de uma coletividade, porque a coletividade é o primeiro passo disso. E sem ela, a meu ver, a gente não consegue avançar nem com muito esforço individual. A revolução há de ser coletiva. 74 miolo.indd 74 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:26 “A gente combinamos de não morrer”: corpos em aliança, resistência política e disputas de narrativas60 Neste momento, corpos caídos no chão, devem estar esvaindo em sangue. Eu aqui escrevo e relembro um verso que li um dia. “Escrever é uma maneira de sangrar”. Acrescento: e de muito sangrar, muito e muito… Conceição Evaristo, “A gente combinamos de não morrer” “Nós somos o resultado do nosso encontro”, firma a sentença – tão repetida neste livro – que dá título à tese de doutorado de Luana Luna, professora e pesquisadora. No contexto das ocupações estudantis no IFRJ Campus Realengo,61 em 2016, o postulado “nós somos o resultado do nosso encontro” – dita por um estudante universitário – pareceu ecoar firmando uma aliança, uma razão de solidariedade, a qual narra um mecanismo de sujeição. Nesse sentido, todo sujeito é o resultado de um encontro, noção esta que prevalece desde a dialética hegeliana, por exemplo. Mas ser o resultado de um encontro nos coloca uma responsabilidade e um compromisso ético, pois um encontro implica responsabilidade, uma quase obrigação de ser responsável pela vida de alguém. 60 Versão revisada e ampliada de SILVA, V. & ADRIANO, V. “A gente combinamos de não morrer”: Retornar às raízes e (re)construir espaços de afeto para o nosso povo. In: OLIVEIRA, V.; et al. (Orgs.). De bala em prosa: vozes da resistência ao genocídio negro. São Paulo: Editora Elefante, 2020, pp. 94-101. 61 Trecho retirado do documentário “Resistir e Florescer: a ocupação estudantil do IFRJ Campus Realengo”, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Pth8R_wmmLY. Este documentário narra a ocupação estudantil do IFRJ Campus Realengo em função da PEC 241, em 2016. miolo.indd 75 24/03/2022 16:03:26 Segundo o Atlas da Violência de 2018, “apenas nos últimos dez anos, 553 mil pessoas perderam suas vidas devido à violência intencional no Brasil.”62 Dentre este percentual, estima-se que 71,5% são pessoas negras, isso contabiliza cerca de 395 mil vidas negras assassinadas nos últimos dez anos. É importante, aqui, lembrar que estes dados se referem a assassinatos e não a mortes naturais. Em 2017, a cada 100 pessoas assassinadas, 71 eram negras, em sua maioria, jovens. Enquanto a taxa de homicídio de pessoas brancas diminui, a taxa de homicídio de pessoas negras aumenta exponencialmente. Em termos de perfil, o jovem negro é quem mais morre no Brasil. Trata-se de um genocídio da juventude negra. Esse genocídio, por sua vez, é legitimado por um Estado que é, também, genocida. Um Estado que se articula a partir de sistemas de dominação neoliberais e colonialistas. Quantos corpos o Estado tem matado para garantir uma suposta ordem social que sequer existirá enquanto vivermos sob a tutela de um Estado neoliberal? Quem tem direito a esta ordem social da qual tanto se fala? Em uma sociedade neoliberal, a ideia de ser responsável pela vida de alguém parece estar distante de nós, pois cria-se, diariamente, uma política do individualismo que organiza as nossas relações. Nesse sentido, o desejo de preservação é diferencialmente distribuído entre os nossos semelhantes, em nossas comunidades. É possível querer preservar a vida de minha mãe e desejar o extermínio de uma pessoa em situação de rua, afinal, nossa subjetividade só é completamente estabelecida quando desejamos aniquilar o Outro. Movimentos como este evocam uma política de responsabilidade – categoria herdada da filosofia de Lévinas e Butler – que nos chama à ação coletiva, a partir da qual temos uma profunda responsabilidade ética pela vida de todos aqueles que habitam este mundo conosco, não somente dos integrantes de nossas comunidades. Isto significa dizer que nós, em nossa precariedade ontológica, embora criemos um senso de individualismo que permeia as nossas relações, temos uma inevitável interdependência vital para com os Outros, de modo que não podemos ser quem somos sem sermos com os Outros. O (nosso atual) contexto pandêmico, nesse sentido, acentua as necessidades de uma responsabilidade que tem sido cada vez mais ignorada ou ocultada em prol de um projeto de sociedade capitalista e neoliberal. Vivemos 62 Disponível em: https://bit.ly/2M1A7NG 76 miolo.indd 76 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:26 em um tempo especialmente complexo, no qual nossos sentidos de vida e de mundo se perdem (ou adquirem novos contornos) e a partir disso buscamos aniquilar o Outro – esse “sujeito” essencial ao encontro. Como sugere a cientista política Françoise Vergès, as políticas de confinamento, ao redor do mundo, acentuam as diferenças entre raça, classe, gênero e outros marcadores sociais da diferença. Os dados do Atlas da Violência refletem um enquadramento ontológico, como já exposto nos ensaios anteriores, que insere (de forma desproporcional) as pessoas socialmente racializadas em regimes de opressão e dominação. O Brasil de hoje é uma sociedade de inimizade. Em “Corpos marcados para morrer”, Suely Aires salienta que: Há vidas e corpos que são escolhidos e marcados para serem expostos à morte ou diretamente executados. (...). Gênero, raça e classe se entrelaçam na ficcionalização do inimigo (...). Ao identificar o outro como perigo, como um atentado contra a vida, estabelece-se uma reação de defesa em que a eliminação do outro parece necessária, pois implica minha segurança e a manutenção de minha vida e da vida de meu grupo. (...). É uma guerra que só acabará com a total eliminação do inimigo: genocídio. E, no Brasil, genocídio negro.63 A marcação desses corpos, o estabelecimento de enquadramentos ontológicos, são estratégias de dominação do Estado moderno. É preciso governar essas populações. Mas, para além de governar as populações, é preciso distribuir a vida, como diria Foucault. Nesse sentido, a vida é produto de governo. Parafraseando Butler, o que está em jogo, então, é quem define o que é uma vida e a partir de qual estatuto ontológico essas vidas serão construídas. A partir dessas reflexões, eu conclamo uma política da vida. Nos termos de Butler, uma aliança entre as vidas precárias, os corpos sem ros63 AIRES, Corpos marcados para morrer, p. 29-32. In: Revista Cult, ed. 240 (nov. 2018) – Dossiê Achille Mbembe (Disponível em https://revistacult.uol.com.br/home/corpos-marcados-para-morrer/). Em The invention of women (1997), a nigeriana Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí salienta: “Mulheres, primitivos, judeus, africanos, pobres e todas aquelas pessoas que foram qualificadas com o rótulo de “diferente”, em épocas históricas variadas, foram consideradas como corporalizadas, dominadas, portanto, pelo instinto e pelo afeto, estando a razão longe delas. Elas são o Outro, e o Outro é um corpo”, e se o Outro é um corpo, ele deve ser exterminado e sua morte não será passível de luto. Vinícius da Silva miolo.indd 77 77 24/03/2022 16:03:26 to, aqueles que estão às margens do capitalismo. Na esteira do pensamento de wanderson flor do nascimento, propomos uma ikupolítica. Nos termos de nascimento, promover uma ikupolítica, em contraposição à necropolítica colonial, seria importante para a articulação de novas condições de reconhecimento – principal questão da teoria do amor. Conforme o filósofo, é preciso: Promover uma ikupolítica que seja um modo de resistência à necropolítica. Tarefa para realizarmos no coletivo, tanto como viver e buscar reconstruir um mundo comunitário, onde se possa viver e morrer para sermos raízes. Viver uma vida na qual os conflitos não sejam mortais, mas constitutivos e potencializadores.64 É a partir destas condições, então, que penso ser necessário pensar uma aliança. De alguma forma, as propostas de alianças políticas já estavam presente no pensamento de autores negros, muito antes de ter sido teorizada por Butler.65 Enxergo na produção de teóricos como Abdias Nascimento e bell hooks, por exemplo, importantes considerações para a construção de alianças. Neste texto, no entanto, me deterei à análise hooksiana do tema. Na obra de hooks, a construção de alianças parece se articular a partir do que a autora chama de solidariedade política, isto é, da organização coletiva que não nega as diferenças dos sujeitos, mas reorganiza a cena pública, de modo que essas diferenças não articulem sistemas de poder e dominação. Em relação ao quilombismo de Abdias, a filósofa e pesquisadora Lorena Oliveira reconhece que a proposta quilombista de Abdias é um marco importante para a formulação de uma filosofia política em afroperspectiva. Assim, Lorena salienta que a filosofia política afroperspectivista “deve estar engajada na construção de mundos habitáveis.”66 A pesquisadora Lia Keller da Costa, nesse mesmo sentido, argumenta acerca da instrumentalidade estratégica do quilombismo no enfrentamento 64 NASCIMENTO, Da necropolítica à ikupolítica, p. 29-31. In: Revista Cult, ed. 254 (fev. 2020) – Dossiê Filosofia e macumba (Disponível em https://revistacult.uol.com.br/home/da-necropolitica-a-ikupolitica/). 65 Como aponta Audre Lorde, “não há novas ideias, apenas novas maneiras de fazer com que elas sejam sentidas, de torná-las reais.” (Sou sua irmã, p. 109). 66 OLIVEIRA, O Quilombismo: uma expressão da filosofia política afroperspectivista, p. 132. 78 miolo.indd 78 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:26 ao epistemicídio. O que une todas essas abordagens sobre o quilombismo é o caráter coletivo de sua construção entre nós. Em seu trabalho, Lia reconhece os coletivos negros enquanto constituintes de práticas quilombistas. O quilombismo exprime a necessidade de organização da população preta, convoca à ação, à construção de possibilidades de uma nova sociedade, de uma nova percepção de mundo e de viver o mundo na realidade da população preta. A prática quilombista evidencia o papel ativo da população preta e todas as suas ações de construção do que é essa nação.67 A organização quilombista parece também ser um espaço de alianças, a partir do qual estes sujeitos, que têm sido historicamente destituídos, podem denunciar a precarização sistemática que nos atravessa e propor alternativas autônomas que visam a autodefinição coletiva de um povo. No entanto, faço uma leitura crítica da proposta de Abdias tendo em vista que “a justiça social só é possível se ninguém for deixado para trás: se há subordinação de um grupo pelo outro, não há justiça social”,68 como aponta Winnie Bueno. Não se trata, aqui, de compreender a estratégia articulada por Abdias enquanto insuficiente ou “segregadora” – como costuma reivindicar quem acredita na lógica de inversão de poder, por exemplo –, mas sim de chamar atenção para o fato de que as alianças, para serem de fato efetivas, devem ser articuladas por uma coletividade que não se organiza a partir de características em comum. Isso reproduziria um dos nossos maiores problemas políticos atuais, a lógica do individualismo – a partir da qual só há a integração de um sujeito político em determinado movimento se este sujeito for similar aos outros sujeitos, em termos de raça, identidade de gênero, orientação sexual, etnia, nacionalidade etc., por exemplo. A solidariedade política de hooks não se organiza desta maneira. Pelo contrário, hooks está interessada em promover novos modos de organização das nossas relações. E, para isso, é preciso que haja um trabalho coletivo. 67 COSTA, O quilombismo como instrumento de combate ao racismo epistemológico: a trajetória dos Coletivos Negros Universitários de Campos dos Goytacazes, p. 26. 68 BUENO, Imagens de controle, p. 120-121. Vinícius da Silva miolo.indd 79 79 24/03/2022 16:03:26 As [pessoas] não precisam eliminar suas diferenças para construir vínculos de solidariedade. Não precisamos viver sob a mesma opressão para combatermos a opressão em si. Não precisamos sentir hostilidade contra os homens para nos unirmos, tão grande é a riqueza das experiências, culturas e ideias que podemos compartilhar umas com as outras. Podemos ser [pessoas] unidas pelo compartilhamento de interesses e crenças, unidas em nosso apreço pela diversidade, em nossa luta para acabar com a opressão [capitalista], unidas na solidariedade política.69 A abordagem de hooks captura uma questão central para as alianças: a união pela solidariedade política. A união da qual hooks fala não é uma negação das diferenças, como já apontado, mas uma ressignificação dessas relações que produz uma nova cena de enunciação e mutualidade para que, de fato, sejamos o resultado desse encontro. É importante ressaltar ainda que, ao passo que o amor fornece a condição necessária para a construção de alianças (leia-se mutualidade revolucionária), pois trata-se de uma ação política, ele também parece proporcionar condições de enfretamento à precariedade produzida pelo sistema capitalista e patriarcal. Trata-se do amor enquanto ação política e imperativo ético. Recentemente, no Brasil, a ilustração da tatuadora e artista Thereza Nardelli que crava a famosa frase “ninguém solta a mão de ninguém” ganhou força no contexto das eleições de 2018 e dos protestos contra Bolsonaro. Como esperado, as dinâmicas virtuais esvaziaram o postulado ético e fez com que ele fosse constantemente, até os dias atuais, banalizado. A reflexão de Helena Vieira nos parece interessante: “Ninguém solta a mão de ninguém” é um postulado ético, de solidariedade mútua, proteção e cuidado, porém, entre uma mão e outra existem diferenças que remetem à própria constituição da humanidade dos sujeitos e do enquadramento de suas vidas como vivíveis ou não. Que mãos estamos dispostos a segurar e não soltar? Ou ainda, 69 HOOKS, Teoria feminista, p. 109. As palavras “mulheres”, “irmãs” e “sexista” foram substituídas por mim, na citação, por “pessoas”, “pessoas” e “capitalista”, respectivamente, de modo a ampliar o significado da discussão proposta por hooks. 80 miolo.indd 80 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:26 quais mãos sequer enxergamos para segurar e não soltar? O chão que se pulveriza sob nossos pés nos traga desigualmente e de formas múltiplas. As vulnerabilidades e fragilidades das vidas ao nosso lado são, muitas vezes, imperceptíveis, se vistas estritamente sob a nossa perspectiva.70 De acordo com Helena, “ninguém solta a mão de ninguém” nos convoca à formação de alianças, convoca o corpo ao aparecimento. Não se trata de um “ninguém esquece de ninguém”, diz ela, pois há uma política do corpo em voga. Nesse sentido, a política passa a ser um modo de viver, uma forma de disputar a própria sobrevivência. Não à toa, digo que o amor enquanto ação política permite a integridade do sujeito. Na esteira do pensamento de Butler, os postulados “nós somos o resultado do nosso encontro” e “ninguém solta a mão de ninguém” articula, de alguma forma, uma reflexão crítica acerca dos processos constitutivos do sujeito e da sua dependência ontológica. Se nós somos, de fato, o resultado de nosso encontro, é porque não há sujeito que se constitua fora de uma cena do reconhecimento e de enunciação que se organiza a partir de uma dialética do reconhecimento. E se ninguém realmente soltar a mão de ninguém, teremos de admitir que a aliança é nossa condição de existência. O amor é a condição de reconhecimento e a aliança é a condição de existência do sujeito. A formação de alianças, ainda, é o que nos permite combinar de não morrer, como narra o conto de Conceição Evaristo. Se Dorvi postula com seus companheiros de que eles não vão morrer, pois combinaram de não morrer, é porque Dorvi estabelece uma condição de aliança. Nesse sentido, a morte do outro é uma morte de nós mesmos, porque somos sujeitos necessariamente dependentes de uma coabitação que condiciona a nossa existência. A política das alianças, dessa forma, organiza uma nova gramática ontológica que enfrenta e disputa a abjeção dos corpos em aliança. Jup do Bairro postula: “o que pode um corpo sem juízo”; e eu digo: “se entendermos “sem juízo” como “em aliança”, um corpo sem juízo em aliança pode revelar a norma e combater a precariedade desigual, em busca de uma vida mais vivível. 70 VIEIRA, Notas (im)possíveis para um futuro insistente, p. 125. Vinícius da Silva miolo.indd 81 81 24/03/2022 16:03:26 miolo.indd 82 24/03/2022 16:03:26 Amor, significante despótico – um diálogo com Helena Vieira Angie Barbosa: Então, gente, eu preparei seis perguntas relativamente complexas para a nossa discussão. Porém, eu levarei em consideração também a imprevisibilidade das respostas para seguir e mediar o diálogo. Nos tempos presentes, a gente pode ver que novos olhares críticos estão sendo direcionados para o amor; o trabalho de Vinícius é um ótimo exemplo. Quando a gente pensa em políticas do amor e éticas do amor, isso significa que a gente tem que delimitar e possivelmente desconstruir esse conceito, que é muito fortemente estabelecido nas nossas culturas, enfim. Nesse sentido, eu gostaria de perguntar se vocês acreditam que o surgimento de teorias críticas sobre o amor, de olhares críticos sobre amor, enuncia ou prefigura uma crise do amor. Se é possível dizer que o amor está ou estará em crise e o que que isso significaria para nós. Vinícius da Silva: Eu diria que toda a disputa, que é que a gente tem hoje com a formulação de teorias críticas, por exemplo, sobre a questão do amor, prefigura uma crise. E por crise a gente pode entender movimentos de instabilidade, insegurança ou mudanças bruscas na forma como a sociedade compreende alguma coisa. Então, eu diria que a gente vive de certa forma numa crise do amor porque sem essa crise a gente não conseguiria disputar o conceito. É aí que All About Love, de bell hooks, se insere. Uma estratégia de lidar com a crise é definindo o que está em crise, que é o que hooks faz ao definir seu conceito de amor, de maneira análoga à uma receita de bolo. Uma das críticas de hooks é à forma que amamos – ou melhor, que definimos amor. Nesse sentido, hooks chama atenção para o fato de que se não tivermos uma base sólida para disputarmos o amor, entramos numa crise, como ocorreu nas décadas de 70 e 80 nas comunidades afro-estadunidenses. miolo.indd 83 24/03/2022 16:03:26 Uma crise que não era somente econômica, mas também espiritual. Mas o que é essa crise espiritual? É o que Cornel West chama de niilismo, que é uma perda do sentido da vida. Então, estamos falando de uma disputa do conceito de amor que tem como objetivo recuperar o sentido da vida a partir da construção de uma comunidade, ou a partir da reconstrução dessa comunidade que de alguma forma foi atravessada pelas dinâmicas de um espírito nacionalista estadunidense na segunda metade do século XX. No entanto, eu também diria que a disputa pelo conceito de amor, pelo menos isso é uma hipótese que eu defendo muito neste livro, também é disputa para recuperar a forma como a gente compreende a vida, a forma como a gente compreende a nossa própria vida enquanto sendo interligada (ou não) à vida dos outros. Por isso, gostaria de salientar que, sob o escopo do pensamento de hooks, a disputa pelo conceito de amor é uma disputa por uma ética da vida (embora eu concorde parcialmente com este enunciado, esta é a hipótese deste livro, e apenas a problematizarei em meu segundo livro) – porque ela tem a ver justamente com recuperação de sentido e com recuperação daquilo que possibilita a construção de uma mutualidade, de uma comunidade, de fato, política. Helena Vieira: Não sei se eu diria que há uma crise do amor. E digo isso porque talvez o que haja seja uma crise de conjuntos de sentidos que estruturam uma definição específica de amor. Digo isso porque eu me preocupo em não afirmar o amor como uma condição humana trans-histórica, que atravessaria a história como um sentimento sempre presente em todos os povos. Afinal, a própria distinção entre sentimento e não-sentimento, entre o mundo subjetivo e o mundo objetivo, é uma distinção que se constitui na modernidade. Então, surge essa nossa forma de pensar as relações a partir de sentimentos que emanam então de um tipo de encontro não racional. Por exemplo, os sentimentos para nós – e eu digo “nós” pensando em termos de como se constrói o discurso sobre o amor – estão ali no campo do irrazoável, do irracional, porque nós somos sujeitos entendidos de forma cindida; a cabeça não governa o coração. Há o mundo dos sentimentos e o mundo da razão. O conceito de amor, então, genericamente falando, passa a invocar na modernidade sempre um tipo específico de amor. A despeito de existirem 84 miolo.indd 84 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:26 muitos, a palavra amor é frequentemente sobrecodificada sobre a noção de amor romântico. A noção de amor romântico sobrecodifica a noção de amor. E não só sobrecodifica o amor, mas funciona também como um significante despótico do sentido de ser amado. E eu digo, então, que o tema do amor é muito importante para mim porque eu falo do lugar de uma mulher transsexual. Uma mulher transsexual que ao longo de sua trajetória e assim como muitas mulheres transsexuais enfrentam aquilo que se pode pensar como uma forma profunda de desamor. De desamor, no sentido de que há parceiros sexuais, existem amigos, mas aquele amor romântico que nós aprendemos e que nós idealizamos desde sempre, que estabelece o território da realização, não nos é ofertado. Vocês permitem que eu compartilhe com vocês algumas coisinhas que escrevi sobre isso? É um post meu do início da transição, de 2015, de quando eu estava numa crise do amor romântico e do amor de amigo tão grande, que eu escrevi muito sobre essas dores. Quando escrevi isso, ocorreu que um grupo de amigos foi fazer um aniversário na casa de um dos amigos. Só que eu não fui chamada por causa dos pais. Não sabiam como os pais iam entender uma travesti e querendo me proteger. E aí, naquele momento eu me dei conta de que existia para mim o tipo de afeto público de quando eu estava nas palestras, de quando eu estava nesse estrelato, mas que não havia espaço para construção de verdadeiros laços de intimidade, que eram que nem laços de amor. Então, assim, era uma forma de se destituir do amor. E uma vez isso se ressignificou fortemente para mim quando um diálogo com um amigo sobre o meu ex-namorado eu falei “Ah, mas tenho medo de não ser amada de novo”. Ele falou “Mas eu te amo”, eu falei “Mas você é meu amigo”. E ele disse “Mas por que o amor das pessoas que não te amam como um namorado, que não te amam romanticamente, não conta quando você não se sente fundamente amada?” Com isso, percebe-se então que o que há é que o amor romântico se transforma em um significante despótico, no sentido que ele vai engolir toda a possibilidade de experimentação do amor. E ele não é só o amor, mas é também a tradução da norma da reprodução heterossexual. Por exemplo, vocês já ouviram a história de que gays não amam? Que gays gostam de sexo? Que não Vinícius da Silva miolo.indd 85 85 24/03/2022 16:03:26 há amor entre gays, que há só putaria? Por isso então que muitos gays são solteiros, são solitários... porque há no amor a realização subjetiva da reprodução. E justamente por isso, então, ele é tão incentivado, tão promovido, entre heterossexuais. E existe também como uma possibilidade única de existir para o futuro. O amor é também uma garantia de futuro. Por que ele é uma garantia de futuro? Porque na modernidade, ele promove laços que são de obrigação. O amor implica, nesse caso, em obrigações. Que tipo de obrigações? Por exemplo, o amor materno e o amor filial. A organização futurista heterossexual garante que os pais invistam amor nos filhos e esse amor então será retornado futuramente em forma de cuidado para garantir a velhice. A estrutura heterossexual é uma estrutura de garantia da vida, na permanência da vida. Então, há ali uma codificação que é muito impulsionada pelo amor. E aí, quando a gente vê a Butler falar do amor da criança, ela vai dizer que o amor da criança transforma, o amor pela mãe não emerge necessariamente de um sentimento de adorar a mãe, mas emerge de uma necessidade fundamental de existir e somente a mãe e o pai podem possibilitar essa existência. Então, transforma-se essa dependência, que seria um sofrimento, em amor. Os laços de amor como nós organizamos na modernidade são laços de amor que se constroem para corpos cisgêneros e heterossexuais e para as famílias tidas como normais. Há uma crise no amor? Há uma crise do amor moderno. Há uma crise do amor na modernidade. Essa crise se dá na intenção de novas e outras formas de amar. De outras formas de construir relações de amor e, portanto, na ressignificação do termo amor. Aí eu não sei, é preciso chamar de amor estes novos “amores”? Não sei. Acho que a gente vive um processo agora que é mesmo de invenção e reinvenção do amor. Vinícius da Silva: A sua fala tocou em pontos bastante interessantes e importantes e eu concordo com a maioria das considerações, sobretudo com essas transformações conceituais, digamos assim, que aconteceram na modernidade. E aí, eu penso, na verdade, que essas apropriações, ou talvez, eu acho que a palavra mais certa seria “significações” características da modernidade... revelam para a gente mecanismos de controle sobre o conceito de amor. Porque uma das coisas que eu tenho tentado entender e eu acho que essa sua fala 86 miolo.indd 86 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:26 se encaminha um pouco para esse caminho e é isso que eu queria te perguntar, é sobre como a gente consegue compreender o amor também como um instrumento de reconhecimento. No final da sua fala, você fala sobre a questão do medo de não ser amada e também a questão do amor materno. Isso me lembra um pouco o que a Butler vai discutir sobre o apego apaixonado em A vida psíquica do poder. E aí, uma coisa que eu tenho tentado justamente entender são os limites disso e se o amor não é também numa categoria de reconhecimento. Implica numa vontade de ser reconhecido. O quê que você pensa sobre isso? Helena Vieira: Desenvolve mais um pouco. Vinícius da Silva: Então, uma coisa que eu tenho tentado desenvolver é até que ponto o amor pode ser uma categoria de reconhecimento. Mas aí a gente entra numa outra questão: o que é o amor? E aí, a gente entra na sua pergunta: é preciso chamar de amor essas novas formas, essas novas discussões, sobre amor? E eu certamente responderia que não. (Eu falo isso