Academia.eduAcademia.edu

Sintonia fina entre ficção e realidade

Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG

Resenha a: VALENTE, Luize. Sonata em Auschwitz. Rio de Janeiro: Record, 2017. 376 p.

VALENTE, Luize. Sonata em Auschwitz. Rio de Janeiro: Record, 2017. 376p. Sintonia fina entre ficção e realidade Fine Tuning between Fiction and Reality Sofia Débora Levy* Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) | Rio de Janeiro, Brasil [email protected] Há vinte anos, a jornalista e escritora Luize Valente vem fazendo trabalhos ligados à temática judaica, já somando dois documentários em vídeo, Caminhos da memória: a trajetória dos judeus em Portugal (Brasil, 2002) e A estrela oculta do sertão (Brasil, 2005) – ambos em coautoria com Elaine Eiger – e quatro livros, sendo o primeiro, Israel rotas e raízes (Fototema, 1999), também em coautoria com Elaine Eiger. Já os seus livros O segredo do oratório (2012), Uma praça em Antuérpia (2015) e Sonata em Auschwitz (2017) foram todos publicados pela editora Record, e o mais recente lançado no Brasil e em Portugal. Mobilizada pela temática da Shoah, já abordada em Uma praça em Antuérpia, ao tomar conhecimento da história de vida da sobrevivente judia iugoslava Maria Yefremov, publicada no livro Sobre viver (LEVY, 2006), Valente amadureceu a ideia de escrever um romance a partir da história de um bebê nascido num campo de concentração. Isso porque, em 1944, D. Maria foi deportada grávida para o campo de concentração e extermínio de Auschwitz onde, meses depois, deu à luz a uma menina que, logo após o nascimento, lhe foi retirada e levada por guardas do campo. Inspirada também pelo contato direto com D. Maria – que faleceu aos 103 anos em 23 de dezembro de 2017, a escritora realizou profundas pesquisas que resultaram no romance Sonata em Auschwitz. Numa perspectiva redentora, na história, Haya, a recém-nascida em Auschwitz, em setembro de 1944, é salva por um capitão alemão. Apesar de serem romances independentes, Uma praça em Antuérpia e Sonata em Auschwitz estão ligados pelas pesquisas de Luize Valente sobre a Segunda Guerra Mundial. No primeiro, no qual aborda a questão dos refugiados, figura uma família alemã, composta pelo oficial nazista Hans, sua esposa Frida Schmidt e seus dois filhos, Friedrich e Ingeborg, ambos crianças em 1935, em Berlim. Em Sonata em Auschwitz, que traz a saga de uma família alemã, Friedrich Schmidt aparece, já adulto, como um condecorado piloto da Luftwaffe, crítico para com o projeto genocida de Hitler e que não consegue ficar indiferente às vítimas do nazismo. O potencial de personagem para desenvolver esse tipo de personalidade já havia se Doutora em História das Ciências, Técnicas e Epistemologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Bolsista Capes/PNPD. * 1 Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG. Belo Horizonte, v. 12, n. 22, maio 2018. ISSN: 1982-3053. delineado em Uma praça em Antuérpia, quando Friedrich, apesar de recém-ingresso na juventude hitlerista, mostrava-se um jovem sensível à música e não tão empolgado como sua irmã na difamação dos judeus, a qual o pai cobrava de seus filhos, ao educá-los conforme os preceitos do partido nacional-socialista. Em seus processos de criação, Luize Valente viaja para os lugares que figuram nos seus livros de modo a, in loco, buscar inspiração, arranjos e concatenações às suas ideias – um investimento da escritora na sua ficção que, nesses momentos, toca a realidade, muitas vezes em consonância com os fatos históricos ali passados – como no caso da Nova Sinagoga (Neue Synagoge) de Berlim, que não chegou a ser totalmente destruída na Noite de Cristais, apesar de ter sido invadida e incendiada pelos nazistas na ocasião, e da qual hoje ainda mantém a fachada principal; ou da cidade de Potsdam, próxima à Berlim, onde tomou lugar a Conferência de Potsdam, que reuniu, entre julho e agosto de 1945, os países aliados, vitoriosos, para tratarem dos assuntos concernentes ao pós-guerra. Assim, a romancista parte, primeiramente, do real, do que há de histórico, fazendo uma pesquisa sobre o que quer abordar, e depois recria esse real pela ficção. A saga da família de Adele em Sonata em Auschwitz representa, desse modo, várias histórias nas quais a autora se inspirou a partir da leitura de relatos de sobreviventes e de fatos históricos, entendendo como condições universais as sensações e as dores da solidão, do abandono, das perdas no contexto da Shoah. Quanto à estruturação textual, em O segredo do oratório, já percebemos uma tipicidade da escritora quanto à passagem de um capítulo para o outro com corte de continuidade de tempo e espaço, que se dá também, de forma mais estreita, em Uma praça em Antuérpia. A alternância de tempo e de espaço aparece em todos os seus livros e a flexibilização dessas variáveis se deu num crescente entre suas obras. O resultado espelha o exercício mnemônico de concatenação da escritora na construção do romance. No mais recente, a variável memória se destaca. Metalinguisticamente, as lacunas e as interrupções do pensar e do lembrar, a partir de condições traumáticas vividas pelos personagens, figuram como marcas na estruturação dessa narrativa. Trabalhando com esse arcabouço, Luize Valente consegue articular e dinamizar