Academia.eduAcademia.edu

A naturalidade de Fernão de Magalhães

Anais, Academia Portuguesa da História, III série, volume 6, tomo III, Lisboa, 2021, p. 369-404.

Demonstração de que Fernão de Magalhães nasceu no Porto depois de se analisarem todas as possibilidades que até agora se haviam colocado sobre qual a povoação onde ele nasceu.

ACADEMIA PORTUGUESA DA HISTÓRIA ANAIS III SÉRIE VOLUME 6 Tomo III LISBOA MMXXI ÍNDICE CONTEÚDO HOMENAGEM À DR.ª MARIA BARROSO . . . . . . . . . . . . . . . . 9 Vítor Melícias MONARQUIA DO NORTE – A GUERRA CIVIL ENTRE MONÁRQUICOS E REPUBLICANOS. ONDE DOIS GOVERNOS GOVERNARAM PORTUGAL DURANTE TRÊS SEMANAS . . . 23 . . . . . . . 43 . . . . . . . 65 Pedro Marçal Vaz Pereira A CRÓNICA SOCIAL NOS ÚLTIMOS REINADOS DA MONARQUIA ATRAVÉS DO JORNAL LISBOETA DIARIO ILLUSTRADO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Lourenço Correia de Matos LÚCIA DE JESUS (1907-2005), FIGURA HISTÓRICA SINGULAR DO CATOLICISMO CONTEMPORÂNEO Marco Daniel Duarte JOÃO RODRIGUES DE CASTELO BRANCO, TROVADOR-POETA DOS MAIORES DO SEU TEMPO. . . . . . . 97 Joaquim Candeias da Silva O PADRE MANUEL DE AZEVEDO, S.J., (1713-1796) E O PAPEL QUE PODERÁ TER DESEMPENHADO NA NORMALIZAÇÃO DAS RELAÇÕES ENTRE PORTUGAL E A SANTA SÉ . . . . . . . . . . . 117 Alexandre de Sousa Pinto A FAMÍLIA FRANCISCANA EM LISBOA (1217-2017) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 155 Henrique Rema HISTÓRIA DAS ORIGENS OU UMA HISTÓRIA QUE ILUMINA O PRESENTE? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 191 Armindo dos Santos Vaz «MISSIONÁRIOS POLÍTICOS OU EMBAIXADORES ESPIRITUAIS». EPISÓDIOS DRAMÁTICOS DA DIPLOMACIA PORTUGUESA NO PERÍODO DA RESTAURAÇÃO . . . . . . . . . 231 . . 257 . . . . . 287 Ana Leal de Faria A PROPÓSITO DE SANTA BEATRIZ DA SILVA: NOTAS SOBRE ESPIRITUALIDADE E REFORMA NO TEMPO DOS REIS CATÓLICOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Margarida Garcez Ventura DAMIÃO DE GÓIS, CRONISTA E HUMANISTA: UMA ABORDAGEM HISTORIOGRÁFICA À CRÓNICA DE DOM MANUEL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Isabel Moser O ESTATUTO CIVIL DOS INSTITUTOS RELIGIOSOS EM PORTUGAL NO SÉCULO XX . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 313 EVOCAÇÃO DE CARVALHO ARAÚJO NO CENTENÁRIO DA SUA MORTE. JOSÉ BOTELHO DE CARVALHO ARAÚJO, O MILITAR, O POLÍTICO, O HERÓI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 343 António Montes Moreira José António Cervaens Rodrigues A NATURALIDADE DE FERNÃO DE MAGALHÃES . . . . . . . . 369 José Manuel Garcia ORAÇÃO DE SAPIÊNCIA PROFERIDA NA RECEPÇÃO ACADÉMICA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . D. Emanuel D’Able do Amaral 8 . . . . . 405 A NATURALIDADE DE FERNÃO DE MAGALHÃES COMUNICAÇÃO APRESENTADA EM SESSÃO ORDINÁRIA DE 28 DE NOVEMBRO DE 2018 PELO Académico Correspondente JOSÉ MANUEL GARCIA A NATURALIDADE DE FERNÃO DE MAGALHÃES F ernão de Magalhães alcançou uma enorme projeção mundial por ter sido um dos descobridores mais notáveis de todos os tempos visto ter sido o responsável e dirigente da mais difícil e longa viagem marítima da História, durante a qual se deu a primeira volta ao mundo. Por tal motivo bem se vê estarmos perante um português que deve ser conhecido da melhor forma possível e é nesse sentido que iremos aqui abordar e esclarecer uma das questões mais controversas da sua biografia: a que consiste no apuramento de qual foi a sua naturalidade. Para tratar tal assunto vamos analisar os testemunhos existentes e mostrar que eles vão no sentido de provar que Fernão de Magalhães nasceu no Porto. Antes de o fazermos iremos passar em revista as atribuições que até agora foram apontadas no sentido de identificar a sua origem. 1. AS SETE ATRIBUIÇÕES DE NATURALIDADE DE FERNÃO DE MAGALHÃES Numa breve perspetiva historiográfica começamos por referenciar as sete conjeturas que até agora foram formuladas no sentido de identificar a naturalidade de Fernão de Magalhães. 371 JOSÉ MANUEL GARCIA Um tão elevado número de atribuições revela o facto de estarmos perante um tema que motivou o interesse de várias pessoas ao longo do tempo e que na sua maioria não conseguiram apurar a sua real naturalidade, a qual ficou obscura até 1837. Lisboa Lisboa foi a mais antiga naturalidade atribuída a Fernão de Magalhães num texto impresso, pois foi registada em 1603 por Fray Antonio San Roman ao escrever: “Fernando de Magallanes Portugues, y natural de Lisboa, gran soldado y particular marinero”1. Uma tal afirmação resultou por certo da imaginação deste autor tardio talvez por ter pensado ser Fernão de Magalhães dali natural por ser a cidade mais importante de Portugal e de ter sabido que a ela esteve ligado pelas suas atividades. De facto foi em Lisboa que Fernão de Magalhães centrou a sua vida adulta antes de ter ido para Espanha em 1517, mas não há qualquer dado que aponte para a possibilidade de aí ter nascido. Não é credível que tantas décadas depois da morte de Fernão de Magalhães em 1521 pudesse haver em 1603 algum testemunho que fundamentasse uma tal afirmação, a qual está em contradição com a maior parte das referências antigas que se conhecem sobre Fernão de Magalhães. Não tendo credibilidade a noção transmitida por Fray Antonio San Roman ainda assim não devemos esquecer que na viagem da armada de Fernão de Magalhães iniciada em 1519 participou um Martim de Magalhães que era natural de Lisboa e 1 Historia General de la Yndia Oriental: Los Descubrimientos y Conquistas que han hecho las Armas de Portugal, en el Brasil, y en otras partes de Africa, y de la Asia; y de la Dilatacion del Santo Euangelio por aquellas grandes Prouincias, desde sus principios hasta el Año de 1557, compuesta por Fray Antonio San Roman Monge de San Benito, Valladolid, Luis Sanchez, a costa de Diego Perez, 1603, Livro II, capitulo 25, p. 341. 372 A NATURALIDADE DE FERNÃO DE MAGALHÃES foi parente de Fernão de Magalhães. A sua biografia tem ainda de ser aprofundada de forma a revelar melhor as ligações que tinha com o grande descobridor. Para tal efeito há fontes importantes por explorar2. Figueiró dos Vinhos A possibilidade de Fernão de Magalhães ter nascido em Figueiró dos Vinhos foi referenciada cerca de 1765, embora só tenha sido dada a conhecer em 1860 por Ferdinand Denis, quando tal informação foi publicada pela primeira vez3. Esta atribuição talvez se fundamente numa eventual confusão com algum homónimo de Fernão de Magalhães. O texto em que tal alusão é feita surge num Nobiliário da Casa do Casal do Paço [de Arcos-de-Valdevez], oferecido a Gaspar Barbosa Malheiro por seu tio frei João da Madre de Deus, onde se pode ler: Lopo Rodrigues de Magalhães. Foi para a vila de Figueiró dos Vinhos para ser tutor dos filhos dos senhores de Figueiró e Pedrógão Grande, os quais eram sobrinhos de Isabel de Sousa, mulher de seu tio João de Magalhães, senhor da Barca. A qual tutoria foi por muitos anos por ordem do rei, o qual por este motivo lhe escreveu muitas cartas honrosas. Foi escrivão das cisas de Figueiró (…). Casou com Margarida Nunes, de quem teve: 2 CF. nomeadamente El descubrimiento del océano Pacífico: Vasco Núñez de Balboa, Fernando de Magallanes y sus compaíñeros, edição de José Toribio de Medina, Santiago de Chile, Imprenta Universitaria, 1920, p. CCCCIVCCCCVI. 3 Nouvelle biographie générale depuis les temps les plus recules jusqu’a nos jours, tomo 32, Paris, 1860, p. 672. 373 JOSÉ MANUEL GARCIA Fernando de Magalhães, cavaleiro de Santiago, descobridor do Estreito do seu nome. Fez-se inventário pela morte do seu pai e dele consta estar casado na ilha de S. Miguel4. Esta hipótese de naturalidade não tem credibilidade pois basta ver que o nome do pai está errado e nunca houve qualquer ligação de Fernão de Magalhães à ilha de São Miguel nos Açores. Sabrosa A atribuição de Sabrosa como local de nascimento de Fernão de Magalhães foi muito divulgada através de obras impressas, referências na Internet e notícias dos meios de comunicação social mas tem de se esclarecer devidamente quão errada ela é. Para o fazer temos de começar por referir que a sua origem se encontra em documentos forjados em 1796, evidência iniludível que já ficou sobejamente demonstrada por muitos historiadores. Por tal motivo tal facto tem de ser assumido definitivamente e sem margem para qualquer dúvida5. 