AS TESSITURAS INVISÍVEIS DO VERBO
THE INVISIBLE WEFTS OF THE VERB
Cleomar Rocha*
Carina Ochi Flexor**
Elias Bitencourt***
RESUMO: O texto aborda a relação texto e imagem em código digital,
observando seu estado de latência, quando virtualizado nos códigos
binários. Avança ao considerar que o texto mantém sua estrutura
linear, tanto de escrita quanto de leitura, ainda que em versões
múltiplas do hipertexto. Responde a algumas indagações sobre a
literatura digital, perguntando se há, de fato, um gênero novo ou
variações da mesma matriz, em outro suporte.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura digital. Texto. Imagem. Hipertexto.
Interface.
ABSTRACT: This text discusses the relationship between text and
image mediated by digital code. It observes its condition of latency
when virtualized in binary code. Argues that the text maintains its
linear structure, both written and read, even in multiple hypertext
versions. Answer some questions about digital literature, asking if there
is a new genre or variations of the same array in another medium.
KEYWORDS: Digtal literature. Text. Image. Hypertext. Interface
*
Cleomar Rocha é Doutor em Comunicação e Cultura contemporâneas,
professor adjunto da Universidade Federal de Goiás (UFG). Email:
[email protected]
**
Carina Ochi Flexor é Mestre em Arte e Cultura Visual pela Faculdade de
Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás (UFG) e professora adjunta da Universidade Salvador. Email:
[email protected].
***
Elias Bitencourt é especialista em computação gráfica e professor assistente na
Universidade do Estado da Bahia - UNEB. Email:
[email protected]
AS TESSITURAS INVISÍVEIS DO VERBO
INTRODUÇÃO
O teto da Capela Sistina, no Vaticano, pode ser tido como um caso singular entre aspectos religiosos e a cultura ocidental como um todo, ainda
que não seja exatamente assim, de fato. De um lado, a supremacia do verbo frente à imagem, compreendida primordialmente a partir da Religião
e na História, alastrando-se na cultura como um todo. De outro, o acesso
direto e imediato das representações da imagem, em um templo da Religião e da Arte. Se o verbo se fez carne, e o verbo era Deus, certamente à
Sua imagem e semelhança saíram as letras, e não os homens. Ainda em
textos bíblicos há de chamar à causa o episódio de Moisés em defesa dos
Dez Mandamentos, elementos verbais, em oposição ao bezerro de ouro,
imagem. Ou ainda o fato de Jesus ter sido concebido por um anúncio de
um anjo, verbo. Tais elementos, junto a outras tantas passagens, talvez indiquem a razão de algumas religiões serem absoluta e totalmente iconoclastas, assumindo os escritos sagrados, e somente eles, como o verdadeiro
símbolo da presença do Divino na terra. Também é iconoclasta a História,
que alinha seu surgimento à escrita, deixando este legado como cultura.
Entre tensões e alianças, o verbo grafado e a imagem caminharam juntos, o primeiro derivando da segunda, sendo ele mesmo uma imagem. No
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período contemporâneo, com o design de tipos, a característica visual da
palavra grafada toma ares de maior relevância, constituindo importantes
elementos dos modos de apresentação do enunciado, a enunciação verbal.
Mas é, certamente, na tecnologia digital que texto e imagem se imbricam,
tornados um único e só código, o binário, quando texto e imagem, dormindo, se sonham uno. Em outras palavras, o código digital é, de uma única
vez, o elemento que encerra virtualmente texto e imagem, e ainda o som.
Os três elementos que configuram as matrizes das linguagens repousam,
virtualmente, na codificação que os une, zeros e uns.
É neste endereçamento, de unidade e oposição, que este texto se inspira, na
quase novelística cena de articulação entre texto e imagem, em um capítulo
que, senão novo, certamente aponta para uma relação agora triangular: a inserção da tecnologia digital. A construção da narrativa e os modos de apresentação são o eixo de observação, ainda que por vezes os interesses se ampliem.
