ACADEMIA PORTUGUESA DA HISTÓRIA
ANAIS
III SÉRIE
VOLUME 6
Tomo III
LISBOA
MMXXI
ÍNDICE
CONTEÚDO
HOMENAGEM À DR.ª MARIA BARROSO .
. . . . . . . . . . . . . . .
9
Vítor Melícias
MONARQUIA DO NORTE – A GUERRA CIVIL ENTRE
MONÁRQUICOS E REPUBLICANOS. ONDE DOIS GOVERNOS
GOVERNARAM PORTUGAL DURANTE TRÊS SEMANAS . .
.
23
. . . . . . .
43
. . . . . . .
65
Pedro Marçal Vaz Pereira
A CRÓNICA SOCIAL NOS ÚLTIMOS REINADOS DA
MONARQUIA ATRAVÉS DO JORNAL LISBOETA
DIARIO ILLUSTRADO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Lourenço Correia de Matos
LÚCIA DE JESUS (1907-2005), FIGURA HISTÓRICA
SINGULAR DO CATOLICISMO CONTEMPORÂNEO
Marco Daniel Duarte
JOÃO RODRIGUES DE CASTELO BRANCO,
TROVADOR-POETA DOS MAIORES DO SEU TEMPO.
. . . . . .
97
Joaquim Candeias da Silva
O PADRE MANUEL DE AZEVEDO, S.J., (1713-1796) E O PAPEL
QUE PODERÁ TER DESEMPENHADO NA NORMALIZAÇÃO DAS
RELAÇÕES ENTRE PORTUGAL E A SANTA SÉ . . . . . . . . . . . 117
Alexandre de Sousa Pinto
A FAMÍLIA FRANCISCANA EM LISBOA
(1217-2017) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . .
155
Henrique Rema
HISTÓRIA DAS ORIGENS OU UMA HISTÓRIA QUE
ILUMINA O PRESENTE? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . .
191
Armindo dos Santos Vaz
«MISSIONÁRIOS POLÍTICOS OU EMBAIXADORES
ESPIRITUAIS». EPISÓDIOS DRAMÁTICOS DA DIPLOMACIA
PORTUGUESA NO PERÍODO DA RESTAURAÇÃO . . . . . . . .
.
231
. .
257
. . . . .
287
Ana Leal de Faria
A PROPÓSITO DE SANTA BEATRIZ DA SILVA: NOTAS
SOBRE ESPIRITUALIDADE E REFORMA NO TEMPO DOS
REIS CATÓLICOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Margarida Garcez Ventura
DAMIÃO DE GÓIS, CRONISTA E HUMANISTA:
UMA ABORDAGEM HISTORIOGRÁFICA À CRÓNICA
DE DOM MANUEL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Isabel Moser
O ESTATUTO CIVIL DOS INSTITUTOS RELIGIOSOS
EM PORTUGAL NO SÉCULO XX . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . .
313
EVOCAÇÃO DE CARVALHO ARAÚJO NO CENTENÁRIO DA
SUA MORTE. JOSÉ BOTELHO DE CARVALHO ARAÚJO, O
MILITAR, O POLÍTICO, O HERÓI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
343
António Montes Moreira
José António Cervaens Rodrigues
A NATURALIDADE DE FERNÃO DE MAGALHÃES
. . . . . . . .
369
José Manuel Garcia
ORAÇÃO DE SAPIÊNCIA PROFERIDA NA RECEPÇÃO
ACADÉMICA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
D. Emanuel D’Able do Amaral
8
. . . . .
405
A NATURALIDADE DE FERNÃO DE MAGALHÃES
COMUNICAÇÃO APRESENTADA EM SESSÃO ORDINÁRIA
DE 28 DE NOVEMBRO DE 2018
PELO
Académico Correspondente
JOSÉ MANUEL GARCIA
A NATURALIDADE DE FERNÃO DE MAGALHÃES
F
ernão de Magalhães alcançou uma enorme projeção mundial
por ter sido um dos descobridores mais notáveis de todos
os tempos visto ter sido o responsável e dirigente da mais
difícil e longa viagem marítima da História, durante a qual se deu
a primeira volta ao mundo. Por tal motivo bem se vê estarmos
perante um português que deve ser conhecido da melhor forma
possível e é nesse sentido que iremos aqui abordar e esclarecer uma
das questões mais controversas da sua biografia: a que consiste no
apuramento de qual foi a sua naturalidade. Para tratar tal assunto
vamos analisar os testemunhos existentes e mostrar que eles vão
no sentido de provar que Fernão de Magalhães nasceu no Porto.
Antes de o fazermos iremos passar em revista as atribuições que
até agora foram apontadas no sentido de identificar a sua origem.
1. AS SETE ATRIBUIÇÕES DE NATURALIDADE DE FERNÃO
DE MAGALHÃES
Numa breve perspetiva historiográfica começamos por
referenciar as sete conjeturas que até agora foram formuladas
no sentido de identificar a naturalidade de Fernão de Magalhães.
371
JOSÉ MANUEL GARCIA
Um tão elevado número de atribuições revela o facto de estarmos
perante um tema que motivou o interesse de várias pessoas ao
longo do tempo e que na sua maioria não conseguiram apurar a
sua real naturalidade, a qual ficou obscura até 1837.
Lisboa
Lisboa foi a mais antiga naturalidade atribuída a Fernão de
Magalhães num texto impresso, pois foi registada em 1603 por
Fray Antonio San Roman ao escrever: “Fernando de Magallanes
Portugues, y natural de Lisboa, gran soldado y particular
marinero”1. Uma tal afirmação resultou por certo da imaginação
deste autor tardio talvez por ter pensado ser Fernão de Magalhães
dali natural por ser a cidade mais importante de Portugal e de
ter sabido que a ela esteve ligado pelas suas atividades. De
facto foi em Lisboa que Fernão de Magalhães centrou a sua
vida adulta antes de ter ido para Espanha em 1517, mas não há
qualquer dado que aponte para a possibilidade de aí ter nascido.
Não é credível que tantas décadas depois da morte de Fernão de
Magalhães em 1521 pudesse haver em 1603 algum testemunho
que fundamentasse uma tal afirmação, a qual está em contradição
com a maior parte das referências antigas que se conhecem sobre
Fernão de Magalhães.
Não tendo credibilidade a noção transmitida por Fray
Antonio San Roman ainda assim não devemos esquecer que na
viagem da armada de Fernão de Magalhães iniciada em 1519
participou um Martim de Magalhães que era natural de Lisboa e
1
Historia General de la Yndia Oriental: Los Descubrimientos y Conquistas que
han hecho las Armas de Portugal, en el Brasil, y en otras partes de Africa,
y de la Asia; y de la Dilatacion del Santo Euangelio por aquellas grandes
Prouincias, desde sus principios hasta el Año de 1557, compuesta por Fray
Antonio San Roman Monge de San Benito, Valladolid, Luis Sanchez, a costa
de Diego Perez, 1603, Livro II, capitulo 25, p. 341.
372
A NATURALIDADE DE FERNÃO DE MAGALHÃES
foi parente de Fernão de Magalhães. A sua biografia tem ainda de
ser aprofundada de forma a revelar melhor as ligações que tinha
com o grande descobridor. Para tal efeito há fontes importantes
por explorar2.
Figueiró dos Vinhos
A possibilidade de Fernão de Magalhães ter nascido em
Figueiró dos Vinhos foi referenciada cerca de 1765, embora
só tenha sido dada a conhecer em 1860 por Ferdinand Denis,
quando tal informação foi publicada pela primeira vez3. Esta
atribuição talvez se fundamente numa eventual confusão com
algum homónimo de Fernão de Magalhães. O texto em que tal
alusão é feita surge num Nobiliário da Casa do Casal do Paço
[de Arcos-de-Valdevez], oferecido a Gaspar Barbosa Malheiro
por seu tio frei João da Madre de Deus, onde se pode ler:
Lopo Rodrigues de Magalhães. Foi para a vila de Figueiró dos
Vinhos para ser tutor dos filhos dos senhores de Figueiró e Pedrógão Grande, os quais eram sobrinhos de Isabel de Sousa, mulher de
seu tio João de Magalhães, senhor da Barca. A qual tutoria foi por
muitos anos por ordem do rei, o qual por este motivo lhe escreveu
muitas cartas honrosas. Foi escrivão das cisas de Figueiró (…).
Casou com Margarida Nunes, de quem teve:
2
CF. nomeadamente El descubrimiento del océano Pacífico: Vasco Núñez de
Balboa, Fernando de Magallanes y sus compaíñeros, edição de José Toribio
de Medina, Santiago de Chile, Imprenta Universitaria, 1920, p. CCCCIVCCCCVI.
3
Nouvelle biographie générale depuis les temps les plus recules jusqu’a nos
jours, tomo 32, Paris, 1860, p. 672.
373
JOSÉ MANUEL GARCIA
Fernando de Magalhães, cavaleiro de Santiago, descobridor do
Estreito do seu nome. Fez-se inventário pela morte do seu pai e
dele consta estar casado na ilha de S. Miguel4.
Esta hipótese de naturalidade não tem credibilidade pois
basta ver que o nome do pai está errado e nunca houve qualquer
ligação de Fernão de Magalhães à ilha de São Miguel nos Açores.
