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Discurso e poder teoria e análise

2020, Editora FFLCH/USP

https://doi.org/10.11606/9786587621241

O livro reúne vinte capítulos – aprovados em avaliação cega por pares e produzidos por docentes e por pesquisadores de todos os níveis acadêmicos (Iniciação Científica, Mestrado, Doutorado e Pós-Doutorado), vinculados à USP e a outras universidades brasileiras – que ilustram a diversidade de olhares teórico-metodológicas no campo dos Estudos Discursivos, bem como de suas áreas afins, para o exame de diferentes práticas sócio-historicamente ancoradas de produção, distribuição, consumo e interpretação de textos, tais como a educacional, a artística e a midiática. As principais perspectivas que embasam os estudos reunidos nessa coletânea consistem na Análise do Discurso de linha francesa, na Análise Crítica do Discurso, na Análise Dialógica do Discurso, na Semiótica, na Linguística Funcional, na Linguística Cognitiva, na Linguística Aplicada, na Lexicologia e na Teoria Literária

Paulo Roberto Gonçalves-Segundo Célia Regina Araes Claudia Castanheira Gabriel Isola-Lanzoni Natalia Penitente Winola Weiss (organizadores) Discurso e poder: teoria e análise FFLCH/USP Copyright © 2020 FFLCH/USP Revisão técnica Paulo Roberto Gonçalves-Segundo Célia Regina Araes Claudia Castanheira Gabriel Isola-Lanzoni Natalia Penitente Winola Weiss Conselho Editorial Adrián Pablo Fanjul Adriana Santos Batista Agildo Santos Silva de Oliveira Alexandre Marques Silva Aline Brito Nascimento Ana Carolina Sperança Criscuolo Ana Elvira Luciano Gebara Andréa Gomes de Alencar Anya Karina C. D'Almeida e Pinho Artur Daniel Ramos Modolo Beatriz Daruj Gil Bruno Anselmi Matangrano Cibélia Renata da Silva Pires Cristiane Ferreguetti Cristiane Fuzer Cristina Lopomo Defendi Denise Tamaê Borges Sato Denísia Moraes dos Santos Elisabetta A. R. M. Carmela Santoro Ênio Sugiyama Fábio Fernando Lima Fabio L. C. Mourilhe Silva Filipe Mantovani Ferreira Flavia Silvia Machado Frederico Rios Cury dos Santos Helânia Thomazine Porto Helson F. da Silva Sobrinho Kelly Cristina de Oliveira Lucia Helena Lopes Matos Luiz Antonio da Silva Luiz Antonio dos Prazeres Maria Lúcia C. V. O. Andrade Maria Otilia Guimarães Ninin Maurício Beck Miguel Luiz Contani Milan Puh Nathália Luiz de Freitas Neide Takahashi Paula de Souza Gonçalves Morasco Priscilla Barbosa Ribeiro Renata Barbosa Vicente Renata Ferreira Munhoz Renata Palumbo Roberto Lestinge Rubens Damasceno Morais Taísa Peres de Oliveira Urbano Cavalcante da Silva Filho Valci Vieira dos Santos Vima Lia de Rossi Martin Zilda Gaspar Oliveira de Aquino Universidade de São Paulo Reitor: Prof. Dr. Vahan Agopyan Vice-Reitor: Prof. Dr. Antonio Carlos Hernandes Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP Diretor: Prof. Dr. Paulo Martins Vice-Diretora: Profa. Dra. Ana Paula Torres Megiani Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas Chefe: Prof. Dr. Manoel Mourivaldo Santiago Almeida Suplente: Profa. Dra. Adma Fadul Muhana Programa de Pós-Graduação em Filologia e Língua Portuguesa Coordenadora: Profa. Dra. Maria Clara Paixão de Sousa Vice-coordenador: Prof. Dr. Phablo Roberto Marchis Fachin Discurso e poder: teoria e análise Paulo Roberto Gonçalves-Segundo Célia Regina Araes Claudia Castanheira Gabriel Isola-Lanzoni Natalia Penitente Winola Weiss (organizadores) Discurso e poder: teoria e análise FFLCH/USP São Paulo, 2020 DOI: 10.11606/9786587621241 Copyright © 2020 FFLCH/USP Catalogação na Publicação (CIP) Serviço de Biblioteca e Documentação Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo Maria Imaculada da Conceição – CRB-8/6409 D611 Discurso e poder: teoria e análise [recurso eletrônico] / Paulo Roberto Gonçalves-Segundo; Célia Regina Araes; Claudia Castanheira; Gabriel Isola-Lanzoni; Natalia Penitente; Winola Weiss (organizadores). -- São Paulo: FFLCH/USP, 2020. 12.106 Kb ; PDF. ISBN 978-65-87621-24-1 DOI 10.11606/9786587621241 1. Análise do discurso. 2. Linguística aplicada. 3. Ensino e aprendizagem 4. Língua Portuguesa – aspectos gramaticais. 5. Poder. I. GonçalvesSegundo, Paulo Roberto. II. Araes, Célia Regina. III. Castanheira, Claudia. IV. Isola-Lanzoni, Gabriel. V. Penitente, Natalia. VI. Weiss, Winola CDD 401.41 Serviços de Editoração e Distribuição Revisão Paulo Roberto Gonçalves-Segundo Célia Regina Araes Claudia Castanheira Gabriel Isola-Lanzoni Natalia Penitente Winola Weiss Projeto Gráfico de Capa Gabriel Isola-Lanzoni Foto de fundo: Pinacoteca de São Paulo. Acervo pessoal do capista. Projeto Gráfico de Diagramação Gabriel Isola-Lanzoni Esta obra é de acesso aberto. É permitida a reprodução parcial ou total desta obra, desde que citada a fonte e a autoria e respeitando a Licença Creative Commons indicada. Os artigos publicados nesta obra são de inteira responsabilidade de seus autores. 4 Sumário SUMÁRIO Apresentação ................................................................................................. 6 Sobre os/as organizadores/as .................................................................... 11 Sobre os/as autores/as ................................................................................ 13 O simbolismo do corpo grotesco em Game of Thrones ......................... 19 Ana Carolina Pais A (in)conscientização da preservação ambiental: análise avaliativa de textos jornalísticos sobre o Dia da Terra ........................................... 33 Célia Regina Araes Discurso em Hannah Arendt: sobre o sentido político de falar sobre o mundo e narrar uma história .............................................................. 52 Crislei de Oliveira Custódio Expressões idiomáticas: contribuições e implicações do contexto discursivo para a forma e construção do sentido ............................ 67 Fabiane de Oliveira Alves Analogia e dissenso no debate parlamentar: o caso das comparações entre grupos estigmatizados .............................................................. 84 Filipe Mantovani Ferreira O discurso relatado: entre seus potenciais linguísticos e os livros didáticos ............................................................................................. 100 Júlio César da Silva Mendes No movimento dos sentidos: construções interdiscursivas em Mafalda ......................................................................................... 124 Kaline Ferreira Oliveira A escrita de poemas e o aluno agente: contribuições para o diálogo 136 Luciana Taraborelli Perspectiva conceitual e prática do ensino de sujeito gramatical em livros didáticos ................................................................................... 146 Murilo de Castro Teves Discursos velados, vozes silenciadas: análise de notícias sobre situação de rua ................................................................................... 171 Natalia Penitente Sumário | 2020 5 Discurso e poder: teoria e análise Análise da desclassificação repreensiva por meio de uma propaganda ............................................................................... 194 Ramiro Carlos Humberto Caggiano Blanco As metáforas como recurso para resgatar memórias de infância de Cecília Meireles .................................................................................. 210 Rodrigo Schulz Ferreira Adjunção adnominal no Ensino Básico: alternativas para um ensino orientado à significação .................................................................... 224 Sabrina Nascimento de Alencar Vivências Discursivas: uma forma de ver e estar no mundo.................. 240 Samara Gabriela Leal França O Sistema da Avaliatividade como ferramenta de análise para a compreensão da Responsividade Ativa em Cartas do Leitor sobre o tema Reforma da Previdência .......................................................... 275 Sandra Gomes Rasquel Na sala de aula, de Portas Abertas, pode entrar: uma análise discursiva de imagens de língua em materiais de ensino para refugiados e no discurso de alunos imigrantes .......................................................... 292 Selma Regina Olla Paes de Almeida Discurso, poder e educação: imagens da língua, de seus falantes e de seus professores ................................................................................ 308 Valdir Heitor Barzotto Todas, todos, todxs: a conceptualização a partir do gênero gramatical em português brasileiro .................................................................... 320 Vivian de Ulhôa Cintra Bernardo Construção discursiva de identidades socioculturais dos líderes de iniciativas do ensino de português nas igrejas evangélicas chinesas em São Paulo...................................................................................... 335 Xiang Zhang A construção da imagem feminina nos enunciados exortativos e assertivos nos livros didáticos de PLE .............................................. 345 Yedda Alves de Oliveira Caggiano Blanco Sumário | 2020 6 Apresentação Apresentação Gabriel Isola-Lanzoni [email protected] A relação entre discurso e poder é objeto de reflexão por diversas abordagens. Proporcionar o diálogo entre essas diferentes perspectivas teóricas, de modo a expandir as discussões e aprofundar a compreensão dos processos de polarização na contemporaneidade, o que inclui examinar as práticas e as articulações que estruturam hegemonias, bem como aquelas que propõem resistências, foi o objetivo da décima primeira edição do Encontro de Pós-Graduandos em Estudos Discursivos da Universidade de São Paulo (XI EPED). O livro Discurso e poder: teoria e análise reúne vinte capítulos resultantes das apresentações realizadas no XI EPED. Os capítulos foram produzidos por pesquisadoras/es de todos os níveis acadêmicos – Iniciação Científica, Mestrado, Doutorado, Pós-Doutorado –, bem como por professoras/es convidadas/os que proferiram falas nos encontros, seja em mesas-redondas, seja em conferências, como são os casos dos textos do Prof. Dr. Valdir Heitor Barzotto e da Profa. Dra. Crislei de Oliveira Custódio. Destacamos que os textos submetidos para integrar o livro passam por avaliação cega por pares, de forma que apenas os textos aprovados por dois membros da comissão científica, composta por doutoras e doutores de diversas instituições do país, são, de fato, publicados. Com esse procedimento, temos conseguido garantir a qualidade das publicações ligadas ao evento, além de propiciarmos aos participantes – em especial, aos/às estudantes de Iniciação Científica, de Mestrado e de Doutorado – a oportunidade formativa de receber avaliações de artigos, de revisar o texto conforme as orientações de pareceristas, de defender seus posicionamentos, de repensar abordagens sobre o objeto, dentre outras. Com essa proposta, buscamos integrar em um único espaço distintos olhares epistemológicos, distintas metodologias, assim como variados objetos de análise, ancorados em distintas práticas sociais situadas historicamente, tais como a escolar, a artística e a midiática (tradicional ou digital). O contato com distintas abordagens tem o potencial de promover uma formação mais ampla, permitindo às/aos leitoras/es uma postura de reconhecimento da pertinência e da relevância das variadas perspectivas. O texto que abre o volume é intitulado “O simbolismo do corpo grotesco em Game of Thrones”. A autora, Ana Carolina Pais, propõe uma reflexão sobre como o simbolismo do corpo, tanto o feminino, quanto o masculino, é representado na série televisiva. Para isso, retoma as noções de grotesco e de carnavalização do arcabouço teórico da Teoria Dialógica da Linguagem, cujo expoente máximo é Mikhail Bakhtin. No capítulo seguinte, Célia Regina Araes se volta a dois textos jornalísticos, dos jornais Folha de São Paulo e El País, que tematizam o Dia da Terra. Partindo do Sistema de Avaliatividade da Linguística Sistêmico-Funcional, bem como da abordagem teórica da Ecolinguistica e da Análise Crítica do Discurso, a autora busca compreender ISOLA-LANZONI, Gabriel | Apresentação | 2020 | p. 06-10 7 Discurso e poder: teoria e análise as representações sociais das indústrias poluidoras em relação à conscientização ambiental como prática social. O capítulo é intitulado “A (in)conscientização da preservação ambiental: análise avaliativa de textos jornalísticos sobre o Dia da Terra”. Crislei de Oliveiro Custódio, no capítulo seguinte, denominado “Discurso em Hannah Arendt: sobre o sentido político de falar sobre o mundo e narrar uma história”, explora o tema do discurso em Hannah Arendt. O discurso, nessa perspectiva, é entendido como par indissociável da ação, que revela quem alguém é; em outros termos, revela sua singularidade e unicidade, que são espaciais e temporais. O tema das expressões idiomáticas é trazido por Fabiana de Oliveira Alves em “Expressões idiomáticas: contribuições e implicações do contexto discursivo para a forma e construção do sentido”. A autora investiga a construção do sentido das expressões idiomáticas no contexto discursivo, buscando analisar as implicações decorrentes do uso. O capítulo seguinte, “Analogia e dissenso no debate parlamentar: o caso das comparações entre grupos estigmatizados”, Filipe Mantovani Ferreira discute o caráter argumentativo das analogias e examina seu potencial para desvelar as teses advogadas por debatedores. O autor parte dos estudos sobre argumentação de base retórica, sobre o processamento cognitivo da analogia e sobre o discurso. Trazendo discussões sobre ensino-aprendizagem para o livro, Júlio César da Silva Mendes procede a um diagnóstico do discurso relatado nas sequências didáticas dos livros aprovados pelo PNLD 2017 (Anos Finais do Ensino Fundamental). O capítulo, denominado “O discurso relatado: entre seus potenciais linguísticos e os livros didáticos”, revela um quadro de predomínio de abordagens focadas na dimensão estrutural do discurso relatado, apagando o potencial semânticopragmático-discursivo do fenômeno, o que indicia um tratamento de ordem apenas secundária dos efeitos de sentido por ele produzidos. Para a discussão, o autor se vale da Linguística Sistêmico-Funcional e da Linguística Cognitiva. Fazendo jus à pluralidade de abordagens nos estudos discursivos, Kaline Ferreira Oliveira, no capítulo “No movimento dos sentidos: construções interdiscursiva em Mafalda”, baseia-se no arcabouço teórico da Análise do Discurso de linha francesa para compreender de que forma os movimentos significativos propiciam um link interdiscursivo entre as tiras de Mafalda e o atual contexto sócio-político-ideológico brasileiro. Luciana Taraborelli, no capítulo “A escrita de poemas e o aluno agente: contribuições para o diálogo”, volta-se ao ensino-aprendizagem, buscando apresentar as contribuições do gênero poema no processo de aperfeiçoamento da leitura e da escrita e na instrumentalização do aluno no uso de ferramentas linguísticas para ordenar o próprio discurso e para comunicar-se. A autora fundamenta-se nos pressupostos de Bakhtin sobre gênero discursivo. Na esteira do ensino, Murilo de Castro Teves discute os resultados obtidos pela análise do enquadramento da categoria gramatical sujeito nos livros didáticos aprovados no PNLD 2017. No capítulo “Perspectiva conceitual e prática de ensino de sujeito gramatical em livros didáticos”, o autor foca as dimensões conceitual e prática, ISOLA-LANZONI, Gabriel | Apresentação | 2020 | p. 06-10 8 Apresentação depreendendo tanto uma tendência de restrição de sujeito a poucos critérios que não contemplariam a complexidade da categoria, quanto um número exacerbado de exercícios que não fornecem oportunidades para reflexão sobre a significação da categoria. No capítulo seguinte, “Discursos velados, vozes silenciadas: análise de notícias sobre situação de rua”, Natália Penitente analisa as correlações entre as práticas sociais e as perspectivas ideológicas em notícias referentes às pessoas em situação de rua. A autora parte da Análise de Discurso Crítica para identificar padrões de representação desses atores sociais na mídia impressa mineira. Ainda na linha da Análise Crítica do Discurso, com base em Van Dijk, Ramiro Carlos Humberto Caggiano Blanco discute, em “Análise da desclassificação repreensiva por meio de uma propaganda”, estratégias discursivas utilizadas por um grupo de poder econômico para manipular as crenças e atitudes de um amplo setor da sociedade brasileira no contexto de protestos sobre a realização da copa do mundo de futebol de 2014. O autor debruça-se sobre textos publicitários e identifica estratégias linguísticas e imagéticas na desqualificação e ridicularização de um setor relevante da sociedade brasileira. No capítulo que segue, Rodrigo Schulz Ferreira analisa a obra Olhinho de Gato, de Cecília Meireles, sob a ótica dos estudos de metáfora. As análises, que constituem passagens de infância, levam o autor a evidenciar como o recurso da metáfora conduziria o leitor à reflexão acerca da real mensagem pretendida pela autora: a efemeridade da vida. O capítulo é intitulado “As metáforas como recurso para resgatar memórias de infâncias de Cecília Meireles”. Sabrina Nascimento de Alencar também se volta a questões de ensino ao apresentar uma nova proposta para o ensino de adjuntos adnominais na Educação Básica orientada à textualidade e à significação, no capítulo “Adjunção adnominal no Ensino Básico: alternativas para um ensino orientado à significação”. A proposta é pautada na perspectiva da Linguística Cognitiva, no que se refere à Ancoragem Nominal, e na Linguística Texto, no que concerne à Referenciação. No capítulo seguinte, “Vivências Discursivas: uma forma de ver e estar no mundo”, Samara Gabriela Leal França discute as contribuições do gênero discursivo memórias literárias para a melhoria da leitura e da escrita do aluno-autor. Partindo da pedagogia da autonomia de Paulo Freire, bem como da perspectiva da literatura de Petit e de elementos composicionais do gênero de acordo com Bosi e Marcuschi, a autora aponta para a necessidade de novas perspectivas de leitura e escrita escolar, nas quais se respeitaria a subjetividade, a liberdade, a autonomia e a emancipação dos sujeitos. Sandra Gomes Rasquel, no capítulo “O Sistema da Avaliatividade como ferramenta de análise para a compreensão da Responsividade Ativa em Cartas do Leitor sobre o tema Reforma da Previdência”, parte da Linguística Sistêmico-Funcional para a investigação da manifestação da responsividade do leitor no que tange a Reforma da Previdência. Analisando 10 cartas do leitor de jornais paulistas, a autora identifica tanto a produtividade do Sistema de Avaliatividade para a investigação ISOLA-LANZONI, Gabriel | Apresentação | 2020 | p. 06-10 9 Discurso e poder: teoria e análise pretendida, quanto o predomínio de manifestação do Sistema de Engajamento, o que sugere um desalinhamento entre os discursos de leitor e o do governo, prevalecendo uma atitude de não solidarização. Continuando as discussões sobre ensino, Selma Regina O. P. de Almeida analisa as imagens de língua portuguesa presentes nos discursos de alunos estrangeiros e em materiais didáticos de ensino de Língua Portuguesa no capítulo “Na sala de aula, de Portas Abertas, pode entrar: uma análise discursiva de imagens de língua em materiais de ensino para refugiados e no discurso de alunos imigrantes”. A autora identifica que as imagens do Português como capacitação linguística e como instrumento de emancipação consistem nas mais salientes nos discursos analisados. Articulando a educação a discurso e poder, Valdir Heitor Barzotto, no capítulo “Discurso, poder e educação: imagens da língua, de seus falantes e de seus professores”, analisa comentários feitos em diferentes textos a respeito de línguas ou variedades linguísticas e de seu ensino, de seus falantes e dos professores. O autor objetivou compreender a que direções os enunciados buscam encaminhar os leitores, concluindo que o movimento de construção de imagens negativas estaria ligado à pouca consideração que se tem da produção das comunidades mais pobres. Ao final, sugere alternativas de formação de professores. No capítulo “Todas, todos, todxs: a conceptualização a partir do gênero gramatical em português brasileiro”, Vivian de Ulhôa Cintra Bernardo trata da discussão sobre a relação entre gênero social e gênero gramatical na construção de referentes em Português Brasileiro. Baseando-se na Linguística Cognitiva, a autora apresenta uma proposta de compreensão da marcação de gêneros em palavras, seja feminino, seja masculino, ou mesmo de forma neutra, que se ancora nos estudos de conceptualização metonímica e de metáfora deliberada, desenvolvendo hipóteses explicativas para as questões salientadas. Também preocupado com identidades socioculturais, Xiang Zhang, no capítulo “Construção discursiva de identidades socioculturais dos líderes de iniciativas do ensino de português nas igrejas evangélicas chinesas em São Paulo”, busca compreender os posicionamentos dos líderes de igrejas evangélicas que se propõem ao ensino de língua portuguesa para imigrantes chineses a partir de pistas de contextualização, de forma a refletir sobre a construção de identidades socioculturais. O autor identifica que esses líderes se posicionam como atores sociais preocupados com uma prática solidária e de letramento religioso, enquanto a língua consistiria no espaço de interação, integração e acolhimento. Fechando o volume, Yedda Alves de Oliveira Caggiano Blanco investiga de que modo atos de fala diretivos e assertivos podem ser utilizados na construção de imagens de mulheres em interações sociais representadas nos manuais de PLE. A autora investiga, nos manuais, situações de pedidos, mais especificamente, de serviços e consertos gerais, identificando que vozes femininas são, muitas vezes, retratadas de forma estereotipada ou falaz. O capítulo é intitulado “A construção da imagem feminina nos enunciados exortativos e assertivos nos livros didáticos de PLE”. ISOLA-LANZONI, Gabriel | Apresentação | 2020 | p. 06-10 10 Apresentação Feito esse panorama, convidamos todas e todos a explorarem as perspectivas e as propostas desenvolvidas nos vinte capítulos reunidos neste livro. Desejamos a todas e a todos uma ótima e produtiva leitura! ISOLA-LANZONI, Gabriel | Apresentação | 2020 | p. 06-10 11 Discurso e poder: teoria e análise Sobre os/as organizadores/as Paulo Roberto Gonçalves-Segundo Paulo Roberto Gonçalves-Segundo é docente do Programa de Pós-Graduação em Filologia e Língua Portuguesa do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. É líder do 'Núcleo de Estudos em Análise Crítica do Discurso (NEAC-USP)', membro dos grupos de pesquisa 'Estudos sobre Linguagem, Argumentação e Discurso (ELAD)' e 'Sistêmica, Ambientes e Linguagens (SAL)' e do GT da ANPOLL 'Argumentação'. É editor da Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação (EID&A) e membro da comissão permanente de organização do Congresso Internacional de Estudos do Discurso (CIED). Participou de projetos interinstitucionais relevantes, como o Projeto Histórica do Português Brasileiro e Projeto História do Português Paulista, e foi coordenador do Programa de Pós-Graduação em Filologia e Língua Portuguesa entre 2017 e 2019. E-mail: [email protected] Célia Regina Araes Célia Regina Araes é doutoranda pelo Programa da Pós-Graduação em Filologia e Língua Portuguesa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP) sob orientação da Profa. Dra. Maria Lúcia da Cunha Victório de Oliveira Andrade. Fez mestrado na mesma Instituição e atuou como professora na Educação Básica e Ensino Superior por 26 anos. Participa do grupo de pesquisa NEAC (Núcleo de Estudos da Análise Crítica). No momento, atua como facilitadora em Educação a Distância na Universidade Virtual do Estado de São Paulo e sua pesquisa foca a análise crítica de divulgação midiática sobre o meio ambiente e ecologia. E-mail: [email protected] Claudia Castanheira Claudia Castanheira é mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Filologia e Língua Portuguesa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP) sob orientação Dr. Paulo Roberto Gonçalves-Segundo. É bacharela e licenciada em letras pela mesma Universidade, tendo feito dupla habilitação Portuguêsfrancês. É membra do Núcleo de Estudos em Análise Crítica do Discurso (NEAC-USP). Atualmente, realiza projetos e pesquisas nas áreas de Análise Crítica do Discurso e Linguística Sistêmico-Funcional, com ênfase em estudos sobre desenvolvimento sustentável e questões socioambientais. E-mail: [email protected] Sobre os/as organizadores/as | 2020 12 Sobre os/as organizadores/as Gabriel Isola-Lanzoni Gabriel Isola-Lanzoni é doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Filologia e Língua Portuguesa da Universidade de São Paulo (PPGFLP/USP), sob orientação do Prof. Dr. Paulo Roberto Gonçalves-Segundo. É mestre pelo mesmo programa, tendo realizado pesquisa sobre multimodalidade em mídias digitais, a partir da Linguística SistêmicoFuncional, com a proposição de um sistema de COESÃO VERBO-IMAGÉTICA. Atualmente, investiga argumentação multimodal. Integra os grupos de pesquisa 'Sistêmica, Ambientes e Linguagens (SAL)' e 'Estudos de Linguagem, Argumentação e Discurso (ELAD)'. Atua como diagramador de livros acadêmicos e de relatórios médicos para empresas de tradução. E-mail: [email protected] Natalia Penitente Natalia Penitente Andrade é mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Filologia e Língua Portuguesa (FLP), na Universidade de São Paulo (USP), sob a orientação do Prof. Dr. Valdir Heitor Barzotto. A pesquisa é financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e também foi bolsista de Iniciação Científica pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia - (FAPESB). Integra o Grupo de Estudos e Pesquisa Produção Escrita e Psicanálise – (GEPPEP). Atualmente, é representante discente do Programa de Pós-Graduação em Filologia e Língua Portuguesa (FLP). Tem ministrado aulas de Língua Portuguesa para Refugiados como professora voluntária na Bibli-ASPA por meio do Projeto Aprender na Comunidade; também é professora voluntária de produção textual no Cursinho Pré-vestibular Popular Florescer, da Universidade de São Paulo (USP). E-mail: [email protected] Winola Weiss Winola Weiss Pires Cunha é bacharela e licenciada em Letras - Português e Linguística pela Universidade de São Paulo. Atualmente, é mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Filologia e Língua Portuguesa (PPGFLP/USP) na área de Linguística Textual e Teorias do Discurso no Português, sob a orientação do Prof. Dr. Paulo Roberto GonçalvesSegundo. Em sua pesquisa, trabalha com a Análise Crítica do Discurso, Estudos de Argumentação e Linguística Cognitiva, com ênfase em questões de gênero, raça, sexualidade e Teoria Feminista. Além de pesquisadora, atua também como professora no Ensino Básico, em cursinhos populares e em cursos de português brasileiro para imigrantes e refugiadas/os. E-mail: [email protected] Sobre os/as organizadores/as | 2020 13 Discurso e poder: teoria e análise Sobre os/as autores/as Ana Carolina Pais Ana Carolina Pais é mestre em Letras pelo Programa de Pós-Graduação Filologia e Língua Portuguesa da Universidade de São Paulo (PPGFLP/USP), sob a orientação da Profa. Dra. Sheila Vieira de Camargo Grillo. Possui extensão em Estudos das Literaturas Africanas de Língua Portuguesa e especialização em Ensino de Língua Inglesa e Uso de Novas Tecnologias. Professora de Língua Inglesa do Ensino Fundamental e Médio, de escola pública do estado de São Paulo. Integrante do Grupo de Pesquisa Diálogo (USP/CNPq). E-mail: [email protected] Célia Regina Araes Célia Regina Araes é doutoranda em Letras pelo Programa da Pós-Graduação em Filologia e Língua Portuguesa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP) sob orientação da Profa. Dra. Maria Lúcia da Cunha Victório de Oliveira Andrade. Fez mestrado na mesma Instituição e atuou como professora na Educação Básica e Ensino Superior por 26 anos. Participa do grupo de pesquisa NEAC (Núcleo de Estudos da Análise Crítica). No momento, atua como facilitadora em Educação a Distância na Universidade Virtual do Estado de São Paulo e sua pesquisa foca a análise crítica de divulgação midiática sobre o meio ambiente e ecologia. E-mail: [email protected] Crislei de Oliveira Custódio Crislei de Oliveira Custódio é doutora em Educação pela Faculdade de Educação da USP e Professora Titular do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Ibirapuera. Membro do Grupo de Estudos "Violência em tempos sombrios" do Núcleo de Estudos sobre a Violência da USP. E-mail: [email protected] Fabiane de Oliveira Alves Fabiane de Oliveira Alves é doutoranda do Programa de Filologia e Língua Portuguesa da Universidade de São Paulo (USP), na linha de pesquisa Linguística Textual e Teorias do Discurso no Português, sob orientação da Profª Drª Maria Lúcia da Cunha Victório de Oliveira Andrade. É mestra em Letras pela USP, sob orientação do Prof. Dr. Hudinilson Urbano, pelo mesmo programa. Atua na Universidade Federal do ABC (UFABC), como Técnica em Assuntos Educacionais na área de Letras. Na mesma universidade foi professora e coordenadora pedagógica do curso de Língua Portuguesa para estrangeiros. E-mail: [email protected] Sobre os/as autores/as | 2020 14 Sobre os/as autores/as Filipe Mantovani Ferreira Filipe Mantovani Ferreira é mestre e doutor em Letras pelo Programa de Pós-Graduação em Filologia e Língua Portuguesa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (PPGFLP/FFLCH/USP). É licenciado em Português e Inglês pela mesma universidade. Atualmente, é professor do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico do Instituto Federal de São Paulo (IFSP) – câmpus Salto, onde coordena o curso de Licenciatura em Letras – Português. Desenvolve pesquisa nas áreas de Estudos Discursivos e Argumentação, tendo, nos últimos anos, se dedicado principalmente ao estudo da argumentação por analogia em debates parlamentares. E-mail: [email protected] Júlio César da Silva Mendes Júlio César da Silva Mendes é graduando em Letras, com dupla habilitação Português/Linguística, pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP). Seu trabalho, a nível de iniciação científica, é orientado pelo Prof. Dr. Paulo Roberto Gonçalves-Segundo e está alinhado ao Grupo de Ensino-Aprendizagem de Gramática, Argumentação e Multimodalidade. Este pesquisador tem participado de projetos que unem língua e linguagem às áreas de ensino, filologia e tecnologia. E-mail: [email protected] Kaline Ferreira Oliveira Kaline Ferreira Oliveira é mestra em Estudo de Linguagens pelo Programa de PósGraduação em Estudo de Linguagens da Universidade do Estado da Bahia (PPGEL/UNEB), sob orientação do Prof. Dr. André Luiz Gaspari Madureira. É membro dos grupos de pesquisa ALÁFIA (Cartografias Culturais e Multilinguagens) e Edição e Estudo de Textos, ambos mantidos pela UNEB. E-mail: [email protected] Luciana Taraborelli Luciana Taraborelli, mestra pelo programa Mestrado Profissional em Letras - PROFLETRAS - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas –USP, orientada pela Professora Dra. Norma Seltzer Goldstein. Atualmente trabalha com linguagem literária e ensino de língua materna; práticas escolares voltadas ao texto literário, em particular o gênero poema, explorando seus vários aspectos e os efeitos de sentido que produzem. Atua também como professora da educação básica do estado de São Paulo. E-mail: [email protected] Sobre os/as autores/as | 2020 15 Discurso e poder: teoria e análise Murilo de Castro Teves Murilo de Castro Teves é discente do curso de graduação de Letras, com dupla habilitação Português-Francês, da Universidade de São Paulo (USP). Realizou pesquisa de Iniciação Científica, financiada pelo Programa Unificado de Bolsas da USP (PUB-USP), sob a orientação do Prof. Dr. Paulo Roberto Gonçalves Segundo. Integra o projeto de Gramática, Cognição e Discurso, na vertente voltada ao ensino-aprendizagem de gramática. Participou como professor voluntário de Redação no cursinho Pré-vestibular Popular Florescer, da Universidade de São Paulo (USP), e atualmente é professor voluntário de Literatura no cursinho popular Juntos Somos Mais Fortes. E-mail: [email protected] Natalia Penitente Natalia Penitente Andrade é mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Filologia e Língua Portuguesa (FLP), na Universidade de São Paulo (USP), sob a orientação do Prof. Dr. Valdir Heitor Barzotto. A pesquisa é financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e também foi bolsista de Iniciação Científica pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia - (FAPESB). Integra o Grupo de Estudos e Pesquisa Produção Escrita e Psicanálise – (GEPPEP). Atualmente, é representante discente do Programa de Pós-Graduação em Filologia e Língua Portuguesa (FLP). Tem ministrado aulas de Língua Portuguesa para Refugiados como professora voluntária na Bibli-ASPA por meio do Projeto Aprender na Comunidade; também é professora voluntária de produção textual no Cursinho Pré-vestibular Popular Florescer, da Universidade de São Paulo (USP). E-mail: [email protected] Ramiro Carlos Humberto Caggiano Blanco Ramiro Carlos Humberto Caggiano Blanco é doutorando pelo Programa de PósGraduação em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-Americana, da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), sob a orientação da professora Dra. María Zulma Moriondo Kulikowski. Bolsista CNPq, Mestre em Letras pelo mesmo Programa. Tem cursos de especialização em "Ensino de Espanhol para Brasileiros", pela PUC/SP e em "Educação, imagens e meios de comunicação", pela FLACSO/ Argentina (Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales). Autor do livro "Gramática de la lengua española: usos, conceptos y ejercicios" da editora Scipione. Coautor do livro "Prefiero Español" da editora Santillana. Criador do site de ensino de espanhol "Conexión Español". Participa dos grupos de pesquisa “Pragmática (Inter)linguística, cross-cultural e intercultural” (USP) e do grupo "Es.Por.Atenuação/Brasil" (Universidad de Valencia/USP). E-mail: [email protected] Sobre os/as autores/as | 2020 16 Sobre os/as autores/as Rodrigo Schulz Ferreira Rodrigo Schulz Ferreira é bacharel em Letras, Tradutor e Intérprete (UNIBERO), tendo licenciatura (português/inglês) pela mesma instituição. Especialista em Psicopedagogia Educacional (Anhembi Morumbi) e em Gramática e Texto da Língua Portuguesa e Docência do Ensino Superior (UNINOVE), licenciado em Pedagogia (UNINOVE). É mestre pelo Programa de Filologia e Língua Portuguesa, da Universidade de São Paulo (DLCV/USP). Professor efetivo de língua inglesa na Prefeitura Municipal de São Paulo desde 2013. Foi professor efetivo de língua inglesa e língua portuguesa na rede Estadual de São Paulo. Lecionou na rede particular e em escolas de idiomas. E-mail: [email protected] Sabrina Nascimento de Alencar Sabrina Nascimento de Alencar é graduanda em Letras, com dupla habilitação Português/Russo pela Universidade de São Paulo (USP). Desenvolveu pesquisa de Iniciação Científica, financiada pelo Programa Unificado de Bolsas da USP (PUB), sob orientação do Prof. Dr. Paulo Roberto Gonçalves-Segundo, como integrante do projeto “Ensino de gramática orientado à textualidade”, voltado à área de Gramática, Cognição e Discurso. Atua como revisora e plantonista de redação para Ensino Médio e para Curso Pré-Vestibular, além de ser professora voluntária de Gramática no Cursinho Popular da FFLCH. E-mail: [email protected] Samara Gabriela Leal França Samara Gabriela Leal França é formada em Letras pelo Centro Regional Universitário de Espírito Santo do Pinhal (2011) e mestre em Letras pelo Programa de Mestrado Profissional em Letras (PROFLETAS), Câmpus USP (2020). A autora tem experiência como educadora da rede pública de ensino. Atua, também, na educação superior, em diversos cursos de formação de educadores. Suas áreas principais são a Linguística Aplicada, o Ensino de Língua Materna, a relação Linguagem, Literatura e a Cultura Brasileira. O capítulo deste livro é resultado de uma pesquisa desenvolvida com alunos em idade escolar, que teve por objetivo avaliar processos de democratização da leitura literária nos espaços públicos, sob orientação da Profa. Dra. Valéria Gil Condé. E-mail: [email protected] Sandra Gomes Rasquel Sandra Gomes Rasquel é mestranda pelo Programa de Pós-graduação em Filologia e Língua Portuguesa do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade de São Paulo - USP. Orientanda da Profª. Drª. Maria Lucia da Cunha Victório de Oliveira Andrade, da linha de pesquisa em Linguística Textual e Teorias do Discurso no Português. E-mail: [email protected] Sobre os/as autores/as | 2020 17 Discurso e poder: teoria e análise Selma Regina Olla Paes de Almeida Selma Regina Olla Paes de Almeida é mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Filologia e Língua Portuguesa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (PPGFLP/FFLCH/USP), sob orientação do Prof. Dr. Valdir Heitor Barzotto. Participa do Grupo de Pesquisa em Produção Escrita e Psicanálise - GEPPEP. Atua como Técnica em Assuntos Educacionais no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, campus Campinas. E-mail: [email protected] Valdir Heitor Barzotto Valdir Heitor Barzotto atua nos programas de Pós-graduação em Educação na FE/USP e em Filologia e Língua Portuguesa, no DLCV/FFLCH/USP. Doutor em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Pós-doutorado pela Université Paris 8 Vincennes-Saint-Denis (2010). Professor Titular da Faculdade de Educação da USP. Coordena o Grupo de Estudos e Pesquisa Produção Escrita e Psicanálise (GEPPEP). E-mail: [email protected] Vivian de Ulhôa Cintra Bernardo Vivian de Ulhôa Cintra Bernardo é mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Semiótica e Linguística Geral da Universidade de São Paulo (USP). Tem interesse por Linguística Cognitiva e, mais especificamente, metonímia conceptual. Na iniciação científica e no mestrado, foi orientada pelo Prof. Dr. Paulo Chagas de Souza e participou do Grupo de Estudos de Fonologia e Morfologia (FONEMOS) na USP. Atualmente, é professora de Língua Portuguesa, Coordenadora de Redação e Coordenadora Pedagógica na rede particular de educação em São Paulo. E-mail: [email protected] Xiang Zhang Xiang Zhang é doutorando em Letras (Filologia e Língua Portuguesa) pela Universidade de São Paulo. É mestre em Linguística Aplicada pela Universidade de Macau, China. Tem desenvolvido trabalhos sobre as iniciativas de ensino de português e de chinês no contexto da imigração chinesa no Brasil. Atualmente integra o grupo de pesquisa “Linguagem e Cognição”, liderado pela Profa. Dra. Maria Célia Lima-Hernandes (Universidade de São Paulo), com projeto de pesquisa sobre o papel das escolas comunitárias chinesas em São Paulo e o processo sociocognitivo de aprendizagem de português e chinês por filhos dos imigrantes chineses nas escolas. E-mail: [email protected] Sobre os/as autores/as | 2020 18 Sobre os/as autores/as Yedda Alves de Oliveira Caggiano Blanco Yedda Alves de Oliveira Caggiano Blanco é doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Filologia e Língua Portuguesa, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (PPGFLP/FFLCH/USP), sob orientação do Prof. Dr. Luiz Antônio da Silva. Tem como foco de estudo a análise da atenuação pragmática nos livros didáticos de português para estrangeiros (PLE). Participa dos grupos de pesquisa “Pragmática (Inter) linguística,cross-cultural e intercultural” (USP) e do grupo "Es.Por.Atenuação/Brasil" (Universidad de Valencia/USP). Atualmente, dedica-se ao ensino de Língua Portuguesa como língua estrangeira. E-mail: [email protected] Sobre os/as autores/as | 2020 19 Discurso e poder: teoria e análise O simbolismo do corpo grotesco em Game of Thrones Ana Carolina PAIS Universidade de São Paulo [email protected] Resumo: Neste artigo, trazemos uma proposta de reflexão sobre como o simbolismo do corpo, tanto feminino quanto masculino, é representado na série Game of Thrones. Essa percepção do corpo se dá por meio do olhar analítico que se pautará na junção das dimensões verbais, visuais e sonoras da narrativa seriada televisiva. Almejamos, assim, identificar se a figura do corpo é representada como um simbolismo da cultura popular, de modo grotesco e carnavalesco, afiliando-se à estética de fins da Idade Média, ou se, ao contrário, associa-se mais à estética clássica do corpo perfeito, fechado e acabado. Para tanto, focamos nossa análise no conceito de realismo grotesco e na noção de baixo material e corporal teorizados pelo pensador russo Mikhail Bakhtin, na obra A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais (1987[1965]). Para atingir tais objetivos, metodologicamente, foram observados “os enquadramentos”, “o fundo sonoro”, entendido como todo e qualquer som que acompanha e potencializa o sentido narrativo do verbal e do visual, e, por fim, “os diálogos”, que são as interações entre as personagens, por meio das legendas em língua portuguesa. Palavras-chave: Corpo Grotesco; Realismo Grotesco; Mikhail Bakhtin; Narrativa Seriada Televisiva; Game of Thrones. Introdução A imagem do corpo humano tem variadas representações, a depender da época e das visões que são adotadas por aqueles que o desenham, seja na arte literária ou na arte como um todo: algumas são mais fechadas e “puritanas”, outras mais abertas e “naturalizadas”, ou até mesmo tidas como vulgares. Influenciado pela estética da dualidade do belo versus o feio, do bem versus o mal, do forte versus o fraco, o corpo e suas partes constitutivas recebem múltiplas interpretações e significados, tanto na vida real quanto na ficção, de modo geral. Com isso, o presente artigo traz uma proposta de reflexão sobre como o simbolismo do corpo, tanto feminino quanto masculino, é representado na série Game of Thrones; uma adaptação televisiva da obra literária do escritor norte-americano George R.R. Martin; por muitas vezes criticada pelas cenas de sexo e pelas constantes aparições do corpo nu. Essa percepção do corpo se dá por meio de uma análise que observa o todo, o universal do objeto artístico audiovisual em detrimento de uma apreensão apenas PAIS, Ana Carolina | 2020 | p. 19-32 20 O simbolismo do corpo grotesco em Game of Thrones de determinadas unidades de sentido, ou seja, o olhar analítico pautar-se-á na junção das dimensões verbais, visuais e sonoras da narrativa seriada televisiva. O objetivo é identificar, por meio da reunião dessas dimensões, se a figura do corpo é representada como um simbolismo da cultura popular, de modo grotesco e carnavalesco, afiliandose à estética de fins da Idade Média, ou se, ao contrário, associa-se mais à estética clássica do corpo perfeito, fechado e acabado. Focamos nossa análise no conceito de realismo grotesco e na noção de baixo material e corporal trabalhados pelo pesquisador russo Mikhail Bakhtin na obra A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais (1987[1965]), doravante CPIMR. Para atingir tais objetivos, metodologicamente, foram observados os seguintes aspectos da linguagem narrativa seriada televisiva: “os enquadramentos” que são formados pela junção de ângulos e planos de filmagem, “o fundo sonoro”, entendido como todo e qualquer som que acompanha e potencializa o sentido narrativo do verbal e do visual, seja uma música ou um ruído e, por fim, “os diálogos”, que são as interações entre as personagens, nos quais analisaremos as metáforas, as metonímias e os simbolismos da linguagem popular e familiar presentes nas falas, por meio das legendas em língua portuguesa. Para tanto selecionamos duas personagens, uma feminina e outra masculina: Melisandre de Asshai e Robert Baratheon. Inicialmente, retomaremos, da escrita de Bakhtin, como o corpo grotesco é concebido e como o conceito de realismo grotesco e a noção de baixo material e corporal são significados pelo autor. Feito esse resgate teórico, passaremos à análise de duas cenas nas quais podemos depreender a caracterização do corpo feminino e masculino na série. São eles: a primeira temporada, episódio 5, no qual encontramos a conversa entre Ned Stark e o Rei Robert, e a segunda temporada, episódio 4, no qual tem-se a cena da sacerdotisa Melisandre trazendo à luz a um ser das sombras. 1 O baixo material e corporal pela concepção bakhtiniana O foco da obra A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais, escrita por Mikhail Mikhailovitch Bakhtin nas décadas de 1930/1940 e publicada nos anos 1960, é o livro Gargântua e Pantagruel, do escritor francês François Rabelais, que teve fortes incompreensões, no decorrer da história, por parte de críticos literários e de pesquisadores de outras áreas. Tendo esse fato em mente, Bakhtin (1987[1965]) procurou, por meio de sua análise, dissolver a enganosa avaliação da obra como vulgar e inapropriada devido aos usos da linguagem popular e das influências da cultura cômica popular. Bakhtin (1987[1965]) pondera que a obra rabelaisiana somente será verdadeiramente compreendida se, em primeiro lugar, ela for lida com os olhos da época medieval e renascentista que tanto influenciou Rabelais. Desse modo, afirma Bakhtin (1987[1965]), será possível perceber o quanto a cultura popular e seus simbolismos, tais como a carnavalização e as formas do grotesco, são grandiosas enquanto manifestações culturais. Sua obra é construída de forma a resgatar os símbolos populares dentro da obra do escritor francês, bem como em outros PAIS, Ana Carolina | 2020 | p. 19-32 21 Discurso e poder: teoria e análise pensadores, tais como Shakespeare e Cervantes, perpassando pelas noções do riso, do vocabulário da praça pública, das festas populares, do banquete, da imagem grotesca do corpo e do baixo material e corporal. As reflexões e o resgate da cultura folclórica popular da Idade Média, e a sua transmissão durante o Renascimento, feitas por Bakhtin, trazem um novo significado às festas populares1, tais como o Carnaval, e a sua manifestação na literatura, ou a carnavalização, como a denomina Bakhtin. Assim, o Carnaval é apresentado como uma cosmovisão capaz de captar a energia presente no popular, no coletivo e de realizar transformações socioculturais; não é simplesmente um espetáculo ou uma forma cultural (BERNARDI, 2009). O Carnaval era o momento no qual o diálogo entre o mundo oficial e o extraoficial/popular ocorria. Nele, o povo ganhava a consciência da existência de dois mundos: um que oprimia com suas barreiras e etiquetas sociais e um outro mundo que permitia ao ser humano, três meses ao ano, virar a vida ao avesso, vestir-se ao avesso, quebrar as hierarquias e ser quem gostaria de ser, opondo-se à verdade oficial imposta (BAKHTIN, 1987[1965]). As festas populares eram definidas por Bakhtin (1987[1965]) como uma maneira de civilização humana e de trégua das mazelas do dia a dia. Simbolicamente, por meio delas, podia-se destronar o rei e entronar um novo, bem como vencer o medo por meio do riso, das paródias, das sátiras, ou seja, da alegria abundante. Alegria presente também na fartura dos banquetes e que renovava a vida, simbolizando a vitória sobre a morte; um renascimento. As festas populares tinham um local específico para ocorrer: as praças públicas. Este era o espaço da liberdade utópica e do adentrar em um mundo paralelo. Local onde as pessoas se viam como um coletivo, e não mais como indivíduos. E, por essa razão, o contato corporal era de uma intensa sensação familiar que gerava, consequentemente, uma linguagem específica na qual as grosserias, as blasfêmias, os juramentos e todas as formas obscenas e de ambivalência semântica eram permitidas. Consequentemente, o Carnaval refletia a ideia do inacabamento do ser, pois se mostrava contrário ao pronto e acabado, procurando, assim, afirmar que tudo estava em um estado constante de mudança e instabilidade. Com isso, Bakhtin (1987[1965]) esclarece que, ao serem transpostas as formas e as representações do Carnaval para a linguagem da literatura, ocorre, então, a carnavalização da literatura. Nesse contexto, da cultura cômica popular surge uma forma bastante singular de se caracterizar o corpo e seu universo semântico. O corpo não é mais uma marca simbólica da individualidade. Ele passa a representar uma coletividade ancestral que, ao festejar, entra em comunhão com a parte inferior do corpo, o baixo corporal e material, com sua função regeneradora. A partir disso, Bakhtin (1987[1965]) conceitua 1 Interpretamos as festas populares, através do estudo de Bakhtin (1987[1965]) sobre Rabelais, como toda e qualquer manifestação popular presente em uma dada sociedade e pela qual há a característica do ir além de um rito realizado de modo individual. Ou seja, esse tipo de festividade, que ocorre em determinadas épocas do ano, abrange uma coletividade, uma massa popular na qual não há a segregação e a imposição de limites/regras sociais. PAIS, Ana Carolina | 2020 | p. 19-32 22 O simbolismo do corpo grotesco em Game of Thrones o corpo grotesco, um corpo que destaca as suas aberturas para ser penetrado pelo mundo e com ele comungar por meio dos orifícios. Esse simbolismo corpóreo, grotesco, direciona-se contra os cânones da Antiguidade Clássica2, e Bakhtin (1987[1965]) passa a denominá-los como os novos cânones. Bakhtin (1987[1965]) apreende, através das manifestações populares como o Carnaval e por meio do ato de rebaixar as formas elevadas, a noção de “grotesco”, mais especificamente o que ele denominou como realismo grotesco. Esse rebaixamento do elevado, que trazia as inversões, as situações de animalidade, as relações com as partes baixas do corpo e tudo mais que destronasse o canônico, bem como a desarmonia do gosto (SODRÉ; PAIVA, 2014), motivam sensações como o riso, o horror ou a repulsa. Em fins do século XV, surge a expressão grotesco, empregada por pesquisadores que encontraram, em Roma, durante escavações no porão da Domus Aurea (o palácio romano de Nero, situado em frente ao Coliseu), depois nos subterrâneos das Termas de Tito e em vários outros locais na Itália, uma pintura ornamental a qual chamaram de grotesca que se deriva do substantivo italiano grotta - gruta, porão. Esses ornamentos traziam alegorias de formas vegetais, animais e humanas que se transformavam e se mesclavam com elementos de leveza, liberdade e “alegre ousadia, quase risonha”. Segundo Bakhtin, o termo grotesco “metamorfoseia-se em movimento interno da própria existência e exprime-se na transmutação de certas formas em outras, no eterno inacabamento da existência” (BAKHTIN, 1987[1965], p.28, itálicos do autor). A partir dessa descoberta, o grotesco é difundido e no século XVI influencia a arte da Europa Ocidental. Contudo, os estudos dos textos produzidos na Antiguidade e no início da Era Cristã que condenavam essa mescla das figuras humanas com animais e vegetais, por exemplo, os textos de Vitrúvio, 27 a.C., trouxeram uma rejeição pública do grotesco e o transformaram em algo monstruoso. De substantivo, restrito ao julgamento estético de obras artísticas, passa a ser também um adjetivo, usado em fins do século XVI, para qualificar um gosto generalizado de discursos, vestuário e comportamentos (SODRÉ; PAIVA, 2014). Após ganhar vários significados, somente na segunda metade do século XVIII é que, segundo Bakhtin (1987[1965]), o termo é melhor compreendido e ganha novos sentidos, como por exemplo Justus Möser (1761) que, influenciado pela Commedia dell’arte3, defende o grotesco cômico em seu estudo sobre o arlequim. Ganha status de categoria estética apenas no século XIX. Período no qual Victor Hugo (1827) atribui, ao conceito, uma função de exaltação do sublime (BAKHTIN, 1987[1965]). Passa por fases de adormecimento, sendo retomado, após a segunda guerra mundial, nas 2 Os cânones da Antiguidade Clássica tornam-se a base estética do Renascimento. Podemos trazer como exemplo de cânone a forma “fechada”, clássica e perfeita com a qual a deusa Vênus, no quadro “O Nascimento de Vênus”, é representada. Já como exemplo do de estética do realismo grotesco temos as obras de Pieter Bruegel e de Bosch. 3 Obra surgida na Itália, por volta do século XV, que misturava elementos eruditos com outros fantasiosos e divertidos do universo popular. PAIS, Ana Carolina | 2020 | p. 19-32 23 Discurso e poder: teoria e análise escritas de Bakhtin (1965) e do alemão Wolfgang Kayser (1957), em O Grotesco4, com significados distintos em cada autor5. Para Bakhtin, a deformidade é o aspecto primordial do grotesco, não mais dependente da conceituação de obra de arte. Essa estética passa a ser a categoria do realismo grotesco, dependente, consequentemente, da corporeidade inacabada, do corpo grotesco. Está ligada ao riso e ao cômico. Bakhtin, retomando a origem das imagens grotescas, afirma que elas são encontradas em mitologias e artes dos vários povos, desde a arte pré-clássica greco-romana, passando pelo período clássico com as pinturas e literatura cômicas, bem como no drama satírico, na antiga comédia ática, etc., mantendo relação com o Carnaval. Nos fins da Antiguidade, o tipo de imagem grotesca atravessa uma fase de eclosão e renovação, e abarca quase todas as esferas da arte e da literatura. Aparece então, sob a influência preponderante da arte oriental, uma nova variedade de grotesco. Mas como o pensamento estético e artístico da Antiguidade se desenvolvera no sentido da tradição clássica, não se deu ao tipo de imagem grotesca uma denominação geral e permanente, isto é, um termo especial; tampouco foi reconhecido pela teoria, que não lhe atribuiu um sentido preciso (BAKHTIN, 1987[1965], p. 27-28). Bakhtin tece uma crítica incisiva aos teóricos antecedentes e também contemporâneos por não terem compreendido, de forma adequada, as ligações da imagem grotesca, do corpo grotesco e, de modo geral, da arte grotesca com as formas populares, tais como o Carnaval, bem como com o modo mais universal e orgânico de se observar o mundo: o homem tinha uma ligação mais direta com o universo e com a natureza. Especificamente sobre o corpo humano, Bakhtin o conceitua, enquanto valor cultural, inicialmente no ensaio O autor e a personagem na atividade estética, escrito em meados dos anos 1920. O corpo é apresentado como individual e, assim, ele não é nem “tão único” nem “tão meu”, existindo um corpo interior e um corpo exterior (BAKHTIN, 2003[1920]). Para o autor, nos sentimos completos por meio da vida de nossos corpos exteriores. No entanto, nos escritos sobre a obra de Rabelais, Bakhtin aborda o corpo humano sob um novo ângulo analítico: compreende o corpo como coletivo. O corpo popular evolui incessantemente e se abre, ganhando várias formas e se tornando flexível; transborda a vontade ininterrupta de mudanças. É o riso do corpo humano que harmoniza a união entre a cultura e a natureza, misturando organicamente o físico e o espírito. O corpo popular tem uma ligação direta com o universo e com a natureza. 4Para um paralelo entre Kayser e Bakhtin, indicamos Santos (2009). 5 Bakhtin (1987[1965]) cita em CPIMR que sua visão sobre o grotesco é distinta daquela adotada por Wolfgang Kayser: “Na realidade, a obra de Kayser é o primeiro estudo, e até o momento o único, consagrado à teoria do grotesco. Ele contém um grande número de observações preciosas e análises sutis. No entanto, não podemos aprovar a concepção geral do autor. (...) A teoria de Kayser é absolutamente inaplicável aos milênios de evolução anteriores ao Romantismo: fase arcaica, antiga (por exemplo, o drama satírico ou a comédia ática), Idade Média e Renascimento, integrados na cultura cômica popular” (BAKHTIN, 1987[1965], p.41). PAIS, Ana Carolina | 2020 | p. 19-32 24 O simbolismo do corpo grotesco em Game of Thrones O corpo grotesco, assim, nega “a noção humanista do homem” fechado, preferindo adentrar pela “vida orgânica para parar nas funções básicas do corpo, as quais o tornam indiscernível entre os outros corpos” (TIHANOV, 2012, p.172). Ele não se separa do resto do mundo, nem mesmo se torna isolado, acabado ou perfeito; ao contrário, ultrapassa a si mesmo. O corpo supera-se por meio de suas aberturas, uma vez que são estas as passagens que se comunicam com o mundo exterior. No realismo grotesco, o corpo opõe-se à estética clássica, pois os orifícios, as protuberâncias, os excrementos, as imperfeições, a concepção, a gravidez, o parto, a agonia, o nascimento e a morte são destacados e validados. O corpo humano é inacabado, imperfeito e imaturo. Ele se mostra aberto, agrupado aos demais que o cercam, completamente ligado ao corpo popular que o gerou. Para a estética clássica, ao contrário, a “idade perfeita é a que está o mais longe possível do seio materno e do sepulcro” (BAKHTIN, 1987[1965], p.26). Assim, a imagem grotesca perde a sua ambivalência regeneradora, bem como o seu tom alegre. Passa, pois, a ser vista como monstruosa pelos novos cânones estéticos e perde a sua raiz popular. Nesta seção, resgatamos, na teoria de Bakhtin, a forte diferença de concepções do corpo para a estética do realismo grotesco e para a clássica. Depreendemos que o corpo, para Bakhtin, constitui-se como aberto e é destacadamente ligado com o universo e com a natureza. Nele não há as marcas de pudores ou de barreiras impostas pela Igreja ou pelo Estado, obrigando-o a esconder, por exemplo, as partes do baixo material e corporal, tais como as genitálias ou então, a privar-se das representações da copulação, do nascer, do morrer, etc. nas quais o corpo expande-se e cria conexões com o mundo ao seu redor. Com essa diferença estética estabelecida, verifiquemos, na próxima seção, as análises do corpus. 2 Analisando o corpo: realismo grotesco x concepção clássica Para que as análises pudessem ser feitas, inicialmente captamos os trechos dos episódios selecionados por meio do programa Bandicam. Depois os transferimos, em formato MP4, para o software de análise linguística ELAN. Assim, ao invés de analisarmos cada dimensão de modo isolado, conseguimos perceber a produção dos sentidos de uma maneira conjunta na verbivocovisualidade, examinando os enquadramentos da cena, com seus planos e ângulos, bem como o que compunha o fundo sonoro e os diálogos da cena. Após essa análise prévia, foram criadas tabelas com as informações obtidas por meio do software ELAN, com a finalidade de nos auxiliar na transcrição para a linguagem escrita das inferências verbivocovisuais. Passemos, assim, ao primeiro trecho de cena a ser analisado: 2.1 Robert Baratheon e a figura da pança O episódio cinco da primeira temporada possui 55 minutos de duração e o sub-recorte de análise foi feito nos primeiros 00:03:52s até os 00:06:24s. Nesse trecho de cena, o escudeiro, Lancel Lannister, tenta colocar no rei Robert uma armadura, pois PAIS, Ana Carolina | 2020 | p. 19-32 25 Discurso e poder: teoria e análise este objetivava lutar no torneio organizado em comemoração à nomeação da nova Mão do Rei, Eddard Stark, também chamado de Ned. A tentativa é frustrada, pois a armadura não lhe serve. O personagem Robert Baratheon, quando jovem, tinha talento para a guerra e para a liderança. Ele era temível e um formidável guerreiro. Robert foi considerado um homem de bom coração, mas, externamente, ele parecia ser um animal brutal e pesado. Era considerado um rei que gostava de bebidas, de mulheres, de torneios e de festas extravagantes; sempre tudo de modo exagerado. Comentavam, de forma depreciativa, que ele era um tolo bêbado. Após essa breve caracterização do recorte e do personagem Rei Robert, examinemos os seguintes frames6: Quadro 1. Frames 01 - Plano Fechado - close-up / Normal; 3/4; - Barulho de armadura e de fivelas sendo apertadas. 02 - Plano Americano (Ned) e Plano Médio (Lancel e Robert) / Normal; frontal (Ned); - Barulho de passos. Lancel: “É muito pequena, Sua Graça, não vai entrar”. - Sem diálogos. 03 - Plano Médio / Normal; frontal (Robert); - Sem fundo sonoro. Lancel: “É muito pequena, Sua Graça, não vai entrar.” Fonte: Adaptado de episódio cinco da primeira temporada. Podemos perceber, no primeiro frame, que o destaque, o close-up, é dado ao momento do tentar fechar a armadura no rei. Verbalmente não conseguimos perceber nenhuma associação ao corpo grotesco, pois são minutos iniciais sem falas. Porém, o enquadramento e o fundo sonoro nos levam a perceber uma caracterização do corpo como “além dos limites”. O que é confirmado nos dois frames que sucedem (02 e 03), 6 As tabelas foram organizadas de modo que, a primeira linha nos apresenta os frames retirados das cenas. A segunda linha refere-se às anotações de enquadramento (Planos e ângulos) de filmagem do frame. A terceira linha condiz aos apontamentos sobre o fundo sonoro. E a quarta linha transcreve o nome do personagem e a fala deste no momento de captura do frame. PAIS, Ana Carolina | 2020 | p. 19-32 26 O simbolismo do corpo grotesco em Game of Thrones nos quais o fundo sonoro é neutro, mas o verbal nos traz o fato de a armadura ser pequena para o rei (“É muito pequena, Sua Graça, não vai entrar.”) e o enquadramento, plano e ângulo, comprovarem visualmente essa tentativa. O corpo do rei foge completamente ao tamanho de sua armadura, ao ponto de ele ordenar ao escudeiro que busque um “esticador de peitoral”, objeto inexistente, e que simboliza o “satirizar-se a si mesmo” feito pelo personagem. Nos frames seguintes (de 04 a 07), o fundo sonoro mais uma vez é neutro. Mas, a significação do corpo grotesco, do baixo material e corporal, aparece no verbal, por meio da palavra “gordo” e visualmente é destacado e complementado, principalmente pela metonímia visual da pança do rei à mostra, em destaque por meio do enquadramento de ângulo Frontal e Plano Americano, que segundo Padilha e Munhoz (2010), traz um maior realce para a expressividade corporal dos personagens em enfoque na cena. Quadro 2. Frames 04 - Plano Médio / normal; frontal (Ned); - Sem fundo sonoro. Ned: “Está gordo demais para sua armadura.” 06 - Plano Americano / normal; frontal (Robert); - Barulho de armadura. Robert: “Gordo, é?” (Tom de ironia). 05 - Plano Americano / normal; frontal (Robert). - Sem fundo sonoro. Robert: “Gordo?” 07 - Plano Médio / normal; frontal (Robert); - Barulho de armadura. Robert: “Gordo, é?” (Tom de ironia). Fonte: Adaptado de episódio cinco da primeira temporada Nesse trecho, mesmo Ned Stark sendo um velho amigo do rei, podemos inferir, verbalmente, que o fato de a Mão zombar do rei, dizendo a ele que está gordo demais para a armadura e, complementarmente, o próprio rei concorda com isso e zomba de si mesmo, simboliza uma ação carnavalesca. Caracterizamos essa fala como um modo de destronamento do rei, pois o personagem Ned Stark ocupa um cargo subalterno, é sua Mão e, assim, obedece aos seus comandos, e acaba dirigindo-se de igual para igual, quebrando as hierarquias impostas pelo sistema do Estado. PAIS, Ana Carolina | 2020 | p. 19-32 27 Discurso e poder: teoria e análise O corpo grotesco, nos frames 06 e 07, verbivocovisualmente, é significado a partir do momento em que Robert é focalizado pelo ângulo Frontal, que posiciona a sua pança em primeiro plano7 e no centro da imagem (em especial, no caso do frame 06), e pelos planos Americano e Médio (o primeiro realçando o aspecto corporal e o segundo somando as expressões faciais à imagem da pança). O enquadramento mescla-se ao verbal “Gordo, é?”, dito pelo rei em tom de ironia, e que agrega maior sentido à imagem grotesca e, principalmente, à pança que rompe o corpo e ganha maior destaque. Bakhtin resgata a importância dada ao ventre ao dizer que: (...) o papel essencial é entregue no corpo grotesco àquelas partes, e lugares, onde se ultrapassa, atravessa os seus próprios limites, põe em campo um outro (ou segundo) corpo: o ventre e o falo; essas são as partes do corpo que constituem o objeto predileto de um exagero positivo, de uma hiperbolização; elas podem mesmo separar-se do corpo, levar uma vida independente, pois sobrepujam o restante do corpo, relegado ao segundo plano (o nariz pode também separar-se do corpo) (BAKHTIN, 1987[1965], p. 277, itálicos do autor). Assim, o corpo do rei Robert é construído com uma estética do realismo grotesco, na qual o corpóreo se expande e se soma ao mundo exterior, com as suas imperfeições, rompendo seus próprios limites. Não se depreende, nesses frames, uma estética clássica, do corpo fechado, perfeito e acabado, por exemplo, como um corpo apolíneo. Quadro 3. Frames 08 - Plano Médio / Normal; 3/4. - Conversas e passos. Ned: “Robert?” 09 - Plano Americano / Normal; frontal (Robert). - Conversas e passos. Robert: “O quê?” 10 - Plano Americano / Normal; frontal. - Conversas e passos; Gargalhada de Robert. 11 - Plano Americano / Normal; frontal (Robert). - Conversas e passos. 7 Utilizaremos a expressão “primeiro plano”, com letras minúsculas, para nos referirmos ao posicionamento frontal do assunto principal no quadro visual da cena. “Primeiro Plano”, com letras maiúsculas, será empregado ao nos referirmos ao tipo de plano de enquadramento fílmico, no qual o corte do assunto é feito na altura do peito. PAIS, Ana Carolina | 2020 | p. 19-32 28 O simbolismo do corpo grotesco em Game of Thrones Robert: “Uma visão inspiradora para o povo, hein?” Pausa; "Oh!" (Robert). 12 - Primeiro Plano / Normal; frontal (Ned). - Conversas e passos. Robert: “Uma visão inspiradora para o povo, hein?” 13 - Primeiro Plano / Normal; frontal (Robert). - Conversas e passos. Robert: “Vamos, curvem-se diante do rei! Curvem-se, seus merdas!” Fonte: Adaptado de episódio cinco da primeira temporada Na sequência de frames de 08 a 13 o fundo sonoro não apresenta uma significação do corpo grotesco; nem mesmo os aspectos verbais. É na mescla entre o verbal e o visual, novamente com o simbolismo da pança em destaque, por meio do plano Americano e do ângulo Frontal, que é possível depreender o sentido da gargalhada do rei ao ver sua barriga à mostra. Não há palavras, nem metáforas verbais sobre o corpo, mas, sim na junção verbivocovisual, com a imagem da pança, com a exclamação “Oh!” e com o som da gargalhada. Os últimos frames (11, 12 e 13) trazem uma metáfora verbal, em “Uma visão inspiradora para o povo, hein?”, que ganha sentido completo ao ser pronunciada no mesmo momento em que, visualmente, temos a pança do rei sendo enquadrada em plano Americano e ângulo Frontal. O tema essencial desse trecho de cena é o corpo apresentado como grotesco, pois é o elemento da pança que destaca a estética desse corpo. A pança ganha destaque no corpo grotesco, no baixo material e corporal, pois é por meio dela que o corpo se conecta com o mundo e, consequentemente, ultrapassa seus próprios limites. Vejamos, no outro trecho de cena selecionado para análise, como o corpo feminino foi retratado. 2.2 Melisandre de Asshai e a figura do corpo aberto O quarto episódio da segunda temporada possui 51 minutos de duração e o recorte de cena foi realizado nos 00:47:21s até os 00:49:17s, nos quais encontramos a sacerdotisa Melisandre trazendo à luz um ser das sombras. Melisandre, nascida como escrava em Asshai, continente de Essos, torna-se uma das Sacerdotisas Vermelhas do Senhor da Luz e, assim, deseja propagar a sua fé em Westeros. Caracterizada, tanto no livro como na série, como bela e graciosa, sua voz era exótica e seus trajes eram sempre vermelhos e de seda. Usava uma gargantilha de ouro vermelho com um único e grande rubi que brilhava sempre que praticava a magia. Esse trecho de cena selecionado, possui pouca presença da dimensão verbal. Podemos perceber já no primeiro frame da cena que o destaque é colocado à figura do corpo feminino que é filmado em Plano de Conjunto e ângulo ¾, possibilitando PAIS, Ana Carolina | 2020 | p. 19-32 29 Discurso e poder: teoria e análise assim que ele seja visto inteiro e, principalmente o tamanho do ventre em destaque, em gravidez, pronto para dar à luz. O corpo de Melisandre é, desse modo, compreendido como estranho, diferente, ao passo que o personagem Davos, exclama, dentre suas poucas palavras, “Que os deuses nos protejam”. Quadro 4. Frames 14 - Plano Médio / Normal; frontal; -Música de tensão e mistério / gotejamento; Davos: “Que os deuses nos protejam.” barulho 15 - Plano de Conjunto / Normal; frontal; de -Música de tensão e mistério / barulho de gotejamento; Melisandre: “Há apenas um deus, sir Davos.” Fonte: Adaptado de episódio quatro da segunda temporada Nos frames, também temos o destaque dado ao momento do parto, da abertura das pernas e do corpo, para a conexão com o universo e o gerar de uma nova vida, no qual o simbolismo do baixo material e corporal estão presentes. Esse momento do parto e a expressão do corpo em dor e do corpo grotesco ganham enfoque maior ao ser expresso conjuntamente por meio de um plano aberto e de um ângulo como o Zenital que retrata a cena de cima, em seu todo, bem como pelo fundo sonoro no qual ouvimos os gemidos de dor ou de agonia do parto e a música com batidas fortes ascendentes que acompanham a cena e intensificam as sensações trazidas pelo momento do parto. Quadro 5. Frames 17 16 - Plano de Conjunto / Normal; frontal (Melisandre), - Plano de Conjunto / Zenital; Perfil (Davos); - Música de tensão sobe o volume / sons de espanto - Gemidos do parto de Melisandre / sons de medo e de Davos; espanto de Davos / música de tensão (com batidas fortes); - Sem falas. - Sem falas. Fonte: Adaptado de episódio quatro da segunda temporada As expressões de dor do parto também ganham ênfase no momento em que Melisandre é colocada de perfil e em close, sendo acompanhada pelos sons de agonia PAIS, Ana Carolina | 2020 | p. 19-32 30 O simbolismo do corpo grotesco em Game of Thrones de Davos e pela música forte, de suspense. O nascimento, aqui caracterizado como a geração de um ser das sombras, ganha significado maior ao ser colocado em plano Detalhe, novamente acompanhado pela música forte. Todo esse trecho selecionado retoma a significação do diálogo curto entre Davos e Melisandre no qual o espanto, o medo, a agonia pelo nascimento de um ser das sombras, presente no verbal, mesclase ao visual e ao sonoro. Quadro 6. Frames 19 18 - Close-up / Normal; Perfil; - Plano Detalhe / Normal; Perfil; - Gemidos do parto de Melisandre / sons de medo e - Gemidos do parto de Melisandre/ música de tensão espanto de Davos / música de tensão (com batidas (com batidas fortes) e sons de um ser monstruoso; fortes); - Sem falas. - Sem falas. 21 20 - Plano Detalhe / Normal; Perfil; - Plano de Conjunto / Plongée; Frontal; - Gemidos do parto de Melisandre/ música de tensão - Música de tensão (com batidas fortes), sons da (com batidas fortes) e sons de um ser monstruoso respiração ofegante de Melisandre e sons de um ser nascendo; monstruoso nascendo; - Sem falas. - Sem falas. Fonte: Adaptado de episódio quatro da segunda temporada Melisandre é caracterizada como uma mulher branca8, dando referência à pureza, à inocência, ao bem e à fragilidade, remetendo à estética clássica. No entanto, tanto suas vestes, quanto os olhos e os cabelos, são vermelhos. A cor vermelha remete ao simbolismo do sangue, do coração, do fogo. É a cor representante da sedução, da luxúria, da paixão e do amor (HELLER, 2014). Assim, metaforicamente, podemos inferir que as cores branco e vermelho apontam para o fator de sua beleza não ser angelical, mas sim malévola. A estética clássica esvai-se quando examinamos a forma como o corpo da personagem é retratado, ou seja, nu, conectando-se com a Terra e se colocando como 8 Para mais significações da cor branca: https://followthecolours.com.br/gotas-de-cor/branco-50curiosidades-interessantissimas-que-voce-nao-sabia-sobre-a-cor/. Acesso em: 18 ago. 2019. PAIS, Ana Carolina | 2020 | p. 19-32 31 Discurso e poder: teoria e análise imperfeito, por estar grávida. Os aspectos do corpo aberto, do baixo material e corporal, da dor e do sofrimento não são admitidos na estética clássica. Melisandre traz à luz um ser das sombras, o que degrada e destrona a imagem elevada que a estética clássica coloca para o nascimento. Há a “transposição para o plano material e corporal do parto (representando da maneira mais realista)” (BAKHTIN, 1987[1965], p. 269). Seu corpo está nu, há o destaque de seus seios fartos, ouvimos seus gemidos de dor, vemos as contrações de seu ventre e seu rosto a expressar a agonia do parto (frame 18) e o ser monstruoso nascendo, em forma de sombra ou de algo que escorre por entre as pernas da sacerdotisa, e tomando forma (frames 19, 20 e 21). Considerações Finais Para concluirmos, podemos dizer que na primeira cena, o corpo masculino se caracteriza como um corpo grotesco por meio da mescla verbivocovisual que nos leva a perceber o enfoque dado a pança do rei; elemento do simbolismo corpóreo grotesco. O rei Robert conecta-se com o mundo por meio de seu corpo e, principalmente, pela pança à mostra e em destaque. Na estética grotesca destacamse as partes baixas do corpo, tais como as coxas e o ventre. Na segunda cena, o corpo feminino também ganha sua marca grotesca e de rebaixamento corpóreo material. Melisandre traz à luz um ser das sombras, degradando e destronando a imagem elevada do nascimento, bem como de seu papel enquanto sacerdotisa, representante do divino. A personagem aparece nua e enormemente grávida, com os seios inchados e a barriga como prestes a estourar. A estética grotesca surge, não somente nos exageros, mas também na presença dos excrementos; do suor e no sangue negro que escorria e deu origem ao novo ser maligno. O corpóreo de Melisandre é colocado como um verdadeiro grotesco, uma vez que, em razão do parto, ela tem o ventre inchado e abre as pernas para o nascimento, o que permite ao seu corpo entrar em contato com o mundo, com a Terra. Seu corpo se abre e constrói, dá a vida a um novo corpo, não se mantém fechado ou inalterado. Pudemos depreender, por meio das dimensões verbivocovisuais que constituem os trechos de cena analisados, que há a presença do simbolismo do baixo material e corporal em Game of Thrones e que, principalmente, o corpo feminino e masculino, nestes trechos, foram caracterizados mais como corpos grotescos, abertos e imperfeitos (dionisíacos) do que um corpo pertencente à estética clássica do perfeito e do fechado (apolíneo). A partir desses trechos de cena, coloca-se como essencial a reflexão sobre a utilização da estética do realismo grotesco e a sua importância para a construção arquitetônica da série norte-americana, Game of Thrones. A expressão corpórea na narrativa televisiva é colocada como apenas vulgar e massificadora ou teria fortes ligações com a cultura popular, assim como as representações em Gargântua e Pantagruel? PAIS, Ana Carolina | 2020 | p. 19-32 32 O simbolismo do corpo grotesco em Game of Thrones Referências bibliográficas BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC, Editora da Universidade de Brasília, 1987[1960]. BAKHTIN, Mikhail. O Autor e a personagem na atividade estética. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003[1920]. p.03-192. BERNARDI, Rosse Marye. Rabelais e a sensação carnavalesca do mundo. In: BRAIT, Beth (Org.) Bakhtin, dialogismo e polifonia. São Paulo: Contexto, 2009. p. 73-94. HELLER, Ellen. A Psicologia das Cores: Como as cores afetam a emoção e a razão. Tradução: Maria Lúcia Lopes da Silva. 1ª ed., São Paulo: Editora G Gili, 2014. PADILHA, Marcio Roberto Neves; MUNHOZ, Marcelo. Fotografia e audiovisuais. Secretaria de Estado da Educação. Superintendência da Educação. Diretoria de Tecnologias Educacionais. Curitiba: SEED – PR., 2010. 60 p. (Cadernos temáticos). SANTOS, Fabiano Rodrigo da Silva. Grotesco: um monstro de muitas faces. In: Lira dissonante: considerações sobre aspectos do grotesco na poesia de Bernardo Guimarães e Cruz e Sousa [online]. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009. Disponível em: http://books.scielo.org/id/m2ys3/pdf/santos9788579830266-05.pdf Acesso em: 12 ago. 2019. SODRÉ, Muniz; PAIVA, Raquel. O império do grotesco. Rio de Janeiro: MAUAD, 2014. TIHANOV, Galin. A importância do grotesco. Revista Bakhtiniana, São Paulo. vol.7. n. 2. p. 166-180, 2012. Fontes: THE Lion and the Rose (Temporada 04, ep. 02). Game of Thrones [Série]. Direção: Alex Graves. Produção: Chris Newman & Greg Spence. Estados Unidos: HBO Entertainment, 2015. 5 DVDs (545 min.), color. THE Wolf and the Lion (Temporada 01, ep. 05). Game of Thrones [Série]. Direção: Brian Kirk. Produção: Chris Newman & Greg Spence. Estados Unidos: HBO Entertainment, 2012. 5 DVDs (557 min.), color. Como citar PAIS, Ana Carolina. O simbolismo do corpo grotesco em Game of Thrones. In: GONÇALVES-SEGUNDO, Paulo Roberto; ARAES, Célia Regina; CASTANHEIRA, Claudia; ISOLA-LANZONI, Gabriel; PENITENTE, Natalia; WEISS, Winola (orgs). Discurso e poder: teoria e análise. São Paulo: FFLCH/USP, 2020, p. 19-32. DOI: 10.11606/9786587621241 PAIS, Ana Carolina | 2020 | p. 19-32 33 Discurso e poder: teoria e análise A (in)conscientização da preservação ambiental: análise avaliativa de textos jornalísticos sobre o Dia da Terra Célia Regina ARAES Universidade de São Paulo [email protected] Resumo: Em um contexto descritivo de encontros ambientais em prol da natureza no período de três décadas, o objetivo deste capítulo é compreender as representações sociais das indústrias poluidoras em relação à conscientização ambiental (ou não) como prática social e, assim, perceber o aumento dos índices poluidores no mundo. Serão analisados dois textos jornalísticos veiculados em 22 de abril de 2019, um da Folha de S.Paulo e outro do El País sobre o Dia da Terra. Para tanto, os referenciais teóricos serão as três categorias do Sistema de Avaliatividade e suas subcategorias (MARTIN e WHITE, 2005), especialmente o Engajamento que traz as diversas vozes autorais, no âmbito da Linguística Sistêmico Funcional (HALLIDAY, 2004) e os pressupostos da Ecolinguística (COUTO, 2009) por ser tratar, especialmente, de temas relacionados à ecologia, além da Análise Crítica do Discurso (FAIRCLOUGH, 1997) no que concerne o estudo da interação entre linguagem e contexto social. Como uma antecipação de resultados, verificou-se que os interesses econômicos empresariais superam experiências, mesmo que estas sejam de impactos bastante negativos à vida. Palavras-chave: Discurso; Mídia; Sistema de Avaliatividade; Ecolinguística. Introdução O conceito aquecimento global tem dividido cientistas do mundo todo em controversas opiniões sobre o futuro da vida na Terra, pois há os que admitem a gênese natural das variações de temperaturas e aqueles que acreditam nas mudanças antropogênicas. Essa distinção não interessa muito quando se trata de tomar atitudes a favor da preservação do meio ambiente, o que importa, na realidade, é reconhecer que houve um ritmo acelerado de perda de capital natural e de degradação ambiental mais percebidas a partir da década de 1980. Mesmo com as incertezas sobre as causas das alterações do clima, a consideração de graves ameaças para o meio ambiente e para a sociedade pesou na decisão de criar a Convenção-Quatro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (CQNUMC) pela Organização das Nações Unidas (ONU) ARAES, Célia Regina | 2020 | p. 33-51 34 A (in)conscientização da preservação ambiental: análise avaliativa... para discutir a emissão de gases de efeito estufa (GEE). A CQNUMC foi um dos documentos oficiais produzidos no encontro ambiental ECO 92, no Rio de Janeiro, entrando em vigor dois anos após o evento e contou com assinaturas de representantes de países que acordaram em estabilizar a concentração de gases poluentes, especialmente CO2 em níveis que não ponha o sistema climático em perigo. A ECO 92 tinha os mesmos objetivos da Conferência de Estocolmo que acontecera vinte anos antes e ambos propunham a Cúpula da Terra, mas a grande novidade dos anos 90 foi a participação maciça dos chefes de estado no evento, caracterizando a importância do tema como preocupação da década. A ideia de desenvolvimento sustentável surgiu como a grande novidade e desafio em 1992 como uma possibilidade de crescimento econômico com respeito às questões ambientais e sociais. A partir desse encontro, cada vez mais a discussão sobre a conservação do meio ambiente esteve em pauta nos grandes eventos. Exemplo disso foi o tratado firmado internacionalmente entre países desenvolvidos que assumiram um compromisso de reduzir a emissão de tais gases. Trata-se do Protocolo de Kyoto em meio a uma conferência realizada no Japão em 1997 que não apenas reuniu países denominados desenvolvidos e em desenvolvimento, como também atribuiu responsabilidades distintas entre esses dois grupos e prazos para obtenção de resultados. Os que possuíam maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), considerados mais ricos socioeconomicamente deveriam reduzir pelo menos 5,2% da emissão de gases entre 2008 e 20121, tomando-se como parâmetro os índices de 1990. Os países mais pobres industrialmente não tinham metas a serem cumpridas de maneira obrigatória, mas deveriam realizar ações sustentáveis de acordo com o estabelecido pelo Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL). No discurso dos especialistas, uma informação deve ser levada em consideração no que diz respeito à impossibilidade de reverter o lançamento de gases, uma vez que eles continuam dissipados por décadas e, nesse sentido, não tem como interromper as mudanças do clima mundial tendo em vista o crescimento indiscriminado das atividades industriais. As ações estão baseadas, então, em mitigar os efeitos e buscar soluções para um equilíbrio com mecanismos de adaptação às mudanças que irão ocorrer. Projetos na área de ecologia e climatologia como o complexo modelo matemático de circulação geral da atmosfera (MARUYAMA, apud CASAGRANDE, SILVA JÚNIOR e MENDONÇA, 2011) podem ajudar nesse propósito, mesmo porque os reais números de emissão segura de gases tóxicos ainda são estudados pela ciência até o momento. O ano de 2012 foi marcado pelo balanço final do Protocolo de Kyoto e uma nova conferência na cidade do Rio de Janeiro, Rio+20 [Eco+20]. A proposta inicial do Protocolo de reduzir em média 5% da emissão dos GEE não atingiu plenamente o proposto, portanto o ganho quantitativo não é o que se destaca, mas deve-se levar em 1 Vale ressaltar que os países desenvolvidos tinham um compromisso maior com a redução da emissão de gases causadores do efeito estufa considerando quase dois séculos de industrialização, ou seja, um período significativamente maior de lançamento de poluição no meio ambiente comparado com países pouco industrializados ou de industrialização recente. Também, de que o índice de 5,2% não era único para estes países, variava em função de quantidade de poluição lançada anteriormente. ARAES, Célia Regina | 2020 | p. 33-51 35 Discurso e poder: teoria e análise conta que a maior importância do tratado está na conscientização que os governantes e população passaram a ter sobre o problema da poluição ambiental. A exemplo da Alemanha que introduziu metas ousadas para reduzir 40% da emissão de gases até 2040 (LOPES e SILVA, 2017) com aumento da geração de energia eólica e solar para citar apenas dois exemplos de mudanças de comportamento dos cidadãos e empresas. Dessa forma, permite-se concluir que o maior legado do protocolo está na introdução das energias renováveis, chamadas de energias limpas ou verdes. Já o evento brasileiro é lembrado até os dias atuais pela disputa de poder e interesses entre os países desenvolvidos e os considerados em desenvolvimento, sem a devida preocupação com o desenvolvimento sustentável que era o foco das discussões a princípio. Esperava-se que, ao final de mais de uma semana de conferência, os resultados fossem mais profícuos sobre a erradicação da pobreza e mais avanços na implantação de economia sustentável, baseada no equilíbrio do tripé economia/sociedade/natureza. O resultado final foi a prorrogação de práticas de proteção do meio ambiente com a mais profunda esperança de que os países mais poluidores tivessem a consciência de suas responsabilidades para salvar a vida na Terra. A partir de 2013, novas propostas de leis ambientais, similares a do Protocolo de Kyoto, deram espaço a um novo processo a fim de considerar a tomada de decisões de cooperação e em 2016, mais uma vez, no Acordo de Paris, 195 países aprovaram a redução de emissão de GEE em uma tentativa de limitar o aumento da temperatura a 1,5°C acima dos níveis pré-industriais. Mas ainda há uma pergunta sobre os gastos que envolvem todos esses processos antipoluentes que é: quem vai pagar a conta para se conquistar um planeta menos poluído e evitar as alterações climáticas no mundo todo? E a resposta sempre recai na desigualdade de esforços entre os países industrializados e os de industrialização recente. Um exemplo disso foi a recusa da assinatura dos Estados Unidos no Protocolo de Kyoto, alegando que as alterações nos meios de produção industrial acarretariam perda de capital e lucro. Giddens (1991) considera as sociedades capitalistas como um subtipo específico das sociedades modernas e que conta com uma ordem fortemente competitiva e expansionista do empreendimento capitalista que envolve inovação tecnológica. Dadas as altas taxas de inovação na esfera econômica, os relacionamentos econômicos têm considerável influência sobre outras instituições. [...] a insulação do estado e da economia (que pode assumir muitas formas diversas) se fundamenta sobre a preeminência da propriedade privada dos meios de produção. (Propriedade privada aqui não se refere necessariamente a empreendimento individual, mas à posse privada difundida de investimentos.) A posse de capital está diretamente ligada ao fenômeno da “despossessão de propriedade”' — a transformação do trabalho assalariado em mercadoria — no sistema de classes. (GIDDENS, 1991, p. 54) Por representar situações do cotidiano, os textos midiáticos podem trazer opiniões e valores da sociedade, inclusive das mudanças desses no decorrer de um determinado período de tempo. Tomando como base o percurso histórico marcado pela preservação do meio ambiente através de conferências e a manifestação do Dia ARAES, Célia Regina | 2020 | p. 33-51 36 A (in)conscientização da preservação ambiental: análise avaliativa... da Terra (tema dos textos2 que serão analisados a seguir), o objetivo deste trabalho é buscar compreender como os jornais mostram o problema da poluição mundial e a quem é dada a responsabilidade de proteger/conservar o meio ambiente, ou seja, a partir de estruturas linguísticas que atribuem valores aos atores sociais, analisar as representações sociais que a Folha de S.Paulo e o El País fazem das indústrias e da população em geral como agentes poluidores. Julga-se importante, neste estudo, estabelecer um contraponto de como as informações chegam aos leitores em diferentes países, aqui escolhido o Brasil e a Espanha, a partir de duas mídias distintas. Sabe-se que apenas uma amostra textual de cada jornal não é suficiente para se reconhecer a posição ideológica da empresa de comunicação quanto às questões do meio ambiente e tampouco a formação de opinião dessas empresas junto à população, mas essas já caracterizam um posicionamento crítico no momento histórico, social e ecológico de abril de 2019. Diante disso, justifica-se a seleção do corpus por dois jornais de origens diferentes3, veiculados na mesma data, ou seja, comemoração do Dia da Terra, 22 de abril. A análise de um material textual deve levar em consideração o que mais suscita no objeto analisado e, nesse estudo, portanto, levar-se-á em conta a Atitude e suas três subcategorias, o Afeto, a Apreciação e o Julgamento e estas categorizadas ainda pelo reforço da Gradação quanto à Força. Ademais, como as notícias carregam discursos terceiros, é necessário um olhar atento para reconhecer o sentido das citações e, para isso, os critérios do Engajamento contribuirão para uma melhor compreensão do discurso. 1 Comemoração do Dia da Terra: o que mudou desde 1970? O planeta Terra tem um dia de comemoração. Não se refere ao aniversário, mas sim a um dia proposto para reflexão. Ele foi criado nos Estados Unidos por um senador e também ativista ambiental, Gaylord Nelson, com o objetivo de despertar na população a consciência sobre a ação humana em ambientes naturais e a importância de lutar contra a poluição. A data escolhida foi 22 de abril de 1970 porque muitos jovens estavam nas ruas protestando contra a guerra do Vietnã e em meio a isso, os jovens lutariam pela natureza também. E assim foi, 20 milhões de pessoas em prol da causa que resultou na criação da Agência de Proteção Ambiental no final daquele ano pelo governo estadunidense. Em 2009, a data passou a ser reconhecida pela ONU com o objetivo de discutir a importância da preservação dos recursos naturais e, mais recentemente, foi lembrada na abertura para as assinaturas de ratificação do Acordo 2 Os dois textos selecionados trazem dados sobre a poluição do meio ambiente e mudanças climáticas caracterizando-os como informativos, comuns em notícias e, ao mesmo tempo, opiniões de quem os assinam. Além disso, Marcus Nakagawa define seu próprio texto como um artigo logo no primeiro parágrafo "Este é mais um artigo sobre o Dia da Terra" (Folha de S.Paulo, 22.abr.2019). Este trabalho não objetiva um estudo aprofundado de gêneros jornalísticos, por isso, os denominaremos de "textos" (T1 e T2). 3 A Folha de S. Paulo é o jornal de maior tiragem no Brasil e o mesmo acontece com o El País na Espanha. Devido ao grande acesso que os brasileiros faziam no site do jornal espanhol, desde 2013, o El País tem versões na Língua Portuguesa. Portanto os dois jornais circulam no Brasil e têm versão online. ARAES, Célia Regina | 2020 | p. 33-51 37 Discurso e poder: teoria e análise de Paris em 2016. Hoje, a data pertence a humanidade como uma forma de motivar a sociedade para a urgência do desafio da sustentabilidade planetária. No Dia da Terra, lembremos que estamos no cheque especial é o título do texto (T1) da Folha de S.Paulo (ANEXO 1) que narra brevemente como foi instituída a data e o quanto os seres humanos não estão conseguindo reverter o quadro do consumismo. É uma matéria assinada por Marcus Nakagawa, professor de Desenvolvimento Socioambiental e palestrante sobre sustentabilidade, empreendedorismo e estilo de vida. O texto de Alberto López, de Madri, intitulado Dia da Terra: protejamos as espécies, cuidemos de nossa casa comum (T2), veiculado no El País (ANEXO 2), também menciona a criação do Dia da Terra e dá luz a temas como a extinção da fauna e flora, produção de toneladas de plástico e mortes causadas por poluição. Os dois textos apresentam um retrato de como está ocorrendo a extinção de vidas a partir da ação humana, do consumo de recursos naturais sem reposição de forma satisfatória. Na busca por adesão dos leitores, os dois textos, utilizando o recurso de expansão dialógica (MARTIN e WHITE, 2005) apresentam nomes de pessoas que dão credibilidade àquilo que está sendo expresso e o mesmo acontece com as organizações ou instituições ali listadas. Quando T1 coloca em pauta a má distribuição da renda global "[...] os 26 mais ricos do mundo têm a riqueza dos 3,8 bilhões mais pobres" (parágrafo 14), se utiliza do nome do jornal O Globo para justificar essa estatística. A lista de nomes que traz a voz da autoridade não é pequena em T1 e essa construção é análoga em T2. A ONU, por exemplo, é evocada em T1 para garantir que o número de 2,2 bilhões será o acréscimo de habitantes no mundo em 2050 e em T2, a ONU, com duas aparições, é uma instituição de poder decisório já que no texto é ela que alerta sobre as mortes causadas pela poluição, além de representar a sede de criações de programas para o meio ambiente. Thomas Malthus é um economista britânico que nasceu em 1766 (T1) e Donald Falk, professor de ecologia na Universidade do Arizona (T2) e ambos são citados nos textos como especialistas que utilizam metáforas para explicar, respectivamente, a falta de recursos em comparação ao crescimento demográfico e a biodiversidade que definha em passos gigantescos. O mesmo acontece com as siglas seguidas de nomes escritos por extenso e que dão preferência para a língua inglesa nessas menções, o que podem ser consideradas receitas certas para a arte do convencimento. Essas são estratégias comuns em textos jornalísticos, mas são quase que obrigatórias em matérias cujo tema é o meio ambiente, não por acaso, Alves (2002) afirma que o jornalismo ambiental é uma tendência universal e caracteriza-se como uma especialidade dentro da área e que, ao longo das décadas, deixou de ser modismo para estar presente no contexto histórico de crise ambiental. Já anteriormente mencionado, em 1970, o objetivo do 22 de abril era conscientizar as pessoas de suas ações em relação ao planeta e em 2019, como descrito, os seres humanos não estão conscientizados ainda, não no que tange à ação individual ou de pequenos grupos, mas às atitudes de nações com um pensar coletivo ARAES, Célia Regina | 2020 | p. 33-51 38 A (in)conscientização da preservação ambiental: análise avaliativa... em que há muito a fazer. Quase cinquenta anos se passaram para que um texto jornalístico (T1) trouxesse a informação de que um terço dos recursos disponíveis do planeta já foi gasto e que a população continua a crescer e consumir sem essa percepção, ou ainda, de que o planeta deva estar à beira do colapso (como o próprio termo utilizado em T2) produzindo 150 milhões de toneladas de plástico e desse total, oito milhões de toneladas vão para o mar. Motivada pelos grandes encontros de discussão sobre o futuro da Terra e em datas especiais, como o Dia da Terra, a mídia se concentra em apresentar números e situações de como anda o meio ambiente, informações gerais que não são relacionadas entre si na grande maioria das vezes. Ainda são poucos os jornalistas que se especializaram em reportagens sobre ecologia e, segundo Trigueiro (2005), muitas vezes a noção de contexto desaparece devido às demandas do dia a dia do trabalho jornalístico, mas é fundamental que o jornal denuncie assuntos paradoxos de modelos de desenvolvimento e discuta sobre rumos da sustentabilidade. Sobre a pergunta do título dessa sessão, vários encontros mundiais ocorreram e muito foi discutido sobre os efeitos da poluição, mas pouco mudou para evitar as alterações climáticas. Os termos deste parágrafo vários, muito e pouco são vagos, não trazem números exatos nem perspectivas de melhoras, refletem, sim, incertezas, um sentido de irresolução desde 1970 até meados de 2019. Vale destacar que T1 faz duas chamadas para textos multimodais, uma foto de pessoas que se uniram na "Hora do Planeta" e o vídeo "Human Population Through Time" que não serão analisados por considerar apenas textos da modalidade escrita como interesse de estudo deste capítulo. 2 Arcabouços Teóricos A Linguística Sistêmico Funcional (LSF) (HALLIDAY, 2004) caracteriza-se, especialmente, por conceber a linguagem como um potencial de construção de significados sociais de que os indivíduos dispõem para expressar as experiências de mundo. O escritor/falante4 torna-se um sujeito ativo e capaz de se comunicar eficientemente em diferentes contextos a partir da concepção da gramática vista como um sistema linguístico de produção de significados. Ao considerar todos os estratos da linguagem, entende-se que este sistema não é arbitrário, e sim, uma possibilidade de escolhas intrínsecas aos valores sociais e é nesse sentido que Halliday (1978) estabelece três metafunções dos componentes da linguagem: ideacional, interpessoal e textual. No bojo da metafunção interpessoal, encontra-se o Sistema de Avaliatividade cunhado por Martin e White (2005) que concebe a língua em situações de uso que permite a expressão de sentimentos e posicionamentos de valores dos indivíduos. Nesse contexto de comunicação é estabelecida a relação entre escritor/falante e leitor/ouvinte. As escolhas lexicais e as formas inscritas em textos jornalísticos, no caso do corpus escolhido, oferecem mecanismos avaliativos para retratar as interações sociais 4 Escritor/falante – termo adotado em LSF e Sistema de Avaliatividade. ARAES, Célia Regina | 2020 | p. 33-51 39 Discurso e poder: teoria e análise por meio dos atores. O Sistema de Avaliatividade propõe a atribuição desses valores a objetos, fenômenos e eventos por intermédio da linguagem. É constituído por Atitude, Engajamento e Gradação e suas subcategorias. A Atitude é subdividida em Afeto, responsável em compreender os sentimentos e as reações emocionais, em Julgamento, com a avaliação de comportamentos dos indivíduos pertencentes no discurso atribuindo uma estima ou uma sanção social, e em Apreciação que, por sua vez, se preocupa com a composição estética em relação intrínseca com os objetos. A categoria do Afeto tem a função de expressar as emoções no discurso que estão diretamente ligadas ao avaliador e a categoria de Julgamento avalia o comportamento humano de um sujeito ou de um grupo de pessoas, centrado no autor, o que permite o crivo das normas sociais e ideologia, sendo assim, reconhece o caráter e os valores que regem os comportamentos. O Julgamento de estima social envolve aspectos básicos da relação social quanto à normalidade, capacidade e tenacidade. A sanção social avalia a partir de um conjunto de regras que normalmente estão inscritas em uma determinada cultura definida por regulamentos morais e sociais, por isso, rege a valoração de honestidade e propriedade, quase sempre com implicações sociais e/ou legais. Ambas categorias apresentam graus de polaridade, caminhando do máximo de positividade ao extremo da negatividade. A Apreciação avalia os fenômenos naturais e entidades do ponto de vista da estética e da forma e está calcado no objeto, instituição ou fenômeno, não permitindo, nesse sentido, uma avaliação subjetiva. O sistema de Engajamento que traduz um posicionamento dialógico trata dos recursos manifestados nos discursos pela forma de como a voz autoral está inscrita ou invocada. Quando os enunciados não permitem a manifestação de nenhuma referência a outras vozes e não trazem pontos de vista conflitantes, é considerado um discurso monoglóssico. Já, os enunciados que invocam ou fazem referências a outras vozes em uma dinâmica dialogal são os heteroglóssicos e estes são subdivididos em contração e expansão dialógica. E a terceira categoria é a Gradação, uma forma de compreender a intensidade da ocorrência dos fenômenos e pode ser de dois tipos: Foco e Força. O Foco tem a função de enfatizar ou atenuar as perspectivas do texto e concentra a avaliação quanto à precisão dos discursos. A subcategoria denominada Força, muito utilizada como um recurso linguístico na língua portuguesa, concentra a intensificação e a quantificação das categorias, aquilo que pode ser colocado em escala, utilizando “mecanismos de repetição e a utilização de prefixos e sufixos que aumentam ou diminuem a força das avaliações” (VIAN Jr. 2009, p.118). As categorias de análise do Sistema de Avaliatividade servirão para mostrar a interação entre linguagem e contexto social, objetivo do estudo da Análise Crítica do Discurso (ACD) juntamente com a LSF. A ACD admite a linguagem como uma prática social e valoriza o contexto histórico e social que sustentam o discurso em conformidade com o uso (FAIRCLOUGH, 1997). A marca "crítica" que compõe o nome da teoria busca desvelar relações de assimetrias sociais com interesse nos estudos que relacionam linguagem e poder. Como Wodak (2004) assevera, a ACD trata de três ARAES, Célia Regina | 2020 | p. 33-51 40 A (in)conscientização da preservação ambiental: análise avaliativa... conceitos fundamentais que são o de poder, de história e de ideologia, como podese notar no excerto de Fairclough e Kress (1993) a seguir: Uma abordagem realmente crítica do discurso exigiria, portanto, uma teorização e descrição tanto dos processos e estruturas sociais que levam à produção de um texto, quanto das estruturas e processos sociais no seio dos quais indivíduos ou grupos, como sujeitos sociohistóricos, criam significados em suas interações com os textos (FAIRCLOUGH e KRESS, 1993, p. 2. apud WODAK, 2004). Segundo Fairclough (2001), a linguagem é compreendida como prática social e se interessa pela relação de poder, parcialmente sustentada pelo discurso (RESENDE e RAMALHO, 2006), um movimento de construção no próprio processo discursivo, ou seja, que leva em consideração a interação entre os usuários da língua. Assim, para a ACD, o mundo não nos é dado, mas formulamos num fluxo de nossas interações sociais, que formam, através de práticas discursivas, versões da realidade que se realizam na linguagem, e não a partir dela. (MELO, 2018, p. 23) A relação de poder desigual social e politicamente entre aqueles que agridem a natureza por interesse econômico e os que sofrem os efeitos dessa poluição, pessoas oprimidas e meio ambiente danificados ou mortos compreende os temas que interessam à Ecolinguística. Tanto a Ecolinguística como a ACD atuam no campo do discurso e da sociedade com a capacidade de gerar modos de ação sobre o mundo historicamente situado constituído a partir de identidades sociais. Como Couto (2009) definiu, a Ecolinguística é o estudo das relações entre língua e o meio ambiente e por ser um estudo recente, especialmente no Brasil, com a maioria das publicações na década de 1980, apresenta diferentes teorias e metodologias, uma vez que este estudo deve ter uma visão abrangente da linguagem e que pode usar recursos de outras disciplinas, não se deve estabelecer uma metodologia própria e respeitar a visão holística da linguagem. A importância de estudar a Ecolinguística é trazer um novo ponto de vista em um discurso engajado pela defesa do meio ambiente que possibilite uma visão crítica e a denúncia de falsos discursos ambientalistas. A ACD e a Ecolinguística se aproximam quando analisam discursivamente temas que trazem, por exemplo, o desrespeito ao meio em que se vive e joga luz a um problema escondido nos textos midiáticos. Tanto T1 como T2 não apresentam as ações das indústrias e apagam completamente a responsabilidade da poluição desses atores sociais. A irreversibilidade da poluição pela emissão de gases tóxicos foi caracterizada como uma ação coletiva por todos os habitantes da Terra e a redução desses gases na atmosfera é a única maneira de atenuar o descontrole climático e proporcionar a possibilidade de continuidade da vida vegetal, animal e humana. 