Verão
2020
V.17, N.2.
e-ISSN: 1984-9206
https://doi.org/10.23845/
ALBERT CAMUS E A RECUSA DO SUICÍDIO EM O MITO DE SÍSIFO
[Albert Camus et le refus à le suicidaire dans Le Mythe de Sisyphe]
Leandson Vasconcelos SAMPAIO
Possui graduação e mestrado em Filosofia pela UFC.
E-mail:
[email protected]
Resumo
Este trabalho consiste em fazer uma reflexão filosófica sobre a questão do suicídio a partir
da obra O Mito de Sísifo – ensaio sobre o absurdo (1942) do filósofo franco-argelino Albert
Camus (1913-1960). Partindo da questão da sensibilidade, mostramos que Camus
diagnostica o absurdo como uma espécie de fratura entre o homem e o mundo e busca as
consequências desta evidência que é “sensível ao coração”. Com a “lógica absurda”,
Camus nos trás a reflexão filosófica que consiste em recusar todas as formas de esperança
enquanto uma trapaça. Ou seja, ao recusar os subterfúgios, o homem absurdo afirma a
vida e recusa também tanto o suicídio físico quanto o suicídio filosófico, mantendo a tensão
constante.
Palavras-chave
Absurdo, ética, vida.
Abstract
Ce travail consiste à faire une réflexion philosophique sur la question du suicide à partir de
l'ouvrage Le Mythe de Sisyphe - essai sur l'absurde (1942) du philosophe franco-algérien
Albert Camus (1913-1960). Partant de la question de la sensibilité, nous montrons que
Camus diagnostique l'absurde comme une sorte de fracture entre l'homme et le monde et
cherche les conséquences de cette évidence “sensible au cœur”. Avec la “logique absurde”,
Camus nous apporte la réflexion philosophique qui consiste à refuser toutes les formes
d'espérance en tricherie. C'est-à-dire qu'en refusant des subterfuges, l'homme absurde
affirme la vie et refuse aussi bien le suicide physique que le suicide philosophique, en
maintenant une tension constant.
Keywords
Absurde, éthique, la vie.
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O MITO DE SÍSIFO. p. 102-121.
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1. A sensibilidade e o absurdo.
Albert Camus em seu ensaio O Mito de Sísifo trata da questão filosófica do absurdo
como uma primeira evidência, enquanto uma das verdades que são “sensíveis ao coração”
(CAMUS, 2004, p. 17). Neste sentido, o absurdo é para Camus uma evidência que deve
ser tratada com a sensibilidade. Mas sentir o absurdo é apenas um começo, quando “o
coração procura em vão o que lhe falta, [...] é então um primeiro sinal do absurdo.” (CAMUS,
2004, p. 27). A absurdidade se dá em primeiro lugar a partir da percepção sensível.
Entretanto, ele diferencia o sentimento do absurdo da noção do absurdo: “O sentimento do
absurdo não é, portanto, a noção do absurdo. Ele a funda, simplesmente. Não se resume
a ela, exceto no breve instante em que aponta seu juízo em direção ao universo”. (CAMUS,
2004, p.43). Partindo desta evidência da sensibilidade, sentimos a nossa fragilidade frente
ao Universo. E a noção do absurdo enquanto reflexão sobre o sensível nos dá a noção do
confronto entre a sensibilidade e a racionalidade, entre a lucidez humana e a indiferença
do mundo, de modo que “o absurdo nasce desse confronto entre o apelo humano e o
silêncio irracional do mundo”. (CAMUS, 2004, p. 41). O limite da racionalidade se mostra
frente à contradição, diante da desproporção com relação à natureza, por isso diz Camus
que “essa densidade e essa estranheza do mundo, isto é o absurdo” (CAMUS, 2004, p.
29). Ou seja, o absurdo se dá no confronto da sensibilidade humana com a lucidez frente à
indiferença do mundo, que demonstra uma sensação de estranhamento e de hostilidade da
natureza para conosco e os limites da racionalidade aparecem neste confronto na medida
em que “o absurdo é a razão lúcida que constata os seus limites”. (CAMUS, 2004, p. 61).
Neste sentido é que na análise do filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905-1980), o absurdo
camusiano possui dois significados: “é simultaneamente um estado de fato e a consciência
lúcida que algumas pessoas tomam desse estado. É ‘absurdo’ o homem que, dum absurdo
fundamental, retira sem desfalecimento as conclusões que se impõe.” (SARTRE, 1968, p.
88).
Camus parte da evidência da sensibilidade como uma “verdade sensível ao
coração” e a “noção do absurdo” demonstra que esta evidência em confronto com a falta
de clareza e objetividade do mundo, colocando-nos frente a uma estranheza com relação
ao mundo: “Um mundo que se pode explicar, mesmo com raciocínios errôneos, é um
mundo familiar. Mas num universo repentinamente privado de ilusões ou de luzes, pelo
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contrário, o homem se sente um estrangeiro”. (CAMUS, 2004, p. 20). O confronto com a
natureza nos coloca como estrangeiros no mundo 1, como um divórcio com a natureza:
0F
“Esse divórcio entre o homem e sua vida, o ator e seu cenário, é propriamente o sentimento
do absurdo.” (CAMUS, 2004, p. 20). A racionalidade, ao encontrar os seus limites, encontra
o absurdo. Sartre, ao analisar a relação entre o romance O Estrangeiro e O Mito de Sísifo
em artigo intitulado A Explicação de O Estrangeiro, coloca também esta dimensão do
divórcio:
O absurdo primeiro manifesta antes de tudo um divórcio: o divórcio entre as
aspirações do homem para a unidade e o dualismo insuperável do espírito e da
natureza, entre o impulso do homem para o eterno e o caráter finito da sua
existência, entre a “preocupação” que é a sua própria essência e a inutilidade dos
seus esforços. A morte, o pluralismo irredutível das verdades e dos seres, a
ininteligibilidade do real, o acaso, eis os polos do absurdo! (SARTRE, 1968, p. 88).
A falta de claridade total da razão diante da impotência humana nos coloca frente
à nossa condição absurda. Todavia, com a rotinização das “engrenagens” do cotidiano,
podemos não notar o absurdo e viver como se tudo pudesse ser claro. No confronto
cotidiano da razão lúcida com o mundo que o nega há uma tomada de consciência para
além da rotinização cotidiana, com suas consequências. Diz Camus:
Cenários desabarem é coisa que acontece. Acordar, bonde, quatro horas no
escritório ou na fábrica, almoço, bonde, quatro horas de trabalho, jantar, sono e
segunda terça quarta quinta sexta e sábado no mesmo ritmo, um percurso que
transcorre sem problemas a maior parte do tempo. Um belo dia, surge o “por quê”
e tudo começa a entrar numa lassidão tingida de assombro. “Começa”, isto é
importante. A lassidão está no final dos atos de uma vida maquinal, mas inaugura
ao mesmo tempo um movimento da consciência. Ela o desperta e provoca sua
continuação. A continuação é um retorno inconsciente aos grilhões, ou é o despertar
definitivo. Depois do despertar vem, com o tempo, a consciência: suicídio ou
restabelecimento. Em si, a solidão tem algo de desalentador. Aqui devo concluir que
ela é boa. Pois tudo começa pela consciência e nada vale sem ela. Estas
observações nada têm de original. Mas são evidentes: isto basta por um tempo: até
fazermos um reconhecimento sumário das origens do absurdo. (CAMUS, 2004, pgs.
