PSICOLOGIA CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2004, 24 (4), 22-29
Da Necessidade à Demanda:
Produzindo Sujeitos
From the necessity to the demand: producing subjects
Resumo: O texto visa mostrar parte da complexidade social atual – através dos conceitos de modernidade
e pós-modernidade – enquanto possível produtora de subjetividades afetadas ou condicionadas pela
dificuldade na constituição da dimensão simbólica e imaginária do sujeito e também as estratégias que se
vislumbram, para a Psicologia, no sentido de poder incidir e intervir sobre essas questões.
Palavras-Chave: Subjetividades, modernas, mal-estar, globalização, modernidade, discurso psicológico.
Abstract: The text aims to show part of the modern social complexity – through the concepts of modernity
and post modernity – while possible producer of subjectivities effected by the difficulty to constitute the
symbolic and imaginary dimension of the subject, the strategies that can
be discerned by Psychology, trying to fall on and to interfere in these questions.
Key Words: Modern subjectivities, illness, globalization, modernity, psychological speech.
Rafael Andrés Villari
Jupiterimages
Psicólogo formado
pela Universidade
Federal de Santa
Catarina.Psicanalista.
Mestre em letras.
Doutor em literatura.
22
A intenção geral deste ensaio inclui, além de
responder ao incentivo à produção científica
promovida pelo Conselho Federal de Psicologia
homenageando nosso Dante Moreira Leite, a
vontade de apresentar uma série de reflexões
teóricas que, ao mesmo tempo, possam assinalar e
contribuir, sempre de modo contextualizado, para
questões práticas no campo da Psicologia; de forma
específica, no que diz respeito à necessidade e
destaque da Comunicação Social enquanto
propiciadora da cidadania.
Assim, sabemos que a comunicação é um tipo de
relação humana e humanizante que pressupõe a
participação e a reciprocidade, quer dizer, o
reconhecimento do outro enquanto alteridade.
Nesse sentido, a própria comunidade é definida a
partir da presença do fenômeno comunicacional.
Essa participação recíproca incita modos de ser
que adquirem novos e imprevisíveis significados
quando está em jogo a liberdade. Implica, portanto,
a presença da alteridade entendida como o avesso
do Espírito Absoluto e da Auto-consciência. Por
Da Necessidade à Demanda: Produzindo Sujeitos
isso, a comunicação implica a dimensão
democrática, não enquanto ideologia política, mas
como espaço histórico aberto às transformações
onde o conflito, entendido como contrapoder,
seja considerado legítimo e necessário.
Porém, acreditamos que os tempos atuais —
tentaremos, logo a seguir, justificar o plural em
relação aos tempos — em que nos toca viver, quer
dizer, gozar e produzir, apresentam-se permeados
por circunstâncias onde a comunicação – sem
confundi-la com a circulação de informação
‘democratizada’ pelos meios de massa - aparece
ameaçada e, em alguns casos, impossibilitada,
produzindo sujeitos, subjetividades e identidades
nas quais o saber e a alteridade estariam ausentes
ou prejudicadas. Desse modo, ao longo deste
ensaio, tentaremos problematizar essas questões e
propor estratégias de intervenção possíveis visando
às mudanças necessárias.
Atualmente, geográfica e temporalmente, pareceria
existir algo da ordem que sugerimos chamar de
falta de inscrição da necessidade de saber, em alguns
casos, inclusive, sobre o próprio sofrimento singular
e comunitário. Quando dizemos falta de inscrição,
queremos assinalar a ausência de condições
simbólicas para que o sofrimento e as necessidades
subjetivas possam interrogar o sujeito. Haveria uma
sorte de entropia na qual renunciar-se-ia, cada
vez mais, ao contato com o outro, à socialização.
