P O I É S I S – REVISTA DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
– MESTRADO – UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA
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CATARINA
UNISUL, Tubarão, v. 5, n.9, p. 260-279, Jan./Jun. 2012.
By Zumblick
O NASCIMENTO DA FICÇÃO1
Raquel Schefer2
RESUMO
Mueda, Memória e Massacre (1979), de Ruy Guerra, primeira longa-metragem de ficção de
Moçambique independente, produzida pelo INC, o Instituto Nacional de Cinema moçambicano,
aborda um acontecimento ligado à história da descolonização, o Massacre de Mueda (1960).
Apesar da classificação genérica do filme, a estabilização cinematográfica e histórica da memória
do Massacre de Mueda advém do registo documental de uma reconstituição teatral popular do
acontecimento. A construção diegética e formal da obra de Ruy Guerra releva de uma complexa
concepção intertextual da narrativa histórica e do objecto fílmico enquanto forma de
representação da história, concepção que permite questionar a validade das categorias operativas
de documentário e de ficção e que outorga novos e inéditos sentidos aos procedimentos
cinematográficos de reconstituição. Coincide o nascimento de um país com o nascimento da sua
imagem cinematográfica ou, dito de outra forma, com o nascimento das suas ficções
cinematográficas?
Palavras-chave: Cinema. Descolonização. Moçambique. Ruy Guerra. Reconstituição, memória e
história, formas de representação histórica.
EL NACIMIENTO DE LA FICCIÓN
RESUMEN
Mueda, Memoria y Masacre (1979), de Ruy Guerra, primer largometraje de Mozambique
independiente, producido por el INC, el Instituto Nacional de Cine mozambiqueño, aborda un
acontecimiento ligado a la historia de la descolonización, la Masacre de Mueda. A pesar de la
clasificación genérica de la película, la estabilización cinematográfica e histórica de la memoria del
la Masacre de Mueda adviene del registro documental de una reconstitución teatral popular del
acontecimiento. La construcción diegética y formal de la obra de Ruy Guerra resulta de una
compleja concepción intertextual de la narrativa histórica y del objeto fílmico como forma de
representación de la historia, concepción que permite cuestionar la validad de las categorías
operativas de documental y ficción y que otorga nuevos e inéditos sentidos a los procedimientos
cinematográficos de reconstitución. Coincide el nacimiento de un país con el nacimiento de su
imagen cinematográfica o, dicho de otra forma, con el nacimiento de sus ficciones
cinematográficas?
1
Comunicação apresentada no VIII Congresso Ibérico de Estudos Africanos, que decorreu em Madrid de 14 a
16 de Junho de 2012.
2
Doutoranda em Estudos Cinematográficos na Universidade de la Sorbonne Nouvelle - Paris 3, bolseira da
FCT/MCT, realizadora e curadora independente. Publicou o livro “El Autorretrato en el Documental” em 2008,
na Argentina, país onde em 2006 concluiu um mestrado em Cinema Documental na Universidad del Cine de
Buenos Aires. Licenciada em Ciências da Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa, a autora publica com
regularidade em revistas e edições internacionais. Endereço postal: 74, Rue Marcadet, 75018 Paris, França.
Endereço electrónico:
[email protected]. Site: http://www.raquelschefer.com/
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Palabras-clave: Cine. Descolonización. Mozambique. Ruy Guerra. Reconstitución, memoria e
historia, formas de representación histórica.
INTRODUÇÃO
Mueda, Memória e Massacre (1979), filme de Ruy Guerra, um dos mais notáveis
realizadores do Cinema Novo, nascido em Moçambique em 1931, é considerado a
primeira longa-metragem de Moçambique independente. Produzido pelo INC, o Instituto
Nacional de Cinema moçambicano, o actual INAC (Instituto Nacional de Audiovisual e
Cinema), o filme aborda um dos principais acontecimentos da história da descolonização
moçambicana, o Massacre de Mueda, que teve lugar em 1960, em Mueda, no Norte do
país. A construção narrativa e as opções formais do filme de Ruy Guerra, articulando o
registo documental de uma encenação teatral popular do massacre com uma série de
entrevistas feitas a sobreviventes e outras camadas narrativas de ambíguo estatuto
genérico, relevam de uma complexa concepção intertextual da narrativa histórica e do
objecto fílmico enquanto forma de representação e de pensamento da história.
Nesta “ficção de memória”, retomando um conceito de Jacques Rancière
(RANCIÈRE, 2001), a relação entre a história e a memória é tratada cinematograficamente
através da combinação do registo de uma reconstituição dramática do episódio histórico
com a recolha de testemunhos de sobreviventes e de participantes no massacre. O filme
caracteriza-se por uma intrincada articulação entre a história, o presente enunciativo, a
memória e a sua mise en scène, articulação que destabiliza as categorias de
documentário e de ficção, remetendo para uma política da representação que seria
indissociável da emergência de novos modelos de sensibilidade e, simultaneamente, de
uma afirmação do cinema como forma de pensamento da história e de fixação da
memória.
