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HISTÓRICO DA ÉTICA

Na sociedade e cultura contemporânea, a questão da Ética voltou a ser central. Fala-se "do crescente interesse adquirido nos últimos anos pela Filosofia prática -Ética e Política -" 1 . Fala-se que a Ética "assume o primeiro plano no debate filosófico e político do nosso tempo" 2 . Fala-se da "necessidade cultural de Ética" 3 ; do "retorno à Ética"; das "tendências e ambiguidades de tal fenômeno" 4 . Fala-se, também, da "emergência da Ética" 5 ; "do renascimento da Ética"; "da urgência da reflexão ética"; "da atenção com a qual são considerados e discutidos os problemas éticos", que "envolvem a vida e a qualidade da vida das gerações presentes e futuras" 6 . Fala-se, ainda, da "necessidade de uma Ética mundial" e de "uma Ética ecumênica em vista da sobrevivência humana" 7 . Enfim, pergunta-se: "como pensar a Ética a partir das contradições de um mundo que produz uma ciência e seus intelectuais dedicados a pesquisar, no mesmo espaço e ao mesmo tempo, princípios de vida e armas de morte?" 8 .

HISTÓRICO DA ÉTICA Na sociedade e cultura contemporânea, a questão da Ética voltou a ser central. Fala-se "do crescente interesse adquirido nos últimos anos pela Filosofia prática - Ética e Política -”1. Fala-se que a Ética "assume o primeiro plano no debate filosófico e político do nosso tempo”2. Fala-se da "necessidade cultural de Ética"3; do "retorno à Ética"; das "tendências e ambiguidades de tal fenômeno"4. Fala-se, também, da "emergência da Ética"5; "do renascimento da Ética"; "da urgência da reflexão ética"; "da atenção com a qual são considerados e discutidos os problemas éticos", que "envolvem a vida e a qualidade da vida das gerações presentes e futuras"6. Fala-se, ainda, da "necessidade de uma Ética mundial" e de "uma Ética ecumênica em vista da sobrevivência humana"7. Enfim, pergunta-se: "como pensar a Ética a partir das contradições de um mundo que produz uma ciência e seus intelectuais dedicados a pesquisar, no mesmo espaço e ao mesmo tempo, princípios de vida e armas de morte?"8. Em suma, para o Ser humano de hoje, "trata-se de compreender o processo epocal que tornou incertas a solidez e a estabilidade na transmissão dos valores e das normas achadas evidentes, pelo qual perderam eficácia os habituais critérios de legitimidade, os princípios reconhecidos para estabelecer aquilo que é bem e aquilo que é mal. Precisa definir os muitos problemas produzidos pela transformação, que podem ser descritos (...) como passagem de uma sociedade tradicional, 1 CAMPS, V. (Ed). Historia de la Ética. Vol. I: De los Griegos al Renacimiento. Editorial Crítica, Barcelona, 1988, p. 7. 2 Cf. VV. AA. Série Éticas. Vol. I: A fidelidade: um horizonte, uma troca, uma memória. L&PM, Porto Alegre, 1992. 3 VIANO, C. A. (Org.). Teorie etiche contemporanee. Bollati Boringhieri, Torino, 1990, p. 11. 4 Cf. ANGELINI, G. Ritorno all'Etica? Tendenze e ambiguità di un fenomeno recente, em "Il Regno" 14 (1990) 438-449. 5 VV. AA. L'Etica nel Pensiero contemporaneo. Mucchi, Modena, 1989, p. 7. 6 DA RE, A. Il ritorno dell'Etica nel Pensiero contemporaneo. Gregoriana, Padova, 1988, p. 9-17. 7 Cf. KÜNG, H. Projeto de Ética mundial. Uma Moral ecumênica em vista da sobrevivência humana. Paulinas, São Paulo, 1993. Cf. também OLIVEIRA, C. J. Pinto de. La dimensione mondiale dell'Etica. Situazione e futuro del mondo umano. EDB, Bologna, 1986. 8 Cf. VV. AA. Ética. Companhia das Letras, São Paulo, 1992. 1 que prescrevia comportamentos socialmente apreciados e aceitos sem discutir sua legitimidade, a uma sociedade pós-tradicional, na qual temos sistemas morais baseados não em prescrições sociais, mas em preferências individuais, ou como passagem de uma sociedade de diferenciação estratificada, na qual a pertença a um estrato comportava a aceitação de uma moral no âmbito de uma mais geral subordinação desta última à religião, a uma diferenciação funcional, que reconhece ao Ser humano maiores liberdades em relação ao seu ambiente social, inclusive a liberdade de comportar-se de maneira não racional e não moral"9. O Artigo que segue apresenta um breve Histórico da Ética filosóficoteológica. 1. A Ética tradicional A Ética tradicional coloca a ênfase no "coletivo" - no universal, no objetivo, no institucional, no autoritário. Parte de uma visão estática, essencialista, imutável e definitiva do Ser humano e do mundo (cosmos: ordem). Fundamenta-se numa "consciência coletiva" mais ou menos implícita no comportamento humano socialmente aceito por todos. A Ética tradicional predominou - ao menos depois de Sócrates - na Antiguidade e na Idade Média. 1.1. A Ética antiga A Ética antiga foi desenvolvida, sobretudo, por Platão e Aristóteles. A Ética de Platão, como a sua política, "depende intimamente: - da sua concepção metafísica (dualismo do mundo sensível e do mundo das ideias permanentes, eternas, perfeitas e imutáveis, que constituem a verdadeira realidade e têm como cume a Ideia do Bem, divindade, artífice ou demiurgo do mundo); - da sua doutrina da alma (princípio que anima ou move o Ser humano e consta de três partes: razão, vontade ou ânimo, e apetite; a razão que contempla e quer racionalmente é a parte superior, e o apetite, relacionado com as necessidades corporais, é a inferior)". Pela razão, que é a faculdade superior e a característica própria do Ser humano, "a alma se eleva - mediante a contemplação - ao mundo das 9 VV. AA. L'Etica nel Pensiero contemporaneo, p. 7. Cf. MACINTYRE, A. Dopo la virtù. Saggio di teoria morale. Feltrinelli, Milano, 1988, p. 49-51; LUHMANN, N. Potere e complessità sociale. Feltrinelli, Milano, 1979 e ID. Struttura sociale e semantica. Laterza, Bari, 1983. 