4 Esta obra encontra-se na Biblioteca Pública Municipal do Porto ms. n.º 324, tomo 8.º, cap. III, de que alguns trechos foram publicados por D. José Manuel de Noronha, «Algumas observações sobre a naturalidade e a família de Fernão de Magalhães», O Instituto, n.º 68, 1921, p. 139. Cf. ainda Visconde de Lagoa, Fernão de Magalhães: a sua vida e a sua viagem, livro 1, Lisboa, Seara Nova, 1938, p. 88. 5 Limitamo-nos a destacar de entre os trabalhos que o trataram os de: D. José Manuel de Noronha em «Algumas Observações sobre a Naturalidade e a Família de Fernão de Magalhães», O Instituto, n.º 68, 1921, p. 113-141; Visconde de Lagoa, Fernão de Magalhães: a sua vida e a sua viagem, livro 1, Lisboa, Seara Nova, 1938, p. 88-97; Queirós Veloso, Fernão de Magalhães: a vida e a viagem, Lisboa, Editorial Império, 1941, p. 12-14; Manuel Villas-Boas, Os Magalhães: sete séculos de aventura, Lisboa, Referência / Editorial Estampa, 1998, p. 256-257; Le voyage de Magellan (1519-1522): la relation d´Antonio Pigafetta et autres témoignages, edição de Xavier de Castro, 2.ª edição, Paris, Chandeigne, 2010, p. 312-314; Irene 374 A NATURALIDADE DE FERNÃO DE MAGALHÃES Sobre a falsa atribuição do nascimento de Fernão de Magalhães a Sabrosa apontamos apenas o essencial dos fundamentos de uma tão fantasiosa criação que nasceu da leitura de um códice do arquivo da família Aragão em Vila Flor contendo Documentos relativos ao grande navegador Fernão de Magalhães, descubridor do estreito com o seu nome, e outros títulos e notícias sobre a sua família em Sabroza. A versão completa de tais documentos só foi publicada em 1921 por Francisco Manuel Alves6. Até então eles só eram conhecidos a partir de algumas das suas partes que começaram a ser referenciadas em 1860 por Ferdinand Denis, que foi assim o iniciador da divulgação desta mistificação que infelizmente tanto sucesso alcançou. Este autor tendo emendando de forma desafortunada a correta atribuição que anteriormente havia feito ao Porto como local de nascimento de Fernão de Magalhães escreveu que: “On suppose généralement qu’il naquit à Porto; mais des documents inédits, qu’on nous a fait parvenir du Portugal, lui donnent pour lieu de naissance Villa de Sabroza, dans la Comarca de Villareal, province de Tras-os-Montes”7. Esta ideia de atribuir a naturalidade de Fernão de Magalhães a Sabrosa foi aceite e divulgada em 1864 por Diego Barros Arana em Vida i viajes de Hernando de Magallanes, Santiago, Imprenta da Silva Dantas, Entre Memórias: a questão da naturalidade de Fernão de Magalhães, Braga, tese de mestrado apresentada à Universidade do Minho Instituto de Ciências Sociais, 2012 (file:///C:/Users/ameli/Desktop/00%20 Naturalaide%20de%20Magalhães%20 Irene%20da%20Silva%20Dantas.pdf) e Amândio Barros, O homem que navegou o mundo: em busca das origens de Magalhães, Braga, AL - Publicações, 2015, p. 36-46. 6 “O grande navegador Fernão de Magalhães”, O Instituto, 68, Coimbra, 1921, p. 65-80. 7 Nouvelle biographie générale depuis les temps les plus recules jusqu’a nos jours, tomo 32, Paris, 1860, coluna 671. 375 JOSÉ MANUEL GARCIA Nacional8 e aprofundada em 1881 na sua tradução portuguesa feita por Fernando de Magalhães Vilas-Boas em Vida e viagens de Fernão de Magalhães, Lisboa, Academia Real das Ciências de Lisboa9. De entre as muitas obras que por uma questão de facilidade e sem espírito crítico seguiram estas indicações conta-se um livro recente da autoria de Laurence Bergreen10. No códice acima citado contem-se um processo criado em 1796 por António Luís Alvares Pereira Coelho da Silva Castelo Branco de Magalhães tendo em vista servir de suporte à sua pretensão de se afirmar como herdeiro de Fernão de Magalhães para assim reclamar junto do estado espanhol o seu alegado direito à pretensa herança do famosos navegador. Foi nesse sentido que esse fidalgo apresentou uma certidão passada em 1796 por um escrivão da Câmara de Fafe contendo dois testamentos falsos, um de Fernão de Magalhães, alegadamente feito em Belém a 17 de dezembro de 1504, e outro alegadamente feito no Maranhão a 3 de abril de 1580 por um seu pseudo sobrinho neto chamado Francisco da Silva Teles. Não sendo necessário desenvolver aqui um assunto que já está mais que esclarecido iremos ainda assim apontar dois pontos de entre as muitas imposturas, incongruências e anacronismos do suposto testamento de 1504, que evidenciam quão falso ele é. Um desses pontos é o tratamento que nele é dado por três vezes ao rei D. Manuel I sob a forma de “sua majestade”. Ora esta importante forma de tratamento só foi dada aos reis de Portugal a partir de 8 Cf. p. 1 e 133. 9 Cf. p. 177-180. 10 Over the edge of the world: Magellan’s terrifying circumnavigation of the globe, Londres, Harper Collins, 2003, obra que obteve um largo sucesso tendo sido traduzida em várias línguas, nomeadamente a portuguesa ao ser editada com o título Fernão de Magalhães: para além do fim do mundo. A extraordinária viagem de circum-navegação, Lisboa, Bertrand, 2005, p. 32. 376 A NATURALIDADE DE FERNÃO DE MAGALHÃES 1577, sendo que até então eles só podiam ser tratados por “sua alteza”. Outra das evidências fáceis de verificar que leva a perceber quão falso é tal documento reside na circunstância de aí se referir apenas uma irmã de Fernão de Magalhães com o nome de D. Teresa de Magalhães, pois ela nunca existiu, visto ser seguro que ele teve apenas uma irmã chamada Isabel de Magalhães, além de mais dois irmãos, que não foram mencionados. Para não ter de refazer a argumentação de autores anteriores que já desmontaram à saciedade quão fabulosa é esta atribuição da naturalidade de Fernão de Magalhães a Sabrosa limitamo-nos a citar parte do que Queirós Veloso escreveu sobre esta questão ao referir que tal atribuição “deve ser absolutamente rejeitada” pois: Os dois testamentos [1504 e 1580] são falsos, expressamente forjados para mostrar que António Luís Álvares Pereira, senhor da casa da Pereira em Sabrosa, descendia do insigne navegador, por linha colateral, na qualidade de oitavo neto e sucessor de D. Teresa, irmã de Fernão de Magalhães. António Luiz Alvares Pereira que depois passou a assinar-se. António Luís Álvares Pereira Coelho da Silva Castelo Branco de Magalhães - era casado, em segundas núpcias, com D. Petronilha Lopéz de Aboin, sobrinha do celebrado D. Manuel Godoy, simultaneamente favorito da rainha Maria Luiza e valido do rei Carlos IV. Residindo em Madrid, lembrou-se António Luís Álvares Pereira de aproveitar a excecional situação do tio de sua segunda esposa – que já o fizera cavaleiro de Santiago – para se apresentar como representante do descobridor das Filipinas; e requereu ao monarca espanhol não só a restauração das honras concedidas a Fernão de Magalhães, como uma avultada indemnização pela vintena das terras e ilhas descobertas, nos termos do contrato celebrado com Carlos I em 1518, que a morte o impedira de receber. O requerimento é de 1795. Remetido ao 377 JOSÉ MANUEL GARCIA Conselho Real das Índias, era preciso instruí-lo com provas convincentes; e surgiram então os falsos testamentos de Belém e do Maranhão, cujas certidões são de 1796. Em 1798, deixou Godoy o cargo de primeiro-ministro. Três anos depois, voltava ao poder, mais omnipotente ainda; mas o sobrinho morreu de desastre quando passeava a cavalo, antes de alcançar o bom despacho das suas ambiciosas pretensões11. Queirós Veloso, na sequência de outros autores, reforçou ainda a sua argumentação com a indicação de que no inventado testamento de 1504 “não há, em todo ele, a mínima referência ou alusão à naturalidade do testador”12. Tal documento foi forjado apenas para o ligar ao outro suposto documento de 1580, que fundamentava as abusivas pretensões do seu falsificador. Tolões (Amarante) Uma atribuição de naturalidade a Fernão de Magalhães a Tolões (Amarante) ficou esquecida pois foi feita apenas numa referência registada em 1814 pelo padre Francisco de Azevedo Coelho de Magalhães (identificado como P. F. de A. C. de M.) numa obscura Historia antiga e moderna da sempre leal e antiquissima villa de Amarante, desde a sua primeira fundação pelos turdetanos, trezentos e sessenta annos antes da vinda de Christo, Senhor Nosso, até ser incendiada pelos francezes em 1809, Londres, T. C. Hansard, p. 27, onde se pode ler que: “Neste Concelho e freguezia de Toloens está a casa do Reguengo, aonde nasceo Fernando de Magalhaens descubridor do Estreito, e terra de Magalhaens, da Ilha de Sancta Ursula, e do Jason Portuguez, com tudo o mais que se pode ver nas provas (no. 11.)”