DOSSIÊ
A Economia de Francisco e Clara para “realmar” a humanidade
Eduardo BrasilEiro1
rudá ricci2
Resumo: A proposta do Papa Francisco abre um espaço de discussão na sociedade
contemporânea com a Economia de Francisco e Clara. O Papa Francisco convidou
jovens de todo o mundo para discutir os rumos da economia mundial, em um convite
para “realmar” a economia. O encontro que ocorrerá em Assis abrirá um enorme flanco
de discussões em torno de desenvolvimento, capitalismo, extrativismo, passando para o
debate central de transição gestado na encíclica Laudato Si’. As etapas que compõem a
discussão desenvolvem um olhar sobre o enfrentamento à financeirização da economia
global, seu aspecto de dominação da subjetividade humana e, com isso, sua desumanização, centrando esforços em uma nova cultura proposta pelo Pacto Educativo Global.
Palavras-chave: Papa Francisco. Economia. Educação. Laudato Si’. Juventudes. Igreja
Católica.
Francisco and Clara’s Economy to “re-animate” humanity
Abstract: Pope Francis’ proposal opens up a huge space for discussion in contemporary society with The Economy of Francesco and Clara. Pope Francis has invited young
people from all over the world to discuss the direction of the world economy, in an invitation called to “re-animate” the economy. The meeting, which will take place in Assisi,
will open a huge range of discussions around development, capitalism, extractivism,
moving on to the central transition debate in the encyclical Laudato Si’. The stages that
make up the discussion develop a look at the financialization of the global economy, its
aspect of domination of human subjectivity and with that, its dehumanization, focusing
efforts on a new culture proposed by the Global Compact on Education.
Keywords: Pope Francis. Economy. Education. Laudato Si’. Youth. Catholic Church.
La economía de Francisco y Clara para “realmar” la humanidad
Resumen: La propuesta del Papa Francisco abre un espacio de discusión en la sociedad
contemporánea con la Economía de Francisco y Clara. El Papa Francisco invitó jóvenes
de todo el mundo a discutir la dirección de la economía mundial, en una invitación llamada a “realmar” la economía. La reunión, que tendrá lugar en Asís, abrirá un enorme
flanco de discusiones sobre desarrollo, capitalismo, extracción, pasando al debate central
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de transición generado en la encíclica Laudato Si’. Las etapas que conforman la discusión
desarrollan una visión sobre cómo enfrentar la financiarización de la economía global,
su aspecto de dominación de la subjetividad humana y, con eso, su deshumanización,
enfocando los esfuerzos en una nueva cultura propuesta por el Pacto Educativo Global.
Palabras clave: Papa Francisco. Economía. Educación. Laudato Si’. Juventud. Iglesia
Católica.
Por que uma Economia de Francisco e Clara?
“De modo geral, para os povos, a narrativa deles do universo e o
papel humano no universo é a sua fonte primordial de inteligibilidade
e valor. As crises mais profundas vivenciadas por qualquer sociedade
são os momentos de mudança quando a narrativa se torna inadequada para enfrentar as exigências de sobrevivência de uma situação que
se apresenta”.
Thomas Berry (padre e ecoteólogo)
“Que a nossa época seja lembrada como o despertar de uma nova
reverência pela vida”.
A carta da Terra
O Papa Francisco, em seu sétimo ano de pontificado, estabelece os marcos
mais duradouros de seu serviço para a sociedade global e apresenta os dois últimos filhos da Encíclica Laudato Si’: o encontro global “Economia de Francisco”
e o “Pacto Educativo Global” – o filho nascido antes, a saber, foi o Sínodo para
a Amazônia.
Ambas as iniciativas trazem no bojo a abertura de processos revolucionários, pois incidem em “[...] ocupar-se mais com iniciar processos do que possuir
espaços. O tempo ordena os espaços, ilumina-os e transforma-os em elos de
uma cadeia em constante crescimento, sem marcha atrás” (FRANCISCO, 2013c,
n. 223). O Papa Francisco assume o compromisso de uma transição global: encaminhar processos que gestem uma sociedade biocêntrica, em que o centro está
na vida que supera a economia neoliberal atualmente financeirizada, e passar
para aquilo que a delegação brasileira enunciou em sua carta aberta para o Papa
e todos os jovens que estarão em Assis:
Economias no plural. Economias solidárias e populares, criativas,
colaborativas. A economia circular e ecológica. As economias da
dádiva, a festa comunitária, a comunhão. A economia feminista,
das mulheres. As economias camponesas e tradicionais. A economia do cuidado, a economia doméstica. As economias digitais e do
software livre. A economia da cultura. O mundo do trabalho, enfim. As economias vivas (ARTICULAÇÃO BRASILEIRA PELA
ECONOMIA DE FRANCISCO E CLARA, 2019, s/p).
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O Papa Francisco (2019b, s/p) convoca um “realmar” a economia: “que
faz viver e não mata, inclui e não exclui”. O foco dessa proposta está na superação das desigualdades globais e, portanto, mexe no coração do atual pacto
econômico global: a acumulação sem nenhum precedente na história de uma
minoria ilegítima e uma miséria alastrada em todo os territórios do mundo.
Afinal, a perversidade do capitalismo está na desregulação das fortunas globais que passeiam por todos os países explorando os Estados-nação, cada um
sofrendo pressão de elites locais e internacionais para “flexibilização” a favor
de seus interesses.
