Estudos em Comunicação, Sociedade e Cultura
Nº 9 | Ano 2015
Universidade Federal do Paraná | Programa de Pós-Graduação em Comunicação
Comunicação Pública ou Vaidade Política?1
Public Communication or Political Vanity?
Comunicación Pública o Vanidad Política?
Juliane do Rocio JUSKI2
João Paulo da SILVA3
BUCCI, Eugênio. O Estado de Narciso: a comunicação pública a serviço da vaidade particular.
São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
A comunicação pública é, por natureza, polissêmica, pois inúmeras são as possibilidades
de significados e apropriações. Mais amplo ainda é o leque de aplicações do seu termo, que, por
vezes, caracteriza uma prática não condizente com sua origem. Eugênio Bucci apresenta em
seu livro “O Estado de Narciso: a comunicação pública a serviço da vaidade particular” uma
crítica ao que ele trata como sendo, ou deveria ser, comunicação pública, mas que, na prática,
pode ser nomeada como comunicação governamental, comunicação partidária ou marketing
eleitoral, mas não pública.
Embora a abordagem seja extremamente crítica, a obra traz alguns aspectos importantes,
como o olhar aguçado para a realidade da comunicação realizada dentro da administração
pública: direta, indireta, empresas públicas e, inclusive, concessões públicas.
Outro ponto a salientar é a relação com a legalidade. O autor embasa o debate nos
aspectos legais que envolvem a “coisa pública”, uma vez que essa reflexão tem por parâmetros
também o embasamento jurídico, principalmente com a Constituição Federal, promulgada em
1988.
Para iniciar as discussões, o autor apresenta, na primeira parte do livro, diversos conceitos
sobre o que seria ou não classificado como “comunicação pública”, para isso ele elenca autores
renomados no assunto, que possuem como princípio norteador a essência dessa comunicação
que almeja o interesse público.
Quando ele estabelece o ponto de partida em relação ao conceito de comunicação pública,
formulando, inclusive, uma definição, evidencia-se um aspecto importante para os estudos
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Resenha apresentada à nona edição da Revista Ação Midiática – Estudos em Comunicação, Sociedade e Cultura, publicação ligada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação, da Universidade Federal do Paraná.
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Mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Paraná. Bacharel em Comunicação Social: Relações Públicas e
assessora de imprensa. E-mail:
[email protected]
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Mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Paraná. Bacharel em Comunicação Social: Jornalismo e jornalista
da Prefeitura de Brusque/SC. E-mail:
[email protected]
ISSN: 2238-0701
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contemporâneos de comunicação pública no Brasil. Os trabalhos atuais na área caminham para
uma estabilização do termo, uma vez que, como o próprio autor menciona na obra, a polissemia
em relação ao conceito de comunicação pública sempre foi muito presente e as novas pesquisas
têm desvendado os vários sentidos, culminando em um conceito mais estável, o que se relaciona
com o que o autor traz na primeira parte do livro.
Já na segunda parte do livro, Bucci discute sobre a razão de ser das emissoras públicas.
Primeiramente, ele aponta as diferenças entre emissoras públicas, estatais e comerciais.
A diferenciação que o autor faz entre os tipos de emissoras é com relação a três aspectos: a
gestão da emissora, a fonte dos recursos financeiros e a linha editorial. Bucci enfatiza bastante
essa diferença ao afirmar que apenas as emissoras que possuem uma gestão administrativa
independente, não subserviente ao governo, são realmente independentes. A fonte de recursos
deve ser exclusivamente pública, sem qualquer interferência de capital privado, portanto, as
emissoras ditas “públicas” não devem oferecer espaços de publicidade, e nem estar atreladas
aos patrocinadores e anunciantes. E, por fim, a liberdade e a independência da linha editorial,
pois, segundo o autor, a emissora pública é autônoma para veicular qualquer notícia, uma vez
que suas principais atribuições são informar o cidadão e despertar a visão crítica do espectador,
ampliando, assim, as noções de cidadania. Bucci resume essa posição da seguinte maneira:
Não importa qual seja o cenário de atuação, a vida de uma emissora pública é regida
pelo conceito de independência. Esse conceito envolve a ideia de autonomia, assim
como envolve o princípio fundamental da liberdade de expressão. O conceito ganha
concretude em três vertentes que combinam e se entrelaçam de modo inseparável: a
independência financeira, a independência administrativa e a independência editorial
(BUCCI, 2015, p. 126).