3 O que os textos contam além das informações O verbo lembremos presente no título de T1, "No Dia da Terra, lembremos que estamos no cheque especial", e os dois verbos que constam do título do T2, "Dia da ARAES, Célia Regina | 2020 | p. 33-51 41 Discurso e poder: teoria e análise Terra: protejamos as espécies, cuidemos de nossa casa comum", indicam uma suposição da ação e não uma ação que será realizada certamente pelos seres humanos, mesmo com os termos estamos, nossa e comum que buscam, entre escritor e leitor do jornal, um compartilhamento de responsabilidades com a Terra. As manchetes ao mesmo tempo que trazem uma relação de afetividade com o uso de léxicos integradores, afastam uma real possibilidade de concretude da ação. Mesmo tratando de temas complexos, como esgotamento de recursos naturais como processos irreversíveis para os seres vivos, T1 inscreve em "São soluções inovadoras que, de uma forma inteligente, tenham um impacto positivo que some ao que já foi perdido" uma alteração do sentimento de insegurança ou medo. Essa mudança se dá pela própria palavra "positivo" que se refere diretamente a "impacto" com o valor de Apreciação. Os termos "inovadoras" e "inteligente" configuram também valores de Apreciação de "soluções" e "forma" e funcionam como gatilhos de sentimentos de polaridade positiva. Esse movimento de esperança fica mais evidente ainda com o sentido de "somar" que invoca uma transformação na ação de "perder" expressa por "ao que já foi perdido". A palavra "não" presente dezessete vezes em T1 e duas vezes em T2, naturalmente, expressam atitudes de negatividade, porém a expressão "cheque especial" no período "Segundo o Global Footprint Network (GFN), uma organização que estuda esta questão, desde o dia 1º de agosto de 2018 entramos no 'cheque especial'" (T1) atribui um valor de tensão, de medo com referência a um sentimento de polaridade negativa, e o mesmo acontece com "impactos decisivos" quando em T2 problemas ambientais são enumerados como "as mudanças climáticas, poluição, desmatamento [...] são, entre outros, impactos decisivos sobre o que nos rodeia". O termo "decisivo" não carrega valoração negativa por si só, mas ele é invocado na construção do enunciado por fazer parte da lista previamente anotada. Mais que polaridade negativa, ele carrega um sentido de impossibilidade de mudança ou de melhora, fadado ao fim de tudo que nos rodeia. O sentimento de perda da biodiversidade está inscrito com a marca adverbial "infelizmente" no quarto parágrafo de T2 que consolida o verbo "definhar" de expressão altamente negativa quanto à possibilidade de recuperação do meio ambiente. Além disso, ainda o "gigantesco" enfatiza esse sentimento. Na tentativa de imparcialidade como uma característica de textos jornalísticos, os enunciados tendem a monoglossia, justamente por utilizarem referentes que apagam o dialogismo em busca de verdades absolutas, sem a possibilidade de refutação por parte do leitor. Porém, com o crescente volume de notícias ou textos opinativos sobre a destruição da natureza, essa tendência se modificou e constantes diálogos surgiram na última década. É o caso dos primeiros parágrafos dos dois textos "Este é mais um artigo sobre o Dia da Terra, agora em 2019" (T1) (faz referência a outros textos escritos anteriormente ou até que serão escritos ainda) e "Em nosso planeta existem milhões de espécies que conhecemos e muitas que ainda precisam ser descobertas" (T2) (estabelece um diálogo de cumplicidade entre os participantes do discurso). Assim seguem os enunciados que trazem fatos ocorridos e compartilhamento de ideias e ações, como o no parágrafo 2 "Pessoas acendem velas ARAES, Célia Regina | 2020 | p. 33-51 42 A (in)conscientização da preservação ambiental: análise avaliativa... durante a campanha ambiental 'Hora do Planeta' em Cali, Colômbia" (T1) e "Este ano, o lema se refere à biodiversidade de espécies existentes no planeta: 'Vamos proteger nossas espécies' em T2. Há permissão de outras vozes autorais, às vezes contraindo e, às vezes, expandindo-as, como no jornal brasileiro que remonta dois diálogos, um que traz uma voz sobre as classificações do próprio jornalismo apresentando os pontos de vista quanto ao sensacionalismo e pessimismo em "Não queria escrever um artigo sensacionalista ou pessimista, mas é importante destacar alguns pontos" e outro que dialoga com a situação política do país que desde as eleições do ano anterior à publicação estava vivendo uma polarização ideológica frente ao comunismo e socialismo "E aí não é papo de comunistas ou socialistas, ou rótulos que queiram colocar." Essas situações conversacionais invocam contextos anteriores que poderiam causar desconforto em debates e o jornalista já se antecipa com uma justificativa para suas escolhas de posicionamento. A negação de "Como se isso não bastasse, a poluição, como alerta a ONU, é responsável por uma em cada seis mortes no mundo, matando mais pessoas do que a guerra, a fome e os desastres naturais" (T2) desvela uma voz autoral de contraposição ao parágrafo anterior que afirma que o planeta está à beira de um colapso. Estar à beira de um colapso já seria uma informação ruim para os viventes do planeta e a expressão "como se não bastasse" vem acrescentar que há mais coisas ruins, que aquilo (estar à beira do colapso) não era ainda o bastante, além de evocar e nomear os coisas ruins, que são a guerra, fome e desastres naturais. Na tentativa de aproximar o leitor e se fazer entender, ambos os textos trazem exemplos didáticos para explicar o que está acontecendo com o meio ambiente e, assim, apresentam vozes de outrem. T1, na verdade, traz duas citações para trocar em miúdos conceitos complexos de progressão aritmética e geométrica da matemática, desenvolvida por um economista britânico, por algo corriqueiro do dia a dia das pessoas que é o cheque especial. Ao utilizar elementos da vida financeira estabeleceu metaforicamente uma associação com o crescimento populacional e disponibilidade de recursos. A outra associação, até com apelo da ludicidade, é com uma produção cinematográfica da Marvel que traz os Vingadores como elemento comparativo. T2 utiliza a voz de um especialista para ilustrar a perda de seres vivos, que através do próprio exemplo de Donald Falk, professor de ecologia na Universidade do Arizona, associa a extinção da fauna e flora com a possibilidade de colapso de um prédio, como mostra o excerto a seguir: As espécies são como tijolos na construção de um prédio. Podemos perder uma ou duas dúzias de tijolos sem a casa balançar, mas se 20% das espécies desaparecerem, toda a estrutura se desestabiliza e entra em colapso. É assim que funciona um ecossistema. (LOPÉZ, 2019) No subtítulo de T2 e com o mesmo período repetido no quarto parágrafo "Estima-se que todos os dias entre 150 e 200 espécies da flora e da fauna desapareçam da Terra, ritmo mil vezes maior do que o da extinção natural", o verbo "estimar", apresentado na passiva sintética, sugere um afastamento da voz autoral, ou seja, a atribuição da responsabilidade da estimativa não é atribuída a ninguém, marcando um sistema expansivo de vozes no texto, além da imprecisão dos dados ARAES, Célia Regina | 2020 | p. 33-51 43 Discurso e poder: teoria e análise numéricos assinalados por "entre" que corrobora com essa expansão. Parece, dessa forma, que o jornal amplia sua perspectiva e interage com outras vozes (talvez de especialistas em extinção vegetal e animal que conheçam outros dados estatísticos), revelando como proposto por Martin e White (2005) um menor grau de comprometimento com as afirmações do texto. O enunciado de T2 que fornece os dados de que 150 a 200 espécies de fauna e flora são extintas por dia não confirma se este intervalo representa um número relativo ou absoluto. Outra dúvida que pode aparecer para o leitor é de onde veio esses dados e, especialmente, onde a coleta da amostragem das espécies foi realizada. No mínimo, essas taxas de extinção deveriam informar as condições e o local da contagem. Só para citar um exemplo de quão vago esses números podem ser, a teoria de biogeografia de ilhas (MACARTHUR E WILSON, 2001) estabelece uma relação de área geográfica com a riqueza de espécies, considerando o tamanho e o isolamento dessa área e a quantidade de mortes/extinção e imigração/colonização, em um movimento dinâmico que tende a um turnover (equilíbrio da biodiversidade). Esse equilíbrio não se refere a permanência de animais e plantas de mesmas espécies, mas a um equilíbrio de quantidade de espécies vivas em um determinado habitat após movimentos em ciclos dinâmicos e, nesse caso, a informação do texto pode levar a uma interpretação equivocada da realidade contrariando um princípio da Biologia que conta com outras ciências como a geografia, matemática, física e química para compreender o que acontece com os seres vivos e suas relações com os recursos abióticos no mundo real. A Ecolinguística, segundo Couto (2015) não usa conceitos ecológicos como metáforas para estudar fenômenos da linguagem e sim parte do interior dos estudos da ecologia a fim de compreender a ecologia biológica. Cabe então uma ressalva de que tal inexatidão marca um posicionamento do veículo comunicativo potencializando a ação humana dos poluidores de forma negativa em detrimento da extinção natural inscrita no final do parágrafo e, sendo assim, corrobora para o estado de atenção e medo mobilizados nos leitores quanto à destruição do meio ambiente, Afeto descrito por Marin & White (2005) de forma invocada e de polaridade negativa. O Julgamento como subcategoria de Atitude, dos mesmos autores, explica essa expressão numérica de extinção de espécies da fauna e flora como um resultado de práticas sociais de recriminação dos que agem na contramão do bem-estar e da preservação da vida, como acrescenta Gonçalves-Segundo (2011, p.172) "Por essas razões, os julgamentos de sanção social implicam atitudes não de admiração ou estranhamento, mas sim, de louvor/destaque ou condenação/recriminação". Potencializar, exagerar são termos que levam à conotação de grande e por sua vez de bom e os escritos que envolvem temas da natureza acabam por trazer constantemente adjetivos que exprimem grandezas. Couto (2009) explica que isso acontece na tentativa de valorizar os feitos industriais e as conquistas financeiras em contrapartida de minimizar os efeitos nocivos à sociedade e justificar o lucro. “ O que não pode ser deixado de lado são as críticas quanto ao uso de intensificadores positivos e de grandeza para qualificar o desenvolvimento” (COUTO, 2009, p.145). Porém os textos de alerta ou de denúncia (T1 e T2) inscrevem o exagero nos perigos ARAES, Célia Regina | 2020 | p. 33-51 44 A (in)conscientização da preservação ambiental: análise avaliativa... e danos, como o exemplo discutido no parágrafo acima e na reincidência de números que expressam grande quantidade como o superlativo altíssimo se referindo a lucro em T1 e milhões com cinco aparições no texto T2 que contabilizam espécies, tempo, toneladas de plásticos produzidos e descartados, além de pessoas em manifestações. Se milhões já parece uma grande quantidade, na casa de bilhões, T1 afirma, segundo dados da ONU, a Terra terá mais 2,2 bilhões de habitantes e que a condição de pobreza é de 3,8 bilhões de pessoas e em T2, mais de um bilhão de pessoas em 190 países comemoram o Dia da Terra. Comparativos como maior, intensificadores como mais e muitos e suas variantes evocam esse grau de superioridade, que ampliam e enaltecem o tamanho e o número do referente, como alguns exemplos a seguir: Ex1.: [...] consumindo recursos mais rápidos do que o planeta os regenera. (T1) Ex2.: [...] a Terra não consegue mais repor. (T1) Ex3.: [...] os que mais sofrerão serão os que se dizem mais evoluídos. (T1) Ex4.: [...] maior ritmo de extinção de espécies [...] (T2) Ex5.: [...] conhecido em muitos países A repetição de grandezas e o uso de intensificadores é um recurso categorizado como Gradação na subcategoria de Força no Sistema de Avaliatividade (MARTIN & WHITE, 2005) para reforçar que o problema da poluição é de grande dimensão para o planeta. Considerações finais As pautas dos textos analisados são diferentes, apesar do tema comum, mas ambos se assemelham quanto ao alerta sobre a poluição do meio ambiente e uso dos recursos naturais. O que mais aproxima os dois textos, mesmo sendo produzidos em países distintos, é o ocultamento dos reais poluidores da terra. Não há menção de nenhuma indústria, nenhuma usina foi citada e, nem mesmo, os mandatários dos desmatamentos e dos descartes foram identificados. Os estudos da Ecolinguística tornam-se cada vez mais necessários porque representam um novo ponto de vista disponível aos linguistas em defesa da natureza. Ao relacionar língua e discurso com assuntos sobre ecologia é possível formar cidadãos mais preocupados com questões ambientais. A imprensa dificilmente trata dos assuntos ecológicos com profundidade ou clareza, quer por posicionamentos ideológicos, pois não se compromete com a denúncia, quer por desconhecimento científico de biologia e suas especializações na ecologia. Levando em consideração que o discurso é historicamente produzido e interpretado pelo tempo e espaço, falta aos dois jornais uma contextualização dos processos poluidores que foram mascarados na entrega para o leitor. A aplicação do termo sustentabilidade depende da conscientização, e os meios de comunicação não contribuem efetivamente para este conhecimento. ARAES, Célia Regina | 2020 | p. 33-51 45 Discurso e poder: teoria e análise Os encontros ambientais e a criação do Dia da Terra foram eventos importantes para difundir os índices de poluição que a natureza enfrenta, mas pelo que pudemos observar nas matérias dos jornais analisados, isso está no lugar da conscientização do problema e não na resolução dele. Pouco foi feito porque os verdadeiros poluidores não estavam presentes nesses encontros e ações punitivas efetivas não foram desenvolvidas para quem descumprisse os acordos. Os elementos linguísticos de avaliação das atitudes dos atores sociais, conforme proposto como objetivo deste trabalho, descartam as ações industriais desse processo. Os constantes recursos de apagamento dos reais e maiores causadores da poluição causam uma sensação de equidade no ato de poluir compartilhado com todas as pessoas do planeta. Retomando o que assume Fairclough (1997) de que a linguagem pode revelar as assimetrias de poder do discurso, os ambientalistas ganham vozes que se mostram como evidências e protestos nos jornais, e as indústrias (sem identificações), mesmo com seu poderio econômico, não ganham vozes, não precisam de justificativas e nem de prestação de contas. E voltando ao título do capítulo, pode-se dizer que há uma inconscientização da preservação ambiental. Referências bibliográficas ALVES, Jane Magali Rocha. INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Salvador/BA – 1 a 5 Set 2002. COUTO, Hildo Honório do. Ecolinguística. Estudo das relações entre língua e meio ambiente. Brasília: Thesaurus Editora, 2007.www.thesaurus.com.br ISBN 9788570 626035, 462p. COUTO, Hildo Honório do. Linguística, ecologia e ecolinguística: contato de línguas. São Paulo: Contexto, 2009. COUTO, Hildo Honório do. 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ARAES, Célia Regina | 2020 | p. 33-51 47 Discurso e poder: teoria e análise ANEXO 1 Texto citado no artigo como T1 - No Dia da Terra, lembremos que estamos no cheque especial 22.abr.2019 às 7h00 Marcus Nakagawa Este é mais um artigo sobre o Dia da Terra, agora em 2019. Apesar de ser comemorado e difundido desde a década de 1970, esta data só foi oficializada na 80ª Assembleia Geral das Nações Unidas, em 2009. Ou seja, este ano o Dia Internacional da Mãe Terra faz, oficialmente, dez anos. Viva a Mãe Terra! Quando falamos na Mãe Terra nos lembramos sempre da natureza, das belas paisagens dos vídeos maravilhosos que os canais de documentários mostram, dos animais em seu habitat, dos oceanos e suas lindas formações e cores. Não queria escrever um artigo sensacionalista ou pessimista, mas é importante destacar alguns pontos. O primeiro deles é que estamos consumindo recursos mais rápido do que o planeta os regenera. Sim, as nossas gerações estão retirando muito mais recursos (minerais, animais, plantas, água etc.) do planeta do que talvez precisamos. Segundo o Global Footprint Network (GFN), uma organização que estuda esta questão, desde o dia 1º de agosto de 2018 entramos no “cheque especial”. Ou seja, desde esta data estamos pagando os “juros” do planeta, nossa conta zerou e o que estamos gastando dos recursos naturais a Terra não consegue mais repor. Mas, lembrando que só temos um planeta! E que não temos um lastro de um banco por trás, como no verdadeiro cheque especial e seus juros altíssimos no Brasil. Se pensarmos por este prisma, cerca de um terço dos recursos do planeta já se foram, segundo alguns cientistas. Então, não podemos mais falar de sustentabilidade, já que o modelo que estamos “sustentando” não adiantará, pois cada vez mais a perda está aumentando. Para isso, já existe um conceito e um movimento de ativistas falando de regeneração. A ideia deste movimento é buscar alternativas que, ao mesmo tempo, impactem menos e ajudem a regenerar o planeta. São soluções inovadoras que, de uma forma inteligente, tenham um impacto positivo que some ao que já foi perdido. Muitas das inovações passam por questões tecnológicas e de mudanças de estilo de vida. Sim, precisamos pensar e criar novos modelos, pois, no segundo ponto, temos o crescimento da população e as suas necessidades. Segundo a ONU, numa notícia de outubro de 2018, o mundo terá mais 2,2 bilhões de pessoas até 2050. O vídeo abaixo mostra exatamente o que estamos passando desde os tempos antigos. Mas a ideia é que, se tivermos tudo isso de pessoas neste estilo de vida que temos na classe média no Brasil, ou nos EUA, será que teremos recursos naturais suficientes para a Mãe Terra nos prover? Thomas Malthus, um economista britânico nascido em 1766, colocou que o crescimento demográfico é em progressão geométrica e os meios de subsistência poderiam crescer somente em progressão aritmética. Para quem não entende muito de matemática, ele coloca exatamente o que foi descrito acima no termo do “cheque especial”: a população cresce, mas a produção dos recursos naturais não acompanha. Ele estava prevendo tudo isso? Não sei, mas é óbvio que, como muitos cientistas rebateram a este conceito, Malthus não levava em consideração um monte de variáveis. ARAES, Célia Regina | 2020 | p. 33-51 48 Anexos - A (in)conscientização da preservação ambiental: análise avaliativa... Até a Marvel: nos Vingadores (isso mesmo, filme blockbuster) o vilão Thanos, com a sua super manopla com as joias do infinito, seguiu este pensamento para fazer menos pessoas sofrerem de fome e necessidades não atendidas (sem mais spoiler). Pois esse é o terceiro ponto. Com todo este movimento de uso da nossa Mãe Terra no "cheque especial", existem muitas pessoas passando fome e vivendo abaixo da linha da pobreza. Segundo o jornal O Globo, os 26 mais ricos do mundo têm a riqueza dos 3,8 bilhões mais pobres. E aí não é papo de comunistas ou socialistas, ou rótulos que queiram colocar. Não estou gerando a briga de classes ou estas outras teorias que vendem jornais ou artigos ou campanhas políticas. Estou colocando que não adianta explorarmos os recursos naturais de forma exagerada, nem os recursos humanos (como o pessoal das empresas dizem) para alguns somente. Sim, fazemos parte da Mãe Terra, somos seres como todos os outros, não o centro do universo (antropocentrismo). Temos que ter direitos a sobreviver dignamente como todos os outros seres vivos aqui na Terra: comer, viver, dormir, beber, respirar etc. Para isso, temos até uma declaração em que vários seres humanos se juntaram e falaram que esta era a regra para todos aqueles que são pessoas. Esta é a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que fez 70 anos em 2018. E, de novo, não estamos falando de uma ideologia, um partido ou uma forma de pensar. Estamos falando da Mãe Terra e de todos os seus filhos que aqui habitam! E somos também habitantes e parte dela. Se o “cheque especial” cada vez piorar, os que mais sofrerão serão os que se dizem mais evoluídos. E, se somos tão evoluídos, que conseguimos ir para Marte, fazer inteligência artificial, robôs, tecido humano artificial, entre outras coisas, não é possível que não conseguimos entender e gerenciar estes problemas da superpopulação, do aquecimento global e do “cheque especial”. Sim, temos muitos outros problemas. E você está fazendo o que para resolver? Só reclamando nas redes sociais, nos comentários de posts? Ou atuando de verdade? Viva o dia da Mãe Terra fazendo alguma ação mais sustentável e/ou regenerativa! Chega de “cheque especial” do planeta! Marcus Nakagawa Professor da ESPM e coordenador do Centro ESPM de Desenvolvimento Socioambiental (Ceds), é idealizador e diretor da Abraps e palestrante sobre sustentabilidade, empreendedorismo e estilo de vida ARAES, Célia Regina | 2020 | p. 33-51 49 Discurso e poder: teoria e análise ANEXO 2 Texto citado no artigo como T2 - Dia da Terra: protejamos as espécies, cuidemos de nossa casa comum Estima-se que todos os dias entre 150 e 200 espécies da flora e da fauna desapareçam da Terra, ritmo mil vezes maior do que o da extinção natural ALBERTO LÓPEZ Madri 22 ABR 2019 - 12:37 BRT Em nosso planeta existem milhões de espécies que conhecemos e muitas que ainda precisam ser descobertas. A conscientização nos últimos anos sobre a proteção e o cuidado do meio ambiente revelou que nós mesmos, os seres humanos, alteramos o equilíbrio da natureza a ponto de enfrentarmos o maior ritmo de extinção de espécies desde que perdemos os dinossauros há mais de 60 milhões de anos. O Dia da Terra, que está sendo comemorado nesta segunda-feira, tenta conscientizar o mundo a cada 22 de abril sobre a necessidade de proteção do meio ambiente e de conservação da Terra. Este ano, o lema se refere à biodiversidade de espécies existentes no planeta: "Vamos proteger nossas espécies". A destruição global e sem precedentes que testemunhamos ao nosso redor, bem como a redução das populações de plantas e de animais selvagens, está diretamente relacionada à atividade humana: mudanças climáticas, poluição, desmatamento, agricultura insustentável e pesticidas, tráfico e caça ilegal de animais, perda de habitat ... são, entre outros, impactos decisivos sobre o que nos rodeia. Sobre a biodiversidade, que é a variedade de seres vivos existente no planeta, estimase que a quantidade de espécies da flora e fauna que desaparece na Terra esteja entre 150-200 a cada 24 horas. Este ritmo faz a biodiversidade da Terra definhar a passos gigantescos e, infelizmente, os humanos têm tanto a ver com o problema que o ritmo atual é mil vezes maior do que se fosse uma extinção natural de espécies. Donald Falk, professor de ecologia na Universidade do Arizona, explica isso de maneira ilustrativa: "As espécies são como tijolos na construção de um prédio. Podemos perder uma ou duas dúzias de tijolos sem a casa balançar, mas se 20% das espécies desaparecerem, toda a estrutura se desestabiliza e entra em colapso. É assim que funciona um ecossistema". O planeta está à beira do colapso quase sem nos darmos conta. Produzimos 150 milhões de toneladas de plástico de um só uso por ano e, destas, oito milhões de toneladas acabam no mar; nos últimos 25 anos, o nível de água do mar aumentou o dobro do esperado; 40% da população mundial já tem problemas devido à escassez de água ... e se o planeta consumisse ao ritmo da Espanha, por exemplo, no dia 11 de junho ficaríamos sem recursos na Terra para um ano. Como se isso não bastasse, a poluição, como alerta a ONU, é responsável por uma em cada seis mortes no mundo, matando mais pessoas do que a guerra, a fome e os desastres naturais. Por estas razões, é mais do que justificado comemorar o Dia da Terra, e fazer isso não como uma celebração isolada, mas como uma recordação constante de que todos os dias colocamos nosso planeta em risco. Nós estamos sofrendo hoje os efeitos devastadores da ação humana, por isso, mais do que tentar deixar o planeta melhor para as próximas gerações, estamos falando de poder viver de forma sustentável nos próximos anos graças à conscientização pela educação para alcançar uma ecologia integral: ou seja, uma ecologia ambiental, econômica e social; uma ecologia cultural; uma ecologia da vida cotidiana; uma ecologia guiada pelo princípio do bem comum e também pela justiça entre países, continentes e gerações. ARAES, Célia Regina | 2020 | p. 33-51 50 Anexos - A (in)conscientização da preservação ambiental: análise avaliativa... Celebramos o Dia da Terra, também conhecido em muitos países como da Mãe Terra, para lembrar que o planeta e seus ecossistemas nos dão a vida e o sustento e assumir a responsabilidade coletiva de promover essa harmonia com a natureza e a Mãe Terra. Este dia, estabelecido pelas Nações Unidas, nos dá a oportunidade de aumentar a conscientização de todos os habitantes do planeta sobre os problemas que afetam a Terra e as diferentes formas de vida que se desenvolveram no planeta, porque a Terra e seus ecossistemas são a nossa casa. Assim, para alcançar um equilíbrio justo entre as necessidades econômicas, sociais e ambientais das gerações presentes e futuras, é necessário promover a harmonia entre ambos. Dia da Terra é um evento comemorado por mais de um bilhão de pessoas em 190 países. Manifestações com a cor verde como protagonista, plantio de árvores, limpeza de florestas e praias e atividades em defesa do meio ambiente e conscientização política marcam este dia. O promotor da celebração foi o senador norte-americano Gaylord Nelson, que criou em 1970 este dia para instigar uma consciência comum dos problemas de poluição e da conservação da biodiversidade, além de outras preocupações ambientais para proteger a Terra. Nesse ano, começou nos Estados Unidos um movimento ambientalista que levou às ruas 20 milhões de pessoas para lutar por um ambiente mais saudável. Com o sucesso da manifestação, os políticos também ficaram cientes da importância da natureza e do cuidado com o meio ambiente, e foi criada a Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos, que é responsável pelas leis para obter ar limpo e água potável, e conservar espécies em perigo de extinção. Há quase 50 anos, organizações internacionais e Estados têm tentado criar uma consciência ambiental para preservar o planeta. A Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente Humano, realizada em 1972, em Estocolmo, lançou as bases para uma conscientização mundial da interdependência entre os seres humanos, outros seres vivos e nosso planeta, e é por isso que se fixou o 5 Junho como o Dia Mundial do Meio Ambiente, ao mesmo tempo em que se criava o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), que é a agência da ONU responsável por estabelecer a agenda ambiental global. Em 1992, mais de 178 países assinaram a Agenda 21, a Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento e a Declaração de Princípios para a Gestão Sustentável das Florestas durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (UNCED). Em 2005, a Assembleia Geral declarou 2008 o Ano Internacional do Planeta Terra para promover o ensino das ciências da Terra e fornecer à humanidade as ferramentas necessárias para o uso sustentável dos recursos naturais. Em 2012, foi realizada a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, também conhecida como Rio+20. Seu resultado foi um documento que continha medidas e práticas para o desenvolvimento sustentável. Além disso, os Estados membros decidiram iniciar um processo para estabelecer os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), que se baseariam nos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio e coincidiriam com a Agenda de Desenvolvimento depois de 2015. Neste ano, também se celebra o nono Diálogo sobre Harmonia com a Natureza da Assembleia Geral das Nações Unidas, que será realizado nesta segunda-feira, dia 22, na sede da ONU, em Nova York, na Sala do Conselho de Administração de Tutela, e vai focar no tema A Mãe Terra na Aplicação da Educação sobre as Mudanças Climática'. Além disso, em 23 de setembro, haverá a Cúpula do Clima, organizada pelo secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, para tratar das mudanças climáticas e acelerar a implementação do Acordo de Paris sobre a Mudança Climática. ARAES, Célia Regina | 2020 | p. 33-51 51 Discurso e poder: teoria e análise Em suma, há muitos pequenos gestos que cada um de nós pode fazer diariamente para cuidar da Casa Comum que é o nosso planeta. O mais eficaz, sem dúvida, é agir como se todos os dias fossem o dia que comemoramos nesta segunda-feira: o Dia da Terra. Como citar ARAES, Célia Regina. A (in)conscientização da preservação ambiental: análise avaliativa de textos jornalísticos sobre o Dia da Terra. In: GONÇALVES-SEGUNDO, Paulo Roberto; ARAES, Célia Regina; CASTANHEIRA, Claudia; ISOLA-LANZONI, Gabriel; PENITENTE, Natalia; WEISS, Winola (orgs). Discurso e poder: teoria e análise. São Paulo: FFLCH/USP, 2020, p. 33-51. DOI: 10.11606/9786587621241 ARAES, Célia Regina | 2020 | p. 33-51 52 Discurso em Hannah Arendt: sobre o sentido político de falar ... Discurso em Hannah Arendt: sobre o sentido político de falar sobre o mundo e narrar uma história Crislei de Oliveira CUSTÓDIO Universidade Ibirapuera [email protected] Resumo: Este artigo objetiva explorar o tema do discurso na obra de Hannah Arendt. Entendido como par indissociável da ação, o discurso, nessa perspectiva, pode também ser entendido como ação. E essa ação, de acordo com a autora, revela quem alguém é, ou seja, a sua singularidade e unicidade que, como ver-se-á no presente trabalho, é espacial, uma vez que diz respeito ao lugar em que se ocupa e de onde se percebe o mundo, e temporal, dado que se insere na trama da teia de relações humanas e constitui o fio e narrativa de uma vida. Palavras-chave: Ação; Discurso; Narrativa; Memória; Hannah Arendt. Introdução O mundo, tal como concebe Hannah Arendt, é o espaço de intercâmbio das relações dos sujeitos com os objetos – sejam eles de uso ou obras de arte – e com seus pares. Essa intermediação, no que se refere à interligação entre os sujeitos, imprime no mundo comum uma teia de relações humanas formada por atos e palavras proferidos pelos agentes que o compõem. Na medida em que o sujeito é dotado da capacidade de agir e, ao fazê-lo, apresenta-se aos seus semelhantes por meio de seus atos e palavras, inicia-se um processo em que suas impressões e sua singularidade revelada deparam-se – e, por vezes, confrontam-se – com as impressões e as identidades e singularidade tanto daqueles que lhe são contemporâneos, quanto de seus antepassados. Ora, esta exposição inicial sobre a teia de relações humanas, feita desta maneira, pode parecer-nos mais complexa do que realmente é. No entanto, reservadas todas as peculiaridades referentes a esse tema, o mais importante para os fins deste texto é termos em mente que a interposição do mundo entre os sujeitos permite o estabelecimento de interesses específicos e comuns, os quais, na acepção literal da palavra, constituem-se como “algo que inter-essa, que está entre as pessoas e que, portanto, as relaciona e interliga” (ARENDT, 2007, p. 195). CUSTÓDIO, Crislei de Oliveira | 2020 | p. 52-66 53 Discurso e poder: teoria e análise A teia de relações humanas é composta, especificamente, pela ação e pelo discurso daqueles que estão inseridos no mundo. Arendt, ao conceituar a ação, parte de dois verbos do grego antigo: árkhein, que significa começar, e práttein, que é definido como governar, levar a cabo. Dessa forma, a autora designa a ação como algo que se dá, necessariamente, na presença dos outros e que consiste no começo e na tomada de iniciativa por alguém, desencadeando assim um processo imprevisível que, em contato com os demais sujeitos, pode ser conduzido e levado a cabo por eles. Nessa perspectiva, a ação, como início que representa, é a efetivação da condição humana da natalidade – isto é, o fato de que seres novos chegam ao mundo e possuem a capacidade de imprimir o novo –, e o discurso é a concretização da condição humana da pluralidade – o fato de que cada sujeito é um ser singular e distinto entre iguais. Daí, ação e discurso relacionam-se intimamente, uma vez que a ação revela o início de um novo processo e o discurso revela o autor do processo iniciado. Tais atividades – ação e discurso – são tidas como as mais fúteis da vita activa. Não obstante, é no decorrer delas que o sujeito se humaniza, na medida em que se revela ao mundo e, neste fenômeno, manifesta seu caráter singular. É fato que a transformação da matéria em objetos artificiais, ou seja, a fabricação, denota a característica e a capacidade humanas de produzir coisas para o mundo humano; porém, em tal atividade, não é o artífice que se revela, mas o artefato. Isso ocorre porque, ao término da fabricação, há a separação entre o sujeito e a obra, sendo que esta recebe significados e usos no mundo para além daquele que a produziu – diferentemente da ação, que se dá apenas no momento em que o agente a desencadeia. A aparência no mundo e a consequente revelação do agente por meio de seus feitos e palavras são um ponto fundamental no pensamento arendtiano, pois consistem no alicerce da política. Além disso, é no intercâmbio de opiniões na esfera pública que o agente não apenas aparece e enuncia o que e como vê o mundo a partir do lugar que nele ocupa, como também apreende percepções, discursos e opiniões distintas da sua, as quais, ao encontrar-se só na atividade do pensamento, podem permitir o alargamento a sua mentalidade por meio do diálogo consigo mesmo que, através da imaginação, convoca diferentes interlocutores ao pensar. 1 Ação e discurso e a revelação do sujeito Ação e discurso, as atividades mais humanas e humanizadoras que há do ponto de vista arendtiano, têm como característica certa fragilidade, dado que se dão em uma relação intersubjetiva no tempo presente, não deixando atrás de si rastros concretos de existência, mas sim, imprimindo processos que desencadeiam uma cadeia de novas ações e discursos não previsíveis e nem controláveis. Atos e palavras acontecem e encerram-se, como uma performance, uma cena que, para além da lembrança daqueles que empreenderam ou presenciaram a ação, que disseram ou escutaram as palavras ditas, se esvaem sem constituir algo concreto e durável, como são os objetos que resultam da atividade da fabricação. Em resumo, atos e palavras CUSTÓDIO, Crislei de Oliveira | 2020 | p. 52-66 54 Discurso em Hannah Arendt: sobre o sentido político de falar ... não constituem artefatos e sim histórias e lembranças que, caso não sejam passadas adiante, se dissipam no tempo, desaparecem para sempre. De acordo com Arendt, diante dessa fragilidade da ação e do discurso, os gregos empregaram como solução a formação de uma esfera pública onde os cidadãos podiam agir em concerto. Tal esfera dedicada aos negócios humanos era a polis e a ela eram designadas duas funções: Em primeiro lugar, […] a polis deveria multiplicar-lhes as oportunidades de conquistar ‘fama imortal’, ou seja, multiplicar para cada homem as possibilidades de distinguir-se, de revelar em atos e palavras sua identidade singular e distinta. […] A segunda função da polis, […] era remediar a futilidade da ação e do discurso; pois não era muito grande a possibilidade de que um ato digno de fama fosse realmente lembrado e «imortalizado» (ARENDT, 2007, p. 209). Na polis, os cidadãos1 estabeleciam uma comunidade de iguais em que, por intermédio de suas palavras e ações, podiam revelar suas identidades. Assim, ao passo que tinham a ‘isonomia’ – “igual participação de todos os cidadãos no exercício do poder” (VERNANT, 2009, p. 65) – assegurada, os cidadãos da polis tinham a oportunidade de aparecer diante de seus pares e de distinguir-se por meio do discurso. Esse local onde todos podiam ver e serem vistos, ouvir e serem ouvidos, era o espaço que resguardava as histórias dali procedentes; pois “a organização da polis, fisicamente assegurada pelos muros que rodeavam a cidade, e fisicamente garantida por suas leis […] é uma espécie de memória organizada” (ARENDT, 2007, p. 210). Isso significa que os homens da polis – os quais a si intitulavam como isoi2 ─, por meio da interação contínua que mantinham na ágora, não apenas se mostravam uns aos outros, como também conservavam a imagem imortalizada daqueles que os antecederam. Essa interação assenta-se no fato de que aparecemos de forma tangível no mundo comum. Ou seja, como a própria palavra diz, a inter-ação – ligação estabelecida entre uma ação e outra na teia de relações humanas – só é possível na presença de outros, os quais são capazes de ver e serem vistos pelos demais, bem como de ouvir e serem ouvidos. Como seres do mundo, nós aparecemos uns para os outros, tal como os artefatos que compõem a objetividade deste mundo humano. Assim, aparecer é mostrar-se: o aparecer pressupõe outros seres aos quais nos mostramos. A pluralidade, conceito central da filosofia política de H. Arendt, fundamenta-se nesta fenomenologia geral; a pluralidade é a ‘lei da terra’. O aparecer é um co-aparecer: os outros aos quais apareço, aparecem-me, por sua vez. O sujeito puro espectador não existe [,] cada um é, simultânea e indissociavelmente, espectador e ator (ROVIELLO, 1997: 13). 1 Eram considerados cidadãos os homens livres, maiores de 20 anos e nascidos em Atenas. Esses homens, uma vez liberados do labor para a manutenção de sua vida e de sua família, dedicavam-se aos assuntos da polis. Para isso, tais cidadãos possuíam escravos que realizavam todos os esforços ligados à subsistência e à economia. Nessa sociedade, a escravidão era não apenas justificada, como também era um de seus alicerces. 2 Iguais. CUSTÓDIO, Crislei de Oliveira | 2020 | p. 52-66 55 Discurso e poder: teoria e análise Isso quer dizer que a aparência é o evento primordial de nossa existência e que, para que se efetive, é indispensável a presença de outros que reconheçam esse mostrar-se. Arendt afirma, aliás, que o que temos em comum com os demais seres vivos e com as coisas do mundo é a aparência, ou seja, o fenômeno que nos torna capazes de sermos percebidos por meio dos órgãos sensoriais. Dessa forma, tal como tudo o que existe no mundo, os sujeitos podem ser ouvidos, vistos, cheirados e tocados. Nossa aparência, como já dissemos, está vinculada à existência de outros seres sensíveis, em relação aos quais nos é permitido perceber e sermos percebidos; apreender e sermos apreendidos. Nossa existência, pois, é tão objetiva quanto a existência das coisas do mundo, o que, por um lado, torna-nos sujeitos – ao agirmos e aparecermos para os outros –, e, por outro, objetos – ao sermos notados sensorialmente pelos outros que nos circundam. Portanto, “a mundanidade das coisas vivas significa que não há sujeito que não seja também objeto e que apareça como tal para alguém que garanta sua realidade «objetiva»” (ARENDT, 2008b, p. 36). Segundo o pensamento arendtiano, na medida em que chegamos ao mundo e aparecemos de lugar nenhum, e daqui partimos, desaparecendo para lugar nenhum, o ser e o aparecer são a mesma coisa; afinal, nossa existência apenas se torna real diante da confirmação dos outros por meio da percepção dos sentidos. Ademais, chegamos ao mundo dotados de órgãos sensoriais que nos permitem apreender as coisas deste mundo e fazer dele não apenas nossa morada, mas algo do qual fazemos parte. Em outras palavras, não viemos ao mundo somente para nele estar, mas sim para pertencer-lhe, já que, como pessoas equipadas para lidar com as aparências que o compõem, somos seres do mundo. Como seres do mundo que somos, aparecemos aos outros continuamente e, nesta aparência, mostramos tanto nossa forma – características físicas –, quanto expomos quem somos. Isto é, em nosso aparecimento, revelamos não somente aquilo que nos é dado, mas também nossas identidades, nossa singularidade e aquilo que queremos que seja visto pelos outros. As coisas vivas aparecem em cena como atores em um palco montado para elas. O palco é comum a todos os que estão vivos, mas ele parece diferente para cada espécie e também para cada indivíduo da espécie. Parecer – o parece-me, dokei moi – é o modo – talvez o único possível – pelo qual um mundo que aparece é reconhecido e percebido. Aparecer significa sempre parecer para outros, e esse parecer varia de acordo com o ponto de vista e com a perspectiva dos espectadores (ARENDT, 2008b, p. 37). Diante disso, o aparecer – esse dar-se a parecer às vistas dos pares – seria movido por uma intencionalidade que faz com que o sujeito queira apresentar-se aos demais. Uma vez que há essa autoexposição, certos aspectos dão-se à mostra e outros não, pois, “no homem, o impulso para aparecer é recoberto pela «decisão» entre o que deve ser mostrado e o que deve permanecer oculto” (ROVIELLO, 1997: 17). Essa decisão entre o que deve e o que não deve aparecer é feita de maneira parcial por aquele que se apresenta. Isso ocorre porque há determinadas facetas de CUSTÓDIO, Crislei de Oliveira | 2020 | p. 52-66 56 Discurso em Hannah Arendt: sobre o sentido político de falar ... nosso ‘eu’ que mostramos deliberadamente para os pares, ao passo que outras não dependem diretamente de nossa vontade em mostrá-las; ao contrário, aparecem junto com nossas ações e, muitas vezes, até nos são desconhecidas. São a ação e o discurso que revelam a singularidade do agente, isto é, que colocam à mostra aquilo que lhe é particular e o caracteriza como um ser único e irrepetível. Segundo Arendt, Na ação e no discurso, os homens mostram quem são, revelam ativamente suas identidades pessoais e singulares, e assim apresentam-se ao mundo humano, enquanto suas identidades físicas são reveladas, sem qualquer atividade própria, na conformação singular do corpo e no som singular da voz. Esta revelação de «quem», em contraposição a «o que» alguém é […] está implícita em tudo o que se diz ou faz (ARENDT, 2007, p. 192). Quando nos apresentamos ao mundo por meio de nossas palavras, nosso ‘eu’ é revelado àqueles que nos assistem. E, ao enfatizarmos o aparecimento desse ‘eu’, não estamos nos referindo aos sentimentos, temperamentos ou aquilo que se encontra no íntimo de cada pessoa, mas a ‘quem’ ela é, ou seja, àquilo que lhe é peculiar, que a identifica e que ela não compartilha com mais ninguém porque é singular. Essa identidade revelada na ação e no discurso é o que torna uma pessoa inconfundível e incomparável, já que não há e nem haverá nada semelhante a ela no mundo. Podemos elucidar essa ideia se pensarmos em expressões que fazem parte do nosso cotidiano e que, desde cedo, aprendemos a empregar. Por exemplo: quem nunca se deparou com frases como “só podia ser ele” ou “esse tipo de atitude é a cara dela”? Tais expressões denotam a natureza (physis) de alguém e fazem-nos identificar esse alguém como um ser único. Decerto, fazemos uso de tais expressões porque nos faltam palavras para expressar esse ‘eu’ que se nos apresenta aos sentidos, mas que não podemos tornar tangível por meio de uma descrição. Aliás, nem o próprio agente pode descrevê-lo, afinal, essa personalidade que ele revela lhe é oculta, tal como o daimon3 da mitologia grega. Assim, “ainda que a personalidade só se constitua na e pela manifestação, ela não se reduz a esse aparecer; o indivíduo é sempre mais do que a máscara que traz, mas esse «mais» não é nada substancial, é intangível. O indivíduo […] é identificável mas não é definível” (ROVIELLO, 1997, p. 19). Arendt afirma que, em nossas tentativas de descrever ‘quem’ uma pessoa é, acabamos por reduzir sua singularidade a ‘o que’ essa pessoa é. Ou seja, quando tentamos traduzir em palavras a aparência única da personalidade de alguém, subtraímos sua singularidade ao definir as qualidades e defeitos que compõem tal sujeito. Dizer que alguém é corajoso ou covarde, vaidoso ou humilde, inteligente ou 3 Nas palavras de Arendt, daimon é o “que segue o homem durante toda sua vida e que é a sua identidade inconfundível, mas que só transparece e é visível para os outros” (ARENDT, 2007, p. 205). Anne-Marie Roviello define a ideia de daimon como “a fonte invisível, enigmática, da personalidade, o ‘lugar’ inencontrável onde, através de um ato de ‘apropriação’, a interioridade informe é convertida numa autorrevelação coerente” (ROVIELLO, 1997, p. 19). CUSTÓDIO, Crislei de Oliveira | 2020 | p. 52-66 57 Discurso e poder: teoria e análise estúpido não é dizer ‘quem’ essa pessoa é; é dizer determinadas características que definem ‘o que’ ela é, características essas que são compartilhadas por muitas outras pessoas. Eis aí a especificidade do mundo: ele apenas pode ser interposto entre os sujeitos por meio das palavras, daquilo que é tangível e compartilhável. Esse caráter objetivo do mundo é o que torna fugaz o eventual produto da ação e do discurso. Para atenuar o imediatismo com que a singularidade de alguém se revela e se esvai, narramos histórias e as transmitimos à posteridade. Entretanto, não agimos somente pelo desejo de termos nossas histórias rememoradas e passadas adiante; pelo contrário, a importância da ação está na revelação de ‘quem’ age. Tal revelação é responsável pela realidade desse sujeito – já que ele aparece aos sentidos daqueles que o circundam – e por sua humanização – pois, na medida em que nos revelamos, efetivamos a condição humana da pluralidade por meio de nossa singularidade. A aparência de nosso caráter singular está necessariamente ligada à presença de pessoas que apreendam nossa revelação e a assimilem do ponto em que estão localizadas. Isso significa que a manifestação daquilo que nos é peculiar só é possível na medida em que nos expomos, ou seja, em que nos apresentamos aos outros e damo-nos a ver a partir de variadas perspectivas; afinal, cada sujeito que nos percebe no mundo o faz de um lugar diferente. Dessa forma, o processo de personalização ou de individualização confunde-se com o processo de abertura ao mundo. Paradoxalmente, é ao sair de si, é ao abrir-se à alteridade do mundo que o indivíduo se abre a si próprio; e a personalidade individual de cada um pode, por conseguinte, ser definida como abertura singularizada ao mundo (ROVIELLO, 1997, p. 20). Essa ‘abertura singularizada ao mundo’ nada mais é que a forma singular com que aparecemos e nos apresentamos aos demais. E, para que apareçamos ao outro e captemos o aparecimento desse outro, é preciso que haja um local onde possamos nos ver, ouvir e perceber. Afinal, assim como o ator depende do palco, dos outros atores e dos espectadores para fazer sua entrada em cena, cada coisa viva depende de um mundo que solidamente aparece como locação de sua própria aparição, da aparição de outras criaturas com as quais contracena e de espectadores que reconhecem e certificam sua existência (ARENDT, 2008b, p. 38). Nessa perspectiva, o mundo – em seu aspecto público – é o palco onde nos apresentamos aos demais e onde, continuamente, por meio de nossas ações e palavras, demonstramos ‘quem’ somos. Esse palco em que nos apresentamos é a esfera destinada aos assuntos humanos, ou seja, a esfera pública do mundo, onde se estabelecem principalmente as relações de sujeito para sujeito. A esfera pública é o espaço que alocamos no mundo para nosso aparecimento. É onde podemos coexistir com os outros e com as coisas na aparência de nossas formas e de nosso ser. Em outras CUSTÓDIO, Crislei de Oliveira | 2020 | p. 52-66 58 Discurso em Hannah Arendt: sobre o sentido político de falar ... palavras, é o local em que nos tornamos tão objetivos quanto tudo o que está no mundo. Segundo Arendt, a esfera pública, tal como o próprio mundo, interpõe-se entre os sujeitos logo que estes se reúnem em atos e palavras. E “isto é assim porque onde quer que os seres humanos se juntem – em particular ou socialmente, em público ou politicamente – gera-se um espaço que simultaneamente os reúne e os separa” (ARENDT, 2008a, 159); ou seja, “onde quer que as pessoas se reúnam, o mundo se introduz entre elas e é nesse espaço intersticial que todos os assuntos humanos são conduzidos” (ARENDT, 2008a, p.159). Sendo assim, a cada vez que os sujeitos se reúnem por intermédio da ação e do discurso, gera-se o espaço da aparência – o qual, não está subordinado ao estabelecimento formal da esfera pública em suas variadas formas de governo. Esse espaço da aparência é tão fugaz quanto as atividades que o constituem, uma vez que é estabelecido no momento em que há a reunião dos sujeitos e se desfaz no instante em que tais sujeitos se afastam. Com isso, Arendt (2007) conclui que o espaço da aparência existe potencialmente, não obrigatoriamente e para sempre. Além da revelação da singularidade de cada um, o espaço mundano destinado à apresentação dos sujeitos também reserva a possibilidade de atualização de algo que existe potencialmente em cada pessoa: a liberdade. Para Arendt, essa liberdade não está ligada à possibilidade de fazer o que se quer sem restrições, ou a uma disposição íntima do sujeito. Não se trata de ser livre, mas de estar livre no momento em que, entre os pares, se age e se debate os assuntos políticos por excelência. A liberdade é concebida por Arendt (2003) como a faculdade humana de empreender o novo por meio da ação. Isso significa que a liberdade só é efetivada no momento em que o sujeito age e inicia um processo, o qual interrompe o automatismo vigente e institui o absolutamente inesperado, tal como um milagre. Ou seja, como estamos rodeamos por processos automáticos e pelo ciclo repetitivo da vida, na medida em que o sujeito se revela no espaço das aparências e imprime um novo começo por intermédio de sua ação, a potência da liberdade atualiza-se. No momento da ação – do início de algo novo e improvável –, o sujeito está livre. Portanto, a liberdade não é algo de domínio íntimo ou privado, mas uma potencialidade que se manifesta tangivelmente na aparência de nossos atos e palavras. Por isso, a liberdade “só se desenvolve com plenitude onde a ação tiver criado seu próprio espaço concreto onde possa, por assim dizer, sair de seu esconderijo e fazer sua aparição” (ARENDT, 2003, p. 218). O espaço em que os sujeitos se reúnem e se apresentam uns para os outros gera não somente liberdade, mas também a própria realidade desses sujeitos e do mundo. Isso é assim porque o mundo se interpõe entre nós – unindo-nos por meio das relações que estabelecemos com as pessoas e com as coisas, e separando-nos uns dos outros –, de forma que cada um passa a ter um lugar de onde enxerga este mundo. Como a perspectiva a partir da qual cada sujeito vê o mundo é diferente, ele aparecelhe de maneira distinta em relação aos demais. Ou seja, cada pessoa, no lugar onde está, vê o mundo e as relações nele tecidas de forma particular e díspar. CUSTÓDIO, Crislei de Oliveira | 2020 | p. 52-66 59 Discurso e poder: teoria e análise É importante lembrar que a realidade de uma coisa se dá, em sua aparência, aos sentidos daqueles que a veem. Portanto, o mundo e tudo aquilo que a ele pertence torna-se real a partir dos diversos ângulos em que é visto; é no intercâmbio dos variados pontos de vista que o mundo pode ser nosso, ou seja, comum a todos nós. O mundo só pode ser compartilhado na medida em que trocamos nossas impressões sobre ele por intermédio do discurso, da circulação da palavra. Com efeito, É por meio desta troca, que revela simultaneamente aquilo que os indivíduos são e aquilo que o mundo é, que o indivíduo atinge a sua humanitas4 e que o mundo se constitui como mundo comum. O debate é, ao mesmo tempo, debate acerca do mundo e debate constitutivo do mundo enquanto mundo comum. O debate institui e torna visível, revela a si próprio a comunidade do mundo (ROVIELLO, 1997, p. 23). De acordo com o pensamento arendtiano, a presença de outros que nos vejam e nos ouçam e que são por nós vistos e ouvidos é o que permite a realidade do mundo e de nós mesmos; afinal, é isto o que confirma a nossa existência e a das coisas: o fato de aparecermos. Portanto, a reunião dos sujeitos no espaço público da aparência torna efetiva a condição humana da pluralidade, pois é na pluralidade de seres singulares que nos revelamos para o mundo e revelamos parte deste mundo visto do ângulo em que o percebemos. Por isso, […] ninguém pode, por si só, apreender adequadamente o mundo objetivo em sua plena realidade, porque este sempre se mostra e se revela desde uma única perspectiva, que corresponde e é determinada pelo lugar que o indivíduo ocupa no mundo. Só se pode ver e experimentar o mundo tal como “realmente” é entendendo-o como algo que é compartilhado por muitas pessoas, que está entre elas, que as separa e as une, revelando-se de modo diverso a cada uma, enfim, que só é compreensível na medida em que muitas pessoas possam falar sobre ele e trocar opiniões e perspectivas em mútua contraposição (ARENDT, 2008a, p. 185). 2 Experiência e Memória Devido à sua grande relevância na obra da autora, voltaremos a tratar desse assunto de forma mais detida mais adiante. O que nos importa agora é destacar um aspecto intrínseco à ação e ao discurso: a fugacidade de seus resultados. Na medida em que não são produtos tangíveis, os feitos produzidos pela ação e as palavras proferidas no discurso não possuem durabilidade no mundo. Tão logo se imprimem na esfera dos negócios humanos, estão sujeitos ao esquecimento, ficando à mercê da lembrança dos outros. Ora, é a lembrança dos feitos e palavras do 4 Este termo é utilizado pela autora como sinônimo à identidade singular da pessoa, ou seja, diz respeito ao ‘quem’ um indivíduo é. CUSTÓDIO, Crislei de Oliveira | 2020 | p. 52-66 60 Discurso em Hannah Arendt: sobre o sentido político de falar ... agente, bem como sua propagação por meio das histórias que dela provém, o que confere à ação maior permanência no mundo. A partir disso, podemos questionar-nos a respeito de tal aspiração à permanência. Afinal, se a ação e o discurso são fúteis – e, portanto, não necessários –, qual seria a importância de manter as histórias por eles produzidas, uma vez que seu caráter humanizante – ou seja, a capacidade de revelar a singularidade do agente – dáse exclusivamente no momento em que ambos ocorrem? Em outras palavras, qual o sentido de conservar, na memória comum, os feitos e palavras inseridos na teia de relações humanas após o momento em que foram concebidos? Para responder a essas indagações, iniciaremos nossa reflexão sobre a digressão que Arendt faz a uma remota perplexidade dos homens da Grécia Antiga: a mortalidade humana. Em face de deuses imortais e de uma natureza imortal em que tudo se renova por meio do ciclo biológico, o homem viu-se como a única criatura mortal, pois, embora haja a renovação contínua da espécie humana pelo nascimento de novos seres, cada ser que nasce é novo no mundo – portanto, um sujeito singular que aqui terá uma estadia única. Arendt, ao descrever a concepção grega sobre a mortalidade humana, afirma que: Os homens são ‘os mortais’, as únicas coisas mortais que existem porque, ao contrário dos animais, não existem apenas como membros de uma espécie cuja vida imortal é garantida pela procriação. A mortalidade dos homens reside no fato de que a vida individual, com uma história vital identificável desde o nascimento até a morte, advém da vida biológica. Essa vida individual difere de todas as outras coisas pelo curso retilíneo do seu movimento que, por assim dizer, intercepta o movimento circular da vida biológica. É isto a mortalidade: mover-se ao longo de uma linha reta num universo em que tudo o que se move o faz num sentido cíclico (ARENDT, 2007, p. 27; grifos nossos). Isso significa que a natureza e todos os elementos que a compõem são imortais, uma vez que perpetuam sua espécie por meio da procriação. Assim, para cada flor que cai, haverá o pólen que germinará outra flor; para cada pássaro que morre, haverá outro que sairá do ovo. E esse processo vital repetir-se-á em um ciclo infinito. Entendido apenas como um animal pertencente a uma espécie, o ser humano é igualmente imortal. No entanto, é impossível concebê-lo somente dessa maneira diante de um mundo artificial por ele criado; afinal, é a interposição deste mundo que permite que ele se relacione com os objetos e com os demais de forma distinta e única. Ora, em sua existência – período entre nascimento e morte –, o sujeito empreende uma passagem singular neste mundo, pois sua identidade e sua forma peculiar de relacionar-se com as coisas e com os outros nunca existiram antes de sua chegada e jamais se repetirão depois de sua partida. É importante ressaltar que, nessa relação com os outros por meio da ação e do discurso, o sujeito revela quem ele é – o ser do agente. Todavia, é justamente essa peculiaridade do ser humano em face dos animais que o torna mortal e irrepetível. Daí CUSTÓDIO, Crislei de Oliveira | 2020 | p. 52-66 61 Discurso e poder: teoria e análise surgiu a preocupação dos gregos antigos em estabelecer uma forma de tentar alcançar a imortalidade. A busca pela imortalidade exprime-se, na Grécia Antiga, no espírito agonístico dos homens daquela civilização. Com efeito, o homem grego, na tentativa de medirse aos seus pares e aos deuses, procurava demonstrar sua singularidade por meio da distinção em relação aos demais. Tal distinção era proveniente da constante disputa para ser um homem de arete. De acordo com Werner Jaeger, não há, nas línguas modernas, um equivalente exato para este termo [arete]; mas a palavra ‘virtude’, na sua acepção não atenuada pelo uso puramente moral, como expressão do mais alto ideal cavaleiresco unido a uma conduta cortês e distinta e ao heroísmo guerreiro, talvez pudesse exprimir o sentido da palavra grega (JAEGER, 2001, p. 25). Esse ideal de virtude e excelência descrito por Jaeger foi gerado no período que ele denominou como Primeira Grécia, isto é, a Grécia Aristocrática. Dessa forma, é válido destacar que, ao longo da história grega, com a ascensão do demos5 à política por intermédio da fundação da polis, o conceito de arete recebeu novo significado6; no entanto, a ideia de distinção pela excelência permaneceu. O homem grego, no intuito de possuir arete, buscava revelar a grandeza de sua singularidade no decurso de seus feitos. O protótipo desse indivíduo é Aquiles, herói grego que, em nome da glória imortal e dotado de grande coragem – pressuposto da arete –, tem sua vida abreviada na Guerra de Tróia. Tal atitude vem do fato de que, no pensamento grego, o homem “só adquire consciência do seu valor pelo reconhecimento da sociedade a que pertence” (JAEGER, 2001, p.31). Nessa abordagem, o desejo de distinção e o reconhecimento no mundo comum concedem ao homem certa imortalidade. A arete “reside no homem mortal, ou melhor, ela é o próprio homem mortal; mas perpetua-se, mesmo depois da morte, na sua fama, isto é, na imagem da sua arete, tal como o acompanhou e dirigiu na vida” (JAEGER, 2001, p. 32). Assim, embora a morte física seja o destino inalienável de todos os sujeitos, no mundo comum, os grandes feitos e palavras reveladas podem perdurar por meio da recordação daqueles que depararam com as ações que produziram tais feitos e as narraram às gerações seguintes. É nessa ideia que repousa a confiança de Arendt nas histórias como fonte de imortalidade. Segundo ela, os eventuais resultados produzidos pela ação e pelo discurso são as histórias que, uma vez lembradas e rememoradas, podem ser reificadas para assim adquirirem status de coisas mundanas. O tornar-se imortal, na medida em que decorre de grandes ações, é apresentado pela autora como uma atividade – os gregos designaram em sua língua uma palavra específica para isso: 5 Segundo Marilena Chauí, o termo teve várias conotações ao longo da história grega. No entanto, no sentido político, ele significa povo, cidadãos – por oposição à aristocracia (CHAUÍ, 2002, p. 345). 6 A arete do cidadão da polis estava vinculada a um conjunto de qualidades políticas. O homem que almejasse a excelência deveria ser hábil no uso do logos por meio da retórica e da persuasão. CUSTÓDIO, Crislei de Oliveira | 2020 | p. 52-66 62 Discurso em Hannah Arendt: sobre o sentido político de falar ... athanatídzein, que, sem correspondência nas línguas modernas, significaria ‘imortalizar-se’. A imortalidade advém de histórias constituídas após o ato ter sido lançado à teia de relações humanas, conferindo a tais histórias uma permanência que, obviamente, transcende o tempo de estadia do agente no mundo. Aliás, a própria essência de uma pessoa só se torna conhecida no momento em que é extinta sua passagem no mundo dos homens, pois uma vida apenas se transforma em uma entidade palpável quando chega ao fim e deixa atrás de si uma história a ser narrada por aqueles que ficam (ARENDT, 2007, p. 206). Ora, para os gregos, segundo Arendt, a História seria composta de histórias individuais e acolheria, em sua memória, “aqueles mortais que, através de feitos e palavras, se provaram dignos da natureza, e sua fama eterna [significaria] que eles, em que pese sua mortalidade, [poderiam] permanecer na companhia das coisas que duram para sempre” (ARENDT, 2003, p. 78). A História7, então, teria a função de conservar no espaço inter-essa – o mundo comum – as histórias que, como um milagre8, romperam o ciclo da repetição de nossas vidas diárias e por isso imortalizaram seus agentes. Diante disso, poderíamos nos indagar se apenas os grandes homens e mulheres merecem permanecer vivos em nossa memória. Cremos que Arendt, ao afirmar que a atividade da ação concretiza a condição humana da natalidade, atribuiu o crédito de realizar milagres a cada sujeito, ou melhor, a cada novo ser que adentra o mundo comum. Sendo assim, embora caibam às histórias narrar “o extraordinário” (ARENDT, 2003, p. 72), os pequenos milagres – ou seja, as pequenas interrupções do ciclo da vida – avizinham-nos em nossas comunidades, e as histórias que deles emergem nos são transmitidas como legado daqueles que nos antecederam. Aqui começamos a tentar responder às indagações apresentadas no início desta seção. Para além das histórias e dos grandes feitos dos homens e mulheres de arete, haveria sentido em constituir uma memória comum, conservando assim histórias menores em abrangência, isto é, histórias que não repercutiram em grandes mudanças sociais ou políticas? As ações e palavras por meio das quais nos revelamos aos nossos pares e imprimimos um novo processo na teia de relações humanas são dignas de serem passadas adiante? E, caso sejam, em que medida o são, já que, nesse caso, muitos de nós não terão a seu serviço um artífice que dê forma a seus feitos, pensamentos e dizeres? Analisar essas questões implica conceituarmos a ideia de memória que, embora seja uma das fontes das histórias, não é sinônima a elas. A memória, diferentemente da noção que temos de história, não é cronológica, mas sim 7 É importante ressaltar que, em sua obra, Arendt não é partidária de uma concepção de História da humanidade que tem como objetivo narrar a trajetória dos homens em direção ao progresso. Pelo contrário, a autora não concebe uma história unificadora, linear e teleológica, mas compreende as temporalidades humanas como histórias provenientes de atos fundadores, os quais instituem o novo em face da continuidade automática da vida dos homens. 8 O milagre, no pensamento de Arendt, não assume nenhuma conotação religiosa. Trata-se do absolutamente improvável e imprevisível que ocorre a partir da ação. CUSTÓDIO, Crislei de Oliveira | 2020 | p. 52-66 63 Discurso e poder: teoria e análise genealógica9. Ela não se filia à ideia de um tempo ordenado e retilíneo, ao contrário, inspira-se nas gerações – cujo fluxo e duração de cada época são díspares, ou seja, as experiências vividas por membros de determinada comunidade, em um tempo específico, variam entre si. Para tornar um pouco mais clara essa concepção de genealogias que compõem a memória, podemos pensar em gerações como a que viveu exclusivamente no domínio agrário e a que passou pela ascensão da cultura de massas. Ambas as gerações tiveram durações específicas que não obedecem à mesma lógica. Se voltarmos aos gregos e sua crença na deusa da memória – Mnemosýne –, observaremos que, na mitologia grega, ela era a musa que inspirava os poetas na narração do passado, os quais, nesta atividade, eram tidos como porta-vozes das verdades da origem e dos antepassados. Segundo Vernant, a memória, no pensamento grego, “não reconstrói o tempo: não o anula tampouco. Ao fazer cair a barreira que separa o presente do passado, lança uma ponte entre o mundo dos vivos e o do além ao qual retorna tudo que deixou a luz do sol” (VERNANT, 1990, p. 143). Ao refletir sobre a concepção grega de memória presente na mitologia, o historiador francês afirma que ela contém em si a transmutação da experiência temporal e que, portanto, “aparece como uma fonte de imortalidade” (VERNANT, 1990, p. 144). Nessa perspectiva, Mnemosýne “não concerne ao passado do indivíduo; […] ela não é também orientada para o conhecimento de si mesmo, no sentido em que nós o entendemos, mas para uma ascese purificadora que transfigura o indivíduo e o eleva ao nível dos deuses” (VERNANT, 1990, p. 161). A memória, então, é o meio pelo qual os sujeitos podem ser imortalizados em sua comunidade. É evidente que como grande parte das histórias provenientes das ações possui um grau de abrangência menor, a memória formada por elas não é reificada em monumentos ou textos escritos. Ao contrário, a memória de uma comunidade é mais fluida e sujeita ao esquecimento, uma vez que depende de pessoas que a passem adiante. Essa memória é composta por histórias resultantes da experiência dos sujeitos no mundo comum, ou seja, pelas relações estabelecidas entre si e os outros no intervalo entre o nascimento e a morte. E, como constituintes da memória, as experiências não denotam um conhecimento subjetivo; ao contrário, “onde há experiência no sentido do termo, entram em conjunção, na memória, certos conteúdos do passado individual com outros do passado coletivo” (BENJAMIN, 1989, p. 107). Nessa abordagem, a experiência seria a existência vivida que permanece no mundo após a morte física de seu agente e que, por isso, é traduzida em algo 9 A referência aqui a uma memória genealógica não se filia à concepção de genealogia desenvolvida por Friedrich Nietzsche e posteriormente utilizada por Michel Foucault em suas teorizações. Para esses dois pensadores, genealogia é uma metodologia de pesquisa centrada nas descontinuidades históricas, ou seja, na emergência das coisas como acontecimentos acidentais e não na busca de fundamentos originários para as ocorrências do passado. CUSTÓDIO, Crislei de Oliveira | 2020 | p. 52-66 64 Discurso em Hannah Arendt: sobre o sentido político de falar ... comunicável. É a transformação da experiência vivida em palavras que a torna compartilhável e, portanto, digna de adentrar no mundo. É no momento em que a experiência entra no mundo que ela passa a ser compartilhada por seus membros e transmitida de um a outro, de geração a geração por meio de narrativas. As experiências lembradas e transformadas em histórias estendem-se à sabedoria comum, e aqueles que, por intermédio da anámnesis10, narram tais histórias fundem-se a elas, acrescentando parte de si às experiências contadas. Com efeito, as histórias imortalizadas por uma comunidade não apenas se anexam à experiência daquele que se torna seu porta-voz, como também, pelo fato de serem interpostas entre seus membros, imprimem-se à experiência daqueles que as ouvem. No mundo comum, essas experiências são narradas como legado e, embora não sejam coisas materiais, as histórias que delas se originam também constituem uma espécie de fabricação. Dessa maneira, A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio de artesão – no campo, no mar e na cidade –, é ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal de comunicação. Ela não está interessada em transmitir o ‘puro em si’ da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso […]. Assim, seus vestígios estão presentes de muitas maneiras nas coisas narradas, seja na qualidade de quem as viu, seja na qualidade de quem as viveu, seja na qualidade de quem as relata (BENJAMIN, 1994, p. 205). Diante disso, podemos concluir que narrar histórias também é uma forma de deixar rastros no mundo, afinal, o ato de transmitir aos pares e aos recém-chegados no mundo – as crianças – as experiências imortalizadas em nosso passado e memória comum imprime marcas naquele que narra, na própria experiência narrada e na experiência dos ouvintes. Cremos que essa seja uma das incumbências da educação, mas que se tornou um grande paradoxo no mundo moderno. Como poderemos narrar experiências e conservar uma memória comum em um mundo fragmentado, cujos possíveis laços de pertencimento dificilmente constituem comunidades? Essa perplexidade é muito bem formulada por Benjamin quando ele afirma que, no passado, Sabia-se exatamente o significado da experiência: ela sempre fora comunicada aos jovens. De forma concisa, com a autoridade da velhice, em provérbios; de forma prolixa, com a sua loquacidade, em histórias; muitas vezes como narrativas de países longínquos, diante da lareira, contadas a pais e netos. Que foi feito de tudo isso? Quem encontra ainda pessoas que saibam contar histórias como elas devem ser contadas? Que moribundos dizem hoje palavras tão duráveis que possam ser transmitidas como um anel, de geração em geração? Quem é ajudado, hoje, por um provérbio oportuno? Quem tentará, 10 “Ação de trazer à memória ou à lembrança; lembrança, recordação” (CHAUÍ, 2002, p. 342). CUSTÓDIO, Crislei de Oliveira | 2020 | p. 52-66 65 Discurso e poder: teoria e análise sequer, lidar com a juventude invocando sua experiência? (BENJAMIN, 1994, p. 114). Em face disso, não é a nostalgia ou um pretenso retorno ao passado – caso fosse possível – que definirão o estabelecimento de um mundo comum entre nós. Diante da perda da tradição, isto é, frente à ausência de algo “que selecione e nomeie, que transmita e preserve, que indique onde se encontram os tesouros e qual o seu valor” (ARENDT, 2003, p. 31), resta-nos recolher, dentre os fragmentos do passado, aquilo que queremos legar aos novos. Considerações finais De acordo com Hannah Arendt, as opiniões são formulações e enunciados provisórios a que chegamos por meio do diálogo interno de mim para comigo mesmo. Este diálogo se dá em silêncio, quando se está só e absorto do mundo, e se encerra no momento em que o sujeito retoma suas atividades e interação com os outros. O pensamento é, para a autora, uma atividade interminável e para qual não há pré-requisitos, uma vez que o pensar se distingue do conhecer, isto é, o pensar busca sentido para as coisas do mundo, as relações e as experiências enquanto o conhecer consiste na produção dos saberes e na ciência. Nesse sentido, é o diálogo intersubjetivo com os pares no mundo que, de alguma maneira, informa, enriquece e instiga o diálogo interno do pensamento. É o discurso que revela a singularidade do agente e a posição a partir da qual o mundo aparece para ele, possibilitando com que essa unicidade que atravessa as percepções que cada sujeito tem do mundo sejam enunciadas, comunicadas e compartilhadas, tornando-se tangíveis e reais. Assim, na circulação da palavra, no debate, na conversa sobre o que se passa e sobre os acontecimentos que nos acometem enquanto grupo e individualmente é que encontramos elementos enunciados no discurso do outro que extrapolam o nosso campo de percepção e entendimento inicial e, por conseguinte, podem ser retomados adiante, no momento em que estamos sós, no diálogo interno do pensamento. E não é apenas o estar no mundo e o diálogo livre com os pares que nos oferecem aspectos diversos sobre este mundo, sobre como vemos e somos vistos, sobre como ouvimos e somos ouvidos. As histórias de feitos e ditos daqueles que nos antecederam também nos ajuda a pensar sobre quem somos, o lugar que ocupamos, o que sentimos, quais parâmetros nos valemos para tomar decisões (sobretudo as de cunho ético) e sobre o que é o mundo. Essas histórias, sejam reais ou fictícias, acumuladas na memória comum e transmitidas para as novas gerações nos permite convocar outros e diferentes interlocutores, de tempos e lugares diversos, para conosco dialogar em pensamento. Nesse sentido, o discurso, em Arendt, é ação, é narrativa e é pensamento. CUSTÓDIO, Crislei de Oliveira | 2020 | p. 52-66 66 Referências Referências bibliográficas ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro W. Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 2003. ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. ARENDT, Hannah. A promessa da política. Tradução de Pedro Jorgensen Junior. Rio de Janeiro: Difel, 2008a. ARENDT, Hannah. A vida do espírito. Tradução de César Augusto de Almeida, Antônio Abranches e Helena Martins. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008b. BENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1989. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Hemerson Alves Baptista e José Carlos Martins Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 1994. CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: Brasiliense, 2002. JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. Tradução de Artur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 2001. ROVIELLO, Anne-Marie. Senso comum e modernidade em Hannah Arendt. Tradução de Bénédicte Houart e João Filipe Marques. Lisboa: Instituto Piaget, 1997. VERNANT, Jean-Pierre. Mito e pensamento entre os gregos. Tradução de Haiganuch Sarian. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. Tradução de Ísis Borges B. da Fonseca. Rio de Janeiro: Difel, 2009. Como citar CUSTÓDIO, Crislei de Oliveira. Discurso em Hannah Arendt: sobre o sentido político de falar sobre o mundo e narrar uma história. In: GONÇALVES-SEGUNDO, Paulo Roberto; ARAES, Célia Regina; CASTANHEIRA, Claudia; ISOLA-LANZONI, Gabriel; PENITENTE, Natalia; WEISS, Winola (orgs). Discurso e poder: teoria e análise. São Paulo: FFLCH/USP, 2020, p. 52-66. DOI: 10.11606/9786587621241 CUSTÓDIO, Crislei de Oliveira | 2020 | p. 52-66 67 Discurso e poder: teoria e análise Expressões idiomáticas: contribuições e implicações do contexto discursivo para a forma e construção do sentido Fabiane de Oliveira ALVES Universidade de São Paulo [email protected] Resumo: Este artigo investiga a construção do sentido das Expressões Idiomáticas (EI) no contexto discursivo, analisando eventuais relações e implicações que decorrem do uso. Inserida na Linguística Textual e Teorias do Discurso no Português, a pesquisa apoia-se no arcabouço teórico constituído por autores dessa linha de pesquisa, complementada por pesquisadores do Léxico e da Semântica. Para isso, serão analisadas duas EI no contexto discursivo – dispostas em um modelo de análise que (co)relaciona as partes, o todo composicional, as (possíveis) variações decorrentes do discurso e as implicações na forma e na construção do sentido. Preliminarmente, pode-se inferir que, embora EI sejam estruturas (relativamente) fixas, a flexibilidade a que são passíveis não se limitam apenas às adequações número-pessoais, mas abrangem as circunstâncias impostas pelo contexto discursivo que atribuem a (pen)última camada na estrutura de sentido desse tipo de composição fraseológica. Ademais, a despeito da premissa de que o sentido de uma EI não decorre da soma dos sentidos literais individuais, essas oferecem subsídios para estabelecer graus de ligação entre o sentido literal das partes e o sentido figurado do todo composicional. Justifica-se a pesquisa em vista da ausência de estudos que enfoquem a construção do sentido de EI em uso. Palavras-chave: Expressões idiomáticas; Sentido literal; Sentido figurado; Contexto discursivo; Léxico. Introdução Este artigo apresenta os resultados preliminares da pesquisa de doutorado em andamento que investiga, de uma perspectiva textual-discursiva, a construção do sentido de Expressões Idiomáticas (doravante EI) em uso, portanto, averiguando as relações e implicações que o contexto discursivo exerce sobre a estrutura e significação de EI. Para isso, serão analisadas duas EI, comuns ao falar cotidiano do Português do Brasil, dispostas em um modelo experimental de análise que (co)relaciona as partes, o todo composicional, as (possíveis) variações decorrentes do discurso e as implicações do uso na formulação do sentido. ALVES, Fabiane de Oliveira | 2020 | p. 67-83 68 Expressões idiomáticas: contribuições e implicações do contexto discursivo ... No frasema (na EI), os lexemas perdem sua carga semântica original e passam a ter novo conteúdo semântico no todo polilexical, desta vez, composicional. Uma das consequências disso é que o significado externo à EI é individual de cada parte; já o significado interno à sua estrutura é idiomatizado (VILELA, 2002). As EI, assim, atuam em bloco, isto é, sua estrutura é composicional, e seu sentido não resulta da simples soma dos sentidos literais das partes que a compõem. Entretanto, de modo a estabelecer um percurso metodológico para análise dessas estruturas complexas, o caminho adotado investiga a construção do sentido a partir do mapeamento que tem início na análise de suas partes em contraste com o todo composicional. Com isso, é possível averiguar uma maior ou menor relação entre o significado literal das partes com o todo figurado, decorrentes da proximidade/distanciamento de sentido que, em maior ou menor grau, se liga ao maior ou menor índice transparência/opacidade da EI. As EI, por sua complexidade estrutural e semântica, permitem diversas abordagens de investigação. Contudo, grande parte dos estudos adota perspectivas lexicológicas, lexicográficas e/ou semânticas que tomam as EI em si para observação, deslocadas de seu uso. Este artigo, no entanto, busca justamente examinar o comportamento de EI em uso. Para isso, foram selecionadas duas EI de uso recorrente na linguagem do dia a dia dos brasileiros – “bater a(s) bota(s)” e “tirar o cavalo/cavalinho da chuva” –, verificadas em contexto discursivo, em textos extraídos da internet. Após esta introdução, será apresentada uma breve retomada de algumas bases teóricas que apoiam as hipóteses aventadas. Em seguida, de modo mais prático, o corpus selecionado será aplicado ao modelo experimental proposto que contribui para a estruturação da análise. Com base em cotejos e pesquisas em dicionários gerais e de EI, além de outras fontes de pesquisa, será possível estabelecer um percurso de estruturação do sentido estabelecido no e pelo contexto discursivo. Ainda que as EI, isoladas, possuam uma base semântica que lhes atribuem alguma significação fora do discurso, entende-se que é o contexto discursivo que irá determinar ou constituir a (pen)última camada de significação desses lexemas complexos – sendo a última camada ou estágio de sentido atribuído pelo receptor do discurso –, além de provocar alterações em sua estrutura que podem ocorrer de modo mais sutil ou mais marcante. 1 Expressões Idiomáticas As fronteiras definitórias que delimitam o conceito de EI sejam perenes e de difícil distinção – posto que se permeiam e se (con)fundem com outros componentes da fraseologia –, entretanto, toma-se como norteadora a ideia de que EI são um tipo de estrutura lexical complexa de sentido figurado cuja estrutura é relativamente fixa e está sujeita, além das adequações número-pessoais (e tempo-modais), também a variações que encontram limite na manutenção do sentido idiomático, guardando ALVES, Fabiane de Oliveira | 2020 | p. 67-83 69 Discurso e poder: teoria e análise (alguma) relação semântica com a “EI referência”1. Trata-se de um fenômeno linguístico que compõe a fraseologia de uma língua atuando como um vocabulário figurado complementar na linguagem do dia a dia, que diz pelo não dito, valendo-se de metáforas, eufemismos, disfemismos, metonímias, entre outros, aquilo que, na verdade, reflete no discurso a visão de mundo do usuário da língua em relação às pessoas e à sociedade (URBANO, 2018) por meio dessas combinações de palavras que são um tipo de “pré-fabricado linguístico2” de sentido figurado. Tabossi e Zardon (1993, p. 145) advogam que “as expressões idiomáticas são objetos multifacetados, cujo estudo requer vários pontos de vista e diferentes abordagens metodológicas. Não são apenas complexos, mas também, em muitos aspectos, indescritíveis, a tal ponto que é provavelmente um exercício inútil tentar defini-las”. Disso infere-se, portanto, que mais importante do que buscar uma definição precisa e conclusa acerca desse objeto, mais proveitosa é sua investigação. Segundo Biderman (2001, p. 109), “Cada língua traduz o mundo e a realidade social segundo seu próprio modelo, refletindo uma cosmovisão que lhe é própria, expressa nas categorias gramaticais e lexicais”. Sendo as EI parte do inventário lexical de uma língua, elas concentram em si um modo figurado de ver o mundo, típicas de uma língua, mais ou menos cristalizadas e que mantém níveis de equivalência semântica com outros modos de dizer algo, porém, fazem-no de modo a produzir efeitos de expressividade ao discurso. Ademais, pode-se dizer que as EI “[...] nomeiam de modo codificado e sistemático um denotado ou classe de denotados, representando esquemas mentais de objetos ou de estados de coisas” (VILELA, 2002, p. 161). Isso quer dizer que as EI são um tipo de código que, em tese, deve (ou deveria ser) comum aos participantes de uma interação de modo que possa ser corretamente decodificado e a comunicação possa ser realizada de modo efetivo. Ainda à guisa de compreensão, acrescente-se que as EI se apresentam, de modo geral, em forma de bloco segmental, composicional, ou seja, atuam em, mas também no conjunto. Assim, inventar moda, em sentido idiomático, significando “Ter comportamento ou ideia que fogem ao que seria normal ou esperado: ‘Faça o que tem que ser feito e não fique inventando moda’.” (MELLO, 2009, p. 275, grifo nosso). Note-se a diferença em “Inventando a contra-mola que resiste: um estudo sobre a militância na contemporaneidade” (VINADE; GUARESCHI, 2007, grifo nosso) e em “A moda é abordada como um fenômeno sociocultural que expressa os valores da sociedade - usos, hábitos e costumes - em um determinado momento” (WIKIPÉDIA, s./d., grifo nosso). Tomadas individualmente, inventar e moda têm sentidos diversos aos do conjunto “inventar moda”. As questões em torno dos sentidos literal e não literal têm sido objeto de inúmeras pesquisas ao longo dos anos (KATZ, 1977; GIBBS, 1984; 1994; DASCAL, 1987; 2002; MARCUSCHI, 2008; URBANO, no prelo; dentre outros), sem contudo que se chegue a um consenso no tocante às definições de um e outro. De modo geral, 1 Adota-se o termo “EI referência” com o sentido da EI mais usual, mais comumente utilizada, ou, ainda, aquelas formas cujos dicionários registram com mais frequência. 2 Segundo Erman e Warren (2000, p. 31), “Um pré-fabricado é uma combinação de pelo menos duas palavras favorecidas por falantes nativos em preferência a uma combinação alternativa que poderia ser equivalente não à convenção”. ALVES, Fabiane de Oliveira | 2020 | p. 67-83 70 Expressões idiomáticas: contribuições e implicações do contexto discursivo ... pode-se estabelecer que não há uma relação de oposição semântica ou de antonímia entre um e outro, portanto, pedra – “matéria rochosa” (AULETE, 2019) – em “Atirou uma pedra no lago”, não é o oposto de pedra – “pessoa estúpida” (AULETE, 2019) – em “Esse presidente é uma pedra”. Searle (2002), aludindo ao senso comum, entende que o sentido literal é aquele cujo significado é o mesmo independentemente do contexto no qual se insere. Seria o sentido automático, obrigatório, normal, não marcado, indispensável e não figurativo, segundo Marcuschi (2008). Já o sentido não literal, por outro lado, seria não automático, opcional, fortuito, marcado, dispensável, figurativo e indireto (MARCUSCHI, 2008), mais dependente do contexto (situacional e/ou discursivo) para sua compreensão. Embora o sentido global de uma EI não derive de suas partes tomadas isoladamente, entende-se que pode haver graus de ligação entre os níveis polissêmicos dessas partes e a construção do sentido composicional. Assim, ao verificar o sentido literal das partes que compõem quebrar o gelo tem-se: (i) quebrar: fazer ficar ou ficar em pedaços; despedaçar(-se), romper(-se) (AULETE, 2019); e (ii) gelo: estado de água, ou qualquer líquido, quando passa ao estado sólido pela ação do frio; sensação que lembra a causada pelo frio; ausência de sentimentos; secura no trato com alguém; frieza; insensibilidade; falta de cordialidade, de bom relacionamento (AULETE, 2019). Considerando que a EI significa “ser cortês, amável no primeiro contato com alguém ou em grupo, criando um ambiente menos frio ou formal” (AULETE, 2019), verifica-se uma ligação semântica entre este significado total e um dos sentidos de gelo: “ausência de sentimentos; secura no trato com alguém; frieza; insensibilidade”. No caso de (ser) (um) mar de rosas, tem-se: (i) ser: ter características ou qualidades expressas pela palavra ou expressão que se refere ao sujeito; (ii) mar: grande massa e extensão de água salgada que cobre três quartos da superfície da terra; oceano; (iii) rosas: flor da roseira; tom vermelho bem claro (MICHAELIS, 2018). Tendo em vista que a EI significa “período de tranquilidade, feliz” (URBANO, 2018, p. 197), uma associação possível seria fazê-la com a ideia de mar tranquilo, havendo alguma proximidade com a ideia de mar, porém, a associação com felicidade não mantém vinculação aparente com o sentido literal. Há, desse modo, uma menor ligação conceitual, neste último caso, diferentemente do exemplo anterior. Daí inferirse que há graus, maiores e menores, de ligação entre o sentido das partes e do todo idiomático. No tocante à composição, Alves (1994, p. 50) argumenta o seguinte: “Processase a composição sintagmática quando os membros integrantes de um segmento frasal encontram-se numa íntima relação sintática, tanto morfológica quanto semanticamente, de forma a constituírem uma única unidade léxica”. O que a autora classifica de modo abrangente de “composição sintagmática” pode compreender as EI, desse modo, as partes que compõem o conjunto – as quais geralmente não permitem inversão da ordem de disposição – e formam uma EI mantêm entre si uma relação não apenas de forma, mas também de sentido e, mais do que isso, forma e sentido, juntos, composicionalmente, tornam-na um lexema (complexo) único. ALVES, Fabiane de Oliveira | 2020 | p. 67-83 71 Discurso e poder: teoria e análise Ainda no que se refere à morfossintaxe das EI, não há um padrão sintático seguido, sendo possíveis inumeráveis combinações que, de modo geral, podem ou não incorporar os verbos a sua estrutura (relativamente) fixa. Em alguns casos, por exemplo, registram-se variações que coexistem – construir castelos de areia/no ar e erguer castelos de areia/no ar – enquanto em outros não, quando os verbos estão mais ligados ao contexto discursivo do que à estrutura da EI – de mala e cuia “Mudou-se de mala e cuia lá pra casa”, “Chegou de mala e cuia para passar dois dias”. Embora comumente as EI sejam tratadas como construções restritas (COWIE, MACKIN; MCCAIG, 1984), ou seja, estruturas fixas/congeladas/cristalizadas, é possível inferir que essa fixidez/congelamento/cristalização é relativa e, como (quase) tudo aquilo que se vincula à língua, está sujeita à criatividade humana, havendo, assim, registros de uso que comportam alguma flexibilidade, não apenas em termos sintáticos, mas também semânticos e lexicais. Pela sanção do uso, as EI são estabelecidas. Em uso, seu sentido ganha densidade. Em função do uso, variam. Neste último caso, as variações podem ocorrer em maior ou menor escala, mas, pode-se dizer que quase sempre em virtude de necessidades impostas pelo contexto discursivo para atender aos objetivos pretendidos. De acordo com Cabré (1999 , p. 85 apud KOSTINA, 2011, p. 36), “Todo processo de comunicação comporta inerentemente variação, explicitada em formas alternativas de denominação do mesmo conceito (sinonímia) ou em um distanciamento significativo de uma mesma forma (polissemia) [...]”. Em se tratando das EI, contudo, essas formas alternativas ou variações encontram seu limite na manutenção do sentido ou, ao menos, na ligação com o sentido da EI de referência. Assim, por exemplo, as variações, tomadas fora de um contexto discursivo, pôr as barbas de molho e colocar as barbas de molho, por convenção, equivalem-se e coexistem. Já pôr os cavanhaques de molho não, embora barba e cavanhaque pertençam ao mesmo campo semântico. Por outro lado, acertar na mosca, acertar no alvo e acertar em cheio possuem sentido equivalente, ainda que mosca, alvo e cheio, isoladas, não mantenham relação de sinonímia/parassinonímia, nem mesmo pertençam ao mesmo campo semântico, quando analisadas no conjunto composicional passam a ser sinônimas: “Ela foi precisa em todas as respostas: acertou na mosca/no alvo/em cheio”. Atente-se que a variação pode atingir tanto as partes verbais quanto as nominais da EI, todavia, não há um padrão que determine quais partes e quais tipos de substituições podem ser feitas para que seja mantida equivalência semântica ou produzido efeito esperado (de antonímia, por exemplo). Consoante pontua Xatara (1997, p. 148), “[...] o mundo das EI revela uma espessura simbólica, em que aflora o inconsciente, acionando transferências semânticas regulares, do concreto ao abstrato, do físico ao psíquico, exprimindo julgamentos sociais e compartilhando das mais diversas sensações e emoções”. A construção do sentido das EI tem início em sua própria estrutura, mas completa-se e altera-se no contexto discursivo, ao passo que também altera o discurso, dada sua escolha em lugar de outro modo de dizer que contemple mais ou menos o mesmo sentido. ALVES, Fabiane de Oliveira | 2020 | p. 67-83 72 Expressões idiomáticas: contribuições e implicações do contexto discursivo ... A tamanha complexidade, somem-se as relações e implicações causadas e sofridas pelas EI quando em contexto discursivo . Uma unidade lexical qualquer, simples ou complexa, (ainda que mais gramatical ou mais lexical), possui uma base semântica que a alimenta com seu significado primeiro (BIDERMAN, 2001, p. 187), isto é, uma unidade lexical não é absolutamente vazia de sentido no sistema (nos termos de Saussure). Contudo, é no discurso (na realização discursiva propriamente dita) que essa unidade lexical atualiza-se, ou seja, ganha de fato sentido e mesmo outros sentidos que não o canônico, aquele mais previsível. Em consonância Hjelmslev (1961, p. 50) argumenta que “toda significação de signo nasce de um contexto, quer entendamos por isso um contexto de situação ou um contexto explícito, o que vem a dar no mesmo”. A seguir, serão apresentados alguns aspectos da relação entre EI, contexto discursivo e sentido. 2 Expressões idiomáticas e(m) contexto discursivo: construção do sentido De uma perspectiva geral, Zwaan (2009) argumenta que os processos de compreensão são uma simulação mental de eventos que reativa traços de experiências anteriores. Isso quer dizer que compreender aciona, ativa e atualiza continuamente um conjunto de modelos mentais e de situação (VAN DIJK, 2012; VAN DIJK; KINTSCH, 1983) constituído com base nas vivências do indivíduo. Assim, de modo mais específico, a compreensão de uma EI, embora independa do conhecimento de sua origem, já que esta, “costuma despertar muita curiosidade, mas normalmente fica sem solução científica” (URBANO, 2008, p. 42), envolve o acionamento de uma gama de aspectos tais como culturais, experienciais e pragmáticos. Para além disso, a construção do sentido de uma EI em uso deve ainda considerar não apenas seu sentido em estado de dicionário, mas também o contexto discursivo no qual se insere, tendo em vista que este pode influenciar em sua significação final. As EI constituem um inventário popular que “[...] completam paralelamente o vocabulário diário das pessoas, normal para suas necessidades comunicativas, muitas vezes de uso inevitável [...]”(URBANO, 2018, p. 14). Ainda que o sentido de grande número de EI seja conhecido por muitos usuários de uma língua, sendo que constituem uma espécie de inconsciente cultural coletivo, de sabedoria popular, compreender seu sentido demanda empreender conhecimentos os quais extrapolam a EI em si e o próprio texto, porém, é justamente no texto, no entorno discursivo, que se encontram elementos capazes de apoiar ou ao menos orientar seu sentido, seja de EI referência ou variante. É no discurso que, não apenas uma EI, mas qualquer unidade lexical se atualiza e, por conseguinte, pode ganhar outros significados que não aquele mais previsível. Diferentemente dos demais lexemas simples, que, grosso modo, possuem maior potencialidade para atualizações, as EI, ainda que passíveis de variações, devem manter uma relação de sentido com a EI referência e, por conseguinte, são mais limitadas em termos de variação de sentido. Assim, o lexema cara, tomado isoladamente possui diversas possibilidades de significação – parte frontal da cabeça, ALVES, Fabiane de Oliveira | 2020 | p. 67-83 73 Discurso e poder: teoria e análise conjunto dos traços do rosto, aparência, aspecto de algo, face da moeda, indivíduo qualquer, pessoa etc. (AULETE, 2019) – e cujo sentido somente se definirá no e pelo contexto discursivo; cara de pau, por sua vez, embora possua um potencial de significação mais restrito – pessoa irreverente, impassível, sem expressão (URBANO, 2018, p. 97), pessoa que não demonstra vergonha ao se comportar de maneira ousada ou embaraçosa (AULETE, 2019) – também tem (ou pode ter) seu sentido construído no e pelo contexto discursivo, contudo, sempre mantendo alguma vinculação com seu sentido composicional. Além disso, Andrade (2010, p. 76) ressalta que “[...] o texto deve ser observado não apenas em relação ao que está dito, mas também as formas da maneira de dizer, pois estas permitem uma leitura dos implícitos que se revelam e evidenciam a interatividade [...]”. Desse modo, a escolha do uso de uma EI em lugar de outro modo de dizer traz ao texto esses implícitos, que acabam por atribuir efeitos e expressividade ao texto. Daí ser possível concluir que a EI não apenas é influenciada pelo contexto discursivo, mas também o influencia. Considerem-se os exemplos a seguir: (i) “Ele deu o último suspiro” e (ii) [...] Doutor Poti já sem cor a cabeça no colo de dona Jandira. Doutor Romão com a calma de homem acostumado com a vida e com a morte, abriu a maleta, tirou a caneta, o bloco de notas, o termômetro, o fonidoscópio. Ia iniciar a examinar o morto-vivo e esse deu o penúltimo suspiro. Dona Maria Vendedora de Milho Assado na Estação do Timbó foi mais ligeira que rápida e empurrou o doutor médico, ajoelhou junto de doutor Poti, colocou a mão esquerda na testa dele e enfiou a mão direita na boca e puxou a meia laranja que estava trancada na goela. Doutor Poti respirou com a força de um touro. [...] (SOUZA, 2018, p. 8) Sobre a declaração de (i), isolada de qualquer contexto, não se pode saber se ele entregou a alguém o último “Doce muito leve feito de clara de ovo batida com açúcar e que vai ao forno brando” (AULETE, 2019) ou se aquele foi “O momento derradeiro de vida, o exalar da última respiração, ao morrer” (AULETE, 2019). Do que se pode depreender que o contexto, seja ele discursivo ou situacional, é a base mental fundamental à compreensão do texto e do discurso (VAN DIJK, 2012). Em (ii), há um claro exemplo da dupla influência EI-contexto discursivo. Há uma relação entre a EI referência dar o último suspiro e a variável dar o penúltimo suspiro, produzida da necessidade imposta pelo contexto discursivo para expressar a ideia de alguém que quase morreu. É por meio do contexto discursivo que se pode entender que para aqueles que assistiam ao doutor Poti, “já sem cor na cabeça” (pálido), vivia seus últimos minutos neste mundo, porém, o narrador, onisciente dos fatos, sabia que o sujeito não morreria naquele momento, daí não ser adequado o uso de “último suspiro”, tendo em vista que se tratava de um “morto-vivo” ainda vivo, salvo da morte por dona Maria Vendedora de Milho Assado na Estação do Timbó. O contexto discursivo, além de apoiar o sentido da variação da EI, ganha um matiz diferente, mais expressivo e eufêmico, ao trazer uma EI em lugar de “[...] o mortovivo e esse quase morto [...]”. Essa escolha relaciona-se ao argumento de Di Fanti e Brandão (2018, p. 11) ao mencionar que “o ser humano, ao expressar-se pela língua, ALVES, Fabiane de Oliveira | 2020 | p. 67-83 74 Expressões idiomáticas: contribuições e implicações do contexto discursivo ... nas relações interpessoais, sociais, faz escolhas lexicais, sintáticas, prosódicas, arma estratégias (afetivas, de persuasão, coerção...) para atuar sobre o outro, compreender o outro e com ele interagir”. Desse modo, usar uma EI em lugar de quaisquer outras palavras que expressem (mais ou menos) uma determinada ideia, é parte da estratégia discursiva, das intencionalidades comunicativas, ainda que, para que se possa chegar ao objetivo pretendido uma EI passe por alterações, como visto, conforme menciona Duarte (2006, p. 14): “EI em ação, isto é, no discurso, ilustrando como estas podem dar azo a múltiplas adequações por força do co(n)texto e da intencionalidade discursiva”. Acrescente-se que o contexto discursivo é responsável pelo processo de desfixação ou descongelamento da EI, considerando as necessidades impostas por esse, em favor da melhor representação de uma ideia. Desse modo, pode-se optar por construir/erguer/arquitetar castelos de areia, dependendo das intenções e demandas comunicacionais. Duarte (2006, p. 31) destaca três aspectos que podem implicar em adequações da EI ao contexto discursivo-textual: (i) negação – Ele não pôde colocar as barbas de molho; (ii) antonímia – Ele tirou as barbas de molho ; e (iii) diminutivo – Ele pôs as barbichas de molho. Entretanto, conforme verificado, outras necessidades podem promover alterações em uma EI. Se por um lado, o contexto discurso pode provocar alterações uma EI, por outro, a EI também produz efeitos no discurso na medida em que, em alguns casos, atribui um valor perlocutivo àquilo que poderia ser dito de modo meramente declarativo ou (conotativamente) neutro. Desse modo, “ele perdeu todo seu dinheiro” e “ele ficou com uma mão na frente e a outra atrás” guardam certo grau de equivalência conceitual (CRUSE, 1995), entretanto, o efeito produzido por uma e outra declaração são diversos, pois trazem diferentes impactos, sendo que a segunda reforça, enfatiza, intensifica (de modo hiperbólico) a informação central do empobrecimento daquele de quem se fala. As EI são um tipo de código comum entre os usuários de uma língua, daí ser preciso que quaisquer mudanças respeitem limites (ainda que imprevisíveis e inclassificáveis) que preservem seu conteúdo essencial. Todavia, sejam EI referência, sejam EI que sofreram variações – EI variantes –, o contexto discursivo seria uma parte do sentido, uma penúltima camada de sentido – sendo a última camada atribuída pela compreensão do receptor da mensagem. De acordo com Hall (2003, p. 393), “[...] não há discurso inteligível sem a operação de um código. [...] Naturalismo e ‘realismo’ [...] é o resultado, o efeito, de certa articulação específica da linguagem sobre o ‘real’. É o resultado de uma prática discursiva”. Ainda que se possam realizar adaptações (no plano da expressão/forma) condicionadas às necessidades e demandas do uso, as EI devem, contudo, manter sua essência semântica (plano do conteúdo) ou ao menos alguma ligação, de modo que não haja prejuízos na interação, ou seja, mesmo diversa da construção mais comumente verificada, a EI deve se manter inteligível para o interlocutor. A efetiva interação apenas acontecerá se “os usuários da língua forem capazes de construir modelos mentais dos eventos ou fatos sobre os quais estão falando ou ouvindo e se forem capazes de relacionar entre si os eventos ou fatos que estão nesses modelos” (VAN DIJK, 2012, p. 90). Desse modo, para que um peixe fora d’água seja ALVES, Fabiane de Oliveira | 2020 | p. 67-83 75 Discurso e poder: teoria e análise compreendido como “desambientado, fora do seu elemento, de seu meio natural” (URBANO, 2018, p. 240) e não como “um ser aquático que se encontra fora da água”, isto é, para que seja compreendido seu sentido figurado e não o literal, é preciso que os atores da interação não apenas compartilhem conhecimento, mas possuam modelos mentais (que são únicos, pessoais e subjetivos) capazes de decodificar um e não outro sentido naquela situação específica. Nesse sentido, o contexto discursivo oferece os elementos que podem apoiar a condução à adequada compreensão da mensagem. As diversas situações comunicacionais estão inseridas em contextos situacionais que não determinam, mas influenciam a construção discursiva em si; esta, a seu turno, está envolta por um contexto discursivo, um ambiente linguístico criado por escolhas lexicais, estruturas sintáticas, estilo, dentre outros aspectos. Tomando-se especificamente as EI, objeto de análise deste artigo, e considerando os exemplos até aqui arrolados, pode-se dizer que sua estrutura relativamente fixa pode sofrer alterações em função do contexto discursivo no qual se inserem, mas também que é desse contexto discursivo que emergem pistas que contribuem para a construção de seu sentido. 3 A construção do sentido de EI: uma proposta de análise Visando a estabelecer uma metodologia para análise da construção do sentido das EI, o modelo a seguir apresenta um tipo de processamento das EI que tem início com um estudo do sentido literal das partes, de modo que se verifiquem pistas relevantes que contribuam para compreensão do significado não literal do conjunto composicional. Assim, inicia-se com identificação da EI referência, passa-se ao desmembramento das partes que a compõem para identificação dos sentidos literais. Segue-se para o sentido não literal com a menção do significado registrado em dicionários. Com base nessas informações (sentidos literal e não literal), passa-se a uma correlação entre esses dois sentidos e, quando possível, de origem da EI – este dado nem sempre é acessível e quando o é, nem sempre se pode certificar a verossimilhança da informação. Passa-se ao destaque da (possível) variante identificada no texto em que se insere, o efeito de sentido produzido pela (possível) variante, o excerto do qual a EI foi extraída, os elementos do contexto discursivo que corroboram o que em seguida aparecerá como sentido no contexto discursivo. O sentido da variante é o resultado da relação entre o sentido da EI referência e da variante, considerada no contexto discursivo. Para aplicação do modelo, foram selecionadas duas EI de uso corrente no dia a dia observadas em uso, em trechos de textos extraídos da internet. O primeiro estudo será sobre a EI referência bater a(s)bota(s), que sofreu alteração ao ser aplicada ao contexto discursivo do texto cujo trecho é apresentado abaixo: ALVES, Fabiane de Oliveira | 2020 | p. 67-83 76 Expressões idiomáticas: contribuições e implicações do contexto discursivo ... Quadro 1. Bater os scarpins Anna Nicole movie sentido literal Expressão Idiomática referência: bater a(s) bota(s) Bater a(s) bota(s) bater a(s) bota(s) Calçado de couro, borracha ou plástico que cobre o pé e parte Dar pancadas em (objeto ou * da perna, por vezes cobrindo tb. pessoa) parte da coxa. (AULETE, 2019) (AULETE, 2019) sentido da EI referência morrer (URBANO, 2018, p. 80; MELLO, 2009, p. 85) campo semântico de associação/ origem Associa-se à ideia o movimento feito pelas botas dos soldados que, ao serem atingidos, batiam uma bota na outra ao caírem mortos. EI variante bateu os scarpins estabelece-se uma relação entre a EI referência e o estilo da pessoa falecida “Lembraaaam da Anna Nicole Smith ex kenga3 stripper que casou com um vovozinho ficou milionária com o dinheiro dele e morreu ano passado deixando uma nenezinha liiinda?! Então, mal a moça ‘bateu os scarpins’ e já tão ganhando dinheiro às custas dela! O filme já tinha sido comentado, mas só agora saiu o trailer da obra prima estrelando Willa Ford (ex projeto de Britney Spears).” (COUTINHO, 2008) efeito da EI variante sentido não literal em contexto discursivo “morreu ano passado” elementos do discurso sentido no contexto discursivo morrer Fonte: elaboração própria. O texto, uma pequena notícia, trata do lançamento do filme que conta a história da vida de Anna Nicole Smith. Para isso, a autora constrói a referenciação à biografada de modo a retomar episódios que a tornaram famosa. Nesse co(n)texto (ADAM, 2011), a EI variante, ao substituir o lexema “botas” por “scarpins”, estabelece uma vinculação da morte à pessoa que morre, ao estilo pessoal dela – que, segundo o texto era uma “ex kenga stripper” e, em tese, não usaria botas, ao menos não as de soldado – referencial acionado pela possível origem da EI. O uso de EI não implica na necessidade desse tipo de adequação de uso para que faça sentido, no entanto, houve aqui uma interligação de modelos mentais fosse para a construção da pessoa, fosse para referir se a sua morte. Tal construção reforça a ideia de Adam (2011, p. 53) quando menciona que “Se o contexto está disponível e se ele se mostra suficiente, o interpretante não vai procurar em outro lugar”. 3 O tachado é original do texto. Esse é um recurso utilizado em textos escritos de tom mais informal que deixa registrado algo que, em outro estilo de texto, seria apagado. Trata-se de uma estratégia que deixa expresso o refazimento. ALVES, Fabiane de Oliveira | 2020 | p. 67-83 77 Discurso e poder: teoria e análise Assim, independentemente de usar ou não botas, qualquer um pode bater as botas e assim será entendido que se refere ao falecimento da pessoa. Contudo, ao fazer tal adequação na forma, o sentido, embora não tenha essencialmente mudado, ganhou uma nuance de humor, o qual se adequa ao estilo do texto como um todo que se vale de elementos como prolongamento de vogais – lembraaaam, liiinda – e corte de palavras – tão<estão; escolhas lexicais informais – kenga; vovozinho; ex projeto) para criar um efeito de oralidade e acentuar seu estilo informal e descontraído. Além disso, considerando que são usuais (e esperadas) as adequações número pessoais e que botas, segundo a informação de origem da EI, correspondem ao calçado dos soldados, embora seja um substantivo feminino, a maneira encontrada para marcar o gênero foi utilizar um tipo de calçado feminino: scarpins. Cumpre ainda mencionar que a EI variante bater os scarpins estabelece uma relação de maior dependência com esse contexto discursivo específico para que seja compreendido seu sentido figurado. Note-se que a EI variante não mantém seu sentido em: “A primeira bailarina do Teatro Municipal bateu os scarpins...” e “O senhorzinho dono da banca de frutas bateu os scarpins...”. Embora botas e scarpins não sejam sinônimos, pertencem ao mesmo campo semântico e, portanto, ao menos nesse nível de significação específico da EI variante no contexto apresentado, podem atuar como (paras)sinônimos. No tocante aos níveis de transparência e opacidade, considerando que “o entendimento da transparência é observado de acordo com a maior proximidade do cálculo do significado total da expressão por seus componentes, enquanto que a opacidade seria a total impossibilidade desse cálculo” (VALE, 2001, p. 72), bem como o cotejo entre os sentidos das partes, dispostos no quadro, e do todo composicional, pode-se dizer que tanto a EI referência quanto a EI variante são opacas, sendo que esta última um pouco mais em relação à primeira, pois seu entendimento mantém certo grau de dependência com o significado da EI referência, isto é: precisa-se conhecer o sentido de bater as botas para entender bater os scarpins, ainda que o contexto ofereça as pistas que contribuam para a compreensão. A seguir, a EI referência será tirar o cavalo/cavalinho da chuva. Diferentemente do exemplo anterior, verificar-se-á que a EI variante apresenta alterações mais significativas em sua estrutura: ALVES, Fabiane de Oliveira | 2020 | p. 67-83 78 Expressões idiomáticas: contribuições e implicações do contexto discursivo ... Quadro 2. Nem pensar em colocar o cavalo na chuva para poupar o trabalho de tirar depois A filha do chefe sentido literal sentido não literal Expressão Idiomática referência: tirar o cavalo/calinho da chuva Tirar o cavalo/cavalinho da chuva Tirar o cavalo cavalinho da chuva Queda de Fazer sair ou Grande água das diminutivo sair de (um mamífero nuvens, na de cavalo lugar); retirar herbívoro da forma de * * (AULETE, (-se) fam. dos gotas 2019) (AULETE, equídeos (AULETE, 2019) (AULETE, 2019) 2019) desistir de um propósito, de um intento, reduzir as pretensões, não ser bobo (URBANO, 2018, p. 105); sentido da EI perder as esperanças de que algo desejado vá acontecer referência imediatamente (MELLO, 2009, p. 472); desistir de um intento (AULETE, 2019) campo Quando os cavalos eram o meio de transporte mais semântico de comum, manter o animal em local protegido significava associação/ que a visita ia demorar. Quando a proposta partia do origem anfitrião, expressava satisfação (URBANO, 2018, p. 360). nem pensar em colocar o EI variante cavalo na chuva para poupar de tirar depois evidencia que de tão impossíveis as chances de efeito da EI variante algo acontecer, o melhor é não nutrir esperanças “Um dia, do nada, reparei em uma linda moça. Cabelos lisos, compridos e castanhos. Olhos grandes, também castanhos. Nariz perfeito e sorriso aberto. Ela caminhava no corredor como se fosse o tapete vermelho da entrega em contexto do Prêmio da Academia. Fui obrigado a fazer minha discursivo pesquisa de campo. Nome, cargo, algo de útil para puxar uma conversa. Consegui algumas informações valiosas. No fim do expediente ela entrou na sala do chefe. Fiquei curioso. Beijou o chefe no rosto, largou a bolsa na cadeira como se fosse a coisa mais natural do mundo e ali ficou esperando a hora de ir embora. Saíram juntos. Naquele momento eu já sabia que não podia nem pensar em colocar o cavalo na chuva. Ia me poupar o trabalho de tirar ele de lá depois. [...]” (ESCRITO A TINTA, 2010) “ela entrou na sala do chefe”; elementos do discurso “saíram juntos”; “me poupar o trabalho de tirar depois” sentido no contexto nem tentar para não ter que desistir discursivo Fonte: elaboração própria. O texto do qual se extrai o excerto narra o episódio no qual um rapaz encantase por uma moça que aparece pela primeira vez no escritório. Porém, ao perceber que ela tinha uma relação próxima com o chefe, sua surpresa foi tamanha que achou por bem nem dar início à empreitada da conquista para que não decepcionasse com o desfecho. No caso, a variante utilizada, mais do que criar um novo sentido apresenta ALVES, Fabiane de Oliveira | 2020 | p. 67-83 79 Discurso e poder: teoria e análise uma nova forma: desmembrada, desconstruída. Em termos de forma, embora seja uma estrutura aparentemente distante da EI referência, não se pode dizer que se trate de uma nova EI. Isso porque sua compreensão liga-se e depende necessariamente do conhecimento do sentido da primeira. Há, assim, uma vinculação conceitual geral da EI variante com a referência. Some-se a isso o fato de que o sentido daquela apenas se constitui tendo em conta o contexto discursivo no qual se insere, posto que deixa de ser “desistir” para ser “nem tentar para não ter que desistir”. Para dizer que “era melhor nem tentar porque a decepção seria certa” ou mesmo “era melhor tirar o cavalo da chuva”, optou-se pelo desmembramento da estrutura original de modo que ficasse clara a noção de um processo de leitura da situação que se desenhava, que antecipava o provável resultado de decepção – Ia me poupar o trabalho de tirar ele [o cavalo] de lá depois [da chuva] e, portanto, o melhor era nem agir – não podia nem pensar em colocar o cavalo na chuva. Tal desmembramento acrescenta um aspecto temporal a esse modo de dizer, criando um enredo para essa forma figurada. Considerando o cotejo entre os sentidos literais das partes e o composicional da EI referência, pode-se dizer que se trata de um conjunto idiomático opaco, pois não se identificam ligações entre um e outro sentidos. Tomando-se a EI variante, o nível de opacidade é ainda maior, sendo que o contexto discursivo somente irá contribuir mais objetivamente para a compreensão de seu sentido se o receptor conhecer o sentido da EI referência, sendo, portanto, necessária uma dupla decodificação. A EI variante cria um novo conceito baseado no conceito criado pela EI referência. Outro dado que merece destaque é a manutenção dos lexemas da EI referência. Ainda que a expressão tenha sido fracionada e apresentada em dois blocos aparentemente distintos (em duas sentenças separadas), é possível encontrar exatamente os mesmos constituintes da EI referência na variante, mesmo que nesta última tenham sido inseridos outros lexemas. Disso pode-se depreender que a estratégia de desconstrução da EI referência, intentando manter uma vinculação conceitual, se não preserva a forma, preserva seus elementos constituintes. Esse exemplo lança luz sobre uma das caraterísticas mais mencionadas nas tentativas de conceituação de EI: a fixidez. Fica evidente que essa fixidez é relativa e oscila/reveza essencialmente entre forma e conteúdo, de modo que sempre haja ao menos um aspecto que mantenha ligação com a EI referência. Além disso, o contexto discursivo, que contribui para a compressão da EI variante, foi construído não apenas pelo texto em si, mas também essa compreensão que se vale de uma memória discursiva, constituída pelos saberes conscientemente compartilhados (BERRENDONNER, 1983). No caso analisado, o contexto discursivo, ou co(n)texto (ADAM, 2011), apresenta-se como um fator ativo e passivo nessa equação. Ativo ao impor/determinar/condicionar a variação em favor das intenções textual-discursivas. Passivo porque acaba por ter seu sentido global afetado pela expressividade, pelo “colorido” emprestado pela escolha lexical de uma EI, seja ela referência ou variante. ALVES, Fabiane de Oliveira | 2020 | p. 67-83 80 Expressões idiomáticas: contribuições e implicações do contexto discursivo ... Considerações finais As EI representam parte da cultura de um povo, sintetizando em seus arranjos composicionais um modo de ver o mundo. Embora sejam de difícil definição, podese afirmar que as EI são estruturas complexas, relativamente fixas – sujeitas a certas alterações –, cujo sentido subjaz sua estrutura aparente de sentido, que emerge do arranjo composicional. A pesquisa em desenvolvimento defende a tese de que mais do que simples adequações de marcas número-pessoais, as EI permitem alterações circunstanciais, limitadas, em função do contexto discursivo em que se inserem. Assim, a (pen)última camada de sentido de uma EI é constituída no e pelo contexto discursivo –a última camada seria a interpretação do receptor do texto. Uma primeira implicação do contexto discursivo para as EI é a possibilidade ou necessidade de variação para adequação às intenções discursivas. Decorre disso que o contexto discursivo passa a contribuir para a construção do sentido. No caso de EI variantes, há uma maior relação de dependência com o contexto. Já no caso de uma EI referência o contexto discursivo determina a opção do sentido, dentre possíveis sentidos polissêmicos ou suas nuances. Por outro lado, as EI atuam como direcionadores argumentativos, operam como parte e não como um todo argumentativo, dando um tom ao argumento, produzindo efeitos e emprestando expressividade ao discurso. Há, certamente, diferentes modos de construção discursiva e “[...] o implícito desempenha um papel essencial: dizer nem sempre é dizer explicitamente, a atividade discursiva entrelaça constantemente o dito e o não dito” (MAINGUENEAU, 1996, p. 89). Dessa forma, a opção pelo uso de uma EI ao invés de outro jeito de expressar as ideias nela contida marca uma intenção, além de estilística, também situacional, que irá desenhar os rumos da construção discursiva. Considerando os exemplos analisados, pode-se inferir preliminarmente que o sentido não literal pode guardar resquícios de relação (em maior ou menor grau) com a(s) parte(s) que integram a EI. Não se pode afirmar, contudo, que haja uma ligação direta dessa relação na formulação do sentido, mas se verifica que, em um continuum entre a mínima e a máxima relação, o sentido literal pode contribuir nos processos que levam ao acionamento dos mecanismos que conduzem à compreensão do sentido não literal, ainda que essa contribuição parta justamente da "falta de sentido" do conjunto se considerado denotativamente quando posto em contexto. Ademais, verificou-se que a construção do sentido de uma EI passa não apenas por processos cognitivos, mas também pragmáticos posto que toda significação decorre de um contexto, o qual se vincula em maior ou menor grau nessa construção . As EI, em razão de sua complexidade, permitem inúmeras abordagens. Este estudo valeu-se de um enfoque textual-discursivo trazendo para o bojo da discussão os efeitos e implicações que o contexto discursivo poderia promover nas EI, mas também buscou observar os efeitos que o uso desses lexemas causariam no discurso. Tendo em vista os limites deste artigo, apresentou-se uma visão parcial de um todo em processo de elaboração e trouxe, portanto, apenas apontamentos preliminares. Todavia, já foi possível verificar alguns aspectos relevantes que, além de ALVES, Fabiane de Oliveira | 2020 | p. 67-83 81 Discurso e poder: teoria e análise aprofundados, podem ser o ponto de partida para outros estudos que tomam as EI como tema de pesquisa. Referências bibliográficas ADAM, Jean-Michel. A linguística textual: introdução à análise textual dos discursos. São Paulo: Cortez, 2011. ALVES, Ieda Maria. Neologismo: criação lexical. Porto Alegre: Ática, 1994. ANDRADE, Maria Lúcia da Cunha Victório de Oliveira. Interatividade na correspondência publicada em jornais paulistas. Forma y Función. v. 23, n. 2. Bogotá, Colombia, julio-diciembre del 2010. AULETE, Caldas. Dicionário online. Disponível em: http://www.aulete.com.br. Acesso em: 03. out. 2019. BERRENDONNER, Alain. Connecteurs pragmatiques et anaphores. 