. 11 Queirós Veloso, Fernão de Magalhães: a vida e a viagem, Lisboa, Editorial Império, 1941, Lisboa, Império, 1941, p. 13-14. 12 378 Idem, ibidem, p. 12. A NATURALIDADE DE FERNÃO DE MAGALHÃES Nesta obra não há, nem podia haver, qualquer registo de “provas (no. l l.)”, pelo que naturalmente se deve tratar de uma alegação imaginada talvez a partir de algum eventual homónimo de Fernão de Magalhães13. Braga Uma informação que dá Braga como sendo a naturalidade de Fernão de Magalhães tem passado despercebida mas tal como as anteriores é inconsequente. Tal fantasia foi apenas referida por José Agostinho de Macedo em 1820 numa Censura das Lusiadas, tomo I, Lisboa, Impressão Régia, p. 114. Com efeito este autor afirmou nessa obra que Fernão de Magalhães era “natural de Braga”, também não se conseguindo perceber porque é que teria imaginado uma tal atribuição. Eventualmente poderia tê-la formulado ao fazer mais uma confusão com algum homónimo de Fernão de Magalhães, sendo igualmente muito estranho que tenha atribuído a Francisco Faleiro a circunstância de ele ser “também natural de Braga”, quando se sabe muito bem que este astrónomo era da Covilhã14. Porto A atribuição do Porto como naturalidade de Fernão de Magalhães, que iremos desenvolver mais à frente, foi registada finalmente e pela primeira vez em 1837 por D. Martin Fernández de Navarrete quando afirmou que “fue Hernando de Magallanes 13 Sobre esta atribuição cf. ainda Visconde de Lagoa, Fernão de Magalhães: a sua vida e a sua viagem, livro 1, Lisboa, Seara Nova, 1938, p. 87-88. 14 Juan Gil, El exilio portugués en Sevilla: de los Braganza a Magallanes, Sevilha, Fundación Cajasol, 2009, p. 349. 379 JOSÉ MANUEL GARCIA natural de la ciudad de Oporto, en el reino de Portugal, en donde estuvo avecindado”. Para fundamentar esta afirmação o autor baseou-se no facto de Fernão de Magalhães se ter declarado vizinho do Porto15. Em 1842, seguindo a informação que acabámos de citar, o Visconde de Santarém foi o primeiro português a publicar esta atribuição do Porto como sendo a terra da naturalidade de Fernão de Magalhães16. Seguiram-se-lhe outras personalidades que deram aval a tal identificação, de entre os quais cabe realçar em 1938 o Visconde de Lagoa17. Foi a partir das referências deste autor que a identificação do Porto como lugar da naturalidade de Fernão de Magalhães foi largamente promovida a partir desse mesmo ano na biografia que Stefan Zweig dele fez e alcançou largo sucesso18. 15 Colleción de los viajes y descubrimientos que hicieron por mar los españoles desde fines del siglo XV, edição de Martin Fernandez de Navarrete, volume 4, Madrid, Imprenta Nacional, 1837, p. XXV e p. LXXII. 16 «Magellan, Ferdinad», artigo reeditado em Opusculos e esparsos, volume I, Lisboa, Imprensa Libânio da Silva, 1910, p. 473. Este autor tendo-se fundamentado nas indicações de Navarrete equivoucou-se ao fazer remissões para: “Argensola, Híst. de las Malucas, lib. I , p. 6; y, en los Anales de Aragón, lib. I, cap. 13, pág.133”, o que não corresponde à realidade, pois nessas obras de Argensola não se refere o Porto como terra de naturalidade de Fernão de Magalhães. 17 Visconde de Lagoa, Fernão de Magalhães: a sua vida e a sua viagem , volume 1, Lisboa, Seara Nova, 1938, sobretudo p. 97-104. 18 Magellan: der mann und seine tat, Wien; Leipzig; Zürich: Herbert Reichner Verlag, 1938 o qual foi logo traduzido em várias línguas com muitas edições, tendo a portuguesa saído logo nos inícios de 1938 com o título Fernão de Magalhães, (13.º edição), Lisboa, Relógio de Água, 2017 (p. 39). Sobre esta obra cf. Maria de Fátima Gil, Uma biografia “moderna” dos anos 30: Magellan. Der mann und seine tat de Stefan Zweig, Coimbra, Minerva, Centro Interuniversitário de Estudos Germanísticos, 2008. 380 A NATURALIDADE DE FERNÃO DE MAGALHÃES Ponte da Barca A 27 de abril de 1921, António Baião, depois de D. José Manuel de Noronha ter desmontado o “romance” de Sabrosa, lembrou-se de inventar um outro “romance”. Com efeito este historiador, ainda que com a boa vontade de, como ele diz, procurar alcançar a “verdade”, acabou por avançar para uma última suposição de atribuição de naturalidade a Fernão de Magalhães ao sugerir que ele poderia ter nascido em Ponte da Barca ou outra terra minhota. Com efeito o autor mencionado, baseando-se apenas nas “provanças” de Lourenço de Magalhães registadas no treslado feito em 1568 do “processo original” que ele transcreveu, inclinou-se para admitir que Fernão de Magalhães teria nascido na “Terra da Nóbrega”, antigo nome de Ponte da Barca. Ainda assim ele expressou algumas dúvidas nessa posição pois escreveu que “ou viesse à luz nas margens daquele rio [Lima] (…) com as casarias graníticas da Barca ou de Ponte, ou viesse à luz na cidade do Douro a ouvir os vagalhões da Foz (…)”19. Para fundamentar a suposição minhota da naturalidade de Fernão de Magalhães António Baião partiu da referida inquirição mandada fazer por Lourenço de Magalhães em 1567 para se tentar habilitar à herança do navegador. Ora neste documento verdadeiro quer a naturalidade de Ponte da Barca quer a de outra povoação do Minho não está expressa de qualquer forma que seja, tendo sido induzida pela circunstâncias das origens remotas de Fernão de Magalhães serem dali, de lá ter familiares e de serem daí algumas das testemunhas que Lourenço de Magalhães arrolou no sentido de defender que ele era parente de Fernão de Magalhães, sem que tivesse revelado ou levado a supor que o navegador fosse natural do Minho. A verdade é 19 “Fernão de Magalhães: o problema da sua naturalidade rectificado e esclarecido”, História e memórias da Academia das Ciências de Lisboa, nova série, 2.ª classe, tomo XIV, Lisboa, 1921, p. 25-81. 381 JOSÉ MANUEL GARCIA que no texto deste documento em nenhuma parte se assinala que Fernão de Magalhães pudesse ser dessa região mas apenas que nela havia pessoas que o tinham conhecido ou seriam seus familiares, tendo mesmo uma delas afirmado que ele viveu no Porto, como veremos mais à frente. A outra fonte que foi alegada para admitir a possibilidade de Fernão de Magalhães ser de Ponte da Barca é um documento em que tal realidade não é afirmada nem a permite deduzir. O documento em causa é uma carta que Carlos V dirigiu a D. Manuel I datada de Saragoça a 31 de Julho de 1518 na qual se intercedia junto do rei de Portugal a favor de: Simón Barreto de Magallanes y Francisco de Magallanes, su hermano, vinieron a mi y me hicieron relación que por cierta muerte de un juez de Ponte de Barca en que fueron culpantes, diz que vos los mandastes condenar a pena de muerte y perdimiento de sus bienes, y porque diz que ellos son de corona y se quieren presentar en la cárcel eclesiástica y mostrar cómo son sin culpa de la dicha muerte, me suplicaron vos escribiese sobrello: y porque los dichos Simón Barreto y Francisco de Magallanes son debdos de criados y servidores nuestros, por cuyo respeto tenemos voluntad que sean favorescidos20. O favorecimento que Carlos V fazia desses homens poderia ter por base um pedido formulado por Fernão de Magalhães mas não permite admitir mais do que a hipótese de todos eles serem parentes. Para poupar o leitor a novas considerações no sentido de negar esta hipótese, que foi defendida nomeadamente por Queirós Veloso, limitamo-nos a citar as que o Visconde de Lagoa já formulou ao considerar que Fernão de Magalhães não era minhoto devido a: 20 José Toribio Medina, El Descubrimiento del Océano Pacífico: Hernando de Magallhanes y sus compañeros. Documentos, Santiago do Chile, Imprensa Elzeviriniana, 1920, p. 243. 