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Viviane Pouey Vidal
ETNOARQUEOLOGIA DOS CHARRUA E MINUANO:
A Dimensão Simbólica dos Artefatos de Boleadeiras nas
Etnias Indígenas e sua Continuidade na Cultura
Tradicionalista
2021
1
Ao futuro do meu anjo Benjamin, filho da
nossa Felicidade, o Bem Amado.
Ao meu esposo e mãe amada por todo
incentivo e apoio. A toda a minha flia em
Uruguaiana.
“In memorian da minha amada avó, quem
tanto admirava os meus estudos. Guardei o
nosso amor nas minhas melhores
lembranças”
2
AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Dr. Klaus Hilbert, orientador, pela amizade,
dedicação e incentivo na construção desta pesquisa. Ao
Prof. Dr. Arno Kern, pelo incentive e apoio no mestrado. A
Profa. Dra. Gislene Monticelli pelo carinho, indicações
bibliográficas e pela dedicação nas revisões do texto. Um
especial agradecimento a Dra Marcélia Marques por todo
incentivo e orientações durante a construção do texto. Ao Dr
Flamarion Gomes, orientador da graduação por apresentarme a temática, incentivado a realizer a pesquisa arqueológica.
Ao Dr. Ronaldo Colvero pelo incentivo nas pesquisas e
apoio durante a graduação.
A CAPES, pela bolsa integral que possibilitou minha
dedicação exclusiva ao mestrado.
A Profa Dra. Adriana Dias, pela atenção, indicações
bibliográficas e pela oportunidade de participar de suas
aulas na UFRGS. Ao Dr. Antropólogo Sergio Baptista,
pela colaboração com as indicações bibliográficas, por ter
me apresentado aos índios Charrua e pela oportunidade de
cursar seu seminário (UFRGS), possibilitando uma maior
aproximação entre a arqueologia, a antropologia e a
etnologia.
Ao Dr. Etnoarqueólogo Gustavo Polítis e Rodrigo
Vechi (Universidade de La Plata) pelas indicações
3
bibliográficas.
A arqueóloga Angela Cappelleti pela amizade, carinho,
incentivo e por todo aprendizado que obtive na arqueologia
histórica em Porto Alegre. A amiga Márcia Lara, que
durante dois anos de pesquisas no laboratório (CEPA) não
mediu esforços para me auxiliar nesta caminhada,
agradeço por sua dedicada amizade, pelos conselhos, pelo
empréstimo dos livros e acolhimento na sua familia.
A todos os colegas do CEPA com quem tive a
oportunidade de conviver e aprender em Porto Alegre. Um
agradecimento especial aos meus amigos Dr Gustavo
Peretti Wagner e Dr Lucas Antonio Silva por toda parceria
nas pesquisas e incentivo.
Agradeço especialmente aos meus informantes da
etnografia em Uruguaiana/RS, pela colaboração
e
disponibilidade em me receberem em seus lares: João da
Silva, José Adir Pouey, Sirineu Scolars, José Silva. Aos
informantes indígenas Charrua, na figura da Cacique
Acuab, que possibilitou a realização da pesquisa
etnoarqueológica com o seu povo.
4
RESUMO
ETNOARQUEOLOGIA DOS CHARRUA E MINUANO: A
Dimensão Simbólica dos Artefatos de Boleadeiras nas Etnias
Indígenas e sua Continuidade na Cultura Tradicionalista
O objetivo desta dissertação1 é entender as
boleadeiras num processo histórico contínuo; porém, com
diferentes significados. A abordagem utilizada analisa o
uso
das boleadeiras pelas diferentes parcialidades
indígenas do Sul Meridional, nas atividades da caça e da
guerra, comentando sua transculturação para o cotidiano
do peão campeiro que as utilizou no trabalho nas
estâncias de gado. Após a domesticação dos animais, as
boleadeiras perdem sua função técnica, mas continuam
presentes no contexto cultural do gaúcho como um
elemento simbólico que representa e fortalece a sua
identidade
riograndense.Visando
compreender
o
simbolismo das boleadeiras nos diferentes períodos
históricos, realizou-se uma etnografia na cidade de
Uruguaiana /RS, na qual se abordou a memória oral dos
gaúchos que tiveram a oportunidade de confeccionar e
1
Dissertação apresentada como requisito para obtenção do grau de Mestre em História na área
de concentração em Arqueologia, Programa de Pós - Graduação em História Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul.Orientador: Prof. Dr. Klaus Peter Hilbert.
5
utilizar as suas boleadeiras no trabalho rural. A ênfase das
entrevistas é dedicada a conhecer e compreender os atuais
significados simbólicos das boleadeiras no contexto
cultural do gaúcho, assim como na indumentária, na
dança, no CTG, na poesia, nas lendas, na música, no
cinema, etc. Na aldeia “Polidoro Povo Charrua”, em Porto
Alegre, efetuou-se uma etnoarquelogia que destaca a
maneira como os indígenas se apropriam das bolas de
boleadeiras na construção dos seus discursos étnicos
como um elemento simbólico que afirma a existência de
seus ancestrais Charrua. Nesta pesquisa, as boleadeiras
foram pensadas como patrimônios simbólicos que
ultrapassam
o
tempo
num
processo
histórico
ressignificativo. Procurou-se, desta forma, construir um
trabalho interdisciplinar, contemplando os significados
das boleadeiras na memória oral de gaúchos e indígenas
com o simples objetivo de colaborar com as futuras
pesquisas nesta temática.
Palavras-chave: boleadeiras, simbolismo, identidade
gaúcha, identidade Charrua, patrimônio cultural,
ressignificação.
6
ABSTRACT
ETHNOARCHEOLOGY OF THE CHARRUA AND
MINUANO: The Symbolic Dimension of Boleadeiras
Artifacts in Indigenous Ethnicities and their Continuity
in Traditionalist Culture
The objective of this dissertation understands the
“boleadeiras” in a continuous historical process, although
with different meanings. The approach used analyses the
usage of “boleadeiras” by different indigenous partialities
of the Meridional South, in the activities of war and
hunting, commenting its transculturation to the day-byday of farmer workers, who used them in cattle farms.
After domestication, the “boleadeiras” lose their technical
function, but keep present in the cultural context of the
“gaucho” as a symbolic element which represents and
strengthens their identity in Rio Grande do Sul. Aiming the
comprehension of the symbolism to the “boleadeiras” in
different historical periods, we realized ethnography in the
town of Uruguaiana, Rio Grande do Sul state, in which we
approached the oral memory of the “gauchos” that have
made and used their “boleadeiras” in the rural labor. The
focus on the interviews is dedicated to know and
understand the current symbolic meanings of the
“boleadeiras” in the cultural “gaucho” context, as well as
in their dressing, dancing, poetry, legends, music, cinema,
7
etc. At the Polidoro Povo Charrua settlement, in Porto
Alegre, we did ethno archeology, that emphasizes the way
indigenous
people
adopt
the
rock
balls
of
the
“boleadeiras” to build their ethnic discourses, as a
symbolic element which affirms the existence of their
Charrua ancestors. In this research, the “boleadeiras”
were thought as symbolic inheritance that overcomes time
in a historical process which renews its meaning. We tried,
this way, to set an interdisciplinary project, overlooking
the meanings of the “boleadeiras” in the oral memory of
gauchos and Indians, with the mere objective of
cooperating with future researches on this topic.
Key-words: boleadeiras, gaucha identity, Charrua identity,
cultural inheritance, symbolism, resignification.
8
LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Jorge no trabalho de campo..............................45
Figura 2: Jorge utilizando as boleadeiras no Desfile
Farroupilha ......................................................................45
Figura 3: Acuarela-Boleando Baguales ...........................49
Figura 4:Boleadeiras do Séc. XIX ...................................57
Figura 5: Desfile Farroupilha, POA-RS, 2007 .................60
Figura 6: Fagner Campos dançando com a boleadeira
(Out./2007) ......................................................................78
Figura 7: Chaveiro boleadeira ..........................................85
Figura 8: Boleadeiras com símbolo do internacional .......86
Figura 9: Piquete Boleadeira de Prata no Parque da
Harmonia 2008, em Porto Alegre ....................................87
Figura 10: As boleadeiras arqueológicas na Lareira da
Estância Itapitocaí............................................................93
Figura 11: Bolas de boleadeiras polidas (Coleção
CEPA) ...........................................................................100
Figura 12: Bola: Rompe-cabeça. Pro Prata ...................102
Figura 13: Charruas civilizados (peões) ........................119
Figura 14: Cacique Vaimaca Peru .................................139
Figura 15: Índios Charrua, levados a Paris ....................144
Figura 16: Grupos de Charrua levado a París em 1833 .153
Figura 17: Índios Pampas ..............................................157
Figura 18: Querandis com a “honda” ............................161
Figura 19: Uso da boleadeira como massa ....................168
Figura 20: Discurso da Cacique ACUAB por ocasião
do reconhecimento da etnia
Charrua .... 183
Figura 21: Pictografias do “Arroyo La Virgen” ............186
9
Figura 22: Palácio Piratini. (23/5/2007) ........................190
Figura 23: Família Charrua com um amigo da comunidade
(Ago./2008) ...................................................................192
Figura 24: Ritual de dança dos Charrua (Set/2008) .......194
Figura 25: Apresentação do projeto da aldeia para a
FUNAI ..........................................................................195
Figura 26: Exposição dos objetos Charrua para a FUNAI
(Set/2008) ......................................................................199
Figura 27: Índio Charrua ...............................................215
Figura 28: Pictografias: Arroio Del Chamanga - Augustin
Larrauri (1905 )..............................................................216
Figura 29: Pictografias: Arroio Del Chamanga, Uruguai,
Augustin Larrauri (1905) ...............................................217
Figura 30: Painéis: Adriana Xaplin - Aldeia Charrua
(Jul./2008) .....................................................................218
Figura 31: Reconhecimento dos Charrua pela FUNAI
(Nov. 2007) ...................................................................219
Figura 32: Imagem: Guyunusa e Tacuabé vestindo o
quillapí - Paul Rivet “Les Derniers Charrua (1930) .... 219
Figura 33: Baralho Charrua, confeccionado por Tacuabé Paul Rivet (1930) ...........................................................220
Figura 34: Centro de Pesquisa de Arte Rupestre do
Uruguai..........................................................................221
Figura 35: Artesanato: Arte Rupestre em garrafas no
Uruguai..........................................................................222
10
SUMÁRIO
1
2
INTRODUÇÃO
A BOLEADEIRA COMO
SÍMBOLO DE IDENTIDADE
2.1
A INVENÇÃO DA TRADIÇÃO
GAÚCHA
2.2
AS BOLEADEIRAS COMO
HERANÇA CULTURAL NA
MEMÓRIA GAÚCHA
2.3
AS BOLEADEIRAS E A
CONSTRUÇÃO DO VESTUÁRIO
TRADICIONALISTA
2.4
AS BOLAS DE BOLEADEIRAS E
SUA HARMONIA COM O CORPO
DO GAÚCHO
2.5
2.5 AS BOLEADEIRAS E O
FOLCLORE GAÚCHO
2.6
2.6 A DIMENSÃO PESSOAL
DAS BOLEADEIRAS
3
3
AS BOLAS DE
BOLEADEIRAS NAS FONTES
ARQUEOLÓGICAS,
ETNOHISTÓRICAS E
ETNOGRÁFICAS
3.1
AS BOLAS DE BOLEADEIRAS
NO OLHAR DOS ARQUEÓLOGOS
3.2
AS BOLEADEIRAS NAS FONTES
HISTÓRICAS
3.2.1 3.2.1 A guerra dos Charruas na
Banda Oriental (Período Hispânico)
3.2.2 3.2.2 Os Charrua na Guerra
Guaranítica
3.2.3 Charrua e Minuano no avanço
Português de 1801
3.2.4 A guerra dos Charruas na Banda
Oriental (Período Pátrio)
3.2.5 Campanha do General Fructuoso
Rivera
11
13
24
24
38
62
70
77
81
95
95
112
120
130
132
134
140
3.3
3.3.1
3.3.2
3.3.3
3.3.4
3.3.5
3.3.5
3.4
3.4.1
3.4.2
4
4.1
ETNOGRAFIAS DOS INDÍGENAS
DA ANTIGA PROVÍNCIA DO
URUGUAI E ARGENTINA
Charrua
Minuano
Guénaken
Querandi
Pampas
Patagones ou Chónecas
AS BOLEADEIRAS DOS ÍNDIOS
PAMPEANOS NO OLHAR DOS
A Utilização da boleadeira como
massa
As boleadeiras com duas e três pedras
ETNOARQUEOLOGIA DOS
CHARRUA DO PRESENTE: A
BOLEADEIRA COMO ÍNDICE DA
IDENTIDADE
A ETNOARQUEOLOGIA
4.1.1 Para que serve a Etnoarqueologia?
4.1.2 Como os Charrua se apresentam aos
pesquisadores
4.1.3 Como os Charrua se apresentam a
FUNAI
4.2 A BOLEADEIRA COMO ÍNDICE
DA IDENTIDADE CHARRUA
4.3
MEMÓRIA E IDENTIDADE
INDÍGENA
4.4
MEMÓRIA OU RECONSTRUÇÃO
CHARRUA?
5
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
12
146
146
153
154
155
156
158
159
165
170
175
175
179
184
193
198
201
206
225
240
1
INTRODUÇÃO
[...] El moderno historiador de la boleadora que, para
documentarse, recurra a las fuentes literárias e
iconográficas, sufrirá una primera decepción. Respecto
de las primeras decubrirá, con asombro, que en un pais
donde virtualmente la totalidad de la población aborigen
y criolla usaba este implemento para la caza y la pelea,
casi no existen estudios promenorizados a su respecto.
[...] Tampouco abundan publicaciones y estudios
etnográficos o folklóricos que nos detallen su manejo y
funciones, ni su importancia en la vida del índio y del
paisano (FERNANDEZ, 2001, p. 70).
Meu interesse pelo estudo das boleadeiras surgiu no
início do curso de Licenciatura em História na PUCRS
Uruguaiana, em março de 2003, quando decidi conhecer o
Núcleo
de
Pesquisas Arqueológicas (NUPA). Ao
visualizar pela primeira vez os artefatos arqueológicos,
fiquei supresa ao descobrir que a grande maioria destes foi
encontrada na minha cidade natal onde nunca havia
escutado falar da ocupação indígena. Desse modo, decidi
realizar um estágio no laboratório e conhecer um pouco
mais sobre a origem dos objetos e sua relação com as
pessoas que os confeccionaram e os utilizaram. Durante a
apresentação do laboratório arqueológico, o coordenador
procurou iniciar sua explicação a partir de um artefato
que estivesse diretamente relacionado à minha realidade
local, foi quando o professor segurou a bola de boleadeira
na mão e exclamou: “Este artefato tu conheces? É a
boleadeira que o gaúcho usa. Pois os índios também a
utilizavam, só que a boleadeira indígena era de pedra”
13
(Flamarion Gomes, Comunicação pessoal, Março de 2003).
Neste momento, percebi como a minha experiência
pessoal poderia estar relacionada à arqueologia, pois sendo
filha de alambrador e neta de capataz de estância, conheci
e presenciei a vida no campo, o trabalho com o gado, a
encilha do cavalo e o significado de cada elemento da
indumentária gaúcha. Ainda durante esta conversa no
laboratório, o arqueólogo explicou o processo de
continuidade das boleadeiras indígenas na cultura do
gaúcho, ressaltando que este instrumento passou por várias
transformações morfológicas, mas que
seu
caráter
funcional poderia ser o mesmo nas atividades com o
gado. Com base nas minhas lembranças do cotidiano
rural, afirmei ao professor que atualmente o gaúcho não
usava mais este instrumento com o gado domesticado por
que poderia ferir o animal.
No entanto, lembrei que meu avô e meus tios jamais
iriam a uma festa campeira, ou ao Desfile Farroupilha em
comemoração ao vinte de setembro, sem uma boleadeira
presa na cintura. Assim, percebe-se que a boleadeira
perdeu apenas sua função técnica com o
gado, mas
continua fazendo parte da vida do gaúcho como um
símbolo que fala para eles, sobre seus ancestrais,
lembrando da sua cultura da vida no campo, das corridas
de eguadas, das atividades com gado bravo. José
Hernandez (1879), em sua obra intitulada “La Vuelta de
Martin
Fierro”,
já
ressaltava
14
que:
“El
gaucho,
semisalvaje y seminómada! Señor antes y dueño de
llanura y de la inagotable riqueza de sus rebaños,
desdeñaba el trabajo manual, como indigno de su hidalga
estirpe”. Sendo necessário atrair o imigrante, que viu nos
pampas uma nova oportunidade de riqueza. Mais dócil e
disciplinado, mais adaptável, foi desalojando o gaúcho dos
trabalhos rurais. Assim, até o fim do Séc. XIX, formou-se
uma nova civilização. “Obscurecióse su alma, al paso que
iba trocando algunas de sus prendas tradicionales; bota de
potro por la alpargata, el chiripá por la bombacha, las
boleadoras por el arado” (HERNANDEZ, 1879, p. 18).
O autor, nesta pequena estrofe, mostra as longas
mudanças históricas nas quais as boleadeiras estão
inseridas,
ou
seja,
a
introdução
de
uma
nova
indumentária à domesticação do gado bovino e eqüino
para servir e alimentar o homem que vai cuidar do cultivo
da terra.
Ao longo do estágio no laboratório, efetuei um
levantamento bibliográfico que me proporcionou maior
embasamento sobre a história das boleadeiras nos
diferentes contextos sociais. Entre as obras encontradas,
pode-se mencionar como a mais detalhada a monografia
do arqueólogo argentino Alberto Rex González (1953),
intitulada “La Boleadora. Sus áreas de dispersión y tipos”.
Esta
pesquisa
permitiu
conhecer
a
classificação
taxionômica das boleadeiras e suas diferentes áreas de
dispersão, contribuindo amplamente com as análises
15
tecno-tipológicas; no entanto, durante o desenvolvimento
da monografia de conclusão do curso de história, acabei
deixando algumas lacunas. Ou seja, mesmo conhecendo o
extenso campo simbólico das boleadeiras e sendo a idéia
inicial do projeto de pesquisa compreender os significados
da sua continuidade na vida do gaúcho, acabei seguindo
a idéia central de González (1953) de classificá-las,
conhecer sua função no contexto indígena e sua área de
dispersão.
Posteriormente, na elaboração do projeto de
mestrado, após dialogar com o meu atual orientador
professor
Klaus
Hilbert,
compreendemos
que
era
necessário mudar o enfoque que abordei na monografia de
conclusão, pois havia dedicado grande parte da pesquisa às
análises tecno-tipológicas das boleadeiras e seus aspectos
funcionais. Sendo viável ressaltar que nesta dissertação de
mestrado não está se negando a importância das análises
em laboratório e, sim, propondo um novo olhar
interpretativo para o estudo das boleadeiras. Nesse sentido,
procura- se pensar outros aspectos essenciais para o
entendimento
dos
artefatos,
buscando
conhecer e
interpretar os significados simbólicos da continuidade
deste elemento indígena na indumentária do gaúcho, já
que a boleadeira perdeu sua função técnica no trabalho
com o gado. Dessa maneira, foi analisada uma rede de
contextos onde as boleadeiras continuam presentes,
procurando identificar seus significados na indumentária,
16
no arreio do cavalo, no CTG, na poesia, nas lendas, nas
musicas, na dança, no cinema, no artesanato,
na
ornamentação das lareiras das estâncias, etc.
Visando
compreender
os
significados
das
boleadeiras e suas relações com as pessoas, foi necessário
conhecer alguns trabalhos que abordam o simbolismo
dos objetos, assim encontrou-se em Glassie (1999) a
seguinte afirmação: “Os artefatos lembram a tecnologia
através da qual a natureza foi transformada em cultura, e
eles encarnam a mente do criador” (GLASSIE, 1999, p.42
apud JACQUES, 2007, p.1). Nesse caso, entende-se que
a cultura material é repleta de significados que se
relacionam diretamente com as pessoas. Como afirmou
Clarisse Jacques (2007), “Por mais que o arqueólogo
busque ações humanas passadas, uma vez que ele
constrói este passado no momento presente, a cultura
material segue relacionando-se com pessoas” (JACQUES,
2007, p.2).
A hipótese central nesta dissertação de mestrado é
que as boleadeiras - artefatos de origem indígena précolonial - ultrapassaram o tempo em um processo histórico
contínuo sem interrupção e permanecem no atual contexto
do gaúcho. Compreende-se que, neste período de longa
duração, as boleadeiras são modificadas e aprimoradas,
porém nunca descartadas. Se por um lado, as boleadeiras
perdem algumas de suas funções práticas como caçar e
lutar, por outro, elas transformaram-se em um símbolo
17
gaúcho
que
representa
e
compõem
a
cultura
Riograndense. Para testar esta hipótese, além de se
consultar os relatos dos cronistas e viajantes, as fontes
literárias,
históricas,
etnoarqueológicas,
arqueológicas,
antropológicas,
etnohistóricas,
etnográficas
patrimoniais, e semióticas, desenvolveu-se uma etnografia
com os gaúchos na cidade de Uruguaiana e uma
etnoarqueologia na aldeia dos atuais Charrua de Porto
Alegre. A idéia de entrevistar os gaúchos e indígenas
surgiu devido à necessidade de conhecer a história das
boleadeiras e sua agência simbólica no cotidiano e na
memória dos homens dos pampas. A metodologia de
entrevista oral atualmente tem sido muito utilizada nos
trabalhos arqueológicos como um meio de conhecer os
aspectos simbólicos por detrás do caráter morfológico e
funcional dos objetos. Fabíola Silva (2000, p.11) afirma
que essa nova forma de pensar o registro arqueológico é
conhecida como Etnoarqueologia, pois seu sentido mais
amplo pode ser entendido como uma abordagem que visa
proporcionar os meios para que se possa interpretar o
registro arqueológico, tendo como referencial a dinâmica
do contexto etnográfico.
Ou seja: “[...] a partir do
estudo de sociedades contemporâneas, proporciona os
meios para formular e testar hipóteses, modelos e
teorizações que possibilitam responder questões de
interesse arqueológico” (SILVA, 2000, p.30).
A autora comenta, ainda, que a utilização de dados
18
etnográficos sempre foi uma constante nas pesquisas
arqueológicas.
No
entanto,
novos
estudos
têm
influenciado os arqueólogos a repensar suas análises
tipológicas e as classes de objetos na formulação de
novas interpretações. Nesta perpectiva, procurou-se,
através das fontes orais e bibliográficas, compreender os
diferentes contextos arqueológicos e históricos em que as
boleadeiras estiveram presentes, assim como proporcionar
uma contribuição para os futuros trabalhos que tratarão
desta temática.
A dissertação foi estruturada fazendo aproximações
em três capítulos: No capítulo 1, procura-se compreender
o papel simbólico das boleadeiras na construção da
identidade do gaúcho do Rio Grande do Sul, da Argentina
e do Uruguai. Apresenta-se a etnografia realizada na
cidade de Uruguaiana/RS, na qual aborda-se as memórias
dos gaúchos que tiveram a oportunidade de utilizar a
boleadeira com o gado selvagem, nas corridas de cavalos
e que, atualmente, preservam este elemento na sua
indumentária.
Observa-se a importância das boleadeiras na
construção do vestuário tradicionalista, assim como sua
harmonia com o contexto e o corpo do homem. Comentase a expressiva representação da dança com as boleadeiras
no folclore gaúcho, procurando conhecer também a
dimensão pessoal das boleadeiras no contexto Sul
Meridional.
19
No capitulo 2, revisa-se as fontes arqueológicas,
etnohistóricas e etnográficas que mencionam a história
das boleadeiras, organizando o capítulo em diferentes
momentos.
Inicialmente,
consulta-se
os
trabalhos
arqueológicos, visando conhecer a maneira que
os
pesquisadores discutem e explicam a presença das bolas
de boleadeiras encontradas em suas pesquisas. No
segundo momento, analisam-se as fontes etnohistóricas
com o interesse de encontrar outras referências para se
explicar as boleadeiras no contexto dos índios pampeanos.
Utilizam-se como principais referências os dois volumes
da obra de Eduardo Acosta y Lara com os índios Charrua
(1961 e 1969/70), nos quais o autor apresenta os
relatórios dos cronistas e viajantes dos diferentes períodos
da conquista. A pesquisa de Ítala Becker (1982), na qual a
autora tratou da ocupação dos índios Charrua e Minuano
na Antiga Banda Oriental do Uruguai, também contribuiu
amplamente na construção deste capítulo.
Sendo importante ressaltar que nesta revisão
etnohistórica o objetivo é compreender o contexto em que
viveram os Charrua que utilizaram as boleadeiras numa
seqüência analítica e cronológica. No terceiro momento,
procura-se conhecer as etnografias dos indígenas da
Antiga Província do Uruguai e Argentina, utilizando como
referências principais as obras de Antonio Serrano. A
primeira intitulada “Etnografia de La Província del
Uruguay” (1936), na qual o autor elaborou um quadro
20
completo da etnologia e etnografia do país. A segunda
denominada
“Aborigenes
Argentinos.
Síntesis
Etnográfica” (1947), onde o autor estudou os indígenas e,
baseado
nas
fontes
etnohistóricas
e
etnográficas,
dedicou-se a pesquisar as diferentes parcialidades étnicas
e sua provável forma de organização no momento da
conquista espanhola.
No quarto momento, busca-se compreender o
impacto que os cronistas sofreram ao visualizar a temível
eficácia das boleadeiras nas mãos indígenas. Abordam-se
as diferenças entre as respectivas armas de arremesso:
boleadeiras, bola de funda (honda) e a bola perdida. Desse
modo, esclarecendo as diversas contradições dos viajantes
e cronistas que,
ao se referirem as boleadeiras,
denominavam-nas como bola de funda ou bola perdida.
Descreve-se o uso das boleadeiras indígenas como massa
na caça e principalmente nas lutas corpo a corpo.
Apresentam-se as boleadeiras com duas e três pedras,
discutindo a hipótese do instrumento com a terceira pedra
ser uma criação do gaúcho.
No capítulo 3, apresentam-se as bases conceituais da
Etnoarqueologia, aplicando suas metodologias na aldeia
Polidoro Povo Charrua, em Porto Alegre. O objetivo foi
conhecer a narrativa simbólica que os indígenas estão
construindo
através
dos
objetos
arqueológicos
e
etnográficos para afirmar a sua identidade étnica. Procurase analisar a maneira como os Charrua se apresentam aos
21
pesquisadores e como eles transformam seus corpos e
suas narrativas para se apresentarem a Fundação Nacional
do Índio (FUNAI). Através das entrevistas orais, percebese as boleadeiras como índices simbólicos da identidade
Charrua. Aborda-se a construção da identidade indígena,
mostrando como o grupo Charrua se apropria de alguns
elementos que consideram típicos da cultura indígena para
afirmarem sua memória e identidade étnica. Eduardo
Acosta y Lara (1969/70) afirmou que os Charrua
sobreviventes do massacre de Salsipuedes (1831) foram
definitivamente eliminados no combate de Mataojos
(1832). Na continuidade de suas pesquisas, em 1981, o
autor considera que a última família Charrua descendente
do cacique Polidoro Sepé residia em Tacuarembó no
Uruguai até a década de 70. Nesta perspectiva, o interesse
deste capítulo é conhecer e compreender como as pessoas
que se reconhecem como Charrua no Rio Grande do Sul
estão reconstruindo esta memória devido ao longo período
de rompimento cultural entre eles e seus ancestrais.
Neste sentido, a presente dissertação trata-se de um
novo olhar para as bolas de boleadeiras, pois vai além de
seus aspectos funcionais e tipológicos, buscando na
memória dos gaúchos e indígenas seus significados sóciosimbólicos. A partir do estudo das boleadeiras nos
diferentes contextos culturais, pretende-se analisar a
presença destes artefatos em uma história contínua; porém,
com novos olhares e significados. Acredita-se que novas
22
abordagens para análise dos objetos possam contribuir
com
as
futuras
pesquisas
dedicadas
à
temática,
especificamente no que diz respeito ao simbolismo das
boleadeiras nos encontros étnicos gaúchos e indígenas.
23
2
BOLEADEIRAS
IDENTIDADE
COMO
SÍMBOLO
DE
2.1 A INVENÇÃO DA TRADIÇÃO GAÚCHA
A Revolução Farroupilha é evidenciada como
referência da memória do Rio Grande do Sul, sendo
anualmente comemorada no mês de setembro com
festividades em todo o Estado. Diversos autores como
Sandra Pesavento (2005, p.54), Moacyr Flores (1985,
p.177-178) e Rubem Oliven (1991, p.43) descrevem a
Revolução Farroupilha como um episódio constantemente
abordado pela história local e como um dos elementos
responsáveis pela construção da identidade gaúcha. Estes
historiadores compreendem a revolução riograndense
inserida no contexto das revoluções brasileiras que
buscaram impor um ideário liberal, diminuindo a
autonomia do poder executivo e aumentando a abrangência
do poder legislativo.
Desse modo, eles buscam apresentar o papel que a
Revolução Farroupilha possui nas representações locais
como referência de práticas que são vitalizadas pela
memória a partir do ideário do gauchismo. Uma das
manifestações desta identidade gaúcha, ligada à Revolução
Farroupilha, apresenta-se no culto ao tradicionalismo. De
24
acordo com Maciel (1994), a primeira iniciativa em torno
deste culto ao tradicionalismo deve-se aos gaúchos Paixão
Côrtes e Barbosa Lessa, líderes do grupo de estudantes
do Colégio Júlio de Castilhos, em Porto Alegre,
fundadores do Centro de Tradições Gaúchas (35 CTG), em
Porto
Alegre,
Rio
Grande
do
Sul,
em
1948.
Surpreendentemente, a maioria dos estudantes envolvida
com este movimento tradicionalista era descendente de
pequenos proprietários rurais da região, onde predominava
o latifúndio. Assim, "embora cultuassem valores ligados
ao latifúndio, não pertenciam à oligarquia rural", e nem
eram moradores do campo, mas sim da cidade. Eram
jovens do interior em quem a cidade despertava "a vontade
de buscar no campo e no passado um refúgio seguro e
claro" (OLIVEN, 1991, p.43). Uma das primeiras
atividades do grupo foi receber as cinzas do herói
farroupilha David Canabarro, trazidas para Porto Alegre
pela Liga da Defesa Nacional. Desse modo, a fundação do
CTG tinha como objetivo resgatar hábitos e costumes da
região da campanha e das estâncias, que os fundadores do
movimento julgavam ser “autênticas” tradições gaúchas,
procurando revivê-las. Deste modo, Paixão Cortês e
Barbosa Lessa com seu grupo dedicaram-se às pesquisas
sobre os costumes espalhados por todas as regiões sulistas
para reviver e resgatar de forma “autêntica” esta vida da
campanha. A estrutura interna do 35 CTG não utilizou a
nomenclatura que normalmente existe em associações e
25
em clubes sociais, mas adotou os nomes usados na
administração de um estabelecimento pastoril, já que os
jovens visavam evocar o ambiente e a hierarquia de uma
estância.
No
lugar
de
presidente,
vice-presidente,
secretário, tesoureiro, diretor, etc., empregaram os títulos
de patrão, capataz, sota-capataz, agregados e posteiros1.
No lugar de Conselhos Deliberativos ou Consultivos,
criaram o Conselho de Vaqueanos e, em vez de
departamentos, foram criadas as invernadas.
A
organização
foi
semelhante
a
todas
as
atividades culturais, cívicas ou campeiras, receberam
nomes que tivessem origem nos usos e costumes das
estâncias gaúchas, tais como rondas, rodeios, tropeadas,
etc. (OLIVEN, 1991, p.15-16). Após a criação do 35 CTG,
em 1948, ocorreu uma proliferação de outros Centros de
Tradições Gaúchas por todo o Estado do Rio Grande do
Sul, depois em outros estados e até no exterior. São os
gaúchos que criam estes centros nos locais de sua
permanência.
É indispensável evidenciar que a re-criação dessa
tradição gaúcha não representou, em si, uma anomalia ou
excentricidade ímpar na história de várias comunidades
humanas. Para os historiadores Hobsbawn e Ranger (1997,
p.12), “não há lugar nem tempo investigados pelos
historiadores onde não haja ocorrido a ‘invenção’ de
1
Posteiro: é o vigia do gado. No CTG, é o responsável pela organização das pilchas.
26
tradições”. Nessa construção, a figura mitológica do
gaúcho é representada pelo homem livre, corajoso,
invencível, veloz cavaleiro, morador da campanha, ou
seja, essa idealização do gaúcho deu-se após a Revolução
Farroupilha, como afirmam diversos historiadores, a qual
serviu de cenário para exibição das suas façanhas e
heroísmo. Nessa perspectiva, a derrota na revolução ganha
novos significados e “serve de modelo” para exaltação da
imagem do gaúcho, possibilitando a identificação que os
mesmos possuem com seus heróis farrapos, mesmo
derrotados. Oliven, referindo-se à relação do gaúcho com
os outros Estados brasileiros, destaca:
[...] é em torno desse acontecimento histórico que se
estabelece simbolicamente a relação do gaúcho com o
restante do país, seja para afirmar o seu caráter
autônomo, seja para evidenciar que o mesmo é brasileiro
por opção (OLIVEN, 2006, p.311).
A história da revolução farroupilha não pode ser
vista como algo que apenas aconteceu no passado, mas
como uma história sobre o passado do gaúcho heróico. É
uma história útil que serve para afirmar sua identidade e
para superar as derrotas, as tragédias e transformá-las em
conquista. É importante considerar que toda a história
riograndense contribui para esta mitificação do gaúcho,
tanto a história oficial, relatada pelos historiadores e
acadêmicos, quanto a história poética e literária contada
nas rodas de chimarrão, nos contos e nos encontros dos
contadores de causos. Em comparação com a história
27
oficial e acadêmica, a história literária é muito mais rica,
detalhada, em que se encontram os mais diversos
personagens que atuam dentro deste mundo cotidiano do
campo.
Esta
literatura
regionalista
começou
a
desenvolver-se a partir da primeira metade do Séc. XIX e
atribuiu a si todas as características dos modelos vigentes.
Nesse caso, destacando-se o modelo romântico de José de
Alencar, sendo o romantismo no Brasil a busca por fazer
uma literatura nacional, com uma temática própria do país.
O regionalismo veio ancorar essa busca das “cores locais”
do país. No Rio Grande do Sul, essa “cor local”, até inicio
do Séc. XX, era o pampa, o campo. E o principal
construtor desse cenário era o gaúcho riograndense a ser
difundido ao restante do país.
Mas, quem era este personagem? Era o gaúcho
vaqueano ou estancieiro, que é marcado na literatura
regionalista como sendo o herói, auto-suficiente, que
defende seus ideais, a sua bandeira, até a morte. É o
homem do campo que chegou a transformar-se em mito
devido à influência romântica na literatura. O discurso da
figura mítica do gaúcho é narrado como uma promessa
gloriosa, herói que atravessou altivamente guerras e
adversidades, tipo humano rude, que assim se constituiu
somente por uma necessidade imposta pelo meio:
Embora rude, o gaúcho era extremamente gentil para
com as mulheres e destemido na defesa da honra dos
indefesos. As constantes carneações, o churrasco meio
cru, sua familiarização à lida campeira constante, o
contato com o sangue, tornava-o sempre preparado para
28
a guerra. [...] Na descendência telúrica encontramos as
razões para um ser tão rude, forte e corajoso, ligado
profundamente à terra, que chamou, carinhosamente,
de Torrão (LAMBERTY, 2000, p.16).
Nessa
citação,
percebem-se
algumas
das
características presentes no “mito do gaúcho”: o tipo rude
para o trabalho e na guerra, mas gentil com as mulheres, a
coragem e a bravura, a prontidão para a peleia, o amor à
terra, ao pago, tão presente hoje em dia no discurso
tradicionalista, sendo todas estas supostamente adquiridas
pela influência do meio e transmitidas aos gaúchos de
todas as épocas. Essas mesmas características presentes
nos discursos sobre os gaúchos encontram-se no “gaucho”
argentino e uruguaio, tendo a figura do “gaucho” como
uma das mais ilustres personagens de obras literárias
como as de José Hernández (1948), “El Gaucho Martín
Fierro” é apresentado da mesma maneira como herói: “[...]
El gaucho se formó en la planicie y bajo clima templado.
Fue hijo dessa de la Pampa. [...] era fuerte y hermoso, su
estirpe guerrera, su alimentación substanciosa, la fuerza
e destreza que necesitaba para explotar su ganadería.”
(HERNANDEZ, 1948, p.10-11). Para Oliven (1993),
existem diversos momentos nesse culto à figura do
gaúcho, “e ele deve ser entendido como fazendo parte de
várias condições históricas que tornaram possível tanto
esta construção imagético-discursiva do gaúcho, quanto o
seu aspecto encomiástico” (OLIVEN, 1993, p.25).
Diferentemente do “gaucho” argentino ou uruguaio,
29
o gaúcho não representa uma figura nacional, mas
eminentemente regional. O gaúcho é riograndense. Nesse
sentido, Oliven (2006, p.310) também se refere a Erico
Veríssimo (1969, p.3-4), que evoca elementos recorrentes
no discurso regional do Rio Grande do Sul. Entre esses
elementos abordados, o primeiro é o caráter de fronteira
do Estado. O segundo é a escolha feita pelo Estado do Rio
Grande do Sul em pertencer ao Brasil, quando podia ter
optado por pertencer ao Império Espanhol. Um terceiro é
o alto preço que foi pago por essa escolha, representado
por guerras envolvendo o Estado e o governo central,
quando se percebia injustiça e necessidade de intervir na
política nacional em momentos de crise. O quarto
elemento é a questão da autenticidade dos costumes e do
comportamento. O quinto e último elemento, resultante
direto das suas escolhas, é a necessidade de guardar as
fronteiras que fazem parte de um clima constante de
oposição ao governo central.
Dessa maneira, Oliven (2006, p.310) compreende
que a imagem evocada pelas tradições do gaúcho tem sua
raiz na região denominada campanha. O gaúcho está
localizado no sudoeste do Rio Grande do Sul, fronteira
com a província argentina e uruguaia. A região é
caracterizada pelas suas estâncias2 ou fazendas, muitas
vezes de grande amplitude. A figura de culto ao gaúcho é
2
Estância: grande extensão de terras com plantações e criações de animais.
30
a de homem livre e aventureiro, um príncipe solitário;
enquanto estiver na sela do seu cavalo, seu único
interlocutor é a natureza, desdobrando-se sem limites em
toda a planície.
A literatura romantizada estilizou o gaúcho como
“Monarca das Coxilhas”, (PORTO ALEGRE, 1987), pois
o termo monarca significa cavalgar, ou seja, a figura do
gaúcho está relacionada ao sentido de liberdade, ou como
"o centauro dos pampas" (BARROSO, 1939). Nota-se a
forte presença simbólica do cavalo na vida do gaúcho,
sendo ele seu companheiro; em muitos casos, esse animal
é o fiel amigo do homem. As freqüentes lutas pelo gado e
pela terra deram ao gaúcho uma identidade guerreira numa
função política: guardião do pampa.
Angelise Fagundes da Silva (2006, p.1) acredita
que nesse processo de estilização mitológica do gaúcho,
além do cavalo e do gado, diversos outros atributos foram
incorporados à construção da sua identidade e estão
relacionados à história indígena.