Sabrosa
A atribuição de Sabrosa como local de nascimento de Fernão
de Magalhães foi muito divulgada através de obras impressas,
referências na Internet e notícias dos meios de comunicação social
mas tem de se esclarecer devidamente quão errada ela é. Para o
fazer temos de começar por referir que a sua origem se encontra
em documentos forjados em 1796, evidência iniludível que já ficou
sobejamente demonstrada por muitos historiadores. Por tal motivo
tal facto tem de ser assumido definitivamente e sem margem para
qualquer dúvida5.
4
Esta obra encontra-se na Biblioteca Pública Municipal do Porto ms. n.º 324,
tomo 8.º, cap. III, de que alguns trechos foram publicados por D. José Manuel
de Noronha, «Algumas observações sobre a naturalidade e a família de
Fernão de Magalhães», O Instituto, n.º 68, 1921, p. 139. Cf. ainda Visconde
de Lagoa, Fernão de Magalhães: a sua vida e a sua viagem, livro 1, Lisboa,
Seara Nova, 1938, p. 88.
5
Limitamo-nos a destacar de entre os trabalhos que o trataram os de: D.
José Manuel de Noronha em «Algumas Observações sobre a Naturalidade
e a Família de Fernão de Magalhães», O Instituto, n.º 68, 1921, p. 113-141;
Visconde de Lagoa, Fernão de Magalhães: a sua vida e a sua viagem,
livro 1, Lisboa, Seara Nova, 1938, p. 88-97; Queirós Veloso, Fernão de
Magalhães: a vida e a viagem, Lisboa, Editorial Império, 1941, p. 12-14;
Manuel Villas-Boas, Os Magalhães: sete séculos de aventura, Lisboa,
Referência / Editorial Estampa, 1998, p. 256-257; Le voyage de Magellan
(1519-1522): la relation d´Antonio Pigafetta et autres témoignages, edição
de Xavier de Castro, 2.ª edição, Paris, Chandeigne, 2010, p. 312-314; Irene
374
A NATURALIDADE DE FERNÃO DE MAGALHÃES
Sobre a falsa atribuição do nascimento de Fernão de Magalhães a Sabrosa apontamos apenas o essencial dos fundamentos
de uma tão fantasiosa criação que nasceu da leitura de um
códice do arquivo da família Aragão em Vila Flor contendo
Documentos relativos ao grande navegador Fernão de Magalhães, descubridor do estreito com o seu nome, e outros títulos
e notícias sobre a sua família em Sabroza. A versão completa de
tais documentos só foi publicada em 1921 por Francisco Manuel
Alves6. Até então eles só eram conhecidos a partir de algumas
das suas partes que começaram a ser referenciadas em 1860
por Ferdinand Denis, que foi assim o iniciador da divulgação
desta mistificação que infelizmente tanto sucesso alcançou.
Este autor tendo emendando de forma desafortunada a correta
atribuição que anteriormente havia feito ao Porto como local de
nascimento de Fernão de Magalhães escreveu que: “On suppose
généralement qu’il naquit à Porto; mais des documents inédits,
qu’on nous a fait parvenir du Portugal, lui donnent pour lieu
de naissance Villa de Sabroza, dans la Comarca de Villareal,
province de Tras-os-Montes”7.
Esta ideia de atribuir a naturalidade de Fernão de Magalhães
a Sabrosa foi aceite e divulgada em 1864 por Diego Barros Arana
em Vida i viajes de Hernando de Magallanes, Santiago, Imprenta
da Silva Dantas, Entre Memórias: a questão da naturalidade de Fernão de
Magalhães, Braga, tese de mestrado apresentada à Universidade do Minho
Instituto de Ciências Sociais, 2012 (file:///C:/Users/ameli/Desktop/00%20
Naturalaide%20de%20Magalhães%20 Irene%20da%20Silva%20Dantas.pdf)
e Amândio Barros, O homem que navegou o mundo: em busca das origens
de Magalhães, Braga, AL - Publicações, 2015, p. 36-46.
6
“O grande navegador Fernão de Magalhães”, O Instituto, 68, Coimbra,
1921, p. 65-80.
7
Nouvelle biographie générale depuis les temps les plus recules jusqu’a nos
jours, tomo 32, Paris, 1860, coluna 671.
375
JOSÉ MANUEL GARCIA
Nacional8 e aprofundada em 1881 na sua tradução portuguesa
feita por Fernando de Magalhães Vilas-Boas em Vida e viagens
de Fernão de Magalhães, Lisboa, Academia Real das Ciências de
Lisboa9. De entre as muitas obras que por uma questão de facilidade
e sem espírito crítico seguiram estas indicações conta-se um livro
recente da autoria de Laurence Bergreen10.
No códice acima citado contem-se um processo criado em
1796 por António Luís Alvares Pereira Coelho da Silva Castelo
Branco de Magalhães tendo em vista servir de suporte à sua
pretensão de se afirmar como herdeiro de Fernão de Magalhães
para assim reclamar junto do estado espanhol o seu alegado direito
à pretensa herança do famosos navegador. Foi nesse sentido que
esse fidalgo apresentou uma certidão passada em 1796 por um
escrivão da Câmara de Fafe contendo dois testamentos falsos,
um de Fernão de Magalhães, alegadamente feito em Belém a 17
de dezembro de 1504, e outro alegadamente feito no Maranhão
a 3 de abril de 1580 por um seu pseudo sobrinho neto chamado
Francisco da Silva Teles.
Não sendo necessário desenvolver aqui um assunto que já
está mais que esclarecido iremos ainda assim apontar dois pontos
de entre as muitas imposturas, incongruências e anacronismos do
suposto testamento de 1504, que evidenciam quão falso ele é. Um
desses pontos é o tratamento que nele é dado por três vezes ao rei
D. Manuel I sob a forma de “sua majestade”. Ora esta importante
forma de tratamento só foi dada aos reis de Portugal a partir de
8
Cf. p. 1 e 133.
9
Cf. p. 177-180.
10
Over the edge of the world: Magellan’s terrifying circumnavigation of the
globe, Londres, Harper Collins, 2003, obra que obteve um largo sucesso
tendo sido traduzida em várias línguas, nomeadamente a portuguesa ao ser
editada com o título Fernão de Magalhães: para além do fim do mundo. A
extraordinária viagem de circum-navegação, Lisboa, Bertrand, 2005, p. 32.
376
A NATURALIDADE DE FERNÃO DE MAGALHÃES
1577, sendo que até então eles só podiam ser tratados por “sua
alteza”.
Outra das evidências fáceis de verificar que leva a perceber
quão falso é tal documento reside na circunstância de aí se referir
apenas uma irmã de Fernão de Magalhães com o nome de D.
Teresa de Magalhães, pois ela nunca existiu, visto ser seguro que
ele teve apenas uma irmã chamada Isabel de Magalhães, além de
mais dois irmãos, que não foram mencionados.
Para não ter de refazer a argumentação de autores anteriores
que já desmontaram à saciedade quão fabulosa é esta atribuição
da naturalidade de Fernão de Magalhães a Sabrosa limitamo-nos
a citar parte do que Queirós Veloso escreveu sobre esta questão
ao referir que tal atribuição “deve ser absolutamente rejeitada”
pois:
Os dois testamentos [1504 e 1580] são falsos, expressamente
forjados para mostrar que António Luís Álvares Pereira, senhor
da casa da Pereira em Sabrosa, descendia do insigne navegador,
por linha colateral, na qualidade de oitavo neto e sucessor de
D. Teresa, irmã de Fernão de Magalhães. António Luiz Alvares
Pereira que depois passou a assinar-se. António Luís Álvares
Pereira Coelho da Silva Castelo Branco de Magalhães - era
casado, em segundas núpcias, com D. Petronilha Lopéz de
Aboin, sobrinha do celebrado D. Manuel Godoy, simultaneamente favorito da rainha Maria Luiza e valido do rei Carlos
IV. Residindo em Madrid, lembrou-se António Luís Álvares
Pereira de aproveitar a excecional situação do tio de sua
segunda esposa – que já o fizera cavaleiro de Santiago – para se
apresentar como representante do descobridor das Filipinas; e
requereu ao monarca espanhol não só a restauração das honras
concedidas a Fernão de Magalhães, como uma avultada indemnização pela vintena das terras e ilhas descobertas, nos termos
do contrato celebrado com Carlos I em 1518, que a morte o
impedira de receber. O requerimento é de 1795. Remetido ao
377
JOSÉ MANUEL GARCIA
Conselho Real das Índias, era preciso instruí-lo com provas
convincentes; e surgiram então os falsos testamentos de Belém
e do Maranhão, cujas certidões são de 1796. Em 1798, deixou
Godoy o cargo de primeiro-ministro. Três anos depois, voltava
ao poder, mais omnipotente ainda; mas o sobrinho morreu de
desastre quando passeava a cavalo, antes de alcançar o bom
despacho das suas ambiciosas pretensões11.
Queirós Veloso, na sequência de outros autores, reforçou
ainda a sua argumentação com a indicação de que no inventado
testamento de 1504 “não há, em todo ele, a mínima referência ou
alusão à naturalidade do testador”12. Tal documento foi forjado
apenas para o ligar ao outro suposto documento de 1580, que
fundamentava as abusivas pretensões do seu falsificador.
