UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
IACS – INSTITUTO DE ARTES E COMUNICAÇÃO SOCIAL
CINEMA E AUDIOVISUAL
Luiz Guilherme Staine Prado
ENTRE O OLHAR E A IMAGEM:
Reflexões do observador
Niterói
Julho de 2016
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Luiz Guilherme Staine Prado
ENTRE O OLHAR E A IMAGEM:
Reflexões do observador
Monografia apresentada ao Curso de Graduação em
Cinema e Audiovisual da Universidade Federal
Fluminense, como requisito parcial para obtenção de
grau de Bacharel em Cinema e Audiovisual.
Orientadora: Prof.(a) Dr.(a) Eliany Salvatierra
Niterói
Julho de 2016
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AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, Maria Elza Bertagnon Staine Prado e Carlos Roberto Staine Prado, pelo
eterno amor e confiança.
Irmão, companheiro de caminhadas – Carlos Roberto Staine Prado Filho, pela amizade.
Aos familiares que me incentivam – Andrea, Carlos Henrique, Fábio, Renata, Marcelo, Pedro,
Paulo e Maria Beatriz.
Vanessa Alcântara, pelo carinho compartilhado e companheirismo durante todo o processo da
monografia.
À minha orientadora, educadora e amiga – Prof.(a) Dr(a) Eliany Salvatierra, pelos
ensinamentos e pela confiança depositada em mim durante a pesquisa.
Aos professores: India Mara Martins, Cézar Migliorin, José Carlos Monteiro, Tunico
Amâncio, Nina Tedesco, Maurício Bragança, Fernando Morais, Romulo Correa, Dante
Gastaldoni, Eliane Ivo, Sérgio Santeiro, João Luiz Vieira, Isaac Pipano, Marcelo Valle, Luiz
Andrade, Roberto Moura, Fabian Nuñez, Leonardo Guelman, Alice Yamasaki, Christina
Souza.
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RESUMO
O trabalho realiza uma breve reflexão sobre como a experiência visual, influenciada pelo
racionalismo moderno, se relaciona à uma reconstrução do observador. Com base na
discussão sobre o acúmulo de conhecimento sobre a visão e a concepção histórica do corpo,
partimos à compreensão do terreno em que se concebe um sujeito observador como causa e
efeito dos processos de modernização do século XIX. Tendo em vista os modos pelos quais a
visão foi discutida, controlada e incorporada em práticas culturais e científicas, o trabalho se
aproxima, então, a desvendar as conjunções que o observador estabelece com o mundo do
conhecimento – conforme assume diferentes modos de visão perante a realidade visual que o
envolve. Dessa maneira, devido as diversas áreas de conhecimento envolvidas no tema, a
pesquisa tem uma proposta de rastrear alguns desdobramentos acerca destas questões e assim
traçar uma possível trajetória do observador.
Palavras chave: Visão. Percepção. Corpo. Sujeito. Imagem. Modernidade.
ABSTRACT
The paper engages on a brief analysis on how the visual experience, influenced by modern
racionalism, relates to a reconfigure of the observer. Based on the discussion on accumulating
knowledge about vision and the historical conception of the body, we move to an
understanding of the territory in which an observer subject is both the cause and effect of the
modernization process in nineteenth century. Bearing in mind the lights under which vision
had been discussed, controlled and incorporated in cultural and scientific practices, the paper
then draws near unveiling the conjunctions the observer establishes with the universe of
knowledge – as they undertake different points of view before the visual reality surrounding
them. Therefore, due to the many areas of knowledge involving the theme, the research
proposes to track a few unravelings about these issues, thus tracing a possible trajectory of the
observer.
Keywords: Vision. Perception. Body. Subject. Image. Modernity.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.........................................................................................................................8
1.
A CERTEZA MAIS PRIMITIVA DE ESTAR NO MUNDO É PODER
ENXERGÁ-LO .....................................................................................................................................11
1.1 DA FORMAÇÃO DA IMAGEM E O MITO DA SENSAÇÃO PURA.........................11
1.2 O CÉREBRO QUE VÊ..........................................................................................................................14
1.3 DAS ILUSÕES E OS LIMITES DA FACULDADE DA PERCEPÇÃO.......................15
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DA CONSTRUÇÃO DO CORPO AO SUJEITO OBSERVADOR...............................17
2.1 O CORPO NO PERÍODO HELENÍSTICO....................................................................17
2.1.1 Sócrates: conhece-te a ti mesmo......................................................................................................18
2.1.2 Platão...............................................................................................................................19
2.1.3 Aristóteles.......................................................................................................................20
2.2 O CORPO NA IDADE MÉDIA......................................................................................22
2.3 A ASCENSÃO DA BURGUESIA NA SOCIEDADE MODERNA E O SUJEITO DO
CONHECIMENTO……………………………......…………………………...…....…23
2.4 O SUJEITO DO CONHECIMENTO.............................................................................26
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O SUJEITO OBSERVADOR COMO CAUSA E CONSEQUÊNCIA DA
MODERNIDADE NO SÉCULO XIX.........................................................................27
3.1 A REPRODUÇÃO EM SÉRIE E A DISPERSÃO DAS IMAGENS.............................28
3.2 DO CONTROLE DA ATENÇÃO SOB UMA RECONSTRUÇÃO DA CONCEPÇÃO
VISUAL..........................................................................................................................36
3.3 A PÓS-IMAGEM RETINIANA E A VISÃO SUBJETIVA...........................................37
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DIANTE DA TUMBA A CISÃO DO OLHAR. CONJUNÇÕES EU MUNDO......44
4.1 DAS CONJUNÇÕES: A TAUTOLOGIA E A CRENÇA, O VER E O OLHAR..........47
4.1.1 O observador aquém da cisão: a tautologia como fuga do encontro........................49
4.1.2 O exercício da crença e o ver como um outro modo de recusa..................................50
4.2 O OLHAR FOTOGRÁFICO E A OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE NA
ANTROPOLOGIA..........................................................................................................54
4.3 ENTRE RIOS..................................................................................................................57
CONCLUSÃO.........................................................................................................................63
REFERÊNCIAS......................................................................................................................65
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Preâmbulo
Decidi escrever este trabalho para compartilhar relatos e reflexões que surgiram a
partir do meu encontro com a fotografia. Desde de que comecei a fotografar, olhar através da
lente se tornou uma maneira de conhecer e apreender o mundo.
A escolha pelo curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal Fluminense,
no ano de 2011, teve como critério a possibilidade de aproximação da linguagem das imagens
que me interessava. Em 2012 tive a sorte de me inscrever na matéria de Expedições e
Cartografias do Brasil, meu interesse era a proposta de unir teoria e prática em uma
experiência de campo. A disciplina propunha uma viagem de vinte dias adentrando o
território do Sertão no norte do Estado de Minas Gerais, atravessando as cidades de Urucuia,
Chapada Gaúcha, Serra das Araras, São Francisco, Pirapora e Januária. Pelas veredas do
universo literário de Guimarães Rosa, tive minha primeira experiência como fotógrafo dentro
da universidade. Meu projeto se dedicava a retratar as festas populares de Santo Antônio e
São João e a relação cotidiana das pessoas com a cidade.
Em uma segunda viagem no ano de 2013, fui indicado para documentar um projeto
de extensão chamado – “Atenção a saúde primária quilombola”, que tinha como objetivo
percorrer as comunidades quilombolas do alto do rio Trombetas na cidade de Oriximiná - PA,
fazendo pesquisas de campo e prestando serviços de saúde a essas comunidades. Conhecer a
Amazônia e estar em contato com os quilombolas neste espaço, me concedeu uma vivência de
realidade transformadora. Navegar os rios São Francisco e Trombetas foi um divisor de águas
na minha trajetória. Ainda no ano de 2013, fui monitor de fotografia do curso de
Comunicação Social da UFF nas matérias de Linguagem fotográfica e Fotojornalismo. A
responsabilidade de ter sido monitor e estar em contato com os alunos em uma experiência
docente me trouxe um aprendizado em conjunto tanto na discussão teórica, quanto na parte da
prática da fotografia.
Dessas experiências algumas questões foram se desenhando e tomando contorno
conforme a trajetória percorrida. O tempo foi o escultor das preocupações que estão presentes
neste trabalho e essas permanecerão em transformação de maneira indeterminada. Olhar para
as coisas significa também ser olhado por elas, por vezes, em uma mesma categoria de
intenção e dessa relação o que permanece será sempre uma pergunta e não uma afirmação. A
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experiência com a câmera é reveladora e reflexiva em seu exercício e traz consigo,
intrinsecamente, questionamentos que se manifestam de sua condição de alteridade.
De fato penso que a existência do dispositivo se dá para além de sua materialidade
evidente; uma câmera somente existe quanto câmera se colocada em conjunção com o outro e
com os elementos do mundo. Na medida em que é empunhada faz surgir, de seu impulso
inquiridor, um fio solto – que pode se tensionar a qualquer distância sendo capaz de
estabelecer uma conexão a partir das escolhas do olhar do observador. Acreditando nessa
relação penso que cabe ao fotógrafo ter a sensibilidade para ser um elo - entre o que é
fotografado e quem recebe a fotografia.
INTRODUÇÃO
Este trabalho se desdobra em discussões que possuem relação com minha
experiência pessoal com a câmera, mas apontam caminhos por outros campos de
conhecimento. O estudo busca compreender a visão partindo da perspectiva reflexiva sem
perder a dimensão sensorial e por isso, a fotografia e a poesia.
Nossa investigação perpassa o entendimento da percepção visual por uma perspectiva
da Biofilosofia – que posteriormente se relaciona à uma reflexão sobre a concepção do corpo
desde a Idade Antiga à Teoria do conhecimento e o racionalismo da Modernidade; e segue
rumo, então, à compreensão do terreno em que se concebe o sujeito observador como causa e
efeito dos processos da modernização do século XIX. A partir dessa discussão, o olhar da
fenomenologia vem a desvendar as conjunções que o observador estabelece com o mundo do
conhecimento perante a realidade das imagens que o envolve. O trabalho, tendo em vista seu
desdobramento interdisciplinar, se encerra propondo uma correlação sobre o olhar fotográfico
e a observação participante na Antropologia, campo de conhecimento no qual desejo,
posteriormente, ampliar a pesquisa.
Convido leitor a fazer desta leitura uma viagem por um caminho que se divide em
duas narrativas – o lado direito fica por conta da linguagem textual e do desenvolvimento
teórico das discussões, enquanto o lado esquerdo se encontra reservado à parte de meu projeto
autoral de fotografia que apresenta imagens realizadas em Oriximiná, Pará e região norte no
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sertão de Minas Gerais. Dessa maneira, proponho que o leitor se aproxime deste trabalho se
orientando livremente, trilhando o próprio caminho entre imagens e palavras.
Aos interessados, uma boa leitura.
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A linha
Por lá detrás daquela linha,
entre as montanhas e as nuvens caminham juntos,
meu pai e meu filho quanto mais longe, além, além do vento
Meu pai e meu filho caminham juntos,
por lá detrás daquela linha além, além do tempo;
de mãos dadas, cada um projeta sua sombra de um lado,
Já nos cruzamos por esse caminho antes
Não, não me procure !
Me diga onde habitas, que eu lhe encontrarei...
se procurarmos juntos, nos perdemos um do outro fique em um lugar onde eu possa te ver
Nascidos juntos de uma quebra.
meu filho objeto do ar,
meu pai talhado em pedra.
Acaricio os cabelos de meu filho; na palma de minha mão
se desmancham no vento...
Apoia em meu ombro seu ombro nenhum
Por lá detrás daquela linha
além, além do amor...
ouço atento os conselhos de meu pai quanto mais longe lanço meus olhos,
mais de perto posso enxergar, quase posso tocá-lo
Como era meu rosto antes de nascerem meu pai e minha mãe?
muita luz obscurece minha visão não sei, não sei...
Mas como são parecidos nossos olhos!
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1 A CERTEZA MAIS PRIMITIVA DE ESTAR NO MUNDO É PODER ENXERGÁLO
Como enxergamos o mundo? Este capítulo busca refletir sobre esta questão
propondo uma aproximação em que dialogam a ciência da fisiologia sensorial, a psicologia e
a filosofia.
A fisiologia sensorial é uma ciência aparentada tanto à física quanto à biologia, por
parâmetros quantificados em diversas grandezas e por neurônios cerebrais que respondem a
cada receptor sensível uma excitação específica, ou seja, à mudança de um estado físico
particular, e um circuito nervoso, que veicula a informação periférica para o cérebro que
registra. “A psicologia é analítica e descritiva perante as reações mentais provocadas pela
experiência de um choque indiferenciado, instantâneo e pontual de uma sensação pura”.
(MERLEAU-PONTY, 1945, apud MEYER, 2002, p.93).
Por fim, uma filosofia das sensações, implica que o pensamento humano derive delas
por uma soma de adições, de preservações e deduções, que formam uma amálgama na qual a
filosofia tem o papel de refletir sobre. Neste capítulo abordo os questionamentos sobre a visão
transitando pelas perguntas: O que é a visão? e ainda – Como se dá a relação olho/cérebro na
formação da imagem?
1.1 DA FORMAÇÃO DA IMAGEM E O MITO DA SENSAÇÃO PURA
De uma perspectiva da Física e da Biologia, pode-se fazer uma analogia entre os
modos de operação do olhar e o funcionamento da câmera fotográfica. Ambos têm uma
abertura para a passagem de luz, uma lente e um anteparo, onde a imagem é recebida e
registrada. Quando os raios de luz provenientes de um objeto atravessam essa lente, eles
sofrem refração (passagem de luz de um meio para outro) e com isso formam uma imagem
real e invertida localizada exatamente sobre a retina para que seja nítida. Na retina, acontece a
percepção da luz e das cores, através dos bastonetes e dos cones. Essa percepção dá origem a
uma reação química, que tem por resultado impulsos elétricos. Esses impulsos elétricos
contêm as informações do objeto que estamos olhando e são conduzidos pelo nervo óptico até
o cérebro, atingindo então o córtex visual, onde há o processamento da imagem que será
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interpretada e reposicionada, fazendo com que se tenha uma representação do objeto na sua
posição normal. Percebemos o mundo numa visão tridimensional. Através da profundidade, a
visão é capaz de obter noções de distância e relevo. Essas noções são provenientes, da
superposição das imagens formadas por cada olho.
Nota-se que os dois olhos estão situados a uma certa distância um do outro. Esses
poucos centímetros de distância faz com que a imagem em cada uma das retinas seja
diferente. A superposição dessas duas imagens, interpretadas pelo cérebro, permite perceber a
profundidade e levar à noção de distância e relevo dos objetos.