2 ideias. Seu fim último é purificar-se ou libertar-se da matéria para contemplar o que realmente é e sobretudo a Ideia do Bem. Para alcançar esta purificação, é preciso praticar várias virtudes, que correspondem a cada uma das partes da alma e consistem no seu funcionamento perfeito: a virtude da razão é a prudência; a da vontade ou ânimo, a fortaleza; e a do apetite, a temperança. Estas virtudes guiam ou refreiam uma parte da alma. A harmonia entre as diversas partes constitui a quarta virtude, a justiça". O indivíduo, porém, por si só não pode aproximar-se da perfeição. Portanto, "torna-se necessário o Estado ou Comunidade política. O Ser humano é bom enquanto bom cidadão. A Ideia do Ser humano se realiza somente na Comunidade. A Ética desemboca necessariamente na Política"10. Platão, em "A República", "constrói o Estado ideal à semelhança da alma. A cada parte desta, corresponde uma classe especial que deve ser guiada pela respectiva virtude: à razão, a classe dos governantes filósofos, guiados pela prudência -; ao ânimo ou vontade, a classe dos guerreiros, defensores do Estado, guiados pela fortaleza; e ao apetite, os artesãos e os comerciantes, encarregados dos trabalhos materiais e utilitários, guiados pela temperança. Cada classe social deve consagrar-se à sua tarefa especial e abster-se de realizar outras. De modo análogo ao que sucede na alma, compete à justiça social estabelecer na cidade a harmonia indispensável entre as várias classes. E, com o fim de garantir esta harmonia social, Platão propõe a abolição da propriedade privada para as duas classes superiores (governantes e guerreiros)"11. Na Ética de Platão, "transparece o desprezo, característico da Antiguidade, pelo trabalho físico e, por isso, os artesãos ocupam o degrau social inferior e se exaltam as classes dedicadas às atividades superiores (a contemplação, a política e a guerra). Por outra parte, de acordo com as ideias dominantes e com a realidade política e social daquele tempo, não há lugar algum no Estado ideal para os escravos, porque desprovidos de virtudes morais e de direitos cívicos. Com estas limitações de classe, encontramos na Ética de Platão a estreita unidade da moral e da política, dado que, para ele, o Ser humano se forma espiritualmente somente no Estado e mediante a subordinação do indivíduo à Comunidade"12. 10 VÁSQUEZ, A. Sánchez. Ética. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 19783, p. 238-239. 11 Ib., p. 239. 12 Ib. 3 A Ética de Aristóteles - como a de Platão - está intimamente ligada à sua concepção metafísica do mundo e do Ser humano. Aristóteles "se opõe ao dualismo ontológico de Platão. Para ele, a ideia não existe separada dos indivíduos concretos, que são o único existente real; a ideia existe somente nos seres individuais. Mas, no ser individual, é preciso distinguir o que é atualmente e o que tende a ser (ou seja, o ato e a potência: o grão é a planta em potência e a planta - como ato - é a realização definitiva da potência). A mudança universal é passagem incessante da potência ao ato. Existe somente um ser que é ato puro, sem potência: Deus. Também o Ser humano deve realizar com seu esforço o que é potência, para realizar-se como Ser humano". O Ser humano, portanto, "é atividade, passagem da potência ao ato. Mas qual é o fim desta atividade? Para onde tende? Com esta pergunta já se entra no terreno da moral. Há muitos fins, e uns servem para alcançar outros. Mas qual é o fim último para o qual tende o Ser humano? Deve ficar claro que não se pergunta pelo fim de um Ser humano específico - o sapateiro ou o tocador de flauta - mas pelo fim do Ser humano enquanto tal, de todo Ser humano. E Aristóteles responde: a felicidade (eudaimonia). Mas em que consiste o fim ou o bem absoluto, como plena realização daquilo que é humano no Ser humano? Não é o prazer (hedoné), nem tampouco a riqueza: é a vida teórica ou contemplação, como atividade humana guiada pelo que há de mais característico e elevado no Ser humano: a razão". Esta vida, porém, "não se realiza acidental e esporadicamente, mas mediante a aquisição de certos modos constantes de agir (ou hábitos) que são as virtudes. Estas não são atitudes inatas, mas modos de ser que se adquirem ou conquistam pelo exercício e, já que o Ser humano é ao mesmo tempo racional e irracional, é preciso distinguir duas classes de virtudes: intelectuais ou dianoéticas (que operam na parte racional do Ser humano, isto é, na razão) e práticas ou éticas (que operam naquilo que há nele de irracional, ou seja, nas suas paixões e apetites, canalizando-os racionalmente). Por sua vez, a virtude consiste no termo médio entre dois extremos (um excesso e um defeito). Assim, o valor está entre a temeridade e a covardia; a liberalidade, entre a prodigalidade e a avareza; a justiça, entre o egoísmo e o esquecimento de si. Por conseguinte, a virtude é um equilíbrio entre dois extremos instáveis e igualmente prejudiciais. Finalmente, a felicidade que se alcança mediante a virtude, e que é o seu coroamento, exige necessariamente algumas condições 4 maturidade, bens materiais, liberdade pessoal, saúde, etc. -, embora estas condições não bastem sozinhas para fazer alguém feliz"13. A Ética de Aristóteles (como a de Platão) é muito ligada à sua filosofia política. Para Aristóteles (como para o seu Mestre) o Ser humano consegue realizar o seu fim último, que é a felicidade, somente na Comunidade social e política. "O Ser humano enquanto tal só pode viver na cidade ou polis; é, por natureza, um animal político, ou seja, social. Somente os deuses ou os animais não têm necessidade da Comunidade política para viver; o Ser humano, entretanto, deve necessariamente viver em sociedade. Por conseguinte, não pode levar uma vida moral como indivíduo isolado, mas como membro da Comunidade. Por sua vez, porém, a vida moral não é um fim em si mesmo, mas condição ou meio para uma vida verdadeiramente humana: a vida teórica na qual consiste a felicidade"14. Para Aristóteles, o ideal da vida teórica, que se realiza na polis, "por um lado, é acessível só a uma minoria ou elite, e, por outro lado, implica uma estrutura social - como a da antiga Grécia - na qual a maior parte da população - os escravos - mantém-se excluída não só da vida teórica, mas da vida política. Por esta razão, a verdadeira vida moral é exclusiva de uma elite que pode realizá-la - isto é, consagrar-se a procurar a felicidade na contemplação - no âmbito de uma sociedade baseada na escravidão. Dentro desse âmbito, o Ser humano bom (o sábio) deve ser, ao mesmo tempo, um bom cidadão"15. 1.2. A Ética medieval A Ética medieval foi desenvolvida, sobretudo, por Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. A Ética de S. Agostinho retoma - em suas grandes linhas - o pensamento ético de Platão, submetendo-o a um processo de cristianização. Para S. Agostinho, o Ser humano é uma alma que se serve de um corpo. "A purificação da alma, em Platão, e a sua ascensão libertadora até elevar-se à contemplação das ideias, transforma-se em S. 13 Ib., p. 240-241. 14 Ib., p. 241. 