EM FOCO
TRANSDRAMATURGIAS NAS
ARTES DO CORPO NO JAPÃO
TRANSDRAMATURGIES IN THE
BODY ARTS OF JAPAN
TRANSDRAMATURGIAS EN LAS
ARTES DEL CUERPO EN JAPÓN
CHRISTINE GREINER
BEATRIZ YUMI AOKI
GREINER, Christine; AOKI, Beatriz Yumi.
Transdramaturgias nas artes do corpo no Japão.
Repertório, Salvador, ano 24, n. 36, p. 14-36, 2021.1
DOI: https://doi.org/10.9771/rr.v1i36.38046
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RESUMO
A última década tem sido marcada por discussões que repensam a noção de dramaturgia a partir do
Palavras-chave:
surgimento de novas tecnologias e debates políticos. No Japão, até os anos 1990, este termo nunca
transdramaturgia;
performance transgênero;
transdimensionalidade;
artes do corpo no Japão.
havia sido amplamente usado, a não ser para obras concebidas por artistas Ocidentais. Entretanto,
isso não significa que não exista uma dramaturgia nas experiências artísticas japonesas. Trata-se
de uma epistemologia distinta para lidar com as relações entre texto e ação e, por isso, pede por
outras abordagens. A proposta deste artigo é testar o termo transdramaturgia, tendo em vista
buscar uma aproximação com alguns dispositivos lógico-afetivos identificados em experiências
de artistas japoneses. Não se trata de impor uma nova classificação, mas sim, de chamar a atenção
para uma lógica trans (não dicotômica), que evidencia como o processo dramatúrgico tem início
antes da organização da cena artística (narrativas e gestos), durante a gênese de um pensar/
sentir corpos e ambientes. Partimos de performances transgênero que desafiam a dicotomia
masculino/feminino desde o Japão medieval; e de experimentos transdimensionais recentes,
que negligenciam dicotomias entre real e ficcional, pessoa e objeto, radicalizando a noção de
criação como insurgência de novos sentidos para a arte. Busca-se, assim, ampliar os debates
sobre dramaturgia contemporânea.
ABSTRACT
The last decade has been marked by discussions that rethink the notion of dramaturgy from
Keywords:
the emergence of new technologies and political debates. In Japan, by the 1990s, this term has
transdramaturgy;
transgender performance;
transdimensionality; body
arts in Japan.
never been widely used, except for works designed by Western artists. However, this does not
mean that there is no dramaturgy in Japanese artistic experiences. It is a distinct epistemology
to deal with the relations between text and action and, therefore, asks for other approaches. The
purpose of this article is to test the term transdramaturgy, in order to seek an approximation with
some logical-affectivedevices identified in experiences of Japanese artists. It is not a question of
imposing a new classification, but rather of drawing attention to a trans (non-dichotomous) logic,
which shows how the dramaturgical process begins before the organization of the artistic scene
(narratives and gestures), during the genesis of a thinking/feeling bodies and environments. We
start from transgender performances that challenge the male/female dichotomy since Medieval
Japan; and from recent transdimensional experiments that neglect dichotomies between real and
fictional, person and object, radicalizing the notion of creation as an insurgency of new meanings
for art. Thus, we seek to broaden the debates on contemporary dramaturgy.
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RESUMEN
La última década ha estado marcada por discusiones que replantan la noción de dramaturgia del
Palabras clave:
surgimiento de nuevas tecnologías y debates políticos. En Japón, hasta los años 1990, este término
transdramaturgia;
performance transgénero;
transdimensionalidad; artes
corporales en Japón.
nunca ha sido ampliamente utilizado, excepto para obras diseñadas por artistas occidentales. Sin
embargo, esto no significa que no haya dramaturgia en las experiencias artísticas japonesas. Es
una epistemología distinta para abordar las relaciones entre el texto y la acción y, por lo tanto,
pide otros enfoques. El propósito de este artículo es probar el término transdramaturgia, con el
fin de buscar una aproximación con algunos dispositivos de afectación lógicaidentificados en
experiencias de artistas japoneses. No se trata de imponer una nueva clasificación, sino más bien
de llamar la atención sobre una lógica trans (no dicotómica), que muestra cómo comienza el proceso
dramatúrgico antes de la organización de la escena artística (narrativas y gestos), durante la génesis
de un pensamiento /sensación de cuerpos y ambientes. Comenzamos a partir de actuaciones
transgénero que desafían la dicotomía masculina/femenina desde el Japón medieval; y de recientes
experimentos transdimensionales que descuidan las dicotomías entre lo real y lo ficticio, persona
y objeto, radicalizando la noción de creación como una insurgencia de nuevos significados para el
arte. Por lo tanto, buscamos ampliar los debates sobre la dramaturgia contemporánea.
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INTRODUÇÃO
havia duas derivações de dramaturgia na Grécia antiga: drama-t-ourgos (a composição do drama) e drama-t-ergon (a ação do drama).
Segundo o dramaturgo e estudioso de cultura grega clássica Paul Monaghan
(2014), na prática, os gregos não se preocupavam muito com essas derivações;
e, como sabemos, com o passar dos séculos, a definição que se tornou referência
no Ocidente foi a de um ofício para elaborar textos teatrais.
Entre as décadas de 1980-1990, os debates sobre dramaturgia da dança – conduzidos inicialmente na Bélgica e depois nos Estados Unidos, na Alemanha e na
Inglaterra1 – ampliaram, significativamente, as possibilidades, reconhecendo uma
dramaturgia que emergia do corpo e do movimento, sem alimentar a primazia
da linguagem verbal. Outro fator que ativou o surgimento de novas concepções
de dramaturgia foi o fortalecimento do campo de estudos da performance, com
debates em torno da noção de performativo proposta por John Austin (1962),
para quem a palavra já era uma ação; e por Judith Butler (2003) que, a partir do
próprio Austin, de Michel Foucault e outros autores, politizou a noção de performatividade ou ação performativa para redimensionar os estudos de gênero, da
violência e da constituição dos sujeitos.
