Thaïs Flores Nogueira Diniz | p. 1-16 |
Intermidialidade na formação em Letras
INTERMIDIALIDADE NA FORMAÇÃO EM LETRAS
Intermediality and Learning
DOI: 10.14393/LL63-v37n1-2021-01
Thaïs Flores Nogueira Diniz*
RESUMO: O texto trata da substituição do título e conteúdo das disciplinas de Literatura
Inglesa e Literatura norte-americana por Literaturas de expressão inglesa, disciplina com
novos conteúdos e um outro título. Trata ainda da disciplina Introdução à Intermidialidade,
de sua criação e das transformações a que se submeteu ao longo dos anos desde o seu
surgimento. Discute o termo intermidialidade como ferramenta para análise de obras em
língua inglesa, sejam elas canônicas ou não, compostas em países anglófonos. Por fim,
sugere uma maneira de abordar essas obras, apresentando alguns exemplos de aulas e
atividades da disciplina mencionada, oferecida em diferentes semestres, a alunos de
Graduação provenientes de todas as unidades da universidade.
PALAVRAS-CHAVE: Intermidialidade. Ensino. Literatura. Shakespeare. William Blake. Niyi
Osundare.
ABSTRACT: This text deals with the replacement of two disciplines (English Literature and
North-American Literature) by another with a different title and a different content:
Literatures in English. It also mentions a new discipline, Introduction to Intermediality, its
creation and transformations undergone for years. It discusses the term intermediality as a
tool for the analysis of works in English, canonical or not, produced in Anglophonic
countries. Eventually it suggests a new way of dealing with those works, presenting some
examples of classes and activities of the abovementioned discipline, offered in different
terms, to undergraduate students from all units of the University.
KEYWORDS: Intermediality. Teaching. Literature. Shakespeare. William Blake. Niyi
Osundare.
* Thaïs Flores Nogueira Diniz, Professora aposentada pela Universidade Federal de Minas Gerais. ORCID: 00000002-4726-8536. E-mail: tfndiniz(AT)terra.com.br
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1 Introdução
Até o século XIX, a língua inglesa era considerada como um monumento imutável e de
posição invejável. Dando apoio a essa posição, Bernard Shaw escreveu a peça Pygmalion, que
defendia a ideia de que era preciso falar a língua inglesa sem nenhum sotaque para pertencer
à classe dominante na Inglaterra. A obra do dramaturgo inglês conta a história de Eliza
Doolitle, uma pobre moça que vendia flores nas ruas de Londres. Um professor de fonética,
ao ouvir o sotaque da moça, aposta com seu amigo que é capaz de transformar uma simples
vendedora de flores numa dama da alta sociedade apenas ensinando-a a falar a língua correta
e vence o desafio.
Um outro exemplo de que a língua protagonizava a divisão de classes era o “RP”
(received pronunciation), cuja preocupação era com a pronúncia, também denominada de
BBC English, (Standard British Pronunciation ou Southern English Pronunciation) mas que
focava também na gramática, no vocabulário e na escrita. Dentro da Inglaterra, o maior grau
de prestígio era associado a qualquer fala que não tivesse nenhum sotaque regional, já que se
presumia que poder-se-ia determinar a região à qual o falante pertencia. Por décadas as
mídias (o rádio e principalmente a TV) forneceram diariamente para toda a nação a fala dos
que tinham posição de alto prestígio. Hoje a situação mudou e as sanções sociais contra as
falas linguisticamente diferentes desapareceram. Pessoas com sotaques regionais ocupam
posições de prestígio, o que enfraqueceu a velha associação de autoridade exclusivamente
com sotaque não-regional.
