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Como eu (não) escrevo – entrevista concedida a José Nunes

2021, Como eu escrevo

Entrevista para o site "Como eu escrevo", de José Nunes. Disponível em: https://comoeuescrevo.com/rodrigo-b-carrijo/

como eu escrevo Como escreve Rodrigo B. Carrijo Rodrigo B. Carrijo é tradutor e editor, mestre em Letras pela PUC-Rio e graduado em Teoria do Teatro pela UNIRIO. Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal? ( José, recebi o seu convite em maio de 2018 – há exatos três anos, portanto. Por que demorei tanto a respondê-lo? Talvez porque aguardasse a chegada de um período em minha vida em que eu tivesse, de fato, não só uma rotina mais ou menos ajustada, mas também um projeto de vida melhor delineado. Um projeto que justi casse uma entrevista, digamos assim. Talvez também por um certo medo de exposição; medo que, tantas vezes, para mim, vem a se materializar via ansiedade e múltiplas formas de bloqueio. Suas perguntas, no entanto, caram comigo nesse tempo. E também o questionamento em torno da minha procrastinação para respondê-las. O que me leva a dizer, de saída, o seguinte: falo hoje, agora, aqui, porque entendi que o tempo da rotina ajustada ou de um projeto de vida muito bem delineado apresenta-se para mim, por ora, como cção; falo da perspectiva de alguém que tem sobrevivido no e pelo deslocamento (geográ co, disciplinar, social); no e pelo erro; que não se identi ca por associação a uma instituição ou campo de nidos; que está ora cá, ora lá; que está tradutor aqui e pesquisador ali; que ainda persegue, não sem assombro e dúvida, seus objetos de desejo. Falo como leitor, como pessoa que toma notas e busca observar o mundo e as coisas com alguma atenção. E como quem, en m, decide reler seu questionário e respondê-lo mesmo sem saber de justi cativas.) Se tenho uma rotina matinal? Talvez o que se coloque para mim nesses termos sejam alguns pequeno rituais que, a despeito das circunstâncias, tendem a permanecer comigo: acordar, tomar um banho, preparar o café, falar o mínimo possível, abrir o computador acompanhado do café sem açúcar, tomar a medicação, ler o jornal – ou simplesmente ignorar as notícias, como sinto necessidade em certos períodos e sem culpa alguma –, ler os e-mails, checar as redes sociais e, en m, começar a trabalhar. Sinto também uma enorme necessidade de car sozinho pela manhã, e não apenas em silêncio. Não sei explicar exatamente o motivo. É como se a minha cabeça e meu humor precisassem de um tempo para se ajustar ao dia e à sociabilidade. Talvez por isso evite marcar compromissos logo cedo. Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita? Já tive períodos em que avançava a madrugada trabalhando e meu dia começava sempre tarde, por volta do meio-dia. Hoje, acordo por volta das 8 horas e trabalho bem pela manhã. Não gosto muito da tarde, sobretudo em dias quentes; tendo a ter menos vigor para o trabalho entre uma e quatro da tarde. Ainda assim, se o trabalho em questão me estimula e há café em casa, supero esse desânimo com facilidade. De qualquer forma, tratam-se apenas de constatações – enquanto há trabalho, dá-se um jeito. Não tenho rituais especí cos de preparação para a escrita. Se há algum texto a ser traduzido, o trabalho começa logo após os meus pequenos rituais pela manhã. O mesmo acontece no caso de artigos, trabalhos acadêmicos, en m. Quando tomo notas em meus cadernos pessoais ou ensaio pequenas cções, geralmente já é noite e pre ro car sob luz baixa, no silêncio, enrolar um tabaco e tomar alguma bebida quente (chá, café com leite) ou álcool (uísque, vinho, cachaça, cerveja – o que tiver em casa). São preferências, no entanto, e não rituais que sigo religiosamente. Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária? Escrevo todos os dias. Às vezes são apenas breves notas em meu caderno pessoal, outras são longos e-mails (mantenho trocas epistolares com alguns amigos queridos). Quando estou envolvido em algum projeto de escrita em particular – um artigo, uma tradução ou uma resenha, por exemplo –, costumo sim trabalhar com metas diárias. O que não quer dizer que funcionem. No caso das traduções, que é o que eu mais tenho feito no momento, minhas metas costumam ser semanais (e estabelecidas pelos clientes), o que signi ca que acabo conseguindo alguma exibilidade no geral. Mas sou/estou freelancer, ou seja, minha vida muda de acordo com o projeto do momento. Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas su cientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita? É preciso antes considerar o tipo de texto que está em questão. Quando escrevo textos acadêmicos ou resenhas, preciso ter em mãos uma quantidade razoável de notas. Essas notas, quase sempre redigidas no computador, mas às vezes também feitas à mão, em folhas de papel A4 divididas ao meio, incluem citações dos textos lidos e breves comentários. Uma vez reunidas, começo a projetar a estrutura do texto, seja no próprio editor de texto do computador ou colando anotações e imagens na parede – uma forma encontrada para visualizar o caos e fazer os arranjos possíveis. Na maior parte das vezes não consigo organizar uma estrutura muito rígida; anoto então uma sequência de pontos que pretendo abordar, incluindo autoras ou autores, temas e questões principais. Talvez porque eu busque quase sempre estar sob a in uência do ensaio, torna-se muito difícil – e mesmo contraditório – escrever a partir de um trajeto muito bem de nido, com uma espécie mapa e destino já traçados a priori. Assim, com as notas em mãos, em geral a coisa só começa mesmo a tomar forma quando tomo a coragem de traçar a primeira linha. E então, perseguindo os pontos anotados, começo a montar, e ao nal sempre se chega a algum lugar – nunca de nitivo, nunca exatamente conclusivo. Gosto de pensar, nesse sentido, como Cynthia Ozick, que descreve o ensaio como “o movimento de uma mente livre quando brinca”, como “o zunido do perpétuo perceber”, como um “ato de ruminação.” Sendo ou não um ensaio, é nesse espírito, ou a partir dele, que busco dar movimento à minha escrita. No caso de textos ccionais, a história é outra. Escrevo desde muito jovem, mas a maior parte jogo fora ou vai para a gaveta – no caso, várias pastas no computador. Nessas pastas há sobretudo arquivos de texto onde me proponho, muito livremente, a experimentar algumas formas. No âmbito da cção, sinto-me ainda como que armando uma convicção, domando um certo medo ou coragem. Só sei que não tenho pressa alguma e, nisso, há uma grande dose de intuição. Talvez nunca venha a publicar, e não vejo qualquer problema nisso. Há, por m, o caso da tradução, que é também um processo de escrita indissociável da criação. Poucas vezes traduzi textos que realmente me interessavam – como foram os casos, por exemplo, de uma entrevista com Jacques Rancière (publicado na revista Ensaia), de uma palestra de Heiner Goebbels (publicado na revista Questão de Crítica) e de um ensaio de Naoki Sakai (no prelo, a ser publicado em breve pela Zazie Edições). Antes do processo de escrita de traduções dessa natureza, faço sempre uma primeira leitura, em seguida a pesquisa que o trabalho em questão suscita e, então, após pelo menos duas ou três releituras, começo a traduzir. Quando possível e necessário, entro em contato com os autores para discutir questões especí cas (foi o caso de Rancière e Goebbels). Pre ro ir sempre devagar, evitando chegar à próxima página antes de ter encontrado a solução para algum ponto da página anterior. Muitas vezes, porém, é preciso avançar e deixar-se levar pelo texto, mesmo com dúvidas ou imprecisões (sempre marcadas); testar uma palavra para só depois perceber uma outra, melhor aos ouvidos e ao sentido, retornando depois ao início do texto e ajustando os termos e o tom. O que mais tenho traduzido atualmente, no entanto, e por uma razão sobretudo nanceira, são textos quase sempre fora do meu escopo de interesse pessoal. Manuais e descrições de