Portanto, o Papa Francisco convoca um movimento nas proximidades da
espiritualidade dos Santos de Assis, São Francisco e Santa Clara, que costuraram
uma radical nova forma de viver, para romper um processo engendrado não
somente na sociedade, mas na subjetividade de cada sujeito, como afirmaram
Dardot e Laval (2016), detalhando o homem e a mulher empresarial. O conflito
a que se propõe o Papa Francisco, unido a jovens ativistas, empreendedores
sociais e intelectuais engajados, é a humanização da economia. Não se trata, portanto, de uma medida reformista, mas um desencadeamento de um movimento
social para este século.
Joseph Stiglitz, fundador do Novo Pensamento Econômico, entidade que
animou o Papa a construir essa frente internacional de discussão sobre novos
modelos econômicos, afirmou:
É fundamental trabalhar a partir da educação em sistemas alternativos que não tenham como premissa a ideia de idolatrar
o dinheiro. Temos que buscar desenvolver programas e estudos
em torno do conceito de economia circular, que contribuam
para uma educação consciente da sustentabilidade ambiental,
que requer devolver ao meio ambiente o que lhe é retirado (LA
VANGUARDIA, 2019, s/p).
O Papa Francisco, compreendendo esses desafios, sentenciou que “não há
duas crises separadas: uma ambiental e outra social; mas uma única e complexa
crise socioambiental” (FRANCISCO, 2015b, n. 139). O capitalismo neoliberal,
síntese de tantos nomes que se deram às suas metamorfoses atuais (financeiro,
imaterial, parasitário, global), converge seu domínio na “tecnociência” (FRANCISCO, 2015b, n. 107), que suspende o governo do cidadão sobre si e restringe
a uma minoria de corporações bélicas.
O exemplo está nos extermínios populacionais e naturais no mundo e o
monopólio de tecnologias. As políticas internacionais foram ofertadas a “uma
concepção mágica do mercado” (FRANCISCO, 2015b, n. 190), centradas em
um descontrole político e econômico de seus interesses, erguendo um monopólio político brutal.
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“Realmar” a economia por meio de novas arquiteturas
Reivindicar uma nova arquitetura econômica é tarefa de primeira ordem
para uma transição social e cultural. O poder de pensar na gestão da escola, de
seu bairro, nas decisões do seu município e de grupos culturais, por exemplo,
desenha-se como algo intangível em uma democracia de baixa intensidade. O sociólogo e economista alemão Wolfgan Streeck (2012) afirma que vivemos no fim
do capitalismo democrático. Esse dado se intensifica com a dificuldade política
em ser norteada por princípios como o bem comum a longo prazo, capturando
o projeto de nação (FRANCISCO, 2015b, n. 178).
Neste cenário de pandemia do SARS-CoV2 (Covid-19), mostrou-se eminente a falácia da doutrina de austeridade que levou o mundo globalizado a
desmontar políticas sociais e econômicas de apoio ao povo, garantindo liberdade econômica a um punhado de corporações que compuseram uma nova elite
política econômica. Caberá em um processo de transição, nas palavras de Jurgen
Schuldt (apud ACOSTA, 2015, p. 164), a “dissociação seletiva e temporal do
mercado mundial”, retomando a soberania alimentar, processos de gestão democrática local e popularização do binômio formação de redes comunitárias e
ocupação de espaços representativos deliberativos.
Realmar a economia está em superar o modelo de desenvolvimento, reconhecendo que o problema é de organização da vida econômica e, portanto, estabelecer a economia de suficiência, em que Francisco e Clara de Assis e os povos
amazônicos e andinos têm muito a nos ensinar, freando a lógica de eficiência
que se desdobra na acumulação global materialista. Nas palavras do equatoriano
Alberto Acosta (2015, p. 185), presidente de Assembleia Constituinte que reconheceu no Equador os direitos da mãe terra, é:
[...] crer no autocentramento como desenvolvimento das forças
produtivas endógenas, incluindo recursos produtivos locais e os
correspondentes controle da acumulação e centramento dos padrões de consumo. Tudo deve ser acompanhado de um processo
político de participação plena, de tal maneira que se construam
contrapoderes com crescente níveis de influência no âmbito local.
Para economistas ortodoxos, é importante ressaltar que não se trata de
“substituições de importações”, e sim uma essência se destaca: um mercado
interno que capacita o viver com o nosso e para os nossos.
A emergência sanitária vivida em 2020 desnuda o fato de que, quando há
vontade política, é possível se reverter o processo de globalização. A crise civilizatória e sistêmica revela o último véu de hipocrisia do que muitos analistas chamam
de “ordem liberal”, ou de “hegemonia americana” do século XX. Urge “realmar”
a organização popular que no aspecto político está por repensar profundamente
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em um processo autodependente e participativo, criando fundamentos para uma
ordem que concilia economias solidárias e sociedades democráticas.