a partir de uma influência de Patricia Hill Collins e bell hooks.) O que a gente está disputando é um nome, de certa forma, mas é um nome que carrega consigo uma prática política. Carrega uma prática também coletiva. Eu acho que o que a gente tem que manter é essa prática. Qual é a prática do amor no pensamento de bell hooks? A prática do amor é uma prática de preservação da vida, de preservação da comunidade. E se a gente pode chamar essa preservação da vida de comunidade de um outro nome, a gente chama, caso o nome amor esteja causando algum tipo de confusão, por exemplo. A gente pode trocar o nome, a gente pode assumir um outro nome e transcodificar o conceito, transcodificar essa prática. E quando a gente compreende essa questão da comunidade e essa questão do estar com os outros, eu acho que isso abre uma questão muito central, que é a questão do reconhecimento. Reconhecimento no sentido de ser plenamente sujeito e de poder ocupar, poder construir relações sociais enquanto sujeito, que não sejam relações de dominação. E aí, um desafio que eu coloco inclusive no livro é como que a gente pensa então relações que não sejam relações necessariamente de um poder Vinícius da Silva miolo.indd 87 87 24/03/2022 16:03:26 dominador dentro de uma lógica vigente. Com isso, chegamos à proposta da gramática ontológica, da formulação de uma nova gramática ontológica. E isso dá origem a uma outra questão: como que a gente constrói essas relações entre o Eu e o Outro, por exemplo, sem diluir essas categorias? Trata-se de uma questão que eu não consigo responder. Mas a questão mais central para mim é como é que o amor, e quando a gente fala sobre amor, a gente fala sobre identificação, pelo menos eu tento pensar assim, é também uma categoria de reconhecimento que vai permitir a construção de uma relação que não seja atravessada por uma lógica de dominação. Esse tem sido um dos meus grandes desafios para pensar o tema do amor. É nesse sentido que eu tento pensar a partir do seu comentário sobre o medo de não ser amada. Helena Vieira: Sim, eu acho que o amor romântico, principalmente, é uma categoria de reconhecimento de muitas coisas. Ele é uma categoria de reconhecimento de gênero, no sentido de que você se concretiza em termos de gênero em que exibe socialmente que ama e que é amado. E você se reconhece a si mesmo como sujeito quando ama e quando é amado. Ser amado, nesse caso, equivaleria ao reconhecimento do seu valor social e não só o reconhecimento de valor social, mas no caso do amor romântico, o reconhecimento de sua posição na economia do desejo. Porque se ninguém se apaixona por uma pessoa, ela não pode ser alguém desejada. Portanto, essa pessoa estará relegada ao segundo plano ou à marginalidade da economia de desejo. São as clássicas figuras do heterossexual nerd, do gordo, e dessa multidão de sujeitos indesejáveis e não amáveis. Em algumas outras situações, o amor pode conferir legitimidade social para sujeitos subalternos. E, nesse sentido, a gente vê as utopias que se produzem a partir de um conjunto de outros subalternos. Então, por exemplo, vemos a utopia que se produz do gay que captura o heterossexual, que consegue capturar o homem normativo etc. Isso porque transformaria o status social desse homem social. Em seguida, para os homens negros, a mulher branca, jogador de futebol que casa com uma loira, que tem então aí uma política de reconhecimento da não-subalternidade ou do caráter. Maquiavel usa uma expressão para os destacados da plebe em Roma. Entre os plebeus, há um destacado que será reconhecido pelo Estado, pelos 88 miolo.indd 88 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:26 nobres, que é o condottiere. Ele é reconhecido pelos poderosos como alguém especial, e então, ele é comprado pelos poderosos. Então, o condottiere é um destacado da plebe que impede a plebe de ascender coletivamente. Porque se ele pôde, todas nós vamos poder também. Então, trata-se de tornar-se também especial. Dessa forma, o amor funciona como uma utopia controladora, uma utopia normativa. Nós precisamos nos corrigir para então conseguirmos ser amados. Então, existe essa via sacra de se tornar amável que, para os sujeitos subalternos, é sempre uma via sacra de adequação. De ir à academia, de melhorar isso e aquilo, enfim, de transformação em nome do amor. Eu quero entender, porque a minha familiaridade com a obra da bell hooks é pequena, quando se trata da noção de amor, trata-se de qual noção de amor? Ou de que práticas de amor? Porque a discussão sobre o amor romântico é uma discussão. Quando nós falamos do amor para falar de amizade, é uma outra discussão... Vinícius da Silva: A bell hooks começa a trabalhar com a questão do amor em 1993 com o ensaio “Vivendo de Amor” – talvez a primeira tradução dela no Brasil. Nesse texto, ela enfatiza que “o amor cura”. Para chegar à esta conclusão, hooks recupera os escritos bíblicos, inclusive, do Evangelho de São João (“Aquele que não ama ainda está morto”) e, a partir disso, ela mobiliza, de maneira ainda introdutória, a noção de que o amor é um instrumento de recuperação ontológica e de autorrecuperação. Para hooks, a autorrecuperação é um mecanismo de sujeição, uma outra forma de se tornar sujeito. E quando ela diz que nossa recuperação está no ato de amar, é porque há, nesta singela ação, a possibilidade de recuperar um sujeito que foi atravessado pelo colonialismo. Com isso, emerge a noção de que a cura é uma reintegração ontológica e não somente um mito do amor romântico. Em All About Love, a gente encontra uma noção importantíssima para hooks que é a noção de ética do amor. Trata-se da construção de um tipo de responsabilidade ética que permite compreender que nós somos necessariamente responsáveis pela vida do outro, como sugere, inclusive, Butler, em Caminhos Divergentes. A partir da noção de que “a ética do amor pressupõe que todos nós temos direito de viver plenamente e bem”, hooks começa a discutir o papel da comunidade no amor. Vinícius da Silva miolo.indd 89 89 24/03/2022 16:03:26 O conceito de amor para bell hooks, de alguma forma, se confunde no conceito de aliança para a Butler. Digo isso porque o amor tem a ver com uma construção coletiva, com a busca por um horizonte político e social para um grupo que tem sido sistematicamente atravessado pela norma, a qual hooks nomeia como patriarcado capitalista imperialista de supremacia branca. Então, o amor surge como uma categoria de reconhecimento porque ele permite a reconstrução da comunidade, e não há comunidade de “quase-coisas” ou de objetos não identificáveis, é preciso reconhecer para formar alianças. No entanto, tendo em vista todas essas adversidades que podemos enfrentar nesta discussão, é importante salientar que, nos termos de hooks, o amor não coloca fim às desigualdades sociais, mas ele constrói um caminho para isso. Por isso que ele é político, porque ele permite a união. Um tipo de união que não nega as diferenças sociais, mas faz uso delas para justamente disputar e desmantelar os sistemas de opressão que são fundamentadas a partir dessas diferenças. E embora o conceito de amor esteja em disputa, como eu penso isso? Eu o penso enquanto uma categoria que permite a construção de um coletivo, a construção de uma mutualidade. Estamos falando de transformação social, mas existem pessoas que vão disputar outras significações de amor. O que não é exatamente um problema, mas eu estou particularmente interessado, neste momento de minha obra, disputar uma noção hooksiana de amor, que compreende que o amor é algo que permite a disputa por um sentido da vida. E como que a gente constrói um sentido da vida? É no estar com os outros que a gente constrói o sentido da nossa própria vida. Angie Barbosa: Nós precisamos passar pelo amor para chegar a um pensamento do futuro? Podemos pensar numa construção de uma futuridade sem discutir amor? Vinícius da Silva: Eu diria que o amor não é, e aí quando eu falo amor nesse momento a gente tem que se render às armadilhas da identificação, a única condição para um futuro habitável. O amor é apenas uma categoria política e ética que permite a disputa por esse futuro. Essa é uma definição válida para o conceito de amor a partir do pensamento de hooks. Digo isso porque quando a gente fala de futuro, a gente também fala, pelo menos de alguma maneira, sobre 90 miolo.indd 90 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:26 a disputa de interesses de um determinado grupo. Então, as pessoas disputam o futuro e suas garantias o tempo todo. Os conservadores disputam o futuro, os fascistas disputam o futuro, e nós também. O que cabe aqui pensarmos é sobre como o amor, e aí eu não falo mais de um conceito, mas sim de uma prática do amor que a gente pode nomear de outra forma a essa altura da discussão, permite também a disputa por um futuro, como que isso se dá, de fato? Uma coisa que tenho tentado discutir no livro é sobre como essas alianças, essas mutualidades, permitem a efetivação de uma prática do amor, que por sua vez possibilita a construção de um futuro feminista, nos termos de Virginie Despentes ou de uma futuridade queer nos termos de José Esteban Muñoz. O que está em disputa é justamente um projeto de justiça social. E aí, eu acho que a gente chega no ponto central desta discussão: estamos falando de um projeto de justiça social que objetiva a superação do capitalismo, que permite a habitação plena ou digna de todas as pessoas da sociedade. E aí a gente começa a se deparar com diversas questões. Quem são essas pessoas? Como que a gente lida com determinados sujeitos na sociedade? E quais são os limites e as fronteiras do amor enquanto uma categoria que permite essa disputa? Essas são questões que eu deixo aqui em aberto para pensar como o amor enquanto uma categoria ética e política que permite a disputa por um novo futuro, mas ciente de que ele não dá conta desse futuro, de fato. Helena Vieira: Trata-se de uma questão complexa porque, em primeiro lugar porque o futuro é essa utopia que não experimentamos jamais. A nossa existência e a nossa possibilidade de ação se dão dentro da nova temporalidade ocidental, nesse instante. O futuro se torna para nós uma questão da modernidade. E o futuro se torna uma questão na modernidade porque a modernidade instaura a noção de uma marcha temporal que podemos controlar, relativamente, e à qual chegaremos em dado momento. É na modernidade que nascem grandes utopias. Grandes utopias que dependeriam num certo sentido, da ação humana no mundo. A construção, portanto, do futuro, no entendimento moderno, é uma construção que é relegada para a ação do humano no mundo. Essas utopias irão organizar as nossas ações. No sentido de que então, por exemplo, uma utopia marxista, que busca uma sociedade sem classes, irá impulsionar ou irá organizar nossas ações em relação à classe traVinícius da Silva miolo.indd 91 91 24/03/2022 16:03:26 balhadora, em relação a nosso ideal de revolução, em relação àquilo que serão as suas práticas de transformação coletiva. Práticas de transformação coletiva que serão de muitas ordens. Outros, então, terão ali na sua utopia tecnológica da sociedade liberar positivista do trabalho, essa responsabilidade do trabalho como, inclusive, uma demonstração de amor, sobretudo numa família tradicional, com a figura paterna, que é a demonstração de amor de ele trabalhar e sustentar a família. E o amor seria, nesse caso, nos termos de Lee Edelman em No Future, assim como o futuro, uma coisa de crianças. Por que o futuro é uma coisa de crianças? Porque o futuro é sempre para os outros, é sempre para as crianças, de modo que as políticas quando disputam futuro trazem sempre a ideia das gerações que virão. E sendo então o futuro para crianças, ele estabelece a proteção do futuro dentro do que ele chama de futurismo produtivo. No sentido que a geração do futuro deverá ser produzida e ela deverá ser produzida por sujeitos heterossexuais. Os sujeitos dissidentes, os sujeitos queer, os sujeitos não reprodutivos ou cujas práticas não são num primeiro olhar reprodutivas, são antissociais. E justamente por isso, suas práticas de afetividade não são entendidas imediatamente como práticas de amor, mas como a corrupção de alguma coisa muito bonita, que seria então o amor. E quando você falou sobre uma definição de amor em bell hooks, eu consegui entender como um conjunto de práticas de cuidado e de relação entre os sujeitos. De uma comunidade, de uma família, que garanta as condições de existência. São práticas que possibilitam a existência da vida. E não são necessariamente românticas de amizade, mas práticas de cuidado que seriam então de muitas e muitas ordens e talvez não coubessem simplesmente nessas categorias. E aí, eu tendo a achar perigoso o termo amor nesses casos justamente porque o amor é uma daquelas palavras que significam muito e não significam nada, que é o que Laclau chamará de significantes vazios, são palavras que de tão surradas, perderam seu núcleo significante e podem significar literalmente qualquer coisa. Em “Notas (im)possíveis para um futuro insistente”, em umas das notas, escrevo sobre minha relação com Vitor, meu amigo, e eu acho que tem aqui um pouco dessa ressignificação do que é amor, que eu falo dessa extrapolação que se pode fazer com amor. 92 miolo.indd 92 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:26 O Vitor é minha alma gêmea, inclusive nos tratamos por “alma”, desde o momento em que constatamos que não havia, para nós, outro caminho que não fosse o apaixonamento. A primeira vez que nos encontramos foi em uma palestra sobre Teoria Queer, mas pouco falamos um com o outro. O ambiente era tomado de admiração, e, no meu caso, alguma dose de insegurança. A segunda vez que nos vimos foi em uma pequena recepção junina que um amigo em comum, Lucas, fizera por ocasião de uma das minhas muitas idas à São Paulo. Conversamos um tanto e eu fui embora. Apenas no terceiro encontro, meses depois, é que nos apaixonamos e constatamos que, tal e qual o mito grego, éramos almas gêmeas: concluíamos as frases um do outro. Nossas ideias coincidiam. Nossas experiências sexo-corporais eram muito semelhantes. Éramos almas gêmeas, singulares, porém espelhadas, capazes de compreender, como ninguém, o que se passava e passa com o outro. Somos amigos. Trata-se de uma paixão e de um relacionamento que não tem a natureza romântica, com que frequentemente interpretamos os termos “paixão” e “alma gêmea”. Temos sempre inúmeras e longuíssimas conversas, dias inteiros às vezes, tramando em nossos encontros um mundo que soa impossível para os muitos ouvidos deste nosso mundo em desabamento. Entre as muitas coisas que aprendi com Vitor, que é um brilhante antropólogo, e cuja grandeza almejo um dia alcançar, é que novas relações e novas formas de constituir relações com as pessoas e entre as pessoas são fundamentais para a constituição de um mundo possível para os corpos impossíveis. “Viver é perigoso”, ele sempre diz, mas é no conjunto de apostas que compõem a vida e seus riscos que podemos produzir, ainda que não intencionalmente, as fissuras no tecido do real, por onde o desconhecido e novos campos de possibilidade se esgueirarão, deformando este nosso mundo e possibilitando que o impossível deixe de sê-lo.71 Nessa nota, eu brinco com a ambiguidade do amor. Presume-se que é um namorado até que falem que ele não é um namorado. Justamente porque as palavras paixão e alma gêmea são codificadas dessa forma. Então, eu tenho adotado uma filosofia que eu digo a todos os meus amigos próximos que 71 VIEIRA, Notas (im)possíveis sobre um futuro insistente, p. 133-134. Vinícius da Silva miolo.indd 93 93 24/03/2022 16:03:26 sou apaixonada por eles. Alguns tiveram um estranhamento. Busco afirmar que nossa amizade é um tipo de paixão. É paixão. É paixão porque a paixão e o amor não podem seguir confinados à exclusividade do amor romântico. Então, talvez seja preciso que nós pratiquemos a transposição. E praticar a transposição nos leva a uma outra questão que é desterritorializar as relações. Nós quando nos relacionamos com alguém estabelecemos a prioristicamente a forma correta de construir essa relação, de sentir essa relação. Então, a gente chama de amizade, namoro, “ficante”, conhecido, melhor amigo, colega de sala etc. Você classifica e cada uma dessas relações têm éticas pré-estabelecidas. Essas éticas e esses significados constroem uma mediação dessa relação que confina essa relação a um sentido específico. Então, você não experiencia a relação, você experiencia os sentidos possíveis os quais se atribuem àquela relação. E tudo aquilo que escapar será considerado problemático. Tudo aquilo que escapar naquela relação... “Nossa, senti tesão no meu amigo... Ah gente, mas ele é meu amigo... Ah, mas é meu amigo.” Então, essa nota nos leva a tentar resistir à tentação de nomear as coisas, como sugere Susan Sontag, em Contra a interpretação. Quando a gente não tem como nomear uma relação, nós não temos como enquadrá-la num conjunto de obrigações específicas. E isso acontece muito entre as pessoas queer e as pessoas LGBT. E aí, entra uma outra questão que é o outro lugar, o único outro lugar que amor é despótico além do amor romântico, que é o amor familiar. O amor entre a família. Só quem ama de verdade é a sua família. Só quem te ama de verdade é a sua mãe. É seu pai. Então a família concentra o sentido de autenticidade do amor. E ela concentra também as práticas de cuidado do amor. Então uma sociedade moderna, se você quer ser cuidado, tenha uma família. Tenha uma família. Que outras práticas de criar parentesco, de criar família, nós podemos desenvolver que não sejam a família nuclear? E os terreiros de candomblé? Trata-se de outra forma de gerar parentesco, e isso, para mim, são práticas de amor. E o que me parece é que não é possível estabelecer regramentos para o desenvolvimento de outros territórios do amor. É preciso, antes, criar outras experiências que fundem outros territórios. Angie Barbosa: Nesse sentido, eu gostaria de saber se podemos pensar em uma crítica queer ao amor. No escopo da Teoria Queer, é possível ou 94 miolo.indd 94 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:26 o que significa pensar o amor desnaturalizado, desterritorializado? Pensar o amor desidentificado ou pensar o amor a partir do próprio fracasso? Helena Vieira: Colocar amor e futuro no mesmo plano é sempre perigoso, porque é como se você colocasse um espelho em frente a norma. Alguém poderia perceber que está invertido. Mas a norma poderia simplesmente se identificar e então sequestrar a imagem, ela não estaria mais invertida. Justamente porque o futuro e o amor já são construções da norma. No sentido de que é o amor por necessidade de amar e todos os efeitos do amor que constituem os laços que vão garantir o futuro. Justamente porque a relação que se estabelece no seio da família e nas relações de amor é uma relação que vem sempre acompanhada de um contra sentimento que é a não-realização dos ideais de amor. Então, o amor se fundaria sempre numa falta. O amor é uma coisa porvir, a família é uma coisa porvir. Mas o que significa realizar este futuro? O que significa concretizar o futuro? Significa atender a dadas condições de sucesso. Quando uma pessoa sabe que venceu na vida ou não? A pessoa sabe que venceu na vida ou não se ela atendeu ao fim, e ao fim é na velhice, mas como seres que se estabeleceram na juventude para que terminem suas vidas com vitória. Mas um sendo heterossexual e tendo cumprido seu destino heterossexual, ou seja, reproduzindo, então você tem mais uma chance. Que é de que seus filhos vençam na vida. E mais uma chance ainda, que é de que seus netos vençam na vida. Os bisnetos, não, porque você talvez não estaria mais vivo. Veja só: na família heterossexual há uma herança da experiência familiar que é passada. Quando se pensa em experiências LGBT, a gente tem família agora. Minha mãe está comigo em São Paulo, você com seus pais aí, talvez case, talvez não. A possibilidade de imaginar um futuro e uma velhice é sempre heterossexual porque as bixas viram purpurina, as bixas não envelhecem. Eu tenho um texto que eu escrevi para o Itaú que se chama Velhice e LGBTs: as vidas que não viraram purpurina, porque elas sumiram, elas somem, viraram velhas. Então esse futuro, para nós, é construído e pensado enquanto espaço de desamor. Porque justamente o amor, em sua constituição heterossexual, é uma garantia de um futuro, das relações, de segurança, da estabilidade, dos laços, das famílias heterossexuais. Vinícius da Silva miolo.indd 95 95 24/03/2022 16:03:26 E aí, eu acho que há coisa que é importante, que é como se constitui o amável. Como se constitui aquilo que pode ser amado? O que pode ser amado e o que não pode ser amado? Quais são as características que são amáveis? Virilidade, hombridade, honra, no caso dos homens; fragilidade para as meninas... E esses são conjuntos de características que não são só buscáveis, mas são também amáveis. A sensualidade excessiva da mulher, por exemplo, não é amável. Ela é apenas desejável. Assim como o feminino no homem é tratado como odiável no sentido de odioso, como a fofoca, o melindre, a fraqueza. Quando você olha por exemplo a história de vilões de desenho animado você vê quantos vilões são ali relativamente afeminados. Então, assim, esse lugar do homossexual, do dissidente, vai ser sempre o lugar daquele que não pode ser plenamente amado porque ele irá te enganar. Há sempre uma condição de suspeição em relação ao sujeito dissidente, que irá relegar o sujeito dissidente a espaços de subalternidade. Então, por exemplo, os laços de amizade nos processos de socialização do menino adolescente afeminado. Veja, esse menino, ele vai socializar com meninos e, com outros meninos, ele será sempre um risco para quem olha. No sentido que “será que aquele hétero que anda com ele está o pegando? Será que vai dar em cima?” E mesmo para as meninas lésbicas. Há sempre um sentido de perigo, de falsidade, de suspeição, de inautenticidade que perpassa a dissidência e que perpassa a raça. Essas condições de suspeição transformam esses sujeitos em corpos inamáveis. Estes corpos são inamáveis porque o amor demanda sinceridade. É justamente essa a construção de modo que se supõe que há no amor um ato de amar, uma expressão de uma verdade que perpassaria então todos os atos. E é muito interessante isso porque nessa condição, que é uma condição utópica – e justamente por isso o amor é uma busca que não se concretiza porque o amor não é só aquilo que constrói o futuro, o amor é também o futuro – porque o amor é algo que se busca, mas que nunca se encontra. Esse amor precisa ser dito e dito e dito por que a dúvida de “será que ama mesmo?” vai sempre existir. E ela vai sempre existir porque nós chamamos amor como um sentimento autêntico, como algo profundo, autêntico, que emerge na gente no estômago, não existe. Não existe na gente nem em ninguém. “Eu amo fulano”. Bem, a qual conjunto de coisas dentro de você significa amar? E esse conjunto de coisas que você sente é constante? Não. Justamente por 96 miolo.indd 96 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:26 isso nessas relações de amor, romântico sobretudo, demanda-se a reiteração performativa de atos de amor e de declarações de amor. Porque nenhum dos dois sente amor o tempo inteiro. Isso porque o amor é sempre o futuro, é algo que vou conquistar. Eu serei um dia amada. E para isso, então, eu vou construindo práticas que vão me levar a esse amor. O sujeito queer não é amável. Ele é monstruoso. É o sujeito a quem o amor não cabe e é o sujeito que ofende o amor. Ele ofende o amor da mãe e da família, que tanto cuidado deram a ele. Ele ofende o amor dos irmãos e ele ofende a possibilidade de ser amado, porque ele se torna um sujeito de tal modo aberrante que ele se transforma em algo impossível de amar. Impossível de amar porque o amor é aquilo que se oferta aos iguais. Ainda que você precise transformar um diferente em igual, como nós fazemos com os pets, que são os processos de humanização dos pets. Mas para aqueles que, em tese, seriam iguais e que nós consideramos diferentes como travestis, pessoas negras, corpos muito gordos... Esses sujeitos são impossíveis de amar. Porque amar a estes sujeitos te levaria ou te relegaria ao campo do patológico. Então, trata-se de uma experiência de seres que habitam lugares no mundo que são lugares tidos como inamáveis, ou como impossíveis de ter amor, de amar. E esses lugares de onde o amor não se concretiza, eles são lugares também de classe. Então, por exemplo, quem não viu a matéria de jornal sobre o amor entre dois mendigos que vivem juntos na rua? Por quê? Porque olha, o amor é possível quando se mora na rua? É possível construir essas práticas de amor nesses lugares que o amor é impossível? Só que isso demanda deixar de existir, isso demanda abandonar o ideal do amor romântico, o ideal do amor normativo. O ideal do amor das relações tal qual elas são dadas pelo mundo. A gente tem que inventar formas subalternas, dos subalternos experimentarem as suas formas de estar juntas, a sua coabitação. E isso tem a ver com sobrevivência, nesse sentido. Porque veja, não existem práticas de sobrevivência coletiva para nós justamente porque nós somos destituídas de instrumentos subjetivos capazes disso. É parte da violência contra nós nos destituir de condições socioemocionais de desenvolver laços coletivos de pertencimento. Só que as experiências coletivas conforme abundam a população mundial, abundam também as formas de fracasso. Abundando, então, as formas de fracasso, a gente tem uma multidão de fracassados. Fracassados no amor, fraVinícius da Silva miolo.indd 97 97 24/03/2022 16:03:26 cassados no sexo, fracassados de formar família, fracassados de ter emprego, fracassados de ter sucesso. Fracassados, fracassados, fracassados, fracassados... Frente a uma experiência radical do fracasso, o que fazer? Que tipo de ética possível se realiza a partir do fracasso? Essa é a questão que Jack Halberstam tem colocado em A arte queer do fracasso, que é justamente essa experiência das coisas que não acontecem. O que aconteceu, o que acontece quando fracassamos? A gente diz assim: “É porque não aconteceu. Eu fracassei porque não aconteceu”. Mas o que aconteceu quando você fracassou? O que é essa experiência do fracasso? O que é fracassar em me amar? O que é não ser amado? Júlia Kristeva nos diz que não é possível falar de amor. No sentido que não é