Essa posição privilegiada da língua inglesa no mundo começou a ruir sob o peso do
Imperialismo: a língua falada na BBC foi sendo substituída por variações mais ou menos
distintas contra os quais não mais existe o preconceito. Muitas obras literárias, escritas nessas
variações da língua inglesa, passaram a ser abordadas nos departamentos de literatura. São
obras literárias de autores oriundos principalmente das colônias inglesas: peças teatrais da
África do Sul, romances da Índia, poemas do Caribe, além de outras. O conhecimento dessas
obras fez com que o estudo tradicional da chamada Literatura Inglesa passasse a ter outro
foco acarretando assim uma transformação radical nos currículos escolares. Hoje, nas
Faculdades de Letras, a disciplina que estuda muitas dessas obras – sejam elas canônicas ou
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não, escritas no Canadá, Caribe, Austrália, África, ou nos Estados Unidos e no Reino Unido – é
denominada de Literaturas de expressão inglesa.
Por outro lado, Stephen Greenblat (1997, p. 13-15) questiona a validade dos estudos
tradicionais compartimentalizados em disciplinas específicas e em departamentos estanques,
afirmando que há o desejo de transcender limites disciplinares. O teórico aponta então a
intermidialidade como um conceito (e também uma ferramenta de crítica) adotado hoje
como meio de ligar o estudo de tais obras à crítica, ao pensamento estético e à própria
prática artística. Assim, o estudo de obras ditas intermidiáticas vem ampliar e enriquecer os
currículos dos cursos de Letras ao produzir uma concepção inovadora do potencial
intermidiático entre a literatura e as artes e mídias. Segundo ele, promover estratégias
críticas interdisciplinares é o desafio dos acadêmicos de hoje. Em consequência, a
investigação sobre as relações entre texto e as outras artes e mídias torna-se inevitável.
A TV, o cinema, a música popular, as instalações, as imagens computadorizadas, a
videoarte, a arte digital etc., derivam, como no teatro elizabetano, da interseção das artes e
mídias (palavras, imagens, música, dança). São empreendimentos que dependem de
criadores/artistas com diferentes especializações e que conversam entre si. Os estudiosos
procuram valer-se dessas várias habilidades para compreender os objetos/produtos culturais
contemporâneos: os filmes que os jovens assistem, os hipertextos que eles baixam na
internet, as vídeo instalações que encontram nos museus e o tipo de performance do teatro
de hoje. É preciso, portanto, haver uma interação inovadora com a tradição, para criar um
movimento em direção a esse novo alinhamento intermidiático e híbrido.
O interesse pelo estudo de obras em língua inglesa em geral e sua associação com
outros produtos culturais surgiu, portanto, sob a pressão desses novos alinhamentos
culturais: obras menos anglocêntricas e o conceito de intermidialidade. Na Faculdade de
Letras da UFMG, esse tipo de estudo já acontece desde o ano 2000, quando houve uma
modificação radical no currículo do Curso de Letras, com a abolição dos Departamentos e a
criação de muitas disciplinas dentro desses novos parâmetros.
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2 Introdução à Intermidialidade
Entre essas disciplinas, citamos a criação, após a visita do Prof. Claus Clüver1 em 2005,
de uma que hoje é ofertada para todas as unidades da Universidade, a UNI 004: Introdução à
Intermidialidade. Foi pensada pelos membros do Grupo de pesquisa ali formado, o
Intermidia2, com o objetivo de introduzir um estudo que tentasse solucionar problemas de
nomenclatura e agrupasse professores que tivessem, além de algo comum entre suas
pesquisas, um novo olhar sobre as obras das Literaturas de expressão inglesa e também de
outras línguas. A disciplina foi inicialmente oferecida em 2006 pelos professores do grupo que
apresentaram aos alunos um relato de suas pesquisas. Foram convidados docentes que
trabalhassem especificamente com a relação entre a literatura e as artes visuais, a música, o
teatro e o cinema. Pensando na função e objetivos da disciplina e em quem seriam os
ministrantes, passou-se a pensar nas configurações que seriam estudadas, em suas categorias
e modos de interações e nos métodos a serem adotados. O “close reading”3, juntamente com
uma abordagem semiótica, foram os métodos escolhidos para a investigação das
interrelações entre essas configurações, por meio de análise, interpretação, paralelos e
analogias, além da comparação e contraste entre elas.