as variáveis tempo, espaço e memória, sem se perder. Trechos da narrativa que parecem interrompidos, mais adiante são concatenados. Minuciosamente, a autora procura amarrar diversas passagens entre a história e a ficção. Em Sonata em Auschwitz, a variabilidade dessas categorias não acontece só de capítulo para capítulo, mas também dentro de cada capítulo. Acontece enquanto estrutura de narrativa e também como rememoração de cada um dos personagens. Há personagens sobreviventes dos campos, outros que não foram a campo, mas que estão, cada um ao seu modo, elaborando as suas memórias. Elaborar traumas é uma ação complexa, 2 Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG. Belo Horizonte, v. 12, n. 22, maio 2018. ISSN: 1982-3053. que demanda esforço. Seja qual for o trauma – como os narrados pelos sobreviventes da Shoah ou como aqueles de ordem pessoal, vividos fora de um regime totalitarista – revisitá-lo não é tarefa fácil e não há como determinar se a sua elaboração chegará a um termo, nem se o sujeito conseguirá retomar a sua paz de espírito. Na clínica psicológica, intenta-se proporcionar condições que auxiliem a pessoa vitimada a conseguir compartilhar memórias que residem dentro da sua mente, corpo e coração, e que, às vezes, afloram abruptamente, seja em estado de vigília ou em pesadelos – quando pode até mesmo acordar executando movimentos que manifestam um estado de angústia ou uma reação que gostaria ter tido no passado e não pôde ter. Tudo isso é matéria viva. É essa materialidade viva, que é matéria de ficção, que percebemos ao longo de Sonata em Auschwitz, principalmente no detalhamento da percepção dos personagens frente ao que lhes acontecia. Valente conseguiu, na descrição do contexto, permear de detalhes verossímeis e outros captados nos registros de entrevistas a sobreviventes, ou ainda nos livros de Primo Levi, Simon Wiesenthal, Viktor Frankl, trazendo uma visualização do atravessamento da dor. Chama a atenção o modo como a autora conseguiu compor as tentativas de elaboração dos discursos de diversos personagens que passaram por traumas. No livro, Amália Hafner, vai buscar a história de sua família de origem alemã, em busca de respostas para várias perguntas: Por que o seu pai não fala com a mãe dele? Qual o motivo dessa dissidência? Como a ideologia, fortemente presente no discurso do seu pai, leva a uma dissenção familiar? Os vínculos familiares não deveriam falar mais alto? Qual é o limite de suportabilidade quando as ideologias nos levam para extremos opostos, entre uma pessoa liberal e um nazista? A autora perpassa esses conflitos ideológicos e parte para uma elaboração ficcional que, ao fim e ao cabo, propõe uma análise de âmbito existencial. As dificuldades de elaboração da dor traumática são ilustradas no caráter transgeracional que atravessa a família de Amália por cinco gerações. Um dos índices, o silêncio, faz parte da narrativa e, por vezes, aparece como manifestação traumática da vítima que não consegue falar; em outras, como o silêncio da vergonha ou da covardia; ou ainda como o silêncio do medo de encarar uma realidade difícil, passada ou presente. Um silêncio que leva uma geração bem mais jovem a buscar desvendar os segredos de família. Luize Valente vai conduzindo o leitor a ponderar como encarar esses silêncios. Se, num momento, o silêncio pode revoltar a jovem Amália, em outro ela passa a compreender os motivos que levaram sua bisavó, Frida Schmidt, a se calar. Assim, o leitor vai experimentando diferentes emoções e modos de compreender as tentativas de se defender da memória traumática, bem como as tentativas de ultrapassá-las, que os diversos personagens vão apresentando. A busca 3 Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG. Belo Horizonte, v. 12, n. 22, maio 2018. ISSN: 1982-3053. de Amália pela verdade familiar abre oportunidades para outros também revelarem as suas verdades. O aspecto transgeracional do trauma deixa transparecer, na ficção, o caráter não fechado da vida. Há elementos fantasmáticos no enredo familiar, em comportamentos peculiares ou assuntos tabus, dependendo da maneira como a família lida com a questão alusiva ao trauma. Em famílias nas quais o assunto é partilhado, existem impactos, curiosidades e fragmentos de informações que um membro das gerações seguintes se interessa por buscar. A Shoah marcou milhões de famílias e, apesar de muitos dizerem que esse tema está esgotado, quem se aproxima dele com atenção e abertura para entender o que aconteceu dificilmente sai incólume – porque nele há muitas lacunas que dizem respeito à condição humana. Quando olhamos a vida com os elementos universalizantes, encontramos pontos de identificação. O efeito transgeracional é a parte das identificações e, no caso dos familiares, especificamente, é parte das lacunas. O romance traz, assim, para o leitor, inúmeras oportunidades para se repensar aspectos da história daquela família ou das nossas próprias vidas. Quando lemos um livro que nos transporta, ficcionalmente, para outro tempo, e nessa viagem apreendemos que a vida é um bem precioso, essa leitura já é um ganho. ----Recebido em: 02/02/2018. Aprovado em: 04/03/2018. 4 Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG. Belo Horizonte, v. 12, n. 22, maio 2018. ISSN: 1982-3053.