Francesco Napoli
Luigi Pareyson e a estética da formatividade:
um estudo de sua aplicabilidade à poética do ready-made
Ouro Preto
2008
II
Francesco Napoli
Luigi Pareyson e a estética da formatividade:
um estudo de sua aplicabilidade à poética do ready-made
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado do
Instituto de Filosofia, Artes e Cultura da
Universidade Federal de Ouro Preto, como requisito
parcial à obtenção do título de Mestre em Filosofia.
Área de Concentração: Estética e Filosofia da Arte
Orientador: Prof. Dr. Romero Alves Freitas
Ouro Preto
Instituto de Filosofia, Artes e Cultura – IFAC/UFOP
2008
III
II
Francesco Napoli
Luigi Pareyson e a estética da formatividade: um estudo de sua aplicabilidade à poética do
ready-made
Dissertação de mestrado apresentada no Instituto de Filosofia Artes e Cultura da Universidade
Federal de Ouro Preto.
Ouro Preto, 2008.
_____________________________________________
Romero Alves Freitas (orientador) UFOP
______________________________________________
Virginia de Araujo Figueiredo UFMG
_______________________________________________
Helio Lopes da Silva UFOP
II
III
Em homenagem à professora Sandra Abdo,
por ter motivado este trabalho e por ter dedicado sua
vida ao estudo da filosofia de Luigi Pareyson.
III
IV
Não tem solução porque não tem problema.
Marcel Duchamp
IV
V
AGRADECIMENTOS
Àqueles que acompanharam o processo de produção deste trabalho e que de alguma
forma contribuíram para o resultado.
Ao meu orientador Romero Alves Freitas, que se identificou com a proposta deste
trabalho e que a ele se dedicou com afinco e amizade.
Aos colegas de mestrado, em especial: Rúbia Oliveira, pela grandiosa amizade e pelos
apontamentos sobre Sartre; Adriane Pisane, pela amizade, discussões e enriquecimentos
gerados em parceria, e José Carlos, pela afinidade intelectual desenvolvida e exemplaridade
de conduta acadêmica.
Aos professores José Luis Furtado, Imaculada Kangussu, Olímpio Pimenta, pelos
valiosos ensinamentos e frutíferas reflexões em suas deliciosas aulas.
À Renata Gabriel de Oliveira, que, na ausência da professora Sandra, se dedicou com
o mesmo esmero e carinho.
A todos os funcionários do IFAC, que acolhem os alunos como membros de uma
verdadeira família, criando um clima de aconchego e amizade.
Aos amigos sempre presentes, pelo apoio e compreensão. Em especial, a Carlos
Wagner e Reginaldo Horta, pelo convívio de exuberância intelectual.
Ao Giovane Gomes, pelas ricas conversas, pela sua generosidade e pelo seu interesse.
Aos meus pais, Franco e Lúcia, aos quais devo tudo o que sou; aos meus irmãos,
Naiara, Carla Jorge e Giulia; ao Cristiano e aos meus nonno e nonna, pelo carinho.
À Benta Maria, pela ajuda metodológica e pelo incentivo acadêmico.
À Poliana Príncipa, pela paciência, amor, carinho e dedicação.
À Luciana Peixoto, pela competência e esmero para revisar este trabalho.
V
VI
E, em especial, à professora Sandra Abdo, que me apresentou o pensamento de
Pareyson, me incentivou e guiou em meus primeiros passos e está presente em pensamento
em todo este trabalho.
VI
VII
RESUMO
Diante da dificuldade de análise das vanguardas artísticas pelo viés das estéticas tradicionais,
pretende-se aproximar uma estética contemporânea de uma poética que representa uma
verdadeira ruptura na história da arte. Luigi Pareyson propõe que se pense a arte a partir da
ótica do artista, mas sem perder o caráter filosófico que a estética exige. Desse modo, a
Estética da Formatividade se mostra inovadora e passível de ser aproximada de uma poética
difícil de ser analisada pelas estéticas tradicionais: o ready-made de Marcel Duchamp. Por
meio da Teoria da Formatividade é possível esmaecer a rígida distinção entre arte e não-arte,
aproximando a arte da vida cotidiana sem retirar o caráter de autonomia da autêntica arte. Ao
deslocar objetos cotidianos para o âmbito da arte, Duchamp recria o conceito de arte e
reinventa o modo de conceber a arte ao negá-la. Através da estética da formatividade pode-se
fazer uma rica leitura desta poética, além de elucidar os conceitos pareysonianos por meio de
uma instigante aplicação.
Palavras -chave
formatividade, ready made, fenomenologia, processo artístico.
VII
VIII
ABSTRACT
In the face of the difficulty of analyzing the art avant-gardes through the traditional aesthetics
slant, in this work, it is intended to get closer to a poetics’ contemporary aesthetics that
represents a real rupture in the history of art. Luigi Pareyson proposes thinking art from the
artist’s viewpoint, without losing the philosophical nature that aesthetics demands. The
aesthetics of formability shows to be innovative and susceptible to be brought near to a
poetics that is hard to be analyzed through conventional aesthetics: Marcel Duchamp’s readymade. Through the theory of formability it is possible to fade the strict distinction between art
and non-art, getting art closer to daily life without taking its autonomy nature away from the
authentic art. By moving every-day objects to the art level, Duchamp recreates the concept of
art and reinvents the way of conceiving art by denying it. Through the theory of formability
one can have a plentiful reading of this poetics, beyond elucidating the pareysonian concepts
through an interesting application.
Key-words
Formability, ready made, phenomenology, artistic process.
VIII
IX
SUMÁRIO
LISTA DE ILUSTRAÇÕES…..……………………………………………………………..11
APRESENTAÇÃO .................................................................................................................12
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................15
1. Um breve cotejo entre duas estéticas: Luigi Pareyson e Benedetto Croce...........................19
1.1. Contextualizando a Teoria da Formatividade................................................................19
1.2. Croce e a arte como expressão ................................................................……………..20
1.3. Pareyson e Croce aproximações e distanciamentos ......................................................25
2. A Teoria da Formatividade..................................................................................................32
2.1. Forma e Formatividade..................................................................................................32
2.1.1. As especificidades do conceito pareysoniano de forma....................................32
2.1.2. Um fazer que, enquanto faz, inventa o modo de fazer.................................... ..34
2.1.3. A arte e as atividades humanas..........................................................................36
2.1.4. Pareyson e Sartre: aproximações e distanciamentos...................................... ...39
2.1.5. Arte e Natureza ou Pareyson e o Romantismo..................................................45
2.1.6. Relações entre a obra, a vida do artista e o processo formativo........................52
2.2. O processo artístico........................................................................................................61
2.2.1. O spunto e a lei interna no processo artístico....................................................62
2.2.2. Forma-formante e forma-formada..................................................................... 64
2.2.3. A interpretação da arte.......................................................................................67
3. O ready-made à luz da teoria da formatividade...................................................................74
3.1. Marcel Duchamp e os ready-mades................................................................................74
3.2. Pareyson e os ready-mades ...........................................................................................77
3.3. O ready-made e o processo artístico.............................................................................81
IX
X
3.4. Arte natureza e técnica .................................................................................................87
3.5. Pareyson, Croce e o ready-made....................................................................................91
CONCLUSÃO.........................................................................................................................97
BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................................105
ANEXO 1 figuras. .................................................................................................................107
ANEXO 2 Tradução. .............................................................................................................114
.................................................................................................. Erro! Indicador não definido.
X
11
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
As imagens indicadas no corpo da dissertação encontram-se no anexo, conforme indicação
abaixo:
1. Figura 1......................................................................................................................107
Marcel Duchamp, Fonte, 1917/1964 Fountaine. Ready-made: urinol de porcelana,
36x48x61 cm Edição numerada.
2. Figura 2......................................................................................................................108
Marcel Duchamp, Roda de bicicleta, Bicycle Wheel, 1913/1964. Ready-made: roda de
bicicleta, diâmetro 64,8 cm, montada sobre um banco, 60,2 cm de altura. Original
desaparecido. Edição numerada.
3. Figura 3......................................................................................................................109
Marcel Duchamp, Nu descendo uma escada n° 2, 1912. Nu descendant um escalier. Óleo
sobre tela, 148x89 cm.
4. Figura 4......................................................................................................................110
Marcel Duchamp, 1914/1964. Ready-made. Porta Garrafas ou escorredor de garrafas ou
ouriço.
5. Figura 5......................................................................................................................111
Marcel Duchamp, Em previsão do braço partido, 1915. Ready-made. Pá de neve, madeira
e ferro galvanizado 132 cm. Edição numerada.
6. Figura 6......................................................................................................................112
Marcel Duchamp, Caixa em mala. 1935-41. Boite-em-valise. Caixa cartão com réplicas
em miniaturas, fotografias e reproduções a cores das obras de Duchamp. 40,7x38,1x10,2
cm.
7. Figura 7......................................................................................................................112
Regina Silveira, In Absentia M. D., 1983. Construída num espaço de 10x20m na Bienal de
São Paulo, em 1983, constituída das silhuetas monumentais de "Bicycle Wheel" roda de
bicicleta, estirada em oposição obliqua sobre o piso e a elevação de painéis que fechavam
o ambiente. Consiste em sombras fictícias que ilusoriamente partiam de duas bases de
escultura absolutamente vazias e que se distorciam, desafiando a percepção conforme os
pontos de distância do olhar.
8. Figura 8......................................................................................................................113
Marcel Duchamp, A noiva despida por seus celibatários mesmo, ou grande vidro, 915/23.
La mariée mise a nu par sés celibataires, même, ou Lê grand Verre. Óleo, verniz, folha de
chumbo, arame de chumbo e pó sobre painéis de vidro montados em alumínio, madeira e
molduras de aço, 277x175, 8 cm.
11
12
APRESENTAÇÃO
A escolha do tema do presente trabalho relaciona-se diretamente com a formação
artística de quem o escreve. O autor desta dissertação, desde que começou a desenvolver a sua
aptidão pela arte e a fazer seus próprios trabalhos artísticos, concentrados principalmente na
música e na poesia, fomenta um interesse por temas como experimentalismo, improviso,
inovações de linguagens, subversão e dadaísmo surgiu e motivou a escolha do presente tema.
Nesta dissertação, há a intenção de unir a paixão do estudante pela filosofia aos seus
interesses artísticos – neste sentido, uma análise filosófica de uma vanguarda pareceu
adequada e interessante. Ao apresentar o filósofo italiano Luigi Pareyson e sua Teoria da
Formatividade, Sandra Abdo, professora do departamento de filosofia da FAFICH/UFMG,
despertou no aluno um interesse acerca de tal teoria, justamente pelo fato de o autor desta
analisar de forma detalhada os pormenores do fazer artístico. Ao perceber a intenção de se
trabalhar filosoficamente uma vanguarda artística, a professora Sandra apoiou a utilização da
teoria da formatividade e a escolha de Marcel Duchamp como emblemático autor de gestos e
obras (ou obras que são gestos) decisivos para os rumos que a arte tomou na
contemporaneidade.
Pareyson nunca tratou diretamente do tema, mas parte-se do pressuposto de que os
argumentos singulares de sua teoria, ao esclarecerem questões específicas do fazer artístico,
apresentam um grande potencial para interpretar um artista tão complexo e mal interpretado
como Duchamp. Há, no modo de Pareyson tratar a arte, um gesto desmistificador – o que o
aproxima de Duchamp. E explicar uma teoria com um objeto em foco sempre torna o
processo menos árduo, na medida em que este serve de ilustração para a argumentação.
12
13
É claro que a teoria da formatividade está ligada à filosofia do Pareyson como um
todo, mas esta foi escrita de tal modo que pode ser estudada independentemente. Talvez isto
explique o fato de Pareyson, no Brasil ser mais lido nas academias de belas artes. Este aspecto
é perfeitamente coerente com o modo de Pareyson conceber a estética que, segundo ele, não
pode ser apenas um desdobramento de argumentos já formulados, provindos de um sistema
filosófico1. Esta característica nos permite destacar para este trabalho o conceito de
formatividade, não pretendendo aprofundar no específico posicionamento hermenêutico e
nem no personalismo ontológico pareysonianos. Estes temas serão tratados de modo coerente
de acordo com a necessidade, seguindo a receita de Pareyson, que consegue aprofundar-se nos
temas concernentes à arte sem depender de um sistema filosófico.
Este trabalho divide-se em três capítulos, tendo por objetivo principal elucidar os
principais temas da estética da formatividade e verificar sua aplicabilidade à poética
duchampiana do ready-made.
A introdução apresenta o filósofo italiano, contextualiza sua estética e exerce um papel
propedêutico, adentrando o seu ideário e tratando das concepções sobre a natureza, a função, a
amplitude e os limites da estética.
O capítulo I propõe um breve cotejo entre duas estéticas: Luigi Pareyson e Benedetto
Croce. Croce é a principal influência estética de Pareyson e suas idéias são o elemento central
de embate no processo de concepção da teoria da formatividade. Pareyson foi o primeiro
filósofo a escrever sobre existencialismo na Itália e, seguindo os preceitos fenomenológicos,
combate o neo-hegelianismo, representado na Itália por Benedetto Croce.
1
Este tema será desenvolvido na “Introdução” deste trabalho.
13
14
O capítulo II intitula-se “A Teoria da Formatividade” e vai direto ao ponto central
deste trabalho: o singular conceito pareysoniano de forma. Para desenvolver as explicações
optou-se por um estilo mais ensaístico, tratando dos temas de forma livre, pouco sistemática,
muitas vezes utilizando-se de diferentes argumentações para o mesmo conceito. Alguns
pensadores aos quais o ideário pareysoniano se aproxima foram utilizados para explicar a
teoria da formatividade, sem a pretensão de superá-los ou de teorizá-los a fundo, mas sim,
inserindo-os como suportes para a argumentação utilizada e como recurso didático, na medida
em que seus conceitos são vastamente conhecidos. Em alguns momentos, eles corroboram
Pareyson e, em outros, há um saudável embate.
O capítulo III explica a poética duchampiana do ready-made e utiliza os argumentos
pareysonianos para melhor entendê-la e, ao mesmo tempo, melhor entender a própria teoria da
formatividade. O objetivo é propor uma possibilidade de leitura de alguns ready-mades de
Duchamp, verificando se os conceitos pareysonianos esclarecem as propostas duchampianas.
Existem convergências e divergências, mas isso não desautoriza a proposta inicial, na medida
em que ambos os temas são riquíssimos e não há a intenção de exaurir a estética
pareysoniana, tampouco a poética de Duchamp.
Por fim, nas considerações finais, são recapitulados, de modo sintético, os aspectos
mais relevantes da teoria da formatividade e buscam-se conclusões sobre a proposta,
justificando as posições e propondo novas questões, quiçá para um futuro projeto de
doutoramento.
14
15
INTRODUÇÃO
Pareyson nasceu em 1918, em Piasco (Cuneo), valle d'Aosta. Na Universidade de
Turin, foi aluno de Augusto Guzzo, licenciando-se em 1939, com uma tese sobre Jaspers.
Lecionou e produziu abundantemente a vida inteira, fundou e dirigiu revistas de filosofia e foi
membro de academias e comitês de pesquisa. Era amigo de Gadamer e conheceu
pessoalmente Jaspers e Heidegger em suas viagens à Alemanha2. Teve dois discípulos
mundialmente famosos: Giovanni Vattimo e Umberto Eco. Os temas desenvolvidos na obra
Estética e Teoria da Formatividade foram publicados pela revista Filosofia, em artigos entre
1950 e 1954 – ano de publicação da obra completa.
Pareyson inicia um diálogo com os principais temas da estética de seu país, dominada
pelo ideário de Benedetto Croce. E, ao mesmo tempo, estabelece uma relação com as
correntes do pensamento europeu e americano da época. De início, a teoria da formatividade
busca sua identidade no equilíbrio e na ponderação entre estudos puramente teóricos e estudos
exclusivamente empíricos e particulares sobre a arte. Diz-nos Sandra Abdo: sua opção é pelo
diálogo – até então inexplorado – entre a estética e a experiência concreta dos artistas,
críticos e outros estudiosos do assunto 3. Seu objetivo era nitidamente pensar a arte a partir da
experiência mesma dos artistas, mas sem perder o caráter filosófico que a estética exige.
Para Pareyson, a Estética não pode depender de um sistema filosófico ulterior, nem
ficar no plano especulativo, distante da experiência artística. A proposta pareysoniana é a de
que se passe a pensar a arte inserida no e emergindo do mundo prosaico, para que se possa
2
Ver SARTO, Pablo Blanco. Hacer arte, interpretar el arte, p. 14.
3
ABDO, S. N. Autonomia da arte na estética da formatividade. 1992. 146 p. Dissertação (Mestrado em
Filosofia) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte,
p. 11.
15
16
enfrentar problemas que passam despercebidos na grande maioria das estéticas, como o
caráter fabril do processo artístico, a tentativa e o erro, o improviso, o aspecto material como
componente essencial da obra, coexistindo com seu aspecto espiritual e até mesmo a própria
idéia de criação. Nesse sentido, Pareyson afirma que antes de mais nada, a estética não é
parte da filosofia, mas a filosofia inteira concentrada sobre os problemas da beleza e da
arte4. O argumento central do filósofo italiano para buscar este equilíbrio está na idéia de que
a irredutível e constitutiva condição histórica de todo discurso humano não autoriza a
atribuição de um caráter empírico e não filosófico à estética. Pareyson questiona os discursos
apriorísticos, e, ao mesmo tempo, nega todo tipo de historicismo – ou seja, nega o saber
totalizante, sem se entregar ao relativismo. A chave para esta questão está na especificidade
do pensamento pareysoniano, no qual o aspecto hermenêutico é anterior ao aspecto racional
abstrato.
Também a interpretação é, ao mesmo tempo, revelativa e histórica porque, de uma parte, a
verdade só é acessível no interior de cada perspectiva singular, e esta, de outra parte, é a
própria situação histórica como via de acesso à verdade, de modo que só se pode revelar a
verdade determinando-a e formulando-a, coisa que acontece apenas pessoal e
historicamente.5
Portanto, a verdade da obra só é possível de ser conseguida a partir de nossa situação histórica
e irreproduzível, mas isto não se lhe retira o caráter de verdade, na medida em que este é o
nosso modo originário de acesso a ela: a interpretação. A filosofia tem a tarefa de chegar a
conclusões teóricas universais, extraindo seus dados da experiência, e a estética só pode ser
considerada como tal, ou seja, autêntica filosofia, quando se propõe a esta tarefa. Colocamos
esta questão pelo motivo de Pareyson chamar-nos a atenção para uma distinção metodológica
que, se negligenciada, pode gerar grandes problemas: os termos estética e poética são distintos
e faz-se necessário um aprofundamento desta distinção. A estética parte da condição histórica
na qual está inserida e da qual é fruto, de modo intencional em direção à superação das
variações históricas dos fenômenos que investiga. Já a poética é um específico programa de
4
5
PAREYSON, Luigi. Estética, p.17.
Idem. Verdade e Interpretação, p. 43.
16
17
arte que expressa diretamente um determinado gosto pessoal. Ou seja, enquanto a estética tem
um caráter filosófico e especulativo, a poética tem um caráter programático e operativo6.
Assim, a estética, como um campo do conhecimento filosófico, busca intencionalmente
superar estas variações históricas dos fenômenos que investiga e a poética é entendida como
uma proposta artística que expressa um determinado estilo e possui um caráter
voluntariamente pessoal7.
A poética é programa de arte, declarado num manifesto, numa retórica ou mesmo
implícito no próprio exercício da atividade artística; ela traduz em termos normativos e
operativos um determinado gosto, que, por sua vez é toda a espiritualidade de uma pessoa
ou de uma época projetada no campo da arte.8
Toda filosofia só é possível historicamente situada, sendo impossível compreender e
justificar seu alcance sem o reconhecimento dessa historicidade – mas este fator não invalida
tampouco compromete a unidade e universalidade de suas conclusões.
Pareyson, além de entender a estética como a própria filosofia, nos adverte sobre a
impropriedade de se tentar deduzi-la de um sistema filosófico já formado, pois a estética deve
estar próxima do trabalho dos artistas, em contato direto com a experiência da arte. Isso não
implica dizer que esta deva ser um estudo de caráter apenas empírico; a estética é filosofia e,
como tal, busca a universalidade por meio de seu caráter especulativo; não pode ser
substituída pela crítica ou pela história da arte, e muito menos ser confundida com um
programa de arte. Segundo Pareyson, a estética nada tem a ensinar ao artista no sentido de
prescrição de qualquer norma ou critério para a execução de suas obras. Sandra Abdo afirma:
se a estética prescrevesse normas ao artista deixaria de ser filosofia, uma vez que estaria
abandonando o plano puramente especulativo que a caracteriza essencialmente e passando
6
PAREYSON. Problemas de Estética, p.15.
A expressão é de Umberto Eco. A Definição de Arte, p. 134.
8
PAREYSON. Problemas de Estética, p.11.
7
17
18
ao nível programático e normativo da poética.9 É claro que o artista é, ao mesmo tempo, um
crítico de sua própria obra, mas a crítica propriamente dita se dá de modo secundário, e é
dessa forma que a estética influi sobre a conduta artística. A função da estética, para
Pareyson, é, portanto, estudar a experiência artística e as concretas observações feitas pelos
artistas e críticos da arte, sistematizando-as e trazendo-as do plano empírico e particular para
o plano universal e conceitual da filosofia. Quando a estética atua no plano especulativo,
mantém sua autonomia sem se confundir com seu objeto de estudo.
Se a estética é a filosofia debruçada sobre os problemas da arte e do belo, a poética
possui um caráter normativo e empírico e é válida quando inserida em seu sentido histórico e
operativo. É claro que a estética também está enraizada historicamente, mas tem por objetivo
a universalidade ao elaborar um conceito de arte que não pode se dissolver diante das
acusações de particularidades e de gosto pessoal. Para Pareyson, todas as poéticas são
igualmente legítimas do ponto de vista da estética. O problema estaria em tornar absoluta uma
poética, elevando-a ao caráter de estética10. Desse modo, discutir se a arte deve ser engajada
em temas políticos, religiosos ou filosóficos ou não; se deve ser expressão de sentimento ou
não; se deve imitar a natureza ou não; não são questões para a estética, pois estes aspectos
contingenciais que a arte assume de tempos em tempos não pertencem à sua essência – que é
ser um puro êxito como forma acabada, de modo que seja sustentada por si mesma, sem
possuir finalidades extrínsecas.
9
ABDO, S. N. Autonomia da arte na estética da formatividade. 1992. p. 07. Dissertação (Mestrado em
Filosofia) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.
10
No capítulo II, essa situação será ilustrada ao se tratar de Sartre.
18
19
CAPÍTULO 1.
UM BREVE COTEJO ENTRE DUAS ESTÉTICAS: LUIGI PAREYSON
E BENEDETTO CROCE
1.1 Contextualizando a Teoria da Formatividade
Pareyson inicia o seu livro Estética – Teoria da Formatividade afirmando que a
estética de Croce se manteve como a única fonte de referência na Itália após a Segunda
Guerra e que se fazia necessário discutir os temas que a censura croceana afastara deste país.
Ao invés de me deter em mais uma crítica à estética de B. Croce, quero neste livro entrar
imediatamente no tema propondo, ao invés dos princípios croceanos da intuição e da
expressão, uma estética da produção e da formatividade. Era mais que tempo, na arte, de
pôr a ênfase no fazer mais que no simplesmente contemplar.11
Essa concepção de arte que Pareyson propõe deseja desvincular o conceito de arte de
concepções totalizantes e derradeiras, tais como as colocações “conteudistas”, que concebem
a arte de modo que seu significado mais profundo esteja ligado a valores que lhe são externos,
tal como a estética de tradição hegeliana; e de concepções “formalistas” que concebem a arte
somente a partir de sua fisicidade, como, por exemplo, a estética de tradição kantiana. A
intenção pareysoniana é explicitar os limites das dicotomias e buscar os elementos
concomitantes dessas definições. Para Pareyson, a arte é, antes de tudo, um "fazer" – ou seja,
antes de exprimir, conhecer ou contemplar, a arte é uma atividade plasmadora de formas,
exercida de modo específico e intencional.
Pareyson herda de seu mestre Augusto Guzzo a idéia de que toda a vida humana
possui um caráter essencialmente formativo, ou seja, produz formas, que são criações
11
PAREYSON. Estética – Teoria da Formatividade, p.9.
19
20
orgânicas e perfeitas, dotadas de leis internas próprias, de compreensibilidade e de
exemplaridade12. Dizer que toda vida humana produz formas significa incluir todos os
aspectos existentes da vida que conhecemos. Sendo a formatividade o modo de o homem lidar
com o mundo, portanto, incluem-se aí o campo da moral, do pensamento e da arte.
Pareyson retira elementos não somente de Croce e de Guzzo para formular sua teoria
da formatividade, mas mantém um diálogo constante com autores que – entre filósofos e
escritores – como Goethe, Schelling, Henry Focillon, Dewey, Bergson, Whitehead, Poe,
Flaubert e Valéry, são ocasionalmente citados.13 Mas o filósofo mais representativo em sua
argumentação é Benedetto Croce, já que este representa um ponto de confronto e de
referências constantes. Inicialmente, Pareyson se propõe a uma reavaliação da estética de
Croce sem se colocar contra a filosofia do espírito. Percebe-se que sua intenção inicial não é
superá-la, mas sim, compreendê-la e ouvir suas sugestões14.
1.2 Croce e a arte como expressão
Para Croce, a arte é conhecimento intuitivo, que é diferente de conhecimento lógico: o
primeiro produz imagens e o segundo, conceitos. E, em Croce, a intuição não é apenas
diferente, mas é algo totalmente independente do conhecimento lógico e não deve ser
confundida com a percepção, que é a apreensão de acontecimentos reais. Segundo este, em se
tratando de conhecimento intuitivo, a realidade ou irrealidade das coisas não tem relevância.
A razão que opera na arte é diferente da razão que opera na lógica. Afirma que:
[...] ao definir a arte como intuição, nega-se que ela tenha um caráter de conhecimento
conceitual. O conhecimento conceitual, em sua forma pura, que é filosófica, é sempre
12
O conceito de forma será explicado de modo mais abrangente no capítulo II.
Vide Estética e Teoria da Formatividade, p.10.
14
Vide Pareyson. Arte e Persona. In: Rivista di Filosofia Fase. 1-2, pp. 18-37, 1946.
13
20
21
realista, visando estabelecer a realidade em face da irrealidade, ou a reduzir a irrealidade,
incluindo-a na realidade como momento subordinado da própria realidade15.
“Intuição” e “expressão” são conceitos coincidentes em Croce. A expressão surge
espontaneamente da intuição e não é acrescentada extrinsecamente. O fazer artístico está
implícito na figuração da imagem interior e o processo de produção dessas imagens se dá na
pura interioridade. A imagem já nasce como corpo expresso e, conseqüentemente, não tem
nada de corpóreo ou físico. Em seu Breviário de Estética, Croce afirma que a arte é visão ou
intuição16 para responder à pergunta que é o mote do capítulo "O que é Arte?". Croce
argumenta que a arte não é um fato físico, pois se ao pensar, por exemplo, em um poema,
desligando-se de seu efeito estético e contar suas sílabas e letras, ou ao se medir e se pesar
uma estátua, estará se fazendo coisas indubitavelmente úteis para quem vai fabricar
embalagens para as estátuas, ou editar livros de poesia, mas sobremaneira inúteis para o
contemplador e estudioso da arte, para o qual o que interessa é a essência da arte e não sua
fisicidade. Assim, Croce afirma que a arte não é um fato físico nesse sentido, pois [...] quando
nos propomos penetrar sua natureza e seu modo de operar, de nada nos vale construí-la
fisicamente.17 Porém, ao mesmo tempo, Croce afirma que a arte só existe se expressa, ou seja,
um poema sem seus elementos materiais não existe. A base para explicar este paradoxo é a
coincidência entre intuição e expressão.
Croce alega que a profunda proposição filosófica da identidade de intuição e expressão
pode ser verificada no senso comum que ri daqueles que dizem ter pensamentos, não sabendo
porém expressá-los, ou ter concebido uma grande pintura, não sabendo porém, pintá-la18.
Este exemplo faz saltar aos olhos dois aspectos: a expressão envolve não somente a imagem
intuída na mente, mas também o aspecto físico do objeto expresso. Croce, assim como
15
CROCE, Benedetto. Breviário de Estética, p. 41.
