Obediência e Liberdade
Emanuel Dimas de Melo Pimenta
2021
para Irene Buarque
Se liberdade significa alguma coisa, significa o direito de dizer às pessoas aquilo elas não
querem ouvir.
George Orwell
As pessoas não podem estar todas, e sempre, bem informadas. A parte que está errada
ficará descontente, na proporção da importância dos fatos que ela interpretou
erroneamente. Se as pessoas permanecerem quietas sob tais equívocos, é a letargia, o
elemento precursor da morte da liberdade pública. (,,,) Que país já existiu um século e
meio sem uma rebelião? E que país pode preservar suas liberdades se os seus
governantes não são advertidos de vez em quando de que o seu povo preserva o espírito
de resistência?
Thomas Jefferson, carta a William Smith, 1783
Por vezes, perguntamo-nos o quê une dois amigos - particularmente
quando pertencem a campos profissionais muito diferentes. Pois tudo aquilo
que fazemos é o quê, de alguma forma, professamos.
De forma muito reveladora, as palavras profissão e professar lançam
as suas antigas raízes etimológicas Indo-Europeias em *per e *bha - que
indicavam, respectivamente, as ideias de "lançar para a frente" e "fala",
"comunicação". Assim, o profundo sentido etimológico da palavra profissão é
"lançar para a frente uma palavra", uma ideia.
Ainda que a amizade aconteça independentemente daquilo que
professamos, do quê fazemos, deve sempre haver algo em comum entre
dois amigos.
Tal elo de ligação pode estar presente na família, em antigos amigos
comuns, em prazeres partilhados, em grupos de interesse, mas as relações
mais profundas e duradouras, as verdadeiras relações de amizade,
pertencem sempre a algo que estará para além de tudo isso, algo mais
profundo - algo que, em algum sentido, realiza-se enquanto princípio comum
de duas pessoas face às relações humanas.
Mas, perguntamo-nos: o quê é esse algo misterioso?
O nosso desafio começa com outra questão, de natureza negativa: o
quê nos afasta de algumas pessoas, o quê nelas provoca em nós um sentido
de repulsa, com variados graus de intensidade?
Freud nos iluminava essa questão com uma observação certeira:
aquilo que não gostamos no Outro é aquilo contra o quê combatemos dentro
de nós próprios. As palavras não são dele, mas a ideia fundamental é essa.
Se invertermos essa ideia, como um espelho, teremos a figura do
narciso. Então, retomamos a questão anterior: o que é esse elo misterioso
que nos une a outras pessoas na forma da amizade? Qual é esse elemento
oculto nas profundezas da nossa alma que, como um espelho, encontramos
naqueles que gostamos?
Sendo de natureza mais ou menos agregadora, esse elo profundo,
imagem do mais íntimo de nós próprios, apenas pode estar na natureza das
relações humanas, algo relacionado a como cada um de nós aborda o
humano que somos.
Assim, trata-se de algo independente de religiões, ideologias,
profissões ou de qualquer outro conjunto de ideias, crenças ou cultos. Há
pessoas que pertencem a uma mesma religião, por exemplo, mas que têm
forte aversão a alguns dos seus pares - assim como há grandes amigos que
cultivam diferentes religiões e assim por diante.
Portanto, pertencente ao universo das relações humanas, esse elo
profundo se manifesta como uma ideia geral, uma relação de qualidade,
"fora" da razão embora também pertencente a ela. Indicativo de um universo
de ações, mas inexplicável - uma qualia.
Sendo uma qualidade, trata-se ainda, em última instância, de um
"princípio", de uma postura partilhada diante do Outro.
Embora alguns possam estranhar uma qualidade também poder ser
um "princípio" - trata-se de um fenômeno iluminado pelo método lógico de
Charles Sanders Peirce.
Pode-se ainda pensar se tratar de uma "confusão" misturando
diferentes categorias de pensamento, tais como qualidade, princípios ou
identidade. Mas, estão todos enfeixados nesse signo que nos revela a
amizade.
Aqui, esse elo para o qual não há explicação possível, mas que
pertence ao universo concreto das relações humanas, é um ícone de um
índice, uma primeiridade de uma secundidade ou um sinsigno. Classificação
diferente da estética, que é o símbolo de um ícone, terceiridade de uma
primeiridade, ou um legisigno.
Se não suportamos aquele que é rude, grosseiro, é porque tal pessoa
afeta a identidade do Outro, e lutamos dentro de nós pela preservação do
princípio da identidade; se temos aversão a quem fala demasiado, é porque
a questão do tempo nos é muito importante; se a ignorância nos irrita, é
porque o conhecimento nos é algo precioso pelo qual trabalhamos
continuamente, e assim poderíamos continuar com inúmeros exemplos.
Por outro lado, quando alguém nos encanta, isso não acontece pelas
suas ideias, profissão ou crenças, mas pelo estabelecimento de uma
identidade. Muitas vezes, encantamo-nos com alguém que tem ideias
diferentes das nossas, e esse fato não nos incomoda.
Quando tal acontece, surge uma profunda amizade.
Esse inexplicável elo acontece, portanto, intimamente associado a
relações concretas, de natureza indicial; isto é, trata-se de algo que
desencadeia um processo de relações.
A amizade também pode aparentar lançar suas raízes numa profunda
admiração, como nos indica a análise transacional de Eric Berne, que viveu
entre 1910 e 1970. Mas a análise transacional nos mostra um cenário feito
de elementos potencialmente antagonistas nas relações humanas, com uma
única exceção de igualdade, revelando antes a forma das pessoas
abordarem seus pares e não propriamente o elo que as une. Essa forma - de
superioridade, inferioridade ou igualdade - pode mudar, independentemente
daquela dimensão oculta das relações humanas.
Quando a relação de amizade acontece entre iguais, ainda que
pertencentes a mundos muito diferentes, aquele misterioso elo de qualidade
emerge de forma ainda mais reveladora.
Essa partilha na diversidade nos desvenda ainda uma condição de
espécie de simbiose mental.
Ernesto de Sousa era um encantador vulcão de ideias e de ações, um
ser profundamente não-verbal, dedicado à comunicação humana, nas suas
mais avassaladoras implicações. Era um verdadeiro animador de mentes.
Sua vida podia ser compreendida como dedicada ao pensamento.
Jorge Peixinho era um músico clássico, contemporâneo, grande
pianista, virtuose, quieto, introspectivo, daqueles personagens que se
submetem, ao longo de toda a vida, sem pausas, à rigorosa disciplina dos
estudos diários.
Eram, portanto, pessoas muito diferentes.
Mas, tratava-se de uma relação entre iguais.
Havia entre eles esse enigmático magnetismo, esse elo invisível, que
caracteriza os grandes amigos, independentemente da raça, da idade, da
profissão, da religião ou da ideologia.
Uma das pistas para compreendermos a natureza do elo que os unia
era um profundo sentido de amor - à vida, às pessoas, à Humanidade, ao
futuro. Um amor que desenhou os Renascimentos Italiano e Português e que
se manifestava num inesgotável entusiasmo.
Pois, curiosamente, muito da natureza daquele misterioso magnetismo
pode ser detectado nas mais remotas origens Indo-Europeias, ainda préhistóricas, da palavra "amigo".
Essa remota origem Indo-Europeia é *kam, onde o radical *K indicando a ideia de movimento cósmico, profundamente envolvente desapareceu, restando am, que passou ao Latim amare.
Por essa via, as palavras "amor" e "amizade" têm na sua essência a
ideia de uma ligação cósmica, de algo profundamente envolvente.