O número 31 da revista
belga Nouvelles de Danse
(1997) foi uma das primeiras publicações relevantes,
trazendo artigos que mudaram radicalmente a visão
de dramaturgia da dança.
Posteriormente, foram organizados outros números
especiais em torno do tema
como On Dramaturgythe labor of the Question. Women
& Performance: a journal of
feminist theory (2003); e On
Dramaturgy. Performance
Research (2009).
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Nos últimos vinte anos, surgiram ainda novas tentativas de ressignificação do
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termo dramaturgia como: modo de olhar (BLEEKER, 2003), dispositivo coreográfico de captura (LEPECKI, 2007), estratégias de um teatro pós-dramático (LEHMANN, 2008), agenciamento (HANSEN; CALLISON, 2015), fisicalidade somática (BOWDITCH; CASAZZA; THORNTON, 2018), estratégia de
tradução (BRANDSTETTER 2017), dramaturgia de novas mídias e materialidades.
(ECKERSALL; GREHAN; SCHEER, 2017)2
É evidente que algumas dessas discussões mais recentes estão sintonizadas
com o que estamos chamando de transdramaturgia a partir do contexto japonês, uma vez que, ao invés de alimentar a lógica dicotômica que separa corpo e
mente, ação e palavra, cena e espectador; tais propostas questionam padrões de
pensamento e classificações dadas a priori, negando assim, alguns dos dogmas
mais estáveis do Ocidente. A diferença é que entre os artistas japoneses não foi
preciso desfazer ou questionar dicotomias, porque estas já não se constituíam
como ponto de partida, diferentemente dos autores marcados pelo cartesianismo
e pelas concepções filosóficas de Aristóteles e Platão.
Antes de seguir com as análises, é importante salientar que o objetivo deste artigo
não é fortalecer diferenças e/ou confrontos entre Oriente (especificamente Japão)
e Ocidente, mas, ao contrário, identificar algumas singularidades nos modos de
pensar e conceber arte e corpo, que destacam a importância do que poderíamos
considerar como um dispositivo transdramatúrgico para lidar, não apenas com a
cena artística, mas também com questões políticas e filosóficas que alimentam o
fazer artístico e que estão relacionadas a tópicos cada vez mais importantes para
o século XXI como, por exemplo, a aliança entre natureza e cultura. Para tanto,
começaremos com alguns dados históricos para localizar a discussão.
Na coletânea The
Routledge Companion to
Dramaturgy (2015) organizada por Magda Romanska,
há ainda uma multiplicidade
de novas definições de
dramaturgia como modos
de colaborar, modos de
comunicar, o dramaturgo
como curador, entre muitas
outras interpretações.
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UMA OUTRA EPISTEMOLOGIA
DO CORPO
Nos teatros tradicionais do Japão – entre os quais destacam-se o nô, o kabuki e o bunraku – o texto nunca foi protagonista. Já nos manifestos
do pioneiro Motokiyo Zeami (1363-1443), as noções de beleza, circunstância e
espacialidade indicavam que a cena nô não partia de uma hierarquia entre texto,
movimento, canto e imagem. A lógica ideogramática do nô, como dizia Haroldo de
Campos (1969), já se instaurava como aquilo que se pode considerar uma lógica
trans, que tudo atravessa e que, para Campos, inspirava processos de transcriação.
O ideograma é um pictograma que nasce na escrita chinesa e fundamenta a escrita
no Japão (kanji), organizando-se a partir da conexão de ideias e imagens. Assim,
um traço pode mudar o significado do caractere remetendo a outra ideia. O único
modo de traduzir esses pictogramas na arte, seria transcriá-los poeticamente.
Na cena nô, há um entrelaçamento entre o palco, o pinheiro pintado ao fundo, o
coro de músicos, os atores em cena (shite e waki), as vestimentas (que segundo
Campos lembravam parangolés uma vez que o sentido vinha do movimento do
corpo), as máscaras, a dança (shimai) e o canto (utai). Em termos de treinamento,
essa lógica de atravessamentos reflete-se no absoluto desinteresse dos japoneses pela separação corpo e mente, teoria e prática, materialidade e imaterialidade.
O conhecimento sempre se constrói a partir do treinamento, tanto no que se diz
respeito ao teatro nô, como à poesia waka ou qualquer outra arte zen. Conhecer
é treinar. Uma ação que também pode ser entendida como cultivar.
Além de Zeami, entre os grandes estudiosos do corpo e, mais especificamente
da questão corpo-mente no Japão, destacam-se Yasuo Yuasa (1987) e Kigen
Dôgen ([1980] apud NAGATOMO, 1992). Em Yuasa (1987), pode-se até reconhecer um dualismo, mas muito distinto do cartesiano porque o dualismo em
Descartes é ontologicamente disjuntivo, admitindo a não interação entre duas
realidades separadas, do corpo e da mente, da matéria (res extensa) e do espírito
(res cogitans). Para Yuasa (1987), há um dualismo epistemológico e provisório que
se refere a noções de interioridade e exterioridade, mas que está o tempo todo
mudando para um não dualismo, através da prática transformativa do autocultivo.
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A transformação, portanto, é um fato empírico que expressa a correlação entre
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corpo e mente e que se realiza através da práxis. O autor identifica quatro circuitos de esquema corporal e o quarto, curiosamente, é chamado de quase-corpo.
Isso significa que, de fato, o corpo é sempre um quase-corpo porque nunca se
apronta, nunca é algo dado, mas está sempre se transformando.