Tolões (Amarante)
Uma atribuição de naturalidade a Fernão de Magalhães a Tolões
(Amarante) ficou esquecida pois foi feita apenas numa referência registada em 1814 pelo padre Francisco de Azevedo Coelho de Magalhães
(identificado como P. F. de A. C. de M.) numa obscura Historia antiga e
moderna da sempre leal e antiquissima villa de Amarante, desde a sua
primeira fundação pelos turdetanos, trezentos e sessenta annos antes
da vinda de Christo, Senhor Nosso, até ser incendiada pelos francezes
em 1809, Londres, T. C. Hansard, p. 27, onde se pode ler que: “Neste
Concelho e freguezia de Toloens está a casa do Reguengo, aonde
nasceo Fernando de Magalhaens descubridor do Estreito, e terra de
Magalhaens, da Ilha de Sancta Ursula, e do Jason Portuguez, com
tudo o mais que se pode ver nas provas (no. 11.)”.
11
Queirós Veloso, Fernão de Magalhães: a vida e a viagem, Lisboa, Editorial
Império, 1941, Lisboa, Império, 1941, p. 13-14.
12
378
Idem, ibidem, p. 12.
A NATURALIDADE DE FERNÃO DE MAGALHÃES
Nesta obra não há, nem podia haver, qualquer registo de
“provas (no. l l.)”, pelo que naturalmente se deve tratar de uma
alegação imaginada talvez a partir de algum eventual homónimo
de Fernão de Magalhães13.
Braga
Uma informação que dá Braga como sendo a naturalidade
de Fernão de Magalhães tem passado despercebida mas tal como
as anteriores é inconsequente. Tal fantasia foi apenas referida por
José Agostinho de Macedo em 1820 numa Censura das Lusiadas,
tomo I, Lisboa, Impressão Régia, p. 114. Com efeito este autor
afirmou nessa obra que Fernão de Magalhães era “natural de
Braga”, também não se conseguindo perceber porque é que
teria imaginado uma tal atribuição. Eventualmente poderia tê-la
formulado ao fazer mais uma confusão com algum homónimo de
Fernão de Magalhães, sendo igualmente muito estranho que tenha
atribuído a Francisco Faleiro a circunstância de ele ser “também
natural de Braga”, quando se sabe muito bem que este astrónomo
era da Covilhã14.
Porto
A atribuição do Porto como naturalidade de Fernão de
Magalhães, que iremos desenvolver mais à frente, foi registada
finalmente e pela primeira vez em 1837 por D. Martin Fernández
de Navarrete quando afirmou que “fue Hernando de Magallanes
13
Sobre esta atribuição cf. ainda Visconde de Lagoa, Fernão de Magalhães:
a sua vida e a sua viagem, livro 1, Lisboa, Seara Nova, 1938, p. 87-88.
14
Juan Gil, El exilio portugués en Sevilla: de los Braganza a Magallanes,
Sevilha, Fundación Cajasol, 2009, p. 349.
379
JOSÉ MANUEL GARCIA
natural de la ciudad de Oporto, en el reino de Portugal, en donde
estuvo avecindado”. Para fundamentar esta afirmação o autor
baseou-se no facto de Fernão de Magalhães se ter declarado
vizinho do Porto15.
Em 1842, seguindo a informação que acabámos de citar,
o Visconde de Santarém foi o primeiro português a publicar esta
atribuição do Porto como sendo a terra da naturalidade de Fernão
de Magalhães16. Seguiram-se-lhe outras personalidades que deram
aval a tal identificação, de entre os quais cabe realçar em 1938 o
Visconde de Lagoa17. Foi a partir das referências deste autor que
a identificação do Porto como lugar da naturalidade de Fernão de
Magalhães foi largamente promovida a partir desse mesmo ano na
biografia que Stefan Zweig dele fez e alcançou largo sucesso18.
15
Colleción de los viajes y descubrimientos que hicieron por mar los españoles
desde fines del siglo XV, edição de Martin Fernandez de Navarrete, volume
4, Madrid, Imprenta Nacional, 1837, p. XXV e p. LXXII.
16
«Magellan, Ferdinad», artigo reeditado em Opusculos e esparsos, volume
I, Lisboa, Imprensa Libânio da Silva, 1910, p. 473. Este autor tendo-se
fundamentado nas indicações de Navarrete equivoucou-se ao fazer remissões
para: “Argensola, Híst. de las Malucas, lib. I , p. 6; y, en los Anales de
Aragón, lib. I, cap. 13, pág.133”, o que não corresponde à realidade, pois
nessas obras de Argensola não se refere o Porto como terra de naturalidade
de Fernão de Magalhães.
17
Visconde de Lagoa, Fernão de Magalhães: a sua vida e a sua viagem ,
volume 1, Lisboa, Seara Nova, 1938, sobretudo p. 97-104.
18
Magellan: der mann und seine tat, Wien; Leipzig; Zürich: Herbert Reichner
Verlag, 1938 o qual foi logo traduzido em várias línguas com muitas edições,
tendo a portuguesa saído logo nos inícios de 1938 com o título Fernão de
Magalhães, (13.º edição), Lisboa, Relógio de Água, 2017 (p. 39). Sobre
esta obra cf. Maria de Fátima Gil, Uma biografia “moderna” dos anos 30:
Magellan. Der mann und seine tat de Stefan Zweig, Coimbra, Minerva,
Centro Interuniversitário de Estudos Germanísticos, 2008.
380
A NATURALIDADE DE FERNÃO DE MAGALHÃES
Ponte da Barca
A 27 de abril de 1921, António Baião, depois de D. José
Manuel de Noronha ter desmontado o “romance” de Sabrosa,
lembrou-se de inventar um outro “romance”. Com efeito este
historiador, ainda que com a boa vontade de, como ele diz, procurar alcançar a “verdade”, acabou por avançar para uma última
suposição de atribuição de naturalidade a Fernão de Magalhães
ao sugerir que ele poderia ter nascido em Ponte da Barca ou
outra terra minhota. Com efeito o autor mencionado, baseando-se
apenas nas “provanças” de Lourenço de Magalhães registadas no
treslado feito em 1568 do “processo original” que ele transcreveu,
inclinou-se para admitir que Fernão de Magalhães teria nascido
na “Terra da Nóbrega”, antigo nome de Ponte da Barca. Ainda
assim ele expressou algumas dúvidas nessa posição pois escreveu
que “ou viesse à luz nas margens daquele rio [Lima] (…) com as
casarias graníticas da Barca ou de Ponte, ou viesse à luz na cidade
do Douro a ouvir os vagalhões da Foz (…)”19.
Para fundamentar a suposição minhota da naturalidade de
Fernão de Magalhães António Baião partiu da referida inquirição
mandada fazer por Lourenço de Magalhães em 1567 para se
tentar habilitar à herança do navegador. Ora neste documento
verdadeiro quer a naturalidade de Ponte da Barca quer a de
outra povoação do Minho não está expressa de qualquer forma
que seja, tendo sido induzida pela circunstâncias das origens
remotas de Fernão de Magalhães serem dali, de lá ter familiares
e de serem daí algumas das testemunhas que Lourenço de
Magalhães arrolou no sentido de defender que ele era parente
de Fernão de Magalhães, sem que tivesse revelado ou levado
a supor que o navegador fosse natural do Minho. A verdade é
19
“Fernão de Magalhães: o problema da sua naturalidade rectificado e
esclarecido”, História e memórias da Academia das Ciências de Lisboa,
nova série, 2.ª classe, tomo XIV, Lisboa, 1921, p. 25-81.
381
JOSÉ MANUEL GARCIA
que no texto deste documento em nenhuma parte se assinala
que Fernão de Magalhães pudesse ser dessa região mas apenas
que nela havia pessoas que o tinham conhecido ou seriam seus
familiares, tendo mesmo uma delas afirmado que ele viveu no
Porto, como veremos mais à frente.
A outra fonte que foi alegada para admitir a possibilidade
de Fernão de Magalhães ser de Ponte da Barca é um documento
em que tal realidade não é afirmada nem a permite deduzir. O
documento em causa é uma carta que Carlos V dirigiu a D. Manuel
I datada de Saragoça a 31 de Julho de 1518 na qual se intercedia
junto do rei de Portugal a favor de:
Simón Barreto de Magallanes y Francisco de Magallanes, su hermano, vinieron a mi y me hicieron relación que por cierta muerte
de un juez de Ponte de Barca en que fueron culpantes, diz que vos
los mandastes condenar a pena de muerte y perdimiento de sus
bienes, y porque diz que ellos son de corona y se quieren presentar
en la cárcel eclesiástica y mostrar cómo son sin culpa de la dicha
muerte, me suplicaron vos escribiese sobrello: y porque los dichos
Simón Barreto y Francisco de Magallanes son debdos de criados y
servidores nuestros, por cuyo respeto tenemos voluntad que sean
favorescidos20.
O favorecimento que Carlos V fazia desses homens poderia
ter por base um pedido formulado por Fernão de Magalhães mas
não permite admitir mais do que a hipótese de todos eles serem
parentes.
Para poupar o leitor a novas considerações no sentido de negar
esta hipótese, que foi defendida nomeadamente por Queirós Veloso,
limitamo-nos a citar as que o Visconde de Lagoa já formulou ao
considerar que Fernão de Magalhães não era minhoto devido a:
20
José Toribio Medina, El Descubrimiento del Océano Pacífico: Hernando de
Magallhanes y sus compañeros. Documentos, Santiago do Chile, Imprensa
Elzeviriniana, 1920, p. 243.
