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Entre redes e ruas

Indisciplinar

Os anos 1980 são marcados por uma nova razão de mundo. Esta, juntamente com outros dois elementos com os quais se articula, passa a estruturar as disputas de poder. São eles: o neoliberalismo, a globalização e a internet, que se desenvolvem, com as transformações da técnica, como bases de uma outra composição social. Este artigo traz reflexões sobre as possibilidades de uma resistência antiglobalização – ou por uma outra globalização – que articula rua e rede, local e global, e subverte a ordem vigente usando ferramentas próprias do arcabouço hegemônico. Essa resistência trabalharia em rede, disputando narrativas e desvencilhandose da vigilância dos poderes instituídos. Conseguem esses novíssimos movimentos sociais criar espaços de autonomia ou são engolidos pelas metamorfoses capitalistas? Busca-se tocar em algumas dessas questões analisando, especialmente, o 15M espanhol, que se articula com outros levantes do novo ciclo de lutas, como a Primavera Árabe, o Occupy Wall Street e as ...

artigos Entre redes e ruas: Tecnopolíticas dos novíssimos movimentos sociais Among networks and streets: Technopolitics of the newest social movements Maíra Ramírez Nobre, Jéssica Dayane de Abreu Borges, Natacha Silva Araújo Rena* Resumo Abstract Os anos 1980 são marcados por uma nova razão de mundo. Esta, juntamente com outros dois elementos com os quais se articula, passa a estruturar as disputas de poder. São eles: o neoliberalismo, a globalização e a internet, que se desenvolvem, com as transformações da técnica, como bases de uma outra composição social. Este artigo traz reflexões sobre as possibilidades de uma resistência antiglobalização – ou por uma outra globalização – que articula rua e rede, local e global, e subverte a ordem vigente usando ferramentas próprias do arcabouço hegemônico. Essa resistência trabalharia em rede, disputando narrativas e desvencilhandose da vigilância dos poderes instituídos. Conseguem esses novíssimos movimentos sociais criar espaços de autonomia ou são engolidos pelas metamorfoses capitalistas? Busca-se tocar em algumas dessas questões analisando, especialmente, o 15M espanhol, que se articula com outros levantes do novo ciclo de lutas, como a Primavera Árabe, o Occupy Wall Street e as Jornadas de Junho de 2013. In the 1980’s a new way of the world arise. Three elements start to structure the power disputes. They are the neoliberalism, the globalization and the internet, which, with technical transformations, led to another social stratification. This paper debates the possibilities of an alter-globalization movement. This mobilization would articulate public space and network, local and global, and subvert the dominant order using its own tools. This resistance would operate in a network, fighting for narratives and escaping from surveillance. Do these brand new social movements create a space of autonomy or are they swallowed up by capitalism adjustments? This paper seeks to enlighten these issues spotlighting the Spanish 15M, which articulates other uprising of the new cycle of protest, as Occupy Wall Street and 2013 movements in Brazil. Palavras-chave: globalização por novíssimos movimentos sociais; tecnopolíticas; 15M. baixo; redes; Keywords: Alter-globalization; brand new movements; networks; technopolitics; 15M. social indi scip lina r Introdução Enganar-se sobre a verdadeira natureza do neoliberalismo, ignorar sua história, não enxergar suas profundas motivações sociais e subjetivas era condenar-se à cegueira e continuar desarmado diante do que não ia demorar a acontecer: longe de provocar o enfraquecimento das políticas neoliberais, a crise conduziu a seu brutal fortalecimento, na forma de planos de austeridade adotados por Estados cada vez mais ativos na promoção da lógica da concorrência dos mercados financeiros. Parecia-nos, e hoje nos parece mais do que nunca, que a análise da gênese e do funcionamento do neoliberalismo é condição para uma resistência eficaz em escala europeia e mundial. (DARDOT e LAVAL, 2016, p. 13-14) Com esse texto, Pierre Dardot e Christian Laval abrem o livro A nova razão do mundo. Ensaio sobre a sociedade neoliberal, chamando a atenção para a crise que envolve a falência do banco Lehman Brothers em setembro de 2008. Os autores atentam para a importância de dissecar a lógica normativa global do neoliberalismo, ou seja, defendem que é preciso compreendê-lo como estratégia universal. Essa nova razão, segundo os autores, difere de uma simples refundação teórica do liberalismo tradicional porque tem uma fundamental articulação com a globalização e a financeirização do capitalismo. Essas não poderiam se estruturar de tal maneira, não fossem as transformações da técnica que levaram à convergência dos momentos e, mesmo, do espaço. As técnicas da informação permitiram a aceleração das trocas nos mercados internacionais e chegaram também, com a capilarização da internet nos anos 2000, a níveis de comunicação mais baixos, como de mensagens interpessoais e de organização política. Essa articulação entre neoliberalismo, globalização e internet se revela na onda de manifestações que foi ativada paulatinamente pela crise do capitalismo ocorrida em 2008[1] em diferentes partes do mundo. Os protestos explodiram com mais força em 2011, com a Primavera Árabe, seguida do 15M na Espanha e do Occupy Wall Street nos Estados Unidos. No caso do Brasil, essa onda chegou em 2013, quando eclodiram as Jornadas de Junho. Tais eventos tinham como características centrais: a relação entre as escalas local e global e a forma como foram 236 se conectando em rede. Era principalmente através das redes sociais que esses levantes[2] acabavam contaminando não somente o território nacional, mas também protestos em outros países. Essas insurgências que tomaram redes e ruas mundo afora apresentaram, além das características supracitadas, outras semelhanças que serão abordadas ao longo deste texto: (i) foram impulsionadas pela crise do capitalismo; (ii) apresentam relações de ordem global, ou seja, estão vinculadas ao processo de globalização; (iii) são formadas primordialmente por conexões em rede, o que elucida a importância da internet para esse contexto. Desses três pontos, podem-se extrair três elementos base: (i) o neoliberalismo; (ii) a globalização; (iii) a internet. A partir dessa configuração, pretende-se aqui compreender como se dão as resistências múltiplas dentro desse novo ciclo de lutas global pós crise econômica de 2008. O artigo aqui apresentado é formado por quatro momentos que se relacionam localizados entre esta introdução e as considerações finais: (i) Neoliberalismo e globalização; (ii) Seria uma ‘outra globalização’ possível?; (iii) A internet e as lutas; (iv) Os movimentos sociais em rede. Em um primeiro momento, neoliberalismo e globalização são discutidos como base e contexto para, então, investigaremse as mobilizações do novo ciclo de lutas e suas estratégias de atuação, vinculadas, principalmente, ao uso da internet e a outras tecnologias ligadas à globalização. Os momentos subsequentes se baseiam na possibilidade ou não de existência de uma outra construção da globalização. A introdução a esse conteúdo é dada, então, na sessão de nome “Seria uma ‘outra globalização’ possível?;” que, além da temática base, inicia o debate sobre a atuação dos movimentos sociais em rede por meio de diferentes abordagens que emergem ao longo do texto. São elas: os modos de agenciamento entre redes e ruas, as plataformas utilizadas para essas associações, as articulações local-global, as pautas e as formas e estratégias de organização desses grupos. O próximo tópico apresenta um breve estudo sobre o funcionamento da internet e a forma como ela pode ser compreendida como uma ferramenta para as lutas analisadas. Por fim, após a construção desse debate, dedica-se um tópico específico para a análise dos novíssimos movimentos sociais, com destaque para o 15M, ocorrido na Espanha. 