Já em Dôgen (1200-1253), o corpo humano consiste em terra, água, fogo e vento,
o que significa compartilhar os mesmos elementos que constituem a natureza.
Por isso, não está separado da natureza. Não se trata do ser humano e a natureza.
O mundo proposto por Dôgen (1980) é intercorporal e transubjetivo3. A natureza
é cultural e o somático e a consciência encarnada no corpo são a base da objetividade dos dharmas (estados da mente). O ato somático é a transformação da
imagem de um corpo expandindo a afetividade que garante a vida.
A obra de Dôgen a
qual Nagatomo se refere
é Shôbôgenzô. Toquio:
Iwanami shoten, 1980,
volumes 1 e 2.
3
Título original: Lineage
of Eccentrics.
4
Por conta dessas explicações, aqui apresentadas de maneira muito breve, torna-se evidente que a separação entre uma coisa extensa (corpo) e a mente (sem
extensão corpórea), nunca fizeram sentido. Assim, também se torna irrelevante
admitir um organismo biológico não cultural. Se o corpo nunca é dado e pronto,
sempre se constituirá em movimento, nas ações propostas em diversos contextos.
A história das performances transgênero no Japão ampara-se, portanto, nessa
mesma concepção impermanente e fluída de corpo. Inicialmente, confunde-se
com a própria história do teatro japonês do século XVII e aquilo que poderia ser
considerado avant la lettre uma arte queer (em japonês クィア・アート), remonta ao
mesmo período e se estende por todo século XVIII, como a chamada estética da
excentricidade. (BRECHER, 2013) Não se trata apenas de uma certa estranheza,
mas sim, de escapar do centro, geográfico e de poder.
O artista excêntrico seria aquele capaz de inventar espaços para além das categorias dadas. O historiador da arte Tsuji Nobuo publicou um compêndio em 1968
que se tornou uma referência para estudar o tema. A sua Linhagem dos excêntricos4 (2011) buscava entender como este movimento poderia ser observado
como estética singular e fenômeno social.
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Na década de 1920, estas experiências são documentadas midiaticamente e
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reconhecidas como parte do movimento ero-guro-nansensu (erótico, grotesco,
non-sense) que produzirá filmes, publicações e performances como um modo
particular de experimentar a vida. Em termos de artes visuais, a pintura considerada pioneira do ero gurofoi criada dois séculos antes por Katsushika Hokusai considerado, por sua vez, como um dos grandes nomes do excentrismo. A sua obra
Takoto Ama – traduzida não literalmente como “O sonho da esposa do pescador”,
de 1814 – retratava um polvo cheio de tentáculos praticando sexo oral em uma
mulher. Desde então, esta imagem tem instigado a imaginação de muitos artistas,
como foi o caso de Aida Makoto que criou, em 1993, uma obra explicitamente
inspirada pela pintura de Hokusai: The Giant Member Fuji versus King Gidora.
No Japão, a noção de gênero como uma construção em processo sempre reconheceu a materialidade corpórea como algo não substancial, ou seja, não restrita a
carne, ossos, pele e músculos; mas sim, como uma rede sígnica da qual emergem
subjetividades. 5
⁄
UM BREVE PANORAMA DAS
PERFORMANCES TRANSGÊNERO
É provável que a primeira performance transgênero no
Japão tenha acontecido em torno de 1603 em Quioto, quando a dançarina e sacerdotisa Izumo no Okuni concebeu a primeira versão do teatro kabuki (onna no
kabuki ou kabuki de mulheres). Vestida com trajes masculinos, Okuni misturava
referências dos samurais (espadas e penteados) com túnicas de missionários
cristãos. Há pouco material sobre este período com exceção de algumas gravuras e pequenos textos que falam do chamado kabukimono. Este termo era
normalmente traduzido como coisas estranhas, pois referia-se a grupos que se
vestiam e falavam de forma peculiar. Uma das características que os tornava
subversivos era justamente o fato de os homens se travestirem de mulheres e foi
assim que Okuni, inspirada por eles, decidiu se travestir de homem antecipando
Isso não significa,
evidentemente, que as
singularidades de gênero
foram sempre bem-vindas
no Japão. Trata-se de uma
sociedade patriarcal, extremamente disciplinar e com
inúmeros problemas para
enfrentar as situações que
subvertem os padrões de
gênero aceitos socialmente. No entanto, há ambivalências que muitas vezes
escapam aos juízos de valor. Nota-se, por exemplo,
que o termo homossexualidade só chega ao Japão a
partir da era Meiji (18681912) quando o país abre
oficialmente as suas portas
ao Ocidente. Antes disso, a
prática não era nomeada,
o que sugere uma curiosa
irrelevância, a despeito dos
preceitos morais que passaram a imperar a partir do
século XX. (MCLELLAND;
MACKIE, 2015)
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em alguns séculos o que poderia ser considerada uma performance transgê-
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nero. (MILLER; BARDSLEY, 2005)
Mais do que um figurino, é importante notar que o travestimento de Okuni questionava a soberania masculina na vida cotidiana. Parodiar, tanto os samurais quanto
os missionários, implicava em criticar o poder masculino dentro e fora do Japão.
Após ter sido censurada e acusada de prostituição, Okuni e suas dançarinas foram banidas da cena teatral. O kabuki passará por diversas fases e a versão que
ficou internacionalmente conhecida até hoje, trará à cena os atores onnagata
especializados na personificação de mulheres.
É importante notar que, além da maquiagem e dos trajes de gueixa, esses atores
passam por um treinamento longo e rigoroso. Mais do que os adereços é a corporificação do gesto feminino que constitui o ponto crucial da performance. Não há
nenhum tipo de partitura psicológica ou perfil a ser construído. Desde muito jovens, os atores iniciam o treinamento corporal transcriando movimentos, como
por exemplo, os gestos idealizados de mulheres do período Edo ou Tokugawa
(1603-1867). É através desse modo particular de testar uma mimese imaginária, conhecida como monomane (KUSANO, 1993), que se constrói a imagem e o
corpo transgênero.
