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Pentesiléia e O Projeto Amazonas

Revista Rascunhos - Caminhos da Pesquisa em Artes Cênicas

Título: Pentesiléia e o Projeto Amazonas: duplo olhar para uma dramaturgia – [com] Um fragmento de diálogo à distância com Thierry Salmon Resumo: Escrito a partir dos registros observados em seu caderno de anotações, este texto funciona como um memorial lacunar das ações criativas empreendidas durante os processos de criações dramatúrgico e espetacular de “O assalto ao céu”. O texto é acompanhado por um fragmento de diálogo com Thierry Salmon, que deixa alguns rastros sobre as questões norteadoras de seus interesses artísticos. Palavras-chave: Thierry Salmon, Renata Molinari, Dramaturgia, Encenação, Teatro.   Titolo: Pentesilea e il Progetto Amazzone: doppio sguardo per una drammaturgia – con un frammento di dialogo a distanza con Thierry Salmon  Riassunto: Scritto a partire dalle annotazioni sul proprio taccuino di lavoro, questo testo si presenta come una traccia frammentata delle azioni creative messe in moto durante il percorso di creazione drammaturgica e spettacolare de L’assa...

DOI: 10.14393/RR-v6n1-2019-07 PENTESILÉIA E O PROJETO AMAZONAS: duplo olhar para uma dramaturgia – [com] Um fragmento de diálogo à distância com Thierry Salmon1 por Renata M. Molinari A desgraça, dizem, purifica as almas. Para mim, minha cara, foi diferente; ela me exasperou e impulsionou, em uma paixão misteriosa, a me revoltar contra os homens e os deuses. Estranho: a alegria, onde quer que eu a encontrasse, em cada rosto, me foi odiosa; o menino que brincava no colo da mãe parecia conspirar contra a minha dor. Como eu gostaria agora, em vez, de ver em torno a mim todos felizes! Amiga, o homem pode ser grande na dor, mas é divino quando é feliz! Heinrich Von Kleist (Pentesiléia, cena 14) Uma pausa do trabalho 1 * Tradução: Eduardo De Paula, Maurício Paroni de Castro; Colaboração: Renata Margherita Molinari. ** Publicação autorizada pela autora. *** MOLINARI, Renata M. Pentesilea e il Progetto Amazzone: doppio sguardo per una drammaturgia – [con] un frammento di dialogo a distanza con Thierry Salmon; in Progetto Amazzone - cancro al seno, realtà e mito tra scienza e teatro; a cura di Anna Barbera e Lina Prosa. Palermo: Arlenika, 1996. Rascunhos | Uberlândia, MG | v.6 | n.1 | p. 119-129 | jan./jun.2019 | ISSN 2358-3703 PENTESILÉIA E O PROJETO AMAZONAS Renata M. Molinari 120 São múltiplos os impulsos que guiam o movimento para a dramaturgia desta Pentesiléia no Progetto Amazzone. Impulsos que nem sempre tornam o passo fixo, equilibrado no fio teso entre projeto e obra, entre a fidelidade aos percursos pessoais – com as suas cargas de intimidade e socialidade, de escolhas e condições, de prejuízos e valores – e a formalização de um gesto público, gesto “próprio” como pode ser aquele teatral: claro na sua função e adequado à economia do espetáculo, e ao mesmo tempo personalíssimo prolongamento de um movimento interior. Impulsos múltiplos, dizia. Em primeiro lugar um encontro, aquele com Lina Prosa e Anna Barbera. O contexto, aquele de um congresso sobre a escrita feminina em um “teatro de mulheres” todo por reformular. Aconteceu há dois anos, apenas dois, longuíssimos anos. O encontro foi seguido do convite a uma terra que não é minha, a uma situação a mim cara e familiar, aquela de um laboratório teatral. Na situação específica, tratava-se do Laboratório de Monreale, conduzido por Anna e Linna, e de uma revisão a ele ligada. Revisão que já no título – “As obras e os dias” – refere-se à poesia, e não apenas à memória, das raízes e ao compromisso de um trabalho cotidiano que não se rende à realidade das