A partir de 2009, a disciplina passou a ser oferecida em módulos, cada um tendo como
responsável um professor de cada uma das áreas envolvidas: Letras, Belas Artes, Música e
Comunicação. A ementa “iniciar os alunos no estudo das artes visuais, literatura, música e
mídias, desenvolvendo neles competências básicas para a leitura e análise de obras em mídias
variadas, bem como de suas combinações e interações” passou a nortear a disciplina que não
mais dividiu as aulas por área e sim por processos. Inicialmente, os módulos contemplavam as
categorias propostas por Leo H. Hoek4, que tratava da classificação das relações possíveis
Professor Emérito de Literatura Comparada pela Universidade de Indiana, Indiana, EUA. Mais informações
disponíveis em: https://clacs.indiana.edu/about/faculty/cluver-claus.html.
2
Mais
informações
disponíveis
em:
http://www.letras.ufmg.br/nucleos/intermidia/
e
http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/24246.
3
Na crítica literária, a leitura atenta é a interpretação cuidadosa e sustentada de uma breve passagem de um
texto. Uma leitura atenta enfatiza o único e o particular sobre o geral, efetuados com muita atenção às palavras
individuais, a sintaxe, a ordem em que as frases se desenrolam e as estruturas formais.
4
Para Leo Hoek, a relação entre texto e imagem pode ser estudada sob duas perspectivas diferentes: sob o
ponto de vista da produção, onde texto e imagem são marcados pela sucessividade e sob o ponto de vista da
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entre texto e imagem, relação que dependia da situação de comunicação relacionada tanto à
produção quanto à recepção. Como a classificação de Hoek (2006) era muito detalhada, os
módulos, a partir de 2010, passaram a usar as categorias propostas por Irina Rajewsky5 , que
eram mais simples e abrangiam praticamente todos os textos híbridos.
QUADRO 1: Disciplina Introdução à Intermidialidade UNI 004
Módulo 1
Introdução
Módulo 2
Fusão
Módulo 3
Transposição
Módulo 4
Intermidialidade
digital
Aula 1: Aspectos da intermidialidade: Imagem, combinação palavra/imagem
Aula 2: Transposição x Intermídia/música
Aula 3: Intermidialidade / intertextualidade/ intersemioticidade / estudos
interartes
Aula 4: Intertextualidade intermidiática
Aula 5: Textos e gêneros multimídia e mixmídias: cartaz, publicidade na TV,
selo postal, emblema, livro de artista, história em quadrinhos
Aula 6: Textos e gêneros multimídias, mixmídias e intermídias:
Aula 7: artes visuais e artes cênicas; “performance”; instalações; artes
plásticas e músicas; música eletrônica x palavras
Aula 8: Textos intermídias: poesia visual, poesia concreta, poesia sonora,
“carmina figurata”, logotipos
Aula 9: O papel do “leitor”: écfrase e ilustração
Aula 10: A adaptação cinematográfica
Aula 11: Palavras nas imagens/imagens em textos verbais/pintores e pinturas
na literatura; Espaço/ tempo/ narratividade/ representação
Aula 12: Imitação genérica: o retrato, a fotonovela, a fuga e a paisagem
Aula 13: Adaptação e imitação entre mídias
Aula 14: colagem e montagem nas artes plásticas e em outras mídias
Aula 15: Midialidade e tecnologia: a criação de novas linguagens através de
novos meios de comunicação
Aula 16: vídeo e vídeo arte, poesia digital e biopoesia.
Fonte: elaborado pela autora.
recepção, onde texto e imagem são simultâneos ou imediatamente justapostos. Ele enfatiza a importância da
distinção entre esses dois processos para a classificação das relações entre texto e imagem, utilizando critérios
como a primazia da imagem, a primazia do texto ou a simultaneidade. HOEK, Leo. A transposição intersemiótica:
por uma classificação pragmática. In: ARBEX, Márcia. Poéticas do visível. Belo Horizonte: Programa de PósGraduação em Estudos Literários, Faculdade de Letras, UFMG, 2006, p. 167-190. Disponível em:
http://www.letras.ufmg.br/site/e-livros/Po%C3%A9ticas%20do%20vis%C3%ADvel%20%20ensaios%20sobre%20a%20escrita%20e%20a%20imagem.pdf. Acesso: 12 de nov. 2020.