O nascimento de Moçambique como nação não só coincidiria, aqui,
parafraseando Jean-Luc Godard (GODARD, 1979) a propósito das suas passagens por
Moçambique no final da década de 70, com o nascimento da sua imagem
cinematográfica, mas também com o nascimento das suas ficções cinematográficas. A
análise de Mueda, Memória e Massacre conduzir-nos-á indirectamente a uma
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arqueologia da ficção no cinema moçambicano, arqueologia não exaustiva que emergirá
quer de um breve estudo do contexto de produção do filme, quer da sua inscrição no
contexto mais vasto da história do cinema moçambicano, no seu pré-cinema e no cinema
posterior ao período revolucionário, períodos em que o género documental seria sempre
dominante.
Reconstituição, documentário político, ficção histórica, filme etnográfico, todos
estes géneros são convocados, num primeiro momento, por Mueda, Memória e
Massacre, filme que é geralmente considerado, como já referido, como a primeira longametragem de ficção moçambicana. Apesar dessa catalogação, Mueda, Memória e
Massacre leva a cabo uma verdadeira síntese entre géneros cinematográficos,
transcendendo qualquer tentativa de classificação genérica e abrindo a própria categoria
de obra cinematográfica, enquanto forma cultural, a novas dimensões, onde se articulam
o cinema, o teatro, os modos de expressão da memória colectiva e o projecto político
moçambicano, em que o cinema desempenhava um papel preponderante.
Comecemos por uma breve introdução histórica. No dia 16 de Junho de 1960,
quatro anos antes da data oficial de início da Guerra de Libertação moçambicana3, tem
lugar o Massacre de Mueda, em Mueda, no Norte do país, um dos principais episódios sobretudo, a nível simbólico - de resistência contra o colonialismo português em
Moçambique do século XX. Nessa data, a administração colonial portuguesa reprimiu
uma manifestação pacífica e um tanto ou quanto ingénua em prol da melhoria das
condições laborais e da independência do país, tendo assassinado, de acordo com a
história oficial moçambicana, mais de seiscentas pessoas. As circunstâncias que rodearam
o massacre permanecem até hoje ambíguas, particularmente no que respeita ao número
de vítimas4. O Massacre de Mueda contribuiria consideravelmente para a politização do
povo Maconde, que protagonizara a última sublevação contra o domínio colonial
português, em 1917, e influenciaria o curso da campanha militar da FRELIMO5. De facto,
as primeiras Zonas Libertadas forma criadas, precisamente, no Planalto Maconde. A
propósito das Zonas Libertadas, onde foram filmados vários documentários durante a
3
Recordemos que a Guerra de Libertação começara em 1961 em Angola, na Guiné-Bissau e em Cabo Verde.
Tão-somente quatorze vítimas segundo o relatório oficial português, elaborado em 1960. De acordo com a
historiografia moçambicana contemporânea, o número de mortos seria, no entanto, inferior ao indicado pela
FRELIMO, oscilando entre as 200 e as 300 vítimas.
5
A Frente de Libertação de Moçambique, fundada por Eduardo Mondlane, na Tanzânia, em 1962.
4
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Guerra de Libertação, e da sua importância capital no contexto do projecto políticocultural da FRELIMO, permito-me citar José Luís Cabaço:
A guerrilha chamava “zonas libertadas” às áreas territoriais onde a
administração se fazia já sob o seu controlo. Isso não impedia que
pudessem haver postos militares portugueses na região, mas significava
que a vida das populações era governada pela FRELIMO. O conceito (...)
era, para a direcção da FRELIMO, mais profundo porque englobava
também a ideia de que era nessas zonas que se travava um combate
pelas transformações socio-económicas da vida das populações.
(CABAÇO, 2010, p. 274).
Na linha do pensamento de Amílcar Cabral, líder do PAIGC6 e um dos mais
interessantes teóricos do movimento anti-colonial, a FRELIMO considerava que a luta de
libertação, em si mesma um acto cultural, passava pela construção de uma nova
dimensão da identidade cultural moçambicana, princípio que assentava na convicção de
que a cultura se modificava com a transformação da sociedade. A resistência cultural
assumiria novas formas (políticas, económicas, militares), formas reinventadas, na luta
contra a libertação colonial. Neste sentido, considerava-se que a praxis do pensamento
materialista do guerrilheiro, praxis política e militar, mas também pedagógica, educativa,
agrícola e sanitária, transformava a infra-estrutura. A infra-estrutura seria, por
conseguinte, leitura original ou desvio da dialéctica marxista, induzida pela
superestrutura através da praxis do guerrilheiro. É a esta luz - a superestrutura
revolucionária precedendo a infra-estrutura e sendo, posteriormente, modificada por
esta - que o projecto político cinematográfico da FRELIMO deve ser entendido. Mueda,
Memória e Massacre, a principal produção cinematográfica do INC, fundado em 1976,
pouco depois da independência do país, durante o Governo de Samora Machel, não só
deveria comemorar um dos principais antecedentes simbólicos da Guerra de Libertação,
fundando e inscrevendo historicamente, dada a ausência de imagens de arquivo, a
memória cinematográfica do acontecimento histórico, como deveria sublimar também a
interacção da determinante estrutural (a luta histórica de libertação do povo
moçambicano) com a superestrutura (a consciência do heroísmo e da justeza da luta) e
difundir o ideal do “Homem Novo”, propugnado pelo líder da FRELIMO naquele período.