237 indi scip lina r É importante ressaltar que este texto é composto por mais perguntas que formulações de hipóteses ou respostas. Trata-se de uma escolha metodológica que parte de questionamentos fundados, principalmente, em Foucault (2005), Deleuze e Guattari (1996) e Latour (2011) e que pode ser melhor compreendido mediante a leitura do artigo Método Cartográfico Indisciplinar: da topologia à topografia do rizoma[3], escrito por Marcela Lopes, Natacha Rena e Ana Isabel de Sá. Neoliberalismo e globalização Em uma sociedade conectada em rede, principalmente com uso da internet, compreende-se que a globalização neoliberal não apenas dificulta a identificação dos principais mecanismos de expropriação por parte das elites ocidentais transnacionais – expropriação da renda, do trabalho, da vida, dos desejos, das políticas públicas sociais, dos direitos trabalhistas, da autonomia dos povos, das riquezas naturais, dos direitos sociais. Ela também possibilita a organização de redes que agenciam múltiplos atores, movimentos, ONGs e pautas de resistência. Por um lado, na sociedade industrial, fordista, a luta de classes se dava de forma clara entre operário e burguês, trabalhador e patrão, explorado e explorador. Atualmente, entretanto, em uma sociedade ocidental pós-industrial, flexível, criativa, própria da neoliberalização generalizada da vida, torna-se mais difícil promover lutas coesas com objetivos bem delimitados. A imbricação de movimentos sociais com ONGs internacionais em países periféricos seria, já de partida, um ótimo exemplo da complexidade envolvida nos estudos que querem definir onde estão os exploradores e os explorados, já que se articulam de modos transversais para além do empregador x empregado, produtor x consumidor, dono dos meios de produção x trabalhador. Onde está a exploração? Nos juros de cartão de crédito? Na transferência de recursos públicos para o mercado via Parcerias Público-Privadas? Contra-quem, como e com quem resistir? Acredita-se que para iniciar uma resposta a essas questões seria preciso compreender que o neoliberalismo é uma razão de mundo, ou seja, nada escapa a ele, já que se manifesta de maneira singular em cada situação. O neoliberalismo é mais que uma evolução do liberalismo, como lembram (DARDOT e LAVAL, 2016). Não se trata de um Estado mínimo e muito menos da lógica do laissez faire, laissez passer. Ao 238 contrário, há uma manutenção de um Estado influente a serviço do capital, no qual as medidas sociais são deixadas de lado, em prol de uma subserviência aos interesses mercadológicos. Para os autores, trata-se da incorporação de uma forma de gestão empresarial para a organização do Estado e dos sujeitos, na qual responsabilidades e riscos são assumidos por esses dois grupos e eximidos do mercado. Não é abordada aqui uma mera relação de monocausalidade (da ideologia até a economia ou vice-versa), mas sim de uma multiplicidade de processos heterogêneos que têm conduzido, em virtude de apoio recíproco, à coesão e à integração em efeito global que visa à instauração de uma nova racionalidade governamental. Trata-se de um sistema de normas já profundamente inscritas em práticas governamentais, em políticas institucionais, em estilos empresariais, que levou a cabo uma extensão gigantesca da lógica do mercado especialmente produzindo subjetividade contábil mediante o procedimento de fazer competir sistematicamente indivíduos entre si. Não é nossa intenção contestar a existência e a difusão dessa ideologia, tampouco negar que ela tenha alimentado as políticas econômicas impulsionadas maciçamente a partir dos anos Reagan e Thatcher e encontrado em Alan Greenspan, o ‘maestro de Wall Street’, seu adepto mais fervoroso - com as consequências que todos conhecemos. Mas o neoliberalismo está muito distante de se resumir a um ato de fé fanático na naturalidade do mercado. O grande erro cometido por aqueles que anunciam a ‘morte do liberalismo’ é confundir a representação ideológica que acompanha a implantação das políticas neoliberais com a normatividade prática que caracteriza propriamente o neoliberalismo. Por isso, o relativo descrédito que atinge hoje a ideologia do laissez-faire não impede de forma alguma que o neoliberalismo predomine mais do que nunca enquanto sistema normativo dotado de certa eficiência, isto é, capaz de orientar internamente a prática efetiva dos governos, das empresas e, para além deles, de milhões de pessoas que não têm necessariamente consciência disso. Este é o ponto principal da questão: como é que, apesar das consequências catastróficas a que nos conduziram as políticas neoliberais, essas políticas são cada vez mais ativas, a ponto de afundar os Estados e as sociedades em crises 239 indi scip lina r políticas e retrocessos sociais cada vez mais graves? Como é que, há mais de trinta anos, essas mesmas políticas vêm se desenvolvendo e se aprofundando, sem encontrar resistências suficientemente substanciais para colocá-las em xeque? (DARDOT e LAVAL, 2016, p. 15). Segundo os autores, a resposta a essas questões não é e não pode ser limitada apenas às negações feitas pelas políticas neoliberais, ou seja, à destruição sistemática das regulamentações e das instituições: O neoliberalismo não destrói apenas regras, instituições, direitos. Ele também produz certos tipos de relações sociais, certas maneiras de viver, certas subjetividades. Em outras palavras, com o neoliberalismo, o que está em jogo é nada mais nada menos que a forma de nossa existência, isto é, a forma como somos levados a nos comportar, a nos relacionar com os outros e com nós mesmos. O neoliberalismo define certa norma de vida nas sociedades ocidentais e, para além dela, em todas as sociedades que as seguem no caminho da ‘modernidade’. Essa norma impõe a cada um de nós que vivamos num universo de competição generalizada, íntima os assalariados e as populações a entrar em luta econômica uns contra os outros, ordena as relações sociais segundo o modelo do mercado, obriga a justificar desigualdades cada vez mais profundas, muda até o indivíduo, que é instado a conceber a si mesmo e a comportar-se como uma empresa. Há quase um terço de século, essa norma de vida rege as políticas públicas, comanda as relações econômicas mundiais, transforma a sociedade, remodela a subjetividade. As circunstâncias desse sucesso normativo foram descritas inúmeras vezes. Ora sob seu aspecto político (a conquista do poder pelas forças neoliberais), ora sob seu aspecto econômico (o rápido crescimento do capitalismo financeiro globalizado), ora sob seu aspecto social (a individualização das relações sociais às expensas das solidariedades coletivas, a polarização extrema entre ricos e pobres), ora sob seu aspecto subjetivo (o surgimento de um novo sujeito, o desenvolvimento de novas patologias psíquicas). Tudo isso são dimensões complementares da nova razão do mundo. Devemos entender, por isso, que essa 240 razão é global, nos dois sentidos que pode ter o termo: é ‘mundial’, no sentido de que vale de imediato para o mundo todo; e, ademais, longe de limitar-se à esfera econômica, tende à totalização, isto é, a ‘fazer o mundo’ por seu poder de integração de todas as dimensões da existência humana. Razão do mundo, mas ao mesmo tempo uma ‘razão-mundo’ (DARDOT e LAVAL, 2016, p. 16. grifo do autor). Além dessa lógica corporativa, empreendedora, estatal, social, subjetiva, que constitui a nova razão de mundo neoliberal baseada na subjugação dos Estados ao capital, há também uma relação com o enfraquecimento das soberanias nacionais e, consequentemente, de suas fronteiras. A supremacia do capital financeiro internacional frente a questões de ordem nacional, que tanto interessa ao neoliberalismo, só é possível em um mundo globalizado. Ou seja, é impossível pensar em neoliberalismo sem vinculá-lo ao processo contemporâneo de globalização. De acordo com Bauman (1999), a globalização modifica as relações do homem com o espaço e com o tempo, leva à redução do poder exercido pelos Estados-nação e é uma ferramenta de produção de subjetividades. Mais que a mobilidade física, o processo de globalização contou com uma aceleração da distribuição das informações. Para ele (BAUMAN, 1999), quando o fluxo de informações se separou do movimento de quem as portava e dos objetos, houve uma diferenciação das velocidades, por meio da qual as informações se tornaram muito mais velozes que os corpos e, até mesmo, que o conteúdo do qual eram compostas. Isso se deve, de maneira geral, ao surgimento, em um primeiro momento, dos computadores e, posteriormente, da internet. A internet e as redes sociais têm sido instrumentos fundamentais para a construção de processos globais, sejam eles voltados aos interesses hegemônicos ou contra-hegemônicos. Atualmente a internet é um dos principais mecanismos utilizados para a construção de narrativas, formação de opiniões e, consequentemente, produção de subjetividades, o que a torna um elemento central para compreender as relações sociais e comerciais contemporâneas de escala nacional e global. Tendo em vista a notável perversidade das ações de cunho neoliberal e globalizante ao longo das duas últimas décadas do 241 indi scip lina r século XX, vários movimentos de resistência se posicionaram de forma contrária a tais processos, caracterizando-se antineoliberais e antiglobalização. Entretanto, como apontam alguns autores, como Hardt e Negri (2005), Castells (2013), Toret (2016), Malini e Antoun (2013), levantou-se a possibilidade de subversão da globalização tornando-a favorável às resistências. É o que Milton Santos (2000) entende como globalização por baixo. Ou seja, as mesmas estratégias traçadas pela globalização hegemônica poderiam ser usadas em favor dos interesses de grupos periféricos. Essa percepção gerou uma virada nos movimentos sociais, marcada pela Revolução de