produtos de sites de e-commerce, aplicativos de todo tipo, jogos, artigos de autoajuda, apresentações de Power Point, peças publicitárias, en m. Em geral, essas traduções exigem um ritmo mais acelerado e uma sagacidade particular no manejo da língua, uma vez que é preciso aprender a lidar com a alternância de tons, vozes, terminologias e contextos distintos em prazos mínimos e quase sempre desfavoráveis à pesquisa, sem deixar de lado o mínimo rigor. Mas há algo nessa categoria de traduções que me agrada; não sei, mas talvez seja, entre outras coisas, a ausência de autoria (as traduções nunca são assinadas), que trama uma espécie de dissolução do eu e facilita, para mim, uma entrega menos desimpedida ao trabalho. Isto é, há muito menos chances de bloqueios porque, no meu caso, quando surgem, eles parecem ter origem nas relações que estabeleço entre o outro e a ideia que elaboro de mim mesmo. Sem dizer que, sendo textos em nenhum lugar aproximados do que me mobiliza do ponto de vista intelectual, não tenho chances de um envolvimento que não seja puramente técnico – novamente, o eu descansa. Por m, talvez também me agrade buscar algum traço de invenção onde ela parece improvável ou impossível. Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos? Por um lado, com a ajuda da análise, de medicamentos, de exercícios físicos e de meditação – os dois últimos, confesso, praticados apenas de maneira intermitente. Por outro, com a companhia dos amigos queridos (ainda que à distância, via chamadas de vídeo ou trocas de e-mails, como o atual momento nos obriga), com o apoio da família e com a alegria ter a minha vida com-dividida pela experiência do amor ao lado do meu companheiro. O medo está sempre ali batendo à porta, e basta um escorregão para que a gente se sucumba a ele. Cuidar do meu corpo, da minha saúde mental, e buscar estar próximo daqueles que me querem bem têm sido, para mim, as formas mais válidas de afastar os medos e de me aproximar daquele estado de ânimo necessário ao trabalho, à manutenção do desejo e à vida. Acontece, no entanto, com frequência, de ser necessário, ao invés de afastar-me, permitir-me ser atravessado pela ansiedade ou pelo medo. Deixar que a coisa me percorra, sem luta, e depois vá embora. Com a tristeza, porém, a coisa talvez siga numa direção oposta, como numa convivência. Com o tempo, aprendi a me desvencilhar de uma certa urgência de alegria contínua que, de tantas formas, nos é colocada. E, nesse ponto, lembro-me sempre de Pélias, citado por Barthes em “Fragmentos de um discurso amoroso”: “Estou feliz sim, mas estou triste”. Essa citação – essa ideia – é uma companhia constante. Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Sou um revisor obsessivo. Não sei bem precisar quantas vezes reviso um texto meu ou tradução uma vez que esse processo começa já durante a escrita – terminado um parágrafo, já começo a ajustá-lo, para então seguir ao próximo. Depois, releio algumas vezes, faço ajustes, mas tudo isso depende muito do tipo de texto em que estou trabalhando. E também, é claro, dos prazos, sem os quais eu talvez permanecesse debruçado sobre certos textos inde nidamente. Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Se pegasse agora o meu caderno atual, encontraria alguns pares de ideias. Porque gosto de anotar ideias de projetos ainda que não tenha a intenção de concretizá-los. Respondendo mais diretamente a sua pergunta, no entanto, diria que gostaria muito de traduzir cção – e, mais precisamente, prosa. Não que ainda não tenha traduzido, tenho um pequeno acervo de experimentos de tradução de formas breves ou trechos de romances. Pequeno mesmo, porque que também traduzo às vezes apenas para em seguida jogar fora. Mas ainda não encontrei esse projeto maior, essa autora ou autor, ou então o entusiasmo necessário para levar a coisa adiante. Talvez seja o caso de pensar nisso para um doutorado; trata-se de algo que venho conjecturando, pelo menos, mas que pode desaparecer a qualquer hora.