6
Partido Africano pela Independência da Guiné e de Cabo Verde.
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Afastemo-nos, no entanto, de uma proposta de leitura estritamente histórica e
ideológica do remarcável filme de Ruy Guerra, obra que, não descartando o seu efeito
performativo, o apelo à transformação da ordem do real, a par de uma conjuração do
passado e de uma invocação do tempo por vir, dá conta de uma virtuosíssima articulação
entre a estética e a política, a forma e o conteúdo, em ruptura com as formas estéticas
dominantes. Dita articulação dá-se, desde logo, na estrutura narrativa e na peculiar
concepção da mise en scène do filme. A noção de reconstituição revela-se, neste sentido,
insuficiente para dar conta da complexidade narrativa e formal de Mueda, Memória e
Massacre. A concepção intertextual do discurso histórico que enforma a organização
diegética de Mueda, Memória e Massacre faz dessa noção (e dessa prática
cinematográfica) um utensílio metodológico limitativo para analisar o filme. Classificar
Mueda, Memória e Massacre como uma simples reconstituição histórica do Massacre de
Mueda seria redutor, na medida em que os meandros políticos anteriores e ulteriores,
bem como o próprio massacre, são representados de duas formas distintas no filme. Por
um lado, através do registo fílmico de uma dramatização popular, espontânea e colectiva
do acontecimento que, a partir de Junho de 1976, apenas um ano depois da
independência do país, e durante cerca de duas décadas, assinalava anualmente o
aniversário do evento na praça pública de Mueda, diante e no interior do antigo edifício
da administração colonial, isto é, no local onde ocorreu o massacre. Essa representação
teatral e carnavalesca do massacre baseava-se na obra de teatro homónima de Calisto
dos Lagos, que é também o co-guionista e o director dramático do filme. Inspirando-se
numa peça teatral oral e improvisada, jamais estabilizada pela escrita, o povo de Mueda
encarnava simultaneamente os funcionários da administração colonial, os militares do
exército português e os manifestantes. Num segundo momento, as sequências são
entrecortadas por entrevistas e testemunhos documentais de sobreviventes e de
participantes no massacre. À encenação do massacre, Ruy Guerra prefere o registo da
performance teatral do acontecimento, realizada pelos habitantes de Mueda.
Em Mueda, Memória e Massacre, deparamo-nos com dois regimes de expressão
em conflito - o documentário e a ficção -, dois sistemas complementares de organização
do perceptível e de determinação do representável. A tensão é intensificada pelo
primeiro nível narrativo mencionado - o registo da encenação popular do massacre -, uma
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vez que Guerra e a sua equipa filmam a reconstituição do acontecimento histórico que
transcorre frente a câmara, uma dramatização colectiva que é independente do filme,
utilizando, não obstante a definição oficial da obra como uma longa-metragem de ficção,
estratégias e modalidades narrativas, formais e estéticas próprias do cinema documental.
Sem querer atribuir excessiva importância a taxinomias genéricas - relevantes, no
entanto, a um nível arqueológico -, parece-me significativo que um filme a tal ponto
heterogéneo e fragmentário, polifónica e colectivamente enunciado, tenha sido
classificado oficialmente, bem como pelo próprio realizador, como a primeira longametragem de ficção da República Popular de Moçambique7. No filme de Guerra, o desejo
de fundação político-estética das formas cinematográficas do novo país parece evidente.
Por outro lado, enquanto objecto discursivo, a longa-metragem de Guerra parece afirmar
que o projecto político revolucionário da FRELIMO passaria também por uma redefinição
das formas estéticas e sensíveis, universalizadas naquele momento histórico, na linha da
já mencionada relação de reciprocidade entre a superestrutura e a infra-estrutura de
produção. No quadro do sistema de representação de Mueda, Memória e Massacre, o
povo artífice de um filme colectivo, fundado simultaneamente na memória directa e na
memória indirecta do Massacre de Mueda, bem como nas formas culturais de expressão
popular, coincide com o povo participante na luta heróica de libertação, comprometido
no abandono do sistema de produção colonial, o regime da monocultura, do
monangambé e dos contratos quase esclavagistas, e pela sua substituição por um sistema
de produção colectivista e igualitário.
As diferentes camadas de Mueda, Memória e Massacre, a sua intrincada
estrutura diegética, o movimento, a circulação e os momentos de suspensão constantes
entre os diversos níveis narrativos sugerem uma complexa construção intertextual,
constitutiva do discurso histórico, apontando, simultaneamente, para a dificuldade
fundamental em representar a relação entre a memória e a história. Esta “ficção de
memória” não só articula visualmente a relação espectral entre a memória afectiva e a
história, como trabalha igualmente a questão da reconstituição ou da re-efectuação,
termo com uma dimensão pragmática mais profunda, do massacre, assente num
processo de ficcionalização da memória. A memória torna-se ficção e performance, ficção
7
Assim é anunciado o filme no seu poster.