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Analogia e dissenso no debate parlamentar: o caso das comparações entre grupos estigmatizados Filipe Mantovani FERREIRA Instituto Federal de São Paulo (IFSP) [email protected] Resumo: As questões identitárias têm, nas últimas décadas, sido bastante debatidas no Brasil, nas mais diversas esferas de tomada de decisão. O Projeto de Lei da Câmara nº 122 (PLC 122/06), cujo foco era criminalizar a LGBTfobia, constituiu-se, na história recente do país, como um dos principais objetos de dissenso sobre essa temática. Em 08/12/2011, o PLC 122/2006 foi discutido pela Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado Federal. A interação dos senadores caracterizou-se por intensa discordância, que se evidenciou nas analogias construídas por eles. Analisamos aquelas cujos domínios correspondem a grupos minoritários, a fim de observar a maneira como o PLC 122/2006 é compreendido pelos debatedores e identificar estratégias utilizadas para a refutação dos argumentos por analogia. Embasam este trabalho estudos sobre argumentação (PERELMAN & OLBRECHTSTYTECA, 1996 [1958]; PLANTIN, 2011), processamento cognitivo da analogia (HOLYOAK, 2005; GENTNER & FORBUS, 2011) e discurso (VAN DIJK, 2006, 1998, 1984). As análises permitiram observar que as analogias são argumentativamente fecundas e que seu exame tem potencial para desvelar as teses advogadas pelos debatedores. O exame do corpus permitiu, ademais, que se identificassem três estratégias de refutação de argumentos por analogia, os quais podem resultar significativas para a persuasão da plateia. Palavras-chave: Analogia; Debate parlamentar; PLC 122/2006; Dissenso; Argumentação. Introdução O discurso deliberativo, da forma como o concebe Aristóteles (2005), tem por objetivo a tomada de decisões a respeito de questões atinentes à administração pública, sempre visando ao bem comum. O foco da deliberação recai no futuro, visto que ela representa uma tentativa de se obter, por meio da gestão do desacordo, respostas a questões controversas (AMOSSY, 2017). Modernamente, são numerosas FERREIRA, Filipe Mantovani | 2020 | p. 84-99 85 Discurso e poder: teoria e análise as instâncias em que se busca a superação do dissenso em nossa sociedade, tais como as reuniões de condomínio, as assembleias de sindicatos, entre outros. No Brasil, reconhecemos no Congresso Nacional uma das mais importantes instâncias de deliberação. Amplamente discutido desde sua proposição, o Projeto de Lei da Câmara 122/2006 tramitou em diversas comissões da Câmara dos Deputados e do Senado até seu arquivamento definitivo, em 2014. Proposto pela então deputada federal Iara Bernardi (PT/SP), o projeto visava tornar crime a discriminação motivada por orientação sexual e identidade de gênero. Por conta da natureza complexa do tema e dos diferentes posicionamentos suscitados por ele, foram recorrentes, no debate, as manifestações de dissenso, as quais são bastante variadas no que respeita a sua natureza linguístico-discursiva. Em virtude de terem como princípio estruturante a identificação de similaridades entre dois ou mais domínios, as analogias possibilitam a compreensão de um domínio em função de outro, frequentemente deixando expressas, de maneira mais ou menos explícita, as crenças daqueles que as constroem. Com efeito, compreender que as coisas do mundo podem ser conceptualizadas de maneiras diversas ― e por vezes conflitantes ―, a depender das ideias preconizadas pelo orador e de seus objetivos, implica reconhecer o potencial argumentativo das analogias, o qual tem sido atestado por estudiosos, como Plantin (2011) e Perelman e OlbrechtsTyteca (1996 [1958]). É com base nesse pressuposto que estabelecemos, como objetivos deste trabalho, identificar, por meio de uma abordagem qualitativa dos dados, argumentos por analogia, observar, a partir deles, as diferentes maneiras de compreender o PLC 122/2006 e descrever as estratégias que são utilizados para refutá-los. Analisamos, neste trabalho, as analogias cujos domínios são constituídos por grupos minoritários1, por entendermos que as ideias a respeito desses grupos normalmente envolvem questões de moralidade e costumes, as quais têm constituído o cerne de debates bastante acirrados, dada sua importância para a sociedade. O corpus deste trabalho consiste na transcrição do debate a respeito do PLC 122/2006 ocorrido em 08/12/2011 no âmbito da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) do Senado Federal. Transmitido para todo o Brasil pela TV Senado, ele foi transcrito conforme as orientações do Projeto de Estudos da Norma Linguística Urbana Culta de São Paulo (NURC-SP), publicadas por Preti (2003). A transcrição do debate encontra-se disponível na íntegra em Ferreira (2018). Argumentaram em favor da aprovação do PLC 122/2006 os senadores Marta Suplicy, Marinor Brito, Lídice da Mata e Eduardo Suplicy; foram contrários a ela Magno Malta, Cristovam Buarque, Marcelo Crivella e Sérgio Petecão. Paulo Paim, por ser presidente da CDH, atuou como gestor do debate ― distribuiu turnos, controlou 1 A noção de minoria adotada neste trabalho não tem natureza quantitativa, mas qualitativa. São considerados membros de grupos minoritários aqueles indivíduos que são discriminados em função do valor que é socialmente atribuído a suas características físicas, sexuais, religiosas, culturais e/ou linguísticas. Tal posicionamento coaduna-se com o que defendem diversos teóricos que se ocuparam dessa temática, tais como Liebkind (1984) e van Dijk (1984). FERREIRA, Filipe Mantovani | 2020 | p. 84-99 86 Analogia e dissenso no debate parlamentar: o caso das comparações ... tempo de fala, procurou controlar as manifestações da audiência, etc. ―, não tendo se pronunciado favorável ou contrariamente à aprovação da matéria. Entre outros, constituem as bases teóricas para este trabalho estudos sobre argumentação (PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA, 1996 [1958]; PLANTIN, 2011), processamento cognitivo da analogia (HOLYOAK, 2005; GENTNER & FORBUS, 2011), além de obras vinculadas aos Estudos Críticos do Discurso (VAN DIJK, 2006, 1998, 1984). 1 Analogias: perspectivas, conceituação e propriedades As analogias têm sido estudadas por pesquisadores filiados a áreas de investigação bastante distintas ao longo da história, tais como a Filosofia, a Argumentação e a Psicologia. No domínio da Filosofia, encontramos na Antiguidade Clássica alguns dos registros mais importantes a respeito do uso de analogias. Já nos trabalhos de Platão podem ser observados esforços para transpor as identidades de relações a/b = c/d (a está para b assim como c está para d), oriundas do raciocínio matemático, para o domínio da reflexão filosófica. De acordo com Resende Filho (2008), coube a Aristóteles, a aplicação do raciocínio analógico a toda realidade mensurável. Os estudos de argumentação, por outro, têm dado enfoque ao exame dos usos das analogias como forma de buscar a persuasão em situações de comunicação, sobretudo naquelas em que a atividade argumentativa tem maior relevo. Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996 [1958]) veem, no raciocínio analógico, uma forma complexa de argumentação que serve tanto para a prova quanto para a invenção. Nesse sentido, as analogias podem ser consideradas maneiras de dizer o mundo com potencial para colaborar significativamente para a conceptualização de um dado objeto ou evento, a fim de possibilitar a defesa de uma determinada tese, para a qual os oradores procuram conquistar a adesão. A Psicologia, por sua vez, tem dado maior ênfase à investigação sobre dimensão cognitiva da analogia, a seu processamento mental, com vistas a sua compreensão enquanto operação mental que possibilita a resolução de problemas, além da construção de inferências, abstrações e generalizações. Destacam-se, nessa linha teórica, os trabalhos de Dedre Gentner, Keith Holyoak e seus colaboradores (GENTNER, 1983, 1989; HOLYOAK & GICK, 1989; HOLYOAK, 2005; GENTNER & BOWDLE, 2008; GENTNER & FORBUS, 2011). Entendemos que a existência de tal pluralidade de abordagens, por um lado, atesta a natureza plurifacetada das analogias, e, por outro, afigura-se como uma espécie de ratificação da produtividade de seu estudo para as mais diversas áreas do conhecimento. A despeito da diversidade de abordagens da analogia, ela tem sido definida, do ponto de vista estrutural, de modo similar por diversos estudiosos, desconsideradas algumas variações terminológicas. De acordo com Itkonen (2005), analogias correspondem a relações que se estabelecem entre dois sistemas com FERREIRA, Filipe Mantovani | 2020 | p. 84-99 87 Discurso e poder: teoria e análise números iguais de partes, em que as relações entre as partes de um sistema são de contiguidade, e aquelas que se estabelecem entre os dois sistemas é de similaridade estrutural e/ou funcional. Propomos, como forma de representar graficamente a proposta de Itkonen, o seguinte esquema: Figura 1. A analogia conforme concebida por Itkonen (2005) ANALOGIA X a b Y c a' b' c' Fonte: elaboração própria. Nesse esquema, considera-se que X e Y são dois domínios diferentes, que compartilham similaridades estruturais e/ou funcionais, representadas por letras minúsculas. Assim, (a), (b) e (c) são contíguos a X, da mesma forma que (a’), (b’) e (c’) são contíguos a Y, e cada uma das letras minúsculas representa uma característica que encontra correspondência no outro domínio: (a) é similar a (a’); (b), a (b’); (c), a (c’), e assim por diante. Importa observar que, segundo Plantin (2011), não é imprescindível que as analogias sejam indicadas pela existência de expressões linguísticas. Segundo o estudioso, embora as analogias sejam frequentemente marcadas por um conjunto bastante amplo de expressões lexicais e gramaticais, essa não é uma condição para sua existência, sendo possível que elas se expressem, por exemplo, pela colocação de enunciados em paralelo2. Dessa forma, afasta-se a ideia de que a analogia está necessariamente vinculada ao uso de uma ou outra fórmula linguística e advoga-se a tese de que a expressão da analogia se efetiva, por vezes, apenas no nível do discurso. Para Gentner e seus colaboradores (GENTNER, 1999; GENTNER & SMITH, 2012, 2013; GENTNER & FORBUS, 2011) o processamento analógico ocorre em três etapas, quais sejam, a recuperação, o mapeamento e a avaliação. Basicamente, a recuperação é a identificação dos domínios que farão parte da analogia; o mapeamento consiste no alinhamento estrutural de um domínio-base com um domínio-alvo; a avaliação, por fim, ocorre quando se julga a adequação da analogia e das inferências por ela chanceladas. 2 Plantin (2011, p. 113) dá o seguinte exemplo ao descrever as analogias expressas por meio da colocação em paralelo de dois enunciados: “No futebol, jogamos com os adversários ou com a bola, às vezes com os dois. Em argumentação, focalizamos os objetos de debate ou a relação com os adversários.” (tradução nossa). FERREIRA, Filipe Mantovani | 2020 | p. 84-99 88 Analogia e dissenso no debate parlamentar: o caso das comparações ... Gentner e seus colaboradores tendem, por conta dos objetivos de seus estudos, a condicionarem a criação de analogias a aspectos cognitivos, sem dar ênfase à ancoragem sócio-histórica que é característica dos estudos de discurso. Nessa perspectiva cognitiva adotada por Gentner e seus colaboradores, a recuperação é determinada pela capacidade de um indivíduo identificar similaridades e, com base nelas, buscar, em sua memória de longo prazo, elementos estruturalmente similares; o mapeamento está vinculado à capacidade de construir inferências e abstrações; e a avaliação está relacionada à percepção de um sujeito de que uma analogia por ele criada está ou não apta para compreender o mundo. Entendemos que o foco no indivíduo, embora bastante produtivo para o desenvolvimento da Teoria do Mapeamento Estrutural de Gentner e seus colaboradores, representa uma limitação no que respeita às investigações acerca do discurso, visto que este, por definição, relaciona-se à realidade social de maneira inextricável. Sem discordar de Gentner e seus colaborares, parece-nos importante salientar que reconhecemos ser possível que haja fatores externos ao indivíduo ― e atinentes à língua em uso ― cruciais para a compreensão dos processos de recuperação, mapeamento e avaliação3. Portanto, considerando o potencial argumentativo das analogias (PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA, 1996 [1958]), entendemos ser imprescindível indicar de que forma compreendemos os processos de recuperação, mapeamento e avaliação, a fim de possibilitar sua compreensão em situações de interação. Assim, entendemos que compreender a recuperação como um processo mental balizado apenas pela memória ou a capacidade de identificar similaridades implica ocultar o fato de que a recuperação, nos casos em que a analogia é utilizada para fins argumentativos, encontra-se limitada também pelo desejo dos oradores de conquista da adesão daqueles a quem ele se dirige. A relevância da seleção dos dados é reconhecida por Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996 [1958]), que afirmam a necessidade de que eles sejam selecionados e adaptados para que se coadunem com os objetivos da argumentação. De maneira similar, importa observar também que o mapeamento, além de ser visto como manifestação de habilidades cognitivas, pode refletir os objetivos argumentativos de um orador, na medida em que a seleção de características a serem mapeadas não é neutra do ponto de vista ideológico4. Dessa forma, pode ocorrer, por exemplo, que um orador use do mapeamento como estratégia e identifique apenas similaridades cujo mapeamento seja interessante para corroborar as teses que advoga ou que o orador proceda ao prolongamento do mapeamento de uma analogia criada 3 Não é a intenção deste trabalho questionar o mérito das propostas de Gentner e seus colaboradores. Sem ignorá-lo, buscamos, em lugar disso, propor uma modificação do entendimento dos conceitos de recuperação, mapeamento e avaliação, de modo que eles possam ser produtivos não apenas no campo da Psicologia Cognitiva, mas também no dos Estudos Discursivos. 4 Neste trabalho, adotamos a noção de ideologia desenvolvida por Van Dijk (1998, p. 08), que a define em termos de uma base das representações sociais compartilhadas por membros de um grupo, a qual permite que as pessoas, enquanto membros de um grupo, organizem uma variedade de crenças sobre o que consideram bom ou mau, correto ou incorreto, e ajam coerentemente com elas. FERREIRA, Filipe Mantovani | 2020 | p. 84-99 89 Discurso e poder: teoria e análise por outrem, a fim de tornar evidentes as dessemelhanças entre os domínios e, desse modo, descredibilizar teses contrárias. O prolongamento estratégico das analogias de outrem, com o objetivo de descredibilizá-la, é descrito no Tratado da Argumentação, de Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996 [1958]. Para esses autores, “pode acontecer que a analogia, em vez de ser prolongada pelo autor, o seja por seu crítico, que dela tira um modo de refutação, tanto mais eficaz por ser o material tomado de empréstimo ao adversário” (p. 440). No que respeita à avaliação, não é surpreendente que Gentner e Smith (2012) concebam as analogias de modo a privilegiar a subjetividade do indivíduo, que avaliará positivamente as analogias consideradas adequadas para explicar o alvo, das quais decorram informações que pareçam verdadeiras. Para esses pesquisadores, na impossibilidade de atender plenamente a esses requisitos, as analogias tenderão a ser descartadas pelo sujeito que a cria, que poderá buscar outras maneiras de compreender o mundo e gerar conhecimento. A concepção de avaliação centrada no indivíduo tem como limitação o fato de não dar conta da complexidade do uso das analogias em situação de interação, visto que desconsidera o papel do outro, aqui entendido como um interlocutor, como um sujeito que, tendo o contato com o discurso do orador, o avalia e pode refutá-lo, total ou parcialmente, ou aceitá-lo. 2 O dissenso no debate parlamentar O debate frequentemente é comparado a uma discussão, da qual ele difere, de um lado, por ser mais organizado e formal e, de outro, por ocorrer dentro de um “quadro prefixado”, no qual estão previstos aspectos como sua duração, a organização das intervenções dos debatedores, o número de participantes e o tema da interação. Podem integrar o quadro do debate um moderador, responsável por manter seu bom andamento, e um auditório (KERBRAT-ORECCHIONI, 1990). A configuração do debate revela-se bastante complexa, sobretudo se consideramos que os debatedores, mesmo quando se dirigem a locutores específicos, levam em consideração o fato de que suas palavras e atitudes estão sendo monitoradas pelos outros debatedores e pelo auditório. É por esse motivo que Marques (2000) descreve o debate como uma situação plurilogal, uma vez que “[...] o destinatário indirecto tem um estatuto um pouco ambíguo, porque funciona como testemunha da interacção, mas é também alvo da atenção do locutor” (p. 125). A existência (ou pressuposição da existência) de um desacordo é frequentemente indicada como uma característica do gênero debate (KERBRATORECCHIONI, 1990; ERLICH, 1993; AQUINO, 2008). Para Doury e Kerbrat-Orecchioni (2011, p. 63), no debate, como nos demais gêneros de natureza agonal, o desacordo é a regra, e o debate corresponde a uma forma de combate. Meireles (1997) observa que o desacordo tem recebido diversas designações na literatura, tais como dissenso, dissensão e negação. Segundo a autora, são quatro as características do dissenso: em primeiro lugar, trata-se de um fenômeno conversacional, havendo a necessidade de mais de um falante e de mudança de turno; em segundo lugar, ele é reativo, isto é, sequencialmente subordinado ao que disse FERREIRA, Filipe Mantovani | 2020 | p. 84-99 90 Analogia e dissenso no debate parlamentar: o caso das comparações ... outro falante; em terceiro lugar, caracteriza-se por ser inerentemente adversativo, constituindo-se como uma refutação total ou parcial da visão de mundo expressa por alguém; por fim, é variado no que diz respeito a sua manifestação linguística. Apesar de concordarmos, em linhas gerais, com a descrição do desacordo de Meireles, acreditamos ser necessário questionar a ideia de que o dissenso é um fenômeno estritamente conversacional, visto que, da perspectiva por nós adotada, ele não deve ser considerado como algo que está circunscrito necessariamente a um determinado evento comunicativo. Em lugar disso, inspirados pelos princípios de dialogismo defendidos por Bakhtin (2009), propomos que o dissenso seja conceituado a partir de uma perspectiva discursiva. Tal modificação permite que se observem desacordos entre enunciados proferidos em situações comunicativas distintas. Procedendo assim, endossamos a visão bakhtiniana de que todo enunciado constitui, em alguma medida, a uma resposta a um ou mais enunciados precedentes 5. 3 O debate parlamentar e o papel do consenso A ideia de que a busca por um consenso corresponde à finalidade precípua do debate, amplamente defendida por alguns teóricos, parece pouco adequada para se descrever alguns tipos de debate, entre eles, o debate eleitoral. Sobre essa questão, argumentam Doury e Kerbrat-Orecchioni (2011, p. 65-6): [...] numerosas são as teorias que estipulam como finalidade da argumentação resolver o desacordo inicial para chegar a um acordo (sobre a questão em discussão ou, ao menos, sobre o fato de que nenhum acordo sobre a questão é possível) [...]. Entretanto, essa percepção é refutada pelo gênero interacional do qual provém nosso corpus [debate eleitoral entre candidatos à presidência da França]. É claro que, em um debate eleitoral, os debatedores levam a cabo uma atividade argumentativa importante, mas é igualmente claro que essa atividade seria incapaz de resultar na resolução das divergências iniciais: o acordo entre os interlocutores é, pois, excluído do horizonte das trocas argumentativas. Contrariamente, essa renúncia à busca de um consenso não exclui necessariamente a realização de acordos parciais, ainda que sobre os pontos não centrais do debate [...]6. Com efeito, o debate parlamentar, objeto de estudo deste trabalho, assim como o debate eleitoral, não parece se afigurar como um terreno fértil para a busca da superação do dissenso por meio do que Amossy (2017) descreve como “trabalho 5 Por óbvio, não se trata de criticar a noção de dissenso proposta por Meireles, que reconhecemos ser coerente com o quadro da Análise da Conversação, no qual se inserem os trabalhos dessa autora; tratase, antes, de ajustar sua proposta para que ela seja produtiva no panorama dos Estudos Discursivos, no qual se inscreve este trabalho. 6 Tradução livre de: “[...] nombreuses sont les théories qui stipulent que la finalité de l’argumentation est de résoudre ce désaccord initial pour parvenir à un accord (sur la question en discussion, ou, au pire, sur le fait qu’aucun accord sur la question n’est possible) […]. Mais cette conception est mise en déroute par le genre interactionnel dont relève notre corpus. Il est clair que dans un débat électoral les débatteurs développent une activité argumentative importante; mais il est tout aussi clair que cette activité ne saurait aboutir à la résolution finale des divergences de départ: l’accord des interlocuteurs comme horizon des échanges argumentatifs est donc exclu. En revanche, cette renonciation à la recherche d’un consensus n’exclut pas forcément la réalisation d’accords partiels, portant sur des points périphériques du débat [...]. FERREIRA, Filipe Mantovani | 2020 | p. 84-99 91 Discurso e poder: teoria e análise do logos”, isto é, do discurso da ordem do razoável com vistas à obtenção de uma solução. Isso significa que, conquanto a busca de consenso seja característica saliente do gênero debate, ela pode não ser observada nos debates parlamentares, em que a conquista da adesão dos parlamentares se dá muito mais pela articulação política e pelos jogos de interesses, bastante frequentes nos bastidores dos debates, que pelo exercício da razoabilidade no debate. Ratificamos, dessa forma, as ideias de Comparato (2000/2001, p. 11), para quem “jamais se viu um partido da situação mudar de opinião sobre uma questão política, diante dos argumentos apresentados pela oposição, e vice-versa". Findas nossas considerações a respeito dos debates parlamentares, passamos à análise das sequências em que as analogias envolvendo grupos minoritários são utilizadas e do modo como se manifesta o desacordo com relação a elas. 4 Análises As análises do corpus permitem observar que são recorrentes as analogias em que a população LGBT é selecionada como domínio comparável a outros grupos estigmatizados, tais como negros, indígenas, mulheres e idosos. Essa tendência não é surpreendente. Na medida em que a analogia consiste em uma forma de utilizar um domínio que nos é mais familiar para compreender um domínio que frequentemente nos é menos familiar (GENTNER, 1983) e que uma das funções do debate em questão era precisamente a discussão a respeito das possíveis consequências da criminalização da LGBTfobia, parece coerente que sejam comparados, com a população LGBT, outros grupos cuja discriminação já era, àquela altura, vedado por legislação específica. Como dissemos anteriormente, foram frequentes os desacordos entre os debatedores. Observamos, no que segue, as diferentes maneiras de conceptualizar o PLC 122/2006 e descrevemos as estratégias retórico-argumentativas utilizadas pelos senadores para refutar as ideias preconizadas por seus colegas. Cabe salientar que as estratégias aqui descritas não são excludentes e podem, a critério dos oradores, ser utilizadas em combinação, a fim de fortalecer as teses que advogam. 4.1 Prolongamento da analogia visando à identificação de dessemelhanças Ao descreverem as analogias como um construto argumentativamente instável, Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996 [1958]) chamam atenção para o fato de que, em um debate, pode ocorrer que a analogia utilizada por um orador seja estendida por outro, de modo a dar relevo a dessemelhanças e, assim, descredibilizar o argumento construído com base nela: Pode acontecer que a analogia, em vez de ser prolongada até o fim pelo autor, o seja por seu crítico, que dela tira um meio de refutação, tanto mais eficaz por ser o material conceitual tomado de empréstimo FERREIRA, Filipe Mantovani | 2020 | p. 84-99 92 Analogia e dissenso no debate parlamentar: o caso das comparações ... ao adversário. [...] Esse modo de refutação pressupõe que sempre se tem o direito de prolongar uma analogia para além da primeira afirmação e que se, por causa desse prolongamento, ela se volta contra o autor, ou se torna inadequada, é porque já o era desde o início. [...] A refutação jamais é coercitiva, pois se poderia recusar admitir esse prolongamento; entretanto, ela põe em evidência a fragilidade e a arbitrariedade da analogia primitiva. Aí está o seu principal interesse. (PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA, 1996 [1958], p. 440-441) O uso dessa estratégia argumentativa é observável no corpus selecionado para análise na interação entre os senadores Marta Suplicy e Magno Malta, analisada a seguir. Em (1), a senadora Marta Suplicy, relatora da matéria no senado e defensora de sua aprovação, argumenta no sentido de identificar similaridades entre o domíniobase “ser negro” e o alvo “ser LGBT”. A analogia é marcada, nesse caso, pelo uso da expressão “como”: (1) por exem/se uma pessoa homossexual7... é atacada na Avenida Paulista -- que hoje é uma coisa que está sendo bastante frequente -- e com um chute com um xingo... uma quebra de BRAço... uma lesão desse tipo... o policial simplesmente dá de ombros como tem feito frequentemente... com esta lei ele não mais poderá dar de ombros... como não dá de ombros... se uma pessoa negra é desacaTAda... ou chutada ou xingada... ele leva essa pessoa à delegacia... (linhas 102 a 109) À fala de Marta Suplicy segue-se o discurso do senador Magno Malta, que se posiciona de modo bastante veemente contra a aprovação do PLC 122/2006, nos seguintes termos: (2) gostaria de esclarecer ainda que índio... não pediu para nascer índio... negro que é tão... chamado todas as horas para fazer comparação para justificar esse projeto... e não deveria fazê-lo porque negro não pediu/não fez opção para ser negro... negro nasceu negro... eu nasci negro minha mãe nasceu negra...eu não fiz opção para ser negro... japonês não fez opção para ser japonês... nem deficiente... portador de deficiência fez opção para ser portador de deficiência... não pode comparar... eh raça... não se pode comparar com quem fez a opção por ser homossexual... há que se respeitar porque o homem... pode fazer ( ) seu desígnio e sua decisão... o indivíduo pode fazer a opção para ser o que ele quiser... e pode requerer direitos... a única coisa que o homem não pode... ((aplausos)) (linhas 229 a 240) A análise do argumento de Marta permite observar que, para a senadora, a semelhança compartilhada entre alvo e base tem a ver com a vulnerabilidade social, isto é, com o fato de que tanto indivíduos LGBT como negros são mais propensos a sofrer com a violência que resulta do estigma associado a essas minorias. A aprovação do projeto de lei seria, dessa forma, uma maneira de conferir segurança às pessoas LGBT, que, assim como os negros, são vitimados pela violência. 7 Ainda que a palavra homossexual seja frequentemente utilizada no debate, ela não parece fazer referência apenas a quem se relaciona sexual e afetivamente apenas com indivíduos do mesmo sexo; a expressão parece contemplar também indivíduos bissexuais, transgêneros e outros que são discriminados em função de sua identidade de gênero e/ou orientação sexual. Visando a uma adequação maior do termo à realidade a que ele se refere, utilizamos, neste trabalho, a expressão “indivíduo LGBT” e outras similares ou derivadas, para fazer referência àqueles que são, durante o debate, descritos como homossexuais. FERREIRA, Filipe Mantovani | 2020 | p. 84-99 93 Discurso e poder: teoria e análise Para descredibilizar o argumento de Marta, Malta opta por dar relevo, em (2), para uma característica que não pode ser compartilhada entre os dois domínios, qual seja, a volição: de acordo com o senador, ser um indivíduo LGBT é consequência de um desejo, diferentemente de ser negro, que corresponde a uma determinação genética. Observe-se que, nesse caso, a dessemelhança identificada constitui mais um posicionamento defendido por um grupo de indivíduos que compartilham essa crença que um dado inequivocamente aceito como verdadeiro, visto que a conexão entre volição, identidade de gênero e orientação sexual é controversa. A identificação dessa dessemelhança parece particularmente significativa, tendo em vista que, até então, em momento nenhum a volição havia sido sugerida como uma similaridade passível de mapeamento dos domínios “ser negro” e “ser LGBT”. Dessa forma, parece lícito dizer que a refutação levada a cabo por Malta tem por base um prolongamento da analogia proposta pela senadora Marta, com o objetivo de salientar dessemelhanças entre os domínios e, assim, questionar a validade dos argumentos apresentados por ela. Em outras palavras, trata-se de uma tentativa de caracterizar o raciocínio de Marta como falacioso. Com base nisso, Malta argumenta, sem questionar que a vulnerabilidade é uma similaridade compartilhada entre os domínios, que a aprovação do projeto de lei seria injusta, inadequada, visto que a população LGBT só poderia ser vítima de violência se optasse por manter comportamentos afetivo-sexuais e comportamentais estigmatizados. 4.2 Refutação de semelhanças identificadas pelo outro Outra estratégia observada no debate consiste no questionamento de semelhanças identificadas em uma analogia proposta por outro orador, a fim de colocar-lhes o crédito em questão. Observem-se os segmentos (3) e (4), extraídos de discursos proferidos respectivamente por Magno Malta e Marta Suplicy: (3) quem agride homossexual no Brasil... agride aposentado... quem mata um homossexual hoje mata um portador de deficiência... a senadora Marta falou que os homossexuais continuam agredidos na Avenida Paulista.... os mendigos também senadora... as crianças em São Paulo o seu estado continuam abusadas... (linhas 259 a 263) (4) quero ainda colocar... ah... como observação que aqui foi dito... afirmado... que não vivemos num país homofóbico... eu discordo... e quero dizer o porquê... foi mencionado por alguns senadores... que não/que assim como se agridem homossexuais... se agridem deficientes... se agridem... várias pessoas ( ) que estão incomodando de alguma forma... é verdade... mas eu nunca vi alguém esfaquear um deficiente... porque ele é deficiente... ((aplausos e gritos de aprovação)) não vi alguém... não vi... também... -- pode até ocorrer senador Malta... mas isso é raro e dá primeira página de jornal como um escândalo gigantesco -- agora... nunca vi esfaquear... surdo porque é surdo... o senhor pode ter visto... ((falatório na plateia)) mas não é o que ocorre todo dia nesse país... ((campainha soa repetidamente)) (linhas 1211 a 1222) Em sua fala, Malta constrói uma analogia entre a população LGBT e diversos outros grupos sociais (aposentados, pessoas com deficiência, mendigos e crianças). A semelhança identificada pelo senador seriam as agressões, às quais todos esses FERREIRA, Filipe Mantovani | 2020 | p. 84-99 94 Analogia e dissenso no debate parlamentar: o caso das comparações ... grupos estão sujeitos. A tese que o senador busca fortalecer é a de que, por haver muitos grupos igualmente vulneráveis, não é justo que se criminalize apenas a LGBTfobia. Novamente se observa que, do ponto de vista do senador, a aprovação do projeto seria injusta ou inadequada. Marta procura, então, em fala ulterior, relativizar a semelhança indicada por Malta, ao dizer que a população LGBT, diferentemente do que ele afirma, destaca-se dos demais grupos justamente por sofrer um tipo de discriminação que se traduz em violência física frequente, o que não seria verdade para os outros grupos. Em outras palavras, Marta refuta a analogia construída por Malta ao colocar em questão a similaridade que ele havia afirmado ser compartilhada pelos domínios da analogia. Assim, pode-se dizer que o senador procura encaminhar sua argumentação no sentido de apagar especificidades dos grupos a que faz referência (indivíduos LGBT, aposentados, pessoas com deficiência, crianças), ao passo que Marta, ao questionar a semelhança interdominial indicada por Malta, busca salientar aquilo que lhe parece específico da discriminação contra a população LGBT e, assim, invalidar ou enfraquecer o argumento de Malta. Assim, para a senadora, embora pessoas com deficiência sejam vítimas de agressão (concordância manifestada por meio da expressão “é verdade”), o argumento de Malta não deveria ser aceito como verdadeiro em função de não levar em conta o fato de que, segundo ela, pessoas LGBT são mortas e esfaqueadas com frequência, o que não acontece com pessoas com deficiência. A senadora argumenta, dessa maneira, que a similaridade interdominial indicada por Malta não encontra respaldo na realidade. Os senadores engajam-se, assim, em uma espécie de jogo de luz e sombra, que ora revela e ora oculta características do alvo e cuja regra principal é a seletividade inerente aos processos de recuperação e mapeamento. A identificação da estratégia argumentativa de questionamento das similaridades indicadas por outra pessoa corresponde, em linhas gerais, a um processo de avaliação que tem como origem o interlocutor e que só pode, portanto, se efetivar na interação. 4.3 Refutação das inferências (pretensamente) chanceladas por uma analogia Gentner e Smith (2013, p. 669) defendem que a criação de inferências é uma característica importante da construção de analogias. Segundo os autores, Uma boa analogia revela estruturas comuns a duas situações e sugere inferências adicionais. Ou seja, o mapeamento analógico envolve reconhecer um sistema relacional comum entre duas situações e criar inferências adicionais balizadas por essas características comuns [...]8. 8 Tradução livre de: “A good analogy both reveals common structure between two situations and suggests further inferences. That is, analogical mapping involves recognizing a common relational system between two situations and generating further inferences guided by these commonalities […]. FERREIRA, Filipe Mantovani | 2020 | p. 84-99 95 Discurso e poder: teoria e análise No excerto a seguir, Magno Malta identifica a discriminação como similaridade compartilhada por membros da comunidade LGBT, evangélicos e pessoas com síndrome de Down, grupos que correspondem aos domínios da analogia que o senador constrói. (5) há uma coisa muito (aberta) aqui... se ele vai no seu gabinete e diz eu coloquei meu currículo... tá aqui nomeação... isso vai para senador vai pra deputado federal prefeito vereador vai pra todo mundo... nomeação... cargo público de alto... eh:: de livre escolha... e você não escolhe... isso é VAgo... a pena é de um a três... aí você fala não... essa pessoa tem que dizer assim olha não estou escolhendo você porque você é homossexual... ninguém vai falar isso... só vai dizer ((gritos, vaias)) não escolhi... não escolhi... como as pessoas fazem... quando querem excluir alguém... simplesmente diz que não/ agora ah vou dizer uma coisa para o senhor... quando alguém... é muçulmano pode fazer isso hoje? então uma babá/uma babá de confissão evangélica... e ele descobre que ela é evangélica e toma conta do filho... e ele não quer que essa babá oriente a filha com os ensinamentos cristãos... ele pode mandar embora que ele não é preso... pode mandar embora que ele não é preso... não tem uma lei pra proteger a babá disso... se eu descubro que a babá da minha filha... é homossexual... conforme a lei... se eu mandar embora... eu tenho que continuar com a babá homossexual porque aí tem cadeia pra mim... ora... é correto isso?... é correto isso? eu estava vindo desci no aeroporto e vi... antes de pegar o carro... um cidadão rindo de um cidadão que tinha mais ou menos trinta anos de síndrome de Down... chamando ele de cara de bolacha... por que não temos uma lei específica para proteger quem tem síndrome de Down que não pediu para nascer com síndrome de Down?... ((aplausos)) (linhas 291 a 315) A inferência que o senador constrói a partir da identificação de similaridades entre os domínios é, novamente, que o PLC 122/2006 não deve ser aprovado, pois não protege todos os grupos vitimados pela discriminação. Opondo-se a Malta, a senadora Marinor Brito argumenta contrariamente a essa inferência nos seguintes termos: (6) mas a minha discordância senador Magno Malta... com todo respeito... é que... embora a maioria do povo brasileiro não seja homofóbica... e não tenha aCORdo com atitudes homofóbicas... mas o Estado brasileiro não garante... aos cidadão que tenha uma orientação sexual... não uma opÇÃO sexual ((aplausos e gritos))... diferente... o diREIto de ser respeitado... ou quando... o seu direito humano é violado... ele não tem como como recorrer... e... refletindo sobre o que vossa excelência disse... nós não teríamos por quê... já que a Constituição garante direitos... ((ouvem-se vozes ao fundo, a campainha soa em pedido de silêncio)) já que a Constituição... [...] se a Constituição fosse suficiente... e o parlamento brasileiro achasse isso ... nós não teríamos avançado em conquistas FUNdamentais...para seTOres... da população brasileira... como as crianças e os adolescentes que têm hoje o Estatuto da Criança e do Adolescente... os que lutaram pela igualdade racial que têm hoje o Estatuto da Igualdade Racial... a Lei Maria da PEnha::... a população é violenta? não... o povo brasileiro não é violento... mas uma mulher é espancada a cada um minuto... nesse país... e a Lei Maria da PEnha VEIo afirmar positivamente... a importância das garantias constitucionais... (linhas 444 a 489) O desacordo de Brito com relação à inferência defendida por Malta marca-se linguístico-discursivamente em pelo menos dois momentos, a saber: (1) quando a senadora afirma “mas a minha discordância senador Magno Malta”; e (2) quando ela o corrige quanto ao uso de “opção” e defende o uso da expressão “orientação sexual”. Ao argumentar que a Constituição não oferece proteção suficiente para os grupos estigmatizados e que o parlamento brasileiro concorda com essa ideia, a FERREIRA, Filipe Mantovani | 2020 | p. 84-99 96 Analogia e dissenso no debate parlamentar: o caso das comparações ... senadora expressa seu desacordo com relação à inferência defendida por Malta e endossa o ponto de vista de que a aprovação do PLC 122/2006 é tão necessária como fora outrora a da Lei Maria da Penha, na opinião da maior parte do parlamento. A analogia construída por Brito (o PLC 122/2006 é como a Lei Maria da Penha, o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Estatuto da Igualdade Racial) pode ser considerada, assim, uma tentativa de fazer que mulheres, crianças, adolescentes, negros e pessoas LGBT sejam compreendidos como indivíduos vulneráveis, como vítimas de violência. Selecionar a lei e os estatutos para ocupar a posição de domínio da analogia parece estratégico, visto que se trata de matérias já aprovadas pelo Senado e que objetivam coibir a violência contra grupos vulneráveis. A identificação da vulnerabilidade como similaridade leva a uma inferência bastante significativa na argumentação da senadora, nomeadamente, a de que, ao rejeitar o PLC 122/2006, o Senado brasileiro não estaria tratando de modo equânime situações similares, o que poderia ser considerado injusto ou incoerente9. As analogias construídas por Malta e Brito não são idênticas, mas são bastante similares, pois têm em comum o alvo (população LGBT) e a semelhança entre alvo e fonte (a vulnerabilidade). Não ocorre, da parte de nenhum dos dois, qualquer questionamento no que se refere à seleção de domínios. O dissenso entre os dois limita-se às inferências que as analogias utilizadas pretensamente chancelam: enquanto Malta põe em questão o escopo (na visão dele, limitado) do PLC 122/2006, como já fizera anteriormente, Brito defende que, em virtude da semelhança identificada por ambos, é necessária a criação de mecanismos legais específicos para proteger grupos vulneráveis. Pode-se dizer, portanto, que o foco de Brito, nesse caso, recai sobre a indicação da natureza falaciosa do argumento de Malta, uma vez que a parlamentar procura refutar as inferências que Malta deriva da analogia por ele criada, sem, no entanto, questionar a validade da analogia propriamente dita, a qual é bastante similar à que a própria senadora havia utilizado como argumento. Considerações finais A análise dos discursos dos senadores engajados no debate permitiu observar que a representação do PLC 122/2006 varia consideravelmente de acordo com seus objetivos comunicativos ― aprovação ou rejeição do PLC 122/2006 ―, em função das analogias empregadas pelos debatedores. Dessa forma, os senadores defensores do projeto de lei tendem a criar analogias que procuram retratá-lo positivamente, como uma continuidade de políticas necessárias de proteção a grupos estigmatizados. 9 Cabe observar que o raciocínio por analogia parece ser bastante profícuo no âmbito da cogitação sobre as leis. A tese fixada pelo Supremo Tribunal Federal, em junho de 2019, de que as condutas LGBTfóbicas e transfóbicas são equiparáveis aos crimes de racismo é exemplo disso. Outro exemplo é dado por Plantin (2013), para quem a analogia pode ser observada na argumentação teológica-jurídica islâmica, visto que, por ser o vinho proibido pela lei do Alcorão, também é vedado o consumo do néctar fermentado de tâmaras, tendo em vista o fato de que este, como aquele, pode causar embriaguez. FERREIRA, Filipe Mantovani | 2020 | p. 84-99 97 Discurso e poder: teoria e análise Os senadores contrários ao projeto, por sua vez, procuram argumentar que o PLC 122/2006 não seria capaz de proteger todos os grupos estigmatizados e que, por conta de seu escopo “reduzido”, não deveria ser aprovado. O exame do corpus permitiu identificar o uso de três estratégias ― a saber, a extensão das analogias visando à identificação de dessemelhanças, a refutação de semelhanças identificadas pelo outro e a refutação de inferências (pretensamente) chanceladas por uma analogia ―, que possibilitam a um orador que refute argumentos cuja base é a analogia, sempre com vistas a salientar a natureza pretensamente falaciosa dos argumentos utilizados pelos interlocutores. As análises parecem, além disso, ratificar a produtividade de uma noção discursiva da recuperação, do mapeamento e da avaliação, processos que, embora tenham origem em uma teoria cognitiva da analogia, parecem ser utilizados estrategicamente, com vistas à defesa das teses dos senadores engajados no debate. Referências bibliográficas AMOSSY, Ruth. Apologia da polêmica. Trad. Mônica Magalhães Cavalcante. São Paulo: Contexto, 2017. AQUINO, Zilda Gaspar Oliveira de. 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Analogia e dissenso no debate parlamentar: o caso das comparações entre grupos estigmatizados. In: GONÇALVES-SEGUNDO, Paulo Roberto; ARAES, Célia Regina; CASTANHEIRA, Claudia; ISOLA-LANZONI, Gabriel; PENITENTE, Natalia; WEISS, Winola (orgs). Discurso e poder: teoria e análise. São Paulo: FFLCH/USP, 2020, p. 84-99. DOI: 10.11606/9786587621241 FERREIRA, Filipe Mantovani | 2020 | p. 84-99 100 O discurso relatado: entre seus potenciais linguísticos e os livros didáticos O discurso relatado: entre seus potenciais linguísticos e os livros didáticos Júlio César da Silva MENDES Universidade de São Paulo [email protected] Resumo: Neste texto, visamos a fazer um diagnóstico das sequências didáticas presentes nos livros aprovados pelo PNLD 2017 (Anos Finais do Ensino Fundamental) que tematizam o discurso relatado. Para isso, trazemos definições consolidadas pela Gramática Tradicional e as contrastamos com os conceitos linguísticos e discursivos, tanto para visualizarmos o potencial linguístico do discurso relatado quanto para analisarmos criticamente de que forma esses conhecimentos chegam (e se chegam) aos livros didáticos. Para as definições tradicionais, partimos das gramáticas de Bechara (2015) e de Cunha & Cintra (2016). Quanto à teoria linguística, apoiamo-nos principalmente na teoria Sistêmico-Funcional, de Halliday & Matthiessen (2014), tendo em vista seu foco na produção de significado textualmente ancorada. Nosso olhar será voltado, em especial, aos processos verbais e mentais; ao subsistema de ENGAJAMENTO, de Martin & White (2005); e também ao conceito da Evidencialidade, segundo Bednarek (2006), Carioca (2011) e Gonçalves-Segundo (no prelo), para delinearmos algumas das capacidades léxico-gramaticais, pragmáticas e semânticodiscursivas que o discurso relatado possui. Como resultado, mostramos que, nos livros didáticos, tem predominado uma abordagem mais focada na dimensão estrutural, apagando o potencial semântico-pragmático-discursivo e reduzindo, assim, as possibilidades de efeitos de sentido que poderiam ser abordadas no ensino-aprendizagem desta ferramenta léxicogramatical. Palavras-chave: Discurso Relatado; Análise de Livros Didáticos; Linguística Sistêmico-Funcional; Engajamento; Evidencialidade. Introdução Este trabalho busca esboçar algumas ideias aplicadas ao ensino de gramática a partir do tópico discurso relatado. Tomando como base a discussão contida em Gonçalves-Segundo (2017), vemos um ensino de língua portuguesa que passou de ferramenta do “bem falar”, cujo foco era a estrutura (vide o ensino baseado na análise morfossintática), para um letramento de gêneros discursivos, no qual tópicos gramaticais usualmente ficam subordinados a um determinado gênero ensinado na MENDES, Júlio César da Silva | 2020 | p. 100-123 101 Discurso e poder: teoria e análise sequência didática. Ou seja, o ensino de língua portuguesa nos últimos anos ora centrou-se no formalismo sem levar em conta o uso, ora centrou-se nos gêneros discursivos sem dar a atenção devida à estrutura gramatical. Contudo, não se pode dissociar esses dois domínios para uma compreensão e uso razoáveis da língua. Assim, como os livros didáticos têm abordado o discurso relatado no ensino básico? Eles mostram os potenciais linguísticos ou apenas o que a gramática tradicional conta? Quais potenciais linguísticos o discurso relatado possui? A partir dessas questões, tentaremos trazer uma visão sobre o ensino do discurso relatado e sobre teorias linguísticas com potencial de refinamento de tal abordagem nas próximas linhas. 1 Definindo o discurso relatado: o arcabouço teórico Considerando que nosso foco, neste texto, é delinear o status da abordagem do discurso relatado nos livros didáticos, precisamos levar em conta que tais materiais se ancoram na gramática tradicional, mas que, por vezes, podem inovar com conceitos do âmbito da linguística no ensino dessa tradição (haja vista o direcionamento para os gêneros discursivos atualmente vigente)1. Tendo isso em vista, fazemos a síntese das gramáticas de Bechara (2015) e de Cunha & Cintra (2016) para então discutirmos as possibilidades discursivas, semânticas e pragmáticas que a teoria linguística selecionada neste estudo possui. É importante estabelecer desde já que a literatura linguística e tradicional, que discutiremos a seguir, serve a dois propósitos. O primeiro é que ela atua como um suporte à metodologia de análise dos livros, afinal, procuramos rastrear não só o que há de tradicional e estrutural nesses materiais, mas também o quanto que eles tratam do discurso relatado no nível da significação, dos efeitos de sentido. Encontrar essas abordagens é reconhecer o quanto da nossa articulação teórica está presente nesses livros, independente se se reproduz sua nomenclatura teórica ou não. O segundo propósito desta articulação teórica é apontar para as possibilidades pragmáticas, semânticas e discursivas do nosso objeto que podem ser abordadas no ensino básico, ainda que, aqui, nos restrinjamos à análise dos materiais – e não à apresentação de uma proposta alternativa de sequência didática sobre o tema. 1.1 O discurso relatado segundo a gramática tradicional Por discurso relatado2, compreendemos as três formas estruturais (discursos direto, indireto e indireto livre) que as gramáticas tradicionais estabelecem para a inserção de uma fala alheia à voz do locutor. Tanto a gramática de Bechara (2015) quanto a de Cunha & Cintra (2016) aderem à tripartição mencionada acima, ainda que 1 Cf. discussão de Gonçalves-Segundo (2017). 2 Utilizaremos, neste trabalho, o termo ‘discurso relatado’, mas sem perder de vista a existência de outros nomes que poderão aparecer tanto nos materiais didáticos quanto nos textos teóricos (discurso citado, reportado, alheio, (do) outro, etc.) MENDES, Júlio César da Silva | 2020 | p. 100-123 102 O discurso relatado: entre seus potenciais linguísticos e os livros didáticos também pontuem definições particulares que permitem o entendimento do uso do discurso relatado por mais de uma via. Para Bechara (2015, pp. 499-500), o discurso relatado funciona como “normas textuais para nos referirmos no enunciado às palavras ou aos pensamentos de responsabilidade do nosso interlocutor”. Com o discurso direto, “produzimos ou supomos reproduzir fiel e textualmente as nossas palavras e as do nosso interlocutor, em diálogo, […] com a ajuda explícita ou não de verbos como disse […] (os chamados verbos dicendi). Às vezes, usam-se outros verbos de intenção mais descritiva, […] os sentiendi, que exprimem reação psicológica do personagem”. Na formulação do discurso indireto, “os verbos dicendi se inserem na oração principal de uma oração complexa tendo por subordinada as porções do enunciado que reproduzem as palavras próprias ou do nosso interlocutor. Introduzem-se pelo transpositor que, pela dubitativa se e pelos pronomes e advérbios de natureza pronominal quem, qual, onde, como, por que, quando, etc.”. Ainda sobre os discursos direto e indireto, Bechara (2015) compara-os, convertendo direto para indireto e apontando a mudança de tempo verbal: “se transpõe o presente é do discurso direto para o pretérito imperfeito do indireto”. Por fim, afirma que “[o discurso indireto livre] consiste em, conservando os enunciados próprios do nosso interlocutor, não fazer-lhe referência direta”, mostrando que “bastaria suprimir a forma verbal dizendo e construir dois períodos independentes com as duas partes restantes”. Ademais, considera que “uma particularidade do estilo indireto livre é a permanência das interrogações e exclamações da forma oracional originária, ao contrário do caráter declarativo do estilo indireto.” Já para Cunha & Cintra (2016, pp. 649-656), o discurso citado, em suas três formas, é nomeado também como “estruturas de reprodução de enunciações” e nos faz “conhecer os pensamentos e as palavras de personagens reais ou fictícios”. Para eles, o discurso direto é a forma pela qual “o personagem é chamado a apresentar as suas próprias palavras”. No plano formal “é marcado, geralmente, pela presença de verbos do tipo dizer, ponderar, sugerir, perguntar, indagar, responder e sinônimos”3 e na falta dos “verbos dicendi, cabe ao contexto e a recursos gráficos […] a função de indicar a fala da personagem”. Já no plano expressivo, consideram que o estilo direto torna a personagem “viva para o ouvinte, à maneira de uma cena teatral, em que o narrador desempenha a mera função de indicador das falas.” e observam que “a variedade de verbos introdutores oferecida pela língua portuguesa aos seus usuários permite a quem se sirva do DISCURSO DIRETO caracterizar, com precisão e colorido, a atitude da personagem cuja fala vai ser textualmente reproduzida.”, entendendo esta como causa para a preferência pelo estilo direto “nos atos diários de comunicação e nos estilos literários narrativos […]”. Por sua vez, o discurso indireto é quando o narrador “[contenta-se] em transmitir ao leitor apenas o seu conteúdo, sem nenhum respeito à forma linguística que teria sido realmente empregada”. No plano formal, apontam que o indireto 3 Sublinhado nosso. Note-se a falta de atenção para o peso da semântica dos verbos. MENDES, Júlio César da Silva | 2020 | p. 100-123 103 Discurso e poder: teoria e análise também se introduz por um verbo declarativo, estrutura-se em oração subordinada substantiva (esta podendo ser desenvolvida ou reduzida). No plano expressivo, os autores consideram “que o emprego do DISCURSO INDIRETO pressupõe um tipo de relato de caráter predominantemente informativo e intelectivo”; isso leva a primeira ou segunda pessoa a ser apresentada em terceira pessoa, o que causa “em geral um esvaecimento das realidades concretas de tempo e lugar a que as pessoas e coisas referidas estariam veiculadas.” Quanto ao discurso indireto livre, dizem que ele “aproxima narrador e personagem, dando-nos a impressão de que passam a falar em uníssono.” No plano formal, dizem comprovar que os enunciados em indireto livre “aparecem liberados de qualquer liame subordinativo, embora mantenham as transposições características do DISCURSO INDIRETO” e, ao mesmo tempo, “o INDIRETO LIVRE conserva as interrogações, as exclamações, as palavras e as frases do personagem na forma por que teriam sido realmente proferidas.” No plano expressivo, pontuam quatro valores que denominam ‘construção híbrida’: 1) evita o acúmulo de quês, tornando a narrativa mais fluente; 2) cria um elo psíquico entre narrador e personagem; 3) exige uma valorização do contexto para que seja compreendida a fala da personagem; e 4) combina-se o indireto livre com as outras duas formas para a confluência do enunciado, em vez de tratá-lo isoladamente. Em resumo, o discurso relatado nas modalidades direta e indireta, conforme a gramática tradicional, pode vir acompanhado de verbos introdutórios dicendi4 e sentiendi5. Primeiramente, nota-se a menção a esses verbos para indicar as estruturas sintáticas e morfológicas6 do relato; isto é, como a mudança no tipo de discurso leva à adaptação de diferentes tempos verbais e como há alguma variação quanto à ordem de palavras em um discurso relatado. Secundariamente, faz-se alguma menção sobre como esses verbos podem indicar o comportamento da personagem citada no momento “original” de enunciação. Não dizemos ‘personagem’ despropositadamente: ao consultarmos as duas gramáticas tradicionais, percebemos que as explanações sobre o funcionamento das formas de incorporação do discurso outro vêm sempre exemplificadas por excertos da esfera literária7. Assim, pode-se criar a ideia de que o uso e o ensino do discurso relatado não passam de mera normatização sobre como a voz do narrador deve trazer a fala das personagens, assemelhando-se mais a uma regra editorial e restringindo o entendimento de sua função em diversas outras esferas discursivas. No que diz respeito aos efeitos de sentido do discurso citado, vimos que Cunha & Cintra (2016) preocupam-se em tratar tanto da parte formal quanto da expressiva, mas criam uma compreensão mais passiva sobre o que é dito no discurso que foi relatado, pois dão a entender a forma direta como modo de acesso literal ao que o 4 Um exemplo de dicendi em discurso indireto prototípico: Joana contou que não podia ir à festa. 5 Um exemplo de sentiendi em discurso direto prototípico: “Não posso ir à festa!”, lamentou Joana. 6 Preocupam-se sintaticamente quando explicam as formas de se projetar o discurso citado e, morfologicamente, quando abordam as flexões verbais. Ambos os tipos são contrastados por meio da conversão entre as formas direta ↔ indireta. 7 Para ilustrar, o autor mais usado nas gramáticas foi Machado de Assis: em todos os exemplos do capítulo de Bechara (2015) e na maior parte de Cunha & Cintra (2016). MENDES, Júlio César da Silva | 2020 | p. 100-123 104 O discurso relatado: entre seus potenciais linguísticos e os livros didáticos outro teria dito; ao passo que Bechara (2015) abre espaço para alguma parcimônia ao dizer que o discurso relatado pode ser tanto o dito de fato quanto o supostamente dito (contudo, não propõe alguma forma de análise do discurso relatado capaz de verificar veracidade ou manipulação do conteúdo relatado). 1.2 O discurso relatado segundo a linguística: processos verbais e mentais, engajamento e evidencialidade Como vimos na perspectiva tradicional, há, como conjunto de verbos mais usuais para a projeção de um discurso alheio, os ditos dicendi, verbos representativos de dizeres. No âmbito do sistema de TRANSITIVIDADE da Linguística Sistêmico-Funcional (HALLIDAY & MATTHIESSEN, 2014; FUZER & CABRAL 2014), encontramos os processos verbais que cobrem o mesmo conjunto de verbos de elocução8. Na visão dessa teoria, o processo verbal nos permite entender a estrutura do discurso relatado da seguinte maneira: há o participante denominado como Dizente (isso é, o falante ou a fonte simbólica do que é relatado), que é tipicamente o sujeito do Processo Verbal (o verbo que projeta e indica a enunciação reportada), que, por sua vez, introduz a Verbiagem (o conteúdo do que é dito, a fala relatada). Note-se que um processo verbal não precisa ser realizado necessariamente na ordem que apresentamos aqui. Além dos três componentes básicos mencionados acima (verbiagem, dizente e processo verbal), é possível acrescentar à estrutura do discurso relatado o Receptor (a quem é dirigida a verbiagem), e/ou Alvo (uma entidade a ser atingida pelo processo de dizer). Eis alguns exemplos que ilustram essa forma de análise: Sessions disse ao jornal que ele estava trabalhando para criar um “diálogo entre Dizente Processo verbal Receptor as partes que estão tentando progredir”.9 Verbiagem Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/12/advogado-de-trumpnegociou-com-maduro-saida-de-ditador.shtml Cientistas Dizente anunciam Processo verbal a descoberta do material mais resistente do universo Verbiagem Fonte: https://socientifica.com.br/2019/12/29/material-mais-resistente-do-universo/ Bolsonaro Dizente ameaçou Processo Verbal o STF Alvo Fonte: https://twitter.com/gomesdacosta_/status/1054898447885762560 Fuzer & Cabral (2014, p.73) apontam que quando há um alvo numa oração verbal, dificilmente é feita a projeção de uma outra oração; ou seja, nem todo processo verbal gera um discurso relatado. Com isso, vemos que algumas orações verbais não necessariamente fazem o relato de um discurso alheio, que seria a oração projetada. 8 Os processos verbais de nosso arcabouço teórico são referidos nos materiais didáticos como verbos de elocução, de dizer ou dicendi. 9 Na Linguística Sistêmico-Funcional, quando o conteúdo da fala é uma oração encaixada, é comum que se utilize o termo Locução ou Citação, mas, por ser uma distinção apenas de ordem formal, não a colocaremos em caso neste trabalho. MENDES, Júlio César da Silva | 2020 | p. 100-123 105 Discurso e poder: teoria e análise Notamos, pois, que o assunto de processos verbais não encerra nem se limita ao discurso relatado da gramática tradicional. Tanto não se encerram que devemos ressaltar que as gramáticas consultadas elencam não somente verbos dicendi como forma de indicar o discurso citado, mas também os verbos sentiendi. Na Linguística Sistêmico-Funcional, fazem fronteira com os processos verbais os processos mentais; e da lista que Fuzer & Cabral (2014, p. 58) elencam como processos mentais, os verbos pertencentes aos subgrupos dos verbos mentais cognitivos e desiderativos parecem flertar melhor com a estrutura do discurso relatado, uma vez que têm a semântica dos sentiendi, podendo ditar o estado psicológico e pensamento dos participantes da oração; bem como sendo capazes de projetar oração assim como os processos verbais o podem. Portanto, processos mentais (cognitivos e desiderativos) funcionam também dentro da estrutura do discurso relatado.10 “Estou certo”, achou (mental cognitivo) o chefe. Cardoso determinou (mental desiderativo) que parassem de fazer barulho. Fonte: elaboração própria. Ainda numa perspectiva léxico-gramatical descrita na gramática SistêmicoFuncional, devemos assinalar que esta mesma teoria parte do pressuposto de que a língua consiste em um potencial de significação e procura analisar e entender por que certas escolhas são feitas pelo falante em detrimento de outras possibilidades fornecidas pelo sistema. Portanto, mantendo-nos dentro do viés dos processos verbais e mentais, já podemos perceber como se torna problemático tratar dos verbos de elocução e de sentir como simples sinônimos que podem ser livremente intercambiados na projeção do discurso. Pelo contrário, estamos olhando para uma estrutura léxico-gramatical que se reflete no nível semântico; mudar livremente o verbo talvez não tenha peso à estrutura sintática, porém causa diferenças semânticas relevantes. E não é só pela seleção do verbo que percebemos diferentes efeitos de sentido ou da relação do produtor textual com o conteúdo do relato. O discurso relatado, como vimos por ora, é tratado majoritariamente dentro de sequências narrativas. Não ignoramos a crítica literária que trouxe como critério analítico o olhar com suspeita para o narrador. Contudo, é a narrativa literária um simulacro de uma realidade e, geralmente, nela é esperado de o discurso relatado ser o real momento de expressão das personagens nessa realidade construída. Quando saímos da esfera literária para a jornalística, a política, a acadêmica, e mesmo a cotidiana, devemos considerar que citar um discurso alheio pode ter diversos outros usos de efeitos de sentido. Voltando então à teoria Sistêmico-Funcional, vislumbramos que o discurso relatado pode ser encontrado em distintos contextos de situação e de cultura, que, por sua vez, se associam a diferentes usos do discurso relatado a 10 A teoria Sistêmico-Funcional dará outros nomes à estrutura quando analisa um processo mental. Experienciador entraria no lugar do dizente, e (Hiper)fenômeno no lugar de verbiagem. Contudo, cremos que, para o contexto do ensino básico, o importante é apontar para a semântica desses diferentes verbos e para sua capacidade de participar do discurso relatado. MENDES, Júlio César da Silva | 2020 | p. 100-123 106 O discurso relatado: entre seus potenciais linguísticos e os livros didáticos depender das intenções e ideologias do produtor textual na manipulação e na evocação de uma oração atribuída a outrem. Logo, o discurso relatado é uma estrutura para trazer a fala alheia a uma determinada enunciação, mas não somente isso. As escolhas nas formas de citar um discurso podem expor também algum nível de engajamento, favorável ou opositor, aberto ou fechado, ao discurso alheio evocado. Emergente da Linguística SistêmicoFuncional, o sistema de AVALIATIVIDADE, desenvolvido por Martin & White (2005), nos traz mais olhares possíveis sobre o uso do discurso relatado. Aqui nos concentramos especificamente no subsistema de ENGAJAMENTO. Sua estrutura pode não só nos ilustrar como o dizente se comportou em sua enunciação reportada, mas também qual relação o produtor textual estabelece em relação ao que está reportando. Notamos isso a partir dos movimentos de expansão dialógica (quando o produtor abre espaço para outros enunciados possíveis, seja para reconhecer ou para se distanciar deste) e de contração dialógica (quando, por exemplo, se endossa a fala ou o pensamento do outro e, junto a essa voz, o produtor textual fecha-se para outras possibilidades de perspectivação). Entre a expansão e a contração dialógica, há, respectivamente, um continuum entre a mínima e a máxima responsabilidade assumida pelo produtor textual. Ninin & Barbara (2013, p.142), por exemplo, discutem o ENGAJAMENTO em trabalhos do ensino superior, observando “que o aluno da graduação marca uma posição de pouca responsabilidade em relação às proposições convidadas ao texto”, o que contraria a expectativa de que alunos nesse nível de ensino não reproduzam simplesmente a bibliografia do curso, mas que a coloquem em debate. Ora, considerando que o discurso relatado é prototipicamente um caso de heteroglossia e que, portanto, evidencia engajamento, notamos, pelo trabalho de Ninin & Barbara (2013), como o Engajamento pode ser produtivo especialmente (mas não exclusivamente) em textos acadêmicos. É possível transpor esse conhecimento ao ensino básico, quando alunos têm contato com os primeiros trabalhos escolares que se aproximam da estrutura de artigos, resenhas, dentre outros gêneros acadêmicos e científicos. Na esfera acadêmica, pudemos perceber pelo ENGAJAMENTO que o uso de uma fala reportada pode tanto servir como uma voz de autoridade, a quem se atribui a responsabilidade, quanto esta pode ser posta em discussão e debate. Mas podemos pensar na esfera jornalística, na qual a abertura a diversas vozes constitui não apenas um imperativo ético do trabalho do jornalista, como também permite a própria produção e circulação de notícias, uma vez que vários relatos jornalísticos são pautados nos dizeres alheios. Por último, queremos tratar da evidencialidade. Num sentido estrito, conforme estabelece Aikhenvald (2004), a língua portuguesa, bem como todas as línguas indoeuropeias (até onde sabemos), não possuiria tal fenômeno, uma vez que não há marcas morfológicas orientadas à sua realização. Porém, interessamo-nos por uma definição aberta de tal componente. Bednarek (2006) e Gonçalves-Segundo (no prelo) inserem a evidencialidade em uma categoria mais ampla, também chamada de MENDES, Júlio César da Silva | 2020 | p. 100-123 107 Discurso e poder: teoria e análise posicionamento epistêmico (epistemological positioning). Carioca (2011) destaca aspectos discursivamente relevantes no tratamento da evidencialidade: pelas estruturas léxico-gramaticais que a instanciam, vemos a fonte da informação (se emana do próprio enunciador, se vem de uma fonte externa definida ou não, ou se ainda é de domínio comum, como o conhecimento popular), o acesso evidencial à informação (se esse conhecimento foi acessado diretamente, relativamente direto ou indiretamente) e a natureza evidencial da informação (pode ser subjetiva, vir da experiência, ser inferida ou ser relatada). Já Gonçalves-Segundo (no prelo) acrescenta a evidencialidade ao posicionamento epistêmico, trazendo outros tópicos de análise, como o grau de comprometimento sobre a proposição, num continuum que vai do realis ao irrealis (da certeza à impossibilidade), o grau de responsabilidade (pessoal, compartilhado, institucional, opaco ou delegado) e o grau de abertura dialógica (onde entra o engajamento, já apontado aqui). Toda a teoria que discutimos não é exclusiva ao discurso relatado, mas mostra potenciais que esta ferramenta da gramática tradicional possui para além de uma normatização de textos literários. 2 Olhar os livros didáticos: metodologia de seleção e análise Para o levantamento do corpus, optamos por selecionar livros que, entre si, tivessem proximidade em relação ao ano de ensino e que estivessem atualmente em uso no ensino público brasileiro. Isto nos levou a escolher entre materiais ou do Ensino Médio ou do Ensino Fundamental: Anos Finais11. Devido ao número maior de sequências didáticas afins ao nosso objeto, optamos por fixar nosso corpus no Ensino Fundamental, PNLD 2017. Assim, na seção seguinte faremos o diagnóstico destes oito livros didáticos: dois volumes de Português linguagens, 8º e 9º anos, de William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães (2015); um volume de Singular & plural, 7º ano, de Laura de Figueiredo, Marisa Balthasar e Shirley Goulart (2015); dois volumes de Teláris, 7º e 8º anos, de Ana Trinconi Borgatto, Terezinha Bertin e Vera Marchezi (2015); dois volumes de Universos, 6º e 7º anos, de Camila Sequetto Pereira, Fernanda Pinheiro Barros e Luciana Mariz (2015); e um volume de Para viver juntos, 7º ano, organizado por Cibele Lopresti Costa (2015). A análise dos livros didáticos foi realizada em três etapas: (1) partimos de um olhar geral para a sequência didática desenvolvida em cada livro, analisando o grau de centralidade ou de independência do discurso relatado enquanto objeto gramatical a ser ensinado; além disso, observamos quais gêneros e esferas estão mais ligadas ao discurso relatado nos livros; (2) observamos as explicações teóricas de cada obra a fim de entender suas concepções acerca do que é o discurso relatado e qual o seu alcance enquanto gerador de sentido no texto; o objetivo desta etapa é verificar quais recortes conceituais os materiais escolhem trazer para apresentar o conteúdo; e, por fim, (3) analisamos os modos pelos quais os exercícios fixam o conteúdo discutido. 11 Anteriormente chamado Ensino Fundamental II. MENDES, Júlio César da Silva | 2020 | p. 100-123 108 O discurso relatado: entre seus potenciais linguísticos e os livros didáticos Com isso, objetivamos chegar a um panorama da atual situação do discurso relatado nos livros didáticos para o ensino fundamental: anos finais. 3 O discurso relatado segundo os livros didáticos: etapas de análise 3.1 O lugar do discurso relatado no ensino: das esferas discursivas 3.1.1 Português linguagens: 8º e 9º anos A divisão em dois volumes neste material é feita para apresentar primeiramente os discursos direto e indireto no 8º ano em dois capítulos, e no 9º ano é ensinado o indireto livre. No primeiro livro, quando são ensinados apenas os discursos direto e indireto (CEREJA & MAGALHÃES, 2015a, pp. 17-27), encontramos um capítulo cujo contexto faz referências principais a textos narrativos, dando destaque à leitura e à produção do texto teatral como antecessor do ensino dos discursos relatados. Em seguida, o material insere uma propaganda, uma tira e uma menção ao discurso relatado no texto jornalístico em um exercício posterior. O segundo capítulo (CEREJA & MAGALHÃES, 2015a, pp. 41-46) insere o contexto teatral para os discursos direto e indireto. Já no segundo livro (CEREJA & MAGALHÃES, 2015b, pp. 74-78), o conteúdo restringe o ensino do discurso indireto livre para o contexto do ensino do gênero conto, onde revisa os conceitos de discurso direto e indireto e introduz, por fim, o indireto livre. 3.1.2 Singular & plural: 7º ano Inserido na compreensão e produção de reportagem, o material (FIGUEIREDO, BALTHASAR & GOULART, 2015, p. 77) não trata do discurso relatado em todos os seus aspectos, mas tem como foco abordar brevemente os verbos de elocução para se inserir um discurso alheio. 3.1.3 Teláris: 7º e 8º anos Em ambos os livros, encontramos o ensino de discurso relatado é colocado dentro do contexto de sequências narrativas. No sétimo ano, o livro (BORGATTO, BERTIN & MARCHEZI, 2015a, pp. 229-232) apresenta brevemente o discurso relatado como a forma de se representar o diálogo em narrativa. No livro do oitavo ano (BORGATTO, BERTIN & MARCHEZI, 2015b, pp. 57-64), especificamente, ensina-se o gênero crônica, os elementos do processo narrativo e a apresentação das sequências textuais narrativa, descritiva e conversacional (servindo esta última como gancho para a introdução da matéria aqui focada). MENDES, Júlio César da Silva | 2020 | p. 100-123 109 Discurso e poder: teoria e análise 3.1.4 Universos: 6º e 7º anos Nesta coleção, o livro do sexto ano divide os discursos direto e indireto em dois tempos. O primeiro capítulo (PEREIRA, BARROS & MARIZ, 2015a, pp. 16-24) a tratar deles situa o discurso alheio em narrativas, ao passo que, no capítulo seguinte (PEREIRA, BARROS & MARIZ, 2015a, pp. 66-70), é apresentado o mesmo conteúdo em notícias, com atenção aos verbos de dizer. O segundo livro (PEREIRA, BARROS & MARIZ, 2015b, pp. 124-133), como no primeiro capítulo do primeiro livro, também busca tratar do discurso citado em termos narrativos, e, como no segundo capítulo do livro anterior, explora os ‘modos de dizer’. 3.1.5 Para viver juntos: 7º ano O material (COSTA, 2015, pp. 126-135) insere a apresentação dos verbos de elocução no âmbito do gênero reportagem para depois discuti-los mais detalhadamente em uma crônica. 3.1.6 Considerações parciais Dessa primeira etapa de análise, entendemos que o ensino do discurso relatado mantém um forte vínculo com a introdução e a produção de textos na esfera literária e, secundariamente, na esfera jornalística. Como era de se esperar, a predominância do discurso relatado junto às sequências narrativas pode ser justificada pelo tratamento que as gramáticas tradicionais dão ao restringi-lo a exemplos literários; o que difere entre os livros é o gênero selecionado, que varia entre conto, crônica e texto dramático, ao passo que as gramáticas geralmente apresentam-no junto a romances. Escapando um pouco a essa tradição, encontramos casos em que se exploram a reportagem e a notícia, e, brevemente em exercícios, uma tira e uma propaganda. Pensando que um conto, por exemplo, faz a citação de uma personagem para ilustrar o que de fato teria dito no mundo dessa narrativa (ainda assim, havendo na esfera literária o conceito do narrador não confiável), enquanto uma reportagem faria o resgate ou a emulação do que já foi dito, notamos como os livros pouco exploram as diferenças possíveis que o discurso relatado apresenta ao mudar seu contexto situacional e cultural. A aparição dessas duas esferas distintas já poderia servir de pontapé para se discutir no ensino a diferença de sentido do relato de um texto para o outro, mas vimos que predomina nos livros tratar do discurso relatado quase que exclusivamente como ferramenta de uma esfera específica, não como tópico gramatical à parte e que está presente em diversos gêneros de distintas esferas. 3.2 Concepção teórica do discurso relatado 3.2.1 Português linguagens: 8º e 9º anos MENDES, Júlio César da Silva | 2020 | p. 100-123 110 O discurso relatado: entre seus potenciais linguísticos e os livros didáticos No livro do oitavo ano, antes de serem introduzido os dois primeiros tipos de discurso relatado, é feita uma definição do que é o discurso. Nele, o discurso é definido como uma atividade comunicativa geradora de sentido por estar contextualmente situado diante de seus interlocutores e por suas finalidades. Assim, para adentrar à definição dos discursos citados, é dada a noção de que o discurso outro não é uma mímica de outra fala, mas que a todo tempo estamos produzindo e recebendo discursos que se emaranham numa rede comunicativa. Após toda a exposição teórica do que é um discurso relatado e o que é citá-lo, o material expõe casos do discurso direto e indireto dentro do contexto narrativo, fazendo enfim a definição dos discursos direto e indireto limitada ao âmbito do texto verbal. Definições são mantidas ao modo da gramática tradicional: o discurso direto traz uma reprodução integral e, portanto, fiel de uma fala outra no âmbito da narrativa, sendo tipograficamente marcado por aspas ou travessão; ao passo que o indireto recebe algumas alterações do narrador, em uma discussão que as restringe à ordem gramatical, em termos de adequação pronominal e temporal. Um último ponto é colocado sobre os discursos direto e indireto: da finalidade de escolha sobre qual dos dois usar. Segundo os autores, o direto tornaria a narração mais dinâmica e interessante, e o indireto seria preferido na oralidade por ser mais econômico. O segundo capítulo deste livro a abordar o tema retorna ao discurso relatado a fim de expor mais detalhes das diferenças gramaticais entre os dois discursos. Ao nono ano do fundamental, é feita a continuidade do ensino dos discursos relatados de forma mais breve. Neste segundo livro, é revisto o conceito dos dois primeiros discursos relatados (direto e indireto) e se acrescenta então o indireto livre, que, para os autores, é basicamente um discurso indireto sem o encaixe de orações via conjunção que ou se e que traz tanto a fala quanto o pensamento da personagem misturados aos enunciados do narrador. 3.2.2 Singular & plural: 7º ano Depois de ser exposto ao gênero reportagem, o aluno é instigado a perceber o uso dos verbos de elocução via exercício. Não é feita a apresentação total do discurso relatado nem de seus três tipos; são discutidos os verbos que servem para introduzi-lo, e se pontua a diferença de sentido causada pela seleção de diferentes verbos de elocução. 3.2.3 Teláris: 7º e 8º anos No sétimo ano, o livro trabalha com os discursos direto e indireto, a fim de apresentar duas possibilidades de se representar a fala de alguém; também introduz os verbos de dizer. MENDES, Júlio César da Silva | 2020 | p. 100-123 111 Discurso e poder: teoria e análise Para o oitavo ano, o ensino do que é o discurso relatado vem associado à ideia de citação, tratando das três formas de discurso citado no mesmo capítulo. O material inicia pelo discurso direto e o define como a reprodução literal de uma fala, sendo tipograficamente marcado por aspas ou travessão, e sinalizado por um verbo de dizer. O discurso indireto é explicado como o representar da fala outra à própria maneira (espécie de paráfrase, ainda que não recebendo essa nomenclatura no livro), que é sinalizada por verbo de dizer acompanhado de conjunção e, contrastado com o discurso direto, não é indicado por aspas ou travessão. Por último, o discurso indireto livre é abordado como uma fala do outro que não traz fronteira clara entre o discurso do narrador e o discurso alheio, uma interpretação mais aberta do indireto livre, mas que não o resume a uma estrutura de discurso indireto sem conjunção. 3.2.4 Universos: 6º e 7º anos No primeiro livro, os discursos direto e indireto são apresentados num primeiro capítulo como diferentes formas de o narrador registrar a fala de uma personagem, sendo o direto a forma sem interrupções da fala da personagem. No segundo capítulo do sexto ano, mais algumas pontuações são feitas quanto ao discurso direto e à escolha do verbo que introduz o relato na indução da interpretação do leitor. Ao sétimo ano, o material retoma o uso do discurso relatado, agora nas narrativas, mas o mantendo nas mesmas definições resumidas apresentadas ao sexto ano. 3.2.5 Para viver juntos: 7º ano O material não demonstra intenção de abordar a estrutura do discurso relatado propriamente, mas sim apresentar os verbos de elocução como indicadores da intencionalidade ou tom de voz do entrevistado. 3.2.6 Considerações parciais Se, na primeira etapa desta análise, vimos que os livros pouco variam quando aliam e associam um número limitado de esferas que se servem do discurso relatado, nesta segunda parte notamos um pouco mais de variação sobre a definição teórica que os autores optam por apresentar. Partindo dos materiais mais simples e concisos, encontramos casos em que se optou por tratar apenas dos verbos de elocução. Com essa abordagem, ganha-se espaço para salientar a importância da escolha do verbo que projeta o discurso relatado, uma vez que mudar o verbo pode mudar a percepção sobre o MENDES, Júlio César da Silva | 2020 | p. 100-123 112 O discurso relatado: entre seus potenciais linguísticos e os livros didáticos comportamento de quem é citado; mas é nesses casos que se sacrifica a exposição das diferentes estruturas gramaticais possíveis ao discurso relatado. Há outras abordagens que, ainda mantendo simplicidade, optam por expor e comparar as estruturas do direto e do indireto, excluindo o indireto livre. Por um lado, nessas abordagens, os livros parecem encontrar algum espaço para tratar da semântica dos verbos de elocução. Contudo, mantêm a ideia simplificada de o discurso direto ser a reprodução literal e não interferida da personagem, enquanto o indireto se aproximaria dos termos de uma paráfrase. Encontramos, também, livros que fazem mais detalhamentos entre os três discursos. Com isso, conseguem abordar distinções tipográficas e gramaticais entre discurso direto e indireto (travessão/aspas versus conjunção) e mencionar a existência dos verbos de dizer. Entretanto, mantêm ainda a distinção ‘literal está para direto assim como paráfrase está para indireto’ e nada tratam da semântica dos verbos de dizer (note-se a ausência dos verbos de sentir). Nos livros que se aprofundam no contraste entre as formas de expressão dos discursos direto e indireto, encontramos duas definições diferentes para o discurso indireto livre: um livro o tratará pela sua estrutura, simplificando-o à semelhança de um discurso indireto mas sem conjunção; o outro o tratará como o momento em que se misturam pensamentos da personagem e do narrador, mas sem entrar em maiores detalhes acerca de sua estrutura. Todos os pontos que os livros didáticos escolhem para expor o discurso relatado são fundamentais para a compreensão inicial do aluno acerca de seu funcionamento e estrutura. Entretanto, ou apresentam bem as diferenças estruturais entre os três tipos de discurso relatado e deixam de refletir acerca dos efeitos de sentido, ou tangenciam a função que um verbo de elocução pode ter a depender de sua semântica e deixam suas estruturas serem apreendidas de maneira demasiado intuitiva. Acreditamos ser fundamental uma compreensão global do discurso relatado, em que sejam exploradas suas estruturas gramaticais e suas diversas possibilidades de uso e de efeitos de sentido a partir de ferramentas semântico-discursivas. 3.3 Dos exercícios de fixação de conteúdo 3.3.1 Português linguagens: 8º e 9º anos Ao oitavo ano, após exposição teórica do discurso relatado, o livro traz quatro questões iniciais: um exercício de identificação dos sinais que indicam as falas, um exercício que propõe mudar livremente duas falas, um terceiro que não trata exatamente do discurso relatado, mas de interdiscurso na fala da personagem, e um exercício de retextualização. Na página seguinte, encontramos dois exercícios: um de identificação e outro de conversão de discurso indireto para direto. MENDES, Júlio César da Silva | 2020 | p. 100-123 113 Discurso e poder: teoria e análise Figura 1. Página de Português linguagens: 8º ano (1) Fonte: Cereja (2015a, p. 27) O capítulo seguinte do oitavo ano retoma o ensino dos discursos direto e indireto com exercícios que induzirão o aluno a encaminhar seu olhar para mais diferenças estruturais entre eles. MENDES, Júlio César da Silva | 2020 | p. 100-123 114 O discurso relatado: entre seus potenciais linguísticos e os livros didáticos Figura 2. Página de Português linguagens: 8º ano (2) Fonte: Cereja (2015a, p. 46) E, em sequência, faz quatro exercícios após essa segunda exposição teórica (cf. imagens da página 46, acima). O primeiro exercício é de interpretação, mas não se liga à questão gramatical. O segundo e o terceiro são exercícios de manipulação do direto para o indireto e do indireto para o direto, respectivamente. O quarto exercício é uma reescrita, novamente de conversão do indireto para o direto. O livro do nono ano mantém o padrão de fazer exercícios indutivos e, depois, colocar um exercício explícito quanto ao assunto do discurso relatado em estudo. Há dois exercícios iniciais: o primeiro serve de revisão do conteúdo passado, pois subdivide-se entre identificação de direto ou indireto e de sinais de pontuação e conversão de discurso; e o segundo divide-se em algumas questões de identificação que servem de gancho para o indireto livre. MENDES, Júlio César da Silva | 2020 | p. 100-123 115 Discurso e poder: teoria e análise Figura 3. Página de Português linguagens: 9º ano (1) Fonte: Cereja (2015b, p. 77) Os exercícios que se voltam ao indireto livre se resumem a identificá-lo em excertos de narrativas. Figura 4. Página de Português linguagens: 9º ano (2) Fonte: Cereja (2015b, p. 78) 3.3.2 Singular plural: 7º ano Relembramos que, neste livro, o trabalho resume-se aos verbos de elocução. Encontramos duas questões direcionadas no mesmo momento de apresentação desses verbos: um de identificação dos verbos, e outro de reflexão sobre o uso da mesma forma verbal, trabalhando-se com sua semântica, ou seja, com inferências relativas a efeitos distintos de sentido depreendidos a partir de alternativas verbais. MENDES, Júlio César da Silva | 2020 | p. 100-123 116 O discurso relatado: entre seus potenciais linguísticos e os livros didáticos Figura 5. Página de Singular plural: 7º ano (1) Fonte: Figueiredo; Balthasar; Goulart (2015, p. 77) Ainda na mesma página, os autores seguem com um exercício que possui dois trechos com a ocorrência de alguns discursos relatados. Contudo, não abordam especificamente questões sobre sua estrutura e uso, mas estratégias para se evitar repetição de palavras. O que vemos, portanto, é a utilização de uma ocorrência de discurso relatado para trabalhar com outro processo linguístico-textual – a coesão –, deixando de lado as especificidades semânticas, pragmáticas ou discursivas do primeiro. 3.3.3 Teláris: 7º e 8º anos No sétimo ano, encontramos um primeiro exercício intitulado O diálogo na narrativa, mas este trabalha com interpretação de texto sem tratar de induzir o aluno a olhar para a estrutura do relato. Na página seguinte, há uma primeira proposta de conversão do discurso indireto para o direto. Adiante, ocorre mais um exercício de conversão do direto para o indireto. No oitavo ano, após distinguir mais os três discursos, o livro inicia pela identificação dos excertos, mas deixando de fora o indireto livre. MENDES, Júlio César da Silva | 2020 | p. 100-123 117 Discurso e poder: teoria e análise Por fim, o livro dá mais explicações sobre as diferenças gramaticais entre indireto e direto e fecha sua sequência com dois exercícios de conversão dos discursos direto para indireto e vice-versa. 3.3.4 Universos: 6º e 7º anos O livro do sexto ano, como vimos, apresenta os discursos direto e indireto em dois capítulos. O livro vai conduzindo a interpretação de texto dos alunos por meio de questões que apontam para elementos gramaticais pertinentes ao texto trabalhado. Quanto aos discursos direto e indireto, há duas questões: uma é um exercício de releitura subdividido entre identificar fala, identificar elemento gráfico que introduz a fala, e pensar em outras formas de pontuação que podem indicar os relatos. Uma vez abordados os elementos do discurso direto, a questão seguinte (5) pede ao aluno para converter um indireto para direto, mas sem dar maiores detalhes acerca da estrutura do indireto. Figura 6. Página de Universos: 6º ano (1) Fonte: Pereira; Barros; Mariz (2015a, p. 23) MENDES, Júlio César da Silva | 2020 | p. 100-123 118 O discurso relatado: entre seus potenciais linguísticos e os livros didáticos A página seguinte faz algumas avaliações do que se ensinou. A questão dois desta página busca confirmar a pontuação que indica discurso indireto e, como segundo subitem, reescreve um trecho, convertendo-o para indireto, questionando qual das versões parece mais confiável. Trata-se de uma questão interessante para levar o aluno a pensar nos diferentes efeitos de sentido dos discursos relatados, mas que poderia ter sido mais bem estabelecida se outro termo fosse escolhido em vez de ‘confiável’ (o uso deste termo acaba levando àquela ideia do discurso direto como mais confiável por ser a reprodução fiel da fala). Como a intenção do livro é que a fala da pesquisadora possa parecer mais verossímil quando é citada ‘sem modificação’, as autoras optam por distinguir discurso direto de indireto, no contexto de voz de autoridade, por níveis de confiabilidade. Figura 7. Página de Universos: 6º ano (2) Fonte: Pereira; Barros; Mariz (2015a, p. 24) A obra ainda propõe um exercício em que são feitas algumas afirmações e, com isso, pede que se aponte quais delas são verdadeiras ou falsas. Como esta primeira apresentação do discurso relatado é bem breve, notamos que essa última atividade pode servir para sanar algumas questões de semântica e de uso dos discursos direto e indireto. Ainda no sexto ano, alguns capítulos adiante, encontramos um exercício que retoma o discurso direto e trabalha com a função semântica dos diferentes verbos de dizer. A proposta não é exaustiva e, ao mesmo tempo, leva a não tratar todos os verbos de dizer como sinônimos, refletindo no relato e na imagem da cena. MENDES, Júlio César da Silva | 2020 | p. 100-123 119 Discurso e poder: teoria e análise Figura 8. Página de Universos: 6º ano (3) Fonte: Pereira; Barros; Mariz (2015a) Adiante, o livro traz ainda um último exercício relacionado, pedindo a troca do verbo de dizer por outro mais adequado para descrever a situação no texto. No sétimo ano, o livro retorna aos discursos direto e indireto com um exercício de três subitens: o primeiro leva a afirmação da predominância do indireto em contos; o segundo é de interpretação da história trabalhada, apenas identificando a predominância de qual personagem mais fala; o último traz questões interpretativas interessantes quando trata da atribuição de discurso a outra pessoa e sua função no texto, mas nomeia de indireto o que, tradicionalmente, seria um discurso indireto livre (que sequer é apresentado pelo material). Figura 9. Página de Universos: 7º ano (1) Fonte: Pereira; Barros; Mariz (2015b) 3.3.5 Para viver juntos: 7º ano Como este livro foca apenas nos verbos de elocução, notamos uma sequência de exercícios voltados a trabalhar com a semântica dos verbos de dizer. A primeira MENDES, Júlio César da Silva | 2020 | p. 100-123 120 O discurso relatado: entre seus potenciais linguísticos e os livros didáticos questão leva a pensar sobre a imagem que o verbo gaguejei cria na narrativa. O segundo exercício novamente leva à reflexão de outro verbo de dizer e pede sugestões de outros verbos para criar outra percepção sobre a fala reportada. O terceiro exercício contextualiza o caráter psicológico das personagens em duas versões e, com isso, pede os verbos de dizer de um diálogo pré-montado mais adequados a cada caso. Neste caso, como já vínhamos expondo, encontramos um material que explora mais as questões semânticas do verbo de dizer e das manipulações do discurso do outro, e em detrimento disso, notamos a falta de trabalho sobre as questões estruturais dos discursos direto, indireto e indireto livre. 3.3.6 Considerações parciais Os exercícios apresentados pelos livros mostram estar em consonância com o foco que escolhem dar em suas concepções teóricas para o discurso relatado. Nos materiais que se dedicaram a explorar mais das formulações estruturais entre discurso direto e indireto, encontramos exercícios de identificação e de conversão de uma forma a outra como os mais abundantes; enquanto nos livros cujo foco foram os verbos de elocução, predominou trabalhar-se com identificação, conversão e reflexão acerca dos sentidos promovidos por esses verbos. Detalhando melhor, compreendemos os exercícios em três grandes grupos: de identificação, de conversão (ou manipulação) e de reflexão acerca dos efeitos de sentido do e no texto, que por sua vez podem levar a olhar para a questão da pontuação no discurso direto, das diferenças morfossintáticas entre direto e indireto, dos verbos que projetam o discurso relatado e de suas condições semânticas no texto. Exercícios de identificação são os mais rasos, porém é necessário levar em conta que eles servem como primeiro passo ao conceito gramatical do relato, por isso alguns livros optam por colocá-los em questões indutivas anteriores à exposição teórica; já outros quase se resumem a eles como forma de fixação do conteúdo. A conversão pode ser um segundo passo, pois demanda que o aluno domine a identificação dos tipos diferentes de relato e serve para fixar as noções da estrutura gramatical; a manipulação ainda apareceu como modo de sistematizar os verbos de dizer, mas abrindo mão das estruturas gramaticais. Por fim, os exercícios de reflexão ora incidiam em afirmações do tipo ‘discurso direto é comum à esfera/ao gênero X, o indireto é comum a Y’ (o que levava ao senso comum do direto e do indireto quanto ao primeiro ser mais ‘fiel’ ao relato originalmente proferido), ora davam pontapé ao nosso interesse em olhar com mais atenção para a imagem que se cria do relato do outro (contudo, nesses casos, resumiam-se a analisar apenas o verbo e ainda os restringindo aos dicendi, ficando de fora os sentiendi). 3.4 Síntese dos resultados Em síntese, podemos desenhar o seguinte quadro quanto à abordagem do discurso relatado conforme os livros didáticos do PNLD 2017: MENDES, Júlio César da Silva | 2020 | p. 100-123 121 Discurso e poder: teoria e análise Quadro 1. Resumo da análise Esfera discursiva predominante Concepção teórica Exercícios Literária Narrativas; estrutura do direto e do indireto Identificação, conversão e interpretação de ‘confiabilidade’ Universos 7º Jornalística Verbos de elocução; depoimento como credibilidade; estrutura do direto e do indireto Da predominância do tipo de discurso (direto ou indireto) Para viver juntos 7º Jornalística Verbos de elocução Singular & plural 7º Jornalística Verbos de elocução; direto e indireto não explicitados Teláris 7º Literária Teláris 8º Literária Livros Universos 6º Português linguagens 8º Literária Português linguagens 9º Literária Diálogo em narrativa; estrutura do direto e do indireto Sequências narrativa e conversacional; estrutura do direto, indireto e indireto livre Estrutura do direto e do indireto; definição geral de ‘discurso’ Estrutura do direto, indireto e indireto livre Manipulação e reflexão sobre a escolha dos dicendi Identificação e reflexão sobre efeitos de sentido dos dicendi Conversão Identificação sem presença do indireto livre Identificação, conversão e retextualização Identificação e conversão Fonte: elaboração própria. Considerações finais Repensar o ensino de gramática na educação básica à luz de teorias linguísticas é, diferente de um simples enxerto de nomenclatura teórica nos livros didáticos, debruçar-se sobre reflexões acerca do funcionamento da linguagem e buscar transpor tal consciência para o âmbito escolar, a fim de colocar à disposição de alunos o conhecimento das ferramentas léxico-gramaticais enquanto forma de ação no mundo. Não esperávamos que os materiais didáticos trouxessem explicitamente um ensino de linguística nos anos escolares, mas uma vez sabido de todo o potencial linguístico que o discurso relatado carrega e tomando o ideal do ensino gramatical centrado no nível textual, esperávamos propostas didáticas para além das estruturas, o que, por sua vez, não significa abandonar essa forma de abordagem completamente. Conforme demonstramos, encontramos livros que consideramos muito bons em mostrar a estrutura do discurso relatado, assim como alguns eram eficientes em mostrar os efeitos de sentido dos processos verbais; mas ambos abriam mão de mostrar a outra face da moeda. Um ensino de gramática mais efetivo, cremos, depende da articulação MENDES, Júlio César da Silva | 2020 | p. 100-123 122 O discurso relatado: entre seus potenciais linguísticos e os livros didáticos entre ambas as partes: conhecer a estrutura para entender o funcionamento discursivo por meio dos diversos usos e ser capaz de visualizar o potencial semântico-discursivo para não se apreender a gramática de maneira vazia. Esse é o caminho que desejamos no ensino de língua na escola e que fica em aberto como próximo fruto desta pesquisa: uma abordagem didática que alie estrutura, engajamento e evidencialidade no discurso relatado por diferentes esferas discursivas. Referências bibliográficas AIKHENVALD, Alexandra. Evidentiality. 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São Paulo: Ática, 2015b. FIGUEIREDO, Laura de; BALTHASAR, Marisa; GOULART, Shirley. Singular & plural: leitura, produção e estudos de linguagem. 2.ed. São Paulo: Moderna, 2015. PEREIRA, Camila Sequetto; BARROS, Fernanda Pinheiro; MARIZ, Luciana. Universos: língua portuguesa, 6º ano: anos finais: ensino fundamental. 3. ed. São Paulo: Edições SM, 2015a. PEREIRA, Camila Sequetto; BARROS, Fernanda Pinheiro; MARIZ, Luciana. Universos: língua portuguesa, 7º ano: anos finais: ensino fundamental. 3. ed. São Paulo: Edições SM, 2015b. Como citar MENDES, Júlio César da Silva. O discurso relatado: entre seus potenciais linguísticos e os livros didáticos. In: GONÇALVES-SEGUNDO, Paulo Roberto; ARAES, Célia Regina; CASTANHEIRA, Claudia; ISOLA-LANZONI, Gabriel; PENITENTE, Natalia; WEISS, Winola (orgs). Discurso e poder: teoria e análise. São Paulo: FFLCH/USP, 2020, p. 100-123. DOI: 10.11606/9786587621241 MENDES, Júlio César da Silva | 2020 | p. 100-123 124 No movimento dos sentidos: construções interdiscursivas em Mafalda No movimento dos sentidos: construções interdiscursivas em Mafalda Kaline Ferreira OLIVEIRA Universidade do Estado da Bahia [email protected] Resumo: Neste trabalho propõe-se analisar discursivamente uma tira da personagem Mafalda – publicadas entre 1964 e 1973 na Argentina e difundidas pelo mundo – sob autoria do cartunista argentino Salvador Lavado Quino. A investigação é baseada no arcabouço teórico da Análise do Discurso de linha francesa, fundamentada pelo filósofo francês Michel Pêcheux e propõe compreender como e quais possíveis movimentos significativos propiciam um link interdiscursivo entre as tiras da Mafalda postadas na rede social facebook com o presente contexto sócio-político-ideológico brasileiro. Em prol de uma melhor compreensão dos efeitos de sentido provenientes dessa (re)inscrição, será levado em consideração a recepção da tira nesta plataforma digital – facebook – a partir dos comentários. Assim, este trabalho baseia-se na compreensão da nãotransparência da linguagem, visto que nela são materializados discursos que (re)produzem práticas ideológicas cuja base se encontra na relação existente entre homem e sociedade. Nesta perspectiva, um dos elementos teóricos basilares deste movimento analítico é a noção de interdiscurso pecheutiana, que corresponde à relação necessária entre o já-dito e o dizível. Desta forma, busca-se compreender a constituição de dados efeitos de sentido a partir das materialidades linguísticas na tira da personagem Mafalda (1964-1973) selecionada para análise, levando em consideração os deslizamento de sentidos provenientes do contexto histórico de (re)produção das mesmas (Brasil, 2018) possibilitados pelos comentários vinculados à respectiva tira. Palavras-chave: Discurso; Interdiscurso; Mafalda. Efeito de sentido; Ideologia; Introdução Na década de 60 do século XX, em meio a grandes acontecimentos sóciopolíticos pelo mundo, surgiu uma menina de nome Mafalda que tinha como principal característica questionar e criticar o mundo a sua volta. Essa menina (de 6 anos, inicialmente) é uma personagem principal das tiras que levam o seu nome e foi OLIVEIRA, Kaline Ferreira | 2020 | p. 124-135 125 Discurso e poder: teoria e análise desenhada entre 1964 e 1973 pelo cartunista, desenhista Joaquín Salvador Lavado Tejón – popular Quino – na Argentina. Nesse mesmo período – final da década de 60 do século XX –constituiu-se a Análise de discurso fundamentada pelo filósofo francês Michel Pêcheux. Categorizada como campo de conhecimento de entremeio 1, a Análise de discurso pecheutiana (doravante AD) se constitui na correspondência entre as disciplinas que a integram – a linguística, o marxismo (materialismo histórico) e a psicanálise. Nesta perspectiva, a AD concebe o discurso como “efeito de sentido”, uma projeção na linguagem de perspectivas sociais, históricas e ideológicas. E compreende a língua em relação ao contexto histórico de produção, logo, esta não é vista como neutra ou transparente, mas sim como um processo de confluência entre a ocorrência linguística e os processos ideológicos. Assim, o conceito pecheutiano de discurso como efeito de sentido pautará a discussão proposta para esta pesquisa, englobando os elementos internos da linguagem, as ocorrências linguísticas e a influência ideológica na inscrição e (re)inscrição do(s) discurso(s). Deste modo, tencionamos tornar perceptível a paráfrase e polissemia discursiva por compreender que os signos linguísticos ganham distintos sentidos a depender das concepções ideológicas de sua inserção. Desse modo, este capítulo objetiva utilizar a AD para pensar a (re)inscrição dos dizeres da personagem Mafalda – e de outros personagens que integram as tiras – que ainda são recorrentes nos dias atuais, principalmente nas mídias digitais. Tal análise buscará confrontar perspectivas semânticas presentes nos discursos que integram algumas destas tiras – e os discursos que se constituem a partir delas – por se (re)inscrevem em um contexto histórico e ideológico distinto do período de constituição. As tiras de Mafalda estão presentes em diversos suportes desde livros didáticos (suporte material) a redes sociais (suporte digital). Levando em consideração a recorrência das tiras na rede social Facebook (rede social com maior quantidade de usuários atualmente2), percebemos que este meio nos permitiria observar as novas possibilidades significativas das tiras por permitir ao usuário da rede social interagir com o conteúdo apresentado. Logo, os comentários presentes na postagem da tira da Mafalda escolhida para análise que integra a página Tirinhas da Mafalda no facebook também serão considerados nas análises, por nos ajudar a compreender quais e como outros sentidos são atribuídos à tira. 1 Referencial teórico A AD fundamentada por Michel Pêcheux deu um lugar de importância à interpretação, às leituras que são feitas de materialidades linguísticas. Nesse campo Orlandi (2012). Disponível em: https://www.maioresemelhores.com/maiores-redes-sociais-do-mundo/. Acesso em 13 de jul. 2019. 1 2 OLIVEIRA, Kaline Ferreira | 2020 | p. 124-135 126 No movimento dos sentidos: construções interdiscursivas em Mafalda disciplinar se compreende o objeto de estudo da teoria – o discurso – como efeito de sentido, prática de linguagem, como nos mostra Orlandi 2007, p. 15) A Análise de Discurso, como seu próprio nome indica, não trata da língua, não trata da gramática, embora todas essas coisas lhe interessem. Ela trata do discurso. E a palavra discurso, etimologicamente, tem em si a ideia de curso, de percurso, de correr por, de movimento. O discurso é assim palavra em movimento, prática de linguagem: com o estudo do discurso observa-se o homem falando. Quando o homem fala, há diversos fatores que interferem no processo significativo. Nesse sentido, o discurso é considerado como efeito de sentido entre interlocutores por ir contra a corrente da comunicação verbal formulada por Roman Jakobson que considerava que o destinador – ponto A – codifica sentidos na mensagem e o destinatário – ponto B – decodifica a mensagem para captar o sentido. Nesta perspectiva, não haveria entraves no ato comunicativo por se tratar apenas de codificação e decodificação de mensagem. Mas em AD, essa relação de decodificação não é comunicação, pois numa mensagem entre o ponto A (destinador) e o ponto B (destinatário), o que existe é uma rede de possibilidades semânticas, logo, efeito de sentidos. Assim, acredita-se que o sentido não está embutido na letra/materialidade linguística, mas constitui-se no processo sócio histórico. Compreende-se portanto que o ato de linguagem, de discurso e de leitura “são as evidências do estritamento bio-social, dando-se, ao contrário, relevância, aos mecanismos de linguagem, ao simbólico, e ao histórico social” (ORLANDI, 2012, P. 60). O procedimento analítico proposto em AD parte de um dado real para tornarse o objeto de investigação. Parte-se da linguagem para investigar o nível discursivo que sofre efeitos diretos do nível ideológico por se constituir socialmente. Assim, compreende-se que o conceito de ideologia é imprescindível, já que este elemento é definido como vínculo entre a linguagem e o social e de lado a concepção de ideias. Logo, na AD a ideologia se constituí como prática social e está diretamente ligada à materialização da língua em determinado espaço e tempo por ser o fator que evidencia perspectivas de determinada formação ideológica (doravante FI). Nas palavras de Pêcheux (2014, p. 147) a formação discursiva (doravante FD) é “aquilo que, numa formação ideológica dada, determina [...] o que pode e deve ser dito” (PÊCHEUX, 2014, p. 147, grifos do autor). Assim, entende-se que o texto – verbal ou não – está para o discurso por este também estar também imbuído por perspectivas sócio históricas, uma vez que “sem texto não há significação” (Orlandi, 2012, p.17). Portanto, não existe uma transparência nos textos que permitam atravessar e pegar um sentido. O texto, assim como discurso, é opaco. Não possui significações pré-determinadas, existem possibilidades que são trazidas pelo leitor no processo de leitura. Nas palavras de Orlandi (2012, p.21) a leitura aparece não mais como simples decodificação mas como a construção de um dispositivo teórico [...] um sentido preciso que leva em conta a materialidade da linguagem, isto é, sua não-transparência e coloca a necessidade de construir um artefato para ter acesso a ela OLIVEIRA, Kaline Ferreira | 2020 | p. 124-135 127 Discurso e poder: teoria e análise , para trabalhar sua espessura semântica – linguística e histórica – em uma palavra, sua discursividade. Por considerar que o texto se constitui discursivamente por este também ser efeito de sentido, através dele observa-se o homem falando e, nesta perspectiva, é possível observar como o sujeito está posto e como ele está produzindo processos de significação a partir de sua posição social. O sujeito enquanto lugar social, não pode não significar/fazer significar, pois ele é levado a dizer o que “isto” quer dizer por questões ideológicas que o constitui. Isso é pura injunção à interpretação. Somos levados a interpretar constantemente e fazemos isso sempre por gestos de leitura a partir dos lugares sociais que ocupamos. Nas palavras de Orlandi (2012, p. 22) “ O sujeito é a interpretação. Fazendo significar, ele significa. É pela interpretação que o sujeito se submete à ideologia, ao efeito de literalidade à ilusão do conteúdo, à construção da evidência dos sentidos, à impressão do sentido já-lá”. Com base na perspectiva de trabalhar a (re)inscrição do dizer, a noção de interdiscurso será um dos elementos basilares deste trabalho, pois, como propõe Pêcheux, a noção de interdiscurso diz respeito a uma relação de ligação existente entre o já-dito (interdiscurso) com o que é efetivamente formulado (intradiscurso). A noção de interdiscurso diz respeito à união de já-ditos que embasam outros dizeres, assim, acredita-se que os dizeres – as materialidades que estão nas tiras ao serem vinculadas em outro momento histórico – se (re)signifiquem por possibilitarem a existência de outros dizeres ancorados a perspectivas sócio-históricas e ideológicas às quais foram/estão sendo vinculados. Portanto, é sobre essas novas significações que iremos nos apoiar. Assim, propomos analisar interdiscursivamente – a partir de dois contextos sócio-histórico e ideológico distintos – a tira retirada da página Tirinhas da Mafalda na rede social Facebook. Nesta perspectiva, inicialmente serão feitas análises das materialidades linguísticas presentes nas tirinhas levando consideração o contexto sócio-histórico e ideológico de instauração dos dizeres – século XX, especificamente décadas de 60 e 70 – elencando as possibilidades discursivas a partir deste período. Posteriormente serão feitas análises das materialidades linguísticas presentes nos comentários da respectiva tira, que são marcadores em potencial de (re)inscrição do dizer – século XXI no Brasil – para, assim, podermos investigar o deslizamento de sentidos (ou não) pautado nessa (re)inscrição. 