15 Ib. 5 Agostinho na elevação ascetica até Deus, que culmina no êstase místico ou felicidade, que não pode ser alcançada neste mundo"16. O Ser humano, para S. Agostinho, "é uma criatura privilegiada na ordem das coisas. Feito à semelhança de Deus, desdobra-se em correspondência com as três pessoas da Trindade. As expressões dessa correspondência encontram-se nas três faculdades da alma. A memória, enquanto persistência de imagens produzidas pela percepção sensível, corresponderia à essência (Deus Pai), aquilo que nunca deixa de ser; a inteligência seria o correlato do verbo, razão ou verdade (Filho); finalmente, a vontade constituiria a expressão humana do amor (Espírito Santo), responsável pela criação do mundo". Das três faculdades, "a mais importante é a vontade, intervindo em todos os atos do espírito e constituindo o centro da personalidade humana. A vontade seria essencialmente criadora e livre, e nela tem raízes a possibilidade de o Ser humano afastar-se de Deus. Tal afastamento significa, porém, distanciar-se do ser e caminhar para o não-ser, isto é, aproximar-se do mal. Reside aqui a essência do pecado, que de maneira alguma é necessário e cujo único responsável seria o próprio livre arbítrio da vontade humana". Segundo Agostinho, o pecado é "uma transgressão da lei divina, na medida em que a alma foi criada por Deus para reger o corpo, e o Ser humano, fazendo mau uso do livre arbítrio, inverte essa relação, subordinando a alma ao corpo e caindo na concupiscência e na ignorância"17. Em contraposição aos Pelagianistas, que - para obter a salvação minimizam (quando não a negam totalmente) a intervenção da graça de Deus e encarecem a eficácia do livre arbítrio (do esforço humano), S. Agostinho afirma que "no estado de decadência em que se encontra, a alma não pode salvar-se por suas próprias forças. A queda do Ser humano é de inteira responsabilidade do livre arbítrio humano, mas este não é suficiente para fazê-lo retornar às origens divinas. A salvação não é apenas uma questão de querer, mas de poder. E esse poder é privilégio de Deus". Para que o Ser humano possa lutar eficazmente contra as tentações da concupiscência, é necessária a graça. "Sem ela o livre arbítrio pode distinguir o certo do errado, mas não pode tornar o bem um fato concreto. 16 Ib., p. 246. 17 S. AGOSTINHO. Vida e Obra. Em: Os Pensadores. Abril Cultural, São Paulo, 19802, p. XX. 6 A graça precede todos os esforços de salvação e é seu instrumento necessário. Ajunta-se ao livre arbítrio sem, entretanto, negá-lo; é um fator de correção e não o aniquila. Sem o auxílio da graça, o livre arbítrio elegeria o mal; com ela, dirige-se para o bem eterno"18. Sublinhando o valor da vontade na vida humana e - consequentemente - o valor do amor, da experiência pessoal e da interioridade, a Ética agostiniana se contrapõe ao racionalismo da Ética grega, e torna-se - na Época contemporânea - fonte de inspiração da Ética existencialista e personalista. A Ética de S. Tomás de Aquino retoma - em seus traços gerais - a Ética de Aristóteles, submetendo-a, porém, a um processo de cristianização (como fez S. Agostinho a respeito da Ética de Platão). Para S. Tomás de Aquino, "Deus é o bem objetivo ou fim supremo, cuja posse causa gozo ou felicidade, que é o bem subjetivo (nisto se afasta de Aristóteles, para quem a felicidade é o fim último). Mas, como em Aristóteles, a contemplação, o conhecimento (como visão de Deus) é o meio mais adequado para alcançar o fim último. Por este acento intelectualista, aproxima-se de Aristóteles"19. Para que o Ser humano possa alcançar o fim supremo (Deus) e ser feliz, são necessárias não somente as virtudes intelectuais e morais ou cardeais (prudência, justiça, fortaleza e temperança), mas também e sobretudo as virtudes teologais (fé, esperança e caridade), ou, em outras palavras, é necessária a graça divina à qual o Ser humano deve corresponder com o reto uso de seu livre arbítrio (que também é um dom de Deus) e com a sua boa vontade. "Para que possa ser considerada boa, a vontade deve conformar-se à norma moral que se encontra nos Seres humanos como reflexo da lei eterna da vontade divina. Esta, no entanto, não pode ser conhecida pelo Ser humano, de tal forma que ele deve limitar-se a obedecer aos ditames da lei natural, entendida como lei da consciência humana"20. Na política, S. Tomás de Aquino "distingue três tipos de lei, que dirigem a Comunidade ao bem comum. O primeiro é constituído pela lei natural (conservação da vida, geração e educação dos filhos, desejo da verdade); o segundo inclui as leis humanas ou positivas, estabelecidas pelo Ser humano com base na lei natural e dirigidas à utilidade comum; finalmente, 18 Ib. 19 VÁSQUEZ, A. Sánchez, o.c., p. 246. 20 TOMÁS DE AQUINO. Vida e Obra. Em: Os Pensadores. Abril Cultural, São Paulo, 19792, p. XII. 7 a lei divina guiaria o Ser humano à consecução de seu fim sobrenatural, enquanto alma imortal"21. A respeito das relações entre o poder temporal e o poder espiritual, "as ideias de S. Tomás revelam a procura de equilíbrio entre as tendências conflitantes da época. O Estado (poder temporal) é concebido como instituição natural, cuja finalidade consistiria em promover e assegurar o bem comum. Por outro lado, a Igreja seria uma instituição dotada fundamentalmente de fins sobrenaturais. Assim, o Estado não precisaria se subordinar à Igreja, como se ela fosse um Estado superior. A subordinação do Estado à Igreja deveria limitar-se aos vínculos de subordinação existentes entre a ordem natural e a ordem sobrenatural, na medida em que esta aperfeiçoaria a primeira. A harmonização, no plano social e político, entre poder temporal e poder espiritual seria, portanto, análoga à que S. Tomás procura estabelecer entre filosofia e teologia, entre razão e fé"22. A Ética tradicional encontra-se presente também na Época Moderna e Contemporânea através dos Manuais de Filosofia e Teologia escolástica e neo-escolástica, que - por terem, quase sempre, uma finalidade pedagógico-didática de caráter apologético - fazem, em geral, uma leitura reducionista e, às vezes, até deturpada dos grandes Pensadores medievais. A Ética tradicional dos Manuais - embora seja portadora de reais valores como a busca do que é universal (perenne), a importância dos atos humanos, do privado e da Lei - torna-se cada vez mais uma Ética (ou Moral), que se caracteriza por uma visão sacral, pessimista (dualista), legalista (casuística) e privatista do Ser humano e do mundo23. "A segurança transmitida pelos Manuais (de Moral) lhes advém de uma auréola de sacralidade que os cerca. Nascidos num mundo sacral, alimentados por uma certa visão teológica sacralizada e sacralizante, os Manuais aparecem como a expressão concreta e acabada desse clima. É bom lembrar que o primeiro Manual, aparecido em 1600, traz no próprio título as marcas da sacralidade: 'Institutiones Sacrae Theologiae Moralis'. Ora, o que é sagrado se coloca acima das discussões, e, com isso, se 21 Ib. 22 Ib., p. XII-XIV. 23 Cf. MOSER, A. e LEERS, B. Teologia Moral: impasses e alternativas. Vozes, Petrópolis, 1987, p. 35-42. Cf. também MOSER, A. Teologia Moral. Desafios atuais. Vozes, Petrópolis, 1991, p. 13-18. 