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Campos Alcobaça Hidro

Além disso, a Abadia das Dunas lançou mão dum verdadeiro exército de frades conversos (181 monges et 350 conversos, em finais do séc. XIII), o que se desconhece se terá acontecido no Marais Poitevin (Sarrazin, 1996:116). 13 La Rochelle, cidade portuária da costa de Poitou-Charentes. 20 ANTT-Livro de Privilégios..., 1750: fólio 276. Vd. Webgrafia. 21 Os monges crúzios concediam para este efeito, nos campos do Mondego, certas porções de terreno, como se passou num chão em Almegue, de acordo com documento de 1428. 22 BNP-Planta de Alfeizerão e sua envolvente (c. 1650). Biblioteca Nacional de Portugal, Colecção Códices Alcobacenses, cota:CO-Cx. 6-I. (Vd. Fontes Manuscritas) 23 Actualmente designado, como já referido, por Rio de Tornada, ou também, segundo alguns autores, por Rio de Salir.

Um Mosteiro entre os rios. O território alcobacense OS CAMPOS DOS COUTOS DE ALCOBAÇA: ORDENAMENTO HIDRÁULICO E VALORIZAÇÃO DO TERRITÓRIO J OSÉ MANUEL DE MASCARENHAS1 Introdução Os campos aluvionares dos Coutos de Alcobaça correspondem essencialmente aos terrenos correspondentes às antigas lagoas da Pederneira e de Alfeizerão, que se materializaram na sequência de um longo processo natural de assoreamento2, complementado sobretudo a partir do século XIII, por um processo antrópico de saneamento e valorização agrícola dos antigos pauis resultantes do recuo das referidas lagoas. Por outro lado, o facto destes terrenos se encontrarem relativamente abrigados dos ventos, uma vez que se situam a cotas inferiores às do relevo da linha de costa, e de a água abundar no solo, permitiu a criação de “boas condições para uma intensa ocupação agrícola, em parcelas geometrizadas, o que confere um padrão muito especial à paisagem” (Abreu et al., 2004:42)3. O estudo apresentado neste capítulo, resultou não só de análise documental e de reconhecimentos no terreno, mas também de uma interpretação aero-fotográfica, efectuada em meados da década de 1990. Mais concretamente, esta última acção apoiou-se na interpretação estereoscópica de fotografias aéreas verticais pancromáticas4 e infravermelhas “falsa cor”5, trabalho acompanhado por análise cartográfica6 e por reconhecimentos no terreno, havendo permitido a identificação de importantes 1 O autor escreve de acordo com a antiga ortografia. Acelerado, no entanto, pelo Homem, em certas épocas, como resultado de arroteamentos em áreas declivosas. 3 Os campos da Pederneira e de Alfeizerão integram-se, segundo Abreu et al. (2004), na Unidade de Paisagem 71, designada por Oeste, a qual, por sua vez, pertence ao grupo L de Unidades de Paisagem, designado por Estremadura - Oeste. 4 Voo FAP 51, de Maio de 1989 (escala aprox. 1:15 000). 5 Voo ACEL, 1990 (escala aprox. 1:15 000). 6 Carta Militar de Portugal (escala 1:25 000) e Carta Geológica de Portugal (escala 1:50 000). 2 483 José Manuel de Mascarenhas obras de ordenamento hidráulico, bem como a posição do leito primitivo de certos cursos de água7 (Fig. 1). Estes resultados, bem como outros derivados da análise de documentos escritos e de cartas antigas permitiram uma abordagem, de carácter sinóptico, sobre a valorização hidráulica dos campos das antigas lagoas de Pederneira e de Alfeizerão, a qual se encontra explanada em obras mais vastas, como (Mascarenhas et al., 1994:153-164) (Maduro et al., 2015:29-60) (Mascarenhas et al., 2015) (Maduro et al., 2017:95-126) versando sobre a hidráulica monástica nos Coutos de Alcobaça. Fig. 1 - Fotografia aérea vertical infravermelha "falsa cor" (missão 1990) dos campos de S. Martinho, Alfeizerão e Tornada. Fonte: ACEL, Lisboa. Foto-interpretação: José Manuel de Mascarenhas, 1994. Legenda: 1 - Rio Alfeizerão, canalizado; 2 - traços do primitivo leito do Rio de Alfeizerão; 3 - Rio de Tornada, canalizado; 4 - Vala de Palhagueira. 7 Na extensa área aluvionar referida, reconheceram-se, através da foto-interpretação, obras hidráulicas de grande vulto. O percurso inicial de certos rios pode deduzir-se a partir da referida foto-interpretação e da análise topográfica da zona. 484 Um Mosteiro entre os rios. O território alcobacense O presente trabalho incide exclusivamente nos campos aluvionares correspondentes aquelas antigas lagoas e resulta de um desenvolvimento da investigação documental, em especial da cartográfica, e de novos reconhecimentos de campo, através dos quais se procurou traçar o modo como aquelas paisagens foram evoluindo entre a data da fundação do Mosteiro de Alcobaça e os meados do século XX, bem como caracterizar as principais acções hidrotécnicas desenvolvidas e os respectivos agentes nelas envolvidos. Processo de assoreamento dos antigos sistemas lagunares da Pederneira e de Alfeizerão: descrição sinóptica A escolha de uma zona florestada e solitária, para a instalação da abadia, na confluência dos rios Alcoa e Baça, correspondeu às três exigências fundamentais da topografia cisterciense medieva, que harmonizam o rural com o espiritual: isolamento, água e pedra. Em termos de geografia física antiga, o domínio monástico alcobacense pode caracterizar-se do seguinte modo: costa rochosa, com arribas; faixa dunar litoral estreita; grande mobilidade de areias, apenas moderada pelas matas que ocupavam os solos mais pobres e arenosos; linha de costa recortada por dois grandes golfos, totalmente assoreados na actualidade, quer pela dinâmica natural quer pela acção humana. Eram as designadas lagoas da Pederneira, mais a norte, e de Alfeizerão, da qual ainda resta a concha de São Martinho. Estes terrenos encontravam-se permanentemente encharcados, consequência de uma drenagem difícil e de uma rede densa de linhas de água de regime torrencial, que necessitavam de regulação hídrica constante. Uma segunda zona, respeita a área paralela à costa constituída por colinas, geralmente de relevo suave, delimitadas por vales apertados, por onde correm linhas de água, muitas de regime sazonal. Uma terceira zona, constituída por um vale tifónico e pedregoso, termina no sopé do maciço calcário da serra dos Candeeiros. De um modo geral, pode-se considerar que a linha de costa, no período medieval, seria aproximadamente idêntica à actual e muito mais baixa na época romana (Martins, 1946:173-178, cit. por Bernardes, 2005:135). O nível do mar na Idade Média parece resultar de uma transgressão em relação ao da época romana, devido ao “Pequeno Óptimo Climático” que ocorreu na Península Ibérica entre o século IX e o XV (Tullot, 1986). “No início do século XVI, devido ao agravamento das condições climáticas, o mar recua de novo” (Granja, 1990:67, cit. por Bernardes, 2005:135). Todavia o nível médio das águas do mar pode ter-se repercutido de modo muito variado no modo como a linha de costa foi evoluindo, dependendo das especifidades geofísicas locais, razão por que muitos habitats medievais ribeirinhos se sobrepõem na lagoa de Pederneira a alguns do período romano (como S. Gião, Cela Velha ou o sítio da Mina, por exemplo) (Bernardes, 2005:139). De acordo com estudos relativamente recentes (Henriques, 2005:30), entre os séculos XIV e XVI, ter-se-ia assistido a um ligeiro arrefecimento (“Pequena Idade do 485 José Manuel de Mascarenhas Gelo”), que se acentuou entre os séculos XVI e XVII, o qual teria sido acompanhado por forte transporte sólido para o litoral e por suposto abaixamento do nível do mar. Cartas coevas deste período mostram uma linha de costa mais recortada que a actual, vastos estuários e restingas arenosas em fomação (Ibidem). Esta “Pequena Idade do Gelo” terá perdurado até ao século XIX e dado origem às actuais características climáticas médias (Henriques, 2005:31). Se se deve considerar a colmatagem das abras e da parte vestibular dos rios como um fenómeno geral, acontecimentos locais como o arroteamento de terras exercido pelos frades de Alcobaça, em áreas mais ou menos declivosas de matas e de matos podem, em grande parte, ter sido responsáveis pela erosão dos solos e por um assoreamento galopante, em particular a partir da intensificação das arroteias, com as providências de D. Dinis sobre o incremento da agricultura (Ribeiro, 1977:110), vindo tal assoreamento a comprometer progressivamente a possibilidade de navegação na lagoa. No século XVIII, ainda existiam muitos pauis e lagos residuais na zona anteriormente ocupada pelas lagoas da Pederneira e de Alfeizerão. Perto de Famalicão, existia um campo denominado Dormão que se encontrava inculto “pela pouca exonoração e regresso de suas águas” (Távora, 1758) e a meia légua de Cela Nova há notícia de outro paul inculto (Silva, 1758). Nos campos de Alfeizerão / São Martinho foram inventariados lagos residuais, sendo ainda possível observar alguns na área do Paul da Tornada, antigamente designado por Paul da Cornaga ou da Boa Vista do Extremo8 (Fig.2). Foram identificados outros, actualmente já desaparecidos como a “lagoa limpa”, que se situava a um quarto de légua, a sul de Alfeizerão (Romão, 1758), ou outro localizado a este de São Martinho, com a indicação de que as suas águas “não tem préstimo algum, mas antes nocivas a esta vila por razão de se corromperem por não terem escoante para o mar pelas areias que os ventos, tempestades botam nestas que lhe impedem a corrente da água” (Marcelino, 1758). Drenagem e Valorização Hidro-agrícola dos Pauis Identificação de obras de ordenamento hidráulico no período medieval São escassas as referências monásticas a trabalhos de regulação hídrica, durante a época medieval. A maioria das obras efectuadas não foi registada e apenas dispomos de notícias documentais avulsas ou insertas em contratos de finais da Idade Média, entre os enfiteutas e o mosteiro. Todavia, com o estabelecimento da Ordem de Cister em Alcobaça, que levou ao incremento de actividades agrícolas e à exploração de madeiras e de outros recursos naturais, provocando um aumento da erosão dos solos, deu-se uma “significativa mudança do ambiente sedimentar”, a partir do século XII (Henriques, 2013:436). 8 Este Paul, actualmente uma Reserva Natural, encontra-se localizado no concelho de Caldas da Rainha, e já fora da área dos Coutos, tendo o estatuto de Sítio Ramsar, desde 2001. 486 Um Mosteiro entre os rios. O território alcobacense Podem esboçar-se os limites da lagoa da Pederneira para a Idade Média (séculos XIII/XIV) e períodos posteriores, a partir dos dados disponíveis de natureza geológica, arqueológica e histórica. Em particular, os limites da área aluvionar moderna correspondente ao máximo da transgressão marinha holocénica (flandriano) podem ser analisados a partir da carta geológica. Mas com a regressão flandriana, “áreas antes submersas vão ser ocupadas por habitats costeiros que se instalam em solos de aluvião correspondentes ao fundo da lagoa flandriana” (Bernardes, 2005:137). No que respeita ao estuário lagunar de Alfeizerão, os seus limites pouco se modificaram até ao século XIV, período em que os portos de Alfeizerão e Salir se evidenciaram pela sua operacionalidade. Todavia, a partir desta data, assistiu-se a um assoreamento acelerado, resultante sobretudo de uma intensificação da erosão, motivada pela expansão do povoamento e pelos arroteamentos, na bacia vertente, para criação de novas áreas agrícolas. As alterações hidrodinâmicas decorrentes levaram, em finais do século XV, ao “abandono do porto de Alfeizerão, por falta de condições de navegabilidade, em detrimento dos de Salir e S. Martinho, mais próximos da actual barra e menos afectados pelo assoreamento.” (Henriques, 2005:32). O estuário lagunar da Pederneira, à semelhança do de Alfeizerão, foi também objecto, a partir de finais do século XIII/inícios do século XIV, de um processo de sedimentação por acção sobretudo flúvio-marinha e eólica, responsável pelo seu assoreamento acelerado. De notar que já em finais do século XIII, na região de Cela Velha, a lagoa já estava em parte transformada numa zona pantanosa, tal como “documentado no foral de Cela Nova, onde se mencionam pauis logo abaixo das colinas do Bárrio” (Barbosa, 1992:22, 161, nota 235, cit. por Bernardes, 2005:141). O que se passou na zona de Fervença, ilustra bem a dinâmica com que se processou este fenómeno de assoreamento. Tal como referido num tombo de 1201 (Natividade, 1960:102), barcos provenientes de Lisboa abasteciam-se de madeiras na Fervença e descarregavam géneros para os monges do mosteiro de Alcobaça. No entanto, em finais do século XIII, já aparece referido num aforamento, um paul no lugar da Fervença (Barbosa, 1992:143, 161, nota 235, cit. por Bernardes, 2005:141). Fig. 2 - Lagoa do Paul da Tornada, uma das raras lagoas residuais do antigo "mar" de Alfeizerão. Autor: José Manuel de Mascarenhas, 2020. 487 Fig. 3 - Rio Alcoa, nos arredores de Valado dos Frades. Autor: José Manuel de Mascarenhas, 2020. José Manuel de Mascarenhas No século XVI, já só “hus barcos pequenos, que sobem do mar por hua lagoa acima, & vão algum espaço subindo pello Rio que vem de Alcobaça” (Fig.3), é que conseguiriam ter acesso à zona de Fervença, “ficando as embarcações grândes no mar alto defronte da villa de Pederneira, sem poderem entrar plla foz do Rio, impidido com muitos baixios de area, que o contino movimento das Fig. 4 - Quinta do Campo: escadaria de acesso ao antigo porto. ondas do mar, fazem toda Autor: José Manuel de Mascarenhas, 2020. aquella praya” (Brito, 1597:fl.245, 245vº, cit. por Bernardes, 2005:141,142) (Fig. 4). A partir do século XIV o assoreamento da lagoa assume uma gravidade crescente ficando, cada vez mais, as populações obrigadas a trabalhos de remoção de areias. Em 1455, o assunto assume tal gravidade que os trabalhadores dizem ser impossível abrir o caminho para o mar devido à quantidade de areia acumulada, e “porque o vento levantando nova areia, voltaria a tapá-lo” (Gonçalves, 1984:375, cit. por Bernardes, 2005:147). No século XVI, já dificilmente navios de alto bordo podiam entrar na barra, em resultado da areia arremessada pelas marés (Brito, 1597:fl. 245vª, cit. por Bernardes, 2005:147)9. As frequentes situações de obstrução da foz do Alcoa levaram a que em meados do século XVIII, o porto de S. Martinho adquirisse uma certa preponderância relativamente ao da Pederneira tal como sugerido nos regimentos pombalinos (Bernardes, 2005:147). Após a doação, por D. Afonso Henriques, aos monges cistercienses dos terrenos (ou coutos) de Alcobaça (1153) os primeiros trabalhos de saneamento hídrico dos campos devem ter incidido sobre os vales ricos em aluviossolos, da periferia das lagoas da Pederneira e de Alfeizerão. 9 O porto da Pederneira localizava-se na lagoa, na reentrância a nordeste da barra de entrada, na base do morro no alto do qual se situa o povoado homónimo, já existente, muito provavelmente, à data da fundação do Reino de Portugal e da tomada de Lisboa em 1147 (Henriques, 2017:26). Logo a partir do século XII, os navios de alto bordo já teriam grande dificuldade em navegarem nas zonas mais interiores da lagoa, em resultado do assoreamento ou da dificuldade em passarem na barra de entrada, devido ao periódico encerramento desta. O porto passou gradualmente a deslocar-se para sudoeste, e no século XIV já se situaria perto da barra, num local ainda hoje denominado Ponte da Barca (Ibidem:32). Desde inícios do século XVI, o porto e seus estaleiros e armazéns mudaram-se para a zona da Ribeira, por baixo do promontório do Sítio da Nazaré (Ibidem:40), aonde desaguava o Rio Alcoa (Fig. 11). 488 Um Mosteiro entre os rios. O território alcobacense Numa carta sobre a lagoa da Pederneira na Idade Média (Bernardes, 2005:139, mapa II), pode verificar-se que a maior mancha de pauis se estende aproximadamente entre a Póvoa de Cós e Valado de Frades, ao longo da margem esquerda do actual Rio da Areia. As primeiras granjas de que se tem conhecimento, localizam-se próximo das margens dos pauis. Cronologicamente, a primeira de que existem referências é a de Salir do Mato, em 1179 (Barbosa; Moreira, 2006:83), se bem que Rui de Azevedo refira que Cós já tinha granja em 1171 (Ibidem:84). A maior parte das terras, junto a esta localidade parecem, na verdade, ter sido valorizadas, desde os últimos anos do século XII, pelos cistercienses das granjas (Ibidem:73). No essencial, os referidos trabalhos de saneamento teriam consistido no desvio das linhas de água naturais, que corriam ao longo dos talvegues, através do estabelecimento, em geral, de um canal aberto próximo do “arranque” de uma das encostas do vale. Este processo ancestral, era frequentemente complementado com a instalação, no “arranque” da encosta oposta, de um canal aberto de drenagem, caso a largura do vale o tivesse exigido, permitindo ambos os emissários que as águas se escoassem para a lagoa mais próxima ou para outro emissário de maior importância hierárquica (Fig. 5). A alimentação em água dos canais de drenagem podia ser ocasionalmente reforçada por água das chuvas ou por água resultante de uma excessiva produção das nascentes (Magnusson, 2001:91). Por outro lado, sempre que as nascentes fluviais fraquejassem, as águas pluviais drenadas para os canais podiam contribuir para o equilíbrio dos respectivos caudais. De um modo geral, a água escoada através de um canal de drenagem raramente atingia Fig. 5 - Desenho mostrando a transformação de uma Paisagem Natural em Paisagem Cultural, em resultado da intervenção os valores máximos de caudal. humana. Neste exemplo, apresenta-se concretamente a instalaOs fluxos podiam variar bastanção de uma várzea, na qual o ribeiro aparece desviado do seu te, apresentando variações diur- curso natural primitivo. Autor: Gonçalo Ribeiro Telles, anos 80. 