382 A NATURALIDADE DE FERNÃO DE MAGALHÃES a) O facto das «pessoas de idade bastante avançada - bem como as já falecidas» terem conhecido Fernão de Magalhães, não implica que o último e os primeiros fossem conterrâneos; b) O informe de terem as referidas pessoas conhecido o navegador na adolescência, é tão falho de prova como é gratuita a exceção que o Dr. Queirós Veloso abre para o pai do depoente Fernão de Magalhães, pela única razão daquele esclarecer que o futuro obreiro da viagem de circum-navegação residia no Porto, o que é de molde ou a vibrar irreparável golpe na tese minhota, ou a condenar a fórmula de ser a naturalidade de alguém a do sítio onde lhe decorreu a adolescência; E, admitindo que o conheceram na adolescência, que fatores se opõem a que fosse o Porto o teatro de tal conhecimento? c) Não tem o mínimo fundamento a pretensão de que Fernão de Magalhães só habitou no Porto durante os dezoito meses que antecederam a expatriação; d) Para admitir a hipótese do ilustre nauta ter tido um domicílio único, enquanto viveu com o pai, seria forçoso pressupor que Magalhães nasceu num cárcere e que nele permaneceu enquanto habitou com o progenitor; e) Contrariamente ao critério do Dr. Queirós Veloso, nos depoimentos das testemunhas ouvidas no processo de Lourenço de Magalhães não há o mínimo vestígio da naturalidade do insigne mareante. E aqui tem o leitor em que se resume a tese da naturalidade minhota de Fernão de Magalhães, enunciada com sinceridade pelo Dr. António Balão e defendida pelo Dr. Queirós Veloso21. 21 Visconde de Lagoa, Fernão de Magalhães: a sua vida e a sua viagem, livro 1, Lisboa, Seara Nova, 1938, p. 87. 383 JOSÉ MANUEL GARCIA 2. AFIRMAÇÕES DE AUTORES ANTIGOS SOBRE A NATURALIDADE PORTUENSE DE FERNÃO DE MAGALHÃES No apuramento da naturalidade de Fernão de Magalhães importa aduzir os testemunhos fundamentais que permitem afirmar com toda a segurança a circunstância de Fernão de Magalhães ter nascido no Porto. Das atribuições atrás apontadas nenhuma tem uma argumentação tão forte e verdadeira para a sustentar como a que está centrada no Porto. Com efeito tal argumentação escuda-se em testemunhos de autores antigos e de grande autoridade que foram coevos de Fernão de Magalhães, além de documentos que ele próprio produziu e vão no sentido de o ligar ao Porto e não a qualquer outra povoação. O testemunho de Fernando Oliveira Na evocação dos autores antigos que escreveram sobre este assunto começamos por citar Fernando Oliveira por ter afirmado ser “Fernão de Magalhães natural da cidade do Porto”. Pela relevância de que se revestem essas suas palavras consideramos que devem ser sublinhadas e refletidas valendo a pena por isso ponderar sobre essa e outras informações que Fernando Oliveira nos facultou sobre Fernão de Magalhães. Antes de o fazermos elaboramos um pequeno apontamento relativo a Fernando Oliveira, de forma a situá-lo no seu tempo e valorizar a grande importância do seu testemunho. Fernando Oliveira, cujo nome também aparece grafado como Fernão de Oliveira, foi um muito conceituado humanista e polígrafo português que nasceu em 1507 no lugar de Gestosa, na freguesia de Couto do Mosteiro, concelho de Santa Comba Dão, embora tenha sido gerado em Aveiro pelos seus pais quando aí 384 A NATURALIDADE DE FERNÃO DE MAGALHÃES viviam, antes de se deslocarem para aquela povoação22. Foi por isso que Fernando Oliveira também afirmou ser de Aveiro, onde Rui de Magalhães, o pai de Fernão de Magalhães, foi alcaide. Foi ainda nessa povoação que Fernando Oliveira começou a sua educação, antes de começar uma vida aventurosa e de estudo, durante a qual se revelou interessado por diversos temas, nomeadamente os de natureza náutica e histórica. Da curiosidade por estas áreas científicas resultou a sua atração pela viagem de Fernão de Magalhães, assunto que o terá impressionado a ponto de sobre ele ter elaborado um trabalho, depois de ter acedido a um texto onde tal viagem era contada. Nesse trabalho ele juntou considerações da sua autoria nas quais forneceu valiosas informações sobre aquele navegador, as quais completavam e valorizavam a narrativa que apresentou. O texto que Fernando Oliveira escreveu sobre Fernão de Magalhães ficou anónimo e manuscrito até começar a ser divulgado em 1937, acabando assim por ser a última fonte impressa a ter dado um contributo importante para a história daquela figura e da sua viagem23. Cerca de 1570, esse trabalho foi copiado com uma 22 Sobre esta personalidade já há uma abundante bibliografia, de entre a qual destacamos, pela amplitude das problemáticas nela tratada e por remeter para mais bibliografia, a obra coletiva Fernando Oliveira um humanista genial (V centenário do seu nascimento), coordenada por Carlos Morais, Aveiro, Universidade de Aveiro, 2009. Sobre o local do nascimento de Fernando Oliveira cf. aí as pp. 32-34. 23 Esta obra foi publicada pela primeira vez por Walther Vogel em «Ein unbekannter Bericht von Magalhães’ Weltumsegelung», Marine-Rundschau, 22, 1911, pp. 452-460, 582-596 mas só foi mais divulgada por Marcus de Jong em Um roteiro inédito da circum-navegação de Fernão de Magalhães, Coimbra, Faculdade de Letras-Publicações do Instituto Alemão da Universidade de Coimbra, 1937 e por Pierre Valière, Le voyage de Magellan raconté par un homme qui fut en sa compagnie. Édition critique, traduction et commentaire du texte manuscrit recueilli par Fernando Oliveyra, Paris, Fundação Calouste Gulbenkian, 1976, onde se reproduz o manuscrito original. Cf. ainda os estudos e edições de Francisco Contente Domingues, “Relato 385 JOSÉ MANUEL GARCIA Ars nautica do mesmo autor num códice escrito pela mesma mão que está guardado na Biblioteca da Universidade de Leiden, Ms. Voss. Lat. F.41, estando o escrito sobre Fernão de Magalhães nos fls. 239-254. Este último texto foi por certo concebido cerca de 1536 numa altura em que Fernando Oliveira esteve em contacto com João de Barros por ter sido professor dos seus filhos, sendo esta a personalidade que tinha na sua posse o original do tal texto onde aquela viagem era contada, do qual se serviu. Com efeito aquele humanista e cronista eminente, que desde 1533 era feitor da Casa da Índia em Lisboa, até debateu nessa altura com Fernando Oliveira questões filológicas24. João de Barros distinguiu-se como cronista desde que cerca de 1531 começou a escrever a Ásia, cuja primeira versão alegou ter concluído cerca de 1539, embora as versões finais das suas três primeiras décadas daquela obra só tivessem sido finalizadas posteriormente e impressas entre 1552 e 1563. Nesta obra, solidamente fundamentada, ele declarou ter na sua posse numerosa documentação sobre Fernão de Magalhães, nomeadamente um livro que pertenceu a Gonzalo Gómez de Espinosa e ele lhe apreendeu quando este chegou sob prisão a Lisboa a 24 de julho de 1526. Com efeito João de Barros, que nessa altura era tesoureiro das Casas da Mina, Índia e Ceuta, alegou ter sido então que dele da viagem de Fernão de Magalhães», in As grandes viagens marítimas, Lisboa, Publicações Alfa, 1989, p. 99-126, José Manuel Garcia, A viagem de Fernão de Magalhães e os portugueses, Lisboa, Editorial Presença, 2007 e Le voyage de Magellan (1519-1522): la relation d´Antonio Pigafetta et autres témoignages, edição de Xavier de Castro, 2.ª edição, Paris, Chandeigne, 2010. 24 Henrique Lopes de Mendonça, O padre Fernando Oliveira e a sua obra nautica. Memoria comprehendendo um estudo biográfico sobre o afamado grammatico e nautografo e a primeira reprodução typographica do seu tratado inedito Livro da Fabrica das Naos, Lisboa, Academia Real das Sciencias, 1898; Fernando Oliveira um humanista genial (V centenário do seu nascimento), coordenada por Carlos Morais, Aveiro, Universidade de Aveiro, 2009, p. 218. 386 A NATURALIDADE DE FERNÃO DE MAGALHÃES “houve alguns papéis que lhe achei, entre os quais foi um livro feito per ele de toda aquela sua viagem”25, o qual usou na sua Ásia, nomeadamente quando em 1539 preparava a sua década terceira, embora esta só tenha sido impressa em 1563. De lembrar que Gonzalo Gómez de Espinosa havia sido capturado em 1522 nas Molucas quando era capitão da nau Trinidad, aquela onde navegara Fernão de Magalhães até ser morto em 1521. Por certo João de Barros terá mostrado a Fernando Oliveira o livro que tirara a Espinosa, quando esteve com ele, levando-o a interessar-se pelo seu conteúdo, a ponto de este o ter usado na preparação da obra a que de seguida nos referimos. Devemos também assumir a importância da noção de que tendo João de Barros vivido em Lisboa e contado já vinte e um anos de idade em outubro de 1517, poderia ter conhecido pessoalmente Fernão de Magalhães nesta cidade, antes de ele a ter deixado no referido mês. Tendo-o ou não contactado este cronista conheceu aspetos da história de Fernão de Magalhães que lhe foram referidos oralmente ou leu em fontes escritas. De entre tais aspetos contavam-se a sua origem familiar, as viagens que fez, os problemas que teve, além do projeto que concebeu e lhe veio a assegurar a fama. Partindo das observações que até aqui apresentámos pensamos que Fernando Oliveira traduziu, adaptou e simplificou o texto que encontrou no volume manuscrito de Gonzalo Gómez de Espinosa sobre a viagem de Fernão de Magalhães, criando uma obra onde lhe acrescentou uma importante introdução e algumas observações, a que deu o título Viagem de Fernão de Magalhães na demanda de Maluco por el-rei de Castela, referindo que nela apresentava a “Viagem de Fernão de Magalhães escrita por um homem que foi na companhia”. 