Por isso, achamos necessário determo-nos,
brevemente, no aspecto sociocultural destes
tempos para tentarmos entender esses fenômenos
geradores de subjetividade. Para isso, cremos que
o termo pós-modermo — e a teoria que comporta
— podem servir-nos para embrenharmo-nos na
difusão de signos culturais que nos rodeiam e
determinam, se suportarmos a condição de
avançar desprovidos de um discurso que possa ser
de consenso geral. Provavelmente, essa
provisoriedade esteja implícita no debate — entre
Habermas e Lyotard — sobre a existência ou não
desse espaço que se define em relação à
modernidade, mas, além da possível continuidade
de um projeto ainda inacabado ou de uma
mudança de paradigma — lembremos que se trata
das posições encarnadas respectivamente pelos
autores acima — sabemos dos efeitos que essa alta
modernidade ou pós-modernidade, como
optamos por chamá-la neste texto, implica
mudança de sensibilidade, quer dizer, uma
transformação.
A natureza e a profundidade dessa transformação
— afirma D. Harvey — são discutíveis, mas
transformação ela é. Não quero ser entendido
erroneamente como se afirmasse haver uma
mudança global de paradigma nas ordens cultural,
social e econômica; qualquer alegação dessa
natureza seria um exagero. Mas, num importante setor
da nossa cultura, há uma notável mutação na
sensibilidade, nas práticas e nas formações discursivas
que distingue um conjunto pós-moderno de
pressupostos, experiências e proposições de um
período precedente (Huyssen, apud Harvey, 1983,
p.45).
Sabemos que a sincronia de paradigmas diferentes é
constituinte da História. Lembremos que paradigmas,
como o medieval e renascentista, por exemplo,
conviveram até que, em algum momento, pôde-se
falar — através do reordenamento de forças — da
predominância de algum deles. Assim, em relação à
modernidade e à pós-modernidade, podemos falar
no mesmo sentido, porém acreditamos que a
quantidade de elementos em jogo atualmente gera
aquilo que Foucault chamou de heterotipia, “Por
heterotopia Foucault designa a coexistência, num
‘espaço impossível’, de um ‘grande número de
mundos possíveis fragmentários’, ou, mais
simplesmente, espaços incomensuráveis que são
justapostos ou superpostos uns aos outros” (Harvey,
1993, p.52).
A super-informação à qual estamos submetidos
pareceria provocar não somente um presente sem
história mas, também, a impossibilidade de falar de
uma história, “[...] é como se, por alguma razão,
estivéssemos impossibilitados, hoje em dia, de
focalizar nosso presente, como se nos tivéssemos
tornado incapazes de chegar a representações
estéticas de nossa própria experiência atual”
(Jameson, 1990, p.33). Desse modo, se o papel do
historiador é o de, como propõe Foulcault (2001) ,
ser um arqueólogo do passado, perguntamo-nos:
qual o lugar do discurso psicológico nesse contexto?
Não fazemos referência a um subjetivismo que resiste
à construção de sua história — destinos possíveis da
resistência — mas de sujeitos cujo silêncio remete ao
vazio subjetivo e para os quais, em situações extremas
de carência, não parece haver acesso nem à
consciência da necessidade. Sem amor, ódio ou
ignorância que possam configurar a possibilidade de
se remeter ao outro, “O problema com o pósmodernismo é que ele relega à História a lata de lixo
de uma episteme obsoleta, argumentando
enfaticamente que a História não existe, a não ser
como texto, isto é, como historiografia” (Huysen,
1983, p.92).
Sejamos mais claros: o discurso da pós-modernidade
está diretamente associado ao capitalismo tardio —
o qual pretende mascarar-se sob o significante
neoliberalismo. Organiza-se de costas à diferença,
tornando absoluto o mercado, homogeneizando os
gozos, relegando ao esquecimento aquilo que não
coincida com seu ideal. Pareceria tratar-se do malestar próprio, singular do nosso tempo.
23
Rafael Andrés Villari
“Esses espetáculos,
monstruosos e
dolorosos, (que)
maltratam nossos
aparelhos de
percepção e de
representação.