8 torna inatingível por eventuais críticas. (...) As consequências a nível social, eclesial e mesmo pessoal, são evidentes: as Instituições não se renovam, pois não permitem questionamento"24. Enquanto a sacralização da Moral está ligada a uma visão cosmológica naturalista, "o pessimismo resulta de uma visão antropológica dualista. Sofrendo os influxos de uma interpretação platônica e de movimentos heréticos rigoristas, os Manuais alimentam uma visão negativa do Ser humano e do mundo. O mundo e o Ser humano são vistos com desconfiança. O mundo como um todo se faz sinônimo de perigo. Daí os incentivos à fuga do mundo. O Ser humano, embora trazendo em si as marcas divinas, carrega consigo o peso da materialidade. Daí a negatividade com a qual são abordados o corpo e a sexualidade. (...) Enfocada mais como ocasião de pecado do que como energia a serviço do amor, a sexualidade se torna o 'pivô' dos problemas de consciência"25. A Moral dos Manuais é uma espécie de apêndice do Códice de Direito Canônico. "Tendo como pano de fundo a visão sacral do mundo e o dualismo antropológico, embora disfarçado, os Manuais são escritos sob o império da lei. O esquecimento da Aliança, moldura natural da Lei divina, e a quase equiparação das leis humanas à Lei divina, fazem um valor se transformar num possível contravalor. Por vezes simples leis eclesiásticas, litúrgicas, e até civis, passam a ter força quase divina. A falta de uma distinção de níveis não só prejudica a compreensão da lei, mas pode mesmo desmoralizá-la. É exatamente essa uma das acusações que o Cristo faz contra o legalismo farisaico. Esse desvio faz com que tudo pareça perene, universalista, matando a criatividade e freando toda evolução. A lei, que deveria ser uma seta a indicar o caminho da vida, chega a tornar-se instrumento de pecado e de morte, na linguagem paulina26. O legalismo foi grandemente reforçado pelo caráter impositivo das normas abstratas, através do casuísmo. Na avaliação dos problemas, ficam na sombra coordenadas que afetam profundamente os comportamentos humanos e seu significado: fatores pessoais, sócioculturais, econômicos, políticos, ideológicos e religiosos. A solução dos problemas seria encontrada num nível mais essencialista. Para tanto bastaria que as normas fossem acionadas com objetividade. As pessoas 24 MOSER, A e LEERS, B., o.c., p. 39 25 Ib., p. 40. 26 Cf. Gl 2, 15-21; 3, 21-23. 9 desaparecem no interior da ordem estabelecida. Devem sujeitar-se ao que foi abstratamente resolvido numa linha de princípios. Destarte, juridismo e casuísmo se transformam também eles em peças importantes no processo de sujeição das consciências"27. Mesmo existindo um tratado de Moral social, "o individualismo privatista pervade toda a Moral. 'Salva tua alma', é o princípio regulador de todo o edifício da Teologia moral dos Manuais. Evita-se sujar as mãos com as 'coisas' terrenas. Particularmente perigosa é a atividade política, tida como pouco digna do cristão. O privatismo é cultivado de modo todo especial em termos de pecado e de conversão. Tudo se passa na intimidade dos corações; tanto as rupturas, quanto as conversões são vividas numa perspectiva individualista. (...) O importante seria tão-somente converter as pessoas, que se arrependem na intimidade dos corações: como se ali se confinasse o pecado. A dimensão social do pecado estaria escamoteada. Uma coisa é exclusivizar o social; outra é ignorá-lo"28. Do ponto de vista moral, os dois extremos estão errados. 2. A Ética pós-tradicional A Ética pós-tradicional coloca a ênfase no "individual" - no racional, no subjetivo, no autônomo. Parte de uma visão dinâmica e evolutiva do Ser humano; fundamenta-se na "consciência individual". É a Ética da Época Moderna (incluindo a Época Contemporânea). É a Ética da chamada Modernidade e/ou Pós-Modernidade. 2.1. A Ética moderna A Ética moderna é a Ética fundada numa compreensão "moderna" que é uma compreensão antropocêntrica e racional - do Ser humano e de seu comportamento A expressão mais perfeita da Ética moderna é a Ética de Kant. Na "Fundamentação da Metafísica dos Costumes" Kant afirma que a filosofia moral deve ser pura, isto é, despida de tudo o que é empírico. Nesta perspectiva "a moral é concebida como independente de todos os impulsos e tendências naturais ou sensíveis; a ação moralmente boa seria a que obedecesse unicamente à lei moral em si mesma. Esta somente 27 MOSER, A e LEERS, B., o.c., p. 41. 28 Ib., p. 41-42. 10 seria estabelecida pela razão, o que leva a conceber a liberdade como postulado necessário da vida moral. A vida moral somente é possível, para Kant, na medida em que a razão estabeleça, por si só, aquilo que se deva obedecer no terreno da conduta"29. Na "Crítica da Razão Prática", Kant inverte o método usado na "Fundamentação da Metafísica dos Costumes" e investiga a liberdade como a razão de ser da vida moral. Em outras palavras, Kant "demonstra que a lei moral provém da idéia de liberdade e que, portanto, a razão pura é por si mesma prática, no sentido de que a ideia racional de liberdade determina por si mesma a vida moral e com isso demonstra sua própria realidade. Em suma, o incondicionado e absoluto (inatingível pela razão no terreno do conhecimento) seria alcançado verdadeiramente na esfera da moralidade; a liberdade seria a coisa-em-si (o noumenon) almejada pela razão. Nesse sentido, a razão prática tem primazia sobre a razão pura"30. Kant chama a lei moral de "imperativo categórico" que - contrariamente aos "imperativos hipotéticos" - é incondicionado e absoluto, podendo ser formulado com as palavras: "Age de tal maneira que o motivo que te levou a agir possa ser convertido em lei universal". Sendo a razão pura por si mesma prática, o "imperativo categórico" afirma a autonomia da vontade. "O único bom em si mesmo, sem restrição é uma boa vontade. A bondade de uma ação não se deve procurar em si mesma, mas na vontade com que se fez. Mas quando é que uma vontade é boa, ou como uma boa vontade age ou quer? É boa a vontade que age por puro respeito ao dever, sem razões outras a não ser o cumprimento do dever ou a sujeição à lei moral. (...) O que a boa vontade ordena é universal por sua forma e não tem um conteúdo concreto: refere-se a todos os Seres humanos em todo o tempo, e em todas as circunstâncias e condições"31. O Ser humano é o legislador de si mesmo. Portanto, a Ética de Kant é uma Ética formal e autônoma. "Por ser puramente formal, tem de postular um dever para todos os Seres humanos, independentemente da sua situação social e seja qual for o seu conteúdo concreto. Por ser autônoma (e opor-se assim às Morais heterônomas nas quais a lei que rege a consciência vem de fora), aparece como a culminação da tendência antropocêntrica iniciada no 29 KANT (I). Vida e Obra. Em: Os Pensadores. Abril Cultural, São Paulo, 19802, p. XVIII. 