Nenhuma teoria econômica será sustentável se não respeitar os limites do
ecossistema nem será popular se não houver um envolvimento cada vez maior
de forças territoriais com processos de autonomia produtiva e cultural. Trata-se
aqui de uma ressignificação estrutural dada a magnitude do destino da humanidade e da vida. Com a pandemia, o que ficou evidente não é a autoimplosão do
sistema produtivo, mas sua capacidade de reinvenção cruel. Portanto, medidas
que recomponham o ser humano ao metabolismo da natureza, retomando a
mística franciscana do cuidado, acolhida e diálogo, ganham com o chamado do
Papa Francisco a capacidade de “dizer os limites a que a humanidade chegou” e
recompor a trama de harmonia com o “sistema vida”.
A Economia de Francisco e Clara organiza uma nova cultura e um
novo cidadão
A convivência na multipolaridade
A proposta do Papa Francisco não se sustenta em um programa único de
superação do sistema capitalista. Bebe da fonte de diversos rios que desenharam
resistências, reflexões e proposições diante da necessidade de transição do mundo atual. O bem viver dos indígenas, o decrescimento dos europeus, o ubuntu na
África, as ecovilas que refletem o desenvolvimento local, tudo são desenhos de
arquiteturas possíveis, que não se anulam, e sim se complementam.
As dimensões no entorno do encontro que ocorrerá em Assis com o Papa
Francisco e jovens de mundo inteiro foram desenhadas em uma cidade simples,
mas carregada de um sentido místico. É o envolver de tradições de fé, de reflexões políticas, sociais e econômicas, na convergência de um projeto comum, que
é a superação de dois males centrais do capitalismo neoliberal: a anulação da
liberdade e a anulação das potências da vida humana em sua totalidade.
A mística que envolve as tramas das vilas será permeada pela cultura do
encontro de:
a) gestão e presente: foco em abordagens para a gestão sustentável;
b) finanças e humanidades: desafios do capitalismo financeirizado por
meio de novas formas de partilha e do compromisso em remanejar as
grandes fortunas globais para a superação das misérias;
c) trabalho e cuidado: pensar no trabalho na era da revolução 4.0, incidindo pela visão da “Ecologia Integral” (FRANCISCO, 2015b, n. 156), que
almeja a superação da lógica de competição e acumulação, remete ao equilíbrio da vida e do trabalho, longe da cadeia de exploração e escravidão em
que vivem boa parte das pessoas no mundo;
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d) energia e pobreza: “realmar” a economia com novo sistema energético
que vise às capacidades locais de geração de riqueza, saindo do monopólio
corporativo;
e) agricultura e justiça: somente com a reforma agrária se prepondera um
rompimento com a cadeia produtiva global, concretamente olhando a soberania alimentar.
f) negócios e paz: costurar possibilidades da responsabilidade das grandes
corporações nos conflitos regionais pelo planeta e sua superação pela lógica de economias que visem a negócios a partir da cultura colaborativa
não extrativista;
g) mulheres para a economia: só ocorrerá uma transição quando as vozes silenciadas, sobretudo as mulheres, envolverem um novo processo econômico;
h) CO2 da desigualdade: superar o desequilíbrio da visão única de progressos sustentada em desmatamento e destruição de territórios e pessoas;
i) lucro e vocação: entendendo a necessidade de superação dessa lógica
atual do capital acima do trabalho, enfocando um desenvolvimento de
uma superação do sujeito empresarial (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 133),
revisitando toda a sua cadeia subjetiva para seres humanos a caminho da
liberdade;
j) negócios em transição: para uma relação que privilegie as potencialidades e descobertas humanas e irrompa a cooperação e o compartilhamento
no lugar da competição e acumulação;
k) vida e estilo de vida: compreende o desafio de uma nova cultura diante
do esmagamento do consumismo e da cultura do bem-estar que cria uma
lógica de ganância, afastando-se da economia para o suficiente;
l) políticas para a felicidade: propor uma nova arquitetura das relações humanas, em que a felicidade esteja acima da moral do capital, emergindo necessidades e desejos voltados para as comunidades e cidades inteligentes.
A complementaridade para novas economias
No Médio Xingu, em Altamira, no Pará, comunidades indígenas viram
passar uma necropolítica por meio da imposição das ideias de progresso e soberania (MBEMBE, 2018). Essas ideias que motivaram o capitalismo moderno
são filhas do produtivismo e do extrativismo, muito anterior ao capitalismo, que
impôs uma lógica sempre crescente de uma ecologia política em torno da relação de dominação do homem com o planeta ao redor. O paradigma emergente,
conforme Boaventura Sousa Santos (2010), ou o paradigma da complexidade,
de acordo com Edgard Morin (2000), apontam para o que Bruno Latour (2019)
afirmou: que fazer ecologia política está na constituição “moderna” de um ser
humano desprovido de qualquer poder, mas que compreende a totalidade da
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“criação” (FRANCISCO, 2015b, n. 6), “superando a mentira da dignidade exclusiva da natureza humana” (LÉVI-STRAUSS, 2013, p. 53).
Os exemplos são inúmeros, pois a amarra central de novas narrativas econômicas está nas políticas de guerra perpetradas pelo Estado, em parceria com
corporações para a lógica da ganância e lucro capitalista. O desenvolvimento de
forças complementares muda de lugar os sujeitos, que passam a compreender
a necessidade de pauta unificadas. Portanto, para novas economias, o Xingu é
na periferia urbana, e a periferia urbana é no Xingu. Essa narrativa de discussão
do poder e sua centralidade na superação de um modelo econômico de morte
necessita pulsar aquilo que o sociólogo Otavio Ianni (1997) afirmou: a política
mudou de lugar. A economia capturada pelo mercado e a democracia pela necropolítica apresentam os desafios de retomar uma economia política distante das
discussões acadêmicas que suscitem nos currículos formativos de economistas
e áreas correlatas a compreensão de uma ciência a favor de um novo paradigma.