489 José Manuel de Mascarenhas nas e sazonais, consoante os padrões de uso e as flutuações no escoamento das águas pluviais (Ibidem)10. Assim, os fatores que afetam a eficiência de um canal, em termos de fluxo, são o declive, a rugosidade das paredes do canal e as dimensões e forma da seção transversal ( Magnusson, 2001:92). Deste modo, se possibilitava sanear e valorizar agricoFig. 6 - Várzea nas proximidades de Casal Velho (freguesia de lamente os terrenos do fundo Alfeizerão), notando-se ao fundo a galeria ripícola que dos vales que passaram a consacompanha o curso do Rio de Alfeizerão. tituir áreas vulgarmente desigAutor: José Manuel de Mascarenhas, 2020. nadas por “várzeas” (Fig.6). No que respeita à drenagem e valorização dos pauis que se foram constituindo à medida que os sistemas lagunares se foram colmatando, não existem informações disponíveis, de natureza histórica e arqueológica, sobre as técnicas que ali teriam sido aplicadas no decurso da Idade Média, o que não é motivo inibidor de se apresentarem suposições que se consideram relativamente aceitáveis num quadro de parâmetros históricos e geográficos. Com a fundação da Abadia, em 1153, o primeiro grupo de frades que se instalou em Alcobaça devia ser pouco numeroso, já que para a construção dos edifícios tiveram de apelar à mão de obra secular (Cocheril, 1978:222). Até finais do século XII, apenas tinham arroteado uma área até cerca de dois quilómetros dos edifícios abaciais (Ibidem). Mas tendo esta Abadia sido fundada pela de Claravale, detentora de vastos conhecimentos técnicos em matéria de drenagem e valorização agrícola de pauis, é muito provável que especialistas nestas matérias tenham, desde o início e ao longo da Idade Média, prestado apoio a Alcobaça. Dois dos principais projectos de saneamento de pântanos realizados, ao longo da costa atlântica, por abadias cistercienses filhas de Claraval, localizaram-se na costa do Poitou-Charentes (França), no chamado Marais Poitevin, e na Flandres Ocidental (Koksijde, Bélgica). Seis abadias cistercienses, das quais quatro na filiação de Claravale11 tiveram um desempenho decisivo no ordenamento da bacia do rio Sèvres (Sarrazin, 1996:112). A Abadia das Dunas (Ten Duinen), na Flandres Ocidental, tornada cisterciense, na 10 A quantidade de água escoada por um canal de drenagem pode ser calculada através do produto da área da seção transversal pela velocidade média da corrente. A velocidade da corrente pode, por sua vez, ser determinada pelo declive e pelo efeito retardador do atrito da superfície das paredes do canal. 11 La Grâce-Dieu, fundada por Claraval, em 1135; La Grâce-Notre-Dame-de-Charron, filha da precedente, e implantada no “marais” em finais do séc.XII; Saint-Léonard-des-Chaumes, fundada em 1168 e filha de Notre-Dame de Bœuil; Moreilles, tornada cisterciense em 1152, na filiação de Claraval; Trizay, na filiação de Pontigny, em 1145 e Bois-Grolland, filha de Moreilles e integrada na ordem em 1201. 490 Um Mosteiro entre os rios. O território alcobacense filiação de Claravale, em 1138, realizou igualmente uma importante obra na secagem e valorização de polders da orla costeira flamenga. Mas os quadros geográficos em que se desenrolaram ambos os projectos são bastante diferentes: enquanto no Marais Poitevin a altitude das áreas drenadas é quase sempre superior ao nível do mar em situação de marés vivas, tal não acontece na Flandres em que as oscilações do nível do mar determinaram os progressos e recuos da polderisação (Sarrazin, 1985:336). No primeiro caso, a drenagem dos pauis não resultou da instalação de diques de protecção contra a acção do mar, ou de outros artifícios técnicos, como um sistema elevatório de água utilizando a energia eólica, como observado na Abadia das Dunas (Wambecq; De Meulder, 2017:725), mas da elevação de taludes de protecção contra a vagabundagem das linhas de água e da drenagem de solos encharcados (Sarrazin, 1985:336)12. A intervenção do homem no Marais Poitevin efectuou-se assim, sobretudo, através da realização e controlo de acções visando o escoamento da água, mediante a abertura de canais e a fixação de comportas (Ibidem:336 ). Pelas razões acabadas de apontar, o quadro geográfico dos campos da Pederneira e de Alfeizerão, apresenta-se muito mais próximo do do Marais Poitevin, pelo que será de supor que, caso os monges cistercienses de Claraval ou de uma abadia com a sua filiação, tivessem prestado apoio técnico a Alcobaça, as técnicas aqui aplicadas seriam próximas das concebidas para a região Charentaise. Mas pouco se sabe sobre relações que teriam existido entre esta região e Alcobaça. Uma informação, todavia, que se enquadra no campo de tais relações, refere-se a uma doação a esta Abadia, efectuada em Outubro de 1215 por João de Rochela13, “amicus et familiarius Alcubatie”, diante do Fig. 7 - Desenho representando a técnica do Abbotamentum. Autor: José Manuel de Mascarenhas (2020), abade D. Pedro Egas ou Viecom base em Sarrazin (1996: fig.2). gas (Gomes, 2002:233). Legenda: 1 - Clausum (área em vias de secar); 2 - Clausura; Jean-Luc Sarrazin (1996:115) 3 - Botum; 4 - Contrabotum; 5 - Fossatum; 6 - "Ces" ou "Cois"; 7 - Zona encharcada; 8 - Comporta. apresenta uma descrição de12 Além disso, a Abadia das Dunas lançou mão dum verdadeiro exército de frades conversos (181 monges et 350 conversos, em finais do séc. XIII), o que se desconhece se terá acontecido no Marais Poitevin (Sarrazin, 1996:116). 13 La Rochelle, cidade portuária da costa de Poitou-Charentes. 491 José Manuel de Mascarenhas talhada da técnica do abbotamentum ou do “clos asséché” (parcela drenada cercada por talude) com base em documentação das abadias de Grâce-Dieu, Charron, Saint Léonard des Chaumes e suas associadas, relativa ao paul de Alouettes, em data um pouco anterior a 1217. A parcela objecto de drenagem, destinada a ficar sêca (clausum), deve ser circundada por um canal periférico (clausura) destinado a evacuar a água para outro canal de maior importância, para uma linha de água ou para uma lagoa (Fig. 7). A terra resultante da escavação da clausura deve ser utilizada para instalar um talude interior adjacente, denominado botum. Ao longo do botum, no lado interior da parcela, deve abrir-se um outro canal, o contrabotum, de menores dimensões que a clausura e sobre o qual vão dar pequenos fossos (fossatum) que permitem nele descarregar água, em excesso, proveniente da parcela. O talude (botum) da parcela deverá dispor de comportas e de tubos feitos com troncos de madeira, destinados a descarregar na clausura a água do contrabotum em excesso, em caso de cheia, ou a retê-la em período de seca, podendo ainda ser utilizados para evitar a intrusão de água salgada, em situação de marés vivas. Aqueles tubos obtidos a partir de troncos de madeira perfurados ou escavados na medula e cerne (se constituídos por duas peças), têm a designação de ces ou cois, na língua vernacular “charentaise”, havendo sido identificados dispositivos deste tipo nos campos da Pederneira, com a designação popular de cubos, nos anos vinte (Valença, 1929) e cinquenta (Sousa, 1950:22) do passado século (Fig. 8). Se bem que os termos botum e abbotamentum sejam de origem vernacular, a palavra contrabotum já poderá ser uma inovação cisterciense (Sarrazin, 1996:115). Além das funções hidráulicas indicadas para a clausura e o contrabotum, estes dispositivos permitiam ainda proteger o botum contra as predações de animais e pessoas, sendo ainda este último, suporte de um caminho14. Este sistema de drenagem que reposa sobre uma hierarquia de canais, já era utilizado nesta região de Charentes, antes da chegada dos Cistercienses, por grupos reduzidos locais que, todavia, agiam sem concertação. Através das referidas abadias 14 Existindo, na lingua Portuguesa, uma ordem hierárquica entre os seguintes termos relativos a linhas de água: “rios, ribeiros, valas, sarjetas, valeiras ou regueiras”, poder-se-á, no respeitante à técnica do abbotamentum (Sarrazin, 1996:115), estabecer uma equivalência terminológica entre: clausura  alcorca ou vala; contrabotum  sarjeta; fossatum  valeira. Notar que, tradicionalmente, “sarjenta” significa “valeta ou regueira em meio das terras húmidas, e lenteiros, para onde escorre a água supérflua” (Bluteau et al., 1789:378). “São valas pequenas, ou serventes de valas mestras, que nelas desaguam” (Silva, 1813:670). Num documento de 1344, relativo aos campos do Mondego, refere-se que os foreiros tinham a obrigação de abrir e manter as sarjetas e regueiras em redor dos campos (Coelho, 1989:117). Por outro lado, o termo clausura, corresponde a um antigo termo do léxico da língua portuguesa: alcorca, que aparece com frequência em obras do séc. XVIII, como, por exemplo, no Livro do Tombo da Quinta do Campo (Ribeiro, 1783). Segundo a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, “o valador faz ao longo da linha por onde se quer o valado, uma espécie de fosso, a que chamam alcorca; a terra é tirada deste fosso por meio de um balde ou de uma pá” (ver: Valado, in Grande Enciclopédia Poertuguesa e Brasileira, 1981:724). Quanto à vala, trata-se de uma” cova longitudinal, de mais ou menos altura, e largura, que se faz para recolher a água que escorre e filtra das terras apauladas...” (Bluteau et al., 1789:507). Pode pois considerar-se que alcorca e vala têm praticamente o mesmo significado. 492 Um Mosteiro entre os rios. O território alcobacense cistercienses, esta técnica foi aperfeiçoada e transposta para a escala de toda a bacia hidrográfica (Ibidem:115). Também na região de Alcobaça, é de supor que a população rural das áreas ribeirinhas das lagoas da Pederneira e de Alfeizerão tivesse podido proceder, em áreas restritas, a operações de drenagem de pauis, mesmo rudimentares, antes da chegada dos monges cistercienses. Mas pouco se sabe acerca das técnicas aplicadas em território português, durante a Idade Média, para a drenagem dos campos. Como exemplo de um sistema de drenagem presumivelmente rústico e de autoria local, refere-se um que drenava os campos do Almonda (afluente do Tejo), e que era sinplesmente constituído por uma rede de canais que assegurava a evacuação da Fig. 8 - "Cubo" de rega instalado em mota do Rio da Areia água em excesso, para o Tejo (ou Vala Velha). Licínio Valença, 1929, fig. 28. ou para os seus afluentes (Viana, 1998:118). A maioria das informações disponíveis referem-se a canais de drenagem (valas e abertas) ou de regadio (regos, regueiras, veias e agueiros) sem, no entanto, se descrever o sistema hidráulico em que se inserem. Uma das decrições mais completas de um sistema medieval (finais do século XV) respeita à drenagem do Paul de Lagos (Silva, 2006). Trata-se de um projecto de iniciativa particular, iniciado em 1476, que consistiu basicamente na abertura de uma vala de cintura em torno do terreno a drenar, que se designou por vala real, e à qual iam confluir outras valas que partiam do interior da área a drenar15. A água da vala real era por sua vez escoada para o mar ou para terrenos a cotas mais baixas através de outros canais (Silva, 2006:208-209). Se bem que não haja referência às técnicas das paredes das valas, é de supor que se tratasse de valas abertas protegidas por argila e 15 As valas de cintura organizavam-se por uma ordem hierárquica, sendo as valas principais designadas frequentemente, por valas mestras, e as mais importantes destas por valas reais. 493 José Manuel de Mascarenhas bosta (Ibidem:209). Uma vez drenada, a área terá sido aforada em parcelas (Ibidem: 209). O prestígio que os monges cistercienses de Alcobaça entretanto adquiriram como engenheiros hidráulicos e agrónomos foi de tal ordem, que foram por várias vezes chamados pelos soberanos para resolverem problemas de drenagem e de irrigação dos campos, fora dos coutos de Alcobaça, como aconteceu com frei Martinho, chamado por D. Dinis para drenar e recuperar os pauis de Ulmar, nas proximidades de Monte Real, Leiria (Cocheril, 1978:231). Segundo Virgínia Henriques (2013:432), pode-se considerar a planície aluvial do antigo “mar” da Pederneira constituída por três alvéolos que comunicam entre si por estrangulamentos rochosos: o alvéolo litoral (Nazaré – S. Gião), o alvéolo intermédio (Ponte das Barcas16 – Valado dos Frades) e o alvéolo oriental (Valado dos Frades – Maiorga). Neste último alvéolo, a várzea de Maiorga era atravessada, no período medieval, por rios de certa torrencialidade, “fornecedores de carga sedimentar” (Henriques; Dinis, 2005:6), dos quais se destacam o Rio Alcoa e o Rio de Cós, percorrendo este último aquela várzea17, e indo confluir com o Alcoa, na zona da Piedade, após a recepção das águas do Rio de S. Vicente e de outros ribeiros. A análise de um esboço morfológico da planície aluvial da Nazaré18 (Henriques; Dinis, 2005:Fig.3) leva a supor que a primeira zona desta planície, a ser objecto de acções de drenagem, talvez ainda nos séculos XII e XIII, tenha sido uma banda de terreno, no limite norte do alvéolo de Maiorga que, de Casalinho e Póvoa, se estendia para sudoeste na direcção de Valado dos Frades. O primeiro documento conhecido, relativo a trabalhos hidráulicos, data de 1187, quando o abade D. Martinho I e o Convento do Mosteiro adquiriram a Mem Peres uma propriedade junto ao rio de Salir, a fim de desviar o rio com a finalidade, supõe-se, de recuperar uma parte importante de pauis através de acções de drenagem, de modo a “transformá-los em zonas de cultura, especialmente hortícola, ou utilizados tal como se encontravam” (Barbosa, 1992:130)19. O movimento arroteador e de secagem dos pântanos, à semelhança das acções de saneamento nos campos do Mondego, terá recebido grande incentivo no século XIII e inícios do XIV (Coelho, 1989:118) sendo provável que, em finais do século XIII, muitos dos terrenos do alvéolo oriental Valado dos Frades – Maiorga já se encontrassem drenados e saneados (Henriques, 2013:436). Para tal muito contribuiu a intervenção do rei D. Dinis, com a criação da primeira escola de hidráulica agrícola, em 1291, que permitiu formar pessoal especializado e assim acudir à resolução dos graves problemas de encharcamento e insalubridade que se faziam sobretudo sentir naquele alvéolo oriental (Henriques, 2013:439). 16 A Ponte das Barcas aparece também frequentemente referida por Ponte da Barca e por Ponte da Barquinha. 17 Num percurso, em que era designado por Rio da Meirinha. 18 Elaborado a partir de plantas topográficas 1:2000, 1974 e 1977. A mesma ilação se retira da análise do Mapa 08 – Configuração provável da lagoa da Pederneira no séc. XIV (Henriques, 1996:437). 19 As terras palustres eram ainda com frequência objecto de outros aproveitamentos, como a extracção de turfa, a recolha de juncos e canas, e a caça, sobretudo de espécies avícolas (Barbosa; Moreira, 2006:66). 494 Um Mosteiro entre os rios. O território alcobacense Para os séculos XIV e XV, há referências a vários documentos acerca das “abertas” feitas por operários especializados – os “aberteiros” –, a cargo da abadia de Alcobaça, por serem dispendiosas, sobretudo, quando eram condutas principais dirigidas directamente para os rios (Gonçalves, 1989:237-239). As “testadas”, ou canais secundários, eram da responsabilidade dos foreiros que as deviam construir ou manter em bom estado. Por vezes, cabia também aos colonos a tarefa da construção de açudes, alguns deles obras duráveis de “pedra e cal”, para regulação do caudal dos ribeiros e irrigação de terrenos. Estes trabalhos, assim como a limpeza dos rios, resultaram em contratos, nos séculos XIV e XV, com vários povoadores, como os de Maiorga, Torre das Colmeias (junto a Fervença) e na Granja do Jardim. No que respeita a Maiorga, tem-se conhecimento de um novo contrato que o Mosteiro fez com os moradores, em 1454, em que, como contrapartida de um abaixamento dos tributos sobre as terras do campo, aqueles ficavam obrigados, às suas custas, a abrir valas e sarjetas, fazer outras de novo, em caso de necessidade e proceder à limpeza do rio e canais20. Carecendo as obras de retenção e de escoamento das águas de pessoal especializado, os valadores assumem uma importância indiscutível e não raras vezes recebem privilégios por parte dos monarcas. Os valadores do Baixo Mondego atingiram tal prestígio que foram mesmo chamados a empreender trabalhos noutras áreas, como aconteceu no Paul da Granja da Ota, no século XV (Coelho, 1989:115). O saneamento dos pauis revelava-se por vezes uma tarefa muito complexa havendo que complementar a acção dos valadores com outras acções, como a plantação de salgueirais, amiais, canaviais e outras espécies, que favoreciam o enxugo dos terrenos (Ibidem:110)21. Uma das obras hidráulicas mais antigas, de que se tem conhecimento, respeita ao desvio de um sector do Rio de Tornada (ou da Mota), próximo do Casal dos Morgados, representado num documento cartográfico de ca. 1650 (Fig.17)22. Na extremidade sudoeste dessa carta, observa-se um braço do referido rio, junto do qual se pode ler: “Rio por onde se ia no tempo da doação de El Rei Dom Afonso Henriques que El Rei Dom Dinis mandou mudar no ano de 1288 (...)”. Tal braço fluvial reencontra o Rio da Mota23, na sua extremidade sudoeste, próximo de um local referenciado como Porto da Paviarca. Este rio teria sido “desviado por D. Dinis, para secar as terras da Granja Real, actual Paul da Boa Vista do Extremo” (Miguel, 2008:36). O documento em que este autor se apoia é ainda mais explícito do ponto de vista geográfico e hidrotécnico: (...) o dito Rijo foy mudado do pee do dito monte onde estão os ditos casaes da mourarya e damoreyra e que foy feita aberta e deitada auguoa 20 ANTT - Livro de Privilégios..., 1750: fólio 276. Vd. Webgrafia. Os monges crúzios concediam para este efeito, nos campos do Mondego, certas porções de terreno, como se passou num chão em Almegue, de acordo com documento de 1428. 