5
Para Irina Rajewsky, existem três categorias para classificar a relação entre texto e imagem: transposição,
combinação e referência intermidiática. No primeiro caso, um texto desaparece para se tornar outro. No
segundo caso, os dois textos se unem em um só. E no caso das referências intermidiáticas, há em um único texto
a referência a outra mídia, porém o texto não perde a sua essência. RAJEWSKY, Irina. Intermidialidade,
Intertextualidade e “remediação”: uma perspectiva literária sobre a intermidialidade. Tradução de Thaïs Diniz e
Eliana Lourenço Lima Reis. In: Diniz, Thaïs F. N. (Org.). Intermidialidade e estudos interartes: desafios da arte
contemporânea. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012, p. 15-45.
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A ementa foi sofrendo algumas alterações e atualmente, ao contemplar processos e
não apenas áreas, a disciplina continua sendo oferecida regularmente na UFMG, ainda em
módulos, porém cada docente responsável por um módulo propõe análises de textos
constituídos dentro das mais variadas mídias e interrelacionados de várias maneiras,
procurando aliar o conceito de intermidialidade também ao estudo de obras não canônicas.
3 Shakespeare e a Intermidialidade
Um exemplo desse novo olhar sobre as obras das Literaturas de expressão inglesa é o
estudo que se faz de Shakespeare. Como não temos ideia de como suas peças eram
encenadas, temos de nos valer dos textos escritos que, por si só, não contam toda a história.
As peças, como sabemos, não eram simplesmente lidas, mas assistidas no palco, momento
em que a combinação das palavras e imagens, conjugadas, era recebida pelos espectadores.
Por isso, é impossível considerar suas peças como conjuntos de palavras numa página
desvinculados de qualquer outra forma de expressão já que outros fatores influenciaram a
recepção (a encenação, a censura, o travestimento e os próprios figurinos).
Para ilustrar o estudo de Shakespeare sob essa nova perspectiva, descrevo as
atividades de uma aula ministrada, dentro da disciplina UNI 004, baseada em um dos
episódios de Hamlet que aguça a curiosidade dos alunos quando estudam essa peça. Este
episódio relaciona-se à personagem Gertrudes que, embora seja uma figura central na peça,
não se conhece realmente quais são seus sentimentos e motivações. Para Hamlet, ela teria se
casado muito às pressas com o cunhado, mas não há, no texto, evidência de seu
conhecimento sobre o assassinato do rei. Para aumentar ainda mais a curiosidade dos leitores,
Shakespeare introduziu uma cena em que toda a Corte se reúne para assistir a uma peça de
teatro, encomendada por Hamlet. Esta descrevia a forma como teria se dado um assassinato,
muito semelhante ao que se presume tenha acontecido na Corte. Os espectadores de
Shakespeare sabem ser este o plano de Hamlet para desmascarar o tio e, quem sabe, expor a
possível culpa de Gertrudes. A questão que se põe é saber se a rainha tinha ou não
conhecimento do que de fato acontecera, o que deixaria em dúvida sua culpa. As
interpretações possíveis variam desde a completa inocência de Gertrudes até sua total culpa.
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Para discutir esse assunto, são apresentadas aos alunos duas pinturas famosas que
ilustram perspectivas totalmente opostas do mesmo episódio – The Play Scene in Hamlet, de
Daniel Maclise (Figura 1) e Hamlet, de Edwin Abbey (Figura 2).
FIGURA 1: The Play Scene in Hamlet, de Daniel Maclise, (1842). Óleo sobre tela 60’
x 108’ - Tate Gallery, Londres, Reino Unido.