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de memória, ficção de corpos performativos recriando a memória do passado violento.
Por outro lado, o filme parece propor um novo sistema de representação do visível,
liberto do peso da imagem colonial.
A organização fílmica das temporalidades e dos níveis discursivos em conflito
inscreve este filme-manifesto estético e político - ou, melhor, manifesto da
inseparabilidade entre a estética e a política - no programa do novo país. Ao mesmo
tempo, ao fundar a história do acontecimento na sua memória colectiva, directa e
popular, o filme - e o seu sistema enunciativo polifónico - assinala uma reinvenção das
possibilidades expressivas que seria indissociável do processo em curso de construção de
uma nova dimensão da identidade cultural moçambicana, fundado num confronto
criativo entre a modernidade e a sociedade tradicional.
Neste sentido, Mueda, Memória e Massacre debruça-se mais sobre a memória
afectiva do massacre e sobre as suas formas de reconstituição colectiva do que sobre o
acontecimento histórico em si mesmo. Guerra considera que Mueda, Memória e
Massacre é um filme sobre a significação mítica do massacre, sobre a transformação de
um acto tão cruel num acto de alegria (GUERRA, 2011) e sobre as formas de autorepresentação do povo comprometido no processo revolucionário. Não se trata
unicamente de estabilizar a memória do massacre, de criar imagens diferidas do
acontecimento histórico, mas também de buscar os signos de uma historicidade
impensável - a conversão de um acto brutal no júbilo da celebração -, de fazer aparecer
os frágeis traços da memória, de entrever a inefável imagem da vontade viva do povo;
trata-se também de identificar os gestos particulares, presentes na singularidade da
imagem, no quadro de um modelo de representação histórico e, simultaneamente, transhistórico. Está em jogo a criação de uma memória do massacre que possa constituir,
simultaneamente, uma representação viva e trans-histórica do processo revolucionário
em curso, arquivos e formas vivas para a futura história de Moçambique. Imagens
atravessadas por um conflito entre temporalidades diversas, mas também pelas linhas de
separação entre a realidade, o documentário e a ficção.
O filme constitui, por conseguinte, uma reconstituição cinematográfica da
reconstituição teatral popular do massacre que cria as suas formas de visibilidade
definitivas, lançando, ao mesmo tempo, as bases para o nascimento do cinema
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moçambicano. Mueda, Memória e Massacre não é apenas um filme sobre um episódio do
passado colonial; é também um documento sobre o processo revolucionário
moçambicano. Se a representação cinematográfica da dramatização colectiva do
massacre é inseparável de um processo de fixação da memória histórica, de produção e
de inscrição da história, a reconstituição da reconstituição contempla igualmente um
gesto de deslocação espacial e temporal, isto é, de transferência da natureza mítica do
passado para o presente do país em construção, um presente vivo, mas, não obstante,
dadas as especificidades da enunciação cinematográfica, já histórico. A carga simbólica do
Massacre de Mueda - um dos acontecimentos fundadores da história da luta de
libertação, bem como da história da própria FRELIMO, já que a manifestação de 16 de
Junho de 1960 foi organizada pela MANU, a União Africana de Moçambique, um dos três
grupos políticos que daria origem ao partido de Eduardo Mondlane e de Samora Machel investe-se, dessa forma, nas novas imagens do processo revolucionário. Todavia, a
possibilidade de refiguração do passado advém também da intensidade do presente. O
filme faz parte de uma história já em progressão e, por conseguinte, o presente - a
celebração carnavalesca e catártica do massacre - é tratado como a força inaugural da
história em devir. Todo o trabalho desenvolvido por Guerra em Moçambique, após o seu
regresso do Brasil, pode ser inscrito nesta linha, nomeadamente o gigantesco fresco Os
Comprometidos. Actas de um Processo de Descolonização (1984), realizado a partir das
declarações de antigos colaboradores com o regime colonial ante um tribunal popular
presidido por Samora Machel, e que constitui, nas palavras do realizador, a catarse do
colonialismo (GUERRA, 2011).