Pois o gaúcho herdou dos índios não só a arte da
montaria, mas também elementos como o chiripá, a capa de
couro, as botas garrão de potro, o chimarrão e o churrasco,
que incorporado ao cotidiano tornou-se sua marca
emblemática de identificação. Além destes elementos já
citados, destacam-se as bolas de boleadeiras, objeto em
estudo na presente pesquisa, como um importante símbolo
da cultura gaúcha. Dayse Albeche (1996) diferencia duas
31
figuras do gaúcho: o gaúcho literário e o real3 gaúcho
histórico. Para Albeche, o gaúcho na literatura passou por
diversas
ressignificações,
pois
nem
sempre
foi
reconhecido como herói riograndense. O real gaúcho
histórico foi marginalizado pela sociedade e esquecido
pelos literatos por ser considerado desordeiro, desregrado
e pilhador. Quando mencionado na literatura, os enfoques
não eram centrados no gaúcho e, sim, nos aspectos
geográficos dos pampas, na relação com o cavalo, na
liberdade e nos costumes. Um exemplo é o conto do
Apolinário Porto Alegre (1869),
O Monarca das
Coxilhas, em que é exaltada a figura do bom cavaleiro e
a superioridade do homem e da vida rural, que monta
sem necessitar dos pelegos e bastos4: “[...] os riograndenses tem em nenhuma monta tronos e centro. Para
eles uma boa equitação vale uma monarquia [...] valentes
campeiro”. (PORTO ALEGRE, p.111). Nota-se que, em
suas obras, em nenhum momento há exaltação ao gaúcho
como imagem da sociedade riograndense, e, sim, à figura
do riograndense por sua natureza livre, nobreza de
sentimentos, coragem e bravura, valores esses associados
ao
processo
do
desenvolvimento
da
propaganda
republicana no Rio Grande do Sul (ALBECHE, 1996,
p.20).
Os primeiros relatos do perfil social do gaúcho foram
deixados pelos
viajantes estrangeiros;
32
entre
eles,
destacam-se os relatos do naturalista francês Auguste de
Saint- Hilaire, na sua obra “Viagem ao Rio Grande do
Sul”. O autor considera o “habitante de maneira geral
muito hospitaleiro”. No entanto, descreve o gaúcho como
um homem que se encontra à margem da sociedade.
Homens sem princípios, sem honra, de vida livre, que
vagam pelos campos da fronteira, aproveitando-se das
desordens causadas pelas lutas
entre espanhóis e
portugueses para pilhar e roubar estâncias (SAINTHILAIRE, 1974, p.72).
Deyse Albeche (1996, p.34) destaca outra importante
contribuição para se conhecer a figura do “real gaúcho
histórico” anterior à Revolução Farroupilha5, que foi o
palco das mudanças significativas do termo. A autora
apresenta a obra de Nicolau Dreys (1839), intitulada
“Notícia descritiva da Província do Rio Grande de S. Pedro
do Sul”. Dreys viveu no Brasil no período de 1817 a 1843.
Para ele, o homem em geral era hospitaleiro, generoso e
possuidor de uma vida regada pela abastança. O autor
compreende o perfil social do gaucho como o de homem
nômade, que não possui residência fixa, geralmente sendo
encontrado nas estâncias ou charqueadas:
[...] os gaúchos, nômades, habituados nas
margens do rio da Prata, principalmente
das Campinas, ao Norte de Montevidéu,
estendem-se igualmente em todo
território banhado pelo Paraguai, Paraná
e Uruguai, até o oceano, em todas as
partes onde há estâncias ou charqueadas
em que servem de peões. (DREYS, 1980,
p.22, apud ALBECHE, 1996, p.34).
33
Nota-se, no discurso de Saint-Hilaire (1974, p.62),
que o autor não insere o gaúcho como membro social e sim
o apresenta como bandido e pilhador vivendo à margem
da sociedade.
Em contrapartida, é possível notar uma mudança na
vida do gaúcho enfatizada por Dreys (1980, p.22), ao
destacar o mesmo como trabalhador de estâncias ou de
charqueadas, mas não deixando de ser visto como
marginal, devido a seus hábitos de gaudério e a sua origem
mestiça.
Como enfatiza “[...] sem ordem e sem destino, com
o gosto tão geral de uma vida fácil e de perfeita liberdade.
Sem chefes, sem leis e sem polícia, os gaúchos não têm
moral social, se não as idéias vulgares”. Desse modo, o
gaúcho era percebido como elemento de atraso na
sociedade riograndense, denominado inicialmente como
gaudério, expressão pejorativa dada aos aventureiros e
desertores paulistas, que adotaram a vida de vagabundos e
pilhadores de gado.
3 A autora utiliza o termo “real gaúcho” para se referir ao gaúcho histórico.
Acredita-se, entretanto, que ambos gaúchos são reais, o literário e o histórico.
4 Basto: sela de cavalo.
5 É importante destacar que o gaúcho na Revolução Farroupilha (1835 a 1845)
carregava a faca e a b o l e a d e i r a na cintura, além do laço preso no arreio do
cavalo.
34
Como afirma Flores (1992, p.349), eles pertenciam
a um grupo social marginalizado pela sociedade, assim
como o negro e o índio, pois não possuíam propriedade,
nem cidadania e o emprego dependia do período de maior
atividade nas estâncias.
Verli Silveira (2004) discorda da afirmação de
diversos historiadores acima citados de que a revolução
farroupilha foi decisiva na construção do mito fundador
do herói gaúcho. Ela argumenta que, tanto antes quanto
depois da Revolução Farroupilha, já havia um “confronto
discursivo” envolvendo a designação de gaúcho; afinal,
não é de uma hora para a outra que o “gaúcho bandido”
passa a “gaúcho herói”. Ela entende que esse fato se tornou
possível graças ao fortalecimento mitológico. O contexto
revolucionário,
imaginário
re-inventado
social,
contribui
constantemente
com
o
pelo
processo
ressignificativo da denominação gaúcho, inserindo- lhe
novos significados, colaborando, assim, com a exclusão
de sentidos pejorativos através da mudança dos discursos.
A atual exaltação à imagem do “gaúcho herói” é
compreendida
nesse
trabalho
como
um processo
mitológico construído ao longo das mudanças históricas.
Essa ressemantização dos significados atribuídos a
um determinado grupo social não ocorreu somente com os
gaúchos. Klaus Hilbert (2001), em seu artigo intitulado
“Caçadores da região do Prata, de vilão a herói”, apresenta
35
as mudanças dos significados atribuídos aos índios
Charrua ao longo da história. Os mais antigos relatos
escritos referentes aos indígenas são a carta de Luiz
Ramirez, de 1528, e o diário de bordo de Pero Lopez de
Souza, de 1530, que, no primeiro momento, mencionam
um contato inter-étnico pacífico e apresentam os Charrua
como
pescadores
e
caçadores
do
litoral.
Eles
descreveram seus costumes, seus objetos, suas armas
como boleadeiras, arcos, flechas e lanças e seus
agasalhos. Schmidel (1536) destaca que a farinha de
peixe e a carne são a base da sua alimentação. Algumas
transformações na vida cultural indígena é resultado da
introdução do cavalo e, posteriormente, do gado bovino
na região do Prata, ocorrendo, durante o Séc. XVII,
visíveis mudanças na vida dos Charrua. Nos relatos dos
cronistas do Séc. XVIII, os mesmos passam a ser descritos
montados a cavalos, atacando as fazendas, roubando os
animais e vendendo a carne e o couro.
Nessa direção, Hilbert (2001, p.113) denota que, no
início do Séc. XIX, os pampeanos vão fazer parte das
disputas de fixação de fronteiras. Os índios Charrua e
Minuano participaram ativamente das disputas ao lado do
general José Artigas. Após os conflitos, os Charrua são
chamados de elementos selvagens e indomáveis nos
relatórios oficiais da época, que perturbam a paz e
retardam o progresso do país. Considerando os indígenas
como elementos de atraso, o general Rivera preparou a
36
emboscada, em 1831, que executou a maioria dos
Charrua. Justificando sua ação da seguinte maneira:
El desefreno criminal de las hordas salvajes y
degradadas, sus recientes y horribles crimenes, no
habían dejado al Gobierno, mas alternativas que la de
atacarlas y destruirlas (ACOSTA y LARA, 1961, p.3,
apud HILBERT, 2001, p.113).
Esse acontecimento muda os significados dos
indígenas na memória da população uruguaia, sendo
considerados atualmente símbolo nacional, representando
o espírito de luta, a “garra Charrua”, como um dos
elementos de sua identidade cultural. Hilbert (2001,
p.113) compreende que a imagem que existe hoje dos
Charrua é um produto da imaginação, construído a partir
de raras fontes escritas e de inúmeros fragmentos de objetos
arqueológicos, coletados fora do contexto Charrua. Um
dos aspectos que influenciaram essa construção foram os
trabalhos de alguns historiadores que se empenharam em
transmitir a imagem de um herói ancestral.
Atualmente, no Uruguai, existem monumentos em
homenagem a essa figura Charrua heróica e guerreira,
fortalecendo e afirmando a identidade do país. Ou seja, o
mesmo acontece no Rio Grande do Sul, em Porto Alegre,
com a figura do laçador, símbolo regional da identidade
riograndense, representando o gaúcho livre, corajoso,
herói, guerreiro, leal, justo, honesto6.
37
2.2 AS BOLEADEIRAS COMO HERANÇA CULTURAL
NA MEMÓRIA GAÚCHA
Na tentativa de conhecer o modo como os atuais
gaúchos se percebem e de que maneira eles atribuem
valores a seus objetos, foram analisados, nessa pesquisa,
os significados simbólicos das bolas de boleadeiras7, um
dos vários e importantes elementos que contribuem para a
construção e afirmação da sua cultura. Nesse sentido,
realizou-se, na cidade de Uruguaiana/RS, uma etnografia
que viesse expor as diversas vozes que narram a
importância dos artefatos de boleadeiras no contexto
gaúcho num processo histórico contínuo que ultrapassa
gerações.
Desse modo, é necessário destacar o artefato como
um patrimônio material que é passado de pais para filhos.
Referindo-se ao valor simbólico do objeto antigo,
Baudrillard (1993, p.82) menciona que “o objeto antigo
é puramente mitológico na sua referência ao passado”.
Ou seja, não possui mais resultado prático, acha-se
presente unicamente para significar, assim as boleadeiras
contemporâneas não devem ser consideradas como
totalmente afuncionais, nem simplesmente decorativas. A
boleadeira tem uma função bem específica na memória
dos gaúchos. Ela significa a história dos seus ancestrais
heróicos, a tradição e, ao mesmo tempo, o presente da
sua cultura que necessita ser conservado e vivido.
38
Dessa maneira, a memória dos gaúchos sobre as
boleadeiras proporciona importantes informações em
relação ao uso e significados dos objetos. As entrevistas
possibilitaram conhecer diversas visões sobre os artefatos
e seu meio cultural.
Esse modelo de pesquisa investigativa também foi
desenvolvido por Eduardo Góes Neves (1998/2002), em
outro contexto histórico, na região do alto Rio Negro
(Amazonas). Nessa região, o pesquisador se utilizou da
inter-relação entre a “tradição oral e os dados históricos,
lingüísticos e arqueológicos para tentar compreender o
processo histórico de ocupação daquela área, pelos
ancestrais das populações indígenas atuais” [...]. (SILVA,
2002, p.185). Nessa perspectiva, a presente etnografia
procurou compreender e descrever os discursos do gaúcho
morador do campo e do gaúcho urbano, sendo uma
maneira de conhecer não apenas uma noção geral das
boleadeiras, mas sim as diferentes percepções e
atribuições de significados aos objetos.
Durante as entrevistas, evitou-se realizar muitas
anotações ou utilizar o gravador para impedir a inibição e
a ocultação da fala dos informantes; a narrativa foi
construída com base em um diálogo entre o informante e
o pesquisador. Dessa maneira, a solução foi transcrever
posteriormente os depoimentos. Alguns dos entrevistados
não somente utilizam e reconhecem as boleadeiras como
símbolos de identidade gaúcha, como também as
39
confeccionam. O informante Jorge Bairros (57 anos) há
muitos anos exerceu o ofício de domador de cavalos,
atualmente é trabalhador rural e artesão, elaborando
cordas para as correarias da cidade e também por
encomenda aos conhecidos8.
Realiza um belo trabalho artesanal com as
boleadeiras feitas em pedras, de tal modo que foi difícil
distingui-las das boleadeiras arqueológicas, pois ficam
idênticas aos artefatos confeccionados pelos indígenas
pré-coloniais. Ao ser questionado sobre o que o levou a
confeccionar esses objetos, destacou que o motivo devese ao trabalho na campanha, onde por diversas vezes
encontrou as “bolas dos bugres”9, resolvendo assim
reproduzir estas armas antigas.
6
Eleito símbolo da cidade de Porto Alegre, a escultura nasceu de uma
mobilização iniciada em 1954 por ocasião do IV Centenário da Fundação de
São Paulo: em concurso público promovido para eleger o projeto que melhor
representasse o povo e as tradições gaúchas para uma exposição no Parque
Ibirapuera, Caringi – concorrendo com nomes como Vasco Prado e Fernando
Corona - vence com a proposta da escultura de um boleador. Mais tarde, ela
seria alterada por sugestão da comissão julgadora, que trocaria as boleadeiras
por um laço. (GOMES, 2008).
7 Boleadeiras: armas utilizadas para caçar e guerrear. O primeiro instrumento
de boleadeira era composto de duas pedras esféricas com um sulco onde se
amarrava o tento de couro para poder realizarem o arremesso. Com a
colonização, o artefato recebe do gaúcho a terceira pedra chamada maniclã
- pedra menor que proporciona o equilíbrio a arma (LEGUIZAMÓN, 1919).
8 Correaria: casa comercial de artigos gaúchos.
9 Bugre: modo como se refere aos indígenas.
40
De acordo com o artesão, “quanto mais antiga a
boleadeira, mais demonstra a tradição do homem da lida10
campeira”. Mencionou que, tendo como modelo as bolas
encontradas nos campos, sempre procura nas margens dos
arroios ou no rio Uruguai seixos que proporcionem bons
artefatos.
Ao levá-los para casa, inicia o lento e delicado
trabalho, descrevendo que o primeiro passo é lixar o seixo
com a lima11, afunilando as pontas e dando- lhe formato
de limão. Quando a pedra, antes bruta e sem molde, ganha
a forma de boleadeira, com uma serrinha ele faz o sulco
onde o couro é amarrado. As boleadeiras em madeira e as
revestidas no couro são vendidas aos conhecidos ou
comercializadas com as correarias,
que sempre o
procuram por seus artigos. Os instrumentos elaborados
com a pedra são confeccionados para uso próprio ou para
pessoas muito próximas. Essa é uma maneira de
apresentar-se como diferente: “Se eu vender todos terão as
armas iguais as minhas, assim não terá graça”, denotando
a importância que atribui à unicidade e à integridade
simbólica do artefato. Jorge Bairros se sente como único
guardião das tradições e das habilidades de confeccionar
bolas de boleadeiras.
10 Lida: trabalho.
11 Lima: espécie de lixa
41
Nesse sentido, considera-se viável ressaltar o
trabalho de Baudrillard (1993, p.101) referente ao valor
simbólico da unicidade dos objetos, utilizando como
exemplo a anedota narrada por Maurice Rheims:
Um bibliófilo possuidor de exemplares únicos tem um
dia conhecimento de que uma livraria pôs à venda em
Nova York um exemplar idêntico àquele que possui.
Corre e adquire o livro, convoca um porteiro para
queimar, na sua presença, o segundo exemplar e fazer
constar por escrito a destruição. Isso feito, insere o
pronunciamento no volume tornado único e adormece
tranqüilo.
O
autor
destaca
que
há,
portanto,
só
aparentemente, a negação da série, pois o exemplar
único achava-se impregnado com o valor de todos os
exemplares virtuais e o bibliófilo, ao destruir o outro,
nada mais fez que restabelecer a integridade do símbolo
comprometido.
Desta maneira, o artesão revela a importância em
manter a unicidade das boleadeiras elaboradas em pedra,
enfatizando que suas boleadeiras são diferentes das
comuns, pois despertam a atenção de todos quando se
pilcha12 para uma festa campeira ou no desfile
comemorativo
à
Revolução
Farroupilha:
“Minhas
boleadeiras são as peças que dão mais
destaque a roupa, também coloco um par delas no arreio
do meu cavalo, assim chamamos ainda mais atenção do
povo”. Percebe-se, em seu discurso, que o artesão
transforma essa arma em um objeto personificado, ele é
42
único; mesmo que um pequeno grupo os obtenha, não é de
acesso a grande maioria. Dessa forma, o artefato, além de
ser um elemento fundamental na construção do seu corpo,
de sua identidade gaúcha e da dos seus amigos mais
próximos, também lhe confere prestígio na sociedade.
Nesse caso, é visível a extensão do corpo do homem, a
partir da sua cultura material, pois mesmo não
comercializando a réplica da boleadeira lítica, o artesão
negocia com pessoas próximas, criando assim um elo de
confiança entre membros de um mesmo grupo através do
objeto.
O informante destaca as diferentes denominações
das boleadeiras na sociedade gaúcha. Ao se referir às
boleadeiras, em alguns momentos durante a entrevista, as
chamava de “potreiras, bolas de bugre13, boleadeiras,
avestruzeiras e três marias”. Ao ser questionado do motivo
para tantos nomes para um mesmo objeto, ele explicou
que: “as potreiras são bolas pequenas para as corridas dos
cavalos, evitando, assim, quebrar os animais, as dos bugres
são as mesmas avestruzeiras que eles utilizavam para
caçar.” Mencionando que a maioria dos gaúchos conhece
os artefatos por boleadeiras ou três marias devido à
relação com as três estrelas centrais na constelação do
Órion, pois são três bolas, duas do mesmo tamanho e a
chica, pedra menor que o peão segura para girar as outras
duas.14
43
A comparação do artefato com as estrelas evidencia
o simbolismo atribuído ao objeto, sendo necessário
destacar a possibilidade da existência de significados
religiosos ao chamarem as boleadeiras de “Três Marias”
(Jorge Bairros, comunicação pessoal, janeiro de 2008).
É importante ressaltar que o trabalho que o artesão
realiza com as boleadeiras é uma espécie de arqueologia
experimental, pois os objetos são verdadeiras réplicas dos
artefatos arqueológicos. Essa manutenção do conhecimento
das técnicas culturais também ocorre em contextos indígenas.
É o caso dos Asurini contemporâneos que encontram as
lâminas de machados deixadas pelos seus ancestrais e sabem
exatamente como encabá-las (SILVA, 2002, p.181).
Sendo indispensável mencionar que enquanto os
Asurini apenas interferem nos artefatos, dando a eles um
encabamento, o gaúcho confecciona o artefato por inteiro,
tendo o total domínio das técnicas do artesanato na pedra.
____________
12 Pilcha: veste-se.
13 Bugre: modo como eram chamados os indígenas pampeanos.
44
Figura 1: Jorge no trabalho de campo.
Figura 2: Jorge utilizando a boleadeira no Desfile
Farroupilha.
45
O informante José Adir Pouey (50 anos) é capataz
de uma estância no interior da cidade15. No início do
diálogo, mencionou que: “As boleadeiras vieram dos
índios que viviam nos campos abertos, pois não podiam
utilizar as boleadeiras no mato, como arremessar o
instrumento sem prendê-los nas árvores”. É importante
enfatizar essa noção do informante em relação ao ambiente
propício para a utilização das boleadeiras, reforçando sua
relação com os campos abertos dos pampas e com o peão
gaúcho. Ele entende que os indígenas utilizaram as
boleadeiras inicialmente para caçar emas, depois gado e
cavalos; dessa maneira, quebravam as patas dos animais,
pois o golpe da arma os atingia na corrida adquirindo
assim maior força. Afirmando que, por esse motivo:
“atualmente, o gaúcho não usa mais a boleadeira na lida
com os animais, pois não existe a necessidade de machucar
o gado; também tem o IBAMA16 que proíbe”. A entrevista
com este informante possibilitou perceber outro aspecto
importante que é o nível de consciência dos trabalhadores
rurais em relação às leis de proteção aos animais. Estas
proíbem o uso de uma arma terrível como a boleadeira no
trabalho com o gado domesticado.
José Pouey considera a boleadeira como um
patrimônio simbólico do gaúcho, mas compreende que o
gaúcho não é descendente do índio. Eles mantiveram
contato com os índios nos pampas, ocorrendo assim a troca
dos conhecimentos17, como esclarece: “o índio passou a
boleadeira para o gaúcho, mas também aprendeu muito
46
com ele nas estâncias”. O informante fez questão de
mencionar diversas vezes, durante a entrevista, que a
boleadeira
pertence
a
“própria
tradição
gaúcha”,
descrevendo o processo de modificações no cotidiano
campeiro e o aperfeiçoamento do artefato.
Através das suas lembranças, comenta: “Nos
campos, ainda se encontra bolas de pedra dos índios, elas
têm um sulco em volta, esse era para passar o couro, nessa
época só caçavam emas e avestruzes”. Ele entende que a
introdução do gado no Rio Grande do Sul pelo homem
branco facilitou a confecção das armas: “foi bem mais
fácil, eles dão um retovo18 para as pedras e não precisam
mais fazer o sulco”.
14 Chica: a bola chica é outra forma de chamar a maniclã, a bola menor.
15
Capataz: responsável pela organização da estância e coordenação dos peões.
16 IBAMA: Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis.
17 Esse processo de transculturação é abordado por Arno Kern (1991). O autor narra a
contribuição indígena na formação do gaúcho, levando para as estâncias o churrasco, o
chimarrão e as boleadeiras.
18 Retovo: forro em couro cru que a boleadeira recebe.
47
Sendo solicitado a descrever o significado das
boleadeiras na sua vida, enfatiza: “Para mim, a boleadeira
é um símbolo da tradição gaúcha, algo do passado que
devemos preservar como um tesouro importante, que
ficará para sempre como relíquia”.
No discurso do informante, nota-se que as
boleadeiras remetem as pessoas às suas memórias,
possibilitando um elo entre o passado e o presente dos
gaúchos através dos seus significados. Como compreende
Baudrillard (1993, p.83), o objeto antigo não é aquele que
atualmente é isto, e sim aquele que foi, ou seja, este objeto
é para mim o signo do presente que mergulha no tempo.
Na medida em que se integra no sistema cultural atual, o
objeto antigo vem do passado significar no presente
dimensão vazia do tempo. Sobre a temporalidade do
instrumento na cultura gaúcha, o informante ressalta:
“mesmo a boleadeira não sendo mais uma arma para o
trabalho, não me desfaço dela, pois a considero uma
relíquia de três pedras “três marias como as estrelas”.
Atualmente, afirma que as boleadeiras usadas no
trabalho são feitas em madeira para evitar ferir os
animais. José Pouey confecciona suas boleadeiras da
seguinte forma: “coloco a madeira no torno até dar uma
forma esférica, depois furo com a pua para passar o
couro”. O informante argumenta que as boleadeiras em
madeira por serem mais leves foram utilizadas para caçar
48
aves e também na corrida de cavalos, evitando assim
quebrar os ossos dos animais que são bem mais frágeis
que o do gado (José Pouey, comunicação pessoal, maio
de 2008).
Figura 3: Acuarela-Boleando Baguales
Obra de Florian Pauck 1719/1780. Madrid Museu da América
Com relação a corrida de cavalos e com a
necessidade de usar “bolas menores, as três marias e a
estética dos artefatos”, os relatos dos informantes
coincidem com o conto “Correr Eguada”, de Simões
Lopes Neto, descrito por Moysés Velhinho (1957, p.52).
[..] Mas, como quera, era sempre um divertimento
macanudo, uma volteada de baguais! Ah! Não há nada
como tomar mate e correr eguada! [...] E a gauchada
quase toda em pêlo. Uns de bombacha, ’outros de
chiripa; muitos sem chapéu, muitos de lenço na cabeça,
tudo em mangas de camisa e faca atravessada. O mais
maula19 levava pelo menos dois pares de bolas, três
pares, isso era a rôdo, e havia torena que chegava a
levar cinco: um na mão e outros na cintura. E
49
tudo boleadeiras mui bem feitas, de pedra pequena;
porque Vancê sabe que o cavalar tem o osso mais
quebradiço que a rês-e vai, se toma um bolaço pesado,
aí no mais já temos um avariado. Pois é as três marias
retovadas a preceito, e as sogas macias para não cortar
[..].[Grifo nosso].
Esse conto descreve a importância simbólica das
boleadeiras no cotidiano dos gaúchos. Nessa perspectiva, o
informante João Rodrigues da Silva (80 anos), natural de São
Francisco de Assis/RS, residente em Uruguaiana há 40 anos,
comenta que, em sua cidade natal, morou na “Estância do
Marafico”. Lembra que, na estância, todos os peões
utilizavam a boleadeira nas atividades com o gado e nas
corridas de cavalos, sendo os próprios gaúchos que
confeccionavam suas armas. Ele descreve o modo como
eram elaboradas as boleadeiras: “recolhíamos seixos e os
aperfeiçoávamos com a lima, até ficarem bem redondos,
também afunilávamos a ponta onde se prendia o couro, o
retovo era feito com couro curtido, ou com o escroto do touro
que ressecava até fechar bem a boleadeira”. João, devido a
sua longa experiência na vida campeira, forneceu diversas
informações sobre a boleadeira na cultura do gaúcho,
afirmando que quase sempre o instrumento era passado de
pai para filho, ou dos avôs para os netos, como um
patrimônio familiar. Desse modo, conta que a boleadeira que
utilizou por muito tempo no trabalho em São Francisco,
herdou do seu avô, enfatizando: “Eram boleadeiras que
tinham uma longa história, pois meu avô já havia derrubado
muita eguada com elas”.
19 Maula: covarde, frouxo.
50
Sua narrativa demonstra também que certos objetos
possuem biografias que remetem a lembranças de outros
agentes
num
passado
interiorizado.
Objetos
com
biografias têm sido abordados por diversos pesquisadores,
entre eles Janet Hoskins (1998), antropóloga vinculada à
Universidade da Califórnia, que apresenta o lugar do objeto
biográfico enquanto expressão e instrumento de memória
em seu livro: Biographical objects: how things tell stories
of people's lives. Em especial, o capítulo intitulado “The
betel bag: a sack for souls and stories”, a autora analisa o
relacionamento de Maru Daku (homem do povoado de
Kodi, localizado na costa sudoeste da ilha de Sumba na
Indonésia) com a sua inseparável “bolsa de betel”,
evidenciando singularidades históricas que conectam
presente e passado em um valioso processo de
identificação. A “bolsa de betel”, representada por Janet
Hoskins como “um saco para almas e histórias”, foi
utilizada como suporte para incentivar a narrativa das
experiências de vida do senhor Maru Daku. Este objeto
doméstico é uma pequena bolsa de tecido usualmente
levada no ombro, presente no cotidiano dos homens e
mulheres da Vila do Kodi, que guarda um conteúdo
cuidadosamente preparado: o betel (uma pimenta cuja
folha tem propriedades adstringentes) envolvendo a noz
de areca (semente da Areca Catechu, conhecida como
“palmeira de betel”) para formar uma pastilha elástica,
51
uma “goma estimulante” que é mastigada e armazenada:
[...] Maru Daku herdou do seu avô as "sementes de
sabedoria" que são produzidas por meio de uma
mistura, feita na boca com saliva e embrulhadas com a
unha do polegar para mascar. Ele juntou sementes e
histórias em um pequeno saco de tecidos que ele levava
ao longo de sua vida (HOSKINS, 1998, p.26).
Segundo Janet Hoskins (1998, p.26), Maru Daku
usou a “bolsa de betel” como uma metáfora das suas
experiências. Afinal, este objeto biográfico incentivou
suas recordações ancestrais mediando novas percepções. O
significado dado por Maru Daku à “bolsa de betel” foi
evidenciado por Hoskins em três momentos da sua
narrativa. Ele apontou a transmissão de conhecimento por
gerações: “recordações do seu avô, do seu irmão e do seu
filho
favorito”. Ultrapassando gerações, o objeto
biográfico permite um elo com o passado. A “bolsa de
betel” é para Maru Daku instrumento de registro dos
momentos considerados significativos na sua história de
vida.
Nesse sentido, percebe-se que a boleadeira, assim
como a “bolsa de betel” descrita pela autora, é um objeto
com biografia que permite um posicionamento reflexivo
do informante, facilitando a elaboração de narrativas por
meio da atribuição de sentidos aos vários detalhes do
objeto
apresentado.
João
descreve
as
bolas
de
boleadeiras como um patrimônio simbólico da sua
identidade gaúcha e afirma que elas estão na sua família
há gerações, antes foram do seu avô, que o presenteou, mas
52
seu pai também as usou no trabalho com o gado. Esse
objeto é uma herança familiar, um símbolo afetivo e
cultural de longa duração, que reafirma sua identidade
gaúcha, além de fazê-lo relembrar do passado, de sua
história de vida e dos bons momentos com o pai e o avô.
Recorda também da convivência como os amigos no
campo, do trabalho com o gado, das disputas que
faziam com as boleadeiras na corrida de cavalos.
Mencionando que seu avô o ensinou arremessar as
armas, quando era apenas um menino, pois precisava de
um longo treinamento para tornar-se ágil no manejo das
boleadeiras. Sendo os pais, ou avôs, que preparavam seus
filhos e netos para o trabalho do campo. João conta ter
visto na estância onde trabalhou há quarenta anos os filhos
dos peões arremessarem boleadeiras que seus pais
confeccionavam: “eles brincavam no patio das casas na
mesma fazenda, treinando em cavaletes e também nos
cachorros”20.
Os
homens
faziam
as
boleadeiras,
amassando os papéis da embalagem do cigarro “Ascot”.
___________
20 Cavaletes: espécie de cabide reproduzido na madeira com quatro patas para
dependurar os arreios.
53
Esta caixa tinha na frente a imagem de um homem
em uma charrete com dois cavalos, ou seja, tudo estava
relacionado com o contexto pampeano. “A bolinha de
papel era revestida com sola, ou couro curtido, deixando o
instrumento leve, facilitando assim o arremesso das
crianças.”
Nesse caso, pode-se pensar num processo de
iniciação, devido ao manejo com as armas exigir do gaúcho
muita preparação e destreza. O entrevistado também
afirma desconhecer o uso de boleadeiras por meninas,
como relata: “Jamais as meninas brincaram com as armas
dos homens, elas aprendiam com as mães as tarefas da
casa”.
Nesse sentido, a entrevista com João possibilitou
identificar, entre outros aspectos da vida no campo, a
questão do gênero inserido nas boleadeiras. Assim como o
uso das armas era feito somente pelos homens, o
revestimento do objeto era feito com o escroto do touro,
ou seja, o objeto é utilizado como um símbolo que
comunica e afirma a força e a masculinidade do gaúcho
(João Rodrigues da Silva, comunicação pessoal, maio de
2008).
Nessa perspectiva, as obras históricas e literárias que
falam sobre as boleadeiras, tanto na sociedade indígena
como na colonial e contemporânea, sempre as destacam
como armas utilizadas apenas pelo sexo masculino. Como
54
exceção a essa regra, evidencia-se o exemplo da minissérie
“A casa das sete mulheres”, em que Anita Garibaldi, na
Revolução Farroupilha (1835-1845), utilizava boleadeiras
na cintura. No entanto, é necessário lembrar que, nesse
contexto, Anita assume o papel da força masculina,
transformando seu corpo com a indumentária dos
guerreiros farrapos, composta de botas, esporas, chiripá,
lenço, chapéu, tirador e as boleadeiras presas na cintura e
no arreio do cavalo, evitando assim a falta das armas nas
disputas.
Na continuidade do diálogo, procurou-se saber de
João quais eram os significados das boleadeiras na sua
vida. Ele ressalta: “tenho afeto pelas minhas boleadeiras,
não doaria em vida para ninguém, pois o homem
campeiro ao montar a cavalo sempre tem que ter as
boleadeiras na cintura ou nos arreios, o laço também não
pode faltar”. Lembra ainda que: “atualmente, não se usam
mais as boleadeiras para o trabalho, mas elas continuam
porque é um símbolo do gaúcho e as primeiras foram
criadas pelos bugres”. Afirma também que as “três
marias” são criação própria do gaúcho, pois as
boleadeiras indígenas não possuíam couro nem a bola
menor, a maniclã, que dá equilíbrio ao arremesso. É viável
comentar que os informantes sempre enfatizam as
inovações e as diferenças das suas armas, desse modo
sustentando a autenticidade do artefato como um elemento
próprio de identidade gaúcha. Em contrapartida, nota-se
55
que o artesão Jorge Bairros reconhece que as boleadeiras
são criações suas, mas gosta de confeccioná-las na pedra
por considerar as mais antigas as mais belas e mais
desejadas entre os gaúchos que não dominam a técnica
indígena.
João, denotando as modificações e o simbolismo dos
artefatos,
narrou
a
história
do
tradicionalista
uruguaianense, Pedro José Coutinho, já falecido. Segundo
o informante, Coutinho fez sucesso, na cidade, na década
de sessenta, pela sua rica indumentária: “era um
tradicionalista
que andava
sempre a
caráter,
bem
pilchado, carregando as boleadeiras de prata e marfim na
cintura, o que despertava a atenção de todos na cidade”,
sugerindo que as mesmas deveriam estar no museu.
Durante a visita ao museu, Dr. Pedro Marini verificou-se
que as mesmas se encontravam no espaço do gaúcho e eram
exatamente como o informante as descreveu, em marfim e
prata;
realmente
um
admirável
instrumento
que,
infelizmente, a responsável pelo museu não permitiu que
fosse fotografado.
João compreende que o gaúcho Coutinho se
destacou na cidade de Uruguaiana, afirmando sua
autenticidade gaúcha através da indumentária tradicional.
E um dos importantes elementos que colaboraram com a
construção do seu corpo e sua identidade foram as
boleadeiras, as quais expressavam a sua paixão pelo
tradicionalismo, valorização da cultura gaúcha, além de
56
revelarem seu status na sociedade (João Rodrigues da Silva,
comunicação pessoal, maio de 2008).21
Figura 4: Boleadeiras do Séc. XIX Similares as de Coutinho em prata e marfim).
Outras
importantes
informações
referentes
à
comunicação do status social do gaúcho através da sua
indumentária e arreios encontram-se em Arsene Isabelle
(1833-1834).
____
21 Em Uruguaiana/RS, foi fundado o CTG Pedro Coutinho em homenagem ao
tradicionalista.
57
Na sua obra, intitulada “Viagem ao Rio Grande do
Sul”, o viajante destaca em seu diário que os homens
ostentam luxo: “seus cavalos têm rabicho, sobre-chinchas
e cabrestos, bem como todo o resto dos arreios, cobertos
de “placas de prata”, levam ainda na mão, como os
argentinos, um pequeno rebenque, com um cabo muito
curto de “prata maciça”.
O cabo e a bainha de sua faca-punhal são também de
“prata”. O viajante estabelece uma comparação entre os
homens do campo do Rio Grande do Sul e os “Gauchos”
argentinos e orientais. Ele enfatiza que ambos andam
sempre armados e valorizam bastante suas montarias,
sendo que os brasileiros ostentam ainda mais luxo sobre
seus cavalos do que os outros (ISABELLE, 1983, p.6566).
Até o presente momento, buscou-se evidenciar as
diferentes visões de gaúchos, verdadeiros homens do
campo, que ainda usaram e confeccionaram bolas de
boleadeira. A história de Sirineu Scolars (53 anos) é
diferente. Sirineu é um gaúcho da cidade. Ele participa das
festividades campeiras, preserva e respeita os costumes da
tradição gaúcha, sem nunca ter vivido no campo. A sua
entrevista permitiu conhecer outras percepções sobre as
boleadeiras, percepções que relacionam o homem do
campo com o homem urbano através do mesmo objeto: a
58
bola de boleadeira. Sirineu reproduz um discurso que
repete as fórmulas e narrativas aprendidas com os homens
do campo. As histórias que ele conta não foram vividas
por ele, mas ele se sente atingido e identificado como
gaúcho. A sua vestimenta gaúcha, apesar de ser roupa de
trabalho rural, expressa um caráter festivo e de identidade.
Além das
boleadeiras, outro artefato de uso campeiro
importante que compõe a roupa do gaúcho é a faca22, que
é usada tradicionalmente junto com a boleadeira, na
cintura do gaúcho, até mesmo quando vai ao centro da
cidade. Evidentemente, sem a intenção de utilizá-la, mas
sim porque faz parte do costume de “se pilchar” usando
todos os adornos tradicionalistas.
O informante entende que os pampas no passado:
“eram terras não demarcadas, permitindo assim o contato
dos gaúchos com os índios”. Também acredita que,
antigamente, as boleadeiras eram usadas para capturar o
gado selvagem, “pois o golpe quebrava o animal”.
Admitindo não ser tarefa fácil manejá-las, adverte: “É
preciso muita preparação, ou a própria pessoa pode se
ferir”.
_______________
22 Cezimbra Jacques (1883) destaca que a faca e a boleadeira são, muitas vezes,
as únicas armas que os gaúchos têm e nunca o gaúcho é visto sem elas: “O gaúcho
é exímio em manejá-las; com elas, assenhoreia-se do jaguar, da onça, do boi, do
cavalo, da avestruz e vimos, no Camaquã, um rapaz matar com as bolas um abutre
voando”.
59
Na continuidade do seu discurso, deteve-se na
importância da ornamentação corporal, que possibilita a
identificação das boleadeiras na cultura gaúcha como um
forte elemento de expressão cultural e estética, que
compõe e transforma o corpo do homem.
Esta relação de expressão cultural e estética do
gaúcho pode ser perfeitamente observada no desfile da
Semana Farroupilha que acontece todos os anos no mês de
setembro.
“No desfile, eu acho bonito andar de laço e
boleadeira que não é para laçar, mas para representar a
tradição. O uso nos dias comuns acho feio, pois vejo que
fazem isso só para chamarem a atenção, mostrarem-se
mais gaúchos, auto-afirmarem-se”. Ele ainda critica que
“muitos utilizam a bola de boleadeira na cintura sem nunca
ter testado o arremesso, pois essa arma foi utilizada
somente no tempo dos meus pais e dos avôs”.
Figura 5: Desfile Farroupilha – Porto Alegre-RS (2007) Foto: Viviane Pouey
60
Por ser um gaúcho urbano, Sirineu nunca utilizou
suas boleadeiras nas atividades com o gado, mas sempre
como adorno e como símbolo de identidade na cintura,
durante o desfile na Semana Farroupilha. Jamais
emprestaria ou doaria suas boleadeiras para outra pessoa
desfilar
Nos anos em que não desfilou na Semana
Farroupilha, por motivos de trabalho, chegou a emprestar
seus arreios aos conhecidos “mas ninguém usa minhas
boleadeiras para se mostrar na avenida, em 20 de
setembro”. Denotando assim seus sentimentos de afeto e
de posse pelos artefatos, além de seu orgulho de possuir
este símbolo e mostrá-lo ao público. O informante
compreende que “as boleadeiras são símbolos gaúchos,
uma herança cultural” e reconhece que “a arma precisa
ficar exposta no CTG, junto à chama crioula, expressando
a garra gaúcha”, ou seja, ele percebe a força simbólica
destes dois elementos gaúchos: a chama e a boleadeira
(Sirineu Scolars, comunicação pessoal, maio de 2008).