22 BNP - Planta de Alfeizerão e sua envolvente (c. 1650). Biblioteca Nacional de Portugal, Colecção Códices Alcobacenses, cota:CO - Cx. 6-I. (Vd. Fontes Manuscritas) 23 Actualmente designado, como já referido, por Rio de Tornada, ou também, segundo alguns autores, por Rio de Salir. 21 495 José Manuel de Mascarenhas per onde ora vay por que a mudança da dita auguaa se avja de fazer pera provejto do regengo que o dito Rey dom dinjs mandava abryr (...)24. A primeira instrução para abertura da várzea da Mota, de que se tem conhecimento, encontra-se na primeira carta de povoamento de Alfeizerão de 21 de Outubro de 1332 (Gomes, 2006:360)25, aonde aparece claramente mencionado: “E vos devedes logo abrir a Varzeã da Mota tambem a aberta de meios26 come as sergentes de contra os Montes e mantee las pera sempre a vossa custa”, instrução reiterada com a seguinte ligeira alteração na Carta de Foral de 142227 (Barros, 1950): “E vos deveis pera sempre ser obrigados a abrir a vargea da mota,...”. A obrigação, com carácter definitivo, dos povoadores deverem à sua custa a, permanentemente, abrirem o rio e as valas, é do ponto de vista técnico, sintoma de que tais emissários se colmatavam ou entulhavam regularmente, havendo necessidade de um permanente esforço para a sua manutenção. Conhecem-se ainda outras obras hidráulicas de saneamento, com fins de valorização agrícola, realizadas durante o século XIV, nas zonas de São Martinho, Aljubarrota, Maiorga e Alfeizerão, e, ao longo do século XV, nas regiões de Cós e de Alfeizerão (Gonçalves, 1989:237-239). A limpeza da barra da lagoa da Pederneira, permanentemente ameaçada de fecho pela acumulação de areias, era outra das incumbências a que estavam obrigados os moradores de certas povoações vizinhas. Sabe-se que durante os séculos XIV e XV, foram mobilizados para este fim habitantes de Pederneira, Cela, Maiorga e Cós, podendo talvez inferir-se que, neste período as águas desta lagoa ainda se aproximavam de povoações do interior, como Cós. Esta obrigação dos moradores dos Coutos abrirem a lagoa manteve-se pelo menos até ao primeiro quarto do século XVII, como se depreende dos seguintes documentos de ANTT-Livro de Privilégios... (1750:fólio 165): • Sentença D’El Rei dada no ano de 1455 contra os moradores dos Coutos, que sejam obrigados a abrir a lagoa da Pederneira quando o Dom Abade mandar28. • Sentença contra os moradores de Évora e Aljubarrota, para que vão abrir a dita Lagoa29. • Mandado do Ouvidor passado no ano de 1618 para os concelhos de Aljubarrota, Évora e Maiorga mandarem abrir a dita Lagoa, [com] pena de mil reis cada pessoa que faltar30. 24 Carta de D. Leonor sobre a contenda sobre as fronteiras do termo de Óbidos com os coutos de Alcobaça AH/HCR – Livro de Registos de Sesmarias, 5/7/1490: fls. 91-98, [apud] Sousa, 1992:63-73 (transcrito em anexo, documento 2). 25 Ordem de Cister, Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, 2.ª incorporação, mç. 1, n.º 1, seg. Coutinho(b), 2020. 26 Quanto à «aberta de meios», explícita na carta de povoamento de 1332, é de supor que se refira ao curso principal do rio (“madre do rio”), designação que, segundo José Lopes Coutinho (b)(2020), aparece citada em algumas demarcações de terrenos, com distinto sentido de valas, esteiros e sarjetas com ele relacionadas. 27 Forais Antigos, nº339, maço 1, nº4, seg. Coutinho(b), 2020. 28 ANTT - Livro 1.º Dourados, fl. 72; e Livro 3.º de Sentenças, fl. 87. 29 ANTT - Livro 6.º Dourados, fl 25 v.º 30 ANTT - Livro 3.º de Sentenças, fls. 90, 91, e 92. 496 Um Mosteiro entre os rios. O território alcobacense No que respeita ao antigo “mar” de Alfeizerão, as informações disponíveis relativas à sua evolução e à recuperação dos campos são ainda vagas e dispersas. Nos primeiros tempos da nacionalidade, o esteiro resultante da foz conjunta dos rios de Alfeizerão e de Tornada permitia ainda o funcionamento conjunto, até inícios do século XVII, de um duplo porto: o porto realengo de Salir e o porto alcobacense de Alfeizerão. Já no século XIV, a construção naval em Alfeizerão era muito intensa31, sendo o máximo da laboração atingido nos séculos XV e XVI (Gonçalves; Silva, 2005:60). Até meados deste último século, chegavam a estacionar 80 navios de alto bordo (Gonçalves, 1989) que utilizavam este abrigo como fundeadouro seguro, e de possível embarque e desembarque de mercadorias (Blot, 2003:218). Este porto, que exportava sobretudo madeira e sal, integrava-se num comércio de cabotagem entre Lisboa e a Galiza, particularmente nos séculos XV e XVI (Coutinho (a), 2015). Mas outras obras hidráulicas houve, além das acções de drenagem e enxugo dos pauis, com vista à valorização agrícola do território: as obras relacionadas com o regadio. Nos coutos de Alcobaça cultivaram-se principalmente cereais, especialmente trigo e, em menor escala, milho-miúdo (também designado por milho-alvo), painço, cevada e algum centeio, para além de olivais, hortas, pomares e linhares (Raposo, 1994). Pedro Martins (Martins, 2015:60,fig.12) expõe numa carta, por ele elaborada, a produção cerealífera dos coutos, no ano de 1439, com base em valores apresentados por Iria Gonçalves (Gonçalves, 1989:77), obtidos a partir do registo de arrecadação do cereal de alguns dos celeiros do mosteiro, num total de 643 moios32. Se bem que o ano a que respeita a produção de cereal possa não corresponder, com rigor, a um ano «normal», esta carta permite-nos comparar produções relativas às principais áreas objecto de trabalhos de saneamento e valorização de pauis, até 1439. Se bem que o trigo seja nela, o cereal dominante na totalidade das áreas dos coutos, tal já não é evidente nas antigas zonas apaludadas. Assim, para Alcobaça (e certamente Fervença) o milho é a cultura dominante, o mesmo acontecendo na zona de Alfeizerão. Em Maiorga, milho e trigo equiparam-se e apenas em Cela, o trigo domina um pouco o milho. O milho, ou melhor os “milhos”, como eram designados na Idade Média o milho-miúdo (Panicum miliaceum L.) e o painço (Setaria italica (L.) P. Beauv.) são culturas de Primavera/Verão para os quais a rega era praticamente indispensável (Raposo, 1994:72), tal como para o linho, hortas, pomares e prados. Quanto ao trigo, centeio, cevada e aveia, culturas de Inverno/Primavera, dispensavam normalmente a rega, excepto em certos anos de menor pluviosidade (Ibidem). A rega por alagamento de terrenos demarcados (leiras), fazia-se usando regadeiras a partir de pequenos açudes nos cursos de água dominantes ou até usando água represada, mediante comportas, nas valas e canais de drenagem, como ainda se podia observar no Paul da 31 D. Afonso IV mandou construir aí as suas galés (Gonçalves; Silva, 2005:59). Nos celeiros apresentados, através dos documentos disponíveis no ANTT, Man. Alc., liv. 14, fl. 327334, vº 347-347 vº 351, 354-357. 32 497 José Manuel de Mascarenhas Cela na primeira metade no século passado (Rau; Zbyszewski, 1949:59). Frequentemente usavam-se condutas feitas com troncos de pinho, conhecidas na região pelo termo de cubos, como já atrás referido, que atravessavam os taludes que delimitavam os canais, permitindo escoar a água para as regadeiras (Valença, 1929) (Fig. 8). Frequentemente utilizava-se também água disponibilizada por represas, charcas ou poços, sendo estes mais frequentes nas várzeas, variando a concepção dos aparelhos de elevação em função da profundidade do lençol freático (Caldas, 1991:194). Linhas de água alimentadas por nascentes naturais foram também utilizadas, se bem que tais emissários fossem pouco abundantes. Segundo Frei Manuel de Figueiredo, o uso de minas de água era quase inexistente, de que resulta “não serem muitas as fontes e só as que bastão para o gado dos Povos que não experimentam falta. As fontes, com que se regam algumas terras, rebentam sem as terem procurado os Lavradores. Todas nos últimos anos secos adelgaçaram na corrente, e muitas secaram de todo, tornando a rebentar; e tomando curso nas Estações invernosas, e assim se conservam experimentando com as estações o aumento, e diminuição, que é comum em todas as fontes” (Maduro, 2013:338). Segundo aquele autor, “nos Campos dos termos de Alcobaça, Cela e Maiorga regam com as águas de uns regaletes, e ribeirões que neles entram. São poucas as terras regadas com águas de fontes” (Maduro, 2013:339). Se as levadas permitiam regar terras situadas a nível inferior, deslocando-se a água por gravidade, era também frequente regarem-se terras localizadas acima do manancial, recorrendo-se a sistemas elevatórios, de natureza muito variada, que podiam ir dos simples baldes33, picotas, roldanas, noras, às rodas hidráulicas verticais passivas (movidas por animais ou pelo homem) ou activas (accionadas por uma corrente de água) (Dias; Galhano, 1986:188) (Caldas, 1991:193). Uma vez que na maioria dos ribeiros, canais e levadas dos campos aluvionares de Alcobaça, a corrente de água seja fraca, devido ao pequeno pendor dos terrenos, as rodas, caso hajam sido utilizadas34, deveriam ser do tipo passivo, accionadas sobretudo pelo homem (Dias; Galhano, 1986:213). Identificação de obras de ordenamento hidráulico na época moderna Com a introdução do milho grosso (Zea mays L.), também conhecido por milhão, milho maís ou milho de maçaroca, assistiu-se a verdadeira revolução agrária e paisagística designada por Orlando Ribeiro por “revolução do milho” (Ribeiro, 1985:299) e que acarretou uma grande expansão dos sistemas de drenagem e de regadio nas áreas aluvionares dos Coutos. Segundo este autor, esta espécie, originária do continente americano, ter-se-ia introduzido em Portugal, em inícios do séc. XVI, pois entre 1515 e 1516 já era conhecida no campo de Coimbra e, em menos de um século terá ganho as terras baixas atlânticas (Ribeiro, 1987:115). Cultura de Verão, 33 34 Método conhecido na região por “bater água a cabaço”. Até agora, não se tem conhecimento de haverem sido encontrados indícios do uso de tais rodas. 498 Um Mosteiro entre os rios. O território alcobacense “sem suplantar outros cereais, avantajara-se a todos onde as condições ecológicas favoreciam a rega de abundância” (Ribeiro, 1885:297). A sua introdução foi acompanhada de uma maior complexidade e expansão da rede capilar de valas e enguieiros para apoio ao regadio daquela espécie, consociada em geral com o feijão-branco e, mais tarde, na segunda década do século XIX, para alimentação dos canteiros de arrozais da Quinta do Campo e terras de Alfeizerão (Maduro, 2013:320). Campos da Pederneira Relativamente aos séculos XVI e XVII, dispõe-se sobretudo de referências à manutenção de abertas e testadas, o que se explica pelo facto de o mosteiro ter perdido muito da exploração directa do seu domínio, e ainda pela instituição da Comenda. Sabe-se, no entanto, ter sido construída uma obra de importância estruturante do território, em meados do século XVI, durante o abaciado do Cardeal-Infante D. Henrique (Maduro, 2013:352) 35. Trata-se da alteração do percurso do Rio de Cós e do seu tramo seguinte, designado por Rio do Casal da Areia36, cujo traçado inicial se confundia com o do Rio Seco (ou da Meirinha) que atravessava os campos de Maiorga, passando junto às Quintas do Pinheiro e da Esperança, indo confluir no Rio Alcoa (ou Abadia), de início37, e posteriormente no Rio do Meio, após a sua abertura (Ibidem). Como este rio resultou da confluência, próximo da antiga Ponte da Torre, de vários cursos de água (Rio Seco, Rio de S. Vicente, Aberta Nova e outras), como se pode observar num mapa do século XVIII (Rego et al., 1786) (Fig. 9), o seu caudal teria com frequência sofrido grandes e bruscas variações, dando origem a frequentes cheias nos campos de Maiorga, como sugerido naquele mapa. Esta terá sido uma das principais razões para que, em meados do século XVI, se tenha desviado o traçado do leito do Rio do Casal da Areia, passando a constituir um canal que, após a confluência da Ribeira de Fanhais, era designada por Vala do Guarda Mato e, num tramo mais a jusante, por Rio do Cardeal38. Esta vala é conhecida actualmente por Vala Velha ou por Rio da Areia, seguindo a meia encosta cerca de Valado dos Frades (Fig. 10), encontrando-se, numa fase inicial, com o Alcoa após este ter recebido as águas do Rio do Meio39. Posteriormente, o Rio da Areia passou a confluir com o Rio do Meio, próximo das pontes da Barca40, e o emissário daí resultante, após recepção da água da Levadinha, 35 Resposta dada por Frei Manuel de Figueiredo ao inquérito agrícola promovido pela Academia Real das Ciências de Lisboa no ano de 1787 sob o título “Perguntas de Agricultura dirigidas aos Lavradores de Portugal”. 36 Que recebia também a água dos rios de Fanhais e de Alpedriz. 37 O rio da Areia, ou melhor, o rio de Cós, desaguaria no Alcoa, próximo de Fervença, como se deduz da interpretação aerofotográfica. 38 Ver Rego et al., 1786 (Fig. 9) 39 Natividade, 1960:107. 40 ca. da actual Ponte da Barquinha. 499 José Manuel de Mascarenhas 500 Um Mosteiro entre os rios. O território alcobacense Ampliação da Fig. 9 (pág. seguinte) 501 José Manuel de Mascarenhas Fig. 9 - [Romão José do Rego; Pedro Joaquim Xavier & Cipriano José da Silva] - Carta Hidrographica do Rio do Cazal da arêa Com o plano Hidraulico do mesmo Rio. Lisboa, 1786. Fig. 10 - Aspecto da Vala Velha ou Rio da Areia, cerca de Valado dos Frades, notando-se a sua localização a meia encosta, e um pequeno açude. Autor: José Manuel de Mascarenhas, 1994. 502 Um Mosteiro entre os rios. O território alcobacense passou a encontrar o Alcoa (ou Abadia)41 já próximo da sua foz (Fig.13). Através desta obra, criou-se uma vala receptora de parte da bacia do Rio do Meio, a qual passou a confluir naquele, já próximo do mar, permitindo assim um melhor controlo dos caudais e, por conseguinte, das cheias42. A partir da segunda metade do século XVI, assistiu-se a uma dinâmica aparentemente mais rápida e decisiva da transformação física dos campos da Pederneira e de Alfeizerão em resultado do profundo assoreamento causado principalmente pelas grandes massas de aluviões transportadas do interior para o litoral, (resultantes da erosão e da sedimentação), mas também pela deriva marítima das areias de Norte para Sul, ao longo da costa (Martins, 2014:201) (Fig 11). Fig. 11 - Puerto y Villa da Pederneira (Pedro Teixeira Albernaz, 1634), in Marías & Pereda, 2003. Nesta gravura, observa-se que a foz do Alcoa se situava, junto do promontório da Nazaré e que a maior parte da área da antiga lagoa da Pederneira já se encontrava ocupada por pauis. 41 Resposta dada por Frei Manuel de Figueiredo ao inquérito agrícola promovido pela Academia Real das Ciências de Lisboa no ano de 1787 sob o título “Perguntas de Agricultura dirigidas aos Lavradores de Portugal”. 42 Não nos parece assim de aceitar que se tenha assistido no decurso dos séculos XVI e XVII a uma ausência de importantes obras, o que teria significado “perca do domínio técnico da hidráulica dos monges de Cister”, tal como afirma João Pedro Cordeiro (2015:79). 503 José Manuel de Mascarenhas Em documentos de finais do século XVII, aparece citada, com frequência, a figura de Mestre das Valas. Num contrato realizado em 1670, entre o Mosteiro e a Câmara e Povo de Maiorga, aquela instituição abacial ficaria obrigada a tapar os boqueirões que se abrissem no Rio da Abadia e no Rio da Meirinha e a pagar ao Mestre das Valas que seria nomeado pela Câmara de Maiorga. O Povo, por seu lado, seria obrigado a abrir as testadas “tudo alvidrado pelo Mestre”43. Uma das despesas mencionadas no Livro da Celeiraria, constante da Folha deste Real Mosteiro de Alcobaça...(1690)44, refere-se ao ordenado do “Mestre das Valas da Maiorga”. No Livro do Tombo da Quinta do Campo (Ribeiro, 1783:6[5]) refere-se João Duarte como Mestre de Valas do lugar de Valado. Pouco se conhece sobre a origem desta figura de “Mestre das Valas” e sobre as suas prerrogativas. Em documento do séc. XV, relativo ao Paul de Cornaga (Tornada) já se faz referência a tal entidade cuja existência perdurou, pelo menos, até 25 de Março de 1940, data em que se conhece uma exposição dirigida ao engenheiro chefe da Direcção Hidráulica do Tejo (MOPC), assinada pelo Mestre das Valas de Valado45 46. A partir do século XVII e sobretudo ao longo do século XVIII, a área correspondente ao antigo “mar” da Pederneira irá beneficiar de importantes obras hidrotécnicas que traduzem um longo e contínuo esforço dirigido para a drenagem e valorização dos campos47 e que se materializou no desvio de rios e ribeiras, na instalação de valas para regadio e engenhos, e na construção de comportas para protecção dos campos contra as marés (Maduro, 2019:210,211) (Maduro et al., 2017:95-126). Particular relevância assumiram as obras de manutenção dos emissários que consistiram, entre outras, na limpeza de rios, no desentupimento de valas de drenagem e na condução das águas para as culturas e engenhos, além de permanentes trabalhos para a abertura da barra da lagoa (Ibidem)48. Em 1733, tendo em vista alterar o traçado do leito do Rio do Meio, o Mosteiro fez um contrato com a câmara e o povo de Maiorga para que o novo leito “seja aberto pelas Lagoas ou Pego das Nogueiras e iria encostado à mata da Quinta da Torre e, pelo alto, até às pontes de N.ª Sr.