Como que
extenuados ou
destruídos por uma
onda muito
poderosa, nossos
meios simbólicos
encontram-se quase
aniquilados,
petrificados. À beira
do silencio emerge a
palavra ‘nada’,
defesa pudica diante
de tanta desordem,
interna e externa,
incomensurável.
Nunca um
cataclismo foi
apocalipticamente
exorbitante, nunca a
sua representação foi
cuidada por tão
poucos meios
simbólicos”
Paradoxalmente, as contradições do cenário pósindustrial que viu nascer a pós-modernidade —
narcisicamente chamado de primeiro mundo —
pareceriam mais extremas na nossa sociedade,
onde não se alcançou, no seu conjunto, o mesmo
estágio produtivo. Acontece que os efeitos daquilo
que nos alcança como pós-moderno parecem
multiplicar-se na medida em que sofremos de uma
profunda heterogeneidade social — onde a brutal
concentração de renda distancia os pólos sociais
— à qual se acirra o caráter fragmentário desta
época: no mesmo espaço urbano, dispomos da
fome e das trufas, do analfabetismo crônico e da
biblioteca virtual.
24
Esses espetáculos, monstruosos e dolorosos, (que)
maltratam nossos aparelhos de percepção e de
representação. Como que extenuados ou
destruídos por uma onda muito poderosa, nossos
meios simbólicos encontram-se quase aniquilados,
petrificados. À beira do silencio emerge a palavra
‘nada’, defesa pudica diante de tanta desordem,
interna e externa, incomensurável. Nunca um
cataclismo foi apocalipticamente exorbitante,
nunca a sua representação foi cuidada por tão
poucos meios simbólicos (Kristeva, 1989, p.202).
Nesse sentido, estarmos alertados sobre o tempo
que habitamos significa encontrarmos suas marcas
em cada demanda, em cada relacionamento
terapêutico, identificando sua natureza histórica.
As marcas deste tempo trazem, além das estruturas
e formas clínicas conhecidas, novas formas
1
subjetivas que desafiam as práticas e as teorias
psicológicas. Inscrevem-se, aí, aqueles pacientes
que fenomenicamente se apresentam através de:
toxicomanias, impulsões, melancolias, fobias
irredutíveis, prevalência do acting-out, transtornos
alimentares, depressões, a psicossomática. Pelo viés
da estrutura discursiva, encontramos dificuldade
na
possibilidade
de
estabelecer
um
relacionamento terapêutico e aquilo que DidierWeill chamou, conforme Heinrich (1993), de “(...)
falta de confiança no significante” (1993, p.9), na
palavra dirigida ao outro, quer dizer, dificuldade
ou impossibilidade de poder articular a
necessidade num discurso.
Kristeva
1 Cf. Melman, Ch. (2003). Novas
Formas Clínicas no início do
Terceiro Milênio. Porto Alegre:
CMC Editora.
de massa, coincidem, junto ao aumento da
procura pelas religiões, com o testemunho da busca
de um fantasma de onipotência prêt-à-porter. De
alguma forma, nós nos encontraríamos frente não
somente ao desengano mas também à
impossibilidade da construção de uma utopia que
fosse precursora e objetivo do desejo partilhado,
comum. Pareceria que hoje estamos cada vez mais
expostos a
Deparamo-nos, assim, com a “Carnavalizacão”. O
termo , desde já, é de Bajtín, e abrange
desordenadamente a indeterminacão, a
fragmentação, a descanonização, a ausência de
eu, a ironia, a hibridacão, (...)” (Hassan, 1991,
p.273), questões que não levam implícito um juízo
de valor, já que as mesmas circunstâncias, em
setores como a estética, por exemplo, provocaram
a possibilidade de inovação e criação mas também
efeitos não muito alentadores na constituição das
subjetividades.