Outro artifício bastante utilizado é o mitate que seria um sistema de representação
imaginária que opera através de transporte ou metáfora, ou seja, algo que fica no
lugar de outro. Assim, o corpo transgênero do onnagata não é propriamente uma
mulher, nem tampouco um homem representando uma mulher, mas um terceiro,
uma representação imaginária que não é nem um nem outro, mas ambos. A chave está na ambivalência e não na dicotomia, assim como na transdramaturgia
proposta na constituição de um corpo que não é nem masculino, nem feminino,
mas um e outro.6
Como se fosse uma espécie de experiência antípoda ao kabuki, o teatro de revista
Takarazuka estreou em 1914, concebido por Ichizo Kobayashi na cidade com o
mesmo nome, localizada nas proximidades de Osaka. Ao contrário do que ocorria
no kabuki, na companhia Takarazuka eram as mulheres que personificavam os
Há pesquisas curiosas
que relatam o fato de alguns atores onnagata terem
sintomas da menopausa a
partir da meia-idade, uma
vez que viviam as personagens em tempo integral.
Apenas muito recentemente, tornou-se possível
para os atores de kabuki se
casarem e ter família, desde que a vida pessoal para
não contamine o olhar do
público. (LEITER, 2002)
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papéis masculinos (otokoyaku). Vários autores consideram essa experiência o
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primeiro grande sucesso de massa no Japão. Uma experiência teatral e fenômeno
comunicacional que não chega a colaborar de maneira efetiva com as questões
dramatúrgicas, a não ser no que se refere ao seu aspecto mais comercial.7
Se algumas questões de gênero já podiam ser observadas tanto no onnagatacomo no otokoyaku, é nos anos 1980 que emerge uma problematização política
explícita a partir de imagens transgênero na conexão entre artes visuais e performance para pensar a alteridade, a sexualidade e uma série de questionamentos
que vão surgindo nos confrontos e possíveis diálogos entre Oriente e Ocidente.
Trata-se de Yasumasa Morimura. (KHAN, 2007)
A partir de 1988, com Self-portrait as Art History, Morimura criou uma série de autorretratos sobrepostos a pinturas canônicas ocidentais como a Olympia de Manet,
Monalisa de Leonardo da Vinci, entre outras. Em seguida, usou a mesma estratégia
na série Self-portrait as actress e para realizar estes ensaios fotográficos, criou
figurinos, maquiagem, cenários e gestos que compuseram as fotomontagens.
O termo japonês para esta série fotográfica era futago que poderia ser traduzido
como gêmeos, no sentido de mesclar homem e mulher, branco e nãobranco, cópia
e original, obras de arte e mídia. Como o próprio Morimura afirmou em diversas
ocasiões, uma de suas fontes de inspiração foi a obra da artista Cindy Sherman,
especialmente Untitle Film Stills do final dos anos 1970. Morimura foi encontrando
um modo bastante peculiar de criar, como é evidenciado em AnInner Dialogue
with Frida Kahlo (Four Parrots) de 2001. Não se trata apenas de imitar a postura de
Kahlo com seus adereços, mas de testar aquilo que no âmbito da performance será
formulado como um reenactement, do modo como Rebecca Schneider (2011) tem
discutido. É como se a imagem/pensamento/movimento do outro fosse internalizada provocando um devir outro ou o ser tomado pela diferença para se reconstituir.
De certa forma, essa estratégia não é absolutamente distinta do monomane do
kabuki que, ao partir da mimese imaginária, não se restringia à cópia de um modelo. O internalizar do sistema imaginativo idealizado de feminilidade acionava um
devir-feminino e uma transdramaturgia entre corpo e imagem, homem e mulher,
imagem e movimento.
A estrutura desta companhia era absolutamente
patriarcal, criada pelo empresário Ichizô Kobayashi,
defendendo nas peças o
lema confucionista adotado
no Japão de “mães sábias,
boas esposas”. O único
aspecto que colabora com
as discussões de gênero no
Japão é a figura ficcional de
personagens que conferem uma feminilidade aos
papéis masculinos e que
agradará particularmente
ao público feminino, instaurando uma certa ambiguidade. (ROBERTSON, 1998)
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Desde os anos 1980, foram surgindo, pouco a pouco, mudanças políticas relativas
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às questões de gênero no Japão. Um dos grupos artísticos mais ativistas desta
época foi a companhia Dumb Type, criada em 1984 por estudantes da Universidade
de Quioto. O diretor Teiji Furuhashi morreu de AIDS em 1995 e, durante os dez anos
em que esteve à frente do grupo, fez questão de problematizar de maneira bastante incisiva as relações de poder existentes na cultura japonesa. As suas obras
pH e S/N, respectivamente de 1990 e 1994, trouxeram questões importantes em
um momento em que os debates sexuais, o tema do capitalismo e a mercantilização do corpo não eram ainda explicitadas. (HATANAKA;TAKADA; SHIBA, 2002)
Uma experiência mais recente que, de certa forma, repropõe algumas discussões
em torno da performancetransgênero é o solo About Kazuo Ohno do coreógrafo
Takao Kawaguchi, que começou a ser concebido em 2013, tendo sido apresentado em diversos países desde então, inclusive no Brasil, no Sesc Campinas,
em 2018. Kazuo Ohno (1906-2010) apresentou três solos dirigidos pelo criador
do butô Tatsumi Hijikata (1928-1986), respectivamente em 1977, Admiringla
Argentina (Admirando la Argentina), em 1981 My Mother (Minha Mãe) e, em 1985
Dead Sea (Mar Morto). Em todos estes trabalhos, havia uma lógica trans – um
devir la Argentina, devir mãe – e um transitar entre mundos distintos – mundo
dos vivos, mundo dos mortos.