Obviamente, as nossas relações de amizade não podem ser resumidas
a um único ponto de ligação, nem mesmo a um pequeno conjunto de
ligações - tratamos, antes, de uma constelação de elementos. Ainda assim,
serão elementos que giram em torno de um polo atrator.
É sobre esse polo que refletimos.
Conheci o Ernesto de Sousa rapidamente, como um relâmpago, mas
de forma muito intensa. Curiosamente, foi um conhecer que se projetou
insistentemente ao longo dos anos. Fui o conhecendo, gradualmente, mais e
mais, como se se tratasse de um pulsar.
Por outro lado, o Jorge Peixinho foi quase um irmão para mim ao longo
de muitos anos.
Eram pessoas muito diferentes, com profissões igualmente diferentes e foram grandes amigos.
Hoje, com a necessária distância dos anos, identifico o elo que os unia
numa única palavra: liberdade.
A ideia de liberdade pode nos parecer, à primeira vista, algo concreto,
bem determinado e não aquela enigmática relação de qualidade, algo que
nos diz respeito a todos no dia a dia, jamais aquela ideia "profundamente
envolvente" e inexplicável.
Mas neste nosso caso não se trata, todavia, da liberdade mística, tal
como quando ensinava o genial Meister Eckhart, que viveu entre 1260 e
1328, quando dizia: “A espiritualidade não deve ser aprendida fugindo do
mundo, ou fugindo das coisas, ou se tornando solitário e se afastando do
mundo. Em vez disso, devemos aprender uma solidão interior onde quer ou
com quem estejamos. Devemos aprender a penetrar nas coisas e nelas
encontrar Deus".
Também não se trata da liberdade identificada na física ou na
matemática, como quando Isaac Newton atribui diferentes graus de liberdade
a um corpo físico, a um objeto - tal como um automóvel possuir quatro graus
de liberdade física, podendo se deslocar para a frente, para trás ou para os
lados, mas nunca para cima ou para baixo, ou como um elevador, que possui
apenas dois graus de liberdade, por exemplo.
Ou como acontece com equações matemáticas com múltiplas
variáveis, dimensões que são também conhecidas como "graus de liberdade"
da variedade algébrica. Introduzida por Ronald Fisher em 1922, a
expressão "graus de liberdade" seria definida pelo matemático Steven
Schwartzman no final do século XX como sendo algo que se refere "ao
número de variáveis independentes envolvidas numa estatística".
Aqui, todavia, a questão da liberdade gira em torno das relações
humanas, interpessoais.
Mesmo quando fazendo referência exclusivamente às relações
interpessoais, muitas pessoas falam de liberdade com um notável nível de
imprecisão.
Enquanto que para alguns "liberdade" é compreendida como sendo
algo determinado pelo cosmos e por Deus, mesmo quando tratamos do
mundo concreto, há quem acredite firmemente no livre arbítrio e também há
quem respire permanentemente a crença num determinismo absoluto, no
destino, como acontece no universo Islâmico, por exemplo.
Em todo esse universo de ideias implicando a "liberdade" existe um
princípio subjacente que está diretamente ligado ao que vulgarmente
chamamos de realidade.
Uma vez mais, acabamos por nos deparar com os encantadores
labirintos das palavras.
Embora geralmente seja considerada como tendo uma origem obscura,
acredita-se que a palavra "liberdade" conheça as suas raízes etimológicas
Indo-Europeias em *leudh-ero - que indicava a ideia de algo "pertencente a
um povo". A raiz da palavra *leudh indicava a ideia de "povo", e a sua
partícula radical *L parece nos iluminar de forma magistral os fundamentos
mais essenciais do princípio da liberdade, pois indicava a ideia de algum tipo
de associação implicando paradoxalmente reunião e separação. Ou seja,
algo presente nas relações entre as pessoas, num povo, que existe para as
"libertar" ou para as "conter" e, ainda, possivelmente, ambas
simultaneamente.
São duas forças antagónicas pertencentes a um mesmo conceito.
Somente a partir do universo clássico começamos a compreender com
alguma clareza essa aparente ambiguidade através das ideias de liberdade
positiva e de liberdade negativa.
Liberdade positiva significa a pessoa poder fazer, em princípio, tudo o
aquilo que desejar, sem restrições de qualquer tipo. Por outro lado, a
liberdade negativa indica a ideia da pessoa elaborar uma auto-limitação,
claramente presente no ditado popular: o meu direito vai até onde começa o
do outro.
Um ditado que estará presente na afirmação jurídica actor probat
actionem, reus exceptionem - se é o autor que prova a ação, ao réu cabe a
exceção.
Mas, tal formulação que distingue dessa forma a diferença entre as
liberdades positiva e negativa não é universalmente aceita.
Alguns filósofos acreditam que a liberdade positiva é determinada pelo
exercício do livre arbítrio, e que a liberdade negativa seria o resultado de
restrições à liberdade individual a partir de forças externas, como leis,
convenções e assim por diante. Mas, se assim fosse, a liberdade negativa
não existiria, pois o constrangimento realizado por forças externas não é
outra coisa senão o estabelecimento de algum grau de ausência de
liberdade.
O filósofo e historiador Britânico Isaiah Berlin, nascido na Letónia, que
viveu entre 1909 e 1997, defendia essa visão - no meu ponto de vista
equivocada - sobre as liberdades negativa e positiva.
Na sua célebre conferência "Two Concepts of Liberty" realizada na
Universidade de Oxford em 31 de Outubro de 1958, ele dizia: "Chamarei de
sentido 'negativo' (da liberdade), como estando envolvido na resposta à
pergunta 'Qual é a área dentro da qual o sujeito - uma pessoa ou grupo de
pessoas - é ou deveria ser deixado para fazer ou ser aquilo que é capaz de
fazer ou ser, sem a interferência de outras pessoas?'. O segundo, que
chamarei de sentido positivo, está envolvido na resposta à pergunta 'Qual ou
quem é a fonte de controle ou interferência que pode determinar que alguém
faça ou seja isso em vez daquilo?' (...) O critério da opressão é a parte que
acredito ser desempenhada por outros seres humanos, direta ou
indiretamente, com ou sem intenção de o fazer, na frustração dos meus
desejos. Por ser livre, neste sentido, quero dizer não ser interferido por
outros. Quanto mais ampla for a área de não interferência, maior será minha
liberdade. (...) O sentido 'positivo' da palavra 'liberdade' deriva do desejo do
indivíduo de ser seu próprio senhor. Desejo que minha vida e decisões
dependam de mim mesmo, não de forças externas de qualquer tipo".
Berlin parece se inspirar em Jean-Jacques Rousseau quando dizia que
"é verdadeiramente livre aquele que deseja o que pode realizar e faz o que
deseja".
De fato, o pensamento de Isaiah Berlin também parece girar em torno
de outro personagem, que viveu cerca de cem anos antes de Rousseau:
Thomas Hobbes.
Na sua grande obra De Cive, de 1642, Hobbes exclamava: homo
homini lupus - o homem é o lobo do homem - provérbio cujo passado nos
leva ao dramaturgo Romano Plautus, que viveu entre cerca de 254 aC e 184
aC. Em sua peça Asinaria, ele dizia: lupus est homo homini, non homo,
quom qualis sit non novit - que pode ser traduzido como "um homem é um
lobo e não um homem para outro homem, quando ainda não descobriu como
ele é", isto é, quando ainda não é seu amigo.