A supermedicalização e o ideal sanitarista que se
veicula, na atualidade, nos meios de informação
Em relação a esses pacientes, “(...) se temos em
conta a emergência histórica desses fenômenos e
sua proliferação, teremos que procurar a lógica da
formação social que se organiza num tipo de laço,
num modo de discurso que é estruturalmente
rechaçante” (Alvarez, 1994, p.360). Dessa forma,
a importância de tentarmos delinear esse espaço
pós-moderno radica nos efeitos que, enquanto
discurso, podem produzir na subjetividade. Tratase da proliferação de afecções — algumas delas
arroladas acima — em que os sujeitos que as
padecem não conseguem atrelar uma demanda a
esse sofrimento: “Poderíamos dizer que o sujeito
está aí ausente ou absolutamente apagado detrás
de uma apresentação pelo lado do ser que não
leva à produção de nenhuma pergunta, de
Da Necessidade à Demanda: Produzindo Sujeitos
nenhum enigma” (Alvarez, 1994, p.359).
Propomos chamar a esse aparente novo destino
do ser de náufragos da pós-modernidade, na
medida em que esses sujeitos parecem habitantes
de
uma
deriva discursiva que não remete a nenhum porto
de partida, ou de chegada, numa espécie de
exclusão não somente do chamado mercado
como também das trocas simbólicas de uma forma
geral.
De alguma forma, esses que chamamos de
náufragos da pós-modernidade – e que talvez
poderíamos chamar de náufragos do neoliberalismo ou da globalização – estão excluídos
do discurso específico que essas instituições
implantaram. Podemos afirmar que essa exclusão
é, de certa maneira, uma exclusão da cultura
dominante. Nesse caso, e sem querer aprofundar
a questão quando nos referimos à cultura, estamos
querendo destacar não somente o sentimento de
pertença dos indivíduos mas também as condições
de contenção e acolhimento que cada cultura
pode oferecer ao sujeito. Citando Sigmund Freud,
para remetermo-nos a um dos autores clássicos da
Psicologia contemporânea, num dos seus textos
conhecidos como sociológicos, O Mal-estar na
2
Civilização (1930) , analisa a situação na qual o
sujeito moderno se insere. Para Freud, o que a
cultura tinha a oferecer ao sujeito era, justamente,
o Mal-estar: “A felicidade, o bem, aquilo que seria
o fim último de toda ação social, política ou moral
o homem, segundo Freud no Mal-estar na Cultura,
não pode esperá-lo nem de seu interior nem do
mundo exterior” (Alvarez & Colovini, 1994, p.10).
Lembremos que, nesse trabalho, Freud explora o
antagonismo irredutível, no seu entender, entre as
pulsões, enquanto manifestação do desejo, e as
restrições da vida em comum na civilização.
Como vimos, falamos anteriormente de um tempo
que poderia estar além do modernismo, quer dizer,
uma situação além ou aquém desse Mal-estar; de
pessoas excluídas, inclusive, desse Mal-estar que
poderíamos chamar de normativo. Por que
normativo? Porque o Mal-estar a que se refere Freud
diz respeito ao campo onde se inserem as
necessidades do sujeito e, com isso, sua
insatisfação, que o impele, de alguma forma, a
desejar e a fazer coisas, ou de outra forma, para
fazer e criar é preciso necessitar, desejar. Daí que,
nessa lógica, tenha que haver uma dose de malestar, de modo tal que leve o sujeito a, querendo
desprender-se dele, fazer – nessa situação
incômoda - coisas em comum.
Mas hoje, nas margens dessa cultura do Mal-estar,
parece surgir um sujeito que não teria acesso à
dimensão da necessidade: “Essa margem social (...)
excede, assim, o que se pode articular a partir do
aparelho do mal-estar na cultura, e seus fenômenos
poderiam definir-se melhor por um estado de
‘horror na cultura’” (Alvarez & Colovini, 1994, p.8),
ou, de outra forma, aquém do Mal-estar.