convenções sociais e teatrais. Potência do laboratório, quando este não se reduz à gêneros teatrais, mas é restituído às necessidades de sentido de quem o pratica. O laboratório de Monreale se apresentou como uma casa louca do teatro, entre os hábitos do profissionalismo e as exigências de um diletantismo sui generis que reafirma o valor do fazer teatral; tudo em uma extensão da prática cênica a partir das raízes relativas às experiências dos seus artífices: experiência atualíssima – gostaria de dizer pós-moderna, em sentido social – e ainda fortemente arcaica, como pode ser uma viagem dentro das razões mais íntimas do nosso fazer. Rascunhos | Uberlândia, MG | v.6 | n.1 | p.119-129 | jan./jun.2019 | ISSN 2358-3703 PENTESILÉIA E O PROJETO AMAZONAS Renata M. Molinari 121 O sonho do Teatro “para quem o faz”, que leva à consciência dos “outros” (espectadores, clientes, visitadores) a um tempo digno do sujeito da experiência e do valor do veículo – poético e teatral – de tal experiência. O todo intercalado por leituras calorosas de textos, junto ao desencanto da fronteira extrema do moderno e de suas dilacerações, a magia e a obsessão de seduções míticas obstinadamente seguidas, também, dentro da realidade mais hostil e degradada. Seguidas correrias alegres e irônicas projeções sobre a cena da viagem e da acolhida, gestos de antiga e generosa hospitalidade, vozes roubadas das lendas e prontas para deslizar – a fazê-lo deslizar – na armadilha muito bem conhecida do lugar comum e do óbvio. A generosidade em colocar – literalmente – à disposição as reciprocas descobertas, a tranquilidade de um estar bem que basta para nomear a amizade, a hospitalidade e o cuidado, tranquilizadores e coercitivos ao mesmo tempo, prontos para proteger a relação presente, à custo de imobilizá-la na idade mágica de uma infância sem possibilidade de transformação. Cenas de vida cotidiana no raro brotar de confiança. Acima de tudo, ainda mais sob o sol mediterrâneo, a voz e os rasgos repentinos que fazem das ruas de Palermo verdadeiros e particulares cenários de conhecimento. Um tique-taque de passos tranquilos e curiosos, que guiam ao se manifestar repentinos e esperados, dos edifícios mais caros, não monumentos, mas moradias: de espíritos, olhares, viajantes distantes, inquietude presente. E o céu, inesperado sótão atrás das janelas desentranhadas do centro: ninguém sabe quem sofreu o insulto mais violento, que avança rasgante, como um repentino insinuar-se de matérias e figuras sobrepostas. E então os encontros, quase sempre difíceis – mas “somos todos aperfeiçoáveis” continua a me repetir, com o sorriso de um encontro distante e irrepetível, Nino Gennaro – raramente resolvidos na banalidade da rotina cotidiana do visitador. Pode parecer fora de medida esta minha introdução ao projeto; o fato é que agora estou aqui, nos galpões da Zisa, em frente ao caderno de anotações, na tentativa de dar ordem às minhas notas de dramaturgia para um projeto aparentemente maior Rascunhos | Uberlândia, MG | v.6 | n.1 | p.119-129 | jan./jun.2019 | ISSN 2358-3703 PENTESILÉIA E O PROJETO AMAZONAS Renata M. Molinari 122 que um espetáculo, e me pregunto qual movimento me trouxe a estes galpões. Estou aqui, sentada à mesa de nossas refeições improvisada, atrás uma porta de madeira que enquadra o barco da festa de Santa Rosália, está ali abandonado sob uma parede de chapas envelhecidas. Ao lado da gruta da Santa, as folhagens já secas, sobre um carro de rodas vermelhas. Estão mesmo ali sob os ricos ramos de um arbusto cheio de vida (me disse o responsável dos trabalhos que se trata de um sumagre, “as folhas servem para curtir as peles”, acrescentou depois de qualquer reflexão à