30 Ib. 31 VÁSQUEZ, A. Sánchez, o.c., p. 249-250. 11 Renascimento, em oposição à Ética medieval"32. Enfim - por ser a Ética de um sujeito autônomo e livre - a Ética de Kant é o ponto de partida de uma Ética que define o Ser humano como ser ativo e criador e que deseja ver realizado no mundo real (e não no mundo ideal) o princípio kantiano: o Ser humano deve ser sempre tomado como fim e nunca como meio33. A imortalidade da alma e a existência de Deus - como a liberdade - são para Kant postulados da "razão pura prática". "A fé moral na imortalidade da alma é necessária para que se conceba uma vida supra-sensível na qual a virtude possa receber seu prêmio. A existência de Deus, por outro lado, é necessária enquanto afirma um ser cuja vontade e cujo intelecto criam um mundo no qual não há abismo algum entre o real e o ideal, entre o que é e o que deve ser"34. A Ética moderna, desvirtuando o conteúdo profundamente humanista da Ética kantiana, tornou-se - em seus desdobramentos posteriores e em suas diferentes expressões - uma Ética baseada cada vez mais numa compreensão racionalista, objetivista, descritiva, a-valorativa, instrumental, calculista e utilitarista do Ser humano e de seu comportamento. Basta lembrar como se desenvolveram as Correntes de pensamento do Racionalismo, Positivismo, Cientificismo, Estruturalismo, Empirismo, Contratualismo e Utilitarismo. Como afirma Max Weber, no "espírito do capitalismo moderno" todas as atitudes morais "são coloridas pelo utilitarismo. A honestidade é útil porque assegura o crédito; do mesmo modo a pontualidade, a laboriosidade, a frugalidade, e, esta é a razão pela qual são virtudes. Uma dedução lógica disto seria que, por exemplo, a aparência de honestidade bastaria quando fizesse o mesmo efeito (...). Estas virtudes somente o são na medida em que são realmente úteis ao indivíduo, e, sendo substituíveis pela mera aparência, sempre são suficientes quando o mesmo objetivo tiver sido atingido"35. 32 Ib., p. 250. 33 Cf. Ib. 34 KANT (I), o.c., p. XXI. 35 WEBER, M. A Ética protestante e o espírito do capitalismo. Livraria Pioneira, São Paulo, 19875, p. 32. 12 Um exemplo atual de Ética moderna é a chamada "Ética Objetivista" de Ayn Rand, que advoga e defende o "egoismo racional" como sendo a "verdadeira Ética do Ser humano"36. 2.2. A Ética pós-moderna A Ética pós-moderna é a Ética que - frente à crise da Modernidade busca uma compreensão "pós-moderna" do Ser humano e de seu comportamento, "excludente" ou "includente" a modernidade. 2.2.1. A Ética pós-moderna "excludente" a modernidade A Ética pós-moderna "excludente" a modernidade é a Ética fundada numa compreensão crítica da "modernidade" de caráter "excludente". Ela rejeita "a modernidade e o ideal racional por ela produzido, considerando-a no seu conjunto não como um projeto inacabado e que deve ser complementado, mas como um projeto falido e acabado"37. A Ética pós-moderna "excludente" a modernidade toma fundamentalmente dois caminhos opostos: o da Restauração (ou Reintegração) e o do Nihilismo (nas suas mais variadas formas). A Ética da Restauração é uma tentativa de restaurar a Ética tradicional (certamente pouco eficaz), que se manifesta de muitas maneiras e tem quase sempre um cunho religioso fundamentalista. É uma Ética que visa re-integrar os indivíduos, considerados num estado de menor idade, em instituições fortemente normativas38. A Ética do Nihilismo, em contraposição à Ética da Restauração, é a Ética da absoluta equivalência e reciprocidade dos critérios de valor. Ela retoma a linha de pensamento nihilista de Nietzsche e de Heidegger. "Nietzsche foi o primeiro a formular em termos gerais a possibilidade de uma organização de vida que pudesse deixar de lado as instituições 36 Cf. RAND, A. A virtude do egoísmo. A verdadeira Ética da homem: o egoísmo racional. Ortiz/IEE, Porto Alegre, 1991. 37 VOLPI, F. Crisi della Modernità e riabilitazione della Filosofia pratica. Em: VV. AA. L'Etica nel Pensiero contemporaneo, p. 17-18. 38 Cf. Ib., p. 7. 13 morais. Ele pensou o fim da Moral como a consequência mais decisiva dequele 'evento' que qualificou como 'morte de Deus'. A crítica nietzscheana entende mostrar como a 'morte de Deus' se expressa mediante o progressivo esvaziamento dos valores na Época contemporânea (o nihilismo europeu). (...) Não só Nietzsche se coloca a favor do processo de secularização (ou, melhor, secularismo), mas acha que precisa chegar a uma imagem de um mundo totalmente desencantado, até ao abandono da própria ideia de avaliação moral da vida. (...) O mundo deve ser pensado só mediante o conceito de 'vontade de vida'. Nietzsche propõe assim a saída do horizonte moral em que o avaliar se transforma em uma colocação de valores visando a afirmação da vida"39. 2.2.2. A Ética pós-moderna "includente" a modernidade A Ética pós-moderna "includente" a modernidade é a Ética fundada numa compreensão crítica da "modernidade" de caráter "includente". Ela tomou consciência "do desenvolvimento unilateral da racionalidade moderna no sentido da ciência e da técnica e suscitou a exigência de corrigir esta unilateralidade, mantendo firme todavia o ponto de vista da modernidade e desdobrando as potencialidades atrofiadas da razão"40. A crise da modernidade não é uma crise da razão enquanto tal, mas a crise de uma visão "reducionista" da razão. "Hoje, são muitas as vozes que apontam para uma grande decepção no processo civilizatório da modernidade. A promessa de razão e liberdade teria desembocado na mais profunda repressão em todas as dimensões da vida humana. Daí a defesa de um para-além da razão (moderna)"41. Nesta linha de reflexão - de superação da modernidade, incluindo-a situam-se diversas Correntes de pensamento, como a Ética do Neoaristotelismo, do Neo-iluminismo, do Personalismo, do Engajamento, dos Direitos Humanos, do Marxismo humanista e - o que nos interessa de maneira especial - a Ética da Libertação. 