Ibidem, p. 35.
17
Ibidem, p. 37.
18
Ibidem, p. 169.
16
21
22
Pareyson, argumenta contra o dualismo psicofísico presente na filosofia tradicional. No
Breviário de Estética, Croce expõe que:
A alma é alma na medida em que é corpo, a vontade é vontade na medida em que
move pernas e braços, ou seja, em que é ação, e a intuição é a intuição, na medida
em que é, no próprio ato, expressão. Uma imagem não expressa, que não seja
palavra, canto, desenho, pintura, escultura, arquitetura, palavra que alguém ao
menos murmurou consigo mesmo, canto que ao menos ressoou no peito, desenho e
cor que se veja em fantasia, colorindo de si toda a alma e o organismo - é coisa que
não existe.19
A estética de Croce, ainda concordando com o ideário pareysoniano, contém
argumentos contra a distinção entre forma e conteúdo. Para Croce, a arte é um produto da
síntese de forma e conteúdo e esta é representada de modo correspondente à síntese a priori
kantiana e é chamada de síntese a priori estética: [...] a arte é uma verdadeira síntese a priori
estética, de sentimento e imagem na intuição, da qual se pode repetir que o sentimento sem
imagem é cego e a imagem sem sentimento é vazia.20 Portanto, o sentimento, ou estado de
alma, não é um conteúdo específico sem a imagem que lhe dá forma. A forma não existe sem
o conteúdo e, portanto, não é nem um nem outro o que define a arte, mas sim, a síntese de
conteúdo e forma. Croce acredita ser possível distinguir o conteúdo e a forma na obra, mas
nunca tomá-los independentemente como artísticos, uma vez que apenas é concebível
considerar arte a sua relação – ou seja, a unidade formada por sentimento e imagem na
intuição.
Outro argumento semelhante é desenvolvido a partir da negação dos termos
dicotômicos “interior” e “exterior”, que se assemelham com os termos "forma" e "conteúdo",
intuição e expressão e imagem e tradução física da imagem. Esse tipo de divisão causa,
segundo Croce, uma ilusão de que existem, de um lado, imagens de homens, animais,
paisagens, ações, aventuras, entre outros, como se fossem fantasmas de sentimentos e, do
outro, sons, tons, linhas, cores.... E a essas chama-se de exterior e às primeiras, interior. O
interior seria a arte propriamente dita, e o exterior, a técnica. Para rebater essas dicotomias,
Croce nos diz que só é possível conhecer intuições expressas. O seu exemplo para ilustrar esta
19
20
Ibidem, p. 168.
Ibidem, p. 56.
22
23
colocação alega que o pensamento só se oferece em palavras; uma fantasia musical só se
concretiza em sons; e uma imagem pictórica, em suas cores. Afirma que:
[...] quando um pensamento é verdadeiro pensamento, quando chegou à maturidade de
pensamento, por todo o nosso organismo correm as palavras, solicitando os músculos de
nossa boca e ressoando no interior de nosso ouvido, quando uma música é
verdadeiramente música, ela trina na garganta ou estremece nos dedos, que percorrem
teclados imaginários; quando uma imagem pictórica é pictoricamente real, ficamos
impregnados de linfas que são cores, e dá-se o caso que se as matérias corantes não
estivessem à nossa disposição, tingiríamos os objetos circundantes por uma espécie de
irradiação.21
Para Croce, a arte não existe antes de se formar este estado expressivo de espírito; não
é possível que o pensamento, a fantasia musical ou a imagem pictórica existam sem a
expressão. A arte só existe se expressa, não há como ela preexistir à expressão, pois a intuição
não ocorre antes da expressão, já que estes conceitos coincidem. Toda imagem é
simultaneamente expressão, afirma Croce: se retirarmos de um poema sua métrica, seu ritmo
e suas palavras, o que resta é nada. Não é possível que exista um pensamento poético que
anteceda a expressão do poema, já que esta se dá em forma de palavras, métrica e ritmo.
Ainda segundo o mesmo autor, a intuição artística pertence a todos os homens e não
somente aos grandes artistas ou aos gênios, pois a diferença entre um homem comum e um
gênio é de quantidade e não de qualidade – ou seja, todos têm intuições, mas o gênio tem mais
que o vulgo. Nesse sentido, Croce afirma que todos os homens são poetas, já que operam com
a mesma linguagem, que é comum a todos, e é esta linguagem, chamada por ele de coloquial
ou familiar, que é o modo de todos os homens exprimirem suas impressões e sentimentos. A
linguagem está mais próxima da poesia do que da lógica e o modo primevo de expressão é a
narrativa mítica: a lógica veio depois. O fato de a tradição ter feito desta diferença entre o
gênio e a pessoa comum uma diferença qualitativa e não quantitativa deu origem ao culto e à
superstição do gênio e Croce deixa bem claro que a genialidade não é algo extra-mundano,
21
Ibidem, p. 58.
23
24
mas sim, originado na própria humanidade – ou seja, não é inata, e sim, histórica. Ele alega:
se a poesia fosse uma língua à parte, uma 'linguagem dos deuses', os homens não a
compreenderiam.22
Portanto, se o sentimento não é um conteúdo específico, mas todo o universo, a arte
ganha um caráter de universalidade e de cosmicidade. Assim, para Croce, não há sentido em
se falar de gêneros literários, já que a arte é sempre única em todas as suas manifestações. As
divisões criadas pelos homens são arbitrárias e não passam de uma intromissão indevida da
lógica no campo da estética. Segundo ele, a razão e a lógica que são próprias da arte são
completamente diferentes da razão dialético-conceitual e, por isso, foram criados os nomes
"lógica sensitiva" ou "Estética" para designar o modo de a arte operar. Afirma que:
A arte é intuição pura ou pura expressão, não intuição intelectual à maneira de Schelling,
não logicismo à maneira de Hegel, não juízo como na reflexão histórica, mas intuição
totalmente isenta de conceito e de juízo, a forma auroreal do conhecer, sem a qual não é
dado entender as formas sucessivas e mais complexas. E, para darmos conta do caráter de
totalidade nela impresso, nós nunca tivemos que sair do princípio da pura intuição, ou nele
introduzir correções, ou, pior ainda, acréscimos ecléticos, bastando-nos ao contrário
manter-nos estritamente em seus limites, e obedece-los com o máximo rigor, e, naqueles
limites, aprofunda-lo, escavando as inesgotáveis riquezas que ele contém.23
Para Croce, a beleza natural só é possível se houver uma ligação com a atividade do
espírito. Afirma ainda que a natureza [...] é “muda” se o homem não a fizer falar24. Aqui,
verificamos um caráter eminentemente hegeliano da estética croceana. Do mesmo modo,
Hegel afirma a superioridade da beleza artística sobre o belo natural, como pode ser
verificado nessa passagem:
A superioridade do belo artístico provém da participação no espírito e, portanto, na
verdade, se bem que aquilo que existe só exista pelo que lhe é superior, e só graças a esse
superior é o que é e possui o que possui. O belo natural será, assim um reflexo do espírito,
pois só é belo enquanto participante do espírito, e dever-se-á conceber como um modo
22
Ibidem, p. 64.
Ibidem, p. 126.
24
Ibidem, p. 61.
23
24
25
imperfeito do espírito, como um modo contido no espírito, como um modo privado de
independência e subordinado ao espírito.25
Corroborando a argumentação hegeliana, Croce afirma que as belezas naturais só
exercem seu poder se o artista sabe apreendê-las e se ele se apropria delas, ligando-as, assim,
a uma de suas intuições.
1.3 Pareyson e Croce aproximações e distanciamentos
Tanto Croce quanto Pareyson entendem que a estética não pode se separar da filosofia
e, mesmo analisando elementos especificamente artísticos e ou sensíveis, a estética é a
filosofia em sua totalidade debruçada sobre os problemas estéticos. Segundo Croce:
A Estética, embora seja uma doutrina filosófica particular, porque tem como seu princípio
uma categoria do espírito distinta e particular, na medida em que é doutrina filosófica, não
se separa nunca do tronco da filosofia, porque seus problemas são de relação entre arte e
as outras formas espirituais, mas problemas de diferença e identidade: ela é, na realidade,
a filosofia toda, embora posta mais insistentemente em luz, por contraste, no lado que diz
respeito à arte. 26
Diz-nos Pareyson, na mesma linha de Croce, no primeiro capítulo do livro “Estética – Teoria
da Formatividade”, que a Estética não pode ser entendida como uma "parte da Filosofia",
como se ela estivesse em uma região periférica ou limítrofe na qual não se sabe bem onde
começa ou termina o discurso filosófico, e onde se pergunta se mais que o filósofo, não têm o
direito a falar os técnicos e peritos em arte, ou seja, os criadores e contempladores da beleza
da arte. Nesse sentido Pareyson afirma que antes de mais nada, a estética não é parte da
filosofia, mas a filosofia inteira concentrada sobre os problemas da beleza e da arte [...].27
Apesar dos elementos comuns contidos nos ideários de Croce e Pareyson, a teoria da
Formatividade tem nítida inspiração no desejo pareysoniano de contemplar algo que Croce
25
HEGEL, G. W. F. Estética. A Idéia e o Ideal, p. 86.
CROCE, Benedetto. Breviário de Estética, p. 166.
27
PAREYSON, Estética, Teoria da Formatividade, p. 17.
26
25
26
negligenciou: a extrinsecação física no processo artístico. Para Croce, não devemos confundir
a expressão da arte com a sua extrinsecação – o artista pode intuir a obra e não querer
exteriorizá-la. As técnicas artísticas pertencem à essa extrinsecação e não à expressão artística
propriamente dita, que seria a união da intuição e do todo. Ainda em Croce, a arte,
definitivamente, não é um fato físico: a sua essência não é o peso da estátua ou o número de
sílabas de um poema, por exemplo. Croce ilustra o problema da tendência da linguagem
comum de fisicizar a arte alegando que, assim como as crianças tocam uma bolha de sabão
querendo tocar no arco íris, o espírto humano, quando está diante de coisas belas, [...] tende
espontaneamente a investigar seus motivos na natureza exterior.28 Portanto, para ele, as
técnicas artísticas não pertencem à atividade estética e sim à atividade prática. Esse ponto da
argumentação croceana é inaceitável para Pareyson, apesar de Croce entender que a intuição e
a expressão coincidem e que uma obra de arte só existe se expressa, ou seja, como palavras,
cores, sons, entre outros. E, apesar de Croce reconhecer a necessidade do aspecto físico, no
caso das cores e sons, e do aspecto sensível, no caso das palavras, na estética croceana a obra
preexiste em relação à sua extrinsecação física.
Croce diferencia a expressão da comunicação. A primeira é a intuição e a segunda
estaria ligada à técnica. A comunicação diz respeito a fixar a intuição-expressão num objeto
que, segundo Croce, é chamado de físico ou material, por metáfora, pois pode-se tratar de um
conteúdo espiritual. Abaixo, há um exemplo do próprio Croce sobre um pintor:
[...] não poderia pintar se, em cada etapa de seu trabalho, desde a mancha ou esboço inicial
até o acabamento, a imagem intuída, a linha e a cor pintadas na fantasia não precedessem
o toque do pincel; tanto é verdade que, quando aquele toque vai além da imagem, ele é
apagado e substituído na correção que o artista faz de sua obra.29
Croce alega que a imagem intuída precede o toque do pincel, ou seja, a obra já está
formada antes de ser comunicada, ou antes de sua extrinsecação. O processo de comunicação
28
29
CROCE, Benedetto, Breviário de Estética, p. 36.
Ibidem, p. 171.
26
27
não é uma coisa intrínseca à arte. É neste ponto que Pareyson discorda de Croce, pois para
Pareyson é inconcebível que a arte preexista ao seu aspecto extrinsecativo. O fazer artístico,
na concepção pareysoniana, consiste justamente nessa extrinsecação e todo o aspecto físico é
justamente o que compõe a arte e não há nada espiritual que não seja, ao mesmo tempo,
físico.
Ao desenvolver a teoria da formatividade, Pareyson inevitavelmente entra em
confronto com Croce, para quem a arte consiste, resumidamente, em uma figuração de uma
imagem puramente interior na identidade de intuição e expressão.
Assim, o conteúdo
antecede temporalmente e determina a forma que tem como critério de êxito a sua adequação
ao conteúdo, ou seja, a arte deve ser a síntese de imagem e sentimento. A exteriorização em
um corpo físico é vista como uma atividade secundária e é exatamente esse processo que
Pareyson considera eminente. Se para Pareyson a arte é, antes de tudo, um fazer, não há como
aceitar a argumentação croceana. Para ele, ainda que a arte tenha um caráter inventivo, não é
suficiente dizer que o processo de produção artístico seja somente intuição/expressão. A arte
implica intencionalidade formativa e essa só se dá no mundo material – portanto, é impossível
ignorar o caráter essencialmente físico do processo de formação da obra. A operação artística
é justamente essa extrinsecação.
Segundo Pareyson, a arte entendida como um "fazer" implica o caráter inventivo de
toda atividade humana. O modo de fazer arte é o modo de fazer qualquer coisa, já que toda
atividade envolve produção de formas – mas, na arte, esse fazer envolve características
peculiares que tornam a atividade artística algo diferente das outras atividades da vida.
Observa-se a famosa passagem pareysoniana, na qual ele afirma que a arte é um fazer que,
27
28
enquanto faz, inventa o por fazer e o modo de fazer30. A essência da arte seria, portanto, um
"formar", ou seja, executar, produzir, realizar de modo simultâneo à invenção, figuração e à
descoberta.
Para Croce, a atividade artística se distingue das demais:
[...] não é artístico o prazer de beber água que mata a nossa sede, de um passeio ao ar livre
que desentorpece nossos membros e faz circular mais ligeiro nosso sangue, da obtenção de
31
um cargo almejado que dá segurança a nossa vida prática e assim sucessivamente.
Pareyson entende a arte como invenção, e toda a lida do homem com o mundo envolve
invenção. Para beber água é necessário sempre reinventar o modo de fazê-lo, por mais que o
grau de invenção nesse caso seja minúsculo, assim como para caminhar é necessário interagir
e reinventar formas de lidar com a eterna novidade do mundo. Mesmo a obtenção de um
cargo que forneça maior segurança, segundo os exemplos de Croce, envolve arte na medida
em que em determinados casos é necessário talento para conquistá-lo.
[...] é justamente o caráter formativo de toda a operosidade humana que explica como se
pode falar de beleza a propósito de qualquer obra: se não há obra que não seja ao mesmo
tempo forma, compreende-se como qualquer obra bem feita é sempre igualmente bela. [...]
Se não há obra que, embora não explicitamente artística, não seja forma, o próprio ato que
se aprecia e avalia como obra faz com que ela seja avaliada e apreciada como forma: a
avaliação estética coincide com a apreciação específica sem, porém identificar-se com ela.
Considerar o valor prático e especulativo de uma obra moral ou de pensamento significa
também considerar o valor estético, porque significa reconhecer que só com esforço de
invenção e produção foi possível chegar a realizar a obra, i.é, só como forma ela é e pode
ser obra, e precisamente obra moral e de pensamento. Eis porque, justamente enquanto se
capta o singular valor moral ou especulativo realizado por tais obras, muitas vezes se fica
parado contemplativamente diante delas: o valor teorético ou prático dessas obras não se
revela, a não ser que eu veja, ao mesmo tempo, o seu valor estético.32
Para Pareyson, se separada a arte da vida, corre-se o risco de cair em labirintos
retóricos que impedem uma análise da arte de forma mais totalizante. Se toda operosidade
humana contém um caráter formativo, toda atividade humana tem um caráter de articidade,
assim como a própria arte autêntica é produzida praticamente a partir do mesmo modo de
30
PAREYSON, Os Problemas de Estética, p. 26.
CROCE, Benedetto, Breviário de Estética, p. 39-40.
32
PAREYSON, Estética. Teoria da Formatividade, p. 22-3.
31
28
29
operar33 de todas outras atividades34. Pareyson utiliza exemplos de atividades humanas
semelhantes aos que Croce utiliza para dizer o oposto do que este disse: que a arte se
encontra, sim, em toda vida humana:
Nessa formatividade comum a todos os aspectos físicos da vida espiritual reside o lado
necessariamente ‘artístico’ de toda operação humana. E isso não obriga a afirmar que todo
o espírito seja simplesmente arte, como também impõe que a arte propriamente dita tenha
garantida a possibilidade de não se confundir com as outras atividades e instituir-se como
operação autônoma e específica.35
Para Croce, a arte não é Filosofia, nem história, nem jogo da imaginação e nem
sentimento em sua imediatidade, nem didática ou oratória e nem ciência36. Para Pareyson, a
arte pode assumir cada um desses aspectos extrínsecos a ela, sem perder seu caráter de
autonomia que lhe é intrínseco, na medida em que estes aspectos aparecem como
conseqüência do seu ser arte porque estão incluídos em seu modo de formar. O conceito de
formatividade nos permite conceber a presença da arte nas demais atividades humanas e a
presença de todas as atividades humanas na própria arte.
A arte, para Pareyson, não pode ser entendida apenas como conhecimento, ou como
somente expressão. Apesar de reconhecer esses aspectos na arte, o filósofo argumenta contra
a utilização deles como elementos definidores já que eles estão presentes, não só nesta, mas
em toda atividade humana – portanto, não podem ser considerados aspectos essenciais da arte
que a caracterizam em sua essência.
33
Quando se diz que o modo de lidar do homem, em suas atividades como um todo, se dá praticamente do
mesmo modo da arte, está-se referindo ao aspecto prático e ao grau de intencionalidade do gesto da pessoa. Por
exemplo: quando alguém pinta uma parede de branco utiliza gestos que são praticamente iguais ao de quem pinta
uma obra em uma tela grande, ou a mesma parede branca que integraria uma instalação de arte contemporânea.
A formatividade na atividade humana como um todo é uma formatividade genérica, e a formatividade na arte é
especificada, nas demais atividades encontramos uma finalidade exterior que guia o fazer, diferentemente do
formar artístico que tem uma finalidade intrínseca. Esta questão será tratada no capítulo 2 quando da
argumentação pareysoniana sobre a teleologia interna do êxito da obra.
34
Essa questão será tratada no capítulo 2, no qual será explicada a argumentação pareysoniana sobre a
especificação e concentração das atividades humanas em toda operação.
35
PAREYSON, Estética. Teoria da Formatividade, p. 23.
36
Ver Aquilo de que a arte se distingue IN: CROCE, B. Aesthetica in nuce, p. 158.
29
30
Isso não implica dizer que a arte não tem função reveladora e cognoscitiva, já que ela,
como toda atividade, tem uma indivisível conexão com a vida espiritual do artista e assim a
arte pode exercer essas funções de modo tão integrado e intenso que a própria arte pode vir a
assumir as outras atividades.
Sandra Abdo, em sua dissertação de mestrado A Autonomia da Arte na Estética da
Formatividade, busca na artista e historiadora da arte Fayga Ostrower um exemplo de artista
que opera de modo que as atividades artísticas e científicas se interpenetram.
Há, em Leonardo da Vinci uma tal unidade de vida e de vivência do fazer, saber, sentir, as
atividades artísticas e científicas interpenetrando-se em todos os níveis de consciência e
umas enriquecendo as outras, que... a distinção de categorias criativas separando a visão
artística da científica, no caso de Leonardo, não faz sentido.37
A poética do mestre renascentista serve de ilustração para exemplificar um modo de lida com
arte que envolve indivisivelmente sua maneira de agir, pensar, sentir e conhecer, no qual
ciência e arte se interpenetram, resultando em uma síntese indissociável.
Portanto, Pareyson discorda que a arte possa ser definida como uma forma de
conhecimento, como disse Croce, para quem a arte é conhecimento intuitivo, que produz
imagens, o que se distingue do conhecimento intelectivo, que produz conceitos. Ambos os
tipos de conhecimento, como já foi dito, são para Croce, autônomos por serem independentes
um do outro. Croce observa que a tradição filosófica sempre se refere à intuição como algo
deficitário que necessita da ajuda do intelecto e, para refutar esta idéia, Croce argumenta a
favor da autonomia e independência do conhecimento intuitivo em relação ao conhecimento
lógico. Assim, na estética crociana, a arte está diretamente ligada à função cognoscitiva.
Pareyson rejeita esta colocação, afirmando que a função cognoscitiva não pode ser usada
como fator distintivo da arte, já que outras atividades humanas o contêm. E intensificar esta
37
OSTROWER, Fayga. APUD ABDO, Sandra. Criatividade e processos de criação, pp. 47-48.
30
31
função é, na verdade, um modo de caracterizar outras atividades e não a arte. Assim, o
aspecto cognoscitivo definitivamente não pode ser essencial, já que a arte só é fonte de
conhecimento como arte e não como outra coisa, ou seja, desempenhar tal função decorre de
seu ser arte ou, no vocabulário pareysoniano, ser pura forma38 na qual seu sentido é
totalmente imanente à sua realidade física e não pode ser mediador de outra coisa exterior.
Se a função cognoscitiva decorre do fato da existência da arte enquanto pura
formatividade, a função expressiva também tem a mesma característica e, conseqüentemente,
a argumentação pareysoniana refuta a definição crociana de arte como expressão. Para
Pareyson, a afirmação de que a arte é expressão é legítima e deve ser aceita, mas é necessário
compreender que a arte é expressiva porque ela é, antes de tudo, pura forma. É seu êxito como
forma que garante seu caráter expressivo e a obra é expressiva de si mesma, uma vez que seu
sentido é imanente à sua realidade física e somente enquanto tal é que ela expressa a pessoa
de seu autor.
Portanto, a definição croceana – segundo a qual a arte é expressão do sentimento do
artista na forma de intuição – não contempla a realidade do fazer artístico: a forma, que
envolve, antes de tudo, a fisicidade e só se concretiza na extrinsecação.
38
Quando Pareyson utiliza a idéia de “pureza” ao se referir à forma, sua intenção não é hierarquizá-la em relação
ao conteúdo, mas sim mantendo a coerência com seu conceito peculiar de “forma”, que envolve de modo
inerente o conteúdo, dizer de uma forma que não tem como base de sustentação um fim extrínseco. Sua “pureza”
reside no fato de esta forma ser um êxito em si mesmo, independentemente de funções externas que ela possa vir
a exercer. O caráter peculiar do conceito de forma na teoria pareysoniana será explicado a seguir no capítulo 2.
31
32
CAPÍTULO 2.
A TEORIA DA FORMATIVIDADE
2.1 Forma e Formatividade
2.1.1 As especificidades do conceito pareysoniano de forma
Pareyson sempre demonstrou considerável preocupação no sentido de não permitir a
evocação da antítese forma e conteúdo, com o objetivo de evitar confusões com as estéticas
que privilegiam a forma em contraposição ao conteúdo, chamadas de “formalismo”. O
conceito pareysoniano de forma envolve um caráter abrangente e integrador, bem diferente do
significado suscitado a partir do dualismo forma-conteúdo. Pareyson busca uma alternativa
que pretende superar tanto o plano das colocações “conteudistas” como o próprio Croce,
quanto o das colocações “formalistas”, que isolam o significado da arte na materialidade39.
A forma, na estética de Pareyson, deve ser entendida como uma espécie de organismo
que contém elementos dispostos de modo harmônico e sempre singular. Um comentador de
Pareyson que tem o respaldo de ter sido seu discípulo é Umberto Eco, que, no fragmento
abaixo, ao contextualizar a estética de Pareyson na filosofia italiana, define o conceito de
forma da seguinte maneira:
No panorama desta concepção estética ampla e desprovincianizada surge a teoria da
formatividade de Pareyson que, à concepção idealista da arte como visão, opõe um
conceito de arte como forma, em que o termo forma significa organismo, fisicidade
39
O termo forma, em outros autores, está associado à clássica contraposição entre “matéria” e “conteúdo”, que,
por sua vez, evoca a antítese “formalismo” e “conteudismo”. Pareyson alerta que muitas abordagens que utilizam
o termo forma dessa maneira privilegiam um ou outro dos dois termos e a estética da formatividade quer
justamente superar estes dualismos. Pareyson entende por estéticas “formalistas” aquelas que concebem a arte a
partir do caráter físico da obra, isolando seu significado no plano formal e, por estéticas “conteudistas” aquelas
que vêem a arte como um mediador de seu verdadeiro significado, ou seja, a essência da arte seria algo exterior à
própria obra.
32
33
formada, dotada de vida autônoma, harmonicamente dimensionada e regida por leis
próprias.40
Sandra Abdo conseguiu sintetizar de modo eficaz o conceito pareysoniano de forma:
criação orgânica, autônoma, singular, irrepetível e dotada ao mesmo tempo, de caráter
exemplar (no sentido de que se torna ponto de referência, estímulo e norma para novas
formações); fisicidade formada e estruturada em conformidade com suas próprias leis
internas, que garantem seu caráter unitário e indivisível através de recíproca coerência que
instituem entre suas partes constitutivas e o todo.41
Forma, portanto, significa organismo42 que é dotado de vida própria na medida em que
a forma dialoga de modo ativo com a pessoa e é irrepetível na sua singularidade, exemplar no
seu valor, independente na sua finalidade interna, pois esta é seu êxito43, perfeita na sua
íntima lei de coerência, inteira na adequação recíproca entre as suas partes e o todo; acabada
e, ao mesmo tempo, aberta e definida em sua própria infinitude. Ao aproximar o conceito de
forma ao de organismo, Pareyson remete-se a Aristóteles dizendo que:
É muito certo que na filosofia antiga e medieval falta precisamente uma estética, não
havendo ali um nexo que relacione diretamente a poética e a retórica com a metafísica do
belo; mas seria absurdo esquecer a fecundidade que alguns conceitos, originalmente
referidos à arte, têm no campo da estética, ao menos segundo os entendemos hoje. 44
40
ECO, Umberto. A Definição de Arte. Pág. 15. Grifo do autor.
ABDO, S. N. Autonomia da arte na estética da formatividade. 1992. p.31. Dissertação (Mestrado em Filosofia)
– Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.
42
De acordo com Pablo Blanco Sarto, Pareyson afirma que a origem do conceito de "Organismo" é aristotélica e
diz de um ser vivo dotado de uma finalidade própria. Esta definição, segundo Sarto, aparece implicitamente nos
escritos aristotélicos sobre biologia com referência aos seres da natureza e não na Poética. Apesar de ter se
verificado que o termo foi utilizado no livro VII da Poética para definir o belo, acredita-se que Sarto afirmou isto
por não haver uma definição explícita do termo. A definição aristotélica se aproxima muito da idéia
pareysoniana de organismo: “Ademais o belo, seja num ser vivente, seja em qualquer coisa composta de partes,
precisa ter ordenadas essas partes, as quais igualmente devem ter certa magnitude, não uma qualquer. A beleza
reside na magnitude e na ordem [...]. (ARISTÓTELES. Poética; Organon; Política; Constituição de Atenas. São
Paulo: Nova Cultural, 2000. p. 44.) De qualquer modo o conceito de forma em Aristóteles possui um significado
metafísico, não apenas biológico nem estético. Dessa maneira, Sarto identifica o conceito pareysoniano de forma
com a definição aristotélica de organismo. (SARTO. Hacer arte, interpretar el arte, p. 63). Outro aspecto
importante sobre o conceito pareysoniano de organismo é sua ligação com o romantismo, pois, segundo Sarto,
Pareyson se apóia na afirmação de origem romântica que a arte e natureza estão intimamente ligadas: apesar de
suas evidentes diferenças, tais realidades apresentam profunda 'solidariedade'. Isto leva o autor a definir a forma
e a obra de arte como organismos análogos da natureza, que resultam de um processo exitoso, cuja perfeição
serve de modelo para outras formas. SARTO. Hacer arte, interpretar el arte, p. 293). Gianni Vattimo, também
discípulo de Pareyson, em artigo intitulado “Obra de Arte e Organismo em Aristóteles” publicado na Rivista di
Estetica dirigida pelo próprio Pareyson, argumenta a favor do caráter orgânico dos produtos artificiais, se
aproximando da idéia pareysoniana e do argumento de Sarto. (Revista di Estetica ano XVIII fascículo II maioagosto 1973)
43
Conceito este que será explicitado mais adiante.
44
PAREYSON. Conversaciones de estética, p. 85.
