Paulo Roberto Gonçalves-Segundo
Célia Regina Araes
Claudia Castanheira
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Discurso e
poder:
teoria e análise
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Programa de Pós-Graduação em Filologia e Língua
Portuguesa
Coordenadora: Profa. Dra. Maria Clara Paixão de Sousa
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Discurso e poder: teoria e análise
Paulo Roberto Gonçalves-Segundo
Célia Regina Araes
Claudia Castanheira
Gabriel Isola-Lanzoni
Natalia Penitente
Winola Weiss
(organizadores)
Discurso e poder:
teoria e análise
FFLCH/USP
São Paulo, 2020
DOI: 10.11606/9786587621241
Copyright © 2020 FFLCH/USP
Catalogação na Publicação (CIP)
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D611
Discurso e poder: teoria e análise [recurso eletrônico] / Paulo Roberto
Gonçalves-Segundo; Célia Regina Araes; Claudia Castanheira; Gabriel
Isola-Lanzoni; Natalia Penitente; Winola Weiss (organizadores). -- São
Paulo: FFLCH/USP, 2020.
12.106 Kb ; PDF.
ISBN 978-65-87621-24-1
DOI 10.11606/9786587621241
1. Análise do discurso. 2. Linguística aplicada. 3. Ensino e aprendizagem
4. Língua Portuguesa – aspectos gramaticais. 5. Poder. I. GonçalvesSegundo, Paulo Roberto. II. Araes, Célia Regina. III. Castanheira, Claudia.
IV. Isola-Lanzoni, Gabriel. V. Penitente, Natalia. VI. Weiss, Winola
CDD 401.41
Serviços de Editoração e Distribuição
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Célia Regina Araes
Claudia Castanheira
Gabriel Isola-Lanzoni
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Projeto Gráfico de Capa
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Foto de fundo: Pinacoteca de São Paulo.
Acervo pessoal do capista.
Projeto Gráfico de Diagramação
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que citada a fonte e a autoria e respeitando a Licença Creative Commons indicada.
Os artigos publicados nesta obra são de inteira responsabilidade de seus autores.
4
Sumário
SUMÁRIO
Apresentação ................................................................................................. 6
Sobre os/as organizadores/as .................................................................... 11
Sobre os/as autores/as ................................................................................ 13
O simbolismo do corpo grotesco em Game of Thrones ......................... 19
Ana Carolina Pais
A (in)conscientização da preservação ambiental: análise avaliativa de
textos jornalísticos sobre o Dia da Terra ........................................... 33
Célia Regina Araes
Discurso em Hannah Arendt: sobre o sentido político de falar sobre o
mundo e narrar uma história .............................................................. 52
Crislei de Oliveira Custódio
Expressões idiomáticas: contribuições e implicações do contexto
discursivo para a forma e construção do sentido ............................ 67
Fabiane de Oliveira Alves
Analogia e dissenso no debate parlamentar: o caso das comparações
entre grupos estigmatizados .............................................................. 84
Filipe Mantovani Ferreira
O discurso relatado: entre seus potenciais linguísticos e os livros
didáticos ............................................................................................. 100
Júlio César da Silva Mendes
No movimento dos sentidos: construções interdiscursivas
em Mafalda ......................................................................................... 124
Kaline Ferreira Oliveira
A escrita de poemas e o aluno agente: contribuições para o diálogo 136
Luciana Taraborelli
Perspectiva conceitual e prática do ensino de sujeito gramatical em
livros didáticos ................................................................................... 146
Murilo de Castro Teves
Discursos velados, vozes silenciadas: análise de notícias sobre
situação de rua ................................................................................... 171
Natalia Penitente
Sumário | 2020
5
Discurso e poder: teoria e análise
Análise da desclassificação repreensiva por meio de
uma propaganda ............................................................................... 194
Ramiro Carlos Humberto Caggiano Blanco
As metáforas como recurso para resgatar memórias de infância de
Cecília Meireles .................................................................................. 210
Rodrigo Schulz Ferreira
Adjunção adnominal no Ensino Básico: alternativas para um ensino
orientado à significação .................................................................... 224
Sabrina Nascimento de Alencar
Vivências Discursivas: uma forma de ver e estar no mundo.................. 240
Samara Gabriela Leal França
O Sistema da Avaliatividade como ferramenta de análise para a
compreensão da Responsividade Ativa em Cartas do Leitor sobre o
tema Reforma da Previdência .......................................................... 275
Sandra Gomes Rasquel
Na sala de aula, de Portas Abertas, pode entrar: uma análise discursiva
de imagens de língua em materiais de ensino para refugiados e no
discurso de alunos imigrantes .......................................................... 292
Selma Regina Olla Paes de Almeida
Discurso, poder e educação: imagens da língua, de seus falantes e de
seus professores ................................................................................ 308
Valdir Heitor Barzotto
Todas, todos, todxs: a conceptualização a partir do gênero gramatical
em português brasileiro .................................................................... 320
Vivian de Ulhôa Cintra Bernardo
Construção discursiva de identidades socioculturais dos líderes de
iniciativas do ensino de português nas igrejas evangélicas chinesas
em São Paulo...................................................................................... 335
Xiang Zhang
A construção da imagem feminina nos enunciados exortativos e
assertivos nos livros didáticos de PLE .............................................. 345
Yedda Alves de Oliveira Caggiano Blanco
Sumário | 2020
6
Apresentação
Apresentação
Gabriel Isola-Lanzoni
[email protected]
A relação entre discurso e poder é objeto de reflexão por diversas abordagens.
Proporcionar o diálogo entre essas diferentes perspectivas teóricas, de modo a
expandir as discussões e aprofundar a compreensão dos processos de polarização na
contemporaneidade, o que inclui examinar as práticas e as articulações que estruturam
hegemonias, bem como aquelas que propõem resistências, foi o objetivo da décima
primeira edição do Encontro de Pós-Graduandos em Estudos Discursivos da
Universidade de São Paulo (XI EPED).
O livro Discurso e poder: teoria e análise reúne vinte capítulos resultantes das
apresentações realizadas no XI EPED. Os capítulos foram produzidos por
pesquisadoras/es de todos os níveis acadêmicos – Iniciação Científica, Mestrado,
Doutorado, Pós-Doutorado –, bem como por professoras/es convidadas/os que
proferiram falas nos encontros, seja em mesas-redondas, seja em conferências, como
são os casos dos textos do Prof. Dr. Valdir Heitor Barzotto e da Profa. Dra. Crislei de
Oliveira Custódio. Destacamos que os textos submetidos para integrar o livro passam
por avaliação cega por pares, de forma que apenas os textos aprovados por dois
membros da comissão científica, composta por doutoras e doutores de diversas
instituições do país, são, de fato, publicados. Com esse procedimento, temos
conseguido garantir a qualidade das publicações ligadas ao evento, além de
propiciarmos aos participantes – em especial, aos/às estudantes de Iniciação Científica,
de Mestrado e de Doutorado – a oportunidade formativa de receber avaliações de
artigos, de revisar o texto conforme as orientações de pareceristas, de defender seus
posicionamentos, de repensar abordagens sobre o objeto, dentre outras.
Com essa proposta, buscamos integrar em um único espaço distintos olhares
epistemológicos, distintas metodologias, assim como variados objetos de análise,
ancorados em distintas práticas sociais situadas historicamente, tais como a escolar, a
artística e a midiática (tradicional ou digital). O contato com distintas abordagens tem
o potencial de promover uma formação mais ampla, permitindo às/aos leitoras/es uma
postura de reconhecimento da pertinência e da relevância das variadas perspectivas.
O texto que abre o volume é intitulado “O simbolismo do corpo grotesco em
Game of Thrones”. A autora, Ana Carolina Pais, propõe uma reflexão sobre como o
simbolismo do corpo, tanto o feminino, quanto o masculino, é representado na série
televisiva. Para isso, retoma as noções de grotesco e de carnavalização do arcabouço
teórico da Teoria Dialógica da Linguagem, cujo expoente máximo é Mikhail Bakhtin.
No capítulo seguinte, Célia Regina Araes se volta a dois textos jornalísticos, dos
jornais Folha de São Paulo e El País, que tematizam o Dia da Terra. Partindo do Sistema
de Avaliatividade da Linguística Sistêmico-Funcional, bem como da abordagem
teórica da Ecolinguistica e da Análise Crítica do Discurso, a autora busca compreender
ISOLA-LANZONI, Gabriel | Apresentação | 2020 | p. 06-10
7
Discurso e poder: teoria e análise
as representações sociais das indústrias poluidoras em relação à conscientização
ambiental como prática social. O capítulo é intitulado “A (in)conscientização da
preservação ambiental: análise avaliativa de textos jornalísticos sobre o Dia da Terra”.
Crislei de Oliveiro Custódio, no capítulo seguinte, denominado “Discurso em
Hannah Arendt: sobre o sentido político de falar sobre o mundo e narrar uma história”,
explora o tema do discurso em Hannah Arendt. O discurso, nessa perspectiva, é
entendido como par indissociável da ação, que revela quem alguém é; em outros
termos, revela sua singularidade e unicidade, que são espaciais e temporais.
O tema das expressões idiomáticas é trazido por Fabiana de Oliveira Alves em
“Expressões idiomáticas: contribuições e implicações do contexto discursivo para a
forma e construção do sentido”. A autora investiga a construção do sentido das
expressões idiomáticas no contexto discursivo, buscando analisar as implicações
decorrentes do uso.
O capítulo seguinte, “Analogia e dissenso no debate parlamentar: o caso das
comparações entre grupos estigmatizados”, Filipe Mantovani Ferreira discute o caráter
argumentativo das analogias e examina seu potencial para desvelar as teses
advogadas por debatedores. O autor parte dos estudos sobre argumentação de base
retórica, sobre o processamento cognitivo da analogia e sobre o discurso.
Trazendo discussões sobre ensino-aprendizagem para o livro, Júlio César da
Silva Mendes procede a um diagnóstico do discurso relatado nas sequências didáticas
dos livros aprovados pelo PNLD 2017 (Anos Finais do Ensino Fundamental). O
capítulo, denominado “O discurso relatado: entre seus potenciais linguísticos e os
livros didáticos”, revela um quadro de predomínio de abordagens focadas na
dimensão estrutural do discurso relatado, apagando o potencial semânticopragmático-discursivo do fenômeno, o que indicia um tratamento de ordem apenas
secundária dos efeitos de sentido por ele produzidos. Para a discussão, o autor se vale
da Linguística Sistêmico-Funcional e da Linguística Cognitiva.
Fazendo jus à pluralidade de abordagens nos estudos discursivos, Kaline
Ferreira Oliveira, no capítulo “No movimento dos sentidos: construções interdiscursiva
em Mafalda”, baseia-se no arcabouço teórico da Análise do Discurso de linha francesa
para compreender de que forma os movimentos significativos propiciam um link
interdiscursivo entre as tiras de Mafalda e o atual contexto sócio-político-ideológico
brasileiro.
Luciana Taraborelli, no capítulo “A escrita de poemas e o aluno agente:
contribuições para o diálogo”, volta-se ao ensino-aprendizagem, buscando apresentar
as contribuições do gênero poema no processo de aperfeiçoamento da leitura e da
escrita e na instrumentalização do aluno no uso de ferramentas linguísticas para
ordenar o próprio discurso e para comunicar-se. A autora fundamenta-se nos
pressupostos de Bakhtin sobre gênero discursivo.
Na esteira do ensino, Murilo de Castro Teves discute os resultados obtidos pela
análise do enquadramento da categoria gramatical sujeito nos livros didáticos
aprovados no PNLD 2017. No capítulo “Perspectiva conceitual e prática de ensino de
sujeito gramatical em livros didáticos”, o autor foca as dimensões conceitual e prática,
ISOLA-LANZONI, Gabriel | Apresentação | 2020 | p. 06-10
8
Apresentação
depreendendo tanto uma tendência de restrição de sujeito a poucos critérios que não
contemplariam a complexidade da categoria, quanto um número exacerbado de
exercícios que não fornecem oportunidades para reflexão sobre a significação da
categoria.
No capítulo seguinte, “Discursos velados, vozes silenciadas: análise de notícias
sobre situação de rua”, Natália Penitente analisa as correlações entre as práticas sociais
e as perspectivas ideológicas em notícias referentes às pessoas em situação de rua. A
autora parte da Análise de Discurso Crítica para identificar padrões de representação
desses atores sociais na mídia impressa mineira.
Ainda na linha da Análise Crítica do Discurso, com base em Van Dijk, Ramiro
Carlos Humberto Caggiano Blanco discute, em “Análise da desclassificação
repreensiva por meio de uma propaganda”, estratégias discursivas utilizadas por um
grupo de poder econômico para manipular as crenças e atitudes de um amplo setor
da sociedade brasileira no contexto de protestos sobre a realização da copa do mundo
de futebol de 2014. O autor debruça-se sobre textos publicitários e identifica
estratégias linguísticas e imagéticas na desqualificação e ridicularização de um setor
relevante da sociedade brasileira.
No capítulo que segue, Rodrigo Schulz Ferreira analisa a obra Olhinho de Gato,
de Cecília Meireles, sob a ótica dos estudos de metáfora. As análises, que constituem
passagens de infância, levam o autor a evidenciar como o recurso da metáfora
conduziria o leitor à reflexão acerca da real mensagem pretendida pela autora: a
efemeridade da vida. O capítulo é intitulado “As metáforas como recurso para resgatar
memórias de infâncias de Cecília Meireles”.
Sabrina Nascimento de Alencar também se volta a questões de ensino ao
apresentar uma nova proposta para o ensino de adjuntos adnominais na Educação
Básica orientada à textualidade e à significação, no capítulo “Adjunção adnominal no
Ensino Básico: alternativas para um ensino orientado à significação”. A proposta é
pautada na perspectiva da Linguística Cognitiva, no que se refere à Ancoragem
Nominal, e na Linguística Texto, no que concerne à Referenciação.
No capítulo seguinte, “Vivências Discursivas: uma forma de ver e estar no
mundo”, Samara Gabriela Leal França discute as contribuições do gênero discursivo
memórias literárias para a melhoria da leitura e da escrita do aluno-autor. Partindo da
pedagogia da autonomia de Paulo Freire, bem como da perspectiva da literatura de
Petit e de elementos composicionais do gênero de acordo com Bosi e Marcuschi, a
autora aponta para a necessidade de novas perspectivas de leitura e escrita escolar,
nas quais se respeitaria a subjetividade, a liberdade, a autonomia e a emancipação dos
sujeitos.
Sandra Gomes Rasquel, no capítulo “O Sistema da Avaliatividade como
ferramenta de análise para a compreensão da Responsividade Ativa em Cartas do
Leitor sobre o tema Reforma da Previdência”, parte da Linguística Sistêmico-Funcional
para a investigação da manifestação da responsividade do leitor no que tange a
Reforma da Previdência. Analisando 10 cartas do leitor de jornais paulistas, a autora
identifica tanto a produtividade do Sistema de Avaliatividade para a investigação
ISOLA-LANZONI, Gabriel | Apresentação | 2020 | p. 06-10
9
Discurso e poder: teoria e análise
pretendida, quanto o predomínio de manifestação do Sistema de Engajamento, o que
sugere um desalinhamento entre os discursos de leitor e o do governo, prevalecendo
uma atitude de não solidarização.
Continuando as discussões sobre ensino, Selma Regina O. P. de Almeida
analisa as imagens de língua portuguesa presentes nos discursos de alunos
estrangeiros e em materiais didáticos de ensino de Língua Portuguesa no capítulo “Na
sala de aula, de Portas Abertas, pode entrar: uma análise discursiva de imagens de
língua em materiais de ensino para refugiados e no discurso de alunos imigrantes”. A
autora identifica que as imagens do Português como capacitação linguística e como
instrumento de emancipação consistem nas mais salientes nos discursos analisados.
Articulando a educação a discurso e poder, Valdir Heitor Barzotto, no capítulo
“Discurso, poder e educação: imagens da língua, de seus falantes e de seus
professores”, analisa comentários feitos em diferentes textos a respeito de línguas ou
variedades linguísticas e de seu ensino, de seus falantes e dos professores. O autor
objetivou compreender a que direções os enunciados buscam encaminhar os leitores,
concluindo que o movimento de construção de imagens negativas estaria ligado à
pouca consideração que se tem da produção das comunidades mais pobres. Ao final,
sugere alternativas de formação de professores.
No capítulo “Todas, todos, todxs: a conceptualização a partir do gênero
gramatical em português brasileiro”, Vivian de Ulhôa Cintra Bernardo trata da
discussão sobre a relação entre gênero social e gênero gramatical na construção de
referentes em Português Brasileiro. Baseando-se na Linguística Cognitiva, a autora
apresenta uma proposta de compreensão da marcação de gêneros em palavras, seja
feminino, seja masculino, ou mesmo de forma neutra, que se ancora nos estudos de
conceptualização metonímica e de metáfora deliberada, desenvolvendo hipóteses
explicativas para as questões salientadas.
Também preocupado com identidades socioculturais, Xiang Zhang, no
capítulo “Construção discursiva de identidades socioculturais dos líderes de iniciativas
do ensino de português nas igrejas evangélicas chinesas em São Paulo”, busca
compreender os posicionamentos dos líderes de igrejas evangélicas que se propõem
ao ensino de língua portuguesa para imigrantes chineses a partir de pistas de
contextualização, de forma a refletir sobre a construção de identidades socioculturais.
O autor identifica que esses líderes se posicionam como atores sociais preocupados
com uma prática solidária e de letramento religioso, enquanto a língua consistiria no
espaço de interação, integração e acolhimento.
Fechando o volume, Yedda Alves de Oliveira Caggiano Blanco investiga de que
modo atos de fala diretivos e assertivos podem ser utilizados na construção de
imagens de mulheres em interações sociais representadas nos manuais de PLE. A
autora investiga, nos manuais, situações de pedidos, mais especificamente, de serviços
e consertos gerais, identificando que vozes femininas são, muitas vezes, retratadas de
forma estereotipada ou falaz. O capítulo é intitulado “A construção da imagem
feminina nos enunciados exortativos e assertivos nos livros didáticos de PLE”.
ISOLA-LANZONI, Gabriel | Apresentação | 2020 | p. 06-10
10
Apresentação
Feito esse panorama, convidamos todas e todos a explorarem as perspectivas
e as propostas desenvolvidas nos vinte capítulos reunidos neste livro.
Desejamos a todas e a todos uma ótima e produtiva leitura!
ISOLA-LANZONI, Gabriel | Apresentação | 2020 | p. 06-10
11
Discurso e poder: teoria e análise
Sobre os/as organizadores/as
Paulo Roberto Gonçalves-Segundo
Paulo Roberto Gonçalves-Segundo é docente do Programa de Pós-Graduação em
Filologia e Língua Portuguesa do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. É líder
do 'Núcleo de Estudos em Análise Crítica do Discurso (NEAC-USP)', membro dos grupos
de pesquisa 'Estudos sobre Linguagem, Argumentação e Discurso (ELAD)' e 'Sistêmica,
Ambientes e Linguagens (SAL)' e do GT da ANPOLL 'Argumentação'. É editor da Revista
Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação (EID&A) e membro da
comissão permanente de organização do Congresso Internacional de Estudos do Discurso
(CIED). Participou de projetos interinstitucionais relevantes, como o Projeto Histórica do
Português Brasileiro e Projeto História do Português Paulista, e foi coordenador do
Programa de Pós-Graduação em Filologia e Língua Portuguesa entre 2017 e 2019.
E-mail:
[email protected]
Célia Regina Araes
Célia Regina Araes é doutoranda pelo Programa da Pós-Graduação em Filologia e Língua
Portuguesa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo (FFLCH/USP) sob orientação da Profa. Dra. Maria Lúcia da Cunha Victório de Oliveira
Andrade. Fez mestrado na mesma Instituição e atuou como professora na Educação Básica
e Ensino Superior por 26 anos. Participa do grupo de pesquisa NEAC (Núcleo de Estudos
da Análise Crítica). No momento, atua como facilitadora em Educação a Distância na
Universidade Virtual do Estado de São Paulo e sua pesquisa foca a análise crítica de
divulgação midiática sobre o meio ambiente e ecologia.
E-mail:
[email protected]
Claudia Castanheira
Claudia Castanheira é mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Filologia e Língua
Portuguesa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo (FFLCH/USP) sob orientação Dr. Paulo Roberto Gonçalves-Segundo. É bacharela e
licenciada em letras pela mesma Universidade, tendo feito dupla habilitação Portuguêsfrancês. É membra do Núcleo de Estudos em Análise Crítica do Discurso (NEAC-USP).
Atualmente, realiza projetos e pesquisas nas áreas de Análise Crítica do Discurso e
Linguística Sistêmico-Funcional, com ênfase em estudos sobre desenvolvimento
sustentável e questões socioambientais.
E-mail:
[email protected]
Sobre os/as organizadores/as | 2020
12
Sobre os/as organizadores/as
Gabriel Isola-Lanzoni
Gabriel Isola-Lanzoni é doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Filologia e
Língua Portuguesa da Universidade de São Paulo (PPGFLP/USP), sob orientação do Prof.
Dr. Paulo Roberto Gonçalves-Segundo. É mestre pelo mesmo programa, tendo realizado
pesquisa sobre multimodalidade em mídias digitais, a partir da Linguística SistêmicoFuncional, com a proposição de um sistema de COESÃO VERBO-IMAGÉTICA. Atualmente,
investiga argumentação multimodal. Integra os grupos de pesquisa 'Sistêmica, Ambientes
e Linguagens (SAL)' e 'Estudos de Linguagem, Argumentação e Discurso (ELAD)'. Atua
como diagramador de livros acadêmicos e de relatórios médicos para empresas de
tradução.
E-mail:
[email protected]
Natalia Penitente
Natalia Penitente Andrade é mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Filologia e
Língua Portuguesa (FLP), na Universidade de São Paulo (USP), sob a orientação do Prof.
Dr. Valdir Heitor Barzotto. A pesquisa é financiada pelo Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e também foi bolsista de Iniciação
Científica pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia - (FAPESB). Integra o
Grupo de Estudos e Pesquisa Produção Escrita e Psicanálise – (GEPPEP). Atualmente, é
representante discente do Programa de Pós-Graduação em Filologia e Língua Portuguesa
(FLP). Tem ministrado aulas de Língua Portuguesa para Refugiados como professora
voluntária na Bibli-ASPA por meio do Projeto Aprender na Comunidade; também é
professora voluntária de produção textual no Cursinho Pré-vestibular Popular Florescer, da
Universidade de São Paulo (USP).
E-mail:
[email protected]
Winola Weiss
Winola Weiss Pires Cunha é bacharela e licenciada em Letras - Português e Linguística pela
Universidade de São Paulo. Atualmente, é mestranda pelo Programa de Pós-Graduação
em Filologia e Língua Portuguesa (PPGFLP/USP) na área de Linguística Textual e Teorias
do Discurso no Português, sob a orientação do Prof. Dr. Paulo Roberto GonçalvesSegundo. Em sua pesquisa, trabalha com a Análise Crítica do Discurso, Estudos de
Argumentação e Linguística Cognitiva, com ênfase em questões de gênero, raça,
sexualidade e Teoria Feminista. Além de pesquisadora, atua também como professora no
Ensino Básico, em cursinhos populares e em cursos de português brasileiro para
imigrantes e refugiadas/os.
E-mail:
[email protected]
Sobre os/as organizadores/as | 2020
13
Discurso e poder: teoria e análise
Sobre os/as autores/as
Ana Carolina Pais
Ana Carolina Pais é mestre em Letras pelo Programa de Pós-Graduação Filologia e Língua
Portuguesa da Universidade de São Paulo (PPGFLP/USP), sob a orientação da Profa. Dra.
Sheila Vieira de Camargo Grillo. Possui extensão em Estudos das Literaturas Africanas de
Língua Portuguesa e especialização em Ensino de Língua Inglesa e Uso de Novas
Tecnologias. Professora de Língua Inglesa do Ensino Fundamental e Médio, de escola
pública do estado de São Paulo. Integrante do Grupo de Pesquisa Diálogo (USP/CNPq).
E-mail:
[email protected]
Célia Regina Araes
Célia Regina Araes é doutoranda em Letras pelo Programa da Pós-Graduação em Filologia
e Língua Portuguesa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo (FFLCH/USP) sob orientação da Profa. Dra. Maria Lúcia da
Cunha Victório de Oliveira Andrade. Fez mestrado na mesma Instituição e atuou como
professora na Educação Básica e Ensino Superior por 26 anos. Participa do grupo de
pesquisa NEAC (Núcleo de Estudos da Análise Crítica). No momento, atua como
facilitadora em Educação a Distância na Universidade Virtual do Estado de São Paulo e sua
pesquisa foca a análise crítica de divulgação midiática sobre o meio ambiente e ecologia.
E-mail:
[email protected]
Crislei de Oliveira Custódio
Crislei de Oliveira Custódio é doutora em Educação pela Faculdade de Educação da USP
e Professora Titular do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade
Ibirapuera. Membro do Grupo de Estudos "Violência em tempos sombrios" do Núcleo de
Estudos sobre a Violência da USP.
E-mail:
[email protected]
Fabiane de Oliveira Alves
Fabiane de Oliveira Alves é doutoranda do Programa de Filologia e Língua Portuguesa da
Universidade de São Paulo (USP), na linha de pesquisa Linguística Textual e Teorias do
Discurso no Português, sob orientação da Profª Drª Maria Lúcia da Cunha Victório de
Oliveira Andrade. É mestra em Letras pela USP, sob orientação do Prof. Dr. Hudinilson
Urbano, pelo mesmo programa. Atua na Universidade Federal do ABC (UFABC), como
Técnica em Assuntos Educacionais na área de Letras. Na mesma universidade foi
professora e coordenadora pedagógica do curso de Língua Portuguesa para estrangeiros.
E-mail:
[email protected]
Sobre os/as autores/as | 2020
14
Sobre os/as autores/as
Filipe Mantovani Ferreira
Filipe Mantovani Ferreira é mestre e doutor em Letras pelo Programa de Pós-Graduação
em Filologia e Língua Portuguesa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo (PPGFLP/FFLCH/USP). É licenciado em Português e Inglês
pela mesma universidade. Atualmente, é professor do Ensino Básico, Técnico e
Tecnológico do Instituto Federal de São Paulo (IFSP) – câmpus Salto, onde coordena o
curso de Licenciatura em Letras – Português. Desenvolve pesquisa nas áreas de Estudos
Discursivos e Argumentação, tendo, nos últimos anos, se dedicado principalmente ao
estudo da argumentação por analogia em debates parlamentares.
E-mail:
[email protected]
Júlio César da Silva Mendes
Júlio César da Silva Mendes é graduando em Letras, com dupla habilitação
Português/Linguística, pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo (FFLCH/USP). Seu trabalho, a nível de iniciação científica, é
orientado pelo Prof. Dr. Paulo Roberto Gonçalves-Segundo e está alinhado ao Grupo de
Ensino-Aprendizagem de Gramática, Argumentação e Multimodalidade. Este pesquisador
tem participado de projetos que unem língua e linguagem às áreas de ensino, filologia e
tecnologia.
E-mail:
[email protected]
Kaline Ferreira Oliveira
Kaline Ferreira Oliveira é mestra em Estudo de Linguagens pelo Programa de PósGraduação em Estudo de Linguagens da Universidade do Estado da Bahia (PPGEL/UNEB),
sob orientação do Prof. Dr. André Luiz Gaspari Madureira. É membro dos grupos de
pesquisa ALÁFIA (Cartografias Culturais e Multilinguagens) e Edição e Estudo de Textos,
ambos mantidos pela UNEB.
E-mail:
[email protected]
Luciana Taraborelli
Luciana Taraborelli, mestra pelo programa Mestrado Profissional em Letras - PROFLETRAS
- Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas –USP, orientada pela Professora Dra.
Norma Seltzer Goldstein. Atualmente trabalha com linguagem literária e ensino de língua
materna; práticas escolares voltadas ao texto literário, em particular o gênero poema,
explorando seus vários aspectos e os efeitos de sentido que produzem. Atua também
como professora da educação básica do estado de São Paulo.
E-mail:
[email protected]
Sobre os/as autores/as | 2020
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Discurso e poder: teoria e análise
Murilo de Castro Teves
Murilo de Castro Teves é discente do curso de graduação de Letras, com dupla habilitação
Português-Francês, da Universidade de São Paulo (USP). Realizou pesquisa de Iniciação
Científica, financiada pelo Programa Unificado de Bolsas da USP (PUB-USP), sob a
orientação do Prof. Dr. Paulo Roberto Gonçalves Segundo. Integra o projeto de Gramática,
Cognição e Discurso, na vertente voltada ao ensino-aprendizagem de gramática.
Participou como professor voluntário de Redação no cursinho Pré-vestibular Popular
Florescer, da Universidade de São Paulo (USP), e atualmente é professor voluntário de
Literatura no cursinho popular Juntos Somos Mais Fortes.
E-mail:
[email protected]
Natalia Penitente
Natalia Penitente Andrade é mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Filologia e
Língua Portuguesa (FLP), na Universidade de São Paulo (USP), sob a orientação do Prof.
Dr. Valdir Heitor Barzotto. A pesquisa é financiada pelo Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e também foi bolsista de Iniciação
Científica pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia - (FAPESB). Integra o
Grupo de Estudos e Pesquisa Produção Escrita e Psicanálise – (GEPPEP). Atualmente, é
representante discente do Programa de Pós-Graduação em Filologia e Língua Portuguesa
(FLP). Tem ministrado aulas de Língua Portuguesa para Refugiados como professora
voluntária na Bibli-ASPA por meio do Projeto Aprender na Comunidade; também é
professora voluntária de produção textual no Cursinho Pré-vestibular Popular Florescer, da
Universidade de São Paulo (USP).
E-mail:
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Ramiro Carlos Humberto Caggiano Blanco
Ramiro Carlos Humberto Caggiano Blanco é doutorando pelo Programa de PósGraduação em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-Americana, da
Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), sob a orientação da professora Dra. María Zulma
Moriondo Kulikowski. Bolsista CNPq, Mestre em Letras pelo mesmo Programa. Tem cursos
de especialização em "Ensino de Espanhol para Brasileiros", pela PUC/SP e em "Educação,
imagens e meios de comunicação", pela FLACSO/ Argentina (Facultad Latinoamericana
de Ciencias Sociales). Autor do livro "Gramática de la lengua española: usos, conceptos y
ejercicios" da editora Scipione. Coautor do livro "Prefiero Español" da editora Santillana.
Criador do site de ensino de espanhol "Conexión Español". Participa dos grupos de
pesquisa “Pragmática (Inter)linguística, cross-cultural e intercultural” (USP) e do grupo
"Es.Por.Atenuação/Brasil" (Universidad de Valencia/USP).
E-mail:
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Sobre os/as autores/as | 2020
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Sobre os/as autores/as
Rodrigo Schulz Ferreira
Rodrigo Schulz Ferreira é bacharel em Letras, Tradutor e Intérprete (UNIBERO), tendo
licenciatura (português/inglês) pela mesma instituição. Especialista em Psicopedagogia
Educacional (Anhembi Morumbi) e em Gramática e Texto da Língua Portuguesa e
Docência do Ensino Superior (UNINOVE), licenciado em Pedagogia (UNINOVE). É mestre
pelo Programa de Filologia e Língua Portuguesa, da Universidade de São Paulo
(DLCV/USP). Professor efetivo de língua inglesa na Prefeitura Municipal de São Paulo
desde 2013. Foi professor efetivo de língua inglesa e língua portuguesa na rede Estadual
de São Paulo. Lecionou na rede particular e em escolas de idiomas.
E-mail:
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Sabrina Nascimento de Alencar
Sabrina Nascimento de Alencar é graduanda em Letras, com dupla habilitação
Português/Russo pela Universidade de São Paulo (USP). Desenvolveu pesquisa de
Iniciação Científica, financiada pelo Programa Unificado de Bolsas da USP (PUB), sob
orientação do Prof. Dr. Paulo Roberto Gonçalves-Segundo, como integrante do projeto
“Ensino de gramática orientado à textualidade”, voltado à área de Gramática, Cognição e
Discurso. Atua como revisora e plantonista de redação para Ensino Médio e para Curso
Pré-Vestibular, além de ser professora voluntária de Gramática no Cursinho Popular da
FFLCH.
E-mail:
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Samara Gabriela Leal França
Samara Gabriela Leal França é formada em Letras pelo Centro Regional Universitário
de Espírito Santo do Pinhal (2011) e mestre em Letras pelo Programa de Mestrado
Profissional em Letras (PROFLETAS), Câmpus USP (2020). A autora tem experiência como
educadora da rede pública de ensino. Atua, também, na educação superior, em diversos
cursos de formação de educadores. Suas áreas principais são a Linguística Aplicada, o
Ensino de Língua Materna, a relação Linguagem, Literatura e a Cultura Brasileira. O
capítulo deste livro é resultado de uma pesquisa desenvolvida com alunos em idade
escolar, que teve por objetivo avaliar processos de democratização da leitura literária nos
espaços públicos, sob orientação da Profa. Dra. Valéria Gil Condé.
E-mail:
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Sandra Gomes Rasquel
Sandra Gomes Rasquel é mestranda pelo Programa de Pós-graduação em Filologia e
Língua Portuguesa do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade de
São Paulo - USP. Orientanda da Profª. Drª. Maria Lucia da Cunha Victório de Oliveira
Andrade, da linha de pesquisa em Linguística Textual e Teorias do Discurso no Português.
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Sobre os/as autores/as | 2020
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Discurso e poder: teoria e análise
Selma Regina Olla Paes de Almeida
Selma Regina Olla Paes de Almeida é mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em
Filologia e Língua Portuguesa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo (PPGFLP/FFLCH/USP), sob orientação do Prof. Dr. Valdir Heitor
Barzotto. Participa do Grupo de Pesquisa em Produção Escrita e Psicanálise - GEPPEP. Atua
como Técnica em Assuntos Educacionais no Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia de São Paulo, campus Campinas.
E-mail:
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Valdir Heitor Barzotto
Valdir Heitor Barzotto atua nos programas de Pós-graduação em Educação na FE/USP e
em Filologia e Língua Portuguesa, no DLCV/FFLCH/USP. Doutor em Linguística pela
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Pós-doutorado pela Université Paris 8
Vincennes-Saint-Denis (2010). Professor Titular da Faculdade de Educação da USP.
Coordena o Grupo de Estudos e Pesquisa Produção Escrita e Psicanálise (GEPPEP).
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Vivian de Ulhôa Cintra Bernardo
Vivian de Ulhôa Cintra Bernardo é mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Semiótica
e Linguística Geral da Universidade de São Paulo (USP). Tem interesse por Linguística
Cognitiva e, mais especificamente, metonímia conceptual. Na iniciação científica e no
mestrado, foi orientada pelo Prof. Dr. Paulo Chagas de Souza e participou do Grupo de
Estudos de Fonologia e Morfologia (FONEMOS) na USP. Atualmente, é professora de
Língua Portuguesa, Coordenadora de Redação e Coordenadora Pedagógica na rede
particular de educação em São Paulo.
E-mail:
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Xiang Zhang
Xiang Zhang é doutorando em Letras (Filologia e Língua Portuguesa) pela
Universidade de São Paulo. É mestre em Linguística Aplicada pela Universidade de Macau,
China. Tem desenvolvido trabalhos sobre as iniciativas de ensino de português e de chinês
no contexto da imigração chinesa no Brasil. Atualmente integra o grupo de pesquisa
“Linguagem e Cognição”, liderado pela Profa. Dra. Maria Célia Lima-Hernandes
(Universidade de São Paulo), com projeto de pesquisa sobre o papel das escolas
comunitárias chinesas em São Paulo e o processo sociocognitivo de aprendizagem de
português e chinês por filhos dos imigrantes chineses nas escolas.
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Sobre os/as autores/as | 2020
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Sobre os/as autores/as
Yedda Alves de Oliveira Caggiano Blanco
Yedda Alves de Oliveira Caggiano Blanco é doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação
em Filologia e Língua Portuguesa, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo (PPGFLP/FFLCH/USP), sob orientação do Prof. Dr. Luiz
Antônio da Silva. Tem como foco de estudo a análise da atenuação pragmática nos livros
didáticos de português para estrangeiros (PLE). Participa dos grupos de pesquisa
“Pragmática (Inter) linguística,cross-cultural e intercultural” (USP) e do grupo
"Es.Por.Atenuação/Brasil" (Universidad de Valencia/USP). Atualmente, dedica-se ao ensino
de Língua Portuguesa como língua estrangeira.
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Sobre os/as autores/as | 2020
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Discurso e poder: teoria e análise
O simbolismo do corpo grotesco
em Game of Thrones
Ana Carolina PAIS
Universidade de São Paulo
[email protected]
Resumo: Neste artigo, trazemos uma proposta de reflexão
sobre como o simbolismo do corpo, tanto feminino quanto
masculino, é representado na série Game of Thrones. Essa
percepção do corpo se dá por meio do olhar analítico que se
pautará na junção das dimensões verbais, visuais e sonoras da
narrativa seriada televisiva. Almejamos, assim, identificar se a
figura do corpo é representada como um simbolismo da cultura
popular, de modo grotesco e carnavalesco, afiliando-se à
estética de fins da Idade Média, ou se, ao contrário, associa-se
mais à estética clássica do corpo perfeito, fechado e acabado.
Para tanto, focamos nossa análise no conceito de realismo
grotesco e na noção de baixo material e corporal teorizados
pelo pensador russo Mikhail Bakhtin, na obra A Cultura Popular
na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François
Rabelais
(1987[1965]).
Para
atingir
tais
objetivos,
metodologicamente, foram observados “os enquadramentos”,
“o fundo sonoro”, entendido como todo e qualquer som que
acompanha e potencializa o sentido narrativo do verbal e do
visual, e, por fim, “os diálogos”, que são as interações entre as
personagens, por meio das legendas em língua portuguesa.
Palavras-chave: Corpo Grotesco; Realismo Grotesco; Mikhail
Bakhtin; Narrativa Seriada Televisiva; Game of Thrones.
Introdução
A imagem do corpo humano tem variadas representações, a depender da
época e das visões que são adotadas por aqueles que o desenham, seja na arte
literária ou na arte como um todo: algumas são mais fechadas e “puritanas”, outras
mais abertas e “naturalizadas”, ou até mesmo tidas como vulgares. Influenciado pela
estética da dualidade do belo versus o feio, do bem versus o mal, do forte versus o
fraco, o corpo e suas partes constitutivas recebem múltiplas interpretações e
significados, tanto na vida real quanto na ficção, de modo geral. Com isso, o presente
artigo traz uma proposta de reflexão sobre como o simbolismo do corpo, tanto
feminino quanto masculino, é representado na série Game of Thrones; uma adaptação
televisiva da obra literária do escritor norte-americano George R.R. Martin; por muitas
vezes criticada pelas cenas de sexo e pelas constantes aparições do corpo nu.
Essa percepção do corpo se dá por meio de uma análise que observa o todo,
o universal do objeto artístico audiovisual em detrimento de uma apreensão apenas
PAIS, Ana Carolina | 2020 | p. 19-32
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O simbolismo do corpo grotesco em Game of Thrones
de determinadas unidades de sentido, ou seja, o olhar analítico pautar-se-á na junção
das dimensões verbais, visuais e sonoras da narrativa seriada televisiva. O objetivo é
identificar, por meio da reunião dessas dimensões, se a figura do corpo é representada
como um simbolismo da cultura popular, de modo grotesco e carnavalesco, afiliandose à estética de fins da Idade Média, ou se, ao contrário, associa-se mais à estética
clássica do corpo perfeito, fechado e acabado.
Focamos nossa análise no conceito de realismo grotesco e na noção de baixo
material e corporal trabalhados pelo pesquisador russo Mikhail Bakhtin na obra A
Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais
(1987[1965]), doravante CPIMR. Para atingir tais objetivos, metodologicamente, foram
observados os seguintes aspectos da linguagem narrativa seriada televisiva: “os
enquadramentos” que são formados pela junção de ângulos e planos de filmagem, “o
fundo sonoro”, entendido como todo e qualquer som que acompanha e potencializa
o sentido narrativo do verbal e do visual, seja uma música ou um ruído e, por fim, “os
diálogos”, que são as interações entre as personagens, nos quais analisaremos as
metáforas, as metonímias e os simbolismos da linguagem popular e familiar presentes
nas falas, por meio das legendas em língua portuguesa. Para tanto selecionamos duas
personagens, uma feminina e outra masculina: Melisandre de Asshai e Robert
Baratheon.
Inicialmente, retomaremos, da escrita de Bakhtin, como o corpo grotesco é
concebido e como o conceito de realismo grotesco e a noção de baixo material e
corporal são significados pelo autor. Feito esse resgate teórico, passaremos à análise
de duas cenas nas quais podemos depreender a caracterização do corpo feminino e
masculino na série. São eles: a primeira temporada, episódio 5, no qual encontramos
a conversa entre Ned Stark e o Rei Robert, e a segunda temporada, episódio 4, no qual
tem-se a cena da sacerdotisa Melisandre trazendo à luz a um ser das sombras.
1 O baixo material e corporal pela concepção bakhtiniana
O foco da obra A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto
de François Rabelais, escrita por Mikhail Mikhailovitch Bakhtin nas décadas de
1930/1940 e publicada nos anos 1960, é o livro Gargântua e Pantagruel, do escritor
francês François Rabelais, que teve fortes incompreensões, no decorrer da história, por
parte de críticos literários e de pesquisadores de outras áreas. Tendo esse fato em
mente, Bakhtin (1987[1965]) procurou, por meio de sua análise, dissolver a enganosa
avaliação da obra como vulgar e inapropriada devido aos usos da linguagem popular
e das influências da cultura cômica popular.
Bakhtin (1987[1965]) pondera que a obra rabelaisiana somente será
verdadeiramente compreendida se, em primeiro lugar, ela for lida com os olhos da
época medieval e renascentista que tanto influenciou Rabelais. Desse modo, afirma
Bakhtin (1987[1965]), será possível perceber o quanto a cultura popular e seus
simbolismos, tais como a carnavalização e as formas do grotesco, são grandiosas
enquanto manifestações culturais. Sua obra é construída de forma a resgatar os
símbolos populares dentro da obra do escritor francês, bem como em outros
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Discurso e poder: teoria e análise
pensadores, tais como Shakespeare e Cervantes, perpassando pelas noções do riso,
do vocabulário da praça pública, das festas populares, do banquete, da imagem
grotesca do corpo e do baixo material e corporal.
As reflexões e o resgate da cultura folclórica popular da Idade Média, e a sua
transmissão durante o Renascimento, feitas por Bakhtin, trazem um novo significado
às festas populares1, tais como o Carnaval, e a sua manifestação na literatura, ou a
carnavalização, como a denomina Bakhtin. Assim, o Carnaval é apresentado como uma
cosmovisão capaz de captar a energia presente no popular, no coletivo e de realizar
transformações socioculturais; não é simplesmente um espetáculo ou uma forma
cultural (BERNARDI, 2009).
O Carnaval era o momento no qual o diálogo entre o mundo oficial e o
extraoficial/popular ocorria. Nele, o povo ganhava a consciência da existência de dois
mundos: um que oprimia com suas barreiras e etiquetas sociais e um outro mundo
que permitia ao ser humano, três meses ao ano, virar a vida ao avesso, vestir-se ao
avesso, quebrar as hierarquias e ser quem gostaria de ser, opondo-se à verdade oficial
imposta (BAKHTIN, 1987[1965]).
As festas populares eram definidas por Bakhtin (1987[1965]) como uma
maneira de civilização humana e de trégua das mazelas do dia a dia. Simbolicamente,
por meio delas, podia-se destronar o rei e entronar um novo, bem como vencer o
medo por meio do riso, das paródias, das sátiras, ou seja, da alegria abundante.
Alegria presente também na fartura dos banquetes e que renovava a vida,
simbolizando a vitória sobre a morte; um renascimento.
As festas populares tinham um local específico para ocorrer: as praças públicas.
Este era o espaço da liberdade utópica e do adentrar em um mundo paralelo. Local
onde as pessoas se viam como um coletivo, e não mais como indivíduos. E, por essa
razão, o contato corporal era de uma intensa sensação familiar que gerava,
consequentemente, uma linguagem específica na qual as grosserias, as blasfêmias, os
juramentos e todas as formas obscenas e de ambivalência semântica eram permitidas.
Consequentemente, o Carnaval refletia a ideia do inacabamento do ser, pois
se mostrava contrário ao pronto e acabado, procurando, assim, afirmar que tudo
estava em um estado constante de mudança e instabilidade. Com isso, Bakhtin
(1987[1965]) esclarece que, ao serem transpostas as formas e as representações do
Carnaval para a linguagem da literatura, ocorre, então, a carnavalização da literatura.
Nesse contexto, da cultura cômica popular surge uma forma bastante singular
de se caracterizar o corpo e seu universo semântico. O corpo não é mais uma marca
simbólica da individualidade. Ele passa a representar uma coletividade ancestral que,
ao festejar, entra em comunhão com a parte inferior do corpo, o baixo corporal e
material, com sua função regeneradora. A partir disso, Bakhtin (1987[1965]) conceitua
1 Interpretamos as festas populares, através do estudo de Bakhtin (1987[1965]) sobre Rabelais, como toda
e qualquer manifestação popular presente em uma dada sociedade e pela qual há a característica do ir
além de um rito realizado de modo individual. Ou seja, esse tipo de festividade, que ocorre em
determinadas épocas do ano, abrange uma coletividade, uma massa popular na qual não há a
segregação e a imposição de limites/regras sociais.
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O simbolismo do corpo grotesco em Game of Thrones
o corpo grotesco, um corpo que destaca as suas aberturas para ser penetrado pelo
mundo e com ele comungar por meio dos orifícios. Esse simbolismo corpóreo,
grotesco, direciona-se contra os cânones da Antiguidade Clássica2, e Bakhtin
(1987[1965]) passa a denominá-los como os novos cânones.
Bakhtin (1987[1965]) apreende, através das manifestações populares como o
Carnaval e por meio do ato de rebaixar as formas elevadas, a noção de “grotesco”,
mais especificamente o que ele denominou como realismo grotesco. Esse
rebaixamento do elevado, que trazia as inversões, as situações de animalidade, as
relações com as partes baixas do corpo e tudo mais que destronasse o canônico, bem
como a desarmonia do gosto (SODRÉ; PAIVA, 2014), motivam sensações como o riso,
o horror ou a repulsa.
Em fins do século XV, surge a expressão grotesco, empregada por
pesquisadores que encontraram, em Roma, durante escavações no porão da Domus
Aurea (o palácio romano de Nero, situado em frente ao Coliseu), depois nos
subterrâneos das Termas de Tito e em vários outros locais na Itália, uma pintura
ornamental a qual chamaram de grotesca que se deriva do substantivo italiano grotta
- gruta, porão. Esses ornamentos traziam alegorias de formas vegetais, animais e
humanas que se transformavam e se mesclavam com elementos de leveza, liberdade
e “alegre ousadia, quase risonha”. Segundo Bakhtin, o termo grotesco
“metamorfoseia-se em movimento interno da própria existência e exprime-se na
transmutação de certas formas em outras, no eterno inacabamento da existência”
(BAKHTIN, 1987[1965], p.28, itálicos do autor).
A partir dessa descoberta, o grotesco é difundido e no século XVI influencia a
arte da Europa Ocidental. Contudo, os estudos dos textos produzidos na Antiguidade
e no início da Era Cristã que condenavam essa mescla das figuras humanas com
animais e vegetais, por exemplo, os textos de Vitrúvio, 27 a.C., trouxeram uma rejeição
pública do grotesco e o transformaram em algo monstruoso. De substantivo, restrito
ao julgamento estético de obras artísticas, passa a ser também um adjetivo, usado em
fins do século XVI, para qualificar um gosto generalizado de discursos, vestuário e
comportamentos (SODRÉ; PAIVA, 2014).
Após ganhar vários significados, somente na segunda metade do século XVIII
é que, segundo Bakhtin (1987[1965]), o termo é melhor compreendido e ganha novos
sentidos, como por exemplo Justus Möser (1761) que, influenciado pela Commedia
dell’arte3, defende o grotesco cômico em seu estudo sobre o arlequim. Ganha status
de categoria estética apenas no século XIX. Período no qual Victor Hugo (1827) atribui,
ao conceito, uma função de exaltação do sublime (BAKHTIN, 1987[1965]). Passa por
fases de adormecimento, sendo retomado, após a segunda guerra mundial, nas
2 Os cânones da Antiguidade Clássica tornam-se a base estética do Renascimento. Podemos trazer como
exemplo de cânone a forma “fechada”, clássica e perfeita com a qual a deusa Vênus, no quadro “O
Nascimento de Vênus”, é representada. Já como exemplo do de estética do realismo grotesco temos as
obras de Pieter Bruegel e de Bosch.
3 Obra surgida na Itália, por volta do século XV, que misturava elementos eruditos com outros fantasiosos
e divertidos do universo popular.
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Discurso e poder: teoria e análise
escritas de Bakhtin (1965) e do alemão Wolfgang Kayser (1957), em O Grotesco4, com
significados distintos em cada autor5.
Para Bakhtin, a deformidade é o aspecto primordial do grotesco, não mais
dependente da conceituação de obra de arte. Essa estética passa a ser a categoria do
realismo grotesco, dependente, consequentemente, da corporeidade inacabada, do
corpo grotesco. Está ligada ao riso e ao cômico. Bakhtin, retomando a origem das
imagens grotescas, afirma que elas são encontradas em mitologias e artes dos vários
povos, desde a arte pré-clássica greco-romana, passando pelo período clássico com
as pinturas e literatura cômicas, bem como no drama satírico, na antiga comédia ática,
etc., mantendo relação com o Carnaval.
Nos fins da Antiguidade, o tipo de imagem grotesca atravessa uma
fase de eclosão e renovação, e abarca quase todas as esferas da arte
e da literatura. Aparece então, sob a influência preponderante da arte
oriental, uma nova variedade de grotesco. Mas como o pensamento
estético e artístico da Antiguidade se desenvolvera no sentido da
tradição clássica, não se deu ao tipo de imagem grotesca uma
denominação geral e permanente, isto é, um termo especial;
tampouco foi reconhecido pela teoria, que não lhe atribuiu um
sentido preciso (BAKHTIN, 1987[1965], p. 27-28).
Bakhtin tece uma crítica incisiva aos teóricos antecedentes e também
contemporâneos por não terem compreendido, de forma adequada, as ligações da
imagem grotesca, do corpo grotesco e, de modo geral, da arte grotesca com as
formas populares, tais como o Carnaval, bem como com o modo mais universal e
orgânico de se observar o mundo: o homem tinha uma ligação mais direta com o
universo e com a natureza.
Especificamente sobre o corpo humano, Bakhtin o conceitua, enquanto valor
cultural, inicialmente no ensaio O autor e a personagem na atividade estética, escrito
em meados dos anos 1920. O corpo é apresentado como individual e, assim, ele não
é nem “tão único” nem “tão meu”, existindo um corpo interior e um corpo exterior
(BAKHTIN, 2003[1920]). Para o autor, nos sentimos completos por meio da vida de
nossos corpos exteriores.
No entanto, nos escritos sobre a obra de Rabelais, Bakhtin aborda o corpo
humano sob um novo ângulo analítico: compreende o corpo como coletivo. O corpo
popular evolui incessantemente e se abre, ganhando várias formas e se tornando
flexível; transborda a vontade ininterrupta de mudanças. É o riso do corpo humano
que harmoniza a união entre a cultura e a natureza, misturando organicamente o físico
e o espírito. O corpo popular tem uma ligação direta com o universo e com a natureza.
4Para um paralelo entre Kayser e Bakhtin, indicamos Santos (2009).
5 Bakhtin (1987[1965]) cita em CPIMR que sua visão sobre o grotesco é distinta daquela adotada por
Wolfgang Kayser: “Na realidade, a obra de Kayser é o primeiro estudo, e até o momento o único,
consagrado à teoria do grotesco. Ele contém um grande número de observações preciosas e análises
sutis. No entanto, não podemos aprovar a concepção geral do autor. (...) A teoria de Kayser é
absolutamente inaplicável aos milênios de evolução anteriores ao Romantismo: fase arcaica, antiga (por
exemplo, o drama satírico ou a comédia ática), Idade Média e Renascimento, integrados na cultura cômica
popular” (BAKHTIN, 1987[1965], p.41).
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O simbolismo do corpo grotesco em Game of Thrones
O corpo grotesco, assim, nega “a noção humanista do homem” fechado,
preferindo adentrar pela “vida orgânica para parar nas funções básicas do corpo, as
quais o tornam indiscernível entre os outros corpos” (TIHANOV, 2012, p.172). Ele não
se separa do resto do mundo, nem mesmo se torna isolado, acabado ou perfeito; ao
contrário, ultrapassa a si mesmo. O corpo supera-se por meio de suas aberturas, uma
vez que são estas as passagens que se comunicam com o mundo exterior.
No realismo grotesco, o corpo opõe-se à estética clássica, pois os orifícios, as
protuberâncias, os excrementos, as imperfeições, a concepção, a gravidez, o parto, a
agonia, o nascimento e a morte são destacados e validados. O corpo humano é
inacabado, imperfeito e imaturo. Ele se mostra aberto, agrupado aos demais que o
cercam, completamente ligado ao corpo popular que o gerou. Para a estética clássica,
ao contrário, a “idade perfeita é a que está o mais longe possível do seio materno e do
sepulcro” (BAKHTIN, 1987[1965], p.26). Assim, a imagem grotesca perde a sua
ambivalência regeneradora, bem como o seu tom alegre. Passa, pois, a ser vista como
monstruosa pelos novos cânones estéticos e perde a sua raiz popular.
Nesta seção, resgatamos, na teoria de Bakhtin, a forte diferença de concepções
do corpo para a estética do realismo grotesco e para a clássica. Depreendemos que o
corpo, para Bakhtin, constitui-se como aberto e é destacadamente ligado com o
universo e com a natureza. Nele não há as marcas de pudores ou de barreiras impostas
pela Igreja ou pelo Estado, obrigando-o a esconder, por exemplo, as partes do baixo
material e corporal, tais como as genitálias ou então, a privar-se das representações da
copulação, do nascer, do morrer, etc. nas quais o corpo expande-se e cria conexões
com o mundo ao seu redor.
Com essa diferença estética estabelecida, verifiquemos, na próxima seção, as
análises do corpus.
2 Analisando o corpo: realismo grotesco x concepção clássica
Para que as análises pudessem ser feitas, inicialmente captamos os trechos dos
episódios selecionados por meio do programa Bandicam. Depois os transferimos, em
formato MP4, para o software de análise linguística ELAN. Assim, ao invés de
analisarmos cada dimensão de modo isolado, conseguimos perceber a produção dos
sentidos de uma maneira conjunta na verbivocovisualidade, examinando os
enquadramentos da cena, com seus planos e ângulos, bem como o que compunha o
fundo sonoro e os diálogos da cena. Após essa análise prévia, foram criadas tabelas
com as informações obtidas por meio do software ELAN, com a finalidade de nos
auxiliar na transcrição para a linguagem escrita das inferências verbivocovisuais.
Passemos, assim, ao primeiro trecho de cena a ser analisado:
2.1 Robert Baratheon e a figura da pança
O episódio cinco da primeira temporada possui 55 minutos de duração e o
sub-recorte de análise foi feito nos primeiros 00:03:52s até os 00:06:24s. Nesse trecho
de cena, o escudeiro, Lancel Lannister, tenta colocar no rei Robert uma armadura, pois
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25
Discurso e poder: teoria e análise
este objetivava lutar no torneio organizado em comemoração à nomeação da nova
Mão do Rei, Eddard Stark, também chamado de Ned. A tentativa é frustrada, pois a
armadura não lhe serve.
O personagem Robert Baratheon, quando jovem, tinha talento para a guerra e
para a liderança. Ele era temível e um formidável guerreiro. Robert foi considerado
um homem de bom coração, mas, externamente, ele parecia ser um animal brutal e
pesado. Era considerado um rei que gostava de bebidas, de mulheres, de torneios e
de festas extravagantes; sempre tudo de modo exagerado. Comentavam, de forma
depreciativa, que ele era um tolo bêbado.
Após essa breve caracterização do recorte e do personagem Rei Robert,
examinemos os seguintes frames6:
Quadro 1. Frames
01
- Plano Fechado - close-up / Normal; 3/4;
- Barulho de armadura e de fivelas sendo apertadas.
02
- Plano Americano (Ned) e Plano Médio (Lancel e
Robert) / Normal; frontal (Ned);
- Barulho de passos.
Lancel: “É muito pequena, Sua Graça, não vai entrar”.
- Sem diálogos.
03
- Plano Médio / Normal; frontal (Robert);
- Sem fundo sonoro.
Lancel: “É muito pequena, Sua Graça, não vai entrar.”
Fonte: Adaptado de episódio cinco da primeira temporada.
Podemos perceber, no primeiro frame, que o destaque, o close-up, é dado ao
momento do tentar fechar a armadura no rei. Verbalmente não conseguimos perceber
nenhuma associação ao corpo grotesco, pois são minutos iniciais sem falas. Porém, o
enquadramento e o fundo sonoro nos levam a perceber uma caracterização do corpo
como “além dos limites”. O que é confirmado nos dois frames que sucedem (02 e 03),
6 As tabelas foram organizadas de modo que, a primeira linha nos apresenta os frames retirados das
cenas. A segunda linha refere-se às anotações de enquadramento (Planos e ângulos) de filmagem do
frame. A terceira linha condiz aos apontamentos sobre o fundo sonoro. E a quarta linha transcreve o nome
do personagem e a fala deste no momento de captura do frame.
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O simbolismo do corpo grotesco em Game of Thrones
nos quais o fundo sonoro é neutro, mas o verbal nos traz o fato de a armadura ser
pequena para o rei (“É muito pequena, Sua Graça, não vai entrar.”) e o
enquadramento, plano e ângulo, comprovarem visualmente essa tentativa. O corpo
do rei foge completamente ao tamanho de sua armadura, ao ponto de ele ordenar ao
escudeiro que busque um “esticador de peitoral”, objeto inexistente, e que simboliza
o “satirizar-se a si mesmo” feito pelo personagem.
Nos frames seguintes (de 04 a 07), o fundo sonoro mais uma vez é neutro. Mas,
a significação do corpo grotesco, do baixo material e corporal, aparece no verbal, por
meio da palavra “gordo” e visualmente é destacado e complementado,
principalmente pela metonímia visual da pança do rei à mostra, em destaque por meio
do enquadramento de ângulo Frontal e Plano Americano, que segundo Padilha e
Munhoz (2010), traz um maior realce para a expressividade corporal dos personagens
em enfoque na cena.
Quadro 2. Frames
04
- Plano Médio / normal; frontal (Ned);
- Sem fundo sonoro.
Ned: “Está gordo demais para sua armadura.”
06
- Plano Americano / normal; frontal (Robert);
- Barulho de armadura.
Robert: “Gordo, é?” (Tom de ironia).
05
- Plano Americano / normal; frontal (Robert).
- Sem fundo sonoro.
Robert: “Gordo?”
07
- Plano Médio / normal; frontal (Robert);
- Barulho de armadura.
Robert: “Gordo, é?” (Tom de ironia).
Fonte: Adaptado de episódio cinco da primeira temporada
Nesse trecho, mesmo Ned Stark sendo um velho amigo do rei, podemos inferir,
verbalmente, que o fato de a Mão zombar do rei, dizendo a ele que está gordo demais
para a armadura e, complementarmente, o próprio rei concorda com isso e zomba de
si mesmo, simboliza uma ação carnavalesca. Caracterizamos essa fala como um modo
de destronamento do rei, pois o personagem Ned Stark ocupa um cargo subalterno,
é sua Mão e, assim, obedece aos seus comandos, e acaba dirigindo-se de igual para
igual, quebrando as hierarquias impostas pelo sistema do Estado.
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Discurso e poder: teoria e análise
O corpo grotesco, nos frames 06 e 07, verbivocovisualmente, é significado a
partir do momento em que Robert é focalizado pelo ângulo Frontal, que posiciona a
sua pança em primeiro plano7 e no centro da imagem (em especial, no caso do frame
06), e pelos planos Americano e Médio (o primeiro realçando o aspecto corporal e o
segundo somando as expressões faciais à imagem da pança). O enquadramento
mescla-se ao verbal “Gordo, é?”, dito pelo rei em tom de ironia, e que agrega maior
sentido à imagem grotesca e, principalmente, à pança que rompe o corpo e ganha
maior destaque. Bakhtin resgata a importância dada ao ventre ao dizer que:
(...) o papel essencial é entregue no corpo grotesco àquelas partes, e
lugares, onde se ultrapassa, atravessa os seus próprios limites, põe em
campo um outro (ou segundo) corpo: o ventre e o falo; essas são as
partes do corpo que constituem o objeto predileto de um exagero
positivo, de uma hiperbolização; elas podem mesmo separar-se do
corpo, levar uma vida independente, pois sobrepujam o restante do
corpo, relegado ao segundo plano (o nariz pode também separar-se
do corpo) (BAKHTIN, 1987[1965], p. 277, itálicos do autor).
Assim, o corpo do rei Robert é construído com uma estética do realismo
grotesco, na qual o corpóreo se expande e se soma ao mundo exterior, com as suas
imperfeições, rompendo seus próprios limites. Não se depreende, nesses frames, uma
estética clássica, do corpo fechado, perfeito e acabado, por exemplo, como um corpo
apolíneo.
Quadro 3. Frames
08
- Plano Médio / Normal; 3/4.
- Conversas e passos.
Ned: “Robert?”
09
- Plano Americano / Normal; frontal (Robert).
- Conversas e passos.
Robert: “O quê?”
10
- Plano Americano / Normal; frontal.
- Conversas e passos; Gargalhada de Robert.
11
- Plano Americano / Normal; frontal (Robert).
- Conversas e passos.
7 Utilizaremos a expressão “primeiro plano”, com letras minúsculas, para nos referirmos ao
posicionamento frontal do assunto principal no quadro visual da cena. “Primeiro Plano”, com letras
maiúsculas, será empregado ao nos referirmos ao tipo de plano de enquadramento fílmico, no qual o
corte do assunto é feito na altura do peito.
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O simbolismo do corpo grotesco em Game of Thrones
Robert: “Uma visão inspiradora para o povo, hein?”
Pausa; "Oh!" (Robert).
12
- Primeiro Plano / Normal; frontal (Ned).
- Conversas e passos.
Robert: “Uma visão inspiradora para o povo, hein?”
13
- Primeiro Plano / Normal; frontal (Robert).
- Conversas e passos.
Robert: “Vamos, curvem-se diante do rei! Curvem-se,
seus merdas!”
Fonte: Adaptado de episódio cinco da primeira temporada
Na sequência de frames de 08 a 13 o fundo sonoro não apresenta uma
significação do corpo grotesco; nem mesmo os aspectos verbais. É na mescla entre o
verbal e o visual, novamente com o simbolismo da pança em destaque, por meio do
plano Americano e do ângulo Frontal, que é possível depreender o sentido da
gargalhada do rei ao ver sua barriga à mostra. Não há palavras, nem metáforas verbais
sobre o corpo, mas, sim na junção verbivocovisual, com a imagem da pança, com a
exclamação “Oh!” e com o som da gargalhada. Os últimos frames (11, 12 e 13) trazem
uma metáfora verbal, em “Uma visão inspiradora para o povo, hein?”, que ganha
sentido completo ao ser pronunciada no mesmo momento em que, visualmente,
temos a pança do rei sendo enquadrada em plano Americano e ângulo Frontal.
O tema essencial desse trecho de cena é o corpo apresentado como grotesco,
pois é o elemento da pança que destaca a estética desse corpo. A pança ganha
destaque no corpo grotesco, no baixo material e corporal, pois é por meio dela que o
corpo se conecta com o mundo e, consequentemente, ultrapassa seus próprios
limites.
Vejamos, no outro trecho de cena selecionado para análise, como o corpo
feminino foi retratado.
2.2 Melisandre de Asshai e a figura do corpo aberto
O quarto episódio da segunda temporada possui 51 minutos de duração e o
recorte de cena foi realizado nos 00:47:21s até os 00:49:17s, nos quais encontramos a
sacerdotisa Melisandre trazendo à luz um ser das sombras. Melisandre, nascida como
escrava em Asshai, continente de Essos, torna-se uma das Sacerdotisas Vermelhas do
Senhor da Luz e, assim, deseja propagar a sua fé em Westeros. Caracterizada, tanto no
livro como na série, como bela e graciosa, sua voz era exótica e seus trajes eram
sempre vermelhos e de seda. Usava uma gargantilha de ouro vermelho com um único
e grande rubi que brilhava sempre que praticava a magia.
Esse trecho de cena selecionado, possui pouca presença da dimensão verbal.
Podemos perceber já no primeiro frame da cena que o destaque é colocado à figura
do corpo feminino que é filmado em Plano de Conjunto e ângulo ¾, possibilitando
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Discurso e poder: teoria e análise
assim que ele seja visto inteiro e, principalmente o tamanho do ventre em destaque,
em gravidez, pronto para dar à luz. O corpo de Melisandre é, desse modo,
compreendido como estranho, diferente, ao passo que o personagem Davos,
exclama, dentre suas poucas palavras, “Que os deuses nos protejam”.
Quadro 4. Frames
14
- Plano Médio / Normal; frontal;
-Música de tensão e mistério /
gotejamento;
Davos: “Que os deuses nos protejam.”
barulho
15
- Plano de Conjunto / Normal; frontal;
de -Música de tensão e mistério / barulho de
gotejamento;
Melisandre: “Há apenas um deus, sir Davos.”
Fonte: Adaptado de episódio quatro da segunda temporada
Nos frames, também temos o destaque dado ao momento do parto, da
abertura das pernas e do corpo, para a conexão com o universo e o gerar de uma nova
vida, no qual o simbolismo do baixo material e corporal estão presentes. Esse
momento do parto e a expressão do corpo em dor e do corpo grotesco ganham
enfoque maior ao ser expresso conjuntamente por meio de um plano aberto e de um
ângulo como o Zenital que retrata a cena de cima, em seu todo, bem como pelo fundo
sonoro no qual ouvimos os gemidos de dor ou de agonia do parto e a música com
batidas fortes ascendentes que acompanham a cena e intensificam as sensações
trazidas pelo momento do parto.
Quadro 5. Frames
17
16
- Plano de Conjunto / Normal; frontal (Melisandre), - Plano de Conjunto / Zenital;
Perfil (Davos);
- Música de tensão sobe o volume / sons de espanto - Gemidos do parto de Melisandre / sons de medo e
de Davos;
espanto de Davos / música de tensão (com batidas
fortes);
- Sem falas.
- Sem falas.
Fonte: Adaptado de episódio quatro da segunda temporada
As expressões de dor do parto também ganham ênfase no momento em que
Melisandre é colocada de perfil e em close, sendo acompanhada pelos sons de agonia
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O simbolismo do corpo grotesco em Game of Thrones
de Davos e pela música forte, de suspense. O nascimento, aqui caracterizado como a
geração de um ser das sombras, ganha significado maior ao ser colocado em plano
Detalhe, novamente acompanhado pela música forte. Todo esse trecho selecionado
retoma a significação do diálogo curto entre Davos e Melisandre no qual o espanto, o
medo, a agonia pelo nascimento de um ser das sombras, presente no verbal, mesclase ao visual e ao sonoro.
Quadro 6. Frames
19
18
- Close-up / Normal; Perfil;
- Plano Detalhe / Normal; Perfil;
- Gemidos do parto de Melisandre / sons de medo e - Gemidos do parto de Melisandre/ música de tensão
espanto de Davos / música de tensão (com batidas (com batidas fortes) e sons de um ser monstruoso;
fortes);
- Sem falas.
- Sem falas.
21
20
- Plano Detalhe / Normal; Perfil;
- Plano de Conjunto / Plongée; Frontal;
- Gemidos do parto de Melisandre/ música de tensão - Música de tensão (com batidas fortes), sons da
(com batidas fortes) e sons de um ser monstruoso respiração ofegante de Melisandre e sons de um ser
nascendo;
monstruoso nascendo;
- Sem falas.
- Sem falas.
Fonte: Adaptado de episódio quatro da segunda temporada
Melisandre é caracterizada como uma mulher branca8, dando referência à
pureza, à inocência, ao bem e à fragilidade, remetendo à estética clássica. No entanto,
tanto suas vestes, quanto os olhos e os cabelos, são vermelhos. A cor vermelha remete
ao simbolismo do sangue, do coração, do fogo. É a cor representante da sedução, da
luxúria, da paixão e do amor (HELLER, 2014). Assim, metaforicamente, podemos inferir
que as cores branco e vermelho apontam para o fator de sua beleza não ser angelical,
mas sim malévola.
A estética clássica esvai-se quando examinamos a forma como o corpo da
personagem é retratado, ou seja, nu, conectando-se com a Terra e se colocando como
8 Para mais significações da cor branca: https://followthecolours.com.br/gotas-de-cor/branco-50curiosidades-interessantissimas-que-voce-nao-sabia-sobre-a-cor/. Acesso em: 18 ago. 2019.
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Discurso e poder: teoria e análise
imperfeito, por estar grávida. Os aspectos do corpo aberto, do baixo material e
corporal, da dor e do sofrimento não são admitidos na estética clássica. Melisandre
traz à luz um ser das sombras, o que degrada e destrona a imagem elevada que a
estética clássica coloca para o nascimento. Há a “transposição para o plano material e
corporal do parto (representando da maneira mais realista)” (BAKHTIN, 1987[1965], p.
269). Seu corpo está nu, há o destaque de seus seios fartos, ouvimos seus gemidos de
dor, vemos as contrações de seu ventre e seu rosto a expressar a agonia do parto
(frame 18) e o ser monstruoso nascendo, em forma de sombra ou de algo que escorre
por entre as pernas da sacerdotisa, e tomando forma (frames 19, 20 e 21).
Considerações Finais
Para concluirmos, podemos dizer que na primeira cena, o corpo masculino se
caracteriza como um corpo grotesco por meio da mescla verbivocovisual que nos leva
a perceber o enfoque dado a pança do rei; elemento do simbolismo corpóreo
grotesco. O rei Robert conecta-se com o mundo por meio de seu corpo e,
principalmente, pela pança à mostra e em destaque. Na estética grotesca destacamse as partes baixas do corpo, tais como as coxas e o ventre.
Na segunda cena, o corpo feminino também ganha sua marca grotesca e de
rebaixamento corpóreo material. Melisandre traz à luz um ser das sombras,
degradando e destronando a imagem elevada do nascimento, bem como de seu
papel enquanto sacerdotisa, representante do divino. A personagem aparece nua e
enormemente grávida, com os seios inchados e a barriga como prestes a estourar. A
estética grotesca surge, não somente nos exageros, mas também na presença dos
excrementos; do suor e no sangue negro que escorria e deu origem ao novo ser
maligno. O corpóreo de Melisandre é colocado como um verdadeiro grotesco, uma
vez que, em razão do parto, ela tem o ventre inchado e abre as pernas para o
nascimento, o que permite ao seu corpo entrar em contato com o mundo, com a Terra.
Seu corpo se abre e constrói, dá a vida a um novo corpo, não se mantém fechado ou
inalterado.
Pudemos depreender, por meio das dimensões verbivocovisuais que
constituem os trechos de cena analisados, que há a presença do simbolismo do baixo
material e corporal em Game of Thrones e que, principalmente, o corpo feminino e
masculino, nestes trechos, foram caracterizados mais como corpos grotescos, abertos
e imperfeitos (dionisíacos) do que um corpo pertencente à estética clássica do perfeito
e do fechado (apolíneo).
A partir desses trechos de cena, coloca-se como essencial a reflexão sobre a
utilização da estética do realismo grotesco e a sua importância para a construção
arquitetônica da série norte-americana, Game of Thrones. A expressão corpórea na
narrativa televisiva é colocada como apenas vulgar e massificadora ou teria fortes
ligações com a cultura popular, assim como as representações em Gargântua e
Pantagruel?
PAIS, Ana Carolina | 2020 | p. 19-32
32
O simbolismo do corpo grotesco em Game of Thrones
Referências bibliográficas
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BAKHTIN, Mikhail. O Autor e a personagem na atividade estética. In: BAKHTIN, Mikhail.
Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes,
2003[1920]. p.03-192.
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HELLER, Ellen. A Psicologia das Cores: Como as cores afetam a emoção e a razão.
Tradução: Maria Lúcia Lopes da Silva. 1ª ed., São Paulo: Editora G Gili, 2014.
PADILHA, Marcio Roberto Neves; MUNHOZ, Marcelo. Fotografia e audiovisuais.
Secretaria de Estado da Educação. Superintendência da Educação. Diretoria de
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dissonante: considerações sobre aspectos do grotesco na poesia de Bernardo
Guimarães e Cruz e Sousa [online]. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura
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SODRÉ, Muniz; PAIVA, Raquel. O império do grotesco. Rio de Janeiro: MAUAD, 2014.
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Fontes:
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Graves. Produção: Chris Newman & Greg Spence. Estados Unidos: HBO
Entertainment, 2015. 5 DVDs (545 min.), color.
THE Wolf and the Lion (Temporada 01, ep. 05). Game of Thrones [Série]. Direção: Brian
Kirk. Produção: Chris Newman & Greg Spence. Estados Unidos: HBO Entertainment,
2012. 5 DVDs (557 min.), color.
Como citar
PAIS, Ana Carolina. O simbolismo do corpo grotesco em Game of Thrones. In:
GONÇALVES-SEGUNDO, Paulo Roberto; ARAES, Célia Regina; CASTANHEIRA,
Claudia; ISOLA-LANZONI, Gabriel; PENITENTE, Natalia; WEISS, Winola (orgs).
Discurso e poder: teoria e análise. São Paulo: FFLCH/USP, 2020, p. 19-32. DOI:
10.11606/9786587621241
PAIS, Ana Carolina | 2020 | p. 19-32
33
Discurso e poder: teoria e análise
A (in)conscientização da
preservação ambiental: análise
avaliativa de textos jornalísticos
sobre o Dia da Terra
Célia Regina ARAES
Universidade de São Paulo
[email protected]
Resumo: Em um contexto descritivo de encontros ambientais
em prol da natureza no período de três décadas, o objetivo
deste capítulo é compreender as representações sociais das
indústrias poluidoras em relação à conscientização ambiental
(ou não) como prática social e, assim, perceber o aumento dos
índices poluidores no mundo. Serão analisados dois textos
jornalísticos veiculados em 22 de abril de 2019, um da Folha de
S.Paulo e outro do El País sobre o Dia da Terra. Para tanto, os
referenciais teóricos serão as três categorias do Sistema de
Avaliatividade e suas subcategorias (MARTIN e WHITE, 2005),
especialmente o Engajamento que traz as diversas vozes
autorais, no âmbito da Linguística Sistêmico Funcional
(HALLIDAY, 2004) e os pressupostos da Ecolinguística (COUTO,
2009) por ser tratar, especialmente, de temas relacionados à
ecologia, além da Análise Crítica do Discurso (FAIRCLOUGH,
1997) no que concerne o estudo da interação entre linguagem
e contexto social. Como uma antecipação de resultados,
verificou-se que os interesses econômicos empresariais
superam experiências, mesmo que estas sejam de impactos
bastante negativos à vida.
Palavras-chave: Discurso; Mídia; Sistema de Avaliatividade;
Ecolinguística.
Introdução
O conceito aquecimento global tem dividido cientistas do mundo todo em
controversas opiniões sobre o futuro da vida na Terra, pois há os que admitem a
gênese natural das variações de temperaturas e aqueles que acreditam nas mudanças
antropogênicas. Essa distinção não interessa muito quando se trata de tomar atitudes
a favor da preservação do meio ambiente, o que importa, na realidade, é reconhecer
que houve um ritmo acelerado de perda de capital natural e de degradação ambiental
mais percebidas a partir da década de 1980. Mesmo com as incertezas sobre as causas
das alterações do clima, a consideração de graves ameaças para o meio ambiente e
para a sociedade pesou na decisão de criar a Convenção-Quatro das Nações Unidas
sobre Mudanças Climáticas (CQNUMC) pela Organização das Nações Unidas (ONU)
ARAES, Célia Regina | 2020 | p. 33-51
34
A (in)conscientização da preservação ambiental: análise avaliativa...
para discutir a emissão de gases de efeito estufa (GEE). A CQNUMC foi um dos
documentos oficiais produzidos no encontro ambiental ECO 92, no Rio de Janeiro,
entrando em vigor dois anos após o evento e contou com assinaturas de
representantes de países que acordaram em estabilizar a concentração de gases
poluentes, especialmente CO2 em níveis que não ponha o sistema climático em
perigo. A ECO 92 tinha os mesmos objetivos da Conferência de Estocolmo que
acontecera vinte anos antes e ambos propunham a Cúpula da Terra, mas a grande
novidade dos anos 90 foi a participação maciça dos chefes de estado no evento,
caracterizando a importância do tema como preocupação da década. A ideia de
desenvolvimento sustentável surgiu como a grande novidade e desafio em 1992 como
uma possibilidade de crescimento econômico com respeito às questões ambientais e
sociais.
A partir desse encontro, cada vez mais a discussão sobre a conservação do
meio ambiente esteve em pauta nos grandes eventos. Exemplo disso foi o tratado
firmado internacionalmente entre países desenvolvidos que assumiram um
compromisso de reduzir a emissão de tais gases. Trata-se do Protocolo de Kyoto em
meio a uma conferência realizada no Japão em 1997 que não apenas reuniu países
denominados desenvolvidos e em desenvolvimento, como também atribuiu
responsabilidades distintas entre esses dois grupos e prazos para obtenção de
resultados. Os que possuíam maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH),
considerados mais ricos socioeconomicamente deveriam reduzir pelo menos 5,2% da
emissão de gases entre 2008 e 20121, tomando-se como parâmetro os índices de
1990. Os países mais pobres industrialmente não tinham metas a serem cumpridas de
maneira obrigatória, mas deveriam realizar ações sustentáveis de acordo com o
estabelecido pelo Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL).
No discurso dos especialistas, uma informação deve ser levada em
consideração no que diz respeito à impossibilidade de reverter o lançamento de
gases, uma vez que eles continuam dissipados por décadas e, nesse sentido, não tem
como interromper as mudanças do clima mundial tendo em vista o crescimento
indiscriminado das atividades industriais. As ações estão baseadas, então, em mitigar
os efeitos e buscar soluções para um equilíbrio com mecanismos de adaptação às
mudanças que irão ocorrer. Projetos na área de ecologia e climatologia como o
complexo modelo matemático de circulação geral da atmosfera (MARUYAMA, apud
CASAGRANDE, SILVA JÚNIOR e MENDONÇA, 2011) podem ajudar nesse propósito,
mesmo porque os reais números de emissão segura de gases tóxicos ainda são
estudados pela ciência até o momento.
O ano de 2012 foi marcado pelo balanço final do Protocolo de Kyoto e uma
nova conferência na cidade do Rio de Janeiro, Rio+20 [Eco+20]. A proposta inicial do
Protocolo de reduzir em média 5% da emissão dos GEE não atingiu plenamente o
proposto, portanto o ganho quantitativo não é o que se destaca, mas deve-se levar em
1 Vale ressaltar que os países desenvolvidos tinham um compromisso maior com a redução da emissão
de gases causadores do efeito estufa considerando quase dois séculos de industrialização, ou seja, um
período significativamente maior de lançamento de poluição no meio ambiente comparado com países
pouco industrializados ou de industrialização recente. Também, de que o índice de 5,2% não era único
para estes países, variava em função de quantidade de poluição lançada anteriormente.
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35
Discurso e poder: teoria e análise
conta que a maior importância do tratado está na conscientização que os governantes
e população passaram a ter sobre o problema da poluição ambiental. A exemplo da
Alemanha que introduziu metas ousadas para reduzir 40% da emissão de gases até
2040 (LOPES e SILVA, 2017) com aumento da geração de energia eólica e solar para
citar apenas dois exemplos de mudanças de comportamento dos cidadãos e
empresas. Dessa forma, permite-se concluir que o maior legado do protocolo está na
introdução das energias renováveis, chamadas de energias limpas ou verdes.
Já o evento brasileiro é lembrado até os dias atuais pela disputa de poder e
interesses entre os países desenvolvidos e os considerados em desenvolvimento, sem
a devida preocupação com o desenvolvimento sustentável que era o foco das
discussões a princípio. Esperava-se que, ao final de mais de uma semana de
conferência, os resultados fossem mais profícuos sobre a erradicação da pobreza e
mais avanços na implantação de economia sustentável, baseada no equilíbrio do tripé
economia/sociedade/natureza. O resultado final foi a prorrogação de práticas de
proteção do meio ambiente com a mais profunda esperança de que os países mais
poluidores tivessem a consciência de suas responsabilidades para salvar a vida na
Terra.
A partir de 2013, novas propostas de leis ambientais, similares a do Protocolo
de Kyoto, deram espaço a um novo processo a fim de considerar a tomada de decisões
de cooperação e em 2016, mais uma vez, no Acordo de Paris, 195 países aprovaram a
redução de emissão de GEE em uma tentativa de limitar o aumento da temperatura a
1,5°C acima dos níveis pré-industriais. Mas ainda há uma pergunta sobre os gastos que
envolvem todos esses processos antipoluentes que é: quem vai pagar a conta para se
conquistar um planeta menos poluído e evitar as alterações climáticas no mundo todo?
E a resposta sempre recai na desigualdade de esforços entre os países industrializados
e os de industrialização recente. Um exemplo disso foi a recusa da assinatura dos
Estados Unidos no Protocolo de Kyoto, alegando que as alterações nos meios de
produção industrial acarretariam perda de capital e lucro. Giddens (1991) considera
as sociedades capitalistas como um subtipo específico das sociedades modernas e
que conta com uma ordem fortemente competitiva e expansionista do
empreendimento capitalista que envolve inovação tecnológica.
Dadas as altas taxas de inovação na esfera econômica, os
relacionamentos econômicos têm considerável influência sobre
outras instituições. [...] a insulação do estado e da economia (que
pode assumir muitas formas diversas) se fundamenta sobre a
preeminência da propriedade privada dos meios de produção.
(Propriedade privada aqui não se refere necessariamente a
empreendimento individual, mas à posse privada difundida de
investimentos.) A posse de capital está diretamente ligada ao
fenômeno da “despossessão de propriedade”' — a transformação do
trabalho assalariado em mercadoria — no sistema de classes.
(GIDDENS, 1991, p. 54)
Por representar situações do cotidiano, os textos midiáticos podem trazer
opiniões e valores da sociedade, inclusive das mudanças desses no decorrer de um
determinado período de tempo. Tomando como base o percurso histórico marcado
pela preservação do meio ambiente através de conferências e a manifestação do Dia
ARAES, Célia Regina | 2020 | p. 33-51
36
A (in)conscientização da preservação ambiental: análise avaliativa...
da Terra (tema dos textos2 que serão analisados a seguir), o objetivo deste trabalho é
buscar compreender como os jornais mostram o problema da poluição mundial e a
quem é dada a responsabilidade de proteger/conservar o meio ambiente, ou seja, a
partir de estruturas linguísticas que atribuem valores aos atores sociais, analisar as
representações sociais que a Folha de S.Paulo e o El País fazem das indústrias e da
população em geral como agentes poluidores.
Julga-se importante, neste estudo, estabelecer um contraponto de como as
informações chegam aos leitores em diferentes países, aqui escolhido o Brasil e a
Espanha, a partir de duas mídias distintas. Sabe-se que apenas uma amostra textual de
cada jornal não é suficiente para se reconhecer a posição ideológica da empresa de
comunicação quanto às questões do meio ambiente e tampouco a formação de
opinião dessas empresas junto à população, mas essas já caracterizam um
posicionamento crítico no momento histórico, social e ecológico de abril de 2019.
Diante disso, justifica-se a seleção do corpus por dois jornais de origens diferentes3,
veiculados na mesma data, ou seja, comemoração do Dia da Terra, 22 de abril.
A análise de um material textual deve levar em consideração o que mais suscita
no objeto analisado e, nesse estudo, portanto, levar-se-á em conta a Atitude e suas três
subcategorias, o Afeto, a Apreciação e o Julgamento e estas categorizadas ainda pelo
reforço da Gradação quanto à Força. Ademais, como as notícias carregam discursos
terceiros, é necessário um olhar atento para reconhecer o sentido das citações e, para
isso, os critérios do Engajamento contribuirão para uma melhor compreensão do
discurso.
1 Comemoração do Dia da Terra: o que mudou desde 1970?
O planeta Terra tem um dia de comemoração. Não se refere ao aniversário,
mas sim a um dia proposto para reflexão. Ele foi criado nos Estados Unidos por um
senador e também ativista ambiental, Gaylord Nelson, com o objetivo de despertar na
população a consciência sobre a ação humana em ambientes naturais e a importância
de lutar contra a poluição. A data escolhida foi 22 de abril de 1970 porque muitos
jovens estavam nas ruas protestando contra a guerra do Vietnã e em meio a isso, os
jovens lutariam pela natureza também. E assim foi, 20 milhões de pessoas em prol da
causa que resultou na criação da Agência de Proteção Ambiental no final daquele ano
pelo governo estadunidense. Em 2009, a data passou a ser reconhecida pela ONU
com o objetivo de discutir a importância da preservação dos recursos naturais e, mais
recentemente, foi lembrada na abertura para as assinaturas de ratificação do Acordo
2 Os dois textos selecionados trazem dados sobre a poluição do meio ambiente e mudanças climáticas
caracterizando-os como informativos, comuns em notícias e, ao mesmo tempo, opiniões de quem os
assinam. Além disso, Marcus Nakagawa define seu próprio texto como um artigo logo no primeiro
parágrafo "Este é mais um artigo sobre o Dia da Terra" (Folha de S.Paulo, 22.abr.2019). Este trabalho não
objetiva um estudo aprofundado de gêneros jornalísticos, por isso, os denominaremos de "textos" (T1 e
T2).
3 A Folha de S. Paulo é o jornal de maior tiragem no Brasil e o mesmo acontece com o El País na Espanha.
Devido ao grande acesso que os brasileiros faziam no site do jornal espanhol, desde 2013, o El País tem
versões na Língua Portuguesa. Portanto os dois jornais circulam no Brasil e têm versão online.
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Discurso e poder: teoria e análise
de Paris em 2016. Hoje, a data pertence a humanidade como uma forma de motivar a
sociedade para a urgência do desafio da sustentabilidade planetária.
No Dia da Terra, lembremos que estamos no cheque especial é o título do texto
(T1) da Folha de S.Paulo (ANEXO 1) que narra brevemente como foi instituída a data
e o quanto os seres humanos não estão conseguindo reverter o quadro do
consumismo. É uma matéria assinada por Marcus Nakagawa, professor de
Desenvolvimento
Socioambiental
e
palestrante
sobre
sustentabilidade,
empreendedorismo e estilo de vida.
O texto de Alberto López, de Madri, intitulado Dia da Terra: protejamos as
espécies, cuidemos de nossa casa comum (T2), veiculado no El País (ANEXO 2),
também menciona a criação do Dia da Terra e dá luz a temas como a extinção da fauna
e flora, produção de toneladas de plástico e mortes causadas por poluição.
Os dois textos apresentam um retrato de como está ocorrendo a extinção de
vidas a partir da ação humana, do consumo de recursos naturais sem reposição de
forma satisfatória.
Na busca por adesão dos leitores, os dois textos, utilizando o recurso de
expansão dialógica (MARTIN e WHITE, 2005) apresentam nomes de pessoas que dão
credibilidade àquilo que está sendo expresso e o mesmo acontece com as
organizações ou instituições ali listadas. Quando T1 coloca em pauta a má distribuição
da renda global "[...] os 26 mais ricos do mundo têm a riqueza dos 3,8 bilhões mais
pobres" (parágrafo 14), se utiliza do nome do jornal O Globo para justificar essa
estatística. A lista de nomes que traz a voz da autoridade não é pequena em T1 e essa
construção é análoga em T2. A ONU, por exemplo, é evocada em T1 para garantir que
o número de 2,2 bilhões será o acréscimo de habitantes no mundo em 2050 e em T2,
a ONU, com duas aparições, é uma instituição de poder decisório já que no texto é ela
que alerta sobre as mortes causadas pela poluição, além de representar a sede de
criações de programas para o meio ambiente. Thomas Malthus é um economista
britânico que nasceu em 1766 (T1) e Donald Falk, professor de ecologia na
Universidade do Arizona (T2) e ambos são citados nos textos como especialistas que
utilizam metáforas para explicar, respectivamente, a falta de recursos em comparação
ao crescimento demográfico e a biodiversidade que definha em passos gigantescos.
O mesmo acontece com as siglas seguidas de nomes escritos por extenso e que dão
preferência para a língua inglesa nessas menções, o que podem ser consideradas
receitas certas para a arte do convencimento. Essas são estratégias comuns em textos
jornalísticos, mas são quase que obrigatórias em matérias cujo tema é o meio
ambiente, não por acaso, Alves (2002) afirma que o jornalismo ambiental é uma
tendência universal e caracteriza-se como uma especialidade dentro da área e que, ao
longo das décadas, deixou de ser modismo para estar presente no contexto histórico
de crise ambiental.
Já anteriormente mencionado, em 1970, o objetivo do 22 de abril era
conscientizar as pessoas de suas ações em relação ao planeta e em 2019, como
descrito, os seres humanos não estão conscientizados ainda, não no que tange à ação
individual ou de pequenos grupos, mas às atitudes de nações com um pensar coletivo
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em que há muito a fazer. Quase cinquenta anos se passaram para que um texto
jornalístico (T1) trouxesse a informação de que um terço dos recursos disponíveis do
planeta já foi gasto e que a população continua a crescer e consumir sem essa
percepção, ou ainda, de que o planeta deva estar à beira do colapso (como o próprio
termo utilizado em T2) produzindo 150 milhões de toneladas de plástico e desse total,
oito milhões de toneladas vão para o mar.
Motivada pelos grandes encontros de discussão sobre o futuro da Terra e em
datas especiais, como o Dia da Terra, a mídia se concentra em apresentar números e
situações de como anda o meio ambiente, informações gerais que não são
relacionadas entre si na grande maioria das vezes. Ainda são poucos os jornalistas que
se especializaram em reportagens sobre ecologia e, segundo Trigueiro (2005), muitas
vezes a noção de contexto desaparece devido às demandas do dia a dia do trabalho
jornalístico, mas é fundamental que o jornal denuncie assuntos paradoxos de modelos
de desenvolvimento e discuta sobre rumos da sustentabilidade.
Sobre a pergunta do título dessa sessão, vários encontros mundiais ocorreram
e muito foi discutido sobre os efeitos da poluição, mas pouco mudou para evitar as
alterações climáticas. Os termos deste parágrafo vários, muito e pouco são vagos, não
trazem números exatos nem perspectivas de melhoras, refletem, sim, incertezas, um
sentido de irresolução desde 1970 até meados de 2019.
Vale destacar que T1 faz duas chamadas para textos multimodais, uma foto de
pessoas que se uniram na "Hora do Planeta" e o vídeo "Human Population Through
Time" que não serão analisados por considerar apenas textos da modalidade escrita
como interesse de estudo deste capítulo.
2 Arcabouços Teóricos
A Linguística Sistêmico Funcional (LSF) (HALLIDAY, 2004) caracteriza-se,
especialmente, por conceber a linguagem como um potencial de construção de
significados sociais de que os indivíduos dispõem para expressar as experiências de
mundo. O escritor/falante4 torna-se um sujeito ativo e capaz de se comunicar
eficientemente em diferentes contextos a partir da concepção da gramática vista como
um sistema linguístico de produção de significados. Ao considerar todos os estratos
da linguagem, entende-se que este sistema não é arbitrário, e sim, uma possibilidade
de escolhas intrínsecas aos valores sociais e é nesse sentido que Halliday (1978)
estabelece três metafunções dos componentes da linguagem: ideacional, interpessoal
e textual. No bojo da metafunção interpessoal, encontra-se o Sistema de
Avaliatividade cunhado por Martin e White (2005) que concebe a língua em situações
de uso que permite a expressão de sentimentos e posicionamentos de valores dos
indivíduos. Nesse contexto de comunicação é estabelecida a relação entre
escritor/falante e leitor/ouvinte.
As escolhas lexicais e as formas inscritas em textos jornalísticos, no caso do
corpus escolhido, oferecem mecanismos avaliativos para retratar as interações sociais
4 Escritor/falante – termo adotado em LSF e Sistema de Avaliatividade.
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Discurso e poder: teoria e análise
por meio dos atores. O Sistema de Avaliatividade propõe a atribuição desses valores
a objetos, fenômenos e eventos por intermédio da linguagem. É constituído por
Atitude, Engajamento e Gradação e suas subcategorias. A Atitude é subdividida em
Afeto, responsável em compreender os sentimentos e as reações emocionais, em
Julgamento, com a avaliação de comportamentos dos indivíduos pertencentes no
discurso atribuindo uma estima ou uma sanção social, e em Apreciação que, por sua
vez, se preocupa com a composição estética em relação intrínseca com os objetos.
A categoria do Afeto tem a função de expressar as emoções no discurso que
estão diretamente ligadas ao avaliador e a categoria de Julgamento avalia o
comportamento humano de um sujeito ou de um grupo de pessoas, centrado no
autor, o que permite o crivo das normas sociais e ideologia, sendo assim, reconhece o
caráter e os valores que regem os comportamentos. O Julgamento de estima social
envolve aspectos básicos da relação social quanto à normalidade, capacidade e
tenacidade. A sanção social avalia a partir de um conjunto de regras que normalmente
estão inscritas em uma determinada cultura definida por regulamentos morais e
sociais, por isso, rege a valoração de honestidade e propriedade, quase sempre com
implicações sociais e/ou legais. Ambas categorias apresentam graus de polaridade,
caminhando do máximo de positividade ao extremo da negatividade.
A Apreciação avalia os fenômenos naturais e entidades do ponto de vista da
estética e da forma e está calcado no objeto, instituição ou fenômeno, não permitindo,
nesse sentido, uma avaliação subjetiva.
O sistema de Engajamento que traduz um posicionamento dialógico trata dos
recursos manifestados nos discursos pela forma de como a voz autoral está inscrita ou
invocada. Quando os enunciados não permitem a manifestação de nenhuma
referência a outras vozes e não trazem pontos de vista conflitantes, é considerado um
discurso monoglóssico. Já, os enunciados que invocam ou fazem referências a outras
vozes em uma dinâmica dialogal são os heteroglóssicos e estes são subdivididos em
contração e expansão dialógica.
E a terceira categoria é a Gradação, uma forma de compreender a intensidade
da ocorrência dos fenômenos e pode ser de dois tipos: Foco e Força. O Foco tem a
função de enfatizar ou atenuar as perspectivas do texto e concentra a avaliação quanto
à precisão dos discursos. A subcategoria denominada Força, muito utilizada como um
recurso linguístico na língua portuguesa, concentra a intensificação e a quantificação
das categorias, aquilo que pode ser colocado em escala, utilizando “mecanismos de
repetição e a utilização de prefixos e sufixos que aumentam ou diminuem a força das
avaliações” (VIAN Jr. 2009, p.118).
As categorias de análise do Sistema de Avaliatividade servirão para mostrar a
interação entre linguagem e contexto social, objetivo do estudo da Análise Crítica do
Discurso (ACD) juntamente com a LSF. A ACD admite a linguagem como uma prática
social e valoriza o contexto histórico e social que sustentam o discurso em
conformidade com o uso (FAIRCLOUGH, 1997). A marca "crítica" que compõe o nome
da teoria busca desvelar relações de assimetrias sociais com interesse nos estudos que
relacionam linguagem e poder. Como Wodak (2004) assevera, a ACD trata de três
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conceitos fundamentais que são o de poder, de história e de ideologia, como podese notar no excerto de Fairclough e Kress (1993) a seguir:
Uma abordagem realmente crítica do discurso exigiria, portanto, uma
teorização e descrição tanto dos processos e estruturas sociais que
levam à produção de um texto, quanto das estruturas e processos
sociais no seio dos quais indivíduos ou grupos, como sujeitos
sociohistóricos, criam significados em suas interações com os textos
(FAIRCLOUGH e KRESS, 1993, p. 2. apud WODAK, 2004).
Segundo Fairclough (2001), a linguagem é compreendida como prática social
e se interessa pela relação de poder, parcialmente sustentada pelo discurso (RESENDE
e RAMALHO, 2006), um movimento de construção no próprio processo discursivo, ou
seja, que leva em consideração a interação entre os usuários da língua.
Assim, para a ACD, o mundo não nos é dado, mas formulamos num
fluxo de nossas interações sociais, que formam, através de práticas
discursivas, versões da realidade que se realizam na linguagem, e não
a partir dela. (MELO, 2018, p. 23)
A relação de poder desigual social e politicamente entre aqueles que agridem
a natureza por interesse econômico e os que sofrem os efeitos dessa poluição, pessoas
oprimidas e meio ambiente danificados ou mortos compreende os temas que
interessam à Ecolinguística. Tanto a Ecolinguística como a ACD atuam no campo do
discurso e da sociedade com a capacidade de gerar modos de ação sobre o mundo
historicamente situado constituído a partir de identidades sociais.
Como Couto (2009) definiu, a Ecolinguística é o estudo das relações entre
língua e o meio ambiente e por ser um estudo recente, especialmente no Brasil, com
a maioria das publicações na década de 1980, apresenta diferentes teorias e
metodologias, uma vez que este estudo deve ter uma visão abrangente da linguagem
e que pode usar recursos de outras disciplinas, não se deve estabelecer uma
metodologia própria e respeitar a visão holística da linguagem. A importância de
estudar a Ecolinguística é trazer um novo ponto de vista em um discurso engajado pela
defesa do meio ambiente que possibilite uma visão crítica e a denúncia de falsos
discursos ambientalistas.
A ACD e a Ecolinguística se aproximam quando analisam discursivamente
temas que trazem, por exemplo, o desrespeito ao meio em que se vive e joga luz a um
problema escondido nos textos midiáticos. Tanto T1 como T2 não apresentam as
ações das indústrias e apagam completamente a responsabilidade da poluição desses
atores sociais. A irreversibilidade da poluição pela emissão de gases tóxicos foi
caracterizada como uma ação coletiva por todos os habitantes da Terra e a redução
desses gases na atmosfera é a única maneira de atenuar o descontrole climático e
proporcionar a possibilidade de continuidade da vida vegetal, animal e humana.
3 O que os textos contam além das informações
O verbo lembremos presente no título de T1, "No Dia da Terra, lembremos que
estamos no cheque especial", e os dois verbos que constam do título do T2, "Dia da
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Discurso e poder: teoria e análise
Terra: protejamos as espécies, cuidemos de nossa casa comum", indicam uma
suposição da ação e não uma ação que será realizada certamente pelos seres
humanos, mesmo com os termos estamos, nossa e comum que buscam, entre escritor
e leitor do jornal, um compartilhamento de responsabilidades com a Terra. As
manchetes ao mesmo tempo que trazem uma relação de afetividade com o uso de
léxicos integradores, afastam uma real possibilidade de concretude da ação.
Mesmo tratando de temas complexos, como esgotamento de recursos naturais
como processos irreversíveis para os seres vivos, T1 inscreve em "São soluções
inovadoras que, de uma forma inteligente, tenham um impacto positivo que some ao
que já foi perdido" uma alteração do sentimento de insegurança ou medo. Essa
mudança se dá pela própria palavra "positivo" que se refere diretamente a "impacto"
com o valor de Apreciação. Os termos "inovadoras" e "inteligente" configuram
também valores de Apreciação de "soluções" e "forma" e funcionam como gatilhos de
sentimentos de polaridade positiva. Esse movimento de esperança fica mais evidente
ainda com o sentido de "somar" que invoca uma transformação na ação de "perder"
expressa por "ao que já foi perdido".
A palavra "não" presente dezessete vezes em T1 e duas vezes em T2,
naturalmente, expressam atitudes de negatividade, porém a expressão "cheque
especial" no período "Segundo o Global Footprint Network (GFN), uma organização
que estuda esta questão, desde o dia 1º de agosto de 2018 entramos no 'cheque
especial'" (T1) atribui um valor de tensão, de medo com referência a um sentimento
de polaridade negativa, e o mesmo acontece com "impactos decisivos" quando em
T2 problemas ambientais são enumerados como "as mudanças climáticas, poluição,
desmatamento [...] são, entre outros, impactos decisivos sobre o que nos rodeia". O
termo "decisivo" não carrega valoração negativa por si só, mas ele é invocado na
construção do enunciado por fazer parte da lista previamente anotada. Mais que
polaridade negativa, ele carrega um sentido de impossibilidade de mudança ou de
melhora, fadado ao fim de tudo que nos rodeia.
O sentimento de perda da biodiversidade está inscrito com a marca adverbial
"infelizmente" no quarto parágrafo de T2 que consolida o verbo "definhar" de
expressão altamente negativa quanto à possibilidade de recuperação do meio
ambiente. Além disso, ainda o "gigantesco" enfatiza esse sentimento.
Na tentativa de imparcialidade como uma característica de textos jornalísticos,
os enunciados tendem a monoglossia, justamente por utilizarem referentes que
apagam o dialogismo em busca de verdades absolutas, sem a possibilidade de
refutação por parte do leitor. Porém, com o crescente volume de notícias ou textos
opinativos sobre a destruição da natureza, essa tendência se modificou e constantes
diálogos surgiram na última década. É o caso dos primeiros parágrafos dos dois textos
"Este é mais um artigo sobre o Dia da Terra, agora em 2019" (T1) (faz referência a
outros textos escritos anteriormente ou até que serão escritos ainda) e "Em nosso
planeta existem milhões de espécies que conhecemos e muitas que ainda precisam
ser descobertas" (T2) (estabelece um diálogo de cumplicidade entre os participantes
do discurso). Assim seguem os enunciados que trazem fatos ocorridos e
compartilhamento de ideias e ações, como o no parágrafo 2 "Pessoas acendem velas
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A (in)conscientização da preservação ambiental: análise avaliativa...
durante a campanha ambiental 'Hora do Planeta' em Cali, Colômbia" (T1) e "Este ano,
o lema se refere à biodiversidade de espécies existentes no planeta: 'Vamos proteger
nossas espécies' em T2.
Há permissão de outras vozes autorais, às vezes contraindo e, às vezes,
expandindo-as, como no jornal brasileiro que remonta dois diálogos, um que traz uma
voz sobre as classificações do próprio jornalismo apresentando os pontos de vista
quanto ao sensacionalismo e pessimismo em "Não queria escrever um artigo
sensacionalista ou pessimista, mas é importante destacar alguns pontos" e outro que
dialoga com a situação política do país que desde as eleições do ano anterior à
publicação estava vivendo uma polarização ideológica frente ao comunismo e
socialismo "E aí não é papo de comunistas ou socialistas, ou rótulos que queiram
colocar." Essas situações conversacionais invocam contextos anteriores que poderiam
causar desconforto em debates e o jornalista já se antecipa com uma justificativa para
suas escolhas de posicionamento. A negação de "Como se isso não bastasse, a
poluição, como alerta a ONU, é responsável por uma em cada seis mortes no mundo,
matando mais pessoas do que a guerra, a fome e os desastres naturais" (T2) desvela
uma voz autoral de contraposição ao parágrafo anterior que afirma que o planeta está
à beira de um colapso. Estar à beira de um colapso já seria uma informação ruim para
os viventes do planeta e a expressão "como se não bastasse" vem acrescentar que há
mais coisas ruins, que aquilo (estar à beira do colapso) não era ainda o bastante, além
de evocar e nomear os coisas ruins, que são a guerra, fome e desastres naturais.
Na tentativa de aproximar o leitor e se fazer entender, ambos os textos trazem
exemplos didáticos para explicar o que está acontecendo com o meio ambiente e,
assim, apresentam vozes de outrem. T1, na verdade, traz duas citações para trocar em
miúdos conceitos complexos de progressão aritmética e geométrica da matemática,
desenvolvida por um economista britânico, por algo corriqueiro do dia a dia das
pessoas que é o cheque especial. Ao utilizar elementos da vida financeira estabeleceu
metaforicamente uma associação com o crescimento populacional e disponibilidade
de recursos. A outra associação, até com apelo da ludicidade, é com uma produção
cinematográfica da Marvel que traz os Vingadores como elemento comparativo. T2
utiliza a voz de um especialista para ilustrar a perda de seres vivos, que através do
próprio exemplo de Donald Falk, professor de ecologia na Universidade do Arizona,
associa a extinção da fauna e flora com a possibilidade de colapso de um prédio, como
mostra o excerto a seguir:
As espécies são como tijolos na construção de um prédio. Podemos
perder uma ou duas dúzias de tijolos sem a casa balançar, mas se 20%
das espécies desaparecerem, toda a estrutura se desestabiliza e entra
em colapso. É assim que funciona um ecossistema. (LOPÉZ, 2019)
No subtítulo de T2 e com o mesmo período repetido no quarto parágrafo
"Estima-se que todos os dias entre 150 e 200 espécies da flora e da fauna
desapareçam da Terra, ritmo mil vezes maior do que o da extinção natural", o verbo
"estimar", apresentado na passiva sintética, sugere um afastamento da voz autoral, ou
seja, a atribuição da responsabilidade da estimativa não é atribuída a ninguém,
marcando um sistema expansivo de vozes no texto, além da imprecisão dos dados
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Discurso e poder: teoria e análise
numéricos assinalados por "entre" que corrobora com essa expansão. Parece, dessa
forma, que o jornal amplia sua perspectiva e interage com outras vozes (talvez de
especialistas em extinção vegetal e animal que conheçam outros dados estatísticos),
revelando como proposto por Martin e White (2005) um menor grau de
comprometimento com as afirmações do texto.
O enunciado de T2 que fornece os dados de que 150 a 200 espécies de fauna
e flora são extintas por dia não confirma se este intervalo representa um número
relativo ou absoluto. Outra dúvida que pode aparecer para o leitor é de onde veio
esses dados e, especialmente, onde a coleta da amostragem das espécies foi
realizada. No mínimo, essas taxas de extinção deveriam informar as condições e o local
da contagem. Só para citar um exemplo de quão vago esses números podem ser, a
teoria de biogeografia de ilhas (MACARTHUR E WILSON, 2001) estabelece uma
relação de área geográfica com a riqueza de espécies, considerando o tamanho e o
isolamento dessa área e a quantidade de mortes/extinção e imigração/colonização,
em um movimento dinâmico que tende a um turnover (equilíbrio da biodiversidade).
Esse equilíbrio não se refere a permanência de animais e plantas de mesmas espécies,
mas a um equilíbrio de quantidade de espécies vivas em um determinado habitat após
movimentos em ciclos dinâmicos e, nesse caso, a informação do texto pode levar a
uma interpretação equivocada da realidade contrariando um princípio da Biologia que
conta com outras ciências como a geografia, matemática, física e química para
compreender o que acontece com os seres vivos e suas relações com os recursos
abióticos no mundo real. A Ecolinguística, segundo Couto (2015) não usa conceitos
ecológicos como metáforas para estudar fenômenos da linguagem e sim parte do
interior dos estudos da ecologia a fim de compreender a ecologia biológica. Cabe
então uma ressalva de que tal inexatidão marca um posicionamento do veículo
comunicativo potencializando a ação humana dos poluidores de forma negativa em
detrimento da extinção natural inscrita no final do parágrafo e, sendo assim, corrobora
para o estado de atenção e medo mobilizados nos leitores quanto à destruição do
meio ambiente, Afeto descrito por Marin & White (2005) de forma invocada e de
polaridade negativa. O Julgamento como subcategoria de Atitude, dos mesmos
autores, explica essa expressão numérica de extinção de espécies da fauna e flora
como um resultado de práticas sociais de recriminação dos que agem na contramão
do bem-estar e da preservação da vida, como acrescenta Gonçalves-Segundo (2011,
p.172) "Por essas razões, os julgamentos de sanção social implicam atitudes não de
admiração
ou
estranhamento,
mas
sim,
de
louvor/destaque
ou
condenação/recriminação".