Fonte: https://www.tate.org.uk/art/artworks/maclise-the-play-scene-in-hamlet-n00422
Na pintura de Maclise (Figura 1), todos os personagens, exceto Hamlet e Horácio que
têm o olhar fixo em Cláudio, olham para o palco ao fundo do quadro. Apesar da imagem de
Caim e Abel ali exposta, da sombra aterrorizante na parede e da reação conturbada de
Cláudio – elementos que poderiam causar desconforto numa Gertrudes culpada – ela se acha
sentada serenamente, assistindo à peça, sem nenhuma expressão de angústia ou medo. Além
disso parece não perceber o mal-estar do marido. A pintura, portanto, reflete a interpretação
dos Românticos: uma Gertrudes inocente que não suspeita de Cláudio e nem do assassinato
em si.
O desafio de Abbey (Figura 2) foi evitar duplicar a famosa pintura de Maclise. Sua
solução foi inovadora. Os figurantes olham para fora do quadro, onde se espera que a
encenação, fora do alcance visual do espectador, esteja acontecendo, enquanto Cláudio é
observado por Hamlet. A ênfase então é dada à reação dos personagens, colocados no centro
da pintura. Nesta obra, além da composição totalmente diferente, Gertrudes não se
assemelha à mulher serena da tela de Maclise: ela se encontra afastada de Cláudio, encolhida
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num canto, escondendo o rosto sob um véu negro. Sua reação e a distância interposta entre
ela e o marido sugerem estar ela a par do significado da peça a que assistem. O artista deixa,
portanto, indícios de uma Gertrudes culpada.
FIGURA 2: Hamlet, de Edwin Austin Abbey (1897). Óleo sobre tela-61.25 'x 96.5',
The Edwin Abbey. Memorial Collection, Yale University, New Haven, Connecticut,
EUA.
Fonte: https://www.wikiart.org/pt/edwin-austin-abbey/the-play-scene-in-hamlet-1897
Estudar essa obra comparando a cena teatral por meio das duas pinturas evidencia
quão versátil e sujeita a interpretações a peça demonstra ser. Embora não haja no texto
nenhuma pista da culpa de Gertrudes, os artistas, com sua arte, conseguem expor seu ponto
de vista. Os alunos se mostraram bastante entusiasmados com as possibilidades de
interpretação do texto escrito por meio das pinturas.
4 Poetas canônicos e contemporâneos
O estudo de muitos outros autores, não só os canônicos, mas também escritores das
literaturas das colônias, foi realizado também sob esse novo enfoque, com muito sucesso,
aprovação e interesse por parte dos alunos. É o caso de um poeta canônico da literatura
inglesa, William Blake, e um poeta nigeriano contemporâneo, não canônico, Niyi Osundare,
abordados em aulas da disciplina acima mencionada. Ambos criaram poemas de resistência,
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às vezes mais velada, outras vezes mais explícita, mas frequentemente ligados a obras de arte
visuais.
William Blake
Como tinha grande talento verbal e visual, William Blake (1757-1827) começou a
combinar palavras e imagens em uma nova forma: a impressão de iluminuras. Entre essas,
destaca-se a placa 39, “Sick Rose”, composta de um pequeno poema inserido numa lâmina,
com desenhos que o emolduram 6 . Neste curto e lindo poema William Blake usa
conscientemente a personificação onde qualidades humanas são atribuídas à “rosa” e ao
“verme”. Os sentidos morais, emocionais e sensuais são simbolizados: a rosa fica doente e o
verme tem o poder de “fazer amor” e “encontrar o leito”. Superficialmente o poema trata de
uma rosa e um verme, mas é óbvio que existe um significado escondido. O verme pode
simbolizar o mal, sugerido também pelas palavras: sick, worm, night, howling storm, dark,
secret, destroy. Oferece ainda ideias de luxúria, pecado, destruição, corrupção e morte. Já a
rosa sugere pureza, inocência, beleza, ignorância. A rosa inocente é arruinada pelo verme
experiente.
As situações descritas são simbólicas, significam mais do que se pode inferir e o poeta
usa o contraste como um recurso poético para transmitir sua ideia.
