Dossiê
ESCRITAS HUMANAS, MAS NÃO HUMANÍSTICAS
HUMAN, YET NOT HUMANISTIC, (KINDS OF) WRITING
Inês Signorini*
RESUMO
Partindo-se da noção de “outros estruturais” do sujeito projetado/produzido pela tradição
humanista, apresentada por Braidotti (2011; 2013; 2016), defende-se que as tecnologias da
escrita, notadamente o texto e o livro, são elementos constitutivos do sujeito do humanismo
e que tais tecnologias têm seus “outros estruturais” a serem também considerados. Através do
exame de escritas ditas “menores” produzidas por interlocutores relevantes do pensamento
pós-humanista crítico e de outros tipos de escrita produzidos por dois artistas contemporâneos,
que atuam no campo da dramaturgia e das artes plásticas, procura-se demonstrar como
funcionam esses outros dos modelos de escrita consolidados pela tradição humanista,
notadamente os modelos grafocêntricos do racionalismo tecno-científico. Na medida em que
favorecem a produção de devires por um sujeito material e situacionalmente encarnado, em
contraposição a um cógito ou consciência transcendental desencarnada, afirma-se que os tipos
de escrita examinados são relevantes para uma reflexão pós-humanista crítica.
Palavras-chave: pós-humanismo; escrita; assemblage.
ABSTRACT
Based on the notion of “structural others” of the humanistic subject (BRAIDOTTI, 2011,
2013, 2016), it is argued that writing technologies, in particular the text and the book,
are constitutive elements of this subject and that the “structural others” of these writing
technologies should also be considered. To illustrate the structural others of the writing
models consolidated by the humanistic tradition, especially the grafocentric models of
technical-scientific rationalism, the so-called “minor” writings produced by relevant
humanistic authors and other types of writing produced by two contemporary artists
working in the field of dramaturgy and the visual arts are examined. It is claimed that such
writings are relevant to a post-humanist critical reflection because they favor the production
of becomings by a materially and situationally embodied subject, as opposed to a cogito or
disembodied transcendental consciousness.
Keywords: post-humanism; writing; assemblage.
1. COLOCANDO A QUESTÃO: OS “OUTROS ESTRUTURAIS” DO HUMANISMO
A filósofa Rosi Braidotti, ao assumir uma “posição pós-humanista crítica”
(BRAIDOTTI, 2011; 2013; 2016), nos termos do feminismo pós-estruturalista1 de
combate ao aparelho ontológico, epistemológico e político da tradição humanista
* Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, SP, Brasil.
[email protected]
1. “[I]t is a move toward radical immanense against all Platonist paradigms and classical humanist denials of
embodiment, matter, and the flesh.” (BRAIDOTTI, 2011 p. 303).
http://dx.doi.org/10.1590/010318132019588655887
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e antropocêntrica2, tem enfatizado a irrupção, no sentido teatral do termo, do
que denomina “outros estruturais” do sujeito projetado/produzido pela tradição
humanista desde a Renascença dos séculos XIV a XVI até o liberalismo e marxismo
dos séculos XX e XXI, passando pelo Iluminismo dos séculos XVIII e XIX.
Esses “outros”, como mostra Braidotti, já vinham sendo iluminados, isto é,
impulsionados e tornados visíveis pelos movimentos sociopolíticos que marcaram o
século XX: “o movimento pelos direitos das mulheres; os movimentos anti-racismo
e pró descolonização; os movimentos antinucleares e pró meio ambiente são as
vozes dos ‘outros’ estruturais da modernidade”, que, como afirma numa entrevista,
“marcam a crise do antigo ‘centro’ humanista ou posição de sujeito dominante”
(VERONESE, 2016, p. 98).
Se, por um lado, essa “posição de sujeito dominante” construída na/pela
tradição humanista é ocupada por uma categoria genérica de abrangência universal
– o homem como a medida de todas as coisas, desde Protágoras; um ser único
na natureza, segundo a filosofia cristã; pura razão e intelecto desde as Luzes e o
racionalismo técnico-científico; uma essência desencarnável e mobilizável desde a
revolução tecno-cogno-genética do século XX – por outro, essa categoria genérica
tem como referência um sujeito bem específico, no sentido de sociohistoricamente
situado, como insiste Braidotti (2013) na esteira do feminismo: trata-se do branco
europeu de sexo masculino, heterosexual, urbano, falante de uma língua padrão.
A essas especificações elencadas pela autora, deve-se acrescentar a da
relação constitutiva desse sujeito com as tecnologias da escrita, particularmente o
texto e o livro. Trata-se de uma relação constitutiva na medida em que o tornar-se
humano3 enquanto ser de conhecimento, de imaginação e de juízo (razão, memória,
consciência) passa, necessariamente nessa tradição, pelo exercício da leitura/
escritura, pelo texto, conforme amplamente descrito pelos historiadores do livro
(GOODY, 1979; CHARTIER, 1993; 1997; MANGEL, 1996). E como salienta
Vandendorpe (1999)4, o livro é um objeto emblemático do humanismo por sua
função totalizante de saturação de um dado campo do conhecimento.
2. Como destacam feministas (HARAWAY, 1991; IRIGARAY, 1991; HAYLES, 1999; por exemplo) e demais
críticos da modernidade ocidental, sobretudo na França da segunda metade do século XX (DELEUZE, 1962;
DELEUZE E GUATTARI, 1980; FOUCAULT, 1976; LYOTARD, 1979), nesse aparelho se assentam tanto
o falogocentrismo eurocêntrico (DERRIDA, 1978), quanto o necrocapitalismo informatizado dos anos 2000
(MBEMBE, 2003).
3. “O humano não é natureza e sim cultura: “Os homens não nascem homens, eles tornam-se homens (Erasmo)
L’humain n’est pas nature, mais culture : “Les hommes ne naissent pas hommes, ils le deviennent” (ÉRASME).
4. “Advinda da dupla origem judeo-cristã, esta valorização do livro se manterá por muito tempo.
Culminará num poeta como Mallarmé, extremamente sensível à dimensão visual do livro: ‘[...]
tudo no mundo existe para acabar num livro’ “ (VANDENDORPE, 1999, p. 20).
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Mas como descreve Latour (1994), esse tornar-se humano vai se configurando
desde as Luzes como um processo de “purificação”, no sentido de redução de um
sujeito específico a “o puro pensamento instrumental e calculista” projetado pela
racionalidade científica da era moderna (LATOUR 1994, p. 9). E, nesse processo
de redução, as tecnologias da escrita que vão ocupar o centro, a posição dominante,
são orientadas pelo mesmo projeto: despojamento de contingências contextuais
(psicológicas, sociais, políticas, religiosas), e de toda a retórica herdada da tradição
erudita escolar e livresca de antes.