Potencializar, exagerar são termos que levam à conotação de grande e por sua
vez de bom e os escritos que envolvem temas da natureza acabam por trazer
constantemente adjetivos que exprimem grandezas. Couto (2009) explica que isso
acontece na tentativa de valorizar os feitos industriais e as conquistas financeiras em
contrapartida de minimizar os efeitos nocivos à sociedade e justificar o lucro. “ O que
não pode ser deixado de lado são as críticas quanto ao uso de intensificadores
positivos e de grandeza para qualificar o desenvolvimento” (COUTO, 2009, p.145).
Porém os textos de alerta ou de denúncia (T1 e T2) inscrevem o exagero nos perigos
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A (in)conscientização da preservação ambiental: análise avaliativa...
e danos, como o exemplo discutido no parágrafo acima e na reincidência de números
que expressam grande quantidade como o superlativo altíssimo se referindo a lucro
em T1 e milhões com cinco aparições no texto T2 que contabilizam espécies, tempo,
toneladas de plásticos produzidos e descartados, além de pessoas em manifestações.
Se milhões já parece uma grande quantidade, na casa de bilhões, T1 afirma, segundo
dados da ONU, a Terra terá mais 2,2 bilhões de habitantes e que a condição de
pobreza é de 3,8 bilhões de pessoas e em T2, mais de um bilhão de pessoas em 190
países comemoram o Dia da Terra. Comparativos como maior, intensificadores como
mais e muitos e suas variantes evocam esse grau de superioridade, que ampliam e
enaltecem o tamanho e o número do referente, como alguns exemplos a seguir:
Ex1.: [...] consumindo recursos mais rápidos do que o planeta os regenera. (T1)
Ex2.: [...] a Terra não consegue mais repor. (T1)
Ex3.: [...] os que mais sofrerão serão os que se dizem mais evoluídos. (T1)
Ex4.: [...] maior ritmo de extinção de espécies [...] (T2)
Ex5.: [...] conhecido em muitos países
A repetição de grandezas e o uso de intensificadores é um recurso
categorizado como Gradação na subcategoria de Força no Sistema de Avaliatividade
(MARTIN & WHITE, 2005) para reforçar que o problema da poluição é de grande
dimensão para o planeta.
Considerações finais
As pautas dos textos analisados são diferentes, apesar do tema comum, mas
ambos se assemelham quanto ao alerta sobre a poluição do meio ambiente e uso dos
recursos naturais. O que mais aproxima os dois textos, mesmo sendo produzidos em
países distintos, é o ocultamento dos reais poluidores da terra. Não há menção de
nenhuma indústria, nenhuma usina foi citada e, nem mesmo, os mandatários dos
desmatamentos e dos descartes foram identificados. Os estudos da Ecolinguística
tornam-se cada vez mais necessários porque representam um novo ponto de vista
disponível aos linguistas em defesa da natureza. Ao relacionar língua e discurso com
assuntos sobre ecologia é possível formar cidadãos mais preocupados com questões
ambientais.
A imprensa dificilmente trata dos assuntos ecológicos com profundidade ou
clareza, quer por posicionamentos ideológicos, pois não se compromete com a
denúncia, quer por desconhecimento científico de biologia e suas especializações na
ecologia.
Levando em consideração que o discurso é historicamente produzido e
interpretado pelo tempo e espaço, falta aos dois jornais uma contextualização dos
processos poluidores que foram mascarados na entrega para o leitor. A aplicação do
termo sustentabilidade depende da conscientização, e os meios de comunicação não
contribuem efetivamente para este conhecimento.
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Discurso e poder: teoria e análise
Os encontros ambientais e a criação do Dia da Terra foram eventos importantes
para difundir os índices de poluição que a natureza enfrenta, mas pelo que pudemos
observar nas matérias dos jornais analisados, isso está no lugar da conscientização do
problema e não na resolução dele. Pouco foi feito porque os verdadeiros poluidores
não estavam presentes nesses encontros e ações punitivas efetivas não foram
desenvolvidas para quem descumprisse os acordos. Os elementos linguísticos de
avaliação das atitudes dos atores sociais, conforme proposto como objetivo deste
trabalho, descartam as ações industriais desse processo. Os constantes recursos de
apagamento dos reais e maiores causadores da poluição causam uma sensação de
equidade no ato de poluir compartilhado com todas as pessoas do planeta.
Retomando o que assume Fairclough (1997) de que a linguagem pode revelar as
assimetrias de poder do discurso, os ambientalistas ganham vozes que se mostram
como evidências e protestos nos jornais, e as indústrias (sem identificações), mesmo
com seu poderio econômico, não ganham vozes, não precisam de justificativas e nem
de prestação de contas. E voltando ao título do capítulo, pode-se dizer que há uma
inconscientização da preservação ambiental.
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New Jersey: Princeton University Press, 2001.
MARTIN, James Robert & WHITE, Peter. The language of evaluation: appraisal In
English. New York/Hampshire: Palgrave Macmillam, 2005.
MELO, Iran Ferreira de. Histórico da análise de discurso crítica. In: BATISTA JR., José
Ribamar Lopes; SATO, Denise Tamaê Borges; MELO, Iran Ferreira de (orgs.). Análise
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LÓPEZ, Alberto. Dia da Terra: protejamos as espécies, cuidemos de nossa casa
comum.
Disponível
em
https://brasil.elpaís.com/brasil/2019/04/22/ciencia/1555913819_890116.html. Data
de Acesso: 25. abr.2019
NAKAGAWA, Marcus. No Dia da Terra, lembremos que estamos no cheque especial.
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/empreendedorsocial/2019/04/no-diada-terra-lembremos-que-estamos-no-cheque-especial.shtml
Data
de
Acesso:
25.abr.2019
RAMOS, Luis Fernando Angeramim. Meio Ambiente e Meios de Comunicação. São
Paulo, Annablume, 1996.
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WODAK, Ruth. Do que trata a ACD - um resumo de sua história, conceito e
movimentos e seus desenvolvimentos. Linguagem em (Dis)curso. Vol.4, número
especial, 2004.
ARAES, Célia Regina | 2020 | p. 33-51
47
Discurso e poder: teoria e análise
ANEXO 1
Texto citado no artigo como T1 - No Dia da Terra, lembremos que estamos no
cheque especial
22.abr.2019 às 7h00
Marcus Nakagawa
Este é mais um artigo sobre o Dia da Terra, agora em 2019. Apesar de ser
comemorado e difundido desde a década de 1970, esta data só foi oficializada na 80ª
Assembleia Geral das Nações Unidas, em 2009. Ou seja, este ano o Dia Internacional
da Mãe Terra faz, oficialmente, dez anos. Viva a Mãe Terra!
Quando falamos na Mãe Terra nos lembramos sempre da natureza, das belas
paisagens dos vídeos maravilhosos que os canais de documentários mostram, dos
animais em seu habitat, dos oceanos e suas lindas formações e cores. Não queria
escrever um artigo sensacionalista ou pessimista, mas é importante destacar alguns
pontos.
O primeiro deles é que estamos consumindo recursos mais rápido do que o planeta
os regenera. Sim, as nossas gerações estão retirando muito mais recursos (minerais,
animais, plantas, água etc.) do planeta do que talvez precisamos.
Segundo o Global Footprint Network (GFN), uma organização que estuda esta
questão, desde o dia 1º de agosto de 2018 entramos no “cheque especial”. Ou seja,
desde esta data estamos pagando os “juros” do planeta, nossa conta zerou e o que
estamos gastando dos recursos naturais a Terra não consegue mais repor.
Mas, lembrando que só temos um planeta! E que não temos um lastro de um banco
por trás, como no verdadeiro cheque especial e seus juros altíssimos no Brasil.
Se pensarmos por este prisma, cerca de um terço dos recursos do planeta já se foram,
segundo alguns cientistas. Então, não podemos mais falar de sustentabilidade, já que
o modelo que estamos “sustentando” não adiantará, pois cada vez mais a perda está
aumentando. Para isso, já existe um conceito e um movimento de ativistas falando de
regeneração.
A ideia deste movimento é buscar alternativas que, ao mesmo tempo, impactem
menos e ajudem a regenerar o planeta. São soluções inovadoras que, de uma forma
inteligente, tenham um impacto positivo que some ao que já foi perdido. Muitas das
inovações passam por questões tecnológicas e de mudanças de estilo de vida.
Sim, precisamos pensar e criar novos modelos, pois, no segundo ponto, temos o
crescimento da população e as suas necessidades. Segundo a ONU, numa notícia de
outubro de 2018, o mundo terá mais 2,2 bilhões de pessoas até 2050.
O vídeo abaixo mostra exatamente o que estamos passando desde os tempos antigos.
Mas a ideia é que, se tivermos tudo isso de pessoas neste estilo de vida que temos na
classe média no Brasil, ou nos EUA, será que teremos recursos naturais suficientes para
a Mãe Terra nos prover?
Thomas Malthus, um economista britânico nascido em 1766, colocou que o
crescimento demográfico é em progressão geométrica e os meios de subsistência
poderiam crescer somente em progressão aritmética.
Para quem não entende muito de matemática, ele coloca exatamente o que foi
descrito acima no termo do “cheque especial”: a população cresce, mas a produção
dos recursos naturais não acompanha. Ele estava prevendo tudo isso? Não sei, mas é
óbvio que, como muitos cientistas rebateram a este conceito, Malthus não levava em
consideração um monte de variáveis.
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48
Anexos - A (in)conscientização da preservação ambiental: análise avaliativa...
Até a Marvel: nos Vingadores (isso mesmo, filme blockbuster) o vilão Thanos, com a
sua super manopla com as joias do infinito, seguiu este pensamento para fazer menos
pessoas sofrerem de fome e necessidades não atendidas (sem mais spoiler).
Pois esse é o terceiro ponto. Com todo este movimento de uso da nossa Mãe Terra no
"cheque especial", existem muitas pessoas passando fome e vivendo abaixo da linha
da pobreza.
Segundo o jornal O Globo, os 26 mais ricos do mundo têm a riqueza dos 3,8 bilhões
mais pobres. E aí não é papo de comunistas ou socialistas, ou rótulos que queiram
colocar. Não estou gerando a briga de classes ou estas outras teorias que vendem
jornais ou artigos ou campanhas políticas. Estou colocando que não adianta
explorarmos os recursos naturais de forma exagerada, nem os recursos humanos
(como o pessoal das empresas dizem) para alguns somente.
Sim, fazemos parte da Mãe Terra, somos seres como todos os outros, não o centro do
universo (antropocentrismo). Temos que ter direitos a sobreviver dignamente como
todos os outros seres vivos aqui na Terra: comer, viver, dormir, beber, respirar etc.
Para isso, temos até uma declaração em que vários seres humanos se juntaram e
falaram que esta era a regra para todos aqueles que são pessoas. Esta é a Declaração
Universal dos Direitos Humanos, que fez 70 anos em 2018.
E, de novo, não estamos falando de uma ideologia, um partido ou uma forma de
pensar. Estamos falando da Mãe Terra e de todos os seus filhos que aqui habitam! E
somos também habitantes e parte dela. Se o “cheque especial” cada vez piorar, os que
mais sofrerão serão os que se dizem mais evoluídos.
E, se somos tão evoluídos, que conseguimos ir para Marte, fazer inteligência artificial,
robôs, tecido humano artificial, entre outras coisas, não é possível que não
conseguimos entender e gerenciar estes problemas da superpopulação, do
aquecimento global e do “cheque especial”. Sim, temos muitos outros problemas.
E você está fazendo o que para resolver? Só reclamando nas redes sociais, nos
comentários de posts? Ou atuando de verdade?
Viva o dia da Mãe Terra fazendo alguma ação mais sustentável e/ou regenerativa!
Chega de “cheque especial” do planeta!
Marcus Nakagawa
Professor da ESPM e coordenador do Centro ESPM de Desenvolvimento
Socioambiental (Ceds), é idealizador e diretor da Abraps e palestrante sobre
sustentabilidade, empreendedorismo e estilo de vida
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Discurso e poder: teoria e análise
ANEXO 2
Texto citado no artigo como T2 - Dia da Terra: protejamos as espécies,
cuidemos de nossa casa comum
Estima-se que todos os dias entre 150 e 200 espécies da flora e da fauna desapareçam
da Terra, ritmo mil vezes maior do que o da extinção natural
ALBERTO LÓPEZ
Madri 22 ABR 2019 - 12:37 BRT
Em nosso planeta existem milhões de espécies que conhecemos e muitas que ainda
precisam ser descobertas. A conscientização nos últimos anos sobre a proteção e o
cuidado do meio ambiente revelou que nós mesmos, os seres humanos, alteramos o
equilíbrio da natureza a ponto de enfrentarmos o maior ritmo de extinção de espécies
desde que perdemos os dinossauros há mais de 60 milhões de anos.
O Dia da Terra, que está sendo comemorado nesta segunda-feira, tenta conscientizar
o mundo a cada 22 de abril sobre a necessidade de proteção do meio ambiente e de
conservação da Terra. Este ano, o lema se refere à biodiversidade de espécies
existentes no planeta: "Vamos proteger nossas espécies".
A destruição global e sem precedentes que testemunhamos ao nosso redor, bem
como a redução das populações de plantas e de animais selvagens, está diretamente
relacionada à atividade humana: mudanças climáticas, poluição, desmatamento,
agricultura insustentável e pesticidas, tráfico e caça ilegal de animais, perda de habitat
... são, entre outros, impactos decisivos sobre o que nos rodeia.
Sobre a biodiversidade, que é a variedade de seres vivos existente no planeta, estimase que a quantidade de espécies da flora e fauna que desaparece na Terra esteja entre
150-200 a cada 24 horas. Este ritmo faz a biodiversidade da Terra definhar a passos
gigantescos e, infelizmente, os humanos têm tanto a ver com o problema que o ritmo
atual é mil vezes maior do que se fosse uma extinção natural de espécies.
Donald Falk, professor de ecologia na Universidade do Arizona, explica isso de
maneira ilustrativa: "As espécies são como tijolos na construção de um prédio.
Podemos perder uma ou duas dúzias de tijolos sem a casa balançar, mas se 20% das
espécies desaparecerem, toda a estrutura se desestabiliza e entra em colapso. É assim
que funciona um ecossistema".
O planeta está à beira do colapso quase sem nos darmos conta. Produzimos 150
milhões de toneladas de plástico de um só uso por ano e, destas, oito milhões de
toneladas acabam no mar; nos últimos 25 anos, o nível de água do mar aumentou o
dobro do esperado; 40% da população mundial já tem problemas devido à escassez
de água ... e se o planeta consumisse ao ritmo da Espanha, por exemplo, no dia 11 de
junho ficaríamos sem recursos na Terra para um ano.
Como se isso não bastasse, a poluição, como alerta a ONU, é responsável por uma em
cada seis mortes no mundo, matando mais pessoas do que a guerra, a fome e os
desastres naturais.
Por estas razões, é mais do que justificado comemorar o Dia da Terra, e fazer isso não
como uma celebração isolada, mas como uma recordação constante de que todos os
dias colocamos nosso planeta em risco. Nós estamos sofrendo hoje os efeitos
devastadores da ação humana, por isso, mais do que tentar deixar o planeta melhor
para as próximas gerações, estamos falando de poder viver de forma sustentável nos
próximos anos graças à conscientização pela educação para alcançar uma ecologia
integral: ou seja, uma ecologia ambiental, econômica e social; uma ecologia cultural;
uma ecologia da vida cotidiana; uma ecologia guiada pelo princípio do bem comum
e também pela justiça entre países, continentes e gerações.
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Anexos - A (in)conscientização da preservação ambiental: análise avaliativa...
Celebramos o Dia da Terra, também conhecido em muitos países como da Mãe Terra,
para lembrar que o planeta e seus ecossistemas nos dão a vida e o sustento e assumir
a responsabilidade coletiva de promover essa harmonia com a natureza e a Mãe Terra.
Este dia, estabelecido pelas Nações Unidas, nos dá a oportunidade de aumentar a
conscientização de todos os habitantes do planeta sobre os problemas que afetam a
Terra e as diferentes formas de vida que se desenvolveram no planeta, porque a Terra
e seus ecossistemas são a nossa casa. Assim, para alcançar um equilíbrio justo entre as
necessidades econômicas, sociais e ambientais das gerações presentes e futuras, é
necessário promover a harmonia entre ambos.
Dia da Terra é um evento comemorado por mais de um bilhão de pessoas em 190
países. Manifestações com a cor verde como protagonista, plantio de árvores, limpeza
de florestas e praias e atividades em defesa do meio ambiente e conscientização
política marcam este dia.
O promotor da celebração foi o senador norte-americano Gaylord Nelson, que criou
em 1970 este dia para instigar uma consciência comum dos problemas de poluição e
da conservação da biodiversidade, além de outras preocupações ambientais para
proteger a Terra. Nesse ano, começou nos Estados Unidos um movimento
ambientalista que levou às ruas 20 milhões de pessoas para lutar por um ambiente
mais saudável.
Com o sucesso da manifestação, os políticos também ficaram cientes da importância
da natureza e do cuidado com o meio ambiente, e foi criada a Agência de Proteção
Ambiental dos Estados Unidos, que é responsável pelas leis para obter ar limpo e água
potável, e conservar espécies em perigo de extinção.
Há quase 50 anos, organizações internacionais e Estados têm tentado criar uma
consciência ambiental para preservar o planeta. A Conferência das Nações Unidas
sobre o Ambiente Humano, realizada em 1972, em Estocolmo, lançou as bases para
uma conscientização mundial da interdependência entre os seres humanos, outros
seres vivos e nosso planeta, e é por isso que se fixou o 5 Junho como o Dia Mundial
do Meio Ambiente, ao mesmo tempo em que se criava o Programa das Nações Unidas
para o Meio Ambiente (PNUMA), que é a agência da ONU responsável por estabelecer
a agenda ambiental global.
Em 1992, mais de 178 países assinaram a Agenda 21, a Declaração do Rio sobre Meio
Ambiente e Desenvolvimento e a Declaração de Princípios para a Gestão Sustentável
das Florestas durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento (UNCED). Em 2005, a Assembleia Geral declarou 2008 o Ano
Internacional do Planeta Terra para promover o ensino das ciências da Terra e fornecer
à humanidade as ferramentas necessárias para o uso sustentável dos recursos naturais.
Em 2012, foi realizada a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento
Sustentável, também conhecida como Rio+20. Seu resultado foi um documento que
continha medidas e práticas para o desenvolvimento sustentável. Além disso, os
Estados membros decidiram iniciar um processo para estabelecer os Objetivos de
Desenvolvimento Sustentável (ODS), que se baseariam nos Objetivos de
Desenvolvimento do Milênio e coincidiriam com a Agenda de Desenvolvimento
depois de 2015.
Neste ano, também se celebra o nono Diálogo sobre Harmonia com a Natureza da
Assembleia Geral das Nações Unidas, que será realizado nesta segunda-feira, dia 22,
na sede da ONU, em Nova York, na Sala do Conselho de Administração de Tutela, e
vai focar no tema A Mãe Terra na Aplicação da Educação sobre as Mudanças Climática'.
Além disso, em 23 de setembro, haverá a Cúpula do Clima, organizada pelo
secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, para tratar das mudanças
climáticas e acelerar a implementação do Acordo de Paris sobre a Mudança Climática.
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Discurso e poder: teoria e análise
Em suma, há muitos pequenos gestos que cada um de nós pode fazer diariamente
para cuidar da Casa Comum que é o nosso planeta. O mais eficaz, sem dúvida, é agir
como se todos os dias fossem o dia que comemoramos nesta segunda-feira: o Dia da
Terra.
Como citar
ARAES, Célia Regina. A (in)conscientização da preservação ambiental: análise
avaliativa de textos jornalísticos sobre o Dia da Terra. In: GONÇALVES-SEGUNDO,
Paulo Roberto; ARAES, Célia Regina; CASTANHEIRA, Claudia; ISOLA-LANZONI,
Gabriel; PENITENTE, Natalia; WEISS, Winola (orgs). Discurso e poder: teoria e
análise. São Paulo: FFLCH/USP, 2020, p. 33-51. DOI: 10.11606/9786587621241
ARAES, Célia Regina | 2020 | p. 33-51
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Discurso em Hannah Arendt: sobre o sentido político de falar ...
Discurso em Hannah Arendt:
sobre o sentido político de falar
sobre o mundo e narrar uma
história
Crislei de Oliveira CUSTÓDIO
Universidade Ibirapuera
[email protected]
Resumo: Este artigo objetiva explorar o tema do discurso na
obra de Hannah Arendt. Entendido como par indissociável da
ação, o discurso, nessa perspectiva, pode também ser
entendido como ação. E essa ação, de acordo com a autora,
revela quem alguém é, ou seja, a sua singularidade e unicidade
que, como ver-se-á no presente trabalho, é espacial, uma vez
que diz respeito ao lugar em que se ocupa e de onde se
percebe o mundo, e temporal, dado que se insere na trama da
teia de relações humanas e constitui o fio e narrativa de uma
vida.
Palavras-chave: Ação; Discurso; Narrativa; Memória; Hannah
Arendt.
Introdução
O mundo, tal como concebe Hannah Arendt, é o espaço de intercâmbio das
relações dos sujeitos com os objetos – sejam eles de uso ou obras de arte – e com seus
pares. Essa intermediação, no que se refere à interligação entre os sujeitos, imprime
no mundo comum uma teia de relações humanas formada por atos e palavras
proferidos pelos agentes que o compõem. Na medida em que o sujeito é dotado da
capacidade de agir e, ao fazê-lo, apresenta-se aos seus semelhantes por meio de seus
atos e palavras, inicia-se um processo em que suas impressões e sua singularidade
revelada deparam-se – e, por vezes, confrontam-se – com as impressões e as
identidades e singularidade tanto daqueles que lhe são contemporâneos, quanto de
seus antepassados.
Ora, esta exposição inicial sobre a teia de relações humanas, feita desta
maneira, pode parecer-nos mais complexa do que realmente é. No entanto,
reservadas todas as peculiaridades referentes a esse tema, o mais importante para os
fins deste texto é termos em mente que a interposição do mundo entre os sujeitos
permite o estabelecimento de interesses específicos e comuns, os quais, na acepção
literal da palavra, constituem-se como “algo que inter-essa, que está entre as pessoas
e que, portanto, as relaciona e interliga” (ARENDT, 2007, p. 195).
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Discurso e poder: teoria e análise
A teia de relações humanas é composta, especificamente, pela ação e pelo
discurso daqueles que estão inseridos no mundo. Arendt, ao conceituar a ação, parte
de dois verbos do grego antigo: árkhein, que significa começar, e práttein, que é
definido como governar, levar a cabo. Dessa forma, a autora designa a ação como algo
que se dá, necessariamente, na presença dos outros e que consiste no começo e na
tomada de iniciativa por alguém, desencadeando assim um processo imprevisível que,
em contato com os demais sujeitos, pode ser conduzido e levado a cabo por eles.
Nessa perspectiva, a ação, como início que representa, é a efetivação da
condição humana da natalidade – isto é, o fato de que seres novos chegam ao mundo
e possuem a capacidade de imprimir o novo –, e o discurso é a concretização da
condição humana da pluralidade – o fato de que cada sujeito é um ser singular e
distinto entre iguais. Daí, ação e discurso relacionam-se intimamente, uma vez que a
ação revela o início de um novo processo e o discurso revela o autor do processo
iniciado.
Tais atividades – ação e discurso – são tidas como as mais fúteis da vita activa.
Não obstante, é no decorrer delas que o sujeito se humaniza, na medida em que se
revela ao mundo e, neste fenômeno, manifesta seu caráter singular. É fato que a
transformação da matéria em objetos artificiais, ou seja, a fabricação, denota a
característica e a capacidade humanas de produzir coisas para o mundo humano;
porém, em tal atividade, não é o artífice que se revela, mas o artefato. Isso ocorre
porque, ao término da fabricação, há a separação entre o sujeito e a obra, sendo que
esta recebe significados e usos no mundo para além daquele que a produziu –
diferentemente da ação, que se dá apenas no momento em que o agente a
desencadeia.
A aparência no mundo e a consequente revelação do agente por meio de seus
feitos e palavras são um ponto fundamental no pensamento arendtiano, pois
consistem no alicerce da política. Além disso, é no intercâmbio de opiniões na esfera
pública que o agente não apenas aparece e enuncia o que e como vê o mundo a partir
do lugar que nele ocupa, como também apreende percepções, discursos e opiniões
distintas da sua, as quais, ao encontrar-se só na atividade do pensamento, podem
permitir o alargamento a sua mentalidade por meio do diálogo consigo mesmo que,
através da imaginação, convoca diferentes interlocutores ao pensar.
1 Ação e discurso e a revelação do sujeito
Ação e discurso, as atividades mais humanas e humanizadoras que há do ponto
de vista arendtiano, têm como característica certa fragilidade, dado que se dão em
uma relação intersubjetiva no tempo presente, não deixando atrás de si rastros
concretos de existência, mas sim, imprimindo processos que desencadeiam uma
cadeia de novas ações e discursos não previsíveis e nem controláveis. Atos e palavras
acontecem e encerram-se, como uma performance, uma cena que, para além da
lembrança daqueles que empreenderam ou presenciaram a ação, que disseram ou
escutaram as palavras ditas, se esvaem sem constituir algo concreto e durável, como
são os objetos que resultam da atividade da fabricação. Em resumo, atos e palavras
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Discurso em Hannah Arendt: sobre o sentido político de falar ...
não constituem artefatos e sim histórias e lembranças que, caso não sejam passadas
adiante, se dissipam no tempo, desaparecem para sempre.
De acordo com Arendt, diante dessa fragilidade da ação e do discurso, os
gregos empregaram como solução a formação de uma esfera pública onde os
cidadãos podiam agir em concerto. Tal esfera dedicada aos negócios humanos era a
polis e a ela eram designadas duas funções:
Em primeiro lugar, […] a polis deveria multiplicar-lhes as
oportunidades de conquistar ‘fama imortal’, ou seja, multiplicar para
cada homem as possibilidades de distinguir-se, de revelar em atos e
palavras sua identidade singular e distinta. […] A segunda função da
polis, […] era remediar a futilidade da ação e do discurso; pois não
era muito grande a possibilidade de que um ato digno de fama fosse
realmente lembrado e «imortalizado» (ARENDT, 2007, p. 209).
Na polis, os cidadãos1 estabeleciam uma comunidade de iguais em que, por
intermédio de suas palavras e ações, podiam revelar suas identidades. Assim, ao passo
que tinham a ‘isonomia’ – “igual participação de todos os cidadãos no exercício do
poder” (VERNANT, 2009, p. 65) – assegurada, os cidadãos da polis tinham a
oportunidade de aparecer diante de seus pares e de distinguir-se por meio do
discurso. Esse local onde todos podiam ver e serem vistos, ouvir e serem ouvidos, era
o espaço que resguardava as histórias dali procedentes; pois “a organização da polis,
fisicamente assegurada pelos muros que rodeavam a cidade, e fisicamente garantida
por suas leis […] é uma espécie de memória organizada” (ARENDT, 2007, p. 210).
Isso significa que os homens da polis – os quais a si intitulavam como isoi2 ─,
por meio da interação contínua que mantinham na ágora, não apenas se mostravam
uns aos outros, como também conservavam a imagem imortalizada daqueles que os
antecederam. Essa interação assenta-se no fato de que aparecemos de forma tangível
no mundo comum. Ou seja, como a própria palavra diz, a inter-ação – ligação
estabelecida entre uma ação e outra na teia de relações humanas – só é possível na
presença de outros, os quais são capazes de ver e serem vistos pelos demais, bem
como de ouvir e serem ouvidos.
Como seres do mundo, nós aparecemos uns para os outros, tal como os
artefatos que compõem a objetividade deste mundo humano. Assim,
aparecer é mostrar-se: o aparecer pressupõe outros seres aos quais
nos mostramos. A pluralidade, conceito central da filosofia política de
H. Arendt, fundamenta-se nesta fenomenologia geral; a pluralidade é
a ‘lei da terra’. O aparecer é um co-aparecer: os outros aos quais
apareço, aparecem-me, por sua vez. O sujeito puro espectador não
existe [,] cada um é, simultânea e indissociavelmente, espectador e
ator (ROVIELLO, 1997: 13).
1 Eram considerados cidadãos os homens livres, maiores de 20 anos e nascidos em Atenas. Esses homens,
uma vez liberados do labor para a manutenção de sua vida e de sua família, dedicavam-se aos assuntos
da polis. Para isso, tais cidadãos possuíam escravos que realizavam todos os esforços ligados à
subsistência e à economia. Nessa sociedade, a escravidão era não apenas justificada, como também era
um de seus alicerces.
2 Iguais.
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Discurso e poder: teoria e análise
Isso quer dizer que a aparência é o evento primordial de nossa existência e que,
para que se efetive, é indispensável a presença de outros que reconheçam esse
mostrar-se. Arendt afirma, aliás, que o que temos em comum com os demais seres
vivos e com as coisas do mundo é a aparência, ou seja, o fenômeno que nos torna
capazes de sermos percebidos por meio dos órgãos sensoriais. Dessa forma, tal como
tudo o que existe no mundo, os sujeitos podem ser ouvidos, vistos, cheirados e
tocados.
Nossa aparência, como já dissemos, está vinculada à existência de outros seres
sensíveis, em relação aos quais nos é permitido perceber e sermos percebidos;
apreender e sermos apreendidos. Nossa existência, pois, é tão objetiva quanto a
existência das coisas do mundo, o que, por um lado, torna-nos sujeitos – ao agirmos e
aparecermos para os outros –, e, por outro, objetos – ao sermos notados
sensorialmente pelos outros que nos circundam. Portanto, “a mundanidade das coisas
vivas significa que não há sujeito que não seja também objeto e que apareça como tal
para alguém que garanta sua realidade «objetiva»” (ARENDT, 2008b, p. 36).
Segundo o pensamento arendtiano, na medida em que chegamos ao mundo
e aparecemos de lugar nenhum, e daqui partimos, desaparecendo para lugar
nenhum, o ser e o aparecer são a mesma coisa; afinal, nossa existência apenas se torna
real diante da confirmação dos outros por meio da percepção dos sentidos. Ademais,
chegamos ao mundo dotados de órgãos sensoriais que nos permitem apreender as
coisas deste mundo e fazer dele não apenas nossa morada, mas algo do qual fazemos
parte. Em outras palavras, não viemos ao mundo somente para nele estar, mas sim
para pertencer-lhe, já que, como pessoas equipadas para lidar com as aparências que
o compõem, somos seres do mundo.
Como seres do mundo que somos, aparecemos aos outros continuamente e,
nesta aparência, mostramos tanto nossa forma – características físicas –, quanto
expomos quem somos. Isto é, em nosso aparecimento, revelamos não somente aquilo
que nos é dado, mas também nossas identidades, nossa singularidade e aquilo que
queremos que seja visto pelos outros.
As coisas vivas aparecem em cena como atores em um palco montado
para elas. O palco é comum a todos os que estão vivos, mas ele
parece diferente para cada espécie e também para cada indivíduo da
espécie. Parecer – o parece-me, dokei moi – é o modo – talvez o único
possível – pelo qual um mundo que aparece é reconhecido e
percebido. Aparecer significa sempre parecer para outros, e esse
parecer varia de acordo com o ponto de vista e com a perspectiva dos
espectadores (ARENDT, 2008b, p. 37).
Diante disso, o aparecer – esse dar-se a parecer às vistas dos pares – seria
movido por uma intencionalidade que faz com que o sujeito queira apresentar-se aos
demais. Uma vez que há essa autoexposição, certos aspectos dão-se à mostra e outros
não, pois, “no homem, o impulso para aparecer é recoberto pela «decisão» entre o
que deve ser mostrado e o que deve permanecer oculto” (ROVIELLO, 1997: 17).
Essa decisão entre o que deve e o que não deve aparecer é feita de maneira
parcial por aquele que se apresenta. Isso ocorre porque há determinadas facetas de
CUSTÓDIO, Crislei de Oliveira | 2020 | p. 52-66
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Discurso em Hannah Arendt: sobre o sentido político de falar ...
nosso ‘eu’ que mostramos deliberadamente para os pares, ao passo que outras não
dependem diretamente de nossa vontade em mostrá-las; ao contrário, aparecem
junto com nossas ações e, muitas vezes, até nos são desconhecidas.
São a ação e o discurso que revelam a singularidade do agente, isto é, que
colocam à mostra aquilo que lhe é particular e o caracteriza como um ser único e
irrepetível. Segundo Arendt,
Na ação e no discurso, os homens mostram quem são, revelam
ativamente suas identidades pessoais e singulares, e assim
apresentam-se ao mundo humano, enquanto suas identidades físicas
são reveladas, sem qualquer atividade própria, na conformação
singular do corpo e no som singular da voz. Esta revelação de
«quem», em contraposição a «o que» alguém é […] está implícita em
tudo o que se diz ou faz (ARENDT, 2007, p. 192).
Quando nos apresentamos ao mundo por meio de nossas palavras, nosso ‘eu’
é revelado àqueles que nos assistem. E, ao enfatizarmos o aparecimento desse ‘eu’,
não estamos nos referindo aos sentimentos, temperamentos ou aquilo que se
encontra no íntimo de cada pessoa, mas a ‘quem’ ela é, ou seja, àquilo que lhe é
peculiar, que a identifica e que ela não compartilha com mais ninguém porque é
singular. Essa identidade revelada na ação e no discurso é o que torna uma pessoa
inconfundível e incomparável, já que não há e nem haverá nada semelhante a ela no
mundo.
Podemos elucidar essa ideia se pensarmos em expressões que fazem parte do
nosso cotidiano e que, desde cedo, aprendemos a empregar. Por exemplo: quem
nunca se deparou com frases como “só podia ser ele” ou “esse tipo de atitude é a cara
dela”? Tais expressões denotam a natureza (physis) de alguém e fazem-nos identificar
esse alguém como um ser único.
Decerto, fazemos uso de tais expressões porque nos faltam palavras para
expressar esse ‘eu’ que se nos apresenta aos sentidos, mas que não podemos tornar
tangível por meio de uma descrição. Aliás, nem o próprio agente pode descrevê-lo,
afinal, essa personalidade que ele revela lhe é oculta, tal como o daimon3 da mitologia
grega. Assim, “ainda que a personalidade só se constitua na e pela manifestação, ela
não se reduz a esse aparecer; o indivíduo é sempre mais do que a máscara que traz,
mas esse «mais» não é nada substancial, é intangível. O indivíduo […] é identificável
mas não é definível” (ROVIELLO, 1997, p. 19).
Arendt afirma que, em nossas tentativas de descrever ‘quem’ uma pessoa é,
acabamos por reduzir sua singularidade a ‘o que’ essa pessoa é. Ou seja, quando
tentamos traduzir em palavras a aparência única da personalidade de alguém,
subtraímos sua singularidade ao definir as qualidades e defeitos que compõem tal
sujeito. Dizer que alguém é corajoso ou covarde, vaidoso ou humilde, inteligente ou
3 Nas palavras de Arendt, daimon é o “que segue o homem durante toda sua vida e que é a sua identidade
inconfundível, mas que só transparece e é visível para os outros” (ARENDT, 2007, p. 205). Anne-Marie
Roviello define a ideia de daimon como “a fonte invisível, enigmática, da personalidade, o ‘lugar’
inencontrável onde, através de um ato de ‘apropriação’, a interioridade informe é convertida numa
autorrevelação coerente” (ROVIELLO, 1997, p. 19).
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Discurso e poder: teoria e análise
estúpido não é dizer ‘quem’ essa pessoa é; é dizer determinadas características que
definem ‘o que’ ela é, características essas que são compartilhadas por muitas outras
pessoas. Eis aí a especificidade do mundo: ele apenas pode ser interposto entre os
sujeitos por meio das palavras, daquilo que é tangível e compartilhável.
Esse caráter objetivo do mundo é o que torna fugaz o eventual produto da ação
e do discurso. Para atenuar o imediatismo com que a singularidade de alguém se
revela e se esvai, narramos histórias e as transmitimos à posteridade. Entretanto, não
agimos somente pelo desejo de termos nossas histórias rememoradas e passadas
adiante; pelo contrário, a importância da ação está na revelação de ‘quem’ age. Tal
revelação é responsável pela realidade desse sujeito – já que ele aparece aos sentidos
daqueles que o circundam – e por sua humanização – pois, na medida em que nos
revelamos, efetivamos a condição humana da pluralidade por meio de nossa
singularidade.
A aparência de nosso caráter singular está necessariamente ligada à presença
de pessoas que apreendam nossa revelação e a assimilem do ponto em que estão
localizadas. Isso significa que a manifestação daquilo que nos é peculiar só é possível
na medida em que nos expomos, ou seja, em que nos apresentamos aos outros e
damo-nos a ver a partir de variadas perspectivas; afinal, cada sujeito que nos percebe
no mundo o faz de um lugar diferente.
Dessa forma,
o processo de personalização ou de individualização confunde-se
com o processo de abertura ao mundo. Paradoxalmente, é ao sair de
si, é ao abrir-se à alteridade do mundo que o indivíduo se abre a si
próprio; e a personalidade individual de cada um pode, por
conseguinte, ser definida como abertura singularizada ao mundo
(ROVIELLO, 1997, p. 20).
Essa ‘abertura singularizada ao mundo’ nada mais é que a forma singular com
que aparecemos e nos apresentamos aos demais. E, para que apareçamos ao outro e
captemos o aparecimento desse outro, é preciso que haja um local onde possamos
nos ver, ouvir e perceber. Afinal,
assim como o ator depende do palco, dos outros atores e dos
espectadores para fazer sua entrada em cena, cada coisa viva
depende de um mundo que solidamente aparece como locação de
sua própria aparição, da aparição de outras criaturas com as quais
contracena e de espectadores que reconhecem e certificam sua
existência (ARENDT, 2008b, p. 38).
Nessa perspectiva, o mundo – em seu aspecto público – é o palco onde nos
apresentamos aos demais e onde, continuamente, por meio de nossas ações e
palavras, demonstramos ‘quem’ somos. Esse palco em que nos apresentamos é a
esfera destinada aos assuntos humanos, ou seja, a esfera pública do mundo, onde se
estabelecem principalmente as relações de sujeito para sujeito. A esfera pública é o
espaço que alocamos no mundo para nosso aparecimento. É onde podemos coexistir
com os outros e com as coisas na aparência de nossas formas e de nosso ser. Em outras
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Discurso em Hannah Arendt: sobre o sentido político de falar ...
palavras, é o local em que nos tornamos tão objetivos quanto tudo o que está no
mundo.
Segundo Arendt, a esfera pública, tal como o próprio mundo, interpõe-se entre
os sujeitos logo que estes se reúnem em atos e palavras. E “isto é assim porque onde
quer que os seres humanos se juntem – em particular ou socialmente, em público ou
politicamente – gera-se um espaço que simultaneamente os reúne e os separa”
(ARENDT, 2008a, 159); ou seja, “onde quer que as pessoas se reúnam, o mundo se
introduz entre elas e é nesse espaço intersticial que todos os assuntos humanos são
conduzidos” (ARENDT, 2008a, p.159).
Sendo assim, a cada vez que os sujeitos se reúnem por intermédio da ação e
do discurso, gera-se o espaço da aparência – o qual, não está subordinado ao
estabelecimento formal da esfera pública em suas variadas formas de governo. Esse
espaço da aparência é tão fugaz quanto as atividades que o constituem, uma vez que
é estabelecido no momento em que há a reunião dos sujeitos e se desfaz no instante
em que tais sujeitos se afastam. Com isso, Arendt (2007) conclui que o espaço da
aparência existe potencialmente, não obrigatoriamente e para sempre.
Além da revelação da singularidade de cada um, o espaço mundano destinado
à apresentação dos sujeitos também reserva a possibilidade de atualização de algo
que existe potencialmente em cada pessoa: a liberdade. Para Arendt, essa liberdade
não está ligada à possibilidade de fazer o que se quer sem restrições, ou a uma
disposição íntima do sujeito. Não se trata de ser livre, mas de estar livre no momento
em que, entre os pares, se age e se debate os assuntos políticos por excelência.
A liberdade é concebida por Arendt (2003) como a faculdade humana de
empreender o novo por meio da ação. Isso significa que a liberdade só é efetivada no
momento em que o sujeito age e inicia um processo, o qual interrompe o automatismo
vigente e institui o absolutamente inesperado, tal como um milagre. Ou seja, como
estamos rodeamos por processos automáticos e pelo ciclo repetitivo da vida, na
medida em que o sujeito se revela no espaço das aparências e imprime um novo
começo por intermédio de sua ação, a potência da liberdade atualiza-se. No momento
da ação – do início de algo novo e improvável –, o sujeito está livre. Portanto, a
liberdade não é algo de domínio íntimo ou privado, mas uma potencialidade que se
manifesta tangivelmente na aparência de nossos atos e palavras. Por isso, a liberdade
“só se desenvolve com plenitude onde a ação tiver criado seu próprio espaço concreto
onde possa, por assim dizer, sair de seu esconderijo e fazer sua aparição” (ARENDT,
2003, p. 218).
O espaço em que os sujeitos se reúnem e se apresentam uns para os outros
gera não somente liberdade, mas também a própria realidade desses sujeitos e do
mundo. Isso é assim porque o mundo se interpõe entre nós – unindo-nos por meio das
relações que estabelecemos com as pessoas e com as coisas, e separando-nos uns
dos outros –, de forma que cada um passa a ter um lugar de onde enxerga este mundo.
Como a perspectiva a partir da qual cada sujeito vê o mundo é diferente, ele aparecelhe de maneira distinta em relação aos demais. Ou seja, cada pessoa, no lugar onde
está, vê o mundo e as relações nele tecidas de forma particular e díspar.
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Discurso e poder: teoria e análise
É importante lembrar que a realidade de uma coisa se dá, em sua aparência,
aos sentidos daqueles que a veem. Portanto, o mundo e tudo aquilo que a ele
pertence torna-se real a partir dos diversos ângulos em que é visto; é no intercâmbio
dos variados pontos de vista que o mundo pode ser nosso, ou seja, comum a todos
nós. O mundo só pode ser compartilhado na medida em que trocamos nossas
impressões sobre ele por intermédio do discurso, da circulação da palavra. Com
efeito,
É por meio desta troca, que revela simultaneamente aquilo que os
indivíduos são e aquilo que o mundo é, que o indivíduo atinge a sua
humanitas4 e que o mundo se constitui como mundo comum. O
debate é, ao mesmo tempo, debate acerca do mundo e debate
constitutivo do mundo enquanto mundo comum. O debate institui e
torna visível, revela a si próprio a comunidade do mundo (ROVIELLO,
1997, p. 23).
De acordo com o pensamento arendtiano, a presença de outros que nos vejam
e nos ouçam e que são por nós vistos e ouvidos é o que permite a realidade do mundo
e de nós mesmos; afinal, é isto o que confirma a nossa existência e a das coisas: o fato
de aparecermos. Portanto, a reunião dos sujeitos no espaço público da aparência
torna efetiva a condição humana da pluralidade, pois é na pluralidade de seres
singulares que nos revelamos para o mundo e revelamos parte deste mundo visto do
ângulo em que o percebemos.
Por isso,
[…] ninguém pode, por si só, apreender adequadamente o mundo
objetivo em sua plena realidade, porque este sempre se mostra e se
revela desde uma única perspectiva, que corresponde e é
determinada pelo lugar que o indivíduo ocupa no mundo. Só se pode
ver e experimentar o mundo tal como “realmente” é entendendo-o
como algo que é compartilhado por muitas pessoas, que está entre
elas, que as separa e as une, revelando-se de modo diverso a cada
uma, enfim, que só é compreensível na medida em que muitas
pessoas possam falar sobre ele e trocar opiniões e perspectivas em
mútua contraposição (ARENDT, 2008a, p. 185).
2 Experiência e Memória
Devido à sua grande relevância na obra da autora, voltaremos a tratar desse
assunto de forma mais detida mais adiante. O que nos importa agora é destacar um
aspecto intrínseco à ação e ao discurso: a fugacidade de seus resultados.
Na medida em que não são produtos tangíveis, os feitos produzidos pela ação
e as palavras proferidas no discurso não possuem durabilidade no mundo. Tão logo
se imprimem na esfera dos negócios humanos, estão sujeitos ao esquecimento,
ficando à mercê da lembrança dos outros. Ora, é a lembrança dos feitos e palavras do
4 Este termo é utilizado pela autora como sinônimo à identidade singular da pessoa, ou seja, diz respeito
ao ‘quem’ um indivíduo é.
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Discurso em Hannah Arendt: sobre o sentido político de falar ...
agente, bem como sua propagação por meio das histórias que dela provém, o que
confere à ação maior permanência no mundo.
A partir disso, podemos questionar-nos a respeito de tal aspiração à
permanência. Afinal, se a ação e o discurso são fúteis – e, portanto, não necessários –,
qual seria a importância de manter as histórias por eles produzidas, uma vez que seu
caráter humanizante – ou seja, a capacidade de revelar a singularidade do agente – dáse exclusivamente no momento em que ambos ocorrem? Em outras palavras, qual o
sentido de conservar, na memória comum, os feitos e palavras inseridos na teia de
relações humanas após o momento em que foram concebidos?
Para responder a essas indagações, iniciaremos nossa reflexão sobre a
digressão que Arendt faz a uma remota perplexidade dos homens da Grécia Antiga:
a mortalidade humana. Em face de deuses imortais e de uma natureza imortal em que
tudo se renova por meio do ciclo biológico, o homem viu-se como a única criatura
mortal, pois, embora haja a renovação contínua da espécie humana pelo nascimento
de novos seres, cada ser que nasce é novo no mundo – portanto, um sujeito singular
que aqui terá uma estadia única.
Arendt, ao descrever a concepção grega sobre a mortalidade humana, afirma
que:
Os homens são ‘os mortais’, as únicas coisas mortais que existem
porque, ao contrário dos animais, não existem apenas como
membros de uma espécie cuja vida imortal é garantida pela
procriação. A mortalidade dos homens reside no fato de que a vida
individual, com uma história vital identificável desde o nascimento até
a morte, advém da vida biológica. Essa vida individual difere de todas
as outras coisas pelo curso retilíneo do seu movimento que, por assim
dizer, intercepta o movimento circular da vida biológica. É isto a
mortalidade: mover-se ao longo de uma linha reta num universo em
que tudo o que se move o faz num sentido cíclico (ARENDT, 2007, p.
27; grifos nossos).
Isso significa que a natureza e todos os elementos que a compõem são imortais,
uma vez que perpetuam sua espécie por meio da procriação. Assim, para cada flor
que cai, haverá o pólen que germinará outra flor; para cada pássaro que morre, haverá
outro que sairá do ovo. E esse processo vital repetir-se-á em um ciclo infinito.
Entendido apenas como um animal pertencente a uma espécie, o ser humano
é igualmente imortal. No entanto, é impossível concebê-lo somente dessa maneira
diante de um mundo artificial por ele criado; afinal, é a interposição deste mundo que
permite que ele se relacione com os objetos e com os demais de forma distinta e única.
Ora, em sua existência – período entre nascimento e morte –, o sujeito empreende uma
passagem singular neste mundo, pois sua identidade e sua forma peculiar de
relacionar-se com as coisas e com os outros nunca existiram antes de sua chegada e
jamais se repetirão depois de sua partida.
É importante ressaltar que, nessa relação com os outros por meio da ação e do
discurso, o sujeito revela quem ele é – o ser do agente. Todavia, é justamente essa
peculiaridade do ser humano em face dos animais que o torna mortal e irrepetível. Daí
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Discurso e poder: teoria e análise
surgiu a preocupação dos gregos antigos em estabelecer uma forma de tentar
alcançar a imortalidade.
A busca pela imortalidade exprime-se, na Grécia Antiga, no espírito agonístico
dos homens daquela civilização. Com efeito, o homem grego, na tentativa de medirse aos seus pares e aos deuses, procurava demonstrar sua singularidade por meio da
distinção em relação aos demais. Tal distinção era proveniente da constante disputa
para ser um homem de arete.
De acordo com Werner Jaeger, não há, nas línguas modernas,
um equivalente exato para este termo [arete]; mas a palavra ‘virtude’,
na sua acepção não atenuada pelo uso puramente moral, como
expressão do mais alto ideal cavaleiresco unido a uma conduta cortês
e distinta e ao heroísmo guerreiro, talvez pudesse exprimir o sentido
da palavra grega (JAEGER, 2001, p. 25).
Esse ideal de virtude e excelência descrito por Jaeger foi gerado no período
que ele denominou como Primeira Grécia, isto é, a Grécia Aristocrática. Dessa forma,
é válido destacar que, ao longo da história grega, com a ascensão do demos5 à política
por intermédio da fundação da polis, o conceito de arete recebeu novo significado6;
no entanto, a ideia de distinção pela excelência permaneceu.
O homem grego, no intuito de possuir arete, buscava revelar a grandeza de sua
singularidade no decurso de seus feitos. O protótipo desse indivíduo é Aquiles, herói
grego que, em nome da glória imortal e dotado de grande coragem – pressuposto da
arete –, tem sua vida abreviada na Guerra de Tróia. Tal atitude vem do fato de que, no
pensamento grego, o homem “só adquire consciência do seu valor pelo
reconhecimento da sociedade a que pertence” (JAEGER, 2001, p.31).
Nessa abordagem, o desejo de distinção e o reconhecimento no mundo
comum concedem ao homem certa imortalidade. A arete “reside no homem mortal,
ou melhor, ela é o próprio homem mortal; mas perpetua-se, mesmo depois da morte,
na sua fama, isto é, na imagem da sua arete, tal como o acompanhou e dirigiu na vida”
(JAEGER, 2001, p. 32). Assim, embora a morte física seja o destino inalienável de todos
os sujeitos, no mundo comum, os grandes feitos e palavras reveladas podem perdurar
por meio da recordação daqueles que depararam com as ações que produziram tais
feitos e as narraram às gerações seguintes.
É nessa ideia que repousa a confiança de Arendt nas histórias como fonte de
imortalidade. Segundo ela, os eventuais resultados produzidos pela ação e pelo
discurso são as histórias que, uma vez lembradas e rememoradas, podem ser
reificadas para assim adquirirem status de coisas mundanas. O tornar-se imortal, na
medida em que decorre de grandes ações, é apresentado pela autora como uma
atividade – os gregos designaram em sua língua uma palavra específica para isso:
5 Segundo Marilena Chauí, o termo teve várias conotações ao longo da história grega. No entanto, no
sentido político, ele significa povo, cidadãos – por oposição à aristocracia (CHAUÍ, 2002, p. 345).
6 A arete do cidadão da polis estava vinculada a um conjunto de qualidades políticas. O homem que
almejasse a excelência deveria ser hábil no uso do logos por meio da retórica e da persuasão.
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Discurso em Hannah Arendt: sobre o sentido político de falar ...
athanatídzein, que, sem correspondência nas línguas modernas, significaria
‘imortalizar-se’.
A imortalidade advém de histórias constituídas após o ato ter sido lançado à
teia de relações humanas, conferindo a tais histórias uma permanência que,
obviamente, transcende o tempo de estadia do agente no mundo. Aliás, a própria
essência de uma pessoa só se torna conhecida no momento em que é extinta sua
passagem no mundo dos homens, pois uma vida apenas se transforma em uma
entidade palpável quando chega ao fim e deixa atrás de si uma história a ser narrada
por aqueles que ficam (ARENDT, 2007, p. 206).
Ora, para os gregos, segundo Arendt, a História seria composta de histórias
individuais e acolheria, em sua memória, “aqueles mortais que, através de feitos e
palavras, se provaram dignos da natureza, e sua fama eterna [significaria] que eles, em
que pese sua mortalidade, [poderiam] permanecer na companhia das coisas que
duram para sempre” (ARENDT, 2003, p. 78). A História7, então, teria a função de
conservar no espaço inter-essa – o mundo comum – as histórias que, como um
milagre8, romperam o ciclo da repetição de nossas vidas diárias e por isso
imortalizaram seus agentes.
Diante disso, poderíamos nos indagar se apenas os grandes homens e
mulheres merecem permanecer vivos em nossa memória. Cremos que Arendt, ao
afirmar que a atividade da ação concretiza a condição humana da natalidade, atribuiu
o crédito de realizar milagres a cada sujeito, ou melhor, a cada novo ser que adentra
o mundo comum. Sendo assim, embora caibam às histórias narrar “o extraordinário”
(ARENDT, 2003, p. 72), os pequenos milagres – ou seja, as pequenas interrupções do
ciclo da vida – avizinham-nos em nossas comunidades, e as histórias que deles
emergem nos são transmitidas como legado daqueles que nos antecederam.
Aqui começamos a tentar responder às indagações apresentadas no início
desta seção. Para além das histórias e dos grandes feitos dos homens e mulheres de
arete, haveria sentido em constituir uma memória comum, conservando assim histórias
menores em abrangência, isto é, histórias que não repercutiram em grandes
mudanças sociais ou políticas? As ações e palavras por meio das quais nos revelamos
aos nossos pares e imprimimos um novo processo na teia de relações humanas são
dignas de serem passadas adiante? E, caso sejam, em que medida o são, já que, nesse
caso, muitos de nós não terão a seu serviço um artífice que dê forma a seus feitos,
pensamentos e dizeres?
Analisar essas questões implica conceituarmos a ideia de memória que,
embora seja uma das fontes das histórias, não é sinônima a elas. A memória,
diferentemente da noção que temos de história, não é cronológica, mas sim
7 É importante ressaltar que, em sua obra, Arendt não é partidária de uma concepção de História da
humanidade que tem como objetivo narrar a trajetória dos homens em direção ao progresso. Pelo
contrário, a autora não concebe uma história unificadora, linear e teleológica, mas compreende as
temporalidades humanas como histórias provenientes de atos fundadores, os quais instituem o novo em
face da continuidade automática da vida dos homens.
8 O milagre, no pensamento de Arendt, não assume nenhuma conotação religiosa. Trata-se do
absolutamente improvável e imprevisível que ocorre a partir da ação.
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Discurso e poder: teoria e análise
genealógica9. Ela não se filia à ideia de um tempo ordenado e retilíneo, ao contrário,
inspira-se nas gerações – cujo fluxo e duração de cada época são díspares, ou seja, as
experiências vividas por membros de determinada comunidade, em um tempo
específico, variam entre si. Para tornar um pouco mais clara essa concepção de
genealogias que compõem a memória, podemos pensar em gerações como a que
viveu exclusivamente no domínio agrário e a que passou pela ascensão da cultura de
massas. Ambas as gerações tiveram durações específicas que não obedecem à mesma
lógica.
Se voltarmos aos gregos e sua crença na deusa da memória – Mnemosýne –,
observaremos que, na mitologia grega, ela era a musa que inspirava os poetas na
narração do passado, os quais, nesta atividade, eram tidos como porta-vozes das
verdades da origem e dos antepassados. Segundo Vernant, a memória, no
pensamento grego, “não reconstrói o tempo: não o anula tampouco. Ao fazer cair a
barreira que separa o presente do passado, lança uma ponte entre o mundo dos vivos
e o do além ao qual retorna tudo que deixou a luz do sol” (VERNANT, 1990, p. 143).
Ao refletir sobre a concepção grega de memória presente na mitologia, o
historiador francês afirma que ela contém em si a transmutação da experiência
temporal e que, portanto, “aparece como uma fonte de imortalidade” (VERNANT,
1990, p. 144). Nessa perspectiva, Mnemosýne “não concerne ao passado do indivíduo;
[…] ela não é também orientada para o conhecimento de si mesmo, no sentido em
que nós o entendemos, mas para uma ascese purificadora que transfigura o indivíduo
e o eleva ao nível dos deuses” (VERNANT, 1990, p. 161).
A memória, então, é o meio pelo qual os sujeitos podem ser imortalizados em
sua comunidade. É evidente que como grande parte das histórias provenientes das
ações possui um grau de abrangência menor, a memória formada por elas não é
reificada em monumentos ou textos escritos. Ao contrário, a memória de uma
comunidade é mais fluida e sujeita ao esquecimento, uma vez que depende de
pessoas que a passem adiante.
Essa memória é composta por histórias resultantes da experiência dos sujeitos
no mundo comum, ou seja, pelas relações estabelecidas entre si e os outros no
intervalo entre o nascimento e a morte. E, como constituintes da memória, as
experiências não denotam um conhecimento subjetivo; ao contrário, “onde há
experiência no sentido do termo, entram em conjunção, na memória, certos
conteúdos do passado individual com outros do passado coletivo” (BENJAMIN, 1989,
p. 107).
Nessa abordagem, a experiência seria a existência vivida que permanece no
mundo após a morte física de seu agente e que, por isso, é traduzida em algo
9 A referência aqui a uma memória genealógica não se filia à concepção de genealogia desenvolvida por
Friedrich Nietzsche e posteriormente utilizada por Michel Foucault em suas teorizações. Para esses dois
pensadores, genealogia é uma metodologia de pesquisa centrada nas descontinuidades históricas, ou
seja, na emergência das coisas como acontecimentos acidentais e não na busca de fundamentos
originários para as ocorrências do passado.
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Discurso em Hannah Arendt: sobre o sentido político de falar ...
comunicável. É a transformação da experiência vivida em palavras que a torna
compartilhável e, portanto, digna de adentrar no mundo.
É no momento em que a experiência entra no mundo que ela passa a ser
compartilhada por seus membros e transmitida de um a outro, de geração a geração
por meio de narrativas. As experiências lembradas e transformadas em histórias
estendem-se à sabedoria comum, e aqueles que, por intermédio da anámnesis10,
narram tais histórias fundem-se a elas, acrescentando parte de si às experiências
contadas.
Com efeito, as histórias imortalizadas por uma comunidade não apenas se
anexam à experiência daquele que se torna seu porta-voz, como também, pelo fato
de serem interpostas entre seus membros, imprimem-se à experiência daqueles que
as ouvem. No mundo comum, essas experiências são narradas como legado e,
embora não sejam coisas materiais, as histórias que delas se originam também
constituem uma espécie de fabricação.
Dessa maneira,
A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio de artesão
– no campo, no mar e na cidade –, é ela própria, num certo sentido,
uma forma artesanal de comunicação. Ela não está interessada em
transmitir o ‘puro em si’ da coisa narrada como uma informação ou
um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em
seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do
narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso […]. Assim, seus
vestígios estão presentes de muitas maneiras nas coisas narradas, seja
na qualidade de quem as viu, seja na qualidade de quem as viveu,
seja na qualidade de quem as relata (BENJAMIN, 1994, p. 205).
Diante disso, podemos concluir que narrar histórias também é uma forma de
deixar rastros no mundo, afinal, o ato de transmitir aos pares e aos recém-chegados
no mundo – as crianças – as experiências imortalizadas em nosso passado e memória
comum imprime marcas naquele que narra, na própria experiência narrada e na
experiência dos ouvintes.
Cremos que essa seja uma das incumbências da educação, mas que se tornou
um grande paradoxo no mundo moderno. Como poderemos narrar experiências e
conservar uma memória comum em um mundo fragmentado, cujos possíveis laços de
pertencimento dificilmente constituem comunidades? Essa perplexidade é muito bem
formulada por Benjamin quando ele afirma que, no passado,
Sabia-se exatamente o significado da experiência: ela sempre fora
comunicada aos jovens. De forma concisa, com a autoridade da
velhice, em provérbios; de forma prolixa, com a sua loquacidade, em
histórias; muitas vezes como narrativas de países longínquos, diante
da lareira, contadas a pais e netos. Que foi feito de tudo isso? Quem
encontra ainda pessoas que saibam contar histórias como elas devem
ser contadas? Que moribundos dizem hoje palavras tão duráveis que
possam ser transmitidas como um anel, de geração em geração?
Quem é ajudado, hoje, por um provérbio oportuno? Quem tentará,
10 “Ação de trazer à memória ou à lembrança; lembrança, recordação” (CHAUÍ, 2002, p. 342).
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Discurso e poder: teoria e análise
sequer, lidar com a juventude invocando sua experiência?
(BENJAMIN, 1994, p. 114).
Em face disso, não é a nostalgia ou um pretenso retorno ao passado – caso
fosse possível – que definirão o estabelecimento de um mundo comum entre nós.
Diante da perda da tradição, isto é, frente à ausência de algo “que selecione e nomeie,
que transmita e preserve, que indique onde se encontram os tesouros e qual o seu
valor” (ARENDT, 2003, p. 31), resta-nos recolher, dentre os fragmentos do passado,
aquilo que queremos legar aos novos.
Considerações finais
De acordo com Hannah Arendt, as opiniões são formulações e enunciados
provisórios a que chegamos por meio do diálogo interno de mim para comigo
mesmo. Este diálogo se dá em silêncio, quando se está só e absorto do mundo, e se
encerra no momento em que o sujeito retoma suas atividades e interação com os
outros. O pensamento é, para a autora, uma atividade interminável e para qual não há
pré-requisitos, uma vez que o pensar se distingue do conhecer, isto é, o pensar busca
sentido para as coisas do mundo, as relações e as experiências enquanto o conhecer
consiste na produção dos saberes e na ciência.
Nesse sentido, é o diálogo intersubjetivo com os pares no mundo que, de
alguma maneira, informa, enriquece e instiga o diálogo interno do pensamento. É o
discurso que revela a singularidade do agente e a posição a partir da qual o mundo
aparece para ele, possibilitando com que essa unicidade que atravessa as percepções
que cada sujeito tem do mundo sejam enunciadas, comunicadas e compartilhadas,
tornando-se tangíveis e reais. Assim, na circulação da palavra, no debate, na conversa
sobre o que se passa e sobre os acontecimentos que nos acometem enquanto grupo
e individualmente é que encontramos elementos enunciados no discurso do outro
que extrapolam o nosso campo de percepção e entendimento inicial e, por
conseguinte, podem ser retomados adiante, no momento em que estamos sós, no
diálogo interno do pensamento.
E não é apenas o estar no mundo e o diálogo livre com os pares que nos
oferecem aspectos diversos sobre este mundo, sobre como vemos e somos vistos,
sobre como ouvimos e somos ouvidos. As histórias de feitos e ditos daqueles que nos
antecederam também nos ajuda a pensar sobre quem somos, o lugar que ocupamos,
o que sentimos, quais parâmetros nos valemos para tomar decisões (sobretudo as de
cunho ético) e sobre o que é o mundo. Essas histórias, sejam reais ou fictícias,
acumuladas na memória comum e transmitidas para as novas gerações nos permite
convocar outros e diferentes interlocutores, de tempos e lugares diversos, para
conosco dialogar em pensamento. Nesse sentido, o discurso, em Arendt, é ação, é
narrativa e é pensamento.
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Referências
Referências bibliográficas
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro W. Barbosa. São
Paulo: Perspectiva, 2003.
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VERNANT, Jean-Pierre. Mito e pensamento entre os gregos. Tradução de Haiganuch
Sarian. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. Tradução de Ísis Borges B.
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Como citar
CUSTÓDIO, Crislei de Oliveira. Discurso em Hannah Arendt: sobre o sentido político
de falar sobre o mundo e narrar uma história. In: GONÇALVES-SEGUNDO, Paulo
Roberto; ARAES, Célia Regina; CASTANHEIRA, Claudia; ISOLA-LANZONI, Gabriel;
PENITENTE, Natalia; WEISS, Winola (orgs). Discurso e poder: teoria e análise. São
Paulo: FFLCH/USP, 2020, p. 52-66. DOI: 10.11606/9786587621241
CUSTÓDIO, Crislei de Oliveira | 2020 | p. 52-66
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Discurso e poder: teoria e análise
Expressões idiomáticas:
contribuições e implicações do
contexto discursivo para a forma
e construção do sentido
Fabiane de Oliveira ALVES
Universidade de São Paulo
[email protected]
Resumo: Este artigo investiga a construção do sentido das
Expressões Idiomáticas (EI) no contexto discursivo, analisando
eventuais relações e implicações que decorrem do uso. Inserida
na Linguística Textual e Teorias do Discurso no Português, a
pesquisa apoia-se no arcabouço teórico constituído por autores
dessa linha de pesquisa, complementada por pesquisadores do
Léxico e da Semântica. Para isso, serão analisadas duas EI no
contexto discursivo – dispostas em um modelo de análise que
(co)relaciona as partes, o todo composicional, as (possíveis)
variações decorrentes do discurso e as implicações na forma e
na construção do sentido. Preliminarmente, pode-se inferir que,
embora EI sejam estruturas (relativamente) fixas, a flexibilidade
a que são passíveis não se limitam apenas às adequações
número-pessoais, mas abrangem as circunstâncias impostas
pelo contexto discursivo que atribuem a (pen)última camada na
estrutura de sentido desse tipo de composição fraseológica.
Ademais, a despeito da premissa de que o sentido de uma EI
não decorre da soma dos sentidos literais individuais, essas
oferecem subsídios para estabelecer graus de ligação entre o
sentido literal das partes e o sentido figurado do todo
composicional. Justifica-se a pesquisa em vista da ausência de
estudos que enfoquem a construção do sentido de EI em uso.
Palavras-chave: Expressões idiomáticas; Sentido literal; Sentido
figurado; Contexto discursivo; Léxico.
Introdução
Este artigo apresenta os resultados preliminares da pesquisa de doutorado em
andamento que investiga, de uma perspectiva textual-discursiva, a construção do
sentido de Expressões Idiomáticas (doravante EI) em uso, portanto, averiguando as
relações e implicações que o contexto discursivo exerce sobre a estrutura e
significação de EI. Para isso, serão analisadas duas EI, comuns ao falar cotidiano do
Português do Brasil, dispostas em um modelo experimental de análise que
(co)relaciona as partes, o todo composicional, as (possíveis) variações decorrentes do
discurso e as implicações do uso na formulação do sentido.
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Expressões idiomáticas: contribuições e implicações do contexto discursivo ...
No frasema (na EI), os lexemas perdem sua carga semântica original e passam
a ter novo conteúdo semântico no todo polilexical, desta vez, composicional. Uma das
consequências disso é que o significado externo à EI é individual de cada parte; já o
significado interno à sua estrutura é idiomatizado (VILELA, 2002). As EI, assim, atuam
em bloco, isto é, sua estrutura é composicional, e seu sentido não resulta da simples
soma dos sentidos literais das partes que a compõem. Entretanto, de modo a
estabelecer um percurso metodológico para análise dessas estruturas complexas, o
caminho adotado investiga a construção do sentido a partir do mapeamento que tem
início na análise de suas partes em contraste com o todo composicional. Com isso, é
possível averiguar uma maior ou menor relação entre o significado literal das partes
com o todo figurado, decorrentes da proximidade/distanciamento de sentido que, em
maior ou menor grau, se liga ao maior ou menor índice transparência/opacidade da
EI.
As EI, por sua complexidade estrutural e semântica, permitem diversas
abordagens de investigação. Contudo, grande parte dos estudos adota perspectivas
lexicológicas, lexicográficas e/ou semânticas que tomam as EI em si para observação,
deslocadas de seu uso. Este artigo, no entanto, busca justamente examinar o
comportamento de EI em uso. Para isso, foram selecionadas duas EI de uso recorrente
na linguagem do dia a dia dos brasileiros – “bater a(s) bota(s)” e “tirar o
cavalo/cavalinho da chuva” –, verificadas em contexto discursivo, em textos extraídos
da internet.
Após esta introdução, será apresentada uma breve retomada de algumas bases
teóricas que apoiam as hipóteses aventadas. Em seguida, de modo mais prático, o
corpus selecionado será aplicado ao modelo experimental proposto que contribui
para a estruturação da análise. Com base em cotejos e pesquisas em dicionários gerais
e de EI, além de outras fontes de pesquisa, será possível estabelecer um percurso de
estruturação do sentido estabelecido no e pelo contexto discursivo.
Ainda que as EI, isoladas, possuam uma base semântica que lhes atribuem
alguma significação fora do discurso, entende-se que é o contexto discursivo que irá
determinar ou constituir a (pen)última camada de significação desses lexemas
complexos – sendo a última camada ou estágio de sentido atribuído pelo receptor do
discurso –, além de provocar alterações em sua estrutura que podem ocorrer de modo
mais sutil ou mais marcante.
1 Expressões Idiomáticas
As fronteiras definitórias que delimitam o conceito de EI sejam perenes e de
difícil distinção – posto que se permeiam e se (con)fundem com outros componentes
da fraseologia –, entretanto, toma-se como norteadora a ideia de que EI são um tipo
de estrutura lexical complexa de sentido figurado cuja estrutura é relativamente fixa e
está sujeita, além das adequações número-pessoais (e tempo-modais), também a
variações que encontram limite na manutenção do sentido idiomático, guardando
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Discurso e poder: teoria e análise
(alguma) relação semântica com a “EI referência”1. Trata-se de um fenômeno
linguístico que compõe a fraseologia de uma língua atuando como um vocabulário
figurado complementar na linguagem do dia a dia, que diz pelo não dito, valendo-se
de metáforas, eufemismos, disfemismos, metonímias, entre outros, aquilo que, na
verdade, reflete no discurso a visão de mundo do usuário da língua em relação às
pessoas e à sociedade (URBANO, 2018) por meio dessas combinações de palavras
que são um tipo de “pré-fabricado linguístico2” de sentido figurado. Tabossi e Zardon
(1993, p. 145) advogam que “as expressões idiomáticas são objetos multifacetados,
cujo estudo requer vários pontos de vista e diferentes abordagens metodológicas.
Não são apenas complexos, mas também, em muitos aspectos, indescritíveis, a tal
ponto que é provavelmente um exercício inútil tentar defini-las”. Disso infere-se,
portanto, que mais importante do que buscar uma definição precisa e conclusa acerca
desse objeto, mais proveitosa é sua investigação.
Segundo Biderman (2001, p. 109), “Cada língua traduz o mundo e a realidade
social segundo seu próprio modelo, refletindo uma cosmovisão que lhe é própria,
expressa nas categorias gramaticais e lexicais”. Sendo as EI parte do inventário lexical
de uma língua, elas concentram em si um modo figurado de ver o mundo, típicas de
uma língua, mais ou menos cristalizadas e que mantém níveis de equivalência
semântica com outros modos de dizer algo, porém, fazem-no de modo a produzir
efeitos de expressividade ao discurso. Ademais, pode-se dizer que as EI “[...] nomeiam
de modo codificado e sistemático um denotado ou classe de denotados,
representando esquemas mentais de objetos ou de estados de coisas” (VILELA, 2002,
p. 161). Isso quer dizer que as EI são um tipo de código que, em tese, deve (ou deveria
ser) comum aos participantes de uma interação de modo que possa ser corretamente
decodificado e a comunicação possa ser realizada de modo efetivo.
Ainda à guisa de compreensão, acrescente-se que as EI se apresentam, de
modo geral, em forma de bloco segmental, composicional, ou seja, atuam em, mas
também no conjunto. Assim, inventar moda, em sentido idiomático, significando “Ter
comportamento ou ideia que fogem ao que seria normal ou esperado: ‘Faça o que
tem que ser feito e não fique inventando moda’.” (MELLO, 2009, p. 275, grifo nosso).
Note-se a diferença em “Inventando a contra-mola que resiste: um estudo sobre a
militância na contemporaneidade” (VINADE; GUARESCHI, 2007, grifo nosso) e em “A
moda é abordada como um fenômeno sociocultural que expressa os valores da
sociedade - usos, hábitos e costumes - em um determinado momento” (WIKIPÉDIA,
s./d., grifo nosso). Tomadas individualmente, inventar e moda têm sentidos diversos
aos do conjunto “inventar moda”.
As questões em torno dos sentidos literal e não literal têm sido objeto de
inúmeras pesquisas ao longo dos anos (KATZ, 1977; GIBBS, 1984; 1994; DASCAL,
1987; 2002; MARCUSCHI, 2008; URBANO, no prelo; dentre outros), sem contudo que
se chegue a um consenso no tocante às definições de um e outro. De modo geral,
1 Adota-se o termo “EI referência” com o sentido da EI mais usual, mais comumente utilizada, ou, ainda,
aquelas formas cujos dicionários registram com mais frequência.
2 Segundo Erman e Warren (2000, p. 31), “Um pré-fabricado é uma combinação de pelo menos duas
palavras favorecidas por falantes nativos em preferência a uma combinação alternativa que poderia ser
equivalente não à convenção”.
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Expressões idiomáticas: contribuições e implicações do contexto discursivo ...
pode-se estabelecer que não há uma relação de oposição semântica ou de antonímia
entre um e outro, portanto, pedra – “matéria rochosa” (AULETE, 2019) – em “Atirou
uma pedra no lago”, não é o oposto de pedra – “pessoa estúpida” (AULETE, 2019) –
em “Esse presidente é uma pedra”. Searle (2002), aludindo ao senso comum, entende
que o sentido literal é aquele cujo significado é o mesmo independentemente do
contexto no qual se insere. Seria o sentido automático, obrigatório, normal, não
marcado, indispensável e não figurativo, segundo Marcuschi (2008). Já o sentido não
literal, por outro lado, seria não automático, opcional, fortuito, marcado, dispensável,
figurativo e indireto (MARCUSCHI, 2008), mais dependente do contexto (situacional
e/ou discursivo) para sua compreensão.
Embora o sentido global de uma EI não derive de suas partes tomadas
isoladamente, entende-se que pode haver graus de ligação entre os níveis
polissêmicos dessas partes e a construção do sentido composicional. Assim, ao
verificar o sentido literal das partes que compõem quebrar o gelo tem-se: (i) quebrar:
fazer ficar ou ficar em pedaços; despedaçar(-se), romper(-se) (AULETE, 2019); e (ii)
gelo: estado de água, ou qualquer líquido, quando passa ao estado sólido pela ação
do frio; sensação que lembra a causada pelo frio; ausência de sentimentos; secura no
trato com alguém; frieza; insensibilidade; falta de cordialidade, de bom
relacionamento (AULETE, 2019). Considerando que a EI significa “ser cortês, amável
no primeiro contato com alguém ou em grupo, criando um ambiente menos frio ou
formal” (AULETE, 2019), verifica-se uma ligação semântica entre este significado total
e um dos sentidos de gelo: “ausência de sentimentos; secura no trato com alguém;
frieza; insensibilidade”.
No caso de (ser) (um) mar de rosas, tem-se: (i) ser: ter características ou
qualidades expressas pela palavra ou expressão que se refere ao sujeito; (ii) mar:
grande massa e extensão de água salgada que cobre três quartos da superfície da
terra; oceano; (iii) rosas: flor da roseira; tom vermelho bem claro (MICHAELIS, 2018).
Tendo em vista que a EI significa “período de tranquilidade, feliz” (URBANO, 2018, p.
197), uma associação possível seria fazê-la com a ideia de mar tranquilo, havendo
alguma proximidade com a ideia de mar, porém, a associação com felicidade não
mantém vinculação aparente com o sentido literal. Há, desse modo, uma menor
ligação conceitual, neste último caso, diferentemente do exemplo anterior. Daí inferirse que há graus, maiores e menores, de ligação entre o sentido das partes e do todo
idiomático.
No tocante à composição, Alves (1994, p. 50) argumenta o seguinte: “Processase a composição sintagmática quando os membros integrantes de um segmento frasal
encontram-se numa íntima relação sintática, tanto morfológica quanto
semanticamente, de forma a constituírem uma única unidade léxica”. O que a autora
classifica de modo abrangente de “composição sintagmática” pode compreender as
EI, desse modo, as partes que compõem o conjunto – as quais geralmente não
permitem inversão da ordem de disposição – e formam uma EI mantêm entre si uma
relação não apenas de forma, mas também de sentido e, mais do que isso, forma e
sentido, juntos, composicionalmente, tornam-na um lexema (complexo) único.
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Discurso e poder: teoria e análise
Ainda no que se refere à morfossintaxe das EI, não há um padrão sintático
seguido, sendo possíveis inumeráveis combinações que, de modo geral, podem ou
não incorporar os verbos a sua estrutura (relativamente) fixa. Em alguns casos, por
exemplo, registram-se variações que coexistem – construir castelos de areia/no ar e
erguer castelos de areia/no ar – enquanto em outros não, quando os verbos estão mais
ligados ao contexto discursivo do que à estrutura da EI – de mala e cuia “Mudou-se de
mala e cuia lá pra casa”, “Chegou de mala e cuia para passar dois dias”. Embora
comumente as EI sejam tratadas como construções restritas (COWIE, MACKIN;
MCCAIG, 1984), ou seja, estruturas fixas/congeladas/cristalizadas, é possível inferir
que essa fixidez/congelamento/cristalização é relativa e, como (quase) tudo aquilo que
se vincula à língua, está sujeita à criatividade humana, havendo, assim, registros de uso
que comportam alguma flexibilidade, não apenas em termos sintáticos, mas também
semânticos e lexicais.
Pela sanção do uso, as EI são estabelecidas. Em uso, seu sentido ganha
densidade. Em função do uso, variam. Neste último caso, as variações podem ocorrer
em maior ou menor escala, mas, pode-se dizer que quase sempre em virtude de
necessidades impostas pelo contexto discursivo para atender aos objetivos
pretendidos. De acordo com Cabré (1999 , p. 85 apud KOSTINA, 2011, p. 36), “Todo
processo de comunicação comporta inerentemente variação, explicitada em formas
alternativas de denominação do mesmo conceito (sinonímia) ou em um
distanciamento significativo de uma mesma forma (polissemia) [...]”. Em se tratando
das EI, contudo, essas formas alternativas ou variações encontram seu limite na
manutenção do sentido ou, ao menos, na ligação com o sentido da EI de referência.
Assim, por exemplo, as variações, tomadas fora de um contexto discursivo, pôr as
barbas de molho e colocar as barbas de molho, por convenção, equivalem-se e
coexistem. Já pôr os cavanhaques de molho não, embora barba e cavanhaque
pertençam ao mesmo campo semântico. Por outro lado, acertar na mosca, acertar no
alvo e acertar em cheio possuem sentido equivalente, ainda que mosca, alvo e cheio,
isoladas, não mantenham relação de sinonímia/parassinonímia, nem mesmo
pertençam ao mesmo campo semântico, quando analisadas no conjunto
composicional passam a ser sinônimas: “Ela foi precisa em todas as respostas: acertou
na mosca/no alvo/em cheio”. Atente-se que a variação pode atingir tanto as partes
verbais quanto as nominais da EI, todavia, não há um padrão que determine quais
partes e quais tipos de substituições podem ser feitas para que seja mantida
equivalência semântica ou produzido efeito esperado (de antonímia, por exemplo).
Consoante pontua Xatara (1997, p. 148), “[...] o mundo das EI revela uma
espessura simbólica, em que aflora o inconsciente, acionando transferências
semânticas regulares, do concreto ao abstrato, do físico ao psíquico, exprimindo
julgamentos sociais e compartilhando das mais diversas sensações e emoções”. A
construção do sentido das EI tem início em sua própria estrutura, mas completa-se e
altera-se no contexto discursivo, ao passo que também altera o discurso, dada sua
escolha em lugar de outro modo de dizer que contemple mais ou menos o mesmo
sentido.
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Expressões idiomáticas: contribuições e implicações do contexto discursivo ...
A tamanha complexidade, somem-se as relações e implicações causadas e
sofridas pelas EI quando em contexto discursivo . Uma unidade lexical qualquer,
simples ou complexa, (ainda que mais gramatical ou mais lexical), possui uma base
semântica que a alimenta com seu significado primeiro (BIDERMAN, 2001, p. 187), isto
é, uma unidade lexical não é absolutamente vazia de sentido no sistema (nos termos
de Saussure). Contudo, é no discurso (na realização discursiva propriamente dita) que
essa unidade lexical atualiza-se, ou seja, ganha de fato sentido e mesmo outros
sentidos que não o canônico, aquele mais previsível. Em consonância Hjelmslev (1961,
p. 50) argumenta que “toda significação de signo nasce de um contexto, quer
entendamos por isso um contexto de situação ou um contexto explícito, o que vem a
dar no mesmo”. A seguir, serão apresentados alguns aspectos da relação entre EI,
contexto discursivo e sentido.
2 Expressões idiomáticas e(m) contexto discursivo: construção do
sentido
De uma perspectiva geral, Zwaan (2009) argumenta que os processos de
compreensão são uma simulação mental de eventos que reativa traços de experiências
anteriores. Isso quer dizer que compreender aciona, ativa e atualiza continuamente um
conjunto de modelos mentais e de situação (VAN DIJK, 2012; VAN DIJK; KINTSCH,
1983) constituído com base nas vivências do indivíduo. Assim, de modo mais
específico, a compreensão de uma EI, embora independa do conhecimento de sua
origem, já que esta, “costuma despertar muita curiosidade, mas normalmente fica sem
solução científica” (URBANO, 2008, p. 42), envolve o acionamento de uma gama de
aspectos tais como culturais, experienciais e pragmáticos. Para além disso, a
construção do sentido de uma EI em uso deve ainda considerar não apenas seu
sentido em estado de dicionário, mas também o contexto discursivo no qual se insere,
tendo em vista que este pode influenciar em sua significação final.
As EI constituem um inventário popular que “[...] completam paralelamente o
vocabulário diário das pessoas, normal para suas necessidades comunicativas, muitas
vezes de uso inevitável [...]”(URBANO, 2018, p. 14). Ainda que o sentido de grande
número de EI seja conhecido por muitos usuários de uma língua, sendo que
constituem uma espécie de inconsciente cultural coletivo, de sabedoria popular,
compreender seu sentido demanda empreender conhecimentos os quais extrapolam
a EI em si e o próprio texto, porém, é justamente no texto, no entorno discursivo, que
se encontram elementos capazes de apoiar ou ao menos orientar seu sentido, seja de
EI referência ou variante.
É no discurso que, não apenas uma EI, mas qualquer unidade lexical se atualiza
e, por conseguinte, pode ganhar outros significados que não aquele mais previsível.
Diferentemente dos demais lexemas simples, que, grosso modo, possuem maior
potencialidade para atualizações, as EI, ainda que passíveis de variações, devem
manter uma relação de sentido com a EI referência e, por conseguinte, são mais
limitadas em termos de variação de sentido. Assim, o lexema cara, tomado
isoladamente possui diversas possibilidades de significação – parte frontal da cabeça,
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Discurso e poder: teoria e análise
conjunto dos traços do rosto, aparência, aspecto de algo, face da moeda, indivíduo
qualquer, pessoa etc. (AULETE, 2019) – e cujo sentido somente se definirá no e pelo
contexto discursivo; cara de pau, por sua vez, embora possua um potencial de
significação mais restrito – pessoa irreverente, impassível, sem expressão (URBANO,
2018, p. 97), pessoa que não demonstra vergonha ao se comportar de maneira ousada
ou embaraçosa (AULETE, 2019) – também tem (ou pode ter) seu sentido construído
no e pelo contexto discursivo, contudo, sempre mantendo alguma vinculação com seu
sentido composicional.
Além disso, Andrade (2010, p. 76) ressalta que “[...] o texto deve ser observado
não apenas em relação ao que está dito, mas também as formas da maneira de dizer,
pois estas permitem uma leitura dos implícitos que se revelam e evidenciam a
interatividade [...]”. Desse modo, a escolha do uso de uma EI em lugar de outro modo
de dizer traz ao texto esses implícitos, que acabam por atribuir efeitos e expressividade
ao texto. Daí ser possível concluir que a EI não apenas é influenciada pelo contexto
discursivo, mas também o influencia. Considerem-se os exemplos a seguir: (i) “Ele deu
o último suspiro” e
(ii) [...] Doutor Poti já sem cor a cabeça no colo de dona Jandira.
Doutor Romão com a calma de homem acostumado com a vida e com
a morte, abriu a maleta, tirou a caneta, o bloco de notas, o
termômetro, o fonidoscópio. Ia iniciar a examinar o morto-vivo e esse
deu o penúltimo suspiro. Dona Maria Vendedora de Milho Assado na
Estação do Timbó foi mais ligeira que rápida e empurrou o doutor
médico, ajoelhou junto de doutor Poti, colocou a mão esquerda na
testa dele e enfiou a mão direita na boca e puxou a meia laranja que
estava trancada na goela. Doutor Poti respirou com a força de um
touro. [...] (SOUZA, 2018, p. 8)
Sobre a declaração de (i), isolada de qualquer contexto, não se pode saber se
ele entregou a alguém o último “Doce muito leve feito de clara de ovo batida com
açúcar e que vai ao forno brando” (AULETE, 2019) ou se aquele foi “O momento
derradeiro de vida, o exalar da última respiração, ao morrer” (AULETE, 2019). Do que
se pode depreender que o contexto, seja ele discursivo ou situacional, é a base mental
fundamental à compreensão do texto e do discurso (VAN DIJK, 2012).
Em (ii), há um claro exemplo da dupla influência EI-contexto discursivo. Há uma
relação entre a EI referência dar o último suspiro e a variável dar o penúltimo suspiro,
produzida da necessidade imposta pelo contexto discursivo para expressar a ideia de
alguém que quase morreu. É por meio do contexto discursivo que se pode entender
que para aqueles que assistiam ao doutor Poti, “já sem cor na cabeça” (pálido), vivia
seus últimos minutos neste mundo, porém, o narrador, onisciente dos fatos, sabia que
o sujeito não morreria naquele momento, daí não ser adequado o uso de “último
suspiro”, tendo em vista que se tratava de um “morto-vivo” ainda vivo, salvo da morte
por dona Maria Vendedora de Milho Assado na Estação do Timbó.
O contexto discursivo, além de apoiar o sentido da variação da EI, ganha um
matiz diferente, mais expressivo e eufêmico, ao trazer uma EI em lugar de “[...] o mortovivo e esse quase morto [...]”. Essa escolha relaciona-se ao argumento de Di Fanti e
Brandão (2018, p. 11) ao mencionar que “o ser humano, ao expressar-se pela língua,
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Expressões idiomáticas: contribuições e implicações do contexto discursivo ...
nas relações interpessoais, sociais, faz escolhas lexicais, sintáticas, prosódicas, arma
estratégias (afetivas, de persuasão, coerção...) para atuar sobre o outro, compreender
o outro e com ele interagir”. Desse modo, usar uma EI em lugar de quaisquer outras
palavras que expressem (mais ou menos) uma determinada ideia, é parte da estratégia
discursiva, das intencionalidades comunicativas, ainda que, para que se possa chegar
ao objetivo pretendido uma EI passe por alterações, como visto, conforme menciona
Duarte (2006, p. 14): “EI em ação, isto é, no discurso, ilustrando como estas podem dar
azo a múltiplas adequações por força do co(n)texto e da intencionalidade discursiva”.
Acrescente-se que o contexto discursivo é responsável pelo processo de
desfixação ou descongelamento da EI, considerando as necessidades impostas por
esse, em favor da melhor representação de uma ideia. Desse modo, pode-se optar por
construir/erguer/arquitetar castelos de areia, dependendo das intenções e demandas
comunicacionais. Duarte (2006, p. 31) destaca três aspectos que podem implicar em
adequações da EI ao contexto discursivo-textual: (i) negação – Ele não pôde colocar as
barbas de molho; (ii) antonímia – Ele tirou as barbas de molho ; e (iii) diminutivo – Ele
pôs as barbichas de molho. Entretanto, conforme verificado, outras necessidades
podem promover alterações em uma EI.
Se por um lado, o contexto discurso pode provocar alterações uma EI, por
outro, a EI também produz efeitos no discurso na medida em que, em alguns casos,
atribui um valor perlocutivo àquilo que poderia ser dito de modo meramente
declarativo ou (conotativamente) neutro. Desse modo, “ele perdeu todo seu dinheiro”
e “ele ficou com uma mão na frente e a outra atrás” guardam certo grau de equivalência
conceitual (CRUSE, 1995), entretanto, o efeito produzido por uma e outra declaração
são diversos, pois trazem diferentes impactos, sendo que a segunda reforça, enfatiza,
intensifica (de modo hiperbólico) a informação central do empobrecimento daquele
de quem se fala.
As EI são um tipo de código comum entre os usuários de uma língua, daí ser
preciso que quaisquer mudanças respeitem limites (ainda que imprevisíveis e
inclassificáveis) que preservem seu conteúdo essencial. Todavia, sejam EI referência,
sejam EI que sofreram variações – EI variantes –, o contexto discursivo seria uma parte
do sentido, uma penúltima camada de sentido – sendo a última camada atribuída pela
compreensão do receptor da mensagem. De acordo com Hall (2003, p. 393), “[...] não
há discurso inteligível sem a operação de um código. [...] Naturalismo e ‘realismo’ [...]
é o resultado, o efeito, de certa articulação específica da linguagem sobre o ‘real’. É o
resultado de uma prática discursiva”. Ainda que se possam realizar adaptações (no
plano da expressão/forma) condicionadas às necessidades e demandas do uso, as EI
devem, contudo, manter sua essência semântica (plano do conteúdo) ou ao menos
alguma ligação, de modo que não haja prejuízos na interação, ou seja, mesmo diversa
da construção mais comumente verificada, a EI deve se manter inteligível para o
interlocutor.
A efetiva interação apenas acontecerá se “os usuários da língua forem capazes
de construir modelos mentais dos eventos ou fatos sobre os quais estão falando ou
ouvindo e se forem capazes de relacionar entre si os eventos ou fatos que estão nesses
modelos” (VAN DIJK, 2012, p. 90). Desse modo, para que um peixe fora d’água seja
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Discurso e poder: teoria e análise
compreendido como “desambientado, fora do seu elemento, de seu meio natural”
(URBANO, 2018, p. 240) e não como “um ser aquático que se encontra fora da água”,
isto é, para que seja compreendido seu sentido figurado e não o literal, é preciso que
os atores da interação não apenas compartilhem conhecimento, mas possuam
modelos mentais (que são únicos, pessoais e subjetivos) capazes de decodificar um e
não outro sentido naquela situação específica. Nesse sentido, o contexto discursivo
oferece os elementos que podem apoiar a condução à adequada compreensão da
mensagem.
As diversas situações comunicacionais estão inseridas em contextos
situacionais que não determinam, mas influenciam a construção discursiva em si; esta,
a seu turno, está envolta por um contexto discursivo, um ambiente linguístico criado
por escolhas lexicais, estruturas sintáticas, estilo, dentre outros aspectos. Tomando-se
especificamente as EI, objeto de análise deste artigo, e considerando os exemplos até
aqui arrolados, pode-se dizer que sua estrutura relativamente fixa pode sofrer
alterações em função do contexto discursivo no qual se inserem, mas também que é
desse contexto discursivo que emergem pistas que contribuem para a construção de
seu sentido.
3 A construção do sentido de EI: uma proposta de análise
Visando a estabelecer uma metodologia para análise da construção do sentido
das EI, o modelo a seguir apresenta um tipo de processamento das EI que tem início
com um estudo do sentido literal das partes, de modo que se verifiquem pistas
relevantes que contribuam para compreensão do significado não literal do conjunto
composicional. Assim, inicia-se com identificação da EI referência, passa-se ao
desmembramento das partes que a compõem para identificação dos sentidos literais.
Segue-se para o sentido não literal com a menção do significado registrado em
dicionários. Com base nessas informações (sentidos literal e não literal), passa-se a
uma correlação entre esses dois sentidos e, quando possível, de origem da EI – este
dado nem sempre é acessível e quando o é, nem sempre se pode certificar a
verossimilhança da informação. Passa-se ao destaque da (possível) variante
identificada no texto em que se insere, o efeito de sentido produzido pela (possível)
variante, o excerto do qual a EI foi extraída, os elementos do contexto discursivo que
corroboram o que em seguida aparecerá como sentido no contexto discursivo. O
sentido da variante é o resultado da relação entre o sentido da EI referência e da
variante, considerada no contexto discursivo. Para aplicação do modelo, foram
selecionadas duas EI de uso corrente no dia a dia observadas em uso, em trechos de
textos extraídos da internet.
O primeiro estudo será sobre a EI referência bater a(s)bota(s), que sofreu
alteração ao ser aplicada ao contexto discursivo do texto cujo trecho é apresentado
abaixo:
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76
Expressões idiomáticas: contribuições e implicações do contexto discursivo ...
Quadro 1. Bater os scarpins
Anna Nicole movie
sentido
literal
Expressão Idiomática referência: bater a(s) bota(s)
Bater a(s) bota(s)
bater
a(s)
bota(s)
Calçado de couro, borracha ou
plástico que cobre o pé e parte
Dar pancadas em (objeto ou
*
da perna, por vezes cobrindo tb.
pessoa)
parte da coxa.
(AULETE, 2019)
(AULETE, 2019)
sentido da EI
referência
morrer (URBANO, 2018, p. 80; MELLO, 2009, p. 85)
campo
semântico de
associação/
origem
Associa-se à ideia o movimento feito pelas botas dos
soldados que, ao serem atingidos, batiam uma bota na
outra ao caírem mortos.
EI variante
bateu os scarpins
estabelece-se uma relação entre
a EI referência e o estilo da
pessoa falecida
“Lembraaaam da Anna Nicole Smith ex kenga3 stripper que
casou com um vovozinho ficou milionária com o dinheiro
dele e morreu ano passado deixando uma nenezinha
liiinda?! Então, mal a moça ‘bateu os scarpins’ e já tão
ganhando dinheiro às custas dela! O filme já tinha sido
comentado, mas só agora saiu o trailer da obra prima
estrelando Willa Ford (ex projeto de Britney Spears).”
(COUTINHO, 2008)
efeito da EI variante
sentido
não
literal
em contexto
discursivo
“morreu ano passado”
elementos do discurso
sentido no
contexto
discursivo
morrer
Fonte: elaboração própria.
O texto, uma pequena notícia, trata do lançamento do filme que conta a história
da vida de Anna Nicole Smith. Para isso, a autora constrói a referenciação à biografada
de modo a retomar episódios que a tornaram famosa. Nesse co(n)texto (ADAM, 2011),
a EI variante, ao substituir o lexema “botas” por “scarpins”, estabelece uma vinculação
da morte à pessoa que morre, ao estilo pessoal dela – que, segundo o texto era uma
“ex kenga stripper” e, em tese, não usaria botas, ao menos não as de soldado –
referencial acionado pela possível origem da EI. O uso de EI não implica na
necessidade desse tipo de adequação de uso para que faça sentido, no entanto,
houve aqui uma interligação de modelos mentais fosse para a construção da pessoa,
fosse para referir se a sua morte. Tal construção reforça a ideia de Adam (2011, p. 53)
quando menciona que “Se o contexto está disponível e se ele se mostra suficiente, o
interpretante não vai procurar em outro lugar”.
3 O tachado é original do texto. Esse é um recurso utilizado em textos escritos de tom mais informal que
deixa registrado algo que, em outro estilo de texto, seria apagado. Trata-se de uma estratégia que deixa
expresso o refazimento.
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77
Discurso e poder: teoria e análise
Assim, independentemente de usar ou não botas, qualquer um pode bater as
botas e assim será entendido que se refere ao falecimento da pessoa. Contudo, ao
fazer tal adequação na forma, o sentido, embora não tenha essencialmente mudado,
ganhou uma nuance de humor, o qual se adequa ao estilo do texto como um todo
que se vale de elementos como prolongamento de vogais – lembraaaam, liiinda – e
corte de palavras – tão<estão; escolhas lexicais informais – kenga; vovozinho; ex
projeto) para criar um efeito de oralidade e acentuar seu estilo informal e
descontraído. Além disso, considerando que são usuais (e esperadas) as adequações
número pessoais e que botas, segundo a informação de origem da EI, correspondem
ao calçado dos soldados, embora seja um substantivo feminino, a maneira encontrada
para marcar o gênero foi utilizar um tipo de calçado feminino: scarpins.
Cumpre ainda mencionar que a EI variante bater os scarpins estabelece uma
relação de maior dependência com esse contexto discursivo específico para que seja
compreendido seu sentido figurado. Note-se que a EI variante não mantém seu
sentido em: “A primeira bailarina do Teatro Municipal bateu os scarpins...” e “O
senhorzinho dono da banca de frutas bateu os scarpins...”. Embora botas e scarpins
não sejam sinônimos, pertencem ao mesmo campo semântico e, portanto, ao menos
nesse nível de significação específico da EI variante no contexto apresentado, podem
atuar como (paras)sinônimos.
No tocante aos níveis de transparência e opacidade, considerando que “o
entendimento da transparência é observado de acordo com a maior proximidade do
cálculo do significado total da expressão por seus componentes, enquanto que a
opacidade seria a total impossibilidade desse cálculo” (VALE, 2001, p. 72), bem como
o cotejo entre os sentidos das partes, dispostos no quadro, e do todo composicional,
pode-se dizer que tanto a EI referência quanto a EI variante são opacas, sendo que
esta última um pouco mais em relação à primeira, pois seu entendimento mantém
certo grau de dependência com o significado da EI referência, isto é: precisa-se
conhecer o sentido de bater as botas para entender bater os scarpins, ainda que o
contexto ofereça as pistas que contribuam para a compreensão.
A seguir, a EI referência será tirar o cavalo/cavalinho da chuva. Diferentemente
do exemplo anterior, verificar-se-á que a EI variante apresenta alterações mais
significativas em sua estrutura:
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78
Expressões idiomáticas: contribuições e implicações do contexto discursivo ...
Quadro 2. Nem pensar em colocar o cavalo na chuva para poupar o trabalho de tirar
depois
A filha do chefe
sentido
literal
sentido
não
literal
Expressão Idiomática referência: tirar o cavalo/calinho da chuva
Tirar o cavalo/cavalinho da chuva
Tirar
o
cavalo
cavalinho
da
chuva
Queda de
Fazer sair ou
Grande
água das
diminutivo
sair de (um
mamífero
nuvens, na
de cavalo
lugar); retirar
herbívoro da
forma de
*
*
(AULETE,
(-se)
fam. dos
gotas
2019)
(AULETE,
equídeos
(AULETE,
2019)
(AULETE, 2019)
2019)
desistir de um propósito, de um intento, reduzir as
pretensões, não ser bobo (URBANO, 2018, p. 105);
sentido da EI
perder as esperanças de que algo desejado vá acontecer
referência
imediatamente (MELLO, 2009, p. 472); desistir de um
intento (AULETE, 2019)
campo
Quando os cavalos eram o meio de transporte mais
semântico de
comum, manter o animal em local protegido significava
associação/
que a visita ia demorar. Quando a proposta partia do
origem
anfitrião, expressava satisfação (URBANO, 2018, p. 360).
nem pensar em colocar o
EI variante
cavalo na chuva para poupar
de tirar depois
evidencia que de tão
impossíveis as chances de
efeito da EI variante
algo acontecer, o melhor é
não nutrir esperanças
“Um dia, do nada, reparei em uma linda moça. Cabelos
lisos, compridos e castanhos. Olhos grandes, também
castanhos. Nariz perfeito e sorriso aberto. Ela caminhava
no corredor como se fosse o tapete vermelho da entrega
em contexto
do Prêmio da Academia. Fui obrigado a fazer minha
discursivo
pesquisa de campo. Nome, cargo, algo de útil para puxar
uma conversa. Consegui algumas informações valiosas.
No fim do expediente ela entrou na sala do chefe. Fiquei
curioso. Beijou o chefe no rosto, largou a bolsa na cadeira
como se fosse a coisa mais natural do mundo e ali ficou
esperando a hora de ir embora. Saíram juntos. Naquele
momento eu já sabia que não podia nem pensar em
colocar o cavalo na chuva. Ia me poupar o trabalho de tirar
ele de lá depois. [...]” (ESCRITO A TINTA, 2010)
“ela entrou na sala do chefe”;
elementos do discurso
“saíram juntos”; “me poupar o
trabalho de tirar depois”
sentido no
contexto
nem tentar para não ter que desistir
discursivo
Fonte: elaboração própria.
O texto do qual se extrai o excerto narra o episódio no qual um rapaz encantase por uma moça que aparece pela primeira vez no escritório. Porém, ao perceber que
ela tinha uma relação próxima com o chefe, sua surpresa foi tamanha que achou por
bem nem dar início à empreitada da conquista para que não decepcionasse com o
desfecho. No caso, a variante utilizada, mais do que criar um novo sentido apresenta
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Discurso e poder: teoria e análise
uma nova forma: desmembrada, desconstruída. Em termos de forma, embora seja
uma estrutura aparentemente distante da EI referência, não se pode dizer que se trate
de uma nova EI. Isso porque sua compreensão liga-se e depende necessariamente do
conhecimento do sentido da primeira. Há, assim, uma vinculação conceitual geral da
EI variante com a referência. Some-se a isso o fato de que o sentido daquela apenas
se constitui tendo em conta o contexto discursivo no qual se insere, posto que deixa
de ser “desistir” para ser “nem tentar para não ter que desistir”. Para dizer que “era
melhor nem tentar porque a decepção seria certa” ou mesmo “era melhor tirar o cavalo
da chuva”, optou-se pelo desmembramento da estrutura original de modo que ficasse
clara a noção de um processo de leitura da situação que se desenhava, que antecipava
o provável resultado de decepção – Ia me poupar o trabalho de tirar ele [o cavalo] de
lá depois [da chuva] e, portanto, o melhor era nem agir – não podia nem pensar em
colocar o cavalo na chuva. Tal desmembramento acrescenta um aspecto temporal a
esse modo de dizer, criando um enredo para essa forma figurada.
Considerando o cotejo entre os sentidos literais das partes e o composicional
da EI referência, pode-se dizer que se trata de um conjunto idiomático opaco, pois não
se identificam ligações entre um e outro sentidos. Tomando-se a EI variante, o nível de
opacidade é ainda maior, sendo que o contexto discursivo somente irá contribuir mais
objetivamente para a compreensão de seu sentido se o receptor conhecer o sentido
da EI referência, sendo, portanto, necessária uma dupla decodificação. A EI variante
cria um novo conceito baseado no conceito criado pela EI referência. Outro dado que
merece destaque é a manutenção dos lexemas da EI referência. Ainda que a expressão
tenha sido fracionada e apresentada em dois blocos aparentemente distintos (em duas
sentenças separadas), é possível encontrar exatamente os mesmos constituintes da EI
referência na variante, mesmo que nesta última tenham sido inseridos outros lexemas.
Disso pode-se depreender que a estratégia de desconstrução da EI referência,
intentando manter uma vinculação conceitual, se não preserva a forma, preserva seus
elementos constituintes.
Esse exemplo lança luz sobre uma das caraterísticas mais mencionadas nas
tentativas de conceituação de EI: a fixidez. Fica evidente que essa fixidez é relativa e
oscila/reveza essencialmente entre forma e conteúdo, de modo que sempre haja ao
menos um aspecto que mantenha ligação com a EI referência. Além disso, o contexto
discursivo, que contribui para a compressão da EI variante, foi construído não apenas
pelo texto em si, mas também essa compreensão que se vale de uma memória
discursiva,
constituída
pelos
saberes
conscientemente
compartilhados
(BERRENDONNER, 1983). No caso analisado, o contexto discursivo, ou co(n)texto
(ADAM, 2011), apresenta-se como um fator ativo e passivo nessa equação. Ativo ao
impor/determinar/condicionar a variação em favor das intenções textual-discursivas.
Passivo porque acaba por ter seu sentido global afetado pela expressividade, pelo
“colorido” emprestado pela escolha lexical de uma EI, seja ela referência ou variante.
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Expressões idiomáticas: contribuições e implicações do contexto discursivo ...
Considerações finais
As EI representam parte da cultura de um povo, sintetizando em seus arranjos
composicionais um modo de ver o mundo. Embora sejam de difícil definição, podese afirmar que as EI são estruturas complexas, relativamente fixas – sujeitas a certas
alterações –, cujo sentido subjaz sua estrutura aparente de sentido, que emerge do
arranjo composicional. A pesquisa em desenvolvimento defende a tese de que mais
do que simples adequações de marcas número-pessoais, as EI permitem alterações
circunstanciais, limitadas, em função do contexto discursivo em que se inserem. Assim,
a (pen)última camada de sentido de uma EI é constituída no e pelo contexto discursivo
–a última camada seria a interpretação do receptor do texto.
Uma primeira implicação do contexto discursivo para as EI é a possibilidade ou
necessidade de variação para adequação às intenções discursivas. Decorre disso que
o contexto discursivo passa a contribuir para a construção do sentido. No caso de EI
variantes, há uma maior relação de dependência com o contexto. Já no caso de uma
EI referência o contexto discursivo determina a opção do sentido, dentre possíveis
sentidos polissêmicos ou suas nuances.
Por outro lado, as EI atuam como direcionadores argumentativos, operam
como parte e não como um todo argumentativo, dando um tom ao argumento,
produzindo efeitos e emprestando expressividade ao discurso. Há, certamente,
diferentes modos de construção discursiva e “[...] o implícito desempenha um papel
essencial: dizer nem sempre é dizer explicitamente, a atividade discursiva entrelaça
constantemente o dito e o não dito” (MAINGUENEAU, 1996, p. 89). Dessa forma, a
opção pelo uso de uma EI ao invés de outro jeito de expressar as ideias nela contida
marca uma intenção, além de estilística, também situacional, que irá desenhar os
rumos da construção discursiva.
Considerando os exemplos analisados, pode-se inferir preliminarmente que o
sentido não literal pode guardar resquícios de relação (em maior ou menor grau) com
a(s) parte(s) que integram a EI. Não se pode afirmar, contudo, que haja uma ligação
direta dessa relação na formulação do sentido, mas se verifica que, em um continuum
entre a mínima e a máxima relação, o sentido literal pode contribuir nos processos que
levam ao acionamento dos mecanismos que conduzem à compreensão do sentido
não literal, ainda que essa contribuição parta justamente da "falta de sentido" do
conjunto se considerado denotativamente quando posto em contexto. Ademais,
verificou-se que a construção do sentido de uma EI passa não apenas por processos
cognitivos, mas também pragmáticos posto que toda significação decorre de um
contexto, o qual se vincula em maior ou menor grau nessa construção .
As EI, em razão de sua complexidade, permitem inúmeras abordagens. Este
estudo valeu-se de um enfoque textual-discursivo trazendo para o bojo da discussão
os efeitos e implicações que o contexto discursivo poderia promover nas EI, mas
também buscou observar os efeitos que o uso desses lexemas causariam no discurso.
Tendo em vista os limites deste artigo, apresentou-se uma visão parcial de um todo
em processo de elaboração e trouxe, portanto, apenas apontamentos preliminares.
Todavia, já foi possível verificar alguns aspectos relevantes que, além de
ALVES, Fabiane de Oliveira | 2020 | p. 67-83
81
Discurso e poder: teoria e análise
aprofundados, podem ser o ponto de partida para outros estudos que tomam as EI
como tema de pesquisa.
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Como citar
ALVES, Fabiane de Oliveira. Expressões idiomáticas: contribuições e implicações do
contexto discursivo para a forma e construção do sentido. In: GONÇALVESSEGUNDO, Paulo Roberto; ARAES, Célia Regina; CASTANHEIRA, Claudia; ISOLALANZONI, Gabriel; PENITENTE, Natalia; WEISS, Winola (orgs). Discurso e poder:
teoria e análise. São Paulo: FFLCH/USP, 2020, p. 67-83. DOI:
10.11606/9786587621241
ALVES, Fabiane de Oliveira | 2020 | p. 67-83
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Analogia e dissenso no debate parlamentar: o caso das comparações ...