1. A PRIMAZIA DO VERBO
A cultura não cabe na palavra que a nomeia. Mas não há um correlato
em outra linguagem, ainda que não haja correlatos de qualquer termo na
forma de imagem, tampouco de imagem na forma de texto. O endereçamento semântico é simbólico, pela natureza do signo verbal. O texto pode
descrever a imagem, mas jamais será uma tradução. Igualmente a imagem
não traduz o texto. Sempre haverá algo que escapa a um e a outro, quando
de suas vãs tentativas. Se em um contexto geral, amplo e pouco sensato, o
texto é mais objetivo que a imagem, talvez devêssemos tirar a prova colocando, lado a lado, um pictograma que identifica um sanitário masculino
e um poema de Manoel de Barros, provando que a imagem pode ser mais
objetiva sim, inclusive pelo reconhecimento em várias culturas, diferentemente do texto. Uma outra falácia é dizer que a imagem não tem gramática mas o texto sim, ou que uma imagem vale mais que mil palavras.
No primeiro caso, só em língua portuguesa temos várias gramáticas, e não
apenas uma. Nos demais países de língua portuguesa isso se repete. O que
nos leva a considerar que a linguagem verbal possui milhares de gramá-
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ticas e não apenas uma. E no mínimo de duas vertentes: a normativa e a
gerativa. E se assim o é, a organização sintática e morfológica, indicadoras
da constituição e organização tipológica das línguas, também se verifica na
imagem, ainda que com ordenações de comunidades visuais mais amplas
e gerais que as comunidades linguísticas. No segundo caso, basta apontar
que a frase é verbal, nunca apresentada em forma de imagem. Usa-se a
linguagem verbal para dizer se sua limitação.
O texto é uma estrutura sígnica distinta da imagem. Ambas as linguagens nos afetam diferentemente, impactam nosso corpo e mente de modos
distintos. E se o verbo nos alcança pelos ouvidos, pelos olhos, pelo tato, as
imagens, como diria Merleau-Ponty (1999), afagam nossa percepção tátil,
olfativa, háptica. A percepção não é encerrada pela sensação, mas constituída a partir dela, em complexos modos de reconhecer a própria sensação, entendida como impacto físico sobre nosso corpo próprio, via órgãos
sensórios. E se a linguagem não é definida pelas sensações ou percepções,
mas pela intelecção dos símbolos ordenados e seus modos de repercutirem
sentidos, o código digital se nutre desta mesma noção, ao permanecer fora
da categoria perceptiva, mas presente virtualmente.
Do mesmo modo que pigmentos e aglutinantes são organizados para
formarem texto e imagem, o código digital atualiza mensagens verbais e
imagéticas. Ainda que ele não seja visível como os primeiros, seu processamento resulta na atualização dos dados, tornando-os perceptíveis nas e
pelas interfaces computacionais. O análogo, então, de pigmentos e aglutinantes, são os pixels, categorizados no espectro visível como grafemas
e cromemas, aos moldes dos primeiros. O código binário, neste sentido,
não encontra par na história, sendo um elemento novo, processado por
aplicações, que também são códigos.
As linguagens de programação, estruturadoras do código binário, combinam elementos matemáticos em instruções verbais, ainda que em um
vocabulário específico. Ainda assim, são parâmetros compreendidos por
morfologia, sintaxe e léxico verbais.
Ao formalizar instruções que atualizam informações não apenas verbais, o próprio verbo digital, o código, se multiplica, fazendo-se gerador
de novos signos, em outras linguagens.Tal poder ou característica tem sido
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identificada como linguagem própria, chamada híbrida, líquida, misturada, etc. Será preciso ver, entretanto, que a linguagem do código não se mistura com outras linguagens, mas se traduz (JHONSON, 2001) pelas interfaces, em um exercício intersemiótico. Identificar a linguagem do código
como híbrida significa desconhecer o papel das interfaces computacionais.
Lev Manovich (2008) defende que as propriedades dos objetos digitais
são atribuídas pelo software, assim, se o objeto é a narrativa em um app,
também as propriedades desta e a linguagem através da qual se expressa,
inclusive, é atribuída pelo código e seus arranjos. O que se tem, neste encaminhamento, é uma nova variante verbal, capaz de suscitar nas interfaces novas instruções sígnicas, mantendo à interface seu papel de tradutor.
2. A EXPECTATIVA DA ATUALIZAÇÃO
Ao iniciar a leitura de O Primo Basílio, nota-se que Eça de Queiroz descreve detalhadamente o cenário onde a trama se desenvolverá. Das sutilezas da luz aos detalhes da flora, o autor desenha nas mentes dos leitores,
formando imagens. Calvino nomina tais imagens de imaginação visiva
(CALVINO, 1990). As instruções descritivas do código remontam estas
imagens, que não são mais constituídas nas mentes, mas nas interfaces gráficas. O locus da atualização dos dados é ainda o sistema computacional,
usando para tal as interfaces, sejam elas físicas, perceptivas ou cognitivas
(ROCHA, 2009). Os signos que impactam nossos órgãos sensórios são
visuais, sonoros e verbais, tão misturados quanto uma peça de teatro ou
um filme - sons, fala e imagens.