27-28).
As engrenagens do cotidiano podem mascarar o absurdo, porém, na vida cotidiana
pode haver um despertar para a consciência do absurdo, que surge diante da rotinização
maquinal do mundo frente à natureza. Para Camus, esta coexistência da desproporção
1 A questão do tema do “estrangeiro” também é tratada no romance O Estrangeiro (1942), porém,
pretendemos aqui tratar do tema apenas em O Mito de Sísifo.
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entre nós e o mundo é percebida pela inteligência. “O absurdo é esta constatação. A
necessidade de ordem e de significação e, de outro lado, o real sem esta ordem e
escondendo o significado. O absurdo não é nem o mundo e nem a inteligência, mas a
relação entre a inteligência e o mundo”. (GUIMARÃES, 1971, p. 55). A relação entre a
inteligência e o mundo constata o absurdo, que pode se ocultar na rotinização cotidiana.
Entretanto, nesta relação de desproporcionalidade entre nós e a natureza é que o absurdo
se revela 2. Mas o absurdo no sentido camusiano não é algo que se mede a partir de
1F
conceitos, dados os limites da racionalidade, então ele é apreendido pela inteligência e é
percebido na sua aparência em meio ao cotidiano. Diz Amitrano:
Não obstante o fato de não ser mensurado em conceitos, o absurdo pode ser, em
certa medida, apreendido, isto é, pode ser capturado pela inteligência, visto que
esta é sempre capaz de perceber a dualidade existente entre o homem e o mundo.
Contudo, a inteligência enquanto pura acepção lógica, não possui a habilidade de
apreender esse sentimento em sua totalidade, haja vista o fato de o absurdo ser
sempre traído pelas ações do homem que também é sempre desconhecido em sua
essência. Logo, sendo homem e mundo inapreensíveis, o que vige é a aparência.
(AMITRANO, 2014, p. 28).
Assim, o absurdo desvela a nossa fragilidade que é ultrapassada pela mecanização
do cotidiano, mas há também o momento da consciência deste confronto entre nós e a
natureza 3. Na ruptura das engrenagens do cotidiano e na tomada de consciência do
2F
absurdo e da fragilidade humana frente ao Universo, há um movimento que pode levar a
duas consequências: o suicídio ou o reestabelecimento. E são estas consequências que
interessam a Camus:
A inteligência me diz, à sua maneira particular, que este mundo é absurdo. Seu
contrário, que é a razão cega, prefere pretender que tudo está claro; eu esperava
provas e desejava que ela tivesse razão. Mas, apesar de tantos séculos
pretensiosos e acima de tantos homens eloquentes e persuasivos, sei que isto é
falso. Nesse plano, pelo menos, não há felicidade se eu não puder saber. Essa
razão universal, prática ou moral, esse determinismo, essas categorias que
explicam tudo fazem o homem honesto dar risada. Não tem nada a ver com o
espírito. Negam sua verdade profunda, que é a de estar acorrentado. Nesse
2
Diz Germano: “A sensação da fragilidade de nosso exílio frente ao universo acontece subitamente: desbota
repentinamente o verniz de sentido com o qual o automatismo dos hábitos revestia o cotidiano. Aí se desvela
esta sensação imediata de nossa contingência frente ao tempo e à mecânica do cotidiano que nos
ultrapassa”. (GERMANO, 2012, p. 224).
3
Nesse horizonte, diz Germano: “Nem no homem, nem no mundo se encontra exatamente o absurdo, é
precisamente na coexistência destas magnitudes desproporcionais que se dá a ebulição do sentido.
Portanto, no convívio, na conivência e no confronto com a natureza se dá a experiência autêntica do
absurdo, que no mais das vezes é ocultada pelas engrenagens do cotidiano”. (GERMANO, 2012, p. 229).
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universo indecifrável e limitado, o destino do homem ganha doravante seu sentido.
Uma multidão de irracionais se ergue para rodeá-lo até o fim. Em sua clarividência
recuperada e agora ajustada, o sentimento do absurdo se esclarece e torna-se
agora mais preciso. Eu dizia que o mundo é absurdo, mas ia muito depressa. Este
mundo não é razoável em si mesmo, eis tudo o que se pode dizer. Porém, o mais
absurdo é o confronto entre o irracional e o desejo desvairado de clareza cujo apelo
ressoa no mais profundo do homem. O absurdo depende tanto do homem quanto
do mundo. Por ora, é o único laço entre os dois. Ele os adere um ao outro como só
o amor pode juntar os seres. É tudo o que posso divisar claramente neste universo
sem medida onde minha aventura se desenrola. Paremos por aqui. (CAMUS, 2004,
p. 35).
Diante dos evidentes fracassos sucessivos da razão na tentativa de dar conta da
totalidade do mundo e do desejo fracassado de clareza, há a constatação da absurdidade
frente à falta de clareza do mundo e do silêncio da natureza. Ainda que a razão busque a
clareza, para Camus, séculos e séculos de racionalismo não puderam dar conta da
totalidade do mundo, constatando assim a irracionalidade da contradição absurda entre
este desejo de clareza e a evidente falta de sentido último do mundo, o que leva o
pensamento ao deserto: “Já sei que o pensamento pelo menos entrou nesses desertos. Ele
encontrou ali seu pão. Compreendeu que até então se nutria de fantasmas. Deu pretexto
para alguns dos temas mais prementes da reflexão humana”. (CAMUS, 2004, p. 35). Com
efeito, o que interessa a Camus é saber se é possível viver nestes desertos:
Se considero verdadeiro esse absurdo que rege minhas relações com a vida, se me
deixo penetrar pelo sentimento que me invade diante do espetáculo do mundo, pela
clarividência que me impõe a busca de uma ciência, devo sacrificar tudo a tais
certezas e encará-las de frente para poder mantê-las. Sobretudo, devo pautar nelas
minha conduta e persegui-las em todas as suas consequências. Falo aqui de
honestidade. Mas antes, quero saber se o pensamento pode viver nesses desertos.
(CAMUS, 2004, p. 35).
Aceitando a condição absurda, quais são as consequentes condutas diante da vida
de quem se propõe a viver de forma honesta as contradições da paixão dilacerante do
absurdo? “A partir do momento em que é reconhecido, o absurdo é uma paixão, a mais
dilacerante de todas. Mas toda a questão é saber se podemos aceitar sua lei profunda, que
é queimar o coração que elas ao mesmo tempo exaltam”. (CAMUS, 2004, p. 36). O
reconhecimento do absurdo como ponto de partida é o primeiro passo da reflexão para
buscar diante do reconhecimento da evidência do absurdo uma conduta que se mantenha
mesmo diante dos desertos do pensamento. “Constatar o absurdo da vida não pode ser um
fim, mas apenas um começo. Esta é uma verdade da qual partiram todos os grandes
espíritos. Não é esta descoberta que interessa, e sim as consequências e as regras de
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ação que se tira dela”. (CAMUS, 1998, p. 136). Assim, Camus busca as consequentes
regras de ação que o reconhecimento do absurdo acarreta:
No plano da inteligência, posso então dizer que o absurdo não está no homem (se
semelhante metáfora pudesse ter algum sentido) nem no mundo, mas na sua
presença comum. Até o momento, este é o único laço que os une. Se quiser me
limitar às evidências, sei o que o homem quer. Sei o que o mundo lhe oferece e
agora posso dizer que sei também o que os une. Não preciso aprofundar mais. Uma
única certeza é suficiente para aquele que busca. Trata-se apenas de extrair todas
as consequências dela. (CAMUS, 2004, p. 45).