QUADRO 2: A Rosa Doente, poema de William Blake
The Sick Rose
William Blake
O Rose thou art sick.
The invisible worm,
That flies in the night
In the howling storm:
Has found out thy bed
Of crimson joy:
And his dark secret love
Does thy life destroy.
Fonte: elaborado pela autora.
A rosa doente
Tradução de Augusto de Campos
Ó Rosa, estás doente!
Um verme pela treva
Voa invisivelmente
O vento que uiva o leva:
Ao velado veludo
Do fundo do teu centro:
Seu escuro amor mudo
Te rói desde dentro.
Uma análise mais completa desse poema encontra-se no artigo de minha autoria, intitulado “‘A rosa doente’
dos tempos modernos”, publicado no Letras: Revista do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade
Federal de Santa Maria, n. 51, dez 2015, p. 71-82.
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No poema, expresso de forma concisa, a voz lírica dirige-se a uma rosa, doente por ter
um verme invisível penetrado em seu leito de “alegria rubra” [of crimson joy]. A rosa pode
simbolizar o amor terreno, em oposição ao espiritual, que se torna também doente quando
infectado pelo materialismo do mundo. Mas o leito de alegria rubra pode conotar também
uma imagem sexual. É o “amor sombrio e secreto” [his dark secret Love] que destrói a vida da
flor, sugerindo algo pecaminoso e inominável.
À primeira leitura, o poema parece bastante simples. Mas essa aparente simplicidade
nos engana, pois muitas de suas palavras têm um duplo sentido ou são ambíguas e a moldura
que o circunda ainda adiciona vários significados.
FIGURA 3: Plate 39. Blake, William. Songs of Innocence and of Experience, copy AA,
Object 39 1826 (The Fitzwilliam Museum).
Fonte:
https://commons.m.wikimedia.org/wiki/File:Songs_of_Innocence_and_of_
Experience, _copy_AA,_1826_(The_Fitzwilliam_Museum)_object_39_The_Sick_Rose.jpg
A página do poema tem a borda iluminada na qual podem-se ver três botões de rosa.
Do primeiro, ainda fechado, emerge a figura de uma mulher com os braços estendidos; o
segundo botão, já murcho, confunde-se com a imagem de uma mulher de joelhos, em atitude
de dor ou de arrependimento. Já o terceiro, totalmente destruído, mistura-se ao corpo
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dilacerado de uma mulher. Os três podem significar o ciclo de uma doença: o verme penetra
a rosa, instala-se nela e, por fim, a destrói, sugerindo, portanto, o ciclo da morte.
Muito já se estudou sobre essa lâmina que pode ser lida tanto como uma parábola dos
efeitos perniciosos da repressão sexual quanto como uma discussão radical que celebra a
energia sexual contra uma doutrina repressiva, considerações essas que se referem a
elementos intrínsecos ao poema e à ilustração que o acompanha.
Entretanto, Jon Mee (1998), em sua análise, amplia esse contexto, insinuando que
“The Sick Rose” seja também um sinal dos tempos, um diálogo com a história e uma
afirmação sobre o estado corrupto da nação. Isso permite ler o poema também como uma
reação à situação cultural específica de Blake: sua voz que associava a rosa com a “rosa da
Inglaterra” ou rosa dos Tudors.
Para ler o poema como um texto que dá suporte à ressonância histórica, o crítico
referiu-se a dois poemas satíricos escritos para um jornal radical da época. Destinavam-se a
criticar o jornalista George Rose, um dos secretários do Tesouro que fora acusado de
“subsidiar jornais, atrair escritores para escrever panfletos e comprar votos, tudo com
dinheiro do tesouro”7. Na análise de Mee, a associação rosa/nação tem a ver com o episódio
de Rose. Para Blake, a (R)osa [numa alusão a George Rose] seria o primeiro signo da
corrupção dos tempos da política. Seu crime não seria uma contravenção individual, mas
emblemática de uma corrupção muito maior, um veneno invisível que abria caminho em
direção ao corpo (político).