É o que aponta uma publicação de 1667, dirigida aos cientistas da Royal
Society em Londres, na qual paixões e emoções são vistas como perturbações na
busca pela verdade científica, como empecilhos ao exercício de “o puro pensamento
instrumental e calculista”, acima mencionado: “Os debates científicos tendem a ser
intelectuais e ‘desapaixonados’, em vez de emocionalmente perturbadores, pelo
menos enquanto ambos os lados se apegam à verdade e se abstêm de usar aqueles
truques retóricos que aprenderam na escola.”5 (SKOUEN, 2011, p. 37)
Nesse sentido é que se pode dizer que o texto projetado pela ciência moderna
e que vai parametrizar a produção de conhecimento válido em todos os campos
se quer autônomo, isto é, autoconsistente, transparente e neutro, fruto de uma
escrita própria do humano “purificado” de que fala Latour, ou seja, essencializado
(identidade), descorporificado (cogito) e transportável ou mobilizável (aparato
sociotécnico).
A essa escrita dita masculina, embora a variável sexo não seja determinante,
como mostra Addicott (2012), ao comparar etnografias produzidas por homens
e mulheres, se contrapõem outras, ditas femininas, no sentido de encarnadas
(corporalidade), não unificadas e nômades (subjetividades não unificadas e
relacionais, segundo Braidotti (2011)) e sociohistoricamente situadas (quanto a
sexo, gênero, raça, classe social, por exemplo). Mas como essa contraposição não é
excludente na tradição humanista, coloca-se a questão de como tem se manifestado
ao longo dos processos de consolidação do humanismo esse “outro estrutural”
da escrita dita instrumental ou “objetiva”, alçada a uma posição dominante pelo
racionalismo tecno-científico. Dizendo de outra forma, coloca-se a questão da
genealogia desse outro estrutural das tecnologias da escrita humanística, desde
antes do Iluminismo até a contemporaneidade.
5. “Scientific debates tend to be intellectual and ‘unpassionate’ rather than emotionally disturbing, at least as long
as both sides stick to the truth and refrain from using such rhetorical tricks as they have learnt at school.”
(SKOUEN, 2011, p. 37)
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A reflexão pós-humanista crítica apreende esse “outro”, mas sem nomeá-lo
como tal, quando associa escrita, subjetividade e performatividade, na esteira do
feminismo pós-estruturalista. Conforme apontado nas seções a seguir, trata-se de
uma escrita que não se configura como mediação (transparência) ou espelho (reflexo
metafísico ou bio-cognitivo, representação) e sim como campo exploratório ou
zona de experimentação: “Escrever não tem nada a ver com significar, e sim com
explorar, mapear, inclusive territórios ainda por vir”6 (DELEUZE e GUATTARI,
1980, p. 11).
2. OUTROS ESTRUTURAIS DA ESCRITA INSTRUMENTAL E REPRESENTATIVA NA
TRADIÇÃO FILOSÓFICA HUMANISTA
Permeável às forças do fora, ou seja, aos vetores de desorganização ou de
desterritorialização, às “linhas de fuga” ou fluxos de possibilidades, nos termos
de Deleuze e Guattari (1980), a escrita como campo exploratório ou zona de
experimentação é constituinte da subjetividade7 e, como tal, se compara, segundo
Braidotti (1988, p. 78), a um “tanque de decantação” de “todas as possibilidades
entreabertas, os quase, os já não mais, as aproximações e os restos” de uma “travessia”
por entre nós e interstícios8:
Essa escrita, que não é nem a do exílio, nem a dos relatos de viagem, é uma eterna ida e vinda
sem destino prévio e nem horários fixos. Um jogo feito de cruzamentos: não o percurso
monótono do migrante, mas a diagonal ao infinito do nômade, do louco, do ladrão. (...)
passando pelos buracos que fazem a teia, pelos pontos que constituem a rede. Espaço liso de
uma incrível travessia. 9 (1988, p. 78)
A projeção de um sujeito constituído por forças externas, não-humanas,
inorgânicas ou tecnológicas, relaciona diretamente o “nomadismo filosófico
radicalmente imanente” de Braidotti ao “maquínico” deleuziano enquanto “processo
dinâmico de desdobramento da subjetividade fora do quadro clássico do sujeito
humanista antropocêntrico, re-localizando-o em devires e campos de composição
6. “Ecrire n’a rien à voir avec signifier, mais avec arpenter, cartographier, même des contrées à venir” (DELEUZE
e GUATTARI, 1980, p. 11).
7. “Meus territórios estão fora de alcance, e não por serem imaginários, ao contrário: porque estou prestes a traçálos.” (DELEUZE e GUATTARI, 1980, p. 244)
8. “somme de toutes les possibilités entrouvertes, des presque et des déjà-plus, de l’approximation et des restes.”
(1988, p. 79)
9. “Cette écriture-là, qui n’est ni celle de l’exil ni celle des récits de voyage, c’est un éternel départ/retour sans
destination préalable ni horaires fixes. Ça sera un jeu de croisements: non pas le parcours monotone du migrant
mais la diagonale à l’infini du nomade, du fou, du voleur. (…) passant partout dans les trous qui font le filet, dans
les points qui constituent le réseau. Espace lisse d’une inénarrable traversée.” (1988, p. 78)
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de forças e devires”10(BRAIDOTTI, 2006, s/n). Essa despersonalização do
subjetivo, no materialismo deleuziano e no pós-humanismo crítico, faz com que os
processos de produção de linguagem, no caso a escrita, não sejam compreendidos
como expressões ou representações de uma identidade ou estado pré-existente
e passem a ser apreendidos como processos impessoais de subjetivação (em
contraposição aos internos de natureza psicológica, psicoafetiva, cognitiva, ou
metafísica, propostos pela tradição humanista) e de criação de possibilidades (em
contraposição às proposições conceituais da filosofia clássica).
Voltando à questão de como tem se manifestado ao longo dos processos
de consolidação do humanismo esse “outro estrutural” da escrita instrumental ou
representativa, são relevantes as “formas em processo” que respondem à “vontade
de experimentação”, como no caso dos ensaios e aforismos – aforismas-ensaios
(CORREIA, 2013), ou ensaios aforismáticos (LOPES, 2006) – na obra de Nietzsche,
um interlocutor chave do pós-humanismo materialista e crítico. Os aforismos11 de
Nietzsche são, de fato, apontados por Deleuze como manifestações de uma relação
com o fora (2002, p. 355), portanto com os “campos de composição de forças
e devires” a que se refere Braidotti na citação acima (2006, s/n), o que os torna
instrumentos performativos, ou seja, de produção, e não de representação do real.
Enquanto “pensamento nômade”, como quer Deleuze, “pensamento nãosistemático, inacabado e sem seguranças arquitetônicas”, “não apenas assistemático,
mas antissistemático” e anti-dogmático, nos termos de Correia (2013), as formas
de exposição nietzschianas são “formas em processo”: “Nomeadamente indicamos
o ensaio e o aforismo, formas afins ao que não possui arte final, ao pensamento que
se esquiva de respostas porque experimenta perguntar a cada instante e novamente;
e que exerce o direito da contradição” (CORREIA, 2013, p. 804).