Novos currículos de economias partem do despossuir a lógica de dominação para construir uma lógica de complementaridade, ou, mais popularmente
falando, de unidade na diversidade, compondo uma das sendas de um novo pacto econômico. Está forjado antes das academias nas narrativas de movimentos
populares que incidem em uma descolonização dos saberes (DILGER; LANG;
PEREIRA FILHO, 2016) por movimentos insurgentes que renovam a teoria
crítica, tecendo pensamentos e práticas que reinventem a emancipação socioeconômica. É o que se vê quando são desafiados os movimentos populares e as
novas gerações de direitos humanos erigidas nesta última década, ao comporem
uma agenda global, sem deslocar-se das necessidades locais, percebendo as identidades em complementaridade aos desafios estruturantes.
A educação no caminho da cidadania ativa
“O trabalho não é divino; divino são os homens”.
Thomas Mann
O que a educação tem a ver com a formação para a cidadania? Onde estaria a intersecção entre educar e repensar a economia necessária, a Economia de
Francisco e Clara?
Comecemos pela tarefa central dos processos educativos.
Há quem tenha sugerido que a educação tem por finalidade socializar ou
introduzir os educandos no mundo dos adultos, das regras e códigos estabelecidos. Essa é a proposta que encontramos em Émile Durkheim (1975), que chegou a sugerir que a pessoa jovem deveria aderir aos valores vigentes por vontade
própria, por meio da educação. Na prática, um dos trabalhos vitais do educador
seria a de motivar a “submissão consentida” do educando, criando um caminho
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do egocentrismo à vida social. Uma variação dessa sugestão pedagógica seria a
instrução para os testes de acesso aos níveis superiores da carreira educacional
ou mesmo à inserção no mercado de trabalho a partir de um padrão técnico
e de conduta preestabelecidos. Essa intenção fomentou a introdução de preocupações norte-americanas com o comportamento dos educandos (caso das
sugestões de John Franklin Bobbitt) ou a adoção de pré-requisitos curriculares,
em que um nível básico deveria organizar a base para o educando atingir o nível
seguinte (sugestão de Joseph Mayer Rice e dos educadores tayloristas, com base
no padrão de educando-trabalhador idealizado para a indústria) ou ainda na produção de testes avaliativos para medir a distância entre o desenvolvimento real
dos educandos em relação ao padrão idealizado – caso das reformas educacionais norte-americanas do final do século XX, que, mais tarde, foram duramente
questionadas por uma de suas formuladoras, a educadora Diane Ravitch (2011).
A educação para a cidadania não se pauta por padrões predefinidos, mas
pela construção de autonomia, a qual, ao contrário da noção de liberdade individual absoluta, é uma construção consciente do educando sobre seu papel na sociedade. Paulo Freire (1996) sugeria que essa construção se dava por meio de um
processo que denominava admiração: uma visada sobre suas próprias escolhas,
uma autorreflexão sobre seus valores e sua relação com os outros; uma tomada
de consciência sobre si e sobre o seu lugar no mundo.
Hannah Arendt (2010) contribuiu para essa vertente pedagógica ao sugerir
que não nascemos humanos, mas nos tornamos humanos pela educação. A frase
sugere que humanos se inserem na humanidade pelo envolvimento com a experiência coletiva acumulada ao longo do tempo. Pode parecer algo similar ao que
sugeria Durkheim, mas é mais profundo. Arendt está se reportando à memória
elástica da humanidade; memória que se alimenta da experiência humana repassada pela linguagem, pelas artes plásticas, pela música, pelo teatro, pela escrita.
É por esse motivo que nos identificamos com experiências de outros humanos;
não porque tenhamos experimentado o mesmo que eles, mas porque os descobrimos pelo registro em livros, textos ou tantas outras formas de linguagem. É
por esse motivo que estudamos; não para meramente memorizarmos e, mais à
frente, sermos testados por avaliações que esquadrinham um texto ou pensamento até transformá-lo em uma fórmula pasteurizada em que o percurso do
autor pouco importa. Ao contrário, estudamos para nos inserir na humanidade.
Assim, tudo que é humano, tudo o que é experimentado pela humanidade,
interessa à educação, desde que siga essa lógica do encontro, palavra central na
concepção educacional de Papa Francisco.
Isso coloca em xeque a busca por padrões de comportamento, já que a
experiência humana é dinâmica, não definida por padrões. Da mesma maneira,
os conceitos de habilidades e competências, por essa vertente, são relativizados.
As questões decorrentes são: competência para quê? Definida por quem?
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Os conceitos de competência e habilidade, embora já existentes na literatura educacional desde os anos 1950, ganharam projeção no Brasil nos anos
1990, a partir da demanda industrial decorrente de outro conceito da área
gerencial: o de empregabilidade. Buscava-se, naquela quadra de nossa história, sugerir que o emprego estaria vinculado a novas exigências tecnológicas e
organizacionais do mundo do trabalho que seriam a porta de entrada para o
emprego contemporâneo. Muitos estudos adiante revelaram que o emprego
não tinha relação direta com esse repertório de conteúdos educacionais: os
setores que mais empregavam já no final dos anos 1990 não exigiam tantos
requisitos, como no caso do comércio varejista. Contudo, o princípio se alojou
como verdade pedagógica.