meia voz, quase para reencontrar na memória a habitual medida deste elemento da paisagem – da árvore summãq, acrescenta à distância o dicionário, o arcaico sumagre serve para identificar a pelagem ou o couro curtido com as folhas do arbusto. Potência de um enquadramento nos canteiros da Zisa…!) Pois bem, se estou aqui procurando definir e fixar os impulsos que me conduziram a este trabalho sobre Pentesiléia, a primeira imagem que surge – não apenas cronologicamente – é aquela de dois sorrisos femininos em rostos severos, iluminados por flashs de repentinas e bem comprovadas ironias, e junto e atrás delas o cintilar da noite sobre as pedras das ruas de Palermo. Apesar de tudo – as dificuldades, as incompreensões, o cansaço, a distância. *** Este primeiro impulso se transforma, com confiança e expectativa, em uma proposta: aquela de participar do Progetto Amazzone. Um projeto que encontra a sua necessidade fora do Teatro e das suas convenções, na experiência da dor e no mistério da doença, e sobretudo na vontade e capacidade de fazer desta experiência uma força de transformação, uma chamada à solidariedade e ao compromisso. E é aqui mesmo, na tensão verso a transformação, na possiblidade prevista e desejada de mudança, que volta ao jogo na instância teatral. Porque este projeto que nasce fora das cenas reconhece no teatro a qualidade antiga de constituir-se como lugar de elaboração comum de um pensamento, e ainda como prática que permite se reconhecer como coletivo, em grau de regenerar mitos e dar formas comuns e “comunicáveis” às imagens que em tais coletivos se movem. Rascunhos | Uberlândia, MG | v.6 | n.1 | p.119-129 | jan./jun.2019 | ISSN 2358-3703 PENTESILÉIA E O PROJETO AMAZONAS Renata M. Molinari 123 Teatro, como lugar de um pensamento em ação, que fala através dos corpos, dos comportamentos, das experiências contemporâneas de seus atores. Está em jogo uma pesquisa que ousa nominar e colocar em ação duas tensões fundamentais não apenas das artes cênicas: colocar as competências profissionais, técnicas artísticas ao serviço de um projeto de vida, e de outro lado buscar e valorizar em um lugar isolado, mas com função e vocação pública, “aquilo que teatro não é, mas o alimenta” (Antonio Neiwiller). Procurar e construir aquele gesto público, aquela obra que pode restituir em forma de arte, as razões, as necessidades que nutrem e determinam a ação dos seus artífices; se coloca à prova a possibilidade de revelar – sem exibicionismos e complacências – a intimidade de um percurso de outro modo forçado à solidão de uma história privada marcada pelo isolamento do desconforto, e da cotidiana opressão da indiferença. *** Fazer teatro a partir “daquilo que teatro não é, mas o alimenta”, reconhecer na “experiência da realidade” do ator o elemento que dá forma, qualidade e sentido a um determinado modo de dizer uma fala, de nutrir um comportamento, de “administrar a cena”. Com estas palavras Antonio Neiwiller formula – como artista – os elementos constitutivos de uma prática de trabalho que alimenta vertentes vitais de pesquisas e férteis tramas de relações no teatro dos nossos anos.2 Estamos de frente àquela “cultura ativa” (a expressão é de Jerzy Grotowski, na fase de “saída” ou interrogação do teatro) que hoje mais do que nunca se coloca como a definição do território humano do teatro. Um território, que além das formulações teóricas e poéticas dos mestres e dos companheiros de viagem mais ou menos próximos, para mim significa sobretudo a experiência de trabalho com Thierry Salmon. E para Thierry, por convergência “natural” de percursos diversos, chega o núcleo teatral deste projeto. As citações de Antonio Neiwiller aqui reportadas derivam de uma aula-conversa registrada em Milão em 1990, junto à Universidade Católica (nota da autora). 