Se compreendemos o mundo a partir do que ele se nos apresenta, compondo nossas experiências, a experiência do mundo é constituída pela
percepção que temos dele, e também pela intelecção, conhecimento que
se tem sem a mediação perceptiva, ainda que se dependa dela para se alcançar o córtex neuronal (MERLEAU-PONTY, 1999). O código digital
não é uma compreensão tida a partir da percepção, mas da intelecção.
Pressentir as informações embrionárias nos códigos é a perspectiva do
virtual. Reconhecer a existência de informações visuais, sonoras e mes-
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mo verbais em um arquivo, diz desta antecipação ou desejo de atualização
que, intelectivamente, construímos. Há, aí, uma construção visual, como
nova modalidade de imaginação. Se o texto conduz a uma imaginação
visiva, talvez o código use deste mesmo expediente, ainda que não necessariamente conduza a imagens descritas pelo texto. Antes, a imaginação
sustenta um devir, um estado de gravidez que não revela inteiramente sua
constituição sígnica. A visibilidade do código é de outra ordem, ainda que
se valha da mesma estratégia de imputar na mente o desejo de atualização,
sua antecipação. Trata-se do reconhecimento do virtual tecnológico, informações ainda latentes que buscam sua solução no atual (LEVY, 1996).
A visibilidade aqui é uma expectativa, a expectativa de atualização realizada pelas interfaces computacionais, que por sua vez impactam nossos
órgãos sensórios com múltiplas informações, multimodais, de várias matrizes de linguagem.
A ardente expectativa da criação aguarda a manifestação do código, a
atualização das informações, crendo não haver mediação nem do código,
nem das interfaces, mas apenas das informações mesmas. Essa expectativa,
então, é carregada pelo meio, medium, mídia, que parece encerrar e absorver as promessas do código. Talvez por isso haja tantas pessoas confundem
código, mídia e suporte. Pode-se distingui-los facilmente observando que
suporte é elemento material, mídia é meio comunicacional faz deslocar
o código de um ponto a outro e o código é signo. O papel é o suporte do
jornal que traz as notícias grafadas.
Esta busca por amalgamar suporte, mídia e código remonta a própria
experiência com o mundo, que é una. Ao ler um romance, sons e imagens são construídos mentalmente – os significantes – gerando processos semânticos – os significados – para a intelecção. Estas construções
mentais resultam da experiência com o mundo, que não se decompõe em
dimensões ou tempos, mas é una. Informação não se equipara a experiência, ainda que a primeira tente reconstitui, fixar em código, a última. A
premência do modelo da experiência é que impele o leitor a constituição
da experiência sensória, criando imagens e sons. O modelo de leitura do
código digital distingue-se, neste caso, por não resultar em imaginação
visiva, mas na expectativa da visibilidade, da atualização.
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3. A MÚLTIPLA DIMENSÃO DO VERBO
Da violência do traço numa tabuleta de argila à arbitrariedade do signo verbal, muita história se passou sem que, contudo, fossem borradas
as reminiscências que conferiram ao verbo grafado um notado lugar de
privilégio no campo das artes, religião, ciências e tantos outros territórios
de subjetividades e subjetivações. Da ideia da escrita como herdeira da
fala em Aristóteles, ou como substitutivo, para o espírito, da palavra falada (SAUSSURE, 1996: 37) passando pela crítica pós-estruturalista Derridiana, que reconhece no referido sistema a manutenção dos princípios
logocêntricos que estruturam a metafísica ocidental, o verbo permaneceu
entre os povos gerindo processos econômicos, legitimando ideologias e,
influenciado os modos de ver e registrar informações nas formações culturais que sucedem a cultura escrita.