39 BORDIN, L. Ética e Modernidade, Luhmann e Habermas, em "Vozes" 3 (1991) 362. 40 VOLPI, F., o.c., p. 9. 41 OLIVEIRA, M. Araújo de. A Ética como problema da inter-relação entre teoria e prática: enfoque filosófico. Em: ANTONIAZZI, A., LIBÂNIO, J.B. e FERNANDES, J. de Souza (Orgs.). Novas fronteiras da Moral no Brasil. Santuário, Aparecida-SP, 1992, p. 58, nota 19. Cf. ID. A Filosofia na crise da Modernidade. Loyola, São Paulo, 1989. 14 A Ética do Neo-aristotelismo é a Ética que - embora na grande diversidade e heterogeneidade das posições - procura revalorizar a Filosofia prática de inspiração aristotélica. A Ética do Neo-iluminismo é a Ética que tem uma compreensão neoiluminista, neo-kantiana e neo-racionalista do saber prático. É a chamada Ética do discurso (ou da argumentação), de caráter universal, di Karl-Oto Apel e de Jürgen Habermas. Como afirma o próprio Habermas, "segundo a Ética do discurso, uma norma só tem valor se todos aqueles que estão envolvidos com ela conseguem, como participantes de um discurso prático, chegar a um acordo sobre a validade de tal norma"42. A Ética do Engajamento (do Compromisso) é a Ética que parte do Ser humano como subjetividade existencial e histórica absolutamente livre e responsável. Os principais representantes desta corrente de pensamento são Merleau-Ponty, Albert Camus e, sobretudo, Sartre. Para Sartre, "a possibilidade última da realidade humana, a sua escolha originária, é o projeto fundamental em que se inserem todos os atos e as volições particulares de um Ser humano. Tal projeto é fruto de uma liberdade sem limites, isto é, absoluta e incondicionada: de uma liberdade que faz do Ser humano uma espécie de Deus criador do seu mundo e o torna responsável pelo próprio mundo. O Ser humano é, de fato, definido por Sartre como 'o ser que projeta ser Deus'"43. Segundo o pensamento de Sartre, "o Ser humano não é senão o seu projeto, só existe na medida em que se realiza, não é, portanto, nada mais do que o conjunto dos seus atos (ações), nada mais do que a sua vida"44. "O Ser humano faz-se; não está realizado logo de início, faz-se escolhendo a sua moral, e a pressão das circunstâncias é tal que não pode deixar de escolher uma. Não definimos o Ser humano senão em 42 HABERMAS, J. Etica del discorso. Laterza, Bari, 1989, p. 74. Cf. APEL, K.-O. Estudos de Moral Moderna. Vozes, Petrópolis, 1994. Ver também a teoria weberiana da racionalização e a diagnose husserliana da crise das ciências européias. 43 ABBAGNANO, N. Existencialismo. Em: Dicionário de Filosofia. Mestre Jou, São Paulo, 19822, p. 384. Ver: SARTRE, J. P. L'être et le néant. Paris, Gallimard, 1943. 44 SARTRE, J. P. O Existencialismo é um Humanismo. Em: Os Pensadores. Abril Culltural, 19782, p. 13. 15 relação a um compromisso. (...) Sempre que o Ser humano escolhe o seu compromisso e o seu projeto com toda sinceridade e lucidez, qualquer que seja, aliás, esse projeto, é impossível preferir-lhe um outro. (...) O Ser humano é sempre o mesmo em face de uma situação que varia e a escolha é sempre uma escolha numa situação"45. Todas as escolhas particulares, porém, são "a manifestação duma escolha mais original, mais espontânea do que se chama vontade"46. O Ser humano quer "a liberdade como fundamento de todos os valores"47 e em concreto. "Queremos a liberdade pela liberdade e através de cada circunstância particular. E, ao querermos a liberdade, descobrimos que ela depende inteiramente da liberdade dos outros, e que a liberdade dos outros depende da nossa. Sem dúvida, a liberdade como definição do Ser humano não depende de outrem, mas, uma vez que existe a ligação de um compromisso, sou obrigado a querer ao mesmo tempo a minha liberdade e a liberdade dos outros; só posso tomar a minha liberdade como um fim se tomo igualmente a dos outros como um fim"48. Mas "o que conta é o compromisso total, e não é um caso particular, uma ação particular, que vos liga totalmente"49. Por ser livre em suas escolhas, o Ser humano é também responsável por aquilo que é. "Quando dizemos que o Ser humano é responsável por si próprio, não queremos dizer que o Ser humano é responsável pela sua restrita individualidade, mas que é responsável por todos os Seres humanos (...). A nossa responsabilidade é muito maior do que poderíamos supor, porque ela envolve toda a humanidade"50. Pelo compromisso livre, "cada Ser humano se realiza, realizando um tipo de humanidade"51. Na realidade - continua Sartre - "não há amor diferente daquele que se costrói; não há possibilidade de amor senão o que se manifesta no amor"52. 45 Ib., p. 18-19. 46 Ib., p. 6. 47 Ib., p. 19. 48 Ib. 49 Ib., p. 15. 50 Ib., p. 6-7. 51 Ib., p. 17. 52 Ib., p. 13. 16 A Ética do Personalismo é a Ética da "revolução personalista e comunitária". Inspira-se principalmente no pensamento de Emmanuel Mounier, que foi "um movimento orientado de um projeto de civilização personalista a uma interpretação personalista das filosofias da existência"53, sobretudo da filosofia de Karl Jaspers e Gabriel Marcel. "O personalismo é uma filosofia, não apenas uma atitude. É uma filosofia, não é um sistema. Não foge à sistematização. Porquanto o pensamento necessita de ordem: conceitos, lógica, esquemas unificantes, não servem apenas para fixar e comunicar um pensamento que sem eles se diluiria em intuições opacas e solitárias; servem também para perscrutar essas intuições em toda sua profundidade; são simultaneamente instrumentos de descoberta e de exposição. Porque define estruturas, o personalismo é uma filosofia, e não apenas uma atitude. Mas sendo a existência de pessoas livres e criadoras a sua afirmação central, introduz no centro dessas estruturas um princípio de imprevisibilidade que afasta qualquer desejo de sistematização definitiva"54. O personalismo é também, na prática, "uma pedagogia da vida comunitária vinculada a uma conversão da pessoa"55 e, ao mesmo tempo, a uma mudança da "desordem estabelecida". A Ética personalista baseia-se na escolha livre e responsável de cada Ser humano (pessoa), mas atravessa também "a espessura das técnicas, das estruturas sociais e das idéias"56. Segundo Mounier "cada idade só realiza tarefa mais ou menos humana, se escuta antes de tudo o chamado sobre-humano da história"57. Dentro do movimento de reflexão teológica, iniciado na década de 50 e no contexto de abertura do Concílio Vaticano II, surge a Moral Renovada (ou Ética teológica Renovada) que integra as contribuições da Ética personalista, e é uma Moral que se inspira mais na Sagrada Escritura, que 53 RICOEUR, P. História e Verdade. Forense, Rio de Janeiro, 1968, p. 139. 