Nessa etnografia, consideram-se os relatos dos
informantes como forma de representação da realidade
social do gaúcho rural e do gaúcho urbano, mantendo
suas especificidades, o que leva a pensar nas narrativas
discursivas e imaginárias de cada entrevistado que reforça
sua posição para falar sobre o gaúcho. Percebe-se também
que os mesmos identificam-se com o gaúcho mitológico,
61
ou seja, o herói, bravo guerreiro, corajoso, veloz. Entendese que a história não deve ser desvencilhada do imaginário
e do simbólico que constituíram e constituem a sociedade
dita “gaúcha”, num constante processo de reinvenção
(SILVEIRA, 2004, p.186). Mas o importante é que todos
esses relatos e diferentes personagens contribuiram para a
compreensão dos significados simbólicos das boleadeiras
na cultura gaúcha. Discutir-se-á, a seguir, o simbolismo
das boleadeiras na indumentária sul- riograndense e sua
relação com o corpo e com o contexto em que vive o
gaúcho.
2.3
AS
BOLAS
CONSTRUÇÃO
DE
DO
BOLEADEIRAS
NA
VESTUÁRIO
TRADICIONALISTA
No processo de construção de identidades sociais,
alguns elementos culturais são escolhidos pelas pessoas
para representar o grupo, ou seja, aqueles elementos que
são considerados os mais representativos. Em geral, esses
elementos são buscados no passado do grupo, como um
resgate da sua ancestralidade, mantendo assim aquilo
que é conhecido geralmente por tradição construída
(MACIEL, 2005, p.6). É necessário destacar que um dos
elementos escolhidos pelos gaúchos na construção e
afirmação da sua identidade foram as bolas de boleadeiras
indígenas. Essas são consideradas objetos simbólicos e
62
representam um elo entre o passado e o presente do gaúcho.
Assim, é preciso ressaltar que a presente pesquisa não
possui interesse de elaborar apenas um inventário das
vestimentas tradicionalistas. Procurou-se conhecer sua
origem e demonstrar sua relação harmônica com o corpo e
com o ambiente natural do gaúcho. Ele é, antes de tudo,
um
trabalhador
rural.
Como
afirmou Martiniano
Leguizamón (1919), em seu trabalho intitulado “El origen
de las Boleadoras y el Lazo”, ele aproveita grande parte
dos recursos do seu ambiente natural para a confecção dos
objetos
que
fazem
parte
do
seu
dia-a-dia
e,
conseqüentemente, da sua vestimenta, como botas,
guaiacas, tirador, laço e boleadeiras, armas indispensáveis
para o homem pampeano.
A construção da identidade gaúcha reúne dois
elementos
característicos
na
sua
compreensão: a
vestimenta do trabalhador rural, com sua principal
ocupação de vaqueiro, e de guardiões das terras e das
fronteiras. Estas duas funções resultaram na criação de
estilos típicos das áreas abertas pampeanas que os
diferencia dos demais grupos, através de suas vestimentas
e costumes. Assim, a busca de representações da região
pampeana, a partir de manifestações simbólicas e
culturais, impulsiona diversas mudanças no cotidiano e
nas vestimentas dos homens que habitavam esses campos.
Barbosa Lessa (1995) compreende que, desde o início do
povoamento luso-brasileiro, a defesa da terra e das
63
fronteiras havia sido confiada aos sesmeiros e fazendeiros,
que normalmente proviam, com seus peões, a sustentação
de numerosas milícias de segunda-linha, suplementares
das forças regulares do exército. Percebe-se que a busca
por homens ágeis e valentes não seria apenas para o
trabalho com o gado, mas também para prepará-los para
dar respaldo ao exército na proteção das terras, das
fronteiras e do gado dos seus patrões.
Ao iniciar o povoamento da América do Sul, o
colonizador que chega às terras vestido a moda européia
encontra, nos campos, índios cavaleiros Mbaia-Guarani,
Charrua, Minuano, Yaro e os Gê-guaranizados, vivendo
nas Reduções Jesuíticas nos Sete Povos das Missões. Já os
padres vestiam-se de acordo com a severa moral religiosa.
José Saldanha (1786/87), que entrevistou os cinco mais
reconhecidos caciques Minuano (Batu, Maulei, Salteinho,
Tajuy e D. Miguel de Caray), referindo-se a sua
indumentária destaca: “os índios cavaleiros usavam duas
peças da indumentária consideradas como originais; são
elas o chiripa e o cayapi.”23 O chiripa é uma espécie de
saia constituída por um retângulo de pano enrolado da
cintura até os joelhos, muito utilizado na Fronteira Oeste
do Estado.
___________
23 A melhor descrição dessa indumentária foi elaborada por D. José de Saldanha,
(1787), que entrevistou os cinco mais importantes caciques Minuano (Batu, Maulein,
Salteinho, Tajuy e D. Miguel de Caray).
64
O “cayapi” dos Minuano era couro de boi inteiro e
bem sovado, que se usava nas costas como manto, ou capa,
com o pêlo para
o interior e o carnal para fora, pintado
com listas verticais e horizontais, em cinza e ocre, à noite
servia de cama estirado no chão. “Os Charrua os
chamavam ‘quillapi’ ” (SALDANHA, apud FAGUNDES,
2001, p.13).
Portanto, a indumentária gaúcha é resultante da
união entre peças do vestuário indígena e ibérico. Antonio
Fagundes (2001) identifica o primeiro vestuário do gaúcho
sendo composto de quatro trajes fundamentais, cada
conjunto indumentário possui uma peça que se destaca
entre as demais: 1) chiripá primitivo, 2)bragas, 3)chiripá
farroupilha24 e 4)bombachas. As primeiras vestimentas
introduzidas pelas sociedades ibérica, português ou
espanhol constavam basicamente de botas fortes de couro
curtido feitas por sapateiros; às vezes, essas botas subiam
à meia coxa, com canos altos, que também se dobravam
abaixo do
joelho, formando campânulas. As esporas
medievais eram muito simples, com pequenas rosetas
pontiagudas.
___________
24 Chiripa farroupilha: devido ao fato de ter sido uma das peças mais utilizadas
na Revolução Farroupilha (FAGUNDES, 2001).
65
Posteriormente, apareceu a espora mais elaborada
chamada de “nazarena gauchesca”. Um costume da época
eram as ceroulas compridas, os calções justos nas coxas,
terminando logo abaixo dos joelhos, conhecidos pelos
portugueses por “bragas”. Um antigo ditado português faz
menção às “bragas” como metáfora para significar que o
bom resultado exige sacrifício: “não se pescam trutas as
bragas enxutas”. Essas bragas eram confeccionadas em
veludo, lã e algodão, conforme as posses do homem. A
faixa da cintura era ampla e apertada, de cor única,
podendo ser preta, azul ou vermelha, segurando o cós das
bragas e protegendo os rins.
A camisa sem botões tinha a gola ampla e as mangas
fofas. Às vezes, era rendada, presa aos punhos por
cadarços, quase sempre de linho, seda ou algodão. Os
jalecos eram uma espécie de colete, jaqueta ou um
casaquinho curto terminando na cintura, fechado na frente
por moedas, ou grandes botões de metal. Os lenços de
cabeça eram utilizados como touca com as pontas caídas
para trás, atadas junto à nuca, ao estilo dos piratas dos
atuais cinemas.
Os chapéus eram de copa alta e abas estreitas, ou de
palha, que os portugueses chamavam “abeiro, que a
maioria dos nossos gaúchos repudia por desconhecer que
foi de uso comum entre nossa gente” (FAGUNDES, 2001,
p.10-12).
66
Essa primeira indumentária trazida pelos ibéricos
passou por diversas transformações ao longo da história
riograndense, até constituir-se na atual vestimenta do
gaúcho. Antonio Fagundes (2001) descreve algumas
dessas mudanças. Ele afirma que o gaúcho: “deixa de
vestir o chiripá herdado do indígena para usar as
bombachas, um dos itens fundamentais na atual
indumentária que coincide em traços gerais com a Guerra
do Paraguai (1864/70)”. No Uruguai, onde as bombachas
apareceram inicialmente, eram chamadas de “calzones
chinos”, porque tudo que fosse do Oriente para os
castelhanos era chinês. O autor compreende que as
bombachas
provavelmente
primeiramente
em
Montevidéu
foram
pelos
introduzidas
comerciantes
ingleses, chegando ao Rio Grande do Sul através da Banda
Oriental. A bombacha foi utilizada inicialmente apenas
pelos pobres, pois os estancieiros preferiam as calças
citadinas e o “cullote francês” por serem mais “chic”. “E
até começos deste século - Deus o livre! Dançar em baile
de respeito vestindo bombachas: o gaúcho viajava a cavalo
léguas trajando bombachas e trazendo as calças “cola fina”
cuidadosamente dobrada debaixo dos pelegos para frisar”
25 (FAGUNDES,
2001, p.23).
25 A bombacha é considerada no RS, em 1947, elemento de sarcasmo e discórdia.
O homem que a vestia podia ser barrado em clubes, no cinema. Já usada há
muito tempo na vida rural pela sua funcionalidade nas tarefas campeiras.
Somente em 1989 a rejeitada bombacha se transforma em traje de honra no
Estado.
67
Foi uma questão de tempo para os gaúchos adaptaremse e valorizarem a nova peça na sua indumentária, “pois, na
Revolução Federalista de 1893, quase todos os estancieiros,
usaram amplamente as bombachas, poucos vestiam o chiripá”
(FAGUNDES, 2001, p.22). Esse episódio pode ser
visualizado nas inúmeras imagens que ficaram dos períodos
difíceis da história.
Destacando que, inclusive, um médico, Ângelo
Dourado, baiano, membro das forças de Gumercindo Saraiva,
vestia bombachas normalmente. Ainda referindo-se às
mudanças na indumentária gaúcha e à introdução da
bombacha, Fagundes cita a seguinte cantiga: “A gaita
matou a viola, o fosforo matou o isqueiro, a bombacha, o
chiripá e a moda, o uso campeiro [...]” (FAGUNDES,
2001, p.22).
Desse modo, a partir da Guerra do Paraguai
(1864/70), a indumentária fica constituída por bombachas
e lenços, que deixam de ser utilizados na cabeça, sendo
presos ao pescoço, expressando toda uma simbologia na
elaboração dos nós, que podem ser atados de oito
maneiras, incluindo duas de origens políticas farroupilha
(1835/1845). As cores dos lenços também denotam a
ideologia política do gaúcho. O chapéu passa a ser de copa
baixa e abas largas, surgindo também a boina e as
alpargatas usadas na fronteira. As botas são sempre de
sapataria, pretas e marrons, e ainda muitas rusilhonas. Para
protegerem-se
do
frio,
68
vestiam
o
pala
bichará
confeccionado em algodão, ou seda, o poncho e a capa
campeira. O chiripá
era comum ser utilizado nas
festividades tradicionalistas. As esporas nazarenas eram
raras, mas utilizadas, pois os gaúchos preferiam as
chilenas; as pequenas e de prata para os ricos; as grandes
e de ferro para os despilchados26. Assim como as
esporas, as boleadeiras dos estancieiros também se
diferenciavam pelo luxo das armas dos humildes peões,
muitas eram feitas em marfim e prata. Rex González
(1953, p.160), analisando o status social dos habitantes
dos pampas, relata: “Sabemos que en los últimos años los
crioulos ricos llevaron boleadoras fabricadas en marfil,
bolas
de
billar
adaptadas
especialmente,
algunas
cuidadosamente trabajadas y con “virolas” de plata para
asegurar las cuerdas”27. Outra importante contribuição
sobre o status social do gaúcho, representado através da
sua indumentária, encontra-se em Arsene Isabelle, na obra
“Viagem ao Rio Grande do Sul (1833- 1834)”. O viajante,
assim como observou o luxo dos arreios dos cavalos do
gaúcho riograndense, também afirma que a vestimenta dos
homens do campo era mais rica do que a dos gaúchos
argentinos e orientais. 28.
_____________
26 Despilchados: mal vestidos e sem dinheiro ou bens. Essa citação denota mais
uma vez a representação do
status social através da vestimenta.
27 No museu da cidade de Eva Perón se encontra um exemplar de boleadeira em
marfin, colecionada por Frenguelli (GONZÁLEZ, 1953, p.160).
28 Nessa pesquisa, p.18, encontra-se a descrição de Arsene Isabelle do luxo dos
arreios dos cavalos do gaúcho riograndense.
69
Ele enfatiza que seu traje consiste: “em grandes botas, uma
larga calça de veludo azul, uma jaqueta de pano da mesma
cor, um amplo casaco de pano e um grande chapéu de abas
largas levantadas dos lados e atados sob o queixo por um
cordão terminado em duas borlas”.
Comentando também que, no verão, muitos
gaúchos levavam jaquetas de chita da Índia e os homens
distintos traziam sobre a casaca de chita da Índia uma
espécie de “robe de Chambre” (ISABELLE, 1983, p.66).
Sendo viável lembrar que a calça larga descrita pelo autor
não se trata ainda da bombacha. É preciso, porém,
perceber que os gaúchos já utilizavam uma peça que
proporcionasse harmonia com os demais acessórios da sua
indumentária e com as atividades cotidianas.
2.4 AS BOLAS DE BOLEADEIRAS E SUA HARMONIA
COM O CORPO DO GAÚCHO
Considera-se necessário compreender, na análise
dos significados da indumentária gaúcha, a importância
da harmonia entre as pessoas e as coisas. Grant
McCracken (2003) utiliza em suas pesquisas sobre o
simbolismo das vestimentas e a importância da harmonia
entre o corpo, a vestimenta e o ambiente, conceitos
elaborados pelo filósofo francês Denis Diderot (17131784). Esta relação entre as pessoas, as coisas e os
contextos é identificada por Diderot em seu próprio
gabinete. Ele descreveu seus sentimentos enquanto estava
70
sentado em seu gabinete, confuso e melancólico. Sua sala
de estudos sofrera grande transformação. Antes fora
abarrotada, dispendiosa, caótica e feliz, agora era elegante,
organizada, ordenada e um pouco severa. Diderot
suspeitava que a causa desta transformação fosse sua
veste. Esta transformação ocorreu por estágios, como
conta Diderot. Primeiro, ele ganhara um terno novo de um
amigo e, assim, passara a substituir seu velho roupão. Este
seria o primeiro passo do processo de mudança. Uma ou
duas semanas após a chegada da nova veste, Diderot
começara a pensar que sua escrivaninha não estava
totalmente a altura do padrão e a substituiu. Então, a
tapeçaria da sala de estudos parecera um pouco surrada e
uma nova teve de ser
encontrada. Dessa forma,
gradualmente, o gabinete inteiro, incluindo cadeiras,
gravuras, estantes de livros e relógio, fora julgado
insuficiente e substituído. Diderot concluiu que “todas
essas trocas ocorrem devido ao trabalho do imperioso
robe escarlate [que] forçou tudo o mais a se conformar
com seu próprio tom elegante” (DIDEROT, 1964, p.311
apud McCRACKEN, 2003, p.152). Diderot havia perdido
sua veste, seu bricabraque e, o mais importante, a própria
harmonia. “Agora a harmonia está destruída: Agora não há
mais consistência, não há mais unidade e não há mais
beleza” (1964).
Esta revelação de Diderot constitui o que é
provavelmente o primeiro reconhecimento formal de um
71
fenômeno cultural aqui chamado por McCracken de
“unidade Diderot” e de efeito Diderot. A explicação para
essa transformação deve-se a necessidade de
uma
complementação simbólica e harmônica entre as pessoas e
as coisas (McCRACKEN, 2003, p.152).
Se relacionarmos o efeito Diderot, descrito acima,
com o contexto cultural do gaúcho, percebe-se que o
homem do campo preocupa-se com a manutenção de um
equilíbrio harmônico entre seu corpo, a vestimenta e o
ambiente em que vive. Os instrumentos de trabalho que
compõem seu conjunto indumentário, como boleadeiras,
laço, tirador, guaiacas, mala de garupa, botas, barbicacho,
são confeccionados em couro, geralmente da mesma
espécie. Muitas vezes, esses couros são extraídos dos
animais das próprias fazendas, onde trabalham como peões
ou capatazes. Todos esses objetos são utilizados com a
bombacha larga já descrita nessa pesquisa.
A bombacha torna-se um elemento simbólico, mas
também funcional e indispensável no cotidiano do gaúcho,
à medida que ela proporciona um equilíbrio entre seu corpo
e as atividades que desenvolve como montar a cavalo e
laçar o gado. Como observou Grant McCraken, “as
vestimentas estão relacionadas ao contexto em que vivem e
às atividades desenvolvidas”, afirmando que as coisas
andam juntas por causa de sua consistência cultural interna,
e os produtos trafegam em complementos porque a cultura
lhes
confere
as
mesmas
72
propriedades
simbólicas
(McCRACKEN, 2003, p.152).
A relação harmônica na construção do corpo do
gaúcho é um ato consciente, que obedece a certas regras
culturais que se formaram entre os membros do mesmo
grupo tradicional. A maneira em que o gaúcho
transforma o seu corpo, sua noção de pessoa enquanto
tela cultural é identificada nos relatos dos gaúchos
entrevistados na cidade de Uruguaiana/ RS. Ao comentar
a produção do corpo do gaúcho, Sirineu Scolars (53 anos)
denota a necessidade da harmonia entre a indumentária e
os adornos, referindo-se ao uso das boleadeiras. Ele relata
que considera indispensável a presença das bombachas
largas, argumentando: “Porque se o gaúcho andar de
jeans, com as boleadeiras na cintura, não combina, as
pessoas vão estranhar! É como montar em um cavalo bem
encilhado de calça jeans ou terno. Não é certo! A roupa
tem que combinar com a tradição”. O informante
menciona como exemplo um vizinho que é peão de
estância: “Imagina o Adão, que é um homem do campo,
quando está na cidade sem o cavalo e de calça jeans ele já
se sente maneado até para caminhar de casa ao bolicho”.
Compreende-se, assim, que a indumentária do
gaúcho não deve ser considerada apenas como um
elemento decorativo e substituível. Nessa pesquisa, ela é
considerada como um conjunto simbólico e harmônico,
pois, além de transformar o corpo do homem, comunica e
expressa significados culturais. Sirineu, referindo-se a
73
maneira como os gaúchos transformam seus corpos no
desfile de comemoração à Revolução Farroupilha, em 20
de setembro, afirma a importância da atitude do homem
em produzir-se, vestindo todos os elementos simbólicos
da sua cultura. Ou seja, bombacha, tirador, boleadeiras na
cintura, laço, bota, esporas, chapéu, lenço, montando em
um cavalo bem encilhado. “Sendo essa
uma maneira de
afirmar e resgatar a tradição gaúcha” (Sirineu Scolars,
comunicação pessoal, maio de 2008).
José Pouey (50 anos), capataz de estância, ao ser
questionado se a boleadeira poderia ser utilizada com uma
peça que não fosse à bombacha, mostrou-se surpreso com
a pergunta, contestando-a da seguinte maneira: “Como
isso? Jamais! Não pode! Tem que ser só com as
bombachas, ou estaria fora da realidade. Deve seguir o
padrão do tradicionalismo e sempre combinar”. Sua
resposta demonstra claramente os reflexos do efeito
Diderot no cotidiano social, o qual impõe a necessidade de
manter o equilíbrio harmônico entre o corpo do homem,
sua vestimenta e o contexto em que se apresenta. O
informante explica ainda o processo atual de construção do
corpo com as boleadeiras. Relata que o gaúcho escolhe as
boleadeiras mais bonitas e decoradas para usar junto com o
tirador, dessa forma: “mostrando que é pachola, ele quer
ser notado, pois cada gaúcho quer se pilchar mais que o
outro”.29 Lembrando que o gaúcho, ao transformar o
corpo com todas as peças da indumentária, colocando as
74
“boleadeiras na cintura, que é o próprio símbolo da
tradição gaúcha, sente-se faceiro, feliz e exibido”.
Observa, também, que alguns gaúchos dançam com as
boleadeiras de fogo, sendo elas uma grande atração no
CTG (José Pouey, comunicação pessoal, maio de 2008).
Conhecendo o efeito Diderot no cotidiano das
pessoas, tornou-se possível compreender as normas
estabelecidas na maioria dos CTGs (Centro de Tradições
Gaúchas). Para freqüentar o CTG, o gaúcho deve estar
pilchado, mantendo assim o equilíbrio simbólico e
harmônico entre o vestuário e o contexto em que se
apresenta.
Em alguns centros tradicionalistas, o gaúcho até
pode freqüentar sem vestir a típica indumentária gaúcha,
mas é extremamente proibido dançar. Tivemos exemplo
em Uruguaiana /RS, onde jovens durante a Semana
Farroupilha vestiam bombachas com tênis e boné,
passando a visitar as entidades por curiosidade ou fascínio
pela tradição30. Desconhecendo as regras, tentaram
dançar, sendo convidados a se retirar do salão de baile pelo
patrão31 do CTG. Nessa medida, compreende-se a
indumentária gaúcha como uma mediadora das relações e
negociações
sociais,
expressando
e
comunicando
múltiplos significados simbólicos. A colaboração dos
entrevistados foi essencial para a percepção da agência
simbólica das vestimentas e adornos no cotidiano do
75
gaúcho. Denotando, também, que sua indumentária e
costumes possuem aspectos que os identificam com um
determinado grupo e os diferenciam dos demais.
Como ressalta o sociólogo Paulo Sérgio (2001,
p.192), as pessoas possuem uma necessidade própria de
auto- afirmação; desse modo, a preocupação com a própria
imagem assume uma importância especial nesse momento
da vida, principalmente porque permite exibir sinais
seguros de pertencer a um determinado grupo e definir
uma identidade.
____________
29 Pachola: gaúcho faceiro, contente, alegre.
30 Fatos presenciados nos CTGS em Uruguaiana.
31 Patrão: responsável legal pela entidade tradicionalista
76
2.5 AS BOLEADEIRAS E O FOLCLORE GAÚCHO
A boleadeira com duas bolas atualmente é utilizada
na dança folclórica chamada de Malambo, marcando o
ritmo junto com o bombo e o sapateado do gaúcho32. O
espetáculo encanta o público tradicionalista e os turistas
que visitam o Rio Grande do Sul, a Argentina e o Uruguai.
Em Porto Alegre, essa dança é o cartão postal da
churrascaria do 35 CTG (Centro de Tradições Gaúchas),
fundado em 1948, por um grupo de estudantes liderados
por Paixão Côrtes e Barbosa Lessa, como mencionado
anteriormente. Estes jovens procuraram resgatar os
costumes da vida no campo como forma de manutenção
das tradições gaúchas. Esse culto ao tradicionalismo na
contemporaneidade é difundido por todo o Brasil,
inclusive no exterior como uma extensão do corpo e
costumes do gaúcho. Um exemplo da expansão da cultura
gaúcha para os países estrangeiros pode ser observado na
história de Fagner Campos, um jovem de 17 anos, que
desde pequeno freqüentava a churrascaria do CTG 35,
onde seus avôs trabalhavam. Observando o Malambo com
as boleadeiras, ele imitava os passos da dança girando
sua fralda no ar. Ao completar três anos de idade, seu pai,
que observara sua alegria em assistir a dança e imitar os
passos, confeccionou sua primeira boleadeira feita com
barbante e duas rolhas de champanhe. O brinquedo, que
era apenas uma paixão da infância, tornou-se a profissão
77
de Fagner, que há oito anos dança com as boleadeiras no
CTG 35. Em dezembro de 2006, o garoto foi convidado
por uma companhia de dança a participar de uma excursão
pela China. Com outros bailarinos, ele apresentou danças
tradicionais do Rio Grande do Sul, trajando a típica e
reconhecida indumentária gaúcha, levando a chula, o
Malambo e a boleadeira para o outro lado do mundo,
sendo destaque em espetáculos realizados em um cassino
de Macau33 (MEIRA, 2007).
Figura 6: Fagner Campos dançando com a boleadeira (Out. /2007) Foto: Júlio Cordeiro
Para reforçar a importância simbólica das boleadeiras no
folclore gaúcho, entrevistou- se, em Uruguaiana, José Silva
(40
anos),
bailarino
e
professor
de
invernada
tradicionalista34.
José, sendo solicitado a falar sobre o significado de
dançar com as boleadeiras, inicialmente se desculpa e explica
78
que suas informações não seriam úteis para a presente
pesquisa: “Pois a dança com as bolas de fogo não é nossa! É
do folclore argentino. Por lá é conhecida como Malambo35
com as boleadeiras”36.
Foi necessário explicar a ele que, apesar da dança ter sido
criada na Argentina, foi inserida no Sul do Brasil como um
elemento simbólico que representa também a cultura gaúcha.
Satisfeito com esta explicação, e após compreender a
relevância da sua contribuição, o informante relata o seu
primeiro contato com as boleadeiras: “desde guri morei no
campo, não cheguei a usar a boleadeira com o gado, mas
treinava em vaca parada37. Lembro-me que a boleadeira com
a qual brincava pertenceu a meu avô. Ele sim usou a
boleadeira no trabalho com o gado xucro”38.
José se lembra que iniciou a dança com as
boleadeiras após assistir a apresentação de um gaúcho
no CTG “Sinuelo do Pago”, em Uruguaiana, quando
tinha apenas oito anos de idade. Sentindo-se atraído pelo
espetáculo, passou a treinar os passos da dança.
32 É importante mencionar que a dança do malambo é outro contexto em que a
mulher utiliza as boleadeiras.
33 Reportagem Jornal Zero Hora, 27 de outubro de 2007, elaborada por Ane
Meira.
34 Invernada: grupo de danças gaúchas.
35 O Malambo é uma dança específica do sexo masculino. Trata-se de um desafio de
sapateios também realizados com as boleadeiras, dança típica dos gaúchos argentinos
e uruguaios (FAGUNDES, 2001).
36 É necessário destacar que a dança com as boleadeiras é típica do sexo masculino,
mas na Argentina algumas mulheres já violaram essa regra e dançam o malambo.
Essa dança nem sempre é realizada com boleadeiras de fogo.
37 Vaca parada: cavalete feito em madeira. Atualmente, continua sendo utilizado para
o treino do tiro do laço.
38 Gado Xucro: gado solto no campo, não domesticado.
79
Na sua primeira apresentação, estava ansioso, mas
foi questão de pouco tempo para se acostumar com o
público: “hoje é só eu me pilchar e pegar as boleadeiras
que a dança sai.” A narrativa do bailarino denota a
importância do equilíbrio entre seu corpo e a indumentária
na realização da dança.
Esta experiência etnográfica visou conhecer quais
eram os significados da dança com as bolas de boleadeiras
para os gaúchos. José, ao comentar a respeito do sentido
em dançar com as boleadeiras, ressalta: “dançar com as
boleadeiras faz parte da minha vida, pois eu já brincava
com as bolas no campo e na dança. Continuo a brincadeira
que me diverte e alegra quem assiste. Para mim, a
boleadeira é um símbolo de identidade gaúcha”. José,
porém, afirma que não as utiliza apenas na dança.
Ele também coloca as boleadeiras na cintura no
desfile em comemoração a Semana Farroupilha, em vinte
de setembro. Reforçando, desse modo, a importância das
boleadeiras na cultura riograndense “pois elas foram
temíveis armas utilizadas pelos homens na formação do
Rio Grande do Sul, auxiliando-os na sobrevivência nos
campos, como caçar o gado e defender-se nas freqüentes
disputas por fronteiras”. O informante destaca, também,
que o gaúcho ao pilchar-se colocando as boleadeiras na
cintura “está querendo ser notado, chamar a atenção para
seu corpo, mostrar que é pachola e muito campeiro, pois
ele tem as armas da lida39 com o gado”.
Antonio Fagundes (2001, p.16) reforça esta relação
80
simbólica entre corpo e boleadeira, relatando que: “em
ocasiões especiais, o homem usava dois ou mais pares de
boleadeiras, na cintura e nos arreios”. A transformação do
corpo com vários pares de boleadeiras é uma maneira que
o gaúcho encontrou para afirmar sua identidade e fortalecer
sua relação com o tradicionalismo.
2.6
A DIMENSÃO PESSOAL DAS BOLEADEIRAS
A boleadeira é um símbolo muito poderoso e
completamente interiorizado na memória coletiva dos
gaúchos. Este simbolismo é tão forte que, mesmo quando o
artefato encontra-se aparentemente fora do seu contexto
habitual, isolado da indumentária gaúcha, ou do arreio do
cavalo, permite uma leitura clara de seus significados.
Neste sentido, a boleadeira pode ser percebida como
uma arte mobiliar, carregada de significados, até quando
faz parte da decoração nas paredes das casas, lareiras ou
escritórios. Observando esta agência que as boleadeiras
possuem no cotidiano do gaúcho, utilizou- se as idéias de
Alfred Gell (1992), que afirmam que a agência social pode
ser exercitada relativa às coisas e, também, exercitada por
coisas.
Esse conceito de “agency” parece ser freqüentemente
utilizado no caso de pessoas que possuem evidentes
relações sociais com as coisas. Desse modo, busca-se
entender a agência das boleadeiras no contexto do gaúcho.
__________
39 Lida: trabalho no campo.
81
Pois as boleadeiras contemporâneas, assim como as
indígenas pré-coloniais, destacam-se pelo seu excelente
acabamento estético.
Isso significa que os gaúchos transformam os artefatos
em um índice da sua agência na intenção de se manifestarem
e se expandirem através dos seus instrumentos. Como
destacou Marcel Mauss (2003, p.8), “os objetos são extensões
morais e simbólicas de seus proprietários, sejam eles
indivíduos, ou coletividades, estabelecendo mediações
cruciais entre eles e o universo cósmico natural e social”.
Nesse sentido, nota-se que as boleadeiras possuem
uma agência na sociedade riograndense, permanecendo na
sua cultura como um patrimônio simbólico e histórico
convencional. A convenção social
e simbólica das
boleadeiras no Rio Grande do Sul é o que permite que tanto
o gaúcho do campo quanto o gaúcho urbano reconheçam o
instrumento
pelos
seus
significados
simbólicos
interiorizados na memória regional. Charles Pierce (1975)
destaca que os símbolos se distinguem dos demais signos
pelo seu caráter convencional, “esse convencionalismo,
contudo, é acolhido em termos de regras admitidas pela
comunidade que se vale de símbolos, pois são as pessoas que
tornam os objetos seus símbolos representacionais”.
O convencionalismo das boleadeiras na memória do
gaúcho possibilitou à cidade de Jaguarão, no Rio Grande
do Sul, 40 criar um projeto de preservação ambiental com
82
o objetivo de incentivar e conscientizar a comunidade a
proteger uma gruta turística, utilizando um enorme rompecabeças41 como símbolo do projeto de preservação. O
objeto, nesse sentido, é utilizado como metáfora que
possui a força de provocar uma ruptura na cabeça das
pessoas, ou seja, fazê-las pensar enquanto existe tempo
de salvar a natureza. A construção de um monumento à
boleadeira com a finalidade histórica e educativa denota
que os gaúchos consideram essa arma um patrimônio
simbólico que faz parte da sua identidade.
Sendo um elemento da cultura gaúcha, a boleadeira
pode representar diferentes contextos, mediando múltiplas
mensagens
socioculturais.
Atualmente,
é
comum
visualizar-se as bolas de boleadeiras como ornamentos
decorativos nas paredes das salas das residências dos
gaúchos. Esses objetos são confeccionados em madeira,
revestidas em couro, marfim ou, até mesmo, em bronze,
ouro e prata, demonstrando o prestígio aos objetos, paixão
pela tradição e o status do morador.
Neste contexto, as boleadeiras estão relacionadas a
uma série de significados simbólicos e mágicos que o
gaúcho
pretende
expressar
através
do
culto
ao
instrumento. Em um extremo desta linha de significâncias,
está o comércio relacionado ao turismo.
40
Projeto “Rompe Cabeças”: a idéia é abrir a consciência das pessoas para a preservação do
meio ambiente.
Um artefato de boleadeira com protuberâncias com formato de uma estrela.
41
83
Os artesões confeccionam chaveiros com bolas em
miniaturas, réplicas perfeitas dos instrumentos no
tamanho convencional. As boleadeiras também estão
expressas em artesanatos com ferro e porcelana, ilustrando
o trabalho do homem do campo com o gado. Esse comércio
é sustentado tanto pelos gaúchos que se identificam com os
objetos, como pelos turistas que visitam o Rio Grande do
Sul. Para registrar e comprovar sua visita ao Rio Grande do
Sul, o turista leva estas “lembrancinhas” representativas
para outros estados ou países. Dessa maneira, acontece a
expansão da cultura gaúcha, através dos objetos de valor
turístico, mas também sua vulgarização. Muitas vezes, o
turista desconhece os profundos significados dos símbolos
da identidade gaúcha. Ele percebe estes objetos como
recordações
que
substituem
vozes,
impressões
e
sentimentos relacionados com sua visita ao estado
gaúcho. Greenblat (1991) explica que esta ressonância
representa o poder de um objeto exposto em atingir um
universo mais amplo para além de suas fronteiras formais,
e que tem o poder de evocar no expectador as forças
culturais complexas e dinâmicas das quais ele emergiu e
das quais ele é, para o expectador, o representante.
(GREENBLATT, 1991, p.42, apud GONÇALVES, 2005,
p.2).
84
Figura 7: Chaveiro boleadeira. Foto: Viviane Pouey
Na outra ponta desta sequência de significados
relacionados aos objetos feitos pelos artesãos, estão as
boleadeiras como mediadoras das relações sóciosimbólicas vulgarizadas. Exemplo dessa popularização do
símbolo encontra-se nas lojas de artigos tradicionalistas
em Porto
Alegre.
Estas
comercializam
bolas
de
boleadeiras decoradas com emblemas de clubes de
futebol, cores da bandeira ou com as armas do Estado.
Essa junção de símbolos, sem dúvida, visa somar a força
de dois ou mais símbolos gaúchos. Por outro lado,
estabelece uma ruptura entre os gaúchos, pois os símbolos
de clubes de futebol, por exemplo, são altamente seletivos.
Por um lado, representa uma identidade gaúcha, provoca
um sentimento de aproximação, mas por outro divide as
torcidas. O comprador de uma boleadeira com o símbolo
do Sport Club Internacional jamais se identificaria com
uma boleadeira com o emblema do outro time, mesmo
sendo este também gaúcho.
85
Figura 8: Boleadeiras com símbolo do internacional. Foto: Viviane Pouey
Para essa união de símbolos gaúchos, diversas
seriam as tentativas de interpretações, mas o que fica
claro é que, no ato de criação do objeto, ocorreu uma
negociação sócio- simbólica entre o artesão e a boleadeira.
Roland Barthes (2001) enfatiza que “os significados dos
objetos dependem muito não do emissor da mensagem,
mas do receptor, isto é do leitor do objeto” (BARTHES,
2001, p.215).
Essa negociação sócio-simbólica é identificada nos
diversos contextos em que as boleadeiras são inseridas
fora do corpo do gaúcho. Um exemplo é o “Piquete
Boleadeira de Prata”, estabelecido pelos gaúchos durante
a Semana Farroupilha, no Parque da Harmonia, em Porto
Alegre, Rio Grande do Sul, nos anos de 2007/2008. A
interiorização desse símbolo na memória gaúcha permite a
compreensão coletiva do nome da entidade sem a
necessidade de expor a imagem da boleadeira. No referido
evento, havia uma faixa que trazia somente o nome da
entidade com imagens de um casal tomando chimarrão, ao
86
lado do churrasco. Sendo a boleadeira um símbolo
convencional, toda a sociedade riograndense saberia do
que se tratava. Neste caso, observou-se mais a unificação
e o reforço dos símbolos: da harmonia familiar, do
chimarrão, do churrasco e da boleadeira.
Figura 9: Piquete Boleadeira de Prata no Parque da Harmonia 2008, em Porto Alegre.
Foto: Viviane Pouey.
Outro aspecto simbólico importante está no nome
desta entidade tradicionalista. Não se trata de uma
boleadeira de madeira, ou pedra, mas sim de uma
boleadeira de prata. Entretanto, porque esse piquete
recebeu o nome “Boleadeira de Prata” e não somente
boleadeira? Novamente, observou-se a soma de dois
valores simbólicos. Supõe-se que a escolha do nome da
87
entidade foi devido à necessidade que os gaúchos sentem
em se expressarem através dos seus objetos. Ou seja, a
representação dos seus valores mediante a posição sóciocultural concorre para o status do grupo em que é
representada a intencionalidade simbólica num artefato
valioso de prata, esteticamente perfeito e diferenciado dos
demais. Nesse contexto, as boleadeiras também mediam
relações entre pessoas de um mesmo nível social, do
mesmo modo em que os diferenciam dos demais. Surgem
assim aproximações e distanciamentos sociais através dos
objetos. Considerando todas as coisas como mediadoras
de relações sociais e possuidoras de uma pluralidade de
significados, Hodder (1994, p.138) entende que “um
objeto nunca significa por si mesmo, mas por uma teia de
relações com outras coisas que compõem um contexto,
um campo de significações, um material equivalente a um
idioma”. Ian Hodder destaca a importância de se realizar a
leitura dos objetos, sendo necessário antes de ler os
significados em voz alta interpretar uma complexa
corrente de significações materiais inseridas nos objetos
nos diferentes contextos.
Quais relações estariam resguardadas entre as
boleadeiras contemporâneas e as pré- históricas? Que
vínculos ainda são estabelecidos entre estas boleadeiras
distanciadas no tempo pelos gaúchos? As boleadeiras
arqueológicas atualmente são coletadas, nos campos do
Rio Grande do Sul, por estancieiros, peões, agricultores e
88
pescadores. Diferentemente de outros objetos da cultura
material pré-histórica ou indígena,
as boleadeiras
encontradas pelos gaúchos são incorporadas ao domínio
sócio-simbólico,
constituindo-se
em
um
elemento
significativo na sua auto-atribuição cultural. Inserindo as
boleadeiras no seu contexto social, como se mencionou
anteriormente,
esses
objetos
são
utilizados
na
ornamentação de estantes e lareiras, tornando-se um índice
da sua “agency”. Gell (1998, p.17), referindo-se a um
exemplo similar, ressalta:
vamos supor que, dando uma volta pela praia, nós
encontrássemos uma pedra lascada. É talvez um
machado de mão pré-histórico? Mesmo que
concluíssemos que a pedra lascada, transformada em
machado, tornando-se uma ferramenta, não tenha sido
feita por um artesão pré-histórico, e tendo levado isso
para casa, o consideramos um ornamento. Decidindo
expor o artefato em uma prateleira, colocando-o em
nosso contexto social, esse machado passa a ser um
índice da nossa agency.
Nesta
perspectiva,
durante
as
pesquisas
arqueológicas realizadas na área rural da cidade de
Uruguaiana/ RS, no período de 2003 a 2005, visitando
algumas residências de moradores da região, foi possível
notar a agência que os objetos exercem sobre as pessoas.
Atraídos pela estética exótica dos artefatos arqueológicos
que encontram nos campos como as bolas de boleadeiras,
lâminas de machado, almofariz, cerâmicas, pontas de
flecha, eles os coletam, levando-os para comporem a
ornamentação instituída de significados das suas casas. Os
informantes, ao se referirem aos objetos exóticos
89
mencionados anteriormente, constroem seus discursos
sobre os artefatos com os quais mais se identificam; deste
modo, as bolas de boleadeiras estimulam suas narrativas.
Considera-se que a força maior de identificação reside na
permanência destes objetos antigos na cultura gaúcha,
tornando-se um índice, uma lembrança, uma confirmação
da história de seus ancestrais. Um exemplo da agência
das boleadeiras no cotidiano dos gaúchos é a história de
Adalberto Martins, trabalhador rural reconhecido no
interior de Uruguaiana como “Sr. Negrinho” do
Itapitocaí42.
Ele encontrava artefatos arqueológicos nos campos
e nas margens do Rio Uruguai e os coletava. Ao longo dos
anos, à medida que a coleção foi aumentando,
transformou um dos cômodos da sua pequena residência
em
um
museu
arqueológico.