Seattle (1999), quando o mote das resistências mundiais deixa de ser a antiglobalização e se torna, aos poucos, revolução global, tema que, posteriormente, ocupa as redes por meio da #globalrevolution. Associando redes e ruas, os movimentos inseridos no novo ciclo de lutas se articularam em redes globais de apoio e influência e alcançaram resultados que variam desde a conquista das pautas inicialmente reivindicadas até mudanças estruturais, como a queda de governantes ou o surgimento de novos partidos políticos. A incorporação de novas demandas e desdobramentos inesperados aponta uma capilaridade e flexibilidade no alcance de novos grupos, sugerindo certa vulnerabilidade desses movimentos às diversas influências que recebem. O movimento 15M, ocorrido na Espanha em 2011, por exemplo, posicionou-se inicialmente com um viés crítico às eleições e posteriormente acabou elegendo oito prefeitos através de plataformas municipalistas e cidadãs, compostas por ativistas e partidos de esquerda e de centro esquerda como Ahora Madrid e Barcelona en Comú, que elegeram Manuela Carmena e Ada Colau como prefeitas. No Brasil, também surgiram muitas plataformas políticas pós Jornadas de Junho de 2013, envolvendo, principalmente, partidos como o PSOL e coletivos ativistas, como é o caso da Bancada Ativista em São Paulo e das Muitas em Belo Horizonte. Seria “Uma outra globalização” possível? Se a internet e a sociedade em rede são hoje elementos que sustentam a forma globalizada de organização do mundo, alguns autores como Castells (2013) levantam a possibilidade do uso dos mesmos instrumentos para realizar o que posteriormente 242 foi compreendido como uma globalização por baixo, antiglobalização, alterglobalização ou, de acordo com Santos (2000) e Hardt e Negri (2005), outra globalização. Tais termos designam processos globais de resistência à globalização e ao estágio avançado do neoliberalismo mundialmente difundido. Os novíssimos movimentos sociais ou movimentos sociais em rede – como Gohn (2014) e Castells (2013) entendem, respectivamente, os levantes que surgem após a crise do capitalismo de 2008 – têm como características gerais organização horizontal, híbrida, multitudinária e com tendência à presença de pautas que não tratam especificamente da luta de classes, mas de reivindicações por direitos, em sua maioria identitários. Considera-se, portanto, importante compreender esse novo ciclo de lutas, tendo como principais exemplares a chamada Primavera Árabe, capilarizada em diversos países como Tunísia e Egito, e os Occupies, como é o caso do Occupy Wall Street em Nova Iorque, do 15M na Espanha e das Jornadas de Junho no Brasil. Na atualidade, os movimentos sociais são distintos tanto daqueles que levaram à sua emergência na cena pública do século XIX, e nas primeiras décadas do século XX (movimento operário e movimentos revolucionários desde a Revolução Francesa) como dos movimentos que emergiram nos Estados Unidos nos anos de 1960 (direitos civis, feminismo, contra Guerra do Vietnã, estudantil etc). Na América Latina, especialmente no Brasil, os atuais movimentos sociais são distintos dos movimentos que ocorreram na fase do regime político populista, assim como são diferentes também dos movimentos do final da década de 1970 e parte dos anos de 1980 (movimentos populares reivindicatórios de melhorias urbanas articulados com pastorais, grupos políticos de oposição ao regime militar etc.), embora muitos dos atuais movimentos sejam herdeiros dos anos de 1980. Naquela década, os movimentos lutavam para ter “direito a ter direitos”. Como só podemos falar em direitos se contemplarmos o universal, aqueles movimentos não estavam autocentrados, não miravam apenas a si próprios. Na atualidade, muitos dos novíssimos movimentos, ou ações civis denominadas movimentos, não têm mais o universal como horizonte, mas sim o particular, os interesses imediatos, o direito de sua categoria ou grupo social (GOHN, 2014, p. 11-12). 243 indi scip lina r Para Castells (2013), o que gerou esses levantes foi, em muitos casos, a diminuição da qualidade de vida acrescida de uma crise de legitimidade dos governantes locais. O autor aponta que, em decorrência da crise econômica, houve, em muitos países, ascensão de grupos de cidadãos indignados que, desacreditados dos governos, optaram por se posicionar à frente das mudanças desejadas por meio de ações coletivas autônomas. Entretanto, o autor se pergunta, na mesma lógica de DidiHuberman (2016), o que leva tais sujeitos a se sublevarem, já que detecta uma tendência humana à sujeição. Segundo Castells (2013), o comportamento subversivo inicia-se com um evento capaz de desencadear emoções suficientemente fortes para romper o medo. A raiva é o principal sentimento desse processo e sua reverberação tem a comunicação como importante elemento. Esta, para Castells (2013), induz a mudanças coletivas, gera entusiasmo e reforça mobilizações. Nesse sentido, a ação comunicativa seria um processo de atuação sobre as subjetividades que, por meio de um senso de identificação e estímulo, inibe o medo. Assim,a mudança social resulta da ação comunicativa que envolve a conexão de redes em redes neurais dos cérebros humanos estimuladas por sinais de um ambiente comunicacional formado por redes de comunicação. A tecnologia e a morfologia dessas redes de comunicação dão forma ao processo de mobilização e, assim, de mudança social, ao mesmo tempo como processo e como resultado. (CASTELLS, 2013 p. 158). De acordo com Javier Toret (2016), as redes sociais são utilizadas de forma intensiva e estratégica pelos novíssimos movimentos sociais, produzindo mobilizações afetivas que geram impactos enormes para parcela significativa da sociedade. Para Castells (2013), suas ações não estão ligadas apenas a situações sociais críticas, mas também a uma “mobilização emocional” promovida, de um lado, pelo crescimento da indignação e, de outro, pela fomentação da esperança de possíveis mudanças, que pode ser induzida pela existência de revoltas em outros países. Essa conexão afetiva é maximizada pela divulgação desses levantes na mídia de forma geral e nas redes sociais, onde tendem a ter destaque, gerando, muitas vezes, uma rede mundial de revoltas que envolve atores, pautas e estratégias semelhantes. Assim, Castells (2013) aponta que, independentemente de questões específicas de cada país que tenha abrigado tais processos, há uma semelhança indiscutível entre eles: “o modelo dos 244 Figura 01: Streaming nas manifestações do 15M. Fonte: LOZANO, Cristina. Streaming. Foto Spanish Revolution, 2011. Disponível em: <https:// fotospanishrevolution. org/viewsection aspx?view=0&id= 7df1df48-88ae-4d07 -8db3-bb2f430d281e>. Acesso em: 15 de março de 2019. movimentos sociais na era da internet” (CASTELLS, 2013, p. 159). Segundo o autor, esses movimentos são conectados de múltiplas formas, com a formação de redes que os associam entre si a partir de diferentes partes do mundo. Nessa configuração, as tecnologias da informação são fundamentais para o estabelecimento, a expansão e, inclusive, para as transformações dos levantes. Figura 02: Puerta del Sol durante o 15 de maio de 2011 em Madrid. Fonte: Fotograccion. Puerta del Sol in Madrid during the 2011 Spanish protests. Madri: Fotograccion, 2011. Disponível em: <https://15mpedia. org/wiki/Archivo: Puertadelsol2011.jpg>. Acesso em: 15 de março de 2019. 245 indi scip lina r Apesar da relevância das plataformas na configuração das ações, é nos espaços urbanos que os movimentos se consolidam. Para Castells (2013), há sempre uma interação entre as redes digitais de comunicação e a ocupação das ruas e dos prédios. “Esse híbrido de cibernética e espaço urbano constitui um terceiro espaço, a que dou o nome de espaço da autonomia” (CASTELLS, 2013, p. 161). Esse encontro nas ruas é o momento em que há uma virada na forma de ativismo, levando a uma mobilização social mais concreta. A ocupação desses espaços é, na maioria das vezes, potencializada por estratégias como as observadas no mapa de organização da Puerta del Sol (Imagem 3). Nas narrativas dos movimentos, essa organização é discutida coletivamente, mas fica clara a existência de lideranças que, ainda que não assumam destaque aparente, têm papel de relevância no processo, iniciando diálogos e propondo soluções, o que aponta como controversa a premissa de Castells (2013): de espontaneidade vinculada à autonomia. Figura 03: Mapa de organização do 15M na Puerta del Sol, em Madrid.Fonte: DE SOTO, Pablo. Os mapas do #15M: a arte da cartografia da multidão conectada. Rio de Janeiro: Liinc em Revista, 2017. Disponível em: <https://www. researchgate.net/ figure/Figura-2Plano-da-AcampadaSol_fig1_317893775>. Acesso em: 15 de março de 2019. Quando Castells (2013) afirma que os movimentos sociais contemporâneos são ao mesmo tempo locais e globais, o autor demonstra que, apesar de muitas vezes se organizarem por razões locais, eles geram conexões