En Histoire et mémoire : l’écriture de l’histoire et la représentation du passé
(RICOEUR, 2000, pp. 731-747), Paul Ricoeur, voltando à questão clássica do eikon
mnemónico, afirma que o problema da representação do passado é estabelecido
primariamente no plano da memória individual, onde recebe uma solução limitada e
precária não susceptível de ser transferida para o plano discursivo histórico. A questão da
representação não começaria, portanto, no âmbito da história, mas sim na esfera da
memória e, particularmente, com os processos mnemónicos de recomposição e de
ficcionalização do passado. Em Mueda, Memória e Massacre, os testemunhos - os
discursos das testemunhas e dos sobreviventes do massacre registados em entrevistas
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não dirigidas - vêm precisamente legitimar o processo de conversão da memória em
história. Se a constituição do discurso histórico é determinada, a vários níveis, pela
síntese ou pela elisão de enunciados antagónicos, em Mueda, Memória e Massacre,
imagens invisíveis, imagens que não vemos, mas que apenas pressentimos - as imagens
mnemónicas dos sobreviventes, configurando um imenso fora de campo histórico - são
convocadas pelo discurso fílmico. No seu modelo de representação expandida, o filme
mostra-nos mais do que aquilo que nele logramos ver. Mas, ao mesmo tempo, mostranos menos. Nem mesmo vemos o narrador do filme. É certo que temos, por um lado, o
narrador da representação teatral e, por outro, a obra dramática de Calisto dos Lagos,
mas é importante recordar o intertítulo de abertura onde são citadas as declarações de
uma testemunha ocular anónima do massacre: Mataram mais de seiscentas pessoas, no
dia 16 de Junho de 1960. O texto do intertítulo aponta para uma incapacidade da
imagem-movimento em representar um passado não-consensual. Assinala, ao mesmo
tempo, a impotência da encenação teatral em aproximar-se de uma representação do
episódio histórico ajustada à história oficial moçambicana. Cabe notar que o intertítulo
referido foi acrescentado ao filme na sua montagem final, na qual Guerra não participou.
Ora, se o sistema enunciativo de Mueda, Memória e Massacre repudia um olhar
retrospectivo ou comemorativo sobre o passado, é precisamente esse tipo de visão que o
intertítulo não-subjectivado vem interpor ao discurso fílmico.
As descrições históricas do Massacre de Mueda foram reorganizadas e
modificadas inúmeras vezes, acompanhando as oscilações do poder político,
nomeadamente antes e depois da independência de Moçambique. A multiplicidade de
pontos de vista sobre o acontecimento histórico é sintomática da sua natureza simbólica,
bem como da sua importância política e ideológica. Por essa razão, torna-se
imprescindível analisar o contexto histórico de produção do filme de Guerra.
A fundação do Instituto Nacional de Cinema foi um dos primeiros actos culturais
da FRELIMO. Durante a Guerra de Libertação, um número considerável de filmes fora já
produzido, filmados, como referido, na sua grande maioria, nas zonas libertadas.
Tratavam-se de documentários, alguns deles de carácter didáctico, que visavam
conquistar apoio e dar visibilidade internacional à luta empreendida pela FRELIMO contra
o colonialismo português, como, por exemplo, Venceremos! (1966), do realizador
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jugoslavo Dragutin Propovich, que viria mais tarde, depois da independência do país, a
integrar os quadros do INC, Behind the Lines (1971), de Margaret Dickinson, The Struggle
Continues, de Robert van Lierop, ou, ainda, Étudier, produire, combattre, realizado em
1973 pelo Grupo Cinéthique num campo de treino da FRELIMO na Tanzânia.
Num país com uma taxa de analfabetismo de 90% e de uma grande diversidade
linguística, o cinema seria rapidamente concebido pela FRELIMO, à imagem do que
acontecia nos restantes países africanos em luta e do que sucedera em quase todas as
revoluções socialistas, como um instrumento de descentralização da história oficial, uma
instância de legitimação do Estado marxista em construção e, igualmente, como um
instrumento de criação e de consolidação da própria identidade moçambicana, fundando,
por conseguinte, a ideia imaginária de nação unitária mais além da diversidade étnica.
Com essa finalidade, foram chamados a Maputo numerosos técnicos cinematográficos e
realizadores de renome, tais como Jean Rouch, que organizou um atelier de cinema em
Super 8 mm na Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, em 1978, Jean-Luc Godard,
que assinou um contrato de dois anos para implementar a produção nacional em vídeo,
projecto que fracassaria, e, ainda, entre outros, Santiago Álvarez, que realizaria Maputo,
Novo Meridiano (1976) e Nova Sinfonia (1982). Entre 1976 e 1991, o INC produziria 13
longas-metragens, 119 curtas-metragens e 395 reportagens de actualidades, intituladas
Kuxa Kanema (Nascimento da Imagem ou Nascimento do Cinema), que é também o título
do documentário de Margarida Cardoso (2003) sobre o instituto. Os Kuxa Kanema eram
projectados em todo o país, inclusivamente nas áreas rurais mais remotas, para onde o
material de projecção e as bobines eram transportados em unidades de cinema móvel
oferecidas pela União Soviética.
Com o intuito de contextualizar o projecto cinematográfico moçambicano no
esprit du temps, permito-me citar a proposta apresentada por Jean-Louis Comolli, Louis
Malle, Alain Resnais e Jacques Rivette, entre outros, aquando da celebração dos Estados
Gerais do Cinema na Escola de Cinema Louis Lumière, em Paris, em Maio de 1968:
... criar um cinema baseado na responsabilidade dos criadores. Para
permitir que os espectadores, também responsáveis, se convertam em
criadores, as estruturas existentes devem ser destruídas. É, portanto,
evidente que qualquer reivindicação, qualquer modificação ou reforma
parcial das estruturas não poderá pôr termo à alienação do cinema pelo
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capital se estes passos não forem concebidos como a primeira etapa
para a criação de novas estruturas. (COMOLLI et altri, 1968, tradução da
autora).