O homem e a camera. Fonte: desconhecida
A estrutura do olho humano, composta por inúmeras e diferenciadas células sensíveis
e é algo muito mais complexo do que enuncia os parágrafos anteriores. No entanto, não é
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objeto de estudo deste trabalho o aprofundamento anatômico específico deste orgão do
sentido, mas sim as relações que este participa na formação da imagem.
É impossível para o observador aprender o mundo em sua evidência transparente.
Dentre vários fatores que atestam esta afirmação, talvez seja importante num primeiro
momento, entender um pouco do aspecto psicofisiológico da formação da imagem. A
começar pela transformação do espaço geométrico externo, que é compreendido e
redirecionado a uma superfície, que por seu formato côncavo, produz uma discrepância entre
realidade (que se entenda por realidade a efetiva impressão visual no sujeito) e construção.
A estrutura de um espaço infinito, simultâneo, constante e homogêneo, ou seja um
espaço matemático puro, é totalmente oposta a noção de percepção do espaço psicofisiológico
que concebemos. Para nossos olhos o conceito de espaço infinito é uma suposição, guardada
quase como uma ideia fantástica de algo que escapa da realidade, por consequência o aspecto
de espaço homogêneo segue nesta mesma indefinição por conta de um limite de nossa
faculdade de percepção.
O espaço homogêneo nunca é o espaço dado, mas sim o espaço construído, de modo
que o conceito geométrico de homogeneidade pode ser expressado da seguinte
maneira: a partir de todos os pontos do espaço se pode criar construções iguais em
todas as direções. (PANOFSKY, 1973, p. 10)
No espaço de nossa percepção imediata isso nunca acontece já que existe uma
enorme diferença entre a “imagem visual” – psicologicamente condicionada, através da qual
se produz em nossa consciência, o mundo visível, e a “imagem retínica” – que se desenha
mecanicamente em nosso olho físico. Nossa consciência devido a peculiar tendência a
constância (produzida pela atividade em conjunto da visão e do tato), atribui as coisas vistas,
uma dimensão e uma forma, de tal maneira que se nega a reconhecer, ao menos por toda sua
extensão, as modificações aparentes que sofrem a dimensão e os objetos na imagem retínica;
que dispensa totalmente a interpretação psicológica e a distorção causada pela mobilidade dos
olhos, que assimilam o espaço por um processo de varredura e nunca somente por um ponto
fixo. “Para o nosso olho é mais cômodo, em uma dada ocasião, reproduzir uma imagem já
produzida com frequência do que fixar o que há de novo e diferente em uma expressão”.
(NIETZSCHE, 1992, apud CRARY, 1990, p. 99)
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A visão pura não existe porque o objeto puro não existe, ela seria uma forma isolada,
imóvel e única num espaço homogêneo sem fundo. Uma vez que existem outros objetos
superpostos, ou alinhados, a análise visual torna-se segmentária e geométrica, e procede por
recorte-recomposição, de acordo com incitações não sistematizáveis. Construímos através da
óptica e da geometria cada fragmento do mundo, cuja imagem a cada momento pode formarse sobre nossa retina. Uma vez que os olhos e o espaço estão em movimento, a imagem
constrói-se por referências e probabilidades. O mundo exterior é uma projeção do que
queremos nele pôr. Assim Merleau-Ponty escreve: “O aparelho sensorial não é um condutor,
até mesmo na periferia a impressão fisiológica se vê envolvida em diferentes relações
químicas de nosso cérebro”, e: “o sensível é o que apreendemos com os sentidos, mas se sabe
agora que esse ‘com’ não é simplesmente instrumental”. As sensações estão ligadas a relações
e não a coisas absolutas. (MERLEAU-PONTY, 1945 apud MEYER, 2002, p. 85)
1.2 O CÉREBRO QUE VÊ
A psicologia estuda a visão debruçando-se sobre as diversas etapas de construção de
uma imagem visual; a visão não é uma percepção que ocorre por inércia, uma recepção de
objetos exteriores que se impõem em bloco a células visuais passivas e complacentes. O
sistema de captação de fótons é necessário, mas insuficiente para induzir e formar uma
imagem do mundo que nos cerca. Ele deve ser completado por uma atividade cerebral que
transforme informações implícitas em informações explícitas, que coordene descargas
elétricas neuronais numa paisagem coerente, decodificada. O cérebro impõe uma unidade
global às atividades de suas diferentes partes, para encontrar a harmonia de objetos isolados
em um quadro geral.
Os objetos não são dados como tais, são reconhecidos e reconstruídos por um cérebro
dotado de capacidade de análise, de síntese e hierarquização. Não é o olho, mas sim o cérebro
que vê. O aparelho sensorial percebe sensações imediatas que não são descritíveis porque são
modificadas, já em seu impacto, por uma intervenção do sistema nervoso central. A sensação
tornou-se sensação mediata ou percepção. É como se os olhos enxergassem algo que é
impossível de ser comunicado.
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A sensação pura é por definição, mítica, pois para sua condição de existência seria
preciso que neurônios virgens, que jamais tivessem recebido anteriormente uma excitação
próxima ou análoga ao estímulo, fossem motivados. Uma modificação neuronal adquirida em
um primeiro choque sensível nunca poderá ser eliminada e por consequência esta modificação
influenciará a segunda sensação. O observador nunca é uma página em branco.
A criança começa a discernir as cores claramente depois do nono mês de vida. Antes,
a separação entre o colorido e o acromático não é nítida, as colorações são apenas quentes ou
frias, o verde ou o vermelho são vistos, mas não são identificados. “A primeira percepção das
cores propriamente ditas é, portanto, uma mudança de estrutura de consciência” escreve
Merleau-Ponty (1945, p.38). Em seguida, a cor estruturada, da lembrança tende a levar a
melhor sobre a cor presente. A sensação produz-se agora por referência e a ideia de que ela
possa encontrar uma pureza inicial carece de sentido. O olhar funciona graças a lembranças,
associações, reconhecimentos de formas, verificações e recortes.
1.3 DAS ILUSÕES E OS LIMITES DA FACULDADE DA PERCEPÇÃO
Pelo aspecto fisiológico do olho e a velocidade do fluxo de informação entre a luz e
sistema cognitivo formador da imagem, surge como efeito o que se denomina ilusão de
óptica. A descoberta desse fenômeno visual decorre de estudos e debates científicos e
filosóficos sobre a visão no século XIX – que sinalizaram um deslocamento1 da passagem da
óptica geométrica dos séculos XVII e XVIII à óptica fisiológica. Muito se acumulou desses
estudos sobre o papel constitutivo do corpo na apreensão do mundo visível.
1 A reflexão sobre esse deslocamento e o papel das pós-imagens em um nova concepção de visão subjetiva do
observador é dada no capítulo 4.
2 Crary relata que a medição assume um papel fundamental em uma vasta gama das ciências físicas entre 1800 e
1850.
Charlessobre
Babbage,
inventor do computador
publicou,
seu breve de
panfleto
incitandodoa
1 A reflexão
esse deslocamento
e o papel dasdigital,
pós-imagens
em em
um 1832,
nova concepção
visão subjetiva
publicação de
tabelas
de todos 4.
os números constantes conhecidos nas ciências e nas artes.
observador
é dada
no capítulo
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No entanto, algo é comum a essas imagens: elas nos oferecem coisas, situações, pessoas que guardam
alguma semelhança com outras coisas, situações, pessoas reais. Por oferecer alguma parecença, diz-se que
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Olhe atentamente o centro da imagem até que os círculos coloridos desapareçam. A ilusão ocorre pela
diferenciação entre as células fotossensíveis centrais e periféricas do olho. O espectro da luz verde surge como
cor complementar da cor rosa.
(...) rapidamente ficou claro que a eficiência e a racionalização em muitas áreas da
atividade humana dependiam da informação sobre as capacidades do olho. Um
resultado da nova óptica fisiológica foi expor as idiossincrasias do olho “normal”.
As pós-imagens retinianas, a visão periférica e binocular e os limiares da atenção
foram estudados, tendo em vista determinar normas e parâmetros quantificáveis2. A
preocupação generalizada com os defeitos da visão humana definiu mais
precisamente um contorno do normal (...). (CRARY, 1990, p. 25)
O conjunto de informações expostas e discutidas até aqui, refletem o florescimento
da ciência e do pensamento humano de um determinado momento histórico ocidental. O
modo de operação da visão, previamente analisado não é isolável ou autonomo, ele é
pertencente a um corpo concebido, construído e pensado de diferentes formas ao longo da
história. No capítulo seguinte essas concepções são colocadas em questão, tendo em vista, em
um horizonte mais a frente, de que esse corpo é parte de um sujeito observador que é causa e
consequencia de um sitema heterogêneo de relações discursivas, sociais, tecnológicas e
institucionais. Desse modo, vamos explorar brevemente o propósito dos desdobramentos dos
estudos sobre a construção do corpo e o que foi determitante em cada contexto para que isso
2 Crary relata que a medição assume um papel fundamental em uma vasta gama das ciências físicas entre 1800 e
1850. Charles Babbage, inventor do computador digital, publicou, em 1832, seu breve panfleto incitando a
publicação de tabelas de todos os números constantes conhecidos nas ciências e nas artes.
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se desenhasse - da Antiguidade à Modernidade, para que assim possamos chegar a concepção
de sujeito do conhecimento pela perspectiva da Filosofia Moderna.
2 DA CONSTRUÇÃO DO CORPO AO SUJEITO OBSERVADOR
Acerca das questões relacionadas a determinar uma concepção do corpo ao longo da
história, Assmann (1993) resume com grande propriedade toda a complexidade do tema.
Segundo o autor:
Quantos corpos, sucessivos ou simultâneos, já tivemos ao longo da história
humana? Não é verdade que, um sentido muito real, temos imensa dificuldade
em ser nosso corpo, porque já nós inculcaram, de mil maneiras, que temos tal ou
qual corpo? Ou seja, mais que dá sua verdade e real subsistência, nossos corpos
são corpos que nos disseram que temos, corpos inculcados e ensinados, feitos de
linguagens, símbolos e imagens. As culturas, as ideologias e as organizações
sempre inventam um corpo humano adequado e conforme. (ASSMAN, 1993, p.
04)
O autor nos concede em sua declaração o indício de uma ideia que mais adiante será
retomada neste capítulo – o controle social através do corpo e no caso, ainda mais
especificamente, o controle através da visão. Por hora, se faz necessário discorrer sobre
algumas concepções de corpo encontradas ao longo da história e não menos importante,
problematizar a dificuldade de uma concepção consensual sobre o tema.
2.1 O CORPO NO PERÍODO HELENÍSTICO
O período conhecido como helenístico foi um marco entre o domínio da cultura
grega e o advento da civilização romana. Os sopros inspiradores da Grécia se disseminaram,
nesta época, por toda uma região exterior conquistada por Alexandre Magno, rei da
Macedônia. Com suas investidas bélicas ele incorporou ao universo grego o Egito, a Pérsia e
parte do território oriental, incluindo a Índia.
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Mapa mostra os domínios conquistados pelo império Macedônio (ilustração: Universidade do Texas. Historical Atlas by
William Shepherd). Fonte: site www.infoescola.com/historia/helenismo
A dimensão do território do Império Macedônio nos remete à pluralidade de povos,
tribos e por conseguinte os diversos significados acerca da temática. O corpo, ao ser eleito
enquanto um conhecimento a ser investigado, encara discursos que concorrem entre si por
hegemonia para o estabelecimento de uma ideia e a partir disso atribuir a ela uma
funcionalidade.
Para captar uma concepção de corpo no periodo helenístico, nos reportamos a três
filósofos gregos, Sócrates, Platão e Aristóteles como figuras catalisadoras de toda a sociedade
grega; personalidades que souberam compreender a realidade que viviam e indicar, muitas
vezes, a direção do processo histórico desta sociedade.
2.1.1 Sócrates: conhece-te a ti mesmo
A filosofia da antiguidade ao buscar entender o problema do homem, ou seja, a fim
de conhecê-lo, acaba por dividi-lo em partes. O filósofo espanhol Julian Marias resume:
(...) Cinde-se o homem, já não será tema unitário da filosofia, estudar-se- a seu
corpo, ou sua vida moral, ou sua função cognocitiva; porém, é o homem alguma
dessas coisas, ou sequer sua soma? Parece problemático. Não serão essas coisas,
muito mais, algo que o homem tem, e, portanto não será ele outra coisa? A
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meditação acerca da realidade humana será ora em diante fragmentária e um tanto
equívoca. Entre as disciplinas filosóficas, várias referem-se ao homem, e, no
entanto, nenhuma o apreende de um modo total e direto. A psicologia, a ética, a
lógica, abordam o estudo das dimensões parciais do ente humano, mas não o
esgotam; nem sequer a conexão dessas diversas dimensões manifesta-se claramente.
Quase toda a filosofia do Ocidente, que conserva a marca profunda da Grécia,
permaneceu neste ponto de vista. (MARIAS, 1975, p. 12)
Sócrates inaugura na Grécia a investigação do ente humano, a busca pela essência
das coisas. No que se refere ao corpo atribui uma hierarquia diferente da adotada na sua
época, colocando os cuidados com a alma antes dos cuidados com o corpo. O amor ao saber,
que tanto Socrátes prezou, tem sua máxima na frase "conheça-te a ti mesmo".
O homem socrático, portanto, é o homem real, é cada homem, que se pode conhecer;
que pode manifestar sua intimidade e torná-la patente, na luz. A fecundidade deste
interesse pelo homem mesmo é grande e duradoura: a rigor, começa com Socrátes a
especulação helênica sobre o humano enquanto tal; tudo o mais foram esboços
imaturos. (MARIAS, 1975, p. 31)
O pensamento socrático carrega enorme contribuição no âmbito filosófico ocidental.
Suas concepções apontaram desdobramentos em direções tomadas por muitos outros filósofos
e pensadores póstumos a ele com notada influência. Entre eles, com acentuada importância
está Platão, discípulo de Sócrates. É através dele que temos acesso as ideias de seu mestre, já
que este apesar de ter lançado as bases da filosofia grega, não possui um legado de obras
escritas.
