A Contra-Reforma em Portugal 1540-1700,
Federico Palomo, Lisboa, Livros Horizonte, 2006, 130 p.
Nota crítica à obra
Da leitura do último título de Federico Palomo, A Contra-Reforma em Portugal
1540-1700, julgaríamos à partida estar diante de uma obra que recuperasse o
conceito de Gegenreformation cunhado por Johan Stephan Pütter. Assim não é.
«Incorporado plenamente no vocabulário historiográfico, servimo-nos dele sem
qualquer intenção de atribuir-lhe o sentido ideológico e controversístico que
teve no passado. Tão-pouco o usamos com o intuito de colocar o acento em
determinados aspectos da Igreja pós-Tridentina – aqueles que caracterizaram a
luta antiprotestante – face aos que resultaram das suas aspirações de reforma»1.
O autor utiliza como grandes conceitos operativos os termos ‘disciplinamento
social’ e ‘confessionalização’, considerando-os produtivos para a «compreensão
alargada dos processos e fenómenos de natureza religiosa e eclesiástica que
tiveram lugar no Portugal dos séculos XVI e XVII»2. Como é sabido, os referidos
conceitos têm vindo, de certa forma, a trazer alguma renovação aos estudos de
história religiosa portuguesa, pelo menos desde os anos 80, muito sob o influxo
da historiografia italiana. Pensamos, nomeadamente, em Paolo Prodi e Palomo
del Barrio.
Traçando brevemente a genealogia dos conceitos, Palomo avoca Gerhard
Oestreich3 como o primeiro a falar de disciplinamento social, o que punha a
tónica nos factores de natureza humana, social e cultural, numa historiografia
política e institucional até então pouco aberta à sua consideração. Por outro lado,
esta ‘disciplina’ seria o elemento comum de um conjunto de processos políticos,
religiosos, sociais e culturais, liderados e postos em movimento ‘a partir de cima’
pelas elites.
Valerá a pena recordar que Oestreich estava fundamentalmente preocupado
com a centralização do poder por parte de monarcas absolutistas. Segundo o
Federico PALOMO, A Contra-Reforma em Portugal 1540-1700, Lisboa, Livros Horizonte, 2006, 10.
Federico PALOMO, A Contra-Reforma [...], ed. cit., 11.
Trata-se, como se sabe, de Gerhard OESTREICH, Strukturprobleme des europäischen Absolutismus, in
Geist und Gestald des frühmodern Staates, Berlin, Duncker & Humblot, 1969, 179-197.
1
2
3
175
Maria Helena Queirós
mesmo, a própria disciplina social teria sido uma das vitórias do absolutismo.
Sob o signo da auctoritas, da temperantia, da constantia e da disciplina, um grupo
de homens de Estado teria tomado o modelo da antiga Roma e, inspirando-se
na República e Império Romanos, ‘desteologizou’ os conflitos confessionais,
eliminando, eventualmente, as causas do próprio conflito. O triunfo do estado
absolutista seria, obviamente, o triunfo da política sobre a religião4. Crucial foi
também que em todo este processo o indivíduo tenha aprendido a interiorizar a
disciplina, numa relação que pressupõe aceitação da autoridade do soberano e das
leis do Estado e não imposição. A isto voltaremos.
A este propósito, cremos que Palomo poderia ter remontado a Max Weber
para desvelar um pouco mais a história e contornos do conceito de disciplina
social. Recordemos a distinção que faz entre Herrschaft (dominação) e Disziplin
(disciplina). Se o primeiro seria a probabilidade de encontrar obediência a uma
ordem de determinado conteúdo entre certas pessoas, o segundo comporta
a probabilidade de encontrar obediência para uma ordem por parte de um
conjunto de pessoas que, graças a certas atitudes enraizadas, seja imediata, simples
e automática. Toda a questão está, pois, na legitimação da disciplina, baseada em
consentimento e consenso alargado. Coerção seria um conceito insuficiente e que
pouco espelharia do fenómeno5.