possível inclusive falar de um amor por vir. E isso é uma loucura porque o amor vai ocupar um lugar em que ele só pode ser buscado no futuro, para o futuro, no sentido de que buscamos, mas só pode ser nomeado no passado. E nós não sabemos, jamais, o que é preciso fazer para ser amado. A norma constrói um conjunto de predicações que nos tornam amáveis. Ainda assim, existem amores que insistem para fora dos predicados da norma, que são chamados, então, de loucura. Trata-se de um amor que não se busca. É um amor que deve ser recusado, justamente porque ele é perigoso. Ele é perigoso porque ele é desordenador. Então, eu acho que talvez por isso, a produção discursiva sobre amor existe de forma tão intensa na modernidade; é justamente porque essa experiência do amor é uma experiência que põe em risco o projeto de razão da modernidade. E não estou fazendo uma crítica ao amor, mas uma crítica do amor na modernidade. Foucault dirá que nunca, antes do século XIX, se falou tanto sobre amor. Por isso, então, Foucault dirá então que nunca se falou sobre o sexo. Porque o controle sobre o sexo se dá pela proliferação do discurso sobre o sexo. Porque ele será então alvo de controle em todos os espaços. De regulação da normalidade heterossexual. A sexualidade será controlada em todos os espaços, justamente dentro dessa lógica do dispositivo de controle. O amor como o aceite da heterossexualidade, ele também será regulado em todos os espaços. Tanto na produção dos tipos amáveis, os tipos de sujeitos dignos de amor, quanto na produção das formas de amar. As formas de amar, as formas de amor que escaparem, ou que forem não normativas, serão alvo do controle médico, jurídico, policial, familiar, re98 miolo.indd 98 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:26 ligioso. O controle das relações e da construção de vínculos é fundamental na construção de formas de controle comunitárias. Então, por exemplo, quando as igrejas evangélicas proíbem o casamento com membros de fora da igreja ou quando proíbem amizade com membros de fora da igreja; elas estão estabelecendo ali formas de manutenção através das práticas de amor. Casamento, nesse caso, não significa necessariamente amor. Então, o que significa essa experiência chamada amor? Ninguém conhece essa experiência chamada amor, ninguém sabe o que é, porque a norma nos obriga a atender uma série de condições que serão aqui condições socialmente acordadas de demonstração de amor. Nesse sentido, então, as práticas do amor quando convencionadas coletivamente podem transformar a representação social ou a representação do amor em um tipo de violência. No sentido de que eu amo, mas o que isso significa senão um conjunto de formas práticas de amor? Esse é o problema quando eu penso em nós tentarmos construir práticas de futuro. De amor para o futuro. Esse é um problema para mim no sentido que as coisas que acontecem são imprevisíveis, no sentido deleuziano. Porque elas não existem ainda. Porque o acontecimento era o que não era possível nem de ser pensado nem de ser enunciado antes de acontecer. Então, portanto, para o que não é ainda, existe a representação. Essas outras práticas de amor etc., já se dão, pode ser que já se deem entre nós, mas elas não podem ser representadas devido a uma coisa chamada de injustiça hermenêutica, porque não há palavras para dizer. Então, talvez, ao invés de buscar inventar, talvez nós precisemos experimentar. Porque essa ideia de buscar ainda é uma ideia moderna. Ela ainda estabelece para nós uma utopia. Ela ainda nos coloca em função do futuro. E por isso gostei de futuridade. Futuridade são práticas de futuro. É como se o futuro, como um vírus, já se injetasse entre nós e nós pudéssemos experimentá-lo como uma droga. Como uma droga, como uma injeção de futuros os quais a gente não experimenta. E que os heterossexuais, se quiserem continuar buscando futuro, que busquem. Eu tenho o meu futuro porque eu o trafico com minhas práticas de futuridade. Como então fazer, ao invés de inventar novas formas de amor para o futuro, supor que nossas práticas de futuridade que nos transformam em traficantes de tempo, sejam capazes de encontrar aqui as práticas. E se trataria então de difundi-las muito mais do que inventá-las. Vinícius da Silva miolo.indd 99 99 24/03/2022 16:03:26 E difundi-las através da experiência. Só que para ter outras experiências, nós precisamos encontrar novos pontos de fuga. Precisamos inventar coisas, experimentar coisas que não queremos, não costumamos experimentar, como por exemplo, o fracasso. O que significa experimentar o fracasso? Significa que fracassar é sentir toda a dor que o fracasso pode te causar. Porque essa dor vai produzir algo em você. Significa experimentar a sua tristeza com tudo que essa tristeza pode oferecer. A organização do nosso tempo impede o gozo da tristeza. A pessoa se senta num cantinho, ficou emburrada alguém já vai lá “Ah, sorri, não fica triste, não”. Quando fazem isso comigo, eu falo “eu quero ficar triste, tenho direito, tenho direito de ficar triste.” Eu preciso experimentar isso. Porque, inclusive, essa é a condição de possibilidade de eu experimentar a felicidade. Quanto menos capaz eu sou de experimentar a tristeza, menos capaz eu serei de experimentar a felicidade. A minha vida será uma apatia constante. A gente caminha justamente pela apatia e por isso nós produzimos mais e mais formas de excitação. Talvez a gente tenha que experimentar um pouco da reclusão, um pouco da melancolia. Experimentar as coisas que são recusáveis como experiências possíveis. E nada melhor do que a experiência, construir de nossas posições subalternas. Porque nossas posições subalternas já são fracassadas, elas são feitas para não serem experimentadas. Ou seja, tornar-se viado e cada dia mais é experimentar. E quem sabe tal hora, um dia você vai estar numa festa e você vai olhar para o amigo viado muito afeminado que você não pegaria porque você era uma bixa normativa “Ah, eu sou afeminada, então eu vou pegar a bixa masculina. Eu sou passiva, eu vou pegar a bixa masculina.” E você fala “nossa, como ele está bonito.” E você descobre que você está olhando um tipo de beleza que você não via antes, porque não é igual a beleza que você vê no boy padrão, mas que é tão bonita quanto. Porque você descobriu como gozar de belezas outras. Porque o problema não é que o padrão não é bonito. O padrão é lindo. O problema é que ele se coloca como o único bonito e não nos ensina a gozar as belezas variadas. E é justamente assim que as coisas ocorrem, na experiência como acontecimentos. Só que nós precisamos possibilitar que os acontecimentos aconteçam. E como é que nós possibilitamos isso? No devir. O que é o devir? O devir é se permitir ser afetado por forças que afetam outras. E esse devir, 100 miolo.indd 100 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:26 é sempre minoritário, ele é sempre para baixo. Não dá para devir homem, dá para devir mulher. Porque as experiências normativas já se impõem sobre nós. Então, devir mulher é permitir que as forças que afetam a mulher nos afetem. Quais forças? A experiência do machismo, a experiência de só querer ser comida. O devir índio, o devir animal. Essas possibilidades de encontros e experiências que nos deformam, e é isso, produzir deformidades, que pode fazer com que emerjam novas formas de amar. A gente não precisa planejar amor, planejar revolução. A gente precisa urgentemente experimentar a vida. É uma ética do viver. Porque não adianta uma ética para viver se essa ética nos torna tão absolutamente obsessivos em ser éticos, que não vivemos. Angie Barbosa: Eu gostaria muito de fazer algumas considerações a partir da sua abordagem das experiências, porque há uma experiência que eu tive e só recentemente eu descobri uma palavra que a nomeia, que é a experiência da transcestralidade. Trata-se de uma questão meio mítica, uma questão de olhar para um passado de ativismo, uma memória histórica transvestigênere e traçar uma linha de ancestralidade que de alguma forma chega até nós. No sentido de entender que aquelas vidas que estiveram em luta possibilitaram duas coisas, primeiro: que a minha chegasse aqui no estado que está, nas condições nas quais ela se desenvolve, se desabrocha; e em segundo: que a gente pudesse voltar a essa memória e enxergar possibilidades e caminhos de viver estando numa posição de pessoa transvestigênere. E o que eu acho interessante sobre essa experiência é a questão de como eu relacionei isso com a ideia de amor. Porque eu, e Vinícius sabe disso, acho inclusive que nós concordamos um pouco nisso, faço uma relação muito íntima entre a questão do amar e do lutar por. Essa questão de amar e, portanto, é justamente o que você falou de devir. Do sentir e reconhecer o sofrimento do outro e lutar para que o outro tenha condições de vida. E aí, quando eu olhava para essa questão da transcestralidade, eu me sentia transcendentalmente amada através do tempo. Por quê? Por que houve vidas que lutaram para que a minha vida possa ser. E surge a pergunta: “Lutaram pensando em mim?” Eu respondo: obviamente não. Essa ideia de ser transcendentalmente amada através de uma luta histórica faz sentido? Não, não faz sentido nenhum; justamente porque ninguém estava pensando em Vinícius da Silva miolo.indd 101 101 24/03/2022 16:03:26 mim, ninguém sabia que eu ia existir. Mas eu sou uma pessoa absolutamente alucinada sobre todas as coisas e eu escolhi acreditar nisso. Porque escolhi de forma intencional ao acreditar nisso justamente porque algumas utopias nos motivam para bons propósitos e que permitem que coisas úteis aconteçam, coisas boas que potencializam nossas lutas, nossas possibilidades de vida. E eu sinto dessa questão, quando a gente fala do amor e de uma temporalidade, principalmente dele só poder ser nomeado através do passado e feito no presente, nunca no futuro. Mas eu penso até onde essa alucinação da possibilidade de amar transcendentalmente através do tempo, ela amplia – se não a possibilidade, mas pelo menos a nossa motivação para tocar uma luta, para construir uma futuridade para nós. Vinícius da Silva: Uma coisa que eu gosto muito de pensar, que eu já comentei e que eu quero retomar para a gente discutir, é sobre como justamente por encararmos essa injustiça hermenêutica, dirá a Helena, e essa desordem da linguagem, como vai dizer o Barthes, a gente também não tem que pensar numa experiência do amor que se relacione com a desidentificação. Isso não significa necessariamente a gente precise nomear algo enquanto sendo amor, embora nesse processo de disputa por um conceito, como vai fazer hooks, seja importante, mas nós precisamos reorganizar as nossas gramáticas. E essa reorganização precisa abandonar o que Helena chama de desejo classificatório, para usar o termo da Helena. E aí, a gente volta sempre na questão do “Como fazer?”. São questões que a gente não tem que responder porque são questões que vão se construir, vão se efetivar na própria ação. Por isso que eu queria saber o que Helena acha sobre isso. Talvez o amor nesse sentido seja algo performativo, a gente não consegue necessariamente dar conta. Mas que vai sendo construído enquanto prática ao passo que a gente o pratica. E disso a linguagem talvez não dê conta. E que bom que não dá conta, acho que é nesse âmbito de não dar conta que a gente tem que trabalhar o futuro. O que vocês acham? Helena Vieira: Eu concordo. Tudo existe, não há nada que não exista. Porque, bem, se podemos dizer, existe. Nesse sentido, eu tomo as alucinações como absoluta realidade. A alucinação é aquela realidade não compartilhada, 102 miolo.indd 102 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:26 simplesmente. Por que ela é real? Porque ela se constitui com elementos da realidade. Na alucinação não há nada que necessariamente não existe. Ora, ser amado transcendentalmente? Não vivem dizendo que Jesus nos ama? Jesus que viveu a dois mil anos atrás? Então, a travesti dos anos setenta certamente pode me amar. E essa noção de transcestralidade, que tanto a Castiel quanto a Renata têm falado, e eu tenho falado um pouco também... ela tem a ver com o exercício de memória. E eu considero isso muito importante porque o futuro é uma obsessão moderna. Mas a memória, não. E a memória não é o mesmo que a História. Porque a História é a narrativa dos fatos que aconteceram desde uma posição de quem pode enunciar a verdade sobre o que aconteceu. Então, a memória tem a ver com a experiência do sujeito no mundo, porque é uma das coisas de tudo que viveu para considerar importante e marca então a sua memória, que caminha de um lugar para o outro, de um lugar para o outro, de um lugar para o outro. A construção de uma memória, ainda que uma memória mitológica, é importante. Ela é importante porque ela nos situa no tempo em um mundo que tem tempo, que está ordenado pelo tempo. Então essas práticas de resistência das que nos antecederam, elas são importantíssimas. Estamos falando deste amor que pode nos conectar de alguma forma, e aí eu acho que isso que você fez agora foi exatamente o que eu tinha sugerido, que é essa prática de encontrar as práticas de amor que se concretizam aqui. Isso é uma prática de amor. Isso que é construir conexão. Esse sentimento de não estar sozinho. Porque fundamentalmente, o amor é a nossa invenção para não estar só. Para dizer, o amor é o que possibilitou a invenção de um nós. É isso. Angie Barbosa: Não há como lançar um olhar único ou um olhar universal para o futuro, um olhar único que permita a construção de uma futuridade. Nesse sentido, pensar futuro também é pensar nesse tensionamento entre esses diferentes olhares, entre diferentes projetos, entre diferentes experiências do que pode vir a ser. Esses tensionamentos necessariamente representam um obstáculo para a construção de uma futuridade, de um futuro? É possível, de alguma forma, utilizar os tensionamentos como potencializadores de uma luta que busca um futuro que será, de alguma forma melhor Vinícius da Silva miolo.indd 103 103 24/03/2022 16:03:26 como esse que vivemos agora? Pensar em ética do amor nos termos que a gente tem conversado aqui, pensar nas questões de uma política de reconhecimento, necessariamente nos levaria a um futuro melhor? Vinícius da Silva: Essa questão dialoga muito com aquilo que a hooks vai falar sobre solidariedade política e comunidade amada, que eu diria que são dois conceitos centrais de seu pensamento. Mas, antes de chegar na bell hooks, eu queria fazer outra consideração a partir da filosofia política, sobretudo a partir do pensamento de Hannah Arendt. Se a gente não enfrenta esses tensionamentos, por exemplo, esses conflitos, a gente não constrói algo coletivo – porque a esfera do político é necessariamente marcada por uma disputa, pelas diferenças, porque é nessas diferenças, é no estar com os outros que a gente consegue, de fato, fazer acordos de futuro, por exemplo. E por que esses conflitos não são obstáculos? Porque se não há conflito, não há disputa, não há o que fazer de fato e não há construção, porque o amor é também conflito. Eu diria ainda que se não há conflito não há sequer sujeito. E esse conflito não precisa ser violento, hooks disputa um conflito não violento, mas às vezes ele é e tem sido violento. Dentro de uma sociedade normativa, os conflitos têm sido violentos. Acho que nosso desafio para disputar essa futuridade é pensar em conflitos que não sejam violentos, diferenças que não fundamentem sistemas de dominação, mecanismos de desigualdade e opressão, enfim. Isso é um desafio que passa pelo crivo da desidentificação. E se as nossas relações humanas são necessariamente marcadas pela desigualdade, que deixemos então de ser humanos para que isso seja exequível. E quais os limites disso? Eu não sei. Eu gosto de jogar as coisas, não gosto de respondê-las. Mas que que está em jogo, voltando ao pensamento de bell hooks? O que está em jogo é a construção de um horizonte social político de superação do capitalismo patriarcal e imperialista de supremacia branca, mas que não faça das nossas diferenças muros. Ou, como diria Angela Davis, para que as pontes não se tornem muros em nossas construções coletivas. Em Killing Rage, que é um livro de 95, hooks salienta que o que está em jogo não é a aniquilação das diferenças, mas é o fato delas não mais organizarem relações de dominação. E esse tem sido, também, o grande desafio meu. Como pensar nesse futuro de forma que a gente não construa uma abordagem 104 miolo.indd 104 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:26 teleológica, como disse Helena? Eu acredito que uma abordagem que tem fim em si mesmo é uma forma de violência política. Porque de alguma forma se busca controlar essa imprevisibilidade do fazer político e isto é uma violência. Não há como construir uma abordagem teleológica do futuro, porque ele está na dimensão daquilo que não conseguimos nomear. Angie Barbosa: Eu me lembro, inclusive, de uma fala da Helena onde ela diz que a gente não quer construir nada, a gente só quer destruir. Talvez o que venha depois seja pior. Helena Vieira: Exatamente o que eu ia dizer agora. Não dá para saber, mesmo. A gente só sabe o que pode vir depois na medida que vem. A utopia é sempre do nosso tempo. Imagine como seria a utopia dos gregos, uma sociedade utópica para os gregos, com certeza não seria a nossa. Nós não sabemos onde nossas ações direcionadas, ainda que direcionadas nos levarão. É quando se diz que diferentes coletividades desejam diferentes futuros. Justamente porque ainda que uma dessas coletividades tenha imenso poder, o mundo escapa por todos os lados. Não há como a vontade de alguém construir alguma coisa. Essa é uma das grandes feridas narcísicas da humanidade. Nós não fazemos a história com a nossa vontade, nós não somos livres para agir segundo nossa vontade. E eu acho interessante isso porque a experiência do amor, do ponto de vista romântico, ela é uma experiência que talvez se você é uma daquelas pessoas místicas, que acha que tudo que nós vivemos tem um aprendizado a nos oferecer, tem. Mas não intrinsecamente. Nós que aprendemos ou não. Veja, o amor ele só pode ser percebido pelas marcas que produz em nós desde a nossa experiência moderna do amor. São as marcas do que a minha mãe fez para mim, são as marcas do meu amigo de muitos anos, são as marcas de uma antiga paixão. Essas marcas constituem uma memória desse amor. E nós observamos as marcas que gostamos de observar. Então, inclusive, aquelas que doeram em nós são as que nós gostamos de observar porque são aquelas que, no geral, representam partes das nossas narrativas heroicas de nós mesmas. Aquelas que contamos, que observamos, enfim. Quando a gente pensa em construir uma sociedade a partir do amor, olha que interessante, a gente opera através de uma ideia de amor que tem a ver com cuidado, com Vinícius da Silva miolo.indd 105 105 24/03/2022 16:03:26 coletivização etc. Porque a noção de amor, mesmo o romântico, tem a ver justamente com um deslocamento de si até o outro. Seja o outro do amor romântico, objeto amado, seja coletividade com a qual me preocupo. Ela tem a ver com esse deslocamento de si. E nesse processo de deslocamento de si, há um conjunto de possibilidades de desordem. Talvez outra tarefa que nós tenhamos é pôr fim às distopias do amor. E não construir novas utopias do amor, mas findá-las. Findá-las justamente para que a gente consiga experimentar a trajetória de dor do amor, também. E a trajetória de destruição que o amor opera. E, encontrando essas trajetórias, a gente então organiza outras formas. 106 miolo.indd 106 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:26 Por uma política do porvir: ontologias de um futuro (im)possível Queremos pôr em prática um pensamento utópico, entendido como energia e força de insurreição, como presença e como convite para sonhos, como gesto de ruptura: ousar pensar para além do que se apresenta como “natural”, “pragmático”, “razoável”. Não queremos construir uma comunidade utópica, mas restaurar toda a sua força criativa em sonhos de insubmissão e resistência, justiça e liberdade, felicidade e bondade, amizade e encantamento. Manifeste de L’Atelier IV Das utopias, é preciso compreender e apreender os seus mecanismos de produção e sua função social. Neste livro, parto da noção, já fundamentada por Sarr, de que as utopias fornecem mecanismos de produção de sentido à nossa realidade e constroem o terreno fértil para as transformações sociais. Não há utopia sem esperança e isto significa dizer que o futuro é fruto de uma disputa coletiva fundamentada na ética da comunhão, como busquei argumentar ao longo dos capítulos que integram este livro. Como ilustra a epígrafe destas considerações finais, não se trata da construção de uma comunidade utópica – isto é, inalcançável –, mas sim de estabelecer um projeto de justiça social a partir de uma ética da utopia, a qual permite que avancemos coletivamente a partir da constituição de alianças políticas e subjetivas. Em um momento como este, no qual a morte parece ser o motor da política nacional, é preciso reivindicar a construção de alianças e políticas miolo.indd 107 24/03/2022 16:03:26 de coligações de solidariedade. A solidariedade, nesse sentido, emerge como uma categoria ética (de convivência) que se vale das nossas diferenças para a construção de encontros potencializadores e não mais de sistemas de opressão e dominação. Pudemos observar exemplos de convivência e alianças na Revolução Egípcia de 2011, que uniu protestantes na praça Tahrir, no centro de Cairo, onde as pessoas disputavam e questionavam os sentidos do espaço público que, mesmo sendo público, era e é organizado por políticas da diferença. A disputa pelo espaço público é fundamental para o estabelecimento de alianças políticas e reivindicações deste mesmo espaço. Neste livro, à esteira do pensamento de Butler, chamo atenção para a importância das alianças na construção de um novo paradigma social. As “alianças” de Butler se confundem, para fins didáticos, nas “comunidades amadas” de Luther King Jr. e bell hooks: trata-se da afirmação da diferença na construção de éticas de coabitação e disputa de imaginários. Em livros como Killing Rage (1995) e Where We Stand (2000), hooks disputa os sentidos de uma sociedade sem estrutura de classe e sem racismo. Tentaremos apreender a sua proposta nas próximas linhas. Em seu pensamento, a disputa é por uma estrutura social na qual todas as pessoas possam viver plenamente e bem. Trata-se, portanto, da operação de uma nova gramática ontológica, proposta a partir das políticas feministas e anticapitalistas. Nesse sentido, a consciência crítica e sua radicalização é fundamental, pois, como afirma Freire, é necessário que os oprimidos cheguem à luta “como sujeitos, e não como objetos.”72 A tese de Freire, fortemente presente no pensamento de hooks, ressalta a importância da radicalização da consciência dos sujeitos oprimidos e explorados para que eles possam, em um movimento revolucionário, subverter as estruturas sociais. Constituir frentes de oposição, no entanto, não é o suficiente, diria hooks. É preciso avançar enquanto coletividade para que a transformação social se torne uma realidade. Conforme hooks, não podemos nos deixar levar pelo devaneio de um mundo sem diferença racial, por exemplo. Não se trata, porém, de apagar as nossas diferenças, mas sim afirmá-las. “A falha, contudo, não era imaginar uma comunidade amada; era a insistência de que essa comu72 FREIRE, Pedagogia do oprimido, pos. 830 [recurso eletrônico]. 108 miolo.indd 108 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:27 nidade só poderia existir se apagássemos e esquecêssemos a diferença racial”,73 aponta hooks. O que eu chamo, neste livro, de política do porvir se fundamenta nas discussões de hooks sobre comunidade amada, embora eu não dispute esse conceito. Uma política do porvir, nesse sentido, afirma as nossas diferenças sociais construindo o que hooks chama de solidariedade política para que as comunidades (sociedades do amanhã) sejam construídas. Trata-se de práticas de futuro que disputam um mundo sem hierarquias de poder e sistemas de dominação. Partindo do pressuposto de que nossas relações, subjetividades e formas de apreender o mundo são construídos (mas não somente) pelo e no discurso, não há como defender uma suposta pré-discursividade das matrizes de dominação, como se estas fossem naturais e inevitáveis. Fazer isso, no entanto, reforça a existência e organização de uma ideologia generalizada de dominação. Para construir a comunidade amada, nós não renunciamos aos laços com as nossas origens preciosas. Aprofundamos esses laços ligando-os a uma luta antirracista que, no fundo, é sempre um movimento que perturba [outro] movimento que se agarra a legados culturais que exigem investimento em noções de pureza racial, autenticidade, de fundamentalismo nacionalista. A noção de que diferenças de cor de pele, classe social e herança cultural devem ser apagadas para que justiça e igualdade prevaleçam é uma marca popular da falsa consciência que garante a manutenção do pensamento e prática racistas. Nesse sentido, as políticas do porvir devem promover um paradigma social de afirmação das diferenças e não seu apagamento. Apagar as diferenças da humanidade seria, por definição, um ato de semiocídio ontológico,74 isto é, de apagamento das condições ontológicas de um sujeito. O mais importante do nosso trabalho – o trabalho da libertação – demanda que criemos uma nova linguagem, 73 HOOKS, Killing Rage, p. 263. 