Nos escritos do panfleto que se refere ao episódio de George Rose, as palavras “secret
influence” [influência secreta] e “invisible corruption” [corrupção invisível] nos remetem ao
“invisible worm” e ao “dark secret love” do poema de Blake. A linguagem usada na
controvérsia sobre o jornalista pode ter influenciado Blake mas o paralelo com a linguagem
do poema mostra-se ainda mais contundente quando o autor se refere ao fato de que o
governo enviou “agentes do tesouro, com veneno nos bolsos, para destruir cada faísca de
liberdade que eles pudessem encontrar e fazer voar pelos ares os botões entreabertos da
Minha tradução do original: “… he subsidized newspapers, engaged writers, contracted for pamphlets (…)
purchased votes (…) all with Treasury money” (apud MEE, p. 113).
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integridade8”. A mulher que escapa do botão no desenho de Blake pode ser identificada com
a figura da liberdade que abandona a rosa da Inglaterra, permitindo que o poema se
configure como uma visão da corrupção da sociedade contemporânea.
Na avaliação da aula pelos alunos, concluiu-se que o estudo desse poema em suas
características intrínsecas associadas à análise da obra visual, mas também em seu contexto,
contribuiu para um melhor entendimento da obra, além de fornecer pistas para as razões
pelas quais o escritor escolheu o tema e o adaptou para o seu momento histórico.
Niyi Osundare
Niyi Osundare é um dos mais expressivos poetas nigerianos da contemporaneidade,
uma das vozes africanas mais notáveis. Tornou-se reconhecido pelo seu talento em falar a
verdade ao poder, mesmo às custas de grande coragem. Seu poema, “Berlin 1884-5”, fala da
ferida causada pela Partilha da África, fato histórico resultante da industrialização do
continente europeu no século XIX, quando o território africano tornou-se objeto de interesse
para as potências europeias. Denominado Conferência de Berlim, o encontro entre as nações
interessadas se propunha a uma missão civilizatória, mas seu verdadeiro objetivo era a
ocupação e a divisão dos territórios africanos entre as nações europeias. Essa reunião
representou um enorme surto neocolonialista tendo, como consequência, o que chamamos
de Partilha da África (Scramble for Africa) em que os europeus, ao afirmarem arbitrariamente
seus interesses nas colônias, romperam fronteiras e agrupamentos étnicos tradicionalmente
estabelecidos, causando problemas gravíssimos e conflitos entre os povos africanos.
Minha tradução do original: “Treasury Agents, with poison in their purses, to destroy every spark of freedom
they may meet, and to blast the opening blossoms of integrity” (apud MEE, p. 116).
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QUADRO 3: “Berlin 1884”, poema de Nyi Osundare
Berlim 1884-5
Berlim 1884-5 (tradução minha)
I looked round for vendors of my own past,
Procurei em volta pelos vendedores do meu
passado
Por aquele lugar onde, há muito tempo,
Meu continente foi fatiado como manga suculenta
Para amainar a disputa entre irmãos estrangeiros
Procurei pela faca que desferiu o golpe.
Quantos reinos seguraram o cabo?
A ameaça de sua lâmina
A sabedoria dos poderosos que plantaram
O mapa antes do homem;
A arrogância cruel do Império,
Dos reis/rainhas que se apoderaram de rios e
montanhas
De outros povos, outros deuses e outras histórias.
For that Hall where, many seasons ago,
My Continent was sliced up like a juicy mango
To quell the quarrel of alien siblings
I looked for the knife which exacted the rift
How many kingdoms held its handle?
The bravado of its blade
The wisdom of potentates who put
The map before the man
The cruel arrogance of empire,
Of kings/queens who laid claim to rivers, to
mountains,
To other peoples and other gods and other
histories
And they who went to bed under one
conqueror's flag,
Waking up the next beneath the shadows of
another
Their ears twisted to the syllable of alien
tongues
Gunboats
Territories of terror...