Além das implicâncias subjetivas assinaladas acima,
vemos, nessas situações de marginalidade e miséria
social, fenômenos que poderíamos caraterizar como
isolamento, fora de discurso, falhas estruturais na
3
ordem da filiação e da identidade. Isso nos leva à
necessidade da, na medida em que se trata de uma
sorte de endemia, prática comunitária: promovendo
a comunicação nos espaços concretos de vida.
Dessa forma, pensamos que a prática do psicólogo
visa a promover, a dar lugar ao Mal-estar na Cultura,
quer dizer, à instalação das necessidades.
A necessidade deve ter um estatuto claro no discurso
do sujeito, incluindo a inscrição das necessidades
fisiológicas ou biológicas. Assinalamos isso porque
há uma suposição biologicista de que essas
necessidades estariam inscritas naturalmente.
Sabemos, no entanto, que o ser falante pouco tem
de natural e que aquilo que não passa pela
linguagem não tem inscrição simbólica, portanto,
não faz parte das necessidades. Às vezes, a falta de
inscrição da necessidade é interpretada como ‘falta
de participação’ das pessoas nos problemas da
comunidade: “Ampliam-se as entidades, grupos e
setores ‘sensibilizados’ com a população e os
problemas sociais: são ONGs e as entidades
filantrópicas, e, paradoxalmente, os setores
populares encontram-se desmobilizados e refratários
à possibilidade de participação” (Quintal de Freitas,
2001, p.4). Essa questão é descrita, também, por
outros autores, como ‘falta de motivação’; assim,
ocorre “[...] não estar realmente motivado para o
atendimento, visto não compreender sua
necessidade e desconhecer o que é um serviço
psicológico, uma vez que esse tipo de trabalho não
tem repercussão no seu universo educacional e
cultural” (Larrabure, apud Moré, 2001, p.87).
Essa situação, no nosso entender, propicia algo que
parece bastante difundido e, inclusive, valorizado,
nestes tempos de filantropia; como diz Cordeiro, “A
concentração de renda se acentua cada vez mais,
ao mesmo tempo em que se difundem ideologias
de um ‘novo humanismo’, citando exemplos de
como seria possível superar a pobreza pelo
voluntariado, pelas iniciativas da filantropia e a
‘compaixão’ entre as pessoas” (2001, p.328). Essa
atitude – que, no nosso entender, reforça ainda mais
as diferenças - iria contra a possibilidade de trabalhar
no sentido de
Criar espaços que permitam o surgimento de alguma
demanda. Dar lugar à necessidade, inscrevendo-a
no discurso, sem ignorá-la. Essa é uma posição
2 Como diz J. Strachey (1997),
editor inglês das obras de Freud,
“O título original para ele
escolhido por Freud foi ‘Das
Unglück in der Kultur’ (‘A
Infelicidade na Civilização’),
mas
‘Unglück’
foi
posteriormente alterado para
‘Unbehagen’, palavra para a
qual foi difícil escolher um
equivalente inglês, embora o
francês ‘malaise‘ pudesse ter
servido. Numa carta à sua
tradutora, a Sra. Riviere, Freud
sugeriu ‘O Desconforto do
Homem na Civilização’, mas foi
ela própria que descobriu a
solução ideal para a dificuldade
no título finalmente adotado.”
(1997). O kultur do título foi
traduzido de diferentes formas.
Assim, encontramos tanto
Civilização quanto Cultura.
3 Cf. Roudinesco, E. (2002) La
famille en désordre. Paris:
Arthème Fayard.
25
Rafael Andrés Villari
ética. Pensamos que as lutas no campo social podem
ser consideradas como tentativas de cura ou como
reforço do sintoma. ‘Cura’ quando se produz um
ponto de separação, um momento em que vacila a
alienação no Outro. A isto se poderia chamar
desmascaramento do Amo, desmascaramento de
sua impostura. O reforço do sintoma se dá na
medida em que é o máximo de alienação, essa
sucção no campo do Outro que aparece como
pleno, consistente (Alvarez & Colovini, 1994, p.10).