Analogia e dissenso no debate
parlamentar: o caso das
comparações entre grupos
estigmatizados
Filipe Mantovani FERREIRA
Instituto Federal de São Paulo (IFSP)
[email protected]
Resumo: As questões identitárias têm, nas últimas décadas, sido
bastante debatidas no Brasil, nas mais diversas esferas de
tomada de decisão. O Projeto de Lei da Câmara nº 122 (PLC
122/06), cujo foco era criminalizar a LGBTfobia, constituiu-se, na
história recente do país, como um dos principais objetos de
dissenso sobre essa temática. Em 08/12/2011, o PLC 122/2006
foi discutido pela Comissão de Direitos Humanos e Legislação
Participativa do Senado Federal. A interação dos senadores
caracterizou-se por intensa discordância, que se evidenciou nas
analogias construídas por eles. Analisamos aquelas cujos
domínios correspondem a grupos minoritários, a fim de
observar a maneira como o PLC 122/2006 é compreendido
pelos debatedores e identificar estratégias utilizadas para a
refutação dos argumentos por analogia. Embasam este trabalho
estudos sobre argumentação (PERELMAN & OLBRECHTSTYTECA, 1996 [1958]; PLANTIN, 2011), processamento
cognitivo da analogia (HOLYOAK, 2005; GENTNER & FORBUS,
2011) e discurso (VAN DIJK, 2006, 1998, 1984). As análises
permitiram observar que as analogias são argumentativamente
fecundas e que seu exame tem potencial para desvelar as teses
advogadas pelos debatedores. O exame do corpus permitiu,
ademais, que se identificassem três estratégias de refutação de
argumentos por analogia, os quais podem resultar significativas
para a persuasão da plateia.
Palavras-chave: Analogia; Debate parlamentar; PLC 122/2006;
Dissenso; Argumentação.
Introdução
O discurso deliberativo, da forma como o concebe Aristóteles (2005), tem por
objetivo a tomada de decisões a respeito de questões atinentes à administração
pública, sempre visando ao bem comum. O foco da deliberação recai no futuro, visto
que ela representa uma tentativa de se obter, por meio da gestão do desacordo,
respostas a questões controversas (AMOSSY, 2017). Modernamente, são numerosas
FERREIRA, Filipe Mantovani | 2020 | p. 84-99
85
Discurso e poder: teoria e análise
as instâncias em que se busca a superação do dissenso em nossa sociedade, tais como
as reuniões de condomínio, as assembleias de sindicatos, entre outros.
No Brasil, reconhecemos no Congresso Nacional uma das mais importantes
instâncias de deliberação. Amplamente discutido desde sua proposição, o Projeto de
Lei da Câmara 122/2006 tramitou em diversas comissões da Câmara dos Deputados
e do Senado até seu arquivamento definitivo, em 2014. Proposto pela então deputada
federal Iara Bernardi (PT/SP), o projeto visava tornar crime a discriminação motivada
por orientação sexual e identidade de gênero.
Por conta da natureza complexa do tema e dos diferentes posicionamentos
suscitados por ele, foram recorrentes, no debate, as manifestações de dissenso, as
quais são bastante variadas no que respeita a sua natureza linguístico-discursiva.
Em virtude de terem como princípio estruturante a identificação de
similaridades entre dois ou mais domínios, as analogias possibilitam a compreensão
de um domínio em função de outro, frequentemente deixando expressas, de maneira
mais ou menos explícita, as crenças daqueles que as constroem. Com efeito,
compreender que as coisas do mundo podem ser conceptualizadas de maneiras
diversas ― e por vezes conflitantes ―, a depender das ideias preconizadas pelo orador
e de seus objetivos, implica reconhecer o potencial argumentativo das analogias, o
qual tem sido atestado por estudiosos, como Plantin (2011) e Perelman e OlbrechtsTyteca (1996 [1958]).
É com base nesse pressuposto que estabelecemos, como objetivos deste
trabalho, identificar, por meio de uma abordagem qualitativa dos dados, argumentos
por analogia, observar, a partir deles, as diferentes maneiras de compreender o PLC
122/2006 e descrever as estratégias que são utilizados para refutá-los. Analisamos,
neste trabalho, as analogias cujos domínios são constituídos por grupos minoritários1,
por entendermos que as ideias a respeito desses grupos normalmente envolvem
questões de moralidade e costumes, as quais têm constituído o cerne de debates
bastante acirrados, dada sua importância para a sociedade.
O corpus deste trabalho consiste na transcrição do debate a respeito do PLC
122/2006 ocorrido em 08/12/2011 no âmbito da Comissão de Direitos Humanos e
Legislação Participativa (CDH) do Senado Federal. Transmitido para todo o Brasil pela
TV Senado, ele foi transcrito conforme as orientações do Projeto de Estudos da Norma
Linguística Urbana Culta de São Paulo (NURC-SP), publicadas por Preti (2003). A
transcrição do debate encontra-se disponível na íntegra em Ferreira (2018).
Argumentaram em favor da aprovação do PLC 122/2006 os senadores Marta
Suplicy, Marinor Brito, Lídice da Mata e Eduardo Suplicy; foram contrários a ela Magno
Malta, Cristovam Buarque, Marcelo Crivella e Sérgio Petecão. Paulo Paim, por ser
presidente da CDH, atuou como gestor do debate ― distribuiu turnos, controlou
1 A noção de minoria adotada neste trabalho não tem natureza quantitativa, mas qualitativa. São
considerados membros de grupos minoritários aqueles indivíduos que são discriminados em função do
valor que é socialmente atribuído a suas características físicas, sexuais, religiosas, culturais e/ou
linguísticas. Tal posicionamento coaduna-se com o que defendem diversos teóricos que se ocuparam
dessa temática, tais como Liebkind (1984) e van Dijk (1984).
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Analogia e dissenso no debate parlamentar: o caso das comparações ...
tempo de fala, procurou controlar as manifestações da audiência, etc. ―, não tendo
se pronunciado favorável ou contrariamente à aprovação da matéria.
Entre outros, constituem as bases teóricas para este trabalho estudos sobre
argumentação (PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA, 1996 [1958]; PLANTIN, 2011),
processamento cognitivo da analogia (HOLYOAK, 2005; GENTNER & FORBUS, 2011),
além de obras vinculadas aos Estudos Críticos do Discurso (VAN DIJK, 2006, 1998,
1984).
1 Analogias: perspectivas, conceituação e propriedades
As analogias têm sido estudadas por pesquisadores filiados a áreas de
investigação bastante distintas ao longo da história, tais como a Filosofia, a
Argumentação e a Psicologia. No domínio da Filosofia, encontramos na Antiguidade
Clássica alguns dos registros mais importantes a respeito do uso de analogias. Já nos
trabalhos de Platão podem ser observados esforços para transpor as identidades de
relações a/b = c/d (a está para b assim como c está para d), oriundas do raciocínio
matemático, para o domínio da reflexão filosófica. De acordo com Resende Filho
(2008), coube a Aristóteles, a aplicação do raciocínio analógico a toda realidade
mensurável.
Os estudos de argumentação, por outro, têm dado enfoque ao exame dos usos
das analogias como forma de buscar a persuasão em situações de comunicação,
sobretudo naquelas em que a atividade argumentativa tem maior relevo. Perelman e
Olbrechts-Tyteca (1996 [1958]) veem, no raciocínio analógico, uma forma complexa
de argumentação que serve tanto para a prova quanto para a invenção. Nesse sentido,
as analogias podem ser consideradas maneiras de dizer o mundo com potencial para
colaborar significativamente para a conceptualização de um dado objeto ou evento, a
fim de possibilitar a defesa de uma determinada tese, para a qual os oradores
procuram conquistar a adesão.
A Psicologia, por sua vez, tem dado maior ênfase à investigação sobre
dimensão cognitiva da analogia, a seu processamento mental, com vistas a sua
compreensão enquanto operação mental que possibilita a resolução de problemas,
além da construção de inferências, abstrações e generalizações. Destacam-se, nessa
linha teórica, os trabalhos de Dedre Gentner, Keith Holyoak e seus colaboradores
(GENTNER, 1983, 1989; HOLYOAK & GICK, 1989; HOLYOAK, 2005; GENTNER &
BOWDLE, 2008; GENTNER & FORBUS, 2011).
Entendemos que a existência de tal pluralidade de abordagens, por um lado,
atesta a natureza plurifacetada das analogias, e, por outro, afigura-se como uma
espécie de ratificação da produtividade de seu estudo para as mais diversas áreas do
conhecimento.
A despeito da diversidade de abordagens da analogia, ela tem sido definida,
do ponto de vista estrutural, de modo similar por diversos estudiosos,
desconsideradas algumas variações terminológicas. De acordo com Itkonen (2005),
analogias correspondem a relações que se estabelecem entre dois sistemas com
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Discurso e poder: teoria e análise
números iguais de partes, em que as relações entre as partes de um sistema são de
contiguidade, e aquelas que se estabelecem entre os dois sistemas é de similaridade
estrutural e/ou funcional.
Propomos, como forma de representar graficamente a proposta de Itkonen, o
seguinte esquema:
Figura 1. A analogia conforme concebida por Itkonen (2005)
ANALOGIA
X
a
b
Y
c
a'
b'
c'
Fonte: elaboração própria.
Nesse esquema, considera-se que X e Y são dois domínios diferentes, que
compartilham similaridades estruturais e/ou funcionais, representadas por letras
minúsculas. Assim, (a), (b) e (c) são contíguos a X, da mesma forma que (a’), (b’) e (c’)
são contíguos a Y, e cada uma das letras minúsculas representa uma característica que
encontra correspondência no outro domínio: (a) é similar a (a’); (b), a (b’); (c), a (c’), e
assim por diante.
Importa observar que, segundo Plantin (2011), não é imprescindível que as
analogias sejam indicadas pela existência de expressões linguísticas. Segundo o
estudioso, embora as analogias sejam frequentemente marcadas por um conjunto
bastante amplo de expressões lexicais e gramaticais, essa não é uma condição para
sua existência, sendo possível que elas se expressem, por exemplo, pela colocação de
enunciados em paralelo2. Dessa forma, afasta-se a ideia de que a analogia está
necessariamente vinculada ao uso de uma ou outra fórmula linguística e advoga-se a
tese de que a expressão da analogia se efetiva, por vezes, apenas no nível do discurso.
Para Gentner e seus colaboradores (GENTNER, 1999; GENTNER & SMITH,
2012, 2013; GENTNER & FORBUS, 2011) o processamento analógico ocorre em três
etapas, quais sejam, a recuperação, o mapeamento e a avaliação. Basicamente, a
recuperação é a identificação dos domínios que farão parte da analogia; o
mapeamento consiste no alinhamento estrutural de um domínio-base com um
domínio-alvo; a avaliação, por fim, ocorre quando se julga a adequação da analogia e
das inferências por ela chanceladas.
2 Plantin (2011, p. 113) dá o seguinte exemplo ao descrever as analogias expressas por meio da colocação
em paralelo de dois enunciados: “No futebol, jogamos com os adversários ou com a bola, às vezes com
os dois. Em argumentação, focalizamos os objetos de debate ou a relação com os adversários.” (tradução
nossa).
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Analogia e dissenso no debate parlamentar: o caso das comparações ...
Gentner e seus colaboradores tendem, por conta dos objetivos de seus
estudos, a condicionarem a criação de analogias a aspectos cognitivos, sem dar ênfase
à ancoragem sócio-histórica que é característica dos estudos de discurso. Nessa
perspectiva cognitiva adotada por Gentner e seus colaboradores, a recuperação é
determinada pela capacidade de um indivíduo identificar similaridades e, com base
nelas, buscar, em sua memória de longo prazo, elementos estruturalmente similares;
o mapeamento está vinculado à capacidade de construir inferências e abstrações; e a
avaliação está relacionada à percepção de um sujeito de que uma analogia por ele
criada está ou não apta para compreender o mundo.
Entendemos que o foco no indivíduo, embora bastante produtivo para o
desenvolvimento da Teoria do Mapeamento Estrutural de Gentner e seus
colaboradores, representa uma limitação no que respeita às investigações acerca do
discurso, visto que este, por definição, relaciona-se à realidade social de maneira
inextricável.
Sem discordar de Gentner e seus colaborares, parece-nos importante salientar
que reconhecemos ser possível que haja fatores externos ao indivíduo ― e atinentes
à língua em uso ― cruciais para a compreensão dos processos de recuperação,
mapeamento e avaliação3. Portanto, considerando o potencial argumentativo das
analogias (PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA, 1996 [1958]), entendemos ser
imprescindível indicar de que forma compreendemos os processos de recuperação,
mapeamento e avaliação, a fim de possibilitar sua compreensão em situações de
interação.
Assim, entendemos que compreender a recuperação como um processo
mental balizado apenas pela memória ou a capacidade de identificar similaridades
implica ocultar o fato de que a recuperação, nos casos em que a analogia é utilizada
para fins argumentativos, encontra-se limitada também pelo desejo dos oradores de
conquista da adesão daqueles a quem ele se dirige. A relevância da seleção dos dados
é reconhecida por Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996 [1958]), que afirmam a
necessidade de que eles sejam selecionados e adaptados para que se coadunem com
os objetivos da argumentação.
De maneira similar, importa observar também que o mapeamento, além de ser
visto como manifestação de habilidades cognitivas, pode refletir os objetivos
argumentativos de um orador, na medida em que a seleção de características a serem
mapeadas não é neutra do ponto de vista ideológico4. Dessa forma, pode ocorrer, por
exemplo, que um orador use do mapeamento como estratégia e identifique apenas
similaridades cujo mapeamento seja interessante para corroborar as teses que advoga
ou que o orador proceda ao prolongamento do mapeamento de uma analogia criada
3 Não é a intenção deste trabalho questionar o mérito das propostas de Gentner e seus colaboradores.
Sem ignorá-lo, buscamos, em lugar disso, propor uma modificação do entendimento dos conceitos de
recuperação, mapeamento e avaliação, de modo que eles possam ser produtivos não apenas no campo
da Psicologia Cognitiva, mas também no dos Estudos Discursivos.
4 Neste trabalho, adotamos a noção de ideologia desenvolvida por Van Dijk (1998, p. 08), que a define
em termos de uma base das representações sociais compartilhadas por membros de um grupo, a qual
permite que as pessoas, enquanto membros de um grupo, organizem uma variedade de crenças sobre
o que consideram bom ou mau, correto ou incorreto, e ajam coerentemente com elas.
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Discurso e poder: teoria e análise
por outrem, a fim de tornar evidentes as dessemelhanças entre os domínios e, desse
modo, descredibilizar teses contrárias. O prolongamento estratégico das analogias de
outrem, com o objetivo de descredibilizá-la, é descrito no Tratado da Argumentação,
de Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996 [1958]. Para esses autores, “pode acontecer
que a analogia, em vez de ser prolongada pelo autor, o seja por seu crítico, que dela
tira um modo de refutação, tanto mais eficaz por ser o material tomado de empréstimo
ao adversário” (p. 440).
No que respeita à avaliação, não é surpreendente que Gentner e Smith (2012)
concebam as analogias de modo a privilegiar a subjetividade do indivíduo, que
avaliará positivamente as analogias consideradas adequadas para explicar o alvo, das
quais decorram informações que pareçam verdadeiras. Para esses pesquisadores, na
impossibilidade de atender plenamente a esses requisitos, as analogias tenderão a ser
descartadas pelo sujeito que a cria, que poderá buscar outras maneiras de
compreender o mundo e gerar conhecimento. A concepção de avaliação centrada no
indivíduo tem como limitação o fato de não dar conta da complexidade do uso das
analogias em situação de interação, visto que desconsidera o papel do outro, aqui
entendido como um interlocutor, como um sujeito que, tendo o contato com o
discurso do orador, o avalia e pode refutá-lo, total ou parcialmente, ou aceitá-lo.
2 O dissenso no debate parlamentar
O debate frequentemente é comparado a uma discussão, da qual ele difere,
de um lado, por ser mais organizado e formal e, de outro, por ocorrer dentro de um
“quadro prefixado”, no qual estão previstos aspectos como sua duração, a organização
das intervenções dos debatedores, o número de participantes e o tema da interação.
Podem integrar o quadro do debate um moderador, responsável por manter seu bom
andamento, e um auditório (KERBRAT-ORECCHIONI, 1990).
A configuração do debate revela-se bastante complexa, sobretudo se
consideramos que os debatedores, mesmo quando se dirigem a locutores específicos,
levam em consideração o fato de que suas palavras e atitudes estão sendo
monitoradas pelos outros debatedores e pelo auditório. É por esse motivo que
Marques (2000) descreve o debate como uma situação plurilogal, uma vez que “[...] o
destinatário indirecto tem um estatuto um pouco ambíguo, porque funciona como
testemunha da interacção, mas é também alvo da atenção do locutor” (p. 125).
A existência (ou pressuposição da existência) de um desacordo é
frequentemente indicada como uma característica do gênero debate (KERBRATORECCHIONI, 1990; ERLICH, 1993; AQUINO, 2008). Para Doury e Kerbrat-Orecchioni
(2011, p. 63), no debate, como nos demais gêneros de natureza agonal, o desacordo
é a regra, e o debate corresponde a uma forma de combate.
Meireles (1997) observa que o desacordo tem recebido diversas designações
na literatura, tais como dissenso, dissensão e negação. Segundo a autora, são quatro
as características do dissenso: em primeiro lugar, trata-se de um fenômeno
conversacional, havendo a necessidade de mais de um falante e de mudança de turno;
em segundo lugar, ele é reativo, isto é, sequencialmente subordinado ao que disse
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Analogia e dissenso no debate parlamentar: o caso das comparações ...
outro falante; em terceiro lugar, caracteriza-se por ser inerentemente adversativo,
constituindo-se como uma refutação total ou parcial da visão de mundo expressa por
alguém; por fim, é variado no que diz respeito a sua manifestação linguística.
Apesar de concordarmos, em linhas gerais, com a descrição do desacordo de
Meireles, acreditamos ser necessário questionar a ideia de que o dissenso é um
fenômeno estritamente conversacional, visto que, da perspectiva por nós adotada, ele
não deve ser considerado como algo que está circunscrito necessariamente a um
determinado evento comunicativo. Em lugar disso, inspirados pelos princípios de
dialogismo defendidos por Bakhtin (2009), propomos que o dissenso seja
conceituado a partir de uma perspectiva discursiva. Tal modificação permite que se
observem desacordos entre enunciados proferidos em situações comunicativas
distintas. Procedendo assim, endossamos a visão bakhtiniana de que todo enunciado
constitui, em alguma medida, a uma resposta a um ou mais enunciados precedentes 5.
3 O debate parlamentar e o papel do consenso
A ideia de que a busca por um consenso corresponde à finalidade precípua do
debate, amplamente defendida por alguns teóricos, parece pouco adequada para se
descrever alguns tipos de debate, entre eles, o debate eleitoral. Sobre essa questão,
argumentam Doury e Kerbrat-Orecchioni (2011, p. 65-6):
[...] numerosas são as teorias que estipulam como finalidade da
argumentação resolver o desacordo inicial para chegar a um acordo
(sobre a questão em discussão ou, ao menos, sobre o fato de que
nenhum acordo sobre a questão é possível) [...]. Entretanto, essa
percepção é refutada pelo gênero interacional do qual provém nosso
corpus [debate eleitoral entre candidatos à presidência da França]. É
claro que, em um debate eleitoral, os debatedores levam a cabo uma
atividade argumentativa importante, mas é igualmente claro que essa
atividade seria incapaz de resultar na resolução das divergências
iniciais: o acordo entre os interlocutores é, pois, excluído do horizonte
das trocas argumentativas. Contrariamente, essa renúncia à busca de
um consenso não exclui necessariamente a realização de acordos
parciais, ainda que sobre os pontos não centrais do debate [...]6.
Com efeito, o debate parlamentar, objeto de estudo deste trabalho, assim
como o debate eleitoral, não parece se afigurar como um terreno fértil para a busca
da superação do dissenso por meio do que Amossy (2017) descreve como “trabalho
5 Por óbvio, não se trata de criticar a noção de dissenso proposta por Meireles, que reconhecemos ser
coerente com o quadro da Análise da Conversação, no qual se inserem os trabalhos dessa autora; tratase, antes, de ajustar sua proposta para que ela seja produtiva no panorama dos Estudos Discursivos, no
qual se inscreve este trabalho.
6 Tradução livre de: “[...] nombreuses sont les théories qui stipulent que la finalité de l’argumentation est
de résoudre ce désaccord initial pour parvenir à un accord (sur la question en discussion, ou, au pire, sur
le fait qu’aucun accord sur la question n’est possible) […]. Mais cette conception est mise en déroute par
le genre interactionnel dont relève notre corpus. Il est clair que dans un débat électoral les débatteurs
développent une activité argumentative importante; mais il est tout aussi clair que cette activité ne saurait
aboutir à la résolution finale des divergences de départ: l’accord des interlocuteurs comme horizon des
échanges argumentatifs est donc exclu. En revanche, cette renonciation à la recherche d’un consensus
n’exclut pas forcément la réalisation d’accords partiels, portant sur des points périphériques du débat [...].
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Discurso e poder: teoria e análise
do logos”, isto é, do discurso da ordem do razoável com vistas à obtenção de uma
solução.
Isso significa que, conquanto a busca de consenso seja característica saliente
do gênero debate, ela pode não ser observada nos debates parlamentares, em que a
conquista da adesão dos parlamentares se dá muito mais pela articulação política e
pelos jogos de interesses, bastante frequentes nos bastidores dos debates, que pelo
exercício da razoabilidade no debate. Ratificamos, dessa forma, as ideias de
Comparato (2000/2001, p. 11), para quem “jamais se viu um partido da situação mudar
de opinião sobre uma questão política, diante dos argumentos apresentados pela
oposição, e vice-versa".
Findas nossas considerações a respeito dos debates parlamentares, passamos
à análise das sequências em que as analogias envolvendo grupos minoritários são
utilizadas e do modo como se manifesta o desacordo com relação a elas.
4 Análises
As análises do corpus permitem observar que são recorrentes as analogias em
que a população LGBT é selecionada como domínio comparável a outros grupos
estigmatizados, tais como negros, indígenas, mulheres e idosos. Essa tendência não é
surpreendente. Na medida em que a analogia consiste em uma forma de utilizar um
domínio que nos é mais familiar para compreender um domínio que frequentemente
nos é menos familiar (GENTNER, 1983) e que uma das funções do debate em questão
era precisamente a discussão a respeito das possíveis consequências da criminalização
da LGBTfobia, parece coerente que sejam comparados, com a população LGBT,
outros grupos cuja discriminação já era, àquela altura, vedado por legislação
específica.
Como dissemos anteriormente, foram frequentes os desacordos entre os
debatedores. Observamos, no que segue, as diferentes maneiras de conceptualizar o
PLC 122/2006 e descrevemos as estratégias retórico-argumentativas utilizadas pelos
senadores para refutar as ideias preconizadas por seus colegas. Cabe salientar que as
estratégias aqui descritas não são excludentes e podem, a critério dos oradores, ser
utilizadas em combinação, a fim de fortalecer as teses que advogam.
4.1 Prolongamento da analogia visando à identificação de
dessemelhanças
Ao descreverem as analogias como um construto argumentativamente instável,
Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996 [1958]) chamam atenção para o fato de que, em
um debate, pode ocorrer que a analogia utilizada por um orador seja estendida por
outro, de modo a dar relevo a dessemelhanças e, assim, descredibilizar o argumento
construído com base nela:
Pode acontecer que a analogia, em vez de ser prolongada até o fim
pelo autor, o seja por seu crítico, que dela tira um meio de refutação,
tanto mais eficaz por ser o material conceitual tomado de empréstimo
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Analogia e dissenso no debate parlamentar: o caso das comparações ...
ao adversário. [...] Esse modo de refutação pressupõe que sempre se
tem o direito de prolongar uma analogia para além da primeira
afirmação e que se, por causa desse prolongamento, ela se volta
contra o autor, ou se torna inadequada, é porque já o era desde o
início. [...] A refutação jamais é coercitiva, pois se poderia recusar
admitir esse prolongamento; entretanto, ela põe em evidência a
fragilidade e a arbitrariedade da analogia primitiva. Aí está o seu
principal interesse. (PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA, 1996 [1958],
p. 440-441)
O uso dessa estratégia argumentativa é observável no corpus selecionado para
análise na interação entre os senadores Marta Suplicy e Magno Malta, analisada a
seguir.
Em (1), a senadora Marta Suplicy, relatora da matéria no senado e defensora de
sua aprovação, argumenta no sentido de identificar similaridades entre o domíniobase “ser negro” e o alvo “ser LGBT”. A analogia é marcada, nesse caso, pelo uso da
expressão “como”:
(1) por exem/se uma pessoa homossexual7... é atacada na Avenida Paulista -- que hoje
é uma coisa que está sendo bastante frequente -- e com um chute com um xingo... uma
quebra de BRAço... uma lesão desse tipo... o policial simplesmente dá de ombros como
tem feito frequentemente... com esta lei ele não mais poderá dar de ombros... como
não dá de ombros... se uma pessoa negra é desacaTAda... ou chutada ou xingada... ele
leva essa pessoa à delegacia... (linhas 102 a 109)
À fala de Marta Suplicy segue-se o discurso do senador Magno Malta, que se
posiciona de modo bastante veemente contra a aprovação do PLC 122/2006, nos
seguintes termos:
(2) gostaria de esclarecer ainda que índio... não pediu para nascer índio... negro que é
tão... chamado todas as horas para fazer comparação para justificar esse projeto... e não
deveria fazê-lo porque negro não pediu/não fez opção para ser negro... negro nasceu
negro... eu nasci negro minha mãe nasceu negra...eu não fiz opção para ser negro...
japonês não fez opção para ser japonês... nem deficiente... portador de deficiência fez
opção para ser portador de deficiência... não pode comparar... eh raça... não se pode
comparar com quem fez a opção por ser homossexual... há que se respeitar porque o
homem... pode fazer ( ) seu desígnio e sua decisão... o indivíduo pode fazer a opção
para ser o que ele quiser... e pode requerer direitos... a única coisa que o homem não
pode... ((aplausos)) (linhas 229 a 240)
A análise do argumento de Marta permite observar que, para a senadora, a
semelhança compartilhada entre alvo e base tem a ver com a vulnerabilidade social,
isto é, com o fato de que tanto indivíduos LGBT como negros são mais propensos a
sofrer com a violência que resulta do estigma associado a essas minorias. A aprovação
do projeto de lei seria, dessa forma, uma maneira de conferir segurança às pessoas
LGBT, que, assim como os negros, são vitimados pela violência.
7 Ainda que a palavra homossexual seja frequentemente utilizada no debate, ela não parece fazer
referência apenas a quem se relaciona sexual e afetivamente apenas com indivíduos do mesmo sexo; a
expressão parece contemplar também indivíduos bissexuais, transgêneros e outros que são
discriminados em função de sua identidade de gênero e/ou orientação sexual. Visando a uma adequação
maior do termo à realidade a que ele se refere, utilizamos, neste trabalho, a expressão “indivíduo LGBT”
e outras similares ou derivadas, para fazer referência àqueles que são, durante o debate, descritos como
homossexuais.
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Discurso e poder: teoria e análise
Para descredibilizar o argumento de Marta, Malta opta por dar relevo, em (2),
para uma característica que não pode ser compartilhada entre os dois domínios, qual
seja, a volição: de acordo com o senador, ser um indivíduo LGBT é consequência de
um desejo, diferentemente de ser negro, que corresponde a uma determinação
genética.
Observe-se que, nesse caso, a dessemelhança identificada constitui mais um
posicionamento defendido por um grupo de indivíduos que compartilham essa
crença que um dado inequivocamente aceito como verdadeiro, visto que a conexão
entre volição, identidade de gênero e orientação sexual é controversa.
A identificação dessa dessemelhança parece particularmente significativa,
tendo em vista que, até então, em momento nenhum a volição havia sido sugerida
como uma similaridade passível de mapeamento dos domínios “ser negro” e “ser
LGBT”. Dessa forma, parece lícito dizer que a refutação levada a cabo por Malta tem
por base um prolongamento da analogia proposta pela senadora Marta, com o
objetivo de salientar dessemelhanças entre os domínios e, assim, questionar a
validade dos argumentos apresentados por ela. Em outras palavras, trata-se de uma
tentativa de caracterizar o raciocínio de Marta como falacioso. Com base nisso, Malta
argumenta, sem questionar que a vulnerabilidade é uma similaridade compartilhada
entre os domínios, que a aprovação do projeto de lei seria injusta, inadequada, visto
que a população LGBT só poderia ser vítima de violência se optasse por manter
comportamentos afetivo-sexuais e comportamentais estigmatizados.
4.2 Refutação de semelhanças identificadas pelo outro
Outra estratégia observada no debate consiste no questionamento de
semelhanças identificadas em uma analogia proposta por outro orador, a fim de
colocar-lhes o crédito em questão. Observem-se os segmentos (3) e (4), extraídos de
discursos proferidos respectivamente por Magno Malta e Marta Suplicy:
(3) quem agride homossexual no Brasil... agride aposentado... quem mata um
homossexual hoje mata um portador de deficiência... a senadora Marta falou que os
homossexuais continuam agredidos na Avenida Paulista.... os mendigos também
senadora... as crianças em São Paulo o seu estado continuam abusadas... (linhas 259 a
263)
(4) quero ainda colocar... ah... como observação que aqui foi dito... afirmado... que não
vivemos num país homofóbico... eu discordo... e quero dizer o porquê... foi
mencionado por alguns senadores... que não/que assim como se agridem
homossexuais... se agridem deficientes... se agridem... várias pessoas ( ) que estão
incomodando de alguma forma... é verdade... mas eu nunca vi alguém esfaquear um
deficiente... porque ele é deficiente... ((aplausos e gritos de aprovação)) não vi alguém...
não vi... também... -- pode até ocorrer senador Malta... mas isso é raro e dá primeira
página de jornal como um escândalo gigantesco -- agora... nunca vi esfaquear... surdo
porque é surdo... o senhor pode ter visto... ((falatório na plateia)) mas não é o que ocorre
todo dia nesse país... ((campainha soa repetidamente)) (linhas 1211 a 1222)
Em sua fala, Malta constrói uma analogia entre a população LGBT e diversos
outros grupos sociais (aposentados, pessoas com deficiência, mendigos e crianças). A
semelhança identificada pelo senador seriam as agressões, às quais todos esses
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Analogia e dissenso no debate parlamentar: o caso das comparações ...
grupos estão sujeitos. A tese que o senador busca fortalecer é a de que, por haver
muitos grupos igualmente vulneráveis, não é justo que se criminalize apenas a
LGBTfobia. Novamente se observa que, do ponto de vista do senador, a aprovação do
projeto seria injusta ou inadequada.
Marta procura, então, em fala ulterior, relativizar a semelhança indicada por
Malta, ao dizer que a população LGBT, diferentemente do que ele afirma, destaca-se
dos demais grupos justamente por sofrer um tipo de discriminação que se traduz em
violência física frequente, o que não seria verdade para os outros grupos. Em outras
palavras, Marta refuta a analogia construída por Malta ao colocar em questão a
similaridade que ele havia afirmado ser compartilhada pelos domínios da analogia.
Assim, pode-se dizer que o senador procura encaminhar sua argumentação no
sentido de apagar especificidades dos grupos a que faz referência (indivíduos LGBT,
aposentados, pessoas com deficiência, crianças), ao passo que Marta, ao questionar a
semelhança interdominial indicada por Malta, busca salientar aquilo que lhe parece
específico da discriminação contra a população LGBT e, assim, invalidar ou
enfraquecer o argumento de Malta.
Assim, para a senadora, embora pessoas com deficiência sejam vítimas de
agressão (concordância manifestada por meio da expressão “é verdade”), o
argumento de Malta não deveria ser aceito como verdadeiro em função de não levar
em conta o fato de que, segundo ela, pessoas LGBT são mortas e esfaqueadas com
frequência, o que não acontece com pessoas com deficiência. A senadora argumenta,
dessa maneira, que a similaridade interdominial indicada por Malta não encontra
respaldo na realidade.
Os senadores engajam-se, assim, em uma espécie de jogo de luz e sombra,
que ora revela e ora oculta características do alvo e cuja regra principal é a seletividade
inerente aos processos de recuperação e mapeamento.
A identificação da estratégia argumentativa de questionamento das
similaridades indicadas por outra pessoa corresponde, em linhas gerais, a um
processo de avaliação que tem como origem o interlocutor e que só pode, portanto,
se efetivar na interação.
4.3 Refutação das inferências (pretensamente) chanceladas por
uma analogia
Gentner e Smith (2013, p. 669) defendem que a criação de inferências é uma
característica importante da construção de analogias. Segundo os autores,
Uma boa analogia revela estruturas comuns a duas situações e sugere
inferências adicionais. Ou seja, o mapeamento analógico envolve
reconhecer um sistema relacional comum entre duas situações e criar
inferências adicionais balizadas por essas características comuns [...]8.
8 Tradução livre de: “A good analogy both reveals common structure between two situations and suggests
further inferences. That is, analogical mapping involves recognizing a common relational system between
two situations and generating further inferences guided by these commonalities […].
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Discurso e poder: teoria e análise
No excerto a seguir, Magno Malta identifica a discriminação como similaridade
compartilhada por membros da comunidade LGBT, evangélicos e pessoas com
síndrome de Down, grupos que correspondem aos domínios da analogia que o
senador constrói.
(5) há uma coisa muito (aberta) aqui... se ele vai no seu gabinete e diz eu coloquei meu
currículo... tá aqui nomeação... isso vai para senador vai pra deputado federal prefeito
vereador vai pra todo mundo... nomeação... cargo público de alto... eh:: de livre
escolha... e você não escolhe... isso é VAgo... a pena é de um a três... aí você fala não...
essa pessoa tem que dizer assim olha não estou escolhendo você porque você é
homossexual... ninguém vai falar isso... só vai dizer ((gritos, vaias)) não escolhi... não
escolhi... como as pessoas fazem... quando querem excluir alguém... simplesmente diz
que não/ agora ah vou dizer uma coisa para o senhor... quando alguém... é muçulmano
pode fazer isso hoje? então uma babá/uma babá de confissão evangélica... e ele
descobre que ela é evangélica e toma conta do filho... e ele não quer que essa babá
oriente a filha com os ensinamentos cristãos... ele pode mandar embora que ele não é
preso... pode mandar embora que ele não é preso... não tem uma lei pra proteger a
babá disso... se eu descubro que a babá da minha filha... é homossexual... conforme a
lei... se eu mandar embora... eu tenho que continuar com a babá homossexual porque
aí tem cadeia pra mim... ora... é correto isso?... é correto isso? eu estava vindo desci no
aeroporto e vi... antes de pegar o carro... um cidadão rindo de um cidadão que tinha
mais ou menos trinta anos de síndrome de Down... chamando ele de cara de bolacha...
por que não temos uma lei específica para proteger quem tem síndrome de Down que
não pediu para nascer com síndrome de Down?... ((aplausos)) (linhas 291 a 315)
A inferência que o senador constrói a partir da identificação de similaridades
entre os domínios é, novamente, que o PLC 122/2006 não deve ser aprovado, pois
não protege todos os grupos vitimados pela discriminação.
Opondo-se a Malta, a senadora Marinor Brito argumenta contrariamente a essa
inferência nos seguintes termos:
(6) mas a minha discordância senador Magno Malta... com todo respeito... é que...
embora a maioria do povo brasileiro não seja homofóbica... e não tenha aCORdo com
atitudes homofóbicas... mas o Estado brasileiro não garante... aos cidadão que tenha
uma orientação sexual... não uma opÇÃO sexual ((aplausos e gritos))... diferente... o
diREIto de ser respeitado... ou quando... o seu direito humano é violado... ele não tem
como como recorrer... e... refletindo sobre o que vossa excelência disse... nós não
teríamos por quê... já que a Constituição garante direitos... ((ouvem-se vozes ao fundo,
a campainha soa em pedido de silêncio)) já que a Constituição... [...] se a Constituição
fosse suficiente... e o parlamento brasileiro achasse isso ... nós não teríamos avançado
em conquistas FUNdamentais...para seTOres... da população brasileira... como as
crianças e os adolescentes que têm hoje o Estatuto da Criança e do Adolescente... os
que lutaram pela igualdade racial que têm hoje o Estatuto da Igualdade Racial... a Lei
Maria da PEnha::... a população é violenta? não... o povo brasileiro não é violento... mas
uma mulher é espancada a cada um minuto... nesse país... e a Lei Maria da PEnha VEIo
afirmar positivamente... a importância das garantias constitucionais... (linhas 444 a 489)
O desacordo de Brito com relação à inferência defendida por Malta marca-se
linguístico-discursivamente em pelo menos dois momentos, a saber: (1) quando a
senadora afirma “mas a minha discordância senador Magno Malta”; e (2) quando ela
o corrige quanto ao uso de “opção” e defende o uso da expressão “orientação sexual”.
Ao argumentar que a Constituição não oferece proteção suficiente para os
grupos estigmatizados e que o parlamento brasileiro concorda com essa ideia, a
FERREIRA, Filipe Mantovani | 2020 | p. 84-99
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Analogia e dissenso no debate parlamentar: o caso das comparações ...
senadora expressa seu desacordo com relação à inferência defendida por Malta e
endossa o ponto de vista de que a aprovação do PLC 122/2006 é tão necessária como
fora outrora a da Lei Maria da Penha, na opinião da maior parte do parlamento.
A analogia construída por Brito (o PLC 122/2006 é como a Lei Maria da Penha,
o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Estatuto da Igualdade Racial) pode ser
considerada, assim, uma tentativa de fazer que mulheres, crianças, adolescentes,
negros e pessoas LGBT sejam compreendidos como indivíduos vulneráveis, como
vítimas de violência. Selecionar a lei e os estatutos para ocupar a posição de domínio
da analogia parece estratégico, visto que se trata de matérias já aprovadas pelo
Senado e que objetivam coibir a violência contra grupos vulneráveis. A identificação
da vulnerabilidade como similaridade leva a uma inferência bastante significativa na
argumentação da senadora, nomeadamente, a de que, ao rejeitar o PLC 122/2006, o
Senado brasileiro não estaria tratando de modo equânime situações similares, o que
poderia ser considerado injusto ou incoerente9.
As analogias construídas por Malta e Brito não são idênticas, mas são bastante
similares, pois têm em comum o alvo (população LGBT) e a semelhança entre alvo e
fonte (a vulnerabilidade). Não ocorre, da parte de nenhum dos dois, qualquer
questionamento no que se refere à seleção de domínios. O dissenso entre os dois
limita-se às inferências que as analogias utilizadas pretensamente chancelam:
enquanto Malta põe em questão o escopo (na visão dele, limitado) do PLC 122/2006,
como já fizera anteriormente, Brito defende que, em virtude da semelhança
identificada por ambos, é necessária a criação de mecanismos legais específicos para
proteger grupos vulneráveis.
Pode-se dizer, portanto, que o foco de Brito, nesse caso, recai sobre a indicação
da natureza falaciosa do argumento de Malta, uma vez que a parlamentar procura
refutar as inferências que Malta deriva da analogia por ele criada, sem, no entanto,
questionar a validade da analogia propriamente dita, a qual é bastante similar à que a
própria senadora havia utilizado como argumento.
Considerações finais
A análise dos discursos dos senadores engajados no debate permitiu observar
que a representação do PLC 122/2006 varia consideravelmente de acordo com seus
objetivos comunicativos ― aprovação ou rejeição do PLC 122/2006 ―, em função das
analogias empregadas pelos debatedores.
Dessa forma, os senadores defensores do projeto de lei tendem a criar
analogias que procuram retratá-lo positivamente, como uma continuidade de políticas
necessárias de proteção a grupos estigmatizados.
9 Cabe observar que o raciocínio por analogia parece ser bastante profícuo no âmbito da cogitação sobre
as leis. A tese fixada pelo Supremo Tribunal Federal, em junho de 2019, de que as condutas LGBTfóbicas
e transfóbicas são equiparáveis aos crimes de racismo é exemplo disso. Outro exemplo é dado por Plantin
(2013), para quem a analogia pode ser observada na argumentação teológica-jurídica islâmica, visto que,
por ser o vinho proibido pela lei do Alcorão, também é vedado o consumo do néctar fermentado de
tâmaras, tendo em vista o fato de que este, como aquele, pode causar embriaguez.
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Discurso e poder: teoria e análise
Os senadores contrários ao projeto, por sua vez, procuram argumentar que o
PLC 122/2006 não seria capaz de proteger todos os grupos estigmatizados e que, por
conta de seu escopo “reduzido”, não deveria ser aprovado.
O exame do corpus permitiu identificar o uso de três estratégias ― a saber, a
extensão das analogias visando à identificação de dessemelhanças, a refutação de
semelhanças identificadas pelo outro e a refutação de inferências (pretensamente)
chanceladas por uma analogia ―, que possibilitam a um orador que refute
argumentos cuja base é a analogia, sempre com vistas a salientar a natureza
pretensamente falaciosa dos argumentos utilizados pelos interlocutores.
As análises parecem, além disso, ratificar a produtividade de uma noção
discursiva da recuperação, do mapeamento e da avaliação, processos que, embora
tenham origem em uma teoria cognitiva da analogia, parecem ser utilizados
estrategicamente, com vistas à defesa das teses dos senadores engajados no debate.
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Como citar
FERREIRA, Filipe Mantovani. Analogia e dissenso no debate parlamentar: o caso das
comparações entre grupos estigmatizados. In: GONÇALVES-SEGUNDO, Paulo
Roberto; ARAES, Célia Regina; CASTANHEIRA, Claudia; ISOLA-LANZONI, Gabriel;
PENITENTE, Natalia; WEISS, Winola (orgs). Discurso e poder: teoria e análise. São
Paulo: FFLCH/USP, 2020, p. 84-99. DOI: 10.11606/9786587621241
FERREIRA, Filipe Mantovani | 2020 | p. 84-99
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O discurso relatado: entre seus potenciais linguísticos e os livros didáticos
O discurso relatado: entre seus
potenciais linguísticos e os livros
didáticos
Júlio César da Silva MENDES
Universidade de São Paulo
[email protected]
Resumo: Neste texto, visamos a fazer um diagnóstico das
sequências didáticas presentes nos livros aprovados pelo PNLD
2017 (Anos Finais do Ensino Fundamental) que tematizam o
discurso relatado. Para isso, trazemos definições consolidadas
pela Gramática Tradicional e as contrastamos com os conceitos
linguísticos e discursivos, tanto para visualizarmos o potencial
linguístico do discurso relatado quanto para analisarmos
criticamente de que forma esses conhecimentos chegam (e se
chegam) aos livros didáticos. Para as definições tradicionais,
partimos das gramáticas de Bechara (2015) e de Cunha & Cintra
(2016). Quanto à teoria linguística, apoiamo-nos principalmente
na teoria Sistêmico-Funcional, de Halliday & Matthiessen (2014),
tendo em vista seu foco na produção de significado
textualmente ancorada. Nosso olhar será voltado, em especial,
aos processos verbais e mentais; ao subsistema de
ENGAJAMENTO, de Martin & White (2005); e também ao conceito
da Evidencialidade, segundo Bednarek (2006), Carioca (2011) e
Gonçalves-Segundo (no prelo), para delinearmos algumas das
capacidades léxico-gramaticais, pragmáticas e semânticodiscursivas que o discurso relatado possui. Como resultado,
mostramos que, nos livros didáticos, tem predominado uma
abordagem mais focada na dimensão estrutural, apagando o
potencial semântico-pragmático-discursivo e reduzindo, assim,
as possibilidades de efeitos de sentido que poderiam ser
abordadas no ensino-aprendizagem desta ferramenta léxicogramatical.
Palavras-chave: Discurso Relatado; Análise de Livros Didáticos;
Linguística Sistêmico-Funcional; Engajamento; Evidencialidade.
Introdução
Este trabalho busca esboçar algumas ideias aplicadas ao ensino de gramática
a partir do tópico discurso relatado. Tomando como base a discussão contida em
Gonçalves-Segundo (2017), vemos um ensino de língua portuguesa que passou de
ferramenta do “bem falar”, cujo foco era a estrutura (vide o ensino baseado na análise
morfossintática), para um letramento de gêneros discursivos, no qual tópicos
gramaticais usualmente ficam subordinados a um determinado gênero ensinado na
MENDES, Júlio César da Silva | 2020 | p. 100-123
101
Discurso e poder: teoria e análise
sequência didática. Ou seja, o ensino de língua portuguesa nos últimos anos ora
centrou-se no formalismo sem levar em conta o uso, ora centrou-se nos gêneros
discursivos sem dar a atenção devida à estrutura gramatical. Contudo, não se pode
dissociar esses dois domínios para uma compreensão e uso razoáveis da língua.
Assim, como os livros didáticos têm abordado o discurso relatado no ensino
básico? Eles mostram os potenciais linguísticos ou apenas o que a gramática
tradicional conta? Quais potenciais linguísticos o discurso relatado possui? A partir
dessas questões, tentaremos trazer uma visão sobre o ensino do discurso relatado e
sobre teorias linguísticas com potencial de refinamento de tal abordagem nas
próximas linhas.
1 Definindo o discurso relatado: o arcabouço teórico
Considerando que nosso foco, neste texto, é delinear o status da abordagem
do discurso relatado nos livros didáticos, precisamos levar em conta que tais materiais
se ancoram na gramática tradicional, mas que, por vezes, podem inovar com conceitos
do âmbito da linguística no ensino dessa tradição (haja vista o direcionamento para os
gêneros discursivos atualmente vigente)1. Tendo isso em vista, fazemos a síntese das
gramáticas de Bechara (2015) e de Cunha & Cintra (2016) para então discutirmos as
possibilidades discursivas, semânticas e pragmáticas que a teoria linguística
selecionada neste estudo possui.
É importante estabelecer desde já que a literatura linguística e tradicional, que
discutiremos a seguir, serve a dois propósitos. O primeiro é que ela atua como um
suporte à metodologia de análise dos livros, afinal, procuramos rastrear não só o que
há de tradicional e estrutural nesses materiais, mas também o quanto que eles tratam
do discurso relatado no nível da significação, dos efeitos de sentido. Encontrar essas
abordagens é reconhecer o quanto da nossa articulação teórica está presente nesses
livros, independente se se reproduz sua nomenclatura teórica ou não.
O segundo propósito desta articulação teórica é apontar para as possibilidades
pragmáticas, semânticas e discursivas do nosso objeto que podem ser abordadas no
ensino básico, ainda que, aqui, nos restrinjamos à análise dos materiais – e não à
apresentação de uma proposta alternativa de sequência didática sobre o tema.
1.1 O discurso relatado segundo a gramática tradicional
Por discurso relatado2, compreendemos as três formas estruturais (discursos
direto, indireto e indireto livre) que as gramáticas tradicionais estabelecem para a
inserção de uma fala alheia à voz do locutor. Tanto a gramática de Bechara (2015)
quanto a de Cunha & Cintra (2016) aderem à tripartição mencionada acima, ainda que
1 Cf. discussão de Gonçalves-Segundo (2017).
2 Utilizaremos, neste trabalho, o termo ‘discurso relatado’, mas sem perder de vista a existência de outros
nomes que poderão aparecer tanto nos materiais didáticos quanto nos textos teóricos (discurso citado,
reportado, alheio, (do) outro, etc.)
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102
O discurso relatado: entre seus potenciais linguísticos e os livros didáticos
também pontuem definições particulares que permitem o entendimento do uso do
discurso relatado por mais de uma via.
Para Bechara (2015, pp. 499-500), o discurso relatado funciona como “normas
textuais para nos referirmos no enunciado às palavras ou aos pensamentos de
responsabilidade do nosso interlocutor”. Com o discurso direto, “produzimos ou
supomos reproduzir fiel e textualmente as nossas palavras e as do nosso interlocutor,
em diálogo, […] com a ajuda explícita ou não de verbos como disse […] (os chamados
verbos dicendi). Às vezes, usam-se outros verbos de intenção mais descritiva, […] os
sentiendi, que exprimem reação psicológica do personagem”.
Na formulação do discurso indireto, “os verbos dicendi se inserem na oração
principal de uma oração complexa tendo por subordinada as porções do enunciado
que reproduzem as palavras próprias ou do nosso interlocutor. Introduzem-se pelo
transpositor que, pela dubitativa se e pelos pronomes e advérbios de natureza
pronominal quem, qual, onde, como, por que, quando, etc.”.
Ainda sobre os discursos direto e indireto, Bechara (2015) compara-os,
convertendo direto para indireto e apontando a mudança de tempo verbal: “se
transpõe o presente é do discurso direto para o pretérito imperfeito do indireto”.
Por fim, afirma que “[o discurso indireto livre] consiste em, conservando os
enunciados próprios do nosso interlocutor, não fazer-lhe referência direta”, mostrando
que “bastaria suprimir a forma verbal dizendo e construir dois períodos independentes
com as duas partes restantes”. Ademais, considera que “uma particularidade do estilo
indireto livre é a permanência das interrogações e exclamações da forma oracional
originária, ao contrário do caráter declarativo do estilo indireto.”
Já para Cunha & Cintra (2016, pp. 649-656), o discurso citado, em suas três
formas, é nomeado também como “estruturas de reprodução de enunciações” e nos
faz “conhecer os pensamentos e as palavras de personagens reais ou fictícios”.
Para eles, o discurso direto é a forma pela qual “o personagem é chamado a
apresentar as suas próprias palavras”. No plano formal “é marcado, geralmente, pela
presença de verbos do tipo dizer, ponderar, sugerir, perguntar, indagar, responder e
sinônimos”3 e na falta dos “verbos dicendi, cabe ao contexto e a recursos gráficos […]
a função de indicar a fala da personagem”. Já no plano expressivo, consideram que o
estilo direto torna a personagem “viva para o ouvinte, à maneira de uma cena teatral,
em que o narrador desempenha a mera função de indicador das falas.” e observam
que “a variedade de verbos introdutores oferecida pela língua portuguesa aos seus
usuários permite a quem se sirva do DISCURSO DIRETO caracterizar, com precisão e
colorido, a atitude da personagem cuja fala vai ser textualmente reproduzida.”,
entendendo esta como causa para a preferência pelo estilo direto “nos atos diários de
comunicação e nos estilos literários narrativos […]”.
Por sua vez, o discurso indireto é quando o narrador “[contenta-se] em
transmitir ao leitor apenas o seu conteúdo, sem nenhum respeito à forma linguística
que teria sido realmente empregada”. No plano formal, apontam que o indireto
3 Sublinhado nosso. Note-se a falta de atenção para o peso da semântica dos verbos.
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103
Discurso e poder: teoria e análise
também se introduz por um verbo declarativo, estrutura-se em oração subordinada
substantiva (esta podendo ser desenvolvida ou reduzida). No plano expressivo, os
autores consideram “que o emprego do DISCURSO INDIRETO pressupõe um tipo de
relato de caráter predominantemente informativo e intelectivo”; isso leva a primeira ou
segunda pessoa a ser apresentada em terceira pessoa, o que causa “em geral um
esvaecimento das realidades concretas de tempo e lugar a que as pessoas e coisas
referidas estariam veiculadas.”
Quanto ao discurso indireto livre, dizem que ele “aproxima narrador e
personagem, dando-nos a impressão de que passam a falar em uníssono.” No plano
formal, dizem comprovar que os enunciados em indireto livre “aparecem liberados de
qualquer liame subordinativo, embora mantenham as transposições características do
DISCURSO INDIRETO” e, ao mesmo tempo, “o INDIRETO LIVRE conserva as interrogações,
as exclamações, as palavras e as frases do personagem na forma por que teriam sido
realmente proferidas.” No plano expressivo, pontuam quatro valores que denominam
‘construção híbrida’: 1) evita o acúmulo de quês, tornando a narrativa mais fluente; 2)
cria um elo psíquico entre narrador e personagem; 3) exige uma valorização do
contexto para que seja compreendida a fala da personagem; e 4) combina-se o
indireto livre com as outras duas formas para a confluência do enunciado, em vez de
tratá-lo isoladamente.
Em resumo, o discurso relatado nas modalidades direta e indireta, conforme a
gramática tradicional, pode vir acompanhado de verbos introdutórios dicendi4 e
sentiendi5. Primeiramente, nota-se a menção a esses verbos para indicar as estruturas
sintáticas e morfológicas6 do relato; isto é, como a mudança no tipo de discurso leva à
adaptação de diferentes tempos verbais e como há alguma variação quanto à ordem
de palavras em um discurso relatado. Secundariamente, faz-se alguma menção sobre
como esses verbos podem indicar o comportamento da personagem citada no
momento “original” de enunciação.
Não dizemos ‘personagem’ despropositadamente: ao consultarmos as duas
gramáticas tradicionais, percebemos que as explanações sobre o funcionamento das
formas de incorporação do discurso outro vêm sempre exemplificadas por excertos
da esfera literária7. Assim, pode-se criar a ideia de que o uso e o ensino do discurso
relatado não passam de mera normatização sobre como a voz do narrador deve trazer
a fala das personagens, assemelhando-se mais a uma regra editorial e restringindo o
entendimento de sua função em diversas outras esferas discursivas.
No que diz respeito aos efeitos de sentido do discurso citado, vimos que Cunha
& Cintra (2016) preocupam-se em tratar tanto da parte formal quanto da expressiva,
mas criam uma compreensão mais passiva sobre o que é dito no discurso que foi
relatado, pois dão a entender a forma direta como modo de acesso literal ao que o
4 Um exemplo de dicendi em discurso indireto prototípico: Joana contou que não podia ir à festa.
5 Um exemplo de sentiendi em discurso direto prototípico: “Não posso ir à festa!”, lamentou Joana.
6 Preocupam-se sintaticamente quando explicam as formas de se projetar o discurso citado e,
morfologicamente, quando abordam as flexões verbais. Ambos os tipos são contrastados por meio da
conversão entre as formas direta ↔ indireta.
7 Para ilustrar, o autor mais usado nas gramáticas foi Machado de Assis: em todos os exemplos do capítulo
de Bechara (2015) e na maior parte de Cunha & Cintra (2016).
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104
O discurso relatado: entre seus potenciais linguísticos e os livros didáticos
outro teria dito; ao passo que Bechara (2015) abre espaço para alguma parcimônia ao
dizer que o discurso relatado pode ser tanto o dito de fato quanto o supostamente
dito (contudo, não propõe alguma forma de análise do discurso relatado capaz de
verificar veracidade ou manipulação do conteúdo relatado).
1.2 O discurso relatado segundo a linguística: processos verbais e
mentais, engajamento e evidencialidade
Como vimos na perspectiva tradicional, há, como conjunto de verbos mais
usuais para a projeção de um discurso alheio, os ditos dicendi, verbos representativos
de dizeres. No âmbito do sistema de TRANSITIVIDADE da Linguística Sistêmico-Funcional
(HALLIDAY & MATTHIESSEN, 2014; FUZER & CABRAL 2014), encontramos os
processos verbais que cobrem o mesmo conjunto de verbos de elocução8. Na visão
dessa teoria, o processo verbal nos permite entender a estrutura do discurso relatado
da seguinte maneira: há o participante denominado como Dizente (isso é, o falante ou
a fonte simbólica do que é relatado), que é tipicamente o sujeito do Processo Verbal
(o verbo que projeta e indica a enunciação reportada), que, por sua vez, introduz a
Verbiagem (o conteúdo do que é dito, a fala relatada). Note-se que um processo verbal
não precisa ser realizado necessariamente na ordem que apresentamos aqui.
Além dos três componentes básicos mencionados acima (verbiagem, dizente
e processo verbal), é possível acrescentar à estrutura do discurso relatado o Receptor
(a quem é dirigida a verbiagem), e/ou Alvo (uma entidade a ser atingida pelo processo
de dizer). Eis alguns exemplos que ilustram essa forma de análise:
Sessions
disse
ao jornal que ele estava trabalhando para criar um “diálogo entre
Dizente Processo verbal Receptor
as partes que estão tentando progredir”.9
Verbiagem
Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/12/advogado-de-trumpnegociou-com-maduro-saida-de-ditador.shtml
Cientistas
Dizente
anunciam
Processo verbal
a descoberta do material mais resistente do universo
Verbiagem
Fonte: https://socientifica.com.br/2019/12/29/material-mais-resistente-do-universo/
Bolsonaro
Dizente
ameaçou
Processo Verbal
o STF
Alvo
Fonte: https://twitter.com/gomesdacosta_/status/1054898447885762560
Fuzer & Cabral (2014, p.73) apontam que quando há um alvo numa oração
verbal, dificilmente é feita a projeção de uma outra oração; ou seja, nem todo processo
verbal gera um discurso relatado. Com isso, vemos que algumas orações verbais não
necessariamente fazem o relato de um discurso alheio, que seria a oração projetada.
8 Os processos verbais de nosso arcabouço teórico são referidos nos materiais didáticos como verbos de
elocução, de dizer ou dicendi.
9 Na Linguística Sistêmico-Funcional, quando o conteúdo da fala é uma oração encaixada, é comum que
se utilize o termo Locução ou Citação, mas, por ser uma distinção apenas de ordem formal, não a
colocaremos em caso neste trabalho.
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105
Discurso e poder: teoria e análise
Notamos, pois, que o assunto de processos verbais não encerra nem se limita ao
discurso relatado da gramática tradicional.
Tanto não se encerram que devemos ressaltar que as gramáticas consultadas
elencam não somente verbos dicendi como forma de indicar o discurso citado, mas
também os verbos sentiendi. Na Linguística Sistêmico-Funcional, fazem fronteira com
os processos verbais os processos mentais; e da lista que Fuzer & Cabral (2014, p. 58)
elencam como processos mentais, os verbos pertencentes aos subgrupos dos verbos
mentais cognitivos e desiderativos parecem flertar melhor com a estrutura do discurso
relatado, uma vez que têm a semântica dos sentiendi, podendo ditar o estado
psicológico e pensamento dos participantes da oração; bem como sendo capazes de
projetar oração assim como os processos verbais o podem. Portanto, processos
mentais (cognitivos e desiderativos) funcionam também dentro da estrutura do
discurso relatado.10
“Estou certo”,
achou (mental cognitivo)
o chefe.
Cardoso
determinou (mental desiderativo)
que parassem de fazer barulho.
Fonte: elaboração própria.
Ainda numa perspectiva léxico-gramatical descrita na gramática SistêmicoFuncional, devemos assinalar que esta mesma teoria parte do pressuposto de que a
língua consiste em um potencial de significação e procura analisar e entender por que
certas escolhas são feitas pelo falante em detrimento de outras possibilidades
fornecidas pelo sistema. Portanto, mantendo-nos dentro do viés dos processos verbais
e mentais, já podemos perceber como se torna problemático tratar dos verbos de
elocução e de sentir como simples sinônimos que podem ser livremente
intercambiados na projeção do discurso. Pelo contrário, estamos olhando para uma
estrutura léxico-gramatical que se reflete no nível semântico; mudar livremente o verbo
talvez não tenha peso à estrutura sintática, porém causa diferenças semânticas
relevantes. E não é só pela seleção do verbo que percebemos diferentes efeitos de
sentido ou da relação do produtor textual com o conteúdo do relato.
O discurso relatado, como vimos por ora, é tratado majoritariamente dentro de
sequências narrativas. Não ignoramos a crítica literária que trouxe como critério
analítico o olhar com suspeita para o narrador. Contudo, é a narrativa literária um
simulacro de uma realidade e, geralmente, nela é esperado de o discurso relatado ser
o real momento de expressão das personagens nessa realidade construída. Quando
saímos da esfera literária para a jornalística, a política, a acadêmica, e mesmo a
cotidiana, devemos considerar que citar um discurso alheio pode ter diversos outros
usos de efeitos de sentido. Voltando então à teoria Sistêmico-Funcional, vislumbramos
que o discurso relatado pode ser encontrado em distintos contextos de situação e de
cultura, que, por sua vez, se associam a diferentes usos do discurso relatado a
10 A teoria Sistêmico-Funcional dará outros nomes à estrutura quando analisa um processo mental.
Experienciador entraria no lugar do dizente, e (Hiper)fenômeno no lugar de verbiagem. Contudo, cremos
que, para o contexto do ensino básico, o importante é apontar para a semântica desses diferentes verbos
e para sua capacidade de participar do discurso relatado.
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O discurso relatado: entre seus potenciais linguísticos e os livros didáticos
depender das intenções e ideologias do produtor textual na manipulação e na
evocação de uma oração atribuída a outrem.
Logo, o discurso relatado é uma estrutura para trazer a fala alheia a uma
determinada enunciação, mas não somente isso. As escolhas nas formas de citar um
discurso podem expor também algum nível de engajamento, favorável ou opositor,
aberto ou fechado, ao discurso alheio evocado. Emergente da Linguística SistêmicoFuncional, o sistema de AVALIATIVIDADE, desenvolvido por Martin & White (2005), nos
traz mais olhares possíveis sobre o uso do discurso relatado.
Aqui nos concentramos especificamente no subsistema de ENGAJAMENTO. Sua
estrutura pode não só nos ilustrar como o dizente se comportou em sua enunciação
reportada, mas também qual relação o produtor textual estabelece em relação ao que
está reportando. Notamos isso a partir dos movimentos de expansão dialógica
(quando o produtor abre espaço para outros enunciados possíveis, seja para
reconhecer ou para se distanciar deste) e de contração dialógica (quando, por
exemplo, se endossa a fala ou o pensamento do outro e, junto a essa voz, o produtor
textual fecha-se para outras possibilidades de perspectivação). Entre a expansão e a
contração dialógica, há, respectivamente, um continuum entre a mínima e a máxima
responsabilidade assumida pelo produtor textual.
Ninin & Barbara (2013, p.142), por exemplo, discutem o ENGAJAMENTO em
trabalhos do ensino superior, observando “que o aluno da graduação marca uma
posição de pouca responsabilidade em relação às proposições convidadas ao texto”,
o que contraria a expectativa de que alunos nesse nível de ensino não reproduzam
simplesmente a bibliografia do curso, mas que a coloquem em debate. Ora,
considerando que o discurso relatado é prototipicamente um caso de heteroglossia e
que, portanto, evidencia engajamento, notamos, pelo trabalho de Ninin & Barbara
(2013), como o Engajamento pode ser produtivo especialmente (mas não
exclusivamente) em textos acadêmicos. É possível transpor esse conhecimento ao
ensino básico, quando alunos têm contato com os primeiros trabalhos escolares que
se aproximam da estrutura de artigos, resenhas, dentre outros gêneros acadêmicos e
científicos.
Na esfera acadêmica, pudemos perceber pelo ENGAJAMENTO que o uso de uma
fala reportada pode tanto servir como uma voz de autoridade, a quem se atribui a
responsabilidade, quanto esta pode ser posta em discussão e debate. Mas podemos
pensar na esfera jornalística, na qual a abertura a diversas vozes constitui não apenas
um imperativo ético do trabalho do jornalista, como também permite a própria
produção e circulação de notícias, uma vez que vários relatos jornalísticos são
pautados nos dizeres alheios.
Por último, queremos tratar da evidencialidade. Num sentido estrito, conforme
estabelece Aikhenvald (2004), a língua portuguesa, bem como todas as línguas indoeuropeias (até onde sabemos), não possuiria tal fenômeno, uma vez que não há
marcas morfológicas orientadas à sua realização. Porém, interessamo-nos por uma
definição aberta de tal componente. Bednarek (2006) e Gonçalves-Segundo (no prelo)
inserem a evidencialidade em uma categoria mais ampla, também chamada de
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107
Discurso e poder: teoria e análise
posicionamento epistêmico (epistemological positioning). Carioca (2011) destaca
aspectos discursivamente relevantes no tratamento da evidencialidade: pelas
estruturas léxico-gramaticais que a instanciam, vemos a fonte da informação (se emana
do próprio enunciador, se vem de uma fonte externa definida ou não, ou se ainda é
de domínio comum, como o conhecimento popular), o acesso evidencial à informação
(se esse conhecimento foi acessado diretamente, relativamente direto ou
indiretamente) e a natureza evidencial da informação (pode ser subjetiva, vir da
experiência, ser inferida ou ser relatada). Já Gonçalves-Segundo (no prelo) acrescenta
a evidencialidade ao posicionamento epistêmico, trazendo outros tópicos de análise,
como o grau de comprometimento sobre a proposição, num continuum que vai do
realis ao irrealis (da certeza à impossibilidade), o grau de responsabilidade (pessoal,
compartilhado, institucional, opaco ou delegado) e o grau de abertura dialógica (onde
entra o engajamento, já apontado aqui).
Toda a teoria que discutimos não é exclusiva ao discurso relatado, mas mostra
potenciais que esta ferramenta da gramática tradicional possui para além de uma
normatização de textos literários.
2 Olhar os livros didáticos: metodologia de seleção e análise
Para o levantamento do corpus, optamos por selecionar livros que, entre si,
tivessem proximidade em relação ao ano de ensino e que estivessem atualmente em
uso no ensino público brasileiro. Isto nos levou a escolher entre materiais ou do Ensino
Médio ou do Ensino Fundamental: Anos Finais11. Devido ao número maior de
sequências didáticas afins ao nosso objeto, optamos por fixar nosso corpus no Ensino
Fundamental, PNLD 2017. Assim, na seção seguinte faremos o diagnóstico destes oito
livros didáticos: dois volumes de Português linguagens, 8º e 9º anos, de William
Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães (2015); um volume de Singular & plural,
7º ano, de Laura de Figueiredo, Marisa Balthasar e Shirley Goulart (2015); dois volumes
de Teláris, 7º e 8º anos, de Ana Trinconi Borgatto, Terezinha Bertin e Vera Marchezi
(2015); dois volumes de Universos, 6º e 7º anos, de Camila Sequetto Pereira, Fernanda
Pinheiro Barros e Luciana Mariz (2015); e um volume de Para viver juntos, 7º ano,
organizado por Cibele Lopresti Costa (2015).
A análise dos livros didáticos foi realizada em três etapas: (1) partimos de um
olhar geral para a sequência didática desenvolvida em cada livro, analisando o grau
de centralidade ou de independência do discurso relatado enquanto objeto
gramatical a ser ensinado; além disso, observamos quais gêneros e esferas estão mais
ligadas ao discurso relatado nos livros; (2) observamos as explicações teóricas de cada
obra a fim de entender suas concepções acerca do que é o discurso relatado e qual o
seu alcance enquanto gerador de sentido no texto; o objetivo desta etapa é verificar
quais recortes conceituais os materiais escolhem trazer para apresentar o conteúdo; e,
por fim, (3) analisamos os modos pelos quais os exercícios fixam o conteúdo discutido.
11
Anteriormente chamado Ensino Fundamental II.
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108
O discurso relatado: entre seus potenciais linguísticos e os livros didáticos
Com isso, objetivamos chegar a um panorama da atual situação do discurso relatado
nos livros didáticos para o ensino fundamental: anos finais.
3 O discurso relatado segundo os livros didáticos: etapas de análise
3.1 O lugar do discurso relatado no ensino: das esferas discursivas
3.1.1 Português linguagens: 8º e 9º anos
A divisão em dois volumes neste material é feita para apresentar primeiramente
os discursos direto e indireto no 8º ano em dois capítulos, e no 9º ano é ensinado o
indireto livre.
No primeiro livro, quando são ensinados apenas os discursos direto e indireto
(CEREJA & MAGALHÃES, 2015a, pp. 17-27), encontramos um capítulo cujo contexto
faz referências principais a textos narrativos, dando destaque à leitura e à produção do
texto teatral como antecessor do ensino dos discursos relatados. Em seguida, o
material insere uma propaganda, uma tira e uma menção ao discurso relatado no texto
jornalístico em um exercício posterior. O segundo capítulo (CEREJA & MAGALHÃES,
2015a, pp. 41-46) insere o contexto teatral para os discursos direto e indireto.
Já no segundo livro (CEREJA & MAGALHÃES, 2015b, pp. 74-78), o conteúdo
restringe o ensino do discurso indireto livre para o contexto do ensino do gênero
conto, onde revisa os conceitos de discurso direto e indireto e introduz, por fim, o
indireto livre.
3.1.2 Singular & plural: 7º ano
Inserido na compreensão e produção de reportagem, o material (FIGUEIREDO,
BALTHASAR & GOULART, 2015, p. 77) não trata do discurso relatado em todos os seus
aspectos, mas tem como foco abordar brevemente os verbos de elocução para se
inserir um discurso alheio.
3.1.3 Teláris: 7º e 8º anos
Em ambos os livros, encontramos o ensino de discurso relatado é colocado
dentro do contexto de sequências narrativas. No sétimo ano, o livro (BORGATTO,
BERTIN & MARCHEZI, 2015a, pp. 229-232) apresenta brevemente o discurso relatado
como a forma de se representar o diálogo em narrativa.
No livro do oitavo ano (BORGATTO, BERTIN & MARCHEZI, 2015b, pp. 57-64),
especificamente, ensina-se o gênero crônica, os elementos do processo narrativo e a
apresentação das sequências textuais narrativa, descritiva e conversacional (servindo
esta última como gancho para a introdução da matéria aqui focada).
MENDES, Júlio César da Silva | 2020 | p. 100-123
109
Discurso e poder: teoria e análise
3.1.4 Universos: 6º e 7º anos
Nesta coleção, o livro do sexto ano divide os discursos direto e indireto em dois
tempos. O primeiro capítulo (PEREIRA, BARROS & MARIZ, 2015a, pp. 16-24) a tratar
deles situa o discurso alheio em narrativas, ao passo que, no capítulo seguinte
(PEREIRA, BARROS & MARIZ, 2015a, pp. 66-70), é apresentado o mesmo conteúdo em
notícias, com atenção aos verbos de dizer.
O segundo livro (PEREIRA, BARROS & MARIZ, 2015b, pp. 124-133), como no
primeiro capítulo do primeiro livro, também busca tratar do discurso citado em termos
narrativos, e, como no segundo capítulo do livro anterior, explora os ‘modos de dizer’.
3.1.5 Para viver juntos: 7º ano
O material (COSTA, 2015, pp. 126-135) insere a apresentação dos verbos de
elocução no âmbito do gênero reportagem para depois discuti-los mais
detalhadamente em uma crônica.
3.1.6 Considerações parciais
Dessa primeira etapa de análise, entendemos que o ensino do discurso
relatado mantém um forte vínculo com a introdução e a produção de textos na esfera
literária e, secundariamente, na esfera jornalística. Como era de se esperar, a
predominância do discurso relatado junto às sequências narrativas pode ser justificada
pelo tratamento que as gramáticas tradicionais dão ao restringi-lo a exemplos
literários; o que difere entre os livros é o gênero selecionado, que varia entre conto,
crônica e texto dramático, ao passo que as gramáticas geralmente apresentam-no
junto a romances. Escapando um pouco a essa tradição, encontramos casos em que
se exploram a reportagem e a notícia, e, brevemente em exercícios, uma tira e uma
propaganda.
Pensando que um conto, por exemplo, faz a citação de uma personagem para
ilustrar o que de fato teria dito no mundo dessa narrativa (ainda assim, havendo na
esfera literária o conceito do narrador não confiável), enquanto uma reportagem faria
o resgate ou a emulação do que já foi dito, notamos como os livros pouco exploram
as diferenças possíveis que o discurso relatado apresenta ao mudar seu contexto
situacional e cultural. A aparição dessas duas esferas distintas já poderia servir de
pontapé para se discutir no ensino a diferença de sentido do relato de um texto para
o outro, mas vimos que predomina nos livros tratar do discurso relatado quase que
exclusivamente como ferramenta de uma esfera específica, não como tópico
gramatical à parte e que está presente em diversos gêneros de distintas esferas.
3.2 Concepção teórica do discurso relatado
3.2.1 Português linguagens: 8º e 9º anos
MENDES, Júlio César da Silva | 2020 | p. 100-123
110
O discurso relatado: entre seus potenciais linguísticos e os livros didáticos
No livro do oitavo ano, antes de serem introduzido os dois primeiros tipos de
discurso relatado, é feita uma definição do que é o discurso. Nele, o discurso é
definido como uma atividade comunicativa geradora de sentido por estar
contextualmente situado diante de seus interlocutores e por suas finalidades. Assim,
para adentrar à definição dos discursos citados, é dada a noção de que o discurso
outro não é uma mímica de outra fala, mas que a todo tempo estamos produzindo e
recebendo discursos que se emaranham numa rede comunicativa.
Após toda a exposição teórica do que é um discurso relatado e o que é citá-lo,
o material expõe casos do discurso direto e indireto dentro do contexto narrativo,
fazendo enfim a definição dos discursos direto e indireto limitada ao âmbito do texto
verbal.
Definições são mantidas ao modo da gramática tradicional: o discurso direto
traz uma reprodução integral e, portanto, fiel de uma fala outra no âmbito da narrativa,
sendo tipograficamente marcado por aspas ou travessão; ao passo que o indireto
recebe algumas alterações do narrador, em uma discussão que as restringe à ordem
gramatical, em termos de adequação pronominal e temporal.
Um último ponto é colocado sobre os discursos direto e indireto: da finalidade
de escolha sobre qual dos dois usar. Segundo os autores, o direto tornaria a narração
mais dinâmica e interessante, e o indireto seria preferido na oralidade por ser mais
econômico. O segundo capítulo deste livro a abordar o tema retorna ao discurso
relatado a fim de expor mais detalhes das diferenças gramaticais entre os dois
discursos.
Ao nono ano do fundamental, é feita a continuidade do ensino dos discursos
relatados de forma mais breve.
Neste segundo livro, é revisto o conceito dos dois primeiros discursos relatados
(direto e indireto) e se acrescenta então o indireto livre, que, para os autores, é
basicamente um discurso indireto sem o encaixe de orações via conjunção que ou se
e que traz tanto a fala quanto o pensamento da personagem misturados aos
enunciados do narrador.
3.2.2 Singular & plural: 7º ano
Depois de ser exposto ao gênero reportagem, o aluno é instigado a perceber
o uso dos verbos de elocução via exercício. Não é feita a apresentação total do
discurso relatado nem de seus três tipos; são discutidos os verbos que servem para
introduzi-lo, e se pontua a diferença de sentido causada pela seleção de diferentes
verbos de elocução.
3.2.3 Teláris: 7º e 8º anos
No sétimo ano, o livro trabalha com os discursos direto e indireto, a fim de
apresentar duas possibilidades de se representar a fala de alguém; também introduz
os verbos de dizer.
MENDES, Júlio César da Silva | 2020 | p. 100-123
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Discurso e poder: teoria e análise
Para o oitavo ano, o ensino do que é o discurso relatado vem associado à ideia
de citação, tratando das três formas de discurso citado no mesmo capítulo.
O material inicia pelo discurso direto e o define como a reprodução literal de
uma fala, sendo tipograficamente marcado por aspas ou travessão, e sinalizado por
um verbo de dizer.
O discurso indireto é explicado como o representar da fala outra à própria
maneira (espécie de paráfrase, ainda que não recebendo essa nomenclatura no livro),
que é sinalizada por verbo de dizer acompanhado de conjunção e, contrastado com
o discurso direto, não é indicado por aspas ou travessão.
Por último, o discurso indireto livre é abordado como uma fala do outro que
não traz fronteira clara entre o discurso do narrador e o discurso alheio, uma
interpretação mais aberta do indireto livre, mas que não o resume a uma estrutura de
discurso indireto sem conjunção.
3.2.4 Universos: 6º e 7º anos
No primeiro livro, os discursos direto e indireto são apresentados num primeiro
capítulo como diferentes formas de o narrador registrar a fala de uma personagem,
sendo o direto a forma sem interrupções da fala da personagem.
No segundo capítulo do sexto ano, mais algumas pontuações são feitas quanto
ao discurso direto e à escolha do verbo que introduz o relato na indução da
interpretação do leitor.
Ao sétimo ano, o material retoma o uso do discurso relatado, agora nas
narrativas, mas o mantendo nas mesmas definições resumidas apresentadas ao sexto
ano.
3.2.5 Para viver juntos: 7º ano
O material não demonstra intenção de abordar a estrutura do discurso relatado
propriamente, mas sim apresentar os verbos de elocução como indicadores da
intencionalidade ou tom de voz do entrevistado.
3.2.6 Considerações parciais
Se, na primeira etapa desta análise, vimos que os livros pouco variam quando
aliam e associam um número limitado de esferas que se servem do discurso relatado,
nesta segunda parte notamos um pouco mais de variação sobre a definição teórica
que os autores optam por apresentar.
Partindo dos materiais mais simples e concisos, encontramos casos em que se
optou por tratar apenas dos verbos de elocução. Com essa abordagem, ganha-se
espaço para salientar a importância da escolha do verbo que projeta o discurso
relatado, uma vez que mudar o verbo pode mudar a percepção sobre o
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O discurso relatado: entre seus potenciais linguísticos e os livros didáticos
comportamento de quem é citado; mas é nesses casos que se sacrifica a exposição
das diferentes estruturas gramaticais possíveis ao discurso relatado.
Há outras abordagens que, ainda mantendo simplicidade, optam por expor e
comparar as estruturas do direto e do indireto, excluindo o indireto livre. Por um lado,
nessas abordagens, os livros parecem encontrar algum espaço para tratar da
semântica dos verbos de elocução. Contudo, mantêm a ideia simplificada de o
discurso direto ser a reprodução literal e não interferida da personagem, enquanto o
indireto se aproximaria dos termos de uma paráfrase.
Encontramos, também, livros que fazem mais detalhamentos entre os três
discursos. Com isso, conseguem abordar distinções tipográficas e gramaticais entre
discurso direto e indireto (travessão/aspas versus conjunção) e mencionar a existência
dos verbos de dizer. Entretanto, mantêm ainda a distinção ‘literal está para direto assim
como paráfrase está para indireto’ e nada tratam da semântica dos verbos de dizer
(note-se a ausência dos verbos de sentir). Nos livros que se aprofundam no contraste
entre as formas de expressão dos discursos direto e indireto, encontramos duas
definições diferentes para o discurso indireto livre: um livro o tratará pela sua estrutura,
simplificando-o à semelhança de um discurso indireto mas sem conjunção; o outro o
tratará como o momento em que se misturam pensamentos da personagem e do
narrador, mas sem entrar em maiores detalhes acerca de sua estrutura.
Todos os pontos que os livros didáticos escolhem para expor o discurso
relatado são fundamentais para a compreensão inicial do aluno acerca de seu
funcionamento e estrutura. Entretanto, ou apresentam bem as diferenças estruturais
entre os três tipos de discurso relatado e deixam de refletir acerca dos efeitos de
sentido, ou tangenciam a função que um verbo de elocução pode ter a depender de
sua semântica e deixam suas estruturas serem apreendidas de maneira demasiado
intuitiva. Acreditamos ser fundamental uma compreensão global do discurso relatado,
em que sejam exploradas suas estruturas gramaticais e suas diversas possibilidades de
uso e de efeitos de sentido a partir de ferramentas semântico-discursivas.
3.3 Dos exercícios de fixação de conteúdo
3.3.1 Português linguagens: 8º e 9º anos
Ao oitavo ano, após exposição teórica do discurso relatado, o livro traz quatro
questões iniciais: um exercício de identificação dos sinais que indicam as falas, um
exercício que propõe mudar livremente duas falas, um terceiro que não trata
exatamente do discurso relatado, mas de interdiscurso na fala da personagem, e um
exercício de retextualização.
Na página seguinte, encontramos dois exercícios: um de identificação e outro
de conversão de discurso indireto para direto.
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Discurso e poder: teoria e análise
Figura 1. Página de Português linguagens: 8º ano (1)
Fonte: Cereja (2015a, p. 27)
O capítulo seguinte do oitavo ano retoma o ensino dos discursos direto e
indireto com exercícios que induzirão o aluno a encaminhar seu olhar para mais
diferenças estruturais entre eles.
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O discurso relatado: entre seus potenciais linguísticos e os livros didáticos
Figura 2. Página de Português linguagens: 8º ano (2)
Fonte: Cereja (2015a, p. 46)
E, em sequência, faz quatro exercícios após essa segunda exposição teórica (cf.
imagens da página 46, acima). O primeiro exercício é de interpretação, mas não se
liga à questão gramatical. O segundo e o terceiro são exercícios de manipulação do
direto para o indireto e do indireto para o direto, respectivamente. O quarto exercício
é uma reescrita, novamente de conversão do indireto para o direto.
O livro do nono ano mantém o padrão de fazer exercícios indutivos e, depois,
colocar um exercício explícito quanto ao assunto do discurso relatado em estudo. Há
dois exercícios iniciais: o primeiro serve de revisão do conteúdo passado, pois
subdivide-se entre identificação de direto ou indireto e de sinais de pontuação e
conversão de discurso; e o segundo divide-se em algumas questões de identificação
que servem de gancho para o indireto livre.
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Discurso e poder: teoria e análise
Figura 3. Página de Português linguagens: 9º ano (1)
Fonte: Cereja (2015b, p. 77)
Os exercícios que se voltam ao indireto livre se resumem a identificá-lo em
excertos de narrativas.
Figura 4. Página de Português linguagens: 9º ano (2)
Fonte: Cereja (2015b, p. 78)
3.3.2 Singular plural: 7º ano
Relembramos que, neste livro, o trabalho resume-se aos verbos de elocução.
Encontramos duas questões direcionadas no mesmo momento de apresentação
desses verbos: um de identificação dos verbos, e outro de reflexão sobre o uso da
mesma forma verbal, trabalhando-se com sua semântica, ou seja, com inferências
relativas a efeitos distintos de sentido depreendidos a partir de alternativas verbais.
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O discurso relatado: entre seus potenciais linguísticos e os livros didáticos
Figura 5. Página de Singular plural: 7º ano (1)
Fonte: Figueiredo; Balthasar; Goulart (2015, p. 77)
Ainda na mesma página, os autores seguem com um exercício que possui dois
trechos com a ocorrência de alguns discursos relatados. Contudo, não abordam
especificamente questões sobre sua estrutura e uso, mas estratégias para se evitar
repetição de palavras. O que vemos, portanto, é a utilização de uma ocorrência de
discurso relatado para trabalhar com outro processo linguístico-textual – a coesão –,
deixando de lado as especificidades semânticas, pragmáticas ou discursivas do
primeiro.
3.3.3 Teláris: 7º e 8º anos
No sétimo ano, encontramos um primeiro exercício intitulado O diálogo na
narrativa, mas este trabalha com interpretação de texto sem tratar de induzir o aluno a
olhar para a estrutura do relato. Na página seguinte, há uma primeira proposta de
conversão do discurso indireto para o direto.
Adiante, ocorre mais um exercício de conversão do direto para o indireto.
No oitavo ano, após distinguir mais os três discursos, o livro inicia pela
identificação dos excertos, mas deixando de fora o indireto livre.
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117
Discurso e poder: teoria e análise
Por fim, o livro dá mais explicações sobre as diferenças gramaticais entre
indireto e direto e fecha sua sequência com dois exercícios de conversão dos discursos
direto para indireto e vice-versa.
3.3.4 Universos: 6º e 7º anos
O livro do sexto ano, como vimos, apresenta os discursos direto e indireto em
dois capítulos. O livro vai conduzindo a interpretação de texto dos alunos por meio de
questões que apontam para elementos gramaticais pertinentes ao texto trabalhado.
Quanto aos discursos direto e indireto, há duas questões: uma é um exercício de
releitura subdividido entre identificar fala, identificar elemento gráfico que introduz a
fala, e pensar em outras formas de pontuação que podem indicar os relatos. Uma vez
abordados os elementos do discurso direto, a questão seguinte (5) pede ao aluno para
converter um indireto para direto, mas sem dar maiores detalhes acerca da estrutura
do indireto.
Figura 6. Página de Universos: 6º ano (1)
Fonte: Pereira; Barros; Mariz (2015a, p. 23)
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O discurso relatado: entre seus potenciais linguísticos e os livros didáticos
A página seguinte faz algumas avaliações do que se ensinou. A questão dois
desta página busca confirmar a pontuação que indica discurso indireto e, como
segundo subitem, reescreve um trecho, convertendo-o para indireto, questionando
qual das versões parece mais confiável. Trata-se de uma questão interessante para
levar o aluno a pensar nos diferentes efeitos de sentido dos discursos relatados, mas
que poderia ter sido mais bem estabelecida se outro termo fosse escolhido em vez de
‘confiável’ (o uso deste termo acaba levando àquela ideia do discurso direto como
mais confiável por ser a reprodução fiel da fala). Como a intenção do livro é que a fala
da pesquisadora possa parecer mais verossímil quando é citada ‘sem modificação’, as
autoras optam por distinguir discurso direto de indireto, no contexto de voz de
autoridade, por níveis de confiabilidade.
Figura 7. Página de Universos: 6º ano (2)
Fonte: Pereira; Barros; Mariz (2015a, p. 24)
A obra ainda propõe um exercício em que são feitas algumas afirmações e, com
isso, pede que se aponte quais delas são verdadeiras ou falsas. Como esta primeira
apresentação do discurso relatado é bem breve, notamos que essa última atividade
pode servir para sanar algumas questões de semântica e de uso dos discursos direto
e indireto.
Ainda no sexto ano, alguns capítulos adiante, encontramos um exercício que
retoma o discurso direto e trabalha com a função semântica dos diferentes verbos de
dizer. A proposta não é exaustiva e, ao mesmo tempo, leva a não tratar todos os verbos
de dizer como sinônimos, refletindo no relato e na imagem da cena.
MENDES, Júlio César da Silva | 2020 | p. 100-123
119
Discurso e poder: teoria e análise
Figura 8. Página de Universos: 6º ano (3)
Fonte: Pereira; Barros; Mariz (2015a)
Adiante, o livro traz ainda um último exercício relacionado, pedindo a troca do
verbo de dizer por outro mais adequado para descrever a situação no texto.
No sétimo ano, o livro retorna aos discursos direto e indireto com um exercício
de três subitens: o primeiro leva a afirmação da predominância do indireto em contos;
o segundo é de interpretação da história trabalhada, apenas identificando a
predominância de qual personagem mais fala; o último traz questões interpretativas
interessantes quando trata da atribuição de discurso a outra pessoa e sua função no
texto, mas nomeia de indireto o que, tradicionalmente, seria um discurso indireto livre
(que sequer é apresentado pelo material).
Figura 9. Página de Universos: 7º ano (1)
Fonte: Pereira; Barros; Mariz (2015b)
3.3.5 Para viver juntos: 7º ano
Como este livro foca apenas nos verbos de elocução, notamos uma sequência
de exercícios voltados a trabalhar com a semântica dos verbos de dizer. A primeira
MENDES, Júlio César da Silva | 2020 | p. 100-123
120
O discurso relatado: entre seus potenciais linguísticos e os livros didáticos
questão leva a pensar sobre a imagem que o verbo gaguejei cria na narrativa. O
segundo exercício novamente leva à reflexão de outro verbo de dizer e pede
sugestões de outros verbos para criar outra percepção sobre a fala reportada. O
terceiro exercício contextualiza o caráter psicológico das personagens em duas
versões e, com isso, pede os verbos de dizer de um diálogo pré-montado mais
adequados a cada caso. Neste caso, como já vínhamos expondo, encontramos um
material que explora mais as questões semânticas do verbo de dizer e das
manipulações do discurso do outro, e em detrimento disso, notamos a falta de
trabalho sobre as questões estruturais dos discursos direto, indireto e indireto livre.
3.3.6 Considerações parciais
Os exercícios apresentados pelos livros mostram estar em consonância com o
foco que escolhem dar em suas concepções teóricas para o discurso relatado. Nos
materiais que se dedicaram a explorar mais das formulações estruturais entre discurso
direto e indireto, encontramos exercícios de identificação e de conversão de uma
forma a outra como os mais abundantes; enquanto nos livros cujo foco foram os verbos
de elocução, predominou trabalhar-se com identificação, conversão e reflexão acerca
dos sentidos promovidos por esses verbos.
Detalhando melhor, compreendemos os exercícios em três grandes grupos:
de identificação, de conversão (ou manipulação) e de reflexão acerca dos efeitos de
sentido do e no texto, que por sua vez podem levar a olhar para a questão da
pontuação no discurso direto, das diferenças morfossintáticas entre direto e indireto,
dos verbos que projetam o discurso relatado e de suas condições semânticas no texto.
Exercícios de identificação são os mais rasos, porém é necessário levar em conta que
eles servem como primeiro passo ao conceito gramatical do relato, por isso alguns
livros optam por colocá-los em questões indutivas anteriores à exposição teórica; já
outros quase se resumem a eles como forma de fixação do conteúdo. A conversão
pode ser um segundo passo, pois demanda que o aluno domine a identificação dos
tipos diferentes de relato e serve para fixar as noções da estrutura gramatical; a
manipulação ainda apareceu como modo de sistematizar os verbos de dizer, mas
abrindo mão das estruturas gramaticais. Por fim, os exercícios de reflexão ora incidiam
em afirmações do tipo ‘discurso direto é comum à esfera/ao gênero X, o indireto é
comum a Y’ (o que levava ao senso comum do direto e do indireto quanto ao primeiro
ser mais ‘fiel’ ao relato originalmente proferido), ora davam pontapé ao nosso interesse
em olhar com mais atenção para a imagem que se cria do relato do outro (contudo,
nesses casos, resumiam-se a analisar apenas o verbo e ainda os restringindo aos
dicendi, ficando de fora os sentiendi).
3.4 Síntese dos resultados
Em síntese, podemos desenhar o seguinte quadro quanto à abordagem do
discurso relatado conforme os livros didáticos do PNLD 2017:
MENDES, Júlio César da Silva | 2020 | p. 100-123
121
Discurso e poder: teoria e análise
Quadro 1. Resumo da análise
Esfera discursiva
predominante
Concepção teórica
Exercícios
Literária
Narrativas; estrutura
do direto e do
indireto
Identificação,
conversão e
interpretação de
‘confiabilidade’
Universos 7º
Jornalística
Verbos de elocução;
depoimento como
credibilidade;
estrutura do direto e
do indireto
Da predominância
do tipo de discurso
(direto ou indireto)
Para viver juntos
7º
Jornalística
Verbos de elocução
Singular & plural
7º
Jornalística
Verbos de elocução;
direto e indireto não
explicitados
Teláris 7º
Literária
Teláris 8º
Literária
Livros
Universos 6º
Português
linguagens 8º
Literária
Português
linguagens 9º
Literária
Diálogo em narrativa;
estrutura do direto e
do indireto
Sequências narrativa
e conversacional;
estrutura do direto,
indireto e indireto
livre
Estrutura do direto e
do indireto; definição
geral de ‘discurso’
Estrutura do direto,
indireto e indireto
livre
Manipulação e
reflexão sobre a
escolha dos dicendi
Identificação e
reflexão sobre
efeitos de sentido
dos dicendi
Conversão
Identificação sem
presença do
indireto livre
Identificação,
conversão e
retextualização
Identificação e
conversão
Fonte: elaboração própria.
Considerações finais
Repensar o ensino de gramática na educação básica à luz de teorias linguísticas
é, diferente de um simples enxerto de nomenclatura teórica nos livros didáticos,
debruçar-se sobre reflexões acerca do funcionamento da linguagem e buscar transpor
tal consciência para o âmbito escolar, a fim de colocar à disposição de alunos o
conhecimento das ferramentas léxico-gramaticais enquanto forma de ação no mundo.
Não esperávamos que os materiais didáticos trouxessem explicitamente um ensino de
linguística nos anos escolares, mas uma vez sabido de todo o potencial linguístico que
o discurso relatado carrega e tomando o ideal do ensino gramatical centrado no nível
textual, esperávamos propostas didáticas para além das estruturas, o que, por sua vez,
não significa abandonar essa forma de abordagem completamente. Conforme
demonstramos, encontramos livros que consideramos muito bons em mostrar a
estrutura do discurso relatado, assim como alguns eram eficientes em mostrar os
efeitos de sentido dos processos verbais; mas ambos abriam mão de mostrar a outra
face da moeda. Um ensino de gramática mais efetivo, cremos, depende da articulação
MENDES, Júlio César da Silva | 2020 | p. 100-123
122
O discurso relatado: entre seus potenciais linguísticos e os livros didáticos
entre ambas as partes: conhecer a estrutura para entender o funcionamento discursivo
por meio dos diversos usos e ser capaz de visualizar o potencial semântico-discursivo
para não se apreender a gramática de maneira vazia. Esse é o caminho que desejamos
no ensino de língua na escola e que fica em aberto como próximo fruto desta
pesquisa: uma abordagem didática que alie estrutura, engajamento e evidencialidade
no discurso relatado por diferentes esferas discursivas.
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MENDES, Júlio César da Silva | 2020 | p. 100-123
123
Discurso e poder: teoria e análise
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2.ed. v. 2. São Paulo: Ática, 2015a.
BORGATTO, Ana Maria Trinconi; BERTIN, Terezinha Costa Hashimoto Bertin;
MARCHEZI, Vera Lúcia de Carvalho. Projeto Teláris: português: ensino fundamental 2.
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FIGUEIREDO, Laura de; BALTHASAR, Marisa; GOULART, Shirley. Singular & plural:
leitura, produção e estudos de linguagem. 2.ed. São Paulo: Moderna, 2015.
PEREIRA, Camila Sequetto; BARROS, Fernanda Pinheiro; MARIZ, Luciana. Universos:
língua portuguesa, 6º ano: anos finais: ensino fundamental. 3. ed. São Paulo: Edições
SM, 2015a.
PEREIRA, Camila Sequetto; BARROS, Fernanda Pinheiro; MARIZ, Luciana. Universos:
língua portuguesa, 7º ano: anos finais: ensino fundamental. 3. ed. São Paulo: Edições
SM, 2015b.
Como citar
MENDES, Júlio César da Silva. O discurso relatado: entre seus potenciais linguísticos
e os livros didáticos. In: GONÇALVES-SEGUNDO, Paulo Roberto; ARAES, Célia
Regina; CASTANHEIRA, Claudia; ISOLA-LANZONI, Gabriel; PENITENTE, Natalia;
WEISS, Winola (orgs). Discurso e poder: teoria e análise. São Paulo: FFLCH/USP,
2020, p. 100-123. DOI: 10.11606/9786587621241
MENDES, Júlio César da Silva | 2020 | p. 100-123
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No movimento dos sentidos: construções interdiscursivas em Mafalda
No movimento dos sentidos:
construções interdiscursivas em
Mafalda
Kaline Ferreira OLIVEIRA
Universidade do Estado da Bahia
[email protected]
Resumo: Neste trabalho propõe-se analisar discursivamente
uma tira da personagem Mafalda – publicadas entre 1964 e
1973 na Argentina e difundidas pelo mundo – sob autoria do
cartunista argentino Salvador Lavado Quino. A investigação é
baseada no arcabouço teórico da Análise do Discurso de linha
francesa, fundamentada pelo filósofo francês Michel Pêcheux e
propõe compreender como e quais possíveis movimentos
significativos propiciam um link interdiscursivo entre as tiras da
Mafalda postadas na rede social facebook com o presente
contexto sócio-político-ideológico brasileiro. Em prol de uma
melhor compreensão dos efeitos de sentido provenientes dessa
(re)inscrição, será levado em consideração a recepção da tira
nesta plataforma digital – facebook – a partir dos comentários.
Assim, este trabalho baseia-se na compreensão da nãotransparência da linguagem, visto que nela são materializados
discursos que (re)produzem práticas ideológicas cuja base se
encontra na relação existente entre homem e sociedade. Nesta
perspectiva, um dos elementos teóricos basilares deste
movimento analítico é a noção de interdiscurso pecheutiana,
que corresponde à relação necessária entre o já-dito e o dizível.
Desta forma, busca-se compreender a constituição de dados
efeitos de sentido a partir das materialidades linguísticas na tira
da personagem Mafalda (1964-1973) selecionada para análise,
levando em consideração os deslizamento de sentidos
provenientes do contexto histórico de (re)produção das
mesmas (Brasil, 2018) possibilitados pelos comentários
vinculados à respectiva tira.
Palavras-chave: Discurso;
Interdiscurso; Mafalda.
Efeito
de
sentido;
Ideologia;
Introdução
Na década de 60 do século XX, em meio a grandes acontecimentos sóciopolíticos pelo mundo, surgiu uma menina de nome Mafalda que tinha como principal
característica questionar e criticar o mundo a sua volta. Essa menina (de 6 anos,
inicialmente) é uma personagem principal das tiras que levam o seu nome e foi
OLIVEIRA, Kaline Ferreira | 2020 | p. 124-135
125
Discurso e poder: teoria e análise
desenhada entre 1964 e 1973 pelo cartunista, desenhista Joaquín Salvador Lavado
Tejón – popular Quino – na Argentina.
Nesse mesmo período – final da década de 60 do século XX –constituiu-se a
Análise de discurso fundamentada pelo filósofo francês Michel Pêcheux. Categorizada
como campo de conhecimento de entremeio 1, a Análise de discurso pecheutiana
(doravante AD) se constitui na correspondência entre as disciplinas que a integram – a
linguística, o marxismo (materialismo histórico) e a psicanálise.
Nesta perspectiva, a AD concebe o discurso como “efeito de sentido”, uma
projeção na linguagem de perspectivas sociais, históricas e ideológicas. E
compreende a língua em relação ao contexto histórico de produção, logo, esta não é
vista como neutra ou transparente, mas sim como um processo de confluência entre a
ocorrência linguística e os processos ideológicos.
Assim, o conceito pecheutiano de discurso como efeito de sentido pautará a
discussão proposta para esta pesquisa, englobando os elementos internos da
linguagem, as ocorrências linguísticas e a influência ideológica na inscrição e
(re)inscrição do(s) discurso(s). Deste modo, tencionamos tornar perceptível a paráfrase
e polissemia discursiva por compreender que os signos linguísticos ganham distintos
sentidos a depender das concepções ideológicas de sua inserção.
Desse modo, este capítulo objetiva utilizar a AD para pensar a (re)inscrição dos
dizeres da personagem Mafalda – e de outros personagens que integram as tiras – que
ainda são recorrentes nos dias atuais, principalmente nas mídias digitais. Tal análise
buscará confrontar perspectivas semânticas presentes nos discursos que integram
algumas destas tiras – e os discursos que se constituem a partir delas – por se
(re)inscrevem em um contexto histórico e ideológico distinto do período de
constituição.
As tiras de Mafalda estão presentes em diversos suportes desde livros didáticos
(suporte material) a redes sociais (suporte digital). Levando em consideração a
recorrência das tiras na rede social Facebook (rede social com maior quantidade de
usuários atualmente2), percebemos que este meio nos permitiria observar as novas
possibilidades significativas das tiras por permitir ao usuário da rede social interagir
com o conteúdo apresentado. Logo, os comentários presentes na postagem da tira da
Mafalda escolhida para análise que integra a página Tirinhas da Mafalda no facebook
também serão considerados nas análises, por nos ajudar a compreender quais e como
outros sentidos são atribuídos à tira.
1 Referencial teórico
A AD fundamentada por Michel Pêcheux deu um lugar de importância à
interpretação, às leituras que são feitas de materialidades linguísticas. Nesse campo
Orlandi (2012).
Disponível em: https://www.maioresemelhores.com/maiores-redes-sociais-do-mundo/. Acesso em 13
de jul. 2019.
1
2
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126
No movimento dos sentidos: construções interdiscursivas em Mafalda
disciplinar se compreende o objeto de estudo da teoria – o discurso – como efeito de
sentido, prática de linguagem, como nos mostra Orlandi 2007, p. 15)
A Análise de Discurso, como seu próprio nome indica, não trata da
língua, não trata da gramática, embora todas essas coisas lhe
interessem. Ela trata do discurso. E a palavra discurso,
etimologicamente, tem em si a ideia de curso, de percurso, de correr
por, de movimento. O discurso é assim palavra em movimento,
prática de linguagem: com o estudo do discurso observa-se o homem
falando.
Quando o homem fala, há diversos fatores que interferem no processo
significativo. Nesse sentido, o discurso é considerado como efeito de sentido entre
interlocutores por ir contra a corrente da comunicação verbal formulada por Roman
Jakobson que considerava que o destinador – ponto A – codifica sentidos na
mensagem e o destinatário – ponto B – decodifica a mensagem para captar o sentido.
Nesta perspectiva, não haveria entraves no ato comunicativo por se tratar apenas de
codificação e decodificação de mensagem.
Mas em AD, essa relação de decodificação não é comunicação, pois numa
mensagem entre o ponto A (destinador) e o ponto B (destinatário), o que existe é uma
rede de possibilidades semânticas, logo, efeito de sentidos. Assim, acredita-se que o
sentido não está embutido na letra/materialidade linguística, mas constitui-se no
processo sócio histórico. Compreende-se portanto que o ato de linguagem, de
discurso e de leitura “são as evidências do estritamento bio-social, dando-se, ao
contrário, relevância, aos mecanismos de linguagem, ao simbólico, e ao histórico
social” (ORLANDI, 2012, P. 60).
O procedimento analítico proposto em AD parte de um dado real para tornarse o objeto de investigação. Parte-se da linguagem para investigar o nível discursivo
que sofre efeitos diretos do nível ideológico por se constituir socialmente. Assim,
compreende-se que o conceito de ideologia é imprescindível, já que este elemento é
definido como vínculo entre a linguagem e o social e de lado a concepção de ideias.
Logo, na AD a ideologia se constituí como prática social e está diretamente
ligada à materialização da língua em determinado espaço e tempo por ser o fator que
evidencia perspectivas de determinada formação ideológica (doravante FI). Nas
palavras de Pêcheux (2014, p. 147) a formação discursiva (doravante FD) é “aquilo que,
numa formação ideológica dada, determina [...] o que pode e deve ser dito”
(PÊCHEUX, 2014, p. 147, grifos do autor).
Assim, entende-se que o texto – verbal ou não – está para o discurso por este
também estar também imbuído por perspectivas sócio históricas, uma vez que “sem
texto não há significação” (Orlandi, 2012, p.17). Portanto, não existe uma transparência
nos textos que permitam atravessar e pegar um sentido. O texto, assim como discurso,
é opaco. Não possui significações pré-determinadas, existem possibilidades que são
trazidas pelo leitor no processo de leitura. Nas palavras de Orlandi (2012, p.21)
a leitura aparece não mais como simples decodificação mas como a
construção de um dispositivo teórico [...] um sentido preciso que leva
em conta a materialidade da linguagem, isto é, sua não-transparência
e coloca a necessidade de construir um artefato para ter acesso a ela
OLIVEIRA, Kaline Ferreira | 2020 | p. 124-135
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Discurso e poder: teoria e análise
, para trabalhar sua espessura semântica – linguística e histórica – em
uma palavra, sua discursividade.
Por considerar que o texto se constitui discursivamente por este também ser
efeito de sentido, através dele observa-se o homem falando e, nesta perspectiva, é
possível observar como o sujeito está posto e como ele está produzindo processos de
significação a partir de sua posição social.
O sujeito enquanto lugar social, não pode não significar/fazer significar, pois
ele é levado a dizer o que “isto” quer dizer por questões ideológicas que o constitui.
Isso é pura injunção à interpretação. Somos levados a interpretar constantemente e
fazemos isso sempre por gestos de leitura a partir dos lugares sociais que ocupamos.
Nas palavras de Orlandi (2012, p. 22) “ O sujeito é a interpretação. Fazendo significar,
ele significa. É pela interpretação que o sujeito se submete à ideologia, ao efeito de
literalidade à ilusão do conteúdo, à construção da evidência dos sentidos, à impressão
do sentido já-lá”.
Com base na perspectiva de trabalhar a (re)inscrição do dizer, a noção
de interdiscurso será um dos elementos basilares deste trabalho, pois, como
propõe Pêcheux, a noção de interdiscurso diz respeito a uma relação de
ligação existente entre o já-dito (interdiscurso) com o que é efetivamente
formulado (intradiscurso).
A noção de interdiscurso diz respeito à união de já-ditos que embasam outros
dizeres, assim, acredita-se que os dizeres – as materialidades que estão nas tiras ao
serem vinculadas em outro momento histórico – se (re)signifiquem por possibilitarem
a existência de outros dizeres ancorados a perspectivas sócio-históricas e ideológicas
às quais foram/estão sendo vinculados. Portanto, é sobre essas novas significações
que iremos nos apoiar.
Assim, propomos analisar interdiscursivamente – a partir de dois contextos
sócio-histórico e ideológico distintos – a tira retirada da página Tirinhas da Mafalda na
rede social Facebook. Nesta perspectiva, inicialmente serão feitas análises das
materialidades linguísticas presentes nas tirinhas levando consideração o contexto
sócio-histórico e ideológico de instauração dos dizeres – século XX, especificamente
décadas de 60 e 70 – elencando as possibilidades discursivas a partir deste período.
Posteriormente serão feitas análises das materialidades linguísticas presentes nos
comentários da respectiva tira, que são marcadores em potencial de (re)inscrição do
dizer – século XXI no Brasil – para, assim, podermos investigar o deslizamento de
sentidos (ou não) pautado nessa (re)inscrição.
2 Construções significativas em uma tira da personagem Mafalda
A primeira tira selecionada para análise presente da página Tirinhas da Mafalda
no Facebook foi publicada em 4 de abril de 2018. Possui 6,3 mil curtidas – incluindo
as reações –, 3,8 mil compartilhamentos e 174 comentários.
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No movimento dos sentidos: construções interdiscursivas em Mafalda
Figura 1. Tira selecionada para análise retirada da Página Toda Mafalda no Facebook
Fonte: Página Toda Mafalda no Facebook3
A tira é composta por 4 quadros e foi reconfigurada ao padrão de tira dupla,
com dois andares. Nela temos a presença de duas personagens: Mafalda e sua mãe.
É possível compreender o efeito de angústia que funciona na materialidade linguística
com a instauração do termo “inquilino” presente nos dizeres da tira. Inquilino, segundo
Ferreira (2010, p. 428) é um “Indivíduo residente em casa que tomou de aluguel” e
assim compreendendo tal termo, a partir dos três primeiros quadros poderíamos
inferir que algum inquilino dos seus pais que possivelmente sabia de suas pretensões
começou a lhe falar sobre questões referentes à moral e aos bons costumes,
elementos basilares da educação no âmbito familiar, escolar e social.
Mas, como é próprio do gênero tiras, temos a quebra de expectativas ao
Mafalda ser questionada sobre o inquilino, então há um deslizamento de sentido a
partir do qual o humor só ocorre com o atravessamento da FD que instaura o efeito
de sentido de angústia. Desfaz-se a primeira hipótese e propicia o humor ou reflexão
ao se referir ao “inquilino interior”.
Esse ‘inquilino’ interior pode ser lido de diversas formas: consciência, ética,
superego, caráter, honestidade, dentre outros sempre ligados a princípios e regras,
determinados e aceitos socialmente que regulam o comportamento dos sujeitos
sociais: moral.
Orlandi (2013, p.15) ao definir discurso como “discurso em movimento, prática
de linguagem” vai além do processo de comunicação a partir do esquema: emissor,
receptor, código, referente e mensagem. Observar o homem falando equivale a
Disponível
em:
https://www.facebook.com/TirinhasDaMafaldaBr/photos/a.346009278796217/1781363631927434/?typ
e=3&theater.
3
OLIVEIRA, Kaline Ferreira | 2020 | p. 124-135
129
Discurso e poder: teoria e análise
atravessar esse efeito de transparência na linguagem, para perceber os princípios
ideológicos que estão presentes nos dizeres, enunciados, enfim, discursos que são
multiplicados na(s) sociedade(s).