2 Rascunhos | Uberlândia, MG | v.6 | n.1 | p.119-129 | jan./jun.2019 | ISSN 2358-3703 PENTESILÉIA E O PROJETO AMAZONAS Renata M. Molinari 124 Daqui mesmo, desta premissa poética e desta terra, há oito anos era iniciada, com Thierry, uma extraordinária aventura teatral, através do canto e do corpo-memória (e experiência) das Troianas entre as ruínas de Gibellina. Marcas, traços, palavras e momentos de vida que se cruzam, quase por necessidade interna, para construir relações sempre mais articuladas e profundas: porque a real relação está sempre aberta a novos encontros, a novas possibilidades, personalíssimas e comuns, assim ao menos eu a imagino. E é uma outra utopia que a força deste projeto contribui para despertar no mesmo momento em que a coloca em prova. A relação vida-representação é certamente a mais delicada na prática teatral, mas dizer que “a matéria viva de um ator não é teatro, mas o alimenta... alguma coisa que pertence à vida e entra no teatro” significa não apenas colocar o problema da relação entre ator e personagem ou função (memória física e emotiva do ator e perspectiva do personagem, motores da ação e lógica das situações cênicas...), mas também interrogar-se sobre as razões e as condições de uma pesquisa “através” do teatro, fazendo explodir o tema espinhosíssimo dos tempos e das condições de tais pesquisas, ou – se quisermos ser mais explícitos – dos tempos e dos modos da produção teatral. Eis os longos, “escandalosos” détour de Thierry Salmon em direção ao espetáculo, aqueles “procedimentos indiretos”, para citar outra vez Antonio Neiwiller que consente à obra de ser mais próxima da vida. Nesta dimensão o tempo dos ensaios se torna a condição dos ensaios: não se trata de exibir em cena, a partir de um texto, as vivências pessoais, mas de criar as condições para que elas, se organizando e se transformando, revelem as suas profundas e elementares relações com o tema (o mito?) enfrentado. O teatro de Thierry Salmon, aquele que juntos buscamos, é um longo percurso de trabalho que, conduzindo até o espetáculo, constrói as condições de viver um lugar, abitar uma experiência. Através da lenta, paciente, às vezes dolorosa construção de um alfabeto comum, no qual as vivências, as emoções e os saberes pessoais se tornam escritura coletiva para contar o enraizamento, a possibilidade de morada, em uma terra de escolhas. Rascunhos | Uberlândia, MG | v.6 | n.1 | p.119-129 | jan./jun.2019 | ISSN 2358-3703 PENTESILÉIA E O PROJETO AMAZONAS Renata M. Molinari 125 Um percurso de construção artística que exige “critérios e métodos de trabalho particulares, para os quais o lugar isolado (chamados laboratório, oficina, ou como quisermos) é fundamental” na consciência de que “o lugar isolado é seguramente separado daqueles que são os modelos de produção, distribuição e troca nos quais o teatro hoje está inserido”. (Antonio Neiwiller) É uma consciência que não pode ser evitada e que seguramente merece ser colocada em evidência no coração mesmo de um projeto “anômalo”, como aquele que nos diz respeito. *** Voltemos agora ao espetáculo, à sua relação com o Progetto Amazzone: o teatro como pensamento ativo em torno a um núcleo de temas e de experiências. Entre esses surge, em primeiro lugar, a condição feminina em torno à qual se mobiliza por inteiro o Progetto Amazzone: uma condição de doença, de ferida, de mutilação física e social. E, com esta as censuras, as fantasias, as ações e as imagens por ela ativadas. Simbologias pessoais e coletivas que se nomeiam através do mito das Amazonas, ou melhor, das mitologias em torno às