74 SODRÉ, Pensar Nagô. Vinícius da Silva miolo.indd 109 109 24/03/2022 16:03:27 que criemos o discurso oposto: a voz libertadora. Fundamentalmente, a pessoa oprimida que se move de objeto para sujeito fala com a gente de um jeito novo. Esse discurso, essa voz libertadora só emerge quando o oprimido experimenta a autorrecuperação.75 E é nesse movimento de autorrecuperação como um mecanismo de sujeição que encontramos um fundamento crucial para as políticas do porvir e construção das sociedades do amanhã: “uma sociedade só é eficaz quando se torna ato: capacidade de agir em comum”,76 como sugere Sarr. Isto significa dizer que a condição de efetivação de uma dada sociedade poderia ser avaliada a partir da condição de integridade de seus sujeitos sociais. As discussões sobre futuro frequentemente assumem um papel de discussões fictícias, distantes e impossíveis. Como frisado na introdução deste livro, não se trata de uma discussão imaterial, mas sim das condições que podem ser construídas para um novo mundo. O futuro, nesse sentido, é agora e nos valemos apenas de uma metáfora temporal para criar o terreno fértil para o nosso debate. Nesse sentido, quero que este livro inspire construções coletivas de futuros feministas, radicais, subversivos... o objetivo é a transformação social. E esta transformação acontece na ação do hoje, do agora. Há quem queira esperar uma mudança, mas é preciso operá-la, construí-la, coletivamente. Por isso, as políticas do porvir se orientam em políticas feministas e queers para a construção de uma nova utopia. No que tange o feminismo, compartilho da visão de Virginie Despentes: O feminismo é uma revolução, não um reagrupamento de conselhos de marketing, não apenas uma vaga promoção da felação ou dos clubes de swing, não se trata apenas de melhorar os salários. O feminismo é uma aventura coletiva para as mulheres, para os homens e para os outros. Uma revolução em marcha. Uma visão de mundo. Uma escolha. Não se trata de opor as pequenas vantagens das mulheres às pequenas conquistas dos homens, mas de dinamitar tudo isso.77 75 HOOKS, Erguer a voz, p. 75. 76 SARR, Afrotopia, p. 91. 77 DESPENTES, Teoria King Kong, p. 121. 110 miolo.indd 110 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:27 Em relação às utopias queers, conforme José Esteban Muñoz: O futuro está no domínio da queeridade. A queeridade é um modo estruturante e educado de desejo que nos permite ver e sentir além do pântano do presente. (...). A queeridade é também performativa, porque não é somente um ser, mas também um fazer para e em direção ao futuro. A queeridade é essencialmente sobre rejeição de um aqui e agora e uma insistência na potencialidade ou possibilidade concreta para um novo mundo.78 Nesse sentido, a disputa por uma política da futuridade queer e feminista se orienta a partir da proposição de uma nova gramática ontológica. Não há mudança social significativa sem a construção de um projeto plural, coletivo e de justiça social que compreenda literalmente todas as formas subjetivas sociais presentes em nossa sociedade. Esta é a política do porvir, as práticas de futuro que podem emergir a partir de nossas alianças e mobilizações coletivas. O diálogo que se segue foi realizado (e transcrito por Creolla de Andrade) exclusivamente para este livro, em outubro de 2020, a partir de uma metodologia epistemológica inspirada em Paulo Freire e bell hooks. Aqui, eu, Luana Luna, Matheus Chagas e João Pedro Monteiro, buscamos construir um diálogo que se oriente a partir do pensamento de autoras como hooks e Butler para compreender as ontologias da futuridade que são disputadas neste livro. Nas páginas seguintes, há uma aposta: o futuro é uma construção coletiva que se dá no tempo presente. Vinícius da Silva: No processo de construção do livro eu decidi me inspirar na dinâmica dialógica empregada por Freire e hooks em alguns de seus livros. Por isso, inclusive, eu decidi também inserir uma entrevista que eu dei com o professor uã, a qual desempenha um papel importante na construção do argumento desta obra. E estruturar o livro desta maneira, como em uma aula, foi estratégico para que eu pudesse elencar os tópicos centrais deste 78 MUNÕZ, Cruising Utopia, pos. 324 e 335 [recurso eletrônico]. Vinícius da Silva miolo.indd 111 111 24/03/2022 16:03:27 diálogo; a questão do amor, do futuro, mas também um processo de compreensão do tempo presente. Então, eu convidei a professora Luana Luna (com mediação e provocações do João Pedro e do Matheus Chagas) para construir comigo esse diálogo, não é uma entrevista, não é uma defesa de tese, é um diálogo, onde a gente pretende conversar sobre os processos de construção teórica do livro, a gente não vai falar sobre nada muito técnico, construção teórica; que é um processo que permeia o meu estudo do pensamento de bell hooks porque por mais que não seja um livro sobre bell hooks, é um livro que se baseia e que é informado pelo pensamento da bell hooks. Tem duas grandes autoras que eu cito no livro, que são hooks e Butler, são as autoras que eu mais cito, então são as grandes teóricas do livro. Mas bell hooks é a pessoa que informa a construção teórica desse livro e eu queria construir algo nesse sentido, até mesmo organizando meu programa de pesquisa no que tange o pensamento de bell hooks e levantando algumas questões que geralmente aparecem quando eu dou aulas e palestras e enfim, porque a intenção na construção desse diálogo e que eu também possa usá-lo como material didático para meus cursos do próximo ano. Minha intenção é justamente essa, por isso que eu reservei um horário relativamente grande para a gente estar aqui. Luana Luna: Antes de falar, eu gostaria de fazer dois comentários rapidinhos e deixar registrado a gratidão pela oportunidade da conversa, da partilha. À confiança e à credibilidade para que eu pudesse contribuir com esse registro, esse documento, essa síntese. E, enfim, estou muito feliz viu, Vinicius? Obrigada, obrigada, eu me sinto muito honrada. Agradecer aos meninos, Matheus, que já é um querido que conheci recentemente, que sempre traz reflexões tão cirúrgicas, como o Matheus é lúcido. E aprendo muito, obrigada, Matheus, João, Creolla, que eu estou tendo oportunidade de conhecer agora, mesmo pela mediação aqui da tela, muito obrigada pela disponibilidade de vocês de construção com esse projeto lindo, falar de bell, falar de educação, falar de ativismo, falar de amor. Então muito obrigada, era isso que eu queria dizer. E sabe uma coisa que pensei... Vinícius já é um querido da minha vida, não preciso dizer mais nada, ele sabe disso; um professor na minha vida, 112 miolo.indd 112 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:27 um encontro, essa palavra que a gente gosta tanto de usar e convocar para as nossas reflexões. Quando você fala sobre a conversa, me lembro de bell. Ontem mesmo retornei ao “Vivendo de Amor” e, no livro recém-publicado pela Editora Elefante, Ensinando Pensamento Crítico, eu acho que a conversação, eu vou até dizer Pedagogia da Conversação é uma metodologia hooksiana. Então, eu acho que isso é um avanço quando a gente pensa em educação dialógica. E outra coisa: quando você fala, dá vontade de resumir em um vídeo algo que está disperso ou registrado em cinco textos ou mais, como isso é inclusivo também, para pessoas que são deficientes visuais e que não vão ter a oportunidade de ler bell, mas que o audiobook vem nessa vontade de trabalhar a inclusão cada vez mais, então acho que se acerta, não acho que é cópia, acho que se acerta. Educação dialógica, educação com amor, educação de afeto... Quem sabe não se trata de um pioneirismo bacana para a gente pensar pedagogia da conversação como uma metodologia inclusiva. Matheus Chagas: Estava só esperando a Luana falar. Agradeço muito o convite, é um prazer compartilhar esse espaço com vocês. É um prazer conhecer a Creolla e o João. Eu acho que a primeira coisa que eu pensei quando você conversou... quando você comentou comigo sobre a proposta e fez o convite, que foi bem no momento que eu comecei a ler também o livro Por Uma Pedagogia da Pergunta do Freire, que é um livro que a bell cita bastante nos escritos dela e é um livro dialógico, é um dos livros dialógicos do Freire mais famosos, que ele disse que fez a mesma coisa: reuniu-se com Antonio Fagundes e eles passaram uma tarde inteira conversando sobre várias questões sobre a experiência deles na América Latina, e saiu um livro com muitas proposições e com muitas experiências de vidas de ambos para pensar em, como sempre, uma contribuição, uma continuação do trabalho que ele já vinha fazendo. E aí eu comecei a pensar e eu lembrei que quando conheci Vinícius, eu acho, eu não tenho certeza mais agora, mas ou eu já seguia o Vinícius no Instagram ou eu comecei a seguir ele depois no Twitter, não lembro. Mas meu primeiro contato com Vinícius foi quando ele estava propondo uma aula, uma live no Instagram, e ele estava propondo temáticas, perguntando temáticas para a gente comentar e eu lembro que eu comentei sobre a questão das margens. Vinícius da Silva miolo.indd 113 113 24/03/2022 16:03:27 Naquele momento, a gente começou a conversar sobre a questão das margens no pensamento da hooks. E a partir disso, veio uma outra coisa que eu acho muito importante, que eu consigo criar uma ligação perfeitamente com o trabalho que os meninos tão fazendo que é, não só se opor, mas construir uma nova forma de fazer... que é uma questão que está dentro do pensamento da hooks e o próprio movimento de construir esse diálogo dessa forma, como a Luana já falou, é uma forma de não só se opor, mas construir uma nova forma de fazer é um aspecto importante no pensamento da hooks e é um aspecto também importante no trabalho que o Vinícius está fazendo. Então, eu acho que esse primeiro ponto é propício para nosso diálogo, foi no que eu pensei. Não sei se a Luana e o João trouxeram algo diferente, mas eu sei que essa questão do porquê não só se opor, porque construir uma nova forma é importante, principalmente porque uma das coisas que mais me chamaram atenção quando eu conheci o Vinícius é que ele estava falando sobre novos amanhãs. E eu lembro que na época, falar sobre amor e falar sobre novos amanhãs era uma coisa muito nova para mim. E eu estava em um momento, também, dos meus estudos e da minha pesquisa, que eu estava muito preso na violência, no que a violência faz, e quando eu conheci o trabalho do Vinícius ele estava falando sobre novos amanhãs e de amor de uma forma muito radical. Então para mim isso é um exemplo muito forte de não só se opor, mas de construir uma nova forma de falar, de escrever, de teorizar. Então eu acho que esse é um bom ponto para a gente começar, se o Vinícius concordar, se a Luana concordar, se alguém quiser comentar alguma coisa, foi isso que eu pensei para o início. Vinícius da Silva: Eu começo, então? Luana Luna: Por mim, problema nenhum, perfeito, vamos assim. Vinícius da Silva: Talvez um dos postulados mais conhecidos de bell hooks, com suas traduções recentes, o trecho de Anseios, onde ela fala que a linguagem é um lugar de luta. Um lugar de luta que, inclusive, é um dos trechos que a Luana mais gosta, sempre fala sobre isso, e se é num lugar de luta, a linguagem é um instrumento que constitui um dispositivo de resistência a essa 114 miolo.indd 114 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:27 margem imposta. Quando eu comecei a trabalhar com as margens, eu lembro que também era um assunto muito novo para mim, eu estava estudando... acho que foi no início deste ano [2020]. Nas conversas que eu tive com o Matheus, uma das questões que mais intrigava a gente é como essa questão da margem está diluída. Porque a margem da qual bell hooks fala, não é somente uma geografia. Ela fala de uma relação posicional, ela está falando de relações humanas e, também, das dinâmicas de produção e validação do conhecimento produzido, sobretudo, por pessoas negras. Então a gente pode dizer, por exemplo, que as nossas margens são construídas a partir de marcadores da diferença. Nossas relações humanas são constituídas a partir dessas diferenças e essas diferenças organizam nossas relações, que são relações necessariamente hierárquicas, digamos assim. Essa organização, dessa forma, com nossa gramática atual, organiza as margens. A margem é lugar que não é centro, mas ainda assim faz parte de um todo, como descreve hooks em Teoria Feminista. Então, a maior questão que eu levei para o Matheus na época é como, por exemplo, as epistemologias negras são estudadas em universidades, mas mesmo assim estão à margem porque não integram disciplinas obrigatórias ou núcleos de pesquisa (termo usado na filosofia da ciência). Sim, estuda-se bell hooks, mas a estudamos em disciplinas optativas. E quando isso acontece, costuma-se estudar trechos e textos específicos de bell hooks – o que também caracteriza um mecanismo de marginalização e despolitização epistemológica. Eu tenho a impressão de que o texto onde hooks está propondo uma pedagogia feminista revolucionária, por exemplo, nunca vai ser estudado numa disciplina obrigatória, e eu espero que avancemos em relação a isso, porque esse texto implica uma transformação ética do sistema educacional e das formas de ensinar como a gente compreende hoje. Isso é complexo. Compreendamos ou não, aceitemos ou não, a universidade, nos dias de hoje, ainda tem sido um dispositivo de perpetuação de padrões de violência e dominação. Daí então, a proposta da discussão acima sobre margem, que é uma discussão que tem como principal objetivo tensionar as construções sociais e epistemológicas que criam essas margens. Quando hooks vai falar sobre isso lá no Anseios, que é um livro de 90, ela vai falar que é a partir dessa linguagem, a partir dessa autodefinição que a gente pode reivindicar a margem enquanto um espaço também de resistência. É aí que Vinícius da Silva miolo.indd 115 115 24/03/2022 16:03:27 entra uma outra questão do pensamento de hooks e é uma questão importante, que é a questão de como a experiência fundamenta uma formulação teórica, por exemplo. Como existe um diálogo muito crucial no processo de “epistemologização”, digamos assim, o processo de teorização do pensamento de bell hooks, que é um processo que não se desvincula de uma prática, que reivindica o tempo todo uma práxis revolucionária que está justamente no centro dessa discussão sobre margem e que é uma discussão também sobre como nossas relações são construídas de forma que não questionamos as nossas próprias margens. Em nossas relações, nós colocamos pessoas à margem o tempo todo. Os nossos discursos colocam pessoas à margem o tempo todo, as nossas insinuações, para usar o termo do Bourdieu, colocam pessoas à margem o tempo todo. O que vem com esse postulado, a linguagem é um lugar de luta, é como a gente usa essa linguagem para subverter essa margem que atravessa o nosso cotidiano, nossas construções humanas e como que o que está em jogo não é que deixe de existir as diferenças em si, mas que essas diferenças não impliquem numa construção de novas margens, numa hierarquia violenta de um sistema de dominação. Essa é uma das principais hipóteses que eu levanto a partir da discussão sobre amor, por exemplo, no pensamento de hooks, que é o que a gente vai aprofundar mais para frente. Pode falar, Luana. Luana Luna: Perfeito, tomando nota aqui... eu estou ouvindo você falar e não tem como... porque me remete muito a tese e eu não tenho como não voltar para esse lugar porque veja... ainda num primeiro momento, deixa eu só contextualizar para os demais. A minha tese de doutoramento, na qual eu estudo o movimento de ocupações estudantis que se deram no ano de 2016, no IFRJ, que é a instituição onde eu trabalho como pedagoga e professora e Vinícius é estudante. Quando eu começo a pensar sobre a resistência dos jovens estudantes do IFRJ no ano de 2016, uma coisa não estava visível para mim, e eu vou descobrindo isso no processo de pesquisa, que majoritariamente, os estudantes que ocupam, que constroem frentes de resistência, que estão tensionando o status quo são os alunos cotistas. E eu vou pensando então, ao longo da pesquisa, quando vou fazendo essas descobertas, e me deparo com hooks trazendo essa reflexão sobre a mar116 miolo.indd 116 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:27 gem. O quanto a experiência da margem é uma experiência de restituição. Eu gosto muito de usar essa palavra – restituição. Porque, para mim, a restituição tem tudo a ver com como a gente discute políticas de reparação. E quando hooks fala, traz essa preocupação, essa intervenção de ouvir, sobre a experiência da margem ela está falando de restituição. Porque foi isso que os estudantes fizeram no movimento de resistência quando eles tensionam o status quo, por formas contra hegemônicas de fazer educação, eles foram restituindo essa institucionalidade ainda tão pautada por valores e por essa lógica hegemônica de configuração da educação, eles foram restituindo essa institucionalidade, aquilo que a gente falou aqui no início, que Matheus também trouxe: novas formas de fazer. Acho que existe um anseio em nós quando a gente começa a despertar para epistemologias outras, e eu vejo muito essa preocupação na sua pesquisa, Vinícius, quando você traz isso, quando você convoca a reflexão da sociedade do amanhã, como a gente sai da denúncia para de fato a intervenção que construa, que pavimente esses caminhos de construção sobre outras formas de fazer político. E aí eu penso que se trata da experiência da margem. E bell viu isso, lindamente, Freire viu isso, lindamente. Por isso a gente gosta muito de dizer que bell é uma teórica do porvir, porque por tanto ter os pés fincados na realidade, tanto Freire quanto hooks, eles conseguiram pensar o porvir e indicar caminhos. Eu penso muito no que a gente conversou recentemente, e na fala de Matheus de que não existe um manual e a gente não quer um manual, mas existe um caminho. E o caminho é a experiência da margem. Mas, para além de um discurso que só faz a denúncia da dor, a teorização dessa experiência, a intelectualização dessa dor nos leva a essa construção. Então foram isso que os estudantes fizeram em ocupação, restituindo e disputando o caráter público da instituição e inaugurando novas formas de fazer e nos ensinaram o que de fato poderia ser uma escola com alegria, com amorosidade, com gentileza, com comprometimento, com responsabilidade, pautada numa ética do amor. E essa é a minha tese, e foram os estudantes que a fizeram, porque eram atravessados pela experiência da margem. E por serem estudantes marginais, eles conheciam o centro, ou seja, uma visão com totalidade e paixão. O que nós fomos perdendo no processo de enrijecimento da burocratização da vida. Porque é isso também, o capitalismo, o patriarcado, o racismo, são sistemas de Vinícius da Silva miolo.indd 117 117 24/03/2022 16:03:27 opressão que se relacionam, que se combinam e que se mantém hegemônicos porque a todo momento eles conseguem, eles agem na nossa desumanização. E quando a gente disputa a subjetividade, quando a gente está falando da experiência da margem, quando a gente está falando sobre erguer a voz, quando a gente está falando da linguagem como lugar de luta, quando a gente está trazendo a importância da teorização da experiência, da intelectualização da dor e de se mover para além da denúncia, da construção de outros mundos, a gente também está invertendo uma lógica ocidental e rompendo a desumanização desse sistema que se mantém hegemônico. A gente está subvertendo e transgredindo a lógica do “penso, logo existo” que é racional, que é positivista, individualista. Que retira de nós o espaço de construção de identificação dos sentimentos e de construção de subjetividade porque as emoções não são importantes, elas são secundárias. E a gente está dizendo: sinto, logo existo. Porque sentir nos leva a identificar, identificar nos leva a pensar, identificar nos leva a construir, identificar nos leva a nomear o que precisa ser nomeado e identificado. Por isso que mais uma vez eu falo de restituição, porque a experiência marginal, a experiência da margem, que por excelência traz essa transgressão do “penso, logo existo” para o “sinto, logo existo.” Então eu fiquei pensando sobre tudo isso aqui. E mais uma vez trazer a questão do amor e o quanto é difícil de escutar o amor como caminho que, a priori, por essa lógica da desumanização dos nossos corpos, dos corpos marginais, espera-se também de nós a brutalidade. Existe uma contextualização, existe uma história, e espera-se de nós a brutalização, a manutenção da brutalidade. E quando a gente disputa a narrativa do amor, eu estou falando isso porque eu destaquei aqui a fala do Matheus, “falar de amor é muito difícil para mim”, e foi uma fala que surgiu ontem numa reunião de orientação com uma estudante quando num determinado momento ela falou para mim, “Luana, será que o TCC não está ficando muito romântico? Será que eu não estou floreando e falando muito de amor?”, e eu a disse “por que que não podemos falar sobre amor? Por que que se espera de nós e por que que a gente aceita que esse espaço de fala seja esse espaço da denúncia e da brutalização sempre?” Ou seja, é sentir para existir. E falar de amor está nesse espaço da sensação. E essa disputa é muito difícil. Por essa lógica desumanizante do “penso, logo existo”, que é o arcabouço de estruturação das ciências sociais nessa sociedade de educação dependente que 118 miolo.indd 118 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:27 vai toda hora dizer que o lugar da ciência não é o lugar da emoção. O lugar do sentir não é o lugar da razão, de construir conhecimento. Então eu acho que pensando mais uma vez em restituição, no lugar da margem, no erguer a voz, a gente precisa muito falar sobre isso, que a gente está na verdade transgredindo essa fronteira de como construir conhecimento. Essa fronteira aí que a universidade, como você falou no início, ainda tenta se perpetuar e fazer valer essa forma de relação que é dominadora, que é opressora, que é racista, que tenta deslegitimar a nossa voz, dizer que esse espaço não é nosso. A escrita, a nossa escrita não é legítima, nossa escrita não é científica, e nossa fala não é elaborada, que isso tudo tem a ver com a manutenção de um status quo. Isso é um projeto. A universidade brasileira nasce heteronômica, ela nasce dependente e isso tem a ver com um projeto de nação. Uma nação inacabada, uma nação que não se realiza. De uma nação que é uma cópia. E veja como é potente isso que a gente está dizendo e refletindo com bell e com Freire, porque quando a gente está dizendo que a experiência da margem ela precisa ser a centralidade, não tem como eu não fazer essa conexão. A experiência da margem também funda sabedorias e traz para destaque, para cena do processo, não só outras formas de fazer como outras formas de lidar com o conhecimento, mas ela também traz a valorização de sabedorias ancestrais. Eu gosto muito de trabalhar com essa ideia da ancestralidade. Isso está em hooks, apesar de não ser tão explorada, mas é isso, a valorização das sabedorias ancestrais, que fala também sobre outra forma de lidar com o tempo e com a existência. E quando a gente está falando de sabedorias ancestrais para pensar Brasil, essa realidade tão violenta que a gente vive, a gente está nomeando que esses saberes, essas sabedorias, que precisam ser valorizadas para que a gente construa outras formas de fazer contra-hegemônicas, elas têm nome. Elas são negras, indígenas e periféricas. E dizendo isso, a gente também vai construindo um caminho para algo que a gente vem conversando, também, Vinícius, existe uma filosofia brasileira, como muitos, muitos de nós que tão implicados com essa discussão vem tentando fazer. Pensar no Brasil a partir desse lugar marginal, na busca pela valorização e por outras formas. É isso, a gente se movimentando nas frestas, na guerrilha epistemológica, epistêmica. Porque é muito difícil a práxis revolucionária. A universidade está cheia de teoria revolucionária, mas com muita pouca práxis revolucionária. A práxis Vinícius da Silva miolo.indd 119 119 24/03/2022 16:03:27 revolucionária promove a quebra do status quo, e a gente cai numa discussão de privilégios. Quem quer renunciar a seus privilégios? A branquitude não quer renunciar a seus privilégios. Ela gosta de nos dar a voz, dar dentro de um limite, um limite que não ameace seus privilégios. Vinícius da Silva: Você toca em assuntos muito importantes que eu não sei nem por onde começar a falar, mas acho que talvez um ponto importante de ser ressaltado é que estar à margem possibilita uma construção de um conhecimento que compreende tanto as questões da margem quanto às questões do centro, como diz hooks em Teoria Feminista. Este sujeito produzido pela margem – ou melhor, esta sujeita da margem –, é o que aparece no pensamento de Patricia Hill Collins, Audre Lorde e da própria hooks, na figura da Outsider Within, a qual costumamos traduzir, de maneira bem precária, como “forasteira de dentro”. É uma sujeita que está à margem, mas que tem acesso ao centro, essas metáforas geográficas que de alguma forma constituem gramáticas de entendimento referentes às nossas posições e relações sociais. Esse conhecimento da margem também é um conhecimento do centro, uma forma de produzir conhecimento que compreende ambas as dinâmicas. Se você é um sujeito socialmente racializado, então você conhece muito bem, inclusive, como esses processos se organizam. Mas não nos enganemos de achar que a experiência da opressão é equivalente à sua compreensão e capacidade de análise. hooks diz algo bem interessante que é desenvolvido ao longo de sua obra, mas que podemos encontrar de forma sintetizada em Gênero: conceitos-chave em Filosofia, de Tina Chanter: “A pensadora hooks alerta contra a redução da ideia do pessoal ao político a uma expressão de alguma experiência privada de opressão, na qual o feminismo se degenera em um protesto pessoal. Atenta ao destaque da importância da ênfase da dimensão política e social do movimento feminista, hooks resiste à ideia de que a experiência da opressão seja equivalente à sua compreensão, ou seja equivalente a uma análise crítica e política de tal dimensão.” Justamente pelo que se ilustra no comentário de Chantes, defendo a noção de que é preciso haver um processo de teorização, o qual nem sempre é mediado pela academia, mas por processos de organização desse conhecimento dessa experiência e de um uso dessa experiência, agora uma epistemologia 120 miolo.indd 120 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:27 para a gente conseguir lidar com essas diversas questões relativas às opressões estruturais e à constituição das margens. É justamente nesse sentido que entra a questão da linguagem novamente enquanto elemento fundamental para a formação de alianças, que é algo que está no centro da tese de Luana, a formação de alianças, encontros. As alianças como elemento que, na esteira do pensamento de Butler, fornecem para gente uma coletividade importante para a resistência aos processos de precarização – que é o que está em jogo também no pensamento de hooks, quando ela articula a noção de talking back (“erguer a voz”, como foi traduzido), articulando também uma política de aparecimento. Nesse sentido há muitos diálogos possíveis entre Butler e hooks, mas não os exploraremos, por