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Insucesso escolar - apresentação

1978

APRESENTAÇÃO i. A escola, tal como é oficialmente representada, tem por objectivo transmitir u m cultura considerada indispensável 6 vida na sociedade actual. Todavia, verifica-se que, ao invés de responder cabalmente a esse objectivo, ela funciona como um verdadeiro centro de reproduqão do sistema social, condenando ao frmasso escolar certas çrianqas, impulsionando outras ao longo de cursos cada vez mais selectivos. Não constitui tal facto uma perversiio do sistema escolar, antes lhe é constitutivo. E que tal sistema reflecte estruturalmente a sociedade global, as suas contradições intrínsecas, e a competitividade e selectividade que a caracterizam. Nesta ordem de ideias, estamos convencidos que o Insucesso Escolar não define um problema simplesmente técnico, mas sim um problema que se articula & instância do políticoquerendo nós por «político» significar aquilo que não só se relaciona directamente com o Aparelho de Estado, mas que também tem que ver com conflitos

APRESENTAÇÃO zyxwvut zyxwvutsr zyxwv zyx i . A escola, tal como é oficialmente representada, tem por objectivo transmitir u m cultura considerada indispensável 6 vida na sociedade actual. Todavia, verifica-se que, ao invés de responder cabalmente a esse objectivo, ela funciona como um verdadeiro centro de reproduqão do sistema social, condenando ao frmasso escolar certas çrianqas, impulsionando outras ao longo de cursos cada vez mais selectivos. Não constitui tal facto uma perversiio do sistema escolar, antes lhe é constitutivo. E que tal sistema reflecte estruturalmente a sociedade global, as suas contradições intrínsecas, e a competitividade e selectividade que a caracterizam. Nesta ordem de ideias, estamos convencidos que o Insucesso Escolar não define um problema simplesmente técnico, m a s sim um problema que se articula & instância do político - querendo nós por «político» significar aquilo que não só se relaciona directamente com o Aparelho de Estado, mas que também tem que ver com conflitos de culturas, relações de poder de âmbito microssocial, zonas de fricção entre espaços subculturais diferenciados, etc. Sendo assim, poder-se-ia. concluir pela inutilidade de acção e pela incapacidade de alteração do campo pedagógico. Face 6 viscosidade das instituições, as forças sociais e científicas empenhadas na transformqão do sistema escolar seriam impotentes. Tal é uma das expressões daquilo que se convencianou qualificar de fatalismo sociológico. Não é essa porém a opinião expressa neste número de ANALISE PSICDL~GICA. O sistema escolar, como todm os sistemas e instituições, tem zonas de abertura ms quais é possível intervir, melhorando a qualidade do ensino e diminuindo a sua selectividade. E evidente que neste ciampo os «técnicoJ» têm uma: palavra a dizer. Mas rÈão só os técnicos. Os actores sociais, se empenhdos no aumento efectivo da qualidade zyx zyx zy zyx zyxwv zyxwv zyxwv zy e democraticidade do ensino, não podem relegar nos «técnicom tarefas de transformção que necessariamente os transcendem. Por outro lado, para uma melhoria real d o nosso sistema escolar, torna-se também necessário que nos desembaracemos de concepções caducas sobre Insucesso e dificuldades escolares e apuremos vias que estreitem a colabora@o entre os especialistas, constituindo uma equipa educativa (professor, pedagogo, psicólogo ...) em relação directa com a comunidade na qual se insere a escola. 2. Entre essas concepções do Pnsucesso Escolar, que em Última instância paralisam a acção (ou a pervertem), há que referir três, que têm tido maior relevo. Existe, em primeiro lugar, a ideia de que as crianças com fracasso escolar seriam menos inteligentes. A raiz do insucesso seria de ordem cognitiva. Ideia que se liga 2 relação estreita entre insucesso escolar e baixos resultados a provas psicométricas - relação que se acentua nas crianças de meios populares. A crítica a este tipo de «factos>>está feita, e é largamente ilustrada ao longo das páginas seguintes. Digamos somente aqui, que julgando constatar esta distribuiqão de c a p cidades intelectuais em funçno da classe social de origem, e a sua associação com o insucesso escolar, viraram-se alguns psicólogos para o campo da genética em busca de elementos exphativos. E através de estudos largamente discutíveis e por vezes de metodologim duvidosas, concluíram, grosso modo, que há crianças feitas para seguirem carreiras académicus socialmente valorizadas, e outras feitas para profissões manuais com grande exigência cognitiva; que há crianças feitas para serem brilhantes alunos e outras para reprovarem repetidamente. (O o caso de psicólogos como Burt Jensen, Eysenck e tantos outros.) Em nossa opinião pode-se aqui falar com propriedade de perversão do campo científico ao serviço de uma ideologia secular. Outros psicólogos, embora não contestando a existência de uma distribuição de