É neste contexto que Guerra, instalado no Brasil desde os anos 60, regressa ao
seu país natal, a convite do INC. Em 1976, Guerra, realizara já Os Cafajestes (1962) e Os
Fuzis (1964), filmes que lhe granjearam amplo reconhecimento internacional. Guerra
participaria na criação do cinema moçambicano não só através da formação de técnicos
no INC, mas também reconstituindo cinematograficamente um dos episódios fundadores
da história da resistência anti-colonial e da memória colectiva do país. Se grande parte
dos cineastas envolvidos na representação da Guerra de Libertação moçambicana
provinha de países estrangeiros - nomeadamente do Brasil, como José Celso Martinez
Correa e Celso Lucas, autores de exímio 25, filme de 1975, ou, ainda, Murilo Salles,
realizador de Estas são as armas (1977) -, a presença de Guerra em Maputo, na sua
cidade natal, marcaria simbolicamente o nascimento do cinema nacional. O nascimento
da ficção.
Pemito-me citar Jorge Rebelo, Ministro da Informação de Moçambique entre
1975 e 1980:
Decidimos que o cinema deveria ser um instrumento para consolidar a
independência, para promover a unidade nacional e para a vitória na
nova luta contra o subdesenvolvimento. Ao mesmo tempo, o cinema
deveria ter um papel importante na destruição da mentalidade que o
colonialismo tinha instigado nas mentes do nosso povo através dos
séculos... e um instrumento para transmitir os valores da revolução
socialista. (REBELO, 2004).
A escolha do Massacre de Mueda como temática do primeiro filme de ficção de
Moçambique revela-se significativa neste contexto. Como foi referido, a definição da obra
de Guerra como um filme de ficção é problemática, sem querer, contudo, outorgar
excessiva importância a conflitos de género, mesmo sendo estes relevantes a nível
ideológico. Mas, a que se deve a insistência retórica na ficção - por oposição ao
documentário - como o sistema de expressão que estabeleceria oficialmente, no filme
fundador do cinema nacional, a memória cinematográfica de um dos acontecimentos
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mais importantes da história da descolonização moçambicana do ponto de vista
simbólico?
Em Mueda, Memória e Massacre, deparamo-nos não só com uma dupla
temporalidade, com um espaço de fricção, que liga os acontecimentos de 1960 com a sua
mise en scène em 1978-79, aquando do período de edificação e de consolidação
ideológica do novo país, uma anulação da distância temporal, uma refiguração efectiva do
tempo, mas também um trabalho de escavação da memória, conjugado com a inscrição
do acontecimento na história moçambicana8 e com um apelo a uma nova política da
representação. É possível identificar no filme certos elementos expressivos e estilísticos
da filmografia anterior de Guerra, como os longos planos-sequência dinâmicos, a
concepção formal e a recomposição do espaço cénico. Encontramos também novas
formas, como a auto-reflexividade e a adopção de certas estratégias de mise en scène
que evocam, num certo sentido, o projecto televisivo de Roberto Rossellini,
concretamente a reinvenção cinematográfica de determinados procedimentos da
rodagem televisiva em estúdio. Guerra filma a mise en scène teatral do massacre, uma
manifestação popular independente do filme em produção, como se filmasse a história, o
verdadeiro massacre, em directo. Por outro lado, a articulação entre a memória directa
do acontecimento - os testemunhos dos participantes e dos sobreviventes do massacre com o registo da dramatização do episódio histórico reforça o questionamento, no campo
da recepção, da temporalidade da imagem como traço de um passado.
Formalmente, as linhas de fronteira entre o interior e o exterior marcam o
conflito de géneros e determinam a relação entre o corpo colectivo do povo e a posição
de câmara. A estrutura de Mueda, Memória e Massacre caracteriza-se por um contraste
entre os planos-sequência em que a peça de teatro autónoma é filmada na praça pública
de Mueda durante a representação e as sequências registadas no interior do antigo
edifício da administração colonial, expressamente re-encenadas para a rodagem um dia
depois. Durante a filmagem destas últimas sequências, o povo de Mueda, que
permanecia no exterior a assistir à encenação que decorria no interior do edifício, visível
através das janelas abertas, voltou a representar, espontaneamente, a obra de teatro,
convertendo-se, desse modo, em espectador da acção política que se desenrolava no
8
Disciplina que se encontrava também em formação naquele período, já que, segundo Frantz Fanon, uma das
estratégias ideológicas do sistema colonial passava pela denegação da história africana.
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interior e em personagem participante. A câmara de Guerra mostra-nos incessantemente
essa dupla condição, apontando para um princípio de contiguidade (formal e geográfica,
física) entre o documentário e a ficção.