Em notável oposição a Plautus temos Seneca o Jovem, que viveu entre
o ano 4 aC e o 65 da Era Comum, e que dizia nas suas Epístolas Morais,
mais precisamente sua carta XCV a Lucilius Junior, então procurador
Romano na Sicília, no parágrafo 33: homo, sacra res homini, que significa,
"homem, coisa sagrada para os homens".
Trata-se de uma viva discussão que percorre séculos.
Já em De Cive, Hobbes nos revelava com clareza como compreendia a
liberdade.
Entretanto, nove anos mais tarde, na sua mais famosa obra, Leviathan:
The Matter, Forme, & Power of a Common-Wealth Ecclesiastical and Civill,
datada de 1651, Hobbes nos oferecia o perfil do conceito de liberdade
positiva como o que seria defendido por Berlin. Já na carta introdutória do
livro ele dizia: "Pois de certa forma que seja definido entre aqueles que
lutam, de um lado por uma Liberdade muito grande, e do outro lado por uma
demasiada Autoridade, é difícil passar entre os pontos de ambos sem
ferimentos. Mas, ainda assim, penso eu, o esforço para promover o Poder
Civil não deve ser condenado pelo Poder Civil; nem homens privados, ao
repreendê-lo, declaram que pensam que o poder é demasiadamente
grande". E continuava mais adiante, no corpo do livro: "Os homens são
libertos das suas Obrigações de duas maneiras; pela via de como as
Realizam; ou sendo Perdoados. Em relação às Realizações, trata-se do o fim
natural da obrigação; e ao Perdão, a restituição da liberdade; como sendo
uma nova transferência desse Direito, no qual consistia a obrigação".
A frase de Hobbes não é muito clara, mas deixa evidente a diferença
entre obrigação e perdão, assim como a restituição da liberdade - fatores
indicativos de um poder controlador, típico de uma liberdade positiva.
Ainda no Leviatã, Hobbes nos diz: "Liberdade significa propriamente
ausência de oposição; (por oposição, quero dizer sobre impedimentos
externos de movimento); algo que pode ser aplicado tanto a criaturas
irracionais e inanimadas como às racionais. Pois tudo o que é amarrado, ou
bloqueado, uma vez que não pode se mover, mas dentro de um certo
espaço, cujo espaço é determinado pela oposição de algum corpo externo,
dizemos que não há liberdade para ir mais longe. E assim, de todas as
criaturas vivas, quando estão aprisionadas, ou contidas, por paredes ou
correntes; e também a água quando é contida por bancos ou vasos, que de
outra forma se espalhariam por um espaço maior, costumamos dizer que não
estão em liberdade para se mover como queiram, como aconteceria se
estivessem sem impedimentos externos. Mas quando o impedimento do
movimento está na constituição da própria coisa, não costumamos dizer que
se trata de liberdade; mas ausência do poder de se mover; tal como
acontece quando uma pedra fica imóvel, ou quando um homem é levado ao
leito pela doença. E de acordo com este significado próprio e geralmente
aceite da palavra, um homem livre, é aquele que por sua força e inteligência
é capaz de realizar coisas, é aquele que não é impedido de fazer o que
deseja".
Assim, aqui podemos encontrar, em Hobbes, já com clareza, o
pensamento de Berlin.
É importante relembrar que originalmente o Leviatã é uma figura mítica
Hebraica, com a forma de uma gigantesca serpente marinha. Hobbes usou
essa figura como representação do Estado, inevitável monstro formado pelos
cidadãos, indestrutível, e em cuja natureza a ideia de liberdade - ou ausência
dela - é absolutamente central. Trata-se de uma figura macabra que Hannah
Arendt tornaria ainda mais sinistra quando afirmava que a "burocracia é a
forma de governo em que todos são privados da liberdade política, do poder
de agir; pois o governo de Ninguém significa nenhuma regra, e onde todos
são igualmente impotentes temos uma tirania sem tirano".
Nos anos 1990, Octavio Paz diria sobre o século XX: "O Estado - não o
proletariado ou a burguesia - foi e continua a ser o personagem do nosso
século. Sua realidade é enorme. É tanto que parece irreal: está em todas as
partes e não tem rosto. Não sabemos o quê é e nem quem é".
Assim, tal como para Hobbes, também para Berlin a liberdade negativa
era o resultado das imposições opressivas por parte do Estado. Era a
negação da liberdade.
Todavia, quando alguém estabelece os seus próprios limites,
determinando um campo pessoal de ação, isso é, de fato, a liberdade
negativa, produto da autoconsciência, do respeito ao outro - pois restringe,
limita, nega por sua determinação individual o seu próprio "campo" de ação,
respeitando os campos de liberdade das outras pessoas.
Esse será, seguramente, um dos mais fortes pilares, senão o principal,
do quê se conhece como democracia - princípio sem o qual cairíamos
inevitavelmente nas teias condenatórias da República de Platão -
particularmente quando dizia que a "a democracia é uma forma encantadora
de governo, cheia de variedade e de desordem, distribuindo uma espécie de
igualdade tanto para iguais como para desiguais". Platão via a democracia
como a degeneração da organização social promovida pelo domínio dos
incompetentes.
Essa ingénua ideia sobre a incompetência considera que as pessoas
em geral são incapazes de realizar operações mais complexas e, portanto,
são incompetentes para determinar governos de grandes massas
populacionais. Esquece-se, entretanto, de que a participação democrática
não exige dos seus participantes uma tal capacidade. Fosse ela
fundamental, praticamente todas as pessoas seriam incapazes, pois não
importa o que somos, não conhecemos tudo. Mas, sabemos quais são as
nossas necessidades fundamentais e temos, todos, princípios que nos guiam
nas nossas relações interpessoais, sem contar que há uma Constituição
soberana.
Por isso a democracia direta funciona tão bem na Suíça, um dos
países mais ricos do mundo, e tal não acontece por serem os Suíços mais
desenvolvidos que outros povos.
Quando defendemos a ideia de "liberdade" muitas vezes surge a noção
de estarmos lidando com o laisser faire, laisser passer, pois as pessoas têm
imediatamente em mente a liberdade positiva, onde tudo é potencialmente
possível.
Em toda a história da Humanidade, sempre que uma sociedade se
regeu pelos princípios da liberdade positiva, houve tirania - pois face aos
inevitáveis desrespeitos num contexto de uma possibilidade ilimitada de
ação, uma força superior surge para os conter, evitando os impulsos
individuais de uns sobre os outros.
Todos os regimes autoritários e totalitários, sem excepção, sempre
tiveram como argumento salvar o ser humano das suas próprias garras.
Por outro lado, numa realidade oposta, a liberdade negativa emergiria
pela primeira vez na Grécia Antiga, com a transformação plástica, fisiológica,
dos nossos cérebros, particularmente do setor pré-frontal - como tenho
escrito e demonstrado nos meus livros desde o início dos anos 1990 pelo
menos.
Apenas a liberdade negativa enquanto produto de uma autoconsciência
nos ilumina a natureza primeira do Milagre Grego.
Ainda assim, embora tenha surgido na Grécia Antiga, naquele
momento histórico ainda não havia sedimentação suficiente das
transformações do setor neuronal pré-frontal para que esse tipo de liberdade
pudesse emergir como significado verbal, literário, consciente, enquanto
declarado elemento de ação.