2.1.2 Platão
A partir da síntese das duas concepções de mundo de sua época, Platão formula a
base para o pensamento ocidental. De um lado, Parmênides de Eléia afirmava que “o ser é, o
não ser não é” seu pensamento se coloca da seguinte maneira:
Para Parmênides, á parte de uma via impraticável, que é a que diz que as coisas não
são, há duas vias, às quais denomina via da verdade e via da opinião dos mortais: a
primeira é a mente, o nus, divino e eterno; a segunda é a sensação, múltipla e
passível de contrariedade, e conduz às coisas, muitas e mutuantes, perecedoiras e
corruptíveis como o corpo. O homem, pois, segundo participe do nus ou da
sensação, reporta-se ao ente e é eterno como ele, ou às coisas, e é mortal como as
mesmas. (MARIAS, 1975, p. 25)
De outro lado, temos a concepção de Heráclito de Éfeso, contemporâneo de
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Parmênides, que nos diz sobre uma concepção dialética do mundo e afirmava que tudo flui e
nada permanece constante, ou seja, o mundo se encontra em um constante devir (vir-a-ser),
afirmando ainda que todo estado caminha para seu oposto, como toda vida caminha para a
morte, o dia para a noite e assim retornando ao dia novamente.
Ao sintetizar estas duas concepções a seu julgamento, Platão concede a perfeição e a
eternidade ao mundo das ideias, o mundo inteligível e a transitoriedade e a imperfeição ao
mundo das sensível, reforçando a partir dessa divisão uma concepção dualista que acaba por
inferiorizar o universo de conhecimento do mundo sensível e por consequência o próprio
corpo. Nas palavras de Fontanella: "A filosofia de Platão tentou dar razão sobre o que a
tradição lhe trouxera. A alma é nobre, o corpo é inferior. A alma deve comandar. O corpo
deve ser submetido. Só que Platão fez consistir nisso a sabedoria". (1985, p.26)
O mito da caverna, alegoria presente em A República, reforça essa ideia de
dicotomia e é expresso da seguinte maneira - o mundo sensível é aquele acessível aos
sentidos, mundo da fragilidade, do movimento e do ilusório, estava a penumbra do verdadeiro
conhecimento. É comparado a caverna, na qual estariam presos homens desde o seu
nascimento desconhecendo assim o que havia fora da caverna. Nessa caverna havia um
pequeno feixe de luz, que permitia a eles enxergarem apenas as sombras de tudo que passava
do lado de fora. A caverna então representava o mundo sensível, pois impossibilitava os
prisioneiros de conhecer o mundo exterior. O feixe de luz remete ao mundo inteligível, a luz
das ideias, a universalização, a eternidade das essências imutáveis, a verdade única que só
poderia ser alcançada a partir da libertação dos enganos dos sentidos.
2.1.3 Aristóteles
Discípulo de Platão e não menos importante na construção da base do pensamento
Ocidental, Aristóteles retoma o dualismo de seu mestre mas revestido de um outro sentido,
segundo ele:
A alma e o corpo são dois elementos ontológicos, unidos inseparavelmente, que
constituem o homem; matéria e forma: é este o sentido da interpretação aristotélica.
Mas é preciso entendê- la em todo seu rigor: a alma é a forma do corpo, isto é, o
corpo humano - e, em geral, o corpo vivente - o é pôr ter alma, pôr estar informado
20
21
pôr ela. E pôr isso diz que a alma é a enteléquia ou atualidade do corpo: é ela quem
o faz ser atual. (MARIAS, 1975, p. 60)
Aristóteles busca estabelecer em sua concepção uma relação de necessidade mútua,
ou seja, corpo e alma compõe uma unidade em que a importância de um nunca será maior ou
inferior que a do outro, e acrescenta com novidade as noções de matéria e forma e potência e
ato. Em sua obra De Anima, o filósofo ultrapassa as questões divergentes que a tradição do
pensamento carregava em sua época, propondo que as duas categorias não são separáveis e
que juntas constituíam o ser animado, assim como a pupila (relacionada ao corpo) e a visão
(relacionada à alma) constituem o olho. Aristóteles consegue superar uma tendência
materialista que considera a alma um dado corpóreo, e também consegue se afastar do
dualismo que a considera incorpórea, totalmente a parte do corpo.
A organização corpórea dos seres nos ajuda a entender o pensamento aristotélico e
seus conceitos na relação corpo/alma. Tomemos por exemplo uma baleia. A baleia é um ser
que possui uma atualidade que é ser um animal aquático, capaz de viver no fundo das águas,
já que seu corpo possui tal potência e lhe permite isso. A organização corpórea é que
possibilita a faculdade que o ser poderá ter. “Não é o corpo a atualidade da alma, ao contrário,
ela que é a atualidade de um certo corpo (...) ela [a alma] não é corpo, mas algo do corpo, e
por isso subsiste no corpo e num corpo de tal tipo”. (ARISTÓTELES, 2006, p. 414).
O pensador nos ajuda a compor um quadro sobre tal época; desenhado por nuances
que ainda que divergentes, nos levam a acreditar que a filosofia grega valorizava a harmonia
entre o corpo e alma e esta seria alcançada se ambas as partes fossem desenvolvidas em
comunhão. A perspectiva de que o mundo inteligível fosse mais importante surge
simultaneamente a um período que os gregos também passam a cultuar o corpo - através de
acentuada importância dada à ginástica, jogos olímpicos, às lutas e à guerra. Na arte, a
representação concede à imagem do homem grego, um corpo gracioso dotado de beleza e
força.
Na dominação da Península Grega pêlos romanos, grande parte da cultura grega foi
assimilada pelo Império Romano, mesmo que no início houvesse uma certa rejeição a esta
aculturação, assim, se deu validade a grande parte do que foi estabelecido sobre a
problematização do corpo na Grécia, principalmente no que se refere a organização de
sociedade, a escravidão e ao trabalho. Constituído por uma nobreza guerreira, grosseira e
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22
pouco contrária ao exercicio do pensamento, os ricos cultivavam o ócio (qualquer atividade
que se faça em oposição ao trabalho produtivo) e cultuavam a Guerra.
2.2 O CORPO NA IDADE MÉDIA
A Idade Média, definida por alguns historiadores como Idade das trevas, foi marcada
por uma profunda visão sobrenatural do universo, O homem medieval se percebia impotente
diante das manifestações da natureza e dessa maneira se encontrava:
À mercê de forças desconhecidas e não controláveis. Isto gerava,
compreensivelmente, um sentimento generalízado de insegurança. Temia-se
pelo, resultado, quase sempre pobre, das colheitas. Temia- se a presença
freqüente das epidemias, que não se sabia combater. Temia-se sobretudo pela
vida future (…) Desamparado diante de uma natureza freqüentemente hostil, o
homem encontrava as origens disso, e as possíveis escapatórias, num mundo do
Além. Sem dúvida, aquela era uma sociedade habituada a viver sob o signo do
sobrenatural. (JÚNIOR, 1992, p. 151)
Marcado pelo signo do sagrado e do profano, o corpo adquire todo um significado
diferente que este assumira na antigüidade clássica. Marcada pôr um forte dualismo, na Idade
Média o corpo não era visto em relação harmônica com a alma, mas, ao contrário, o homem é
formado por um corpo e por um espírito, onde o espírito assume não uma posição
hierarquicamente superior ao corpo, pois assim já acontecia na Antiguidade, mas uma posição
antagônica a este, de modo que "toda a ascese cristã tem como finalidade controlar o corpo
pelo espírito: mortificar a carne". (FONTANELLA, 1985, p. 31)
Basicamente para a filosofia cristã, o corpo é um suporte da alma e deve ser
torturado, purgado e crucificado, para que a alma, sua nobre moradora, atinja a redenção de
seus pecados. Com o nome de pecado o cristianismo inventou a culpa e atribui ao corpo, parte
concreta e material do homem, todos os seus males. O corpo era impuro, corruptível e
perecível, no entanto, para o inatismo do pecado carregado por cada indivíduo, a Igreja
também oferece a salvação e consolida seu papel de mediadora entre a mundanidade e a
divindade, o bem e o mal. Dessa concepção dualista o divino é representado pela luz e o
demônio pela escuridão das trevas. Sobre o advento do cristianismo no Império Veyne
comenta:
22
23
É no século II, que se inicia a grande reviravolta; o mundo torna- se cada vez
mais feio enquanto o homem interior já não se recusa o conhecimento não
estilizado de seus sofrimentos, impotências e abismos. Ele não é mais um tolo
elegante, um conselheiro não pagante. O cristianismo jogou e ganhou graças a
antropologia menos estreita e distinta que inventou a partir dos Salmos. Será
mais compreensivo, mais popular, porém mais autoritário: durante quinze
séculos o autoritarismo pastoral, o comando das almas suscitariam mais apetites
e revoltas, fariam correr mais sangue do que, tudo somado, a luta de classes ou o
patriotismo. (VEYNE, 1991, p. 219)
De fato a doutrina eclesiástica atribui ao corpo pulsante sua retaliação e o traduz
como fonte de repressão para seu controle. No entanto, também existe no homem medieval
uma identificação com a natureza em que se faz partícula integrante de um todo, um
microcosmo. O corpo em relação orgânica tinha suas qualidades baseadas nos elementos da
vida que determinam o cotidiano do indivíduo.
Nas sociedade tradicionais a ação real do homem submetia-se ao desenrolar
natural do tempo, às estações do ano, ao crescimento das plantas e ao ritmo de
reprodução dos animais. A idéia de personalidade orientava-se no sistema de
castas, uma muralha dentro da qual o indivíduo nascia e não tinha condições de
sair. A pessoa como corpo e espírito, submetia-se à ordem dada, havendo poucas
possibilidades para impulsos individuais. A identidade, no sistema feudal, era
garantida pôr um sistema de relações fundado em um princípio de unidade entre
trabalho, domínio e prazer. A economia, em geral era voltada para a subsistência,
uma economia para viver e sobreviver. Assentados em necessidades vitais como
a fome e a sede, os fins da economia quase não conheciam os elementos de
planejamento e cálculo, permitindo que a ação dos homens ainda estivesse
estreitamente ligada a satisfação de necessidades básicas. (GONÇALVES, 1994,
p. 19)
O ente medieval se encontra, portanto, em um espaço de transição; carrega em si a
liberdade do mundo bárbaro e as forças da natureza - ora palpáveis e visíveis, ora misteriosas
e temidas, tal qual o nascimento e a morte dos animais, o florescimento e a colheita, as
chuvas, os ventos, as epidemias e as tempestades que o recolhem a sua impotência e em outro
polo de força está a religião cristã que a qualquer preço busca controlar e dirigir a vida de seus
fiéis impondo suas penitências ao corpo.
2.3 A ASCENSÃO DA BURGUESIA NA SOCIEDADE MODERNA E O SUJEITO DO
CONHECIMENTO
O Renascimento cultural foi um conjunto de transformações que podem ser
entendidas como causa e consequência do começo da era moderna. O ser humano
gradativamente abandona e se liberta de sua enclausurada condição medieval para se
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24
emancipar de um pensamento teocêntrico, que até então restringia toda forma de
conhecimento assim como sua vida prática social e política. Dentro dessa perspectiva existe
uma retomada da cultura clássica greco-romana que será reinterpretada sob a luz do
racionalismo. A autoridade divina é confrontada pelo humanismo e pelo racionalismo de
Descartes (1596-1650) que coloca o próprio homem como centro de suas próprias reflexões
assim retirando das mãos da Igreja a temática do saber. Trata-se em primeiro lugar de
valorizar o homem como medida das coisas - não de coloca-lo em oposição a Deus afim de
que medissem forças. O pensamento racionalista critica a maneira de pensar da escolástica,
filosofia religiosa que atribui, através de simbolismos, a união de fé e razão tendo Deus como
única garantia da faculdade de conhecer.
As novas concepções do mundo moderno surgem como efeito da ascensão de uma
nova classe dominante. A burguesia, classe de comerciantes, antes incipiente e marginal
sobrevivendo envolta aos nobres castelos no período medieval, transformou o mundo com
suas revoluções e a partir destas será mantenedora de um novo tipo de produção econômica,
organização política e social. O corpo, pela óptica da razão, sofre um processo de
diferenciação em relação à alma se separando desta como substância independente
possibilitando assim, a visão do corpo enquanto uma máquina, que poderia ser fragmentada
em engrenagens e sistemas para que assim possa ser estudada, esquadrinhada, analisada. Esse
novo pensamento acerca do corpo rompe com a idéia de corpo-instrumento, que mesmo sendo
composta por concepções diferentes que analisamos anteriormente, carregavam a máxima do
corpo no serviço de instrumento da alma.
O florescimento científico que se aprofunda ao longo da Modernidade desde o
Renascimento, foi importante do ponto de vista da libertação do corpo em relação aos
interesses da Igreja e assim acaba por fomentar e justificar uma maior liberdade para as
atividades comerciais da burguesia – o que permitiu o surgimento de meios mais amplos para
estudá-lo quanto um elemento importante, sujeito a uma administração, que deverá, agora, ser
feita de maneira mais sutil, numa sociedade cada vez mais heterogênea que adquire novos
meios de circulação, comunicação e consumo. Nas palavras de Foucault:
(...) houve, durante a época clássica, uma descoberta do corpo como objeto e alvo de
poder. Encontraríamos facilmente sinais dessa grande atenção dedicada então ao
corpo - ao corpo que se manipula, se modela, se treina, que obedece, responde, se
torna hábíl ou cujas forças se multiplicam. O grande livro do Homem-máquina foi
escrito simultaneamente em dois registros: no anatômo-metafísico, cujas primeiras
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páginas haviam sido escritas pôr Descartes e que os médicos, os filósofos
continuaram; o outro, técnico-político, constituído pôr um conjunto de regulamentos
militares, escolares, hospitalares e pôr processos empíricos e refletidos para
controlar ou corrigir as operações do corpo. (1993, p. 126)
Desenho de Nicholas-Henri Jacob em Traité complet de l`anatomie de l`homme,
de Marc-Jean Bourgery, 1839.
25
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2.4 O SUJEITO DO CONHECIMENTO
Visão, corpo, sujeito. Trilhado o caminho pelos estudos da visão e a construção
histórica do corpo até a modernidade, chegamos então a investigação de um sujeito do
conhecimento; a este pertence o corpo e os estudos que foram discutidos até aqui. Do corpomáquina, fragmentado pelo racionalismo moderno, retornamos nossa atenção a visão na parte
que nos cabe, e seguimos num movimento de distanciamento - necessário para enxergar de
maneira ampla o sujeito proposto pela teoria do conhecimento da filosofia moderna, e o
conjunto de possibilidades que compõe o sistema em que vive e determina seu papel em
sociedade. O sujeito do conhecimento é aquele que busca pela própria reflexão, o
entendimento de si. Através destas premissas, surgem as perguntas e preocupações que
sustentam este trabalho e que estão intrínsecas a sua própria produção. Existe um conjunto de
regras e normas, ou seja, um estatuto do sujeito que observa? O que poderia determiná-lo?