382
A NATURALIDADE DE FERNÃO DE MAGALHÃES
a) O facto das «pessoas de idade bastante avançada - bem
como as já falecidas» terem conhecido Fernão de Magalhães, não
implica que o último e os primeiros fossem conterrâneos;
b) O informe de terem as referidas pessoas conhecido o
navegador na adolescência, é tão falho de prova como é gratuita
a exceção que o Dr. Queirós Veloso abre para o pai do depoente
Fernão de Magalhães, pela única razão daquele esclarecer que o
futuro obreiro da viagem de circum-navegação residia no Porto, o
que é de molde ou a vibrar irreparável golpe na tese minhota, ou
a condenar a fórmula de ser a naturalidade de alguém a do sítio
onde lhe decorreu a adolescência;
E, admitindo que o conheceram na adolescência, que fatores
se opõem a que fosse o Porto o teatro de tal conhecimento?
c) Não tem o mínimo fundamento a pretensão de que Fernão
de Magalhães só habitou no Porto durante os dezoito meses que
antecederam a expatriação;
d) Para admitir a hipótese do ilustre nauta ter tido um domicílio
único, enquanto viveu com o pai, seria forçoso pressupor que
Magalhães nasceu num cárcere e que nele permaneceu enquanto
habitou com o progenitor;
e) Contrariamente ao critério do Dr. Queirós Veloso, nos
depoimentos das testemunhas ouvidas no processo de Lourenço
de Magalhães não há o mínimo vestígio da naturalidade do insigne
mareante.
E aqui tem o leitor em que se resume a tese da naturalidade
minhota de Fernão de Magalhães, enunciada com sinceridade pelo
Dr. António Balão e defendida pelo Dr. Queirós Veloso21.
21
Visconde de Lagoa, Fernão de Magalhães: a sua vida e a sua viagem, livro
1, Lisboa, Seara Nova, 1938, p. 87.
383
JOSÉ MANUEL GARCIA
2. AFIRMAÇÕES DE AUTORES ANTIGOS SOBRE A NATURALIDADE PORTUENSE DE FERNÃO DE MAGALHÃES
No apuramento da naturalidade de Fernão de Magalhães
importa aduzir os testemunhos fundamentais que permitem afirmar
com toda a segurança a circunstância de Fernão de Magalhães ter
nascido no Porto.
Das atribuições atrás apontadas nenhuma tem uma argumentação tão forte e verdadeira para a sustentar como a que
está centrada no Porto. Com efeito tal argumentação escuda-se
em testemunhos de autores antigos e de grande autoridade que
foram coevos de Fernão de Magalhães, além de documentos que
ele próprio produziu e vão no sentido de o ligar ao Porto e não a
qualquer outra povoação.
O testemunho de Fernando Oliveira
Na evocação dos autores antigos que escreveram sobre este
assunto começamos por citar Fernando Oliveira por ter afirmado
ser “Fernão de Magalhães natural da cidade do Porto”. Pela
relevância de que se revestem essas suas palavras consideramos
que devem ser sublinhadas e refletidas valendo a pena por isso
ponderar sobre essa e outras informações que Fernando Oliveira
nos facultou sobre Fernão de Magalhães. Antes de o fazermos
elaboramos um pequeno apontamento relativo a Fernando Oliveira,
de forma a situá-lo no seu tempo e valorizar a grande importância
do seu testemunho.
Fernando Oliveira, cujo nome também aparece grafado
como Fernão de Oliveira, foi um muito conceituado humanista e
polígrafo português que nasceu em 1507 no lugar de Gestosa, na
freguesia de Couto do Mosteiro, concelho de Santa Comba Dão,
embora tenha sido gerado em Aveiro pelos seus pais quando aí
384
A NATURALIDADE DE FERNÃO DE MAGALHÃES
viviam, antes de se deslocarem para aquela povoação22. Foi por
isso que Fernando Oliveira também afirmou ser de Aveiro, onde
Rui de Magalhães, o pai de Fernão de Magalhães, foi alcaide.
Foi ainda nessa povoação que Fernando Oliveira começou
a sua educação, antes de começar uma vida aventurosa e de
estudo, durante a qual se revelou interessado por diversos temas,
nomeadamente os de natureza náutica e histórica. Da curiosidade
por estas áreas científicas resultou a sua atração pela viagem de
Fernão de Magalhães, assunto que o terá impressionado a ponto
de sobre ele ter elaborado um trabalho, depois de ter acedido
a um texto onde tal viagem era contada. Nesse trabalho ele
juntou considerações da sua autoria nas quais forneceu valiosas
informações sobre aquele navegador, as quais completavam e
valorizavam a narrativa que apresentou.
O texto que Fernando Oliveira escreveu sobre Fernão de
Magalhães ficou anónimo e manuscrito até começar a ser divulgado
em 1937, acabando assim por ser a última fonte impressa a ter
dado um contributo importante para a história daquela figura e da
sua viagem23. Cerca de 1570, esse trabalho foi copiado com uma
22
Sobre esta personalidade já há uma abundante bibliografia, de entre a qual
destacamos, pela amplitude das problemáticas nela tratada e por remeter para
mais bibliografia, a obra coletiva Fernando Oliveira um humanista genial
(V centenário do seu nascimento), coordenada por Carlos Morais, Aveiro,
Universidade de Aveiro, 2009. Sobre o local do nascimento de Fernando
Oliveira cf. aí as pp. 32-34.
23
Esta obra foi publicada pela primeira vez por Walther Vogel em «Ein
unbekannter Bericht von Magalhães’ Weltumsegelung», Marine-Rundschau,
22, 1911, pp. 452-460, 582-596 mas só foi mais divulgada por Marcus de
Jong em Um roteiro inédito da circum-navegação de Fernão de Magalhães,
Coimbra, Faculdade de Letras-Publicações do Instituto Alemão da
Universidade de Coimbra, 1937 e por Pierre Valière, Le voyage de Magellan
raconté par un homme qui fut en sa compagnie. Édition critique, traduction
et commentaire du texte manuscrit recueilli par Fernando Oliveyra, Paris,
Fundação Calouste Gulbenkian, 1976, onde se reproduz o manuscrito original.
Cf. ainda os estudos e edições de Francisco Contente Domingues, “Relato
385
JOSÉ MANUEL GARCIA
Ars nautica do mesmo autor num códice escrito pela mesma mão
que está guardado na Biblioteca da Universidade de Leiden, Ms.
Voss. Lat. F.41, estando o escrito sobre Fernão de Magalhães nos
fls. 239-254. Este último texto foi por certo concebido cerca de
1536 numa altura em que Fernando Oliveira esteve em contacto
com João de Barros por ter sido professor dos seus filhos, sendo
esta a personalidade que tinha na sua posse o original do tal texto
onde aquela viagem era contada, do qual se serviu. Com efeito
aquele humanista e cronista eminente, que desde 1533 era feitor da
Casa da Índia em Lisboa, até debateu nessa altura com Fernando
Oliveira questões filológicas24.
João de Barros distinguiu-se como cronista desde que cerca
de 1531 começou a escrever a Ásia, cuja primeira versão alegou
ter concluído cerca de 1539, embora as versões finais das suas
três primeiras décadas daquela obra só tivessem sido finalizadas
posteriormente e impressas entre 1552 e 1563. Nesta obra, solidamente fundamentada, ele declarou ter na sua posse numerosa
documentação sobre Fernão de Magalhães, nomeadamente um
livro que pertenceu a Gonzalo Gómez de Espinosa e ele lhe
apreendeu quando este chegou sob prisão a Lisboa a 24 de julho
de 1526. Com efeito João de Barros, que nessa altura era tesoureiro
das Casas da Mina, Índia e Ceuta, alegou ter sido então que dele
da viagem de Fernão de Magalhães», in As grandes viagens marítimas,
Lisboa, Publicações Alfa, 1989, p. 99-126, José Manuel Garcia, A viagem de
Fernão de Magalhães e os portugueses, Lisboa, Editorial Presença, 2007 e Le
voyage de Magellan (1519-1522): la relation d´Antonio Pigafetta et autres
témoignages, edição de Xavier de Castro, 2.ª edição, Paris, Chandeigne, 2010.
24
Henrique Lopes de Mendonça, O padre Fernando Oliveira e a sua obra
nautica. Memoria comprehendendo um estudo biográfico sobre o afamado
grammatico e nautografo e a primeira reprodução typographica do seu
tratado inedito Livro da Fabrica das Naos, Lisboa, Academia Real das
Sciencias, 1898; Fernando Oliveira um humanista genial (V centenário do
seu nascimento), coordenada por Carlos Morais, Aveiro, Universidade de
Aveiro, 2009, p. 218.
386
A NATURALIDADE DE FERNÃO DE MAGALHÃES
“houve alguns papéis que lhe achei, entre os quais foi um livro
feito per ele de toda aquela sua viagem”25, o qual usou na sua
Ásia, nomeadamente quando em 1539 preparava a sua década
terceira, embora esta só tenha sido impressa em 1563. De lembrar
que Gonzalo Gómez de Espinosa havia sido capturado em 1522
nas Molucas quando era capitão da nau Trinidad, aquela onde
navegara Fernão de Magalhães até ser morto em 1521. Por certo
João de Barros terá mostrado a Fernando Oliveira o livro que tirara
a Espinosa, quando esteve com ele, levando-o a interessar-se pelo
seu conteúdo, a ponto de este o ter usado na preparação da obra
a que de seguida nos referimos.