Camus trata das questões decisivas e busca as consequências práticas destas
constatações evidentes do absurdo. “Julgo, então, que o sentido da vida é a mais premente
das perguntas. Como responder a ela?”. (CAMUS, 2004, p. 18). Esta é a grande questão
decisiva colocada por Camus em O Mito de Sísifo, pois, para ele, a resposta à validade do
sentido da vida é a principal questão da filosofia 4. Na questão prática da filosofia, a
3F
afirmação ou a negação da vida estão em jogo. Diante da constatação das evidências do
absurdo, da falta de sentido último do mundo, Camus questiona se é possível viver mesmo
diante da impossibilidade de claridade total do sentido último da vida. Por isso, para ele, o
suicídio é também uma forma de confissão, pois suicidar-se é uma forma de confessar que
a vida não vale a pena ser vivida:
Mas se é difícil fixar o instante preciso, o percurso sutil em que o espírito apostou
na morte, é mais simples extrair do gesto em si as consequências que ele supõe.
Matar-se, em certo sentido, e como no melodrama, é confessar. Confessar que
fomos superados pela vida ou que não a entendemos. Mas não prossigamos nestas
analogias e voltemos às palavras correntes. Trata-se apenas de confessar que isso
“não vale a pena”. Viver, naturalmente, nunca é fácil. Continuamos fazendo os
gestos que a existência impõe por muitos motivos, o primeiro dos quais é o costume.
Morrer por vontade própria supõe que se reconheceu, mesmo instintivamente, o
caráter ridículo deste costume, a ausência de qualquer motivo profundo para viver,
o caráter insensato da agitação cotidiana e a inutilidade do sofrimento. (CAMUS,
2004, p. 19).
4
Por isso ele inicia desta forma O Misto de Sísifo: “Só existe um problema filosófico realmente sério: o
suicídio. Julgar se a vida vale ou não a pena ser vivida é responder à pergunta fundamental da filosofia. O
resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias, vem depois. Trata-se de
jogos; é preciso primeiro responder. E se é verdade, como quer Nietzsche, que um filósofo, para ser
estimado, deve pregar com o seu exemplo, percebe-se a importância desta resposta, porque vai anteceder
o gesto definitivo. São evidências sensíveis ao coração, mas é preciso ir mais fundo para torná-las mais
claras para o espírito”. (CAMUS, 2004, p. 17).
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Neste horizonte, partindo da sensibilidade e das evidências sensíveis ao
coração, constatamos com a nossa lucidez que os costumes do cotidiano levam ao
esquecimento da condição absurda. Mas a partir da reflexão e da tomada de consciência
do absurdo, quando escapamos das engrenagens do cotidiano, abrimos espaço para a
reflexão do sentido da vida. Estamos diante do dilema existencial decisivo que traz suas
consequências: dilaceramento ou do reestabelecimento: “O que me interessa, repito,
não são tanto as descobertas absurdas. São suas consequências”. (CAMUS, 2004, p.
30).
2. A relação entre o absurdo e o suicídio e a lógica absurda.
O tema deste ensaio é justamente a relação entre o
absurdo e o suicídio, a medida exata em que o suicídio é
uma solução para o absurdo. Pode-se postular a princípio
que as ações de um homem que não trapaceia devem ser
reguladas por aquilo que ele considera verdadeiro. A
crença na existência do absurdo deve então comandar
sua conduta. É uma curiosidade legítima perguntar, com
clareza e sem falso pateticismo, se uma conclusão desta
ordem exige que se abandone de imediato uma condição
incompreensível. Falo aqui, evidentemente, dos homens
dispostos a estar de acordo consigo mesmos. (CAMUS,
2004, p. 20).
Ao refletir sobre as evidências da condição humana de absurdidade, Camus utilizase do absurdo como um ponto de partida para um raciocínio sobre a conduta humana diante
das impotências da racionalidade 5 em confronto com a irracionalidade. Ao fazer o raciocínio
4F
sobre a nossa condição de absurdidade, Camus está interessado nas consequências
práticas deste raciocínio e questiona se necessariamente o pensamento diante do deserto
conduz ao suicídio físico. Com o raciocínio absurdo, Camus questiona se, diante das
evidências da absurdidade, deve-se deduzir que, com a falta de sentido último da vida, o
5
Sobre esta questão, diz Camus: “Enquanto o espírito se cala no mundo imóvel de suas esperanças, tudo
se reflete e se ordena na unidade de sua nostalgia. Mas em seu primeiro movimento, esse mundo se fissura
e desmorona: uma infinidade de cintilações reverberantes se oferece ao conhecimento. É preciso desistir
de reconstruir sua superfície familiar e tranquila que nos daria paz ao coração. Após tantos séculos de
pesquisas, tantas abdicações entre os pensadores, sabemos que isto é verdade para todo o nosso
conhecimento. Com exceção dos racionalistas profissionais, desistimos hoje do verdadeiro conhecimento.
Se fosse preciso escrever a única história significativa do pensamento humano, deveria ser a de seus
arrependimentos sucessivos e de suas impotências”. (CAMUS, 2004, p. 32-33).
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suicídio físico seria a única consequência lógica deste confronto ou, ao contrário, poderia
levar à manutenção da vida, desta “luta sem trégua”:
O único dado, para mim, é o absurdo. A questão é saber como livrar-se dele e se o
suicídio deve ser deduzido desse absurdo. A primeira e, no fundo, a única condição
das minhas investigações é preservar aquilo que me oprime respeitando em
consequência o que julgo em essencial nele. Acabo de defini-lo como uma
confrontação e uma luta sem trégua. (CAMUS, 2004: 45-46).
Este raciocínio conduz ao que ele chama de lógica absurda, que trata, a partir das
contradições que o absurdo evidencia, das consequências das questões decisivas da vida.
Ele busca no raciocínio absurdo desvelar uma lógica que leve a atravessar o “deserto”,
enfrentando o mal-estar da condição humana desvelado pela consciência do absurdo. O
absurdo, ao evidenciar o divórcio entre a racionalidade e a natureza, ou entre nós e o
mundo, desvela também o mal-estar da nossa condição: “Esse mal-estar diante da
desumanidade do próprio homem, essa incalculável queda diante da imagem daquilo que
somos, essa ‘náusea’, como diz um autor de nossos dias, é também o absurdo.” (CAMUS,
2004: 29). Diante do mal-estar da nossa condição, interessa a Camus saber as
109
consequências lógicas deste raciocínio.
É sempre cômodo ser lógico. É quase impossível ser lógico a fundo. Os homens
que morrem pelas próprias mãos seguem até o fim a inclinação do seu sentimento.
A reflexão sobre o suicídio me dá então a oportunidade de enunciar o único
problema que me interessa: há uma lógica que chegue até a morte? Só sabê-lo
perseguindo, sem paixão desordenada, com a única luz da evidência, o raciocínio
cuja origem indico aqui. É o que chamo de raciocínio absurdo. Muitos já começaram.