Para exemplificar como esse modelo proposto pode ser observado na prática, o autor
cita o exemplo da TV pública britânica, a BBC, além de outras emissoras ao redor do mundo.
No entanto, ele entende e enfatiza que a proposta de canal público na Inglaterra é o modelo mais
próximo do que considera ideal.
Após apresentar os modelos internacionais, Bucci analisa o cenário brasileiro. Essa é a
primeira crítica enfática do autor para o modelo nacional, quando discute a TV Cultura, ligada
ao governo do estado de São Paulo. Bucci relata sua experiência pessoal para comentar sobre
a estrutura administrativa e a linha editorial da televisão pública brasileira. Ele comenta sobre
a existência de uma comissão que legisla e fiscaliza o corpo executivo da TV Cultura, e que, a
priori, deveria garantir a independência da linha editorial da emissora. No entanto, ele esclarece
que, na prática, a coisa muda de figura, pois a dependência do canal televisivo ao governo
estadual ainda é muito arraigada e forte, portanto, assuntos que não interessam ao governo do
Estado não possuem espaço na emissora.
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Outro ponto que o autor aborda - e que pode ser considerado o principal discutido no
livro - é com relação ao espaço que a publicidade governamental, mesmo que velada, ocupa na
programação da emissora. Ele reforça que a legislação e a Constituição brasileira asseguram aos
cidadãos o direito à informação, e que governos e partidos não deveriam se apropriar de meios
de comunicação para se promoverem, principalmente quando próximo a eleições. No entanto,
a realidade é outra, o autor enfatiza que o governismo que tomou conta do país conseguiu
brechas nessa legislação e, com isso, passou a se utilizar das emissoras para autopromoção, daí
a expressão “Estado de Narciso”. Candidatos e políticos utilizam como pretexto campanhas e
espaços de informação ao cidadão para fixar, assim, seus slogans, brasões e logomarcas que
indicam ou associam ações governamentais a determinada gestão ou pessoa pública. E, como
ilustra o autor, no caso brasileiro, a TV Brasil é um grande exemplo disso, por ser extremamente
atrelada ao governo federal.
A terceira parte do livro retrata uma veemente crítica ao programa Voz do Brasil, uma
iniciativa que nasceu na Era Vargas e que até hoje se “figura na programação como um cadáver
insepulto” (BUCCI, 2015, p. 150). Nesse ponto, Bucci resgata mais uma vez sua experiência
pessoal à frente da Radiobrás para descrever o programa de rádio obrigatório no Brasil, e que
serve apenas como mais um meio de autopromoção dos governistas e de toda a sua base aliada
para se manter na gestão. É um meio descarado de driblar a informação e negar ao cidadão a
verdade. A obrigatoriedade da retransmissão do programa é mais uma característica, segundo o
autor, que o demonstra como um programa de uma ditadura que não prioriza a essência do que
deveria ser público.
Na quarta parte da obra, Bucci discute sobre a publicidade governamental e como ela
serviu de meio para canalizar milhões de reais do dinheiro público para promover candidatos
e partidos, além de afirmar que assume espaços consideráveis, tanto nas emissoras públicas
quanto nas privadas. Alguns veículos são completamente dependentes da verba advinda da
publicidade governamental, e, mais uma vez, os políticos se utilizam de caminhos escusos para
driblar a legislação e utilizar como pretexto a divulgação de informação ao cidadão para se
autopromoverem. Para o autor:
Com a consolidação da sociedade de consumo, na qual as relações de consumo
passaram a dar respostas às indagações próprias das relações de cidadania, a propaganda
eleitoral explodiu como um negócio e como linguagem. O político profissional se
tornou, então, uma mercadoria que o consumidor eleitor pode “consumir” por meio
do voto. A identidade do político se transmuta em marca vendável. Quanto mais
“vendável”, mais eficiente será seu discurso (BUCCI, 2015, p. 183).