Amazonas: um imaginário coletivo que através das aventuras do tempo, antes ainda que nas formas de arte, acompanha explorações e conquistas, aventuras no desconhecido e nos sonhos de enraizamento. O imaginário e as histórias, os quais a arte dá forma, sobre uma população de mulheres, um povo “apartado”, um povo sem país (mas hoje, este imaginário é apenas feminino?): o mistério e o fascínio de uma comunidade ameaçadora na sua declaração de autossuficiência, inquietante na sua força, sedutora na sua beleza. Uma população de criaturas que acentuam o mistério da diferença mutilando o sinal próprio de tal diferença. Aquilo que nos atrai para o interno do território das amazonas é um desequilíbrio dentro do desequilíbrio; qual seja, o ponto de partida, a unilateralidade das Amazonas nos conduz, outra vez, a abordar o tema do masculino e do feminino, no sinal da diferença e do sonho de integridade e da perfeição do inteiro. E entre as lendas das Amazonas, escolhemos a mais escandalosa e sublime, a Pentesiléia de Kleist: poesia de identidade e da laceração, na história de uma dança Rascunhos | Uberlândia, MG | v.6 | n.1 | p.119-129 | jan./jun.2019 | ISSN 2358-3703 PENTESILÉIA E O PROJETO AMAZONAS Renata M. Molinari 126 de guerra para o outro de si, dolorosamente e amorosamente necessário à própria definição, mais do que à própria conclusão. Ao delinear temas e situações, no texto de Kleist e através das imagens das atrizes e dos atores chamados para dar corpo e vida às “palavras do horrível mistério” (Pentesiléia, cena 22), encontramo-nos defronte a uma matéria enorme, difícil de gerir, ligada como é a uma forma poética que não admite aproximações, ligada como é às razões do nosso estar aqui. Entre as tantas dificuldades, uma nos acompanha de modo atento: todo espetáculo dentro de um projeto corre o risco de ser um espetáculo de opiniões. Mas isto significaria matar o trabalho teatral e com ele a vida de quem – estrangeiro ou nativo - o realiza. Na percepção deste perigo, nos conforta repetir que não existe megafone que nos mantenha defronte ao mistério. Aquilo que um espetáculo pode fazer, nesta condição particular de trabalho e de projeto, é predisporse à escuta, tornar possível as perguntas, deixar que elas se reformulem, aceitá-las na sabedoria e na discrição dos corpos que as propõem; silenciar, para que a pergunta mais frágil, a resposta mais pudica, possam encontrar a própria voz. *** E enquanto meu olhar acompanha as “pequenas mãos” (cena 2) de Pentesiléia no seu “assalto ao céu” (cena 9), e um “sonho rosado” (cena 6) de paz dentro dos “fúnebres esplendores da guerra” (cena 20), recolho as imagens, as histórias, as cumplicidades e os ressentimentos dos primeiros meses de trabalho em direção à Pentesiléia. Acompanha-me o sonho de quem quis este projeto e a utopia concreta do trabalho de Thierry Salmon. E acompanham-me, ainda uma vez, as palavras de Antonio Neiwiller: aviso precioso, cheio de amor e desencanto, em uma tarefa assim exposta às tentações... Com estas palavras me despeço por enquanto do nosso “Assalto ao Céu”, e é uma despedida que deseja ser também uma dedicatória, ao artista e amigo. “O teatro não é tudo. Se não, não conseguimos entender. Se alguém tem uma ideia totalizante do teatro tudo se resolve a seu modo. Ao contrário, o teatro é apenas uma parte da tua vida, importante, constitutiva, mas não representa toda a tua vida. Rascunhos | Uberlândia, MG | v.6 | n.1 | p.119-129 | jan./jun.2019 | ISSN 2358-3703 PENTESILÉIA E O PROJETO AMAZONAS Renata M. Molinari 127 Então existe a necessidade de um duplo olhar, de observar tudo a partir de uma ótica mais vasta, mais ampla. Isto não faz mais do que enriquecer o elemento