Não sei se o mantiveram. (CAMUS, 2004, pgs. 22-23).
Camus aborda o tema do absurdo utilizando-se do método que chama de raciocínio
absurdo e busca a partir da evidência do absurdo – quando a razão lúcida atinge o seus
limites – as consequências desta constatação dos limites da racionalidade 6, considerando
5F
que o pensamento puramente lógico não dá conta da realidade, pois exclui a
irracionalidade. O método camusiano da lógica absurda, a partir do raciocínio absurdo e da
noção de absurdo, pode ser utilizado para demonstrar este raciocínio: “Mas se reconheço
6 Diz Camus em O Mito: “É inútil negar absolutamente a razão. Ela tem sua ordem, na qual é eficaz. A
ordem é, justamente, a da experiência humana. É por isso que queremos deixar tudo claro. Se não podemos
fazê-lo, se o absurdo então surge, é precisamente no encontro dessa razão eficaz, porém, limitada com o
irracional sempre renascido”. (CAMUS, 2004, p. 50).
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os limites da razão, nem por isso a nego, reconhecendo seus poderes relativos. Só quero
continuar neste caminho médio onde a inteligência pode permanecer clara”. (CAMUS,
2004, p. 53). Assim, como a lógica tradicional não dá conta das consequências práticas da
constatação do absurdo, a lógica absurda deve comandar as ações humanas, pois “o
pensamento lógico é o pensamento ‘injusto’ par excellance: segundo Camus é a ‘lógica
absurda’ que deve comandar a vida”. (GERMANO, 2012, p. 231). Diante da constatação
dos desertos do pensamento, levando a lógica absurda ao seu extremo, a conduta humana
terá como consequência a ausência de esperança, a recusa contínua e a insatisfação
consciente:
E levando ao extremo essa lógica absurda, devo reconhecer que tal luta supõe a
ausência total de esperança (que nada tem a ver com o desespero), a recusa
contínua (que não deve ser confundida com a renúncia) e a insatisfação consciente
(que não se poderia assimilar à inquietude juvenil). Tudo o que destrói, escamoteia
ou desfalca estas exigências (e em primeiro lugar a admissão que destrói o divórcio)
arruína o absurdo e desvaloriza a atitude que pode então ser proposta. O absurdo
só tem sentido na medida em que não seja admitido. (CAMUS, 2004, p. 46).
A lógica absurda camusiana pressupõe que, diante das evidências fornecidas pelo
absurdo, não haja nenhuma forma de consolo, recusando a esperança, mas não
renunciando à vida, mantendo a tensão da vida e a insatisfação consciente, apesar do
absurdo. “O absurdo do mundo nega ao homem as razões profundas de viver? O homem
lúcido responde com o apego redobrado à vida, apesar da absurdidade.” (GERMANO,
2012, p. 231). Na lógica absurda há uma recusa de todas as espécies de subterfúgios, de
esquivas, como no caso da esperança. A questão que está em jogo é que, mesmo com os
desertos do pensamento, as esquivas do cotidiano que nos fazem desviar da reflexão,
como espécies de subterfúgios, são como trapaças, que, para ele, não estão em jogo na
lógica absurda, pois o que está em jogo é sempre um pensamento honesto:
No apego do homem à sua vida há algo mais forte que todas as misérias do mundo.
O juízo do corpo tem o mesmo valor que o do espírito, e o corpo recua diante do
aniquilamento. Cultivamos o hábito de viver antes de adquirir o hábito de pensar.
Nesta corrida que todo dia nos precipita um pouco mais em direção à morte, o corpo
mantém uma dianteira irrecuperável. Enfim, o essencial desta contradição reside no
que eu vou chamar de esquiva, porque ela é ao mesmo tempo menos e mais que a
distração no sentido pascaliano. A esquiva mortal que constitui o terceiro tema deste
ensaio é a esperança. Esperança de uma outra vida que é preciso “merecer”, ou
truque daqueles que vivem não pela vida em si, mas por alguma grande ideia que
a ultrapassa, sublima, lhe dá um sentido e a trai. (CAMUS, 2004, p. 22-23).
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Para Camus, esperança é resignação. No raciocínio absurdo há então a recusa da
esperança enquanto subterfúgio, que serve como uma trava para a ação. Destarte, o
pensamento honesto deve recusar a esperança, considerando as evidências do absurdo,
pois “o absurdo é o contrário da esperança”. (CAMUS, 2004, p. 49). Assim, o raciocínio
camusiano é um pensamento honesto que recusa os saltos e subterfúgios que servem de
consolação ao coração, mas que são como uma trava na medida em que se trata de uma
ilusão diante da realidade. Camus pretende manter o raciocínio sem ilusões e sem a
resignação da esperança: “A honestidade consiste em saber manter-se nessa aresta
vertiginosa, o resto é subterfúgio”. (CAMUS, 2004, p. 62). Ele pretende manter a tensão,
porém, manter esta tensão não significa entregar-se ao desespero: “Carecer de esperança
não equivale a se desesperar”. (CAMUS, 2004, p. 105). Ou seja, o raciocínio absurdo,
diante o mal-estar da falta de sentido último do mundo perante os limites da racionalidade
frente ao silêncio da natureza, não se utiliza do subterfúgio da esperança, como um salto
na eternidade, mas sim, mantém a tensão diante das contradições do absurdo, mantendo
assim o raciocínio honesto, recusando também a resignação. “O salto sob todas as suas
formas, a precipitação no divino ou no eterno, o abandono às ilusões do cotidiano ou da
ideia, todas essas telas ocultam o absurdo. Mas há funcionários sem tela e é deles que
quero falar”. (CAMUS, 2004, p. 105).
Desse modo, a lógica absurda trata de recusar os subterfúgios da esperança,
mantendo a tensão das contradições entre nós e o mundo. Entretanto, o raciocínio absurdo
pretende ser consciente, mas não negar a razão: “Ele reconhece a luta, não despreza em
absoluto a razão e admite o irracional. Recobre assim com o olhar todos os dados da
experiência e está pouco disposto a saltar antes de saber. Ele só sabe que, nessa
consciência atenta, já não há lugar para a esperança”. (CAMUS, 2004, p. 51). O raciocínio
absurdo permanece consciente, como diz Sartre, em uma “lucidez sem esperança”
(SARTRE, 1968, p. 90), por isso podemos dizer que o homem absurdo não está disposto a
dar o “salto” da esperança, afirmando a tensão e mantendo a luta sem que haja uma fuga
que sirva de trapaça.
Para Camus, o salto pode dar-se tanto com a racionalidade quanto pela
religiosidade, pois o homem absurdo é levado à recusa da “ajuda enganosa das religiões
ou das filosofias existenciais” (SARTRE, 1968, p. 90). O salto, tanto do espírito religioso,
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O MITO DE SÍSIFO. p. 102-121.