ª da Piedade”, passando este troço do rio a ser conhecido por Rio Novo49 50. É possível que a abertura do Rio do Meio, destas pontes para montante, se tenha iniciado durante o abaciado de Frei Bernardo de Castelo Branco (1723-1725) (Maduro, 2019:Quadro 2), tendo esta obra sido do interesse de 43 ANTT - Livro de Privilégios..., 1750: fólio 276. (Vd. Webgrafia) ANTT - Folha deste Real Mosteiro de Alcobaça..., 1690: Fls. 22r-37r. Publicado em 29/04/2020, por José Lopes Coutinho. (Vd. Webgrafia) 45 AAPA - Portugal, Direcção-Geral dos Serviços Hidráulicos e Eléctricos, Direcção Hidráulica do Tejo Ofício Nº. 120-1º Lanço......, 25 de Março de 1940. (Vd. Estudos) 46 Em 1947, esta figura, já aparece substituída pela de Chefe do 1º Lanço de Conservação (Portugal, Direcção-Geral dos Serviços Hidráulicos e Eléctricos, ...,1947. (Vd. Fontes Impressas) 47 Esforço que assumiu particular importância com a introdução do maiz americano (Maduro, 2019:211). 48 António Maduro (2019) apresenta, em quadro, uma sinopse das principais acções executadas entre inícios do século XVII e meados do século XVIII. 49 Constitui actualmente o troço superior do Rio do Meio. 50 ANTT - Livro de Privilégios..., 1750: fólio 276. (Vd. Webgrafia) 44 504 Um Mosteiro entre os rios. O território alcobacense todos os confinantes, uma vez que ficavam isentos das valagens no Rio Velho, e como o Rio Novo ia por terras do Mosteiro, cabia a este os encargos das valagens (Ibidem). No decurso do século XVIII, “as zonas húmidas adjacentes à Lagoa foram drenadas e transformadas em terrenos agrícolas (várzeas e campos)” (Henriques, 2013:441), mas deveu-se sobretudo à acção do marquês de Pombal, através dos seus laços de parentesco com o Abade Frei Manuel de Mendonça, “o estudo do saneamento dos campos de Alfeizerão e Valado, com a derivação urgente dos rios, construção das portas de maré, a forma, enfim, de transformar os grandes pauis e campos de cultura” (Natividade, 1960:54)51. Em 1770, novo contrato foi assinado, entre o Mosteiro e a população de Maiorga, para a abertura de uma vala correspondente a um novo percurso do Rio Novo, que então passou a ser conhecido por Rio do Meio, por passar entre o Rio Alcoa e o Rio da Areia (Natividade, 1960:107)52. Durante o reinado de D. José, e a pedido do Mosteiro de Alcobaça, foi mandado executar ao engenheiro Bento de Moura Portugal um mapa da região em análise. Este técnico declarou que “as humidades do campo se evitariam com valas largas e pouco profundas” e recomendou a abertura de uma vala no Paul da Cela, que recebesse as águas da Fonte Figueira e de Cela Velha e que confluísse com o Rio Alcoa, abaixo das pontes da Barca, construindo-se nesse local portas de maré (Maduro, 2013:350)53. Este projecto, todavia, não se chegou a concretizar devido à morte do rei e à queda do marquês de Pombal. A urgência de obras hidráulicas nos campos de Valado/Maiorga, de São Martinho/Alfeizerão e da Mata era tal que D. Maria I nomeou uma comissão técnica, orientada pelos engenheiros Isidoro Paulo Pereira e Joaquim de Oliveira, tendo como adjuntos Manuel Mendes, José de Oliveira Baena e António de Sousa, para o levantamento topográfico destes campos, onde se descriminassem as obras efectuadas e a executar54(Cordeiro, 2015:83) . Estes técnicos elaboraram um relatório, datado de 29 de Junho de 1779, acompanhado de um mapa55, no qual se concluiu que a obra de maior utilidade para o Campinho56 seria a instalação de uma nova vala de 620 braças57 para o restabelecimento do escoamento necessário, já que o local de confluência da Vala Velha (ou Rio da Areia) no Rio da Abadia (Alcoa) se encontrava entupido. “Com a Vala Nova58 a fará desaguar mais abaixo no mesmo rio dando faculdade de 51 Os trabalhos de canalização do rio Alcoa, nos campos de Maiorga e de Valado, aparecem já mencionados nas citadas Memórias Paroquiais de 1758. 52 Actualmente, o rio do Meio encontra-se com o rio da Areia, próximo da Ponte da Barquinha, como atrás referido, antes de descarregarem as suas águas no Alcoa. 53 Resposta dada por Frei Manuel de Figueiredo ao inquérito agrícola promovido pela Academia Real das Ciências de Lisboa no ano de 1787 sob o título “Perguntas de Agricultura dirigidas aos Lavradores de Portugal”. 54 O recurso a entidades exteriores à Ordem, significará, provavelmente, para esta época, perda de domínio hidrotécnico, como referido por João Pedro Cordeiro (2015:81). 55 Este mapa, actualmente desaparecido, resultou de levantamentos topográficos dos campos (Cordeiro, 2015). 56 Campos localizados grosso-modo entre o Monte de S. Bartolomeu, a Poente, a Vila de Valado de Frades e o Rio Alcoa, a Sul, segundo informação obtida na Associação de Regantes de Cela. Também designados por Campos da Levadinha. 57 1364 m, considerando que uma braça equivale a 2,20 m. 58 Também designada por Veia Nova. 505 José Manuel de Mascarenhas se poder rebaixar aquelas dentro do Campo e Paul” (Natividade, 1960:109, cit. por Cordeiro, 2015:83)59. Neste relatório de 1779, propôe-se, entre outras medidas, a instalação de uma porta de maré na Vala (ou Veia) Nova e de uma ponte na estrada da Barquinha (Ibidem). Teria esta porta sido construida no local da que ainda hoje se pode observar na confluência da Veia Nova e da Levadinha (Fig. 12). Certamente com o intuito já expresso de um melhor controlo dos caudais e das cheias, propôs-se também que a Veia Fig. 12 - Porta de maré, imediatamente a jusante da confluência Nova desaguasse no Rio Aldo Rio da Levadinha (à esquerda) e da Veia Nova (à direita). coa, abaixo do seu ponto de Provável reconstrução de 1962. Autor: José Manuel de confluência com a Vala Velha Mascarenhas, 2020. (Natividade, 1960:107). Actualmente o canal resultante da confluência da Veia Nova e da Levadinha vai desaguar no Rio da Areia, a jusante do ponto em que o Rio do Meio conflui com ele (Fig.13). Fig. 13 - Imagem satélite (Google Earth / Data SIO, NOAA, U.S. Navy, NGA, GEBCO) das zonas do Campinho e de Algerifeira, 2020. Legenda: 1 - Rio Alcoa; 2 - Rio do Meio; 3 - Rio da Areia; 4 - Rio da Levadinha; 5 - Veia Nova; 6 Porta de Maré; 7 - Ponte da Barca; 8 - Porto de Abrigo da Nazaré; 9 - Nazaré; 10 - Pederneira. 59 Actualmente este campo é drenado pela Vala Nova (também designada porVeia Nova) e pela Levadinha (Cordeiro, 2015). 506 Um Mosteiro entre os rios. O território alcobacense No mapa de 1786, a que já atrás se fez referência60 (Fig.9), indica-se que neste ano a água do Rio da Areia tomou o leito do Rio Seco (ou da Meirinha)61 e não o do Rio do Cardeal, vala que havia sido aberta expressamente para a sua passagem. Segundo Frei Manuel de Figueiredo, quando esta vala se encontrava muito colmatada ou entulhada, a água do Rio da Areia tinha tendência a retomar a “sua velha corrente” (Maduro, 2013:352)62 (Fig. 14). Um dos aspectos mais enigmáticos levantado pela análise do já referido mapa de 178663, respeita a uma vala de derivação da Vala do Guarda Mato64, conhecida por Espalha Águas, aberta como solução de recurso, derivada do facto do Rio da Areia se encontrar obstruído num local a jusante daquele ponto de derivação. A sua construção, da autoria de Frei Manuel Delgado65, teria tido Fig. 14 - Imagem satélite (Google Earth / Data SIO, NOAA, U.S. Navy, NGA, GEBCO) dos Campos de Maiorga, 2020. Legenda: 1 - Valado dos Frades; 2 - Maiorga; 3 - Póvoa de Cós; 4 - Rio Alcoa; 5 - Rio do Meio; 6 Rio das Tábuas; 7 - Rio Seco ou da Meirinha; 8 - Aberta Nova; 9 - Rio de S. Vicente; 10 - Vala das Ferrarias; 11 - Vala do Paul; 12 - Vala do Casalinho; 13 - Rio da Areia. 60 Rego et al., 1786. Como mostra o mapa de 1796, este rio passava nas proximidades das quintas do Pinheiro e da Esperança. 62 No decurso de um reconhecimento recente realizado nos campos de Maiorga, verificou-se que o Rio do Meio, próximo da Quinta do Pinheiro, se subdivide em três valas que, de acordo com informações prestadas pelo agricultor local, Sr. Fernando Heitor da Luz, têm as seguintes designações: Vala das Ferrarias (principal); Vala do Paúl e Vala do Casalinho (Fig. 14). O emissário referido (Rego et al., 1786) por Rio Seco deve muito provavelmente corresponder à Vala das Ferrarias e ao Rio da Meirinha, troço superior do Rio do Meio, na sua sequência para jusante. 63 Rego et al., 1786. 64 Tramo do Rio da Areia. 65 Frei Manuel de Figueiredo e Frei Manuel Delgado aparecem, em 1782, como Procuradores nos autos de demarcação e medição das terras da Quinta do Campo (Ribeiro, 1782:1[1]). 61 507 José Manuel de Mascarenhas lugar durante o abaciado de Frei Manuel de Mendonça (1768-1777)66. Durante o triénio de Frei Alexandre de Vasconcelos (1780-1782), realizaram-se novos trabalhos para a reabertura do Rio da Areia e, se bem que este corresse a uma cota superior ao campo de Maiorga, quase todos os anos colapsava, em virtude da abertura, pelo povo, na sua mota (ou cômoro), de “boqueirotes” para regadio; de obstruções causadas pela acumulação de areias e de detritos vegetais; e de estragos causados pelas cheias67. Tendo havido uma quebra no cômoro do Rio, pouco após a execução do último trabalho, e tendo os possuidores das terras alagadas apresentado uma queixa à Rainha D. Maria I, solicitando também o Mosteiro que o Rio fosse re-instalado no curso que lhe fez dar o Cardeal Infante D. Henrique, acabou por ser incumbido, para a resolução do problema, Bernardo José de Sousa Guerra, Superintendente dos Régios Pinhais de Leiria, o qual nomeou três engenheiros, como assistentes, que mapearam o curso do leito do rio, além de outras acções (Ibidem)68. No período 1814-30 assistiu-se a grandes obras para abertura da foz do Rio Alcoa, cujo percurso até ao mar passou a ser mais recto. mas sem que fosse possível valorizar agricolamente toda a área da antiga lagoa (Natividade, 1960:108 e 109)69. A necessidade de um permanente esforço para a abertura da foz da antiga lagoa da Pederneira adquiriu particular relevância em finais do séc. XVIII / inícios do séc. XIX, o que implicou a realização de obras significativas. O rio Alcoa desaguava em curva sinuosa, ficando o seu leito frequentemente obstruído em razão da deslocação de areias marítimas (Cordeiro, 2015:85), o que contribuia para o frequente encharcamento de áreas de campo, em especial no Paul da Cela (Casimiro, 1940). Um dos traçados mais problemáticos que o leito do rio tomou aconteceu em 1814, havendo este adoptado um percurso irregularíssimo e tortuoso, através do areal da costa, quase atingindo a povoação da Nazaré (Loureiro, 1904). Por tal razão, o corregedor de Ourém, Rodrigo de Sá Godolfim, fez abrir nesta data uma nova barra, tendo-se fixado as margens do rio com diques longitudinais. Porém, esta obra rapidamente entrou em ruína, como consta de uma vistoria de Abril de 1817, pelo que foi ordenado ao referido corregedor a abertura de nova barra, projectada a SW da primeira, e de modo que “o rio em baixamar saísse perpendicularmente à costa, ficando contido entre dois diques que o não deixassem desviar da direcção que lhe fosse dada” (Loureiro, 1904:260). Mas como parte das obras executadas tenham de novo sido destruídas pelo mar, tudo deveria ser feito novamente, com uma construção mais cuidada e materiais de melhor qualidade, segundo um relatório de Janeiro de 1819, da 66 ANTT - Livro de Privilégios..., 1750: fólio 276 v. ANTT - Livro de Privilégios..., 1750: fólio 276 v. 68 Tudo leva a crer que os três engenheiros sejam Romão José do Rego, Pedro Joaquim Xavier e Cipriano José da Silva, autores da Carta Hidrographica do Rio do Cazal da arêa com o plano hidraulico do mesmo rio, Carta de 1786 que se tem vindo a analisar. 69 Em razão das pequenas diferenças de nível, da falta de valagens metódicas e da ausência de diques para impedir o avanço das marés. 67 508 Um Mosteiro entre os rios. O território alcobacense autoria do coronel Luís Gomes de Carvalho (Ibidem)70. Neste relatório propuzeram-se dois tipos de projectos: “ou a restauração da barra actual (entre as que foram abertas em 1814 e 1818), construindo-se motas no rio, muito especialmente do lado de W. ou de Aljarifeira71, ou abrindo um leito novo, através destas terras, e directo e perpendicular à costa...” (Loureiro, 1904:263). A conveniência de construção de duas portas de maré no antigo leito do rio, próximo da ponte da Barquinha, aparece também referida neste relatório, bem como a necessidade de abertura de um novo leito, a partir da confluência dos Rios Alcoa e da Areia72, no projecto da nova barra. O projecto de Gomes de Carvalho foi posto em obra, a partir de 1822, sob a direcção do major Baltazar António Facão73 o qual, entre 1824 e 1826, foi substituído pelo major João Carlos de Faria, não se sabendo em que consistiram os trabalhos realizados74 (Loureiro, 1904). É de crer que a foz do rio tivesse continuado a divagar na praia e que os campos tivessem ficado ao abandono, sobretudo após a extinção das ordens religiosas, fazendo-se imperfeitamente o esgoto das terras, “e só à custa dos esforços particulares dos proprietários, que ficariam com as propriedades por agricultar se não tomassem a deliberação de à sua custa conservarem as respectivas valas de enxugo desobstruídas, se fizeram ali algumas obras” (Loureiro, 1904:266). De realçar, nunca ter sido possível, nesta época, valorizar agricolamente a zona do paul da Algerifeira, entre a Ponte da Barquinha e a foz, devido principalmente a “diferenças de nível muito pequenas, falta de valagens metódicas, ausência de diques para impedir o avanço das marés” Fig. 15 - Campo da Algerifeira, notando-se áreas encharcadas . Autor: José Manuel de Mascarenhas, 2019. (Natividade, 1960:109). “A escassa diferença de nível dos campos em relação ao mar constituiu o maior obstáculo ao aproveitamento agrícola da várzea da Nazaré” (Cordeiro, 2015:85) (Fig.15). 70 A barra, aberta em 1814, por 11 ou 12 vezes se tapara até 1818, mantendo-se por vezes fechada durante 8 a 10 dias, havendo geralmente necessidade de a abrir três ou quatro vezes por ano (Loureiro, 1904:261). 71 ou Algerifeira. 72 em linha recta e perpendicular à costa. Este canal terminal, resultante da confluência de vários rios na zona da Ponte da Barquinha, era denominado Rio da Pederneira (Loureiro, 1904:267). 73 entre 1822 e 1824, e entre 1826 e ? 74 E se as portas de maré terão sido construídas. 509 José Manuel de Mascarenhas Campos de Alfeizerão À medida que foi evoluindo o processo de assoreamento do sistema lagunar de Alfeizerão, comprometendo a navegabilidade, foram-se incrementando obras de saneamento, através da abertura de valas de desvio e canalização de ribeiras (Rau, 1984:62)75. Há referências de que na primeira metade do século XVII, terão tido lugar trabalhos de abertura e canalização de rios e valas, nos campos de Alfeizerão e S. Martinho, sem que, todavia, se conheça a extensão e volume de tais trabalhos que foram sobretudo custeados pelos enfiteutas do Mosteiro de Alcobaça. Sabe-se que em finais de século XVI / inícios do seguinte, o porto de Alfeizerão já se encontrava praticamente inoperacional, devendo o esteiro através do qual os barcos acediam a este porto se encontrar já muito assoreado e dificilmente transitável76 Fig. 16 - Barra do Porto de S. Martinho-do-Porto (Pedro Teixeira (Fig.16). Albernaz, 1634), in Marías & Pereda, 2003. Nesta gravura, Assim, em 1616, o rei representa-se a concha e vila de S. Martinho, bem como o esteiro D. Filipe II, ordenou ao Juiz através do qual pequenas embarcações acederiam ainda ao porto de de Fora de Óbidos que fiAlfeizerão, e que desaguava a meio da concha, aproximadamente. 75 Na extensa área aluvionar, aproximadamente definida pelo triângulo S. Martinho – Alfeizerão – Tornada, reconheceram-se, através da foto-interpretação, obras hidráulicas de grande vulto. Os rios de Alfeizerão e da Tornada apresentam um percurso artificial e canalizado, a jusante das suas povoações. O percurso inicial destes rios pode deduzir-se a partir da referida foto-interpretação e da compreensão topográfica da zona (Fig.1). Além dos supracitados canais, observam-se muitos outros, de importância menor, relacionados com a drenagem dos campos ou para fins hidro-agrícolas. 76 José Lopes Coutinho (2020)(c) apoiando-se na descrição do Mosteiro, de Frei Manuel dos Santos (1672-1740) (ver Santos, 1979), estima que o fim do porto de Alfeizerão se tenha dado nas primeiras décadas do século XVII, o que se coaduna com a data das primeiras instruções reais (1616) para a abertura do Rio de Alfeizerão. 510 Um Mosteiro entre os rios. O território alcobacense zesse abrir o Rio de Alfeizerão (Fig.1) (Fig.17)77, obras que provavelmente terão ficado inadequadas, ou por completar ou que, por falta de manutenção, tenham ficado inviabilizadas devido a entulhamento e acumulação de sedimentos, já que em 1649, D. João IV passou um alvará para se mandar abrir os rios e valas de Alfeizerão e S. Martinho78, e em 1650, através de outro alvará, este soberano ordenou que em cada ano se lancem oito mil reis de fábrica79 pelos interessados para a “abertura e conservação” do Rio de Alfeizerão, sob a superintendência dos Ouvidores dos Coutos80. O seu primitivo leito (1616?) terá sido abandonado, o que permitiu dar-se apoio, com maior eficácia às marinhas de sal das proximidades, que se encontravam a laborar desde pelo menos o século XIII81. A canalização extensiva do Rio da Mota82, constituiu outra obra estruturante do território83 e ter-se-ia iniciado em 1680, na sequência de uma ordem do Regente D. Pedro II a um enfiteuta para que procedesse à abertura daquele rio, no seu campo e prazo de Alfeizerão84. Tais obras terão ficado rapidamente inoperacionais já que, em 1685, D. Pedro II, através de um alvará de 10 de Julho, ordena ao Corregedor da Comarca que promova a abertura do Rio da Mota (ou Rio da Matta), como consta na Chancelaria de D. Pedro II85 (Coutinho, 2015). Neste alvará real, refere-se claramente que, por falta de manutenção, havia anos em que o rio causava grandes danos nos campos. Sempre que era necessário abrir os rios e valas de Alfeizerão e S. Martinho, havia, pois, o costume de se recorrer ao Ouvidor, como Superintendente, para mandar 77 ANTT - Livro de Privilégios ..., 1750:fólio 274 (Livro 8 de Sentenças, fl.372; no fl.371, está um assento que disso se fez na Câmara). 