Devemos também assumir a importância da noção de que
tendo João de Barros vivido em Lisboa e contado já vinte e
um anos de idade em outubro de 1517, poderia ter conhecido
pessoalmente Fernão de Magalhães nesta cidade, antes de ele
a ter deixado no referido mês. Tendo-o ou não contactado este
cronista conheceu aspetos da história de Fernão de Magalhães
que lhe foram referidos oralmente ou leu em fontes escritas. De
entre tais aspetos contavam-se a sua origem familiar, as viagens
que fez, os problemas que teve, além do projeto que concebeu e
lhe veio a assegurar a fama.
Partindo das observações que até aqui apresentámos pensamos
que Fernando Oliveira traduziu, adaptou e simplificou o texto que
encontrou no volume manuscrito de Gonzalo Gómez de Espinosa
sobre a viagem de Fernão de Magalhães, criando uma obra onde
lhe acrescentou uma importante introdução e algumas observações,
a que deu o título Viagem de Fernão de Magalhães na demanda
de Maluco por el-rei de Castela, referindo que nela apresentava
a “Viagem de Fernão de Magalhães escrita por um homem que
foi na companhia”.
25
João de Barros, Terceira década da Ásia, Lisboa, 1563, livro V, capitulo X.
387
JOSÉ MANUEL GARCIA
Insistimos na noção de ter sido por volta de 1536 que Fernando
Oliveira procedeu a uma primeira redação da obra aqui em causa
devido à proximidade que então tinha com João de Barros, pois
dificilmente vemos outra via e oportunidade para que ele pudesse
ter acesso à fonte que trabalhou, considerando nomeadamente a
vida muito agitada que levou, quer fora quer dentro do país. É
ainda de assinalar que não se consegue conceber que outra obra
poderia ele ter usado para o seu fim além da sugerida. Caso nos
possamos situar por volta de 1536 para datar a preparação inicial
desta obra, embora apenas concluída e revista cerca de 1570, é
de ponderar terem então passado apenas uns quinze anos sobre a
morte de Fernão de Magalhães ocorrida em 1521, pelo que se pode
admitir quão bem posicionado ele estava para fornecer informações
relevantes e fundamentadas para o esclarecimento de questões
muito importantes relativas à biografia do grande navegador, pelo
qual tanto se interessou. Tal é o caso das informações concernentes
quer ao local do seu nascimento quer ao da sua ida às Molucas
em 1512.
É nesse sentido que de entre as indicações da lavra de Fernando Oliveira na Viagem de Fernão de Magalhães na demanda de
Maluco por el-rei de Castela vamos aqui destacar uma passagem
que apresentamos em transcrição com a ortografia atualizada, para
assim a relevarmos como sendo do maior interesse para o estudo
da vida do navegador.
Colocamos algumas das suas frases em itálico para permitir
que expressem em toda a sua eloquência a revelação de esclarecimentos decisivos sobre Fernão de Magalhães. Vejamos então
o texto em causa:
Antre os portugueses que descobriram Maluco foi um chamado
Fernão de Magalhães, natural da cidade do Porto, em Portugal.
Este era da geração dos Magalhães, gente honrada e nobre, e era
criado del-rei em foro de moço da câmara, e homem entendido na
arte da navegação e cosmografia, em especial pelo que aprendeu de
um seu parente chamado Gonçalo de Oliveira, em cuja companhia
388
A NATURALIDADE DE FERNÃO DE MAGALHÃES
foi ter aquela terra, do qual entendeu a verdade do sítio daquelas
terras, porque era Gonçalo de Oliveira mui sabido nesta faculdade26.
Fernando Oliveira ao escrever estas linhas visava identificar
o protagonista da história que ia contar e afirmar a importância
da experiência asiática e náutica de Fernão de Magalhães como
fator determinante para o habilitar com um saber prático em
assuntos de marinharia que lhe permitiram a realização de um
empreendimento tão arrojado como foi o de chegar às Filipinas
por uma via ocidental.
Foi a prática das navegações que Fernão de Magalhães
realizou entre 1505 e 1513 juntamente com estudos náuticos
realizados no Oriente e Lisboa que contribuíram decisivamente
para que ele fosse capaz de apresentar talvez a 2 de março de
1518 uma perspetiva credível da localização das Molucas que
conseguiu convencer Carlos V a apoiar rapidamente o muito
dispendioso e arriscado projeto que lhe apresentou.
É importante incidir a nossa atenção na informação
sobre o navegador fornecida no texto acima citado de Fernando
Oliveira relativa ao local do seu nascimento, onde se declara de
forma perentória e inequívoca ser “Fernão de Magalhães natural
da cidade do Porto, em Portugal”.
Estamos perante uma afirmação expressa com toda a firmeza
e de forma assertiva pelo ilustre autor que aqui seguimos, facto
que constitui um contributo importante para apurar com toda a
credibilidade a identificação da localidade do seu nascimento.
Ao formular de uma forma tão segura aquela declaração
absolutamente credível sobre as origens de Fernão de Magalhães
temos de considerar a circunstância de que Fernando Oliveira para
a poder registar teria de estar bem escudado em sólidas informações
que o levaram a apontá-la apenas uns quinze anos após a morte
de Fernão de Magalhães. Não é admissível que ele tivesse feito
uma tal declaração sem fortes fundamentos para a poder avançar
26
José Manuel Garcia, A viagem de Fernão de Magalhães e os portugueses,
Lisboa, Editorial Presença, 2007, p. 197.
389
JOSÉ MANUEL GARCIA
e estivesse a mentir, inventar ou cair numa especulação gratuita
e sem qualquer sentido ou vantagem.
Pelas razões aduzidas consideramos que o texto acima citado
de Fernando Oliveira nos merece toda a confiança e por isso com
ele podermos atestar como certo o facto de Fernão de Magalhães
ter nascido no Porto.
Seria ainda bom que se descobrisse a origem do mencionado
piloto Gonçalo de Oliveira, quem sabe se também ele um portuense,
tal como o era o piloto Estêvão Gomes, que colaborou com
Fernão de Magalhães na sua grande viagem até o ter atraiçoado
e abandonado no estreito de Magalhães em novembro de 1520.
Gonçalo de Oliveira foi um piloto a ter sido bem referenciado
no contexto da história de Fernão de Magalhães sendo de notar
que tinha o mesmo apelido Oliveira que tinha Fernando Oliveira.
De realçar ainda a precisão do registo de Fernando Oliveira ao ter
relacionado Gonçalo de Oliveira com Fernão de Magalhães por
com ele ter ido às Molucas do sul em 1512. É ainda de destacar
que tal piloto foi exclusivamente conhecido e registado por ter
sido um dos pilotos que foi às Molucas nessa primeira viagem
de descobrimento dirigida por António de Abreu, o que exige um
elevado grau de informação sobre esta figura na sua relação com
Fernão de Magalhães.
O testemunho do doutor João de Barros
A reforçar o conhecimento da circunstância de Fernão de
Magalhães ter nascido no Porto importa apontar outras informações
nesse sentido, de entre as quais destacamos uma cujo texto é inédito
e vem revelar não ter sido Fernando Oliveira o único autor a atribuir
no século XVI a naturalidade do Porto a Fernão de Magalhães.
Com efeito tal realidade foi também afirmada perentoriamente pelo
doutor João de Barros, de uma forma independente da fornecida
pelo autor atrás citado, a qual está datada de 1549, escassos vinte
390
A NATURALIDADE DE FERNÃO DE MAGALHÃES
e oito anos após a morte de Fernão de Magalhães. Na declaração
que esta personalidade registou expressa-se a afirmação de ter
sido do Porto que “foi natural o Magalhães”.
Vejamos então como surge esta novidade documental que
tivemos a felicidade de descobrir e é tão decisiva como conclusiva
da evidência de ser o Porto o lugar de naturalidade de Fernão de
Magalhães.
O testemunho aqui equacionado deve-se ao doutor João de
Barros, uma personalidade culta e de autoridade que era homónima
do tão justamente famoso cronista, humanista e feitor João de
Barros. Tal autor nasceu entre 1500 e 1505 em lugar que se tem
apontado ser o Porto, Braga ou Vila Real sendo de sublinhar a sua
condição de “cidadão” do Porto, a qual está atestada em reunião
da câmara desta cidade de 8 de agosto de 1537. Tal condição foi
também por ele reafirmada orgulhosamente no frontispício da
edição do seu livro Espelho de casados, impresso no Porto em
1540, onde afirmou ser “cidadão da cidade do Porto”. A 23 de junho
1553, D. João III concedeu-lhe um brasão, referindo-o como sendo
“do meu desembargo e meu escrivão de câmara, filho legítimo do
dr. Diogo Gonçalves e de Briolanja de Barros”27.
É de considerar que a família do doutor João de Barros tinha
propriedades em Vila Nova de Gaia junto daquela que aí possuiu
Fernão de Magalhães, à qual mais à frente nos iremos referir28.