Os princípios da arbitrariedade e da linearidade do signo sistematizados por Saussure transpõem a dimensão do grafema, uma vez que também
são absorvidos cognitiva e subjetivamente nos processos de alfabetização
e letramento, replicando-se na poiesis dos suportes de escrita e leitura –
tome por referência a linearidade presente na organização e forma do livro,
por exemplo – ou nos processos de recepção que envolvem o aprendizado
da leitura. Bem verdade que, apesar das resistências iconoclastas historicamente associadas às religiões do livro, a matriz visual da linguagem
(SANTAELLA, 2005) foi aos poucos encontrando espaço junto ao texto,
ainda que a este fosse atribuído os papeis de fixação ou complemento de
sentido como, propostos por Barthes (1990) nas funções de ancoragem e
relais respectivamente. Neste sentido, a exemplo do aparecimento do livro
ilustrado, das enciclopédias e posteriores mídias massivas impressas (jornal e revista) texto e da imagem são paulatinamente incorporados ao ato de
ler, ampliando-o para além do ato de decifrar letras (SANTAELLA, 2013).
Por maiores que tenham sido os avanços nos imbricamentos das diferentes matrizes de linguagem na construção das narrativas, entretanto, ao
menos no campo literário, verifica-se um pronunciado pendor para uma
primazia do verbo – e das lógicas e processos de recepção neles implicados – em relação à sonora e visual. Seja na manutenção dos princípios da
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linearidade ou da própria tendência da narrativa ao uso de ferramentas de
estilo para a produção de visibilidade (CALVINO, 1990) e envolvimento
emocional para com os leitores modelo do texto, o verbo definitivamente
ocupou notado lugar de centralidade no âmbito das definições, estudos e
entendimentos sobre o campo da leitura, da língua e da literatura.
Mesmo na virada cultural provocada pelo aparecimento da rede mundial de computadores – e seu respectivo ecossistema de trocas simbólicas
–, o verbo, em tempos de bit, foi anfitrião nas “primeiras” narrativas digitais. Seja na metáfora “página” para a identificação dos então novos espaços na rede ou na escolha do hipertexto como principal porta de acesso e
navegação informacional, o verbal imprimiu a marca da tradição escrita
mesmo em processos que previam deslocamentos informacionais hiperlincados. A informação nos primeiros anos da rede era multi, mas eminentemente linear.
Contudo, diferente da natureza dos demais suportes sob os quais o
verbo se fixou, a linguagem computacional enquanto interface humano-computador, permitiu não apenas um tratamento universal às diferentes
matrizes de linguagem (SANTAELLA, 2005) a partir de um processo de
compressão binário, como conferiu ao grafema, a mobilidade e volatilidade
presentes na linguagem. Tal qual o som e a imagem, o verbo digitalizado
também é devir-linguagem e passa a operar para com as demais matrizes, diferentes conjecturas em diferentes níveis hierárquicos, inclusive.
Na era dos dispositivos informáticos, a interface gráfica figura enquanto relevante, se não a principal, janela de acesso informacional. Fato este
que aponta para possíveis reconfigurações da primazia verbal no âmbito
informacional, abrindo espaço para reflexões acerca do lugar dos gêneros
de narrativa que se definiram a partir da escrita em contextos de maior
pluralidade do signo.
Neste sentido, a inserção dos dispositivos de conexão contínua –tabletse
smartphones –vem a contribuir para uma hipercomplexificação dessa dita
ecologia pluralista da comunicação, uma vez que os referidos gadgets “não
são mais simplesmente dispositivos que permitem a comunicação oral,
mas sim um sistema de comunicação multimodal, multimídia e portátil,
um sistema de comunicação ubíqua para leitores ubíquos” (SANTAELLA,
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2013). Ao permitir ao usuário a mobilidade física em concomitância à informacional, as ferramentas ubíquas de comunicação amplificam a narratividade a partir da incorporação de um repertório elementos inteiramente
novos à tradição das narrativas escritas, redefinindo as experiências de
leitura e recepção para níveis mais ampliados de envolvimento emocional.
Notadamente reconhecidos pela propriedade multitarefa, os dispositivos
ubíquos, enquanto suporte para acomodação das narrativas verbovocovisuais, permitem, através das suas interfaces cognitivas por exemplo, a incorporação do gesto do usuário, movimento ocular, localização geográfica
e eventualmente dados de biofeedback enquanto elementos de narrativa a
serviço da experiência de leitura. Tais possibilidades se somam à tendência
para convergência que os referidos dispositivos carregam. Diz-se isso pois
a continuidade da conexão para com a rede, a potência para a hipermobilidade (física e informacional) e a capacidade de realizar múltiplas tarefas
conferem a esses dispositivos o status de substitutivo (temporário) portátil
de cada uma das ferramentas responsáveis para a realização isolada de tarefa, como fazer fotos, acessar redes sociais, digitar um texto, realizar desenhos e anotações, preparar uma apresentação multimídia ou ler um livro.