Curiosamente, ao longo dos séculos, filósofos - e alguns dos quais com
um trabalho formidável - acreditaram que se a pessoa não possuísse uma
natureza absoluta, imutável, mas fosse o resultado de um processo, fosse de
alguma forma formado pelo ambiente, pelo exterior, jamais poderia ser o
sujeito ativo da vida social, da estrutura da sociedade. Num tal caso, como
acreditou Marx, seria obrigatoriamente resultado da sociedade e não seu
agente, pois sendo resultado de um processo social estaria impedido de
também ser seu agente!
Uma pessoa é resultado de tudo, das suas interações com o meio
ambiente, com a sociedade, com aquilo com o quê se alimenta, com a
cultura - que é um organismo vivo com o qual vivemos simbioticamente - e,
ao mesmo tempo, é agente desse complexo processo.
Hobbes não via assim o mundo e insistia - revelando uma visão
claramente orientada para a liberdade positiva - que "a causa final, fim ou
desígnio dos homens (que naturalmente amam a liberdade e o domínio
sobre os outros) na introdução dessa restrição sobre si mesmos, em que os
vemos viver em Comunidades, é a previsão de sua própria preservação e
dessa forma uma vida mais feliz; isto é, de saírem daquela condição
miserável da guerra que é necessariamente consequência, como foi
mostrado, das paixões naturais dos homens quando não há poder visível
para os manter em reverência e os amarrar pelo medo da punição ao
cumprimento das suas obrigações...".
Trata-se de uma visão fortemente presa ao princípio Aristotélico do
terceiro excluído, presente em Shakespeare quando, em Hamlet,
determinava: "ser ou não ser, eis a questão".
Não podia haver o ser e o não ser, como seria demonstrado, já na
segunda metade do século XX, pela lógica do terceiro incluído de Stéphane
Lupasco. Uma lógica que se revela evidente, bastando prestarmos alguma
atenção às nossas próprias vidas - quem somos nós agora, este ser que
somos nós ou aqueles que nos constituíram ao longo da vida? - em termos
singulares ou plurais, isto é, aqueles que fomos nós ao longo dos anos ou
aqueles que nos constituíram como um todo nesse período?...
Pode-se argumentar, misticamente, em favor da existência absoluta de
uma alma ou mesmo de um espírito. Mas, aquilo que em nós próprios
conhecemos como humano é algo diferente. Para o compreender, basta ter
em mente um único caso grave de acidente vascular cerebral - não é
necessário ser um neurologista. Somos metamorfoses ambulantes e,
simultaneamente, as mesmas pessoas. Somos e, paradoxalmente, não
somos - sem deixarmos de ser.
Essa face aparentemente contraditória da realidade não acontece
apenas com as nossas vidas. Ao contrário, trata-se de um fenômeno que
está para muito além da nossa experiência pessoal, algo que não apenas é
demonstrado pela física experimental como também é defendido por
importantes filósofos. Ainda no início do século XIX, Arthur Schopenhauer
escrevia de forma brilhante sugerindo o princípio de uma telecausalidade.
Na sua deliciosa tese de 1813, On the Fourfold Root of the Principle of
Sufficient Reason, escrita quando tinha somente vinte e cinco anos de idade,
Schopenhauer brilhantemente designa a mente como o nó do mundo –
tomando-a enquanto algo entre o cérebro e uma realidade exterior, algo
inexplicável.
"A igualdade dos ângulos (de um triângulo) não é a razão direta, mas
apenas a razão indireta para se conhecer a igualdade de seus lado ... (...)
...daí, o passado ser absolutamente irrevogável, e o futuro ser certo e
inevitável, é algo que também não pode ser demonstrado de uma maneira
puramente lógica por meio de meros conceitos; nem é apenas uma questão
de causalidade, pois ela rege apenas os eventos no tempo, não o próprio
tempo" - escrevia ele.
Mas, para alguns filósofos, a possibilidade de uma lógica que contraria
o princípio aristotélico do terceiro excluído é demasiadamente perturbadora.
Para eles, o simples fato de se considerar o ser humano simultaneamente
produto do meio e seu agente já o tornaria presa automática de sistemas
totalitários eliminando a possibilidade de ser uma entidade responsável - pois
se é resultado do sistema, jamais poderia ser também seu agente.
Num certo sentido Hobbes também acreditava nisso, e defendia que
apenas um Estado absoluto poderia evitar um processo humano de
autodestruição. E essa era uma crença geral, que acabou por ser assumida
por Marx entre outros como sendo a única salvação da Humanidade.
Mesmo na Grécia Antiga, uma possível identificação da liberdade
negativa como declarado elemento de ação não aconteceu imediatamente.
Já no quinto século antes de Cristo, Ésquilo declarava na sua tragédia
Prometeu Acorrentado, elaborada em torno de 450 aC: "Ninguém é livre
senão Zeus".
Na tragédia, Prometeu desafia os deuses, oferece o fogo à
Humanidade, representando um grande desenvolvimento tecnológico, um
passo no sentido de maior liberdade em relação às restrições impostas pela
Natureza, e por isso é gravemente punido por Zeus.
Algum tempo antes, Heráclito - que viveu entre 544 aC e 484 aC parecia anunciar o princípio da liberdade negativa quando dizia: "A guerra é
pai e rei de todos: alguns ela fez deuses, outros homens; alguns escravos,
outros livres". Heráclito já diferenciava com clareza o homem livre.
Mesmo no Egipto Antigo, na Acádia ou na Suméria, o conceito de
liberdade estava diretamente associado ao poder do Estado. Aqueles que
estavam mais próximos do centro do poder eram considerados mais livres.
Já na Antiga Grécia, Heráclito nos diz que a guerra transforma tudo, criando
deuses, homens, escravos e pessoas livres.
Se a ideia da liberdade negativa não estava declaradamente presente
no mundo Grego clássico, ela estava impregnada nas suas ações.
Foi a liberdade negativa - o princípio segundo o qual o meu direito
termina onde começa o do próximo - o quê possibilitou o início e o
desenvolvimento da democracia, a eliminação - ou aspiração à eliminação da figura do tirano.
Era uma ideia já claramente presente em Péricles quando, no seu
célebre discurso para os mortos na guerra, no final do primeiro ano da
Guerra do Peloponeso, entre 431 e 404 aC, apresentada no livro de
Tucídides: "A liberdade que desfrutamos em nosso governo se estende
também à nossa vida cotidiana. Nela, longe de exercer uma vigilância
ciumenta uns dos outros, não nos sentimos chamados a nos zangar com o
nosso vizinho por ele fazer o que gosta, ou mesmo a nos permitir aqueles
olhares injuriosos que não podem deixar de ser ofensivos, embora não
inflijam qualquer penalização positiva. Mas toda essa facilidade em nossas
relações privadas não nos torna sem lei enquanto cidadãos".
Impossível não ter em mente Anabase, obra de Xenofonte, escrito em
cerca de 370 aC, quando este nos grita, seguindo a magistral tradução de
Aquilino Ribeiro, na voz de Ciro: "Gregos, tomei-vos ao meu serviço não
porque me faltassem bárbaros; nada disso, tomei-vos porque vos considero
superiores a eles. O que vos peço agora é que mostreis, como sois, dignos
daquela liberdade que tendes pelo sumo bem e que eu prefiro a todas as
riquezas", e mais adiante, Xenofonte diz: "Por toda a parte restam troféus da
vitória. Mas a maior prova consiste na liberdade das cidades em que viestes
à luz e fostes criados, porque nós não reconhecemos outros senhores para
além dos Deuses".