41
33
34
E mesmo ressaltando o fato de Aristóteles ter desenvolvido o conceito de organismo,
sobretudo para a natureza e não essencialmente para a arte, Pareyson afirma que a profunda
intuição de seu pensamento autoriza aos seres extrapolá-lo e utilizá-lo para compreender a
criação artística.
A criação artística se converte assim em produção de objetos dotados de uma estrutura e,
portanto, de uma regra interna, ou seja, de seres autônomos, que exigem ser
compreendidos e julgados em função de sua própria organização, sem referências
externas.45
2.1.2 Um fazer que, enquanto faz, inventa o modo de fazer
Invenção é a palavra chave para a compreensão do conceito de formatividade.
Pareyson parte de um pressuposto existencialista, enfatizando a condição factual do homem
inserido em seu contexto histórico, para fazer uma reflexão filosófica que concebe de modo
dinâmico a recíproca relação entre pessoa46 e forma. O modo por meio do qual o homem se
relaciona com o mundo é dialogante e inventivo, pois é necessário, a todo o momento,
reinventar o modo de agir, já que o mundo é uma fonte inexaurível de novas situações. Desde
atividades simples, como tarefas domésticas, até o modo como o artista dialoga com sua obra,
exigem dos seres um caráter inventivo. Portanto, formar significa, antes de tudo, "fazer",
poiein em grego47. Mas este fazer implica, necessariamente, um aspecto inventivo, pois não
há outra maneira de lidar com o mundo a não ser inventando-se o próprio modo de fazê-lo.
Nas palavras de Pareyson:... um tal fazer que, enquanto faz, inventa o por fazer e o modo de
fazer.48
45
PAREYSON. Conversaciones de estética, p. 89.
Alguns aspectos do personalismo pareysoniano serão tratados mais adiante, a partir da nota de rodapé nº. 12.
47
PAREYSON. Estética, p.59.
48
Idem, Os problemas de Estética, p. 32.
46
34
35
Todo operar humano tem, inevitavelmente, um lado inventivo e inovador como
condição fundamental de toda realização. Para se exercer qualquer atividade é necessário arte,
ou seja, toda ação humana, desde as técnicas mais simples até as mais sofisticadas invenções,
é um exercício de formatividade e, conseqüentemente, um exercício de arte. A beleza da
forma está na adequação do que ela propõe alcançar com o que ela mostra. Não que a obra se
faça sozinha. Há todo um caminho a ser percorrido, a partir do qual esse “mostrar” da obra é
entendido como o fruto de um processo dialógico entre forma-formante e a ação do artista,
tendo em vista a forma-formada49. O êxito é o guia e, quando este se mostra efetivado, tem-se
a obra bem feita e igualmente bela. Assim, como exposto no Capítulo 1, pode-se falar da
beleza de um raciocínio, da beleza de uma ação ou da beleza de um caráter. Nesses casos,
pode-se dizer que se trata de uma avaliação estética, na medida em que se percebe seu êxito
como formas e as aprecia justamente por isso.
Não se trata de uma ampliação do conceito de arte transformando este em um conceito
“guarda-chuva”, que cubra tudo o que se queira colocar embaixo. Pareyson quer, antes de
tudo, desmistificar o conceito vulgar de arte, retirando a carga hegeliana e romântica que este
contém, a partir da qual o artista é uma espécie de ser iluminado e sua arte é algo diferente das
outras atividades consideradas não artísticas. Pareyson ressalta o caráter de fisicidade da arte e
sua familiaridade com as atividades tidas como não artísticas. Alude também ao fato de serem
inerentes a todo ser humano tanto os elementos que envolvem o fazer artístico, quanto à
contemplação da arte. Ou seja, o modo como o artista faz sua arte não difere do modo de se
fazer qualquer função utilitária. A diferença entre um artista e uma pessoa não artista, ou seja,
a diferença entre quem faz atividades cotidianas e ou utilitárias com arte, e quem faz a arte
propriamente dita está na finalidade de sua ação. Pareyson explica esta questão a partir do que
49
Este conceito será desenvolvido a seguir no item 2.2.2.
35
36
ele chama de teleologia interna do êxito50. Antes de se tratar da arte propriamente dita, será
explicada a presença da arte nas atividades humanas para então se adentrar o processo
artístico e a arte autônoma.
2.1.3 A arte e as atividades humanas
Para se tratar do problema da autonomia e da especificação da arte, há de se abordar o
que Pareyson chama de [...] o maior e mais complexo problema da unidade e distinção das
atividades humanas51. O modo de fazer arte é o mesmo modo de se fazer qualquer outra
atividade. O homem, ao inventar soluções eminentemente utilitárias para o dia-a-dia que, por
serem bem sucedidas no que se propõem, alcançaram seu êxito como forma, é o mesmo
homem que cria obras primas em termos artísticos. A diferença está na especificação da
formatividade. No momento em que o homem escolhe fazer arte a partir de uma ação
formativa, ou interpreta algo como arte a partir de um olhar formativo, ele faz com que a
formatividade se torne eminente entre suas atividades e busque algo em si mesma. A atividade
que se opera a partir do spunto52 busca um fim que não é extrínseco à própria forma, pois o
spunto envolve o desejo do êxito estético da obra. Mas essa busca pelo êxito é feita do mesmo
modo de operação de qualquer atividade, ou seja, concentrando todas essas outras atividades
no momento do ato artístico. Uma espécie de “bagagem cultural” – no sentido mais amplo
50
Este conceito será desenvolvido a seguir no item 2.2.1.
PAREYSON. Estética, p.23.
52
Spunto significa o ponto de partida do processo de formação, o conjunto de elementos inseridos em uma
determinada circunstância que se coadunam com o olhar formativo da pessoa que percebe certa uberdade em
uma determinada situação. O tradutor brasileiro do livro, Estética – Teoria da Formatividade, Prof. João Ricardo
Moderno, utilizou o termo em inglês insigth para traduzir spunto, tradução esta que foi aqui recusada por ser
considerada redutora e problemática na medida em que o termo insigth sugere uma espécie de revelação que
surge do nada e é como se esta guiasse completamente o artista. O fato de o insight ter este aspecto de gratuidade
e sugerir a idéia de funcionar como uma causa externa ao processo se aproxima da noção de gênio do senso
comum, na qual a inspiração vem do nada e domina toda a operação. Por isso, preferiu-se manter o termo em
italiano. No italiano coloquial, spunto significa a ocasião ou o motivo que gera o início de um projeto ou uma
criação artística. Também significa a primeira palavra de uma seqüência sugerida ao ator para que este se lembre
mais facilmente de seu texto. Em português, isto é chamado de “deixa”. O conceito de spunto será tratado
detalhadamente na parte 2.2 sobre o processo artístico.
51
36
37
que o termo cultura possa ter – está sempre presente em nosso modo de lidar com o mundo.
Esta bagagem contém tudo o que o humano é, ou seja, a língua, a moral, os costumes, valores,
tradições, as verdades cientificamente comprovadas, as crenças de sua época e sua história
pessoal e social. Pareyson afirma, sobre a especificação da formatividade na arte:
Mas na arte essa formatividade, que investe toda a vida espiritual e possibilita o exercício
das outras operações específicas, se especifica por sua vez, acentua-se no predomínio que
subordina a si todas as outras atividades, assume uma tendência autônoma, rumo
independente, direção diferente, e, ao invés de apoiar as outras atividades no exercício das
respectivas operações, mantém-se por si mesma, fazendo-se intencional e fim em si
mesma. 53
Essa aparente contradição, na qual especificação e concentração ocorrem
simultaneamente, é o argumento principal que Pareyson utiliza para explicar a presença da
arte nas demais atividades humanas e a presença de todos os aspectos da vida do artista em
sua obra. Assim, a arte, ao mesmo tempo em que envolve a especificação de uma
formatividade comum a toda vida espiritual, só se realiza a partir de um princípio de distinção
entre as atividades que faz com que ela seja uma atividade distinta das demais: pois sua
operação não é ciência nem da filosofia nem da moral 54. Desta forma, existe um princípio de
unidade entre as atividades fazendo com que toda operação, independentemente da atividade
que aí se especifica, envolva o exercício de todas as outras atividades simultaneamente.
Segundo Pareyson, as atividades humanas são exercidas a partir de operações que só se
determinam especificando uma atividade entre outras e isto só é possível se todas as outras
atividades se concentrarem simultaneamente, pois
em toda operação existe, ao mesmo tempo, especificação de uma atividade e concentração
de todas as atividades: esta é a estrutura do operar, em que especificação e concentração
das atividades vão pari passu, de tal sorte que uma não pode andar sem a outra 55.
53
PAREYSON. Estética, p.25.
Ibidem, p.22.
55
Ibidem, p.24.
54
37
38
É a unitotalidade da pessoa56 que garante a concentração de todas as atividades em
uma operação específica e o indivíduo, como autor da operação, coloca-se nela por inteiro. Ao
falar de unitotalidade da pessoa, Pareyson não está afirmando que exista um “eu” único e
imutável, mas sim que o modo do homem operar suas atividades só se dá em um aqui e agora
irreproduzível, que só pode ser entendido se pensarmos na concomitância de toda a
multiplicidade de “eus” que compõem o indivíduo – ou se preferido, pode-se chamá-lo de
estrutura psíquica – com o “eu” que se unifica a partir de seus próprios desdobramentos. O
modo pareysoniano de personalismo tem suas origens no pensamento de Jaspers, Marcel e
Heidegger, portanto, para clarear a questão, pode-se dizer que Pareyson corrobora a noção
heideggeriana de que o homem é um dasein57, ou seja, está lançado no mundo. A
especificidade do personalismo pareysoniano reside eminentemente no que ele chama de
dialética entre atividade e receptividade58, a partir da qual se nega que os dados exteriores
sejam reduzidos à pura interioridade da consciência.
56
Mesmo que se entenda, como recurso didático, as faculdades humanas como que em compartimentos
estanques (como se a razão operasse quando se resolve um problema matemático e a emoção agisse quando se
vê um amigo distante, por exemplo), Pareyson chama a atenção para a simultaneidade de todos elementos
possíveis que compõem a existência, como razão, crenças, valores morais, pulsões, sentimento, imaginação,
entre outros.
57
Apesar de, por um recurso didático, ter-se autorizado aqui a aproximação destes conceitos, se faz necessário
chamar a atenção para as diferenças dos pensamentos de Heidegger e Pareyson. No livro Verdade e
Interpretação, Pareyson faz uma referência direta a Heidegger ao falar sobre a possibilidade de um conceito
hodierno de verdade: “Tudo está em manter e desenvolver aquele conceito de relação ontológica com o qual
Heidegger vivificou e revigorou validamente a filosofia de hoje, evitando, contudo, o beco sem saída no qual ele
a atirou, com a sua proposta de uma ontologia apenas negativa e com a sua total recusa da filosofia ocidental, de
Parmênides a Nietzsche. (PAREYSON, L. Verdade e Interpretação. Tradução de Maria Helena Nery Garcez e
Sandra Neves Abdo. São Paulo: Martins Fontes, 2005. P. 04.) Pareyson aproxima o pensamento heideggeriano
do que ele chama de misticismo do inefável e propõe uma ontologia do inexaurível. “Mas esses termos da
teologia negativa, porquanto sugestivos, a seu modo, significativos, são mais adequados à experiência religiosa
do que ao discurso filosófico, para o qual não se podem transferir sem risco de mal-entendidos radicais.”
(PAREYSON, L. Verdade e Interpretação. Tradução de Maria Helena Nery Garcez e Sandra Neves Abdo. São
Paulo: Martins Fontes, 2005. pág. 22.) Para aprofundamentos nessa questão, ver a obra citada nesta nota.
58
O termo dialética também é usado constantemente por Pareyson para designar a relação entre forma-formante
e forma-formada. Seu significado não tem pretensões que vão além de seu sentido lato, ou seja, Pareyson quer
explicitar o caráter de reciprocidade e simultaneidade desses dois conceitos durante o processo artístico.
Dialética, na teoria da formatividade, significa, portanto, um movimento dialógico que não permite considerar
um dos elementos distintamente, na medida em que eles se relacionam reciprocamente. Atentando para o fato de
não haver uma conclusão deste movimento – como na dialética hegeliana, mas sim, um movimento contínuo no
qual os pares continuam a existir e não se concluem em algo distinto deles mesmos.
38
39
Pareyson afirma que todo agir humano, apesar de envolver a invenção como elemento
eminente, não é criativo, ou seja, a iniciativa humana não principia por si mesma, pois
necessita de algo que a inicie. O fazer humano envolve criatividade a partir do momento em
que é necessário inventar soluções para que as atividades se dêem, mas estas não se dão a
partir do nada, elas sempre estão ligadas ao mundo; portanto, não é possível inventar uma
atividade, mas sim soluções para as atividades às quais os humanos são acometidos a todo o
momento. Tem-se que agir e decidir inevitavelmente, já que é impossível não decidir. A
escolha é algo do qual não se escapa: mesmo escolhendo-se não escolher, uma escolha será
feita. Evidencia-se aqui a origem existencialista da estética de Pareyson, e este ponto de sua
argumentação inevitavelmente remete a Sartre59: a escolha é possível, em certo sentido,
porém o que não é possível é não escolher.60 Mas, apesar deste ponto em comum, a estética
de Pareyson acaba se distanciando das propostas sartreanas no que concerne à arte.
2.1.4 Pareyson e Sartre: aproximações e distanciamentos
A partir de agora, utiliza-se a estética de Sartre para contrapô-la ao ideário
pareysoniano, não com o objetivo de aprofundar-se na obra de Sartre, mas de propor um
embate entre os argumentos sartreanos e pareysonianos no que concerne à estética. Sartre
alega que a literatura, mais precisamente a prosa, é a única possibilidade de arte significante,
ou seja, aquela que remete a um significado externo. Nesse sentido, somente a prosa pode ser
engajada, característica relevante dentro do discurso sartreano sobre arte. A prosa, segundo
Sartre, tem a especificidade de estar no plano da significação e do imaginário
59
Pareyson nega o existencialismo de Jean Paul Sartre e de Nicola Abbagnano, não os considerando verdadeiros
existencialistas, embora sejam os seus representantes oficiais, tanto na França quanto na Itália. Para ele, estes
abandonaram o existencialismo autêntico ao afirmarem uma postura acentuadamente antropocêntrica e com
tendências ao marxismo e ao empirismo, respectivamente – o que resultou em uma concepção de liberdade que
não considera a relação com o ser, ao contrário do que vemos em Marcel e Pareyson. Cf. SARTO, P. B. Hacer
arte, interpretar el arte, p. 16, nota 24.
60
SARTRE, Jean Paul. O Existencialismo é um Humanismo. p. 32.
39
40
simultaneamente. Por utilizar-se de signos, remete necessariamente a algo exterior, mas isso
não significa que o leitor não crie ou que não use sua imaginação. É devido a essas
características que o engajamento é próprio da prosa. As outras artes (não-significantes)
podem ser engajadas também, mas não da mesma forma. A partir disto, para Sartre, a poesia,
a música a pintura e a escultura seriam consideradas não-significantes por utilizarem-se de
elementos que não dizem mais do que de si mesmas. As notas, as cores, as formas, as palavras
utilizadas de forma poética, [...] não são signos, não remetem a nada que lhes seja exterior.61
A poesia, segundo Sartre, utiliza-se da palavra como um objeto, uma coisa e não como signo,
como faz a literatura. Sartre afirma que a poesia não se serve das palavras, mas serve às
palavras. Por isso, apenas a literatura é significativa: na verdade, o poeta se afastou por
completo da linguagem-instrumento; escolheu de uma vez por todas a atitude poética que
considera as palavras como coisas e não como signos.62.
Sartre afirma que o prosador vê as palavras como o falante, que está [...] investido
pelas palavras.63. Estas são os [...] prolongamentos de seus sentidos, suas pinças, suas
antenas, seus óculos, ele as manipula a partir de dentro [...]
64
. Se todos estão inseridos em
um mundo de linguagem no qual as palavras são como partes de cada um, e conhece-se os
objetos primeiramente pelos seus nomes, o poeta tem como que um contato silencioso com
eles, para depois voltar-se às palavras, utilizando-se delas como objetos, que conservam seu
significado, mas contêm a ambigüidade de todos os outros. Para o poeta, as palavras se
assemelham aos objetos antes de seu significado convencional determiná-los. Ou seja, o poeta
estaria, diferentemente do prosador, de fora deste processo, vendo as palavras:
61
Idem. Que é a literatura?, p. 10.
Ibidem, p. 13.
63
Ibidem, p. 14.
64
Ibidem, p. 14.
62
40
41
do avesso, como se não pertencessem à condição humana [...] sua sonoridade, sua
extensão, seu aspecto visual, tudo isso junto compõe para ele um rosto carnal, que antes
representa do que expressa o significado 65.
Se o poeta vê as palavras do avesso, de fora da linguagem, o prosador as utiliza como
signos que dizem do mundo, o que aproxima a prosa do conceito sartreano de
responsabilidade e a partir de então há a necessidade do engajamento, fruto da sombra
marxista que permeia o pensamento sartreano. Ao tentar determinar o objetivo da literatura,
mais precisamente da prosa, Sartre afirma que o escritor é responsável por sua obra, e do
mesmo modo que a lei é algo do qual ninguém pode alegar ignorância, pois ela é coisa escrita,
mas todos são livres para infringi-la, mesmo sabendo dos riscos que correm, [...] a função do
escritor é fazer com que ninguém possa ignorar o mundo e considerar-se inocente dele.66
Em um determinado momento de sua argumentação em O que é Literatura?, Sartre
permite que lhe seja inferida uma herança que carrega certo ar de hegelianismo vulgar, ao
falar sobre o modo do poeta utilizar-se da linguagem:
o poeta já tem no espírito o esquema da frase, e as palavras vêm em seguida. Mas este
esquema não tem nada em comum com aquilo que de ordinário se chama esquema verbal:
não preside à construção de um significado; aproxima-se antes do projeto criador através
do qual Picasso prefigura no espaço, antes mesmo de tocar o pincel, essa coisa que se
tornará um saltimbanco ou um arlequim.67
Essa passagem explicita a diferença entre os modos de abordagem entre Pareyson e
Sartre. Percebe-se que, para Sartre, o processo artístico propriamente dito não tem a mesma
relevância do que para Pareyson, pois Sartre não se debruça sobre o tema, negligenciando-o e
norteando sua argumentação concernente à estética, a partir de suas preocupações morais. O
que está em jogo na argumentação do trecho acima é o fato de o poeta utilizar as palavras de
tal modo que o engajamento não é possível.
65
Ibidem, p. 15.
Ibidem, p. 21.
67
Ibidem, p. 16.
66
41
42
É possível inferir que, para Pareyson, estas reflexões sartreanas, no que concerne à
arte, funcionam para designar um modo específico de um singular poeta trabalhar – ou seja,
descrevem uma determinada poética. Há poetas que se utilizam da palavra como objeto e
outros que fazem uma poesia próxima da prosa. O próprio Sartre afirma que:
É claro que em toda poesia está presente uma certa forma de prosa, isto é de êxito; e
reciprocamente a prosa mais seca encerra sempre um pouco de poesia, isto é, certa forma
de fracasso: nenhum prosador, mesmo o mais lúcido, entende plenamente o que quer
dizer; [...] ninguém, como mostrou Valery, consegue compreender uma palavra até o
fundo. [...] e é por uma questão de clareza que escolhi os casos extremos da pura prosa e
da poesia pura.68
Sartre confere a uma determinada poética o estatuto de estética, ao deduzir argumentos
estéticos de sua teoria moral. Explicita-se na argumentação sartreana uma preocupação com o
engajamento e a necessidade de a prosa servir de meio para a atitude autêntica. [...] a função
do escritor é fazer com que ninguém possa ignorar o mundo e considerar-se inocente diante
dele.69 Fica clara a função extrínseca que a literatura assume: gerar a responsabilidade. Isto,
segundo Pareyson, comprometeria a autonomia da arte, na medida em que sua existência
depende de elementos extrínsecos a ela. Mesmo fazendo uma distinção entre o estético e o
moral, na qual este estaria no plano do real enquanto a estética estaria necessariamente no
plano do imaginário – ou seja, do irreal – Sartre inevitavelmente submete sua estética aos seus
objetivos morais. Se se entender que Sartre defende um programa de arte e não uma estética
propriamente dita, é provável aproximá-lo de Pareyson, que admite o fato de existirem
filosofias que se fazem literariamente, do mesmo modo que há literatura que é filosofia. Para
exemplificar, Pareyson cita Dostoievsky70 – ou seja, não cita a poesia ou a pintura.
existem obras artísticas que, justamente enquanto se realizam no plano artístico, alcançam
e assumem função de filosofia, sem com isso deixar de ser arte, pois nelas a própria arte é
uma forma de se fazer filosofia. É este o caso, por exemplo de Dostoievsky, cujos
romances, precisamente em sua validade artística, são límpida e autêntica filosofia [...]
68
Ibidem, p.32. grifo do autor.
Ibidem, p. 21.
70
PAREYSON. Estética – Teoria da Formatividade, p. 296.
69
42
43
Se um poeta valoriza o aspecto físico das palavras, isto é característica de sua poética,
assim como pode haver poetas que se aproximam da prosa em sua escrita, como no gênero
conhecido como “poema em prosa”.
Outro ponto da argumentação sartreana que diverge radicalmente da estética da
formatividade é o fato de Sartre afirmar que o artista passa para a obra aquilo que desvendou
do mundo colocando ordem e necessidade àquilo que antes apenas desvendava e associava
livremente. Mas quando a criação inicia-se – e Sartre não explica isto – o artista não é capaz
de desvendar, pois Sartre afirma que não é possível desvendar e criar ao mesmo tempo, já que
o artista só encontra na obra aquilo que ele já conhece. O argumento é o seguinte: os humanos
são não-essenciais, mas desvendam o mundo; ou seja, não produzem o mundo, mas podem
desvelá-lo. A arte lhes proporciona a possibilidade de serem essenciais e então a situação se
inverte: o artista se torna essencial, porém, não pode desvelar sua obra, já que não é possível
desvendar e produzir ao mesmo tempo.
se nós mesmos produzimos as regras da produção, as medidas e os critérios, e se o nosso
impulso criador vier do mais fundo do coração, então nunca encontraremos em nossa obra
71
nada além de nós mesmos; nós é que inventamos as leis segundo as quais julgamos.
Evidencia-se aqui a distância da argumentação sartreana da experiência concreta dos
artistas, já que este ignora a possibilidade de haver um diálogo entre a obra e o artista. Para
Pareyson, a obra é uma forma e tem vida própria, ou seja, ela está em constante diálogo com
seu autor e um dos aspectos que a torna exitosa é justamente a sua inexauribilidade
interpretativa. E o fato de o próprio artista produzir as regras da produção não implica dizer
que este o faça absolutamente sozinho. A partir do spunto do processo de produção da obra, o
autor já dialoga com a forma, por mais nebulosa que ela seja. A obra é matéria, fisicidade, e
vai resistir à vontade do artista. A lei interna da obra é fruto da lida do artista com a obra, o
71
SARTRE. Que é a literatura?, p. 35.
43
44
artista não é um demiurgo que cria de modo absolutamente autônomo (como no conceito
vulgar de gênio). A obra também busca a autonomia e é desse diálogo tenso entre a pessoa,
como forma e a obra na condição iminente de forma que o processo artístico acontece.
Exemplificando, pode-se dizer que mesmo a prosa pura tem ritmo, as frases precisam fluir, as
palavras devem ser escolhidas, não só pelo seu aspecto significativo, mas também pelo seu
aspecto formal: uma cacofonia pode tornar o texto deselegante e vulgarizá-lo, encobrindo o
aspecto significante do texto.
Sartre afirma que, como foi o artista que inventou os critérios de criação, ele nunca
pode ler a sua obra. Seria o mesmo que olhar a própria obra com os olhos de outrem, por isso
seria impossível desvendar o que se criou. A partir de Pareyson, pode-se inferir que é possível
sim o artista fruir a própria obra, ou no vocabulário sartreano, desvendar a própria obra, mas
realmente, concordando parcialmente com Sartre, há algo peculiar no ato do artista se autofruir. Este tema do autor que lê sua própria obra pode ser explicado pareysonianamente a
partir do seguinte exemplo: é comum estranhar-se a própria voz ao ouvi-la gravada, pois
normalmente há uma grande diferença de timbre em relação à voz que se ouve quando se fala
e à qual se está acostumado. Mas a voz de cada indivíduo, quando sai de um gravador, por
exemplo, tem um timbre mais próximo do modo como os outros a ouvem, ou seja, está mais
próxima do modo como os outros o percebem, do que a voz à qual ele está acostumado a
ouvir quando fala. Assim, pode-se ilustrar o modo como a pessoa do artista está na obra.
Pareyson afirma que:
Colocada sobre o signo da arte, a pessoa se torna verdade e iniciativa de arte, assume
inteiramente uma direção artística, traz, de per si, uma vocação formal, torna-se uma carga
de energia formante. No exercício de tal atividade, desaparece inteiramente nesta,
tornando-se seu ato, ou melhor, seu gesto: a pessoa toda torna-se gesto do fazer, modo de
formar, estilo.72
72
PAREYSON. Problemas de Estética, p. 107. grifo do autor.
44
45
A pessoa desaparece na arte tornando-se modo de formar e assim ler, ou ouvir a si
mesma; é como buscar uma possibilidade de aproximar-se do modo como os outros a
percebem. Quando alguém ouve a si mesmo, ou faz uma leitura de algo produzido por si
mesmo, naturalmente não consegue fazê-lo do mesmo modo de quando se ouve ou se lê algo
que ainda não se conhecia, assim como é ainda diferente quando se ouve ou se lê algo que se
conhece bem. Um primeiro contato com uma obra é sempre permeado por incertezas; há um
caminho a ser percorrido até que a interpretação se efetive e a obra possa ser lida com um
mínimo de sucesso. Uma primeira leitura envolve o risco do fracasso da interpretação, da
decepção com a própria obra, na medida em que ela não corresponde às expectativas do leitor,
ou até mesmo a falta de congenialidade, o que gera um fechamento por parte do leitor e que
não permite que a obra se mostre.
2.1.5 Arte e Natureza ou Pareyson e o Romantismo
Congenialidade é o conceito legado do romantismo que Pareyson utilizou para
designar a relação de empatia e entrega entre pessoa e obra. É necessária uma abertura, que é
um “deixar a obra entrar”, aparecer, ser: é preciso que se instaure entre o intérprete e a obra
aquela afinidade e congenialidade sem as quais o olhar não pode tornar-se penetrante e
revelador73. Se todo conhecimento é interpretação, o sentimento faz parte do processo de
conhecimento. É aqui que Pareyson explicita sua veia romântica, ao relacionar o
conhecimento com a sensação e com o sentimento. Sarto relata que, em Pareyson,
conhecimento, sensação e sentimento constituem algo distinto, mas por sua vez inseparável74.
Mas o próprio Sarto explica o aspecto que distingue Pareyson dos românticos afirmando que:
73
74
PAREYSON. Estética– teoria da formatividade, p. 232.
SARTO. Pablo Blanco. Hacer arte, interpretar el arte, p. 183.
45
46
Ao enfrentarmos uma obra de arte, atuam não só os sentidos, mas também o sentimento e
o pensamento. Neste aspecto Pareyson se separa dos românticos que se oporiam à
presença da razão na arte, ou de Croce que separa radicalmente o sentir do pensar 75
Ao fazer esta afirmação, Sarto generaliza o romantismo negligenciando pensadores
como Novalis e Schelling, que são representantes no romantismo alemão e, antes de tudo, são
filósofos – ou seja, não se oporiam à presença da razão na arte. Verifica-se que a posição de
Sarto é equivocada no que concerne à sua análise, segundo a qual Pareyson se afastaria do
romantismo. Diferentemente disto, constata-se que Pareyson tem uma forte herança
romântica.
Tzvetan Todorov, em sua obra Teorias do Símbolo, faz um sucinto e aprofundado
apanhado do romantismo e descreve conceitos que, em alguns momentos, parecem sair de um
texto pareysoniano. A obra citada passará a ser utilizada para que se identifique algumas
heranças indubitavelmente românticas na estética de Pareyson e se aponte as diferenças.