Oh that map, that knife, those contending
emperors
These bleeding scars in a Continent's soul,
Insisting on a millennium of healing
Fonte: elaborado pela autora.
E aqueles que dormiram sob a bandeira de um
colonizador
Acordando no dia seguinte à sombra de outra
Tiveram os ouvidos adaptados ao som das línguas
estrangeiras
Canhoneiras
Territórios de terror...
Oh! Aquele mapa, aquela faca, aqueles monarcas
rivais
Essas cicatrizes sangrentas na alma de um
continente
Insistindo em um milênio de cura.
Nesse poema, Niyi Osundare critica a partilha da Africa, referindo-se àqueles que
“venderam seu passado e fatiaram suas terras”, e menciona tanto as mãos que “seguraram a
faca que cindiu seu país” quanto aqueles que puseram “o mapa antes do homem”. Condena
ainda a arrogância cruel do Império e lamenta as feridas na alma do continente que, em
agonia, ainda insiste na cura.
Esse triste episódio tem inspirado muitos outros poetas e também artistas
contemporâneos, como o nigeriano Yinka Shonibare, que se diz um ser híbrido e usa sua arte
como resistência. Sua obra, visualmente versátil, engloba pinturas, filmes fotografias e
instalações, verdadeiras esculturas em fibra de vidro, que apresentam figuras humanas em
tamanho natural. O material usado parece simples, mas existe muito mais por trás dele. A
arte de Shonibare contém referências de todo o mundo e combina detalhes que alcançam
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séculos. Entre as questões globais contemporâneas exploradas pelo artista estão a escassez
de água no planeta, a mudança climática e as questões raciais e de classes.
Uma de suas instalações, The Scramble for Africa (2003) reimagina dramaticamente a
Conferência de Berlim.
As posturas teatrais das figuras acéfalas (estilo do autor) insinuam as intrigas políticas
e a falta de escrúpulos responsáveis pela disputa caótica, que Bismark tentava solucionar,
entre os europeus. The Scramble for Africa é fundamental para simbolizar a exploração da
Inglaterra vitoriana e sua expansão territorial, legado do Colonialismo que Shonibare procura
explorar. Essa obra se constitui de um grande mapa da Africa sobre uma mesa em volta da
qual se amontoam os manequins/estadistas tentando avidamente delimitar o objeto de suas
reivindicações. Aqui verdadeiramente o mapa teve prioridade sobre o homem.
FIGURA 5: “Scramble for Africa”, de Yinka Shonibare (2O03). Instalação em tamanho natural composta
por 14 manequins em fibra de vidro, 14 cadeiras, 1 mesa, batik em algodão. The Pinnell Collection,
Dallas, Texas, EUA.
Fonte: https://africa.si.edu/exhibits/shonibare/scramble.html
Segundo os alunos, a análise do poema, associada ao estudo da obra do artista
nigeriano em suas características que sutilmente denunciam o colonialismo, promoveu uma
compreensão maior do poema, mas também dos elementos que subjazem a expressões
artísticas como essa.
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5 Considerações finais
Os exemplos de análise ilustrados aqui comprovam que as obras literárias têm sido
traduzidas/adaptadas com bastante criatividade para várias mídias e para outras formas de
discurso. Demonstram ainda que, mesmo que sejam criadas inicialmente em sistemas verbais,
podem ser estudadas/abordadas/analisadas em conjunção com suas adaptações/traduções/
transposições em outros sistemas midiáticos. Esse tipo de estudo facilita a compreensão
tanto das razões pelas quais as obras foram criadas quanto do entendimento da visão de
mundo que, na voz de seus reescritores, está por trás de suas traduções.
Esses exemplos demonstram ainda que a leitura de textos de literaturas de expressão
inglesa (e, por extensão de outras literaturas) pode ser feito em conjunção com o estudo de
peças artísticas a eles relacionadas com grande proveito e mesmo prazer para os alunos.
Referências
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Recebido em: 25.11.2020
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Aprovado em: 29.01.2021
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