Para Stegmaier (2013), “[o]s aforismos de Nietzsche são dispostos com o
intuito de não fixar seu pensar para sempre, mas sim de migrar sempre para novos
contextos, de revelar sempre novos círculos de cultura” (2013, p. 284), por isso a
preferência pelo estilo aforismático não é por acaso, como explica Marton (2001):
“se perseguir uma ideia é abandonar várias outras pelo caminho, o que é o aforismo
senão a possibilidade de perseguir uma ideia partindo de diferentes perspectivas?
10. “The ‘machinic’ in Deleuze’s thought refers to this dynamic process of unfolding subjectivity outside the classical
frame of the anthropocentric humanistic subject, re-locating it into becomings and fields of composition of
forces and becomings.” (BRAIDOTTI, 2006, s/n)
11. [...] concentrado geralmente num espaço muito restrito (uma palavra ou fórmula, um sintagma nominal, uma
frase – embora ninguém saiba ou possa precisar os seus limites, pode ir até à extensão do ensaio, aí é mais
flexível do que provérbio e máxima), e comprimindo nesse espaço uma reflexão, imagem, ideia, jogo de palavras
ou conceitos. (TOPA, 1998, p. 25; citado por CORREIA, 2013, p. 808)
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Adequado ao perspectivismo, o estilo que ele [Nietzsche] adota põe-se assim a
serviço do experimentalismo” (MARTON, 2001, p. 91).
Do mesmo modo, os ensaios nietzschianos “são como pedras de mosaico”,
nos termos de Correia (2013, p. 807), cuja relação é de ressonância, não atendendo,
portanto, aos parâmetros de uma arquitetura racional ou ordem cartesiana.
Mas antes de Nietzsche e de Descartes, Montaigne, o criador do gênero
ensaio, é outro interlocutor relevante a ser considerado. Em sua única obra, Les Essais,
cuja primeira edição completa é de 1588, Montaigne assim se refere à linguagem
que calculadamente elegeu para explorar e mapear seu encontro, apropriação e
distanciamento dos modelos da antiguidade clássica e de refutação das certezas de
sua época: “O falar que aprecio é um falar simples e natural, tanto no papel como
na boca (...) livre de afetação, desordenado, descosido” (MONTAIGNE, 1988, p.
172; citado por ARAÚJO, 2012, s/n)
Como mostra Araújo (2012), tratava-se de uma nova maneira de escrever
que se contrapunha explicitamente aos modelos das “Belas Letras” de então e que
estava relacionada “à noção de experimentação e movimento”, ao “registro do
agente” no sentido de registro, em primeira pessoa, de um percurso ou travessia,
segundo a analogia de Braidotti, mencionada acima. Montaigne chega a afirmar que
se tratava mais de enfrentar as “quimeras” e “monstros fantásticos” que o assaltavam,
do que propriamente falar de si mesmo. Segundo Eva (2007), “[o] inventário de
tais ‘monstros’ que viria a ser os Ensaios tem seu valor inicialmente lastreado no
modo como ele exibe a desordem da alma e na possibilidade de que o contato com
seu aspecto perturbador tenha algum efeito benéfico”, no sentido de terapêutico
(2007, p. 406; itálico no original).
Mas a escrita, o livro, têm sobretudo caráter performativo em Montaigne,
como explica Birchal (2007): “[o] eu, em Montaigne, não é pressuposto como
um objeto que já está lá, mas depende, em grande parte, como um resultado, do
trabalho formador da escrita.” (2007, p. 147). E, como enfatiza Safatle por ocasião
do lançamento da tradução brasileira dos Essais, em 2011, é preciso lembrar que “este
‘eu mesmo’ é uma forma de escrever (...) um mundo marcado pela dissolução de
suas certezas, pela desagregação da estabilidade de seus objetos”, sob o impacto da
reforma, da contrarreforma e da descoberta de novos mundos (SAFATLE, 2011).
A tese de Moriarty (2015), de que “é difícil imaginar o trabalho de Descartes
tomando exatamente a forma que tomou sem Montaigne”12 (2015, p. 1), é relevante
para a compreensão de como o embate com um discurso “menor” constituiu o
12. “it is hard to imagine Descartes’s work taking precisely the form it took without Montaigne” (MORIARTY,
2015, p. 1).
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pensamento “vencedor” do racionalismo (o Discurso sobre o método, de Descartes, data
de 1637). De seu levantamento dos ecos de Montaigne em Descartes, mesmo o
primeiro não sendo citado pelo segundo, Moriarty destaca o etos de livre pensador,
o ceticismo filosófico e a consequente abertura para diferentes visões (2015, p.
1-2), concluindo que a construção de “conhecimento confiável” em Descartes
“é auxiliado pela demolição, empreendida por Montaigne, das estruturas de
conhecimento existentes”13 (MORIARTY, 2015, p. 1).
Mas foi com o iluminista Diderot14, outro interlocutor chave do póshumanismo materialista e crítico de Braidotti, que se pode melhor observar o
funcionamento de um discurso “menor”, desta vez corroendo por dentro o que
se poderia chamar de discurso maior, a exemplo da “literatura menor” em Kafka,
segundo Deleuze e Guattari (1977, p. 28): “menor não qualifica mais certas
literaturas, mas as condições revolucionárias de toda literatura no seio daquela que
chamamos de maior (ou estabelecida)”. Para aquele que escreve trata-se, segundo
esses autores, de “[e]screver como um cão que faz seu buraco, como um rato que
faz sua toca. E, para isso, encontrar seu ponto de subdesenvolvimento, seu próprio
patoá [dialeto], seu próprio terceiro mundo, seu próprio deserto”. (DELEUZE;
GUATTARI, 1977, p. 28-29)
No caso de Diderot, a experimentação na/pela escrita e consequente desafio
às expectativas do pensamento filosófico dominante - o do método e rigor dedutivo
do logos em Descartes, Newton, D’Alembert e outros - dá-se através de diferentes
gêneros emprestados à literatura ficcional, sobretudo narrativos e dialógicos (cartas
fictícias, diálogos, pensamentos, comentários de obras, digressões, compêndios,
etc). É ilustrativo a esse respeito o diálogo encenado com o matemático d’Alembert,
em que apresenta, na passagem abaixo transcrita, sua versão de como um discurso
“menor” afeta e move um discurso dominante ou majoritário:
A corda vibrante sensível oscila, ressoa por muito tempo ainda, depois de ser dedilhada. É essa
oscilação, essa espécie de ressonância necessária que mantém o objeto presente, enquanto o
entendimento se ocupa da qualidade que lhe convém. Mas as cordas vibrantes gozam ainda
de outra propriedade, é a de fazer outras fremir, e é assim que uma primeira ideia chama a
segunda; as duas, uma terceira; todas as três, uma quarta, e assim sucessivamente, sem que
possamos fixar o limite das ideias, despertadas, encadeadas, no filósofo que medita ou se ouve
no silêncio e na obscuridade. Esse instrumento dá saltos surpreendentes, e uma ideia desperta
fará às vezes fremir uma harmônica que dele se encontra a um intervalo incompreensível. Se o
fenômeno ocorre entre as cordas sonoras, inertes e separadas, como não haverá de produzir-
13. “In his construction of reliable knowledge he is assisted by Montaigne’s demolition of existing knowledgestructures” (MORIARTY, 2015, p. 1).