De outra forma, trata-se de promover a participação
para a inscrição das necessidades e das demandas.
Nesse sentido, dar é muito diferente de promover.
Algo que se promove é da ordem de uma
potencialidade, e, portanto, não pertence a
ninguém, ninguém pode se senhorear daquilo que
será, mas que ainda não existe. Por outro lado,
podemos nos perguntar: existe um saber-participar
ou se trata de um poder-participar? Haveria, então,
que ensinar a fazê-lo, ou será que há que deixar
que se faça? É possível programar, planificar, indicar
a participação?
Vejamos um caso específico e, desgraçadamente,
recorrente. Trata-se da prática comunitária de
psicólogos que encontraram, numa comunidade
carente, uma altíssima taxa de desnutrição; mesmo
que esse grupo dispusesse de um programa
nutricional oferecido pelo poder público e por
organizações filantrópicas,
Questionamo-nos: essa situação de desnutrição é
vivenciada como um problema? Fazemos essa
pergunta porque a passividade, a indiferença
demonstrada por essas famílias faz supor que não
há registro efetivo da necessidade, ou que existem
outras explicações do que podem perceber nas
crianças, ou interpretações denegatórias; referimonos a fantasmas ou mitos, por exemplo: ‘nós somos
todos magrinhos’. Trata-se, aqui, de uma ‘simples’
denegação? Ou podemos pensar em algo da
ordem do rechaçado? Há ignorância da
necessidade: é necessário se alimentar. A situação
de marginalidade não é unicamente sociológica,
pareceria que esses grupos ficam, assim, excluídos,
à margem de significações organizadoras centrais,
que são as que possibilitam a produção de um
sujeito, o acesso aos sintomas habituais, próprios
do mal-estar na cultura. O que fica afetado é a
possibilidade mesma de o sujeito ser reconhecido
enquanto tal, quer dizer, num discurso que não
ignore a necessidade (Alvarez et al., 1994, p.19).
Dessa forma, no nosso entender, a promoção da
Comunicação Social deve estar, em primeiro lugar,
orientada no sentido de poder dar lugar a que
surja a dimensão da necessidade no discurso.
26
Por isso, no nosso modo de ver, pensar a
intervenção do psicólogo na comunidade,
promovendo a comunicação, significa pensar num
trabalho que faça surgir, no discurso, aquilo que
ainda se encontra somente no registro do real –
como a necessidade de uma boa alimentação,
por exemplo – e que deve se inscrever no simbólico
da linguagem.
É que, ante o acontecimento inexistente – ainda
não sancionado pela linguagem, pelo dito – não
se inscreve enquanto não tem sanção simbólica.
O psicólogo deve produzir, em primeiro lugar, um
fato necessariamente de discurso. Entendemos que
as intervenções deste se registraram na conta de
um dizer, dimensão onde se ponha em jogo a
relação do sofrimento e da subjetividade para,
dessa forma, propiciar a mudança. A partir dessa
perspectiva, pode-se subjetivar o sofrimento, o que
se torna, desse modo, uma forma de particularizar
o sintoma social. É preciso que cada um, na
comunidade, seja ela qual for, se sinta implicado
na sua particularidade pelo que acontece, já que
o universal faz que se perca o sentido e se torne
infinito.
Promover a necessidade significa, no nosso
entender, possibilitar a articulação de uma
demanda. É a partir dela que o Mal-estar poderá
instalar-se. É por isso que a assistência da
necessidade, sem a promoção da demanda –
enquanto inscrição da necessidade no discurso –
não muda a marginalidade social no sentido de
que não inscreve, incorporando os sujeitos nisso
que chamamos de Mal-estar. Para demandar, é
preciso estar inserido no Mal-estar na Cultura.