ora. Em outras palavras, hooks articula a linguagem enquanto um dispositivo de resistência e de aparecimento. Mas o que é essa linguagem? Trata-se da linguagem enquanto discurso, sobre ter domínio da própria narrativa e da própria história. É nesse sentido que a gente consegue articular a margem enquanto um espaço de resistência, e articular esse encontro do qual Luana tanto fala e desenvolve, enquanto um lugar para reconstrução ontológica. Eu gosto muito de um trecho de Um apartamento em Urano, no qual Paul Preciado diz o seguinte: “O que chamamos de subjetividade não é mais que a cicatriz deixada pelo corte na multiplicidade do que poderíamos ter sido.” Então, a voz, a linguagem e o discurso, no pensamento de hooks, vêm com o sentido de reconstruir esse ser, a ontologia desse ser, a multiplicidade desse ser a partir da proposta de uma nova gramática ontológica, uma nova gramática operacional. É justamente por isso que as formulações de hooks se orientam em direção a uma práxis revolucionária, para que possamos articular um horizonte de transformação social, sem o qual essas novas gramáticas não podem existir. Trata-se de uma proposta que eu também mantenho na minha pesquisa deste livro, que é justamente a articulação de uma nova gramática do reconhecimento, a partir da qual a gente consegue articular novos mecanismos e mecanismos mais complexos de reconhecimento e de sujeição. Porque dentro desse sistema de subjetivação ocidental, que é um sistema binário e fragmentador, os processos de reconhecimento têm sido processos incompletos. Butler e hooks, mesmo que de maneiras diferentes, apontam para a mesma direção ao Vinícius da Silva miolo.indd 121 121 24/03/2022 16:03:27 insistirem na questão da linguagem. É um processo de reconstrução do ser. É isso que significa dizer que “o nosso ser reside nas palavras”, como dito tantas vezes por hooks. E por se tratar de mecanismos incompletos, isso nos coloca uma grande questão: é possível pensar processos completos de reconhecimento? É possível pensar numa nova organização dessa dialética do reconhecimento onde o Eu, como eu pergunto, não se dissolve em seu Outro? Como que a gente consegue pensar? Essas são questões que eu não busco responder, mas que são importantes para a construção (coletiva) de uma nova gramática ontológica – que talvez não seja formulada a partir do que eu postulo nesse livro, mas sim a partir da constituição de uma aliança revolucionária que se movimenta contra essa precarização ontológica. E esse caminho, esse movimentar-se contra essa precarização, contra os regimes de dominação é o caminho que vai ser fornecido para a formulação de uma ética do amor. Estamos falando do amor não enquanto uma categoria romântica ou afetiva, mas enquanto uma categoria de reconstrução ontológica, por isso eu sempre falo com a Luana que o amor só pode curar – porque a gente tem esse postulado teórico de que amor cura, né? – se ele permitir a reconstrução do ser, porque a cura é isso – integridade. E, nesse sentido, eu acho que a discussão que a Luana faz na tese é muito interessante, porque quando a gente fala que o amor cura é porque o amor dá sentido à vida, não é curar feridas de modo que esqueçamos dessas feridas. Isso é impossível. A gente não consegue esquecer dos nossos traumas, mas a gente consegue ressignificá-los. Isso é psicanálise. E aí entra uma dimensão importante da linguagem. A significação, ou melhor, a ressignificação. Reencantar-se. O amor é uma categoria de reconstrução ontológica, que dá sentido ao ser, dá sentido à vida. Ele não cura de forma que perdoemos relações disfuncionais, abusivas, muito pelo contrário. Não, não é isso. Se as pessoas entenderem o amor enquanto cura nesse sentido, esse é um problema que precisa ser resolvido. Na verdade, é um problema nosso, enquanto pessoas que estão formulando uma teoria do amor. Mas é uma questão que precisa ser bem esclarecida, porque o amor não tem coexistência possível com a dominação, com a questão da disfuncionalidade. Muito pelo contrário, ele se movimenta contra isso. Por isso que a gente fala que o amor é uma ferramenta de encantamento. Porque ele dá sentido à vida. Se ele dá sentido à vida, é preciso que ele 122 miolo.indd 122 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:27 seja entendido como tal. Em sua dimensão ética, política e não só romântica, mas também quanto uma categoria afetiva, retomando o conceito de Espinosa de afeto, que a gente vai aprofundar daqui a pouco, que é algo que me deixou literalmente afetado nos últimos dias. João Pedro: É realmente sobre essa possibilidade de novos amanhãs e de novos mundos. O Hegel, um filósofo da transição, pensa o mundo em permanente transformação. O que ele tenta fazer é uma tentativa de uma organização desse mundo, que se organiza a partir do que ele chama de Espírito [Geist], que é sempre uma novidade para mim a cada semana que passa. O que é esse Espírito hegeliano? Hegel, ao longo deste processo, começa com uma consciência unificada que passa pelo processo de autorreconhecimento e reconhecimento dos outros e que vai, ao longo da Fenomenologia, desmontando as possibilidades que a consciência tem de acessar o Espírito. Ou melhor, escrevendo a consciência do Espírito de uma forma que ela seja apenas a expressão de sua singularidade. A consciência não teria, portanto, a compreensão do todo, nem controle do Espírito. Por isso, esta abordagem é interessante para a gente por conta de dois motivos. Primeiro: O processo de construção do Espírito, da base desse mundo novo, para o Hegel é um processo de contradição. As ações que esse singular, a consciência, tem em relação à estrutura na qual ele já se encontra, são conflituosas. Porque ela é um particular desse todo, então sua ação pode tanto coadunar com as regras culturais quanto não coadunar, mas será sempre ou atualização desta, ou sua mudança. Sua ação está sempre marcada pelo negativo. A gente tem aqui uma dinâmica entre o sujeito e a cultura; a ação individual enquanto uma ação contraditória em relação à cultura, porque a ação tem duas características: simultaneamente, ela constrói a própria cultura e a confronta. Estamos, então, falando de um processo, de um permanente desarranjo entre a estrutura e o seu particular individual, um negativo em relação ao outro. Quem lê Hegel ou Marx, já sabe desse desarranjo que está presente o tempo todo. Dito isso, o que eu quero realmente trazer ao debate é o processo de modificação, de construção de novos amanhãs, o qual é, para Hegel, fruto de uma consciência que não está ciente de todas as determinações e que, em segundo lugar, emerge desse momento inicial de estranhamento, onde há a Vinícius da Silva miolo.indd 123 123 24/03/2022 16:03:27 identificação do problema. Então, esse processo de forjar as ferramentas necessárias para construir novos amanhãs e da própria possibilidade de conhecer esses novos amanhãs também é um processo de reconstrução da epistemologia, pois se desconhece as ações a serem tomadas, bem como suas consequências. Trata-se de um pensamento complexo, mas temos aqui outro elemento fundamental: os processos da violência e do conflito. Vejo a violência como uma possibilidade de subversão. Está muito claro que, para Hegel, os processos de conflito são sempre pontos de ruptura, de passagem, para um outro estágio (da consciência). Mas outra questão importante é a ação, a própria ação, o fato de o indivíduo e a consciência não serem propriamente conscientes de suas ações. Então, a gente tem uma consciência que age, mas que na sua própria ação perde controle das consequências e do sentido de sua ação. Por isso, não há como prejulgar se o processo de construção de novos futuros será ou não efetivo, pois a efetividade é construída a partir da efetivação. A gente efetiva construindo. Não há como postular novos amanhãs: trata-se de um processo que desencadeia possibilidades, justamente por se tratar de uma ação coletiva. É uma construção que se efetiva, que se incorpora, que ao mesmo tempo que é construída, vai se efetivando. Isso é importante porque a gente não tem como construir uma filosofia programática a priori, porque a gente precisa ir construindo as próprias metas, no processo de entender quais são essas metas. Não há um caminho certo na fundamentação ou construção de uma tese sobre o futuro. Nós precisamos construir e, a partir disso, tentar identificar os caminhos e é isso que eu acho interessante na hooks e que vocês estão o tempo todo delineando, essa possibilidade de dar visões, de construir possibilidades de caminhos. O mais interessante é que esses caminhos não estão acabados, são sempre possibilidades de novos inícios, mas nunca de propriamente tentar postular desenvolvimentos. Esse movimento da hooks é interessante porque parece que ela fala justamente disso, dessa incapacidade própria da consciência de conseguir entender o que está acontecendo. É interessante isso porque as pessoas gostam de considerar o Hegel somente “um idealista” e eu gosto de afirmar que não, não nos termos que as pessoas falam. É um processo de desenvolvimento, de construção contínua desses novos amanhãs, do qual é impossível postular uma nova filosofia. A filosofia é sempre uma filosofia em construção, esse é o cerne das coisas. 124 miolo.indd 124 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:27 Por isso, voltando à questão do afeto, esse é um caminho interessante para Espinosa, porque ele trata justamente da afetação desse corpo, de como esse corpo se afeta, como afeta outros; mas também de como ele se produz, nessa afetação. Não vou entrar muito nesse caminho porque me parece muito tortuoso. Mas o que, para mim de início, é a consideração de que o processo de afetação desse corpo é também o processo que não é consciente, a gente quer afeto, a gente sente, a gente não tem pleno controle teórico da fala, pleno controle do que nos afeta, mas são justamente essas afetações que vão construindo esses novos amanhãs, é a possibilidade desses contatos e as ações desse intersubjetivo. É aí que entra o reconhecimento, é justamente isso que dá as condições basilares para a gente conseguir construir essas novas possibilidades. E essas possibilidades estão fincadas no que? Justamente em entender como essas ações afetam no sentido forte do termo, porque se não podemos conhecer as consequências das nossas ações no futuro, pelo menos devemos considerar as consequências afetivas das nossas ações no presente. Aí que eu acho que a gente deve pensar uma filosofia que dê conta disso, quais os afetos que abrem as possibilidades; quais afetos são impossíveis, mas que abrem um momento de ruptura absoluta, que seriam afetos do conflito. Por isso que eu fico pensando nessa questão do amor o tempo todo, porque não pode ser um amor que ame e somente, tem que ser um amor que combata. Um amor que efetivamente posicione a possibilidade de conflito. Afetos que conflitam e afetos que, na sua substancialidade, no seu movimento, abram a possibilidade de ruptura. Não são processos que são rotineiros, não são afetos que são indiferentes, são afetos que constroem a possibilidade de um novo sentir e um novo devir. Vinícius da Silva: São afetos que nos levam a um acontecimento, enquanto algo que não era esperado, simplesmente acontece, como diz Helena Vieira. João Pedro: É o sentido do evento, para Badiou, que é esse momento que não se contém em si mesmo, que se excede e se transborda pros outros, mas que ao mesmo tempo que seu transbordar não é o transbordar da continuidade, é o transbordar do conflito, das possibilidades da subversão e da Vinícius da Silva miolo.indd 125 125 24/03/2022 16:03:27 construção do novo. Só se constrói o novo quando o velho não dá mais conta, chegou no seu limite. É isso. Vinícius da Silva: Sim, eu tenho para mim que o conflito é fundamental, porque o conflito é disputa. E no processo de formulação de uma gramática do amanhã, o conflito é essencial, o conflito é, inclusive, uma das partes constituintes do amor. Por isso que eu chamo atenção pro fato que embora o amor seja definido, nomeado, ele também é restringindo nesse processo e ele nunca vai ser compreendido na sua forma ampla, completa, porque ele não pode ser, de fato, nomeado. Como diz Barthes, falar sobre amor é enfrentar a desordem da linguagem. Porque quando a gente aprofunda o estudo sobre amor e sobre humanidade, o amor se confunde, inclusive no conceito de espírito de Sobonfu Somé, que é uma força que organiza a nossa realidade. Esses conceitos se fundem e é importante entender isso para disputarmos o conceito de amor, que é um conceito em disputa. Eu sempre chamo atenção para o fato de que não há abordagens corretas ou erradas, e sim abordagens qualificadas e comuns. O que a gente tenta construir é justamente uma abordagem qualificada sobre o assunto, se organiza a partir da inserção nessa categoria na filosofia política contemporânea a gente pensar essas desconstruções, essas novas gramáticas. E você toca num conceito importante que é a consciência. A consciência também é um debate importante que eu faço de uma forma bem diluída no livro, para não focar muito nisso, para promoção de um novo tempo, a consciência se relaciona com a questão do amor no pensamento de hooks. Quando hooks fala sobre o talking back, ela levanta um debate sobre tomada de consciência (e sua radicalização). O sujeito de hooks nesse sentido, é um sujeito autoconsciente, radical, pois ela está falando de um processo de autodefinição que está sendo construído a partir de sua tese sobre linguagem, de forma que esses sujeitos possam se autodefinir. Porque, para ela, autodefinição é um processo crucial para a gente conseguir avançar enquanto coletivo. Hill Collins também fala sobre isso. Por isso, falamos sobre amor-próprio. E quando falamos sobre amor-próprio, não estamos fomentando uma discussão sobre narcisismo, individualismo ou sentimentalismo, muito pelo contrário. Trata-se de um processo 126 miolo.indd 126 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:27 de autocompreensão e autorrecuperação que possibilita a compreensão de um indivíduo enquanto sujeito. Talk Back. Então, eu sinto que de alguma forma a reflexão sobre amor de hooks também é uma reflexão que nos leva a questão do sujeito. Porque eu considero ser o sujeito uma categoria central para se entender processos de dominação e, portanto, que é a minha hipótese, processos de reconstrução ontológica. Nesse sentido, eu acho que a discussão sobre ontologia, embora eu não a faça propositalmente no livro, é uma discussão importante. Essa(s) ontologia(s) do amanhã. Os caminhos pelos quais um amanhã de fato será possível. Embora não pareça possível, embora pareça muito impossível, é preciso sempre caminhar rumo a uma possibilidade, por mais impossível que ela seja. Isso é um paradoxo, eu sei, mas isso tem que movimentar nossas questões. Luana Luna: João trouxe coisas importantíssimas, anotei aqui, fiquei conectando, pensando. Ai, gente, que alegria, viu. Gratidão. A conversação como uma pedagogia, uma metodologia, é importante. Que delícia construir conhecimento assim. E eu quero voltar na discussão, porque Vinícius trouxe uma palavra, um conceito, que é muito importante para mim, que é a questão do encantamento – que eu venho fazendo na tese. E queria, também, voltar à discussão do encontro, que também é uma outra reflexão muito importante para mim. E aí, para fazer isso, eu gostaria de recuperar a reflexão que Vinícius trouxe, sobre a margem, queria voltar nisso. Estar na/à margem, como aquilo que possibilita conhecer as questões e os anseios da margem e do centro, e que isso tem a ver com movimento. Quero trazer também a palavra movimento. Vinícius traz também uma reflexão, e eu queria mais uma vez destacar: a experiência da opressão não é necessariamente o conhecimento da opressão. Eu queria destacar isso novamente e acho que a gente precisa voltar a falar sobre isso. A importância da teorização, como nós conversamos aqui, e da teorização da experiência. Que essa teorização não necessariamente se dá dentro da universidade, a universidade não é o único lugar de excelência para a construção de conhecimento. Mas a produção de conhecimento também se dá dentro da universidade e por isso que a gente está disputando; falamos sobre o espaço da teorização da experiência como aquilo que eleva a consciência para o conhecimento da opressão. E isso funda uma epistemologia. A gente Vinícius da Silva miolo.indd 127 127 24/03/2022 16:03:27 vem também falando muito sobre isso, Vinícius, uma epistemologia marginal, transgressora, negra e indígena; sobre uma epistemologia que subverte, perverte aquilo que falei sobre o status quo do “penso, logo existo”, para o “sinto, logo existo”, porque é preciso sentir. E aí falamos de sentir, mas não é um sentir sem elaboração. E por isso, mais uma vez, a importância da teorização da experiência. Teorização também como elaboração. Elaboração da experiência e a elaboração da dor, a intelectualização da dor. Audre Lorde fala sobre isso, a intelectualização da dor. Que é esse espaço de elaboração, de teorização, de intelectualização, que vai nos levar aos reconhecimentos. E por isso, mais uma vez, sem medo de ser repetitiva, afirmo que a linguagem é um lugar de luta porque ela significa o real, significa o vivido, a linguagem significa o sujeito. Vinícius trouxe a questão das alianças, uma reflexão tão importante que a Butler desenvolve e que eu faço na tese, como ele mesmo cita. Eu chamo de aliança o encontro. Não estou querendo me comparar com a Butler em nenhum momento, mas como eu não sou leitora de Butler, eu estou tentando significar para o que é mais próximo para mim. E eu falo sobre o encontro. E Vinícius destaca o encontro como a centralidade da minha tese. Esse título que a gente gosta tanto de referenciar, de que nós somos os resultados dos nossos encontros, nós somos os resultados desse encontro; me referindo à experiência das ocupações estudantis, essa experiência marginal. E aí eu fico pensando que formar alianças, materializar encontros, realizar encontros, tem a ver com reconhecimento. E reconhecer é esse título – nós somos o resultado de nosso encontro. A gente ama esse título. Ele nos traz a dimensão de que formar alianças tem a ver com reconhecimentos. Porque é no encontro que a gente se reconhece. Não existe reconhecimento, não existe construção de alteridade, na individualidade. E formar encontros, construir reconhecimentos, também tem a ver com reverter essa lógica hegemônica da individualização. De transgredirmos essa lógica do individual para o sujeito coletivo, a sujeita coletiva. A singularidade dentro da coletividade. Aquilo que nos singulariza na diversidade, mas que não nega nossas diferenças. E eu fiquei pensando, que foi isso que os estudantes também fizeram em ocupação. Por conta da ocupação, eu quero, nesse momento, usar a metáfora da ocupação como uma condição de reconhecimento. A metáfora da ocupação como afirmação. A metáfora da 128 miolo.indd 128 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:27 ocupação como conexão. Porque eu acho que pensar a ocupação só dentro daquele marco, como algo que termina e não gera frutos – saldo organizativo –, seria muito reduzido. Ocupar, reconhecer, se afirmar, se conectar, é algo para a vida. Nós estamos fazendo isso o tempo todo no exercício da linguagem, por exemplo. Então eu quero usar a metáfora da ocupação como reconhecimento, afirmação, conexão, comunicação. E entendendo que a gente está, também, nesse exercício de subverter a linguagem colonial, ressignificar a linguagem colonizada, isso é muito importante. Voltando, formar alianças tem a ver com reconhecimento, realizar encontros tem a ver com reconhecimento. Porque é no encontro que a gente se conecta, é no encontro que a gente vai tendo a possibilidade de sair do individual, de se mover. Movimento. Movimentar-se de uma lógica individual para uma lógica coletiva, assenta e funda também novas gramáticas, como Vinícius está bem falando aqui. Era muito isso também, e é muito isso ainda hoje que os estudantes me falam quando contam que foi na experiência das ocupações e do encontro, que eles conseguiram entender, por exemplo, que as violências que sofriam no âmbito institucional, não eram violências individuais que reverberam, por exemplo, numa lógica de aceitação de um fracasso. Um fracasso que é construído e pautado numa ideia de mérito. Mas que essas violências eram estruturais porque os relatos de dor eram muito semelhantes. E aí veja como eles se movem do sofrimento individual, individualizante, dessa sensação de fracasso, de deslegitimação, para uma nova lógica de reconhecimento, a qual funda uma práxis revolucionária. Essa nova lógica de reconhecimento estrutural, a qual busca nomear estruturas opressoras, nos coloca em posição de resistência. Então, pensei tudo isso. E como que o encontro, algo que nós também falamos aqui, esse movimento, esse reconhecimento, essa restituição, é um espaço também de reconstrução epistemológica, uma vez que nós estamos falando sobre novas epistemologias. Novas epistemologias que se baseiam no “sinto, logo existo”, na teorização e na intelectualização. Vinícius fala de uma nova gramática, da fundação de uma nova gramática ontológica em hooks e que isso tem a ver com a reconstrução do ser. E foi isso que os estudantes fizeram, esse foi o movimento. E por isso eu gosto de dizer: a ocupação é para vida. Nada mais foi como antes, nem para eles, nem para mim. Vinícius da Silva miolo.indd 129 129 24/03/2022 16:03:27 E aí, Vinícius chama a atenção: é possível pensar em processos de reconhecimento? João traz um questionamento muito importante: e quais afetos abrem movimentos de ruptura? Eu penso ainda muito sobre isso na tese. Quais foram os afetos que moveram os estudantes a essa ruptura? E eu cheguei a perguntá-los muitas vezes sobre isso: “vocês pensaram sobre isso anteriormente? Vocês se organizaram para construir essa resistência?” Aí eles me diziam: “não, a gente foi combinando pelo WhatsApp. A gente estava afetado por muitas coisas, a gente estava incomodado por muitas coisas”... E a fala de João me traz esse alumbramento porque é exatamente o que João fala que os estudantes me diziam. A gente se efetiva construindo, a gente se efetiva se movendo, a gente se efetiva na ação. O amor é uma ação. E pensei muito, Vinícius, na nossa discussão sobre esperança. Pensei muito na cultura dos povos indígenas nessa forma de experienciar o tempo, que ela não é linear, é sobre outras lógicas, que vai dizer que nós só temos o presente. Nós só temos o hoje, esse dia não volta mais, esse momento não volta mais, esse encontro não volta mais. Ele reverbera, ele semeia, ele faz florescer, mas ele não volta mais. E é isso que o João está dizendo, a gente se efetiva construindo, a gente se efetiva se movendo. E a esperança é uma ação no presente, assim como o amor é uma ação no presente. Afetações que vão construir novos amanhãs. Afetações que são fincadas no presente. Afetações que são resultados dos encontros, das alianças, dos reconhecimentos. E aí, anotei isso tudo. Quando o Vinícius traz a questão do encantamento, que eu queria dizer que é uma reflexão muito cara para mim, que eu vou construindo com Simas... muito inspirada por Luiz Antonio Simas, que é um professor e intelectual que tem os pés fincados no presente, pensando muito na experiência marginal com o Benjamin, “quem faz as histórias são os oprimidos e é importante escovar a história a contrapelo”. E o Simas então pensa que são as sabedorias das encantarias, quando ele conceitua o encantamento como aquilo que dribla a morte, como aquilo que restitui a vida, a partir dessas sabedorias africanas e indígenas. Ele também está falando de uma outra epistemologia, apesar disso estar diluído em seus livros, a meu ver. Eu trago essa reflexão para a tese para dizer que é nesse processo de reconstrução do ser que, para mim, nasce uma teoria sobre a cura. Eu tenho dito muito isso, como eu vejo em bell uma teorização sobre a cura, sobre como 130 miolo.indd 130 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:27 a gente se cura. Reconhecendo toda essa estrutura opressora, reconhecendo essas estruturas opressoras, reconhecendo as despotencializações que a gente vai sofrendo ao longo da vida nesse sistema patriarcal sexista, heterossexual, racista. E como que a gente pode se repotencializar, reconstruir-se ontologicamente. Considerando também uma reflexão que Matheus trouxe, sobre a fragmentação da psique, falo sobre a colonialidade como esse projeto que cindiu a nossa psique. E a teorização sobre a cura é um caminho de reconstrução do ser, e por isso hooks também traz a reflexão sobre integridade. Quando João traz Hegel, convoca Hegel e fala do Espírito, imediatamente eu penso em hooks falando sobre integridade. Dentro desse arcabouço há uma teorização sobre a cura, que pensa o amor como esse caminho de reconstrução ontológica. E hooks vai dizer que o corpo, a mente e o espírito precisam sim se integrar. É essa integridade que talvez promova a reconstrução ontológica do ser. João Pedro: Você poderia, por favor, repetir a discussão feita a partir da minha fala sobre Hegel e sua relação com hooks? Luana Luna: Então, quando você convoca Hegel para falar sobre espírito, sobre a fenomenologia do espírito, eu conectei essa reflexão que você trouxe com a reflexão que hooks faz sobre a integridade. Num arcabouço dessa teorização sobre a cura, que para hooks talvez, me corrijam se eu estiver errada e ponderem aqui comigo, seja a integridade esse caminho de reconstrução ontológica do ser. E que essa integridade é a conexão entre corpo, mente e espírito – o que a lógica colonial racista tenta tanto aniquilar quando infere sobre a nossa desumanização. A busca pela integridade entre corpo, mente e espírito, é um caminho de cura. Então eu me lembrei muito disso. E mais uma vez, sinto, logo existo, é preciso sentir. Porque se a gente não sente, a gente não se move para essa busca. E, finalizando, falo sobre a integridade como aquilo que restitui a vida. A integridade como aquilo que nos repotencializa. E aí o amor é esse caminho, assim como o encantamento. O encantamento é esse caminho. Convoca-se essas sabedorias ancestrais negras e indígenas para cena, para centralidade dessa epistemologia fincada na experiência marginal. O encantamento é aquilo que driblou a morte, que não aceitou morrer. O encantado é o que não aceita morrer. Ele se modifica, ele se reinventa. E ontem eu me lembrei, lendo bell novamente, Vinícius da Silva miolo.indd 131 131 24/03/2022 16:03:27 para finalizar essa reflexão, que o Simas tem uma frase, fugindo também das lógicas binárias, que diz: o contrário da vida, não é a morte, mas o desencanto. Essa frase é muito potente. Aí eu fiquei pensando: o contrário do amor não é o ódio, mas a desumanização. Talvez seja isso. Se o contrário da vida não é a morte, mas o desencanto, como aquilo que nos despotencializa, o contrário do amor não é o ódio, mas a desumanização que legitima violências, que legitima todo tipo de violência sobre os nossos corpos. Vinícius da Silva: Eu gostaria de fazer uma última observação: é por isso que eu discordo quando o Renato Nogueira fala que a gente ama porque estamos vivos, porque não é nessa ordem de acontecimentos que as coisas de fato acontecem. A hipótese que eu levanto neste livro é: a gente ama porque temos uma extrema necessidade de reconhecimento. Porque o amor fornece as condições para a humanização. Ele nos torna humanos, como diz o Henrique Vieira. O que é tornar alguém humano? É fornecer as condições completas de reconhecimento para que esse sujeito seja de fato um sujeito. E aí eu parafraseio o que a Butler e a Athena Athanasiou, em Dispossession, vão dizer: não se trata de ignorar, por exemplo, as condições atuais de reconhecimento, mas sim de questionar tais condições de reconhecimento justamente porque são elas que produzem essas precariedades ontológicas porque são condições incompletas. E como a gente faz isso? Não é uma resposta que a gente tem que dar aqui. Para mim, esse é o grande ponto. A gente não ama porque estamos vivos. A gente ama porque a gente precisa de reconhecimento e, consequentemente, amamos porque estamos vivos, mas só estamos vivos porque fomos reconhecidos como tais... parece um ciclo infindável, onde não há começo, nem fim. Matheus Chagas: Eu fiquei pensando aqui sobre a fala de João e a fala de Luana. Mas a fala da Luana me lembrou bastante as discussões sobre esperança que o Freire faz. Na verdade, esse diálogo todo me fez pensar muito sobre a questão da esperança e do amor. Mas do amor como uma – não sei se vou falar certo o título, mas como você chama aquele texto que você publicou no Medium – o amor como uma estratégia política. Não é esse o termo que você usa? 132 miolo.indd 132 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:27 Vinícius da Silva: Que é inclusive a introdução deste livro. Matheus Chagas: Sim. E aí, vamos pensar sobre conflito, sobre disputa. Disputar um significado sobre essa discussão sobre amor. Disputar um significado sobre amor dentro de uma sociedade que é capitalista, que é racista, que é patriarcal, enfim. E como eu acho importante quando você enfatiza que discutir amor não é puramente discutir afeto, mas discutir amor é discutir também novos projetos de sociedade. Eu gostei muito de quando a Luana trouxe o relato do aluno que perguntou “será que a gente não está falando muito sobre amor?”