54 MOUNIER, E. O Personalismo. Livraria Morais, Lisboa, 19642, p. 16-17. 55 RICOEUR, P., o.c., p. 138 56 Ib., p. 139. 57 MOUNIER, E. Manifeste au service du personnalisme. Col. Esprit, Aubier, 1936, p. 11. Citado por: RICOEUR, P., o.c., p. 140. 17 evidencia a sublimidade da vocação dos fiéis em Cristo e que leva a produzir frutos na caridade, para a vida do mundo58. Inspirar-se mais na Sagrada Escritura, "significa que a Moral deve retratar a Boa-Nova da salvação expressa na Escritura. Boa-Nova que não se caracteriza pelo 'tu deves', mas pelo 'eu te libertei'". A Escritura "não é um receituário, mas ela encerra o sentido humano radical, pois o Cristo é a plenitude do humano"59. Evidenciar a sublimidade da vocação dos fiéis em Cristo significa que a Moral deve ser cristocêntrica. "A Aliança proposta por Deus no Antigo Testamento aponta continuamente para a grande promessa: Jesus Cristo. É n'Ele e através d'Ele que se estabelece a Nova e Eterna Aliança. Ele é a Nova Lei. Nele temos ao mesmo tempo encarnadas, e do modo mais nítido possível, a pro-posta salvífica de Deus e a res-posta perfeita e total do humano. (...) Deus nos chama para a salvação e ao mesmo tempo para uma atitude de vida correspondente à salvação; isto é, à vida de perfeição na caridade, tal como foi a vida do próprio Cristo. Essa vocação comporta um dinamismo. Deus não chama de uma vez por todas: seu apelo ressoa, sem cessar, pela ação do Espírito Santo. Pertence ao próprio dinamismo da vocação a busca de um ideal jamais plenamente realizado"60. É nisso que consiste o "seguimento" de Cristo. Produzir frutos na caridade, para a vida do mundo, significa que a Moral deve levar o cristão(ã) a um verdadeiro compromisso com o mundo. "Compromisso que nasce da dinâmica da fé; da criação e redenção; do consequente valor das realidades terrestres. O mundo não significa, evidentemente, só o universo criado. Não é só cultivando seu jardim que o Ser humano se aperfeiçoa, mas tranformando o universo criado e a Comunidade humana, segundo os projetos do Criador. (...) Em Jesus Cristo, Deus instalou definitivamente sua morada no mundo. O cristão(ã), enquanto fermento na massa, nada tem a temer, pois a sua história é presidida pelo Senhor da história. Por isso, a mensagem cristã não desvia os Seres humanos da construção do mundo, nem os leva a negligenciar o bem de seus semelhantes, mas antes os obriga mais estritamente, por dever, a realizar tais coisas. E mais: as atividades terrestres que os interpelam levam-nos a uma concepção mais ampla na qual é 58 Cf. CONCÍLIO VATICANO II, A Formação Sacerdotal (OT), 16. 59 MOSER, A. e LEERS, B. Teologia Moral: Impasses e Alternativas. Vozes, Petrópolis, 1987, p. 56. 60 Ib., p. 57. 18 redimensionada a própria vida pessoal; o Ser humano é convidado a fazer parte de uma grande epopéia: a epopéia do Povo de Deus, que guiado pelo Senhor da história se lança num audacioso projeto de transformação do mundo. Sua grande oportunidade não reside na fuga do mundo, mas em abraçá-lo, como Cristo o abraçou"61. Em síntese, a Moral Renovada supera - embora incorporando os verdadeiros valores da Moral Tradicional - a visão sacral, pessimista (dualista), legalista (casuística) e privatista do Ser humano e do mundo. Ela é, assim, portadora de conquistas que são reais - inegáveis e irrefutáveis. Na ótica, porém, do chamado Terceiro Mundo, ou seja, na ótica dos empobrecidos, oprimidos e excluídos, a Moral Renovada apresenta diversas limitações. Ela "se constitui num louvável e frutífero esforço para responder às interpelações do 'mundo moderno', mas parece não oferecer respostas sempre adequadas para os gritos que brotam dos porões da humanidade (no Terceiro e Quarto Mundos)"62. De fato, a Moral Renovada é uma Moral voltada predominantemente para o Primeiro Mundo e "privilegia certas questões que, quando confrontadas com outras, deveriam passar a um segundo plano. (...) Os problemas enfocados são, sem dúvida, problemas que se põem em todas as camadas sociais, em todas as latitudes e longitudes. Entretanto, não se põem com a mesma intensidade. Eles são 'vitais' para quem vive num padrão de Primeiro Mundo. São menos vitais para os que vivem no contexto de um submundo. Com efeito, a Moral Renovada reflete, ainda em grande parte, problemas que atormentam pessoas e camadas sociais que gozam de um status econômico, social, e mesmo religioso privilegiado: manipulação genética, corrida armamentista, suicídio, eutanásia, etc. Não são bem esses os problemas morais que mais atormentam as grandes maiorias que vivem à margem dos benesses de uma sociedade de abundância"63. É por isso que a Moral Renovada "aparece mais como Moral 'progressista', por vezes até liberal, do que propriamente renovadora"64. A Moral renovada é uma Moral ainda muito idealista. (...) "Sem renunciar em nada ao ideal proposto por Cristo ('Sede perfeitos como o 61 Ib., p. 58-59. Cf. CONCÍLIO VATICANO II. A Igreja no mundo de hoje (GS), 43. 62 Ib., p. 64. 63 Ib., p. 66. 64 Ib. 19 Pai celeste é perfeito''), a Teologia Moral deveria ser capaz de levar em conta as situações concretas nas quais se encontram não só as pessoas, mas também camadas sociais e até povos inteiros. Nem sempre uma realidade permite a concreção plena do ideal cristão. Sobretudo, é preciso não esquecer que o próprio Deus apresenta uma pedagogia progressiva para o Povo escolhido. (...) A mesma observação pode ser feita a propósito do relacionamento Cristo-Apóstolos (...). Justamente por arrancar de uma perspectiva de Primeiro Mundo, a Moral Renovada pressupõe um tipo de homem e de mulher privilegiados econômica, social, cultural e religiosamente. Isso transparece muito bem no modo de abordar questões familiares. O ideal apresentado em termos de família pressupõe boa situação financeira, casa com vários compartimentos, boa saúde, controle emocional, bons honorários, muito tempo livre. Com nada disso pode sonhar a família dos empobrecidos. Bem se vê que o impasse criado pelo esquema progressista se situa na ausência de uma perspectiva verdadeiramente social dos problemas humanos"65. A Moral Renovada é uma Moral ainda muito personalista. "Uma das conquistas da Moral Renovada foi exatamente - como já afirmei - a integração do personalismo. Esse é mesmo uma das peças-chave, que chega a caracterizar o esquema: momento do sujeito, em contraposição ao momento do objeto. Contudo, o personalismo quando levado às últimas consequências pode representar um empobrecimento: pensa muito bem as relações curtas do eu-tu. Mas o personalismo só se mantém no contexto de uma reflexão social. Essa não anula o personalismo, mas lhe assegura seu verdadeiro lugar. (...) É assim, por exemplo, que em termos de matrimônio e família, a não integração do prisma social leva ao 'familismo'. Esse tenta entender e resolver os problemas a partir do casal e da família, sem dar o devido peso aos fatores econômicos, políticos, sociais, históricos, culturais, e mesmo religiosos"66. Enfim, a Moral Renovada é uma Moral ainda socialmente conservadora. Por tudo o que foi dito, fica claro que o esquema da Moral Renovada, "sob certos aspectos, é mais reformista do que renovador. Ele, em termos sociais, parte da pressuposição das disfunções dos sistemas existentes. Não os coloca propriamente em causa. Ao menos não quando se trata do 65 Ib., p. 68-69. 