Nos anos 70, com os trabalhos de Wolfgang Reinhard e Heinz Schilling,
passou a aplicar-se o conceito de disciplinamento às diferentes confissões religiosas,
sublinhando as relações muito próximas entre instituições religiosas e poder
político ao longo dos séculos XVI e XVII. Para o primeiro, Reforma protestante
e Contra-Reforma Católica têm em comum um mesmo processo denominado
‘confessionalização’, que teria tido como consequência a formação de grupos
confessionais homogéneos através de instrumentos de disciplinamento6.
Deixando de parte alguns aspectos da teorização de Reinhard e Schilling,
importa, contudo, salientar que, ao arrepio de Oestreich, não foi o estado
absolutista que ‘desteologizou’ o conflito confessional; o conflito confessional
entre protestantes e católicos introduziu teologia na formação político-social.
Como afirma lapidarmente Po-Chia Hsia, «La edad moderna no fue una
época de desteologización, sino más bien de enorme teologización en forma de
confesionalización7.» Retomaremos este ponto.
O estudo divide-se em 3 capítulos: «As Bases da Confessionalização Católica
4
Cf. Ronald Po-Chia HSIA, Disciplina social y catolicismo en la Europa de los siglos XVI y XVII, in
Manuscrits. Revista d’història moderna, número 25 (2007), 31.
5
Cf. Ronald Po-Chia HSIA, Disciplina social y catolicismo [...], art. cit., 31.
6
Foi Ernst Walter Zeeden – de quem Reinhard foi discípulo – o primeiro, nos anos 60, a notar a similitude
entre luteranismo, catolicismo e calvinismo e seu desenvolvimento em paralelo.
7
Ronald Po-Chia HSIA, Disciplina social y catolicismo [...], art. cit., 33.
176
A Contra-Reforma em Portugal 1540-1700, | Federico Palomo, Lisboa, Livros Horizonte,
2006, 130 p. | Nota crítica à obra
em Portugal: os Poderes»; «Conduzir as Condutas. Formas e Instrumentos de
Difusão do Discurso Religioso» e «Entre a Comunidade e o Sujeito. A Igreja e
as Populações do Antigo Regime. Devoções – Práticas – Comportamentos –
Heterodoxias». No primeiro, o autor analisa os dois poderes (Coroa e Igreja)
sobre os quais terá assentado a confessionalização da sociedade portuguesa. A
monarquia apoiava as directrizes uniformizadoras emanadas de Trento (15451563) como meio de aumentar a sua própria influência nos assuntos do foro
eclesiástico. Destaca-se a possibilidade de intervenção nos processos de eleição
dos bispos e dos provinciais e ordens sob a sua jurisdição. Por outro lado, com
a integração da Inquisição (1536) na administração, a Coroa viu aumentada a
sua capacidade de intervenção no controlo de potenciais focos de heterodoxia.
Quanto ao poder eclesiástico, este repousava em três tipos de instituições:
bispados, Inquisição e ordens. No que toca aos bispos, Palomo realça o papel
desempenhado pela paróquia depois do Concílio de Trento como ‘sucedâneo’
do poder régio dada a sua ampla presença no território. Esta ideia é muito
enfatizada. Não admira, pois, que a instrução dos curas tivesse sido um dos
objectivos primordiais da reforma, pese embora a disseminação de seminários
se tivesse produzido bastante mais tarde (séculos XVIII e XIX). Saem também
clarificadas obrigações de bispos; a visita pastoral erige-se em método por
excelência de controlo: do território, dos fiéis e dos próprios prelados.
Quanto à Inquisição, segundo Palomo, o cardeal D. Henrique foi o principal
obreiro do seu funcionamento entre 1540 e 1578. Aponta como seus objectivos
maiores a perseguição a potenciais focos de heresia e o controlo/censura de
escritos.
No que toca às ordens, a sua intensa acção apostólica e assistencial terá sido
responsável por um forte disciplinamento da população.