Nesta perspectiva, temos que ir além de apenas afirmar o que se apresenta
como óbvio na leitura da tira. A linguagem é opaca, a impressão de transparência nela
é produzida e, assim sendo, precisamos entender como ela se constitui em meio ao
seu processo/instante de produção já que falar em linguagem é falar sobre as relações
entre os sujeitos e inevitavelmente inúmeros sentidos. Como Orlandi afirma (2013, p.
65), “nos interessa a materialidade que é linguístico-histórica, logo não se remete a
regras, mas as suas condições de produção em relação à memória, onde intervém a
ideologia, o inconsciente, o esquecimento, a falha, o equívoco”.
Neste processo é necessário compreender que ideologia em AD é tida como
“uma relação necessária entre a linguagem e o mundo” (ORLANDI, 2012, p. 31), é
categoria que interpela o indivíduo enquanto sujeito e materializa-se discursivamente
já que é interpretação de sentido na relação da linguagem, história e mecanismos
imaginários.
Assim nos constituímos e demarcamos certos modos de vida e comportamento
em sociedade. Nesta perspectiva, a Formação ideológica – doravante FI – explica esse
processo em dado contexto histórico:
Falaremos de formação ideológica para caracterizar um elemento [...]
susceptível de intervir como uma força em confronto com outras
forças na conjuntura ideológica característica de uma formação social
em dado momento; desse modo, cada formação ideológica constutui
um conjunto complexo de atitudes e de representações que não são
nem ‘individuais’ nem ‘universais’ mas se relacionam mais ou menos
diretamente a posição de classe em conflito umas com as outras.
(PÊCHEUX; FUCHS, 2014, p. 163, grifos do autor)
As FIs são capazes de, em determinada formação social, intervir como uma
força em relação de confronto, de aliança ou dominação com outras forças na
conjuntura ideológica. Então temos as formações discursivas – FDs – que se constituem
dentro desse conjunto completo de atitudes e representações. Sendo assim, as FIs
comportam uma ou várias FD’s interligadas, sendo a ideologia o elemento de
constituição de ambas, já que na FD se demarca o que pode e deve ser dito em dada
FI.
A partir da tira em processo de análise, podemos esquematizar algumas
possíveis FDs levando em consideração o contexto histórico de constituição das tiras
– década de 60 e 70 – como FI. Neste período, mobilizava-se pelo mundo movimento
de contracultura que teve início nos Estados Unidos com auge na década de 60. Esse
movimento, composto em sua maioria por jovens intelectuais, buscava alertar, de
forma pacífica, sobre os valores disseminados pela indústria e pelos meios de
comunicação, falavam contra o consumismo e conservadorismo atribuindo valor à
natureza, ao amor, às coisas simples e à valorização das minorias em prol da paz
(DIANA, 2019).
OLIVEIRA, Kaline Ferreira | 2020 | p. 124-135
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No movimento dos sentidos: construções interdiscursivas em Mafalda
Quadro 1. Quadro de FDs
FD
FD MORAL
FD CONSUMO
“Tome, pensei em ficar com
o troco da padaria para
comprar bala, mas não
consegui”
(Objetiva reconsiderar)
(Objetivava o consumo)
“e tudo por causa do maldito
inquilino que começou a
dizer que isso é feio, que não
se faz e sei lá o quê!”
(Objetiva conscientizar)
(Desconsidera/reconfigura
aspectos morais)
“Esse que a gente tem aqui
dentro”.
(Capacidade de
autorreflexão)
Fonte: elaboração própria.
O quadro apresentado mostra o discurso de Mafalda como resultante do
embate e dominação entre duas forças discursivas, a “FD moral”, enunciada a partir de
um lugar ideológico que leva em consideração todas as regras aceitas socialmente
que regulam o comportamento do sujeito; e a “FD consumo”, enunciada a partir de
um lugar ideológico que valora o consumo independentemente de aspectos pessoais
. Acredita-se que o mesmo enunciado pode ser compreendido em duas perspectivas
a partir do lugar de sua enunciação.
Assim, em “Tome, pensei em ficar com o troco da padaria para comprar bala,
mas não consegui” pode ser interpretado como um ato de reconsiderar o ato de pegar
o dinheiro do troco com qual objetivava satisfazer o desejo de comprar bala.
Já no enunciado “e tudo por causa do maldito inquilino que começou a dizer
que isso é feio, que não se faz e sei lá o quê!” percebemos que houve um acesso de
consciência pela presença do ‘inquilino’ que falava em aspectos morais mesmo sem a
vontade da menina que, a princípio desconsiderara-os.
Nos dois primeiros, acredita-se que há a presença de um embate porque
aspectos linguísticos possibilitam leituras. No primeiro enunciado o fato de “pensei em
ficar com o troco para” possibilita a existência da “FD consumo”, enquanto “mas não
consegui” viabiliza a existência da “FD moral”. No segundo enunciado, lemos o “e tudo
por causa do maldito” como elemento que ratifica “FD consumo” pelo fato de que
antes deste ‘maldito’ não havia se pensado nos elementos por esse elencado”,
enquanto “que isso é feio, que não se faz e sei lá o quê!” apresenta questões que a
menina deveria levar em consideração em sua ação. Já no último enunciado acreditase que houve a sobreposição da FD moral funcionando como um “com dominante”
de um” todo complexo” (PÊCHEUX, 2014, p. 134) pois ao se referir ao inquilino como
“Esse que a gente tem aqui dentro” instaura-se o pré-construído que propicie a
autorreflexão da menina sobre suas ações.
OLIVEIRA, Kaline Ferreira | 2020 | p. 124-135
131
Discurso e poder: teoria e análise
2.1 Outras possibilidades significativas
Um elemento positivo das redes sociais – em especial o Facebook – é a
existência de ferramentas que permitem a interação entre os usuários na página
mesmo sem estarem conectados. Neste caso, temos os comentários que tem como
característica principal a “interação mútua” pelo fato de que cada usuário que interage
participa, de certa forma, na construção inventiva e cooperada na página (RECUERO,
2009, p. 32).
Assim sendo, os comentários presentes na publicação dessa tira, constituemse como elementos essenciais para a compreensão de outros possíveis processos
significativos existentes a partir de sua leitura.
Logo, selecionamos os comentários nessa publicação que nos apresentam
novas possibilidades significativas e vamos pensar na FI a partir o contexto social de
sua (re)inscrição: Brasil, primeiro semestre do ano de 2018, ano eleitoral no país que
está polarizado por questões político partidárias.
Nesse aspecto, o sentido é uma condição base na AD e os efeitos de sentidos
se constituem junto a enunciação discursiva. Assim, a produção ou (re)produção
discursiva acontece embasada por fatores parafrásticos – (re) produção de um sentido
sob várias formas– e/ou polissêmicos – atribuição de múltiplos sentidos – sempre
ancorada com o discurso prévio, o interdiscurso. Portanto, “tanto a paráfrase como a
polissemia devem ser objetos da reflexão sobre a linguagem” (ORLANDI, 2012, p. 26).
Figura 2. Comentários 1
Vide primeiro e o segundo comentário na publicação. O primeiro diz “Espírito
Santo de Deus que habita em mim que me constrange quando peco e me leva ao
arrependimento. Sem Deus eu seria apenas mais uma pecadora”, o segundo ainda
leva em consideração os aspectos trazidos no comentário anterior ao produzir o
enunciado “É isso aí Mafalda! O Inquilino é o Espírito Santo, que nos orienta e fala para
não fazermos o errado, mas andamos no bem!!!! Ótima! Mitou!!”. Vamos considerar
nesses comentários e o elemento “Espirito Santo” que nos mostra ser uma outra leitura
da tira. Os sentidos atribuídos a partir dessa outra leitura nos permitem identificar a
existência de outra FD: a “FD cristã”4.
Nomeou-se a FD de cristã porque no último senso realizado no país pelo IBGE em 2010 – o próximo
será em 2020 – os cristãos no país chegaram a 86,6%, tendo maioria católicos, apesar da queda, com
4
OLIVEIRA, Kaline Ferreira | 2020 | p. 124-135
132
No movimento dos sentidos: construções interdiscursivas em Mafalda
A sociedade brasileira ainda é majoritariamente cristã. Logo, ideologias que
perpassam esse Aparelho Ideológico – igreja – são constitutivos dos sujeitos nesta
constituição social. Nessa perspectiva, o “inquilino” que fala a Mafalda sobre o errado,
o feio seria a consciência espiritual ou religiosa – divindade Espírito Santo – que
indicaria qual atitude a moça deveria tomar. Se acreditam que o Espírito Santo seja um
pessoa ou uma divindade é respectivo a cada religião, mas a Bíblia fala sobre esse
Espírito Santo como algo que realmente falará e guiará as pessoas em suas ações,
como é insinuado que o espírito Santo fala “Quem tiver ouvidos, ouça o que o Espírito
diz às igrejas”(BÍBLIA, Apocalipse, 2, 17) e guia as ações do homem “Ao chegarem aos
confins da Mísia, tencionavam seguir para Bitínia, mas o Espírito de Jesus não permitiu”
(BÍBLIA, Atos dos Apóstolos, 16, 7).
Figura 3. Comentários 2
Nesse outro caso, vamos perceber um novo deslizamento significativo no
último comentário que diz “Graças a Deus quase todos tem esse inquilino... Mas os
corruptos não tem (Sic), com certeza...”. Percebemos aqui que esse novo discurso está
atravessado pela FD anterior – FD cristã - por fazer remissão a Deus, elemento também
presente no discurso cristão. Mas o deslizamento de sentido ocorre ao se utilizar o
termo ‘corruptos’. O termo ‘corrupto’ segundo Ferreira significa “1. Que sofreu
corrupção; corrompido. 2. Devasso, depravado; corrompido. 3. Diz-se de indivíduo
que corrompe ou se deixa corromper ou subornar; instigador ou cúmplice de
corrupção” (2010, p. 204).
Socialmente usamos tal termo para indicar algum aparelho corrompido ou usase o significado 3 da palavra para falar dos representantes políticos. Tal comentário
afirma que esse inquilino - representado pela FD moral – não integra tais
representantes políticos já que, em vez de reconsiderar ou se conscientizar contra esse
tipo de ação, o político adjetivado como ‘corrupto’, pelo contrário, pratica tais ações
consideradas ilícitas. Poderíamos nomear essa FD como “FD antipolítica” pois este é o
termo mais adequado nesse contexto.
O termo ‘corrupto’ e seus derivados têm sido muito usados nos últimos anos
no Brasil, para se ter uma noção de quanto esse tema tem sido recorrente, no ano de
postagem da tira no Facebook em análise – 2018 – a revista Isto é pública em 11 de
abril de 2018 o seu nº2520 com o título “Lula preso. Tremei políticos corruptos, a sua
hora também vai chegar” tal enunciado, pela ilusão de transparência da linguagem
que instaura um efeito de sentido de que que Lula, o ex presidente do país pelo
64,6% e aumento dos evangélicos que chegaram a 22,2%. Neste período, já se sabia da onda evangélica
existe no país, tanto que se acredita que no próximo senso o quantitativo de evangélicos será equiparado
ao de católicos ou superior e teremos um número maior de pessoas que não declaram identificação com
nenhuma religião (AZEVEDO, 2019).
OLIVEIRA, Kaline Ferreira | 2020 | p. 124-135
133
Discurso e poder: teoria e análise
Partido dos Trabalhadores – PT, integra esse grupo dos adjetivados como corrupto em
detrimento a sua questionável condenação.
Ancorada a essa perspectiva, temos os próximos comentários:
Figura 4. Comentários 3
Coloca-se em evidência o segundo comentário “Alguns expulsaram esse
inquilino”, o que nos leva a interpretar que na sociedade, como um todo, muitas
pessoas não possuem o “inquilino” da consciência, da moral pelo fato de serem
levados ideologicamente a práticas contrárias. Mas, assim como o gênero possui como
característica a quebra de expectativas do leitor, o comentário que responde ao que
acabara de ser citado também rompe com as expectativas, trazendo um novo
elemento mais direto e marcadamente vinculado ao contexto de (re)inscrição da tira.
O referente comentário diz “ [...] é tipo o Lula e toda a corja do PT”. Tal comentário
mobilizado pelo pré-constrído vincula Lula e os integrantes do partido à categoria dos
corruptos pelo funcionamento do estereótipo segundo o qual se supõe que todos os
políticos de esquerda são corruptos, uma vez que há apoio aos políticos de direita.
Nesse caso, o estereótipo é ressignificado e direcionado a um único partido no
enunciado em questão. E isso só é possível devido às condições de existência sóciohistóricas que remetem a embates de classes político-partidárias no interior da FI. Tais
comentários possibilitam a percepção do atravessamento da questão ideológica nos
discursos.
Temos aqui, mobilizados pelos comentários sentidos que ressoam a partir de
estereótipos e simulacros como “todo político é corrupto”, é estereótipo por ser uma
característica atribuída aos representantes políticos frequentemente associado à
negativação de algum grupo, simulacro pela tentativa de interpretar seu outro,
atribuindo-lhe características que podem não ser próprias (exclusivas) do grupo.
Considerações finais
Este trabalho teve o propósito de analisar as construções significativas possíveis
a partir das tiras de Mafalda inseridas na rede social Facebook atualmente no Brasil,
período distinto ao de sua produção.
O resultado prévio nos revela que os usuários da rede social Facebook são
interpelados por questões ideológicas materializadas no contexto de (re)inscrição das
tiras de Mafalda, o que propicia o funcionamento de sentidos às materialidades
linguísticas presentes nas tiras. A partir de novos gestos de leituras os usuários são
interpelados por categorias como o simulacro e/ou estereótipo vigentes na sociedade
e que demarcam certas perspectivas no contexto político.
OLIVEIRA, Kaline Ferreira | 2020 | p. 124-135
134
No movimento dos sentidos: construções interdiscursivas em Mafalda
Nesta concepção, o processo interdiscursivo constitui-se como elemento
atravessado constantemente por outros dizeres, assim o estudo do contexto sóciohistórico de inscrição e (re)inscrição de tais dizeres nos permitem compreender alguns
pontos das intersecções discursivas, como fora evidenciado na análise. Logo, o
processo significativo da(s) tira(s) atribuídos atualmente se distinguem dos de sua
constituição por considerar este outro contexto sócio-histórico ao qual o discurso está
veiculado.
A partir da análise, é notável como a AD potencializa o processo de
compreensão dos discursos por entender que estes são indissociáveis do contexto
ideológico de instauração e, também, a atualidade dos temas abordados nas tiras de
Mafalda que, por mais que tenham sido desenhadas há mais de 50 anos, ainda
abordam temáticas sociais vigentes no mundo. Assim, nesse processo discursivo, se
dá o deslizamento de efeitos de sentido, o que promove uma (re)inscrição do dizer
possível pelo funcionamento de outros discursos, atualizados em outras condições de
instauração do dizer.
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Ideológicos de Estado (AIE). Tradução José Evangelista e Maria Laura Viveiros de
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Disponível
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Tradução: Eni Puccinelli Orlandi et al. – Campinas: Pontes, 2003.
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à Linguística: domínios e fronteiras. – 8ª ed. – São Paulo: Cortez, 2012. p. 113-166.
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OLIVEIRA, Kaline Ferreira | 2020 | p. 124-135
135
Discurso e poder: teoria e análise
ORLANDI, Eni P. Interpretação, autoria e efeitos do trabalho simbólico. – 6ª ed. –
Campinas, SP: Pontes Editores, 2012.
PÊCHEUX, Michel. O Discurso: estrutura ou acontecimento. Tradução: Eni P. Orlandi.
– 7ª ed. – Campinas, SP: Pontes Editores, 2015.
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Eni Puccinelli Orlandi et al. – 5ª ed. – Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2014.
PECHEUX, Michel; FUCHS, Catherine. A propósito da Análise do discurso: atualização
e perspectivas (1975). In: GADET, Françoise; HAK, Tony (orgs.). Por uma análise
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Tirinhas
da
Mafalda.
Disponível
em:
https://www.facebook.com/TirinhasDaMafaldaBr/photos/a.346009278796217/17813
63631927434/?type=3&theater. Acesso em 17 de jun. 2019.
Como citar
OLIVEIRA, Kaline Ferreira. No movimento dos sentidos: construções interdiscursivas
em Mafalda. In: GONÇALVES-SEGUNDO, Paulo Roberto; ARAES, Célia Regina;
CASTANHEIRA, Claudia; ISOLA-LANZONI, Gabriel; PENITENTE, Natalia; WEISS,
Winola (orgs). Discurso e poder: teoria e análise. São Paulo: FFLCH/USP, 2020, p.
124-135. DOI: 10.11606/9786587621241
OLIVEIRA, Kaline Ferreira | 2020 | p. 124-135
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A escrita de poemas e o aluno agente: contribuições para o diálogo
A escrita de poemas e o aluno
agente: contribuições para o
diálogo
Luciana TARABORELLI
Universidade de São Paulo
[email protected]
Resumo: Conceber o aluno como agente – aquele que, por
meio da escrita consciente, imprime seu marco na comunidade
- é uma das formas de possibilitar o aprendizado. A proposta
deste trabalho é apresentar as contribuições do gênero poema
para aperfeiçoar a leitura e a escrita e instrumentalizar o aluno
no uso de ferramentas linguísticas para ordenar o próprio
discurso e se comunicar, ou seja, traduzir suas experiências em
linguagem poética Trata-se de um processo consciente,
autorreflexivo e elaborado. Essas reflexões resultam das
pesquisas em curso no Mestrado Profissional em rede –
Profletras /USP. Para ilustrar, analiso três produções discentes,
de alunos do 7 º ano de escola pública estadual, com foco no
conceito de agência: o aluno como sujeito agente do processo
criativo e seu diálogo com as leituras de um gênero que não lhe
é familiar: o poético. A fundamentação teórica está baseada no
dialogismo e na conceituação de gênero, segundo Bakthtin
(1997); na concepção da literatura como direito, conforme
Candido (2004); na concepção de agência, postulada por
Bazerman (2011); e nas características do gênero, segundo
Jolibert (1994). Os resultados apresentados são parciais, pois a
pesquisa está, ainda, em andamento.
Palavras-chave: Gênero poético; Produções
Letramento literário, Aluno agente; Leitura.
discentes;
Introdução
O propósito deste trabalho é apresentar um processo pedagógico
desenvolvido com alunos do ensino Fundamental de nove anos nos anos finais de uma
escola pública estadual da cidade de Campinas, interior de São Paulo. Os anos finais
referem-se aos quatro últimos anos do Ensino fundamental, a saber, de 6º a 9º ano. O
processo pedagógico aqui estudado foi aplicado em uma classe de 7º ano, com o
objetivo de formar leitores competentes, capazes de dialogar com o texto lido, de
modo cognitivo e sensível. O termo “sensível” encaminha o trabalho na direção do
texto literário e, particularmente, do texto poético. O ponto inicial consiste em inserir
os alunos no universo da poesia para fortalecer o letramento literário e estimular o
gosto pelo poema; o ponto de chegada volta-se à produção de textos poéticos
discentes como meio de expressão, numa transição gradual da leitura para a escrita.
TARABORELLI, Luciana | 2020 | p. 136-145
137
Discurso e poder: teoria e análise
Essas atividades permitem, ainda, refletir sobre as contribuições que o gênero
poético traz para o desenvolvimento não só da leitura proficiente, mas também da
escrita dos alunos, seja em relação à escrita de poemas em especial, seja em relação à
escrita dos demais gêneros que circulam no seu cotidiano. Essas contribuições
fomentam o processo de agência. Entende-se por agentes “pessoas que através de
suas escritas têm aumentado e mudado o pensamento e a ação da comunidade”
(BAZERMAN, 2011, p. 12).
À medida que praticam a leitura de poemas, os alunos aprendem a apreciar o
texto literário e a dar sentido ou sentidos a esse gênero textual. Não se trata, pois, de
uma leitura rasa e linear e sim, fazendo uso das palavras de Jolibert (1994), de uma
“leitura em camadas”, pois o processo demanda vários níveis de leitura, o que significa
ler em profundidade e desvendar os diversos recursos linguísticos empregados pelo
poeta para despertar, no leitor, a percepção das variadas intenções do criador do
texto. Essa leitura em camadas não só funciona como instrumento para ampliar a
construção dos sentidos evocados pelo texto, mas também influencia a maneira como
o aluno vai interpretar outros textos – não necessariamente o poético, – e, ainda, dá
subsídios para a compreensão de questões sociais ou particulares nas quais cada
aluno-agente está inserido.
Ao verbalizar ou transpor para o papel as ideias suscitadas pela leitura do
poético, o aluno cria um espaço de posicionamento ante sua realidade e a dos que
estão ao seu entorno, fortalecendo o conceito de agência e, ao mesmo tempo,
ampliando o gradual domínio da língua escrita.
Todo esse processo não decorre isento de resistência nem tampouco, por livre
vontade dos alunos, pois a prática da leitura literária, mais especificamente da leitura
de poemas, não é, para a maioria deles, familiar. Eles estão inseridos em outras formas
de cultura, como, por exemplo, a digital. Alguns alunos demonstram hostilidade aos
textos escritos oferecidos pela escola, recusam-se a ler, quando solicitados. Essa
atitude demonstra certo medo da leitura e é indicadora do escasso contato com livros
nos ambientes externos à escola. Nesse contexto, percebe-se o quanto é importante
a figura do professor como o mediador que proporcionará o contato com a palavra
impressa, de forma a desconstruir a resistência à leitura de textos bem elaborados
como o texto literário.
Para Petit, não basta o contato precoce com o livro e sua presença nas casas ou
o fato de poder frequentar uma biblioteca; “o que atrai a atenção da criança é o
interesse profundo que os adultos têm pelos livros, seu desejo real, seu prazer real”
(PETIT, 1998, p. 141). É preciso, pois, que a escola, como uma das agências
reconhecidas socialmente como promotora da leitura literária, representada pelo
professor, seja a ponte que leva os alunos a descobrir o prazer da leitura. Segundo
Colomer “os alunos necessitam ser encorajados por alguém que lhes ajude de forma
continuada para que realizem essas descobertas.” (COLOMER, 2007, p. 44). E esse
“alguém” é o professor.
TARABORELLI, Luciana | 2020 | p. 136-145
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A escrita de poemas e o aluno agente: contribuições para o diálogo
De nosso ponto de vista, faz-se necessário que o professor reivindique o ensino
do texto literário nas suas aulas, para garantir a literatura como um dos direitos do ser
humano, conforme defende Candido:
[...] são bens incompressíveis não apenas os que asseguram a
sobrevivência física em níveis decentes, mas os que garantem a
integridade espiritual. São incompressíveis certamente a alimentação,
a moradia, o vestuário, a instrução, a saúde, a liberdade individual, o
amparo da justiça pública, a resistência à opressão etc.; e também o
direito à crença, à opinião, ao lazer e, por que não, à arte e à literatura
(CANDIDO, 2004, p.174).
Reivindicar o direito à leitura do texto literário e proporcionar momentos para
que ela aconteça nas aulas de língua portuguesa e no contexto escolar como um todo
é, aos poucos, contribuir para a formação de um leitor literário crítico capaz de pensar
com autonomia frente aos vários discursos sociais e assumir, no percurso de sua
formação, a posição de aluno agente – aquele que, por meio da escrita consciente,
imprime seu marco na comunidade.
O fato de propor atividades voltadas à leitura literária como uma prática
significativa para os alunos, aqui, pode ser entendida como um trabalho que interrelaciona a leitura literária, a escrita e a fala. Muitos efeitos de sentidos decorrentes de
construções imagéticas presentes no poema só são percebidos quando o texto
poético é lido em voz alta, colaborando para a ampliação do letramento no campo
literário. Para COSSON (2006):
O letramento literário, conforme o concebemos, possui uma
configuração especial. Pela própria condição de existência da escrita
literária (...) o processo de letramento que se faz via textos literários
compreende não apenas uma dimensão diferenciada do uso social
da escrita, mas também e, sobretudo, uma forma de assegurar o seu
efetivo domínio (COSSON, 2006, p. 12).
Os apontamentos de Cosson (2006) vão ao encontro da proposta de Cândido
(2004), ao defender a literatura que humaniza: “Se quisermos formar leitores capazes
de experimentar toda força humanizadora da literatura, não basta apenas ler”
(COSSON, 2006, p.29). Precisamos promover uma leitura na qual os alunos aprendam
a explorar todas as potencialidades do texto literário, sua plurissignificação e
complexidade. Levá-los, por exemplo, a conceber suas dimensões e níveis metafóricos
em maior ou menor dimensão, compreender esses processos de construção temática
em um poema, para, desta forma, estarmos promovendo efetivamente o letramento
literário.
1 Leitura: o primeiro encontro com os poemas
Para proporcionar o primeiro encontro dos alunos do 7º ano com o gênero
poético, foi organizada uma proposta de progressão leitora que visava a oferecer-lhes
a leitura de textos que não faziam parte do seu cotidiano, que fugiam à linguagem
coloquial à qual estão acostumados, que apresentavam, segundo Guimarães (1994),
literariedade, isto é, textos que causavam certo estranhamento: os poemas. Esse
TARABORELLI, Luciana | 2020 | p. 136-145
139
Discurso e poder: teoria e análise
caminho de levar ao aluno leituras que não lhe são familiares também é compartilhado
por Colomer:
Os livros a serem compartilhados devem ser aqueles que ofereçam
alguma dificuldade ao leitor para que valha a pena investir neles o
escasso tempo escolar. Se não há um significado que requeira um
esforço de construção, não se pode negociar o sentido; se a estrutura
é sempre convencional, não se aprende a estar atento para antecipar
ou notar as elipses; ou se não há ambiguidades interessantes, não há
porque buscar indícios, reler passagens e discutir as possíveis
soluções (COLOMER, 2017, p. 149).
A metodologia usada para desenvolver o trabalho com poemas consistiu de
uma sequência de atividades de leitura e escrita denominada “Oficina de poemas”. As
oficinas foram desenvolvidas durante as aulas destinadas à leitura, cerca de um sexto
do tempo destinado às aulas de Língua Portuguesa previsto na carga horária.
Os poemas foram apresentados, no primeiro momento, dentro de caixas de
poemas. O nome “caixa de poemas” é simbólico, pois remete à caixa surpresa, à caixa
de presente; a algo que cria uma expectativa sobre o seu conteúdo. A intenção era
realmente presentear os alunos com poemas, uma vez que esse gênero textual era,
para a maioria deles, desconhecido ou associado à infância, a quadrinhas e cantigas,
e à atividade oral. Efetivamente, os alunos não possuíam conhecimento sobre o
gênero.
Quanto à escolha dos poemas que compuseram as caixas, a proposta era partir
de poetas clássicos ou consagrados – no sentido de poetas oficialmente reconhecidos.
Era preciso dar-lhes a oportunidade de conhecer nossa cultura literária. Segundo Ana
Maria Machado apud Colomer:
Cada um de nós tem o direito de conhecer – ou ao menos de saber
que existem – as grandes obras literárias do patrimônio universal (...)
Vários desses contatos se estabelecem pela primeira vez na infância e
na juventude, abrindo caminhos que podem ser percorridos depois
ou não, mas já funcionam como sinalização de um aviso: “esta história
existe...está a meu alcance. Se quiser, sei aonde ir buscá-la”(
COLOMER, 2007, p.152).
Como o objetivo principal era levar os alunos a conhecer, ler e escrever poemas
e, consequentemente, ampliar seu letramento literário ao mesmo tempo que a
progressão leitora, optou-se pela valorização da literatura brasileira. As caixas
continham poemas de quatro criadores modernistas: Cecília Meireles, Manuel
Bandeira, Mário Quintana e Vinícius de Moraes.
Os exercícios de leitura poética valorizaram diversas formas de leituras, a saber:
a leitura coletiva: um aluno lia para a sala; todos liam juntos; o professor lia para os
alunos. A leitura sempre acontecia com a mediação do professor, principalmente
quando era feita a leitura para explorar os aspectos rítmicos do poema. Por último, a
leitura seguia o ritmo individual. Foi essencial proporcionar um tempo para o contato
pessoal com o poema, deixar o aluno à vontade para folhear a coletânea, lê-los
sozinho; interpretá-los, perceber o trabalho com as palavras. Conhecer os poemas foi
uma experiência de descoberta, os alunos atribuíram sentido a essa leitura com a qual
TARABORELLI, Luciana | 2020 | p. 136-145
140
A escrita de poemas e o aluno agente: contribuições para o diálogo
se comunicam de uma maneira nova, muito diversa das narrativas que estavam
acostumados a ler.
2 Escrita de poemas: recriar o mundo com palavras
Recriar o mundo com palavras é uma das formas de possibilitar o aprendizado.
É grande a contribuição do texto poético para melhorar não só a capacidade de
realizar a leitura em várias dimensões, mas também a possibilidade de o aluno adquirir
o domínio da própria língua materna, ao desenvolver exercícios de escrita poética e,
por meio dela, expressar sua personalidade, sua visão de mundo, descobrir-se, saber
utilizar as ferramentas linguísticas para ordenar seu discurso e se comunicar, ou seja,
traduzir suas experiências em forma de linguagem poética. Trata-se de um processo
consciente, autorreflexivo e elaborado de exteriorizar, em versos, os seus desejos e
pontos de vista. Para Colomer:
Por um lado, o trabalho linguístico e literário conjunto permite
apreciar as possibilidades da linguagem naqueles textos sociais que
o propõem deliberadamente, como é o caso da literatura. Por outro,
a inter-relação se produz através de formas mais indiretas, já que o
contato com a literatura leva as crianças a interiorizar os modelos do
discurso, as palavras ou formas sintáticas presentes nos textos que
leem (COLOMER, 2007, p. 159).
Ao defender o conceito de agência, Bazerman afirma que é necessário
trabalhar com os gêneros textuais, mas alerta para que o esse trabalho não se baseie
apenas no constructo formal nem esteja unicamente preocupado com formas
linguísticas. Os gêneros servem para dar forma às necessidades de comunicação; para
contemplar as ações, intenções e situações humanas. “Esse caráter dinâmico, interativo
e agentivo do uso dos gêneros escritos significa que no centro de nossa teoria devem
estar pessoas que querem realizar coisas através da escrita em um mundo de
mudança” (BAZERMAN, 2011, p. 10). Os poemas discentes analisados neste trabalho
expressam o resultado do trabalho com o gênero, conforme postula o autor.
O ensino do gênero poético não está voltado unicamente para sua forma
composicional, a intenção não é formar alunos escritores de sonetos, para citar aqui
apenas uma das formas clássicas em que o poema pode se apresentar, mas, a partir
das várias formas composicionais do poema, desenvolver a habilidade escritora que,
considerando o gênero em questão, vai utilizar diferentes recursos linguísticos para
dialogar. Assim, valores como originalidade, criatividade personalidade e
posicionamento individual surgirão, favorecidos pelo gênero.
Sabemos que a escrita é um trabalho árduo para os alunos e com o poema não
é diferente, mas devido ao fato de terem certa liberdade para criar estrofes na
quantidade que desejassem e, também, pelo fato de passar a impressão de ser mais
fácil escrever um poema que escrever uma narrativa, os alunos sentiram confiança no
processo de escrita. Cada rima feita era um sinal de comemoração, liam para os
colegas e pediam ajuda para a elaboração das rimas. Assim, pouco a pouco, o poema
ia tomando forma. Os alunos foram orientados, durante as oficinas, a produzir seus
TARABORELLI, Luciana | 2020 | p. 136-145
141
Discurso e poder: teoria e análise
textos sobre uma das três temáticas: sonhos, amizade e cotidiano. Observemos como
esse processo se concretizou na produção discente:
Não é justo e certo
Não é justo isto:
Um homem mexendo no lixo.
A sociedade vive sem sorriso
Essa gente não tem juízo.
Isso não é certo
Alguns não têm teto
O governo não faz o correto
Isso é ruim para mim e para o meu neto
(Aluno A)
Os exercícios de leituras poéticas foram essenciais na formação dos alunos
como sujeitos-autores, ao trazerem seu repertório e suas experiências pessoais para o
texto poético. Nota-se uma apropriação e compreensão da forma composicional do
poema, ao compô-lo em estrofes, além de um cuidado com a escolha lexical de modo
que as palavras construíssem a rima e, concomitantemente, revelassem o
posicionamento socioideológico do aluno.
O poema também apresenta traços dialógicos com o discurso do outro que,
neste caso, provavelmente seja o poema O bicho, de Manuel Bandeira, um dos que
constituía o conjunto das caixas de poemas. O uso reiterado do advérbio de negação
não, presente já a partir do título remete ao uso do mesmo advérbio no poema O
bicho; já a palavra homem destacada pelo poeta em uma estrofe de verso único,
recebe também destaque no poema do aluno, ao ser deslocado para a primeira
estrofe.
Ao ler o título Não é justo e certo, o leitor é levado a se questionar sobre o que
não seria justo e certo; resposta que se constrói ao longo do poema, a partir do
segundo verso Um homem mexendo no lixo que introduz as diversas situações de
injustiça social apontadas no poema.
Em relação à palavra lixo, percebe-se que dialoga diretamente com o poema
de Bandeira, principalmente por sintetizar a cena descrita pelo poeta. É interessante
observar que a palavra lixo não aparece no poema O bicho, mas o aluno consegue
fazer uma leitura atenta do poema de Bandeira, a ponto de sintetizar a situação
apresentada pelo poeta (pessoas que se alimentam do lixo). No poema, além da fome,
são abordados outros problemas como a falta de moradia, retomada apelo aluno no
verso Alguns não têm teto. Portanto, o poema do aluno-sujeito agente que vivencia
em seu cotidiano as mais diversas injustiças faz de sua escrita um instrumento que
revela, poeticamente, as situações que ele desaprova e deseja que mudem. Não se
trata de reproduzir o discurso bandeiriano, mas de manter com ele uma relação
dialógica ativa, reflexiva e crítica. Em relação às estrofes, o poema composto pelo
aluno apresenta dois quartetos com versos irregulares e rimas toantes em todos os
versos.
Abaixo segue outra produção discente na qual se observa que o trabalho com
o poema em sala de aula desperta para uma consciência do ato de escrever.
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A escrita de poemas e o aluno agente: contribuições para o diálogo
Cotidiano
Não é justo nesse mundo
Tanta gente passando fome.
Parece um abismo profundo.
Isso não tem nome.
Preconceito ainda existe.
Em todos os lugares ainda se vê.
Essa realidade é muito triste
Não tem como descrever.
(Aluno B)
O poema Cotidiano, assim como o poema Não é justo e certo, também
apresenta, agora de forma menos explícita, dialogismo com o poema O bicho de
Manuel Bandeira. O segundo verso tanta gente passando fome é reflexo dos versos
bandeirianos: Vi ontem um bicho/Na imundície do pátio/ Catando comida entre os
detritos/ O bicho, meu Deus, era um homem. Cena que se repete no cotidiano das
grandes cidades. O aluno-agente demonstra consciência do ato de escrever, não só
por usar da escrita para expressar indignação com a injustiça social, mas,
principalmente nos últimos versos de cada estrofe: Isso não tem nome e Não tem como
descrever. Ele assume não encontrar palavras que apontem tamanha injustiça e deixa
isso claro, na forma de metalinguagem. Quanto aos elementos composicionais, o
aluno B também opta por dois quartetos, com versos irregulares e rimas toantes.
Mundo Real
Não é justo isto
Muitos cometerem suicídio
ou estarem em hospício
Que horrível isso.
Se cortar é um vício
Que horrível isso.
Queria que a realidade
fosse um mundo fictício.
(Aluno C)
Esse poema aborda problemas do mundo real, conforme indica título,
portanto, insere-se na temática cotidiano. O suicídio faz parte do cotidiano dos alunos,
por ser noticiado na mídia, muitas vezes, em consequência de doenças como
depressão; outras vezes, em consequência de jogos que circulam pelas redes sociais
e impõem desafios ao participante, como o mais conhecido pelos adolescentes, o
“Baleia azul”1. A automutilação2 (também chamada de cutting) pode estar relacionada
O termo jogo da Baleia Azul refere-se a um suposto fenômeno surgido em uma rede social russa ligado
ao aumento de suicídio de adolescentes. O jogo consiste em 50 desafios, distribuídos diariamente por
um “curador” em grupos fechados de redes sociais. Todo dia, às 4h20, uma mensagem com a nova missão
é publicada. O grau de seriedade é variável. No começo, as tarefas são mais simples, como assistir a um
filme de terror sozinho ou desenhar uma baleia numa folha. Aos poucos, elas vão ficando cada vez mais
perigosas: os participantes devem tatuar uma baleia no braço com uma faca. A 50ª e última incentiva nada
menos é que o suicídio. http://super.abril.com.br/mundo-estranho/jogo-suicida-baleia-azul-chega-aobrasil/ (acesso em 31/12/2018).
2
https://novaescola.org.br/conteudo/4993/cutting-como-lidar-com-uma-crianca-que-se-automutila.
(acesso em 31/12/18)
1
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Discurso e poder: teoria e análise
à dificuldade que o adolescente tem de lidar com os próprios sentimentos, as
dificuldades pelas quais passa na escola, como o Bullying.
Temas presentes no cotidiano dos adolescentes como suicídio, doenças
mentais e a automutilação são vistos pelo eu lírico como atitudes horríveis. Podemos
interpretar como algo triste e condenável, uma vez que, no último quarteto, é
apresentado o desejo de que essas atitudes não fizessem parte do mundo real, mas
de um mundo não real, fictício. Esse desejo é enfatizado pelo uso da forma verbal no
subjuntivo.
Em relação à adequação ao gênero, o conteúdo e a linguagem poética
utilizados apresentam uma unidade de sentido. Nota-se a organização em versos e
estrofes adequados; as rimas ocorrem em posições diferentes em cada quarteto,
sendo emparelhadas, no primeiro e interpoladas no segundo. Não há regularidade
em relação à classificação das rimas, os alunos desconhecem esses conceitos. Repetese a expressão que horrível isso, o que enfatiza poeticamente o olhar do autor sobre
assuntos tão sérios.
O poema, apesar do predomínio da linguagem denotativa, aproxima-se da
conotação abstrata, ao contrapor mundo real x mundo fictício.
As marcas de autoria são notadas no emprego do verbo em primeira pessoa e
no juízo de valor reforçado pelos versos Não é justo isso / que horrível isso e no desejo
de que as atitudes horríveis não fizessem parte do mundo real: queria que a realidade
fosse um mundo fictício. No limite, seria possível interpretar a presença da utopia –
termo que o jovem poeta sequer deve conhecer, mas que me ocorre, diante da
proposta quase impossível que ele propõe.
A quarta produção poética a ser analisada apresenta estrutura composicional
diferente dos anteriores. A técnica, aplicada durante as oficinas de poemas consistiu
em trabalhar com parte da estrutura do texto fixa, para os alunos completarem as
demais partes (apresentadas no poema em negrito).
Tu Dizes
Tu dizes sonhar
e logo
penso em brincar
Tu dizes mentir
e logo
penso em partir
Tu dizes morrer
e logo
penso em viver
Tu dizes descansar
e logo
penso em viajar
Tu dizes isto
e logo
penso naquilo.
(Aluno D)
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A escrita de poemas e o aluno agente: contribuições para o diálogo
O que chama a atenção é o padrão seguido para compor o 3º verso de todas
as estrofes: penso em: verbo pensar seguido da preposição em; na última estrofe,
contraída com o pronome aquilo. Penso em três aproximações, inspiradas no que
Lewin (1975) denomina acoplamentos: 1. o fato de a expressão penso em estar na
mesma posição em todos os últimos versos; 2. por exercer a mesma função sintática;
3. por reiterar a mesma classe gramatical.
Na última estrofe, nota-se, ainda, o caráter dialógico do poema pelo uso dos
pronomes isto e aquilo que nos remete ao poema (e à obra) Ou isto ou aquilo, de
Cecília Meireles. Esse poema estava em uma das caixas usadas nas oficinas de leitura.
O aluno provavelmente se inspirou no poema ceciliano, embora ele trate de outra
temática, ao utilizar as palavras isto / aquilo saindo do padrão de rimas utilizadas nas
estrofes anteriores, formadas por verbos no infinitivo (-ar, -er, -ir). Suponho que o
letramento literário, ampliado pelas oficinas destinadas à leitura de poemas,
influenciou a escrita discente.
Considerações finais
A análise do corpus, em termos de autoria, mostra que os alunos se apresentam
como sujeitos–autores, ao trazer seu repertório e suas experiências pessoais para o
texto poético. As atividades de leitura, escrita e análise de poemas não só
possibilitaram o reconhecimento da estrutura composicional do gênero poético, mas
também o acesso à leitura literária para fruição e criação artística. Os alunos
conheceram grandes autores e demonstraram ter se apropriado de elementos dos
textos canônicos, uma vez que as criações discentes apresentam traços dialógicos em
interação com os poemas lidos.
O trabalho com o poema em sala de aula também proporcionou um processo
de ensino aprendizagem significativo, por ampliar ao letramento literário,
proporcionar a progressão leitora, ampliar a visão léxico-semântica, devido às escolhas
linguísticas necessárias à construção do poema e valorizar a questão da autoria com
ênfase no aluno agente.
Os poemas apresentam pontos de vista críticos sobre fatos do cotidiano e um
posicionamento marcado, em relação a injustiça social, fome, miséria, morte. Esses
pontos de vista ilustram o conceito de agência e favorecem o diálogo, pois a
motivação do processo de autoria leva os alunos a criar poemas e a se tornarem
interlocutores de outros poetas e de seus [futuros] leitores.
Pelo que pudemos observar, o percurso de leitura de poemas durante as
oficinas de poemas contribui para um processo de formação de leitores e escritores
críticos ainda em formação. As produções poéticas apresentadas aqui são iniciais e os
resultados parciais, pois as pesquisas seguem em andamento. O que podemos afirmar
é que se trata de um trabalho que inter-relaciona a leitura literária, a escrita e a fala,
uma vez que muitos efeitos de sentidos e construções imagéticas presentes no poema
só são percebidos quando o texto poético é lido em voz alta. O processo encaminha
a formação do leitor literário crítico e autônomo, que consegue depreender os
TARABORELLI, Luciana | 2020 | p. 136-145
145
Discurso e poder: teoria e análise
diferentes níveis de significado não só do poema, mas de outros textos que venha a
ler, nas mais diversas práticas sociais.
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COLOMER, Teresa. Andar entre livros. São Paulo. Global Editora, 2007
COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2018
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JAKOBSON, Roman. Linguística e Poética. In: Linguística e Comunicação. São Paulo:
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Walkiria M. F. Settineri, Bruno C. Magne. Porto Alegre: Artmed, 1994. Volume II.
LEVIN, Samuel. Estrutura linguística em poesia. Trad. José Paulo Paes. São Paulo:
Cultrix/Edusp, 1975.
MEIRELES, Cecília. Ou Isto Ou Aquilo. São Paulo: Global, 2012.
PETIT, Michèle. Os jovens e a leitura: uma nova perspectiva. Tradução de Celina Olga
de Souza. São Paulo: Ed. 34, 2009.
Como citar
TARABORELLI, Luciana Ferreira. A escrita de poemas e o aluno agente:
contribuições para o diálogo. In: GONÇALVES-SEGUNDO, Paulo Roberto; ARAES,
Célia Regina; CASTANHEIRA, Claudia; ISOLA-LANZONI, Gabriel; PENITENTE,
Natalia; WEISS, Winola (orgs). Discurso e poder: teoria e análise. São Paulo:
FFLCH/USP, 2020, p. 136-145. DOI: 10.11606/9786587621241
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Perspectiva conceitual e prática do ensino de sujeito gramatical em livros didáticos
Perspectiva conceitual e prática
do ensino de sujeito gramatical
em livros didáticos
Murilo de Castro TEVES
Universidade de São Paulo
[email protected]
Resumo: Este texto tem como objetivo discutir os resultados
obtidos pela análise do enquadramento da categoria gramatical
sujeito nos livros didáticos aprovados no Programa Nacional do
Livro e Material Didático (PNLD 2017 e 2018). O corpus de
pesquisa é composto por 7 livros, dos quais 4 são do Ensino
Fundamental: Anos Finais – “Para Viver Juntos”, “Português
Linguagens”, “Projeto Teláris” e “Singular e Plural” - e 3 são do
Ensino Médio – “Esferas das Linguagens”, “Se Liga na Língua” e
“Ser Protagonista”. Para isso, serão enfocadas duas dimensões
(i) a conceitual, em que serão apresentadas as definições e as
tipologias presentes em cada coleção, buscando, assim,
verificar possíveis afastamentos ou aproximações tanto com a
gramática tradicional quanto com a gramática funcionalista; (ii)
a prática, em que serão discutidos os tipos de exercícios
propostos, de forma a debater seu potencial para a
conscientização do aluno no que tange à produção e à
reconstrução de significado. Depreendemos, quanto à
dimensão conceitual, a tendência de restrição de sujeito a
poucos critérios, o que não contempla toda a complexidade da
categoria, mas não se afasta da literatura linguística; e, quanto à
prática, detectamos um número exacerbado de exercícios que
não fornecem oportunidade para a reflexão sobre a significação
da categoria, ainda que haja um grupo de atividades voltadas a
verificar o significado atribuído à frase pelos diferentes tipos de
sujeito.
Palavras-chave: Sujeito; Livro Didático; Funcionalismo; Ensino;
Gramática.
Introdução
Neste artigo, analisamos sete livros didáticos de língua portuguesa aprovados
pelo Programa Nacional do Livro e Material Didático (PNLD) 2017 e 2018, no que
tange à sua abordagem sobre a categoria gramatical sujeito a partir dos seguintes
critérios: (i) grau de aproximação e distanciamento das definições de sujeito em
relação às teorias linguísticas; (ii) grau de autonomia da categoria sujeito dentro dos
livros; (iii) grau de aproximação do ensino a um polo formal e classificacionista, ou ao
polo discursivo/textual, orientado à (re)construção do sentido.
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Discurso e poder: teoria e análise
Aqui, serão apresentados os dados resultantes dessa análise, que se deu tanto
no âmbito dos modelos teóricos utilizados para a definição do recurso gramatical
sujeito, quanto nos exercícios empregados, segundo suas categorias.
A análise do modelo de ensino empregado embasa-se na vertente
funcionalista da linguística e foi guiada pelo critério da aproximação ou distanciamento
das abordagens didáticas à competência linguística do estudante e às teorias
linguísticas que embasaram tanto estudo dessa competência quanto à proposta de
ensino.
Observamos, também, o grau de independência do recurso dentro do livro, ou
seja, se há um capítulo que trata exclusivamente do ensino da categoria gramatical considerado de alta independência; se é ensinado em conjunto com o predicado,
considerado de média independência; e se está incluso em um capítulo comumente
chamado de “termos essenciais da oração” (ou uma versão similar que conserva o
mesmo significado), em que é ensinado ao lado do predicado, do objeto e do
predicativo, apresentando baixa independência. O estudo dos exercícios empregados
foi realizado segundo uma tipologia que será apresentada adiante. O corpus utilizado
para tal considera todas as atividades presentes no capítulo em que a categoria sujeito
é tematizada.
O estudo do modelo de ensino gramatical é empreendido por mais de uma
corrente da Linguística, entretanto, escolhemos o Funcionalismo, por conta da
intenção de produzir nos alunos uma visão crítica, domínio ao utilizar os recursos da
gramática e consciência dos efeitos de sentidos na produção e interpretação de textos
orais ou escritos. Buscamos, portanto, “trabalhar com a competência comunicativa do
falante” (TRAVAGLIA, 2002, p. 156), que servirá, também, de critério avaliativo.
1 O ensino de gramática normativa na escola
No contexto escolar brasileiro, o ensino de gramática está passando por
momentos de dificuldades quanto à sua efetividade. A isso, vários fatores podem ser
identificados, dentre eles, o modo como o ensino é proposto pelas escolas, a relação
do aluno com o material que está estudando e as estratégias utilizadas pelos autores
dos livros didáticos. Aqui serão expostos, de forma breve, pressupostos teóricos e
práticos quanto às mudanças que entendemos ser devidas ao ensino de gramática nas
escolas.
Segundo a pesquisa de Desiderato (2006, p. 1056) sobre o interesse dos alunos
nas aulas de português, a opção “não demonstram interesse” teve o maior número de
votos. A isso, podemos atribuir, dentre outras causas, o modelo empregado nas
escolas e nos livros utilizados, que parece contribuir com a mecanicidade e a
repetitividade de um ensino que separa seu objeto de estudo dos sentidos e
atribuições práticas que ele pode ter, em uma relação dialética entre o tipo de
conhecimento cobrado nos vestibulares e o que é ensinado no material didático.
Consoante Gonçalves-Segundo (2017), o ensino de língua portuguesa passou
por uma reorientação. Partiu de um modelo que privilegiava estratégias de ensino
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Perspectiva conceitual e prática do ensino de sujeito gramatical em livros didáticos
associadas à transmissão de normas advindas da chamada “variação culta da língua”,
com produções textuais que se baseavam em modelos desconectados da realidade
dos alunos e interpretação de texto que não despertava o olhar crítico por estar voltada
“para a depreensão de um conteúdo potencialmente único e plenamente intencional”
(GONÇALVES-SEGUNDO, 2017, p. 141). Contudo, ocorreu uma reorientação do
ensino para um modelo que traz, além do trabalho com a norma culta, a possibilidade
de o discente aprender a produzir gêneros textuais distintos e associados a sua
realidade, assim como uma visão crítica conectada à interpretação textual. Este avanço
não compreendeu, contudo, o estudo do(s) sentido(s) que os recursos gramaticais
atribuem à oração em que estão inseridos.
Deste modo, baseados nos estudos de Travaglia (2002, p. 136), assumimos a
postura de “a) ensinar a língua, o que resulta em habilidade de uso da língua e b)
ensinar sobre a língua, o que resulta em conhecimento teórico (descritivo e explicativo)
sobre a língua e pode desenvolver a habilidade de análise de fatos da língua.” O
ensino de língua não pode se ater, portanto, apenas ao “ler e escrever […] e a
expressar-se corretamente” (VIEIRA, 2017, p. 65), e sim, ser voltado à competência
linguística do falante, permitindo que este possa usar a língua de forma consciente e
eficiente para gerar e compreender os efeitos de sentido que tencionará alcançar e
com que se deparará.
Para que a competência comunicativa do falante seja trabalhada, faz-se
necessário que diferentes variações contemporâneas da língua sejam abordadas em
contexto de aula, como discorre Sousa (2012, p. 683)1, uma vez que isso possibilita
que os alunos trabalhem com dialetos e gêneros textuais com que costumam ter
contato, além da promoção do exercício de cidadania e da diminuição do preconceito
linguístico, que resultaria da mudança de visão sobre as variações. Isso é necessário
porque o discurso não pode ser dissociado do contexto sócio-histórico em que está
inserido2. Uma vez que os significados podem se expandir e/ou mudar defronte novas
realidades, assim como novos signos eventualmente são criados, a semântica e o
léxico são constantemente atualizados, o que torna proveitoso, apesar de complexo,
um modelo de ensino que se adapte às mudanças.
Por fim, Vieira (2017) propõe três eixos que corroboram com o que foi aqui
explicitado anteriormente e que servem de guias metodológicos para o
aprimoramento do ensino de gramática:
Trata-se de focalizar fenômenos linguísticos como: (i) elementos que
permitem a abordagem reflexiva da gramática; (ii) recursos
expressivos na construção do sentido do texto; e (iii) instâncias de
manifestação de normas/variedades (VIEIRA, 2017, p. 71).
Dessa forma, cremos, será possível ensinar, conjuntamente aos conhecimentos
léxico-gramaticais atualmente abarcados pelos materiais didáticos, as relações
Sousa traz considerações sobre um tipo de visão equivocada acerca dos dialetos, que, por terem sofrido
uma separação social, são vistos como “falhas” e não como “diversidade”.
2
Gonçalves-Segundo (2017) indica que os estudos empreendidos tanto pela Linguística Textual e Análise
do Discurso trouxeram a noção de que o texto é um evento comunicativo que se encontra ancorado no
contexto sócio-histórico em que está inserido, não podendo ser dele dissociado.
1
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Discurso e poder: teoria e análise
semânticas e discursivas que compõem os textos, permitindo que o aluno possa
produzir e avaliar os possíveis efeitos de sentido das estruturas gramaticais,
possibilitando sua participação ativa na produção de gêneros diversos e na
interpretação crítica do que será consumido.
2 Discussão acerca da categoria gramatical sujeito
O recurso gramatical sujeito foi analisado segundo a vertente sistêmicofuncional da linguística, baseada, dentre outros, em Taverniers (2005) e Ataíde (2008);
enquanto o estudo de sujeito voltado à gramática do português brasileiro foi guiado
pelo trabalho de Castilho (2010).
O sujeito se mostra uma categoria gramatical muito resistente a definições
categóricas, já que possui diversos traços que atuam conjuntamente na sua
instanciação. Por conta disso, Taverniers (2005) destaca que se trata de uma categoria
que precisa ser pensada em termos de protótipos. Por conta da possibilidade de
apenas alguns traços serem ativados, ocorrem sujeitos menos típicos (ou marginais).
A dificuldade da definição de sujeito se dá justamente pela possibilidade de
essa categoria ser utilizada sem que todas suas características estejam atualizadas. Isso
se dá, por conta da “natureza tríplice de tudo aquilo que é reconhecido como sujeito”
(CASTILHO, 2010, p. 289). Tanto Castilho (2010) quanto Ataíde (2008) separam a
definição de sujeito em 3 propriedades: a sintática, a semântica e a discursiva. No caso
do corpus analisado, percebemos a tendência de trazer o critério semântico separado
dos demais, como uma das funções que o elemento pode exercer na oração.
As gramáticas tradicionais em que nos baseamos para entender as definições
empregadas nos livros selecionados tratam ou do critério sintático ou do discursivo.
Desse modo, temos uma seleção do critério que determinará se uma ocorrência é ou
não sujeito da oração, moldando os exercícios segundo a definição escolhida e, por
conseguinte, limitando a percepção do aluno acerca do potencial significativo da
categoria.
Se utilizarmos o critério temático, que corresponde à propriedade discursiva do
sujeito, recairemos em uma limitação, como aponta Ataíde (2008). Utilizamos a
definição de Ventura e Lima-Lopes (2002):
O Tema é indicado pela posição que ocupa na oração. Ao falarmos
ou escrevermos em português [...], sinalizamos que um item é
temático colocando−o em posição inicial. Portanto, o Tema é o
elemento que funciona como o ponto−de−partida da mensagem.
(VENTURA E LIMA-LOPES, 2002, p. 2).
Neste caso, formulações comuns à oralidade3 podem confundir as definições
das gramáticas tradicionais, como no tuíte abaixo: “titanic eu assisti ontem”.
Optamos por retirar os exemplos de produções não prescritivas das redes sociais, mais especificamente,
do Twitter, porque nelas ocorrem e ficam registradas produções que podem destoar das regras
gramaticais. Os adolescentes fazem uso rotineiro de redes sociais e estão habituados aos registros dessas
plataformas, o que impacta diretamente em seus modelos de escrita.
3
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Perspectiva conceitual e prática do ensino de sujeito gramatical em livros didáticos
Figura 1. Exemplo de critério discursivo do sujeito
Fonte: https://twitter.com/vampirapirada/status/375664300859207680
Aqui, o termo da oração que está ocupando a função de tema é “titanic”, o que
nos levaria a conceituar, segundo a definição tradicional, “titanic” como sujeito da
oração, apesar de sintaticamente ele ser o objeto. Contudo, o verbo concorda com
“eu”, e o que motiva o deslocamento do substantivo próprio para a posição tópica é a
“tentativa de referenciar o termo sobre o qual se dá a importância do enunciado”
(ATAÍDE, 2002, p. 50), resultando em uma confusão entre a função de tópico e a função
de sujeito.
O sujeito pode ser enunciado antes ou depois do verbo, porém, “há uma
ordem direta, considerada regular, lógica, analítica, considerada como a ordem base”
(CASTILHO, 2010, p. 290), e essa ordem (SVP = Sujeito-Verbo-Predicado), que tende
a prevalecer em detrimento da ordem indireta, prevê que o sujeito anteceda o verbo,
de modo a propiciar a confusão classificatória em orações como a exemplificada. O
que se pode pontuar é que o sujeito tende a “identificar o assunto da oração” (ATAÍDE,
2008, p. 60), o que faz com que seja prototípica a relação entre ser sujeito e ser tema,
mas isso não constitui uma regra.
Quanto ao critério semântico, Castilho (2010) pontua que o sujeito tende a
assumir a posição de agente da oração em que está inserido, mas defende que há
verbos que fazem com que o sujeito, mesmo em posição temática e na ordem direta,
não assuma agentividade, como no tuíte:
Figura 2. Exemplo de critério semântico do sujeito
Fonte: https://twitter.com/renatsf/status/1176634337007194113
TEVES, Murilo de Castro | 2020 | p. 146-170
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Discurso e poder: teoria e análise
Tanto na oração com “cortei”, quanto na com “torci” é possível perceber que o
sujeito – neste caso, “eu” - não assume função agentiva, sendo afetado pelos eventos
descritos. Há, portanto, uma diferença semântica em orações sintaticamente similares.
Finalmente, o critério sintático de sujeito “é o critério que marca as relações
paradgmática e sintagmática das palavras com o verbo” (ATAÍDE, 2008, p. 57).
Segundo esse aspecto, classifica-se como sujeito o recurso gramatical que mantenha
a concordância com o verbo.
Figura 3. Exemplo de citério sintático do sujeito
Fonte: https://twitter.com/loukamaagirl/status/1176122273373274113
Neste tuíte, temos um caso em que é possível confundir a determinação da
categoria que está ocupando a posição de sujeito por motivos de tanto “ela” quanto
“ele” estarem concordando com o verbo amar, que está na 3ª Pessoa do Singular, de
modo a permitir a concordância com qualquer um dos pronomes. Na primeira
ocorrência - “ela ama ele” - intuímos que o sujeito gramatical é “ela” por conta da
ordem direta da oração, o que demonstra a necessidade de considerar uma
pluralidade de critérios para a determinação do sujeito gramatical.
Há, dentre os livros analisados, apenas um que trata o aspecto referencial de
sujeito, o qual pode ser definido como a possibilidade de localizar ou não o elemento
extra ou intratextual ao qual o sujeito está conectado, podendo ser dêitico ou fórico,
construindo entidades, portanto, endofóricas ou exofóricas.
A questão da observação do contexto da oração é um dos pontos em que os
livros analisados mais possuem restrição em seu ensino.
Em frases simples, soltas e preparadas para servirem de exemplos do aspecto
linguístico que está sendo ensinado, o sujeito é facilmente identificável, o que ocorre
normalmente em exercícios de identificação, nos quais o aluno retoma os
ensinamentos recém-adquiridos para localizar a categoria gramatical ensinada na
oração ou trecho-base. Entretanto, em contextos de uso, temos a ocorrência constante
de enunciados complexos pragmaticamente ancorados, nas quais é preciso
considerar tanto o contexto textual imediato de uso dos elementos gramaticais (como
a função dêitica), quanto ao contexto social em que estão inseridos. Pode-se enunciar
verbalmente orações cujo referente só pode ser identificado por conta do contexto.
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Perspectiva conceitual e prática do ensino de sujeito gramatical em livros didáticos
Podemos observar um exemplo no tuíte abaixo, em que a primeira oração tem
um sujeito com referente não identificado. Neste caso, basta continuar a leitura para
localizar o referente de “ela” - que também ocupa a posição de sujeito gramatical. Sem
a continuação do texto, as possibilidades de referentes seriam tantas que o leitor teria
dificuldade em localizá-lo.
Figura 4. Exemplo de referencialidade do sujeito
Fonte: https://twitter.com/caminaly/status/1175393957666263040
A gramática tradicional, e os livros didáticos que nela se baseiam, ensinam o
sujeito, muitas vezes, em exemplos restritos, exigindo pouca reflexão do estudante e
distantes de qualquer tipo de consideração sobre o contexto de uso. O ensino de
gramática se mostra favorável a um modelo que utilize diferentes contextos, com
exercícios que levem o discente à reflexão quanto aos diferentes efeitos de sentido
que a categoria pode gerar, tanto em contextos gramaticais diferentes quanto em
gêneros textuais distintos.
Com base no feixe de características que delimitam o sujeito prototípico,
analisamos a proximidade e o distanciamento das definições teóricas empregadas na
definição da categoria gramatical pelos livros. O diagnóstico aponta a tendência à
restrição a um feixe de característica, concordância ou tema, ou a restrição a esses dois
mesmos feixes. Isso demonstra predileção por definições com base na gramática
normativa e tradicional, uma vez que tais feixes são empregados em gramáticas
influentes, como a de Bechara (1999) e a de Cunha & Cintra (1985), apesar de não
apresentarem um total distanciamento das teorias linguísticas.
Esses são os traços de características trazidos pelos livros que selecionamos.
Em nossa análise, percebemos que o sujeito possui outros feixes característicos que
poderiam ser abordados para uma compreensão mais completa da categoria, de
modo a totalizar um total de 5 características que podem ser ou não ativadas nas
ocorrências em que se busca determinar o sujeito.
Entendemos, deste modo, que o sujeito prototípico: (i) tende a realizar a ação
enunciada pelo verbo (causalidade); (ii) está conectado e ativa, na norma padrão, a
concordância com o verbo (concordância); (iii) tende a construir entidades, referentes
exofóricos ou endofóricos (referencialidade); (iV) tende a ocupar a posição de tema da
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153
Discurso e poder: teoria e análise
oração (topicalidade); (V) constituem-se como argumentos externos do verbo
(predicação). O tuíte abaixo traz um exemplo típico na oração Eu comprei um livro:
Figura 5. Exemplo de sujeito prototípico
Fonte: https://twitter.com/AnaLuisaafm/status/1175116406058356736
Estes exemplos servem de base para percebermos que é perigoso nos
restringirmos a um único aspecto que defina o sujeito, já que a identificação deste
elemento tende a demandar a consideração de um feixe de processos, e não de uma
característica geral. Quando são considerados mais de um aspecto para identificar
essa categoria gramatical, torna-se possível trabalhar com a diversidade de potenciais
de significado dos sujeitos, manipulando cada um desses traços e discutindo,
reflexivamente, com os alunos tanto o funcionamento da língua quanto os impactos
referentes às diversas alternativas de usos.
3 Análise do uso de sujeito gramatical nos livros didáticos
Foram analisados 7 livros, quatro do Ensino Fundamental – Anos Finais (a que
chamaremos de EF) e três do Ensino Médio (a que chamaremos de EM), os quais foram
divididos segundo o conceito de sujeito empregado como definição teórica.
Escolhemos esse modo de separação por conta da grande similaridade de definições
de sujeito das quais os livros fazem uso, e o corpus foi selecionado justamente por
compreender esses grupos de definições. São elas: a definição segundo seu caráter
discursivo, empregada pela gramática de Cunha & Cintra (1985); segundo seu critério
sintático, compreendida pela gramática de Bechara (1999); e os livros que utilizam
ambas as definições anteriores. Apenas um dos livros abarca a definição de sujeito
discursivo, que, apesar de destoar dos outros livros analisados, está inserido na
categoria “Ambas as definições”, uma vez que se baseia nas definições de ambos os
teóricos.
Dentre os livros analisados, percebemos que as definições eram
compartilhadas por mais de uma obra, de tal forma que pudemos separá-los em 3
grupos. Fizemos um recorte do corpus e selecionamos livros que trazem as categorias
utilizadas pelos grupos. Eles são exemplares da diversidade de definições, dado que
dois livros utilizam a mesma definição que Cunha & Cintra, dois, a mesma que Bechara;
e três, ambas as definições. Discutiremos como os livros se apropriam dessas
gramáticas, e foi o modo de apropriação que nos levou a selecionar o corpus.
O ensino de sujeito norteado apenas por estes feixes de características se
mostrou insuficiente, uma vez que 57.14% dos livros didáticos utilizam apenas uma das
TEVES, Murilo de Castro | 2020 | p. 146-170
154
Perspectiva conceitual e prática do ensino de sujeito gramatical em livros didáticos
características elaboradas por Castilho como definição, enquanto os outros 42.85%
fazem uso de duas características por ele destacadas. Apresenta-se, assim, uma
limitação do potencial significativo desse recurso, uma vez que a restrição a apenas
uma ou duas características não abarca todo o escopo significativo que essa categoria
possui, fazendo com que o aprendizado do aluno fique restrito a um ponto de vista
menor do que o compreendido pelo recurso gramatical.
Os livros didáticos analisados utilizam duas definições presentes na gramática
tradicional em seu ensino: (i) a utilizada por Bechara (1999, p. 410), em que o sujeito
“[…] deve estar em consonância formal com o núcleo do predicado”, neste caso, os
livros utilizam uma paráfrase que sintetiza o que o autor trouxe em sua gramática; (ii) a
definição utilizada por Cunha & Cintra (1985, p. 205), de que “o sujeito é o termo sobre
o qual se faz uma declaração”, da qual os livros didáticos tendem a citar de forma
literal.
Faz-se necessário o esclarecimento da ausência de análise no que se refere ao
aspecto semântico do sujeito. Fizemos desta forma porque todos os livros o trazem de
forma parecida. A concepção trazida pelos livros abarca a noção de sujeito como
agente (voz ativa), paciente (voz passiva) e agente-paciente (voz reflexiva). Ademais, o
critério de agentividade se mostrou presente somente nos livros do Ensino Médio; nos
livros do Ensino Fundamental, esse critério não foi localizado.
3.1 Livros que utilizam o mesmo aspecto que Bechara
Começaremos com os livros que utilizam o critério morfossintático abarcado
por Bechara em sua gramática normativa-prescritiva de 2002. Nesta seção, temos dois
livros - “Se Liga na Língua” e “Ser Protagonista” -, ambos do Ensino Médio. Apesar de
o sujeito ser tratado segundo um mesmo aspecto, seu capítulo não possui o mesmo
nível de independência nos dois livros e nem a mesma conceituação. Os livros desta
seção trazem uma concepção semântica de sujeito no que se refere ao critério de
agentividade.
Em “Se Liga na Língua”, o sujeito é tratado com um grau de média
independência, uma vez que está inserido dentro do capítulo “Sujeito e Predicado”.
Neste livro, o ensino é tradicional e restrito a um dado aspecto: “o elemento da frase
que comanda a concordância com o verbo” (Figura 6); restringindo-o à definição de
“função sintática”, não abordando, por exemplo, os aspectos temáticos que ele pode
possuir. Este livro traz, ademais, a concepção semântica de agentividade.
Figura 6. Retirada do livro Se Liga na Língua, demonstrando o sujeito utilizado
Fonte: Se Liga na Língua (2016, p. 241).
“Ser Protagonista”, entretanto, inclui o sujeito dentro de um capítulo de baixa
autonomia, chamado “Termos essenciais da oração”, na qual o sujeito está inserido na
seção “Sujeito e Predicado”. Neste livro, temos uma abordagem que abarca um maior
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155
Discurso e poder: teoria e análise
espectro de aspectos porque, apesar de conter a definição de Bechara, completa com
discussões oriundas da ciência linguística: “é o argumento projetado pelo verbo de
uma oração, com o qual ele concorda em pessoa e número” (Figura 7). Este livro
abarca, também, a concepção semântica de agentividade.
Figura 7. Retirada do livro Ser Protagonista, demonstrando o sujeito utilizado
Fonte: Ser Protagonista (2016, p. 173).
3.2 Livros que utilizam o mesmo aspecto que Cunha & Cintra
Quanto aos livros que utilizam a definição que abarca apenas o aspecto
temático (definição tradicional de Cunha & Cintra) do sujeito, temos os livros “Singular
e Plural” (Figura 8) e “Para Viver Juntos” (Figura 9), ambos do sétimo ano.
Figura 8. Retirada do livro Singular e Plural, demonstrando a definição de sujeito
utilizada
Fonte: Singular e Plural (2015, p. 259).
Figura 9. Retirada do livro Para Viver Juntos, demonstrando a definição de sujeito
utilizada
Fonte: Para Viver Juntos (2015, p. 174).
Esses livros possuem uma definição de sujeito bastante similar, que,
essencialmente, é a mesma, a de que “o sujeito é o termo sobre o qual se faz uma
declaração”. Os dois livros são bastante tradicionais quanto ao ensino desse objeto,
não se aproximando de outras abordagens linguísticas nem abordando outros
aspectos do sujeito. Diferenciam-se, entretanto, quanto à independência do capítulo
do objeto: “Singular e Plural” o tem inserido em um capítulo chamado “termos que
aparecem na construção da oração I: o sujeito e sua relação com o verbo”, o que
sinaliza um baixo grau de autonomia; enquanto “Para Viver Juntos” o ensina com um
grau mediano de independência, dentro um capítulo chamado “Sujeito e Predicado”.
3.3 Livros que utilizam as definições corroboradas por Bechara e
Cunha & Cintra
Em relação aos livros que utilizam definições das duas gramáticas prescritivonormativas, temos dois do Ensino Fundamental, “Português Linguagens” (Figura 10) e
“Projeto Teláris” (Figura 11), e um do Ensino Médio, “Esferas das Linguagens” (Figura
12). Os dois livros do EF trazem os dois aspectos de sujeito em uma mesma definição:
“é o termo da oração que informa de quem ou de que se fala; com o qual o verbo
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156
Perspectiva conceitual e prática do ensino de sujeito gramatical em livros didáticos
geralmente concorda”. Suas definições são similares, de modo que podemos
hipotetizar que são paráfrases de mesmas fontes.
Figura 10. Retirada do livro Português Linguagens, demonstrando o conceito de
sujeito analisado
Fonte: Português Linguagens (2015, p. 89).
Figura 11. Retirada do livro Projeto Teláris, demonstrando o conceito de sujeito
utilizado
Fonte: Projeto Teláris (2015, p. 200).
Figura 12. Retirada do livro Esferas das Linguagens, demonstrando o conceito de
sujeito utilizado
Fonte: Esferas das Linguagens (2016, p. 326).
O livro Esferas das Linguagens (EM), por outro lado, não condensa os dois
aspectos em uma única frase, trazendo separadamente as citações das definições
empregadas nas gramáticas tradicionais. Conjuntamente a essas noções, o livro traz a
concepção semântica de agentividade.
Este livro ainda traz outro tipo de sujeito, o sujeito discursivo4 (Figura 13), e é o
único de todo o corpus analisado a abordar esse aspecto. O sujeito gramatical é
separado do sujeito discursivo, dizendo que aquele “pode ser humano ou não. […] é
uma materialidade linguística que dá suporte ao sujeito do discurso, mas só os dois
juntos nos habilitam a construir e compreender sentidos”, enquanto este “é
necessariamente uma pessoa constituída socialmente; portanto, um agente em
interação com outro, exercendo um papel social”.
Figura 13. Retirada do livro Esferas das Linguagens, demonstrando o conceito de
sujeito do discurso
Fonte: Esferas das Linguagens (2016, p. 327).
Trouxemos a constatação de que o livro traz o sujeito discursivo, contudo ele não será analisado porque
nosso objeto de estudo é apenas o sujeito gramatical.
4
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Discurso e poder: teoria e análise
A definição teórica nos livros do EF se mostrou tradicional, abarcando apenas
os aspectos sintático e temático do sujeito, restringindo-se a apenas duas das várias
características. Por outro lado, o livro do EM traz o aspecto discursivo do sujeito, o que
o aproxima de conceitualizações linguísticas menos tradicionais, propiciando abertura
teórica quanto ao feixe de características empregado.
3.4 Diagnóstico da análise das abordagens teóricas utilizadas pelos
livros analisados
Quanto à análise do modelo teórico empregado nos livros didáticos,
depreendemos que (i) há uma tendência de restringir a definição de sujeito a um único
critério, o que não contempla toda a complexidade do funcionamento da categoria;
(ii) há uma tendência de apagar o potencial de significado do sujeito, em especial, a
sua referencialidade; (iii) as definições não contemplam completamente o que se
descreve na literatura linguística, mas também não a ignoram; (iv) há livros didáticos
que utilizam mais de um aspecto teórico do escopo de características que definem o
elemento sujeito, o que revela adequação às teorias linguísticas contemporâneas; (v)
apenas os livros do Ensino Médio trazem a concepção semântica de sujeito.
4 Considerações sobre os exercícios
Utilizamos, como base da análise dos exercícios, uma tipologia de cinco
categorias. As categorias serão expostas segundo sua incidência no material
analisado.
Com a maior ocorrência, temos a categoria de identificação, na qual se deve
retomar a definição de sujeito previamente ensinada e localizar as ocorrências em uma
frase (normalmente descontextualizada). Em segundo lugar, temos a categoria de
interpretação, na qual se devem explicar as relações de sentido entre os eventos de
uma narrativa e/ou entre as partes do texto, ignorando, contudo, o objeto de ensino
gramatical e sua relação com o sentido; atém-se, portanto, puramente à interpretação
do texto.
Em termos de média ocorrência nos livros didáticos, temos a categoria
depreensão de efeito de sentido, na qual é preciso interpretar o papel que um
determinado tipo e uma determinada forma de sujeito impõem à significação da
oração.
Em seguida, temos as categorias que apresentam baixa incidência, a começar
pela classificação, em que se deve determinar qual tipo de sujeito está sendo utilizado
em determinada oração, e pela manipulação, na qual se pede que o aluno mude o
sujeito de uma frase dada (e que faça nela as mudanças necessárias) de forma a gerar
um novo efeito de sentido.
Por fim, não encontramos, no corpus, exercícios da categoria produção de
efeito de sentido, na qual o aluno tem de aplicar a categoria de sujeito em contextos
diferentes, para atingir efeitos de sentido diversos, inclusive em gêneros textuais
TEVES, Murilo de Castro | 2020 | p. 146-170
158
Perspectiva conceitual e prática do ensino de sujeito gramatical em livros didáticos
distintos, de modo a aumentar a consciência e o domínio do aluno em relação ao uso
de sujeito.
O gráfico abaixo permite visualizar a distribuição dos 3275 exercícios que
compõem o corpus em função dos tipos de atividade anteriormente identificados.
Gráfico 1. Distribuição dos exercícios em função da tipologia de atividades
Fonte: elaboração própria.
A partir deste panorama, podemos perceber a grande predileção dos livros
pelos exercícios que compõem as categorias de identificação e de interpretação, com
uma grande diferença entre elas, mas ainda maior em relação aos outros tipos
identificados.
Essa distribuição indica o formalismo presente no ensino induzido por esses
livros, assim como demonstra o efeito no estudo e ensino da língua que advém do
modelo tradicional. A grande maioria dos exercícios circunscreve-se a categorias que
não incitam o pensamento crítico no discente e não buscam gerar reflexão quanto aos
aspectos de significação que o sujeito comporta. Ademais, a base dos exercícios
dessas categorias tende a ser frases soltas e/ou descoladas de contexto, aumentando
ainda mais a sensação de um estudo irrefletido sobre o objeto.
Podemos perceber, também, um padrão de crescente dificuldade nos livros,
tanto dentro de um mesmo exercício quanto dentro de um mesmo capítulo. Os
exercícios com atividades subordinadas (ou seja, aqueles que apresentam um
enunciado geral e um conjunto de questões relacionadas, usualmente organizados
por letras), tendem a iniciar com identificação e interpretação (não necessariamente
nesta ordem), passando para um de manipulação e um de efeito de sentido.
Foram analisados somente os exercícios referentes aos capítulos dos livros que tratam do sujeito. Os
demais capítulos e exercícios não foram analisados.
5
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Discurso e poder: teoria e análise
4.1 Exercícios segundo suas separações nos livros
4.1.1 Livros que utilizam a definição de Bechara
Os livros desta seção - a saber, “Se Liga na Língua” e “Ser Protagonista” possuem mais exercícios de interpretação do que de outras categorias e são, em sua
maioria, desconectados da matéria ensinada. Isso mostra ainda uma dificuldade – ou
uma resistência, que pode ser muitas vezes editorial – referente ao trabalho da
gramática na (re)construção de sentido.
Em “Se Liga na Língua”, passa-se a cobrar que o aluno mude elementos da
oração (normalmente o verbo) para que se faça modificações que se adequem ao
sujeito. E, em “Ser Protagonista”, as questões do final do capítulo são de depreensão
de sentido e manipulação, o que demonstra um aumento da dificuldade dos exercícios
conforme o término da seção.
Gráfico 2. Distribuição dos exercícios nos livros que utilizam o aspecto
compreendido por Bechara
Fonte: elaboração própria.
4.1.2 Livros que utilizam a definição de Cunha & Cintra
A incidência de exercícios de identificação e interpretação é ainda maior nos
livros que utilizam a definição temática de sujeito. São os livros “Singular e Plural” e
“Para Viver Juntos”.
Os exercícios desses livros estão conectados apenas ao aspecto sintático do
sujeito e descolados do ensino do sujeito e da teoria ensinada. Em relação ao tópico
anterior, proporcionalmente, temos uma incidência pequena de exercícios da
categoria depreensão de sentido, o que reforça a sensação de um estudo mecânico.
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Perspectiva conceitual e prática do ensino de sujeito gramatical em livros didáticos
Gráfico 3. Distribuição dos exercícios nos livros que utilizam o aspecto corroborado
por Cunha & Cintra
Fonte: elaboração própria.
4.1.3 Livros que utilizam ambas as definições
Aqui vemos um aumento na incidência de exercícios de depreensão de
sentido, o que demonstra o potencial quanto ao desenvolvimento de leitura crítica no
estudante. Nesta seção, temos os livros “Português Linguagens”, “Projeto Teláris” e
“Esfera das Linguagens”. Aqui, podemos observar questões que concernem o sujeito
ao seu aspecto discursivo e a efeitos de sentido que ele pode gerar na oração.
Gráfico 4. Distribuição dos exercícios nos livros que utilizam ambas as definições
Fonte: elaboração própria.
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Discurso e poder: teoria e análise
4.2 Exercícios segundo suas categorias
4.2.1 Identificação
Nos exercícios de identificação (Figura 14), o aluno deve localizar em uma frase
solta o sujeito, sem precisar realizar, na maioria das vezes, qualquer tipo de reflexão
quanto ao uso ou sentido que essa categoria gramatical dá à frase, sendo comumente
maquinais e repetitivos (Figura 15). Seu uso não é problemático, uma vez que
demonstra ser um bom modo de revisitar os conteúdos aprendidos e de garantir
saberes mínimos para um trabalho de maior complexidade. Entretanto, quando seu
uso é exacerbado, comunga a um modelo de ensino irrefletido e mecânico de
gramática.
Figura 14. Exemplo de exercício de identificação retirado do livro Para Viver Juntos
Fonte: Para Viver Juntos (COSTA et al., 2015, p. 175).
Figura 15. Exemplo de exercício retirado do livro Português Linguagens
Fonte: Português Linguagens (CEREJA & MAGALHÃES, 2015, p. 90).
Poucas vezes encontramos exercícios de identificação que exigem mais do
aluno. Nesses casos, pede-se que o aluno explique o motivo de determinada forma
de sujeito ter sido utilizada, o modo como está marcada (Figura 16) - este caso,
entretanto, se aproxima da categoria depreensão de sentido.
Figura 16. Exemplo de exercício de identificação retirado do livro Esferas das
Linguagens
Fonte: Esferas das Linguagens (CAMPOS & ASSUMPÇÃO, 2016, p. 327).
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Perspectiva conceitual e prática do ensino de sujeito gramatical em livros didáticos
O uso exacerbado desse tipo de exercício restringe o aluno à identificação do
sujeito em contextos previamente preparados e comumente distantes da realidade em
que o discente está inserido. A distância com a realidade social do aluno aparenta ser
um dos grandes motivos da falta de interesse pelo estudo gramatical, já que o aluno
não percebe os significados e usos que determinado recurso pode ter em suas
interações comunicativas.
Um bom exemplo de questão de identificação bem utilizada é a presente no
livro Esferas das Linguagens (Figura 16), no qual é pedido que o aluno identifique e
explique como estão marcados os sujeitos gramaticais presentes. A questão seguinte
desse exercício questiona quanto ao efeito de sentido criado por eles. Nessa questão,
observamos elementos que constituem uma boa atividade: a retomada do conceito
ensinado e a sua aplicação prática (em relação a identificar os sujeitos) e a depreensão
do sentido que o elemento gramatical gera na oração, criando, dessa forma, uma
percepção semântica e sintática mais apurada no aluno.
4.2.2 Classificação
Poucos são os exercícios de classificação (Figura 17 e 18) que foram utilizados
pelos livros didáticos. Os livros analisados tendem a incluir as atividades de
identificação dentro de uma seção do capítulo que trata de um determinado aspecto
ou forma do sujeito, fazendo com que seja necessário apenas identificar o elemento
previamente determinado. Poucas vezes aparecem exercícios em que o aluno tem de
categorizar – ainda em frases soltas – o sujeito que foi utilizado, contendo mais de uma
possibilidade de escolha.
Figura 17. Exemplo de exercício de classificação retirado do livro Para Viver Juntos
Fonte: Para Viver Juntos (COSTA et al., 2015, p. 196).
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Discurso e poder: teoria e análise
Figura 18. Exemplo de exercício de classificação retirado de Projeto Teláris
Fonte: Projeto Teláris (BORGATTO et al., 2015, p. 209).
Esses modelos de exercícios de aplicação tendem a aparecer nas atividades
que encerram os capítulos e retomam os conceitos ensinados, quando todos os tipos
de sujeito já foram expostos, demandando que o aluno revisite as teorias. São bons
para esse objetivo, uma vez que demandam que o aluno localize e classifique o sujeito,
retomando o que foi aprendido ao longo do capítulo. Entretanto, não identificamos
casos em que ocorriam qualquer tipo de aprofundamento ou demanda por gerar ou
depreender sentido, nem que retomavam as teorias gramaticais, que poderiam estar
presentes em casos como “classifique os sujeitos das orações abaixo e indique o
sentido gerado na oração” e “explique o motivo de ser usada esse determinado tipo
de sujeito.”
4.2.3 Interpretação
A segunda maior incidência concerne à categoria da interpretação (Figura 19).
Esse tipo de atividade possui um grande potencial, uma vez que exige reflexão,
entendimento do contexto e aplicação do conhecimento de mundo. Observa-se uma
tendência ao distanciamento do recurso gramatical ensinado, como nos livros
didáticos “Para Viver Juntos” (Figura 19) e “Português Linguagens” (Figura 20). Os
livros possuem um baixo índice de exercícios de interpretação que possuem relação
com a teoria prévia, comumente ligados a questões de conhecimento de mundo e/ou
depreensão de determinado sentido; ou ligados ao texto ou à frase de base da
questão, mas desconectados do sujeito. Tratando-se da matéria de Português, é
importante que esse tipo de exercício esteja presente, já que proporciona ao aluno o
desenvolvimento da interpretação de texto. Contudo, é possível e deve-se ter espaço
para correlacionar essa categoria de exercício ao ensino do recurso gramatical.
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Perspectiva conceitual e prática do ensino de sujeito gramatical em livros didáticos
Figura 19. Exemplo de exercício de interpretação retirados do livro Para Viver Juntos.
Fonte: Para Viver Juntos (COSTA et al., 2015, p. 175).
Figura 20. Exemplo de exercício de interpretação retirado do livro Português
Linguagens
Fonte: Português Linguagens (CEREJA & MAGALHÃES, 2015, p. 109).
Os livros Projeto Teláris (Figura 21) e Esferas das Linguagens (Figura 22), por
outro lado, trazem exercícios de interpretação que trazem reflexão - mesmo que
separadamente - quanto ao objeto de estudo. No caso de “Esferas das Linguagens”, a
questão “d)” pergunta o motivo da mudança da forma do sujeito, de modo que o aluno
precisa depreender o sentido tanto da forma anterior, quanto da posterior, para
determinar a razão da mudança.
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Discurso e poder: teoria e análise
Figura 21. Exemplo de exercício de interpretação retirado do livro Projeto Teláris
Fonte: Projeto Teláris (BORGATTO et al., 2016, p. 176).
Figura 22. Exemplo de exercício de interpretação retirado do livro Projeto Teláris
Fonte: Projeto Teláris (BORGATTO et al., 2016, p. 328).
4.2.4 Manipulação
Os exercícios que possuem menor incidência são os de manipulação (Figura
23). Nesses exercícios, normalmente pede-se que mude o sujeito de uma frase dada
(e que se façam as mudanças necessárias nela) de forma a que se alcance uma nova
frase com o sentido que esse sujeito modificado dá a ela (Figura 24).
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Perspectiva conceitual e prática do ensino de sujeito gramatical em livros didáticos
Figura 23. Exemplo de exercício de manipulação retirados do livro Português
Linguagens
Fonte: Português Linguagens (CEREJA & MAGALHÃES, 2015, p. 109).
Figura 24. Exemplo de exercício de manipulação retirado de Singular e Plural
Fonte: Singular e Plural (FIGUEIREDO et al., 2015, p. 271).
Esse tipo de exercício gera o domínio do objeto estudado por parte do
discente, uma vez que é preciso fazer as mudanças necessárias no sujeito, retomando
o que foi ensinado, e aplicar seu conhecimento adquirido, mantendo o sentido e a
coesão da frase. É uma categoria com potencial quanto à criação da consciência e
domínio do aluno, já que ele terá de trabalhar com o recurso gramatical pensando no
sentido global da frase e/ou trecho.
4.2.5 Depreensão de sentido
Já os exercícios de depreensão de efeito de sentido (Figura 25) fazem com que
os alunos identifiquem o contexto gramatical e discursivo no qual o sujeito está
inserido de modo a perceber o motivo de ele assumir determinada forma.
Figura 25. Exemplo de exercício de sentido retirado do livro Esferas das Linguagens.
Fonte: Esferas das Linguagens (CAMPOS & ASSUMPÇÃO, 2016, p. 327).
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Discurso e poder: teoria e análise
Podemos tomar o livro Esferas das Linguagens (Figura 25) como exemplo de
exercícios que fazem o aluno refletir quanto ao sentido criado na frase pelos sujeitos
gramaticais. São coerentes e conectados com a matéria ensinada e fazem com o que
o aluno reflita sobre o que está aprendendo, características de um modelo de ensino
conectado à competência linguística do discente. Em Singular e Plural (Figura 26),
temos outro exemplo de exercício desta categoria, em que se pede que o aluno
elimine um sintagma nominal em posição de sujeito sem que se altere o sentido da
oração.
Figura 26. Exemplo de exercício de sentido retirado do livro Singular e Plural
Fonte: Singular e Plural (FIGUEIREDO et al., 2015, p. 260).
Questões como essas produzem um aumento da capacidade analítica e da
percepção semântica, que é necessária tanto na interpretação de textos falados
quanto escritos, dos quais ele tem contato, também, para além dos textos escritos, nas
situações de uso.
4.2.6 Produção
Não encontramos exercícios de produção no corpus analisado, o que
caracteriza um déficit no ensino, uma vez que esses exercícios são essenciais para o
desenvolvimento do conceito gramatical na realidade do falante.
Essa categoria de exercício é a mais indicada para que o discente tenha o
domínio completo do que está sendo ensinado. Nela, pede-se que o aluno utilize
ativamente o recurso gramatical em um diferente contexto, podendo ser em gêneros
textuais distintos, de modo a atingir um sentido determinado anteriormente. Esse tipo
de atividade demanda a aplicação prática do elemento gramatical e pode ser realizada
em um texto ou situação que seja próxima da realidade do(s) aluno(s), o que a torna
mais interessante, ao mesmo tempo que ajuda a desenvolver consciência e domínio
do uso do recurso por meio do exercício prático e pela percepção das diferenças de
sentido que o uso de determinado tipo de sujeito gera na oração em que está inserido.
A ausência dessa categoria de atividades no corpus analisado contribui com a
tendência repetitiva e maquinal do modelo de ensino mais utilizado. A distância que
o ensino de gramática tem da realidade do aluno parte da noção de língua como um
objeto de estudo erudito que está distante do dia-a-dia do estudante, gerando
desinteresse. Por isso, é preciso diminuir essa distância com exercícios que geram a
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Perspectiva conceitual e prática do ensino de sujeito gramatical em livros didáticos
reflexão e fazem com que o aluno identifique o recurso gramatical em seu próprio
contexto de vida.
4.2.7 Resultado da análise dos exercícios utilizados nos livros que
compõem o corpus
Pudemos depreender da análise dos exercícios utilizados (i) o uso exacerbado
de exercícios da categoria de identificação, o que parece refletir a orientação de um
ensino mecânico e irrefletido de gramática; (ii) exercícios repetitivos e, não raro,
desconectados da materialidade textual, que não fornecem oportunidades para que
o aluno reflita sobre a significação da categoria; (iii) muitos exercícios de interpretação
que, sim, são úteis, mas descolados do ensino da categoria gramatical, o que pode
ampliar a percepção de que o ensino de gramática é apenas formal; (iv) falta de
exercícios de produção que levem o aluno a dominar o uso de sujeito em diferentes
gêneros textuais para atingir objetivos comunicativos diversos; (v) ocorrência, mesmo
que insuficiente, de exercícios que verificam as diferenças de significado que o uso de
diferentes tipos e formas de sujeitos gera na oração, levando o aluno, por conseguinte,
a refletir sobre o uso de sujeito.
Considerações finais
Partindo do ponto de vista de um modelo que visa trabalhar com a
competência linguística e comunicativa do falante, percebemos que as estratégias de
ensino hoje empregadas nos livros didáticos precisam ser atualizadas, embora suas
qualidades sejam reconhecíveis. É preciso empreender mudanças quanto à produção
de um material didático que abra possibilidade para a inclusão dos diversos dialetos
presentes, assim como trabalhar com as novas mídias que estão em alta no consumo
e produção de textos na sociedade contemporânea.
O ensino de sujeito gramatical ainda está restrito à predileção por definições
que podem limitar seu potencial significativo, de modo que se faz necessária a inclusão
de feixes característicos que compreendam de forma mais completa as contribuições
de sentido que essa categoria pode ter dentro das orações e do contexto geral do
texto.
Apesar da tendência a se afastar das teorias linguísticas que trazem um
entendimento mais completo na conceituação da categoria, podemos observar que
há, sim, aproximações. Observamos que os livros tendem a restringir a definição da
categoria a poucos feixes característicos – concordância, topicalidade e causalidade
(apesar desse último critério estar presente somente nos livros do Ensino Médio) -,
enquanto na literatura especializada encontramos mais características –
referencialidade e predicação -, fazendo com que a aproximação trouxesse um
complemento ao aprendizado, tornando-o mais completo. Aproximar-se de teorias
mais atualizadas pode resultar na inclusão das variações contemporâneas da língua no
ensino e aprendizado, assim como na assimilação dos gêneros textuais que sejam
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169
Discurso e poder: teoria e análise
produzidos no momento histórico do aluno, conectando, dessa forma, o aprendizado
à realidade do discente.
Há, consoante a isso, a necessidade de uma maior quantidade de exercícios
que verifiquem as contribuições de significado dessa categoria, assim como a
implantação de atividades que exijam que o aluno produza o recurso gramatical em
diferentes contextos, de modo a aumentar a chance de criar no aluno a consciência e
o domínio dessa categoria no consumo e produção de gêneros textuais diversos.
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Como citar
TEVES, Murilo de Castro. Perspectiva conceitual e prática do ensino de sujeito
gramatical em livros didáticos. In: GONÇALVES-SEGUNDO, Paulo Roberto; ARAES,
Célia Regina; CASTANHEIRA, Claudia; ISOLA-LANZONI, Gabriel; PENITENTE,
Natalia; WEISS, Winola (orgs). Discurso e poder: teoria e análise. São Paulo:
FFLCH/USP, 2020, p. 146-170. DOI: 10.11606/9786587621241
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Discurso e poder: teoria e análise
Discursos velados, vozes
silenciadas: análise de notícias
sobre situação de rua
Natalia PENITENTE
Universidade de São Paulo
[email protected]
Resumo: Neste estudo, objetivamos analisar as correlações
entre as práticas sociais e as perspectivas ideológicas em
notícias referentes às pessoas em situação de rua – oriundas da
esfera discursiva jornalística. Como aparato teórico, utilizamos a
perspectiva da Análise de Discurso Crítica (FAIRCLOUGH, 2001,
2003); como categorias linguístico-discursivas de análise,
mobilizamos a intertextualidade, o significado lexical, a
interdiscursividade (FAIRCLOUGH, 2001, 2003), o sistema de
representação de atores sociais (VAN LEEUWEN, 1997); sobre o
debate acerca da situação de rua, valemo-nos de Silva (2006,
2009), Rosa (2004), Bursztyn (2003), bem como consideramos a
perspectiva ideológica de Thompson (1995). O corpus foi
composto por duas notícias, publicadas nos jornais Estado de
Minas e Hoje em dia, (2013, 2017). Ao final da análise desses
textos, chegamos aos seguintes resultados: constatamos, por
um lado, que a intertextualidade está presente no relato direto
das pessoas em situação de rua e no relato indireto das pessoas
que representam o setor público. Por outro lado, a mídia
representa os cidadãos e cidadãs em situação de rua apontando
como incômodas. Essa imagem negativa que se cria em torno
deles nos leva a observar que elas são vistas apenas pelo viés
de seus efeitos sobre as outras populações que detêm um
poder aquisitivo superior na sociedade.
Palavras-chave: Análise de Discurso Crítica; Situação de rua;
Ideologia; Notícia; Questão social.
Introdução
O interesse centrado nos estudos sobre a situação de rua parte das pesquisas
desenvolvidas por dois subprojetos, de Iniciação Científica, intitulados: Discurso e
Situação de Rua em Salvador e Região Metropolitana, e Discurso e Situação de Rua no
Território de Identidade Baiano: Velho Chico, que foram desenvolvidos entre 2016 a
20181, na UNEB, com financiamento da Fundação de Amparo à pesquisa da Bahia
(FAPESB).
Ressaltamos que a pesquisa envolve outros discentes dos estados do nordeste (um em pós-doutorado;
oito com Iniciação Científica).
1
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Discursos velados, vozes silenciadas: análise de notícias sobre situação de rua
Em continuidade aos estudos sobre o tema, bem como na perspectiva de tanto
aprofundar os estudos sobre a linguagem como prática social, quanto investigar
criticamente a desigualdade, selecionamos textos jornalísticos de Belo Horizonte
(MG), pois a pesquisa integra o escopo maior do projeto Discurso e Situação de Rua,
coordenado pelo professor doutor titular Décio Bessa da Universidade do Estado da
Bahia (UNEB), que buscou desenvolver estudos que abarquem esta problemática não
só no contexto baiano, considerando a capital e o interior da Bahia, como também em
textos jornalísticos de outros estados..
A pesquisa intentou mapear todos os Estados do Brasil, tendo como corpus de
análise, de todos os projetos, textos jornalísticos on-line e de grande circulação de
cada região pesquisada. Diante dos resultados obtidos no período de pesquisa,
notamos como a linguagem relaciona-se com questões ideológicas e sociais,
influenciando o modo como as pessoas em situação de rua são representadas em
textos jornalísticos.
A partir dessas questões, neste artigo, temos como objetivo analisar as
correlações entre as práticas sociais e as perspectivas ideológicas em notícias
referentes às pessoas em situação de rua – oriundas da esfera discursiva jornalística.
Como objetivos específicos, buscamos, especificamente, a) identificar as relações
intertextuais entre as notícias sobre a população em situação de rua, b) mapear os
discursos preponderantes acerca da referida população, e c) verificar como tal
população é representada em notícias jornalísticas.
No que se refere à metodologia utilizada (FLICK, 2004), fizemos um
levantamento no guia de mídias de Minas Gerais dos principais veículos jornalísticos
de grande circulação do Estado, sendo eles: Estado de Minas, Hoje em dia e Tempo2.
O período do levantamento das notícias foi de 2013 a 2017, utilizando as palavraschaves: “morador de rua”, “pessoa(s) em situação de rua”, “de rua”. Posteriormente,
classificamos as notícias coletadas e as analisamos sob a perspectiva das categorias de
análise: intertextualidade, interdiscursividade, significado das palavras e
representação dos atores sociais.
Como referencial teórico, mobilizamos reflexões em relação à temática desta
pesquisa, a partir dos trabalhos de Silva (2006), Rosa (2004), Bursztyn (2003); Silva
(2017), Santos (2003); Pinto (2007); Ministério do Desenvolvimento Social e Combate
à Fome (BRASIL, 2008), dentre outros. Em relação à Análise do Discurso Crítica (ADC),
as principais referências foram: Fairclough (2001, 2003), Bessa (2009); Silva (2009);
Resende (2011, 2014); e sobre a ideologia, valemo-nos da concepção de Thompson
(1995).
Entendemos que são de ampla relevância as pesquisas e estudos sobre a
problemática da situação de rua, vivenciada por cidadãos e cidadãs no Brasil. Bessa
(2009) destaca ser necessário investigar, compreender, analisar; para propor uma
mudança social, essas ações devem correlacionar-se constantemente.
Compreendemos, a partir das pesquisas desenvolvidas, que a questão social de as
Encontramos 188 notícias no total dos três jornais; para este artigo selecionamos duas do Estado de
Minas e Hoje em Dia.
2
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173
Discurso e poder: teoria e análise
pessoas estarem em situação de rua vem sendo naturalizada, apagada ou distorcida
em diversos textos publicados nos jornais ou transmitidos em outros veículos
midiáticos3.
Observamos que o modo como se representa a questão social em textos tem
influência sobre a maneira como a sociedade compreende o problema e reage sobre
ele, o que também impacta sobre a forma como pessoas que enfrentam a situação de
rua se identificam e se relacionam no tecido social (RESENDE, 2017). O artigo está
organizado de maneira a expor as concepções teóricas que sustentam as análises,
posteriormente descrevemos o recorte dos dados para análise e, por fim, tecemos as
considerações finais.
1 Aparato teórico
As discussões elencadas por Fairclough (2001, 2003) sobre a Análise de
Discurso Crítica (ADC) referem-se à extensão dos trabalhos em análise de discurso que
foram publicados previamente e que apontavam uma análise linguística mais
detalhada de textos. Esta linha de pesquisa compreende que a língua é uma parte
irredutível da vida social, sendo dialeticamente conectada a outros elementos de vida
social, de forma que não se pode considerar a língua sem levar em consideração a
vida social. Portanto, o autor pondera que a análise e a pesquisa social devem levar
em conta a língua4. A ADC foca na relação estabelecida entre linguagem e práticas
sociais que evidenciam assimetrias de poder.
O referido autor conceitua ADC como: “[...] a análise de conexões dialéticas
entre discurso (incluindo linguagem, mas também outras formas de semiose, por
exemplo, a linguagem corporal ou imagens visuais) e outros elementos das práticas
sociais” (FAIRCLOUGH, 2003, p. 231). Assim, por meio da perspectiva teórica,
podemos descrever, interpretar e explicar a linguagem no contexto sócio-histórico,
considerando o discurso como um elemento da prática social.
Gonçalves-Segundo (2018, p. 79) pondera que uma ciência crítica deve
proporcionar uma reflexão que contribua para uma mudança social efetiva. Esta
abordagem crítica do discurso deve tanto levar as estruturais sociais das diversas
práticas sociais na qual estamos inseridos, quanto considerar a capacidade dos
sujeitos de agir, refletir e resistir para que uma análise realista da tensão entre
reprodução e transformação seja realizada.
No que se refere a esta questão da ADC ser uma ação transformadora,
Fairclough (2015), ao propor uma 3° etapa da ADC, baseando-se nas discussões de
Bhaskar, reitera que o objetivo não é apenas uma crítica ao discurso que leva à
mudança no discurso, mas sim, usar uma crítica do discurso como um ponto de
Esta constatação deu-se após o desenvolvimento da pesquisa nos respectivos anos supracitados. Os
dados podem ser acessados no relatório final disponível no Sistema Online de Iniciação Científica
(SONIC/UNEB). Destacamos que todos foram sobre a orientação do professor Dr. Décio Bessa da
Universidade do Estado da Bahia (UNEB).
4
Fairclough (2003) apresenta uma discussão mais detalhada das relações dialéticas no capítulo 2 do seu
livro.
3
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Discursos velados, vozes silenciadas: análise de notícias sobre situação de rua
entrada para uma crítica da ordem social existente que fornecem razões sólidas para
atuar na mudança material de certas áreas.
1.2 Pressupostos teóricos sobre ideologia
Conforme Bessa (2009) o léxico ‘ideologia’ é objeto de controvérsia entre
diversas abordagens teóricas, entretanto para esta análise optamos pela concepção
de Thompson (1995) por sua correlação com os propósitos da Análise do Discurso
Crítica (ADC). Para esse campo de pesquisa, a ideologia estabelece e sustenta relações
de dominação. Macedo e Vieira (2018, p. 59), ao discutir os conceitos-chave da ADC,
reitera que o conceito mais utilizado para ideologia é o de Thompson, na medida em
que aponta categorias de análise que perpassam “formas e significados textuais
associados a maneiras especificas de representação de (inter)ação e de identificação
em determinadas práticas sociais”.
Em seu livro, o referido autor descreve modos de operação da ideologia e
algumas estratégias típicas de construção simbólica que a eles associados, bem como
destaca formas de pensar e de entender a interação entre sentido e poder na vida
social, que atuam como sustentáculos de relações de dominação. Thompson (1995),
com a intenção de desenvolver uma reformulação para o conceito de ideologia,
salienta que existe a necessidade de três aspectos: “[...] noção de sentido, o conceito
de dominação e as maneiras como o sentido pode servir para estabelecer e sustentar
relação de dominação” (THOMPSON, 1995, p.45).
Este último aspecto está relacionado com as formas simbólicas (aspectos de
falas, imagens e textos reproduzidas por sujeitos e reconhecidas por eles e outros
significados) inseridas nos contextos sociais e de circulação no mundo social. O autor
apresenta cinco modos gerais de como a ideologia pode operar, sendo eles:
legitimação, dissimulação, unificação, fragmentação e reificação (THOMPSON, 1995).
Já aproveitamos para frisar que esses modos não são as únicas maneiras de a
ideologia operar, uma vez que o autor tem como objetivo apenas exemplificar e não
apresentar uma categorização exaustiva. Nesta análise, identificamos o modo de
operação da dissimulação e fragmentação. O primeiro pode ser expresso em formas
simbólicas por meio de diferentes estratégias. Uma delas é o deslocamento, em que
se tem um determinado objeto ou pessoa como referência e então as conotações
positivas ou negativas são transferidas para o objeto ou pessoa. Outra estratégia
abordada pelo autor é a eufemização: “[...] Ações, instituições ou relações sociais são
descritas ou reescritas de modo a despertar uma valoração positiva”5(p.58).
Já a fragmentação, por sua vez, está relacionada às estratégias da construção
simbólica: diferenciação – isto é – a ênfase que é dada das distinções, diferenças e
divisões entre pessoas ou grupos, apoiando características que impedem de constituir
um desafio efetivo às relações existentes; e o expurgo do outro, que envolve a
construção de um inimigo, interno ou externo, retratado como perigoso e ameaçador
Alguns exemplos: a supressão violenta do protesto é descrita como a “restauração da ordem”; a prisão
ou campo de concentração é descrito como um “centro de reabilitação”.
5
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Discurso e poder: teoria e análise
contra os indivíduos e estes são chamados a resistir coletivamente, conforme define o
autor:
Relações de dominação podem ser mantidas ou sustentadas não
unificando as pessoas numa coletividade, mas segmentando aqueles
indivíduos e grupos que possam ser capazes de se transformar num
desafio real aos grupos dominantes, ou dirigindo forças de oposição
potencial em direção a um alvo que é projetado como mau, perigoso
ou ameaçador. (THOMPSON, 1995, p.70)
Ante o exposto, ao estudar a ideologia, interessa a maneira como o sentido
mantém relações de dominação de classe, bem como deve interessar por outros tipos
de dominação, tais como as relações sociais estruturadas entre homens e mulheres,
entre os grupos étnicos, ou entre diferentes níveis de poder econômico, cultural.
Assim, o autor destaca que, ao analisar a ideologia, compreende-se a interação
complexa entre sentido e poder.
1.3 Categorias de análise
Uma das características da Análise do Discurso Crítica é a utilização de
categorias linguísticas no desenvolvimento de análises. Dentre as possibilidades
apresentadas pelo autor, para essa pesquisa, delimitamos: Intertextualidade,
Significado lexical, Interdiscursividade (Fairclough, 2001; 2003), Representação de
atores sociais (Van Leeuwen, 1997). Apresentamos, nas próximas seções, as categorias
para as análises linguístico-discursivas.
1.3.1 Intertextualidade
Fairclough (2003, p. 243) define intertextualidade como:
A intertextualidade de um texto é a presença de elementos de outros
textos dentro dele (e então potencialmente outras vozes além da voz
do autor), os quais podem estar relacionados (discutidos, assumidos,
rejeitados) de várias maneiras.
O autor apresenta algumas maneiras de incorporar elementos de outros textos.
Se pensarmos em um discurso relatado (escrito ou pensado), é possível não só citar o
que já havia sido dito ou escrito em outros textos, mas também resumi-lo, e nisto
encontramos a diferença entre o que tem sido chamado ‘discurso direto’ (por
exemplo: ‘ Ela disse: “Eu me atrasarei”); e formas do ‘discurso indireto’ (por exemplo:
‘Ela disse que se atrasaria’) (FAIRCLOUGH, 2003, p. 46).
Desse modo, conforme o autor desenvolve, intertextualidade refere-se a uma
gama de possibilidades. A intertextualidade nos conduz a analisar a sociedade por
meio da linguagem; portanto, o que nos interessa principalmente, dentro da
perspectiva teórica da Análise do Discurso Crítica, é perceber o que está acontecendo,
ou não, quando se identifica, ou não, determinadas marcas de intertextualidade.
Buscamos, nesta pesquisa, avaliar em um texto quais ‘vozes’ são ‘autorizadas’ a falar
(BESSA, 2009).
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Discursos velados, vozes silenciadas: análise de notícias sobre situação de rua
1.3.2 Significado de palavras
A abordagem de Fairclough (2001) sobre significado lexical reflete que somos
produtores e intérpretes de textos e estamos sempre confrontados com significados.
As palavras têm vários significados, que são ‘lexicalizados’ de várias maneiras. Isto
implica dizer que, como produtores, estamos diante de escolhas sobre como usar uma
palavra e como expressar esse significado por meio de palavras; e como intérpretes,
somos confrontados com decisões sobre como interpretar as escolhas que os
produtores fizeram – o valor que atribuímos às palavras. Ressaltamos que essas
escolhas/decisões não são de natureza puramente individual, os significados das
palavras e as lexicalizações são questões variáveis socialmente, bem como são fases
de processos sociais e culturais amplos, conforme expõe o autor.
Os modelos alternativos de significado potencial vêm dos textos e os modelos
dos ‘dicionários’ harmonizam com textos que são produzidos e interpretados com a
orientação normativa para o significado potencial. Os textos criativos são
caracterizados pela ambiguidade e ambivalências de significado e pelo jogo retórico
com os significados potenciais como recursos em termos de estruturar e reestruturálos de estruturação e reestruturação, incluindo a mudança de limites e de relações
entre significados. Fairclough (2001), ao abordar as concepções de Kristeva (1986),
destaca que há sempre formas alternativas de significar, de atribuir sentido, o que
implica ‘interpretar’ de uma forma particular, de uma perspectiva teórica, cultural e
ideológica. Novas palavras geram novos ‘itens lexicais’; a criação de itens lexicais
permite conceber as perspectivas particulares dos domínios da experiência segundo
uma visão teórica científica, cultural e ideológica mais abrangente.