2 Construções significativas em uma tira da personagem Mafalda A primeira tira selecionada para análise presente da página Tirinhas da Mafalda no Facebook foi publicada em 4 de abril de 2018. Possui 6,3 mil curtidas – incluindo as reações –, 3,8 mil compartilhamentos e 174 comentários. OLIVEIRA, Kaline Ferreira | 2020 | p. 124-135 128 No movimento dos sentidos: construções interdiscursivas em Mafalda Figura 1. Tira selecionada para análise retirada da Página Toda Mafalda no Facebook Fonte: Página Toda Mafalda no Facebook3 A tira é composta por 4 quadros e foi reconfigurada ao padrão de tira dupla, com dois andares. Nela temos a presença de duas personagens: Mafalda e sua mãe. É possível compreender o efeito de angústia que funciona na materialidade linguística com a instauração do termo “inquilino” presente nos dizeres da tira. Inquilino, segundo Ferreira (2010, p. 428) é um “Indivíduo residente em casa que tomou de aluguel” e assim compreendendo tal termo, a partir dos três primeiros quadros poderíamos inferir que algum inquilino dos seus pais que possivelmente sabia de suas pretensões começou a lhe falar sobre questões referentes à moral e aos bons costumes, elementos basilares da educação no âmbito familiar, escolar e social. Mas, como é próprio do gênero tiras, temos a quebra de expectativas ao Mafalda ser questionada sobre o inquilino, então há um deslizamento de sentido a partir do qual o humor só ocorre com o atravessamento da FD que instaura o efeito de sentido de angústia. Desfaz-se a primeira hipótese e propicia o humor ou reflexão ao se referir ao “inquilino interior”. Esse ‘inquilino’ interior pode ser lido de diversas formas: consciência, ética, superego, caráter, honestidade, dentre outros sempre ligados a princípios e regras, determinados e aceitos socialmente que regulam o comportamento dos sujeitos sociais: moral. Orlandi (2013, p.15) ao definir discurso como “discurso em movimento, prática de linguagem” vai além do processo de comunicação a partir do esquema: emissor, receptor, código, referente e mensagem. Observar o homem falando equivale a Disponível em: https://www.facebook.com/TirinhasDaMafaldaBr/photos/a.346009278796217/1781363631927434/?typ e=3&theater. 3 OLIVEIRA, Kaline Ferreira | 2020 | p. 124-135 129 Discurso e poder: teoria e análise atravessar esse efeito de transparência na linguagem, para perceber os princípios ideológicos que estão presentes nos dizeres, enunciados, enfim, discursos que são multiplicados na(s) sociedade(s). Nesta perspectiva, temos que ir além de apenas afirmar o que se apresenta como óbvio na leitura da tira. A linguagem é opaca, a impressão de transparência nela é produzida e, assim sendo, precisamos entender como ela se constitui em meio ao seu processo/instante de produção já que falar em linguagem é falar sobre as relações entre os sujeitos e inevitavelmente inúmeros sentidos. Como Orlandi afirma (2013, p. 65), “nos interessa a materialidade que é linguístico-histórica, logo não se remete a regras, mas as suas condições de produção em relação à memória, onde intervém a ideologia, o inconsciente, o esquecimento, a falha, o equívoco”. Neste processo é necessário compreender que ideologia em AD é tida como “uma relação necessária entre a linguagem e o mundo” (ORLANDI, 2012, p. 31), é categoria que interpela o indivíduo enquanto sujeito e materializa-se discursivamente já que é interpretação de sentido na relação da linguagem, história e mecanismos imaginários. Assim nos constituímos e demarcamos certos modos de vida e comportamento em sociedade. Nesta perspectiva, a Formação ideológica – doravante FI – explica esse processo em dado contexto histórico: Falaremos de formação ideológica para caracterizar um elemento [...] susceptível de intervir como uma força em confronto com outras forças na conjuntura ideológica característica de uma formação social em dado momento; desse modo, cada formação ideológica constutui um conjunto complexo de atitudes e de representações que não são nem ‘individuais’ nem ‘universais’ mas se relacionam mais ou menos diretamente a posição de classe em conflito umas com as outras. (PÊCHEUX; FUCHS, 2014, p. 163, grifos do autor) As FIs são capazes de, em determinada formação social, intervir como uma força em relação de confronto, de aliança ou dominação com outras forças na conjuntura ideológica. Então temos as formações discursivas – FDs – que se constituem dentro desse conjunto completo de atitudes e representações. Sendo assim, as FIs comportam uma ou várias FD’s interligadas, sendo a ideologia o elemento de constituição de ambas, já que na FD se demarca o que pode e deve ser dito em dada FI. A partir da tira em processo de análise, podemos esquematizar algumas possíveis FDs levando em consideração o contexto histórico de constituição das tiras – década de 60 e 70 – como FI. Neste período, mobilizava-se pelo mundo movimento de contracultura que teve início nos Estados Unidos com auge na década de 60. Esse movimento, composto em sua maioria por jovens intelectuais, buscava alertar, de forma pacífica, sobre os valores disseminados pela indústria e pelos meios de comunicação, falavam contra o consumismo e conservadorismo atribuindo valor à natureza, ao amor, às coisas simples e à valorização das minorias em prol da paz (DIANA, 2019). OLIVEIRA, Kaline Ferreira | 2020 | p. 124-135 130 No movimento dos sentidos: construções interdiscursivas em Mafalda Quadro 1. Quadro de FDs FD FD MORAL FD CONSUMO “Tome, pensei em ficar com o troco da padaria para comprar bala, mas não consegui” (Objetiva reconsiderar) (Objetivava o consumo) “e tudo por causa do maldito inquilino que começou a dizer que isso é feio, que não se faz e sei lá o quê!” (Objetiva conscientizar) (Desconsidera/reconfigura aspectos morais) “Esse que a gente tem aqui dentro”. (Capacidade de autorreflexão) Fonte: elaboração própria. O quadro apresentado mostra o discurso de Mafalda como resultante do embate e dominação entre duas forças discursivas, a “FD moral”, enunciada a partir de um lugar ideológico que leva em consideração todas as regras aceitas socialmente que regulam o comportamento do sujeito; e a “FD consumo”, enunciada a partir de um lugar ideológico que valora o consumo independentemente de aspectos pessoais . Acredita-se que o mesmo enunciado pode ser compreendido em duas perspectivas a partir do lugar de sua enunciação. Assim, em “Tome, pensei em ficar com o troco da padaria para comprar bala, mas não consegui” pode ser interpretado como um ato de reconsiderar o ato de pegar o dinheiro do troco com qual objetivava satisfazer o desejo de comprar bala. Já no enunciado “e tudo por causa do maldito inquilino que começou a dizer que isso é feio, que não se faz e sei lá o quê!” percebemos que houve um acesso de consciência pela presença do ‘inquilino’ que falava em aspectos morais mesmo sem a vontade da menina que, a princípio desconsiderara-os. Nos dois primeiros, acredita-se que há a presença de um embate porque aspectos linguísticos possibilitam leituras. No primeiro enunciado o fato de “pensei em ficar com o troco para” possibilita a existência da “FD consumo”, enquanto “mas não consegui” viabiliza a existência da “FD moral”. No segundo enunciado, lemos o “e tudo por causa do maldito” como elemento que ratifica “FD consumo” pelo fato de que antes deste ‘maldito’ não havia se pensado nos elementos por esse elencado”, enquanto “que isso é feio, que não se faz e sei lá o quê!” apresenta questões que a menina deveria levar em consideração em sua ação. Já no último enunciado acreditase que houve a sobreposição da FD moral funcionando como um “com dominante” de um” todo complexo” (PÊCHEUX, 2014, p. 134) pois ao se referir ao inquilino como “Esse que a gente tem aqui dentro” instaura-se o pré-construído que propicie a autorreflexão da menina sobre suas ações. OLIVEIRA, Kaline Ferreira | 2020 | p. 124-135 131 Discurso e poder: teoria e análise 2.1 Outras possibilidades significativas Um elemento positivo das redes sociais – em especial o Facebook – é a existência de ferramentas que permitem a interação entre os usuários na página mesmo sem estarem conectados. Neste caso, temos os comentários que tem como característica principal a “interação mútua” pelo fato de que cada usuário que interage participa, de certa forma, na construção inventiva e cooperada na página (RECUERO, 2009, p. 32). Assim sendo, os comentários presentes na publicação dessa tira, constituemse como elementos essenciais para a compreensão de outros possíveis processos significativos existentes a partir de sua leitura. Logo, selecionamos os comentários nessa publicação que nos apresentam novas possibilidades significativas e vamos pensar na FI a partir o contexto social de sua (re)inscrição: Brasil, primeiro semestre do ano de 2018, ano eleitoral no país que está polarizado por questões político partidárias. Nesse aspecto, o sentido é uma condição base na AD e os efeitos de sentidos se constituem junto a enunciação discursiva. Assim, a produção ou (re)produção discursiva acontece embasada por fatores parafrásticos – (re) produção de um sentido sob várias formas– e/ou polissêmicos – atribuição de múltiplos sentidos – sempre ancorada com o discurso prévio, o interdiscurso. Portanto, “tanto a paráfrase como a polissemia devem ser objetos da reflexão sobre a linguagem” (ORLANDI, 2012, p. 26). Figura 2. Comentários 1 Vide primeiro e o segundo comentário na publicação. O primeiro diz “Espírito Santo de Deus que habita em mim que me constrange quando peco e me leva ao arrependimento. Sem Deus eu seria apenas mais uma pecadora”, o segundo ainda leva em consideração os aspectos trazidos no comentário anterior ao produzir o enunciado “É isso aí Mafalda! O Inquilino é o Espírito Santo, que nos orienta e fala para não fazermos o errado, mas andamos no bem!!!! Ótima! Mitou!!”. Vamos considerar nesses comentários e o elemento “Espirito Santo” que nos mostra ser uma outra leitura da tira. Os sentidos atribuídos a partir dessa outra leitura nos permitem identificar a existência de outra FD: a “FD cristã”4. Nomeou-se a FD de cristã porque no último senso realizado no país pelo IBGE em 2010 – o próximo será em 2020 – os cristãos no país chegaram a 86,6%, tendo maioria católicos, apesar da queda, com 4 OLIVEIRA, Kaline Ferreira | 2020 | p. 124-135 132 No movimento dos sentidos: construções interdiscursivas em Mafalda A sociedade brasileira ainda é majoritariamente cristã. Logo, ideologias que perpassam esse Aparelho Ideológico – igreja – são constitutivos dos sujeitos nesta constituição social. Nessa perspectiva, o “inquilino” que fala a Mafalda sobre o errado, o feio seria a consciência espiritual ou religiosa – divindade Espírito Santo – que indicaria qual atitude a moça deveria tomar. Se acreditam que o Espírito Santo seja um pessoa ou uma divindade é respectivo a cada religião, mas a Bíblia fala sobre esse Espírito Santo como algo que realmente falará e guiará as pessoas em suas ações, como é insinuado que o espírito Santo fala “Quem tiver ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas”(BÍBLIA, Apocalipse, 2, 17) e guia as ações do homem “Ao chegarem aos confins da Mísia, tencionavam seguir para Bitínia, mas o Espírito de Jesus não permitiu” (BÍBLIA, Atos dos Apóstolos, 16, 7). Figura 3. Comentários 2 Nesse outro caso, vamos perceber um novo deslizamento significativo no último comentário que diz “Graças a Deus quase todos tem esse inquilino... Mas os corruptos não tem (Sic), com certeza...”. Percebemos aqui que esse novo discurso está atravessado pela FD anterior – FD cristã - por fazer remissão a Deus, elemento também presente no discurso cristão. Mas o deslizamento de sentido ocorre ao se utilizar o termo ‘corruptos’. O termo ‘corrupto’ segundo Ferreira significa “1. Que sofreu corrupção; corrompido. 2. Devasso, depravado; corrompido. 3. Diz-se de indivíduo que corrompe ou se deixa corromper ou subornar; instigador ou cúmplice de corrupção” (2010, p. 204). Socialmente usamos tal termo para indicar algum aparelho corrompido ou usase o significado 3 da palavra para falar dos representantes políticos. Tal comentário afirma que esse inquilino - representado pela FD moral – não integra tais representantes políticos já que, em vez de reconsiderar ou se conscientizar contra esse tipo de ação, o político adjetivado como ‘corrupto’, pelo contrário, pratica tais ações consideradas ilícitas. Poderíamos nomear essa FD como “FD antipolítica” pois este é o termo mais adequado nesse contexto. O termo ‘corrupto’ e seus derivados têm sido muito usados nos últimos anos no Brasil, para se ter uma noção de quanto esse tema tem sido recorrente, no ano de postagem da tira no Facebook em análise – 2018 – a revista Isto é pública em 11 de abril de 2018 o seu nº2520 com o título “Lula preso. Tremei políticos corruptos, a sua hora também vai chegar” tal enunciado, pela ilusão de transparência da linguagem que instaura um efeito de sentido de que que Lula, o ex presidente do país pelo 64,6% e aumento dos evangélicos que chegaram a 22,2%. Neste período, já se sabia da onda evangélica existe no país, tanto que se acredita que no próximo senso o quantitativo de evangélicos será equiparado ao de católicos ou superior e teremos um número maior de pessoas que não declaram identificação com nenhuma religião (AZEVEDO, 2019). OLIVEIRA, Kaline Ferreira | 2020 | p. 124-135 133 Discurso e poder: teoria e análise Partido dos Trabalhadores – PT, integra esse grupo dos adjetivados como corrupto em detrimento a sua questionável condenação. Ancorada a essa perspectiva, temos os próximos comentários: Figura 4. Comentários 3 Coloca-se em evidência o segundo comentário “Alguns expulsaram esse inquilino”, o que nos leva a interpretar que na sociedade, como um todo, muitas pessoas não possuem o “inquilino” da consciência, da moral pelo fato de serem levados ideologicamente a práticas contrárias. Mas, assim como o gênero possui como característica a quebra de expectativas do leitor, o comentário que responde ao que acabara de ser citado também rompe com as expectativas, trazendo um novo elemento mais direto e marcadamente vinculado ao contexto de (re)inscrição da tira. O referente comentário diz “ [...] é tipo o Lula e toda a corja do PT”. Tal comentário mobilizado pelo pré-constrído vincula Lula e os integrantes do partido à categoria dos corruptos pelo funcionamento do estereótipo segundo o qual se supõe que todos os políticos de esquerda são corruptos, uma vez que há apoio aos políticos de direita. Nesse caso, o estereótipo é ressignificado e direcionado a um único partido no enunciado em questão. E isso só é possível devido às condições de existência sóciohistóricas que remetem a embates de classes político-partidárias no interior da FI. Tais comentários possibilitam a percepção do atravessamento da questão ideológica nos discursos. Temos aqui, mobilizados pelos comentários sentidos que ressoam a partir de estereótipos e simulacros como “todo político é corrupto”, é estereótipo por ser uma característica atribuída aos representantes políticos frequentemente associado à negativação de algum grupo, simulacro pela tentativa de interpretar seu outro, atribuindo-lhe características que podem não ser próprias (exclusivas) do grupo. Considerações finais Este trabalho teve o propósito de analisar as construções significativas possíveis a partir das tiras de Mafalda inseridas na rede social Facebook atualmente no Brasil, período distinto ao de sua produção. O resultado prévio nos revela que os usuários da rede social Facebook são interpelados por questões ideológicas materializadas no contexto de (re)inscrição das tiras de Mafalda, o que propicia o funcionamento de sentidos às materialidades linguísticas presentes nas tiras. A partir de novos gestos de leituras os usuários são interpelados por categorias como o simulacro e/ou estereótipo vigentes na sociedade e que demarcam certas perspectivas no contexto político. OLIVEIRA, Kaline Ferreira | 2020 | p. 124-135 134 No movimento dos sentidos: construções interdiscursivas em Mafalda Nesta concepção, o processo interdiscursivo constitui-se como elemento atravessado constantemente por outros dizeres, assim o estudo do contexto sóciohistórico de inscrição e (re)inscrição de tais dizeres nos permitem compreender alguns pontos das intersecções discursivas, como fora evidenciado na análise. Logo, o processo significativo da(s) tira(s) atribuídos atualmente se distinguem dos de sua constituição por considerar este outro contexto sócio-histórico ao qual o discurso está veiculado. A partir da análise, é notável como a AD potencializa o processo de compreensão dos discursos por entender que estes são indissociáveis do contexto ideológico de instauração e, também, a atualidade dos temas abordados nas tiras de Mafalda que, por mais que tenham sido desenhadas há mais de 50 anos, ainda abordam temáticas sociais vigentes no mundo. Assim, nesse processo discursivo, se dá o deslizamento de efeitos de sentido, o que promove uma (re)inscrição do dizer possível pelo funcionamento de outros discursos, atualizados em outras condições de instauração do dizer. Referências bibliográficas ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideológicos de Estado: nota sobre os aparelhos Ideológicos de Estado (AIE). Tradução José Evangelista e Maria Laura Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983. BÍBLIA, N. T. Apocalipse. In BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada: Antigo e Novo Testamentos. Tradução de Frei Castro. São Paulo: Editora Ave-Maria, 2007, p. 1558. BÍBLIA, N. T. Atos dos Apóstolos. 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A proposta deste trabalho é apresentar as contribuições do gênero poema para aperfeiçoar a leitura e a escrita e instrumentalizar o aluno no uso de ferramentas linguísticas para ordenar o próprio discurso e se comunicar, ou seja, traduzir suas experiências em linguagem poética Trata-se de um processo consciente, autorreflexivo e elaborado. Essas reflexões resultam das pesquisas em curso no Mestrado Profissional em rede – Profletras /USP. Para ilustrar, analiso três produções discentes, de alunos do 7 º ano de escola pública estadual, com foco no conceito de agência: o aluno como sujeito agente do processo criativo e seu diálogo com as leituras de um gênero que não lhe é familiar: o poético. A fundamentação teórica está baseada no dialogismo e na conceituação de gênero, segundo Bakthtin (1997); na concepção da literatura como direito, conforme Candido (2004); na concepção de agência, postulada por Bazerman (2011); e nas características do gênero, segundo Jolibert (1994). Os resultados apresentados são parciais, pois a pesquisa está, ainda, em andamento. Palavras-chave: Gênero poético; Produções Letramento literário, Aluno agente; Leitura. discentes; Introdução O propósito deste trabalho é apresentar um processo pedagógico desenvolvido com alunos do ensino Fundamental de nove anos nos anos finais de uma escola pública estadual da cidade de Campinas, interior de São Paulo. Os anos finais referem-se aos quatro últimos anos do Ensino fundamental, a saber, de 6º a 9º ano. O processo pedagógico aqui estudado foi aplicado em uma classe de 7º ano, com o objetivo de formar leitores competentes, capazes de dialogar com o texto lido, de modo cognitivo e sensível. O termo “sensível” encaminha o trabalho na direção do texto literário e, particularmente, do texto poético. O ponto inicial consiste em inserir os alunos no universo da poesia para fortalecer o letramento literário e estimular o gosto pelo poema; o ponto de chegada volta-se à produção de textos poéticos discentes como meio de expressão, numa transição gradual da leitura para a escrita. TARABORELLI, Luciana | 2020 | p. 136-145 137 Discurso e poder: teoria e análise Essas atividades permitem, ainda, refletir sobre as contribuições que o gênero poético traz para o desenvolvimento não só da leitura proficiente, mas também da escrita dos alunos, seja em relação à escrita de poemas em especial, seja em relação à escrita dos demais gêneros que circulam no seu cotidiano. Essas contribuições fomentam o processo de agência. Entende-se por agentes “pessoas que através de suas escritas têm aumentado e mudado o pensamento e a ação da comunidade” (BAZERMAN, 2011, p. 12). À medida que praticam a leitura de poemas, os alunos aprendem a apreciar o texto literário e a dar sentido ou sentidos a esse gênero textual. Não se trata, pois, de uma leitura rasa e linear e sim, fazendo uso das palavras de Jolibert (1994), de uma “leitura em camadas”, pois o processo demanda vários níveis de leitura, o que significa ler em profundidade e desvendar os diversos recursos linguísticos empregados pelo poeta para despertar, no leitor, a percepção das variadas intenções do criador do texto. Essa leitura em camadas não só funciona como instrumento para ampliar a construção dos sentidos evocados pelo texto, mas também influencia a maneira como o aluno vai interpretar outros textos – não necessariamente o poético, – e, ainda, dá subsídios para a compreensão de questões sociais ou particulares nas quais cada aluno-agente está inserido. Ao verbalizar ou transpor para o papel as ideias suscitadas pela leitura do poético, o aluno cria um espaço de posicionamento ante sua realidade e a dos que estão ao seu entorno, fortalecendo o conceito de agência e, ao mesmo tempo, ampliando o gradual domínio da língua escrita. Todo esse processo não decorre isento de resistência nem tampouco, por livre vontade dos alunos, pois a prática da leitura literária, mais especificamente da leitura de poemas, não é, para a maioria deles, familiar. Eles estão inseridos em outras formas de cultura, como, por exemplo, a digital. Alguns alunos demonstram hostilidade aos textos escritos oferecidos pela escola, recusam-se a ler, quando solicitados. Essa atitude demonstra certo medo da leitura e é indicadora do escasso contato com livros nos ambientes externos à escola. Nesse contexto, percebe-se o quanto é importante a figura do professor como o mediador que proporcionará o contato com a palavra impressa, de forma a desconstruir a resistência à leitura de textos bem elaborados como o texto literário. Para Petit, não basta o contato precoce com o livro e sua presença nas casas ou o fato de poder frequentar uma biblioteca; “o que atrai a atenção da criança é o interesse profundo que os adultos têm pelos livros, seu desejo real, seu prazer real” (PETIT, 1998, p. 141). É preciso, pois, que a escola, como uma das agências reconhecidas socialmente como promotora da leitura literária, representada pelo professor, seja a ponte que leva os alunos a descobrir o prazer da leitura. Segundo Colomer “os alunos necessitam ser encorajados por alguém que lhes ajude de forma continuada para que realizem essas descobertas.” (COLOMER, 2007, p. 44). E esse “alguém” é o professor. TARABORELLI, Luciana | 2020 | p. 136-145 138 A escrita de poemas e o aluno agente: contribuições para o diálogo De nosso ponto de vista, faz-se necessário que o professor reivindique o ensino do texto literário nas suas aulas, para garantir a literatura como um dos direitos do ser humano, conforme defende Candido: [...] são bens incompressíveis não apenas os que asseguram a sobrevivência física em níveis decentes, mas os que garantem a integridade espiritual. São incompressíveis certamente a alimentação, a moradia, o vestuário, a instrução, a saúde, a liberdade individual, o amparo da justiça pública, a resistência à opressão etc.; e também o direito à crença, à opinião, ao lazer e, por que não, à arte e à literatura (CANDIDO, 2004, p.174). Reivindicar o direito à leitura do texto literário e proporcionar momentos para que ela aconteça nas aulas de língua portuguesa e no contexto escolar como um todo é, aos poucos, contribuir para a formação de um leitor literário crítico capaz de pensar com autonomia frente aos vários discursos sociais e assumir, no percurso de sua formação, a posição de aluno agente – aquele que, por meio da escrita consciente, imprime seu marco na comunidade. O fato de propor atividades voltadas à leitura literária como uma prática significativa para os alunos, aqui, pode ser entendida como um trabalho que interrelaciona a leitura literária, a escrita e a fala. Muitos efeitos de sentidos decorrentes de construções imagéticas presentes no poema só são percebidos quando o texto poético é lido em voz alta, colaborando para a ampliação do letramento no campo literário. Para COSSON (2006): O letramento literário, conforme o concebemos, possui uma configuração especial. Pela própria condição de existência da escrita literária (...) o processo de letramento que se faz via textos literários compreende não apenas uma dimensão diferenciada do uso social da escrita, mas também e, sobretudo, uma forma de assegurar o seu efetivo domínio (COSSON, 2006, p. 12). Os apontamentos de Cosson (2006) vão ao encontro da proposta de Cândido (2004), ao defender a literatura que humaniza: “Se quisermos formar leitores capazes de experimentar toda força humanizadora da literatura, não basta apenas ler” (COSSON, 2006, p.29). Precisamos promover uma leitura na qual os alunos aprendam a explorar todas as potencialidades do texto literário, sua plurissignificação e complexidade. Levá-los, por exemplo, a conceber suas dimensões e níveis metafóricos em maior ou menor dimensão, compreender esses processos de construção temática em um poema, para, desta forma, estarmos promovendo efetivamente o letramento literário. 1 Leitura: o primeiro encontro com os poemas Para proporcionar o primeiro encontro dos alunos do 7º ano com o gênero poético, foi organizada uma proposta de progressão leitora que visava a oferecer-lhes a leitura de textos que não faziam parte do seu cotidiano, que fugiam à linguagem coloquial à qual estão acostumados, que apresentavam, segundo Guimarães (1994), literariedade, isto é, textos que causavam certo estranhamento: os poemas. Esse TARABORELLI, Luciana | 2020 | p. 136-145 139 Discurso e poder: teoria e análise caminho de levar ao aluno leituras que não lhe são familiares também é compartilhado por Colomer: Os livros a serem compartilhados devem ser aqueles que ofereçam alguma dificuldade ao leitor para que valha a pena investir neles o escasso tempo escolar. Se não há um significado que requeira um esforço de construção, não se pode negociar o sentido; se a estrutura é sempre convencional, não se aprende a estar atento para antecipar ou notar as elipses; ou se não há ambiguidades interessantes, não há porque buscar indícios, reler passagens e discutir as possíveis soluções (COLOMER, 2017, p. 149). A metodologia usada para desenvolver o trabalho com poemas consistiu de uma sequência de atividades de leitura e escrita denominada “Oficina de poemas”. As oficinas foram desenvolvidas durante as aulas destinadas à leitura, cerca de um sexto do tempo destinado às aulas de Língua Portuguesa previsto na carga horária. Os poemas foram apresentados, no primeiro momento, dentro de caixas de poemas. O nome “caixa de poemas” é simbólico, pois remete à caixa surpresa, à caixa de presente; a algo que cria uma expectativa sobre o seu conteúdo. A intenção era realmente presentear os alunos com poemas, uma vez que esse gênero textual era, para a maioria deles, desconhecido ou associado à infância, a quadrinhas e cantigas, e à atividade oral. Efetivamente, os alunos não possuíam conhecimento sobre o gênero. Quanto à escolha dos poemas que compuseram as caixas, a proposta era partir de poetas clássicos ou consagrados – no sentido de poetas oficialmente reconhecidos. Era preciso dar-lhes a oportunidade de conhecer nossa cultura literária. Segundo Ana Maria Machado apud Colomer: Cada um de nós tem o direito de conhecer – ou ao menos de saber que existem – as grandes obras literárias do patrimônio universal (...) Vários desses contatos se estabelecem pela primeira vez na infância e na juventude, abrindo caminhos que podem ser percorridos depois ou não, mas já funcionam como sinalização de um aviso: “esta história existe...está a meu alcance. Se quiser, sei aonde ir buscá-la”( COLOMER, 2007, p.152). Como o objetivo principal era levar os alunos a conhecer, ler e escrever poemas e, consequentemente, ampliar seu letramento literário ao mesmo tempo que a progressão leitora, optou-se pela valorização da literatura brasileira. As caixas continham poemas de quatro criadores modernistas: Cecília Meireles, Manuel Bandeira, Mário Quintana e Vinícius de Moraes. Os exercícios de leitura poética valorizaram diversas formas de leituras, a saber: a leitura coletiva: um aluno lia para a sala; todos liam juntos; o professor lia para os alunos. A leitura sempre acontecia com a mediação do professor, principalmente quando era feita a leitura para explorar os aspectos rítmicos do poema. Por último, a leitura seguia o ritmo individual. Foi essencial proporcionar um tempo para o contato pessoal com o poema, deixar o aluno à vontade para folhear a coletânea, lê-los sozinho; interpretá-los, perceber o trabalho com as palavras. Conhecer os poemas foi uma experiência de descoberta, os alunos atribuíram sentido a essa leitura com a qual TARABORELLI, Luciana | 2020 | p. 136-145 140 A escrita de poemas e o aluno agente: contribuições para o diálogo se comunicam de uma maneira nova, muito diversa das narrativas que estavam acostumados a ler. 2 Escrita de poemas: recriar o mundo com palavras Recriar o mundo com palavras é uma das formas de possibilitar o aprendizado. É grande a contribuição do texto poético para melhorar não só a capacidade de realizar a leitura em várias dimensões, mas também a possibilidade de o aluno adquirir o domínio da própria língua materna, ao desenvolver exercícios de escrita poética e, por meio dela, expressar sua personalidade, sua visão de mundo, descobrir-se, saber utilizar as ferramentas linguísticas para ordenar seu discurso e se comunicar, ou seja, traduzir suas experiências em forma de linguagem poética. Trata-se de um processo consciente, autorreflexivo e elaborado de exteriorizar, em versos, os seus desejos e pontos de vista. Para Colomer: Por um lado, o trabalho linguístico e literário conjunto permite apreciar as possibilidades da linguagem naqueles textos sociais que o propõem deliberadamente, como é o caso da literatura. Por outro, a inter-relação se produz através de formas mais indiretas, já que o contato com a literatura leva as crianças a interiorizar os modelos do discurso, as palavras ou formas sintáticas presentes nos textos que leem (COLOMER, 2007, p. 159). Ao defender o conceito de agência, Bazerman afirma que é necessário trabalhar com os gêneros textuais, mas alerta para que o esse trabalho não se baseie apenas no constructo formal nem esteja unicamente preocupado com formas linguísticas. Os gêneros servem para dar forma às necessidades de comunicação; para contemplar as ações, intenções e situações humanas. “Esse caráter dinâmico, interativo e agentivo do uso dos gêneros escritos significa que no centro de nossa teoria devem estar pessoas que querem realizar coisas através da escrita em um mundo de mudança” (BAZERMAN, 2011, p. 10). Os poemas discentes analisados neste trabalho expressam o resultado do trabalho com o gênero, conforme postula o autor. O ensino do gênero poético não está voltado unicamente para sua forma composicional, a intenção não é formar alunos escritores de sonetos, para citar aqui apenas uma das formas clássicas em que o poema pode se apresentar, mas, a partir das várias formas composicionais do poema, desenvolver a habilidade escritora que, considerando o gênero em questão, vai utilizar diferentes recursos linguísticos para dialogar. Assim, valores como originalidade, criatividade personalidade e posicionamento individual surgirão, favorecidos pelo gênero. Sabemos que a escrita é um trabalho árduo para os alunos e com o poema não é diferente, mas devido ao fato de terem certa liberdade para criar estrofes na quantidade que desejassem e, também, pelo fato de passar a impressão de ser mais fácil escrever um poema que escrever uma narrativa, os alunos sentiram confiança no processo de escrita. Cada rima feita era um sinal de comemoração, liam para os colegas e pediam ajuda para a elaboração das rimas. Assim, pouco a pouco, o poema ia tomando forma. Os alunos foram orientados, durante as oficinas, a produzir seus TARABORELLI, Luciana | 2020 | p. 136-145 141 Discurso e poder: teoria e análise textos sobre uma das três temáticas: sonhos, amizade e cotidiano. Observemos como esse processo se concretizou na produção discente: Não é justo e certo Não é justo isto: Um homem mexendo no lixo. A sociedade vive sem sorriso Essa gente não tem juízo. Isso não é certo Alguns não têm teto O governo não faz o correto Isso é ruim para mim e para o meu neto (Aluno A) Os exercícios de leituras poéticas foram essenciais na formação dos alunos como sujeitos-autores, ao trazerem seu repertório e suas experiências pessoais para o texto poético. Nota-se uma apropriação e compreensão da forma composicional do poema, ao compô-lo em estrofes, além de um cuidado com a escolha lexical de modo que as palavras construíssem a rima e, concomitantemente, revelassem o posicionamento socioideológico do aluno. O poema também apresenta traços dialógicos com o discurso do outro que, neste caso, provavelmente seja o poema O bicho, de Manuel Bandeira, um dos que constituía o conjunto das caixas de poemas. O uso reiterado do advérbio de negação não, presente já a partir do título remete ao uso do mesmo advérbio no poema O bicho; já a palavra homem destacada pelo poeta em uma estrofe de verso único, recebe também destaque no poema do aluno, ao ser deslocado para a primeira estrofe. Ao ler o título Não é justo e certo, o leitor é levado a se questionar sobre o que não seria justo e certo; resposta que se constrói ao longo do poema, a partir do segundo verso Um homem mexendo no lixo que introduz as diversas situações de injustiça social apontadas no poema. Em relação à palavra lixo, percebe-se que dialoga diretamente com o poema de Bandeira, principalmente por sintetizar a cena descrita pelo poeta. É interessante observar que a palavra lixo não aparece no poema O bicho, mas o aluno consegue fazer uma leitura atenta do poema de Bandeira, a ponto de sintetizar a situação apresentada pelo poeta (pessoas que se alimentam do lixo). No poema, além da fome, são abordados outros problemas como a falta de moradia, retomada apelo aluno no verso Alguns não têm teto. Portanto, o poema do aluno-sujeito agente que vivencia em seu cotidiano as mais diversas injustiças faz de sua escrita um instrumento que revela, poeticamente, as situações que ele desaprova e deseja que mudem. Não se trata de reproduzir o discurso bandeiriano, mas de manter com ele uma relação dialógica ativa, reflexiva e crítica. Em relação às estrofes, o poema composto pelo aluno apresenta dois quartetos com versos irregulares e rimas toantes em todos os versos. Abaixo segue outra produção discente na qual se observa que o trabalho com o poema em sala de aula desperta para uma consciência do ato de escrever. TARABORELLI, Luciana | 2020 | p. 136-145 142 A escrita de poemas e o aluno agente: contribuições para o diálogo Cotidiano Não é justo nesse mundo Tanta gente passando fome. Parece um abismo profundo. Isso não tem nome. Preconceito ainda existe. Em todos os lugares ainda se vê. Essa realidade é muito triste Não tem como descrever. (Aluno B) O poema Cotidiano, assim como o poema Não é justo e certo, também apresenta, agora de forma menos explícita, dialogismo com o poema O bicho de Manuel Bandeira. O segundo verso tanta gente passando fome é reflexo dos versos bandeirianos: Vi ontem um bicho/Na imundície do pátio/ Catando comida entre os detritos/ O bicho, meu Deus, era um homem. Cena que se repete no cotidiano das grandes cidades. O aluno-agente demonstra consciência do ato de escrever, não só por usar da escrita para expressar indignação com a injustiça social, mas, principalmente nos últimos versos de cada estrofe: Isso não tem nome e Não tem como descrever. Ele assume não encontrar palavras que apontem tamanha injustiça e deixa isso claro, na forma de metalinguagem. Quanto aos elementos composicionais, o aluno B também opta por dois quartetos, com versos irregulares e rimas toantes. Mundo Real Não é justo isto Muitos cometerem suicídio ou estarem em hospício Que horrível isso. Se cortar é um vício Que horrível isso. Queria que a realidade fosse um mundo fictício. (Aluno C) Esse poema aborda problemas do mundo real, conforme indica título, portanto, insere-se na temática cotidiano. O suicídio faz parte do cotidiano dos alunos, por ser noticiado na mídia, muitas vezes, em consequência de doenças como depressão; outras vezes, em consequência de jogos que circulam pelas redes sociais e impõem desafios ao participante, como o mais conhecido pelos adolescentes, o “Baleia azul”1. A automutilação2 (também chamada de cutting) pode estar relacionada O termo jogo da Baleia Azul refere-se a um suposto fenômeno surgido em uma rede social russa ligado ao aumento de suicídio de adolescentes. O jogo consiste em 50 desafios, distribuídos diariamente por um “curador” em grupos fechados de redes sociais. Todo dia, às 4h20, uma mensagem com a nova missão é publicada. O grau de seriedade é variável. No começo, as tarefas são mais simples, como assistir a um filme de terror sozinho ou desenhar uma baleia numa folha. Aos poucos, elas vão ficando cada vez mais perigosas: os participantes devem tatuar uma baleia no braço com uma faca. A 50ª e última incentiva nada menos é que o suicídio. http://super.abril.com.br/mundo-estranho/jogo-suicida-baleia-azul-chega-aobrasil/ (acesso em 31/12/2018). 2 https://novaescola.org.br/conteudo/4993/cutting-como-lidar-com-uma-crianca-que-se-automutila. (acesso em 31/12/18) 1 TARABORELLI, Luciana | 2020 | p. 136-145 143 Discurso e poder: teoria e análise à dificuldade que o adolescente tem de lidar com os próprios sentimentos, as dificuldades pelas quais passa na escola, como o Bullying. Temas presentes no cotidiano dos adolescentes como suicídio, doenças mentais e a automutilação são vistos pelo eu lírico como atitudes horríveis. Podemos interpretar como algo triste e condenável, uma vez que, no último quarteto, é apresentado o desejo de que essas atitudes não fizessem parte do mundo real, mas de um mundo não real, fictício. Esse desejo é enfatizado pelo uso da forma verbal no subjuntivo. Em relação à adequação ao gênero, o conteúdo e a linguagem poética utilizados apresentam uma unidade de sentido. Nota-se a organização em versos e estrofes adequados; as rimas ocorrem em posições diferentes em cada quarteto, sendo emparelhadas, no primeiro e interpoladas no segundo. Não há regularidade em relação à classificação das rimas, os alunos desconhecem esses conceitos. Repetese a expressão que horrível isso, o que enfatiza poeticamente o olhar do autor sobre assuntos tão sérios. O poema, apesar do predomínio da linguagem denotativa, aproxima-se da conotação abstrata, ao contrapor mundo real x mundo fictício. As marcas de autoria são notadas no emprego do verbo em primeira pessoa e no juízo de valor reforçado pelos versos Não é justo isso / que horrível isso e no desejo de que as atitudes horríveis não fizessem parte do mundo real: queria que a realidade fosse um mundo fictício. No limite, seria possível interpretar a presença da utopia – termo que o jovem poeta sequer deve conhecer, mas que me ocorre, diante da proposta quase impossível que ele propõe. A quarta produção poética a ser analisada apresenta estrutura composicional diferente dos anteriores. A técnica, aplicada durante as oficinas de poemas consistiu em trabalhar com parte da estrutura do texto fixa, para os alunos completarem as demais partes (apresentadas no poema em negrito). Tu Dizes Tu dizes sonhar e logo penso em brincar Tu dizes mentir e logo penso em partir Tu dizes morrer e logo penso em viver Tu dizes descansar e logo penso em viajar Tu dizes isto e logo penso naquilo. (Aluno D) TARABORELLI, Luciana | 2020 | p. 136-145 144 A escrita de poemas e o aluno agente: contribuições para o diálogo O que chama a atenção é o padrão seguido para compor o 3º verso de todas as estrofes: penso em: verbo pensar seguido da preposição em; na última estrofe, contraída com o pronome aquilo. Penso em três aproximações, inspiradas no que Lewin (1975) denomina acoplamentos: 1. o fato de a expressão penso em estar na mesma posição em todos os últimos versos; 2. por exercer a mesma função sintática; 3. por reiterar a mesma classe gramatical. Na última estrofe, nota-se, ainda, o caráter dialógico do poema pelo uso dos pronomes isto e aquilo que nos remete ao poema (e à obra) Ou isto ou aquilo, de Cecília Meireles. Esse poema estava em uma das caixas usadas nas oficinas de leitura. O aluno provavelmente se inspirou no poema ceciliano, embora ele trate de outra temática, ao utilizar as palavras isto / aquilo saindo do padrão de rimas utilizadas nas estrofes anteriores, formadas por verbos no infinitivo (-ar, -er, -ir). Suponho que o letramento literário, ampliado pelas oficinas destinadas à leitura de poemas, influenciou a escrita discente. Considerações finais A análise do corpus, em termos de autoria, mostra que os alunos se apresentam como sujeitos–autores, ao trazer seu repertório e suas experiências pessoais para o texto poético. As atividades de leitura, escrita e análise de poemas não só possibilitaram o reconhecimento da estrutura composicional do gênero poético, mas também o acesso à leitura literária para fruição e criação artística. Os alunos conheceram grandes autores e demonstraram ter se apropriado de elementos dos textos canônicos, uma vez que as criações discentes apresentam traços dialógicos em interação com os poemas lidos. O trabalho com o poema em sala de aula também proporcionou um processo de ensino aprendizagem significativo, por ampliar ao letramento literário, proporcionar a progressão leitora, ampliar a visão léxico-semântica, devido às escolhas linguísticas necessárias à construção do poema e valorizar a questão da autoria com ênfase no aluno agente. Os poemas apresentam pontos de vista críticos sobre fatos do cotidiano e um posicionamento marcado, em relação a injustiça social, fome, miséria, morte. Esses pontos de vista ilustram o conceito de agência e favorecem o diálogo, pois a motivação do processo de autoria leva os alunos a criar poemas e a se tornarem interlocutores de outros poetas e de seus [futuros] leitores. Pelo que pudemos observar, o percurso de leitura de poemas durante as oficinas de poemas contribui para um processo de formação de leitores e escritores críticos ainda em formação. As produções poéticas apresentadas aqui são iniciais e os resultados parciais, pois as pesquisas seguem em andamento. O que podemos afirmar é que se trata de um trabalho que inter-relaciona a leitura literária, a escrita e a fala, uma vez que muitos efeitos de sentidos e construções imagéticas presentes no poema só são percebidos quando o texto poético é lido em voz alta. O processo encaminha a formação do leitor literário crítico e autônomo, que consegue depreender os TARABORELLI, Luciana | 2020 | p. 136-145 145 Discurso e poder: teoria e análise diferentes níveis de significado não só do poema, mas de outros textos que venha a ler, nas mais diversas práticas sociais. Referências bibliográficas BANDEIRA, Manuel. Estrela da Vida Inteira. 20ªed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. Trad. Maria Ermentina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1997. BAZERMAN, Charles. Gênero, Agência e Escrita. São Paulo, Cortez, 2011. 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Como citar TARABORELLI, Luciana Ferreira. A escrita de poemas e o aluno agente: contribuições para o diálogo. In: GONÇALVES-SEGUNDO, Paulo Roberto; ARAES, Célia Regina; CASTANHEIRA, Claudia; ISOLA-LANZONI, Gabriel; PENITENTE, Natalia; WEISS, Winola (orgs). Discurso e poder: teoria e análise. São Paulo: FFLCH/USP, 2020, p. 136-145. DOI: 10.11606/9786587621241 TARABORELLI, Luciana | 2020 | p. 136-145 146 Perspectiva conceitual e prática do ensino de sujeito gramatical em livros didáticos Perspectiva conceitual e prática do ensino de sujeito gramatical em livros didáticos Murilo de Castro TEVES Universidade de São Paulo [email protected] Resumo: Este texto tem como objetivo discutir os resultados obtidos pela análise do enquadramento da categoria gramatical sujeito nos livros didáticos aprovados no Programa Nacional do Livro e Material Didático (PNLD 2017 e 2018). O corpus de pesquisa é composto por 7 livros, dos quais 4 são do Ensino Fundamental: Anos Finais – “Para Viver Juntos”, “Português Linguagens”, “Projeto Teláris” e “Singular e Plural” - e 3 são do Ensino Médio – “Esferas das Linguagens”, “Se Liga na Língua” e “Ser Protagonista”. Para isso, serão enfocadas duas dimensões (i) a conceitual, em que serão apresentadas as definições e as tipologias presentes em cada coleção, buscando, assim, verificar possíveis afastamentos ou aproximações tanto com a gramática tradicional quanto com a gramática funcionalista; (ii) a prática, em que serão discutidos os tipos de exercícios propostos, de forma a debater seu potencial para a conscientização do aluno no que tange à produção e à reconstrução de significado. Depreendemos, quanto à dimensão conceitual, a tendência de restrição de sujeito a poucos critérios, o que não contempla toda a complexidade da categoria, mas não se afasta da literatura linguística; e, quanto à prática, detectamos um número exacerbado de exercícios que não fornecem oportunidade para a reflexão sobre a significação da categoria, ainda que haja um grupo de atividades voltadas a verificar o significado atribuído à frase pelos diferentes tipos de sujeito. Palavras-chave: Sujeito; Livro Didático; Funcionalismo; Ensino; Gramática. Introdução Neste artigo, analisamos sete livros didáticos de língua portuguesa aprovados pelo Programa Nacional do Livro e Material Didático (PNLD) 2017 e 2018, no que tange à sua abordagem sobre a categoria gramatical sujeito a partir dos seguintes critérios: (i) grau de aproximação e distanciamento das definições de sujeito em relação às teorias linguísticas; (ii) grau de autonomia da categoria sujeito dentro dos livros; (iii) grau de aproximação do ensino a um polo formal e classificacionista, ou ao polo discursivo/textual, orientado à (re)construção do sentido. TEVES, Murilo de Castro | 2020 | p. 146-170 147 Discurso e poder: teoria e análise Aqui, serão apresentados os dados resultantes dessa análise, que se deu tanto no âmbito dos modelos teóricos utilizados para a definição do recurso gramatical sujeito, quanto nos exercícios empregados, segundo suas categorias. A análise do modelo de ensino empregado embasa-se na vertente funcionalista da linguística e foi guiada pelo critério da aproximação ou distanciamento das abordagens didáticas à competência linguística do estudante e às teorias linguísticas que embasaram tanto estudo dessa competência quanto à proposta de ensino. Observamos, também, o grau de independência do recurso dentro do livro, ou seja, se há um capítulo que trata exclusivamente do ensino da categoria gramatical considerado de alta independência; se é ensinado em conjunto com o predicado, considerado de média independência; e se está incluso em um capítulo comumente chamado de “termos essenciais da oração” (ou uma versão similar que conserva o mesmo significado), em que é ensinado ao lado do predicado, do objeto e do predicativo, apresentando baixa independência. O estudo dos exercícios empregados foi realizado segundo uma tipologia que será apresentada adiante. O corpus utilizado para tal considera todas as atividades presentes no capítulo em que a categoria sujeito é tematizada. O estudo do modelo de ensino gramatical é empreendido por mais de uma corrente da Linguística, entretanto, escolhemos o Funcionalismo, por conta da intenção de produzir nos alunos uma visão crítica, domínio ao utilizar os recursos da gramática e consciência dos efeitos de sentidos na produção e interpretação de textos orais ou escritos. Buscamos, portanto, “trabalhar com a competência comunicativa do falante” (TRAVAGLIA, 2002, p. 156), que servirá, também, de critério avaliativo. 1 O ensino de gramática normativa na escola No contexto escolar brasileiro, o ensino de gramática está passando por momentos de dificuldades quanto à sua efetividade. A isso, vários fatores podem ser identificados, dentre eles, o modo como o ensino é proposto pelas escolas, a relação do aluno com o material que está estudando e as estratégias utilizadas pelos autores dos livros didáticos. Aqui serão expostos, de forma breve, pressupostos teóricos e práticos quanto às mudanças que entendemos ser devidas ao ensino de gramática nas escolas. Segundo a pesquisa de Desiderato (2006, p. 1056) sobre o interesse dos alunos nas aulas de português, a opção “não demonstram interesse” teve o maior número de votos. A isso, podemos atribuir, dentre outras causas, o modelo empregado nas escolas e nos livros utilizados, que parece contribuir com a mecanicidade e a repetitividade de um ensino que separa seu objeto de estudo dos sentidos e atribuições práticas que ele pode ter, em uma relação dialética entre o tipo de conhecimento cobrado nos vestibulares e o que é ensinado no material didático. Consoante Gonçalves-Segundo (2017), o ensino de língua portuguesa passou por uma reorientação. Partiu de um modelo que privilegiava estratégias de ensino TEVES, Murilo de Castro | 2020 | p. 146-170 148 Perspectiva conceitual e prática do ensino de sujeito gramatical em livros didáticos associadas à transmissão de normas advindas da chamada “variação culta da língua”, com produções textuais que se baseavam em modelos desconectados da realidade dos alunos e interpretação de texto que não despertava o olhar crítico por estar voltada “para a depreensão de um conteúdo potencialmente único e plenamente intencional” (GONÇALVES-SEGUNDO, 2017, p. 141). Contudo, ocorreu uma reorientação do ensino para um modelo que traz, além do trabalho com a norma culta, a possibilidade de o discente aprender a produzir gêneros textuais distintos e associados a sua realidade, assim como uma visão crítica conectada à interpretação textual. Este avanço não compreendeu, contudo, o estudo do(s) sentido(s) que os recursos gramaticais atribuem à oração em que estão inseridos. Deste modo, baseados nos estudos de Travaglia (2002, p. 136), assumimos a postura de “a) ensinar a língua, o que resulta em habilidade de uso da língua e b) ensinar sobre a língua, o que resulta em conhecimento teórico (descritivo e explicativo) sobre a língua e pode desenvolver a habilidade de análise de fatos da língua.” O ensino de língua não pode se ater, portanto, apenas ao “ler e escrever […] e a expressar-se corretamente” (VIEIRA, 2017, p. 65), e sim, ser voltado à competência linguística do falante, permitindo que este possa usar a língua de forma consciente e eficiente para gerar e compreender os efeitos de sentido que tencionará alcançar e com que se deparará. Para que a competência comunicativa do falante seja trabalhada, faz-se necessário que diferentes variações contemporâneas da língua sejam abordadas em contexto de aula, como discorre Sousa (2012, p. 683)1, uma vez que isso possibilita que os alunos trabalhem com dialetos e gêneros textuais com que costumam ter contato, além da promoção do exercício de cidadania e da diminuição do preconceito linguístico, que resultaria da mudança de visão sobre as variações. Isso é necessário porque o discurso não pode ser dissociado do contexto sócio-histórico em que está inserido2. Uma vez que os significados podem se expandir e/ou mudar defronte novas realidades, assim como novos signos eventualmente são criados, a semântica e o léxico são constantemente atualizados, o que torna proveitoso, apesar de complexo, um modelo de ensino que se adapte às mudanças. Por fim, Vieira (2017) propõe três eixos que corroboram com o que foi aqui explicitado anteriormente e que servem de guias metodológicos para o aprimoramento do ensino de gramática: Trata-se de focalizar fenômenos linguísticos como: (i) elementos que permitem a abordagem reflexiva da gramática; (ii) recursos expressivos na construção do sentido do texto; e (iii) instâncias de manifestação de normas/variedades (VIEIRA, 2017, p. 71). Dessa forma, cremos, será possível ensinar, conjuntamente aos conhecimentos léxico-gramaticais atualmente abarcados pelos materiais didáticos, as relações Sousa traz considerações sobre um tipo de visão equivocada acerca dos dialetos, que, por terem sofrido uma separação social, são vistos como “falhas” e não como “diversidade”. 2 Gonçalves-Segundo (2017) indica que os estudos empreendidos tanto pela Linguística Textual e Análise do Discurso trouxeram a noção de que o texto é um evento comunicativo que se encontra ancorado no contexto sócio-histórico em que está inserido, não podendo ser dele dissociado. 1 TEVES, Murilo de Castro | 2020 | p. 146-170 149 Discurso e poder: teoria e análise semânticas e discursivas que compõem os textos, permitindo que o aluno possa produzir e avaliar os possíveis efeitos de sentido das estruturas gramaticais, possibilitando sua participação ativa na produção de gêneros diversos e na interpretação crítica do que será consumido. 2 Discussão acerca da categoria gramatical sujeito O recurso gramatical sujeito foi analisado segundo a vertente sistêmicofuncional da linguística, baseada, dentre outros, em Taverniers (2005) e Ataíde (2008); enquanto o estudo de sujeito voltado à gramática do português brasileiro foi guiado pelo trabalho de Castilho (2010). O sujeito se mostra uma categoria gramatical muito resistente a definições categóricas, já que possui diversos traços que atuam conjuntamente na sua instanciação. Por conta disso, Taverniers (2005) destaca que se trata de uma categoria que precisa ser pensada em termos de protótipos. Por conta da possibilidade de apenas alguns traços serem ativados, ocorrem sujeitos menos típicos (ou marginais). A dificuldade da definição de sujeito se dá justamente pela possibilidade de essa categoria ser utilizada sem que todas suas características estejam atualizadas. Isso se dá, por conta da “natureza tríplice de tudo aquilo que é reconhecido como sujeito” (CASTILHO, 2010, p. 289). Tanto Castilho (2010) quanto Ataíde (2008) separam a definição de sujeito em 3 propriedades: a sintática, a semântica e a discursiva. No caso do corpus analisado, percebemos a tendência de trazer o critério semântico separado dos demais, como uma das funções que o elemento pode exercer na oração. As gramáticas tradicionais em que nos baseamos para entender as definições empregadas nos livros selecionados tratam ou do critério sintático ou do discursivo. Desse modo, temos uma seleção do critério que determinará se uma ocorrência é ou não sujeito da oração, moldando os exercícios segundo a definição escolhida e, por conseguinte, limitando a percepção do aluno acerca do potencial significativo da categoria. Se utilizarmos o critério temático, que corresponde à propriedade discursiva do sujeito, recairemos em uma limitação, como aponta Ataíde (2008). Utilizamos a definição de Ventura e Lima-Lopes (2002): O Tema é indicado pela posição que ocupa na oração. Ao falarmos ou escrevermos em português [...], sinalizamos que um item é temático colocando−o em posição inicial. Portanto, o Tema é o elemento que funciona como o ponto−de−partida da mensagem. (VENTURA E LIMA-LOPES, 2002, p. 2). Neste caso, formulações comuns à oralidade3 podem confundir as definições das gramáticas tradicionais, como no tuíte abaixo: “titanic eu assisti ontem”. Optamos por retirar os exemplos de produções não prescritivas das redes sociais, mais especificamente, do Twitter, porque nelas ocorrem e ficam registradas produções que podem destoar das regras gramaticais. Os adolescentes fazem uso rotineiro de redes sociais e estão habituados aos registros dessas plataformas, o que impacta diretamente em seus modelos de escrita. 3 TEVES, Murilo de Castro | 2020 | p. 146-170 150 Perspectiva conceitual e prática do ensino de sujeito gramatical em livros didáticos Figura 1. Exemplo de critério discursivo do sujeito Fonte: https://twitter.com/vampirapirada/status/375664300859207680 Aqui, o termo da oração que está ocupando a função de tema é “titanic”, o que nos levaria a conceituar, segundo a definição tradicional, “titanic” como sujeito da oração, apesar de sintaticamente ele ser o objeto. Contudo, o verbo concorda com “eu”, e o que motiva o deslocamento do substantivo próprio para a posição tópica é a “tentativa de referenciar o termo sobre o qual se dá a importância do enunciado” (ATAÍDE, 2002, p. 50), resultando em uma confusão entre a função de tópico e a função de sujeito. O sujeito pode ser enunciado antes ou depois do verbo, porém, “há uma ordem direta, considerada regular, lógica, analítica, considerada como a ordem base” (CASTILHO, 2010, p. 290), e essa ordem (SVP = Sujeito-Verbo-Predicado), que tende a prevalecer em detrimento da ordem indireta, prevê que o sujeito anteceda o verbo, de modo a propiciar a confusão classificatória em orações como a exemplificada. O que se pode pontuar é que o sujeito tende a “identificar o assunto da oração” (ATAÍDE, 2008, p. 60), o que faz com que seja prototípica a relação entre ser sujeito e ser tema, mas isso não constitui uma regra. Quanto ao critério semântico, Castilho (2010) pontua que o sujeito tende a assumir a posição de agente da oração em que está inserido, mas defende que há verbos que fazem com que o sujeito, mesmo em posição temática e na ordem direta, não assuma agentividade, como no tuíte: Figura 2. Exemplo de critério semântico do sujeito Fonte: https://twitter.com/renatsf/status/1176634337007194113 TEVES, Murilo de Castro | 2020 | p. 146-170 151 Discurso e poder: teoria e análise Tanto na oração com “cortei”, quanto na com “torci” é possível perceber que o sujeito – neste caso, “eu” - não assume função agentiva, sendo afetado pelos eventos descritos. Há, portanto, uma diferença semântica em orações sintaticamente similares. Finalmente, o critério sintático de sujeito “é o critério que marca as relações paradgmática e sintagmática das palavras com o verbo” (ATAÍDE, 2008, p. 57). Segundo esse aspecto, classifica-se como sujeito o recurso gramatical que mantenha a concordância com o verbo. Figura 3. Exemplo de citério sintático do sujeito Fonte: https://twitter.com/loukamaagirl/status/1176122273373274113 Neste tuíte, temos um caso em que é possível confundir a determinação da categoria que está ocupando a posição de sujeito por motivos de tanto “ela” quanto “ele” estarem concordando com o verbo amar, que está na 3ª Pessoa do Singular, de modo a permitir a concordância com qualquer um dos pronomes. Na primeira ocorrência - “ela ama ele” - intuímos que o sujeito gramatical é “ela” por conta da ordem direta da oração, o que demonstra a necessidade de considerar uma pluralidade de critérios para a determinação do sujeito gramatical. Há, dentre os livros analisados, apenas um que trata o aspecto referencial de sujeito, o qual pode ser definido como a possibilidade de localizar ou não o elemento extra ou intratextual ao qual o sujeito está conectado, podendo ser dêitico ou fórico, construindo entidades, portanto, endofóricas ou exofóricas. A questão da observação do contexto da oração é um dos pontos em que os livros analisados mais possuem restrição em seu ensino. Em frases simples, soltas e preparadas para servirem de exemplos do aspecto linguístico que está sendo ensinado, o sujeito é facilmente identificável, o que ocorre normalmente em exercícios de identificação, nos quais o aluno retoma os ensinamentos recém-adquiridos para localizar a categoria gramatical ensinada na oração ou trecho-base. Entretanto, em contextos de uso, temos a ocorrência constante de enunciados complexos pragmaticamente ancorados, nas quais é preciso considerar tanto o contexto textual imediato de uso dos elementos gramaticais (como a função dêitica), quanto ao contexto social em que estão inseridos. Pode-se enunciar verbalmente orações cujo referente só pode ser identificado por conta do contexto. TEVES, Murilo de Castro | 2020 | p. 146-170 152 Perspectiva conceitual e prática do ensino de sujeito gramatical em livros didáticos Podemos observar um exemplo no tuíte abaixo, em que a primeira oração tem um sujeito com referente não identificado. Neste caso, basta continuar a leitura para localizar o referente de “ela” - que também ocupa a posição de sujeito gramatical. Sem a continuação do texto, as possibilidades de referentes seriam tantas que o leitor teria dificuldade em localizá-lo. Figura 4. Exemplo de referencialidade do sujeito Fonte: https://twitter.com/caminaly/status/1175393957666263040 A gramática tradicional, e os livros didáticos que nela se baseiam, ensinam o sujeito, muitas vezes, em exemplos restritos, exigindo pouca reflexão do estudante e distantes de qualquer tipo de consideração sobre o contexto de uso. O ensino de gramática se mostra favorável a um modelo que utilize diferentes contextos, com exercícios que levem o discente à reflexão quanto aos diferentes efeitos de sentido que a categoria pode gerar, tanto em contextos gramaticais diferentes quanto em gêneros textuais distintos. Com base no feixe de características que delimitam o sujeito prototípico, analisamos a proximidade e o distanciamento das definições teóricas empregadas na definição da categoria gramatical pelos livros. O diagnóstico aponta a tendência à restrição a um feixe de característica, concordância ou tema, ou a restrição a esses dois mesmos feixes. Isso demonstra predileção por definições com base na gramática normativa e tradicional, uma vez que tais feixes são empregados em gramáticas influentes, como a de Bechara (1999) e a de Cunha & Cintra (1985), apesar de não apresentarem um total distanciamento das teorias linguísticas. Esses são os traços de características trazidos pelos livros que selecionamos. Em nossa análise, percebemos que o sujeito possui outros feixes característicos que poderiam ser abordados para uma compreensão mais completa da categoria, de modo a totalizar um total de 5 características que podem ser ou não ativadas nas ocorrências em que se busca determinar o sujeito. Entendemos, deste modo, que o sujeito prototípico: (i) tende a realizar a ação enunciada pelo verbo (causalidade); (ii) está conectado e ativa, na norma padrão, a concordância com o verbo (concordância); (iii) tende a construir entidades, referentes exofóricos ou endofóricos (referencialidade); (iV) tende a ocupar a posição de tema da TEVES, Murilo de Castro | 2020 | p. 146-170 153 Discurso e poder: teoria e análise oração (topicalidade); (V) constituem-se como argumentos externos do verbo (predicação). O tuíte abaixo traz um exemplo típico na oração Eu comprei um livro: Figura 5. Exemplo de sujeito prototípico Fonte: https://twitter.com/AnaLuisaafm/status/1175116406058356736 Estes exemplos servem de base para percebermos que é perigoso nos restringirmos a um único aspecto que defina o sujeito, já que a identificação deste elemento tende a demandar a consideração de um feixe de processos, e não de uma característica geral. Quando são considerados mais de um aspecto para identificar essa categoria gramatical, torna-se possível trabalhar com a diversidade de potenciais de significado dos sujeitos, manipulando cada um desses traços e discutindo, reflexivamente, com os alunos tanto o funcionamento da língua quanto os impactos referentes às diversas alternativas de usos. 3 Análise do uso de sujeito gramatical nos livros didáticos Foram analisados 7 livros, quatro do Ensino Fundamental – Anos Finais (a que chamaremos de EF) e três do Ensino Médio (a que chamaremos de EM), os quais foram divididos segundo o conceito de sujeito empregado como definição teórica. Escolhemos esse modo de separação por conta da grande similaridade de definições de sujeito das quais os livros fazem uso, e o corpus foi selecionado justamente por compreender esses grupos de definições. São elas: a definição segundo seu caráter discursivo, empregada pela gramática de Cunha & Cintra (1985); segundo seu critério sintático, compreendida pela gramática de Bechara (1999); e os livros que utilizam ambas as definições anteriores. Apenas um dos livros abarca a definição de sujeito discursivo, que, apesar de destoar dos outros livros analisados, está inserido na categoria “Ambas as definições”, uma vez que se baseia nas definições de ambos os teóricos. Dentre os livros analisados, percebemos que as definições eram compartilhadas por mais de uma obra, de tal forma que pudemos separá-los em 3 grupos. Fizemos um recorte do corpus e selecionamos livros que trazem as categorias utilizadas pelos grupos. Eles são exemplares da diversidade de definições, dado que dois livros utilizam a mesma definição que Cunha & Cintra, dois, a mesma que Bechara; e três, ambas as definições. Discutiremos como os livros se apropriam dessas gramáticas, e foi o modo de apropriação que nos levou a selecionar o corpus. O ensino de sujeito norteado apenas por estes feixes de características se mostrou insuficiente, uma vez que 57.14% dos livros didáticos utilizam apenas uma das TEVES, Murilo de Castro | 2020 | p. 146-170 154 Perspectiva conceitual e prática do ensino de sujeito gramatical em livros didáticos características elaboradas por Castilho como definição, enquanto os outros 42.85% fazem uso de duas características por ele destacadas. Apresenta-se, assim, uma limitação do potencial significativo desse recurso, uma vez que a restrição a apenas uma ou duas características não abarca todo o escopo significativo que essa categoria possui, fazendo com que o aprendizado do aluno fique restrito a um ponto de vista menor do que o compreendido pelo recurso gramatical. Os livros didáticos analisados utilizam duas definições presentes na gramática tradicional em seu ensino: (i) a utilizada por Bechara (1999, p. 410), em que o sujeito “[…] deve estar em consonância formal com o núcleo do predicado”, neste caso, os livros utilizam uma paráfrase que sintetiza o que o autor trouxe em sua gramática; (ii) a definição utilizada por Cunha & Cintra (1985, p. 205), de que “o sujeito é o termo sobre o qual se faz uma declaração”, da qual os livros didáticos tendem a citar de forma literal. Faz-se necessário o esclarecimento da ausência de análise no que se refere ao aspecto semântico do sujeito. Fizemos desta forma porque todos os livros o trazem de forma parecida. A concepção trazida pelos livros abarca a noção de sujeito como agente (voz ativa), paciente (voz passiva) e agente-paciente (voz reflexiva). Ademais, o critério de agentividade se mostrou presente somente nos livros do Ensino Médio; nos livros do Ensino Fundamental, esse critério não foi localizado. 3.1 Livros que utilizam o mesmo aspecto que Bechara Começaremos com os livros que utilizam o critério morfossintático abarcado por Bechara em sua gramática normativa-prescritiva de 2002. Nesta seção, temos dois livros - “Se Liga na Língua” e “Ser Protagonista” -, ambos do Ensino Médio. Apesar de o sujeito ser tratado segundo um mesmo aspecto, seu capítulo não possui o mesmo nível de independência nos dois livros e nem a mesma conceituação. Os livros desta seção trazem uma concepção semântica de sujeito no que se refere ao critério de agentividade. Em “Se Liga na Língua”, o sujeito é tratado com um grau de média independência, uma vez que está inserido dentro do capítulo “Sujeito e Predicado”. Neste livro, o ensino é tradicional e restrito a um dado aspecto: “o elemento da frase que comanda a concordância com o verbo” (Figura 6); restringindo-o à definição de “função sintática”, não abordando, por exemplo, os aspectos temáticos que ele pode possuir. Este livro traz, ademais, a concepção semântica de agentividade. Figura 6. Retirada do livro Se Liga na Língua, demonstrando o sujeito utilizado Fonte: Se Liga na Língua (2016, p. 241). “Ser Protagonista”, entretanto, inclui o sujeito dentro de um capítulo de baixa autonomia, chamado “Termos essenciais da oração”, na qual o sujeito está inserido na seção “Sujeito e Predicado”. Neste livro, temos uma abordagem que abarca um maior TEVES, Murilo de Castro | 2020 | p. 146-170 155 Discurso e poder: teoria e análise espectro de aspectos porque, apesar de conter a definição de Bechara, completa com discussões oriundas da ciência linguística: “é o argumento projetado pelo verbo de uma oração, com o qual ele concorda em pessoa e número” (Figura 7). Este livro abarca, também, a concepção semântica de agentividade. Figura 7. Retirada do livro Ser Protagonista, demonstrando o sujeito utilizado Fonte: Ser Protagonista (2016, p. 173). 3.2 Livros que utilizam o mesmo aspecto que Cunha & Cintra Quanto aos livros que utilizam a definição que abarca apenas o aspecto temático (definição tradicional de Cunha & Cintra) do sujeito, temos os livros “Singular e Plural” (Figura 8) e “Para Viver Juntos” (Figura 9), ambos do sétimo ano. Figura 8. Retirada do livro Singular e Plural, demonstrando a definição de sujeito utilizada Fonte: Singular e Plural (2015, p. 259). Figura 9. Retirada do livro Para Viver Juntos, demonstrando a definição de sujeito utilizada Fonte: Para Viver Juntos (2015, p. 174). Esses livros possuem uma definição de sujeito bastante similar, que, essencialmente, é a mesma, a de que “o sujeito é o termo sobre o qual se faz uma declaração”. Os dois livros são bastante tradicionais quanto ao ensino desse objeto, não se aproximando de outras abordagens linguísticas nem abordando outros aspectos do sujeito. Diferenciam-se, entretanto, quanto à independência do capítulo do objeto: “Singular e Plural” o tem inserido em um capítulo chamado “termos que aparecem na construção da oração I: o sujeito e sua relação com o verbo”, o que sinaliza um baixo grau de autonomia; enquanto “Para Viver Juntos” o ensina com um grau mediano de independência, dentro um capítulo chamado “Sujeito e Predicado”. 3.3 Livros que utilizam as definições corroboradas por Bechara e Cunha & Cintra Em relação aos livros que utilizam definições das duas gramáticas prescritivonormativas, temos dois do Ensino Fundamental, “Português Linguagens” (Figura 10) e “Projeto Teláris” (Figura 11), e um do Ensino Médio, “Esferas das Linguagens” (Figura 12). Os dois livros do EF trazem os dois aspectos de sujeito em uma mesma definição: “é o termo da oração que informa de quem ou de que se fala; com o qual o verbo TEVES, Murilo de Castro | 2020 | p. 146-170 156 Perspectiva conceitual e prática do ensino de sujeito gramatical em livros didáticos geralmente concorda”. Suas definições são similares, de modo que podemos hipotetizar que são paráfrases de mesmas fontes. Figura 10. Retirada do livro Português Linguagens, demonstrando o conceito de sujeito analisado Fonte: Português Linguagens (2015, p. 89). Figura 11. Retirada do livro Projeto Teláris, demonstrando o conceito de sujeito utilizado Fonte: Projeto Teláris (2015, p. 200). Figura 12. Retirada do livro Esferas das Linguagens, demonstrando o conceito de sujeito utilizado Fonte: Esferas das Linguagens (2016, p. 326). O livro Esferas das Linguagens (EM), por outro lado, não condensa os dois aspectos em uma única frase, trazendo separadamente as citações das definições empregadas nas gramáticas tradicionais. Conjuntamente a essas noções, o livro traz a concepção semântica de agentividade. Este livro ainda traz outro tipo de sujeito, o sujeito discursivo4 (Figura 13), e é o único de todo o corpus analisado a abordar esse aspecto. O sujeito gramatical é separado do sujeito discursivo, dizendo que aquele “pode ser humano ou não. […] é uma materialidade linguística que dá suporte ao sujeito do discurso, mas só os dois juntos nos habilitam a construir e compreender sentidos”, enquanto este “é necessariamente uma pessoa constituída socialmente; portanto, um agente em interação com outro, exercendo um papel social”. Figura 13. Retirada do livro Esferas das Linguagens, demonstrando o conceito de sujeito do discurso Fonte: Esferas das Linguagens (2016, p. 327). Trouxemos a constatação de que o livro traz o sujeito discursivo, contudo ele não será analisado porque nosso objeto de estudo é apenas o sujeito gramatical. 4 TEVES, Murilo de Castro | 2020 | p. 146-170 157 Discurso e poder: teoria e análise A definição teórica nos livros do EF se mostrou tradicional, abarcando apenas os aspectos sintático e temático do sujeito, restringindo-se a apenas duas das várias características. Por outro lado, o livro do EM traz o aspecto discursivo do sujeito, o que o aproxima de conceitualizações linguísticas menos tradicionais, propiciando abertura teórica quanto ao feixe de características empregado. 3.4 Diagnóstico da análise das abordagens teóricas utilizadas pelos livros analisados Quanto à análise do modelo teórico empregado nos livros didáticos, depreendemos que (i) há uma tendência de restringir a definição de sujeito a um único critério, o que não contempla toda a complexidade do funcionamento da categoria; (ii) há uma tendência de apagar o potencial de significado do sujeito, em especial, a sua referencialidade; (iii) as definições não contemplam completamente o que se descreve na literatura linguística, mas também não a ignoram; (iv) há livros didáticos que utilizam mais de um aspecto teórico do escopo de características que definem o elemento sujeito, o que revela adequação às teorias linguísticas contemporâneas; (v) apenas os livros do Ensino Médio trazem a concepção semântica de sujeito. 4 Considerações sobre os exercícios Utilizamos, como base da análise dos exercícios, uma tipologia de cinco categorias. As categorias serão expostas segundo sua incidência no material analisado. Com a maior ocorrência, temos a categoria de identificação, na qual se deve retomar a definição de sujeito previamente ensinada e localizar as ocorrências em uma frase (normalmente descontextualizada). Em segundo lugar, temos a categoria de interpretação, na qual se devem explicar as relações de sentido entre os eventos de uma narrativa e/ou entre as partes do texto, ignorando, contudo, o objeto de ensino gramatical e sua relação com o sentido; atém-se, portanto, puramente à interpretação do texto. Em termos de média ocorrência nos livros didáticos, temos a categoria depreensão de efeito de sentido, na qual é preciso interpretar o papel que um determinado tipo e uma determinada forma de sujeito impõem à significação da oração. Em seguida, temos as categorias que apresentam baixa incidência, a começar pela classificação, em que se deve determinar qual tipo de sujeito está sendo utilizado em determinada oração, e pela manipulação, na qual se pede que o aluno mude o sujeito de uma frase dada (e que faça nela as mudanças necessárias) de forma a gerar um novo efeito de sentido. Por fim, não encontramos, no corpus, exercícios da categoria produção de efeito de sentido, na qual o aluno tem de aplicar a categoria de sujeito em contextos diferentes, para atingir efeitos de sentido diversos, inclusive em gêneros textuais TEVES, Murilo de Castro | 2020 | p. 146-170 158 Perspectiva conceitual e prática do ensino de sujeito gramatical em livros didáticos distintos, de modo a aumentar a consciência e o domínio do aluno em relação ao uso de sujeito. O gráfico abaixo permite visualizar a distribuição dos 3275 exercícios que compõem o corpus em função dos tipos de atividade anteriormente identificados. Gráfico 1. Distribuição dos exercícios em função da tipologia de atividades Fonte: elaboração própria. A partir deste panorama, podemos perceber a grande predileção dos livros pelos exercícios que compõem as categorias de identificação e de interpretação, com uma grande diferença entre elas, mas ainda maior em relação aos outros tipos identificados. Essa distribuição indica o formalismo presente no ensino induzido por esses livros, assim como demonstra o efeito no estudo e ensino da língua que advém do modelo tradicional. A grande maioria dos exercícios circunscreve-se a categorias que não incitam o pensamento crítico no discente e não buscam gerar reflexão quanto aos aspectos de significação que o sujeito comporta. Ademais, a base dos exercícios dessas categorias tende a ser frases soltas e/ou descoladas de contexto, aumentando ainda mais a sensação de um estudo irrefletido sobre o objeto. Podemos perceber, também, um padrão de crescente dificuldade nos livros, tanto dentro de um mesmo exercício quanto dentro de um mesmo capítulo. Os exercícios com atividades subordinadas (ou seja, aqueles que apresentam um enunciado geral e um conjunto de questões relacionadas, usualmente organizados por letras), tendem a iniciar com identificação e interpretação (não necessariamente nesta ordem), passando para um de manipulação e um de efeito de sentido. Foram analisados somente os exercícios referentes aos capítulos dos livros que tratam do sujeito. Os demais capítulos e exercícios não foram analisados. 5 TEVES, Murilo de Castro | 2020 | p. 146-170 159 Discurso e poder: teoria e análise 4.1 Exercícios segundo suas separações nos livros 4.1.1 Livros que utilizam a definição de Bechara Os livros desta seção - a saber, “Se Liga na Língua” e “Ser Protagonista” possuem mais exercícios de interpretação do que de outras categorias e são, em sua maioria, desconectados da matéria ensinada. Isso mostra ainda uma dificuldade – ou uma resistência, que pode ser muitas vezes editorial – referente ao trabalho da gramática na (re)construção de sentido. Em “Se Liga na Língua”, passa-se a cobrar que o aluno mude elementos da oração (normalmente o verbo) para que se faça modificações que se adequem ao sujeito. E, em “Ser Protagonista”, as questões do final do capítulo são de depreensão de sentido e manipulação, o que demonstra um aumento da dificuldade dos exercícios conforme o término da seção. Gráfico 2. Distribuição dos exercícios nos livros que utilizam o aspecto compreendido por Bechara Fonte: elaboração própria. 4.1.2 Livros que utilizam a definição de Cunha & Cintra A incidência de exercícios de identificação e interpretação é ainda maior nos livros que utilizam a definição temática de sujeito. São os livros “Singular e Plural” e “Para Viver Juntos”. Os exercícios desses livros estão conectados apenas ao aspecto sintático do sujeito e descolados do ensino do sujeito e da teoria ensinada. Em relação ao tópico anterior, proporcionalmente, temos uma incidência pequena de exercícios da categoria depreensão de sentido, o que reforça a sensação de um estudo mecânico. TEVES, Murilo de Castro | 2020 | p. 146-170 160 Perspectiva conceitual e prática do ensino de sujeito gramatical em livros didáticos Gráfico 3. Distribuição dos exercícios nos livros que utilizam o aspecto corroborado por Cunha & Cintra Fonte: elaboração própria. 4.1.3 Livros que utilizam ambas as definições Aqui vemos um aumento na incidência de exercícios de depreensão de sentido, o que demonstra o potencial quanto ao desenvolvimento de leitura crítica no estudante. Nesta seção, temos os livros “Português Linguagens”, “Projeto Teláris” e “Esfera das Linguagens”. Aqui, podemos observar questões que concernem o sujeito ao seu aspecto discursivo e a efeitos de sentido que ele pode gerar na oração. Gráfico 4. Distribuição dos exercícios nos livros que utilizam ambas as definições Fonte: elaboração própria. TEVES, Murilo de Castro | 2020 | p. 146-170 161 Discurso e poder: teoria e análise 4.2 Exercícios segundo suas categorias 4.2.1 Identificação Nos exercícios de identificação (Figura 14), o aluno deve localizar em uma frase solta o sujeito, sem precisar realizar, na maioria das vezes, qualquer tipo de reflexão quanto ao uso ou sentido que essa categoria gramatical dá à frase, sendo comumente maquinais e repetitivos (Figura 15). Seu uso não é problemático, uma vez que demonstra ser um bom modo de revisitar os conteúdos aprendidos e de garantir saberes mínimos para um trabalho de maior complexidade. Entretanto, quando seu uso é exacerbado, comunga a um modelo de ensino irrefletido e mecânico de gramática. Figura 14. Exemplo de exercício de identificação retirado do livro Para Viver Juntos Fonte: Para Viver Juntos (COSTA et al., 2015, p. 175). Figura 15. Exemplo de exercício retirado do livro Português Linguagens Fonte: Português Linguagens (CEREJA & MAGALHÃES, 2015, p. 90). Poucas vezes encontramos exercícios de identificação que exigem mais do aluno. Nesses casos, pede-se que o aluno explique o motivo de determinada forma de sujeito ter sido utilizada, o modo como está marcada (Figura 16) - este caso, entretanto, se aproxima da categoria depreensão de sentido. Figura 16. Exemplo de exercício de identificação retirado do livro Esferas das Linguagens Fonte: Esferas das Linguagens (CAMPOS & ASSUMPÇÃO, 2016, p. 327). TEVES, Murilo de Castro | 2020 | p. 146-170 162 Perspectiva conceitual e prática do ensino de sujeito gramatical em livros didáticos O uso exacerbado desse tipo de exercício restringe o aluno à identificação do sujeito em contextos previamente preparados e comumente distantes da realidade em que o discente está inserido. A distância com a realidade social do aluno aparenta ser um dos grandes motivos da falta de interesse pelo estudo gramatical, já que o aluno não percebe os significados e usos que determinado recurso pode ter em suas interações comunicativas. Um bom exemplo de questão de identificação bem utilizada é a presente no livro Esferas das Linguagens (Figura 16), no qual é pedido que o aluno identifique e explique como estão marcados os sujeitos gramaticais presentes. A questão seguinte desse exercício questiona quanto ao efeito de sentido criado por eles. Nessa questão, observamos elementos que constituem uma boa atividade: a retomada do conceito ensinado e a sua aplicação prática (em relação a identificar os sujeitos) e a depreensão do sentido que o elemento gramatical gera na oração, criando, dessa forma, uma percepção semântica e sintática mais apurada no aluno. 4.2.2 Classificação Poucos são os exercícios de classificação (Figura 17 e 18) que foram utilizados pelos livros didáticos. Os livros analisados tendem a incluir as atividades de identificação dentro de uma seção do capítulo que trata de um determinado aspecto ou forma do sujeito, fazendo com que seja necessário apenas identificar o elemento previamente determinado. Poucas vezes aparecem exercícios em que o aluno tem de categorizar – ainda em frases soltas – o sujeito que foi utilizado, contendo mais de uma possibilidade de escolha. Figura 17. Exemplo de exercício de classificação retirado do livro Para Viver Juntos Fonte: Para Viver Juntos (COSTA et al., 2015, p. 196). TEVES, Murilo de Castro | 2020 | p. 146-170 163 Discurso e poder: teoria e análise Figura 18. Exemplo de exercício de classificação retirado de Projeto Teláris Fonte: Projeto Teláris (BORGATTO et al., 2015, p. 209). Esses modelos de exercícios de aplicação tendem a aparecer nas atividades que encerram os capítulos e retomam os conceitos ensinados, quando todos os tipos de sujeito já foram expostos, demandando que o aluno revisite as teorias. São bons para esse objetivo, uma vez que demandam que o aluno localize e classifique o sujeito, retomando o que foi aprendido ao longo do capítulo. Entretanto, não identificamos casos em que ocorriam qualquer tipo de aprofundamento ou demanda por gerar ou depreender sentido, nem que retomavam as teorias gramaticais, que poderiam estar presentes em casos como “classifique os sujeitos das orações abaixo e indique o sentido gerado na oração” e “explique o motivo de ser usada esse determinado tipo de sujeito.” 4.2.3 Interpretação A segunda maior incidência concerne à categoria da interpretação (Figura 19). Esse tipo de atividade possui um grande potencial, uma vez que exige reflexão, entendimento do contexto e aplicação do conhecimento de mundo. Observa-se uma tendência ao distanciamento do recurso gramatical ensinado, como nos livros didáticos “Para Viver Juntos” (Figura 19) e “Português Linguagens” (Figura 20). Os livros possuem um baixo índice de exercícios de interpretação que possuem relação com a teoria prévia, comumente ligados a questões de conhecimento de mundo e/ou depreensão de determinado sentido; ou ligados ao texto ou à frase de base da questão, mas desconectados do sujeito. Tratando-se da matéria de Português, é importante que esse tipo de exercício esteja presente, já que proporciona ao aluno o desenvolvimento da interpretação de texto. Contudo, é possível e deve-se ter espaço para correlacionar essa categoria de exercício ao ensino do recurso gramatical. TEVES, Murilo de Castro | 2020 | p. 146-170 164 Perspectiva conceitual e prática do ensino de sujeito gramatical em livros didáticos Figura 19. Exemplo de exercício de interpretação retirados do livro Para Viver Juntos. Fonte: Para Viver Juntos (COSTA et al., 2015, p. 175). Figura 20. Exemplo de exercício de interpretação retirado do livro Português Linguagens Fonte: Português Linguagens (CEREJA & MAGALHÃES, 2015, p. 109). Os livros Projeto Teláris (Figura 21) e Esferas das Linguagens (Figura 22), por outro lado, trazem exercícios de interpretação que trazem reflexão - mesmo que separadamente - quanto ao objeto de estudo. No caso de “Esferas das Linguagens”, a questão “d)” pergunta o motivo da mudança da forma do sujeito, de modo que o aluno precisa depreender o sentido tanto da forma anterior, quanto da posterior, para determinar a razão da mudança. TEVES, Murilo de Castro | 2020 | p. 146-170 165 Discurso e poder: teoria e análise Figura 21. Exemplo de exercício de interpretação retirado do livro Projeto Teláris Fonte: Projeto Teláris (BORGATTO et al., 2016, p. 176). Figura 22. Exemplo de exercício de interpretação retirado do livro Projeto Teláris Fonte: Projeto Teláris (BORGATTO et al., 2016, p. 328). 4.2.4 Manipulação Os exercícios que possuem menor incidência são os de manipulação (Figura 23). Nesses exercícios, normalmente pede-se que mude o sujeito de uma frase dada (e que se façam as mudanças necessárias nela) de forma a que se alcance uma nova frase com o sentido que esse sujeito modificado dá a ela (Figura 24). TEVES, Murilo de Castro | 2020 | p. 146-170 166 Perspectiva conceitual e prática do ensino de sujeito gramatical em livros didáticos Figura 23. Exemplo de exercício de manipulação retirados do livro Português Linguagens Fonte: Português Linguagens (CEREJA & MAGALHÃES, 2015, p. 109). Figura 24. Exemplo de exercício de manipulação retirado de Singular e Plural Fonte: Singular e Plural (FIGUEIREDO et al., 2015, p. 271). Esse tipo de exercício gera o domínio do objeto estudado por parte do discente, uma vez que é preciso fazer as mudanças necessárias no sujeito, retomando o que foi ensinado, e aplicar seu conhecimento adquirido, mantendo o sentido e a coesão da frase. É uma categoria com potencial quanto à criação da consciência e domínio do aluno, já que ele terá de trabalhar com o recurso gramatical pensando no sentido global da frase e/ou trecho. 4.2.5 Depreensão de sentido Já os exercícios de depreensão de efeito de sentido (Figura 25) fazem com que os alunos identifiquem o contexto gramatical e discursivo no qual o sujeito está inserido de modo a perceber o motivo de ele assumir determinada forma. Figura 25. Exemplo de exercício de sentido retirado do livro Esferas das Linguagens. Fonte: Esferas das Linguagens (CAMPOS & ASSUMPÇÃO, 2016, p. 327). TEVES, Murilo de Castro | 2020 | p. 146-170 167 Discurso e poder: teoria e análise Podemos tomar o livro Esferas das Linguagens (Figura 25) como exemplo de exercícios que fazem o aluno refletir quanto ao sentido criado na frase pelos sujeitos gramaticais. São coerentes e conectados com a matéria ensinada e fazem com o que o aluno reflita sobre o que está aprendendo, características de um modelo de ensino conectado à competência linguística do discente. Em Singular e Plural (Figura 26), temos outro exemplo de exercício desta categoria, em que se pede que o aluno elimine um sintagma nominal em posição de sujeito sem que se altere o sentido da oração. Figura 26. Exemplo de exercício de sentido retirado do livro Singular e Plural Fonte: Singular e Plural (FIGUEIREDO et al., 2015, p. 260). Questões como essas produzem um aumento da capacidade analítica e da percepção semântica, que é necessária tanto na interpretação de textos falados quanto escritos, dos quais ele tem contato, também, para além dos textos escritos, nas situações de uso. 4.2.6 Produção Não encontramos exercícios de produção no corpus analisado, o que caracteriza um déficit no ensino, uma vez que esses exercícios são essenciais para o desenvolvimento do conceito gramatical na realidade do falante. Essa categoria de exercício é a mais indicada para que o discente tenha o domínio completo do que está sendo ensinado. Nela, pede-se que o aluno utilize ativamente o recurso gramatical em um diferente contexto, podendo ser em gêneros textuais distintos, de modo a atingir um sentido determinado anteriormente. Esse tipo de atividade demanda a aplicação prática do elemento gramatical e pode ser realizada em um texto ou situação que seja próxima da realidade do(s) aluno(s), o que a torna mais interessante, ao mesmo tempo que ajuda a desenvolver consciência e domínio do uso do recurso por meio do exercício prático e pela percepção das diferenças de sentido que o uso de determinado tipo de sujeito gera na oração em que está inserido. A ausência dessa categoria de atividades no corpus analisado contribui com a tendência repetitiva e maquinal do modelo de ensino mais utilizado. A distância que o ensino de gramática tem da realidade do aluno parte da noção de língua como um objeto de estudo erudito que está distante do dia-a-dia do estudante, gerando desinteresse. Por isso, é preciso diminuir essa distância com exercícios que geram a TEVES, Murilo de Castro | 2020 | p. 146-170 168 Perspectiva conceitual e prática do ensino de sujeito gramatical em livros didáticos reflexão e fazem com que o aluno identifique o recurso gramatical em seu próprio contexto de vida. 4.2.7 Resultado da análise dos exercícios utilizados nos livros que compõem o corpus Pudemos depreender da análise dos exercícios utilizados (i) o uso exacerbado de exercícios da categoria de identificação, o que parece refletir a orientação de um ensino mecânico e irrefletido de gramática; (ii) exercícios repetitivos e, não raro, desconectados da materialidade textual, que não fornecem oportunidades para que o aluno reflita sobre a significação da categoria; (iii) muitos exercícios de interpretação que, sim, são úteis, mas descolados do ensino da categoria gramatical, o que pode ampliar a percepção de que o ensino de gramática é apenas formal; (iv) falta de exercícios de produção que levem o aluno a dominar o uso de sujeito em diferentes gêneros textuais para atingir objetivos comunicativos diversos; (v) ocorrência, mesmo que insuficiente, de exercícios que verificam as diferenças de significado que o uso de diferentes tipos e formas de sujeitos gera na oração, levando o aluno, por conseguinte, a refletir sobre o uso de sujeito. Considerações finais Partindo do ponto de vista de um modelo que visa trabalhar com a competência linguística e comunicativa do falante, percebemos que as estratégias de ensino hoje empregadas nos livros didáticos precisam ser atualizadas, embora suas qualidades sejam reconhecíveis. É preciso empreender mudanças quanto à produção de um material didático que abra possibilidade para a inclusão dos diversos dialetos presentes, assim como trabalhar com as novas mídias que estão em alta no consumo e produção de textos na sociedade contemporânea. O ensino de sujeito gramatical ainda está restrito à predileção por definições que podem limitar seu potencial significativo, de modo que se faz necessária a inclusão de feixes característicos que compreendam de forma mais completa as contribuições de sentido que essa categoria pode ter dentro das orações e do contexto geral do texto. Apesar da tendência a se afastar das teorias linguísticas que trazem um entendimento mais completo na conceituação da categoria, podemos observar que há, sim, aproximações. Observamos que os livros tendem a restringir a definição da categoria a poucos feixes característicos – concordância, topicalidade e causalidade (apesar desse último critério estar presente somente nos livros do Ensino Médio) -, enquanto na literatura especializada encontramos mais características – referencialidade e predicação -, fazendo com que a aproximação trouxesse um complemento ao aprendizado, tornando-o mais completo. Aproximar-se de teorias mais atualizadas pode resultar na inclusão das variações contemporâneas da língua no ensino e aprendizado, assim como na assimilação dos gêneros textuais que sejam TEVES, Murilo de Castro | 2020 | p. 146-170 169 Discurso e poder: teoria e análise produzidos no momento histórico do aluno, conectando, dessa forma, o aprendizado à realidade do discente. Há, consoante a isso, a necessidade de uma maior quantidade de exercícios que verifiquem as contribuições de significado dessa categoria, assim como a implantação de atividades que exijam que o aluno produza o recurso gramatical em diferentes contextos, de modo a aumentar a chance de criar no aluno a consciência e o domínio dessa categoria no consumo e produção de gêneros textuais diversos. Referências bibliográficas ANTONIO, Juliano Desiderato. O ensino de gramática na escola: uma nova embalagem para um antigo produto. Estudos linguísticos, v. XXXV, p.1052-1061, 2006. Disponível em: http://www.gel.hospedagemdesites.ws/estudoslinguisticos/edicoesanteriores/4publi ca-estudos-2006/sistema06/942.pdf. Acesso em: 04 mai. 2019. ATAÍDE, Cleber Alves de. O comportamento sintático-semântico da categoria gramatical de sujeito em títulos jornalísticos: uma abordagem funcionalista. 2008. 172 f. Dissertação (Mestrado em Linguística e Ensino) - Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2008. 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Português Linguagens. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2015. COSTA, Cibele Lopresti; LOUSADA, Eliane Gouvêa; MARCHETTI, Greta; SOARES, Jairo J. Batista; PRADO, Manuela. Para viver juntos. 4 ed. São Paulo: Edições SM. 2015. FIGUEIREDO, Laura de; BALTHASAR, Marisa; GOULART, Shirley. Singular & plural. 2. ed. São Paulo: Moderna, 2015. ORMUNDO, Wilton & SINISCALCHI, Cristiane. Se liga na língua. São Paulo: Moderna, 2016. Como citar TEVES, Murilo de Castro. Perspectiva conceitual e prática do ensino de sujeito gramatical em livros didáticos. In: GONÇALVES-SEGUNDO, Paulo Roberto; ARAES, Célia Regina; CASTANHEIRA, Claudia; ISOLA-LANZONI, Gabriel; PENITENTE, Natalia; WEISS, Winola (orgs). Discurso e poder: teoria e análise. São Paulo: FFLCH/USP, 2020, p. 146-170. DOI: 10.11606/9786587621241 TEVES, Murilo de Castro | 2020 | p. 146-170 171 Discurso e poder: teoria e análise Discursos velados, vozes silenciadas: análise de notícias sobre situação de rua Natalia PENITENTE Universidade de São Paulo [email protected] Resumo: Neste estudo, objetivamos analisar as correlações entre as práticas sociais e as perspectivas ideológicas em notícias referentes às pessoas em situação de rua – oriundas da esfera discursiva jornalística. Como aparato teórico, utilizamos a perspectiva da Análise de Discurso Crítica (FAIRCLOUGH, 2001, 2003); como categorias linguístico-discursivas de análise, mobilizamos a intertextualidade, o significado lexical, a interdiscursividade (FAIRCLOUGH, 2001, 2003), o sistema de representação de atores sociais (VAN LEEUWEN, 1997); sobre o debate acerca da situação de rua, valemo-nos de Silva (2006, 2009), Rosa (2004), Bursztyn (2003), bem como consideramos a perspectiva ideológica de Thompson (1995). O corpus foi composto por duas notícias, publicadas nos jornais Estado de Minas e Hoje em dia, (2013, 2017). Ao final da análise desses textos, chegamos aos seguintes resultados: constatamos, por um lado, que a intertextualidade está presente no relato direto das pessoas em situação de rua e no relato indireto das pessoas que representam o setor público. Por outro lado, a mídia representa os cidadãos e cidadãs em situação de rua apontando como incômodas. Essa imagem negativa que se cria em torno deles nos leva a observar que elas são vistas apenas pelo viés de seus efeitos sobre as outras populações que detêm um poder aquisitivo superior na sociedade. Palavras-chave: Análise de Discurso Crítica; Situação de rua; Ideologia; Notícia; Questão social. Introdução O interesse centrado nos estudos sobre a situação de rua parte das pesquisas desenvolvidas por dois subprojetos, de Iniciação Científica, intitulados: Discurso e Situação de Rua em Salvador e Região Metropolitana, e Discurso e Situação de Rua no Território de Identidade Baiano: Velho Chico, que foram desenvolvidos entre 2016 a 20181, na UNEB, com financiamento da Fundação de Amparo à pesquisa da Bahia (FAPESB). Ressaltamos que a pesquisa envolve outros discentes dos estados do nordeste (um em pós-doutorado; oito com Iniciação Científica). 1 PENITENTE, Natalia | 2020 | p. 171-193 172 Discursos velados, vozes silenciadas: análise de notícias sobre situação de rua Em continuidade aos estudos sobre o tema, bem como na perspectiva de tanto aprofundar os estudos sobre a linguagem como prática social, quanto investigar criticamente a desigualdade, selecionamos textos jornalísticos de Belo Horizonte (MG), pois a pesquisa integra o escopo maior do projeto Discurso e Situação de Rua, coordenado pelo professor doutor titular Décio Bessa da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), que buscou desenvolver estudos que abarquem esta problemática não só no contexto baiano, considerando a capital e o interior da Bahia, como também em textos jornalísticos de outros estados.. A pesquisa intentou mapear todos os Estados do Brasil, tendo como corpus de análise, de todos os projetos, textos jornalísticos on-line e de grande circulação de cada região pesquisada. Diante dos resultados obtidos no período de pesquisa, notamos como a linguagem relaciona-se com questões ideológicas e sociais, influenciando o modo como as pessoas em situação de rua são representadas em textos jornalísticos. A partir dessas questões, neste artigo, temos como objetivo analisar as correlações entre as práticas sociais e as perspectivas ideológicas em notícias referentes às pessoas em situação de rua – oriundas da esfera discursiva jornalística. Como objetivos específicos, buscamos, especificamente, a) identificar as relações intertextuais entre as notícias sobre a população em situação de rua, b) mapear os discursos preponderantes acerca da referida população, e c) verificar como tal população é representada em notícias jornalísticas. No que se refere à metodologia utilizada (FLICK, 2004), fizemos um levantamento no guia de mídias de Minas Gerais dos principais veículos jornalísticos de grande circulação do Estado, sendo eles: Estado de Minas, Hoje em dia e Tempo2. O período do levantamento das notícias foi de 2013 a 2017, utilizando as palavraschaves: “morador de rua”, “pessoa(s) em situação de rua”, “de rua”. Posteriormente, classificamos as notícias coletadas e as analisamos sob a perspectiva das categorias de análise: intertextualidade, interdiscursividade, significado das palavras e representação dos atores sociais. Como referencial teórico, mobilizamos reflexões em relação à temática desta pesquisa, a partir dos trabalhos de Silva (2006), Rosa (2004), Bursztyn (2003); Silva (2017), Santos (2003); Pinto (2007); Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (BRASIL, 2008), dentre outros. Em relação à Análise do Discurso Crítica (ADC), as principais referências foram: Fairclough (2001, 2003), Bessa (2009); Silva (2009); Resende (2011, 2014); e sobre a ideologia, valemo-nos da concepção de Thompson (1995). Entendemos que são de ampla relevância as pesquisas e estudos sobre a problemática da situação de rua, vivenciada por cidadãos e cidadãs no Brasil. Bessa (2009) destaca ser necessário investigar, compreender, analisar; para propor uma mudança social, essas ações devem correlacionar-se constantemente. Compreendemos, a partir das pesquisas desenvolvidas, que a questão social de as Encontramos 188 notícias no total dos três jornais; para este artigo selecionamos duas do Estado de Minas e Hoje em Dia. 2 PENITENTE, Natalia | 2020 | p. 171-193 173 Discurso e poder: teoria e análise pessoas estarem em situação de rua vem sendo naturalizada, apagada ou distorcida em diversos textos publicados nos jornais ou transmitidos em outros veículos midiáticos3. Observamos que o modo como se representa a questão social em textos tem influência sobre a maneira como a sociedade compreende o problema e reage sobre ele, o que também impacta sobre a forma como pessoas que enfrentam a situação de rua se identificam e se relacionam no tecido social (RESENDE, 2017). O artigo está organizado de maneira a expor as concepções teóricas que sustentam as análises, posteriormente descrevemos o recorte dos dados para análise e, por fim, tecemos as considerações finais. 1 Aparato teórico As discussões elencadas por Fairclough (2001, 2003) sobre a Análise de Discurso Crítica (ADC) referem-se à extensão dos trabalhos em análise de discurso que foram publicados previamente e que apontavam uma análise linguística mais detalhada de textos. Esta linha de pesquisa compreende que a língua é uma parte irredutível da vida social, sendo dialeticamente conectada a outros elementos de vida social, de forma que não se pode considerar a língua sem levar em consideração a vida social. Portanto, o autor pondera que a análise e a pesquisa social devem levar em conta a língua4. A ADC foca na relação estabelecida entre linguagem e práticas sociais que evidenciam assimetrias de poder. O referido autor conceitua ADC como: “[...] a análise de conexões dialéticas entre discurso (incluindo linguagem, mas também outras formas de semiose, por exemplo, a linguagem corporal ou imagens visuais) e outros elementos das práticas sociais” (FAIRCLOUGH, 2003, p. 231). Assim, por meio da perspectiva teórica, podemos descrever, interpretar e explicar a linguagem no contexto sócio-histórico, considerando o discurso como um elemento da prática social. Gonçalves-Segundo (2018, p. 79) pondera que uma ciência crítica deve proporcionar uma reflexão que contribua para uma mudança social efetiva. Esta abordagem crítica do discurso deve tanto levar as estruturais sociais das diversas práticas sociais na qual estamos inseridos, quanto considerar a capacidade dos sujeitos de agir, refletir e resistir para que uma análise realista da tensão entre reprodução e transformação seja realizada. No que se refere a esta questão da ADC ser uma ação transformadora, Fairclough (2015), ao propor uma 3° etapa da ADC, baseando-se nas discussões de Bhaskar, reitera que o objetivo não é apenas uma crítica ao discurso que leva à mudança no discurso, mas sim, usar uma crítica do discurso como um ponto de Esta constatação deu-se após o desenvolvimento da pesquisa nos respectivos anos supracitados. Os dados podem ser acessados no relatório final disponível no Sistema Online de Iniciação Científica (SONIC/UNEB). Destacamos que todos foram sobre a orientação do professor Dr. Décio Bessa da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). 4 Fairclough (2003) apresenta uma discussão mais detalhada das relações dialéticas no capítulo 2 do seu livro. 3 PENITENTE, Natalia | 2020 | p. 171-193 174 Discursos velados, vozes silenciadas: análise de notícias sobre situação de rua entrada para uma crítica da ordem social existente que fornecem razões sólidas para atuar na mudança material de certas áreas. 1.2 Pressupostos teóricos sobre ideologia Conforme Bessa (2009) o léxico ‘ideologia’ é objeto de controvérsia entre diversas abordagens teóricas, entretanto para esta análise optamos pela concepção de Thompson (1995) por sua correlação com os propósitos da Análise do Discurso Crítica (ADC). Para esse campo de pesquisa, a ideologia estabelece e sustenta relações de dominação. Macedo e Vieira (2018, p. 59), ao discutir os conceitos-chave da ADC, reitera que o conceito mais utilizado para ideologia é o de Thompson, na medida em que aponta categorias de análise que perpassam “formas e significados textuais associados a maneiras especificas de representação de (inter)ação e de identificação em determinadas práticas sociais”. Em seu livro, o referido autor descreve modos de operação da ideologia e algumas estratégias típicas de construção simbólica que a eles associados, bem como destaca formas de pensar e de entender a interação entre sentido e poder na vida social, que atuam como sustentáculos de relações de dominação. Thompson (1995), com a intenção de desenvolver uma reformulação para o conceito de ideologia, salienta que existe a necessidade de três aspectos: “[...] noção de sentido, o conceito de dominação e as maneiras como o sentido pode servir para estabelecer e sustentar relação de dominação” (THOMPSON, 1995, p.45). Este último aspecto está relacionado com as formas simbólicas (aspectos de falas, imagens e textos reproduzidas por sujeitos e reconhecidas por eles e outros significados) inseridas nos contextos sociais e de circulação no mundo social. O autor apresenta cinco modos gerais de como a ideologia pode operar, sendo eles: legitimação, dissimulação, unificação, fragmentação e reificação (THOMPSON, 1995). Já aproveitamos para frisar que esses modos não são as únicas maneiras de a ideologia operar, uma vez que o autor tem como objetivo apenas exemplificar e não apresentar uma categorização exaustiva. Nesta análise, identificamos o modo de operação da dissimulação e fragmentação. O primeiro pode ser expresso em formas simbólicas por meio de diferentes estratégias. Uma delas é o deslocamento, em que se tem um determinado objeto ou pessoa como referência e então as conotações positivas ou negativas são transferidas para o objeto ou pessoa. Outra estratégia abordada pelo autor é a eufemização: “[...] Ações, instituições ou relações sociais são descritas ou reescritas de modo a despertar uma valoração positiva”5(p.58). Já a fragmentação, por sua vez, está relacionada às estratégias da construção simbólica: diferenciação – isto é – a ênfase que é dada das distinções, diferenças e divisões entre pessoas ou grupos, apoiando características que impedem de constituir um desafio efetivo às relações existentes; e o expurgo do outro, que envolve a construção de um inimigo, interno ou externo, retratado como perigoso e ameaçador Alguns exemplos: a supressão violenta do protesto é descrita como a “restauração da ordem”; a prisão ou campo de concentração é descrito como um “centro de reabilitação”. 5 PENITENTE, Natalia | 2020 | p. 171-193 175 Discurso e poder: teoria e análise contra os indivíduos e estes são chamados a resistir coletivamente, conforme define o autor: Relações de dominação podem ser mantidas ou sustentadas não unificando as pessoas numa coletividade, mas segmentando aqueles indivíduos e grupos que possam ser capazes de se transformar num desafio real aos grupos dominantes, ou dirigindo forças de oposição potencial em direção a um alvo que é projetado como mau, perigoso ou ameaçador. (THOMPSON, 1995, p.70) Ante o exposto, ao estudar a ideologia, interessa a maneira como o sentido mantém relações de dominação de classe, bem como deve interessar por outros tipos de dominação, tais como as relações sociais estruturadas entre homens e mulheres, entre os grupos étnicos, ou entre diferentes níveis de poder econômico, cultural. Assim, o autor destaca que, ao analisar a ideologia, compreende-se a interação complexa entre sentido e poder. 1.3 Categorias de análise Uma das características da Análise do Discurso Crítica é a utilização de categorias linguísticas no desenvolvimento de análises. Dentre as possibilidades apresentadas pelo autor, para essa pesquisa, delimitamos: Intertextualidade, Significado lexical, Interdiscursividade (Fairclough, 2001; 2003), Representação de atores sociais (Van Leeuwen, 1997). Apresentamos, nas próximas seções, as categorias para as análises linguístico-discursivas. 1.3.1 Intertextualidade Fairclough (2003, p. 243) define intertextualidade como: A intertextualidade de um texto é a presença de elementos de outros textos dentro dele (e então potencialmente outras vozes além da voz do autor), os quais podem estar relacionados (discutidos, assumidos, rejeitados) de várias maneiras. O autor apresenta algumas maneiras de incorporar elementos de outros textos. Se pensarmos em um discurso relatado (escrito ou pensado), é possível não só citar o que já havia sido dito ou escrito em outros textos, mas também resumi-lo, e nisto encontramos a diferença entre o que tem sido chamado ‘discurso direto’ (por exemplo: ‘ Ela disse: “Eu me atrasarei”); e formas do ‘discurso indireto’ (por exemplo: ‘Ela disse que se atrasaria’) (FAIRCLOUGH, 2003, p. 46). Desse modo, conforme o autor desenvolve, intertextualidade refere-se a uma gama de possibilidades. A intertextualidade nos conduz a analisar a sociedade por meio da linguagem; portanto, o que nos interessa principalmente, dentro da perspectiva teórica da Análise do Discurso Crítica, é perceber o que está acontecendo, ou não, quando se identifica, ou não, determinadas marcas de intertextualidade. Buscamos, nesta pesquisa, avaliar em um texto quais ‘vozes’ são ‘autorizadas’ a falar (BESSA, 2009). PENITENTE, Natalia | 2020 | p. 171-193 176 Discursos velados, vozes silenciadas: análise de notícias sobre situação de rua 1.3.2 Significado de palavras A abordagem de Fairclough (2001) sobre significado lexical reflete que somos produtores e intérpretes de textos e estamos sempre confrontados com significados. As palavras têm vários significados, que são ‘lexicalizados’ de várias maneiras. Isto implica dizer que, como produtores, estamos diante de escolhas sobre como usar uma palavra e como expressar esse significado por meio de palavras; e como intérpretes, somos confrontados com decisões sobre como interpretar as escolhas que os produtores fizeram – o valor que atribuímos às palavras. Ressaltamos que essas escolhas/decisões não são de natureza puramente individual, os significados das palavras e as lexicalizações são questões variáveis socialmente, bem como são fases de processos sociais e culturais amplos, conforme expõe o autor. Os modelos alternativos de significado potencial vêm dos textos e os modelos dos ‘dicionários’ harmonizam com textos que são produzidos e interpretados com a orientação normativa para o significado potencial. Os textos criativos são caracterizados pela ambiguidade e ambivalências de significado e pelo jogo retórico com os significados potenciais como recursos em termos de estruturar e reestruturálos de estruturação e reestruturação, incluindo a mudança de limites e de relações entre significados. Fairclough (2001), ao abordar as concepções de Kristeva (1986), destaca que há sempre formas alternativas de significar, de atribuir sentido, o que implica ‘interpretar’ de uma forma particular, de uma perspectiva teórica, cultural e ideológica. Novas palavras geram novos ‘itens lexicais’; a criação de itens lexicais permite conceber as perspectivas particulares dos domínios da experiência segundo uma visão teórica científica, cultural e ideológica mais abrangente. 