vital que então se tornará parte da representação. O duplo olhar pertence à visão de mundo e de existência de quem o pratica, de quem, de algum modo, consegue se ver dentro e fora da obra. Esta necessidade de observar e de observar-se, de observar a partir do externo aquilo que está fazendo e sentir este processo pertencer a alguma coisa de mais amplo, é alguma coisa que vai além do teatro, no entanto é também a sua profunda eticidade. Poderia partir daqui o discurso da sã humildade, à qual não somos muito habituados, e que é humildade que se constrói no tempo”. (Antonio Neiwiller) * Um fragmento de diálogo à distância com Thierry Salmon Quais são os motivos que te impulsionaram a aderir ao Projeto Amazonas e a escolher a Pentesiléia de Kleist? “A capacidade de Anna Barbera e Linna Prosa de construir a partir de uma experiência dolorosa, de fazer daquilo que geralmente se associa à destruição, uma ascensão. Este era já um elemento presente nas Troianas, encenado em Gibellina em 1988. Foi-me solicitado continuar alguma coisa, iniciada há alguns anos na Sicília, mas desta vez em Palermo, cidade de todas as possibilidades e de todas as impossibilidades. O interesse pelo corpo vivido, com a sua história, as suas cicatrizes, a evolução e transformação naturais, em oposição ao corpo-capital-beleza, o corpo falso das fotografias.” Rascunhos | Uberlândia, MG | v.6 | n.1 | p.119-129 | jan./jun.2019 | ISSN 2358-3703 PENTESILÉIA E O PROJETO AMAZONAS Renata M. Molinari 128 “A escolha da Pentesiléia de Kleist é devido ao fato que todos falam da impossibilidade de sua preparação e que já no tempo das ‘Premissas às Troianas’ (o estudo preparatório apresentado em Santarcangelo em 1986) eu estava incerto entre Eurípedes e Kleist. O espetáculo era extraído de um trecho da Cassandra de Christa Wolf que conta um encontro entre as Troianas e as Amazonas. Pareceu-me um sinal que da Sicília chegasse a proposta de realizar uma parte que tinha sido deixada dentro de mim.” Quais aspectos do seu trabalho acredita dever ou poder desenvolver, na construção deste espetáculo? “Posso dar atualmente apenas as linhas principais: O ritmo; O prazer, a leveza; A língua falada; A musicalidade do texto; Sonhar, a partir dos atores; Depois de tantos trabalhos só com atrizes, o trabalho com os atores, a relação entre os dois modos de ser, de construir; Estar inserido em uma cidade, a permeabilidade, os encontros; que uma necessidade possa encontrar uma outra necessidade.” Qual é o tema ou a pergunta que te interessa explorar através da Pentesiléia, também à luz do trabalho feito até agora? “A dinâmica dos comportamentos determinados pelo amor, pela paixão. Esta espécie de desenho invisível traçado por dois seres que não podem sair da folha de papel sobre a qual estão voluntariamente inscritos. As identidades masculina e feminina quando os esquemas são definitivamente desfeitos, a dificuldade de se tornar um homem que não seja mais simplesmente o Rascunhos | Uberlândia, MG | v.6 | n.1 | p.119-129 | jan./jun.2019 | ISSN 2358-3703 PENTESILÉIA E O PROJETO AMAZONAS Renata M. Molinari 129 inverso, o oposto da mulher; a solidão da nova mulher, a tentação do separatismo, (a sua sombra). De você/de mim. Os amores internacionais, sempre mais difusos, por via da queda das fronteiras, de uma facilidade de deslocamento que contemporaneamente determina um estado permanente, reunidos apenas pelas palavras telefônicas.” * REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA NEIWILLER, Antonio. Aula/conversa registrada em Milão [nota da autora; Renata M. Molinari]. Universidade Católica, 1990. Rascunhos | Uberlândia, MG | v.6 | n.1 | p.119-129 | jan./jun.2019 | ISSN 2358-3703