Expondo os objetos,
percebeu que as boleadeiras eram os artefatos com os
quais os gaúchos mais se identificavam. Devido a essa
relação dos visitantes com as bolas de boleadeiras, o Sr.
Negrinho as expôs por tipologias e tamanhos.
___________
42 É importante destacar que o Senhor Negrinho doou sua coleção ao NUPA:
Núcleo de Arqueologia da PUCRS Campus Uruguaiana.
90
Quando
questionado
sobre
as
boleadeiras,
demonstrava um apreço pelos objetos e sua história,
ressaltando que: “Essas bolas de boleadeiras são dos
índios que viveram nessa região, são muito antigas, os
bugres as usavam para caçar e lutar, mas o gaúcho também
as usou com o gado xucro. Hoje, ela é um símbolo do Rio
Grande do Sul” (Adalberto Martins, comunicação pessoal,
2004).
Observa-se que os colecionadores conhecem a
história dos objetos e a sua importância para a sociedade
gaúcha, sendo eles, de certo modo, os intercessores das
relações
mediadas pelos objetos. Esse trânsito de
comunicação permite que esses artefatos falem. Thomas
(1996, p.62) ressaltou que o contexto do significante é
constituído de acordo com a imaginação e a interpretação
das pessoas sobre os objetos, iniciando com os diálogos
que elas realizam com as coisas, e as coisas com elas, no
momento que passam a fazer parte do seu mundo social e
incentivar seus discursos. Desse modo, observando a
narrativa que os gaúchos constroem sobre as boleadeiras,
é possível notar que eles se identificam com os objetos e,
ao dialogar com eles, constroem narrativas. O artefato
arqueológico
contemporâneo
inserido
no
adquire
seu
contexto
significados
intencionais que vão, além de
social
simbólicos
e
suas características
funcionais, motivando a maneira das pessoas perceberem
91
as coisas, como repletas de significados, informações,
sentimentos, idéias e motivações. É comum demonstrarem
um determinado fetiche sobre a cultura material que deixa
de ser uma simples boleadeira isolada na superfície de um
sítio arqueológico e passa a fazer parte da sua “agency”
social e cultural. Nessa perspectiva, Julian Thomas
demonstra que existe uma série complexa de relações entre
as pessoas e as coisas, e que existem relações
impenetráveis da sociedade com o mundo material. Os
objetos enquanto heranças culturais dinâmicas retêm
significados do passado, ao mesmo tempo em que
adquirem outros quando de releituras. Thomas (1996,
p.58) destaca que: “o mundo é composto de seres
humanos e coisas e está continuamente em movimento,
integrando-se em si mesmo”.
Visando compreender as bolas de boleadeiras como
uma herança social, foi possível utilizar a perspectiva de
patrimônio de Marcel Mauss, a que Reginaldo Gonçalves
(2005, p.136-137) se refere quando diz que muitos objetos
podem ser entendidos como patrimônios na “medida em
que, pela sua ressonância43 junto à grande parte da
população brasileira, realizam mediações importantes
entre o passado e o presente, entre o imaterial e o material,
entre a alma e o corpo, entre outras”.
________________
43 Poder mágico do objeto (MAUSS, 2003).
92
No Rio Grande do Sul, tem-se outro exemplo da
ressonância das boleadeiras como patrimônio cultural e
simbólico. Essas são coletadas da superfície dos sítios
arqueológicos, sendo expostas com destaque nas lareiras das
estâncias. O estancieiro, colocando as boleadeiras em um
ambiente destinado ao aconchego da família, demonstra o
prestigio que atribui ao artefato. Os gaúchos transformam a
boleadeira em uma arte mobiliar, um patrimônio que se faz
notar, em uma história contínua, mas com diferentes olhares
e múltiplas interpretações sobre os mesmos objetos.
Figura 10: As boleadeiras arqueológicas na Lareira da Estância Itapitocaí Foto: Viviane Pouey
93
No entanto, os mediadores da cultura material, sejam
eles arqueólogos ou colecionadores, constroem discursos
sobre os objetos de acordo com suas concepções
socioculturais e cientificas. Muitas vezes, atribuem aos
instrumentos
apenas
características
funcionais,
esquecendo que os objetos possuem uma proximidade com
as pessoas e as pessoas com eles. Dreyfus (1992) enfatiza
que as coisas são parte do nosso mundo e pode-se
reconhecê-las como coisas de um modo particular, até
mesmo se não está se fazendo uso delas de fato. “Pois,
nos podemos examiná-las como itens potenciais de
equipamento e focalizá-las como objetos (de análise e
discurso), podendo torná-las inteligíveis.” (DREYFUS,
1992 apud THOMAS, 1996, p.63). Desse modo, ao longo
da presente pesquisa, considerou-se necessário um olhar
direcionado à compreensão do simbolismo das bolas de
boleadeiras, assim como sua agência na vida dos gaúchos.
94
3 AS BOLAS DE BOLEADEIRAS
NAS
FONTES
AQUEOLÓGICAS,
ETNOHISTÓRICAS
E
ETNOGRÁFICAS
3.1 AS BOLAS DE BOLEADEIRAS NO OLHAR DOS
ARQUEÓLOGOS
O interesse deste capítulo é conhecer a narrativa que
os arqueólogos construíram sobre as bolas de boleadeiras
e perceber como eles explicam a presença destes artefatos
nos sítios arqueológicos. O arqueólogo Rex González
(1953), em sua monografia intitulada “La Boleadora. Sus
áreas de dispersión y tipos”, ressaltou a necessidade de
estudos arqueológicos e etnográficos que abordassem o
cotidiano do homem do campo e sua relação com as
boleadeiras. González, na década de cinqüenta, considerou
que a boleadeira do gaúcho não é um objeto anacrônico e
sim associado à vida diária nas fazendas e aos jogos
infantis. Ele destaca que a boleadeira para os gaúchos é “el
recuerdo del pasado (que) evoca los momentos más arduos
de la lucha contra el aborigen o los pasajes más heróicos de
la epopeya nacional” (GONZÁLEZ, 1953, p.135).
González lamenta o pouco interesse dos demais
pesquisadores na temática das boleadeiras e comenta que
os únicos trabalhos anteriores a sua pesquisa que trataram
especificamente das boleadeiras foram a monografia de
Martiniano Leguizamón (1919), intitulada “Etnografia del
Plata. El origen de las boleadoras y el Lazo” que, por sua
95
vez, baseou-se no trabalho de Robert Lehmann-Nitsche
(1918) “Costumbres Nacionales.
El origen de las
boleadoras y el Lazo” e de Alfredo Metraux (1949) “The
Boleadoras”, incluído no “Handbook of the South
American Indians”. Após estas pesquisas, os demais
trabalhos publicados sobre as armas do gaúcho e do índio
dos pampas foram artigos com ênfase em temas
folclóricos.
Conhecendo estas publicações anteriores, o objetivo
principal da pesquisa de González (1953), entretanto, foi
realizar uma classificação taxonômica das peças que
haviam sido encontradas em sítios arqueológicos na
Argentina. O arqueólogo analisou coleções particulares e
museológicas, iniciando com a coleção reunida pelo
professor Próspero Alemandri, que se encontrava no
acervo do Museu do Instituto de Arqueologia da
Universidade
Nacional
de
Córdoba,
sobre
a
responsabilidade do arqueólogo Antonio Serrano, que
disponibilizou a coleção para as análises do pesquisador
que iniciaram já em 1944. A esta coleção foi agregada
importantes séries de artefatos do museu da cidade de Eva
Perón, onde se encontram boleadeiras de distintas
procedências como do Uruguai e Rio Grande do
Sul,
reunidas pelo professor José Figueira, no final do Séc.
XIX.
González
denota
que
este agrupamento de
numerosos exemplares serviria de base para estabelecer
a tipologia e a distribuição geográfica das formas mais
96
comuns, já que a temporalidade dos objetos é impossível
de estabelecer pela carência de estudos estratigráficos na
arqueologia
daquela época. Na construção de um
conjunto tipológico, foi necessário conhecer a variedade
e a forma de manejo das boleadeiras. Desse modo,
González também recorreu às fontes históricas Sul
americanas,
especialmente
das
regiões
pampeanas
consideradas como áreas típicas de seu uso. Mas a consulta
a estas fontes teve como único objetivo buscar informações
morfológicas e funcionais das boleadeiras.
González comprende que: “La boleadora fué el arma
de guerra y de caça por excelencia del indígena de las
planícies. En manos del criollo fué, también instrumento
de labor. Las llanuras infinitas fueron el centro geográfico
de su mayor extension.” (GONZÁLEZ, 1953, p.135). Os
trabalhos etnográficos e arqueológicos anteriores ao de
Rex González não haviam elaborado uma nomenclatura
das variedades das bolas de arremesso. Isto provocou
vários debates e contradições. González observa que
alguns autores cometeram o engano de agrupar armas
distintas na mesma categoria tipológica. É necessário
destacar que o termo “bola”, no plural “bolas de
boleadeiras”, é usado como sinônimo. O primeiro é mais
utilizado pelos autores de língua inglesa; no Brasil, na
Argentina e no Uruguai, são utilizados ambos os termos.
González (1953, p.136) menciona que o uso do termo bola
de boleadeira deve-se limitar ao objeto arqueológico “es
97
decir cuando se halla aislado, desprovisto de sus correas,
tal como nos llega de las estaciones o yacimientos
arqueológicos a las que se denomina también “piedras de
boleadora”. Ressalta ainda que o termo boleadeira deva
ser utilizado na denominação do instrumento etnográfico,
ou seja, quando está completa com duas ou três pedras
amarradas à correia.
Nesta pesquisa, pretende-se comentar as tipologias
mais
características
apresentadas
na
taxionomia
elaborada por González (1953). O autor organizou os
tipos em categorias alfabéticas e as classes por números
arábicos. O tipo “A” reúne as bolas esféricas que
apresentam um bom polimento, que foram revestidas por
couro e amarradas pelo cordão no próprio forro. Este
instrumento, provavelmente, foi a bola de funda conhecida
também como “la Honda”, com apenas uma bola presa ao
cordão, que foi mencionada por vários cronistas do período
da conquista. A seguinte citação denota a antiguidade
destes artefatos:
Las piedras de boleadoras lisas, y más o menos esféricas
que constituyen este tipo, son muy comunes en los a
yacimientos arqueológicos la republica Argentina.
Estas piezas debieron ser usadas provista en una
envoltura de cuero, unida directamente al torzal. En la
parte correspondiente hemos visto que fuera de
América también se
98
hallan piedras esféricas más o menos lisas, siendo
especialmente notables las del musteriense europeo. En
América no tenemos, hasta fecha, pruebas de que piedra
de boleadora lisa haya precedido el tiempo a la provista
de surco. En efecto, las piezas más antiguas, halladas e
imputadas a este género de instrumentos, llevan surco,
a si la de Cueva del Manzano como las halladas por Bird
e Capas antiguas de la Patagonia (GONZÁLEZ, 1953,
p.167).
Alguns autores como Lehman-Nitsche (1918) e
Leguizamón (1919) afirmam que a boleadeira esférica
com
sulco44
seria
enfatizando que, de
instrumentos
na
uma
criação
indígena
tardia,
uma forma geral, todos os
América
Meridional
teriam
sido
revestidos com couro e amarrados a um cordão no próprio
forro. Essas afirmações nos levam a imaginar que a
boleadeira isenta de sulco seria anterior à bola com o
mesmo. Porém, entre os achados arqueológicos no sítio
mencionado na citação acima, encontram-se as boleadeiras
com sulco; desse modo, existe a possibilidade da
boleadeira com este não ser uma criação exclusiva do
período neolítico. Os exemplares classificados como tipo
“B” são os artefatos que apresentam o sulco, como afirma
González: “Todos los ejemplares provistos de surcos se
designan con la letra B. Es necesario aclarar que existe
un buen número de piezas, de las, mas variadas
procedencias, en el área pampeano-patagónica, en que el
surco es un delgado canal” (GONZÁLEZ, 1953, p.178).
Para este tipo de artefato, existem referências no Uruguai,
no Brasil, na Argentina, etc.
99
Figura 11: Bolas de boleadeiras polidas (Coleção CEPA)
Desenhos: Hilbert L.M
Os artefatos do tipo “C” são menos incidentes,
apresentam
sulco
duplo
e
foram publicados por
Leguizamón (1919). Seis exemplares, entre eles um
procedente de Pigüé, e outro, mais ou menos esférico,
encontrado em Neuquén. Outes (1897), citado em
González (1953, p.210),
afirma conhecer o sétimo
exemplar e Ameghino (1918), outros
três exemplares.
Os tipos “D” são peças eriçadas com protuberâncias
simétricas conhecidas como bolas perdidas, massas ou
rompe-cabeças. Essa tipologia é mais freqüente no
Uruguai, pois em Buenos Aires apenas um artefato dentro
dessa classificação foi encontrado, sendo procedente da
região de Trenque Lauquen, e que estava em poder de J.
Mayo, que doou para a coleção do Museu de La Plata. Para
Orbigny (1949), a região pampeana, que abrange a
Patagônia, o Rio Grande do Sul e o Uruguai, possui, sem
dúvida, relações arqueológicas evidenciadas através
destes instrumentos líticos:
100
Las bolas erizadas se caracterizan por
tener una serie de mamilos e
protuberancias agudas y más o menos
salientes del núcleo central de la pieza. A
menudo fueron trabajadas con dos o tres
surcos que se entrecruzan y delimitan las
salientes; otras veces solo se advierte sin
surco, por lo que la cuerda debió amarrarse en forma un tanto irregular entre las
depresiones dejadas por las mamelones,
los que pueden guardar un cierto orden
simétrico o disponerse irregularmente
alrededor del núcleo (D’ORBIGNY,
1949, p.58).
44
Sulco: cavidade para prender o couro e arremessar o artefato.
101
Figura 12: Bola: Rompe-cabeça. Pro Prata
As bolas de tipo “E” são raras. Até o presente
momento, apenas dois exemplares desse tipo foram
encontrados. Tratando-se de duas esferas unidas pelos
sulcos. O primeiro artefato pertence à coleção Alemandri,
procedente do Lago Viedma, território de Santa Cruz; o
segundo é procedente de Ongamira e foi ilustrado por
Leguizamón (1919). Este exemplar é diferente do primeiro
que possui um segundo sulco transversal ao primeiro.
O tipo “F” é um exemplar raro, mas importante.
González comenta que nestes artefatos não existem sulcos.
Compostos por três bolas, contam com perfurações
centrais por onde passa o cordão que permite o arremesso.
Estas são bolas típicas entre os Esquimós e Chuckchees,
mas também foram encontradas em diferentes áreas
geográficas assim como Chile, Patagônia e Terra do
102
Fogo. Para o tipo “F”, existe a classe 1 que se refere às
bolas pequenas elaboradas em bronze e prata. O cordão é
preso através de uma cavidade transversal no interior da
peça. As bolas esféricas podem estar decoradas com
figuras zoomorfas. O mesmo ocorre nas boleadeiras
esquimales. As fontes etnográficas denotam estas
modalidades de instrumentos com figuras zoomorfas no
Peru e no Noroeste Argentino. Para explicar a presença
destes artefatos também no Noroeste Argentino, as fontes
históricas mostram uma coincidência com a ocupação Inca
na região (GONZÁLEZ, 1953, p.165).
É necessário recordar que Rex González (1953)
percebia a necessidade de um novo olhar para o estudo das
bolas de boleadeiras que abordasse a continuidade
cronológica e seus significados na vida dos gaúchos.
Porém, devido à inexistência de uma nomenclatura dos
diversos tipos de pedras de arremesso, o arqueólogo optou
em sua pesquisa por desenvolver uma monografia
destinada às análises tipológicas e à dispersão destes
artefatos na América Sul Meridional.
Após se comentar a taxionomia das boleadeiras
criada por Rex González, o objetivo desta pesquisa é
conhecer como os arqueólogos adotam as metodologias de
outros
pesquisadores
para
responder
os
seus
questionamentos teóricos. Visando perceber, também,
como eles discutem as tipologias, adotam e ampliam as
técnicas arqueológicas no processo de construção das suas
103
pesquisas.
A taxionomia das bolas de boleadeiras organizada
por Rex González (1953) foi, posteriormente, adaptada às
peculiaridades brasileiras pelo arqueólogo Pedro Ignácio
Schmitz e seus colaboradores (1971). O objetivo do artigo
de Schmitz, intitulado “Bolas de Boleadeira no Rio Grande
do Sul”, foi apresentar os artefatos de diversas áreas do
Rio Grande do Sul e estabelecer as possíveis conexões
com as áreas próximas, em que as mesmas também
ocorrem. Utilizando a obra de González (1953) como guia
de referência, Schmitz e os demais autores não discutiram
os princípios teóricos da classificação adotada. Quando
encontraram um artefato não classificado por Rex
González,
estes
autores
apenas
o
descreviam
detalhadamente. Por outro lado, se nas coleções estudadas
não aparecem algum dos tipos, ou sub-tipos da obra guia, o
mesmo não é mencionado.
Schmitz
arqueológicos
(1971)
com
não
as
relacionou
fontes
etno-
os
artefatos
históricas
e
etnográficas. Sua preocupação foi adequar a tipologia de
González aos artefatos encontrados no Rio Grande do Sul.
Schmitz (1971, p.64) menciona que: “a boleadeira é um
elemento pampeano, e ele foi aceito pelos grupos vizinhos,
mesmo que o modo de vida e o ambiente fossem muito
diferentes”.
Destacando, também, que, em sítios de
Tradição arqueológica Tupiguarani, foram encontrados
bolas de boleadeiras em diversas áreas: “Em Camaquã, no
104
Vale do Caí e em Itapiranga. Nestes sítios, as bolas são
encontradas com freqüência, mesmo quando situados
para o interior do mato, como no caso de Itapiranga”
(SCHMITZ, 1971, p.59). Schmitz sugere que a difusão das
culturas seria uma das hipóteses para explicar a presença
das
bolas
de
boleadeira
em
sítios
de
Tradição
Tupiguarani. O arqueólogo compreende que os índios
Guarani não utilizaram as boleadeiras como armas em
períodos pré-coloniais, mas sim que estes artefatos
tiveram outros fins no seu cotidiano doméstico como
batedores e moedores de semente, pois as peças
encontradas
quase
sempre
estão
fragmentadas
(SCHMITZ, 1971, p.63).
As bolas de boleadeiras encontradas nos sítios
arqueológicos do Rio Grande do Sul, durante as pesquisas
realizadas pela equipe do PRONAPA45, na década de
sessenta, foram inseridas na tradição Umbu. Esta tradição
arqueológica foi denominada pelo arqueólogo Eurico
Miller (1961), a partir das escavações do sítio RS-LN-01:
Cerrito Dalpiaz, abrigo-sob- rocha, localizado na encosta
nordeste inferior da serra do Umbu. Miller (1966-67)
explica que o período caracterizado como fase Umbu é
o único que produziu artefatos em número suficiente
para permitir uma designação cultural. “[...] inicialmente
com alta freqüência de pontas lanceoladas, pontas
triangulares com entalhe basal, pontas grandes com
aletas e pedúnculo, aparecem no final do período”. Miller,
dedicando-se apenas a descrever a morfologia estética dos
105
artefatos e a quantificá-los, compreende que os artefatos
polidos surgem na mesma fase arqueológica; entre eles, os
mais característicos são os instrumentos de boleadeiras. As
pesquisas realizadas por José P.Brochado tiveram início a
partir do segundo ano do programa PRONAPA, vindo a
complementar as áreas de trabalho de Miller. Brochado
(1967-68) fez prospecções nos vales dos rios Ijuí e
Jacuí/RS, onde visitou 51 sítios em três áreas, sendo
possível estabelecer oito fases arqueológicas; entre estas,
três não cerâmicas. As fases não cerâmicas são: Jacuí,
Panambi e uma terceira que, no período, não foi
denominada. As cinco fases cerâmicas são: Vacacaí,
Toropí, Induá, Ijuí e Missões, das quais as quatro
primeiras pertencem à tradição Tupiguarani e a última é
histórica. Brochado, ao descrever os artefatos líticos
coletados nos sítios arqueológicos, chama atenção para a
presença das bolas de boleadeira, comentando somente
suas características tipológicas. Enfatiza que é muito
comum nas três áreas prospeccionadas encontrar:
“artefatos picoteados ou polidos, esferóides, elipsóides ou
piriformes, com ou sem sulcos, comumente classificados
como bolas de boleadeiras” (BROCHADO, 1969, p.36).
O arqueólogo lembra também que as bolas de
45
PRONAPA: Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas.
106
boleadeira são encontradas em todas as coleções locais.
Acredita-se que não há interesse nessa pesquisa
discutir as fases e tradições arqueológicas. Estas são
mencionadas apenas para demonstrar como os arqueólogos
abordam e explicam a procedência das boleadeiras em seus
trabalhos. Meggers e Evans (1977), no seu artigo intitulado
“Lowland South América and Antilles”, definem duas
tradições líticas no sul do Brasil da seguinte maneira: “[...]
Uma das tradições com pontas de projétil líticas e outra
onde estas estão ausentes. Esta última é a tradição
Humaitá.” Para Meggers e Evans, as pontas de projétil
líticas são antigas na América do Sul e continuam no sul do
Brasil depois de 5.000 a.C, na tradição Umbu “[...].
Freqüentemente estão também associadas bolas de
boleadeiras, machados polidos e semi-polidos e afiadores
líticos” (MEGGERS & EVANS, 1977, p.548- 550).
Devido às imprecisas descrições abordadas pela
equipe do PRONAPA, Arno Kern (1981, p.368) reclama
a necessidade de estudos mais minuciosos da indústria
lítica e dos sítios dos caçadores coletores. Kern entende
que a tradição Umbu pode ser representada por uma
mesma população que buscou sempre o mesmo tipo
específico de ambiente com o mínimo de modificação
visível em sua cultura material. A tradição Umbu, além
disso, pode ser formada por diferentes grupos que
107
permutaram técnicas ou idéias ao ocuparem o mesmo meio
(KERN, 1981, p.288). Schmitz (1976), Copé (1985), Kern
(1981; 1991) Jacobus (1991) Dias (1994), entre outros
pesquisadores, preocuparam-se em caracterizar os modos
de vida dos caçadores-coletores, cuja referência auxilia na
compreensão dos contextos arqueológicos da tradição
Umbu.
Porém, alguns arqueólogos que pesquisaram os
sítios arqueológicos relacionados a caçadores-coletores
somente quantificaram os artefatos encontrados e
descreveram suas tipologias, impossibilitando, assim, uma
caracterização sócio-econômica mais ampla desse grupo.
Esta lacuna provoca apropriações imprecisas do termo
caçador-coletor, fazendo com que Pedro Mentz Ribeiro
(1990, p.131; 1991, p.104) relacionasse a presença de
bolas de boleadeiras e pontas de projétil nos contextos da
tradição Umbu como indicativos da preponderância da
caça em sua economia, desconsiderando a importância da
coleta nessas sociedades (JACOBUS, 1991, p.64).
Adriana Dias (1994), repensando a tradição Umbu a
partir de um estudo de caso sobre as pontas de projétil,
explica que a metodologia de campo dos “Pronapianos”
consistiu em coletas superficiais e um período de tempo
de dois meses, o que consideravam suficientes para
coletar artefatos e analisar o resto do ano. Este grupo de
arqueólogos
artefatos
realizou uma caracterização geral dos
líticos
coletados,
108
pois
era
praticamente
impossível realizer grandes intervenções nos sítios em tão
curto tempo. Essas metodologias de campo seguiram os
pressupostos criados por James Ford (1962), que propôs,
em sua tese de doutorado, o método quantitativo para
estabelecer cronologias culturais. Dias ressalta que Ford,
baseado nos pressupostos histórico-culturalistas, percebe
as capacidades humanas enquanto fatores restritivos ao
livre desenvolvimento dos processos culturais. Dias, além
de discutir e repensar a tradição Umbu, realiza as análises
tecno-tipológicas dos artefatos líticos associados aos
contextos arqueológicos desta tradição. Ao comentar a
tipologia e a confecção das boleadeiras, assegura que: “A
produção de uma boleadeira demanda a confecção de um
sulco central, através de picoteamento, necessitando
também o emprego de polimento para o acabamento da
superfície” (DIAS, 1994, p.124). Dias comenta que
encontrou um artefato de boleadeira nas escavações no
sítio RS-C-43, a 40 cm de profundidade, relacionado com
as perturbações estratigráficas dos cortes externos. A
arqueóloga destaca que este artefato é tradicionalmente
associado à tradição Umbu. Na continuidade de suas
pesquisas nos sítios de caçador-coletor da região do Alto
Rio dos Sinos, Dias (2003) identificou, entre os demais
artefatos líticos, duas boleadeiras presentes nos sítios
(RS-S-327 e RS-358)46. A autora
também se dedica a descrever a tipologia das boleadeiras
da seguinte maneira: “Ambas são confeccionadas em
basalto e apresentam formato esférico, sulco periférico
109
produzido por picoteamento e polimento” (DIAS, 2003,
p.251).
Flamarion Gomes (2002) afirma que as bolas de
boleadeiras freqüentemente encontradas na superfície dos
sítios arqueológicos estão diretamente relacionadas a
grupos indígenas associados à Tradição Umbu. Porém,
ainda que sua presença seja menor em sítios Guarani,
impossibilitando
maiores
estudos,
não
deve
ser
negligenciada. Para o arqueólogo, os artefatos líticos
Guarani tendem a ser confeccionados com matéria prima
local. Como os Guarani ocuparam grandes extensões de
terras não existe uma especialização em determinado tipo
de rocha: “O tipo de trabalho no lítico é semelhante à
técnica dos caçadores pampeanos, variando entre o
lascado e o polido” (GOMES, 2002, p.75). Gomes não
comentou as fontes etnohistóricas para explicar o uso das
boleadeiras pelas etnias indígenas, mas com base nas
análises tipológicas considerou as técnicas no lítico polido
como características similares entre os índios Guarani e os
Pampeano.
Gustavo Wagner (2004), estudando o sistema de
ocupação dos grupos ceramistas pré- coloniais do Litoral
Norte do Rio Grande do Sul, menciona os sítios
arqueológicos denominados por Schmitz (1958) como
“paradeiros guaranis”. Wagner descreve estes sítios e
46
As datações para esses sítios arqueológicos com boleadeiras não estão disponíveis na tese
da autora.
110
apresenta os resultados das análises das coleções
realizadas por Schmitz. O arqueólogo comenta que os
dois assentamentos estão situados em meio a um sistema
de dunas móveis ligadas a uma cadeia de lagoas. O
material coletado em ambos os sítios é idêntico e por essa
razão Schmitz descreveu-os em conjunto: “[...] grande
quantidade de cerâmica, dezenas de
pontas de flechas, [...] machados polidos, regular número
de machados lascados prontos ou em preparo, simples
lascas aproveitadas como machados ou facas, uma bola de
charrua47 [...]” (SCHMITZ, 1958, p.115). Pela primeira
vez, Schmitz relaciona diretamente a boleadeira com a
etnia Charrua, fugindo de suas características tipológicas.
Devido à presença de bolas de boleadeiras e pontas de
flechas, Wagner relaciona estes artefatos aos caçadorespescadores das “Zonas de Paisagens Abertas” 48, e
compreende que os sítios arqueológicos referidos por
Schmitz
provavelmente
foram
reocupados
pelos
horticultores do Planalto e, finalmente, pelos horticultores
Guaranis, como indicam os fragmentos de cerâmica
associadas ao concheiro. Wagner49 também não utiliza
fontes etnohistóricas para explicar a reocupação dos sítios
arqueológicos, mas interpreta as boleadeiras e as pontas de
flechas encontradas nestes locais como índices da presença
de índios caçadores.
111
AS
BOLEADEIRAS
3.2
HISTÓRICAS
NAS
FONTES
A maioria dos arqueólogos, ao se referir às bolas de
boleadeiras, aborda apenas seus aspectos tipológicos e
funcionais. Porém, alguns pesquisadores procuram nas
fontes históricas outras referências para explicar as
boleadeiras no contexto indígena. Ítala Becker (1982), que
estudou a ocupação dos índios Charrua e Minuano na
antiga Banda Oriental do Uruguai, procurou mostrar
como o colonizador ibérico, tanto espanhol como
português, agiu sobre os índios pampeanos e como estes
reagiram aos diversos momentos da colonização. Becker
utiliza os relatos dos primeiros cronistas e viajantes do Séc.
XVI, que se referem aos costumes dos Charruas. Entre
outros autores, Becker cita Diego García de Mogger (152627), Lopes de Sousa (1530-32) e Ulrico Schmidel (153454). As referências para os Minuano começam aparecer
somente no Séc. XVII e as informações mais detalhadas
são fornecidas pelos missionários e administradores
espanhóis, devido aos contatos que se intensificam ainda
mais no Séc. XVIII. O avanço do contato permite
relatórios mais consistentes como o do português José
Saldanha (1787) e do espanhol Felix de Azara (17831806).
Ítala Becker (1982), ao revisar as fontes históricas,
constata que, somente após o desaparecimento dos grupos
112
indígenas pampeanos, cresce entre os antropólogos e
historiadores uruguaios, brasileiros e argentinos o
interesse em estudar e resgatar sua história.
47
A bola de boleadeira recebe de Schmitz (1958) o nome da etnia indígena Charrua.
Denominação atribuída por Arno Kern (1994).
O autor também se refere à presença de bolas de boleadeiras no sítio arqueológico
Sambaqui de Itapeva.
48
49
113
Estes pesquisadores tinham como objetivo tanto
descrever os grupos etnográficos dentro do enfoque da ciência
antropológica (TESCHAUER, 1929; SERRANO, 1936, 1947;
PORTO, 1954; ACOSTA y LARA, 1961, 1969-1970, entre muitos
outros), como revelar a sua contribuição no surgimento dos povos
platinos.
Eles demonstram também que, no mesmo território,
apesar da presença dos índios Charrua e em desfavor
deles, estabeleceu-se a República Oriental do Uruguay.
Becker afirma que os índios Charrua e Minuano são dois
grupos de pescadores e coletores que partilham a antiga
Banda Oriental do Uruguay com dois outros grupos
conhecidos como Chaná e Guarani. Os Charrua e
Minuano seriam física, cultural, econômica e socialmente
semelhantes a caçadores do sul da Argentina. Quando o
contato com o branco se intensificou, os caçadores seriam
uns 2.000 indivíduos, os quais se dividiam entre 1.100
Charrua e uns 900 Minuano; os primeiros eram habitantes
de ambas as margens do Rio Uruguai, os segundos
situavam-se ao longo da costa atlântica, desde a Lagoa
Mirim até a altura de Montevideo (BECKER, 1982).
A autora enfatiza que, devido à ocupação branca nos
seus territórios iniciais, ocorreram deslocamentos, mas
suas posições originais sempre ficaram relacionadas à
Banda Oriental del Uruguay. Becker explica que, embora
o colonizador muitas vezes unisse os Charrua com os
Minuano confundindo-os, tratava-se de duas populações
114
bem diferenciadas, que ocupavam espaços separados,
apresentavam aspectos culturais e sociais inconfundíveis e
seguiam líderes independentes. Entretanto, não está claro
se falavam línguas ou dialetos diferentes. O ambiente dos
dois grupos são os campos, intercalados de bosques,
sempre próximos aos córregos de água, onde há fartura de
recursos animais e vegetais. Diferentemente dos grupos
horticultores Guarani, que foram rapidamente aldeados ou
entregues ao colonizador sob forma de “encomienda”, os
índios pampeanos
conseguiram manter sua vida na
periferia da civilização por mais três séculos.
Os
Charrua
e
Minuano
continuaram
sendo
caçadores, enquanto o colonizador não conseguiu, por si,
ocupar e incorporar o território indígena. O território
colocado entre as duas fronteiras em expansão, a
portuguesa e a espanhola, ficou quase dois séculos uma
“terra de ninguém”, onde o nativo podia continuar sem
ter a sua economia ameaçada. Os índios pampeanos
eram
solicitados
colonizadores,
mas
para
trabalharem
para
os
em ocasiões esporádicas, sendo
também combatidos por estes, mas sem poder ser
totalmente exterminado porque mantinha o seu território,
que lhe garantia certa liberdade. Com a intensificação do
contato, os indígenas tiveram acesso aos elementos
inseridos pelo colonizador; inicialmente, ao cavalo, com o
qual se tornaram ágeis cavaleiros; depois, ao gado das
vacarias espanholas. Os pampeanos ao dominarem “a
115
montaria usavam as bolas de boleadeiras e o laço,
instrumentos comuns, e necessários aos campeiros que
nestes campos vadeiam, neles tiveram a sua origem, com
estes apanham no campo várias éguas e potros bravos”
(BECKER, 1982, p.95). As boleadeiras, além de serem
as armas que acompanharam os índios pampeanos
durante toda sua vida, continuam presentes na sua mobília
funerária. Lope de Sousa (1530) revela a localização de
um cemitério nas proximidades de Maldonado (Uruguai),
com trinta índios Charrua enterrados em covas individuais,
e junto às mesmas estavam os seus pertences, sendo a única
forma de propriedade indígena. Becker (1991) comenta
que os corpos eram enterrados em covas rasas, cobertas
com pedras ou ramas. Sobre esse pequeno acúmulo, eram
colocadas as boleadeiras; a lança ficava plantada no lado
oposto ao qual deixavam o cavalo. A autora menciona que
Azara (1936) argumentou que o cavalo era sacrificado
sobre a sepultura, por desejo expresso de seu proprietário.
Serrano (1936, p. 351) o contestou, pois acredita que o
cavalo era deixado vivo ao lado da cova para a viagem que
o defunto deveria realizar.
No final do Séc. XVIII, e nas primeiras décadas do
Séc. XIX, a população espanhola e portuguesa ocupa em
definitivo o território que explora economicamente,
restringindo cada vez mais o espaço dos pampeanos. Os
indígenas perderam o gado para os fazendeiros; sem a caça
e sem o território, só lhe restava a opção de se empregar
116
com os brancos, dos quais se tornaram dependentes.
Inicialmente, estes eram contratados para defenderem as
fronteiras, após a independência das colônias: “o índio e
toda a sua família se fez guerreiro e os caciques se fizeram
comandantes militares” (BECKER, 1982, p. 12). Ainda
era possível a vida tribal, mas esta já muito deteriorada.
Havia também trabalho nas estâncias; porém, poucos
aceitavam, pois teriam que se afastar do grupo e do seu
ambiente natural. As guerras de fronteiras acabaram e o
território foi todo ocupado pelo conquistador. Num
pequeno espaço de tempo, na República Oriental do
Uruguai, no Rio Grande do Sul e nos campos de
Corrientes, não havia mais espaço para a vida tribal de um
grande grupo indígena. Os índios, recusando-se a mudar
seu modo de vida e a servir o branco, passaram a invadir
as estâncias para roubar o gado armados com suas bolas
de boleadeiras. Teschauer (1929, p.212-213) comenta que
o conflito dos pampeanos não era só com os espanhóis,
mas também com os Guarani aldeados: “Estes, por muito
tempo, foram inimigos jurados das reduções guaraníticas,
que sofreram deles diversos e contínuos assaltos como de
Yapeyú y la Cruz”. Becker afirma que os pampeanos não
abandonaram suas armas primitivas embora modificadas
com os elementos inseridos pelos conquistadores, pois
utilizaram nas freqüentes disputas pontas de flechas e
bolas de boleadeiras. Neste período de conflitos, a vida
indígena se desorganizou, pois os recursos estavam cada
117
vez mais escassos, os toldos não lhes garantiam mais
segurança. Os movimentos são freqüentes, os cavalos cada
vez mais estropiados, os indígenas morriam em grande
número
nos
combates.
As
epidemias
de
varíola
contribuiram para a redução da população indígena.
Mesmo assim, os pampeanos resistiram às tentativas de
aldeamento pelo colonizador e, devido a essa insistência
de manterem o seu modo de vida primitivo no espaço, já
todo dominado pelo branco, foram exterminados pelo
exército uruguaio. O exército Uruguaio, sob o comando
do
General
Fructuoso
Rivera,
pressionado pelos
proprietários de terras que temiam pelas suas vidas e bens,
preparou a emboscada de Salsipuedes, em 11 de abril de
1831, em que mataram os homens Charrua a fio de espada.
As mulheres e crianças foram distribuídas entre a
população branca para lhe prestarem serviço e aprenderem
a cultura colonial espanhola. Deste massacre, sobraram
ainda uns trinta índios destribalizados, sem história,
perdidos no meio da população européia. A miscigenação
para o trabalho como peões nas estâncias foi à única opção
de sobrevivência que lhes restava. Como haviam se
tornado ágeis cavaleiros, contribuíram muito no trabalho
com o gado, inserindo suas bolas de boleadeiras nas
atividades rurais. Atualmente, a boleadeira continua na
indumentária do gaúcho como uma herança cultural da
história
dos
índios
118
pampeanos.
Figura 13: Charruas civilizados (peões) Imagem: Jean-Baptiste Debret
1834).
119
3.2.1 A guerra dos Charruas na Banda Oriental
(Período Hispânico)
Ítala Becker, em sua pesquisa sobre os Charrua,
na Banda Oriental do Uruguai, utilizou como referências
principais os dois volumes da pesquisa de Eduardo Acosta
y Lara (1961;1969-1970). Nesta revisão etnohistórica, não
se comenta exaustivamente as boleadeiras, objeto de
estudo, pois se considera um elemento que está diretamente
relacionado ao contexto cultural dos índios pampeanos.
O objetivo é compreender o contexto em que viveram os
Charrua que as utilizaram, com base nas obras de Acosta
y Lara (1961; 1969- 1970), numa seqüência analítica e
cronológica.
O historiador Uruguaio Acosta y Lara, que reconhece
a ocupação dos Charrua em seu país, trabalha com fontes
antropológicas, etnológicas, etnográficas e também se
utiliza dos relatos dos cronistas e viajantes das diferentes
épocas para explicar os indígenas. O autor revisa os
relatos dos cronistas com o objetivo de compreender os
primeiros contatos dos europeus com os índios Charrua e
os diferentes momentos da colonização. A obra de Acosta
y Lara (1961), intitulada “La Guerra de Los Charruas en la
Banda Oriental (Período Hispânico)”, foi construída com
base nos diferentes momentos e acontecimentos da
história dos Charrua, cuja organização por períodos
120
possibilita uma ampla compreensão do contexto em que
viveram estes indígenas.
Acosta
y
Lara
inicia
esclarecendo
que,
diferentemente do que muitos historiadores costumam
afirmar, a morte de Juan Diaz de Solís (1516) não pode ser
atribuída aos Charrua, pois as crônicas dos séculos XVI
e XVII que relatam este episódio omitem o nome dos
indígenas com que fizeram contato e tão pouco foram
nomeados no diário do descobridor. Acosta y Lara explica
que a razão para o desconhecimento do nome da etnia se
justifica pelo fato dos companheiros de Solís, no trágico
desembarque à Colônia, não regressarem para narrar à
história. Os expedicionários que permaneceram a bordo,
como narra o cronista Pedro Mártir (apud ACOSTA y
LARA, 1961, 1, v.2, p.202): “espantados de aquel atroz
ejemplo, no se atrevieron a desembarcar, ni pensaron en
vengar á su capitán y compañeros, y abandonaron aquellas
playas crueles”. Como poderiam saber então o nome
dos selvagens se não os conheciam e apenas os
observaram a distância? O certo é que, dois séculos mais
tarde, o Padre Lozano ainda culpava os índios Charrua
pela trágica matança, assim outros historiadores seguiram
afirmando estas contradições. Este acontecimento resultou
na primeira legenda negra da história rio-platense.