1.3.3 Representação de Atores Sociais As práticas sociais envolvem conjuntos específicos de representações sociais dos sujeitos, mas nem todos os atores sociais estão incluídos. As representações os incluem ou excluem para servir aos interesses e propósitos das empresas midiáticas em relação aos leitores a quem são dirigidas. Nessa perspectiva, o que se propõe a compreender nesta categoria analítica da Análise de Discurso Crítica é: quais atores sociais são representados nos textos? Em que contextos eles são incluídos ou excluídos? Qual o grau de agência ou afetação linguística lhes é imprimido no texto? Van Leeuwen (1997) fornece um conjunto de categorias relevantes para investigar a representação no discurso. Diante disso, Van Leeuwen (1997) destaca que a exclusão tem sido um aspecto importante da Análise de Discurso Crítica e que algumas exclusões não deixam marcas na representação, apagando quer os atores sociais, quer as suas atividades. Dessa forma, Van Leeuwen (1997) apresenta uma ‘rede’ de possibilidades para a construção das representações dos atores sociais6. Nesta análise, utilizamos as classificações: indeterminação, obstrução, assimilação e coletivização. A partir dessas possibilidades elencadas por Van Leeuwen (1997), pretendemos investigar como as pessoas em 6 Destacamos que o autor apresenta vinte e uma divisões com cinquenta possibilidades. PENITENTE, Natalia | 2020 | p. 171-193 177 Discurso e poder: teoria e análise situação de rua são representadas nos textos jornalísticos, pois ao verificarmos como eles estão sendo representados nos textos colabora para a concepção de como cidadãos e cidadãs nesta situação são construídos discursivamente. Outra maneira de identificar os atores sociais é a assimilação. Segundo Van Leeuwen (1997, p. 194-195), tende-se a individualizar as pessoas pertencentes às elites e assimilar pessoas comuns, enquanto jornais dirigidos à classe trabalhadora, por vezes, individualizam pessoas comuns. Van Leeuwen (1997) destaca dois tipos principais de assimilação: a agregação e coletivização. A agregação desempenha um papel crucial em muitos contextos. Em nossa sociedade, a maioria governa, não só em contextos em que os processos democráticos formais são usados para chegar a decisões, mas também e especialmente noutros, através de opiniões, inquéritos, pesquisa de mercado, conforme cita o autor. É por isto que a agregação é usada para regulamentar a prática e para produzir uma opinião de consenso, mesmo que se apresente como mero registro de fatos. A assimilação pode realizar-se através de um substantivo que denote um grupo de pessoas, como, por exemplo, em ”esta nação”, ao passo que a agregação se realiza através da presença de um quantificador definido ou indefinido, que funciona quer como numerativo, quer como núcleo do grupo nominal. A indeterminação ocorre, conforme Van Leeuwen (1997, p. 198), quando os atores sociais representados como indivíduos ou grupo não são específicos. Costuma ser realizada por pronomes indefinidos, como observamos em: “Alguém pusera flores na secretária da professora”. Neste caso, a indeterminação oculta textualmente o ator social, tratando assim, como irrelevante, a identidade do ator para o leitor. A indeterminação também pode realizar-se através de uma referência exofórica generalizada, exemplo: “Não te deixaram ir para a escola antes de fazeres cinco anos de idade”. Neste caso atribui aos envolvidos um tipo de autoridade pessoal, uma noção de força coerciva. Conforme Van Leeuwen (1997), a indeterminação pode ser agregada, como por exemplo em: (many believe) muitos acreditam, (some say), alguns dizem. A diferenciação distingue um ator social individual ou um grupo de atores sociais de outro ator ou grupo semelhante criando uma diferença entre próprio, outro ou entre nós. 1.3.4 Interdiscursividade Entendendo, conforme Fairclough (2003), discursos como formas de construção/representação de aspectos do mundo, é possível depreender dos textos essas construções/representações e analisar quais são seus efeitos em processos sociais. Nessa perspectiva, é possível perceber e nomear os discursos que estejam nos textos. Os discursos possuem relação com outros discursos, seja de aproximação/concordância, disputa ou oposição. Sendo assim, há relações interdiscursivas em textos. Tanto a interdiscursividade pode apontar para processos sociais que precisam ser questionados quanto para o destaque de um discurso específico dentre outros; pode gerar o mesmo resultado ou ser um elemento diferencial em uma perspectiva de injustiça ou de resistência a PENITENTE, Natalia | 2020 | p. 171-193 178 Discursos velados, vozes silenciadas: análise de notícias sobre situação de rua práticas desiguais que provocam prejuízo a seres humanos. Fairclough (2003) especifica os tipos de discurso que estão traçados na amostra discursiva em análise e como isso é feito. O autor destaca que uma interpretação da interdiscursividade deve ocorrer por meio do texto, mostrando que a interpretação discursiva é compatível com as características do texto analisado. Dessa forma, Fairclough (2003) reforça que discursos, gêneros e estilos são elementos de textos e são também elementos sociais. Nos textos eles são organizados em relações interdiscursivas, relações nas quais diferentes gêneros, discursos e estilos podem ser 'mesclados’, articulados de maneira particular. 2 Situação de Rua no Brasil: Contexto Histórico e Social Nesta seção, pretendemos discorrer a respeito dos possíveis fatores históricos que colaboraram para o problema social enunciado pela mídia como “morar na rua”, no Brasil, bem como expor as diferentes escolhas lexicais adotadas para referir a elas. Rosa (2005)7 assinala que o número expressivo de pessoas que utilizam espaços públicos nas grandes e médias cidades brasileiras não se trata de uma questão isolada dos problemas ocorridos na sociedade no tocante às mudanças intensas no mundo do trabalho e no âmbito do Estado. A partir da compreensão de que as crises econômicas teriam levado trabalhadores ao desemprego e alguns às ruas, a autora pontua os possíveis fatores que contribuíram para a existência de pessoas vivendo nas ruas. Um dos fatores está, intimamente, ligado ao modo como a sociedade brasileira se organiza, em um processo concentrador de renda, com desigualdades, alterações econômicas, bem como o desemprego e o agravamento das más condições de reprodução da vida urbana, como, por exemplo, a moradia e a saúde. Para Silva (2006), a existência de pessoas em situação de rua vincula-se aos fatores estruturais, como ausência de moradia, inexistência de trabalho e renda, mudanças econômicas e institucionais de forte impacto social; fatores biográficos, como alcoolismo, drogadição8, rompimentos dos vínculos familiares, doenças mentais, perdas de todos os bens, também desastres, como enchentes, incêndios, terremotos etc. Conforme assinala a autora, existem várias causas de “ir para rua”, assim como são múltiplas as realidades das pessoas em situação de rua. Rosa (2005) pondera que essa heterogeneidade é um elemento importante quando se deseja conhecer a realidade das pessoas que utilizam as ruas e os albergues “[...] de forma circunstancial ou como modo de vida” (ROSA, 2005, p. 44). Essa aproximação qualifica e enriquece o tratamento analítico, uma vez que contempla a ideia de processo. Ainda, outro fator exposto por Rosa (2005), refere-se ao desenvolvimento capitalista e as transformações sociais advindos do processo de globalização. Dessa No estudo Vidas de rua, destino de muitos, Rosa (2005) fez um levantamento de reportagens da imprensa escrita referentes às pessoas em situação de rua na cidade de São Paulo. 8 Conforme o Dicionário online de Língua Portuguesa, o termo drogadição significa: “Consumo excessivo e insistente de drogas, de substâncias entorpecentes e alucinógenas, que causa dependência”. Disponível em: https://www.dicio.com.br/drogadicao/. Acesso em: 16.11.2018. 7 PENITENTE, Natalia | 2020 | p. 171-193 179 Discurso e poder: teoria e análise maneira, os trabalhadores não conseguem acompanhar as mudanças dos setores em que trabalham e da sociedade, assim, sofrem os efeitos do mercado de trabalho. Sobre essa questão, Pinto (2007) ressalta que esse contexto de transformação social determina a ‘exclusão social, bem como se apresenta “[...] complexificada e diferenciada neste início de século. O mundo capitalista, neoliberal, colabora para esse feito” (PINTO, 2007, p. 20). Segundo a pesquisadora referida, o mercado de trabalho mostra-se cada vez mais exigente e excludente. Maggio (2016) faz uma reflexão sobre o desenvolvimento capitalista e a internacionalização da economia, a urbanização acelerada, a hegemonia neoliberal, entre outros termos que representam a nova ordem mundial, os quais têm produzido, entre outros efeitos, um aumento considerável da exclusão social. Consequentemente, tal aspecto suscita possíveis rupturas sociais capazes de comprometer o avanço de uma sociedade democrática. Ademais, Maggio (2016) apresenta uma discussão sobre os direitos fundamentais das pessoas em situação de rua. Ainda destaca que essas pessoas são vistas pela mídia9 como um grupo que oferece risco e não como um grupo que está em risco. Bursztyn (2003) relaciona causalmente a situação de rua às desigualdades e dessemelhanças sociais causadas pelo capitalismo, responsável por empurrar crescentes contingentes de pessoas para patamares inferiores de riqueza e bem-estar. Conforme o autor, a lógica de funcionamento do capitalismo produzia uma perversa segregação e o universo dos novos ricos não era extensivo a todos. Nos países centrais, um grupo (ainda que reduzido) ficava à margem, enquanto, nos países periféricos, um conjunto importante de pessoas não encontrava um modo de engajarse, diretamente, no sistema econômico. Na medida em que os países subdesenvolvidos seguiram a via capitalista, a diferença entre o centro e a periferia tenderia a ser, então, notadamente, quantitativa (BURSZTYN, 2003). Por conta das mudanças ou tendências sociais, cresce a “[...] população de rua, sem-teto, homeless”10 (BURSZTYN, 2003, p. 42), essa se junta aos desvinculados do mundo do trabalho. O autor salienta também que a miséria pode criar contextos de exclusão no mundo contemporâneo, e isso tem se tornado objeto de preocupação por parte do poder público há pelo menos quatro séculos. Outra perspectiva abordada por Rosa (2005) diz respeito à diversidade de expressões utilizadas para nomear as pessoas que usam os espaços públicos para morar e sobreviver ao longo das três últimas décadas (BESSA, 2009). A princípio o termo marginalizado era utilizado para qualificar os trabalhadores que se viam à ‘margem do mercado’, sem opção de trabalho, desempregados; população de rua, para caracterizar um conjunto de pessoas com características sociológicas e psicológicas especiais que se expressam numa dificuldade de adaptação à vida em Para maiores discussões, verificar Santos (2014), que discute a relação entre a mídia e a sociedade, bem como a estratégia de defesa da mídia de desconstruir a imagem das pessoas em situação de rua enquanto vítima de um sistema que privilegia uma parcela mínima da sociedade. Santos (2013) aborda a representação delas nos veículos midiáticos. 10 Trata-se dos termos utilizados pelo autor. Optamos pelo termo ‘pessoas em situação de rua’, pois reflete o caráter circunstancial como processual e transitório (BESSA, 2009). 9 PENITENTE, Natalia | 2020 | p. 171-193 180 Discursos velados, vozes silenciadas: análise de notícias sobre situação de rua sociedade (ex: mendigo, prostitutas, alcoólatras, migrantes, recém-chegados, psicopatas e menores abandonados); trecheiro, para nomear pessoas que se deslocavam a pé de uma cidade a outra, depois ampliado para designar as que se deslocam dentro da cidade; e há uma palavra menos usual: pardais, para nomear os que ficam mais limitados a certos locais e bairros, não andam muito; por fim, os termos sofredor de rua, povo sem casa, o povo da rua e homem da rua surgem para contrapor o preconceito da sociedade. Conforme Rosa (2005), “[...] a troca de termo tem eficácia relativa. Trocam-se os termos, mas não se trocam os comportamentos, e cada termo apresenta limitações à compreensão da diversidade de comportamentos e da heterogeneidade das situações” (ROSA, 2005, p. 65). As denominações são constituídas historicamente e refletem a conjuntura em que são produzidas e revelam, em determinados momentos, preconceito por parte da sociedade e, em outro momento, uma tentativa da construção de conceitos no âmbito acadêmico, em especial, na área das Ciências Humanas, que buscam compreender o modo de vida das pessoas que usam as ruas para morar e sobreviver (ROSA, 2005). Entre as escolhas lexicais mais recorrentes nos textos da mídia11 para representaras pessoas em situação de rua é morador de rua. Compreendemos uma naturalização do processo através do referido termo. Assim, cidadãos e cidadãs estão nessas circunstâncias em decorrência do processo de acumulação capitalista, que amplia as desigualdades sociais e níveis de pobreza, conforme afirma Silva (2017). Diferentemente, neste estudo, optamos pelo termo situação de rua, pois conduz uma compreensão que significa identificar uma circunstância passageira em que pessoas são impulsionadas a uma condição provisória (ROSA, 2004). Após o Decreto Presidencial nº 7.538 de 200912, a expressão pessoas em situação de rua ganhou espaço com a reflexão de um termo processual e transitório. Além dos nomes já mencionados para caracterizá-las, há outras construções – estar na rua, ficar na rua e ser da rua13 – que propiciam a discussão acerca dessa problemática social. De acordo com Rosa (2004), faz-se necessário obter clareza das distinções entre ficar na rua – cujo termo reflete um estado de precariedade de quem, além de estar sem recursos para pagar uma pensão, não consegue vaga em albergue –, estar na rua – expressa a situação da pessoa que adota a rua como local de pernoite e já não a considera tão ameaçadora –, e ser da rua – compreende um processo mais difícil à proporção que aumenta o tempo de rua. Essas distinções dialogam com a discussão que Pinto (2007) realiza acerca do imaginário estabelecido, pela sociedade, sobre as pessoas em situação de rua. Segundo o autor, A partir do levantamento desta pesquisa, observamos que 70% das notícias do corpus utilizam essa designação. Também em uma pesquisa de Iniciação Científica, intitulada Discurso e Situação de Rua em Salvador e Região Metropolitana, contatamos que grande parte das notícias utilizou esse termo. 12 O Decreto institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento e estabelece outras providências. 13 Discussão abordada no livro População de Rua: quem é, como vive, como é vista (ROSA, 2004). 11 PENITENTE, Natalia | 2020 | p. 171-193 181 Discurso e poder: teoria e análise [...] procura-se romper com o imaginário social sobre a população de rua em que prevalece a ideia de que são sujeitos marginais, imprestáveis, maltrapilhos, drogados, malandros. Pretende-se aqui demonstrar outros ângulos da vida do ser das populações de rua apontando suas capacidades e habilidades associadas as suas formas de organização e auto-organização. (PINTO, 2007, p.11). Giogertti (2007) discute, numa perspectiva histórica do Brasil, a desigualdade social e uma reflexão sobre ideologia higienista14, que ocorre com a existência dos cortiços no Brasil, no século XIX, pois não era desenvolvida nenhuma política pública de saúde para os moradores, sendo criada, na sociedade, uma polarização da ideologia de classes: elite versus classe pobre. O pensamento, circulante entre “intelectuais médicos”, se reproduziu no imaginário social por meio da dicotomia ‘dominante versus dominados’. A autora assinala que esse imaginário advém do período da escravidão, mas também das ditaduras que marcaram a sociedade. A autora salienta que o higienismo é um sentimento de inevitabilidade e convivência, que advém de um quadro extremamente desigual. Esse discurso de higienização está, intimamente, ligado à diferença de classes, superando o problema racial. Com a intenção de atender as propostas de formular políticas públicas para as pessoas em situação de rua, no período de agosto de 2007, foi realizada a Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua15. No referido estudo, constata-se a existência de 31.922 adultos nesta situação nos 71 munícipios pesquisados16, vivendo em calçadas, praças, rodovias, parques, viadutos, postos de gasolina, praias, barcos, túneis, depósitos e prédios abandonados, becos, lixões, ferro-velho, ou, pernoitando em instituições (albergues, abrigos, casas de passagem e apoio de igrejas). No entanto, esses dados não são precisos, porque as pesquisas foram realizadas em momentos distintos e com metodologias diferentes, além de não abranger todas as cidades do país, entre elas São Paulo, Belo Horizonte e Recife. Destacamos também a existência de dados recentes do IPEA17 (2016), que estima um total de 112.890 pessoas em situação de rua. Entretanto, os munícipios de São Paulo, Recife, Belo Horizonte e Brasília não foram pesquisados. Ressaltamos a existência de políticas públicas, pois elas existem em duas instâncias: no Decreto Federal nº 7.053 de 10 de março de 200918 e no Decreto Estadual nº 23.836 de 22 de março de 201319. Essas políticas públicas apresentam O discurso higienista aparece em grande parte das notícias coletadas nesta pesquisa dentro do período proposto. Por isso a importância de abordar o termo. 15 Os resultados tornaram-se públicos em abril de 2008 por meio de um Sumário Executivo (BRASIL, 2008). O público-alvo da pesquisa eram pessoas acima dos 18 anos de idade vivendo em situação de rua. A pesquisa partiu de um acordo de cooperação assinado entre a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). 16 Dados do documento da Política Nacional para Inclusão Social da População em Situação de Rua (BRASIL,2008). 17 Fundação Pública Federal vinculada ao Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=28819. Acesso em: 15.08.2017 18 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d7053.htm. Acesso em 10.03.2018 19 Disponível em: https://leismunicipais.com.br/a/ba/s/salvador/decreto/2013/2383/23836/decreto-n23836-2013-institui-a-politica-municipal-para-a-populacao-em-situacao-de-rua-e-seu-comite14 PENITENTE, Natalia | 2020 | p. 171-193 182 Discursos velados, vozes silenciadas: análise de notícias sobre situação de rua princípios, diretrizes e objetivos para o acompanhamento essas pessoas. Uma das ações da política pública é o Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua, doravante Centro POP, previsto no Decreto nº 7.053/2009 e na tipificação nacional de serviços socioassistenciais, constitui-se em unidade de referência da Proteção Social de Média Complexidade (PSE) de Média Complexidade, de natureza pública e estatal. O Centro POP volta-se, especificamente, para o atendimento especializado à população em situação de rua, devendo ofertar, obrigatoriamente, o Serviço Especializado para Pessoas em Situação de Rua (SEPSR). De acordo com o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS, 2016), existem 219 Centros Pop no Brasil, que também dispõe de 129 Consultórios na rua, cujo trabalho é executado por equipes de saúde móveis que prestam atenção integral à saúde dessas pessoas20. Na seção seguinte expomos, os aspectos metodológicos, bem como a análise dos textos jornalísticos. 3 Procedimentos metodológicos e análise do corpus Neste artigo, adotamos uma abordagem qualitativa com base nas concepções de Flick (2004), pois, para o autor, os elementos essenciais da pesquisa qualitativa consistem na escolha correta de métodos e de teorias oportunas, no reconhecimento e na análise a partir de diferentes perspectivas, nas reflexões dos pesquisadores a respeito de sua pesquisa como parte do processo de produção de conhecimento, e na variedade de abordagens e métodos. Nesta linha, o corpus, deste estudo, foi composto por duas notícias em versões online publicadas de 2012 a 201721 nos seguintes veículos de comunicação: Estado de Minas, Hoje em dia22. Trata-se de dois jornais de grande circulação no Estado de Minas Gerais conforme dados da Associação Nacional de Jornais – ANJ (2014)23. Segundo Lira (2009), o jornal mineiro Estado de Minas foi fundado em Belo Horizonte no dia 7 de março de 1928 por Juscelino Barbosa, Álvaro Mendes Pimentel e Pedro Aleixo. O autor ainda ressalta que é um dos jornais diários impressos de maior circulação no estado de Minas Gerais. De acordo com o referido autor, o jornal Hoje em dia foi fundado em 24 de fevereiro de 1998, e nasce com consonância com o novo estado democrático e possui uma linha editorial plural e independente. intersetorial-de-acompanhamento-e-monitoramento-e-da-outras-providencias?wordkeytxt=racial. Acesso em: 10.03.2018 20 Dados extraídos em: http://www.brasil.gov.br/observatoriocrack/cuidado/centro-pop.html. Acesso em: 10.03.2018. 21 O lapso de tempo corresponde ao desenvolvimento da pesquisa no decorrer de um ano, período referente à concessão do financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB); portanto, as notícias selecionadas referem-se à coleta de dados no decorrer desses anos. Também pesquisamos o jornal O tempo, mas, neste artigo, selecionamos apenas dois sites. 22 Também pesquisamos o jornal O tempo. Mas neste artigo selecionamos apenas dois sites. 23 Associação Nacional de Jornais (ANJ, 2015). Disponível em: http://www.anj.org.br/maiores-jornais-dobrasil/. Acesso em: 31.03.2018. Destacamos também que retiramos as informações dos principais sites de grande circulação no site Guia de Mídia. Disponível em: https://www.guiademidia.com.br/jornaisdeminasgerais.htm. Acesso em: 31.03.2018 PENITENTE, Natalia | 2020 | p. 171-193 183 Discurso e poder: teoria e análise Ao ter contato com esses suportes, em cujo ambiente materializou-se o gênero notícia, selecionamos os textos a partir de palavras-chave, referentes aos termos, geralmente, utilizados para nomear as pessoas em situação de rua: “situação de rua”, “morador de rua”, “perambulante”, “mendigo”. Dessa forma, definimos as notícias considerando a tiragem, conforme os dados ANJ, distribuição e a importância dentro do espaço midiático/jornalístico. Após o levantamento dos textos jornalísticos nos referidos jornais de grande circulação, a fim de selecionar para análise, classificamolos conforme expõe o gráfico abaixo: Gráfico 1. Classificação do levantamento das notícias a partir dos dois textos jornalísticos em análise de Belo Horizonte. 40 35 30 25 20 15 10 5 0 Políticas públicas 38 34 Violação dos direitos 28 28 Violência/morte 19 Ação social 9 9 Higienização 6 2 Justiça Notícias de outros estados/países Trabalho Voluntário Outros temas Fonte: elaboração própria. Com base nas informações do Gráfico24, verifica-se um percentual significativo de notícias vinculadas às políticas públicas, nas quais se mobilizam discussões referentes às pessoas em situação de rua, especificamente no que tange coibi-las a frequentarem os espaços públicos, à participação dessas pessoas na elaboração de políticas públicas, à efetivação de investimentos em unidades de acolhimento, aos locais de funcionamento do Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro POP), entre outros. Definimos por duas notícias pertencentes à classificação políticas públicas, pois pretende-se observar o que tem sido feito – por parte das instâncias governamentais – para resolver/reduzir o problema social das pessoas utilizarem os espaços públicos para morar. Título: Seleção do corpus indicando o jornal, título, período de publicação, link do texto e síntese da notícia. (1) Estado de Minas25 – (N1) Moradores de rua de Belo Horizonte respondem ao censo. (28/11/2013). A notícia apresenta dados de um censo feito pela prefeitura de Belo Nos resultados finais da pesquisa, exploramos e explicamos minunciosamente cada classificação e descrição das notícias, entretanto reduzimos essas exposições devido ao recorte no artigo. 25 A notícia está disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2013/11/28/interna_gerais,474257/moradores-de-rua-debelo-horizonte-respondem-ao-censo.shtml. Acesso em: 2 set. 2018. 24 PENITENTE, Natalia | 2020 | p. 171-193 184 Discursos velados, vozes silenciadas: análise de notícias sobre situação de rua Horizonte que aborda a tentativa de fazer a contagem das pessoas em situação de rua e suas dificuldades em identificar pontos de concentração desta parcela de pessoas. A notícia apresenta também entrevistas que mostram o perfil de quem está nesta situação. (2) Hoje em dia26 – (N2) Moradores de rua participam da elaboração de política públicas em comitê estadual. (21/08/2017). Relata que o comitê está traçando estratégias para captar verba para a formulação do Plano Estadual para as pessoas em situação de rua em Minas Gerais, e propõe que as elas participem das discussões. Inicialmente, propõe-se analisar os atores sociais representados textualmente nas duas notícias27. As representações nem sempre são identificados nas notícias pela agência linguística (VAN LEEUWEN, 1997). Na N1, identificamos a representação social de Cristiane Drumond de Brito, que é supervisora e professora de terapia ocupacional da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mencionamos também que ela comandou três alunos de medicina e dois estudantes de terapia ocupacional da UFMG, sendo uma assistente social e um professor de educação física. Ocorre a representação de Lilian Almeida de Paula identificada como assistente social, que entrevistou algumas pessoas em situação de rua, cujas pessoas não foram identificadas. De modo semelhante, Soraya Romina, coordenadora do Comitê de Acompanhamento e Monitoramento da Política Municipal para a População em Situação de Rua. Observamos que as pessoas em situação de rua, que são o alvo da pesquisa na apresentação da notícia, são representadas de maneira indeterminada como: “[...] Sentado entre vários livros que vende debaixo do viaduto, o homem de 42 anos parava para cumprimentar todos que passavam e não hesitou em participar do censo”. Em um relato direto, apresenta-se como “[...] O morador de rua, Anderson Sardinha Guimarães, de 34 anos, foi o relações-públicas do grupo, fazendo abordagens e explicando a pesquisa”. Em outro momento, notamos a representação como “[...] Alguns nem pararam e logo surgiram dificuldades de comunicação”. Nessa última, verificamos a identificação por meio da indeterminação, ou seja, os atores sociais representados como indivíduos ou grupos não são especificados. Essa identificação realiza-se por meio de pronomes indefinidos, segundo Van Leeuwen (1997). Notamos que as pessoas que representam o setor público, na notícia, são categorizadas (VAN LEEUWEN, 1997), pois apresentam suas identidades e funções que partilham socialmente. No que se refere às pessoas em situação de rua, notamos que ocorre obstração28 (VAN LEEUWEN, 1997), pois são representados por meio da categoria que é socialmente compartilhada. Essa perspectiva reflete uma compreensão de que elas são ‘invisíveis’. Santos (2013) discute sobre a invisibilidade delas, caracterizando a rua por ser um espaço de transição, com pessoas em constante movimento de ir e vir. No entanto, esta população, o espaço acaba se tornando um Disponível em: https://www.hojeemdia.com.br/horizontes/moradores-de-rua-participam-daelabora%C3%A7%C3%A3o-de-pol%C3%ADticas-p%C3%BAblicas-em-comit%C3%AA-estadual1.552988. Acesso em: 02.09.2018. 27 Destacamos que realizamos análises de seis notícias no Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), na Universidade Estadual da Bahia (UNEB), mas para este artigo delimitamos duas. 28 “A Abstração ocorre quando os atores sociais são representados por meio de uma referência a um local ou coisa diretamente associada a uma atividade que está ligada” (VAN LEEUWEN, 1997, p. 191). 26 PENITENTE, Natalia | 2020 | p. 171-193 185 Discurso e poder: teoria e análise universo bem diverso do imaginado por quem experiência essa condição, não são visto como ‘visíveis’ na sociedade, ou quando os são identificadas “aceitam olhares invasores que vêm de cima para baixo, ser chutado(a) e ofendido(a) sem motivos” (SANTOS, 2013, p. 48). Ainda, destacamos uma assimilação (VAN LEEUWEN, 1997). Conforme o autor, entendemos a assimilação como a exclusão dos atores sociais no texto, ou uma exclusão em segundo plano, pois os atores sociais excluídos podem não ser mencionados em relação a uma dada atividade, mas consegue-se inferir a relação das pessoas que representam o setor público, embora não seja de maneira direta, como ocorre na notícia. No fragmento da notícia (N1), verificamos essa exclusão em segundo plano quando se diz ‘a prefeitura’: A intenção da prefeitura é compreender o fenômeno que leva as pessoas às ruas para poder ampliar suas políticas públicas. Para isso, o questionário foi dividido em 12 áreas com cerca de 60 perguntas. Entre os questionamentos estão idade, orientação sexual, cor, escolaridade, deficiência física, por que está na rua, moradia, contato com família, higiene, problemas de saúde, transtorno mental, uso de bebida alcoólica ou droga, alimentação, programas sociais, trabalho, violência e preconceito. Este trecho abordado na notícia relaciona-se à discussão mobilizada por Silva (2016) acerca das pessoas em situação de rua viver em um espaço de insegurança constante. O autor assinala que o Estado não consegue garantir a integridade física e moral, bem como esses sujeitos são vistos pela sociedade como um grupo que oferece risco e não como um grupo que está em risco. Conforme Fairclough (2003), a intertextualidade diz respeito às relações entre um texto com outros textos ‘externos’ a ele, dele, embora, de alguma forma, presentes nele, bem como identificar por relatos diretos e indiretos. Na N1, verificamos o relato direto de Anderson Sardinha Guimarães (pessoa em situação de rua): “Convivo com essas pessoas e isso facilita a chegada das equipes”. Outro relato direto de uma pessoa em situação de rua identificada apenas como morador de rua: “Vivo na rua desde os 19 anos, quando meus pais e minha avó morreram. Rodei o país. Não sei se foi depressão. Ainda estou tentando descobrir, riu o “morador de rua”, que diz evitar bebida e drogas”,“Lá tem muita coisa errada e dá confusão. Iria se não fosse assim. Prefiro ficar na rua e comprar minha comida”29. Esse ‘lá’ faz retomada ao uso de albergues ou abrigos. A partir desse relato direto, percebemos uma relação com a pesquisa de Rosa (2004), desenvolvida na década de 1980, na cidade de São Paulo, que deu início ao processo investigativo sobre a ‘população de rua’. Por meio do estudo, a pesquisadora aplicou entrevistas com as pessoas em situação de rua, que utilizavam os albergues e que não atendiam a demanda das instituições. Dessa atividade, a autora registrou os relatos das referidas Dados da Secretaria Municipal de Assistência Social, por meio do Censo da População de Rua de BH, destacam que grande parte (33,5%) das pessoas entrevistadas admitiu falta de interesse pelos abrigos oferecidos pela prefeitura por causa da inflexibilidade de horários e das regras. 29 PENITENTE, Natalia | 2020 | p. 171-193 186 Discursos velados, vozes silenciadas: análise de notícias sobre situação de rua pessoas, que afirmaram ter sido vítimas de maus-tratos por parte das pessoas que os serviam. Diante desse tipo de situação, eles preferiam as ruas. Tem-se o relato direto da assistente social Lilian Almeida de Paula: “É difícil porque não podemos induzir as questões”; “Dois até aceitaram o lanche oferecido – pão com mortadela e um copo de suco – mas se negaram a esclarecer as dúvidas do questionário”. Em todo o texto, se faz presente essas afirmações, abordando as dificuldades de realizar o censo, bem como a resistência, por parte de pessoas em situação de rua, em responder o questionário. Ressaltamos o relato direto da Soraya Romina, coordenadora do Comitê de Acompanhamento e Monitoramento da Política Municipal para a População em Situação de Rua, diz: “Queremos saber o que precisa ser feito para aprimorarmos as políticas sociais”. Nesse relato, notamos uma preocupação, da coordenadora, que no contexto enunciativo representa o Estado, em compreender os motivos que levam as pessoas a estarem em situação de vulnerabilidade nas ruas para aprimorá-las. Observamos, a partir desses relatos, há uma recorrência de casos de violência e agressão. O relato direto na (N1) destaca-se: “[...] apesar da dificuldade, ele30 trouxe informações importantes, como a existência de agressão com os mendigos, roubos e violência sexual”. Nesse enunciado, notamos uma tendência em publicar esses casos nos veículos jornalísticos. Também remete a uma discussão das ponderações de Gomes e Resende (2018)31 sobre as pessoas em situação de rua, que, segundo as autoras, são classificadas como perigosas, mesmo sendo vítima de violência; como incômodas, mesmo sofrendo o incômodo da vida nas ruas; bem como classificadas de oportunistas, mesmo estando na margem periférica do sistema de vantagens desigualmente distribuídas, no modo de produção capitalista. Conforme as autoras “[...] essas classificações, produzidas ordinariamente, e circuladas nos mais variados contextos, reificam a violência” (p.167) No que se refere às escolhas lexicais presentes nas notícias, notamos o uso do termo ‘morador de rua’ no título e durante a representação no corpo do texto. Entendemos a utilização dessas escolhas lexicais para nomear/classificar. A depender da escolha lexical, tem-se um impacto semântico nas práticas sociais, bem como na maneira como representamos os aspectos do mundo. Portanto, o termo mencionado, muitas vezes, colabora com a manutenção do problema social, porque subentende uma situação fixa, além da contradição que se cristaliza: o ‘morar’ na rua. Essas ‘designações’ podem distorcer ou amenizar circunstâncias – considerando também uma ocultação dos direitos de cidadania – no que diz respeito à sociedade como um todo do que a indivíduos. Desse modo, tem-se uma naturalização do problema social em debate com um deslocamento que parece “normal” (BESSA, 2009)32. Nessa perspectiva, identificamos a eliminação, ou, a ofuscação do caráter sócio-histórico dos fenômenos, ou seja, esse modo pode ser expresso por meio da Refere-se ao questionário realizado. Discussão apresentada no artigo Representação da situação de rua no jornalismo eletrônico em textos verbo-visuais – a violência em discurso no Correio Braziliense (2011-2013). 32 No final deste capítulo, apresenta-se um gráfico referente às escolhas lexicais que os jornais utilizam para se referir às pessoas em situação de rua. 30 31 PENITENTE, Natalia | 2020 | p. 171-193 187 Discurso e poder: teoria e análise naturalização (THOMPSON, 1997), sendo um estado de coisas que é uma criação social e histórica na qual é tratada como natural ou como um resultado inevitável de características naturais. Transmite-se uma ideia fixa, como se a pessoa pudesse ‘morar’ nas ruas e como se o acontecimento fosse natural, o que conduz à opressão e à perda de direitos (RESENDE, 2018). No que se refere à interdiscursividade presente na notícia, notamos o discurso de assistência no seguinte relato indireto: “[...] A intenção da prefeitura é compreender o fenômeno que leva as pessoas às ruas para poder ampliar suas políticas públicas. Para isso, o questionário foi dividido em 12 áreas com cerca de 60 perguntas”. O discurso de moradia aparece em duas facetas, primeiro de morar na perspectiva de ter um lugar para residir “[...] Mesmo assim, os que apareceram pelo caminho permitiram entrevistas que vão mostrar o perfil de quem vive nas ruas”, segundo por almejar uma residência. A maioria é homem, de 35 a 50 anos, que veio de outras cidades ou estados. Quase todos os relatos das pessoas em situação de rua apresentaram ter família e local para morar, bem como conflitos com parentes, dependência de drogas ou álcool e problemas mentais que os levaram a escolher uma vida sem teto. O discurso de violência é identificado no seguinte enunciado: “[...] Apesar da dificuldade, ele trouxe informações importantes, como a existência de agressão entre e com os mendigos, roubos e violência sexual”. Também há uma ocorrência do discurso de violação dos direitos humanos33, quando as políticas públicas não atendem as necessidades das pessoas em situação de rua no exemplo a seguir: “[...] Por isso, não usa albergues ou abrigos: “Lá tem muita coisa errada e dá confusão. Iria se não fosse assim. Prefiro ficar na rua e comprar minha comida”. Este relato direto relaciona-se com os resultados da pesquisa de Rosa (2004) desenvolvida em São Paulo, a qual menciona relatos diretos das pessoas em situação de rua com os trabalhos desenvolvidos em instituições públicas e privadas que prestavam serviços; entre eles, chamaram a atenção: os descasos nos albergues com as pessoas em situação de rua; o crescimento da ‘população de rua’; e os albergues que não atendiam a demanda. A partir do relato direto e correlacionando a pesquisa, notamos que há uma reverberação de que isso se repete, mesmo após alguns anos e com os avanços das políticas públicas. Na N2, verificamos a nomeação (VAN LEEUWEN, 1997) de Samuel Rodrigues integrante da coordenação do Movimento Nacional de População de Rua (MNPR), também ocorre a nomeação de Ademilton Gonçalves que esteve em situação de rua, bem como Alex Maciel, 37 anos, representante do MNPR no PopRua. Tem-se a assimilação (VAN LEEUWEN, 1997) no excerto “Os cinco membros que estão em situação de rua e participam do comitê são de Montes Claros (Norte), Juiz de Fora (Zona da Mata), Uberlândia (Triângulo), Ipatinga (Vale do Aço) e Belo Horizonte, as Entendemos como violação de direitos de cidadania os direitos à segurança, saúde, educação, moradia, alimentação. Essa violação de direitos é articulada a diversas formas de violência, pois compreendemos como um problema social que tem impacto sobre amplos setores da população, impossibilitados de usufruir de seus direitos de cidadania e de realizar de maneira plena seu potencial (RESENDE, 2015, p 17) 33 PENITENTE, Natalia | 2020 | p. 171-193 188 Discursos velados, vozes silenciadas: análise de notícias sobre situação de rua duas últimas abrangendo as regiões metropolitanas”. Apresentam-se apenas duas vozes, na notícia, das pessoas em situação de rua. Observamos uma recorrência da não nomeação das pessoas que representam e coordenam a Política Estadual da População em Situação de Rua (PopRua). Tal fato pode ser verificado no trecho “[...] O gestor diz que um dos objetivos”; também em “[...] Essa premissa do Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Estadual da População em Situação de Rua (PopRua), coordenado pela Secretaria de Estado de Direitos Humanos, Participação Social e Cidadania (Sedpac)”. Assistimos que a escolha entre referência genérica e específica é um fator importante na representação dos atores sociais, que podem surgir como classes de indivíduos específicos e identificáveis. A diferença ocorre no modo como os atores sociais são representados por diferentes pessoas (VAN LEEUWEN ,1997). No que se refere à intertextualidade, na N3, verificamos a existência das vozes das pessoas em situação de rua, como, por exemplo, no relato direto de Alex Maciel: “A nossa esperança é que no comitê seja possível juntar as políticas de assistência social, habitação, saúde e cultura em uma política só”; bem como o de Ademilton Gonçalves: “Aluguei um barracão e fui contratado por uma empreiteira. Com a minha experiência, posso levar propostas aos governantes para ajudar quem ainda está na rua”. Nesses relatos, notamos o destaque na fala delas para regulamentar a prática social e para produzir uma opinião de consenso, dando ênfase à atividade que o órgão público quer destacar e isso se apresenta como mero registro de fatos. Outro relato direto que aparece na notícia referida é o de Samuel Rodrigues: “Antes, o governo de Minas nunca tinha assumido uma política para população de rua. Certamente teremos uma política mais sólida se a fizermos de forma participativa”. Notamos, a partir da notícia, um avanço do Estado com políticas afirmativas para as pessoas em situação de rua. Apresenta-se também o relato direto de Tomaz Duarte Moreira, que coordena a iniciativa e representa a Sedpac no grupo: “E buscamos outras fontes de financiamento e parcerias com todos os setores da sociedade”. Por meio desses dois excertos, constatamos uma alteração nos fatos apresentados, pois anteriormente a notícia apresenta que a Secretaria de Estado de Saúde (SES), desde 2015, custeava o programa federal Equipes de Consultório na Rua, que promove atendimento itinerante e permanente em todas as regiões mineiras. Entendemos que fica implícito que as instâncias governamentais não dão conta de resolver o problema das pessoas em situação de rua, necessitando de parcerias com outros setores da sociedade. A notícia apresenta um relato indireto do gestor do Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Estadual da População em Situação de Rua (PopRua), que diz: “[...] O gestor diz que um dos objetivos é propor ações regionais, que acolham as demandas dessa população no interior de Minas”. Identificamos a efetivação de políticas públicas para as pessoas em situação de rua. No que diz respeito às escolhas lexicais presentes no texto, identificamos o termo ‘morador de rua’ para se referir as pessoas em situação de rua. O respectivo termo aparece no título da notícia: “[...] Moradores de rua participam da elaboração PENITENTE, Natalia | 2020 | p. 171-193 189 Discurso e poder: teoria e análise de políticas públicas em comitê estadual”. A presença do verbo transitivo participar integra um sentido partilhar e pressupõe a compreensão de que as pessoas em situação de rua poderão discutir, debater e sugerir uma política de inclusão. Porém, no decorrer da notícia, apresentam-se apenas relatos diretos de aspectos positivos das políticas públicas efetivadas. Isso se relaciona ao aspecto ideológico da dissimulação34 apontado por Thompson (1995), que pode ser expresso em formas simbólicas por meio de uma variedade de diferentes estratégias. Uma delas é o deslocamento que se refere a um determinado objeto, ou uma determinada pessoa para se referir ao outro e com isso as conotações positivas ou negativas são transferidas para o outro objeto, ou, a outra pessoa. Gráfico 2. Escolhas lexicais utilizadas nos textos jornalísticos que nomeiam as pessoas em situação de rua. Sem-teto; 5,29% Pedinte; 1,32% Situação de rua; 4,60% População de rua; 13,24% Andarilhos; 1,98% Morador de rua; 44,30% Mendigo Alcoólatra; 0,60% Mendigo; 28,40% Fonte: Autoria própria. Contatamos uma diversificação dos significados de denominações utilizadas para referir às pessoas que vivem em situação de rua. Certificamos que essas denominações são constituídas historicamente e refletem a conjuntura em que são produzidas que revelam, “[...] ora preconceito pela sociedade e em outro momento uma tentativa da construção de conceitos pelas ciências humanas que buscam compreender o modo de vida singular dos que usam as ruas para morar e sobreviver.” (ROSA, 2004, p.29). Essas questões apontam para uma tendência, conforme a pesquisa da autora apresenta: [...] a troca de termo tem eficácia relativa. Trocam-se os termos, mas não se troca os comportamentos, e cada termo apresenta limitações á compreensão da diversidade de comportamentos e da heterogeneidade das situações. (ROSA, 2004, p.65) Essas nomeações constroem os modos como às pessoas em situação de rua são representadas textualmente nos textos jornalísticos e isso têm influência sobre os modos como a sociedade compreende o problema e reage a ele. Compreendemos, conforme exprime Fairclough (2003), que é por meio da linguagem que o discurso se constrói e representa a realidade social. Este construir e representar impacta as ações O autor distingue cinco modos gerais de como a ideologia pode operar: legitimação, dissimulação, unificação, fragmentação e reificação (THOMPSON, 1995). 34 PENITENTE, Natalia | 2020 | p. 171-193 190 Discursos velados, vozes silenciadas: análise de notícias sobre situação de rua discursivas, seja de forma colaborativa ou na forma de disputas. Com isso, identificálos nos textos colabora para uma percepção do tratamento do problema social em discussão. Aferimos, na N1, os discursos de higienização, inclusão, violação dos direitos humanos, desemprego, preconceito, assistência; na N2, discurso de inclusão, preconceito e assistência. Observamos que os discursos que mais aparecem nas notícias são os de violação dos direitos e o discurso de assistência. Consideramos que todas as notícias tratam sobre políticas públicas (o discurso de assistência) e isto apresenta um aspecto relevante, diante da perspectiva de observar o que tem sido feito para as pessoas em situação de rua, portanto grande parte das notícias discutem a efetivação e o avanço na busca de amenizar o quantitativo das pessoas em situação de rua. Em grande parte das notícias, o discurso de agressão está presente.35 Elencamos no gráfico os discursos presente nas notícias e maneira como eles se repetem nos textos jornalísticos analisados. Entendemos que os discursos materializados em textos têm efeitos nas práticas sociais e realizam mudanças no mundo (RESENDE, 2018). Portanto, percebemos que diferentes discursos são diferentes modos de representar realidades. Neste contexto, trata-se sempre de diferenças posicionadas – situadas e decorrentes de posições em jogos de interesses e relações de poder. Consequentemente, os discursos identificam e participam, na construção discursiva de identidades.36 Considerações finais De maneira ampla, os estudos desenvolvidos ao longo da pesquisa colaboraram para um olhar mais crítico em relação às questões sociais, bem como para compreensão da dialética entre a linguagem e sociedade. Dentro dos objetivos propostos, no que se refere à intertextualidade, identificamos que a intertextualidade está presente no relato direto das pessoas em situação de rua e indireto das pessoas que representam o setor público. Os discursos que mais aparecem nas notícias são os de violação dos direitos, discurso de assistência e discurso de preconceito: o primeiro refere-se a violar os seus direitos enquanto cidadãos e cidadã; o segundo é pautado na efetivação das políticas públicas da prefeitura de Belo Horizonte; o último demonstra uma recorrência de preconceito com as pessoas nessa situação de vulnerabilidade, apontando como insegurança e o incômodo. O primeiro ativa-se por pressuposto, mas o segundo é explicitado em diversas partes do texto. Constatamos que os discursos sobre pessoas em situação de rua são materializados; verificamos que a situação de rua é percebida apenas pelo viés de seus efeitos sobre populações outras. Entendemos que os discursos materializados em textos têm efeitos e realizam mudanças no mundo. Com isso, entendemos que “toda violência física é sempre precedida de violência verbal; há toda uma gramática da violência que leva à opressão e à perda de direitos”. Conforme a autora, elas são avaliadas como incômoda, perigosa. (RESENDE, 2018, p.167) 36 Esses três aspectos são base da teoria de discurso formulada por Fairclough (2003). 35 PENITENTE, Natalia | 2020 | p. 171-193 191 Discurso e poder: teoria e análise No que se refere às relações ideológicas presentes no texto, identificamos a naturalização (THOMPSON, 1997) da questão social, situação de rua, e histórica, sendo tratada como natural ou como um resultado inevitável das práticas sociais, transmitindo assim, uma ideia fixa, o que pode conduzir à opressão e à perda de direitos. Dentre as questões elencadas neste artigo, sobre o modo como a mídia jornalística eletrônica representa a população em situação de rua, notamos que se fazem presentes facetas discursivas, já que os modos como as pessoas em situação de rua são representadas em textos têm influência sobre os modos como a sociedade compreende o problema e reage a ele, o que também impacta sobre os modos como pessoas que enfrentam a situação de rua se identificam e se relacionam no tecido social. Durante o percurso da pesquisa, inferimos, a partir do discurso analisados, que as pessoas que vivem em situação de rua sofrem todas as formas de violação de seus direitos humanos e, para sobreviverem, utilizam-se de diferentes estratégias. Com isso, as mudanças que estão acontecendo e que precisam acontecer em discursos (e por isso em práticas sociais) podem colaborar positivamente com a vida de cidadãs e de cidadãos em situação de rua. São pessoas que têm direitos constitucionais, são parte da sociedade e por isso não podem ser tratadas como excluídas37. Referências bibliográficas BESSA, Décio. Cidadãos e cidadãs em situação de rua: uma análise de discurso crítica da questão social. 2009. 347 f. Tese (Doutorado em Linguística)–Departamento de Linguística, Português e Línguas Clássicas, Instituto de Letras, Universidade de Brasília, Brasília, 2009. Disponível em: http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/4308/1/2009_DecioBessadaCosta.pdf. Acesso em: 20 ago. 2015. BURSZTYN, Marcel. 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Disponível em: http://mds.gov.br/assuntos/cadastro-unico. Acesso em: 2 dez. 2017. 37 Para uma discussão sobre o tema “exclusão social” e sua relação com a situação de rua, ver Bessa (2009). PENITENTE, Natalia | 2020 | p. 171-193 192 Discursos velados, vozes silenciadas: análise de notícias sobre situação de rua FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Tradução Maria Izabel Santos Magalhães. 2. ed. Brasília: UnB, 2001. FAIRCLOUGH, Norman. Analysing discourse: textual analysis for social research. Londres: Routledge, 2003. FAIRCLOUGH, Norman. Critical discourse analysis. 2. ed. Londres: Longman, 2010. In: FAIRCLOUGH, Norman. Language and power. 3.ed. Londres: Taylor & Francis, 2015. FLICK, Uwe. Introdução à pesquisa qualitativa. 2. ed. Porto Alegre: Bookman, 2004. GONÇALVES-SEGUNDO, Paulo Roberto. Discurso e prática social. In: BATISTA, José Ribamar Lopes; SATO, Dênise, Tamaê, Borges; MELO, Iran, Ferreira; Análise de Discurso Crítica para linguista e não linguista. 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DOI: 10.11606/9786587621241 PENITENTE, Natalia | 2020 | p. 171-193 194 Análise da desclassificação repreensiva por meio de uma propaganda Análise da desclassificação repreensiva por meio de uma propaganda Ramiro Carlos Humberto CAGGIANO BLANCO Universidade de São Paulo [email protected] Resumo: Este trabalho tem por objetivo descrever as estratégias discursivas utilizadas por um grupo de poder econômico para manipular as crenças e atitudes de um amplo setor da sociedade brasileira, no contexto dos protestos ocasionados ante a realização da copa de mundo de futebol de 2014. Buscaremos, por meio da Análise Crítica do Discurso (ACD), mostrar como se opera o controle e a manipulação da subjetividade social na peça publicitária “Imagina a Festa” (2013), realizada pela agência África para a cerveja Brahma, do grupo AmBev. O marco teórico baseia-se na ACD que permite, segundo Van Dijk (1996), desde uma postura crítica, descobrir a ideologia, expressada explícita ou inadvertidamente, de falantes e escritores através da linguagem ou outros meios de comunicação. Segundo o autor, uma análise dessa dimensão do poder supõe algum tipo de controle que alguns atores ou grupos sociais exercem sobre outros. Tal controle é, antes de tudo, mental, ou seja, manipulação das crenças das pessoas, tais como seus conhecimentos, suas opiniões e suas ideologias e, indiretamente, das ações dos receptores (VAN DIJK, 2012). Quanto aos aspectos teóricos gerais da publicidade, seguiremos os alinhamentos de Carvalho (2003) e Maingueneau (2000). Primeiramente, apresentaremos e contextualizaremos as condições sócio-históricas de produção e circulação do corpus sob análise, principalmente as tensões sociais à época e o temor das elites econômicas de que o evento esportivo pudesse não se realizar. Seguidamente, efetuaremos uma análise dos componentes ideológicos e de controle social da publicidade, realizados através de estratégias linguísticas e imagéticas e, para concluir, consideraremos alguns pontos essenciais da manipulação exercida pelo grupo de poder, chegando a configurar a desqualificação de um importante setor da sociedade brasileira, e, por vezes, sua ridicularização. Palavras-chave: Análise Crítica do Discurso; Controle social; Publicidade; Ideologia. CAGGIANO BLANCO, Ramiro Carlos Humberto | 2020 | p. 194-209 195 Discurso e poder: teoria e análise Introdução A Análise Crítica do Discurso (ACD) propõe uma investigação analíticodiscursiva do modo como o abuso de poder, a dominação e a desigualdade são representados ou reproduzidos [...] por textos orais e escritos em contexto social e político (VAN DIJK, 2012, p. 113). Assim, uma análise desta dimensão do poder supõe algum tipo de controle que alguns atores ou grupos sociais exercem sobre outros. Este controle é, antes de tudo, mental, ou seja, manipulação das crenças das pessoas, tais como seus conhecimentos, suas opiniões e suas ideologias e, indiretamente, das ações dos receptores baseado nessa manipulação de crenças (VAN DIJK, 2012, p. 236 e 240). No presente trabalho, abordamos a análise da publicidade “Imagina a Festa”, realizada pela agência África para a cerveja Brahma, do grupo AmBev, que configura um claro exemplo desse controle social. De fato, passou-se o tempo em que as propagandas se limitavam a dar a conhecer novos produtos. O papel social que hoje cumprem é cada vez maior. Para Carvalho (2003, p. 13), diferente das demais mensagens, a publicidade tenta impor “valores, mitos, ideias e outras elaborações simbólicas, utilizando os recursos próprios da língua que lhe serve de veículo”. Pedro (1997, p. 26) não hesita em afirmar que a publicidade é um recurso do poder para exercer o controle, nos seguintes termos: Além do recurso à força para o exercício do controlo da ação, o poder, hoje, utiliza formas muitas vezes bastante mais eficazes, através da persuasão ou da manipulação – os casos da publicidade, [...] são exemplos paradigmáticos. Em idêntico sentido, Van Dijk (2012, p.52) afirma que: Os tipos persuasivos de discurso, tais como os anúncios publicitários e as propagandas, também pretendem influenciar as ações futuras dos receptores. Seu poder baseia-se nos recursos econômicos, financeiros ou, em geral empresariais ou institucionais e exerce-se por meio do acesso aos meios de comunicação. Nesse caso, a aquiescência é fabricada por mecanismos retóricos, por exemplo, por meio da repetição ou da argumentação. A partir dessas premissas, buscaremos, por meio da Análise Crítica do Discurso, mostrar como opera o controle e a manipulação na peça publicitária mencionada. Em primeiro lugar, apresentaremos e contextualizaremos as condições sóciohistóricas de produção e circulação do corpus sob análise. Depois, realizaremos a análise da publicidade e de seus componentes ideológicos e de controle e, a partir da observação, principalmente, de pronomes como categoria de análise concluiremos considerando alguns pontos essenciais da análise realizada. 1 Apresentação e contextualização do corpus Com a chegada da copa do mundo que o Brasil sediou em 2014, muitas das obras projetadas ou pensadas – principalmente relacionadas ao transporte e CAGGIANO BLANCO, Ramiro Carlos Humberto | 2020 | p. 194-209 196 Análise da desclassificação repreensiva por meio de uma propaganda mobilidade pública- foram se atrasando1, apesar dos esforços do governo2 , devido a diversas causas, algumas até demográficas, como a falta de trabalhadores da construção3. Ante essa situação, muitas pessoas acunharam a expressão Se está assim, imagina na copa, ao questionar ou reclamar pelos conhecidos problemas do dia a dia das grandes cidades brasileiras, tais como trânsito congestionado, ônibus lotados, longas filas nos aeroportos etc. “Se as coisas estão desse jeito agora, imagina na Copa!” Quantas vezes você já ouviu essa frase? Ela tem sido repetida tantas vezes, que “imagina na Copa” acabou virando esse bordão que a gente se acostumou a ouvir pelas ruas, nas mesas de bar, nas redes sociais. 4 Nesse contexto, foi criada uma propaganda da cerveja Brahma, pertencente à Companhia de Bebidas das Américas - AMBEV, uma multinacional com presença em 14 países na América5, com o nome Imagina a Festa. A peça publicitária resignifica, em 60 segundos, o bordão popular empregado para expressar insatisfação e que ameaçava o clima de festa pretendido pela empresa. Para a realização da propaganda, contratou-se a agência África cuja intenção foi, segundo Vice Benevides, diretor de criação, exaltar “o otimismo em torno do evento”, manifestar o apoio ao mesmo e mostrar que “a Brahma está diretamente envolvida com alguns dos maiores e melhores eventos do mundo como o carnaval e o réveillon”.6 A continuação, transcrevemos o texto completo da peça publicitária: Quadro 1. Transcrição do texto publicitário O Brasil é o país do futebol, mas também é o país das festas, por isso a nossa copa do mundo da FIFA vai ser a melhor de todas. Alguns insistem em que nossos aeroportos não vão dar conta, que o trânsito vai ser um caos, e sempre dizem: “se tá assim agora, imagina na copa”. Pessimistas, pensem bem: o país que faz os maiores clássicos, o réveillon e o carnaval, vai fazer a melhor festa já vista. Vamos imaginar como os aeroportos estarão lotados... sim, estarão, de torcedores empolgados e atletas incríveis. Vamos imaginar como teremos engarrafamentos... sim, teremos, de trios elétricos. Portal Último Segundo: http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/obras+para+a+copa+estao+atrasadas+em+todas+as+cidadesse de/n1597009517966.html. Acesso em 15/11/2012. 2 Portal Último Segundo: http://ultimosegundo.ig.com.br/politica/dilma+convoca+reuniao+com+prefeitos+para+cobrar+obras+ da+copa/n1596991191652.html. Acesso em 15/11/2012. 3 Agencia Brasil: http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2011-10-18/construtoras-atribuem-demora-emobras-da-copa-falta-de-mao-de-obra-e-ao-custo-dos-salarios. Acesso em 15/11/2012. 4 Catarse: http://catarse.me/pt/imaginanacopa. Acesso em 15/11/2012. 5 Fonte Ambev: http://www.ambev.com.br/pt-br/nossas-marcas/todas-as-marcas. Acesso em 15/11/2012. 6 Adnews: http://www.adnews.com.br/pt/publicidade/africa-brinca-com-bordao-imagina-na-copa-paracampanha-da-brahma.html. Acesso em 15/11/2012. 1 CAGGIANO BLANCO, Ramiro Carlos Humberto | 2020 | p. 194-209 197 Discurso e poder: teoria e análise Imagina as praias, imagina as cidades, imagina o Brasil. Imagina que onde houver futebol vai ter Bhrama e onde houver brama vai ter festa. Bhrama. Imagina a festa. Fonte: Vídeo “Imagina a Festa” 2 Aspectos teóricos 2.1 Controle social Segundo Van Dijk (2012, p. 50): O poder é exercido e expresso diretamente por meio do acesso diferenciado aos vários gêneros, conteúdos e estilos do discurso [...] O modo de produção da articulação é controlado pelo que se pode chamar de “elites simbólicas”, tais como jornalistas, escritores, artistas, diretores, acadêmicos e outros grupos que exercem o poder com base no “capital simbólico” [...] Eles são os fabricante do conhecimento, dos padrões morais, das crenças, das atitudes, das normas, das ideologias e dos valores públicos. Percebe-se que as elites simbólicas, controladoras do estilo e do conteúdo do discurso mediático e educacional, também são as que detêm o controle parcial sobre os modos de exercer influência e, portanto, sobre a reprodução ideológica. (VAN DIJK, 2012, p. 50). Vários são os mecanismos para exercer o controle social. Os que mais se destacam na peça publicitária serão detalhados a seguir. 2.2 A polarização ideológica: “nós” x “eles”: Um dos principais pontos ao analisar o discurso em questão, e nisso seguimos VAN DIJK (2005), é a criação do antagonismo maniqueísta entre “o nós” e “o eles”, criado ou aumentado com fins antinômicos, onde o “nós” é depositário de todas as qualidades socialmente relevantes, e o “eles”, o contrário. Esse reducionismo, lugar comum nos discursos ideológicos, nem sempre é fácil de descobrir, porque, muitas vezes, os discursos se apresentam como “naturais” e “aceitáveis” (PEDRO, 1997, p. 26), o que lhes confere um matiz de verdade inquestionável, uma vez que “é característico do discurso ideológico atribuir as ideologias só a nossos antagonistas e a verdade a nós”7. (VAN DIJK, 2005, p. 27). Esses aspectos, tanto formais como de significação do discurso, que auxiliam a expressar e exercer o poder, adaptam-se à construção de modelos mentais e representações desejados com a finalidade de “influir, manipular ou controlar a mente” (VAN DIJK, 2003, p.160). 7 Tradução livre. CAGGIANO BLANCO, Ramiro Carlos Humberto | 2020 | p. 194-209 198 Análise da desclassificação repreensiva por meio de uma propaganda Como a polarização ideológica nem sempre é evidente, temos que prospectar o discurso na busca de elementos, tanto sintáticos como semânticos, que indiquem indícios dessa polarização. Esto puede manifestarse, […] por el uso de los pronombres nosotros y ellos, pero también por los posesivos y demostrativos tales como nuestra gente y esa gente, respectivamente. (VAN DIJK, 2005, p. 20) 2.3 Quadrado ideológico Seguindo Van Dijk (2005, p. 20), podemos afirmar que o intuito de aplicar o “principio polarizante”, princípio que afeta tanto as formas quanto os significados, é tecer uma estratégia “general de auto-presentación positiva (alarde) y la presentación negativa del otro (detracción)”, enquanto “se quita importancia a nuestras malas cosas y a las buenas de los otros” (VAN DIJK, 2003, p. 154). Ainda, segundo o autor: los hablantes o los escritores pueden destacar nuestras buenas cosas tematizando los significados positivos, utilizando elementos léxicos positivos en las autodescripciones, proporcionando muchos detalles sobre las buenas acciones, y pocos detalles sobre las malas acciones, valiéndose de hipérboles y de metáforas positivas, dejando meramente implícitas las propiedades negativas propias, o restando importancia a la propia actuación como agente de actos negativos mediante la utilización de oraciones pasivas o nominalizaciones. (VAN DIJK, 2003, p. 160) Conforme explica Daruj Gil (2008, p. 4), “para explicar a combinação dessas crenças sociais de um grupo com sua expressão no discurso, Van Dijk (2003a, p. 5758)”, formula o seguinte quadrado ideológico, aplicável ao se analisar a estrutura de um discurso: Quadro 2. Quadrado ideológico nós eles Por ênfase em nossos aspectos positivos Por ênfase em seus aspectos negativos Tirar ênfase de nossos aspectos negativos Tirar ênfase de seus aspectos positivos Fonte: Adaptação do quadro de Daruj Gil (2008) Essas estratégias discursivas, que orientarão a análise do corpus, quando combinadas têm um efeito poderoso no controle mental, como veremos. 3 Análise do corpus Primeiramente, destacamos como a polarização “nos x eles” é construída na peça “Imagina a Festa”, tanto linguisticamente como por meio das imagens. Quanto aos aspectos linguísticos, o “nós” apresenta-se primeiramente sob a fórmula “O Brasil”, em uma clara apropriação da nacionalidade que se caracteriza pelos aspectos positivos estrategicamente destacados, tais como ser “o país do CAGGIANO BLANCO, Ramiro Carlos Humberto | 2020 | p. 194-209 199 Discurso e poder: teoria e análise futebol” e o “país das festas”. Em outro momento do texto, com a mesma intenção, podemos ver que o enunciador vale-se de uma perífrase com valor de pronome pessoal, elidindo tanto o verbo quanto o pronome, mas que podem ser inferidos facilmente pelo contexto: “[Nós somos] O país que faz os maiores clássicos, o réveillon e o melhor carnaval”. Outras vezes, o “nós” é definido pelo possessivo de primeira pessoa do plural, “nossa copa do mundo” e “nossos aeroportos”, e pelos verbos em primeira pessoa do plural: “vamos imaginar...” e “teremos engarrafamentos”. Por sua vez, o “eles” é apresentado pelo pronome indefinido “alguns”, assim como pelo adjetivo “pessimistas” e pelos verbos em terceira pessoa do plural dizer e insistir (“sempre dizem”[...] “insistem”). Também mediante o verbo pensar em imperativo em terceira pessoa do plural: “pensem bem”. No seguinte quadro comparativo, podem-se ver nitidamente as marcas linguísticas que favorecem a construção da polarização mediante a escolha lexical: Quadro 3. Marcas gramaticais da polarização ideológica Nós Pronome próprio O Brasil (apropriação da nacionalidade) Perífrase com valor de pronome pessoal O país que faz os maiores clássicos, o réveillon e o melhor carnaval Possessivos A “nossa” copa do mundo Nossos aeroportos Verbos Vamos imaginar teremos Eles Pronome indefinido Alguns Adjetivos Pessimistas Verbos Sempre dizem Insistem Pensem Fonte: Elaboração pessoal. Nas imagens da publicidade, o “eles” é apresentado quase em cores escuras, em tons cinzentos ou sépia, com rostos ranzinzas e em atitudes que denotam negatividade na expressão dos olhares, da forma de fechar a boca, dos gestos em geral, entre outros, como se aprecia nas figuras 1 a 6: Quadro 4. Conjunto de figuras "Apresentação do eles" Figura 1 Figura 2 CAGGIANO BLANCO, Ramiro Carlos Humberto | 2020 | p. 194-209 200 Análise da desclassificação repreensiva por meio de uma propaganda Figura 3 Figura 4 Figura 5 Figura 6 Fonte: Capturas de tela do vídeo “Imagina a Festa”. O “nós”, pelo contrário, é sempre apresentado por pessoas felizes, dançando, comemorando ou em situações que expressam euforia, alegria e descontração, muitas vezes identificadas com as cores da bandeira nacional. Quadro 5. Conjunto de figuras "Apresentação do nós" Figura 7 Figura 8 Figura 9 Figura 10 Figura 11 Figura 12 Fonte: Capturas de tela do vídeo “Imagina a Festa”. CAGGIANO BLANCO, Ramiro Carlos Humberto | 2020 | p. 194-209 201 Discurso e poder: teoria e análise Note-se o contraste cromático com a série anterior. Quando a propaganda fala do “nós”, emprega tons alegres e coloridos. Mesmo quando opta por priorizar uma cor só, como na figura 7, isto se faz para conseguir um efeito de expressividade ainda mais acentuada. 3.1 Falar de “nossos” aspectos positivos O enunciador apresenta-se a si próprio como sendo o país do futebol e o país das festas, alem de ser o país que faz os maiores clássicos, o réveillon e o Carnaval. Nessa apresentação, o enunciador aproveita a oportunidade para exaltar a figura do “nós”, através das seguintes hipérboles: a) Nossa copa do mundo [...] vai ser a melhor de todas b) [o pais que faz] Os maiores clássicos c) [o país] Vai fazer a melhor festa já vista Embora a publicidade aluda genericamente ao Brasil e a O País (dos clássicos, das festas, de réveillon e do carnaval), mediante a polarização, está se apoderando exclusivamente dos símbolos e da idiossincrasia pátrios. Insinua-se, assim, que “eles”, a contrario sensu, não gostam de futebol nem de festas e que não participam do réveillon nem do carnaval. Essa ideia de apropriação se reforça nas imagens em que sempre se identifica o “nós” com as cores e elementos simbólicos do Brasil, como pode ser apreciado, entre outras, nas figuras 13 a 16: Quadro 6. Figuras "Apropriação das cores e símbolos nacionais” Figura 13 Figura 14 Figura 15 Figura 16 Fonte: Capturas de tela do vídeo “Imagina a Festa”. CAGGIANO BLANCO, Ramiro Carlos Humberto | 2020 | p. 194-209 202 Análise da desclassificação repreensiva por meio de uma propaganda Podemos ver, nas figuras 13 e 14, como o “nos” se apropria das cores pátrias mediante a combinação da bandeira como pano de fundo e a cor das roupas que complementam a sua estrutura visual. Nessa estratégia, destacam-se a camisa branca do dançarino (figura 13) e o top azul da dançarina (figura 14), que estão localizados no lugar onde deveria estar o círculo central azul que simboliza o céu o os rios do Brasil e a faixa branca com a inscrição “Ordem e pregresso” que o atravessa. Completa a construção desse efeito, o fato de os protagonistas estarem “sambando”, ritmo musical claramente identificado com a brasilidade. Nas imagens 15 e 16, também apreciamos o “nós” com elementos caros a cultura brasileira, como o futebol e o carro fusca. E, para finalizar a apresentação do “nós”, aparece uma imagem de Ronaldo, exjogador de futebol e integrante do ex-Conselho Administrativo do Comitê Organizador Local da Copa do Mundo (COL), vestido com as cores da bandeira brasileira que, apontando com o dedo indicador, diz: PESSIMISTAS, PENSEM BEM. Figura 17. “Ronaldo-Tio Sam” Fonte: Captura de tela do vídeo “Imagina a Festa”. Como pode ser apreciado na figura 18, é fácil ver a remissão feita à imagem do Tio Sam, personagem publicitário norte-americano utilizado como garoto propaganda, para recrutar soldados nas guerras mundiais8. Figura 18. Comparação entre Tio Sam e Ronaldo-Tio Sam Fonte: Elaboração própria Revista Muy Interesante: http://www.muyinteresante.es/la-historia-del-tio-sam-el-carnicero. Acesso em 15/11/2012. 8 CAGGIANO BLANCO, Ramiro Carlos Humberto | 2020 | p. 194-209 203 Discurso e poder: teoria e análise Faz-se necessário destacar que a figura do Tio Sam serviu, além de recrutar soldados desde a primeira guerra mundial, para justificar o papel disciplinador dos Estados Unidos: Tio Sam (personificação nacional dos Estados Unidos), também ganhou uma versão em quadrinhos onde justificava em sua capa a isenção dos Estados Unidos da responsabilidade sobre a entrada na II Guerra Mundial. Tio Sam ecoava o mantra que imbuía a nação norte-americana da função de disciplinadora do mundo, o gigante pacífico que agia quando provocado, e não por interesse próprio 9 A frase que acompanha a imagem, “Pessimistas, pensem BEM” (com a palavra bem destacada em letras de forma e cores verde e amarela, possivelmente aludindo ao slogan “ser do bem”), autoriza-nos a inferir que Ronaldo-Tio Sam não quer recrutar, senão disciplinar os críticos. “Pensem bem”, ou sofrerão as consequências. “Pensem bem” ou serão privados do todo o que “nós” temos e desfrutamos. A ameaça se reforça com recurso de câmera pelo qual a imagem de Ronaldo-Tio Sam se aproxima da tela de forma intimidante até obter um primeiro plano, como se vê na figura 19: Figura 19. “Ronaldo-Tio Sam” em primeiro plano Fonte: Captura de tela do vídeo “Imagina a Festa”. Essa atualização e re-significação do Tio Sam na figura de Ronaldo cumpre uma dupla função: por um lado recria-se localmente uma figura masculina que representa e, ao mesmo tempo, vigia e interpela os brasileiros, igualando-se nisso aos Estados Unidos, mas diferenciando-se do original pelo uso de insígnias militares nos ombros – sinal evidente de autoridade -, pelo semi-sorriso – com a ideia de exercer o poder de forma cordial - e pelo colarinho da camisa aberto, o que lhe confere um ar de descontração e informalidade. Contudo, como vimos anteriormente, fica evidenciado o poder disciplinador mediante a persuasão: a frase Pensem BEM, o dedo apontando e a aproximação intimidante da imagem, deixam clara essa intenção. Como esclarece Van Dijk (1996, p27): en relación con las ideologías, las estructuras del discurso tienen siempre la doble función de poner en juego o "ejecutar" ideologías . A Segunda Guerra Mundial na Linguagem dos Quadrinhos. Encontro de historia Aupuh- Rio Identidades: http://encontro2008.rj.anpuh.org/resources/content/anais/1215301697_ARQUIVO_textoparaanpuh.pdf . Acesso em 15/11/2012. 9 CAGGIANO BLANCO, Ramiro Carlos Humberto | 2020 | p. 194-209 204 Análise da desclassificação repreensiva por meio de uma propaganda subyacentes por una parte, pero por la otra pueden funcionar como medios de persuasión más o menos poderosos, esto es, como medios estratégicos para influir en modelos mentales preferentes e – indirectamente– en actitudes e ideologías favorecidas. Es así que la formación, cambio y confrontación de las ideologías es también una función de la estructura del discurso. (1996, p. 27) 3.2 Falar dos aspectos negativos “deles” Primeiramente, apresenta-se o “eles”, utilizando-se do pronome relativo alguns que indetermina e, por sua vez, dá uma clara noção de número escasso. A magnitude da própria campanha publicitária, pelo contrário, refuta esta ideia de minoria, uma vez que, se fosse certo, não seria necessário realizar um esforço tão grande e oneroso, para criticar e disciplinar os pessimistas. Continuando com as desqualificações, o “eles”, mediante o verbo insistir e o advérbio de tempo sempre é tachado de insistente, de amolador, de irritante: insistem [...] e sempre dizem. Ato seguido, o “eles” é qualificado como pessimistas. Embora não seja necessário comentar muito acerca da conotação negativa do termo, é importante acrescentar que o otimismo, à luz do sucesso da economia brasileira daqueles anos, era um conceito muito caro aos brasileiros, como demonstra a pesquisa mundial sobre economia desenvolvida pela Pew Research Center,10 e em até pesquisas relacionadas a temas nos quais o país tem dívidas históricas, como a realizada em matéria de educação11. Não é casual nem gratuita essa qualificação. Como aponta Van Dijk (2012, p. 51): As elites de poder possuem acesso a manobras para controlar a dissidência [...] recorrendo a campanhas de difamação e outros mecanismos para silenciar os “radicais” [...] Por isso, em muitos países ocidentais, basta que alguém seja taxado de “comunista”, ou como uma pessoa contrária ao nosso tipo de “liberdade” ou a um valor determinante similar, para ser desqualificado como um formulador sério de contra-ideologias”. 3.3 Tirar ênfase dos aspectos negativos do “nós” As estratégias para minimizar os pontos negativos do enunciador misturam imagens com figuras de linguagem. Assim, ao se referir às críticas pelos aeroportos lotados que realizam “eles”, mostram-se imagens de um aeroporto movimentado em um dia normal, porém sem as longas filas que costumam aparecer nos telejornais, nas vésperas dos feriados prolongados (Figura 20). Quando mencionam os engarrafamentos, mostram imagens da Avenida Paulista, porém sem os diários http://www.bolsavalores.net/2010/09/24/ranking-dos-paises-mais-otimistas-do-mundo-brasil-em2%C2%BA-lugar/. Acesso em 15/11/2012. 11 Agencia Brasil: http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2012-09-06/brasileiros-estao-entre-os-maisotimistas-em-relacao-ao-futuro-da-educacao-mostra-pesquisa. Acesso em 15/11/2012. 10 CAGGIANO BLANCO, Ramiro Carlos Humberto | 2020 | p. 194-209 205 Discurso e poder: teoria e análise congestionamentos nas horas de pico (Figura 21), e da Marginal Pinheiros com muitos carros, mas não parada, como acontece amiúde (Figura 22). Figura 20: Aeroportos sem filas Fonte: Captura de tela do vídeo “Imagina a Festa”. Figura 21: Av. Paulista com trânsito, mas sem engarrafamento. Fonte: Captura de tela do vídeo “Imagina a Festa”. Figura 22. Marginal Pinheiros, com trânsito, mas sem engarrafamento. Fonte: Captura de tela do vídeo “Imagina a Festa”. Como se essas imagens já não fossem suficientes para manipular a realidade, o enunciador chega ao grau máximo do engano quando, num truque de câmeras, CAGGIANO BLANCO, Ramiro Carlos Humberto | 2020 | p. 194-209 206 Análise da desclassificação repreensiva por meio de uma propaganda mostra a mesma Marginal Pinheiros sem carros visíveis, passando a impressão de que estivesse vazia (Figuras 23 e 24). Figura 23. Marginal Pinheiros sem carros à mostra Fonte: Captura de tela do vídeo “Imagina a Festa”. Figura 24. Marginal Pinheiros sem carros à mostra Fonte: Captura de tela do vídeo “Imagina a Festa”. 3.4 Não falar dos aspectos positivos deles Como vimos no item anterior, a intenção do “nós” é demonstrar que as críticas que fazem o “eles” carecem de fundamento. Outras estratégias de deslegitimar a fala do “eles” encontram-se nas seguintes figuras de linguagem: a- Paráfrases antitéticas: - Alguns insistem em que nossos aeroportos não vão dar conta - Vamos imaginar como os aeroportos estarão lotados. Sim! Estarão, de torcedores empolgados e atletas incríveis ELES NÓS aeroportos não vão dar conta X os aeroportos estarão lotados [...] de torcedores empolgados e atletas incríveis - [insistem] Que o trânsito vai ser um caos CAGGIANO BLANCO, Ramiro Carlos Humberto | 2020 | p. 194-209 207 Discurso e poder: teoria e análise - Vamos imaginar como teremos engarrafamentos. Sim! Teremos, de trios elétricos ELES NÓS o trânsito vai ser um caos X [teremos] Engarrafamentos [...] de trios elétricos b- Estratégias concessivo-opositivas: O aspecto dramático de enunciado do “nós”, que ajuda a fixar a mensagem na memória do enunciatário, dá-se também pelo emprego de estratégias linguísticas concessivas seguidas de oposições, nas quais o “nós” contrapõe coisas positivas (“torcedores empolgados”, “atletas incríveis” e “trios elétricos”) aos elementos negativos apontados por “eles (“aeroportos lotados” e “engarrafamentos”). Vamos imaginar como os aeroportos estarão lotados ≠ Sim! estarão, [mas] de torcedores empolgados e atletas incríveis! Vamos imaginar como teremos engarrafamentos ≠ Sim! teremos, [mas] de trios elétricos. c- Reformulação parafrástica irônica: Finalmente, passamos a nos referir a um aspecto central da estratégia de deslegitimização da fala do “eles”, a reformulação parafrástica irônica do bordão que motivou a peça publicitária. Destarte, à oposição ao slogan “Se tá assim agora imagina na copa” se dá mediante uma gradação ascendente de ideias que começa com “imagina a festa” e encontra seu clímax em “Imagina o Brasil”, tudo dito pelo relator em um tom de voz de dramaticidade marcada, conforme se observa no quadro seguinte: Quadro 7. Reformulação parafrásica irônica [Se tá assim agora] Imagina na copa Imagina a festa Imagina as praias Imagina as cidades Imagina o Brasil Fonte: Elaboração pessoal. Considerações finais Toda crítica supõe um posicionamento ante um estado de coisas, é a manifestação da liberdade de expressão garantida pela Constituição Nacional e os CAGGIANO BLANCO, Ramiro Carlos Humberto | 2020 | p. 194-209 208 Análise da desclassificação repreensiva por meio de uma propaganda tratados internacionais os quais são lei para o Brasil. Popper (1995, p 103) chegou, inclusive, a acrescentar às três funções da linguagem - informativa, expressiva e representativa – a função crítica. Ainda mais, afirma que a ciência começa com a crítica aos dogmas (POPPER, 1995, p. 22). E mais ainda: “La actitud crítica, la tradición de la libre discusión de las teorías con el propósito de descubrir sus puntos débiles para poder mejorarlas, es la actitud razonable, racional” (POPPER, 1993, p. 77). Porém, as elites não gostam de críticas, uma vez que precisam manter o status quo. Isso talvez explique a desmesurada artilharia com que se ataca aos críticos na peça publicitária analisada. Dir-se-á que a intenção do enunciador era insuflar ânimo ao povo brasileiro, que tinha uma finalidade positiva. Contudo, fazê-lo desqualificando esmagadoramente um setor da sociedade, expondo-o ao ridículo, é um contrassenso. A diferença entre um legítimo chamado à ordem por parte dos pais a um filho sob o pátrio poder e os maus tratos não radica, muitas vezes, só na natureza dos atos corretivos, senão na sua intensidade. Do mesmo modo, criticar aos críticos pode parecer legítimo (principalmente se as críticas que estes formulam são merecedoras, por sua vez, de críticas), porém, se como diz Van Dijk (2012, p. 29), os abusos de poder significam a violação dos direitos sociais e civis das pessoas, proibi-lhes o uso da palavra, calar suas vozes ou anestesia-lhes opressivamente seu sentido crítico, configura um autêntico abuso de poder, máxime quando “esse controle se dá em benefício dos que exercem o poder” (VAN DIJK, 2012, p. 17). Referências bibliográficas CARVALHO, Nelly. Publicidade: a linguagem da sedução. São Paulo: Ática, 2003. DARUJ GIL, Beatriz. Aspectos ideológicos nas escolhas lexicais de Bezerra da Silva. In: I SIMELP, 2008. Disponível em: http://simelp.fflch.usp.br/sites/simelp.fflch.usp.br/files/inline-files/S4201.pdf. Acesso em: 12/09/2012. PEDRO, Emilia R. (org.). Análise Crítica do Discurso. Uma perspectiva sociopolítica e funcional. Lisboa: Editorial Caminho, 1997. POPPER, Karl R. 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DOI: 10.11606/9786587621241 CAGGIANO BLANCO, Ramiro Carlos Humberto | 2020 | p. 194-209 210 As metáforas como recurso para resgatar memórias de infância de Cecília Meireles As metáforas como recurso para resgatar memórias de infância de Cecília Meireles Rodrigo Schulz FERREIRA Universidade de São Paulo [email protected] Resumo: O presente artigo analisa alguns trechos da obra Olhinhos de Gato, de Cecília Meireles, que contempla, em toda a extensão da prosa, a figura de linguagem que tem ganhado notoriedade nos estudos discursivos nas últimas décadas: a metáfora. Prosa memorialística de inspiração autobiográfica, ao integralizar a leitura da obra, percebemos como a escritora utiliza esse recurso retórico para rememorar parte de sua infância, em que aprendera, precocemente, a lidar com a morte. Para falar dessas memórias de uma infância atípica, Cecília Meireles cria codinomes para as pessoas mais próximas. A avó materna é Boquinha de Doce, Dentinho de Arroz é a ama e OLHINHOS DE GATO, protagonista, é Cecília Meireles. A protagonista, como uma câmera, que tudo observa, descreve, na maior parte das vezes, de forma metafórica, inúmeras perdas. O trabalho justifica-se para compreender esse importante recurso de linguagem como meio capaz de condensar múltiplas mensagens e evidenciar uma infância atípica - recheada de perdas - vividas por OLHINHOS DE GATO. Sardinha (2007) discorre sobre os tipos basilares de metáforas (conceptual, sistemática e gramatical). Em Antunes (2014), percebe-se o quão importante são as metáforas para “mobilizar nosso conhecimento de mundo”. Os trechos escolhidos privilegiam passagens expressivas, nas quais o leitor é convidado a sentir a infância diferente de OLHINHOS DE GATO. Pretende-se evidenciar que esse recurso, bem articulado pela escritora, conduz o leitor à reflexão acerca da real mensagem pretendida por Cecília Meireles: a efemeridade da vida. Palavras-chave: Metáforas; Cecília Meireles; Infância; Memórias; Efemeridade. Introdução Neste artigo, analisamos algumas escolhas lexicais, precisamente selecionadas por Cecília Meireles, que retomam sentimentos quase sempre ruins. OLHINHOS DE FERREIRA, Rodrigo Schulz | 2020 | p. 210-223 211 Discurso e poder: teoria e análise GATO, protagonista da narrativa Olhinhos de Gato1, rememora uma parte de sua infância e essas memórias são construídas, essencialmente, por metáforas que descrevem perdas e mortes, acontecimentos que perpassam toda a prosa. Antes de iniciarmos a análise de alguns trechos, necessário se faz uma breve explanação da obra e da fase pela qual passava Cecília Meireles. Sabendo que os escritores são influenciados, muitas vezes, pelos estados de emoção, precisamos pontuar que quando da escrita dessa prosa memorialística, a escritora enfrentava uma condição bastante peculiar: de inúmeras e irreparáveis perdas familiares e de contratempos profissionais, alguns deles relacionados à ordem política vigente. Assim, é esperado que exista reflexo desse ar repleto de sentimentos nostálgicos na obra. Cecília Meireles utiliza uma linguagem refinada, mas não rebuscada, essencialmente metaforizada para rememorar seus primeiros anos de infância. É explorando esse recurso de linguagem que a escritora prende a atenção do leitor, fazendo-o sentir como sua infância fora delicada. Para este artigo, embora existam muitas passagens construídas por meio de metáforas, o foco será na análise de alguns trechos que recuperam sentimento de perda e morte. O objetivo da escritora, certamente, é despertar no leitor uma reflexão acerca das memórias intimistas dos primeiros anos de infância de OLHINHOS DE GATO, que convergem e dialogam, muitas vezes, com os da própria Cecília Meireles. Após a leitura integral da obra, recortamos, manualmente, os trechos em que Cecília Meireles abordou de forma mais latente passagens nas quais a morte ou a perda são retratadas por meio desse recurso de linguagem. Sabemos que outros trechos deixaram de ser analisados, no entanto, como toda pesquisa, há de se fazer um recorte. Não pretendemos, mesmo diante dos excertos trazidos à guisa de análise, esgotar as interpretações. São leituras possíveis dentro de tantas outras. 1 Sobre a vida da poeta e a obra em análise Como mencionado, é importante entender um pouco sobre a vida da poeta bem como de sua obra. Sabemos que o escritor está inserido dentro de uma comunidade, cujos valores ideológicos e culturais perpassam, muitas vezes, suas produções. No caso da produção de Olhinhos de Gato, lembramos que a escritora enfrentava uma de suas fases mais duras: a dor do suicídio do primeiro marido, Heitor Grillo, em 1935, e sustento de três filhas pequenas com o salário do magistério. Ao longo dos treze capítulos2, o leitor é surpreendido sempre com novas indagações acerca dos próximos passos da pequena órfã de pai e mãe, que passa a conviver com o amor da avó, Boquinha de Doce, e com o cantarolar e espírito Para este artigo, usamos a 4ª edição, Global Editora, São Paulo, 2015. O nome da obra e da protagonista são idênticos. Dessa forma, OLHINHOS DE GATO, em maiúsculas, para fazer referência à personagem e Olhinhos de Gato para a obra, formas grafadas exatamente como na edição adotada para análise. 2 Inicialmente publicados em forma de fascículos para a Revista Ocidente, entre os anos de 1939 e 1940, Portugal, chega ao Brasil em 1980, quando são compilados em um livro. 1 FERREIRA, Rodrigo Schulz | 2020 | p. 210-223 212 As metáforas como recurso para resgatar memórias de infância de Cecília Meireles aventureiro da ama, Dentinho de Arroz, personagens que, junto com OLHINHOS DE GATO, sustentam a obra. Cecília Benevides de Carvalho Meireles (1901-1964), embora tenha notoriedade pela vasta produção no campo da poesia, produziu, com excelência, textos em prosa. A escritora educou suas três filhas meninas, órfãs de pai3. Importante lembrar que a escritora não conheceu o pai, e a morte da mãe, antes de completar três anos de idade, tornaram-na, nas palavras dela mesma, uma mulher capaz de lidar com os sentimentos de dor e ausência. Olhinhos de Gato é resultado de um momento póstraumático da escritora, que aprendeu a conviver com muitas inconstância. A perda trágica do marido faz com que ela tenha de administrar a sobrevivência dela e das três filhas pequenas, ocasião em que se mudaram para um apartamento segundo a própria poeta “muito pequenino4, mas suficiente para mim e as crianças”. Em carta, datada de 1936, à amiga portuguesa Fernanda, Cecília Meireles diz estar triste, com a “profunda tragédia”5 pela qual passava sua vida pessoal. Além disso, a poeta mostrou, na carta, um desabafo e um ar elevado de preocupação, “a ponto de perder o lugar na Universidade”6, e de apreensão com o “movimento revolucionário que por aqui andou, e em consequência do qual Anísio foi afastado da Secretaria da Educação” 7. Por meio de escolhas lexicais, precisamente pensadas, a escritora resgata memórias e envolve o leitor em uma atmosfera mágica, num jogo de lembranças e aventuras. Percebe-se o vai e vem dos tempos verbais presente e passado. Escrita em terceira pessoa, por um narrador observador, há onipresença e onisciência, com certo grau de imparcialidade, pois a narração é feita de acordo com o que vê o narrador, sem interferir ou fazer julgamentos. Algumas vezes, as outras personagens ganham voz. É uma narrativa que mescla os fatos externos aos internos ou psicológicos. A obra organiza-se didaticamente em três grandes blocos. Como marco inicial, tem-se o estado de mal-estar sentido pela protagonista, o qual a faz ter alguns delírios e, por meio deles, resgatar a cor vermelha, primeira grande metáfora para simbolizar a morte da mãe, quando a menina diz ver “balões vermelhos que inchavam, saiam uns de dentro dos outros, boiavam...8, em que, claramente, a protagonista está febril e, possivelmente, delirando. A cor usada pela escritora pode ser lida como uma metáfora que simboliza a dor, o sofrimento e, talvez, a aproximação da morte. Segundo Lenneberg (1975, p. 384), a cor tem relação estreita e inambígua com a maneira pela qual o homem traduz sua cultura. Ele, em experimento psicolinguístico Cecília Meireles, filha de Carlos Alberto de Carvalho Meireles e Matilde Benevides, casou-se pela primeira vez em 1922, com o artista plástico português Fernando Correia Dias, de quem terá três filhas: Maria Elvira, Maria Matilde e Maria Fernanda. Em 1935, fica viúva. Em 1940, casa-se com o professor Heitor Grillo (GOLDSTEIN e BARBOSA, Literatura Comentada: Cecília Meireles, p. 11-12, 1982). 4 Carta manuscrita de Cecília Meireles, Rio de Janeiro, janeiro de 1936 (ver ref. NEVES, Margarida de Souza). 5 Idem, ibidem. 6 Cecília fica preocupada com a possibilidade de ser retirada da Universidade pelo movimento que começara a ser instalado no Brasil. Em 1937, por exemplo, fecham a biblioteca infantil no Rio, castelo de seus sonhos, com base no argumento de que a biblioteca corrompia os espíritos infantis com livros comunistas. 7 Idem, ibidem. 8 MEIRELES, 2015, p. 10. 3 FERREIRA, Rodrigo Schulz | 2020 | p. 210-223 213 Discurso e poder: teoria e análise com cores, denomina codificabilidade o processo pelo qual as pessoas dão certa concordância a um mesmo estímulo, neste caso, a cor. O vermelho, para ele, pode ser visto como a cor do sangue (1975, p. 392). O segundo bloco é marcado pela intensidade das brincadeiras, dentro e fora de casa, descrevendo objetos, insetos do jardim, narrando passeios com a ama, além dos momentos em que ela viaja para dentro de si mesma e mergulha em profundas introspecções que a fazem refletir sobre a existência humana e efemeridade da vida, que parece se esvair em um piscar de olhos. Nesse segundo momento estão concentrados mais trechos em que a escritora se socorre desse recurso de linguagem para rememorar aqueles primeiros anos de vida. É nele, essencialmente, que a narrativa se desenvolve. O terceiro momento simboliza, por meio do corte dos cachos, a transição entre a fase infantil e a outra, ainda não adulta, mas sem a possibilidade de tanta liberdade como antes. O corte das madeixas de OLHINHOS DE GATO só aparecerá na página 171, ou seja, quase no final da narrativa, que contempla 178 páginas. Em muitas passagens, é possível que o leitor se indague se está diante de uma ficção ou, quem sabe, de parte das aventuras, com as personagens. 2 Metáforas como recurso de linguagem Ao analisar a obra, percebemos o quão recorrentes são as metáforas. É a figura de linguagem encontrada e usada por Cecília Meireles para alcançar alguns efeitos: (i) retratar o oscilar entre vida e morte, (ii) discorrer sobre momentos alegres e tristes e (iii) permitir que o leitor reflita sobre a importância do amor, sobre o respeito à natureza, sobre os valores familiares, sobre a essência da vida, que é tão efêmera. Dessa forma, muitos trechos são metafóricos. O propósito é, sem hesitação, provocar no leitor reflexões pontuais. Gibbs (1994, p. 124) discorre sobre três vertentes para explicar o motivo pelo qual usamos com frequência metáforas. Para ele: (i) “expressabilidade” (veicular ideias), (ii) “compactividade” (informações complexas são transmitidas de forma sucinta) e (iii) “vivacidade” (pessoas podem extrapolar o sentido literal da lexia, o que possibilita uma maior subjetividade da mensagem produzida). Meyer (2007, p. 82) define: “a figura por excelência da identidade frágil”, uma vez que, para ser compreendida, precisa ser lida nas entrelinhas. Para Sardinha (2007, p. 13), “nossa linguagem é ainda mais complexa porque cada palavra pode ter vários significados”. Para ele, isso significa que precisamos entender a metáfora como um mecanismo complexo, que exige interpretação e conhecimento do contexto em que cada palavra se insere, para que, então, o leitor possa decodificá-la de maneira plausível. Os sentidos podem ser figurados, o que para ele são “usos não-literais de palavras ou expressões da língua” (SARDINHA, 2007, p. 13). Para ele, ainda, pode ser vista como figura mestra. De fato, desde a época dos clássicos (Aristóteles, no século IV a.C., em sua Arte Poética), essa figura de linguagem era vista como forte artifício de persuasão cujo objetivo era convencer por meio da emoção, colocando a razão em segundo plano. Poderia, ainda, ser vista como recurso para ‘enfeitar’. Era, antes, uma poderosa forma de conduzir o leitor para determinada FERREIRA, Rodrigo Schulz | 2020 | p. 210-223 214 As metáforas como recurso para resgatar memórias de infância de Cecília Meireles direção de leitura textual e extratextual. Assim sendo, são importantes ferramentas para lidarmos com as muitas situações com as quais nos deparamos no dia a dia e para as quais precisamos dar uma significação mais ampla. Assim, em tempos modernos, houve a necessidade de subdividi-la em outras figuras de linguagem, como lista Sardinha (2007, p. 21): “alegoria, antífrase, antonomásia, aforismo, apóstrofe, arcaísmo, catacrese etc. Algumas delas, inclusive, recorrentes na obra como a ironia, a prosopopeia e o paradoxo”. Para Antunes: as diferentes ‘figuras de linguagem’, sobretudo as metáforas e metonímias, destacando-se que tais itens fazem parte, com um alto índice de frequência, de nossa linguagem cotidiana, não constituindo, portanto, uma particularidade restrita à linguagem literária; a palavra ‘caminho’, mesmo fora de qualquer texto literário, pode assumir um significado metafórico, conforme seja usada com a intenção de identificar não ‘determinado tipo de acesso (estrada, vereda, via)’, mas ‘determinado tipo de opção (rumo, destino, tendência)’, além disso, é válido destacar que as metáforas e metonímias têm grande vinculação com nosso acervo cultural e que, por isso, mobilizam em grande medida nosso conhecimento de mundo (ANTUNES, 2014, p. 43). Não basta, portanto, usar uma palavra de forma metafórica ou um conjunto de expressões que metaforizem algo ou alguém. É preciso entender que elas desempenham, em qualquer língua viva, fonte quase inesgotável de significações extralinguísticas. Com o objetivo de entender o mundo e os sentimentos que nos cercam, é preciso falar sobre as metáforas, que permeiam todos os aspectos da vida humana. Segundo Sardinha (2007, p. 23-24) “a metáfora se realiza por meio de uma relação de similaridade” e, ainda, “uma metáfora é uma comparação entre dois domínios diferentes”. Dessas colocações do autor, podemos dizer que a metáfora pode ser entendida como a maneira pela qual enxergamos o mundo por meio de nossa cultura, carregada de ideologias. São, portanto, recursos de linguagem fundamentais e necessários dentro de todas as culturas. Sardinha (2007, p.16) diz, ainda “as metáforas são um recurso natural de qualquer língua”. Dificilmente, um falante conseguirá produzir qualquer enunciado escrito, oral ou gestual sem se utilizar desse recurso. Para Lakoff (1987), as metáforas são recursos que traduzem as relações que guardamos com as experiências pelas quais passamos ao longo de nossas atividades sociais. Se na linguagem cotidiana esse recurso está presente e é usado, quase sempre, despercebidamente, nos textos literários, é inserido motivadamente com o propósito de direcionar leitor. Trata-se de figura rica no discurso literário, em que o entendimento das entrelinhas é feito, boa parte das vezes, por meio da decodificação de uma linguagem metafórica. A visão mais tradicional acerca das metáforas reside em enxergá-las como um artifício para embelezar a linguagem. Podendo até embelezar, no entanto, cumpre outras funções, como evitar a repetição e a mesmice, dando à linguagem possibilidades de exprimir relações de sugestão. O pensamento hodierno parece ser mais preciso, dando à figura seu real papel, colocando-a num espaço discursivo mais amplo e abrangente. Metáfora e metonímia podem se imbricar FERREIRA, Rodrigo Schulz | 2020 | p. 210-223 215 Discurso e poder: teoria e análise algumas vezes. Embora sejam recursos de linguagem distintos, apresentam uma certa semelhança. Sardinha (2007, p. 23) lembra “ambas são parecidas, dado que em ambas há uma relação entre duas coisas”. Ele ainda pontua que na primeira há uma relação de similaridade; na segunda, de contiguidade. A metonímia, por outro lado, preocupa-se em mostrar as relações existentes entre as relações semânticas no eixo da extensão, em que um valor é transferido para o outro, como em um espelhamento sêmico. Assim, traços de efeito e causa podem ser notados de forma intensa. Quando lemos, por exemplo, os nomes das personagens que encabeçam a prosa analisada, percebemos que seus traços já são antecipados. Com o passar da leitura, essas características, morais, psicológicas e físicas, são, paulatinamente, exploradas e evidenciadas. As metáforas são recursos retóricos poderosos e são conscientemente usadas por políticos, advogados, jornalistas, escritores e poetas, entre outros, para dar mais ‘cor’ e ‘força’ a sua fala e escrita (SARDINHA, 2007, p. 13). Para Sardinha (2007), fica evidente a ideia de que essa figura é um recurso potencialmente expressivo e usado com frequência por escritores e poetas. Em textos literários, é uma rica ferramenta para que o leitor seja convidado a refletir. É a maneira mais subjetiva possível de que se paramenta o escritor para, além de envolver quem lê, deixar vestígios de estilo no texto. Sardinha (2007, p. 7-12) lembra que “a metáfora é um recurso tão humano que talvez seja a última coisa que os robôs do futuro entendam” e que “são o instrumento que possuímos para criar novo conhecimento ou para dar conta de algo novo na ciência ou no cotidiano”. Para Sardinha, ainda, nossa linguagem é de uma riqueza quase infinita de possibilidades, “porque cada palavra pode ter vários significados”. Além de poderem assumir múltiplos significados, tem-se, ainda, o sentido não literal ou figurado, que estende essa multiplicidade do significado dicionarizado. Ao longo dos anos, a categoria de metáfora inicial de Aristóteles foi sendo desmembrada e refinada em muitas ‘figuras de linguagem’. Essa é uma tradição antiga. Foi possivelmente na Renascença que a classificação das figuras de linguagem se intensificou, em conformidade com a tendência da época de classificar o mundo em categorias (SARDINHA, 2007, p. 21). Da citação de Sardinha (2007), conclui-se que a metáfora surge com um propósito e vai ajustando-se a outros muitos, dentro os quais o de estabelecer a visão de mundo dos falantes de uma dada comunidade linguística. Servem, geralmente, a uma população, não são universais, pois o objetivo é permear o código linguístico para atender as necessidades culturais pontuais. Algumas metáforas até podem ser válidas para mais de uma comunidade, mas é preciso analisá-las com cautela. Os significados metafóricos dificilmente serão encontrados em dicionários, pois a sua essência ultrapassa a definição contida no verbete e suas entradas, logo, só poderão ser entendidos por meio da relação de significado e dos valores que os falantes dão a um signo (ou a um conjunto deles). A título de exemplo, pensemos no sinal feito com o dedo polegar virado para cima. No Brasil, e em alguns outros países de cultura ocidental, ele significa algo positivo. Essa leitura gestual, que não deixa de ser uma FERREIRA, Rodrigo Schulz | 2020 | p. 210-223 216 As metáforas como recurso para resgatar memórias de infância de Cecília Meireles metáfora, não vale, por exemplo, para países de cultura oriental, em que o gesto é desprovido de uma mensagem como: ‘está tudo bem’, ou ‘concordo’ etc. Conforme uma comunidade se desenvolve culturalmente, novas realidades são construídas e, com elas, surgem novas combinações como forma de intensificar e condensar mensagens. Sardinha (2007, p. 17) lista alguns tipos de metáforas, dentre as quais destacamos: a metáfora conceptual, cuja teoria é trazida por George Lakoff e Mark L. Johnson9, vista como a mais comum, ao defini-la como uma imagem construída inicialmente como mental. Gonçalves-Segundo pontua: Nessa importante obra e em textos subsequentes, os autores demonstram que a metáfora – antes entendida como figura de linguagem prototípica do campo artístico ou como artifício retórico – se configura em um padrão de associação conceptual entre domínios cognitivos que permitem compreender fenômenos abstratos e complexos a parti de experiências sensório-perceptuais concretas, configurando-se, portanto, em um fenômeno de pensamento que é essencial ao ser humano e que ode ser expresso em uma variedade de modalidades semióticas, e não apenas pela língua (GONÇALVESSEGUNDO, 2014, p. 36). Lendo a citação acima, podemos dizer que quando da elaboração da Teoria da Metáfora Conceptual, Lakoff e Johnson rompem com a tradição milenar sobre o conceito dado a elas. Passemos à análise de alguns trechos em Olhinhos de Gato. Cecília Meireles escreve que os homens usam ‘máscaras’ o tempo inteiro, não se permitindo conhecer e tampouco negando a chance para que outras pessoas o conheçam. As plantas e os animais, porém, para ela, são muito mais transparentes, sem vaidades, são apenas, não fingem ser, como fazem os homens. Nas palavras da escritora, E desse lado é que se pode ver como certas coisas são feitas: recortes, parafusos, encaixes, pedaços de cola...É desse lado que as coisas são naturais e verdadeiras, como nós, quando nos despimos... (MEIRELES, 2015, p. 19). O verbo despir, brilhantemente usado de forma metafórica, não pode ser lido como um simples desnudar-se (tirar ou perder as roupas) mas, muito além, ser transparente, não se esconder de si mesmo, mas mostrar aos outros e ao mundo sua verdadeira essência. Na página 170, encontramos outro verbo sugestivamente metafórico, decepar: “o moço tomava com uma das mãos os caracóis, com a outra mão fechava a tesoura, decepando-os, e contava, a brincar: “Um, dois, três ...”, em que, claramente, Cecília Meireles suscita uma sensação desagradável. A escritora poderia, certamente, ter usado o verbo cortar ou aparar, por exemplo, mas, ao empregar outro, muito mais pontual, ela transfere, por meio dessa escolha lexical, uma avalanche de significados subentendidos e que são notados quando se constata que aquele momento marcaria a terceira e última fase da prosa, na qual a protagonista passaria a ter menos mimos. A menina, a partir daquele instante, tem uma vida diferente. Há uma transição drástica 9 Metaphors we live by (University of Chicago Press, 2003). FERREIRA, Rodrigo Schulz | 2020 | p. 210-223 217 Discurso e poder: teoria e análise da primeira infância, recheada de cuidados, para uma fase com mais responsabilidade. O verbo ainda sugere outras leituras metafóricas interessantes. Podemos pensar que assim como a guilhotina ou outro objeto cortante, o barbeiro usa uma arma para tirar da menina suas regalias. Quando OLHINHOS DE GATO se vê sem os cachos, é como se deixasse para trás, em definitivo, uma menina ingênua e muito protegida. 3 Metáforas que resgatam sentimento de perda e de morte na infância de OLHINHOS DE GATO As metáforas são importante uma vez que permitem extrapolar a compreensão ‘rasa’ de uma lexia, ou seja, por meio desse recurso, a palavra ganha uma dimensão que se comunica com a cultura e os valores de uma dada sociedade. Para Ricoeur (1975), há, assim, uma nova pertinência semântica, que extravasa o sentido literal. Na página 20, com medo de perder a ama, OLHINHOS DE GATO pensava e sofria. Interessante como a escritora metaforiza o sentimento de perda, que se mescla ao da morte, por meio do verbo ir, no sentido de ‘partir’, ‘não voltar’, ‘morrer’: “Dentinho de Arroz iria também. Iria uma noite dessas, quando ela estivesse dormindo, talvez. Tudo vai... tudo vai...”