Tzvetan Todorov elege Karl Philipp Moritz para explorar o nascimento da estética
romântica afirmando que a sua obra Sobre a Imitação Formadora do Belo (1788) contém em
germe toda a doutrina estética do romantismo. Estudando as idéias de Moritz, percebe-se que
a identificação entre arte e natureza, no que concerne ao fato de serem totalidades fechadas, é
um pressuposto romântico extremamente aderente ao ideário pareysoniano. Formatividade é
movimento e se identifica com o devir da natureza. Esta totalidade da obra se dá no devir,
assim como a própria natureza. Pareyson fala de semelhança e solidariedade entre a arte e as
coisas da natureza:
Pode-se, no entanto dizer que tanto as coisas da natureza como as obras artísticas são
formas, o que atesta o poder do espírito humano, o qual, capaz de fazer com que haja
produtos orgânicos e realidades vivas, pode também estender os confins do reino das
formas, acrescentando sem solução de continuidade às formas naturais as inventadas pelo
próprio homem. E desta sorte existe entre as coisas da natureza e as obras de arte uma
75
Ibidem, p. 183-4.
46
47
semelhança profunda, e só ela pode explicar os casos em que elas se unem em uma feliz e
admirável solidariedade.76
Essa totalidade fechada, nas palavras de Moritz, ou “forma” no vocabulário
pareysoniano, tem regras próprias e únicas: a regra individual da obra é a única lei da arte77.
Moritz fala de regra individual e autotelia da obra afirmando que: o belo não exige um fim
fora de mim, pois é tão completo em si mesmo que toda a finalidade de sua existência se
encontra em si mesmo.78
Na estética pareysoniana, o próprio homem é entendido como forma, assim como os
caracteres da natureza e as invenções humanas. A pessoa é, em cada um de seus instantes,
uma totalidade infinita e definida. Infinita por ser um variar contínuo, aberto à re-elaborações
e contestações, repetições e enriquecimentos. Mas, ao mesmo tempo, o indivíduo está fixo em
uma forma singularíssima e inconfundível que os outros consideram concluída e reconhecível
– considerações estas que a própria pessoa exige de si mesma, ao mesmo tempo em que se
mantém aberta. Portanto, a pessoa é forma:
Por isso, se a pessoa é forma, e se todo operar humano é sempre pessoal, o operar humano
tem sempre um duplo caráter: por um lado, tende a executar formas e, pelo outro, exprime
a totalidade da pessoa. Com efeito, o esforço de formação e o elã de plasmação que
definem o operar humano são sempre dirigidos por um sujeito que, por sua vez, vive como
forma em desenvolvimento, sempre já concretizada em uma definitividade concluível e
determinada, e que na direção que imprime às novas plasmações inclui o inconfundível
caráter da própria forma, condensando-a e refragendo-a num só movimento.79
A identificação entre pessoa e forma que está presente na teoria da formatividade se aproxima
da idéia romântica segundo a qual o homem é um fim em si mesmo – idéia kantiana que veio
a ser um dos pilares do romantismo. Afirma Moritz, via Todorov: o espírito do homem é um
todo completo em si80. Mas, neste ponto, Pareyson dá um passo a frente ao explicar o
paradoxo resultante das constantes variações do homem e sua característica de completude.
76
PAREYSON. Estética, p. 117.
Ibidem, p. 67.
78
MORITZ APUD TODOROV, Tzvetan. Teorias do Símbolo, p.201-3.
79
PAREYSON. Estética, p. 177-8.
80
MORITZ APUD TODOROV, Tzvetan. Teorias do Símbolo, p.203.
77
47
48
Para ele, o fato de a pessoa ser uma totalidade infinita e definida ao mesmo tempo é o
argumento central para explicar o fato de o operar da pessoa ser plasmador de formas. O
homem está sempre fixo em um de seus instantes, individuado em seus atos, pois é sempre
resultado de seu próprio operar. Nesse sentido, assim como as obras de arte, o homem é
forma, pois se apresenta acabado e definido, mas também é uma variação contínua inserido no
mundo como todas as obras de arte e da natureza: a pessoa se desdobra em suas variações e
volta fixa em um de seus instantes. Ou seja, como já foi dito, para Pareyson, seria
inconcebível que a pessoa fosse entendida como um eu imutável. É no devir que o homem se
define e nesse mesmo devir a obra se faz, se define e é fruída como totalidade.
Esta completude envolve sempre uma lei interna única e essencial. A noção de uma
legalidade interna de cada obra também tem traços de romantismo. A argumentação de Moritz
sobre este tema inicia-se com a seguinte questão: a arte seria superior à natureza pelo fato de a
natureza poder sempre ser utilizada – e, portanto, ter sempre um fim externo – ou a arte teria
um fim em si mesma? Entende-se que essa transformação da finalidade externa em finalidade
interna seria uma característica humana e, portanto, a natureza, sem a presença do homem,
nunca poderia ser considerada arte. Pareyson não retira o caráter artístico da natureza, na
medida em que o único modo de a natureza existir é o modo antropomórfico de concebê-la.
Nesse sentido, assim como os objetos podem vir a se tornarem contemplativos, por meio de
um olhar seletivo e formativo, a arte também pode se apresentar como uma obra que tem um
fim em si mesmo, diante do olhar que a exalta. Pareyson segue Goethe e Schelling no que diz
respeito à idéia de continuidade entre arte e natureza. Do mesmo modo que na natureza a
semente se forma até a vida adulta, a arte também tem este processo de maturação. Nesse
sentido, a partir da estética da formatividade, não é possível se hierarquizar arte e natureza,
48
49
como Moritz. Mas, tal como Moritz, Pareyson afirma que a arte imita a natureza no que diz
respeito ao seu processo de execução, na medida em que a obra está em constante movimento:
A arte é imitação da natureza não enquanto representa a realidade, mas enquanto a inova,
isto é, enquanto incrementa o real, seja porque acrescenta ao mundo natural um mundo
imaginário ou hetero-cósmico, seja porque no mundo natural acrescenta, às formas que já
existem, formas novas que, propriamente, constituem um verdadeiro aumento da
realidade81.
Para explicar a posição pareysoniana, há de se recorrer à idéia de coincidência entre
fisicidade e espiritualidade que só é possível por ser atributo da pessoa que age, olha e sente o
mundo sempre de forma intencional. Portanto, para Pareyson, esta lei interna aparece no
encontro da pessoa com a forma, já que esta se constitui a partir deste encontro. É o homem
que lê a obra com sua carga espiritual e, ao mesmo tempo, é a obra que, por ser fisicidade,
exige ser lida daquela maneira. Esta lei interna se apresenta diante do olhar que a lê.
Encontram-se aspectos que remetem à idéia de coincidência entre o espiritual e o material na
idéia de síntese de opostos presente em Moritz e explicada por Todorov:
A coerência interna como característica da obra de arte vale para todos os estratos que a
constituem, portanto, também por seus aspectos espiritual e material, seu conteúdo e sua
forma. Porém forma e conteúdo, matéria e espírito são contrários; pode-se, portanto,
caracterizar a obra de outra maneira, dizendo que ela realiza a fusão de contrários, a
síntese dos opostos.82
Ainda sobre a relação entre Pareyson e o romantismo, Benedito Nunes afirma que é
possível considerar a terceira crítica kantiana uma das fontes da teoria romântica e utiliza o
próprio Pareyson para respaldar seu argumento: não é de se admirar que um Luigi Pareyson,
no trabalho que escreveu sobre a Estética de Kant, ouse chamar a Terceira Crítica, na sua
primeira parte, como ‘o primeiro manifesto romântico83. Para Pareyson, o romantismo deixou
como legado a concepção de arte como expressão de sentimentos para a qual a beleza da arte
consiste na beleza da expressão, na coerência das formas artísticas com os sentimentos que ela
suscita. Pareyson afirma que desde o romantismo esta definição da arte multiplicou-se e
81
PAREYSON. Os problemas da estética, p. 81.
TODOROV, Tzvetan. Teorias do Símbolo, p.206.
83
NUNES, Benedito. Hermenêutica e Poesia, p.35.
82
49
50
aprimorou-se, citando como exemplo as teorias estéticas de Croce e Dewey. Segundo
Pareyson, esta concepção da arte como expressão negligencia o aspecto realizativo da arte que
é eminente em sua teoria. A arte é expressão, mas não é isso que caracteriza sua essência. A
arte é a forma expressiva da personalidade do artista, do contexto filtrado nesta mesma
personalidade que se fez modo de formar e do processo que deu origem à obra acabada. Ao
mesmo tempo, a arte é autônoma e não apenas mediadora dos sentimentos do artista, da
natureza ou do absoluto.
Pareyson certamente se refere ao romantismo vulgar, que reduz a arte à expressão do
individuo. Já Moritz e Schelling se referem ao romantismo filosófico, que fala de autonomia
da obra, da auto-expressão ou do auto-espelhamento do absoluto, da arte como imitação da
força produtiva da natureza, e, sobretudo, da produção como o contrário da imitação. A
argumentação pareysoniana sobre a autonomia da arte segue a mesma direção de Schelling e
Moritz até o momento no qual a arte passa a ter ligação com o absoluto – a partir daí,
Pareyson se diferencia. Outro ponto de divergência é a relação antitética entre produção e
imitação afirmada por Moritz. Seguem-se os argumentos:
Segundo Pareyson, a relação entre arte e absoluto inevitavelmente comprometeria a
autonomia da arte, na medida em que esta seria mediadora, tornando-se manifestação daquele.
O caráter de imanência que o ideário de Pareyson sugere se distingue da concepção
tradicional aristotélica, da qual Schelling se aproxima. Se, em Aristóteles a essência dos
objetos está neles mesmos, é possível afirmar que o conceito aristotélico de essência,
caracterizado pelo seu caráter de imanência, não se aplica à concepção de arte gerada pela
teoria da formatividade. Aristóteles parte da idéia de causalidade para explicar o devir,
afirmando que todo movimento tem uma causa. A causa primeira seria um motor-imóvel
50
51
originário. Para explicar o que Platão negligenciou – a saber, o problema do devir colocado
por Heráclito, Aristóteles acaba recorrendo a um conceito que envolve imutabilidade
(conceito central do platonismo) e que, portanto, deve estar fora do tempo e do espaço. Em
Moritz e Schelling, podemos verificar esta mesma questão no que concerne ao conceito de
absoluto. Mesmo considerando os aspectos físicos da produção artística, Moritz e Schelling
relacionam a arte com idéia de absoluto, aproximando-se da idéia clássica de imanência. Para
Pareyson, a essência da arte não existe antes de a obra existir e nem depois de ela ser
destruída pelo tempo. A essência da obra é sua presença física, inserida no devir e
vislumbrada por uma pessoa tão perecível quanto a própria obra. Não é possível falar de um
motor-imóvel nem de absoluto na teoria da formatividade. A verdade da obra se oferece em
sua inexauribilidade e não há outro modo de colhê-la senão em um de seus instantes. O
conceito de absoluto sugere totalidade, a teoria da formatividade fala de inexauribilidade. É
necessário superar-se a insistente necessidade de afirmar um absoluto e concentrar-se na
essência do processo interpretativo, que é a multiplicidade. Deste modo um aspecto do
romantismo filosófico que não se coaduna com a teoria da formatividade é a relação antitética
entre produção e imitação. Para Pareyson, o processo artístico tem um modo de operar
semelhante ao da natureza e, em termos de produção, a arte já tem um grau de imitação da
natureza em seu processo formativo. Quanto ao fato de a arte imitar ou não a natureza no que
concerne ao seu objeto, isto vai depender das predileções pessoais do artista que compõem
sua poética. Trazer estes elementos para o âmbito da estética gera o risco de uma definição de
arte que utiliza um aspecto particular e não comporta o fazer artístico como um todo. Utilizar
sentimentos que remetem a um absoluto, ou elementos da natureza, são possibilidades que
estão presentes nas obras, mas não são parte de sua essência. A arte é, antes de tudo, algo
inaudito, completamente inédito que surge da composição de elementos coadunais em perfeita
51
52
harmonia, gerando uma totalidade única aberta e cambiante, assim como todos outros objetos
do mundo e como a própria pessoa.
2.1.6 Relações entre obra, artista e processo formativo
Ler uma obra é sempre um desafio. Ao se debruçar sobre uma obra de arte, toda a vida
espiritual de cada indivíduo está atuando na forma. É a unitotalidade da pessoa que se engaja
no processo de interpretação. E, para que este processo seja bem sucedido, é necessário
retomar o caminho percorrido pelo artista para encontrar o êxito da obra. Quando já se
conhece a obra, uma abertura já existe e a obra repousa em cada percepção de modo
harmônico e prazeroso. Quando não se a conhece, é preciso perscrutar suas veredas e, quando
a obra foi feita pelo próprio indivíduo, este encontra a oportunidade de adentrar uma espécie
de retrato de um determinado momento de sua própria subjetividade. Quando algum
indivíduo se ouve tocando algum instrumento musical, ou cantando em uma gravação, este
nunca consegue se ouvir do mesmo modo com o qual quando ouve outrem: ele conhece suas
soluções, sabe como é o seu modo de formar porque ele o busca – e é a partir do modo de
formar que inventa e percebe a lei interna da obra em questão. Se ele tenta se ouvir como se
não fosse ele quem estivesse ali naquela obra, como se ele não a tivesse criado, fica como que
paralisado, anestesiado e não consegue a fluência e a sintonia necessárias para ler aquilo do
modo como faria se não fosse a sua própria obra: esta se lhe parece estranha, de tão familiar.
Ao se ouvir, o indivíduo refaz o caminho que percorreu para chegar a tal resultado – e é como
se não houvesse novidades.
Esse é o argumento sartreano, quando afirma que o artista não pode desvendar sua
obra, pois, pelo fato de conhecê-la por inteiro, ele não conseguiria lê-la, já que ela não possui
52
53
mais nada de novo. Mas a obra é forma e, portanto, está viva; sempre apresenta novidades,
sempre interage com o tempo e o espaço nos quais está inserida. Para criá-la o artista chegou
à sua legalidade interna e esse processo não é exclusividade do artista, a própria obra delimita
os caminhos do artista, assim como o artista delimita os caminhos da obra naquilo que
Pareyson chama de dialética entre forma-formada e forma-formante84. Por isso há um grau de
prazer em ouvir a si mesmo, ou em ler a si mesmo, mas é um prazer com alto risco de se
tornar desgastante, pois a própria obra exige um outro tipo de postura diante dela – talvez,
uma postura mais ativa, mais vigilante. Como afirmado há algumas linhas, a obra é a pessoa
do artista que desaparece na arte tornando-se modo de formar. Mas a obra é a pessoa do
artista da maneira como os outros a vêem e, ao mesmo tempo, é uma junção do modo como o
próprio artista vê a si mesmo e o modo pelo qual o artista quer ser visto pelos outros; o
mesmo objeto sendo observado por ângulos diferentes – como quando se olha para uma
árvore por debaixo e não se pode precisar sua amplidão, mas é possível ver os detalhes e, para
abarcá-la como um todo, é necessário se afastar e não mais perceber estes detalhes. A
percepção é inexaurível, não limitada, mas fonte constante de significados e perspectivas
nunca totalizantes. O artista que frui sua própria obra vê a si mesmo, mas não como em uma
fotografia paralisada e sim como algo vivo.
ela (a obra) é a pessoa mesma do autor, não fotografada em um de seus instantes, o que
seria uma imagem muito particular e falseadora – mas colhida na sua integridade viva, e
solidificada, por assim dizer, num objeto físico e autônomo. Certamente isso não significa
dizer que o autor se resolve na obra, como se a verdadeira realidade fosse a obra, e o autor,
separado dela, não fosse senão realidade efêmera e transitória; antes, pelo contrário, que a
obra é o próprio autor, solidificado numa presença evidente e eloqüente, que se
encomenda para a eternidade.85
Um modo eficiente de se adentrar a subjetividade de um indivíduo é ler bem
sucedidamente sua obra. A linguagem formalmente lógica não contempla toda a
complexidade do ser humano. A arte também não faz isso de forma totalizadora, mas pelo
84
85
Este tema será tratado adiante, no item 2.2.2.
Ibidem, p. 108
53
54
fato de a arte unir razão, sentimentos e paixões, ela se torna mais eficiente. A obra se
confunde com a pessoa do artista e o espectador, ao fazer uma leitura bem sucedida, se
confunde com a obra. Não que a obra seja mediadora da subjetividade do artista, pois não há
nada fora dela que seja mais verdadeiro, ou mais autêntico. O artista ficou em sua obra e esta
tem vida própria, por ser capaz de interagir com o espectador. Tudo o que é físico tem
espiritualidade, assim como o espiritual só o é no físico. A própria pessoa do artista na obra
não existe de um modo melhor ou mais íntegro do que aquele pelo qual ela percebe a si
mesma, mas de um jeito apenas diferente, pois o modo pelo qual o indivíduo tem acesso a si
mesmo não é melhor, nem mais claro ou nítido, do que aquele pelo qual os outros o
percebem. Nada garante que o humano – por ter a possibilidade lingüística de formular o
enunciado ‘eu posso ter acesso à minha subjetividade por ser sujeito, cartesiano, separado do
mundo’ – tenha um acesso privilegiado a si mesmo. A existência é dinâmica e escapa a
qualquer objetivismo. Afirma Pareyson:
que a verdade só pode ser colhida como inexaurível, a saber, reside na palavra não como
presença totalmente explicitada, mas como origem e fonte, significa afirmar que a verdade
é fundamentalmente inobjetivável. De fato, se, por um lado, a verdade só se oferece no
interior de uma perspectiva pessoal, que já a interpreta e determina, é impossível um
confronto entre a verdade em si e a formulação que dela se dá: para nós, a verdade é
inseparável da interpretação pessoal que lhe damos, tanto quanto nós próprios somos
inseparáveis da perspectiva em que a colhemos; não podemos sair de nosso ponto de vista
para colhê-la numa presumível independência que sirva para fazer dela um critério com o
qual medir, externamente, nossa formulação. Por outro lado a verdade só pode ser colhida
como inexaurível, mais do que objeto e resultado, ela é origem e impulso.86
O que aproxima a teoria da formatividade de Pareyson de Sartre e de Heidegger é o
aspecto existencialista de sua estética. Francesco Paolo Ciglia, um importante comentador de
Pareyson, afirma que a formatividade é uma espécie de fundamentação existencial da
experiência artística 87. A partir do momento em que Pareyson se propõe a fazer uma análise
fenomenológica da arte, sua argumentação perpassa o ideário existencial no que concerne ao
fato de o homem no mundo, e de sua atividade estar sempre inseridas em um contexto, ou
86
87
PAREYSON. Verdade e Interpretação, p. 20.
CIGLIA, Francesco Paolo. Ermeneutica e Libertà: L’itinerario filosofico di Luigi Pareyson, p. 120.
54
55
como já foi dito: não ser criativa. Se sua atividade está ligada à não-criatividade, é possível
afirmar que toda atividade envolve a receptividade. Somente se acolhe uma determinada
impressão quando esta é ativamente escolhida ao se receber as impressões do mundo. A
atividade e a receptividade constituem-se mutuamente. Pareyson exemplifica esta questão
dizendo que acolher uma proposta já é dar-lhe resposta, receber um estímulo é já reagir; a
sugestão só é sugestão realmente para o ouvido que a escuta e pondera. Nas palavras de
Pareyson:
Pois existe na minha liberdade, na liberdade que sou pra mim mesmo, uma necessidade
inicial, que é o sinal de meu ser principiado, de meu limite, de minha finitude, de uma
receptividade inicial e constitutiva pela qual eu sou dado a mim mesmo e a minha
iniciativa é dada a si mesma. Se esta é a estrutura de minha iniciativa, de ser atividade
somente enquanto não é criatividade, é congênita e essencial à minha atividade uma
receptividade, que a constitui e a qualifica e que constitui e qualifica o próprio desenrolar
da iniciativa.88
A partir disto, é possível enunciar que é o artista inteiro que se debruça sobre sua obra
e que todo o mundo do artista é pano de fundo para sua criação na medida em que o seu modo
de dialogar com a obra é único e o seu modo de intuir e perseguir o êxito também. Assim, o
artista cria um mundo à parte em sua obra que tem uma legalidade própria na qual os
elementos se coadunam de forma harmônica e orgânica. É neste sentido que Pareyson expõe
que o conteúdo da arte é a pessoa do artista inserido em sua cultura de forma singular, lidando
com seus [...] pensamentos, costumes, sentimentos, ideais crenças e aspirações.89 Mas a
pessoa do artista é o conteúdo da arte, não no sentido de que a arte é uma forma de expressão
de sentimentos interiores do artista, e nem que a arte funciona como uma ponte entre a
interioridade do artista e o mundo. Pareyson afirma que o conteúdo da arte é a pessoa do
artista, sua circunstância histórica e a história pessoal que ele carrega consigo, e o modo
originário de acesso a essa história é a condição de pessoa. Estes elementos constitutivos da
vida espiritual guiam o artista em suas escolhas e em seu diálogo formativo com a matéria,
88
89
PAREYSON. Estética, p. 172.
Ibidem, p.30.
55
56
sendo assim as origens das noções de êxito e a explicação para determinado artista ter
determinado spunto em determinada circunstância. Exprime Pareyson:
A obra de arte tem como conteúdo a pessoa do artista, não no sentido de tomá-lo como seu
objeto próprio, fazendo dela o seu “tema” ou assunto ou argumento, mas no sentido de que
o “modo” como esta foi formada é o modo próprio de quem tem aquela determinada e
irrepetível espiritualidade: Entre a espiritualidade do artista e seu modo de formar existe
um vínculo tão estreito e uma correspondência tão precisa, que um dos dois termos não
pode subsistir sem o outro, e variar um significa necessariamente variar também o outro.90
Pareyson afirma que somente uma filosofia da pessoa, e não uma filosofia do espírito
– aqui fica clara a menção a Croce – é capaz de encontrar a solução para o problema da
unidade das atividades, por explicar, com base na indivisibilidade e na iniciativa pessoais, a
exigência de que toda operação seja simultaneamente a especificação de uma atividade e a
concentração de todas as outras. Nas palavras de Pareyson: Se o operar fosse do espírito
absoluto, não haveria motivo para distinção entre as atividades, e todas se reduziriam a uma
91
. A pessoa é o conjunto de seus atos no mundo, portanto só é possível pensá-la levando em
conta esta condição. A partir disto Pareyson distingue dois aspectos inerentes à pessoa que são
a totalidade e o desenvolvimento.
Por um lado a pessoa é, em cada um de seus instantes, uma totalidade infinita e definida,
fixa em uma forma singularíssima e inconfundível, dotada de uma validade concluída e
reconhecível; e, por outro lado, é um variar contínuo, aberto à possibilidade de
contestações e reelaborações, de revisão e enriquecimentos, de repetições de velhos
motivos e novos atos 92.
Ou seja, a pessoa é uma forma e, por conseguinte, é dinâmica, pois está inserida em
uma condição factual e histórica, mas, ao mesmo tempo, é uma totalidade infinita, na medida
em que esta totalidade se desdobra no fluxo do tempo. Desse modo, é possível dizer que toda
atividade artística implica a pessoa do artista de forma inteira e, conseqüentemente, toda sua
vida espiritual está presente em seus atos. Portanto, suas predileções estéticas, valores morais,
crenças, costumes estão, direta ou indiretamente, no modo como o artista vai conceber, junto
90
Ibidem, p. 31.
Ibidem, p.25.
92
Ibidem, p. 176.
91
56
57
da matéria física, sua legalidade interna e assim entrar em processo formativo. É o artista
enquanto pessoa que dialoga com a obra e toda a plenitude de sua vida espiritual, toda a sua
vontade expressiva e comunicativa estão traduzidas em seu modo de formar. O modo de
formar pode ser chamado de estilo. Afirma Pareyson: Tendo-se colocado sob o sinal da
formatividade, uma espiritualidade consegue então fazer-se, no artista, ela mesma modo de
formar, ou seja, estilo93. O estilo não existe em abstrato, mas sim no modo como as próprias
obras se formam. Para que um artista delineie seu estilo, é necessário percorrer um árduo
caminho no qual estão em tensão o estilo que o artista deseja possuir e sua espiritualidade em
busca do próprio estilo. Naturalmente, todo artista desenvolve seu estilo a partir de sua escola
artística e dos artistas com os quais ele se identifica e, assim, compõe seu singular modo de
formar. Há na arte, então, um caráter de pessoalidade que é inerente à própria vida humana, já
que toda atividade humana é dirigida por uma iniciativa pessoal.
se no operar artístico a pessoa do autor tornou-se, ela mesma, o seu próprio e
insubstituível modo de formar, e se a arte não tem outro conteúdo que não a própria
pessoa que é sua energia formante, bem se pode dizer que a obra, a que o processo
artístico leva a cabo, é a própria pessoa do artista encarnada completamente num objeto
físico e real, que é, justamente, a obra formada94.
Assim, para especificar a arte, Pareyson baseia-se no princípio da unidade e distinção
das atividades humanas e no conceito de unitotalidade da pessoa, conseguindo satisfazer
conjuntamente três conclusões que se implicam mutuamente. A saber, 1) a presença da arte
nas demais atividades humanas, já que toda atividade tem um caráter estético (formativo); 2) a
presença dos demais valores e atividades na arte, já que a arte está impregnada do mundo do
artista e 3) a arte propriamente dita, já que o aspecto artístico de toda operação humana não
consiste em suprimir a possibilidade de conceber a arte autônoma. Fazer com arte é diferente
de fazer arte.
93
94
Ibidem, p. 36.
PAREYSON. Os Problemas de Estética, p. 107.
57
58
No que concerne ao pensamento sobre arte, pode-se ressaltar a seguinte dicotomia do
pensamento estético tradicional questionada por Pareyson: ora a arte é um "criar" – ou seja,
pensada como atividade puramente espiritual, interior, na qual desvaloriza-se qualquer
aspecto extrinsecativo, ora a arte é entendida como um "fazer", na qual é ressaltado um
aspecto executivo ligado a uma operação. Se se partir dessa dicotomia, se entenderá a arte ora
como fantasia, sonho, pura interioridade, uma imagem interior que surge enquanto criação a
partir do vazio, ora como um verdadeiro ofício, que é pura extrinsecação – e, nesse caso,
trata-se apenas de um objeto físico. Segundo Pareyson, é necessário sair dessa antítese
falaciosa, que limita a compreensão do fenômeno artístico. Os aspectos interior e executivo
não se contrapõem, não se sucedem nem se anulam, mas sim, coincidem inteiramente, pois os
aspectos físicos e espirituais compõem a natureza indivisível da arte.
O conceito de formatividade permite compreender a gradação infinita que abarca o
mais humilde e subordinado fazer com arte e o mais elevado e autônomo fazer arte, sem
acarretar comprometimento de valores. As definições radicais que separam a arte do que não
o é são falsas para Pareyson. Todo produto humano bem sucedido tem um grau de articidade.
A autonomia da arte, para Pareyson, está justamente na própria especificação da forma
artística. Esta é um puro êxito, ou seja, o resultado de um processo cuja única condição de
sucesso é sua adequação consigo mesmo. A formatividade se torna arte quando ela se faz lei
para si mesma. É o que Pareyson chama de teleologia interna do êxito95. Mas isso não implica
dizer que a obra deve, exclusivamente, servir a si mesma, ou seja, que ela não possa ter fins
extrínsecos, pois a obra pode satisfazer a diversos destes, desde que não se limite apenas a
satisfazê-los e que seu êxito como forma artística não dependa exclusivamente deles. É nesse
sentido que a arte é pura formatividade.
95
O êxito da forma artística tem um fim em si mesmo, ou seja, não depende de um fim extrínseco para existir.
Este conceito será desenvolvido na argumentação sobre dialética de forma formante e forma formada na seção
2.2.