78 ANTT - Livro 5.º de Sentenças, fl.190. 79 “Fábrica” surge-nos nesta obra em mais de um sentido, pelo que transcrevemos a sua definição, recolhida no dicionário de António de Moraes Silva: a estrutura, construção, organização (…) Artifício, trabalho, lavor (…) Fábrica da sacristia ou da igreja: as rendas aplicadas às despesas da sacristia e reparos da igreja. O necessário para a construção do edifício (…) A gente, animais de serviço, máquinas, provimentos e etc, para alguma obra, empresa, facção (…). “Fábricas”: ideias, desenhos, traços, projetos (SILVA, António de Moraes - Diccionario da Lingua Portugueza, Tomo Segundo, Tipografia Lacerdina, Lisboa, 1813). 80 ANTT - Livro de Privilégios ..., 1750:fólio 274 v (Livro 33 de Sentenças, fl.155). 81 Existem referências a elas nos forais de 1332, 1442 e 1514. Em meados do século XIII, houve salinas implantadas nas margens da lagoa de Alfeizerão em locais próximos das actuais localidades de Quinta do Mota, Mouraria, Casais dos Morgados, Alfeizerão, Casal das Marinhas e Salir (Henriques, 1996:460, Figs.II-158, 159, 160). Nesta época conhecem-se ainda marinhas situadas numa ínsua, entre o Rio de Tornada e o esteiro de Plágio Fala, e no século XV outras marinhas foram construídas (Rau, 1984:62, 63). Na zona de S. Martinho do Porto existiam também salinas exploradas pelo Mosteiro de Alcobaça (Gomes, 1996:433). As salinas da lagoa de Alfeizerão acabam por ser vítimas do processo de recuo do mar, dado que “em 1586 ainda laboravam 72 talhos, na quinta de Manuel Pedro da Silva da Fonseca, e por meados do século XVIII já não restavam vestígios da actividade” (Maduro, 2013:349). 82 Designado actualmente por Rio de Tornada. Alguns autores designam-no também por Rio de Salir, sobretudo no seu tramo final e, esporadicamente, por Rio da Mata. 83 Já existem referências a trabalhos de canalização do Rio da Mota, em1288, como atrás referido, se bem que tenham ocorrido numa área relativamente restrita. 84 ANTT - Livro de Privilégios ..., 1750 fólio 274v. 85 ANTT - Chancelaria de D. Pedro II, liv, 23, fl. 178. 511 José Manuel de Mascarenhas Fig. 17 - Imagem satélite (Google Earth / Data SIO, NOAA, U.S. Navy, NGA, GEBCO) dos Campos de Alfeizerão e Áreas Envolventes, 2021. Legenda: 1 - Rio de Tornada (ou da Mota); 2 - Rio de Alfeizerão; 3 - Rio da Amieira; 4 - Rio da Palhagueira; 5 - Vala Real; 6 - Vala Real dos Medros; 7 - Lagoa do Paul de Tornada; 8 - Alfeizerão; 9 - S. Martinho do Porto; 10 - Salir do Porto; 11 - Tornada; 12 - Casais dos Morgados; 13 - Vale de Maceira; 14 - Serra do Bouro; 15 - Charnais; 16 - Vale do Paraíso; 17 - Valado de Santa Quitéria. fazer a obra, e a finta do custo dela pelos interessados, sem que nunca o Mosteiro devesse ser fintado86. Na verdade, “conforme as Cartas de Povoação das vilas de Alfeizerão e S. Martinho, e aos aforamentos e emprazamentos que depois disso o Mosteiro fez de vários herdamentos e juncais que constam do Livro 2.º da Fazenda, são os enfiteutas obrigados a abrir os rios, valas e sarjetas, e trazerem as terras bem cultivadas” 87 88 . Assim, no ano de 1746, na abertura que o Ouvidor, como Superitendente, mandou fazer, procurou-se fintar o Mosteiro, tendo este reagido alegando tal facto, e uma vez ouvidas as Câmaras de Alfeizerão e S. Martinho se considerou que não era obrigado a financiar as ditas aberturas89 (Ibidem). Um dos documentos desta época que mais informações nos fornece sobre o quadro de referência 86 Tributado. ANTT - Livro de Privilégios., 1750: fólio 274. 88 Não se conhece a qualidade e a extensão das obras de canalização do Rio de Alfeizerão, na primeira metade do século XVII, já que este rio não aparenta estar canalizado no Mappa Topographico da Concha e Barra de S. Martinho, alias Salir ...(Stephens, Outubro de 1794), o que é corroborado no projecto de 1799, de Reinaldo Oudinot e José Auffdiener. 89 ANTT - Livro de Privilégios., 1750:fólio 274 (Livro 32 de Sentenças:24). 87 512 Um Mosteiro entre os rios. O território alcobacense Fig. 18 - Planta de Alfeizerão e sua envolvente (ca. 1650)(vd. nota 90, e Biblioteca Nacional de Portugal ..., em Fontes Manuscritas). em meados do século XVII, respeita a já citada Planta de Alfeizerão e sua envolvente (ca. 1650)90 (Fig.18). Nesta planta representa-se além do desvio do Rio da Mota (ou Rio de Tornada), efectuado em 1288, e a que já atrás se fez alusão, a estrutura dos rios e esteiros que se dispunham na quase totalidade entre dois locais fulcrais: Bocal d’agoa doce, no canto sudoeste, aonde confluem vários esteiros com o Rio da Mota, próximo da sua foz, e o Bocal dagoa [?]91, a sul e nas proximidades de Alfeizerão92, um dos resquícios do antigo “mar” interior, e que receberia água do Rio Grande (também designado por Rio de Alfeizerão93), de entre outros, estando muito provavelmente na origem da Lagoa Limpa, que se situava a um quarto de légua para sul de Alfeizerão (Romão, 1758?)94. Deste Bocal dagoa [?] partiam os cinco seguintes emissários: Rio do 90 BNP - Planta de Alfeizerão e sua envolvente (c. 1650). Biblioteca Nacional de Portugal, Colecção Códices Alcobacenses, cota:CO - Cx. 6-I. Desconhece-se o autor desta Planta. 91 Sintagma duvidoso (expressão difícil de descifrar). 92 Entre Alfeizerão e a Quinta de Pedro da Silva. 93 ou, incorrectamente, por Rio de Charnais. 94 Segundo o Pe. Luiz Cardoso (1747:278-279), nesta Lagoa criavam-se sanguessugas muito apreciadas pelos médicos da época. 513 José Manuel de Mascarenhas 514 Um Mosteiro entre os rios. O território alcobacense Ampliação da Fig. 18 (pág. anterior) 515 José Manuel de Mascarenhas Malheiro (aberto entre 1625 e 1628); Rio do Cômaro da Vilhena; Rio da Cancela do Campo; Rio que abriu Frutuoso de Campos, em 1650; rio sem nome que confluía no Esteiro da Lama. Além destes, o Esteiro da Lama, proveniente da zona da Quinta dos Ratos e afluente do Rio da Mota, após ter recebido a água do Esteiro da Paviarca95, aparenta ter sido um dos mais importantes. Mas uma questão permanece em aberto: se bem que tenha havido decisões reais para a abertura do Rio de Alfeizerão em 1616, 1649 e 1650, como atrás referido, não existe na planta qualquer referência a este rio pelo que a sua abertura efectiva terá sido posterior à data de feitura deste documento cartográfico, i.e. cerca de 1650. Se bem que haja informações sobre a abertura de valas nos campos de Alfeizerão no triénio de Frei Luís Coutinho (1678-1681) (Maduro, 2019:Quadro 2), um grande e contínuo esforço para a abertura do Rio de Alfeizerão, de acordo com despesas dispendidas pelo Mosteiro, terá tido lugar entre meados do século XVII (triénio do Abade Frei João Osório, 1684-1687) e inícios do século XVIII (triénio do Abade Frei Gabriel da Glória, 1702-1705), período que se estende pela vigência de sete abades trienais (Coutinho, 26 de Julho de 2020, com base no Livro das Folhas de Receita e Despesa ...). Nesta obra refere-se também que no referido triénio do Abade Frei João Osório se declarou que o Corregedor da Comarca, além de Juiz Comissário, foi executor da abertura do Rio de Alfeizerão, e que no triénio seguinte se deviam ao Mosteiro fundos emprestados para a “abertura do rio que se abriu pelas terras de Silvério da Silva Fonseca am Alfeizerão...” (Ibidem)96. Será que tal abertura terá tirado proveito de de algum dos leitos pré-existentes? Na já referida planta de cerca de 1650 (Fig. 18), pode ler-se num determinado sector: “Destas terras emtre estes dous esteiros da Lama e Paviarca, se meteo de posse dellas Silverio da Silva da Foncequa; que seu pay, nem sua may Donna Michaella da Silva, numqua as pessuyrão”. Num alvará de D. Pedro II, de 9 de Outubro de 1698, ordena-se a Manoel Lopes Madeira, Provedor da Comarca de Leiria, que fizesse abrir de novo o Rio de Alfeizerão, já que este se encontrava incapaz de reparação, e “na fórma que sempre se observára, começando de escoante das aguas para cima”97 98. Dá-se assim a entender que existiria já, em data anterior a 1698, um Rio de Alfeizerão, se bem que não apareça identificado, com tal designação, na planta de ca. 1650, podendo ter correspondido a uma das valas ou esteiros ali indicados. A abertura deste novo rio poderá, assim, ter-se iniciado num ponto da sua confluência com o Rio da Mota99, não sendo de excluir poder ter tirado proveito, mais a montante, 95 Este topónimo ainda vingava em 1931, sob a corruptela “Padiarca”, como se verá mais à frente. Segundo Maria Virgínia Henriques (2005:39), o traçado dos Rios de Afeizerão e de Tornada foi alterado em finais do século XVII, e “a secção inferior destes reunida num único colector, para desaguar a Sul, substituindo o anterior traçado sinuoso. Assim, concentrando o caudal e diminuindo o índice de sinuosidade, o escoamento era mais eficaz, diminuindo o assoreamento e a migração dos canais entre as dunas”. 97 Livro LIII da Chancelaria, fol.52, 1698:417. 98 Em 26 de Fevereiro de 1700, trabalhava-se ainda na abertura do Rio de Alfeizerão, como referido na resposta do Rei a uma petição apresentada pelos moradores de Alfeizerão (ANTT - Chancelaria de D. Pedro II, livro 26, fólios 98v e 99). 99 Como os leitos de muitas valas ou esteiros indicados na planta de ca. 1650 confluem no Rio da Mota, tudo parece apontar para que o novo Rio de Alfeizerão também confluísse naquele rio, desde a data da sua abertura. 96 516 Um Mosteiro entre os rios. O território alcobacense da aberta de uma das valas pré-existentes que atravessando terrenos de Silvério da Silva Fonseca, comunicavam com o Bocal dagoa, nas proximidades de Alfeizerão100. Na planta de ca. 1650 que tem vindo a ser citada, aparece ainda desenhado outro canal que, após intersectar os Rios Malheiro, Cômaro da Vilhena e Cancela do Campo, vai confluir com o Rio da Mota, aparecendo com a designação de Valeta, e que aparenta estar na origem da ulterior Vala Real (Fig.18), mandada abrir nos campos de S. Martinho, em 1651, através de alvará real, tendo o Ouvidor dos Coutos sido “executor da dita fábrica, assim como o era do rio de Alfeizerão”101. Ora, no já citado alvará de D. Pedro II de 9 de Outubro de 1698, se ordena ainda ao Provedor da Comarca de Leiria, que fizesse também abrir no campo de Alfeizerão, um rio, a que chamavam a Valeta, e outras mais valas, antes de iniciada a abertura do Rio de Alfeizerão102. Tudo leva a crer, no que se refere à Valeta, que se tratou de uma operação de reabertura, não sendo, no entanto, de excluir terem existido duas distintas Valetas. Finalmente, no respeitante ainda à Planta de Alfeizerão e sua envolvente, de cerca de 1650 (Fig.18), na margem direita do Rio da Mota, quase defronte de Salir, aparecem ainda desenhados talhos de salinas, referidos como Marinhas, que, possivelmente, foram sucedâneos dos que em 1586 haviam pertencido a Manuel Pedro da Silva da Fonseca, como atrás apontado103 (Maduro, 2013:349). Se o porto de Alfeizerão perdeu toda a sua importância no século XVII, tal não aconteceu, como referido, com o porto de S. Martinho onde, segundo o Padre João Baptista de Castro, se abrigavam caravelas e patachos, e se chegaram a construir naus de certa envergadura104. A maioria das intervenções promovidas pelo Mosteiro de Alcobaça deram-se, no entanto, no século XVIII, como já mencionado no capítulo anterior, durante a administração do abade Frei Manuel de Mendonça (1768-1777)105. Tais trabalhos devem ter sido particularmente árduos, já que no decurso deste século violentas marés e grandes cheias assolaram a região. Se bem que o porto de S. Martinho se tenha mantido em condições de operacionalidade aceitáveis até ao último quartel do século XVIII, as condições geofísicas foram-se rapidamente deteriorando em resultado da acumulação de areias, o que causou a elevação do leito dos rios, em particular no do Rio de Alfeizerão, ficando 100 O traçado do leito do Rio de Alfeizerão, correspondente a esta obra de meados do século XVII, se bem que incompleto, aparenta estar indicado no Mappa Topographico da Concha e Barra de S. Martinho... (Stephens, Outubro de 1794). Nesse traçado aparece a indicação “onde parece ter sido o primeiro Rio”. 101 ANTT - Livro de Privilégios., 1750: fólio 274 v (Livro 33 de Sentenças, fl. 155). Outras valas foram abertas no âmbito do referido alvará. 102 Livro LIII da Chancelaria, fol. 52, 1698: 417. 103 Ver nota 81. 104 No fim do século XVII, foram construídas as naus Nossa Senhora da Conceição e Oliveirinha, cada uma de 60 peças, e em inícios do século XVIII, duas fragatas de 30 peças cada uma (Loureiro, 1904, vol.II:279). 105 O recurso a entidades exteriores à Ordem, nesta época, significará, provavelmente, perda de domínio hidrotécnico, como referido por João Pedro Cordeiro (2015:81). 517 José Manuel de Mascarenhas muitos canais subsidiários e valas de drenagem, nalguns tramos, a cotas inferiores e impedidos de escoar as águas (Martins, 2014:201, 202). Para agravar esta situação, a 11 de Dezembro de 1774, uma cheia torrencial causou uma rotura na margem direita do Rio de Alfeizerão, no sítio de Pedrogãos, ficando este separado do Rio de Tornada, havendo estes dois emissários, até essa altura, desaguado num esteiro único, como já atrás relatado (Loureiro, 1904:282)106. O Rio de Alfeizerão passou a dirigir-se ligeiramente para Norte indo desaguar junto à povoação de São Martinho107, arruinando casas e armazéns, após quebrar os três cordões dunares que envolviam a concha (Fig.19) (Martins, 2014:202)108. Tendo em vista atenuar, com urgência, os estragos causados por esta hecatombe, D. José I, através de uma Provisão lavrada em 2 de Setembro de 1775, pede ao Mosteiro para “fazer citar os Juízes e Câmaras das vilas da Cela, Maiorga, Alfeizerão, Alcobaça, Cós e Pederneira, para os reparos dos cômoros e motas destruídos por efeitos das cheias” 109. Fig. 19 - Pormenor da Planta da Concha de S. Martinho... [Oudinot & Auffdiener, 1799], mostrando o Rio de Alfeizerão a desaguar junto daquela povoação, na sequência do grande temporal de 1774, e nova confluência com o Rio de Tornada. 106 No mapa de Stephens, 1794 (Fig.20), indica-se o sítio de Quebrada, na posição em que se deve ter dado a rotura do cômoro do Rio de Alfeizerão. 107 Mas também, por outros pontos da praia (Franzini, 1812). 108 Este acontecimento resultou, sobretudo do facto da rede de valas que cercavam as dunas da Concha ter sido construída arbitrariamente, sem obedecer a um plano, e de tais valas se encontrarem a uma cota inferior à do leito do rio (Franzini, 1812). 109 ANTT - Livro de Privilégios..., 1750: fólio 274 (Caixão das 3 Chaves, Gaveta 8). 518 Um Mosteiro entre os rios. O território alcobacense Não se sabe se as marinhas de sal dos campos de Alfeizerão, que aparecem ainda citadas pelo pároco desta localidade, em 1758, terão sobrevivido a estas grandes cheias de 1774 (Dias, 1962)110. Segundo Frei Manuel de Figueiredo, em 1787 já não existem indícios de tais salinas marítimas, em resultado do assédio das marés e do retrocesso do mar (Maduro, 2013:349). Após aquele tremendo acidente, e por iniciativa do Marquês de Pombal, o engenheiro militar Guilherme Elsden elaborou, em colaboração com os engenheiros Joaquim de Oliveira e Izidoro Paulo Pereira, um plano de regularização do traçado dos Rios de Alfeizerão, de Tornada e de Amieira em que também se comtemplava a instalação de uma rede de canais de drenagem que escoassem a água para o Rio de Alfeizerão e de tal modo que todas as linhas de água se unissem numa única foz “no mesmo local de chegada à concha antes da cheia de 1774, no canto Sul, junto à Alfandega de Salir” (Martins, 2014:203)111. Aprovada a proposta para a execução desse projecto, através da provisão de D. José I, de 12 de Janeiro de 1775, Elsden ficou incumbido de dirigir os trabalhos, tendo como superintendente das obras o corregedor da Comarca, Agostinho José de Almeida Salazar (Coutinho(d), 2020). Definido o modelo de financiamento, o processo acabou, contudo, por ficado bloqueado pelos donatários (monges de Alcobaça) e pelos enfiteutas, que reagiram negativamente a tal modelo (Martins, 2014:203)112. Já no decurso do governo de D. Maria I, para que fosse possível ultrapassar a resistência dos agricultores, Elsden e seus colaboradores foram incumbidos de realizar um cadastro dos campos que, havendo sido entregue juntamente com o projecto, em 29 de Junho de 1779, acabou por ficar suspenso por falta de acordo entre as partes, finalizando deste modo, “a primeira tentativa de ordenamento dos campos de Alfeizerão e do porto de São Martinho” (Martins, 2014:204). Na sequência do óbito de Elsden, em finais do ano de 1778, Izidoro Paulo Pereira ficou a dirigir as obras no rio e campos de Alfeizerão, havendo elaborado um projecto cujas linhas mestras eram (Pereira, 1788:3v): - trazer o Rio de Alfeizerão, “em linha recta”, desde o local de encontro com o Rio de Tornada e outros, conhecido por Vao, até ao local de Pedrógãos, defronte do castelo de Alfeizerão113; - alargar e reforçar as margens do Rio de Tornada no campo ou vargem da Mota; - proceder à limpeza e, nalguns sectores, à reconstrução de duas valas: uma que esgota as terras do campo de Alfeizerão e S. Martinho, e outra, chamada do Rato, no campo ou vargem da Mota. 110 Há notícia de que quatro anos antes desta grande calamidade, em 1770, se haverem rompido as dunas em S. Martinho, o que levou à secagem das lagoas e marinhas, deixando-se de produzir sal (Rasquilho, 2015:225). 111 O traçado do leito do Rio de Alfeizerão, correspondente a este projecto, aparece indicado num mapa de 1794, como à frente se verá. 112 Pequenas obras de reparação e limpeza das valas, chegaram a ter lugar em 1775 e 1776. 