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quanto do espírito racionalista 7, aspira ao eterno 8, que não está em jogo na lógica absurda,
6F
7F
pois Camus pretende ser fiel à evidência que despertou o raciocínio: “Meu raciocínio deseja
ser fiel à evidência que o despertou. Tal evidência é o absurdo, o divórcio entre o espírito
que deseja e o mundo que decepciona, minha nostalgia de unidade, o universo disperso e
a contradição que os enlaça”. (CAMUS, 2004, p. 62). Ainda que o espírito tenha a nostalgia
e o desejo de unidade, o raciocínio lúcido evidencia que a contradição entre o universo
disperso e o desejo de unidade continuam, mantendo a tensão entre nós e o mundo:
É preciso saber se pode viver nele ou se a lógica manda que se morra por ele. Não
me interesso pelo suicídio filosófico, mas pelo suicídio, simplesmente. Só quero
purgá-lo do seu conteúdo de emoções e conhecer sua lógica e sua honestidade.
Qualquer outra posição supõe para o espírito absurdo a escamoteação e o recuo
do espírito daquilo que o próprio espírito revela. (CAMUS, 2004, p. 62).
O salto é como um “trampolim”, que serve de escamoteação e trapaça. O raciocínio
absurdo exige a honestidade de manter-se fiel à lucidez que despertou este raciocínio,
mantendo a luta, mesmo que esta luta signifique também dilaceramento e divórcio com o
mundo. “Tudo o que me interessa é saber se se pode viver sem apelo. Não quero sair deste
terreno. Sendo-me dada esta face da vida, posso acomodar-me a ela?”. (CAMUS, 2004, p.
72). Neste horizonte, diz Camus:
Se reconhecemos que todo o poder desta noção reside em como ela fere nossas
esperanças elementares, se percebermos que o absurdo exige, para se manter, que
não seja admitido, veremos então que perdeu seu rosto verdadeiro, seu caráter
humano e relativo, para entrar em uma eternidade ao mesmo tempo
incompreensível e satisfatória. Se há absurdo, é no universo do homem. Desde o
momento em que sua noção se transforma em trampolim de eternidade, não está
mais relacionada com a lucidez humana. O absurdo não é mais aquela evidência
que o homem constata sem admitir. A luta é evitada. O homem integra o absurdo e
nessa comunhão faz desaparecer seu caráter essencial que é oposição,
dilaceramento e divórcio. Este salto é uma escapatória. (CAMUS, 2004, p. 49).
7
Neste horizonte, comenta Germano: “Filósofos, ‘parentes por nostalgia’, partilham da metodologia de realçar
os cumes do desespero para realizar melhor o ‘salto na esperança’: o supremo engodo tricherie, ou suprema
‘esquiva’, é, segundo Camus, o apaziguamento conformista em ‘Deus’, ou no ‘eterno’, em seus variados
disfarces.” (GERMANO, 2012: 234)
8 Sobre o “salto”, diz Camus: “Há várias maneiras de saltar, mas o essencial é saltar. Essas negações
redentoras, essas contradições finais que negam o obstáculo que ainda não foi superado, tanto podem nascer
(é o paradoxo deste raciocínio) de certa inspiração religiosa quanto da ordem racional. Elas sempre aspiram
ao eterno, e só nisso dão o salto”. (CAMUS, 2004: 55).
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O MITO DE SÍSIFO. p. 102-121.
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Apesar da exigência de clareza e objetividade do espírito humano, o pensamento
lúcido mantém-se consciente da impossibilidade desta clareza, como condição humana. O
raciocínio absurdo não nega a razão, mas reconhece os limites da racionalidade, que não
pode conciliar em absoluto as contradições evidenciadas. “Para um espírito absurdo, a
razão é vã e não existe nada além da razão”. (CAMUS, 2004, p. 50). O raciocínio absurdo
camusiano busca o equilíbrio entre a racionalidade e a irracionalidade, não negando a
racionalidade, mas mantendo seus limites, reconhecendo a existência da irracionalidade,
sem deixar que o irracional sirva como uma espécie de “embriaguez” para o espírito,
mantendo a clarividência: “A embriaguez do irracional e a vocação do êxtase desviam do
absurdo um espírito clarividente”. (CAMUS, 2004, p. 49). O raciocínio da lógica absurda, ao
manter a lucidez do pensamento, encontra os limites da racionalidade, sem negá-la, e
busca as consequências deste reconhecimento dos limites da nossa condição.
Agora o principal está feito. Tenho algumas evidências das quais não posso me
separar. O que sei, o que é certo, o que não posso negar, o que não posso recusar,
eis o que me interessa. Posso negar tudo desta parte de mim que vive de nostalgias
incertas, menos esse desejo de unidade, esse apetite de resolver, essa exigência
de clareza e coesão. Posso refutar tudo neste mundo que me rodeia, que me fere e
me transporta, salvo o caos, o acaso-rei e a divina equivalência que nasce da
anarquia. Não sei se este mundo tem um sentido que o ultrapassa. Mas sei que não
conheço esse sentido e que por hora me é impossível conhecê-lo. O que significa
para mim significação fora da minha condição? Eu só posso compreender em
termos humanos. O que eu toco, o que me resiste, eis o que compreendo. E estas
duas certezas, meu apetite pelo absoluto e pela unidade e a irredutibilidade deste
mundo a um princípio racional e razoável, sei também que não posso conciliá-las.
Que outra verdade poderia conhecer sem mentir, sem apresentar uma esperança
que não tenho e que não significa nada nos limites da minha condição? (CAMUS,
2004, p. 63).
A questão do suicídio, partindo do raciocínio absurdo, é o que está em jogo na
lógica absurda camusiana. A vida prática do homem concreto é o que está em evidência,
partindo de um diagnóstico de sua época que ainda se faz bastante atual em nosso tempo.
Em outras palavras, podemos dizer que, dados os fracassos da racionalidade para dar
conta do sentido da vida em momentos históricos sombrios a partir do século XX, ainda
hoje a questão colocada por Camus sobre o suicídio continua bastante relevante.
3. O mito de Sísifo enquanto metáfora da condição humana absurda.
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A imagem mítica é de fundamental importância na obra camusiana. O mito de
Sísifo aparece como ilustração simbólica do absurdo da condição humana diante da
falta de sentido do mundo. A mitologia, que tinha uma função pedagógica, tem também
uma função simbólica e clínica 9. O mito tem sua dimensão simbólica que precisa ser
8F
encarnada e ultrapassada: “Um símbolo sempre ultrapassa aquele que o usa e o faz
dizer na realidade mais do que tem consciência de expressar” (CAMUS, 2004, p. 145).
A mitologia grega tem um papel fundamental na filosofia camusiana do ponto de vista
da imaginação e, neste sentido, diz Camus que “Os mitos são feitos para que a
imaginação os anime” (CAMUS, 2004, p. 138).
O mito de Sísifo possui uma imagem ilustrativa da condição humana absurda.
Como Sísifo, estamos fadados a um destino inútil, carregamos nossas “rochas”, o peso
da existência e também temos consciência da condição humana da nossa tragédia 10.