em redes globais. Para ele (CASTELLS, 2013), os movimentos são estimulados e aprendem com outras experiências para iniciar mobilizações próprias que geram uma forma particular de tempo e espaço: um “tempo atemporal”, ou seja, uma atuação “trans-histórica” que comporta dois tipos distintos de experiência: o cotidiano local e um horizonte indeterminado de possibilidades globais. A partir do livro Globalização: as consequências humanas (1999), o modo de atuação local-global aparece, em Bauman, como importante característica da globalização, já que, para ele, esse processo apresenta simultaneamente um movimento de união e divisão. Ele afirma que “junto com as dimensões planetárias dos negócios, das finanças, do comércio e do fluxo de informações, é colocado em movimento um processo ‘localizador’, de fixação no espaço” (BAUMAN, 1999, p. 8). A globalização, pensada dessa forma é, então, um ator de privação social, já que as atuações locais dependem de ações globais que as dão sentido, perdendo sua potencialidade territorial. Bauman (1999) afirma, então, que há um processo de desterritorialização do poder acompanhado de uma configuração cada vez mais restrita do território, denunciando um controle não-físico que molda a realidade sob o discurso de uma “nova liberdade” vivenciada no ciberespaço. Neste, “os corpos não interessam — embora o ciberespaço interesse, de forma decisiva e inexorável, para a vida dos corpos [...] a desterritorialização do poder anda de mãos dadas, portanto, com a estruturação cada vez mais estrita do território” (BAUMAN, 1999, p. 27). No texto supracitado, Bauman (1999) aborda a relação localglobal de forma distinta à colocada, anos depois, por Castells (2013). Ao contrário do segundo, que acredita em uma demanda inicial local, o primeiro aponta para a chegada de mensagens externas via meios de comunicação, independente de líderes locais, que levam a mobilizações e ações dentro de um território cada vez mais fragmentado. A leitura de Bauman (1999) acaba conduzindo a uma construção de pensamento por meio da qual as posteriores colocações de Castells (2013), a respeito de um caráter espontâneo das manifestações, apresentam-se um tanto quanto ingênuas ou desprovidas de uma base conceitual consolidada no que tange 246 247 indi scip lina r à compreensão dos mecanismos de globalização. Se há, para o primeiro, nos processos globais, uma construção de demandas e estímulos via meios de comunicação que atua sobre a elaboração das pautas locais, uma possível espontaneidade de sua construção se torna elemento, no mínimo, questionável. Vale ressaltar que ambos concordam com a existência de estímulos dos eventos globais sobre os locais, mas a simples inversão de ordem da fonte primária do desejo de revolta indica pontos de vista diametralmente opostos. A visão de Castells (2013) sobre a viralidade dos movimentos contemporâneos se torna, então, indício para o apontamento de Bauman (1999) no sentido de que há uma influência externa na construção das ações locais. Em suma, há consonância entre os pensamentos no que tange à importância do global para a execução local, entretanto, a despreocupação de Castells (2013) em relação ao embrião propulsor das ações se apresenta, em termos gerais, um tanto quanto distante da leitura de Bauman (1999). Nesse sentido, pode-se apontar uma convergência entre os autores: ambos concordam com uma ausência aparente de liderança local direta. A organização dos movimentos sociais pelas redes é um dos principais fatores que permitem a ausência da imagem de um líder. Castells (2013) coloca o impacto gerado pela mensagem como mais importante que a fonte do evento. Ou seja, assume-se uma potência da comunicação independentemente de quem a gerou ou com qual intenção ela foi propulsada. Líderes cada vez mais dispersos ou “escondidos” pelas redes, configuram uma dificuldade maior de ataque aos movimentos. Autonomia refere-se à capacidade de um ator social tornar-se sujeito ao definir sua ação em torno de projetos elaborados independentemente das instituições da sociedade, segundo seus próprios valores e interesses. A transição da individuação para a autonomia opera-se por meio da constituição de redes que permitem aos atores individuais construírem sua autonomia com pessoas de posição semelhante nas redes de sua escolha. Eu afirmo que a internet fornece a plataforma de comunicação organizacional para traduzir a cultura da liberdade na prática da autonomia. Isso porque a tecnologia da internet incorpora a cultura da liberdade, como mostra o registro histórico de seu desenvolvimento” (CASTELLS, 2013, 168). 248 A ideia de autonomia, baseada na organização horizontal em rede que parte de uma ausência de liderança aparente é típica do que se entende por ativismo. Natacha Rena (2016) considera que os levantes ocorridos pós crise do capitalismo de 2008 ocupam a esfera de movimentos ativistas e não militantes. Isso devido, justamente, à sua formação heterogênea que parte das tecnopolíticas e tem como pauta base o debate sobre a expropriação do público por meio do Estado-Capital. Bernardo Neves et al (2018, p. 230) apontam as seguintes características para os movimentos ativistas: de organização rizomática, tais ações contam “com estruturas evanescentes, difusas, fragmentadas, que se alternam contingencialmente, em rede, numa lógica de enxame bastante variável, criando sempre novas conexões e novos agenciamentos de pautas, atores, modos de fazer”. João Teixeira Lopes (2016) traz outras características transversais a esses novíssimos movimentos sociais: (i) discurso centrado na denúncia do sistema econômico e na captura das instituições e agentes políticos pelo poder financeiro; (ii) exigência de mais ou de uma verdadeira democracia; (iii) a juventude precarizada como catalisadora das lutas; (iv) certa recusa da delegação ou ceticismo com a ação institucional; (v) produção de novas referências plásticas e estéticas; (vi) ocupação transgressiva do espaço público; (vii) valorização da diversidade de expressão nos protestos de rua; (viii) uso intensivo das redes sociais; (ix) importância da cultura audiovisual e das novas tecnologias de informação e comunicação; (x) busca de formas tendencialmente horizontais. A estas pode-se acrescentar, ainda, um constante discurso de ataque às esquerdas tradicionais, tanto em termos ideológicos (comunistas, socialistas), quanto às suas estruturas (partidos e sindicatos). De acordo com Lopes (2016), em sua maioria, tais movimentos se sustentam em grupos pertencentes à nova classe média urbana, de forma que carregam em si algo da insurgência, da flexibilidade e da adaptação em uma sociedade que tem visto sua base se deslocar do emprego para o trabalho cada vez mais precarizado. Dentro dessa lógica de formação adaptada ao neoliberalismo, tais movimentos se apresentam, de forma geral, muito vulneráveis ao sistema. O autor, então, questiona: Esses novíssimos movimentos sociais conseguem ser uma ‘comunidade’, uma ‘comunidade interlocutora’, com agenda própria ou assumir-se-ão preferencialmente 249 indi scip lina r como instância interlocutora, de cariz emotivo? Propõe uma esfera pública, dotada de autodeterminação e discernimento político ou reenviam para o aqui e o agora da efervescência coletiva, representando um mero somatório de ‘espaços’ de expressão? Assumem programas alternativos com um mínimo denominador comum, capaz de construírem como alternativa à hegemonia, ainda que com um calendário gradualista, ou contribuem, ainda que inadvertidamente, para a consolidação do poder que todavia contestam? A prática é mutante e informe ou acumula, perpassando uma continuidade de projeto capaz de alargar campos de possibilidades? Quem representa quem, na multidão? Tudo é absorvido pelo sistema, não havendo ponto exterior que permita a crítica? (LOPES, 2016, p. 342). Pode-se observar, neste momento, a existência de um impasse: os novíssimos movimentos sociais, posicionando-se contra o neoliberalismo em uma lógica de alterglobalização têm alcançado seus objetivos? Eles conseguiram subverter a lógica hegemônica da globalização? Tais respostas dificilmente serão alcançadas. Entretanto, para que seja possível compreender melhor esse quadro, é preciso pensar em dois fatores cruciais. O primeiro se refere ao uso das tecnologias de comunicação, já que para aplicá-las invertendo as intenções habituais de seu uso, é necessário um amplo domínio da técnica e da dinâmica de seus impactos. A segunda questão, muitas vezes invisível à maioria da sociedade, é a capacidade dos subsistemas de dominação de se adaptarem para a produção e cooptação de pautas. Tendo isso em vista, é feito aqui um panorama da construção e evolução dos mecanismos de rede, pensando como eles impactam as relações sociais e, principalmente, se e como são utilizados como possíveis (re)produtores de resistência. A internet e as lutas O embrião da internet surge nos Estados Unidos no