Acosta y Lara argumenta que, posteriormente,
investigações históricas e arqueológicas demonstram que o
desembarque de Solís e seus companheiros foi em terras
121
habitadas pelos Guarani, estes pertencentes ao grupo Tupi
eram canibais. A maioria dos cronistas concorda que os
indígenas,
após
matarem
Solís
(1516)
e
seus
companheiros, os devoraram, o que levou Acosta y Lara
(1961, p.2) a considerar que estes são os Guarani e não os
Charrua. Percebe-se que o discurso do autor sobre os reais
culpados pela morte do colonizador Juan Diaz de Solís
possui um ideal político. Pois, ao transferir a culpa dos
índios Charrua para os Guarani, ocupantes das regiões
brasileiras, o historiador uruguaio está delegando o
assassinato de Solís de forma metafórica aos seus vizinhos
brasileiros, intrusos no território uruguaio.
Acosta y Lara observa que a vinda de Sebastián
Gaboto ao Rio da Prata começa a esclarecer o panorama
étnico. Em março ou abril de 1527, a pequena frota chega
à desembocadura do arroio San Juan, a Colônia, que
denominaram como Porto de San Lázaro, o de penetração
para os rios Paraná y Paraguay. Ali, Luis Ramírez
escreveu a seu pai a carta de 10 de julho de 1528,
conservada atualmente na Biblioteca de Escorial. Esta
carta proporciona notícias sobre os costumes e modo de
vida das nações indígenas destas terras. Porém, Ramírez
(apud ACOSTA y LARA, 1961, p.202) não cita “los
charrúas ni da gentilicio alguno que se les parezca. Y es
extraño, porque habiendo vivido bastante tiempo en San
Salvador pudo tener referencias de ellos por los guaraníes o
por Francisco del Puerto”50 .
122
Acosta y Lara destaca a importância do relato do
cronista espanhol Gonzalo Fernandez de Oviedo (1535).
Este para escrever sobre o Rio da Prata e seus habitantes
se baseou nas informações de Johan de Junco y Alonso de
Santa Cruz, ambos integrantes da expedição de Gaboto.
50 Francisco de Puerto é o grumete que escapou da matança da expedição de
Solís e que virou prisioneiro dos índios, incorporando-se anos depois à
expedição de Gaboto como intérprete da língua indígena.
51 Oviedo não é muito claro ao definir qual é o rio a que se refere, já que no
parágrafo anterior havia falado no rio Paraguai. Porém, a imediata menção do
rio Negro leva a pensar que o rio que Oviedo está se referindo é o Rio da Prata
(1535, p.4).
52 Jacroa “há sido ya aceptado como sinónimo de “charrua”. A maioria dos
autores atribui a erros de traduções e de interpretações fonéticas das variantes
dos “gentilicios”, especialmente em relação a letras iniciais de ambos os
vocábulos” (ACOSTA y LARA, 1961).
Disse o cronista ao descrever a costa do Rio da Prata:
“Y á la boca del río51 están los Jacroas, que es una gente
que se sostiene de montería de venados, de avestruces y de
otros animales llamados apareares”, [...]. Oviedo enfatizou
que os Jacroas52 não fixavam residência:
Van de una parte á otra corriendo la caza,
y llevan consigo sus mujeres é hijos, é las
mujeres van cargadas de todo que tienen,
é los hombres van siguiendo su montería
é matando los ciervos y avestruces,
arrojándoles unas bolas de piedra con
trayllas ó pendientes de una cuerda, como
ya en otra parte la historia ha hecho
mención de tales armas. También usan
algunos arcos é garrotes en su montería.
Estos indios están de la parte de la costa
al Norte, y más adelante en la misma
costa, pasando el rió Nero, está otra
gente que dice chanas timbus, que
viven en islas de la costa ya dicha, etc;
[v. 9] (OVIEDO, 1535, p.191).
123
Acosta y Lara (1961) ressalta que, em ordem
cronológica, seria esta a primeira menção histórica aos
Charrua53; porém, é possível contar também com as
descrições do navegante Diego García54, que havendo
conhecido as costas brasileiras no mesmo período que
Gaboto, refere-se a estes indígenas. Diego Garcia (apud
ACOSTA y LARA, 1961, p.4) relata, em 1530-31, que, no
Cabo Santa Maria, atual Punta del Este: “yentoda esta
costa no parece yndio ny alderredordelcavo mas luego ay
adelante ay una generación qsellama los chaurruaes
questos no comen carne umana manttienense de pescado e
caza de otra cosa no comen”. E repete esta citação quando
se refere aos grupos indígenas que conheceu em sua
viagem: “los charruases de la vanda del norte, estos
comen pescado e cosa de cá e no tienen outro
manteniym”. Acosta y Lara acredita que Garcia
provavelmente não tenha visto pessoalmente
os Charrua, mas que soube deles através dos Guarani, ou
pelos timbúes, três dos quais levou consigo ao regressar a
Espanha.55 Ao final de 1531, visitou o Rio da Prata o
português Pero Lope de Sousa que, ao se referir aos
grupos indígenas que encontrou, conta que eram três
grupos. O primeiro estava na Bahia de Maldonado, ao
Oeste do Cabo Santa Maria, (Punta del Este), lugar onde
Garcia afirmou a presença dos “chaurruaes”. Sobre os
indígenas, Pero Lope
124
de Sousa (1531, p.5, apud ACOSTA y LARA, 1961,
p.306) enfatiza que estes receberam os portugueses “com
grandes choros e cantigas mui tristes”. Lope de Sousa
indica também o costume de amputar os dedos. É muito
provável que os índios que encontraram foram os Charrua
devido a este costume e a sua localização na mesma zona
mencionada por García e Ruy Díaz de Guzmán.
Com Lope de Sousa (1531) termina o ciclo de
descobrimento e com Pedro de Mendoza inicia a
conquista. A magnífica expedição deste último chegou ao
Rio da Prata no início de 1536, ancorando seus quatorzes
navios em San Gabriel, colônia, ou seja, na mesma
hospedagem que Magalhães utilizara dezesseis anos antes.
Neste local, Schmidel (1534-1554)
se refere aos
“Zechuruass”; quando regressou à Alemanha, publicou as
experiências que viveu naquela expedição. O alemão
destacou em sua obra tão conhecida pelos pesquisadores
da história indígena “Allí encontramos con un pueblo de
Indios llamados Zechuruass que constaba como de 2.000
hombres, y que no tenían más de comer que pescado y
carne”. Schmidel faz mais duas menções aos Charrua. A
primeira é ao falar da indumentária dos Querandi
“carendies, su vestir era como el de los Zechurg del
ombligo á las rodillas” (SCHMIDEL, 1986, p.147).
125
E a segunda quando enumera os grupos indígenas
que se aliaram para atacar o povoado de Buenos Aires
“Carendies, Barenis, Zechuruass y Zechenais Diembus”,
(SCHMIDEL, 1986, p.154)56.
Acosta y Lara (1961), consultando as crônicas do
alemão Schmidel57, adverte que não é possível afirmar que
os indígenas que ele menciona são os Charrua, pois o alemão
não conheceu a Banda Oriental, mas se realmente ele fez
contato com esta etnia foi com o grupo que interferiu ao
ataque a Buenos Aires (SCHMIDEL, 1986, p.6).
Acosta y Lara considera que os primeiros europeus que
realmente estabeleceram contato com os índios Charrua na
Banda Oriental do Uruguai foram os membros da expedição
de Juan Ortiz de Zaráte (1573). Nos primeiros contatos entre
Charruas e espanhóis, não ocorreram desavenças, mantendose o espírito de paz. Nesta expedição, veio como capelão o
acerdiano Martin Del Barco Centenera.
53 Os Charrua recebem dos cronistas diversas nomeações, isto se deve às diferentes
nacionalidades dos informantes.
54 Diego Garcia de Moguer (1532 apud ACOSTA y LARA, 1961, p.6),
apresentado por alguns historiadores
como português e por outros como espanhol, já havia vindo ao Rio da Prata com
Solís, e pela terceira vez com a frota do adelantado Pedro de Mendonza.
55 A síntese feita em Sevilha (1530) para investigar a origem e o destino dos
índios levados à Espanha pela
expedição de Gaboto. Garcia (apud ACOSTA y LARA, 1961, p.178) declarou
que estes três timbúes - “ätamburures” - haviam sido comprados no “Rio Solís.”
de outros índios inimigos seus - os “guaraníes, que los come”.
126
Nas importantes observações de Centenera, expostas
em seu poema “La Argentina” (1836), Acosta y Lara
resgatou várias informações sobre o contato dos
espanhóis com os Charrua. Centenera, além de narrar o
contato com os índios Charrua e descrever hábitos,
comenta a penosa estadia dos expedicionários em Santa
Catalina. Nesta expedição, a miséria e a fome se agregaram
à humilhação de uma oficialidade despótica repressora dos
gestos de insatisfação dos viajantes. Em meio a tantos
erros e divergências, ocorreu o inesperado. Chegando a
São Gabriel, os espanhóis foram surpreendidos por um
temporal vindo do Sul. Este foi tão violento que: “pilotos
y maestres, marineros, grumetes, pajes, frailes y soldados,
mujeres y muchachos, pasajeros, andaban dando voces
muy turbados. Los gritos y alaridos mensajeros allí son de
una nave a otra enviados, Y cada
cual socorro
demandaba.” (canto X).
56 Índios, Querandíes, Guaraníes, Charruas y Chaná-timbúes.
57 Schmidel (1986, p.196) é bem conciso ao expressar que os indígenas de
San Gabriel não puderam ser encontrados, ou seja, que não foram vistos. E
que estes haviam fugido com a chegada dos espanhóis. Mendoza somente em
outra oportunidade pisou em terra uruguaia.
127
Ao mencionar os índios Charrua, Centenera os denomina da
seguinte maneira: “la gente que aqui habita en esta parte charruahas
se dicen, de gran brío, a quien ha repartido el fiero Marte su fuerza,
su valor y poderío”. Estes índios eram altos e habilidosos nas
guerras e nas batalhas, atrevidos e corajosos.
As informações do Poema de Centenera sobre os
Charrua são as mais completas do Séc. XVI. O observador
comenta que os indígenas eram tão agéis que: “alcanzan
corriendo por los campos los venados; Trás fuertes
avestruces se abalanzan, Hasta dellos se ver apoderados;
Con unas bolas que usan, los alcanzan” (CENTENERA,
1836, p.150). Os “Charruahaes” dominam o arremesso
das boleadeiras e não erram o tiro mesmo distante do alvo:
“A cien paso (que es cosa monstruosa) apunta el charruaha
a donde quiere e no yerra ni un punto aquella cosa que tira”
(CENTENERA, 1836, p.151). Centenera relata que, com
a boleadeira, muita gente era morta com golpes na cabeça
e, quando estes eram aplicados no corpo, ficavam com
várias cicatrizes. Outro costume dos “Charruahaes” faz
parte do ritual do luto quando perdem um parente “hacen
luego cala en sí propios, su carne dividiendo, que de manos
y pies se corta y tala el número de dedos, que perdiendo de
propincuos parientes va en su vida. El charruaha por
orden y medida” (canto X). Centenera descreve os toldos
dos indígenas da seguinte maneira “solamente de estera
es fabricada la casa, y así presto do quieren es mudada”.
128
Acosta y Lara fala que o término da convivência
de paz entre os Charrua e os espanhóis ocorreu pelo
simples fato dos colonizadores não respeitarem a tradição
dos nativos em dar abrigo em seus toldos a quem
desejasse viver em seu meio. A deserção de um
marinheiro que se refugiou em campo dos Charrua
provocou
imediatamente
as
desavenças
que
determinaram o combate em San Gabriel e San Salvador e
como definitiva a guerra de sangue que durou até o fim da
colonização. Existindo nesta ocasião uma obsessão de
Zárate58 pela entrega do desertor, que havia se tornado
amigo dos Charrua de quem recebia proteção.
Em 1745, enquanto os franciscanos tentavam a
catequização dos Charrua, os jesuítas já obtinham as
milícias dos Guarani que viviam sobre o rio Uruguai, ao
norte de Yapeyú e povoaram ainda todo o interior do Rio
Grande do Sul. Com estes índios, formaram as Missões
Orientais e Ocidentais do Uruguai e as de Tape, uma
fortificação na guerra contra os Charrua e o muro que
conteve os portugueses até a segunda metade do Séc.
XVIII. Na realidade, foram unicamente as Missões
Orientais e Ocidentais que contiveram os portugueses até
a metade do Séc. XVIII. As de Tape foram destruídas
pelos bandeirantes paulistas em 1636 (ACOSTA y LARA,
1961, p.15).
58
Sobre as incidências ocorridas na expedição de Zárate com os Charrua, é possível
ampliar os detalhes na carta de Hernando de Montalvo (1576), tesoureiro da expedição.
129
3.2.2
Os Charrua na Guerra Guaranítica
Acosta y Lara (1961), pesquisando os diversos
momentos na história dos Charrua, menciona a sua
participação na Guerra Guaranítica. Em conseqüência ao
Tratado de Madrid (1750), os Guarani tiveram que
enfrentar as tropas da Espanha e Portugal. Foram
auxiliados por outros grupos indígenas, sendo eles os
Charrua, Minuano, Bohanes y Guenoas. A primeira notícia
formal da aproximação dos Guarani com os Charrua
corresponde a setembro de 1753 e está descrita no diário
do
padre
Bernardo
Nusdorffer,
S.I,
(1750-1756),
intitulado “La Guerra de los Siete Pueblos”. Nusdorffer
(apud ACOSTA y LARA, 1961, p.97) relata que vieram a
San Luis Gonzaga os caciques dos infiéis Guenoas,
Minuanos e Charrua, “entraron en el Pueblo y fueron
recibidos de los Indios Guaraníes, como se fuessen sus
antiguos amigos, siendo assí que aora pocos años
estubieran atrevido de meterse en aquellos pueblos sin
tener su venia bien assegurada”. Acosta y Lara,
consultando
as
fontes
etnohistóricas,
encontrou
interessantes resultados da aliança dos índios pampeanos
com os Guarani. Entre as fontes, estão incluídas as
manifestações de Joaquim de Viana, governador de
Montevideo (1755). Viana (apud ACOSTA y LARA,
1961, p.99) comenta que consta nas declarações dos índios
130
prisioneiros do Povo de Yapeyú que, em todo este campo,
especialmente “en las Costas de S.ta Tecla, S.n Antonio, y
Caydas Del río Grande, mantienen” los (guaraníes), “sus
Piquetes fuertes y unidos con los Charrua, Bojanes y
Minuanes, todos los quales son ynfieles”.
Outra importante informação sobre a participação
dos Charrrua na Guerra Guaranítica pertence à Bartolomé
de Villanueva, feitas no “Campamento de Jesus”, em julho
de 1754. Este, aliando-se com uma tropa espanhola nas
proximidades do Arroyo “Garapey”, encontrou-se com
duzentos índios, entre Tapes e Charrua, “quienes Le
recibieron con bastante desafecto y avanzaron a cavallada
retirandola violem.te haziendo vnos frente y otros
disparando flechas Piedras y manejando la Lanza”
(VILLANUEVA apud ACOSTA y LARA, 1961, p.101).
Os
charrua,
na
Guerra
Guaranítica,
constituíram
primordialmente um corpo de observação e guerrilha.
Divididos em grupos de quinze indivíduos pelos lugares
mais estratégicos da campanha, seu trabalho alternava
entre observar os movimentos das forças inimigas, “arrear
los ganados y quemar los campos por donde aquéllas
habían de pasar, trabando así su aprovisionamiento y
avance”. As tropas hispano-portuguesas só encontraram
povoados arrasados e os poucos animais deixados por seus
proprietários apareciam mortos a golpes de lança dentro
dos currais.
131
Acosta y Lara
explica
que se afastar dos
acampamentos era um sério perigo, pois não foram poucos
os distraídos que desapareceram para sempre devido à
rapidez dos índios Charrua em invadir os acampamentos e
dar seus golpes de surpresa. Gomes Freire (1853 apud
ACOSTA y LARA, 1961, p.101) ressaltou, em seu diário,
que “é costume n’esta vil canalha de Índios não darem
quartel a pessoa alguma”. Acosta y Lara afirma que não
encontrou referências sobre os papéis ocupados pelos
Charrua nos combates mais importantes da Guerra
Guaranítica, ou seja, o de Daymán (3 out. 1754) e o de
Caaibaté (10 fev. 1756). Sobre o primeiro combate, o
autor não resgatou nenhuma informação; quanto ao
segundo, as fontes indicam apenas a matança dos índios
na qual os Guarani perderam muitos de seus aliados
Guenoas.
3.2.3
Charrua e Minuano no avanço Português de 1801
A infiltração portuguesa, no final do Séc. XVIII e
início do XIX, foi conseqüência direta da desestruturação
das Missões Jesuíticas e proporcionou aos Charrua um
respaldo em sua luta contra os espanhóis. Os Charruas,
que eram perseguidos incessantemente pelos espanhóis,
encontraram respaldo, trabalho e proteção nas vacarias
clandestinas dos portugueses. A agilidade dos índios
Charrua atraiu os portugueses que os utilizaram como
132
tropeiros, domadores de reses bravas e vigias das patrulhas
espanholas. Em último caso, eram utilizados como
homens de armas. Algumas vacarias tiveram a dimensão
de verdadeiras expedições militares. Exemplo disto são as
vacarias de Rafael Pinto Bandeira, que nos anos de 177374 realizou várias incursões ao território Uruguaio, desde
a Serra de Tape, levando grandes quantidades de gado.
Sendo dispensado de suas funções pelo governador de
Buenos Aires, Pinto Bandeira logo se destacou no ataque
português a Rio Grande (1776), sendo ele quem colocou o
sítio e ocupou a fortaleza espanhola de Santa Tecla. Porém,
se há quem tenha todo um capítulo da história de nossas
fronteiras, este é José Borges do Canto, que era
conhecido
como
“bandeirante
rezagado”.
Canto
protagonizou um dos episódios mais curiosos da guerra
hispano-portuguesa de 1801. Acosta y Lara resgatou um
documento escrito na “Vila de S. Pedro do Rio Grande”,
que fala a seu respeito nesta guerra (30 de agosto de 1801):
A memorável notícia que da fronteira do Rio pardo
chegou a esta Villa, de serem tomados aos castelhanos
seis povos de Missões, explica-se da maneira seguinte:
Do regimento de dragões da mesma fronteira, havia
desertado um soldado por nome José Francisco do Canto,
natural e baptisado na freguezia do mesmo Rio Pardo,
onde existem seus pais (ACOSTA y LARA, 1961, p.
216).
Tendo conhecimento da presente guerra, tomou a
decisão de se apresentar ao tenente coronel do mesmo
regimento e comandante daquela fronteira, de cuja
deserção ficou perdoado. Canto pediu ao comandante
133
licença para sair na campanha fazendo as hostilidades que
fossem possíveis aos Castelhanos. O tenente permitiu,
além da sua licença, que levasse ainda em sua companhia
quarenta
soldados
auxiliares
que,
voluntariamente,
optaram por acompanhá-lo muito bem armados. Canto
iniciou sua batalha contra os espanhóis com a força de
quarenta homens e, aos vinte e seis anos de idade, anexou
as Missões Orientais à Coroa de Portugal. Ele contou
também com o auxílio de fortes contingentes Guarani, que
se incorporaram ao grupo justificando estarem cansados de
serem explorados e humilhados pelos espanhóis. Os índios
Charrua e Minuano como desde o início lutaram a favor dos
portugueses auxiliaram Canto na tomada das missões.
Acosta y Lara (1961, p.217) enfatiza que, durante o período
que mediou a guerra de Portugal (1801) e a invasão inglesa
(1806), os Charrua não deram trégua em seus ataques às
estâncias. O autor cita uma exposição do cabildo relativa
ao estado caótico que atravessava a campanha em agosto de
180359: “Los índios infieles charruas asaltan las estâncias
de los vecinos, con la mas inhumana barbaridad en las
manos sangrientas de estas fieras, talan los campos,
incendian las posesiones y llevan ganados, y quanto lês
proporciona el pillaje”. Em conseqüência a seus assaltos
às propriedades vizinhas, foram numerosas as tentativas
de repressão ao Charrua e seus aliados portugueses; entre
estas, destacam-se as realizadas por Francisco Xavier de
Vianna, Jorge Pacheco, Tomás de Rocamora e José
134
Artigas.
3.2.4 A guerra dos Charruas na Banda Oriental
(Período Pátrio)
Acosta y Lara (1969/1970), no seu segundo volume,
intitulado “La Guerra de los Charrúas em La Banda
Oriental” (período pátrio), realizou uma continuidade de
suas pesquisas publicadas em 1961. Com novas fontes
documentais, o autor visou ampliar suas investigações até
a primeira presidência do General Fructuoso Riveira
(1830-1834), na qual, como sabemos, foram exterminados
os últimos grupos de Charrua infiéis que restavam dentro
do território nacional Uruguaio.
De acordo com o autor, além dos Charrua e
Minuano, antigos habitantes da Banda Oriental, os
Guaycurú e os Abipón também participaram da revolução
de Artigas em 1811- 1820. Acosta y Lara comenta que os
Charrua,
neste
período,
ainda
conservavam
suas
características culturais primitivas e, desde o início,
atuaram como fiéis patriotas na revolução. Os índios
pampeanos eram nômades e caçadores, que com a
colonização aprenderam a utilizar o cavalo e a caçar o gado
chimarron. E, sem dúvida, aderiram à revolta artiguista
nos anos de 1812.
59
O professor Uruguaio Flavio A. Garcia publicou um trabalho sobre o estado geral da
Banda Oriental em 1803, baseado especialmente nos documentos que consultou no
Arquivo Histórico Nacional de Madrid. Sua leitura ilustra amplamente sobre o tema em
questão nesta pesquisa (ACOSTA y LARA, 1961, p.218).
135
Esta adesão dos Charrua e Minuano às idéias de
Artigas teve aspectos muito singulares, já que não obstante
estes índios concordam com certas formas de convivência
nas ordens patrióticas, mantendo dentro delas sua
condição de selvagens e independentes. Acosta y Lara
afirma que consultou os relatos do General Antonio Díaz
“Apunte varios sobre los charrúas” (1891), e que este
diário contém importantes informações sobre a temática.
Díaz relatou que, em 1812: “hicieron los charruas, una
especie de pacto y alianza con el Gral. Artigas a
q.n.tenian respeto ofreciendo pelear contra los realistas.
En consecuencia se Le incorporaron”. Diaz destaca que os
Charrua eram muito receosos e desconfiados devido ao
seu caráter independente e retraído, estes acompanhavam
o exército espanhol a distância “y de repente alzaban la
toldería y no vovian al campo en mucho tiempo. Sin
embargo nunca la abandonaron del todo” (DÍAZ, 1891,
apud ACOSTA y LARA, 1961, p.3).
Os Charrua durante 300 anos estiveram em
incessantes guerras com os espanhóis, sem um só dia de
paz nem trégua, até o ano de 1812, quando se uniram a
Artigas. Os indígenas fizeram com Artigas uma espécie de
pacto e aliança, mas conservaram sua independência, seus
costumes e hábitos ferozes. Díaz (1891) mencionou, em
sua pesquisa, o individualismo dos Charrua dentro das
ordens artiguistas e a persistência do uso de armas
136
primitivas com exclusão total da arma de fogo. Ele explica
que, enquanto os Guarani missioneiros usavam o fuzil e
pistolas e, inclusive, realizavam ensaios para a fabricação
de pólvora, os Charrua continuaram se valendo das suas
armas tradicionais. Suas armas “son la Lanza, la flecha, la
honda y las bolas. La primera y última son de caballería,
ambas temibles, pues la lanza tiene en su punta una espada
entera muy bien asegurada que compran a los Portugueses
a cuenta de caballos” (DÍAZ, 1891, apud ACOSTA y
LARA, 1961, p.6). As boleadeiras usam contra os jinetes,
jogando-as nas patas dos cavalos. Acosta y Lara descreve
o relato do capitão Francisco B. Laguardia (1812) como
uma maneira de comprovar a continuidade do uso das
armas primitivas pelos índios pampenos aliados a Artigas:
“Sobre los efectivos de Artigas en el Campamento de Salto
Chico, elevado a la junta Paraguay el de marzo de 1812,
en el que figuran cuatrocientos indios charrúas armados
con flechas y bolas”. Outro documento do período
artiguista que menciona as armas dos pampenos é a carta do
Padre Damaso Larrañaga (1813), já mencionado nesta
pesquisa. Ele descreve os Minuano como índios altos e
fortes, cor bronze, cabelo negro, grosso e largo, um
pouco cortado na frente, a barba escassa e somente no
lábio superior formando largos bigodes, olhos negros.
Seus dentes eram muito conservados e bem similares, a
boca e lábios tinham tamanho médio, nariz um pouco
grande, pés e mãos pequenos. “Suas armas são a flecha, la
137
honda e las bolas” (LARRAÑAGA, 1813, apud ACOSTA
y LARA, 1961, p.4).
Acosta y Lara (1961, p. 6) encontrou nas fontes
históricas referências da presença cacical em praticamente
todas as negociações dos Charrua. Na “guerra fria” (1812),
que se transformou no amplo roubo de cavalos e
apressamentos dos Chasques, a repressão das forças
invasoras portuguesas “contra los porteños fue del cargo
casi exclusivo de los charrúas [...] y una vez más la figura
singular de Casiquillo se perfila como elemento de elance
entre los indígenas y el jefe de los Orientales” [...]. Outra
importante informação sobre a liderança dos Caciques
Charrua é deixada pelo General Antonio Díaz (1891):
“El Cacique los forma a caballo en ala, y los proclama. E
expone las injurias o agravios de los enemigos y les
recuerda los triunfos y glorias y sus mayores hazañas y
hechos de armas” [...]. Díaz afirmou que os Caciques
incentivavam os Charrua a lutarem contra os inimigos
invasores.
138
Figura 14: Cacique Vaimaca Peru Imagem: Paul Rivet (1930).
139
3.2.5
Campanha do General Fructuoso Rivera
Muitas foram as pesquisas sobre os motivos para
o extermínio dos Charrua, ato realizado no governo do
General Fructuoso Rivera (1830). Acosta y Lara reuniu e
ordenou uma série de documentos e referências em que os
responsáveis pela emboscada de Salsipuedes tentam
justificar suas atitudes.
Com o país Uruguaio livre no período pátrio II
(1830-1834) e a atuação do General Rivera como
Presidente do Uruguai (24 de outubro de 1830), as
providências começam a serem tomadas contra os
Charrua, que continuam nos campos a saquear as
estâncias, recusando-se a abandonar sua vida nômade.
Devido à barbárie realizada pelos índios nas estâncias, foi
necessário o envio de um corpo de expedicionários que
restabelecesse a ordem e a legalidade, normalizando as
condições de vida no meio rural. Esta expedição causou
uma série de disputas com os Charruas, que continuaram
cada vez mais resistentes a abandonar seu modo de vida
primitivo. Acosta y Lara destaca que reduzir os indígenas,
dentro das ordens nacionais, seria árdua tarefa para
qualquer líder que assumisse a presidência do país. Os
compradores das terras exigiam que estas estivessem sem
a presença de índios. Acosta y Lara considera que a
repressão de 1831 se deve às imprudências dos indígenas
como citado acima, mas também às negociações políticas
140
da época. O autor ressalta que o mesmo é afirmado nos
escritos de Carlos Anaya e Antonio Diaz (filho). Estas
informações se encontram em uma carta de Rivera ao
Coronel Manuel Lavalleja (1831): Rivera (apud ACOSTA
y LARA, 1961, p.69) advertiu que “los caciques charrúas
apoyarían a una eventual revolución contra su Gobierno,
decidiéndose entonces a ponerlos bajo control o a
borrarlos del mapa”. O General Rivera organizou duas
etapas na campanha de 1831. A primeira consistiu em uma
manobra envolvente que ocupou grande número de couros
clandestinos, prendendo os que trabalhavam com eles, já
que muitos eram desertores do exército ou acusados de
outros delitos comuns. A ação de Rivera se completou com
um minucioso inventário dos depósitos de couros que havia
nas estâncias, povos e lugares de embarque, confiscando
toda existência cuja origem não fora devidamente
justificada. A segunda etapa da campanha contra os
Charrua só foi viável porque os atraíram a uma cilada, já
que não tinham como os deter e nem se animaram a
enfrentá-los em um combate honesto a campo aberto.
Coube ao General Laguna a tarefa de internar-se no deserto
e firmar contato com alguns dos principais caciques a
mando do General Rivera. A falsa proposta foi convidálos para apoiar o governo uruguaio na suposta próxima
Guerra contra o Brasil. A hierarquia do General Laguna e
sua amizade com o Cacique Charrua Juan Pedro
proporcionou bons resultados. Os Charrua, convencidos
141
da suposta guerra, migraram até as pontas de Queguay,
Potrero de Salsipuedes, onde o Presidente os esperava
para esclarecer os planos do evento. As negociações foram
realizadas com grande sigilo, nada era transparente ao
público, nem as negociações de Laguna, nem os
acontecimentos
dos
três
dias
que
os
Charrua
permaneceram acampados com as tropas, nem os detalhes
do combate em si. As notícias do massacre de Salsipuedes,
fornecidas a imprensa da capitania, limitaram-se a
justificar o ato do governo de Rivera (apud ACOSTA y
LARA, 1961, p.70): “el desenfreno criminal” de las
“hordas salvajes y degradadas, sus recientes y horribles
crimenes, no habían dejado al Gobierno más alternativa
que la de atacarlas y destruirlas”. Acosta y Lara enfatiza
que, em razão da ausência de maiores informações e
relatos dos participantes da batalha de Salsipuedes, contou
com os aportes históricos como a “Memória”, escrita
pelo coronel Manuel Berro Lavalleja (1948), publicada
anos após por Mariano Berro, e uma série de referências
obtidas pelo General Antonio Díaz, que residia em
Montevideo durante a campanha de Rivera. Em suas
informações, basearam-se Antonio Díaz (filho) e Eduardo
Acevedo Díaz, nas suas respectivas versões do episódio.
Porém, Acosta y Lara considera estas versões um pouco
tendenciosas devido à filiação política dos autores. O
certo é que nenhum outro fato contribuiu tanto para
confirmar o extermínio dos Charrua como o conteúdo das
142
cartas enviadas pelo próprio Rivera ao General Laguna,
convocando-o para estabelecer contato com os líderes
indígenas nas jornadas anteriores ao encontro.
Com o massacre de Salsipuedes, o General Rivera
deu por vitorioso os objetivos
da sua campanha,
permitindo que as tropas do exército uruguaio que
haviam participado do combate se reintegrassem aos seus
postos. Algumas unidades foram licenciadas e outra, a
mando do coronel Bernabé Rivera, saíram em busca do
restante dos Charrua que haviam escapado do massacre.
Em 27 de junho de 1832, o coronel Bernabé permitiu um
choque armado aos Charrua, na barra de Mataojo com o
Arepay, em que os Charrua, apesar da sua eficiência
guerreira, tiveram quinze mortos e oitenta e dois
prisioneiros, enquanto nas forças do governo uruguaio
não foi registrada nenhuma baixa. Os prisioneiros do
combate de Mataojos foram levados a Montevideo,
conforme os planos do general Rivera. Os indígenas foram
integrados à população da capital. Acosta y Lara
encontrou documentos relativos a pedidos de liberdade
dos Charrua; porém, não se sabe se estes foram repartidos
ao público como fizeram com os prisioneiros de
Salsipuedes. O que se sabe ao certo, em relação aos
últimos Charrua, é que cinco foram levados à França,
sendo eles: “Ramón Mataojo, Vaimaca Perú, Senaqué,
Laureano
Tacuabé
y Micaela, Guyunusa” (RIVET,
1930). É necessário esclarecer que o cidadão francês
143
Monsieur de Curel levou para exposição apenas quatro
indígenas; Micaela é a filha do casal Tacuabé e Guyunusa
que nasceu em Paris. Entretanto, não se sabe o que o que
aconteceu com ela e com o pai. Os outros três morreram em
menos de um ano de cativeiro e seus restos foram mantidos
no Museu de História Natural de Paris até 1998, quando
gestões
do
governo
uruguaio
conduziram
o
seu
repatriamento.
Figura 15: Índios Charrua, levados a París Monumento: Juan Manuel Blanes
(Montevideo)
Devido aos massacres de Salsipuedes e Mataojo, os
Charrua
foram
numericamente
exterminados,
não
sobrando, entre todos, cinqüenta homens. Acosta y Lara
(1961, p.82) destaca que, a margem de tantos tropeços, os
últimos Charrua permanecem unidos, “indeclinable en el
afán de salvaguardar su independencia y sistema de vida
seculares”.
144
Na
Revolução
Lavallejista
(1834),
quando
praticamente ocorrem os últimos encontros com os
Charrua, estes não somavam mais que trinta e sete índios.
A Revolução Lavallejista se dividiu em duas etapas. Uma
que vai desde a rebelião de Santana até o combate de
Tupambay e outra que iniciou com o desembarque de
Lavalleja no Arroio Higueritas e terminou com sua derrota
no potrero de Yarão. Na realidade, o movimento faccioso
não se interrompeu em nenhum momento e as ações
continuaram mesmo que Lavalleja estivesse afastado do
terreno de luta. Sobre a participação dos Charrua nesta
Revolução, as fontes históricas afirmam que estes
participaram apenas do combate no Arroio Yarão. Acosta
y Lara considera provável que, em 1832, Mariano Paredes
contou com o apoio dos Charrua e que, em 1833, Manuel
Lavalleja “estuvo diez meses con ellos”, obviamente por
assuntos relacionados a Revolução. A partir do combate de
Yarão, a presença dos Charrua em território uruguaio só é
destacada através de episódios menores e esporádicos.
Entre os quais, Acosta y Lara (1961, p.152), revisando o
Arquivo Geral da Nação de Montevideo, menciona o
roubo de cavalos ocorrido nos campos do inglês Juan
Mutter, no Rio Negro, em maio de 1838. Estas
informações constam na reclamação apresentada ao
governo da República por Thomas S. Hood, Cônsul
General de S.M.B. Após a Revolução Lavallejista, boa
parte dos Charrua que ainda sobreviviam se incorporaram
145
ao movimento republicano brasileiro e combateram na
Guerra dos Farrapos, outros se agruparam e obtiveram
triunfos parciais como o de San Servando, Cerro Chato e
Guardiã 15 de Maio e outros. Enfim, formavam grupos
isolados que se dedicavam com interesses próprios ao
roubo e a pilhagem de gado. Esta situação se prolongou até
a entrada da Presidência de Manuel Oribe, na qual os
revolucionários puderam regressar à Pátria graças a uma
generosa lei de anistia.
3.3 ETNOGRAFIAS DOS INDÍGENAS DA ANTIGA
PROVÍNCIA DO URUGUAI E ARGENTINA
Antonio Serrano (1936) desenvolveu uma etnografia
“De La Provincia Del Uruguay”. O objetivo do autor foi
conhecer as etnias indígenas que habitaram o país. Serrano
apresentou um quadro completo da etnologia e etnografia
da antiga Província do Uruguai, além de resolver certos
problemas relacionados à língua e a localização dos
Charrua. O antropólogo também pesquisou as etnias
Chaná, Guaynás, Caarós, Tupis de Azara, Kaigangue e
Tupi- Guarani. Em 1947, na continuidade de suas
pesquisas, o autor publicou “La Etnografia de los
Aborígenes Argentinos”, baseado nas fontes etnohistóricas
e etnográficas, em que se dedicou a estudar as diferentes
parcialidades indígenas e sua provável forma de
organização no momento da conquista espanhola.
146
Serrano considera que a história destes indígenas é o
resultado de lentas transformações culturais. Ele acredita
que o principal fator transformador da organização
primitiva foi a colonização que introduziu novas formas de
economia, estabeleceu colônias e cidades, impôs o
trabalho servil, deslocou grande parte da população e
provocou entre os aborígenes guerras e alianças. Nesta
pesquisa, optou-se por selecionar apenas alguns dos
grupos indígenas pesquisados por Antonio Serrano
(1936 /1947) em seu mapa étnico e geográfico. De uma
forma analítica e sucinta, comentaram-se as etnias que, de
acordo c o m Serrano, utilizaram as boleadeiras.
3.3.1
Charrua
Serrano (1936) afirma que os Charrua ocuparam
ambas as costas do rio Uruguai, desde Yapeyú até quase
todo o território uruguaio, com exceção de sua parte
oriental,
onde, sem dúvida, entravam durante suas
migrações. Em tempos históricos, os Charrua estenderam
seus domínios, chegando até a costa do Paraná, e ocuparam
também maior parte do estado do Rio Grande do Sul.
Serrano comenta que os Charrua mantiveram relações de
contato com outras etnias. Para o autor, as nações Chana e
Charrua falavam o mesmo idioma; porém, com muitas
formas dialetais. Essa unidade de dialetos foi contestada
por Félix Outes (1913), afirmando que este idioma “tiene
estrechas vinculaciones con el de los actuales kaingangs
147
(modernos guayanás)”. Serrano (1936, p.66) comenta
que, além do idioma, os Chana e os Charrua possuíam
outras
características
em
comum:
não
eram
“agricultores, el tipo de vivienda era el mismo y todos
tenían por costumbre amputarse una falange a la muerte
de cada pariente”. Porém, as etnias também apresentam
características que as diferenciam. Os Chana eram
canoeiros e pescadores, as mulheres usavam adornos
corporais e os
homens tembetás e adornos nasais.
Enterravam seus mortos “en cementerios ex-profesos”.
Enquanto os Charrua não usavam adornos “auriculares y
sus muertos (los huesos) eran llevados en continuo
peregrinaje en sus correrías” (SERRANO, 1936, p.67).
Culturalmente, os Charrua se assemelhavam muito aos
indígenas de “la Pampa y los Chaná a los antiguos
Guayanás”. Porém, em “La Pampa”, especialmente na
região dos Chechehet, os adornos labiais e auriculares são
abundantes e as referências históricas sobre o uso destes
adornos pelos Chechehet levaram Serrano (1936, p.68) a
pensar em possíveis afinidades entre os índios Pampas e
os Ge Meridionais.
De acordo com Serrano, o resultado destas
afinidades entre as culturas são os grupos étnicos PampaChaná e Charrua-Guayaná, cuja discussão deveria ser
encarada livre dos preconceitos que até hoje pesam na
etnologia antiga do Rio da Prata. Após revisar os
vocabulários indígenas meridionais, Serrano concluiu que
148
os idiomas dos Chaná e Guenoa estão vinculados entre si
e ambos se referem a um tronco lingüístico comum.