É com esse tipo de liberdade que emergem os conceitos de
democracia, de Estado de Direito, do princípio de presunção de inocência, da
isonomia ou do direito ao esquecimento por exemplo - e é ela que nos dá a
condição de responsabilidade, de response, não atribuindo ao destino o
papel de motor da ação.
E, para além dessa abordagem essencialmente ética, fundada no
ethos, a liberdade negativa também torna possível toda uma elaboração
mística e moral em torno dela - possibilidade que alimentou boa parte da
filosofia ocidental ao longo de vários séculos. De fato, a emergência da
moral, do fenômeno do pathos ou do conceito de democracia coincidem na
Antiga Grécia.
Quando - já no século XXI, fazendo referência ao impreciso e por
vezes contraditório conceito de liberalismo - surgem críticos à liberdade,
argumentando que se trataria de uma estratégia do laissez-faire laissezpasser conduzindo inevitavelmente a um cenário ruinoso, eles desconhecem
a profundidade da ideia de liberdade e as suas não menos profundas
implicações.
A expressão laissez-faire como indicativa de uma política econômica
sem barreiras ou controles terá surgido num ano preciso, em 1681, quando
Jean-Baptiste Colbert - então poderoso ministro das finanças de Luís XIV terá perguntado a um grupo de empresários sobre quais as medidas que
deveriam ser adoptadas com o objectivo de aumentar a riqueza nacional, ao
que lhe terão respondido: "deixe-nos fazer", em Francês laissez-faire,
expressão que acabaria por ser assumida por todos os movimentos
ditatoriais - de esquerda ou de direita - como indicativa da existência de uma
liberdade positiva em relação ao ser humano predador, explorador, ao homo
lupus de Hobbes e, portanto, justificando a existência de uma tirania, de uma
ditadura, como forma de proteger as pessoas.
Quase cem anos depois do seu surgimento com Hobbes, o termo seria
popularizado por Adam Smith no seu célebre livro An Inquiry into the Nature
and Causes of the Wealth of Nations. Nele, Smith sugere a existência de
uma rede invisível de forças, muito semelhante ao pensamento do físico
Michael Faraday. Isto é, tudo seria constituído for campos de forças, de
espécies de energias. A compreensão da natureza desses campos nos
ajudaria a elaborar estratégias melhores para todos.
Esses campos apenas poderiam funcionar livremente - obviamente
dentro de um quadro legal - tal como acontece no mundo material.
Marx nunca acreditou nisso. Sempre acreditou na natureza predadora
humana e defendeu sempre um quadro de liberdade positiva - o ser humano
controlado.
Adam Smith tinha uma visão do mundo fortemente orientada pela
realidade Britânica da época, onde a jurisprudência fazia a Lei.
Os países têm constituições e leis!
Desde há milhares de anos, na Suméria, Acádia, Egito - as sociedades
sempre conheceram leis escritas. As leis visam controlar o comportamento
humano - pertencem, portanto, ao universo da liberdade positiva.
Portanto, num certo sentido, esses fenômenos, tanto da liberdade
positiva como da negativa sempre existiram. Mesmo na Antiga Suméria - as
pessoas não eram permanentemente vigiadas no sentido de as obrigar a
obedecer às leis, às regras sociais.
Quando tratamos da emergência da liberdade negativa na Antiga
Grécia, especialmente como parte do Milagre Grego, estamos lidando com
um princípio dominante: embora haja leis, nem todas são necessárias, nem
mesmo um corpo extensivo de leis é obrigatório para que as pessoas sejam
pacíficas.
A diferença está no momento histórico em que a liberdade negativa se
torna um princípio dominante.
E não há aqui qualquer referência a um princípio historicista.
A história é feita de turbulências, combinações e emergências
semelhantes ao que ocorre com a química.
Todas as vezes que surge um poder ditatorial, autoritário, quanto mais
ele é totalitário, mais a realidade será tomada como um processo de
liberdade positiva. Se a realidade positiva induz à tirania, por outro lado a
tirania reforça a liberdade positiva.
É um fenômeno bizzarro, pois o argumento que os espíritos autoritários
usam é o do combate à liberdade por ela ser uma ameaça às pessoas,
libertando os lobos humanos para devorar os mais fracos, quando o quê de
fato acontece é a concentração de poder desencadear e reforçar esse
processo de exploração!
Assim, o combate à liberdade, com o declarado papel de proteger o ser
humano, acaba por o condenar, numa espécie de interminável loop, de um
processo em retroalimentação favorecendo os sistemas ditatoriais.
Envolvidas por um tal argumento tão nobre, messiânico e dramático,
embora cínico - o da salvação do ser humano - as pessoas cedem e a tirania
estabelece o totalitarismo, com poucas chances de mudança senão
manchadas pelo sangue.
Muito das críticas ao chamado laissez-faire são, na verdade, críticas a
ações criminosas tantas vezes promovidas e participadas pelos próprios
Estados.
Pode-se questionar o quê, afinal, essas questões de filosofia e de
economia têm a ver com o elo de profunda amizade que unia um grande
artista e um fabuloso compositor.
Pois essas questões estavam sempre presentes nas suas obras.
Há aqui algo curioso, que muitas pessoas parecem não perceber.
A Europa viveu terríveis momentos de perseguição e de totalitarismo
particularmente ao longo do século XX.
Por vezes as pessoas se esquecem, mas todos os regimes ditatoriais,
de qualquer natureza, sem exceção, sempre estabeleceram divisões e
conflitos entre as pessoas. São barreiras entre os que estudaram e os que
não estudaram, entre pobres e ricos, entre os que se guiam por alguma
religião e os que nelas não acreditam, entre pessoas de diferentes credos,
etnias, raças, pessoas com diferentes preferências sexuais, conflitos entre
homens e mulheres, jovens e velhos, entre pessoas com ideias diferentes e
assim por diante.
Isso não é algo novo!
Apenas com a liberdade esses conflitos são reduzidos preservando a
diversidade.
Isso não significa dizer que são eliminadas as eventuais críticas
comportamentais, ao contrário! Pode parecer contraditório à primeira vista,
mas na liberdade negativa a crítica é sempre fundamental, particularmente
quando o seu princípio essencial - o meu direito termina quando começa o
do outro - é ameaçado.
Não apenas a crítica, mas especialmente a auto-crítica é um dos
elementos básicos da liberdade negativa. Crítica não no sentido da negação,
mas no da da revelação, da sua raiz Indo-Europeia *krein, que indicava a
ideia de peneirar, de distinguir.
Somente as sociedades que vivem a liberdade negativa são abertas
para a auto-crítica.
Toda a história e o fabuloso percurso da sociedade Ocidental,
manancial das grandes obras da filosofia, da arte, da ciência, da música, da
arquitetura em termos planetários se deve a isso: à liberdade.
O autoconhecimento que torna possível à pessoa determinar o seu
próprio "território de ação" implica a verdade, seja ela qual for. Não há lugar
para o politicamente correto, que é uma forma de mentir com o objetivo de
impedir que pessoas possam eventualmente ofender outras. Em outras
palavras: o politicamente correto nada mais é que a intervenção e restrição
externas da liberdade. Por isso, o politicamente correto não apenas pertence
ao universo da liberdade positiva, como implica considerar a sociedade como
formada a priori por relações conflituosas, acentuando-as com o pretexto de
as eliminar, de tornar tudo homogéneo.
Por outro lado, a liberdade negativa se suporta sobre o livre
conhecimento e a verdade e, portanto, alimenta-se da diversidade.