14. Denis Diderot, co-fundador, editor chefe e autor de vários verbetes da Encyclopédie (Enciclopédia ou Dicionário
racional das ciências, das artes e dos ofícios, publicada em 1751), juntamente com Jean le Rond d’Alembert.
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se entre os pontos vivos e ligados, entre as fibras contínuas e sensíveis? (DIDEROT, 1979,
p. 2012-213)
É consenso entre seus leitores contemporâneos que Diderot inventa uma
dicção filosófica própria e ímpar, de natureza polifônica, imagética, metafórica e
em forma de teia de aranha (BOURDIN; DUFLO, 2008) “para dizer o que não
era ‘dizível’, ou que ainda não tinha sido dito tão bem e de modo tão poéticointeligível” (QUINTILI, 2002, p. 214). E, como apontam Bourdin e Duflo (2008),
a figuração em Diderot se deve ao fato de ele ser “sensível, bem antes de Bergson,
à heterogeneidade da linguagem e dos estados de alma, ou, antes de Mallarmé,
à defasagem entre os significados desgastados da língua e a singularidade do que
pensamos e sentimos”15 (2008, p. 9).
Diderot é, pois, um interlocutor relevante para a figuração contemporânea
do pensamento nômade enquanto vontade de experimentação e “tomada de risco”
(PUJOL, 2015), e das tecnologias da escrita e dos dispositivos ficcionais enquanto
produção de devires, nos termos de Braidotti (2011) lendo Deleuze e Guattari
(1980), na medida em que, como aponta Pujol (2015),
Por nomadismo, é preciso entender primeiramente a capacidade de Diderot de explorar novos horizontes
de pensamento, sua vontade de abolir as fronteiras entre as disciplinas e os discursos. É preciso entender
também uma maneira de se deslocar de uma ideia a outra, de uma posição a outra, de interrogá-las a
cada vez sob uma nova luz, segundo uma perspectiva ao mesmo tempo crítica e autocrítica. (...) Se a
reflexão de Diderot apresenta uma forte dimensão dialógica, não é apenas porque ela convoca a figura de
interlocutores múltiplos nas obras que recusam todo discurso de autoridade, mas também porque é capaz
de estabelecer o diálogo consigo mesma, de se desdizer, de se refutar. (PUJOL, 2015, p. 45)
Sobre a exploração de novos horizontes de pensamento, nos termos acima,
um exemplo, entre outros, é a reflexão desenvolvida sobre a origem e a natureza
das espécies e a relação humano/não humano em O sonho d’Alembert (DIDEROT,
1979, pp. 222-295), e seus ecos, juntamente com os de Spinoza, Leibniz e outros,
no materialismo vitalista contemporâneo (BOURDIN, 1998; IBRAHIM, 1999;
HAYAT, 2003; HERNÁNDEZ, 2003; entre outros).
Se considerado seu trabalho como editor e como autor da Encyclopédie, obra
emblemática das Luzes, chama a atenção dos leitores contemporâneos o caráter
hipertextual e rizomático (em contraposição a arborístico) de um conjunto complexo
de remissões entre artigos, obedecendo a diferentes estratégias de organização,
15. “il est sensible, bien avant Bergson, à l’hétérogénéité du langage et des états de notre âme, ou, avant Mallarmé,
au décalage entre les significations usées du langage et la singularité de ce que nous pensons ou ressentons. Pour
les réduire, il faut inventer des images qui concentrent, autant que possible, le maximum d’éléments de ce qui
est senti et conçu” (BOURDIN E DUFLO, 2008, p. 9).
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hierarquização e relação entre temas (cf. REGIS et al, 1981), inclusive estratégias
de despistagem da censura, tanto do rei quanto da Igreja.
Além disso, trata-se de um dicionário, portanto organizado segundo uma
ordem alfabética, isto é, arbitrária, mas pensado segundo uma lógica enciclopédica,
no sentido de possibilitar o acesso ao conhecimento científico e literário “ao maior
número”, ou seja, a não especialistas, aos quais é dada a possibilidade de decidir
sobre o quê e em que sequência buscar o que for de seu interesse. A tentativa de
conciliar as duas ordens de organização da obra através de um plano – a “árvore dos
conhecimentos” inspirada em Bacon – e outros procedimentos explicados pelos
editores nos textos de apresentação foi, como mostra Leca-Tsiomis (2006), vã.
É justamente o caráter assistemático e não lógico das relações estabelecidas
pela teia de remissões que constituem o conjunto dessa obra de referência do Iluminismo que
tanto remete a Diderot e sua escrita outra, em forma de teia de aranha (BOURDIN;
DUFLO, 2008), como aponta para uma lógica de funcionamento que só ganharia,
de fato, visibilidade com o advento das redes computacionais no século XX, como
defende Chauderlot (2002):
Entre os fios da teia enciclopédica e as redes da hiper-teia computacional, o princípio que
funciona, afinal, é o que os próprios enciclopedistas precisavam para passar do conhecimento
estanque dos objetos ao conhecimento diferencial e não lógico das relações entre eles.16
(CHAUDERLOT, 2002, 59-60)
É interessante observar aqui que, da mesma forma como a teia de remissões
da Enciclopédia escapa e subverte o princípio racionalizante que subjaz ao projeto
de um dicionário “racional das ciências, das artes e dos ofícios”, tentativamente
reproduzido pela “árvore dos conhecimentos” já mencionada, os usos, apropriações
e potenciais desdobramentos das redes da hiperteia computacional também fazem
divergir tanto o projeto técnico-científico que lhes deu origem (informática),
quanto o projeto político-ideológico que lhes dá sustentação (capitalismo cognogenético). Dos memes ao beatbox com Google tradutor, passando pelas tags
comentários do Tumblr e pela arte feita com Excel, para citar os mais populares,
são numerosos os exemplos contemporâneos de processos de subjetivação não
individuais pela associação com tecnologias computacionais na tentativa de “dizer
o que não era ‘dizível’, ou que ainda não tinha sido dito tão bem e de modo tão
poético-inteligível”, nos termos de Quintili (2002, p. 214), mencionado acima.
16. “Entre les lignes de la toile encyclopédique et les réseaux de l’hypertoile informatique, l’appareil de pensée qui
fonctionne est enfin celui dont les encyclopédistes eux-mêmes avaient besoin pour passer de la connaissance,
figée, des objets à celle, différentielle et illogique, de leurs rapports.” (CHAUDERLOT, 2002, 59-60)
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Mas é no campo das artes que esse fazer divergir torna-se mais claramente o
motor de um pensamento nômade enquanto vontade de experimentação e “tomada
de risco” para dar forma ao indizível, mapear o que não se vê ou ainda está por
vir. O dramaturgo Antonin Artaud e sua proposta de um Teatro da Crueldade17
que subvertesse a fixidez “paranoica e narcotizante” no corpo, mente e linguagem
foram uma referência concreta no caso do materialismo radical de Deleuze18 (1975)
e Deleuze e Guattari (1980; 2007). Na seção a seguir são focalizados dois outros
exemplos de referências contemporâneas mais recentes.