Ao iniciar o processo de criação testando estratégias de monomane e mitate
em relação aos movimentos e imagens de Ohno, a partir de filmes e fotografias;
Kawaguchi propôs eliminar de seus estudos todo tipo de especulação sentimental e/ou transcendental que costuma pairar em torno deste grande mestre.
Optou por focar especificamente na constituição dos movimentos e imagens
do corpo de homem transcriado em corpo de mulher e recapturado novamente
por um corpo de homem, desta vez bem menos franzino e frágil. A sua principal
questão foi como acionar o processo de reenactment a partir da defasagem
radical de si mesmo.8
Kawaguchi dançou
com o grupo DumbType
de 1996 a 2008, vivenciando a efervescência
do ativismo presente nas
performances do grupo.
Este foi também o momento
do nascimento das festas
drag com o sloganDiamonds
are forever. (MCALLISTER,
2017) Um pouco antes, em
1994, a X Conferência sobre
AIDS de Yokohama, reuniu
ativistas que lutavam pela
diversidade de gêneros e
direitos iguais para todas
as pessoas. Na ocasião,
criaram uma frase que seria
o acrônimo de AIDS “And I
Dance with Somebody”, com
uma tradução livre de “E eu
danço com alguém”.
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A PERFORMANCE NOS
DEBATES POLÍTICOS
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No Ocidente, os estudos de gênero foram marcados pelos
livros de Simone de Beauvoir O segundo sexo (2008) e de Judith Butler Problemas
de gênero: feminismo e a subversão da Identidade (2003) e, mais recentemente,
pelo Manifesto contrassexual: práticas subversivas de identidade (2000) de Paul
B. Preciado, entre muitos outros nomes fundamentais que, com a proliferação
dos programas e centros de estudos de gênero nas universidades, congressos
e seminários, fortaleceram os debates.
Na Ásia, a indiana Gayatri C. Spivak foi uma das pioneiras publicando o ensaio
Pode o subalterno falar? Especulações sobre o sacrifício das viúvas (1985). Pouco
depois, a vietnamita Trinh T. Minh-ha lança Woman, Native, Other. Writing post
coloniality and feminism (1989). As duas foram, de certa forma, referências iniciais
para os debates de gênero e política na Ásia. No Japão, embora o feminismo e
as lutas políticas existissem desde 1870 até as décadas de 1920 e 30 – quando
a grande questão era o sufrágio. O fortalecimento dos debates e publicações
ocorre apenas a partir de 1970. A exceção foi a revista Seitō cujo nome havia sido
inspirado pela sociedade inglesa Bluestocking. (LÉVY, 2012)9
Na geração pós 1970, um dos nomes mais importantes do ativismo de gênero
no Japão é o de Kazuko Takemura que, além de traduzir Spivak, Butler e Trinh T.
Minh-ha, reuniu pesquisadoras e ativistas japonesas. (SHIGEMATSU, 2012)
Simultaneamente aos debates teóricos e à construção desse campo de pesquisa, muitos grupos de mulheres começaram a se organizar como foi o caso das
Tatakau Onnatachi (Mulheres que lutam ou Mulheres Lutadoras). Elas faziam
parte do movimento de libertação e assumiam a insatisfação diante da posição
dos homens da chamada nova esquerda. Ao que tudo indicava, lutar por melhores
condições de trabalho não incluía a luta das mulheres que continuavam ocupando
uma posição de subserviência e invisibilidade. (MC CARTHY, 2010)
Publicada a partir de
1910, essa revista trazia
inúmeros debates sobre
sexualidade, prostituição,
aborto e direitos humanos.
As jornalistas que compunham a redação questionavam a máxima confucionista patriarcal das “boas
mães, sábias mães” que
ainda imperava no Japão.
A editora Raichō Hiratsuka
foi considerada uma das
pioneiras do ativismo feminino no Japão, em seguida,
substituída pela anarquista
NoeItō, que ocupou o cargo
de editora radicalizando a
posição da revista e acabou
sendo brutalmente assassinada aos 28 anos, ao lado
do companheiro e de um
sobrinho. (HANE, 1982)
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Não cabe aqui esmiuçar os movimentos feministas e as lutas que ocorreram
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desde então. No entanto, é importante notar que as artistas mulheres passaram
a estar cada vez mais presentes em cena, não apenas como atrizes e dançarinas,
mas como coreógrafas, diretoras e performers ativistas. Grupos como Yubiwa
Hotel, Nibroll e Cathy instauraram mudanças na cena contemporânea japonesa
e discussões políticas para pensar o corpo feminino, as relações de poder e as
mudanças radicais na chamada cultura girly ou cultura das garotas. (ANAN, 2016)
Há uma bibliografia considerável sobre esse ativismo feminino nas artes do corpo,
mas ainda pouco se fala sobre como a performancetransgênero colaborou com
esses debates, destacando as identidades em processo como parte da própria
concepção de corpo e sexualidade no Japão; e fortalecendo as transdramaturgias.
O cotidiano no Japão é recheado de códigos de conduta moralistas em ambientes corporativos e institucionais, pautados por padrões aceitos socialmente. Ao
mesmo tempo, a moda urbana, a cultura pop (música, games etc.) e a multiplicidade de cenas artísticas lidam com a transgeneridade de maneira pouco convencional aos olhos ocidentais. Neste sentido, parece insuficiente usar apenas
os autores europeus e americanos para analisar as performances transgênero
no Japão. É necessário testar outras epistemologias locais bem como provenientes daquilo que se constitui fora do mundo não ocidental (ou seja, centro
Europa e América do Norte).10
Talvez a transdramaturgia seja, justamente, uma estratégia epistemológica para
lidar com as culturas cujo paradigma de concepção inicial do corpo não é cartesiano e, portanto, não separa corpo e mente, natureza e cultura. A negação da
representação nunca se colocou como uma questão nestes contextos, nos quais
a potência política das performances não está em representar o outro, mas em
desestabilizar a si mesmo a partir da internalização da outridade.