Sendo indiscutivelmente verdadeiro o argumento a favor da livre
circulação de conhecimento, livre de qualquer tipo de censura, somos
imediatamente atraídos para a questão de se saber, afinal, o quê é a
verdade.
Lançamo-nos a Platão, em Crátilo - obra sobre a natureza da
linguagem, escrita provavelmente em torno de 400 aC de acordo com o
filósofo David Sedley - quando é dito: "A mentira afirma coisas que não são
fatos. (...) Ou seja, fala de coisas que não são aquilo que são".
Em Teaeteto, outra deliciosa obra, esta escrita mais tarde, em cerca de
369 aC, Platão nos oferece a mesma reflexão: "Então, aquele que tem uma
opinião sobre o que não é, tem opinião sobre nada. (...) Pois bem, quem tem
uma opinião sobre nada, não tem opinião alguma. (...) Então, é impossível
ter uma opinião sobre aquilo que não é, seja em relação às coisas que são,
seja independentemente delas. (...) Então, ter uma opinião falsa é algo
diferente de ter uma opinião sobre aquilo que não é? (...) Então a falsa
opinião não existe em nós nem por este método nem por aquele que
seguíamos há pouco".
Essencialmente, Platão nos diz que uma opinião, ou julgamento, sobre
algo que não existe, é impossível. Mas, pode existir. Entretanto, trata-se de
algo vazio, uma mentira.
Dessa forma, a mentira não exige explicações pois, tratando-se de algo
que não existe, as explicações não podem existir. Por essa via, a mentira se
suporta no vazio, no nada.
Esse é o problema central da mentira - ela pode existir livremente e ser
suportada de forma mais fácil que a verdade, por esta exigir uma relação
com o quê há.
Quando lemos uma notícia falsa, mentirosa, ela não explica, é uma
generalidade vazia, não admite o princípio da refutabilidade.
Várias vezes ao longo dos séculos, cientistas anunciam as suas
descobertas através de longos e pormenorizados estudos - que
frequentemente são negados por "especialistas", normalmente muito menos
capazes, muitas vezes negando a anunciada descoberta através de
argumentações vazias apenas fazendo referência a outros supostos
"especialistas" ou a outras "descobertas" falsas. É óbvio que, num tal caso, a
negação à anunciada descoberta científica é falsa, invertendo a situação e
atribuindo a falsidade ao seu autor. E muitas vezes, essa falsa negação é
assumida como verdadeira, em oposição à descoberta científica, porque as
pessoas não têm parâmetros e a mentira se apoia no vazio, sendo, portanto,
mais fácil de ser suportada. É difícil negar algo que simplesmente não existe.
Sem contar que muitas vezes as descobertas científicas são de natureza
contra-intuitiva. Mas, tudo isso faz parte da sociedade aberta ao permanente
diálogo, sem barreiras, e será essa discussão livre que desnudará a verdade.
Por essa razão, ditaduras, regimes totalitários e espíritos autoritários
combatem intensamente a liberdade de expressão, naturalmente sempre em
"nome do bem comum" e, surpreendentemente, na "defesa da verdade"!
Na sua Metafísica, Aristóteles - aluno de Platão - dá-nos a sua célebre
definição de verdade, revelando o fundamento do seu princípio conhecido
como o terceiro excluído: “Dizer que o algo é o quê não é, ou que não é o
quê é, é falso; enquanto que dizer que algo é o quê é, e que não é o quê não
é, é verdadeiro".
Muito mais tarde, São Tomás de Aquino, que viveu entre 1225 e 1274,
dizia-nos na sua grandiosa Suma Teológica: Veritas est adaequatio rei et
intellectus - a verdade é a equação da coisa e do intelecto - pensamento que
foi por ele próprio reformulado como "um julgamento é considerado
verdadeiro quando ele está de acordo com a realidade externa", coincidindo
com Aristóteles.
Então somos confrontados com a questão de conhecermos a natureza
do quê é a chamada "realidade externa", reflexão que nos conduz
diretamente a John von Newmann e a sua genial Teoria dos Jogos. Em
1944, ele e Oskar Morgenstern publicaram um livro que se tornaria
rapidamente numa referência mundial: Theory of Games and Economic
Behavior.
Basicamente, a hipótese apresentada por von Newmann é a de que
todas as relações entre coisas existentes operam como jogos, e que há
apenas dois tipos fundamentais de jogos: os de soma zero e os de soma
não-zero.
Os jogos de soma zero são aqueles em que há uma parte vencedora e
uma parte perdedora; e os jogos de soma não-zero são os que não há
perdedores ou vencedores.
A simbiose, por exemplo, é um jogo de soma não-zero. O amor e a
cidade também.
Por outro lado, os jogos de ténis, por exemplo, são obrigatoriamente de
soma zero, neles sempre haverá um vencedor e um perdedor.
Na Natureza biológica em geral, muito particularmente nas florestas,
para dar apenas um rápido exemplo, muito da vida parece acontecer
enquanto jogos de soma zero, com predadores e presas. Mas, se fizermos
mais atenção, perceberemos que na verdade tudo é muito mais complexo,
porque nela também encontraremos a colaboração, a maternidade, a
geração de novos seres, a construção de habitats, a distribuição de pólens e
de sementes entre um incontável número de ações que não implicam
perdedores e que, portanto, pertencem ao universo dos jogos de soma nãozero.
A cidade é um dos exemplos mais interessantes dos jogos de soma
não-zero, onde temos a urbis, o respeito, aquilo a que vulgarmente
chamamos de civilização.
Assim, a liberdade negativa - como a descrevo aqui - está diretamente
ligada aos jogos de soma não-zero.
Mas, tudo na vida é muito mais complexo, revelando-se a nós como
uma espécie de encantadora árvore fractal.
Se tomarmos a guerra como exemplo de um grande jogo de soma
zero, com vencedores e perdedores - tal como nos parece inevitavelmente
ser - mas a observarmos com atenção, veremos que se trata de uma
estrutura fractal, constituída pelos dois tipos de jogos. Se a estupidez da
guerra é, sem dúvida, um brutal jogo de soma zero, evidenciado
dramaticamente pelos seus horrores, um caso amoroso que surja no campo
de batalha, alguém que salve crianças da morte ou um compositor que
elabore uma obra prima musical no meio da tragédia - tal como aconteceu
também com a poesia - encontraremos inúmeros exemplos de jogos de
soma não-zero.
Não devemos nos esquecer que Olivier Messiaen compôs o Quatuor
pour la Fin du Temps quando era prisioneiro de guerra num campo de
concentração Alemão, o Stalag VIII-A, em Görlitz, então na Alemanha,
atualmente chamada Zgorzelec, na Polônia.
Isso nos ensina que tal como o significado de um signo é outro signo
de natureza diferente, tal como a aspiração máxima e impossível de um
signo é o seu objeto, também toda a verdade é incompleta, pela sua própria
natureza.
Kurt Gödel nos mostrou isso através dos seus Teoremas da
Incompletude, ainda em 1931. Tratam-se de dois teoremas. O primeiro
apresenta a hipótese de que para qualquer sistema formal consistente,
sempre haverá afirmações verdadeiras, mas impossíveis de serem provadas.
O seu segundo teorema argumenta que um sistema não pode demonstrar a
sua própria consistência.
Isso significa que a prova é sempre um exercício de aproximação.
Tal argumento levou a muitos filósofos a concluir que se não existe
uma verdade absoluta, isto é, uma correspondência absoluta do signo com o
seu objeto, então a verdade simplesmente não existirá e pode valer tudo nas
relações humanas - o quê é uma pobre conclusão sofistica, para dizer o
mínimo.