capacidades intelectuais em f uncão da origem social, procuraram explicá-la por razões de âmbito sócio-cultural. A s crianças de meios sociais baixos seriam menos inteligentes não por razões de ordem biológica, mas por serem submetidas a estimulantes menos ricos no meio familiar- o que atrasaria o seu desenvolvimento. Teoria coerente, na aparência, nem sempre verificada no plano empirico, e que se torna inaplicável ao insucesso escolar em países onde a riqueza de estimulação em meios sociais diferentes tende a homogeneizar-se, embora a taxa de insucessos se mantenha elevada. Outros autores ainda, julgaram encontrar raizes d o insuc,osso escolar em questões de ordem linguística. Uma estimulaqão verbal insuf iciente, uma organização deficitária da linguagem, impediriam os bons resultados na escola de crianças de meios sociais populares. Contudo, também aqui a investigaqão científica se torna u m anexo de decisões meramente ideológicas, pois os primeiros teorizadores deste handicap linguistico não tinham senão um conhecimento extrema- zyxwv zyxwvut zy zy zyxwvu zyxwvut zyx zyxwvu mente superficial da estrutura da linguagem a que se referiam. Estudos de campo, e mais elaborados, vieram a demonstrar, de maneira inequivoca, a falácia das teorias d o handicap linguistico, como explicação do Insucesso Escolar. Finalmente, em certos p'ses, como a França, por exemplo, procurou encontrar-se a explicaçiio d m dificuldades escolares em variáveis relacionadas com a psicomotricidade. E a época das lateralidades cruzadas, dos problemas de ritmo, das desorganizações do esquema corporal, das inibições e instabilidade psicomotoras. Dir-se-ia que o corpo e o movimento, recalcados durante séculos, despertaram então, fornecendo explicações, respostas, e indicações de conduta n adoptar. Não se estrutura porém a tendência para explicar a dificuldade da criança na escola a partir de variáveis psicomotoras como verdadeira corrente científica. Tais são, a traços excessivamente largos, as respostas mais ou menos tradicionais ao problema do insucesso escolar, que desembocam também, naturalmente, em soluções tradicionais: classes paralelas, ensino especial. Todas estas teorias convergem porém para um mesmo ponto: centrar na criança as origens das suas dificuldades (menos inteligente, com carências linguísticas e culturais,com perturbações psicomotoras), e ignorar o espaço pedagógico no interior do qual estas dificuldades se manifestam. Claro que sempre se refere que a criança com dificuldades escolares não pode ser separada da escola, que a escola é uma variável de peso, etc., m s , por fim, é sempre a criança enquanto tal que é posta em questão, acabando muitas vezes por ser integrada numa das múltiplas categorias da psicopatologia infantil: debilidade, dislexia, discalculia, instabilidade, etc., etc., P integrada numa rede paralela de escolarização. 3. O objectivo deste número de ANÁLISEPSICOL~GICA é o de dar um contributo para ia crítica de concep@o defectolúgica e psicopatalógica do Insucesso Escolar, e o de fornecer pistas, decerto embrionárias, para novas investigações sobre o campo pedagógico. A ideia que, em filigrana,atravessa todos os artigos apresentados, é a de que a raiz da maioria das dificuldades escolares se encontra num espaqo interactivo de que o pólo dominante é a própria escola, e não a criança, individualmente. A consequência global a que, em primeira análise, chegamos, é a de que é necessário, d o ponto de vista científico, avançar no terreno de uma Psicossociologia de acção educativa, e forjar novos instrumentos metodológicos que nos permitam estudar em profundidade a dinâmica de classe, os fendmenos interactivos que nela se produzem, os processos nunca explicitdos de selecção -e ultrapassar, no campo da pedagogia, os métodos tradicionais de estudo, que persis- zyx zy zy zyxw zyxwvu tem em ver nas crianças uma patologia muitas vezes imaginária, produzida pelos próprios instrumentos de observação. 4. Queríamos finalmente sublinhar que lamentamos o nosso desco- nhecimento de mais trabalhos portugueses que se inscrevam na perspectiva impressa a este número, e sobretudo não ter tido o tempo necessário para solicitar de parte de professores primários contribuições originais nesta matéria. Espermnos que, mesmo assim, e apesar desta e doutras inevitáveis lacunas e insuficiências, este número de ANÁLISEPSICOL~GICA seja um contributo interessante, no espaço das nossas Ciências da Educação, pela problemática que introduz e pelas orientações possíveis que fornece. Gostaríamos ainda de referir o interesse depositado na sua organiza@ío e o trabalho fornecido por alguns alunos do ISPA, especialmente J. Pessanha, C. Capela, J. Calisto e R. Serrão. Por razões técnicas foi-nos impossível publicar neste número os trabalhos de F. Carrugatti, N. Lantier-Rafalovitch e Evelyne Burguière, que serão publicados oportunamente em ANÁLISEPSICQLÓGICA. FREDERICO PEREIRA MARGARIDA ALVES MARTINS