10 Há uma entrevista
realizada com Michel
Foucault pelo diretor de
teatro Shūji Terayama, “O
Saber como Crime”, incluída
no volume VII dos Ditos e
Escritos de Foucault. Ver:
Motta (2011). Nela, Foucault
discorda veementemente de Terayama quando
este afirma que a história
é teatro. O argumento
de Foucault é que não
existem espectadores para
a história. A dificuldade de
Terayama para compreender o seu argumento é que
na sua prática teatral não
havia espectadores, todos
de certa forma participavam e seguiam fabulando
os acontecimentos em suas
imaginações.
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CORPOS TRANSDIMENSIONAIS
Outro exemplo no contexto das artes do corpo no Japão
que lida com o que estamos chamando de transdramaturgias é o das chamadas
transdimensionalidades que emergem com o surgimento de novas tecnologias,
relacionadas à robótica, ao surgimento das vocalóides e hologramas. Antes de
falar especificamente das experiências artísticas é importante compreender o
contexto no qual foram geradas.
No cenário japonês, entende-se que o interesse pelos robôs surge por volta do
século XVII com os karakuriningyō. Em linhas gerais, Karakuri teria como significado “mecanismo” ou “truque”, fazendo referência a um instrumento feito com
o intuito de enganar, iludir ou surpreender uma pessoa.
A palavra ningyō (人形)significa boneco, fantoche, sendo composta pelos ideogramas de pessoa (人) e forma (形) (em tradução literal, se referiria a algo com
a forma de uma pessoa).
Feitos de madeira, os bonecos são desenvolvidos artesanalmente por mestres
karakuri, produzidos com a finalidade de entretenimento. A movimentação parte de seu mecanismo interno com dispositivos mecânicos como molas, água e
areia; por cordas e pedaços de madeira, como as marionetes; ou, ainda, de forma
autômata (e, assim, independente da manipulação humana, quando acionado),
utilizando-se do mecanismo similar ao de um relógio.
Para Suzuki (2007 apud SONE, 2017, p. 8, grifo do autor), os karakuriningyō incorporariam uma
[...] dramaturgia do falível como estratégia de entretenimento: por
exemplo, como um autômato na forma de um arqueiro que falha
em atingir um alvo com sua flecha estabelece um sentimento de
empatia em relação ao ‘artista’ karakuri.
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A tradição dos autômatos lúdicos permaneceu na cultura japonesa até o início do
século XX, acompanhando o desenvolvimento de novas tecnologias.
Em 1928, o biólogo japonês Makoto Nishimura criou Gakutensoku, uma versão de
um autômato moderno – considerado o primeiro robô japonês –, apresentando-o
na exposição em celebração à posse do trono do imperador Hirohito. A criação consistia em um tronco equivalente ao humano, que ficava disposto sobre um altar de
quase dois metros de altura. O Gakutensoku, por meio de um sistema pneumático,
conseguia movimentar o rosto, olhos e braço, e apresentava expressões e gestos
suaves, atraindo visitantes por meio de uma atmosfera teatral e similar a um templo.
Sone (2017) destaca a importância de analisar a popularidade dos karakuriningyō
e do Gakutensoku no contexto japonês, ressaltando a diferença de entendimento
entre o Japão e o Ocidente em relação aos robôs. Para o autor, “no Ocidente, a
ideia de um autômato era de recriar o ser humano a partir de matéria ‘burra’, enquanto a visão japonesa é de que os humanos já são parte de uma natureza viva,
e que então o robô seria parte da natureza”. (SONE, 2017, p. 9) De acordo com
Greiner (2015), desde as concepções mais antigas de corpo no Japão, originadas
da Índia e da China, duas das noções primordiais seriam essa aliança entre natureza e cultura e a continuidade entre sujeito e objeto. Na sociedade japonesa,
Sone (2017, p. 89) relaciona também a afinidade com os robôs à visão de mundo
voltada ao animismo, que vê os espíritos encarnados na natureza, e à influência de
doutrinas religiosas e filosóficas como o budismo e o taoísmo. Ele afirma, ainda,
que os robôs ocupam um lugar especial dentro do imaginário japonês, que foge
de dicotomias: “[...] não é nem humano, nem objeto”.
O autor considera os robôs “objetos performativos” (SONE, 2017), destacando
um entendimento diferente do que foi desenvolvido por Butler, por exemplo.
Para Sone (2017, p. 14), a discussão dos robôs refere-se a uma “[...] capacidade
generativa e significante, e não a um potencial subversivo”. Nesse sentido, observa como a performatividade dos eventos protagonizados por robôs japoneses
(como exposições, instalações públicas, competições e interações em espaços
domésticos) “[...] tem a capacidade de implicar os participantes na geração de
significado por meio de sua performance em situação ou evento de palco culturalmente específico”. (SONE, 2017, p. 14)
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Sone (2017) analisa também a figura do robô dentro de expressões artísticas,
como as peças de teatro do dramaturgo e diretor Oriza Hirata produzidas com
androides criados pelo roboticista Hiroshi Ishiguro. A parceria rendeu produções
como I, Worker (働く私) (2008), Sayonara (2010), Three Sisters, Android Version
(2013) e Metamophosis, Android Version (2014), tendo como temática a coexistência de humanos e robôs, e a possibilidade de criar laços afetivos entre eles.