25 João de Barros, Terceira década da Ásia, Lisboa, 1563, livro V, capitulo X. 387 JOSÉ MANUEL GARCIA Insistimos na noção de ter sido por volta de 1536 que Fernando Oliveira procedeu a uma primeira redação da obra aqui em causa devido à proximidade que então tinha com João de Barros, pois dificilmente vemos outra via e oportunidade para que ele pudesse ter acesso à fonte que trabalhou, considerando nomeadamente a vida muito agitada que levou, quer fora quer dentro do país. É ainda de assinalar que não se consegue conceber que outra obra poderia ele ter usado para o seu fim além da sugerida. Caso nos possamos situar por volta de 1536 para datar a preparação inicial desta obra, embora apenas concluída e revista cerca de 1570, é de ponderar terem então passado apenas uns quinze anos sobre a morte de Fernão de Magalhães ocorrida em 1521, pelo que se pode admitir quão bem posicionado ele estava para fornecer informações relevantes e fundamentadas para o esclarecimento de questões muito importantes relativas à biografia do grande navegador, pelo qual tanto se interessou. Tal é o caso das informações concernentes quer ao local do seu nascimento quer ao da sua ida às Molucas em 1512. É nesse sentido que de entre as indicações da lavra de Fernando Oliveira na Viagem de Fernão de Magalhães na demanda de Maluco por el-rei de Castela vamos aqui destacar uma passagem que apresentamos em transcrição com a ortografia atualizada, para assim a relevarmos como sendo do maior interesse para o estudo da vida do navegador. Colocamos algumas das suas frases em itálico para permitir que expressem em toda a sua eloquência a revelação de esclarecimentos decisivos sobre Fernão de Magalhães. Vejamos então o texto em causa: Antre os portugueses que descobriram Maluco foi um chamado Fernão de Magalhães, natural da cidade do Porto, em Portugal. Este era da geração dos Magalhães, gente honrada e nobre, e era criado del-rei em foro de moço da câmara, e homem entendido na arte da navegação e cosmografia, em especial pelo que aprendeu de um seu parente chamado Gonçalo de Oliveira, em cuja companhia 388 A NATURALIDADE DE FERNÃO DE MAGALHÃES foi ter aquela terra, do qual entendeu a verdade do sítio daquelas terras, porque era Gonçalo de Oliveira mui sabido nesta faculdade26. Fernando Oliveira ao escrever estas linhas visava identificar o protagonista da história que ia contar e afirmar a importância da experiência asiática e náutica de Fernão de Magalhães como fator determinante para o habilitar com um saber prático em assuntos de marinharia que lhe permitiram a realização de um empreendimento tão arrojado como foi o de chegar às Filipinas por uma via ocidental. Foi a prática das navegações que Fernão de Magalhães realizou entre 1505 e 1513 juntamente com estudos náuticos realizados no Oriente e Lisboa que contribuíram decisivamente para que ele fosse capaz de apresentar talvez a 2 de março de 1518 uma perspetiva credível da localização das Molucas que conseguiu convencer Carlos V a apoiar rapidamente o muito dispendioso e arriscado projeto que lhe apresentou. É importante incidir a nossa atenção na informação sobre o navegador fornecida no texto acima citado de Fernando Oliveira relativa ao local do seu nascimento, onde se declara de forma perentória e inequívoca ser “Fernão de Magalhães natural da cidade do Porto, em Portugal”. Estamos perante uma afirmação expressa com toda a firmeza e de forma assertiva pelo ilustre autor que aqui seguimos, facto que constitui um contributo importante para apurar com toda a credibilidade a identificação da localidade do seu nascimento. Ao formular de uma forma tão segura aquela declaração absolutamente credível sobre as origens de Fernão de Magalhães temos de considerar a circunstância de que Fernando Oliveira para a poder registar teria de estar bem escudado em sólidas informações que o levaram a apontá-la apenas uns quinze anos após a morte de Fernão de Magalhães. Não é admissível que ele tivesse feito uma tal declaração sem fortes fundamentos para a poder avançar 26 José Manuel Garcia, A viagem de Fernão de Magalhães e os portugueses, Lisboa, Editorial Presença, 2007, p. 197. 389 JOSÉ MANUEL GARCIA e estivesse a mentir, inventar ou cair numa especulação gratuita e sem qualquer sentido ou vantagem. Pelas razões aduzidas consideramos que o texto acima citado de Fernando Oliveira nos merece toda a confiança e por isso com ele podermos atestar como certo o facto de Fernão de Magalhães ter nascido no Porto. Seria ainda bom que se descobrisse a origem do mencionado piloto Gonçalo de Oliveira, quem sabe se também ele um portuense, tal como o era o piloto Estêvão Gomes, que colaborou com Fernão de Magalhães na sua grande viagem até o ter atraiçoado e abandonado no estreito de Magalhães em novembro de 1520. Gonçalo de Oliveira foi um piloto a ter sido bem referenciado no contexto da história de Fernão de Magalhães sendo de notar que tinha o mesmo apelido Oliveira que tinha Fernando Oliveira. De realçar ainda a precisão do registo de Fernando Oliveira ao ter relacionado Gonçalo de Oliveira com Fernão de Magalhães por com ele ter ido às Molucas do sul em 1512. É ainda de destacar que tal piloto foi exclusivamente conhecido e registado por ter sido um dos pilotos que foi às Molucas nessa primeira viagem de descobrimento dirigida por António de Abreu, o que exige um elevado grau de informação sobre esta figura na sua relação com Fernão de Magalhães. O testemunho do doutor João de Barros A reforçar o conhecimento da circunstância de Fernão de Magalhães ter nascido no Porto importa apontar outras informações nesse sentido, de entre as quais destacamos uma cujo texto é inédito e vem revelar não ter sido Fernando Oliveira o único autor a atribuir no século XVI a naturalidade do Porto a Fernão de Magalhães. Com efeito tal realidade foi também afirmada perentoriamente pelo doutor João de Barros, de uma forma independente da fornecida pelo autor atrás citado, a qual está datada de 1549, escassos vinte 390 A NATURALIDADE DE FERNÃO DE MAGALHÃES e oito anos após a morte de Fernão de Magalhães. Na declaração que esta personalidade registou expressa-se a afirmação de ter sido do Porto que “foi natural o Magalhães”. Vejamos então como surge esta novidade documental que tivemos a felicidade de descobrir e é tão decisiva como conclusiva da evidência de ser o Porto o lugar de naturalidade de Fernão de Magalhães. O testemunho aqui equacionado deve-se ao doutor João de Barros, uma personalidade culta e de autoridade que era homónima do tão justamente famoso cronista, humanista e feitor João de Barros. Tal autor nasceu entre 1500 e 1505 em lugar que se tem apontado ser o Porto, Braga ou Vila Real sendo de sublinhar a sua condição de “cidadão” do Porto, a qual está atestada em reunião da câmara desta cidade de 8 de agosto de 1537. Tal condição foi também por ele reafirmada orgulhosamente no frontispício da edição do seu livro Espelho de casados, impresso no Porto em 1540, onde afirmou ser “cidadão da cidade do Porto”. A 23 de junho 1553, D. João III concedeu-lhe um brasão, referindo-o como sendo “do meu desembargo e meu escrivão de câmara, filho legítimo do dr. Diogo Gonçalves e de Briolanja de Barros”27. É de considerar que a família do doutor João de Barros tinha propriedades em Vila Nova de Gaia junto daquela que aí possuiu Fernão de Magalhães, à qual mais à frente nos iremos referir28. 