auge da Guerra Fria a partir da necessidade de descentralizar a comunicação e o armazenamento de dados, já que o desenvolvimento de tecnologias bélicas que ganhou força durante a Segunda Grande Guerra facilitou as investidas contra centros de comando. A Arpanet é criada, então, para permitir que os aliados se 250 comunicassem e planejassem ações juntos mesmo em cenários caóticos gerados por ataques nucleares (MALINI e ANTOUN, 2013, p. 32). Envolvidas também nesse projeto, as universidades usaram a rede como uma importante ferramenta de cooperação, desenvolvendo pesquisas em conjunto, com uma forma de trabalho que antes não era possível. Um exemplo dessa cultura está na Usenet, que foi criada por estudantes como um fórum de discussões sobre o sistema operacional Unix – utilizando a linha telefônica para conectar computadores ponto a ponto – e acabou por se tornar uma das primeiras redes de conversação digital em grande escala (CASTELLS, 1999 apud MALINI e ANTOUN, 2013, p. 19). Quando, em 1984, os militares abandonam a Arpanet e criam a Milnet, essa dinâmica se intensificou, pois o acesso à rede foi expandido para além dos fins bélicos ou de pesquisa MALINI e ANTOUN, 2013, p. 32). Nesse mesmo ano, Tom Jennings, um programador anarquista e ativista gay, possibilitou que um usuário comum operasse de sua casa uma comunidade digital, os Bulletin Board System (BBS), tornando os grupos de discussão mais personalizáveis, sem as restrições de servidores comuns na Usenet. Surgiu também a Free Software Foundation, encabeçada por Richard Stallman, contra a propriedade privada do software e a favor do compartilhamento do conhecimento e da coletivização da produção de programas de computador (MALINI e ANTOUN, 2013, p. 41). Inicia-se, nessa época, uma noção de ciberespaço, onde é possível criar campanhas, vazar informações sigilosas, produzir um debate intelectual teórico ou mesmo coordenar ações coletivas contra sistemas autoritários (MALINI e ANTOUN, 2013, p. 19). Os grupos de discussão, que se popularizaram na Usenet e, sobretudo, nos BBSs, tornaram-se arena para diversas organizações sociais, que agora articulam ações diretas de forma mais rizomática e menos hierárquica. Em paralelo, as ONGs ganharam espaço, ao passo que as instituições e os movimentos clássicos, como os partidos políticos, perderam força. Os programadores ativistas pelo software livre criam redes de colaboração para desvendar, através de engenharia reversa, o que estava por trás dos códigos dos programas proprietários. Então, faziam versões para livre distribuição, consulta e modificação e divulgavam as funções maliciosas que encontravam, como 251 indi scip lina r quando Richard Stallman levou a público que uma das versões do Windows enviava à Microsoft, o que foi instalado no computador de seus clientes (STALLMAN, 2002, p. 117). Além dos ciberativistas da produção de software, emergem outros hackers que conquistam e quebram redes, como o Cult of Dead Cow, que criou um programa chamado Back Orifice capaz de invadir o Windows NT, mostrando, assim, que o sistema operacional da Microsoft não era seguro como a empresa o vendia (MALINI e ANTOUN, 2013, p. 45-46).. Similarmente ao que Malini e Antoun (MALINI e ANTOUN, 2013) chamam de hackers de código, os hackers de narrativa utilizam as tecnologias da comunicação, principalmente a partir da difusão dos grupos de discussão nos anos 1980, para produzir uma mídia menos concentrada e mediada. Por um lado, os movimentos sociais organizados encontram mais meios para construir mídias populares oferecendo uma voz contra-hegemônica, ainda que na mesma lógica um-muitos dos rádios, jornais e canais de televisão tradicionais. De outro, em um antagonismo a toda forma de mediação, ciberativistas apostam em uma comunicação em rede, com conversas muitosmuitos possibilitadas pelos grupos de discussão. Este último tipo de midialivrismo[4] vai se mostrar fortemente presente nos movimentos mais recentes, em que é possível assistir imagens da repressão policial a uma manifestação em tempo real a partir das transmissões ao vivo do Facebook ou Youtube. Outros tipos de disputa aparecem quando Tim Berners Lee cria a World Wide Web. No ar em 1991, a WWW dá início a uma topologia em teia e reúne o material disperso dos grupos de discussão, possibilitando o aparecimento da guerra em rede (netwar), que vai ser conceituada pela primeira vez por Arquilla e Ronfeldt (1993 apud MALINI e ANTOUN, 2013, p. 68) dois anos depois. Essa definição foi feita em oposição à ideia de guerra do controle (cyberwar), também formulada por eles, que se refere a uma luta de alta intensidade de base militar fortemente tecnológica travada por Estados-nação. A netwar seria uma disputa de baixa intensidade empenhada por grupos organizados em rede com uso das novas tecnologias, muitas vezes contra o Estado. Para Malini e Antoun (2013, p. 57), esses grupos operam de forma que as resistências de diversos lugares do globo se conectam e trabalham colaborativamente, destituindo de efetividade, na visão dos autores, a glocalidade do poder global das redes de regulação que submetem os lugares às suas vontades. 252 Sérgio Amadeu Silveira (2016) também contribui para compreender essa dinâmica. Para ele, as redes digitais são tecnologias cibernéticas, ou seja, agem tanto na comunicação quanto no controle. Esta última instrumentalidade se dá porque a conquista de poder na sociedade e no Estado depende da comunicação e do imaginário gerado pela internet, e esta atua diretamente sobre a formação de opinião pública, se tornando fundamental na disputa por controle social. Ao mesmo tempo, é também espaço de conversações livres, organização de grupos autônomos e convocação para manifestações. Embora Arquilla e Ronfeldt (2001 apud MALINI e ANTOUN, 2013, p. 68) pareçam apostar na guerra em rede sempre exercida pelas forças de baixo, sejam elas ativistas ou terroristas e criminosas, não é difícil imaginar que os Estados ou outros grupos de poder teriam também meios e interesse para atuar na rede de forma invisível. Essa possibilidade é ilustrada pelo medo que, de acordo com Silveira (2016), alguns membros do Estado chinês e da NSA têm de que a ausência de controle na internet ameace a soberania nacional de seus países. Corroborando com esse sentimento, há vários exemplos de influência da rede nos comportamentos sociais, como nos levantes do novo ciclo de lutas urbanas pós crise de 2008 e até mesmo em eleições, como o caso de Donald Trump nos EUA e Jair Bolsonaro no Brasil, e é difícil determinar com clareza as intenções, os atores e os resultados indiretos dessa influência. No plano econômico, há dois aliados importantes das políticas da internet: as operadoras de telecomunicação e a indústria copyright. As primeiras fazem pressão com a finalidade de maximizar seu lucro através da cobrança por velocidade e tipo de acesso. Já a segunda age para “bloquear o compartilhamento de arquivos digitais que não gerem divisas para os detentores dos direitos de bens simbólicos” (SILVEIRA, 2016, p.347). Esses dois setores, muitas vezes em parceria com Estados ou grupos de interesse, atuam no sentido de destruir o princípio de neutralidade da rede. A quebra desse mecanismo permite que atores chave – donos da infraestrutura ou de plataformas de destaque na internet – interfiram nos dados enviados e recebidos, selecionando as informações que serão passadas e até mesmo bloqueando-as quando acharem necessário. Esse controle da circulação pode acontecer para excluir conteúdos específicos ou privilegiar determinados veículos. No primeiro sentido, está a curadoria de dados realizada por 253 indi scip lina r plataformas como o Google[5], que seleciona o que aparece em suas buscas, e o Facebook. No caso dessa rede social, tem sido divulgado[6] que as informações que aparecem no feed de notícias de cada usuário são escolhidas a partir de uma análise de perfil individual. Além desse filtro, páginas e conteúdos considerados impróprios são apagados da plataforma. “A remoção de publicações ocorre, aparentemente, por motivos morais, pelas preferências comportamentais de seu criador, mas existem exclusões por razões políticas” (SILVEIRA, 2016, p.349). Em outro caminho, crucial para o sucesso do primeiro na medida em que aumenta a superfície de vigilância desses poderes, há também uma tentativa de fazer com que poucos canais se tornem centrais na rede. Isso pode ser observado nos planos de internet móvel[7] cada vez mais comuns, que oferecem acesso ilimitado a veículos como o Whatsapp, enquanto todo o resto da circulação da web fica restringida a uma quantidade de dados. Silveira (2016, p.349) analisa os números de utilização do Facebook e do Youtube – duas redes sociais centrais no Brasil, que apresentam, respectivamente, 127[8] e 82 milhões[9] de usuários –, e afirma que as redes sociais ocupam hoje o espaço do debate político que nos séculos XVII e XVIII era vivido nos cafés e nas reuniões comensais, gerando uma “nova abordagem da política e do poder”. Para ele, há, por isso, a possibilidade de participação de sujeitos que outrora encontravam-se apartados do debate político. “Essas conversações não são, a priori, favoráveis à esquerda ou à direita, apesar de beneficiarem o senso comum, que, em geral, reproduz ideias-força do sistema capitalista” (SILVEIRA, 2016, p.348). Assim, torna-se preocupante a estratégia supracitada do Facebook de selecionar o conteúdo a ser acessado por seu usuário, já que a rede o influencia pessoal e politicamente. Observa-se, então, que a internet não é um espaço tão livre quanto parece. Poderia-se levantar, ao longo da história da tecnologia, que sua criação faz parte das disputas de poder que, em geral, envolvem relações bélicas.Assim,seria possível entender que o uso das redes como ferramenta de luta pelos novíssimos movimentos sociais também se insere nessa disputa. Para compreender esse cenário, é importante pensar o marco fundamental para a virada do que se tinha por movimentos antiglobalização, com uso e discurso pelo software livre, para os que acreditam em uma globalização por baixo como estratégia, usando uma atuação ativista que utiliza softwares e plataformas proprietárias, como foi o caso de alguns articuladores das insurgências #globalrevolution. 