27
A figura do doutor João de Barros ainda está mal estudada, podendo-se ver
nomeadamente algumas muito breves e incompletas considerações sobre
a sua vida e obra em António Baião, Documentos inéditos sobre João de
Barros, sobre o escritor seu homónimo contemporâneo, sobre a família
do historiador e sobre os continuadores das suas “Decadas” , separata de
Boletim da Segunda Classe da Academia das Ciências de Lisboa, volume
11, Coimbra, 1917 e Joaquim Veríssimo Serrão, Figuras e caminhos do
Renascimento em Portugal, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda,
1994, pp. 301-307.
28
Cf. António Taveira, Fernão de Magalhães “o do estreito” de Santa Maria
da Sé do Porto, 2.ª edição, Porto, Edição do autor, 2011, p. 13.
391
JOSÉ MANUEL GARCIA
Cerca de 1530, o doutor João de Barros começou a preparar
umas “memórias“ sobre a região de Entre Douro e Minho que o
levaram a apresentar um trabalho cuja primeira versão está datada
de Lisboa a 25 de maio de 1548 com o título Breve suma de
Geografia da comarca dentre Douro e Minho e Trás-os-Montes.
Esta obra foi publicada de acordo com um manuscrito incompleto
que se encontra na Biblioteca Pública Municipal do Porto29. Tal
versão, contudo, não coincide com a versão final e mais completa
do livro que o seu autor concluiu sobre o mesmo tema e foi citada
por Diogo Barbosa Machado30. Esta última versão apresenta a data
de 1549, sendo diferente da que está datada de 1548, dela havendo
um manuscrito cujo conteúdo permanece inédito na Biblioteca
Nacional de Portugal com o título Libro das antiguidades e cousas
notaueis de antre Douro e Minho, e de outras m[ui]tas de España
e Portugal. Por Ioão de barros. Composto no an[n]o de 154931.
Esta obra merece ser investigada pelos estudiosos do Porto e
de outras regiões do Norte do país, mas a nossa atenção limita-se
aqui à referência que é feita ao Porto e a Fernão de Magalhães
no f. 50 do seu manuscrito, a qual até agora foi desconhecida:
”Os homens desta Cidade são polla mor parte muito espertos na
arte do marear e se fazem aly grandez naos, e nauios, e daly foi
natural o Magalhais que achou outro caminho pera a India que
foj homem habilíssimo”.
Fernão de Magalhães é aqui destacado a propósito do elogio
feito aos homens do Porto ao dizer que: “e dali foi natural o
Magalhães, que achou outro caminho para a Índia, que foi homem
habilíssimo”. Esta informação revela em toda a sua eloquência
uma asserção que se nos afigura acabar com alguma hesitação que
29
Publicada com o título Geografia dentre Douro e Minho e Trás-os-Montes
no Porto pela Biblioteca Pública Municipal do Porto em 1919.
Biblioteca lusitana, tomo II, Lisboa, 1747, p. 609.
30
31
Trata-se de um códice com 89 f. e a cota Cod 216, que pode ser consultado
em: http://purl.pt/26460
392
A NATURALIDADE DE FERNÃO DE MAGALHÃES
pudesse ainda subsistir sobre o facto da naturalidade de Fernão
de Magalhães ser o Porto.
Estamos perante um texto antigo que é tão claro como
explícito na afirmação segura de ser Fernão de Magalhães do
Porto. A apresentação de tal facto não suscitou qualquer dúvida
ou incerteza ao doutor João de Barros, tal como não a suscitara a
Fernando Oliveira, ambos autores que, além de serem coevos do
navegador, são dignos de toda a credibilidade.
Temos estas noções por fundamentais no sentido de verificar
que a afirmação destacada neste trabalho do doutor João de Barros,
iniciado cerca de 1530 e concluído em 1549, ter resultado da
circunstância das origens desta figura serem bem conhecidas no
Porto, visto aí ter nascido. É por isso que ele foi referido por este
autor de uma forma tão elogiosa e sem revelar qualquer sensação
de hostilidade face à acusação de traição de que ele foi alvo por
outros autores portugueses que começaram a publicar as suas
obras a partir de 1554.
O testemunho de Manuel Severim de Faria
A referência à obra do doutor João de Barros que acabámos de
considerar, por nela se afirmar ter Fernão de Magalhães nascido no
Porto, surgiu num texto datado de janeiro de 1621 que foi escrito
pelo justamente conceituado erudito Manuel Severim de Faria
(1584-1655). Tal texto encontra-se num códice que pertenceu
à Casa Cadaval e está agora no Arquivo Nacional da Torre do
Tombo onde se regista a indicação de ser o “Décimo oitavo tomo
das obras do senhor Manuel Severim de Faria, chantre e cónego
de Évora”, no qual se encontra o ex-libris manuscrito de Gaspar
Severim de Faria, que foi sobrinho do autor32.
32
Tem a cota: Casa de Cadaval, n.º 8, e pode ser consultado em http://digitarq.
arquivos.pt/viewer?id=4603893
393
JOSÉ MANUEL GARCIA
A obra aqui considerada permanece inédita e desconhecida
sendo de referir que apresenta quarenta e duas biografias. Dela
apenas nos interessa aqui o seu fl. 79 porque nele Manuel
Severim de Faria ao começar a tratar de «Fernão de Magalhães»
afirmou ser o Porto a cidade onde ele nascera - “nasceu Fernão
de Magalhães na cidade do Porto”. Este autor acrescentou ainda
a referência correta de ser Fernão de Magalhães “filho de Rui de
Magalhães, alcaide-mor de Aveiro, e de Aldonça de Mesquita”,
a qual, bem como outras indicações sobre a família da mãe não
foram registadas pelo doutor João de Barros, revelando assim
quão bem informado estava Manuel Severim de Faria sobre o
navegador e a sua família.
3. DOCUMENTOS APONTANDO AS ORIGENS PORTUENSES DE
FERNÃO DE MAGALHÃES
Para lá das evidências patenteadas nos testemunhos dos
autores atrás analisados sobre a naturalidade portuense de Fernão
de Magalhães há que realçar documentos igualmente perentórios
dessa realidade que são os que foram produzidos por ele próprio,
devendo por isso ser destacados como forma de provar a noção já
estabelecida de que nasceu no Porto. Tais fontes afiguram-se-nos
ser conclusivas no sentido da clarificação da sua origem, pelo que
vêm reforçar a plena credibilidade que merecem as informações
dos textos das personalidades que fomos evocando. De notar que
alguns desses documentos do navegador foram revelados em
datas recentes.
Fernão de Magalhães como “vizinho da cidade do Porto”
A referência mais forte e antiga fornecida pelo próprio Fernão
de Magalhães no sentido de afirmar a sua origem portuense foi a
que ele formulou oficialmente num contrato expresso em “pública
394
A NATURALIDADE DE FERNÃO DE MAGALHÃES
escritura” outorgada com Rui Faleiro. Nesse documento ambos
se comprometiam a dar a Juan de Aranda, feitor da Casa de la
Contratación de las Indias de Sevilla, a oitava parte dos lucros
que obtivessem na viagem da uma armada que se propunham
dirigir com o fim de irem às Molucas por ocidente. Essa escritura
está datada de 23 de fevereiro de 1518 em Valhadolide e nela se
afirma que Fernão de Magalhães era “vizinho da cidade do Porto”,
como se pode ler no extrato do documento aqui em causa: “Sepan
quantos esta publica escriptura de obligacion vieren como nos
Ruy Faler (Rui Faleiro) vecino de Cunilla (Covilhã) ques es en el
reino de Portugal, e Fernando de Magallanes vecino de la ciudad
del Puerto (Porto) en el dicho reino [...]”33.
Na problemática da interpretação do significado da palavra
“vizinho” aqui usada por Fernão de Magalhães é de lembrar e
enfatizar que ele não vivia em Portugal desde outubro de 1517
e que mesmo antes deste ano não há provas de que ele tivesse
morado no Porto desde o fim da sua juventude.
O que se sabe ao certo de Fernão de Magalhães é que em
1505 embarcou em Lisboa com D. Francisco de Almeida para
o Oriente, por onde andou até 1513. A partir desta última data
está bem documentado o facto de ele ter vivido entre Lisboa e
Azamor até 1517. Por ouro lado não há qualquer registo de que
por então tivesse vivido no Porto, ainda que não se possa excluir a
eventualidade de lá ter regressado tendo em conta nomeadamente
a questão da propriedade que herdou em Vila Nova de Gaia após
a morte do seu pai, a qual ocorreu em data desconhecida. O que se
nos afigura seguro poder deduzir com segurança é o facto da sua
afirmação de ser “vizinho” do Porto feita em 1518 apontar para
33
O original deste documento está em Sevilha no Arquivo Geral das Indias, Patronato,
34, R. 3 e foi publicado várias vezes nomeadamente por D. Martin Fernandez de
Navarrete em Coleccion de los viages i descubrimientos que hecieron por mar
los españoles desde fines del siglo XV, volume IV, Madrid, 1837, p. 110-113 e
em Coleccion de documentos inéditos para la Historia de Chile, edição de José
Toribio Medina, tomo I, Santiago de Chile, Imprenta Ercilla, 1888, pp. 1-2.