Serrano mencionou, ainda, que os trabalhos mais
relevantes que consultou sobre a língua dos Charrua foram
as obras de Wilhelm Schmidt (1926, apud SERRANO,
1936, p.260) e Paul Rivet (1924, apud SERRANO, 1936,
p.680), os quais consideraram o idioma dos Charrua como
língua isolada. “Los más probable dice el primero-es que
forme un idioma aislado pero no se puede asegurar nada”
(SERRANO, 1936, p.68). É necessário ressaltar que
Serrano (1936/1947) utiliza as informações do cronista
Félix de Azara (1923) como uma das suas principais
referências na construção da etnografia sobre os índios
Charrua. Azara (1923, apud SERRANO, 1936, p.76) relata
que os Charrua usavam tembetás: “Es este-dice, un
pequeño pedazo de madera de cuatro a cinco pulgadas de
largo y de dos líneas de diámetro”. Estes também tinham
o costume de amputar “uma falanje de los dedos a la
muerte de cada pariente y Souza dice que vió hombres que
solo tenían el pulgar”. As mulheres igualmente amputavam
seus dedos na perda de seus familiares (AZARA, 1923,
apud SERRANO, 1936, p.79). Percebe-se, nas descrições
feitas por Azara (1923), que ao construir a sua narrativa
sobre os índios pampeanos recorreu ao diário de Pero
Lope de Sousa (1530-1532), um dos primeiros cronistas a
falar sobre os índios Charrua e seus rituais funerários. A
tatuagem facial foi um dos distintivos desta nação, porém
149
similar ao que acontece em outras nações indígenas, mas
cada parcialidade tem suas características próprias. Por
exemplo, os Minuano tatuavam três linhas azuis que iam
desde a raiz dos cabelos até o extremo do nariz, enquanto
os Charrua tatuavam linhas transversais que iam de uma
face a outra em torno dos olhos. Serrano, novamente se
utilizando das informações dos cronistas, considera que os
índios que D’Orbigny viu em 1828, nas proximidades de
Montevideo, não foram os Charrua e sim os Minuano, pois
os Charrua desta região já haviam retornado ao norte do
Rio Negro, onde eram conhecidos como “antiguos
charrúas”. Entretanto, os intrusos Minuano de “Entre
Rios”, havendo ocupado estes territórios, foram chamados
de Charrua (D’ORBIGNY, 1839). D’Orbigny (1839)
relatou que os Charrua tinham uma estatura média de
1m68cm. Suas vestimentas consistiam no clássico manto
de peles de pequenos mamíferos, cujos couros sovavam
com graxa e logo pintavam com figuras geométricas.
D’Orbigny comenta ainda que esta vestimenta era comum
ente os índios Patagones. As mulheres andavam nuas,
apenas no inverno vestiam mantos, ou se cobriam com
pequenas telas, sem dúvida adquiridas com os Guaranis.
Os Charrua pintavam as mandíbulas de branco nas
ocasiões de guerra e também nas festas, das quais
participaram a convite dos Jesuítas. Serrano (1936, p.74)
também buscou em Schmidel (1534-1554) referências
sobre a cultura material dos Charrua: “Los Hombres
150
usaban un manto de píele, las mujeres además de este
manto de pieles usaban una pampanilla de algodón que les
cubría desde la cintura hasta las rodillas”. As armas dos
Charrua foram “el arco y la flecha con empleo de carcaj, las
boleadoras, la honda y la lanza” (SCHMIDEL,1986,
p.101). O padre Catáneo citou a “maza” que deve ser a
macana. As flechas eram de pontas de pedra que talhavam
com muita habilidade. As bolas eram de duas e de três
pedras; no geral, possuíam sulco (SERRANO, 1936,
p.101). As pesquisas arqueológicas da região ocupada
pelos Charrua apresentam grande quantidade de artefatos
de boleadeiras e pontas de flechas. Quando os Charrua
aderiram ao cavalo, a lança e as bolas foram armas
exclusivas dos jinetes, enquanto a honda e o arco eram
dos índios que não dominavam a montaria (SERRANO,
1936, p.102).Considera-se esta afirmação inconsistente,
devido aos inúmeros relatos do uso da bola de honda pelos
Charrua cavaleiros. Serrano (1936, p.20), referindo-se ao
diário do padre José Cardiel (1748), escrito durante sua
viagem ao Rio Sauce, afirma que a moradia dos Charrua
estava relacionada ao seu caráter nômade, viviam estes em
toldarias: “En cada toldo dormían como diez personas
entre niños y adultos y otros tantos perros, unos sobre otros
en tan pequeño atalaje”. Com a introdução do cavalo e do
gado, os materiais de construções dos toldos são
modificados no Séc. XVIII. Muitos índios Charrua
substituíam as esteiras de palha por couros de vacas que
151
estendiam sobre três ou quatro ramas em forma de “U”
invertido.
Sua
alimentação
consistia
em
carne
(especialmente de ñandu, ciervos y roedores) e frutos
silvestres. Após a conquista e a introdução do gado
chimarrón, que se reproduziu em seu território, os
Charrua preferiam a carne de potro invés de qualquer outro
animal. Não se sabe quais os tipos de narcóticos que
conheceram. Durante a colonização, sentiam-se atraídos
pelo tabaco e pela erva mate. Sua bebida nacional foi o
hidromel. Nenhum documento fala que os Charrua foram
ceramistas. Sem dúvida, nos antigos sítios oficinas do
Uruguai, aparece uma cerâmica primitiva de formas
simples, sem alças, misturada com resíduos de pedra e
armas. Serrano (1947) menciona que, além da fabricação
de suas armas e da preparação dos seus couros para vestir,
os Charrua não tiveram outra ocupação a não ser a guerra
e a pilhagem. Eram polígamos, os homens já casavam
maduros; as mulheres, ao contrário, constituíam família
ainda muito jovens. As tarefas domésticas eram
responsabilidades das mulheres, assim como o transporte
de toldos, o cuidado com os cavalos, a carneada e até a
preparação dos alimentos. Enquanto os homens só se
dedicavam à guerra e à caça; nas suas horas de ócio,
passavam grande parte do seu dia praticando o tiro de
bolas. Este animado jogo consistia em enredar a boleadeira
em uma pequena estaca cravada no solo. Quando fizeram
contato com o colonizador, aprenderam o jogo de cartas,
152
em que apostavam até suas vestimentas (SERRANO,
1947, p.130).
Serrano ressalta que, em 1833, foi levado a Paris um
grupo de Charrua para exibição comercial, afirmando que:
“Todos ellos murieron, haciéndose de algunos calcos
estatuarios que hoy se conservan en el museo de aquella
ciudad” (SERRANO, 1947, p.127). Este infeliz episódio,
cujos antecedentes foram reconstruídos por Paul Rivet
(1930), deixou na etnología rioplatense uma valiosa
documentação artística dos Charruas:
Figura 16: Grupos de Charrua levado a París em 1833 Imagem: Paul Rivet (1930)
3.3.2
Minuano
De acordo com Serrano (1947), os Minuano foram
confundidos, por diversas vezes, com os últimos Guenoas:
“los cuales los españoles comienzan a llamar también
minuanes”. No
Séc.
XVII,
153
os
Minuano,
sendo
perseguidos pelos jesuítas, migraram para o Uruguai e
começaram a ocupar a Banda Oriental do país e parte do
território Riograndense, ao Sul do Ibicuy. Em 1730, este
grupo fez aliança com os Charrua que “maloqueavam” as
estâncias da costa do Paraná, entre Bajada e Santa Lucía.
Suas armas eram as mesmas que usavam os Charrua “el
arco, la Lanza, la honda y las boleadoras de caballería”
(LARRAÑAGA, 1924, apud SERRANO, 1947, p.128).
3.3.3
Guénaken
Os índios Guénaken, ou Puelches, são etnias que
ocuparam a Patagônia septentrional expandindo-se entre
“los rios Negro y Chubut, desde el Limay hasta casi la zona
atlântica que ocupaban los chechehet”. Na província de
Buenos
Aires,
freqüentavam,
juntamente
com
os
Chechehet, a região das serras; por isso, receberam o nome
de Serranos. Suas armas foram arco e flecha, com o uso de
carcaj e boleadeiras. Posteriormente, adaptaram dos
araucanos o uso da lanza. É possível que as boleadeiras não
tenham sido armas antigas desta etnia, pois os Guénaken,
habitantes das serras bonaerenses, chamavam-nas de:
“piedras del diablo y creyeran que el surco que
presentaban lo hacía este con la uña de su dedo pulgar”
(SERRANO, 1947, p.184).
Os índios moradores das serras, companheiros de
viagem e missão do Padre José Cardiel (1748) ao Rio
154
Grande del Sauce, informaram-lhe que: “los toelches
(chechehet), llevan muchas de esas bolas a vender al
Volcán para bolear fieras...” (CARDIEL, 1930, apud
SERRANO, 1947, p.259). Eles se referem às inúmeras
pedras de boleadeiras com sulco, que são facilmente
encontradas nos paradeiros antigos do Sul de Buenos Aires.
3.3.4
Querandi
Serrano (1947) comenta que o nome Querandi
aparece nas primeiras crônicas do Rio da Prata. Diego
García (1528) o menciona em sua clássica carta e, desde
então, é citado sem interrupção nos documentos históricos
até 1678. Posteriormente, o nome Querandi só tem valor
histórico. As mais antigas informações sobre estes grupos
correspondem a Sebastián Gaboto (1527), informante da
investigação judicial feita a bordo do navio “Santa Maria
del Espinar” a sua chegada a Sevilla”; porém, as mais
completas
são
de
Ulrico
Schmidel
(1534-1554),
mercenário alemão já mencionado nesta pesquisa, que
viveu entre os indígenas e lutou contra eles. Serrano
descreve que os Querandi eram bem altos, os homens
andavam nus e muitas mulheres “llevaban un pequeño
delantalcillo de paño que les tapaba hasta las rodillas”.
Durante o invieno “se combrian con mantos feitos de
couro de nutria, similar os dos Charrua e Patagones”
(SERRANO, 1947, p.210). Suas armas eram arco, flechas
155
e boleadeiras. As boleadeiras dos Querandi eram de pedra
e “las manejaban al igual que los charrúas y pampas,
aunque también usaban la de una piedra.” (SERRANO,
1947, p.211).
3.3.5
Pampas
Serrano (1947) ressalta que os índios “Pampas”,
como eram denominados os índios argentinos, foram
descritos pelo Padre Joseph Sánchez, em 1772, que
explicou que estes não se tratavam propriamente de uma
única nação: “Son pues los pampas-dice-una junta de
parcialidades de los indios que se reconocen en las
tierras australes” (SERRANO, 1947, p.200). Sem dúvida,
através da literatura do final do Séc. XVIII e início do
XIX,
especialmente, observa-se que a designação
“Pampa” se reservava aos Guénaken, moradores iniciais
dos pampas, que haviam desaparecido, ou já estavam
completamente absorvidos, e não a todos os indígenas
estabelecidos nas alturas. Serrano adverte que o nome
Pampa: “no sirve, pues, para designara a los primitivos
habitantes de la llanura bonaerense y circunvecinas,
porque este nombre no involucra un sentido étnico sino
geográfico” (SERRANO, 1947, p.201). O Padre Diego
Rosales (1666), que ingressou com a “compañia de Jesus”
ao Chile, relata que as armas dos índios Pampas foram:
“la boleadora, el arco y la flecha. Algunos misioneros
156
han citado el uso de la honda para los del sur de
Córdoba (taluhet)”. As boleadeiras dos índios “Pampas”
eram de duas bolas com sulco, atadas com um tento de
couro de vaca. Uma delas era menor e servia de
“maniclã”. Pedro Lozano (1755) lembra que a boleadeira
era revestida em couro. As pontas de flechas eram feitas de
perdenal, mas era comum encontrá-las de madeira.
Posteriormente, agregaram a lança e o coleto defensivo
como armas de guerra (SERRANO, 1947, p.204).
Figura 17: Índios Pampas Imagem: Juan Perón (1935)
157
3.3.6
Patagones ou Chónecas
As mais antigas fontes sobre os índios Patagones
consistem no breve relato de Antonio Pigaffeta (1520),
escrivão italiano da viagem de Fernão de Magalhães.
Pigaffeta comentou que seu capitão, depois de descrever
os “gigantes” que os expedicionários encontraram no
Porto de San Julián, chamou-os de “Patagones”
(SERRANO,
1947,
p.214).
Estes
também
eram
conhecidos por “Chonecas” como eram denominados os
indígenas que povoaram o extremo meridional do
território. Sua área de dispersão compreendia toda a
Patagônia ao Sul dos Guénaken até o estreito, cujo litoral
dividiam com as zonas de seus irmãos de raça e idioma
e, até certo ponto, de cultura. As armas deste grupo
consistiam em arco e flecha. “Las flechas de caña
pequeñas que por un extremo tenían plumas como las
nuestras y por el otro, en lugar de hierro una punta de
pedernal blanco y negro” (SERRANO, 1947, p.215).
Pigaffeta relata
que:
“La
boleadora
generalmente
empleada como arma de caza, se considera entre os
Chónecas una adaptación reciente, debida a su contacto
con las tribus de la Patagonia Septentrional”. O cronista
compreende que provavelmente a boleadeira já era
utilizada há muito tempo pelos parentes de raça e cultura
dos Chónecas.
158
3.4 AS BOLEADEIRAS DOS ÍNDIOS PAMPEANOS NO
OLHAR DOS CRONISTAS
Os etnohistoriadores sempre buscaram nos diários
dos cronistas informações para construir as suas próprias
narrativas sobre as etnias indígenas. O objetivo deste
trabalho é refazer o caminho das fontes dos cronistas e
identificar a presença das boleadeiras nas suas narrativas.
Visando
perceber
também
como
eles
trocam
as
informações entre si, ou seja, de que maneira um se
apropria da informação do outro e manipula estas fontes a
favor do seu discurso. As primeiras notícias sobre as
boleadeiras se deve aos viajantes europeus e aos
conquistadores da região do Prata. Estes alertavam a
temível eficácia da arma nas mãos dos indígenas. Na
conhecida carta de Luiz de Ramirez (1528), encontra-se
uma descrição detalhada da destreza com a qual os
indígenas manejavam as bolas de boleadeiras: “Combaten
los indígenas, con arcos y flechas y con unas pelotas de
piedra redondas tan grande como el puño, con una cuerda
atada las cuales atiran tan certero que no herran a cosa
que tiran”. Durante a expedição de Don Pedro de
Mendonza, os relatos elaborados por Ulrich Schmidel
(1534-1554) apresentam os índios Querandi pela primeira
vez. Nesta ocasião, o autor narra um combate entre os
159
Querandi e os espanhóis. Schmidel (1986, p.31) relata que
Don Pedro de Mendonza, o líder da expedição, mandou
seu irmão Don Diego de Mendoza com trezentos soldados
e trinta cavalos bem equipados invadir o território dos
Querandi, matá-los e ocupar seu povoado. Entretanto,
quando chegaram ao local, havia quatro mil homens, pois
tinham pedido auxílio aos amigos. Ao serem atacados, os
Querandi resistiram aos espanhóis com tanta força que
chegaram a matar vinte soldados, seis fidalgos e a Don
Diego de Mendonza. Ulrich Schmidel que participou
desta batalha afirma que os venceram, mas não puderam
capturar nenhum Querandi, pois os índios já haviam
retirado suas mulheres e filhos do local. Schmidel descreve
também as armas que os Querandi utilizaram no combate:
Esses Querandis usam como armas uns arcos e dardos, que são
uma espécie de lança média com um perdenal aguçado na
ponta. Usan também bolas de pedras atadas a uma larga
corda. Lançando estas bolas nas patas dos cavalos e cervos,
os fazem cair. Foi dessa maneira que mataram nosso capitão e
os fidalgos. Os soldados mataram com os dardos
(SCHMIDEL, 1986, p.32). [Grifo nosso].
O mercenário alemão deixa explícito que as armas
que utilizaram nessa batalha foram as boleadeiras, pois as
mesmas amarraram-se as patas dos animais. Como se
sabe, a bola de “honda”, por possuir uma única pedra, não
realiza o mesmo efeito (SCHMIDEL, 1986, p.33). Nos
relatos anteriores, é quase impossível distinguir a qual
arma se referem ao falar das “pelotas de piedras”, pois em
alguns momentos os cronistas se contradizem chamando
160
as boleadeiras de funda, ou bola perdida. Esta confusão na
terminologia tem suas origens nos nomes que os próprios
cronistas usaram para descrever estes objetos. Eles
procuravam os termos equivalentes a seu contexto
cultural.
Outro
motivo
que
contribui
para
estas
contradições está na tradução dos textos em alemão,
espanhol ou holandês para o português. No primeiro
documento iconográfico das boleadeiras, registrado por
Hendrick Ottsen, em sua viagem ao Rio da Prata (15981601), o comerciante holandês ilustra dois índios
Querandi: um deles vestindo capa de couro, vestimenta
usada no inverno; o outro, sem roupa, segurando a
“honda”60 O autor usa esta nomenclatura de forma
metafórica para se referir às fundas, armas conhecidas no
seu contexto e usadas há mais de 2000 anos no Oriente
Médio.
Figura 18: Querandis com a “honda” Iconografia: Hendrick Ottsen 1598-1601)
60
Expressão de origem holandesa usada por Ottsen é “Slingher”.
161
Lothrop (1932), baseado nos relatos de Lozano
(1874), ressalta que os Querandi utilizaram como armas:
arcos, flechas, dardos, “fundas e bolas”. O autor enfatiza
que os indígenas eram peritos no manejo dessa última,
com o que provocaram grandes perdas na cavalaria
espanhola (LOZANO, 1874 apud LOTHROP, 1932,
p.99). As bolas a que Lothrop se refere são as boleadeiras,
pois somente uma arma com duas ou três pedras poderia
amarrar- se as patas dos cavalos.
Devido às inúmeras contradições apresentadas nos
relatos sobre as bolas
de boleadeiras, decidiu-se
especificar, neste trabalho, o que se considera boleadeira,
bola perdida e honda. Considera-se como boleadeiras os
artefatos com duas e três bolas, sendo indispensável
destacar que a arma com a terceira pedra só começa a
aparecer nas crônicas a partir da segunda metade do Séc.
XVIII. O instrumento com apenas uma pedra
foi
classificado, na tipologia de González descrita acima,
como “bola perdida”, podendo ser lisa, aguçada em seu
extremo ou eriçada com protuberâncias, sendo também
denominada como rompe-cabeças ou massas. Estas bolas
quando apresentavam protuberâncias possuíam um grande
poder traumático, podiam ser arremessadas para atingir o
alvo à distância e, se este estivesse próximo, davam o
golpe sem soltar o instrumento que estava revestido no
extremo por manejos de plumas. O que as diferencia das
162
boleadeiras de duas e três pedras é seu impacto, pois as
boleadeiras imobilizam o adversário enquanto a bola
perdida pode derrubá-lo pelo golpe, mas não se amarra no
alvo. O instrumento com apenas uma bola esférica, ou
lenticular, é conhecido como “bola de funda ou la honda”.
Seu uso é universal e, ao contrário do que alguns
pesquisadores sugerem, a honda não é um artefato
ancestral da boleadeira. Estas três armas de arremesso que
se menciona, ou seja, boleadeira, honda, bola perdida, são
diferentes instrumentos que estiveram em atividade nos
pampas em um mesmo período, mas com diferentes
funções. Conhecendo as três armas, foi possível se
perceber que Martiniano Leguizamón (1919), baseado
nos relatos dos cronistas, inclui todos os tipos de bolas
de arremesso em um mesmo grupo como se todas fossem
boleadeiras. Além do mais, ele critica a atitude dos
arqueólogos em classificarem os artefatos como diferentes
armas, enfatizando:
[...] un punto oscuro acerca de las boleadoras és cierta
confunsion entre los autores es la generalizada manera de
considerar como tipos distintos de dicha pieza arqueológica,
a lo que se ha dado em denominar piedra de honda, bola
perdida y bola arrojadiza o mejor dito boleadoras
(LEGUIZAMÓN, 1919, p.18).
Lehmann-Nitsche
(1918)
já
havia
cometido
contradições similares em seu trabalho ao apresentar
características
da
boleadeira
com
duas
pedras,
denominando-as como pedra de honda e bola perdida. É
possível notar seu equívoco na descrição que faz sobre a
163
função das armas: “la bola perdida puede considerarse
como boleadora, cuya característica, consiste em volverse
sus correas alredor del objeto alcanzado, mientras que el
efecto de la bola perdida es el mismo que de la piedra de
honda” (LEHMANN-NITSCHE, 1918, p.114). Nessa
afirmação, Nitsche comete um erro, pois a bola
“arrojadiza”, como o próprio nome já diz, prende suas
correias ao alvo, enquanto a bola perdida composta de
apenas uma pedra não imobiliza o animal ou o inimigo.
Pero Lope de Sousa (1530/1532), referindo-se aos índios
Charrua, no início da conquista da Região do Prata,
diferencia claramente bola perdida e boleadeira:
não trazem otra cosa consigo senan pelles e redes para caçar:
trazem por armas hum pilouro de pedra do tamanho d'hum
falcão, e delle sae hum cordel de hûa braça e mea de
comprido, e no cabo hûa borla de penas d'ema grande; e
tiram com elle como com funda: e trazem hûas azagaias
feitas de páo, e hûa porra de páo do tamanho de hum côvado
(LOPE DE SOUSA, 1839, p.54).
A arma que Pero Lope de Sousa descreve é a bola
perdida e não a boleadeira. A diferença funcional das
armas também pode ser identificada no diário do
comissário espanhol Juan Francisco de Aguirre enviado
pelo seu país para demarcar as fronteiras entre Espanha e
Portugal, no Rio da Prata (1793-1796). Ele comenta o uso
da bola perdida da seguinte maneira: “la bola perdida los
indígenas la atan un pedazo largo como vara más el otro
extremo que es por donde la toman para manejar ponen
plumas de avestruz”. Na continuidade do seu relato,
Aguirre menciona que existem outras armas similares à
164
bola perdida, descrevendo o modo como os indígenas as
utilizavam: “la volean sobre la cabeza como la honda y la
despiden con bastante distancia”. […] bolas de piedra o
madera, puestas en lazo largo como los otros, solo sirven
para enredar los animales.” (1950, p.251). As bolas que
Aguirre
mencionou
por
último
se
tratam
das
boleadeiras. Este relato reforça o uso da boleadeira, da
bola perdida e da honda em um mesmo período e contexto
geográfico.
3.4.1
A Utilização da boleadeira como massa
Alguns cronistas e viajantes do Rio da Prata, além
de descreverem o cotidiano dos indígenas e comentarem
a respeito das suas vestimentas, hábitos e alimentação,
observaram também o poder bélico destes homens. No
primeiro momento, as armas dos índios pampeanos não
causavam temor algum aos conquistadores. Estes,
possuindo a espada e as armas de fogo, percebiam as
boleadeiras indígenas com certo desprezo, ressaltando
que estes têm como armas apenas umas bolas de pedra e
umas flechas. Mais tarde, ao conhecerem a eficiência das
boleadeiras nas mãos indígenas, os cronistas passam a
mencioná-las com muito respeito e admiração. Como
ressaltou Barco Centenera (1836), narrando a caça dos
índios Beguá, em seu Poema La Argentina: “Con unas
165
bolas que usan los alcanzan (avestruces y venados) Si ven
que están a lo lejos apartados; y tienen en la mano tal
destreza que aciertan con la bola en la cabeza” (1836, p.55
canto X). O Padre Jesuíta Pedro Lozano (1873) também
descreve a corrida de avestruzes com a boleadeira,
elogiando a agilidade dos índios pampeanos. Ele afirma
que: “[...] para cuya caza usaban las bolas de piedra, no
solo para enredarlos y detenerlos, arrojándoselas atadas
en una cuerda a los pies sino para herirlos en la cabeza, en
que eran tan certero y competente que no erran el tiro en la
distancia” (1873, p.43). Don Félix de Azara (1923),
espanhol naturalista, etnólogo e cartógrafo, enviado da
coroa para demarcar as terras determinadas no tratado de
Santo Ildefonso, firmado em 1777, elaborou uma clara
descrição sobre as armas dos índios Charrua. Ele destaca
as boleadeiras como as armas mais importantes. Para
Azara, existem as bolas com três e dois ramais e outra
classe com apenas uma pedra, a qual denomina bola
perdida: “[...] usan la bola como la honda y cuando la
sueltan da un golpe terrible a cincuenta pasos o mas a lejos,
porque la lanzan cuando su caballo corre. Si el objeto está
cerca, dan el golpe sin soltar la bola” (1923, p.27).
É necessário destacar que não somente a bola de
honda e a bola perdida foram utilizadas como massa, mas
também a boleadeira de duas e três pedras, principalmente
nas lutas corpo a corpo. O exemplo do uso da boleadeira
como massa é evidenciado no relato do Padre Quesa, em
166
uma carta de 1641, na qual narra os duelos dos índios
pampas do Rio Cuarto (SERRANO, 1936, p.206-207;
GONZÁLEZ, 1953, p.154). Quesa destaca a crueldade
dos indígenas que andavam em contínuos desafios
demonstrando um modo bárbaro: “Salen dos armados de
piedras, con unas bolas redondas en medio y agudas en las
dos extremidades, y están en competencia cuál de los dos
ha de empezar o primer golpe, cediéndose el uno al otro”.
Sendo regra do jogo que o mais covarde e frouxo havia
de realizar o golpe. O outro demonstra sua valentia
esperando o golpe com a cabeça baixa sem retirá-la. Muitas
vezes, no primeiro golpe, o individuo é morto. Uma das
regras para os sobreviventes é que as feridas causadas pela
boleadeira não devem ser curadas, havendo também
grande festa para o vencedor. Acredita-se que esse relato
apresenta uma evidente contradição e exagero, pois
conhecendo a força do golpe da boleadeira o indígena
jamais se submeteria a esse tipo de aposta, colocando sua
vida em risco.
A utilização da boleadeira como massa é também
descrita no contexto da caça por George Musters (1911),
marinheiro inglês que viveu entre os índios patagônios e
não somente aprendeu a manejar as boleadeiras como a
fabricá-las. Ele ressalta em seu livro intitulado “Vida
entre los Patagones” a função da boleadeira como massa
na caça de um zorro (1911, p.27) e também de um puma
(1911, p.55). Porém, na imagem que Musters edita o
167
indígena que está caçando o puma já o boleou com a
boleadeira que se visualiza sobre o dorso do animal, mas
a arma que aponta para o golpe é a bola perdida, ou talvez
a boleadeira com duas pedras com uma maniclã muito
pequena, que se torna impossível de ser visualizada:
Figura 19: Uso da boleadeira como massa Ilustração: George Musters (1911).
A aplicação do golpe com a boleadeira também é
mencionada no trabalho de López Osorino (1941), que
narrou o caso de um paisano de temível fama nos pagos dos
Chascomús, que: “había reemplazado las sogas de sus
boleadoras por cadenas de hierro, precisamente, para
evitar que en la pelea alguien pudiera cortarles con
facón” (LÓPEZ, 1941, p.117). González, baseando-se em
Falkner (1911), compreende que as boleadeiras foram
utilizadas como armas de guerras, mas nas lutas corpo a
corpo, ou nos castigos que os indígenas aplicavam aos
inimigos, como afirmou Falkner: “[...] es la pena de
muerte. Sin embargo cuando la ofensa es leve, y el
168
ofensor pobre, el ofendido suele azotarlo en el lomo y
las costillas con la boleadora” (FALKNER, 1911, p.108
apud
GONZÁLEZ,
1953,
p.154). Alguns crânios
araucanos, disponibilizados pelo Museu de La Plata para
as análises de González, apresentam feridas frontais
cicatrizadas. Segundo González, estas classes de lesões,
freqüentemente encontradas em crânios da patagônia,
devem-se a golpes com a boleadeira, ou a bola perdida
(1953, p.155).
O uso da boleadeira como massa também é narrado
no poema de José Hernández, no qual ele descreve a luta
do seu personagem “El Gaúcho Martin Fierro” com um
índio armado de boleadeiras, expressando o valor do
gaúcho e a habilidade do índio com as boleadeiras:
[...] Desató las boleadoras y aguantó con vigilancia. Peligro
era atropellar y era peligroso el huir: y más peligroso seguir.
Esperando de este modo. Pues otro pedían venir y caniarme
allí entre todos. Las bolas la manejaba aquel bruto con destreza
las recogía con presteza y me volvía a largar. Haciéndomelas
silbar arriba de la cabeza. [...] La bola en manos del indio Es
terrible e muy ligera hace de ella lo que quiere saltando como
una cabra. Mudos, sin decir palabra. Peliábamos como fieras.
Al fin Le corte una soga y lo empecé a aventajar
(HERNÁNDEZ, 1948, Canto X).
Como Hernández comenta em seu poema, muitas
vezes durante as disputas os adversários cortavam as
cordas das boleadeiras indígenas, o que levou alguns a
revestirem suas correias com ferro.
169
3.4.2
As boleadeiras com duas e três pedras
A hipótese que o instrumento de boleadeira com três
bolas pertence às invenções do gaúcho é generalizada
entre os autores que se dedicaram a esta temática.
Martiniano Leguizamón (1919, p.11) afirma que: “O
primeiro instrumento de boleadeira era composto de duas
pedras esféricas. Com a colonização o artefato recebe
do gaúcho a terceira pedra chamada de maniclã, pedra
menor a qual proporciona o equilíbrio a arma”.
Entretanto, González (1953, p.149) menciona que é muito
difícil afirmar se a boleadeira com três pedras foi
realmente uma invenção do gaúcho, ou se trata de um
elemento adotado da região andina, onde existem
prováveis evidências arqueológicas de que este tipo de
boleadeira foi utilizado em época pré-colonial. Felix Outes
(1905), que realizou uma cuidadosa investigação das
fontes históricas sobre as boleadeiras na Patagônia,
confirma que, antes de 1753, não se encontra nenhuma
informação sobre a boleadeira de três pedras, apenas com
uma e duas bolas esféricas. Ou seja, os instrumentos a que
o autor se refere são a bola de honda e a boleadeira,
também
conhecida
como
“avestruzeira”
ou
bola
“arrojadiza”. Apenas em 1769, Antoine Joseph Pernetty
faz referência às boleadeiras com duas pedras e às “três
marias”, nomeação dada pelo gaúcho às boleadeiras com
três pedras. Felix Outes (1905, p.389), baseado nas
170
informações do Padre Florian Paucke (1767), acredita
que, na província de Buenos Aires, provavelmente a
boleadeira com três pedras também foi utilizada no Séc.
XVIII, assim como na província de Santa Fé, pelos índios
Mocobies. No início do Séc. XIX, Outes já encontrara
informações concretas do uso das boleadeiras com três
ramais em Phillip Parke King (1826), comandante
britânico que partiu como a Beagle para explorar e
demarcar as costas sul- americanas entre o Rio da Prata e a
ilha do Chiloé, no Chile. Depois, Robert Fitz Roy (1833),
que comandava a Beagle na segunda expedição, dedicouse a transcrever o diário da
primeira viagem do
comandante Parke King (1826) para completar as
informações do seu relato expedicionário, publicada em
1839. Da mesma expedição, participou o naturalista
Charles Darwin.
Entretanto, Denebetti e Casa Nova (1917) afirmam
que a boleadeira com três pedras já era conhecida em
períodos pré-coloniais. Estes arqueólogos, durante as
escavações realizadas no noroeste argentino, em uma
Tumba em Tinticonte, encontraram três pedras de
boleadeiras do mesmo formato e destacam que estas
pertenciam
a
um
mesmo
instrumento.
Porém,
compreende-se que nada se pode constatar devido à
decomposição do ramal em couro que unia as bolas.
Antonio Larrañaga (1923) afirma que os Minuano,
também denominados como Güenoa, que aparecem nas
171
crônicas somente a partir do Séc. XVII, muito se
assemelham aos Charrua. O autor destaca ainda que estes
também haviam se transformado numa tribo eqüestre de
cavaleiros inimitáveis e suas boleadeiras consistiam
num: “conjunto de três bolas de aproximadamente meia
libra cada uma, havendo também boleadeiras menores
para caças de emas” (LARRAÑAGA, 1923, p.174-175).
Porém, não se pode afirmar que a boleadeira de três pedras
foi uma invenção dos índios Minuano, pois sobre este
grupo existem raras fontes que apresentam inúmeras
contradições.
No entanto, as informações que se encontrou sobre
as boleadeiras dos índios Charrua nos Séc. XVII e XVIII
destacam que o instrumento continua sendo composto por
duas pedras: “eran apenas duas bolas amarradas una
correia de cerca de quatro metros. As bolas eran de pedra,
não embrulhadas en couro, mas con cercadura para se
amarrar o cabo” (IHERING, 1895, p.211; BECKER,
1982, p.136). Estas eram usadas para a guerra e para a
caça como arma de arremesso. Também utilizavam “uma
espécie de funda que lhes parece peculiar, a funda é una
arma de tiro largo con la cual se arrojaban guijarros
puntiagudos” (SERRANO, 1936, p.101).
O etnohistoriador uruguaio Eduardo Acevedo Díaz
(1891), ao falar das armas dos índios Charrua, no Séc.
XIX, não comenta o número de pedras das boleadeiras,
mas afirma que: “Sus armas continúan sendo o arco e
172
flecha, que carregan numa aljava de couro, boleadoras,
pedra de funda, lança, porrete e faca flamenga”. O mesmo
autor comenta ainda a participação dos Charrua como
aliados às tropas portuguesas nas guerras por territórios.
Afirmando que os índios Charrua mesmo estando unidos
aos conquistadores e tendo acesso a armas de fogo não as
utilizaram, pois em nenhum momento abandonaram suas
armas tradicionais: “Estes índios lutaram sim a favor dos
portugueses, mas com suas flechas e bolas de boleadeira as
quais foram eficientes armas, pois os indígenas eram
excelentes manejadores dos instrumentos de arremesso”
(DÍAZ, 1891 apud SERRANO, 1936, p. 102).
Klaus Hilbert (1991), baseado nas fontes deixadas
pelos cronistas, afirma que, com o avanço da colonização
européia, ocorreram muitas mudanças no modo de vida
dos índios Charrua. Porém, alguns dos seus hábitos
continuaram inalteráveis até a sua extinção;
como
exemplo, comenta a substituição da sua alimentação antes
baseada na pesca, na caça e na coleta de frutos pela carne
do gado chimarron. A inserção do cavalo contribuiu com
este processo. Como conseqüência há também uma
modificação no armamento: “A los arcos y flechas se le
suman largas lanzas con puntas de hierro, al mismo
tiempo se le agregan las boleadoras con 3 bolas,
adecuándose éstas mejor para la caza de ganado cimarrón”
(HILBERT, 1991, p.6).
173
Arno Kern (1994) compreende que a história dos
índios Charrua e Minuano parece ter sido caracterizada
pelas constantes reações aos invasores de seus territórios,
inicialmente os Guarani, depois os europeus. Porém,
apesar de terem resistido incessantemente às invasões, seu
espaço ficou cada vez mais limitado e seu modo de vida
primitivo ameaçado: “Finalmente, em 1835, os últimos
nômades que ainda não haviam sido integrados na
sociedade local, foram definitivamente eliminados e uma
considerável parcela dessa cultura [...] sobreviveu, através
da mestiçagem” (1994, p.103). Kern afirma que estes
indígenas atualmente são reconhecidos nas fisionomias
indiáticas de muitos gaúchos dos pampas do Uruguai e do
Rio Grande do Sul. Para o autor, os pampeanos deram à
sociedade colonial duas contribuições importantes. Em
primeiro lugar, “um colorido na tez e um olhar especial,
pois colaboraram de maneira inquestionável para a
formação étnica dos primeiros habitantes das estâncias de
gado, peões ou filhos dos proprietários”. Em segundo,
contribuíram com os hábitos e elementos culturais: as
reuniões em torno do fogo de chão, o chimarrão, o
churrasco, a chinoca, as boleadeiras na cintura, o
nomadismo típico
desse tipo arredio.
Quanto às
boleadeiras, “o gaúcho até recentemente as utilizava em
nossos campos para derrubar o gado” (1994, p.63).
174
4 ETNOARQUEOLOGIA
DOS
CHARRUA
DO
PRESENTE: A BOLEADEIRA COMO ÍNDICE DA
IDENTIDADE
4.1
A ETNOARQUEOLOGIA
A
Etnoarqueologia
é
uma
subdisciplina
da
Antropologia. Inicialmente desenvolvida como estudo da
cultura material etnográfica a partir de perspectivas
arqueológicas, expandiu seu alcance e relevância ao
longo do último meio século. Esta pesquisa visa
comentar e compreender as bases conceituais dessa
subdisciplina e perceber a tendência da sua utilização nas
atuais pesquisas arqueológicas. Como afirmou Gustavo
Politis (2002), em seu artigo intitulado “Acerca da
Etnoarqueologia
Em
America
del
Sul”:
“A
etnoarqueologia também é utilizada para abordar outras
formas de pensamentos e de padrões de racionalidade,
ainda difíceis de identificar no registro arqueológico, “essa
subdisciplina é a chave para entender aspectos essenciais
das sociedades do passado”. Os autores que desenvolvem
a Etnoarqueologia são reconhecidos profissionais e suas
abordagens teóricas englobam tanto o processualismo da
Nova Arqueologia, como o pós-processualismo dos anos
80 e 90 (DAVID, 2002, p.13). O potencial da
Etnoarqueologia é discutido não apenas para vincular a
175
conduta humana com os vestígios materiais, mas também
para entender o contexto no qual foram criados os registros
arqueológicos. Porém, a Etnoarqueologia é percebida com
certa desconfiança por alguns arqueólogos devido às
dificuldades de explorar as informações atuais em direção
às sociedades do passado. De acordo com Gustavo
Politis (2002, p.62), esta questão gerou um prolongado
debate por mais de duas décadas entre aqueles que estão
contra o uso da argumentação analógica na interpretação
do registro arqueológico (WOBST, 1978; GOULD, 1978)
e os que consideravam um elemento central o processo de
inferência arqueológica (BINFORD, 1967; WATSON,
1979). Atualmente, muitos arqueólogos reconhecem a
utilidade da argumentação analógica no processo de
interpretação e explicação do registro arqueológico e a
consideram como indispensável. No entanto, não são
todos os pesquisadores que estão convencidos da utilidade
da analogia etnográfica e dos mecanismos usualmente
empregados para sua aplicação (GOSDEN, 1999, p.9).
Politis (2002, p.62) destaca que outro ponto que tem
gerado certa desconfiança nos pesquisadores é o fato de
algumas sociedades indígenas atuais que formam as fontes
de analogia estarem em contato com a cultura ocidental
e, de uma maneira ou de outra, integradas ao processo
de globalização. Devido a esta situação, em que a maioria
dos casos é real, que muitos pesquisadores consideram
que as sociedades atuais não podem servir como
176
referencial análogo das sociedades do passado. Politis
ressalta que esta crítica é, sem dúvida, injustificada, pois
a investigação etnoarqueológica opera nos princípios da
argumentação analógica e, portanto, os elementos da
analogia (a fonte e o sujeito) não devem ser iguais. Neste
caso, não seria necessário uma investigação analógica e
sim devem ter certas condições de comparabilidade. Para
Politis (2002, p.63), a força da analogia gerada a partir da
Etnoarqueología não reside no grau de semelhança entre a
fonte “(en este caso, la sociedad presente) y el sujeto (la
sociedad
pasada
percibida
a
través
del
registro
arqueológico) sino en la estructura lógica de la
argumentación y en la similitud entre los términos de la
relación”. É óbvio que, quanto maior for a semelhança
entre a fonte e o sujeito, a argumentação analógica tem um
maior potencial; porém, este grau de semelhança por si só
não garante a consistência da argumentação na veracidade
e nos enunciados. Do ponto de vista étnico, a
Etnoarqueologia
tem
sido
questionada
tanto
por
antropólogos como por arqueólogos. Em 1991, um
professor de antropologia da Universidade de Bogotá
expressou, em uma reunião de departamento, seu descaso
com a etnoarqueologia, pois disse que não sabia muito
sobre esta subdisciplina; porém, não lhe parecia bom “ir a
molestar a los indios vivos para entender los que le pasaba
a los índios muertos” (POLITIS, 2002, p.64).