9F
Ao conter a rocha “despencando em alguns instantes até esse mundo interior de onde
ele terá que tornar a subi-la até os picos” (CAMUS, 2004, p. 138), Sísifo tem consciência
do seu destino e esse momento do seu tormento para Camus é também sua vitória 11. E
10F
é esse momento que Sísifo enfrenta o seu destino que interessa a Camus 12. Mas,
11F
apesar do seu fado, Sísifo possui sua alegria, pois há também um parentesco entre a
9
Neste horizonte, diz Germano: “Em contraponto ao foco da filosofia moderna e de seus desdobramentos
contemporâneos diretos, a saber, os edifícios intelectuais da fenomenologia e das filosofias da história, que
se ocupam, no limite, no estabelecimento de ‘verdades’ através de seus sistemas filosóficos, em Camus,
encontramos, de início, o contraponto do Mito. Em sua origem grega a função primordial do Mito, em seu
poder de materializar ideias em imagens, é, sobretudo, pedagógica. Em Camus, o objetivo da filosofia está
entre a pedagogia e a medicina: a virtude da filosofia é clínica. Camus conscientemente resgata um ideário
pré-socrático ao realinhar os ideais da filosofia e da medicina: em O Mito de Sísifo tratar-se-á de um esforço
de diagnosticar o mal-estar da condição humana – e de elencar atitudes face à absurdidade”. (GERMANO,
2012, p. 145).
10 “Este mito só é trágico porque o seu herói é consciente. O que seria a sua pena se a esperança de triunfar
o sustentasse a cada passo? O operário de hoje trabalha todos os dias de sua vida nas mesmas tarefas, e
este destino não é menos absurdo. Mas só é trágico nos raros momentos em que se torna consciente”.
(CAMUS, 2004, p. 139).
11 “Essa hora, que é como uma respiração e que se repete com tanta certeza quanto sua desgraça, essa hora
é a da consciência. Em cada um desses instantes, quando ele abandona os cumes e mergulha pouco a pouco
nas guaridas dos deuses, Sísifo é superior ao seu destino. É mais forte que a sua rocha.” (CAMUS, 2004, p.
139).
12 “Sísifo, proletário dos deuses, impotente e revoltado, conhece toda a extensão de sua miserável condição:
pensa nela durante a descida. A clarividência que deveria ser o seu tormento consuma, ao mesmo tempo,
sua vitória. Não há destino que não possa ser superado com o desprezo.” (CAMUS, 2004, p. 139).
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felicidade e o absurdo 13. Sísifo não escapa da felicidade, que também está em seu
12F
destino.
Sísifo é fiel à sua tarefa absurda. Empurra o rochedo, rochedo que, novamente,
tomba do alto da montanha. Mas sua fidelidade é consciente e, consciente, faz-se
superior aos deuses que o condenaram. Sísifo é o grande mestre que nega os
deuses erguendo o rochedo. E o homem comum, jogado numa série de tarefas
repetidas e exaustivas, se é consciente, alcança aquela superioridade sobre o seu
destino. E terá que ser feliz. (GUIMARÃES, 1971, p. 60.).
Isto é o que acontece no cotidiano de qualquer indivíduo comum. “O coração
humano tem uma odiosa tendência a só chamar de destino aquilo que o esmaga. Mas a
felicidade também, à sua maneira, carece de razão, porque é inevitável” (CAMUS, 2004, p.
149). Assim como Sísifo, também podemos ser felizes, apesar do absurdo; Em resumo,
com a imagem mítica de Sísifo, Camus em sua filosofia usa o mito de forma metodológica
do seu pensamento criador, em busca de uma filosofia da felicidade.
4. A recusa do suicídio e a afirmação do presente.
115
O raciocínio absurdo leva em consideração que a razão nos revela a consciência
da absurdidade frente à indiferença e o silêncio do mundo ao qual desejamos estar
familiarizados, mas somos estranhos a ele. Uma das evidências desveladas pela nossa
condição absurda é justamente a consciência que temos da impossibilidade da
racionalidade de dar conta da totalidade do real, mostrando assim a impotência da razão
diante da infinitude do mundo. Este raciocínio absurdo acaba por reconhecer e sustentar
conscientemente a nossa condição de fragilidade:
Se eu fosse uma árvore entre as árvores, gato entre os animais, a vida teria um
sentido ou, antes, o problema não teria sentido porque eu faria parte desse mundo.
Eu seria esse mundo ao qual me oponho agora com toda a minha consciência e
com toda a minha exigência de familiaridade. Esta razão, tão irrisória, é a que me
opõe a toda a criação. Não posso negá-la de uma penada. Por isso devo sustentar
o que considero certo. Devo afirmar, mesmo contra mim, aquilo que me aparece
como evidente. (CAMUS, 2004, p. 64).
13 “A felicidade e o absurdo são filhos da mesma terra. São inseparáveis. O erro seria dizer que a felicidade
nasce necessariamente da descoberta absurda. Às vezes ocorre também que o sentimento do absurdo nasce
da felicidade.” (CAMUS, 2004, p. 140).
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No raciocínio absurdo há a afirmação da consciência da absurdidade sem
subterfúgios, reconhecendo o conflito perpétuo e constante como uma das faces da
condição humana: “E o que constitui o fundo do conflito, da fratura entre o mundo e o meu
espírito, senão a consciência que tenho dela? Assim, então, se quero sustentá-lo, deve ser
por meio de uma consciência perpétua, sempre renovada, sempre tensa”. (CAMUS, 2004,
p. 64). A lógica absurda pretende manter a tensão perpétua e renovada do conflito entre a
natureza e a razão a partir da lucidez e da consciência dos limites da racionalidade frente
ao irracional. Ao recusar a esperança da eternidade e permanecer no pensamento lúcido e
consciente, o raciocínio absurdo mantém-se no presente. Diante das clarividências
encontradas pelo espírito frente à nossa condição da absurdidade, o raciocínio absurdo
pretende manter esta rebelião da consciência frente à absurdidade, o que, para Camus,
não leva ao desespero, mas ao reconhecimento da grandeza humana:
Nesse momento, o absurdo, ao mesmo tempo tão evidente e tão difícil de
conquistar, entra na vida de um homem e reencontra a sua pátria. Ainda nesse
momento, o espírito pode abandonar a estrada árida e ressecada do esforço lúcido,
que desemboca agora na vida cotidiana. Reencontra o mundo do “se” anônimo, mas
agora o homem entra nele com sua rebelião e sua clarividência. Ele desaprendeu a
esperar. Esse inferno do presente é finalmente seu reino. Todos os problemas
recuperam sua lâmina. A evidência abstrata se retira diante do lirismo das formas e
das cores. Os conflitos espirituais se encarnam e voltam a reencontrar seu abrigo
miserável e magnífico no coração do homem. Nenhum deles está resolvido. Mas
todos se transfiguram. Vamos morrer, escapar pelo salto, reconstruir uma casa de
ideias e de formas à nossa medida? Ou, pelo contrário, vamos manter a aposta
dilacerante e maravilhosa do absurdo? Façamos um último esforço a esse respeito
e vejamos todas as nossas consequências. O corpo, a ternura, a criação, a ação, a
nobreza humana retomarão então seu lugar neste mundo insensato. O homem
finalmente reencontrará aí o vinho do absurdo e o pão da indiferença com que nutre
sua grandeza. (CAMUS, 2004, pgs. 64-65).