395
JOSÉ MANUEL GARCIA
a circunstância de ele se querer identificar como sendo “natural”
do Porto e não seu morador. O mesmo aliás se passava com Juan
de Aranda, que nesse contrato é referido como sendo vizinho de
Burgos, a sua cidade natal, não se dizendo ser vizinho de Sevilha,
a cidade onde morava.
O mesmo se passa de uma forma ainda mais clara e decisiva
com Rui Faleiro que declarando-se naquele documento como
sendo “vizinho” da Covilhã foi afirmado perentoriamente como
sendo “natural” da Covilhã. Este facto encontra-se registado numa
carta datada de Sevilha a 31 de agosto de 1520 pelos oficiais da
Casa de la Contratación informando que Rui Faleiro “fué preso
por mandado del señor Rey de Portugal en un lugar que se llama
Cubillana, que es en el reino de Portogal, donde es natural”34
(Medina III p. 57). Esta afirmação perentória de que Rui Faleiro
“é natural” da Covilhã está em absoluta consonância com a sua
afirmação feita a 23 de fevereiro de 1518 em Valladolid de que era
“vizinho” da Covilhã. O mesmo tinha necessariamente de acontecer
com Fernão de Magalhães que ao declarar-se “vizinho” do Porto a
23 de fevereiro de 1518 afirmava necessariamente ser natural do
Porto, sem que se tenha de procurar uma alternativa arrevesada
para explicar de outra forma que ser “vizinho” do Porto não podia
deixar de ser daí “natural”, que é a única que se lhe enquadra.
Desde o século XV que era “lei geral” em Portugal a aceção
de que “vizinho” correspondia a “natural” de uma determinada
povoação, como se verifica com toda a clareza nas Ordenações
afonsinas (livro II, título XXX), onde se lê: “que, vizinho, se
entenda de cada uma cidade, vila ou lugar, aquele que dele for
natural (…)”, sendo de notar que esta expressão está repetida nas
Ordenações manuelinas (livro II, título XXI). Tal noção, que é
comum a Castela, tem o seu teor reforçado no texto do próprio
34
El descubrimiento del océano Pacífico: Hernando de Magallanes y sus
compañeros. Documentos, edição de José Toribio Medina, Santiago de Chile,
Imprenta Elzeviriana, 1920, p. 57.
396
A NATURALIDADE DE FERNÃO DE MAGALHÃES
foral novo do Porto datado de 20 de julho de 1517, no qual se pode
ler que “pera se saber quais serão as pessoas que são havidas por
vizinhos de algum lugar pera gouvirem [gozarem] da liberdade
dele declaramos que: vizinho se entenda de algum lugar o que for
dele natural”35. Verifica-se, pois, que o melhor requisito legal a
aplicar a Fernão de Magalhães para se poder afirmar e considerar
como “vizinho” do Porto é o de ser “dele natural” e não outro
fundamento, nomeadamente o de nela morar, pois tal só terá
ocorrido durante a sua juventude. A reforçar esta conceção temos o
facto de não fazer sentido que a viver em Espanha em 1518 e sem
intensões de regressar a Portugal Fernão de Magalhães afirmasse
ser “vizinho” do Porto por nele ser morador.
Realcemos também que quer Fernando Oliveira, quer o doutor
João de Barros, recorreram sem qualquer hesitação à palavra
“natural” quando referiram o Porto como sendo a terra onde
Fernão de Magalhães nasceu, noção que foi igualmente seguida
por Manuel Severim de Faria.
Outros documentos de Fernão de Magalhães e de seus pais, que
foram “vizinhos” do Porto
Além da referência feita em 1518 por Fernão de Magalhães
ao facto de ser “vizinho” do Porto, ele deixou-nos claros sinais
da sua origem portuense e do interesse particular por esta cidade
e o seu termo em outros documentos que podemos assinalar. Um
deles é o seu testamento feito a 24 de agosto de 1519 em Sevilha,
onde a única referência que faz a um lugar em Portugal se encontra
35
O foral do Porto. 1517-2017, Porto, Câmara Municipal do Porto, 2017, p.
89. Sobre esta obra e outros forais novos da região cf. José Manuel Garcia;
Francisco Ribeiro da Silva, Forais manuelinos do Porto e do seu termo,
Lisboa, Edições Inapa, 2001. Cf. ainda a antiga edição do Foral da Cidade
do Porto, de 20 de junho de 1517, Porto, Oficina de António Álvares Ribeiro,
1788, p. 30.
397
JOSÉ MANUEL GARCIA
na doação que então fez ao Mosteiro de São Domingos das Donas
da Cidade do Porto de Portugal (Corpus Christi)36. Este ficava
em Vila Nova de Gaia, que então pertencia ao termo do Porto, e
estava perto da propriedade que herdara dos seus pais, que foram
“vizinhos do Porto”, como se verifica em documentos que se
encontram em Sevilha e de seguida vamos citar.
Tais testemunhos de Fernão de Magalhães contendo informações relativas à zona do Porto são duas cartas de doação concedidas
à sua irmã Isabel de Magalhães que estão datadas de 19 de março
e 4 de junho de 1519. Elas são relativas a uma quinta de “Exo”,
palavra que corresponde a “Chão”, em Vila Nova de Gaia. Trata-se
de um lugar mencionado num “tombo de propriedade feito em
1513” conservado entre os papéis do cartório do referido mosteiro,
“que no título relativo a Vila Nova de Gaia, se refere à existência
de uma devesa, perto da fonte de Santa Marinha, junto com o
camymho que vay teer ao loguar de Ruy de Magalhães»”37. Sobre
este “lugar de Rui de Magalhães”, revelado por Amândio Barros,
António Taveira apurou o seguinte:
Era composto por uma quinta, com mais algumas terras juntas, estas
últimas foreiras ao cabido da Sé do Porto, no lugar de Chão em Vila
Nova, na freguesia de Santa Marinha, cujo padroado da igreja era
do cabido por doação de D. Dinis em 1292. As terras desse lugar de
Chão pertenciam à igreja de Santa Marinha, objeto da doação38.
O autor que acabámos de citar identificou esse lugar de
acordo com a indicação anterior e assinalou ainda que sobre esse
36
Este documento foi várias vezes publicado nomeadamente por Juan Gil
em El exilio portugués en Sevilla: de los Braganza a Magallanes, Sevilha,
Fundación Cajasol, 2009, pp. 426-430.
37
Amândio Barros, O homem que navegou o mundo: em busca das origens
de Magalhães, Braga, AL - Publicações, 2015, p. 57.
38
António Taveira, Fernão de Magalhães “o do estreito” de Santa Maria da
Sé do Porto, 2.ª edição, Porto, Edição do autor, 2011, p. 54.
398
A NATURALIDADE DE FERNÃO DE MAGALHÃES
lugar ”A referência mais antiga é de 11. 06. 1482 quando o cabido
empraza em três vidas as terras do lugar de Chão com todas as
suas pertenças, em Vila Nova, a Rui de Magalhães cavaleiro
[...]”39. É de realçar esta referência a que Rui de Magalhães era
cavaleiro40.
Pelo documento de 19 de março de 1519 verifica-se que
os pais de Fernão de Magalhães e de Isabel de Magalhães são
dados como tendo sido “vizinhos” do Porto: “yo, el comendador
Fernando de Magallaes, capitán de Sus Altezas, fijo legítimo
de Rodrigo [Rui] de Magallaes e de Alda de la Mezquita, su
muger, vezinos que fueron de la çibdad del Puerto de Portugal,
defuntos”41.
Esta alusão à circunstância dos pais de Fernão de Magalhães
terem sido “vizinhos” do Porto revela que eles, tal como o filho,
também aí teriam nascido. Assim sendo é possível que o pai de
Rui de Magalhães, que era Paio Afonso de Magalhães tivesse
sido natural de Ponte da Barca, de onde era originária a família
Magalhães. Quanto a Paio Afonso de Magalhães talvez fosse
filho de Gil Afonso de Magalhães que seria casado com Mécia
de Sousa, dái que Fernão de Magalhães ter afirmado que no seu
bra~são tinah as aramas dos sousa, além dos Magalhães. Quanto a
Gil Afonso de Magalhães era irmão de João de Magalhães que foi
o primeiro senhor de Ponte da Barca. É ainda possível que o pai
39
Idem, ibidem.
40
Esta condição social de cavaleiro, tal como a que tinha o seu filho Fernão
de Magalhães, não era impeditiva de eles serem vizinhos do Porto, como
se afirmam orgulhosamente, pois houve outros “cavaleiros” do Porto, que
estão assinaladas nomeadamente em obras bem documentadas como as de
Adelaide Lopes Pereira Millan da Costa, Vereação e vereadores: o governo
do Porto em finais do século XV, Porto, Câmara Municipal do Porto, 1993 e
de Pedro de Brito, Patriciado urbano quinhentista: as famílias dominantes
do Porto, 1500-1580, Porto, Câmara Municipal do Porto, 1996.
41
Juan Gil, El exilio portugués en Sevilla: de los Braganza a Magallanes,
Sevilha, Fundación Cajasol, 2009, p. 328, nota 46.
399
JOSÉ MANUEL GARCIA
de Gil Afonso de Magalhães fosse Diogo Afonso de Magalhães,
que era senhor do Castelo da Nóbrega, da honra da quintã da Torre
de Paço Vedro de Magalhães 42.