254 Os movimentos em rede A luta em rede esteve presente na Batalha de Seattle, em 1999, mas já começava a se desenhar em 1994, com a resistência zapatista ao Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (NAFTA). O movimento emerge no México, na região de Chiapas - rica em urânio, madeira e petróleo - com a criação do Exército Zapatista pela Libertação Nacional (EZLN). Inicialmente de tática guerrilheira, o EZLN começa majoritariamente formado pela classe média educada mexicana e, após derrotas na luta armada, faz conexões com ONGs e outros grupos da sociedade civil global e com as comunidades indígenas. Como resultado das novas parcerias, há mudanças não apenas nas estratégias e táticas, como na própria narrativa. Ao conflito militar armado soma-se o uso das tecnologias de comunicação e a organização em uma topologia de teia de aranha, com eixos bem estruturados, hiperconectados entre si e ligados a nós de conexão fraca entre eles, semelhante ao que vai acontecer posteriormente em Seattle (MALINI e ANTOUN, 2013, p. 76). Grupos do México e de outros países como Canadá[10], Estados Unidos[11], Itália[12] e Espanha[13] compõem a rede zapatista e transformam as pautas do movimento, fazendo com que o EZLN abandone a conquista do governo como principal objetivo e centralize questões como direitos indígenas, proteção ambiental, a mulher na política e os direitos trabalhistas (MALINI e ANTOUN, 2013, p. 80-83).Os meios técnicos para a luta em rede também são fornecidos por essa teia, em especial pela ONG Association for Progressive Communications (APC), que, a partir da sede em São Francisco, tem servidores locais nos cinco continentes (BISCO JR. e LINO, 2006, p. 3-4.) e atua com financiamento de fundações internacionais, como Open Society Institute (OSI)/ Soros Foundation e Ford Foundation[14]. Construída pela coalizão de ativistas Direct Action Network (DAN), a Batalha de Seattle utilizou uma topologia parecida com a dos zapatistas, usando, entretanto, estratégias e táticas de resistência pacífica, através de deslocamento, enxameamento, afluência e contaminação, tanto espacial quanto virtual. O DAN pretendia paralisar as negociações da Organização Mundial do Comércio (OMC) e se organizava por grupos de afinidades, que poderiam ser congregados em células ou agir como flutuantes. Nenhum agrupamento tinha um único líder e a coordenação era feita a partir de um conselho de porta-vozes, onde representantes dos grupos decidiam por consulta democrática e consenso. 255 indi scip lina r Os atores da rede em Seattle definiram suas pautas de maneira dinâmica e pouco clara. Nesse sentido, foi fundamental a contranarrativa à grande mídia, que ora apresentava o acontecimento como crítica corporativista ao liberalismo econômico, ora descrevia os ativistas como baderneiros. O DAN concebeu, então, o Independent Media Center (IMC), uma nova mídia participante, ativista, colaborativa, em regime copyleft e baseada, essencialmente, na internet. Também conhecido como Indymedia, o projeto se tornou permanente e se espalhou por várias cidades dos Estados Unidos e do mundo, tendo vital importância em lutas posteriores, como o 15M, na Espanha. Se o Movimento Zapatista e a Batalha de Seattle tiveram sua base comunicativa nas mídias livres usando o copyleft e produção aberta, a Primavera Árabe, os Indignados na Espanha e o Occupy Wall Street estruturaram suas redes a partir de plataformas proprietárias. No Egito, o primeiro meio importante na revolta contra Hosni Mubarak foi a página no Facebook “Todos somos Khaled Said”, curiosamente criada de forma anônima pelo diretor de marketing do Google para o Oriente Médio, Wael Ghonim[15]. O papel dos controladores da ferramenta de buscas mais importante na atualidade também foi crucial para que os oposicionistas se comunicassem pelo Twitter, lançando um serviço que driblava o bloqueio imposto à plataforma[16]. Na Espanha, as mobilizações do 15M também tiveram início nas redes sociais. As primeiras interações públicas virtuais foram com as discussões da Lei Sinde através da hashtag #NoLesVotes lançada por blogueiros, em crítica aos políticos, em especial do PSOE e PP, que aprovaram uma lei impopular (MALINI e ANTOUN, 2013, p. 221) que criminalizou sites que possuem links para arquivos sob licença copyright. Formaram-se diversas pequenas organizações a partir de grupos no Facebook e, em março, foi criada a página web do Democracia Real Ya (DRY), que, em parceria com o Juventud Sin Futuro, convocou para o ato de 15 de maio de 2011[17]. Característica comum aos novíssimos movimentos sociais, o 15M baseia sua comunicação em plataformas proprietárias, sendo fundamentais os grupos e eventos do Facebook, por exemplo. As hashtags utilizadas no Twitter desde as primeiras interações, como #SpanishRevolution, #15m, #AcampadaSol, #YesWeCamp, #DemocraciaRealYa e #NoLesVotes, são cruciais para o crescimento e desenvolvimento da rede e, a partir da primeira manifestação, perfis oficiais como o @acampadasol 256 vão surgir para coordenar as mobilizações (MALINI e ANTOUN, 2013, p. 228). A partir do debate gerado pela Lei Sinde, essas organizações e grupos de discussão criaram outras pautas. A demanda por empregos e a contraposição às medidas de austeridade e ao resgate de bancos às custas da dívida pública se mostraram presentes nas reivindicações do Juventud Sin Futuro e no lema do 15M - “Não somos mercadorias nas mãos de políticos e banqueiros” (TORET, 2016). Como aponta Gohn (2014), muito do programa dos Indignados está relacionado com a crise de 2008, que levou a um forte quadro de desemprego no país e foi respondida com o desmonte do Estado de bem-estar social, à revelia da opinião da população. Isso poderia estar relacionado com uma série de demandas por uma democracia mais participativa e com maior combate à corrupção, bem presentes no discurso do Democracia Real Ya (DRY). Há, também, um forte antagonismo a diversas instituições, como o parlamento, os partidos políticos, os sindicatos, a igreja e a imprensa tradicional. Como descrevem Lidia Posada, integrante do DRY, e Pablo Padilla, do Juventud Sin Futuro, no documentário 15M: Excelente. Revulsivo. Importante (2012), os primeiros passos da mobilização acontecem primordialmente online, com encontros físicos em pequenos grupos que articulam entre si. A estratégia é levar o movimento para as ruas e praças, relacionando os espaços físicos e virtuais, e levando ao que Toret (2016) chama de contágio tecnologicamente estruturado via tecnopolíticas que ubiquem redes e ruas. Essa ocupação do espaço não se dá apenas com protestos, mas também com acampamentos, que, em várias cidades, articularam a mobilização por meio de comissões, estudos em grupo e assembleias, além de uma vivência em comum autogerida. Esse caminho foi exitoso, já que, segundo o autor, a rede do 15M no Twitter passou de 3.403 seguidores nos dias que antecederam a primeira manifestação para 110.198 na fase de maior alcance. Outro ponto interessante é que, de acordo com informações da Gather Estudios, trazidas por Toret (2016), 71% dos participantes não pertenciam a nenhum partido, sindicato, ou movimento social, e apenas 6% dos envolvidos não faziam parte de nenhuma rede social, demonstrando um alcance incomum em comparação a movimentos sociais clássicos. 