A incompletude dos sistemas apenas nos esclarece acerca da natureza
não absoluta da verdade.
Em outras palavras, quando São Tomás de Aquino nos diz que "um
julgamento é considerado verdadeiro quando ele está de acordo com a
realidade externa", devemos considerar tanto o julgamento, o agente, como
a realidade externa, a substância, como entidades relativas mas estáveis.
Isso não significa que deixem de existir e que o julgamento ou a realidade
externa sejam eliminados!
Quando a física do século XX apresentou a hipótese - sempre
posteriormente confirmada pelos experimentos, pela matemática ou pela
lógica - segundo a qual a matéria é uma forma de concentração de energia
e, portanto, imaterial em última instância, a matéria não deixou de ser
matéria e não deixou de obedecer às leis de Newton numa determinada
escala de espaço-tempo.
Da mesma forma, a compreensão de que a verdade não é, pela sua
própria natureza, algo absoluto não a elimina! Ela continua a existir e a
obedecer aos mesmos parâmetros de julgamento dentro de uma escala de
espaço-tempo.
Portanto, a verdade existe, trata-se de uma aproximação, de natureza
fractal e é sempre um contínuo trabalho de compreensão.
Tal como acontece com a liberdade, não tratamos aqui da verdade
mística, como São Tomás de Aquino alertava ao dizer: "Àquele que tem fé,
nenhuma explicação é necessária. Àquele que não tem fé, nenhuma
explicação é possível".
Operamos aqui a verdade enquanto significado. O que nos leva a
Oscar Wilde quando dizia que "a verdade raramente é pura e nunca é
simples". Mas, trata-se de uma compreensão que pode conduzir a equívocos
brutais, como quando Nietzsche afirmava não existir fatos, mas apenas
interpretações. Na realidade, tudo é em última instância interpretação...
sobre fatos, que são um elemento do pensamento lógico.
A palavra fato surge da nossa ideia de "fazer" e lança suas remotas
origens etimológicas no Indo-Europeu *dhe que indicava a ideia de "colocar
algo num lugar".
Fato é uma expressão da verdade.
Assim, temos as discussões filosóficas.
Por outro lado, a mentira não se inclui no universo das discussões
filosóficas, a menos que pertença a um ambiente completamente artificial,
feito de falsas premissas assumidas como verdadeiras, tal como acontece
com alguns desmentidos de descobertas científicas. Se assim não fosse,
seria rapidamente revelada como tal.
Por isso, a liberdade é essencial como espécie de antídoto para a
mentira.
Quando as pessoas são livres para falar e discutir abertamente essência da tertúlia - mais cedo ou mais tarde, inevitavelmente, a verdade
prevalecerá.
Esse é o espírito do vinho.
Se a verdade fosse algo absoluto, isso não aconteceria.
Apenas o conflito, a diferença, produz a consciência.
Se tudo fosse luz, ela não existiria - e o mesmo podemos dizer acerca
do som, da sensação tátil, de um sabor, de tudo o quê é perceptível. Por
isso, Pitágoras atribuía o número dois ao universo da existência.
Tal como afirmava Aristóteles, "dizer que algo é o quê é, e que não é o
quê não é, é verdadeiro", essa verdade apenas acontece através da
diferença, do número dois como alertava Pitágoras e antes dele os Egípcios
e os Sumérios, fundamento de toda a existência concreta.
Assim, a liberdade, a verdade e a diversidade estão sempre ligadas.
Se apenas a diferença produz a consciência, a crítica e a auto-crítica
são feitas de conflitos.
Uma vez mais, a história das palavras poderá nos iluminar algo da
questão. O termo "conflito" surge na fusão do Latim com, que tem o sentido
de proximidade, e flictus que, por sua vez, lança a sua antiga raiz IndoEuropeia em *bhlig, indicando a ideia de "bater", "infligir".
Se por um lado, como mostrou von Neumann, nem tudo é constituído
por perdedores e vencedores; por outro lado, em toda relação, seja de que
tipo for, haverá sempre algo de conflituoso.
Mas, então, o sentido de conflito se revela como oposição,
antagonismo.
Aqui está o fundamento do método dialético elaborado pelos Gregos
para a compreensão do mundo. Com um detalhe importante, naquele
momento histórico não se tratava do mundo tomado enquanto processo
dialético, mas sim a dialéctica tomada como método para a sua
compreensão.
Apenas a entropia é isenta de conflito - e ela é a morte. Toda a
diversidade implica alguma dose de conflitualidade.
Ainda assim, organismos podem viver em simbiose, num jogo de soma
não-zero - como tão brilhantemente mostrou Lynn Margullis. Da mesma
forma, a Mesopotâmia e a primeira escrita cuneiforme surgiram como
produto simbiótico entre Suméria e Acádia.
Em 2021, a investigadora francesa Mélanie K. Rich e sua equipa
descobriram que o início da vida vegetal terrestre, há cerca de 450 milhões
de anos, foi possível graças a uma associação simbiótica entre fungos e
plantas aquáticas.
Como um paradoxo, a simbiose aspira à entropia - no mesmo sentido
que o significado aspira ao seu objeto.
Da mesma forma que o conflito não é uma condição absoluta, a
dialética não é condição universal para o conhecimento - tal como tão
brilhantemente mostrou Charles Sanders Peirce com a sua categoria sígnica
da qualidade.
Temos dois tipos de entropia: uma através da igualdade geral e outra
através da desigualdade absoluta no sistema.
Ambas - desigualdade absoluta ou igualdade total são entropia - e a
entropia é a morte, quer seja em termos biológicos, quer seja em termos
termodinâmicos. A eliminação da diversidade é entropia.
A diversidade é o fundamento da vida.
Basta observarmos os nossos corpos.
Os nossos próprios corpos, a biologia e a ciência em geral nos revelam
em termos bastante claros os fundamentos essenciais da liberdade negativa.
Por outro lado, a liberdade positiva, pela sua própria natureza, sempre
conduz ao totalitarismo e à eliminação da diversidade, à entropia, ou seja: à
mediocridade e à morte.
A palavra medíocre surge de "média", igualdade, entropia.
Identificamos aqui, novamente, os dois princípios basilares da
termodinâmica: formação de sistemas especializados e entropia, ordem e
desordem, agregação e desagregação, jogos de soma não-zero e jogos de
soma zero, liberdade negativa e liberdade positiva, heterogeneidade e
homogeneidade.
É uma ilusão pensar que a liberdade conduz à eliminação dos conflitos!
Eles devem existir como elemento motriz da liberdade!
Por outro lado, é natural não se admitir que as pessoas saiam pelas
ruas atacando e matando umas as outras, destruindo equipamento urbano,
colocando fogo em tudo. Quando tal acontece, não mais existe a liberdade
negativa.
Na liberdade negativa, o conflito é potencialmente não físico, é interior,
base do questionamento, da reflexão individual.
Se tivermos em mente as obras de seres iluminados como Ernesto de
Sousa, Jorge Peixinho, John Cage, Stockhausen ou Joseph Beuys - para
citar apenas uns poucos - elas operam sempre o conflito, no sentido de
despertar a autoconsciência das pessoas.
Esse é o fundamento primeiro da arte - a liberdade.