No entanto, Mueda, Memória e Massacre é um filme sem encenação directa,
uma vez que os acontecimentos filmados, mesmo se parcialmente re-encenados tendo
em vista a rodagem, são independentes do filme em produção. Encontramo-nos face a
um processo retroactivo de temporalização e de autenticação: os testemunhos dos
participantes e dos sobreviventes do massacre legitimam e re-temporalizam, como uma
espécie de suplemento mnemónico, as sequências encenadas, enquanto que estas, na
sua dupla temporalidade, são inscritas na história de Moçambique, adquirindo, em certo
sentido, o estatuto de imagens de arquivo diferidas do Massacre de Mueda e, ao mesmo
tempo, do processo revolucionário moçambicano. Arquivos diferidos, atravessados por
uma complexa articulação entre a história, a memória e a sua organização
cinematográfica.
O trabalho da ficção repousa, sobretudo, na organização das diferentes camadas
narrativas durante o processo de montagem. Muito embora o filme siga a estrutura
original da obra de teatro, a montagem articula imagens de várias (de três ou mais,
segundo pude apurar) dramatizações populares do massacre. A estrutura narrativa que
emerge da montagem, as temporalidades diferidas e a articulação de sistemas de
expressão heterogéneos compõem, por conseguinte, uma nova memória do massacre.
O filme de Guerra lança as condições formais e expressivas para o nascimento do
cinema moçambicano. A fundação da história do novo país é, pois, concomitante da
criação das suas formas cinematográficas. De um cinema que não só se distinguiria da
representação cinematográfica de Moçambique durante o período colonial, mas que
também se demarcaria quer do cinema do Primeiro Mundo, quer do Realismo Socialista,
aproximando-se do Terceiro Cinema. De Chaimite, A Queda do Império Vátua (1953), de
Jorge Brum do Canto, filme épico sobre a campanha militar de Mouzinho de Albuquerque
em Moçambique, campanha que estabeleceria as fronteiras do Estado colonial, aos filmes
antropológicos (Margot Dias, por exemplo), o cinema português tende, com algumas
raras excepções, como Catembe (1965), de Faria de Almeida, ou Deixem-me ao menos
subir às palmeiras (1972), de Lopes Barbosa, a difundir o mito da suposta “missão
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civilizacional” que Portugal cumpriria em África. A fundação do INC e os primeiros
projectos do instituto devem também ser entendidos à luz desse contexto, como uma
vontade de ruptura com a imagem colonial do país, com o seu pré-cinema, o que não
impediu, todavia, que certas formas e aspirações se perpetuassem, como, possivelmente,
a figura do filme épico de ficção, da epopeia que reuniria a história e a memória.
A propósito de Mueda, Memória e Massacre, Guerra afirma ter procurado
produzir, através do filme, um julgamento de ordem estética e um julgamento de ordem
política que são inseparáveis um do outro (GUERRA, 1980). Descreve a longa-metragem
como uma tentativa de realização de um cinema imperfeito a partir de um teatro
imperfeito, citando o ensaio Por un cine imperfecto, do realizador cubano Julio García
Espinosa, um dos manifestos do Terceiro Cinema. Parece-me relevante referir que o
ICAIC, o Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográficas, serviu de modelo ao INC.
Passo a citar Julio García Espinosa:
Decidimos que o cinema deveria ser um instrumento para
consolidar a independência, para promover a unidade nacional e
para a vitória na nova luta contra o subdesenvolvimento. Ao
mesmo tempo, o cinema deveria ter um papel importante na
destruição da mentalidade que o colonialismo tinha instigado nas
mentes do nosso povo através dos séculos... e um instrumento
para transmitir os valores da revolução socialista. (GARCÍA
ESPINOSA, 1969).
A concepção de García Espinosa reclama uma reorganização e uma
universalização da experiência estética, uma redefinição da relação entre o sujeito
estético e o seu objecto, em suma, toda uma nova política da representação. Em
Moçambique, depois da independência, unidades de Cinema Móvel, criadas pelo INC,
produziam actualidades e reportagens - as já referidas Kuxa Kanema - que eram
projectadas em todo o país. A fundação de um cinema nacional num estado marxista, em
contradição com o internacionalismo teórico, encontrava-se ao serviço, então, dos
princípios de unidade e de identidade moçambicanas. Num segundo momento,
equipamento videográfico seria entregue ao povo, que poderia criar, dessa forma, os seus
próprios filmes, abolindo-se as fronteiras entre o sujeito e o objecto de representação. O
projecto, no qual Jean-Luc Godard esteve envolvido, fracassou, mas alguns dos seus
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princípios, como a polifonia e a circulação colectiva da palavra, permanecem em Mueda,
Memória e Massacre, enquanto resíduos de um tempo outro.