58
59
A argumentação pareysoniana é uma possibilidade de superação dos conflitos entre
arte e cultura de massa. Se a interpretação é sempre pessoal, pode-se dizer que, apesar do
caráter de reprodutibilidade das obras ter provocado a indústria cultural e conseqüentemente
“moldar” a sensibilidade das pessoas, se faz necessário considerar também as nuances
particulares de cada indivíduo; afinal, é possível que determinada pessoa frua a reprodução de
uma obra e interaja de tal modo com esta forma artística que, mesmo que haja toda uma
precariedade nesta fruição, isto não seja empecilho para uma produtiva interpretação,
resultando em uma fértil produção de significados. E pode-se também pensar que aquela
fruição superficial pode desencadear interesses em obras mais elaboradas e mais complexas. É
claro que algo novo ocorre em termos históricos, mas, em relação à fruição artística, a
situação é essencialmente a mesma, já que a arte foi sempre exclusividade de uma minoria. A
questão não é necessariamente o modo como as obras chegam para a grande massa, mas sim o
modo como as pessoas lidam com o mundo. O fato de determinada realidade provir de um
processo industrial e chegar à sociedade em forma de mercadoria não pode comprometer a
especificação da forma artística, e nem o seu êxito. Mesmo que determinada obra tenha um
objetivo mercadológico, o que vai garantir seu caráter artístico é o que Pareyson chama de um
"puro êxito", ou seja, a obra sustenta-se por si só, na medida em que o que a faz exitosa não é
o fato de esta servir a um fim extrínseco a si própria. Uma obra pode satisfazer a diversos fins
extrínsecos, desde que não se limite apenas a satisfazê-los e possa se sustentar por si mesma.
Existe uma grande diferença entre a realização de um fim na obra e realização de um fim com
a obra. O uso mercadológico se enquadra no segundo caso.
Assim sendo, é possível que uma determinada campanha publicitária, ou um
determinado jingle, uma determinada canção popular ou um determinado artesanato, por
59
60
exemplo, tenham um alto grau de articidade, pois o fato de determinada obra ser uma
mercadoria não pode ser o parâmetro para averiguar seu êxito. A insistência do termo se
justifica a partir da necessidade, assinalada por Pareyson, de analisar obra por obra. Para o
filósofo italiano, a obra de arte consiste precisamente em não querer ter outra justificativa que
não a de ser um "puro êxito", uma forma que vive de per si. Portanto, o seu êxito pode não
estar subordinado a fins extrínsecos e a obra tem de estar direcionada apenas para o seu
sucesso enquanto forma artística e para sua adequação consigo mesma. Em alguns casos, uma
obra de arte pode ter em mira algum fim extrínseco, mas o que garante sua autonomia é o fato
de seu bom resultado como forma artística não depender deste fim. É este fator que vai
garantir sua inexauribilidade enquanto forma. No caso das reproduções de grandes obras, o
êxito fica comprometido pelo fim extrínseco, que é tornar aquela obra uma mera imagem
transformada em mercadoria barata. Um jingle publicitário tem diversos fins extrínsecos,
como vender um produto, provocar identificação em determinado grupo de possíveis
consumidores – ou adequá-los a um determinado padrão de gosto96, entre outros. Mas mesmo
com todos esses fins, ele pode ter como elemento axial, ou seja, que garante seu êxito
enquanto forma artística, um fim em si mesmo. Como exemplo, há uma gravação que consta
no álbum "Mutantes", de 1969, na qual foi incluída a canção "Algo Mais" como uma música
comum e esta vigorosa canção sobrevive de per si, pois independentemente da finalidade que
guiou sua composição, ela tem como sustentação e garantia de seu êxito elementos
independentes do fato de ser um jingle para a Shell.
Com raro sentido de invenção e liberdade eles (Os Mutantes) compuseram um jingle para
a Shell. É preciso ter coragem de ouvir claro e saber com certeza que aquele som é novo,
limpo, inventivo e livre. (...) A intenção com que foi feita, pouco importa, o que vale é o
som final. Além de cumprirem os objetivos de promoção de vendas, de imagem pública da
Shell e de divulgação de uma marca, eles estão colaborando para a música brasileira
97
contemporânea com grandeza e competência.
96
97
Expressão de Umberto Eco. Ver ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados.
Nelson Mota, no encarte do disco Mutantes, de 1969.
60
61
2.2 O processo artístico
Discute-se agora como Pareyson entende o processo de formação da obra de arte.
Como já foi dito, a arte é um fazer e todo fazer implica o tentar. Portanto, uma das principais
características do fazer artístico é a exigência de uma série de tentativas em busca do êxito.
Esse processo não é destituído de guia, existem sempre elementos a partir dos quais o artista
executa suas ações. Quando, por exemplo, alguém afirma que uma obra já existia em sua
mente antes de executá-la, ou que a obra já existia em algum lugar e bastou buscá-la numa
operação interior, há aí um fato inegável, segundo Pareyson: o artista procede como se algo o
guiasse. É por isso que todo artista sabe quando está no caminho certo, ou quando houve
dispersão e as idéias se perderam, ou quando algo não “cabe” em determinada obra. Esse tipo
de argumento é endossado por testemunhos de artistas e mesmo por doutrinas filosóficas, e de
fato não se pode negar que exista este guia que faz com que o artista leve a sua obra adiante. E
não há divergências entre estas afirmações e a teoria da formatividade. O ponto que Pareyson
destaca é o fato de que, mesmo intuindo o que a obra será, ou o que o artista quer que a obra
seja, não é possível sabê-lo antes de executar fisicamente a obra; ou seja, não é possível que
haja na mente do artista uma imagem já completa, a partir da qual ele compara o que está
sendo feito com o que ele tem em mente. Aqui, o argumento explicado anteriormente –
segundo o qual atividade e receptividade são simultâneas e que execução e invenção
caminham pari passu – reforça a posição pareysoniana de que, mesmo que haja um guia, este
não é a obra pronta, mas sim uma imagem vaga do que o artista quer da obra, imagem esta
que se transforma junto com a matéria na medida em que as soluções vão sendo utilizadas e a
obra vai tomando corpo e, mesmo diante da incerteza de suas escolhas, quando o artista
chegar ao resultado bem sucedido, ele saberá reconhecer este momento e saberá que sua obra
se formou.
61
62
Assim, pode-se dizer que há algo que guia, mas este não é garantia de nada; existe o
desejo do êxito, mas, ao mesmo tempo, se lida com a possibilidade iminente do fracasso. É no
fazer que o artista descobre as soluções na medida em que nunca há o conhecimento prévio do
modo exato pelo qual os atos devem ser realizados. Assim como qualquer atividade humana,
a arte exige invenção e execução de modo simultâneo, porém na arte a finalidade dessas
atividades não tem um fim extrínseco e o artista intui a finalidade na própria obra. Essa
intuição se dá a partir do spunto e é caracterizada pelo desejo do êxito. A isto Pareyson chama
de “dialética entre forma formante e forma formada”. O artista possui a noção do que é o
êxito de sua obra, mesmo sem ter uma imagem nítida do mesmo e, ao mesmo tempo, esta
noção se transforma na medida em que a obra se forma. Quando o artista entra em processo
formativo, ele sempre parte de algo. Como foi dito anteriormente, nenhuma atividade humana
se inicia do vazio. Iniciado o processo formativo, a partir do spunto, o artista tem a noção do
êxito, que seria algo que lhe agrada em termos gerais e que ele acredita poder ser bem
sucedido, mas que não necessariamente está nítido em sua mente. O artista percebe que é
possível chegar a algo satisfatório, mesmo sem saber o que é este algo, e de fato não sabe. A
obra só se revela quando acabada e ela de fato não existe antes de sua execução. A noção de
êxito contém o spunto, e, assim como ele, esta não é algo delineável, mas sim, nebuloso e
impreciso. É uma espécie de germe que traz consigo uma promessa incerta de êxito.
2.2.1 O spunto e a lei interna no processo artístico
O spunto é o ponto de partida do processo de formação, um conjunto de elementos
inseridos em uma determinada circunstância que se coadunam com o olhar formativo da
pessoa que percebe certa uberdade em uma determinada situação. O spunto é algo que inicia o
62
63
processo de formação da obra ao ser assumido pela intenção formativa do artista, mas que não
o domina porque depende da livre adoção por parte da pessoa. A partir do spunto, inicia-se o
processo artístico no qual um fazer só pode ser considerado um formar quando não se
restringe a uma simples execução mecânica de um dado objeto previamente idealizado, mas
ao contrário, quando é inventado o modus operandi no momento em que se realiza a obra,
definindo, concebendo, executando e projetando sua lei individual.
Esta lei é inventada e descoberta (simultaneamente) pela pessoa do artista, a partir de
sua relação com a forma, pois esta é, antes de tudo, matéria, corpo físico, que são
características inerentes tanto à forma quanto à pessoa. Estas características explicitam um
aspecto crucial da filosofia pareysoniana: a coincidência de fisicidade e espiritualidade da
obra de arte. Dessa maneira, pode-se afirmar que o corpo físico da obra basta a si mesmo e
constitui toda a realidade da arte – ou seja, ele é a totalidade da obra, no sentido de que o
aspecto espiritual não é algo que transcende o seu aspecto sensível e sua realidade física, mas
que antes coincide plenamente com elas. Assim, tem-se todas as características físicas sendo
consideradas de forma eminente no processo artístico. Agora, acredita-se ter se aproximado
do que Pareyson significa quando afirma que o conceito de formatividade envolve de modo
indissolúvel e simultâneo a produção e invenção. Nas palavras do próprio autor:
Somente quando a invenção do modo de fazer é simultânea ao fazer é que se dão as
condições para uma formação qualquer: a formação onde inventar a própria regra no ato
que, realizando e fazendo, já a aplica. Com efeito, o modo de fazer que se procura inventar
é, ao mesmo tempo, o único modo em que o que se deve fazer pode ser feito e o modo
como se deve fazer.98
Pareyson destaca o caráter falível do artista, pois a atividade artística envolve
eminentemente tentativa, fracasso e êxito. Um fazer que ao mesmo tempo invente o modo de
fazer só pode se dar por tentativas que persigam o êxito. Este é o norteador das ações do
artista e é indicado pelo caráter físico da obra e, simultaneamente, por toda a sua vida
98
PAREYSON. Estética p. 60. (grifo do autor)
63
64
espiritual – ou seja, no momento de lidar com a obra, o artista inteiro, como pessoa, se
debruça sobre ela e esta já dialoga com o autor na busca pelo êxito.
2.2.2 Forma-formante e forma-formada
Pode-se dizer que a direção que o processo artístico vai seguir está nele mesmo, já que
o tentar está diretamente ligado ao presságio da obra que se deseja fazer. Sobre a dialética
entre forma-formante e forma-formada, Pareyson afirma:
E essa antecipação da forma não é propriamente um conhecimento preciso nem visão
clara, pois a forma só existirá quando o processo se concluir e chegar a bom termo. Mas
não é tampouco uma sombra vaga e pálida larva, que seriam como que idéias truncadas e
propósitos estéreis. Trata-se, na verdade, de presságio e adivinhação, em que a forma não
é encontrada e captada, mas intensamente esperada e ansiada. Mas esses pressentimentos,
embora intraduzíveis em termos de conhecimento, agem na execução concreta como
critérios de escolha, motivos de preferência, rejeições, substituições, impulsos e
arrependimentos, correções, revisões. Ou melhor, o único modo de dar-se conta deles é
precisamente sua eficácia operativa, pela qual no processo de produção o artista sem
cessar julga, avalia, aprecia, sem saber de onde na verdade procede o critério de seus
juízos, mas sabendo com certeza que ele, se deseja chegar a bom termo, deve agir
conforme apreciações assim orientadas. 99
Aqui, a dialética forma-formante/forma-formada se evidencia; ou seja, a forma existe
como formada e, ao mesmo tempo, age como formante no processo artístico. A obra é ativa,
já dá seus sinais, mas não existe concretamente. O movimento da forma existe nela antes
mesmo de ela apoiar-se em si mesma para realizar este movimento. Pareyson afirma que a
forma existe e não existe ao mesmo tempo. Não existe porque como formada só existirá
quando concluir o processo e existe, porque como formante já age desde que começa o
processo100. E não há diferença entre a forma-formante e a forma-formada, pois a formaformada não é um fim, sua presença no processo não é como a de um fim em uma ação.
99
Ibidem, p.75
Ibidem, p.75
100
64
65
Para ilustrar esses conceitos, pode-se pensar nas primeiras notas tocadas no piano por
um compositor, que de algum modo apontam, sugerem os caminhos. Essas sugestões se dão a
partir da vida espiritual do artista que está impregnada de sua cultura; ou seja, é natural que os
ocidentais tenham a escala diatônica101 presente em seu modo de perceber a música e os sons
em geral e sempre a tomem como referência para segui-la (como acontece na música tonal),
ou transgredi-la, (como acontece na música atonal). Portanto, ao se dizer que é a pessoa do
artista fator determinante no seu modo de formar, está se afirmando o papel preponderante
que toda a vida espiritual do artista desempenha no processo de formação da obra. Esta vida
espiritual é formada pelos aspectos culturais nos quais o artista está inserido e estes são o
único modo pelo qual a pessoa pode perceber o mundo e a si mesma. Assim, no soar das
primeiras notas, o modo cultural de se perceber os sons, o modo como as notas são
subdivididas nos instrumentos ocidentais e as próprias propriedades físicas dos sons são
elementos irredutíveis e necessários. Eles oferecem infinitas possibilidades, mas ao mesmo,
tempo delineiam os caminhos possíveis – é o tentar que envolve fisicidade, e, ao mesmo
tempo, é o momento único que o artista esta vivendo somado a suas predileções e a suas
intenções formativas que possibilitam o processo de formação no qual fisicidade e
espiritualidade são indissociáveis. Inicia-se assim, a partir de um spunto, o processo de
plasmar as formas, no qual essas notas, seus timbres, o tempo de cada nota, o ritmo que
determinada seqüência adquiriu e todas as sugestões possíveis delineiam a ação formativa do
artista em processo de diálogo entre ele e a forma. Neste diálogo, a forma responde a partir de
suas limitações oriundas de seu aspecto físico. Os fatores que determinam as escolhas se dão a
partir do olhar formativo da pessoa do artista que prefere e pretere, e o modo como seu juízo
opera não é possível de ser explicado apenas pela razão, na medida em que este modo envolve
101
Pitágoras de Samos, no século VI a.C., concebeu a escala diatônica a partir dos sons produzidos pelas
subdivisões de uma corda esticada. Assim, convencionou-se dividir-se os sons em sete notas. Toda a cultura
musical ocidental tem suas raízes nessa concepção. Os orientais, por exemplo, têm outros modos de lidar com as
notas devido ao fato de culturalmente terem desenvolvido outra forma de perceber os sons. No caso do ocidente,
desde criança tem-se contato com a escala diatônica e seus desdobramentos ao se ouvir as canções infantis.
65
66
toda a vida espiritual do artista: sentimentos, crenças, sua história e a circunstância histórica
na qual ele está inserido e todo o jogo psíquico característico da pessoa. Mesmo não podendo
ser explicado pela razão, isso não implica dizer que a razão não participa deste processo; a
razão atua de forma constante e vigilante. Por isso, o artista, mesmo sem saber precisamente
os critérios a partir dos quais julga sua nascente obra, utiliza termos que suscitam exatidão,
tais como: isto está no lugar certo, ou no lugar errado. Umberto Eco, ao explicar a teoria da
formatividade, discursa sobre a questão da intervenção da razão no processo artístico:
Assim tal como numa atividade especulativa existe um empenhamento ético, paixão da
pesquisa e uma sábia articidade que orienta o desenrolar da atividade de investigação e a
forma como se dispõem os resultados, também numa operação artística intervém uma
moralidade (não à maneira de uma tabu exterior de leis vinculativas, mas como
compromisso que leva a sentir a arte como missão e dever, e impede totalmente que a
formação siga outra lei que não seja a da própria obra a se realizar); intervém o sentimento
(entendido não como um ingrediente exclusivo da arte, mas como coloração afetiva que o
compromisso artístico assume e no qual se desenvolve); e intervém a inteligência, como
juízo contínuo, vigilante, consciente, que preside à organização da obra, controlo crítico
que não é estranho à operação estética. 102
Como outro exemplo, pode-se pensar em um escultor que tenha diante de si um
material de determinada textura e que, de algum modo, indica como o artista poderá proceder,
uma vez que, ao operá-lo, este enfrenta a rigidez ou flexibilidade daquele. Em um poema,
também se explicita a necessidade da extrinsecação física para a obra vir a cabo. Quando as
primeiras palavras são escritas, estas já sugerem possibilidades de ritmo, significados,
disposição das palavras, entre outros. É nesse jogo entre a personalidade do autor, sua vida
espiritual, a unicidade de sua circunstância histórica e a lida com a fisicidade que se dá o
processo artístico. Portanto, o processo artístico também é um processo interpretativo.
102
ECO, Umberto. Definição da Arte, p. 16.
66
67
2.2.3 A interpretação da arte
Para se abordar a concepção pareysoniana de interpretação da obra de arte, é
necessário lembrar-se de que todo agir humano é sempre, e ao mesmo tempo, receptividade e
atividade; e é sempre pessoal. Como dito anteriormente, o processo artístico tem, dentro da
estética pareysoniana, um aspecto pessoalista: o autor cria uma forma autônoma que traz em
si o seu próprio germe – que só pode existir a partir do olhar do autor – e, ao ser percebido
pelo autor, este desenvolve a obra em um processo dialógico. A forma, por nascer a partir da
pessoa, carrega consigo a personalidade do artista e seu próprio processo de formação. O fato
de a forma nascer da pessoa do artista não significa que a obra dependa do artista para ser
interpretada. A pessoa do artista está presente na obra apenas como estilo, ou seja, seu modo
singular e irreproduzível de formar a partir do qual a obra se fez. É nesse sentido que a obra,
independentemente de seu autor, reevoca a personalidade deste e seu processo de formação.
Estes dois aspectos da interpretação – a saber, a concomitância de receptividade e atividade e
seu caráter pessoalista, são os conceitos chave para Pareyson desenvolver sua concepção de
interpretação dentro da teoria da formatividade. Em um momento de síntese, Pareyson relata:
Se, com efeito, fosse necessário dar uma definição da interpretação, talvez eu não achasse
melhor que esta: interpretar é uma forma de conhecimento em que, por um lado
receptividade e atividade são indissociáveis e, por outro, o conhecimento é uma forma e o
cognoscente é uma pessoa. Sem dúvida, a interpretação é conhecimento – ou melhor, não
há conhecimento para o homem, a não ser como interpretação [...] – pois interpretar é
captar, compreender, agarrar, penetrar. 103
Interpretar uma obra, portanto, envolve sempre uma pessoa que observa a partir de um
singular ponto de vista e uma forma que é observada. Neste sentido, deve-se partir do
princípio segundo o qual o único modo de uma forma se oferecer é aquele instante único no
qual a pessoa a contempla. É neste constante vir-a-ser, tanto da pessoa, quanto da forma, que
a obra se revela, e neste revelar – apesar de ser entendido como um momento efêmero e,
103
PAREYSON. Estética, p. 172.
67
68
portanto a partir da tradição, filosoficamente desprovido de integridade – que a obra se
oferece integralmente. É a obra inteira que se oferece nesta unicidade da percepção, unicidade
esta que é característica primeira do conhecimento sensível. O único modo de acesso à forma
é este pelo qual ela se mostra, e este mostrar a revela de modo integral em cada particular
aspecto e singular perspectiva em que ela se revela ou se impõe. Argumentando contra o
relativismo, Pareyson afirma que:
a interpretação é, ao mesmo tempo, revelativa e histórica porque, de uma parte, a verdade
só é acessível no interior de cada perspectiva singular, e esta, de outra parte, é a própria
situação histórica como via de acesso à verdade, de modo que só se pode revelar a verdade
determinando-a e formulando-a, coisa que acontece apenas pessoal e historicamente. [...]
A interpretação nasce, portanto, como revelativa e, ao mesmo tempo, plural, sendo por
isso que se subtrai a toda acusação de relativismo: a sua pluralidade deriva da natureza
superabundante daquela mesma verdade que nela reside, isto é, jorra da mesma fonte da
qual brota a manifestação do verdadeiro e, longe de dissipar a verdade numa série de
formulações indiferentes, antes a desvela na sua riqueza inexaurível. Na sua infinitude, a
verdade pode bem se oferecer às múltiplas perspectivas, por diversas que sejam, e a
interpretação a mantém como única no mesmo ato em que multiplica suas formulações, do
mesmo modo que uma obra de arte, longe de dissolver-se numa pluralidade de execuções
arbitrárias, permanece idêntica a si mesma no próprio ato com que se consigna às sempre
novas interpretações que sabem colhê-la e dá-la, identificando-se com elas. A eliminação
definitiva do relativismo é possível tão logo se colha a natureza ao mesmo tempo
revelativa e plural da interpretação, isto é, tão logo se compreenda inteiramente como, na
interpretação, o aspecto revelativo é inseparável do aspecto histórico. 104
Desse modo, assim como todo agir humano, a interpretação de uma obra é um
conhecimento ativo e receptivo ao mesmo tempo. Do mesmo modo que suas ações sempre
são respostas a algo que também as compõe, ou seja, como dito anteriormente, o agir humano
caracteriza-se pelo fato de não ser criativo – no sentido de a iniciativa humana não poder
iniciar-se por si mesma – a interpretação é sempre interpretação de algo e de alguém. As
coisas se oferecem a cada interpretação em seus ritmos próprios. E o modo de colher seus
elementos se dá ao mesmo tempo em que ativamente se debruça sobre eles. Quando, por
exemplo, a audição de determinada obra musical está prejudicada pelos ruídos do trânsito a
ponto da obra estar irreconhecível, é possível, com um esforço de atenção, a partir dos
fragmentos das melodias que estão sendo parcialmente ouvidos, plasmar-se a música na
104
Idem, Verdade e Interpretação. Tradução de Maria Helena Nery Garcez e Sandra Neves Abdo. São Paulo:
Martins Fontes, 2005, p.43-4. grifo do autor.
68
69
mente a ponto de ouvi-la com muito mais nitidez do que antes, como se o volume tivesse sido
aumentado. É claro que o conhecimento anterior da obra é necessário para que os fragmentos
sugiram as veredas que o pensamento percorre para chegar à obra, fazendo com que certas
melodias que de fato estão inaudíveis surjam, como que em um processo de rememoração do
conhecimento prévio que se tem daquela obra. Ou seja, a percepção ativamente recebe as
coisas percebidas. Em outros casos, pode-se pensar em uma situação na qual de longe, ao se
ver uma folha no asfalto, tem-se a certeza de se tratar de um pássaro e, depois, com maior
proximidade, verifica-se que é de fato uma folha; ou, quando se vê de relance um rosto que,
por lembrar determinada pessoa, este faz com que se tenha uma efêmera certeza de ser a tal
pessoa, certeza essa diluída por uma atenta verificação. Os exemplos servem para se ilustrar
como a percepção é um processo de recepção do objeto percebido e uma simultânea
“construção” em mente do que este objeto seria. Recebe-se o objeto, ao mesmo tempo em
que, ativamente, fornece-se a sua imagem, ou seja, a interpretação é também um processo de
produção. Pareyson, sobre a interpretação:
Sua natureza ativa explica seu caráter produtivo e formativo, e sua natureza pessoal
explica como é que a interpretação é movimento, intranqüilidade, busca de sintonia, numa
105
palavra, incessantemente figuração.
Se toda vida humana é formativa, o conhecimento sensível também se dá por meio de
formatividade. Para captar a realidade dos objetos, o conhecimento sensível forma uma
imagem em um processo de figuração. Essa imagem, fruto de um processo de formatividade,
revela o que é o próprio objeto. Quando Pareyson diz que a imagem do objeto é o próprio
objeto, ele significa que os objetos são a partir de uma concomitância entre o modo como eles
se mostram e o modo pelo qual o são percebidos. A interpretação é pessoal, pois percebe-se o
mundo a partir da vida espiritual e os objetos se mostram como formas que são percebidos a
partir da condição de pessoa. Esta figuração pode ser entendida a partir do que Pareyson
105
PAREYSON. Estética – Teoria da Formatividade, p. 172.
69
70
chama de “esquemas de interpretação”. Figura-se esquemas de interpretação e compara-se,
mede-se, equipara-se, comensura-se de todo modo estes esquemas gradualmente às
descobertas que vão surgindo continuamente a partir do encontro de um spunto fecundo e um
olhar atento. Há na obra algo que não está no espectador, mas este só pode perceber a obra a
partir de sua pessoalidade. Assim, afirma Pareyson, esse processo de encontro entre o
espectador e/ou o próprio artista com a obra envolve este esforço para encontrar um esquema
adequado e finalmente chegar à imagem que revela o objeto e na qual o objeto se desvela.
Tudo isso se explica, sobretudo quando se leva em conta que o conhecimento humano em
geral tem caráter interpretativo. A interpretação tem precisamente esse caráter produtivo e
formativo, e por isso a um movimento em que se figuram e aos pouquinhos se vão
controlando e corrigindo os esquemas interpretativos sucede finalmente o repouso do
encontro, do achado, em que a imagem capta e revela a coisa. 106
Assim, interpretar uma obra de arte é uma atividade que tem como base a pessoa, que
estabelece uma relação dialógica com a obra. Sendo a atividade humana indivisivelmente
formante e interpretante e a forma, produto do processo formante e ponto de partida para sua
interpretação, podemos falar de um movimento interno a partir do qual o próprio autor se
torna o primeiro intérprete de sua obra, já que esta só alcança o êxito com a aprovação deste.
O autor faz a obra pessoalmente e sua vida espiritual naturalmente contém aqueles que o
rodeiam e que, conseqüentemente, podem vir a ser espectadores. Portanto, o autor é sempre
seu próprio espectador e, mesmo não se colocando intencionalmente no lugar do possível
espectador, ele inevitavelmente se posiciona diante de sua própria criação como quem
também vai fruí-la, depois de chegar ao êxito da forma e concluir o processo formativo. Esta
invocação do intérprete é uma condição de se chegar ao êxito. A produção da obra também
está marcada por atos interpretativos sem os quais não seria possível sua constituição. Nesse
sentido, a forma não é somente o produto de uma atividade formadora e ponto de partida para
sua interpretação, mas sim, produto de uma atividade formativa e interpretativa em um
processo dialético entre produção e interpretação.
106
Ibidem, p.171-2.
70
71
Fundamentalmente, o processo interpretativo baseia-se na inexauribilidade da forma e
nos infinitos pontos de vista das personalidades interpretantes. Quanto à infinidade
interpretativa, Pareyson assinala que:
daquele determinado ponto de vista, ou com a intensidade daquele olhar, tinha-se colhido
um aspecto da obra, que por sua vez tem infinitos aspectos, e se cada um deles contém a
obra e por isso está em condições de revelá-la por inteiro, nenhum deles pode pretender
monopolizar a própria obra, que exige manifestar-se também em outros aspectos. 107
Ou seja, a imagem produzida pela interpretação de uma obra de arte é a própria obra.
Há uma relação de identidade entre a imagem produzida pela interpretação e o objeto
interpretado. O processo interpretativo parte de uma dualidade inicial que distingue a obra a
ser interpretada e a imagem que dela se busca, para culminar em uma identidade final, na qual
a obra se entrega à imagem que soube buscá-la e, portanto, conseguiu revelá-la.
A infinidade interpretativa não se deve apenas à multiplicidade de intérpretes e seus
pontos de vista, mas diz respeito também e, principalmente, à própria natureza inexaurível da
obra de arte. Todo novo ponto de vista é acolhido pela obra num processo que é, por natureza,
interminável: (...) pretender ter compreendido definitivamente uma obra é como pretender
compreendê-la a um primeiro olhar: assim como a obra de arte só se oferece a quem
conquista o seu acesso, também se fecha a quem quer monopolizar a sua posse108. Pretender
compreender definitivamente uma obra é ignorar ou desconhecer sua inexauribilidade, sua
característica mais profunda e fundamental, o que resulta no fracasso do processo
interpretativo. Pareyson afirma que cada verdadeira leitura é como um convite a reler,
porque a obra de arte tem sempre alguma coisa de novo a dizer, e o seu discurso é sempre
novo e renovável, a sua mensagem é inexaurível. 109
107
PAREYSON. Os problemas da estética, p. 228.
Ibidem, p. 229.
109
Ibidem, p. 229.
108
71
72
A interpretação é, pois, o conhecimento de uma realidade inexaurível, que contém a
possibilidade de constantes e novas revelações. O intérprete deve, então, ter a dupla
consciência de que pode haver uma identidade entre a sua interpretação e a obra em questão,
mas que esta jamais sossegará, exigindo interpretações sempre novas. Além disso, deve estar
consciente de que cada um dos infinitos aspectos da obra a contém por inteiro, e de que, ao
colher apenas um dos aspectos, estará colhendo a obra em sua totalidade, sem, contudo
esgotá-la.