113 Local, aonde os cômoros do Rio de Alfeizerão se haviam rompido, durante a grande cheia de 1774. 519 José Manuel de Mascarenhas Estas obras eram consideradas muito necessárias para que não se perdesse o que de pouco já existia, no que respeita a lavoura nesses campos (milho, feijão, e alguma cevada) (Ibidem). Tendo o vasto complexo portuário de Alfeizerão se reduzido com o tempo à pequena bacia conhecida como Concha de S. Martinho do Porto e começando esta a apresentar um elevado grau de assoreamento que condicionava a viabilidade da actividade portuária, por proposta do Deputado da Junta de Comércio, Jácome Ratton, solicitou-se a Guilherme Stephens a elaboração de um projecto para recuperação do porto, o qual foi aceite em 2 de Abril de 1794 e que culminou, passados seis meses, com a apresentação de uma proposta de engenharia. O objectivo central do programa de Stephens era a conservação do porto de São Martinho, se bem que para tal tivesse de encontrar soluções para o problema do escoamento das águas da rede hídrica. Não só analisou a dinâmica do quadro topográfico e hidrográfico da região, como fez um reconhecimento cuidadoso da baía de S. Martinho, e realizou sondagens nos campos de Alfeizerão. Procurou, assim, compreender como o vasto sistema lagunar de Alfeizerão se reduziu, com o tempo, à pequena Concha de S. Martinho do Porto. Uma vez compreendidas as causas do assoreamento desta bacia, relacionadas sobretudo com a deposição de sedimentos transportados pelos Rios Alfeizerão e Tornada, mas também com a prática do descarregamento dos lastros dos navios, Stephens propôs que se alterasse o traçado da rede fluvial, no seu tramo final, de tal modo que, após a junção dos rios, o canal inflectisse para Poente, na direcção do mar, aonde ia desaguar, após se rasgar a Serra do Bouro, num percurso aberto em vala (Martins, 2014:207). Da análise do Mappa Topographico da Concha e Barra de S. Martinho, alias Salir, com a confluência dos Rios que vem por Alfezeirão e Tornada, no qual se mostra a nova Foz que devem ter para não entulhar a Concha, datado de Outubro de 1794 (Stephens, 1794), pode extrair-se a seguinte informação hidrotécnica relevante: • O Rio de Tornada aparece com um traçado no qual se indica que corresponde ao do Projecto de 1776114, o que leva a crer ter continuado a ser canalizado entre esta data e 1794. • O Rio de Alfeizerão e a Vala Real a Este da Concha, apresentam traçados que diferem dos correspondentes aos do Projecto de 1776, que nunca foi executado, o que permite supor que terão sido objecto de obras entre esta data e 1794 (Fig. 20). • Indicam-se duas Valas Reais: - uma, a Sul do Rio de Tornada e que corresponde a uma derivação deste rio, de modo a receber a água dos emissários provenientes da Serra do Bouro; - outra, a Este da Concha, circundando o sítio dos Medros, pela banda Este, e que desagua no troço fluvial final resultante da confluência dos Rios de Alfeizerão e de Tornada, após receber água do Rio de Amieira e de outros emissários provenientes da zona de Vale do Paraíso. Esta Vala Real encontra-se conectada, através de outra vala, com o Ribeiro de S. Martinho. 114 Da autoria de Izidoro Paulo Pereira e de Joaquim de Oliveira. 520 Um Mosteiro entre os rios. O território alcobacense Fig. 21 - Pormenor do Mappa Topographico da Fig. 20 - Pormenor do Mappa Topographico da Concha e Barra de S. Martinho,... [Stephens, Concha e Barra de S. Martinho,... [Stephens, 1794], no qual se mostra a proposta de Guilherme 1794], no qual se mostra o local de Quebrada, Stephens para uma nova foz, mediante a construaonde o cômoro do Rio de Alfeizerão terá colapsado em 1774, bem como o presumível leito ção de um canal (a amarelo) que atravessa a Serra do Bouro. primitivo deste rio e o seu percurso, constante do projecto de 1776. • O Rio de Tornada e a Vala Real (a sul daquele) confluem com o Rio de Alfeizerão a ca. de 450 braças (i.e., 990 m) da foz115. • Na Planta pode observar-se a localização da nova foz, correspondente ao projecto de Stephens, bem como a trincheira, a rasgar na Serra do Bouro, para instalação do troço terminal do canal (Fig.21). Este projecto, apoiado por Jácome Ratton116, deu origem a uma larga controvérsia devida ao elevado custo das obras e ao longo tempo de execução destas, mas também devido ao modelo de financiamento proposto117, o que terá motivado o seu abandono. Em virtude da Marinha ter interesses directos no porto de S. Martinho, o ministro da pasta, D. Rodrigo de Sousa Coutinho, decidiu avançar com novo projecto (1799), que contemplava três obras distintas: encanamento dos rios e valas dos campos de Alfeizerão118, desassoreamento do porto e construção de um cais, do lado de São 115 Como atrás referido, antes do temporal de 1774, desaguavam num esteiro único: “O «rio chamado Mota» («fluviolum nomine Amotte») é, sem margem para dúvidas, o que hoje chamamos de Rio de Salir (assim o designa Cocheril no seu estudo), o tramo final do Rio de Tornada depois de recolher as águas do Rio Grande ou Rio de Alfeizerão” (Coutinho, 2020) (Loureiro, 1904:282-285). 116 Ratton propôs, todavia, uma diferente solução para a foz: em vez de trincheira a céu aberto, uma obra em túnel (Loureiro, 1904:282-285). 117 Sobre este assunto ver Carlos Martins (2009:38-49). 118 O que significa que, em 1799, nem todos os rios e valas estariam canalizados. 521 José Manuel de Mascarenhas Martinho (Martins, 2014:268). Após uma visita ao local de cientistas e de técnicos, da Sociedade Marítima, Militar e Geográfica, e em que participaram também os técnicos com experiência em obras públicas, Reinaldo Oudinot e José Auffdiener, o projecto veio a ser elaborado por estes dois especialistas. Se bem que na memória justificativa do projecto, dirigida ao principe regente D. João, se tenha elogiado o trabalho desenvolvido por Stephens119, Oudinot discordou da solução de abertura de uma nova foz, proposta por aquele , defendendo antes a necessidade de fazer dirigir as águas fluviais para fora da barra e de desassorear artificialmente a Concha120. “A importância destas obras tinha por base a necessidade de fazer convergir e concentrar a força das águas num único ponto, formando, junto à foz, uma corrente suficientemente forte para se contrapor à acção do mar e, assim, expulsar as areias para fora da barra” (Martins, 2014:271). Após D. Rodrigo de Sousa Coutinho, em meados de Outubro de 1799, ter dado instruções para o começo dos trabalhos, José Auffdiener procurou sobretudo “drenar os terrenos baixos e pantanosos, entre Alfeizerão e São Martinho, limpando a Vala Real em toda a sua extensão; construiu uma vala nova, entre as dunas e a Vala Real, conseguindo, assim, drenar os campos às cotas mais baixas e criar uma segunda linha de recepção dos caudais de cheia dos rios” (Ibidem:273). O seu principal intuito terá sido o de canalizar as águas das cheias para a foz em Salir evitando que estas desaguassem junto à povoação de São Martinho121 (Fig.19). Quanto ao programa de financiamento dos trabalhos, se bem que a obra dos campos recaísse, na sua quase totalidade, sobre os monges de Alcobaça, já que os enfiteutas apenas devessem contribuir para a despesa, quando as obras fossem realizadas nas testadas dos seus terrenos, o facto de as populações deverem contribuir para a obra portuária, constituiu uma questão bastante melindrosa, havendo motivado uma reacção negativa das câmaras de treze vilas da comarca, que se manifestaram contra a criação de um novo tributo sobre as populações. Tal facto motivou que o Soberano não tivesse promulgado a legislação e que as obras, em 12 de Janeiro de 1800, tivessem sido suspensas122. A razão mais imediata para o fracasso do projecto do porto de São Martinho foi a crise das finanças públicas (Martins, 2014:278), se bem que a pequena actividade económica deste porto, bem como o pouco peso demográfico da região envolvente, possam também ter constituído um constrangimento à prossecução do projecto (Ibidem:314). Encontrando-se o porto de São Martinho completamente assoreado em inícios do século XIX, solicitou-se ao coronel engenheiro Luís Gomes de Carvalho que analisasse a situação, tendo este técnico apresentado, em 1815, um projecto de restauração do porto (Loureiro, 1904:281). Tendo-se dado início às obras, em finais de 1816, sob a sua direcção, coadjuvado pelo major Baltazar António Falcão123, estas tiveram a du119 Ver Oudinot; Auffdiener, 1799; memória parcialmente transcrita por Castelo-Branco, 1975:272-274. Esperando, assim, que o processo de assoreamento se tornasse mais lento. 121 Auffdiener, 1971:148-150. 122 Em 12 de Janeiro de 1800, D. Rodrigo de Sousa Coutinho recebeu o decreto para a interrupção dos trabalhos. 123 Estas obras foram concluídas pelo Praticante Arquitecto das Obras Públicas Sérgio da Costa Soares Araújo (Notícia ..., 1829). 120 522 Um Mosteiro entre os rios. O território alcobacense ração de doze anos, havendo sido concluídas em Outubro de 1828 (Notícia..., 1829:91). Tais obras consistiram essencialmente no encaminhamento do Rio de Alfeizerão para a sua antiga direcção, tendo-se aberto um novo leito até à sua confluência com o Rio de Tornada (Fig.22); na construção de uma mota no sítio dos Medros, “para obstar que o rio alli tornasse a romper”124 (Ibidem:91); e na construção, no sítio de Val de Guiso, de outra muralha, destinada a conter as águas do monte, que se encaminhavam para a Baía, fazendo-as derivar para a costa. Além disso, no lado Norte da Baía, construiu-se um cais, com cerca de 397 m de extensão, dispondo de duas rampas, e procedeu-se à colmatação de um pântano que existia junto à vila de S. Martinho e que era causa de epidemias (Ibidem:91). Para o desassoreamento da baía, supõe-se que se se tenha recorrido, em larga escala, a dragas de mão, vindo a poder estacionar nela sessenta navios, após as obras. Segundo Luís Gomes de Carvalho, S. Martinho é um porto de mar “que a obra de arte ganhou para a nação, que já não contava com Fig. 22 - Confluência dos Rios de Alfeizerão e de Tornada, ele e para que ninguém achaobservada a partir de Salir do Porto. Autor: José Manuel de Mascarenhas, 2020. va remédio” (Loureiro, 1904:281). Identificação de obras de ordenamento hidráulico entre 1834 e meados de século XX Com a exclausturação das ordens religiosas masculinas e a nacionalização dos bens da Igreja, novas realidades passaram a ocorrer nas áreas do Couto, tendo-se assistindo à fragmentação da propriedade rústica, em grande parte resultante do crescimento demográfico que teve lugar nos séculos XIX e XX, a qual foi acompanhada por um contínuo desbravamento de terrenos incultos e pela expansão da agricultura. Tais factos, acompanhados pela “indisciplina no emprego das culturas e pela falta de manuseamento das infra-estruturas hídricas” (Cordeiro, 2015:95) muito contribuiram para o “aumento da erosão e consequente sedimentação e desorganização da rede de drenagem” (Henriques, 2012:2). 124 Esta mota foi construída, em parte com “torrão encamada d’arbustos para maior prizão”, e noutra parte com uma muralha (ca. 107 m de comprimento, 2,2 m de altura e 0,7 m de espessura) (Notícia..., 1829:91). 523 José Manuel de Mascarenhas Em particular, os campos de Maiorga, Valado, Cela, Famalicão e Campinho ficaram ao abandono, “muito principalmente, depois da extinção das ordens religiosas” (Loureiro, 1904:265), como consequência de terem deixado de se observar os antigos regimentos para a conservação dos canais de drenagem, muitos dos quais se degradaram ao ponto de parte dos campos haverem voltado à condição de paul. Campos da Pederneira Em particular, nos campos da antiga lagoa da Pederneira, a fragmentação da propriedade foi um dos maiores obstáculos ao desenvolvimento agrícola destes campos, pois não só condicionou a introdução de novas técnicas e equipamentos agrícolas, como condicionou “as operações de rega, exigindo um aumento da respectiva rede, muitas vezes antieconómico” (Silva et al., 1961:405, cit. por Cordeiro, 2015:97). A par destes problemas de ordenamento do território, os campos agrícolas desta área continuaram a necessitar de operações de drenagem e de melhorias no sistema de abastecimento de água para rega. Como refere João Pedro Cordeiro (2015:97, 99), “alguns dos grandes empreendimentos projectados na época cisterciense nunca chegaram a ser concretizados, enquanto que outros entraram em decadência, fruto duma progressiva perca de conhecimentos e do poder financeiro da Ordem...” Como já anteriormente referido, a regularização da barra do Rio Alcoa, foi condição imprescindível para a recuperação dos campos interiores encharcados125, pelo que novos estudos foram executados ao longo da segunda metade do século XIX, uma vez que as obras executadas entre 1814 e 1838 não terão produzido resultados muito significativos. Num ante-projecto de 1863, da autoria do engenheiro Manuel Raimundo Valadas relativo ao melhoramento dos campos de Valado, Maiorga, Famalicão e Campinho, há a notícia de que, nesta data, os rios e abertas daquela zona se encontravam entulhados. Mais se indica que “as antigas portas de água haviam desaparecido, e entravam livremente nas terras as águas das marés” (Loureiro, 1904:267). É possível que o local destas portas de maré corresponda ao das construídas no século XVIII ou, mais provavelmente, ao das que terão sido construídas no âmbito das obras realizadas no segundo quarto do século XIX, sob a direcção dos majores Falcão e Faria, como atrás referido. A construção de novas portas126, foi considerada num projecto de 1865, da autoria do engenheiro Valadas, o qual, todavia, não teve prossecução (Natividade, 1960:108). Em 1896, alguns proprietários dos campos de Alcobaça dirigiram um requerimento ao Governo, a fim de solicitarem a desobstrução e fixação do Rio Alcoa, junto à foz, não constando, todavia, que o processo tivesse tido andamento127. 125 A barra fechava-se permanentemente, pelo que, em geral, era necessário que fosse aberta três, ou quatro vezes, por ano (Loureiro, 1904). 126 bem como de um novo canal para o mar. 127 O projecto consistia na abertura de um novo leito do rio Alcoa, através do juncal da Algerifeira (Loureiro, 1904:269). 524 Um Mosteiro entre os rios. O território alcobacense Num mapa elaborado por Licínio Valença, em 1927 (Valença, 1927, 1928 e 1929) (Fig.23), identificam-se duas portas de maré, próximas da Ponte da Barquinha, cuja construção poderá ter resultado da citada petição de 1896. Por outro lado, pode observar-se neste mapa que a Vala (ou Veia) Nova encontra-se com o Rio da Levadinha, junto a uma das portas de maré, após o que conflui com o Rio do Meio, a jusante do ponto em que este recebe as águas do Rio da Areia (ou Vala Velha) (Fig.12) (Fig. 13). Observa-se ainda, neste mapa de 1927 que o Rio Alcoa, na sua margem esquerda, recebia uma importante vala proveniente do Paul da Cela, denominada Enguieiro da Toveira, após a esta terem confluído o Ribeiro de Famalicão e o Enguieiro da Cela. Naquele Enguieiro da Toveira, a jusante destas recepções, e quase defronte da porta de maré da Veia Nova, situava-se outra porta de maré, actualmemte desaparecida 128. De notar, ainda, que neste mapa de 1927, aparecem representadas salinas no Paul da Algerifeira129 que, muito provavelmente, terão sido fundadas em 1903, através da constituição de uma sociedade (Maduro, 2013:320, nota 3)130. Fig. 23 - Sector da Carta dos Terrenos Alagados das Freguesias de Cela, Valado, Pederneira e Famalicão. Autor: Licínio Valença, 1927. 128 Terá sido provavelmente destruída, aquando da execução do projecto da Cela. Ou das Algerifeiras (Valença, 1927). Pode considerar-se a salinicultura uma actividade tradicional dos cistercienses, pois já em 1190 há referências a salinas por eles exploradas, o mesmo acontecendo em 1294, sendo o sal exportado a partir do porto da Pederneira (Cocheril, 1978:231). 130 António Maduro indica que as salinas se situavam na zona de Alfeizerão, no sítio da Aljufreira. Pensase, todavia que aquele topónimo será uma corruptela de Algerifeira, e tais salinas localizar-se-iam no local indicado no mapa de Valença, de 1927. 129 525 José Manuel de Mascarenhas A situação de abandono dos campos só começou a inverter-se no decurso do século XX, durante o qual se executaram, além dos trabalhos para a valorização hidroagrícola do Paul da Cela, “obras de enxugo, de desvio e reperfilamento dos rios de Areia, do Meio e de Alcobaça131, de abertura de novos canais (como, por exemplo, o rio das Tábuas) e de fixação do rio Alcobaça132” (Caroça, 2016:4). No primeiro quartel deste século, vários técnicos debruçaram-se acerca destes problemas de hidráulica agrícola. Entre outros, citam-se Raul Miguel de Mendonça e Ferreira da Silva (Casimiro, 1940:79), e Licínio Valença, apresentando este último um estudo sobre os campos de Valado, Cela, Pederneira e Famalicão (Valença, 1927, 1928 e 1929), onde tratou dos problemas do seu enxugo, dessalgamento e irrigação133. Na carta elaborada por este técnico (Fig.23) observa-se que a área ocupada pelos pauis atingia uma superfície superior a 400 ha (cerca de um terço da área), no alvéolo intermédio Ponte das Barcas – Valado dos Frades (Valença, 1927). Ainda segundo Licínio Valença, nos pauis de Valado predominava uma flora lenhosa subarbustiva e arbustiva, essencialmente constituída por amieiros, enquanto na Cela predominava uma flora herbácea, com dominância de bunho, tabuga e caniço. No referente às práticas culturais, no campo de Valado dominavam as culturas de regadio134 e no campo da Cela, as culturas de sequeiro135. Apoiado em informação local, Valença citou o uso de técnicas populares de regadio, como o “cubo”136, conduta que atravessavando a mota de um canal, possibilitava o escoamento da água para as levadas de rega (Fig.8)137. Das diversas propostas avançadas por Valença, é de referir a instalação de um canal de cintura para o Paul da Cela, a fim de recolher as águas da sua bacia hidrográfica. Em 1932, realizou-se, a pedido da Junta Autónoma das Obras de Hidráulica Agrícola, um novo estudo para este paul, por Sir Murdoch Macdonald & Partners, de Londres (Casimiro, 1940:149), cujas obras decorreram entre 1935 e 1940138, com aproveitamento útil para a agricultura de mais de metade da área inicialmente inundada139. Esta obra, conhecida por Aproveitamento 131 Ou Rio Alcoa. No âmbito desta última obra, construiu-se o Porto da Nazaré destinado à frota pesqueira e a uma marina (inaugurado a 3 de Setembro de 1983). 