Que funcionalidade assume e quais forças condicionam este sujeito? Qual o papel das
invenções e das formas de representação na constituição do sujeito?
Tornar o entendimento objeto para si próprio, tornar o sujeito do conhecimento,
objeto de conhecimento para si mesmo é a grande tarefa que a modernidade filosófica
inaugura ao desenvolver a teoria do conhecimento. Como se trata da volta do pensamento a si
mesmo para conhecer-se, ou do sujeito do conhecimento colocando-se como objeto para si
mesmo, a teoria do conhecimento é a reflexão filosófica, que parte do pressuposto que somos
seres racionais conscientes.
A teoria do conhecimento entende por consciência a capacidade humana para
conhecer, para saber que conhece e para saber que sabe que conhece. A consciência é um
conhecimento (das coisas e de si) e um conhecimento desse conhecimento (reflexão).
Do ponto de vista da teoria do conhecimento, a consciência é uma atividade sensível
e intelectual dotada do poder de análise e síntese, de representação dos objetos por meio de
ideias e de avaliação, compreensão e interpretação desses objetos por meio de juízos. É o
sujeito de conhecimento. Este se reconhece como diferente dos objetos, cria e/ou descobre
significações, institui sentidos, elabora conceitos, ideias, juízos e teorias. Por ser dotado de
reflexão isto é, da capacidade de conhecer-se a si mesmo no ato do conhecimento, o sujeito é
26
27
um saber de si e um saber sobre o mundo, manifestando-se como sujeito percebedor,
imaginante, memorioso, falante e pensante.
É o entendimento propriamente dito, uma estrutura racional e uma capacidade de
conhecimento que é a mesma em todos os seres humanos. O sujeito do conhecimento é
universal.
Dado o conceito de “sujeito” pela perspectiva filosófica da teoria do conhecimento,
adiante no próximo capítulo refletiremos sobre como este sujeito, na condição de observador,
tornou-se objeto de investigação e locus do conhecimento nas primeiras décadas do século
XIX, e como se perpetua a criação e a transformação de um estatuto do sujeito observador e
por consequência do espaço visual que este habita.
3
O
SUJEITO
OBSERVADOR
COMO
CAUSA
E
CONSEQUÊNCIA
DA
MODERNIDADE NO SÉCULO XIX
A visão e a percepção, assim como o próprio corpo que habitam, não possuem uma
história autônoma, isolável, separada do sujeito; portanto é irrelevante pensar suas
transformações sem considerar a pluralidade de forças e regras que compõem o campo no
qual a percepção ocorre. O sujeito observador é aquele que vê em determinado conjunto de
possibilidades, estando inscrito em um sistema de convenções e restrições. Ele surge como
efeito de relações discursivas, sociais, tecnológicas e institucionais que fazem parte de um
sistema irredutivelmente heterogêneo, ou seja, um sistema em contínua transformação, o que
impede sua aderência a um período histórico prévio.
Não existe um sujeito observador que se encontre enquadrado no tempo, que
pertença a um lugar ou uma categoria que o encerra e que o defina quanto a sua maneira de
enxergar o mundo. Ainda que as transformações técnicas e mecânicas, e as mudanças na arte
e na representação das imagens, construam por si, momentos de oposição ao longo da
história, essas transformações somente serão entendidas se contrastadas ao conjunto
hegemônico de discursos e práticas no qual a visão tomou forma. Talvez não exista uma
“verdadeira história” ou “o que realmente aconteceu”, pois as rupturas, processos e
27
28
procedimentos, que ora são realçados e ora negligenciados e omitidos, fazem parte de
escolhas políticas. Essas escolhas do passado moldam a construção do presente e a
inteligibilidade do funcionamento do poder contemporâneo, no qual estamos enredados.
Sobre a questão do observador, Crary comenta:
Talvez seja necessário considerar o observador como uma distribuição de
fenômenos localizados em muitos lugares diferentes. Nunca houve e nunca haverá
um observador que aprenda o mundo em uma evidência transparente. Em vez disso,
há diferentes arranjos de forças, menos ou mais poderosas, a partir dos quais as
capacidades de um observador se tornam possíveis. (1990, p.16)
A importância dessas ponderações possuem um propósito similar com as que foram
feitas na introdução do capítulo passado – sobre a problemática de se encontrar um consenso
acerca da concepção do corpo no decorrer da história. Ao se propor generalizações vagas e
categorias fixas como “o observador no século XIX” corre-se o risco de se apresentar algo
abstrato que desconsidera a unicidade das vivências de cada indivíduo e aparta as
singularidades da diversidade da experiência visual naquele século. Se o corpo se constitui de
uma multiplicidade de forças, assim também se faz o observador. “O corpo é um fenômeno
múltiplo, composto de uma pluralidade de forças irredutíveis; sua unidade é a de um
fenômeno múltiplo, unidade de dominação”. (DELEUZE, 1986 apud CRARY, 1990, p. 71)
O observador é o corpo em sua extensão. Enquanto fenômeno múltiplo, como nos
fala Deleuze, ele não pode ser localizado em um ponto de uma linha do tempo histórica, pois
está sempre entre dois pontos, ou seja, possui um status de movimento que lhe é garantido por
sua irrastreabilidade - ausência de lugar fixo. Desse modo, sua unidade é sempre virtual e
nunca será, por definição, completamente totalizada, pois se fosse plenamente atual; o sujeito
móvel já não estaria em movimento. No entanto, podemos dizer que o sujeito observador, em
sua condição de estar entre dois pontos, se deixaria “ordenar” por eles; então o que cabe é
analisar aquilo que, mesmo em estado de transformação, pode ser localizado. Admitindo essa
ideia, podemos então partir para uma reflexão sobre como um conjunto de acontecimentos
produziram as condições que permitiram o surgimento e a formação de um modelo dominante
de observador no século XIX. Assim, é necessário compreender os modos pelos quais a visão
foi debatida, controlada e incorporada em práticas culturais e científicas.
3.1 A REPRODUÇÃO EM SÉRIE E A DISPERSÃO DAS IMAGENS
28
29
A modernização se dá por uma imensa reorganização de conhecimentos, linguagens,
espaços, redes de comunicação e a própria subjetividade. Afastando-se da ideia linear de
desenvolvimento e progresso, a modernidade possui, para Gianni Vattimo (2002),
características “pós-históricas”, nas quais a produção do novo é o que permite que as coisas
permaneçam as mesmas num movimento cíclico. No processo de modernização, o
capitalismo desestabiliza e torna móvel aquilo que antes era fixo e enraizado, remove aquilo
que impede a circulação tornando cambiável aquilo que era singular por meio de uma
incessante e autoperpetuante criação de novas necessidades, novas maneiras de consumo e
novos modos de produzir. O observador, enquanto habitante de espaços cada vez mais
fragmentados e sectários, é exigido a operar em velocidade proporcional aos novos
deslocamentos perceptivos das viagens de trem, do telégrafo, da produção industrial e dos
fluxos de informação tipográfica e visual.
Segundo a leitura de Crary (1990), para Baudrillard, uma das consequências cruciais
das revoluções políticas burguesas no final do século XVIII foi a força ideológica que animou
os mitos de direito do homem, o direito à igualdade e à felicidade. No século XIX, pela
primeira vez, provas observáveis tornaram-se necessárias para demonstrar que a igualdade e a
felicidade tinham sido, de fato, alcançadas. A felicidade tinha de ser mensurável em termos de
objetos e signos, algo que fosse evidente aos olhos em termos visíveis. Assim, a modernidade
é inseparável, por um lado, de uma reconstrução do observador e, por outro, de uma
proliferação de signos e objetos circulantes cujos efeitos coincidem com sua visualidade e
funcionalidade. Adiante neste capítulo entenderemos melhor sobre o tipo de imagem que traz
essa dispersão de signos e objetos e em que categoria elas se encontram.
A modernidade, então, marca uma desestabilização e uma mobilidade crescentes dos
signos e códigos, que têm início no Renascimento. Para Crary, com base no que aponta
Baudrillard, tais signos estavam enraizados em posições relativamente seguras no interior de
hierarquias sociais fixas.
A moda não existe em uma sociedade ordenada em castas, já que cada um é
designado a um lugar em caráter irrevogável. A mobilidade de classe não existe.
Uma interdição protege os signos e lhes assegura uma clareza total; cada signo
se refere inequivocamente a um status.(...) Em sociedades de castas, feudais ou
arcaicas, sociedades cruéis, os signos são limitados em número e não estão
amplamente difundidos. Cada um funciona com seu valor pleno como interdição,
cada um é uma obrigação recíproca entre castas clãs ou pessoas. Nesse sentido,
os signos são tudo, menos arbitrários. O signo arbitrário começa quando, em vez
de vincular duas pessoas em uma reciprocidade indestrutível, o significante
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30
começa a se remeter a um mundo desencantado de significado, um denominador
comum do mundo real em relação ao qual ninguém tem qualquer obrigação.
(BAUDRILLARD, 1976, apud CRARY, 1990, p. 21)
O sapato, quanto objeto carregado de um signo, ou seja, um significante, nos ajuda a
exemplificar a ideia do autor. Se um objeto é exclusivo de certa camada social, ele assegura a
esta um signo de status. Usar sapato simboliza algo que vai além da funcionalidade do objeto
de proteger os pés. Aos escravos no Brasil, não lhes era permitido o uso de sapatos porque
estes carregavam um significado de dignidade, um status social; o escravo não era
considerado cidadão e sendo submetido a uma camada da sociedade inferior ou até mesmo
apartado desta, não deveria usá-lo, pois este conota algo que nem todas as castas devem
possuir e nem almejar e assim se mantém desenhada a contornos fortes, uma estratificação
social, uma ordem dentro de um sistema. O sapato tem o valor da dignidade, logo, nem todos
são dignos de usá-lo. O escravo quando conseguia a liberdade comprava seu par de sapatos
como símbolo de sua nova condição social. O sapato, então, confere uma identidade, assim
como a falta dele também confere uma outra, permitindo assim o reconhecimento.
A reciprocidade indestrutível na relação entre signo e identidade, concedida por um
objeto significante, no caso, o sapato, é por um lado interrompida na medida em que este
elemento se dispersa e se torna mais acessível se transformando em denominador comum - e
por outro, ela é ratificada pela autoperpetuação do novo, que irá produzir um sapato diferente
e assim reiterá-lo em seu significado exclusivo.
Para entender os signos:
“O signo é uma ocorrência fenomênica de qualquer natureza, que de algum modo se conecta
com uma experiência anterior”. (NIEMEYER, 2003: p.31)
Pare significa pare
Pare significa perigo
Coroa significa coroa
Coroa significa realeza
Sapato significa sapato
Sapato significa liberdade
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31
Os signos não são isolados e os significados dependem do contexto nos quais são lidos e
compreendidos. De acordo com Santaella (1999, p.07), “O nome Semiótica vem da raiz grega
semeion, que quer dizer signo. Semiótica é a ciência dos signos”. A qual tem como objetivo
revelar as formas como o indivíduo dá sentido a tudo que o cerca, além de fazer a utilização
dos signos para a construção de um processo de significação. Signo Segundo a concepção de
Pierce:
Um signo, ou representamen, é aquilo que, sob certo aspecto ou modo representa
algo para alguém. Dirige-se a alguém, isto é, cria na mente dessa pessoa, um
signo equivalente, ou talvez um signo mais desenvolvido. Ao signo assim criado
denomino interpretante do primeiro signo. O signo representa alguma coisa, seu
objeto. Representa esse objeto não em todos os aspectos, mas com referência a
um tipo de ideia [...]. (1995, p. 46)
As sociedades têm duas fontes básicas de formação de significado sendo a primeira
delas a fonte natural, e uma segunda denominada convencionada. Por exemplo: é natural usar
sapatos para proteger os pés do solo, mas este uso pode adquirir outros significados que tem
pouca ou nenhuma relação com a função prática do sapato.
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Mestre Leopoldina (1933-2007), “A fina flor da malandragem” como era conhecido na capoeiragem. Nascido no
Rio de Janeiro, Demerval Lopes de Lacerda era figura estimada nas rodas de capoeira, sempre em fino traje, com
seu chapéu de aba curta e seu sapato lustrado de bico fino, do mais apurado bom gosto; mestre Leopoldina é
uma expressão da capoeira antiga, cheia de malícia e mandinga que primava pela elegância do jogo. Um ditado
popular da capoeiragem cabe bem à sua figura: ‘’Ando por todos os lugares, minha roupa sempre está limpa,
passo pela lama e não me sujo’’.
Retornando ao pensamento de Baudrillard (1976), o autor assinala que a
modernidade está estritamente ligada à capacidade que grupos sociais recém chegados ao
poder têm de superar o “exclusivismo dos signos”, promovendo uma proliferação de signos
sob demanda. Imitações, cópias, falsificações e as técnicas para produzi-las desafiaram o
monopólio e o controle aristocrático dos signos. Nesse caso o problema da mimese (imitação)
não é um problema de estética, mas de poder social; um poder fundado na capacidade de
produzir equivalências. Simultaneamente ao desenvolvimento de novas técnicas industriais e
formas de poder político, objetos potencialmente idênticos produzidos em séries indefinidas
emergem e anunciam o momento em que o problema da mimese desaparece.
A relação entre os objetos idênticos não é mais aquela de um original em relação a
sua imitação. A relação não é de analogia nem de reflexo, mas de equivalência e
indiferença. Em série, os objetos se tornam simulacros indefinidos uns dos outros.
(...) Sabemos agora que é no nível da reprodução – moda, mídia, propaganda,
informação, e comunicação – ou seja, na esfera dos simulacros e do código, que os
processos globais se unem. (BAUDRILLARD, 1976, apud CRARY, 1990, p. 21)
32
33
A partir dessa afirmação, proponho ao leitor que se desprenda de nossa linha de
pensamento, até aqui pautada pelo século XIX, e projete os olhos em direção a um horizonte
próximo para que assim possamos deduzir, no que implicará esse modelo, ainda principiante
de novas relações de consumo, na consolidação do que viria a se chamar “Indústria Cultural”.