Se Ulisses tomou a linguagem/narrativa por substituto da prova material tangível das aventuras em sua odisséia, também os dispositivos ubíquos otimizam a bagagem dos seus usuários, permitindo que estes estejam libertos, temporariamente, no percurso, das especificidades de cada
uma das ferramentas para com as quais o gadget se mimetiza. Contudo,
a pluralidade das referidas ferramentas, como dito, não necessariamente
prescindem e substituem por completo os objetos/ferramenta que aludem.
Do contrário, permitem uma nova significação/contextualização dos processos de uso dessas ferramentas, criando um ecossistema de mídias e linguagens fundado a partir de uma infra-estrutura informacional também
múltipla, que acaba por demandar um diálogo mais fluido e conectado
entre os diferentes pontos de acesso. Dito de outra forma, a cultura de
uso do dispositivos ubíquos requer uma relação convergente para com as
demais ferramentas que integram a plataforma da qual fazem parte. Uma
tablet não substitui uma câmara DSLR, um laptop, um livro ou mesmo a
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TV, muito embora seja possível captar imagens, realizar leituras e assistir
a programação de emissoras onthe go andon time e sincronizá-las para
com os demais pontos de acesso.
Neste sentido, no campo das narrativas literárias, cabe reconhecer que
os supracitados dispositivos, quando tomados por plataforma de leitura,
trazem novas potências de produção de narratividade ao passo que também demandam estratégias de interconexão dessas narrativas para com
as demais mídias e linguagens que compõem o ecossistema plural da comunicação pós-massiva em que se insere. De outra forma, não se trata
de conceber processos de tradução intersemióticas (PLAZA, 2003) entre
diferentes mídias, mas do contrário, promover estratégias de transmidiastorytelling (JENKINS, 2007). Nestas experiências de narratividade, como
afirma Scolari (2009), “thestrategygoesfurtheranddevelops a multimodal
narrative world expressed in different media andlanguages” (SCOLARI,
2009: 4), promovendo o que Jenkins (2007) define por impulso enciclopédico por parte dos escritores e leitores, que passam a ser atraídos pelo
domínio do que pode ser conhecido em um mundo ficcional em constante
atualização que está acima do alcance destes.
Em outras palavras, uma vez que as narrativas transmídia não se baseiam em personagens individuais mas em mundos ficcionais complexos
– capazes de conter múltiplos personagens inter-relacionados e suas histórias –, as experiências de leitura se expandem para além dos dispositivos
que a acomodam, estabelecendo pontes de sentido entre os dispositivos
que convergem e o cotidiano de cada realidade de leitor em particular. Tais
perspectivas conferem, segundo Jenkins (2007) um prazer diferenciado em
relação às abordagens das narrativas tradicionais em que a própria mídia
ou a obra em si, fornecem os dados necessários para a compreensão do
sentido particular de cada narrativa.
Desse modo, tome por exemplo a novela The SilentHistory (2012) cuja
narrativa, a partir de um texto base, se desenvolve e complementa por meio
de testemonials realizados por usuários espalhados na rede e informações
adicionais são destravadas quando o dispositivo alcança uma determinada
área geolocalizada (FIGURA 1). Ao se posicionar em uma rua específica, ou
adentrar uma construção predefinida, o sujeito é convocado por meio de
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lembretes enviados via pushnotifications a acessar as informações referentes àquela localidade (re)contextualizada na narrativa. Assim, ao transformar uma praça pública do mundo natural em um cenário fictício onde se
encontram pistas sobre a história dos protagonistas na narrativa escrita, o
software reedita as propriedades do objeto livro, permitindo que não apenas
os modos de acesso ao texto sejam atualizados (dirigir-se a um endereço no
lugar de uma simples virada de página) como também as experiências sensoriais envolvidas no ato da recepção. Experiências essas que tomam esses
territórios informacionais (LEMOS, 2007) como espaços/fluxos de narrativa
imbricados, potencializando as imaginações visivas (CALVINO, 1990) e a
multimodalização do ato de ler (SANTAELLA, 2013).
FIGURA 1 - Telas do livro aplicativo SilentHistory para dispositivos iOS. Na tela de abertura
podem ser vistos os diagramas dos episódios que são lançados semanalmente e as
respectivas localizações das informações adicionais, pistas e testemonialsno mapa.