. Porque eu lembro que quando eu tive contato com essa discussão pela primeira vez eu pensei a mesma coisa “como que a gente vai falar sobre amor em uma sociedade que a gente não tem tempo para isso?” E logo nesse momento, eu conheci aquele texto da hooks, no qual ela fala da teoria como espaço de cura. E ela vai se perguntar: por que a teoria é um lugar de cura? Porque quando eu teorizo, eu paro de reagir, só reagir... e eu começo a planejar, começo a construir um projeto. Começo a não só receber aquela violência e reagir a ela, com os movimentos, com os protestos, mas eu paro para refletir sobre aquilo e projetar uma outra sociedade, um fazer outro. E, a partir disso, ela constrói uma relação entre teoria e prática. E eu sempre volto à nota de rodapé do capítulo 3 de Pedagogia do oprimido, na qual Freire fala que não se faz revolução sem amor: “Cada vez nos convencemos mais da necessidade de que os verdadeiros revolucionários reconheçam na revolução, porque é um ato criador e libertador, um ato de amor. Para nós, a revolução que não se faz sem uma teoria da revolução, portanto, sem ciência, não tem nesta uma conciliação com o amor, pelo contrário. A revolução que é feita pelos homens o é em nome de sua humanização, que leva os revolucionários a aderirem aos oprimidos se não a condição desumanizada que se acham neste.” Então, quando a Luana fala que o amor é o contrário da desumanização, eu lembro muito disso, porque o Freire vai falar aqui na Pedagogia do oprimido e mais em Educação e mudança o seguinte: o amor é uma tarefa do sujeito. Ele vai trazer várias considerações do que é amor e do que é o contrário do amor, que se fala do desamor, mas é a desumanização. O amor é um ato de coragem, é um compromisso com as pessoas, é um compromisso com os oprimidos. É Vinícius da Silva miolo.indd 133 133 24/03/2022 16:03:27 a causa da libertação dos oprimidos. Ele vai falar que não se liberta, não se constrói os processos de humanização sem amor aos sujeitos, portanto não se pode pensar em educação sem pensar em amor. Isso é o amor como estratégia política, como estratégia radical para revolução. E é isso que eu vejo muito no que o Vinícius vem fazendo e falando, que é localizar a discussão do amor não na dimensão do afeto apenas, mas numa dimensão de transformação social, numa dimensão de transformação radical da sociedade. Então eu acho que quando a gente está falando sobre amor e sobre esperança também, voltamos a quando Freire vai dizer: “nossa esperança é nossa necessidade ontológica”. Se a gente não tem esperança, quer dizer que alguma coisa está errada, significa que a gente está desordenando a nossa necessidade ontológica. Se a humanização é a vocação, às vezes a esperança é a necessidade. O oprimido luta pela sua humanização, ele está lutando porque ele é esperançoso. Essa esperança não é simplesmente a espera, é uma espera que reivindica uma ação. Eu gosto muito quando ele diz: “eu espero na medida em que eu começo a buscar, pois não seria possível buscar sem esperança.” Então é mais uma vez uma relação de que eu não vou reagir só a violência, eu vou teorizar aquilo dali, eu vou buscar a minha humanização e nessa busca é como se concretiza a esperança. A esperança de que o Freire vai falar que é o desejo imperativo do sujeito. Então, quanto mais a gente vai vendo essas notícias de violências, e as violências às quais nós somos submetidos, esse processo de desumanização a qual nós somos submetidos, a gente encontra no amor e na esperança, uma possibilidade de cura. Mas essa cura não é simplesmente como: eu estava triste, eu estava violentado e agora magicamente me curei. Eu a construo com os outros, há uma dimensão coletiva. Vou recuperar o “Vivendo de Amor”, embora eu ultimamente não goste mais de trazer esse texto; não porque ele seja ruim, mas porque começou a ser utilizado de uma forma muito esvaziada em alguns espaços. Neste texto, hooks fala sobre o amor interior. E esse amor interior não é o amor que ela tem por ela, é o amor que ela constrói com o outro, em comunhão com o outro. Então não tem como pensar a revolução sem amor e não tem como pensar a revolução sem esperança. Corrijam-me se eu estiver errado. Eu gosto muito de quando a Luana fala sobre encantamento, porque é o que me faz sair desse estado de inércia 134 miolo.indd 134 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:27 e desesperança. E não é um idealismo, é compreender que essas relações de amorosidades, essas relações de esperança, elas se dão aqui, por exemplo. A gente se sente por uma vontade que não é só uma vontade, mas também é uma intenção – lembrando novamente hooks. Não é uma esperança que é imóvel, inerte, é uma esperança a partir da busca, e uma busca que acontece com os oprimidos. Então eu lembro que eu ficava muito impressionado quando o Vinícius falava sobre outros amanhãs porque até então eu não pensava que era possível estar discutindo sobre isso considerando a nossa conjuntura, por exemplo. Como é que eu vou falar sobre amor, falar sobre esperança com essa conjuntura? Mas é justamente por essa conjuntura que a gente tem que falar sobre amor e se a gente não está pensando em falar sobre amor agora, aí sim tem alguma coisa errada. E em nossa sociedade, todos os grandes movimentos sociais por representação e justiça promoveram a ética do amor, como sugere hooks. Vinícius da Silva: E você toca ainda numa discussão que eu estava fazendo com a Luana a um tempo atrás, e eu convidei a Helena Vieira para compor um dos diálogos desse livro justamente por isso, que é a questão da esperança. A Helena fez uma fala, no início deste ano, muito interessante sobre o futuro. Eu gosto da discussão que a Helena traz porque acho que ela tem muito pé no chão para discutir isso, que é um pouco do que eu também faço, e eu vou aqui reconhecer também o meu trabalho, que é justamente pensar no futuro a partir do agora. E ela falou uma coisa muito interessante, que eu vou abrir o documento para ler para vocês. Eu vou ler um trecho da fala dela. “Se tem uma palavra que possa nos caracterizar bem ou caracterizar melhor o nosso tempo, é esgotamento. Temos sido frequentemente incapazes de pensar o futuro, alguns de nós... De nós não, eu espero, querem voltar para 64 nos tempos da ditadura; outros querem voltar para dez anos atrás, mas muito pouco queremos discutir o futuro. Esse fenômeno profundamente esgotado, desesperador, desesperançoso, é talvez a maior marca desse nosso período. E justamente alguns tendem a dizer que a esperança seria um sentimento para se contrapor a esse período. Eu discordo. A esperança é uma paixão triste. A esperança é a certeza de um final feliz. A esperança é absolutamente colonizada. Os europeus têm esperança. Para nós, esse sentimento não cabe. Nós Vinícius da Silva miolo.indd 135 135 24/03/2022 16:03:27 temos nossa vida constituída a partir de inúmeras mortes, da história, do fim de inúmeros mundos, do fim de inúmeros povos, e justamente por isso não nos cabe ter esperança, nos cabe imaginação. E nesse sentido, pensar a imaginação é pensar que temos de encontrar alguma coisa que ainda não está aqui. Se imaginar uma saída é o que nos resta, significa que ela não existe. Significa que não há saída, a não ser aquela que nós vamos ter de inventar.” Nesse sentido, à luz do pensamento de Freire, eu gostaria que a Luana comentasse sobre a disputa do termo “esperança”. Esperança, além de ser um termo que também está em disputa, assim como amor, e nesse livro compreendo esperança enquanto disputa, não necessariamente enquanto esperar algo. A Luana tem uma perspectiva interessante sobre isso. E é mais ou menos isso que eu quero disputar com a Helena, quando a gente for dialogar em dezembro. A gente vai dialogar sobre alianças, esperança e futuro. Então, eu queria ouvir um pouco mais da Luana nesse sentido. Luana Luna: A discussão da esperança. Quando você trouxe essa problematização que Helena nos coloca sobre a esperança, que não caberia esperança, e a gente se debruçou um pouco sobre isso e eu voltei ao pensamento de Daniel Munduruku, um escritor, um indígena, um professor, um pesquisador, com mais de 50 livros publicados. É pouco falado, a gente fala pouco, eu acho, do Daniel, mas enfim. O Daniel fala muito sobre a herança do tempo dentro da cultura munduruku e ele conecta esperança ao presente. Mais uma vez entendendo que a percepção de tempo para os povos indígenas não é uma percepção linear como a lógica ocidental opera. A percepção de tempo se baseia em ciclos e sobretudo no presente. Um escritor muito importante, que tem uma produção fantástica e pelas questões do racismo que sabemos, invisibilizado. E dos meus encontros com o Daniel Munduruku, nesses caminhos de retomada da minha identificação indígena, ressignificando as minhas experiências de dor e ressignificando a figura paterna na minha busca pela teorização dessa dor que eu chego ao Daniel. E o Daniel fez uma reflexão que para mim foi muito importante, que eu fiquei muito emocionada quando ele disse pensando então o tempo presente, o futuro e o passado, fazendo essas conexões. E ele disse assim: o passado é um lugar de libertação, o passado precisa ser um lugar de libertação. E eu guardei essa frase. E ele se pergunta: 136 miolo.indd 136 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:27 “como que a gente ressignifica o passado? No presente. É vivendo o presente, pois nós só temos o presente.” E essa reflexão que ele faz sobre o presente é baseado numa relação de experimentar o tempo de forma não linear. Porque para os indígenas, a relação com o tempo não se dá como na lógica ocidental, de um tempo linear, cronológico. Os povos indígenas pensam em tempo pela questão dos ciclos, respeitando a terra, a natureza, portanto os ciclos. E eles têm uma percepção de que nós só temos o presente. É neste momento que estamos vivendo que a vida se realiza. E é preciso viver o presente porque esse dia não volta mais. E é então pensando nessa relação com o tempo dentro de uma lógica que não é hegemônica, não é linear, não é cronológica. E ele conversa com Freire, ele cita Freire, se inspira em Freire e ele vai dizer que a esperança é um tempo presente. A esperança é o que construímos no agora. A esperança, portanto, é uma ação. A esperança é uma intervenção. Não existe futuro, essa ideia de futuro, não há. A esperança é o tempo presente, é o que estamos fazendo agora. Trazendo essa relação, mais uma vez a relação com a natureza. Isso é a esperança. A esperança é, portanto, um verbo, a esperança não é aquilo que nos apassiva. A esperança é a vivência. E por isso, então, essa relação com o passado que se realiza neste tempo presente. O passado como um lugar de libertação. Não como aquilo que nos aprisiona, mas como aquilo que nos liberta no agora. E eu acho isso muito fantástico. E tem muito a ver com o que acabamos de dizer, pensando em hooks. A teoria como um lugar de cura e de autorrecuperação, como Matheus trouxe a reflexão do texto de bell. Que é esse lugar de autorrecuperação, ele emerge a partir da identificação da dor. E por isso, a teoria é um lugar de autorrecuperação. A teoria é um lugar de cura. Teorizar a experiência, mas veja: teorizar agora. Teorizar neste tempo. Teorizar a experiência então é teorizar a dor, entender que a teoria é um lugar de cura. Isso é esperançar a vida. E mais uma vez pensando na minha experiência, do meu pai, um homem indígena que não se reconheceu indígena, que sofreu muito racismo. Que foi muito desumanizado, que foi muito brutalizado, que amargou com essa dor, que morreu com essa dor. Viveu com essa dor, morreu com essa dor. Levou essa dor para dependência porque não conseguia nomear essa dor, não conseguia nomear essa dor. Não conseguia se reconhecer, não conseguia se conectar. E hoje eu, movida pela esperança como uma ação, posso significar esse passado nesse tempo presente e me libertar Vinícius da Silva miolo.indd 137 137 24/03/2022 16:03:27 dessa dor. Então, a esperança é algo que se realiza no agora. E o passado é um lugar de libertação quando a gente tem a oportunidade de teorizar a dor, e de entender que a teoria é um lugar de cura. Mas a gente também não está falando da teoria que se dá dentro da universidade, não é isso. É a elaboração da dor. E que tudo isso tem a ver com falar de amor. Eu anotei isso aqui porque foi tão importante, para mim, a fala do Matheus. O encantamento é aqui o que nos devolve a potência de vida. E se a gente não está pensando sobre tudo isso, nomeando, se a gente está abrindo mão então de disputar essa narrativa, e desistir de disputar essa narrativa é desistir de falar sobre o amor. E se a gente não está fazendo isso, está voltando para o ciclo da desumanização, para o ciclo da demonização e para o passado como lugar de aprisionamento. E aí a gente não ama porque está vivo, a gente ama por reconhecimento, como Vinícius falou, a gente ama para se libertar. Eu gosto muito de convocar essa palavra, liberdade. A gente ama para se libertar. O amor é um caminho de libertação. E por isso que liberdade, educação como prática de liberdade, é algo tão caro no pensamento de bell. Não existe possibilidade de a gente pensar em uma educação democrática se a gente não exercita a liberdade como uma prática. Não existe a possibilidade de a gente pensar em cura se a gente não rompe com os silenciamentos. E tudo isso é importante para erguermos a voz. Erguer a voz é uma metáfora para a liberdade. Pensar na esperança que se realiza no presente que faz a gente se mover, que faz a gente se curar, é romper com o silêncio. É romper com a invisibilidade. É caminhar no caminho do reconhecimento, da recuperação. E isso é libertário. E é liberdade que nos faz expandir, não é isso? Porque eu fico pensando muito em psicanálise. E a bell está dialogando com a psicanálise o tempo inteiro, e por isso eu gosto tanto de dizer pro Vinícius que a bell está construindo uma teoria sobre a cura. A psicanálise entende a linguagem como esse lugar preponderante para identificação e nomeação. A psicanálise trabalha com a linguagem porque a psicanálise entende que a linguagem é o que nos liberta. Se a gente não fala, se a gente não rompe o silenciamento, a gente não consegue se libertar. Então, olha a potência de dizer, por exemplo, erga a voz. Erguer a voz é uma metáfora de ruptura com violências, de ruptura com a invisibilidade. Porque aquilo que não se anuncia, continua invisível. 138 miolo.indd 138 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:27 Vinícius da Silva: É justamente por isso, inclusive, que a bell vai falar que é preciso que nos movamos para além da dor. Não basta somente compreender isso. É preciso tornar palatável, material, algo que possamos tocar, para que possamos nos movimentar para além disso. Eu gosto muito de quando a hooks se pergunta: como é que nós lutamos contra algo que não tem nome? E isso, para mim, é fundamental nesse processo de teorização. É aí que entra a teoria como uma prática de cura, enquanto uma reconstrução ontológica, uma reconstituição de si. É por isso que eu digo que o amor é o que permite que sejamos quem nós somos. E eu gosto muito também de quando a Butler e o Preciado vão dizer que a identidade não dá conta da vida. E o que significa isso? Significa não dar conta de algo. Ponto. É sobre como esses processos de nomeação funcionam. E que funcionam de um modo a infligir, censurar, criar barreiras, restrições linguísticas, de forma a tentar mutilar essa multiplicidade do ser. Por isso, eu estou falando que o sujeito de hooks é um sujeito autoconsciente. Porque ele se movimenta contra isso, ele se autodefine por meio de uma autoconsciência, e se distancia dessa gramática normalizadora, essa gramática reguladora. É um sujeito que não existe na mentalidade presente. Porque ele não pode existir. Mas que a disputa, que essa esperança enquanto disputa é justamente um contexto no qual o sujeito pode existir. O sujeito é a base da teoria do amor, que é uma teoria também sobre reconhecimento. Eu digo que, inclusive, a gente conversa sobre isso – não é, Luana? – que a ética do amor é também uma ética da vida. Ela permite também essa reorganização, esse redirecionamento do sentido que é dado ao ser. E se o ser não pode ser o que é, o que resta desse ser? Resta o corpo que é o reduto da violência patriarcal capitalista e imperialista que atravessa constantemente as nossas subjetividades, como vai dizer a hooks. Exatamente por isso, eu gosto muito da discussão que a Grada Kilomba faz sobre a voz, sobre essa passagem do objeto ao sujeito, que é influenciada pela discussão de hooks. Trata-se de uma discussão que diz justamente sobre como essa negação à fala opera; e quando a gente fala sobre falar, a gente não está falando de atos de fala. A gente está falando de condições de existência, de condições de aparecimento. Esse é o grande ponto. E a gente tem uma grande tendência no debate público brasileiro de reduzir o termo fala ao ato de fala, como se não fosse um discurVinícius da Silva miolo.indd 139 139 24/03/2022 16:03:27 so, como se não fosse uma prática de aparecer, uma prática de autoafirmação. Isso, para mim, é a maior falha que impossibilita a plena compreensão do conceito do lugar de fala, por exemplo, que é um conceito que, na minha opinião, foi mal inserido e construído pelo debate público brasileiro. É esse sentido da discussão de hooks e Kilomba que diz que a gente tem a fala enquanto a condição de existência do nosso ser. Por isso, Kilomba retoma, por exemplo, a memória da Anastácia, uma mulher escravizada. E a máscara do silêncio, como esse silêncio é uma negação da existência desse sujeito, uma objetificação. Por isso que, para hooks, a fala é o que garante a passagem do objeto para o sujeito, que garante a tomada de consciência desse sujeito. E falando e assumindo essa fala como um ato de resistência, a linguagem aparece como um lugar de luta, propriamente dizendo, que o sujeito pode ser de fato ou pode vir a ser, o sujeito é algo que vem a ser, não é um fato, é um processo de vir a ser, é um devir, como diz Butler. E fazemos isso para que ele possa vir a ser quem ele de fato é, nos seus próprios termos e a partir das suas próprias condições de aparecimento e de definição. Esse é o grande ponto que eu tento compreender a partir do que a hooks pensa sobre o sujeito. Como costumamos dizer, hooks não é uma autora que está pensando em proposições fixas. Ela não está postulando nada, ela não está pensando em postulados fechados. Ela está pensando caminhos, e pensar caminhos é algo muito simples, relativamente dito. Não, não é algo simples, desculpa. Pensar caminhos é algo que é importante para formulação da teoria crítica de hooks porque isso torna a leitura um pouco mais fácil, mas torna o estudo muito difícil. Porque existe uma metodologia de produção de conhecimento que vai estar em voga na obra de hooks que coloca uma gama de barreiras para a gente que estuda o seu pensamento, o que não é uma coisa ruim porque aproxima a obra do grande público, que é um dos grandes objetivos de hooks, mas impossibilita nossa real compreensão do que ela está dizendo. Por isso, eu tento realizar um exercício de análise minuciosa de cada formulação mais complexa de hooks para tentar entender o que está por trás disso. E é através dessa análise que a gente chega à conclusão de que a escrita de hooks é influenciada pela psicanálise, pela teoria crítica, pelos escritos de Foucault, pela religião, pelo budismo, por diversas teorias que formam essa multiplicidade do ser que é hooks. 140 miolo.indd 140 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:27 É por isso que eu acredito, inclusive, que hooks não disputa as bases fundadoras da identidade. Ela vai discutir identidade, estética, sujeito. Ela não vai tentar pressionar as bases em alguns momentos de sua obra, embora em outros ela o faça, porque o que importa para a gente é entender como as coisas se tornaram a ser o que são. E não o que as coisas são, de fato, em sua origem. É por isso que eu não tento responder as perguntas “o que é o sujeito?”, “o que é, de fato, o amor?”