177
Gustavo Politis explica que estes posicionamentos
extremos são incorretos, pois a arqueologia assim como a
etnografia,
ou
qualquer
outra
área
das
ciências
antropológicas, tem como um dos seus principais
objetivos estudar a variabilidade das sociedades humanas
e entender os processos culturais. Portanto, é totalmente
correto estudar as sociedades presentes para abordar de
maneira direta a estes fins ou de forma mais indireta
mediante a identificação de referentes análogos que
sirvam para entender as sociedades do passado. David
Kramer (2001) afirmou que as múltiplas dimensões da
sociedade humana têm cada vez mais um papel na
Etnoarqueologia moderna. O autor considera que esta
subdisciplina atua nas sociedades vivas e deve se sujeitar
às
mesmas
estreitas
regras
éticas
da
etnografia
contemporânea e não desenvolver nenhum tipo de
atividade ou investigação sem o consentimento dos atores
sociais envolvidos (DAVID e KRAMER, 2001, p.84-89).
Gustavo Politis (2002, p.64) comenta ainda que
algumas pesquisas atuais, quando recorrem aos modelos
gerados pela Etnoarqueología, habitualmente restringem as
abordagens aos aspectos tecno-economicos das sociedades
do
passado.
O
autor
considera
que
o
enfoque
etnoarqueológico tem um potencial significativamente
maior do que vem sendo utilizado, principalmente na
América do Sul, onde existem várias sociedades indígenas
e abundantes informações etnográficas e etnohistóricas,
178
o que favorece o desenvolvimento desta subdisciplina.
Para que serve a Etnoarqueologia?
4.1.1
Gustavo Politis (2002, p.67) destaca que muitos
têm sido os questionamentos que buscam saber o que é
a Etnoarqueologia e para que ela serve. O autor comenta
que a Etnoarqueologia tem sido entendida e definida de
várias maneiras e se tem proposto também outros
vocábulos como sinônimos, tais como “arqueologia viva”,
“etnografia arqueológica” ou “arqueoetnografía”. As
primeiras definições a consideravam como a comparação
entre os dados arqueológicos e etnográficos (GOULD,
1978; STILES, 1977). Para Stanislawsky (1977), a
Etnoarqueología é “a coleção de informação etnográfica
original
para
ajudar
a interpretar
a
informação
arqueológica”. Para Steensberg (1980; RAVN, 1993) “és
o uso controlado da informação etnográfica para explicar
o registro arqueológico”. Atualmente, conta-se com uma
variedade de definições; entre as mais simples, Politis cita
a definição de Hanks (1983, p.351) que expressa que a
Etnoarqueologia “é a aplicação de métodos arqueológicos
a dados etnográficos”. Entre as mais complexas, está a
definição de David (1992), que Politis aponta como uma
de suas preferidas:
la Etnoarqueología incluye el campo de estudio de la
producción, tipología, distribución, consumo, y descarte de la
cultura material,con especial referencia a los mecanismos que
179
relacionan variabilidad y la variación al contexto sociocultural
y a la inferencia de los mecanismos de procesos del cambio
cultura (DAVID, 1992 apud POLITIS, 2002, p. 67).
Em geral, as definições apresentam rígidos conceitos
que deveriam ser mais flexíveis, porém têm um caráter
operativo e comunicacional inegável. Considerando as
distintas definições e se baseando no desenvolvimento
corrente da disciplina, Gustavo Politis (2002, p.68), de
uma maneira flexível e aberta, define a etnoarqueologia
como uma subdisciplina da arqueologia e da antropologia
social que obtém informação sistemática a partir da
dimensão material da conduta humana, tanto de ordem
ideacional como fenomenológica. Politis (2002, p.69)
ressalta que a arqueologia e a antropologia são disciplinas
“mãe”
da
desenvolvimento
Etnoarqueologia,
desta
seja
mesmo
quase
que
o
exclusivo
da
arqueologia. “Esto no sólo esta relacionado a que los
arqueólogos son quienes hacen Etnoarqueología, sino que
son casi los únicos que la consumen”. Infelizmente, os
antropólogos sócios culturais ainda não incorporaram em
seu debate o enorme potencial que tem a informação
gerada por esta subdisciplina e seguem a considerando
coisa de arqueólogos.
Esta pesquisa não se limitou somente a conceituar a
Etnoarqueologia e sim a utilizá-la como ciência base na
compreensão dos atuais Charrua. Como compreende o
antropólogo Sérgio Baptista Silva (2002a), fora e dentro
de nosso país, as discussões teóricas e metodológicas
180
sobre a utilização de dados históricos e etnográficos para o
entendimento: “por exemplo, de sistemas ideológicos e
simbólicos
do
registro
arqueológico
avançaram
consideravelmente nos últimos anos” (SILVA, 2002a p.9).
O autor afirma que a relação entre passado e presente,
estrutura e evento, mito e história, tradição e inovação, “é
tarefa complexa e desafiante que não mais se limita, como
nos moldes funcionalistas, a pseudoquestões como “perda
cultural”,
“aculturação”
ou
desintegração
cultural
progressiva” (SILVA, 2002a, p.9). Para Baptista, a
Etnoarqueologia é uma subdisciplina que envolve a
compreensão de artefatos, estruturas e quaisquer outros
vestígios de sociedades do passado, através da utilização
de dados históricos e etnográficos, dentro de um contexto
cultural muito bem definido. O autor considera que os
modelos etnoarqueológicos devem ser testados através de
metodologias arqueológicas próprias. Silva (2002a, p.10).
enfatiza ainda que: “Na criação desses modelos para a
compreensão do passado, a interlocução com membros
de sociedades indígenas ou tradicionais e a analogia
etnográfica são ferramentas metodológicas potentes”.
Atualmente, tem-se observado que quando uma
comunidade se organiza em torno de seus antigos
costumes, ou costumes reinventados, e se reconhecem
como indígenas, existe a necessidade de separação, tanto
territorial como cultural; desse modo, se re-agrupam em
um território definido como indígena. A maioria dos
181
grupos exige da FUNAI terras onde possam viver de
acordo com suas antigas tradições. Segundo Clarice
Novaes Mota (2008), trata-se de um movimento na direção
de um suposto resgate da antiga forma de ser, das tradições
reconhecidas como tribais e, portanto, “autênticas”, “mas
que orientam e suportam uma nova “raison d’être” ou um
novo agrupamento autorizado pelas leis nacionais como
sendo indígena” (MOTA, 2008, p.23).
A etnia Charrua, considerada extinta pela Fundação
Nacional do Índio (FUNAI), voltou a ser reconhecida em
ato oficial da fundação, em setembro de 2007. O evento
foi organizado em conjunto pelas comissões de Direitos
Humanos da Câmara Municipal de Porto Alegre, da
Assembléia Legislativa e do Senado Federal. Segundo os
dados da FUNAI, existem, atualmente, cerca de 6 mil
Charrua nos países que compõem o Mercosul. Só no Rio
Grande do Sul, são mais de 400 indivíduos presentes nas
localidades de Santo Ângelo, São Miguel das Missões e
Porto Alegre. No ato do reconhecimento dos indígenas,
Ana Elisa de Castro Freitas, Coordenadora do Núcleo de
Políticas Públicas para os Povos Indígenas, da Secretaria
Municipal de Direitos Humanos e Segurança Urbana
(SMDHSU), lembrou que os índios Charrua foram
removidos pela Secretaria do Meio Ambiente (SMAM),
em maio de 2006, por encontrarem-se em área de risco no
Morro do Osso, em Porto Alegre/RS.
182
Figura 20: Discurso da Cacique Acuab por ocasião do reconhecimento da etnia
Charrua Foto: Élson Sepé (nov. 2007)
No ato do reconhecimento, a cacique Acuab
agradeceu
a
seus
companheiros
de
luta
pelo
reconhecimento do seu povo: “Agradeço ao presidente e
aos parentes indígenas, Guaranis e Kaingangues, que
foram parceiros na valorização da nossa etnia e da nossa
liberdade”61.
61
As informações foram obtidas em “comunicação pessoal com a cacique Acuab”, e
no site da Câmara Municipal de Porto Alegre, em 30/08/2008.
183
4.1.2 Como os
pesquisadores
Charrua
se
apresentam
aos
A pesquisa etnoarqueológica com o povo Charrua
iniciou através da
disciplina intitulada “Etnologia
Indígena e Arte”, cursada na UFRGS, ministrada pelo
antropólogo Sérgio Baptista. As leituras e discussões sobre
os povos indígenas estimularam o desejo de ir a campo e
conhecer a narrativa da comunidade. A primeira visita à
aldeia indígena “Polidoro Povo Charrua” ocorreu no dia
21/08/2008. Ao chegar ao local, fui recebida pelo cacique
Sergio A’varela e pelo cacique Guaimá, filho da cacique
Acuab. Os caciques me acompanharam da entrada da
comunidade até a residência, onde se encontrava a líder
do grupo, a cacique Acuab, que me recebeu apresentandose como: “Acuab, a grande cacique e xamã, representante
geral do povo Charrua do Rio Grande do Sul” (Cacique
Acuab, comunicação pessoal, agosto de 2008). Acuab
iniciou nosso diálogo narrando a sua luta pelo
reconhecimento do povo Charrua e a busca por uma terra
onde fosse possível “construir uma vida digna e tranqüila
com suas famílias”. A cacique comentou que, até o dia 26
de maio de 2008, data em que foram conduzidos
definitivamente para sua nova terra, seu povo havia
passado por muitas dificuldades. A maior delas foi o
problema habitacional, pois antes estiveram no Morro da
Cruz, sendo removidos para um galpão na Avenida
184
Cristiano Kramer n°. 1046, onde supostamente ficariam
por apenas quinze dias na espera de uma terra para seu
povo viver: “Infelizmente, a espera por esta terra durou
três anos” (Acuab, comunicação pessoal, agosto de
2008). De acordo com Acuab, esse lugar: “Era um galpão
sem higiene alguma, tinha ratos e muito lixo, as crianças
ficaram todas doentes com um vírus infeccioso e
sangravam pelo nariz”. Na reivindicação da sua nova terra,
a cacique apresentou imagens do local onde sobreviviam
como um elemento de apoio para uma solução imediata do
problema (Cacique Acuab, comunicação pessoal, agosto
de 2008). Atualmente, vivem na comunidade Charrua, a
cacique Acuab e sua família, cerca de trinta pessoas. Os
indígenas aguardam a construção da aldeia, pois já existe
um projeto realizado pelo arquiteto Rogério Mongelos,
que presta assistência aos indígenas há 4 anos através de
uma Organização Não Governamental (ONG). Segundo
Acuab, assim que as moradias forem construídas, as
famílias das missões viram integrar-se à comunidade
Charrua de Porto Alegre.
Na comunidade Charrua, a cacique Acuab foi quem
me apresentou o contexto cultural que estão construindo na
sua nova terra. Nas paredes da residência da família,
deparei-me com três murais com imagens similares às
representações que se encontram nas obras referentes a
essa etnia.62 Um dos painéis apresenta uma cena da caça,
provavelmente retirada de Rodolfo Maruca Sosa (1957,
185
p.261), em que o autor ilustrou as pictografias da margem
direita
do “Arroio de la Virgen, Depto de San Jose”,
desenhadas pelo geólogo Clemente Barrial Posada, em
1874. Porém, no atual contexto Charrua, a representação
original foi alterada, pois acrescentaram à mão do indígena
uma boleadeira com três pedras e pontas de flechas, ou
seja, elementos que estão diretamente relacionados à sua
cultura. Entretanto, no painel rupestre do Arroio de La
Virgen, o que existe são representações humanas ao lado
de um Tatu-mulita (Dasypus hybridus), pequeno animal
campestre, que indica a caça, mas não ilustra nenhuma
espécie de arma. É viável destacar que não possuímos essa
imagem do mural transformado, pois nas visitas a aldeia os
Charrua não permitiram que fotografasse o cenário. Os
painéis também apresentam desenhos geométricos.
Figura 21: Pictografias do “Arroyo La Virgen” Fotografadas pelo geólogo
Clemente Barrial (1874)
62 Ver: Serrano (1947); Maruca Sosa (1957); Acosta y Lara (1969/70).
186
Na continuidade do nosso diálogo, perguntei a
cacique o que representava aquela cena ilustrada na parede
da casa. Acuab me respondeu da seguinte maneira: “Isso,
eu digo o mesmo a todos, não conto! Vocês só saberão
quando publicarmos nosso livro. Não posso dizer por que
muitos podem usar as informações antes de nós” (Acuab,
comunicação pessoal, agosto de 2008). Acuab menciona
que, além do livro, também lançarão um filme sobre o
resgate do seu povo, para o qual já concluíram as
gravações em 5 de julho de 2008. Ela enfatiza que, no
filme, estarão muitas outras informações que, no
momento, não revela a ninguém. Criando, dessa forma,
uma grande expectativa em torno do filme e do livro.
Durante a pesquisa, através do convite do antropólogo
Sergio Baptista, tive a oportunidade de assistir o
lançamento do documentário “Perambulantes. A vida do
povo de Acuab em Porto Alegre”, em 17/12/2008, na
UFRGS, sala da Redenção. Neste não há novas
informações, além das que Acuab havia narrado em
minhas visitas à aldeia Charrua, mas notei que a Cacique
Acuab mantém e afirma a todos os pesquisadores o mesmo
discurso étnico pré-construído. Ou seja, esta foi uma
maneira que Acuab encontrou para auto-afirmar sua
identidade Charrua. Na aldeia, quando questionei a
cacique Acuab se eles haviam consultado catálogos
com
ilustrações
indígenas,
187
ela
exclamou:
“Não
consultamos nada, isto tudo está na nossa memória desde
muito antigo, nosso parentes já faziam estas pinturas e o
cacique Guaiamá foi quem pintou”. Nesse caso, percebeuse uma afirmativa contraditória na narrativa da cacique
Acuab, pois os painéis não foram pintados pelo grupo, pois
fazem parte do cenário construído pela escultora de Porto
Alegre Adriana Xaplin para as gravações do documentário
“Perambulantes. A vida do povo de Acuab em Porto
Alegre”. Nesse caso, é viável ressaltar que não é nosso
interesse construir uma crítica sobre a narrativa da cacique
Acuab, mas sim demonstrar como eles
estão
se
apropriando dos diferentes elementos materiais para
afirmar a sua identidade Charrua.
Nesta mesma visita, a cacique Acuab me convidou a
conhecer o interior da sua casa. Na sala, havia um quadro
com a imagem de um índio Charrua, provavelmente
retirado da obra de Maruca Sosa (1957, p.125) e uma faixa
com a seguinte frase: Í.N.D.I. A (Integrador Nacional dos
Descendentes
dos
Povos
Indígenas
Americanos),
associada a uma ponta de flecha. Acuab comentou que a
flecha é o símbolo do seu povo, pois ela afirma que: “foram
os Charrua que treinaram os lanceiros negros”. Acuab
menciona ainda ser descendente do “grande cacique
Charrua Polidoro Sepé, amigo de Sepé Tiaraju, líder
Guarani” (Acuab, comunicação pessoal, agosto de 2008).
A cacique comentou que seu povo leva a bandeira como
um símbolo da cultura Charrua a todos os encontros que
188
participam. Na imagem, pode se visualizar a visita da
comitiva Charrua ao Palácio Piratini. Os atuais Charrua
buscam o reconhecimento da sua identidade indígena,
interagindo com a sociedade ocidental. Eles estabelecem
redes de apoio, de solidariedade, nas quais não só é
valorizada a denominada cultura tradicional indígena, mas
também se busca um tipo de apoio dessa mesma cultura
fora dos limites da aldeia. Esta interação representa um
processo auto-afirmativo, demonstra como eles estão
reconstruindo sua cultura, mesmo que a custa de invenções
e ressignificações das tradições perdidas. No diálogo com
os Charrua, foi possível perceber a maneira como eles
justificam as suas experiências e seu modo de vida como
sendo “legítimo Charrua”. Na sua narrativa, prevalece o
mito do índio autêntico, sem o qual não há auto-afirmação
possível. Clarice Novaes Mota (2008, p.24) comenta que
“as comunidades recém re-constituídas vivem a busca e a
validação de uma cultura tradicional como verdadeiro
capital cultural, que lhes há de valer na hora de provar aos
órgãos oficiais que têm direitos a terra e aos apoios
institucionais”.
189
Figura 22: Palácio Piratini. (23/5/2007) Foto: Mauro Mattos
Os Charrua são muito receptivos. Após me
mostrarem a residência da família, levaram-me para
conhecer o mato da aldeia. No caminho, a cacique Acuab
narrava a história de batalhas do seu povo até a conquista
das terras. Ela enfatizou: “O povo Charrua levou mais de
um século para voltar a ser reconhecido e ganhar uma
terra, mas tudo isso aqui, esse campo, essa casa, nada vale
mais que o resgate da nossa cultura”. Esta afirmação de
Acuab incentiva a tentar conhecer e compreender como
seu povo está construindo sua identidade étnica, através do
resgate da história dos antigos Charrua. É importante
destacar que a cacique Acuab sempre utiliza a palavra
“resgate”,
o
que
possibilita
compreender
que
a
reconstrução da sua identidade étnica está embasada na
busca por informações sobre os seus ancestrais Charrua.
Os artesanatos, a capa “quillapí” com figuras idênticas às
dos murais, provavelmente se embasaram nos desenhos da
190
escultora, mas em nenhum momento Acuab deixa de
afirmar que estas representações são oriundas da sua
memória, negando qualquer acesso a fontes escritas ou
ilustrativas. Entretanto, o cacique Sérgio A’varela, ao
mostrar-me uma pasta com registros da trajetória do povo
Charrua, em Porto Alegre, chamou-me a atenção para
um pequeno papel, ressaltando: “Veja Viviane, aqui, há
imagens do nosso povo”. Tratava-se do endereço de um
site com imagens dos índios Charrua. Neste momento,
ficou evidente que, devido ao longo período de
rompimento desta cultura, eles consultam as
fontes
antropológicas, etnológicas e etnográficas. No entanto,
tentam proteger a autenticidade étnica Charrua, afirmando
que a confecção da sua cultura material e as apresentações
de rituais são resultados das suas memórias. Como
destacou Acuab: “Toda a nossa cultura está na nossa
memória desde muito antigo, veio dos antigos parentes
Charrua” (Acuab, comunicação pessoal, setembro de
2008).
191
Figura 23: Família Charrua com um amigo da comunidade (Ago./2008)
Foto: Viviane Pouey
Os caciques Acuab e Sérgio A’varela me mostraram
o ateliêr onde estão confeccionando seus artesanatos. O
grupo já confeccionou brincos, colares e faixas para o
cabelo. Alguns colares eram de chifre bovino. O cacique
Sergio enfatizou que: “esse é muito difícil de fazer, dá
muito trabalho”. Outros colares são feitos com coquinhos
associados a miçangas. Percebi que quando utilizam
miçangas escolhem apenas uma cor, pois não havia
colares multicores. Porém, não é possível afirmar ser essa
uma regra, talvez fossem as únicas cores que possuíssem.
É viável ressaltar que as faixas para os cabelos possuem
motivos geométricos. O cacique Sérgio enfatizou que:
“Cada trançado tem um significado, mas no momento só
podia afirmar que um dos desenhos geométricos é a
192
família”, porque, “a família é o centro de tudo, e sempre
deve
estar
na
faixa”
(Cacique
Sérgio
Avarela,
comunicação pessoal, agosto de 2008). É viável
mencionar que, a todo o momento, os atuais Charrua se
utilizam dos objetos na afirmação da sua cultura, criando
sobre estes uma narrativa repleta de mistérios que faz parte
da construção da sua nova identidade étnica. Os Charrua
ainda não expuseram ao público seus artesanatos, pois
antes de começar a comercializá-los, o grupo pretende
registrá-los, garantindo desta maneira a sua “originalidade
Charrua”. Os indígenas acreditam ser esta a melhor
forma de evitar que outros grupos indígenas copiem
seus artesanatos. O cacique Sérgio A’varela afirma:
Estamos produzindo mais agora, ainda não temos produção
em massa, futuramente faremos uma exposição da nossa
cultura. Ainda não expomos, também nunca levamos para o
brique da Redenção, lá tem outros parentes com seus
trabalhos, como os “Kaingangue e os Guarani” (Cacique
Sergio, comunicação pessoal agosto/2008).
4.1.3
Como os Charrua se apresentam à FUNAI
A reunião com a FUNAI da qual participei na aldeia
Charrua tinha como finalidade discutir
e
resolver
situações como vagas nas escolas para as crianças,
encaminhamento médico, construção da aldeia, incentivo
ao uso da terra para plantação, já que até o momento os
indígenas vivem de doações. Neste dia, os Charrua
receberam os representantes institucionais com cocares,
rosto pintado, faixas no cabelo, expuseram na varanda da
193
casa o seu conjunto de cultura material composto de cuia,
laço, boleadeiras, cocar, sementes de urucum, etc. Os
Charrua também presentearam um dos membros da
FUNAI com um cocar, que, segundo a cacique Acuab,
“estava
protegido
pelas
orações
Charrua”.
Eles
apresentaram, ainda, algumas danças, como pode ser
visualizadas na imagem abaixo, que denominam “rituais
de danças do povo Charrua” (Comunidade Charrua,
comunicação pessoal, Setembro/2008).
Figura 24: Ritual de dança dos Charrua (Set/2008) Foto: Viviane Pouey
Os Charrua prepararam um cenário para recepcionar
o órgão institucional FUNAI, em que sua própria narrativa
étnica tornou-se ainda mais auto-afirmativa. Nesse
momento, observou-se que eles sentiam a necessidade de
se mostrarem como “legítimos Charrua”, pois durante
outras visitas realizadas à aldeia, em nenhum momento
dançaram, pintaram seus rostos ou expuseram outros
194
objetos materiais, além dos artesanatos que estão
confeccionando.
Figura 25: Apresentação do projeto da aldeia para a FUNAI Foto: Viviane Pouey
Entretanto, sabe-se que, durante a colonização, os
grupos indígenas eram forçados a negar a sua cultura
considerada como primitiva e a inserirem-se aos hábitos
coloniais. No Séc. XX, alguns grupos indígenas
oprimidos, buscando o reconhecimento da sociedade
nacional, começaram a afirmar-se como “índios” e a exigir
seus direitos à terra e à identidade. Desse modo, precisam
demonstrar conhecimentos sobre suas tradições. A
historiadora Marilyn Halter (2000) considera o resgate da
identidade cultural como o “marketing da etnicidade”. A
autora se refere ao processo da busca pela identidade da
seguinte maneira:
195
Tais iniciativas geralmente políticas eram adornadas por
transformações culturais monumentais que incluíam o
resgate de raízes enterradas e ocultas pela história assim
como a celebração de herança distintiva. Portanto, “após
décadas em que a assimilação era o modelo principal para a
incorporação de populações diversas, o pluralismo cultural
emergiu para tomar seu lugar como o paradigma reinante
(HALTER, 2000, p.14).
Na pós-modernidade, esses movimentos tendem a
ser incluídos em um modelo que se poderia chamar de
mercantilismo cultural, numa “nova era capitalista” onde
bens culturais da denominada tradição ancestral de um
povo transformam-se em mercadorias, servindo aos
propósitos tanto das classes dominantes como dos
propósitos indígenas. Paiva (2001) considera que ser
“índio” atualmente tornou-se uma tarefa lucrativa, uma
alternativa profissional, na qual os índios da aldeia
passam não só a ensinar suas técnicas e práticas rituais
fora da aldeia como a formar os chamados xamãs.
Segundo Paiva, esse movimento deve ser pensado como
uma desconstrução em termos do que os indígenas
ressurgidos imaginavam ser seu próprio destino dentro
das
aldeias.
O
autor
afirma
que
os
indígenas
“encontraram uma forma de reconstruir – desconstruindo,
transformando – suas bases culturais antigas enquanto
vivem à custa de suas novas performances e ofícios
dentro dos parâmetros de uma nova era capitalista”
(PAIVA, 2001, p.113-114). Marilyn Halter (2000, p.14),
ainda tratando dos indígenas inseridos numa sociedade
capitalista, ressalta que “o consumismo ao mesmo tempo
196
desagrega e promove uma comunidade étnica, podendo
mostrar-se tanto subversivo como hegemônico”. O que a
autora enfatiza é que as comunidades podem tanto ganhar
como perder com a mercantilização de sua cultura e saber,
porque é possível que os consumidores possam tanto
desestruturar o plano original da comunidade, com seus
significados próprios, como também exaltar e reforçar a
identidade étnica. Um exemplo da mercantilização da
cultura indígena é a venda dos seus artesanatos.
O grupo Charrua está no processo de confecção de
seus artesanatos, por isso ainda não os comercializam.
Porém, em Porto Alegre/RS, pode-se mencionar os
artesanatos dos índios Guarani e Kaingang no centro e no
Parque da Redenção onde, além de expor sua cultura
material, os indígenas apresentam rituais de danças, o que
encanta grande parte da população. A apreciação da sua
cultura pela sociedade ocidental colabora com o processo
auto-afirmativo do grupo, assim como lhes garante a
subsistência através do consumo dos artesanatos e das
doações. Sendo este um evidente exemplo de como o
consumismo contribui para reinvenção da identidade
indígena. Clarice Novaes Mota (2002), observando o
comércio dos artesanatos dos índios Kariri-Xocó de
Alagoas, questiona-se sobre “o que dizer sobre os não
indígenas que desejam “ser índio” e pagam para isso?
São eles ingênuos por reificarem a visão romântica do
“bom selvagem” ou ameaçadores pela possibilidade de
197
apropriar-se de bens alheios?” (MOTA, 2002, p.24).
A BOLEADEIRA COMO
4.2
IDENTIDADE CHARRUA
ÍNDICE
DA
Na exposição que os indígenas realizaram para a
FUNAI, eles selecionaram
aqueles elementos que
consideram típicos da cultura Charrua, construindo a partir
deles uma narrativa na qual afirmam a sua identidade
étnica. Entre os demais objetos que se pode visualizar na
imagem a seguir, os que ganham maior destaque nos
seus discursos são as boleadeiras. Frickel (1964, p.471)
compreende que: “A tradição funciona, pois, como um
elo entre o passado e o presente não só em termos de
espaço e tempo, mas também como um elo entre tipos de
cultura passada e a atual, ou seja, entre a arqueologia e a
etnologia”.
Nesta perspectiva,
observa-se
que
a
boleadeira é para os Charrua um elo entre o passado e
o presente da sua cultura. A cacique Acuab, ao falar-me
sobre o instrumento, construiu uma história referente ao
modo como viviam seus ancestrais. Acuab comenta que
seus antigos parentes viviam da caça e da pesca e, por
isso,
precisavam
das
boleadeiras
para
caçar
os
“avestruzes e depois o gado”. Eles possuem três artefatos
de boleadeiras em pedra e um instrumento que
denominam como a boleadeira do gaúcho revestida em
couro. A cacique afirma que a boleadeira é a prova que o
198
gaúcho adotou a cultura dos Charrua. Para Acuab, foram
os seus antigos parentes que usaram as primeiras
boleadeiras, “antes eram de pedra com uma cercadura
para amarrar o cordão do arremesso. Os Charrua giravam
as boleadeiras sobre a cabeça e jogavam nas patas dos
animais e nas lutas davam golpes no corpo do inimigo”
(Cacique Acuab, comunicação pessoal, Setembro/2008).
Figura 26: Exposição dos objetos Charrua para a FUNAI (Set/2008) Foto:
Viviane Pouey
A cacique enfatiza ainda que, atualmente, muitos
gaúchos renunciam à identidade Charrua do seu grupo,
mas esquecem que foi através dela que adquiriram a
maioria
dos seus
elementos
culturais:
“como
as
boleadeiras, o laço, o tirador “mesma capa quillapí”,
porém presa a cintura, igual a do gaúcho laçador
símbolo de Porto Alegre” (Cacique Acuab, comunicação
pessoal, Set/2008).
199
As boleadeiras são para o grupo Charrua um índice,
uma lembrança, uma afirmação da existência dos seus
ancestrais,
que
os
possibilita
estabelecerem
uma
semelhança entre os antigos Charrua, a atual etnia e os
Gaúchos. Acuab também comenta que a boleadeira
Charrua possuía apenas duas pedras e que foram os
gaúchos que inseriram no instrumento a terceira bola, ou
seja, a maniclã. Durante nosso diálogo, a cacique Acuab
me perguntou se eu já havia visto alguém arremessar a
boleadeira? Respondi nunca ter visto, mas que gostaria de
presenciar o arremesso. Nesse momento, ela pegou a
boleadeira que estava exposta na mesa, segurou duas
pedras na mão direita e a maniclã na esquerda pedindo
que eu me afastasse, “pois o golpe é perigoso e os antigos
parentes Charrua eram muito rápidos no arremesso”.
Como estávamos na varanda da casa, a cacique
movimentou as correias do instrumento, lançando-as
sobre uma das colunas e as boleadeiras enredaram-se
rapidamente. Após a apresentação, Acuab exclamou:
“Viu? Sabemos como viveram nossos antigos parentes,
eles deixaram
tudo
na
nossa
memória”
(Acuab,
comunicação pessoal, Set/2008). Ao assistir o arremesso
das boleadeiras pela cacique fiquei surpreendida, pois
como sabemos nas sociedades de caçadores coletores
eram os homens os responsáveis pela caça e somente eles
quem utilizavam as boleadeiras. Outro aspecto observado
foi a nova maneira que Acuab criou para arremessar a
200
arma. Esta antes era girada sobre a cabeça, como ela
mesma afirmou ao descrever a utilização do instrumento
pelos seus antigos parentes. Nesse caso, analisando o
processo de afirmação e construção da identidade Charrua,
pode-se identificar que, diferentemente das antigas
organizações indígenas, onde o cargo de cacique só era
concedido aos homens, na atual sociedade Charrua a
liderança pertence a uma mulher.
4.3
MEMÓRIA E IDENTIDADE INDÍGENA
João Pacheco de Oliveira Filho (1995) considera a
reivindicação étnica como uma forma dos indígenas
defenderem sua memória e identidade frente ao processo
de transculturação realizado pelos europeus, no qual os
índios foram obrigados a abandonar seus hábitos.
Conseqüentemente, os indígenas buscaram ocultar seus
costumes e tradições sob a forma de representações
simbólicas. De acordo com Jacques Le Goff (1984), as
sociedades criaram, ao longo da história, instituições e
mecanismos para preservar a memória coletiva. O autor
destaca cinco grandes momentos diferenciados pelas
formas de conservação e transmissão:
1. A memória oral, que ele denomina de memória
étnica, presente nas sociedades sem escrita.
2. A memória de transição da oralidade à escrita,
correspondendo classicamente ao período da Pré-
201
História à Antiguidade.
3. A memória medieval, em que se dá um equilíbrio
entre o oral e o escrito.
4. A memória escrita, com a invenção da imprensa, a
mecanização e seus progressos, do Séc. XVI aos
nossos dias.
5. A memória eletrônica, atual, que através da
informática sistematiza e agiliza o acesso às
fontes de informação.
Segundo Le Goff (1984, p.11), duas características
fundamentais para a questão da memória indígena
atravessam todos esses momentos. A primeira é que a
memória esteve sempre reunida e elaborada em forma de
discurso. E a segunda, que a memória constituiu o
elemento essencial daquilo que se costuma denominar
como identidade, individual ou coletiva, cuja busca
continua afligindo a atual sociedade. Para Le Goff
(1984, p.13), a memória coletiva é um instrumento de
poder, pois tornarem-se senhores da memória e do
esquecimento é uma das grandes preocupações das
classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e
dominam as sociedades históricas. “Os esquecimentos e os
silêncios da história são reveladores desses mecanismos de
manipulação da memória coletiva” (FREIRE, 1992,
p.140).
Atualmente,
alguns
arqueólogos
vêm
se
utilizando da história oral para resgatar a memória dos
indígenas sobre a sua cultura material arqueológica.
202
Nesta pesquisa, utiliza-se como um dos exemplos
da importância do resgate da memória indígena o
trabalho de Gislene Monticelli (1995) intitulado “Vasilhas
de Cerâmica Guarani: um resgate da memória entre os
Mbyá”. A autora realizou um levantamento etnográfico
em busca de informações orais e evidências materiais
sobre as diferentes etapas da produção das vasilhas.
Visitando um dos mais importantes aldeamentos Guarani,
Monticelli entrevistou um casal de índios Mbyá, que
foram seus informantes. O trabalho da arqueóloga foi
intermediado por um guia que, baseado nas suas
experiências com os indígenas, também contribuiu com
importantes informações. Monticelli desenvolveu uma
etnoarqueologia, abordando aspectos da cultura material
Guarani nem sempre apontados nos trabalhos realizados
por antropólogos. As informações adquiridas em sua
pesquisa
podem
ser
utilizadas
nas
interpretações
arqueológicas sobre a temática. A autora comenta ainda
que este trabalho pode ser uma maneira de garantir a
conservação e a divulgação de dados de “uma prática já
abandonada, presente apenas na memória de alguns
integrantes da sociedade pesquisada” (MONTICELLI,
1995, p.9). Monticelli afirma que a idéia de perguntar
diretamente ao índios surgiu devido às dificuldades de
análises e tentativas de interpretações da cerâmica
Guarani. (MONTICELLI, 1995, p.10). Sua proposta foi
contemplar a noção de Etnoarqueologia, mencionada por
203
Schiffer (1978, p.30), como “o estudo da cultura material
no contexto etnográfico e arqueológico com o objetivo de
adquirir informações tanto específicas como gerais que
serão aproveitadas pela investigação arqueológica”.
Outro exemplo do uso da memória indígena na
compreensão do passado dos seus ancestrais e da cultura
material arqueológica é observado no trabalho da
etnoarqueóloga Fabíola Silva com os Asurini do Xingu
(2002). Silva analisa a interpretação que os Asurini fazem
sobre os vestígios arqueológicos existentes na aldeia,
elaborando uma importante reflexão sobre as diferentes
possibilidades interpretativas do passado desta etnia. Ela
aborda os vários sujeitos desta interpretação, através da
narrativa oral dos Asurini, constatando que eles “se interrelacionam e incorporam os vestígios arqueológicos como
sendo os testemunhos da existência e presença de seus
ancestrais míticos”. Regina Müller (1990, p.134) já havia
mencionado que a cosmologia dos Asurini “é repleta de
seres que vivem em mundos distintos, mas, ao mesmo
tempo, podem se apresentar e relacionar com os humanos
seja durante rituais, seja no cotidiano”. Segundo a autora, é
preciso observar também a noção de concomitância de
planos de pensamentos Asurini, ou seja, “a idéia de
universo transformacional e da multiplicidade de mundo
na cosmologia” (MÜLLER, 1990, p.199). Fabíola Silva
afirma que é preciso entender a incorporação dos vestígios
arqueológicos no cotidiano Asurini:
204
[...] Independentemente de uma continuidade histórica
comprovada entre eles e aquelas populações que os
produziram-como um dos aspectos da construção e
manutenção da sua identidade étnica na media em que são
elementos materiais que falam para eles sobre a sua
ancestralidade e contribuem para a manutenção da sua
memória cultural (SILVA, 2002, p.184).
É importante ressaltar que a incorporação dos
vestígios do passado é uma prática compartilhada por
diferentes populações em todo o mundo e tem sido usada
como argumento político para a manutenção de seus
territórios (LAYTON, 1985-1989). Silva (2002, p.184)
comenta que “em alguns casos, esse aspecto tem gerado
polêmicas entre os arqueólogos e as populações nativas no
que se refere à pesquisa e remoção de vestígios
arqueológicos dos territórios ocupados pelas mesmas”. Ao
mesmo tempo, tem motivado a elaboração de propostas de
trabalhos conjuntos entre ambos os grupos, tanto no que se
refere ao resgate dos vestígios quanto à sua interpretação,
tendo como objetivo buscar a construção de uma história
não colonialista sobre o passado destas populações nativas
(ANAWAK, 1996 apud SILVA, 2002, p.184).
Como até o momento não se dispõe de uma
etnografia sobre os atuais Charrua, utilizou-se como
modelo as investigações etnoarqueológicas descritas
acima
para
se desenvolver a presente pesquisa. O
objetivo foi compreender como os Charrua estão
incorporando os elementos arqueológicos e etnográficos
nos seus discursos étnicos. Durante as entrevistas,
observou-se a interpretação dos indígenas sobre os
205
artefatos e como eles se utilizam destes elementos
materiais na afirmação da sua identidade Charrua. Outro
aspecto importante que se percebeu nos discursos dos
indígenas é a maneira como eles estão construindo uma
memória sobre os seus ancestrais. Pois como afirmou Le
Goff (1984, p.13), a memória é o elemento fundamental na
construção da identidade.
4.4. MEMÓRIA OU RECONSTRUÇÃO CHARRUA?
Como se mencionou no terceiro capítulo desta
pesquisa, Eduardo Acosta y Lara (1969/1970) afirma que
os últimos Charrua sobreviventes do combate de
Salsipuedes foram definitivamente eliminados no combate
de Mataojos (1832) e os presos sobreviventes foram
repartidos nas cidades para vários fins, ou entregues às
estâncias como peões. O autor comenta ainda que cinco
dos últimos Charrua foram levados a França com a
finalidade de exposição comercial, três deles morreram em
cativeiro, enquanto Tacuabé e sua filha Micaela
desapareceram e os historiadores não resgataram nenhuma
informação (RIVET, 1930). Acosta y Lara destaca
também que a história das centenas “de mulheres e
crianças Charrua e Minuano, distribuídas no meio da
população branca, ainda não foi contada e os poucos que
escaparam das batalhas, por enquanto não foram
encontrados, nem suas peripécias reunidas” (ACOSTA y
206
LARA, 1969/1970, p.11).
Acosta y Lara (1981) ao retomar as pesquisas sobre
os últimos Charrua, em seu artigo intitulado “Un Linaje
Charrua En Tacuarembo (a 150 años de Salsipuedes)”,
comenta que após os traiçoeiros combates de Salsipuedes
e Mataojo não se conhece noticias formais sobre os
descendentes dos últimos Charrua. As únicas informações
que o autor obteve sobre a linhagem dos antigos Charrua
foram referências sobre o cacique Sepé. Acosta y Lara
ressalta que é impossível escrever a história de um cacique
Charrua, pois seus nomes aparecem vinculados
a
episódios de maior ou menor relevância, porém não há
como conhecer os detalhes das suas vidas (ACOSTA y
LARA, 1969-70, p.18). O cacique Charrua Sepé foi
incorporado
aos
lavallejistas
que
vinham
sendo
perseguidos pelas forças governamentais do general
Rivera e figurou entre os derrotados do Potrero de Yarão
(maio de 1834), que logo aderiram
ao
movimento
separatista do Rio Grande do Sul conhecido como
Guerra ou Revolução dos Farrapos (1835-1845). O
ultimo combate desta guerra ocorreu dentro do território
Uruguaio, a margem direita do Cuaró, onde uma partida
legalista a mando do major Vasco Alves Pereira derrotou a
outra republicana comandada pelo coronel Bernardino
Pinto, em dezembro de 1844. Entretanto, os Charrua, há
vários anos já viviam às margens da hostilidade.
Acosta y Lara (1981, p.16) compreende que as
207
declarações do major Benito Silva, citadas pelo Dr.