3. OUTROS ESTRUTURAIS DO LOGOS HUMANISTA NO CAMPO DAS ARTES
CONTEMPORÂNEAS
No mundo das artes, a questão da subversão da fixidez “paranoica e
narcotizante” no corpo, mente e linguagem tem a ver com a confrontação sistemática
com o desgaste, o esgotamento e o consequente enfraquecimento das formas e
práticas já estabelecidas. A proposta do Teatro da Crueldade de Artaud, formulada
na década de 1920 e bastante influente desde então, é radical nesse sentido: “é
preciso que as coisas arrebentem para começar tudo de novo” (ARTAUD, 2006,
p. 86). O corpo do ator como o lugar primordial do ato teatral, a cena como
um espaço de apelo aos sentidos19, em detrimento do diálogo, do texto
e da representação (mimesis) dirigidos à mente, espírito ou raciocínio, é a grande
contribuição desse dramaturgo.
Um modo de intervenção inspirada pela obra de Artaud e de pós-estruturalistas
como Lyotard (1979) tem se mostrado relevante em ecologias forjadas, como tem
insistido Braidotti (2013; 2018), pela confluência contemporânea entre “capitalismo
cognitivo”, anti-humanismo e pós-antropocentrismo, em suas dimensões ambiental,
socioeconômica, afetiva e psíquica. Trata-se do teatro pós-dramático, denominação
cunhada no final da década de 1990, para designar realizações cênicas que se
contrapunham à tradição europeia do dramático que, desde a Renascença até
a primeira metade do século XX, ancorava-se num texto pré-existente, como na
concepção hegeliana e também na brechtiana do drama.
17. “Uma das razões da atmosfera asfixiante, na qual vivemos sem escapatória possível e sem remédio – e pela
qual somos todos um pouco culpados, mesmo os mais revolucionários dentre nós –, é o respeito pelo que
é escrito, formulado ou pintado e que tomou forma, como se toda expressão já não estivesse exaurida e não
tivesse chegado ao ponto em que é preciso que as coisas arrebentem para começar tudo de novo.” (ARTAUD,
2006, p.83).
18. A esse respeito, ver também Visser (2014).
19. Sobre as relações da proposta de Artaud com as artes plásticas, sobretudo a pintura, ver Jardim (2018).
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Segundo Asholt (2019), “[o] teatro pós-dramático vai além (...) dos limites
do drama para proceder a uma desconstrução do teatro de representação ou à
representação no teatro.”20 (2019, p. 3; itálico no original). Mas como defende
Barbéris (2013), trata-se, antes, de uma mudança de direção, na medida em que o
platô ou palco21 (plateau) é tomado em “sentido literal”, ou seja, como “um espaço
experimental e imanente”, como “espaço de projeção e de impressão de novas
formas teatrais”, exigindo uma escrita teatral outra: a escrita de platô (écriture de
plateau). Uma escrita que desloca o texto e o autor para dar espaço ao criador, ou
“escritor de platô” (écrivain de plateau) (BARBÉRIS, 2013, p. 26), e para linguagens
diversas num conjunto de mídias também diversas visando um espetáculo mais
centrado na performance ou na dramaturgia visual, ou seja, não comprometido com
unidade de ação, tempo, espaço, ou personagem; ou com profundidade histórica e
não contradição.
Como aponta Monfort (2009), na escrita de platô22 “o texto integra o
conjunto do processo teatral, mas não o precede”, não havendo, assim, uma fábula
pré-existente ao jogo do ator: não há “uma ação fictional independente do palco,
que seria imitada pelos meios do ator e da teatralidade” (MONFORT, 2009, p. 10).
E, como mostra Barbéris (2013), são ampliados os limites da cena pela maior
importância do fora de cena (a confluência contemporânea de que fala Braidotti,
conforme mencionado acima) como determinante do que acontece no palco,
como movimento ou força que excede, minimiza ou relativiza a ação humana. Na
medida em que promove o confronto entre o humano e as forças que o excedem, o
teatro pós-dramático, defende Barbéris (2013), retoma um traço primordial da arte
teatral, pois recoloca em cena a hybris grega, no sentido de energia trágica motor
da tragédia e que “designa um ponto de ‘contato’ impuro entre o humano e o não
humano” (2013, p. 27), numa concepção anterior à racionalização aristotélica e às
“reinterpretações” humanistas e clássicas da Poética (2013, p. 27-28).
20. “Le théâtre post-dramatique dépasse (...) les limites du drame pour procéder à une déconstruction du théâtre de la
représentation ou de la représentation au théâtre.” (ASHOLT, 2019, p. 3; itálico no original)
21. A palavra plateau em francês sugere uma superfície plana e horizontal, o que não se verifica na palavra palco,
em português. Sobretudo no caso do teatro pós-dramático, a conotação de espaço plano ou liso e horizontal
é relevante, o que justifica o uso de platô como tradução de plateau, a exemplo do que foi feito na versão em
português da obra Mil Platôs, de Deleuze e Guattari.
22. Segundo Monfort (2009), a “escrita de platô” é uma das duas versões atuais do teatro pós-dramático. A segunda
versão é a do teatro néo-dramático (théâtre néodramatique). O ponto comum entre as duas versões, segundo
essa autora, é que “a situação teatral costuma ser assumida enquanto tal, os atores a denunciam, dirigem-se
diretamente ao público, rompem o quarto muro”, fazendo coabitar dois níveis de realidade: o da situação
presente no palco e o da ficção (2009, p. 11).
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As obras de Ricardo García, ex-publicitário, dramaturgo e diretor teatral
nascido na Argentina, atuando na Espanha e mais recentemente na França23,
ilustram de forma significativa essa ampliação dos limites da cena com “obsessões
recorrentes”, segundo Orsini (2015, s/d), “de uma humanidade que tem dificuldade
para encontrar seu lugar, dividida entre o animal vivo e o objeto inanimado”, homem
e natureza irreconciliáveis e que se tornam mercadoria para consumo, como tudo
em volta.
Fazendo eco a Artaud, García, numa entrevista, assim descreve o humano
que costuma colocar em cena: “O corpo coberto de lágrimas ou de excrementos...