1.3.3 Representação de Atores Sociais
As práticas sociais envolvem conjuntos específicos de representações sociais
dos sujeitos, mas nem todos os atores sociais estão incluídos. As representações os
incluem ou excluem para servir aos interesses e propósitos das empresas midiáticas
em relação aos leitores a quem são dirigidas. Nessa perspectiva, o que se propõe a
compreender nesta categoria analítica da Análise de Discurso Crítica é: quais atores
sociais são representados nos textos? Em que contextos eles são incluídos ou
excluídos? Qual o grau de agência ou afetação linguística lhes é imprimido no texto?
Van Leeuwen (1997) fornece um conjunto de categorias relevantes para investigar a
representação no discurso.
Diante disso, Van Leeuwen (1997) destaca que a exclusão tem sido um aspecto
importante da Análise de Discurso Crítica e que algumas exclusões não deixam marcas
na representação, apagando quer os atores sociais, quer as suas atividades. Dessa
forma, Van Leeuwen (1997) apresenta uma ‘rede’ de possibilidades para a construção
das representações dos atores sociais6. Nesta análise, utilizamos as classificações:
indeterminação, obstrução, assimilação e coletivização. A partir dessas possibilidades
elencadas por Van Leeuwen (1997), pretendemos investigar como as pessoas em
6
Destacamos que o autor apresenta vinte e uma divisões com cinquenta possibilidades.
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Discurso e poder: teoria e análise
situação de rua são representadas nos textos jornalísticos, pois ao verificarmos como
eles estão sendo representados nos textos colabora para a concepção de como
cidadãos e cidadãs nesta situação são construídos discursivamente.
Outra maneira de identificar os atores sociais é a assimilação. Segundo Van
Leeuwen (1997, p. 194-195), tende-se a individualizar as pessoas pertencentes às elites
e assimilar pessoas comuns, enquanto jornais dirigidos à classe trabalhadora, por
vezes, individualizam pessoas comuns. Van Leeuwen (1997) destaca dois tipos
principais de assimilação: a agregação e coletivização. A agregação desempenha um
papel crucial em muitos contextos. Em nossa sociedade, a maioria governa, não só em
contextos em que os processos democráticos formais são usados para chegar a
decisões, mas também e especialmente noutros, através de opiniões, inquéritos,
pesquisa de mercado, conforme cita o autor. É por isto que a agregação é usada para
regulamentar a prática e para produzir uma opinião de consenso, mesmo que se
apresente como mero registro de fatos. A assimilação pode realizar-se através de um
substantivo que denote um grupo de pessoas, como, por exemplo, em ”esta nação”,
ao passo que a agregação se realiza através da presença de um quantificador definido
ou indefinido, que funciona quer como numerativo, quer como núcleo do grupo
nominal.
A indeterminação ocorre, conforme Van Leeuwen (1997, p. 198), quando os
atores sociais representados como indivíduos ou grupo não são específicos. Costuma
ser realizada por pronomes indefinidos, como observamos em: “Alguém pusera flores
na secretária da professora”. Neste caso, a indeterminação oculta textualmente o ator
social, tratando assim, como irrelevante, a identidade do ator para o leitor.
A indeterminação também pode realizar-se através de uma referência exofórica
generalizada, exemplo: “Não te deixaram ir para a escola antes de fazeres cinco anos
de idade”. Neste caso atribui aos envolvidos um tipo de autoridade pessoal, uma
noção de força coerciva. Conforme Van Leeuwen (1997), a indeterminação pode ser
agregada, como por exemplo em: (many believe) muitos acreditam, (some say), alguns
dizem. A diferenciação distingue um ator social individual ou um grupo de atores
sociais de outro ator ou grupo semelhante criando uma diferença entre próprio, outro
ou entre nós.
1.3.4 Interdiscursividade
Entendendo, conforme Fairclough (2003), discursos como formas de
construção/representação de aspectos do mundo, é possível depreender dos textos
essas construções/representações e analisar quais são seus efeitos em processos
sociais. Nessa perspectiva, é possível perceber e nomear os discursos que estejam nos
textos. Os discursos possuem relação com outros discursos, seja de
aproximação/concordância, disputa ou oposição.
Sendo assim, há relações interdiscursivas em textos. Tanto a interdiscursividade
pode apontar para processos sociais que precisam ser questionados quanto para o
destaque de um discurso específico dentre outros; pode gerar o mesmo resultado ou
ser um elemento diferencial em uma perspectiva de injustiça ou de resistência a
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Discursos velados, vozes silenciadas: análise de notícias sobre situação de rua
práticas desiguais que provocam prejuízo a seres humanos. Fairclough (2003)
especifica os tipos de discurso que estão traçados na amostra discursiva em análise e
como isso é feito. O autor destaca que uma interpretação da interdiscursividade deve
ocorrer por meio do texto, mostrando que a interpretação discursiva é compatível com
as características do texto analisado. Dessa forma, Fairclough (2003) reforça que
discursos, gêneros e estilos são elementos de textos e são também elementos sociais.
Nos textos eles são organizados em relações interdiscursivas, relações nas quais
diferentes gêneros, discursos e estilos podem ser 'mesclados’, articulados de maneira
particular.
2 Situação de Rua no Brasil: Contexto Histórico e Social
Nesta seção, pretendemos discorrer a respeito dos possíveis fatores históricos
que colaboraram para o problema social enunciado pela mídia como “morar na rua”,
no Brasil, bem como expor as diferentes escolhas lexicais adotadas para referir a elas.
Rosa (2005)7 assinala que o número expressivo de pessoas que utilizam espaços
públicos nas grandes e médias cidades brasileiras não se trata de uma questão isolada
dos problemas ocorridos na sociedade no tocante às mudanças intensas no mundo
do trabalho e no âmbito do Estado.
A partir da compreensão de que as crises econômicas teriam levado
trabalhadores ao desemprego e alguns às ruas, a autora pontua os possíveis fatores
que contribuíram para a existência de pessoas vivendo nas ruas. Um dos fatores está,
intimamente, ligado ao modo como a sociedade brasileira se organiza, em um
processo concentrador de renda, com desigualdades, alterações econômicas, bem
como o desemprego e o agravamento das más condições de reprodução da vida
urbana, como, por exemplo, a moradia e a saúde.
Para Silva (2006), a existência de pessoas em situação de rua vincula-se aos
fatores estruturais, como ausência de moradia, inexistência de trabalho e renda,
mudanças econômicas e institucionais de forte impacto social; fatores biográficos,
como alcoolismo, drogadição8, rompimentos dos vínculos familiares, doenças
mentais, perdas de todos os bens, também desastres, como enchentes, incêndios,
terremotos etc. Conforme assinala a autora, existem várias causas de “ir para rua”,
assim como são múltiplas as realidades das pessoas em situação de rua. Rosa (2005)
pondera que essa heterogeneidade é um elemento importante quando se deseja
conhecer a realidade das pessoas que utilizam as ruas e os albergues “[...] de forma
circunstancial ou como modo de vida” (ROSA, 2005, p. 44). Essa aproximação qualifica
e enriquece o tratamento analítico, uma vez que contempla a ideia de processo.
Ainda, outro fator exposto por Rosa (2005), refere-se ao desenvolvimento
capitalista e as transformações sociais advindos do processo de globalização. Dessa
No estudo Vidas de rua, destino de muitos, Rosa (2005) fez um levantamento de reportagens da
imprensa escrita referentes às pessoas em situação de rua na cidade de São Paulo.
8
Conforme o Dicionário online de Língua Portuguesa, o termo drogadição significa: “Consumo excessivo
e insistente de drogas, de substâncias entorpecentes e alucinógenas, que causa dependência”.
Disponível em: https://www.dicio.com.br/drogadicao/. Acesso em: 16.11.2018.
7
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179
Discurso e poder: teoria e análise
maneira, os trabalhadores não conseguem acompanhar as mudanças dos setores em
que trabalham e da sociedade, assim, sofrem os efeitos do mercado de trabalho.
Sobre essa questão, Pinto (2007) ressalta que esse contexto de transformação social
determina a ‘exclusão social, bem como se apresenta “[...] complexificada e
diferenciada neste início de século. O mundo capitalista, neoliberal, colabora para
esse feito” (PINTO, 2007, p. 20). Segundo a pesquisadora referida, o mercado de
trabalho mostra-se cada vez mais exigente e excludente.
Maggio (2016) faz uma reflexão sobre o desenvolvimento capitalista e a
internacionalização da economia, a urbanização acelerada, a hegemonia neoliberal,
entre outros termos que representam a nova ordem mundial, os quais têm produzido,
entre outros efeitos, um aumento considerável da exclusão social.
Consequentemente, tal aspecto suscita possíveis rupturas sociais capazes de
comprometer o avanço de uma sociedade democrática. Ademais, Maggio (2016)
apresenta uma discussão sobre os direitos fundamentais das pessoas em situação de
rua. Ainda destaca que essas pessoas são vistas pela mídia9 como um grupo que
oferece risco e não como um grupo que está em risco.
Bursztyn (2003) relaciona causalmente a situação de rua às desigualdades e
dessemelhanças sociais causadas pelo capitalismo, responsável por empurrar
crescentes contingentes de pessoas para patamares inferiores de riqueza e bem-estar.
Conforme o autor, a lógica de funcionamento do capitalismo produzia uma perversa
segregação e o universo dos novos ricos não era extensivo a todos. Nos países
centrais, um grupo (ainda que reduzido) ficava à margem, enquanto, nos países
periféricos, um conjunto importante de pessoas não encontrava um modo de engajarse, diretamente, no sistema econômico.
Na medida em que os países subdesenvolvidos seguiram a via capitalista, a
diferença entre o centro e a periferia tenderia a ser, então, notadamente, quantitativa
(BURSZTYN, 2003). Por conta das mudanças ou tendências sociais, cresce a “[...]
população de rua, sem-teto, homeless”10 (BURSZTYN, 2003, p. 42), essa se junta aos
desvinculados do mundo do trabalho. O autor salienta também que a miséria pode
criar contextos de exclusão no mundo contemporâneo, e isso tem se tornado objeto
de preocupação por parte do poder público há pelo menos quatro séculos.
Outra perspectiva abordada por Rosa (2005) diz respeito à diversidade de
expressões utilizadas para nomear as pessoas que usam os espaços públicos para
morar e sobreviver ao longo das três últimas décadas (BESSA, 2009). A princípio o
termo marginalizado era utilizado para qualificar os trabalhadores que se viam à
‘margem do mercado’, sem opção de trabalho, desempregados; população de rua,
para caracterizar um conjunto de pessoas com características sociológicas e
psicológicas especiais que se expressam numa dificuldade de adaptação à vida em
Para maiores discussões, verificar Santos (2014), que discute a relação entre a mídia e a sociedade, bem
como a estratégia de defesa da mídia de desconstruir a imagem das pessoas em situação de rua enquanto
vítima de um sistema que privilegia uma parcela mínima da sociedade. Santos (2013) aborda a
representação delas nos veículos midiáticos.
10
Trata-se dos termos utilizados pelo autor. Optamos pelo termo ‘pessoas em situação de rua’, pois reflete
o caráter circunstancial como processual e transitório (BESSA, 2009).
9
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180
Discursos velados, vozes silenciadas: análise de notícias sobre situação de rua
sociedade (ex: mendigo, prostitutas, alcoólatras, migrantes, recém-chegados,
psicopatas e menores abandonados); trecheiro, para nomear pessoas que se
deslocavam a pé de uma cidade a outra, depois ampliado para designar as que se
deslocam dentro da cidade; e há uma palavra menos usual: pardais, para nomear os
que ficam mais limitados a certos locais e bairros, não andam muito; por fim, os termos
sofredor de rua, povo sem casa, o povo da rua e homem da rua surgem para contrapor
o preconceito da sociedade.
Conforme Rosa (2005), “[...] a troca de termo tem eficácia relativa. Trocam-se os
termos, mas não se trocam os comportamentos, e cada termo apresenta limitações à
compreensão da diversidade de comportamentos e da heterogeneidade das
situações” (ROSA, 2005, p. 65). As denominações são constituídas historicamente e
refletem a conjuntura em que são produzidas e revelam, em determinados momentos,
preconceito por parte da sociedade e, em outro momento, uma tentativa da
construção de conceitos no âmbito acadêmico, em especial, na área das Ciências
Humanas, que buscam compreender o modo de vida das pessoas que usam as ruas
para morar e sobreviver (ROSA, 2005).
Entre as escolhas lexicais mais recorrentes nos textos da mídia11 para
representaras pessoas em situação de rua é morador de rua. Compreendemos uma
naturalização do processo através do referido termo. Assim, cidadãos e cidadãs estão
nessas circunstâncias em decorrência do processo de acumulação capitalista, que
amplia as desigualdades sociais e níveis de pobreza, conforme afirma Silva (2017).
Diferentemente, neste estudo, optamos pelo termo situação de rua, pois conduz uma
compreensão que significa identificar uma circunstância passageira em que pessoas
são impulsionadas a uma condição provisória (ROSA, 2004). Após o Decreto
Presidencial nº 7.538 de 200912, a expressão pessoas em situação de rua ganhou
espaço com a reflexão de um termo processual e transitório.
Além dos nomes já mencionados para caracterizá-las, há outras construções –
estar na rua, ficar na rua e ser da rua13 – que propiciam a discussão acerca dessa
problemática social. De acordo com Rosa (2004), faz-se necessário obter clareza das
distinções entre ficar na rua – cujo termo reflete um estado de precariedade de quem,
além de estar sem recursos para pagar uma pensão, não consegue vaga em albergue
–, estar na rua – expressa a situação da pessoa que adota a rua como local de pernoite
e já não a considera tão ameaçadora –, e ser da rua – compreende um processo mais
difícil à proporção que aumenta o tempo de rua.
Essas distinções dialogam com a discussão que Pinto (2007) realiza acerca do
imaginário estabelecido, pela sociedade, sobre as pessoas em situação de rua.
Segundo o autor,
A partir do levantamento desta pesquisa, observamos que 70% das notícias do corpus utilizam essa
designação. Também em uma pesquisa de Iniciação Científica, intitulada Discurso e Situação de Rua em
Salvador e Região Metropolitana, contatamos que grande parte das notícias utilizou esse termo.
12
O Decreto institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial
de Acompanhamento e Monitoramento e estabelece outras providências.
13
Discussão abordada no livro População de Rua: quem é, como vive, como é vista (ROSA, 2004).
11
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181
Discurso e poder: teoria e análise
[...] procura-se romper com o imaginário social sobre a população de
rua em que prevalece a ideia de que são sujeitos marginais,
imprestáveis, maltrapilhos, drogados, malandros. Pretende-se aqui
demonstrar outros ângulos da vida do ser das populações de rua
apontando suas capacidades e habilidades associadas as suas formas
de organização e auto-organização. (PINTO, 2007, p.11).
Giogertti (2007) discute, numa perspectiva histórica do Brasil, a desigualdade
social e uma reflexão sobre ideologia higienista14, que ocorre com a existência dos
cortiços no Brasil, no século XIX, pois não era desenvolvida nenhuma política pública
de saúde para os moradores, sendo criada, na sociedade, uma polarização da
ideologia de classes: elite versus classe pobre. O pensamento, circulante entre
“intelectuais médicos”, se reproduziu no imaginário social por meio da dicotomia
‘dominante versus dominados’. A autora assinala que esse imaginário advém do
período da escravidão, mas também das ditaduras que marcaram a sociedade. A
autora salienta que o higienismo é um sentimento de inevitabilidade e convivência,
que advém de um quadro extremamente desigual. Esse discurso de higienização está,
intimamente, ligado à diferença de classes, superando o problema racial.
Com a intenção de atender as propostas de formular políticas públicas para as
pessoas em situação de rua, no período de agosto de 2007, foi realizada a Pesquisa
Nacional sobre a População em Situação de Rua15. No referido estudo, constata-se a
existência de 31.922 adultos nesta situação nos 71 munícipios pesquisados16, vivendo
em calçadas, praças, rodovias, parques, viadutos, postos de gasolina, praias, barcos,
túneis, depósitos e prédios abandonados, becos, lixões, ferro-velho, ou, pernoitando
em instituições (albergues, abrigos, casas de passagem e apoio de igrejas). No
entanto, esses dados não são precisos, porque as pesquisas foram realizadas em
momentos distintos e com metodologias diferentes, além de não abranger todas as
cidades do país, entre elas São Paulo, Belo Horizonte e Recife. Destacamos também a
existência de dados recentes do IPEA17 (2016), que estima um total de 112.890
pessoas em situação de rua. Entretanto, os munícipios de São Paulo, Recife, Belo
Horizonte e Brasília não foram pesquisados.
Ressaltamos a existência de políticas públicas, pois elas existem em duas
instâncias: no Decreto Federal nº 7.053 de 10 de março de 200918 e no Decreto
Estadual nº 23.836 de 22 de março de 201319. Essas políticas públicas apresentam
O discurso higienista aparece em grande parte das notícias coletadas nesta pesquisa dentro do período
proposto. Por isso a importância de abordar o termo.
15
Os resultados tornaram-se públicos em abril de 2008 por meio de um Sumário Executivo (BRASIL, 2008).
O público-alvo da pesquisa eram pessoas acima dos 18 anos de idade vivendo em situação de rua. A
pesquisa partiu de um acordo de cooperação assinado entre a Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome
(MDS).
16
Dados do documento da Política Nacional para Inclusão Social da População em Situação de Rua
(BRASIL,2008).
17
Fundação Pública Federal vinculada ao Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão.
Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=28819.
Acesso em: 15.08.2017
18
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d7053.htm. Acesso
em 10.03.2018
19
Disponível em: https://leismunicipais.com.br/a/ba/s/salvador/decreto/2013/2383/23836/decreto-n23836-2013-institui-a-politica-municipal-para-a-populacao-em-situacao-de-rua-e-seu-comite14
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Discursos velados, vozes silenciadas: análise de notícias sobre situação de rua
princípios, diretrizes e objetivos para o acompanhamento essas pessoas. Uma das
ações da política pública é o Centro de Referência Especializado para População em
Situação de Rua, doravante Centro POP, previsto no Decreto nº 7.053/2009 e na
tipificação nacional de serviços socioassistenciais, constitui-se em unidade de
referência da Proteção Social de Média Complexidade (PSE) de Média Complexidade,
de natureza pública e estatal.
O Centro POP volta-se, especificamente, para o atendimento especializado à
população em situação de rua, devendo ofertar, obrigatoriamente, o Serviço
Especializado para Pessoas em Situação de Rua (SEPSR). De acordo com o Ministério
do Desenvolvimento Social (MDS, 2016), existem 219 Centros Pop no Brasil, que
também dispõe de 129 Consultórios na rua, cujo trabalho é executado por equipes de
saúde móveis que prestam atenção integral à saúde dessas pessoas20.
Na seção seguinte expomos, os aspectos metodológicos, bem como a análise
dos textos jornalísticos.
3 Procedimentos metodológicos e análise do corpus
Neste artigo, adotamos uma abordagem qualitativa com base nas concepções
de Flick (2004), pois, para o autor, os elementos essenciais da pesquisa qualitativa
consistem na escolha correta de métodos e de teorias oportunas, no reconhecimento
e na análise a partir de diferentes perspectivas, nas reflexões dos pesquisadores a
respeito de sua pesquisa como parte do processo de produção de conhecimento, e
na variedade de abordagens e métodos.
Nesta linha, o corpus, deste estudo, foi composto por duas notícias em versões
online publicadas de 2012 a 201721 nos seguintes veículos de comunicação: Estado de
Minas, Hoje em dia22. Trata-se de dois jornais de grande circulação no Estado de Minas
Gerais conforme dados da Associação Nacional de Jornais – ANJ (2014)23. Segundo
Lira (2009), o jornal mineiro Estado de Minas foi fundado em Belo Horizonte no dia 7
de março de 1928 por Juscelino Barbosa, Álvaro Mendes Pimentel e Pedro Aleixo. O
autor ainda ressalta que é um dos jornais diários impressos de maior circulação no
estado de Minas Gerais. De acordo com o referido autor, o jornal Hoje em dia foi
fundado em 24 de fevereiro de 1998, e nasce com consonância com o novo estado
democrático e possui uma linha editorial plural e independente.
intersetorial-de-acompanhamento-e-monitoramento-e-da-outras-providencias?wordkeytxt=racial.
Acesso em: 10.03.2018
20
Dados extraídos em: http://www.brasil.gov.br/observatoriocrack/cuidado/centro-pop.html. Acesso em:
10.03.2018.
21
O lapso de tempo corresponde ao desenvolvimento da pesquisa no decorrer de um ano, período
referente à concessão do financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia
(FAPESB); portanto, as notícias selecionadas referem-se à coleta de dados no decorrer desses anos.
Também pesquisamos o jornal O tempo, mas, neste artigo, selecionamos apenas dois sites.
22
Também pesquisamos o jornal O tempo. Mas neste artigo selecionamos apenas dois sites.
23
Associação Nacional de Jornais (ANJ, 2015). Disponível em: http://www.anj.org.br/maiores-jornais-dobrasil/. Acesso em: 31.03.2018. Destacamos também que retiramos as informações dos principais sites
de
grande
circulação
no
site
Guia
de
Mídia.
Disponível
em:
https://www.guiademidia.com.br/jornaisdeminasgerais.htm. Acesso em: 31.03.2018
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183
Discurso e poder: teoria e análise
Ao ter contato com esses suportes, em cujo ambiente materializou-se o gênero
notícia, selecionamos os textos a partir de palavras-chave, referentes aos termos,
geralmente, utilizados para nomear as pessoas em situação de rua: “situação de rua”,
“morador de rua”, “perambulante”, “mendigo”. Dessa forma, definimos as notícias
considerando a tiragem, conforme os dados ANJ, distribuição e a importância dentro
do espaço midiático/jornalístico. Após o levantamento dos textos jornalísticos nos
referidos jornais de grande circulação, a fim de selecionar para análise, classificamolos conforme expõe o gráfico abaixo:
Gráfico 1. Classificação do levantamento das notícias a partir dos dois textos
jornalísticos em análise de Belo Horizonte.
40
35
30
25
20
15
10
5
0
Políticas públicas
38
34
Violação dos direitos
28
28
Violência/morte
19
Ação social
9
9
Higienização
6
2
Justiça
Notícias de outros estados/países
Trabalho Voluntário
Outros temas
Fonte: elaboração própria.
Com base nas informações do Gráfico24, verifica-se um percentual significativo
de notícias vinculadas às políticas públicas, nas quais se mobilizam discussões
referentes às pessoas em situação de rua, especificamente no que tange coibi-las a
frequentarem os espaços públicos, à participação dessas pessoas na elaboração de
políticas públicas, à efetivação de investimentos em unidades de acolhimento, aos
locais de funcionamento do Centro de Referência Especializado para População em
Situação de Rua (Centro POP), entre outros. Definimos por duas notícias pertencentes
à classificação políticas públicas, pois pretende-se observar o que tem sido feito – por
parte das instâncias governamentais – para resolver/reduzir o problema social das
pessoas utilizarem os espaços públicos para morar.
Título: Seleção do corpus indicando o jornal, título, período de publicação, link
do texto e síntese da notícia.
(1) Estado de Minas25 – (N1) Moradores de rua de Belo Horizonte respondem ao censo.
(28/11/2013). A notícia apresenta dados de um censo feito pela prefeitura de Belo
Nos resultados finais da pesquisa, exploramos e explicamos minunciosamente cada classificação e
descrição das notícias, entretanto reduzimos essas exposições devido ao recorte no artigo.
25
A
notícia
está
disponível
em:
https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2013/11/28/interna_gerais,474257/moradores-de-rua-debelo-horizonte-respondem-ao-censo.shtml. Acesso em: 2 set. 2018.
24
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Discursos velados, vozes silenciadas: análise de notícias sobre situação de rua
Horizonte que aborda a tentativa de fazer a contagem das pessoas em situação de rua
e suas dificuldades em identificar pontos de concentração desta parcela de pessoas. A
notícia apresenta também entrevistas que mostram o perfil de quem está nesta
situação.
(2) Hoje em dia26 – (N2) Moradores de rua participam da elaboração de política públicas
em comitê estadual. (21/08/2017). Relata que o comitê está traçando estratégias para
captar verba para a formulação do Plano Estadual para as pessoas em situação de rua
em Minas Gerais, e propõe que as elas participem das discussões.
Inicialmente, propõe-se analisar os atores sociais representados textualmente
nas duas notícias27. As representações nem sempre são identificados nas notícias pela
agência linguística (VAN LEEUWEN, 1997). Na N1, identificamos a representação
social de Cristiane Drumond de Brito, que é supervisora e professora de terapia
ocupacional da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mencionamos também
que ela comandou três alunos de medicina e dois estudantes de terapia ocupacional
da UFMG, sendo uma assistente social e um professor de educação física. Ocorre a
representação de Lilian Almeida de Paula identificada como assistente social, que
entrevistou algumas pessoas em situação de rua, cujas pessoas não foram
identificadas. De modo semelhante, Soraya Romina, coordenadora do Comitê de
Acompanhamento e Monitoramento da Política Municipal para a População em
Situação de Rua.
Observamos que as pessoas em situação de rua, que são o alvo da pesquisa na
apresentação da notícia, são representadas de maneira indeterminada como: “[...]
Sentado entre vários livros que vende debaixo do viaduto, o homem de 42 anos parava
para cumprimentar todos que passavam e não hesitou em participar do censo”. Em
um relato direto, apresenta-se como “[...] O morador de rua, Anderson Sardinha
Guimarães, de 34 anos, foi o relações-públicas do grupo, fazendo abordagens e
explicando a pesquisa”. Em outro momento, notamos a representação como “[...]
Alguns nem pararam e logo surgiram dificuldades de comunicação”. Nessa última,
verificamos a identificação por meio da indeterminação, ou seja, os atores sociais
representados como indivíduos ou grupos não são especificados. Essa identificação
realiza-se por meio de pronomes indefinidos, segundo Van Leeuwen (1997).
Notamos que as pessoas que representam o setor público, na notícia, são
categorizadas (VAN LEEUWEN, 1997), pois apresentam suas identidades e funções
que partilham socialmente. No que se refere às pessoas em situação de rua, notamos
que ocorre obstração28 (VAN LEEUWEN, 1997), pois são representados por meio da
categoria que é socialmente compartilhada. Essa perspectiva reflete uma
compreensão de que elas são ‘invisíveis’. Santos (2013) discute sobre a invisibilidade
delas, caracterizando a rua por ser um espaço de transição, com pessoas em constante
movimento de ir e vir. No entanto, esta população, o espaço acaba se tornando um
Disponível
em:
https://www.hojeemdia.com.br/horizontes/moradores-de-rua-participam-daelabora%C3%A7%C3%A3o-de-pol%C3%ADticas-p%C3%BAblicas-em-comit%C3%AA-estadual1.552988. Acesso em: 02.09.2018.
27
Destacamos que realizamos análises de seis notícias no Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), na
Universidade Estadual da Bahia (UNEB), mas para este artigo delimitamos duas.
28
“A Abstração ocorre quando os atores sociais são representados por meio de uma referência a um local
ou coisa diretamente associada a uma atividade que está ligada” (VAN LEEUWEN, 1997, p. 191).
26
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Discurso e poder: teoria e análise
universo bem diverso do imaginado por quem experiência essa condição, não são
visto como ‘visíveis’ na sociedade, ou quando os são identificadas “aceitam olhares
invasores que vêm de cima para baixo, ser chutado(a) e ofendido(a) sem motivos”
(SANTOS, 2013, p. 48).
Ainda, destacamos uma assimilação (VAN LEEUWEN, 1997). Conforme o autor,
entendemos a assimilação como a exclusão dos atores sociais no texto, ou uma
exclusão em segundo plano, pois os atores sociais excluídos podem não ser
mencionados em relação a uma dada atividade, mas consegue-se inferir a relação das
pessoas que representam o setor público, embora não seja de maneira direta, como
ocorre na notícia. No fragmento da notícia (N1), verificamos essa exclusão em segundo
plano quando se diz ‘a prefeitura’:
A intenção da prefeitura é compreender o fenômeno que leva as
pessoas às ruas para poder ampliar suas políticas públicas. Para isso,
o questionário foi dividido em 12 áreas com cerca de 60 perguntas.
Entre os questionamentos estão idade, orientação sexual, cor,
escolaridade, deficiência física, por que está na rua, moradia, contato
com família, higiene, problemas de saúde, transtorno mental, uso de
bebida alcoólica ou droga, alimentação, programas sociais, trabalho,
violência e preconceito.
Este trecho abordado na notícia relaciona-se à discussão mobilizada por Silva
(2016) acerca das pessoas em situação de rua viver em um espaço de insegurança
constante. O autor assinala que o Estado não consegue garantir a integridade física e
moral, bem como esses sujeitos são vistos pela sociedade como um grupo que
oferece risco e não como um grupo que está em risco. Conforme Fairclough (2003), a
intertextualidade diz respeito às relações entre um texto com outros textos ‘externos’
a ele, dele, embora, de alguma forma, presentes nele, bem como identificar por relatos
diretos e indiretos.
Na N1, verificamos o relato direto de Anderson Sardinha Guimarães (pessoa
em situação de rua): “Convivo com essas pessoas e isso facilita a chegada das
equipes”. Outro relato direto de uma pessoa em situação de rua identificada apenas
como morador de rua: “Vivo na rua desde os 19 anos, quando meus pais e minha avó
morreram. Rodei o país. Não sei se foi depressão. Ainda estou tentando descobrir, riu
o “morador de rua”, que diz evitar bebida e drogas”,“Lá tem muita coisa errada e dá
confusão. Iria se não fosse assim. Prefiro ficar na rua e comprar minha comida”29.
Esse ‘lá’ faz retomada ao uso de albergues ou abrigos. A partir desse relato
direto, percebemos uma relação com a pesquisa de Rosa (2004), desenvolvida na
década de 1980, na cidade de São Paulo, que deu início ao processo investigativo
sobre a ‘população de rua’. Por meio do estudo, a pesquisadora aplicou entrevistas
com as pessoas em situação de rua, que utilizavam os albergues e que não atendiam
a demanda das instituições. Dessa atividade, a autora registrou os relatos das referidas
Dados da Secretaria Municipal de Assistência Social, por meio do Censo da População de Rua de BH,
destacam que grande parte (33,5%) das pessoas entrevistadas admitiu falta de interesse pelos abrigos
oferecidos pela prefeitura por causa da inflexibilidade de horários e das regras.
29
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Discursos velados, vozes silenciadas: análise de notícias sobre situação de rua
pessoas, que afirmaram ter sido vítimas de maus-tratos por parte das pessoas que os
serviam. Diante desse tipo de situação, eles preferiam as ruas.
Tem-se o relato direto da assistente social Lilian Almeida de Paula: “É difícil
porque não podemos induzir as questões”; “Dois até aceitaram o lanche oferecido –
pão com mortadela e um copo de suco – mas se negaram a esclarecer as dúvidas do
questionário”. Em todo o texto, se faz presente essas afirmações, abordando as
dificuldades de realizar o censo, bem como a resistência, por parte de pessoas em
situação de rua, em responder o questionário.
Ressaltamos o relato direto da Soraya Romina, coordenadora do Comitê de
Acompanhamento e Monitoramento da Política Municipal para a População em
Situação de Rua, diz: “Queremos saber o que precisa ser feito para aprimorarmos as
políticas sociais”. Nesse relato, notamos uma preocupação, da coordenadora, que no
contexto enunciativo representa o Estado, em compreender os motivos que levam as
pessoas a estarem em situação de vulnerabilidade nas ruas para aprimorá-las.
Observamos, a partir desses relatos, há uma recorrência de casos de violência
e agressão. O relato direto na (N1) destaca-se: “[...] apesar da dificuldade, ele30 trouxe
informações importantes, como a existência de agressão com os mendigos, roubos e
violência sexual”. Nesse enunciado, notamos uma tendência em publicar esses casos
nos veículos jornalísticos. Também remete a uma discussão das ponderações de
Gomes e Resende (2018)31 sobre as pessoas em situação de rua, que, segundo as
autoras, são classificadas como perigosas, mesmo sendo vítima de violência; como
incômodas, mesmo sofrendo o incômodo da vida nas ruas; bem como classificadas de
oportunistas, mesmo estando na margem periférica do sistema de vantagens
desigualmente distribuídas, no modo de produção capitalista. Conforme as autoras
“[...] essas classificações, produzidas ordinariamente, e circuladas nos mais variados
contextos, reificam a violência” (p.167)
No que se refere às escolhas lexicais presentes nas notícias, notamos o uso do
termo ‘morador de rua’ no título e durante a representação no corpo do texto.
Entendemos a utilização dessas escolhas lexicais para nomear/classificar. A depender
da escolha lexical, tem-se um impacto semântico nas práticas sociais, bem como na
maneira como representamos os aspectos do mundo. Portanto, o termo mencionado,
muitas vezes, colabora com a manutenção do problema social, porque subentende
uma situação fixa, além da contradição que se cristaliza: o ‘morar’ na rua. Essas
‘designações’ podem distorcer ou amenizar circunstâncias – considerando também
uma ocultação dos direitos de cidadania – no que diz respeito à sociedade como um
todo do que a indivíduos. Desse modo, tem-se uma naturalização do problema social
em debate com um deslocamento que parece “normal” (BESSA, 2009)32.
Nessa perspectiva, identificamos a eliminação, ou, a ofuscação do caráter
sócio-histórico dos fenômenos, ou seja, esse modo pode ser expresso por meio da
Refere-se ao questionário realizado.
Discussão apresentada no artigo Representação da situação de rua no jornalismo eletrônico em textos
verbo-visuais – a violência em discurso no Correio Braziliense (2011-2013).
32
No final deste capítulo, apresenta-se um gráfico referente às escolhas lexicais que os jornais utilizam
para se referir às pessoas em situação de rua.
30
31
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Discurso e poder: teoria e análise
naturalização (THOMPSON, 1997), sendo um estado de coisas que é uma criação
social e histórica na qual é tratada como natural ou como um resultado inevitável de
características naturais. Transmite-se uma ideia fixa, como se a pessoa pudesse ‘morar’
nas ruas e como se o acontecimento fosse natural, o que conduz à opressão e à perda
de direitos (RESENDE, 2018).
No que se refere à interdiscursividade presente na notícia, notamos o discurso
de assistência no seguinte relato indireto: “[...] A intenção da prefeitura é compreender
o fenômeno que leva as pessoas às ruas para poder ampliar suas políticas públicas.
Para isso, o questionário foi dividido em 12 áreas com cerca de 60 perguntas”. O
discurso de moradia aparece em duas facetas, primeiro de morar na perspectiva de
ter um lugar para residir “[...] Mesmo assim, os que apareceram pelo caminho
permitiram entrevistas que vão mostrar o perfil de quem vive nas ruas”, segundo por
almejar uma residência. A maioria é homem, de 35 a 50 anos, que veio de outras
cidades ou estados. Quase todos os relatos das pessoas em situação de rua
apresentaram ter família e local para morar, bem como conflitos com parentes,
dependência de drogas ou álcool e problemas mentais que os levaram a escolher uma
vida sem teto.
O discurso de violência é identificado no seguinte enunciado: “[...] Apesar da
dificuldade, ele trouxe informações importantes, como a existência de agressão entre
e com os mendigos, roubos e violência sexual”. Também há uma ocorrência do
discurso de violação dos direitos humanos33, quando as políticas públicas não
atendem as necessidades das pessoas em situação de rua no exemplo a seguir: “[...]
Por isso, não usa albergues ou abrigos: “Lá tem muita coisa errada e dá confusão. Iria
se não fosse assim. Prefiro ficar na rua e comprar minha comida”.
Este relato direto relaciona-se com os resultados da pesquisa de Rosa (2004)
desenvolvida em São Paulo, a qual menciona relatos diretos das pessoas em situação
de rua com os trabalhos desenvolvidos em instituições públicas e privadas que
prestavam serviços; entre eles, chamaram a atenção: os descasos nos albergues com
as pessoas em situação de rua; o crescimento da ‘população de rua’; e os albergues
que não atendiam a demanda. A partir do relato direto e correlacionando a pesquisa,
notamos que há uma reverberação de que isso se repete, mesmo após alguns anos e
com os avanços das políticas públicas.
Na N2, verificamos a nomeação (VAN LEEUWEN, 1997) de Samuel Rodrigues
integrante da coordenação do Movimento Nacional de População de Rua (MNPR),
também ocorre a nomeação de Ademilton Gonçalves que esteve em situação de rua,
bem como Alex Maciel, 37 anos, representante do MNPR no PopRua. Tem-se a
assimilação (VAN LEEUWEN, 1997) no excerto “Os cinco membros que estão em
situação de rua e participam do comitê são de Montes Claros (Norte), Juiz de Fora
(Zona da Mata), Uberlândia (Triângulo), Ipatinga (Vale do Aço) e Belo Horizonte, as
Entendemos como violação de direitos de cidadania os direitos à segurança, saúde, educação, moradia,
alimentação. Essa violação de direitos é articulada a diversas formas de violência, pois compreendemos
como um problema social que tem impacto sobre amplos setores da população, impossibilitados de
usufruir de seus direitos de cidadania e de realizar de maneira plena seu potencial (RESENDE, 2015, p 17)
33
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188
Discursos velados, vozes silenciadas: análise de notícias sobre situação de rua
duas últimas abrangendo as regiões metropolitanas”. Apresentam-se apenas duas
vozes, na notícia, das pessoas em situação de rua.
Observamos uma recorrência da não nomeação das pessoas que representam
e coordenam a Política Estadual da População em Situação de Rua (PopRua). Tal fato
pode ser verificado no trecho “[...] O gestor diz que um dos objetivos”; também em
“[...] Essa premissa do Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da
Política Estadual da População em Situação de Rua (PopRua), coordenado pela
Secretaria de Estado de Direitos Humanos, Participação Social e Cidadania (Sedpac)”.
Assistimos que a escolha entre referência genérica e específica é um fator importante
na representação dos atores sociais, que podem surgir como classes de indivíduos
específicos e identificáveis. A diferença ocorre no modo como os atores sociais são
representados por diferentes pessoas (VAN LEEUWEN ,1997).
No que se refere à intertextualidade, na N3, verificamos a existência das vozes
das pessoas em situação de rua, como, por exemplo, no relato direto de Alex Maciel:
“A nossa esperança é que no comitê seja possível juntar as políticas de assistência
social, habitação, saúde e cultura em uma política só”; bem como o de Ademilton
Gonçalves: “Aluguei um barracão e fui contratado por uma empreiteira. Com a minha
experiência, posso levar propostas aos governantes para ajudar quem ainda está na
rua”. Nesses relatos, notamos o destaque na fala delas para regulamentar a prática
social e para produzir uma opinião de consenso, dando ênfase à atividade que o órgão
público quer destacar e isso se apresenta como mero registro de fatos.
Outro relato direto que aparece na notícia referida é o de Samuel Rodrigues:
“Antes, o governo de Minas nunca tinha assumido uma política para população de rua.
Certamente teremos uma política mais sólida se a fizermos de forma participativa”.
Notamos, a partir da notícia, um avanço do Estado com políticas afirmativas para as
pessoas em situação de rua. Apresenta-se também o relato direto de Tomaz Duarte
Moreira, que coordena a iniciativa e representa a Sedpac no grupo: “E buscamos
outras fontes de financiamento e parcerias com todos os setores da sociedade”. Por
meio desses dois excertos, constatamos uma alteração nos fatos apresentados, pois
anteriormente a notícia apresenta que a Secretaria de Estado de Saúde (SES), desde
2015, custeava o programa federal Equipes de Consultório na Rua, que promove
atendimento itinerante e permanente em todas as regiões mineiras. Entendemos que
fica implícito que as instâncias governamentais não dão conta de resolver o problema
das pessoas em situação de rua, necessitando de parcerias com outros setores da
sociedade.
A notícia apresenta um relato indireto do gestor do Comitê Intersetorial de
Acompanhamento e Monitoramento da Política Estadual da População em Situação
de Rua (PopRua), que diz: “[...] O gestor diz que um dos objetivos é propor ações
regionais, que acolham as demandas dessa população no interior de Minas”.
Identificamos a efetivação de políticas públicas para as pessoas em situação de rua.
No que diz respeito às escolhas lexicais presentes no texto, identificamos o
termo ‘morador de rua’ para se referir as pessoas em situação de rua. O respectivo
termo aparece no título da notícia: “[...] Moradores de rua participam da elaboração
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189
Discurso e poder: teoria e análise
de políticas públicas em comitê estadual”. A presença do verbo transitivo participar
integra um sentido partilhar e pressupõe a compreensão de que as pessoas em
situação de rua poderão discutir, debater e sugerir uma política de inclusão. Porém,
no decorrer da notícia, apresentam-se apenas relatos diretos de aspectos positivos das
políticas públicas efetivadas. Isso se relaciona ao aspecto ideológico da dissimulação34
apontado por Thompson (1995), que pode ser expresso em formas simbólicas por
meio de uma variedade de diferentes estratégias. Uma delas é o deslocamento que
se refere a um determinado objeto, ou uma determinada pessoa para se referir ao
outro e com isso as conotações positivas ou negativas são transferidas para o outro
objeto, ou, a outra pessoa.
Gráfico 2. Escolhas lexicais utilizadas nos textos jornalísticos que nomeiam as pessoas
em situação de rua.
Sem-teto; 5,29%
Pedinte; 1,32%
Situação de rua;
4,60%
População de rua;
13,24%
Andarilhos;
1,98%
Morador de rua;
44,30%
Mendigo Alcoólatra;
0,60%
Mendigo;
28,40%
Fonte: Autoria própria.
Contatamos uma diversificação dos significados de denominações utilizadas
para referir às pessoas que vivem em situação de rua. Certificamos que essas
denominações são constituídas historicamente e refletem a conjuntura em que são
produzidas que revelam, “[...] ora preconceito pela sociedade e em outro momento
uma tentativa da construção de conceitos pelas ciências humanas que buscam
compreender o modo de vida singular dos que usam as ruas para morar e sobreviver.”
(ROSA, 2004, p.29). Essas questões apontam para uma tendência, conforme a
pesquisa da autora apresenta:
[...] a troca de termo tem eficácia relativa. Trocam-se os termos, mas
não se troca os comportamentos, e cada termo apresenta limitações
á compreensão da diversidade de comportamentos e da
heterogeneidade das situações. (ROSA, 2004, p.65)
Essas nomeações constroem os modos como às pessoas em situação de rua
são representadas textualmente nos textos jornalísticos e isso têm influência sobre os
modos como a sociedade compreende o problema e reage a ele. Compreendemos,
conforme exprime Fairclough (2003), que é por meio da linguagem que o discurso se
constrói e representa a realidade social. Este construir e representar impacta as ações
O autor distingue cinco modos gerais de como a ideologia pode operar: legitimação, dissimulação,
unificação, fragmentação e reificação (THOMPSON, 1995).
34
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190
Discursos velados, vozes silenciadas: análise de notícias sobre situação de rua
discursivas, seja de forma colaborativa ou na forma de disputas. Com isso, identificálos nos textos colabora para uma percepção do tratamento do problema social em
discussão.
Aferimos, na N1, os discursos de higienização, inclusão, violação dos direitos
humanos, desemprego, preconceito, assistência; na N2, discurso de inclusão,
preconceito e assistência. Observamos que os discursos que mais aparecem nas
notícias são os de violação dos direitos e o discurso de assistência. Consideramos que
todas as notícias tratam sobre políticas públicas (o discurso de assistência) e isto
apresenta um aspecto relevante, diante da perspectiva de observar o que tem sido
feito para as pessoas em situação de rua, portanto grande parte das notícias discutem
a efetivação e o avanço na busca de amenizar o quantitativo das pessoas em situação
de rua. Em grande parte das notícias, o discurso de agressão está presente.35
Elencamos no gráfico os discursos presente nas notícias e maneira como eles
se repetem nos textos jornalísticos analisados. Entendemos que os discursos
materializados em textos têm efeitos nas práticas sociais e realizam mudanças no
mundo (RESENDE, 2018). Portanto, percebemos que diferentes discursos são
diferentes modos de representar realidades. Neste contexto, trata-se sempre de
diferenças posicionadas – situadas e decorrentes de posições em jogos de interesses
e relações de poder. Consequentemente, os discursos identificam e participam, na
construção discursiva de identidades.36
Considerações finais
De maneira ampla, os estudos desenvolvidos ao longo da pesquisa
colaboraram para um olhar mais crítico em relação às questões sociais, bem como para
compreensão da dialética entre a linguagem e sociedade. Dentro dos objetivos
propostos, no que se refere à intertextualidade, identificamos que a intertextualidade
está presente no relato direto das pessoas em situação de rua e indireto das pessoas
que representam o setor público.
Os discursos que mais aparecem nas notícias são os de violação dos direitos,
discurso de assistência e discurso de preconceito: o primeiro refere-se a violar os seus
direitos enquanto cidadãos e cidadã; o segundo é pautado na efetivação das políticas
públicas da prefeitura de Belo Horizonte; o último demonstra uma recorrência de
preconceito com as pessoas nessa situação de vulnerabilidade, apontando como
insegurança e o incômodo. O primeiro ativa-se por pressuposto, mas o segundo é
explicitado em diversas partes do texto. Constatamos que os discursos sobre pessoas
em situação de rua são materializados; verificamos que a situação de rua é percebida
apenas pelo viés de seus efeitos sobre populações outras. Entendemos que os
discursos materializados em textos têm efeitos e realizam mudanças no mundo.
Com isso, entendemos que “toda violência física é sempre precedida de violência verbal; há toda uma
gramática da violência que leva à opressão e à perda de direitos”. Conforme a autora, elas são avaliadas
como incômoda, perigosa. (RESENDE, 2018, p.167)
36
Esses três aspectos são base da teoria de discurso formulada por Fairclough (2003).
35
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191
Discurso e poder: teoria e análise
No que se refere às relações ideológicas presentes no texto, identificamos a
naturalização (THOMPSON, 1997) da questão social, situação de rua, e histórica,
sendo tratada como natural ou como um resultado inevitável das práticas sociais,
transmitindo assim, uma ideia fixa, o que pode conduzir à opressão e à perda de
direitos. Dentre as questões elencadas neste artigo, sobre o modo como a mídia
jornalística eletrônica representa a população em situação de rua, notamos que se
fazem presentes facetas discursivas, já que os modos como as pessoas em situação de
rua são representadas em textos têm influência sobre os modos como a sociedade
compreende o problema e reage a ele, o que também impacta sobre os modos como
pessoas que enfrentam a situação de rua se identificam e se relacionam no tecido
social.
Durante o percurso da pesquisa, inferimos, a partir do discurso analisados, que
as pessoas que vivem em situação de rua sofrem todas as formas de violação de seus
direitos humanos e, para sobreviverem, utilizam-se de diferentes estratégias. Com isso,
as mudanças que estão acontecendo e que precisam acontecer em discursos (e por
isso em práticas sociais) podem colaborar positivamente com a vida de cidadãs e de
cidadãos em situação de rua. São pessoas que têm direitos constitucionais, são parte
da sociedade e por isso não podem ser tratadas como excluídas37.
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37
Para uma discussão sobre o tema “exclusão social” e sua relação com a situação de rua, ver Bessa (2009).
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Como citar
PENITENTE, Natalia. Discursos velados, vozes silenciadas: análise de notícias sobre
situação de rua. In: GONÇALVES-SEGUNDO, Paulo Roberto; ARAES, Célia Regina;
CASTANHEIRA, Claudia; ISOLA-LANZONI, Gabriel; PENITENTE, Natalia; WEISS,
Winola (orgs). Discurso e poder: teoria e análise. São Paulo: FFLCH/USP, 2020, p.
171-193. DOI: 10.11606/9786587621241
PENITENTE, Natalia | 2020 | p. 171-193
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Análise da desclassificação repreensiva por meio de uma propaganda
Análise da desclassificação
repreensiva por meio de uma
propaganda
Ramiro Carlos Humberto CAGGIANO BLANCO
Universidade de São Paulo
[email protected]
Resumo: Este trabalho tem por objetivo descrever as estratégias
discursivas utilizadas por um grupo de poder econômico para
manipular as crenças e atitudes de um amplo setor da
sociedade brasileira, no contexto dos protestos ocasionados
ante a realização da copa de mundo de futebol de 2014.
Buscaremos, por meio da Análise Crítica do Discurso (ACD),
mostrar como se opera o controle e a manipulação da
subjetividade social na peça publicitária “Imagina a Festa”
(2013), realizada pela agência África para a cerveja Brahma, do
grupo AmBev. O marco teórico baseia-se na ACD que permite,
segundo Van Dijk (1996), desde uma postura crítica, descobrir
a ideologia, expressada explícita ou inadvertidamente, de
falantes e escritores através da linguagem ou outros meios de
comunicação. Segundo o autor, uma análise dessa dimensão
do poder supõe algum tipo de controle que alguns atores ou
grupos sociais exercem sobre outros. Tal controle é, antes de
tudo, mental, ou seja, manipulação das crenças das pessoas, tais
como seus conhecimentos, suas opiniões e suas ideologias e,
indiretamente, das ações dos receptores (VAN DIJK, 2012).
Quanto aos aspectos teóricos gerais da publicidade,
seguiremos os alinhamentos de Carvalho (2003) e
Maingueneau (2000). Primeiramente, apresentaremos e
contextualizaremos as condições sócio-históricas de produção
e circulação do corpus sob análise, principalmente as tensões
sociais à época e o temor das elites econômicas de que o evento
esportivo pudesse não se realizar. Seguidamente, efetuaremos
uma análise dos componentes ideológicos e de controle social
da publicidade, realizados através de estratégias linguísticas e
imagéticas e, para concluir, consideraremos alguns pontos
essenciais da manipulação exercida pelo grupo de poder,
chegando a configurar a desqualificação de um importante
setor da sociedade brasileira, e, por vezes, sua ridicularização.
Palavras-chave: Análise Crítica do Discurso; Controle social;
Publicidade; Ideologia.
CAGGIANO BLANCO, Ramiro Carlos Humberto | 2020 | p. 194-209
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Discurso e poder: teoria e análise
Introdução
A Análise Crítica do Discurso (ACD) propõe uma investigação analíticodiscursiva do modo como o abuso de poder, a dominação e a desigualdade são
representados ou reproduzidos [...] por textos orais e escritos em contexto social e
político (VAN DIJK, 2012, p. 113). Assim, uma análise desta dimensão do poder supõe
algum tipo de controle que alguns atores ou grupos sociais exercem sobre outros. Este
controle é, antes de tudo, mental, ou seja, manipulação das crenças das pessoas, tais
como seus conhecimentos, suas opiniões e suas ideologias e, indiretamente, das
ações dos receptores baseado nessa manipulação de crenças (VAN DIJK, 2012, p. 236
e 240).
No presente trabalho, abordamos a análise da publicidade “Imagina a Festa”,
realizada pela agência África para a cerveja Brahma, do grupo AmBev, que configura
um claro exemplo desse controle social. De fato, passou-se o tempo em que as
propagandas se limitavam a dar a conhecer novos produtos. O papel social que hoje
cumprem é cada vez maior. Para Carvalho (2003, p. 13), diferente das demais
mensagens, a publicidade tenta impor “valores, mitos, ideias e outras elaborações
simbólicas, utilizando os recursos próprios da língua que lhe serve de veículo”. Pedro
(1997, p. 26) não hesita em afirmar que a publicidade é um recurso do poder para
exercer o controle, nos seguintes termos:
Além do recurso à força para o exercício do controlo da ação, o
poder, hoje, utiliza formas muitas vezes bastante mais eficazes, através
da persuasão ou da manipulação – os casos da publicidade, [...] são
exemplos paradigmáticos.
Em idêntico sentido, Van Dijk (2012, p.52) afirma que:
Os tipos persuasivos de discurso, tais como os anúncios publicitários
e as propagandas, também pretendem influenciar as ações futuras
dos receptores. Seu poder baseia-se nos recursos econômicos,
financeiros ou, em geral empresariais ou institucionais e exerce-se por
meio do acesso aos meios de comunicação. Nesse caso, a
aquiescência é fabricada por mecanismos retóricos, por exemplo, por
meio da repetição ou da argumentação.
A partir dessas premissas, buscaremos, por meio da Análise Crítica do Discurso,
mostrar como opera o controle e a manipulação na peça publicitária mencionada.
Em primeiro lugar, apresentaremos e contextualizaremos as condições sóciohistóricas de produção e circulação do corpus sob análise. Depois, realizaremos a
análise da publicidade e de seus componentes ideológicos e de controle e, a partir da
observação, principalmente, de pronomes como categoria de análise concluiremos
considerando alguns pontos essenciais da análise realizada.
1 Apresentação e contextualização do corpus
Com a chegada da copa do mundo que o Brasil sediou em 2014, muitas das
obras projetadas ou pensadas – principalmente relacionadas ao transporte e
CAGGIANO BLANCO, Ramiro Carlos Humberto | 2020 | p. 194-209
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Análise da desclassificação repreensiva por meio de uma propaganda
mobilidade pública- foram se atrasando1, apesar dos esforços do governo2 , devido a
diversas causas, algumas até demográficas, como a falta de trabalhadores da
construção3.
Ante essa situação, muitas pessoas acunharam a expressão Se está assim,
imagina na copa, ao questionar ou reclamar pelos conhecidos problemas do dia a dia
das grandes cidades brasileiras, tais como trânsito congestionado, ônibus lotados,
longas filas nos aeroportos etc.
“Se as coisas estão desse jeito agora, imagina na Copa!” Quantas
vezes você já ouviu essa frase? Ela tem sido repetida tantas vezes, que
“imagina na Copa” acabou virando esse bordão que a gente se
acostumou a ouvir pelas ruas, nas mesas de bar, nas redes sociais. 4
Nesse contexto, foi criada uma propaganda da cerveja Brahma, pertencente à
Companhia de Bebidas das Américas - AMBEV, uma multinacional com presença em
14 países na América5, com o nome Imagina a Festa. A peça publicitária resignifica, em
60 segundos, o bordão popular empregado para expressar insatisfação e que
ameaçava o clima de festa pretendido pela empresa.
Para a realização da propaganda, contratou-se a agência África cuja intenção
foi, segundo Vice Benevides, diretor de criação, exaltar “o otimismo em torno do
evento”, manifestar o apoio ao mesmo e mostrar que “a Brahma está diretamente
envolvida com alguns dos maiores e melhores eventos do mundo como o carnaval e
o réveillon”.6
A continuação, transcrevemos o texto completo da peça publicitária:
Quadro 1. Transcrição do texto publicitário
O Brasil é o país do futebol, mas também é o país das festas,
por isso a nossa copa do mundo da FIFA vai ser a melhor de todas.
Alguns insistem em que nossos aeroportos não vão dar conta,
que o trânsito vai ser um caos,
e sempre dizem: “se tá assim agora, imagina na copa”.
Pessimistas, pensem bem:
o país que faz os maiores clássicos, o réveillon e o carnaval,
vai fazer a melhor festa já vista.
Vamos imaginar como os aeroportos estarão lotados...
sim, estarão, de torcedores empolgados e atletas incríveis.
Vamos imaginar como teremos engarrafamentos...
sim, teremos, de trios elétricos.
Portal
Último
Segundo:
http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/obras+para+a+copa+estao+atrasadas+em+todas+as+cidadesse
de/n1597009517966.html. Acesso em 15/11/2012.
2
Portal
Último
Segundo:
http://ultimosegundo.ig.com.br/politica/dilma+convoca+reuniao+com+prefeitos+para+cobrar+obras+
da+copa/n1596991191652.html. Acesso em 15/11/2012.
3
Agencia Brasil: http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2011-10-18/construtoras-atribuem-demora-emobras-da-copa-falta-de-mao-de-obra-e-ao-custo-dos-salarios. Acesso em 15/11/2012.
4
Catarse: http://catarse.me/pt/imaginanacopa. Acesso em 15/11/2012.
5
Fonte Ambev: http://www.ambev.com.br/pt-br/nossas-marcas/todas-as-marcas. Acesso em
15/11/2012.
6
Adnews: http://www.adnews.com.br/pt/publicidade/africa-brinca-com-bordao-imagina-na-copa-paracampanha-da-brahma.html. Acesso em 15/11/2012.
1
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Discurso e poder: teoria e análise
Imagina as praias, imagina as cidades, imagina o Brasil.
Imagina que onde houver futebol vai ter Bhrama
e onde houver brama vai ter festa.
Bhrama. Imagina a festa.
Fonte: Vídeo “Imagina a Festa”
2 Aspectos teóricos
2.1 Controle social
Segundo Van Dijk (2012, p. 50):
O poder é exercido e expresso diretamente por meio do acesso
diferenciado aos vários gêneros, conteúdos e estilos do discurso [...]
O modo de produção da articulação é controlado pelo que se pode
chamar de “elites simbólicas”, tais como jornalistas, escritores, artistas,
diretores, acadêmicos e outros grupos que exercem o poder com
base no “capital simbólico” [...] Eles são os fabricante do
conhecimento, dos padrões morais, das crenças, das atitudes, das
normas, das ideologias e dos valores públicos.
Percebe-se que as elites simbólicas, controladoras do estilo e do conteúdo do
discurso mediático e educacional, também são as que detêm o controle parcial sobre
os modos de exercer influência e, portanto, sobre a reprodução ideológica. (VAN DIJK,
2012, p. 50).
Vários são os mecanismos para exercer o controle social. Os que mais se
destacam na peça publicitária serão detalhados a seguir.
2.2 A polarização ideológica: “nós” x “eles”:
Um dos principais pontos ao analisar o discurso em questão, e nisso seguimos
VAN DIJK (2005), é a criação do antagonismo maniqueísta entre “o nós” e “o eles”,
criado ou aumentado com fins antinômicos, onde o “nós” é depositário de todas as
qualidades socialmente relevantes, e o “eles”, o contrário. Esse reducionismo, lugar
comum nos discursos ideológicos, nem sempre é fácil de descobrir, porque, muitas
vezes, os discursos se apresentam como “naturais” e “aceitáveis” (PEDRO, 1997, p. 26),
o que lhes confere um matiz de verdade inquestionável, uma vez que “é característico
do discurso ideológico atribuir as ideologias só a nossos antagonistas e a verdade a
nós”7. (VAN DIJK, 2005, p. 27).
Esses aspectos, tanto formais como de significação do discurso, que auxiliam a
expressar e exercer o poder, adaptam-se à construção de modelos mentais e
representações desejados com a finalidade de “influir, manipular ou controlar a
mente” (VAN DIJK, 2003, p.160).
7
Tradução livre.
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Análise da desclassificação repreensiva por meio de uma propaganda
Como a polarização ideológica nem sempre é evidente, temos que prospectar
o discurso na busca de elementos, tanto sintáticos como semânticos, que indiquem
indícios dessa polarização.
Esto puede manifestarse, […] por el uso de los pronombres nosotros
y ellos, pero también por los posesivos y demostrativos tales como
nuestra gente y esa gente, respectivamente. (VAN DIJK, 2005, p. 20)
2.3 Quadrado ideológico
Seguindo Van Dijk (2005, p. 20), podemos afirmar que o intuito de aplicar o
“principio polarizante”, princípio que afeta tanto as formas quanto os significados, é
tecer uma estratégia “general de auto-presentación positiva (alarde) y la presentación
negativa del otro (detracción)”, enquanto “se quita importancia a nuestras malas cosas
y a las buenas de los otros” (VAN DIJK, 2003, p. 154). Ainda, segundo o autor:
los hablantes o los escritores pueden destacar nuestras buenas cosas
tematizando los significados positivos, utilizando elementos léxicos
positivos en las autodescripciones, proporcionando muchos detalles
sobre las buenas acciones, y pocos detalles sobre las malas acciones,
valiéndose de hipérboles y de metáforas positivas, dejando
meramente implícitas las propiedades negativas propias, o restando
importancia a la propia actuación como agente de actos negativos
mediante la utilización de oraciones pasivas o nominalizaciones. (VAN
DIJK, 2003, p. 160)
Conforme explica Daruj Gil (2008, p. 4), “para explicar a combinação dessas
crenças sociais de um grupo com sua expressão no discurso, Van Dijk (2003a, p. 5758)”, formula o seguinte quadrado ideológico, aplicável ao se analisar a estrutura de
um discurso:
Quadro 2. Quadrado ideológico
nós
eles
Por ênfase em nossos aspectos
positivos
Por ênfase em seus aspectos
negativos
Tirar ênfase de nossos aspectos
negativos
Tirar ênfase de seus aspectos
positivos
Fonte: Adaptação do quadro de Daruj Gil (2008)
Essas estratégias discursivas, que orientarão a análise do corpus, quando
combinadas têm um efeito poderoso no controle mental, como veremos.
3 Análise do corpus
Primeiramente, destacamos como a polarização “nos x eles” é construída na
peça “Imagina a Festa”, tanto linguisticamente como por meio das imagens.
Quanto aos aspectos linguísticos, o “nós” apresenta-se primeiramente sob a
fórmula “O Brasil”, em uma clara apropriação da nacionalidade que se caracteriza
pelos aspectos positivos estrategicamente destacados, tais como ser “o país do
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Discurso e poder: teoria e análise
futebol” e o “país das festas”. Em outro momento do texto, com a mesma intenção,
podemos ver que o enunciador vale-se de uma perífrase com valor de pronome
pessoal, elidindo tanto o verbo quanto o pronome, mas que podem ser inferidos
facilmente pelo contexto: “[Nós somos] O país que faz os maiores clássicos, o réveillon
e o melhor carnaval”.
Outras vezes, o “nós” é definido pelo possessivo de primeira pessoa do plural,
“nossa copa do mundo” e “nossos aeroportos”, e pelos verbos em primeira pessoa do
plural: “vamos imaginar...” e “teremos engarrafamentos”.
Por sua vez, o “eles” é apresentado pelo pronome indefinido “alguns”, assim
como pelo adjetivo “pessimistas” e pelos verbos em terceira pessoa do plural dizer e
insistir (“sempre dizem”[...] “insistem”). Também mediante o verbo pensar em
imperativo em terceira pessoa do plural: “pensem bem”.
No seguinte quadro comparativo, podem-se ver nitidamente as marcas
linguísticas que favorecem a construção da polarização mediante a escolha lexical:
Quadro 3. Marcas gramaticais da polarização ideológica
Nós
Pronome próprio
O Brasil (apropriação da nacionalidade)
Perífrase com valor de pronome pessoal
O país que faz os maiores clássicos, o
réveillon e o melhor carnaval
Possessivos
A “nossa” copa do mundo
Nossos aeroportos
Verbos
Vamos imaginar
teremos
Eles
Pronome indefinido
Alguns
Adjetivos
Pessimistas
Verbos
Sempre dizem
Insistem
Pensem
Fonte: Elaboração pessoal.
Nas imagens da publicidade, o “eles” é apresentado quase em cores escuras,
em tons cinzentos ou sépia, com rostos ranzinzas e em atitudes que denotam
negatividade na expressão dos olhares, da forma de fechar a boca, dos gestos em
geral, entre outros, como se aprecia nas figuras 1 a 6:
Quadro 4. Conjunto de figuras "Apresentação do eles"
Figura 1
Figura 2
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200
Análise da desclassificação repreensiva por meio de uma propaganda
Figura 3
Figura 4
Figura 5
Figura 6
Fonte: Capturas de tela do vídeo “Imagina a Festa”.
O “nós”, pelo contrário, é sempre apresentado por pessoas felizes, dançando,
comemorando ou em situações que expressam euforia, alegria e descontração, muitas
vezes identificadas com as cores da bandeira nacional.
Quadro 5. Conjunto de figuras "Apresentação do nós"
Figura 7
Figura 8
Figura 9
Figura 10
Figura 11
Figura 12
Fonte: Capturas de tela do vídeo “Imagina a Festa”.
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201
Discurso e poder: teoria e análise
Note-se o contraste cromático com a série anterior. Quando a propaganda fala
do “nós”, emprega tons alegres e coloridos. Mesmo quando opta por priorizar uma
cor só, como na figura 7, isto se faz para conseguir um efeito de expressividade ainda
mais acentuada.
3.1 Falar de “nossos” aspectos positivos
O enunciador apresenta-se a si próprio como sendo o país do futebol e o país
das festas, alem de ser o país que faz os maiores clássicos, o réveillon e o Carnaval.
Nessa apresentação, o enunciador aproveita a oportunidade para exaltar a figura do
“nós”, através das seguintes hipérboles:
a) Nossa copa do mundo [...] vai ser a melhor de todas
b) [o pais que faz] Os maiores clássicos
c) [o país] Vai fazer a melhor festa já vista
Embora a publicidade aluda genericamente ao Brasil e a O País (dos clássicos,
das festas, de réveillon e do carnaval), mediante a polarização, está se apoderando
exclusivamente dos símbolos e da idiossincrasia pátrios. Insinua-se, assim, que “eles”,
a contrario sensu, não gostam de futebol nem de festas e que não participam do
réveillon nem do carnaval.
Essa ideia de apropriação se reforça nas imagens em que sempre se identifica
o “nós” com as cores e elementos simbólicos do Brasil, como pode ser apreciado,
entre outras, nas figuras 13 a 16:
Quadro 6. Figuras "Apropriação das cores e símbolos nacionais”
Figura 13
Figura 14
Figura 15
Figura 16
Fonte: Capturas de tela do vídeo “Imagina a Festa”.
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Análise da desclassificação repreensiva por meio de uma propaganda
Podemos ver, nas figuras 13 e 14, como o “nos” se apropria das cores pátrias
mediante a combinação da bandeira como pano de fundo e a cor das roupas que
complementam a sua estrutura visual. Nessa estratégia, destacam-se a camisa branca
do dançarino (figura 13) e o top azul da dançarina (figura 14), que estão localizados no
lugar onde deveria estar o círculo central azul que simboliza o céu o os rios do Brasil e
a faixa branca com a inscrição “Ordem e pregresso” que o atravessa. Completa a
construção desse efeito, o fato de os protagonistas estarem “sambando”, ritmo musical
claramente identificado com a brasilidade.
Nas imagens 15 e 16, também apreciamos o “nós” com elementos caros a
cultura brasileira, como o futebol e o carro fusca.
E, para finalizar a apresentação do “nós”, aparece uma imagem de Ronaldo, exjogador de futebol e integrante do ex-Conselho Administrativo do Comitê
Organizador Local da Copa do Mundo (COL), vestido com as cores da bandeira
brasileira que, apontando com o dedo indicador, diz: PESSIMISTAS, PENSEM BEM.
Figura 17. “Ronaldo-Tio Sam”
Fonte: Captura de tela do vídeo “Imagina a Festa”.
Como pode ser apreciado na figura 18, é fácil ver a remissão feita à imagem do
Tio Sam, personagem publicitário norte-americano utilizado como garoto
propaganda, para recrutar soldados nas guerras mundiais8.
Figura 18. Comparação entre Tio Sam e Ronaldo-Tio Sam
Fonte: Elaboração própria
Revista Muy Interesante: http://www.muyinteresante.es/la-historia-del-tio-sam-el-carnicero. Acesso em
15/11/2012.
8
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203
Discurso e poder: teoria e análise
Faz-se necessário destacar que a figura do Tio Sam serviu, além de recrutar
soldados desde a primeira guerra mundial, para justificar o papel disciplinador dos
Estados Unidos:
Tio Sam (personificação nacional dos Estados Unidos), também
ganhou uma versão em quadrinhos onde justificava em sua capa a
isenção dos Estados Unidos da responsabilidade sobre a entrada na
II Guerra Mundial. Tio Sam ecoava o mantra que imbuía a nação
norte-americana da função de disciplinadora do mundo, o gigante
pacífico que agia quando provocado, e não por interesse próprio 9
A frase que acompanha a imagem, “Pessimistas, pensem BEM” (com a palavra
bem destacada em letras de forma e cores verde e amarela, possivelmente aludindo
ao slogan “ser do bem”), autoriza-nos a inferir que Ronaldo-Tio Sam não quer recrutar,
senão disciplinar os críticos. “Pensem bem”, ou sofrerão as consequências. “Pensem
bem” ou serão privados do todo o que “nós” temos e desfrutamos. A ameaça se
reforça com recurso de câmera pelo qual a imagem de Ronaldo-Tio Sam se aproxima
da tela de forma intimidante até obter um primeiro plano, como se vê na figura 19:
Figura 19. “Ronaldo-Tio Sam” em primeiro plano
Fonte: Captura de tela do vídeo “Imagina a Festa”.
Essa atualização e re-significação do Tio Sam na figura de Ronaldo cumpre uma
dupla função: por um lado recria-se localmente uma figura masculina que representa
e, ao mesmo tempo, vigia e interpela os brasileiros, igualando-se nisso aos Estados
Unidos, mas diferenciando-se do original pelo uso de insígnias militares nos ombros –
sinal evidente de autoridade -, pelo semi-sorriso – com a ideia de exercer o poder de
forma cordial - e pelo colarinho da camisa aberto, o que lhe confere um ar de
descontração e informalidade. Contudo, como vimos anteriormente, fica evidenciado
o poder disciplinador mediante a persuasão: a frase Pensem BEM, o dedo apontando
e a aproximação intimidante da imagem, deixam clara essa intenção. Como esclarece
Van Dijk (1996, p27):
en relación con las ideologías, las estructuras del discurso tienen
siempre la doble función de poner en juego o "ejecutar" ideologías
. A Segunda Guerra Mundial na Linguagem dos Quadrinhos. Encontro de historia Aupuh- Rio
Identidades:
http://encontro2008.rj.anpuh.org/resources/content/anais/1215301697_ARQUIVO_textoparaanpuh.pdf
. Acesso em 15/11/2012.
9
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Análise da desclassificação repreensiva por meio de uma propaganda
subyacentes por una parte, pero por la otra pueden funcionar como
medios de persuasión más o menos poderosos, esto es, como
medios estratégicos para influir en modelos mentales preferentes e –
indirectamente– en actitudes e ideologías favorecidas. Es así que la
formación, cambio y confrontación de las ideologías es también una
función de la estructura del discurso. (1996, p. 27)
3.2 Falar dos aspectos negativos “deles”
Primeiramente, apresenta-se o “eles”, utilizando-se do pronome relativo alguns
que indetermina e, por sua vez, dá uma clara noção de número escasso. A magnitude
da própria campanha publicitária, pelo contrário, refuta esta ideia de minoria, uma vez
que, se fosse certo, não seria necessário realizar um esforço tão grande e oneroso,
para criticar e disciplinar os pessimistas.
Continuando com as desqualificações, o “eles”, mediante o verbo insistir e o
advérbio de tempo sempre é tachado de insistente, de amolador, de irritante: insistem
[...] e sempre dizem.
Ato seguido, o “eles” é qualificado como pessimistas. Embora não seja
necessário comentar muito acerca da conotação negativa do termo, é importante
acrescentar que o otimismo, à luz do sucesso da economia brasileira daqueles anos,
era um conceito muito caro aos brasileiros, como demonstra a pesquisa mundial sobre
economia desenvolvida pela Pew Research Center,10 e em até pesquisas relacionadas
a temas nos quais o país tem dívidas históricas, como a realizada em matéria de
educação11.
Não é casual nem gratuita essa qualificação. Como aponta Van Dijk (2012, p.
51):
As elites de poder possuem acesso a manobras para controlar a
dissidência [...] recorrendo a campanhas de difamação e outros
mecanismos para silenciar os “radicais” [...] Por isso, em muitos países
ocidentais, basta que alguém seja taxado de “comunista”, ou como
uma pessoa contrária ao nosso tipo de “liberdade” ou a um valor
determinante similar, para ser desqualificado como um formulador
sério de contra-ideologias”.
3.3 Tirar ênfase dos aspectos negativos do “nós”
As estratégias para minimizar os pontos negativos do enunciador misturam
imagens com figuras de linguagem. Assim, ao se referir às críticas pelos aeroportos
lotados que realizam “eles”, mostram-se imagens de um aeroporto movimentado em
um dia normal, porém sem as longas filas que costumam aparecer nos telejornais, nas
vésperas dos feriados prolongados (Figura 20). Quando mencionam os
engarrafamentos, mostram imagens da Avenida Paulista, porém sem os diários
http://www.bolsavalores.net/2010/09/24/ranking-dos-paises-mais-otimistas-do-mundo-brasil-em2%C2%BA-lugar/. Acesso em 15/11/2012.
11
Agencia Brasil: http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2012-09-06/brasileiros-estao-entre-os-maisotimistas-em-relacao-ao-futuro-da-educacao-mostra-pesquisa. Acesso em 15/11/2012.
10
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205
Discurso e poder: teoria e análise
congestionamentos nas horas de pico (Figura 21), e da Marginal Pinheiros com muitos
carros, mas não parada, como acontece amiúde (Figura 22).
Figura 20: Aeroportos sem filas
Fonte: Captura de tela do vídeo “Imagina a Festa”.
Figura 21: Av. Paulista com trânsito, mas sem engarrafamento.
Fonte: Captura de tela do vídeo “Imagina a Festa”.
Figura 22. Marginal Pinheiros, com trânsito, mas sem engarrafamento.
Fonte: Captura de tela do vídeo “Imagina a Festa”.
Como se essas imagens já não fossem suficientes para manipular a realidade,
o enunciador chega ao grau máximo do engano quando, num truque de câmeras,
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Análise da desclassificação repreensiva por meio de uma propaganda
mostra a mesma Marginal Pinheiros sem carros visíveis, passando a impressão de que
estivesse vazia (Figuras 23 e 24).
Figura 23. Marginal Pinheiros sem carros à mostra
Fonte: Captura de tela do vídeo “Imagina a Festa”.
Figura 24. Marginal Pinheiros sem carros à mostra
Fonte: Captura de tela do vídeo “Imagina a Festa”.
3.4 Não falar dos aspectos positivos deles
Como vimos no item anterior, a intenção do “nós” é demonstrar que as críticas
que fazem o “eles” carecem de fundamento. Outras estratégias de deslegitimar a fala
do “eles” encontram-se nas seguintes figuras de linguagem:
a- Paráfrases antitéticas:
- Alguns insistem em que nossos aeroportos não vão dar conta
- Vamos imaginar como os aeroportos estarão lotados. Sim! Estarão, de torcedores
empolgados e atletas incríveis
ELES
NÓS
aeroportos não vão dar
conta
X
os aeroportos estarão lotados [...] de torcedores
empolgados e atletas incríveis
- [insistem] Que o trânsito vai ser um caos
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Discurso e poder: teoria e análise
- Vamos imaginar como teremos engarrafamentos. Sim! Teremos, de trios elétricos
ELES
NÓS
o trânsito vai ser um caos
X
[teremos] Engarrafamentos [...] de trios elétricos
b- Estratégias concessivo-opositivas:
O aspecto dramático de enunciado do “nós”, que ajuda a fixar a mensagem na
memória do enunciatário, dá-se também pelo emprego de estratégias linguísticas
concessivas seguidas de oposições, nas quais o “nós” contrapõe coisas positivas
(“torcedores empolgados”, “atletas incríveis” e “trios elétricos”) aos elementos
negativos apontados por “eles (“aeroportos lotados” e “engarrafamentos”).
Vamos imaginar como os
aeroportos estarão lotados
≠
Sim! estarão, [mas] de torcedores
empolgados e atletas incríveis!
Vamos imaginar como teremos
engarrafamentos
≠
Sim! teremos, [mas] de trios elétricos.
c- Reformulação parafrástica irônica:
Finalmente, passamos a nos referir a um aspecto central da estratégia de
deslegitimização da fala do “eles”, a reformulação parafrástica irônica do bordão que
motivou a peça publicitária. Destarte, à oposição ao slogan “Se tá assim agora imagina
na copa” se dá mediante uma gradação ascendente de ideias que começa com
“imagina a festa” e encontra seu clímax em “Imagina o Brasil”, tudo dito pelo relator
em um tom de voz de dramaticidade marcada, conforme se observa no quadro
seguinte:
Quadro 7. Reformulação parafrásica irônica
[Se tá assim agora] Imagina na copa
Imagina a festa
Imagina as praias
Imagina as cidades
Imagina o Brasil
Fonte: Elaboração pessoal.
Considerações finais
Toda crítica supõe um posicionamento ante um estado de coisas, é a
manifestação da liberdade de expressão garantida pela Constituição Nacional e os
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Análise da desclassificação repreensiva por meio de uma propaganda
tratados internacionais os quais são lei para o Brasil. Popper (1995, p 103) chegou,
inclusive, a acrescentar às três funções da linguagem - informativa, expressiva e
representativa – a função crítica. Ainda mais, afirma que a ciência começa com a crítica
aos dogmas (POPPER, 1995, p. 22). E mais ainda: “La actitud crítica, la tradición de la
libre discusión de las teorías con el propósito de descubrir sus puntos débiles para
poder mejorarlas, es la actitud razonable, racional” (POPPER, 1993, p. 77). Porém, as
elites não gostam de críticas, uma vez que precisam manter o status quo. Isso talvez
explique a desmesurada artilharia com que se ataca aos críticos na peça publicitária
analisada. Dir-se-á que a intenção do enunciador era insuflar ânimo ao povo brasileiro,
que tinha uma finalidade positiva. Contudo, fazê-lo desqualificando
esmagadoramente um setor da sociedade, expondo-o ao ridículo, é um contrassenso.
A diferença entre um legítimo chamado à ordem por parte dos pais a um filho sob o
pátrio poder e os maus tratos não radica, muitas vezes, só na natureza dos atos
corretivos, senão na sua intensidade. Do mesmo modo, criticar aos críticos pode
parecer legítimo (principalmente se as críticas que estes formulam são merecedoras,
por sua vez, de críticas), porém, se como diz Van Dijk (2012, p. 29), os abusos de poder
significam a violação dos direitos sociais e civis das pessoas, proibi-lhes o uso da
palavra, calar suas vozes ou anestesia-lhes opressivamente seu sentido crítico,
configura um autêntico abuso de poder, máxime quando “esse controle se dá em
benefício dos que exercem o poder” (VAN DIJK, 2012, p. 17).
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Disponível
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http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/obras+para+a+copa+estao+atrasadas+em+t
odas+as+cidadessede/n1597009517966.html. Acesso em 15/11/2012.
ÚLTIMO
SEGUNDO.
Disponível
em:
http://ultimosegundo.ig.com.br/politica/dilma+convoca+reuniao+com+prefeitos+p
ara+cobrar+obras+da+copa/n1596991191652.html. Acesso em 15/11/2012.
Como citar
CAGGIANO BLANCO, Ramiro Carlos Humberto. Análise da desclassificação
repreensiva por meio de uma propaganda. In: GONÇALVES-SEGUNDO, Paulo
Roberto; ARAES, Célia Regina; CASTANHEIRA, Claudia; ISOLA-LANZONI, Gabriel;
PENITENTE, Natalia; WEISS, Winola (orgs). Discurso e poder: teoria e análise. São
Paulo: FFLCH/USP, 2020, p. 194-209. DOI: 10.11606/9786587621241
CAGGIANO BLANCO, Ramiro Carlos Humberto | 2020 | p. 194-209
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As metáforas como recurso para resgatar memórias de infância de Cecília Meireles
As metáforas como recurso para
resgatar memórias de infância de
Cecília Meireles
Rodrigo Schulz FERREIRA
Universidade de São Paulo
[email protected]
Resumo: O presente artigo analisa alguns trechos da obra
Olhinhos de Gato, de Cecília Meireles, que contempla, em toda
a extensão da prosa, a figura de linguagem que tem ganhado
notoriedade nos estudos discursivos nas últimas décadas: a
metáfora. Prosa memorialística de inspiração autobiográfica, ao
integralizar a leitura da obra, percebemos como a escritora
utiliza esse recurso retórico para rememorar parte de sua
infância, em que aprendera, precocemente, a lidar com a morte.
Para falar dessas memórias de uma infância atípica, Cecília
Meireles cria codinomes para as pessoas mais próximas. A avó
materna é Boquinha de Doce, Dentinho de Arroz é a ama e
OLHINHOS DE GATO, protagonista, é Cecília Meireles. A
protagonista, como uma câmera, que tudo observa, descreve,
na maior parte das vezes, de forma metafórica, inúmeras perdas.
O trabalho justifica-se para compreender esse importante
recurso de linguagem como meio capaz de condensar múltiplas
mensagens e evidenciar uma infância atípica - recheada de
perdas - vividas por OLHINHOS DE GATO. Sardinha (2007)
discorre sobre os tipos basilares de metáforas (conceptual,
sistemática e gramatical). Em Antunes (2014), percebe-se o
quão importante são as metáforas para “mobilizar nosso
conhecimento de mundo”. Os trechos escolhidos privilegiam
passagens expressivas, nas quais o leitor é convidado a sentir a
infância diferente de OLHINHOS DE GATO. Pretende-se
evidenciar que esse recurso, bem articulado pela escritora,
conduz o leitor à reflexão acerca da real mensagem pretendida
por Cecília Meireles: a efemeridade da vida.
Palavras-chave: Metáforas; Cecília Meireles; Infância; Memórias;
Efemeridade.
Introdução
Neste artigo, analisamos algumas escolhas lexicais, precisamente selecionadas
por Cecília Meireles, que retomam sentimentos quase sempre ruins. OLHINHOS DE
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Discurso e poder: teoria e análise
GATO, protagonista da narrativa Olhinhos de Gato1, rememora uma parte de sua
infância e essas memórias são construídas, essencialmente, por metáforas que
descrevem perdas e mortes, acontecimentos que perpassam toda a prosa.
Antes de iniciarmos a análise de alguns trechos, necessário se faz uma breve
explanação da obra e da fase pela qual passava Cecília Meireles. Sabendo que os
escritores são influenciados, muitas vezes, pelos estados de emoção, precisamos
pontuar que quando da escrita dessa prosa memorialística, a escritora enfrentava uma
condição bastante peculiar: de inúmeras e irreparáveis perdas familiares e de
contratempos profissionais, alguns deles relacionados à ordem política vigente. Assim,
é esperado que exista reflexo desse ar repleto de sentimentos nostálgicos na obra.
Cecília Meireles utiliza uma linguagem refinada, mas não rebuscada,
essencialmente metaforizada para rememorar seus primeiros anos de infância. É
explorando esse recurso de linguagem que a escritora prende a atenção do leitor,
fazendo-o sentir como sua infância fora delicada.
Para este artigo, embora existam muitas passagens construídas por meio de
metáforas, o foco será na análise de alguns trechos que recuperam sentimento de
perda e morte. O objetivo da escritora, certamente, é despertar no leitor uma reflexão
acerca das memórias intimistas dos primeiros anos de infância de OLHINHOS DE
GATO, que convergem e dialogam, muitas vezes, com os da própria Cecília Meireles.
Após a leitura integral da obra, recortamos, manualmente, os trechos em que
Cecília Meireles abordou de forma mais latente passagens nas quais a morte ou a
perda são retratadas por meio desse recurso de linguagem. Sabemos que outros
trechos deixaram de ser analisados, no entanto, como toda pesquisa, há de se fazer
um recorte. Não pretendemos, mesmo diante dos excertos trazidos à guisa de análise,
esgotar as interpretações. São leituras possíveis dentro de tantas outras.
1 Sobre a vida da poeta e a obra em análise
Como mencionado, é importante entender um pouco sobre a vida da poeta
bem como de sua obra. Sabemos que o escritor está inserido dentro de uma
comunidade, cujos valores ideológicos e culturais perpassam, muitas vezes, suas
produções. No caso da produção de Olhinhos de Gato, lembramos que a escritora
enfrentava uma de suas fases mais duras: a dor do suicídio do primeiro marido, Heitor
Grillo, em 1935, e sustento de três filhas pequenas com o salário do magistério.
Ao longo dos treze capítulos2, o leitor é surpreendido sempre com novas
indagações acerca dos próximos passos da pequena órfã de pai e mãe, que passa a
conviver com o amor da avó, Boquinha de Doce, e com o cantarolar e espírito
Para este artigo, usamos a 4ª edição, Global Editora, São Paulo, 2015. O nome da obra e da protagonista
são idênticos. Dessa forma, OLHINHOS DE GATO, em maiúsculas, para fazer referência à personagem e
Olhinhos de Gato para a obra, formas grafadas exatamente como na edição adotada para análise.
2
Inicialmente publicados em forma de fascículos para a Revista Ocidente, entre os anos de 1939 e 1940,
Portugal, chega ao Brasil em 1980, quando são compilados em um livro.
1
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As metáforas como recurso para resgatar memórias de infância de Cecília Meireles
aventureiro da ama, Dentinho de Arroz, personagens que, junto com OLHINHOS DE
GATO, sustentam a obra.
Cecília Benevides de Carvalho Meireles (1901-1964), embora tenha
notoriedade pela vasta produção no campo da poesia, produziu, com excelência,
textos em prosa. A escritora educou suas três filhas meninas, órfãs de pai3. Importante
lembrar que a escritora não conheceu o pai, e a morte da mãe, antes de completar três
anos de idade, tornaram-na, nas palavras dela mesma, uma mulher capaz de lidar com
os sentimentos de dor e ausência. Olhinhos de Gato é resultado de um momento póstraumático da escritora, que aprendeu a conviver com muitas inconstância. A perda
trágica do marido faz com que ela tenha de administrar a sobrevivência dela e das três
filhas pequenas, ocasião em que se mudaram para um apartamento segundo a própria
poeta “muito pequenino4, mas suficiente para mim e as crianças”. Em carta, datada de
1936, à amiga portuguesa Fernanda, Cecília Meireles diz estar triste, com a “profunda
tragédia”5 pela qual passava sua vida pessoal. Além disso, a poeta mostrou, na carta,
um desabafo e um ar elevado de preocupação, “a ponto de perder o lugar na
Universidade”6, e de apreensão com o “movimento revolucionário que por aqui
andou, e em consequência do qual Anísio foi afastado da Secretaria da Educação” 7.
Por meio de escolhas lexicais, precisamente pensadas, a escritora resgata
memórias e envolve o leitor em uma atmosfera mágica, num jogo de lembranças e
aventuras. Percebe-se o vai e vem dos tempos verbais presente e passado. Escrita em
terceira pessoa, por um narrador observador, há onipresença e onisciência, com certo
grau de imparcialidade, pois a narração é feita de acordo com o que vê o narrador,
sem interferir ou fazer julgamentos. Algumas vezes, as outras personagens ganham
voz. É uma narrativa que mescla os fatos externos aos internos ou psicológicos.
A obra organiza-se didaticamente em três grandes blocos. Como marco inicial,
tem-se o estado de mal-estar sentido pela protagonista, o qual a faz ter alguns delírios
e, por meio deles, resgatar a cor vermelha, primeira grande metáfora para simbolizar
a morte da mãe, quando a menina diz ver “balões vermelhos que inchavam, saiam uns
de dentro dos outros, boiavam...8, em que, claramente, a protagonista está febril e,
possivelmente, delirando. A cor usada pela escritora pode ser lida como uma metáfora
que simboliza a dor, o sofrimento e, talvez, a aproximação da morte.
Segundo Lenneberg (1975, p. 384), a cor tem relação estreita e inambígua com
a maneira pela qual o homem traduz sua cultura. Ele, em experimento psicolinguístico
Cecília Meireles, filha de Carlos Alberto de Carvalho Meireles e Matilde Benevides, casou-se pela
primeira vez em 1922, com o artista plástico português Fernando Correia Dias, de quem terá três filhas:
Maria Elvira, Maria Matilde e Maria Fernanda. Em 1935, fica viúva. Em 1940, casa-se com o professor Heitor
Grillo (GOLDSTEIN e BARBOSA, Literatura Comentada: Cecília Meireles, p. 11-12, 1982).
4
Carta manuscrita de Cecília Meireles, Rio de Janeiro, janeiro de 1936 (ver ref. NEVES, Margarida de
Souza).
5
Idem, ibidem.
6
Cecília fica preocupada com a possibilidade de ser retirada da Universidade pelo movimento que
começara a ser instalado no Brasil. Em 1937, por exemplo, fecham a biblioteca infantil no Rio, castelo de
seus sonhos, com base no argumento de que a biblioteca corrompia os espíritos infantis com livros
comunistas.
7
Idem, ibidem.
8
MEIRELES, 2015, p. 10.
3
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Discurso e poder: teoria e análise
com cores, denomina codificabilidade o processo pelo qual as pessoas dão certa
concordância a um mesmo estímulo, neste caso, a cor. O vermelho, para ele, pode ser
visto como a cor do sangue (1975, p. 392).
O segundo bloco é marcado pela intensidade das brincadeiras, dentro e fora
de casa, descrevendo objetos, insetos do jardim, narrando passeios com a ama, além
dos momentos em que ela viaja para dentro de si mesma e mergulha em profundas
introspecções que a fazem refletir sobre a existência humana e efemeridade da vida,
que parece se esvair em um piscar de olhos. Nesse segundo momento estão
concentrados mais trechos em que a escritora se socorre desse recurso de linguagem
para rememorar aqueles primeiros anos de vida. É nele, essencialmente, que a
narrativa se desenvolve.
O terceiro momento simboliza, por meio do corte dos cachos, a transição entre
a fase infantil e a outra, ainda não adulta, mas sem a possibilidade de tanta liberdade
como antes. O corte das madeixas de OLHINHOS DE GATO só aparecerá na página
171, ou seja, quase no final da narrativa, que contempla 178 páginas.
Em muitas passagens, é possível que o leitor se indague se está diante de uma
ficção ou, quem sabe, de parte das aventuras, com as personagens.
2 Metáforas como recurso de linguagem
Ao analisar a obra, percebemos o quão recorrentes são as metáforas. É a figura
de linguagem encontrada e usada por Cecília Meireles para alcançar alguns efeitos: (i)
retratar o oscilar entre vida e morte, (ii) discorrer sobre momentos alegres e tristes e
(iii) permitir que o leitor reflita sobre a importância do amor, sobre o respeito à
natureza, sobre os valores familiares, sobre a essência da vida, que é tão efêmera.
Dessa forma, muitos trechos são metafóricos. O propósito é, sem hesitação, provocar
no leitor reflexões pontuais. Gibbs (1994, p. 124) discorre sobre três vertentes para
explicar o motivo pelo qual usamos com frequência metáforas. Para ele: (i)
“expressabilidade” (veicular ideias), (ii) “compactividade” (informações complexas são
transmitidas de forma sucinta) e (iii) “vivacidade” (pessoas podem extrapolar o sentido
literal da lexia, o que possibilita uma maior subjetividade da mensagem produzida).
Meyer (2007, p. 82) define: “a figura por excelência da identidade frágil”, uma vez que,
para ser compreendida, precisa ser lida nas entrelinhas.
Para Sardinha (2007, p. 13), “nossa linguagem é ainda mais complexa porque
cada palavra pode ter vários significados”. Para ele, isso significa que precisamos
entender a metáfora como um mecanismo complexo, que exige interpretação e
conhecimento do contexto em que cada palavra se insere, para que, então, o leitor
possa decodificá-la de maneira plausível. Os sentidos podem ser figurados, o que para
ele são “usos não-literais de palavras ou expressões da língua” (SARDINHA, 2007, p.
13). Para ele, ainda, pode ser vista como figura mestra. De fato, desde a época dos
clássicos (Aristóteles, no século IV a.C., em sua Arte Poética), essa figura de linguagem
era vista como forte artifício de persuasão cujo objetivo era convencer por meio da
emoção, colocando a razão em segundo plano. Poderia, ainda, ser vista como recurso
para ‘enfeitar’. Era, antes, uma poderosa forma de conduzir o leitor para determinada
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As metáforas como recurso para resgatar memórias de infância de Cecília Meireles
direção de leitura textual e extratextual. Assim sendo, são importantes ferramentas
para lidarmos com as muitas situações com as quais nos deparamos no dia a dia e para
as quais precisamos dar uma significação mais ampla. Assim, em tempos modernos,
houve a necessidade de subdividi-la em outras figuras de linguagem, como lista
Sardinha (2007, p. 21): “alegoria, antífrase, antonomásia, aforismo, apóstrofe,
arcaísmo, catacrese etc. Algumas delas, inclusive, recorrentes na obra como a ironia, a
prosopopeia e o paradoxo”. Para Antunes:
as diferentes ‘figuras de linguagem’, sobretudo as metáforas e
metonímias, destacando-se que tais itens fazem parte, com um alto
índice de frequência, de nossa linguagem cotidiana, não
constituindo, portanto, uma particularidade restrita à linguagem
literária; a palavra ‘caminho’, mesmo fora de qualquer texto literário,
pode assumir um significado metafórico, conforme seja usada com a
intenção de identificar não ‘determinado tipo de acesso (estrada,
vereda, via)’, mas ‘determinado tipo de opção (rumo, destino,
tendência)’, além disso, é válido destacar que as metáforas e
metonímias têm grande vinculação com nosso acervo cultural e que,
por isso, mobilizam em grande medida nosso conhecimento de
mundo (ANTUNES, 2014, p. 43).
Não basta, portanto, usar uma palavra de forma metafórica ou um conjunto de
expressões que metaforizem algo ou alguém. É preciso entender que elas
desempenham, em qualquer língua viva, fonte quase inesgotável de significações
extralinguísticas. Com o objetivo de entender o mundo e os sentimentos que nos
cercam, é preciso falar sobre as metáforas, que permeiam todos os aspectos da vida
humana.
Segundo Sardinha (2007, p. 23-24) “a metáfora se realiza por meio de uma
relação de similaridade” e, ainda, “uma metáfora é uma comparação entre dois
domínios diferentes”. Dessas colocações do autor, podemos dizer que a metáfora
pode ser entendida como a maneira pela qual enxergamos o mundo por meio de
nossa cultura, carregada de ideologias. São, portanto, recursos de linguagem
fundamentais e necessários dentro de todas as culturas. Sardinha (2007, p.16) diz,
ainda “as metáforas são um recurso natural de qualquer língua”. Dificilmente, um
falante conseguirá produzir qualquer enunciado escrito, oral ou gestual sem se utilizar
desse recurso. Para Lakoff (1987), as metáforas são recursos que traduzem as relações
que guardamos com as experiências pelas quais passamos ao longo de nossas
atividades sociais.
Se na linguagem cotidiana esse recurso está presente e é usado, quase sempre,
despercebidamente, nos textos literários, é inserido motivadamente com o propósito
de direcionar leitor. Trata-se de figura rica no discurso literário, em que o
entendimento das entrelinhas é feito, boa parte das vezes, por meio da decodificação
de uma linguagem metafórica. A visão mais tradicional acerca das metáforas reside em
enxergá-las como um artifício para embelezar a linguagem. Podendo até embelezar,
no entanto, cumpre outras funções, como evitar a repetição e a mesmice, dando à
linguagem possibilidades de exprimir relações de sugestão. O pensamento hodierno
parece ser mais preciso, dando à figura seu real papel, colocando-a num espaço
discursivo mais amplo e abrangente. Metáfora e metonímia podem se imbricar
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Discurso e poder: teoria e análise
algumas vezes. Embora sejam recursos de linguagem distintos, apresentam uma certa
semelhança. Sardinha (2007, p. 23) lembra “ambas são parecidas, dado que em ambas
há uma relação entre duas coisas”. Ele ainda pontua que na primeira há uma relação
de similaridade; na segunda, de contiguidade. A metonímia, por outro lado,
preocupa-se em mostrar as relações existentes entre as relações semânticas no eixo
da extensão, em que um valor é transferido para o outro, como em um espelhamento
sêmico. Assim, traços de efeito e causa podem ser notados de forma intensa. Quando
lemos, por exemplo, os nomes das personagens que encabeçam a prosa analisada,
percebemos que seus traços já são antecipados. Com o passar da leitura, essas
características, morais, psicológicas e físicas, são, paulatinamente, exploradas e
evidenciadas.
As metáforas são recursos retóricos poderosos e são conscientemente
usadas por políticos, advogados, jornalistas, escritores e poetas, entre
outros, para dar mais ‘cor’ e ‘força’ a sua fala e escrita (SARDINHA,
2007, p. 13).
Para Sardinha (2007), fica evidente a ideia de que essa figura é um recurso
potencialmente expressivo e usado com frequência por escritores e poetas. Em textos
literários, é uma rica ferramenta para que o leitor seja convidado a refletir. É a maneira
mais subjetiva possível de que se paramenta o escritor para, além de envolver quem
lê, deixar vestígios de estilo no texto. Sardinha (2007, p. 7-12) lembra que “a metáfora
é um recurso tão humano que talvez seja a última coisa que os robôs do futuro
entendam” e que “são o instrumento que possuímos para criar novo conhecimento ou
para dar conta de algo novo na ciência ou no cotidiano”.
Para Sardinha, ainda, nossa linguagem é de uma riqueza quase infinita de
possibilidades, “porque cada palavra pode ter vários significados”. Além de poderem
assumir múltiplos significados, tem-se, ainda, o sentido não literal ou figurado, que
estende essa multiplicidade do significado dicionarizado.
Ao longo dos anos, a categoria de metáfora inicial de Aristóteles foi
sendo desmembrada e refinada em muitas ‘figuras de linguagem’.
Essa é uma tradição antiga. Foi possivelmente na Renascença que a
classificação das figuras de linguagem se intensificou, em
conformidade com a tendência da época de classificar o mundo em
categorias (SARDINHA, 2007, p. 21).
Da citação de Sardinha (2007), conclui-se que a metáfora surge com um
propósito e vai ajustando-se a outros muitos, dentro os quais o de estabelecer a visão
de mundo dos falantes de uma dada comunidade linguística. Servem, geralmente, a
uma população, não são universais, pois o objetivo é permear o código linguístico para
atender as necessidades culturais pontuais. Algumas metáforas até podem ser válidas
para mais de uma comunidade, mas é preciso analisá-las com cautela. Os significados
metafóricos dificilmente serão encontrados em dicionários, pois a sua essência
ultrapassa a definição contida no verbete e suas entradas, logo, só poderão ser
entendidos por meio da relação de significado e dos valores que os falantes dão a um
signo (ou a um conjunto deles). A título de exemplo, pensemos no sinal feito com o
dedo polegar virado para cima. No Brasil, e em alguns outros países de cultura
ocidental, ele significa algo positivo. Essa leitura gestual, que não deixa de ser uma
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As metáforas como recurso para resgatar memórias de infância de Cecília Meireles
metáfora, não vale, por exemplo, para países de cultura oriental, em que o gesto é
desprovido de uma mensagem como: ‘está tudo bem’, ou ‘concordo’ etc. Conforme
uma comunidade se desenvolve culturalmente, novas realidades são construídas e,
com elas, surgem novas combinações como forma de intensificar e condensar
mensagens.
Sardinha (2007, p. 17) lista alguns tipos de metáforas, dentre as quais
destacamos: a metáfora conceptual, cuja teoria é trazida por George Lakoff e Mark L.
Johnson9, vista como a mais comum, ao defini-la como uma imagem construída
inicialmente como mental. Gonçalves-Segundo pontua:
Nessa importante obra e em textos subsequentes, os autores
demonstram que a metáfora – antes entendida como figura de
linguagem prototípica do campo artístico ou como artifício retórico –
se configura em um padrão de associação conceptual entre domínios
cognitivos que permitem compreender fenômenos abstratos e
complexos a parti de experiências sensório-perceptuais concretas,
configurando-se, portanto, em um fenômeno de pensamento que é
essencial ao ser humano e que ode ser expresso em uma variedade
de modalidades semióticas, e não apenas pela língua (GONÇALVESSEGUNDO, 2014, p. 36).
Lendo a citação acima, podemos dizer que quando da elaboração da Teoria da
Metáfora Conceptual, Lakoff e Johnson rompem com a tradição milenar sobre o
conceito dado a elas.
Passemos à análise de alguns trechos em Olhinhos de Gato. Cecília Meireles
escreve que os homens usam ‘máscaras’ o tempo inteiro, não se permitindo conhecer
e tampouco negando a chance para que outras pessoas o conheçam. As plantas e os
animais, porém, para ela, são muito mais transparentes, sem vaidades, são apenas, não
fingem ser, como fazem os homens. Nas palavras da escritora,
E desse lado é que se pode ver como certas coisas são feitas: recortes,
parafusos, encaixes, pedaços de cola...É desse lado que as coisas são
naturais e verdadeiras, como nós, quando nos despimos... (MEIRELES,
2015, p. 19).
O verbo despir, brilhantemente usado de forma metafórica, não pode ser lido
como um simples desnudar-se (tirar ou perder as roupas) mas, muito além, ser
transparente, não se esconder de si mesmo, mas mostrar aos outros e ao mundo sua
verdadeira essência.
Na página 170, encontramos outro verbo sugestivamente metafórico, decepar:
“o moço tomava com uma das mãos os caracóis, com a outra mão fechava a tesoura,
decepando-os, e contava, a brincar: “Um, dois, três ...”, em que, claramente, Cecília
Meireles suscita uma sensação desagradável. A escritora poderia, certamente, ter
usado o verbo cortar ou aparar, por exemplo, mas, ao empregar outro, muito mais
pontual, ela transfere, por meio dessa escolha lexical, uma avalanche de significados
subentendidos e que são notados quando se constata que aquele momento marcaria
a terceira e última fase da prosa, na qual a protagonista passaria a ter menos mimos. A
menina, a partir daquele instante, tem uma vida diferente. Há uma transição drástica
9
Metaphors we live by (University of Chicago Press, 2003).
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Discurso e poder: teoria e análise
da primeira infância, recheada de cuidados, para uma fase com mais responsabilidade.
O verbo ainda sugere outras leituras metafóricas interessantes. Podemos pensar que
assim como a guilhotina ou outro objeto cortante, o barbeiro usa uma arma para tirar
da menina suas regalias. Quando OLHINHOS DE GATO se vê sem os cachos, é como
se deixasse para trás, em definitivo, uma menina ingênua e muito protegida.
3 Metáforas que resgatam sentimento de perda e de morte na
infância de OLHINHOS DE GATO
As metáforas são importante uma vez que permitem extrapolar a compreensão
‘rasa’ de uma lexia, ou seja, por meio desse recurso, a palavra ganha uma dimensão
que se comunica com a cultura e os valores de uma dada sociedade. Para Ricoeur
(1975), há, assim, uma nova pertinência semântica, que extravasa o sentido literal.
Na página 20, com medo de perder a ama, OLHINHOS DE GATO pensava e
sofria. Interessante como a escritora metaforiza o sentimento de perda, que se mescla
ao da morte, por meio do verbo ir, no sentido de ‘partir’, ‘não voltar’, ‘morrer’:
“Dentinho de Arroz iria também. Iria uma noite dessas, quando ela estivesse dormindo,
talvez. Tudo vai... tudo vai...”. Constatamos, mais uma vez, que não se trata de um verbo
usado de forma aleatória. Tem-se, visivelmente, a angústia da menina, que diante de
tantas perdas e frustrações, fica aflita com a possibilidade de perder a ama, pessoa
com quem ela aprendia muito sobre folclore e que lhe fazia cantar e esquecer-se dos
medos. Quando Cecília Meireles emprega o verbo ir, notamos que a escritora
pretende passar ao leitor a clara mensagem: as pessoas partirão um dia.
Pensando nas muitas perdas da menina ao longo da narrativa, outro exemplo
de construção metafórica é visto quando a menina encontra um cachorrinho perdido
na mata. Dessa vez, OLHINHOS DE GATO, passeando pelos jardins da casa e seus
arredores, descobre um cachorrinho, acuado e amedrontado. É possível pensar que
não era apenas o bichinho que estava com medo. Os dois adjetivos, usados para
descrever o cão, podem, perfeitamente, ser atribuídos ao estado emocional da
menina. No dia seguinte, o cachorro não anda mais pela casa e o que era motivo de
alegria à pequena órfã passa a ser mais um sofrimento imensurável. Provavelmente,
com medo de que o animalzinho transmitisse alguma doença à menina, acabam por
deixá-lo sair da casa ou botam-no para correr. Não se pode precisar. OLHINHOS DE
GATO fica desolada. As pessoas à sua volta não dão muita importância a ela. Mais uma
vez, a menina terá de lidar com a perda de forma solitária.
E ela, então, chorou alto convulsamente, sob muitos tormentos
reunidos e confusos, e as pessoas se desfizeram diante dela, como
estátuas de cinza, e a casa ficou vazia, sem mais braços, sem mais
rostos, sem mais vozes certas (MEIRELES, 2015, p. 91, grifos meus).
Quando Cecília Meireles emprega o advérbio de modo convulsamente, ela
remete o leitor, além da fragilidade da protagonista, à sensação de que a dor era maior
do que o próprio choro, que era incontrolável. Sem controle sobre os atos, a menina
parece tão apenas sofrer profundamente. Em seguida, a pobre criancinha é ignorada:
se desfizeram. Duas metáforas são lidas aqui: (i) imagens embaçadas quando os olhos,
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As metáforas como recurso para resgatar memórias de infância de Cecília Meireles
invadidos pelas lágrimas, borram as imagens e (ii) a grande indiferença das pessoas
conforme a dor da menina se propaga.
Na natureza, a escritora também encontra possibilidades para metaforizar os
medos da menina. A escritora usa nuvens, que aparece com alta frequência e quase
sempre associada a sentimentos ruins. Assim como as nuvens carregadas e escuras, a
imaginação da menina parece ser um turbilhão, em constante preocupação. Na
página 137,
Nuvens, só nuvens, tudo nuvens. O céu forrado de nuvens, as
montanhas vestidas de nuvens, as árvores enroladas em nuvens, as
casas cobertas de nuvens, os quintais transbordantes de nuvens...
(MEIRELES, 2015, p. 137, grifos meus).
Observamos que Cecília Meireles envolve o leitor em um ambiente escuro. Por
meio das nuvens, que partem do céu, vão para as montanhas, passam pelas árvores,
chegam às casas e se instalam no quintal, a escritora não só dá dinamicidade à cena
por meio do deslocar-se das nuvens, que alcançam vários espaços em um curto
tempo, mas faz com que o leitor sinta a aflição da protagonista diante de tantas
incertezas. Com a tempestade, não se consegue contemplar a vida que há na rua, as
pessoas precisam se esconder dentro das casas. Ainda sobre as nuvens, a empregada
da casa parece trazer a menina de volta à realidade. Se por um lado OLHINHOS DE
GATO está sempre divagando, as outras personagens são mais realistas. Na página
116, “Maria Maruca dissipava as nuvens! “Não se pensa nessas coisas!”, temos Maria
Maruca enxotando as preocupações da menina, tentando mostrar-lhe que a vida
poderia ser um pouco menos amarga, assim como o sol que brilha depois do cessar
das águas, ou da claridade que invade o céu depois que as nuvens se desfazem.
Na página 14, Cecília Meireles relata a dor mais amarga de todas já sentidas
por OLHINHOS DE GATO: “Beije a mamãe!" E beijou um rosto duro e frio”. Os
adjetivos duro e frio ganham força metafórica. Ao dar ao beijo traços opostos aos
esperados, quente e macio, a escritora transfere as características da morte para o
beijo da menina, que, sofrendo em demasia, sentia a frieza e rigidez da pele do rosto
da mãe. A morte da mãe, embora a mais penosa para a menina, não seria a última. O
canário, sempre alegre e cantando dentro de sua gaiolinha, um belo dia, aparece
morto. O contraste entre vida e morte fica evidenciado pelas escolhas lexicais: com a
inserção de três verbos de primeira conjugação, cantar, balançar e pular, para retratar
os movimentos da ave, temos os movimentos alegres do pássaro. Percebe-se, logo
em seguida, que ele aparece morto, frio, seco e mole. O que antes era uma cena feliz,
passa, agora, à solidão, ao silêncio, à melancolia. Tem-se, pelas escolhas lexicais, a
oposição entre a vida, repleta de movimentos de ação, e a morte, com a inércia do
passarinho.