27 A figura do doutor João de Barros ainda está mal estudada, podendo-se ver nomeadamente algumas muito breves e incompletas considerações sobre a sua vida e obra em António Baião, Documentos inéditos sobre João de Barros, sobre o escritor seu homónimo contemporâneo, sobre a família do historiador e sobre os continuadores das suas “Decadas” , separata de Boletim da Segunda Classe da Academia das Ciências de Lisboa, volume 11, Coimbra, 1917 e Joaquim Veríssimo Serrão, Figuras e caminhos do Renascimento em Portugal, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1994, pp. 301-307. 28 Cf. António Taveira, Fernão de Magalhães “o do estreito” de Santa Maria da Sé do Porto, 2.ª edição, Porto, Edição do autor, 2011, p. 13. 391 JOSÉ MANUEL GARCIA Cerca de 1530, o doutor João de Barros começou a preparar umas “memórias“ sobre a região de Entre Douro e Minho que o levaram a apresentar um trabalho cuja primeira versão está datada de Lisboa a 25 de maio de 1548 com o título Breve suma de Geografia da comarca dentre Douro e Minho e Trás-os-Montes. Esta obra foi publicada de acordo com um manuscrito incompleto que se encontra na Biblioteca Pública Municipal do Porto29. Tal versão, contudo, não coincide com a versão final e mais completa do livro que o seu autor concluiu sobre o mesmo tema e foi citada por Diogo Barbosa Machado30. Esta última versão apresenta a data de 1549, sendo diferente da que está datada de 1548, dela havendo um manuscrito cujo conteúdo permanece inédito na Biblioteca Nacional de Portugal com o título Libro das antiguidades e cousas notaueis de antre Douro e Minho, e de outras m[ui]tas de España e Portugal. Por Ioão de barros. Composto no an[n]o de 154931. Esta obra merece ser investigada pelos estudiosos do Porto e de outras regiões do Norte do país, mas a nossa atenção limita-se aqui à referência que é feita ao Porto e a Fernão de Magalhães no f. 50 do seu manuscrito, a qual até agora foi desconhecida: ”Os homens desta Cidade são polla mor parte muito espertos na arte do marear e se fazem aly grandez naos, e nauios, e daly foi natural o Magalhais que achou outro caminho pera a India que foj homem habilíssimo”. Fernão de Magalhães é aqui destacado a propósito do elogio feito aos homens do Porto ao dizer que: “e dali foi natural o Magalhães, que achou outro caminho para a Índia, que foi homem habilíssimo”. Esta informação revela em toda a sua eloquência uma asserção que se nos afigura acabar com alguma hesitação que 29 Publicada com o título Geografia dentre Douro e Minho e Trás-os-Montes no Porto pela Biblioteca Pública Municipal do Porto em 1919. Biblioteca lusitana, tomo II, Lisboa, 1747, p. 609. 30 31 Trata-se de um códice com 89 f. e a cota Cod 216, que pode ser consultado em: http://purl.pt/26460 392 A NATURALIDADE DE FERNÃO DE MAGALHÃES pudesse ainda subsistir sobre o facto da naturalidade de Fernão de Magalhães ser o Porto. Estamos perante um texto antigo que é tão claro como explícito na afirmação segura de ser Fernão de Magalhães do Porto. A apresentação de tal facto não suscitou qualquer dúvida ou incerteza ao doutor João de Barros, tal como não a suscitara a Fernando Oliveira, ambos autores que, além de serem coevos do navegador, são dignos de toda a credibilidade. Temos estas noções por fundamentais no sentido de verificar que a afirmação destacada neste trabalho do doutor João de Barros, iniciado cerca de 1530 e concluído em 1549, ter resultado da circunstância das origens desta figura serem bem conhecidas no Porto, visto aí ter nascido. É por isso que ele foi referido por este autor de uma forma tão elogiosa e sem revelar qualquer sensação de hostilidade face à acusação de traição de que ele foi alvo por outros autores portugueses que começaram a publicar as suas obras a partir de 1554. O testemunho de Manuel Severim de Faria A referência à obra do doutor João de Barros que acabámos de considerar, por nela se afirmar ter Fernão de Magalhães nascido no Porto, surgiu num texto datado de janeiro de 1621 que foi escrito pelo justamente conceituado erudito Manuel Severim de Faria (1584-1655). Tal texto encontra-se num códice que pertenceu à Casa Cadaval e está agora no Arquivo Nacional da Torre do Tombo onde se regista a indicação de ser o “Décimo oitavo tomo das obras do senhor Manuel Severim de Faria, chantre e cónego de Évora”, no qual se encontra o ex-libris manuscrito de Gaspar Severim de Faria, que foi sobrinho do autor32. 32 Tem a cota: Casa de Cadaval, n.º 8, e pode ser consultado em http://digitarq. arquivos.pt/viewer?id=4603893 393 JOSÉ MANUEL GARCIA A obra aqui considerada permanece inédita e desconhecida sendo de referir que apresenta quarenta e duas biografias. Dela apenas nos interessa aqui o seu fl. 79 porque nele Manuel Severim de Faria ao começar a tratar de «Fernão de Magalhães» afirmou ser o Porto a cidade onde ele nascera - “nasceu Fernão de Magalhães na cidade do Porto”. Este autor acrescentou ainda a referência correta de ser Fernão de Magalhães “filho de Rui de Magalhães, alcaide-mor de Aveiro, e de Aldonça de Mesquita”, a qual, bem como outras indicações sobre a família da mãe não foram registadas pelo doutor João de Barros, revelando assim quão bem informado estava Manuel Severim de Faria sobre o navegador e a sua família. 3. DOCUMENTOS APONTANDO AS ORIGENS PORTUENSES DE FERNÃO DE MAGALHÃES Para lá das evidências patenteadas nos testemunhos dos autores atrás analisados sobre a naturalidade portuense de Fernão de Magalhães há que realçar documentos igualmente perentórios dessa realidade que são os que foram produzidos por ele próprio, devendo por isso ser destacados como forma de provar a noção já estabelecida de que nasceu no Porto. Tais fontes afiguram-se-nos ser conclusivas no sentido da clarificação da sua origem, pelo que vêm reforçar a plena credibilidade que merecem as informações dos textos das personalidades que fomos evocando. De notar que alguns desses documentos do navegador foram revelados em datas recentes. Fernão de Magalhães como “vizinho da cidade do Porto” A referência mais forte e antiga fornecida pelo próprio Fernão de Magalhães no sentido de afirmar a sua origem portuense foi a que ele formulou oficialmente num contrato expresso em “pública 394 A NATURALIDADE DE FERNÃO DE MAGALHÃES escritura” outorgada com Rui Faleiro. Nesse documento ambos se comprometiam a dar a Juan de Aranda, feitor da Casa de la Contratación de las Indias de Sevilla, a oitava parte dos lucros que obtivessem na viagem da uma armada que se propunham dirigir com o fim de irem às Molucas por ocidente. Essa escritura está datada de 23 de fevereiro de 1518 em Valhadolide e nela se afirma que Fernão de Magalhães era “vizinho da cidade do Porto”, como se pode ler no extrato do documento aqui em causa: “Sepan quantos esta publica escriptura de obligacion vieren como nos Ruy Faler (Rui Faleiro) vecino de Cunilla (Covilhã) ques es en el reino de Portugal, e Fernando de Magallanes vecino de la ciudad del Puerto (Porto) en el dicho reino [...]”33. Na problemática da interpretação do significado da palavra “vizinho” aqui usada por Fernão de Magalhães é de lembrar e enfatizar que ele não vivia em Portugal desde outubro de 1517 e que mesmo antes deste ano não há provas de que ele tivesse morado no Porto desde o fim da sua juventude. O que se sabe ao certo de Fernão de Magalhães é que em 1505 embarcou em Lisboa com D. Francisco de Almeida para o Oriente, por onde andou até 1513. A partir desta última data está bem documentado o facto de ele ter vivido entre Lisboa e Azamor até 1517. Por ouro lado não há qualquer registo de que por então tivesse vivido no Porto, ainda que não se possa excluir a eventualidade de lá ter regressado tendo em conta nomeadamente a questão da propriedade que herdou em Vila Nova de Gaia após a morte do seu pai, a qual ocorreu em data desconhecida. O que se nos afigura seguro poder deduzir com segurança é o facto da sua afirmação de ser “vizinho” do Porto feita em 1518 apontar para 33 O original deste documento está em Sevilha no Arquivo Geral das Indias, Patronato, 34, R. 3 e foi publicado várias vezes nomeadamente por D. Martin Fernandez de Navarrete em Coleccion de los viages i descubrimientos que hecieron por mar los españoles desde fines del siglo XV, volume IV, Madrid, 1837, p. 110-113 e em Coleccion de documentos inéditos para la Historia de Chile, edição de José Toribio Medina, tomo I, Santiago de Chile, Imprenta Ercilla, 1888, pp. 1-2. 