Para Perrenoud (1999), um dos autores mais citados nos debates educacionais brasileiros no início deste século XXI, competência é a capacidade de
agir com eficácia em determinado tipo de situação prática da vida cotidiana. Para
isso, é preciso lançar mão de conhecimentos e colocar em ação vários outros
recursos cognitivos.
Já para Benno Sander (apud DAVOK, 2007), aos critérios clássicos de eficácia e eficiência na educação se agregaram, nos últimos anos, os critérios de
efetividade e relevância cultural para elaboração de políticas públicas educacionais, relativizando ainda mais as noções de competência e habilidade como eixos
educacionais. Vejamos a síntese realizada por Davok (2007, p. 510-511) a respeito dessa contribuição de Sander:
A eficiência “[...] é o critério econômico que revela a capacidade
administrativa de produzir o máximo de resultados com o mínimo de recursos, energia e tempo” (p. 43). É um critério de
dimensões instrumental e extrínseca. A eficácia “[...] é o critério
institucional que revela a capacidade administrativa para alcançar
as metas estabelecidas ou os resultados propostos” (p. 46). Esse
critério é de dimensão instrumental e preocupa-se com a consecução dos objetivos intrínsecos, vinculados, especificamente, aos
aspectos pedagógicos da educação. A efetividade “[...] é o critério
político que reflete a capacidade administrativa para satisfazer as
demandas concretas feitas pela comunidade externa” (p. 47). É
um critério substantivo extrínseco que reflete a capacidade de a
educação responder às preocupações, exigências e necessidades
da sociedade. A relevância, por sua vez, “[...] é o critério cultural
que mede o desempenho administrativo em termos de importância, significação, pertinência e valor” (p. 50). Esse critério é de
natureza substantiva e intrínseca e está diretamente relacionado à
atuação da educação para a melhoria do desenvolvimento humano e qualidade de vida dos indivíduos e grupos que participam do
sistema educacional e da comunidade como um todo.
Esses quatro critérios não são excludentes na gestão da educação,
porquanto, se complementam. Segundo Sander (1995, p. 67), “[...]
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embora distinguíveis, são dimensões dialeticamente articuladas de
um paradigma abrangente e superador de administração da educação. No paradigma multidimensional de administração da educação a eficiência é subsumida pela eficácia; a eficácia e a eficiência
são subsumidas pela efetividade; a efetividade, a eficácia e a eficiência são subsumidas pela relevância”.
Como se percebe, a proposição de Sander indica a ausência de diálogo social do critério solitário de eficácia (sendo um critério institucional, enfocado na
formulação do autor da política educacional). Efetividade e relevância cultural,
ao contrário, são destacados como critérios eminentemente dialogais em conexão com demandas e interesses da comunidade externa ao ator institucional,
gestor da política.
Assim, se, como sugere Perrenoud, as competências são capacidades para
agir com eficácia a partir de uma situação prática, estamos diante de um instrumento de ação, não de um conhecimento. Tal instrumento faz uso de conhecimentos, mobiliza-os para se atingir uma meta, um resultado esperado, um
objetivo. A questão não resolvida, contudo, é se a meta ou o objetivo definido é
adequado. No entanto, o conceito de competência não reflete o mérito do objetivo escolhido, e sim o naturaliza como correto.
Em outras palavras, a competência a ser desenvolvida em um currículo é apresentada como um dado infalível, como um padrão a ser perseguido
pelo processo educacional. Ora, para fugirmos dessa noção estandardizada de
competência, temos de fugir da noção de padrão preestabelecido, caminhando
para uma necessidade intelectual a partir de um problema que se apresenta ao
educando.
Essa digressão sobre competências e habilidades se relaciona diretamente
com a sugestão do Pacto Educativo Global, como veremos mais adiante, justamente porque competência não se confunde com aquisição escolar verificável, pois se relacionaria com resoluções de situações-problema; tampouco tem o
mesmo significado de desempenho. Competências não são potencialidades humanas inatas; competências, portanto, são construídas, são aquisições. Construir
uma competência é aprender a identificar e buscar os conhecimentos necessários
para resolver uma situação-problema que surge em uma sociedade dinâmica,
em movimento. A construção de competências está estreitamente vinculada à
formação de esquemas de mobilização dos conhecimentos. Essa construção
acontece em um contexto de ação, no âmbito da prática. Os sujeitos não constroem esquemas a partir de intervenções externas ou da interiorização de um
procedimento (aulas expositivas ou demonstrativas, por exemplo). Esquemas se
constroem a partir de um exercício do fazer, de experiências renovadas, que são
mais eficazes por se associarem a uma postura reflexiva. Isso significa que, além
de viver as experiências, os indivíduos deverão analisá-las.
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A concepção de currículo a partir dessa interpretação não é estática ou
prescritiva, mas um currículo em ação.
Este é o desafio pedagógico central da educação proposta pelo Pacto Educativo Global: o diálogo com o mundo real, seus desafios e com o processo de
escuta e mobilização de conhecimentos voltados para a ação coletiva.