Assim, pensamos que responder às demandas da
comunidade é uma tarefa necessária mas não
suficiente, porque, sem uma implicação subjetiva
das próprias problemáticas e dos modos de resolvêlas na singularidade de cada grupo social, não
transcenderíamos o nível do assistencialismo que
suporta uma relação cristalizada entre aquele que
tem e aquele que nada pode.
Cremos que esse tipo de prática psicológica
implica, além da postura do profissional, uma
escolha política, no sentido de sua participação
nesse campo de intervenção: “Com sua postura,
permite que os sujeitos retomem para si o que
alienaram nos outros, nos grupos e na instituição
(no nível mesmo da imagem que fazem de si, dos
grupos e da instituição). No limite, é claro, em que
isso for possível” (Guirado, 1987, p.76). Trata-se
de um campo bastante delicado e até, poderíamos
dizer, movediço, que requer uma constante
reflexão crítica no que diz respeito aos espaços de
poder, no qual aspectos políticos, e mesmo
religiosos, podem esconder-se detrás de cada
movimento. Estamos cientes de que, nesse tipo de
prática, há o que podemos chamar de uma
esperança – campo da religião – de mudança –
Da Necessidade à Demanda: Produzindo Sujeitos
campo da política. Nele se espera, indo além do
horror na cultura, encontrar no mal-estar na cultura
a esperança do surgimento de um sujeito e, junto
a ele, a articulação da necessidade e do desejo, “A
análise do cotidiano, no cotidiano, e por meio de
uma fala que veicula o reconhecimento/
desconhecimento sobre ele: eis a natureza dessa
Psicologia Institucional que estamos propondo
aqui. Seu ‘efeito’ é o de estabelecer, na legitimação
do vivido, um corte que faz pensar” (Guirado,
1987, p.76). Por isso, as estratégias de intervenção
são pensadas a partir da própria comunidade:
A aposta é construir algo a partir de uma situação:
pedidos, necessidades, que interpretamos,
possibilitando que se constitua uma demanda. Não
há programa que guie linearmente nossa ação,
senão um dizer sobre o que já está se pensando, às
vezes sem sabê-lo. Não dizemos o que há que
fazer; intervimos sobre o que já está passando,
retroativamente (Alvarez, 1994, p.30).
2001, p.87), quer dizer, ao discurso psicológico. Em
termos de expectativas e estratégias, devemos
lembrar que
(...) as experiências nas comunidades se constituem
uma-a-uma. É a modalidade de cada comunidade
a que imprime os estilos, marca ritmos, determina
opções. Por isso, não se impõe um modelo
metodológico a priori. Devem criar-se dispositivos
apropriados para cada situação específica:
intervenções em grupos e instituições, oferta e
organização de atividades variadas, abordagens de
problemáticas específicas e, fundamentalmente,
abertura do jogo para a convocatória ampla,
pretendendo incidir nas modalidades do laço
social (Alvarez, 1994, p.30).
Assim, para suportar esse tipo de prática, há
somente um imperativo a seguir, que consiste
simplesmente em suspender nosso saber de um
princípio para, escutando o outro, finalmente,
cairmos de nossa posição, que não deve ser mais
do que aquela que promove as potencialidades.
Por isso, a capacidade e disponibilidade para a
escuta e a postura ética tornam-se ferramentas
fundamentais na singularidade desse trabalho,
porque os tempos, como vimos, mudaram:
“Durante muitos anos, a Psicologia permaneceu
nos rígidos compartimentos estanques da ‘clínica’,
‘educação’, ‘social’ e ‘laboral’, mas, quando se
entra na comunidade, as paredes desses
compartimentos se desmoronam” (Calatayud,
1991, p.368). Vemos, inclusive, que, em alguns
casos, o conhecimento da Psicologia pareceria
perder-se, quando de intervenção prática se trata,
na passagem do espaço privado ao público.