. Constatamos, mais uma vez, que não se trata de um verbo usado de forma aleatória. Tem-se, visivelmente, a angústia da menina, que diante de tantas perdas e frustrações, fica aflita com a possibilidade de perder a ama, pessoa com quem ela aprendia muito sobre folclore e que lhe fazia cantar e esquecer-se dos medos. Quando Cecília Meireles emprega o verbo ir, notamos que a escritora pretende passar ao leitor a clara mensagem: as pessoas partirão um dia. Pensando nas muitas perdas da menina ao longo da narrativa, outro exemplo de construção metafórica é visto quando a menina encontra um cachorrinho perdido na mata. Dessa vez, OLHINHOS DE GATO, passeando pelos jardins da casa e seus arredores, descobre um cachorrinho, acuado e amedrontado. É possível pensar que não era apenas o bichinho que estava com medo. Os dois adjetivos, usados para descrever o cão, podem, perfeitamente, ser atribuídos ao estado emocional da menina. No dia seguinte, o cachorro não anda mais pela casa e o que era motivo de alegria à pequena órfã passa a ser mais um sofrimento imensurável. Provavelmente, com medo de que o animalzinho transmitisse alguma doença à menina, acabam por deixá-lo sair da casa ou botam-no para correr. Não se pode precisar. OLHINHOS DE GATO fica desolada. As pessoas à sua volta não dão muita importância a ela. Mais uma vez, a menina terá de lidar com a perda de forma solitária. E ela, então, chorou alto convulsamente, sob muitos tormentos reunidos e confusos, e as pessoas se desfizeram diante dela, como estátuas de cinza, e a casa ficou vazia, sem mais braços, sem mais rostos, sem mais vozes certas (MEIRELES, 2015, p. 91, grifos meus). Quando Cecília Meireles emprega o advérbio de modo convulsamente, ela remete o leitor, além da fragilidade da protagonista, à sensação de que a dor era maior do que o próprio choro, que era incontrolável. Sem controle sobre os atos, a menina parece tão apenas sofrer profundamente. Em seguida, a pobre criancinha é ignorada: se desfizeram. Duas metáforas são lidas aqui: (i) imagens embaçadas quando os olhos, FERREIRA, Rodrigo Schulz | 2020 | p. 210-223 218 As metáforas como recurso para resgatar memórias de infância de Cecília Meireles invadidos pelas lágrimas, borram as imagens e (ii) a grande indiferença das pessoas conforme a dor da menina se propaga. Na natureza, a escritora também encontra possibilidades para metaforizar os medos da menina. A escritora usa nuvens, que aparece com alta frequência e quase sempre associada a sentimentos ruins. Assim como as nuvens carregadas e escuras, a imaginação da menina parece ser um turbilhão, em constante preocupação. Na página 137, Nuvens, só nuvens, tudo nuvens. O céu forrado de nuvens, as montanhas vestidas de nuvens, as árvores enroladas em nuvens, as casas cobertas de nuvens, os quintais transbordantes de nuvens... (MEIRELES, 2015, p. 137, grifos meus). Observamos que Cecília Meireles envolve o leitor em um ambiente escuro. Por meio das nuvens, que partem do céu, vão para as montanhas, passam pelas árvores, chegam às casas e se instalam no quintal, a escritora não só dá dinamicidade à cena por meio do deslocar-se das nuvens, que alcançam vários espaços em um curto tempo, mas faz com que o leitor sinta a aflição da protagonista diante de tantas incertezas. Com a tempestade, não se consegue contemplar a vida que há na rua, as pessoas precisam se esconder dentro das casas. Ainda sobre as nuvens, a empregada da casa parece trazer a menina de volta à realidade. Se por um lado OLHINHOS DE GATO está sempre divagando, as outras personagens são mais realistas. Na página 116, “Maria Maruca dissipava as nuvens! “Não se pensa nessas coisas!”, temos Maria Maruca enxotando as preocupações da menina, tentando mostrar-lhe que a vida poderia ser um pouco menos amarga, assim como o sol que brilha depois do cessar das águas, ou da claridade que invade o céu depois que as nuvens se desfazem. Na página 14, Cecília Meireles relata a dor mais amarga de todas já sentidas por OLHINHOS DE GATO: “Beije a mamãe!" E beijou um rosto duro e frio”. Os adjetivos duro e frio ganham força metafórica. Ao dar ao beijo traços opostos aos esperados, quente e macio, a escritora transfere as características da morte para o beijo da menina, que, sofrendo em demasia, sentia a frieza e rigidez da pele do rosto da mãe. A morte da mãe, embora a mais penosa para a menina, não seria a última. O canário, sempre alegre e cantando dentro de sua gaiolinha, um belo dia, aparece morto. O contraste entre vida e morte fica evidenciado pelas escolhas lexicais: com a inserção de três verbos de primeira conjugação, cantar, balançar e pular, para retratar os movimentos da ave, temos os movimentos alegres do pássaro. Percebe-se, logo em seguida, que ele aparece morto, frio, seco e mole. O que antes era uma cena feliz, passa, agora, à solidão, ao silêncio, à melancolia. Tem-se, pelas escolhas lexicais, a oposição entre a vida, repleta de movimentos de ação, e a morte, com a inércia do passarinho. À janela, balança-se a gaiola redonda. O canário vira o olhinho de miçanga para o ar azul do dia […] E canta o canário. É pequenino, magrinho como um brinquedo – do tamanho da flor da trepadeira […] o canário solta o seu canto gravemente, como os sapateiros pregando solas, e os amoladores afiando as facas. Depois, experimenta a vibração que ficou em redor de si, e vai fazer outra coisa. Pula do poleiro, leve, levem parece ainda que nem cantou. Debica o alpiste. […] Vira a cabeça para o lado. […] Incha as pluminhas do pescoço FERREIRA, Rodrigo Schulz | 2020 | p. 210-223 219 Discurso e poder: teoria e análise com o seu canto, maior que ele, maior que a janela, e a casa, e a rua […] No entanto, um dia, aparece frio, seco, de lado na areia. Na cabecinha mole, nas asas rígidas, no hirto bico amarelo, não há um vestígio de som. E sabia-se que ele era só música. Isso dá uma certa melancolia (MEIRELES, 2015, p. 30-31, grifos meus). Além do canário, a menina estava em uma vizinhança rodeada por gatos. Gatos são recorrentes nas obras de Cecília Meireles. OLHINHOS DE GATO é sempre observadora e interativa com a natureza. Aliás, essa é uma forma encontrada pela menina para tentar superar tantas dores. Na página 13, os gatos aparecem em movimento e algumas escolhas lexicais traduzem a vida que pulsa nos bichanos: “sobem o muro”, “arreganham a boca”, “miado untuoso”, “saltam”, “reclinam-se”. Há uma descrição que sugere o movimentarse dos felinos. Dias depois, vítimas dos meninos, eles aparecem mortos. Na página 31: “estendidos, com muitas moscas por cima, e formigas em volta”. A morte é cruenta: “têm a cabeça amassada, e um olho para fora”. De forma metafórica, a escritora usa “veludo frouxo”, para qualificá-los quando estão vivos e, quando estão mortos, “fino veludo”. Além da sugestiva sinestesia – fusão de tato e audição –, a escritora usa interessante combinação entre o substantivo “veludo” e seus adjetivos para se referir à vida e à morte. O miar dos gatos é tão melado que chega a ser “untuoso”: Os gatos sobem o muro: veludo frouxo, pluma, elástico. Um raio de sol queima-lhes os bigodes de vidro. Piscam de olhos ofuscados, arreganham a boca num miado untuoso. Às vezes, levantam a pata hesitante para uma borboleta que se inclina. Depois, saltam cautelosos, sem se magoarem nas pedras, sem amassarem as flores, e reclinam-se numa sombra, e sonham com o tempo em que eram tigres. Dias depois, aparecem estendidos no fundo do quintal, com muitas moscas por cima, e formigas em volta. Seu pelo não brilha mais como um fino veludo. Tudo porque a mão de um menino arrojou uma pedra: têm a cabeça amassada, e um olho para fora (MEIRELES, 2015, p. 31, grifos meus). Mais adiante, OLHINHOS DE GATO se depara, outra vez, com a cena da morte, acompanhada da dor e do sofrimento das aves que agonizavam nas mãos do vendedor: Depois é um turbilhão de penas, uma palpitação de asas presas, um resignado estertor – e uma voz que apregoa com uma estridência de clarim, de Bandeira encarnada ao pino do sol: “Eh! Frangos, perus, galinhas gordas! ... Passam como leques abertos, as pernas brancas, as pernas pretas, as pernas cinzentas…. (MEIRELES, 2015, p. 143, grifos meus). Dessa vez, trata-se de uma galinha que, antes de morrer e virar uma deliciosa canja, sofre bastante. O vendedor caminha com as aves, segurando-as pelas pernas de cabeça para baixo, enquanto elas se “estrebucham”, há “uma palpitação de asas presas”. As vítimas não são apenas as galinhas, mas frangos e perus também transportados a pé pelo homem que tenta, indiferentemente, “resignado estertor”, vender suas aves. Na página 145, a escritora usa, novamente, metáforas para falar do sofrimento vivido pelas aves, cujo destino, assim como aquele enfrentado por Jesus, era certo: “mas os olhos dos animais vão abertos e humilhados, mirando o que encontram, com aquela expressão ajoelhada do Santo coberto de espinhos”. Embora FERREIRA, Rodrigo Schulz | 2020 | p. 210-223 220 As metáforas como recurso para resgatar memórias de infância de Cecília Meireles vivas, “olhos abertos”, seguem “humilhados” Cecília Meireles compara o sofrimento das aves àquele de Jesus quando da Via Sacra. Os olhos de piedade das aves são os mesmos de Jesus, ajoelhado e sangrando. (...) Mas os olhos dos animais vão abertos e humilhados, mirando o que encontram, com aquela expressão ajoelhada do Santo coberto de espinhos. Mas um Anjo levantava o Santo, às vezes. A eles, é o braço peludo e suado que os levanta, de vez em quando, mostrandoos às criadas, nos portões. E ninguém parece para socorrer aquela dor que passa sem nada pedir (MEIRELES, 2015, p. 143, grifos meus). A protagonista, mesmo com pouca esperança, acredita que uma delas ainda poderia ter um destino diferente, feliz. No entanto, sua vontade não se confirma e a morte é trazida de forma metafórica. Na página 145: “a menina chega e vê sobre a mesa da cozinha a galinha morta, com as frouxas penas cheias de um tênue frio”. A galinha acabara de morrer e seria servida no jantar, em forma de canja, a qual OLHINHOS DE GATO, sem saber, iria saborear. Analisamos, até agora, algumas construções metafóricas por meio das quais a escritora mostra o eixo condutor da narrativa - a constante oscilação entre a vida e a morte. Para fazer o leitor refletir acerca da morte, Cecília Meireles, em quase todos os acontecimentos que cercam OLHINHOS DE GATO, parece não desperdiçar a chance de evidenciar que a vida é um breve suspiro. A título de exemplo, neste momento, analisamos outras metáforas, que, embora não falem de sentimentos ruins, são expressivas e reforçam a importância desse recurso na obra Olhinhos de Gato. As duas primeiras nos remetem ao comportamento da protagonista; a terceira, a um traço físico da ama, pessoa com quem a menina convivia. Na página 13, “Da expressão com que está mirando? Seus olhos ardem como se os incendiassem. Ardem, dilatam-se, crescem, transbordam (...)”, em que o verbo “incendiassem” traduz o olhar vibrante e pensativo de OLHINHOS DE GATO. Como o fogo que consome todo material que queima, transformando-o em pó, em cinzas, os olhos da menina parecem olhar com tamanha profundida a ponto de saírem do estado quente, ardem, para alcançar a água, transbordam. Em ambas construções, o efeito é claro: uma intensidade que consome (fogo) ou arrasta (água) por completo. Na página 135, “Dentinho de Arroz, concertando-lhe a roupa e o cabelo, ia dizendo: “Bicho do mato, que você é! Onde já se viu menina bonita fazer uma coisa assim?”, em que o substantivo “bicho do mato” revelar um traço de personalidade da protagonista: tímida e teimosa quase toda a narrativa. Tem-se o uso de uma expressão popular para atribuir à menina um traço bastante característico: a repulsa pelos meninos, cujas condutas eram quase sempre desabonadoras. Por fim, a ama é descrita de forma metafórica. Na página 58, “Seus olhos negros – olhos ou miçangas? – mornos, levemente vesgos, destilando uma luz oleosa”, em que o substantivo “miçangas” nos remete à intensidade do brilho presente nas pedras, que são, inclusive, adorada pelas meninas. São usadas para fazer adornos, como colares e pulseiras. A ama, uma senhora negra, tem tanto amor no olhar, que os olhos chegam a reluzir. Está feito, portanto, o elo afetivo entre a menina e ama. FERREIRA, Rodrigo Schulz | 2020 | p. 210-223 221 Discurso e poder: teoria e análise 4 A transição de fases de Olhinhos de Gato: corte dos cachos A ida ao salão de cabeleireiro simboliza metaforicamente essa significativa transição, em que a menina vai caminhando pelas ruas da vila em que morava, olhando as casas, as pessoas, os objetos, as árvores: rememorando os tempos em que, sem muitas preocupações, poderia contemplar a natureza e mexer nos objetos deixados pela mãe. Ainda, é preciso pontuar que embora a escritora pudesse descrever uma subida, tem-se uma descida, que pode ser interpretada como uma metáfora para simbolizar a perda de alguns mimos. Na página 169: Então, descendo a rua, a menina passou a mão melancolicamente pelo cabelo. Cabelo alourado, fino como o dos recém-nascidos e encaracolando-se sozinhos. “Quando voltar...” Um estranho sentimento a foi levando para diante...” (MEIRELES, 2015, p. 169, grifos meus). Embora seja vista como uma menina amarelinha (p. 109 e p. 115), agora, no entanto, já está mais saudável: “gordinha” (p.30). Podemos dizer que superou, de fato, o medo que assombrava a avó: que a morte a levasse precocemente, assim como ocorrera com os outros entes. Os cachos da menina seriam aparados pelo barbeiro. Se com o uso do verbo “decepar” (p. 170) a escritora transmite ao leitor a clara sensação de uma drástica mudança na vida de OLHINHOS DE GATO, essa constatação é reafirmada com a expressão “pela última vez”. Como um retrato, “emoldurado”, aquela menina deixaria de existir, dando lugar a uma nova OLHINHOS DE GATO: Por que será que resolveram cortar-lhe os cachos? – era muito trabalhoso enrolá-los – estaria muito ardente aquele verão? […] A menina, sentada firme, com o pano branco cobrindo-lhe os bracinhos, e as mãos pousadas nos joelhos, olhou para a fita transparente estendida sobre o vidro, refletindo no espelho, amassada nas marcas do laço, viu também no espelho seu rostinho pálido, de lábio triste, e de olhos claros e sozinhos, emoldurado – pela última vez! (...) (MEIRELES, 2015, p. 168, grifos meus). Na página 172, Cecília Meireles, por meio de uma expressão de época, fala que daquele momento em diante, a menina passaria a obedecer às ordens e ser mais disciplinada: “Maria Maruca dizia: "Agora vai só andar na marrafa10, hein?". Os cachos, que simbolizam os primeiros anos de infância e são o xodó da avó e da própria menina, darão lugar a uma nova OLHINHOS DE GATO. Na página 172, Boquinha de Doce sorriu-lhe encantada: “Está ficando uma mocinha... Ainda parece mentira! ... Deixe-me ver se está bem cortado! Estes OLHINHOS DE GATO! E os cachos? Onde estão os cachos? E quando os viu, amarrados com a fita, parou em silêncio a mirá-los, acariciouos, beijou-os com um suspiro, como a uma outra criança, que se fosse embora, e lentamente os tornou a embrulhar. Quando lemos “está ficando um mocinha” a escritora concretiza, metaforicamente, o que deseja: anunciar uma nova etapa na vida da protagonista. Assim com fazemos com as pessoas que amamos, a avó acaricia e beija as madeixas, 10 Hoje, seria equivalente a andar na linha. FERREIRA, Rodrigo Schulz | 2020 | p. 210-223 222 As metáforas como recurso para resgatar memórias de infância de Cecília Meireles pois elas simbolizam a lembrança de uma OLHINHOS DE GATO que ficaria apenas na memória. Ao chegar em casa, a menina se vê diferente. Na página 175, “na cadeirinha de vime continuava a menina a olhar para a rua e a ver o mundo... Dessa cadeira, e debruçada para o mundo, foi que ela realizou o seu imenso descobrimento”. Considerações finais As memórias de infância de Cecília Meireles são resgatadas, em grande parte, por meio de construções metafóricas que oscilam entre sentimentos alegres e tristes e entre a vida e a morte. Com uma linguagem pontualmente pensada, a escritora alcança a mensagem a que se propõe: sensibilizar o leitor por meio das experiências que a morte traz. Decodificando as mensagens contidas nas entrelinhas, o leitor passa a mergulhar na vida, ou melhor, nos primeiros anos de infância de OLHINHOS DE GATO, que são semelhantes àqueles vividos por Cecília Meireles. Certamente, as construções metafóricas e as metáforas propriamente ditas revelam uma infância marcada pela dor de muitas perdas e ausências. As relações que se estabelecem, ao longo do texto, ou melhor, dos capítulos, são permeadas por ‘camadas’ metafóricas: as lembranças da morte da mãe, as inúmeras perdas, pelas mortes (canário e do gato) ou pela ausência (cachorrinho), e a transição de fases, quando tem os cachinhos cortados. Vida e morte oscilam em toda a narrativa e estão no texto por meio de imagens metafóricas que permitem ao leitor uma série de reflexões sobre a dor que a morte causa na menina. Os exemplos analisados permitem concluir, ao menos parcialmente, que a escritora se utiliza de um importante recurso de linguagem para falar sobre a efemeridade da vida. As temáticas de perda e morte são, como vimos, recorrentes na prosa, o que, como dissemos no começo deste artigo, podem ter relação com o momento pelo qual passava Cecília Meireles quando produziu a obra. Embora pudesse explorar as aventuras alegres quando de seus primeiros anos de infância, a escritora deu ênfase às memórias amargas e doloridas, cercadas, quase sempre, pela iminência da morte. As metáforas são, portanto, recursos de linguagem por meio dos quais Cecília Meireles adota uma postura para falar ao leitor acerca daqueles anos que tanto lhe marcaram. Referências bibliográficas ANTUNES, Irandé. Território das palavras: estudo do léxico em sala de aula. São Paulo: Parábola, 2014. CAMERON, Lynne. Metaphor and talk. In: GIBBS, Raymond W. Jr. (Org.). The Cambridge Handbook of Metaphor and Thought. Cambridge: Cambridge University Press. 2008, p. 197-211. GIBBS, Raymond. The poetics od Mind – Figurative thought, language and understanding. Cambridge: Cambridge University Press, 1994. FERREIRA, Rodrigo Schulz | 2020 | p. 210-223 223 Discurso e poder: teoria e análise GOLDSTEIN, Norma Seltzer e BARBOSA, Rita de Cássia. Literatura Comentada: Cecília MEIRELES. Abril Educação, 1982. 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Adjunção adnominal no Ensino Básico: alternativas para um ensino orientado à significação Sabrina Nascimento de ALENCAR Universidade de São Paulo [email protected] Resumo: Este artigo visa a apresentar uma nova proposta para o ensino de adjuntos adnominais na Educação Básica especificamente para os últimos anos do Ensino Fundamental II e para o Ensino Médio - orientada à textualidade e à significação, cuja abordagem objetiva não reiterar os aspectos contraproducentes analisados na etapa inicial de diagnóstico dos materiais didáticos vigentes (ALENCAR, 2019), relacionados a sua conceituação como elemento meramente formal e à desassociação da categorização sintática de suas implicações semânticas. Para isso, a proposta traz perspectivas pautadas em conceitos linguísticos definidos nos processos de Ancoragem Nominal (LANGACKER, 2008; ISOLA-LANZONI, 2017), de Referenciação (KOCH, 2014) e de Ensino-Aprendizagem de Língua (TRAVAGLIA, 2013; NEVES, 2002; PAIXÃO DE SOUSA, 2012; SILVA, PILATI & DIAS, 2010; BAWARSHI & REIFF, 2013; GONÇALVES-SEGUNDO, 2017; DOLZ, NOVERRAZ & SCHNEUWLY, 2004), a fim de desconstruir a visão típica de elemento acessório atribuída equivocadamente a essa classe e contemplar suas dimensões sintático-semânticas. Além disso, os exercícios propostos pelo material inédito debruçam-se sobre a diversidade de sequências textuais e de gêneros discursivos com o intuito de evidenciar ao aluno a aplicabilidade desse recurso gramatical em seu cotidiano e apurar sua sensibilidade crítica tanto para a leitura quanto para a escrita. Palavras-chave: Ancoragem nominal; Adjunto adnominal; Referenciação; Ensino; Material didático. Introdução A proposta de ensino trazida pelo projeto “Adjunção adnominal no Ensino Básico: alternativas para um ensino orientado à significação” almeja repensar o modo como a função sintática dos adjuntos adnominais é estudada em sala de aula. Anteriormente a sua elaboração, foi feito um diagnóstico dos materiais didáticos atuais tanto sobre a conceituação teórica tipicamente dada ao adjunto quanto sobre os exercícios responsáveis por sua fixação prática, com a finalidade de avaliar quais os caminhos se apresentaram como promissores e quais se demonstraram contraproducentes. ALENCAR, Sabrina Nascimento de | 2020 | p. 224-239 225 Discurso e poder: teoria e análise Esse estudo, descrito minuciosamente no artigo de Alencar (2019), apontou que, em primeiro lugar, majoritariamente perpetuava-se a atribuição de um caráter meramente formal ao adjunto, conferindo-lhe o papel de acessório para uma oração sob a justificativa de que sua retirada do enunciado não prejudica sua compreensão. Alinhado a isso, tal classe era tratada de modo homogêneo, sem evidenciar que o sentido agregado ao texto varia de acordo com o tipo de adjunto empregado, colocando a função de modificar, de quantificar e de determinar como equivalentes, o que, na verdade, ignora que tais efeitos decorrem de fenômenos distintos, observados por Langacker (2008), e, portanto, cada um apresenta particularidades não contempladas nessa visão. Consequentemente, há um segundo problema, relacionado à falta de atenção dada a alguns tipos de adjuntos, pois tanto as definições quanto os exercícios preocupam-se, em grande parte, somente com aqueles morfologicamente classificados como adjetivos ou locuções adjetivas, não explorando a adjunção ocasionada pelo emprego, por exemplo, de pronomes, de artigos e de numerais, igualmente relevantes. Por fim, cabe mencionar que uma quantidade significativa de exercícios se volta para a classificação sintática ou morfológica desarticulada dos efeitos semânticos implicados por tais usos, bem como descolam do texto-fonte os enunciados compostos pelos adjuntos para orientar as atividades. Isso dificulta a compreensão do aluno acerca das verdadeiras contribuições da adjunção não apenas para a construção dos sintagmas nominais, mas principalmente para elaboração do texto em sua totalidade, uma vez que esse é fragmentado. Assim, os exercícios não suscitam reflexões críticas acerca das dimensões sintático-semânticas por trás do uso do adjunto tanto para o enunciado quanto para o texto integralmente. A partir de tal análise, a nova proposta procurou reformular a abordagem teórica com uma perspectiva de definição do adjunto que considera a atuação desse recurso para o processo de Ancoragem Nominal (LANGACKER, 2008; ISOLALANZONI, 2017) e para o de Referenciação (KOCH, 2014), os quais, diferentemente do que é dado pelos livros didáticos avaliados, ressaltam o seu papel para a construção do texto articulada à significação desejada pelo falante. Os exercícios elaborados para material, inseridos nessa outra lógica, buscam, portanto, evidenciar essa relevância indispensável do adjunto, com uma gama variada de textos acompanhados de perguntas que pretendem estimular no aluno tal reflexão, conduzindo seu olhar não somente para a interpretação final do texto, mas também para a observação de quais recursos gramaticais possibilitaram-lhe essa leitura. Por isso, estratégias fornecidas pelos pressupostos teóricos da Linguística Aplicada no âmbito do Ensino-Aprendizagem de Língua (TRAVAGLIA, 2013; NEVES, 2002; PAIXÃO DE SOUSA, 2012; SILVA, PILATI & DIAS, 2010; BAWARSHI & REIFF, 2013; DOLZ, NOVERRAZ & SCHNEUWLY, 2004) foram imprescindíveis para determinar quais modelos de exercícios mais se aproximavam de tais expectativas. Tendo em vista esse propósito, o material compõe-se por cinco seções: a de “Visão geral”, voltada à explicação teórica da adjunção ao aluno; a de “O adjunto adnominal na coesão textual”, que trata da adjunção como processo fundamental à referenciação; a de “Uma análise profunda para professores: as teorias linguísticas por ALENCAR, Sabrina Nascimento de | 2020 | p. 224-239 226 Adjunção adnominal no Ensino Básico: alternativas para um ensino ... trás dos adjuntos”, com uma abordagem mais minuciosa do embasamento teórico linguístico para o estudo da adjunção, voltada aos professores; e, por fim, a de “Exercícios”, subdividida entre o setor de exercícios de fixação sem resolução a ser trabalhado com os alunos e o de respostas esperadas para tais atividades. Cada tópico desse conteúdo será mais bem explorado nas seções seguintes desse artigo. 1 Primeira seção do material didático: visão geral Anteriormente a essa seção, o material é introduzido por uma leitura detalhada de um cartaz de protesto a favor da descriminalização do aborto, cujo texto exemplificava um uso estratégico dos adjuntos adnominais. Figura 1. Introdução do capítulo Fonte: elaboração própria. A partir da segmentação do enunciado “Até Maria foi consultada para ser mãe de Deus”, buscamos guiar a interpretação do aluno segundo o sentido agregado por cada expressão inserida nessa estrutura. Essa é dividida em três partes: a primeira enquadra “Maria”, a segunda, “foi consultada”, e a terceira, “para ser mãe de Deus”, sendo classificadas como sujeito, locução verbal e complemento, respectivamente. Em seguida, destaca-se que, a fim de compreender a alusão bíblica presente no cartaz, o sujeito “Maria” deve ser definido com precisão, pois, por ser popular e comum na sociedade brasileira, tal nome exclusivamente não aponta para um referente específico, o que não leva ao leitor à conclusão de que se trata de uma Maria em especial. Fundamentando-se nessa leitura, esclarecemos que a terceira parte da estrutura faz-se imprescindível, visto que introduz a definição “mãe de Deus”, a partir da qual se chegará ao sentido pretendido pelo enunciador. Enfocamos, nesse raciocínio, o elemento “de Deus”, colocando-o como o principal responsável por ALENCAR, Sabrina Nascimento de | 2020 | p. 224-239 227 Discurso e poder: teoria e análise identificar que o referente não é a mãe de qualquer indivíduo, mas especificamente a mãe de Deus, reconhecendo Maria, assim, como a personagem bíblica. Finalmente, enquadramos “de Deus” na classe dos adjuntos, com o objetivo de apresentar essa classe já com base na sua aplicação em um texto real pertencente a um gênero discursivo recorrente no cotidiano do aluno, em um caminho indutivo que parte efeitos semânticos para se chegar à classificação de fato. Após isso, inicia-se a seção “Visão Geral”, a qual não se restringe à classificação geral de adjunto adnominal por meio da proposição de subdivisões calcadas na Linguística Cognitiva. Em vez de definirmos o adjunto de modo homogêneo, desconsiderando os diversos efeitos semânticos que podem agregar ao enunciado, pautamos a nova conceituação conforme o processo de Ancoragem Nominal discutido por Langacker (2008). De acordo com sua teoria e seguindo sua terminologia, ramificamos os adjuntos adnominais em três subgrupos: o de modificadores, o de quantificadores e o de determinantes, seguindo essa ordem. Nessa nova classificação, consideramos as distintas funções do adjunto quando inserido no sintagma nominal. Por isso, foi necessária também a inclusão do conceito de sintagma nominal, adaptando o nome dado por Langacker (2008) de “tipo“ para “nome central”, com o interesse de que o aluno pudesse depreender o funcionamento dessa estrutura e qual a sua finalidade na produção textual, enfocando os adjuntos adnominais como elementos que interferem significativamente nesse processo. Figura 2. Definição do sintagma nominal Fonte: elaboração própria. Posteriormente a esse quadro, começamos a reconstrução do sintagma exposto na imagem acima, adaptado de um trava-línguas de conhecimento popular para dialogar com a realidade do aluno. Em primeiro momento, suprimimos do enunciado os adjuntos para contrastar com o original e observar as mudanças entre ALENCAR, Sabrina Nascimento de | 2020 | p. 224-239 228 Adjunção adnominal no Ensino Básico: alternativas para um ensino ... eles, com o objetivo de analisar progressivamente de que forma o processo de Ancoragem Nominal de Langacker (2008) foi construído para alcançar o sentido final apresentado pelo sintagma. Nessa fase, o aluno depara-se com a estrutura cujo único componente é o nome central, o que implica um esquema, isto é, uma imagem genérica que, por si só, ainda não é capaz de apontar para um referente específico, somente para um modelo vago e abstrato pertencente a uma categoria. Assim, descreve -se ao aluno a inserção gradual dos adjuntos, respeitando a ordem dada por Langacker (2008), iniciada pelos modificadores, seguida pelos quantificadores e concluída com os determinantes, em um exemplo prototípico. Diante disso, pretendese demonstrar que tal progresso leva a uma restrição do número de candidatos ao recorte referencial, para, na última etapa da ancoragem nominal com a adição do determinante, o interlocutor ter a capacidade de delimitar específica e precisamente qual o referente trazido pelo texto. Em seguida, debruça-se sobre a noção de modificadores. Utilizando-se do mesmo exemplo do quadro de destaque feito para a concepção de sintagma nominal, determinamos os modificadores conforme seu efeito semântico e sua classificação morfológica. Seguindo a teoria da Ancoragem Nominal (LANGACKER, 2008, p. 124), o modificador agrega maior especificidade ao nome central, uma vez que ramifica o conjunto de categoria em dois subconjuntos, sendo apenas um deles correspondente ao referente pretendido pelo enunciador. Para fins mais didáticos, a apresentação dessa definição foi acompanhada de ilustrações didáticas que pudessem elucidá-la por meio de recursos visuais, inspiradas nos modelos formulados por Isola-Lanzoni (2017). Tal estratégia aplicou-se não somente para o esclarecimento dos modificadores, mas também para o dos outros subgrupos de adjuntos. Figura 3. Ilustração de explicação dos adjuntos adnominais modificadores Fonte: elaboração própria. ALENCAR, Sabrina Nascimento de | 2020 | p. 224-239 229 Discurso e poder: teoria e análise O subgrupo dos quantificadores, por sua vez, é compreendido, ainda em conformidade com a mesma teoria linguística (LANGACKER,2008), como a classificação dada aos adjuntos adnominais que cumprem o papel de delimitar a extensão do conjunto ou do subconjunto referido pelo sintagma. Com essa definição, o aluno pode depreender que, por meio da inserção de um quantificador, realiza-se a etapa da quantificação, a qual diminui drasticamente o número de candidatos ao recorte referencial. Nessa subclassificação da adjunção, houve também a diferenciação entre quantificadores relativos e absolutos. Os primeiros contemplam os adjuntos que, embora consigam demarcar e limitar a quantidade de possíveis candidatos ao referente, baseiam-se em uma escala subjetiva sob a perspectiva do falante, pois utiliza-se de expressões, os pronomes indefinidos, que não revelam o número exato desses candidatos, tais quais os quantificadores absolutos, enquadrados na classe de numerais. Salientar essa diferença ao aluno foi possível mediante o contraste entre três enunciados reformulados a partir do exemplo do trava-língua. Figura 4. Distinção entre tipos de quantificadores Fonte: elaboração própria. Por fim, para a concepção de determinante, estabelecemo-la como o adjunto incumbido de indicar ao interlocutor a pista de que ele consegue ou não identificar o referente, em função de quatro meios: da sua posição no espaço, da sua inserção no texto, do seu conhecimento de mundo e do conhecimento partilhado. Essa enumeração corresponde, respectivamente, à determinada por Langacker (2008), em que a entidade é inferida pelo contexto situacional, pelo cotexto, pelo conhecimento de mundo e pelo conhecimento partilhado entre interlocutores. Esses casos foram ALENCAR, Sabrina Nascimento de | 2020 | p. 224-239 230 Adjunção adnominal no Ensino Básico: alternativas para um ensino ... denominados, na seção dedicada aos alunos, como “posição no espaço”, “inserção no texto”, “conhecimento de mundo” e “conhecimento partilhado”, respectivamente, para maior precisão e clareza do que se trata cada um deles. Com o intuito de discernir de que modo essas identificações ocorrem efetivamente no texto, novamente, o contraste entre exemplos adaptados do trava-língua mostrou-se uma alternativa produtiva, trazendo tais reformulações em uma ordem correspondente à da enumeração dos casos. Dessa forma, o aluno pode apreender que os variados usos dos determinantes são feitos estrategicamente pelo falante objetivando imprimir diferentes efeitos semânticos ao texto, consoante a mensagem final pretendida. Figura 5. Diferenciação entre os quatros meios de determinação do referente Fonte: elaboração própria. Na conclusão desse item, o aluno defronta-se com dois exercícios já solucionados, os quais lidam com dois anúncios publicitários cuja leitura final requer, necessariamente, o uso do adjunto adnominal para ser alcançada. Em ambos, procurase demonstrar a relevância do conhecimento dos diferentes tipos de adjunto para notar que cada um implica efeitos variados, os quais encaminham para uma determinada interpretação. Diante disso, as perguntas têm a pretensão de guiar o olhar do aluno sobre o uso da linguagem evolvendo a adjunção, alinhando-os à leitura final que eles inferem. Entender quais usos linguísticos possibilitaram a compreensão total do texto é tão necessária quanto essa por si só, visto que a produção textual está intimamente articulada ao domínio dos recursos gramaticais. Esse escopo é defendido por Dolz, Noverraz & Schneuwly (2004, p. 109), que ressaltam a “consciência mais ampla” do aluno acerca de seu “comportamento de linguagem em todos os níveis”. ALENCAR, Sabrina Nascimento de | 2020 | p. 224-239 231 Discurso e poder: teoria e análise Figura 6. Exemplo de exercício resolvido Fonte: elaboração própria. Baseando-se em uma propaganda de cosméticos para o público masculino, o exercício debruça-se sobre a reformulação de um dito popular pelo texto do anúncio. Para isso, duas questões assumem a tarefa de apurar a leitura do aluno para a estratégia à qual o anunciante recorreu para realizar tal adaptação e por que esse movimento discursivo se faz indispensável ao seu poder persuasivo de venda do produto. A primeira pergunta direciona o enfoque de leitura para o adjunto adnominal “de homem”, uma vez que esse substitui a expressão “de mulher”. Em seguida, a segunda pergunta procura explorar por que essa adaptação traz mudança de sentido e de que forma esse novo sentido serve aos fins publicitários. Desenvolvemos o raciocínio, portanto, de que a alteração do modificador nesse sintagma nominal implica o sentido de que o cuidado estético - tipicamente associado à subcategoria do universo da mulher por corresponder a um comportamento consolidado como feminino pelos paradigmas patriarcais – passa a pertencer a uma subcategoria inesperada, da qual antes era excluído: a do universo masculino. Nesse contexto, a propaganda parece visar seduzir o público-alvo masculino para adquirir o produto anunciado por fazê-lo acreditar que comprar esse tipo de objeto, embora seja uma conduta socialmente alinhada ao interesse feminino, não anula a possibilidade de que essa também atenda ao bem-estar do homem, propondo dialogar com e, inclusive, capitalizar sobre modelos de masculinidade contra-hegemônicos. ALENCAR, Sabrina Nascimento de | 2020 | p. 224-239 232 Adjunção adnominal no Ensino Básico: alternativas para um ensino ... 2 Segunda seção do material didático: o adjetivo adnominal na coesão textual No segundo tópico do material, procuramos tratar da adjunção atuando em outro processo linguístico essencial para a construção textual: a Referenciação, tal qual discutida por Ingedore Koch (2014). Nesse caso, o adjunto adnominal, por ser um dos componentes do sintagma nominal, contribui para os fenômenos discursivos de ativação/construção, reativação/reconstrução e desfocalização/desativação dos referentes que integram um texto. A princípio, descreve-se cada um deles para o aluno, sendo a nomenclatura utilizada por Koch (2014) remodelada, para sugerir ao aluno, já pela terminologia, a função dessas etapas. Assim, determinou-se a Referenciação como um processo que se pauta nos momentos textuais nos quais o falante pode introduzir um referente, reintroduzi-lo ou tirá-lo de foco, deixando-o em modo de stand by. Com fins mais didáticos, estendemo-nos majoritariamente na explicitação dessas estratégias por meio de sua aplicação em um fragmento da canção “Geni e o Zepelim”, de Chico Buarque, no qual o enunciador recorre a diferentes sintagmas nominais constituídos por variados adjuntos adnominais os quais, à medida que agregam maiores informações à identidade de Geni, cumprem as fases da Referenciação, pois oferecem caminhos para o leitor reconhecer o referente de Geni em função de múltiplos atributos. O objetivo em usar especificamente uma canção consiste também em trazer um exercício simultaneamente lúdico e produtivo para o ensino, uma vez que o ideal seria o professor ouvir a música em aula com os alunos a fim de desencadear uma discussão sobre a história narrada por ela e, com isso, culminar na atividade proposta pelo material. No contexto da canção, os adjuntos adnominais associados a Geni variam conforme o autor dá voz a diferentes personagens, o que demonstra que a Referenciação, nesse caso, reflete os interesses e as pretensões do enunciador. Em primeira instância, a adjunção revela a visão depreciativa dos outros moradores sobre ela, atribuindo-lhe injúrias e maldizeres; em segunda instância, denuncia a objetificação do comandante do Zepelim a respeito da mulher, tendo em vista que esse se usa de galanteios para seduzi-la, visando a exclusivamente atender a seus interesses sexuais; e, em última instância, destaca-se o modo como os adjuntos pejorativos dados pelos moradores passam a ser menos hostis objetivando persuadir Geni a submeter-se às vontade do comandante para o bem comum da população, o que revela a manipulação do discurso pelo enunciador em prol de obter vantagens para si mesmo. Logo, a Referenciação concretiza-se de maneira ardilosa para criticar engenhosamente a maneira com que a sociedade vilipendia e pretere a mulher, agraciando-lhe apenas em ocasiões oportunas, ou seja, quando ela pode satisfazer os interesses dessa sociedade. Em “Geni e o Zepelim”, essa atitude mostra-se evidente em relação à personagem de Geni, cujo comportamento de não somente transgredir e confrontar os paradigmas conservadores da sociedade, mas também de se solidarizar com outros igualmente marginalizados torna-a uma figura desolada e, ao mesmo tempo, conveniente em seu meio social. ALENCAR, Sabrina Nascimento de | 2020 | p. 224-239 233 Discurso e poder: teoria e análise Figura 7. Trecho do material em que se inicia a abordagem de um fragmento da canção “Geni e o Zepelim” Fonte: elaboração própria. 3 Terceira seção do material didático: uma análise profunda para professores Nessa parte do material, dedicada exclusivamente aos professores, objetivamos aprofundar as teorias de Ancoragem Nominal (LANGACKER, 2008) e de Referenciação (KOCH, 2014), com uma abordagem mais detalhada e fidedigna ao que de fato é estabelecido pelos linguistas. Usando-se dos mesmos exemplos aplicados nas seções anteriores, o professor pode ter uma perspectiva mais ampla e complexa dos fenômenos semânticodiscursivos nos quais a adjunção adnominal se demonstra componente imprescindível. Essa explicação, embora alinhada à dada aos alunos, alcança, nesse caso, um nível mais teórico e substancial, seja por contemplar a mesma terminologia empregada pelos linguistas para a descrição dos processos, seja pela atenção minuciosa a nuances de diferença entre co(n)textos muito semelhantes. Ambos os casos configuram tópicos que, sob o nosso ângulo, não convém explicitar ao corpo discente, mas cabe trazer ao professor para muni-lo de conhecimentos fundamentais que podem ser manipulados conforme suas exigências para um aproveitamento educacional mais eficaz e produtivo acerca dos adjuntos. ALENCAR, Sabrina Nascimento de | 2020 | p. 224-239 234 Adjunção adnominal no Ensino Básico: alternativas para um ensino ... No decorrer da seção, são dadas sugestões sobre possíveis maneiras de trabalhar dadas informações em sala de aula, sem impô-las como absolutas e inflexíveis, uma vez que esse estudo mais completo e abrangente da adjunção confere autonomia e liberdade ao professor para formular sua própria metodologia de ensino. Essa expectativa condiz com o propósito de fazer com que o professor se aproprie do conteúdo do material a fim de que, posteriormente, extrapole-o, não se limitando somente aos caminhos indicados por ele. Figura 8. Início da sessão destinada unicamente aos professores Fonte: elaboração própria. 4 Quarta seção do material didático: exercícios A última parte do conteúdo engloba tanto o item com os exercícios que devem ser resolvidos pelos alunos quanto o tópico com as respostas esperadas. A formulação das questões considerou o que é defendido por teorias da Linguística Aplicada no âmbito do Ensino-Aprendizagem de Língua (TRAVAGLIA, 2013; NEVES, 2002; PAIXÃO DE SOUSA, 2012; SILVA, PILATI & DIAS, 2010; BAWARSHI & REIFF, 2013; GONÇALVES-SEGUNDO, 2017; DOLZ, NOVERRAZ & SCHNEUWLY, 2004), as quais reiteram algumas alternativas para o ensino que se mostram como mais próximas de alcançar uma abordagem mais eficiente e orientada ao propósito de apurar no aluno uma sensibilidade crítica de leitura e de escrita a partir do reconhecimento da gramática como componente não apenas formal do texto, mas também essencial para a construção de seu sentido. Nesse intuito, coletamos a maior variedade de sequências textuais e de gêneros discursivos que nos foi possível para adequar-se ao que afirma Travaglia (2013), quando evidencia a urgência da diversidade de gêneros. Tal medida atua em conjunto com o abandono do privilégio da macroestrutura do texto, atentando-se ALENCAR, Sabrina Nascimento de | 2020 | p. 224-239 235 Discurso e poder: teoria e análise também para a sua microestrutura, isto é, para o uso regular de determinados recursos linguísticos na produção textual, o que capacita o aluno não somente para a redação de um gênero específico, mas para uma gama diversificada de gêneros. Articulado a isso, procuramos contemplar também a perspectiva de Devitt (apud Bawarshi & Reiff, 2013, p. 214), a qual destaca como um dos empecilhos, referente à esfera das pedagogias de gênero, a priorização a diferentes preocupações teóricas em detrimento da compreensão dos fatores linguísticos, sociais e culturais que circundam os gêneros. Assim, transferindo essa lógica para o ensino da adjunção adnominal, o objetivo principal relativo aos exercícios não se limita à informação do aluno quanto às distintas classificações dadas a essa classe, e sim transcende esse nível ao pretender colocar essa como tarefa secundária perante a reflexão sobre os usos linguísticos e o entendimento da gramática articulada à textualidade e à semântica. Com a finalidade de demonstrar o modo com que almejamos satisfazer esse panorama, trabalhamos com gêneros como meme, direcionando o olhar do aluno para a forma com que o quantificador contribuía para a construção do humor; como manchete jornalística, enfocando de que modo o quantificador relativo sugere uma visão subjetiva do evento noticiado pelo autor; como publicidades denunciadas por reproduzirem preconceitos contra uma minoria, suscitando reflexões sobre o papel do adjunto para se chegar a essas leituras polêmicas; dentre outros gêneros próximos à realidade do aluno para estimular sua sensibilidade crítica ao lidar com esses textos no cotidiano. A seguir, comentamos de maneira mais aprofundada dois desses exercícios. Figura 9. Oitavo exercício da penúltima seção do material Fonte: elaboração própria. ALENCAR, Sabrina Nascimento de | 2020 | p. 224-239 236 Adjunção adnominal no Ensino Básico: alternativas para um ensino ... O texto escolhido para essa questão foi uma espécie de carta do leitor, em que um internauta apresenta sua dúvida acerca do uso da expressão “pessoa humana”, a qual, segundo sua visão, configura um pleonasmo. A partir dessa leitura do internauta, a pergunta direciona o aluno para o uso do termo “humana”, o qual constitui um adjunto adnominal modificador, questionando por que sua presença contribui para que a interpretação da expressão seja encarada como um pleonasmo, nesse caso. O propósito com essa orientação é incitar o aluno a perceber que, considerando a divisão da categoria em duas subcategorias com a inserção de um modificador, nessa circunstância, o modificador “humana” realiza esse processo com a categoria “pessoa”, logo, as duas subcategorias resultantes dessa modificação são a de “pessoa humana” e a de “pessoa não humana”, sendo a primeira correspondente ao referente pretendido pelo falante. Nesse quadro, pode-se evidenciar que o pleonasmo acontece devido à origem de uma subcategoria, a de “pessoa não humana”, considerada convencionalmente inexistente e decorrente da etapa de modificação, por isso, há o estranhamento. Figura 10. Nono exercício da penúltima seção do material Fonte: elaboração própria. Nesse caso, selecionamos o título de um artigo em um blog político, composto por três enunciados, sendo os dois primeiros o alvo de nossas questões. O ponto para o qual conduzimos maior atenção relaciona-se ao fato de o autor servir-se do contraste semântico entre o emprego de “a” e de “alguns”, que, por si só, consegue explicitar de maneira precisa e objetiva o seu posicionamento a ser justificado no artigo. Visando a enfocar essa estratégia, o aluno depara-se com duas questões. A primeira exige que seja dada a interpretação desses enunciados, o que equivale ao tipo de exercício comumente aplicado nos livros didáticos atuais. No entanto, para não nos restringirmos a uma atividade meramente de análise do sentido, a segunda ALENCAR, Sabrina Nascimento de | 2020 | p. 224-239 237 Discurso e poder: teoria e análise questão retoma a resposta dada à primeira sob o viés de que tal leitura somente foi possível devido ao uso de dois termos específicos, os quais são classificados como adjuntos adnominais. A tática utilizada, para isso, consiste em propor ao aluno a substituição dos termos por outros de mesma classificação semântica, “uma” e “poucos”. Diante esse contexto, tem-se que, apesar de enquadrarem-se em um mesmo tipo de adjunto adnominal, os artigos “a” e “uma” agregam noções distintas ao sintagma nominal, uma vez que o primeiro implica uma generalização sobre uma categoria, enquanto o segundo acarreta outros efeitos não convergentes com esse sentido. Da mesma forma, “alguns” e “poucos”, ainda que ambos sejam quantificadores relativos, inferem significados divergentes. O primeiro ressalta a existência de exemplares de uma determinada categoria, sem ater-se à quantidade, seja ela reduzida, seja ela extensa; já o segundo parece colocar esse ponto em primeiro plano, visto que, quando associado ao nome central nesse sintagma, enfatiza precisamente o número escasso de políticos que se adequam à subcategoria de corruptos, o que também não atende ao interesse do enunciador nessa circunstância. Desse modo, não apenas nesses exercícios, mas em todos da seção, almejamos articular a gramática à interpretação do texto, estimulando o aluno a notá-la como um recurso discursivo ao qual se recorre para construir determinado efeito semântico em concordância com o pretendido pelo enunciador. Considerando esse intuito e as ideias supracitadas de Travaglia (2013) e de Devitt (apud Bawarshi & Reiff, 2013, p. 214), o caminho proposto pauta-se na diversidade de sequências textuais e de gêneros discursivos, pois, assim, será explicitada ao aluno a maneira com que essa manipulação e domínio da gramática interferem em leituras inclusive presentes em seu cotidiano, como manchetes jornalísticas, memes, artigos de blog, cantadas, propagandas, cartas do leitor, contos, e entre outros, aproximando a gramática de sua realidade e analisando sua aplicabilidade mesmo em situações mais informais. Não obstante, vale ressaltar o desafio de se propor exercícios de produção textual em um material voltado à gramática, já que não encontramos modelos préexistentes e certificadamente produtivos usados de modo amplo pelos materiais vigentes ou pelas sequências didáticas de teóricos do Ensino-Aprendizagem de Língua em que pudéssemos tanto nos inspirar quanto nos respaldar para desenvolver novas formas. Devido a isso, dentre os onze exercícios, somente um dispõe-se a tal atividade baseando-se no conto de Clarice Lispector, “Tentação”, do qual foram suprimidos os sintagmas nominais para que o aluno pudesse reformulá-los visando a descrever características variadas sobre a personagem por meio do processo de Referenciação (KOCH, 2014), em que o conjunto de atributos do referente desenvolve-se com a inserção de diferentes adjuntos adnominais no sintagma. Considerações finais O material apresentado nesse artigo introduz um conteúdo de adjunção adnominal constituído por novas alternativas e caminhos de ensino que se alinham a uma gramática orientada à textualidade e à significação, por meio de uma abordagem ALENCAR, Sabrina Nascimento de | 2020 | p. 224-239 238 Adjunção adnominal no Ensino Básico: alternativas para um ensino ... que considere os recursos linguísticos manipulados pelo enunciador para que acarrete determinado efeito semântico. Para isso, o conteúdo busca recuperar conceitos linguísticos, majoritariamente ignorados pelos livros didáticos atuais, associando-os ao papel do adjunto adnominal para propor uma nova concepção desse em função da Ancoragem Nominal (LANGACKER, 2008) e da Referenciação (KOCH, 2014), aos quais o adjunto constitui componente fundamental e indispensável, logo, divergindo da conceituação teórica tradicional que lhe atribui caráter meramente formal e secundário. Nesse sentido, enfatiza-se a estrutura do sintagma nominal visando a demonstrar de que modo o adjunto está presente no texto, e formula-se uma abordagem teórica de adjunção em que é contemplada não somente sua classificação morfológica e sintática, mas também a semântica, o que ramifica essa classe em três novos subtipos: quantificador, modificador e determinante. Outro ponto relevante é a inclusão de uma seção dedicada exclusivamente ao professor, a fim de que esse possa se apropriar das teorias linguísticas que envolvem adjunção adnominal e, por meio desse conhecimento, assumir autonomia perante o conteúdo para reiterar sua liberdade de propor seus próprios métodos de abordagem, sem ater-se ao material como alternativa única e absoluta. Por fim, a elaboração dos exercícios norteou-se pelo que é defendido por linguistas do ramo de Ensino de Língua (TRAVAGLIA, 2013; NEVES, 2002; PAIXÃO DE SOUSA, 2012; SILVA, PILATI & DIAS, 2010; BAWARSHI & REIFF, 2013; DOLZ, NOVERRAZ & SCHNEUWLY, 2004), que salientam a urgência de trazer atividades que não se restrinjam ao aprendizado da gramática como pautada ora em etiquetações, ora em interpretações de texto desarticuladas dos efeitos provocados pelos usos linguísticos. A proposta, em um direcionamento que considera as dimensões sintáticosemânticas da adjunção, procura atender às necessidades de reflexão sobre o uso da linguagem (NEVES, 2002), de estímulo ao espírito investigativo sobre a gramática (SOUZA, 2012), e de engajamento com uma conscientização acerca dos processos concernentes à construção do discurso (SILVA, PILATI & DIAS, 2010), para que o aluno alcance sensibilidade crítica relativa à leitura, primariamente, e, secundariamente, à escrita, capacitando-o com essas habilidades em suas relações diversas para com o mundo. Referências bibliográficas ALENCAR, Sabrina Nascimento de. O ensino de adjunção adnominal na escola: reflexões críticas. In: GONÇALVES-SEGUNDO, Paulo Roberto; PEDRO, Adriana Moreira; OLIVEIRA, Agildo Santos Silva de; MARQUES SILVA, Alexandre; ISOLALANZONI, Gabriel; KOBAYASHI, Sergio Mikio; WEISS, Winola (Orgs.). Trajetórias teórico-metodológicas nos estudos do discurso. São Paulo: FFLCH, 2019, p. 323-338. 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DOI: 10.11606/9786587621241 ALENCAR, Sabrina Nascimento de | 2020 | p. 224-239 240 Vivências Discursivas: uma forma de ver e estar no mundo Vivências Discursivas: uma forma de ver e estar no mundo Samara Gabriela Leal FRANÇA Universidade de São Paulo [email protected] Resumo: Compreender a leitura e a escrita como instrumento de poder – que dá voz e favorece o protagonismo crítico do indivíduo na sociedade – é fundamental ao trabalho docente, sobretudo, aquele realizado nas escolas públicas. Este trabalho tem por objetivo discorrer sobre as contribuições do gênero memórias literárias para a melhoria da leitura e a escrita do aluno-autor, que produz e por suas produções são formados, de maneira dialógica, ideologicamente. Este artigo representa um recorte de uma pesquisa maior realizada no curso de Mestrado Profissional em Rede Aberta- PROFLETRAS /USP. Nele, apresento o caminho trilhado e a análise de duas produções finais, que pressupõe o aluno como protagonista no processo de ensino-aprendizagem. O aporte teórico está assentado no conceito da pedagogia da autonomia postulado por Freire (1996); na perspectiva da literatura como espaço subjetivo e de construção identitária, conforme Petit (2013); e nos elementos composicionais do gênero, segundo Bosi (1979/2003) e Marcuschi (2011). Os resultados, embora parciais, são bastante reveladores e apontam para a necessidade de novas perspectivas de leitura e escrita escolar, em que se respeite a subjetividade, a liberdade, a autonomia e a emancipação dos sujeitos envolvidos. Palavras-chave: Memórias literárias; Aluno protagonista; Leitura literária, Pedagogia da autonomia; Aluno-autor. Introdução Nos ambientes educacionais, faz-se necessário fortalecer as práticas de leitura e escrita, incorporando-as ao cotidiano das crianças e adolescentes. Entretanto, o que observamos, enquanto professora-pesquisadora, é uma lacuna muito grande entre o jovem-aprendiz e a leitura, sobretudo, no tocante à leitura literária. Há uma defesa muito forte sobre a importância da literatura; Candido (2004), por exemplo, defende que mais do que um conteúdo, ela é um direito do ser humano. Entretanto, notamos também uma carência no que se refere ao seu oferecimento no Ensino Fundamental – Anos Finais. Isso muda quando observamos, por exemplo, a educação infantil, momento em que a criança está sendo inserida no mundo da leitura e em que a leitura literária é bastante recorrente. Já no Ensino Médio, iniciam-se os estudos das escolas literárias, deixando, assim, à margem o Ensino Fundamental II. FRANÇA, Samara Gabriela Leal | 2020 | p. 240-274 241 Discurso e poder: teoria e análise Podemos refletir que, em uma época em que a literatura ganha novos suportes, é incorporada às mídias digitais, ao mesmo tempo, perca espaço nas práticas escolares. Nesse sentido, Yunes (2012) afirma que a literatura não corre perigo de inexistência e que o seu fim chegará apenas quando também for o fim do homem. Isso nos faz pensar que se não é a literatura que está em declínio, então poderia ser o seu ensino? Ademais, ao questionarmos aos alunos sobre hábitos de leitura, percebemos que eles leem sim, aquilo de que precisam e de que gostam de ler. Compreendemos, portanto, que a escola precisa repensar suas práticas para que faça emergir, fazendo uso das palavras de Rouxel (2012), um sujeito-leitor no sujeito escolar. Posto isso, ao evidenciarmos a escrita no cerne da questão, as respostas não são diferentes. Muitos alunos chegam ao Ensino Fundamental II sem estarem ainda alfabetizados, fato que pode ser comprovado pelas avaliações externas cujos resultados não são positivos para os alunos da rede pública. Esses, muitas vezes, passam nove anos em uma escola e saem com a competência linguística defasada. Agrava-se, ainda, este quadro quando pensamos em práticas que não consideram a autonomia e protagonismo dos alunos no processo de ensino-aprendizagem e muito menos sua formação enquanto ser humano e sujeitos que formam suas identidades também na escola. Pensando nisso e com o intuito de buscar novas propostas, este trabalho teve como foco analisar a realização de um projeto de ensino que refletisse sobre práticas de leitura e produção literária, nas quais o texto seja compreendido como espaço de interação dos sujeitos sociais, que produzem e por suas produções são formados, de maneira dialógica, ideologicamente. O projeto foi aplicado com alunos de 7º ano de uma escola pública estadual de Aguaí, interior de São Paulo. O gênero discursivo escolhido para o trabalho foi o de memórias literárias1 por possibilitar diversas vivências discursivas e também uma valorização local, a partir do tema “O lugar onde vivo”. A aplicação teve duração de um semestre e contou com diferentes etapas que descrevemos no Anexo I. A metodologia favoreceu um movimento que partiu de coletas orais com moradores da comunidade, encaminhou-se a um trabalho de manutenção de leitura e escrita, findando-se com a partilha oral das produções com a comunidade escolar. Este artigo objetiva2, também, colaborar com a prática docente, demonstrando a importância de darmos espaço ao trabalho com a literatura, de maneira especial, no Ensino Fundamental II, devido à lacuna já justificada anteriormente. Em uma sociedade cada vez mais letrada, a língua torna-se instrumento de opressão e, nesse sentido, é preciso instrumentalizar nossos educandos e garantir o que lhes é de direito: o acesso à literatura, como forma de arte, e bem postulado por Petit (2013), como caminho privilegiado para se pensar, se construir, dar sentido a própria vida, para dar voz ao seu sofrimento, seus desejos e sonhos. Para o projeto de ensino realizado, utilizamos a base do material da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro nomeado “Se bem me lembro...” Disponível em: https://www.escrevendoofuturo.org.br/, acesso 21/07/2019. 2 Ressaltamos que o presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. 1 FRANÇA, Samara Gabriela Leal | 2020 | p. 240-274 242 Vivências Discursivas: uma forma de ver e estar no mundo 1 Naquele tempo: a leitura de memórias literárias O educador Paulo Freire, em 1987, deixa uma grande contribuição para a educação brasileira, quando reflete sobre a “Pedagogia do oprimido”.3 Nessa obra, o autor constata, dentre várias questões, o problema da educação como aparelho ideológico repressor, quando reproduz na sala de aula uma pedagogia que mantém diferenças sociais, de gênero e de classe. Nesse sentido, Freire (1987) analisa e conceitua a concepção bancária de educação como um instrumento da opressão. Nesse tipo de educação, o professor é o principal agente no processo educativo e os educandos seres passivos que apenas recebem e armazenam o que lhes foi ensinado, sem que se respeite seus conhecimentos, suas dificuldades, suas pessoas. Essa visão de ensino é pautada na narratividade e, normalmente, fala “da realidade como algo parado, estático, compartimentado e bem-comportado”, outras vezes, disserta “sobre algo completamente alheio à experiência existencial dos educandos”. Ao educador cabe: "encher” os educandos dos conteúdos de sua narração. Conteúdos que são retalhos da realidade desconectados da totalidade em que se engendram e em cuja visão ganhariam significação. A palavra, nestas dissertações, se esvazia da dimensão concreta que devia ter ou se transforma em palavra oca, em verbosidade alienada e alienante. Dai que seja mais som que significação e, assim, melhor seria não dizê-la (FREIRE, 1987, p.33). Diferentemente do conceito da “Pedagogia do oprimido”, que não faz senão depositar e transmitir valores, a “Pedagogia da autonomia”, também de autoria do referido autor, propõe práticas de ensino em que ocorra uma “dialogicidade verdadeira, em que os sujeitos dialógicos aprendem e crescem na diferença, sobretudo, no respeito a ela”, assim, formamos “seres que, inacabados, assumindo-se como tais, se tornam radicalmente éticos.” Essa visão faz com que nós, educadores, saibamos que devemos “respeito à autonomia e à identidade do educando” e isso exige de nós “uma prática em tudo coerente com este saber.” (FREIRE, 1996, p.25) Como pontua Freire (1987/1996), o educando deve ser o protagonista de seu processo de ensino-aprendizagem e, nessa perspectiva, o projeto de ensino desenvolvido pauta-se no pressuposto da pedagogia da autonomia e também compreende o ensino da Língua Portuguesa como decorrente de atividades que proporcionem a utilização da língua, como também a reflexão sobre o uso em atividades concretas e não tecnicistas. Assim, para a produção discente de memórias literárias, objetivo final do projeto, era preciso que estabelecêssemos o contato dos alunos com o gênero em questão, inserindo-os nas gamas da literatura a fim de favorecer o letramento literário, criando, deste modo, uma ponte entre a leitura e a escrita. Nesse sentido, as primeiras leituras Transplante de Menina de Tatiana Belinky e Parecida mas diferente de Zélia Gattai foram realizadas com áudios e as coletâneas da Olimpíadas de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro, doravante OLPEF. 3 Freire, Paulo. Pedagogia do oprimido, 17a. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987. FRANÇA, Samara Gabriela Leal | 2020 | p. 240-274 243 Discurso e poder: teoria e análise Esse primeiro contato com o gênero proporcionou uma leitura por fruição; convidamos os alunos a uma roda de conversa para que registrássemos as impressões, emoções e até mesmo estranhamento que as leituras pudessem ter provocado. Nesse momento, os alunos puderam compartilhar também fatos marcantes que eles acreditavam merecer ficar registrado para sempre na memória. Outras leituras foram oferecidas (anexo II), de forma gradativa e intercaladas com a realização de outras atividades que nomeamos “vivências discursivas”, uma vez que, durante o processo, os alunos não só aprendiam elementos linguísticos, mas também os vivenciavam em práticas protagonizadas por eles mesmos. As leituras foram realizadas de diversas maneiras, ora silenciosa, ora compartilhada, ora em rodas e ao ar livre, ora através de imagens e, desse modo, fomos despertando o interesse, não sem nenhuma resistência dos alunos para esse novo universo da narrativa ficcional e literária que: se distingue dos de outras esferas por uma certa transgressão do real, por um olhar próprio e reflexivo para os acontecimentos históricos e sociais, pelo uso mais intenso de recursos estilísticos de linguagem, pela aspiração de provocar, no leitor, experiências estéticas, éticas, ideológicas (MARCUSCHI, 2011, p.24). De acordo com o que pudemos observar durante as leituras, percebemos que é preciso encantar esses novos leitores, para que compreendam que a leitura literária não se trata de diversão, ou do lado oposto, apenas obrigação dos afazeres escolares, mas uma necessidade básica, assim como outras que colaboram para que possamos viver com dignidade e equilíbrio. 2 Vivências Discursivas: uma forma de ver e estar no mundo Durante o projeto de ensino, realizamos algumas atividades que tinham por objetivo promover o protagonismo dos alunos em práticas que os levassem a dialogar com a comunidade escolar e local, fazendo com que o aprendizado se tornasse mais significativo. A primeira vivência discursiva proposta foi que alunos dialogassem com moradores mais velhos da comunidade e coletassem as histórias de vida e fatos marcantes que essas pessoas tivessem vivenciado em Aguaí. Esse diálogo seria a matéria-prima para que os educandos produzissem os textos memorialistas. Eles deveriam colocar-se no lugar dessas pessoas e recriar, literariamente, como se as histórias fossem suas. Esse caminho para produção de memórias literárias também é compartilhado por Bosi (2003): De onde vêm as histórias? Elas não estão escondidas como um tesouro nas grutas de Aladim ou num baú que permanece no fundo do mar. Estão perto, ao alcance de sua mão. Você vai descobrir que as pessoas mais simples têm algo surpreendente a nos contar. Quando um avô fica quietinho, com o olhar perdido no passado, não perca a ocasião. Tal como Aladim da lâmpada maravilhosa, você descobrirá os tesouros da memória. Se ter um velho amigo é bom, ter um amigo velho é ainda melhor (BOSI, 2003, p.09-11/23-27). FRANÇA, Samara Gabriela Leal | 2020 | p. 240-274 244 Vivências Discursivas: uma forma de ver e estar no mundo A segunda vivência discursiva foi realizada em parceria com a professora de História; realizamos um resgate da memória histórica do município. Coube à professora discutir sobre fontes históricas, buscando descobrir o conhecimento que os alunos já possuíam sobre a temática e, ao mesmo tempo, construir novos saberes: o que são fontes históricas, a análise de algumas delas, o porquê de sua importância, dentre outras questões. A partir dessa edificação, retomamos esse objeto de estudo na aula de língua portuguesa, tendo desenvolvido para isso, a caixa de memórias. Figura 1. Caixa de Memórias Fonte: arquivo pessoal da autora Em duplas, os alunos escolhiam uma fonte histórica na caixa e também uma foto antiga do município (ruas, estação de trem, planta do hospital, documentos). Depois de analisadas a imagem e a fonte, eles produziram um relato sobre as descobertas apreendidas e, posteriormente, compartilharam com os outros colegas. Dessa maneira, todos os alunos conheceram um pouco da história de nosso município, o que gerou bastante interesse e motivação para produção que se daria, fomentando mais conhecimentos sobre o tema “O lugar onde vivo”. Figura 2. Fontes históricas do município Fonte: https://aguai.sp.gov.br/home/historia/. Acesso 01/10/2018 Com esta atividade, os alunos puderam descobrir, por exemplo, que nosso município nem sempre teve o nome de Aguaí. Antigamente, chamava-se Cascavel, FRANÇA, Samara Gabriela Leal | 2020 | p. 240-274 245 Discurso e poder: teoria e análise porém com a promulgação do decreto que proibia duas cidades possuírem o mesmo nome, a gestão da época convocou a população a um plebiscito. Os munícipes então deveriam escolher dentre três nomes: Teçainda, Aguaí, Toripa. Alguns alunos concordaram com a escolha, outros discordaram e, assim, a atividade pode proporcionar insumos para debates sobre diferentes pontos de vista. Na terceira vivência discursiva, organizamos uma exposição de objetos antigos. Os alunos coletaram, em casa ou com as próprias pessoas entrevistadas em atividades anteriores, fotos, cartas, utensílios domésticos, máquinas, discos de vinil, a fim de ampliar o repertório deles sobre os costumes, modos e hábitos de outros tempos estabelecendo, assim, uma nova aproximação com o passado. Advertimos, entretanto, que as pessoas representam a principal fonte para reconstruirmos a memória. Na sequência, realizamos a exposição. Para isso, confeccionamos um “túnel do tempo”, pelo qual os alunos de outras classes, que vinham prestigiar, tinham de atravessar. Os alunos dividiram-se em grupos e cada um possuía uma tarefa: montar o túnel; desenhar e recortar letras em EVA para indicações no ambiente; preparar as placas com os nomes dos objetos e indicação do ano; organizar a sala da exposição, a disposição dos objetos; monitorar a exposição e convidar as salas que deveriam vir. O trabalho foi desempenhado com empreendedorismo e os alunos puderam compartilhar aquilo que haviam aprendido. Aventuraram-se em multiplicar o aprendizado, repassando para outros colegas a história de nossa cidade. Observaram as transformações advindas ao longo do tempo e foram protagonistas o tempo todo, desde a montagem até a apresentação da exposição. Sobre esse aspecto, Bosi (1979) afirma que: [...] Mais que um sentimento estético ou de utilidade, os objetos nos dão um assentimento à nossa posição no mundo, à nossa identidade. Mais que da ordem e da beleza falam à alma em sua doce língua natal. [...] A ordem desse espaço povoado nos une e nos separa da sociedade: é um elo familiar com sociedades do passado, pode nos defender da atual revivendo-nos outra. Quanto mais votados ao uso cotidiano, mais expressivos são os objetos: os metais se arredondam, se ovalam, os cabos de madeira brilham pelo contato com as mãos, tudo perde as arestas e se abranda (1979, p.360) Figura 3. Exposição de Objetos Antigos Fonte: arquivo pessoal da autora FRANÇA, Samara Gabriela Leal | 2020 | p. 240-274 246 Vivências Discursivas: uma forma de ver e estar no mundo Sequencialmente, na quarta vivência discursiva, lançamos um novo desafio aos alunos: agora, eles deveriam sair às ruas da cidade e realizar um registro fotográfico, porém esse local deveria já ter sido analisado através de uma fotografia antiga em sala, na caixa de memórias, ou ainda de um lugar da cidade de que eles gostassem muito. A princípio, essa tarefa serviu de base para que eles desenvolvessem a percepção da importância da descrição em textos de memórias literárias, que subjetiva os lugares, as pessoas, as emoções e sentimentos envolvidos nas lembranças. Observamos, ainda, os efeitos construídos na maneira singular com o que autor memorialista registra as descrições em seus textos. A atividade realizada comprovou a necessidade e importância de que os alunos tivessem voz ativa. Isso foi observado, pois um dos alunos fez questão de estar presente na fotografia registrada, justamente em um local da cidade em que ele gosta de estar. Muitos registros se deram no parque em que eles gostam de frequentar para entretenimento, caminhadas, piqueniques e práticas de esportes. Também notamos o apreço dos alunos às atividades diversificadas, dado que a totalidade deles realizou a tarefa. É importante observarmos a facilidade que os educandos possuem, naturalmente, com as tecnologias digitais, uma vez que editaram as fotos, colocaram filtros e transformaram-nas em verdadeiras obras de arte. Dessa maneira, destacamos o caráter autoral das fotografias (texto verbal), já que eles modificaram as imagens com efeitos. Figura 4. Registros fotográficos realizados pelos alunos Fonte: arquivo pessoal da autora A quinta vivência discursiva foi realizada em sala de aula. Lemos um fragmento da obra Anarquistas, graças a Deus, de Zélia Gattai, nomeado “Os automóveis invadem a cidade”. O objetivo era que observássemos o diálogo estabelecido, nos textos memorialistas, entre o passado e o presente. Assim, incentivamos, a partir de algumas perguntas, a reflexão sobre como essas comparações foram incutidas no texto lido, sobre como os autores as construíram, despertando um olhar investigativo perante a leitura. FRANÇA, Samara Gabriela Leal | 2020 | p. 240-274 247 Discurso e poder: teoria e análise Na sequência, aproveitamos as imagens antigas que trouxemos e as atuais trazidas pelos alunos, para evidenciarmos as transformações locais pelas quais nosso município havia passado, conforme ilustra a Figura 5. Figura 5. Leitura comparada de imagens antigas e atuais Fonte: arquivo pessoal da autora Com as imagens dispostas no quadro, colocamos lado a lado a imagem antiga e atual do mesmo local. Inicialmente, realizamos uma leitura visual, percebendo as diferenças da cor – antes as fotos eram em preto e branco, algumas monocromáticas ou em tom envelhecido – da paisagem – árvores que eram menores, podadas – das construções – arquitetura diferenciada e, muitas vezes, padronizadas, rústicas, dentre outras. As leituras suscitaram uma série de comentários sobre as preferências dos alunos com relação aos tempos atuais e antigos, alguns detectaram que antes nossas praças eram mais cuidadas. Outros, a partir da leitura de uma imagem, perceberam que os carros eram escassos, pois em uma imagem analisada é possível ver apenas um Fusca, o que levou a novas reflexões sobre alterações dos modelos dos carros. Um aluno apontou “o Fusca era carro de luxo antigamente, né professora?”. Depois desse momento de discussão, incentivamos os alunos a escreverem suas observações sobre as comparações. Eles deveriam sinalizar o que havia mudado e demonstrar o que pensavam com relação a essas mudanças, como podemos demonstrar na Figura 6, 8 e 10. Figura 6. Resposta do aluno Fonte: arquivo pessoal da autora. FRANÇA, Samara Gabriela Leal | 2020 | p. 240-274 248 Vivências Discursivas: uma forma de ver e estar no mundo Figura 7. Transcrição da Figura 6 Naqueles tempos, Aguaí (antiga Cascavel) era bem mais tranquila, era mais colorida, os lugares tinham menos construções e mais árvores, era uma cidade mais limpa, não tinha tanto lixo jogado nas ruas, o rio do interlago era mais limpo, etc. O campo do Beira Rio antes era um rio, depois virou um cemitério, e agora é um campo. O José Theodoro foi a primeira escola criada em Aguaí, esse nome foi dado a ela porque o nome do fazendeiro que doou aquele pedaço de terra para aguaí se chamava assim, igual a escola Padre Geraldo Lourenço. Na praça do Centro de aguaí, antes de ser uma praça era um coreto, um local Onde os homens que andavam a cavalo se encontravam. O interlagos, antes de ser um parque, era um bosque com muitas árvores, e muito barro também. O trilho do trem antes não existia carro, então eles andavam de trem para não andarem a pé. E lembrando que o trem foi a primeira construção que teve em aguaí. Fonte: elaboração própria. Figura 8. Resposta do aluno Fonte: arquivo pessoal da autora. Figura 9. Transcrição figura 8 Major Braga, que foi no nosso fundador, não está mais entre nós, mais trouxe muitos benefícios para a nossa cidade, como instalação do cartório de paz, luz elétrica, escolas para a educação, etc. Hoje em dia, a nossa cidade é chamada de Aguaí, mais quando Major Braga à fundou, ela recebeu o nome de Cascável. Com o passar do tempo ficamos sabendo que nossa cidade não podia mas ficar com o nome de “Cascável, tinhamos que escolher dentre três nomes, que são: FRANÇA, Samara Gabriela Leal | 2020 | p. 240-274 249 Discurso e poder: teoria e análise Teçaindá (lugar alegre, risonho e aprazivel) Aguaí (cascavel, guizo- de metal eda cobra mbói-aguaí) Toripá (ligar, tempo, modo de alegrar-se). No final o escolhido foi Aguaí, que até hoje é denominada assim. Muitas coisas mudaram, na minha opinião para melhor. Fonte: elaboração própria. Figura 10. Resposta do aluno Fonte: arquivo pessoal da autora. Figura 11. Transcrição figura 10 Antigamente Aguaí tinha poucos lugares para ver Como: mercados, lojas, escolas, etc. A estação de trem em relação ao tamanho não mudou nada, mas deram uma boa mão de tinta, e agora eu acho que ela só atrapalha os moradores, porque quando precisamos passar pro outro lado da linha não conseguimos. No ano de 1887, aqui chegou a família Braga contituída pelo Major João Joaaquim Braga. Major João foi praticamente o fundador de “cascavel” Fonte: elaboração própria As figuras 06,08 e 10 são amostras das produções que foram mais recorrentes para essa atividade. A figura 06 apresenta uma visão nostálgica sobre as transformações, discorrendo que antes a cidade era mais limpa e considerando como importantes os fatos históricos relacionados às escolas citadas e ao meio de transporte da época (trem). Já a produção da figura 08 considera que as transformações ocorridas foram boas, já que para a aluna “muitas coisas mudaram” e “para melhor”. FRANÇA, Samara Gabriela Leal | 2020 | p. 240-274 250 Vivências Discursivas: uma forma de ver e estar no mundo Por fim, o texto da figura 10 imprime criticidade e avaliação em sua elaboração, quando o aluno destaca que a estação de trem modificou-se apenas porque recebeu uma boa pintura e o trem, na verdade, atrapalha os moradores quando precisam deslocar-se para o outro lado da cidade. Isso se deve ao fato de que a linha do trem, de forma central, divide a cidade. Nesse sentido, o aluno consegue identificar um problema local que assola aos munícipes. Também observamos que a maioria dos textos produzidos utilizaram uma demarcação temporal em suas produções como “Naqueles tempos” na figura 06 e “Antigamente” na 10, o que pode sugerir uma apropriação dos recursos comparativos empregados em textos memorialistas. Consideramos as atividades analisadas fundamentais para a formação autônoma dos alunos, pois incentivou que eles tomassem decisões individuais e/ou coletivas. Além disso, o projeto de ensino realizado pôde favorecer que a aprendizagem, a leitura e vivências discursivas fossem experimentadas de forma significativa. Em outras palavras, o aluno: [...] Ali, nas histórias lidas ou ouvidas, nas imagens de um ilustrador ou de um pintor, descobre que existe outra coisa e, portanto, certo jogo, uma margem de manobra no destino pessoal e social. E isso lhe sugere que pode tomar parte ativa em seu próprio futuro e no futuro do mundo que o cerca (PETIT, 2013, p.43). Muitas vezes, com essas atividades, os alunos podem ter referência sobre o entorno, sobre a formação seja escolar, seja humana e descobrir que eles não são meros espectadores da realidade que vivem e, assim, tornam-se parte ativa e colaborativa na comunidade local. As demais atividades que foram realizadas para a vivência dos alunos com o gênero de memórias literárias, para que pudessem apreciar, criar e se apropriar, encontram-se em anexo. 3 Escrevivências: a produção do texto memorialista Findado o projeto de ensino, nossa expectativa era de que os sujeitos envolvidos tivessem apreendido os elementos composicionais do gênero memórias literárias e também compreendessem as condições para produzi-lo. Ademais, com as experiências que tiveram, o objetivo era de que pudessem experimentar práticas educacionais que envolvam a comunidade, estabelecendo diálogos com a memória histórica do município, com a literatura e com discursos autorais em que tivessem autonomia para recriar o real com liberdade e subjetividade. De acordo com Marcuschi (2011), “para escrever boas memórias literárias, os alunos autores precisam, simultaneamente, contar, com um olhar de hoje, sobre o passado de outra pessoa como se fosse ela e, também, valorizar a singularidade e a estética literária”. Sob essa ótica e com o apoio da proposta de descritores da OLPEF (anexo V), analisamos as produções discentes que seguem: FRANÇA, Samara Gabriela Leal | 2020 | p. 240-274 251 Discurso e poder: teoria e análise a) Versão Final A14 Uma Mudança Mais que Especial São José do Rio Pardo foi a cidade em que nasci, aprendi, cresci, até me tornar um homem. Morava em um lugar maravilhoso: a fazenda de cachoeira, um lugar pequeno, porém um pedaço do paraíso. Com o passar do tempo, percebi que precisa me mudar. A vida em Rio Pardo estava muito difícil. Por isso, no ano de 1975, aos meus 35 anos, eu e minha família nos mudamos para Aguaí - uma cidade bem pequena, com pouquíssimo movimento, fraquíssima no comercio, de carros e até mesmo pessoas. A vida aqui em Aguaí estava sendo muito difícil, porque eu estava desempregado, digamos que vim testar a sorte, pois além de tudo isso, eu tinha seis filhos e uma esposa para sustentar. Naquele tempo, não tínhamos tanto medo em ter filhos, como, aparentemente, hoje as pessoas têm: um ou dois filhos no máximo. Após um tempo, graças ao meu Deus maravilhoso, consegui um emprego de motorista, e assim conseguimos lidar com nossos problemas financeiros. Como já disse, o comercio era bem fraco! Pelo o que eu me lembre, só tinha duas lojas e a “venda”. A venda era como se fosse um mercado na atualidade, ela tinha um balcão em que os clientes faziam pedidos apenas por quilo, por exemplo: “me dê dois quilos de batata”. Mas, o que me marcou de verdade, nessa cidade, foi o furacão que aconteceu no bairro Jardim Aeroporto. Fecho os olhos e posso ver o desespero estampado no rosto das pessoas. Primeiro o vento cantou e esbravejou. Depois veio a tempestade, impetuosa, arrastando tudo que via pela frente. Um mar de água formou-se e com ele levou casas, sonhos, vidas. Durante os dias que se passaram, tudo o que eu via eram rostos chorosos, desanimados. Todos precisavam de ajuda para atravessar aqueles dias, nem que fosse a esperança por um novo amanhecer, de Sol. Esperamos a tempestade passar e, de repente, não via mais aflições, mas mãos que se ajudavam, solidariedade que sobrava. As cores do céu iluminaram-se: assim como um novo dia, era possível recomeçar. Todos os dias sento na calçada de casa, vejo as crianças correndo, carros passando, jovens se divertindo, vejo a vida. Então, olho para o céu e digo a mim mesmo: Deus é bom! Durante toda o meu caminho em Aguaí, Ele sempre esteve com suas mãos levantadas a me abençoar. Hoje, tenho uma família linda, com muitos filhos, netos e até mesmo bisnetos! E uma esposa maravilhosa... Ah! Como eu amo essa velhinha!! Sempre comigo, tantos nos momentos difíceis como nos bons. A vida é esse movimento de partilha e agradecimento. Ao compararmos a versão inicial (anexo IV) com a final do texto 1, podemos constatar que a aluna ainda não havia conseguido imprimir em seu texto “uma linguagem própria, autoral, e pertinente à esfera da literatura”, entremeando “acontecimentos reais e ficcionais”. (MARCUSCHI, 2011) Na primeira versão, podemos observar um texto bem escrito, mas com muitos padrões, como por exemplo, a introdução “Olá! Meu nome é (...)”. Muitos alunos, em suas primeiras produções, iniciaram o texto assim, como se ainda estivessem na entrevista que fizeram com um morador da comunidade. Além disso, grosso modo, a principal dificuldade dos alunos, conforme demonstra a primeira versão da aluna, foi justamente conseguir valer-se da linguagem literária, dificuldade que foi superada na versão final. Nessa perspectiva, na última produção, observamos uma melhor percepção das condições de produção do gênero e um refinamento literário. Ao analisá-la, seguindo a proposta de descritores da OLPEF (anexo V), verificamos logo no título um aspecto recorrente na maioria dos textos produzidos: a escolha lexical atrelada ao 4 Os nomes presentes nas produções foram suprimidos para preservar a identidade dos participantes. FRANÇA, Samara Gabriela Leal | 2020 | p. 240-274 252 Vivências Discursivas: uma forma de ver e estar no mundo espaço concreto em que se dariam os acontecimentos dos fatos rememorados. No texto em questão, por exemplo, o vocábulo “mudança” redimensiona à cidade de Aguaí, que é justamente o local para onde o narrador-personagem viria se mudar. Em outras produções, pudemos encontrar “Mudança para Aguaí”, “Minha chegada em Aguaí” (esse título aparecera três vezes), “De uma cidade para a outra”. Outros títulos recorrentes atrelaram-se à infância e à memória: “Minha infância”, “A infância”, “Minhas lembranças”, “Baú de Memórias”. Entretanto, outros alunos conseguiram imprimir criatividade ao título de forma a chamar atenção e instigar o leitor. O surpreendente foi o fato de que um deles veio de um dos alunos que mais apresentava dificuldade na escrita, títulos como: “Cidadezinha de papel”, “Antes do sol nascer”, “Na velocidade das estrelas: o tempo”. De forma geral, a exemplo do texto analisado, no primeiro parágrafo os alunos procederam a construção da localização espaço-temporal em que as lembranças se desenrolaram, assim, remetem o leitor ao tempo rememorado e afirmam de onde eram antes de se mudarem para Aguaí. Muitos realizaram a apresentação do narradorpersonagem: “Vim para cá quando eu tinha 9 anos, e já vivo em Aguaí a 70 anos”; “Eu me chamo (...), vim de Minas Gerais no ano de 2001”; “Eu sou (...), sou filho de portugueses, eu vim para o Brasil por conta de condições financeiras.” No que diz respeito às adequações linguísticas, todos os alunos narraram as memórias como se eles próprios as tivessem vivenciado, dessa forma, o foco narrativo utilizado foi o da primeira pessoa. Retomando o texto A1, podemos perceber que a aluna-autora consegue investir no tema da produção “O lugar onde eu vivo”, singularizando a cultura e história local: “Como já disse, o comercio era bem fraco! Pelo o que eu me lembre, só tinha duas lojas e a “venda”. A venda era como se fosse um mercado na atualidade, ela tinha um balcão em que os clientes faziam pedidos apenas por quilo, por exemplo: “me dê dois quilos de batata”. “Mas, o que me marcou de verdade, nessa cidade, foi o furacão que aconteceu no bairro Jardim Aeroporto.” Já no que tange às adequações discursivas, observamos referências sobre coisas transformadas com o decorrer do tempo e que reconstruíram experiências vividas: “Por isso, no ano de 1975, aos meus 35 anos, eu e minha família nos mudamos para Aguaí - uma cidade bem pequena, com pouquíssimo movimento, fraquíssima no comercio, de carros e até mesmo pessoas.” “Naquele tempo, não tínhamos tanto medo em ter filhos, como, aparentemente, hoje as pessoas têm: um ou dois filhos no máximo.” Pela perspectiva de um antigo morador, a aluna conseguiu resgatar aspectos da vida passada. Entretanto, ela o fez com base na articulação proposta, do real e ficcional, empregando em várias partes uma linguagem que lhe conferiu natureza literária. Por exemplo, logo no primeiro parágrafo, encontramos a expressão “pedaço FRANÇA, Samara Gabriela Leal | 2020 | p. 240-274 253 Discurso e poder: teoria e análise do paraíso”5. No sexto, observamos o quanto o texto é rico em recursos expressivos, como a linguagem figurada e o jogo com as palavras. Por fim, no último parágrafo percebemos a recorrência desse estilo na finalização da produção: “Todos os dias sento na calçada de casa, vejo as crianças correndo, carros passando, jovens se divertindo, vejo a vida. Então, olho para o céu e digo a mim mesmo: Deus é bom! Durante toda o meu caminho em Aguaí, Ele sempre esteve com suas mãos levantadas a me abençoar. Hoje, tenho uma família linda, com muitos filhos, netos e até mesmo bisnetos! E uma esposa maravilhosa... Ah! Como eu amo essa velhinha!! Sempre comigo, tantos nos momentos difíceis como nos bons. A vida é esse movimento de partilha e agradecimento.” Ainda é importante observar que a aluna-autora desse texto é muito religiosa e esse aspecto marca o seu texto, o que reforça seu aspecto autoral, isto é, valeu-se de um modo próprio e original para (re)construir a memória do morador entrevistado. Com relação à descrição de emoções, sentimentos e impressões, que deve ser uma estratégia em textos memorialistas, verificamos apenas em alguns fragmentos do texto. No entanto, em uma leitura global, o escrito consegue despertar sensações no leitor. No que tange a adequações da convenção padrão da língua, observamos êxito por parte da aluna, que utilizou pontuações adequadas, paragrafação e palavras grafadas de forma coerente. Observamos, ainda, uma progressão e articulação que garantem a unidade textual. Por fim, verificamos que, embora não tenha utilizado marcadores temporais como “naquela época”, “naqueles tempos”, muito recorrentes em textos memorialistas, sobretudo, os motivadores que trabalhamos com os alunos, a alunaautora consegue conduzir o leitor para os tempos retratados em sua narrativa. b) Versão Final A2 Minhas lembranças! Antes Aguaí era que nem uma fazenda, não tinha lojas e nem calçadas. Cheguei aqui quando tinha oito anos, meus pais quiseram se mudar e tive de acompanha-los. Nossa vida era muito simples, e meus pais eram pessoas de muita fé. Desde cedo, me ensinaram que existem um pai no céu que cuida da gente. Assim, todos os domingos íamos ouvir o sermão do padre, e saíamos com a missão do domingo cumprida. Teve um acontecimento aqui na cidade que ficou muito marcado em minha vida que foi quando a nossa senhora apareceu lá na Aviação. Nossa... Nunca mais esqueci aquele dia quando a mãezinha do céu chegou em nossa cidade. Quando eu era pequena, amava ir à igreja e a gente não podia ir nas baladas que as crianças frequentam hoje em dia, então agente ia na igreja mesmo, e fazíamos as preces que nem gente grande. Quando fiquei mais mochinha, tinha que ir à igreja vestida de branco, todas as moças eram filhas de Maria, hoje em dia, não se vê mais nada disso, na verdade, as roupas que as meninas usam estão cada vez menor. Nessa época, tinha por volta dos meus quatorze anos e também comecei a trabalhar como doméstica para ajudar em casa. Verificar sugestões de análises propostas pelo portal Escrevendo o Futuro disponível em: https://www.escrevendoofuturo.org.br/conteudo/formacao/cursos-on-line/acesso-ao-curso-deavaliadores/artigo/2255/analise-de-texto-memorias-literarias, data do acesso: 05/12/2018. 5 FRANÇA, Samara Gabriela Leal | 2020 | p. 240-274 254 Vivências Discursivas: uma forma de ver e estar no mundo Lembro-me também que toda manhã eu e minhas cinco irmãs saímos junto com nossa mãe para lavar as roupas no lavadouro da cidade. Nessa época, não tínhamos tanquinho e máquina de lavar não existia nem em sonhos. Então a mulherada se reunia nesse lavadouro, próximo ao antigo bosque da cidade e lavavam suas roupas. Queria voltar naqueles tempos, a vida era simples, mas a felicidade era farta. Vim para cá quando eu tinha 8 anos, em São João nos não tínhamos condições para sobreviver, meu pai estava desempregado e minha mãe também então eles decidiram vir para cá a procura de uma vida melhor. O segundo texto analisado, em sua versão inicial (anexo VI), representa outra totalidade das primeiras produções colhidas com os alunos. Ao analisá-lo, notamos defasagens no que tange às adequações linguísticas, discursivas e convenções da escrita, além de não apresentar marcas de autoria. Denotamos ainda que na produção inicial não há um título, organização espacial do texto, articulação ou progressão enquanto unidade textual. A aluna-autora conseguiu apenas transpor, de forma literal, o diálogo que tivera com sua avó, ou aquilo de que ela se lembra da conversa, tanto que finaliza a produção afirmando “esses relato são quais eu me lembro”. Muitos alunos quando produziram a primeira versão transpuseram o diálogo que tiveram com os moradores, mesmo narrando em primeira pessoa. Não imprimiram criatividade e autonomia para recriar de forma literária a coleta que haviam feito. Provavelmente, não tivessem compreendido ainda os elementos que compõem o gênero, o que foi modificado com as vivências que tiveram posteriormente. Além disso, na primeira versão analisada do texto em questão, é possível percebermos uma oscilação do foco narrativo da 3ª para a primeira pessoa: “Esse relato é de uma senhora de 74 anos que fala um pouco sobre [...]”; “Na minha vida teve um momento marcante que foi [...]”. Esse recurso é permitido nos escritos de memórias literárias, desde que se apresente “o entrevistado”, passando-lhe posteriormente a palavra, utilizando, para isso, as aspas para demarcar corretamente a troca de pessoas do discurso. No entanto, não observamos isso com clareza no texto produzido. No que se refere à produção final, ainda que mantidos alguns desvios da norma padrão (com relação à regência, à acentuação gráfica e à grafia das palavras como em “mochinha”), depreendemos um significativo progresso se comparada à primeira versão. Percebemos que a aluna-autora inclui um título, escolhe por narrar em primeira pessoa como se as lembranças narradas lhe pertencessem. Do caráter “resumido” e “relatorial” da versão um, vemos surgir um texto mais expressivo, que nos apresenta melhor a narradora-personagem: “Cheguei aqui quando tinha oito anos, meus pais quiseram se mudar e tive de acompanha-los. Nossa vida era muito simples, e meus pais eram pessoas de muita fé. Desde cedo, me ensinaram que existem um pai no céu que cuida da gente. [...]” Denotamos também um aprimoramento do diálogo estabelecido entre o presente e o passado, explicitando transformações que reconstruíram experiências vividas: FRANÇA, Samara Gabriela Leal | 2020 | p. 240-274 255 Discurso e poder: teoria e análise “Quando eu era pequena, amava ir à igreja e a gente não podia ir nas baladas que as crianças frequentam hoje em dia, então agente ia na igreja mesmo, e fazíamos as preces que nem gente grande. Quando fiquei mais mochinha, tinha que ir à igreja vestida de branco, todas as moças eram filhas de Maria, hoje em dia, não se vê mais nada disso, na verdade, as roupas que as meninas usam estão cada vez menor. Nessa época, tinha por volta dos meus quatorze anos e também comecei a trabalhar como doméstica para ajudar em casa. Lembro-me também que toda manhã eu e minhas cinco irmãs saímos junto com nossa mãe para lavar as roupas no lavadouro da cidade. Nessa época, não tínhamos tanquinho e máquina de lavar não existia nem em sonhos. Então a mulherada se reunia nesse lavadouro, próximo ao antigo bosque da cidade e lavavam suas roupas.” Por fim, verificamos que, após todo o trabalho realizado durante o projeto de ensino e as correções textuais coletivas e individuais, houve melhoria no que se refere às convenções da escrita e, sobretudo, na impressão de sentimentos, emoções que a versão final consegue despertar, rompendo assim o “tom realista” do primeiro texto para uma liberdade literária maior na segunda produção. Ratificamos que, a exemplo do texto 2, nem todas as produções finais ficaram exemplares, sem desvios e atendendo completamente a composição do gênero proposto que solicitava: a) um diálogo estabelecido entre o passado e presente através de uma perspectiva de um antigo morador da comunidade local; b) singularização local com o tema “O lugar onde vivo”; c) liberdade para recriar o real de forma literária. Entretanto, podemos afirmar que todos obtiveram melhoria tanto na leitura quanto em suas escritas, demonstrando haver compreendido os elementos que estruturam o gênero. Ademais, não é com um único projeto de ensino que conseguiremos sanar todas as dificuldades apresentadas pelos alunos. É recorrente que o professor de língua portuguesa, ilusoriamente, acredite que, quando higieniza com a caneta vermelha o texto inteiro dos educandos, conseguirá que aquele desvio à norma não ocorra mais. Todo o processo de ensino deve ocorrer de forma gradual e não seria diferente com a leitura e a escrita. O que se faz necessário é fortalecer as práticas de leitura e escrita, incorporando-as ao cotidiano das crianças e adolescentes. Considerações Finais O trabalho desenvolvido propiciou um grande envolvimento com a leitura, fazendo com que alunos que não liam pudessem vivenciar essa prática, além de envolver, de forma constante, a comunidade escolar. Esse é um grande ganho para a escola, pois observamos que, em geral, escola e comunidade são vistas como espaços distintos: formamos cidadãos para a sociedade, mas aparentemente a rede escolar está distante dela, esquecemos de trazer a comunidade para dentro da escola. Se não queremos que o ensino de língua se torne apenas treinos de discursos, devemos fazer com que as práticas escolares ultrapassem os muros da escola e tornem a aprendizagem, a leitura e a escrita mais significativas, mais reais. FRANÇA, Samara Gabriela Leal | 2020 | p. 240-274 256 Vivências Discursivas: uma forma de ver e estar no mundo Nesse sentido, as práticas de leitura, escrita e vivências discursivas, a partir das histórias escritas pelos alunos, que não são deles, mas a eles pertencem, favoreceram novas relações com seu entorno, além de compreender projetos de vida, de pertencimento e identidade. Vale ressaltar que os resultados aqui apresentados são parciais, pois a pesquisa ainda continua em andamento. Referências bibliográficas BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de velho. São Paulo: T.A. Queiroz, 1979. BOSI, Ecléa. Velhos amigos. São Paulo: Companhia das letras, 2003. p. 9-11/23-27. CANDIDO, Antonio. O direito à Literatura In: Vários Escritos. Rio de Janeiro/ São Paulo: Ouro sobre Azul/Duas Cidades, 2004. FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17ª.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. MARCUSCHI, Elizabeth. Como escrever as memórias do outro, revelando toda sua singularidade. In: RANGEL, Egon. (Org.) Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro: o que nos dizem os textos dos alunos? São Paulo: Cenpec: Fundação Itaú Social, 2011. p. 22-37. PETIT, Michèle. Leituras: do espaço íntimo ao espaço público. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2013. ROUXEL, Annie. Práticas de leitura: quais rumos para favorecer a expressão do sujeito leitor? Trad. 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Caderno do professor: orientação para produções de textos: [equipe de produção Regina Andrade Clara, Anna Helena Altenfelder, Neide Almeida]. São Paulo: Cenpec. (Coleção das Olimpíadas)2016. FRANÇA, Samara Gabriela Leal | 2020 | p. 240-274 258 Vivências Discursivas: uma forma de ver e estar no mundo Anexos Anexo I – Materiais utilizados e Etapas do Projeto de Ensino Material Etapas do Projeto de Ensino ✓ Introdução ao gênero ✓ Diálogo com moradores da comunidade ✓ Leituras ✓ Primeira Produção ✓ Vivências Discursivas ✓ Revisão coletiva e individual ✓ Produção Final ✓ Partilha FRANÇA, Samara Gabriela Leal | 2020 | p. 240-274 259 Discurso e poder: teoria e análise Anexo II – Textos propostos na coletânea e trabalhados com os alunos Coletânea de Textos Referência da obra presente no Caderno do Professor Se bem me lembro... Título e autor T1 Transplante de menina Tatiana Belinky BELINKY,Tatiana. Transplante de menina. São Paulo: Moderna, 2003. Gênero Discursivo e Esfera de Circulação. Autobiografia Memórias da infância esfera literária T2 Parecido mas diferente GATTAI, Zélia. Anarquistas, graças a Deus. 11.ed. Rio de Janeiro: Record, 1986.p.160-162. Autobiografia Memórias da infância VARELLA, Drauzio. Nas ruas do Bras. São Paulo: Companhia das letrinhas, 2000.p.5. Coleção memória e história. Autobiografia Memórias da infância O valetão que engolia meninos e outras histórias de Pajé Kelli Bassani BASSANI, Kelli B. aluna finalista do prêmio escrevendo o futuro em 2006, 4ª série da E.M.E.I.E.F. Walter Fontana, Toledo-PR Memórias Literárias O menino no espelho Fernando Sabino SABINO, Fernando. O menino no espelho. Rio de Janeiro: Record, 1992. Memórias Literárias Memória de Livros João Ubaldo Ribeiro RIBEIRO, João U. Memória de Livros in: Um brasileiro em Berlim. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011, p.105. Memórias Literárias Os automóveis invadem a cidade Zélia Gattai GATTAI, Zélia. Anarquistas, graças a Deus. 11.ed. Rio de Janeiro: Record, 1986. Autobiografia Memórias da infância BARROS, Manoel de. Memórias inventadas: a infância. São Paulo: Planeta do Brasil, 2003. Autobiografia Memórias da infância GARCIA, Edson G. Nas ondas do rádio. Cenpec, 2004 Memórias Literárias LAURITO Ilka B. As almas do Amém in: A menina que fez a américa. São Paulo: FTD, 2002. CAMPOS, Roberto. A lanterna na popa. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994. Memórias Literárias NETO, Antonio Gil. Como num filme. Texto escrito com base no depoimento de Amalfi Mansutti, 82 anos. Memórias Literárias Zélia Gattai T3 Nas ruas do Brás Drauzio Varella T4 T5 T6 T7 T8 T9 T10 T11 T12 O lavador de pedras Manoel de Barros Nas ondas do rádio Edson Gabriel Garcia As almas do amém Ilka Brunhilde A lanterna na popa Roberto Campos Como num filme Antonio Gil Neto FONTE: elaboração própria FRANÇA, Samara Gabriela Leal | 2020 | p. 240-274 esfera literária esfera literária esfera escolar esfera literária esfera literária esfera literária esfera literária esfera escolar esfera literária Memórias Literárias esfera literária esfera escolar 260 Vivências Discursivas: uma forma de ver e estar no mundo Anexo III – Atividades propostas aos alunos como sugestão pelo Caderno “Se bem me lembro...” FRANÇA, Samara Gabriela Leal | 2020 | p. 240-274 261 Discurso e poder: teoria e análise FRANÇA, Samara Gabriela Leal | 2020 | p. 240-274 262 Vivências Discursivas: uma forma de ver e estar no mundo FRANÇA, Samara Gabriela Leal | 2020 | p. 240-274 263 Discurso e poder: teoria e análise FRANÇA, Samara Gabriela Leal | 2020 | p. 240-274 264 Vivências Discursivas: uma forma de ver e estar no mundo FRANÇA, Samara Gabriela Leal | 2020 | p. 240-274 265 Discurso e poder: teoria e análise FRANÇA, Samara Gabriela Leal | 2020 | p. 240-274 266 Vivências Discursivas: uma forma de ver e estar no mundo FRANÇA, Samara Gabriela Leal | 2020 | p. 240-274 267 Discurso e poder: teoria e análise FRANÇA, Samara Gabriela Leal | 2020 | p. 240-274 268 Vivências Discursivas: uma forma de ver e estar no mundo FRANÇA, Samara Gabriela Leal | 2020 | p. 240-274 269 Discurso e poder: teoria e análise FRANÇA, Samara Gabriela Leal | 2020 | p. 240-274 270 Vivências Discursivas: uma forma de ver e estar no mundo FRANÇA, Samara Gabriela Leal | 2020 | p. 240-274 271 Discurso e poder: teoria e análise FRANÇA, Samara Gabriela Leal | 2020 | p. 240-274 272 Vivências Discursivas: uma forma de ver e estar no mundo FRANÇA, Samara Gabriela Leal | 2020 | p. 240-274 273 Discurso e poder: teoria e análise FRANÇA, Samara Gabriela Leal | 2020 | p. 240-274 274 Vivências Discursivas: uma forma de ver e estar no mundo Como citar FRANÇA, Samara Gabriela Leal. Vivências Discursivas: Uma forma de ver e estar no mundo. In: GONÇALVES-SEGUNDO, Paulo Roberto; ARAES, Célia Regina; CASTANHEIRA, Claudia; ISOLA-LANZONI, Gabriel; PENITENTE, Natalia; WEISS, Winola (orgs). Discurso e poder: teoria e análise. São Paulo: FFLCH/USP, 2020, p. 240-274. DOI: 10.11606/9786587621241 FRANÇA, Samara Gabriela Leal | 2020 | p. 240-274 275 Discurso e poder: teoria e análise O Sistema da Avaliatividade como ferramenta de análise para a compreensão da Responsividade Ativa em Cartas do Leitor sobre o tema Reforma da Previdência Sandra Gomes RASQUEL Universidade de São Paulo [email protected] Resumo: É por meio do enunciado que o sujeito responderá a enunciados anteriores e expressará seu juízo de valor. O objetivo deste trabalho constituiu-se em compreender como o Sistema da Avaliatividade pode ser uma ferramenta de análise útil para avaliar se a manifestação da responsividade do leitor frente a Reforma da Previdência mostra um alinhamento ou não com os discursos do governo. Fez-se a análise de 10 cartas do leitor, de jornais paulistas, investigando-se o Sistema da Atitude, especificamente o Julgamento e a Apreciação e o Sistema do Engajamento. O aporte teórico englobou o Sistema da Avaliatividade, de Martin e White (2005); os conceitos de Dialogismo, Compreensão e Atitude Responsiva de Bakhtin (2003 [1979]) e de Bakhtin e Volóchinov (2006 [1895 – 1975]). O Sistema da Avaliatividade mostrou-se como uma ferramenta útil de análise da responsividade do leitor, indicado principalmente pela manifestação do Sistema do Engajamento, sugerindo que não predominou o alinhamento entre os discursos do leitor e do governo, prevalecendo a atitude responsiva de não solidarização. Palavras-chave: Sistema da Avaliatividade. Engajamento. Atitude responsiva ativa. Compreensão responsiva. Reforma da Previdência. Introdução É no contato entre a língua e a realidade, por meio do enunciado, que o sujeito responderá a enunciados anteriores e expressará seu juízo de valor, dando sequência ao elo da cadeia de comunicação verbal. A atitude responsiva ativa do leitor frente ao ambiente depende primeiramente de sua compreensão responsiva, e se configurará como resposta de alinhamento ou desalinhamento com os enunciados a que responde. Por sua vez, o Sistema da Avaliatividade permite compreender quais recursos linguísticos são usados para que as pessoas façam avaliações sobre eventos RASQUEL, Sandra Gomes | 2020 | p. 275-291 276 O Sistema da Avaliatividade como ferramenta de análise para ... comunicativos, as quais se configuram como respostas a enunciados anteriores, permitindo o diálogo entre esse sistema e os conceitos de dialogismo, compreensão e responsividade ativa de Bakhtin (2003 [1979]) e de Bakhtin e Volóchinov (2006 [1895 – 1975]). O objetivo deste trabalho constitui-se em compreender como o Sistema da Avaliatividade pode ser uma ferramenta de análise útil para avaliar se a manifestação da responsividade do leitor frente a um tema social importante e atual, como é o caso da Reforma da Previdência, mostra um alinhamento ou não com os discursos do governo sobre o mesmo tema. Faz-se importante compreender como o leitor engajase na construção de seu posicionamento e como se estrutura a negociação de seu ponto de vista nas relações intersubjetivas com outros leitores frente a um tema social que afetará diretamente sua vida, na conquista de sua aposentadoria. O corpus deste estudo qualitativo constitui-se de 10 cartas do leitor referentes ao tema da Reforma da Previdência, colhidas por meio online, no período de 20162018. Considerou-se como delimitação do período de análise o primeiro envio ao Congresso da PEC 287/2016 da Reforma da Previdência no governo interino de Michel Temer, em 05 de dezembro de 2016, até o fim de seu mandato. O critério de seleção das cartas levou em conta as que contemplavam mais avaliações por parte do leitor, sendo mais ilustrativas para se trabalhar com as categorias de análise escolhidas. Foram escolhidos diversos jornais paulistas para abranger uma maior diversidade discursiva e posicionamentos, sendo utilizadas as cartas do leitor dos seguintes jornais: “Carta do Leitor” (Comércio do Jahu); “Tribuna do Leitor” (JCNET.com.br, Bauru/S.P.); “Cartas” (Cruzeiro do Sul, de Sorocaba/S.P.) e “Cartas do Leitor” (Jornal de Piracicaba) e “Palavra do Leitor” (Diário do Grande ABC). O aporte teórico englobará o Sistema da Avaliatividade, de Martin e White (2005); a Linguística Sistêmico-Funcional de Halliday e Matthiessen (2004); os conceitos de Dialogismo, Compreensão Responsiva e Atitude Responsiva Ativa de Bakhtin (2003 [1979]) e de Bakhtin e Volóchinov (2006 [1895 – 1975]). O sistema da Avaliatividade de Martin e White (2005) origina-se da Linguística Sistêmico-Funcional de Halliday e Matthiessen (2004) e dialoga com a metafunção interpessoal, permitindo explorar e compreender quais recursos léxico-gramaticais e semânticos-discursivos são mobilizados no texto para que as pessoas avaliem os eventos comunicativos, expressando sentimentos, opiniões, crenças, valores e atitudes frente ao mundo. Esse sistema possibilita a inscrição subjetiva do falante/escritor nos textos, permitindo que experiências e vivências possam ser marcadas discursivamente por meio de recursos linguísticos, favorecendo a negociação de posicionamentos e entre diferentes perspectivas. Cada uma das metafunções ocorre em um sistema próprio no estrato léxicogramatical: a metafunção ideacional é realizada pelo sistema da transitividade; a metafunção interpessoal, com o qual o Sistema da Avaliatividade dialoga, é realizada pelo sistema de modo e modalidade e a metafunção textual, pelo sistema da estrutura temática (HALLIDAY e MATTHIESSEN, 2004). de Os escritores/falantes, ao se engajarem nas relações interpessoais, utilizam-se recursos semânticos para expressar avaliações afetivas, avaliações de RASQUEL, Sandra Gomes | 2020 | p. 275-291 277 Discurso e poder: teoria e análise comportamento e fazer apreciação estética ou de valor social de eventos semióticos e naturais, correspondendo, respectivamente, às categorias de avaliação do afeto, do julgamento e da apreciação (OLIVEIRA, 2014, p. 252). Um tema social atual e importante que é foco de avaliação por parte do leitor, no momento político e econômico atual, é o tema da reforma da Previdência. A reforma da Previdência é um projeto que transita no Congresso para aprovação desde o governo anterior de Dilma Rousseff e de seu substituto após seu impeachment, Michel Temer (2016-2018). Nesses governos, o tema recebeu muitas manifestações discursivas do leitor nas mídias sociais, jornais online e impressos. Por ser pauta do governo atual, de Jair Bolsonaro, os leitores continuam se posicionando sobre o tema, uma vez que é um tema impopular que traz regras mais rígidas e um tempo maior para a conquista da aposentadoria. A cartilha da Nova Previdência, como é chamada no governo atual, traz como slogan: “É bom para todos. É melhor para o Brasil” e traz alguns tópicos que funcionam como argumentos para conseguir a adesão à ideia da proposta: fazer um “Sistema justo e igualitário”; “Quem ganha menos paga menos”; “Garantir a sustentabilidade do sistema”; “Maior proteção social ao idoso: assistência fásica’; “Garantir direitos adquiridos”; “Separação entre Assistência e Previdência” 1. Assim, quando o leitor mostra-se alinhado à proposta da reforma, ele dialoga e se aproxima desse tipo de discurso circulante. A seção Cartas do Leitor, espaço aberto na maioria dos jornais e em algumas revistas, é um espaço propício a esse registro da avaliação do leitor. Ele fará sua avaliação sempre respondendo a alguma notícia, reportagem ou comunicação que é feita pelo governo, por seus representantes ou por discursos que surgem na mídia sobre o tema da reforma. De acordo com Andrade (2008), as cartas do leitor são veiculadas e publicadas em jornais e revistas e tratam de notícias ou reportagens de temas de interesse nacional, trazendo fatos relevantes e atuais da sociedade. É um gênero de domínio público, aberto, possibilitando a sua leitura em larga escala. A resposta do leitor frente a eventos comunicativos, como as avaliações feitas nas cartas do leitor, configuram-se, nos termos de Bakhtin (2003 [1979]), como responsividade ativa. A compreensão responsiva ativa antecede essa atitude responsiva. Os conceitos de compreensão responsiva e de responsividade ativa são trabalhados por Bakhtin (2003 [1979]) e relacionam-se às respostas dadas a enunciados anteriores e que, ao mesmo tempo, criam a possibilidade de respostas futuras, dando continuidade ao elo da comunicação verbal. Como no presente trabalho estamos tratando da carta do leitor, por todo o texto, todas as referências que se faz à palavra leitor, estamos considerando esse leitor como o sujeito produtor da carta (do leitor). 1 MINISTÉRIO DA ECONOMIA. Cartilha da Nova Previdência. Disponível em: <http://sa.previdencia.gov.br/site/2019/02/2019-02-20_nova-previdencia_v2.pdf >. Acesso em 05 out. 2019. RASQUEL, Sandra Gomes | 2020 | p. 275-291 278 O Sistema da Avaliatividade como ferramenta de análise para ... 1 O Sistema da Avaliatividade O Sistema da Avaliatividade é dividido pelos sistemas de Atitude, Engajamento e Gradação. Neste trabalho, esse último sistema, o da Gradação, não será tratado nas análises. A Atitude é subdividida em Afeto, Julgamento e Apreciação. O afeto é dividido em: in/felicidade, incluindo sentimentos e afetos; in/segurança, ligada ao bem-estar social e in/satisfação, que diz respeito à satisfação ou não em relação às nossas metas e objetivos, incluindo nosso papel como participantes ou espectadores do meio (MARTIN e WHITE, 2005; LIMA e COROA, 2010). Tanto o afeto quanto o julgamento podem ser explícitos no texto, por meio do uso de recursos léxico-gramaticais avaliativos, com polaridade negativa ou positiva; ou podem ser invocados, compreendido por meio da inferência na interpretação textual (OLIVEIRA, 2014). O posicionamento do escritor/falante pode ser considerado como retrospectivo ou prospectivo. No caso das cartas do leitor, o posicionamento é retrospectivo, uma vez que elas funcionam como uma resposta às notícias publicadas, dialogando, portanto, com discursos circulantes na mídia. O julgamento é uma categoria de posicionamento atitudinal em que é avaliado o comportamento humano dirigido às normas sociais, envolvendo a ética e a moralidade. Refere-se aos juízos de comportamento que fazemos sobre atitudes que aprovamos ou reprovamos, pautando-se na cultura, nas ideologias dos grupos e nas experiências dos indivíduos (MARTIN e WHITE, 2005). As pessoas farão julgamentos acerca do que elas acreditam e têm como valor, além do enquadramento cultural e ideológico do qual fazem parte e compartilham. O posicionamento ideológico dos participantes influenciam o tipo de julgamento e avaliação que fazem dos eventos. Responde aos sistemas que regem a sociedade, considerando-se: a (i)legalidade; a (a)moralidade; a (a)normalidade e a (in)capacidade, referindo-se também aos sistemas sociais passíveis de mudanças mais constantes, como a moda e alguns costumes. Divide-se em estima social e sanção social (MARTIN e WHITE, 2005; AVELAR e AZUAGA, 2003). De acordo com Martin e White (2005), a estima social relaciona-se à normalidade (quão in/comum alguém é); à capacidade (o quanto alguém é ou não capaz) e à tenacidade (quão perseverante alguém é ou não) e não envolve punições. A sanção social é mais frequente em decretos, normas e leis que se ligam a instituições de poder como a Igreja e o Estado, em que podem estar presentes punições aos que não seguirem suas normas (MARTIN e WHITE, 2005). A terceira categoria da Atitude, a apreciação, refere-se às proposições sobre o valor social das coisas, ao que elas valem ou não em um determinado campo, e envolvem, no discurso, as avaliações de fenômenos semióticos e naturais. Pode ser dividida em: nossas Reações às coisas, se nos agradam ou não; em Composição, incluindo o equilíbrio e a complexidade e, em Valor, se é ou não inovadora, autêntica, oportuna, etc. (MARTIN e WHITE, 2005, p. 56). RASQUEL, Sandra Gomes | 2020 | p. 275-291 279 Discurso e poder: teoria e análise De acordo com Gonçalves-Segundo (2011, p. 174), as apreciações constroem avaliações estéticas ou de valor social, dirigidos a fenômenos semióticos ou naturais. Na Reação, a avaliação estética é pautada na “afeição emotiva ou desiderativa”. A Reação-Impacto refere-se às avaliações de afeição emotiva, como: “fascinante, dramático, intenso, sensacional, entediante, monótono” e a Reação-Qualidade abrange as afeições desiderativas: “bom, esplêndido, chamativo, feio, repulsivo”. Na Composição, a avaliação estética dirige-se a aspectos da percepção e organização, sendo dividido em Composição-equilíbrio - “simétrico, lógico, consistente, falho, contraditório, distorcido” e Composição-complexidade - “simples, elegante, claro, rico, extravagante, plano, monolítico” (GONÇALVES-SEGUNDO, 2011, p. 174). Na Valoração, a avaliação baseia-se na “utilidade, importância, eficácia ou risco para os indivíduos - ”importante, original, autêntico, real, útil, insignificante, comum, falso, convencional, perigoso” (GONÇALVES-SEGUNDO, 2011, p. 174). Vale considerar que na apreciação de um tema social, como a reforma da Previdência, não há uma apreciação estética e sim uma apreciação em termos de valor social. Os subsistemas do Sistema da Apreciação de Martin e White (2005) recobrem como reação e composição somente o valor estético, mas como é possível ao ser humano apreciar também propostas e projetos em forma de texto, como é a reforma da Previdência, que é uma proposta de lei em fase de aprovação, faz-se necessário adaptar o Sistema de Martin e White (2005) para atender a esse escopo de apreciação passível de ser feita pelo escritor/falante. É uma proposta que será desenvolvida em nossa dissertação de Mestrado, não cabendo no espaço desse artigo, pela extensão permitida e por não atender ao objetivo aqui proposto. O outro sistema, o Engajamento, divide-se em Monoglossia e Heteroglossia. Na monoglossia é construída uma concepção da realidade como se fosse única e validada pela comunidade discursiva. Os enunciados monoglóssicos simulam o apagamento da rede de alternativas dialógicas. A heteroglossia invoca outras vozes e posições dialógicas, subdividindo-se em expansão e contração dialógica, sendo que a expansão abre espaço a outros posicionamentos e vozes e a contração age em função de desafiar ou restringir o escopo dessas posições ou vozes (WHITE, 2004; OLIVEIRA, 2014). O processo de expansão dialógica denota o reconhecimento de outras vozes, possibilitando a abertura ao diálogo, reconhecendo a existência de outros posicionamentos, sendo que a voz autoral torna-se uma das possibilidades, diminuindo a responsabilidade enunciativa, o que difere do processo de contração dialógica, no qual essa responsabilidade é potencializada (NININ e BARBARA, 2013). O movimento de expansão dialógica abre espaço para a negociação interdiscursiva, em que outros posicionamentos são vistos como possibilidades dentro de uma rede dialógica, havendo uma postura mais democrática na aceitação de outras perspectivas. Como aponta Gonçalves-Segundo (2014, p. 17), a expansão dialógica associa-se à ideia de reconhecimento da legitimidade ou da validade das alternativas dialógicas, sendo dividida em: RASQUEL, Sandra Gomes | 2020 | p. 275-291 280 O Sistema da Avaliatividade como ferramenta de análise para ... Ponderação: em que há o reconhecimento de alternativas dialógicas. Atribuição: ocorre por meio de citação da voz alheia e dissocia a voz autoral das vozes trazidas ao texto, diminuindo a responsabilidade enunciativa. Seus subtipos são: Reconhecimento e Distanciamento. No Reconhecimento, o leitor adota uma atitude que possa parecer neutra, em primeira instância. É representado pelos verbos falar, dizer, comentar, etc. Geralmente, utiliza-se de processos verbais com a função de reportar a fala de terceiros (LOVATO, 2009, p. 157; NININ e BARBARA, 2013). No Distanciamento, não há a validação do discurso do outro, sendo representado pelos verbos alegar, ouvir dizer etc, expressando o distanciamento da voz autoral com discursos alheios. Esse subtipo é característico da dissociação das vozes autorais e externas, não havendo solidarização (LOVATO, 2009, p. 157; NININ e BARBARA, 2013). Na contração dialógica, há a rejeição parcial ou total de alternativas dialógicas, restringindo o espaço de troca e aceitação. Como pontua Martin e White (2005), essa categoria subdivide-se em: Contraposição e Proposição. Essa subdivisão é reiterada e exemplificada em Gonçalves-Segundo (2014, p. 17): Contraposição: anula as alternativas dialógicas. Seus subtipos são: a Negação e a Contraexpectativa. O subtipo negação anula totalmente uma dada realidade e é representado por marcas de polaridade negativa: “não”, “nunca” e “ninguém”. No subtipo contraexpectativa, há rejeição de uma dada concepção da realidade ao evento enunciado, indicado pelos operadores concessivos e adversativos. Proposição: sinaliza a rejeição parcial de alternativas dialógicas. Seus subtipos são: – Expectativa Confirmada; Pronunciamento e Endosso. No subtipo expectativa confirmada, constrói-se um interlocutor que partilha das ideias da voz autoral, sendo representado por expressões como: “evidentemente”, “naturalmente”, “é óbvio que” e “certamente”. No subtipo pronunciamento, gera-se a polêmica entre a voz autoral e o interlocutor, representado por expressões como: “você tem que concordar que”, “o fato é que”, “a verdade é que”, etc. No subtipo endosso, a voz autoral valida o discurso de outros, sendo ilustrado por verbos como: provar, mostrar, demonstrar, dentre outros. 