A narrativa se desenvolve a partir de um texto principal que se desvela e desdobra a
partir do deslocamento físico do leitor. O aplicativo permite que a leitura se inicie, por
exemplo,em uma tablet e continue no smartphone, de forma integrada e contínua.
Muito embora se reconheça que a digitalização permite novas modalidades de combinação e interlocução entre as diferentes matrizes que compõem
a linguagem e subsequente multimodalização da leitura (SANTAELLA, 2005;
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SANTAELLA, 2013), é comum verificar composições que, quando não apenas
repetem as tradicionais relações texto-imagem, imagem-som, texto-som presentes na cultura do livro e das mídias de massa, operam processos de amplificação da experiência de leitura a partir de estratégias que pluralizam os pontos
de entrada na narrativa restritos à própria mídia que a suporta. Existem, ainda,
as abordagens que se apóiam pela via da tradução intersemiótica entre as três
matrizes de linguagem, fazendo-as conviver na narrativa, sob o argumento
do enriquecimento da mesma. Todavia, nestes casos, há de se considerar que
a multimodalização do ato de ler ocorre em contexto de convivência entre as
diferentes mídias incorporadas na narrativa e as suas respectivas possibilidades de articulação entre matrizes de linguagem que expandem a obra, na
obra, embora não sejam capazes de amplificar a obra fazendo-a convergir para
os diferentes suportes midiáticos que compõem o ecossistema pluralista da
comunicação pós-massiva, nem tampouco dialogar com as infraestruturas
que compõem a cibercultura que nos fala Lemos (2005).
FIGURA 2. Telas do livro-aplicativo The Waste Land do T. S. Eliot. Na adaptação o leitor pode
navegar por entre as notas do próprio autor a partir do rotacionamento do dispositivo, ler a
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narrativa a partir dos manuscritos de Eliot, ver uma versão do texto em peça teatral filmada
e navegar por entre os atos desta através das linhas e palavras da narrativa original. O livro
possui ainda vídeos com comentários de críticos literários sobre trechos da obra a serem
evocados durante a leitura e interpretações orais na fala de atores e do próprio T.S. Eliot.
De outro modo, diferente das propriedades que o código confere às
matrizes verbais, sonoras e visuais no appbook The Waste Land do T.
S. Eliot (FIGURA 2) adaptação da obra literária para tablets , o livrosoftwareSilentHistorypossui atributos que atualizam o eixo tempo-espaço
da narrativa em experiências pervasivas mais complexas. Neste último, o
atributo do verbo-software é ao mesmo tempo ponte para imersão para o
usuário e vetor de reterritorialização (LEMOS, 2006) do contexto em que
se encontra durante a leitura, expandindo o caráter intelectivo-reflexivo
tradicional da experiência literária para condições mais amplificadas de
produção de narratividade.
DEVIRES E INOVAÇÃO
Littera, termo latino para letra de onde deriva literatura, talvez não mais
dê conta das urdiduras da criação em bits, na complexa teia de atualizações narrativas que ultrapassam a imagem, o verbo e o som, incorporando a imersão, a agência e a transformação (MURRAY, 2003) nos sistemas
interativos que compõem o cenário contemporâneo da cultura. De outro
lado, considerando que o código é formado por caracteres, talvez haja, finalmente, a supremacia absoluta do verbo, que faz brotar todas as outras
linguagens imbricadas, em um novo modo de lidar com os signos. Moles
(1978) talvez tenha de rever sua tipologia de dimensões, frente a multiplicidade que o devir espelha.
E se espelha, é da própria cultura que ele, o código, pega de empréstimo o lastro, compondo novos vetores para a produção verbovocovisual
interativa. Estes novos modos de dizer, de ler e de grafar, colocam o tempo
em suspeição, até que se dê o distanciamento necessário para se vislumbrar
talvez o que virá a ser uma nova modalidade arte, um novo formato, em
que a tessitura não mais seja de litteris, mas de códigos binários que atu-
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alizam estruturas de dados multimodais. A literatura dá origem, com as
artes visuais, a música, o teatro e o cinema, a um novo capítulo da poética,
uma tessitura invisível do verbo, atualizado visual, sonora e verbalmente,
em novos modos de conceber a experiência de leitura.
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Recebido em Junho de 2013
Aceito em Julho de 2013
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