A forma revela-se inteira em cada um de seus múltiplos aspectos e é a pessoa inteira
que dialoga com a forma. Este é o modo de se acolher a obra e o modo pelo qual ela se dá.
Mas este processo necessita de uma ligação entre pessoa e forma, já que várias obras passam
despercebidas para alguns e são eminentes para outros. Isto se explica a partir da
congenialidade. Afirma Sandra Abdo110 que a única via de acesso à obra é a personalidade do
intérprete – portanto, para superar a possibilidade de distorções ou interpretações
inadequadas, a solução não é buscar uma abordagem impessoal e original e sim ser congenial
com a obra; somente assim a interpretação pode atingir, ao mesmo tempo, a fidelidade e a
originalidade. Neste momento, livra-se da dicotomia entre liberdade e fidelidade, a partir da
qual ora se entende que a interpretação é somente pessoal e, portanto, subjetiva; ora que a
interpretação deve permanecer fiel à obra de modo objetivo. O exercício da congenialidade
pressupõe, ao mesmo tempo, fidelidade ao que a obra é e à personalidade de seu autor, como
também a abertura à personalidade do intérprete. É a congenialidade entre um dos múltiplos
aspectos da obra e um dos pontos de vista do intérprete que gera a interpretação. Nesse
processo, a personalidade do intérprete entra em sintonia com a obra e a revela, fazendo com
110
ABDO, S. N. Autonomia da arte na estética da formatividade. 1992. p. 121. Dissertação (Mestrado em
Filosofia) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.
72
73
que esta se equivalha ao seu modo de vê-la. Interpretar é revelar a obra e, ao mesmo tempo,
expressar-se diante dela. Desse modo, os aspectos subjetivos e objetivos são indissociáveis.
Portanto, voltando ao conceito com o qual este capítulo foi iniciado, conclui-se que a
obra de arte é forma, ou seja, a obra é um organismo, um conjunto de elementos
organicamente dispostos de tal modo que se coadunam e se completam formando um todo,
que é capaz de se revelar em qualquer uma de suas partes e, para que isso se dê, é necessário
que a obra tenha uma lei interna. Esta lei, como já foi dito, é o critério que é resultado do
processo formativo e que é a chave da obra, ou melhor, pode-se dizer que a lei é a própria
obra. Quando o intérprete consegue refazer o caminho que a obra e seu autor perpassaram
para que ela viesse a cabo, ele está entrando em contato com a lei única desta obra e fazendo
uma interpretação bem sucedida.
73
74
CAPÍTULO 3.
O READY-MADE À LUZ DA TEORIA DA FORMATIVIDADE
Neste capítulo, será estudado se a formatividade é capaz de abarcar a arte moderna e,
para isso, foi escolhida a mais radical das rupturas vanguardistas – a que colocou em xeque o
próprio conceito de arte: o ready-made de Marcel Duchamp.
3.1 Marcel Duchamp e os ready-mades
Marcel Duchamp é atualmente considerado o mais influente artista do século XX. Esta
afirmação de um de seus biógrafos, James Mink111, pode ser facilmente corroborada pelas
direções tomadas pelos artistas contemporâneos: linguagem meta-artística, arte conceitual,
negação da tradição, apropriações, paródias, diálogos inter-artísticos e reciclagens. O modo
pelo qual suas atitudes desmistificaram a arte e criticaram a forma de criar e comercializá-la
estabeleceu uma tendência que permanece atual.
Duchamp causou uma verdadeira revolução no que diz respeito às discussões sobre
arte. Se por um lado a sua atitude dadaísta112 nega a obra de arte, por outro, aponta para outras
possibilidades da arte, o que afirma sua uberdade. Nas palavras de Octávio Paz: Se o universo
é uma linguagem, Mallarmé e Duchamp nos revelam o reverso da linguagem: o outro lado, a
111
MINK, James. Duchamp, p. 7.
Sobre o dadaísmo: “O termo francês, que significa ‘cavalinho de pau’, foi, segundo se conta, encontrado em
um dicionário ao acaso, mas como se trata de uma palavra infantil que se presta a múltiplos fins, adequava-se
perfeitamente ao espírito do movimento. O Dadaísmo tem sido chamado de niilista, e seu objetivo era, na
verdade, deixar claro ao público que todos os valores estabelecidos, morais ou estéticos, haviam perdido seu
significado em decorrência da primeira guerra mundial. Durante sua breve vida, de 1916 a 1922, o Dadaísmo
pregava veementemente o absurdo e a anti-arte. [...] Nem mesmo a arte moderna estava protegida dos ataques
dos dadaístas; um deles exibia um macaquinho de brinquedo dentro de uma moldura, intitulado Retrato de
Cézanne.” In: JANSON, H. W. História da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
112
74
75
face vazia do universo. São obras em busca de significação.113 O que está em jogo nessa
analogia é a explicitação da exigência de interpretação que o ready-made propõe, pois este
volta-se contra o seu público. O objeto escolhido, ao se tornar um ready-made, perde
bruscamente todo seu significado e transforma-se em um objeto vazio. Ele exige uma
explicação, exige "caber" em um conceito, pois a palavra que lhe pertencia não lhe cabe mais.
O objeto agora está em outra esfera e exige outra relação de interpretação, já que ele sai da
esfera do mundo prosaico, para adentrar um mundo próprio, que é feito a partir da ação
formativa do artista.
A partir disto, pode-se dizer que Duchamp inventou o modo moderno de fazer arte e
propôs uma nova maneira de concebê-la: negando-a. Para executar esta negação, Duchamp
inventa uma linguagem própria, por isto, a arte de Duchamp é enigmática. Como afirmou
Mink:
A sua obra representa um quebra-cabeça para artistas e historiadores de arte e
continua a ser um enigma para o grande público. Mesmo os adeptos mais
dedicados de Duchamp se sentem por vezes baralhados. 114
Mas não se pretende desvendar este enigma, e sim apontar possibilidades de
compreensão do modo artístico de operar de Duchamp em seus ready-mades. A teoria da
formatividade funcionará como uma espécie de ferramenta para a leitura da poética do readymade.
Mas afinal, o que significa ready-made? Partindo de Pareyson, pode-se dizer que se
trata de uma poética, ou seja, como foi explicado na introdução deste trabalho, um conjunto
de predileções que compõem o estilo pessoal do artista. Mas chamá-los de poética implica
algumas ressalvas, já que cada ready-made de Duchamp é um caso particular. De início, não
há o ready-made como uma convencional proposta artística, mas sim como uma provocação,
113
114
PAZ, Octavio. Marcel Duchamp ou O Castelo da Pureza, p. 55.
MINK, James. Duchamp, p. 7.
75
76
como no caso de “Fonte” (figura 1), ou como um gesto desintencional, como no caso de
“Roda de Bicicleta” (figura 2). Inicialmente, será comentado o modo como surgiram estes
primeiros ready-mades, para que estas ressalvas sejam melhor compreendidas.
Calvin Tomkins115 relata que em 1917 houve em Nova Iorque a segunda grande
exposição de arte moderna, organizada pela sociedade dos artistas independentes, da qual
Duchamp fazia parte. O objetivo da sociedade era montar exposições anuais, nos moldes das
exposições de independentes parisienses, com uma política que dispensava jurados e
premiações. Assim, qualquer artista que pagasse cinco dólares por ano poderia fazer parte da
sociedade e expor suas obras. A exposição dos independentes foi a maior exposição realizada
nos Estados Unidos e reuniu um acervo bem heterogêneo:
A maior parte das obras expostas estava longe de ser de vanguarda. Por causa do
sistema alfabético de ordenação, as naturezas-mortas cubistas e as paisagens
acadêmicas coabitavam com fotografias amadorísticas, batiques e arranjos de
flores artificiais.116
Duchamp escolheu e comprou, em uma loja que vendia artigos sanitários, um mictório
de porcelana e levou-o a seu estúdio para pintar o nome R. Mutt e a data de 1917. Dois dias
antes da abertura oficial da exposição, Duchamp enviou o mictório, mais a taxa de inscrição
do senhor Mutt e o título: “Fonte”. Sobre sua atitude, disse que tudo não passou de um teste
para a sociedade e que o nome era uma junção de Richard, gíria francesa para designar
alguém muito rico, e Mutt, que viria dos quadrinhos Mutt e Jeff. A recusa da obra gerou a
saída voluntária de Duchamp da sociedade e uma grande polêmica se instaurou,
principalmente depois que a obra foi fotografada e publicada na revista editada pelo próprio
Duchamp chamada “The Blind Man”, juntamente com um artigo intitulado: “O caso Richard
Mutt”.
115
116
TOMKINS, Calvin. Marcel Duchamp, p. 204-5.
TOMKINS, Calvin. Marcel Duchamp, p. 204.
76
77
Dizem que qualquer artista que pagasse seis dólares podia expor. Richard Mutt
enviou uma fonte. Sem discussão, essa peça desapareceu e nunca foi exposta.
Quais são as bases para a recusa da fonte de Mutt? 1. Alguns alegaram que era
imoral, vulgar. 2. Outros que era plágio, uma mera louça sanitária. Bem, a fonte
de Mutt não é imoral, isso é absurdo, ela é tão imoral quanto uma banheira. É um
acessório que se vê todos os dias nas lojas de aparelhos sanitário. Se Mutt fez ou
não com suas próprias mãos a fonte, isso não tem importância. Ele escolheu-a.
Ele pegou um objeto comum do dia-a-dia, situou-o de modo que seu significado
utilitário desaparecesse sob um título e um ponto de vista novos – criou um novo
pensamento para o objeto. Quanto a ser uma louça sanitária, isso é uma tolice. As
únicas obras de arte que a América já produziu são seus aparelhos sanitários e
suas pontes.117
Sobre a roda de bicicleta, afirma Duchamp:
Foi uma coisa que aconteceu como diversão [...] algo para se ter num aposento
assim como uma lareira, um apontador de lápis; a diferença é que ela não tem
qualquer utilidade. Era uma engenhoca agradável por causa do movimento que
faz.118
Segundo Calvin Tomkins, Duchamp achava maravilhosamente relaxante girar a roda e
ficar observando os raios confundirem-se, tornarem-se invisíveis, depois irem reaparecendo
devagar. A despretensão do gesto de Duchamp revela sua neutralidade. Não há, de início, uma
intenção artística direta, mas sim um interesse pelo movimento já expressado no famoso “nu
descendo a escada” 119 (figura 3)
3.2 Pareyson e os ready-mades
Os relatos acima mostram que não havia a intenção explícita de produzir algo artístico,
apenas determinadas circunstâncias que, posteriormente, levaram Duchamp a ter a idéia de
transformá-las em uma poética. São estes fatos contingentes que despertam Duchamp para
117
THE BLIND MAN, Nova York, maio de 1971 nº2 apud TOMKINS, Calvin. Marcel Duchamp, p. 208-9.
TOMKINS, Calvin. Marcel Duchamp, p. 155.
119
Esse tema interessou Duchamp intensamente. Desde suas primeiras pinturas até em o “Grande Vidro” (figura
8) a idéia de trabalhar o movimento estava presente. Em uma comparação entre o modo de os futuristas
contemporâneos de Duchamp e o próprio Duchamp lidarem com este tema, diz Octavio Paz: “[...] os futuristas
queriam sugerir o movimento por meio de uma pintura dinâmica; Duchamp aplica a noção de retardamento – ou
seja: a análise do movimento. Seu propósito é mais objetivo e menos epidérmico: não pretende dar a ilusão do
movimento – herança barroca e maneirista do futurismo – mas decompô-lo e oferecer uma representação estática
do objeto cambiante. É verdade que também o futurismo se opõe à concepção do objeto imóvel, mas Duchamp
transpassa imobilidade e movimento, funde-os para melhor dissolvê-los. O futurismo está cativo da sensação,
Duchamp da idéia” (PAZ, Octavio. Marcel Duchamp ou O Castelo da Pureza, p. 12.) Mais uma vez ressalta-se o
caráter conceitual da arte de Duchamp, que é a base da poética do ready made.
118
77
78
criar o que veio a ser a poética do ready-made. Por isso, as ressalvas feitas há algumas linhas:
o ready-made se torna uma poética quando Duchamp passa de uma despretensiosa brincadeira
provocativa para uma intencional brincadeira provocativa. Pareyson nunca escreveu sobre
Duchamp, mas pode-se aproximar o fato descrito acima da idéia pareysoniana de spunto. Se a
poética do ready-made não se inicia necessariamente como uma poética em termos
pareysonianos, já que não há a intenção de se criar uma obra de arte, Duchamp percebe a
uberdade de seu gesto e assume a poética que ele gerou. Numa carta a sua irmã, Duchamp
explica sua idéia e a instrui a confeccionar um ready-made à distância, já que ela estava em
Paris e ele nos Estados Unidos:
Bem, se você foi ao meu apartamento, deve ter visto no estúdio uma roda de
bicicleta e um porta-garrafas (figura 4). Comprei este como uma escultura já
pronta. E tenho uma idéia para o porta-garrafas. Preste atenção. Aqui em N.Y.,
comprei alguns objetos com esse mesmo espírito e tratei-os como ready-made.
Você sabe bastante inglês para compreender o sentido de ready-made que dou a
esses objetos. Eu os assino e dou-lhes um título em inglês. Vou dar alguns
exemplos: Tenho uma grande pá de neve (figura 5) em que escrevi embaixo: em
antecipação ao braço quebrado. Uma possível tradução para o francês seria en
avance du brás casse. Não tente entender num sentido romântico, ou
impressionista ou cubista – que nada tem a ver com isso. Outro ready-made é
chamado Emergency in Favor of Twice. Uma possível tradução para o francês
seria Danger em faveur de 2 foius [perigo (crise) em favor de 2 vezes]. Todo este
preâmbulo é para na realidade dizer: Pegue para você mesma este porta-garrafas.
Vou transformá-lo, a distância, num ready-made. Você terá de colocar na base,
do lado de dentro do primeiro anel, em letras pequenas pintadas a óleo com
pincel, nas cores prateada e branca, a inscrição que vou lhe dar, e você, então,
assinará com o nome de um dos seus autores: “from” Marcel Duchamp.120
Do mesmo modo que toda obra de arte está imbuída da pessoa do artista, o readymade revela muito da personalidade de Duchamp, na medida em que funciona como uma
crítica do próprio gosto. Por meio de uma poética, Duchamp expressa sua posição no jogo
artístico e mercadológico, além de exprimir seu gosto pessoal. Nesse sentido, Octavio Paz
define o ready-made da seguinte maneira:
Os ready-mades são objetos anônimos que o gesto gratuito do artista, pelo único
fato de escolhê-los, converte em obra de arte. Ao mesmo tempo este gesto
dissolve a noção de obra. A contradição é a essência do ato; é o equivalente
plástico do jogo de palavras: este destrói o significado, aquele a idéia de valor.
Os ready-made não são antiarte, como tantas criações do expressionismo, mas a120
TOMKINS, Calvin. Marcel Duchamp, p. 179.
78
79
Rtísticos. A abundância de comentários sobre o seu sentido – alguns sem dúvida
terão provocado o riso de Duchamp – revela que seu interesse não é plástico, mas
crítico e filosófico.121
Essa crítica do gosto é feita por meio da ironia. O objeto se transforma em um meio de
dizer algo, que não necessariamente o faz de modo convencional, pois há uma inversão, já
que o significado se transforma em significante. Duchamp justifica sua postura crítica em
relação à arte, que ele chama de “retiniana122” – ou seja, aquela arte que, desde o
impressionismo, se converteu em matéria, cor, desenho e textura, acabou por reduzir a idéia
ao tubo de pintura e a simples sensação – afirmando que há nestas poéticas um
empobrecimento de significações. Esta recusa explicita o fascínio de Duchamp pela
linguagem e a capacidade desta de construir e destruir significados. Sua preocupação com os
títulos das obras demonstra que a relação de Duchamp com a linguagem é de ordem
intelectual. Afirma Umberto Eco, sobre o ready-made:
cada objeto traz consigo uma carga de significados, quase constitui um termo de
vocabulário, com as suas referências bem precisas, como se se tratasse de uma
palavra: isolemos o objeto, afastemo-lo do seu contexto habitual para inserirmos
num outro contexto; ele ganhará outro significado, ganhará um halo de
referências insuspeitadas, dirá algo que até o momento não tinha dito. 123
Se partir-se de um olhar pareysoniano, pode-se constatar que esse deslocamento de um
objeto, mesmo sem, aparentemente, modificá-lo, é um gesto artístico, pois resulta em uma
espécie de crescimento de sua significação. Sendo a ironia o principal recurso duchampiniano,
o que está em jogo no ready-made não é o objeto em si, mas o gesto que o deflagra. Se
pensar-se na ironia como um recurso literário, pode-se ler os ready-mades como poemas
plásticos. A ironia é o modo mais radical de utilização “metafórica” da linguagem, pois
implica um alto grau de intersubjetividade, já que parte de um complexo contexto ulterior
compartilhado pelos interlocutores. Esta nova esfera de entendimento, que se forma a partir da
121
PAZ, Octavio. Marcel Duchamp ou O Castelo da Pureza, p. 23.
Segundo Duchamp, toda arte moderna é “retiniana” – do impressionismo, “fauvismo” e cubismo até o
abstracionismo e a arte óptica, com exceção do surrealismo e alguns poucos casos isolados como Seurat e
Mondrian. Ver PAZ, Octavio. Marcel Duchamp ou O Castelo da Pureza, p. 25.
123
ECO, Umberto. Definição de Arte, p. 204.
122
79
80
ironia, gera um conjunto de relações próprias, que seguem uma espécie de "legalidade
própria" repleta de sutilezas. Esta é de ordem estética, pois subverte o uso estritamente lógico
das palavras, propondo novas esferas de entendimento. Entender uma piada, ou uma sutil
ironia, em um idioma diferente, é uma verdadeira prova de fluência nesta língua. Essa
intersubjetividade, segundo Pareyson, se dá por meio de congenialidade: a compreensão,
portanto pressupõe congenialidade, a penetração constitui o prêmio da simpatia, a
descoberta ocorre como ato de sintonia e a revelação responde à afinidade espiritual.124
Entender a ironia é ler o não dito e ir além do que está explícito. Isto envolve uma
complexidade semelhante à da arte.
No caso específico do ready-made, o simples ato de escolher um objeto faz com que
este se converta em obra de arte. Este gesto gratuito de Duchamp transforma o que era mais
um objeto industrializado em um objeto único, que passa a exigir outra postura diante dele.
Este objeto ressalta seu caráter peculiar, explicitando a multiplicidade de coisas e fatos do
mundo, multiplicidade esta que a razão eminentemente instrumental, fruto do esclarecimento,
tenta “amenizar” com a industrialização. Este ato, além de criticar a arte de seu tempo,
dissolve a noção moderna de obra de arte. Inserir um objeto industrializado em uma situação
artística exalta aquilo que ele é, ou seja, seu caráter não-artístico, mas quando se somam o
gesto de Duchamp, o título escolhido e o modo de lida com a circunstância na qual tudo isso
ocorre, esse todo se transforma em algo artístico, pois seu caráter orgânico o torna formativo.
124
PAREYSON. Estética, Teoria da Formatividade, p. 234.
80
81
3.3 O ready-made e o processo artístico
O modo de dizer proposto pela ironia revela significados que não poderiam ser
revelados de outra forma. É esta esfera peculiar de entendimento do mundo, geradora de uma
legalidade própria, um dos elementos que garantem a autonomia da arte segundo Pareyson.
Na estética pareysoniana, o autor inventa a obra e sua legalidade interna a partir do spunto,
que, como já foi dito, significa o ponto de partida da forma e surge a partir de um olhar
formativo diante do mundo, o que gera uma relação simultânea de atividade e receptividade
entre artista e obra. Nesse momento, artista e obra já dialogam em busca do êxito da obra, que
é entendida como forma, ou seja, interage com o artista e exige o seu próprio
desenvolvimento. Essa exigência de desenvolvimento da obra só se opera dentro e através da
ação formativa do artista. O spunto já contém a noção do êxito, ainda que nebulosa. O readymade é fruto de uma atitude concreta do artista que o escolhe e o insere em uma determinada
circunstância. Esta escolha e este gesto são naturalmente movidos por um spunto artístico, até
mesmo no caso da “Fonte”, que, aparentemente, não passa de uma piada. Duchamp quis que
aquele objeto explicitasse sua inadequação e exigisse uma justificativa. Duchamp sabia que o
mictório necessitaria de uma explicação e nisto consiste seu spunto: uma aposta na
fecundidade de um gesto.
Se o ready-made surge a partir de um gesto formativo, sua meta é o êxito artístico. O
êxito é a noção de obra bem sucedida. Para um artista conservador o êxito é um, já para um
artista de vanguarda, o êxito é outro. Ao contrário de buscar o êxito convencional, Duchamp o
negligencia, apostando na fecundidade deste descaso. Confiar no acaso: pressuposto dadaísta
por excelência. Por meio da ironia, o gesto toma um ar não-intencional em relação à
legalidade própria da obra, o que gera um efeito novo, explicitando a inexauribilidade da
81
82
forma artística. A forma neste caso não é o objeto apenas, mas toda a carga formativa que o
envolve. O êxito nos primeiros ready-made, como “Fonte” e “Roda de Bicicleta”, está na
negação do próprio êxito, pois há, nestes casos, uma espécie de desleixo com o êxito da obra,
o que acaba por criar um mundo à parte, regido por outra legalidade, que lhe é própria, fruto
desta negação. Gera-se outro tipo de êxito, que envolve muito mais o intelecto do que a retina.
Esta é a revolução Duchampiana.
Portanto, seu gesto é uma negação que, pelo humor, se torna afirmação e esta, segundo
Octavio Paz, pelo efeito da ironia, permanece em constante mutação, pois é uma afirmação
sempre provisória. O gesto de Duchamp é formativo, na medida em que acrescenta ao objeto
escolhido uma nova significação e o insere em um mundo que contém uma legalidade própria.
Nas palavras de Octavio Paz: Para Duchamp, a arte, todas as artes, obedece à mesma lei: a
metaironia é inerente ao próprio espírito. É uma ironia que destrói sua própria negação e,
assim, se torna afirmativa.125
Esta contradição que nega por igual toda significação ao objeto pode ser chamada de
um “ato puro”, que tenta afastar-se ao máximo de uma “seleção”. Duchamp, depois de
constituída a poética do ready-made, afirmou que o ato de escolher objetos era um grande
problema. Era necessário eleger algo que não fosse nem belo, nem feio, nem agradável, nem
desagradável; uma coisa que não impressionasse. Era preciso não haver intenção, na medida
do possível, de qualquer propósito de deleite estético.
Em uma entrevista concedida a Pierre Cabanne, Duchamp responde à seguinte
pergunta: o que determinava a escolha dos ready-mades?
125
PAZ, Octavio. Marcel Duchamp ou O Castelo da Pureza, p. 11. Grifo do autor.
82
83
Isto dependia do objeto; em geral, era preciso tomar cuidado com o seu look. É
muito difícil escolher um objeto porque depois de quinze dias você começa a
gostar dele ou a detestá-lo. É preciso chegar a qualquer coisa com uma
indiferença tal, que você não tenha nenhuma emoção estética. A escolha do
ready-made é sempre baseada na indiferença visual, e ao mesmo tempo, numa
ausência total de bom ou mau gosto.126
Escolher o objeto envolve um olhar formativo e, conseqüentemente, é um gesto
artístico. O momento de escolher o objeto para construir um ready-made, assim como o
próprio momento de criação artística, envolve um certo “torpor”, na medida em que é
necessário se entregar à obra. Essa entrega implica uma postura ativa, é necessário fazer a
obra acontecer e, para que isso se efetive, o artista tem que buscar, junto da própria obra, sua
legalidade interna e, ao mesmo tempo, adentrá-la. Nesse processo, principalmente em se
tratando de poéticas que valorizam o irracional e o acaso, o artista se envolve com a obra de
tal modo que, em alguns casos, ele mesmo não sabe dizer, logo após concebê-la, se ela está de
fato bem sucedida, pois, por mais que haja permanente postura crítica do artista em relação à
sua obra, no processo mesmo de criação, essa vigília da razão se reduz. Ao dá-la por
terminada, o artista não consegue imediatamente ser crítico da mesma do mesmo modo como
quando já havia se afastado temporalmente dela. É comum alguns artistas não gostarem de
serem assistidos durante o processo de criação, e os escritores não gostarem de ser lidos
imediatamente após escreverem. É sempre necessário um tempo de maturação da obra. É no
outro dia, depois de tê-la esquecido, que o artista consegue revê-la com uma postura mais
crítica – é como se, durante o processo, artista e obra se fundissem e só depois de um certo
tempo de maturação da obra fosse possível “vê-la de fora”. Escolher um objeto para um
ready-made apresenta as mesmas dificuldades de um processo de criação, na medida em que é
um gesto formativo. Somente depois de quinze dias, como disse Duchamp, é possível
começar a gostar ou detestar de um objeto ou até mesmo perceber seu caráter de neutralidade
126
CABANNE, Pierre. Marcel Duchamp: Engenheiro do tempo perdido, p.80.
83
84
e forjar um spunto. Cada poética tem um certo modo de lidar com a busca pelo êxito da obra
e, mais especificamente, cada obra tem um modo único de ser concebida.
A escolha de um mictório explicita o objetivo de Duchamp: um objeto destituído da
possibilidade de gosto, pois não há neste obejto nenhum elemento estético. Ele é
eminentemente utilitário e sua utilidade está ligada a recolher algo do qual se livra em um ato
reservado. A escolha do mictório já é em si mesma algo exitoso, na medida em que é difícil
pensar em um objeto que seja completamente destituído de elementos estéticos. Uma porta,
por exemplo, pode ter uma bela maçaneta ou uma cadeira pode ter detalhes talhados na
madeira das pernas, mas o mictório não apresenta nenhum elemento em sua constituição que
tenha função contemplativa. Outro aspecto interessante da escolha do mictório é o fato de este
ser um objeto exclusivo de banheiros públicos. Em um banheiro doméstico, até mesmo a
tampa de uma privada pode apresentar detalhes, flores, entre outros. Mas o mictório, por não
pertencer à esfera privada, parece ter aderido aos caráteres laico e racional da esfera pública e
ser eminentemente utilitário.
A neutralidade do mictório o torna eficiente para a proposta duchampiana: levantar as
questões sobre o que é a arte criticando a sua institucionalização, a partir da qual qualquer
objeto que estiver em um museu – local oficial das obras da arte – passaria a ser considerado
arte. Jacques Leenhardt ressalta o fato de as artes, antes do século XIX, sempre serem
expostas dentro das instituições:
as imagens só aparecem nos quadros sociais e institucionais bem estruturados: a
igreja, o palácio principesco e, depois do séc. XVII, aos poucos, o interior
burguês. Estes espaços, fortemente submetidos às regras sociais de
comportamento e da interpretação, constituem, como fará mais tarde o museu,
uma forma de código interpretativo para as imagens que nele aparecem. 127
127
LEENHARDT, Jacques. Duchamp – Crítica da Razão Visual. IN: NOVAES, Adauto. Artepensamento, p.
342.
84
85
O museu surge no século XIX como um novo espaço para a exibição da arte. As obras
são extraídas de seus contextos institucionais para serem exibidas em um lugar mais neutro.
Essa transferência mudou as formas de fruição das obras na medida em que abriu o leque de
possibilidades de critérios para designar a arte. No início das vanguardas, os artistas recusados
pelos salões faziam os seus próprios salões. A mostra dos independentes é um exemplo. Os
artistas acreditavam que o próprio público estaria preparado para lidar com a nova arte. A
intenção inicial do primeiro ready-made é nitidamente desmascarar a arte de sua época,
fazendo-a descer de seu pedestal de adjetivos e levantar a questão sobre a dicotomia arte/nãoarte. Assim como Pareyson, Duchamp deseja fugir dessa visão falsa e forçada, segundo a qual
os objetos do mundo seriam divididos em duas categorias opostas: arte e não-arte.