No século XX, Adorno e Horkheimer no livro - Dialética do Esclarecimento, fazem
um radical ataque sobre a Indústria Cultural do Capitalismo e alertam em tom profético sobre
o caráter regressivo, autodestrutivo do processo de esclarecimento do homem. Segundo
Immanuel Kant, defensor do iluminismo, o processo de esclarecimento era a “saída do
homem de sua menoridade”, ou seja, somente o ser esclarecido, iluminado pela luz da razão
estaria apto a ter, ele mesmo, o controle de seus atos e escolhas. A responsabilidade sobre o
destino de cada indivíduo, não mais fundamentalmente relacionada a um Deus ou deuses foi
reenviada para si com base na disseminação na cultura moderna. Tendo a luz da razão em
mãos, para onde caminha o ser humano?
Segundo os autores, o progresso do pensamento tem perseguido sempre livrar os
homens do medo e de investi-los na posição de senhores. Mas a terra totalmente esclarecida
resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal. Os acontecimentos que refletimos aqui
dizem sobre um aparente triunfo da sociedade ocidental burguesa baseado em uma
perspectiva racionalista que direciona o ser ao individualismo e ao consumismo. Dessa
maneira, a impotência e a dirigibilidade da massa aumentam conforme é oferecido a ela uma
maior quantidade de bens.
O racionalismo impôs uma marcha para o progresso que não viu limites em seu
desenvolvimento, e as questões urgentes sociais e de meio ambiente atuais aliam-se
perigosamente à qualidade apática de seus indivíduos. Na leitura dos autores acerca do
indivíduo “produzido” pela cultura pós-moderna; a luz da razão deixou o ser humano sob o
domínio da mais profunda cegueira. Sua imaginação e sua espontaneidade são paulatinamente
atrofiadas, pelos próprios produtos culturais, pois a indústria cultural não apenas adapta seus
produtos ao consumo de massas como, de certo, determina o próprio consumo. Sobre essa
configuração de consumo relacionada as Artes no século XX, os autores discorrem:
Mas com a barateza dos produtos de luxo fabricados em série e seu complemento, a
fraude universal, o caráter mercantil da própria arte está em vias de se modificar. O
novo não é o caráter mercantil da obra de arte, mas o fato de que, hoje, ela se declara
33
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deliberadamente como tal, e é o fato de que a arte renega sua própria autonomia,
incluindo-se orgulhosamente entre os bens de consumo, que lhe confere o encanto
da novidade.(...) Até mesmo sua liberdade, entendida como negação da finalidade
social, tal como esta se impõe a tal mercado, permanece essencialmente ligada ao
pressuposto da economia de mercado. O princípio da estética idealista, a finalidade
sem fim, é a inversão do esquema a que obedece socialmente a arte burguesa: a falta
de finalidade para os fins determinados do mercado. Para concluir, na exigência de
entreterimento e relaxamento, o fim absorveu o reino da falta de finalidade.
(ADORNO/HORKHEIMER, 1944, p. 130)
Pode-se concluir que nessa nova reconfiguração de consumo, o aspecto da arte de
não ter um fim social, torna-se uma finalidade e o caráter de ser inútil quanto a qualquer
função, torna-se uma utilidade. Desse modo o próprio sistema é capaz de transformar o que se
poderia chamar de valor de uso na recepção dos bens culturais pelo valor de troca (...) o que
se quer é conquistar prestígio e não se tornar um conhecedor. Tudo só tem valor na medida
em que se pode trocá-lo não na medida em que é algo em si mesmo, o valor de uso da arte,
seu ser, é considerado como fetiche, e o fetiche, a avaliação social que é erroneamente
entendida como a hierarquia das obras de arte – torna-se seu único valor de uso, a única
qualidade que elas desfrutam. (idem)
De volta às conclusões apontadas por Baudrillard (1976) - sobre um novo campo de
objetos produzidos em série no século XIX; os de maior impacto social e cultural foram a
fotografia e uma infinidade de técnicas correlatas para industrializar a criação de imagens. A
fotografia tem lugar central na reorganização de um território de signos e imagens assim
como na estruturação de uma nova economia de mercadorias.
Sobre uma dispersão de imagens e através destas uma crescente proliferação dos
signos, nos convém evocar o pensamento filosófico para melhor entender essas imagens,
refletindo sobre suas diferenças e categorias. De acordo com a autora Marilena Chauí (2004),
imagens podem ser coisas bastante diversas: quadros, esculturas, fotografias, filmes, reflexos,
ficções literárias, contos, lendas e mitos, figuras de linguagem, símbolos, sonhos, devaneios,
alucinações, imitações pela mímica e pela dança, sons musicais, poesia, etc. No entanto estas
podem ser diferenciadas por dois aspectos principais:
1. Imagens exteriores a nossa consciência, tais como: pinturas, esculturas, fotos, filmes,
mímica, símbolos. Imagens internas ou mentais: sonhos, devaneios, alucinações, etc. Algumas
imagens podem ser internas e externas ao mesmo tempo (no caso do cinema, por exemplo, a
34
35
imagem é externa, pois está projetada em uma superfície, e é interna, pois a vejo e através
dela imagino outras imagens3).
2. Uma segunda diferença entre as imagens decorre do tipo de análogo que cada uma delas
propõe. Um análogo pode ser um símbolo (a bandeira é um símbolo da nação), uma metáfora
(a primavera da vida), uma ilustração (uma paisagem num livro de contos), um esquema (a
planta de uma casa), um signo (luz vermelha do semáforo é o signo da ordem: “Pare”),
sentimento (a emoção que sinto ao ouvir uma voz, é imagem de uma pessoa em mim), um
substituto (um armário imaginado como um navio pra criança que brinca).
A autora ainda nos esclarece que, embora sejam diferentes pela natureza de analogia,
as imagens possuem algo em comum - que é o fato de que raramente a imagem corresponde
materialmente a coisa imaginada, ou seja, as imagens são irreais, quando comparadas ao que
é imaginado através delas. Por ser irreal, a imagem possui a qualidade de tornar presente algo
ausente, ou seja, presentificar algo seja porque ele está ausente ou porque é inexistente. Em
ambos o objeto em imagem é imaginário. A imagem de algo não requer necessariamente que
esse algo exista como matéria.
As imagens externas, cujos efeitos coincidem com sua visualidade – como coloca
Crary, sob sua concepção de Benjamim – cumprem um propósito pelo qual servem a uma
funcionalidade que lhes é atribuída, assim, tanto as imagens de arte quanto as demais
inseridas em lógica de reprodução em série, se encontram em uma nova realidade em que são
objetos e mercadorias. Dentro desta perspectiva de realidade de um espaço visual saturado, o
autor ainda pontua que a modernidade subverte a possibilidade de percepção contemplativa e
dificulta o acesso puro a um objeto em sua unicidade: a visão é sempre múltipla, contígua e
sobreposta aos outros objetos, desejos e vetores. Mesmo o frio espaço do museu é incapaz de
transcender um mundo em que tudo está em circulação. Qualquer representação visual
individual deixa de ter uma identidade autônoma significativa em frente à tamanha circulação
de imagens.
3
No entanto, algo é comum a essas imagens: elas nos oferecem coisas, situações, pessoas que guardam
alguma semelhança com outras coisas, situações, pessoas reais. Por oferecer alguma parecença, diz-se que
uma imagem oferece um análogo (que expressa relação de semelhança entre coisas ou ações diferentes)
das próprias coisas, situações ou pessoas. As imagens oferecem um análogo seja porque estão no lugar das
próprias coisas (como na fotografia ou na pintura), seja porque nos fazem imaginar coisas através de
outras (como a bandeira de um país, uma poesia ou uma música). Ver Marilena Chauí, ‘’Convite à
Filosofia’’.
35
36
A sensibilidade é imensamente mais irritável; (...) a abundância das impressões
díspares é maior do que qualquer outra época; o cosmopolitismo das comidas,
das literaturas, dos jornais, das formas, dos gostos e mesmo das paisagens. O
tempo desse influxo é um prestíssimo; as impressões desfazem-se; resistem
instintivamente a absorver algo, a se impressionar profundamente, a ‘’digerir’’
algo; daí sobrevém o enfraquecimento de digestão. Produz-se uma espécie de
adaptação a essa enxurrada de impressões; o homem esquece o modo de agir; ele
só reage a estímulos exteriores. (NIETZSCHE, 1967, p. 47)
3.2 DO CONTROLE DA ATENÇÃO SOB UMA RECONSTRUÇÃO DA CONCEPÇÃO
VISUAL
Nietzsche (2008) nos propõe como característica central da modernidade, uma
confusão recreativa e antiestética. Através de suas palavras podemos assumir que a
modernidade reconfigura novos componentes perceptivos que causam um colapso nos
modelos clássicos de visão e seu espaço estável de representações. Crary (1990) sugere – na
leitura sobre a modernidade de Benjamin – que o sujeito se torna um observador ambulante,
formado por uma convergência de novos espaços urbanos, novas tecnologias, novas funções
econômicas e simbólicas das imagens e dos produtos, formas de iluminação artificial, novos
usos de espelhos, arquitetura de vidro e aço, ferrovias, museus, jardins, fotografia, moda,
multidões. Dessa maneira, podemos concluir que deixa de existir um lugar próprio para o
estímulo da visão. A visão foi desterritorializada pelos imperativos da modernização
capitalista que necessitou de um observador mais autônomo e adaptável para sua nova ordem.
O surgimento de técnicas disciplinares aplicadas sobre uma concepção de
recodificação da atividade do olho, para assim melhor ordená-lo aumentando sua capacidade
e impedindo sua distração, contemplam essa necessidade. Essas técnicas são baseadas na
concepção da visão como algo instrumental, modificável e abstrato – estão a serviço da
racionalização das sensações e da administração da percepção. De acordo com Foucault, a
modernização consiste nessa produção de sujeitos administráveis por meio do que ele chama
de.
(...) uma política do corpo, certa maneira de tornar dócil e útil o agrupamento dos
homens. Essa política exigia a participação das relações de saber nas relações de
poder; reclamava uma técnica para entrecruzar sujeição e objetivação; incluía novos
procedimentos de individualização. (FOUCAULT, 1977, p. 305)
36
37
O saber que o autor menciona se direciona a novas técnicas disciplinares do sujeito,
portanto era fundamental a definição de normas quantitativas e estatísticas de comportamento
para impor uma visão normativa ao observador. Crary, em nota, afirma através do filósofo
Canguilhem que o verbo “normatizar” foi usado pela primeira vez em 1834.
3.3 A PÓS-IMAGEM RETINIANA E A VISÃO SUBJETIVA
Fenômenos visuais subjetivos, como as pós-imagens, haviam sido registrados desde a
Antiguidade, mas somente como eventos fora do domínio da óptica, atribuídos a categoria de
espectros ou de mera aparência. Através de Goethe, no século XIX, em seu livro Doutrina das
cores, essas experiências alcançam o estatuto de verdade óptica e deixam de ser vistas como
truques que obscurecem a visão e por consequência é abandonada a ideia de que esse tipo de
imagem habitasse um terreno místico, irreal e ilusório.
(...) o privilégio da pós imagem permitiu conceber uma percepção sensorial separada
de qualquer vínculo necessário com um referente externo. A pós-imagem – a
presença da sensação na ausência de um estímulo – e suas modulações subsequentes
ofereceram uma demonstração teórica e empírica da visão autônoma, de uma
experiência óptica produzida pelo e no interior do sujeito. (CRARY, 1990, p. 99)
A experiência óptica da pós-imagem traz a temporalidade como um elemento
inseparável de sua percepção, sugerindo a ideia de uma realidade que perdura internamente no
sujeito. Na medida em que a observação vincula-se mais ao corpo e o tempo é incorporado no
debate de percepção e cognição, começa a se contestar uma certa “instantaneidade” ou ainda a
“simultaneidade” do ato cognitivo, algo que era incontestável na óptica clássica e nas teorias
clássicas da percepção. Goethe e outros filósofos contemporâneos a ele descrevem a
percepção e a cognição como processos essencialmente temporais que dependem de uma
mistura dinâmica entre passado e presente.
Não vivemos na visão; nosso conhecimento é um trabalho em etapas, ou seja, ele
tem de ser produzido etapa por etapa, de maneira fragmentada, com divisões e
gradações. (...) No mundo externo todos veem mais ou menos a mesma coisa, mas
nem todos conseguem expressá-lo. Para que possa completar a si mesma, cada coisa
passa por certos momentos – uma série de processos que se seguem uns ao outros,
em que o último sempre envolve o anterior, leva cada coisa à sua maturidade.
(SCHELLING, 1942, apud CRARY, 1990, p. 108)
37
38
Ainda que o trecho de Schelling, citado no parágrafo anterior, demonstre uma
sobreposição temporal que ressalta uma dinâmica fundamental do ato cognitivo da visão, é
com certa facilidade que observamos um ideal cartesiano em sua proposta ao formular que o
conhecimento se dá por etapas que se organizam em série, cada qual em seu isolamento, com
divisões e gradações. Esse tipo de concepção muito se relaciona com a maneira de pensar da
filosofia anterior de Locke e Condillac, que em linhas gerais pressupunha um empirismo
sensorial em que o cérebro funciona apenas em resposta a sensações recebidas do exterior,
sendo o pensamento inteiramente alimentado pelos órgãos do sentido. Na relação entre sujeito
objeto, a construção do objeto já está pronta e cabe ao sujeito apenas interpretá-lo em etapas
sucessivas.
Os pensamentos de Goethe (1949) e Hegel (1992), cada um ao seu modo,
confrontam essas formulações anteriores. Ambos interpretam a observação como um jogo de
interação de forças e relações, não como uma contiguidade ordenada de sensações distintas e
estáveis, tal como fora concebida por Locke e Condillac. Segundo Crary (1990) a
interpretação dinâmica e dialética de Hegel acerca da percepção, em que a aparência nega a si
própria para tornar algo diferente, faz ecoar na discussão de Goethe sobre as pós-imagens:
O olho não pode, por um momento sequer, permanecer em um estado particular
determinado pelo objeto pelo qual ele olha. Ao contrário, o olho é forçado a uma
espécie de oposição, que, ao contrastar os extremos entre si, e os níveis
intermediários entre si, combina essas impressões opostas. Assim, ele sempre
tende ao todo, quer as impressões sejam sucessivas ou simultâneas e restritas a
uma imagem. (GOETHE, 1949, apud CRARY, 1990, p.80)
Uma mancha branca colocada sobre um fundo homogêneo, a estrutura da borda é
descontínua, justaposição de pequenos agregados materiais, ou mesmo de elementos
fibrilares, se a matriz for um tecido. O observador vê nessa borda uma linha contínua, ele só
tem olhos para o todo que a mancha constitui, uma forma circular ou oval que tem um
contraste bruto, sem transição com o fundo. Ele globaliza a percepção, interessando-se apenas
pelo símbolo e pelo significante.