A definição oficial do filme como a primeira longa-metragem de ficção
moçambicana encontra-se inegavelmente ao serviço dos princípios e dos propósitos
ideológicos do novo país, em particular da mitificação do processo de descolonização. No
entanto, tal classificação poderia igualmente expressar uma concepção da ficção, na sua
articulação com a política, evocando ainda Jacques Rancière, como um sistema de
representação auto-reflexivo, isto é, que se mostra e revela enquanto representação da
realidade e onde residiria, precisamente, a sua dimensão política, a de uma rede feita de
temporalidades deslocadas e de modelos de expressão heterogéneos que constituiria a
representação visual do espaço-tempo da revolução e o exercício de uma acção sobre o
mundo.
Guerra utiliza a expressão frustração de género (GUERRA, 2011) para se referir a
Mueda, Memória e Massacre. Frustração de género porque Mueda, Memória e Massacre
é um filme que recusa politicamente quer a reconstituição épica, quer o efeito de
realidade do documentário. Produção inteiramente moçambicana, factor que determina
o uso de negativo preto e branco, o filme afirma-se, apesar da sua classificação genérica,
como uma representação (Vs. registo “transparente”) da realidade, afirmação que, por si
só, constitui um gesto de natureza política.
Igualmente, frustração política, na medida em que o filme seria reeditado sem a
participação de Guerra, sofrendo dois importantes cortes - um deles, o corte de uma
entrevista realizada por Guerra ao antigo chefe de posto de Mueda, testemunha directa
dos acontecimentos, que vivia em Moçambique no período de produção do filme,
plenamente integrado na sociedade pós-colonial; o segundo, o corte das cenas
interpretadas por Raimundo Pachinuapa, então Governador de Cabo Delgado, substituído
por um actor por imposição oficial. A censura deveu-se, aparentemente, à suposta
adopção de um ponto de vista histórico (alegadamente, tribalista, pró-Maconde) não
reconhecido oficialmente aquando da produção do filme e que contrariaria a concepção
governamental
de
um
estado-nação
multi-étnico,
cujo
território
coincidiria,
paradoxalmente, com as fronteiras definidas pelo Estado colonial. Essas razões poderiam
explicar a classificação oficial do filme como uma obra de ficção e não como um
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documentário. Frustração política porque o tempo performativo do povo parecia não se
ajustar, naquele momento, ao tempo didáctico do projecto político moçambicano9.
Mueda, Memória e Massacre, filme de 1979, situa-se na fronteira de um período
de transformação no cinema e no próprio projecto político moçambicanos, que
culminaria com o incêndio do INC, em 1991, que destruiria as estruturas de produção e
de montagem do instituto, assim como parte do seu arquivo fílmico. Dois outros filmes de
ficção seriam produzidos na década de 80 pelo INC, O Tempo dos Leopardos (1985), coprodução com a Jugoslávia, realizada por Zdravko Velimirovic, e O Vento Sopra do Norte
(1987), de José Cardoso.
Se abandonarmos o eixo documentário-ficção, será legítimo considerar as
imagens de Mueda, Memória e Massacre como arquivos do Massacre de Mueda?
Possuem elas o mesmo valor ontológico que possuiriam as inexistentes imagens de
arquivo do massacre? Evidentemente, não. No entanto, para concluir, direi que as tomas
do filme são “arquivos diferidos”, planos deslocados e destemporalizados, imagens
dialécticas atravessadas por múltiplas temporalidades em conflito que, quando
conjugadas, tornam a história presente. A história do massacre e também a história do
projecto político moçambicano. São também imagens infiltradas por dispositivos de
poder, onde reaparecem vívidos elementos do passado, sobrepostos ao presente
enunciativo. Como afirmava Paul Ricoeur em Temps et récit - III. Le temps racconté, voltar
ao traço não será tornar os acontecimentos passados aos quais ele conduz
contemporâneos do seu próprio traço? (RICOEUR, 1985).
Ao escavar o espaço e o tempo materiais das imagens de Mueda, Memória e
Massacre, o seu contexto histórico de produção, surgem descontinuidades, contradições
fundamentais e postulados incompatíveis. Linhas de fractura. Da mítica fundação
cinematográfica de Moçambique, primeira longa-metragem da República Popular, aos
arquivos institucionais, filme fora de circulação durante um longo período de tempo,
raramente visto, raramente projectado, descartado, tal como o projecto político da
FRELIMO. As imagens do filme são arquivos diferidos porque não pretendem ser (nem
estar em vez de) as imagens do passado, constituindo, pelo contrário, uma força
9
Para o historiador Guido Convents, o projecto cinematográfico de Mueda, Memória e Massacre constituiria,
essencialmente, uma resposta cinematográfica a um acordo assinado entre Portugal e Moçambique que
estipulava que os crimes de guerra portugueses não seriam investigados.
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disruptiva que conecta transversalmente o passado de 1960 ao presente enunciativo de
1979 e, este, aos nossos dias, ao fracasso do projecto revolucionário moçambicano,
marcando a passagem do tempo sobre o discurso da história, a ideologia, a utopia e o
trabalho da memória.
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Fotograma de “Mueda, Memória e Massacre”, de Ruy Guerra, 1979.
RECEBIDO EM 13 DE FEVEREIRO DE 2012.
APROVADO EM 11 DE MAIO DE 2012.
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