À janela, balança-se a gaiola redonda. O canário vira o olhinho de
miçanga para o ar azul do dia […] E canta o canário. É pequenino,
magrinho como um brinquedo – do tamanho da flor da trepadeira […]
o canário solta o seu canto gravemente, como os sapateiros pregando
solas, e os amoladores afiando as facas. Depois, experimenta a
vibração que ficou em redor de si, e vai fazer outra coisa. Pula do
poleiro, leve, levem parece ainda que nem cantou. Debica o alpiste.
[…] Vira a cabeça para o lado. […] Incha as pluminhas do pescoço
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219
Discurso e poder: teoria e análise
com o seu canto, maior que ele, maior que a janela, e a casa, e a rua
[…] No entanto, um dia, aparece frio, seco, de lado na areia. Na
cabecinha mole, nas asas rígidas, no hirto bico amarelo, não há um
vestígio de som. E sabia-se que ele era só música. Isso dá uma certa
melancolia (MEIRELES, 2015, p. 30-31, grifos meus).
Além do canário, a menina estava em uma vizinhança rodeada por gatos. Gatos
são recorrentes nas obras de Cecília Meireles. OLHINHOS DE GATO é sempre
observadora e interativa com a natureza. Aliás, essa é uma forma encontrada pela
menina para tentar superar tantas dores.
Na página 13, os gatos aparecem em movimento e algumas escolhas lexicais
traduzem a vida que pulsa nos bichanos: “sobem o muro”, “arreganham a boca”,
“miado untuoso”, “saltam”, “reclinam-se”. Há uma descrição que sugere o movimentarse dos felinos. Dias depois, vítimas dos meninos, eles aparecem mortos. Na página 31:
“estendidos, com muitas moscas por cima, e formigas em volta”. A morte é cruenta:
“têm a cabeça amassada, e um olho para fora”. De forma metafórica, a escritora usa
“veludo frouxo”, para qualificá-los quando estão vivos e, quando estão mortos, “fino
veludo”. Além da sugestiva sinestesia – fusão de tato e audição –, a escritora usa
interessante combinação entre o substantivo “veludo” e seus adjetivos para se referir
à vida e à morte. O miar dos gatos é tão melado que chega a ser “untuoso”:
Os gatos sobem o muro: veludo frouxo, pluma, elástico. Um raio de
sol queima-lhes os bigodes de vidro. Piscam de olhos ofuscados,
arreganham a boca num miado untuoso. Às vezes, levantam a pata
hesitante para uma borboleta que se inclina. Depois, saltam
cautelosos, sem se magoarem nas pedras, sem amassarem as flores,
e reclinam-se numa sombra, e sonham com o tempo em que eram
tigres. Dias depois, aparecem estendidos no fundo do quintal, com
muitas moscas por cima, e formigas em volta. Seu pelo não brilha mais
como um fino veludo. Tudo porque a mão de um menino arrojou uma
pedra: têm a cabeça amassada, e um olho para fora (MEIRELES, 2015,
p. 31, grifos meus).
Mais adiante, OLHINHOS DE GATO se depara, outra vez, com a cena da morte,
acompanhada da dor e do sofrimento das aves que agonizavam nas mãos do
vendedor:
Depois é um turbilhão de penas, uma palpitação de asas presas, um
resignado estertor – e uma voz que apregoa com uma estridência de
clarim, de Bandeira encarnada ao pino do sol: “Eh! Frangos, perus,
galinhas gordas! ... Passam como leques abertos, as pernas brancas,
as pernas pretas, as pernas cinzentas…. (MEIRELES, 2015, p. 143,
grifos meus).
Dessa vez, trata-se de uma galinha que, antes de morrer e virar uma deliciosa
canja, sofre bastante. O vendedor caminha com as aves, segurando-as pelas pernas
de cabeça para baixo, enquanto elas se “estrebucham”, há “uma palpitação de asas
presas”. As vítimas não são apenas as galinhas, mas frangos e perus também
transportados a pé pelo homem que tenta, indiferentemente, “resignado estertor”,
vender suas aves. Na página 145, a escritora usa, novamente, metáforas para falar do
sofrimento vivido pelas aves, cujo destino, assim como aquele enfrentado por Jesus,
era certo: “mas os olhos dos animais vão abertos e humilhados, mirando o que
encontram, com aquela expressão ajoelhada do Santo coberto de espinhos”. Embora
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220
As metáforas como recurso para resgatar memórias de infância de Cecília Meireles
vivas, “olhos abertos”, seguem “humilhados” Cecília Meireles compara o sofrimento
das aves àquele de Jesus quando da Via Sacra. Os olhos de piedade das aves são os
mesmos de Jesus, ajoelhado e sangrando.
(...) Mas os olhos dos animais vão abertos e humilhados, mirando o
que encontram, com aquela expressão ajoelhada do Santo coberto
de espinhos. Mas um Anjo levantava o Santo, às vezes. A eles, é o
braço peludo e suado que os levanta, de vez em quando, mostrandoos às criadas, nos portões. E ninguém parece para socorrer aquela
dor que passa sem nada pedir (MEIRELES, 2015, p. 143, grifos meus).
A protagonista, mesmo com pouca esperança, acredita que uma delas ainda
poderia ter um destino diferente, feliz. No entanto, sua vontade não se confirma e a
morte é trazida de forma metafórica. Na página 145: “a menina chega e vê sobre a
mesa da cozinha a galinha morta, com as frouxas penas cheias de um tênue frio”. A
galinha acabara de morrer e seria servida no jantar, em forma de canja, a qual
OLHINHOS DE GATO, sem saber, iria saborear.
Analisamos, até agora, algumas construções metafóricas por meio das quais a
escritora mostra o eixo condutor da narrativa - a constante oscilação entre a vida e a
morte. Para fazer o leitor refletir acerca da morte, Cecília Meireles, em quase todos os
acontecimentos que cercam OLHINHOS DE GATO, parece não desperdiçar a chance
de evidenciar que a vida é um breve suspiro.
A título de exemplo, neste momento, analisamos outras metáforas, que,
embora não falem de sentimentos ruins, são expressivas e reforçam a importância
desse recurso na obra Olhinhos de Gato. As duas primeiras nos remetem ao
comportamento da protagonista; a terceira, a um traço físico da ama, pessoa com
quem a menina convivia.
Na página 13, “Da expressão com que está mirando? Seus olhos ardem como
se os incendiassem. Ardem, dilatam-se, crescem, transbordam (...)”, em que o verbo
“incendiassem” traduz o olhar vibrante e pensativo de OLHINHOS DE GATO. Como o
fogo que consome todo material que queima, transformando-o em pó, em cinzas, os
olhos da menina parecem olhar com tamanha profundida a ponto de saírem do estado
quente, ardem, para alcançar a água, transbordam. Em ambas construções, o efeito é
claro: uma intensidade que consome (fogo) ou arrasta (água) por completo.
Na página 135, “Dentinho de Arroz, concertando-lhe a roupa e o cabelo, ia
dizendo: “Bicho do mato, que você é! Onde já se viu menina bonita fazer uma coisa
assim?”, em que o substantivo “bicho do mato” revelar um traço de personalidade da
protagonista: tímida e teimosa quase toda a narrativa. Tem-se o uso de uma expressão
popular para atribuir à menina um traço bastante característico: a repulsa pelos
meninos, cujas condutas eram quase sempre desabonadoras.
Por fim, a ama é descrita de forma metafórica. Na página 58, “Seus olhos negros
– olhos ou miçangas? – mornos, levemente vesgos, destilando uma luz oleosa”, em que
o substantivo “miçangas” nos remete à intensidade do brilho presente nas pedras, que
são, inclusive, adorada pelas meninas. São usadas para fazer adornos, como colares e
pulseiras. A ama, uma senhora negra, tem tanto amor no olhar, que os olhos chegam
a reluzir. Está feito, portanto, o elo afetivo entre a menina e ama.
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Discurso e poder: teoria e análise
4 A transição de fases de Olhinhos de Gato: corte dos cachos
A ida ao salão de cabeleireiro simboliza metaforicamente essa significativa
transição, em que a menina vai caminhando pelas ruas da vila em que morava, olhando
as casas, as pessoas, os objetos, as árvores: rememorando os tempos em que, sem
muitas preocupações, poderia contemplar a natureza e mexer nos objetos deixados
pela mãe. Ainda, é preciso pontuar que embora a escritora pudesse descrever uma
subida, tem-se uma descida, que pode ser interpretada como uma metáfora para
simbolizar a perda de alguns mimos. Na página 169:
Então, descendo a rua, a menina passou a mão melancolicamente
pelo cabelo. Cabelo alourado, fino como o dos recém-nascidos e
encaracolando-se sozinhos. “Quando voltar...” Um estranho
sentimento a foi levando para diante...” (MEIRELES, 2015, p. 169,
grifos meus).
Embora seja vista como uma menina amarelinha (p. 109 e p. 115), agora, no
entanto, já está mais saudável: “gordinha” (p.30). Podemos dizer que superou, de fato,
o medo que assombrava a avó: que a morte a levasse precocemente, assim como
ocorrera com os outros entes.
Os cachos da menina seriam aparados pelo barbeiro. Se com o uso do verbo
“decepar” (p. 170) a escritora transmite ao leitor a clara sensação de uma drástica
mudança na vida de OLHINHOS DE GATO, essa constatação é reafirmada com a
expressão “pela última vez”. Como um retrato, “emoldurado”, aquela menina deixaria
de existir, dando lugar a uma nova OLHINHOS DE GATO:
Por que será que resolveram cortar-lhe os cachos? – era muito
trabalhoso enrolá-los – estaria muito ardente aquele verão? […] A
menina, sentada firme, com o pano branco cobrindo-lhe os
bracinhos, e as mãos pousadas nos joelhos, olhou para a fita
transparente estendida sobre o vidro, refletindo no espelho,
amassada nas marcas do laço, viu também no espelho seu rostinho
pálido, de lábio triste, e de olhos claros e sozinhos, emoldurado – pela
última vez! (...) (MEIRELES, 2015, p. 168, grifos meus).
Na página 172, Cecília Meireles, por meio de uma expressão de época, fala que
daquele momento em diante, a menina passaria a obedecer às ordens e ser mais
disciplinada: “Maria Maruca dizia: "Agora vai só andar na marrafa10, hein?".
Os cachos, que simbolizam os primeiros anos de infância e são o xodó da avó
e da própria menina, darão lugar a uma nova OLHINHOS DE GATO. Na página 172,
Boquinha de Doce sorriu-lhe encantada: “Está ficando uma mocinha...
Ainda parece mentira! ... Deixe-me ver se está bem cortado! Estes
OLHINHOS DE GATO! E os cachos? Onde estão os cachos? E quando
os viu, amarrados com a fita, parou em silêncio a mirá-los, acariciouos, beijou-os com um suspiro, como a uma outra criança, que se fosse
embora, e lentamente os tornou a embrulhar.
Quando lemos “está ficando um mocinha” a escritora concretiza,
metaforicamente, o que deseja: anunciar uma nova etapa na vida da protagonista.
Assim com fazemos com as pessoas que amamos, a avó acaricia e beija as madeixas,
10
Hoje, seria equivalente a andar na linha.
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222
As metáforas como recurso para resgatar memórias de infância de Cecília Meireles
pois elas simbolizam a lembrança de uma OLHINHOS DE GATO que ficaria apenas na
memória. Ao chegar em casa, a menina se vê diferente. Na página 175, “na cadeirinha
de vime continuava a menina a olhar para a rua e a ver o mundo... Dessa cadeira, e
debruçada para o mundo, foi que ela realizou o seu imenso descobrimento”.
Considerações finais
As memórias de infância de Cecília Meireles são resgatadas, em grande parte,
por meio de construções metafóricas que oscilam entre sentimentos alegres e tristes
e entre a vida e a morte. Com uma linguagem pontualmente pensada, a escritora
alcança a mensagem a que se propõe: sensibilizar o leitor por meio das experiências
que a morte traz. Decodificando as mensagens contidas nas entrelinhas, o leitor passa
a mergulhar na vida, ou melhor, nos primeiros anos de infância de OLHINHOS DE
GATO, que são semelhantes àqueles vividos por Cecília Meireles. Certamente, as
construções metafóricas e as metáforas propriamente ditas revelam uma infância
marcada pela dor de muitas perdas e ausências. As relações que se estabelecem, ao
longo do texto, ou melhor, dos capítulos, são permeadas por ‘camadas’ metafóricas:
as lembranças da morte da mãe, as inúmeras perdas, pelas mortes (canário e do gato)
ou pela ausência (cachorrinho), e a transição de fases, quando tem os cachinhos
cortados.
Vida e morte oscilam em toda a narrativa e estão no texto por meio de imagens
metafóricas que permitem ao leitor uma série de reflexões sobre a dor que a morte
causa na menina. Os exemplos analisados permitem concluir, ao menos parcialmente,
que a escritora se utiliza de um importante recurso de linguagem para falar sobre a
efemeridade da vida.
As temáticas de perda e morte são, como vimos, recorrentes na prosa, o que,
como dissemos no começo deste artigo, podem ter relação com o momento pelo qual
passava Cecília Meireles quando produziu a obra. Embora pudesse explorar as
aventuras alegres quando de seus primeiros anos de infância, a escritora deu ênfase
às memórias amargas e doloridas, cercadas, quase sempre, pela iminência da morte.
As metáforas são, portanto, recursos de linguagem por meio dos quais Cecília
Meireles adota uma postura para falar ao leitor acerca daqueles anos que tanto lhe
marcaram.
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FERREIRA, Rodrigo Schulz | 2020 | p. 210-223
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Discurso e poder: teoria e análise
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SARDINHA, Tony Beber. Metáfora. São Paulo: Editora Parábola, 2007.
Como citar
FERREIRA, Rodrigo Schulz. As metáforas como recurso para resgatar memórias de
infância de Cecília Meireles. In: GONÇALVES-SEGUNDO, Paulo Roberto; ARAES,
Célia Regina; CASTANHEIRA, Claudia; ISOLA-LANZONI, Gabriel; PENITENTE,
Natalia; WEISS, Winola (orgs). Discurso e poder: teoria e análise. São Paulo:
FFLCH/USP, 2020, p. 210-223. DOI: 10.11606/9786587621241
FERREIRA, Rodrigo Schulz | 2020 | p. 210-223
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Adjunção adnominal no Ensino Básico: alternativas para um ensino ...
Adjunção adnominal no Ensino
Básico: alternativas para um
ensino orientado à significação
Sabrina Nascimento de ALENCAR
Universidade de São Paulo
[email protected]
Resumo: Este artigo visa a apresentar uma nova proposta para
o ensino de adjuntos adnominais na Educação Básica especificamente para os últimos anos do Ensino Fundamental II
e para o Ensino Médio - orientada à textualidade e à
significação, cuja abordagem objetiva não reiterar os aspectos
contraproducentes analisados na etapa inicial de diagnóstico
dos materiais didáticos vigentes (ALENCAR, 2019), relacionados
a sua conceituação como elemento meramente formal e à
desassociação da categorização sintática de suas implicações
semânticas. Para isso, a proposta traz perspectivas pautadas em
conceitos linguísticos definidos nos processos de Ancoragem
Nominal (LANGACKER, 2008; ISOLA-LANZONI, 2017), de
Referenciação (KOCH, 2014) e de Ensino-Aprendizagem de
Língua (TRAVAGLIA, 2013; NEVES, 2002; PAIXÃO DE SOUSA,
2012; SILVA, PILATI & DIAS, 2010; BAWARSHI & REIFF, 2013;
GONÇALVES-SEGUNDO, 2017; DOLZ, NOVERRAZ &
SCHNEUWLY, 2004), a fim de desconstruir a visão típica de
elemento acessório atribuída equivocadamente a essa classe e
contemplar suas dimensões sintático-semânticas. Além disso, os
exercícios propostos pelo material inédito debruçam-se sobre a
diversidade de sequências textuais e de gêneros discursivos
com o intuito de evidenciar ao aluno a aplicabilidade desse
recurso gramatical em seu cotidiano e apurar sua sensibilidade
crítica tanto para a leitura quanto para a escrita.
Palavras-chave: Ancoragem nominal; Adjunto adnominal;
Referenciação; Ensino; Material didático.
Introdução
A proposta de ensino trazida pelo projeto “Adjunção adnominal no Ensino
Básico: alternativas para um ensino orientado à significação” almeja repensar o modo
como a função sintática dos adjuntos adnominais é estudada em sala de aula.
Anteriormente a sua elaboração, foi feito um diagnóstico dos materiais didáticos atuais
tanto sobre a conceituação teórica tipicamente dada ao adjunto quanto sobre os
exercícios responsáveis por sua fixação prática, com a finalidade de avaliar quais os
caminhos se apresentaram como promissores e quais se demonstraram
contraproducentes.
ALENCAR, Sabrina Nascimento de | 2020 | p. 224-239
225
Discurso e poder: teoria e análise
Esse estudo, descrito minuciosamente no artigo de Alencar (2019), apontou
que, em primeiro lugar, majoritariamente perpetuava-se a atribuição de um caráter
meramente formal ao adjunto, conferindo-lhe o papel de acessório para uma oração
sob a justificativa de que sua retirada do enunciado não prejudica sua compreensão.
Alinhado a isso, tal classe era tratada de modo homogêneo, sem evidenciar que o
sentido agregado ao texto varia de acordo com o tipo de adjunto empregado,
colocando a função de modificar, de quantificar e de determinar como equivalentes,
o que, na verdade, ignora que tais efeitos decorrem de fenômenos distintos,
observados por Langacker (2008), e, portanto, cada um apresenta particularidades
não contempladas nessa visão.
Consequentemente, há um segundo problema, relacionado à falta de atenção
dada a alguns tipos de adjuntos, pois tanto as definições quanto os exercícios
preocupam-se, em grande parte, somente com aqueles morfologicamente
classificados como adjetivos ou locuções adjetivas, não explorando a adjunção
ocasionada pelo emprego, por exemplo, de pronomes, de artigos e de numerais,
igualmente relevantes. Por fim, cabe mencionar que uma quantidade significativa de
exercícios se volta para a classificação sintática ou morfológica desarticulada dos
efeitos semânticos implicados por tais usos, bem como descolam do texto-fonte os
enunciados compostos pelos adjuntos para orientar as atividades. Isso dificulta a
compreensão do aluno acerca das verdadeiras contribuições da adjunção não apenas
para a construção dos sintagmas nominais, mas principalmente para elaboração do
texto em sua totalidade, uma vez que esse é fragmentado. Assim, os exercícios não
suscitam reflexões críticas acerca das dimensões sintático-semânticas por trás do uso
do adjunto tanto para o enunciado quanto para o texto integralmente.
A partir de tal análise, a nova proposta procurou reformular a abordagem
teórica com uma perspectiva de definição do adjunto que considera a atuação desse
recurso para o processo de Ancoragem Nominal (LANGACKER, 2008; ISOLALANZONI, 2017) e para o de Referenciação (KOCH, 2014), os quais, diferentemente
do que é dado pelos livros didáticos avaliados, ressaltam o seu papel para a
construção do texto articulada à significação desejada pelo falante. Os exercícios
elaborados para material, inseridos nessa outra lógica, buscam, portanto, evidenciar
essa relevância indispensável do adjunto, com uma gama variada de textos
acompanhados de perguntas que pretendem estimular no aluno tal reflexão,
conduzindo seu olhar não somente para a interpretação final do texto, mas também
para a observação de quais recursos gramaticais possibilitaram-lhe essa leitura. Por
isso, estratégias fornecidas pelos pressupostos teóricos da Linguística Aplicada no
âmbito do Ensino-Aprendizagem de Língua (TRAVAGLIA, 2013; NEVES, 2002;
PAIXÃO DE SOUSA, 2012; SILVA, PILATI & DIAS, 2010; BAWARSHI & REIFF, 2013;
DOLZ, NOVERRAZ & SCHNEUWLY, 2004) foram imprescindíveis para determinar
quais modelos de exercícios mais se aproximavam de tais expectativas.
Tendo em vista esse propósito, o material compõe-se por cinco seções: a de
“Visão geral”, voltada à explicação teórica da adjunção ao aluno; a de “O adjunto
adnominal na coesão textual”, que trata da adjunção como processo fundamental à
referenciação; a de “Uma análise profunda para professores: as teorias linguísticas por
ALENCAR, Sabrina Nascimento de | 2020 | p. 224-239
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Adjunção adnominal no Ensino Básico: alternativas para um ensino ...
trás dos adjuntos”, com uma abordagem mais minuciosa do embasamento teórico
linguístico para o estudo da adjunção, voltada aos professores; e, por fim, a de
“Exercícios”, subdividida entre o setor de exercícios de fixação sem resolução a ser
trabalhado com os alunos e o de respostas esperadas para tais atividades. Cada tópico
desse conteúdo será mais bem explorado nas seções seguintes desse artigo.
1 Primeira seção do material didático: visão geral
Anteriormente a essa seção, o material é introduzido por uma leitura detalhada
de um cartaz de protesto a favor da descriminalização do aborto, cujo texto
exemplificava um uso estratégico dos adjuntos adnominais.
Figura 1. Introdução do capítulo
Fonte: elaboração própria.
A partir da segmentação do enunciado “Até Maria foi consultada para ser mãe
de Deus”, buscamos guiar a interpretação do aluno segundo o sentido agregado por
cada expressão inserida nessa estrutura. Essa é dividida em três partes: a primeira
enquadra “Maria”, a segunda, “foi consultada”, e a terceira, “para ser mãe de Deus”,
sendo classificadas como sujeito, locução verbal e complemento, respectivamente.
Em seguida, destaca-se que, a fim de compreender a alusão bíblica presente no cartaz,
o sujeito “Maria” deve ser definido com precisão, pois, por ser popular e comum na
sociedade brasileira, tal nome exclusivamente não aponta para um referente
específico, o que não leva ao leitor à conclusão de que se trata de uma Maria em
especial. Fundamentando-se nessa leitura, esclarecemos que a terceira parte da
estrutura faz-se imprescindível, visto que introduz a definição “mãe de Deus”, a partir
da qual se chegará ao sentido pretendido pelo enunciador. Enfocamos, nesse
raciocínio, o elemento “de Deus”, colocando-o como o principal responsável por
ALENCAR, Sabrina Nascimento de | 2020 | p. 224-239
227
Discurso e poder: teoria e análise
identificar que o referente não é a mãe de qualquer indivíduo, mas especificamente a
mãe de Deus, reconhecendo Maria, assim, como a personagem bíblica. Finalmente,
enquadramos “de Deus” na classe dos adjuntos, com o objetivo de apresentar essa
classe já com base na sua aplicação em um texto real pertencente a um gênero
discursivo recorrente no cotidiano do aluno, em um caminho indutivo que parte efeitos
semânticos para se chegar à classificação de fato.
Após isso, inicia-se a seção “Visão Geral”, a qual não se restringe à classificação
geral de adjunto adnominal por meio da proposição de subdivisões calcadas na
Linguística Cognitiva. Em vez de definirmos o adjunto de modo homogêneo,
desconsiderando os diversos efeitos semânticos que podem agregar ao enunciado,
pautamos a nova conceituação conforme o processo de Ancoragem Nominal
discutido por Langacker (2008). De acordo com sua teoria e seguindo sua
terminologia, ramificamos os adjuntos adnominais em três subgrupos: o de
modificadores, o de quantificadores e o de determinantes, seguindo essa ordem.
Nessa nova classificação, consideramos as distintas funções do adjunto quando
inserido no sintagma nominal. Por isso, foi necessária também a inclusão do conceito
de sintagma nominal, adaptando o nome dado por Langacker (2008) de “tipo“ para
“nome central”, com o interesse de que o aluno pudesse depreender o funcionamento
dessa estrutura e qual a sua finalidade na produção textual, enfocando os adjuntos
adnominais como elementos que interferem significativamente nesse processo.
Figura 2. Definição do sintagma nominal
Fonte: elaboração própria.
Posteriormente a esse quadro, começamos a reconstrução do sintagma
exposto na imagem acima, adaptado de um trava-línguas de conhecimento popular
para dialogar com a realidade do aluno. Em primeiro momento, suprimimos do
enunciado os adjuntos para contrastar com o original e observar as mudanças entre
ALENCAR, Sabrina Nascimento de | 2020 | p. 224-239
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Adjunção adnominal no Ensino Básico: alternativas para um ensino ...
eles, com o objetivo de analisar progressivamente de que forma o processo de
Ancoragem Nominal de Langacker (2008) foi construído para alcançar o sentido final
apresentado pelo sintagma. Nessa fase, o aluno depara-se com a estrutura cujo único
componente é o nome central, o que implica um esquema, isto é, uma imagem
genérica que, por si só, ainda não é capaz de apontar para um referente específico,
somente para um modelo vago e abstrato pertencente a uma categoria. Assim,
descreve -se ao aluno a inserção gradual dos adjuntos, respeitando a ordem dada por
Langacker (2008), iniciada pelos modificadores, seguida pelos quantificadores e
concluída com os determinantes, em um exemplo prototípico. Diante disso, pretendese demonstrar que tal progresso leva a uma restrição do número de candidatos ao
recorte referencial, para, na última etapa da ancoragem nominal com a adição do
determinante, o interlocutor ter a capacidade de delimitar específica e precisamente
qual o referente trazido pelo texto.
Em seguida, debruça-se sobre a noção de modificadores. Utilizando-se do
mesmo exemplo do quadro de destaque feito para a concepção de sintagma nominal,
determinamos os modificadores conforme seu efeito semântico e sua classificação
morfológica. Seguindo a teoria da Ancoragem Nominal (LANGACKER, 2008, p. 124),
o modificador agrega maior especificidade ao nome central, uma vez que ramifica o
conjunto de categoria em dois subconjuntos, sendo apenas um deles correspondente
ao referente pretendido pelo enunciador.
Para fins mais didáticos, a apresentação dessa definição foi acompanhada de
ilustrações didáticas que pudessem elucidá-la por meio de recursos visuais, inspiradas
nos modelos formulados por Isola-Lanzoni (2017). Tal estratégia aplicou-se não
somente para o esclarecimento dos modificadores, mas também para o dos outros
subgrupos de adjuntos.
Figura 3. Ilustração de explicação dos adjuntos adnominais modificadores
Fonte: elaboração própria.
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Discurso e poder: teoria e análise
O subgrupo dos quantificadores, por sua vez, é compreendido, ainda em
conformidade com a mesma teoria linguística (LANGACKER,2008), como a
classificação dada aos adjuntos adnominais que cumprem o papel de delimitar a
extensão do conjunto ou do subconjunto referido pelo sintagma. Com essa definição,
o aluno pode depreender que, por meio da inserção de um quantificador, realiza-se a
etapa da quantificação, a qual diminui drasticamente o número de candidatos ao
recorte referencial.
Nessa subclassificação da adjunção, houve também a diferenciação entre
quantificadores relativos e absolutos. Os primeiros contemplam os adjuntos que,
embora consigam demarcar e limitar a quantidade de possíveis candidatos ao
referente, baseiam-se em uma escala subjetiva sob a perspectiva do falante, pois
utiliza-se de expressões, os pronomes indefinidos, que não revelam o número exato
desses candidatos, tais quais os quantificadores absolutos, enquadrados na classe de
numerais. Salientar essa diferença ao aluno foi possível mediante o contraste entre três
enunciados reformulados a partir do exemplo do trava-língua.
Figura 4. Distinção entre tipos de quantificadores
Fonte: elaboração própria.
Por fim, para a concepção de determinante, estabelecemo-la como o adjunto
incumbido de indicar ao interlocutor a pista de que ele consegue ou não identificar o
referente, em função de quatro meios: da sua posição no espaço, da sua inserção no
texto, do seu conhecimento de mundo e do conhecimento partilhado. Essa
enumeração corresponde, respectivamente, à determinada por Langacker (2008), em
que a entidade é inferida pelo contexto situacional, pelo cotexto, pelo conhecimento
de mundo e pelo conhecimento partilhado entre interlocutores. Esses casos foram
ALENCAR, Sabrina Nascimento de | 2020 | p. 224-239
230
Adjunção adnominal no Ensino Básico: alternativas para um ensino ...
denominados, na seção dedicada aos alunos, como “posição no espaço”, “inserção no
texto”, “conhecimento de mundo” e “conhecimento partilhado”, respectivamente,
para maior precisão e clareza do que se trata cada um deles. Com o intuito de discernir
de que modo essas identificações ocorrem efetivamente no texto, novamente, o
contraste entre exemplos adaptados do trava-língua mostrou-se uma alternativa
produtiva, trazendo tais reformulações em uma ordem correspondente à da
enumeração dos casos. Dessa forma, o aluno pode apreender que os variados usos
dos determinantes são feitos estrategicamente pelo falante objetivando imprimir
diferentes efeitos semânticos ao texto, consoante a mensagem final pretendida.
Figura 5. Diferenciação entre os quatros meios de determinação do referente
Fonte: elaboração própria.
Na conclusão desse item, o aluno defronta-se com dois exercícios já
solucionados, os quais lidam com dois anúncios publicitários cuja leitura final requer,
necessariamente, o uso do adjunto adnominal para ser alcançada. Em ambos, procurase demonstrar a relevância do conhecimento dos diferentes tipos de adjunto para
notar que cada um implica efeitos variados, os quais encaminham para uma
determinada interpretação. Diante disso, as perguntas têm a pretensão de guiar o
olhar do aluno sobre o uso da linguagem evolvendo a adjunção, alinhando-os à leitura
final que eles inferem. Entender quais usos linguísticos possibilitaram a compreensão
total do texto é tão necessária quanto essa por si só, visto que a produção textual está
intimamente articulada ao domínio dos recursos gramaticais. Esse escopo é defendido
por Dolz, Noverraz & Schneuwly (2004, p. 109), que ressaltam a “consciência mais
ampla” do aluno acerca de seu “comportamento de linguagem em todos os níveis”.
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Discurso e poder: teoria e análise
Figura 6. Exemplo de exercício resolvido
Fonte: elaboração própria.
Baseando-se em uma propaganda de cosméticos para o público masculino, o
exercício debruça-se sobre a reformulação de um dito popular pelo texto do anúncio.
Para isso, duas questões assumem a tarefa de apurar a leitura do aluno para a
estratégia à qual o anunciante recorreu para realizar tal adaptação e por que esse
movimento discursivo se faz indispensável ao seu poder persuasivo de venda do
produto.
A primeira pergunta direciona o enfoque de leitura para o adjunto adnominal
“de homem”, uma vez que esse substitui a expressão “de mulher”. Em seguida, a
segunda pergunta procura explorar por que essa adaptação traz mudança de sentido
e de que forma esse novo sentido serve aos fins publicitários. Desenvolvemos o
raciocínio, portanto, de que a alteração do modificador nesse sintagma nominal
implica o sentido de que o cuidado estético - tipicamente associado à subcategoria
do universo da mulher por corresponder a um comportamento consolidado como
feminino pelos paradigmas patriarcais – passa a pertencer a uma subcategoria
inesperada, da qual antes era excluído: a do universo masculino. Nesse contexto, a
propaganda parece visar seduzir o público-alvo masculino para adquirir o produto
anunciado por fazê-lo acreditar que comprar esse tipo de objeto, embora seja uma
conduta socialmente alinhada ao interesse feminino, não anula a possibilidade de que
essa também atenda ao bem-estar do homem, propondo dialogar com e, inclusive,
capitalizar sobre modelos de masculinidade contra-hegemônicos.
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Adjunção adnominal no Ensino Básico: alternativas para um ensino ...
2 Segunda seção do material didático: o adjetivo adnominal na
coesão textual
No segundo tópico do material, procuramos tratar da adjunção atuando em
outro processo linguístico essencial para a construção textual: a Referenciação, tal qual
discutida por Ingedore Koch (2014). Nesse caso, o adjunto adnominal, por ser um dos
componentes do sintagma nominal, contribui para os fenômenos discursivos de
ativação/construção, reativação/reconstrução e desfocalização/desativação dos
referentes que integram um texto.
A princípio, descreve-se cada um deles para o aluno, sendo a nomenclatura
utilizada por Koch (2014) remodelada, para sugerir ao aluno, já pela terminologia, a
função dessas etapas. Assim, determinou-se a Referenciação como um processo que
se pauta nos momentos textuais nos quais o falante pode introduzir um referente,
reintroduzi-lo ou tirá-lo de foco, deixando-o em modo de stand by. Com fins mais
didáticos, estendemo-nos majoritariamente na explicitação dessas estratégias por
meio de sua aplicação em um fragmento da canção “Geni e o Zepelim”, de Chico
Buarque, no qual o enunciador recorre a diferentes sintagmas nominais constituídos
por variados adjuntos adnominais os quais, à medida que agregam maiores
informações à identidade de Geni, cumprem as fases da Referenciação, pois oferecem
caminhos para o leitor reconhecer o referente de Geni em função de múltiplos
atributos. O objetivo em usar especificamente uma canção consiste também em trazer
um exercício simultaneamente lúdico e produtivo para o ensino, uma vez que o ideal
seria o professor ouvir a música em aula com os alunos a fim de desencadear uma
discussão sobre a história narrada por ela e, com isso, culminar na atividade proposta
pelo material.
No contexto da canção, os adjuntos adnominais associados a Geni variam
conforme o autor dá voz a diferentes personagens, o que demonstra que a
Referenciação, nesse caso, reflete os interesses e as pretensões do enunciador. Em
primeira instância, a adjunção revela a visão depreciativa dos outros moradores sobre
ela, atribuindo-lhe injúrias e maldizeres; em segunda instância, denuncia a
objetificação do comandante do Zepelim a respeito da mulher, tendo em vista que
esse se usa de galanteios para seduzi-la, visando a exclusivamente atender a seus
interesses sexuais; e, em última instância, destaca-se o modo como os adjuntos
pejorativos dados pelos moradores passam a ser menos hostis objetivando persuadir
Geni a submeter-se às vontade do comandante para o bem comum da população, o
que revela a manipulação do discurso pelo enunciador em prol de obter vantagens
para si mesmo. Logo, a Referenciação concretiza-se de maneira ardilosa para criticar
engenhosamente a maneira com que a sociedade vilipendia e pretere a mulher,
agraciando-lhe apenas em ocasiões oportunas, ou seja, quando ela pode satisfazer os
interesses dessa sociedade. Em “Geni e o Zepelim”, essa atitude mostra-se evidente
em relação à personagem de Geni, cujo comportamento de não somente transgredir
e confrontar os paradigmas conservadores da sociedade, mas também de se
solidarizar com outros igualmente marginalizados torna-a uma figura desolada e, ao
mesmo tempo, conveniente em seu meio social.
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Discurso e poder: teoria e análise
Figura 7. Trecho do material em que se inicia a abordagem de um fragmento da
canção “Geni e o Zepelim”
Fonte: elaboração própria.
3 Terceira seção do material didático: uma análise profunda para
professores
Nessa parte do material, dedicada exclusivamente aos professores,
objetivamos aprofundar as teorias de Ancoragem Nominal (LANGACKER, 2008) e de
Referenciação (KOCH, 2014), com uma abordagem mais detalhada e fidedigna ao que
de fato é estabelecido pelos linguistas.
Usando-se dos mesmos exemplos aplicados nas seções anteriores, o professor
pode ter uma perspectiva mais ampla e complexa dos fenômenos semânticodiscursivos nos quais a adjunção adnominal se demonstra componente
imprescindível. Essa explicação, embora alinhada à dada aos alunos, alcança, nesse
caso, um nível mais teórico e substancial, seja por contemplar a mesma terminologia
empregada pelos linguistas para a descrição dos processos, seja pela atenção
minuciosa a nuances de diferença entre co(n)textos muito semelhantes. Ambos os
casos configuram tópicos que, sob o nosso ângulo, não convém explicitar ao corpo
discente, mas cabe trazer ao professor para muni-lo de conhecimentos fundamentais
que podem ser manipulados conforme suas exigências para um aproveitamento
educacional mais eficaz e produtivo acerca dos adjuntos.
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Adjunção adnominal no Ensino Básico: alternativas para um ensino ...
No decorrer da seção, são dadas sugestões sobre possíveis maneiras de
trabalhar dadas informações em sala de aula, sem impô-las como absolutas e
inflexíveis, uma vez que esse estudo mais completo e abrangente da adjunção confere
autonomia e liberdade ao professor para formular sua própria metodologia de ensino.
Essa expectativa condiz com o propósito de fazer com que o professor se aproprie do
conteúdo do material a fim de que, posteriormente, extrapole-o, não se limitando
somente aos caminhos indicados por ele.
Figura 8. Início da sessão destinada unicamente aos professores
Fonte: elaboração própria.
4 Quarta seção do material didático: exercícios
A última parte do conteúdo engloba tanto o item com os exercícios que devem
ser resolvidos pelos alunos quanto o tópico com as respostas esperadas. A formulação
das questões considerou o que é defendido por teorias da Linguística Aplicada no
âmbito do Ensino-Aprendizagem de Língua (TRAVAGLIA, 2013; NEVES, 2002;
PAIXÃO DE SOUSA, 2012; SILVA, PILATI & DIAS, 2010; BAWARSHI & REIFF, 2013;
GONÇALVES-SEGUNDO, 2017; DOLZ, NOVERRAZ & SCHNEUWLY, 2004), as quais
reiteram algumas alternativas para o ensino que se mostram como mais próximas de
alcançar uma abordagem mais eficiente e orientada ao propósito de apurar no aluno
uma sensibilidade crítica de leitura e de escrita a partir do reconhecimento da
gramática como componente não apenas formal do texto, mas também essencial para
a construção de seu sentido.
Nesse intuito, coletamos a maior variedade de sequências textuais e de
gêneros discursivos que nos foi possível para adequar-se ao que afirma Travaglia
(2013), quando evidencia a urgência da diversidade de gêneros. Tal medida atua em
conjunto com o abandono do privilégio da macroestrutura do texto, atentando-se
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Discurso e poder: teoria e análise
também para a sua microestrutura, isto é, para o uso regular de determinados recursos
linguísticos na produção textual, o que capacita o aluno não somente para a redação
de um gênero específico, mas para uma gama diversificada de gêneros.
Articulado a isso, procuramos contemplar também a perspectiva de Devitt
(apud Bawarshi & Reiff, 2013, p. 214), a qual destaca como um dos empecilhos,
referente à esfera das pedagogias de gênero, a priorização a diferentes preocupações
teóricas em detrimento da compreensão dos fatores linguísticos, sociais e culturais
que circundam os gêneros. Assim, transferindo essa lógica para o ensino da adjunção
adnominal, o objetivo principal relativo aos exercícios não se limita à informação do
aluno quanto às distintas classificações dadas a essa classe, e sim transcende esse nível
ao pretender colocar essa como tarefa secundária perante a reflexão sobre os usos
linguísticos e o entendimento da gramática articulada à textualidade e à semântica.
Com a finalidade de demonstrar o modo com que almejamos satisfazer esse
panorama, trabalhamos com gêneros como meme, direcionando o olhar do aluno
para a forma com que o quantificador contribuía para a construção do humor; como
manchete jornalística, enfocando de que modo o quantificador relativo sugere uma
visão subjetiva do evento noticiado pelo autor; como publicidades denunciadas por
reproduzirem preconceitos contra uma minoria, suscitando reflexões sobre o papel do
adjunto para se chegar a essas leituras polêmicas; dentre outros gêneros próximos à
realidade do aluno para estimular sua sensibilidade crítica ao lidar com esses textos no
cotidiano.
A seguir, comentamos de maneira mais aprofundada dois desses exercícios.
Figura 9. Oitavo exercício da penúltima seção do material
Fonte: elaboração própria.
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Adjunção adnominal no Ensino Básico: alternativas para um ensino ...
O texto escolhido para essa questão foi uma espécie de carta do leitor, em que
um internauta apresenta sua dúvida acerca do uso da expressão “pessoa humana”, a
qual, segundo sua visão, configura um pleonasmo. A partir dessa leitura do internauta,
a pergunta direciona o aluno para o uso do termo “humana”, o qual constitui um
adjunto adnominal modificador, questionando por que sua presença contribui para
que a interpretação da expressão seja encarada como um pleonasmo, nesse caso.
O propósito com essa orientação é incitar o aluno a perceber que,
considerando a divisão da categoria em duas subcategorias com a inserção de um
modificador, nessa circunstância, o modificador “humana” realiza esse processo com
a categoria “pessoa”, logo, as duas subcategorias resultantes dessa modificação são a
de “pessoa humana” e a de “pessoa não humana”, sendo a primeira correspondente
ao referente pretendido pelo falante. Nesse quadro, pode-se evidenciar que o
pleonasmo acontece devido à origem de uma subcategoria, a de “pessoa não
humana”, considerada convencionalmente inexistente e decorrente da etapa de
modificação, por isso, há o estranhamento.
Figura 10. Nono exercício da penúltima seção do material
Fonte: elaboração própria.
Nesse caso, selecionamos o título de um artigo em um blog político, composto
por três enunciados, sendo os dois primeiros o alvo de nossas questões. O ponto para
o qual conduzimos maior atenção relaciona-se ao fato de o autor servir-se do contraste
semântico entre o emprego de “a” e de “alguns”, que, por si só, consegue explicitar
de maneira precisa e objetiva o seu posicionamento a ser justificado no artigo.
Visando a enfocar essa estratégia, o aluno depara-se com duas questões. A
primeira exige que seja dada a interpretação desses enunciados, o que equivale ao
tipo de exercício comumente aplicado nos livros didáticos atuais. No entanto, para não
nos restringirmos a uma atividade meramente de análise do sentido, a segunda
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Discurso e poder: teoria e análise
questão retoma a resposta dada à primeira sob o viés de que tal leitura somente foi
possível devido ao uso de dois termos específicos, os quais são classificados como
adjuntos adnominais. A tática utilizada, para isso, consiste em propor ao aluno a
substituição dos termos por outros de mesma classificação semântica, “uma” e
“poucos”.
Diante esse contexto, tem-se que, apesar de enquadrarem-se em um mesmo
tipo de adjunto adnominal, os artigos “a” e “uma” agregam noções distintas ao
sintagma nominal, uma vez que o primeiro implica uma generalização sobre uma
categoria, enquanto o segundo acarreta outros efeitos não convergentes com esse
sentido. Da mesma forma, “alguns” e “poucos”, ainda que ambos sejam
quantificadores relativos, inferem significados divergentes. O primeiro ressalta a
existência de exemplares de uma determinada categoria, sem ater-se à quantidade,
seja ela reduzida, seja ela extensa; já o segundo parece colocar esse ponto em
primeiro plano, visto que, quando associado ao nome central nesse sintagma, enfatiza
precisamente o número escasso de políticos que se adequam à subcategoria de
corruptos, o que também não atende ao interesse do enunciador nessa circunstância.
Desse modo, não apenas nesses exercícios, mas em todos da seção, almejamos
articular a gramática à interpretação do texto, estimulando o aluno a notá-la como um
recurso discursivo ao qual se recorre para construir determinado efeito semântico em
concordância com o pretendido pelo enunciador. Considerando esse intuito e as
ideias supracitadas de Travaglia (2013) e de Devitt (apud Bawarshi & Reiff, 2013, p.
214), o caminho proposto pauta-se na diversidade de sequências textuais e de
gêneros discursivos, pois, assim, será explicitada ao aluno a maneira com que essa
manipulação e domínio da gramática interferem em leituras inclusive presentes em
seu cotidiano, como manchetes jornalísticas, memes, artigos de blog, cantadas,
propagandas, cartas do leitor, contos, e entre outros, aproximando a gramática de sua
realidade e analisando sua aplicabilidade mesmo em situações mais informais.
Não obstante, vale ressaltar o desafio de se propor exercícios de produção
textual em um material voltado à gramática, já que não encontramos modelos préexistentes e certificadamente produtivos usados de modo amplo pelos materiais
vigentes ou pelas sequências didáticas de teóricos do Ensino-Aprendizagem de
Língua em que pudéssemos tanto nos inspirar quanto nos respaldar para desenvolver
novas formas. Devido a isso, dentre os onze exercícios, somente um dispõe-se a tal
atividade baseando-se no conto de Clarice Lispector, “Tentação”, do qual foram
suprimidos os sintagmas nominais para que o aluno pudesse reformulá-los visando a
descrever características variadas sobre a personagem por meio do processo de
Referenciação (KOCH, 2014), em que o conjunto de atributos do referente
desenvolve-se com a inserção de diferentes adjuntos adnominais no sintagma.
Considerações finais
O material apresentado nesse artigo introduz um conteúdo de adjunção
adnominal constituído por novas alternativas e caminhos de ensino que se alinham a
uma gramática orientada à textualidade e à significação, por meio de uma abordagem
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Adjunção adnominal no Ensino Básico: alternativas para um ensino ...
que considere os recursos linguísticos manipulados pelo enunciador para que acarrete
determinado efeito semântico.
Para isso, o conteúdo busca recuperar conceitos linguísticos, majoritariamente
ignorados pelos livros didáticos atuais, associando-os ao papel do adjunto adnominal
para propor uma nova concepção desse em função da Ancoragem Nominal
(LANGACKER, 2008) e da Referenciação (KOCH, 2014), aos quais o adjunto constitui
componente fundamental e indispensável, logo, divergindo da conceituação teórica
tradicional que lhe atribui caráter meramente formal e secundário. Nesse sentido,
enfatiza-se a estrutura do sintagma nominal visando a demonstrar de que modo o
adjunto está presente no texto, e formula-se uma abordagem teórica de adjunção em
que é contemplada não somente sua classificação morfológica e sintática, mas
também a semântica, o que ramifica essa classe em três novos subtipos: quantificador,
modificador e determinante.
Outro ponto relevante é a inclusão de uma seção dedicada exclusivamente ao
professor, a fim de que esse possa se apropriar das teorias linguísticas que envolvem
adjunção adnominal e, por meio desse conhecimento, assumir autonomia perante o
conteúdo para reiterar sua liberdade de propor seus próprios métodos de
abordagem, sem ater-se ao material como alternativa única e absoluta.
Por fim, a elaboração dos exercícios norteou-se pelo que é defendido por
linguistas do ramo de Ensino de Língua (TRAVAGLIA, 2013; NEVES, 2002; PAIXÃO DE
SOUSA, 2012; SILVA, PILATI & DIAS, 2010; BAWARSHI & REIFF, 2013; DOLZ,
NOVERRAZ & SCHNEUWLY, 2004), que salientam a urgência de trazer atividades que
não se restrinjam ao aprendizado da gramática como pautada ora em etiquetações,
ora em interpretações de texto desarticuladas dos efeitos provocados pelos usos
linguísticos. A proposta, em um direcionamento que considera as dimensões sintáticosemânticas da adjunção, procura atender às necessidades de reflexão sobre o uso da
linguagem (NEVES, 2002), de estímulo ao espírito investigativo sobre a gramática
(SOUZA, 2012), e de engajamento com uma conscientização acerca dos processos
concernentes à construção do discurso (SILVA, PILATI & DIAS, 2010), para que o aluno
alcance sensibilidade crítica relativa à leitura, primariamente, e, secundariamente, à
escrita, capacitando-o com essas habilidades em suas relações diversas para com o
mundo.
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Como citar
ALENCAR, Sabrina Nascimento de. Adjunção adnominal no Ensino Básico:
alternativas para um ensino orientado à significação. In: GONÇALVES-SEGUNDO,
Paulo Roberto; ARAES, Célia Regina; CASTANHEIRA, Claudia; ISOLA-LANZONI,
Gabriel; PENITENTE, Natalia; WEISS, Winola (orgs). Discurso e poder: teoria e análise.
São Paulo: FFLCH/USP, 2020, p. 224-239. DOI: 10.11606/9786587621241
ALENCAR, Sabrina Nascimento de | 2020 | p. 224-239
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Vivências Discursivas: uma forma de ver e estar no mundo
Vivências Discursivas: uma forma
de ver e estar no mundo
Samara Gabriela Leal FRANÇA
Universidade de São Paulo
[email protected]
Resumo: Compreender a leitura e a escrita como instrumento
de poder – que dá voz e favorece o protagonismo crítico do
indivíduo na sociedade – é fundamental ao trabalho docente,
sobretudo, aquele realizado nas escolas públicas. Este trabalho
tem por objetivo discorrer sobre as contribuições do gênero
memórias literárias para a melhoria da leitura e a escrita do
aluno-autor, que produz e por suas produções são formados, de
maneira dialógica, ideologicamente. Este artigo representa um
recorte de uma pesquisa maior realizada no curso de Mestrado
Profissional em Rede Aberta- PROFLETRAS /USP. Nele,
apresento o caminho trilhado e a análise de duas produções
finais, que pressupõe o aluno como protagonista no processo
de ensino-aprendizagem. O aporte teórico está assentado no
conceito da pedagogia da autonomia postulado por Freire
(1996); na perspectiva da literatura como espaço subjetivo e de
construção identitária, conforme Petit (2013); e nos elementos
composicionais do gênero, segundo Bosi (1979/2003) e
Marcuschi (2011). Os resultados, embora parciais, são bastante
reveladores e apontam para a necessidade de novas
perspectivas de leitura e escrita escolar, em que se respeite a
subjetividade, a liberdade, a autonomia e a emancipação dos
sujeitos envolvidos.
Palavras-chave: Memórias literárias; Aluno protagonista; Leitura
literária, Pedagogia da autonomia; Aluno-autor.
Introdução
Nos ambientes educacionais, faz-se necessário fortalecer as práticas de leitura
e escrita, incorporando-as ao cotidiano das crianças e adolescentes. Entretanto, o que
observamos, enquanto professora-pesquisadora, é uma lacuna muito grande entre o
jovem-aprendiz e a leitura, sobretudo, no tocante à leitura literária. Há uma defesa
muito forte sobre a importância da literatura; Candido (2004), por exemplo, defende
que mais do que um conteúdo, ela é um direito do ser humano. Entretanto, notamos
também uma carência no que se refere ao seu oferecimento no Ensino Fundamental –
Anos Finais. Isso muda quando observamos, por exemplo, a educação infantil,
momento em que a criança está sendo inserida no mundo da leitura e em que a leitura
literária é bastante recorrente. Já no Ensino Médio, iniciam-se os estudos das escolas
literárias, deixando, assim, à margem o Ensino Fundamental II.
FRANÇA, Samara Gabriela Leal | 2020 | p. 240-274
241
Discurso e poder: teoria e análise
Podemos refletir que, em uma época em que a literatura ganha novos suportes,
é incorporada às mídias digitais, ao mesmo tempo, perca espaço nas práticas
escolares. Nesse sentido, Yunes (2012) afirma que a literatura não corre perigo de
inexistência e que o seu fim chegará apenas quando também for o fim do homem. Isso
nos faz pensar que se não é a literatura que está em declínio, então poderia ser o seu
ensino? Ademais, ao questionarmos aos alunos sobre hábitos de leitura, percebemos
que eles leem sim, aquilo de que precisam e de que gostam de ler. Compreendemos,
portanto, que a escola precisa repensar suas práticas para que faça emergir, fazendo
uso das palavras de Rouxel (2012), um sujeito-leitor no sujeito escolar.
Posto isso, ao evidenciarmos a escrita no cerne da questão, as respostas não
são diferentes. Muitos alunos chegam ao Ensino Fundamental II sem estarem ainda
alfabetizados, fato que pode ser comprovado pelas avaliações externas cujos
resultados não são positivos para os alunos da rede pública. Esses, muitas vezes,
passam nove anos em uma escola e saem com a competência linguística defasada.
Agrava-se, ainda, este quadro quando pensamos em práticas que não consideram a
autonomia e protagonismo dos alunos no processo de ensino-aprendizagem e muito
menos sua formação enquanto ser humano e sujeitos que formam suas identidades
também na escola.
Pensando nisso e com o intuito de buscar novas propostas, este trabalho teve
como foco analisar a realização de um projeto de ensino que refletisse sobre práticas
de leitura e produção literária, nas quais o texto seja compreendido como espaço de
interação dos sujeitos sociais, que produzem e por suas produções são formados, de
maneira dialógica, ideologicamente. O projeto foi aplicado com alunos de 7º ano de
uma escola pública estadual de Aguaí, interior de São Paulo. O gênero discursivo
escolhido para o trabalho foi o de memórias literárias1 por possibilitar diversas
vivências discursivas e também uma valorização local, a partir do tema “O lugar onde
vivo”. A aplicação teve duração de um semestre e contou com diferentes etapas que
descrevemos no Anexo I. A metodologia favoreceu um movimento que partiu de
coletas orais com moradores da comunidade, encaminhou-se a um trabalho de
manutenção de leitura e escrita, findando-se com a partilha oral das produções com a
comunidade escolar.
Este artigo objetiva2, também, colaborar com a prática docente, demonstrando
a importância de darmos espaço ao trabalho com a literatura, de maneira especial, no
Ensino Fundamental II, devido à lacuna já justificada anteriormente. Em uma sociedade
cada vez mais letrada, a língua torna-se instrumento de opressão e, nesse sentido, é
preciso instrumentalizar nossos educandos e garantir o que lhes é de direito: o acesso
à literatura, como forma de arte, e bem postulado por Petit (2013), como caminho
privilegiado para se pensar, se construir, dar sentido a própria vida, para dar voz ao
seu sofrimento, seus desejos e sonhos.
Para o projeto de ensino realizado, utilizamos a base do material da Olimpíada de Língua Portuguesa
Escrevendo
o
Futuro
nomeado
“Se
bem
me
lembro...”
Disponível
em:
https://www.escrevendoofuturo.org.br/, acesso 21/07/2019.
2
Ressaltamos que o presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
1
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Vivências Discursivas: uma forma de ver e estar no mundo
1 Naquele tempo: a leitura de memórias literárias
O educador Paulo Freire, em 1987, deixa uma grande contribuição para a
educação brasileira, quando reflete sobre a “Pedagogia do oprimido”.3 Nessa obra, o
autor constata, dentre várias questões, o problema da educação como aparelho
ideológico repressor, quando reproduz na sala de aula uma pedagogia que mantém
diferenças sociais, de gênero e de classe.
Nesse sentido, Freire (1987) analisa e conceitua a concepção bancária de
educação como um instrumento da opressão. Nesse tipo de educação, o professor é
o principal agente no processo educativo e os educandos seres passivos que apenas
recebem e armazenam o que lhes foi ensinado, sem que se respeite seus
conhecimentos, suas dificuldades, suas pessoas. Essa visão de ensino é pautada na
narratividade e, normalmente, fala “da realidade como algo parado, estático,
compartimentado e bem-comportado”, outras vezes, disserta “sobre algo
completamente alheio à experiência existencial dos educandos”. Ao educador cabe:
"encher” os educandos dos conteúdos de sua narração. Conteúdos
que são retalhos da realidade desconectados da totalidade em que
se engendram e em cuja visão ganhariam significação. A palavra,
nestas dissertações, se esvazia da dimensão concreta que devia ter ou
se transforma em palavra oca, em verbosidade alienada e alienante.
Dai que seja mais som que significação e, assim, melhor seria não
dizê-la (FREIRE, 1987, p.33).
Diferentemente do conceito da “Pedagogia do oprimido”, que não faz senão
depositar e transmitir valores, a “Pedagogia da autonomia”, também de autoria do
referido autor, propõe práticas de ensino em que ocorra uma “dialogicidade
verdadeira, em que os sujeitos dialógicos aprendem e crescem na diferença,
sobretudo, no respeito a ela”, assim, formamos “seres que, inacabados, assumindo-se
como tais, se tornam radicalmente éticos.” Essa visão faz com que nós, educadores,
saibamos que devemos “respeito à autonomia e à identidade do educando” e isso
exige de nós “uma prática em tudo coerente com este saber.” (FREIRE, 1996, p.25)
Como pontua Freire (1987/1996), o educando deve ser o protagonista de seu
processo de ensino-aprendizagem e, nessa perspectiva, o projeto de ensino
desenvolvido pauta-se no pressuposto da pedagogia da autonomia e também
compreende o ensino da Língua Portuguesa como decorrente de atividades que
proporcionem a utilização da língua, como também a reflexão sobre o uso em
atividades concretas e não tecnicistas.
Assim, para a produção discente de memórias literárias, objetivo final do
projeto, era preciso que estabelecêssemos o contato dos alunos com o gênero em
questão, inserindo-os nas gamas da literatura a fim de favorecer o letramento literário,
criando, deste modo, uma ponte entre a leitura e a escrita. Nesse sentido, as primeiras
leituras Transplante de Menina de Tatiana Belinky e Parecida mas diferente de Zélia
Gattai foram realizadas com áudios e as coletâneas da Olimpíadas de Língua
Portuguesa Escrevendo o Futuro, doravante OLPEF.
3
Freire, Paulo. Pedagogia do oprimido, 17a. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.
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Discurso e poder: teoria e análise
Esse primeiro contato com o gênero proporcionou uma leitura por fruição;
convidamos os alunos a uma roda de conversa para que registrássemos as impressões,
emoções e até mesmo estranhamento que as leituras pudessem ter provocado. Nesse
momento, os alunos puderam compartilhar também fatos marcantes que eles
acreditavam merecer ficar registrado para sempre na memória.
Outras leituras foram oferecidas (anexo II), de forma gradativa e intercaladas
com a realização de outras atividades que nomeamos “vivências discursivas”, uma vez
que, durante o processo, os alunos não só aprendiam elementos linguísticos, mas
também os vivenciavam em práticas protagonizadas por eles mesmos. As leituras
foram realizadas de diversas maneiras, ora silenciosa, ora compartilhada, ora em rodas
e ao ar livre, ora através de imagens e, desse modo, fomos despertando o interesse,
não sem nenhuma resistência dos alunos para esse novo universo da narrativa ficcional
e literária que:
se distingue dos de outras esferas por uma certa transgressão do real,
por um olhar próprio e reflexivo para os acontecimentos históricos e
sociais, pelo uso mais intenso de recursos estilísticos de linguagem,
pela aspiração de provocar, no leitor, experiências estéticas, éticas,
ideológicas (MARCUSCHI, 2011, p.24).
De acordo com o que pudemos observar durante as leituras, percebemos que
é preciso encantar esses novos leitores, para que compreendam que a leitura literária
não se trata de diversão, ou do lado oposto, apenas obrigação dos afazeres escolares,
mas uma necessidade básica, assim como outras que colaboram para que possamos
viver com dignidade e equilíbrio.
2 Vivências Discursivas: uma forma de ver e estar no mundo
Durante o projeto de ensino, realizamos algumas atividades que tinham por
objetivo promover o protagonismo dos alunos em práticas que os levassem a dialogar
com a comunidade escolar e local, fazendo com que o aprendizado se tornasse mais
significativo. A primeira vivência discursiva proposta foi que alunos dialogassem com
moradores mais velhos da comunidade e coletassem as histórias de vida e fatos
marcantes que essas pessoas tivessem vivenciado em Aguaí. Esse diálogo seria a
matéria-prima para que os educandos produzissem os textos memorialistas. Eles
deveriam colocar-se no lugar dessas pessoas e recriar, literariamente, como se as
histórias fossem suas. Esse caminho para produção de memórias literárias também é
compartilhado por Bosi (2003):
De onde vêm as histórias? Elas não estão escondidas como um
tesouro nas grutas de Aladim ou num baú que permanece no fundo
do mar. Estão perto, ao alcance de sua mão. Você vai descobrir que
as pessoas mais simples têm algo surpreendente a nos contar.
Quando um avô fica quietinho, com o olhar perdido no passado, não
perca a ocasião. Tal como Aladim da lâmpada maravilhosa, você
descobrirá os tesouros da memória. Se ter um velho amigo é bom, ter
um amigo velho é ainda melhor (BOSI, 2003, p.09-11/23-27).
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Vivências Discursivas: uma forma de ver e estar no mundo
A segunda vivência discursiva foi realizada em parceria com a professora de
História; realizamos um resgate da memória histórica do município. Coube à
professora discutir sobre fontes históricas, buscando descobrir o conhecimento que
os alunos já possuíam sobre a temática e, ao mesmo tempo, construir novos saberes:
o que são fontes históricas, a análise de algumas delas, o porquê de sua importância,
dentre outras questões.
A partir dessa edificação, retomamos esse objeto de estudo na aula de língua
portuguesa, tendo desenvolvido para isso, a caixa de memórias.
Figura 1. Caixa de Memórias
Fonte: arquivo pessoal da autora
Em duplas, os alunos escolhiam uma fonte histórica na caixa e também uma
foto antiga do município (ruas, estação de trem, planta do hospital, documentos).
Depois de analisadas a imagem e a fonte, eles produziram um relato sobre as
descobertas apreendidas e, posteriormente, compartilharam com os outros colegas.
Dessa maneira, todos os alunos conheceram um pouco da história de nosso município,
o que gerou bastante interesse e motivação para produção que se daria, fomentando
mais conhecimentos sobre o tema “O lugar onde vivo”.
Figura 2. Fontes históricas do município
Fonte: https://aguai.sp.gov.br/home/historia/. Acesso 01/10/2018
Com esta atividade, os alunos puderam descobrir, por exemplo, que nosso
município nem sempre teve o nome de Aguaí. Antigamente, chamava-se Cascavel,
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Discurso e poder: teoria e análise
porém com a promulgação do decreto que proibia duas cidades possuírem o mesmo
nome, a gestão da época convocou a população a um plebiscito. Os munícipes então
deveriam escolher dentre três nomes: Teçainda, Aguaí, Toripa. Alguns alunos
concordaram com a escolha, outros discordaram e, assim, a atividade pode
proporcionar insumos para debates sobre diferentes pontos de vista.
Na terceira vivência discursiva, organizamos uma exposição de objetos antigos.
Os alunos coletaram, em casa ou com as próprias pessoas entrevistadas em atividades
anteriores, fotos, cartas, utensílios domésticos, máquinas, discos de vinil, a fim de
ampliar o repertório deles sobre os costumes, modos e hábitos de outros tempos
estabelecendo, assim, uma nova aproximação com o passado. Advertimos, entretanto,
que as pessoas representam a principal fonte para reconstruirmos a memória.
Na sequência, realizamos a exposição. Para isso, confeccionamos um “túnel do
tempo”, pelo qual os alunos de outras classes, que vinham prestigiar, tinham de
atravessar. Os alunos dividiram-se em grupos e cada um possuía uma tarefa: montar o
túnel; desenhar e recortar letras em EVA para indicações no ambiente; preparar as
placas com os nomes dos objetos e indicação do ano; organizar a sala da exposição,
a disposição dos objetos; monitorar a exposição e convidar as salas que deveriam vir.
O trabalho foi desempenhado com empreendedorismo e os alunos puderam
compartilhar aquilo que haviam aprendido. Aventuraram-se em multiplicar o
aprendizado, repassando para outros colegas a história de nossa cidade. Observaram
as transformações advindas ao longo do tempo e foram protagonistas o tempo todo,
desde a montagem até a apresentação da exposição. Sobre esse aspecto, Bosi (1979)
afirma que:
[...] Mais que um sentimento estético ou de utilidade, os objetos nos
dão um assentimento à nossa posição no mundo, à nossa identidade.
Mais que da ordem e da beleza falam à alma em sua doce língua natal.
[...] A ordem desse espaço povoado nos une e nos separa da
sociedade: é um elo familiar com sociedades do passado, pode nos
defender da atual revivendo-nos outra. Quanto mais votados ao uso
cotidiano, mais expressivos são os objetos: os metais se arredondam,
se ovalam, os cabos de madeira brilham pelo contato com as mãos,
tudo perde as arestas e se abranda (1979, p.360)
Figura 3. Exposição de Objetos Antigos
Fonte: arquivo pessoal da autora
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Vivências Discursivas: uma forma de ver e estar no mundo
Sequencialmente, na quarta vivência discursiva, lançamos um novo desafio aos
alunos: agora, eles deveriam sair às ruas da cidade e realizar um registro fotográfico,
porém esse local deveria já ter sido analisado através de uma fotografia antiga em sala,
na caixa de memórias, ou ainda de um lugar da cidade de que eles gostassem muito.
A princípio, essa tarefa serviu de base para que eles desenvolvessem a
percepção da importância da descrição em textos de memórias literárias, que
subjetiva os lugares, as pessoas, as emoções e sentimentos envolvidos nas
lembranças. Observamos, ainda, os efeitos construídos na maneira singular com o que
autor memorialista registra as descrições em seus textos.
A atividade realizada comprovou a necessidade e importância de que os alunos
tivessem voz ativa. Isso foi observado, pois um dos alunos fez questão de estar
presente na fotografia registrada, justamente em um local da cidade em que ele gosta
de estar. Muitos registros se deram no parque em que eles gostam de frequentar para
entretenimento, caminhadas, piqueniques e práticas de esportes. Também notamos o
apreço dos alunos às atividades diversificadas, dado que a totalidade deles realizou a
tarefa. É importante observarmos a facilidade que os educandos possuem,
naturalmente, com as tecnologias digitais, uma vez que editaram as fotos, colocaram
filtros e transformaram-nas em verdadeiras obras de arte. Dessa maneira, destacamos
o caráter autoral das fotografias (texto verbal), já que eles modificaram as imagens com
efeitos.
Figura 4. Registros fotográficos realizados pelos alunos
Fonte: arquivo pessoal da autora
A quinta vivência discursiva foi realizada em sala de aula. Lemos um fragmento
da obra Anarquistas, graças a Deus, de Zélia Gattai, nomeado “Os automóveis invadem
a cidade”. O objetivo era que observássemos o diálogo estabelecido, nos textos
memorialistas, entre o passado e o presente.
Assim, incentivamos, a partir de algumas perguntas, a reflexão sobre como
essas comparações foram incutidas no texto lido, sobre como os autores as
construíram, despertando um olhar investigativo perante a leitura.
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Discurso e poder: teoria e análise
Na sequência, aproveitamos as imagens antigas que trouxemos e as atuais
trazidas pelos alunos, para evidenciarmos as transformações locais pelas quais nosso
município havia passado, conforme ilustra a Figura 5.
Figura 5. Leitura comparada de imagens antigas e atuais
Fonte: arquivo pessoal da autora
Com as imagens dispostas no quadro, colocamos lado a lado a imagem antiga
e atual do mesmo local. Inicialmente, realizamos uma leitura visual, percebendo as
diferenças da cor – antes as fotos eram em preto e branco, algumas monocromáticas
ou em tom envelhecido – da paisagem – árvores que eram menores, podadas – das
construções – arquitetura diferenciada e, muitas vezes, padronizadas, rústicas, dentre
outras. As leituras suscitaram uma série de comentários sobre as preferências dos
alunos com relação aos tempos atuais e antigos, alguns detectaram que antes nossas
praças eram mais cuidadas. Outros, a partir da leitura de uma imagem, perceberam
que os carros eram escassos, pois em uma imagem analisada é possível ver apenas um
Fusca, o que levou a novas reflexões sobre alterações dos modelos dos carros. Um
aluno apontou “o Fusca era carro de luxo antigamente, né professora?”.
Depois desse momento de discussão, incentivamos os alunos a escreverem
suas observações sobre as comparações. Eles deveriam sinalizar o que havia mudado
e demonstrar o que pensavam com relação a essas mudanças, como podemos
demonstrar na Figura 6, 8 e 10.
Figura 6. Resposta do aluno
Fonte: arquivo pessoal da autora.
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Vivências Discursivas: uma forma de ver e estar no mundo
Figura 7. Transcrição da Figura 6
Naqueles tempos, Aguaí (antiga Cascavel) era bem mais tranquila, era mais colorida, os
lugares tinham menos construções e mais árvores, era uma cidade mais limpa, não tinha
tanto lixo jogado nas ruas, o rio do interlago era mais limpo, etc.
O campo do Beira Rio antes era um rio, depois virou um cemitério, e agora é um campo.
O José Theodoro foi a primeira escola criada em Aguaí, esse nome foi dado
a ela porque o nome do fazendeiro que doou aquele pedaço de terra
para aguaí se chamava assim, igual a escola Padre Geraldo Lourenço.
Na praça do Centro de aguaí, antes de ser uma praça era um coreto, um local
Onde os homens que andavam a cavalo se encontravam.
O interlagos, antes de ser um parque, era um bosque com muitas árvores, e muito barro
também.
O trilho do trem antes não existia carro, então eles andavam de trem para não andarem
a pé. E lembrando que o trem foi a primeira construção que teve em aguaí.
Fonte: elaboração própria.
Figura 8. Resposta do aluno
Fonte: arquivo pessoal da autora.
Figura 9. Transcrição figura 8
Major Braga, que foi no nosso fundador, não está mais entre nós, mais trouxe muitos
benefícios para a nossa cidade, como instalação do cartório de paz, luz elétrica, escolas
para a educação, etc.
Hoje em dia, a nossa cidade é chamada de Aguaí, mais quando Major Braga à fundou, ela
recebeu o nome de Cascável. Com o passar do tempo ficamos sabendo que nossa cidade
não podia mas ficar com o nome de “Cascável, tinhamos que escolher dentre três nomes,
que são:
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Discurso e poder: teoria e análise
Teçaindá (lugar alegre, risonho e aprazivel)
Aguaí (cascavel, guizo- de metal eda cobra mbói-aguaí)
Toripá (ligar, tempo, modo de alegrar-se).
No final o escolhido foi Aguaí, que até hoje é denominada assim. Muitas coisas mudaram,
na minha opinião para melhor.
Fonte: elaboração própria.
Figura 10. Resposta do aluno
Fonte: arquivo pessoal da autora.
Figura 11. Transcrição figura 10
Antigamente Aguaí tinha poucos lugares para ver
Como: mercados, lojas, escolas, etc. A estação de
trem em relação ao tamanho não mudou nada,
mas deram uma boa mão de tinta, e agora eu
acho que ela só atrapalha os moradores, porque quando
precisamos passar pro outro lado da linha não
conseguimos.
No ano de 1887, aqui chegou a família Braga
contituída pelo Major João Joaaquim Braga. Major João
foi praticamente o fundador de “cascavel”
Fonte: elaboração própria
As figuras 06,08 e 10 são amostras das produções que foram mais recorrentes
para essa atividade. A figura 06 apresenta uma visão nostálgica sobre as
transformações, discorrendo que antes a cidade era mais limpa e considerando como
importantes os fatos históricos relacionados às escolas citadas e ao meio de transporte
da época (trem). Já a produção da figura 08 considera que as transformações
ocorridas foram boas, já que para a aluna “muitas coisas mudaram” e “para melhor”.
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Vivências Discursivas: uma forma de ver e estar no mundo
Por fim, o texto da figura 10 imprime criticidade e avaliação em sua elaboração,
quando o aluno destaca que a estação de trem modificou-se apenas porque recebeu
uma boa pintura e o trem, na verdade, atrapalha os moradores quando precisam
deslocar-se para o outro lado da cidade. Isso se deve ao fato de que a linha do trem,
de forma central, divide a cidade. Nesse sentido, o aluno consegue identificar um
problema local que assola aos munícipes.
Também observamos que a maioria dos textos produzidos utilizaram uma
demarcação temporal em suas produções como “Naqueles tempos” na figura 06 e
“Antigamente” na 10, o que pode sugerir uma apropriação dos recursos comparativos
empregados em textos memorialistas.
Consideramos as atividades analisadas fundamentais para a formação
autônoma dos alunos, pois incentivou que eles tomassem decisões individuais e/ou
coletivas. Além disso, o projeto de ensino realizado pôde favorecer que a
aprendizagem, a leitura e vivências discursivas fossem experimentadas de forma
significativa. Em outras palavras, o aluno:
[...] Ali, nas histórias lidas ou ouvidas, nas imagens de um ilustrador ou
de um pintor, descobre que existe outra coisa e, portanto, certo jogo,
uma margem de manobra no destino pessoal e social. E isso lhe
sugere que pode tomar parte ativa em seu próprio futuro e no futuro
do mundo que o cerca (PETIT, 2013, p.43).
Muitas vezes, com essas atividades, os alunos podem ter referência sobre o
entorno, sobre a formação seja escolar, seja humana e descobrir que eles não são
meros espectadores da realidade que vivem e, assim, tornam-se parte ativa e
colaborativa na comunidade local.
As demais atividades que foram realizadas para a vivência dos alunos com o
gênero de memórias literárias, para que pudessem apreciar, criar e se apropriar,
encontram-se em anexo.
3 Escrevivências: a produção do texto memorialista
Findado o projeto de ensino, nossa expectativa era de que os sujeitos
envolvidos tivessem apreendido os elementos composicionais do gênero memórias
literárias e também compreendessem as condições para produzi-lo. Ademais, com as
experiências que tiveram, o objetivo era de que pudessem experimentar práticas
educacionais que envolvam a comunidade, estabelecendo diálogos com a memória
histórica do município, com a literatura e com discursos autorais em que tivessem
autonomia para recriar o real com liberdade e subjetividade.
De acordo com Marcuschi (2011), “para escrever boas memórias literárias, os
alunos autores precisam, simultaneamente, contar, com um olhar de hoje, sobre o
passado de outra pessoa como se fosse ela e, também, valorizar a singularidade e a
estética literária”. Sob essa ótica e com o apoio da proposta de descritores da OLPEF
(anexo V), analisamos as produções discentes que seguem:
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Discurso e poder: teoria e análise
a) Versão Final A14
Uma Mudança Mais que Especial
São José do Rio Pardo foi a cidade em que nasci, aprendi, cresci, até me tornar um
homem. Morava em um lugar maravilhoso: a fazenda de cachoeira, um lugar pequeno,
porém um pedaço do paraíso.
Com o passar do tempo, percebi que precisa me mudar. A vida em Rio Pardo estava
muito difícil. Por isso, no ano de 1975, aos meus 35 anos, eu e minha família nos mudamos
para Aguaí - uma cidade bem pequena, com pouquíssimo movimento, fraquíssima no
comercio, de carros e até mesmo pessoas.
A vida aqui em Aguaí estava sendo muito difícil, porque eu estava desempregado,
digamos que vim testar a sorte, pois além de tudo isso, eu tinha seis filhos e uma esposa para
sustentar. Naquele tempo, não tínhamos tanto medo em ter filhos, como, aparentemente,
hoje as pessoas têm: um ou dois filhos no máximo.
Após um tempo, graças ao meu Deus maravilhoso, consegui um emprego de
motorista, e assim conseguimos lidar com nossos problemas financeiros.
Como já disse, o comercio era bem fraco! Pelo o que eu me lembre, só tinha duas
lojas e a “venda”. A venda era como se fosse um mercado na atualidade, ela tinha um balcão
em que os clientes faziam pedidos apenas por quilo, por exemplo: “me dê dois quilos de
batata”.
Mas, o que me marcou de verdade, nessa cidade, foi o furacão que aconteceu no
bairro Jardim Aeroporto. Fecho os olhos e posso ver o desespero estampado no rosto das
pessoas. Primeiro o vento cantou e esbravejou. Depois veio a tempestade, impetuosa,
arrastando tudo que via pela frente. Um mar de água formou-se e com ele levou casas,
sonhos, vidas. Durante os dias que se passaram, tudo o que eu via eram rostos chorosos,
desanimados. Todos precisavam de ajuda para atravessar aqueles dias, nem que fosse a
esperança por um novo amanhecer, de Sol. Esperamos a tempestade passar e, de repente,
não via mais aflições, mas mãos que se ajudavam, solidariedade que sobrava. As cores do
céu iluminaram-se: assim como um novo dia, era possível recomeçar.
Todos os dias sento na calçada de casa, vejo as crianças correndo, carros passando,
jovens se divertindo, vejo a vida. Então, olho para o céu e digo a mim mesmo: Deus é bom!
Durante toda o meu caminho em Aguaí, Ele sempre esteve com suas mãos levantadas a me
abençoar. Hoje, tenho uma família linda, com muitos filhos, netos e até mesmo bisnetos! E
uma esposa maravilhosa... Ah! Como eu amo essa velhinha!! Sempre comigo, tantos nos
momentos difíceis como nos bons. A vida é esse movimento de partilha e agradecimento.
Ao compararmos a versão inicial (anexo IV) com a final do texto 1, podemos
constatar que a aluna ainda não havia conseguido imprimir em seu texto “uma
linguagem própria, autoral, e pertinente à esfera da literatura”, entremeando
“acontecimentos reais e ficcionais”. (MARCUSCHI, 2011) Na primeira versão, podemos
observar um texto bem escrito, mas com muitos padrões, como por exemplo, a
introdução “Olá! Meu nome é (...)”. Muitos alunos, em suas primeiras produções,
iniciaram o texto assim, como se ainda estivessem na entrevista que fizeram com um
morador da comunidade. Além disso, grosso modo, a principal dificuldade dos
alunos, conforme demonstra a primeira versão da aluna, foi justamente conseguir
valer-se da linguagem literária, dificuldade que foi superada na versão final.
Nessa perspectiva, na última produção, observamos uma melhor percepção
das condições de produção do gênero e um refinamento literário. Ao analisá-la,
seguindo a proposta de descritores da OLPEF (anexo V), verificamos logo no título um
aspecto recorrente na maioria dos textos produzidos: a escolha lexical atrelada ao
4
Os nomes presentes nas produções foram suprimidos para preservar a identidade dos participantes.
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Vivências Discursivas: uma forma de ver e estar no mundo
espaço concreto em que se dariam os acontecimentos dos fatos rememorados. No
texto em questão, por exemplo, o vocábulo “mudança” redimensiona à cidade de
Aguaí, que é justamente o local para onde o narrador-personagem viria se mudar.
Em outras produções, pudemos encontrar “Mudança para Aguaí”, “Minha
chegada em Aguaí” (esse título aparecera três vezes), “De uma cidade para a outra”.
Outros títulos recorrentes atrelaram-se à infância e à memória: “Minha infância”, “A
infância”, “Minhas lembranças”, “Baú de Memórias”. Entretanto, outros alunos
conseguiram imprimir criatividade ao título de forma a chamar atenção e instigar o
leitor. O surpreendente foi o fato de que um deles veio de um dos alunos que mais
apresentava dificuldade na escrita, títulos como: “Cidadezinha de papel”, “Antes do
sol nascer”, “Na velocidade das estrelas: o tempo”.
De forma geral, a exemplo do texto analisado, no primeiro parágrafo os alunos
procederam a construção da localização espaço-temporal em que as lembranças se
desenrolaram, assim, remetem o leitor ao tempo rememorado e afirmam de onde
eram antes de se mudarem para Aguaí. Muitos realizaram a apresentação do narradorpersonagem: “Vim para cá quando eu tinha 9 anos, e já vivo em Aguaí a 70 anos”; “Eu
me chamo (...), vim de Minas Gerais no ano de 2001”; “Eu sou (...), sou filho de
portugueses, eu vim para o Brasil por conta de condições financeiras.”
No que diz respeito às adequações linguísticas, todos os alunos narraram as
memórias como se eles próprios as tivessem vivenciado, dessa forma, o foco narrativo
utilizado foi o da primeira pessoa.
Retomando o texto A1, podemos perceber que a aluna-autora consegue
investir no tema da produção “O lugar onde eu vivo”, singularizando a cultura e
história local:
“Como já disse, o comercio era bem fraco! Pelo o que eu me lembre, só tinha duas lojas
e a “venda”. A venda era como se fosse um mercado na atualidade, ela tinha um balcão
em que os clientes faziam pedidos apenas por quilo, por exemplo: “me dê dois quilos
de batata”.
“Mas, o que me marcou de verdade, nessa cidade, foi o furacão que aconteceu no
bairro Jardim Aeroporto.”
Já no que tange às adequações discursivas, observamos referências sobre
coisas transformadas com o decorrer do tempo e que reconstruíram experiências
vividas:
“Por isso, no ano de 1975, aos meus 35 anos, eu e minha família nos mudamos para
Aguaí - uma cidade bem pequena, com pouquíssimo movimento, fraquíssima no
comercio, de carros e até mesmo pessoas.”
“Naquele tempo, não tínhamos tanto medo em ter filhos, como, aparentemente, hoje
as pessoas têm: um ou dois filhos no máximo.”
Pela perspectiva de um antigo morador, a aluna conseguiu resgatar aspectos
da vida passada. Entretanto, ela o fez com base na articulação proposta, do real e
ficcional, empregando em várias partes uma linguagem que lhe conferiu natureza
literária. Por exemplo, logo no primeiro parágrafo, encontramos a expressão “pedaço
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Discurso e poder: teoria e análise
do paraíso”5. No sexto, observamos o quanto o texto é rico em recursos expressivos,
como a linguagem figurada e o jogo com as palavras. Por fim, no último parágrafo
percebemos a recorrência desse estilo na finalização da produção:
“Todos os dias sento na calçada de casa, vejo as crianças correndo, carros passando,
jovens se divertindo, vejo a vida. Então, olho para o céu e digo a mim mesmo: Deus é
bom! Durante toda o meu caminho em Aguaí, Ele sempre esteve com suas mãos
levantadas a me abençoar. Hoje, tenho uma família linda, com muitos filhos, netos e até
mesmo bisnetos! E uma esposa maravilhosa... Ah! Como eu amo essa velhinha!!
Sempre comigo, tantos nos momentos difíceis como nos bons. A vida é esse
movimento de partilha e agradecimento.”
Ainda é importante observar que a aluna-autora desse texto é muito religiosa e
esse aspecto marca o seu texto, o que reforça seu aspecto autoral, isto é, valeu-se de
um modo próprio e original para (re)construir a memória do morador entrevistado.
Com relação à descrição de emoções, sentimentos e impressões, que deve ser
uma estratégia em textos memorialistas, verificamos apenas em alguns fragmentos do
texto. No entanto, em uma leitura global, o escrito consegue despertar sensações no
leitor.
No que tange a adequações da convenção padrão da língua, observamos êxito
por parte da aluna, que utilizou pontuações adequadas, paragrafação e palavras
grafadas de forma coerente. Observamos, ainda, uma progressão e articulação que
garantem a unidade textual.
Por fim, verificamos que, embora não tenha utilizado marcadores temporais
como “naquela época”, “naqueles tempos”, muito recorrentes em textos
memorialistas, sobretudo, os motivadores que trabalhamos com os alunos, a alunaautora consegue conduzir o leitor para os tempos retratados em sua narrativa.
b) Versão Final A2
Minhas lembranças!
Antes Aguaí era que nem uma fazenda, não tinha lojas e nem calçadas.
Cheguei aqui quando tinha oito anos, meus pais quiseram se mudar e tive de
acompanha-los. Nossa vida era muito simples, e meus pais eram pessoas de muita fé.
Desde cedo, me ensinaram que existem um pai no céu que cuida da gente. Assim,
todos os domingos íamos ouvir o sermão do padre, e saíamos com a missão do domingo
cumprida.
Teve um acontecimento aqui na cidade que ficou muito marcado em minha vida que
foi quando a nossa senhora apareceu lá na Aviação. Nossa... Nunca mais esqueci aquele dia
quando a mãezinha do céu chegou em nossa cidade.
Quando eu era pequena, amava ir à igreja e a gente não podia ir nas baladas que as
crianças frequentam hoje em dia, então agente ia na igreja mesmo, e fazíamos as preces que
nem gente grande.
Quando fiquei mais mochinha, tinha que ir à igreja vestida de branco, todas as moças
eram filhas de Maria, hoje em dia, não se vê mais nada disso, na verdade, as roupas que as
meninas usam estão cada vez menor. Nessa época, tinha por volta dos meus quatorze anos
e também comecei a trabalhar como doméstica para ajudar em casa.
Verificar sugestões de análises propostas pelo portal Escrevendo o Futuro disponível em:
https://www.escrevendoofuturo.org.br/conteudo/formacao/cursos-on-line/acesso-ao-curso-deavaliadores/artigo/2255/analise-de-texto-memorias-literarias, data do acesso: 05/12/2018.
5
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Vivências Discursivas: uma forma de ver e estar no mundo
Lembro-me também que toda manhã eu e minhas cinco irmãs saímos junto com
nossa mãe para lavar as roupas no lavadouro da cidade. Nessa época, não tínhamos
tanquinho e máquina de lavar não existia nem em sonhos. Então a mulherada se reunia nesse
lavadouro, próximo ao antigo bosque da cidade e lavavam suas roupas.
Queria voltar naqueles tempos, a vida era simples, mas a felicidade era farta. Vim
para cá quando eu tinha 8 anos, em São João nos não tínhamos condições para sobreviver,
meu pai estava desempregado e minha mãe também então eles decidiram vir para cá a
procura de uma vida melhor.
O segundo texto analisado, em sua versão inicial (anexo VI), representa outra
totalidade das primeiras produções colhidas com os alunos. Ao analisá-lo, notamos
defasagens no que tange às adequações linguísticas, discursivas e convenções da
escrita, além de não apresentar marcas de autoria. Denotamos ainda que na produção
inicial não há um título, organização espacial do texto, articulação ou progressão
enquanto unidade textual.
A aluna-autora conseguiu apenas transpor, de forma literal, o diálogo que tivera
com sua avó, ou aquilo de que ela se lembra da conversa, tanto que finaliza a produção
afirmando “esses relato são quais eu me lembro”. Muitos alunos quando produziram
a primeira versão transpuseram o diálogo que tiveram com os moradores, mesmo
narrando em primeira pessoa. Não imprimiram criatividade e autonomia para recriar
de forma literária a coleta que haviam feito. Provavelmente, não tivessem
compreendido ainda os elementos que compõem o gênero, o que foi modificado
com as vivências que tiveram posteriormente. Além disso, na primeira versão analisada
do texto em questão, é possível percebermos uma oscilação do foco narrativo da 3ª
para a primeira pessoa: “Esse relato é de uma senhora de 74 anos que fala um pouco
sobre [...]”; “Na minha vida teve um momento marcante que foi [...]”. Esse recurso é
permitido nos escritos de memórias literárias, desde que se apresente “o
entrevistado”, passando-lhe posteriormente a palavra, utilizando, para isso, as aspas
para demarcar corretamente a troca de pessoas do discurso. No entanto, não
observamos isso com clareza no texto produzido.
No que se refere à produção final, ainda que mantidos alguns desvios da norma
padrão (com relação à regência, à acentuação gráfica e à grafia das palavras como em
“mochinha”), depreendemos um significativo progresso se comparada à primeira
versão. Percebemos que a aluna-autora inclui um título, escolhe por narrar em primeira
pessoa como se as lembranças narradas lhe pertencessem. Do caráter “resumido” e
“relatorial” da versão um, vemos surgir um texto mais expressivo, que nos apresenta
melhor a narradora-personagem:
“Cheguei aqui quando tinha oito anos, meus pais quiseram se mudar e tive de acompanha-los.
Nossa vida era muito simples, e meus pais eram pessoas de muita fé. Desde cedo, me ensinaram
que existem um pai no céu que cuida da gente. [...]”
Denotamos também um aprimoramento do diálogo estabelecido entre o
presente e o passado, explicitando transformações que reconstruíram experiências
vividas:
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Discurso e poder: teoria e análise
“Quando eu era pequena, amava ir à igreja e a gente não podia ir nas baladas que as crianças
frequentam hoje em dia, então agente ia na igreja mesmo, e fazíamos as preces que nem gente
grande.
Quando fiquei mais mochinha, tinha que ir à igreja vestida de branco, todas as moças eram
filhas de Maria, hoje em dia, não se vê mais nada disso, na verdade, as roupas que as meninas
usam estão cada vez menor. Nessa época, tinha por volta dos meus quatorze anos e também
comecei a trabalhar como doméstica para ajudar em casa. Lembro-me também que toda manhã
eu e minhas cinco irmãs saímos junto com nossa mãe para lavar as roupas no lavadouro da
cidade. Nessa época, não tínhamos tanquinho e máquina de lavar não existia nem em sonhos.
Então a mulherada se reunia nesse lavadouro, próximo ao antigo bosque da cidade e lavavam
suas roupas.”
Por fim, verificamos que, após todo o trabalho realizado durante o projeto de
ensino e as correções textuais coletivas e individuais, houve melhoria no que se refere
às convenções da escrita e, sobretudo, na impressão de sentimentos, emoções que a
versão final consegue despertar, rompendo assim o “tom realista” do primeiro texto
para uma liberdade literária maior na segunda produção.
Ratificamos que, a exemplo do texto 2, nem todas as produções finais ficaram
exemplares, sem desvios e atendendo completamente a composição do gênero
proposto que solicitava: a) um diálogo estabelecido entre o passado e presente
através de uma perspectiva de um antigo morador da comunidade local; b)
singularização local com o tema “O lugar onde vivo”; c) liberdade para recriar o real
de forma literária. Entretanto, podemos afirmar que todos obtiveram melhoria tanto
na leitura quanto em suas escritas, demonstrando haver compreendido os elementos
que estruturam o gênero.
Ademais, não é com um único projeto de ensino que conseguiremos sanar
todas as dificuldades apresentadas pelos alunos. É recorrente que o professor de
língua portuguesa, ilusoriamente, acredite que, quando higieniza com a caneta
vermelha o texto inteiro dos educandos, conseguirá que aquele desvio à norma não
ocorra mais.
Todo o processo de ensino deve ocorrer de forma gradual e não seria diferente
com a leitura e a escrita. O que se faz necessário é fortalecer as práticas de leitura e
escrita, incorporando-as ao cotidiano das crianças e adolescentes.
Considerações Finais
O trabalho desenvolvido propiciou um grande envolvimento com a leitura,
fazendo com que alunos que não liam pudessem vivenciar essa prática, além de
envolver, de forma constante, a comunidade escolar. Esse é um grande ganho para a
escola, pois observamos que, em geral, escola e comunidade são vistas como espaços
distintos: formamos cidadãos para a sociedade, mas aparentemente a rede escolar
está distante dela, esquecemos de trazer a comunidade para dentro da escola.
Se não queremos que o ensino de língua se torne apenas treinos de discursos,
devemos fazer com que as práticas escolares ultrapassem os muros da escola e tornem
a aprendizagem, a leitura e a escrita mais significativas, mais reais.
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Vivências Discursivas: uma forma de ver e estar no mundo
Nesse sentido, as práticas de leitura, escrita e vivências discursivas, a partir das
histórias escritas pelos alunos, que não são deles, mas a eles pertencem, favoreceram
novas relações com seu entorno, além de compreender projetos de vida, de
pertencimento e identidade. Vale ressaltar que os resultados aqui apresentados são
parciais, pois a pesquisa ainda continua em andamento.
Referências bibliográficas
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de velho. São Paulo: T.A. Queiroz,
1979.
BOSI, Ecléa. Velhos amigos. São Paulo: Companhia das letras, 2003. p. 9-11/23-27.
CANDIDO, Antonio. O direito à Literatura In: Vários Escritos. Rio de Janeiro/ São Paulo:
Ouro sobre Azul/Duas Cidades, 2004.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17ª.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São
Paulo: Paz e Terra, 1996.
MARCUSCHI, Elizabeth. Como escrever as memórias do outro, revelando toda sua
singularidade. In: RANGEL, Egon. (Org.) Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo
o Futuro: o que nos dizem os textos dos alunos? São Paulo: Cenpec: Fundação Itaú
Social, 2011. p. 22-37.
PETIT, Michèle. Leituras: do espaço íntimo ao espaço público. Rio de Janeiro: Ed. 34,
2013.
ROUXEL, Annie. Práticas de leitura: quais rumos para favorecer a expressão do sujeito
leitor? Trad. REZENDE, Neide Luzia de; OLIVEIRA Gabriela Rodella de. Cadernos de
Pesquisa, v.42, n145, p.272-283, jan/abr. 2012.
YUNES, Eliana. A literatura está mesmo em perigo? In: LIMA, Aldo et al. (Orgs). O
direito à literatura. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2012. p. 77-91.
Fontes:
BELINKY, Tatiana. Transplante de Menina. In: CLARA, R. A.; ALTENFELDER, A. H.; Se
bem me lembro... São Paulo: Cenpec: Fundação Itaú Social; Brasília, DF: MEC, 2008.
p. 70-71.
GATTAI, Zélia. Parecida mas diferente. In: CLARA, R. A.; ALTENFELDER, A. H.; Se bem
me lembro... São Paulo: Cenpec: Fundação Itaú Social; Brasília, DF: MEC, 2008. p. 6869.
PREFEITURA MUNICIPAL DE AGUAÍ. História de Aguaí. Disponível
https://aguai.sp.gov.br/home/historia/. Acesso em: 01 de outubro de 2018.
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em:
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Discurso e poder: teoria e análise
SE BEM ME LEMBRO... Caderno do professor: orientação para produções de textos:
[equipe de produção Regina Andrade Clara, Anna Helena Altenfelder, Neide
Almeida]. São Paulo: Cenpec. (Coleção das Olimpíadas)2016.
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Vivências Discursivas: uma forma de ver e estar no mundo
Anexos
Anexo I – Materiais utilizados e Etapas do Projeto de Ensino
Material
Etapas do Projeto de Ensino
✓
Introdução ao gênero
✓
Diálogo com moradores da comunidade
✓
Leituras
✓
Primeira Produção
✓
Vivências Discursivas
✓
Revisão coletiva e individual
✓
Produção Final
✓
Partilha
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Discurso e poder: teoria e análise
Anexo II – Textos propostos na coletânea e trabalhados com os
alunos
Coletânea de Textos
Referência da obra presente no
Caderno do Professor Se bem me
lembro...
Título e autor
T1
Transplante de menina
Tatiana Belinky
BELINKY,Tatiana. Transplante de
menina. São Paulo: Moderna, 2003.
Gênero Discursivo e
Esfera de Circulação.
Autobiografia
Memórias da infância
esfera literária
T2
Parecido mas diferente
GATTAI, Zélia. Anarquistas, graças a
Deus. 11.ed. Rio de Janeiro: Record,
1986.p.160-162.
Autobiografia
Memórias da infância
VARELLA, Drauzio. Nas ruas do Bras.
São Paulo: Companhia das letrinhas,
2000.p.5. Coleção memória e
história.
Autobiografia
Memórias da infância
O valetão que engolia
meninos e outras
histórias de Pajé Kelli
Bassani
BASSANI, Kelli B. aluna finalista do
prêmio escrevendo o futuro em
2006, 4ª série da E.M.E.I.E.F. Walter
Fontana, Toledo-PR
Memórias Literárias
O menino no espelho
Fernando Sabino
SABINO, Fernando. O menino no
espelho. Rio de Janeiro: Record,
1992.
Memórias Literárias
Memória de Livros João
Ubaldo Ribeiro
RIBEIRO, João U. Memória de Livros
in: Um brasileiro em Berlim. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2011, p.105.
Memórias Literárias
Os automóveis invadem
a cidade Zélia Gattai
GATTAI, Zélia. Anarquistas, graças a
Deus. 11.ed. Rio de Janeiro: Record,
1986.
Autobiografia
Memórias da infância
BARROS, Manoel de. Memórias
inventadas: a infância. São Paulo:
Planeta do Brasil, 2003.
Autobiografia
Memórias da infância
GARCIA, Edson G. Nas ondas do
rádio. Cenpec, 2004
Memórias Literárias
LAURITO Ilka B. As almas do Amém
in: A menina que fez a américa. São
Paulo: FTD, 2002.
CAMPOS, Roberto. A lanterna na
popa. Rio de Janeiro: Topbooks,
1994.
Memórias Literárias
NETO, Antonio Gil. Como num filme.
Texto escrito com base no
depoimento de Amalfi Mansutti, 82
anos.
Memórias Literárias
Zélia Gattai
T3
Nas ruas do Brás
Drauzio Varella
T4
T5
T6
T7
T8
T9
T10
T11
T12
O lavador de pedras
Manoel de Barros
Nas ondas do rádio
Edson Gabriel Garcia
As almas do amém Ilka
Brunhilde
A lanterna na popa
Roberto Campos
Como num filme
Antonio Gil Neto
FONTE: elaboração própria
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esfera literária
esfera literária
esfera escolar
esfera literária
esfera literária
esfera literária
esfera literária
esfera escolar
esfera literária
Memórias Literárias
esfera literária
esfera escolar
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Vivências Discursivas: uma forma de ver e estar no mundo
Anexo III – Atividades propostas aos alunos como sugestão pelo
Caderno “Se bem me lembro...”
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Discurso e poder: teoria e análise
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Vivências Discursivas: uma forma de ver e estar no mundo
Como citar
FRANÇA, Samara Gabriela Leal. Vivências Discursivas: Uma forma de ver e estar no
mundo. In: GONÇALVES-SEGUNDO, Paulo Roberto; ARAES, Célia Regina;
CASTANHEIRA, Claudia; ISOLA-LANZONI, Gabriel; PENITENTE, Natalia; WEISS,
Winola (orgs). Discurso e poder: teoria e análise. São Paulo: FFLCH/USP, 2020, p.
240-274. DOI: 10.11606/9786587621241
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Discurso e poder: teoria e análise
O Sistema da Avaliatividade como
ferramenta de análise para a
compreensão da Responsividade
Ativa em Cartas do Leitor sobre o
tema Reforma da Previdência
Sandra Gomes RASQUEL
Universidade de São Paulo
[email protected]
Resumo: É por meio do enunciado que o sujeito responderá a
enunciados anteriores e expressará seu juízo de valor. O
objetivo deste trabalho constituiu-se em compreender como o
Sistema da Avaliatividade pode ser uma ferramenta de análise
útil para avaliar se a manifestação da responsividade do leitor
frente a Reforma da Previdência mostra um alinhamento ou não
com os discursos do governo. Fez-se a análise de 10 cartas do
leitor, de jornais paulistas, investigando-se o Sistema da Atitude,
especificamente o Julgamento e a Apreciação e o Sistema do
Engajamento. O aporte teórico englobou o Sistema da
Avaliatividade, de Martin e White (2005); os conceitos de
Dialogismo, Compreensão e Atitude Responsiva de Bakhtin
(2003 [1979]) e de Bakhtin e Volóchinov (2006 [1895 – 1975]).
O Sistema da Avaliatividade mostrou-se como uma ferramenta
útil de análise da responsividade do leitor, indicado
principalmente pela manifestação do Sistema do Engajamento,
sugerindo que não predominou o alinhamento entre os
discursos do leitor e do governo, prevalecendo a atitude
responsiva de não solidarização.
Palavras-chave: Sistema da Avaliatividade. Engajamento.
Atitude responsiva ativa. Compreensão responsiva. Reforma da
Previdência.
Introdução
É no contato entre a língua e a realidade, por meio do enunciado, que o sujeito
responderá a enunciados anteriores e expressará seu juízo de valor, dando sequência
ao elo da cadeia de comunicação verbal. A atitude responsiva ativa do leitor frente ao
ambiente depende primeiramente de sua compreensão responsiva, e se configurará
como resposta de alinhamento ou desalinhamento com os enunciados a que
responde.
Por sua vez, o Sistema da Avaliatividade permite compreender quais recursos
linguísticos são usados para que as pessoas façam avaliações sobre eventos
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O Sistema da Avaliatividade como ferramenta de análise para ...
comunicativos, as quais se configuram como respostas a enunciados anteriores,
permitindo o diálogo entre esse sistema e os conceitos de dialogismo, compreensão
e responsividade ativa de Bakhtin (2003 [1979]) e de Bakhtin e Volóchinov (2006 [1895
– 1975]). O objetivo deste trabalho constitui-se em compreender como o Sistema da
Avaliatividade pode ser uma ferramenta de análise útil para avaliar se a manifestação
da responsividade do leitor frente a um tema social importante e atual, como é o caso
da Reforma da Previdência, mostra um alinhamento ou não com os discursos do
governo sobre o mesmo tema. Faz-se importante compreender como o leitor engajase na construção de seu posicionamento e como se estrutura a negociação de seu
ponto de vista nas relações intersubjetivas com outros leitores frente a um tema social
que afetará diretamente sua vida, na conquista de sua aposentadoria.
O corpus deste estudo qualitativo constitui-se de 10 cartas do leitor referentes
ao tema da Reforma da Previdência, colhidas por meio online, no período de 20162018. Considerou-se como delimitação do período de análise o primeiro envio ao
Congresso da PEC 287/2016 da Reforma da Previdência no governo interino de
Michel Temer, em 05 de dezembro de 2016, até o fim de seu mandato. O critério de
seleção das cartas levou em conta as que contemplavam mais avaliações por parte do
leitor, sendo mais ilustrativas para se trabalhar com as categorias de análise escolhidas.
Foram escolhidos diversos jornais paulistas para abranger uma maior
diversidade discursiva e posicionamentos, sendo utilizadas as cartas do leitor dos
seguintes jornais: “Carta do Leitor” (Comércio do Jahu); “Tribuna do Leitor”
(JCNET.com.br, Bauru/S.P.); “Cartas” (Cruzeiro do Sul, de Sorocaba/S.P.) e “Cartas do
Leitor” (Jornal de Piracicaba) e “Palavra do Leitor” (Diário do Grande ABC).
O aporte teórico englobará o Sistema da Avaliatividade, de Martin e White
(2005); a Linguística Sistêmico-Funcional de Halliday e Matthiessen (2004); os
conceitos de Dialogismo, Compreensão Responsiva e Atitude Responsiva Ativa de
Bakhtin (2003 [1979]) e de Bakhtin e Volóchinov (2006 [1895 – 1975]).
O sistema da Avaliatividade de Martin e White (2005) origina-se da Linguística
Sistêmico-Funcional de Halliday e Matthiessen (2004) e dialoga com a metafunção
interpessoal, permitindo explorar e compreender quais recursos léxico-gramaticais e
semânticos-discursivos são mobilizados no texto para que as pessoas avaliem os
eventos comunicativos, expressando sentimentos, opiniões, crenças, valores e atitudes
frente ao mundo. Esse sistema possibilita a inscrição subjetiva do falante/escritor nos
textos, permitindo que experiências e vivências possam ser marcadas discursivamente
por meio de recursos linguísticos, favorecendo a negociação de posicionamentos e
entre diferentes perspectivas.
Cada uma das metafunções ocorre em um sistema próprio no estrato léxicogramatical: a metafunção ideacional é realizada pelo sistema da transitividade; a
metafunção interpessoal, com o qual o Sistema da Avaliatividade dialoga, é realizada
pelo sistema de modo e modalidade e a metafunção textual, pelo sistema da estrutura
temática (HALLIDAY e MATTHIESSEN, 2004).
de
Os escritores/falantes, ao se engajarem nas relações interpessoais, utilizam-se
recursos semânticos para expressar avaliações afetivas, avaliações de
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Discurso e poder: teoria e análise
comportamento e fazer apreciação estética ou de valor social de eventos semióticos e
naturais, correspondendo, respectivamente, às categorias de avaliação do afeto, do
julgamento e da apreciação (OLIVEIRA, 2014, p. 252).
Um tema social atual e importante que é foco de avaliação por parte do leitor,
no momento político e econômico atual, é o tema da reforma da Previdência. A
reforma da Previdência é um projeto que transita no Congresso para aprovação desde
o governo anterior de Dilma Rousseff e de seu substituto após seu impeachment,
Michel Temer (2016-2018). Nesses governos, o tema recebeu muitas manifestações
discursivas do leitor nas mídias sociais, jornais online e impressos. Por ser pauta do
governo atual, de Jair Bolsonaro, os leitores continuam se posicionando sobre o tema,
uma vez que é um tema impopular que traz regras mais rígidas e um tempo maior para
a conquista da aposentadoria.
A cartilha da Nova Previdência, como é chamada no governo atual, traz como
slogan: “É bom para todos. É melhor para o Brasil” e traz alguns tópicos que funcionam
como argumentos para conseguir a adesão à ideia da proposta: fazer um “Sistema
justo e igualitário”; “Quem ganha menos paga menos”; “Garantir a sustentabilidade
do sistema”; “Maior proteção social ao idoso: assistência fásica’; “Garantir direitos
adquiridos”; “Separação entre Assistência e Previdência” 1. Assim, quando o leitor
mostra-se alinhado à proposta da reforma, ele dialoga e se aproxima desse tipo de
discurso circulante.
A seção Cartas do Leitor, espaço aberto na maioria dos jornais e em algumas
revistas, é um espaço propício a esse registro da avaliação do leitor. Ele fará sua
avaliação sempre respondendo a alguma notícia, reportagem ou comunicação que é
feita pelo governo, por seus representantes ou por discursos que surgem na mídia
sobre o tema da reforma. De acordo com Andrade (2008), as cartas do leitor são
veiculadas e publicadas em jornais e revistas e tratam de notícias ou reportagens de
temas de interesse nacional, trazendo fatos relevantes e atuais da sociedade. É um
gênero de domínio público, aberto, possibilitando a sua leitura em larga escala.
A resposta do leitor frente a eventos comunicativos, como as avaliações feitas
nas cartas do leitor, configuram-se, nos termos de Bakhtin (2003 [1979]), como
responsividade ativa. A compreensão responsiva ativa antecede essa atitude
responsiva. Os conceitos de compreensão responsiva e de responsividade ativa são
trabalhados por Bakhtin (2003 [1979]) e relacionam-se às respostas dadas a
enunciados anteriores e que, ao mesmo tempo, criam a possibilidade de respostas
futuras, dando continuidade ao elo da comunicação verbal.
Como no presente trabalho estamos tratando da carta do leitor, por todo o
texto, todas as referências que se faz à palavra leitor, estamos considerando esse leitor
como o sujeito produtor da carta (do leitor).
1
MINISTÉRIO
DA
ECONOMIA.
Cartilha
da
Nova
Previdência.
Disponível
em:
<http://sa.previdencia.gov.br/site/2019/02/2019-02-20_nova-previdencia_v2.pdf >. Acesso em 05 out.
2019.
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O Sistema da Avaliatividade como ferramenta de análise para ...
1 O Sistema da Avaliatividade
O Sistema da Avaliatividade é dividido pelos sistemas de Atitude, Engajamento
e Gradação. Neste trabalho, esse último sistema, o da Gradação, não será tratado nas
análises.
A Atitude é subdividida em Afeto, Julgamento e Apreciação. O afeto é dividido
em: in/felicidade, incluindo sentimentos e afetos; in/segurança, ligada ao bem-estar
social e in/satisfação, que diz respeito à satisfação ou não em relação às nossas metas
e objetivos, incluindo nosso papel como participantes ou espectadores do meio
(MARTIN e WHITE, 2005; LIMA e COROA, 2010).
Tanto o afeto quanto o julgamento podem ser explícitos no texto, por meio do
uso de recursos léxico-gramaticais avaliativos, com polaridade negativa ou positiva; ou
podem ser invocados, compreendido por meio da inferência na interpretação textual
(OLIVEIRA, 2014). O posicionamento do escritor/falante pode ser considerado como
retrospectivo ou prospectivo. No caso das cartas do leitor, o posicionamento é
retrospectivo, uma vez que elas funcionam como uma resposta às notícias publicadas,
dialogando, portanto, com discursos circulantes na mídia.
O julgamento é uma categoria de posicionamento atitudinal em que é avaliado
o comportamento humano dirigido às normas sociais, envolvendo a ética e a
moralidade. Refere-se aos juízos de comportamento que fazemos sobre atitudes que
aprovamos ou reprovamos, pautando-se na cultura, nas ideologias dos grupos e nas
experiências dos indivíduos (MARTIN e WHITE, 2005).
As pessoas farão julgamentos acerca do que elas acreditam e têm como valor,
além do enquadramento cultural e ideológico do qual fazem parte e compartilham. O
posicionamento ideológico dos participantes influenciam o tipo de julgamento e
avaliação que fazem dos eventos. Responde aos sistemas que regem a sociedade,
considerando-se: a (i)legalidade; a (a)moralidade; a (a)normalidade e a
(in)capacidade, referindo-se também aos sistemas sociais passíveis de mudanças mais
constantes, como a moda e alguns costumes. Divide-se em estima social e sanção
social (MARTIN e WHITE, 2005; AVELAR e AZUAGA, 2003).
De acordo com Martin e White (2005), a estima social relaciona-se à
normalidade (quão in/comum alguém é); à capacidade (o quanto alguém é ou não
capaz) e à tenacidade (quão perseverante alguém é ou não) e não envolve punições.