Uma das primeiras tentativas de se quantificar a experiência cognitiva das pósimagens aconteceu com Herbart (1968). O filósofo alemão, sucessor do pensamento kantiano,
detalhou como o sujeito evita e impede a incoerência e a desorganização internas. Para
Herbart, a consciência começa com um fluxo de dados vindos de fora, potencialmente
38
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caóticos. As ideias das coisas e dos eventos jamais foram cópias da realidade externa, mas o
resultado de um processo interativo dentro do sujeito, em que as ideias passavam por um
desbotamento, inibição e fusão com outras ideias ou apresentações, anteriores ou simultâneas.
A mente não reflete a verdade; ela a obtém a partir de um processo contínuo que envolve o
conflito e a combinação de ideias. Para o filósofo, todos os processos de combinação e
oposição que Goethe descreveu em termos de pós-imagem são enunciáveis em equações
diferenciais e teoremas.
Uma vez que as operações da cognição passam a ser mensuráveis fundamentalmente
em termos de duração e intensidade, ela se torna previsível e controlável. O trabalho de
Herbart, analisado por Crary, estava diretamente ligado às suas teorias pedagógicas, muito
influentes em toda Europa do século XIX. Ele acreditava que suas pesquisas de quantificar os
processos psicológicos podiam controlar e determinar a entrada sequencial de ideias em
mentes jovens; particularmente, podiam insuflar ideias morais e disciplinares.
Os objetivos centrais em sua pedagogia eram obediência e atenção. Assim como
novas formas de produção nas fábricas solicitaram um conhecimento mais preciso do tempo
de atenção do trabalhador, a administração da sala de aula, outra instituição disciplinar,
também exigiu uma informação semelhante. “Em ambos os casos, o sujeito em questão era
mensurável e regulado no tempo”. (CRARY, 1990, p. 103)
Os estudos de Herbart e sua busca por matematizar a percepção abriram caminho
para outros estudiosos que o seguiram. Em 1820, em toda a Europa, o estudo quantitativo das
pós-imagens estava em curso em diversas áreas da pesquisa científica. A fisiologia é o terreno
no qual emergem as pesquisas sobre a visão subjetiva e uma nova autonomia perceptiva do
observador. De 1820 até a década de 1840, a fisiologia era muito diferente da ciência
especializada que veio a se tornar mais tarde. Acerca da fisiologia desse período Crary
comenta:
(...) ela não dispunha de qualquer identidade institucional formal e surgiu como
trabalho acumulado de indivíduos não relacionados que atuavam em diversas
áreas do saber. Em comum havia o entusiasmo e o assombro em relação ao
corpo, que aparece agora como um novo continente a ser explorado, mapeado e
dominado, com novas cavidades e mecanismos revelados pela primeira vez.
(CRARY, 1990, p. 82)
39
40
Nesse período o terreno da fisiologia não é importante apenas por suas descobertas
empíricas, mas sim por sinalizar novos tipos de reflexão epistemológica que dependiam do
conhecimento acerca do olho e do processo da visão; o corpo estava se tornando o lugar do
poder e da verdade. Dessa maneira é possível observar uma ruptura na qual o homem surge
como um ser em quem o transcendente é retratado no empírico. Relembrando as ideias do
capítulo anterior, podemos concluir de uma valorização das experiências do corpo em
detrimento de uma concepção antiga que o inferioriza e o subjuga em relação a alma e o
espírito; foi a descoberta de que o conhecimento era condicionado pelo funcionamento físico
e anatômico do corpo e talvez mais importante ainda, dos olhos, que concede a corporeidade
um novo lugar de possibilidades. Juntamente com novos conhecimentos, surgem novos
métodos de poder. “Quando o diagrama do poder abandona o modelo de soberania em favor
de um modelo disciplinar, quando ele se torna o biopoder ou a biopolítica dos povos, que
controla e administra a vida, é de fato a vida que surge como o novo objeto de poder”.
(DELEUZE, 1998 apud CRARY, 1990, p. 92)
Os estudos sobre a pós-imagem podem nos indicar essa mudança no estatuto do
observador em direção a subjetividade, se colocado em contraposição à condição
paradigmática da câmara escura quanto um lugar de conhecimento, enunciados e práticas. A
partir do século XIX, a câmara escura já não é mais sinônimo de produção de verdade nem de
um observador posicionado para ter uma visão verdadeira. Na câmara escura, a visão se
encontra descorporificada pela separação entre o ato de ver e o corpo físico observador – que
está impedido de ter sua posição como parte da representação. O observador esta totalmente
apartado da representação mecânica e objetiva do mundo operada pelo aparelho, seu papel é
reservado apenas como testemunha. Nas palavras de Crary “O corpo, então, é um problema
que a câmara escura jamais poderia resolver, a não ser marginalizando-o como um espectro a
fim de estabelecer um espaço da razão”. (1990, p. 47)
A subjetividade corpórea do observador, que foi excluída a priori do conceito de
câmara escura, torna-se subitamente o lugar onde se funda a possibilidade do observador. O
corpo humano, em toda sua contingência e sua especificidade, “gera o espectro de outra cor”,
convertendo-se assim no produtor ativo da experiência óptica. Goethe, ao propor, em sua obra
Doutrina das cores, que o observador dentro da câmara escura feche o orifício da câmara, ele
desfaz a relação entre externo e interno do qual depende o funcionamento da câmara e aponta
40
41
para uma experiência visual inconcebível com modelo clássico. Sobre tal experimento Goethe
descreve:
Com o fechamento do orifício deixe que o espectador olhe para a parede mais
escura do quarto. Ele verá uma imagem circular pairando diante de si. O meio do
círculo aparecerá luminoso, desprovido de cor ou um tanto amarelo, mas a borda
aparecerá vermelha. Após certo tempo expande-se em direção ao centro, cobre o
círculo inteiro e, por fim, o ponto luminoso central. Contudo, tão logo todo o
círculo esteja vermelho, os cantos começam a ficar azuis, e o azul gradualmente
avança sobre o vermelho. Quando estiver tudo azul, os cantos tornam-se escuros,
sem cor. O canto mais escuro avança sobre o azul, novamente de forma gradual,
até que todo o círculo fique sem cor. (GOETHE, 1949, apud CRARY 1990, p.
71)
As palavras do autor deixam evidente a característica temporal da percepção da pósimagem sobre a qual citamos no começo deste tópico. Retornando aos estudos da pósimagem, o médico tcheco Jan Purkinje (1968) deu continuidade ao trabalho de Goethe no que
se refere a persistência e a modulação das pós-imagens; quanto tempo elas duravam, por quais
mudanças passavam e sob quais condições. Purkinje cronometrou quanto tempo o olho
demorava para se fatigar e quanto tempo a pupila levava para se dilatar e se contrair, além de
medir a força dos movimentos oculares. A duração envolvida no ato de ver possibilitou sua
modificação e seu controle. A superfície do olho converte-se em um campo de informação
estatística: ele dividiu a retina de acordo com os diferentes tons que a cor toma conforme a
área que ela atinge no olho. Ainda que seja importante descrever, mesmo que brevemente, os
caminhos que foram percorridos nesses estudos, é de uma necessidade maior se atentar para
as relações e acontecimentos que trilham uma narrativa paralela ao objeto e que se
comunicam por pontos em comum. Purkinje, em 1823, foi o primeiro cientista a formular um
sistema de classificação para as impressões digitais, ou seja, mais uma técnica para produzir e
regular os sujeitos humanos. O controle do corpo é um ponto de intersecção entre os sentidos
do tato e da visão.
O estudo experimental das pós-imagens levou a invenção de várias técnicas e
aparelhos ópticos que no início tinham como propósito a observação científica, mas logo se
transformaram em formas de entreterimento popular. Em geral se baseavam nas noções de
que a percepção não era instantânea e de que havia uma separação entre olho e objeto.
Exemplos de aparelhos ópticos: taumatrópio, fenacistoscópio, zootrópio, diorama,
caleidoscópio, estereoscópio, lanterna mágica, entre outros.
41
42
Os detalhes e o contexto destes aparelhos e seus inventores já foram bem
documentados, mas quase exclusivamente a serviço da história do cinema. Os
estudos sobre cinema os situam como as formas iniciais em um desenvolvimento
tecnológico evolutivo que levou ao surgimento de um única forma dominante no
final do século. A característica fundamental; são formas incipientes concebidas
de maneira imperfeita. Há uma ligação óbvia entre o cinema e essas máquinas da
década de 1830, mas em geral trata-se de uma dialética de inversão e oposição,
em que características desses aparelhos anteriores foram negadas ou ocultadas.
Ao mesmo tempo, há uma tendência a agrupar todos os dispositivos ópticos do
século XIX e tomá-los como parte de um vago ímpeto coletivo em direção a
níveis cada vez mais elevados de verossimilhança. Essa abordagem ignora as
singularidades conceituais e históricas de cada um deles. (CRARY,1990: p.110)
Lei de Fechner
Para sustentar a argumentação e concluir a reflexão acerca da relação entre o controle
do corpo e a visão subjetiva até aqui discutida, é necessário, mais uma vez, que voltemos aos
estudos das pós-imagens a fim de localizar, de maneira objetiva, como esses estudos foram
aplicados e pra onde apontaram seus desdobramentos. O Físico e filósofo alemão Gustav
Fechner (1860), acreditava em uma certeza fundamental de inter-relação entre espírito e
matéria; eles eram simplesmente maneiras alternadas de construir a mesma realidade, assim,
ele desejava buscar um método que estabelecesse uma relação exata entre experiência
sensorial interior e fenômenos no mundo exterior, ou seja, o que Fechner queria era
racionalizar a percepção e alcançar uma equação matemática que expressasse uma relação
funcional entre sensação e estímulo.
42
43
Gráfico da lei de Fechner:
Imagem extraída do livro “Técnicas do observador: visão e modernidade no século XIX”( CRARY, 1990, p.144)
De acordo com Crary, a racionalização da sensação pretendida por Fechner, não
levou somente ao desenvolvimento de tecnologias específicas de comportamento e atenção;
foi também um signo de reformulação de todo um campo social e do estatuto de um sistema
sensorial humano dentro dele. Mais tarde suas formulações se tornaram meios incisivos para
expressar como a experiência sensorial tornara-se próxima e até mesmo coincidente com um
campo econômico e cultural dominado pelos valores de troca. Outro filósofo alemão, Georg
Simmel, extraiu de Fechner, um tipo de cálculo para demonstrar como os valores de troca
eram equivalentes às quantidades de estimulação física.
O dinheiro funciona como um estímulo a todos os sentimentos possíveis, pois seu
caráter inespecífico, destituído de qualidades, o coloca a uma distância tão grande
dos sentimentos, que suas relações com todos eles são iguais. (SIMMEL 1978, apud
CRARY 1990, p. 146)
Para Simmel, segundo Crary, o observador na modernidade é concebido apenas
como um elemento nesse fluxo de valores: “Na esfera histórico-psicológica, o dinheiro, por
sua natureza, torna-se o mais perfeito representante de uma tendência cognitiva da ciência
moderna em seu conjunto – a redução de determinações qualitativas a determinações
quantitativas”. (idem)
43
44
Assim concluímos a reflexão deste capítulo sobre como a modernização resultou em
uma desterritorialização e uma revalorização da visão, tendo em vista a adaptabilidade e a
autonomia do sujeito – concebido como um corpo administrável conforme o surgimento de
novos arranjos de poder. Nas palavras de Foucault:
(...) o que está em jogo é como o sujeito humano se ajustou, por meio do
conhecimento do corpo e seus modos de funcionamento, a novos arranjos de poder:
o corpo trabalhador, estudante, soldado, consumidor, paciente, criminoso. A visão
pode muito bem ser mensurada, mas o mais significativo nas equações de Fechner
talvez seja sua função homogeneizante: elas são um meio para tornar aquele que
percebe gerenciável, previsível, produtivo e, acima de tudo, conformado às demais
áreas da racionalização. (FOUCAULT, 1979 apud CRARY, 1990, p. 143)
É necessário sublinhar que as reflexões aqui expostas, têm como objetivo conferir ao
leitor a capacidade de rastrear os pontos que ordenaram uma possível trajetória da visão na
modernidade. O livro Técnicas do observador – visão e modernidade no século XIX, 1990, de
Jonathan Crary, foi o responsável por apontar as principais direções neste capítulo, portanto, o
leitor que se interessar por um mergulho mais profundo sobre os apontamentos trazidos aqui,
deve visitar sua obra.
4 DIANTE DA TUMBA A CISÃO DO OLHAR. CONJUNÇÕES EU MUNDO
Desenhos para uma tumba
(G.P., enterrado em 1870)
1
O que podemos cantar, ó tu, que estás dentro dessa tumba ?
Que placas comemorativas, que desenhos, estão pendurados por ti, ó milionário ?
A vida que viveste não conhecemos,
Mas sabemos que fizeste permutas pelos anos, em meio ao covil dos intermediários,
Não há heroísmo teu, nem guerra, nem glória,
2
Silêncio, minha alma,
Com pálpebra abatida, como que esperando, ponderando,
Voltando-se de todos os exemplos, monumentos de heróis,
44
45
Enquanto através de visões internas,
Elevações silenciosas, fantasmagóricas ( como são, à noite , as auroras do norte),
Quadros vivos, ligeiros, proféticos, cenas incorpóreas,
Projeções espirituais.
Em uma, entre as ruas da cidade, um trabalhador apareceu,
Depois de seu dia de trabalho, limpo, com ar adocicado, a lamparina queimando,
O carpete varrido e o fogão crepitante.
Em uma, a cena sagrada do parto,
Uma mãe feliz e sem dor dá a luz uma criança perfeita.
Em um, uma abundante refeição matinal,
Sentam-se pais pacíficos com filhos satisfeitos.
Em um, em duplas e trios, pessoas jovens,
Centenas se concentrando, andando pelos caminhos e pelas ruas e estradas,
Na direção de uma escola com um domo alto.
Em um, um lindo trio,
Avó, a filha amorosa, a amorosa filha da filha, sentavam-se,
Conversando e costurando.
Em um, ao longo conjunto de salas nobres,
Entre abundantes livros e jornais, pinturas nas paredes, estátuas finas,
Estavam grupos de viajantes amistosos, mecânicos jovens e velhos,
Lendo conversando.