257 indi scip lina r Figura 04: Puerta del Sol durante o 16 de maio de 2011 em Madrid. Fonte: ORTIZ, Alvaro. Manifestación de Democracia Real Ya en Madrid el 16 de mayo de 2011. Madri: 2011. Disponível em: <https://15mpedia. org/wikiArchivo: Manifestacionpuerta solmadrid23.jpg>. Acesso em: 15 de março de 2019. Figura 05: Biblioteca da Acampada. Fonte: BRAMIDO, Bluchi. Foto Spanish Revolution. Madri: Foto Spanish Revolution, 2011. Disponível em: <https://15mpedia. org/wiki/Archivo: FotoSpanish Revolution _-_bramido_-_ C8F96080 -B77C-4BB4-BBFC37F677E09AE9.jpg>. Acesso em: 15 de março de 2019. Diferentemente da dinâmica descrita por Posada e Padilla, as narrativas do movimento o trazem como de forte caráter espontâneo. No mesmo documentário (15M: Excelente. Revulsivo. Importante, 2012), é Miguel Arana, um estudante de física sem trajetória de organização política relevante, quem 258 Figura 06: Miguel Arana coordena o início do acampamento na Puerta del Sol. Fonte: 15M: Excelente. Revulsivo. Importante. Direção de Stéphane M. Grueso. Madri: 15m. cc, 2012. Disponível em: <https://www.youtube. com/watch?v=Z5fsxKI MDNU>. Acesso em: 9 de março de 2019. aparece coordenando o início do acampamento em Madri, cena que também está no filme 15M: Málaga despierta (2013). Também nesta produção, a jornalista Laura Rueda conta ter tido o primeiro contato com as mobilizações através de um evento no Facebook e decide espontaneamente reproduzir o convite às ruas em seu programa na Rádio Vallekas, de Madri, destacando em seu anúncio que “esa convocatoria no tiene color, no más convocamos a todos los ciudadanos”. No âmbito comunicativo, é interessante atentar para o nome mais usado para descrever o movimento dos Indignados, 15M, que, segundo Gohn (2014), faz referência à data de seu início, 15 de maio. Outras hashtags com datas convocatórias de manifestações posteriores também são utilizadas, como #19J que convocava para protestos contra o Pacto do Euro em 19 de junho de 2011 ou #17S chamando para a primeira manifestação do Occupy Wall Street. Essa nomenclatura demonstra uma dinâmica ágil, já que à medida que o movimento cresce, muda não só a data, mas também o nome e as pautas, caráter já presente nos Zapatistas, cujo programa muda a partir de novas conexões na rede. Essa dinâmica na internet aponta também para a relação entre os Indignados e outros levantes, como o caso do Occupy Wall Street, já destacada por Toret(2016). De acordo com o autor, as hashtags do segundo estavam presentes de forma massiva na Espanha, antes mesmo de chegarem a Nova Iorque. Referências a movimentos de outros países, como a Frente Povo Sem Medo, brasileiro, podem ser encontradas em meio às faixas do 15M espanhol. 259 indi scip lina r Figura 07: Faixa em referência à Povo Sem Medo, uma frente brasileira, em manifestação dos indignados. Fonte: 15M: Excelente. Revulsivo. Importante. Direção de Stéphane M. Grueso. Madri: 15m. cc, 2012. Disponível em: <https://www. youtube.com/ watch?v=Z5fsxKI MDNU>. Acesso em: 9 de março de 2019. Esse desempenho adaptativo é observado, ainda, nos desdobramentos do movimento. Apesar de as eleições não fazerem parte do programa inicial e de o lema “no nos representa” ter sido frequente, notáveis e exitosos projetos com o pleito como objetivo emergiram. Apesar da desconfiança de alguns que vão às ruas acusar o partido de apropriar-se do movimento, não é possível ignorar a conexão entre as inquietações iniciadas em 2011 e o surgimento do Podemos, principalmente se levase em conta que “[...] o sucesso eleitoral do Podemos coincidiu com a atenuação da tensão nas ruas”[18]. O partido chegou a eleger 5 eurodeputados em 2014[19] e compõe duas das mais relevantes plataformas municipalistas: Ahora Madrid e Barcelona en Comú. A primeira trata-se de uma coalizão junto ao Ganemos e, com o apoio de 9 votos do PSOE, elegeu Manuela Carmena, que agora governa a prefeitura com 20 concejales, dos quais Pablo Soto[20], Rita Maestre[21] e Guillermo Zapata[22], a título de exemplo, são fortemente ligados ao 15M. Na capital catalã, por sua vez, o Barcelona en Comú guarda conexão com os indignados já através de sua prefeita, que foi porta-voz e uma dos fundadores do Plataforma de los Afectados por la Hipoteca (PAH), movimento atuante principalmente durante e após os acampamentos. É interessante notar que, apesar de fortalecerse no rechaço às esferas formais de poder, o 15M acaba por criar vias (outras?) de acesso a essas mesmas instituições. Inevitavelmente, a flexibilização da programática se coloca nesses levantes uma vez que são constantes a mudança nos objetivos principais, a subtração de antagonismos e a aparente espontaneidade de sua origem. Considerando, ainda, o 260 recorrente esforço de supressão de líderes ou porta-vozes, que tipo de estruturas os novíssimos movimentos sociais teriam para manter suas pautas fiéis às intenções de seus ativistas? Seria a mudança cultural proposta por eles suficiente para barrar a capacidade adaptativa dos interesses do capital? Considerações Finais O neoliberalismo é uma razão de mundo. Como razão de mundo, entende-se que nada foge aos processos e interesses neoliberais, sendo necessário perguntar de qual maneira as resistências se colocariam em oposição a esse sistema. E, mais que isso, tendo em vista a capacidade de mutabilidade do capitalismo, indagase se é possível conceber algum processo, ainda que resistente, que não seja fagocitado por seus ditames e interesses. É possível resistir sem compreender que a nova razão-mundo neoliberal é também, e principalmente, geopolítica? Mais que respostas, este relato tem por finalidade o levantamento de questões. Logo na introdução do texto afirmou-se necessário compreender, em relação aos processos resistentes, a quem se aliam e contra quem se opõem. Além disso, aponta-se a importância de saber por quem são financiados e a quais interesses, expostos ou não, estão servindo. Por exemplo, tal como supracitado, muitas ONGs atuantes em parceria com movimentos sociais de países periféricos recebem financiamento de atores vinculados à grande rede de capital transnacional. Pergunta básica neste caso seria acerca dos interesses destes grupos em fomentar tais ações. Não é intenção, neste momento, colocar em xeque qualquer levante que esteja inserido em um contexto neoliberal, mas acredita-se fundamental buscar respostas para não cair em ciladas traçadas pelo próprio capital. Indica-se, portanto, uma necessidade premente de rastrear os principais atores, as narrativas, os interesses e os financiamentos de fundações transnacionais ligadas ao capital para que seja possível compreender mais a fundo a rede na qual se insere determinada pauta, coletivo ou movimento social. O processo relacionado à investigação de possíveis manipulações sofridas pelos agentes de resistência, além de seguir os financiamentos, deve pensar a formação dos indivíduos dentro do contexto neoliberal. Neste momento, a internet entra em voga como importante plataforma no debate acerca da produção de subjetividades, fazendo-se necessário pensar a respeito da 261 indi scip lina r maneira como esse instrumento atua sobre os inconscientes produzindo gostos, desejos, narrativas, ansiedades, e ampliando ou reduzindo medos e esperanças. Mais uma vez, entendese que há um controle sobre o material exposto, ainda que a internet carregue o discurso de circulação livre de informações. Desta forma, vale outra pergunta: seria possível acreditar que é viável atuar em rede global sem a influência direta tanto dos proprietários das plataformas como Facebook e Twitter, quanto sem o controle do que se produz via big data? Levantados esses pontos, ainda que incômoda, outra pergunta emerge: é possível que haja uma produção de dissidência como estratégia do neoliberalismo em benefício próprio? Casos como os de Revoluções Coloridas e Guerras Híbridas indicam que sim. Ou que, pelo menos, há interesses escusos de blocos hegemônicos atuando na produção de levantes em algumas partes do mundo. Sobre a possibilidade de cooptação dos novíssimos movimentos sociais e seus levantes, é preciso indagar quais as brechas deixadas em parte dos processos que os tornaram vulneráveis a ponto de serem subvertidos e passarem a atender interesses de grupos hegemônicos. Responder a uma pergunta dessa ordem só é viável mediante uma análise histórica e transescalar. Nessa construção, ao nos deparar com uma significativa transferência de um modelo de militância para ativismo, ou da lógica do povo para a da multidão, observa-se que a fragmentação das mobilizações, principalmente relacionada à pauta e ao discurso, acabou por fragilizá-las. Isto é, em tempos de sujeitos neoliberais, é muito difícil recuperar a ideia da unidade do povo. Entretanto, acredita-se possível pautar as questões relacionadas à identidade transversalmente às pautas estruturais, como a questão do gênero e da raça atrelada à luta de classes e aos direitos dos trabalhadores, fortalecendo a luta dentro de um espectro de necessidades coletivas. Um modo de iniciar a investigação sobre as resistências atuais seria traçar uma genealogia que inclua os desdobramentos da radicalização tecnopolítica dos novíssimos movimentos sociais, dos novos ativismos, e verificar quais as repercussões históricas deste ciclo de lutas. À princípio, o que assistimos é um avanço do jogo neoliberal somado ao ressurgimento intenso e planetário do conservadorismo comandado por elites locais que resistem tanto ao neoliberalismo do capital das elites globais quanto às resistências progressistas, em sua maioria, com traços neoliberais. Agradecimentos O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) Código de Financiamento 001. Portanto agradecemos à agência de fomento CAPES, além do CNPQ e Fapemig, assim como à PróReitoria de Extensão (Proex) UFMG, à Pró-Reitoria de Pesquisa (Prpq) UFMG, à Escola de Arquitetura da UFMG e aos parceiros de pesquisa do Grupo Indisciplinar. Observa-se que, em geral, a solução encontrada para o problema da expropriação e da exploração pelos novos coletivos e novíssimos movimentos abre algumas ciladas para as resistências populares, pois há o risco de um grande engano com relação ao campo real das lutas. Muitas das vezes o nível de colaboração com processos aparentemente mais democráticos via redes digitais, plataformas colaborativas, governo aberto, participação, traz um perigo enorme de construção ingênua de uma linha auxiliar do neoliberalismo rentista, porém progressista, dentro da lógica da precarização, inclusive, das próprias lutas. 