O raciocínio absurdo, na medida em que permanece lúcido, entra em confronto com
a vida cotidiana, pois a vida cotidiana serve como esquecimento da absurdidade, enquanto
o pensamento lúcido mantém a tensão demonstrada pela evidência da condição humana
absurda. Desta forma, o desafio camusiano em O Mito de Sísifo é o de manter um
pensamento lúcido e interrogante, ainda que o absurdo desvele o mal-estar da condição
humana. Apesar do absurdo, o homem encontra a sua grandeza diante do confronto com
a absurdidade ao manter a lucidez diante daquilo que desvela a fragilidade e a finitude
humana. A lógica absurda exige a manutenção da consciência diante da absurdidade e a
reflexão sobre o absurdo exige a manutenção da lucidez.
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Com efeito, voltando à questão do suicídio, ao recusar a esperança como salto e
resignação, o raciocínio absurdo do filósofo franco-argelino trata da questão prática das
consequências da negação da esperança, pois “o absurdo, por um lado, admite ser a vida
o único bem necessário – rejeitando, assim, o suicídio e a esperança –, bem como, por
outro, mantém o confronto desesperado entre a interrogação humana e o silêncio do
mundo.” (AMITRANO, 2014, p. 35). Manter o pensamento consciente do absurdo, como
vimos, não se trata de aceitar o desespero, mas, ao contrário, trata-se de não desesperarse, na medida em que aceitamos a nossa condição de absurdidade. Estamos então diante
não mais da questão do sentido da vida, mas de manter a vida, apesar de não haver um
único e último sentido claro, e afirmar a revolta 14. Assim, diz Camus:
13F
Agora posso abordar a noção de suicídio. Já vimos que solução é possível dar-lhe.
Neste ponto, o problema se inverte. Anteriormente tratava-se de saber se a vida
devia ter um sentido para ser vivida. Agora parece, pelo contrário, que será tanto
melhor vivida quanto menos sentido tiver. Viver uma experiência, um destino, é
aceitá-lo plenamente. Mas, sabendo-o absurdo, não se viverá esse destino sem
fazer de tudo para manter diante de si o absurdo iluminado pela consciência. Negar
um dos termos da oposição na qual se vive é fugir dela. Abolir a revolta consciente
é iludir o problema. O tema da revolução permanente se transfere assim para a
experiência individual. Viver é fazer que o absurdo viva. Fazê-lo viver é, antes de
mais nada, contemplá-lo. Ao contrário do que disse Eurídice, o absurdo só morre
quando viramos as costas pra ele. Por isso, uma das poucas posturas filosóficas
coerentes é a revolta, o confronto perpétuo do homem com sua própria escuridão.
Ela é a exigência de uma transparência impossível e questiona o mundo a cada
segundo. Assim como o perigo proporciona ao homem uma oportunidade
insubstituível de captá-la, também a revolta metafísica estende a consciência ao
longo de toda a experiência. Ela é a presença constante do homem diante de si
mesmo. Não é aspiração, porque não tem esperança. Essa revolta é apenas a
certeza de um destino esmagador, sem a resignação que deveria acompanhá-la.
(CAMUS, 2004, p. 66).
Diante das evidências do absurdo, a postura filosófica exigida pelo raciocínio
absurdo é a postura da revolta, na medida em que o raciocínio absurdo recusa a
resignação, ao afirmar a vida, mesmo que não haja um sentido último claro. “Essa revolta
dá seu valor à vida. Estendida ao longo de toda uma existência, restaura sua grandeza”.
(CAMUS, 2004, p. 66). Neste horizonte, diz Sartre: “Mas não é apenas isso: é uma paixão
do absurdo. O homem absurdo não se suicidará: quer viver, sem renunciar a nenhuma das
suas certezas, sem porvir, sem esperança, sem ilusão e também sem resignação. O
homem absurdo afirma-se na revolta” (SARTRE, 1968, p. 91). No raciocínio camusiano, a
14 O tema da revolta será desenvolvido posteriormente em O Homem Revoltado (1951), mas mostramos
aqui que o tema já estava “embrionariamente” em O Mito de Sísifo e em Núpcias (1939).
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aposta no absurdo é uma aposta na vida, e não no suicídio, na medida em que a
consciência da condição de absurdidade, ao invés de nos conduzir à resignação e à
aceitação, leva à revolta e à manutenção da vida, apesar da absurdidade: “Viver é o desafio
supremo do homem face à realidade que o contradiz”. (GERMANO, 2012, p. 232). Neste
sentido, diz Camus:
Aqui se vê como a experiência absurda se afasta do suicídio. Pode-se pensar que
o suicídio se segue à revolta. Mas é um engano. Porque ele não representa seu
desenlace lógico. É exatamente o seu contrário, pela admissão que supõe. O
suicídio, como o salto, é a aceitação de seu limite máximo. Tudo se consumou, o
homem retorna à sua história essencial. Divisa seu futuro, seu único e terrível futuro,
e se precipita nele. À sua maneira, o suicídio resolve o absurdo. Ele o arrasta para
a própria morte. Mas eu sei que, para manter-se, o absurdo não pode ser resolvido.
Recusa o suicídio na medida em que é ao mesmo tempo consciência e recusa da
morte. É, na extremidade do último pensamento do condenado à morte, aquele
cadarço de sapato que, apesar de tudo, percebe a poucos metros, bem na beirada
de sua queda vertiginosa. O contrário do suicida é, precisamente, o condenado à
morte. (CAMUS, 2004, p. 66).
Para Camus, o raciocínio que partiu da evidência da absurdidade, ao invés de
aceitar a morte diante da falta de sentido último da vida, revolta-se e recusa o suicídio, pois
o suicídio seria também um salto, uma fuga do absurdo. O pensamento lúcido, que tem
consciência do absurdo, não busca resolver a questão da absurdidade, dado os limites da
condição humana, mas sim manter a vida, apesar do absurdo: “Assumir a absurdidade
significa manter os polos que configuram o absurdo – homem, natureza, e o confronto lúcido
entre ambos: respondendo com a vida o homem instaura a lógica absurda que tem por
decorrência última a universalização deste valor.” (GERMANO, 2012, p. 577). Com efeito,
a lógica absurda camusiana pretende responder com a vida diante daquilo que a nega,
ainda que não haja um sentido último, respondendo à contradição com a afirmação da vida
e da revolta: “O absurdo do mundo nega ao homem as razões profundas de viver? O
homem lúcido responde com o apego redobrado à vida, apesar da absurdidade.”
(GERMANO, 2012, p. 231). Desse modo, as consequências práticas do raciocínio absurdo
são a afirmação da vida, da revolta e a recusa da esperança e do suicídio. Ou seja,
permanece o desafio de manter a consciência lúcida diante daquilo que a nega. Neste
horizonte, diz Germano:
Camus recusa em muitos momentos em O Mito de Sísifo, e em outros lugares de
sua obra, o suicídio como resposta digna perante o absurdo. Ele bem pode ser
considerado legítimo na medida em que esta opção pela morte se consolida em
uma vivência-limite da condição de absurdidade. Todavia, a chave para a dignidade
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humana segundo Camus está nesta confrontação mesma com a absurdidade da
vida. Certa nobreza do homem é recuperada justamente por intermédio da revolta
contra esta ordem injusta a qual se submete docilmente o suicida, escolhendo a
própria aniquilação. (GERMANO, 2012, pgs. 231-232).