Vilardebó: “El mês de Noviembre de 1840 ya se hallaba
tan reducido el número de ellos que no eran más que diez
y ocho”. Os homens adultos não eram mais que oito. Entre
eles havia um cacique chamado Sepé, outro chamado
Barcelona e um vaqueano muito fraco do tempo de
Artigas. Estavam guarnecidos na costa do arroio Sacá,
Serra do Caverá província do Rio Grande do Sul,
protegidos pelos Republicanos do rio Pardo. Silva esteve
oito dias com eles: “y Le regalaron bolas, quillapis y um
caballo. Al irse, Le recomendaron que les obtuviese uma
licencia para volver a la pátria” (GOMEZ HAEDO, 1937,
p.350 apud ACOSTA y LARA, 1981, p.17). Acosta y Lara
afirma que desconhece as circunstâncias em que os
Charrua regressaram ao Uruguai. Porém, destaca que não
foi quando o General Oribe (1835-38) abriu as fronteiras
aos exilados lavallejistas, já que em 1840, constava nas
declarações de Benito Silva que ainda permaneciam no
Brasil.
Em 1857, os Charrua estavam vivendo nos campos
de José Paz Nadal, localizados a oito léguas ao sul da Villa
de Tacuarembó. Modesto Polanco foi quem avistou os
Charrua nesse local e escreveu uma carta a Eduardo
Acevedo Díaz, em agosto de 1890, expressando: “A um
Kilómetro del establecimiento estaba la toldería em
perfecto estado primitivo, com sus ranchitos de rama
arqueada como toldo de carreta”. Parece evidente que
208
Sepe era “el jefe indiscutido do grupo” (POLANCO, 1890
y LARA, 1981, p.17). Posteriormente, Lavalleja Valdez
(1941) afirmou que Sepé havia sido envenenado por
paisanos que “le dieron a beber caña mezclada com
arsênico, ocurriendo ésto en la pulpería de Dutilh y Christy,
em 1866”. O corpo de Sepé foi enterrado em uma ladeira
próxima a sua casa, que desde então passou a ser chamada
de Baixada do Charrua. No fim da Revolução Tricolor
(1875), uma caravana cientifica exumou seus restos e
levou o crânio ao Rio de Janeiro (VALDEZ, 1941). Com
referência aos descendentes de Sepé, Valdez descobriu
que seus filhos Avelino e Santana foram contaminados
com a epidemia de rubéola registrada em 1854. No ano de
1855, o filho de Sepé reaparece em Tacuarembó com o
nome de Avelino Charrua; sobre sua filha Santana os
historiadores não resgataram nenhuma outra informação.
Acosta y Lara comenta que se passaram longos anos
até os historiadores retornarem a falar
sobre
os
descendentes de Sepé. Somente em janeiro de 1949, o
diário “La Mañana” publicou uma interessante nota
relativa a um deles, Lino García. O jornal baseou-se no
material gráfico e informativo enviado de Tacuarembo pela
educadora Estela Soares Netto de Helguero, diretora da
Escola Granja N. 74, “El Paraíso”.
Na sua carta, Estela disse: “Don Lino García,
desciende de Sepe, un indio charrua, de los pocos
sobrevivientes de esa raza, que murió en los campos de
209
nadal”. Destacando ainda que este: “Vive actualmente em
Rincón de Tranqueras, cerca de la desembocadura del
Arroyo de esse nombre com el rio Tacuarembó Chico.
Cuenta em la actualidad 82 años, pero se conserva fuerte
y animoso”. A professora enfatiza na carta que o índio
Charrua havia perdido uma irmã há pouco tempo e que esta
viveu mais de cem anos.
Acosta y Lara ressalta que guardou esta informação
por mais de vinte anos e somente foi visitar a região em
1973, quando um responsável pelo do diário “El Dia”,
radicado em Tacuarembó, o Sr. Abel Gomez, publicou a
noticia do falecimento do ancião neto do cacique Sepé.
Acosta y Lara comenta que comissionado pelo diretor do
Museu Nacional de História Natural viajou para o Rincão
de Tranqueras, em companhia do senhor Gomez. Eles
entrevistaram os vários filhos de Lino García, que
forneceram fotografias e informações, não só de seu pai,
mas também da irmã dele Gregória, falecida em 1970, aos
105 anos. Em relação ao parentesco com Sepé, os filhos de
Lino García só souberam afirmar que o pai dizia ser neto do
cacique. Porém, sempre muito reservado, nunca contou
detalhes à família sobre seus antepassados indígenas.
Acosta y Lara, após revisar a documentação histórica e
entrevistar os descendentes de Lino García, enfatiza que a
carência de documentos comprobatórios o leva a
considerar esta tradição familiar como aceitável, no
entanto, por apenas duas gerações, que tanto Lino García
210
como suas irmãs, Juana e Gregória, falecidos com 116,
102 e 105 anos, eram descendentes de Sepé. “Muy
probablemente los nietos que según consta vivían em
Tacuarembó en los últimos decênios del siglo pasado”.
Este grupo familiar deve constituir a única “linhaje
Charrua que há logrado prolongarse en el tiempo y hasta
nosotros”. Dos outros Charruas, após 150 anos do combate
de Salsipuedes, Acosta y Lara (1981, p.20) afirma que “se
han integrado, sin dejar rastro, a todos niveles de la
sociedad uruguaya”. Nesse sentido, se Acosta y Lara
afirma que a última linhagem dos Charrua descendentes de
Sepé permanecia no Uruguai até a década de 70, como
Acuab que se afirma descendente deste cacique nasceu no
Rio Grande do Sul na década de 50?
Nesse capítulo, após a revisão das fontes históricas,
compreende-se que a cacique Acuab consultou as
pesquisas de Acosta y Lara (1981) para construir a sua
narrativa sobre os ancestrais Charrua e assumiu o papel de
descendente do cacique Sepé. É viável ressaltar que “a
comunidade Charrua do Uruguai não reconhece o grupo
de Porto Alegre como C h a r r u a , eles afirmam que os
Charrua estão todos no Uruguai” (Cacique Sergio A’varela,
comunicação pessoal, setembro, 2008).
Acredita-se ainda que é praticamente impossível
que os atuais Charrua de Porto Alegre estejam se
utilizando de memórias adquiridas na infância na
reconstrução da sua identidade, devido ao longo período
211
de rompimento cultural entre eles e os antigos Charrua.
Pois provavelmente seus pais e avôs, miscigenando-se para
o trabalho nas estâncias,
sofreram
um
processo
transculturativo63 e não exerciam mais a vida nômade
dos pampeanos e nem usavam as mesmas vestimentas e
armas. Ou seja, os hábitos e costumes foram modificados
ao longo do tempo e a memória Charrua possui uma
ampla interrupção. Observa-se que, do
mesmo modo que os Charrua contribuíram com alguns
elementos materiais na construção da identidade do
gaúcho, nos quais se pode citar a boleadeira, o churrasco,
o chimarrão, eles também tiveram que abandonar seus
hábitos primitivos e se adaptar aos costumes coloniais.
Nesta perspectiva, acredita-se que, do mesmo modo que os
arqueólogos e cronistas consultam outras fontes para
construir a sua concepção sobre os indígenas, os atuais
Charrua também estão buscando apoio dos antropólogos,
historiadores, arqueólogos e catálogos etnográficos na
construção da sua memória cultural. Como afirmou Joseph
Fontana (1998), a história de um grupo humano é a sua
memória coletiva e cumpre a respeito dele a mesma função
que a memória pessoal num indivíduo: “a de dar-lhe um
sentido de identidade que o faz ser ele mesmo e não outro,
daí sua importância. Porém, convém compreender qual é
a natureza da memória” (FONTANA, 1998, p.267). Para
o autor, a memória é o fio condutor ligando as gerações
umas com as outras e dando um caráter de continuidade à
212
vida. Já as semelhanças e as diferenças entre os povos se
traduzem por manifestações, sejam elas materiais ou
espirituais.
Nas entrevistas com os Charrua, foi possível
perceber que eles estão construindo esta memória através
das apropriações que fazem das fontes orais, escritas,
ilustrativas e também dos artefatos arqueológicos e
etnográficos. É viável destacar como exemplo dessa
assimilação dos objetos na afirmação da sua identidade o
discurso que Acuab construiu sobre as boleadeiras,
relacionando-as com o cotidiano doméstico e cultural dos
seus ancestrais caçadores - coletores. A boleadeira é para
Acuab um patrimônio cultural, um símbolo Charrua que
ultrapassa o tempo e fala para eles sobre o passado dos seus
ancestrais. Outro exemplo é a assimilação que os Charrua
fizeram dos murais etnográficos pintados na aldeia pela
escultora Adriana Xaplin, afirmando que foram eles os
autores das representações e que estas são oriundas da sua
memória.
Nessa perspectiva, nota-se que a necessidade de
reconhecimento social levou os Charrua a criar novos
hábitos de interação com o meio social e ecológico,
elaborando um discurso simbólico ao se referirem a seus
ancestrais.
63 Transculturação: termo utilizado por Arno Kern (1991, p.129).
213
Fontana destaca ainda que a exposição da memória
indígena, especialmente de elementos como a dança, o
canto e os rituais, percebidos como construtores de sua
identidade e de sua auto-imagem, é o caminho que os
leva a simbolizar essencialmente as relações abstratas
como a cosmologia, narrativa mítica intimamente ligada a
seus ancestrais. Estas relações a princípio reorganizam
seu universo indígena e sua identidade atual “a qual se
encontra num momento de reflexões profundas e faz parte
de um processo longo e delicado que precisa de todo o
apoio para se auto-afirmar” (FONTANA, 1998, p.267).
Esse processo de reconstrução cultural levou os Charrua a
eleger alguns elementos que consideram importante para a
construção da sua imagem e a reconstrução de seu
universo indígena atual. O ressurgimento do grupo os
obriga a manter uma postura social pré-estabelecida diante
da sociedade nacional, mas é indispensável que eles
mantenham uma imagem visual bem elaborada para que
sejam aceitos como índios nos parâmetros da FUNAI e
perante a sociedade. Nesse processo de construção da nova
identidade Charrua, como já foi comentado anteriormente,
eles formaram uma rede de solidariedade com os órgãos
institucionais e com a sociedade nacional. Um exemplo
desse apoio institucional foi as gravações para o
documentário sobre a trajetória do povo Charrua em Porto
Alegre que contou com o auxilio da escultora Adriana
214
Xaplin. Neste capítulo, procurou-se identificar as fontes
que a artista se baseou para construir o cenário Charrua.
Ao observarem-se as imagens pintadas por Xaplin, é
possível afirmar que ela utilizou como base a obra de
Rodolfo Maruca Sosa intitulada “La Nacion Charrua”
(1957). Sosa apresentou, além das imagens dos índios
Charrua, artes rupestres e placas gravadas arqueológicas
que acreditou serem originárias desta etnia. Porém,
considera-se errôneo atribuir essas placas aos Charrua
históricos com os quais os atuais indígenas estão buscando
estabelecer uma identidade. Na construção do cenário de
Xaplin, a primeira referência que demonstra que a autora
consultou a obra de Maruca Sosa foi o quadro visualizado
na sala dos Charrua que, segundo Acuab, também fez
parte do cenário do filme.
Figura 27: Índio Charrua R. Maruca Sosa, (1954, p.125)
Nos painéis, observei mãos ilustradas e questionei
o Cacique Guaimá sobre o que significava aquela
representação na parede? Ele afirmou que eram as mãos de
215
uma menina da aldeia que ele havia pintado, ressaltando:
“As mãos das crianças têm que fazer parte das pinturas
Charrua por que elas são muito importantes para nós”
(Cacique Guaimá, comunicação pessoal, Agosto/ 2008).64
No entanto, no sítio arqueológico “Arroyo Moles Del
Chamanga”, pesquisado por Augustin Larrauri (1905) e
comentado por Maruca Sosa (1957, p.261), existem
pinturas rupestres com representações similares as que a
Adriana Xaplin pintou e o cacique Guaimá se apropriou
como sendo imagens
“legítimas
da
sua memória
Charrua”.
Figura 28: Pictografias: Arroio Del Chamanga Augustin
Larrauri (1905 )
64
É necessário destacar que os Charrua não permitiram que os murais fossem fotografados,
mas as ilustrações comentadas encontram-se nas paredes da residência de Acuab.
216
Figura 29: Pictografias: Arroio Del Chamanga, Uruguai, Augustin Larrauri (1905)
217
Figura 30: Painéis: Adriana Xaplin Aldeia Charrua (Jul./2008)
Como se pode observar, as mesmas imagens
encontradas por Augustin Larrauri (1905), no Arroio Del
Chamanga, foram reproduzidas por Xaplin nos painéis na
aldeia Charrua. A autora, baseada em Maruca Sosa (1957,
p.125), considerou as representações como arte Charrua. É
importante destacar que estas mesmas figuras geométricas
são expressas nos artesanatos que os Charruas estão
confeccionando, ou seja, nas faixas para o cabelo, nas
pulseiras e tornozeleiras. O cacique Guaimá ao mostrarme seu quillapí enfatizou que o considera um símbolo da
cultura Charrua, afirmando, ainda que ele mesmo o
confeccionou. No entanto, observa-se que a autoria dos
desenhos também pertence à Adriana Xaplin
que
provavelmente, as retirou das ilustrações de Paul Rivet
(1930), publicadas em Maruca Sosa (1957, p.270- 275).
218
Figura 31: Reconhecimento dos Charrua pela FUNAI (Nov. 2007)
Foto: Élson Sepé
Figura 32: Imagem: Guyunusa e Tacuabé vestindo o quillapí. Paul
Rivet “Les Derniers Charrua (1930)
Como se pode observar nas imagens acima, Acuab
veste quillapí similar ao da índia Guyunusa, porém com
desenhos geométricos ilustrados nas cartas do baralho
de truco confeccionadas em couros bovino e eqüino.
Segundo Paul Rivet (1930), a autoria dessas cartas é
atribuída ao índio Charrua Tacuabé. Trata-se de desenhos
simples, no entanto muito originais, que o artista indígena
elaborou inspirado nos naipes espanhóis que já possuíam
devido ao intercâmbio com os espanhóis por objetos
219
indígenas, ou por serviços prestados. Os baralhos originais
foram estudados por Dumoutier no ano 1833. A imagem
foi adquirida por Luis A. Musso do livro “Lês derniers
Charruas”. Estas cartas não existem mais no Museo do
homem, provavelmente foram destruídas na invasão das
águas do Rio Sena, que inundou o subsolo do Museu
(RIVET, 1930 apud SOSA, 1957, p.270).
Figura 33: Baralho Charrua, confeccionado por Tacuabé Paul Rivet (1930)
Assim como os atuais Charrua do Rio Grande do
Sul, o grupo Charrua do Uruguai também está construindo
a sua própria identidade através de um conjunto de
comportamentos coletivos e de elementos culturais que
selecionaram como símbolos da cultura dos seus
ancestrais. Como se mencionou no primeiro capítulo dessa
220
pesquisa, no Uruguai, até o massacre de Salsipuedes, os
Charrua eram percebidos como vilões, selvagens,
indomáveis e saqueadores de gado. Após esse triste
acontecimento, os índios Charrua tornaram-se um
símbolo nacional e representam para a população uruguaia
o espírito de luta, a “garra Charrua”, como um dos
elementos da sua identidade. (HILBERT, 2001, p.113). As
pessoas que se denominam Charrua no Uruguai
confeccionam artesanatos e inserem em seus objetos as
mesmas imagens da arte rupestre do Arroio Del
Chamanga. Ou seja, os dois grupos Charrua apropriaramse do contexto arqueológico pré-histórico como um
elemento patrimonial da identidade indígena, mesmo que
de fato essa arte não possa ser atribuída diretamente aos
Charrua. Na imagem a seguir, visualizam-se os símbolos
do Centro de pesquisa de Arte Rupestre do Uruguai.
Figura 34: Centro de Pesquisa de Arte Rupestre do Uruguai
No Uruguai, como se sabe, os Charrua são
considerados heróis, ou seja, tornaram-se um símbolo da
nacionalidade uruguaia; porém, esta imagem, construída
221
muitas vezes, é utilizada em beneficio próprio. Pois, além
das pessoas que se reconhecem como Charrua e utilizam
esta identidade étnica no processo de reivindicações de
terras, os artesões também se aproveitam desta imagem
construída para comercializar seus objetos. Nas garrafas
cerâmicas a seguir, pode-se observar que o artesão, assim
como a escultora Adriana Xaplin, associou a arte rupestre
aos Charruas.
Figura 35: Artesanato: Arte Rupestre em garrafas no Uruguai Arte Rupestrewww.oaso.com.br
222
Ao longo desta pesquisa, compreende-se que a
memória dos atuais Charrua está diretamente relacionada
à necessidade de construção da sua identidade étnica.
Nesse processo construtivo, eles se apropriam dos
diversos elementos materiais e imateriais que consideram
serem originários dos seus ancestrais, elaborando sobre
eles uma narrativa simbólica e auto- afirmativa. Os
objetos arqueológicos e etnográficos no contexto da
atual aldeia Charrua tornam-se índices simbólicos da sua
identidade étnica, levando-os a buscar uma memória
sobre seus ancestrais. Como afirmou Michael Pollack
(1992), ao caracterizar a relação entre memória e
identidade, a memória é um fenômeno construído
(consciente ou inconsciente) como resultado do trabalho
de organização (individual ou socialmente). A memória é
para Pollack um elemento constituinte do sentimento de
identidade, tanto individual como coletiva, é também um
fator extremamente importante do
sentimento
de
continuidade de uma pessoa ou de um grupo em sua
reconstrução. Pollack, referindo-se a identidade, definea como a imagem que a pessoa adquire ao longo da vida
relativa a si mesma, a imagem que ela constrói e apresenta
aos outros e a si própria para acreditar na sua própria
representação e também para ser percebida da maneira
que quer por outros. O autor destaca, ainda, que a
construção da identidade é um fenômeno que se produz
em referência aos critérios de aceitabilidade, de
223
admissibilidade, de credibilidade e que se faz por meio
da negociação direta com outros. Memória e identidade
são valores disputados em conflitos sociais e intergrupais
e em conflitos que opõem grupos políticos diversos.
Nelly García Gavidia (1996) destaca que as
identidades são produzidas e configuradas em um jogo de
dinâmicas
coletivas
que
regem
o
social
na
intersubjetividade, implicando os atores sociais. Ou seja,
são reconstruções parciais e contínuas e estão sujeitas a
constantes modificações, reinvenções e negociações. Cada
autor social vai configurando, em sua experiência de vida,
uma multiplicidade de identidades, dependendo do grau de
pertencimento do indivíduo a múltiplos agrupamentos
sociais, que esteja em disposição permanente de recompor
e definir seus entornos identitários (GAVIDIA, 1996, p.11).
224
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Mas tengo por çierto que de aquella arma.., que los indios
usan en las comarcas y costas del Rio Paranaguai (Alias Rio
de la Plata), nunca los chrispstianos la supieron, leyeron, ni
los moros la alcançaron, ni antiguos ovieron notiçia, ni se hay
oydo ni visto otra en todas las armas sivas tan dificultosa de
exerçitar; porque aun donde los hombres la usan, los menos
son hábiles para la exerçer (OVIEDO, 1851 apud
GONZÁLEZ, 1953, p.1).
São poucos os trabalhos que se dedicaram a contar a
história das boleadeiras, armas de arremesso de origem
indígena Sul Meridional. Até o presente momento, o
trabalho mais detalhado consultado foi a monografia
elaborada por Alberto Rex González (1953), mencionada
por diversas vezes nesta pesquisa. Em sua obra, o
arqueólogo se dedicou a compreender as tipologias e as
áreas de dispersão das boleadeiras. Nesta dissertação,
entende- se que as boleadeiras possuem outros aspectos
científicos a serem revistos, ampliados e aprofundados.
Sendo assim, o principal interesse foi tratar de seus atuais
significados
simbólicos
no
contexto
cultural
Sul
Meridional. De uma forma ativa, procurou-se conhecer a
importância das boleadeiras na construção da tradição
gaúcha, ou seja, perceber como os gaúchos se apropriaram
deste elemento indígena pampeano na constituição e
afirmação da sua identidade. Visando alcançar este
objetivo, apresentou-se, no capítulo 1, a etnografia que se
realizou com os gaúchos na cidade de Uruguaiana/ RS.
225
Considerou-se a metodologia etnográfica como
eficaz e necessária na medida em que permite a inovação
do olhar do arqueólogo que busca perceber a relação das
pessoas com os seus objetos. A partir do trabalho de campo
com os gaúchos em Uruguaiana/RS, foi possível conhecer
diferentes olhares e diversas histórias sobre as boleadeiras
preservadas na memória dos trabalhadores rurais e do
gaúcho da cidade. Com o objetivo de preservar estas
lembranças já pouco trabalhadas, optou-se por transformar
suas narrativas em textos. Desse modo, apresenta-se a
seguir uma breve revisão dos resultados obtidos, já
mencionados ao longo do trabalho.
Ao serem analisados os discursos dos peões
campeiros, pode-se identificar que as boleadeiras são
para eles um símbolo que compõe, transforma e
representa sua tradição gaúcha. As boleadeiras, no atual
contexto do homem do campo, são consideradas
patrimônios familiares herdados de pais para filhos como
um objeto simbólico e afetivo. É viável mencionar que a
boleadeira é para este gaúcho um artefato biográfico, pois
está repleta de lembranças do contexto em que viveram
seus ancestrais, ou seja, a boleadeira possui uma agência
simbólica na vida das pessoas na medida em que as faz
lembrar de um passado interiorizado em sua memória. Ao
analisar o discurso do gaúcho da cidade, percebe-se que
este possue um olhar diferenciado sobre as boleadeiras, ou
seja, como ele não trabalhou no campo, a boleadeira não
226
o remete a um passado vivenciado. Para o entrevistado, a
boleadeira é um símbolo que representa a tradição
riograndense; no entanto, ele considera que os gaúchos
utilizam este artefato nas festas campeiras e nos desfiles
em comemoração ao 20 de setembro como um elemento
que afirma e fortalece a sua cultura.
Com
relação
à
construção
do
vestuário
tradicionalista, entende-se que as boleadeiras foram
escolhidas como elementos simbólicos que representam
um resgate da tradição de seus ancestrais. Desta maneira,
as boleadeiras dos indígenas foram mantidas no contexto
do gaúcho como uma força simbólica que os faz relembrar
e refletir sobre a formação do Rio Grande do Sul. Através
da utilização da teoria do “efeito de Diderot e na unidade
Diderot” abordada
por
Grant
McCracken
(2003),
compreende-se a harmonia das boleadeiras com o corpo
e o contexto social do gaúcho. Analisando as vestimentas e
os instrumentos de trabalho do gaúcho do campo, percebese que ele escolheu utilizar elementos que estivessem
relacionados com o ambiente em que vive. Pode-se
afirmar
que,
na
maioria
das
vezes,
o conjunto
indumentário do gaúcho é confeccionado com couro
retirado dos animais criados para o consumo nas estâncias
onde trabalham, ou seja, está relacionado com o seu
cotidiano, mantendo assim a consistência cultural interna.
Entre os objetos elaborados com esta matéria prima local,
pode-se citar as boleadeiras, o laço, o tirador, a guaiaca,
227
as botas, etc. Outro elemento da indumentária do gaúcho
analisado nesta pesquisa é a harmonia das bombachas
largas com o uso das boleadeiras e do laço no cotidiano
do peão campeiro. Através da narrativa dos informantes,
conclui-se que as atividades rurais como montar, laçar e
bolear os animais exige do homem muita agilidade e
flexibilidade. Desse modo, os gaúchos afirmam que foi
necessária a inserção da bombacha larga na sua
indumentária por lhes proporcionar a sensação de
liberdade.
No folclore gaúcho, identifica-se a ampla expressão
simbólica das boleadeiras, evidenciando a utilização do
artefato na dança conhecida como Malambo, sendo a
principal atração das churrascarias do Sul Meridional.
Constata-se
que,
atualmente,
este
culto
ao
tradicionalismo através da boleadeira é difundido pelo
Brasil e exterior como uma extensão da cultura e da
identidade gaúcha.
Ao se pensar na relação das pessoas com os objetos,
identifica-se a dimensão pessoal das boleadeiras através da
análise do seu potencial simbólico. Durante a etnografia,
percebeu- se que algumas pessoas expõem as bolas de
boleadeiras nas estantes e lareiras, transformando o
artefato em um índice cultural. Nessa perspectiva, podese constatar que a boleadeira manifesta seus significados
simbólicos na medida em que interage com as pessoas
e as pessoas com elas, através de fragmentos de uma
228
memória construída sobre seus ancestrais indígenas.
Compreende-se que os gaúchos consideram as bolas de
boleadeiras arqueológicas como um testemunho material
da ocupação indígena nos pampas riograndenses e
também como um símbolo da bravura e da força gaúcha.
Os atuais instrumentos de boleadeira exposto nas
salas das casas e nos CTGs interagem com as pessoas
através da sua agência simbólica. Para se evidenciar esses
aspectos, utilizaram-se as idéias de Alfred Gell (1992), que
afirma que os objetos também exercem uma agência sobre
as pessoas. Ao se analisar a agência simbólica das
boleadeiras, considera-se-as como um patrimônio cultural,
simbólico e convencional Sul Meridional, pois estão
interiorizadas na memória coletiva das pessoas de uma
mesma região. As entrevistas possibilitaram confirmar a
hipótese central desta pesquisa, em que se afirma que a
boleadeira é um artefato de origem indígena pampeana que
permanece no contexto do gaúcho num processo histórico
contínuo, porém com novos significados. Os resultados
alcançados permitem considerar esta etnografia como um
“resgate da memória” dos gaúchos. É viável ainda se
ressaltar que suas lembranças estavam relacionadas à vida
no campo, às rodas de chimarrão, às corridas de cavalo, à
história dos ancestrais indígenas, ao trabalho com o gado
bravo, à confecção e ao manejo das suas boleadeiras.
No capítulo 2, o objetivo foi conhecer as narrativas
dos arqueólogos em relação aos artefatos de boleadeiras
229
encontrados em suas pesquisas de campo. Dessa forma,
identificou-se que os arqueólogos continuam dedicando
pouca atenção à história das boleadeiras e adotando a
metodologia de outros pesquisadores para resolver os
seus questionamentos científicos. Observou-se que a
grande maioria dos arqueólogos continua utilizando a
classificação taxionômica criada pelo arqueólogo Rex
González (1953), pois ao encontrar as boleadeiras nos
sítios
arqueológicos
descrevem
apenas
suas
características tipológicas e funcionais. É necessário
destacar que esta dissertação não possue o interesse de
criticar ou desmerecer a importante obra cientifica de
González (1953), que também foi utilizada para se
analisar e descrever as tipologias que se consideraram
mais características. O objetivo é propor e também
incentivar um novo olhar para o estudo das boleadeiras,
abordando o seu potencial simbólico no contexto cultural
Sul Meridional.
A minuciosa análise dos trabalhos de alguns
reconhecidos etnohistoriadores como Acosta y Lara
(1961) (1969/70) e Ítala Becker (1982) permitiu conhecer
outros olhares sobre as
bolas
de
boleadeiras no
contexto dos índios pampeanos. Pode-se afirmar que,
diferentemente da maioria dos arqueólogos,
estes
pesquisadores buscam nas fontes históricas, etnohistóricas,
etnográficas e antropológicas outras informações para
explicar o cotidiano doméstico e social das etnias
230
indígenas do Sul Meridional. O interesse ao revisar as
pesquisas de Acosta y Lara (1961 e 1969/1970) e Ítala
Becker (1982) foi conhecer o caminho que estes
etnohistoriadores percorreram para construir uma história
analítica e cronológica dos índios Charrua e Minuano. As
obras dos etnohistoriadores demonstram que eles tiveram
acesso às importantes e preciosas fontes dos cronistas e
viajantes do Rio da Prata, evidenciando ainda que eles, do
mesmo modo que os arqueólogos, também trocam
informações entre si, o que proporciona uma consistente
narrativa étnica sobre os índios pampeanos. Com base
nos trabalhos dos etnohistoriadores, no capítulo 2 desta
dissertação, também são comentados
os diferentes
momentos vividos pelos índios Charrua e Minuano.
Entretanto, nestas considerações finais, apresentam-se
somente alguns aspectos sobre a temática, já discutida ao
longo do capítulo:
Acosta y Lara (1961 e 1969/1970) e Ítala Becker
(1982) concordam que os índios Charrua e Minuano
possuíam semelhanças físicas, econômicas e culturais;
porém, tratavam-se de duas parcialidades indígenas
diferenciadas que seguem líderes independentes e ocupam
espaços separados na antiga Banda Oriental do Uruguai.
Os autores afirmam que, devido à invasão colonizadora
em seu território, ocorreram deslocamentos; entretanto,
suas posições originais sempre estiveram relacionadas à
Banda Oriental do Uruguai. Os etnohistoriadores também
231
concordam que, após a colonização, os índios Charrua e
Minuano continuaram sendo caçadores coletores e que seu
território, dividido entre as fronteiras portuguesa e
espanhola, continuou por quase dois séculos sendo
considerado terra sem dono. Esta certa liberdade em
permanecer em seu território permitiu que os indígenas
evitassem
por
longos
anos
as
imposições
dos
colonizadores estancieiros que buscavam mão de obra
indígena para o trabalho com o gado. Através do contato,
os indígenas tiveram acesso aos novos
elementos
inseridos pelo colonizador; inicialmente, o cavalo com o
qual se tornaram excelentes jóqueis, motivo pelo qual eram
tão solicitados para o trabalho com o gado nas estâncias.
Os Charrua, dominando a montaria, usavam o laço e as
boleadeiras para saquear o gado das fazendas dos
colonizadores. Com base nos relatos dos cronistas, os
etnohistoriadores afirmam que, até o final do Séc. XVIII e
início do XIX, os espanhóis e portugueses ocupavam
definitivamente o território, dominando cada vez mais os
espaços dos indígenas. Com o domínio do gado pelos
fazendeiros, os indígenas não encontraram outra escolha a
não ser empregarem-se nas estâncias como peões
campeiros. Nessa medida, é viável comentar que, durante
este processo de trocas culturais, as boleadeiras foram
introduzidas nas estâncias, tornando-se uma arma
fundamental no cotidiano doméstico do peão campeiro e
um elemento simbólico indispensável na construção da
232
identidade gaúcha.
Acosta y Lara (1969/70), que estudou os diferentes
momentos da história dos índios Charrua, destaca que,
com a intensificação da colonização, os indígenas se
recusaram a viver aldeados e a servir os estancieiros, o
que provocou inúmeras disputas pelo espaço. Outro
aspecto que contribuiu para a desorganização da vida
indígena foram as epidemias de varíola que reduzem
amplamente esta população.
A decisão dos pampeanos em continuar a sua vida
nômade, no espaço agora pertencente aos colonizadores,
leva o General Fructuoso Rivera, que estava sendo
pressionado pelos proprietários de terras, a preparar a
emboscada de Salsipuedes, em 11 de abril de 1831, onde
os índios Charruas foram atraídos e mortos a fio de
espada. Acosta y Lara (1969/70) reúne documentos nos
quais o governo uruguaio tenta justificar esta atitude,
declarando que, devido a insistência dos índios Charrua
em continuarem na barbárie, não restou alternativa a não
ser enviar um corpo de expedicionários que restabelecesse
a ordem e a legalidade na vida rural. Ao perceberem que
os indígenas não se sujeitavam as suas ordens, a solução
que o General Rivera encontrou foi armar uma cilada, ou
seja, o massacre de Salsipuedes. O extermínio foi
considerado por Rivera como única e necessária solução
para a desordem e a barbárie dos índios Charrua que
representavam o atraso no desenvolvimento econômico do
233
país. Acosta y Lara (1961) (1969/70) como se mencionou
anteriormente pesquisou a história dos índios Charrua
dentro de uma narrativa analítica e cronológica. Ao longo
deste trabalho, abordaram-se os diferentes momentos da
história dos índios Charrua na Banda Oriental do Uruguai.
Entre os diversos acontecimentos, comentou-se a Guerra
dos Charrua na Banda Oriental Período Hispânico, a
participação dos Charrua na Guerra Guaranítica (1754),
os Charrua e Minuano no avanço Português (1801), além
de se dicutir profundamente os aspectos aqui apresentados
referentes à Guerra dos Charrua na Banda Oriental Período
Pátrio. No capítulo 2, também foram abordadas as
etnografias do antropólogo Antonio Serrano que estudou
os diferentes grupos indígenas que habitaram a Antiga
Província do Uruguai (1936) e os Aborígenes Argentinos
(1947). O autor construiu uma história do cotidiano e
dos costumes das etnias indígenas durante a conquista.
Serrano ao revisar as fontes históricas considera que a vida
dos indígenas foi marcada por diversas transformações
culturais; além disso, afirma que a colonização foi a
principal responsável pelas mudanças no modo de vida
primitivo. Neste trabalho, discutiram-se somente as
parcialidades indígenas que, de acordo com o antropólogo,
utilizaram as boleadeiras. Entre elas, pode-se mencionar os
Charrua,
Minuano,
Guénaken,
Patagones ou Chónecas.
234
Querandi,
Pampas,
Ainda no capítulo 2, procurando conhecer o olhar
dos cronistas sobre as boleadeiras dos índios pampeanos,
observou-se que, do mesmo modo que os arqueólogos e
antropólogos, eles também trocaram informações entre si.
Pois seus diários demonstram que os cronistas mais
recentes se apropriam dos relatos dos primeiros visitantes
ao Rio da Prata para construírem suas próprias narrativas
sobre os indígenas. Além das diversas questões discutidas
e
esclarecidas
neste
capítulo,
identificaram-se
e
resolveram-se os aspectos tipológicos e funcionais das
diferentes bolas de arremesso.
No capítulo 3, realizou-se uma etnoarqueologia na
aldeia Polidoro Povo Charrua em Porto Alegre/RS.
Inicialmente, buscaram-se nos trabalhos arqueológicos
que utilizaram a mesma metodologia informações teóricas
sobre as bases conceituais desta subdisciplina
da
antropologia. Após consultarem-se as diferentes fontes,
identificou-se
que
a etnoarqueologia
vem
sendo
amplamente utilizada como um guia na construção das
pesquisas que envolvem a narrativa das sociedades vivas
para a compreensão dos vestígios do passado. Com um
olhar etnoarqueológico, procurou-se compreender o grupo
Charrua que voltou a ser reconhecido pela Fundação
Nacional do Índio - FUNAI, em setembro de 2007. O
primeiro contato com os indígenas ocorreu em agosto de
2008, através da disciplina intitulada Etnologia Indígena e
Arte, ministrada pelo antropólogo Sérgio Baptista
235
(UFRGS), que solicitou como avaliação uma etnografia
indígena. Ao longo das aulas, decidi que, no lugar de fazer
uma
etnografia,
poderia
aplicar
a
metodologia
etnoarqueológica na aldeia Charrua e transformar esta
avaliação no terceiro capítulo da dissertação. Ao
estabelecer os primeiros contatos com o grupo de pessoas
que se reconhecem como Charrua, pode-se constatar que
estes indígenas se organizaram em torno dos seus antigos
costumes e se apropriaram dos elementos que consideram
típicos da cultura indígena como uma forma de construir e
afirmar a sua identidade étnica.
Durante as visitas à aldeia Charrua, localizada na
Lomba do Pinheiro Parada 38 em Porto Alegre/RS, tive a
oportunidade de participar de uma reunião com os
representantes da FUNAI. Neste dia, os indígenas
expuseram
na
varanda
da
casa
alguns
artefatos
arqueológicos e outros etnográficos dos quais se
apropriaram como sendo legítimos Charrua. Entre os
objetos que o grupo escolheu para afirmar a sua
descendência Charrua, foi possível observar que as
boleadeiras são as peças que mais se destacam na sua
narrativa étnica e simbólica. Através do discurso da
Cacique Acuab, pode-se afirmar que as bolas de
boleadeiras arqueológicas representam para o povo
Charrua a comprovação da existência de seus ancestrais
guerreiros (Cacique Acuab, comunicação pessoal, agosto
de 2008).
236
Nesta
pesquisa,
considera-se
que
os Charrua
possuem diferentes maneiras de se apresentar como
indígenas, ou seja, percebe-se que eles sentem uma maior
necessidade de se auto-afirmarem indígenas para os órgãos
institucionais. Exemplo disso foi a maneira como
receberam os representantes da FUNAI, pois além de
apresentarem uma narrativa étnica, simbólica e autoafirmativa, os indígenas estavam vestidos a caráter, com
cocares, colares, corpo pintado e até dançaram para os
visitantes. No entanto, quando se apresentam para os
pesquisadores, eles também se reconhecem como
legítimos
Charrua,
porém
buscam adquirir outros
conhecimentos sobre a história do seu povo. Nesta
pesquisa, considera-se que provavelmente os Charrua
trocam informações com os pesquisadores, fortalecendo
assim a sua narrativa étnica. Outro aspecto que foi
abordado é a maneira que os indígenas se apropriaram
dos murais etnográficos pintados pela escultora Adriana
Xaplin que consultou a obra de Maruca Sosa (1954) e
associou as imagens da arte rupestre presente nos sítios
arqueológicos uruguaios à cultura Charrua.
Os painéis expressam cenas de caça, de guerra, do
cotidiano etc., e foram elaborados para as gravações do
documentário “Perambulantes. A vida do povo de Acuab
em Porto Alegre”, lançado no auditório da UFRGS, em
dezembro de 2008. No entanto, o Cacique Guaimá afirma
serem representações próprias da sua memória Charrua.
237
Nesse sentido, no capítulo 3, procurou-se identificar onde
este grupo está buscando referências para construir esta
nova identidade Charrua, já que durante os diálogos eles
negaram qualquer consulta
às fontes etnográficas,
etnohistóricas ou antropológicas. Discutiu-se, ainda, a
provável criação desta memória Charrua, devido ao longo
período de rompimento cultural entre o atual grupo e seus
possíveis ancestrais, exterminados nos massacres de
Salsipuedes e Mataojos no Uruguai.
O estudo do simbolismo das boleadeiras no atual
contexto do gaúcho levou a conclusão que o artefato que
se originou no cotidiano das etnias indígenas pampeanas
tornou- se patrimônio cultural e simbólico que constrói e
afirma a identidade dos gaúchos do Rio Grande do Sul,
Argentina e Uruguai. As entrevistas realizadas permitiram
conhecer a agência simbólica das boleadeiras na vida do
gaúcho na medida em que os faz relembrar de histórias
preservadas na sua memória cultural. Foi possível
observar também que a incorporação
das bolas de
boleadeiras arqueológicas no cotidiano dos Charrua do
presente, independente de uma continuidade histórica
entre eles e as pessoas que as confeccionaram, é utilizada
como um índice de manutenção da sua identidade étnica
na medida em que são objetos que falam para eles sobre os
seus ancestrais e contribuem para construção da sua
memória cultural.
A ampla revisão bibliográfica realizada para a
238
construção desta dissertação demonstra que a arma que
despertou a atenção dos cronistas dos diferentes períodos
históricos pela sua temível eficácia nas mãos indígenas
trata-se da boleadeira. Assim, pode ser considerada como
uma das armas de arremesso mais antigas do Sul
Meridional.
Através
da
utilização
das metologias
etnográficas e etnoarqueológicas, foi possível conhecer os
significados simbólicos e funcionais das boleadeiras nos
diferentes contextos sociais. Porém, observou-se que,
devido a raridade de pesquisas sobre a temática das
boleadeiras, existem muitos outros aspectos a serem
analisados e compreendidos. Nesse sentido, considera-se
esta dissertação apenas o primeiro passo para os futuros
olhares arqueológicos, que além de abordarem os
aspectos tipológicos e funcionais dos artefatos de
boleadeiras, estejam interessados em desvendar seus
significados simbólicos.
239
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