Todos, todos os espetáculos da vida de trabalho,
Cidade e país das mulheres, dos homens e das crianças,
Suas necessidades providas, queimados de sol e tingidos uma vez com alegria,
Os casamentos, a rua, a fábrica, a fazenda, o quarto da casa, o alojamento,
O labor e a faina, o menino ou a menina, sendo conduzidos para aprender,
O doente carregado, o que andava descalço calçado, o órfão com pai e mãe,
O Faminto alimentado, o sem-teto com uma casa;
(As intenções perfeitas e divinas,
Os trabalhos, os detalhes, humanamente felizes.)
3
Ó tu, dentro dessa tumba,
De ti tais cenas, tu sem limites, esbanjador,
45
46
Contabilizando os presentes da terra, grandes como a terra,
Teu nome uma terra, com montanhas, campos e marés.
Nem pelos vossos cursos apenas, vós, rios,
Por ti, tuas margens, Connecticut
Por ti, e por toda vida pródiga, velho Tâmisa.
Por ti, Potomac, lavando o solo sobre o qual Washington pisou, por ti, Patapisco,
Tu Hudson, tu Mississipi infinito – e não vós apenas,
Mas para o alto mar também lançados, meus pensamentos e as memórias dele.
(Walt Whitman, Folhas de Relva, tradução: edição Martin Claret, 2005)
O poema do norte americano, Walt Whitman (1819-1892) foi primeiramente
publicado em janeiro de 1870 com o título – “Brother of all, with generous hand”, traduzindo
para o português; “Irmão de todos, com generosidade” mais tarde, na quinta edição de sua
grande obra, Folhas de Relva (1871), recebeu seu presente título, “Outlines for a Tomb”
(Desenhos para uma Tumba), e foi o décimo segundo dos 38 poemas em “Autumn Rivulets”
(Regatos de Outono). Trinta das 79 linhas originais do poema original foram cortadas da
versão final.
A nota de subtítulo do poema, (G.P., enterrado em 1870) refere-se a George Peabody
(1795-1869), que em 1867 estabeleceu o “Fundo Peabody”, e doou 2 milhões de dólares para
ajudar o Sul a se recuperar da Guerra Civil. Peabody foi banqueiro em Londres e se dedicou
a filantropia e ao financiamento de diversas iniciativas humanitárias. Após o falecimento, seu
corpo retorna aos Estados Unidos para o enterro em 1870.
O poema é direcionado a sua tumba em Danvers, Massachusetts, e sugere que um
“milionário” também pode viver uma vida boa e exemplar. No final o poeta deseja “lançar em
alto mar” seus pensamentos sobre a “memória” de Peabody4.
O que sente o poeta diante da tumba? Que visões incorpóreas vive por sua
imaginação? Diante da tumba, um alívio, um desespero; o conforto da dúvida e a angústia da
afirmação. Da vida, a única certeza? A inveja e o assombro. A inveja da morte, o assombro
maravilhado da vida. Ver o outro lado. Um olhar vigilante pela fresta da porta. Um olhar
4
Do livro: Critical Companion to Walt Whitman, A literary Reference to his life and work – Charles M. Oliver
2006, p. 142
46
47
inquiridor. Que palavras cantar? Como expressar da maneira mais sincera a gratidão da vida?
A tumba está de frente ao poeta, sua concretude é evidente; a tumba é aquilo que nos olha, a
imagem perturbadora de um destino inquestionável, o olhar que responde na mesma intenção.
A tumba é uma metáfora da vida, pode ser qualquer coisa, o poeta pode ser qualquer um.
Diante da tumba, as palavras de Huberman:
Por um lado há aquilo que vejo do túmulo, ou seja, a evidência de um volume,
em geral uma massa de pedra, mais o menos geométrica, mais o menos
figurativa, mais o menos coberta de inscrições: uma massa de pedra trabalhada
seja como for, tirando de sua face o mundo dos objetos talhados ou modelados, o
mundo da arte e do artefato em geral. Por outro lado há aquilo que me olha: e o
que me olha em tal situação não tem mais nada de evidente, uma vez que se trata
ao contrário de uma espécie de esvaziamento. Um esvaziamento que de modo
nenhum concerne mais ao mundo do artefato ou do simulacro, um esvaziamento
que aí, diante de mim, diz respeito ao inevitável por excelência, a saber; o
destino do corpo semelhante ao meu, esvaziado de sua vida, de sua fala, de seus
movimentos, esvaziado de seu poder de levantar os olhos para mim. E que no
entanto me olha num certo sentido – o sentido inelutável da perda posto aqui a
trabalhar. (HUBERMAN, 1998: p. 37)
Existem conjunções diversas entre o vidente – (aquele que vê) e o visível – (aquilo
que se vê), e de como apreendemos o mundo pelos nossos sentidos. A partir de nossa visão, e
da visão do outro, é construída a identidade e a consciência. Então, como descrever as
conjunções entre sujeito observador e imagem, como definir essas relações do olhar
subjetivo? Neste capítulo, a poesia de Whitman compõe um cenário para uma reflexão em
conjunto com a fenomenologia – sobre os diferentes papéis desempenhados pelo observador
diante da imagem e as conjunções que estabelecem sob diferentes modos de visão.
4.1 DAS CONJUNÇÕES: A TAUTOLOGIA E A CRENÇA, O VER E O OLHAR
Huberman e o filósofo Sérgio Cardoso (1989) definem a experiência da visão
dividindo-a em caminhos que, embora tragam à discussão conceitos diferentes, dialogam e se
complementam por terem um ponto comum de reflexão. Enquanto Cardoso aponta as
diferentes relações do observador quanto a seu modo de visão, a partir das diferentes ações
que implicam os verbos – ver e olhar, Huberman propõe uma outra diferenciação do
observador através da qual pauta suas descrições a partir da crença e da tautologia5. A
5
Por tautologia entende-se que é a repetição de uma mesma ideia em termos diferentes: o céu é azul
porque reflete o oceano e o oceano é azul porque reflete o céu; ou ainda: ‘’no dia de hoje’’, ‘’elo de ligação’’.
Portanto uma redundância, um círculo vicioso.
47
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dialética produzida da interação entre os conceitos, tem de início, como pano de fundo, a cena
do encontro fúnebre descrita previamente, no entanto sugere também que o leitor possa
chegar a outros lugares e relações de experiência através de suas próprias imagens e
imaginação. O autor segue a descrição do encontro:
(...) a experiência torna-se mais monolítica, e nossas imagens são mais diretamente
coagidas ao que o túmulo quer dizer, isto é, ao que o túmulo encerra. Eis porque o
túmulo, quando o vejo, me olha até o âmago – e nesse ponto aliás, ele vem perturbar
minha capacidade de vê-lo simplesmente, serenamente – na medida mesmo em que
me mostra que perdi esse corpo que ele recolhe em seu fundo. Ele me olha também,
é claro, porque impõe em mim a imagem impossível de ver daquilo que me fará o
igual e o semelhante desse corpo em meu próprio destino futuro de corpo que em
breve se esvaziará, jazerá e desaparecerá num volume mais o menos parecido.
(HUBERMAN, 2014, p. 38)
Da experiência, o que lhe resta é a angústia de ser lançado à questão de sua própria
existência, de seu corpo, sua matéria e sua capacidade de fazer volume e ocupar espaços e de
fazer-se vazio e não ocupar espaço nenhum. Em estado de lucidez melancólica o que fazer
diante dessa cisão? Recorrer à razão a fim de suturar o que se deixou vazio e evitar um
confronto dentro de si? As palavras de Sérgio Cardoso sobre a visão elucidam o que acontece
na fábula:
A visão nos parece produzir-se pela conjunção de um observador e de algo visível,
exigindo um engate de um sujeito e um objeto, tudo se passa, então, como se
encarregássemos a cada um destes verbos (ver e olhar) o poder de um destes polos,
fazendo-os capitalizar as virtudes de um ou outro no talhe de seu feitio semântico
particular. (CARDOSO, 1989, p. 348)
Pode-se interpretar, então, que a cisão se dá pelo tensionamento entre sujeito e objeto
e que essa tensão está presente e somente é possível de acontecer no âmbito do olhar.
Observador e tumba se olham, são dois polos que reivindicam para si o domínio da relação.
No entanto, o leitor deve entender que é o próprio sujeito que projeta no objeto em questão, as
mesmas intenções que partem de si, ou seja, sua perturbação tem origem em si e não provém,
portanto, de um estímulo exterior6. A cisão do olhar esta no próprio sujeito que ao questionar
algo se vê questionado da mesma maneira. O olhar, se colocado quanto um modos operandi,
remete de imediato as virtudes do sujeito, e atesta a cada passo nesta ação a espessura da sua
interioridade. Ele investiga, indaga a partir e para além do visto, e parece originar-se sempre
da necessidade de “ver de novo” (ou ver o novo), com intenção de “olhar bem”. Por isso é
sempre questionador, direcionado e atento, tenso e alerta.
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Essa afirmação se relaciona com a discussão presente no primeiro capítulo no que diz respeito a
interação entre sujeito e objeto e o estudo das sensações.
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O olhar não descansa sobre a paisagem contínua de um espaço inteiramente
articulado, mas se enreda nos interstícios de extensões descontínuas, desconcertadas
pelo estranhamento. Neste modo de operação, o olho constantemente defronta
limites, lacunas, divisões e alteridade, conforma-se a um espaço aberto fragmentado
e lacerado. Assim, trinca e se rompe a superfície lisa e luminosa antes oferecida à
visão, dando lugar a um lusco-fusco de zonas claras e escuras, que se apresentam e
se esquivam à totalização. E o impulso inquiridor do olho nasce justamente desta
descontinuidade, deste inacabamento do mundo: o logro das aparências, a magia das
perspectivas, a opacidade das sombras, os enigmas das falhas, enfim, as vacilações
das significações, ou as resistências que encontra a articulação plena de sua
totalidade. Por isso o olhar não acumula e não abarca, mas procura; não deriva sobre
uma superfície plana, mas escava, fixa e fura, mirando as frestas deste mundo
instável e deslizante que instiga e provoca a cada instante a sua empresa de inspeção
e interrogação. O olhar pensa; é a visão feita interrogação. (CARDOSO, 1989, p.
349)
4.1.1 O observador aquém da cisão, a tautologia como fuga do encontro
Da escolha de permanecer intocável por eventuais consequências do encontro, surge
um outro caso de figura do observador – aquele que permanece aquém da cisão aberta pelo
que nos olha no que vemos, ou seja, aquele que nega o olhar. Evita, portanto, qualquer
possibilidade de desconforto e dessa maneira acaba por acreditar que todo o resto não mais o
olharia. “É difícil, diante do túmulo, permanecer em seu volume quanto tal, o volume visível,
e postular o resto como inexistente, rejeitar o resto ao domínio de uma invisibilidade sem
nome”. (HUBERMAN, 2014, p. 38)
Pela vontade de se sentir seguro entre as arestas discerníveis de uma forma geométrica,
o observador, então, recusa que diante de si encontra-se um volume cheio, isto é, preenchido
por um ser semelhante a ele, no entanto morto – cheio de uma angustia que o remete a seu
próprio destino. Em contrapartida é presente nessa atitude uma denegação do vazio, o vazio
da tumba que é preenchida por um corpo também vazio, um corpo oco, ausente de qualquer
substância. A partir dessa dupla recusa é fundado um exercício da tautologia: uma verdade
rasa e encerrada na concepção de que “a tumba que vejo não é senão o que vejo nela: um
paralelepípedo de cerca de um metro e oitenta de comprimento...” Uma verdade produzida
pelo observador afim de proteger-se, funcionando como anteparo a um verdade talvez bem
mais temível, profunda “a que está em abaixo”. Talvez dessa maneira pretende se preservar
aceitando, através de uma cegueira seletiva, a própria ignorância – na qual busca obter uma
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50
satisfação plena diante do que é evidente, evidentemente visível e fará da tautologia uma
espécie de cinismo: “O que vejo é o que vejo, e o resto não me importa”.
Uma vitória maníaca e miserável da linguagem sobre o olhar, na afirmação
fechada, congelada , de que aí não há nada mais que um volume, e que esse
volume não é senão ele mesmo, por exemplo um paralelepípedo de cerca de um
metro e oitenta de comprimento (...) Terá feito tudo, esse homem da tautologia,
para recusar as latências do objeto ao afirmar como um triunfo a identidade
manifesta – tautológica –desse objeto mesmo: “Esse objeto que vejo é aquilo que
vejo, um ponto, nada mais” (...) Logo, terá feito tudo para recusar a aura do
objeto, ao ostentar um modo de indiferença ao que está justamente por baixo,
escondido, jacente (...) “O que vejo é o que vejo, e me contento com isso”.
(HUBERMAN, 2014, p. 39)
4.1.2 O exercício da crença e o ver como um outro modo de recusa
Um outro modo de conjunção do observador se baseia em sua atitude na qual a
experiência da visão se faz como um exercício da crença. Outra recusa, outro modo de
satisfação reivindicada diante do que, no entanto, continua a nos olhar como a face do pior.
Uma segunda atitude para suturar a angústia diante da tumba consiste em querer ultrapassar a
cisão aberta pelo que nos olha no que vemos.
O observador que deseja superar a questão do incômodo e da incerteza evita por essa
segunda atitude o seu desconforto e produz, através do vazio, uma verdade nem rasa e nem
profunda, mas sim uma verdade superlativa e dogmática, de que diante da tumba não há nem
um volume apenas, nem um puro processo de esvaziamento, mas algo de outro. “O volume
perde então sua evidência de granito, e o vazio perde igualmente seu poder inquietante de
morte presente (morte do outro ou nossa própria morte, esvaziamento do outro ou nosso
próprioesvaziamento)”. (HUBERMAN,2014, p. 40)
Vitorioso então, o homem da crença, diante das afirmações e interrogações lançadas
à seu olhar pela tumba, prefere esvaziar os túmulos de suas carnes putrescentes, para enchêlos de imagens sublimes – feitas para confortar e informar, fixar nossas memórias, nossos
temores e nossos desejos. A crença revive o invisível e lhe atribui um sentido teleológico e
metafîsico.