O problema da possível existência de homónimos de Rui de
Magalhães, no Porto e na conjuntura aqui considerada, dificulta
a identificação do pai de Fernão de Magalhães mas ainda assim
admitimos que estudos aprofundados sobre este assunto possam
vir a esclarecer esta problemática.
Há ainda a considerar e confirmar a dificuldade ou impossibilidade de se poder sugerir que tendo sido quer Rui de Magalhães
quer Fernão de Magalhães “vizinhos” do Porto pudessem ser
naturais de Vila Nova de Gaia, por aí terem tido propriedades,
apesar desta última povoação pertencer então ao termo do Porto.
É de notar que a forma de registar o nome do pai de Fernão
de Magalhães apresenta algumas oscilações entre Rui e Rodrigo,
sendo que Rui é um diminutivo de Rodrigo. É igualmente de
apontar que o nome da mãe aparece umas vezes sob a forma de
Aldonça e outras de Alda, sendo também de assinalar que ela nem
sempre foi bem identificada.
Pelo documento de 19 de março de 1519 atrás citado verifica-se que Fernão de Magalhães era o filho mais velho do referido
casal, do qual tinha herdado:
una quinta de viñas e castañales e tierras de pan senbrar que yo
tengo e poseo en tierra de Gaya, término de la dicha çibdad del
Puerto, que se dize la quinta Exón [=Chão], la qual dicha quinta yo
ove e heredé de los dichos mis señores padre e madre com çiertos
cargos a qu´es obligada a pagar a Yglesia mayor de la dicha çibdad
del Puerto como fijo mayor de los dichos señores padres, porque
la dicha quinta no fueron bienes partibles[…], así por razon de los
42
Manuel Abranches de Soveral, Ensaio sobre a origem dos Magalhães,
Porto, 2007 consultável em https://www.academia.edu/38292453/Ensaio_
sobre_a_origem_dos_Magalhães.
400
A NATURALIDADE DE FERNÃO DE MAGALHÃES
muchos cargos que de vos, la dicha Ysabel de Magallaes, mi hermana,
tengo, como por otras cabsas que a ello me mueven43.
Na carta datada de 4 de junho de 1519 regista-se que a
quinta em causa se situava na terra de “Gaya la Pequeña”, tendo
perto certa terra da Sé do Porto, emprazada em três vidas. Neste
emprazamento, o pai de ambos, Rodrigo (= Rui) de Magalhães,
foi a primeira vida e, ao tempo do seu falecimento, nomeou
Fernão de Magalhães por segunda vida; e, pela presente doação,
Fernão de Magalhães nomeava sua irmã como “terçera persona”,
com a obrigação de pagar à Sé, anualmente, o foro de uma terra
referenciada da seguinte forma:
por quanto el dicho sñor Rodrigo [Rui] de Magallaes, nuestro padre,
tenía una quinta en tierra de Gaya la Pequeña que se dize Exón
[=Chão] e junto com ella tenía çierta tierra de la Yglesia mayor de
la dicha çibdad, enprazada en três vidas, y el dicho nuestro padre
fue la primera vida e al tienpo de su fin e falleçimiento nonbró e
señaló a mi, el dicho Fernando de Magallaes, su hijo, por segunda
vida, por ende yo agora quiero e me plaze e consiento de nonbrar
e por la presente nonbro para la terçera persona para que aya la
dicha tierra a vos, la dicha señora Ysabel de Magallaes, mi hermana,
que tenéys por vuestra la dicha heredad de Exón [= Chão], para que
ayáys e tengáys en la dicha tierra todo el abçion e derecho que yo
a ello tengo por virtud del nonbramiento del dicho señor Rodrigo
de Magallaes, nuestro padre, mi hizo, e ayáys e llevéys los frutos
e rentas de la dicha tierra, como yo, el dicho capitán Fernando de
Magallaes, los he llevado fasta agora, con tanto que paguéys a la
dicha Yglesia mayor el foro que dicha tierra es obligada a pagar a
la dicha Yglesia en cada un año44.
43
Idem, ibidem, p. 271.
44
Idem, ibidem, p. 272.
401
JOSÉ MANUEL GARCIA
O Porto no testamento de Fernão de Magalhães
Antes de embarcar em Sanlúcar de Barrameda para iniciar a
sua grande viagem a 20 de setembro de 1519 mas já depois de os
navios da sua armada terem deixado Sevilha a 10 de agosto, Fernão
de Magalhães ainda ficou alguns dias nesta cidade, onde a 24 de
agosto escreveu o seu testamento. Como já atrás assinalámos, nele
fez uma doação ao Monesterio de Santo Domingo de las Dueñas
de la çibdad del Puerto de Portugal (Mosteiro de São Domingos
das Donas da Cidade do Porto de Portugal).
De outras indicações nesse testamento que ligam Fernão de
Magalhães ao Porto uma delas é a de ter concedido à sua irmã
Isabel de Magalhães 5 000 maravedis anuais45. Outra indicação
relevante é a de ter deixado 30 000 maravedis ao seu pajem
Cristóvão Rebelo46. Esta personalidade era natural do Porto
sendo filho de Duarte Rebelo e de Catarina Rodrigues, pelo que
tal referência e importante doação revela bem a proximidade que
Fernão de Magalhães tinha para com este homem que o haveria
de acompanhar na morte a 27 de abril de 1521 na ilha de Mactan,
nas Filipinas. Tal facto é assim um sinal revelador da forte amizade
que entre eles havia, cuja origem por certo remontaria à vivência
na cidade natal de ambos.
O Porto na inquirição de Lourenço de Magalhães
Mais um testemunho a atestar a presença de Fernão de
Magalhães no Porto é dado no já referido processo de Lourenço
de Magalhães ao registar-se a 7 de abril de 1567 que Heitor de
Magalhães, morador em Ponte de Lima, afirmou ter sido Fernão
45
Idem, ibidem, p. 429.
46
Idem, ibidem, p. 428.
402
A NATURALIDADE DE FERNÃO DE MAGALHÃES
de Magalhães “morador na cidade do Porto” (que era morador
en la ciudad del Puerto), como se pode ler no seu depoimento:
dijo este testigo oyó decir quel dicho Lorenzo de Magallanes era
hijo de Payo Rodríguez de Magallanes, el cual Payo Rodríguez de
Magallanes era hijo de Ruy Paez de Magallanes, su abuelo, é queste
testigo otrosí oyó decir públicamente, é ansí á su padre deste testigo
por nombre Hernando de Magallanes, que conociera á Hernando
de Magallanes, que descubrió el Estrecho de Magallanes, é que era
morador en la ciudad del Puerto (…)47.
Esta indicação tem o particular interesse de demonstrar que
não era proibido Fernão de Magalhães ali ter habitado e nascido
visto ter uma origem nobre.
CONCLUSÕES
O nome de Fernão de Magalhães imortalizou-se por ter sido
o mais notável descobridor de todos os tempos sendo por tal facto
que é oportuno situa-lo no âmbito de uma temática tão relevante
como é a dos Descobrimentos, os quais foram o grande contributo
que Portugal deu para a História Universal.
Na história de Fernão de Magalhães ao ponderarmos o seguro
apuramento da sua naturalidade portuense podemos considerar estar
perante um caso raro de identificação segura da terra natal entre
portugueses famosos nascidos no século XV. Com efeito nesse
tempo é muitas vezes difícil identificar os locais onde muitos deles
nasceram, bastando lembrar, a título de exemplo elucidativo, que
não se saber ao certo o lugar onde nasceu Afonso de Albuquerque,
pois nenhum documento nem escritor referem a sua naturalidade,
47
Coleccion de documentos inéditos para la Historia de Chile, edição de José
Toribio Medina, tomos II, Santiago de Chile, Imprenta Ercilla, 1888, p. 370.
403
JOSÉ MANUEL GARCIA
sendo que no seu tempo ele foi uma personalidade muitíssimo
mais poderosa do que Fernão de Magalhães48.
Os homens distinguem-se pelas suas ações e não pelas suas
origens familiares ou naturalidades sendo tal o caso de Fernão de
Magalhães ao ter-se assinalado como um português que mostrou
uma fibra invulgar ao suscitar um projeto que marcou a História
da Humanidade, ao permitir o conhecimento integral da forma
da Terra.
Fernão de Magalhães imortalizou-se como protagonista de
um processo iniciado há cerca de seiscentos anos (entre cerca de
1419 e 1421) quando ocorreram os primeiros esforços de fazer
Descobrimentos pelos portugueses sob a direção do portuense
infante D. Henrique. Foram esses Descobrimentos que conseguiram
criar um sistema de interconexões globais que marcaram o arranque
de uma mundialização de contactos entre todos os pontos do nosso
planeta, o qual está na origem do atual processo de globalização.
Fernão de Magalhães tornou-se assim um símbolo admirável
dessa mundialização ao ter sido o primeiro homem a ter dado
uma volta ao mundo em duas etapas, as quais decorreram entre
1505 e 1513 e entre 1519 e 1521. Foi assim que ele alcançou a
plena consciência das dimensões da esfericidade da Terra, feito
que imortalizou esta personalidade nascida na cidade que deu o
nome a Portugal.
48
Cf o que escrevemos sobre este assunto em O terrível: a grande biografia
de Afonso de Albuquerque, Lisboa, Esfera dos Livros, 2017, pp. 53-55.
404