262 263 indi scip lina r Notas 1. A crise do capitalismo de 2008 é entendida por Castells (2013) como um questionamento da prosperidade da Europa e dos EUA, gerando uma ameaça de colapso financeiro de países hegemônicos e grandes empresas e um encolhimento do Estado de bem-estar-social. 2. “Segundo Didi-Huberman, levantes aconteceriam como respostas a estes momentos de escuridão, por meio dos quais, levadas a seus limites, as pessoas se manifestam de forma organizada, ou não, considerando, ou não, estratégias de luta. Nem sempre há, nesses instantes, um objetivo claro em relação ao ato de sublevar-se. Em alguns casos acontece um estopim que dá início a uma onda quase incontrolável de luta e potência, em outros são traçados modos de organização e há um objetivo comum em manifestar-se, muitas vezes relacionado à expectativa de tomada do poder”. (NOBRE; RENA, 2018, p. 43). 3. O artigo está disponível em: http://www.nomads.usp.br/virus/ virus19/?sec=4&item=6&lang=pt. Acesso em 28 de agosto de 2020. 4. Malini e Antoun (2013, p. 21) denominam midialivrismo a tendência a uma nova mídia que tenta se contrapor à mídia hegemônica. 5. A Central de Ajuda do Google explica o que pode fazer um site não aparecer na busca. Disponivel em: https://support.google. com/webmasters/answer/6347750?hl=pt-BR. Acesso em 13 mar 2019. 6. Quais os tipos de publicação que verei no Feed de Notícias?. Disponível em: https://pt-br.facebook.com/ help/166738576721085. Acesso em 15 mar 2019. 7. Plano Tim Pré Turbo Whatsapp. Disponível em: https://www. tim.com.br/sp/para-voce/planos/pre-pago/turbo-whatsapp. Acesso em: 13 mar 2019. 8. Facebook chega a 127 milhões de usuários mensais no Brasil. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/tec/2018/07/ facebook-chega-a-127-milhoes-de-usuarios-mensais-nobrasil.shtml. Acesso em: 15 mar 2019. 9. O Estatuto da Cidade tem o papel de complementar osYoutube chega a 82 milhões de usuários no Brasil. Disponível 264 em: https://tecnologia.ig.com.br/2016-10-05/youtube-usuarios. html. Acesso em: 15 mar 2019. 10. Chiapas Human Rights Observer Project. Disponível em: http://www.vcn.bc.ca/building/bbwho.htm. Acesso em: 11 mar 2019. 11. Chiapas Peace House Project. Disponível em: http://bapd. org/gch-ct-1.html. Acesso em: 11 mar 2019. 12. TM Crew. Disponível em: http://www.tmcrew.org/chiapas/ chiapas.htm. Acesso em: 11 mar 2019. 13. Colectivo de Solidaridad con la Rebelión Zapatista de Barcelona. Disponível em: http://mexico.indymedia.org/spip. php?article400. Acesso em: 11 mar 2019. 14. A Open Society Institute (OSI)/Soros Foundation financiou a APC até 2016 e a Ford Foundation financia a ONG ainda hoje. Disponível em: https://www.apc.org/en/about/people/funders. Acesso em: 11 mar 2019. 15. G1 (2011). No Egito, executivo do Google nega que vá se dedicar à política. Disponível em: http://g1.globo.com/crise-noegito/noticia/2011/02/no-egito-executivo-do-google-nega-queva-se-dedicar-politica.html. Acesso em: 9 mar 2019. 16. G1 (2011). Google dribla bloqueio à rede no Egito e cria acesso ao Twitter via fone. Disponível em: http://g1.globo.com/ tecnologia/noticia/2011/01/google-dribla-bloqueio-rede-noegito-e-cria-acesso-ao-twitter-fone.html. Acesso em: 9 mar 2019. 17. É importante destacar a controvérsia entre o posicionamento de Bauman (2016) e Castells (2013) com relação ao 15M. Um é extremamente crítico ao movimento, outro, um grande entusiasta do novo ciclo de lutas global. Em duas entrevistas cedidas ao El País El 15-M es emocional, le falta pensamiento (2011) e Zygmunt Bauman: “As redes sociais são uma armadilha” (2016), Bauman observa inconsistências e contradições dentro do movimento dos indignados, enquanto no livro Redes de Indignação e Esperança, Castells (2013) apresenta-se encantado com a forma de organização deste e de outros movimentos de mesma linha. As entrevistas podem ser encontradas em: https://elpais.com/diario/2011/10/17/ cultura/1318802401_850215.html; https://brasil.elpais.com/ brasil/2015/12/30/cultura/1451504427_675885.html. 265 indi scip lina r Em resposta ao posicionamento de Bauman, ativistas ligados ao movimento criam um documentário disponível em: https:// www.youtube.com/watch?v=Z5fsxKIMDNU. Acesso em: 11 de março de 2019. 18. As marcas do 15-M: os indignados espanhóis e os partidos políticos. Disponível em: https://brasil.elpais.com/ brasil/2016/05/16/opinion/1463423568_540429.html. Acesso em: 19 mar 2019. 19. Podemos se convierte en la sorpresa y logra cinco escaños en Estrasburgo. Disponível em: https://elpais.com/ politica/2014/05/25/actualidad/1401009854_060215.html. Acesso em: 19 mar 2019. 20. Um dos fundadores do projeto 15M.cc, Pablo de Soto aparece no documentário 15M: Excelente. Revulsivo. Importante (15M, 2012) 21. Reconhecidamente ligada ao Juventud Sin Futuro, Rita Maestra aparece em vídeo convocando para as manifestações que dariam nome ao movimento dois dias antes de seu acontecimento. Disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v=7mW14YzIGno. Acesso em 19 mar 2019. 22. No documentário 15M: Excelente. Revulsivo. Importante (15M, 2012), Guillermo Zapata comenta sua experiência na acampada sol e nas mobilizações dos indignados como um todo. Referências 15M: Excelente. Revulsivo. Importante. Direção de Stéphane M. Grueso. Madri: 15m.cc, 2012. Disponível em: <https://www. youtube.com/watch?v=Z5fsxKIMDNU>. Acesso em: 9 de março de 2019. 15M: Málaga despierta. Direção de Rakesh B. Narwani e Laura Rueda. Madri: 15mmalaga.cc, 2013. BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. Trad. Marcus Penchel. BISCO JR, José Gaspar; LINO, Sonia Cristina. Guerrilha Eletrônica: o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) e o uso das mídias audiovisuais contemporâneas. In: XII ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA - ANPUH-RIO, 12., 2006, Niterói. Anais... Niterói: Usos do passado, 2006. CASTELLS, Manuel. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. Trad. Carlos Alberto Medeiros. LAVAL, Christian; DARDOT, Pierre. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. Trad. Ana Lúcia de Oliveira; Aurélio Guerra. DIDI-HUBERMAN, Georges (Org.). Levantes. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2017. GOHN, Maria da Glória. 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Membro do grupo de pesquisa Indisciplinar/UFMG. E-mail: [email protected] Jéssica Dayane de Abreu Borges é Graduanda em Arquitetura e Urbanismo na EA/UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). Membro do grupo de pesquisa Indisciplinar/UFMG. Ex-estudante de Ciência da Computação no ICEx/UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). Técnica em Informática pelo CEFET-MG (Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais). E-mail: [email protected] Natacha Silva Araújo Rena é Professora Doutora na EA/UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e líder do grupo de pesquisa Indisciplinar/UFMG. Professora do quadro permanente dos programas de pós-graduação da EA/UFMG: NPGAU e PACPS. Coordenadora do Programa de Extensão IndLab e do INCT Tecnopolíticas, territórios urbanos e redes digitais. Pós-doutorado pela Universidad de Sevilla, Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), mestra em Arquitetura e Urbanismo pela UFMG e graduada em Arquitetura pela UFMG. Editora-chefe da Revista Interfaces e conselheira do CELA (Centro de Estudos Latino-americanos). Os principais temas de sua pesquisa são questões urbanas, desigualdades socioespaciais, urbanismo social, neoliberalismo, geopolítica e soberania, tecnopolíticas urbanas e plataformas colaborativas digitais. E-mail: [email protected] 269