Nessa perspectiva, o autor descaracteriza tudo como público ou de interesse público,
e, sob esse ponto de vista, a comunicação pública não existe. Para Bucci, tudo que o governo
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faz não passa de comunicação governamental e marketing político, e até mesmo as emissoras
privadas que tentariam promover o interesse público não o fazem, pois, uma vez que o
capital que financia esses veículos é privado, não há legitimidade para se caracterizarem
como emissoras públicas. Mais uma vez, Bucci reitera que só podem ser caracterizadas como
públicas as emissoras que contemplarem os três aspectos por ele já mencionados, sendo:
gestão administrativa transparente, livre de pressões políticas e governamentais; linha editorial
independente e financiamento público, com dinheiro vindo exclusivamente do erário brasileiro.
Na quinta parte, Bucci retrata aproximações entre a gestão pública, a cultura e o jornalismo.
E reflete sobre a questão do jornalismo público se aproximar e muito da cultura, uma vez que
a intenção do jornalismo, além de informar, é promover a cultura de forma igualitária, daí a
grande aproximação entre os campos. Este fato não se aplica ao caso brasileiro, pois a Empresa
Brasileira de Comunicação - EBC está ligada à Secretaria de Comunicação do governo federal,
o mesmo ministério responsável pela publicidade governamental e pelo zelo da imagem da
presidência da República. Para o autor, é paradoxal uma secretaria responsável pela promoção
do Estado ser responsável também pelo jornalismo, que, a priori, é uma entidade independente
e promove, em primeiro lugar, a informação e a cultura aos cidadãos.
Por fim, Bucci elenca alguns princípios que deveriam ser seguidos para construirmos
veículos de comunicação pública no Brasil, sendo eles:
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2.
3.
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6.
Eliminar os gastos da publicidade oficial dos governos.
Impedir a administração direta de veicular qualquer mensagem alusiva a causas,
com palavras de ordem governistas, e barrar a veiculação de slogans e logotipos que
identifiquem a gestão.
Retirar dos veículos comerciais a chamada publicidade legal dos órgãos públicos
(aquela que precisa ser divulgada por força da lei, como editais e balanços).
Dotar todas as empresas públicas e fundações encarregadas de comunicação social, que
tenham vínculos diretos ou indiretos com os Poderes da República, bem como todas
as emissoras públicas sustentadas pelo Estado, as publicações e os sites informativos
de órgãos públicos, de conselhos independentes que seriam incumbidos de escolher (e
demitir) os dirigentes executivos.
Extinguir a publicidade comercial nas emissoras públicas.
Acabar, de uma vez por todas, e incondicionalmente, com a obrigatoriedade do
programa A Voz do Brasil, símbolo ancestral da partidarização governista da
comunicação pública (BUCCI, 2015, p. 223-225).
A obra traz as marcas evidentes de quem aborda o tema com senso de realidade,
consequência da sua experiência no período em que esteve no governo federal, atuando
como presidente da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC), e também como membro do
Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta. Reflexo disso é o tom adotado por ele e até
certo pessimismo em relação às práticas de comunicação pública realizadas nas instituições
governamentais.
Esses aspectos culminam em um ponto positivo: a necessidade que a sociedade tem
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de refletir a respeito da comunicação realizada com o dinheiro público, uma vez que essa vem
servindo aos “Narcisos”. Essa reflexão é um ponto importante para que se caminhe para uma
efetiva comunicação pública.
Outra questão em relação à obra, tendo em vista a evidente experiência do autor na
área que abrange principalmente as TVs públicas, é que grande parte do debate se direciona
às TVs, mas o que se deve destacar é que, mesmo com essa predominância, ele consegue
abranger os vários pontos que perpassam a comunicação pública, uma vez que aborda esse tipo
de comunicação na administração pública: direta, indireta, empresas públicas e concessões, e,
de forma central, as televisões públicas.
Dessa forma, O Estado de Narciso, como já citado, é um estudo importante para
compreendermos a prática da comunicação pública, tendo em vista que o conceito começa a
se consolidar e, com isso, a percepção para a prática ganha outros aspectos, principalmente o
ganho social com a comunicação pública de fato.
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