Uma das características marcantes da estética da formatividade é o esmaecimento da
dicotomia arte/não-arte. Como visto, a argumentação pareysoniana permite que se estenda o
conceito de arte sem abrir mão da autonomia da arte. A característica principal de toda
atividade humana é a lida com as inexauríveis novas situações que exigem a todo o momento
invenção do modo de ação. Assim, cada pessoa desenvolve seu modo particular de executar,
desde as tarefas cotidianas, até as mais complexas atividades. Isto permite que se utilize o
termo ‘arte’ de maneira abrangente, de modo a integrar todas as atividades humanas. Esta
postura permite que se fale de arte de guerra, futebol arte, arte de lecionar, arte de dirigir,
entre outras. Pareyson deseja fugir da dicotomia arte/não-arte, pois os argumentos utilizados
pelas estéticas que compartilham dessa simplificação normalmente são programas de arte que
defendem determinado gosto pessoal, enquadrando-se muito mais no conceito de poética do
que verdadeiramente propondo uma argumentação filosófica e com vistas ao universal,
características de uma autêntica estética. Marcel Duchamp tem como mote de seu primeiro
85
86
ready-made este mesmo tema e este permite que as propostas da estética da formatividade
sejam lidas como uma resposta aos questionamentos duchampinianos.
Como já foi dito: a obra de arte, na estética pareysoniana, é entendida como um
organismo constituído a partir de uma legalidade própria – o que, no vocabulário da estética
da formatividade, é chamado de “teleologia interna do êxito”. Este aspecto da teoria de
Pareyson pode ser uma chave para que se compreenda a arte moderna, conhecida pelo seu
caráter conceitual. O que produz afinidade entre os elementos de uma obra nunca é a lógica
convencional, mas sim uma espécie de “lógica onírica”, que liga os elementos de modo mais
complexo, por operar, não só eminentemente com a razão, como a lógica convencional, mas
sim com a totalidade da pessoa do artista que, ao se debruçar sobre a obra, transforma seu
gesto em estilo. Por isso, é comum ouvir-se do grande público depoimentos de incompreensão
sobre a arte moderna e contemporânea. Segundo Pareyson, uma fruição bem sucedida é
aquela que consegue adentrar o ritmo da obra e perceber sua legalidade interna, sua lei única.
Este conjunto de elementos, ao mesmo tempo em que rege o artista, é inventado por ele em
sua busca pelo êxito. Este desejo e a promessa de uberdade gerados pelo operar do artista são
os elementos constituintes da lei interna de cada obra, que é inventada simultaneamente à
própria obra. Aqui se justifica a escolha do termo “lógica onírica”, para funcionar como uma
analogia do modo de operar dessa lei, já que não somente a razão dá as cartas, mas sim a
pessoa como um todo.128 O ready-made questiona a arte de seu tempo e traz a vida cotidiana
para o ambiente da arte, esmaecendo a rígida distinção entre arte e não-arte. À primeira vista,
um ready-made é a introdução de um objeto prosaico no “mundo da arte”. Esta primeira
128
Ao se dizer que a arte tem uma “lógica” própria, apesar de estar se empregando um termo que remete à
racionalidade, este não pode se confundir com ela. Seu uso aqui é metafórico. De fato existem poéticas como,
por exemplo, o surrealismo ou o romantismo, que valorizam o inconsciente e os sentimentos. Mas naturalmente
há, por detrás de qualquer modo de operar humano, certo grau de racionalidade; este grau aumenta ou diminui,
conforme o tempo, o lugar e o estilo de cada artista. As poéticas citadas sugerem uma tentativa de diminuição
desse grau, mas isto nunca se dá de forma total, na medida em que a racionalidade é irredutível.
86
87
leitura o aproxima da idéia pareysoniana de presença de arte em todas as atividades humanas
e da presença de todas as atividades humanas na arte. Ao se analisar as conseqüências deste
gesto, percebe-se a sua carga formativa. Ele acarreta uma complexa “montagem” que inclui o
objeto, o título, as reações, os questionamentos à circunstância específica de seu advento e a
intenção formativa de Duchamp. Esta intenção formativa, mesmo não tendo um caráter
convencional, não deixa de gerar uma nova obra. Esta nova obra, por negar a concepção de
obra tradicional de um modo autenticamente artístico, ganha o estatuto de obra. Um fazer que
utilize o já feito de modo formativo ao incluí-lo no lugar institucional de obras convencionais
é um gesto formativo, pois resulta em êxito.
3.4 Arte natureza e técnica
Octavio Paz, no livro Marcel Duchamp ou o Castelo da Pureza, cita Roger Caillois,
que assinala que alguns artistas chineses escolhiam pedras que lhes pareciam fascinantes e as
convertiam em obras de arte pelo único fato de gravar ou pintar o seu nome nelas. Paz
compara uma pedra a um saca-rolha: A semelhança entre as pedras é natural e involuntária, a
semelhança entre os objetos manufaturados é artificial e deliberada. A identidade do sacarolha é uma conseqüência de seu significado: é um objeto produzido para extrair rolhas. A
identidade entre as pedras carece, em si mesma, de significado. No mundo dos nomes, ou
seja, na esfera dos significados, o ato de Duchamp arranca o objeto de seu significado e
esvazia seu nome. O chinês afirma sua identidade com a natureza e seu ato é uma elevação,
um elogio. Duchamp faz sua diferença irredutível e seu ato é uma crítica. Nas palavras de
Octávio Paz:
Para os chineses, assim como para os gregos, a natureza era uma totalidade
vivente, um ser criador. Por isso a arte segundo Aristóteles é imitação: o poeta
87
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imita o gesto criador da natureza. O chinês leva essas idéias à sua última
conseqüência: escolhe uma pedra e põe sua assinatura.129
Pareyson afirma que produzir algo significa fazer, mas, se alguém "encontra" objetos
na natureza e os elege como obra de arte, esta pessoa também faz algo, pois teve um olhar
formativo. Umberto Eco ilustra este argumento:
[...] quem apanha um seixo entre outros seixos e o exibe como seixo
"artístico" realiza uma série de gestos, através dos quais tira o seixo de sua
habitual convivência com o terreno e paisagem envolvente, e - isolando-o- fá-lo
entrar, com um ato de autoridade, no repertório dos contempláveis130.
O gesto de escolha de Duchamp ressalta a negatividade do objeto manufaturado e a
idéia de que a técnica pura é neutra e estéril. Ao negar o mundo convencional no qual o objeto
esteve inserido, Duchamp afirma um novo mundo de significados que transcende este mundo
convencional, mas é fruto dele mesmo. A partir de Pareyson, é possível inferir a existência de
uma gradação infinita de articidade, já que este nega a dicotomia arte/não-arte, e o gesto de
Duchamp, pela carga de formatividade, eleva o grau de articidade do objeto escolhido. Esta
idéia de gradação infinita de articidade está presente na teoria da formatividade. Há arte em
toda atividade humana, mas em um grau diminuto. Outras atividades têm um grau maior de
articidade, mas ainda estão submetidas a regras externas, o que lhes retira a autonomia. Já a
arte propriamente dita tem um alto grau de articidade, na medida em que aquilo que a sustenta
de modo eminente não têm outro fim senão a própria obra. O gesto duchampiniano tem um
fim em si mesmo, o que lhe garante um alto grau de articidade.
Os elementos que conferem articidade a um objeto ou a um gesto são históricos. O
gosto tem caráter pessoal e, assim como a pessoa, está inserido no devir e em constante
reformulação. Nesse sentido, a partir da teoria da formatividade, pode-se falar de um processo
de apuração do gosto, no qual a freqüentação artística refina o modo de fruir:
129
130
PAZ, Octavio. Marcel Duchamp ou O Castelo da Pureza, p. 16.
ECO, Umberto. A Definição de Arte, p. 183.
88
89
É precisamente a infinidade inexaurível da forma e da pessoa que funda a
infinidade quantitativa da interpretação, e é justamente o fato de que nenhum dos
aspectos da pessoa e da forma é exaustivo que funda a infinidade qualitativa da
interpretação.131
Nesse sentido, Cabbane faz uma pergunta crucial a Duchamp: O que é gosto pra você?
Duchamp responde sem lucubrações: um hábito. A repetição de uma coisa já aceita. Se você
recomeça uma coisa muitas vezes, ela fica sendo o gosto. Bom ou mau, é sempre a mesma
coisa, é sempre gosto.132 Duchamp deseja achar um objeto neutro, desprovido de bom gosto e
de mau gosto. Portanto, como muito comumente se interpreta a poética dos ready-mades
erroneamente, em Duchamp, não há a intenção de se chamar a atenção para a beleza dos
objetos prosaicos, pelo contrário; é a sua não condição estética que garante a possibilidade de
este servir de objeto artístico. Duchamp nega a técnica e afirma a necessidade da reflexão.
Sobre a utilização artística de utensílios, Pareyson afirma que:
Também os utensílios, os instrumentos se unem às coisas [da natureza]. Mas as
obras de arte são mais semelhandte às coisas que os utensílios, a que também se
acham ligadas pela comum origem artificial. É fato que as máquinas, os
instrumentos e os utensílios se situam entre as coisas, mas atestando um domínio
sobre a natureza mais que solidariedade com ela.[...] É inegável que um utensílio,
na sua nua e essencial conformidade ao fim, pode se tornar objeto de
contemplação, e as formas podem ser sujeitadas ao grau de instrumentos e bens
úteis. Mas então no primeiro caso fica ultrapassada a mera utilidade e incluída na
consideração da perfeição estrutural e, no segundo, a utilização pressupõe ao
menos a possibilidade de um juízo estético, pois a forma mesmo considerada só
como forma pode ser útil, e não de outra maneira, a menos que seja reduzida a
material informe133.
Pareyson reconhece a possibilidade de um utensílio ser lido como arte e, do mesmo
modo, diz que uma forma, ou seja, até mesmo uma obra de arte, pode vir a ser reduzida a um
bem utilitário. Mas Duchamp não quer apenas elevar utensílios à categoria de arte. Estão em
jogo múltiplos fatores ligados à sutilezas irônicas de ordem intelectual que permeiam o
universo do ready-made e que, em casos específicos, o fazem formatividade. É o olhar
formativo que encontra no mundo os laços que transformam utensílios em formatividade. O
poder formativo da natureza só é possível na relação homem-mundo – então, o poder
131
PAREYSON. Estética – Teoria da Formatividade, p. 179-80.
CABANNE, Pierre. Marcel Duchamp: Engenheiro do tempo perdido, p. 80.
133
PAREYSON. Estética – Teoria da Formatividade, p. 269.
132
89
90
formativo não é da natureza, mas sim do próprio homem lançado no mundo que ativamente
constrói significados, ao mesmo tempo em que recebe do mundo as formas. Mas por mais que
se possa afirmar que a natureza tem um poder formativo, na medida em que se pode lê-la e
perceber uma harmonia e uma coerência semelhantes às noções de êxito e de legalidade
interna das obras de arte, esta percepção é histórica e constituída a partir de cada época. Por
exemplo: uma mesma flor pode ser tanto bela em uma determinada circunstância quanto
kitsch em outra. Nesse sentido, não funcionaria o famoso exemplo kantiano134 da flor para
afirmar a universalidade do juízo de gosto. Duchamp não quer somente elevar objetos
cotidianos à categoria de arte. Seu gesto tem uma carga de intenção formativa que, quando
lançada sobre a matéria, faz com que ela resista e responda com novas possibilidades. O
processo de escolha do objeto e do título empregado, da modificação a ser feita, ou da não
modificação e da circunstância escolhida para mostrá-lo (seja inscrevendo o objeto em uma
mostra de arte, ou presenteando alguém) ilustra essa resistência física e temporal que a obra
apresenta. É esse olhar formativo que ativamente modifica o objeto em termos físicos ou
apenas conceituais e concomitantemente adere às exigências do objeto de forma passiva que
delineia o jogo dialético de atividade e passividade, característico do processo de formação de
qualquer obra.
O ready-made envolve uma “inutilização” do objeto – como na roda de bicicleta
acoplada a um banquinho e no mictório inutilizado pela posição em que se encontra exposto.
Esta característica aproxima-se da argumentação pareysoniana sobre a autonomia da arte e
estas idéias estão antes de tudo no romantismo. Todorov afirma que:
O belo é inútil por uma razão específica: enquanto o útil, segundo indica a
própria palavra, encontra sua finalidade fora de si, o belo é aquilo que não tem
134
ver KANT, I. Crítica da Faculdade do Juízo. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1993. § 16.
90
91
necessidade de nenhuma justificação externa: uma coisa é bela na medida em que
é intransitiva. 135
Pareyson corrobora este argumento, mas entende que o útil pode ser belo:
Funcionalidade invoca o conceito de finalidade externa, ou seja, de utilidade, e
como não existe nada que seja mais diverso da beleza que a utilidade, pois a
utilidade pode certamente acrescentar-se à beleza, mas não tornar-se um seu
elemento constitutivo [...] Deste modo se a expressão ‘belo funcional’ tem algum
sentido, trata-se ainda de uma beleza que se reduz à contemplabilidade da forma,
contemplabilidade que no caso específico não exclui, mas antes absorve um juízo
de utilidade.136
Retirar o aspecto utilitário de um objeto eminentemente utilitário aproxima-oo da
noção romântica de belo. É claro que para que esta beleza se efetive é necessária uma
finalidade em si mesma. Por isso, Duchamp intitulou o mictório, criou um personagem para
ser seu autor fictício, escreveu o artigo sobre ele e sustentou a ironia, sem ceder à zombaria.
3.5 Pareyson, Croce e o ready-made
Mas, afinal, o que faz com que um ready-made tenha êxito no sentido pareysoniano do
termo?
Antes que essa questão seja adentrada, demonstra-se como a estética de Croce não
abarca a poética do ready-made, para, em seguida, continuar a associação entre o ideário
pareysoniano e Duchamp. O neo-hegelianismo de Croce não abarca a arte moderna, na
medida em que, por exemplo, os conceitos de intuição e expressão não se aplicam à arte
conceitual. Dizer, por exemplo, que um ready-made é um modo de tornar a idéia acessível à
contemplação, mediante uma forma sensível, causa certo estranhamento. Em Duchamp, a arte
não pode ser vista apenas como expressão de algo, pois pode-se fazer uma determinada leitura
de um ready-made, e dizer que este quer justamente negar essa outra coisa da qual ele seria
135
136
TODOROV, Tzvetan. Teorias do Símbolo, p. 202.
PAREYSON. Estética – Teoria da Formatividade, p. 208.
91
92
mediador, na medida em que ele já foi elevado à categoria de objeto artístico. O ready-made
intitulado "Fonte", para se utilizar do mesmo exemplo, enfatiza a idéia de o objeto artístico
não precisar ter valor, e torna eminente o conceito que vem junto do acontecido: um mictório
foi exposto como arte em um museu, que é um lugar de obras de arte. Essa circunstância,
única e reveladora, provoca questões sobre a própria arte. Se o objeto não interessa, então
seria o conceito o que importa. Talvez por isso Duchamp seja considerado um artista
conceitual, mas, se não fosse o objeto, a situação histórica na qual ele foi inserido e o próprio
gesto de Duchamp, que é inelutavelmente artístico, nada disso se daria. Então pode-se pensar
que é a performance de Duchamp o que é mais importante e não é aquele mictório, já que
poderia ser qualquer outro, mas, ao mesmo tempo, somente aquele esteve inserido naquela
circunstância peculiar e resultou nesse problema, pois somente a partir dele suas cópias têm
sentido. O mictório é um objeto físico e quer usufruir do status de obra, ou seja, quer estar ao
lado da arte “retiniana”, que valoriza o físico, a sensação, o material. Duchamp, ao colocar um
mictório e fazê-lo querer ser arte por meio de seu gesto formativo, cria um paradoxo: um
mictório não tem nada de artístico para quem está acostumado com a arte “retiniana”. É aqui
que ele se revela artístico. É na negação da arte que ele encontra seu êxito que lhe confere alto
grau de articidade. Ele, o mictório, ou ele, Duchamp, pouco importa. Artista e obra
comungam da mesma carga formativa. O mictório, na sua fisicidade e na sua negação daquilo
que era exacerbado em sua época, exige que a arte não seja apenas para a retina. O mictório
exige ser pensado. Para Croce, este tipo de possibilidade artística não teria sentido:
A obra de arte não é manifestação ou a representação sensível do Absoluto, do
Infinito, da Idéia, na qual se possa distinguir o sinal sensível e o significado ideal,
o símbolo físico e a realidade metafísica, o aspecto material e a substância
espiritual. Aquilo que é profundo não se encontra atrás, ou dentro, ou sobre, ou
além do aspecto sensível da obra, mas é o seu próprio rosto físico, todo evidente
na sua definida consistência material, inexaurível, no entanto, na sua insondável
dimensão espiritual geheimnisvoll offlenbar, como diria Goethe, isto é,
misterioso e patente a um só tempo. A magia da obra de arte não é a
convergência, ou a copresença, ou a mediação da sua espiritualidade e da sua
fisicidade, mas a coincidência destes dois termos: o fato de na obra não existir
92
93
nada de físico que não seja significado espiritual, nem nada de espiritual que não
seja presença física.137
Na citação acima, fica também clara a menção a Croce e a negação das estéticas
espiritualistas e materialistas. A “Fonte” é o modo de Duchamp denunciar a supervalorização
do aspecto físico, em detrimento dos aspectos espirituais. Ele faz isso negando o aspecto
físico para exaltar a necessidade do aspecto espiritual. Só que esta negação não se faz com
conceitos, nem argumentos abstratos e puramente intelectivos, mas sim com um objeto
material que serve de crítica e traz o problema à tona. A “Fonte” é um objeto material
carregado de intenção formativa que explicita sua condição intrinsecamente espiritual, como
todo objeto artístico. Nesse sentido, o gesto de Duchamp corrobora a colocação pareysoniana
de indissolubilidade entre a fisicidade e a espiritualidade da obra. Isto gera a seguinte questão:
qual o estatuto do físico em Duchamp, já que a obra pareysoniana seria algo singular e a fonte
é algo reprodutível? De acordo com Pareyson, é possível inferir que, se não fosse o caráter
singular do gesto que resultou na obra, não haveria a obra propriamente dita. O mictório é
algo reprodutível, mas o que é reproduzido é o instante em que ele foi exibido, pois ele só é
significativo se lido de modo contextualizado. Assim como uma fotografia registra um
momento singular e os negativos reproduzem este momento, o mictório é uma execução de
uma obra que já existe, independentemente de suas execuções ou reproduções. Assim, as
reproduções podem ser entendidas como execuções da obra que é o gesto. Sobre a relação
entre a obra original e suas execuções, Pareyson afirma que: na execução não se trata de
reconstruir a verdade histórica da obra, mas de transmitir e dar vida à sua verdade artística,
ou seja, interpretar a obra assim como ela mesma quis ser formada e quer viver ainda [...].138
“Fonte” nega a concepção de arte vigente e, ao mesmo tempo, nega a si mesma, na
medida em que está na condição de arte, pois um mictório não é arte, é apenas um objeto
137
138
PAREYSON. Problemas de Estética, p. 157.
PAREYSON. Problemas de Estética, p. 256-7. grifo do autor.
93
94
prosaico elevado à condição de arte pelo próprio artista. É o artista, com seus gestos
intencionais que inventa todas as coisas. Pode-se dizer que Duchamp ressalta a característica
protagórica do pensamento pareysoniano segundo a qual o homem é a medida de todas as
coisas. Para Pareyson, não há nada que seja anterior ao objeto artístico. O exemplo de
Duchamp nega o idealismo de Croce, pois a arte só é possível se concebida simultaneamente
ao seu aspecto físico, já que a arte não pode existir antes dele. Mas, ao mesmo tempo, esse
objeto, no caso da "Fonte", nega a própria arte, negando a si mesma e se transformando em
um objeto-artístico-crítico da própria arte. A "Fonte" não é mediadora de uma crítica, ela é a
própria crítica, ela não é algo que se remete a questionamentos sobre o conceito de arte: ela é
o próprio questionamento.
Portanto, o que faz com que um ready-made obtenha êxito no sentido pareysoniano do
termo é ele ser fruto de um gesto formativo exitoso. O ready-made é um gesto, seu produto é
um conceito, ou seja, uma idéia. Não no sentido croceano, já que para Croce a obra se efetiva
na idéia, antes de ser exteriorizada. Duchamp, com seu gesto, constrói um arcabouço de idéias
provocadas por um mictório que se sustentam a partir de uma legalidade interna, que nega a
arte de seu tempo e afirma a si mesma. O caráter físico do gesto e do mictório é indissociável
do caráter espiritual do conceito produzido pela obra. O êxito da obra na teoria croceana
existe antes da extrinsecação. Pareyson afirma que a obra é a própria extrinsecação. Todo ato
formativo envolve um fazer e, como já foi dito, quem escolhe também faz algo. Um readymade, lido a partir da teoria da formatividade, passa a ser entendido como forma, e só com um
olhar formativo é possível dialogar com ele e fazer uma leitura bem sucedida.
Um dos elementos intrínsecos à arte, e que Croce negligencia, é o acaso. Como já foi
dito, este está presente em qualquer poética em alto ou baixo grau. É possível dizer que deixar
94
95
o acaso preponderante no processo artístico é um gesto que faz com que a obra estabeleça
uma determinada lei interna, que delineia os caminhos e as interpretações deste gesto. O que
não implica dizer que o acaso por si só pode gerar a arte – sem o homem não há arte. É
necessário um olhar formativo que exalte e faça coadunar o que é artístico no acaso: o êxito
não pode ser produto do acaso, nem a coerência pode resultar da desordem139 O acaso,
portanto, é um elemento presente em todo processo artístico. Há poéticas que tentam evitá-lo
e há poéticas que o exaltam. Duchamp se encaixa no segundo caso. Para exemplificar,
continua-se utilizando o ready-made "Fonte": ao comprar o urinol, Duchamp escolhe um
objeto aparentemente destituído de qualquer valor estético porque não se convencionou que
sua fruição fosse algo válido, já que normalmente este objeto passa despercebido. Ao
reposicioná-lo, Duchamp exalta a perda do caráter utilitário e, ao intitulá-lo “A Fonte” e
assiná-lo com o nome R. Mutt, Duchamp reúne, de forma fragmentada, os elementos que
compõem a lei interna de sua obra: esta lei interna é constituída a partir deste conjunto de
elementos reunidos. A partir deste gesto formativo de Duchamp constitui-se uma forma, viva
e dialogante, que exige interpretação e vai, muitas vezes, além do que o próprio autor
imaginou para ela, pois agora ela é uma obra e tem vida própria. A anti-obra tornou-se obra.
A partir de agora, pode-se dialogar com ela e, então, é possível inferir elementos que talvez
escapem da própria intenção do autor. Pode-se inferir que Duchamp assinou outro nome no
mictório não apenas porque esta obra participou da mostra independente de NY, mas porque
talvez ele tivesse a intenção de explicitar a multiplicidades de “eus” existentes na pessoa. O
paradoxo proveniente do fato de um local de depósito de excrementos ser intitulado “Fonte”
também pode sugerir uma inversão de valores: agradável, desagradável, belo, feio.
Portanto, o ready-made se torna arte ao negar a arte de seu tempo e propor novas
maneiras de se chegar ao êxito. A “Fonte” é radicalmente anti-retiniana, pois não é fruindo o
139
PAREYSON. Problemas de Estética, p. 187.
95
96
mictório que se faz uma interpretação bem sucedida desta obra. É necessário conhecer sua
circunstância, perceber sua relevância e detectá-la na arte contemporânea. Duchamp reinventa
o conceito de arte propondo uma obra que não precisa de original, como a arte tradicional.
Seu gesto é sua obra e seu êxito. Pareyson afirma que a obra só existe se executada e a
interpretação é uma forma de execução. Somente depois de executada pela primeira vez a
“Fonte” se tornou formatividade. Depois de efetuado o gesto, não é necessário, nem tampouco
possível repeti-lo. Como em uma fotografia que não tem um original, mas necessita do clique
para existir, o ready-made foi executado e seu êxito está em um gesto e em suas
conseqüências. Fruí-lo é refazer o caminho percorrido por Duchamp, caminho este que se fez
lei interna de sua obra, lei esta que a tornou exitosa.
96
97
CONCLUSÃO
Para concluir serão retomados os principais aspectos da teoria da formatividade a fim
esclarecer ainda mais os principais conceitos da estética pareysoniana, ainda utilizando a
poética do ready-made como foco de aplicação para corroborar a idéia de aplicabilidade da
formatividade ao ready-made.
Pareyson, a partir da teoria da formatividade, concebe a arte como forma, ou seja, um
organismo autônomo, dotado de vida própria e legalidade interna, que contêm em si tudo o
que deve conter e, nesse sentido dispensa referências externas para ser compreendido.
Partindo do pressuposto de que um ready-made nunca é apenas o objeto, mas antes de tudo, o
gesto que o converteu em obra, conclui-se que este gesto, por conter forte carga formativa,
impregna o objeto de significados que, mesmo com seu aspecto negativo, dispõem-se de
modo harmônico e compõem a lei interna do ready-made. Isto o transforma em um objeto
autônomo que contêm tudo o que deve conter, dispensando referências externas para ser
fruído. Octavio Paz explica o fato de a negação da arte que o ready-made contém provocar
uma obra de arte no sentido pareysoniano do termo, ou seja, um todo harmônico que afirma a
si mesmo na medida em que é bem sucedido por ser justamente adequação consigo mesmo. O
ready-made: É uma ironia que destrói sua própria negação e, assim, se torna afirmativa.140
Outra conclusão formulada a partira da estética da formatividade é o fato de que a obra
de arte, sendo forma, expressa antes de tudo a si mesma e, somente enquanto tal revela a
personalidade de seu autor. A obra nunca é meio para expressar os sentimentos, inquietações,
mensagens etc. do autor, mas sua forma é sua verdade, no sentido de que a obra não é um
significante, mas sim o próprio significado. O gesto duchampiano o revela na medida em que
140
PAZ, Octavio. Marcel Duchamp ou o castelo da pureza, p.11.
97
98
alcança seu êxito como forma. Somente exitosa a obra existe e somente enquanto forma ela
revela a personalidade de Duchamp.
Outro aspecto importante é a coincidência entre fisicidade e espiritualidade e entre
forma e conteúdo. O objeto escolhido por Duchamp, impregnado de carga formativa, traz
consigo todas as idéias de crítica, ruptura e ironia presentes na poética do ready-made. Sua
forma e seu conteúdo coincidem na medida em que o objeto, depois de deslocado de seu
contexto usual, passa a dialogar de modo muito mais rico com o fruidor e, por meio do gesto
que o deslocou, este se torna ‘forma’ no sentido pareysoniano, ou seja: coincidência de forma
e conteúdo, de aspectos físicos e espirituais. Corroborando Pareyson argumenta Octavio Paz:
Ao criticar a idéia de fatura Duchamp não pretende dissociar forma e conteúdo. Na arte o
único que conta é a forma. Ou mais exatamente: as formas são as emissoras de significados.
A forma projeta o sentido, é um aparelho de significar.141 Mesmo utilizando o termo ‘forma’
no sentido lacto, Octavio Paz o aproxima da concepção pareysoniana quando analisa
Duchamp.
Também o fato de a obra incluir o processo de formação que envolve uma rígida lei
interna, mas ao mesmo tempo sua interpretação ser inexaurível. Este aparente paradoxo se
explica pelo fato de que em cada uma de suas possibilidades interpretativas a obra se revela
inteira, sem nunca esgotar nenhuma das interpretações possíveis. Resolvendo este paradoxo
Argumenta Pareyson:
A dificuldade se desfaz se se pensa ainda no fato de que a obra é uma forma.
Como tal, infinita e definida ao mesmo tempo, possui infinitos aspectos, cada um
dos quais a contem inteira, sem, todavia conseguir exauri-la: a totalidade da
forma não se deixa bloquear por um aspecto ao ponto de torná-lo exclusivo. Pois
cada aspecto é revelativo por meio de uma só dessas interpretações se é capaz de
colher a totalidade da obra; mas dado que nenhum aspecto é exaurível, a obra
exige ulteriores esforços de penetração interpretação e ainda há de ser
aprofundada. A inexauribilidade da forma não contradiz, assim a sua
141
Ibidem, p. 25.