66 Ib., p. 69-70. 20 capitalismo"67. Sendo assim, fica muito difícil - para não dizer, impossível compreender os problemas humanos (individuais e sociais) a partir dos empobrecidos, oprimidos e excluídos. A Ética dos Direitos Humanos é a Ética que se caracteriza por "um retorno da linguagem dos 'Direitos', a tal ponto que, como foi observado, é provável que a nossa Época, mais ainda do que aquela das Revoluções americana e francesa, seja lembrada como a 'Época dos Direitos'"68. Na perspectiva dos oprimidos, fala-se muito hoje, na América Latina e no Terceiro Mundo em geral, dos Direitos Humanos como Direitos dos Pobres. "Nesta perspectiva, os Direitos Humanos são as exigências básicas e não satisfeitas de um povo que tem um destino, e de cada um dos indivíduos deste povo. Os Direitos Humanos são prioritariamente os Direitos dos Pobres. (...) Os Pobres eram uma categoria social que partilhava a desgraça do que se considerava um destino histórico. Agora partilham a responsabilidade de serem protagonistas não apenas de sua própria história, mas do destino da humanidade. (...) Seus Direitos se tornaram lei para toda a humanidade"69. A Ética do Marxismo humanista pretende mostrar o valor da carga profundamente humana do pensamento de Marx, que é reconhecida até por seus maiores críticos. "Não se pode duvidar que o segredo da influência religiosa de Marx foi o seu apelo moral, que sua crítica do capitalismo funcionou principalmente como crítica moral. Marx mostrou que um sistema social pode, como tal, ser injusto; que se o sistema é ruim, então toda a retidão dos indivíduos que se beneficiam com ele é um mero simulacro de retidão, mera hipocrisia, porque nossa responsabilidade se estende ao sistema, às instituições cuja persistência permitimos. É esse radicalismo moral de Marx que explica sua influência; e isso é em si um fato esperançoso. Esse radicalismo moral ainda está vivo. É nossa tarefa mantê-lo vivo (...). Seu sentimento de responsabilidade social e seu amor pela liberdade têm que sobreviver"70. 67 Ib., p. 70. 68 FAGIANI, F. Etica e teorie dei diritti. Em: VIANO, C. A. (Org.), o.c., p. 87. 69 ALDUNATE, J. (Coord.). Direitos Humanos, Direitos dos Pobres. Vozes, Petrópolis, 1991, p. 198-199. 70 POPPER, K. R. A sociediade aberta e seus inimigos (A Ética de Marx). Em: Os Pensadores. Abril Cultural, São Paulo, 19802, p. 166. 21 Entre os principais representantes desta Corrente de pensamento embora na diversidade de enfoques - podemos lembrar A. Scharf, R. Garaudy, E. Bloch, A. Gramsci, H. Marcuse, E. Fromm e L. Basbaum. Segundo Adam Schaff, por exemplo, "definir o Ser humano como 'produto da vida social' não implica necessariamente a sua coisificação, a negação de sua condição de sujeto. O materialismo histórico não defende 'uma necessidade impessoal' como força motriz da história. (...) O pensamento de Marx é um pensamento em evolução, mas cujo objetivo constante foi sempre 'a questão da libertação do Ser humano'; trata-se, portanto, de um pensamento que vê no Ser humano o sujeito ativo do acontecer histórico"71. O problema central do Marxismo (e/ou Socialismo) é o Ser humano, não o Ser humano abstrato ou o Ser humano em geral, mas o indivíduo humano concreto, que é, ao mesmo tempo e em sentido dialético, "criatura e criador da sociedade", seu "ponto de chegada e de partida". "A história é feita pelos Seres humanos, mas as ações e opções dos Seres humanos encontram-se influenciadas pelos condicionamentos e necessidades de seu meio ambiente". "Nada, portanto, acontece sem os Seres humanos; pelo contrário, tudo acontece pelos Seres humanos" As chamadas necessidades históricas ou leis objetivas não eliminam a liberdade de ação, mas são, ao mesmo tempo, o resultado e o alicerce social das atividades humanas. A pessoa humana - por ter um caráter social - é condicionada socialmente, mas é um valor "único", "irrepetível" e "supremo"72. O humanismo marxista (e/ou socialista), que é um humanismo "combativo" e "concreto", é “o mais real" e "o mais radical" dos humanismos73. A Ética da Libertação - podemos, enfim, dizer - situa-se, em primeiro lugar, numa perspectiva histórica - filosófica e/ou teológica - póstradicional, embora (numa ótica diferente e, muitas vezes, oposta) 71 PEÑA, J. L. Ruiz de la. As novas Antropologias. Um desafio à Teologia. Loyola, São Paulo, 1988, 43-44. O Autor cita SCHAFF, A. Marx oder Sartre? Versuch einer Philosophie des Menschen. Frankfurt a. M., 1964, p. 42ss e ID. Marxismo e indivíduo humano. México, 1967, p. 24-36, 66ss. 72 Cf. PEÑA, J. L. Ruiz de la, o.c., p. 44-45, citando SCHAFF, A. Marx oder Sartre?, p. 76-81, 86ss e ID. Marxismo e indivíduo humano, p. 65, 123, 277. 73 Cf. Ib., p. 45. O Autor cita novamente SCHAFF, A. Marx oder Sartre?, p. 138ss. 22 incorpore também contribuições da Ética tradicional. Por exemplo, a insistência no ou a recuperação do coletivo, social, estrutural, institucional, vendo-o não só como "natural" e ético ou sagrado - como na Ética tradicional - mas, sobretudo, como "histórico", "cultural" e, muitas vezes, anti-ético (imoralidade estrutural, injustiça institucionalizada). Numa perspectiva histórica - filosófica e/ou teológica - pós-tradicional, a Ética da Libertação situa-se na linha do pensamento pós-moderno "includente" a modernidade. Mais especificamente, a Ética da Libertação situa-se, a meu ver, na perspectiva histórica do Marxismo humanista, mas incorpora também outras contribuições, sobretudo do Existencialismo e Personalismo. No próximo Artigo apresentarei um breve Histórico da Ética da Libertação filosófico-teológica. Frei Marcos Sassatelli, OP Goiânia, 20 de maio de 2009 [email protected] 23