395 JOSÉ MANUEL GARCIA a circunstância de ele se querer identificar como sendo “natural” do Porto e não seu morador. O mesmo aliás se passava com Juan de Aranda, que nesse contrato é referido como sendo vizinho de Burgos, a sua cidade natal, não se dizendo ser vizinho de Sevilha, a cidade onde morava. O mesmo se passa de uma forma ainda mais clara e decisiva com Rui Faleiro que declarando-se naquele documento como sendo “vizinho” da Covilhã foi afirmado perentoriamente como sendo “natural” da Covilhã. Este facto encontra-se registado numa carta datada de Sevilha a 31 de agosto de 1520 pelos oficiais da Casa de la Contratación informando que Rui Faleiro “fué preso por mandado del señor Rey de Portugal en un lugar que se llama Cubillana, que es en el reino de Portogal, donde es natural”34 (Medina III p. 57). Esta afirmação perentória de que Rui Faleiro “é natural” da Covilhã está em absoluta consonância com a sua afirmação feita a 23 de fevereiro de 1518 em Valladolid de que era “vizinho” da Covilhã. O mesmo tinha necessariamente de acontecer com Fernão de Magalhães que ao declarar-se “vizinho” do Porto a 23 de fevereiro de 1518 afirmava necessariamente ser natural do Porto, sem que se tenha de procurar uma alternativa arrevesada para explicar de outra forma que ser “vizinho” do Porto não podia deixar de ser daí “natural”, que é a única que se lhe enquadra. Desde o século XV que era “lei geral” em Portugal a aceção de que “vizinho” correspondia a “natural” de uma determinada povoação, como se verifica com toda a clareza nas Ordenações afonsinas (livro II, título XXX), onde se lê: “que, vizinho, se entenda de cada uma cidade, vila ou lugar, aquele que dele for natural (…)”, sendo de notar que esta expressão está repetida nas Ordenações manuelinas (livro II, título XXI). Tal noção, que é comum a Castela, tem o seu teor reforçado no texto do próprio 34 El descubrimiento del océano Pacífico: Hernando de Magallanes y sus compañeros. Documentos, edição de José Toribio Medina, Santiago de Chile, Imprenta Elzeviriana, 1920, p. 57. 396 A NATURALIDADE DE FERNÃO DE MAGALHÃES foral novo do Porto datado de 20 de julho de 1517, no qual se pode ler que “pera se saber quais serão as pessoas que são havidas por vizinhos de algum lugar pera gouvirem [gozarem] da liberdade dele declaramos que: vizinho se entenda de algum lugar o que for dele natural”35. Verifica-se, pois, que o melhor requisito legal a aplicar a Fernão de Magalhães para se poder afirmar e considerar como “vizinho” do Porto é o de ser “dele natural” e não outro fundamento, nomeadamente o de nela morar, pois tal só terá ocorrido durante a sua juventude. A reforçar esta conceção temos o facto de não fazer sentido que a viver em Espanha em 1518 e sem intensões de regressar a Portugal Fernão de Magalhães afirmasse ser “vizinho” do Porto por nele ser morador. Realcemos também que quer Fernando Oliveira, quer o doutor João de Barros, recorreram sem qualquer hesitação à palavra “natural” quando referiram o Porto como sendo a terra onde Fernão de Magalhães nasceu, noção que foi igualmente seguida por Manuel Severim de Faria. Outros documentos de Fernão de Magalhães e de seus pais, que foram “vizinhos” do Porto Além da referência feita em 1518 por Fernão de Magalhães ao facto de ser “vizinho” do Porto, ele deixou-nos claros sinais da sua origem portuense e do interesse particular por esta cidade e o seu termo em outros documentos que podemos assinalar. Um deles é o seu testamento feito a 24 de agosto de 1519 em Sevilha, onde a única referência que faz a um lugar em Portugal se encontra 35 O foral do Porto. 1517-2017, Porto, Câmara Municipal do Porto, 2017, p. 89. Sobre esta obra e outros forais novos da região cf. José Manuel Garcia; Francisco Ribeiro da Silva, Forais manuelinos do Porto e do seu termo, Lisboa, Edições Inapa, 2001. Cf. ainda a antiga edição do Foral da Cidade do Porto, de 20 de junho de 1517, Porto, Oficina de António Álvares Ribeiro, 1788, p. 30. 397 JOSÉ MANUEL GARCIA na doação que então fez ao Mosteiro de São Domingos das Donas da Cidade do Porto de Portugal (Corpus Christi)36. Este ficava em Vila Nova de Gaia, que então pertencia ao termo do Porto, e estava perto da propriedade que herdara dos seus pais, que foram “vizinhos do Porto”, como se verifica em documentos que se encontram em Sevilha e de seguida vamos citar. Tais testemunhos de Fernão de Magalhães contendo informações relativas à zona do Porto são duas cartas de doação concedidas à sua irmã Isabel de Magalhães que estão datadas de 19 de março e 4 de junho de 1519. Elas são relativas a uma quinta de “Exo”, palavra que corresponde a “Chão”, em Vila Nova de Gaia. Trata-se de um lugar mencionado num “tombo de propriedade feito em 1513” conservado entre os papéis do cartório do referido mosteiro, “que no título relativo a Vila Nova de Gaia, se refere à existência de uma devesa, perto da fonte de Santa Marinha, junto com o camymho que vay teer ao loguar de Ruy de Magalhães»”37. Sobre este “lugar de Rui de Magalhães”, revelado por Amândio Barros, António Taveira apurou o seguinte: Era composto por uma quinta, com mais algumas terras juntas, estas últimas foreiras ao cabido da Sé do Porto, no lugar de Chão em Vila Nova, na freguesia de Santa Marinha, cujo padroado da igreja era do cabido por doação de D. Dinis em 1292. As terras desse lugar de Chão pertenciam à igreja de Santa Marinha, objeto da doação38. O autor que acabámos de citar identificou esse lugar de acordo com a indicação anterior e assinalou ainda que sobre esse 36 Este documento foi várias vezes publicado nomeadamente por Juan Gil em El exilio portugués en Sevilla: de los Braganza a Magallanes, Sevilha, Fundación Cajasol, 2009, pp. 426-430. 37 Amândio Barros, O homem que navegou o mundo: em busca das origens de Magalhães, Braga, AL - Publicações, 2015, p. 57. 38 António Taveira, Fernão de Magalhães “o do estreito” de Santa Maria da Sé do Porto, 2.ª edição, Porto, Edição do autor, 2011, p. 54. 398 A NATURALIDADE DE FERNÃO DE MAGALHÃES lugar ”A referência mais antiga é de 11. 06. 1482 quando o cabido empraza em três vidas as terras do lugar de Chão com todas as suas pertenças, em Vila Nova, a Rui de Magalhães cavaleiro [...]”39. É de realçar esta referência a que Rui de Magalhães era cavaleiro40. Pelo documento de 19 de março de 1519 verifica-se que os pais de Fernão de Magalhães e de Isabel de Magalhães são dados como tendo sido “vizinhos” do Porto: “yo, el comendador Fernando de Magallaes, capitán de Sus Altezas, fijo legítimo de Rodrigo [Rui] de Magallaes e de Alda de la Mezquita, su muger, vezinos que fueron de la çibdad del Puerto de Portugal, defuntos”41. Esta alusão à circunstância dos pais de Fernão de Magalhães terem sido “vizinhos” do Porto revela que eles, tal como o filho, também aí teriam nascido. Assim sendo é possível que o pai de Rui de Magalhães, que era Paio Afonso de Magalhães tivesse sido natural de Ponte da Barca, de onde era originária a família Magalhães. Quanto a Paio Afonso de Magalhães talvez fosse filho de Gil Afonso de Magalhães que seria casado com Mécia de Sousa, dái que Fernão de Magalhães ter afirmado que no seu bra~são tinah as aramas dos sousa, além dos Magalhães. Quanto a Gil Afonso de Magalhães era irmão de João de Magalhães que foi o primeiro senhor de Ponte da Barca. É ainda possível que o pai 39 Idem, ibidem. 40 Esta condição social de cavaleiro, tal como a que tinha o seu filho Fernão de Magalhães, não era impeditiva de eles serem vizinhos do Porto, como se afirmam orgulhosamente, pois houve outros “cavaleiros” do Porto, que estão assinaladas nomeadamente em obras bem documentadas como as de Adelaide Lopes Pereira Millan da Costa, Vereação e vereadores: o governo do Porto em finais do século XV, Porto, Câmara Municipal do Porto, 1993 e de Pedro de Brito, Patriciado urbano quinhentista: as famílias dominantes do Porto, 1500-1580, Porto, Câmara Municipal do Porto, 1996. 41 Juan Gil, El exilio portugués en Sevilla: de los Braganza a Magallanes, Sevilha, Fundación Cajasol, 2009, p. 328, nota 46. 