133 No âmbito deste trabalho, a Divisão de Agrimensura do Ministério da Agricultura utilizou, pela primeira vez em Portugal (1927), o método da fotogrametria aérea para o levantamento topográfico dos referidos campos. 134 Culturas hortenses, a norte da Levadinha, e culturas arvenses e pratenses, também associadas a hortenses, entre a Levadinha e o Alcoa. 135 Trigo e vinha, em condições muito precárias, a norte do Rio de Famalicão, e milho, a sul daquele rio. 136 Este tipo de tubo, a que já se fez referência aquando da descrição da técnica do abbotamentum, podia ser constituído por duas peças escavadas justapostas, obtidas a partir de um tronco de pinheiro, ou por uma peça única (tronco perfurado). 137 Seria este o “sistema lombardo de irrigação” referido por William Beckford, em 1793 (Beckford,1989:137)? Não é de excluir que na Lombardia, nessa época, monges de abadias cistercienses, como Chiaravalle, nos arrabaldes de Milão, aplicassem técnicas semelhantes. 138 Obra nº 2 da Junta Autónoma das Obras de Hidráulica Agrícola. 139 No início dos anos 30, no paul da Cela, a maioria dos 400 ha de terrenos que vieram a ser regados, encontrava-se inculta, “notando-se no Verão algumas regas feitas a cabaço ou à picota, com as águas retidas em velhas valas de drenagem medievais” (Caldas, 1991:511). 132 526 Um Mosteiro entre os rios. O território alcobacense Hidroagrícola de Cela, situa-se mais exactamente no Vale de Famalicão, abrangendo terrenos de aluvião da bacia limitada a Norte pelo Rio Alcoa, a Oeste pela Serra da Pescaria, a Este pela Serra de Bárrio e a Sul pela Serra de Cela, a qual se enquadra, nas freguesias de Valado dos Frades e Famalicão, do concelho da Nazaré (350 ha) e nas freguesias de Cela e Bárrio, do concelho de Alcobaça (104 ha), no distrito de Leiria, beneficiando uma área total de 454 ha (Costa et al., 2001:285), havendo sido entregue para exploração à Associação de Beneficiários, em Novembro de 1943 (Pombo, 2018)140. Procedeu-se, numa fase inical, entre outras acções, à regularização do Rio Alcoa (alteamento das suas motas) e da Ribeira de Famalicão, com a supressão de parte desta, e à instalação de dois colectores de encosta, sobreelevados, um a norte e outro a sul, posteriormente ligados, passando a constituir um canal de cintura, o que permitia interceptar as águas que se lançavam no paul. De destacar ainda a implantação de valas de enxugo e de um colector geral (Fig.24), com início na parte central do campo de Cela, num local denominado Roseta141, de uma estação de bombagem das águas, e de um sistema de rega (Fig. 25). Nas terras marginais do Rio do Meio foram também abertas valas de Fig. 24 - Aproveitamento Hidroagrícola de Cela. Vista do colector principal de drenagem, a partir da estação de bombagem. Autor: José Manuel de Mascarenhas, 2020. Fig. 25 - Aproveitamento Hidroagrícola de Cela . Vista de um canal de rega. Autor: José Manuel de Mascarenhas, 2020. 140 As infraestruturas deste Aproveitamento são geridas, actualmente (Contrato de Concessão, 2011), pela Associação dos Beneficiários de Cela. Este contrato de concessão, de «utilização privativo do domínio público hídrico», tem a duração de 20 anos. A Associação fica obrigada “não só a manter em operacionalidade as infraestruturas, mas também a controlar os produtos que usa e a monitorizar a água que entra e sai no perímetro do Aproveitamento Hidroagrícola de Cela” (Caroça, 2013:50). 141 Aonde confluiam quatro valas (Costa, 1960). 527 José Manuel de Mascarenhas enchugo (Casimiro, 1940). Mais sucintamente, podem-se apresentar as principais componentes da obra da Cela, integradas em três grandes grupos (Pombo, 2018)142: Obras de Defesa (diques marginais; 2 colectores de encosta (8,9 km) e do rio Alcoa (7,4 km); Obras de Drenagem (19 km valas e 1 estação elevatória) e Obras para Rega143 (açude no rio Alcoa, distribuição em gravidade, através de canais e regadeiras). Relativamente a este último aspecto, a água proveniente do rio Alcoa é distribuída por gravidade, mediante comportas e valas cimentadas, sem bombagem (Caroça, 2013) (Fig.25). Após a rega, havendo necessidade de drenar a água em excesso, de forma a evitar alagamentos, recorre-se à estação elevatória, localizada junto ao viaduto da Ponte da Barquinha, que retira a água do terreno e a encaminha pelo colector Sul até ao rio Alcoa (Caroça, 2012)144 (Fig. 26). Fig. 26 - Imagem satélite (Google Earth / Data SIO, NOAA, U.S. Navy, NGA, GEBCO) do Aproveitamento Hidroagrícola de Cela , 2020. Legenda: [Elementos extraídos de mapa de 2011 (C. Caroça, 2012) e de Paul da Cela, Obra N.º 2 , Planta Topográfica da Área Beneficiada (JAOHA, 1941)]: 1 - Comporta móvel (para tomada de água no Alcoa); 2 - Colector de Defesa e Canal de Rega Norte (paralelo); 3 - Dique com comportas com vigas de madeira (desactivado); 4 - Estação Elevatória de Drenagem e Termo do Canal de Rega Norte; 5 - Termo do Canal de Rega Sul; 6 - Colector de Defesa e "boca de saída" do Canal de Rega Sul; 7 - "Roseta": ponto de encontro das valas de drenagem; 8 - Colector Geral de Drenagem; 9 Principais canais de drenagem; 10 -Rio de Famalicão; 11 - Cela Velha: Bárrio. 142 Além das referidas estruturas, contemplou-se também a construção de uma rede de caminhos de apoio à obra (Pombo, 2018). 143 Anteriormente à modernização. 144 As culturas mais representativas instaladas no aproveitamento de Cela, nos últimos anos, são as hortícolas (65%), pomares (20%) e outras (15%), sendo as hortícolas as que consomem mais água. (Contrato de Concessão, 2011) (Caroça, 2012:15). 528 Um Mosteiro entre os rios. O território alcobacense Uma vez que no projecto se revelaram deficiências no que respeita o enxugo de parte dos terrenos, a condução primária da água e a rede secundária de rega, as serventias e a defesa dos campos agrícolas, houve necessidade de se desenvolver uma 2.ª fase da Obra que se iniciou em 1955 (Silva et al., 1961, cit. por Cordeiro, 2015), tendo efectivamente terminado em 1959145, se bem que trabalhos de complemento, nestas obras do Paul da Cela, tenham tido lugar entre 1959 e 1964146. Com esta 2.ª fase da Obra obteve-se, em particular, uma melhoria significativa das condições de enxugo e das redes de rega primária e secundária, além da modernização do equipamento de bombagem (Silva et al., 1961, cit. por Cordeiro, 2015)147. Se se analisarem, de modo sumário, os principais resultados obtidos com o Aproveitamento Hidroagrícola de Cela, no período 1941 – 1973, verifica-se que a área regada passou de 173 ha para 366 ha, notando-se um constante decréscimo da cultura do milho (de 126 ha para 37 ha), o qual foi compensado por um crescimento da utilização hortícola (repolho, feijão, tomate, sobretudo), das forragens e do pomar (Caldas, 1991:517)148. Ao longo da primeira metade do século XX, em virtude da frequente obstrução dos rios e canais, causada em particular aquando de cheias, trabalhos permanentes de limpeza e valagem foram sendo executados, se bem que sem a regularidade desejável e, frequentemente como resultado de processos de intimidação apresentados pelos serviços públicos aos proprietários dos terrenos confinantes. Por vezes, através de verbas disponibilizadas pelo Ministério das Obras Públicas e Comunicações às Juntas de Freguesia, foi possível a estas realizarem trabalhos de beneficiação das redes de enxugo dos seus campos. Foi assim que entre 1947 e 1950 se exe- Fig. 27 - Campos da Levadinha, notando-se a vila da Pederneicutaram trabalhos de benera, ao fundo, no topo da colina. Autor: José Manuel de Mascarenhas, 1920. ficiação da rede de enxugo dos 145 Portugal, Inspecção Superior do Plano de Fomento..., 1961(b): 89. Vd. Fontes Impressas. Portugal, Presidência do Conselho..., 1968:30. Vd. Fontes Impressas. 147 No período 1953-1958, executaram-se as seguintes obras complementares: aquisição e montagem de um novo grupo motobomba, abertura de uma rede secundária de enxugo, construção de canais revestidos, rede secundária de rega e pontões, reparação de serventias, nivelamento de terras, e construção de sistema de abatimento da comporta do açude do Alcoa (Portugal, Inspecção Superior do Plano de Fomento...,1959:213. Vd. Estudos). 148 Na actualidade, após aprovação, encontra-se em curso o projecto de modernização do sistema colectivo de rega, iniciado em 2018 e que se desenvolverá, segundo informação fornecida pela Associação de Beneficiários de Cela, até 2021 (previsão). 146 529 José Manuel de Mascarenhas campos do Rio da Areia e do Rio do Meio, e da dos campos do Rio da Levadinha (Fig.27), sobretudo no sector da Veia Nova (quer no troço de jusante, denominado Veia Larga, quer no de montante, denominado Veia Estreita), após estudos levados a cabo pelo engenheiro Orlando de Almeida e Sousa (Sousa, 1950) (Fig.28)149. A abertura de grandes rombos no Rio da Areia provocou o areamento dos campos e o assoreamento do Rio do Meio, veia vital de enxugo dos terrenos da zona leste dos campos de Valado (Campinho). Ao analisar a estrutura destes campos, Almeida e Sousa verificou que esta apresenta um carácter um pouco primitivo “porque nela só existe uma rede primária de valas principais e todas de caracteristicas semelhantes e a rede Fig. 28 - Mapa da rede de enxugo da Veia Nova (Sousa, 1950, terciária, já de lavoura proprifig.1). Autor: Orlando de Almeida e Sousa, 1950. amente dita, que resolve o enxugo dos terrenos parcela a parcela” (Sousa, 1950:6) e na qual se detectaram, por vezes, “restos de tôsca e esporádica obra (marachão, cubo de rega, cano de passagem, etc.)” (Sousa, 1950:8). Da análise, todavia, de fotografia aérea vertical150, foi possível identificar traços de valas mestras que se integravam numa rede secundária. Um dos problemas mais graves que estiveram na origem do encharcamento e abandono de grande parte dos campos da Levadinha (ou Campinho) esteve no facto do sistema de jusante não ter permitido a saída das águas, em vitude da obstrução frequente da foz do Alcoa que acontecia sobretudo quando se conjugavam certos ventos do quadrante norte com marés vivas e períodos de maré enchente. Nestas condições, as correntes marítimas arrastavam tal quantidade de areia para a boca de 149 Como se pode observar neste mapa, as valas de saída das Matas de Cima e as das Matas de Baixo cruzavam o Rio da Levadinha, em passagem inferior, através de cubos de madeira (Sousa, 1950:28, 30). 150 Fotografias Aéreas Verticais pancromáticas, do vôo USAF 1958 (escala aproximada 1: 27 000). 530 Um Mosteiro entre os rios. O território alcobacense saída do rio que em poucos momentos paralisavam por completo a sua corrente, causando o encharcamento referido. Em menos de dois meses, durante o período de estiagem, assistiu-se a este fenómeno oito vezes, tendo havido a necessidade de abrir a foz “a braço”, em cada uma das ocorrências (Sousa, 1950:12) (Fig. 29). Fig. 29 - Trabalhos de abertura da foz do Alcoa (Sousa, 1950, Com a foz do Alcoa aberfig.9). Autor: Orlando de Almeida e Sousa, 1950. ta e o escoamento livre, o enxugamento do terreno através das valas realizava-se normalmente, e em todas elas a “água se ri”, segundo a terminologia popular. Tendo-se reconstruído uma porta de maré no Rio da Levadinha e na Veia Nova, na primeira metade do século XX (Fig.30), no mesmo local da que aparece representada no mapa de Va-lença (1927), a que já se fez referência (Fig.23), o manu-seamento cuidado desta instalação permitia amortecer muito a perurbação no enxugo151. Quando a foz do Alcoa se tapava, a situação alterava-se completamente, encharcando-se os terrenos da zona baixa por refluimento Fig. 30 - Porta de maré, imediatamente a a jusante da confluên(Sousa, 1950:10)152. cia do Rio da Levadinha e da Veia Nova (Sousa, 1950, fig.4). Do ponto de vista técniAutor: Orlando de Almeida e Sousa, 1950. co, as principais acções que visaram a beneficiação das redes de enxugo destes campos foram: roça dos caniços e limpeza da vegetação; construção de diques e marachões, com vista à divisão de cada vala em troços, e à formação de caldeiras, onde se pudesse trabalhar a seco; 151 Como há notícia da entrega da “porta de água” do Rio da Levadinha, em 1962, à Associação de Defesa dos Campos de Valado dos Frades e de Maiorga (Boletim...,1963:134), é provável que nesta data, a porta tenha sido objecto de nova reconstrução. As suas características na actualidade (Fig.12), diferem das que apresentava aquando da fotografia de 1950. 152 Com a foz aberta, as marés faziam-se sentir na rede, até 1600 m a montante de Ponte da Barca, não havendo no entanto qualquer prejuízo motivado pelas águas salgadas, já que estas nunca se sobrepujavam aos canais de enxugo (Sousa, 1950:14). 531 José Manuel de Mascarenhas valagem a pá, ou à enxada, para extrair o lôdo das valas, removendo-o para as margens (Fig.31); trabalho complementar de esgoto das águas, por bomba ou a cabaço (Sousa, 1950:19) (Fig.32). Na relação das obras fluviais a desenvolver, no quadro do II Plano de Fomento 1959-1964, constou o melhoramento da bacia hidrográfica do Fig. 31 - Veia Estreita: trabalhos de valagem e de esgoto das Alcoa, especificando-se que a águas (Sousa, 1950, fig.17). Autor: Orlando de Almeida e construção de açudes de duSousa, 1950. pla função (retenção de material sólido e criação de reservas para rega), com a indicação de que a “regularização do leito do rio e a desobstrução de valas de enxugo, beneficiarão grandemente os terrenos das várzeas marginais”153. Apesar de recentemente se haverem executado importantes obras de valorização hidráulica154, as inundações dos Fig. 32 - Veia Larga: esgotando uma caldeira a cabaço (Sousa, campos, causando carrea1950, fig.13). Autor: Orlando de Almeida e Sousa, 1950. mento de detritos e impactes nas culturas, continuaram a ter lugar, sobretudo em períodos de grande torrencialidade. Campos de Alfeizerão Passados cerca de 29 anos após o término das obras de Luís Gomes de Carvalho (Outubro de 1828), a situação de assoreamento da baía de S. Martinho, já era de novo preocupante, tendo o governo sido alertado pelo engenheiro Tibério Augusto Blanc, em 14 de Setembro de 1857, para o que ele chamava a “maravilha com que a Providencia dotou Portugal”, e que estava em vias de se perder (Loureiro, 1904:282). Aquele técnico defendeu uma solução próxima da que havia sido apresentada por 153 Portugal, Ministério das Obras Públicas ..., 1956-1957:26. (Vd. Estudos) Só na década de 80 se vieram a executar obras de valorização hidráulica de monta, com especial destaque para a abertura da nova foz do Rio Alcoa, com um percurso mais rectilíneo, e a construção do Porto de Abrigo da Nazaré. 154 532 Um Mosteiro entre os rios. O território alcobacense Guilherme Stephens, mas optando pela proposta de Jácome Ratton, complementada com a construção de uma grande caldeira para abrigo náutico e construção naval, por detrás das dunas que circundam a Concha, e por duas caldeiras mais pequenas, em comunicação com a grande, para “curtir e sangrar as madeiras” (Ibidem:283). Todavia, nenhuma destas obras se executou, uma vez que Blanc não apresentou estudo ou proposta de projecto formal. Um projecto no entanto apresentado por este técnico, respeitou o ramal da estrada entre S. Martinho e a estrada de Lisboa a Coimbra, passando por Alfeizerão, no qual considerou que as terras extraídas para a construção da estrada, deviam ser obtidas a partir de valas abertas paralelamente à estrada, “se as águas que n’ellas entrarem, tiverem escoamento para as vallas reaes, e deixandose uma berma entre os taludes e a valla, e esta tem tambem a vantagem de ajudar a enxugar os campos e a funcionar como vedação da estrada...” (Blanc, 1862:276). Vários estudos e propostas para a resolução deste problema foram elaborados, nos trinta anos seguintes sem que, todavia, tivessem culminado com a realização de obras, sendo de destacar o projecto do engenheiro Bento Fortunato de Moura Coutinho de Almeida de Eça, datado de 25 de Fevereiro de1888, cujo objectivo era o desvio do troço final dos Rios de Tornada e de Alfeizerão para fora da Concha, por meio de um tunel através do monte de Salir, solução que já havia sido preconizada por Ratton e por Blanc (Ibidem:284). Tendo-se agravado o problema do assoreamento do porto e havendo necessidade de se proceder a reparações de obras anteriormente realizadas, a 3.