98
99
acessibilidade: a esclarece e, ao mesmo tempo, define o seu significado. Isto que
funda a certeza da posse é também isto que impõe uma tarefa ulterior: a
descoberta é ao mesmo tempo o prêmio e o estímulo da pesquisa.142
A arte é uma atividade específica que tem sua autonomia garantida pela teleologia
interna do êxito. Sendo que o spunto já contém a noção de êxito e que a única lei da arte é o
critério do êxito143, conclui-se que a produção da arte é um formar por formar. Não no sentido
de formar sem objetivos explícitos, mas sim de formar tendo como objetivo eminente a
própria obra. Assim Pareyson delimita o âmbito da arte como sendo aquele em que a
formação de um objeto não é mero pretexto para a realização de algum fim.144 O que não
quer dizer que o artista não possa fazer arte sobre influências ideológicas, sentimentais ou
quaisquer outras. Pelo contrário estes fatores intervêm de forma vigorosa e valorosa na obra
na medida em que a funcionalidade se torna imanente à obra e os propósitos extra-artísticos
são assumidos pela intencionalidade formativa do autor145. Este fator não acarreta
comprometimento da autonomia da arte, pois ele se torna indissociável do utilitário no ato da
fruição, já que a avaliação estética não exclui outras formas de fruição. É a pessoa em sua
unitotalidade que frui a arte, portanto ela pode incluir e excluir determinados modos de
fruição de acordo com a necessidade.
Nesse sentido, por mais que o objetivo de um ready-made seja crítico, isto não retira
sua autonomia artística, pois o aspecto crítico está inserido na obra de tal modo que somente
percebendo-o é possível compreender sua lei interna. Além do mais a crítica é provocada pelo
objeto e este se torna crítico por meio de um gesto artístico: [...] somente enquanto arte, ela (a
142
PAREYSON, L. L’interpretazione dell’opera d’arte In: Atti del III Congresso Internazionale di Estetica.
1956. p. 184 – 185. Este texto é inédito, foi traduzido pelo autor e encontra-se em anexo nesta dissertação.
143
Ibidem, p. 184.
ABDO, S. N. Autonomia da arte na estética da formatividade. 1992. 146 p. Dissertação (Mestrado em
Filosofia) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte,
p. 132.
145
Ibidem, p 184.
144
99
100
obra) pode exercitar funções não artísticas.146 Ou seja, somente como arte o ready-made
exerce sua função crítica. O que não quer dizer que sua função crítica não seja artística, pois
ela só é crítica como arte.
A teoria da formatividade permite superar as dificuldades geradas por concepções de
arte que afirmam existir elementos pré-artísticos e extra-artísticos nas obras. Sobre como
definir o que é e o que não é material artístico, Pareyson utiliza a dialética forma-formante
forma-formada, a partir da qual o processo artístico é explicado. O olhar formativo que gera o
spunto dá início a um processo, repleto de incertezas e possibilidades de fracasso, mas ao
mesmo tempo promissor e anunciador do êxito. Assim o spunto já contém o germe da obra
exitosa, mas esta só existe quando se completa o processo de formação, explicitando sua lei
única e rígida. A obra é resultado e fim da própria atividade que a inventa enquanto a executa.
Ou seja, a forma age como formante, conduzindo o processo de sua formação, antes mesmo
de existir como formada. Desse modo não se pode dizer que a forma-formante seja diferente
da forma-formada, já que o valor da forma consiste precisamente em sua adequação consigo
mesma. Nesse sentido há uma identidade entre forma-formante e forma-formada e não é
possível falar de elementos pré-artísticos ou extra-artísticos.
Partir da forma para explicar a formação da obra de arte não significa privilegiá-la.
Pareyson tem a pretensão explícita de superar os discursos conteudistas e formalistas. Sua
intenção é produzir uma argumentação estética que parta da experiência do artista para chegar
a um resultado englobante e que não privilegie um dos dois aspectos. Ou melhor, Pareyson
quer superar esta visão dicotômica e propor uma leitura ampla que consiga dar conta de todas
as poéticas. Partindo do conteúdo não é possível especificar a arte e garantir-lhe a autonomia,
146
Ibidem, p. 130.
100
101
na medida em que o conteúdo em si mesmo não é artístico. Somente como forma o conteúdo
pode ser considerado arte. Se a forma é a “sede natural”
147
da arte, Pareyson vai partir dela
para superar esta antítese, partindo do pressuposto de que a forma é matéria formada e por
isso já contém de modo inerente o conteúdo. Portanto forma e conteúdo são conceitos
absolutamente coincidentes em Pareyson.
Outro aspecto importante é a problemática gerada pelo fato de a obra ter uma lei
individual e interior e seu êxito estar ligado à sua adequação consigo mesma e, ao mesmo
tempo, ser aberta e dialogante, suscetível a novas versões e possibilidades. Ou seja, a obra é
exitosa, pois foi levada a cabo e está concluída e acabada, mas ao mesmo tempo ela pode ser
retomada e prolongada. Como então se pode considerar artística uma atividade posterior que
parta da obra acabada? Se para que a atividade seja um fazer arte, e não um fazer com arte; se
para que a ação seja um puro formar é necessário inventar uma lei única e individual e,
portanto original, como explicar o fato de a obra estar acabada e, ao mesmo tempo, poder ser
prolongada?
Pareyson esclarece esta questão afirmando que a obra é singular, pois tem uma regra
individual, válida somente para ela, mas ao mesmo tempo a obra ganha um caráter universal,
na medida em que esta mesma lei é o modo autêntico de acesso a ela. Só é possível adentrá-la
sintonizando-se com ela, percebendo sua legalidade interna e seu ritmo. Isso a torna universal,
pois qualquer um que se dispor a estabelecer uma relação de congenialidade pode adentrá-la.
Isto também torna a obra paradigmática e, conhecendo sua legalidade, é possível imitá-la. Na
cultura de massa têm-se exemplos de trabalhos artísticos bem sucedidos que são incorporados
pelo sistema de modo a se tornarem moldes e gerarem trabalhos inferiores, justamente por não
147
Expressão de Sandra Abdo.
101
102
conseguirem lidar com a obra em sua existência dinâmica. Quando uma obra bem sucedida é
lida como se seu caráter de perfeição fosse imóvel, o que ela propõe como modelo é apenas o
seu acabamento estático. As cópias acabam por violar sua irrepetibilidade, pois não
consideram a obra em seu ritmo que sempre suscita novos diálogos. Diferentemente, quando a
obra é considerada dinamicamente o exemplo a ser seguido não é mais sua imóvel perfeição,
mas sim seu movimento de formação. Ler a obra em seu ritmo significa considerá-la viva,
dialogante e irrepetível. Para ilustrar pode-se citar as miniaturas dos ready-mades (figura 6)
confeccionados por Duchamp ou obras de arte contemporânea que dialogam com Duchamp,
como a obra intitulada “In absentia M.D.” (figura 7/1) de Regina Silveira. A artista elaborou
um preciso diagrama de uma instalação (figura 7/2) que representa a sombra distorcida por
uma luz imaginária de um ready-made ausente. A artista adentrou a legalidade interna do
ready-made “roda de bicicleta” e promoveu um diálogo entre a arte moderna e o classicismo,
ao lidar com a perspectiva atualizando a crítica duchampiana. Assim como um ready-made,
esta obra só existe se executada. Seu diagrama é como sua partitura. Pareyson afirma que ler é
executar a obra e a instalação é a obra executada em público.
O caráter intermediário da execução pública, em que o intérprete se faz o
mediador entre a obra de arte e um público, e visa não apenas interpretar e dar
vida à obra, mas ‘apresentá-la’ ao espectador ou ao ouvinte, sugerindo-lhe ou
facilitando-lhe a compreensão, não modifica a estrutura geral da execução assim
como se dá na leitura, mas a carrega com novos aspectos, novas exigências e
novas possibilidades. É sobretudo evidente que a execução nesse caso, deve ser
completa, e não se limitar por exemplo a esse tipo de execução que se executa
muitas vezes quando alguém ‘lê’ ao piano uma obra musical, e integra
interiormente a sua insuficiente sonorização, de sorte que a obra se faz presente e
vida não tanto nos sons realmente produzidos quanto naqueles que através deles
são imaginados e figurados.148
Observar o diagrama produzido por Regina Silveira é como, no exemplo de Pareyson,
“ler” uma obra musical ao piano de modo esboçado. O ouvinte que conhece a obra é capaz de
figurá-la em sua mente de modo a imaginar como seria fruí-la em sua plenitude. É prudente
148
PAREYSON, Luigi. Estética – Teoria da Formatividade, p. 253.
102
103
retomarmos o tema da simultaneidade de atividade e receptividade na relação entre pessoa e
forma.
A obra só existe se executada, na medida em que ler é executar, e rememorá-la é
retomar seus aspectos físicos, mas sem conseguir de fato adentrá-la. Por isso o aspecto físico é
indissociável do aspecto espiritual. Todos os ready-mades poderiam ser destruídos
fisicamente e ainda continuariam existindo, do mesmo modo que todas as partituras de Bach,
por exemplo, poderiam ser destruídas, mas os contrapontos que ele criou estão inseridos em
nossa cultura. Do mesmo modo que o aspecto físico sempre contém o aspecto espiritual, o
inverso também é verdadeiro. Croce já afirmava que só é possível que um artista intua algo
que ele já vivenciou fisicamente. Somente a partir da fisicidade a arte se figura no espírito do
artista que a concebe. Mas é impossível conceber um ready-made, por exemplo, na pura
interioridade, pois o que o faz bem sucedido é justamente sua inadequação em determinado
ambiente o que lhe confere o caráter crítico, irônico e negativo. Tudo isto implica fisicidade,
ou seja, ele está inserido de modo intencionalmente formativo em uma circunstância
específica e histórica.
Por mais que Duchamp pudesse escolher os objetos de modo
puramente imaginativo, apenas se lembrando deles, isto não faria deles arte. Se Duchamp
escolhesse um objeto para um ready-made e não o inserisse fisicamente no mundo artístico,
por meio de sua autoridade de artista, esta poética não existiria. Além do mais, somente
imaginar o objeto não é garantia de que Duchamp seria capaz de prever todos os
desdobramentos que geraram a poética. Somente depois de executada uma vez a obra existe
de fato. Para Pareyson a arte é extrinsecação e só assim ela passa a existir efetivamente.
Portanto, a partir de Pareyson entende-se que somente como objeto físico um readymade se efetiva. Depois de exitoso o ready-made é forma e como tal é um todo organizado
organicamente que emana aspectos espirituais tão vívidos e dialogantes que passaram a fazer
103
104
parte do discurso artístico mundial. Eles não precisam ter um original para preservarem sua
plenitude artística, como as obras tradicionais; eles são formas, no sentido pareysoniano do
termo, que existem a partir de sua fisicidade e consistem, antes de tudo, em sua extrinsecação.
104
105
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SARTRE, Jean-Paul. Que é a literatura?. 3ª ed. São Paulo: Ática, 2004.
TODOROV, Tzvetan. Teorias do Símbolo. Tradução de Enid Abreu Dobránszky. Campinas,
São Paulo: Papirus, 1996. (Coleção Travessia do Século).
TOMKINS, Calvin. Duchamp: uma biografia. Tradução de Maria Teresa de Resende Costa.
São Paulo: Cosac Naif, 2004.
VATTIMO, G. Revista di Estética. Ano XVIII; fascículo II; maio-agosto de 1973.
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ANEXO: ILUSTRAÇÕES
Figura 1
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Figura 2
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Figura 3
Figura 4
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Figura 5
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Figura 6
Figura 7
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Figura 8
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TRADUÇÃO
A INTERPRETAÇÃO DA OBRA DE ARTE149
Para quem se dispõe a analisar a interpretação de uma obra de arte, apresentam-se
algumas evidentes contradições, que explicitam sua importância ao revelarem características
fundamentais do espírito humano e interessarem ao mesmo tempo à crítica, à estética e à
filosofia em geral.
A primeira notável contradição é aquela pela qual a obra de arte aparece sempre, ao
mesmo tempo, evidente e misteriosa. A obra de arte é sem dúvida por um lado a coisa mais
compreensível de todas: para manifestar-se não há necessidade de intermediários, porque a
sua própria existência é manifestação, nem é por sua vez intermediário de um significado que
a transcenda, porque não é nem signo, nem símbolo, mas nada além de si mesma, e reside
inteiramente em seu próprio aspecto físico: em suma, ela se dá completamente com a sua
própria presença. Mas precisamente por isso a obra de arte é por outro lado, a coisa mais
difícil de compreender, porque não se trata de colher o significado de uma presença física, o
espírito de um corpo, mas de saber considerar a própria presença física como significado, o
mesmo corpo como espírito; o que, naturalmente não é simples, como sabem leitores e
críticos com o objetivo de evitar seja o formalismo que o conteudismo.
Grande parte desta contradição deriva, portanto do fato que, na obra de arte, espiritualidade e
fisicidade coincidem. A obra de arte não é um corpo animado, no qual se possa distinguir
interno e externo, pura espiritualidade e intermediário físico: nessa o corpo não só não é
periférico, não só é essencial, mas é tudo; sem que isto signifique negar a espiritualidade da
obra, a qual há de ser vista exatamente no seu aspecto sensível: na obra não existe nada de
físico que não seja significado espiritual e nada de espiritual que não seja presença física.
Conseqüentemente esta coincidência de fisicidade e espiritualidade deve-se ao fato de que a
obra de arte é sem dúvida uma coisa, um objeto produzido, o resultado de um fazer, mas é ao
mesmo tempo um mundo, a espiritualidade de um homem, um sentido pessoal das coisas.
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PAREYSON, L. L’interpretazione dell’opera d’arte. In: Atti del III Congresso Internazionale di Estetica.
1956. O acesso a este material é fruto de pesquisa realizada pelo autor em Turim em janeiro de 2008 no
Instituto de Estudos Filosóficos e Religiosos Luigi Pareyson.
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Não que o fazer se reduza ao exprimir, como no idealismo, pelo qual a produtividade da arte é
figuração interior de sentimento, ou o exprimir ao fazer, como no tecnicismo, quase que a
expressividade da arte seja aquela de cada produzir, também de simples ofício: na arte
expressividade e produtividade coincidem porque a espiritualidade mesma do artista se faz
modo de formar, e a obra é a pessoa mesma do autor feita objeto físico. Na arte o mundo do
artista se faz gesto do fazer, modo de formar, estilo, e o mundo da obra é por isso a sua
mesma realidade física: o artista não se exprime se não por aquilo que faz, e a obra não fala se
não por aquilo que é; no fazer artístico exprimir é a mesma coisa que fazer, e na forma150 ser e
dizer são uma só coisa. Aqui está a coisa extraordinária que acontece na interpretação da obra
de arte: encontramos-nos diante de uma “coisa” e descobrimos um “mundo”.
Como forma, a obra de arte contém tudo aquilo que deve conter: é perfeita, conclusa,
definida. Portanto é um mundo, isto é um pessoalíssimo modo de interpretar o mundo: aqui
está um duplo infinito, aquele do universo, e aquele da pessoa. Isto explica ainda a particular
evidência e juntamente o aspecto misterioso da obra de arte: toda manifesta, por este seu
limite de perfeição que confere inteireza tangível a um infinito, portanto insondável, por esta
infinidade que se entrega a seu aspecto físico e nele se irradia.
Uma segunda contradição é aquela pela qual a obra de arte se apresenta como acessível e
inexaurível, ao mesmo tempo, de modo que a interpretação é ao mesmo tempo uma posse real
e uma tarefa infinita. A própria experiência atesta: não há dúvida que a leitura é uma
verdadeira posse da obra, portanto o seu sentido consiste no ser um convite a releitura. A
percepção de haver penetrado a obra é acompanhada da consciência da sua inexauribilidade,
e, portanto da necessidade de um ulterior aprofundamento: como é possível ter-se
compreendido se ainda perdura a necessidade de compreender? A interrogação não acaba
nunca, mas a descoberta é possível; a obra não tem fundo, e se deixa capturar, e quando se a
colhe, colhe-a inteira: como pode ser colhida inteiramente se depois ela apresenta uma
ulterioridade impossível de ser abarcada?
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O termo forma, em outros autores, está associado à clássica contraposição entre “matéria” e “conteúdo”, que,
por sua vez, evoca a antítese “formalismo” e “conteudismo”. Pareyson alerta que muitas abordagens que utilizam
o termo forma dessa maneira privilegiam um ou outro dos dois termos e a estética da formatividade quer
justamente superar estes dualismos. Forma no contexto da Estética da formatividade é indissociável do conteúdo
de modo que os aspectos materiais e espirituais coincidem.
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A dificuldade se desfaz se se pensa ainda no fato de que a obra é uma forma. Como tal,
infinita e definida ao mesmo tempo, possui infinitos aspectos, cada um dos quais a contém
inteira, sem, todavia conseguir exauri-la: a totalidade da forma não se deixa bloquear por um
aspecto ao ponto de torná-lo exclusivo. Pois cada aspecto é revelativo por meio de um só
destes a interpretação é capaz de colher a totalidade da obra; mas dado que nenhum aspecto é
exaurível, a obra exige ulteriores esforços de penetração interpretação e ainda deve ser
aprofundada. A inexauribilidade da forma não contradiz assim a sua acessibilidade: a
esclarece e, ao mesmo tempo, define o seu significado. Isto que funda a certeza da posse é
também isto que impõe uma tarefa ulterior: a descoberta é ao mesmo tempo o prêmio e o
estímulo da pesquisa.
Desta natureza da forma deriva o intérprete, o precioso imperativo de uma dupla consciência.
Não se pode compreender a obra de arte sem haver consciência da necessidade de uma
interpretação ulterior, e esta consciência não só não perturba a realidade da posse representada
pela atual compreensão, mas a corrobora ao dar a ela aquela inteligente abertura que lhe é
essencial. Para o intérprete a compreensão da obra é a consciência de uma posse certa: ao
contrário, para ele a sua interpretação é a própria obra, e não pode distinguir-se dela porque
ele não pode confrontá-la com a obra como se essa se oferecesse fora da interpretação que ele
dá a ela: ele não quis fazer uma cópia da obra, mas conhecer tal qual ela é em si, e o
conhecimento que ele tem é a própria obra da forma com a qual ela se mostra. Ora esta
consciência se ergueria na absurda presunção de uma posse definitiva se não se temperasse
com aquela outra consciência que o convida a refazer o diálogo e a melhorar sempre mais a
própria compreensão. Não existe interpretação definitiva e exclusiva, como também não há
nem mesmo interpretação provisória e aproximada: não se trata nem de presumir uma
compreensão última e absoluta nem de se contentar com aproximações periféricas; Se colhe,
mas na forma do dever aprofundar ainda; Se sabe que é necessário aprofundar, mas de algo
que se possui inteiramente.
Esta acessibilidade e ulterioridade simultâneas da obra de arte se esclarecem na relação de
identidade e transcendência concomitantes que esta tem a respeito das suas interpretações. Se
para o leitor a interpretação é a obra mesma, a obra não vive sem as interpretações que damos
a elas. Cada interpretação busca executar a obra e isto é torná-la na sua plena realidade: a
execução não objetiva realizar ou animar ou recordar ou substituir a obra de arte. A execução
objetiva ser a obra de arte. Nela a sua aspiração se encontra com o desejo mesmo da obra: a
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execução querendo fazer viver a obra da vida da qual esta mesma quer viver, se torna o único
e genuíno modo de viver da obra de arte. Assim obra e execução coincidem até se tornarem
idênticos, e a realidade de uma é a realidade da outra. Mas se a obra não vive a não ser nas
suas execuções, isto é porque a execução quer viver da vida da obra, e, portanto recebe vida
dela, de modo que aquele identificar-se da obra com a execução é quase um só entregar-se à
execução que saiba levá-la a cabo: a obra não se reduz à suas execuções, mas se entrega
soberanamente àqueles que a revelam. Isto atesta uma transcendência da obra sobre suas
interpretações: pelo contrário a obra, mesmo coincidindo de vez em vez com cada uma de
suas execuções, pela sua mesma inexauribilidade não se fixa em nenhuma delas, mas todas as
transcendem, no sentido que todas as exigem, todas as suscita; todas as guiam. Além disso,
essa reside na execução como seu critério, porque enquanto a estimula também a regula e
rege: vive também na execução inadequada, mas somente para reprová-la e distanciar-se,
enquanto na execução adequada a sua aprovação aparece exatamente no fato que esta se
entrega se identificando. Em suma a obra a respeito de sua execução é ao mesmo tempo
idêntica e transcendente: idêntica porque se entrega e há nela o seu único modo de viver;
transcende porque é estímulo dela, lei e juízo.
Tudo isso se explica, ainda, com base no fato de que a obra de arte é forma. A forma é de per
si interpretável e não há interpretação se não de formas: ou melhor, ela exige e provoca
interpretação. Ela é necessariamente estímulo a um processo de interpretação porque é
essencialmente resultado de um processo de formação. As duas coisas se tornam uma só: a
sua capacidade de exigir e avivar momentos interpretativos consiste exatamente no fato da
forma ser conclusão de um processo formativo. Assim a interpretação não pode não ser
execução, porque o que foi feito é acessível somente a quem se apropria do desenho criativo
refazendo o movimento de formação. Assim a obra é lei da sua execução, e o intérprete não
tem outra norma que não a própria obra. Como a obra solicitou ao artista fazê-la do mesmo
modo que ela quer ser feita, assim o momento estimula o leitor a executá-la como ela mesma
quer viver; e como conseguiu ser resultado de sua formação somente enquanto era sua lei,
assim ao fim se identifica com sua execução que soube adentrar a própria norma (lei interna).
A última contradição é aquela que parece subsistir entre a unidade e a identidade da obra e a
multiplicidade e diversidade de suas interpretações, tanto mais se pensa que na base desta
diversidade existe nem tanto a inexauribilidade da obra de arte, mas também a sempre nova
personalidade dos intérpretes. Se a interpretação contém a personalidade do intérprete, ela não
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corre o risco de acrescentar à obra algo que esta não tinha, algo de estranho e não requisitado,
que acaba por comprometer a identidade? Se pensarmos em sair desta dificuldade
considerando a personalidade, ou como um obstáculo a ser superado ou como uma condição
inevitável; e na nossa cultura estas duas soluções são realizadas na doutrina crociana da
impessoalidade da reevocação e na doutrina gentiliana da leitura como tradução. De um lado
se afirma que existe uma só interpretação justa, e para encontrá-la o intérprete tem de
observar um dever de impessoalidade; do outro todas as interpretações são consideradas
legítimas e, portanto indiferentes, de forma que ao intérprete não resta outro dever que a
originalidade. De uma parte a identidade da obra parece garantida apenas com a unicidade da
interpretação, como se para colher a obra fosse necessário esquecer-se de si mesmo; do outro
a multiplicidade da interpretação parece real apenas no eterno refazimento da obra, ao ponto
que o intérprete se preocupa mais com a sua própria interpretação do que com a própria obra.
A inadequação destas soluções é comprovada pela própria experiência: A interpretação única
não existe, dada a insuprimível e inerente diversidade da pessoa; e a originalidade não é nunca
um dever ou um programa, mas sempre apenas um resultado, e mais precisamente o efeito de
um esforço com o objetivo de levar a obra a cabo na sua verdadeira realidade. Se se pensa que
a unicidade é da obra e não da interpretação, e que a multiplicidade é da interpretação e não
da obra, se vê facilmente que identidade da obra e diversidade das interpretações, longe de se
contradizerem se reclamam reciprocamente.
O fato é que na interpretação não é que se acrescente à obra algo de estranho: se isto que é
novo é a pessoa do intérprete, não há necessidade de esquecer que essa é o único órgão de
penetração do qual o leitor dispõe para acessar a obra e colher nela sua realidade. A natureza
da interpretação é de ser ao mesmo tempo revelativa e expressiva: nela o objeto se revela na
medida em que o sujeito se exprime, de modo que subjetividade e objetividade, liberdade e
fidelidade, originalidade e verdade são em proposição direta, não inversa. A personalidade da
interpretação não é defeito, mas condição, não acréscimo, mas via de acesso, não lente
deformante, mas conquista. Isto que constitui a novidade das interpretações é aquela mesma
pessoalidade que é via de acesso à obra como ela é em si mesma, e o único órgão de
penetração da obra é aquela mesma personalidade que se exprimindo na interpretação torna
possível a eterna originalidade.
Segue-se que o dever do intérprete não é nem a impessoalidade, nem a originalidade, mas a
congenialidade, da qual emana a um tempo fidelidade e originalidade. Se o intérprete não
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dispõe de outra via de acesso à obra, que a sua própria pessoa, cabe a ele fazer dela um
adequado instrumento de penetração conseguindo sintonizá-la com a obra. Isto se torna
possível com um diálogo no qual a interrogação é conduzida de modo a obter a resposta mais
compreensível do ponto de vista no qual ele se põe. A obra de arte, portanto, revela-se a cada
um na sua maneira: ela realiza o mais difícil conceito de socialidade, que é aquele de falar a
todos, mas a cada um individualmente. Isto pode parecer o extremo da atomização porque
individualiza o comum; é ao contrário o máximo da socialidade, já que socialidade implica
personalização. Sociedade é colóquio e afinidade, isto é, relação entre pessoas, cada uma das
quais para entrar em relação com as outras não renuncia a si, mas pelo contrário, não há outro
meio a não ser desenvolver em si aquela congenialidade que lhe permite compreendê-la e
sentir-se se parecer com eles. E este caráter pessoal da sociedade é distintamente destacado da
mesma realidade da obra de arte, que se volta a todos falando a cada um à sua maneira, de
modo que a relação individual pressuponha e ao mesmo tempo realize um vínculo social.
Fazer da pessoa o único órgão de penetração da obra não significa afirmação de subjetivismo,
quase uma legitimação a dissolver a obra na própria consciência. Na interpretação existe um
firmíssimo critério de verdade e uma norma claríssima e é a obra mesma, a qual, como
solicita a compreensão, assim se subtrai a quem se preocupando mais consigo mesmo do que
com ela, se sobrepõe arbitrariamente. De resto o mesmo conceito de congenialidade implica
uma discriminação supondo que a pessoalidade do interprete, próprio enquanto é condição da
interpretação, pode ser também o limite; o que é conforme com a natureza da interpretação,
que é um tipo de conhecimento não único e não unívoco, mas infinito e tentativo, no qual a
compreensão é conseguida somente com ativa superação da ameaça sempre atual de
incompreensão. Mas a personalidade por quanto possa ser angústia que impede certas
aberturas e provoca certa surdez, não é nunca prisão, porque a pessoa pode até mesmo
conseguir instituir uma congenialidade inicialmente ausente.
Tudo isto encontra sua explicação, ainda, no fato de que a obra de arte é forma. Como à
definição da forma se junta a um infinito, pelo qual cada um dos seus infinitos aspectos a
contêm inteira mesmo não a exaurindo assim a pessoa é um infinito e cada um dos infinitos
pontos de vista nos quais pode-se colocar-se a contêm inteira, mesmo não exaurindo-la as
possibilidades sendo que a compreensão surge somente quando se instaura uma
correspondência, uma consonância, uma simpatia entre um aspecto da obra e um ponto de
vista da pessoa, pelo qual a obra se revela inteira em um dos seus aspectos e o intérprete a
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penetra inteira do seu ponto de vista. A obra não muda se muda o aspecto da qual é
considerada ou a prospectiva da qual é observada, ao contrário ela é acessível somente através
de interpretações sempre diversas, de modo que estas não lhe comprometem a identidade, mas
antes a realizam a infinidade, e essa, longe de sujeitar-se, a deseja, a suscita, a solicita.
Isto se explica, ainda, por aquela originária solidariedade entre as pessoas e as formas, pela
qual estas não se oferecem se não por um esforço pessoal. Isto assume particular evidência na
arte, onde a personalidade das produções implica e reclama a personalidade da interpretação:
como no processo de produção a pessoa não é apenas iniciativa, mas conteúdo, no sentido de
que faz de si, na obra, um objeto físico, assim na interpretação a pessoa, além de ser
iniciativa, é órgão, e assim a execução que resulta é ao mesmo tempo revelação da obra e sua
expressão completa.
O estudo da interpretação da obra de arte explicita o incindível nexo que subsiste entre uma
filosofia da forma e uma filosofia da pessoa, e revela dentre outros, a congenialidade que é
uma das leis fundamentais do espírito humano e pode trazer a estética e a crítica uma
fundamental contribuição, onde quer que se apresente cooperação dos homens, troca de idéias
e difusão de civilização.
ATTI DEL III CONGRESSO INTERNAZIONALE DI ESTETICA
VENEZIA, 3-5 SETTEMBRE 1956
EDIZIONE DELLA RIVISTA DI ESTETICA
ISTITUTO DI ESTETICA DELL’UNIVERSITÁ DI TORINO
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