A formação por situação-problema, que dialoga com o mundo vivido e
sentido, aproxima a sala de aula dos desafios da sobrevivência e da busca de felicidade e comunhão. É uma educação que se relaciona com a vida cotidiana, que
se apresenta como método para o diálogo, para a escuta e busca de superações.
É aqui que se articula o Pacto Educativo Global com a Economia de
Francisco e Clara: pelo cuidado com o outro e com a Casa Comum; pela contextualização de todo o processo educativo no interior dessa Casa Comum, não
como algo externo, que se apresenta como demiurgo, mas como relação refletida, pensada, comprometida.
E é aqui que nasce seu vínculo com o que alguns autores denominaram
cidadania ativa: a cidadania que não se limita ao voto, mas avança para a corresponsabilidade na gestão das coisas públicas, na cogestão dos territórios e comunidades.
As formulações do Papa Francisco a respeito dos desafios educacionais na direção do Pacto Educativo Global
Em 12 de setembro de 2019, Papa Francisco emitiu uma mensagem convocando lideranças mundiais para o que denominou Pacto Educativo Global.
Sabe-se que esse chamado nasceu de uma demanda inicial que lideranças muçulmanas e judias apresentaram ao Papa, o que já se reveste, logo de início, em
um pacto ecumênico, fundado na fé, e também em um sentido de urgência que
parece nos guiar neste início de século XXI.
Nessa mensagem, reafirmou o necessário cuidado com a “nossa casa comum”, repetindo o alerta da Carta Encíclica Laudato Si’. O cuidado, afirma,
será feito a partir de uma “nova solidariedade universal e uma sociedade mais
acolhedora” (SAYAGO, 2019, p. 143). O pacto sugerido teria como elementos
constitutivos “uma educação mais aberta e inclusiva, capaz de escuta paciente,
diálogo construtivo e mútua compreensão” (SAYAGO, 2019, p. 143).
O pacto se fundamenta em um breve diagnóstico que o Papa Francisco
(2019a, s/p) apresenta em sua mensagem de lançamento:
A educação é colocada à prova pela rápida aceleração que prende a existência no turbilhão da velocidade tecnológica e digital,
mudando continuamente os pontos de referência. Neste contexto,
perde consistência a própria identidade e desintegra-se a estrutura
psicológica perante uma mudança incessante que “contrasta com a
lentidão natural da evolução biológica”.
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Ressalta a necessidade de superação da fragmentação contemporânea. Sugere que “toda a mudança precisa duma caminhada educativa que envolva a todos” e, para tanto, sugere a construção de uma “aldeia da educação”, na qual, na
diversidade, partilhe-se o compromisso de gerar uma rede de relações humanas
e abertas (FRANCISCO, 2019a, s/p). Trata-se de uma aliança mundial, “entre o
estudo e a vida; entre as gerações; entre os professores, os alunos, as famílias e a
sociedade civil, com as suas expressões intelectuais, científicas, artísticas, desportivas, políticas, empresariais e solidárias” (FRANCISCO, 2019a, s/p).
Desde 2013, Papa Francisco apresentou inúmeras reflexões a respeito dos
desafios educacionais contemporâneos. O Pacto Educativo Global está assentado em um longo percurso reflexivo.
Vejamos alguns desses pensamentos e seu encadeamento. Desde o início
de seu papado, o Papa Francisco foi muito objetivo nos desafios educacionais
do mundo contemporâneo. Educação, aliás, mereceu atenção especial desde seus
primeiros pronunciamentos.
Em 21 de novembro de 2015, na Sala Paulo VI do Vaticano, em discurso
proferido no congresso mundial promovido pela Congregação para a Educação
Católica, Papa Francisco recordou um conselho que deu às irmãs da Patagônia:
A uma congregação de irmãs com uma vocação especial na Argentina, para o Sul da Argentina, para a Patagônia, eu disse: por favor,
fechar metade dos colégios da capital, de Buenos Aires, e enviai
para lá as irmãs, para aquela periferia da pátria porque de lá virão as
novas contribuições, os novos valores, e virão também as pessoas
capazes de renovar o mundo (FRANCISCO, 2015d, s/p).
O conselho se embasava em uma leitura da realidade social que provoca
o compromisso educacional, em especial, cristão. Nessa fala no congresso de
novembro, Papa Francisco sustenta que o primeiro desafio educacional cristão
seria deixar os lugares onde há muitos educadores e ir às periferias para procurar
ali os que têm a experiência da sobrevivência, da fome, das injustiças, que têm a
humanidade ferida. Nas suas palavras:
Eles têm uma coisa que os jovens dos bairros mais ricos não possuem – não por culpa deles, mas porque é uma realidade sociológica: têm a experiência da sobrevivência, também da crueldade, da
fome, das injustiças. Têm uma humanidade ferida. E penso que a
nossa salvação vem das feridas de um homem ferido na cruz. Daquelas feridas, eles obtêm sabedoria, se houver um bom educador
que os leve em frente. Não se trata de ir lá fazer beneficência, ensinar a ler, dar de comer... não! Isto é necessário, mas é provisório. É
o primeiro passo. O desafio – e eu os encorajo – é ir lá para os fazer
crescer em humanidade, em inteligência, em valores, em hábitos,
para que possam ir em frente e levar aos outros experiências que
não conhecem (FRANCISCO, 2015d, s/p).