2 O processo de Compreensão Responsiva Ativa e a Responsividade Ativa do leitor Bakhtin trata dos conceitos de Compreensão responsiva e de Responsividade ativa que dizem respeito às respostas dadas a enunciados anteriores e que, ao mesmo tempo, criam a possibilidade de respostas futuras. A compreensão responsiva, para RASQUEL, Sandra Gomes | 2020 | p. 275-291 281 Discurso e poder: teoria e análise Bakhtin (2003 [1979]), é o primeiro passo para que possamos ter uma atitude responsiva ativa. A compreensão de um enunciado é acompanhada de uma atitude responsiva ativa. E essa compreensão responsiva pode realizar-se no ato ou apresentar um “efeito retardado”, sendo que o que foi ouvido encontrará um “eco no discurso ou no comportamento subsequente do ouvinte” (BAKHTIN, 2003 [1979], p. 291). O processo de compreensão associa-se ao processo de descodificação, que envolve o reconhecimento do código escrito e sua associação com o significado que esses signos pretendem no texto. Ao descodificar, o leitor considera “a enunciação particular, portanto, os valores sociais e as significações ideológicas da interação em curso” (ANGELO e MENEGASSI, 2011, p. 205). Esse processo, segundo os autores, difere do processo de codificação, que é apenas a compreensão do signo linguístico, sem compreensão do contexto extralinguístico que a ele se associa. Nessa dinâmica da interação, Bakhtin considera a questão da avaliação, na qual os interlocutores avaliam-se entre si por meio de conteúdo ou da expressão, tal como a entonação (BARROS, 2005). Stella (2007) afirma que ao interagirmos com a palavra alheia, signo ideológico, dialogamos com os valores sociais, meio pelo qual expressamos nosso ponto de vista em relação a esses valores, os quais devem ser apreendidos e confirmados ou não pelo interlocutor. Nesse processo, temos a compreensão da avaliação feita pelo indivíduo sobre o mundo e o jogo da negociação intersubjetiva entre os posicionamentos adotados pelos participantes da interação e podemos, então, compreender a responsividade do leitor e o quanto ele alinha-se ou afasta-se de certos discursos circulantes na sociedade. Neste trabalho, a responsividade do leitor e seu grau de concordância e de alinhamento ou não com o discurso do governo serão investigados pelo Sistema da Avaliatividade de Martin e White (2005), sendo as avaliações do leitor compreendidas pelo sistema da Atitude (julgamento e apreciação) e a interação que o leitor estabelece no evento comunicativo em curso será compreendida pelo sistema do Engajamento; interação que ele faz com seu próprio enunciado, com o enunciado a que responde e com seus interlocutores. 3 Corpus e Procedimentos Metodológicos O corpus deste estudo qualitativo constitui-se de 10 cartas do leitor referentes ao tema da Reforma da Previdência, colhidas por meio online, no período de 20162018. Considerou-se como delimitação do período de análise o primeiro envio ao Congresso da PEC 287/2016 da Reforma da Previdência no governo interino de Michel Temer, em 05 de dezembro de 2016, até o fim de seu mandato. As cartas selecionadas foram as que contemplavam mais avaliações por parte do leitor, sendo mais ilustrativas para se trabalhar com a categoria de análise escolhida. RASQUEL, Sandra Gomes | 2020 | p. 275-291 282 O Sistema da Avaliatividade como ferramenta de análise para ... A categoria de análise deste trabalho, para tratar das avaliações do leitor sobre o tema da Reforma, serão os sistemas de Atitude (julgamento e apreciação) e de Engajamento do Sistema da Avaliatividade de Martin e White (2005). Além desse aporte teórico, foram utilizados a Linguística Sistêmico-Funcional, de Halliday e Matthiessen (2004), da qual a Avaliatividade faz parte; alguns conceitos primordiais da Teoria de Bakhtin (2003 [1979]) e de Bakhtin e Volóchinov (2006 [1895 – 1975]), para a compreensão da responsividade do leitor, dos quais: o Dialogismo; a Compreensão Responsiva ativa e a Atitude Responsiva Ativa. Foram escolhidos diversos jornais paulistas para abranger uma maior diversidade discursiva e posicionamentos, sendo utilizadas as cartas do leitor dos seguintes jornais: “Carta do Leitor” (Comércio do Jahu); “Tribuna do Leitor” (JCNET.com.br, Bauru/S.P.); “Cartas” (Cruzeiro do Sul, de Sorocaba/S.P.) e “Cartas do Leitor” (Jornal de Piracicaba) e “Palavra do Leitor” (Diário do Grande ABC). 4 Resultados Dos resultados encontrados, tratados pela perspectiva do sistema da Avaliatividade, vemos que a contestação da necessidade de reforma e a recusa da proposta do governo é vista na maioria das cartas (7) por meio das avaliações feitas pelo leitor: cartas 1, 2, 4, 5, 6, 9, 10. Nas outras 3 cartas, a reforma da Previdência é vista como necessária e a proposta aceita de forma total ou parcial: cartas 3, 7 e 8. Alguns temas foram centrais nas avaliações e posicionamentos dos leitores que discordam da proposta de reforma, dentre eles: discordância da necessidade da reforma; recusa da proposta do governo; contestação das motivações do governo; denuncia à manipulação de informações e denuncia à imposição da proposta sem a participação da sociedade (afetada e interessada). Dos leitores que concordam com o tema da reforma, os temas centrais e manifestações discursivas que prevaleceram foram: aceitação da existência de déficit; necessidade de avançar a economia do país e concordância com a proposta apresentada. Identificamos que prevaleceu nas cartas a combinação de apreciações e julgamentos negativos acerca do tema, indicando por parte leitor a não aceitação da proposta do governo. Por meio desses recursos avaliativos, os leitores entendem a proposta como injusta, reprovando-a e colocando em cheque as reais motivações para a mudança no sistema previdenciário. Esses leitores que discordam da reforma avaliam a proposta de mudança nas leis da aposentadoria não como algo positivo aos trabalhadores, nem como necessário à sustentabilidade do sistema previdenciário, contestando o rombo apontado pelo governo, entrando em jogo o julgamento do subtipo veracidade. Por esse tipo de julgamento, questionam o quanto os políticos que propõem a lei são honestos e verdadeiros e contestam as informações divulgadas que afirmam a existência do déficit. Nos excertos das cartas analisadas, apresentados a seguir, temos RASQUEL, Sandra Gomes | 2020 | p. 275-291 283 Discurso e poder: teoria e análise exemplos da presença de julgamentos e apreciações ativados ora por recursos lexicais claros ora invocados. Carta 1: “Seus efeitos são devastadores, com destaque para um dos pontos mais críticos da reforma: a pensão por morte. (...) Em resumo, a renda de uma família será cortada pela metade de uma hora para outra. Para mim não há outro nome para isso: é confisco institucionalizado”. (apreciações negativas) Carta 2: “Sei que a reforma da previdência é a forma de continuarem pagando supersalários a políticos, regalias, entre outros”. (julgamentos: veracidade/propriedade) Carta 4: “No fundo, os políticos empurram goela abaixo uma proposta que a maioria não teve acesso às reais intenções”. (julgamentos: propriedade/veracidade) Carta 6: “Enquanto é divulgado um rombo da previdência, os banqueiros fazem lobby no congresso para aprovar a “reforma” que desmonta a previdência pública e a joga a população nas mãos da previdência privada. (...) o governo quer que o povo morra trabalhando para poder manter aberto o ralo dos desvios”. (apreciações negativas/ julgamento de propriedade) Carta 10: “Estamos assistindo, sem a devida participação dos interessados, a famigerada reforma da Previdência”. (apreciação negativa) Como atestamos na análise desses excertos, as apreciações são inscritas nas cartas 1 e 10, e aparecem de forma invocada nas cartas 4 e 6. Na carta 2, por exemplo, podemos inferir o julgamento invocado de sanção social/ propriedade e veracidade pelo uso da expressão “forma de continuarem pagando supersalários”. A expressão em si não carrega nenhuma polaridade negativa, mas pelo contexto adquire um sentido de reprovação na medida em que se contesta o verdadeiro interesse de se fazer a reforma, entendida pelo leitor como uma manobra para se manter o salário elevado dos políticos e suas “regalias”, termo também usado por ele. Outro exemplo de apreciação invocada ocorre na carta 6, no trecho “joga a população nas mãos da previdência privada”, em que pelo uso dessa metáfora o leitor posiciona-se contra a proposta, sugerindo que haverá piora no sistema de contribuição previdenciária, com o desmonte da previdência pública, sendo que a maioria será obrigada a contribuir em um sistema de previdência privada, gerando o sentimento de insatisfação e a insegurança com relação ao futuro dos aposentados. Nas avaliações, preponderou o posicionamento de responsabilidade autoral no discurso dos leitores, que assumem o compromisso pelo que dizem: emitindo sua opinião sobre o tema, posicionando-se em primeira pessoa ou até mesmo engajandose no discurso com posicionamentos que denunciam a alta responsabilidade autoral, como é o caso da contração dialógica. Do engajamento, os resultados indicam a prevalência do engajamento por contração dialógica em detrimento da expansão dialógica, indicando uma postura pouco democrática do leitor para o diálogo com outras vozes e posicionamentos, observado tanto nos que se posicionam a favor quanto nos que são contra a reforma. RASQUEL, Sandra Gomes | 2020 | p. 275-291 284 O Sistema da Avaliatividade como ferramenta de análise para ... A negação foi o tipo predominante no engajamento de contração dialógica, movimento no qual o leitor anula totalmente uma dada realidade. Segundo Sobhie (2008), neste tipo de engajamento, a voz autoral se coloca em desacordo ou rejeita a posição contrária à enunciada, ou seja, reconhece sua existência e nega-a, simulando seu apagamento da rede dialógica. Assim, ao enunciar que “não há déficit no sistema previdenciário”, o leitor reconhece a existência de um discurso circulante que afirma que o sistema previdenciário é deficitário, para, então, negá-lo. Desse modo, não aceita a concepção de que há déficit na previdência. No movimento de contração dialógica/negação, a negação funciona como uma resposta a posicionamentos alternativos, ou seja, a crenças/alegações e discursos opostos proferidos por outros sobre o mesmo tema (WHITE, 2004). A contração dialógica/contraposição/contraexpectativa aparece como uma forma de engajamento também relevante nas cartas, sendo o segundo tipo de engajamento mais encontrado no corpus. Por vezes, essas formas de engajamento aparecem combinadas com outros posicionamentos de contraposição em uma mesma sentença, reforçando a restrição do espaço para negociação e aceitação de outras perspectivas. Na contraexpectativa, o leitor rejeita uma dada concepção da realidade ao evento anunciado, assemelhando-se à negação, pois “em ambos a avaliação é apresentada e, em seguida, outro significado é revelado”. No entanto, na contraexpectativa há a quebra de uma expectativa que subjaz no discurso e que não foi satisfeita (CRUZ, 2015, p. 310). Os excertos, a seguir, tratam dessas formas de engajamento, negação e contraexpectativa: Carta 9: “Ou seja, a Previdência não está falida, mentira deslavada (...)”. (negação) Carta 10: “O governo alega e não demonstra com números ou por meio de uma auditoria séria e isenta que o sistema previdenciário é deficitário”. (negação) Carta 2: “(...) porém, o fundo da seguridade social é garantido pela Constituição...” (contraexpectativa) Com esse tipo de engajamento, o efeito de sentido que se cria é de um distanciamento entre os discurso do governo e desses leitores. Ao não se solidarizar com o discurso do déficit, o leitor contesta a necessidade de reforma e denuncia as fontes de escoamento de dinheiro da Seguridade Social para outros fins, que comprometem o saldo financeiro da Previdência, contestando a veracidade do discurso do governo (julgamento de veracidade), denunciando o jogo de interesses que fica subjacente na proposta da reforma. De acordo com White (2004), no engajamento contrativo do tipo negação, a voz textual reconhece a existência de outros posicionamentos da rede dialógica, ativaos no texto, para, então, rejeitá-los. Ao reconhecer outras vozes, fica claro o recurso dialógico, em que o leitor contesta essas outras posições, negando-as, o que revela a não abertura de espaço para essas proposições em sua rede. RASQUEL, Sandra Gomes | 2020 | p. 275-291 285 Discurso e poder: teoria e análise Os casos de discursos que contestam o déficit trazem a tona informações que não são abordadas pelo governo e pela classe política, denunciando a desinformação como forma de manipulação e abuso de poder. Esses discursos corroboram com as concepções apresentadas por estudiosos no assunto da previdência, que não aceitam a existência do déficit e alinham-se a discursos circulantes que são contrários à proposta, tal como em: Para aprovar sua reforma em prol do sistema financeiro e prejudicial aos trabalhadores, o governo Bolsonaro insiste na cantilena do “rombo” da Previdência, agora de R$ 290,297 bilhões, que supostamente teria ocorrido no ano passado. Número fabricado, colocando tudo na mesma conta os resultados do Regime Geral da Previdência Social (RGPS), que atende aos trabalhadores do setor privado, do Regime Próprio de Previdência Social (RPPS), que atende os servidores públicos civis da União, e o sistema dos militares. O RGPS tem Orçamento próprio, com fontes de financiamentos determinadas pela Constituição: contribuição de trabalhadores e empregadores, a Cofins, a CSLL, o PIS/PASEP e receitas de prognósticos (loteria). Já o RPPS e o sistema dos militares são mantidos com recursos do Tesouro Nacional. Além disso, o governo omite receitas – como o desvio de 30% da Seguridade através da Desvinculação de Receitas da União (DRU) e não consideração do rendimento financeiro da Previdência – e acrescenta despesas que nada têm a ver com o RGPS. Somente em 2017, as omissões diminuíram em R$ 159 bilhões as receitas da Previdência. Some-se a isso a desonerações que garfaram R$ 141,177 bilhões naquele ano, de acordo com a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (ANFIP). E mesmo assim o governo anunciou que este ano as renúncias com isenções previdenciárias deverão tirar dos cofres do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) R$ 54,56 bilhões. São isentos ou têm cobrança reduzida para o INSS os exportadores agrícolas – “agro é pop” -, entidades filantrópicas e micro e pequenas empresas. Ano passado, foi deixado de arrecadar com isenções a esses setores R$ 46,3 bilhões2. A contração dialógica/proposição/expectativa confirmada foi um recurso usado nas cartas 2 e 4, conforme exemplos a seguir, e envolvem formulações que constroem um interlocutor ajustado à voz autoral, aumentando o custo de oposição ao enunciado. A proposição é apresentada como óbvia, do senso comum; e a voz autoral e o interlocutor são construídos como participando de uma relação interdiscursiva de completo alinhamento, causando um efeito de garantia à proposição anunciada (MARTIN e WHITE, 2005). Exemplos: Carta 2: “(…) é claro que o simples cálculo do INSS recolhido versos benéficos pagos não fecham, mas isso já é previsto na Constituição. (…) Todas essas informações, mesmo sendo públicas, chegam ao conhecimento de poucos brasileiros”. (expectativa confirmada) 2 Fonte: ALBUQUERQUE, V. Governo fabrica rombo na Previdência para abandonar idosos à própria sorte. Hora do Povo, 7 fev. 2019. Disponível em: <https://horadopovo.org.br/governo-fabrica-rombo-naprevidencia-para-abandonar-idosos-a-propria-sorte/>. Acesso em 01 mar 2019. RASQUEL, Sandra Gomes | 2020 | p. 275-291 286 O Sistema da Avaliatividade como ferramenta de análise para ... Carta 4: “É evidente que essas matérias mostram casos isolados de alguns idosos mais sortudos (…)”. (expectativa confirmada) O uso dos recursos de contração dialógica que prevaleceram no corpus, a negação com maior número de ocorrências, seguida da contraexpectativa, combinados a recursos de contração/ proposição/ pronunciamento e contração/proposição/expectativa confirmada, também foram usados para contestar as motivações do governo, para denunciar a manipulação de informações e a imposição da proposta por parte do governo, sem a devida participação da sociedade, que é diretamente afetada e interessada no assunto, como atestamos nos seguintes excertos: Carta 1: “(…), mas a verdade é que os reais privilegiados são aqueles que a criaram a proposta da reforma: os políticos”. (contraexpectativa/ pronunciamento) Carta 2: “(...) porém, o fundo da seguridade social é garantido pela Constituição...” (…). O que acontece é que o governo utiliza a famosa DRU (...) e gaste como quiser, tira da seguridade e aloca em outros locais (pagar juros de dívidas, por exemplo). (…) é claro que o simples cálculo do INSS recolhido versos benéficos pagos não fecham, mas isso já é previsto na Constituição. (…) Todas essas informações, mesmo sendo públicas, chegam ao conhecimento de poucos brasileiros”. (contraexpectativa/ pronunciamento/ expectativa confirmada/ negação/ contraexpectativa) Carta 4: “Porém, as emissoras não mostram o quanto um velho, no Brasil, gasta com remédios, nem falam das inúmeras doenças chegam com o avançar da idade. (…) É evidente que essas matérias mostram casos isolados de alguns idosos mais sortudos (…)”. (contraexpectativa/ negação/ expectativa confirmada) Carta 4: “Desse modo, não dão chance para que haja um mínimo de discussão com a sociedade, como se os interessados no assunto fossem incapazes de opiar sobre aquilo que lhes diz respeito. No fundo, os políticos empurram goela abaixo uma proposta que a maioria não teve acesso às reais intenções”. (negação/ pronunciamento) Carta 6: “(...) Na verdade, o governo quer que o povo morra trabalhando para poder manter aberto o ralo dos desvios”. (pronunciamento) Carta 9: “(…) e em troca fomos agraciados com uma proposta de reforma da Previdência que não era nossa bandeira, mas seria a salvação do país!”. (negação) Nas cartas 1, 2, 4 e 6 em que estão presentes o engajamento de contração dialógica/proposição/pronunciamento, temos um recurso em que uma rejeição da proposição apresentada torna-se mais difícil de realizar na troca dialógica em curso, conforme Avelar e Azuaga (2003). Dos casos de expansão, o mais recorrente foi do subtipo atribuição/reconhecimento. Na atribuição, a voz autoral pauta a proposição na subjetividade de uma voz externa, apresentando-a como uma dentre outras opções possíveis, invocando essas alternativas dialógicas que dizem respeito a enunciados pertencentes a outros autores e grupos sociais, para, então, concordar ou não com eles. Esse tipo de engajamento permite a negociação do espaço dialógico, em que vozes alheias são trazidas ao texto a serviço da negociação e do posicionamento RASQUEL, Sandra Gomes | 2020 | p. 275-291 287 Discurso e poder: teoria e análise intersubjetivo entre diferentes vozes e perspectivas (WHITE, 2004; AVELAR e AZUAGA, 2003). Na expansão, o falante/escritor apresenta o tema como uma questão em aberto, dando espaço para que outros posicionamentos sejam ouvidos, ampliando sua perspectiva, o que diminui seu comprometimento no que é afirmado no texto, ou seja, diminui sua responsabilidade autoral, sendo a responsabilidade atribuída à voz alheia. No entanto, cria-se um espaço mais democrático para a negociação intersubjetiva de pontos de vista alternativos (NININ E BARBARA, 2013). Os exemplos, a seguir, mostram o engajamento do leitor por expansão dialógica/atribuição/ por reconhecimento ou distanciamento e a possibilidade de negociação intersubjetiva e interdiscursiva estabelecida entre a voz autoral e as vozes trazidas ao texto: Carta 1: “O governo insiste no discurso de que a reforma acabará com os privilégios. Eu pergunto: quais são esses privilégios, afinal?”. (distanciamento) Carta 2: “Dizem que é necessária uma reforma política para garantir o futuro da previdência (…). “De acordo com a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), o maior de devedora é a já falida Varig, a segunda é a JBS, (…) e nessa lista ainda tem empresas ligada ao poder público com Caixa Econômica Federal e Correios”. (reconhecimento) Carta 8: “Por exemplo, especialistas lembram que o país está no fim da benéfica janela demográfica (mais trabalhadores ativos do que aposentados) e citam pesquisas do IBGE, segundo a qual, em 2030, serão 41,5 milhões de aposentados, ou seja, um em cada cinco brasileiros”. (reconhecimento) Carta 10: “Dizem, com muito acerto, que quem não conhece a história corre o risco de repetir os mesmos erros. (…) O governo alega e não demonstra com números (…) que o sistema previdenciário é deficitário. (...) O governo fala em “jogar” os servidores da União, dos estados e dos municípios para a vala comum da Previdência...”. (reconhecimento/ distanciamento/ reconhecimento) Nas cartas do leitor, exemplificadas anteriormente, constatamos que a expansão dialógica é usada tanto nos discursos a favor quanto contrários à proposta de reforma. Nos casos a favor, outras vozes são trazidas ao texto para sustentar a crença do leitor de que o sistema previdenciário é deficitário, como ocorre na carta 8. Por meio desse tipo de engajamento, o leitor solidariza-se com discursos de grupos sociais que preconizam e existência do déficit, e portanto, avaliam a reforma previdenciária como necessária. Os que se opõem à proposta, ao se engajarem num movimento de expansão dialógica, abrem espaço de diálogo com discursos e perspectivas que denunciam fontes que contribuem para o escoamento de dinheiro da Seguridade Social e da Previdência, como ocorre na carta 2. Nas cartas 1 e 10, dos exemplos anteriormente citados, o uso do recurso de expansão funciona em um discurso em que o leitor põe em dúvida o objetivo do governo na proposta da reforma, não se alinhando às suas justificativas para tal fim. Nesses casos, a expansão dialógica é usada como recurso avaliativo quando o foco do RASQUEL, Sandra Gomes | 2020 | p. 275-291 288 O Sistema da Avaliatividade como ferramenta de análise para ... discurso do leitor relaciona-se a críticas aos políticos e ao governo, trazendo um posicionamento mais democrático de sua parte. Esses discursos abordam críticas às reais intenções do governo na proposta de reforma e às distorções que precisam ser corrigidas antes de se propor uma reforma, como: acabar com as desonerações, sonegações, corrupção e desvios de verba pública. Nos casos em que o leitor posiciona-se a favor da reforma, como nas cartas 3, 7 e 8, há um diálogo e solidarização com vozes externas que são a favor da reforma e com o discurso do governo que prega que há déficit no sistema previdenciário e de que a reforma é necessária para manter a saúde financeira do país, tal como apresentado no trecho a seguir, disponível para consulta pública no site do governo: A manutenção do sistema previdenciário sustentável é um dos maiores desafios que se impõe ao Estado brasileiro neste momento. Ao propor uma reforma, o governo quer evitar que seja colocado em risco o recebimento de aposentadorias, pensões e demais benefícios por esta e as próximas gerações. (…) As despesas do INSS estão em torno de 8% do PIB e, se nada for feito, as projeções para 2060 apontam que o percentual deve chegar a 18%, índice que inviabilizaria a Previdência. No ano passado, o déficit do RGPS (coberto com recursos da Seguridade Social – da qual a Previdência faz parte) chegou perto de R$ 150 bilhões3. Exemplos de cartas a favor encontradas no corpus, são: Carta 3: “Sensacionalismo, meias verdades e política acabam atrapalhando na transparência das mudanças propostas pelo projeto de reforma-cuja maioria dos especialistas concorda ser absolutamente necessária”. (apreciação positiva). Carta 8: “Que conclusão tirar em rápido recorte da polêmica que envolve a chamada reforma-mãe da recuperação econômica?”. (apreciação positiva). Considerações Finais Atestamos, nas cartas, que um mesmo assunto gera diferentes avaliações e perspectivas por parte dos leitores, que se posicionam conforme suas visões de mundo e avaliam o evento de modo dialógico, solidarizando-se ou afastando-se de discursos circulantes na sociedade em que estão inseridos. Nesse sentido, o leitor faz parte de uma rede dialógica e responde a enunciados já proferidos por outros, concordando ou não com eles, dando continuidade à rede dialógica. Esse movimento torna os enunciados do leitor parte do elo da comunicação verbal e, sendo sua carta uma resposta a algo já abordado por outros, tem-se por parte do leitor uma atitude responsiva ativa, nos termos de Bakhtin (2003 [1979]). Dos resultados encontrados, vimos que prevalece a não solidarização com o discurso da necessidade de reforma, uma vez que contestam a existência do déficit nas contas do sistema previdenciário, o que os leva a denunciarem as fontes de escoamento de dinheiro da Seguridade Social. 3 Fonte: Secretaria de Previdência. Reforma da http://www.previdencia.gov.br/reforma/. Acesso em: 14 fev. 2018. Previdência. RASQUEL, Sandra Gomes | 2020 | p. 275-291 Disponível em: 289 Discurso e poder: teoria e análise Contestam a veracidade do discurso do governo, denunciando o jogo de interesses que fica subjacente na proposta da reforma. Prevalece o alinhamento ao discurso de que essa proposta não atende à igualdade de direitos entre as classes, tampouco acabará com os privilégios de uma minoria, o que os afasta do discurso do governo sobre os benefícios cogitados pela proposta de reforma. A aceitação parcial da reforma, por parte de alguns leitores, indica que há solidarização parcial com o discurso do governo de que o sistema é deficitário, porém, não há solidarização com os argumentos das fontes de gastos e com a proposta apresentada. O Sistema da Avaliatividade mostrou-se como uma ferramenta útil de análise da responsividade do leitor, indicado principalmente pela manifestação do sistema do Engajamento, sugerindo que prevalece o não alinhamento entre os discursos do leitor e do governo, preponderando a atitude responsiva de não solidarização. Referências bibliográficas ANDRADE, Maria Lúcia C. V. O. de. Cartas do leitor: a interatividade na correspondência publicada em jornais. Revista da Anpoll, v. 1, n. 25, 2008. Disponível em: https://revistadaanpoll.emnuvens.com.br/revista/article/view/58/52. Acesso em 04 mar. 2019. ANGELO, Cristiane Malinoski Pianaro; MENEGASSI, Renilson José. Manifestações de Compreensão responsiva em avaliações de leitura. Revista Linguagem & Ensino. Pelotas, v. 14, n. 1, p. 201-221, jan - jun. 2011. AVELAR, António; AZUAGA, Luísa; A Teoria da Avaliatividade: Breve Apresentação. In: AZUAGA, Luísa. (org.). 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RASQUEL, Sandra Gomes | 2020 | p. 275-291 291 Discurso e poder: teoria e análise Fontes: Cartas Carta 1: https://www.jcnet.com.br/editorias_noticias.php?codigo=251118 Carta 2: https://www.jcnet.com.br/editorias_noticias.php?codigo=249664 Carta 3: http://www.dgabc.com.br/noticia/2670077/palavra-do-leitor Carta 4: https://www2.jornalcruzeiro.com.br/materia/759727/reforma-da-previdencia Carta 5: http://www.comerciodojahu.com.br/noticia/1359003/carta-do-leitor-aposentadoriaalexandre-buccini-de-paula Carta 6: http://www.comerciodojahu.com.br/noticia/1362059/carta-do-leitor-aposentadoriacristiane-banhol Carta 7: https://www2.jornalcruzeiro.com.br/materia/868573/reforma-da-previdencia Carta 8: http://www.jornaldepiracicaba.com.br/cartas_do_leitor/2017/04/cartas_do_leitor_08_ 04_2017 Carta 9: https://www.jcnet.com.br/editorias_noticias.php?codigo=247347 Carta 10: https://www2.jornalcruzeiro.com.br/materia/780091/pascoa Como citar RASQUEL, Sandra Gomes. O Sistema da Avaliatividade como ferramenta de análise para a compreensão da Responsividade Ativa em Cartas do Leitor sobre o tema Reforma da Previdência. In: GONÇALVES-SEGUNDO, Paulo Roberto; ARAES, Célia Regina; CASTANHEIRA, Claudia; ISOLA-LANZONI, Gabriel; PENITENTE, Natalia; WEISS, Winola (orgs). Discurso e poder: teoria e análise. São Paulo: FFLCH/USP, 2020, p. 275-291. DOI: 10.11606/9786587621241 RASQUEL, Sandra Gomes | 2020 | p. 275-291 292 Na sala de aula, de Portas Abertas, pode entrar: uma análise discursiva ... Na sala de aula, de Portas Abertas, pode entrar: uma análise discursiva de imagens de língua em materiais de ensino para refugiados e no discurso de alunos imigrantes Selma Regina Olla Paes de ALMEIDA Universidade de São Paulo [email protected] Resumo: Neste artigo analisamos as imagens de língua do Português presentes nos discursos de alunos estrangeiros e em dois materiais didáticos de ensino de Língua Portuguesa. O objetivo é depreender a imagem que os estudantes e os livros didáticos têm da Língua Portuguesa. O corpus do trabalho consta de um recorte de aula com os estudantes estrangeiros do curso de Português que ocorre na Bibli-ASPA e de dois livros didáticos. Este estudo vincula-se ao Projeto Imagens de língua: sujeito, deslocamento, conhecimento e tempo, coordenado pelo Prof. Dr. Valdir Heitor Barzotto. Como procedimentos metodológicos, realizou-se a transcrição de um trecho da aula gravada, de acordo com as orientações de Marcuschi (2006); para os materiais didáticos, realizou-se uma análise interpretativa de apenas alguns trechos. Como referencial teórico, nos fundamentamos em Arnoux (2014), que aborda o conceito de minorização linguística; e em Pêcheux (1997), que discute as condições de produção do discurso e o conceito de formações imaginárias. Como resultado, foi possível apurar que as imagens de língua presentes nos corpora analisados que mais sobressaem são a imagem do Português como capacitação linguística; a da língua como instrumento de emancipação; e a de uma língua correta, sem erros, homogênea, una, ditada por regras. Palavras-chave: Imagem de língua; Análise do discurso; Imigrantes; Língua Portuguesa; Ensino. Introdução Este artigo vincula-se ao Projeto de Pesquisa Imagens de língua: sujeito, deslocamento, conhecimento e tempo, coordenado pelo Prof. Dr. Valdir Heitor Barzotto. Tal projeto pretende investigar os aparatos que auxiliam na construção de imagens da língua por meio de quatro instâncias argumentadoras - o Estado, a Igreja, a Universidade e a Comunidade - e de que maneira elas contribuem para a constituição dessas imagens. ALMEIDA, Selma Regina Olla Paes de | 2020 | p. 292-307 293 Discurso e poder: teoria e análise Como parte desse projeto, este estudo se propõe a investigar os instrumentos que colaboram na formação das imagens de língua nos contextos multilíngues, analisando os discursos produzidos pelas instâncias argumentadoras, Estado, Universidade e Comunidade e o conflito entre a imagem de língua constituída nesses documentos e as imagens de língua que os alunos estrangeiros têm - como ele vê a própria língua e como ele vê a Língua Portuguesa. Para tanto, temos como objetivo investigar quais as escolhas lexicais usadas para caracterizar a língua, bem como verificar quais linhas teóricas são mobilizadas para identificar a língua e de que maneira essas linhas teóricas são convocadas. O corpus do trabalho consta de dois livros didáticos, Portas Abertas: Português para Imigrantes e Pode Entrar: Português do Brasil para refugiadas e refugiados e do recorte de uma aula com os estudantes estrangeiros do curso de Português nível Intermediário que ocorreu na Bibli-ASPA, uma organização sem fins lucrativos, por meio de um Projeto de Ensino da Universidade de São Paulo denominado Aprender com a Comunidade. A escolha dos materiais foi baseada no objetivo do Projeto citado anteriormente. Visando analisar os a construção das imagens da língua por meio das instâncias argumentadoras e por se tratar de parte da pesquisa de mestrado que investiga as imagens de língua de estudantes estrangeiros, optou-se como um dos corpora, o recorte da aula deste curso, por um lado, por ter vínculo com a Universidade, instancia analisada na pesquisa e que pode ou não ter desdobramentos em projetos vinculados a ela, e por outro, para investigar as imagens de língua construídas na instância argumentadora Comunidade, por meio dos alunos. Como se tratava de um curso voltado a imigrantes e refugiados, primeiramente investigou-se documentos do Estado que abordassem a questão linguística a refugiados, como não nada foi encontrado até então, uma alternativa foi buscar materiais elaborados pelo Estado que versassem sobre essa temática, daí a motivação em se analisar alguns trechos dos materiais elaborados pela Secretaria de Educação da Prefeitura de São Paulo, Portas Abertas: Português para Imigrantes e pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, ACNUR, Pode Entrar: Português do Brasil para refugiadas e refugiados, por ser a ACNUR parte de uma organização intergovernamental. Cabe destacar que para as análises presentes neste trabalho, foram selecionados apenas alguns trechos desses materiais, não havendo uma análise totalizante dos referidos livros. Como referencial teórico, nos fundamentamos em Arnoux (2014), que aborda o conceito de minorização linguística; em Fiorin (1988), que aborda o conceito de linguagem como instituição social, instrumento de mediação e veículo das ideologias; de Pechêux (1997), utilizamos as concepções acerca das condições de produção do discurso e as formações imaginárias que são construídas a partir dessas condições; de Bronckart (2009), tomamos o conceito de modalização. Como resultado, foi possível apurar que, dentre as várias imagens de língua presentes nos discursos analisados, as que sobressaem são a do Português como “capacitação linguística”, que atrelada à capacitação profissional, remete à ideia de inserção no mercado de trabalho por meio ALMEIDA, Selma Regina Olla Paes de | 2020 | p. 292-307 294 Na sala de aula, de Portas Abertas, pode entrar: uma análise discursiva ... da rápida aprendizagem da língua para esta finalidade; a da Língua Portuguesa como instrumento de emancipação; e a de uma língua sem erros, invariável e homogênea. 1 Metodologia e Aparato Teórico A transcrição da conversação realizada em aula foi baseada nas orientações metodológicas de Marcuschi (2006), que foi fundamental para a transcrição do corpus sobretudo no que concerne às falas simultâneas, pausas, truncamentos repentinos e trechos incompreensíveis presentes nas falas dos estudantes. Para os materiais didáticos, realizou-se uma análise interpretativa de apenas alguns trechos, não havendo uma análise totalizante desses livros. Teoricamente, o estudo se fundamentou no conceito de Minorização Linguística, proposto por Arnoux (2014), que defende que a minorização de uma língua limita suas funções e os âmbitos de uso dela, o que acarreta em não provê-la o suficiente para que se desempenhe nesses âmbitos, desencadeando na língua limitações discursivas. Para discutir a linguagem como instituição social e instrumento de mediação e veículo das ideologias, nos fundamentamos em Fiorin (1988). Embora este autor seja de uma corrente estruturalista, utilizaremos apenas suas reflexões relacionadas à concepção de linguagem como um caminho de mediação das ideologias. Desta forma, estamos pensando no autor de maneira a entender o modo pelo qual a língua é referida no texto apresenta uma carga ideológica. Também, nos baseamos na concepção de Pêcheux sobre as condições de produção do discurso e as formações imaginárias que são construídas a partir delas. Segundo o autor, destinador e destinatário ocupam lugares determinados na estrutura de uma formação social, esses lugares são representados nos processos discursivos, porém podem apresentar-se de maneira transformada. Desta forma os processos discursivos, o que funciona é uma série de formações imaginárias que designam o lugar que o destinador e o destinatário se atribuem um ao outro e a imagem que eles fazem do seu lugar e do lugar do outro (Pêcheux, 1997). Baseando-se nesse conceito de formações imaginárias de Pêcheux, Osakabe (1999) propõe algumas questões que o destinador deve levar em conta a respeito da imagem do referente: a) Qual a imagem que eu faço do ouvinte para lhe falar desta forma? b) Que imagem penso que o ouvinte faz de mim para que eu lhe fale desta forma? c) Que imagem penso que o ouvinte faz do referente para eu lhe falar desta forma? d) Que pretendo do ouvinte para lhe falar desta forma? Inspirando-se no esquema formulado por Osakabe, elaborou-se o seguinte quadro para a análise dos dados dos materiais didáticos e dos discursos dos estudantes: ALMEIDA, Selma Regina Olla Paes de | 2020 | p. 292-307 295 Discurso e poder: teoria e análise Quadro 1. Expressões que designa as formações imaginárias Significado da expressão Imagem do lugar de A para o sujeito colocado em B A - I (A) A - I (B) Imagem do lugar de B para o sujeito colocado em A B- I (B) B - I (A) Imagem do lugar de A para o sujeito colocado em B Desdobramentos possíveis para a análise Qual imagem faz os materiais didáticos da Língua Portuguesa para os Imigrantes? Qual a imagem que o material didático tem do mercado que absorverá o trabalhador refugiado? Que imagem os imigrantes fazem da Língua Portuguesa? Fonte: adaptado de Osakabe (1999). Para analisar um pequeno trecho da conversação dos estudantes, tomamos o conceito de modalização de Bronckart (2009), bem como a importância do caráter dialógico das vozes que estão presentes no texto. Partindo dos autores elencados acima, na seção seguinte apresentaremos o corpus e análise do material. 2 Análise do corpus Selecionamos dos livros já mencionados excertos que caracterizam a língua e figuram certas imagens acerca dela, no item 3.1 analisaremos os trechos selecionados; No item 3.2 há a transcrição de parte da aula em que os alunos estrangeiros falam sobre o Português e a análise dos discursos por eles produzidos. 2 1 Análise dos materiais didáticos Quadro 2. Análise dos livros Portas Abertas: Português para Imigrantes 1. Em todos os processos de acolhimento, a necessidade de domínio da língua portuguesa perpassa a preocupação, tanto dos migrantes, como também daqueles que os recebem. Assim, diversos grupos têm se organizado para oferecer cursos de português para imigrantes e refugiados, os quais precisam, com rapidez, se capacitar linguisticamente, não só para a expressão cotidiana, mas também para as questões formais de documentação ou trabalho. (P.3) 2. O livro Portas Abertas: Português para Imigrantes é parte dos processos de recepção de imigrantes e refugiados, pois trata o Português como Língua de Acolhimento, a qual se ocupa da capacitação linguística, (...) (P.3) 3. É muito importante não utilizar gírias do português na hora da entrevista. Utilize palavras mais formais, na modalidade formal da língua. (P. 34) Pode Entrar: Português do Brasil para refugiadas e refugiados 4. O Curso Popular Mafalda, o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados - ALMEIDA, Selma Regina Olla Paes de | 2020 | p. 292-307 296 Na sala de aula, de Portas Abertas, pode entrar: uma análise discursiva ... ACNUR e a Caritas Arquidiocesana de São Paulo - CASP se uniram para produzir um material didático que auxiliasse você e outras pessoas refugiadas a darem os primeiros passos linguísticos para sua integração ao nosso país. Acreditamos que todas as pessoas podem aprender nosso idioma e colaborar para que o Brasil se torne um país cada vez mais plural, fraterno e receptivo às diversas culturas. (P.3) Fonte: Dados retirados dos materiais didáticos Portas Abertas: Português para Imigrantes e Pode Entrar: Português do Brasil para refugiadas e refugiados. Os enunciados de 1 a 3 foram extraídos do livro Portas Abertas: Português para Imigrantes elaborado pelas Secretaria Municipal de Educação (SME) e Secretaria Municipal dos Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC) da Prefeitura de São Paulo, e pelo Centro de Línguas da Universidade de São Paulo, ou seja, por instituições que formalmente pensam a educação e estabelecem um estratégias didáticas para o ensino de língua. O enunciado 1 utiliza o termo domínio da língua para se referir à compreensão do Português pelo estrangeiro. Esse termo propicia a reflexão de que o estrangeiro precisa dominar algo indominável, como que precisando ter o controle dessa coisa, “domesticando” algo que a priori estava livre, solto. O termo domínio também permite pensar que o estrangeiro precisa se apropriar de algo rígido, estanque, como se a língua fosse uma propriedade que precisa pertencer a ele, e com isso essa relação poderia ser considerada uma reificação linguística. Ainda no enunciado 1, outro termo que salta aos olhos é o capacitar(-se) linguisticamente, esse termo abre, inicialmente, para duas formas de interpretação: a primeira é relacionada mais ao primeiro vocábulo capacitar-se, que é muito utilizado para cursos profissionalizantes voltados aos mercados de trabalho, cursos de capacitação profissional. Essa escolha lexical pode insinuar que a compreensão do Português esteja atrelada principalmente à finalidade de inserção no mercado de trabalho. Outro ponto a ser destacado, é relacionado à língua como “capacitação”, no sentido de que os cursos de capacitação profissional geralmente são de curta duração, enquanto os cursos de qualificação são cursos mais longos. Os cursos de capacitação objetivam habilitar profissionalmente o trabalhador para seu desempenho em determinada função, eles têm como uma de suas características a rápida formação para que o trabalhador logo seja inserido no mercado. Nesse sentido, questiona-se se no termo capacitação linguística não está imbricada essa concepção de uma compreensão linguística supérflua, mas suficiente para que ele seja inserido no mercado de trabalho, isto é, que o imigrante aprenda rapidamente o necessário para essa função, como se esse fosse o objetivo mais importante da aprendizagem do Português para aqueles que aqui chegam. A segunda interpretação que esse termo permite deduzir, é que se capacita quem não é capaz de algo, logo capacitação linguística indica que é preciso capacitar alguém que não é capaz linguisticamente, e a expressão “capacidade linguística” sem um qualificador pressupõe que o sujeito não tenha qualquer capacidade linguística, nem no Português, nem na sua língua nativa e nem em qualquer outra língua. O enunciado 2, ademais da expressão capacitação linguística apresenta o termo língua de acolhimento para referir-se à Língua Portuguesa. Esse termo refere-se ALMEIDA, Selma Regina Olla Paes de | 2020 | p. 292-307 297 Discurso e poder: teoria e análise “ao contexto de ensino- aprendizagem do Português por parte dos imigrantes advindos de migração de crise” (MIRANDA & LOPES, 2019, p. 18). Indica que o ensinoaprendizagem do Português está direcionado a um público específico: estrangeiros que chegaram ao Brasil em situação de refúgio ou imigrantes que para cá vieram devido a situações alheias à sua vontade. De acordo com o dicionário Priberam1 2 2, acolher significa receber (alguém) em casa, com agrado. Nesse sentido é importante que o imigrante se sinta acolhido no novo país e, como parte desse acolhimento, a compreensão do Português está inserido nisso. Ou seja, há uma finalidade específica nesse termo: propiciar o conhecimento da Língua Portuguesa aos refugiados ou a pessoas em situação de refúgio que vêm para o Brasil a fim de que possam se integrar à nova cultura e interagir com o seu novo entorno. A expressão contida no enunciado 3, não utilizar gírias do português na hora da entrevista. Utilize palavras mais formais, na modalidade formal da língua, retoma a análise proposta por Osakabe (1999) a respeito das condições de produção do discurso que leva em conta a relação da construção das imagens entre o destinador e o destinatário: Um ponto de partida necessário para tal discussão parece estar no fato de que um discurso só se justifica à medida que, através dele, o locutor se situa de modo singular no quadro de informações preexistentes à sua enunciação. [...] Assim, todo locutor ao enunciar seu discurso se enquadra, independentemente de uma imagem objetiva daquilo que o ouvinte possa saber sobre o referente, na exigência básica de que no mínimo este último é passível de ter um conhecimento distinto do seu. Sob esse aspecto, do ponto de vista das condições gerais da produção de um discurso, parece que a segunda questão [que imagem penso que o ouvinte tem do referente para eu falar dessa forma?] é muito mais relevante do que a primeira ["que imagem tenho do referente para falar dessa forma?], à medida que é ela quem fornece a medida e a justificativa para a produção do discurso e à medida que só a partir dela é que se pode pensar na singularidade da imagem que o locutor tem do referente (OSAKABE, 1999, p.90). Baseando-se em sua teoria, a expressão destacada do enunciado 3 nos permite indagar, qual a imagem que o livro tem do mercado de trabalho que pretende absorver essa população? Embora uma das concepções que o dicionário traga para a palavra gíria seja Linguagem característica de um grupo profissional ou sociocultural2, a compreensão mais corrente deste vocábulo no Brasil é a de uma linguagem informal, bastante próxima à linguagem oral, distanciada da norma padrão, de cunho popular e carregada de expressões metafóricas. A advertência Não utilizar gírias é frequentemente usada para coibir o interlocutor a utilizar expressões que são populares, ou seja, que estão na ‘boca’ do povo, carregadas de coloquialidade. "acolher", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em https://dicionario.priberam.org/acolher [consultado em 24-06-2019]. 2 "gíria", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em https://dicionario.priberam.org/JARG%C3%83O [consultado em 30-06-2019]. 1 ALMEIDA, Selma Regina Olla Paes de | 2020 | p. 292-307 linha], 2008-2013, linha], 2008-2013, 298 Na sala de aula, de Portas Abertas, pode entrar: uma análise discursiva ... O mercado de trabalho é composto por uma complexa trama de trabalhos e empregos, vão desde atividades que não exigem maiores conhecimentos, podendo ser realizadas por pessoas sem elevado grau de instrução, e geralmente com baixa remuneração, até atividades especializadas que necessitam de trabalhadores com altos níveis de conhecimentos específicos, como graduação ou pós-graduações, e cuja remuneração, em geral, é elevada. Grande parte dos estrangeiros que chegam ao Brasil em condições de refúgio são inseridos em atividades laborais cuja mão-de-obra não é especializada, esse tipo de emprego também absorve brasileiros que geralmente não tiveram acesso à educação e normalmente não dominam a norma padrão, modalidade da língua disseminada pela escola. Isso demonstra que há empregos que não exigem o domínio da língua padrão como pré-requisito para a empregabilidade enquanto outros o exigem. Cabe ressaltar que o enunciado 3 está presente na página do livro em que é discutida a entrevista de emprego e nessa mesma página há a seguinte imagem: Figura 1. Fonte: Imagem retirada do livro didático Portas Abertas: Português para Imigrantes O fato de o livro apresentar a advertência contida no enunciado 3 e a imagem acima que compõe a mesma página da advertência sugere duas possíveis compreensões. A primeira seria a de que a imagem que ele tem do mercado de trabalho que emprega os refugiados está descolada da realidade, pois enquanto se espera que o aluno estrangeiro vá para uma entrevista de emprego numa grande empresa ocupar cargos de maior prestígio, como a imagem acima insinua, o que acontece, de fato, com a maioria deles é que os trabalhos a eles concedidos são para ocupar funções que não exigem grande grau de complexidade e estão ligados à mão de obra não especializada. Nesse sentido, Fiorin (1988) afirma: O discurso não é, portanto, o lugar da liberdade e da criação, mas é o lugar de reprodução dos discursos das classes e das frações de classe. O indivíduo não fala o que quer, mas o que as formações discursivas querem que ele fale. Ele não fala, mas é falado por um discurso. Quando se diz, porém, que cada classe tem o seu discurso, ALMEIDA, Selma Regina Olla Paes de | 2020 | p. 292-307 299 Discurso e poder: teoria e análise não se pode esquecer que, assim como a ideologia dominante é a da classe dominante, o discurso dominante é o da classe dominante (FIORIN, 1988, p. 16). Nessa linha de pensamento, o discurso produzido pelo livro reitera o discurso alienante aos imigrantes, produzindo em seu imaginário a constante busca por empregos vinculados aos moldes que o texto e a imagem destacados sustentam e que permitem que na lida do dia-a-dia fujam de suas realidades cotidianas, aspirando às imagens impostas pelo discurso da classe dominante. A segunda compreensão, contrária à primeira, sugere que o material se utiliza destas estratégias a fim de preparar o aluno estrangeiro para outras possibilidades que lhe permita emancipar-se e ampliar as possibilidades de inserção laboral e de melhores condições de trabalho e remuneração. O enunciado 4 foi extraído do livro Pode Entrar: Português do Brasil para refugiadas e refugiados, nele, diferentemente do primeiro, faz-se uso do discurso direto na introdução do livro, dirigindo-se ao aluno desde as primeiras páginas, como mostra o enunciado 4, no excerto você e outras pessoas refugiadas. Outra expressão presente neste enunciado é darem os primeiros passos linguísticos para sua integração ao nosso país, diferentemente do Portas Abertas: Português para Imigrantes, esse material, ao se referir ao ensino/aprendizagem da Língua Portuguesa, diz: dar os primeiros passos linguísticos, essa imagem remete à primeira infância, quando o bebê inicia a sua independência ao locomover-se sozinho para onde deseja. Dar os primeiros passos linguísticos significa iniciar o processo de, por meio da língua, integrar-se à nova cultura e ter autonomia para comunicar-se de acordo com seus anseios, desejos e necessidades. Neste enunciado também nos chama a atenção a frase: todas as pessoas podem aprender nosso idioma, que me parece ser oposta à noção de capacitação linguística, presente no Portas Abertas: Português para Imigrantes. Enquanto a primeira explicita que qualquer pessoa pode aprender a Língua Portuguesa, a segunda pressupõe um sujeito incapaz linguisticamente que não tem a capacidade de falar não só a Língua Portuguesa, mas qualquer outra língua. O terceiro material analisado é um recorte de dados coletados numa aula de Língua Portuguesa para Refugiados e transcritos neste artigo. A situação de coleta dos dados ocorreu na primeira aula do curso de Língua Portuguesa, após as professoras se apresentarem e falarem sobre sua formação profissional como licenciadas em Língua Portuguesa, um aluno expressou que então eles agora aprenderiam o Português direito, essa foi a motivação para a conversa que deu origem a essa análise. Havia três alunos na sala, todos homens, com mais de 30 anos de idade, um aluno proveniente da Arábia Saudita e dois do Haiti. Os dados selecionados é parte desse momento da aula em que eles conversam acerca do que seria essa língua mencionada por eles. ALMEIDA, Selma Regina Olla Paes de | 2020 | p. 292-307 300 Na sala de aula, de Portas Abertas, pode entrar: uma análise discursiva ... Cabe destacar que as condições de produção para os discursos dos alunos foram colocadas no momento em que as professoras se apresentaram e falaram sobre a sua formação - a) curso de Letras na Universidade de São Paulo e b) experiência no ensino de Português: A situação a respeito da formação das professoras disparou nos alunos uma imagem sobre o referente, a Língua Portuguesa, que estabelece as condições de produção para que os alunos elaborem seus discursos da forma como o fizeram. Pêcheux (1997) afirma que as regras de projeção existentes nos mecanismos de formação social estabelecem as relações entre as situações e as representações dessas situações. Em outras palavras, a questão proposta por Osakabe (1999) Que imagem penso que o ouvinte tem do referente para eu falar dessa forma? norteia os discursos dos alunos. 2 2 Análise do discurso dos alunos Quadro 3. Transcrição de parte da aula Transcrição de uma parte da aula • Situação de comunicação 1 Aluno 1: a) Quando você conversa com pessoas, com as pessoas que não conhecem, ainda não acostumam a sua jeito de falar, ela não entende. Então fazia tempo para ela começar a acostumar a sua jeito de falar. Isso é fraqueza, tem que porque tem que desde quando você fala elas têm que entender (...). Eu preciso, quando fala pela, primeira vez, para primeira, para pessoas entende. b) Segundo secreto, secreto muito ruim, eu converso com as pessoas no Facebook, no Whatsapp, as pessoas não entendem o que eu escrevo, c) mesmo que o que eu tô falando, escrevo, mas não dá certo, as pessoas não entendem. Então tem que ir (...), esses dois (...) mostram que você não (...). d) Eu perceber uma outra matéria, fora para(...) um congresso geral, não entendi nada, quer dizer política, medicina, nada! Não é só os termos, não entendi nada. Então tudo isso é fraqueza (...). Professora 2: Então é como para falar o Português direito, é para que haja comunicação, que você entenda o que eu estou falando. Aluno 1: e) Comunicação também (...) como alto cultura (...), com pessoas como advogados, esse tipo de pessoas, que não pode usar as palavras da rua, da gíria ou coisa assim. Passa outro congresso com outro tipo de pessoas. • Situação de comunicação 2 Aluno 2: f) Sim. Para mim eu penso (...) é quando pessoas, igual todas as línguas, quando pessoas fala bem, com verbo, e fala bem correto e você ouve também (...) é isso. g) Assim, às vezes tem pessoas que fala com você, ele não tem concordância do tempo, às vezes, você já viu se foi pra uma faculdade, tô fazendo faculdade, eu tô fazendo, eu faço faculdade sim, e não sabe nada porque na concordância do tempo, verbo, frase dele, não correto. h) Para mim o Português direito, ele tem que falar bem, tem que respeitar o tempo certo para falar, depois (...). É isso. Professora 1: E para você, o que que é aprender o Português direito? Aluno 3: i) Ah, eu quero aprender o Português direito porque quando eu cheguei aqui, eu trabalhei na obra, trabalhei com as pessoas na rua, l) aí eu aprendi muitas palavras, j) mas quando conversar com professor ou pessoas que falam Português correto, aí eu precebi que todas as palavras que eu aprende, tudo é incorreto, incorreto, m) Por exemplo, tem pessoas que trabalham na obra, quando engenheiro chega assim, você vai trabalhar e fala “amanhã nóis vai”, ai quando vai conversar com outras pessoas daí “amanhã nóis vai” não é correto. Aí eu vi que todas as palavras que eu aprendi na obra, aí se fala, você já compreende o que eu quero falar, mas não é correto. Fonte: Dados transcritos de parte de uma aula de Língua Portuguesa para Refugiados na Bibli-ASPA. ALMEIDA, Selma Regina Olla Paes de | 2020 | p. 292-307 301 Discurso e poder: teoria e análise Na Situação de comunicação 1, no recorte a) do aluno 1 indica que numa situação conversacional em Língua Portuguesa as pessoas têm dificuldades em compreendê-lo. De acordo com o locutor, para que as pessoas compreendam o que ele diz, se acostumem ao seu jeito de falar, demora algum tempo. Isso evidencia que o estudante tem dificuldades em se fazer entender na Língua Portuguesa, o que ele denomina como uma debilidade que deve ser superada; no seu entendimento a comunicação deve ser compreensível desde o início da conversa. No excerto b), ainda no turno do aluno 1 novamente ele se queixa de não se fazer compreender, mas desta vez por via de redes sociais como Facebook e WhatsApp. Vale ressaltar que no primeiro excerto a discussão da língua era na esfera da oralidade, aqui, tem-se e esfera da língua escrita, que de mesmo modo é incompreensível para que o aluno se faça entender. O aluno 1, ao usar esses dois exemplos, demonstra que tem consciência de que a língua é comunicada por meio dessas duas esferas: oral e escrita. No excerto c), ele demonstra reconhecer que a linguagem oral tem a especificidade da pronúncia e dos sotaques que fazem com que a mesma palavra escrita tenha sonoridades distintas podendo fazer com que os enunciados possam ser melhor ou pior compreendidos por causa dessa variação. Mas evidencia que sua dificuldade em se fazer compreender não é unicamente pela questão do sotaque porque ressalta que escreve com as mesmas palavras com que fala e de igual maneira as pessoas não o entendem. Ele relata ter dificuldades tanto na língua oral quanto na língua escrita. Na sequência, no trecho d) ele parte para a questão de sua compreensão e da dificuldade de entender a língua em contextos mais específicos, Esse excerto evidencia que o aluno reconhece que há mais de uma modalidade da Língua Portuguesa: i) a modalidade da língua do cotidiano, em que ele compreende a língua, mas não se faz compreensível; e ii) a língua que circula num congresso, na política, na medicina, em que ele não compreende não apenas os termos específicos das áreas, mas a situação comunicacional daquele contexto. A passagem e) evidencia que o aluno compreendeu que há uma divisão de classes que perpassa as questões linguísticas: há a língua da rua e a língua de advogados e de outras pessoas que ocupam espaços de poder. Esse excerto remete ao enunciado 3 do livro Portas Abertas: Português para Imigrantes, em que adverte que em determinados contextos o aluno estrangeiro deve evitar o uso de gírias. São os espaços presentes na fala do aluno 1 que os estrangeiros devem evitar a linguagem da rua, pois nesses espaços não há lugar para a fala popular, nesses espaços ela deve ser silenciada. Nesse sentido, Arnoux (2014) destaca: Sabemos que la estandarización y el desarrollo de una variedad escrita que debe circular por la escuela, los medios y el aparato estatal es fundamental para que adquieran el estatuto de oficiales en los Estados actuales en los que la escritura juega un papel importante. El ALMEIDA, Selma Regina Olla Paes de | 2020 | p. 292-307 302 Na sala de aula, de Portas Abertas, pode entrar: uma análise discursiva ... peligro reside en que funcione como el modelo prestigioso y afecte empobreciéndolas las formas propias de la cultura oral (ARNOUX, 2014, p. 292). Espaços como os citados pelo aluno 1 e pelos livros são os que legitimam a variedade padrão da língua, empobrecendo e minorizando outras variantes relacionadas à língua oral, próprias da cultura popular, desprestigiando uma em detrimento da outra. Na Situação de comunicação 2, no trecho f), o estudante relaciona o Português direito como uma necessidade não apenas exclusiva ao Português, mas a todas as línguas. Ademais, ele define que essa língua, Português direito, pressupõe o falar correto, com o uso verbos e com boa dicção para que o seu interlocutor possa compreendê-lo. O excerto g) evidencia a língua como uma instância de poder: fala correto quem teve acesso à educação, quem já foi à universidade, quem tem “o” conhecimento. Ele se coloca nessa instância que se sobressai, afirmando reiteradas vezes que está ocupando esse espaço de poder e em contraposição renega a língua do outro que não circula por essa instância, exprimindo que não sabe nada por não fazer uso da variante linguística própria desse grupo social - aqueles que detêm o conhecimento. Esse trecho de sua fala também demonstra a imagem que sustenta o discurso desse locutor e remete à questão proposta por Osakabe (1999) Que imagem tenho do referente para falar dessa forma? Ao se colocar como um ocupante do espaço acadêmico, ele mostra às receptoras que ele também circula pelos mesmos espaços de poder que elas, validando, desta forma, aquilo que ele diz. Em h) a imagem que o aluno 2 tem do que seria o Português direito dialoga com a norma padrão da língua e com a imagem de uma língua que só é acessível àqueles que adentram às universidades e aos espaços onde o conhecimento acadêmico circula. Embora por meio da modalização lógica (BRONCKART, 2009) construída no discurso do aluno 2 com a expressão Para mim eu penso pareça revelar um posicionamento enunciativo individual do sujeito, esse discurso reproduz a ideologia da classe dominante: O enunciador real sempre vocaliza as formações ideológicas existentes na formação social em que vive. Ao enunciar, revelando ou ocultando sua posição de classe, ele dá voz aos diferentes agentes do discurso, que são as classes ou as frações de classe de uma determinada formação social (FIORIN, 1988, p. 16). Ainda na Situação de comunicação 2, o enunciado i) demonstra que o aluno 3 aumentou seu repertório linguístico graças aos seus colegas de trabalho e à vivência que teve por meio do seu trabalho. Embora reconheça, num primeiro momento, que aprendeu a falar Português com seus colegas de trabalho, em j) ele evidencia que a língua que aprendeu não é a que ele deseja e nem a que é considerada como adequada. No seu ponto de vista, a língua que ele aprendeu é língua incorreta. ALMEIDA, Selma Regina Olla Paes de | 2020 | p. 292-307 303 Discurso e poder: teoria e análise Outra questão presente em sua fala é quando ele “nomeia” a língua como palavras, como nota-se na passagem J). Isso permite inferir duas coisas: a primeira é a da importância que ele dá para as palavras, como que se para comunicar-se as palavras fossem mais importantes do que outros aspectos contidos na língua. A segunda é a de que o que o incomoda na língua que aprendeu são as palavras - como se elas fossem gírias - e não tanto a estrutura dela. É como se o que ele aprendeu errado nessa língua não fosse a estrutura, mas as palavras, que não condiziam com as usadas por pessoas como os professores e engenheiros. Assim como os alunos 1 e 2, o aluno 3 identifica o espaço enunciativo de onde se fala o Português direito. Esse espaço de poder é ocupado, na fala do aluno 1 por advogados, médicos e políticos; na fala do aluno 2, por pesquisadores, docentes e estudantes que circulam nas universidades; e na fala do aluno 3 pelos professores. Na fala dos três alunos a língua aparece como que em um binômio correto versus incorreto, língua padrão versus língua não padrão, endossando a ideologia das classes dominantes: O enunciador, enquanto ser social, é depositário de várias formações discursivas que existem numa formação social concreta dividida em classes sociais distintas, embora, em geral, ele seja suporte apenas da formação discursiva dominante, aquela que materializa a formação ideológica dominante (FIORIN, 1988, p. 16). Em m) o que está em jogo é o uso adequado ou não adequado para comunicar-se com as pessoas que circulam nos espaços de poder que não são permitidos a outros. Para conversar com essas pessoas - que entendem perfeitamente a variantes linguística de seus subordinados - o aluno quer fazer uso dessa variante mais prestigiada que confere poder ao seu chefe. Além da questão da minorização linguística (Arnoux, 2014) da variante dos colegas de trabalho do aluno 3, que é exercida pelo desprestígio da língua deles, ao demonstrar que ele precisa dominar a língua do engenheiro, notamos a ocorrência de um fenômeno que a autora acima citada aponta como lingüicismo, que são: [...] ideologías y estructuras mediante las cuales las lenguas se convierten en el medio para consolidar y mantener una distribución desigual de poder y recursos. Senala en diversas situaciones las diferencias entre centro y periferia ya que si se utiliza siempre la lengua del centro y las lenguas de la periferia no cuentan con suficientes recursos para desarrollarse y poder cumplir con las mismas funciones el lingüicismo está en funcionamiento. El lingüicismo genera entonces la minorización de las lenguas o de variedades de esas lenguas (como el caso que nos interesa) (ARNOUX, 2014. p.294). O aluno 3 não quer falar a língua da periferia, mas a língua do seu chefe engenheiro. Esse movimento, no entanto, não é um desejo dele enquanto indivíduo, mas a reprodução de uma ideologia inculcada nas massas de que a língua que eles falam não é língua, que língua é aquela que ele não domina. Não a domina e por meio dela é dominado, por isso, seu desejo que não é individual, mas motivado pela ALMEIDA, Selma Regina Olla Paes de | 2020 | p. 292-307 304 Na sala de aula, de Portas Abertas, pode entrar: uma análise discursiva ... ideologia da classe dominante, que circula no imaginário coletivo das classes populares. Ao analisar o discurso dos estudantes, pôde se depreender que a língua está relacionada à comunicação, ao fazer-se compreender e ser compreendido. No entanto, para que essa compreensão seja atingida a língua deve estar ligada às normas gramaticais, segundo eles, o comunicar-se deve ser por meio da gramática. A imagem por eles compartilhada é a de que a língua deve ser una, fixa, rígida, estabelecida por regras e obedecida pelos falantes. Uma língua imposta de cima para baixo, em que os falantes não são produtores dessa língua, mas reprodutores dela. No quadro abaixo se apresenta a forma como a Língua Portuguesa é nomeada: Quadro 4. Quadro de escolhas lexicais Imagens da Língua Portuguesa pelos imigrantes Imagens da Língua Portuguesa presentes nos materiais didáticos “comunicação também (...) como alto cultura (...) “a necessidade de domínio da língua portuguesa com pessoas (como) advogados, esse tipo de perpassa a preocupação, tanto dos migrantes, pessoas.” como também daqueles que os recebem.” “quando pessoas fala bem, com verbo, e fala bem correto e você ouve também (...) é isso.” “[os imigrantes e refugiados] os quais precisam, com rapidez, se capacitar linguisticamente,” “às vezes tem pessoas que fala com você, ele não “pois trata o Português como Língua de tem concordância do tempo, às vezes, você ja viu Acolhimento,” se foi pra uma faculdade.” “mas quando conversar com professor ou pessoas que falam Português correto, aí eu precebi que todas as palavras que eu aprende, tudo é incorreto.” “a qual se ocupa da capacitação linguística” “tem pessoas que trabalham na obra, quando “É muito importante não utilizar gírias do engenheiro chega assim, (...) e fala “amanhã nóis Português na hora da entrevista.” vai”, (...) não é correto.” “ai quando vai conversar com outras pessoas daí “você e outras pessoas refugiadas a darem os “amanhã nóis vai” não é correto.” primeiros passos linguísticos para sua integração ao nosso país” “Aí eu vi que todas as palavras que eu aprendi na “Acreditamos que todas as pessoas podem obra, aí se fala (...), mas não é correto.” aprender nosso idioma” Fonte: elaboração própria. A partir da transcrição da fala dos imigrantes e da análise dos materiais didáticos, a imagem de língua que se tem a partir dos excertos coletados acima é a seguinte: Imigrantes: • está relacionada à cultura da elite, não dialoga com a cultura popular; • é a língua dos advogados, médicos, professores e engenheiros e para comunicar-se com eles é preciso aprender a sua língua; • é a língua da Universidade, lugar por excelência onde circula o conhecimento acadêmico, logo língua = conhecimento acadêmico; ALMEIDA, Selma Regina Olla Paes de | 2020 | p. 292-307 305 Discurso e poder: teoria e análise • é um conjunto de regras gramaticais e para comunicar-se faz-se necessário apropriar-se dessas regras e falar corretamente; • há uma outra “coisa” que se fala na periferia, mas essa não é “a língua”, afinal essa “coisa” que se fala é toda errada e “a língua” é correta. Materiais Didáticos: • o estrangeiro precisa “conquistar” a Língua Portuguesa; • o estrangeiro rapidamente precisa se apropriar dessa língua; • o estrangeiro precisa capacitar-se linguisticamente, pois não possui capacidades linguísticas; • a língua como forma de acolhimento e recepção ao estrangeiro; • o estrangeiro não pode utilizar outras línguas que não a padrão quando estiver nos espaços das classes dominantes; • aprendizagem de língua estrangeira como um processo gradual de autonomia; • capacidade em todas as pessoas de aprender a Língua Portuguesa. A partir do Quadro de escolhas lexicais observa-se uma série de imagens da Língua Portuguesa, algumas se complementam, outras divergem absolutamente. Pode-se depreender, portanto, que as imagens da Língua Portuguesa que circulam nos itens analisados estão relacionadas a: 1) um instrumento de comunicação intimamente associado 2) ao conhecimento acadêmico e 3) às normas gramaticais impostas pela língua padrão. Essa variante, se bem apropriada, 4) pode servir como forma de ascensão social e 5) como uma instância de poder cujas 6) pessoas que a dominam gozam de um status privilegiado e de 7) empregos melhores remunerados. É a 8) língua de deve ser dominada pelo estrangeiro que vive no Brasil, mas 9) não é a língua falada nas ruas. 10) Pode ser um instrumento de acolhida aos que aqui chegam, possibilitando que 11) sua aprendizagem seja um processo gradual de autonomia, afinal 12) todas as pessoas são capazes de aprender a Língua Portuguesa, como também 13)por não possuir capacidades linguísticas, 14) o estrangeiro deve aprender a língua - capacitar-se - rapidamente, para que 15) seja inserido no mercado de trabalho. Considerações Finais Diante o exposto, a análise realizada neste trabalho aponta uma série de imagens acerca da Língua Portuguesa, todas elas motivadas pela imagem que o Locutor faz do seu ouvinte. A análise dos materiais também aponta para imagens da língua motivadas pelo receptor - alunos de Língua Portuguesa imigrantes que vivem no Brasil. Embora haja diversas imagens e algumas delas convirjam em ambos os materiais, as images do Português que mais saltam em cada livro são divergentes entre si. ALMEIDA, Selma Regina Olla Paes de | 2020 | p. 292-307 306 Na sala de aula, de Portas Abertas, pode entrar: uma análise discursiva ... No Portas Abertas: Português para Imigrantes a imagem da língua que se destaca é a do Português como “capacitação linguística”, que atrelada à capacitação profissional remete à ideia de inserção no mercado de trabalho por meio da rápida aprendizagem da língua para esta finalidade. Essa imagem é reforçada pela recorrência da expressão citada e pela orientação ao não uso de gírias numa entrevista de empregos, mostrando que a língua da capacitação linguística é a língua padrão. Essa imagem fomenta o discurso da classe dominante de que esses falantes estrangeiros não são os produtores de uma língua, mas reproduzem uma língua imposta e distanciada, perpetuando as desigualdades por meio reprodução de discursos alienantes. No Pode Entrar: Português do Brasil para refugiadas e refugiados a imagem sobressalente é a da Língua Portuguesa como instrumento de emancipação, compreensível a qualquer pessoa que tenha o interesse em aprendê-la. Essa imagem de língua incita à autonomia e à liberdade comunicativa e demonstra que a aquisição do Português pode ser uma forma de integração cultural e social. Na análise da fala dos alunos da Bibli-ASPA, a imagem transmitida pelas professoras certamente influenciou e sustentou os discursos deles, principalmente quando se referem à língua como norma e a essa língua como sendo pertencente aos professores e diferente da língua da rua, ou da dos colegas de trabalho na construção civil. Essa língua mostrada por eles se apresenta como uma língua correta, ou seja, sem erros; onde não há espaço para as variações, logo, apresentando-se como uma língua homogênea e una. Embora um dos alunos tenha diferenciado língua oral de língua escrita, não houve maiores detalhamentos acerca de suas concepções se a língua “correta” falada é a mesma que se escreve. Essa imagem do Português como língua padrão que deve ser controlada por normas e regras tem como impacto social a não conscientização de que são os falantes os produtores da língua. Como manifestação humana de uma determinada comunidade, não há uma Língua Portuguesa homogênea e única, mas várias Línguas Portuguesas que carregam complexas identidades culturais, sociais, econômicas, históricas e geográficas porque ela é viva e dinâmica. Referências bibliográficas ARNOUX, Elvira Narvaja. Minorización Lingüística y Diversidad: en Torno al Espanol y al Português como Lenguas Científicas. 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Discurso, poder e educação: imagens da língua, de seus falantes e de seus professores Valdir Heitor BARZOTTO Universidade de São Paulo [email protected] Resumo: No presente texto, são analisados alguns comentários feitos em diferentes textos a respeito de línguas ou variedades linguísticas e de seu ensino, de seus falantes e dos professores. Objetiva-se compreender a que direções os enunciados buscam encaminhar os leitores. O trabalho consiste, portanto, em analisar textos produzidos em uma das instituições que têm poder para argumentar sobre a língua e seu ensino, a Universidade. A hipótese que perseguimos é a de que os comentários a respeito da língua, de seus falantes e de seu ensino permitem depreender imagens desses três pólos que ora realçam lugares de poder, ora tendem a diminuir poderes que poderiam ser alcançados por meio do uso da língua própria da comunidade como a produção de peças culturais. Concluímos indicando a percepção de que esse movimento de construção de imagens negativas está ligado à pouca consideração que se tem da produção das comunidades mais pobres e sugerimos algumas formas alternativas de formação de professores. Palavras-chave: Texto Acadêmico; Formação de Professores; Ensino de Línguas; Escrita; Multiculturalismo. Introdução Para abordar a temática de que trata esse texto, começaremos por recuperar um trabalho apresentado no II Encontro de Pós-graduandos em Estudos Discursivos (EPED), em 2010, no qual reafirmávamos a “proposta de que as instâncias formadoras voltem-se para seu interior a fim de refletir sobre os materiais a que os futuros professores estão sendo expostos durante sua formação e as orientações de sentidos neles presentes.” (BARZOTTO, 2010, p. 27). Nossa preocupação é que instâncias como a Universidade e o Estado, que têm poder de construir argumentação sobre os pólos linguísticos língua, ensino e professor, construam ou referendem imagens negativas, legitimando-as tanto junto ao próprio professor em formação quanto junto à comunidade. Em seguida acrescentaremos outros trabalhos que temos desenvolvido em equipe, bem como as formas alternativas que propomos para melhorar a reflexão a respeito do modo como formamos professores de língua portuguesa. Analisaremos, BARZOTTO, Valdir Heitor | 2020 | p. 308-319 309 Discurso e poder: teoria e análise ainda, outros exemplos que incidem sobre o reconhecimento, ou não, da língua e cultura das comunidades onde as escolas estão inseridas. Dessa forma, aproveitamos a oportunidade aberta pelo convite para apresentação no XI EPED, em 2019, para aprofundar o exercício de análise de textos acadêmicos sobre a formação do professor que vimos fazendo, procurando demonstrar os percursos que estamos percorrendo após a apresentação no II EPED. Justificamos nossa retomada do tema porque a realização da XI edição do EPED, em 2019, ocorre em meio a um período no qual os discursos que atribuem características negativas aos professores e ao aprendizado de seus alunos tornaramse muito fortes. Percebemos, então, a atualidade e a urgência de se refletir a respeito das imagens do professor, da língua e de seu ensino que construímos e consolidamos ao longo dos anos no interior mesmo de seu processo de formação. 1 Afirmações recorrentes a respeito do professor e seu trabalho Recuperamos aqui dois exemplos analisados na apresentação e no texto do EPED de 2010 a fim de mostrar que a construção dessas imagens negativas não surgiu agora, quando crescem as críticas sobre a escola em geral. Ao contrário, tal construção apoia-se numa longa tradição sustentada no percurso institucional da formação de professores. Sabemos que se pode argumentar que os julgamentos negativos a propósito da prática do professor e do conteúdo que ensina têm sido retirados do contexto e usados de forma diferente do propósito com que eles eram feitos nos textos originais nos quais foram vinculados. Mesmo assim, acreditamos que vale chamar a atenção para essa prática de apresentar o trabalho do professor sempre como deficitário. Até mesmo pelo fato de que é possível retirar uma afirmação de seu contexto, é necessário prestar atenção a respeito do que é dito. O primeiro exemplo a que recorremos para ilustrar o que se diz a respeito do professor é uma montagem a partir de diferentes afirmações encontradas ao longo de textos acadêmicos publicados sobre ensino de língua portuguesa no Brasil antes de 2010. Consideramos o exemplo (1) como modelo, característico de inúmeras publicações sobre o assunto. (1) o professor tem dificuldade/não sabe/não está preparado; o professor deve/tem que Naquele momento nos interessava, entre outros aspectos, explorar a produtividade dos estudos das modalidades linguísticas nas análises de textos dessa natureza e orientar professores em formação para prestar atenção em tais elementos a fim de conhecer a direção argumentativa que se construía nos textos que lhes eram dados a ler. Destacamos do exemplo (1) o uso do verbo dever, característico de textos acadêmicos que, além de alegar dificuldades por parte do professor na condução de seu trabalho, ordena e prescreve o que fazer. Vejamos o que se constata na literatura que versa a respeito das modalidades linguísticas: BARZOTTO, Valdir Heitor | 2020 | p. 308-319 310 Discurso, poder e educação: imagens da língua, de seus falantes e ... A expressão da modalidade axiológica (Pottier, 1987; Carreira, 1994) tem dificuldade, usada em geral para referir-se à relação do professor com o conhecimento, vem combinada na maioria das vezes com a modalidade deôntica (Pottier, 1987), propondo uma obediência ativa (Greimas, 1976), por meio do verbo modal dever complementado por fazer. (BARZOTTO, 2010, p. 31) No mesmo texto, apresentamos outro exemplo, também extraído de um texto acadêmico publicado em francês e indicado pelo autor como parte de uma tese que ainda estava em desenvolvimento, baseada em pesquisa feita sobre a prática do professor na França. (2) O exercício proposto filia-se a uma antiga tradição escolar O exemplo nos interessava por representar também uma constante em textos dessa natureza, que consiste em fazer contraposições entre um presente ideal, no qual o professor não estaria, segundo o julgamento do pesquisador, e um passado, uma tradição, geralmente visto como negativo. Naquele momento Chamamos a atenção sobre o sintagma antiga tradição escolar em sua relação com a seguinte definição de modalidade: “traço de uma avaliação subjetiva (atitude do sujeito falante ou escrevente), mas também de uma avaliação intersubjetiva do mundo (partilhada por uma comunidade linguística). (GALATANU, 2005, p. 157). Bastante partilhadas pelas comunidades argumentadoras sobre o ensino, as três palavras juntas contribuem para a constituição de sentidos como ultrapassado e de menor prestígio. (BARZOTTO, 2010, p 32) Continuando a reflexão a respeito do poder conferido pela escrita e dos discursos que participam na constituição da ideia de poder para determinados sujeitos, em Barzotto, 2011, fizemos três observações a respeito da escrita do professor e do exercício do poder por meio da escrita de textos nos quais ele mesmo poderia constituir seu lugar de poder. a) É pressuposto que a escrita pode dar poder a quem a pratica. b) O professor, por estar em uma instituição propícia à escrita, pode ser visto como alguém que não sofre as consequências do seu grau de domínio da escrita. c) Em que pese o professor ter acesso a diferentes tipos de escrita, principal e obrigatoriamente àqueles que dão os contornos de sua profissão, não significa que ele esteja em condições de igualdade quanto ao exercício do poder que eles propiciam, já que ele nem sempre tem o poder de produzir essas escritas. Essas três observações, ligavam-se à observação que vínhamos fazendo a respeito de afirmações genéricas encontradas em textos acadêmicos que defendem o uso didático, de onde extraímos outro exemplo representativo do tipo de argumentação que contribui para a imagem negativa da língua e dos falantes, sejam professores ou alunos. (3) Em alguns lugares o professor só tem o livro didático BARZOTTO, Valdir Heitor | 2020 | p. 308-319 311 Discurso e poder: teoria e análise Do nosso ponto de vista, afirmações como esta estão ligadas às anteriores. Enquanto aquelas constituem uma imagem de professor como não detentor de conhecimentos vários, como deslocado daquele tempo considerado ideal pelo pesquisador, nesta parece que se nega a condição mesma do professor como falante. Ora, a condição primeira para ensinar a língua é ser falante dela. E aqui estamos falando de um falante que é formado em Letras, ou Pedagogia. E mesmo que pensemos em professores que não têm curso superior, há que se considerar que algum curso preparatório ele fez. Como aceitar, então, que o único material que ele tem é o livro didático? Como aceitar que um professor não tenha, e não possa trabalhar com seus alunos, recursos próprios da língua que fala como relatar, recitar, cantar, etc., sem apoio de um livro? Repetir de dentro da universidade esse discurso, de que o professor é mal formado e não tem outro material ou não tem competência para buscar ou elaborar material para a sua aula, possibilita, em primeiro lugar, a inculcação desta incompetência, que abre caminho para a implementação de políticas paliativas para a superação deste quadro, entre elas a do livro didático em nível nacional e a de formação continuada que não prioriza a elaboração própria de atividades ou o desenvolvimento da autonomia. (BARZOTTO, 2008, p. 167-168) Posicionamentos como esses, a que já tínhamos acesso por meio de textos acadêmicos publicados antes de 2008, são possíveis porque as instâncias formadoras do professor não têm transferido para ele o poder de escrever a respeito de suas práticas, entre outros temas sobre os quais se pode escrever. Afinal, quem exerce o poder de escrever em lugar do professor são os profissionais que estão na universidade ou que ocupam postos chaves nas secretarias de educação, nas editoras, na mídia, em ONGs, etc. Ou seja, o professor é falado. Ferreira (2012) analisa os sentidos que prevalecem sobre o professor quando ele é noticiado em jornais e compara com os sentidos constituídos sobre o professor em textos acadêmicos em busca de traços comuns. Nas análises a autora observa coincidências entre a argumentação do jornalista e do especialista consultado. Do nosso ponto de vista, essa argumentação sobre o professor, pode se tornar circular, tanto o jornalista se apoia nas posições do especialista, quanto especialistas podem retroalimentar suas convicções na mídia. O que prevalece é a ausência de posicionamentos por parte do professor, seja sobre sua própria condição, de especialista inclusive, seja a respeito dos conteúdos que ensina. Batista (2016a e 2016b) também verifica a predominância de posicionamentos de especialistas, em detrimento de professores, como se eles também não fossem especialistas, em matérias de jornal, nas quais são muito frequentes usos de itens lexicais e expressões que propiciam a construção de imagens negativas desses profissionais. Cada vez mais essas pesquisas têm se dedicado ao levantamento e análise da construção de imagens negativas dos professores, da língua e do seu ensino. O ciclo do qual esses três pólos fazem parte é mais ou menos o que segue: segundo as posições sustentadas nesses julgamentos negativos, a língua dos alunos não é considerada boa, ele tem de aprender outra para “ser alguém”, “tornar-se cidadão”, BARZOTTO, Valdir Heitor | 2020 | p. 308-319 312 Discurso, poder e educação: imagens da língua, de seus falantes e ... “ampliar sua participação em outras esferas sociais”, “ser inserido na sociedade”. Portanto, por não falar a língua considerada adequada, ele também não o seria. Os professores, além de geralmente pertencerem ao mesmo grupo social do aluno e serem originariamente falantes da mesma língua ou variedade, não conseguiriam êxito em ensinar bem essa língua tida como adequada, ou quase mítica. Diante disso, outra hipótese que podemos formular é a de que a repetição dessas afirmações negativas em textos acadêmicos - a língua é inadequada, o professor é despreparado e o ensino que pratica é ineficiente - mais do que confirmar este ciclo, acabam por trazê-lo como uma proposição a ser aceita. 2 Propostas alternativas para romper com o ciclo negativista Para fazer frente às imagens negativas em circulação e não aceitar a proposição de que a situação é essa mesma sem possibilidade de alteração, fomos criando alternativas de trabalho na formação. Tais propostas visam a construir um trabalho em que o poder da escrita e de constituição de um discurso sobre o professor seja apropriado por ele mesmo. Primeiramente, em 1990, quando começamos nossa carreira como professores universitários, criamos estratégias e espaços para que o futuro professor se apropriasse do direito de escrever por meio da inserção da pesquisa em sua formação. A proposta consiste em introduzir a pesquisa em todas as disciplinas. Desde o primeiro dia de aula o aluno começa a desenvolver uma pesquisa relacionada à disciplina, e a desenvolve ao longo do semestre. No mesmo ano, criamos, por exemplo, o Fórum Acadêmico de Letras – FALE, que, desde então realiza-se todos os anos sem interrupção. Essa perspectiva de trabalho configurou-se como um espaço de formação, que tinham no Fórum seu locus privilegiado para apresentação dos resultados de pesquisa dos alunos e de debate e aprofundamento da reflexão sobre o desenvolvimento de pesquisas por alunos de graduação. A reflexão é feita em mesas de experiências fundamentadas a respeito da condução das disciplinas com pesquisa e de debates sobre as políticas para a pesquisa na graduação. Professores de diferentes instituições foram levando seus alunos de Letras, futuros professores, a desenvolver suas próprias pesquisas, a escrever e dar publicidade a seus resultados, no FALE, por exemplo, ou em publicações escritas. 1 Um dos fundamentos básicos da proposta era que os futuros profissionais de Letras se apropriassem do poder de fazer um discurso próprio a respeito de seu objeto de estudos, de sua prática, de sua identidade. Com isso tenta-se colocar em prática o postulado de Foucault (1970, p. 10): “O discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar.” Ou seja, buscávamos formar um profissional Para melhor compreender essa proposta recomendamos a leitura de Fabiano (2007) e de Eufrásio (2007). 1 BARZOTTO, Valdir Heitor | 2020 | p. 308-319 313 Discurso e poder: teoria e análise que se apropriasse do poder de falar de si e de diferentes facetas de seu trabalho, não só de sua prática. Mais tarde, quando passa a se tornar cada ver mais forte a exigência de publicação nos cursos de pós-graduação, criamos, em 1999, o Seminário de Leitura e Produção no Ensino Superior-SLEPES. Derivado do FALE, este Seminário destinou-se a reunir pesquisadores de outras áreas em torno da seguinte pergunta: o que a universidade tem oferecido à comunidade e chamado de conhecimento? O objetivo central do evento é continuar defendendo o compromisso da Universidade em produzir conhecimento, mas analisar o que se produz e incidir num debate interno contra a banalização da escrita para que não haja um desgaste da universidade junto à comunidade.2 Na mesma linha dos eventos anteriores, depois que entramos na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP), em 2001, ajudamos a criar o Seminário de Metodologia do Ensino de Português-SMELP, destinado à apresentação dos trabalhos escritos pelos alunos a partir de suas práticas de estágio nas escolas. Além do aprendizado prático, necessário para o professor em formação, damos ao estágio um caráter de pesquisa na escola. O aluno coleta dados por meio de diário de campo, com base nos procedimentos da pesquisa etnográfica, por exemplo, ou outros materiais e faz uma análise do contexto em que se ensina língua materna. Com essa orientação para o estágio, buscamos evitar que o aluno faça apenas uma verificação se a professora está seguindo orientações oficiais ou perspectivas teóricas hegemônicas. O estudante de licenciatura é convocado a exercer o direito de análise e de escrita dessa análise da situação que presencia numa sala de aula de língua portuguesa. Desse modo, vai tomando para si o poder de argumentar a respeito do ensino, e espera-se que o faça, quando estiver na vida profissional, também a respeito da sua produção diária em sala de aula. Entendemos ser muito importante que o professor assuma o poder de escrever e possa construir contrapontos aos discursos feitos sobre ele de fora do seu ambiente. Os eventos citados acima, entre outros, são vivenciados como momentos de reunião de grupos de trabalho em torno do posicionamento de que a escrita precisa ser apropriada pelos atores da sala de aula, de modo a que não só as instâncias que se posicionam como reguladoras do trabalho do professor tenham o privilégio da escrita. Paralelamente, foram desenvolvidos projetos de pesquisa pelos profissionais envolvidos nesse processo de práticas com pesquisa, de organização desses eventos. Os projetos dedicam-se às práticas de escrita na universidade e a formação de professores que têm a pesquisa como um eixo importante. Desses projetos derivam reuniões e debates em eventos e publicações, sempre buscando um espaço de reflexão independente de perspectivas oficializadas.3 Exemplos de publicações relacionadas ao SLEPS são: Barzotto; Riolfi; Almeida (2011) e Almeida (2011). Para conhecer um desses resultados, leia-se, por exemplo, Barzotto; Pietri (2018) e Barzotto; Barbosa; Sugiyama Junior; Eufrasio; Fabiano (2014). 2 3 BARZOTTO, Valdir Heitor | 2020 | p. 308-319 314 Discurso, poder e educação: imagens da língua, de seus falantes e ... 3 Imagens e identidades em países multiculturais Como desdobramentos das reflexões feitas nos movimentos de pesquisa e trabalhos em cooperação apresentados até aqui, agregamos constatações referentes ao multiculturalismo e sua negação. No nosso entendimento, para trabalhar com estudantes oriundos de diferentes regiões de um mesmo país, ou de diferentes países, respeitando sua cultura e proporcionando aprendizado, precisamos de formação e de estrutura no trabalho, que desenvolva disposição e ofereça condições para que o próprio professor assuma o poder de pesquisar e escrever sobre sua sala de aula, a cultura de seu aluno e a sua própria cultura, com o intuito de entender e planejar o ensino da língua.4 Tais pesquisas podem ser feitas em parceria com a universidade, mas desde que isso não signifique que o professor vai coletar os dados e a universidade vai escrever a respeito deles moldando-os, ajustando-os para a confirmação de uma teoria ou de uma perspectiva de trabalho adotada oficialmente. Às nossas preocupações sobre as afirmações de que “o professor não sabe”, de que “em alguns lugares o professor só têm o livro didático”, acrescentamos hoje uma associação desse não saber e desses supostos lugares com a pobreza e os matizes étnicos a eles relacionados. Embora não sejam nomeados, e não seja fornecido um endereço que permita a outros pesquisadores averiguar, é possível inferir que os lugares sobre os quais se declara em textos acadêmicos que os professores não contam com outro material que não o livro didático sejam aqueles onde impere a pobreza. É possível pressupor também que sejam regiões onde geralmente concentram-se as populações pardas e negras. Quando relacionamos carência material a etnia, fica mais intrigante analisar a suposição de que os professores dessas regiões contam apenas com o livro didático e não se faça qualquer menção sobre sua condição de falante e de poder contar com a língua, com a tradição oral, e com sua capacidade de explorá-la analiticamente em sala de aula. Esses textos acadêmicos não atribuem ao professor capacidade de mostrar sozinho que uma receita culinária divide-se em ingredientes e modo de preparo, de ensinar a fazer um bilhete simples, de mostrar que as cantigas têm rimas, etc. Toma-se como fato que só é possível ensinar estes elementos, entre outros tão corriqueiros quanto, sob a regência do livro didático. O que ocorre, então, é a negação de que sejam línguas e culturas válidas o que se pratica nesses abstratos lugares. Quando se reconhece a cultura local, ou ela é colocada no lugar do exótico, do periférico, do curioso, ou ela é vista como restrita, causadora de problemas na aprendizagem da língua e da cultura consideradas legítimas. À semelhança desses posicionamentos, bem conhecidos na produção brasileira, citamos um exemplo extraído de uma pesquisa sobre o ensino de língua portuguesa em Angola. Recomendados a leitura da Carta Primeiro dia de aula, do livro Professora sim, tia não, de Paulo Freire, independentemente da editora. 4 BARZOTTO, Valdir Heitor | 2020 | p. 308-319 315 Discurso e poder: teoria e análise Vemos na dissertação de mestrado de Viti (2012), uma manifestação linguística própria de Angola sendo considerada, desde o título, um problema para o aprendizado da Língua Portuguesa: “Interferência Linguística do Umbundu no Português e Respectiva Aprendizagem”. O exemplo nos interessa por mostrar que, quando o pesquisador não consegue deixar de reconhecer uma língua local, uma cultura própria de determinada comunidade, é possível que ele aceite sua existência, mas a tome como um problema e não como um acréscimo. Note-se que no título, e depois ao longo do trabalho, considera-se que a língua umbundu interfere na língua portuguesa e em seu aprendizado. A palavra ´interferir´ adquire significado muito próximo de ´causar problema´, uma vez que apresentam-se produções de alunos angolanos consideradas deficitárias como consequência da sua condição de falantes de umbundo. Ainda que se possa ler na dissertação a ressalva de que também o português interfere no umbundo, não deixa de ser interessante observar o ambiente textual em que ela aparece. Paralelamente a esta questão, é importante frisar que, no contacto do português com as LNs, a interferência linguística não foi apenas do Umbundu no Português, mas também do Português no Umbundu e noutras LNs. Como refere Weinrich (1975/1976:84, citado em José (2005:77)) “a língua em posição inferior está destinada a sofrer a interferência da outra, hibridar-se e finalmente desaparecer.” Em Angola, ocorreu também uma grande influência do Português no Umbundu. Embora não faça parte da nossa investigação consideramos necessário fazer tal referência. (VITI, 2012, p. 43)5 Chama a atenção o modo como essa ressalva com relação à influência do português no umbundo é introduzida no texto. Primeiro, reconhece-se que houve interferência, em seguida, apoia-se em outro autor que afirma que “a língua em posição inferior (...) destinada a desaparecer”, e conclui-se reafirmando que essa interferência não faz parte da investigação que resultou na dissertação de VITI (ibidem). Apresentado desse modo, pode-se encaminhar o leitor ao entendimento de que o umbundo é uma língua que tende a extinguir-se quase que como uma decorrência natural de haver dominação. Essa afirmação, embora possa servir de alerta para a gravidade do desaparecimento de uma língua, pode não surtir necessariamente efeito pelo fato de ficar, nessa pesquisa, em segundo plano. O leitor poderia ser convocado a uma direção diferente caso a língua local não fosse considerada prejudicial ao aprendizado da língua portuguesa. No entanto, a autora continua alegando que o umbundo causa problemas: as produções escritas realizadas pelos alunos revelam alguns problemas, isto é, insuficiências em termos linguísticos, o que vai enfraquecendo o seu discurso, aspecto que, posteriormente, em situações diferentes se torna evidente na expressão oral. As dificuldades indicadas no que concerne à competência Na bibliografia VITI indica José, T.M.C. (2005). Os empréstimos lexicais das línguas nacionais no português falado em Angola. Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. (Dissertação de Mestrado). Não localizamos a dissertação on line e, portanto, não pudemos verificar a referência de Weinrich. 5 BARZOTTO, Valdir Heitor | 2020 | p. 308-319 316 Discurso, poder e educação: imagens da língua, de seus falantes e ... metalinguística, factor de insucesso nas produções escritas, prendemse com o exposto, anteriormente, no ponto dois em relação a algumas construções frásicas feitas por interferência do Umbundu. (VITI, 2012, p. 46) Na sequência a autora, apoiando-se em citação, insiste em reclamar que os alunos têm dificuldades com o Português Europeu Standard (PES), devido ao uso na escrita do Português Popular Angolano (PPA). As limitações dos alunos têm por causa, essencialmente, a dificuldade de compreensão do PES, na medida em que, de uma maneira geral, os alunos se expressam em PPA. Logo, a sua capacidade de compreensão da Língua Portuguesa é inferior à sua capacidade de expressão, diz Barros (2002:40). Constata-se que os alunos, desde o Ensino Primário até à Universidade, apresentam dificuldades na aprendizagem do Português Europeu Standard (PES), por interferência das línguas de origem bantu.6 (VITI, 2012, p. 46) Com essa postura, a autora confirma o que estamos dizendo ao longo deste texto: quando o local é reconhecido, em casos como esse, frequentemente o é na condição de problema ou de causador de problema. Aos pesquisadores caberia, do ponto de vista que estamos defendendo, reconhecer a existência da língua local e associar-se aos professores na pesquisa e compreensão dessa realidade linguística para depois pensar no que ensinar, sem a pretensão de eliminá-la. Uma das saídas poderia ser o de aceitar e reconhecer como é o português angolano específico da região onde se fala umbundo e ensiná-lo. Reunindo essa postura com o modo como a cultura local é inserida em textos a respeito da realidade brasileira, temos que no Brasil já é possível simplesmente desconsiderar os falares locais – “a professora só tem o livro didático” – enquanto em Angola, onde ainda se escuta cotidianamente as outras línguas em diferentes contextos, reconhece-se a existência, apontam-se os problemas causados para a língua dominante, atesta-se a possibilidade de vir a desaparecer (denúncia ou desejo?) e reafirma-se que este não é o interesse no momento. Considerações finais O discurso sustentado nos textos acadêmicos que vimos estudando, propicia a construção de imagens da língua, dos falantes e do seu ensino: língua materna ruim, inadequada para escrever e que atrapalha a leitura. Sobressai nesse movimento a permanência de enunciados, com os quais nos acostumamos ao longo de nossa história, referentes à alegada dificuldade de latinos e africanos conseguirem êxito na escolarização. É como se nossa condição de latinos ou africanos, na maioria pardos e pretos, nos fizesse ruins para o aprendizado. As instâncias que têm direito de escrever a respeito do trabalho do professor reafirmam nossas dificuldades com uma determinada língua e nossa dificuldade professores que somos - em levar ao aprendizado. Com esta força, retornam para a 6 A referência indicada na bibliografia é Barros (2002). BARZOTTO, Valdir Heitor | 2020 | p. 308-319 317 Discurso e poder: teoria e análise formação dos professores enunciados com direção única, a de que só nos resta trabalhar para efetivar o ensino dessa língua que não aprendemos e não sabemos ensinar e não para reconhecer com que línguas estamos lidando para trabalhar e produzir cultura em sala de aula com ela. Uma vez que tentativas de nos induzir nessa direção persistem, persistimos também reiterando a proposta que fizemos anos atrás, mencionada no início desse texto. Queremos que as instâncias formadoras de professores assumam a problematização e a produção de alternativas de trabalho com os materiais disponíveis e convencionais na formação de professores. Para nós, é muito importante perceber as soluções sobre as orientações de sentidos presentes nos textos usados na formação. Como sugestões para o encaminhamento de uma formação de professores que possa fazer frente aos problemas aqui colocados, propomos que textos produzidos na universidade sejam usados não só como embasamento, mas também como dados para serem analisados no sentido de se verificar que construções estão sendo feitas em sua argumentação. Ou seja, o futuro professor toma estes textos, não só para aprender com o seu conteúdo, mas para verificar com que estratégias seus autores tentam persuadi-lo de que deve mudar sua prática na direção apontada no texto. Nesse sentido, as teorias do texto e do discurso são muito úteis nos momentos de leitura do texto acadêmico na universidade, a fim de que o aluno não seja apenas submetido a ele, mas faça uma leitura mais ativa, mais analítica. Também reiteramos a importância de se inserir a pesquisa em todas as disciplinas de graduação, conforme apontamos acima, para efetivar esse modo analítico de lidar com os textos acadêmicos, localizando sua lacunas, identificando seus propósitos e buscando fazer outras proposições. O desenvolvimento de pesquisas em conjunto entre os professores universitários e os da escola básica, com direito à escrita e publicação por parte destes, também pode ser um caminho. Nestas pesquisas procurar compreender a cultura do aluno e verificar com que abordagens se pode desenvolver o ensino para não negarlhes a cultura e não procurar apenas substituí-la por outra considerada melhor. O melhor a fazer é aceitar sua cultura, reconhecer a cultura híbrida que vamos construindo com os novos contatos e lembrar sempre nossa condição de migrantes, inclusive no campo acadêmico. Referências Bibliográficas ALMEIDA, Sonia. Escrita no Ensino Superior. São Paulo: Paulistana, 2011. BARROS, Agnela. A situação do Português em Angola. In: MATEUS, Maria Helena Mira. Uma política de Língua para o Português. Colóquio de Julho de 1998. Lisboa: Edições Colibri, 2002. BARZOTTO, Valdir Heitor | 2020 | p. 308-319 318 Discurso, poder e educação: imagens da língua, de seus falantes e ... BARZOTTO, Valdir Heitor; BARBOSA, M. V.; SUGIYAMA JUNIOR, E.; EUFRASIO, D. A.; FABIANO, S. (Orgs.). Leitura, escrita e pesquisa em letras: análise do discurso de textos acadêmicos. 1. ed. Campinas: Mercado de Letras, 2014. BARZOTTO, Valdir Heitor; PIETRI, Emerson de. (Org.). Estágio, escrita e formação. 1. ed. 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Todas, todos, todxs: a conceptualização a partir do gênero gramatical em português brasileiro Vivian de Ulhôa Cintra BERNARDO Universidade de São Paulo [email protected] Resumo: Este artigo visa a uma proposta da Linguística Cognitiva para descrever e analisar a construção de referentes em textos a partir do gênero gramatical em Português Brasileiro (PB). O gênero em PB pode ser compreendido mediante os termos “marcado” e “não marcado” (cf. Câmara Jr 1966, 1972, 1975), ou, respectivamente, as categorias “feminino” e “masculino”. Ademais, em PB, o masculino e as noções de “neutro” e “genérico” — gêneros que pretendem expressar, respectivamente, grupos de seres inanimados e grupos com seres de diferentes sexos — frequentemente apresentam a mesma expressão morfológica. Essa coincidência é afetada por uma possível associação de gêneros gramaticais a sexo, conforme indica nosso levantamento bibliográfico (BOJARSKA, 2012; GYGAX et al, 2012; BRAUN et al, 2005). Supusemos, então, que o sufixo –o tende a ser lido como expressão de masculino e o sufixo –a, de feminino, levando algumas pessoas a subverterem as normas para expressarem-se linguisticamente por meio de outras marcas de gênero — como as linguagens não binárias. Para compreender usos como esses, consideramos relevantes certos fenômenos comumente estudados pela Linguística Cognitiva, sobretudo o da conceptualização metonímica e o da metáfora deliberada, investigadas mediante análise qualitativa de um corpus compilado durante o mestrado. Palavras-chave: Gênero gramatical; Referenciação; Metonímia; Linguagem não-binária; Linguística Cognitiva. Introdução Em uma interface entre gramática e texto, este artigo visa a apresentar uma discussão sobre como referentes são construídos, em Português Brasileiro (doravante PB), a partir das escolhas por marcar os gêneros das palavras no feminino, no masculino ou por meio da anulação da vogal que marca gênero, no caso das linguagens não-binárias. No primeiro e no segundo casos, considera-se a possibilidade de haver uma conceptualização metonímica envolvida no processo; no último, trabalhamos com a hipótese de uma metáfora mista deliberada (cf. Steen, 2016; 2017). Sendo assim, neste artigo são expostas, primeiramente, algumas informações sobre o funcionamento do gênero gramatical no português; em seguida, BERNARDO, Vivian de Ulhôa Cintra | 2020 | p. 320-334 321 Discurso e poder: teoria e análise é apresentada a fundamentação teórica sobre metonímia e metáfora, explicitando quais questões são suscitadas a partir da relação entre elas e o gênero em PB; e, por fim, destacam-se algumas possíveis explicações para as questões salientadas ao longo do artigo. Este é originado de uma pesquisa de mestrado na qual foi compilado um corpus parcialmente utilizado aqui e cuja análise foi feita qualitativamente. Essa compilação foi feita a partir das seguintes categorias de concordância, independentemente de plural ou singular: linguagens não binárias em que se empregam i) sufixo –e, ii) sufixo –@, e iii) sufixo –x; feminino genérico; masculino genérico; dupla concordância com feminino primeiro; dupla concordância com masculino primeiro. A busca pelos dados foi feita em redes sociais, textos acadêmicocientíficos e textos de cunho publicitário. 