Grandes corporações e governos, por exemplo, podem lançar falsas
declarações afirmando serem verdadeiras. Quando isso acontece num
ambiente de liberdade negativa, as discussões, manifestações e reflexões
são livres, revelando a falsidade daquelas declarações. Todavia, quando tal
ocorre num universo de liberdade positiva e, portanto, sob um regime declarado ou não - ditatorial, ou de tendência ditatorial, a delação, a
vigilância das autoridades e o patrulhamento ideológico promovido, direta ou
indiretamente, pelo poder não permite que a verdade seja revelada através
da livre troca de ideias. Então, passa a valer a declaração de Adolf Hitler
quando, em Mein Kampf, afirmava que "as grandes massas do povo... serão
mais facilmente vítimas de uma grande mentira do que de uma pequena".
Mas, somente uma grande mentira não é suficiente. Para além da
mentira, é necessário eliminar a liberdade através da censura, do
politicamente correto, do patrulhamento ideológico, como confessava Joseph
Goebbels: “Se você contar uma mentira grande o suficiente e a continuar
repetindo, as pessoas acabarão por acreditar nela. A mentira só pode ser
mantida enquanto o Estado puder proteger o povo das consequências
políticas, econômicas e ou militares da mentira. Portanto, torna-se de vital
importância para o Estado usar todos os seus poderes para reprimir a
dissidência, pois a verdade é o inimigo mortal da mentira e, portanto, por
extensão, a verdade é o maior inimigo do Estado".
Não podemos esquecer de que aquilo que se convencionou chamar de
"politicamente correto" no início do século XXI era já fortemente defendido
como essencial não apenas por Hitler, mas também pelo regime totalitário de
Estaline, por Mussolini, por Mao e por todos os regimes ditatoriais.
Uma forma de eliminar a liberdade fazendo acreditar a estar
fortalecendo, por mais paradoxal que possa parecer, é eliminar a censura
direta, não impedir por qualquer forma a pessoa de se manifestar como
desejar - bastando controlar a sua divulgação. Se, num país de cem milhões
de pessoas, apenas cinco ou dez mil conhecerem ideias "dissidentes", tudo
estará dominado. Para isso é suficiente controlar os meios de comunicação,
mesmo se forem privados. A concentração de notícias em umas poucas
agências noticiosas é parte da estratégia.
Se, eventualmente, uma ideia "dissidente" se torna popular, criando
algum impacto na opinião geral, uma vez controlados os meios de
comunicação, será suficiente descredibilizar o autor, fazendo com que seja
automaticamente repudiado e perseguido pela população.
Outro elemento estratégico é promover contínuas informações
contraditórias, produzindo um ambiente paradoxal e desorientando a
população, que perde os parâmetros em relação à verdade.
A tecnologia também tem aqui um papel relevante, para dizer o
mínimo. A rápida eliminação do livro, o crescimento sustentado da iliteracia
funcional são igualmente importantes na eliminação da liberdade, sem que
as pessoas em geral se dêem conta. Tudo aparentemente grátis, mas
rigidamente controlado. Adquire-se assim, tudo gratuitamente, mas somente
aquilo que o sistema quer que as pessoas saibam.
Se a tudo isso associarmos um controle sobre a economia através do
sistema financeiro, e houver a manutenção de uma casta de lumpens
burocratas, bem pagos, como elite política, mantendo-a praticamente sem
mudanças ao longo dos anos, teremos um sistema ditatorial com aparência
democrática que, aliado a uma poderosa tecnologia de controle e vigilância,
torna-se numa democracia totalitária.
Então, aquilo que os ditadores fascistas pregavam - a voz da maioria pode ser livremente desenhada levando as pessoas a acreditar que estão a
seguir o pensamento de uma maioria.
A verdade está sempre inevitavelmente ligada à liberdade e à crítica.
Nenhum regime ditatorial aceita a crítica, e muito menos a auto-crítica.
A censura, o patrulhamento ideológico, a proibição de palavras e
expressões, ao limitar a liberdade de expressão e intimidar a liberdade de
pensamento, condena a liberdade negativa, estabelecendo as premissas
fundamentais para o estabelecimento e manutenção da tirania, da ditadura,
do totalitarismo.
Nenhuma tirania sobrevive à liberdade negativa.
A liberdade negativa é, portanto, a verdadeira expressão da liberdade,
pois a positiva implica sempre a sua limitação exercida por um poder
superior.
E ela é garantida pela Declaração Universal dos Direitos Humanos,
adoptada em 1948 e assumida na forma de Lei por 193 países, seus
membros. O seu Artigo 19 determina que "todos têm direito à liberdade de
opinião e de expressão; este direito inclui a liberdade de ter opiniões livres de
qualquer interferência, e de buscar, receber e transmitir informações e ideias
por quaisquer meios e independentemente de fronteiras".
O direito à livre expressão de pensamento é acompanhado pelo direito
à livre mobilidade - pois, afinal, se as pessoas se tornarem, por algum
motivo, de alguma forma prisioneiras, não poderão conhecer diferentes
realidades e não serão capazes de discutir livremente para, assim, melhor
poder julgar e se aproximar da verdade. Dessa forma, no Artigo 13 da
Declaração Universal dos Direitos Humanos também é determinado que
"toda pessoa tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das
fronteiras de cada Estado. Toda pessoa tem o direito de sair de qualquer
país, inclusive o seu, e de retornar ao seu país". Entretanto, a excepção aqui
pode ser encontrada no crime. O crime estabelece uma espécie de violação
da liberdade, impondo externamente às pessoas, pela força, uma limitação à
sua vontade.
Eurípides, grande dramaturgo Grego que viveu entre cerca de 480 aC
e cerca de 406 aC - cerca de cinquenta anos mais velho que Platão - já
percebia exatamente o quê significava a limitação da liberdade de expressão
e de pensamento. Na sua peça A Mulher Fenícia é dito: "Não falar o seu
próprio ponto de vista é escravatura!".
Dois mil anos depois, no século XVII, o grande poeta Inglês John Milton
protestava na sua obra Areopagitica, discurso sobre a liberdade de
expressão, contra qualquer tipo de censura, realizado no Parlamento Inglês
em 1644: “Dá-me a liberdade de saber, de dizer e de argumentar livremente
de acordo com a consciência, acima de todas as liberdades”.
Joseph Beuys, grande mestre Alemão que Ernesto de Sousa muito
admirava e o conhecia, dizia: "Tornar as pessoas livres é o objectivo da arte,
portanto considero a arte como a ciência da liberdade".
E m Silence, publicado em 1961, John Cage - que foi uma referência
central para o Jorge Peixinho - dizia: "Os artistas falam muito sobre
liberdade. Então, relembrando a expressão 'livre como um pássaro', certo dia
Morton Feldman foi a um parque e passou algum tempo observando nossos
amigos emplumados. Quando voltou, ele disse: 'Sabes? Eles não estão
livres: estão a lutar por pedaços de comida'".
O futuro apenas pode existir com a liberdade - pois ela nos possibilita o
questionamento contínuo sobre o presente, sobre o mundo e sobre nós
próprios.
Todas as vezes que diminui a liberdade, as pessoas deixam de se
orientar para o futuro. Então, tudo se torna passado.
Quando a liberdade desaparece, a música do futuro, assim como a arte
enquanto crítica da cultura - e não como decoração, propaganda de qualquer
tipo, panfletagem ou ilustração - também tendem a desaparecer.
Essa era a questão essencial de uma época: a liberdade.
E esse era o elo espiritual que unia Jorge Peixinho e Ernesto de Sousa.
A desobediência é o verdadeiro fundamento da liberdade. Os obedientes devem ser
escravos.
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