399 JOSÉ MANUEL GARCIA de Gil Afonso de Magalhães fosse Diogo Afonso de Magalhães, que era senhor do Castelo da Nóbrega, da honra da quintã da Torre de Paço Vedro de Magalhães 42. O problema da possível existência de homónimos de Rui de Magalhães, no Porto e na conjuntura aqui considerada, dificulta a identificação do pai de Fernão de Magalhães mas ainda assim admitimos que estudos aprofundados sobre este assunto possam vir a esclarecer esta problemática. Há ainda a considerar e confirmar a dificuldade ou impossibilidade de se poder sugerir que tendo sido quer Rui de Magalhães quer Fernão de Magalhães “vizinhos” do Porto pudessem ser naturais de Vila Nova de Gaia, por aí terem tido propriedades, apesar desta última povoação pertencer então ao termo do Porto. É de notar que a forma de registar o nome do pai de Fernão de Magalhães apresenta algumas oscilações entre Rui e Rodrigo, sendo que Rui é um diminutivo de Rodrigo. É igualmente de apontar que o nome da mãe aparece umas vezes sob a forma de Aldonça e outras de Alda, sendo também de assinalar que ela nem sempre foi bem identificada. Pelo documento de 19 de março de 1519 atrás citado verifica-se que Fernão de Magalhães era o filho mais velho do referido casal, do qual tinha herdado: una quinta de viñas e castañales e tierras de pan senbrar que yo tengo e poseo en tierra de Gaya, término de la dicha çibdad del Puerto, que se dize la quinta Exón [=Chão], la qual dicha quinta yo ove e heredé de los dichos mis señores padre e madre com çiertos cargos a qu´es obligada a pagar a Yglesia mayor de la dicha çibdad del Puerto como fijo mayor de los dichos señores padres, porque la dicha quinta no fueron bienes partibles[…], así por razon de los 42 Manuel Abranches de Soveral, Ensaio sobre a origem dos Magalhães, Porto, 2007 consultável em https://www.academia.edu/38292453/Ensaio_ sobre_a_origem_dos_Magalhães. 400 A NATURALIDADE DE FERNÃO DE MAGALHÃES muchos cargos que de vos, la dicha Ysabel de Magallaes, mi hermana, tengo, como por otras cabsas que a ello me mueven43. Na carta datada de 4 de junho de 1519 regista-se que a quinta em causa se situava na terra de “Gaya la Pequeña”, tendo perto certa terra da Sé do Porto, emprazada em três vidas. Neste emprazamento, o pai de ambos, Rodrigo (= Rui) de Magalhães, foi a primeira vida e, ao tempo do seu falecimento, nomeou Fernão de Magalhães por segunda vida; e, pela presente doação, Fernão de Magalhães nomeava sua irmã como “terçera persona”, com a obrigação de pagar à Sé, anualmente, o foro de uma terra referenciada da seguinte forma: por quanto el dicho sñor Rodrigo [Rui] de Magallaes, nuestro padre, tenía una quinta en tierra de Gaya la Pequeña que se dize Exón [=Chão] e junto com ella tenía çierta tierra de la Yglesia mayor de la dicha çibdad, enprazada en três vidas, y el dicho nuestro padre fue la primera vida e al tienpo de su fin e falleçimiento nonbró e señaló a mi, el dicho Fernando de Magallaes, su hijo, por segunda vida, por ende yo agora quiero e me plaze e consiento de nonbrar e por la presente nonbro para la terçera persona para que aya la dicha tierra a vos, la dicha señora Ysabel de Magallaes, mi hermana, que tenéys por vuestra la dicha heredad de Exón [= Chão], para que ayáys e tengáys en la dicha tierra todo el abçion e derecho que yo a ello tengo por virtud del nonbramiento del dicho señor Rodrigo de Magallaes, nuestro padre, mi hizo, e ayáys e llevéys los frutos e rentas de la dicha tierra, como yo, el dicho capitán Fernando de Magallaes, los he llevado fasta agora, con tanto que paguéys a la dicha Yglesia mayor el foro que dicha tierra es obligada a pagar a la dicha Yglesia en cada un año44. 43 Idem, ibidem, p. 271. 44 Idem, ibidem, p. 272. 401 JOSÉ MANUEL GARCIA O Porto no testamento de Fernão de Magalhães Antes de embarcar em Sanlúcar de Barrameda para iniciar a sua grande viagem a 20 de setembro de 1519 mas já depois de os navios da sua armada terem deixado Sevilha a 10 de agosto, Fernão de Magalhães ainda ficou alguns dias nesta cidade, onde a 24 de agosto escreveu o seu testamento. Como já atrás assinalámos, nele fez uma doação ao Monesterio de Santo Domingo de las Dueñas de la çibdad del Puerto de Portugal (Mosteiro de São Domingos das Donas da Cidade do Porto de Portugal). De outras indicações nesse testamento que ligam Fernão de Magalhães ao Porto uma delas é a de ter concedido à sua irmã Isabel de Magalhães 5 000 maravedis anuais45. Outra indicação relevante é a de ter deixado 30 000 maravedis ao seu pajem Cristóvão Rebelo46. Esta personalidade era natural do Porto sendo filho de Duarte Rebelo e de Catarina Rodrigues, pelo que tal referência e importante doação revela bem a proximidade que Fernão de Magalhães tinha para com este homem que o haveria de acompanhar na morte a 27 de abril de 1521 na ilha de Mactan, nas Filipinas. Tal facto é assim um sinal revelador da forte amizade que entre eles havia, cuja origem por certo remontaria à vivência na cidade natal de ambos. O Porto na inquirição de Lourenço de Magalhães Mais um testemunho a atestar a presença de Fernão de Magalhães no Porto é dado no já referido processo de Lourenço de Magalhães ao registar-se a 7 de abril de 1567 que Heitor de Magalhães, morador em Ponte de Lima, afirmou ter sido Fernão 45 Idem, ibidem, p. 429. 46 Idem, ibidem, p. 428. 402 A NATURALIDADE DE FERNÃO DE MAGALHÃES de Magalhães “morador na cidade do Porto” (que era morador en la ciudad del Puerto), como se pode ler no seu depoimento: dijo este testigo oyó decir quel dicho Lorenzo de Magallanes era hijo de Payo Rodríguez de Magallanes, el cual Payo Rodríguez de Magallanes era hijo de Ruy Paez de Magallanes, su abuelo, é queste testigo otrosí oyó decir públicamente, é ansí á su padre deste testigo por nombre Hernando de Magallanes, que conociera á Hernando de Magallanes, que descubrió el Estrecho de Magallanes, é que era morador en la ciudad del Puerto (…)47. Esta indicação tem o particular interesse de demonstrar que não era proibido Fernão de Magalhães ali ter habitado e nascido visto ter uma origem nobre. CONCLUSÕES O nome de Fernão de Magalhães imortalizou-se por ter sido o mais notável descobridor de todos os tempos sendo por tal facto que é oportuno situa-lo no âmbito de uma temática tão relevante como é a dos Descobrimentos, os quais foram o grande contributo que Portugal deu para a História Universal. Na história de Fernão de Magalhães ao ponderarmos o seguro apuramento da sua naturalidade portuense podemos considerar estar perante um caso raro de identificação segura da terra natal entre portugueses famosos nascidos no século XV. Com efeito nesse tempo é muitas vezes difícil identificar os locais onde muitos deles nasceram, bastando lembrar, a título de exemplo elucidativo, que não se saber ao certo o lugar onde nasceu Afonso de Albuquerque, pois nenhum documento nem escritor referem a sua naturalidade, 47 Coleccion de documentos inéditos para la Historia de Chile, edição de José Toribio Medina, tomos II, Santiago de Chile, Imprenta Ercilla, 1888, p. 370. 403 JOSÉ MANUEL GARCIA sendo que no seu tempo ele foi uma personalidade muitíssimo mais poderosa do que Fernão de Magalhães48. Os homens distinguem-se pelas suas ações e não pelas suas origens familiares ou naturalidades sendo tal o caso de Fernão de Magalhães ao ter-se assinalado como um português que mostrou uma fibra invulgar ao suscitar um projeto que marcou a História da Humanidade, ao permitir o conhecimento integral da forma da Terra. Fernão de Magalhães imortalizou-se como protagonista de um processo iniciado há cerca de seiscentos anos (entre cerca de 1419 e 1421) quando ocorreram os primeiros esforços de fazer Descobrimentos pelos portugueses sob a direção do portuense infante D. Henrique. Foram esses Descobrimentos que conseguiram criar um sistema de interconexões globais que marcaram o arranque de uma mundialização de contactos entre todos os pontos do nosso planeta, o qual está na origem do atual processo de globalização. Fernão de Magalhães tornou-se assim um símbolo admirável dessa mundialização ao ter sido o primeiro homem a ter dado uma volta ao mundo em duas etapas, as quais decorreram entre 1505 e 1513 e entre 1519 e 1521. Foi assim que ele alcançou a plena consciência das dimensões da esfericidade da Terra, feito que imortalizou esta personalidade nascida na cidade que deu o nome a Portugal. 48 Cf o que escrevemos sobre este assunto em O terrível: a grande biografia de Afonso de Albuquerque, Lisboa, Esfera dos Livros, 2017, pp. 53-55. 404