é o corpo real, o que sofre. O corpo limpo e imaculado teve seu sentido desviado
(...) Não vejo nem beleza e nem subversão num corpo sujo, só a humanidade, a
realidade.”24 (DAVID, 2015)
Numa peça de 2006, remontada em 2015, Et Balancez mes Cendres sur Mickey25
(“E joguem minhas cinzas no Mickey”) contrapõe seu próprio trabalho à falta de
vontade de experimentação e “tomada de risco”, em práticas de muitos de seus
contemporâneos, nos seguintes termos:
Concebem-se obras radicais em containers que as protegem e as enfraquecem. Em museus e
teatros. Em galerias de arte e em salas de concerto que transformam uma ideia subversiva num
passatempo de sábado à noite. Nesses containers, nada é extraordinário, tudo está no lugar,
reduzido à calma e ao silêncio.26 (GARCIA, 2015; citado por ORSINI, 2015, s/p)
Ciente do caráter performativo de suas obras, García contrapõe o “escrever
algo bonito ou plausível” a “nomear e fazer aparecer algo … que brilhe, que
ilumine” (GARCIA, 2015), o que classifica como um discurso poético “menor”
e “urgente”, visando provocar o público. Na mesma entrevista mencionada acima,
ele explica porque esse discurso “menor”, visando emoções e afetos, se apresenta
para muitos como caótico e desconcertante, tanto pela dispersão de mídias quanto
pela profusão de imagens e efeitos visuais e sonoros27 com que costuma construir
23. Onde dirigiu um teatro por ele denominado “Humain trop humain” (Humano, por demais humano), em alusão
a Nietzsche.
24. “Le corps couvert de larmes ou d’excréments... c’est le corps réel, celui qui souffre. Le corps propre et immaculé
est détourné de son sens (...) Je ne vois ni beauté ni subversion dans le corps sale, rien que de l’humanité, de
la réalité.” (DAVID, 2015)
25. Ed. Les Solitaires Intempestifs, 2007.
26. “On conçoit des œuvres radicales dans des conteneurs qui les protègent et les amoindrissent. Dans des musées
et des théâtres. Dans des galeries d’art et dans des salles de concert qui transforment une idée subversive en un
passe-temps du samedi soir. Dans ces conteneurs, rien n’est extraordinaire, tout est à sa place, réduit au calme
et au silence.” (GARCIA, 2015; citado por ORSINI, 2015, s/p)
27. Por ocasião dos ensaios da peça intitulada 4, García descreve parte dos efeitos então visados: “Estamos
trabalhando também com pequenos chocalhos nas roupas e estão fazendo movimentos... São coisas sonoras.
Sigo trabalhando com animais e agora estamos trabalhando com galos. Compramos sapatilhas, dessas de correr,
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seus espetáculos: “[a] tradição teatral se opõe à poesia, ao incerto. Então, eu tento
produzir ao mesmo tempo sentido e incerteza. Meus textos, reunidos em livros,
são ‘resíduos’, porque surgiram ao mesmo tempo que as ações no palco, mais tarde
até.”28 (DAVID, 2015)
Realçando o papel da intuição na criação, não busca nas palavras a explicitação
de ambiguidades e ambivalências, a chave de uma narrativa, diálogo ou cena a ser
recuperada mais facilmente pelo espectador:
Às vezes, eu sinto que uma imagem necessita de palavras que lhe deem um sentido. Outras
vezes, as palavras arruínam o mistério de um instante teatral. E em outras ainda, as palavras
podem, elas mesmas, criar um mistério, e quando uma palavra tem mistério, ela emociona.29
(DAVID, 2015)
E numa entrevista de 2007, assim responde às críticas à sua escrita de platô,
em que tenta subverter o logos como eixo organizador da produção de sentidos como quando as falas em espanhol são legendadas na tela de fundo em francês e não
se articulam diretamente ao que está acontecendo no palco, geralmente povoado de
humanos, animais, plantas e objetos envolvidos em cenas ou quadros não claramente
relacionados entre si:
Quando todos esses profissionais ficam com raiva e consideram que o que eu faço ‘não
funciona enquanto teatro’, eles têm razão. Se eu soubesse fazer teatro, eu o faria. Eu escreveria
diálogos, eu saberia inserir ou retirar uma música para criar um ambiente, eu encomendaria um
cenário a um cenógrafo.30 (GARCIA, 2007; citado por ORSINI, 2015, s/p)
No campo das artes plásticas, as obras da americana Nathalie Miebach
também apontam para uma escrita outra, desta vez não verbal ou cenográfica, mas
também voltada para o confronto entre o humano e as forças que o excedem, nesse
para crianças, e estamos pondo nos galos. É muito divertido. Há também um drone com uma câmera de vídeo. E
estou trabalhando com uma pessoa que meteu (sic) uma espécie de campainhas que fazem tilin tilin tilin, fazem
ruídos, então estou trabalhando agora com coisas muito sonoras.” (GARCÍA, 2015; citado por DAMASCENO
e BONFITTO, 2017, p. 392) Sobre essa peça, ver também em: <https://docplayer.fr/34517874-8-16-jantheatre-rodrigo-garcia-dossier-de-presse-iris-janke.html> Acesso em 20.06.2019.
28. “La tradition théâtrale s’oppose à la poésie, à l’incertain. J’essaie donc de générer à la fois du sens et de
l’incertitude. Mes textes, consignés dans les livres, sont des « résidus », parce qu’ils ont surgi en même temps
que les actions sur le plateau, voire plus tard.” (DAVID, 2015)
29. “Parfois, je sens qu’une image a besoin de s’ancrer dans des paroles, qui lui confèrent un sens. D’autres fois,
les mots ruinent le mystère d’un instant théâtral. Et d’autres fois encore, les mots peuvent par eux-mêmes
constituer un mystère, et lorsqu’un mot porte du mystère, il émeut.” (DAVID, 2015)
30. “Quand tous ces professionnels se mettent en colère et considèrent que ce que je fais ‘ne fonctionne pas en
tant que théâtre’, ils ont raison. Si je savais faire du théâtre, je le ferais. J’écrirais des dialogues, je saurais insérer
ou enlever une musique pour créer une ambiance, je commanderais un décor à un scénographe.” (GARCIA,
2007; citado por ORSINI, 2015, s/p)
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caso as condições metereológicas, as mudanças climáticas e os desastres31 a elas
associados.
É comumente apresentada como uma artista que “explora o cruzamento da
arte e da ciência, traduzindo dados científicos relacionados à meteorologia, ecologia
e oceanografia em esculturas tecidas e partituras e performances musicais”32. Na
verdade, trabalha com uma combinação de suas próprias observações e dados
coletados por estações meteorológicas, boias externas e satélites, disponíveis na
Internet. Numa entrevista publicada em 2013, ela explica como surgiu a necessidade
de associar esse tipo de dado com a cestaria:
Comecei a trabalhar com dados científicos em 2000, quando frequentei aulas de astronomia
na Universidade de Harvard e estudei cestaria com um artesão local. (...) percebi que podia
usar a cestaria como uma grade tridimensional para traduzir dados astronômicos e obter uma
percepção física mais tátil do que eu estava aprendendo na astronomia.33
O mesmo princípio passou a ser usado em 2006 com dados sobre o clima,
pois, segundo ela, se se puder “tocar na informação, talvez a complexidade da
mudança climática ou do clima possa se tornar mais real e compreensível”34. Desde
então, suas formas transformam dados numéricos geralmente dispostos em gráficos
e mapas bidimensionais em objetos abstratos tridimensionais que pretendem, com
a ajuda de uma legenda, fornecer pistas ao espectador sobre padrões climáticos,
furacões, tempestades, nevascas, mudanças de marés, temperaturas e ventos.