Exposto o vazio como um modelo, uma prefiguração para todos cujas lajes jazem
disseminadas, enquanto suas entranhas geométricas se tornam puras caixas de
ressonância para uma maravilhosa – ou temível – sinfonia de trompas celestes. Eis
portanto seus volumes ostensivamente esvaziados de seus conteúdos, enquanto seus
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conteúdos – os corpos ressuscitados – se precipitam em multidão para as portas dos
lugares que lhes cabem: Paraíso ou Inferno? (...) Seja como for, o homem da crença
verá sempre alguma outra coisa além do que vê, quando se encontra face a face com
uma tumba (HUBERMAN, 2014, p. 43)
A definição que Cardoso faz, segundo a fenomenologia, sobre o “Ver”, implica nesta
outra conjunção do observador perante o mundo do conhecimento e propõe um entendimento
acerca do homem da crença, no qual descreve Huberman, através do papel desempenhado por
este modo de visão. Comenta o autor:
A visão involuntária de que estamos tratando neste caso, ainda que modestamente
ciente de seus limites e alcance circunscritos, supõe um mundo pleno, inteiro e
maciço, e crê no seu acabamento e totalidade. Toma-o como conjunto dos corpos ou
coisas extensas que preenchem os espaços, e apoia nas qualidades deste a certeza da
sua continuidade. Tudo se compõe, então, numa coesão compacta e lisa,
indefectível... como aquela que deparamos na crença ou no sonho – pois, como ela,
desconhece lacunas e incoerência e como ele, tudo acolhe e integra com
naturalidade. Opera por soma, acumulação, e envolvimento; busca o espraiamento, a
abrangência, a horizontalidade; e projeta, assim, um mundo contínuo e coerente, e
acredita fruir e restituir – ainda que por prestações parcelares, a sua integralidade.
(CARDOSO, 1989, p. 348)
O modus operandi do Ver se realiza no território demarcado pela crença. A busca da
crença por uma unidade de mundo contínuo é criadora dessa superfície lisa e coesa citada
anteriormente, que somente pode ser percebida (permitida) pela existência de uma outra, de
maior complexidade, dotada de um relevo esculpido por valores morais que se empenham em
atribuir significados e canalizar as emoções. Assim, são criadas estruturas que agem
paradoxalmente quanto a relação de apreensão do mundo de conhecimento pelo sujeito e seu
movimento dentro dele, colocando em questão o que este encara como realidade. Se por um
lado essas estruturas servem de orientação e sustentação, pautando associações e medidas, as
mesmas, podem ofuscar outros meios (que partem da dúvida e são evitados) – que levariam a
novas possibilidades de conjunções entre vidente e visível e desse modo revelariam “algo de
outro” ao observador. Uma ponte é um caminho e também um limite. O sujeito que trilha
sempre o mesmo caminho dificilmente vislumbrará a existência de outros.
Ver é assimilar a superfície das coisas, sem que elas possam penetrar a retina.
Implica a observação e absorção da relação sujeito/objeto de uma determinada distância, uma
amplitude que se dá perante o afastamento do observador. É navegar sobre as águas de um rio
sereno, sem mergulhar profundamente. Ver é aceitar na existência de algo maior, (que não
habita o mesmo mundo de produção de conhecimento) uma soberania inquestionável que se
51
52
apossa do mistério das coisas. Nas palavras de Marilena Chauí (1989, p. 330) “(...) o sensível,
ser dos confins, é o que vela as portas de nossa vida. A presença das coisas é um mistério não
por ignorarmos como são possíveis, mas porque reivindicam a existência como indivíduos”.
Diante do que é reivindicado se aceita uma incapacidade para que as angústias se
resolvam por meio de uma auto afirmação – que diz sobre uma entidade superior, um Olhar
de cima, que se encarrega de todos os mistérios da existência e dá sentido a vida. “Um Deus
que faria a ligação das coisas, no entanto como não podemos vê-lo, nem ver por seus olhos,
afrontamo-lo como Intervalo (...) Quando as coisas começam a nos olhar, estamos
experimentando não o mistério do conhecimento, mas o mistério do desconhecimento”.
(PERRONE–LEYLA, 1989, p. 329)
Além Deus
V / BRAÇO SEM CORPO BRANDINDO UM GLÁDIO
(Entre a árvore e o vê-la)
Entre a árvore e o vê-la
Onde está o sonho?
Que arco da ponte mais vela
Deus?... E eu fico tristonho
Por não saber se a curva da ponte
É a curva do horizonte...
[...]
Deus é um grande Intervalo,
Mas entre quê de quê?...
Entre o que digo e o que calo
Existo? Quem é que me vê?
[...]
(Fernando Pessoa, Cancioneiro, 2008)
52
53
A menina e a janela. Pra onde olha? Junho de 2013, Oriximiná.
53
54
4.2
O
OLHAR
FOTOGRÁFICO
E
A
OBSERVAÇÃO
PARTICIPANTE
NA
ANTROPOLOGIA
A obra de Malinowski “Os argonautas do Pacífico Ocidental” traz de início uma
fotografia com o título “Um ato cerimonial do kula”. Um colar de conchas esta sendo
oferecido a um chefe trobiandês, que está de pé na porta de sua casa. Atrás do homem que
presenteia o colar está uma fileira de seis jovens, curvados em reverência, um dos quais sopra
uma concha. Todos os personagens estão de perfil, com a atenção aparentemente concentrada
no rito da troca, um evento importante na vida melanésia. Mas a um olhar mais atento parece
que um dos trobiandeses está olhando para a câmera.
Nativos trobiandeses no ritual de troca do kula. Fonte: arquivo de Malinowski.
O frontispício de Os argonautas, como toda fotografia, afirma uma presença – a da
cena diante das lentes: e sugere também outra presença – a do etnógrafo elaborando
ativamente esse fragmento da realidade trobiandesa. O sistema de troca do kula,
tema do livro de Malinowski, foi transformado em algo perfeitamente visível,
centrado numa estrutura de percepção, enquanto o olhar de um dos participantes
redireciona nossa atenção para o ponto de vista do observador que, como leitores,
partilhamos com o etnógrafo e sua câmera. O modo predominante e moderno de
autoridade no trabalho de campo é assim expresso: “Você está lá... porque eu estava
lá”. (CLIFFORD, 2011, p. 18)
54
55
Em seu livro “A experiência etnográfica, antropologia e literatura no século XX” o
antropólogo, James Clifford, discute sobre a formação e a desintegração da autoridade
etnográfica na antropologia social. Neste fragmento de seu trabalho fica evidente a
importância da fotografia como um instrumento transformador do trabalho de campo na
antropologia – capaz de reconfigurar a interação do observador colocando-o como alguém
que participa da dinâmica de vida e elabora7 uma realidade através das imagens. O ato
fotográfico é uma criação primeiramente porque se dá por escolhas (composição e exposição)
e um fotograma é, antes de tudo, um recorte, um fragmento e sendo assim, não é um objetivo
da fotografia documental etnográfica ser sinônimo de verdade.
É mais do que nunca crucial para os diferentes povos formar imagens complexas e
concretas uns dos outros, assim como das relações de poder e de conhecimento que
os conectam; mas nenhum método científico soberano ou instância ética pode
garantir a verdade de tais imagens. Elas são elaboradas (...) (CLIFFORD, 2011, p.
19)
Podemos inferir que a análise fenomenológica de Merleau Ponty (1980) sobre a
etnologia, dialoga, sob certo ponto de vista, com a experiência fotográfica descrita por
Clifford (2011).
A etnologia não é uma especialidade definida por um objeto particular, mas sim a
maneira de pensar que se impõe quando o objeto é “outro” e que exige nossa própria
transformação. Trata-se de aprender a olhar o que é nosso como se fôssemos
estrangeiros, e como se fosse nosso o que é estrangeiro (MERLEAU PONTY, 1980,
p. 199)
7
A câmera, como um instrumento de trabalho de campo da antropologia, tem como principal papel
desempenhado a criação através de um método estabelecido como observação participante e desse modo
se contrapõe à transcrição e à tradução da experiência etnográfica pautadas por um estatuto literário. A
observação participante emerge como uma norma de pesquisa no século XX na qual um trabalho de
campo bem sucedido motivava uma variedade de interações do observador e acentuada relevância da
linguagem visual. Ver ‘’A experiência etnográfica, antropologia e literatura no século XX’’ de James Clifford.
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56
O
que
Eu
vejo
Rio vermelho, 2 de fevereiro de 2014. Salvador, Bahia.
O
que
fica
em
segredo
O
me
olha
Festa de São João, junho de 2012. Serra das Araras, Minas Gerais.
56
que
57
Talvez a fotografia de retrato, pelo princípio de alteridade que possui, consiga
expressar da maneira mais contundente essa relação com a etnologia, pois ambas dividem um
mesmo objetivo de conhecimento; o estudo do homem e os fenômenos que o envolvem. Ao
contrário do que se diz comumente sobre esse tipo de prática fotográfica; não se tira o retrato
de alguém, o fotógrafo recebe a fotografia do fotografado e para além de regras técnicas de
um estatuto desta prática, o mais importante é conseguir, através da imagem, expressar o
sentimento que esta sendo compartilhado entre os dois – um segredo inefável, indescritível. O
retrato, a partir desta perspectiva, pressupõe uma relação de interação e dependência – o “eu”
fotógrafo só pode existir na medida que esta em contato com o “outro” fotografado. Portanto,
no intuito de revelar “algo do outro”, acaba também por revelar a si mesmo.
4.3 ENTRE RIOS
Guilherme Staine Prado, Uma mulher, junho de 2013. Cais, Oriximiná.
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58
Guilherme Staine Prado, Sem título, junho de 2013. Oriximiná.
Guilherme Staine Prado, Sem título, junho de 2013. Tapajem, Oriximiná.
58
59
Guilherme Staine Prado, Sem título, junho de 2013. Cais, Oriximiná.
Guilherme Staine Prado, Sem título, junho de 2013. Paraná do Abuí, Oriximiná.
59
60
Guilherme Staine Prado, Sem título, junho de 2012. Chapada Gaúcha.
Guilherme Staine Prado, Sem título, junho de 2012. Chapada Gaúcha.
60
61
Guilherme Staine Prado, Sem título, junho de 2013. Tapajem, Oriximiná.
61
62
Guilherme Staine Prado, Sem título, junho de 2012. Chapada Gaúcha.
Guilherme Staine Prado, Sem título, junho de 2013. Rio Trombetas, Oriximiná.
62
63
CONCLUSÃO
Concluo que devido a abrangência interdisciplinar do tema e o formato em que a
pesquisa foi proposta, as questões discutidas no trabalho são de caráter enunciante; o campo da
visão é vasto e pode ser estudado sob diversas perspectivas de conhecimento, em que cada qual
apresenta uma complexidade própria de reflexão. Investigar a dialética entre essas intersecções e
incorporar a reflexão teórica na prática da fotografia é o que fez, para mim, o tema ser tão
fascinante. O contato entre as diferentes concepções do saber pode produzir novos pontos de
vista que, por vezes, ao procurarem por respostas, fazem surgir novas perguntas. Além disso, as
relações discursivas, sociais, tecnológicas e institucionais que formam o sistema heterogêneo –
no qual o observador é causa e efeito, estão em contínua transformação e sendo assim, acredito
que a pesquisa se encontra em terreno fértil para posteriormente ser ampliada.
A prática de extensão que vivenciei pela universidade tem grande parte na motivação
das discussões que o trabalho contempla e por isso ressalto sobre sua importância na capacidade
que possui de despertar os pensamentos à luz da prática. Não me refiro somente ao curso de
Cinema, mas principalmente à ele. Se estamos a formar imagens complexas e concretas uns dos
outros, que imagens então serão essas? Como contá-las?
Os apontamentos da pesquisa relevam a importância que os estudos sobre a visão e o
ato de ver possuem por estarem ligados permanentemente à questão do conhecimento. Portanto,
para que o leitor não se confunda ou se arrisque a generalizações, é necessário fazer uma
consideração, segundo a perspectiva da filosofia, sobre a diferença entre o eu e o sujeito,
lembrando que a descrição sobre o sujeito é dada ao final do capítulo 2. Cada pessoa é um olhar
lançado no mundo, e essa peculiaridade atribui a cada corpo, consequentemente, uma expressão
única, inigualável – uma maneira própria de perceber, imaginar, lembrar, olhar, agir, desejar,
amar. Cada corpo então possui uma vivência individual que ressalta sua originalidade como
vivente através de um sentimento de identidade própria. Talvez daí a curiosidade de se olhar (ou
apreender) o mundo com os olhos do outro. Desse modo acredito que a prática da fotografia
pode ser uma maneira de exaltar, conforme a reflexão do trabalho, o modo de visão do olhar,
que se expressa pela interioridade do observador que busca sua interação afetiva acerca do que
procura representar; o eu esta relacionado ao olhar. No entanto, essa maneira de enxergar as
coisas se encontra debilitada pelas consequências da modernidade que produziram espaços
sobrecarregados onde a sensibilidade é cada vez mais irritável.
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64
Refletindo sobre o modo de visão do ver e como este pressupõe uma confiabilidade do
sujeito em “algo maior” ou “algo de outro” na sua interação, acredito que por mais contraditório
que possa parecer, a crença do homem moderno esta fundamentada na razão – a crença na razão.
A perspectiva racionalista, do materialismo, da matemática, da máquina, direciona o ser ao
individualismo e ao consumismo. Diante da pesquisa é possível constatar sobre a influência do
racionalismo moderno na revolução da experiência visual que se cumpre em conjunto a uma
reconstrução do sujeito como observador. A acumulação de conhecimento por diversas áreas do
saber foi fundamental no desenvolvimento de técnicas disciplinares que definiram estatísticas de
comportamento e normas quantitativas partindo da análise do observador como um dado, parte
integrante de um fluxo de trocas, um elemento padronizável, um corpo que deve ser
administrável e apto às tarefas do consumo e suas demandas.
A visualidade incorporada aos imperativos da modernização capitalista segundo novos
modos de circulação, produção, consumo e racionalização, dá forma a um novo tipo de
observador e se conecta diretamente a ideia de controle através do corpo. Modernizar o sujeito
significou então adequá-lo à pluralidade de discursos dessas transformações sociais e
econômicas através de uma nova valoração da experiência visual que ao romper com a visão
clássica, caminha cada vez mais em direção a uma visão subjetiva, que se afasta do tato, do
palpável. A temporalidade nos estudos da percepção visual é fundamental para entender esse
deslocamento. Se ao passo que na modernidade do início do século XIX o compasso do tempo
era marcado pelo trem, pelo telégrafo, pelas cartas – qual a temporalidade do campo de
observação do sujeito na contemporaneidade – já reconfigurada por novos elementos? A
pesquisa, nesse sentido, me proporcionou um ponto de vista sobre a relação do observador e os
processos de modernização que vem a servir de base para a reflexão sobre os caminhos da
imagem e da observação na pós-modernidade – que acusa os efeitos do racionalismo.
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