Em I, Worker, a história aborda a crise existencial de um robô que se exila, tornando-se um hikikomori, um fenômeno social japonês em que as pessoas ficam
reclusas em suas próprias casas. Na peça Sayonara, a personagem principal tem
uma doença fatal, e seus pais deixam-na com um robô de companhia. Three
Sisters, Android Version é uma adaptação da peça de Anton Chekhov (1990) e
traz três irmãs que têm em sua família dois robôs – um deles em substituição
à irmã mais nova, e utilizado como avatar por ela. Inspirado no texto de Kafka,
Metamorphosis, Android Version foi interpretada por atores franceses, em francês, e o personagem principal, Gregor Samsa, transformava-se em androide, ao
invés de inseto, como na versão original.
De forma geral, as narrativas mostram um futuro próximo no qual os robôs estão
inseridos na vida cotidiana, e retratam questões sociais do Japão contemporâneo, como o isolamento, a solidão e a apatia, por meio do relacionamento entre
humanos e seus robôs de companhia – revelando, assim, “[...] as complexidades
e angústias da existência humana”. (SONE, 2017, p. 92) De outra perspectiva,
para Ishiguro, o ponto principal das peças não seria as temáticas de vida e morte,
mas “[...] um campo de teste em sua busca para fazer robôs mais parecidos com
humanos”. (ECKERSALL; GREHAN; SCHEER, 2017, p. 118)
Além do projeto colaborativo com Hirata, Ishiguro tem desenvolvido trabalhos
com seus robôs em diferentes frentes. Em 2009, ele se apresentou junto a seu
gêmeo-robô, o Geminoid HI-1, no Ars Eletronica, festival internacional de artes
midiáticas. No final da apresentação, o robô simulou sua morte por meio de efeitos
na voz e respiração. (SONE, 2017)
Nesse sentido, há projetos como o Digital Shaman Project, da artista japonesa
Etsuko Ichihara, que propõe uma nova forma de luto por meio das tecnologias
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disponíveis. Por meio de robôs vestindo máscaras impressas em 3D, equipados
com programas que imitam características físicas humanas – fala, gestos, personalidade –, a artista representava pessoas já falecidas, como se os robôs estivessem possuídos por seus espíritos. O programa funciona por 49 dias após a morte
de determinado indivíduo – período tradicional de luto de acordo com o budismo
–, permitindo que a família ou pessoas próximas possam ter conversas e usar o
tempo para se despedir. No 49º dia, o robô se despede e o programa é encerrado.
Partindo de reflexões sobre a morte – seja de humanos, robôs ou hologramas, a
ópera em holograma The End, protagonizada pela cantora virtual Hatsune Miku e
produzida em colaboração entre o músico Keiichiro Shibuya, o diretor e roteirista
Toshiki Okada e o ilustrador YKBX, trazia como pontos centrais o significado da
morte e o paradoxo da existência da cantora.
Hatsune Miku (初音ミク), ou “o primeiro som do futuro”, em tradução livre, é uma
personagem criada para um software de sintetização de voz chamado Vocaloid,
que permite que o usuário insira letras de músicas e adicione notas musicais e
efeitos vocais, para que o próprio sistema construa uma canção. Em 2009, ela
realizou seu primeiro show ao vivo para um público de 25 mil pessoas no festival
Animelo Summer Live, realizado na cidade de Saitama, no Japão. O que diferencia
Miku de outras celebridades japonesas é o fato de que ela não é uma pessoa,
mas uma imagem, um holograma, um ídolo virtual. Miku se apresenta por meio de
shows holográficos, tendo realizado turnês pela Ásia, América do Norte e Europa.
Outras performances incluem a participação em concertos com a NHK Symphony
Orchestra e a Tokyo Philharmonic Orchestra, o projeto multimídia Still Be Here,
concebido pela musicista e compositora Laurel Halo, em parceria com outros
quatro artistas. Apresentado pela primeira vez em Berlim, na Alemanha, o espetáculo passou também por Áustria e Inglaterra, tendo como temática a desconstrução de um pop star no século XXI, em questões de gênero, fãs, desejo
e identidade. Ainda, em 2017, HatsuneMiku fez uma apresentação especial com
o grupo de taikô Kodō.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
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O modo como as transdramaturgias instauram agenciamentos entre as esferas do animado e do inanimado é marcado por uma desierarquização radical, ou seja, o ser humano não é necessariamente mais importante do
que todos os outros seres e objetos. O que se chama de transdimensionalidade
no Japão, refere-se, justamente, à possibilidade de trocas e relacionamentos
(inclusive afetivos) entre pessoas e hologramas, pessoas e robôs, pessoas e
personagens. Admite-se um atravessamento entre realidades supostamente
pertencentes a diferentes dimensões.11
No Japão, essas experiências não emergem apenas dos debates instaurados
pelas novas tecnologias, mas remetem aos teatros de bonecos, entre os quais, o
bunraku é um dos gêneros mais conhecidos desde o século XVII. Nos teatros de
bonecos já não havia um protagonismo dos seres humanos, mas uma indistinção
entre os movimentos dos corpos dos manipuladores e dos bonecos. No que diz
respeito ao transdimensional pode-se pensar também no modo como o teatro nô
admitia o relacionamento entre pessoas e fantasmas, sem nenhuma dificuldade.12
A partir da crise instaurada pela Covid-19, as experiências artísticas que lidam
com as transdramaturgias e a investigação de novas materialidades tornou-se
mais intensa. Artistas da cena contemporânea japonesa como o diretor de teatro Toshiki Okada e a artista da dança Satoko Ichihara têm proposto ações que
lidam com o ambiente digital não apenas como uma mídia para transmissão das
mesmas experiências realizadas anteriormente de maneira presencial, mas de
modo a agenciar novas concepções de corpo, arte e comunicação com o público.