Ciente, porém, do espaço de jogo em que atua, assim descreve os níveis
de controle e descontrole de seu trabalho de criação, na verdade um trabalho
colaborativo em que os elementos não humanos têm “tanto a dizer” na definição
das formas quanto ela:
31. Com dados coletados durante o furacão Noel em 2007, por exemplo, criou tanto a forma escultural da peça
homônima, uma tempestade visual, quanto uma peça musical como relata na apresentação Art made of storms,
de 2011 (TED Global <https://www.ted.com/talks/nathalie_miebach> Acesso em 20.06.2019). Além dos
furacões Sandy, Maria e Katrina, as enchentes também foram objeto de uma série de trabalhos de Miebach, em
que narrativas humanas foram incorporadas aos dados tecno-científicos.
32. Nathalie Miebach explores the intersection of art and science by translating scientific data related to
meteorology, ecology, and oceanography into woven sculptures and musical scores/performances.” (Weathering
the Storm with Nathalie Miebach and the Crystal Bridges Symposium, April 6, 2017. Disponível em: <https://
crystalbridges.org/blog/weathering-the-storm-with-nathalie-miebach-and-the-crystal-bridges-symposium/>
Acesso em 20.06.2019.
33. STRAIGHT TALK with Nathalie Miebach. SciArt Initiative, December 2013. Disponível em: <https://www.
sciartmagazine.com/straight-talk-nathalie-miebach.html> Acesso em 20.06.2019.
34. “The premise is simple: if I can touch the information, perhaps then the complexity of climate change or
weather can become more real and understandable.” (STRAIGHT TALK with Nathalie Miebach. SciArt
Initiative, December 2013. Disponível em: <https://www.sciartmagazine.com/straight-talk-nathalie-miebach.
html>) Acesso em 20.06.2019.
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A escultura torna-se colaboração entre o material, os números e eu. O material que uso
para traduzir é fibra vegetal, que tem uma tensão inerente que não me permite controlá-la
completamente. (...) Minha falta de controle garante que os números tenham tanto a dizer na
criação da forma quanto eu. (...) Nunca sei de antemão que forma será”35.
Feitas de fibra natural, papel colorido, plástico e madeira, suas esculturas
têm diferentes formas e tamanhos, ora dispostas em pedestais, ora em paredes36,
visando envolver o espectador na apreensão da complexidade de que é feito o
clima37. Rebatendo a ideia de que se trata de um trabalho superficial, apenas “leve
e divertido”, pois produz objetos que se assemelham mais a brinquedos infantis,
Miebach insiste na “lógica numérica que sustenta essa brincadeira caótica”, cujo
objetivo é, segundo ela, “provar ou refutar o fato inevitável de que este planeta
está mudando e ainda estamos fazendo muito pouco a respeito disso”38. Nesse
sentido, vê suas obras como comentários visualizados, ou seja, como “pensamentos
tridimensionais no espaço, em vez de objetos físicos”39.
A notação musical passou a integrar o trabalho escultórico - um tipo de
esquema bidimensional (uma “taquigrafia escultural”) dos dados coletados, a partir
do qual são desenvolvidas as esculturas - quando deu-se conta de que “nuances”
escapavam aos instrumentos meteorológicos e que a percepção dos fenômenos
meteorológicos eram tão ou mais relevantes que os “comportamentos numéricos”
produzidos pelos instrumentos de medição:
Depois de trabalhar com dados meteorológicos por vários anos, comecei a perceber como estava
confiando (...) em minhas próprias observações, mais do que em leituras de dados de meus próprios
35. “The sculpture becomes collaboration between the material, the numbers, and myself. The material I use to
translate is reed, which has an inherent tension that does not allow me to completely control it. (...) My lack
of control ensures that the numbers have as much of a say in creating the form as I do. (...) I never know
what the shape will be beforehand.” (STRAIGHT TALK with Nathalie Miebach. SciArt Initiative, December
2013. Disponível em: <https://www.sciartmagazine.com/straight-talk-nathalie-miebach.html>) Acesso em
20.06.2019.
36. Ver portfolio em <http://nathaliemiebach.com/portfolio.html> Acesso em 20.06.2019
37. “I want to engulf the viewer in the complexity of biological, chemical, and physical interactions that make up
weather. I want them to discover that complexity without immediately having it framed as being made up of
science data.” (STRAIGHT TALK with Nathalie Miebach. SciArt Magazine, December 2013. Disponível em:
<https://www.sciartmagazine.com/straight-talk-nathalie-miebach.html>) Acesso em 20.06.2019.
38. “The work is light and fun, but only on a surface level. Your first reaction when you see the work is, ‘Oh, this
looks like my construction toy set when I was eight,’ but as soon as you recognize the numerical logic that
underpins this chaotic playfulness, I think a deeper tone enters the interpretation. (...) We play with statistics
and graphs to prove or disprove the inevitable reality that this planet is changing and yet we’re doing very
little about it.” (STRAIGHT TALK with Nathalie Miebach. SciArt Magazine, December 2013. Disponível em:
<https://www.sciartmagazine.com/straight-talk-nathalie-miebach.html>) Acesso em 20.06.2019.
39. STRAIGHT TALK with Nathalie Miebach. SciArt Magazine, December 2013. Disponível em: <https://www.
sciartmagazine.com/straight-talk-nathalie-miebach.html> Acesso em 20.06.2019.
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instrumentos climáticos. Essas observações, muitas vezes feitas de forma periférica, de rabo de olho (...)
começaram a influenciar a maneira como eu estava interpretando os dados que estava coletando.40
Em 2017, procurou ir além de suas observações de “rabo de olho” e se
preocupar também com as “histórias humanas”: “São nossas emoções que são
afetadas”41. Além das partituras e esculturas, surgiram, com a participação de
músicos, as performances musicais integrando vozes humanas. Na série Enchentes,
por exemplo, o foco nas inundações como uma fonte permanente de ansiedade
humana pretende deixar mais claro para o espectador a relação desses “pensamentos
tridimensionais no espaço”, nos termos de Miebach, com vestígios humanos e
meteorológicos. O trabalho com os músicos é o que dá consistência e visibilidade
a essa pretensão, na medida em que, teoricamente, eles executam o esquema
bidimensional que deu origem às esculturas e, portanto, apresentam os dados sob
uma nova luz e até revelam padrões novos, criando uma obra musical paralela e
relacionada, como se pode ver no projeto Weather Scores42.