Dessa forma, aparece o que chamamos de uma
prática que visa – lembremos a articulação anterior
da demanda, a necessidade e a linguagem – a
reconstituição ou nova instauração de um laço
social comum, dando lugar à singularidade do
discurso: “Com que propósito? O de abrir uma
fenda no discurso do Amo que, como tal, tem um
efeito hipnótico, adormecedor, no sentido de evitar
que se ponha em jogo alguma diferença” (Gerlero,
1994, p.64). Lembremos que o discurso do Amo
– ou do Mestre – diz respeito ao controle; por isso,
vemos que, “(...) surgiram subculturas para as quais
a ajuda psicológica tem ficado a cargo de
psiquiatras, clínicos gerais e tratamentos
medicamentosos oferecidos pela Previdência
Social; (...) esse modelo tradicional tem revelado
uma relação patronal psicólogo-cliente que foge
à essência da atitude clínica” (Macedo, apud Moré,
“(...) surgiram
subculturas para as
quais a ajuda
psicológica tem
ficado a cargo de
psiquiatras, clínicos
gerais e tratamentos
medicamentosos
oferecidos pela
Previdência Social;
(...) “
Gerlero
Para finalizar, gostaríamos de dizer que pensamos
que, se conseguirmos manter a liberdade —
distanciando-nos de programas que tentam,
através da imposição e sedução do discurso do
Amo moderno, assimilá-la à lógica de poder pósmoderno — poderemos oferecer uma resposta
singular àqueles que, submetidos à pobreza
subjetiva, física e social dominante consigam —
através de seu sofrimento singular — alinhavar, a
partir da necessidade, uma demanda de saber.
27
Rafael Andrés Villari
Sendo assim, o discurso psicológico poderia
localizar-se na contracorrente do suposto bemestar que marca a impossibilidade de fazer e falar
uma história rechaçando o aparecimento do
4
sujeito da nossa história .
Acreditamos que, enquanto psicólogos e cidadãos,
somos testemunhas, atores e autores de uma época
5
que pressupõe e incita à criação e ao desafio .
Pensamos que encontrar respostas e posições
morais – coletivas - e éticas – pessoais - nesse
ambiente torna-se condição da nossa geração para
que, alhures, o discurso psicológico possa manterse vivo e necessário. Supomos que já nos cabe essa
responsabilidade. Inovar significa, no nosso modo
de pensar, poder, ante o aparecimento dessas
diferentes condições subjetivas, culturais e sociais,
4 Cf., entre outros, Virno, P.
(2003) El recuerdo del presente.
Ensayo sobre el tiempo histórico.
Buenos Aires: Paidós.
5 Cf. Derrida, J. & Roudinesco,
E. (2003) Y mañana, qué ...
Buenos Aires: Fondo de Cultura
Económica de Argentina.
28
encontrar a brecha onde avivar o discurso
psicológico nestes tempos assépticos, que reduzem
o sujeito desejante e social a um ente físicoquímico. Para isso, acreditamos que deveríamos
questionar-nos de forma profunda e constante
sobre o laço social com a comunidade onde
inserimos não somente nossa prática mas, também
e principalmente, nossos fracassos, triunfos, sonhos
e paixões.
Desejamos, agora, sim, finalizando, além de ter
construído um texto consistente sobre alguns
aspectos da Comunicação Social, ter podido
transmitir, da melhor forma, tanto nossa intenção
de reflexão crítica da teoria e da prática psicológica
quanto nossas escolhas éticas e políticas.
Da Necessidade à Demanda: Produzindo Sujeitos
Rafael Andrés Villari
Av. Trompowski, 84/702
Cep.: 88015-300 Florianópolis/SC
E-mail:
[email protected]
Recebido 07/04/04 Aprovado 25/08/04
ALVAREZ, A. R. Del Paisaje a una Cartografia. In Argumentos n° 4.
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