ª Circunscrição Hidráulica apresentou ao governo, em 3 de Maio de 1889, um projecto para reparação do cais de S. Martinho, o qual foi intervencionado, havendo-se também quebrado a Pedra da Veia, localizada na baía (Fig.19), e que constituía um perigo para a navegação. Na sequência destas obras, o engenheiro António José Pereira Junior, foi incumbido pelo Ministério da Marinha, de realizar um projecto para o prolongamento do cais e para a rectificação e canalisação dos Rios de Tornada e de Alfeizerão “fazendo-os despejar no Oceano, tão perto da entrada da Concha quanto possível” (Loureiro, 1904:285), o qual após entregue ao governo em Agosto de 1890, não teve andamento. No âmbito deste projecto foi elaborado um mapa, publicado por Adolfo Loureiro (1904:Planta E.IV), no qual aparecem cartografadas, como obras a realizar, o prolongamento do cais e o traçado de uma canalisação submersível (Fig.33). Neste mapa, os Rios de Tornada e de Alfeizerão confluem perto da foz, em Salir, resultado das obras que haviam sido realizadas sob a direcção do coronel engenheiro Luís Gomes de Carvalho155, e que foram concluídas em Outubro de 1828 (Notícia..., 1829:91), como atrás referido (Fig.22). Esta solução de dique submersível, preconizada pelo engenheiro António José Pereira Junior, foi retomada em 1920, pelo engenheiro António Belo, com a finalidade de “canalizar as águas para a barra, de modo a que a corrente de varrer da Concha, na vazante, favorecesse a saída das areias” (Proença, 2005:121). 155 Coadjuvado pelo major Baltazar António Falcão. 533 José Manuel de Mascarenhas Fig. 33 - Porto de S. Martinho. Planta Levantada em 1890 pela Extincta 3ª. Circumscripção Hydraulica. Com o projecto das obras para o melhoramento do porto (Loureiro, 1904: E.IV). Outro projecto concebido nesta mesma época (1919), da autoria do arquitecto Fernando Perfeito, e que adoptava a mesma solução de canalização submersível, resultante do estudo de Pereira Junior, de 1890 (Loureiro, 1904:285, 286), encontra-se integrado no Plano Geral do Desenvolvimento Industrial e de Turismo de S. Martinho do Porto, apresentado em 1921, o qual não foi concretizado, à semelhança do projecto de António Belo (Proença, 2005:121, 122). Quanto à exploração do sal na região de Alfeizerão, não se tem indicações até quando terão funcionado as salinas. Numa planta, certamente de inícios do século XIX156, indica-se uma “Caza do Sal”, junto da confluência do “Rio Velho”157 com a 156 Planta das obras de S.Martinho. Ano 18... Direcção Geral do Território, Catálogo de Cartas Antigas (Cat. “Gabriel Mendes”), Cota:CA 118. Esta planta deverá ser de data anterior a 1829, uma vez que, neste ano, a confluência dos rios Alfeizerão e Tornada se encontrava já estabilizada. 157 Antigo leito do Alfeizerão? 534 Um Mosteiro entre os rios. O território alcobacense Vala Real, a ca. de 350 braças (770 m), a Sul, do sítio dos Medos. Segundo informações de um habitante da região158, podiam observar-se até há poucos anos antigos muros de uma casa, a que a população local atribuia a designação de “casa do sal”, num local entre a ETAR de S. Martinho e o Rio de Alfeizerão, não sendo de excluir que tal estrutura possa corresponder à indicada na referida planta do século XIX, e ter estado relacionada com as marinhas representadas na planta de ca. 1650 (Fig.18). Por outro lado, em Casal das Marinhas, na margem esquerda do Rio de Tornada, e à entrada de Salir, existiu uma exploração de salinas159, que aparece representada num mapa de 1938-40 (Henriques, 1996:460)160. Desde o início do século XX e, sobretudo, durante os anos vinte e trinta, os proprietários confinantes com o Rio de Tornada foram intimados, em várias ocasiões, pelos serviços oficiais161, para procederem à limpeza e valagem do rio, por este se encontrar muito obstruído e assoreado, com as suas motas danificadas, o que causava areamento e encharcamento dos campos adjacentes. O sector em que a regularização do rio se tornava mais urgente, situava-se no campo da Padiarca162, a jusante de Vale de Maceira, que se encontrava quase inutilizado, e em que a drenagem se tornava quase impossível de realizar163. Para o levantamento das motas, nos sectores em que estas quase desapareceram propôs-se o emprego de estacaria, ficando as estacas cravadas longitudinalmente, nas quais se pregavam três séries de longarinas, para sustento das fachinas de suporte (Faro, 1936)164. Em 1940, tomou-se conhecimento através do Mestre das Valas de Valado que, trinta e dois anos antes (i.e. em 1908), se havia procedido a uma alteração da directriz do leito do Rio de Tornada, por conveniência de um dos proprietários dos campos confinantes165. Com esta obra, segundo o referido Mestre, alterou-se também a largura do rio, com prejuízo da secção, havendo ainda este deixado de correr na parte do vale de cota mais baixa. Em todo o curso, observavam-se rombos devidos à velocidade das águas, deficiências dos perfis, valados fracos (em areia), apresentando-se o 158 Sr. Albertino Beato, morador em Casal das Marinhas. De origem medieval. Ver nota 81. 160 Carta Militar de Portugal, folha 316, 1ª edição, Lisboa, Serviços Cartográficos do Exército, 1938-40. 161 Divisão Hydraulica do Tejo (Ministério do Comércio e Comunicações). 162 Corruptela de Paviarca, topónimo encontrado na Planta de Alfeizerão e sua envolvente (ca. 1650), a que já se fez menção. Este campo aparece referenciado por A.P. Ferreira (1942), entre a Quinta de Alfeizerão, de José Rino Fróes e os Campos de Cima e de Baixo, de Luiz Xavier da Gama; confinava a Norte com o Rio de Tornada, sendo seu proprietário José Rino Fróes. Tudo leva a crer que o topónimo Padiarca abrangesse também anteriormente os campos da Quinta de Alfeizerão. 163 AAPA - Petição..., 1931. (Vd. Fontes Manuscritas) 164 Informação técnica mais detalhada sobre a reparação dos rombos (AAPA - Portugal ..., 1937.): os rombos são aterrados e este novo aterro é protegido do lado do rio por uma fiada de estacas de pinho, descascadas e abicadas, ligadas por longarinas de pinho, sobre as quais se seguram fachinas de salgueiro, que irão consolidar as terras frescas. Estas longarinas são pregadas nas estacas com cavilhas de ferro zincado e dispõem-se em três séries horizontais. As fachinas são atadas às longarinas, em molhos verdes, com os pés enterrados no talude que se protege. As terras a empregar no aterro dos rombos são escavadas a cerca de 100 m e transportadas à padiola. 165 AAPA - Portugal ..., 1940. (Vd. Estudos) 159 535 José Manuel de Mascarenhas leito muito assoreado. Na opinião do Mestre, havia a maior conveniência em repor-se o antigo curso, de modo a que o rio passasse a correr na parte mais baixa do vale e em menor extensão, diminuindo-se os riscos de areamento dos campos166. Tendo em vista estudos de correcção e regularização do leito, foi levantada em 1941 uma planta daquele troço do Rio de Tornada. Tais estudos tiveram lugar nos anos seguintes, havendo-se entretanto executado trabalhos com tal finalidade, se bem que, sobretudo, de natureza pontual com vista a resolver problemas urgentes, como a colmatagem de rombos nos cômoros, abertos aquando de cheias167. Só a partir de meados dos anos 40, mais especificamente, nos períodos 1943-1949 e 1959-1964, se voltou a assistir nos Rios de Alfeizerão e de Tornada a obras de hidráulica fluvial e de saneamento e protecção dos respectivos campos marginais, de certa monta. Trabalhos hidrotécnicos prosseguiram em 1944, ano durante o qual se concluiu também o plano geral para a correcção torrencial daqueles rios, e se iniciaram estudos para a regularização dos respectivos troços marítimos168, os quais continuaram no ano seguinte169. Em 1945, procedeu-se à elaboração do projecto, segundo o plano aprovado, para a referida correcção torrencial, e executaram-se trabalhos preliminares de regularização e de defesa dos campos marginais170. Os estudos de hidráulica fluvial daqueles rios, compreendendo sobretudo a sua correcção torrencial e regularização fluvial, bem como, a rega, o enxugo e a defesa dos campos marginais, só tiveram o seu termo em 1947171, se bem que em 1949, ainda se tenha elaborado o projecto dos melhoramentos a realizar172. Trabalhos de regularização do Rio de Alfeizerão, no troço entre a confluência com o Tornada e cerca de 1 km para montante da actual Estrada Nacional nº 8, tiveram lugar em 1959 e 1960, havendo sido executados pela Direcção-Geral dos Serviços Hidráulicos173. Em meados dos anos 50 do século XX, admitia-se que as obras de rega a realizar pelo Estado, nos campos dos Rios de Tornada e de Alfeizerão, abrangeriam uma área de mil ha (Caldas, 1991: 515)174. Na relação das obras fluviais a desenvolver, no quadro do II Plano de Fomento 1959-1964, constava a beneficiação destes Rios175, 166 Indícios do antigo leito são ainda visíveis através de imagens satélite GOOGLE EARTH. Portugal, Direcção-Geral dos Serviços Hidráulicos e Eléctricos..., 1943:4 (Vd. Fontes Impressas). Só em 1951, se procedeu ao levantamento dos perfis transversais e longitudinais do curso de água, no sector a jusante da Estrada Nacional 8 (AAPA - Portugal ..., 1951. 168 Portugal, Direcção-Geral dos Serviços Hidráulicos e Eléctricos..., 1944:4 e 5. (Vd. Fontes Impressas) 169 Portugal, Direcção-Geral dos Serviços Hidráulicos e Eléctricos..., 1945:5. (Vd. Fontes Impressas) 170 Portugal, Direcção-Geral dos Serviços Hidráulicos e Eléctricos..., 1945:4, 5, 17. (Vd. Fontes Impressas) 171 Portugal, Direcção-Geral dos Serviços Hidráulicos e Eléctricos..., 1947:4. (Vd. Fontes Impressas) 172 Portugal, Direcção-Geral dos Serviços Hidráulicos e Eléctricos..., 1947:4. (Vd. Fontes Impressas) 173 Portugal, Direcção-Geral dos Serviços Hidráulicos...,1961(a):87. (Vd. Fontes Impressas) Comparticipação dos proprietários: 50%; comparticipação dos Serviços Hidráulicos: 50%. 174 Em 1949, a quase toalidade da campina só podia ser utilizada como área para pastorícia, devido ao facto dos canais de drenagem serem incapazes de evacuar as águas acumuladas durante o inverno, e só os terrenos mais altos e secos podiam ser utilizados para as culturas da vinha, do milho, do feijão, do melão etc. (Rau; Zbyszewski, 1949:56). 175 Área a beneficiar: 700 ha. 167 536 Um Mosteiro entre os rios. O território alcobacense com a indicação de que “a regularização e rebaixamento dos leitos dos rios, a desobstrução de valas de enxugo e a execução de obras de correcção torrencial nos afluentes e encostas conduzirão a um melhoramento sensível das várzeas”176. Considerações Finais Neste estudo, pretendeu-se sobretudo sublinhar a importância do património hidráulico de iniciativa cisterciense, nos campos do seu antigo couto de Alcobaça, correspondentes às áreas relativas às antigas lagoas da Pederneira e de Alfeizerão. O ordenamento hidráulico deste território agrário abacial obrigou à construção de estruturas de apoio à exploração e gestão hídricas, as quais exigiram conhecimentos e competências especializados imprescindíveis. Dentre os principais trabalhos empreendidos pelos monges e conversos, nomeiam-se aqui, sobretudo, a escavação de poços freáticos, a abertura de valas e canais, a açudagem, a construção de aquedutos, diques, pontes, máquinas, engenhos e moinhos, a transferência e a regularização de cursos fluviais, o desassoreamento de lagoas e o enxugo de terrenos. A estratégia hidrotécnica desenvolvida com vista ao saneamento e à recuperação de terras para a agricultura apoiou-se, pelo menos desde meados do século XVI, nas seguintes acções: canalização de cursos de água; instalação de portas de maré; controlo dos caudais (e, por conseguinte, das cheias), através da subdivisão de bacias hidrográficas, mediante abertura de novas linhas de água e instalação, o mais possível a jusante, das confluências dos diferentes emissários; organização de uma eficaz rede de drenagem; limpeza dos leitos dos rios e desimpedimento dos cursos no sector da foz. Estas históricas obras utilitárias de desenho e transformação do meio ambiente silvestre testemunham a modernidade hidrotécnica dos Cistercienses, com reflexos nos valores culturais paisagistas e na gramática cultural dos frutos da terra. Esclareça-se que o derradeiro plano de ordenamento agrário que os Cistercienses conduziram no território coutado assenta, por um lado, no ímpeto colocado nas culturas de regadio, disseminando o prolífico milho americano (séculos XVII-XVIII), cultura que vai entrar em consociação com o arroz (inícios do século XIX) nas terras de campo de Maiorga, Valado e Alfeizerão. De realçar o esforço quase permanente que houve necessidade de investir nesta área, entre os inícios do século XII e o presente com vista à abertura e, sobretudo, manutenção de uma extensa rede de valas, regularmente afectadas pelo assoreamento decorrente da difícill aliança entre políticas de gestão florestal e de valorização hidroagrícola. Se bem que com a extinção da Abadia de Santa Maria de Alcobaça, em 1834, se tenha assistido a um período de estagnação e de desorganização socio-administrativa 176 Portugal, Ministério das Obras Públicas..., 1956-1957:27 (Vd. Estudos). Não há, todavia, referências a trabalhos de rectificação e de canalização do Rio de Tornada até 1975 (Carlos, 1975), nem notícias sobre a alteração da directriz do leito do rio entre 1908 e a presente data. 537 José Manuel de Mascarenhas do território, outros projectos de ordenamento hidráulico de monta, vieram a ter lugar posteriormente, nos campos da Pederneira e de Alfeizerão177, com especial realce para o Aproveitamento Hidroagrícola de Cela, obra iniciada já na primeira metade do século XX. Acompanhando o parecer de João Pedro Cordeiro (2015:85, 87), “o complexo de sistemas hidráulicos, iniciado pelos monges de Cister até ao final do período medieval e, mais tarde, por figuras da engenharia hidráulica ao serviço do Estado, constitui um património ainda hoje eficaz e necessário, alcançando uma importância não só histórica como económica e, desta forma, merecedora de reconhecimento, análise, preservação e valorização.” A estes campos “conquistados” às antigas lagoas da Pederneira e de Alfeizerão, já que neles se manifesta uma coesão determinada por vínculos históricos e geográficos, apresentando recursos patrimoniais e outros elementos que lhes conferem uma identidade própria, poder-se-á, segundo certos autores, atribuir a ideia de território-museu (Izquierdo Tugas et al., 2005). Todavia, assentando em grande parte o conceito de Paisagem no de Ecossistema, e sendo este uma entidade com dinâmica, de natureza natural ou antrópica, não se considera adequado que os referidos campos sejam abordados como estruturas estáticas, passíveis de um tratamento museulógico clássico, como acontece com certas paisagens históricas, em geral, de elevado valor patrimonial, em territórios fisicamente delimitados e de dimensões restritas178. Neste sentido, tendo em vista a interpretação e valorização destas paisagens culturais, a instalação de dois Centros de Interpretação179, respeitantes respectivamente aos campos da Pederneira e de Alfeizerão, parece ser de interesse, à semelhança do ocorrido em várias paisagens congéneres de outros países, como a Itália e a Holanda180. Tal abordagem não invalida que se possa também equacionar a instalação de um Parque Cultural181, com base em métodos e critérios definidos judiciosamente (Barata; Mascarenhas, 2002) (Mascarenhas; Barata, 2005 e 2008). Todavia, este desígnio de valorização paisagística e patrimonial, não impede que se comece desde já a considerar a hipótese de haver conveniência em se lançarem 177 Dos quais se deu conta até meados do século XX. Trata-se de um tema muito complexo que deve ser abordado tendo em conta as múltiplas questões sobre o modo de governança dos territórios, em particular no que se refere à avaliação de métodos inovadores de ordenamento paisagístico, e às relações entre paisagem e desenvolvimento sustentável (biodiversidade, qualidade de vida, representação social, participação dos habitantes) (Luginbühl, 2015). 179 Para a integração de valores biológicos e culturais, no quadro de um centro de interpretação da paisagem, ver Batista et al. (2015), entre outros. 180 Em Itália conhecem-se, pelo menos, oito centros de interpretação sobre paisagens “bonificadas”, intitulados “museo”, muitos deles instalados em antigas estações de bombagem, de que se destacam o Museo Regionale Veneto della Bonifica (Taglia di Po, Rovigo), e o Museo Multimediale Bonifica dell’Emilia Centrale (Boretto, Reggio Emilia). Na Holanda, de entre os muitos centros interpretativos sobre “polders”, ou sobre antigas estações de bombagem com eles relacionadas, citam-se particularmente o Poldermuseum Heerhugowaard e o Poldermuseum Andijk, ambos na Frísia Oeste. 181 O objectivo básico deste tipo de Parque será sobretudo a preservação e valorização do Património, nas suas múltiplas facetas: Património Material, Imaterial, Paisagístico, etc... 178 538 Um Mosteiro entre os rios. O território alcobacense acções de “desbonificação” (ou “despolderização”), em resultado da subida do nível das águas do mar182, à semelhança do que se tem já equacionado para certas regiões europeias (Goeldner-Gianella; Verger, 2009) (Goeldner Gianella, 2013), se bem que se trate de assunto de elevada complexidade sócio-económica e ambiental (Goeldner-Gianella, 2015). Agradecimentos O autor expressa os seus agradecimentos a: – António Maduro pelo apoio facultado, de natureza documental e no decurso de reconhecimentos no terreno; – Diogo Collares Pereira pela valiosa documentação que disponibilizou, em particular o Relatório dos Trabalhos na Veia Larga e o Livro do Tombo da Quinta do Campo, e Carlos Fidalgo por haver facultado a transcrição deste último documento; – Rui Rasquilho, igualmente pelo apoio documental que providenciou; – Virgolino Ferreira Jorge, pelas opiniões que manifestou em ocasiões várias; – Helena Mascarenhas, pelo apoio dado no âmbito da cartografia digital; – Fernando Heitor da Luz e a Albertino Beato, moradores em Maiorga e Casal das Marinhas, respectivamente, pelas informações fornecidas aquando de reconhecimentos no terreno; – Presidente da Junta de Freguesia de Alfeizerão e Presidente da Associação de Beneficiários da Cela, pelas informações e contactos fornecidos. 182 Relacionada com a Alteração Climática Global. 539