É interessante observar, porém, que Miebach continua insistindo na “lógica
numérica que sustenta essa brincadeira caótica” e que, na sua perspectiva, é o que
garante o plano imanente no sentido deleuziano de corte no caos: uma estabilidade
precária (a obra), mas povoada tanto de acontecimentos, ou experiências, quanto
de linhas de fuga, ou seja, possibilidades ou devires que, em última análise, podem
desestabilizar e destruir essa estabilidade precária, transformando-a em outra
coisa (heterogênese): “[a] o mesmo tempo em que os músicos têm liberdade para
interpretar, eles são solicitados a não mudar a relação essencial das notas para
garantir que o que é ouvido seja de fato a relação de natureza meteorológica dos
dados sobre o tempo.”43
40. “After working with meteorological data for several years now, I began to notice how I was relying on and
beginning to trust my own observations more than data readings from my own weather instruments. These
observations, often done peripherally out of the corner of my eye, were often not picked up by my weather
instruments, but began to influence the way I was interpreting the data I was collecting.” (STRAIGHT TALK
with Nathalie Miebach. SciArt Magazine, December 2013. Disponível em: <https://www.sciartmagazine.com/
straight-talk-nathalie-miebach.html>) Acesso em 20.06.2019.
41. Weathering the Storm with Nathalie Miebach and the Crystal Bridges Symposium, April 6, 2017. Disponível
em: <https://crystalbridges.org/blog/weathering-the-storm-with-nathalie-miebach-and-the-crystal-bridgessymposium/> Acesso em 20.06.2019.
42. Project Weather Scores: A collaboration between science, data, musical performance and sculpture.
Videogravação disponível em: <http://nathaliemiebach.com/weatherscores.html> Acesso em 20.06.2019.
43. “While musicians have freedom to interpret, they are asked not to change the essential relationship of the
notes to ensure that what is still heard is indeed the meteorological relationship of weather data.” NatureTec,
march 8-june 7, 2015. Nathalie Miebach. Disponível em: <http://fitchburgartmuseum.org/wp-content/
uploads/2019/01/naturetechcatalog.pdf> Acesso em 20.06.2019.
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Essa é uma visão, portanto, não análoga à de Ricardo García que, conforme
descrito acima, ao mesmo tempo em que está convencido de que sua escrita de
platô não mais funciona como teatro, não parece acreditar que se trate realmente
de alguma forma de escrita - verbal, numérica, grafonumérica, logarítimica, ou outra
utilizada em seus espetáculos – que possa servir de esteio para a arquitetura de suas
obras. Mais voltado para uma lógica de associação de imagens, movimentos, sons,
cores e outros efeitos de palco, García parece, justamente, não temer nenhum tipo
de contaminação e nem querer evitar a irrupção do caos e suas potencialidades.
Entretanto, há uma questão comum aos dois casos, já que ambos se propõem
a trabalhar no âmbito do poético, ou seja, do fato e da ficção enroscados em padrões
tornados visíveis por assemblages ou coleções (em contraposição a conjuntos
organicamente estruturados) de elementos de naturezas diversas. As configurações
de tais assemblages não garantem nenhuma coerência pré-determinada de sentido
a ser recuperado pelo espectador, mas tentam construir parâmetros (textos,
legendas, enquadramentos, convenções de movimentos, cores, sons, por exemplo)
que, de alguma forma, o orientem em seu percurso de interpretação, no sentido
de exploração de novos horizontes de pensamento e, assim, participem da
experimentação e “tomada de risco” próprias de cada obra.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considerando o que foi exposto nas três seções anteriores, pode-se verificar
que os exemplos apresentados, tanto do presente quanto do passado, ilustram os
diferentes modos e graus em que tipos de escrita, em sentido amplo e não apenas
verbal grafocêntrico, são capazes de minar e fazer divergir os convencionais
consolidados pela tradição humanista, particularmente o verbal grafotécnico
projetado pelo racionalismo tecno-científico (objetividade, transparência e
autonomia), mas não apenas.
É um tipo de escrita desterritorializante dos códigos e convencões préexistentes e que está sempre sujeita ao encontro com o fora, ou seja, com as
possibilidades novas, heterogenéticas e, portanto, a divergir de si mesma, ou seja,
a transformar-se. Tanto o uso do aforismo para multiplicar as perspectivas em
Nietzsche, quanto o do ensaio para enfrentar as quimeras e monstros em Montaigne,
além da assemblage em teia de aranha para dar vazão a perguntas e especulações em
Diderot já apontavam para isso.
Mesmo quando apreendida como um modo/forma de estabilização “decantação”, “resto” (Braidotti), “resíduo” (García), “taquigrafia” (Miebach) -
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Escritas humanas, mas não humanísticas
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de uma travessia ou processo de elaboração da obra – seja o texto, o ato teatral,
a escultura ou a partitura – é um tipo de escrita que fundamentalmente aponta
para o vir a ser e que, em consequência, resiste a uma escrita masculina, purificada
e descorporificada, como a que preveem os modelos grafotécnicos da tradição
racionalista. Daí seu interesse para o um pós-humanismo orientado pela concepção
deleuziana de “pensamento nômade” e de produção de devires por um sujeito
material e situacionalmente encarnado, em contraposição a um cógito ou consciência
transcendental desencarnada (BRAIDOTTI, 2011; 2018).
Visando “modelos alternativos para o sujeito humano”, Braidotti defende
a necessidade de uma visão afirmativa da subjetividade: “[a] subjetividade póshumana é nômade e expressa uma forma de responsabilização incorporada e situada
e, portanto, parcial, baseada em um forte senso de coletividade, relacionalidade e,
portanto, construção da comunidade.” (VERONESE, 2016, p. 99) O que significa
dizer que os tipos de escrita de resistência, de exploração de devires e “linhas de
fuga”, de criação de mundos, enfim, vão necessariamente constituir os processos de
subjetivação desse sujeito pós-humano em suas práticas cotidianas, e não apenas em
espaços/tempos ainda vistos como excepcionais, como os da ciência, da filosofia e
da arte.
Assim como Montaigne forjou o ensaio sob o impacto de um mundo em
vertigem, inclusive com a descoberta de realidades até então desconhecidas e até
certo ponto inimagináveis para o senso comum da época, o sujeito pós-moderno
tem se associado de modo cada vez mais orgânico às tecnologias antigas e novas
que se enroscam no e pelo digital para enfrentar as quimeras e monstros de agora
(como a desumanização do capitalismo encenada por Garcia, ou as mudanças
climáticas lembradas por Miebach) e mapear possibilidades que se configurem
como alternativas de escrever novos mundos.
AGRADECIMENTOS
Agradeço ao CNPq pela bolsa de produtividade relativa ao Projeto Metapragmáticas
da escrita acadêmica globalizada (CNPq nº. 305005/2011-1).
REFERÊNCIAS
ADDICOTT, J. (2012). Phallogocentrism: The politics of binaries and strategic writing
in female/male ethnography. Disponível em: <https://jameseaddicott.wordpress.
com/2012/06/14/phallogocentrism-the-politics-of- binaries-and-strategic-writingin-femalemale-ethnography/> Acesso em 20.06.2019.
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Recebido: 1/06/2019
Aceito: 9/07/2019
Publicado: 12/07/2019
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