No caso de Okada, ele partiu de sua obra Eraser Mountain, inspirada pela obra de
Timothy Morton (2008) e repensou a proposta desta peça para uma versão na
No Japão, há casamentos entre pessoas e hologramas de personagens
de animês, por exemplo.
Em 2009 foi realizada a
primeira cerimônia de casamento informal entre um
homem e uma personagem
de videogame e, em 2017, a
desenvolvedora de jogos
Hibiki Works ofereceu ao
público japonês a realização de uma cerimônia de
casamento em realidade
virtual com personagens de
um jogo. No final de 2018,
o japonês Akihiko Kondo
realizou a cerimônia de
seu casamento com a ídolo
virtual Hatsune Miku.
11
12 O cineasta Kenji
Mizoguchi apresentou
de maneira brilhante a
continuidade entre imagens
da vida cotidiana e seus
fantasmas no filme Contos
da Lua Vaga (1953), em uma
das suas famosas sequencias sem cortes, quando
apresenta uma personagem sedutora caracterizada
como atriz de nô.
plataforma ZOOM chamando-a de Eraser Fields.13 Em colaboração com o artista
13 A estreia está dis-
visual Teppei Kaneuji, a proposta foi indagar como estabelecer uma paisagem
https://www.youtube.
com/watch?v=NF96_
kZeU1c&t=1224s.
Ver também: https://
www.youtube.com/
watch?v=FiJdIHUMjeQ.
igualitária incluindo materiais, projeções, performers e sons. Tudo começa quando
uma máquina de lavar quebra e parece não ter mais nenhuma utilidade. Os performers desaparecem entre os objetos. Privados das suas conexões com a vida
ponível no YouTube. Ver:
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cotidiana, tudo é revirado e mesmo as noções de espaço e tempo não são mais
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concebidas pela perspectiva humana.
Essa pesquisa de Okada com Kaneuiji gerou também o chamado Eizo Theater,
que abriga o projeto Beach, Eyelids, and Curtains, composto por seis vídeos-peças
desenvolvidas com o designer de vídeo Shimpei Yamada. A proposta foi explorar
a experiência sensória, a partir do que acontece ao se lidar com o formato de
projeção de imagens. Okada imaginou pistas para refletir sobre as conotações
de fronteiras, linhas e paredes.14
Quanto à Satoko Ichihara, o seu foco de pesquisa é pensar como fugir dos padrões e das concepções pré-estabelecidas. Logo no início da pandemia, decidiu
recriar a sua obra The Problem of Faeries (2017)15 para uma performance veiculada também no ZOOM, ao vivo. Ela seguiu o texto pré-existente, mas ao invés
de apresentar um solo como na versão original, propôs uma colaboração com
várias atrizes, cada qual participando em suas respectivas próprias casas. Ichihara
problematiza a questão da eugenia e a escolha deliberada e autoritária de que
alguns devem morrer em detrimento de outros que seguem os padrões sociais
aceitáveis de beleza e saúde. Essa obra é organizada em três partes, a primeira
seguindo o modelo rakugo (estilo de contar histórias), a segunda como musical
14 Os seis vídeos tive-
ram os roteiros escritos
e dirigidos por Okada,
com a participação dos
performers Izumi Aoyagi,
Mari Ando, Shingo Ota,
Wataru Ohmura, Mariko
Kawasaki, Yo Yoshida, Yuya
Tsukahara. São eles: A
Man on the Door, The Fiction
Over the Curtains, A Woman
Reading a Script in the
Dressing Room, The Fourth
Wall, Portrait of 3 People
Who Seem Like They’re Not
Hard Workers e Standing on
the Stage.
15 Versão presencial
que fala sobre um casal pobre que vive rodeado de insetos e um dia usa um in-
da obra disponível no
YouTube. Ver: https://
seticida, descobrindo que alguns insetos “deficientes” eram imunes ao produto.
www.youtube.com/
watch?v=svjSi3xsa80.
E, finalmente, a terceira parte tem o formato de um seminário sobre uma bactéria
que vive na flora vaginal das mulheres, o que levou a performer a pensar no valor
da vida humana a partir do momento em que se aceita a presença das bactérias
como parte da vida.
Concluímos, a partir dessas experiências que, a despeito das singularidades das
propostas transdramatúrgicas dos artistas mencionados, o ponto comum é uma
concepção fluída de corpo que se afirma nas discussões de gênero como pontuamos lembrando as estratégias ou dispositivos transdramatúrgicos desde o teatro
kabuki, entre os quais destaca-se o monomane e o mitate; até as experiências
mais recentes transdimensionais que se constituem no fluxo entre humanos e
não humanos, realidades e ficções, reafirmando uma concepção não substantiva
e, portanto, não cartesiana de corpos e sujeitos.
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O que a transdramaturgia ou os dispositivos transdramatúrgicos fazem é explicitar
processos político-afetivos que têm início antes da concepção da cena artística,
propriamente dita, nos modos como se dá a emergência de subjetividades no
⁄
fluxo entre corpos e ambientes, individualidades e coletivos.
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REPERT.
VON AUE, M. Tokyo men married videogame characters in VR. VOCATIV, [s. l.], 6 jul. 2017.
Disponível em: http://www.vocativ.com/439438/tokyo-japan-vr-wedding-hibiki-works/index.
html. Acesso em: 10 jul. 2020.
YUASA, Y. The Body, toward an Eastern Mind-Body Theory. New York: Suny Books, 1987.
CHRISTINE GREINER: é professora livre-docente do Departamento de Arte da PUC-SP e autora de diversos livros
sobre corpo, cultura japonesa, filosofia política e arte.
BEATRIZ YUMI AOKI: é doutoranda e Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, bolsista Capes PROSUP.
Salvador,
ano 24, n. 36,
p. 14-36,
2021.1