. Porque quando a gente pensa que a gente sabe o que é algo, é que a gente não sabe, de fato, o que ele é. A gente não está nem perto da epistemologia. E quando a gente tenta responder o que é alguma coisa, a gente nega de fato o que essa coisa realmente é. Por isso que eu acho também – e aí se trata de uma proposição que eu deixo em aberto – que a autodefinição de hooks é uma autodefinição desse movimento propriamente dito de permitir com que o sujeito se autodefina de acordo com seus próprios termos. Porque se a definição é, por natureza, limitadora, nada mais adequado do que deixar que a própria pessoa se autodefina, que ela vai fazer isso, pelo menos, nos próprios termos. A gente só conhece o que é, de fato, definido. Embora as coisas e nós mesmos sejamos muito mais do que as nossas definições, os nossos nomes evocam algo, é a partir dos nossos próprios termos que a gente chega perto de conhecer tudo que a gente realmente é. João Pedro: Esta foi a fala perfeita para eu discutir o que queria. Porque eu vou falar justamente do sujeito. Primeiramente, o sujeito, a consciência, o sujeito enquanto consciência. Ela, na minha visão e de muita gente, não é capaz de se autoconhecer plenamente. Porque existe uma coisa chamada desejo. E qual é a característica mais pulsante do desejo? É o fato de ele ser um afeto desorganizador. Ele é o que nos impulsiona à mudança, mas ao mesmo tempo desorganiza as próprias condições que a mudança vai agir. O absoluto é contingência, é o desejo. Apesar de ele ser uma força que move, ele produz condições de completa contingência. É impossível o sujeito se autodefinir. Porque a própria identidade desse sujeito é mediada por esses desejos. A identidade desse sujeito é sempre algo que vem de fora. E a identidade é emersa de universalização. E o que é uma identidade? É algo que eu, enquanto sujeito, intitulo e faço uma adesão para conseguir me identificar como multidão, como algo que me excede, que outras pessoas também comparVinícius da Silva miolo.indd 141 141 24/03/2022 16:03:27 tilham. A identidade é um elemento universal, de universalização. Então, o problema, essa coisa da identidade, da relação sujeito-identidade, é que, como Vinícius disse, a gente sabe que ela é, por definição, algo negativo. Ela precisa limitar para poder se definir como identidade. E ela é universal, então na identificação perde-se suas particularidades. A identidade é um conjunto de características universalizadas -- como a raça, não no sentido social, mas raça no sentido biológico, como o cachorro. A gente identifica o cachorro a várias raças e tem características que unificam essa raça, mas ao mesmo tempo que cada cachorro é uma singularidade dessa raça, ele é uma expressão única dela. Então, a relação entre sujeito e identidade é um pouco conflitante. Ela seria quase uma relação entre a estrutura e o sujeito, uma reposição desta relação, mas em termos subjetivos. Porque o sujeito, subjetivamente, adere a certas identidades, ele faz certas identificações de si e de outros e ele se sujeita a certas identificações. Então, são identificações que ao mesmo tempo se produzem enquanto regras gerais, universais, mas produzem um sujeito também que em referência a essas identidades. Este é o movimento entre o sujeito e a cultura. Então, uma coisa interessante de se pensar é o sujeito que consegue se autodefinir, se auto identificar. Mas ao mesmo tempo, nesse sentido, o que implode é a própria ideia de identidade. O que implode aqui quando eu faço esse movimento de dar ao sujeito as condições para ele próprio se auto identificar e se auto universalizar, é a implosão do próprio universal, porque o sujeito, quando faz isso, está colocando suas características particulares. A gente tem aí o processo de fragmentação da própria identidade. E isso é uma grande questão para a modernidade, para todos. A gente pensa aí o mundo se desmanchando e um dos elementos mais importantes desse desmanche é a completa fragmentação das identidades. Este é o primeiro ponto. O segundo ponto: o sujeito é um processo. O sujeito é um devir. O que isso quer dizer? O sujeito tem, sim, características que o efetiva, mas que ele produz outras o tempo inteiro, no seu próprio movimento. Então, a identificação do sujeito, se é que há alguma, é sempre uma identificação que só pode ser feita a posteriori, na minha opinião. E por quê? Porque é um processo que eu só consigo dar conta apenas no momento presente. Eu não posso me identificar para frente. Uma identificação é isso. Não vejo 142 miolo.indd 142 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:27 nela um instrumento positivo, ele é um instrumento de negatividade. É um instrumento de delimitação de uma certa padronização das características do sujeito, mas que só podem ser feitas na minha opinião, do presente para trás. Então, o processo de identificação do sujeito no presente é algo que estou sempre debatendo. O Vinícius me acompanha nessas reflexões. Eu estou o tempo todo conflitando com essa relação entre sujeito e identidade, justamente pelo processo de identificação desse sujeito ser um processo de sujeição, mas ao mesmo tempo um processo de libertação, porque quando o sujeito constrói uma identidade nova que confronta as identidades estabelecidas, ele está se colocando em movimento de reterritorialização, um movimento de negatividade, mas um movimento de negatividade que o empurra para frente, isso é interessante. Então, eu chego à conclusão de que a nossa filosofia da mudança requer um horizonte de negatividade, no sentido de criar o limite para essa transformação, que é o limite de um certo tipo de projeto que precisa ser posto. O que eu disse antes? Que é impossível para a filosofia postular um projeto de futuro, ela precisa, ao mesmo tempo, postular objetivos no presente. E é justamente no horizonte desses objetivos no presente que está, para mim, esse tema da identidade. De como agir em relação a essa identidade. Enfim, queria levantar essa questão aqui, pois a acho muito importante, principalmente porque a gente está pensando em afetos e são esses afetos que desorganizam a identidade. Por exemplo, a relação entre eu e meu gênero é sempre uma relação de desorganização colocada pelo desejo. O desejo impulsiona a extrapolar as implicações que estão pré-determinadas, sejam elas binárias ou não-binárias, não interessa. Se eu penso em uma estratégia de identificação, meu desejo desorganiza essa identificação, então eu preciso estar sempre reconstruindo. Isso já me leva para um outro ponto: a identidade precisa acompanhar esse movimento de desorganização. Ela precisa ser uma “classificação” que se auto implode. Então, há uma questão que eu coloquei aqui para o Vinícius que, para mim, eu tenho pensado estratégias epistemológicas de pensar formas de discussão sobre o conhecimento que se auto implodem o tempo inteiro, que se reconstituem em suas próprias bases. Isso impossibilita a tarefa da filosofia de postular uma epistemologia, mas entende a epistemologia também como um processo de vir-a-ser. Vinícius da Silva miolo.indd 143 143 24/03/2022 16:03:27 Para mim, a relação da identidade é essa, de reterritorialização ou de territorialização, não de reposição. A gente está colocando aqui um processo em que existe um negativo, mas que é um negativo que empurra para frente. Eu acho que é importante recuperar a ideia de negatividade, à revelia de Deleuze, em que ele fala e que com certeza me daria um tapa se eu falasse isso perto dele. Porque a negatividade é justamente o que possibilita a construção da singularidade, até porque a singularidade é uma delimitação em relação ao universal. Quando eu dou ao indivíduo a possibilidade de construção do universal e digo para ele: “você é parte do universal, portanto, construa esse universal”, eu implodo o universal de novo. Enfim, não sei se fez sentido, eu sei que está contraditório, mas é por aí. Vinícius da Silva: Bom, eu estou absolutamente de acordo com a noção de que o sujeito nunca pode, enquanto consciência, de fato, saber plenamente de si. Eu estou super de acordo com isso, mas eu repito o que eu sempre digo quando a gente conversa: a gente parte de paradigmas teóricos, arquiteturas do conhecimento, diferentes para falar dos mesmos assuntos, então a autodefinição não é impossível. Pelo contrário, a autodefinição, tal como a teoria formulada nas epistemologias do pensamento feminista negro, são movimentos de ruptura com essa dialética violenta que, por exemplo, se materializa na obra do Hegel como a dialética do senhor do escravo. Esta dialética violenta, em que não há uma consciência que, de fato, possa ser moldada pelo próprio sujeito, plenamente. O mecanismo pleno de sujeição... não acho que ele possa ser de fato alcançado. E essa não é uma preocupação de hooks, inclusive. Mas existem, e eu consigo identificar, mas ainda é algo que eu estou investigando, algumas contradições e alguns paradoxos nos processos de autodefinição. Uma delas é justamente sobre a questão que tu colocas, que é: “seria então a autodefinição então impossível?” Eu diria que não. Diria que não, porque a autodefinição não busca uma consciência plena do sujeito, mas ela busca uma definição dessa consciência, ou desse sujeito, a partir dos próprios termos. E a discussão sobre autodefinição, principalmente, no pensamento de Collins e hooks, surge a partir do conceito de dupla consciência, de W. E. B. Du Bois, um sociólogo negro pioneiro. E esse conceito explica justamente 144 miolo.indd 144 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:27 como a subjetividade negra é atravessada por uma dupla consciência. Uma consciência que é ao mesmo tempo moldada por uma dialética que é estabelecida entre raças, digamos, uma dialética racial, mas que também compreende a existência de uma consciência que é moldada pelos próprios termos. Audre Lorde explica isso ao discutir vigilância. Existe uma dupla consciência que articula mecanismos de sobrevivência, articula estratégias de resistência e ocultação para que essas estratégias de autodefinição não sejam capturadas por um sistema hegemônico, um capitalismo patriarcal, para usar o termo da hooks. Isso nos coloca um desafio? Sim, mas também revela uma outra coisa. É algo que o professor uã sempre diz, e aqui eu reforço a sua fala: as teorias ocidentais do reconhecimento precisam ler as teorias raciais. Existe uma dívida histórica em relação a esses paradigmas teóricos, de modo que eles nunca vão entender, de fato, os reais dilemas e as contradições do reconhecimento sem trabalhar com as teorias raciais. Sem entender a dinâmica do racismo e das ontologias do racismo contemporâneas. É por isso que quando a gente volta para a questão do reconhecimento a partir do pensamento de hooks, falamos de autodefinição. E a autodefinição não é um momento de uma consciência plena desse sujeito, uma consciência plena, completa. Mas e se fosse, também? O que isso coloca para a gente, em termos de desafio? Porque se formos colocar respostas em uma formulação teórica que foi construída a partir de uma epistemologia que não tem conhecimento, não tem compromisso com as dinâmicas raciais do seu tempo, a gente nunca vai encontrar uma resposta para pergunta e para os desafios que o estudo da autodefinição coloca para a gente. Então, o que importa aqui, e eu digo isso e ressalto que essa é uma investigação que eu estou ainda fazendo, estou escrevendo um artigo que não vai estar no livro, mas vai ser publicado no ano que vem, é justamente como que essas autoras articulam os próprios mecanismos e as próprias condições de autodefinição. A autodefinição, nesse contexto, surge como um mecanismo de poder definir, mesmo que dentro dos limites da nossa gramática identitária e ontológica, a nossa própria identidade. É por isso que eu e Helena Vieira sempre trabalhamos com o poema Gritaram-me Negra, de Victória Santa Cruz, que narra o movimento de resistência a uma interpelação do poder, mas também de uma subordinação primária à interpelação do poder para assumir a própria Vinícius da Silva miolo.indd 145 145 24/03/2022 16:03:27 identidade, através de um mecanismo de autodefinição e decodificação. Porque a gente só consegue pensar, inclusive, na própria autodefinição a partir dos termos deste mecanismo hegemônico de sujeição que foram colocados para gente. É preciso reconhecer isso para que consigamos criar estratégias de resistência, estratégias de movimento, de autodefinição nesses termos. E quando Collins vai trabalhar isso, em Pensamento Feminista Negro, que é um livro maravilhoso, inclusive, todos deveriam ler, ela vai retomar a obra de Lorde para falar como esses sujeitos são sujeitos de vigilância, são sujeitos que estão o tempo todo vigilantes, pois eles precisam o tempo todo sobreviver, de fato. Então, existe uma articulação dentro da consciência feminista negra a partir do conceito de dupla consciência que vai entender essa vigilância como a própria categoria formuladora da dupla consciência a partir da qual existe uma adequação desse sujeito às linguagens, aos comportamentos, às maneiras de agir de um sistema de dominação para que esses sujeitos possam agir a partir dessas estratégias de sobrevivência para que essa autodefinição não seja captada, capturável. Trata-se de uma hipótese de pesquisa. Então, nesse sentido, a autodefinição emerge como uma estratégia de resistência, a partir da qual o sujeito pode, de fato, resistir à uma interpelação do poder para que ele possa, minimamente, nos termos que temos, assumir a própria identidade. Signifique o que isso significar. Esse processo é sempre um processo coletivo. Por isso, eu acho que o postulado de Luana nos coloca algo importante. Ele nos informa justamente as condições pelas quais o sujeito aparece. Porque quando o estudante diz e a Luana dá esse título a tese, que é “nós somos resultado do nosso encontro”, nada mais é do que é nesse encontro que o sujeito se admite como sujeito e que consigamos então articular a partir de uma nova gramática da autodefinição, encontros menos opressores, menos dominadores, encontros que articulem potências, que articulem afetos numa definição espinosiana de afeto. O segundo ponto da sua fala, João, nos leva à questão do processo de formação desse sujeito. E eu estou totalmente de acordo, também. Isso é o que está no pensamento de Hannah Arendt e no pensamento de Butler. O sujeito só se reconhece como sujeito após a cena de sujeição/reconhecimento. Que é quando ele consegue narrar a si mesmo e quando ele pode assumir os próprios termos. Então, esse movimento de narrar a si mesmo que acontece após a cena 146 miolo.indd 146 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:27 de sujeição é o que está em jogo com a questão da voz libertadora de hooks, que é o que a Kilomba vai discutir quando ela narra a passagem do objeto do sujeito. Quando ele pode narrar, quando ele se narra compreendendo as dinâmicas de violência e de dominação que constituem a sua subjetividade, é que ele pode de fato constituir novas cenas de enunciação, novas linguagens, novos modos de aparecimento e, em último caso, que é o que a gente discute na formulação de uma teoria de um amanhã, que ele possa de fato articular um novo modo de estar no mundo que não seja articulado a partir de um sistema de articulação. Isso é o que está em jogo. Agora, em relação aos caminhos para se discutir isso, você coloca diversas contradições e diversos paradoxos que eu acho importante a gente admitir no processo de construção que a gente está discutindo aqui hoje. Trata-se de um processo complicado, a gente não vai conseguir resolver isso do dia para a noite. Não acho que a gente tenha que resolver nada, inclusive. Só acho que nós temos que colocar as questões, fornecer caminhos e, coletivamente, disputar novos sentidos. Eu acho que esse é o processo, esse é o ponto central, tanto do meu livro quanto de tudo que a gente está discutindo em coletivo, nesta mutualidade, para usar o termo de hooks. É na mutualidade que a gente vai conseguir encontrar, de fato, se estivermos buscando, respostas, caminhos e novas maneiras de pensar sobre as contradições que foram colocadas por velhas maneiras de pensar. Esse é o movimento do pensamento que a gente tem que manter. Eu acho que esse é o movimento do pensamento que a gente pensa também quando a gente discute autodefinição e autoconsciência. Matheus Chagas: Eu gostaria de retomar a reflexão de quando a Luana fala sobre a questão das sabedorias ancestrais e, no começo da nossa conversa, o Vinícius falou sobre a questão do Eu e do Outro, um Eu que existe sem precisar aniquilar o Outro. Isso me lembra hooks sobre autorrecuperação. E eu vou ler algumas marcações que eu fiz nesse texto [Capítulo 4 – Erguer a Voz]: “Eu chamo essa experiência de ‘autorrecuperação.’ Mas tive que viver com esse termo para pensá-lo de forma crítica. Eu estava particularmente indecisa sobre a palavra ‘autorrecuperação’, a insistência contida nela de que a Vinícius da Silva miolo.indd 147 147 24/03/2022 16:03:27 completude do ser – chamado aqui de eu – está presente, é possível, que temos que experimentar, que é um estado para o qual podemos regressar. Eu queria saber no meu coração se isso era verdade para o oprimido, o dominado, o desumanizado, que as condições para a completude, o eu completo, existiam anteriormente à exploração e à opressão. Um eu que pudesse de fato se restaurar, recuperar. Descartando a noção de que o eu existe em oposição a outro que deve ser destruído, aniquilado (pois, quando saí do mundo segregado de casa e passei a viver entre pessoas brancas e seus saberes, aprendi essa maneira de compreender a construção social do eu), evoquei os saberes que havia aprendido de pessoas negras do sul não escolarizadas. Nós aprendemos que o eu existia em relação, era dependente, para sua própria existência, das vidas e das experiências de todas as pessoas; o eu não como “um eu”, mas a junção de “muitos eus”, o eu como a incorporação de uma realidade coletiva passada e presente, família e comunidade.” Este texto é fantástico. E eu acho muito interessante quando ela fala sobre isso porque eu lembro do que a Kilomba fala sobre o trauma colonial, que é o que faz com que as pessoas racializadas convivam com essa ferida, que é uma ferida que nunca se fecha, que não cicatriza e está sempre sangrando, o trauma colonial. E aí, quando eu li essa parte eu lembrei que Vinícius falou no começo da discussão sobre esse eu que não precisa aniquilar o outro e eu posso estar equivocado agora, mas acho que o Vinícius falou sobre ética do amor, que essa ética do amor não precisava aniquilar o outro... Vinícius da Silva: Sim, exatamente isso. Matheus Chagas: Nesse mesmo texto, hooks afirma: “nenhuma mudança radical, nenhuma transformação revolucionária poderá ocorrer nesta sociedade - nesta cultura de dominação – se nos recusarmos a reconhecer a necessidade de radicalizar a consciência em conjunto com a resistência política coletiva. Quando falo sobre radicalizar a consciência, penso na palavra conscientização, que implica muito mais do que a mera adoção de slogans politicamente corretos ou apoio a causas politicamente corretas.” E aí, ela foca em outro ponto que eu acho fantástico, que é a questão do ser e da identidade. E eu acho isso fantástico, queria que o Vinícius comentasse um pouco sobre essa 148 miolo.indd 148 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:27 questão do “eu”, porque eu vi que ele publicou um trechinho do livro uma vez num tweet, mas no começo da discussão ele falou sobre isso também. Luana Luna: Antes só de passar para o Vinícius, que eu também quero muito ouvir o comentário dele, eu gostaria de compartilhar algumas observações. Enquanto você estava lendo, eu lia também... e podemos traçar algumas considerações: o caminho da autorrecuperação e de libertação nunca pode ser individual. Esse é um dos fundamentos do pensamento feminista negro. Trata-se de um processo individual, mas ao mesmo tempo coletivo – a libertação para uma comunidade, de uma comunidade, de histórias que foram interrompidas pela colonização, pelo contexto escravagista. E a gente está, agora, neste tempo presente, esperançando essa libertação. Isso é muito potente. Isso é incrível porque existe uma metáfora dentro da epistemologia de terreiro, tal como eu nomeio, que é a metáfora da morte do renascimento, Vinícius citou isso no início. Para os povos de terreiro, e toda vez que eu penso terreiro, eu penso como um lugar de excelência, de reinterpretação, de reinvenção das sabedorias africanas e indígenas, rompendo também com essa invisibilidade dos povos indígenas. Então existe uma metáfora, que não é só uma metáfora, é uma ritualística, é uma epistemologia, é também uma liturgia, é uma ontologia de reconstrução do ser, que é a metáfora da morte e do renascimento. Isso é de uma beleza tão incrível e tão sofisticada, de um conhecimento tão sofisticado, porque não se pensa a morte, a partir da epistemologia de terreiro, como uma finitude. A morte não é o fim. O fim só se dá quando há o esquecimento. O esquecimento, então, é a morte como um fim. E o que a epistemologia do terreiro, na metáfora do renascimento, através da sua ritualística iniciática, faz é libertar esse passado realizando neste presente o renascimento, mas uma nova vida para uma comunidade e que aquela nova vida represente libertação e continuidade. Então, a cada nova vida iniciada, a comunidade se repotencializa. A comunidade não morre, a comunidade continua. Existe uma dimensão de um singular que nutre um coletivo e de um coletivo que nutre o singular. E essas forças se retroalimentam, é o que a gente chama de Axé coletivo, o Axé como força vital. Então, como eu dizia para o Vinicius esta semana, o projeto colonial racista, no que ele tem talvez de mais perverso, que é a desumanização e o Vinícius da Silva miolo.indd 149 149 24/03/2022 16:03:27 extermínio, que não é só o extermínio dos corpos, mas de todo um cosmo sensível, de toda uma cosmopercepção que é o arrancamento do território comunitário, que promove o aniquilamento do ser. Porque veja, se a gente compreende que não existe a morte como finitude, que a morte só existe quando há o esquecimento, que o renascimento é uma pulsão de vida para comunidade, que o renascimento é a libertação de um passado que se realiza no presente, que o renascimento é a continuidade da ancestralidade porque é pelo renascimento que você mantém a ancestralidade viva sendo rememorada, quando você tem o arrancamento da comunidade e a dispersão em diáspora, você então aniquila o ser. Aniquila o pertencimento, você aniquilou um pertencimento, destituiu. Porque se a comunidade se reúne para rememorar, com o arrancamento você aniquilou um pertencimento. Ou seja, houve uma interrupção de histórias. O renascimento, então, é uma metáfora da continuidade dessas histórias que foram interrompidas, que foram silenciadas. Vinícius da Silva: O processo que Luana narrou agora por último é o que o Muniz Sodré chama de semiocídio ontológico. É esse aniquilamento de um sentido de um ser que antecede e fornece justificativas necessárias para um genocídio físico desse ser. Não à toa, em Pensar Nagô, Sodré vai afirmar que o semiocídio ontológico perpetuado pelos evangelizadores precede o extermínio físico dessas pessoas. E quem são essas pessoas? São pessoas que são marcadas por isso que Sueli Carneiro chama de “signos da morte.” São pessoas que estão destinadas a morrer porque não estão inseridas em um enquadramento ontológico específico que determine a sua vida enquanto uma vida que seja vivível, enquanto uma vida que tenha que ser vivida de fato. Então, você aniquila esse sentido semiótico, retirando o sentido do ser, e esse processo é o que a gente chama de semiocídio ontológico. É exatamente por isso que, para além de retirar o sentido, são retiradas, também, as possibilidades autônomas da definição do sentido. O sentido passa a ser dado por outro. Por isso, hooks, à esteira do pensamento de Freire, discute a radicalização da consciência. Por isso, eu não consigo conceber a ideia de uma autodefinição que seja, de fato, impossível, como eu apontei antes. Ela tem as suas contradições, mas ela tem que ser no mínimo muito possível, 150 miolo.indd 150 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:27 digamos assim, porque a radicalização da consciência desses sujeitos, que são sujeitos que sequer são reconhecidos como sujeitos a depender do contexto que estamos falando, busca reconstruir e reconstituir a própria subjetividade e definir as próprias gramáticas ontológicas. Isso é um processo complexo que nos coloca alguns desafios, ainda. O que estamos discutindo aqui são as ontologias da futuridade. São questões que constituem um núcleo importante para a gente pensar nesse novo tempo. E quando hooks fala sobre autorrecuperação, que é também uma forma de autodefinição, ela está falando de um processo, inclusive, de desmantelação dos sistemas de dominação. Porque a gente só vai conseguir materializar, construir uma dialética do reconhecimento, tal qual hooks reivindica em sua obra, a partir de outras condições organizadoras, a partir de outras gramáticas ontológicas. E, para que consigamos construir e (re)conhecer essas (novas) gramáticas ontológicas, é preciso haver uma desmantelação dos sistemas de dominação. É por isso que é importante fazer uma discussão que compreenda a ética do amor enquanto uma ética da transformação, enquanto uma ética da mudança social, porque sem esse horizonte revolucionário a gente não consegue sequer discutir os novos mecanismos e as novas possibilidades de ser um sujeito. O que é um sujeito hoje? Um sujeito hoje é algo que a gente compreende em contraposição a um objeto. Esse objeto nem sempre é algo físico, pode ser outra pessoa. Uma outra vida que não vai ser vista enquanto vida, mas que vai ser objetificada nesse processo. Isso parece ser uma condição necessária para as nossas atuais políticas de reconhecimento. A partir disso, então, à esteira do pensamento de Butler e de hooks, a questão que fica é: como a gente pode pensar na radicalização da consciência do oprimido – para usar os termos de hooks – de forma que isso constitua uma nova gramática ontológica? Nesse sentido, eu gostaria de recuperar a discussão sobre afeto, a partir do que foi apontado sobre a dimensão do amor que nos leva ao conflito. E por que o amor nos leva ao conflito? Porque ele afeta as pessoas. E aí, é importante retomar a definição do Espinosa sobre afeto: “Por afeto compreendo as afecções do corpo pelas quais sua potência de agir é diminuída ou aumentada.” O afeto pode ser tudo aquilo que atravessa um corpo – e aí acho que não cabe na discussão discutir o que é um corpo... Vinícius da Silva miolo.indd 151 151 24/03/2022 16:03:27 João Pedro: Um corpo mesmo. Qualquer coisa que tenha volume. Vinícius da Silva: Certamente, mas eu não estou falando do corpo de Espinosa, quero trazer ao debate a compreensão de corpo que precisa estar no centro da discussão quando falamos de aliança. Então, o corpo, para além de ser algo que tenha volume, é um reduto de precariedade. E, nesse sentido, Helena afirma: “apenas o encontro possibilita o afeto.” E essa definição de afeto não está ligada a um sentimentalismo, mas à ideia de conflito. O corpo, então, é produzido no encontro com outros corpos. E, nisso, hooks concordaria com Deleuze. Apenas o encontro possibilita isso. Encontros pacíficos ou violentos. Afeto é sobre atravessamento. Neste diálogo, a noção de encontro está permeando todas nossas discussões porque estamos nos encontrando, de alguma forma, mesmo que remotamente, e é esse encontro que produz algo, uma materialidade. É no encontro que o afeto, de fato, existe e que nem sempre esse afeto vai ser um afeto agradável, pode ser violência, pode ser uma violência ética, inclusive – que é um termo que a gente discute a partir do pensamento de Butler –, e como que essas afetações elas estão necessariamente diminuindo ou aumentando a potência pelas quais um corpo pode agir. E é nesse sentido que a gente retoma a discussão sobre o amor enquanto afeto, justamente promovendo uma noção de amor que aumente a potência desses corpos. E o que é aumentar a potência desses corpos? É fazer com que esses corpos se autorrecuperem, se autodefinam e formem alianças porque são essas alianças que vão constituir necessariamente o nosso amanhã. Aliança enquanto uma condição de vida. O amor enquanto uma condição de reconhecimento, a aliança enquanto uma condição para a vida. É nesse sentido que a discussão sobre afeto se insere na ética do amor. É algo que eu ainda estou tentando formular e compreender. João Pedro: Eu gostaria de abrir um parêntese para falar sobre as formulações de Žižek, sobre amor. Ao escrever dois livros sobre o cristianismo, Žižek está tentando recuperar as possibilidades revolucionárias do cristianismo. Em que sentido? Após a morte de Jesus, ele ressuscita e é levado aos céus. Porém, no dia seguinte, a partir de um derramamento do Espírito Santo, os apóstolos começam a formar uma comunidade. E é uma comunidade base152 miolo.indd 152 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:27 ada na ideia de quê? Amor ao próximo. Então, você tem uma comunidade formada onde os vínculos não são vínculos pensados em troca, ou em relação de ganho, não tem nada disso. O objetivo é construir uma comunidade de fiéis, onde age ali uma ideia de um reconhecimento da humanidade do outro, enfim. Essa ideia que fica, que organiza essa comunidade, é a ideia do amor ao próximo que é longamente discutida por Jesus Cristo. O que Žižek está tentando fazer é justamente recuperar quais são as possibilidades que essa ideia de amor ao próximo, de um amor absolutamente radical, um amor que posiciona o outro como elemento privilegiado, como que ele pode se organizar e como que ele tem uma potência para ser completamente