A sanção social é mais frequente em decretos, normas e leis que se ligam a instituições
de poder como a Igreja e o Estado, em que podem estar presentes punições aos que
não seguirem suas normas (MARTIN e WHITE, 2005).
A terceira categoria da Atitude, a apreciação, refere-se às proposições sobre o
valor social das coisas, ao que elas valem ou não em um determinado campo, e
envolvem, no discurso, as avaliações de fenômenos semióticos e naturais. Pode ser
dividida em: nossas Reações às coisas, se nos agradam ou não; em Composição,
incluindo o equilíbrio e a complexidade e, em Valor, se é ou não inovadora, autêntica,
oportuna, etc. (MARTIN e WHITE, 2005, p. 56).
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Discurso e poder: teoria e análise
De acordo com Gonçalves-Segundo (2011, p. 174), as apreciações constroem
avaliações estéticas ou de valor social, dirigidos a fenômenos semióticos ou naturais.
Na Reação, a avaliação estética é pautada na “afeição emotiva ou desiderativa”. A
Reação-Impacto refere-se às avaliações de afeição emotiva, como: “fascinante,
dramático, intenso, sensacional, entediante, monótono” e a Reação-Qualidade
abrange as afeições desiderativas: “bom, esplêndido, chamativo, feio, repulsivo”.
Na Composição, a avaliação estética dirige-se a aspectos da percepção e
organização, sendo dividido em Composição-equilíbrio - “simétrico, lógico,
consistente, falho, contraditório, distorcido” e Composição-complexidade - “simples,
elegante, claro, rico, extravagante, plano, monolítico” (GONÇALVES-SEGUNDO,
2011, p. 174).
Na Valoração, a avaliação baseia-se na “utilidade, importância, eficácia ou risco
para os indivíduos - ”importante, original, autêntico, real, útil, insignificante, comum,
falso, convencional, perigoso” (GONÇALVES-SEGUNDO, 2011, p. 174).
Vale considerar que na apreciação de um tema social, como a reforma da
Previdência, não há uma apreciação estética e sim uma apreciação em termos de valor
social. Os subsistemas do Sistema da Apreciação de Martin e White (2005) recobrem
como reação e composição somente o valor estético, mas como é possível ao ser
humano apreciar também propostas e projetos em forma de texto, como é a reforma
da Previdência, que é uma proposta de lei em fase de aprovação, faz-se necessário
adaptar o Sistema de Martin e White (2005) para atender a esse escopo de apreciação
passível de ser feita pelo escritor/falante. É uma proposta que será desenvolvida em
nossa dissertação de Mestrado, não cabendo no espaço desse artigo, pela extensão
permitida e por não atender ao objetivo aqui proposto.
O outro sistema, o Engajamento, divide-se em Monoglossia e Heteroglossia.
Na monoglossia é construída uma concepção da realidade como se fosse única e
validada pela comunidade discursiva. Os enunciados monoglóssicos simulam o
apagamento da rede de alternativas dialógicas. A heteroglossia invoca outras vozes e
posições dialógicas, subdividindo-se em expansão e contração dialógica, sendo que a
expansão abre espaço a outros posicionamentos e vozes e a contração age em função
de desafiar ou restringir o escopo dessas posições ou vozes (WHITE, 2004; OLIVEIRA,
2014).
O processo de expansão dialógica denota o reconhecimento de outras vozes,
possibilitando a abertura ao diálogo, reconhecendo a existência de outros
posicionamentos, sendo que a voz autoral torna-se uma das possibilidades,
diminuindo a responsabilidade enunciativa, o que difere do processo de contração
dialógica, no qual essa responsabilidade é potencializada (NININ e BARBARA, 2013).
O movimento de expansão dialógica abre espaço para a negociação
interdiscursiva, em que outros posicionamentos são vistos como possibilidades dentro
de uma rede dialógica, havendo uma postura mais democrática na aceitação de outras
perspectivas. Como aponta Gonçalves-Segundo (2014, p. 17), a expansão dialógica
associa-se à ideia de reconhecimento da legitimidade ou da validade das alternativas
dialógicas, sendo dividida em:
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O Sistema da Avaliatividade como ferramenta de análise para ...
Ponderação: em que há o reconhecimento de alternativas dialógicas.
Atribuição: ocorre por meio de citação da voz alheia e dissocia a voz autoral das
vozes trazidas ao texto, diminuindo a responsabilidade enunciativa. Seus subtipos são:
Reconhecimento e Distanciamento.
No Reconhecimento, o leitor adota uma atitude que possa parecer neutra, em
primeira instância. É representado pelos verbos falar, dizer, comentar, etc. Geralmente,
utiliza-se de processos verbais com a função de reportar a fala de terceiros (LOVATO,
2009, p. 157; NININ e BARBARA, 2013).
No Distanciamento, não há a validação do discurso do outro, sendo
representado pelos verbos alegar, ouvir dizer etc, expressando o distanciamento da
voz autoral com discursos alheios. Esse subtipo é característico da dissociação das
vozes autorais e externas, não havendo solidarização (LOVATO, 2009, p. 157; NININ e
BARBARA, 2013).
Na contração dialógica, há a rejeição parcial ou total de alternativas dialógicas,
restringindo o espaço de troca e aceitação. Como pontua Martin e White (2005), essa
categoria subdivide-se em: Contraposição e Proposição. Essa subdivisão é reiterada e
exemplificada em Gonçalves-Segundo (2014, p. 17):
Contraposição: anula as alternativas dialógicas. Seus subtipos são: a Negação
e a Contraexpectativa.
O subtipo negação anula totalmente uma dada realidade e é representado por
marcas de polaridade negativa: “não”, “nunca” e “ninguém”.
No subtipo contraexpectativa, há rejeição de uma dada concepção da
realidade ao evento enunciado, indicado pelos operadores concessivos e
adversativos.
Proposição: sinaliza a rejeição parcial de alternativas dialógicas. Seus subtipos
são: – Expectativa Confirmada; Pronunciamento e Endosso.
No subtipo expectativa confirmada, constrói-se um interlocutor que partilha
das ideias da voz autoral, sendo representado por expressões como: “evidentemente”,
“naturalmente”, “é óbvio que” e “certamente”.
No subtipo pronunciamento, gera-se a polêmica entre a voz autoral e o
interlocutor, representado por expressões como: “você tem que concordar que”, “o
fato é que”, “a verdade é que”, etc.
No subtipo endosso, a voz autoral valida o discurso de outros, sendo ilustrado
por verbos como: provar, mostrar, demonstrar, dentre outros.
2 O processo de Compreensão Responsiva Ativa e a Responsividade
Ativa do leitor
Bakhtin trata dos conceitos de Compreensão responsiva e de Responsividade
ativa que dizem respeito às respostas dadas a enunciados anteriores e que, ao mesmo
tempo, criam a possibilidade de respostas futuras. A compreensão responsiva, para
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Discurso e poder: teoria e análise
Bakhtin (2003 [1979]), é o primeiro passo para que possamos ter uma atitude
responsiva ativa.
A compreensão de um enunciado é acompanhada de uma atitude responsiva
ativa. E essa compreensão responsiva pode realizar-se no ato ou apresentar um “efeito
retardado”, sendo que o que foi ouvido encontrará um “eco no discurso ou no
comportamento subsequente do ouvinte” (BAKHTIN, 2003 [1979], p. 291).
O processo de compreensão associa-se ao processo de descodificação, que
envolve o reconhecimento do código escrito e sua associação com o significado que
esses signos pretendem no texto. Ao descodificar, o leitor considera “a enunciação
particular, portanto, os valores sociais e as significações ideológicas da interação em
curso” (ANGELO e MENEGASSI, 2011, p. 205). Esse processo, segundo os autores,
difere do processo de codificação, que é apenas a compreensão do signo linguístico,
sem compreensão do contexto extralinguístico que a ele se associa.
Nessa dinâmica da interação, Bakhtin considera a questão da avaliação, na
qual os interlocutores avaliam-se entre si por meio de conteúdo ou da expressão, tal
como a entonação (BARROS, 2005). Stella (2007) afirma que ao interagirmos com a
palavra alheia, signo ideológico, dialogamos com os valores sociais, meio pelo qual
expressamos nosso ponto de vista em relação a esses valores, os quais devem ser
apreendidos e confirmados ou não pelo interlocutor.
Nesse processo, temos a compreensão da avaliação feita pelo indivíduo sobre
o mundo e o jogo da negociação intersubjetiva entre os posicionamentos adotados
pelos participantes da interação e podemos, então, compreender a responsividade do
leitor e o quanto ele alinha-se ou afasta-se de certos discursos circulantes na
sociedade.
Neste trabalho, a responsividade do leitor e seu grau de concordância e de
alinhamento ou não com o discurso do governo serão investigados pelo Sistema da
Avaliatividade de Martin e White (2005), sendo as avaliações do leitor compreendidas
pelo sistema da Atitude (julgamento e apreciação) e a interação que o leitor estabelece
no evento comunicativo em curso será compreendida pelo sistema do Engajamento;
interação que ele faz com seu próprio enunciado, com o enunciado a que responde e
com seus interlocutores.
3 Corpus e Procedimentos Metodológicos
O corpus deste estudo qualitativo constitui-se de 10 cartas do leitor referentes
ao tema da Reforma da Previdência, colhidas por meio online, no período de 20162018. Considerou-se como delimitação do período de análise o primeiro envio ao
Congresso da PEC 287/2016 da Reforma da Previdência no governo interino de
Michel Temer, em 05 de dezembro de 2016, até o fim de seu mandato. As cartas
selecionadas foram as que contemplavam mais avaliações por parte do leitor, sendo
mais ilustrativas para se trabalhar com a categoria de análise escolhida.
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O Sistema da Avaliatividade como ferramenta de análise para ...
A categoria de análise deste trabalho, para tratar das avaliações do leitor sobre
o tema da Reforma, serão os sistemas de Atitude (julgamento e apreciação) e de
Engajamento do Sistema da Avaliatividade de Martin e White (2005).
Além desse aporte teórico, foram utilizados a Linguística Sistêmico-Funcional,
de Halliday e Matthiessen (2004), da qual a Avaliatividade faz parte; alguns conceitos
primordiais da Teoria de Bakhtin (2003 [1979]) e de Bakhtin e Volóchinov (2006 [1895
– 1975]), para a compreensão da responsividade do leitor, dos quais: o Dialogismo; a
Compreensão Responsiva ativa e a Atitude Responsiva Ativa.
Foram escolhidos diversos jornais paulistas para abranger uma maior
diversidade discursiva e posicionamentos, sendo utilizadas as cartas do leitor dos
seguintes jornais: “Carta do Leitor” (Comércio do Jahu); “Tribuna do Leitor”
(JCNET.com.br, Bauru/S.P.); “Cartas” (Cruzeiro do Sul, de Sorocaba/S.P.) e “Cartas do
Leitor” (Jornal de Piracicaba) e “Palavra do Leitor” (Diário do Grande ABC).
4 Resultados
Dos resultados encontrados, tratados pela perspectiva do sistema da
Avaliatividade, vemos que a contestação da necessidade de reforma e a recusa da
proposta do governo é vista na maioria das cartas (7) por meio das avaliações feitas
pelo leitor: cartas 1, 2, 4, 5, 6, 9, 10. Nas outras 3 cartas, a reforma da Previdência é
vista como necessária e a proposta aceita de forma total ou parcial: cartas 3, 7 e 8.
Alguns temas foram centrais nas avaliações e posicionamentos dos leitores que
discordam da proposta de reforma, dentre eles: discordância da necessidade da
reforma; recusa da proposta do governo; contestação das motivações do governo;
denuncia à manipulação de informações e denuncia à imposição da proposta sem a
participação da sociedade (afetada e interessada).
Dos leitores que concordam com o tema da reforma, os temas centrais e
manifestações discursivas que prevaleceram foram: aceitação da existência de déficit;
necessidade de avançar a economia do país e concordância com a proposta
apresentada.
Identificamos que prevaleceu nas cartas a combinação de apreciações e
julgamentos negativos acerca do tema, indicando por parte leitor a não aceitação da
proposta do governo. Por meio desses recursos avaliativos, os leitores entendem a
proposta como injusta, reprovando-a e colocando em cheque as reais motivações para
a mudança no sistema previdenciário.
Esses leitores que discordam da reforma avaliam a proposta de mudança nas
leis da aposentadoria não como algo positivo aos trabalhadores, nem como
necessário à sustentabilidade do sistema previdenciário, contestando o rombo
apontado pelo governo, entrando em jogo o julgamento do subtipo veracidade. Por
esse tipo de julgamento, questionam o quanto os políticos que propõem a lei são
honestos e verdadeiros e contestam as informações divulgadas que afirmam a
existência do déficit. Nos excertos das cartas analisadas, apresentados a seguir, temos
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Discurso e poder: teoria e análise
exemplos da presença de julgamentos e apreciações ativados ora por recursos lexicais
claros ora invocados.
Carta 1: “Seus efeitos são devastadores, com destaque para um dos pontos mais críticos
da reforma: a pensão por morte. (...) Em resumo, a renda de uma família será cortada
pela metade de uma hora para outra. Para mim não há outro nome para isso: é confisco
institucionalizado”. (apreciações negativas)
Carta 2: “Sei que a reforma da previdência é a forma de continuarem pagando
supersalários a políticos, regalias, entre outros”. (julgamentos: veracidade/propriedade)
Carta 4: “No fundo, os políticos empurram goela abaixo uma proposta que a maioria
não teve acesso às reais intenções”. (julgamentos: propriedade/veracidade)
Carta 6: “Enquanto é divulgado um rombo da previdência, os banqueiros fazem lobby
no congresso para aprovar a “reforma” que desmonta a previdência pública e a joga a
população nas mãos da previdência privada. (...) o governo quer que o povo morra
trabalhando para poder manter aberto o ralo dos desvios”. (apreciações negativas/
julgamento de propriedade)
Carta 10: “Estamos assistindo, sem a devida participação dos interessados, a
famigerada reforma da Previdência”. (apreciação negativa)
Como atestamos na análise desses excertos, as apreciações são inscritas nas
cartas 1 e 10, e aparecem de forma invocada nas cartas 4 e 6.
Na carta 2, por exemplo, podemos inferir o julgamento invocado de sanção
social/ propriedade e veracidade pelo uso da expressão “forma de continuarem
pagando supersalários”. A expressão em si não carrega nenhuma polaridade negativa,
mas pelo contexto adquire um sentido de reprovação na medida em que se contesta
o verdadeiro interesse de se fazer a reforma, entendida pelo leitor como uma manobra
para se manter o salário elevado dos políticos e suas “regalias”, termo também usado
por ele.
Outro exemplo de apreciação invocada ocorre na carta 6, no trecho “joga a
população nas mãos da previdência privada”, em que pelo uso dessa metáfora o leitor
posiciona-se contra a proposta, sugerindo que haverá piora no sistema de
contribuição previdenciária, com o desmonte da previdência pública, sendo que a
maioria será obrigada a contribuir em um sistema de previdência privada, gerando o
sentimento de insatisfação e a insegurança com relação ao futuro dos aposentados.
Nas avaliações, preponderou o posicionamento de responsabilidade autoral
no discurso dos leitores, que assumem o compromisso pelo que dizem: emitindo sua
opinião sobre o tema, posicionando-se em primeira pessoa ou até mesmo engajandose no discurso com posicionamentos que denunciam a alta responsabilidade autoral,
como é o caso da contração dialógica.
Do engajamento, os resultados indicam a prevalência do engajamento por
contração dialógica em detrimento da expansão dialógica, indicando uma postura
pouco democrática do leitor para o diálogo com outras vozes e posicionamentos,
observado tanto nos que se posicionam a favor quanto nos que são contra a reforma.
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O Sistema da Avaliatividade como ferramenta de análise para ...
A negação foi o tipo predominante no engajamento de contração dialógica,
movimento no qual o leitor anula totalmente uma dada realidade. Segundo Sobhie
(2008), neste tipo de engajamento, a voz autoral se coloca em desacordo ou rejeita a
posição contrária à enunciada, ou seja, reconhece sua existência e nega-a, simulando
seu apagamento da rede dialógica. Assim, ao enunciar que “não há déficit no sistema
previdenciário”, o leitor reconhece a existência de um discurso circulante que afirma
que o sistema previdenciário é deficitário, para, então, negá-lo. Desse modo, não
aceita a concepção de que há déficit na previdência.
No movimento de contração dialógica/negação, a negação funciona como
uma resposta a posicionamentos alternativos, ou seja, a crenças/alegações e discursos
opostos proferidos por outros sobre o mesmo tema (WHITE, 2004).
A contração dialógica/contraposição/contraexpectativa aparece como uma
forma de engajamento também relevante nas cartas, sendo o segundo tipo de
engajamento mais encontrado no corpus. Por vezes, essas formas de engajamento
aparecem combinadas com outros posicionamentos de contraposição em uma
mesma sentença, reforçando a restrição do espaço para negociação e aceitação de
outras perspectivas.
Na contraexpectativa, o leitor rejeita uma dada concepção da realidade ao
evento anunciado, assemelhando-se à negação, pois “em ambos a avaliação é
apresentada e, em seguida, outro significado é revelado”. No entanto, na
contraexpectativa há a quebra de uma expectativa que subjaz no discurso e que não
foi satisfeita (CRUZ, 2015, p. 310).
Os excertos, a seguir, tratam dessas formas de engajamento, negação e
contraexpectativa:
Carta 9: “Ou seja, a Previdência não está falida, mentira deslavada (...)”. (negação)
Carta 10: “O governo alega e não demonstra com números ou por meio de uma
auditoria séria e isenta que o sistema previdenciário é deficitário”. (negação)
Carta 2: “(...) porém, o fundo da seguridade social é garantido pela Constituição...”
(contraexpectativa)
Com esse tipo de engajamento, o efeito de sentido que se cria é de um
distanciamento entre os discurso do governo e desses leitores. Ao não se solidarizar
com o discurso do déficit, o leitor contesta a necessidade de reforma e denuncia as
fontes de escoamento de dinheiro da Seguridade Social para outros fins, que
comprometem o saldo financeiro da Previdência, contestando a veracidade do
discurso do governo (julgamento de veracidade), denunciando o jogo de interesses
que fica subjacente na proposta da reforma.
De acordo com White (2004), no engajamento contrativo do tipo negação, a
voz textual reconhece a existência de outros posicionamentos da rede dialógica, ativaos no texto, para, então, rejeitá-los. Ao reconhecer outras vozes, fica claro o recurso
dialógico, em que o leitor contesta essas outras posições, negando-as, o que revela a
não abertura de espaço para essas proposições em sua rede.
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Discurso e poder: teoria e análise
Os casos de discursos que contestam o déficit trazem a tona informações que
não são abordadas pelo governo e pela classe política, denunciando a desinformação
como forma de manipulação e abuso de poder. Esses discursos corroboram com as
concepções apresentadas por estudiosos no assunto da previdência, que não aceitam
a existência do déficit e alinham-se a discursos circulantes que são contrários à
proposta, tal como em:
Para aprovar sua reforma em prol do sistema financeiro e prejudicial
aos trabalhadores, o governo Bolsonaro insiste na cantilena do
“rombo” da Previdência, agora de R$ 290,297 bilhões, que
supostamente teria ocorrido no ano passado.
Número fabricado, colocando tudo na mesma conta os resultados do
Regime Geral da Previdência Social (RGPS), que atende aos
trabalhadores do setor privado, do Regime Próprio de Previdência
Social (RPPS), que atende os servidores públicos civis da União, e o
sistema dos militares.
O RGPS tem Orçamento próprio, com fontes de financiamentos
determinadas pela Constituição: contribuição de trabalhadores e
empregadores, a Cofins, a CSLL, o PIS/PASEP e receitas de
prognósticos (loteria). Já o RPPS e o sistema dos militares são
mantidos com recursos do Tesouro Nacional. Além disso, o governo
omite receitas – como o desvio de 30% da Seguridade através da
Desvinculação de Receitas da União (DRU) e não consideração do
rendimento financeiro da Previdência – e acrescenta despesas que
nada têm a ver com o RGPS. Somente em 2017, as omissões
diminuíram em R$ 159 bilhões as receitas da Previdência. Some-se a
isso a desonerações que garfaram R$ 141,177 bilhões naquele ano,
de acordo com a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da
Receita Federal do Brasil (ANFIP). E mesmo assim o governo anunciou
que este ano as renúncias com isenções previdenciárias deverão tirar
dos cofres do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) R$ 54,56
bilhões. São isentos ou têm cobrança reduzida para o INSS os
exportadores agrícolas – “agro é pop” -, entidades filantrópicas e
micro e pequenas empresas. Ano passado, foi deixado de arrecadar
com isenções a esses setores R$ 46,3 bilhões2.
A contração dialógica/proposição/expectativa confirmada foi um recurso
usado nas cartas 2 e 4, conforme exemplos a seguir, e envolvem formulações que
constroem um interlocutor ajustado à voz autoral, aumentando o custo de oposição
ao enunciado. A proposição é apresentada como óbvia, do senso comum; e a voz
autoral e o interlocutor são construídos como participando de uma relação
interdiscursiva de completo alinhamento, causando um efeito de garantia à
proposição anunciada (MARTIN e WHITE, 2005). Exemplos:
Carta 2: “(…) é claro que o simples cálculo do INSS recolhido versos benéficos pagos
não fecham, mas isso já é previsto na Constituição. (…) Todas essas informações,
mesmo sendo públicas, chegam ao conhecimento de poucos brasileiros”. (expectativa
confirmada)
2 Fonte: ALBUQUERQUE, V. Governo fabrica rombo na Previdência para abandonar idosos à própria
sorte. Hora do Povo, 7 fev. 2019. Disponível em: <https://horadopovo.org.br/governo-fabrica-rombo-naprevidencia-para-abandonar-idosos-a-propria-sorte/>. Acesso em 01 mar 2019.
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O Sistema da Avaliatividade como ferramenta de análise para ...
Carta 4: “É evidente que essas matérias mostram casos isolados de alguns idosos mais
sortudos (…)”. (expectativa confirmada)
O uso dos recursos de contração dialógica que prevaleceram no corpus, a
negação com maior número de ocorrências, seguida da contraexpectativa,
combinados a recursos de contração/ proposição/ pronunciamento e
contração/proposição/expectativa confirmada, também foram usados para contestar
as motivações do governo, para denunciar a manipulação de informações e a
imposição da proposta por parte do governo, sem a devida participação da
sociedade, que é diretamente afetada e interessada no assunto, como atestamos nos
seguintes excertos:
Carta 1: “(…), mas a verdade é que os reais privilegiados são aqueles que a criaram a
proposta da reforma: os políticos”. (contraexpectativa/ pronunciamento)
Carta 2:
“(...) porém, o fundo da seguridade social é garantido pela
Constituição...” (…). O que acontece é que o governo utiliza a famosa DRU (...) e gaste
como quiser, tira da seguridade e aloca em outros locais (pagar juros de dívidas, por
exemplo). (…) é claro que o simples cálculo do INSS recolhido versos benéficos pagos
não fecham, mas isso já é previsto na Constituição. (…) Todas essas informações,
mesmo sendo públicas, chegam ao conhecimento de poucos brasileiros”.
(contraexpectativa/
pronunciamento/
expectativa
confirmada/
negação/
contraexpectativa)
Carta 4: “Porém, as emissoras não mostram o quanto um velho, no Brasil, gasta com
remédios, nem falam das inúmeras doenças chegam com o avançar da idade. (…) É
evidente que essas matérias mostram casos isolados de alguns idosos mais sortudos
(…)”. (contraexpectativa/ negação/ expectativa confirmada)
Carta 4: “Desse modo, não dão chance para que haja um mínimo de discussão com a
sociedade, como se os interessados no assunto fossem incapazes de opiar sobre aquilo
que lhes diz respeito. No fundo, os políticos empurram goela abaixo uma proposta que
a maioria não teve acesso às reais intenções”. (negação/ pronunciamento)
Carta 6: “(...) Na verdade, o governo quer que o povo morra trabalhando para poder
manter aberto o ralo dos desvios”. (pronunciamento)
Carta 9: “(…) e em troca fomos agraciados com uma proposta de reforma da
Previdência que não era nossa bandeira, mas seria a salvação do país!”. (negação)
Nas cartas 1, 2, 4 e 6 em que estão presentes o engajamento de contração
dialógica/proposição/pronunciamento, temos um recurso em que uma rejeição da
proposição apresentada torna-se mais difícil de realizar na troca dialógica em curso,
conforme Avelar e Azuaga (2003).
Dos casos de expansão, o mais recorrente foi do subtipo
atribuição/reconhecimento. Na atribuição, a voz autoral pauta a proposição na
subjetividade de uma voz externa, apresentando-a como uma dentre outras opções
possíveis, invocando essas alternativas dialógicas que dizem respeito a enunciados
pertencentes a outros autores e grupos sociais, para, então, concordar ou não com
eles. Esse tipo de engajamento permite a negociação do espaço dialógico, em que
vozes alheias são trazidas ao texto a serviço da negociação e do posicionamento
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Discurso e poder: teoria e análise
intersubjetivo entre diferentes vozes e perspectivas (WHITE, 2004; AVELAR e AZUAGA,
2003).
Na expansão, o falante/escritor apresenta o tema como uma questão em
aberto, dando espaço para que outros posicionamentos sejam ouvidos, ampliando
sua perspectiva, o que diminui seu comprometimento no que é afirmado no texto, ou
seja, diminui sua responsabilidade autoral, sendo a responsabilidade atribuída à voz
alheia. No entanto, cria-se um espaço mais democrático para a negociação
intersubjetiva de pontos de vista alternativos (NININ E BARBARA, 2013).
Os exemplos, a seguir, mostram o engajamento do leitor por expansão
dialógica/atribuição/ por reconhecimento ou distanciamento e a possibilidade de
negociação intersubjetiva e interdiscursiva estabelecida entre a voz autoral e as vozes
trazidas ao texto:
Carta 1: “O governo insiste no discurso de que a reforma acabará com os privilégios.
Eu pergunto: quais são esses privilégios, afinal?”. (distanciamento)
Carta 2: “Dizem que é necessária uma reforma política para garantir o futuro da
previdência (…). “De acordo com a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), o
maior de devedora é a já falida Varig, a segunda é a JBS, (…) e nessa lista ainda tem
empresas ligada ao poder público com Caixa Econômica Federal e Correios”.
(reconhecimento)
Carta 8: “Por exemplo, especialistas lembram que o país está no fim da benéfica janela
demográfica (mais trabalhadores ativos do que aposentados) e citam pesquisas do
IBGE, segundo a qual, em 2030, serão 41,5 milhões de aposentados, ou seja, um em
cada cinco brasileiros”. (reconhecimento)
Carta 10: “Dizem, com muito acerto, que quem não conhece a história corre o risco de
repetir os mesmos erros. (…) O governo alega e não demonstra com números (…) que
o sistema previdenciário é deficitário. (...) O governo fala em “jogar” os servidores da
União, dos estados e dos municípios para a vala comum da Previdência...”.
(reconhecimento/ distanciamento/ reconhecimento)
Nas cartas do leitor, exemplificadas anteriormente, constatamos que a
expansão dialógica é usada tanto nos discursos a favor quanto contrários à proposta
de reforma. Nos casos a favor, outras vozes são trazidas ao texto para sustentar a crença
do leitor de que o sistema previdenciário é deficitário, como ocorre na carta 8. Por
meio desse tipo de engajamento, o leitor solidariza-se com discursos de grupos sociais
que preconizam e existência do déficit, e portanto, avaliam a reforma previdenciária
como necessária.
Os que se opõem à proposta, ao se engajarem num movimento de expansão
dialógica, abrem espaço de diálogo com discursos e perspectivas que denunciam
fontes que contribuem para o escoamento de dinheiro da Seguridade Social e da
Previdência, como ocorre na carta 2.
Nas cartas 1 e 10, dos exemplos anteriormente citados, o uso do recurso de
expansão funciona em um discurso em que o leitor põe em dúvida o objetivo do
governo na proposta da reforma, não se alinhando às suas justificativas para tal fim.
Nesses casos, a expansão dialógica é usada como recurso avaliativo quando o foco do
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O Sistema da Avaliatividade como ferramenta de análise para ...
discurso do leitor relaciona-se a críticas aos políticos e ao governo, trazendo um
posicionamento mais democrático de sua parte. Esses discursos abordam críticas às
reais intenções do governo na proposta de reforma e às distorções que precisam ser
corrigidas antes de se propor uma reforma, como: acabar com as desonerações,
sonegações, corrupção e desvios de verba pública.
Nos casos em que o leitor posiciona-se a favor da reforma, como nas cartas 3,
7 e 8, há um diálogo e solidarização com vozes externas que são a favor da reforma e
com o discurso do governo que prega que há déficit no sistema previdenciário e de
que a reforma é necessária para manter a saúde financeira do país, tal como
apresentado no trecho a seguir, disponível para consulta pública no site do governo:
A manutenção do sistema previdenciário sustentável é um dos
maiores desafios que se impõe ao Estado brasileiro neste momento.
Ao propor uma reforma, o governo quer evitar que seja colocado em
risco o recebimento de aposentadorias, pensões e demais benefícios
por esta e as próximas gerações. (…) As despesas do INSS estão em
torno de 8% do PIB e, se nada for feito, as projeções para 2060
apontam que o percentual deve chegar a 18%, índice que
inviabilizaria a Previdência. No ano passado, o déficit do RGPS
(coberto com recursos da Seguridade Social – da qual a Previdência
faz parte) chegou perto de R$ 150 bilhões3.
Exemplos de cartas a favor encontradas no corpus, são:
Carta 3: “Sensacionalismo, meias verdades e política acabam atrapalhando na
transparência das mudanças propostas pelo projeto de reforma-cuja maioria dos
especialistas concorda ser absolutamente necessária”. (apreciação positiva).
Carta 8: “Que conclusão tirar em rápido recorte da polêmica que envolve a chamada
reforma-mãe da recuperação econômica?”. (apreciação positiva).
Considerações Finais
Atestamos, nas cartas, que um mesmo assunto gera diferentes avaliações e
perspectivas por parte dos leitores, que se posicionam conforme suas visões de
mundo e avaliam o evento de modo dialógico, solidarizando-se ou afastando-se de
discursos circulantes na sociedade em que estão inseridos. Nesse sentido, o leitor faz
parte de uma rede dialógica e responde a enunciados já proferidos por outros,
concordando ou não com eles, dando continuidade à rede dialógica. Esse movimento
torna os enunciados do leitor parte do elo da comunicação verbal e, sendo sua carta
uma resposta a algo já abordado por outros, tem-se por parte do leitor uma atitude
responsiva ativa, nos termos de Bakhtin (2003 [1979]).
Dos resultados encontrados, vimos que prevalece a não solidarização com o
discurso da necessidade de reforma, uma vez que contestam a existência do déficit
nas contas do sistema previdenciário, o que os leva a denunciarem as fontes de
escoamento de dinheiro da Seguridade Social.
3
Fonte:
Secretaria
de
Previdência.
Reforma
da
http://www.previdencia.gov.br/reforma/. Acesso em: 14 fev. 2018.
Previdência.
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Disponível
em:
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Discurso e poder: teoria e análise
Contestam a veracidade do discurso do governo, denunciando o jogo de
interesses que fica subjacente na proposta da reforma. Prevalece o alinhamento ao
discurso de que essa proposta não atende à igualdade de direitos entre as classes,
tampouco acabará com os privilégios de uma minoria, o que os afasta do discurso do
governo sobre os benefícios cogitados pela proposta de reforma. A aceitação parcial
da reforma, por parte de alguns leitores, indica que há solidarização parcial com o
discurso do governo de que o sistema é deficitário, porém, não há solidarização com
os argumentos das fontes de gastos e com a proposta apresentada.
O Sistema da Avaliatividade mostrou-se como uma ferramenta útil de análise
da responsividade do leitor, indicado principalmente pela manifestação do sistema do
Engajamento, sugerindo que prevalece o não alinhamento entre os discursos do leitor
e do governo, preponderando a atitude responsiva de não solidarização.
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Discurso e poder: teoria e análise
Fontes:
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Carta 1:
https://www.jcnet.com.br/editorias_noticias.php?codigo=251118
Carta 2:
https://www.jcnet.com.br/editorias_noticias.php?codigo=249664
Carta 3:
http://www.dgabc.com.br/noticia/2670077/palavra-do-leitor
Carta 4:
https://www2.jornalcruzeiro.com.br/materia/759727/reforma-da-previdencia
Carta 5:
http://www.comerciodojahu.com.br/noticia/1359003/carta-do-leitor-aposentadoriaalexandre-buccini-de-paula
Carta 6:
http://www.comerciodojahu.com.br/noticia/1362059/carta-do-leitor-aposentadoriacristiane-banhol
Carta 7:
https://www2.jornalcruzeiro.com.br/materia/868573/reforma-da-previdencia
Carta 8:
http://www.jornaldepiracicaba.com.br/cartas_do_leitor/2017/04/cartas_do_leitor_08_
04_2017
Carta 9:
https://www.jcnet.com.br/editorias_noticias.php?codigo=247347
Carta 10:
https://www2.jornalcruzeiro.com.br/materia/780091/pascoa
Como citar
RASQUEL, Sandra Gomes. O Sistema da Avaliatividade como ferramenta de análise
para a compreensão da Responsividade Ativa em Cartas do Leitor sobre o tema
Reforma da Previdência. In: GONÇALVES-SEGUNDO, Paulo Roberto; ARAES, Célia
Regina; CASTANHEIRA, Claudia; ISOLA-LANZONI, Gabriel; PENITENTE, Natalia;
WEISS, Winola (orgs). Discurso e poder: teoria e análise. São Paulo: FFLCH/USP,
2020, p. 275-291. DOI: 10.11606/9786587621241
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Na sala de aula, de Portas Abertas, pode entrar: uma análise discursiva ...
Na sala de aula, de Portas Abertas,
pode entrar: uma análise discursiva
de imagens de língua em materiais
de ensino para refugiados e no
discurso de alunos imigrantes
Selma Regina Olla Paes de ALMEIDA
Universidade de São Paulo
[email protected]
Resumo: Neste artigo analisamos as imagens de língua do
Português presentes nos discursos de alunos estrangeiros e em
dois materiais didáticos de ensino de Língua Portuguesa. O
objetivo é depreender a imagem que os estudantes e os livros
didáticos têm da Língua Portuguesa. O corpus do trabalho
consta de um recorte de aula com os estudantes estrangeiros
do curso de Português que ocorre na Bibli-ASPA e de dois livros
didáticos. Este estudo vincula-se ao Projeto Imagens de língua:
sujeito, deslocamento, conhecimento e tempo, coordenado
pelo Prof. Dr. Valdir Heitor Barzotto. Como procedimentos
metodológicos, realizou-se a transcrição de um trecho da aula
gravada, de acordo com as orientações de Marcuschi (2006);
para os materiais didáticos, realizou-se uma análise
interpretativa de apenas alguns trechos. Como referencial
teórico, nos fundamentamos em Arnoux (2014), que aborda o
conceito de minorização linguística; e em Pêcheux (1997), que
discute as condições de produção do discurso e o conceito de
formações imaginárias. Como resultado, foi possível apurar que
as imagens de língua presentes nos corpora analisados que
mais sobressaem são a imagem do Português como
capacitação linguística; a da língua como instrumento de
emancipação; e a de uma língua correta, sem erros,
homogênea, una, ditada por regras.
Palavras-chave: Imagem de língua; Análise do discurso;
Imigrantes; Língua Portuguesa; Ensino.
Introdução
Este artigo vincula-se ao Projeto de Pesquisa Imagens de língua: sujeito,
deslocamento, conhecimento e tempo, coordenado pelo Prof. Dr. Valdir Heitor
Barzotto. Tal projeto pretende investigar os aparatos que auxiliam na construção de
imagens da língua por meio de quatro instâncias argumentadoras - o Estado, a Igreja,
a Universidade e a Comunidade - e de que maneira elas contribuem para a
constituição dessas imagens.
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Discurso e poder: teoria e análise
Como parte desse projeto, este estudo se propõe a investigar os instrumentos
que colaboram na formação das imagens de língua nos contextos multilíngues,
analisando os discursos produzidos pelas instâncias argumentadoras, Estado,
Universidade e Comunidade e o conflito entre a imagem de língua constituída nesses
documentos e as imagens de língua que os alunos estrangeiros têm - como ele vê a
própria língua e como ele vê a Língua Portuguesa.
Para tanto, temos como objetivo investigar quais as escolhas lexicais usadas
para caracterizar a língua, bem como verificar quais linhas teóricas são mobilizadas
para identificar a língua e de que maneira essas linhas teóricas são convocadas.
O corpus do trabalho consta de dois livros didáticos, Portas Abertas: Português
para Imigrantes e Pode Entrar: Português do Brasil para refugiadas e refugiados e do
recorte de uma aula com os estudantes estrangeiros do curso de Português nível
Intermediário que ocorreu na Bibli-ASPA, uma organização sem fins lucrativos, por
meio de um Projeto de Ensino da Universidade de São Paulo denominado Aprender
com a Comunidade.
A escolha dos materiais foi baseada no objetivo do Projeto citado
anteriormente. Visando analisar os a construção das imagens da língua por meio das
instâncias argumentadoras e por se tratar de parte da pesquisa de mestrado que
investiga as imagens de língua de estudantes estrangeiros, optou-se como um dos
corpora, o recorte da aula deste curso, por um lado, por ter vínculo com a
Universidade, instancia analisada na pesquisa e que pode ou não ter desdobramentos
em projetos vinculados a ela, e por outro, para investigar as imagens de língua
construídas na instância argumentadora Comunidade, por meio dos alunos.
Como se tratava de um curso voltado a imigrantes e refugiados, primeiramente
investigou-se documentos do Estado que abordassem a questão linguística a
refugiados, como não nada foi encontrado até então, uma alternativa foi buscar
materiais elaborados pelo Estado que versassem sobre essa temática, daí a motivação
em se analisar alguns trechos dos materiais elaborados pela Secretaria de Educação
da Prefeitura de São Paulo, Portas Abertas: Português para Imigrantes e pelo Alto
Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, ACNUR, Pode Entrar: Português
do Brasil para refugiadas e refugiados, por ser a ACNUR parte de uma organização
intergovernamental. Cabe destacar que para as análises presentes neste trabalho,
foram selecionados apenas alguns trechos desses materiais, não havendo uma análise
totalizante dos referidos livros.
Como referencial teórico, nos fundamentamos em Arnoux (2014), que aborda
o conceito de minorização linguística; em Fiorin (1988), que aborda o conceito de
linguagem como instituição social, instrumento de mediação e veículo das ideologias;
de Pechêux (1997), utilizamos as concepções acerca das condições de produção do
discurso e as formações imaginárias que são construídas a partir dessas condições; de
Bronckart (2009), tomamos o conceito de modalização. Como resultado, foi possível
apurar que, dentre as várias imagens de língua presentes nos discursos analisados, as
que sobressaem são a do Português como “capacitação linguística”, que atrelada à
capacitação profissional, remete à ideia de inserção no mercado de trabalho por meio
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Na sala de aula, de Portas Abertas, pode entrar: uma análise discursiva ...
da rápida aprendizagem da língua para esta finalidade; a da Língua Portuguesa como
instrumento de emancipação; e a de uma língua sem erros, invariável e homogênea.
1 Metodologia e Aparato Teórico
A transcrição da conversação realizada em aula foi baseada nas orientações
metodológicas de Marcuschi (2006), que foi fundamental para a transcrição do corpus
sobretudo no que concerne às falas simultâneas, pausas, truncamentos repentinos e
trechos incompreensíveis presentes nas falas dos estudantes. Para os materiais
didáticos, realizou-se uma análise interpretativa de apenas alguns trechos, não
havendo uma análise totalizante desses livros.
Teoricamente, o estudo se fundamentou no conceito de Minorização
Linguística, proposto por Arnoux (2014), que defende que a minorização de uma
língua limita suas funções e os âmbitos de uso dela, o que acarreta em não provê-la o
suficiente para que se desempenhe nesses âmbitos, desencadeando na língua
limitações discursivas.
Para discutir a linguagem como instituição social e instrumento de mediação e
veículo das ideologias, nos fundamentamos em Fiorin (1988). Embora este autor seja
de uma corrente estruturalista, utilizaremos apenas suas reflexões relacionadas à
concepção de linguagem como um caminho de mediação das ideologias. Desta
forma, estamos pensando no autor de maneira a entender o modo pelo qual a língua
é referida no texto apresenta uma carga ideológica.
Também, nos baseamos na concepção de Pêcheux sobre as condições de
produção do discurso e as formações imaginárias que são construídas a partir delas.
Segundo o autor, destinador e destinatário ocupam lugares determinados na estrutura
de uma formação social, esses lugares são representados nos processos discursivos,
porém podem apresentar-se de maneira transformada. Desta forma os processos
discursivos, o que funciona é uma série de formações imaginárias que designam o
lugar que o destinador e o destinatário se atribuem um ao outro e a imagem que eles
fazem do seu lugar e do lugar do outro (Pêcheux, 1997).
Baseando-se nesse conceito de formações imaginárias de Pêcheux, Osakabe
(1999) propõe algumas questões que o destinador deve levar em conta a respeito da
imagem do referente: a) Qual a imagem que eu faço do ouvinte para lhe falar desta
forma? b) Que imagem penso que o ouvinte faz de mim para que eu lhe fale desta
forma? c) Que imagem penso que o ouvinte faz do referente para eu lhe falar desta
forma? d) Que pretendo do ouvinte para lhe falar desta forma? Inspirando-se no
esquema formulado por Osakabe, elaborou-se o seguinte quadro para a análise dos
dados dos materiais didáticos e dos discursos dos estudantes:
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Discurso e poder: teoria e análise
Quadro 1.
Expressões que designa as
formações imaginárias
Significado da expressão
Imagem do lugar de A para o
sujeito
colocado em B
A - I (A)
A - I (B)
Imagem do lugar de B para o
sujeito colocado em A
B- I (B)
B - I (A)
Imagem do lugar de A para o
sujeito colocado em B
Desdobramentos possíveis
para a análise
Qual imagem faz os materiais
didáticos da Língua
Portuguesa para os
Imigrantes?
Qual a imagem que o material
didático tem do mercado que
absorverá o trabalhador
refugiado?
Que imagem os imigrantes
fazem da Língua Portuguesa?
Fonte: adaptado de Osakabe (1999).
Para analisar um pequeno trecho da conversação dos estudantes, tomamos o
conceito de modalização de Bronckart (2009), bem como a importância do caráter
dialógico das vozes que estão presentes no texto.
Partindo dos autores elencados acima, na seção seguinte apresentaremos o
corpus e análise do material.
2 Análise do corpus
Selecionamos dos livros já mencionados excertos que caracterizam a língua e
figuram certas imagens acerca dela, no item 3.1 analisaremos os trechos selecionados;
No item 3.2 há a transcrição de parte da aula em que os alunos estrangeiros
falam sobre o Português e a análise dos discursos por eles produzidos.
2 1 Análise dos materiais didáticos
Quadro 2. Análise dos livros
Portas Abertas: Português para Imigrantes
1. Em todos os processos de acolhimento, a necessidade de domínio da língua portuguesa
perpassa a preocupação, tanto dos migrantes, como também daqueles que os recebem.
Assim, diversos grupos têm se organizado para oferecer cursos de português para imigrantes
e refugiados, os quais precisam, com rapidez, se capacitar linguisticamente, não só para a
expressão cotidiana, mas também para as questões formais de documentação ou trabalho.
(P.3)
2. O livro Portas Abertas: Português para Imigrantes é parte dos processos de recepção de
imigrantes e refugiados, pois trata o Português como Língua de Acolhimento, a qual se
ocupa da capacitação linguística, (...) (P.3)
3. É muito importante não utilizar gírias do português na hora da entrevista. Utilize palavras
mais formais, na modalidade formal da língua. (P. 34)
Pode Entrar: Português do Brasil para refugiadas e refugiados
4.
O Curso Popular Mafalda, o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados -
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Na sala de aula, de Portas Abertas, pode entrar: uma análise discursiva ...
ACNUR e a Caritas Arquidiocesana de São Paulo - CASP se uniram para produzir um material
didático que auxiliasse você e outras pessoas refugiadas a darem os primeiros passos
linguísticos para sua integração ao nosso país. Acreditamos que todas as pessoas podem
aprender nosso idioma e colaborar para que o Brasil se torne um país cada vez mais plural,
fraterno e receptivo às diversas culturas. (P.3)
Fonte: Dados retirados dos materiais didáticos Portas Abertas: Português para
Imigrantes e Pode Entrar: Português do Brasil para refugiadas e refugiados.
Os enunciados de 1 a 3 foram extraídos do livro Portas Abertas: Português para
Imigrantes elaborado pelas Secretaria Municipal de Educação (SME) e Secretaria
Municipal dos Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC) da Prefeitura de São Paulo, e
pelo Centro de Línguas da Universidade de São Paulo, ou seja, por instituições que
formalmente pensam a educação e estabelecem um estratégias didáticas para o
ensino de língua.
O enunciado 1 utiliza o termo domínio da língua para se referir à compreensão
do Português pelo estrangeiro. Esse termo propicia a reflexão de que o estrangeiro
precisa dominar algo indominável, como que precisando ter o controle dessa coisa,
“domesticando” algo que a priori estava livre, solto. O termo domínio também permite
pensar que o estrangeiro precisa se apropriar de algo rígido, estanque, como se a
língua fosse uma propriedade que precisa pertencer a ele, e com isso essa relação
poderia ser considerada uma reificação linguística.
Ainda no enunciado 1, outro termo que salta aos olhos é o capacitar(-se)
linguisticamente, esse termo abre, inicialmente, para duas formas de interpretação: a
primeira é relacionada mais ao primeiro vocábulo capacitar-se, que é muito utilizado
para cursos profissionalizantes voltados aos mercados de trabalho, cursos de
capacitação profissional. Essa escolha lexical pode insinuar que a compreensão do
Português esteja atrelada principalmente à finalidade de inserção no mercado de
trabalho. Outro ponto a ser destacado, é relacionado à língua como “capacitação”, no
sentido de que os cursos de capacitação profissional geralmente são de curta duração,
enquanto os cursos de qualificação são cursos mais longos.
Os cursos de capacitação objetivam habilitar profissionalmente o trabalhador
para seu desempenho em determinada função, eles têm como uma de suas
características a rápida formação para que o trabalhador logo seja inserido no
mercado. Nesse sentido, questiona-se se no termo capacitação linguística não está
imbricada essa concepção de uma compreensão linguística supérflua, mas suficiente
para que ele seja inserido no mercado de trabalho, isto é, que o imigrante aprenda
rapidamente o necessário para essa função, como se esse fosse o objetivo mais
importante da aprendizagem do Português para aqueles que aqui chegam.
A segunda interpretação que esse termo permite deduzir, é que se capacita
quem não é capaz de algo, logo capacitação linguística indica que é preciso capacitar
alguém que não é capaz linguisticamente, e a expressão “capacidade linguística” sem
um qualificador pressupõe que o sujeito não tenha qualquer capacidade linguística,
nem no Português, nem na sua língua nativa e nem em qualquer outra língua.
O enunciado 2, ademais da expressão capacitação linguística apresenta o
termo língua de acolhimento para referir-se à Língua Portuguesa. Esse termo refere-se
ALMEIDA, Selma Regina Olla Paes de | 2020 | p. 292-307
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Discurso e poder: teoria e análise
“ao contexto de ensino- aprendizagem do Português por parte dos imigrantes
advindos de migração de crise” (MIRANDA & LOPES, 2019, p. 18). Indica que o ensinoaprendizagem do Português está direcionado a um público específico: estrangeiros
que chegaram ao Brasil em situação de refúgio ou imigrantes que para cá vieram
devido a situações alheias à sua vontade.
De acordo com o dicionário Priberam1 2 2, acolher significa receber (alguém) em
casa, com agrado. Nesse sentido é importante que o imigrante se sinta acolhido no
novo país e, como parte desse acolhimento, a compreensão do Português está
inserido nisso. Ou seja, há uma finalidade específica nesse termo: propiciar o
conhecimento da Língua Portuguesa aos refugiados ou a pessoas em situação de
refúgio que vêm para o Brasil a fim de que possam se integrar à nova cultura e interagir
com o seu novo entorno.
A expressão contida no enunciado 3, não utilizar gírias do português na hora da
entrevista. Utilize palavras mais formais, na modalidade formal da língua, retoma a
análise proposta por Osakabe (1999) a respeito das condições de produção do
discurso que leva em conta a relação da construção das imagens entre o destinador e
o destinatário:
Um ponto de partida necessário para tal discussão parece estar no
fato de que um discurso só se justifica à medida que, através dele, o
locutor se situa de modo singular no quadro de informações
preexistentes à sua enunciação. [...] Assim, todo locutor ao enunciar
seu discurso se enquadra, independentemente de uma imagem
objetiva daquilo que o ouvinte possa saber sobre o referente, na
exigência básica de que no mínimo este último é passível de ter um
conhecimento distinto do seu. Sob esse aspecto, do ponto de vista
das condições gerais da produção de um discurso, parece que a
segunda questão [que imagem penso que o ouvinte tem do referente
para eu falar dessa forma?] é muito mais relevante do que a primeira
["que imagem tenho do referente para falar dessa forma?], à medida
que é ela quem fornece a medida e a justificativa para a produção do
discurso e à medida que só a partir dela é que se pode pensar na
singularidade da imagem que o locutor tem do referente (OSAKABE,
1999, p.90).
Baseando-se em sua teoria, a expressão destacada do enunciado 3 nos permite
indagar, qual a imagem que o livro tem do mercado de trabalho que pretende
absorver essa população? Embora uma das concepções que o dicionário traga para a
palavra gíria seja Linguagem característica de um grupo profissional ou sociocultural2,
a compreensão mais corrente deste vocábulo no Brasil é a de uma linguagem informal,
bastante próxima à linguagem oral, distanciada da norma padrão, de cunho popular
e carregada de expressões metafóricas. A advertência Não utilizar gírias é
frequentemente usada para coibir o interlocutor a utilizar expressões que são
populares, ou seja, que estão na ‘boca’ do povo, carregadas de coloquialidade.
"acolher", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em
https://dicionario.priberam.org/acolher [consultado em 24-06-2019].
2
"gíria", in
Dicionário
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Portuguesa
[em
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O mercado de trabalho é composto por uma complexa trama de trabalhos e
empregos, vão desde atividades que não exigem maiores conhecimentos, podendo
ser realizadas por pessoas sem elevado grau de instrução, e geralmente com baixa
remuneração, até atividades especializadas que necessitam de trabalhadores com
altos níveis de conhecimentos específicos, como graduação ou pós-graduações, e cuja
remuneração, em geral, é elevada. Grande parte dos estrangeiros que chegam ao
Brasil em condições de refúgio são inseridos em atividades laborais cuja mão-de-obra
não é especializada, esse tipo de emprego também absorve brasileiros que
geralmente não tiveram acesso à educação e normalmente não dominam a norma
padrão, modalidade da língua disseminada pela escola. Isso demonstra que há
empregos que não exigem o domínio da língua padrão como pré-requisito para a
empregabilidade enquanto outros o exigem.
Cabe ressaltar que o enunciado 3 está presente na página do livro em que é
discutida a entrevista de emprego e nessa mesma página há a seguinte imagem:
Figura 1.
Fonte: Imagem retirada do livro didático Portas Abertas: Português para Imigrantes
O fato de o livro apresentar a advertência contida no enunciado 3 e a imagem
acima que compõe a mesma página da advertência sugere duas possíveis
compreensões. A primeira seria a de que a imagem que ele tem do mercado de
trabalho que emprega os refugiados está descolada da realidade, pois enquanto se
espera que o aluno estrangeiro vá para uma entrevista de emprego numa grande
empresa ocupar cargos de maior prestígio, como a imagem acima insinua, o que
acontece, de fato, com a maioria deles é que os trabalhos a eles concedidos são para
ocupar funções que não exigem grande grau de complexidade e estão ligados à mão
de obra não especializada.
Nesse sentido, Fiorin (1988) afirma:
O discurso não é, portanto, o lugar da liberdade e da criação, mas é
o lugar de reprodução dos discursos das classes e das frações de
classe. O indivíduo não fala o que quer, mas o que as formações
discursivas querem que ele fale. Ele não fala, mas é falado por um
discurso. Quando se diz, porém, que cada classe tem o seu discurso,
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não se pode esquecer que, assim como a ideologia dominante é a da
classe dominante, o discurso dominante é o da classe dominante
(FIORIN, 1988, p. 16).
Nessa linha de pensamento, o discurso produzido pelo livro reitera o discurso
alienante aos imigrantes, produzindo em seu imaginário a constante busca por
empregos vinculados aos moldes que o texto e a imagem destacados sustentam e que
permitem que na lida do dia-a-dia fujam de suas realidades cotidianas, aspirando às
imagens impostas pelo discurso da classe dominante.
A segunda compreensão, contrária à primeira, sugere que o material se utiliza
destas estratégias a fim de preparar o aluno estrangeiro para outras possibilidades que
lhe permita emancipar-se e ampliar as possibilidades de inserção laboral e de
melhores condições de trabalho e remuneração.
O enunciado 4 foi extraído do livro Pode Entrar: Português do Brasil para
refugiadas e refugiados, nele, diferentemente do primeiro, faz-se uso do discurso
direto na introdução do livro, dirigindo-se ao aluno desde as primeiras páginas, como
mostra o enunciado 4, no excerto você e outras pessoas refugiadas.
Outra expressão presente neste enunciado é darem os primeiros passos
linguísticos para sua integração ao nosso país, diferentemente do Portas Abertas:
Português para Imigrantes, esse material, ao se referir ao ensino/aprendizagem da
Língua Portuguesa, diz: dar os primeiros passos linguísticos, essa imagem remete à
primeira infância, quando o bebê inicia a sua independência ao locomover-se sozinho
para onde deseja. Dar os primeiros passos linguísticos significa iniciar o processo de,
por meio da língua, integrar-se à nova cultura e ter autonomia para comunicar-se de
acordo com seus anseios, desejos e necessidades.
Neste enunciado também nos chama a atenção a frase: todas as pessoas
podem aprender nosso idioma, que me parece ser oposta à noção de capacitação
linguística, presente no Portas Abertas: Português para Imigrantes. Enquanto a primeira
explicita que qualquer pessoa pode aprender a Língua Portuguesa, a segunda
pressupõe um sujeito incapaz linguisticamente que não tem a capacidade de falar não
só a Língua Portuguesa, mas qualquer outra língua.
O terceiro material analisado é um recorte de dados coletados numa aula de
Língua Portuguesa para Refugiados e transcritos neste artigo.
A situação de coleta dos dados ocorreu na primeira aula do curso de Língua
Portuguesa, após as professoras se apresentarem e falarem sobre sua formação
profissional como licenciadas em Língua Portuguesa, um aluno expressou que então
eles agora aprenderiam o Português direito, essa foi a motivação para a conversa que
deu origem a essa análise.
Havia três alunos na sala, todos homens, com mais de 30 anos de idade, um
aluno proveniente da Arábia Saudita e dois do Haiti. Os dados selecionados é parte
desse momento da aula em que eles conversam acerca do que seria essa língua
mencionada por eles.
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Cabe destacar que as condições de produção para os discursos dos alunos
foram colocadas no momento em que as professoras se apresentaram e falaram sobre
a sua formação - a) curso de Letras na Universidade de São Paulo e b) experiência no
ensino de Português:
A situação a respeito da formação das professoras disparou nos alunos uma
imagem sobre o referente, a Língua Portuguesa, que estabelece as condições de
produção para que os alunos elaborem seus discursos da forma como o fizeram.
Pêcheux (1997) afirma que as regras de projeção existentes nos mecanismos de
formação social estabelecem as relações entre as situações e as representações dessas
situações. Em outras palavras, a questão proposta por Osakabe (1999) Que imagem
penso que o ouvinte tem do referente para eu falar dessa forma? norteia os discursos
dos alunos.
2 2 Análise do discurso dos alunos
Quadro 3. Transcrição de parte da aula
Transcrição de uma parte da aula
•
Situação de comunicação 1
Aluno 1: a) Quando você conversa com pessoas, com as pessoas que não conhecem, ainda não
acostumam a sua jeito de falar, ela não entende. Então fazia tempo para ela começar a acostumar
a sua jeito de falar. Isso é fraqueza, tem que porque tem que desde quando você fala elas têm que
entender (...). Eu preciso, quando fala pela, primeira vez, para primeira, para pessoas entende. b)
Segundo secreto, secreto muito ruim, eu converso com as pessoas no Facebook, no Whatsapp, as
pessoas não entendem o que eu escrevo, c) mesmo que o que eu tô falando, escrevo, mas não dá
certo, as pessoas não entendem. Então tem que ir (...), esses dois (...) mostram que você não (...). d)
Eu perceber uma outra matéria, fora para(...) um congresso geral, não entendi nada, quer dizer
política, medicina, nada! Não é só os termos, não entendi nada. Então tudo isso é fraqueza (...).
Professora 2: Então é como para falar o Português direito, é para que haja comunicação, que você
entenda o que eu estou falando.
Aluno 1: e) Comunicação também (...) como alto cultura (...), com pessoas como advogados, esse
tipo de pessoas, que não pode usar as palavras da rua, da gíria ou coisa assim. Passa outro
congresso com outro tipo de pessoas.
•
Situação de comunicação 2
Aluno 2: f) Sim. Para mim eu penso (...) é quando pessoas, igual todas as línguas, quando pessoas
fala bem, com verbo, e fala bem correto e você ouve também (...) é isso. g) Assim, às vezes tem
pessoas que fala com você, ele não tem concordância do tempo, às vezes, você já viu se foi pra
uma faculdade, tô fazendo faculdade, eu tô fazendo, eu faço faculdade sim, e não sabe nada
porque na concordância do tempo, verbo, frase dele, não correto. h) Para mim o Português
direito, ele tem que falar bem, tem que respeitar o tempo certo para falar, depois (...). É isso.
Professora 1: E para você, o que que é aprender o Português direito?
Aluno 3: i) Ah, eu quero aprender o Português direito porque quando eu cheguei aqui, eu
trabalhei na obra, trabalhei com as pessoas na rua, l) aí eu aprendi muitas palavras, j) mas quando
conversar com professor ou pessoas que falam Português correto, aí eu precebi que todas as
palavras que eu aprende, tudo é incorreto, incorreto, m) Por exemplo, tem pessoas que trabalham
na obra, quando engenheiro chega assim, você vai trabalhar e fala “amanhã nóis vai”, ai quando
vai conversar com outras pessoas daí “amanhã nóis vai” não é correto. Aí eu vi que todas as
palavras que eu aprendi na obra, aí se fala, você já compreende o que eu quero falar, mas não é
correto.
Fonte: Dados transcritos de parte de uma aula de Língua Portuguesa para
Refugiados na Bibli-ASPA.
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Na Situação de comunicação 1, no recorte a) do aluno 1 indica que numa
situação conversacional em Língua Portuguesa as pessoas têm dificuldades em
compreendê-lo. De acordo com o locutor, para que as
pessoas compreendam o que ele diz, se acostumem ao seu jeito de falar,
demora algum tempo. Isso evidencia que o estudante tem dificuldades em se fazer
entender na Língua Portuguesa, o que ele denomina como uma debilidade que deve
ser superada; no seu entendimento a comunicação deve ser compreensível desde o
início da conversa.
No excerto b), ainda no turno do aluno 1 novamente ele se queixa de não se
fazer compreender, mas desta vez por via de redes sociais como Facebook e
WhatsApp. Vale ressaltar que no primeiro excerto a discussão da língua era na esfera
da oralidade, aqui, tem-se e esfera da língua escrita, que de mesmo modo é
incompreensível para que o aluno se faça entender. O aluno 1, ao usar esses dois
exemplos, demonstra que tem consciência de que a língua é comunicada por meio
dessas duas esferas: oral e escrita.
No excerto c), ele demonstra reconhecer que a linguagem oral tem a
especificidade da pronúncia e dos sotaques que fazem com que a mesma palavra
escrita tenha sonoridades distintas podendo fazer com que os enunciados possam ser
melhor ou pior compreendidos por causa dessa variação. Mas evidencia que sua
dificuldade em se fazer compreender não é unicamente pela questão do sotaque
porque ressalta que escreve com as mesmas palavras com que fala e de igual maneira
as pessoas não o entendem. Ele relata ter dificuldades tanto na língua oral quanto na
língua escrita.
Na sequência, no trecho d) ele parte para a questão de sua compreensão e da
dificuldade de entender a língua em contextos mais específicos, Esse excerto
evidencia que o aluno reconhece que há mais de uma modalidade da Língua
Portuguesa: i) a modalidade da língua do cotidiano, em que ele compreende a língua,
mas não se faz compreensível; e ii) a língua que circula num congresso, na política, na
medicina, em que ele não compreende não apenas os termos específicos das áreas,
mas a situação comunicacional daquele contexto.
A passagem e) evidencia que o aluno compreendeu que há uma divisão de
classes que perpassa as questões linguísticas: há a língua da rua e a língua de
advogados e de outras pessoas que ocupam espaços de poder. Esse excerto remete
ao enunciado 3 do livro Portas Abertas: Português para Imigrantes, em que adverte
que em determinados contextos o aluno estrangeiro deve evitar o uso de gírias. São
os espaços presentes na fala do aluno 1 que os estrangeiros devem evitar a linguagem
da rua, pois nesses espaços não há lugar para a fala popular, nesses espaços ela deve
ser silenciada.
Nesse sentido, Arnoux (2014) destaca:
Sabemos que la estandarización y el desarrollo de una variedad
escrita que debe circular por la escuela, los medios y el aparato estatal
es fundamental para que adquieran el estatuto de oficiales en los
Estados actuales en los que la escritura juega un papel importante. El
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peligro reside en que funcione como el modelo prestigioso y afecte
empobreciéndolas las formas propias de la cultura oral (ARNOUX,
2014, p. 292).
Espaços como os citados pelo aluno 1 e pelos livros são os que legitimam a
variedade padrão da língua, empobrecendo e minorizando outras variantes
relacionadas à língua oral, próprias da cultura popular, desprestigiando uma em
detrimento da outra.
Na Situação de comunicação 2, no trecho f), o estudante relaciona o Português
direito como uma necessidade não apenas exclusiva ao Português, mas a todas as
línguas. Ademais, ele define que essa língua, Português direito, pressupõe o falar
correto, com o uso verbos e com boa dicção para que o seu interlocutor possa
compreendê-lo.
O excerto g) evidencia a língua como uma instância de poder: fala correto
quem teve acesso à educação, quem já foi à universidade, quem tem “o”
conhecimento. Ele se coloca nessa instância que se sobressai, afirmando reiteradas
vezes que está ocupando esse espaço de poder e em contraposição renega a língua
do outro que não circula por essa instância, exprimindo que não sabe nada por não
fazer uso da variante linguística própria desse grupo social - aqueles que detêm o
conhecimento.
Esse trecho de sua fala também demonstra a imagem que sustenta o discurso
desse locutor e remete à questão proposta por Osakabe (1999) Que imagem tenho
do referente para falar dessa forma? Ao se colocar como um ocupante do espaço
acadêmico, ele mostra às receptoras que ele também circula pelos mesmos espaços
de poder que elas, validando, desta forma, aquilo que ele diz.
Em h) a imagem que o aluno 2 tem do que seria o Português direito dialoga
com a norma padrão da língua e com a imagem de uma língua que só é acessível
àqueles que adentram às universidades e aos espaços onde o conhecimento
acadêmico circula.
Embora por meio da modalização lógica (BRONCKART, 2009) construída no
discurso do aluno 2 com a expressão Para mim eu penso pareça revelar um
posicionamento enunciativo individual do sujeito, esse discurso reproduz a ideologia
da classe dominante:
O enunciador real sempre vocaliza as formações ideológicas
existentes na formação social em que vive. Ao enunciar, revelando ou
ocultando sua posição de classe, ele dá voz aos diferentes agentes do
discurso, que são as classes ou as frações de classe de uma
determinada formação social (FIORIN, 1988, p. 16).
Ainda na Situação de comunicação 2, o enunciado i) demonstra que o aluno 3
aumentou seu repertório linguístico graças aos seus colegas de trabalho e à vivência
que teve por meio do seu trabalho. Embora reconheça, num primeiro momento, que
aprendeu a falar Português com seus colegas de trabalho, em j) ele evidencia que a
língua que aprendeu não é a que ele deseja e nem a que é considerada como
adequada. No seu ponto de vista, a língua que ele aprendeu é língua incorreta.
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Discurso e poder: teoria e análise
Outra questão presente em sua fala é quando ele “nomeia” a língua como
palavras, como nota-se na passagem J). Isso permite inferir duas coisas: a primeira é a
da importância que ele dá para as palavras, como que se para comunicar-se as palavras
fossem mais importantes do que outros aspectos contidos na língua. A segunda é a
de que o que o incomoda na língua que aprendeu são as palavras - como se elas
fossem gírias - e não tanto a estrutura dela. É como se o que ele aprendeu errado nessa
língua não fosse a estrutura, mas as palavras, que não condiziam com as usadas por
pessoas como os professores e engenheiros.
Assim como os alunos 1 e 2, o aluno 3 identifica o espaço enunciativo de onde
se fala o Português direito. Esse espaço de poder é ocupado, na fala do aluno 1 por
advogados, médicos e políticos; na fala do aluno 2, por pesquisadores, docentes e
estudantes que circulam nas universidades; e na fala do aluno 3 pelos professores. Na
fala dos três alunos a língua aparece como que em um binômio correto versus
incorreto, língua padrão versus língua não padrão, endossando a ideologia das classes
dominantes:
O enunciador, enquanto ser social, é depositário de várias formações
discursivas que existem numa formação social concreta dividida em
classes sociais distintas, embora, em geral, ele seja suporte apenas da
formação discursiva dominante, aquela que materializa a formação
ideológica dominante (FIORIN, 1988, p. 16).
Em m) o que está em jogo é o uso adequado ou não adequado para
comunicar-se com as pessoas
que circulam nos espaços de poder que não são permitidos a outros. Para
conversar com essas pessoas - que entendem perfeitamente a variantes linguística de
seus subordinados - o aluno quer fazer uso dessa variante mais prestigiada que
confere poder ao seu chefe.
Além da questão da minorização linguística (Arnoux, 2014) da variante dos
colegas de trabalho do aluno 3, que é exercida pelo desprestígio da língua deles, ao
demonstrar que ele precisa dominar a língua do engenheiro, notamos a ocorrência de
um fenômeno que a autora acima citada aponta como lingüicismo, que são:
[...] ideologías y estructuras mediante las cuales las lenguas se
convierten en el medio para consolidar y mantener una distribución
desigual de poder y recursos. Senala en diversas situaciones las
diferencias entre centro y periferia ya que si se utiliza siempre la
lengua del centro y las lenguas de la periferia no cuentan con
suficientes recursos para desarrollarse y poder cumplir con las mismas
funciones el lingüicismo está en funcionamiento. El lingüicismo
genera entonces la minorización de las lenguas o de variedades de
esas lenguas (como el caso que nos interesa) (ARNOUX, 2014. p.294).
O aluno 3 não quer falar a língua da periferia, mas a língua do seu chefe
engenheiro. Esse movimento, no entanto, não é um desejo dele enquanto indivíduo,
mas a reprodução de uma ideologia inculcada nas massas de que a língua que eles
falam não é língua, que língua é aquela que ele não domina. Não a domina e por meio
dela é dominado, por isso, seu desejo que não é individual, mas motivado pela
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ideologia da classe dominante, que circula no imaginário coletivo das classes
populares.
Ao analisar o discurso dos estudantes, pôde se depreender que a língua está
relacionada à comunicação, ao fazer-se compreender e ser compreendido. No
entanto, para que essa compreensão seja atingida a língua deve estar ligada às normas
gramaticais, segundo eles, o comunicar-se deve ser por meio da gramática. A imagem
por eles compartilhada é a de que a língua deve ser una, fixa, rígida, estabelecida por
regras e obedecida pelos falantes. Uma língua imposta de cima para baixo, em que os
falantes não são produtores dessa língua, mas reprodutores dela.
No quadro abaixo se apresenta a forma como a Língua Portuguesa é nomeada:
Quadro 4. Quadro de escolhas lexicais
Imagens da Língua Portuguesa pelos imigrantes Imagens da Língua Portuguesa presentes nos
materiais didáticos
“comunicação também (...) como alto cultura (...) “a necessidade de domínio da língua portuguesa
com pessoas (como) advogados, esse tipo de
perpassa a preocupação, tanto dos migrantes,
pessoas.”
como também daqueles que os recebem.”
“quando pessoas fala bem, com verbo, e fala
bem correto e você ouve também (...) é isso.”
“[os imigrantes e refugiados] os quais precisam,
com rapidez, se capacitar linguisticamente,”
“às vezes tem pessoas que fala com você, ele não “pois trata o Português como Língua de
tem concordância do tempo, às vezes, você ja viu Acolhimento,”
se foi pra uma faculdade.”
“mas quando conversar com professor ou
pessoas que falam Português correto, aí eu
precebi que todas as palavras que eu aprende,
tudo é incorreto.”
“a qual se ocupa da capacitação linguística”
“tem pessoas que trabalham na obra, quando
“É muito importante não utilizar gírias do
engenheiro chega assim, (...) e fala “amanhã nóis Português na hora da entrevista.”
vai”, (...) não é correto.”
“ai quando vai conversar com outras pessoas daí “você e outras pessoas refugiadas a darem os
“amanhã nóis vai” não é correto.”
primeiros passos linguísticos para sua integração
ao nosso país”
“Aí eu vi que todas as palavras que eu aprendi na “Acreditamos que todas as pessoas podem
obra, aí se fala (...), mas não é correto.”
aprender nosso idioma”
Fonte: elaboração própria.
A partir da transcrição da fala dos imigrantes e da análise dos materiais
didáticos, a imagem de língua que se tem a partir dos excertos coletados acima é a
seguinte:
Imigrantes:
•
está relacionada à cultura da elite, não dialoga com a cultura popular;
•
é a língua dos advogados, médicos, professores e engenheiros e para
comunicar-se com eles é preciso aprender a sua língua;
•
é a língua da Universidade, lugar por excelência onde circula o
conhecimento acadêmico, logo língua = conhecimento acadêmico;
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Discurso e poder: teoria e análise
•
é um conjunto de regras gramaticais e para comunicar-se faz-se necessário
apropriar-se dessas regras e falar corretamente;
•
há uma outra “coisa” que se fala na periferia, mas essa não é “a língua”,
afinal essa “coisa” que se fala é toda errada e “a língua” é correta.
Materiais Didáticos:
•
o estrangeiro precisa “conquistar” a Língua Portuguesa;
•
o estrangeiro rapidamente precisa se apropriar dessa língua;
•
o estrangeiro precisa capacitar-se linguisticamente, pois não possui
capacidades linguísticas;
•
a língua como forma de acolhimento e recepção ao estrangeiro;
•
o estrangeiro não pode utilizar outras línguas que não a padrão quando
estiver nos espaços das classes dominantes;
•
aprendizagem de língua estrangeira como um processo gradual de
autonomia;
•
capacidade em todas as pessoas de aprender a Língua Portuguesa.
A partir do Quadro de escolhas lexicais observa-se uma série de imagens da
Língua Portuguesa, algumas se complementam, outras divergem absolutamente.
Pode-se depreender, portanto, que as imagens da Língua Portuguesa que circulam
nos itens analisados estão relacionadas a: 1) um instrumento de comunicação
intimamente associado 2) ao conhecimento acadêmico e 3) às normas gramaticais
impostas pela língua padrão. Essa variante, se bem apropriada, 4) pode servir como
forma de ascensão social e 5) como uma instância de poder cujas 6) pessoas que a
dominam gozam de um status privilegiado e de 7) empregos melhores remunerados.
É a 8) língua de deve ser dominada pelo estrangeiro que vive no Brasil, mas 9) não é a
língua falada nas ruas. 10) Pode ser um instrumento de acolhida aos que aqui chegam,
possibilitando que 11) sua aprendizagem seja um processo gradual de autonomia,
afinal 12) todas as pessoas são capazes de aprender a Língua Portuguesa, como
também 13)por não possuir capacidades linguísticas, 14) o estrangeiro deve aprender
a língua - capacitar-se - rapidamente, para que 15) seja inserido no mercado de
trabalho.
Considerações Finais
Diante o exposto, a análise realizada neste trabalho aponta uma série de
imagens acerca da Língua Portuguesa, todas elas motivadas pela imagem que o
Locutor faz do seu ouvinte. A análise dos materiais também aponta para imagens da
língua motivadas pelo receptor - alunos de Língua Portuguesa imigrantes que vivem
no Brasil. Embora haja diversas imagens e algumas delas convirjam em ambos os
materiais, as images do Português que mais saltam em cada livro são divergentes entre
si.
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No Portas Abertas: Português para Imigrantes a imagem da língua que se
destaca é a do Português como “capacitação linguística”, que atrelada à capacitação
profissional remete à ideia de inserção no mercado de trabalho por meio da rápida
aprendizagem da língua para esta finalidade. Essa imagem é reforçada pela
recorrência da expressão citada e pela orientação ao não uso de gírias numa entrevista
de empregos, mostrando que a língua da capacitação linguística é a língua padrão.
Essa imagem fomenta o discurso da classe dominante de que esses falantes
estrangeiros não são os produtores de uma língua, mas reproduzem uma língua
imposta e distanciada, perpetuando as desigualdades por meio reprodução de
discursos alienantes.
No Pode Entrar: Português do Brasil para refugiadas e refugiados a imagem
sobressalente é a da Língua Portuguesa como instrumento de emancipação,
compreensível a qualquer pessoa que tenha o interesse em aprendê-la. Essa imagem
de língua incita à autonomia e à liberdade comunicativa e demonstra que a aquisição
do Português pode ser uma forma de integração cultural e social.
Na análise da fala dos alunos da Bibli-ASPA, a imagem transmitida pelas
professoras certamente influenciou e sustentou os discursos deles, principalmente
quando se referem à língua como norma e a essa língua como sendo pertencente aos
professores e diferente da língua da rua, ou da dos colegas de trabalho na construção
civil.
Essa língua mostrada por eles se apresenta como uma língua correta, ou seja,
sem erros; onde não há espaço para as variações, logo, apresentando-se como uma
língua homogênea e una. Embora um dos alunos tenha diferenciado língua oral de
língua escrita, não houve maiores detalhamentos acerca de suas concepções se a
língua “correta” falada é a mesma que se escreve.
Essa imagem do Português como língua padrão que deve ser controlada por
normas e regras tem como impacto social a não conscientização de que são os falantes
os produtores da língua. Como manifestação humana de uma determinada
comunidade, não há uma Língua Portuguesa homogênea e única, mas várias Línguas
Portuguesas que carregam complexas identidades culturais, sociais, econômicas,
históricas e geográficas porque ela é viva e dinâmica.
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Como citar
ALMEIDA, Selma Regina Olla Paes de. Na sala de aula, de Portas Abertas, pode
entrar: uma análise discursiva de imagens de língua em materiais de ensino para
refugiados e no discurso de alunos imigrantes. In: GONÇALVES-SEGUNDO, Paulo
Roberto; ARAES, Célia Regina; CASTANHEIRA, Claudia; ISOLA-LANZONI, Gabriel;
PENITENTE, Natalia; WEISS, Winola (orgs). Discurso e poder: teoria e análise. São
Paulo: FFLCH/USP, 2020, p. 292-307. DOI: 10.11606/9786587621241
ALMEIDA, Selma Regina Olla Paes de | 2020 | p. 292-307
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Discurso, poder e educação: imagens da língua, de seus falantes e ...
Discurso, poder e educação: imagens
da língua, de seus falantes e de seus
professores
Valdir Heitor BARZOTTO
Universidade de São Paulo
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Resumo: No presente texto, são analisados alguns comentários
feitos em diferentes textos a respeito de línguas ou variedades
linguísticas e de seu ensino, de seus falantes e dos professores.
Objetiva-se compreender a que direções os enunciados
buscam encaminhar os leitores. O trabalho consiste, portanto,
em analisar textos produzidos em uma das instituições que têm
poder para argumentar sobre a língua e seu ensino, a
Universidade. A hipótese que perseguimos é a de que os
comentários a respeito da língua, de seus falantes e de seu
ensino permitem depreender imagens desses três pólos que
ora realçam lugares de poder, ora tendem a diminuir poderes
que poderiam ser alcançados por meio do uso da língua própria
da comunidade como a produção de peças culturais.
Concluímos indicando a percepção de que esse movimento de
construção de imagens negativas está ligado à pouca
consideração que se tem da produção das comunidades mais
pobres e sugerimos algumas formas alternativas de formação
de professores.
Palavras-chave: Texto Acadêmico; Formação de Professores;
Ensino de Línguas; Escrita; Multiculturalismo.
Introdução
Para abordar a temática de que trata esse texto, começaremos por recuperar
um trabalho apresentado no II Encontro de Pós-graduandos em Estudos Discursivos
(EPED), em 2010, no qual reafirmávamos a “proposta de que as instâncias formadoras
voltem-se para seu interior a fim de refletir sobre os materiais a que os futuros
professores estão sendo expostos durante sua formação e as orientações de sentidos
neles presentes.” (BARZOTTO, 2010, p. 27). Nossa preocupação é que instâncias como
a Universidade e o Estado, que têm poder de construir argumentação sobre os pólos
linguísticos língua, ensino e professor, construam ou referendem imagens negativas,
legitimando-as tanto junto ao próprio professor em formação quanto junto à
comunidade.
Em seguida acrescentaremos outros trabalhos que temos desenvolvido em
equipe, bem como as formas alternativas que propomos para melhorar a reflexão a
respeito do modo como formamos professores de língua portuguesa. Analisaremos,
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ainda, outros exemplos que incidem sobre o reconhecimento, ou não, da língua e
cultura das comunidades onde as escolas estão inseridas.
Dessa forma, aproveitamos a oportunidade aberta pelo convite para
apresentação no XI EPED, em 2019, para aprofundar o exercício de análise de textos
acadêmicos sobre a formação do professor que vimos fazendo, procurando
demonstrar os percursos que estamos percorrendo após a apresentação no II EPED.
Justificamos nossa retomada do tema porque a realização da XI edição do
EPED, em 2019, ocorre em meio a um período no qual os discursos que atribuem
características negativas aos professores e ao aprendizado de seus alunos tornaramse muito fortes. Percebemos, então, a atualidade e a urgência de se refletir a respeito
das imagens do professor, da língua e de seu ensino que construímos e consolidamos
ao longo dos anos no interior mesmo de seu processo de formação.
1 Afirmações recorrentes a respeito do professor e seu trabalho
Recuperamos aqui dois exemplos analisados na apresentação e no texto do
EPED de 2010 a fim de mostrar que a construção dessas imagens negativas não surgiu
agora, quando crescem as críticas sobre a escola em geral. Ao contrário, tal construção
apoia-se numa longa tradição sustentada no percurso institucional da formação de
professores.
Sabemos que se pode argumentar que os julgamentos negativos a propósito
da prática do professor e do conteúdo que ensina têm sido retirados do contexto e
usados de forma diferente do propósito com que eles eram feitos nos textos originais
nos quais foram vinculados. Mesmo assim, acreditamos que vale chamar a atenção
para essa prática de apresentar o trabalho do professor sempre como deficitário. Até
mesmo pelo fato de que é possível retirar uma afirmação de seu contexto, é necessário
prestar atenção a respeito do que é dito.
O primeiro exemplo a que recorremos para ilustrar o que se diz a respeito do
professor é uma montagem a partir de diferentes afirmações encontradas ao longo de
textos acadêmicos publicados sobre ensino de língua portuguesa no Brasil antes de
2010. Consideramos o exemplo (1) como modelo, característico de inúmeras
publicações sobre o assunto.
(1) o professor tem dificuldade/não sabe/não está preparado; o professor deve/tem
que
Naquele momento nos interessava, entre outros aspectos, explorar a
produtividade dos estudos das modalidades linguísticas nas análises de textos dessa
natureza e orientar professores em formação para prestar atenção em tais elementos
a fim de conhecer a direção argumentativa que se construía nos textos que lhes eram
dados a ler. Destacamos do exemplo (1) o uso do verbo dever, característico de textos
acadêmicos que, além de alegar dificuldades por parte do professor na condução de
seu trabalho, ordena e prescreve o que fazer. Vejamos o que se constata na literatura
que versa a respeito das modalidades linguísticas:
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Discurso, poder e educação: imagens da língua, de seus falantes e ...
A expressão da modalidade axiológica (Pottier, 1987; Carreira, 1994)
tem dificuldade, usada em geral para referir-se à relação do professor
com o conhecimento, vem combinada na maioria das vezes com a
modalidade deôntica (Pottier, 1987), propondo uma obediência ativa
(Greimas, 1976), por meio do verbo modal dever complementado
por fazer. (BARZOTTO, 2010, p. 31)
No mesmo texto, apresentamos outro exemplo, também extraído de um texto
acadêmico publicado em francês e indicado pelo autor como parte de uma tese que
ainda estava em desenvolvimento, baseada em pesquisa feita sobre a prática do
professor na França.
(2) O exercício proposto filia-se a uma antiga tradição escolar
O exemplo nos interessava por representar também uma constante em textos
dessa natureza, que consiste em fazer contraposições entre um presente ideal, no qual
o professor não estaria, segundo o julgamento do pesquisador, e um passado, uma
tradição, geralmente visto como negativo. Naquele momento
Chamamos a atenção sobre o sintagma antiga tradição escolar em sua
relação com a seguinte definição de modalidade: “traço de uma
avaliação subjetiva (atitude do sujeito falante ou escrevente), mas
também de uma avaliação intersubjetiva do mundo (partilhada por
uma comunidade linguística). (GALATANU, 2005, p. 157).
Bastante partilhadas pelas comunidades argumentadoras sobre o
ensino, as três palavras juntas contribuem para a constituição de
sentidos como ultrapassado e de menor prestígio. (BARZOTTO,
2010, p 32)
Continuando a reflexão a respeito do poder conferido pela escrita e dos
discursos que participam na constituição da ideia de poder para determinados
sujeitos, em Barzotto, 2011, fizemos três observações a respeito da escrita do professor
e do exercício do poder por meio da escrita de textos nos quais ele mesmo poderia
constituir seu lugar de poder.
a) É pressuposto que a escrita pode dar poder a quem a pratica.
b) O professor, por estar em uma instituição propícia à escrita, pode ser visto
como alguém que não sofre as consequências do seu grau de domínio da escrita.
c) Em que pese o professor ter acesso a diferentes tipos de escrita, principal e
obrigatoriamente àqueles que dão os contornos de sua profissão, não significa que
ele esteja em condições de igualdade quanto ao exercício do poder que eles
propiciam, já que ele nem sempre tem o poder de produzir essas escritas.
Essas três observações, ligavam-se à observação que vínhamos fazendo a
respeito de afirmações genéricas encontradas em textos acadêmicos que defendem
o uso didático, de onde extraímos outro exemplo representativo do tipo de
argumentação que contribui para a imagem negativa da língua e dos falantes, sejam
professores ou alunos.
(3) Em alguns lugares o professor só tem o livro didático
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Discurso e poder: teoria e análise
Do nosso ponto de vista, afirmações como esta estão ligadas às anteriores.
Enquanto aquelas constituem uma imagem de professor como não detentor de
conhecimentos vários, como deslocado daquele tempo considerado ideal pelo
pesquisador, nesta parece que se nega a condição mesma do professor como falante.
Ora, a condição primeira para ensinar a língua é ser falante dela. E aqui estamos
falando de um falante que é formado em Letras, ou Pedagogia. E mesmo que
pensemos em professores que não têm curso superior, há que se considerar que
algum curso preparatório ele fez. Como aceitar, então, que o único material que ele
tem é o livro didático? Como aceitar que um professor não tenha, e não possa
trabalhar com seus alunos, recursos próprios da língua que fala como relatar, recitar,
cantar, etc., sem apoio de um livro?
Repetir de dentro da universidade esse discurso, de que o professor
é mal formado e não tem outro material ou não tem competência para
buscar ou elaborar material para a sua aula, possibilita, em primeiro
lugar, a inculcação desta incompetência, que abre caminho para a
implementação de políticas paliativas para a superação deste quadro,
entre elas a do livro didático em nível nacional e a de formação
continuada que não prioriza a elaboração própria de atividades ou o
desenvolvimento da autonomia. (BARZOTTO, 2008, p. 167-168)
Posicionamentos como esses, a que já tínhamos acesso por meio de textos
acadêmicos publicados antes de 2008, são possíveis porque as instâncias formadoras
do professor não têm transferido para ele o poder de escrever a respeito de suas
práticas, entre outros temas sobre os quais se pode escrever. Afinal, quem exerce o
poder de escrever em lugar do professor são os profissionais que estão na
universidade ou que ocupam postos chaves nas secretarias de educação, nas editoras,
na mídia, em ONGs, etc. Ou seja, o professor é falado.
Ferreira (2012) analisa os sentidos que prevalecem sobre o professor quando
ele é noticiado em jornais e compara com os sentidos constituídos sobre o professor
em textos acadêmicos em busca de traços comuns. Nas análises a autora observa
coincidências entre a argumentação do jornalista e do especialista consultado. Do
nosso ponto de vista, essa argumentação sobre o professor, pode se tornar circular,
tanto o jornalista se apoia nas posições do especialista, quanto especialistas podem
retroalimentar suas convicções na mídia. O que prevalece é a ausência de
posicionamentos por parte do professor, seja sobre sua própria condição, de
especialista inclusive, seja a respeito dos conteúdos que ensina.
Batista (2016a e 2016b) também verifica a predominância de posicionamentos
de especialistas, em detrimento de professores, como se eles também não fossem
especialistas, em matérias de jornal, nas quais são muito frequentes usos de itens
lexicais e expressões que propiciam a construção de imagens negativas desses
profissionais.
Cada vez mais essas pesquisas têm se dedicado ao levantamento e análise da
construção de imagens negativas dos professores, da língua e do seu ensino. O ciclo
do qual esses três pólos fazem parte é mais ou menos o que segue: segundo as
posições sustentadas nesses julgamentos negativos, a língua dos alunos não é
considerada boa, ele tem de aprender outra para “ser alguém”, “tornar-se cidadão”,
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“ampliar sua participação em outras esferas sociais”, “ser inserido na sociedade”.
Portanto, por não falar a língua considerada adequada, ele também não o seria. Os
professores, além de geralmente pertencerem ao mesmo grupo social do aluno e
serem originariamente falantes da mesma língua ou variedade, não conseguiriam êxito
em ensinar bem essa língua tida como adequada, ou quase mítica.
Diante disso, outra hipótese que podemos formular é a de que a repetição
dessas afirmações negativas em textos acadêmicos - a língua é inadequada, o
professor é despreparado e o ensino que pratica é ineficiente - mais do que confirmar
este ciclo, acabam por trazê-lo como uma proposição a ser aceita.
2 Propostas alternativas para romper com o ciclo negativista
Para fazer frente às imagens negativas em circulação e não aceitar a proposição
de que a situação é essa mesma sem possibilidade de alteração, fomos criando
alternativas de trabalho na formação. Tais propostas visam a construir um trabalho em
que o poder da escrita e de constituição de um discurso sobre o professor seja
apropriado por ele mesmo.
Primeiramente, em 1990, quando começamos nossa carreira como professores
universitários, criamos estratégias e espaços para que o futuro professor se
apropriasse do direito de escrever por meio da inserção da pesquisa em sua formação.
A proposta consiste em introduzir a pesquisa em todas as disciplinas. Desde o primeiro
dia de aula o aluno começa a desenvolver uma pesquisa relacionada à disciplina, e a
desenvolve ao longo do semestre. No mesmo ano, criamos, por exemplo, o Fórum
Acadêmico de Letras – FALE, que, desde então realiza-se todos os anos sem
interrupção.
Essa perspectiva de trabalho configurou-se como um espaço de formação, que
tinham no Fórum seu locus privilegiado para apresentação dos resultados de pesquisa
dos alunos e de debate e aprofundamento da reflexão sobre o desenvolvimento de
pesquisas por alunos de graduação. A reflexão é feita em mesas de experiências
fundamentadas a respeito da condução das disciplinas com pesquisa e de debates
sobre as políticas para a pesquisa na graduação.
Professores de diferentes instituições foram levando seus alunos de Letras,
futuros professores, a desenvolver suas próprias pesquisas, a escrever e dar
publicidade a seus resultados, no FALE, por exemplo, ou em publicações escritas. 1
Um dos fundamentos básicos da proposta era que os futuros profissionais de
Letras se apropriassem do poder de fazer um discurso próprio a respeito de seu objeto
de estudos, de sua prática, de sua identidade. Com isso tenta-se colocar em prática o
postulado de Foucault (1970, p. 10): “O discurso não é simplesmente aquilo que
traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o
poder do qual nos queremos apoderar.” Ou seja, buscávamos formar um profissional
Para melhor compreender essa proposta recomendamos a leitura de Fabiano (2007) e de Eufrásio
(2007).
1
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que se apropriasse do poder de falar de si e de diferentes facetas de seu trabalho, não
só de sua prática.
Mais tarde, quando passa a se tornar cada ver mais forte a exigência de
publicação nos cursos de pós-graduação, criamos, em 1999, o Seminário de Leitura e
Produção no Ensino Superior-SLEPES. Derivado do FALE, este Seminário destinou-se
a reunir pesquisadores de outras áreas em torno da seguinte pergunta: o que a
universidade tem oferecido à comunidade e chamado de conhecimento?
O objetivo central do evento é continuar defendendo o compromisso da
Universidade em produzir conhecimento, mas analisar o que se produz e incidir num
debate interno contra a banalização da escrita para que não haja um desgaste da
universidade junto à comunidade.2
Na mesma linha dos eventos anteriores, depois que entramos na Faculdade de
Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP), em 2001, ajudamos a criar o
Seminário de Metodologia do Ensino de Português-SMELP, destinado à apresentação
dos trabalhos escritos pelos alunos a partir de suas práticas de estágio nas escolas.
Além do aprendizado prático, necessário para o professor em formação, damos ao
estágio um caráter de pesquisa na escola. O aluno coleta dados por meio de diário de
campo, com base nos procedimentos da pesquisa etnográfica, por exemplo, ou outros
materiais e faz uma análise do contexto em que se ensina língua materna.
Com essa orientação para o estágio, buscamos evitar que o aluno faça apenas
uma verificação se a professora está seguindo orientações oficiais ou perspectivas
teóricas hegemônicas. O estudante de licenciatura é convocado a exercer o direito de
análise e de escrita dessa análise da situação que presencia numa sala de aula de
língua portuguesa. Desse modo, vai tomando para si o poder de argumentar a
respeito do ensino, e espera-se que o faça, quando estiver na vida profissional,
também a respeito da sua produção diária em sala de aula. Entendemos ser muito
importante que o professor assuma o poder de escrever e possa construir
contrapontos aos discursos feitos sobre ele de fora do seu ambiente.
Os eventos citados acima, entre outros, são vivenciados como momentos de
reunião de grupos de trabalho em torno do posicionamento de que a escrita precisa
ser apropriada pelos atores da sala de aula, de modo a que não só as instâncias que
se posicionam como reguladoras do trabalho do professor tenham o privilégio da
escrita.
Paralelamente, foram desenvolvidos projetos de pesquisa pelos profissionais
envolvidos nesse processo de práticas com pesquisa, de organização desses eventos.
Os projetos dedicam-se às práticas de escrita na universidade e a formação de
professores que têm a pesquisa como um eixo importante. Desses projetos derivam
reuniões e debates em eventos e publicações, sempre buscando um espaço de
reflexão independente de perspectivas oficializadas.3
Exemplos de publicações relacionadas ao SLEPS são: Barzotto; Riolfi; Almeida (2011) e Almeida (2011).
Para conhecer um desses resultados, leia-se, por exemplo, Barzotto; Pietri (2018) e Barzotto; Barbosa;
Sugiyama Junior; Eufrasio; Fabiano (2014).
2
3
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3 Imagens e identidades em países multiculturais
Como desdobramentos das reflexões feitas nos movimentos de pesquisa e
trabalhos em cooperação apresentados até aqui, agregamos constatações referentes
ao multiculturalismo e sua negação.
No nosso entendimento, para trabalhar com estudantes oriundos de diferentes
regiões de um mesmo país, ou de diferentes países, respeitando sua cultura e
proporcionando aprendizado, precisamos de formação e de estrutura no trabalho,
que desenvolva disposição e ofereça condições para que o próprio professor assuma
o poder de pesquisar e escrever sobre sua sala de aula, a cultura de seu aluno e a sua
própria cultura, com o intuito de entender e planejar o ensino da língua.4 Tais
pesquisas podem ser feitas em parceria com a universidade, mas desde que isso não
signifique que o professor vai coletar os dados e a universidade vai escrever a respeito
deles moldando-os, ajustando-os para a confirmação de uma teoria ou de uma
perspectiva de trabalho adotada oficialmente.
Às nossas preocupações sobre as afirmações de que “o professor não sabe”,
de que “em alguns lugares o professor só têm o livro didático”, acrescentamos hoje
uma associação desse não saber e desses supostos lugares com a pobreza e os
matizes étnicos a eles relacionados. Embora não sejam nomeados, e não seja
fornecido um endereço que permita a outros pesquisadores averiguar, é possível
inferir que os lugares sobre os quais se declara em textos acadêmicos que os
professores não contam com outro material que não o livro didático sejam aqueles
onde impere a pobreza. É possível pressupor também que sejam regiões onde
geralmente concentram-se as populações pardas e negras.
Quando relacionamos carência material a etnia, fica mais intrigante analisar a
suposição de que os professores dessas regiões contam apenas com o livro didático
e não se faça qualquer menção sobre sua condição de falante e de poder contar com
a língua, com a tradição oral, e com sua capacidade de explorá-la analiticamente em
sala de aula. Esses textos acadêmicos não atribuem ao professor capacidade de
mostrar sozinho que uma receita culinária divide-se em ingredientes e modo de
preparo, de ensinar a fazer um bilhete simples, de mostrar que as cantigas têm rimas,
etc. Toma-se como fato que só é possível ensinar estes elementos, entre outros tão
corriqueiros quanto, sob a regência do livro didático.
O que ocorre, então, é a negação de que sejam línguas e culturas válidas o que
se pratica nesses abstratos lugares. Quando se reconhece a cultura local, ou ela é
colocada no lugar do exótico, do periférico, do curioso, ou ela é vista como restrita,
causadora de problemas na aprendizagem da língua e da cultura consideradas
legítimas.
À semelhança desses posicionamentos, bem conhecidos na produção
brasileira, citamos um exemplo extraído de uma pesquisa sobre o ensino de língua
portuguesa em Angola.
Recomendados a leitura da Carta Primeiro dia de aula, do livro Professora sim, tia não, de Paulo Freire,
independentemente da editora.
4
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Vemos na dissertação de mestrado de Viti (2012), uma manifestação linguística
própria de Angola sendo considerada, desde o título, um problema para o
aprendizado da Língua Portuguesa: “Interferência Linguística do Umbundu no
Português e Respectiva Aprendizagem”.
O exemplo nos interessa por mostrar que, quando o pesquisador não
consegue deixar de reconhecer uma língua local, uma cultura própria de determinada
comunidade, é possível que ele aceite sua existência, mas a tome como um problema
e não como um acréscimo. Note-se que no título, e depois ao longo do trabalho,
considera-se que a língua umbundu interfere na língua portuguesa e em seu
aprendizado. A palavra ´interferir´ adquire significado muito próximo de ´causar
problema´, uma vez que apresentam-se produções de alunos angolanos consideradas
deficitárias como consequência da sua condição de falantes de umbundo.
Ainda que se possa ler na dissertação a ressalva de que também o português
interfere no umbundo, não deixa de ser interessante observar o ambiente textual em
que ela aparece.
Paralelamente a esta questão, é importante frisar que, no contacto do
português com as LNs, a interferência linguística não foi apenas do
Umbundu no Português, mas também do Português no Umbundu e
noutras LNs. Como refere Weinrich (1975/1976:84, citado em José
(2005:77)) “a língua em posição inferior está destinada a sofrer a
interferência da outra, hibridar-se e finalmente desaparecer.” Em
Angola, ocorreu também uma grande influência do Português no
Umbundu. Embora não faça parte da nossa investigação
consideramos necessário fazer tal referência. (VITI, 2012, p. 43)5
Chama a atenção o modo como essa ressalva com relação à influência do
português no umbundo é introduzida no texto. Primeiro, reconhece-se que houve
interferência, em seguida, apoia-se em outro autor que afirma que “a língua em
posição inferior (...) destinada a desaparecer”, e conclui-se reafirmando que essa
interferência não faz parte da investigação que resultou na dissertação de VITI
(ibidem). Apresentado desse modo, pode-se encaminhar o leitor ao entendimento de
que o umbundo é uma língua que tende a extinguir-se quase que como uma
decorrência natural de haver dominação. Essa afirmação, embora possa servir de
alerta para a gravidade do desaparecimento de uma língua, pode não surtir
necessariamente efeito pelo fato de ficar, nessa pesquisa, em segundo plano.
O leitor poderia ser convocado a uma direção diferente caso a língua local não
fosse considerada prejudicial ao aprendizado da língua portuguesa. No entanto, a
autora continua alegando que o umbundo causa problemas:
as produções escritas realizadas pelos alunos revelam alguns
problemas, isto é, insuficiências em termos linguísticos, o que vai
enfraquecendo o seu discurso, aspecto que, posteriormente, em
situações diferentes se torna evidente na expressão oral. As
dificuldades indicadas no que concerne à competência
Na bibliografia VITI indica José, T.M.C. (2005). Os empréstimos lexicais das línguas nacionais no
português falado em Angola. Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. (Dissertação de
Mestrado). Não localizamos a dissertação on line e, portanto, não pudemos verificar a referência de
Weinrich.
5
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metalinguística, factor de insucesso nas produções escritas, prendemse com o exposto, anteriormente, no ponto dois em relação a
algumas construções frásicas feitas por interferência do Umbundu.
(VITI, 2012, p. 46)
Na sequência a autora, apoiando-se em citação, insiste em reclamar que os
alunos têm dificuldades com o Português Europeu Standard (PES), devido ao uso na
escrita do Português Popular Angolano (PPA).
As limitações dos alunos têm por causa, essencialmente, a dificuldade
de compreensão do PES, na medida em que, de uma maneira geral,
os alunos se expressam em PPA. Logo, a sua capacidade de
compreensão da Língua Portuguesa é inferior à sua capacidade de
expressão, diz Barros (2002:40). Constata-se que os alunos, desde o
Ensino Primário até à Universidade, apresentam dificuldades na
aprendizagem do Português Europeu Standard (PES), por
interferência das línguas de origem bantu.6 (VITI, 2012, p. 46)
Com essa postura, a autora confirma o que estamos dizendo ao longo deste
texto: quando o local é reconhecido, em casos como esse, frequentemente o é na
condição de problema ou de causador de problema. Aos pesquisadores caberia, do
ponto de vista que estamos defendendo, reconhecer a existência da língua local e
associar-se aos professores na pesquisa e compreensão dessa realidade linguística
para depois pensar no que ensinar, sem a pretensão de eliminá-la. Uma das saídas
poderia ser o de aceitar e reconhecer como é o português angolano específico da
região onde se fala umbundo e ensiná-lo.
Reunindo essa postura com o modo como a cultura local é inserida em textos
a respeito da realidade brasileira, temos que no Brasil já é possível simplesmente
desconsiderar os falares locais – “a professora só tem o livro didático” – enquanto em
Angola, onde ainda se escuta cotidianamente as outras línguas em diferentes
contextos, reconhece-se a existência, apontam-se os problemas causados para a
língua dominante, atesta-se a possibilidade de vir a desaparecer (denúncia ou desejo?)
e reafirma-se que este não é o interesse no momento.
Considerações finais
O discurso sustentado nos textos acadêmicos que vimos estudando, propicia a
construção de imagens da língua, dos falantes e do seu ensino: língua materna ruim,
inadequada para escrever e que atrapalha a leitura.
Sobressai nesse movimento a permanência de enunciados, com os quais nos
acostumamos ao longo de nossa história, referentes à alegada dificuldade de latinos
e africanos conseguirem êxito na escolarização. É como se nossa condição de latinos
ou africanos, na maioria pardos e pretos, nos fizesse ruins para o aprendizado.
As instâncias que têm direito de escrever a respeito do trabalho do professor
reafirmam nossas dificuldades com uma determinada língua e nossa dificuldade professores que somos - em levar ao aprendizado. Com esta força, retornam para a
6
A referência indicada na bibliografia é Barros (2002).
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formação dos professores enunciados com direção única, a de que só nos resta
trabalhar para efetivar o ensino dessa língua que não aprendemos e não sabemos
ensinar e não para reconhecer com que línguas estamos lidando para trabalhar e
produzir cultura em sala de aula com ela.
Uma vez que tentativas de nos induzir nessa direção persistem, persistimos
também reiterando a proposta que fizemos anos atrás, mencionada no início desse
texto. Queremos que as instâncias formadoras de professores assumam a
problematização e a produção de alternativas de trabalho com os materiais
disponíveis e convencionais na formação de professores. Para nós, é muito importante
perceber as soluções sobre as orientações de sentidos presentes nos textos usados na
formação.
Como sugestões para o encaminhamento de uma formação de professores
que possa fazer frente aos problemas aqui colocados, propomos que textos
produzidos na universidade sejam usados não só como embasamento, mas também
como dados para serem analisados no sentido de se verificar que construções estão
sendo feitas em sua argumentação. Ou seja, o futuro professor toma estes textos, não
só para aprender com o seu conteúdo, mas para verificar com que estratégias seus
autores tentam persuadi-lo de que deve mudar sua prática na direção apontada no
texto.
Nesse sentido, as teorias do texto e do discurso são muito úteis nos momentos
de leitura do texto acadêmico na universidade, a fim de que o aluno não seja apenas
submetido a ele, mas faça uma leitura mais ativa, mais analítica.
Também reiteramos a importância de se inserir a pesquisa em todas as
disciplinas de graduação, conforme apontamos acima, para efetivar esse modo
analítico de lidar com os textos acadêmicos, localizando sua lacunas, identificando
seus propósitos e buscando fazer outras proposições.
O desenvolvimento de pesquisas em conjunto entre os professores
universitários e os da escola básica, com direito à escrita e publicação por parte destes,
também pode ser um caminho. Nestas pesquisas procurar compreender a cultura do
aluno e verificar com que abordagens se pode desenvolver o ensino para não negarlhes a cultura e não procurar apenas substituí-la por outra considerada melhor.
O melhor a fazer é aceitar sua cultura, reconhecer a cultura híbrida que vamos
construindo com os novos contatos e lembrar sempre nossa condição de migrantes,
inclusive no campo acadêmico.
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Como citar
BARZOTTO, Valdir Heitor. Discurso, poder e educação: imagens da língua, de seus
falantes e de seus professores. In: GONÇALVES-SEGUNDO, Paulo Roberto; ARAES,
Célia Regina; CASTANHEIRA, Claudia; ISOLA-LANZONI, Gabriel; PENITENTE,
Natalia; WEISS, Winola (orgs). Discurso e poder: teoria e análise. São Paulo:
FFLCH/USP, 2020, p. 308-319. DOI: 10.11606/9786587621241
BARZOTTO, Valdir Heitor | 2020 | p. 308-319
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Todas, todos, todxs: a conceptualização a partir do gênero gramatical ...
Todas, todos, todxs: a
conceptualização a partir do gênero
gramatical em português brasileiro
Vivian de Ulhôa Cintra BERNARDO
Universidade de São Paulo
[email protected]
Resumo: Este artigo visa a uma proposta da Linguística
Cognitiva para descrever e analisar a construção de referentes
em textos a partir do gênero gramatical em Português Brasileiro
(PB). O gênero em PB pode ser compreendido mediante os
termos “marcado” e “não marcado” (cf. Câmara Jr 1966, 1972,
1975), ou, respectivamente, as categorias “feminino” e
“masculino”. Ademais, em PB, o masculino e as noções de
“neutro” e “genérico” — gêneros que pretendem expressar,
respectivamente, grupos de seres inanimados e grupos com
seres de diferentes sexos — frequentemente apresentam a
mesma expressão morfológica. Essa coincidência é afetada por
uma possível associação de gêneros gramaticais a sexo,
conforme indica nosso levantamento bibliográfico (BOJARSKA,
2012; GYGAX et al, 2012; BRAUN et al, 2005). Supusemos,
então, que o sufixo –o tende a ser lido como expressão de
masculino e o sufixo –a, de feminino, levando algumas pessoas
a subverterem as normas para expressarem-se linguisticamente
por meio de outras marcas de gênero — como as linguagens não
binárias. Para compreender usos como esses, consideramos
relevantes certos fenômenos comumente estudados pela
Linguística Cognitiva, sobretudo o da conceptualização
metonímica e o da metáfora deliberada, investigadas mediante
análise qualitativa de um corpus compilado durante o mestrado.
Palavras-chave: Gênero gramatical; Referenciação; Metonímia;
Linguagem não-binária; Linguística Cognitiva.
Introdução
Em uma interface entre gramática e texto, este artigo visa a apresentar uma
discussão sobre como referentes são construídos, em Português Brasileiro (doravante
PB), a partir das escolhas por marcar os gêneros das palavras no feminino, no
masculino ou por meio da anulação da vogal que marca gênero, no caso das
linguagens não-binárias. No primeiro e no segundo casos, considera-se a
possibilidade de haver uma conceptualização metonímica envolvida no processo; no
último, trabalhamos com a hipótese de uma metáfora mista deliberada (cf. Steen,
2016; 2017). Sendo assim, neste artigo são expostas, primeiramente, algumas
informações sobre o funcionamento do gênero gramatical no português; em seguida,
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Discurso e poder: teoria e análise
é apresentada a fundamentação teórica sobre metonímia e metáfora, explicitando
quais questões são suscitadas a partir da relação entre elas e o gênero em PB; e, por
fim, destacam-se algumas possíveis explicações para as questões salientadas ao longo
do artigo. Este é originado de uma pesquisa de mestrado na qual foi compilado um
corpus parcialmente utilizado aqui e cuja análise foi feita qualitativamente. Essa
compilação foi feita a partir das seguintes categorias de concordância,
independentemente de plural ou singular: linguagens não binárias em que se
empregam i) sufixo –e, ii) sufixo –@, e iii) sufixo –x; feminino genérico; masculino
genérico; dupla concordância com feminino primeiro; dupla concordância com
masculino primeiro. A busca pelos dados foi feita em redes sociais, textos acadêmicocientíficos e textos de cunho publicitário.
1 A categoria de gênero em PB
A categoria de gênero das línguas diferencia classes de palavras a partir de
possíveis contrastes entre “masculino”, “feminino” e “neutro”, entre “animado” e
“inanimado”, entre “contável” e “incontável”, etc., podendo coincidir, parcialmente,
com uma distinção semântica. Em português, por exemplo, a distinção de sexos, em
geral, coincide com a respectiva distinção de gêneros gramaticais; assim, a classe de
palavras designando machos é gramaticalmente masculina e a classe de palavras
designando fêmeas é gramaticalmente feminina — e.g., ‘o gato’ e ‘a gata’. Entretanto,
a correspondência de um gênero a uma palavra pode ser arbitrária em outros casos,
como se vê, por exemplo, em ‘o prato’ e ‘a felicidade’, situação em que não há
motivação semântica para a atribuição dos gêneros. Isso significa que a língua
portuguesa emprega gênero gramatical para todos os nomes, inclusive para aqueles
que designam conceitos abstratos ou objetos, os quais recebem, invariavelmente, um
gênero, que só pode ser feminino ou masculino. Ademais, o gênero como atributo
inerente ao nome pode manifestar-se em itens gramaticais relacionados a esse nome,
como artigos e adjetivos:
(1) gênero feminino
A
mulher
alta
DET-FEM
SUB-FEM
ADJ-FEM
(2) gênero masculino
O
homem
alto
DET-MASC
SUB-MASC
ADJ-MASC
Dessa forma, embora não haja correspondência direta entre gênero e sexo
para todos os nomes da língua, o gênero gramatical empregado nos termos que
designam seres humanos costuma estar correlacionado ao sexo do ser em questão
(como revelam os exemplos (1) e (2)).