Ao recusar a esperança e o suicídio, a consciência lúcida que aceita a condição de
absurdidade sem afirmar um valor único para a vida, mantém-se aberta para a vida no
presente e não no salto da eternidade, o que significa que o presente é a medida da
liberdade: “O absurdo me esclarece o seguinte ponto: não há amanhã. Esta é, a partir de
então, a razão da minha liberdade profunda”. (CAMUS, 2004, p. 70). Em outras palavras,
para Camus, uma das consequências do raciocínio absurdo é a afirmação do presente
cotidiano. Entretanto, não o cotidiano evasivo, mas o cotidiano consciente da condição de
absurdidade: “O retorno à consciência, a evasão para fora do sono cotidiano representam
os primeiros passos da liberdade absurda”. (CAMUS, 2004, p. 70). O raciocínio absurdo
afirma o presente e a liberdade, mas a liberdade sem consolo:
O homem absurdo vislumbra assim um universo ardente e gélido, transparente e
limitado, no qual nada é possível, mas tudo está dado, depois do qual só há o
desmoronamento e o nada. Pode então decidir aceitar a vida em semelhante
universo e dele extrair suas forças, sua recusa à esperança e o testemunho
obstinado de uma vida sem consolo. (CAMUS, 2004, p. 71).
A consciência do absurdo traz como consequência a fuga do “sono cotidiano” e a
manutenção da lucidez, o que leva o raciocínio absurdo a afirmar o presente e certa
indiferença pelo futuro. Não havendo um sentido último para a vida, o futuro é indiferente e
o presente é a única certeza que nos é dada 15. O raciocínio absurdo, ao negar a esperança
14F
do futuro, afirma o presente e a sucessão de presentes, mantendo a lucidez e a consciência,
rejeitando as esquivas do cotidiano, afirmando assim a revolta:
O presente e a sucessão de presentes diante de uma alma permanentemente
consciente, eis o ideal do homem absurdo. Mas a palavra ideal tem aqui um som
falso. Não é sequer sua vocação, é apenas a terceira consequência do seu
raciocínio. Partindo de uma consciência angustiada do inumano, a reflexão sobre o
absurdo retorna, no final de seu percurso, ao próprio seio das chamas apaixonadas
da revolta humana. (CAMUS, 2004, pgs. 74-75).
15 Diz Camus: “Mas o que significa a vida em semelhante universo? Por ora, apenas a indiferença pelo futuro
e a paixão de esgotar tudo o que é dado. A crença no sentido da vida sempre supõe uma escala de valores,
uma escolha, nossas preferências. A crença no absurdo, segundo nossas definições, ensina o contrário”.
(CAMUS, 2004, p. 71).
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A lógica absurda não aceita qualquer subterfúgio de um pensamento que dá o salto
de uma esperança em outro mundo para além do mundo sensível ou em outro mundo ideal
no futuro. O homem absurdo “quer saber se é possível viver sem apelação”. (CAMUS, 2004,
p. 65). Nas consequências do raciocínio da lógica absurda, a manutenção da vida não deve
depender de nenhuma apelação para algum salto de esperança na eternidade e nem de
recusa da vida, mas ao contrário: “Extraio então do absurdo três consequências: que são a
minha revolta, minha liberdade e minha paixão. Com o puro jogo da consciência, transformo
em regra de vida o que era convite à morte – e rejeito o suicídio.” (CAMUS, 2004, p. 75). O
raciocínio absurdo, ao constatar a falta de sentido último da vida, ao invés de entregar-se
à morte, torna-se um convite à vida:
A evidência “sensível ao coração” que serve de premissa axiológica para esta
investigação filosófica revolucionária de Camus é o sentimento do absurdo: seu
objetivo é, a cabo, inibir a iniciativa do suicídio através do estabelecimento de algo
bem mais valioso para o homem do que “razões” de viver. (GERMANO, 2012, p.
221).
Em suma, podemos dizer que Camus, partindo da sensibilidade que evidencia a
nossa condição de absurdidade, ao fazer o raciocínio da lógica absurda, que nos mostra
as contradições entre o nosso desejo de clareza e o silêncio do mundo a partir dos limites
da racionalidade, tira como consequências a manutenção da consciência lúcida frente à
absurdidade, recusando qualquer salto de esperança no futuro, tanto da religiosidade
quanto da racionalidade, ou as esquivas da vida cotidiana, afirmando a vida no presente,
recusando o suicídio e afirmando a revolta. Questiona Camus: “Por que se matar,
abandonar este mundo depois de conquistar a liberdade? É contraditório”. (CAMUS, 2004,
pgs. 122-123). Apesar de equivocadamente muitas vezes ser interpretado como um
apologista do suicídio, percebemos no contexto do livro todo que Camus, ao contrário, o
recusa, assim como faz em outras obras. O raciocínio da lógica absurda, partindo da noção
de absurdo, traz como consequência prática uma postura que transforma o que seria
convite à morte em um convite à afirmação da vida no presente, sem subterfúgios, pois o
raciocínio absurdo exige um pensamento honesto. Estas questões continuam atuais em
nossa época, tendo em vista que o diagnóstico camusiano de sua época de certo modo é
também o diagnóstico do nosso presente, tendo em vista que a questão da falta de sentido
da vida ainda é uma questão presente na nossa época. Neste sentido, vimos que Camus
com uma reflexão refinada sobre a questão do suicídio desvela uma ética da recusa do
SAMPAIO, Leandson Vasconcelos. ALBERT CAMUS E A RECUSA DO SUICÍDIO EM
O MITO DE SÍSIFO. p. 102-121.
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Verão
2020
V.17, N.2.
e-ISSN: 1984-9206
suicídio que é ao mesmo tempo uma recusa da esperança e uma afirmação do presente
como modo de vida em sua filosofia prática. Destarte, a reflexão sobre o absurdo presente
em O Mito de Sísifo é um convite à vida e à ação. “O que foi dito acima define apenas uma
maneira de pensar. Agora, trata-se de viver”. (CAMUS, 2004, p. 76).
REFERÊNCIAS
AMITRANO, Georgia Cristina. Albert Camus: um pensador em tempos sombrios.
Uberlândia, EDUFU, 2014.
CAMUS, Albert. A Inteligência e o Cadafalso e outros ensaios. Tradução de Manuel da
Costa Pinto e Cristina Murachco. Rio de Janeiro: Record, 1998.
_______. O Mito de Sísifo – ensaio sobre o absurdo. Tradução de Ari Roitman e Paulina
Watch. Rio de Janeiro: Record, 2004.
GERMANO, Emanuel Ricardo. A dimensão ética da revolta em Albert Camus: filosofia,
política e arte. Fortaleza: EDUFC, 2012.
GUIMARÃES, Carlos Eduardo. As Dimensões do Homem: Mundo, Absurdo, Revolta.
(Um Ensaio sobre a Filosofia de Albert Camus). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1971.
SARTRE, Jean-Paul. Situações I. Lisboa: Publicações Europa-América, 1968.
SAMPAIO, Leandson Vasconcelos. ALBERT CAMUS E A RECUSA
DO SUICÍDIO EM O MITO DE SÍSIFO. Kalagatos, Fortaleza,
Vol.17, N.2, 2020, p. 102-121.
Recebido: 08/2020
Aprovado: 09/2020
SAMPAIO, Leandson Vasconcelos. ALBERT CAMUS E A RECUSA DO SUICÍDIO EM
O MITO DE SÍSIFO. p. 102-121.
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