anticapitalista. O capitalismo é justamente a negação de tudo isso. Então, vivemos, hoje, em uma sociedade baseada no lucro e que se a gente for considerar todo o movimento do capital a sua instalação, enfim... vou pular o Weber aqui, porque o Weber fala sobre como o protestantismo ajuda no desenvolvimento do capitalismo, mas antes disso, tínhamos uma Igreja Católica muito relutante tanto politicamente quanto filosoficamente em relação aos lucros, em relação às ideias do trabalho, de uma dominação de um humano pelo outro. Então, temos ali uma noção de anticapitalismo. você tem ali também alguma coisa fervilhando que poderia ser um anticapitalismo. O que importa para a gente, aqui, é pensar sob quais condições esse amor pode ser um amor revolucionário. Não é um amor que é sobre si, é sobre literalmente as outras pessoas. Jesus morreu e entrega a sua vida para garantir a salvação dos outros. E como esse amor abre uma possibilidade de uma própria ética de se posicionar? E como que a gente faz isso? Para isso, Žižek tenta fazer uma análise de um filme, em que uma mulher – não lembro se é um filme ou se é um caso real, agora, eu acho que é um filme, não lembro – estava presa em cativeiro com seus dois filhos. E aí, com o objetivo de salvar esses filhos, porque ela imaginava que o filho ia ser morto pela pessoa que o colocou em cativeiro, ela mesma mata seus filhos. Isso é muito parecido com o que acontece no filme O Nevoeiro. E o que Žižek analisará a situação da mãe e tentando entender quais são as contradições de sua ação. O objetivo da mãe é literalmente salvar seus filhos. O objetivo dela é garantir a liberdade, tanto para ela, quanto para seus filhos. E ela não quer que seus filhos sejam mortos por esse assassino, então ela mesma executa seus Vinícius da Silva miolo.indd 153 153 24/03/2022 16:03:27 filhos. Então, temos que o que estava em jogo não era um ganho pessoal. A tentativa dela era justamente salvar seus filhos, para que eles não fossem mortos por outra pessoa, um desconhecido..., mas há, também, um elemento sacrificial. Ao matar seus filhos, ela mata um pouco de si mesma. E quais são as consequências disso? Quando ela é libertada e sobrevive, o Estado a processa, obviamente, por homicídio. Mesmo assim, ela não é presa. O ato dela é tão pavoroso, tão assustador, mas ao mesmo tempo carregado de um sentido tão fundamental também, de uma liberdade, sobrevida visceralmente fundamental que a ação dela abre um precedente, abre um movimento que nega a moral estabelecida, e obviamente todo mundo concorda que a moral é não matar os filhos e nesse momento, ela rompe com a moral estabelecida de uma forma absoluta, mas ao mesmo tempo ela posiciona uma nova questão. Então, ela consegue romper, naquele momento, com vários sistemas estabelecidos. Ela rompe com a ideia de seu próprio interesse, ela rompe com a ideia dessa individualidade, ela perde tudo que ela tinha dado até aquele momento, ela era mãe. Ela já tinha falado sobre como, para ela, sua família era importante, ela então perde os filhos, ela perde a si mesma nesses processos e ela rompe com a moral estabelecida. E aí, ela tem a consequência de ter a sua relação com os outros rompida. Ela se torna um pária. Uma marginal absoluta, mas ao mesmo tempo ela traz o movimento com que ela se defende, ela posiciona uma justificação que é entendida pelos outros. Então, você não tem uma relação de absoluta violência ou perseguição em relação a ela. Ela é como se fosse um neutro, ela se torna coisa só a margem, as pessoas não têm contato com ela, não se aproximam dela, mas compreendem a situação e têm um pouco de pena, não havendo uma relação de perseguição e ativa violência. Vinícius da Silva: E, nesse caso, João, ela se torna nada porque se ela perde contato, ela deixa de ser um sujeito. Deixa de ser alguém. João Pedro: Isso! Exatamente, é exatamente isso. Ela é uma coisa “monstro”, vamos botar assim, ela é um corpo abjeto – acho que essa é a expressão que me fez relacionar com a Butler. Então, você tem aqui um movimento de rompimento precisamente que é totalmente levado por esse afeto. É amor, mas um amor que, enfim, a leva à uma ação que é extremamente vio154 miolo.indd 154 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:27 lenta, mas o que fica de fundamento aqui é que existe uma desorganização absoluta possível. É claro que o ato é escabroso, ninguém está fazendo apologia disso. A gente está pensando realmente na possibilidade efetiva de posicionar essas questões por que isso está literalmente no limite desse afeto, no limite do que a gente pode considerar o moral. Tão no limite do moral que empurra esse limite e que é possível uma certa mudança de conscientização informada por certas opções e o amor ele tem esse potencial de desorganização. É como se nas relações com os outros houvesse uma certa comunicação que é movida por esse afeto, como se ele fosse um afeto que consegue pela sua própria expressão, ser compreendido ou não compreendido dentro da norma moral que está posta. É uma compreensão nova que esse próprio ato, esse próprio evento funda, por mais abjeto que ele seja. Então, a gente tem aqui muitos elementos para pensar a relação entre esse amor e pensar como ele é sacrifício, ele envolve um sofrimento, ele envolve uma relação muito complicada de você lidar. Ele tem um conflito interno aqui nessa ação que é muito importante, que perdura, que fica como consequência dessa própria ação. Então, você tem ali, no pós-ação, essa mãe tentando se restabelecer e se reintegrar com essa sociedade que não a quer, enquanto um sujeito. Enfim, acho que tem vários elementos aqui para a gente pensar, mas pensar também reforçar que essa discussão sobre amor não tem a ver com esse sentimentalismo, reforçando isso que Vinícius ia falar, não existe uma pura docilidade. Esse amor pode ser agressivo, violento, mas usar dessa agressividade, dessa violência para postular um excesso na própria moral, enfim. É, então há uma violência que não seja uma violência necessariamente opressora, propriamente dita assim, é uma violência diferente, que também deve ser pensada. Enfim, há muitos aspectos e histórias. Agora, feche o parêntese e voltemos à discussão do afeto. Matheus Chagas: Eu gostaria de fomentar a discussão sobre a noção de solidariedade para hooks. Ela está sempre falando da perspectiva de alguém que tem amor, que tem esperança e ela tem esperança nessa conscientização que funciona para os dois lados. A hooks não está falando só sobre nós pessoas negras, nós pessoas racializadas, tomando consciência. Ela está falando de todos nós tomando consciência para transformar a realidade. E isso é uma Vinícius da Silva miolo.indd 155 155 24/03/2022 16:03:28 coisa que a gente também encontra na obra do Freire. E ao levantar a discussão, costumo ver algumas críticas à hooks que insistem em chamá-la de integracionista. O que eu não acho que seja inválido, principalmente se levar em consideração o que significa integracionismo no contexto estadunidense. Então, eu acho que essa solidariedade política entre oprimidos é um ponto muito especial na obra da hooks, é um ponto muito especial para quem está engajado na transformação da realidade. Essa crença não é uma crença idealista, mas é uma crença radical, um ou outro, que também sou eu. E eu acho que isso acaba sendo complicado e aí é que está, né. Freire vai falar da ética universal do ser humano. E isso é algo muito complicado porque a gente está numas situações, às vezes, que é muito difícil que a solidariedade política aconteça. É muito complicado, muito difícil. Mas de certa forma, é uma coisa interessante, é um ponto interessante, é um aspecto interessante do pensamento dela que eu acho que a gente conseguiu falar muito bem aqui, também. Vinícius da Silva: Sim, vocês tocam em pontos importantíssimos. Eu vou comentar cronologicamente para manter uma linearidade, mas tem uma relação entre tudo isso que a gente está discutindo. Sobre a fala do João, com a sua contribuição do Žižek e da narrativa que ele trouxe, há uma coisa que eu gostaria de chamar atenção inclusive desde antes e agora que eu me lembrei disso, é sobre a manipulação do amor pelas hermenêutica e pelas éticas do cristianismo moderno, digamos assim. E aí, a gente percebe uma narrativa que vem sendo criado acerca da questão do amor que mesmo que não se pretenda enquanto tal, ela acaba anulando a possibilidade de uma aliança, da criação de uma comunidade porque existe uma gama de justificativas que vão disfarçar de amor mas que vão ser justificativas de desumanização mas que vão estar sob esse manto desse conceito polissêmico que é o amor, mas que por isso vão se perpetuar. É o que o Henrique Vieira fala no livro dele. É muito possível que amemos durante o dia e que desejemos a morte de alguém durante à noite, porque o amor é isso. A gente consegue, de fato, conciliar amor e opressão, por exemplo, mas quando partimos para uma compreensão do amor revolucionário, uma radicalidade amorosa, a gente passa a compreender que o amor e a violência não podem coexistir. Que não há como você reivindicar uma ética do amor que seja baseada numa violência simbólica e ontológica (e não 156 miolo.indd 156 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:28 estamos falando de autodefesa). Esse, por exemplo, é um dos pressupostos pelos quais eu digo que a violência não pode ser uma técnica com fim em si mesma, porque senão ela acaba se tornando uma norma e não é isso que a gente quer. O que a gente quer é que existam bons usos dessa violência. Mas que isso, ainda assim, tem que ter enquanto centro a radicalidade revolucionária de uma ética do amor. E aí, você toca num ponto importante, João, que é a questão da organização moral e da desorganização, também, social, que justamente tem a ver com o amor enquanto uma ação política. Retomo o conceito de ação política de Arendt, justamente para dizer que ação política é tudo aquilo que existe, que acontece no espaço público, em concerto, na disputa – e não irei, aqui, destrinchar essa noção, Butler faz isso. As alianças são ações políticas, as nossas relações são ações políticas. Os acordos, nossas disputas narrativas são disputas políticas porque têm a ver com toda uma coletividade. O político está na dimensão daquilo que é nosso, daquilo que é nós, também. Nesse sentido, o amor é uma ação política, porque ele tem a ver com disputa, mas ele tem a ver com disputa diferente do conceito ação política porque ele tem a ver com disputa para uma transformação social. Então, todo amor é uma ação política, mas nem toda ação política é um amor. Na verdade, nem todo amor é ação política porque, uma vez que é um conceito em disputa, não se pode falar que toda coisa é alguma coisa. Então, o que eu digo é toda teoria do amor tal como eu moldo nesse livro, é uma teoria que se movimenta para uma ação política, uma teoria política, por que tem a ver com coletividade. Coletividade é a base da mudança. E o que é essa coletividade? Essa coletividade é o lugar do encontro. E esse lugar do encontro é permeado por uma ética do cuidado, uma ética da preservação ontológica que, por exemplo, se movimenta contra essa violência contra o outro, que é o que está em voga no exemplo que João traz da mãe que mata os filhos. A violência contra o outro, dirá a Butler, nada mais é que uma violência contra si mesmo. Porque o eu só existe contra (ou melhor, ao lado) esse outro. Por isso que nós somos resultados de nossos encontros, porque o sujeito só existe no encontro. O lugar do encontro é o lugar do aparecimento desse sujeito. É por isso que essa ética do amor e as disputas e as discussões sobre amor são discussões também sobre aliança, porque têm a ver com essas disputas sempre por uma transgressão revolucionária. Qual é a graça da vida se Vinícius da Silva miolo.indd 157 157 24/03/2022 16:03:28 não houver transgressão, se não houver disputas, se não houver utopias? E essa questão da violência é também uma questão do afeto, mas não uma questão do amor. Por mais que ela se disfarce de amor, ela não é. O verdadeiro amor, além de ser indizível, ele é também revolucionário. Esse é o grande ponto. E aí, só para a gente finalizar a discussão, em relação à discussão sobre integracionismo, eu parafraseio a Helena Vieira quando ela diz que a gente precisa abdicar do nosso insaciável desejo classificatório de querer classificar, por exemplo, epistemologias de mulheres negras. E a quem insiste na narrativa de que hooks é materialista ou integracionista, eu faço um convite à leitura, eu peço que essas pessoas leiam e releiam, e compreendam e analisem e estudem o contributo intelectual de autoras como a bell hooks, Audre Lorde, Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Conceição Evaristo, que são autoras que não precisam estar sendo inseridas nessa organização classificatória. A classificação serve a quem de fato? E o que ela está disputando não é um integracionismo, o que ela está disputando é uma solidariedade política. A solidariedade política de hooks é o uso das diferenças para constituição de encontros potencializadores. Não é a constituição de hierarquias e sistemas de dominação. A solidariedade política não nega a diferença e eu não diria que ela é de fato integracionista, porque a integração, para mim, é algo que nega a diferença. O que encontramos no pensamento de hooks é a construção de um horizonte político, de um ambiente revolucionário e coletivo que faz uso dessas diferenças, tornando-as instrumentos de potência, digamos assim. Tornando-as úteis para a construção de uma relação mútua que vai, de fato, nos conduzir à transformação social. Em última análise, essa consciência radical da qual hooks e Freire falam e essa solidariedade política entre os oprimidos e também entre os opressores, para usar os termos deles, nada mais é que a constituição de alianças. Ou a aliança é para todo mundo ou ela não é para ninguém. Essa é a base dos projetos de justiça social. Winnie Bueno fala sobre isso, um projeto de justiça social ou é para todos ou não é para ninguém. Essa, de fato, é a ontologia do amanhã que a gente quer. Ou é uma ontologia que se organiza para todos nós, ou é um amanhã que se organiza para todas as pessoas... porque isso vai promover uma reorganização dessas relações... ou não é para ninguém. E aí, não há a possibilidade de discutir um novo horizonte político. Parafraseando o que a gente sempre diz no ativismo, só a luta pode 158 miolo.indd 158 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:28 mudar a vida e, de fato, é isso. Só a aliança pode ressignificar a vida. Ou, como bem salienta Paul Preciado, “é urgente inventar uma nova gramática que permita imaginar uma outra organização social das formas de vida.”79 79 PRECIADO, Um apartamento em Urano, p. 41. Vinícius da Silva miolo.indd 159 159 24/03/2022 16:03:28 Este livro “pode, finalmente, ser lido como um convite, uma provocação performativa. Ardente como um manifesto, é um chamado a pensar sobre nossas vidas e nossos tempos de maneira diferente, a ver mais além de uma versão estreita do aqui e agora, esse tempo a que tantas pessoas ao nosso redor estão decididas a se aferrar. Neste livro, a utopia tem sido uma insistência por algo mais, por algo melhor, por algo incipiente que aparece no horizonte. Ofereço este livro como um recurso para a imaginação política. Este texto pretende funcionar como uma sorte de plano de voo para um devir político coletivo. Essas páginas descreveram práticas políticas e estéticas que devem ser consideradas como modos necessários de sairmos desse espaço e desse lugar, e nos dirigirmos até algo mais rico, mais vasto, mais sensual, mais brilhante. A partir da insatisfação crítica compartida chegaremos a uma potencialidade coletiva.”80 80 MUÑOZ, Cruising Utopia, p. 189. (Tradução deste trecho direto da edição argentina por Leandro Colling) miolo.indd 160 24/03/2022 16:03:28 Pósfacio O livro começa apenas quando a leitura termina. E no limiar destes caminhos que serão produzidos pelos encontros entre o texto e a comunidade imaginada de suas leitoras(es), na soleira de infinitas e por hora inclassificáveis fusões hermenêuticas, pode ser que caibam ainda mais algumas linhas. O que quer que siga neste posfácio deve ser entendido como simples exemplo e testemunho de um pequeno conjunto dentro da multiplicidade de efeitos possíveis destas conversas sobre amor, política e vida que acontecem na temporalização própria do pensamento a partir de um conjunto de perguntas que não são apenas sobre o futuro, mas que vem (também) dele. Essa orientação ativa nossos esforços interpretativos e alimenta a todo instante a sensação de que prenunciamos algo valioso junto a esta leitura e não a este livro. Faço esta distinção sem nenhuma intenção de desqualificar o livro enquanto um objeto, mas para apontar que seria interessante tomá-lo como indicação formal a ser existencialmente preenchida a cada vez por qualquer pessoa que se disponha a pensar junto ao texto no conjunto de questões que ele assumidamente rascunha, sem pretender concluir. Não são diálogos aporéticos, mas convites, como sugere sua menção a Cruising Utopia: The Then and There of Queer Futurity de José Esteban Muñoz ou ainda - e talvez mais precisamente - um conjunto de protocolos de um exercício filosófico. Neste sentido, é preciso ainda destacar que mesmo que possamos reconhecer no trabalho de Vinícius da Silva um fio condutor desse exercício, sua coreografia é sempre plural, pluriversal, polifônica, sempre baseada na “comunidade amada” (bell hooks) que é a sua e que ele generosamente comparte conosco por meio deste escrito. Esta comunidade conflui e se distende em movimentos que poderíamos reconhecer como sendo provocados pelo feminismo negro do qual bell hooks e Patrícia Hill Collins serão aqui expressões fundamentais e, de modo geral, pelas filosofias feministas e suas intersecções com as Teorias Queer. miolo.indd 161 24/03/2022 16:03:28 Por isso a “comunidade amada” que nos guia e nos acompanha nesta leitura é, antes de tudo, possibilitada pelo compromisso ético-político e ontológico com as lutas antirracistas, anticapitalistas, antipatriarcais, de dissidentes da cishterossexualidade compulsória, contra coloniais, enfim, contrárias à necropolítica, como resume Achille Mbembe (2018). Os laços desta comunidade se atam, ao mesmo tempo, pelo compromisso com a indissociabilidade dessas frentes de reparação, o que aparece através da configuração de alianças a partir da necessidade de rearranjar, questionar e/ou destruir esquemas historicamente consolidados de distribuições desiguais de precariedades e vulnerabilidades, mas também de territórios, recursos, linguagens e visibilidade. Daí advém as múltiplas dimensões transformadoras, vivificantes e curativas do tomar parte a que nos convidam estas conversas. Eis, portanto, um livro para entristecer aos fascistas e àqueles que apostam no niilismo, a todos que procuram dissimular as estruturas de opressão numa escatologia muito questionável – e que em nada se confunde com o “fim do mundo” sobre o qual aqui se conjura. Para dizer com Gilles Deleuze, “Uma filosofia que não entristece a ninguém e não contraria ninguém, não é uma filosofia” (DELEUZE, “Nietzsche e a filosofia”, 1987, p. 87). Lembro aqui ainda que há tempos Platão reconhecia a necessária dimensão dialógica do pensamento que, mesmo quando solitário, caracteriza uma espécie de “conversa da alma consigo mesma”. (PLATÃO, Teeteto, 189e.). Desde então, a vitória da prosa filosófica de Aristóteles, a cisão entre a res cogitans e a res extensa operada pelo racionalismo cartesiano, a tentativa de redução daquilo “sobre o que não se pode falar” ao silêncio, e tantas outras cenas da epopeia da filosofia ocidental, parecem ter propagado também o esquecimento dessa suspeita em relação à possibilidade daquilo que não é palavra viva de dar conta da experiência do pensamento que, no fim, se dá sempre no mundo e com os outros – é sempre mais que um. Sua performance, por excelência, é (ou deveria ser) o bate-papo, não o monólogo. Devemos aqui entender a filosofia, portanto, enquanto resposta possível e sempre provisória à experiência radical de sermos tocades/as/os pelo mistério, pelo encantamento, traços e cacos deixados por estes cujo modo de ser não está sempre simplesmente resolvido e acabado, por essas dinâmicas da existência que interpelam incessantemente como solo fértil para o trabalho 162 miolo.indd 162 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:28 fundamental da significação, da produção de comunidades de enunciação e do cuidado com elas. E para estar à altura disso, como sugere este livro, é preciso antes desafiar os mapas da distribuição desigual das possibilidades de ser reconhecide/a/o como uma vida. Permito-me ainda comentar aqui sobre a dimensão temporalizante destes escritos a que me referi anteriormente. O pensamento a partir do futuro que embasa o programa filosófico deste livro, como diz a sua introdução, é também a tarefa de delinear a práxis do agora a partir do que ela sempre necessariamente evoca, a nossa responsabilidade para com aqueles que já foram e com aqueles que, a rigor, ainda não são. Nisto concordo com as palavras de Helena Vieira segundo as quais mais do que o apelo à esperança, o agora nos impõe uma tarefa criativa. As demandas de trabalho das filosofias emancipatórias nos becos das quais estas reflexões caminham iluminam o caráter comunitário da produção de sentido e, aqui, apostam no amor como estratégia fundamental para o necessário enfrentamento às políticas da inimizade. O reconhecimento da problematicidade dos problemas a que elas se referem aponta para questões que, por mais abstratas que sejam, não se distanciam de seu anseio por um devir-corpo. Por isso estas ideias caminham para além das fronteiras do cânone da história da filosofia ocidental e o colocam em xeque à medida que evocam memórias de resistência e de insistência que promovem descontinuidades nos horizontes de morte e de destruição fundantes do capitalismo racista e patriarcal. Este, que por toda parte propaga modelos e normas de natureza sádica, está sempre ávido pela renovação das tensões e disputas lucrativas que, nesse contexto, nunca podem ser produtivas e, portanto, minimamente democráticas. O empreendedor de si do neoliberalismo é o avesso da filosofia – e contra ele se insurgem vozes que nos convocam à descrição da relação com um presente que não se deixa encerrar ou na pura sucessão linear de instante ou no tempo cronológico do trabalho disciplinado ou no tempo perene e homogêneo do controle, mas que atualiza, declara e prepara, no agora, outros tempos. Por isso essas conversas são, antes de qualquer coisa, reivindicações urgentes por justiça feitas por jovens negres/as/os, por pessoas LGBTI+, por uma multidão que nos convoca e encoraja mesmo (e principalmente) quando o presente parece não nos guardar nada de belo ou nada de nada. Ao pergunVinícius da Silva miolo.indd 163 163 24/03/2022 16:03:28 tarmos pelo amanhã e ao reconhecermo-nos como parte de sonhos e ações semeados em outros tempos, como faz Angie Barbosa ao evocar neste livro a transcestralidade, temporalizamos. Somente no engajamento com esta tarefa ainda faz sentido falar em passado, presente ou futuro. Por isso “para onde?” é uma pergunta crucial e derradeira. Ela nos permite olhar para quem somos sem as ilusões do realismo ingênuo, sem as falácias do positivismo e sem nos reduzirmos a simples compositoras/es de elegias ao inevitável – o que torna qualquer justiça impossível e impensável. Mesmo que ele nunca venha a existir de fato e empiricamente, por ser da ordem do imprevisível e do imponderável, o futuro já é em nós, em alguma medida. Nas palavras de Jacques Derrida: Justiça alguma – não digamos lei alguma, e mais uma vez lembro que não falamos aqui do direito – parece possível ou pensável sem o princípio de alguma responsabilidade, para além de todo presente vivo, nisto que desajunta o presente vivo, diante dos fantasmas daqueles que já estão mortos ou que ainda não nasceram. (...) Sem essa não-contemporaneidade a si do presente vivo, sem isto que secretamente o desajusta, sem essa responsabilidade e respeito pela justiça com relação a esses que não estão presentes, que não estão mais ou ainda não estão presentes e vivos, que sentido teria formular-se a pergunta “onde?”, “onde amanhã?”. (DERRIDA, J, Espectros de Marx, 1994, p. 12) O convite das conversas que compõem esse livro é para que essa não-contemporaneidade a si do presente vivo seja sempre a seguinte inscrição, a nós dirigida e por nós repetida: “Por vocês, nós tentamos. E tentaríamos de novo, quantas vezes for possível. Nenhuma injustiça passou sem revolta.”. Roberta Ribeiro Cassiano Filósofa e professora do IFRJ 164 miolo.indd 164 FRAGMENTOS DO PORVIR 24/03/2022 16:03:28 SOBRE O AUTOR Vinícius da Silva é artista, pesquisador, educador, técnico em Controle Ambiental pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ), Campus Nilópolis. Graduando em Licenciatura em Educação Artística com habilitação em Artes Plásticas na Escola de Belas Artes (EBA) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Durante o curso técnico, foi bolsista de Iniciação Científica em Filosofia Política (2017-2018) e Ciências Sociais Aplicadas (2019-2020). Enquanto pesquisador, dedica-se a estudar o pensamento de bell hooks, com ênfase em crítica cultural, ética do amor e teoria feminista; já tendo traduzido obras da autora para a Editora miolo.indd 165 24/03/2022 16:03:28 Elefante no Brasil. Enquanto artista e educador, tem se dedicado ao estudo dos processos criativos de pessoas trans/travestis e negras, de modo a pensar o papel da arte (e sua abolição) no fim do mundo como nos foi dado a conhecer. Desde 2020, Vinícius apresenta o Podcast Outro Amanhã, ministra cursos livres sobre o pensamento de bell hooks, Teoria Queer, entre outros temas de pesquisa; Atualmente, realiza residência artística na Galeria Refresco (ciclo 3, 2022.1). Possui experiência e interesse de pesquisa nas seguintes áreas: Filosofia Política, Teoria Feminista Negra, Arte Contemporânea, Processos de Criação, Pensamento e Imaginação Negro Radical, Pensamento Travesti e Artes Plásticas. Fragmentos do porvir é seu primeiro livro, publicado pela Editora Ape’Ku. Foto (em anexo): Michelle Mariane miolo.indd 166 24/03/2022 16:03:28 miolo.indd 167 24/03/2022 16:03:28 Pólen Soft 80g/m2 Impresso no Brasil Printed in Brazil miolo.indd 168 24/03/2022 16:03:28