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Ainda nessa oportunidade, Papa Francisco avança sobre a urgência de
um pacto educativo que adote como referência a superação do neopositivismo,
que só educa para as coisas imanentes e se esquece da transcendência. Sugere
que não se pode falar em Educação Católica sem falar de humanidade. Sustenta que educar é conduzir jovens e crianças nos valores humanos em todas
as realidades:
Hoje há a tendência a um neopositivismo, ou seja, a educar para
as coisas imanentes, para o valor das coisas imanentes, e isto tanto
nos países de tradição cristã como nos países de tradição pagã. O
que não significa introduzir os jovens, as crianças na realidade total:
falta a transcendência. [...] A educação tornou-se demasiada seletiva e elitista. Parece que só os povos e as pessoas com um certo
nível ou capacidade têm direito à educação; mas sem dúvida nem
todas as crianças e jovens têm direito à educação. Esta é uma realidade mundial que nos envergonha. É uma realidade que nos leva
a uma seletividade humana, e que em vez de aproximar os povos,
afasta-os. [...] Mas isto acontece também em nosso âmbito: o pacto
educativo entre a família e a escola se quebrou! Deve-se recomeçar.
[...] A educação formal empobreceu por causa da herança do positivismo. Concebe apenas um tecnicismo intelectualista e a linguagem da mente. E por isso empobreceu-se. É preciso interromper
este esquema. E há experiências como a arte, o esporte. A arte e o
esporte educam. É preciso abrir-se a novos horizontes, criar novos
modelos (FRANCISCO, 2015d, s/p).
Essa passagem indica nitidamente uma revisão das prioridades educacionais para crianças e jovens. Um currículo aberto, que supere as hierarquias de
conteúdos enfocada na inserção no mundo de racionalidades e sucessos individuais. Não foi a primeira vez que Papa Francisco sugeriu o abandono da área
de conforto na prática educacional. Em 2013, já havia fundamentado essa necessidade a partir de um esforço de empatia com a busca dos jovens. Em 7 de
junho daquele ano, ao responder às perguntas dos representantes das escolas dos
jesuítas na Itália e na Albânia, sustentou que era necessário que todos fossem
magnânimos, sem medo, apostando sempre em grandes ideais. E propõe:
Na educação, há um equilíbrio a respeitar, há que equilibrar bem os
passos: um passo firme na zona de segurança, mas o outro entrando
na área de risco. E quando este risco se torna segurança, o passo
seguinte procura outra zona de risco (FRANCISCO, 2013a, s/p).
Mas, afinal, por que o risco, enquanto ato pedagógico? Papa Francisco, em
um outro encontro, realizado em 21 de agosto de 2013, ao falar para professores
do colégio japonês Seibu Gakuen Bunri Junior High School de Saitama, explicita
sua leitura sobre o movimento de encontro aos jovens. Esse movimento é uma
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das chaves de suas reflexões educacionais: a pedagogia do encontro. Para o Papa,
ao nos isolarmos em nós mesmos, só teremos o que já temos e não cresceremos
culturalmente. O diálogo, então, torna-se um exercício de amadurecimento, no
confronto de culturas, de experiências humanas. E sustenta:
E qual é a atitude mais profunda que devemos ter para dialogar e
não brigar? A mansidão, a capacidade de encontrar as pessoas, de
encontrar as culturas com a paz; a capacidade de fazer perguntas
inteligentes: “mas por que pensas assim? Por que esta cultura é assim?” Ouvir o próximo e depois falar. Primeiro ouvir, depois falar
(FRANCISCO, 2013b, s/p).
E, na escuta, revela-se o lugar do professor “incompleto”: “[...] os jovens
compreendem, ‘farejam’ e são atraídos pelos professores que têm um pensamento aberto, ‘incompleto’, que procuram ‘um mais’, e assim contagiam os estudantes com esta atitude” (FRANCISCO, 2014c, s/p).
Uma pedagogia aberta, dinâmica, da escuta e do encontro de experiências
e culturas.
Assim, a escola apresenta-se como espaço de abertura à realidade e um
lugar de encontro. E é a partir dessa escola – e de todo o processo educacional
– como espaço de encontro que Papa Francisco esboça a aldeia educacional.
Nesse encontro com as escolas católicas, em 2014, cita um provérbio africano
que diz “para educar uma criança é necessária uma aldeia”, uma ação conjunta,
contributiva, de várias experiências e esforços. “Para educar um jovem”, afirma, “é necessária muita gente: família, professores da escola básica, pessoal
não docente, professores, todos!”. E, ainda: “amo a escola porque nos educa
para o verdadeiro, para o bem e o belo. Os três caminham juntos. A educação
não pode ser neutra. Ou é positiva ou negativa; ou enriquece ou empobrece”
(FRANCISCO, 2014c, s/p).
E, então, em 4 de setembro de 2014, o Pacto Educativo Global parece se
esboçar mais nitidamente. Em um discurso realizado no encontro mundial dos
diretores de Scholas Ocurrentes, Papa Francisco sugere a recomposição do pacto educativo, recomposição daquela aldeia para educar crianças:
Não podemos deixá-las sozinhas, não podemos deixá-las pelas
ruas, sem tutela, à mercê do mundo, no qual prevalece o culto do
dinheiro, da violência e do descartável. Insisto muito sobre este
tema, mas é evidente que se impôs a cultura do descartável. O que
não serve joga-se fora. Descartam-se os jovens porque não os educamos ou não queremos educá-los (FRANCISCO, 2014d, s/p).