Por outro lado, tradicionalmente, fala-se em “flexão de gênero” quando se trata
do mecanismo de concordância de gênero em PB, o que implica a ideia, presente,
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Todas, todos, todxs: a conceptualização a partir do gênero gramatical ...
muitas vezes, na norma padrão (CUNHA & CINTRA, 2008; BECHARA, 2009), de que a
categoria de gênero é parte da estrutura da língua e é determinada pelo mecanismo
formal de seleção de artigo que acompanha os nomes — de acordo com Bechara
(2009), “são masculinos os nomes a que se pode antepor o artigo ‘o’, são femininos os
nomes a que se pode antepor o artigo ‘a’” (BECHARA, 2009, p. 131). Essa visão remete
a Mattoso Câmara Jr. ([1972] 2004, p. 152) e ao seu “princípio fundamental da
morfologia do gênero”, segundo o qual todo nome da língua portuguesa pode ser
determinado por um artigo; por extensão, o gênero desse nome se revela, justamente,
na flexão do artigo que o antecede.
O raciocínio mattosiano foi formulado, inicialmente, em artigo publicado na
década de 1960, na revista Estudos Lingüísticos, no qual o autor defende que a flexão
de gênero gramatical em português seria definida pela desinência –a (para o feminino)
e pelo morfema zero (Ø) para o masculino (CÂMARA JR, 1966, p. 3). Nesse sentido, os
sufixos –o e –a de palavras como ‘menino’ ou ‘aluna’, por exemplo, não seriam uma
marca de gênero, mas sim vogais temáticas. Para chegar a essa ideia, o autor faz uma
análise histórica em que menciona a perda do gênero neutro, desvinculado já no latim
de uma correspondência ao critério biológico-sexual; após tal perda, Mattoso Câmara
afirma ter sido ainda mais reforçada a arbitrariedade das categorias “feminino” e
“masculino”. Para sustentar essa hipótese, ele cita que uma correspondência a esse
critério só seria possível para o grupo de substantivos que designam seres do reino
animal e, ainda assim, nem todos eles receberiam sufixos coerentes com seu sexo:
Aí, há, com efeito, certa correspondência entre sexo e gênero, mas
muito longe de ser cabal e coerente. Foi o que teve de admitir a
própria gramática tradicional, fazendo uma distinção terminológica
entre gênero ‘natural’ e gênero ‘gramatical’ para poder levar em
consideração discrepâncias à diretriz semântica que adotou.
Ora, se o gênero mesmo para esses termos, que constituem só uma
pequena porção do acervo de substantivos da língua, não coincide
necessariamente com a diretriz semântica do sexo, é perturbador e
contraproducente tomar essa diretriz como ponto de partida para a
descrição da categoria substantiva do gênero. (CÂMARA JR, 1966, p.
2).
Isso significa que, na lógica de Mattoso Câmara, embora o falante lide
constantemente com categorizações que opõem “feminino” a “masculino” no mundo
ao seu redor, tais categorizações não influenciariam sua percepção dos conteúdos
linguísticos, por serem estes, na visão do autor, dissociados do que é externo à língua.
De todo modo, é interessante perceber que, para Mattoso Câmara, a informação
linguística não interfere na conceptualização que o falante faz a partir desse conteúdo.
A abordagem adotada por Mattoso, canônica até os dias atuais entre diversos
gramáticos e linguistas1, explicitada no excerto anterior, mantém como elemento
central de análise a dicotomia entre pares opositores. Nessa lógica, que se encerra
dentro de um conteúdo estritamente linguístico, evidencia-se uma concepção abstrata
1
cf. POSSENTI; BARONAS, 2006.
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Discurso e poder: teoria e análise
da língua, na qual o feminino é mera particularização de outro gênero (tido como
neutro).
O que se pode argumentar, no entanto, é que, independentemente de o
falante assumir que há, nos substantivos, um gênero marcado e um não marcado,
como propunha Mattoso Câmara, ou de tratar-se de duas classes de gêneros
diferentes (masculino e feminino), como defende, por exemplo, Bagno (2012, p. 688),
associamos palavras a gêneros gramaticais e a estes, gêneros sociais. Isso é
esclarecido pela afirmação de Kehdi (1979): “o povo, em sua linguagem espontânea,
cria formas masculinas sempre em -o; p. ex., faz-se corresponder ao feminino coisa o
masculino coiso, inexistente na língua culta. Essas observações conduzem-nos à
conclusão de que o -o está intimamente associado à noção de masculino” (KEHDI,
1979, p. 317).
Entende-se disso que os sufixos –o e –a como estratégias de marcação dos
gêneros masculino e feminino, respectivamente, são produtivos na língua portuguesa.
Corroboram essa análise os dados de aquisição do PB como língua materna
levantados por Figueira (2001), que apresentaremos brevemente. No artigo em
questão, a autora se propõe a discutir, principalmente, em que momento são
registradas as primeiras manifestações de reflexividade linguística na fala infantil — em
particular, quando se vislumbram situações em que a criança se volta para o que disse
ou para o que outra pessoa disse, produzindo modificações que afetam o gênero
gramatical das palavras —, e o que isso representa em termos da relação da criança
com a linguagem. O estudo em questão foi realizado longitudinalmente, com crianças
monolíngues de 2 a 6 anos de idade adquirindo o PB como primeira língua. A autora
utilizou dados de produção espontânea, alguns deles registrados em diários pelos
pais e outros gravados em áudio, ao longo de três anos2.
Após uma descrição inicial do que a literatura teórica traz acerca da
concordância de gênero em PB, Figueira (2001, p. 106) faz uma provocação à ideia de
que o conteúdo do gênero de entidades abstratas estaria praticamente “evaporado”
(CÂMARA JR, 1975, p. 78), e propõe reanalisá-la após apresentar seus dados de
aquisição. Para tanto, a pesquisadora ressalta a importância do “erro” (ou “marcação
divergente de gênero”), algo que merece atenção e privilégio metodológico, por
revelar informações importantes sobre o conhecimento infantil da língua. Os primeiros
dados que a autora apresenta que nos chamam a atenção advêm de diários:
(3) (J brinca de fazer entrevistas, como se fosse o repórter na televisão.)
M: Eu tava perguntando se ia sair ou não a reportagem, Ju. E você é o repórter.
J: (Levantando a voz) Reporta.
M: (Rindo.) “Reporta”? Por que “reporta”?
J: Por que reporta é mulher. Que eu não quero ser homem. Eu sou reporta, vai.
(D - 4;6.1)
(FIGUEIRA, 2001, p. 111)
(4) (A e J, as duas irmãs, ouvem um programa de auditório na tevê; a certa altura o
apresentador dirige-se ao auditório com a saudação: Bom dia!)
A: (A mais velha.) Bom dio!
Para identificar as pessoas envolvidas nos relatos fornecidos em Figueira (2001), manteremos a notação
definida por essa autora: iniciais dos nomes das crianças para indicá-las e M para designar a mãe.
2
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Todas, todos, todxs: a conceptualização a partir do gênero gramatical ...
(J, a mais nova, faz uma intervenção, “corrigindo” a irmã.)
J: Bom dio é para homem. Bom dia é para mulher.
(D - 5;2.17)
(FIGUEIRA, 2001, p. 112)
Em (3), J não só marca formalmente, na terminação de “repórter”, um
substantivo que não sofre flexão, o –a que manifesta sua condição de menina, como
também justifica sua produção: “porque reporta é mulher”. Isso evidencia que a
identificação entre a flexão de gênero no feminino e o significado dessa flexão no
mundo é consciente para essa criança. Ademais, quando a autora parte para a análise
do segundo diálogo, ela conclui que, como a maioria das palavras masculinas que se
deixam antepor por adjetivos como “bom” são terminadas em –o, A responde ao
cumprimento “bom dia” fazendo uma alteração na palavra “dia” e produzindo-a como
“dio” (FIGUEIRA, 2001, p. 112). Outra razão para isso seria de que tal cumprimento fora
proferido por um homem e, na lógica da criança, deveria, então, ser feito no masculino.
Tendo isso em vista, a autora ressalta que há uma relação entre gênero e sexo que
emana dessas ocorrências, algo interessante para pesquisadores que desejam traçar
o percurso que a criança segue na aquisição desse subsistema gramatical. Com
relação a isso, parece-nos que, se a comparação de Câmara Jr (1972) entre flexão de
gênero no nome e flexão de número ou pessoa no verbo3 fosse coerente, a criança
não demonstraria dar sua própria interpretação para as marcações de masculino e
feminino (como também não o faz para outras categorias de concordância). Ela só se
corrige ou se justifica quando emprega o gênero gramatical, o que demonstra que ela
é influenciada pela atribuição semântica muito mais do que pela atribuição sintática
no seu processo de aquisição do traço de gênero.
Por conseguinte, é comum encontrarmos acusações de que a língua
portuguesa é “sexista”, dada a predominância de formas masculinas nas
concordâncias de gênero. Quando nos referimos a um grupo composto por várias
mulheres e apenas um homem, fazemos a concordância no masculino, ocultando a
referência às mulheres presentes naquele contexto. Mesmo no inglês, que não
expressa gênero na concordância, encontram-se questionamentos sobre construções
androcêntricas que deixam implícita a normatização do gênero masculino na
sociedade. A título de ilustração, recentemente ganhou visibilidade o caso da
mudança nas sinalizações de obras na eletricidade das ruas da Nova Zelândia. O
governo alterou para Line Crew os dizeres que indicavam a presença de pessoas
trabalhando com fiação elétrica, depois que uma menininha escreveu para o
departamento responsável questionando a escolha por Linemen nas placas4.
Além disso, há pessoas que se consideram não-binárias, isto é, pessoas que,
independentemente da realidade biológica, não se identificam subjetivamente como
mulheres nem como homens, criando uma questão para a linguagem: como referir-se
linguisticamente a elas? Entre as formas linguísticas escolhidas por muitas delas, estão
“Na realidade, o gênero é uma distribuição em classes mórficas, para os nomes, da mesma sorte que o
são as conjugações para os verbos” (CÂMARA JR apud FIGUEIRA, 2001, p. 107).
4
Disponível em: https://www.bbc.com/news/world-asia-45015442. Acesso em 15 de janeiro de 2019.
3
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Discurso e poder: teoria e análise
as chamadas “linguagens não binárias”, que consistem na substituição do sufixo que
indica gênero por símbolos que eliminam essa indicação, como no dado a seguir:
Figura 1. Cartaz afixado no Instituto de Química da USP em fevereiro de 2019
Fonte: foto registrada pela autora.
2 A construção de referentes como uma conceptualização
metonímica
Tendo tudo isso em vista, vale ainda o questionamento: quanto tempo se gasta
na vida falando de pessoas e seres vivos, em geral, e quanto se gasta falando de
objetos, fenômenos, sentimentos? Levando em consideração que a frequência de
ocorrência de um item gramatical interfere na compreensão do falante sobre esse item
(BYBEE, 2010), é possível assumir que o fato de falarmos muito sobre pessoas, na vida
cotidiana, leva-nos a carregar a correlação entre sexo e gênero gramatical para a
marcação de gênero como um todo. Diante disso, é interessante observar a
conceptualização decorrente do fenômeno de referenciação a partir dos gêneros
gramaticais “feminino”, “masculino” e neutralizado pela linguagem não-binária. Ao
considerarmos que tal fenômeno diz respeito a uma atividade discursiva, precisamos
ter em mente que a realidade é construída tanto por meio da forma como se dá a
nomeação dos seres no mundo quanto pela maneira como ocorre a interação
sociocognitiva com ele. A partir disso, recorremos ao conceito de metonímia
conceptual para explicar como o gênero é usado para referenciar algo.
A conceptualização é o processo cognitivo dinâmico relativo à construção de
sentido pelo sujeito produtor do conteúdo e da reconstrução por quem o recebe.
Diferentes perspectivas podem ser utilizadas na conceptualização, e uma delas
consiste no fornecimento de acesso de um item conceptual a outro dentro de um
mesmo domínio. Nesse caso, trata-se de uma conceptualização metonímica. No
trabalho pioneiro de Lakoff & Johnson (2003 [1980], p. 87), lê-se que “a metonímia (...)
tem, principalmente, uma função referencial, isto é, ela permite que se use uma
entidade para representar outra” (tradução nossa). Assim, o que tentamos verificar, ao
longo do mestrado, foi a possibilidade de se conceber o masculino genérico como
instanciação linguística de uma metonímia. Afinal, se partimos dessa noção de
metonímia que implica que uma entidade represente outra dentro de um só domínio
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Todas, todos, todxs: a conceptualização a partir do gênero gramatical ...
(HOPPER; TRAUGOTT, 1993), isso também poderia explicar o masculino genérico,
desde que o entendêssemos como o elemento que figura no lugar do feminino e/ou
do masculino específico, sendo todos esses partes de um mesmo domínio.
Ruiz de Mendoza Ibáñez (2003) complexifica a discussão sobre metonímia
defendendo uma atualização de suas definições que considere a natureza da relação
entre a fonte e o alvo. A saber, o alvo é o domínio que se deseja descrever e a fonte é
o domínio em termos do qual o alvo é descrito. Ao defender esse raciocínio, o autor
rechaça que se simplifique a metonímia como sendo a relação entre a parte e o todo.
Ainda que essa relação continue sendo metonímica, ele prefere definir a metonímia
como fruto da relação entre o “domínio” completo (chamado de “matriz”) e um de seus
“subdomínios”, pois isso torna mais claro o percurso seguido na interpretação da
expressão metonímica. Ruiz de Mendoza Ibáñez e Díez Velasco (2001) exemplificam
isso com o seguinte: quando uma metonímia fonte-no-alvo fornece o referente de um
pronome anafórico, a referência é feita ao domínio-alvo da metonímia — ou seja, o
domínio matriz. Isso é exemplificado pela frase i) ‘The sax won’t come today; he/*it has
the flu’, mostrando que o uso de ‘he’ seria compreensível, ao passo que ‘it’ não seria
convencional, mostrando que o objeto é usado para falar da pessoa. Já em casos de
alvo-na-fonte, é o domínio-fonte que é selecionado para compor a referência
anafórica. Os autores ilustram esse raciocínio com a frase ii) ‘She loves Shakespeare;
she reads him/*it a lot’; nesse exemplo, a pessoa é usada para falar do objeto.5
Portanto, é possível chegar a uma generalização segundo a qual metonímias
fonte-no-alvo funcionam a partir de expansões do domínio — isto é, ao invocar um de
seus subdomínios, recebemos pleno acesso a todo o domínio matriz . Ao mesmo
tempo, metonímias alvo-na-fonte nos levam a reduzir o domínio — afinal, apenas o
subdomínio da matriz é relevante nesses casos (RUIZ DE MENDOZA IBÁÑEZ; DÍEZ
VELASCO, 2001). Retomando os exemplos fornecidos por esses autores, em i), o
subdomínio “sax” nos fornece acesso a algo que é mais amplo, que é o homem que
toca esse instrumento (componente do domínio-alvo); já em ii), “Shakespeare”
compõe o domínio maior, ao passo que, para compreender a anáfora, só nos interessa
o que nele é mais específico (suas obras).
A partir disso, percebe-se que metonímias alvo-na-fonte fazem uso de um
domínio conceptual bem definido (o domínio matriz) para fazerem referência a um
subdomínio que não necessariamente é delimitável com clareza. O resultado disso é
que esse tipo de metonímia se revela um recurso comunicativo muito eficiente sempre
que o falante é incapaz de expressar o referente ou de determiná-lo em sua natureza.
Entendemos desse raciocínio que há, no domínio matriz, uma genericidade que
favorece a comunicação, pois livra os falantes de terem que conhecer todas as
especificidades possíveis do subdomínio em questão para conseguirem compreender
o conteúdo do que se diz. Nesse sentido, parece-nos plausível conceber o masculino
genérico como aquilo que compõe o domínio matriz e pode referir masculino
Optamos por reproduzir os exemplos originais sem traduzi-los, pois a distinção entre ‘he’ e ‘it’ do inglês
não seria perceptível com o uso de “ele” em português.
5
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Discurso e poder: teoria e análise
específico, gênero desconhecido, feminino específico, ou uma resolução de
concordância6 no subdomínio.
Além disso, Langacker (2009, p. 46) afirma que “a gramática é basicamente
metonímica, no sentido de que a informação explicitamente fornecida por meios
convencionais não estabelece sozinha as conexões precisas apreendidas pelo falante
e pelo ouvinte quando uma expressão é usada” (tradução nossa). De indicações
explícitas emanam conceitos que apenas fornecem acesso a elementos com potencial
de ser conectados de modos específicos. Dessa forma, tentamos entender a expressão
do gênero gramatical na língua como uma metonímia que nos fornece acesso a ideias
mais abstratas sobre “feminino”, “masculino”, “neutro” ou “genérico”. Ademais, essa
hipótese parece sustentar-se também no que declara Barcelona (2003): uma metáfora
ou uma metonímia conceptual pode, convencionalmente, ser ativada ou representada
por um morfema, uma palavra, um sintagma, uma oração, uma frase, um texto inteiro,
por gestos e por outros tipos de comportamento. No caso do gênero, ela surgiria de
um morfema. Nesse sentido, o que propomos como possibilidade de análise é que
haja padrões metonímicos sendo utilizados em conexão com padrões morfológicos,
em uma aproximação com algo que outros pesquisadores já fizeram recentemente,
para outros tipos de morfemas, tanto em PB quanto em outras línguas (PANTHER;
THORNBURG, 2003; RADDEN, 2009; BASILIO, 2011)
Diante disso, é válido considerar o que Langacker (2009) define como “ponto
de referência”: a entidade representada pela expressão metonímica “serve como
ponto de referência, fornecendo acesso mental ao alvo desejado”. Tendo em vista
esse conceito, a expressão do gênero gramatical em mais um de seus aspectos
poderia ser concebida como metonímica: marca-se com “feminino” ou “masculino” um
sintagma como, por exemplo, “a médica”, em que tanto o determinante quanto o
sufixo –a femininos funcionariam como pontos de referência para fornecer acesso
mental à entidade mais abstrata “mulher” e, num nível ainda mais superior, a “pessoa”.
Para investigar essa hipótese, consideremos os três textos a seguir:
(5)
6
Cf. Corbett (1991).
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Todas, todos, todxs: a conceptualização a partir do gênero gramatical ...
(6)
(7)
Sabendo que o e-mail do exemplo (5) se destinava a um grupo formado por
mulheres e homens conjuntamente, a resolução de concordância foi feita no
masculino. Logo, se na metonímia focamos em um aspecto da entidade e o elegemos
como suficientemente representativo para atingir o significado implícito no conteúdo,
então o gênero masculino parece ser o eleito para representar grupos de gêneros
quaisquer. Em decorrência disso, temos as diferentes maneiras de expressar
verbalmente o gênero exigido pela gramática, e cada uma tem diferentes implicações
quanto à construção de referentes. Entre essas maneiras estão as linguagens nãobinárias, como no exemplo (7). Outra possibilidade, há mais tempo consolidada na
língua escrita, é manter a forma masculina no paradigma e incluir entre parênteses a
possibilidade de concordância no feminino (exemplo (6)). Podemos refletir, então,
sobre quais são as diferenças suscitadas do contraste semântico entre todas essas
possibilidades de concordância.
Ao considerarmos um texto que faz referência a um grupo formado por
diversos indivíduos de ambos os sexos, o perfilamento pode ser feito de todo o
conjunto, ou de grupos dentro desse conjunto. Exemplifiquemos com a frase “Para xs
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Discurso e poder: teoria e análise
professorxs que vão votar no Bozonazi, desejo estudo e vergonha na cara”, extraída do
dado apresentado na figura 7. Escrita com masculino genérico, ela ficaria “Para os
professores que vão votar no Bozonazi, desejo estudo e vergonha na cara”; nesse caso,
sabendo que no referente há homens e mulheres, há uma dupla possibilidade de
perfilamento com o uso do masculino genérico em “os professores”. Uma delas é o
perfilamento do grupo todo, incluindo fêmeas e machos (figura 2a), e a outra é o
perfilamento somente do grupo de machos, excluindo-se as mulheres (figura 2b). Se
escolhêssemos nos expressar por “Para os(as) professores(as) que vão votar no
Bozonazi, desejo estudo e vergonha na cara”, temos a seleção dos integrantes homens
de um lado, e das integrantes mulheres de outro (figura 3). Porém, ao utilizarmos
formas inovadoras como em “Para xs professorxs que vão votar no Bozonazi, desejo
estudo e vergonha na cara”, muda-se o potencial referencial, anulando-se a diferença
de sexo. Dessa maneira, a operação cognitiva passa a ser sobre outro tipo de entidade
(figura 4), dado que há uma indeterminação implicada nessa forma de expressão, e
todo o conjunto de integrantes é assim perfilado.
Figura 2a: perfilamento do
conjunto todo, incluindose tanto homens quanto
mulheres.
Figura 2b: perfilamento do
subconjunto de homens,
excluindo-se as mulheres
desse processo.
Figura 3: perfilamento do
grupo de homens e do
grupo de mulheres
separadamente.
Figura 4: perfilamento do
conjunto todo, cujos
elementos usados na
referenciação tiveram seu
gênero apagado.
Homens
Mulheres
Gênero neutralizado
A diferença entre os esquemas ilustrados nas figuras 2ab e 4 é que a
interpretação de masculino específico que o primeiro caso possibilita fica excluída no
outro caso, pois é anulada a predominância de um gênero específico que represente
o conjunto como um todo. Entretanto, a anulação ocorre para o perfilamento do grupo
de mulheres também, diferentemente do que ocasiona a situação ilustrada pela figura
3, em que ocorre o perfilamento de ambos os grupos — constituídos, respectivamente,
de referentes homens e referentes mulheres.
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330
Todas, todos, todxs: a conceptualização a partir do gênero gramatical ...
Isso significaria que o processo de metonimização decorrente do uso do
masculino genérico é anulado pela linguagem não binária, i.e., usá-la é não
metonimizar. Contudo, essa não metonimização tem implicações para o processo de
referenciação, que incluem, por exemplo, a anulação desses referentes. A primazia
masculina que a interpretação de masculino motivado (Fundo) vinculada ao uso do
masculino genérico (Figura) ocasiona se esvai junto com qualquer tentativa de
salientar o feminino e seus referentes.
3. A construção de referentes como metáfora mista deliberada
Diferente dos casos anteriores é o uso do feminino na autorreferência feita por
homens homossexuais. Em comunidades LGBTQ, isso parece cada vez mais
frequente, e pode ser observado no dado a seguir:
(8)
Com relação a esse uso, verifica-se um mismatch no processo de perfilamento,
pois, para o referente homem, é empregada a concordância no feminino; isso não só
é plenamente compreensível, sem gerar confusões para a comunicação, como
também aciona um novo significado sobre o sujeito: sua sexualidade passa a ser vista
como não-heterossexual. Isso significa que há uma mudança na categoria em que
ocorre a metonímia, indicando que, possivelmente, o processo deixa de ser
metonímico e passa a ser metafórico.
Para tentar explicar melhor esse fenômeno, recorremos aos estudos sobre
metáfora conceptual e, mais especificamente, metáfora deliberada. Em termos gerais,
a metáfora conceptual é um mecanismo cognitivo por meio do qual domínios da
experiência mais abstratos e intangíveis se conceptualizam em termos do que é mais
concreto e acessível. Então, a essência da metáfora é a compreensão e a
experienciação de uma coisa a partir de outra. Nessa lógica, o gênero feminino
materializado na língua estaria no domínio-fonte, que é mobilizado no mapeamento
das correspondências com a orientação sexual do sujeito, componente do domínioalvo. Porém, nessa conceptualização, ocorre a mudança de categoria durante o
mapeamento. Por conta disso, a fim de dar conta desse fenômeno, recorremos à
Teoria da Metáfora Deliberada, segundo a qual metáforas mistas são produzidas
deliberadamente com fins retóricos.
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331
Discurso e poder: teoria e análise
Metáforas mistas são aquelas em que são utilizados discursivamente domínios
de origens diferentes para compor a mesma expressão metafórica. Steen (2016) alega
que domínios conceptuais distintos são evocados como referentes estranhos no
discurso por mudanças intencionais de perspectiva, as quais se constituem como
metáforas deliberadas. Por causa desse uso metafórico deliberado, a imagem
metafórica, que é destoante, pode ser representada como um referente distinto na
mente das pessoas e estar disponível por tempo suficiente para produzir um choque
potencial com a próxima imagem metafórica. Esse choque ocorre se ela for próxima
e, ao mesmo tempo, incompatível o suficiente a ponto de ser percebida, evocando um
domínio conceptual diferente. Isso pode ser conferido no exemplo: ‘the economic
cake grew fast enough in these years’ (JUDT, 2005, p. 266 apud STEEN, 2016, p. 115,
grifos nossos). Pela interpretação do autor, um bolo não cresceria (por causação
interna), apenas aumentaria de tamanho conforme fosse assado. Em outro artigo,
Gerard Steen esclarece:
(…) Metáforas deliberadas são aquelas que chamam a atenção para
o seu domínio-fonte como um detalhe à parte para a atenção da
memória de trabalho, ao passo que metáforas não deliberadas não
fazem isso. (...) (STEEN, 2017, p. 7, tradução nossa).
Aproximando a conceituação de Steen da nossa hipótese de análise, teríamos
que sexo e orientação sexual seriam referentes distintos decorrentes do processo de
metáfora deliberada. Isso suscitaria detalhes na memória de trabalho que, até então,
não eram salientes — detalhes sobre a orientação sexual do falante, no caso. Sendo
assim, durante a conceptualização metafórica, o domínio do feminino seria acionado
para referenciar o domínio de machos, gerando a mudança da categoria “sexo” para
a categoria “orientação sexual” em um mapeamento de domínios cruzados7.
Considerações finais
Diante disso tudo, tentamos compreender como a construção de referentes
masculinos, femininos e com sexo neutralizado é feita ao longo dos textos,
gramaticalmente, e quais são as suas implicações semântico-cognitivas. Para isso,
nossas discussões bibliográficas e teóricas foram construídas, articuladas e
selecionadas de modo a manterem um alinhamento com a Linguística Cognitiva,
como é o caso do estudo da metonímia conceptual e da metáfora mista deliberada,
apresentadas brevemente neste artigo. Como decorrência dessas análises, chegamos
à hipótese de que há diferenças relevantes na conceptualização feita pelos falantes de
cada uma das formas, com as quais vimos trabalhando, de marcar textualmente o
gênero nos nomes em PB. Nesse sentido, as linguagens não-binárias não parecem dar
conta, cognitivamente, de realçar a mulher como referente possível para construções
em que haja resolução de concordância. Isso porque o apagamento do gênero é
completo, i.e, é feito tanto para o masculino quanto para o feminino.
De acordo com a DMT, há um encadeamento analítico formado por cinco passos que devem ser
verificados em sequência para confirmar se uma metáfora é, de fato, uma metáfora mista. Explicações
acerca de como esses cinco passos podem ser identificados na análise do feminino para referenciar
homens não-heterossexuais podem ser encontradas em Bernardo (2019).
7
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332
Todas, todos, todxs: a conceptualização a partir do gênero gramatical ...
Por fim, consideramos que há uma alta relevância no tema aqui abordado,
tanto acadêmica quanto social. Em um contexto sócio-histórico marcado por
questionamentos acerca da ordem hegemônica e, ao mesmo tempo, por um alto grau
de integração entre indivíduos de diferentes regiões do globo, surgem reivindicações
por novas maneiras de expressar-se em línguas como o PB — maneiras estas que
contemplem as individualidades e as lutas sociais de cada um8. É nesse cenário que
vemos críticas feministas a modos de expressão que utilizam irrestritamente o
masculino em referência a grupos de ambos os sexos e críticas queer a modos de
expressão que reconhecem apenas o binarismo homem-mulher na língua e na
sociedade em que ela se insere.
Há quem defenda, diante desse panorama, que existem efeitos ideológicos na
língua corroborando o desempoderamento feminino (LAKOFF, 2004; EHRLICH et al,
2014). Sob uma perspectiva feminista, o opressor arrogar-se da língua, restituindo à
mulher apenas as sombras necessárias para que ela se insira em uma sociedade
patriarcal, pode ser um recurso poderoso. Diante disso, este artigo visa englobar um
debate atual, que surge de demandas de grupos sociais a cada dia mais proeminentes
e que, no entanto, ainda não recebeu suficiente atenção de pesquisadores, carecendo,
pois, de maiores investigações científicas. É isso que a presente pesquisa tenta
contemplar por meio do aparato científico da Linguística Cognitiva — corrente teóricometodológica também em amplo desenvolvimento na atualidade.
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Como citar
BERNARDO, Vivian de Ulhôa Cintra. Todas, todos, todxs: a conceptualização a partir
do gênero gramatical em português brasileiro. In: GONÇALVES-SEGUNDO, Paulo
Roberto; ARAES, Célia Regina; CASTANHEIRA, Claudia; ISOLA-LANZONI, Gabriel;
PENITENTE, Natalia; WEISS, Winola (orgs). Discurso e poder: teoria e análise. São
Paulo: FFLCH/USP, 2020, p. 320-334. DOI: 10.11606/9786587621241
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Discurso e poder: teoria e análise
Construção discursiva de identidades
socioculturais dos líderes de
iniciativas do ensino de português
nas igrejas evangélicas chinesas em
São Paulo
Xiang ZHANG
Universidade de São Paulo
[email protected]
Resumo: Este texto remete-se aos meus primeiros passos no
estudo da imigração chinesa no Brasil. Nas últimas duas
décadas, constantes fluxos migratórios chineses têm sido
registrados em São Paulo. A primeira necessidade, desde sua
chegada, é a aprendizagem da língua local. Por conseguinte,
têm surgido diversas iniciativas do ensino de português, entre
as quais se destacam essas empreendidas expressivamente
pelas igrejas evangélicas na cidade de São Paulo. Com o
objetivo de compreender a dinâmica dessas iniciativas, assim
como as interações que ocorrem neste contexto, procuramos
interpretar os posicionamentos dos líderes a partir das pistas de
contextualização identificadas no seu discurso frente a essas
iniciativas, de forma a refletir sobre a sua construção de
identidades socioculturais. A reflexão se baseia no arcabouço
teórico-metodológico de Sociolinguística Interacional e
Microanálise Etnográfica. Os resultados mostram que os líderes
se posicionam como atores sociais preocupados com uma
prática solidária e de letramento religioso e a língua portuguesa
é representada com uma perspectiva mais ampla, como espaço
de interação, integração e acolhimento.
Palavras-chave:
Construção
discursiva;
Identidades
socioculturais; Ensino de Português; Imigrantes chineses; Brasil.
Introdução
Nas últimas duas décadas, a comunidade chinesa no Brasil tem se ampliado
significativamente com os constantes fluxos migratórios das diversas regiões da China
para o Brasil, especialmente a São Paulo, o destino privilegiado pelos chineses, por
conta da sua economia dinâmica, que proporciona mais oportunidades. Por outro
lado, essa expressiva presença dos imigrantes chineses recém-chegados implica uma
maior necessidade de aprender o português para sua melhor adaptação inicial à nova
vida no Brasil. Em relação às atividades de imigrantes chineses em São Paulo, convém
sublinhar sua dedicação ao comércio, de forma a abrir lojas de vestuários, produtos
eletrônicos, acessórios e afins nas regiões de 25 de março, Brás e Pari (FREIRE E SILVA,
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336
Construção discursiva de identidades socioculturais dos líderes ...
2018). Assim, surgiram várias iniciativas de ensino de português para esses chineses,
empreendidas por diferentes entidades, tais como associações regionais, escolas
comunitárias e outras instituições de diversas naturezas. Entre elas, as iniciativas
assumidas pelas igrejas evangélicas na comunidade chinesa parecem ser muito
atuantes uma vez que têm sido muito procuradas por chineses . É neste contexto
que, quando não estão no trabalho, muitos chineses buscam aprender português e
conhecer cultura brasileira.
De acordo com a pesquisa de campo do autor do presente trabalho, realizada
entre abril e agosto de 2018, quase todas as igrejas evangélicas chinesas existentes
em São Paulo já haviam tido ou estavam ainda tendo curso de português para
imigrantes chineses, seja a longo prazo ou tentativas de curto período. Tendo obtido
autorização e cooperação de 5 igrejas que, naquela época, estavam realizando cursos
de português a chineses recém-chegados, conduzimos a pesquisa com objetivo de
descobrir como se configura o espaço dessas iniciativas e quais traços socioculturais
são construídos pelos envolvidos, especialmente os líderes neste espaço. Mais
especificamente, o que representa o português nessas iniciativas para eles e quais são
seus posicionamentos em relação à sua liderança nessas iniciativas. Para tal,
entrevistamos 6 líderes das iniciativas derivadas de 5 igrejas em São Paulo. Por
questões éticas e para facilitar a leitura da análise, denominamos cada igreja com uma
letra maiúscula e adotamos pseudônimos para os líderes. Inserimos aqui um quadro
que constitui esses elementos. Entretanto, nas seguintes seções, serão apresentados
alguns exemplos com os discursos do líder Dan e da líder Chang, da Igreja A, e a líder
Yang, da Igreja D.
Quadro 1. Igrejas e líderes participantes na pesquisa
Igrejas
Líderes
A
Dan e Chang
B
Qiang
C
Lili
D
Yang
E
Jiajun
Fonte: elaboração própria
1 Fundamentação teórica e metodológica
Tendo delimitado os objetivos e o objeto do trabalho na introdução,
apresentamos agora a fundamentação teórica e metodológica que orienta a nossa
pesquisa.
Adotamos uma abordagem sociocultural do discurso – Sociolinguística
Interacional (GOFFMAN, 2002, 2014; GUMPERZ, 1982; RIBEIRO; GARCEZ, 2002;
SCHIFFRIN, 1996; PEREIRA, 2002) –, que inter-relaciona língua, cultura e sociedade.
Nessa perspectiva, consideramos que a língua é o lugar da interação humana e a fala
em interação é socialmente organizada como “um encontro social” (RIBEIRO;
GARCEZ, 2002, p. 19). Nesse encontro, a língua é produzida por um sujeito que situa
seus determinados posicionamentos em certas situações, direcionados a outro(s)
sujeito(s), por isso, os sentidos socioculturais são construídos constantemente nas
interações, de forma que possam refletir a construção de identidades socioculturais
de sujeitos. Para perceber melhor as intenções singulares ou pressuposições
contextuais assinaladas na interação, é preciso olhar “as pistas de contextualização”
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337
Discurso e poder: teoria e análise
(GUMPERZ, 1982). Tais pistas podem aparecer sob várias manifestações, como
escolha de palavras, repetição de fala, entonação até o uso de gestos. É através dessas
pistas de contextualização, no caso do presente trabalho, particularmente de pistas
verbais dispostas no discurso dos sujeitos, que se interpretam os posicionamentos dos
líderes frente às iniciativas de ensino de português às quais eles se dedicam
ativamente.
Além das contribuições fundamentais da Sociolinguística Interacional, a visão
de Moita Lopes (2006) em termos do discurso e identidade contribui imensamente às
reflexões sobre a construção de identidades socioculturais no contexto da migração.
Segundo o pesquisador, o discurso tem sido cada vez mais representado como um
processo de construção sociocultural à medida que, por um lado, o sentido é um
construto interacional, intrínseco à língua/ao discurso e, por outro, a construção
sociocultural de sentidos situa-se essencialmente em circunstâncias sócio-históricas
particulares, mediada por práticas discursivas específicas nas quais os sujeitos estão
posicionados em relações de poder (MOITA LOPES, 2006, p. 304). O discurso como
uma construção sociocultural é, portanto, percebido como uma forma de ação no
mundo e uma prática social fundamental pela qual se realiza o exercício de poder e
(re)produção de identidades do sujeito. Nessa perspectiva, a análise da dinâmica de
interações/discursos torna-se possível para estudar a vida humana e conhecer a
realidade em que nos engajamos. No caso específico desse trabalho, parece-nos
significativo analisar o discurso desses líderes das iniciativas para entender melhor o
espaço e as representações da língua portuguesa nesse espaço. A partir disso, podese conhecer mais profundamente a comunidade imigrante chinesa no Brasil, que é
ainda pouco explorada por pesquisadores na área de linguagem.
Metodologicamente, é utilizada neste trabalho a Microanálise Etnográfica
(ERICKSON, 1996) de natureza qualitativa e interpretativa, que nos possibilita enxergar
e entender a interação como um ecossistema.
The central concern of ethnographic microanalysis is with the
immediate ecology and micropolitics of social relations between
persons engaged in situations of face to face interaction (ERICKSON,
1996, p. 283)1
Essa abordagem enfatiza, então, dois aspectos essenciais no tratamento de
dados. Um se refere ao enquadramento local, isto é, a construção situacional do uso
da língua numa interação, e o outro se preocupa com as relações que os sujeitos
constroem de modo emergente para se engajar na interação. Dessa forma, os sujeitos
são considerados como atores sociais que (re)negociam os seus valores, crenças,
papéis, assim como identidades, a todo momento na interação, transformando o
mundo dinamicamente. Os estudos, sob essa perspectiva, procuraram compreender
o que os sujeitos realmente estão fazendo em interações face a face ao criar contextos
uns para os outros e como esses contextos locais influenciam e são influenciados pelos
elementos sociais, cultuais, identitários em uma esfera maior.
Tradução nossa: “A preocupação central da microanálise etnográfica é com a ecologia imediata e a
micropolítica das relações sociais entre pessoas envolvidas em situações de interação face a face”
(ERICKSON, 1996, p. 283).
1
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Construção discursiva de identidades socioculturais dos líderes ...
2 As representações da língua portuguesa numa perspectiva mais
ampla
Os sentidos simbólicos que os líderes atribuem para a língua portuguesa
constituem os seus posicionamentos frente às iniciativas de ensino de português sob
a sua liderança. Esses sentidos podem ser um fator pertinente para essa prática. No
que se refere ao processo de fundação das iniciativas de ensino de português para
chineses, vamos analisar de que forma os líderes se colocam. Vejamos o exemplo 12.
Exemplo 1: líder Dan/Igreja A
Pesquisador
Dan
001
002
003
004
005
006
007
008
009
010
011
012
013
Bom dia. É:::gostaria de saber a sua história de imigração, um pouco, né? E também
sobre o curso de português lá na igreja. Então, você pode/pode me contar com
pouco sobre a sua história de imigração para o Brasil? Como que foi? Quando você
veio? Você veio de qual lugar da China?
Hum. Ah:::então, eh:::eu vim pro Brasil né em 2001 e cheguei aqui sem falar nada
de português né, na verdade. Foi uma época muito difícil. E quando cheguei, né, já
tinha que trabalhar né, no caso, na rua. Eu não tive oportunidade para estudar. Mas
depois de um tempinho, né, percebi que/que eu tinha que aprender, né, falar
português e tudo mais, e comecei procurar escola, né. Naquela época, isso tava o
primeiro colegial. E foi bem difícil, foi bem difícil a escola, porque praticamente não
entendia nada, não falava nada, não escutava nada. Então, é::: tudo isso MUDOU
por causa que eu encontrei uma escola que dava aula para os estrangeiro, chinês
assim, né, aula de português no caso. Então, >depois comecei fazer escola, trabalhar
assim, < então, né, fui aprendendo.
Neste exemplo, o líder Dan conta um pouco da sua história de imigração para
o Brasil e, nela, relata a sua experiência inicial no país de acolhimento destacando a
barreira das línguas. Quando chegou ao Brasil, afirma que veio “sem falar nada de
português” (linha 005) e comenta que aquela “foi uma época muito difícil” (linha 006).
Essas enunciações indicam que, para um imigrante recém-chegado ao Brasil, não
dominar a língua representa muitos sofrimentos e muitas dificuldades de
comunicação. Ele depois confirma isto fazendo uso de repetições, na linha 009, no que
se refere ao contexto educacional: “E foi bem difícil, foi bem difícil a escola”, uma vez
que “praticamente não entendia nada, não falava nada, não escutava nada” (linha 010).
Essas repetições reforçam a função da língua local na adaptação inicial dos imigrantes
à nova jornada no território brasileiro. O discurso do líder Dan coloca em relevo o
quanto a falta de domínio de língua local tornou a sua vida difícil em muitos âmbitos:
no trabalho, no estudo, nas relações sociais.
A sua própria experiência de aprendizagem de português e as dificuldades
pelas quais passou criam para ele uma imagem de alguém que tem autoridade para
tratar desses temas. A sua fala ressalta que ele conhece bem a situação dos imigrantes
recém-chegados, por exemplo, no que diz respeito ao domínio de português.
Podemos ver o exemplo seguinte (linha 035 a 039).
Exemplo 2: líder Dan/Igreja A
Pesquisador
Dan
Pesquisador
Dan
035
036
037
038
039
Qual é o perfil dos membros da igreja? O que eles fazem? De onde eles vêm?
Ah. As pessoas que vão para a igreja são as pessoas que recém-chegado, imigrante
recém-chegado aqui no Brasil, então não têm noção né da língua portuguesa.
Não falava nada.
Não falava nada, LITERALMENTE nada.
No nosso trabalho, transcrevemos as entrevistas de acordo com as convenções de transcrição adaptadas
de Teixeira e Silva (2007, 2008-2012) e Garcez (2006).
2
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Discurso e poder: teoria e análise
Como vemos, o aspecto ressaltado pelo líder para caracterizar os imigrantes
põe em relevo a falta de conhecimento da língua. Fica também marcado que esses
membros estão passando pela mesma situação que ele. Há aqui um alinhamento
discursivo que o coloca lado a lado com os outros imigrantes. Como se vê na linha
039, Dan disse que “Não falava nada, LITERALMENTE nada”. Essa expressão
“literalmente” falada em voz alta enfatiza, no seu discurso, a imensa dificuldade
linguística pela qual os imigrantes recém-chegados passam.
Em função dessa problemática, os imigrantes procuram aprender o português,
mesmo com muitas dificuldades, especialmente porque precisam trabalhar, como
podemos ver no seguinte exemplo (linhas 040 a 043). Nesse aspecto, o líder também
destaca a importância da língua no processo de socialização no novo país.
Exemplo 3: líder Dan/Igreja A
Pesquisador
Dan
040
041
042
043
Mas como que eles trabalham sem falar o português?
Então, é uma coisa muito MECÂNICA. Assim, eles têm funcionários que é brasileiro nato
(nativo). Eles falam português né. E só que eles aprenderam algumas palavras né que
relacionado ahn::: mercadoria, né, o ramo que eles trabalham. E eles começam assim.
Uma vez que a maioria dos novos imigrantes chegam ao Brasil e logo trabalham
como vendedores de produtos de vários tipos na região da 25 de março e no Brás, é
comum que aprendam o português com os funcionários brasileiros contratados. No
entanto, o seu português só se restringe a contextos ligados à compra e venda de
mercadorias. Como o líder Dan comentou, o português deles “é uma coisa
MECÂNICA” (linha 041). Como se vê, para ele, o domínio do português pelos
imigrantes parece circunscrever-se apenas ao espaço do trabalho e, ainda assim, de
uma forma bastante limitada. Fica apontado no seu discurso que o líder dá um valor
mais amplo para a língua e a entende como um espaço fundamental para que as
pessoas sejam capazes de vivenciar e viver o mundo. Uma vez que se movem da terra
oriental para o continente brasileiro, com o objetivo de melhorar sua condição
econômica, os imigrantes chineses precisam não somente saber usar o português no
seu trabalho, mas também passar a entender a língua portuguesa como uma chave
para vivenciar o Brasil e a cultura brasileira.
Os seguintes dois exemplos ilustram também o seu posicionamento em
relação com a língua portuguesa: exemplo 4 (linhas 060-062) e exemplo 5 (linha 077081).
Exemplo 4: líder Dan/Igreja A
Pesquisador
Dan
060
061
062
Ahn.
[Pra uma pessoa, digamos para conhecer o Brasil, cultura ou futuramente
né para entrar na sociedade né brasileira, isso ainda muito precária.
Exemplo 5: líder Dan/Igreja A
Pesquisador
Dan
077
078
079
080
081
Então qual/o que acha o papel da língua portuguesa nesse nesse ambiente para vocês?
Porque vocês tá no país aqui que a língua oficial é o português, então sem você
dominar essa língua, então você não tem comunicação, né, adequada com as
pessoas e também em termo de você viver e conhecer a sociedade e também você
consegue trabalhar bem né. Então é impossível se você não falar português.
Podemos ver que, para o líder Dan, a língua portuguesa não é vista apenas
como instrumento para o trabalho igual aos imigrantes recém-chegados veem, mas
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340
Construção discursiva de identidades socioculturais dos líderes ...
como espaço de interação, convivência e como possibilidade de se integrar
verdadeiramente na sociedade e na cultura brasileira. A língua, nesse sentido, em sua
interpretação deve ter mais sentidos para a comunidade imigrante chinesa.
Até aqui, de acordo com as análises do discurso dos líderes, fica marcada uma
necessidade concreta de se aprender o português. Foram essas perspectivas
demonstradas pelos sujeitos que motivam a abertura de iniciativas de ensino.
Segundo eles, o processo de aprendizagem de língua não é fácil por uma série de
fatores, entretanto, acreditam que uma vez que os imigrantes aprendem a língua de
uma forma menos limitada, a linguagem pode passar a ser espaço de interação,
socialização e transformação.
3 A iniciativa como prática de liderança solidária cristã e de
letramento religioso
Discutimos na parte anterior representações da língua portuguesa no discurso
de um líder. Nesta parte, analisaremos como os líderes atuam nas iniciativas de ensino
de português no contexto da igreja. Os seus discursos nos possibilitam observar de
que forma se posicionam, quais são as suas perspectivas e as suas práticas sociais
frente a este contexto. Vamos examinar o exemplo 6 (linhas 88 a 92, linhas 101 a 120).
Exemplo 6: líder Dan/Igreja A
Pesquisador
088
089
Sim. Como vocês conseguiram, por exemplo, os colaboradores para serem
professores de português? Tiveram muitas pessoas que ajudaram e contribuíram ao
curso?
Dan
090
091
092
(...)
101
102
103
104
105
106
107
108
109
110
111
112
113
[É mais membros da igreja mesmo. Todos os professores são membros da igreja. Então
através da igreja, então a gente oferece assim esse serviço à comunidade. Né, então sempre
foi assim ahn membro da igreja, que pessoas que ficam mais tempo aqui no Brasil né.
Pesquisador
Dan
Pesquisador
Dan
114
115
116
117
118
119
120
Sim, e às vezes você também dá aula né, mas como você dá aula? Já deu algumas
aulas né? O que você gostaria de ensinar na aula?
Na verdade, assim, é:::como falo, eh:::eu sou membro da igreja, né, então, eu vim né
quando era menor e aprende português. Na verdade, essa minha aula nada mais
compartilhando o meu conhecimento, né? Não é uma aula formal, né, e condáticas e
tudo mais assim. Mas assim compartilhando coisa básica né de de de língua
portuguesa assim né então para o seu uso cotidiano, né, passa a necessidade do dia
a dia. Então é mais isso que eu né ensino, né? Digo assim: não é uma “AULA”, “aula”
de português, mas um pouco de conhecimento só.
Entendi. O que achou, por exemplo, agora tem/mesmo Brasil tá a economia não tá
muito boa, mesmo assim, tem muitos imigrantes chineses estão chegando né aqui no
Brasil, e apareceram e também surgiram vários várias iniciativas de ensino de
português. Têm escolas, associações e também como a nossa igreja. O que achou o
papel da igreja nessas iniciativas do ensino de português? Qual é o objetivo do curso
da nossa igreja?
O objetivo é bem claro, né? (0.2) Então ahn::: a igreja/a gente é a igreja por ser IGREJA
e temos uma FÉ de que Deus né ele ama o mundo, né, então e através de seus filho
Jesus Cristo, né, para salvar a humanidade e todos seus pecados. Então nada mais
assim a igreja tá fazendo é contribuindo o amor que a gente tem recebido de Deus
para a comunidade chinesa que estão em necessidade, no caso é português. Então a
gente nada mais queria AJUDAR eles nesse sentido pra eles adaptarem BEM né
inicialmente aqui no Brasil e também compartilhar a nossa fé. Isso é o nosso objetivo.
Como líder da igreja e dessa iniciativa de ensino de português, Dan configura
a “aula” de português como um espaço em que ele pode compartilhar o seu
conhecimento, além de dar informações básicas de língua portuguesa para o uso
cotidiano, como ele afirma nas linhas 104-107. Nas linhas 107-108, ele afirma também
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341
Discurso e poder: teoria e análise
que essa iniciativa não é para dar uma “aula”, “aula de português como nós
entendemos a aula regular na escola, mas sim, um pouco de conhecimento só”. De
acordo com os posicionamentos do líder Dan, pode-se perceber que, para essa
iniciativa de ensino de português na igreja, os profissionais especializados, então, não
são vistos como necessários e imprescindíveis. O que os líderes estão fazendo é
compartilhar com os novos imigrantes o que eles aprenderam. E esse
compartilhamento não apenas se limita aos conhecimentos de língua portuguesa, mas
também inclui a fé cristã. Podemos verificar esse aspecto na linha 119, em que aparece
o objetivo dessa iniciativa que também é “compartilhar a nossa fé”, além de ajudar os
imigrantes no sentido de aprender o português. Parece-nos que “compartilhar a sua
fé” é o seu principal objetivo, portanto, o ensino de português se torna secundário.
Podemos confirmar isso nas linhas anteriores 116-118, “Então nada mais assim a igreja
tá fazendo é contribuindo o amor que a gente tem recebido de Deus para a
comunidade chinesa que estão em necessidade, no caso é português”. Dessa forma,
está marcada que a igreja está liderando o ato de letramento religioso através do curso
de português. Nesse sentido, pode-se entender que o foco da iniciativa de ensino de
português na igreja não é o ensino da língua mesma, mas outras questões de afeto e
solidariedade religiosa e, sobretudo, de “divulgação” da fé cristã, isto é, o foco é o
letramento religioso para a comunidade chinesa que chega ao Brasil.
Ao falar sobre a colaboração dos professores, o líder Dan delimita claramente
que são membros da igreja. Esses membros, na prática de ensino de língua
portuguesa, estão realizando a sua liderança solidária e cristã. No seu posicionamento
em relação à delimitação dos professores da iniciativa, fica marcada essa liderança
para a comunidade, como ele diz “a gente oferece assim esse serviço à comunidade.
Né, então sempre foi assim ahn membro da igreja, que pessoas que ficam mais tempo
aqui no Brasil né” (linha 091-092).
De acordo com Schiffrin (1996, p. 308), nossa maneira de agir, estilo e
comportamento frente a algum contexto ou tema funcionam não apenas como as
formas pelas quais mantemos as interações sociais, mas também como expressamos
o sentimento de quem somos e quem são os nossos interagentes. Nesse sentido, o
sujeito posiciona a prática de ensino de língua como uma prática solidária cristã e de
letramento religioso, construindo, assim, a sua identidade de líder religioso.
A líder Chang, da mesma Igreja, mostra os mesmos aspectos que o líder Dan
no que diz respeito a seus comportamentos diante da iniciativa. Vamos observar o
exemplo 7 (linha 128 a 132).
Exemplo 7: líder Chang/Igreja A
Chang
128
129
130
131
juntos os lugares em São Paulo com essas relações estabelecidas. Enfim, a gente quer
principalmente espalhar o evangelho na comunidade chinesa. Como eles podem conhecer Deus?
Não adianta só falar da bíblia. Atualmente as pessoas vê o seu comportamento e a sua prática. Então
temos que aproveitar a nossa boa prática, bons comportamentos para testemunhar a nossa fé cristã.
Neste exemplo, podemos ver que a líder Chang pensa que o seu bom
comportamento e boa prática na iniciativa de ensino de português possam
testemunhar a sua fé. Assim, com a sua liderança, divulga o evangelho para os
imigrantes chineses, como a líder Chang diz “a gente quer principalmente espalhar o
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342
Construção discursiva de identidades socioculturais dos líderes ...
evangelho na comunidade chinesa” (linha 128 a 129). Assim, vemos que ela realiza a
sua missão de letramento religioso de imigrantes chineses através dessa iniciativa.
A líder Yang da Igreja E sugere que ela queria ajudar na iniciativa de ensino
como um tipo de prática religiosa, como mostra o exemplo 8 (linha 124-127).
Exemplo 8: líder Yang/Igreja D
Yang
124
125
126
127
É, na época, eu tenho tempo livre. Eu quero ajudar. Eu já virou como cristão. Participa toda
semana na igreja. E a igreja tem necessidade de oferecer e ajudar as pessoas com motivo
disso, eles atrair pessoas para conhecer o Deus. Então, eu acho que a gente assim começou
o curso. Mesmo depois parou um tempo, mas a gente começou começou.
Ao falarem dos objetivos e de como pensam que deveria funcionar o ensino de
línguas, temos acesso a diversos traços das identidades desses líderes. O que notamos
aqui, fundamentalmente, é que a preocupação com a aprendizagem da língua não é
o foco: todos os líderes atuam e constroem-se como sujeitos que se envolvem em
práticas sociais preocupadas com a formação de novos cristãos entre os membros da
comunidade chinesa.
Considerações finais
Ao longo deste trabalho, procuramos discutir a construção discursiva das
identidades socioculturais dos líderes, frente às iniciativas de ensino de português nas
igrejas evangélicas para a comunidade imigrante chinesa em São Paulo. As reflexões
sobre os sentidos e as representações socioculturais marcadas nos seus discursos nos
permitem apreender, com base em pistas socioculturais, tanto a sua visão da língua
portuguesa nessas iniciativas destinada à comunidade chinesa, quanto a sua prática
de liderança frente a essas iniciativas.
Os sentidos simbólicos que os líderes atribuem para a língua portuguesa
constituem os seus posicionamentos, o que é um dos fatores que orientam as suas
práticas sociais. Eles veem a língua portuguesa em uma perspectiva mais ampla, que
cria espaço de interação, convivência, acolhimento e integração na sociedade e na
cultura brasileira. Frente às iniciativas de ensino, os líderes, ao se posicionarem sobre
como deve ser o funcionamento da iniciativa, revelam a sua prática de liderança
solidária e cristã. Parece que o foco da iniciativa não é tão somente o ensinoaprendizagem da língua, mas a preocupação com a formação de novos cristãos entre
os membros da comunidade chinesa. Ou melhor dizendo, fica explícito que o ensino
do idioma tem papel secundário em relação aos propósitos religiosos.
Com a discussão dos dados, confirmamos que a linguagem é um construto
social. É preciso pensarmos a linguagem humana como lugar de interação, de
construção das identidades, de representações de papéis, de negociação de sentidos.
Em outras palavras, o discurso como uma construção social é percebido como uma
forma de ação no mundo. Através da interpretação do discurso do sujeito, pode-se
entender os sentidos e as ações sociais indicados na prática discursiva, além de
desvendar as ideologias, as realidades socioculturais de nível macro e as relações de
poder.
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343
Discurso e poder: teoria e análise
Refletimos também que a Sociolinguística Interacional é uma perspectiva muito
rica para o entendimento das interações sociais, a construção de identidades e
elaboração dos contextos específicos em que nos inserimos e interagimos na
linguagem em uso. Como diz Schiffrin (1996:322), “what interactional sociolinguistics
is trying to do is uncover the knowledge that all of us already have”.3
Por fim, com o nosso trabalho, esperamos que mais investigações sejam feitas
no âmbito da imigração chinesa no Brasil e que possam contribuir para entender essa
realidade de ensino-aprendizagem de línguas, a construção de identidades na
linguagem, a nossa vida social e o nosso mundo globalizado.
Referências bibliográficas
ERICKSON, Frederick. Ethnographic microanalysis. In: McKAY, Sandra Lee;
HORNBERGER, Nancy H. (Org.). Sociolinguistics and Language Teaching. New York:
Cambridge University Press, 1996.
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Paulo. Cad. Metrop., v. 20 (41), p. 223-243, 2018.
GARCEZ, Pedro. A organização da fala-em-interação na sala de aula: controle social,
reprodução de conhecimento, construção conjunta de conhecimento. Calidoscópio,
2006, 4, p. 66-80.
GOFFMAN, Erving. A situação negligenciada. In: RIBEIRO, Branca Telles; GARCEZ,
Pedro M. (Orgs.). Sociolinguística Interacional. São Paulo: Edições Loyola, 2002, p. 1320.
GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. 14.ed. Trad. Maria Célia
Santos Raposo. Petrópolis: Editora Vozes, 2014.
GUMPERZ, John J. Discourse Strategies. Cambridge: Cambridge University Press,
1982.
MOITA LOPES, Luiz Paulo. (Org.). Por uma linguística aplicada interdisciplinar. São
Paulo: Parábola Editorial, 2006.
PEREIRA, Maria das Graças Dias. Introdução. In: Interação e discurso: estudos na
perspectiva da Sociolinguística Interacional/áreas de interface. Rio de Janeiro: Editora
Trarepa, 2002, p. 7-25.
RIBEIRO, Branca Telles; GARCEZ, Pedro M. (Orgs.). Sociolinguística Interacional. São
Paulo: Edições Loyola, 2002.
SCHIFFRIN, Deborah. Interactional Sociolinguistics. In: MACKAY, Sandra Lee;
HORNBERGER, Nancy H. (eds.). Sociolinguistics and Language Teaching. Cambridge:
Cambridge University Press, 1996, p. 307-328.
Tradução nossa: “o que a Sociolinguística Interacional está tentando fazer é descobrir o conhecimento
que todos nós já temos”.
3
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344
Construção discursiva de identidades socioculturais dos líderes ...
TEIXEIRA E SILVA, R. Projeto: Os materiais didáticos de Português como Língua
Estrangeira e a Construção da Competência Textual: o Contexto das Escolas LusoChinesas. RG023/06-07S/SRT/FSH. University of Macau, 2007.
TEIXEIRA E SILVA, R. Projeto: Interações em Sala de Aula de Português como Língua
Estrangeira e a Construção da Competência Textual: o Contexto de Macau.
RGUL006/08-Y4/LIN/BA03/FSH. University of Macau, 2008-2012.
Como citar
ZHANG, Xiang. Construção discursiva de identidades socioculturais dos líderes de
iniciativas do ensino de português nas igrejas evangélicas chinesas em São Paulo.
In: GONÇALVES-SEGUNDO, Paulo Roberto; ARAES, Célia Regina; CASTANHEIRA,
Claudia; ISOLA-LANZONI, Gabriel; PENITENTE, Natalia; WEISS, Winola (orgs).
Discurso e poder: teoria e análise. São Paulo: FFLCH/USP, 2020, p. 335-344. DOI:
10.11606/9786587621241
ZHANG, Xiang | 2020 | p. 335-344
345
Discurso e poder: teoria e análise
A construção da imagem feminina
nos enunciados exortativos e
assertivos nos livros didáticos de PLE
Yedda Alves de Oliveira Caggiano BLANCO
Universidade de São Paulo
[email protected]
Resumo: O material didático de PLE, em específico, o livro
didático, apresenta diversos aspectos que podem ser
investigados. Dentre eles, vamos destacar como os enunciados
-em especial, atos de fala diretivos e assertivos – podem
construir uma imagem que represente certo tipo de locutor nas
interações sociais, no caso, a voz feminina nos diálogos
apresentados em manuais de PLE com os quais trabalharemos
nesse artigo. Tendo em vista que, muitas vezes, os manuais de
PLE reforçam um estereótipo linguístico quanto à atuação da
mulher nas questões de produção do enunciado, o objetivo do
trabalho é analisar como, nas situações de pedidos,
especificamente, de serviços e consertos gerais, são retratadas
as vozes femininas, muitas vezes de forma estereotipada, falaz e
até menosprezada. Para a fundamentação teórica usamos a
definição de estereótipo de Amossy (1991), caracterizando-a
como
uma
"imagem
pré-fabricada"
que
circula
"monotonamente nos espíritos e textos"; os estudos sobre o
ethos discursivo (MAINGUENEAU, 2011) para a análise dos
efeitos que possam ser produzidos pelos enunciados; e,
finalmente, as questões de sociopragmática para compreender
os contextos de tais produções, a partir dos conceitos
desenvolvidos por Diana Bravo (2004). O corpus é formado por
três excertos de livros didáticos de PLE e a metodologia de
análise é descritiva e analítico-comparativa, com levantamento
dos enunciados e descrição dos contextos nos quais ocorrem.
Pretende-se, dessa maneira, apontar como os enunciados
podem construir ou reforçar a imagem negativa da mulher
nesses discursos e demonstrar como tais estereótipos circulam
com certa regularidade e uniformidade nos distintos manuais
de PLE.
Palavras-chave: Livro didático; Discurso; Imagem; Pedidos.
Introdução
Há várias formas de abordar a questão do livro didático nos materiais de
português para estrangeiros (PLE), desde questões relacionadas ao método de ensino
até a composição gráfica das lições apresentadas. Para o atual artigo, vamos
apresentar de que forma os enunciados podem construir uma imagem que represente
BLANCO, Yedda Alves de Oliveira Caggiano | 2020 | p. 345-364
346
A construção da imagem feminina nos enunciados exortativos e assertivos ...
certo tipo de enunciador nas interações sociais, no caso, a voz feminina nos diálogos
contidos nos manuais de PLE relacionados com atos de fala exortativos (ou diretivos)
e assertivos.
Temos o objetivo de mostrar como os enunciados das unidades didáticas de
PLE, que tratam sobre pedidos de serviços e consertos, são constitutivos de uma
imagem representativa de certo tipo de locutor nas interações sociais e de que modo
a voz feminina é retratada nesses manuais a ponto de tais registros se tornarem
reveladores de uma imagem negativa ou não da figura feminina quando comparadas
às vozes masculinas em idênticas situações de fala.
Para desenvolver o trabalho, vamos na fundamentação teórica, delinearas
questões de sociopragmática, a partir dos conceitos elaborados por Diana Bravo
(2004), para compreender a importância dos contextos de produção dos
enunciados;depois, os estudos de Maingueneau (2011) sobre o ethos discursivo,
enfatizando os efeitos que possam ser produzidos pelos enunciados; e, finalmente, a
definição de estereótipo de Amossy (1991, p. 21), que o caracteriza como uma
"imagem pré-fabricada" que circula "monotonamente nos espíritos e textos".
O corpus foi selecionado a partir de livros didáticos de PLE que apresentassem
na sua unidade de ensino, situações referentes a pedidos de "consertos". Assim foram
escolhidas as seguintes obras: Aprendendo Português do Brasil,Bem-Vindo: a língua
portuguesa no mundo da comunicação e Fala Brasil, Português para Estrangeiros, que
serão detalhadas na seção 2 desse artigo.
Quanto à metodologia, empregamos a descritiva com uma abordagem
analítico-comparativa. Para a análise, apresentamos o levantamento das situações, a
descrição dos contextos nos quais ocorrem e, descrevemos como os atos de fala
atribuídos às personagens femininas se apresentam em comparação com os atos
proferidos pelas personagens masculinas.
Acreditamos que, com a exposição desse cenário, vamos conseguir mostrar,
mesmo que de forma reduzida, uma construção de imagem que precisa ser revista e
reelaborada nos livros de PLE.
1 Base teórica: atos de fala, ethos discursivo e estereótipo
Quando os participantes se encontram em uma interação comunicativa, ao
produzirem um enunciado, realizam uma ação concreta que pode ir além de uma frase
produzida. Nesse jogo interacional, entre eles, temos que observar certas condições
contextuais, como tempo, lugar, papéis dos interactantes, relações sociais, os
objetivos da interação etc., uma vez que integram o ato de fala – o enunciador os tem
em mente ainda antes de realizá-lo – e, portanto, são imprescindíveis para o sentido e
seu entendimento.Além disso,conforme afirma Koch (2012, p. 12), “a par daquilo que
efetivamente é dito, há o modo como o que se diz é dito: a enunciação deixa no
enunciado marcas que indicam (“mostram”) a que título o enunciado é proferido.”
BLANCO, Yedda Alves de Oliveira Caggiano | 2020 | p. 345-364
347
Discurso e poder: teoria e análise
A partir de Austin (1962[1990]), aprendemos que o fato de pronunciar palavras
significa realizar atos com elas, muitas vezes transformadores da realidade dos
falantes. Segundo a "Teoria dos Atos de Fala", a sua realização engloba:
•
Atos locucionários, que correspondem ao ato de pronunciar palavras ou
emitir sons, isto é, ao fato fônico;
•
Atos ilocucionários, que dizem respeito aos atos que os locutores realizam
quando pronunciam um enunciado em certas condições comunicativas e
com certas intenções; isto é, são atos que dependem do sentido
expressado;
•
Atos perlocucionários, que correspondem aos efeitos que um dado ato
ilocucionário produz no alocutário.
Os atos realizam-se simultaneamente quando produzimos o enunciado e visam
à comunicação de algo, por exemplo, um pedido, uma promessa, uma constatação
etc. O sucesso de um ato de fala está na capacidade não só da emissão do
enunciando, mas também da sua interpretação, ou seja, nas condições de felicidade
(SEARLE, 1984).
Searle (1984), colaborando com a "Teoria dos Atos de Fala" postulada por
Austin, classificou os atos de acordo com a função que poderiam expressar. Assim,
temos:
•
Assertivos: cujo escopo é comprometer o locutor com a verdade da
proposição expressa no enunciado (afirmar, anunciar, predizer, insistir);
•
Exortativos ou Diretivos: que têm a intenção de conseguir que o interlocutor
adote uma determinada conduta, um fazer ou não-fazer (por exemplo: as
perguntas, os pedidos, os convites, as proibições, conselhos etc.);
•
Comissivos: buscam comprometer-se a uma ação futura (oferecer,
prometer, jurar);
•
Expressivos: expressam o estado psicológico especificado na condição de
sinceridade acerca de um estado de coisas (parabenizar, desculpar-se,
felicitar etc.);
•
Declarativos: os que, quando pronunciados sob determinadas condições
para sua eficácia,provocam uma mudança no mundo(batizar, excomungar,
levantar uma sessão).
Para o presente estudo, vamos nos ater aos atos assertivos e exortativos (ou
diretivos).
Assim, sobre os assertivos é importante destacar que "a asserção diz respeito
ao próprio fato pôr em relação elementos para dizer alguma coisa sobre o mundo,
independentemente de sua forma positiva, negativa, hipotética ou condicional"
(MAINGUENEAU; CHARAUDEAU, 2016, p. 68) por parte do locutor. Já os exortativos
ou diretivos, segundo Haverkate (1994),ameaçam a imagem do interlocutor porque o
locutor procura que o ouvinte faça ou realize coisas, invadindo, pois, seu território.
Haverkate (1994, p. 148) classifica os atos exortativos em impositivos e não impositivos.
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348
A construção da imagem feminina nos enunciados exortativos e assertivos ...
Os impositivos perseguem um fazer (ou não fazer) em benefício do locutor, como "a
súplica e o mandato"1. Os nãos impositivos, segundo o autor (HAVERKATE, 1994, p.
148),"procura[m] fazer com que o ouvinte realize o ato exortado principalmente para
o benefício de si próprio. Os principais componentes dessa classe são o conselho, a
recomendação e as instruções"2.
No ato de realizar pedidos, tanto locutores e interlocutores realizam um
trabalho de imagem (face work)cujo objetivo normalmente é o equilibro delas, ou a
minimização dos danos a elas produzidos pelo ato de fala.Brown e Levinson
(1978[1987]) já apontavam para as ameaças às imagens que todo ato implica (ou pode
implicar) e chamaram-nas de FTAs - Face Threatening Acts -. No mesmo
sentido,Kerbrat-Orecchioni (2014, p. 49) aponta que "a maioria dos atos de linguagem
que são produzidos no cotidiano são potencialmente 'ameaçadores' para uma das
faces em presença [...], o que cria um sério risco para o bom desenvolvimento da
interação".
Para suavizar o pedido e possibilitar a não invasão de território do
interlocutor(BROWN; LEVINSON, 1978[1987]), o locutor pode fazer uso de estratégias
que mitigam ou atenuam o enunciado, usando, por exemplo, uma formulação indireta,
inferencial. Ou pode, também, optar por fazer uma enunciação direta sem uso de
estratégias.
Colocando o foco nos atos exortativos impositivos (HAVERKATE, 1994), em
especial os pedidos, é importante ressaltar que a escolha do enunciando pelo locutor
deve estar de acordo com a situação na qual se insere, onde se observa o grau de
envolvimento dos participantes, o contexto em si do pedido, as marcas dadas pelas
condições e o contexto sociocultural. A esse respeito, Diana Bravo (2004, p. 8), nos
estudos sobre sociopragmática, considera que "o falante de uma língua é provido de
recursos interpretativos que vêm de seu ambiente social e de suas experiências
comunicativas anteriores".3
Também, ao se produzir um enunciado, reproduz-se discursos marcados por
fatos ideológicos, próprios da comunidade de fala onde se realizam, que constituem
a formação e atuação do indivíduo na sociedade. E, assim, os contextos produzidos
nos textos, (re)criam certas condições específicas nos quais se perpetuam falares e
crenças. Segundo Van Dijk (2012, p. 34), o contexto é "um construto subjetivo dos
participantes", cuja construção se dá por meio de um modelo mental controlado por
ele, o contexto, que ativa a memória individual e social, além de ser formador da
identidade na construção do eu-mesmo e do ele-mesmo.
Em decorrência, os enunciados, feitos por sujeitos que se apropriam da língua
num determinado contexto, produzem na sua realização determinado sentido. Para
Ducrot (1987), o enunciado carrega em si uma "voz" que não pode ser desassociada
Tradução livre. No original; "el ruego, la súplica y el mandato".
Trad. livre. No original: "procura conseguir que el oyente realice el acto exhortado primariamente en
beneficio de si mismo. Los principales componentes de esta clase son el consejo, la recomendación y la
instrucción."
3
Tradução livre. No original: "el/lahablante de una lengua está próvido/a de recursos interpretativos que
provienen de su entorno social y de sus experiencias comunicativas previas".
1
2
BLANCO, Yedda Alves de Oliveira Caggiano | 2020 | p. 345-364
349
Discurso e poder: teoria e análise
das diversas vozes enunciativas anteriores a ela e que se apresentam no ato da sua
produção. O sujeito produtor do enunciado não é visto como um mero produtor da
fala, mas sim como um sujeito pertencente ao mundo: o "locutor-enquanto tal
(constituído no nível do dizer) e o locutor-enquanto-ser-no-mundo (no nível do dito)”,
segundo Ducrot (1987, p. 188).
Igualmente, quando o enunciado é proferido, há uma influência na interação
de vários fatores, que, segundo Maingueneau (2011, p. 18,) constituem o ethos
discursivo:
Os ethos pré-discursivo, ethos discursivo (ethos mostrado), mas
também os fragmentos do texto nos quais o enunciador evoca sua
própria enunciação (ethos dito). [...] A distinção entre ethos dito e
mostrado se inscreve nos extremos de uma linha contínua, uma vez
que é impossível definir uma fronteira nítida entre o "dito" sugerido e
o puramente "mostrado" pela enunciação.
Do resultado dessas instâncias, temos o ethos efetivo, que segundo seu
esquema:
Figura 1. Ethos efetivo
Fonte: Maingueneau (2011, p. 19)
Maingueneau (2011) elucida que existe um ethos construído no âmbito da
atividade discursiva,na qual quem fala, o enunciador, constrói uma imagem dentro de
um cenário da enunciação que é proferido. Ainda citando o autor (2011), a imagem é
ligada ao tom que acompanha o discurso,materializa o caráter do enunciador. A
respeito dos textos escritos, a corporalidade do enunciador é revelada por pistas,
sendo assim, uma representação subjetiva,denominada por Maingueneau de figura
do "fiador" - que não necessariamente representa o enunciador efetivo. Dessa forma,
a imagem do enunciador é construída pelo texto e não precisa coincidir com as ideias,
posturas do autor real.
Em suma, a construção da imagem, do ethos, deixa marcas linguísticas e
textuais na materialidade discursiva pelas quais conseguimos captar características da
imagem do enunciador que proporcionam ao enunciatário a possibilidade de
BLANCO, Yedda Alves de Oliveira Caggiano | 2020 | p. 345-364
350
A construção da imagem feminina nos enunciados exortativos e assertivos ...
construção da imagem do enunciador. Ainda, conforme o autor, embora o ethosesteja
crucialmente ligado ao ato de enunciação, "não se pode ignorar que o público
constrói também representações do ethos do enunciador antes mesmo que ele
fale"(MAINGUENEAU, 2011, p. 15).
Em tal sentido, Maingueneau e Charaudeau (2016, p. 211), afirmam queo
"ethos discursivo mantém relação estreita com a imagem prévia que o auditório pode
ter do orador ou, pelo menos, com a ideia que este faz do modo como seus alocutórios
o percebem" e que"a representação da pessoa anterior a sua tomada de turno [...] está
frequentemente no fundamento da imagem que ele constrói em seu discurso".Por
exemplo, numa sessão de um Congresso, a audiência espera que o político, ao proferir
um discurso, seja claro e coeso nas informações que são dadas e, principalmente, que
sua fala seja reflexo das ideias políticas do partido pelo qual se elegeu.
Tais expectativas, muitas vezes, podem ser influenciadas pelos estereótipos, ou
seja, pelas expectativas mais ou menos consolidadas por fatores históricos e sociais,
como classe social, por exemplo, que os interactantes têm de si. Tais expectativas
refletem e, ao mesmo tempo, são um reforço dos estereótipos presentes na
comunidade de fala, que podem orientar a maneira de nos dirigirmos ao outro, por
exemplo, na forma de fazermos pedidos.
Em relação aos estereótipos, segundo Maingueneau e Charaudeau (2016, p.
213), são "representações cristalizadas, crenças pré-concebidas, frequentemente
nocivas a grupos ou indivíduos". De fato, a formação do estereótipo é marcada pela
repetição contínua de determinadas características, discursivamente; e, nesse sentido,
Amossy (1991, p. 21), caracteriza-o como uma "imagem pré-fabricada" que circula
"monotonamente nos espíritos e textos".
O conceito de "imagem pré-fabricada" dada por Amossy ajusta-se,
perfeitamente, ao propósito da análise que passaremos a descrever. Como veremos,
nos exemplos dos diálogos dos livros didáticos escolhidos, há uma repetição
enunciativa colocada na figura da voz feminina, que perpetua uma característica de
mulher "queixosa" ou de alguém que se atribui de "pouca fé".
2 Construção e apresentação do corpus
O material didático é uma ferramenta pedagógica "na qual se apresenta a
intervenção de vários agentes no processo de produção: autores, revisores, editores
pedagógicos [...], o conteúdo expresso por ele é fruto de uma ampla discussão a
respeito de quais tópicos possam representar a língua-alvo"(BLANCO, 2017, p. 189).
Desse modo, o material didático, em específico o livro de PLE, busca desenvolver nas
suas unidades de ensino um recorte da língua-alvo com o objetivo de que o
aprendente possa captar determinadas características de uso e estrutura da
comunicação. Diante desse cenário da representação e do recorte apresentado nas
obras é que buscamos descrever como os enunciados de pedidos de conserto são
constituídos por seus interlocutores.
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Discurso e poder: teoria e análise
Para a formação do corpus para a análise, elegemos livros didáticos de PLE que
possuem uma aceitação no mercado editorial comprovada pela continuidade das
publicações. Com tal critério, foram escolhidas as seguintes obras que possuem mais
de quatro edições ou reimpressões, conforme o quadro abaixo:
Quadro 1. Obras selecionadas de PLE
LIVROSDE PLE
AUTORES (AS)
LOCAL/EDITORA/ANO DE
PUBLIÇÃO E Nº DE EDIÇÃO
Aprendendo Português do
Brasil
Maria Nazaré de Carvalho
Laroca, Nadine
Bara& Sonia Maria da Cunha
Campinas, São Paulo:
Pontes Editores Ltda
1992
4º (2003)
Falar, Ler e Escrever
Português: Um Curso para
Estrangeiros (reelaboração
de Falando, Lendo,
Escrevendo Português
Emma E. O.F. Lima e Samira
A I.
Bem-Vindo! A língua
portuguesa no mundo da
comunicação
Maria HarumiOtuki de
Ponce; Silvia Andrade
Burin& Susanna Florissi
São Paulo, Editora SBS
1999
Muito Prazer
Fernandes, Gláucia Roberta
Rocha; Ferreira, Telma de
Lurdes São Bento; Ramos,
Vera Lúcia
São Paulo, Disal
Elizabeth Fontão do
Patrocínio e Pierre Coudry
São Paulo, Campinas,
Pontes Editores Ltda
Fala Brasil, Português para
Estrangeiros
São Paulo: Ed. EPU
1999
4º (2017)
9º (2017)
2009
6º reimpressão
1989
18º (2017)
Fonte: elaboração própria.
A partir dessa lista inicial dos livros de PLE, fez-se a seleção das unidades cujos
tópicos fossem relacionados à temática de "como fazer pedidos para consertos em
geral", e observamos que, no total de 5 livros didáticos, apenas 3 apresentavam
situações de pedido de consertos; que esses tipos de pedidos são atribuídos, na maior
parte, às vozes femininas (6 na soma, ao passo que as masculinas aparecem 3 vezes);
e que, também, as situações mais frequentes referiam-se a "serviços de encanador" (3
vezes), encontrados nos seguintes manuais:Aprendendo Português do Brasil, BemVindo: a língua portuguesa no mundo da comunicação e Fala Brasil, Português para
Estrangeiros.
Para que possamos ter uma visão das obras, vamos detalhar os específicos
contextos de produção dos manuais, descrevendo a proposta de cada material, a
estrutura composicional das suas unidades de ensino e os possíveis leitores. Vejamos:
a) Aprendendo Português do Brasil: um curso para estrangeiros, de autoria de
Maria Nazaré de Carvalho Laroca, Nadine Bara & Sonia Maria da Cunha, pertence à
editora Pontes e está na 4º edição (2003). Na apresentação as autoras (2004,
apresentação) informam que a obra tem o objetivo de fazer o aluno "dominar em
pouco tempo as estruturas fundamentais da Língua Portuguesa, nas modalidades oral
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A construção da imagem feminina nos enunciados exortativos e assertivos ...
e escrita". Na sua forma estrutural, o livro se apresenta em um único volume dividido
em 13 unidades situacionais que são compostas pelas seguintes partes: uma
"motivação", com história em quadrinhos da Turma da Mônica; o "diálogo"; "conteúdo
gramatical"; "aplicação"; "expansão vocabular"; "atividades"; e "leitura
complementar"; enfatiza que o material "destina-se ao uso em sala de aula" , não
especificando características do aprendente ao qual está destinado.A situação que
vamos analisar, "chamando o bombeiro", faz parte da unidade 12.
b) Bem-Vindo: a língua portuguesa no mundo da comunicação, um dos
materiais mais utilizados no ensino de português como segunda língua no Brasil e, até
o momento, encontra-se na 9º edição.Originalmente publicado pela Special Book
Services (SBS) e, agora, tem publicações em parceria com a HUB Editora. Na descrição
do livro, as autoras informam que é uma obra "ao vivo e em cores para você que quer
aprender o nosso português falado como ele é". E, mais adiante, sobre o conteúdo da
obra, elas esclarecem que o livro contém “um pouco da História, cultura e sociedade
brasileiras ganham parte deste livro elaborado especialmente para suprir a grande
necessidade de um material dinâmico e interativo cujo foco central é
COMUNICAÇÃO” (PONCE;BURIM;FLORISSI, 2007, Apresentação).Também se
preocupam em esclarecer que o ensino do português falado não negligenciará "as
necessárias referências à Gramática Normativa", fato que se justifica pelo acréscimo na
nova edição de três apêndices "na dura tarefa de explicar e entender a gramática da
Língua Portuguesa". Este material se apresenta em um único volume e está dividido
em 5 grupos temáticos: “Eu e você”, “O Brasil e sua língua”, “A sociedade e sua
organização”, “O trabalho e suas características” e “Diversão-cultura”, compondo um
total de 20 unidades e 03 apêndices (O Alfabeto, Gramática, Vocabulário), distribuídas
nas 221 páginas do material. Juntamente à obra, há o manual do professor, o caderno
de exercícios, e áudios CDs. Na apresentação não faz alusão às características do
possível aprendente. A unidade sobre pedidos de consertos se encontra na unidade
9.
c) Fala Brasil: português para estrangeiros, composto por um único volume e,
segundo os autores, apresenta-se como um método de ensino linear no qual as
estruturas e situações são retomadas. Também, reforçam o caráter do uso da língua
em ação, isto é, "os diálogos Dirigidos são o elo de ligação entre a simples capacidade
de conjugar um verbo e a capacidade de utilizá-lo em situações práticas [...] já que
foram coletadas em diferentes contextos de uso real da língua". Destacam que
apresentam a cultura brasileira "em situações de vida cotidiana de modo a evitar os
aborrecidos textos informativos", (FONTÃO & COUNDRY, 1989, apresentação). Ainda,
os autores enfatizam que o "sistema de índices adotado [...] possibilita uma utilização
votado à necessidade de cada aluno"; contudo, na obra, não se caracteriza esse aluno.
Atualmente, o livro encontra-se na 18º edição, é composto por 13 unidades e a
situação escolhida, "Emergência: chamando o encanador", encontra-se na unidade
XII.
Especificamente, quanto ao contexto de produção das obras, percebemos que
são editoras que se concentram em São Paulo (2 em Campinas, 1 na capital), que a
autoria dos livros é de maioria do sexo feminino (7 autoras e 1 autor); e que há certa
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Discurso e poder: teoria e análise
semelhança composicional entre eles, uma vez que introduzem as unidades de ensino
com situações comunicativas a partir de diálogos recriados. Como já pontuamos, os
manuais escolhidos têm mais de quatro edições ou reimpressões.
Como consequência, se há publicações contínuas, significa que há um públicoleitor e consumidor desse tipo de material que tem interesse na aprendizagem da
língua portuguesa. Segundo Almeida Filho (2018, p. 41-42), "ensinar o curso de PLE
no exterior está ganhando cada vez mais espaço e intensidade no contexto da oferta
desse idioma e cultura brasileira" e, segundo o autor, isso tem acontecido pela posição
econômica que o Brasil ocupa no mundo.
Conforme observamos, as obras não se preocuparam em traçar um perfil do
possível leitor, talvez, pelo fato de ainda não termos dados mais específicos sobre esse
tema. Como aponta Almeida Filho (2018, p. 47) "não dispomos de dados estatísticos
mais seguros para a população mundial de pessoas que adquiririam o Português
como língua de comunicação esporádica". Contudo, os possíveis interlocutores
desses manuais seriam desde os empresários, estudantes de escolas bilíngues,
refugiados e os simpatizantes com a língua e a cultura brasileira.
Diante desse cenário,é fundamental observar como se comporta o livro
didático na instância discursiva, sem esquecer que o livro didático de PLE é um recurso
didático e que, como uma ferramenta reprodutora de enunciados próximos à
autenticidade dos atos de fala, busca a manutenção de uma visão social consolidada,
estabelecida na comunidade ali representada.
2.1 A análise do corpus
A situação comunicativa de pedidos de consertos mais comum apresentada
pelos livros de PLE relaciona-se ao serviço de encanador, deixando outros tipos de
consertos ausentes ou em segundo plano (Quadro2). Também, a partir dos diálogos,
contabilizamos que os enunciados proferidos pela voz feminina está presente em 6
situações e a masculina em 3.
Quadro 2. Seleção de livros de PLE e das unidades sobre pedidos de consertos
LIVRO DE PLE
PEDIDO (TIPO DE
CONSERTO)
VOZ DE QUEM PEDE O
SERVIÇO:
M (Mulher) /
H (Homem)
Aprendendo Português do
Brasil
Chamando o bombeiro
(encanador)
1M
Bem-Vindo: a língua
portuguesa no mundo da
comunicação
Encanador/ instalação
elétrica/pintura/máquina de
lavar/pedreiro/ zelador
4M
Fala Brasil, Português para
Estrangeiros
Encanador
Médico
1H
1M
2H
Fonte: elaboração própria
Com esse levantamento, passaremos a analisar o corpus de modo descritivo.
Inicialmente, vamos descrever a posição onde o diálogo se encontra na unidade de
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A construção da imagem feminina nos enunciados exortativos e assertivos ...
ensino; depois, faremos a análise analítica dos enunciados, decompondo-os em partes
nas quais possamos observar a interação no seu contexto geral e específico da
produção; e comparar como os diálogos constroem discursivamente a imagem
feminina. Vejamos:
a)Exemplo 1: este diálogos e encontra na unidade 12, penúltima do livro
Aprendendo Português do Brasil.Como todas as outras lições, inicia-se com uma
história em quadrinhos (Motivação) que é somente para leitura e, na sequência, temos
o diálogo, conforme mostra a Figura 2. Após o diálogo, há uma seção denominada
"conteúdo gramatical", com o ensino do imperfeito do subjuntivo, pronomes
relativos,voz passiva e exercícios das estruturas desses tópicos gramaticais; depois,
uma seção denominada "expansão vocabular" que apresenta uma lista de palavras
relacionadas ao "correio" com uma atividade com um cartão postal e, por fim, "leitura
complementar" seguida da compreensão de texto.Observa-se, a partir dessa
sequência, que a situação "chamando o bombeiro" não se desdobra em outras
atividades.
Figura 2. Chamando o bombeiro4
Fonte: Aprendendo português do Brasil (p.156).
4
A palavra "bombeiro" refere-se a encanador também e é de largo uso da região do Rio de Janeiro.
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Discurso e poder: teoria e análise
b) Exemplo 2: este diálogo faz parte do livro Bem-Vindo: a língua portuguesa
no mundo da comunicação, encontra-se na divisão do grupo 3 denominada "A
sociedade e sua organização", unidade 9, "o lar".
A unidade se inicia com o diálogo "Alugando uma casa" que destaca o uso dos
advérbios de lugar, modo e as respectivas locuções adverbiais; apresentam mais outro
diálogo "Num stand de vendas”, com atividades sobre compra e venda de casa e
apartamento na planta; depois, temos a apresentação de 6 mini diálogos
correspondentes aos pedidos de consertos e, em seguida, apresenta uma lista de
vocábulos sobre "louças e talheres". Na continuação, desenvolve atividades
relacionadas à descrição de partes da casa, um trecho de um texto para discussão e,
por fim, um texto sobre "História do Brasil".Na Figura 3, mostramos os mini diálogos
e, na Figura 4, destacamos o diálogo correspondente à situação de pedido de
conserto ao encanador, que vamos analisar.
Figura 3. O lar
Fonte: Bem-vindo! (p. 86).
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A construção da imagem feminina nos enunciados exortativos e assertivos ...
Figura 4. Diálogo com o encanador
Fonte: Bem-vindo! (p. 86).
c) Exemplo 3:este diálogo faz parte da unidade XII do material Fala Brasil,
Português para Estrangeiros. A unidade começa com uma música "Hora da razão",
com foco no uso da perífrase "deixar de" e a sistematização do seu uso com exercícios.
Segue com a apresentação do futuro e do pretérito perfeito do subjuntivo,
exemplificados na seção de "Diálogos dirigidos", que contém seis mini diálogos para
enfatizar esse estudo gramatical e mais exercícios. Na sequência, há a situação
"Emergência" na qual aparecem os diálogos "Chamando o encanador" e "Médico à
noite".Por fim, a obra retoma as orações condicionais e apresenta os "pronomes
relativos" com mais exercícios gramaticais.
Figura 5. Chamando o encanador
Fonte: Fala Brasil (p. 186).
Como podemos perceber, a colocação desses diálogos ("Chamando o
bombeiro" na unidade 12 (num total de 13), "Chamando o encanador" na unidade 12
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Discurso e poder: teoria e análise
(num total de 15) e "O lar", unidade 9 (num total de 20)nos faz crer que o aprendente
já tenha certo conhecimento de estruturas e formas de pedidos que foram trabalhadas
em lições anteriores, como, por exemplo, pedidos em situações "no restaurante, "de
informes sobre lugares", "acomodações no hotel" etc.Desse modo, pressupõe-se que
o objetivo dessas unidades de ensino será fazer com que o aprendente adquira mais
conhecimento sobre estruturas ou fórmulas conversacionais de como fazer pedidos
de algum conserto, juntamente com o ensino de fórmulas de negociação para
concretizar a solicitação.
No contexto geral apresentado nos diálogos, há uma semelhança de condições
que podem ser descritas da seguinte forma: uso de uma temática pautada no
cotidiano das interações sociais; uso de uma interação interpessoal, marcada por
interlocutores em posições distintas e de caráter profissional, isto é, presença de uma
relação social e funcional entre eles; uso de um registro de linguagem informal, apesar
de os interlocutores terem uma relação hierárquica distinta marcada pela forma de
tratamento ("seu", "dona", "senhor"); e, por último, a relação de gênero entre os
interlocutores, na qual observamos as relações: no diálogo 1: Mulher- Homem (M-H),
no diálogo 2: Mulher- Homem (M-H)e no 3: Homem-Homem (H-H).
Quadro 3. Contextos de interação geral e específico
CONTEXTO
DIÁLOGO 1
"Chamando o
bombeiro"
DIÁLOGO 2
"O lar"
DIÁLOGO 3
"Chamando o
encanador"
Geral
Chamada telefônica
para o encanador e
pedido de conserto
Diálogo face a face
entre os interlocutores
no local do conserto
Chamada telefônica
para o encanador e
pedido de conserto
Específico
- 2 interlocutores:
Homem e mulher
- 2 interlocutores:
Homem e mulher
- 2 interlocutores:
Homem e homem
- Relação profissional,
mas com certa
familiaridade
- Relação profissional,
- Forma de tratamento:
senhora
- Relação profissional,
mas com certa
familiaridade
-Forma de tratamento:
dona/ seu
- Forma de tratamento:
seu/ seu
Fonte: Elaboração própria
Ainda, quanto à apresentação dos contextos, temos os diálogos 1 e 3
realizados mediante chamadas telefônicas e, no diálogo 2, a presença dos
interlocutores na própria cena do conserto.Na sequência da análise, vamos observar
como a presença face a face ou a interação mediante a chamada telefônica pode ou
não interferir também na construção da imagem feminina.
No diálogo 1, a interação inicia-se com a identificação dos participantes e o
motivo da ligação, ou seja, o pedido de conserto:
(1) C: Alô? É da casa do "Seu" Manuel?
M: É sim. É ele mesmo.
C: Aqui é a D. Carmela. Queria que o senhor visse a pia da cozinha que está entupida.
M: Mas, D. Carmela, esse serviço já não foi feito na semana passada?
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A construção da imagem feminina nos enunciados exortativos e assertivos ...
Na identificação, a forma de tratamento usado por dona Carmela mostra que
os interlocutores possuem certo distanciamento social ("É da casa do "seu" Manoel?"),
esse possessivo substitui a forma "senhor", o qual revela que não há intimidade entre
ambos. Tal fato se confirma nas próximas interações, nas quais se alternam o uso de
"seu" com "senhor". Por sua vez, o interlocutor também utiliza a forma de
distanciamento social "dona", reiterando a falta de intimidade.
Em seguida, o modo como a mulher, D. Carmela, faz o pedido é
indireta("queria que o senhor visse..."). Notam-se, assim,duas estratégias atenuadoras
sobrepostas: a) a formulação perifrásica do pedido com o uso do verbo "querer", no
pretérito imperfeito, que produz um deslocamento do eixo dêitico temporal (agora)
para que o pedido não soe ríspido ou impositivo; b) o deslocamento dêitico que se vê
reforçado pelo emprego do verbo "ver" no pretérito imperfeito do subjuntivo ("visse").
Percebe-se no pedido a preocupação pelo equilíbrio da imagem ao ter usado os
recursos de atenuação com o propósito de não invadir o território do interlocutor; e,
por outro lado, de preservar a auto imagem, evitando parecer impositiva.
Entretanto, a forma como o interlocutor contesta ("Mas, D. Carmela, esse
serviço já não foi feito na semana passada?"), ameaça a imagem da ouvinte, pois
coloca em dúvida a legitimidade de seu pedido de conserto, bem como o
conhecimento sobre que serviço foi feito na residência dela.
Na sequência:
(2) C: Não, “seu” Manuel! O senhor veio aqui para fazer outra coisa. Será que o senhor
não podia dar uma chegada aqui em casa agora?
M: Olha, D. Carmela, se eu pudesse ia agora mesmo. Mas tenho outro serviço urgente
para fazer.
Nesse trecho, observamos que a locutora defende a racionalidade de seu
pedido rigorosamente ("Não, “seu” Manuel!"), procurando restabelecer a sua imagem
ferida pelo interlocutor. A justificativa ("O senhor veio aqui para fazer outra coisa") é
empregada como uma forma de mitigação que repara o ato de fala assertivo anterior,
desse modo, protege ambas as imagens e restabelece o equilíbrio entre elas. Aqui, D.
Carmela emprega novas estratégias de atenuação para realizar o pedido, como a de
forma indireta ("Será que o senhor não podia dar uma chegada..."), mediante uma
perífrase "será que" + infinitivo. Nessa formulação da exortação, encontramos
novamente um deslocamento do eixo temporal quando se emprega o verbo no
futuro– "será" – e o verbo modal "poder" no pretérito imperfeito– "podia". Tudo isso
revela o excesso de zelo que a interlocutora põe no trabalho de restabelecimento das
imagens (facework).
Quando o encanador responde, percebemos que usa o marcador discursivo
"olha", que é uma forma de contato para amenizar a sequência negativa do enunciado,
uma vez que previne o interlocutor de uma resposta que pode ferir sua imagem, e a
realização da negativa ao pedido de forma indireta: "se eu pudesse ia agora mesmo".
Como vemos no enunciado, o encanador emprega uma fórmula condicional "se eu...",
mais o emprego do verbo modal "poder" no pretérito imperfeito do subjuntivo, o que
produz um maior distanciamento doeixo dêitico temporal agora, com o qual suaviza o
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Discurso e poder: teoria e análise
seu enunciado. A tais estratégias, acrescenta-se a justificativa de sua negativa de
atender ao pedido ("tenho outro serviço urgente"), que repara o ataque à imagem
produzido.
Face ao impasse, quase no fim da interação, temos a negociação:
(3) C: E hoje à tarde, é possível?
M: Humm... E se fosse amanhã cedo?
C: Está bem. Mas por favor, amanhã, sem falta!
M: Pode deixar, D. Carmela. A senhora me conhece! Amanhã, às sete horas, estou aí.
Na solicitação da mulher ("E hoje à tarde, é possível?"), vemos o emprego de
três estratégias claras de mitigação: a) a formulação de pedido mediante uma
pergunta; b) o emprego da impessoalização– "é possível" – que desfocaliza o "tu"; e c)
a elição do verbo performativo "vir".
A resposta dada("Humm...E se fosse amanhã cedo?") também tem
procedimentos linguísticos de atenuação, como emprego da forma condicional e o
verbo ser no pretérito imperfeito do subjuntivo que tentam fazer o ato de fala diretivo
ser menos invasivo do território do interactante.
Notamos que, no exemplo analisado, o interlocutor, ao afrontar à veracidade
do pedido, colocou a imagem da mulher em risco ao duvidar da legitimidade do
pedido, rompendo o equilíbrio interacional que pressupõe o princípio da cooperação
na comunicação, segundo Grice5(1975).A interação só volta a ter esse equilíbrio
quando a participante feminina, diante à defesa da sua imagem ("Não, “seu” Manuel!"),
faz uso de estratégias mitigadoras como a justificação e a formulação do pedido com
vários procedimentos linguísticos como vistos anteriormente.
À continuação, para mostrar como o pedido realizado por uma voz feminina é
posto em evidência de modo negativo, vamos passar para o diálogo 2 apresentado
no livro Bem-vindo!. No contexto também temos uma conversa entre um homem
(encanador) e uma mulher (dona do local). A conversa se realiza face a face e veremos
que ambos procuram preservar ou minimizar os enunciados. Vejamos:
(4) J: Não tem jeito não senhora! Vamos ter que trocar o cano.
F: Mas é um vazamento tão pequeno! Não dá para consertar o cano?
J: Não dá não! Vamos ter que quebrar os azulejos e trocar o cano bem em cima da
bacia sanitária.
F: Oh! Meu Deus! E se não acharmos azulejos iguais?
Nessa interação face a face, o trabalho de imagem é mais meticuloso entre os
interlocutores, por exemplo, o homem, ao dar a notícia desfavorável, usa uma
estratégia de atenuação para tornar o enunciado mais suave –"vamos"–desfocalizando
o centro dêitico "eu"(nós inclusivo) do locutor, o qual o apresenta de forma menos
imperativa e cria uma cumplicidade com o interlocutor.Mesmo a mulher, ao contestar
a notícia começa pela exposição de uma justificativa ("mas é um vazamento tão
pequeno") que antecipa e previne a possível ameaça à imagem do interlocutor por
Grice (1975[1982], p. 86), sobre o "Princípio de cooperação", postula: " faça sua contribuição
conversacional tal como é requerida, no momento em que ocorre, pelo propósito ou direção do
intercâmbio conversacional em que você está engajado."
5
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A construção da imagem feminina nos enunciados exortativos e assertivos ...
invasão do território que produzirá o pedido que será feito. Quando, ao realizar o
pedido de forma indireta, mediante uma formulação negativa ("não dá para consertar
o cano?"), para não parecer ser tão impositiva, de fato, evita invadir o território do outro
e, também, preserva sua própria imagem.
Nos enunciados, percebemos que a voz masculina é, embora atenuada,
sempre assertiva "Vamos ter que trocar o cano" ou "Vamos ter que quebrar os
azulejos". Ao passo que as enunciações feita pela mulher expressam: a) um argumento
de súplica: "Mas é um vazamento tão pequeno! ";b) timidez:"Não dá para consertar o
cano?"; c) apelo: "Oh, meu Deus"; d) desespero: "E se não acharmos azulejos iguais?".
Esses enunciados constroem ou retratam a imagem da mulher marcada pelo
uso excessivo de sentimentalismo, presentes nas exclamações e no uso da interjeição
apelativa ("Oh, meu Deus"), que dão ao discurso um tom de desespero ou sobre
atuação da interlocutora e reforçam o tom dramático à situação apresentada.De fato,
não há aqui uma ideia de descrédito da voz feminina, como no diálogo anterior, mas
a construção de uma imagem aflita e agoniada como se não fosse capaz de aceitar a
realidade fática.
Diferente dos diálogos 1 e 2, a próxima interação, obtida do livro Fala Brasil,
ocorre entre dois participantes masculinos. Os enunciados iniciam com a identificação
dos participantes, pois não é uma interação face a face:
(5) - Alô?
- O seu Clemente está?
- É ele mesmo.
- Seu Clemente? Aqui é o Silva da farmácia. Tudo bem?
Após a apresentação, o interlocutor tem certeza de que quem chama está
precisando de algo:
(6) - Oi, seu Silva! O que o senhor manda?
- É a descarga do banheiro que não está funcionando.
- Tudo bem. Eu dou um pulinho aí daqui a meia hora.
- Tá ótimo, seu Clemente. Até já.
Assim, observamos que o pedido é feito aludindo à indicação de que há um
problema (“É a descarga do banheiro...").O locutor não faz o pedido de forma direta,
informa que a descarga não funciona, sugere que necessita de conserto, isto é, usa na
asserção uma indiretividade que só pode ser compreendida pelo contexto onde é
produzido e pela "simples referência ao objeto" (HAVERKATE, 1994, p. 157): "a
descarga não funciona".Feita a referência ao objeto quebrado, o interlocutor
interpreta o ato de fala como um pedido, assim como seu caráter de urgência, pelo
qual agenda o conserto imediatamente: “dou um pulinho aí daqui a meia hora."
Em comparação aos diálogos 1 e 2, nota-se que no exemplo 3 não há dúvidas
sobre o problema, não há necessidade de negociação do serviço, não há possíveis
queixas sobre se terá que quebrar o azulejo ou não.
Assim, os atos de fala se organizam em "pares adjacentes" que devem ser
entendidos como sequências de enunciados produzidos pelos falantes (HAVERKATE,
1994, p.74). Em conformidade, as autoras Ferrer e Lanza (2002, p. 12), afirmam que:
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Discurso e poder: teoria e análise
"as segundas partes que satisfazem as expectativas das primeiras são denominadas
respostas preferidas [...] enquanto que as respostas que significam rejeição, não
aceitação [..] são as despreferidas".
De tal modo, ante o pedido de um serviço, que é um ato diretivo em benefício
próprio, espera-se uma resposta positiva (resposta preferida)que, em caso de não ser
assim, teoricamente deveria ser expressa de modo cortês, uma vez que frustram as
expectativas do interlocutor.Nos enunciados apresentados nos diálogos, podemos
observar a seguinte estrutura conversacional entre os participantes:
Quadro 4. ESTRUTURA DA CONVERSAÇÃO
Tomada de
turnos
Organização
interacional
Sistema de
preferências
DIÁLOGO 1
Alternância de turnos
DIÁLOGO 2
Alternância de turnos
DIÁLOGO 3
Alternância de turnos
Pares adjacentes
prototípicos
(pergunta-resposta)
Não preferencial
(negação do pedido;
negociação,
aceitação)
Marcas: olha, mas,
hum, desculpas,
justificativas
Pares adjacentes
prototípicos (perguntaresposta)
Não preferencial
(negação do pedido;
negociação, aceitação)
Marcas: mas,
justificativas
Pares adjacentes
prototípicos (perguntaresposta)
Preferencial (resposta
imediata em benefício
do locutor)
Não marcada
Fonte: Elaboração própria
Ainda, em relação à estrutura da conversação, notamos que os turnos dos
diálogos 1 e 2 apresentam um sistema de preferências marcadas por léxicos que
exprimem a negociação entre os interlocutores, conforme o quadro 5. Assim, percebese que no sistema de preferências as marcas discursivas se fazem significativamente
presentes nesses dois diálogos, nos quais podemos observar as táticas de negociação
entre os interlocutores.
Quadro 5. Táticas de negociação
Negociação
Dúvida sobre
o pedido
Negação ao
pedido
Sugestão
para o
conserto
Concordância
com o
pedido
DIÁLOGO 1
Mas, D. Carmela, esse serviço já não
foi feito na semana passada?
a) Olha, D. Carmela, se eu pudesse ia
agora mesmo. Mas tenho outro
serviço urgente para fazer.
b) Humm... E se fosse amanhã cedo?
DIÁLOGO 2
DIÁLOGO 3
X
X
X
X
X
Não dá para
consertar o cano?
X
Pode deixar, D. Carmela. A senhora
me conhece! Amanhã às 7 horas,
estou aí.
Vamos ter que
quebrar os
azulejos...
Eu dou um
pulinho aí daqui
a meia hora.
Fonte: Elaboração própria
Os exemplos acima, com enunciados dentro do mesmo eixo temático de
"pedido de serviço de encanador", mostraram-nos uma visão do ato de fala da voz
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A construção da imagem feminina nos enunciados exortativos e assertivos ...
feminina marcada por dúvida ou falta de credibilidade. E, retomando os pontos sobre
o ethos efetivo (Figura 1), apresentado na base teórica, sabe-se que há diversas
construções discursivas na interação que podem levar aos estereótipos com a
repetição de certas características, a colocação sempre de determinadas atitudes em
determinados tipos de imagens, a negação de posicionamentos etc. que podem
reforçar a construção desse tipo discursivo.
Em relação aos enunciados analisados, vê-se a marca de uma característica
presente na construção da locutora feminina nos diálogos apresentados, ou seja, uma
imagem pré-fabricada de um tipo de mulher que não sabe o que pede (mesmo que
seja para o conserto do cano), ou daquele tipo de imagem de queixume sobre
determinado fato dado (Oh, meu Deus!).
Fica evidente que, na apresentação dos enunciados sobre atos de fala de
pedidos diretivos que se apresentam nesses materiais analisados,a imagem feminina
é construída como a voz que pode ser questionada, colocada em dúvida – mantém
certo tipo de estereótipo que, em contraste com a imagem masculina apresentada na
análise, parece não condizer com a realidade do século XXI.
Também, podemos percebê-los como atos que colaboram com a visão de Van
Dijk e Diana Bravo quando fazem referências às questões de contexto e modelo
mental. Van Dijk (2012, p.34) esclarece que o contextodeve partir do princípio de que
é um construto subjetivo dos participantes, no qual as “situações sociais só conseguem
influenciar o discurso através de interpretações (intersubjetivas) que delas fazem os
participantes.” Esse construto faz parte de um modelo mental, individual, e não só
situacional. Desse modo, a repetição de determinadas imagens sociais contribui para
consolidar o estereótipo construído no discurso.
Considerações finais
O objetivo do artigo foi mostrar como os livros didáticos de PLE apresentam as
vozes femininas nos atos de fala de pedidos de serviços. No corpus para a análise,
usamos manuais que contemplavam o ensino de como fazer pedidos para consertos
em geral e obtivemos, como eixo comum, situações de pedidos por serviço de
encanador.
Na análise, verificou-se que, nos enunciados para fazer os pedidos desse tipo
de serviço, a imagem da mulher era posta em destaque com atos ameaçadores a sua
face, expondo-as a situações que precisariam convencer o outro a respeito do pedido.
A voz, muitas vezes, colocada em dúvida na enunciação, pedia que houvesse, nesses
casos assinalados, a necessidade de negociar o serviço. Ao contrário, a voz masculina
não foi colocada em situações ameaçadoras à imagem e nem posta em dúvida pelo
interlocutor, pois, ao realizar o pedido, obtinha a resposta preferida prontamente, sem
questionamentos ou negociações.
Conclui-se que o discurso reproduzido, nesses livros analisados, contribui para
a perpetuação de um estereótipo que, nos dizeres de Amossy (1991), é “préfabricado” e recriado nos textos "monotonamente". Em consequência, perpetua-se a
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Discurso e poder: teoria e análise
ideia de que a mulher não sabe explicar ou ser convincente sobre o ato de realizar os
pedidos, uma vez que as situações produzidas colocam em dúvida tal capacidade,
apresentando, na maior parte das vezes, uma construção de mulher queixosa e não
confiável.
Por fim, também, percebe-se que há nos materiais analisados, uma
manutenção de um aspecto social e linguístico dados como tipicamente da mulher
por meio da repetição dessa imagem estereotipada que necessita ser afrontada e
desqualificada pela imagem do Outro.
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Disponível
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Como citar
BLANCO, Yedda Alves de Oliveira Caggiano. A construção da imagem feminina nos
enunciados exortativos e assertivos nos livros didáticos de PLE. In: GONÇALVESSEGUNDO, Paulo Roberto; ARAES, Célia Regina; CASTANHEIRA, Claudia; ISOLALANZONI, Gabriel; PENITENTE, Natalia; WEISS, Winola (orgs). Discurso e poder:
teoria e análise. São Paulo: FFLCH/USP, 2020, p. 345-364. DOI:
10.11606/9786587621241
BLANCO, Yedda Alves de Oliveira Caggiano | 2020 | p. 345-364