1 A categoria de gênero em PB A categoria de gênero das línguas diferencia classes de palavras a partir de possíveis contrastes entre “masculino”, “feminino” e “neutro”, entre “animado” e “inanimado”, entre “contável” e “incontável”, etc., podendo coincidir, parcialmente, com uma distinção semântica. Em português, por exemplo, a distinção de sexos, em geral, coincide com a respectiva distinção de gêneros gramaticais; assim, a classe de palavras designando machos é gramaticalmente masculina e a classe de palavras designando fêmeas é gramaticalmente feminina — e.g., ‘o gato’ e ‘a gata’. Entretanto, a correspondência de um gênero a uma palavra pode ser arbitrária em outros casos, como se vê, por exemplo, em ‘o prato’ e ‘a felicidade’, situação em que não há motivação semântica para a atribuição dos gêneros. Isso significa que a língua portuguesa emprega gênero gramatical para todos os nomes, inclusive para aqueles que designam conceitos abstratos ou objetos, os quais recebem, invariavelmente, um gênero, que só pode ser feminino ou masculino. Ademais, o gênero como atributo inerente ao nome pode manifestar-se em itens gramaticais relacionados a esse nome, como artigos e adjetivos: (1) gênero feminino A mulher alta DET-FEM SUB-FEM ADJ-FEM (2) gênero masculino O homem alto DET-MASC SUB-MASC ADJ-MASC Dessa forma, embora não haja correspondência direta entre gênero e sexo para todos os nomes da língua, o gênero gramatical empregado nos termos que designam seres humanos costuma estar correlacionado ao sexo do ser em questão (como revelam os exemplos (1) e (2)). Por outro lado, tradicionalmente, fala-se em “flexão de gênero” quando se trata do mecanismo de concordância de gênero em PB, o que implica a ideia, presente, BERNARDO, Vivian de Ulhôa Cintra | 2020 | p. 320-334 322 Todas, todos, todxs: a conceptualização a partir do gênero gramatical ... muitas vezes, na norma padrão (CUNHA & CINTRA, 2008; BECHARA, 2009), de que a categoria de gênero é parte da estrutura da língua e é determinada pelo mecanismo formal de seleção de artigo que acompanha os nomes — de acordo com Bechara (2009), “são masculinos os nomes a que se pode antepor o artigo ‘o’, são femininos os nomes a que se pode antepor o artigo ‘a’” (BECHARA, 2009, p. 131). Essa visão remete a Mattoso Câmara Jr. ([1972] 2004, p. 152) e ao seu “princípio fundamental da morfologia do gênero”, segundo o qual todo nome da língua portuguesa pode ser determinado por um artigo; por extensão, o gênero desse nome se revela, justamente, na flexão do artigo que o antecede. O raciocínio mattosiano foi formulado, inicialmente, em artigo publicado na década de 1960, na revista Estudos Lingüísticos, no qual o autor defende que a flexão de gênero gramatical em português seria definida pela desinência –a (para o feminino) e pelo morfema zero (Ø) para o masculino (CÂMARA JR, 1966, p. 3). Nesse sentido, os sufixos –o e –a de palavras como ‘menino’ ou ‘aluna’, por exemplo, não seriam uma marca de gênero, mas sim vogais temáticas. Para chegar a essa ideia, o autor faz uma análise histórica em que menciona a perda do gênero neutro, desvinculado já no latim de uma correspondência ao critério biológico-sexual; após tal perda, Mattoso Câmara afirma ter sido ainda mais reforçada a arbitrariedade das categorias “feminino” e “masculino”. Para sustentar essa hipótese, ele cita que uma correspondência a esse critério só seria possível para o grupo de substantivos que designam seres do reino animal e, ainda assim, nem todos eles receberiam sufixos coerentes com seu sexo: Aí, há, com efeito, certa correspondência entre sexo e gênero, mas muito longe de ser cabal e coerente. Foi o que teve de admitir a própria gramática tradicional, fazendo uma distinção terminológica entre gênero ‘natural’ e gênero ‘gramatical’ para poder levar em consideração discrepâncias à diretriz semântica que adotou. Ora, se o gênero mesmo para esses termos, que constituem só uma pequena porção do acervo de substantivos da língua, não coincide necessariamente com a diretriz semântica do sexo, é perturbador e contraproducente tomar essa diretriz como ponto de partida para a descrição da categoria substantiva do gênero. (CÂMARA JR, 1966, p. 2). Isso significa que, na lógica de Mattoso Câmara, embora o falante lide constantemente com categorizações que opõem “feminino” a “masculino” no mundo ao seu redor, tais categorizações não influenciariam sua percepção dos conteúdos linguísticos, por serem estes, na visão do autor, dissociados do que é externo à língua. De todo modo, é interessante perceber que, para Mattoso Câmara, a informação linguística não interfere na conceptualização que o falante faz a partir desse conteúdo. A abordagem adotada por Mattoso, canônica até os dias atuais entre diversos gramáticos e linguistas1, explicitada no excerto anterior, mantém como elemento central de análise a dicotomia entre pares opositores. Nessa lógica, que se encerra dentro de um conteúdo estritamente linguístico, evidencia-se uma concepção abstrata 1 cf. POSSENTI; BARONAS, 2006. BERNARDO, Vivian de Ulhôa Cintra | 2020 | p. 320-334 323 Discurso e poder: teoria e análise da língua, na qual o feminino é mera particularização de outro gênero (tido como neutro). O que se pode argumentar, no entanto, é que, independentemente de o falante assumir que há, nos substantivos, um gênero marcado e um não marcado, como propunha Mattoso Câmara, ou de tratar-se de duas classes de gêneros diferentes (masculino e feminino), como defende, por exemplo, Bagno (2012, p. 688), associamos palavras a gêneros gramaticais e a estes, gêneros sociais. Isso é esclarecido pela afirmação de Kehdi (1979): “o povo, em sua linguagem espontânea, cria formas masculinas sempre em -o; p. ex., faz-se corresponder ao feminino coisa o masculino coiso, inexistente na língua culta. Essas observações conduzem-nos à conclusão de que o -o está intimamente associado à noção de masculino” (KEHDI, 1979, p. 317). Entende-se disso que os sufixos –o e –a como estratégias de marcação dos gêneros masculino e feminino, respectivamente, são produtivos na língua portuguesa. Corroboram essa análise os dados de aquisição do PB como língua materna levantados por Figueira (2001), que apresentaremos brevemente. No artigo em questão, a autora se propõe a discutir, principalmente, em que momento são registradas as primeiras manifestações de reflexividade linguística na fala infantil — em particular, quando se vislumbram situações em que a criança se volta para o que disse ou para o que outra pessoa disse, produzindo modificações que afetam o gênero gramatical das palavras —, e o que isso representa em termos da relação da criança com a linguagem. O estudo em questão foi realizado longitudinalmente, com crianças monolíngues de 2 a 6 anos de idade adquirindo o PB como primeira língua. A autora utilizou dados de produção espontânea, alguns deles registrados em diários pelos pais e outros gravados em áudio, ao longo de três anos2. Após uma descrição inicial do que a literatura teórica traz acerca da concordância de gênero em PB, Figueira (2001, p. 106) faz uma provocação à ideia de que o conteúdo do gênero de entidades abstratas estaria praticamente “evaporado” (CÂMARA JR, 1975, p. 78), e propõe reanalisá-la após apresentar seus dados de aquisição. Para tanto, a pesquisadora ressalta a importância do “erro” (ou “marcação divergente de gênero”), algo que merece atenção e privilégio metodológico, por revelar informações importantes sobre o conhecimento infantil da língua. Os primeiros dados que a autora apresenta que nos chamam a atenção advêm de diários: (3) (J brinca de fazer entrevistas, como se fosse o repórter na televisão.) M: Eu tava perguntando se ia sair ou não a reportagem, Ju. E você é o repórter. J: (Levantando a voz) Reporta. M: (Rindo.) “Reporta”? Por que “reporta”? J: Por que reporta é mulher. Que eu não quero ser homem. Eu sou reporta, vai. (D - 4;6.1) (FIGUEIRA, 2001, p. 111) (4) (A e J, as duas irmãs, ouvem um programa de auditório na tevê; a certa altura o apresentador dirige-se ao auditório com a saudação: Bom dia!) A: (A mais velha.) Bom dio! Para identificar as pessoas envolvidas nos relatos fornecidos em Figueira (2001), manteremos a notação definida por essa autora: iniciais dos nomes das crianças para indicá-las e M para designar a mãe. 2 BERNARDO, Vivian de Ulhôa Cintra | 2020 | p. 320-334 324 Todas, todos, todxs: a conceptualização a partir do gênero gramatical ... (J, a mais nova, faz uma intervenção, “corrigindo” a irmã.) J: Bom dio é para homem. Bom dia é para mulher. (D - 5;2.17) (FIGUEIRA, 2001, p. 112) Em (3), J não só marca formalmente, na terminação de “repórter”, um substantivo que não sofre flexão, o –a que manifesta sua condição de menina, como também justifica sua produção: “porque reporta é mulher”. Isso evidencia que a identificação entre a flexão de gênero no feminino e o significado dessa flexão no mundo é consciente para essa criança. Ademais, quando a autora parte para a análise do segundo diálogo, ela conclui que, como a maioria das palavras masculinas que se deixam antepor por adjetivos como “bom” são terminadas em –o, A responde ao cumprimento “bom dia” fazendo uma alteração na palavra “dia” e produzindo-a como “dio” (FIGUEIRA, 2001, p. 112). Outra razão para isso seria de que tal cumprimento fora proferido por um homem e, na lógica da criança, deveria, então, ser feito no masculino. Tendo isso em vista, a autora ressalta que há uma relação entre gênero e sexo que emana dessas ocorrências, algo interessante para pesquisadores que desejam traçar o percurso que a criança segue na aquisição desse subsistema gramatical. Com relação a isso, parece-nos que, se a comparação de Câmara Jr (1972) entre flexão de gênero no nome e flexão de número ou pessoa no verbo3 fosse coerente, a criança não demonstraria dar sua própria interpretação para as marcações de masculino e feminino (como também não o faz para outras categorias de concordância). Ela só se corrige ou se justifica quando emprega o gênero gramatical, o que demonstra que ela é influenciada pela atribuição semântica muito mais do que pela atribuição sintática no seu processo de aquisição do traço de gênero. Por conseguinte, é comum encontrarmos acusações de que a língua portuguesa é “sexista”, dada a predominância de formas masculinas nas concordâncias de gênero. Quando nos referimos a um grupo composto por várias mulheres e apenas um homem, fazemos a concordância no masculino, ocultando a referência às mulheres presentes naquele contexto. Mesmo no inglês, que não expressa gênero na concordância, encontram-se questionamentos sobre construções androcêntricas que deixam implícita a normatização do gênero masculino na sociedade. A título de ilustração, recentemente ganhou visibilidade o caso da mudança nas sinalizações de obras na eletricidade das ruas da Nova Zelândia. O governo alterou para Line Crew os dizeres que indicavam a presença de pessoas trabalhando com fiação elétrica, depois que uma menininha escreveu para o departamento responsável questionando a escolha por Linemen nas placas4. Além disso, há pessoas que se consideram não-binárias, isto é, pessoas que, independentemente da realidade biológica, não se identificam subjetivamente como mulheres nem como homens, criando uma questão para a linguagem: como referir-se linguisticamente a elas? Entre as formas linguísticas escolhidas por muitas delas, estão “Na realidade, o gênero é uma distribuição em classes mórficas, para os nomes, da mesma sorte que o são as conjugações para os verbos” (CÂMARA JR apud FIGUEIRA, 2001, p. 107). 4 Disponível em: https://www.bbc.com/news/world-asia-45015442. Acesso em 15 de janeiro de 2019. 3 BERNARDO, Vivian de Ulhôa Cintra | 2020 | p. 320-334 325 Discurso e poder: teoria e análise as chamadas “linguagens não binárias”, que consistem na substituição do sufixo que indica gênero por símbolos que eliminam essa indicação, como no dado a seguir: Figura 1. Cartaz afixado no Instituto de Química da USP em fevereiro de 2019 Fonte: foto registrada pela autora. 2 A construção de referentes como uma conceptualização metonímica Tendo tudo isso em vista, vale ainda o questionamento: quanto tempo se gasta na vida falando de pessoas e seres vivos, em geral, e quanto se gasta falando de objetos, fenômenos, sentimentos? Levando em consideração que a frequência de ocorrência de um item gramatical interfere na compreensão do falante sobre esse item (BYBEE, 2010), é possível assumir que o fato de falarmos muito sobre pessoas, na vida cotidiana, leva-nos a carregar a correlação entre sexo e gênero gramatical para a marcação de gênero como um todo. Diante disso, é interessante observar a conceptualização decorrente do fenômeno de referenciação a partir dos gêneros gramaticais “feminino”, “masculino” e neutralizado pela linguagem não-binária. Ao considerarmos que tal fenômeno diz respeito a uma atividade discursiva, precisamos ter em mente que a realidade é construída tanto por meio da forma como se dá a nomeação dos seres no mundo quanto pela maneira como ocorre a interação sociocognitiva com ele. A partir disso, recorremos ao conceito de metonímia conceptual para explicar como o gênero é usado para referenciar algo. A conceptualização é o processo cognitivo dinâmico relativo à construção de sentido pelo sujeito produtor do conteúdo e da reconstrução por quem o recebe. Diferentes perspectivas podem ser utilizadas na conceptualização, e uma delas consiste no fornecimento de acesso de um item conceptual a outro dentro de um mesmo domínio. Nesse caso, trata-se de uma conceptualização metonímica. No trabalho pioneiro de Lakoff & Johnson (2003 [1980], p. 87), lê-se que “a metonímia (...) tem, principalmente, uma função referencial, isto é, ela permite que se use uma entidade para representar outra” (tradução nossa). Assim, o que tentamos verificar, ao longo do mestrado, foi a possibilidade de se conceber o masculino genérico como instanciação linguística de uma metonímia. Afinal, se partimos dessa noção de metonímia que implica que uma entidade represente outra dentro de um só domínio BERNARDO, Vivian de Ulhôa Cintra | 2020 | p. 320-334 326 Todas, todos, todxs: a conceptualização a partir do gênero gramatical ... (HOPPER; TRAUGOTT, 1993), isso também poderia explicar o masculino genérico, desde que o entendêssemos como o elemento que figura no lugar do feminino e/ou do masculino específico, sendo todos esses partes de um mesmo domínio. Ruiz de Mendoza Ibáñez (2003) complexifica a discussão sobre metonímia defendendo uma atualização de suas definições que considere a natureza da relação entre a fonte e o alvo. A saber, o alvo é o domínio que se deseja descrever e a fonte é o domínio em termos do qual o alvo é descrito. Ao defender esse raciocínio, o autor rechaça que se simplifique a metonímia como sendo a relação entre a parte e o todo. Ainda que essa relação continue sendo metonímica, ele prefere definir a metonímia como fruto da relação entre o “domínio” completo (chamado de “matriz”) e um de seus “subdomínios”, pois isso torna mais claro o percurso seguido na interpretação da expressão metonímica. Ruiz de Mendoza Ibáñez e Díez Velasco (2001) exemplificam isso com o seguinte: quando uma metonímia fonte-no-alvo fornece o referente de um pronome anafórico, a referência é feita ao domínio-alvo da metonímia — ou seja, o domínio matriz. Isso é exemplificado pela frase i) ‘The sax won’t come today; he/*it has the flu’, mostrando que o uso de ‘he’ seria compreensível, ao passo que ‘it’ não seria convencional, mostrando que o objeto é usado para falar da pessoa. Já em casos de alvo-na-fonte, é o domínio-fonte que é selecionado para compor a referência anafórica. Os autores ilustram esse raciocínio com a frase ii) ‘She loves Shakespeare; she reads him/*it a lot’; nesse exemplo, a pessoa é usada para falar do objeto.5 Portanto, é possível chegar a uma generalização segundo a qual metonímias fonte-no-alvo funcionam a partir de expansões do domínio — isto é, ao invocar um de seus subdomínios, recebemos pleno acesso a todo o domínio matriz . Ao mesmo tempo, metonímias alvo-na-fonte nos levam a reduzir o domínio — afinal, apenas o subdomínio da matriz é relevante nesses casos (RUIZ DE MENDOZA IBÁÑEZ; DÍEZ VELASCO, 2001). Retomando os exemplos fornecidos por esses autores, em i), o subdomínio “sax” nos fornece acesso a algo que é mais amplo, que é o homem que toca esse instrumento (componente do domínio-alvo); já em ii), “Shakespeare” compõe o domínio maior, ao passo que, para compreender a anáfora, só nos interessa o que nele é mais específico (suas obras). A partir disso, percebe-se que metonímias alvo-na-fonte fazem uso de um domínio conceptual bem definido (o domínio matriz) para fazerem referência a um subdomínio que não necessariamente é delimitável com clareza. O resultado disso é que esse tipo de metonímia se revela um recurso comunicativo muito eficiente sempre que o falante é incapaz de expressar o referente ou de determiná-lo em sua natureza. Entendemos desse raciocínio que há, no domínio matriz, uma genericidade que favorece a comunicação, pois livra os falantes de terem que conhecer todas as especificidades possíveis do subdomínio em questão para conseguirem compreender o conteúdo do que se diz. Nesse sentido, parece-nos plausível conceber o masculino genérico como aquilo que compõe o domínio matriz e pode referir masculino Optamos por reproduzir os exemplos originais sem traduzi-los, pois a distinção entre ‘he’ e ‘it’ do inglês não seria perceptível com o uso de “ele” em português. 5 BERNARDO, Vivian de Ulhôa Cintra | 2020 | p. 320-334 327 Discurso e poder: teoria e análise específico, gênero desconhecido, feminino específico, ou uma resolução de concordância6 no subdomínio. Além disso, Langacker (2009, p. 46) afirma que “a gramática é basicamente metonímica, no sentido de que a informação explicitamente fornecida por meios convencionais não estabelece sozinha as conexões precisas apreendidas pelo falante e pelo ouvinte quando uma expressão é usada” (tradução nossa). De indicações explícitas emanam conceitos que apenas fornecem acesso a elementos com potencial de ser conectados de modos específicos. Dessa forma, tentamos entender a expressão do gênero gramatical na língua como uma metonímia que nos fornece acesso a ideias mais abstratas sobre “feminino”, “masculino”, “neutro” ou “genérico”. Ademais, essa hipótese parece sustentar-se também no que declara Barcelona (2003): uma metáfora ou uma metonímia conceptual pode, convencionalmente, ser ativada ou representada por um morfema, uma palavra, um sintagma, uma oração, uma frase, um texto inteiro, por gestos e por outros tipos de comportamento. No caso do gênero, ela surgiria de um morfema. Nesse sentido, o que propomos como possibilidade de análise é que haja padrões metonímicos sendo utilizados em conexão com padrões morfológicos, em uma aproximação com algo que outros pesquisadores já fizeram recentemente, para outros tipos de morfemas, tanto em PB quanto em outras línguas (PANTHER; THORNBURG, 2003; RADDEN, 2009; BASILIO, 2011) Diante disso, é válido considerar o que Langacker (2009) define como “ponto de referência”: a entidade representada pela expressão metonímica “serve como ponto de referência, fornecendo acesso mental ao alvo desejado”. Tendo em vista esse conceito, a expressão do gênero gramatical em mais um de seus aspectos poderia ser concebida como metonímica: marca-se com “feminino” ou “masculino” um sintagma como, por exemplo, “a médica”, em que tanto o determinante quanto o sufixo –a femininos funcionariam como pontos de referência para fornecer acesso mental à entidade mais abstrata “mulher” e, num nível ainda mais superior, a “pessoa”. Para investigar essa hipótese, consideremos os três textos a seguir: (5) 6 Cf. Corbett (1991). BERNARDO, Vivian de Ulhôa Cintra | 2020 | p. 320-334 328 Todas, todos, todxs: a conceptualização a partir do gênero gramatical ... (6) (7) Sabendo que o e-mail do exemplo (5) se destinava a um grupo formado por mulheres e homens conjuntamente, a resolução de concordância foi feita no masculino. Logo, se na metonímia focamos em um aspecto da entidade e o elegemos como suficientemente representativo para atingir o significado implícito no conteúdo, então o gênero masculino parece ser o eleito para representar grupos de gêneros quaisquer. Em decorrência disso, temos as diferentes maneiras de expressar verbalmente o gênero exigido pela gramática, e cada uma tem diferentes implicações quanto à construção de referentes. Entre essas maneiras estão as linguagens nãobinárias, como no exemplo (7). Outra possibilidade, há mais tempo consolidada na língua escrita, é manter a forma masculina no paradigma e incluir entre parênteses a possibilidade de concordância no feminino (exemplo (6)). Podemos refletir, então, sobre quais são as diferenças suscitadas do contraste semântico entre todas essas possibilidades de concordância. Ao considerarmos um texto que faz referência a um grupo formado por diversos indivíduos de ambos os sexos, o perfilamento pode ser feito de todo o conjunto, ou de grupos dentro desse conjunto. Exemplifiquemos com a frase “Para xs BERNARDO, Vivian de Ulhôa Cintra | 2020 | p. 320-334 329 Discurso e poder: teoria e análise professorxs que vão votar no Bozonazi, desejo estudo e vergonha na cara”, extraída do dado apresentado na figura 7. Escrita com masculino genérico, ela ficaria “Para os professores que vão votar no Bozonazi, desejo estudo e vergonha na cara”; nesse caso, sabendo que no referente há homens e mulheres, há uma dupla possibilidade de perfilamento com o uso do masculino genérico em “os professores”. Uma delas é o perfilamento do grupo todo, incluindo fêmeas e machos (figura 2a), e a outra é o perfilamento somente do grupo de machos, excluindo-se as mulheres (figura 2b). Se escolhêssemos nos expressar por “Para os(as) professores(as) que vão votar no Bozonazi, desejo estudo e vergonha na cara”, temos a seleção dos integrantes homens de um lado, e das integrantes mulheres de outro (figura 3). Porém, ao utilizarmos formas inovadoras como em “Para xs professorxs que vão votar no Bozonazi, desejo estudo e vergonha na cara”, muda-se o potencial referencial, anulando-se a diferença de sexo. Dessa maneira, a operação cognitiva passa a ser sobre outro tipo de entidade (figura 4), dado que há uma indeterminação implicada nessa forma de expressão, e todo o conjunto de integrantes é assim perfilado. Figura 2a: perfilamento do conjunto todo, incluindose tanto homens quanto mulheres. Figura 2b: perfilamento do subconjunto de homens, excluindo-se as mulheres desse processo. Figura 3: perfilamento do grupo de homens e do grupo de mulheres separadamente. Figura 4: perfilamento do conjunto todo, cujos elementos usados na referenciação tiveram seu gênero apagado. Homens Mulheres Gênero neutralizado A diferença entre os esquemas ilustrados nas figuras 2ab e 4 é que a interpretação de masculino específico que o primeiro caso possibilita fica excluída no outro caso, pois é anulada a predominância de um gênero específico que represente o conjunto como um todo. Entretanto, a anulação ocorre para o perfilamento do grupo de mulheres também, diferentemente do que ocasiona a situação ilustrada pela figura 3, em que ocorre o perfilamento de ambos os grupos — constituídos, respectivamente, de referentes homens e referentes mulheres. BERNARDO, Vivian de Ulhôa Cintra | 2020 | p. 320-334 330 Todas, todos, todxs: a conceptualização a partir do gênero gramatical ... Isso significaria que o processo de metonimização decorrente do uso do masculino genérico é anulado pela linguagem não binária, i.e., usá-la é não metonimizar. Contudo, essa não metonimização tem implicações para o processo de referenciação, que incluem, por exemplo, a anulação desses referentes. A primazia masculina que a interpretação de masculino motivado (Fundo) vinculada ao uso do masculino genérico (Figura) ocasiona se esvai junto com qualquer tentativa de salientar o feminino e seus referentes. 3. A construção de referentes como metáfora mista deliberada Diferente dos casos anteriores é o uso do feminino na autorreferência feita por homens homossexuais. Em comunidades LGBTQ, isso parece cada vez mais frequente, e pode ser observado no dado a seguir: (8) Com relação a esse uso, verifica-se um mismatch no processo de perfilamento, pois, para o referente homem, é empregada a concordância no feminino; isso não só é plenamente compreensível, sem gerar confusões para a comunicação, como também aciona um novo significado sobre o sujeito: sua sexualidade passa a ser vista como não-heterossexual. Isso significa que há uma mudança na categoria em que ocorre a metonímia, indicando que, possivelmente, o processo deixa de ser metonímico e passa a ser metafórico. Para tentar explicar melhor esse fenômeno, recorremos aos estudos sobre metáfora conceptual e, mais especificamente, metáfora deliberada. Em termos gerais, a metáfora conceptual é um mecanismo cognitivo por meio do qual domínios da experiência mais abstratos e intangíveis se conceptualizam em termos do que é mais concreto e acessível. Então, a essência da metáfora é a compreensão e a experienciação de uma coisa a partir de outra. Nessa lógica, o gênero feminino materializado na língua estaria no domínio-fonte, que é mobilizado no mapeamento das correspondências com a orientação sexual do sujeito, componente do domínioalvo. Porém, nessa conceptualização, ocorre a mudança de categoria durante o mapeamento. Por conta disso, a fim de dar conta desse fenômeno, recorremos à Teoria da Metáfora Deliberada, segundo a qual metáforas mistas são produzidas deliberadamente com fins retóricos. BERNARDO, Vivian de Ulhôa Cintra | 2020 | p. 320-334 331 Discurso e poder: teoria e análise Metáforas mistas são aquelas em que são utilizados discursivamente domínios de origens diferentes para compor a mesma expressão metafórica. Steen (2016) alega que domínios conceptuais distintos são evocados como referentes estranhos no discurso por mudanças intencionais de perspectiva, as quais se constituem como metáforas deliberadas. Por causa desse uso metafórico deliberado, a imagem metafórica, que é destoante, pode ser representada como um referente distinto na mente das pessoas e estar disponível por tempo suficiente para produzir um choque potencial com a próxima imagem metafórica. Esse choque ocorre se ela for próxima e, ao mesmo tempo, incompatível o suficiente a ponto de ser percebida, evocando um domínio conceptual diferente. Isso pode ser conferido no exemplo: ‘the economic cake grew fast enough in these years’ (JUDT, 2005, p. 266 apud STEEN, 2016, p. 115, grifos nossos). Pela interpretação do autor, um bolo não cresceria (por causação interna), apenas aumentaria de tamanho conforme fosse assado. Em outro artigo, Gerard Steen esclarece: (…) Metáforas deliberadas são aquelas que chamam a atenção para o seu domínio-fonte como um detalhe à parte para a atenção da memória de trabalho, ao passo que metáforas não deliberadas não fazem isso. (...) (STEEN, 2017, p. 7, tradução nossa). Aproximando a conceituação de Steen da nossa hipótese de análise, teríamos que sexo e orientação sexual seriam referentes distintos decorrentes do processo de metáfora deliberada. Isso suscitaria detalhes na memória de trabalho que, até então, não eram salientes — detalhes sobre a orientação sexual do falante, no caso. Sendo assim, durante a conceptualização metafórica, o domínio do feminino seria acionado para referenciar o domínio de machos, gerando a mudança da categoria “sexo” para a categoria “orientação sexual” em um mapeamento de domínios cruzados7. Considerações finais Diante disso tudo, tentamos compreender como a construção de referentes masculinos, femininos e com sexo neutralizado é feita ao longo dos textos, gramaticalmente, e quais são as suas implicações semântico-cognitivas. Para isso, nossas discussões bibliográficas e teóricas foram construídas, articuladas e selecionadas de modo a manterem um alinhamento com a Linguística Cognitiva, como é o caso do estudo da metonímia conceptual e da metáfora mista deliberada, apresentadas brevemente neste artigo. Como decorrência dessas análises, chegamos à hipótese de que há diferenças relevantes na conceptualização feita pelos falantes de cada uma das formas, com as quais vimos trabalhando, de marcar textualmente o gênero nos nomes em PB. Nesse sentido, as linguagens não-binárias não parecem dar conta, cognitivamente, de realçar a mulher como referente possível para construções em que haja resolução de concordância. Isso porque o apagamento do gênero é completo, i.e, é feito tanto para o masculino quanto para o feminino. De acordo com a DMT, há um encadeamento analítico formado por cinco passos que devem ser verificados em sequência para confirmar se uma metáfora é, de fato, uma metáfora mista. Explicações acerca de como esses cinco passos podem ser identificados na análise do feminino para referenciar homens não-heterossexuais podem ser encontradas em Bernardo (2019). 7 BERNARDO, Vivian de Ulhôa Cintra | 2020 | p. 320-334 332 Todas, todos, todxs: a conceptualização a partir do gênero gramatical ... Por fim, consideramos que há uma alta relevância no tema aqui abordado, tanto acadêmica quanto social. Em um contexto sócio-histórico marcado por questionamentos acerca da ordem hegemônica e, ao mesmo tempo, por um alto grau de integração entre indivíduos de diferentes regiões do globo, surgem reivindicações por novas maneiras de expressar-se em línguas como o PB — maneiras estas que contemplem as individualidades e as lutas sociais de cada um8. É nesse cenário que vemos críticas feministas a modos de expressão que utilizam irrestritamente o masculino em referência a grupos de ambos os sexos e críticas queer a modos de expressão que reconhecem apenas o binarismo homem-mulher na língua e na sociedade em que ela se insere. Há quem defenda, diante desse panorama, que existem efeitos ideológicos na língua corroborando o desempoderamento feminino (LAKOFF, 2004; EHRLICH et al, 2014). Sob uma perspectiva feminista, o opressor arrogar-se da língua, restituindo à mulher apenas as sombras necessárias para que ela se insira em uma sociedade patriarcal, pode ser um recurso poderoso. Diante disso, este artigo visa englobar um debate atual, que surge de demandas de grupos sociais a cada dia mais proeminentes e que, no entanto, ainda não recebeu suficiente atenção de pesquisadores, carecendo, pois, de maiores investigações científicas. É isso que a presente pesquisa tenta contemplar por meio do aparato científico da Linguística Cognitiva — corrente teóricometodológica também em amplo desenvolvimento na atualidade. Referências bibliográficas BAGNO, Marcos. Gramática Pedagógica do Português Brasileiro. São Paulo: Parábola Editorial, 2012. BARCELONA, Antonio. Introduction: the cognitive theory of metaphor and metonymy. In: BARCELONA, Antonio (Org). Metaphor and Metonymy at the crossroads: a cognitive perspective. Berlin & New York: Mouton de Gruyter, 2003. BASILIO, Margarida Maria de Paula. O papel da metonímia na morfologia lexical. ReVEL, edição especial, n. 5, 2011. BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 37 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009. 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RUIZ DE MENDOZA IBÁÑEZ, Francisco J. The role of mappings and domains in understanding metonymy. In: BARCELONA, Antonio. (Org.). Metaphor and Metonymy at the Crossroads: a cognitive perspective. Berlin & New York: Mouton de Gruyter, 2003. RUIZ DE MENDOZA IBÁÑEZ, Francisco J.; DÍEZ VELASCO, Olga I. High-level metonymy and linguistic structure. Sincronía, Jalisco, v. 6, n. 20, paginação indeterminada, 2001. STEEN, Gerard. Mixed metaphor is a question of deliberateness. In: GIBBS, Raymond. Mixed metaphor. Amsterdam & Philadelphia: John Benjamins, 2016. STEEN, Gerard. Deliberate Metaphor Theory: basic assumptions, main tenets, urgent issues. Intercultural Pragmatics, v. 14, n. 1, p. 01–24, 2017. Como citar BERNARDO, Vivian de Ulhôa Cintra. Todas, todos, todxs: a conceptualização a partir do gênero gramatical em português brasileiro. In: GONÇALVES-SEGUNDO, Paulo Roberto; ARAES, Célia Regina; CASTANHEIRA, Claudia; ISOLA-LANZONI, Gabriel; PENITENTE, Natalia; WEISS, Winola (orgs). Discurso e poder: teoria e análise. São Paulo: FFLCH/USP, 2020, p. 320-334. DOI: 10.11606/9786587621241 BERNARDO, Vivian de Ulhôa Cintra | 2020 | p. 320-334 335 Discurso e poder: teoria e análise Construção discursiva de identidades socioculturais dos líderes de iniciativas do ensino de português nas igrejas evangélicas chinesas em São Paulo Xiang ZHANG Universidade de São Paulo [email protected] Resumo: Este texto remete-se aos meus primeiros passos no estudo da imigração chinesa no Brasil. Nas últimas duas décadas, constantes fluxos migratórios chineses têm sido registrados em São Paulo. A primeira necessidade, desde sua chegada, é a aprendizagem da língua local. Por conseguinte, têm surgido diversas iniciativas do ensino de português, entre as quais se destacam essas empreendidas expressivamente pelas igrejas evangélicas na cidade de São Paulo. Com o objetivo de compreender a dinâmica dessas iniciativas, assim como as interações que ocorrem neste contexto, procuramos interpretar os posicionamentos dos líderes a partir das pistas de contextualização identificadas no seu discurso frente a essas iniciativas, de forma a refletir sobre a sua construção de identidades socioculturais. A reflexão se baseia no arcabouço teórico-metodológico de Sociolinguística Interacional e Microanálise Etnográfica. Os resultados mostram que os líderes se posicionam como atores sociais preocupados com uma prática solidária e de letramento religioso e a língua portuguesa é representada com uma perspectiva mais ampla, como espaço de interação, integração e acolhimento. Palavras-chave: Construção discursiva; Identidades socioculturais; Ensino de Português; Imigrantes chineses; Brasil. Introdução Nas últimas duas décadas, a comunidade chinesa no Brasil tem se ampliado significativamente com os constantes fluxos migratórios das diversas regiões da China para o Brasil, especialmente a São Paulo, o destino privilegiado pelos chineses, por conta da sua economia dinâmica, que proporciona mais oportunidades. Por outro lado, essa expressiva presença dos imigrantes chineses recém-chegados implica uma maior necessidade de aprender o português para sua melhor adaptação inicial à nova vida no Brasil. Em relação às atividades de imigrantes chineses em São Paulo, convém sublinhar sua dedicação ao comércio, de forma a abrir lojas de vestuários, produtos eletrônicos, acessórios e afins nas regiões de 25 de março, Brás e Pari (FREIRE E SILVA, ZHANG, Xiang | 2020 | p. 335-344 336 Construção discursiva de identidades socioculturais dos líderes ... 2018). Assim, surgiram várias iniciativas de ensino de português para esses chineses, empreendidas por diferentes entidades, tais como associações regionais, escolas comunitárias e outras instituições de diversas naturezas. Entre elas, as iniciativas assumidas pelas igrejas evangélicas na comunidade chinesa parecem ser muito atuantes uma vez que têm sido muito procuradas por chineses . É neste contexto que, quando não estão no trabalho, muitos chineses buscam aprender português e conhecer cultura brasileira. De acordo com a pesquisa de campo do autor do presente trabalho, realizada entre abril e agosto de 2018, quase todas as igrejas evangélicas chinesas existentes em São Paulo já haviam tido ou estavam ainda tendo curso de português para imigrantes chineses, seja a longo prazo ou tentativas de curto período. Tendo obtido autorização e cooperação de 5 igrejas que, naquela época, estavam realizando cursos de português a chineses recém-chegados, conduzimos a pesquisa com objetivo de descobrir como se configura o espaço dessas iniciativas e quais traços socioculturais são construídos pelos envolvidos, especialmente os líderes neste espaço. Mais especificamente, o que representa o português nessas iniciativas para eles e quais são seus posicionamentos em relação à sua liderança nessas iniciativas. Para tal, entrevistamos 6 líderes das iniciativas derivadas de 5 igrejas em São Paulo. Por questões éticas e para facilitar a leitura da análise, denominamos cada igreja com uma letra maiúscula e adotamos pseudônimos para os líderes. Inserimos aqui um quadro que constitui esses elementos. Entretanto, nas seguintes seções, serão apresentados alguns exemplos com os discursos do líder Dan e da líder Chang, da Igreja A, e a líder Yang, da Igreja D. Quadro 1. Igrejas e líderes participantes na pesquisa Igrejas Líderes A Dan e Chang B Qiang C Lili D Yang E Jiajun Fonte: elaboração própria 1 Fundamentação teórica e metodológica Tendo delimitado os objetivos e o objeto do trabalho na introdução, apresentamos agora a fundamentação teórica e metodológica que orienta a nossa pesquisa. Adotamos uma abordagem sociocultural do discurso – Sociolinguística Interacional (GOFFMAN, 2002, 2014; GUMPERZ, 1982; RIBEIRO; GARCEZ, 2002; SCHIFFRIN, 1996; PEREIRA, 2002) –, que inter-relaciona língua, cultura e sociedade. Nessa perspectiva, consideramos que a língua é o lugar da interação humana e a fala em interação é socialmente organizada como “um encontro social” (RIBEIRO; GARCEZ, 2002, p. 19). Nesse encontro, a língua é produzida por um sujeito que situa seus determinados posicionamentos em certas situações, direcionados a outro(s) sujeito(s), por isso, os sentidos socioculturais são construídos constantemente nas interações, de forma que possam refletir a construção de identidades socioculturais de sujeitos. Para perceber melhor as intenções singulares ou pressuposições contextuais assinaladas na interação, é preciso olhar “as pistas de contextualização” ZHANG, Xiang | 2020 | p. 335-344 337 Discurso e poder: teoria e análise (GUMPERZ, 1982). Tais pistas podem aparecer sob várias manifestações, como escolha de palavras, repetição de fala, entonação até o uso de gestos. É através dessas pistas de contextualização, no caso do presente trabalho, particularmente de pistas verbais dispostas no discurso dos sujeitos, que se interpretam os posicionamentos dos líderes frente às iniciativas de ensino de português às quais eles se dedicam ativamente. Além das contribuições fundamentais da Sociolinguística Interacional, a visão de Moita Lopes (2006) em termos do discurso e identidade contribui imensamente às reflexões sobre a construção de identidades socioculturais no contexto da migração. Segundo o pesquisador, o discurso tem sido cada vez mais representado como um processo de construção sociocultural à medida que, por um lado, o sentido é um construto interacional, intrínseco à língua/ao discurso e, por outro, a construção sociocultural de sentidos situa-se essencialmente em circunstâncias sócio-históricas particulares, mediada por práticas discursivas específicas nas quais os sujeitos estão posicionados em relações de poder (MOITA LOPES, 2006, p. 304). O discurso como uma construção sociocultural é, portanto, percebido como uma forma de ação no mundo e uma prática social fundamental pela qual se realiza o exercício de poder e (re)produção de identidades do sujeito. Nessa perspectiva, a análise da dinâmica de interações/discursos torna-se possível para estudar a vida humana e conhecer a realidade em que nos engajamos. No caso específico desse trabalho, parece-nos significativo analisar o discurso desses líderes das iniciativas para entender melhor o espaço e as representações da língua portuguesa nesse espaço. A partir disso, podese conhecer mais profundamente a comunidade imigrante chinesa no Brasil, que é ainda pouco explorada por pesquisadores na área de linguagem. Metodologicamente, é utilizada neste trabalho a Microanálise Etnográfica (ERICKSON, 1996) de natureza qualitativa e interpretativa, que nos possibilita enxergar e entender a interação como um ecossistema. The central concern of ethnographic microanalysis is with the immediate ecology and micropolitics of social relations between persons engaged in situations of face to face interaction (ERICKSON, 1996, p. 283)1 Essa abordagem enfatiza, então, dois aspectos essenciais no tratamento de dados. Um se refere ao enquadramento local, isto é, a construção situacional do uso da língua numa interação, e o outro se preocupa com as relações que os sujeitos constroem de modo emergente para se engajar na interação. Dessa forma, os sujeitos são considerados como atores sociais que (re)negociam os seus valores, crenças, papéis, assim como identidades, a todo momento na interação, transformando o mundo dinamicamente. Os estudos, sob essa perspectiva, procuraram compreender o que os sujeitos realmente estão fazendo em interações face a face ao criar contextos uns para os outros e como esses contextos locais influenciam e são influenciados pelos elementos sociais, cultuais, identitários em uma esfera maior. Tradução nossa: “A preocupação central da microanálise etnográfica é com a ecologia imediata e a micropolítica das relações sociais entre pessoas envolvidas em situações de interação face a face” (ERICKSON, 1996, p. 283). 1 ZHANG, Xiang | 2020 | p. 335-344 338 Construção discursiva de identidades socioculturais dos líderes ... 2 As representações da língua portuguesa numa perspectiva mais ampla Os sentidos simbólicos que os líderes atribuem para a língua portuguesa constituem os seus posicionamentos frente às iniciativas de ensino de português sob a sua liderança. Esses sentidos podem ser um fator pertinente para essa prática. No que se refere ao processo de fundação das iniciativas de ensino de português para chineses, vamos analisar de que forma os líderes se colocam. Vejamos o exemplo 12. Exemplo 1: líder Dan/Igreja A Pesquisador Dan 001 002 003 004 005 006 007 008 009 010 011 012 013 Bom dia. É:::gostaria de saber a sua história de imigração, um pouco, né? E também sobre o curso de português lá na igreja. Então, você pode/pode me contar com pouco sobre a sua história de imigração para o Brasil? Como que foi? Quando você veio? Você veio de qual lugar da China? Hum. Ah:::então, eh:::eu vim pro Brasil né em 2001 e cheguei aqui sem falar nada de português né, na verdade. Foi uma época muito difícil. E quando cheguei, né, já tinha que trabalhar né, no caso, na rua. Eu não tive oportunidade para estudar. Mas depois de um tempinho, né, percebi que/que eu tinha que aprender, né, falar português e tudo mais, e comecei procurar escola, né. Naquela época, isso tava o primeiro colegial. E foi bem difícil, foi bem difícil a escola, porque praticamente não entendia nada, não falava nada, não escutava nada. Então, é::: tudo isso MUDOU por causa que eu encontrei uma escola que dava aula para os estrangeiro, chinês assim, né, aula de português no caso. Então, >depois comecei fazer escola, trabalhar assim, < então, né, fui aprendendo. Neste exemplo, o líder Dan conta um pouco da sua história de imigração para o Brasil e, nela, relata a sua experiência inicial no país de acolhimento destacando a barreira das línguas. Quando chegou ao Brasil, afirma que veio “sem falar nada de português” (linha 005) e comenta que aquela “foi uma época muito difícil” (linha 006). Essas enunciações indicam que, para um imigrante recém-chegado ao Brasil, não dominar a língua representa muitos sofrimentos e muitas dificuldades de comunicação. Ele depois confirma isto fazendo uso de repetições, na linha 009, no que se refere ao contexto educacional: “E foi bem difícil, foi bem difícil a escola”, uma vez que “praticamente não entendia nada, não falava nada, não escutava nada” (linha 010). Essas repetições reforçam a função da língua local na adaptação inicial dos imigrantes à nova jornada no território brasileiro. O discurso do líder Dan coloca em relevo o quanto a falta de domínio de língua local tornou a sua vida difícil em muitos âmbitos: no trabalho, no estudo, nas relações sociais. A sua própria experiência de aprendizagem de português e as dificuldades pelas quais passou criam para ele uma imagem de alguém que tem autoridade para tratar desses temas. A sua fala ressalta que ele conhece bem a situação dos imigrantes recém-chegados, por exemplo, no que diz respeito ao domínio de português. Podemos ver o exemplo seguinte (linha 035 a 039). Exemplo 2: líder Dan/Igreja A Pesquisador Dan Pesquisador Dan 035 036 037 038 039 Qual é o perfil dos membros da igreja? O que eles fazem? De onde eles vêm? Ah. As pessoas que vão para a igreja são as pessoas que recém-chegado, imigrante recém-chegado aqui no Brasil, então não têm noção né da língua portuguesa. Não falava nada. Não falava nada, LITERALMENTE nada. No nosso trabalho, transcrevemos as entrevistas de acordo com as convenções de transcrição adaptadas de Teixeira e Silva (2007, 2008-2012) e Garcez (2006). 2 ZHANG, Xiang | 2020 | p. 335-344 339 Discurso e poder: teoria e análise Como vemos, o aspecto ressaltado pelo líder para caracterizar os imigrantes põe em relevo a falta de conhecimento da língua. Fica também marcado que esses membros estão passando pela mesma situação que ele. Há aqui um alinhamento discursivo que o coloca lado a lado com os outros imigrantes. Como se vê na linha 039, Dan disse que “Não falava nada, LITERALMENTE nada”. Essa expressão “literalmente” falada em voz alta enfatiza, no seu discurso, a imensa dificuldade linguística pela qual os imigrantes recém-chegados passam. Em função dessa problemática, os imigrantes procuram aprender o português, mesmo com muitas dificuldades, especialmente porque precisam trabalhar, como podemos ver no seguinte exemplo (linhas 040 a 043). Nesse aspecto, o líder também destaca a importância da língua no processo de socialização no novo país. Exemplo 3: líder Dan/Igreja A Pesquisador Dan 040 041 042 043 Mas como que eles trabalham sem falar o português? Então, é uma coisa muito MECÂNICA. Assim, eles têm funcionários que é brasileiro nato (nativo). Eles falam português né. E só que eles aprenderam algumas palavras né que relacionado ahn::: mercadoria, né, o ramo que eles trabalham. E eles começam assim. Uma vez que a maioria dos novos imigrantes chegam ao Brasil e logo trabalham como vendedores de produtos de vários tipos na região da 25 de março e no Brás, é comum que aprendam o português com os funcionários brasileiros contratados. No entanto, o seu português só se restringe a contextos ligados à compra e venda de mercadorias. Como o líder Dan comentou, o português deles “é uma coisa MECÂNICA” (linha 041). Como se vê, para ele, o domínio do português pelos imigrantes parece circunscrever-se apenas ao espaço do trabalho e, ainda assim, de uma forma bastante limitada. Fica apontado no seu discurso que o líder dá um valor mais amplo para a língua e a entende como um espaço fundamental para que as pessoas sejam capazes de vivenciar e viver o mundo. Uma vez que se movem da terra oriental para o continente brasileiro, com o objetivo de melhorar sua condição econômica, os imigrantes chineses precisam não somente saber usar o português no seu trabalho, mas também passar a entender a língua portuguesa como uma chave para vivenciar o Brasil e a cultura brasileira. Os seguintes dois exemplos ilustram também o seu posicionamento em relação com a língua portuguesa: exemplo 4 (linhas 060-062) e exemplo 5 (linha 077081). Exemplo 4: líder Dan/Igreja A Pesquisador Dan 060 061 062 Ahn. [Pra uma pessoa, digamos para conhecer o Brasil, cultura ou futuramente né para entrar na sociedade né brasileira, isso ainda muito precária. Exemplo 5: líder Dan/Igreja A Pesquisador Dan 077 078 079 080 081 Então qual/o que acha o papel da língua portuguesa nesse nesse ambiente para vocês? Porque vocês tá no país aqui que a língua oficial é o português, então sem você dominar essa língua, então você não tem comunicação, né, adequada com as pessoas e também em termo de você viver e conhecer a sociedade e também você consegue trabalhar bem né. Então é impossível se você não falar português. Podemos ver que, para o líder Dan, a língua portuguesa não é vista apenas como instrumento para o trabalho igual aos imigrantes recém-chegados veem, mas ZHANG, Xiang | 2020 | p. 335-344 340 Construção discursiva de identidades socioculturais dos líderes ... como espaço de interação, convivência e como possibilidade de se integrar verdadeiramente na sociedade e na cultura brasileira. A língua, nesse sentido, em sua interpretação deve ter mais sentidos para a comunidade imigrante chinesa. Até aqui, de acordo com as análises do discurso dos líderes, fica marcada uma necessidade concreta de se aprender o português. Foram essas perspectivas demonstradas pelos sujeitos que motivam a abertura de iniciativas de ensino. Segundo eles, o processo de aprendizagem de língua não é fácil por uma série de fatores, entretanto, acreditam que uma vez que os imigrantes aprendem a língua de uma forma menos limitada, a linguagem pode passar a ser espaço de interação, socialização e transformação. 3 A iniciativa como prática de liderança solidária cristã e de letramento religioso Discutimos na parte anterior representações da língua portuguesa no discurso de um líder. Nesta parte, analisaremos como os líderes atuam nas iniciativas de ensino de português no contexto da igreja. Os seus discursos nos possibilitam observar de que forma se posicionam, quais são as suas perspectivas e as suas práticas sociais frente a este contexto. Vamos examinar o exemplo 6 (linhas 88 a 92, linhas 101 a 120). Exemplo 6: líder Dan/Igreja A Pesquisador 088 089 Sim. Como vocês conseguiram, por exemplo, os colaboradores para serem professores de português? Tiveram muitas pessoas que ajudaram e contribuíram ao curso? Dan 090 091 092 (...) 101 102 103 104 105 106 107 108 109 110 111 112 113 [É mais membros da igreja mesmo. Todos os professores são membros da igreja. Então através da igreja, então a gente oferece assim esse serviço à comunidade. Né, então sempre foi assim ahn membro da igreja, que pessoas que ficam mais tempo aqui no Brasil né. Pesquisador Dan Pesquisador Dan 114 115 116 117 118 119 120 Sim, e às vezes você também dá aula né, mas como você dá aula? Já deu algumas aulas né? O que você gostaria de ensinar na aula? Na verdade, assim, é:::como falo, eh:::eu sou membro da igreja, né, então, eu vim né quando era menor e aprende português. Na verdade, essa minha aula nada mais compartilhando o meu conhecimento, né? Não é uma aula formal, né, e condáticas e tudo mais assim. Mas assim compartilhando coisa básica né de de de língua portuguesa assim né então para o seu uso cotidiano, né, passa a necessidade do dia a dia. Então é mais isso que eu né ensino, né? Digo assim: não é uma “AULA”, “aula” de português, mas um pouco de conhecimento só. Entendi. O que achou, por exemplo, agora tem/mesmo Brasil tá a economia não tá muito boa, mesmo assim, tem muitos imigrantes chineses estão chegando né aqui no Brasil, e apareceram e também surgiram vários várias iniciativas de ensino de português. Têm escolas, associações e também como a nossa igreja. O que achou o papel da igreja nessas iniciativas do ensino de português? Qual é o objetivo do curso da nossa igreja? O objetivo é bem claro, né? (0.2) Então ahn::: a igreja/a gente é a igreja por ser IGREJA e temos uma FÉ de que Deus né ele ama o mundo, né, então e através de seus filho Jesus Cristo, né, para salvar a humanidade e todos seus pecados. Então nada mais assim a igreja tá fazendo é contribuindo o amor que a gente tem recebido de Deus para a comunidade chinesa que estão em necessidade, no caso é português. Então a gente nada mais queria AJUDAR eles nesse sentido pra eles adaptarem BEM né inicialmente aqui no Brasil e também compartilhar a nossa fé. Isso é o nosso objetivo. Como líder da igreja e dessa iniciativa de ensino de português, Dan configura a “aula” de português como um espaço em que ele pode compartilhar o seu conhecimento, além de dar informações básicas de língua portuguesa para o uso cotidiano, como ele afirma nas linhas 104-107. Nas linhas 107-108, ele afirma também ZHANG, Xiang | 2020 | p. 335-344 341 Discurso e poder: teoria e análise que essa iniciativa não é para dar uma “aula”, “aula de português como nós entendemos a aula regular na escola, mas sim, um pouco de conhecimento só”. De acordo com os posicionamentos do líder Dan, pode-se perceber que, para essa iniciativa de ensino de português na igreja, os profissionais especializados, então, não são vistos como necessários e imprescindíveis. O que os líderes estão fazendo é compartilhar com os novos imigrantes o que eles aprenderam. E esse compartilhamento não apenas se limita aos conhecimentos de língua portuguesa, mas também inclui a fé cristã. Podemos verificar esse aspecto na linha 119, em que aparece o objetivo dessa iniciativa que também é “compartilhar a nossa fé”, além de ajudar os imigrantes no sentido de aprender o português. Parece-nos que “compartilhar a sua fé” é o seu principal objetivo, portanto, o ensino de português se torna secundário. Podemos confirmar isso nas linhas anteriores 116-118, “Então nada mais assim a igreja tá fazendo é contribuindo o amor que a gente tem recebido de Deus para a comunidade chinesa que estão em necessidade, no caso é português”. Dessa forma, está marcada que a igreja está liderando o ato de letramento religioso através do curso de português. Nesse sentido, pode-se entender que o foco da iniciativa de ensino de português na igreja não é o ensino da língua mesma, mas outras questões de afeto e solidariedade religiosa e, sobretudo, de “divulgação” da fé cristã, isto é, o foco é o letramento religioso para a comunidade chinesa que chega ao Brasil. Ao falar sobre a colaboração dos professores, o líder Dan delimita claramente que são membros da igreja. Esses membros, na prática de ensino de língua portuguesa, estão realizando a sua liderança solidária e cristã. No seu posicionamento em relação à delimitação dos professores da iniciativa, fica marcada essa liderança para a comunidade, como ele diz “a gente oferece assim esse serviço à comunidade. Né, então sempre foi assim ahn membro da igreja, que pessoas que ficam mais tempo aqui no Brasil né” (linha 091-092). De acordo com Schiffrin (1996, p. 308), nossa maneira de agir, estilo e comportamento frente a algum contexto ou tema funcionam não apenas como as formas pelas quais mantemos as interações sociais, mas também como expressamos o sentimento de quem somos e quem são os nossos interagentes. Nesse sentido, o sujeito posiciona a prática de ensino de língua como uma prática solidária cristã e de letramento religioso, construindo, assim, a sua identidade de líder religioso. A líder Chang, da mesma Igreja, mostra os mesmos aspectos que o líder Dan no que diz respeito a seus comportamentos diante da iniciativa. Vamos observar o exemplo 7 (linha 128 a 132). Exemplo 7: líder Chang/Igreja A Chang 128 129 130 131 juntos os lugares em São Paulo com essas relações estabelecidas. Enfim, a gente quer principalmente espalhar o evangelho na comunidade chinesa. Como eles podem conhecer Deus? Não adianta só falar da bíblia. Atualmente as pessoas vê o seu comportamento e a sua prática. Então temos que aproveitar a nossa boa prática, bons comportamentos para testemunhar a nossa fé cristã. Neste exemplo, podemos ver que a líder Chang pensa que o seu bom comportamento e boa prática na iniciativa de ensino de português possam testemunhar a sua fé. Assim, com a sua liderança, divulga o evangelho para os imigrantes chineses, como a líder Chang diz “a gente quer principalmente espalhar o ZHANG, Xiang | 2020 | p. 335-344 342 Construção discursiva de identidades socioculturais dos líderes ... evangelho na comunidade chinesa” (linha 128 a 129). Assim, vemos que ela realiza a sua missão de letramento religioso de imigrantes chineses através dessa iniciativa. A líder Yang da Igreja E sugere que ela queria ajudar na iniciativa de ensino como um tipo de prática religiosa, como mostra o exemplo 8 (linha 124-127). Exemplo 8: líder Yang/Igreja D Yang 124 125 126 127 É, na época, eu tenho tempo livre. Eu quero ajudar. Eu já virou como cristão. Participa toda semana na igreja. E a igreja tem necessidade de oferecer e ajudar as pessoas com motivo disso, eles atrair pessoas para conhecer o Deus. Então, eu acho que a gente assim começou o curso. Mesmo depois parou um tempo, mas a gente começou começou. Ao falarem dos objetivos e de como pensam que deveria funcionar o ensino de línguas, temos acesso a diversos traços das identidades desses líderes. O que notamos aqui, fundamentalmente, é que a preocupação com a aprendizagem da língua não é o foco: todos os líderes atuam e constroem-se como sujeitos que se envolvem em práticas sociais preocupadas com a formação de novos cristãos entre os membros da comunidade chinesa. Considerações finais Ao longo deste trabalho, procuramos discutir a construção discursiva das identidades socioculturais dos líderes, frente às iniciativas de ensino de português nas igrejas evangélicas para a comunidade imigrante chinesa em São Paulo. As reflexões sobre os sentidos e as representações socioculturais marcadas nos seus discursos nos permitem apreender, com base em pistas socioculturais, tanto a sua visão da língua portuguesa nessas iniciativas destinada à comunidade chinesa, quanto a sua prática de liderança frente a essas iniciativas. Os sentidos simbólicos que os líderes atribuem para a língua portuguesa constituem os seus posicionamentos, o que é um dos fatores que orientam as suas práticas sociais. Eles veem a língua portuguesa em uma perspectiva mais ampla, que cria espaço de interação, convivência, acolhimento e integração na sociedade e na cultura brasileira. Frente às iniciativas de ensino, os líderes, ao se posicionarem sobre como deve ser o funcionamento da iniciativa, revelam a sua prática de liderança solidária e cristã. Parece que o foco da iniciativa não é tão somente o ensinoaprendizagem da língua, mas a preocupação com a formação de novos cristãos entre os membros da comunidade chinesa. Ou melhor dizendo, fica explícito que o ensino do idioma tem papel secundário em relação aos propósitos religiosos. Com a discussão dos dados, confirmamos que a linguagem é um construto social. É preciso pensarmos a linguagem humana como lugar de interação, de construção das identidades, de representações de papéis, de negociação de sentidos. Em outras palavras, o discurso como uma construção social é percebido como uma forma de ação no mundo. Através da interpretação do discurso do sujeito, pode-se entender os sentidos e as ações sociais indicados na prática discursiva, além de desvendar as ideologias, as realidades socioculturais de nível macro e as relações de poder. ZHANG, Xiang | 2020 | p. 335-344 343 Discurso e poder: teoria e análise Refletimos também que a Sociolinguística Interacional é uma perspectiva muito rica para o entendimento das interações sociais, a construção de identidades e elaboração dos contextos específicos em que nos inserimos e interagimos na linguagem em uso. Como diz Schiffrin (1996:322), “what interactional sociolinguistics is trying to do is uncover the knowledge that all of us already have”.3 Por fim, com o nosso trabalho, esperamos que mais investigações sejam feitas no âmbito da imigração chinesa no Brasil e que possam contribuir para entender essa realidade de ensino-aprendizagem de línguas, a construção de identidades na linguagem, a nossa vida social e o nosso mundo globalizado. Referências bibliográficas ERICKSON, Frederick. Ethnographic microanalysis. In: McKAY, Sandra Lee; HORNBERGER, Nancy H. (Org.). Sociolinguistics and Language Teaching. New York: Cambridge University Press, 1996. FREIRE E SILVA, Carlos. Conexões Brasil-China: a migração chinesa no Centro de São Paulo. Cad. Metrop., v. 20 (41), p. 223-243, 2018. GARCEZ, Pedro. A organização da fala-em-interação na sala de aula: controle social, reprodução de conhecimento, construção conjunta de conhecimento. Calidoscópio, 2006, 4, p. 66-80. GOFFMAN, Erving. A situação negligenciada. In: RIBEIRO, Branca Telles; GARCEZ, Pedro M. (Orgs.). Sociolinguística Interacional. São Paulo: Edições Loyola, 2002, p. 1320. GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. 14.ed. Trad. Maria Célia Santos Raposo. Petrópolis: Editora Vozes, 2014. GUMPERZ, John J. Discourse Strategies. Cambridge: Cambridge University Press, 1982. MOITA LOPES, Luiz Paulo. (Org.). Por uma linguística aplicada interdisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial, 2006. PEREIRA, Maria das Graças Dias. Introdução. In: Interação e discurso: estudos na perspectiva da Sociolinguística Interacional/áreas de interface. Rio de Janeiro: Editora Trarepa, 2002, p. 7-25. RIBEIRO, Branca Telles; GARCEZ, Pedro M. (Orgs.). Sociolinguística Interacional. São Paulo: Edições Loyola, 2002. SCHIFFRIN, Deborah. Interactional Sociolinguistics. In: MACKAY, Sandra Lee; HORNBERGER, Nancy H. (eds.). Sociolinguistics and Language Teaching. Cambridge: Cambridge University Press, 1996, p. 307-328. Tradução nossa: “o que a Sociolinguística Interacional está tentando fazer é descobrir o conhecimento que todos nós já temos”. 3 ZHANG, Xiang | 2020 | p. 335-344 344 Construção discursiva de identidades socioculturais dos líderes ... TEIXEIRA E SILVA, R. Projeto: Os materiais didáticos de Português como Língua Estrangeira e a Construção da Competência Textual: o Contexto das Escolas LusoChinesas. RG023/06-07S/SRT/FSH. University of Macau, 2007. TEIXEIRA E SILVA, R. Projeto: Interações em Sala de Aula de Português como Língua Estrangeira e a Construção da Competência Textual: o Contexto de Macau. RGUL006/08-Y4/LIN/BA03/FSH. University of Macau, 2008-2012. Como citar ZHANG, Xiang. Construção discursiva de identidades socioculturais dos líderes de iniciativas do ensino de português nas igrejas evangélicas chinesas em São Paulo. In: GONÇALVES-SEGUNDO, Paulo Roberto; ARAES, Célia Regina; CASTANHEIRA, Claudia; ISOLA-LANZONI, Gabriel; PENITENTE, Natalia; WEISS, Winola (orgs). Discurso e poder: teoria e análise. São Paulo: FFLCH/USP, 2020, p. 335-344. DOI: 10.11606/9786587621241 ZHANG, Xiang | 2020 | p. 335-344 345 Discurso e poder: teoria e análise A construção da imagem feminina nos enunciados exortativos e assertivos nos livros didáticos de PLE Yedda Alves de Oliveira Caggiano BLANCO Universidade de São Paulo [email protected] Resumo: O material didático de PLE, em específico, o livro didático, apresenta diversos aspectos que podem ser investigados. Dentre eles, vamos destacar como os enunciados -em especial, atos de fala diretivos e assertivos – podem construir uma imagem que represente certo tipo de locutor nas interações sociais, no caso, a voz feminina nos diálogos apresentados em manuais de PLE com os quais trabalharemos nesse artigo. Tendo em vista que, muitas vezes, os manuais de PLE reforçam um estereótipo linguístico quanto à atuação da mulher nas questões de produção do enunciado, o objetivo do trabalho é analisar como, nas situações de pedidos, especificamente, de serviços e consertos gerais, são retratadas as vozes femininas, muitas vezes de forma estereotipada, falaz e até menosprezada. Para a fundamentação teórica usamos a definição de estereótipo de Amossy (1991), caracterizando-a como uma "imagem pré-fabricada" que circula "monotonamente nos espíritos e textos"; os estudos sobre o ethos discursivo (MAINGUENEAU, 2011) para a análise dos efeitos que possam ser produzidos pelos enunciados; e, finalmente, as questões de sociopragmática para compreender os contextos de tais produções, a partir dos conceitos desenvolvidos por Diana Bravo (2004). O corpus é formado por três excertos de livros didáticos de PLE e a metodologia de análise é descritiva e analítico-comparativa, com levantamento dos enunciados e descrição dos contextos nos quais ocorrem. Pretende-se, dessa maneira, apontar como os enunciados podem construir ou reforçar a imagem negativa da mulher nesses discursos e demonstrar como tais estereótipos circulam com certa regularidade e uniformidade nos distintos manuais de PLE. Palavras-chave: Livro didático; Discurso; Imagem; Pedidos. Introdução Há várias formas de abordar a questão do livro didático nos materiais de português para estrangeiros (PLE), desde questões relacionadas ao método de ensino até a composição gráfica das lições apresentadas. Para o atual artigo, vamos apresentar de que forma os enunciados podem construir uma imagem que represente BLANCO, Yedda Alves de Oliveira Caggiano | 2020 | p. 345-364 346 A construção da imagem feminina nos enunciados exortativos e assertivos ... certo tipo de enunciador nas interações sociais, no caso, a voz feminina nos diálogos contidos nos manuais de PLE relacionados com atos de fala exortativos (ou diretivos) e assertivos. Temos o objetivo de mostrar como os enunciados das unidades didáticas de PLE, que tratam sobre pedidos de serviços e consertos, são constitutivos de uma imagem representativa de certo tipo de locutor nas interações sociais e de que modo a voz feminina é retratada nesses manuais a ponto de tais registros se tornarem reveladores de uma imagem negativa ou não da figura feminina quando comparadas às vozes masculinas em idênticas situações de fala. Para desenvolver o trabalho, vamos na fundamentação teórica, delinearas questões de sociopragmática, a partir dos conceitos elaborados por Diana Bravo (2004), para compreender a importância dos contextos de produção dos enunciados;depois, os estudos de Maingueneau (2011) sobre o ethos discursivo, enfatizando os efeitos que possam ser produzidos pelos enunciados; e, finalmente, a definição de estereótipo de Amossy (1991, p. 21), que o caracteriza como uma "imagem pré-fabricada" que circula "monotonamente nos espíritos e textos". O corpus foi selecionado a partir de livros didáticos de PLE que apresentassem na sua unidade de ensino, situações referentes a pedidos de "consertos". Assim foram escolhidas as seguintes obras: Aprendendo Português do Brasil,Bem-Vindo: a língua portuguesa no mundo da comunicação e Fala Brasil, Português para Estrangeiros, que serão detalhadas na seção 2 desse artigo. Quanto à metodologia, empregamos a descritiva com uma abordagem analítico-comparativa. Para a análise, apresentamos o levantamento das situações, a descrição dos contextos nos quais ocorrem e, descrevemos como os atos de fala atribuídos às personagens femininas se apresentam em comparação com os atos proferidos pelas personagens masculinas. Acreditamos que, com a exposição desse cenário, vamos conseguir mostrar, mesmo que de forma reduzida, uma construção de imagem que precisa ser revista e reelaborada nos livros de PLE. 1 Base teórica: atos de fala, ethos discursivo e estereótipo Quando os participantes se encontram em uma interação comunicativa, ao produzirem um enunciado, realizam uma ação concreta que pode ir além de uma frase produzida. Nesse jogo interacional, entre eles, temos que observar certas condições contextuais, como tempo, lugar, papéis dos interactantes, relações sociais, os objetivos da interação etc., uma vez que integram o ato de fala – o enunciador os tem em mente ainda antes de realizá-lo – e, portanto, são imprescindíveis para o sentido e seu entendimento.Além disso,conforme afirma Koch (2012, p. 12), “a par daquilo que efetivamente é dito, há o modo como o que se diz é dito: a enunciação deixa no enunciado marcas que indicam (“mostram”) a que título o enunciado é proferido.” BLANCO, Yedda Alves de Oliveira Caggiano | 2020 | p. 345-364 347 Discurso e poder: teoria e análise A partir de Austin (1962[1990]), aprendemos que o fato de pronunciar palavras significa realizar atos com elas, muitas vezes transformadores da realidade dos falantes. Segundo a "Teoria dos Atos de Fala", a sua realização engloba: • Atos locucionários, que correspondem ao ato de pronunciar palavras ou emitir sons, isto é, ao fato fônico; • Atos ilocucionários, que dizem respeito aos atos que os locutores realizam quando pronunciam um enunciado em certas condições comunicativas e com certas intenções; isto é, são atos que dependem do sentido expressado; • Atos perlocucionários, que correspondem aos efeitos que um dado ato ilocucionário produz no alocutário. Os atos realizam-se simultaneamente quando produzimos o enunciado e visam à comunicação de algo, por exemplo, um pedido, uma promessa, uma constatação etc. O sucesso de um ato de fala está na capacidade não só da emissão do enunciando, mas também da sua interpretação, ou seja, nas condições de felicidade (SEARLE, 1984). Searle (1984), colaborando com a "Teoria dos Atos de Fala" postulada por Austin, classificou os atos de acordo com a função que poderiam expressar. Assim, temos: • Assertivos: cujo escopo é comprometer o locutor com a verdade da proposição expressa no enunciado (afirmar, anunciar, predizer, insistir); • Exortativos ou Diretivos: que têm a intenção de conseguir que o interlocutor adote uma determinada conduta, um fazer ou não-fazer (por exemplo: as perguntas, os pedidos, os convites, as proibições, conselhos etc.); • Comissivos: buscam comprometer-se a uma ação futura (oferecer, prometer, jurar); • Expressivos: expressam o estado psicológico especificado na condição de sinceridade acerca de um estado de coisas (parabenizar, desculpar-se, felicitar etc.); • Declarativos: os que, quando pronunciados sob determinadas condições para sua eficácia,provocam uma mudança no mundo(batizar, excomungar, levantar uma sessão). Para o presente estudo, vamos nos ater aos atos assertivos e exortativos (ou diretivos). Assim, sobre os assertivos é importante destacar que "a asserção diz respeito ao próprio fato pôr em relação elementos para dizer alguma coisa sobre o mundo, independentemente de sua forma positiva, negativa, hipotética ou condicional" (MAINGUENEAU; CHARAUDEAU, 2016, p. 68) por parte do locutor. Já os exortativos ou diretivos, segundo Haverkate (1994),ameaçam a imagem do interlocutor porque o locutor procura que o ouvinte faça ou realize coisas, invadindo, pois, seu território. Haverkate (1994, p. 148) classifica os atos exortativos em impositivos e não impositivos. BLANCO, Yedda Alves de Oliveira Caggiano | 2020 | p. 345-364 348 A construção da imagem feminina nos enunciados exortativos e assertivos ... Os impositivos perseguem um fazer (ou não fazer) em benefício do locutor, como "a súplica e o mandato"1. Os nãos impositivos, segundo o autor (HAVERKATE, 1994, p. 148),"procura[m] fazer com que o ouvinte realize o ato exortado principalmente para o benefício de si próprio. Os principais componentes dessa classe são o conselho, a recomendação e as instruções"2. No ato de realizar pedidos, tanto locutores e interlocutores realizam um trabalho de imagem (face work)cujo objetivo normalmente é o equilibro delas, ou a minimização dos danos a elas produzidos pelo ato de fala.Brown e Levinson (1978[1987]) já apontavam para as ameaças às imagens que todo ato implica (ou pode implicar) e chamaram-nas de FTAs - Face Threatening Acts -. No mesmo sentido,Kerbrat-Orecchioni (2014, p. 49) aponta que "a maioria dos atos de linguagem que são produzidos no cotidiano são potencialmente 'ameaçadores' para uma das faces em presença [...], o que cria um sério risco para o bom desenvolvimento da interação". Para suavizar o pedido e possibilitar a não invasão de território do interlocutor(BROWN; LEVINSON, 1978[1987]), o locutor pode fazer uso de estratégias que mitigam ou atenuam o enunciado, usando, por exemplo, uma formulação indireta, inferencial. Ou pode, também, optar por fazer uma enunciação direta sem uso de estratégias. Colocando o foco nos atos exortativos impositivos (HAVERKATE, 1994), em especial os pedidos, é importante ressaltar que a escolha do enunciando pelo locutor deve estar de acordo com a situação na qual se insere, onde se observa o grau de envolvimento dos participantes, o contexto em si do pedido, as marcas dadas pelas condições e o contexto sociocultural. A esse respeito, Diana Bravo (2004, p. 8), nos estudos sobre sociopragmática, considera que "o falante de uma língua é provido de recursos interpretativos que vêm de seu ambiente social e de suas experiências comunicativas anteriores".3 Também, ao se produzir um enunciado, reproduz-se discursos marcados por fatos ideológicos, próprios da comunidade de fala onde se realizam, que constituem a formação e atuação do indivíduo na sociedade. E, assim, os contextos produzidos nos textos, (re)criam certas condições específicas nos quais se perpetuam falares e crenças. Segundo Van Dijk (2012, p. 34), o contexto é "um construto subjetivo dos participantes", cuja construção se dá por meio de um modelo mental controlado por ele, o contexto, que ativa a memória individual e social, além de ser formador da identidade na construção do eu-mesmo e do ele-mesmo. Em decorrência, os enunciados, feitos por sujeitos que se apropriam da língua num determinado contexto, produzem na sua realização determinado sentido. Para Ducrot (1987), o enunciado carrega em si uma "voz" que não pode ser desassociada Tradução livre. No original; "el ruego, la súplica y el mandato". Trad. livre. No original: "procura conseguir que el oyente realice el acto exhortado primariamente en beneficio de si mismo. Los principales componentes de esta clase son el consejo, la recomendación y la instrucción." 3 Tradução livre. No original: "el/lahablante de una lengua está próvido/a de recursos interpretativos que provienen de su entorno social y de sus experiencias comunicativas previas". 1 2 BLANCO, Yedda Alves de Oliveira Caggiano | 2020 | p. 345-364 349 Discurso e poder: teoria e análise das diversas vozes enunciativas anteriores a ela e que se apresentam no ato da sua produção. O sujeito produtor do enunciado não é visto como um mero produtor da fala, mas sim como um sujeito pertencente ao mundo: o "locutor-enquanto tal (constituído no nível do dizer) e o locutor-enquanto-ser-no-mundo (no nível do dito)”, segundo Ducrot (1987, p. 188). Igualmente, quando o enunciado é proferido, há uma influência na interação de vários fatores, que, segundo Maingueneau (2011, p. 18,) constituem o ethos discursivo: Os ethos pré-discursivo, ethos discursivo (ethos mostrado), mas também os fragmentos do texto nos quais o enunciador evoca sua própria enunciação (ethos dito). [...] A distinção entre ethos dito e mostrado se inscreve nos extremos de uma linha contínua, uma vez que é impossível definir uma fronteira nítida entre o "dito" sugerido e o puramente "mostrado" pela enunciação. Do resultado dessas instâncias, temos o ethos efetivo, que segundo seu esquema: Figura 1. Ethos efetivo Fonte: Maingueneau (2011, p. 19) Maingueneau (2011) elucida que existe um ethos construído no âmbito da atividade discursiva,na qual quem fala, o enunciador, constrói uma imagem dentro de um cenário da enunciação que é proferido. Ainda citando o autor (2011), a imagem é ligada ao tom que acompanha o discurso,materializa o caráter do enunciador. A respeito dos textos escritos, a corporalidade do enunciador é revelada por pistas, sendo assim, uma representação subjetiva,denominada por Maingueneau de figura do "fiador" - que não necessariamente representa o enunciador efetivo. Dessa forma, a imagem do enunciador é construída pelo texto e não precisa coincidir com as ideias, posturas do autor real. Em suma, a construção da imagem, do ethos, deixa marcas linguísticas e textuais na materialidade discursiva pelas quais conseguimos captar características da imagem do enunciador que proporcionam ao enunciatário a possibilidade de BLANCO, Yedda Alves de Oliveira Caggiano | 2020 | p. 345-364 350 A construção da imagem feminina nos enunciados exortativos e assertivos ... construção da imagem do enunciador. Ainda, conforme o autor, embora o ethosesteja crucialmente ligado ao ato de enunciação, "não se pode ignorar que o público constrói também representações do ethos do enunciador antes mesmo que ele fale"(MAINGUENEAU, 2011, p. 15). Em tal sentido, Maingueneau e Charaudeau (2016, p. 211), afirmam queo "ethos discursivo mantém relação estreita com a imagem prévia que o auditório pode ter do orador ou, pelo menos, com a ideia que este faz do modo como seus alocutórios o percebem" e que"a representação da pessoa anterior a sua tomada de turno [...] está frequentemente no fundamento da imagem que ele constrói em seu discurso".Por exemplo, numa sessão de um Congresso, a audiência espera que o político, ao proferir um discurso, seja claro e coeso nas informações que são dadas e, principalmente, que sua fala seja reflexo das ideias políticas do partido pelo qual se elegeu. Tais expectativas, muitas vezes, podem ser influenciadas pelos estereótipos, ou seja, pelas expectativas mais ou menos consolidadas por fatores históricos e sociais, como classe social, por exemplo, que os interactantes têm de si. Tais expectativas refletem e, ao mesmo tempo, são um reforço dos estereótipos presentes na comunidade de fala, que podem orientar a maneira de nos dirigirmos ao outro, por exemplo, na forma de fazermos pedidos. Em relação aos estereótipos, segundo Maingueneau e Charaudeau (2016, p. 213), são "representações cristalizadas, crenças pré-concebidas, frequentemente nocivas a grupos ou indivíduos". De fato, a formação do estereótipo é marcada pela repetição contínua de determinadas características, discursivamente; e, nesse sentido, Amossy (1991, p. 21), caracteriza-o como uma "imagem pré-fabricada" que circula "monotonamente nos espíritos e textos". O conceito de "imagem pré-fabricada" dada por Amossy ajusta-se, perfeitamente, ao propósito da análise que passaremos a descrever. Como veremos, nos exemplos dos diálogos dos livros didáticos escolhidos, há uma repetição enunciativa colocada na figura da voz feminina, que perpetua uma característica de mulher "queixosa" ou de alguém que se atribui de "pouca fé". 2 Construção e apresentação do corpus O material didático é uma ferramenta pedagógica "na qual se apresenta a intervenção de vários agentes no processo de produção: autores, revisores, editores pedagógicos [...], o conteúdo expresso por ele é fruto de uma ampla discussão a respeito de quais tópicos possam representar a língua-alvo"(BLANCO, 2017, p. 189). Desse modo, o material didático, em específico o livro de PLE, busca desenvolver nas suas unidades de ensino um recorte da língua-alvo com o objetivo de que o aprendente possa captar determinadas características de uso e estrutura da comunicação. Diante desse cenário da representação e do recorte apresentado nas obras é que buscamos descrever como os enunciados de pedidos de conserto são constituídos por seus interlocutores. BLANCO, Yedda Alves de Oliveira Caggiano | 2020 | p. 345-364 351 Discurso e poder: teoria e análise Para a formação do corpus para a análise, elegemos livros didáticos de PLE que possuem uma aceitação no mercado editorial comprovada pela continuidade das publicações. Com tal critério, foram escolhidas as seguintes obras que possuem mais de quatro edições ou reimpressões, conforme o quadro abaixo: Quadro 1. Obras selecionadas de PLE LIVROSDE PLE AUTORES (AS) LOCAL/EDITORA/ANO DE PUBLIÇÃO E Nº DE EDIÇÃO Aprendendo Português do Brasil Maria Nazaré de Carvalho Laroca, Nadine Bara& Sonia Maria da Cunha Campinas, São Paulo: Pontes Editores Ltda 1992 4º (2003) Falar, Ler e Escrever Português: Um Curso para Estrangeiros (reelaboração de Falando, Lendo, Escrevendo Português Emma E. O.F. Lima e Samira A I. Bem-Vindo! A língua portuguesa no mundo da comunicação Maria HarumiOtuki de Ponce; Silvia Andrade Burin& Susanna Florissi São Paulo, Editora SBS 1999 Muito Prazer Fernandes, Gláucia Roberta Rocha; Ferreira, Telma de Lurdes São Bento; Ramos, Vera Lúcia São Paulo, Disal Elizabeth Fontão do Patrocínio e Pierre Coudry São Paulo, Campinas, Pontes Editores Ltda Fala Brasil, Português para Estrangeiros São Paulo: Ed. EPU 1999 4º (2017) 9º (2017) 2009 6º reimpressão 1989 18º (2017) Fonte: elaboração própria. A partir dessa lista inicial dos livros de PLE, fez-se a seleção das unidades cujos tópicos fossem relacionados à temática de "como fazer pedidos para consertos em geral", e observamos que, no total de 5 livros didáticos, apenas 3 apresentavam situações de pedido de consertos; que esses tipos de pedidos são atribuídos, na maior parte, às vozes femininas (6 na soma, ao passo que as masculinas aparecem 3 vezes); e que, também, as situações mais frequentes referiam-se a "serviços de encanador" (3 vezes), encontrados nos seguintes manuais:Aprendendo Português do Brasil, BemVindo: a língua portuguesa no mundo da comunicação e Fala Brasil, Português para Estrangeiros. Para que possamos ter uma visão das obras, vamos detalhar os específicos contextos de produção dos manuais, descrevendo a proposta de cada material, a estrutura composicional das suas unidades de ensino e os possíveis leitores. Vejamos: a) Aprendendo Português do Brasil: um curso para estrangeiros, de autoria de Maria Nazaré de Carvalho Laroca, Nadine Bara & Sonia Maria da Cunha, pertence à editora Pontes e está na 4º edição (2003). Na apresentação as autoras (2004, apresentação) informam que a obra tem o objetivo de fazer o aluno "dominar em pouco tempo as estruturas fundamentais da Língua Portuguesa, nas modalidades oral BLANCO, Yedda Alves de Oliveira Caggiano | 2020 | p. 345-364 352 A construção da imagem feminina nos enunciados exortativos e assertivos ... e escrita". Na sua forma estrutural, o livro se apresenta em um único volume dividido em 13 unidades situacionais que são compostas pelas seguintes partes: uma "motivação", com história em quadrinhos da Turma da Mônica; o "diálogo"; "conteúdo gramatical"; "aplicação"; "expansão vocabular"; "atividades"; e "leitura complementar"; enfatiza que o material "destina-se ao uso em sala de aula" , não especificando características do aprendente ao qual está destinado.A situação que vamos analisar, "chamando o bombeiro", faz parte da unidade 12. b) Bem-Vindo: a língua portuguesa no mundo da comunicação, um dos materiais mais utilizados no ensino de português como segunda língua no Brasil e, até o momento, encontra-se na 9º edição.Originalmente publicado pela Special Book Services (SBS) e, agora, tem publicações em parceria com a HUB Editora. Na descrição do livro, as autoras informam que é uma obra "ao vivo e em cores para você que quer aprender o nosso português falado como ele é". E, mais adiante, sobre o conteúdo da obra, elas esclarecem que o livro contém “um pouco da História, cultura e sociedade brasileiras ganham parte deste livro elaborado especialmente para suprir a grande necessidade de um material dinâmico e interativo cujo foco central é COMUNICAÇÃO” (PONCE;BURIM;FLORISSI, 2007, Apresentação).Também se preocupam em esclarecer que o ensino do português falado não negligenciará "as necessárias referências à Gramática Normativa", fato que se justifica pelo acréscimo na nova edição de três apêndices "na dura tarefa de explicar e entender a gramática da Língua Portuguesa". Este material se apresenta em um único volume e está dividido em 5 grupos temáticos: “Eu e você”, “O Brasil e sua língua”, “A sociedade e sua organização”, “O trabalho e suas características” e “Diversão-cultura”, compondo um total de 20 unidades e 03 apêndices (O Alfabeto, Gramática, Vocabulário), distribuídas nas 221 páginas do material. Juntamente à obra, há o manual do professor, o caderno de exercícios, e áudios CDs. Na apresentação não faz alusão às características do possível aprendente. A unidade sobre pedidos de consertos se encontra na unidade 9. c) Fala Brasil: português para estrangeiros, composto por um único volume e, segundo os autores, apresenta-se como um método de ensino linear no qual as estruturas e situações são retomadas. Também, reforçam o caráter do uso da língua em ação, isto é, "os diálogos Dirigidos são o elo de ligação entre a simples capacidade de conjugar um verbo e a capacidade de utilizá-lo em situações práticas [...] já que foram coletadas em diferentes contextos de uso real da língua". Destacam que apresentam a cultura brasileira "em situações de vida cotidiana de modo a evitar os aborrecidos textos informativos", (FONTÃO & COUNDRY, 1989, apresentação). Ainda, os autores enfatizam que o "sistema de índices adotado [...] possibilita uma utilização votado à necessidade de cada aluno"; contudo, na obra, não se caracteriza esse aluno. Atualmente, o livro encontra-se na 18º edição, é composto por 13 unidades e a situação escolhida, "Emergência: chamando o encanador", encontra-se na unidade XII. Especificamente, quanto ao contexto de produção das obras, percebemos que são editoras que se concentram em São Paulo (2 em Campinas, 1 na capital), que a autoria dos livros é de maioria do sexo feminino (7 autoras e 1 autor); e que há certa BLANCO, Yedda Alves de Oliveira Caggiano | 2020 | p. 345-364 353 Discurso e poder: teoria e análise semelhança composicional entre eles, uma vez que introduzem as unidades de ensino com situações comunicativas a partir de diálogos recriados. Como já pontuamos, os manuais escolhidos têm mais de quatro edições ou reimpressões. Como consequência, se há publicações contínuas, significa que há um públicoleitor e consumidor desse tipo de material que tem interesse na aprendizagem da língua portuguesa. Segundo Almeida Filho (2018, p. 41-42), "ensinar o curso de PLE no exterior está ganhando cada vez mais espaço e intensidade no contexto da oferta desse idioma e cultura brasileira" e, segundo o autor, isso tem acontecido pela posição econômica que o Brasil ocupa no mundo. Conforme observamos, as obras não se preocuparam em traçar um perfil do possível leitor, talvez, pelo fato de ainda não termos dados mais específicos sobre esse tema. Como aponta Almeida Filho (2018, p. 47) "não dispomos de dados estatísticos mais seguros para a população mundial de pessoas que adquiririam o Português como língua de comunicação esporádica". Contudo, os possíveis interlocutores desses manuais seriam desde os empresários, estudantes de escolas bilíngues, refugiados e os simpatizantes com a língua e a cultura brasileira. Diante desse cenário,é fundamental observar como se comporta o livro didático na instância discursiva, sem esquecer que o livro didático de PLE é um recurso didático e que, como uma ferramenta reprodutora de enunciados próximos à autenticidade dos atos de fala, busca a manutenção de uma visão social consolidada, estabelecida na comunidade ali representada. 2.1 A análise do corpus A situação comunicativa de pedidos de consertos mais comum apresentada pelos livros de PLE relaciona-se ao serviço de encanador, deixando outros tipos de consertos ausentes ou em segundo plano (Quadro2). Também, a partir dos diálogos, contabilizamos que os enunciados proferidos pela voz feminina está presente em 6 situações e a masculina em 3. Quadro 2. Seleção de livros de PLE e das unidades sobre pedidos de consertos LIVRO DE PLE PEDIDO (TIPO DE CONSERTO) VOZ DE QUEM PEDE O SERVIÇO: M (Mulher) / H (Homem) Aprendendo Português do Brasil Chamando o bombeiro (encanador) 1M Bem-Vindo: a língua portuguesa no mundo da comunicação Encanador/ instalação elétrica/pintura/máquina de lavar/pedreiro/ zelador 4M Fala Brasil, Português para Estrangeiros Encanador Médico 1H 1M 2H Fonte: elaboração própria Com esse levantamento, passaremos a analisar o corpus de modo descritivo. Inicialmente, vamos descrever a posição onde o diálogo se encontra na unidade de BLANCO, Yedda Alves de Oliveira Caggiano | 2020 | p. 345-364 354 A construção da imagem feminina nos enunciados exortativos e assertivos ... ensino; depois, faremos a análise analítica dos enunciados, decompondo-os em partes nas quais possamos observar a interação no seu contexto geral e específico da produção; e comparar como os diálogos constroem discursivamente a imagem feminina. Vejamos: a)Exemplo 1: este diálogos e encontra na unidade 12, penúltima do livro Aprendendo Português do Brasil.Como todas as outras lições, inicia-se com uma história em quadrinhos (Motivação) que é somente para leitura e, na sequência, temos o diálogo, conforme mostra a Figura 2. Após o diálogo, há uma seção denominada "conteúdo gramatical", com o ensino do imperfeito do subjuntivo, pronomes relativos,voz passiva e exercícios das estruturas desses tópicos gramaticais; depois, uma seção denominada "expansão vocabular" que apresenta uma lista de palavras relacionadas ao "correio" com uma atividade com um cartão postal e, por fim, "leitura complementar" seguida da compreensão de texto.Observa-se, a partir dessa sequência, que a situação "chamando o bombeiro" não se desdobra em outras atividades. Figura 2. Chamando o bombeiro4 Fonte: Aprendendo português do Brasil (p.156). 4 A palavra "bombeiro" refere-se a encanador também e é de largo uso da região do Rio de Janeiro. BLANCO, Yedda Alves de Oliveira Caggiano | 2020 | p. 345-364 355 Discurso e poder: teoria e análise b) Exemplo 2: este diálogo faz parte do livro Bem-Vindo: a língua portuguesa no mundo da comunicação, encontra-se na divisão do grupo 3 denominada "A sociedade e sua organização", unidade 9, "o lar". A unidade se inicia com o diálogo "Alugando uma casa" que destaca o uso dos advérbios de lugar, modo e as respectivas locuções adverbiais; apresentam mais outro diálogo "Num stand de vendas”, com atividades sobre compra e venda de casa e apartamento na planta; depois, temos a apresentação de 6 mini diálogos correspondentes aos pedidos de consertos e, em seguida, apresenta uma lista de vocábulos sobre "louças e talheres". Na continuação, desenvolve atividades relacionadas à descrição de partes da casa, um trecho de um texto para discussão e, por fim, um texto sobre "História do Brasil".Na Figura 3, mostramos os mini diálogos e, na Figura 4, destacamos o diálogo correspondente à situação de pedido de conserto ao encanador, que vamos analisar. Figura 3. O lar Fonte: Bem-vindo! (p. 86). BLANCO, Yedda Alves de Oliveira Caggiano | 2020 | p. 345-364 356 A construção da imagem feminina nos enunciados exortativos e assertivos ... Figura 4. Diálogo com o encanador Fonte: Bem-vindo! (p. 86). c) Exemplo 3:este diálogo faz parte da unidade XII do material Fala Brasil, Português para Estrangeiros. A unidade começa com uma música "Hora da razão", com foco no uso da perífrase "deixar de" e a sistematização do seu uso com exercícios. Segue com a apresentação do futuro e do pretérito perfeito do subjuntivo, exemplificados na seção de "Diálogos dirigidos", que contém seis mini diálogos para enfatizar esse estudo gramatical e mais exercícios. Na sequência, há a situação "Emergência" na qual aparecem os diálogos "Chamando o encanador" e "Médico à noite".Por fim, a obra retoma as orações condicionais e apresenta os "pronomes relativos" com mais exercícios gramaticais. Figura 5. Chamando o encanador Fonte: Fala Brasil (p. 186). Como podemos perceber, a colocação desses diálogos ("Chamando o bombeiro" na unidade 12 (num total de 13), "Chamando o encanador" na unidade 12 BLANCO, Yedda Alves de Oliveira Caggiano | 2020 | p. 345-364 357 Discurso e poder: teoria e análise (num total de 15) e "O lar", unidade 9 (num total de 20)nos faz crer que o aprendente já tenha certo conhecimento de estruturas e formas de pedidos que foram trabalhadas em lições anteriores, como, por exemplo, pedidos em situações "no restaurante, "de informes sobre lugares", "acomodações no hotel" etc.Desse modo, pressupõe-se que o objetivo dessas unidades de ensino será fazer com que o aprendente adquira mais conhecimento sobre estruturas ou fórmulas conversacionais de como fazer pedidos de algum conserto, juntamente com o ensino de fórmulas de negociação para concretizar a solicitação. No contexto geral apresentado nos diálogos, há uma semelhança de condições que podem ser descritas da seguinte forma: uso de uma temática pautada no cotidiano das interações sociais; uso de uma interação interpessoal, marcada por interlocutores em posições distintas e de caráter profissional, isto é, presença de uma relação social e funcional entre eles; uso de um registro de linguagem informal, apesar de os interlocutores terem uma relação hierárquica distinta marcada pela forma de tratamento ("seu", "dona", "senhor"); e, por último, a relação de gênero entre os interlocutores, na qual observamos as relações: no diálogo 1: Mulher- Homem (M-H), no diálogo 2: Mulher- Homem (M-H)e no 3: Homem-Homem (H-H). Quadro 3. Contextos de interação geral e específico CONTEXTO DIÁLOGO 1 "Chamando o bombeiro" DIÁLOGO 2 "O lar" DIÁLOGO 3 "Chamando o encanador" Geral Chamada telefônica para o encanador e pedido de conserto Diálogo face a face entre os interlocutores no local do conserto Chamada telefônica para o encanador e pedido de conserto Específico - 2 interlocutores: Homem e mulher - 2 interlocutores: Homem e mulher - 2 interlocutores: Homem e homem - Relação profissional, mas com certa familiaridade - Relação profissional, - Forma de tratamento: senhora - Relação profissional, mas com certa familiaridade -Forma de tratamento: dona/ seu - Forma de tratamento: seu/ seu Fonte: Elaboração própria Ainda, quanto à apresentação dos contextos, temos os diálogos 1 e 3 realizados mediante chamadas telefônicas e, no diálogo 2, a presença dos interlocutores na própria cena do conserto.Na sequência da análise, vamos observar como a presença face a face ou a interação mediante a chamada telefônica pode ou não interferir também na construção da imagem feminina. No diálogo 1, a interação inicia-se com a identificação dos participantes e o motivo da ligação, ou seja, o pedido de conserto: (1) C: Alô? É da casa do "Seu" Manuel? M: É sim. É ele mesmo. C: Aqui é a D. Carmela. Queria que o senhor visse a pia da cozinha que está entupida. M: Mas, D. Carmela, esse serviço já não foi feito na semana passada? BLANCO, Yedda Alves de Oliveira Caggiano | 2020 | p. 345-364 358 A construção da imagem feminina nos enunciados exortativos e assertivos ... Na identificação, a forma de tratamento usado por dona Carmela mostra que os interlocutores possuem certo distanciamento social ("É da casa do "seu" Manoel?"), esse possessivo substitui a forma "senhor", o qual revela que não há intimidade entre ambos. Tal fato se confirma nas próximas interações, nas quais se alternam o uso de "seu" com "senhor". Por sua vez, o interlocutor também utiliza a forma de distanciamento social "dona", reiterando a falta de intimidade. Em seguida, o modo como a mulher, D. Carmela, faz o pedido é indireta("queria que o senhor visse..."). Notam-se, assim,duas estratégias atenuadoras sobrepostas: a) a formulação perifrásica do pedido com o uso do verbo "querer", no pretérito imperfeito, que produz um deslocamento do eixo dêitico temporal (agora) para que o pedido não soe ríspido ou impositivo; b) o deslocamento dêitico que se vê reforçado pelo emprego do verbo "ver" no pretérito imperfeito do subjuntivo ("visse"). Percebe-se no pedido a preocupação pelo equilíbrio da imagem ao ter usado os recursos de atenuação com o propósito de não invadir o território do interlocutor; e, por outro lado, de preservar a auto imagem, evitando parecer impositiva. Entretanto, a forma como o interlocutor contesta ("Mas, D. Carmela, esse serviço já não foi feito na semana passada?"), ameaça a imagem da ouvinte, pois coloca em dúvida a legitimidade de seu pedido de conserto, bem como o conhecimento sobre que serviço foi feito na residência dela. Na sequência: (2) C: Não, “seu” Manuel! O senhor veio aqui para fazer outra coisa. Será que o senhor não podia dar uma chegada aqui em casa agora? M: Olha, D. Carmela, se eu pudesse ia agora mesmo. Mas tenho outro serviço urgente para fazer. Nesse trecho, observamos que a locutora defende a racionalidade de seu pedido rigorosamente ("Não, “seu” Manuel!"), procurando restabelecer a sua imagem ferida pelo interlocutor. A justificativa ("O senhor veio aqui para fazer outra coisa") é empregada como uma forma de mitigação que repara o ato de fala assertivo anterior, desse modo, protege ambas as imagens e restabelece o equilíbrio entre elas. Aqui, D. Carmela emprega novas estratégias de atenuação para realizar o pedido, como a de forma indireta ("Será que o senhor não podia dar uma chegada..."), mediante uma perífrase "será que" + infinitivo. Nessa formulação da exortação, encontramos novamente um deslocamento do eixo temporal quando se emprega o verbo no futuro– "será" – e o verbo modal "poder" no pretérito imperfeito– "podia". Tudo isso revela o excesso de zelo que a interlocutora põe no trabalho de restabelecimento das imagens (facework). Quando o encanador responde, percebemos que usa o marcador discursivo "olha", que é uma forma de contato para amenizar a sequência negativa do enunciado, uma vez que previne o interlocutor de uma resposta que pode ferir sua imagem, e a realização da negativa ao pedido de forma indireta: "se eu pudesse ia agora mesmo". Como vemos no enunciado, o encanador emprega uma fórmula condicional "se eu...", mais o emprego do verbo modal "poder" no pretérito imperfeito do subjuntivo, o que produz um maior distanciamento doeixo dêitico temporal agora, com o qual suaviza o BLANCO, Yedda Alves de Oliveira Caggiano | 2020 | p. 345-364 359 Discurso e poder: teoria e análise seu enunciado. A tais estratégias, acrescenta-se a justificativa de sua negativa de atender ao pedido ("tenho outro serviço urgente"), que repara o ataque à imagem produzido. Face ao impasse, quase no fim da interação, temos a negociação: (3) C: E hoje à tarde, é possível? M: Humm... E se fosse amanhã cedo? C: Está bem. Mas por favor, amanhã, sem falta! M: Pode deixar, D. Carmela. A senhora me conhece! Amanhã, às sete horas, estou aí. Na solicitação da mulher ("E hoje à tarde, é possível?"), vemos o emprego de três estratégias claras de mitigação: a) a formulação de pedido mediante uma pergunta; b) o emprego da impessoalização– "é possível" – que desfocaliza o "tu"; e c) a elição do verbo performativo "vir". A resposta dada("Humm...E se fosse amanhã cedo?") também tem procedimentos linguísticos de atenuação, como emprego da forma condicional e o verbo ser no pretérito imperfeito do subjuntivo que tentam fazer o ato de fala diretivo ser menos invasivo do território do interactante. Notamos que, no exemplo analisado, o interlocutor, ao afrontar à veracidade do pedido, colocou a imagem da mulher em risco ao duvidar da legitimidade do pedido, rompendo o equilíbrio interacional que pressupõe o princípio da cooperação na comunicação, segundo Grice5(1975).A interação só volta a ter esse equilíbrio quando a participante feminina, diante à defesa da sua imagem ("Não, “seu” Manuel!"), faz uso de estratégias mitigadoras como a justificação e a formulação do pedido com vários procedimentos linguísticos como vistos anteriormente. À continuação, para mostrar como o pedido realizado por uma voz feminina é posto em evidência de modo negativo, vamos passar para o diálogo 2 apresentado no livro Bem-vindo!. No contexto também temos uma conversa entre um homem (encanador) e uma mulher (dona do local). A conversa se realiza face a face e veremos que ambos procuram preservar ou minimizar os enunciados. Vejamos: (4) J: Não tem jeito não senhora! Vamos ter que trocar o cano. F: Mas é um vazamento tão pequeno! Não dá para consertar o cano? J: Não dá não! Vamos ter que quebrar os azulejos e trocar o cano bem em cima da bacia sanitária. F: Oh! Meu Deus! E se não acharmos azulejos iguais? Nessa interação face a face, o trabalho de imagem é mais meticuloso entre os interlocutores, por exemplo, o homem, ao dar a notícia desfavorável, usa uma estratégia de atenuação para tornar o enunciado mais suave –"vamos"–desfocalizando o centro dêitico "eu"(nós inclusivo) do locutor, o qual o apresenta de forma menos imperativa e cria uma cumplicidade com o interlocutor.Mesmo a mulher, ao contestar a notícia começa pela exposição de uma justificativa ("mas é um vazamento tão pequeno") que antecipa e previne a possível ameaça à imagem do interlocutor por Grice (1975[1982], p. 86), sobre o "Princípio de cooperação", postula: " faça sua contribuição conversacional tal como é requerida, no momento em que ocorre, pelo propósito ou direção do intercâmbio conversacional em que você está engajado." 5 BLANCO, Yedda Alves de Oliveira Caggiano | 2020 | p. 345-364 360 A construção da imagem feminina nos enunciados exortativos e assertivos ... invasão do território que produzirá o pedido que será feito. Quando, ao realizar o pedido de forma indireta, mediante uma formulação negativa ("não dá para consertar o cano?"), para não parecer ser tão impositiva, de fato, evita invadir o território do outro e, também, preserva sua própria imagem. Nos enunciados, percebemos que a voz masculina é, embora atenuada, sempre assertiva "Vamos ter que trocar o cano" ou "Vamos ter que quebrar os azulejos". Ao passo que as enunciações feita pela mulher expressam: a) um argumento de súplica: "Mas é um vazamento tão pequeno! ";b) timidez:"Não dá para consertar o cano?"; c) apelo: "Oh, meu Deus"; d) desespero: "E se não acharmos azulejos iguais?". Esses enunciados constroem ou retratam a imagem da mulher marcada pelo uso excessivo de sentimentalismo, presentes nas exclamações e no uso da interjeição apelativa ("Oh, meu Deus"), que dão ao discurso um tom de desespero ou sobre atuação da interlocutora e reforçam o tom dramático à situação apresentada.De fato, não há aqui uma ideia de descrédito da voz feminina, como no diálogo anterior, mas a construção de uma imagem aflita e agoniada como se não fosse capaz de aceitar a realidade fática. Diferente dos diálogos 1 e 2, a próxima interação, obtida do livro Fala Brasil, ocorre entre dois participantes masculinos. Os enunciados iniciam com a identificação dos participantes, pois não é uma interação face a face: (5) - Alô? - O seu Clemente está? - É ele mesmo. - Seu Clemente? Aqui é o Silva da farmácia. Tudo bem? Após a apresentação, o interlocutor tem certeza de que quem chama está precisando de algo: (6) - Oi, seu Silva! O que o senhor manda? - É a descarga do banheiro que não está funcionando. - Tudo bem. Eu dou um pulinho aí daqui a meia hora. - Tá ótimo, seu Clemente. Até já. Assim, observamos que o pedido é feito aludindo à indicação de que há um problema (“É a descarga do banheiro...").O locutor não faz o pedido de forma direta, informa que a descarga não funciona, sugere que necessita de conserto, isto é, usa na asserção uma indiretividade que só pode ser compreendida pelo contexto onde é produzido e pela "simples referência ao objeto" (HAVERKATE, 1994, p. 157): "a descarga não funciona".Feita a referência ao objeto quebrado, o interlocutor interpreta o ato de fala como um pedido, assim como seu caráter de urgência, pelo qual agenda o conserto imediatamente: “dou um pulinho aí daqui a meia hora." Em comparação aos diálogos 1 e 2, nota-se que no exemplo 3 não há dúvidas sobre o problema, não há necessidade de negociação do serviço, não há possíveis queixas sobre se terá que quebrar o azulejo ou não. Assim, os atos de fala se organizam em "pares adjacentes" que devem ser entendidos como sequências de enunciados produzidos pelos falantes (HAVERKATE, 1994, p.74). Em conformidade, as autoras Ferrer e Lanza (2002, p. 12), afirmam que: BLANCO, Yedda Alves de Oliveira Caggiano | 2020 | p. 345-364 361 Discurso e poder: teoria e análise "as segundas partes que satisfazem as expectativas das primeiras são denominadas respostas preferidas [...] enquanto que as respostas que significam rejeição, não aceitação [..] são as despreferidas". De tal modo, ante o pedido de um serviço, que é um ato diretivo em benefício próprio, espera-se uma resposta positiva (resposta preferida)que, em caso de não ser assim, teoricamente deveria ser expressa de modo cortês, uma vez que frustram as expectativas do interlocutor.Nos enunciados apresentados nos diálogos, podemos observar a seguinte estrutura conversacional entre os participantes: Quadro 4. ESTRUTURA DA CONVERSAÇÃO Tomada de turnos Organização interacional Sistema de preferências DIÁLOGO 1 Alternância de turnos DIÁLOGO 2 Alternância de turnos DIÁLOGO 3 Alternância de turnos Pares adjacentes prototípicos (pergunta-resposta) Não preferencial (negação do pedido; negociação, aceitação) Marcas: olha, mas, hum, desculpas, justificativas Pares adjacentes prototípicos (perguntaresposta) Não preferencial (negação do pedido; negociação, aceitação) Marcas: mas, justificativas Pares adjacentes prototípicos (perguntaresposta) Preferencial (resposta imediata em benefício do locutor) Não marcada Fonte: Elaboração própria Ainda, em relação à estrutura da conversação, notamos que os turnos dos diálogos 1 e 2 apresentam um sistema de preferências marcadas por léxicos que exprimem a negociação entre os interlocutores, conforme o quadro 5. Assim, percebese que no sistema de preferências as marcas discursivas se fazem significativamente presentes nesses dois diálogos, nos quais podemos observar as táticas de negociação entre os interlocutores. Quadro 5. Táticas de negociação Negociação Dúvida sobre o pedido Negação ao pedido Sugestão para o conserto Concordância com o pedido DIÁLOGO 1 Mas, D. Carmela, esse serviço já não foi feito na semana passada? a) Olha, D. Carmela, se eu pudesse ia agora mesmo. Mas tenho outro serviço urgente para fazer. b) Humm... E se fosse amanhã cedo? DIÁLOGO 2 DIÁLOGO 3 X X X X X Não dá para consertar o cano? X Pode deixar, D. Carmela. A senhora me conhece! Amanhã às 7 horas, estou aí. Vamos ter que quebrar os azulejos... Eu dou um pulinho aí daqui a meia hora. Fonte: Elaboração própria Os exemplos acima, com enunciados dentro do mesmo eixo temático de "pedido de serviço de encanador", mostraram-nos uma visão do ato de fala da voz BLANCO, Yedda Alves de Oliveira Caggiano | 2020 | p. 345-364 362 A construção da imagem feminina nos enunciados exortativos e assertivos ... feminina marcada por dúvida ou falta de credibilidade. E, retomando os pontos sobre o ethos efetivo (Figura 1), apresentado na base teórica, sabe-se que há diversas construções discursivas na interação que podem levar aos estereótipos com a repetição de certas características, a colocação sempre de determinadas atitudes em determinados tipos de imagens, a negação de posicionamentos etc. que podem reforçar a construção desse tipo discursivo. Em relação aos enunciados analisados, vê-se a marca de uma característica presente na construção da locutora feminina nos diálogos apresentados, ou seja, uma imagem pré-fabricada de um tipo de mulher que não sabe o que pede (mesmo que seja para o conserto do cano), ou daquele tipo de imagem de queixume sobre determinado fato dado (Oh, meu Deus!). Fica evidente que, na apresentação dos enunciados sobre atos de fala de pedidos diretivos que se apresentam nesses materiais analisados,a imagem feminina é construída como a voz que pode ser questionada, colocada em dúvida – mantém certo tipo de estereótipo que, em contraste com a imagem masculina apresentada na análise, parece não condizer com a realidade do século XXI. Também, podemos percebê-los como atos que colaboram com a visão de Van Dijk e Diana Bravo quando fazem referências às questões de contexto e modelo mental. Van Dijk (2012, p.34) esclarece que o contextodeve partir do princípio de que é um construto subjetivo dos participantes, no qual as “situações sociais só conseguem influenciar o discurso através de interpretações (intersubjetivas) que delas fazem os participantes.” Esse construto faz parte de um modelo mental, individual, e não só situacional. Desse modo, a repetição de determinadas imagens sociais contribui para consolidar o estereótipo construído no discurso. Considerações finais O objetivo do artigo foi mostrar como os livros didáticos de PLE apresentam as vozes femininas nos atos de fala de pedidos de serviços. No corpus para a análise, usamos manuais que contemplavam o ensino de como fazer pedidos para consertos em geral e obtivemos, como eixo comum, situações de pedidos por serviço de encanador. Na análise, verificou-se que, nos enunciados para fazer os pedidos desse tipo de serviço, a imagem da mulher era posta em destaque com atos ameaçadores a sua face, expondo-as a situações que precisariam convencer o outro a respeito do pedido. A voz, muitas vezes, colocada em dúvida na enunciação, pedia que houvesse, nesses casos assinalados, a necessidade de negociar o serviço. Ao contrário, a voz masculina não foi colocada em situações ameaçadoras à imagem e nem posta em dúvida pelo interlocutor, pois, ao realizar o pedido, obtinha a resposta preferida prontamente, sem questionamentos ou negociações. Conclui-se que o discurso reproduzido, nesses livros analisados, contribui para a perpetuação de um estereótipo que, nos dizeres de Amossy (1991), é “préfabricado” e recriado nos textos "monotonamente". Em consequência, perpetua-se a BLANCO, Yedda Alves de Oliveira Caggiano | 2020 | p. 345-364 363 Discurso e poder: teoria e análise ideia de que a mulher não sabe explicar ou ser convincente sobre o ato de realizar os pedidos, uma vez que as situações produzidas colocam em dúvida tal capacidade, apresentando, na maior parte das vezes, uma construção de mulher queixosa e não confiável. Por fim, também, percebe-se que há nos materiais analisados, uma manutenção de um aspecto social e linguístico dados como tipicamente da mulher por meio da repetição dessa imagem estereotipada que necessita ser afrontada e desqualificada pela imagem do Outro. Referências bibliográficas AMOSSY, Ruth. Les Idées Reçues. Sémiologie du Stéréotype. Paris: Éditions Nathan, 1991. AUSTIN, John L. Quando dizer é fazer. Palavras e ação. Tradução de Danilo Marcondes S. Filho. Porto Alegre: artes Médicas, 1990. BLANCO, Yedda A. O. C. Estereótipo Discursivo e Descortesia em Materiais de PLE. 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