No encontro seguinte das Scholas Ocurrentes, realizado em 5 de fevereiro
de 2015, complementa:
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É o pacto educacional, um pacto educativo que se cria entre a família, a escola, a pátria, a cultura. Rompeu-se profundamente e já não
se consegue consertar. O pacto educacional que se rompeu significa
que tanto a sociedade como a família e as diversas instituições delegam a educação aos agentes da educação, aos docentes que – geralmente mal pagos – carregam nos seus ombros esta responsabilidade
e, se não obtêm bons resultados, são repreendidos. Mas ninguém
recrimina as várias instituições, que faltaram ao pacto educativo, delegando-o ao profissionalismo de um professor. [...] Scholas deseja
harmonizar a linguagem da cabeça com a linguagem do coração e
das mãos. Que uma pessoa, uma criança, um jovem pense no que
sente e faz; que sinta aquilo em que pensa e o que faz; que faça o que
sente e aquilo em que pensa (FRANCISCO, 2015a, s/p).
Papa Francisco (2015a, s/p) sustenta a necessidade de se descobrir o jogo
como caminho educacional, já que a educação “não é apenas informação, mas
criatividade no jogo, aquela dimensão lúdica que nos faz crescer na criatividade
e no trabalho em equipe”,
A concepção educacional sugerida pelo Papa apoia-se, assim, em vários
aspectos:
1. O valor do diálogo, que fundamenta o pluralismo cultural e religioso.
2. A preparação qualificada de formadores, tendo em mente que não podem improvisar e que educar é um ato de amor exigente,
muito competente, qualificado e, ao mesmo tempo, rico de humanidade, capaz de permanecer no meio dos jovens com um estilo pedagógico, para promover o seu crescimento humano e espiritual. [...] Não se
pode educar sem coerência e testemunho (FRANCISCO, 2014a, s/p).
3. A integração ao mundo, evitando-se o isolamento. É preciso que se
saiba “entrar intrepidamente no areópago das culturas contemporâneas e
estabelecer um diálogo, conscientes do dom que podem oferecer a todos”
(FRANCISCO, 2014a, s/p).
4. Transmitir conteúdos, hábitos e sentidos dos valores, os três elementos
juntos (FRANCISCO, 2014).
5. Falar nas três línguas: a língua da mente, a língua do coração e a língua
das mãos.
6. A educação do cuidado com a Casa Comum, para a educação e espiritualidade ecológicas (FRANCISCO, 2015b).
Essa é a estrutura de pensamento e do projeto educacional de Papa Francisco que se plasmou no Pacto Educativo Global; projeto que se revela mais
intensamente em uma reflexão que fez em 7 de julho de 2015, em Quito, na
Pontifícia Universidade Católica do Equador:
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Eu vivo em Roma. No inverno, faz frio. Pode acontecer que,
bem pertinho do Vaticano, apareça um idoso, pela manhã, que
morreu por causa do frio. Não é notícia em nenhum dos jornais,
em nenhum relato. Um pobre morre por causa do frio e da fome
e isso não é notícia, mas se as bolsas das principais capitais do
mundo caem dois ou três pontos arma-se um grande escândalo
mundial. Eu me pergunto: onde está o teu irmão? E peço-vos
que vos façais outra vez, cada um, essa pergunta, e que o façais à
universidade: A ti, Universidade Católica, onde está o teu irmão?
(FRANCISCO, 2015c, s/p).
O Pacto Educativo e o encontro pela Economia de Francisco compõem
esse tecido que vem envolvendo inúmeras práticas, discussões, reflexões em
torno de um novo humanismo. Ancorado nas dimensões da proximidade, da
partilha, da solidariedade, é um despertar para novas práticas. Mais do que um
pacto de governo, dimensiona uma política de sociedade, que retoma as relações
comunitárias como capazes de perfazer os cenários que compõem a visão e a
prática nas instituições democráticas, a saber, a Igreja Católica, os movimentos
sociais, as universidades e o Estado.
“Realmar” a economia se assemelha a buscar a humanização, porém, desta
vez, biocêntrica, prevalecendo o todo da dimensão da vida do planeta em complementaridade à vida humana. Essa dimensão avança sobre novas perspectivas
teológicas, políticas, econômicas e culturais a se desenharem nos marcos desses
dois pactos e também na dinâmica das comunidades, territórios e povos que
ensaiam resistência e lutas pela mudança radical dessa sociedade que aqui está.
Submissão: 25/03/2020
Revisão: 20/04/2020
Aprovação: 25/04/2020
Notas
1 Educador e sociólogo, atua com movimentos populares e religiosos na Zona Leste de São
Paulo. É consultor do Instituto Cultiva. Faz parte da Coordenação da ABEFC – Articulação
Brasileira pela Economia de Francisco e Clara. E-mail:
[email protected]
2 Sociólogo, mestre e doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP). Assessor de movimentos populares e sindicais no Brasil. É presidente do Instituto Cultiva e membro da Coordenação da ABEFC – Articulação Brasileira pela Economia de
Francisco e Clara, e também da Articulação Brasileira pelo Pacto Educativo Global.
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