O segundo capítulo, «Conduzir as Condutas. Formas e Instrumentos de
Difusão do Discurso Religioso», põe todo o seu enfoque nos mecanismos
coercivo-punitivos (disciplinamento) e persuasivos (confessionalização) que
terão contribuído para a divulgação das directivas de Trento. São apontados
os recursos icónico-visuais como grandes fautores de divulgação doutrinária,
capazes de comover – e mover – os fiéis. O autor aborda a literatura didáctica
e espiritual, as práticas de leitura e a instrução como elementos daquilo que
o autor considera uma homogeneização doutrinal. Lembra a generalização
da catequese, obrigatória a partir de 1564, e o carácter decisivo da pregação
na doutrinação. Por fim, o autor chama a atenção para o papel das missões
do interior na transmissão da fé católica e na administração da confissão, que
se tornou «o instrumento mais poderoso da acção desenvolvida pela Igreja
177
Maria Helena Queirós
do período moderno»8, verdadeiro elemento de domínio sobre a povoação,
gradualmente tendendo para um aspecto mais consolador.
No terceiro capítulo, «Entre a Comunidade e o Sujeito. A Igreja e as
Populações do Antigo Regime. Devoções – Práticas – Comportamentos
– Heterodoxias», Palomo pesa, por assim dizer, os resultados do discurso da
Igreja portuguesa sobre as práticas enraizadas quotidianas dos crentes. Ou talvez
melhor: «a existência de dinâmicas e articulações entre a persistência de práticas
e comportamentos tradicionais e bem enraizados nas populações [...]» face-aface com «o progressivo avanço do personalismo religioso e moral defendido
pelo discurso pós-tridentino9.» Põe em relevo a coexistência da transformação
de imagens em objectos de uma religiosidade votiva local com os grandes
modelos devocionais difundidos pela Igreja: Cristo e a Virgem. Frequentemente
produziu-se um certo choque com as autoridades eclesiásticas, que se depararam
com um forte atrito entre as populações, na tentativa de circunscrever/travar
peregrinações a santuários locais fora da sua jurisdição ou celebrações de carácter
votivo.
Depois de Trento, como é consabido, o modelo de santidade passa a
enfatizar um sem-número de virtudes cristãs. A este propósito, o autor não
esquece a questão da santidade fingida. Aborda, claro está, a acção da Igreja
contra as práticas judaizantes, o Islão, os cristãos-novos e a feitiçaria. Por
fim, são abordadas as alterações introduzidas por Trento aos sacramentos do
baptismo e do matrimónio e como estes terão influído numa certa atenuação
do corporativismo horizontal característico das sociedades de Antigo Regime.
A obra de Federico Palomo pretende ser uma «visão breve e de conjunto sobre
[o catolicismo moderno no contexto português dos séculos XVI e XVII]10», no
que toca à metrópole. Este objectivo é cumprido rigorosamente, fazendo jus,
aliás, à tipologia de em que se insere: a Colecção Temas de História de Portugal.
Fundada sobre aqueles dois conceitos, oferece uma visão de conjunto até agora
inexistente – tanto quanto sabemos – na historiografia portuguesa.
Enferma, contudo, de dois males, o segundo derivando do primeiro. Por um
lado, Palomo refere-se, na Introdução, à necessidade de matizar certos aspectos
da teorização alemã11, mas a verdade é que, ao longo da obra, nunca o faz. Deste
problema, que começa por ser de coerência científica, deriva um outro que será
Federico PALOMO, A Contra-Reforma [...], ed. cit., 15.
Federico PALOMO, A Contra-Reforma [...], ed. cit., 129.
10
Federico PALOMO, A Contra-Reforma [...], ed. cit., 10.
11
«É preciso frisar, no entanto, que o quadro de interpretação que decorre destas duas categorias também
não deixou de suscitar controvérsias, em particular no que diz respeito à eficácia dos dispositivos que
desenvolveram os diferentes grupos e poderes empenhados em tais processos. Neste sentido, a escala de
análise é, certamente, um elemento a ter em consideração, dado que obriga, muitas vezes, a introduzir matizes
[...]» (Federico PALOMO, A Contra-Reforma [...], ed. cit., 13).
8
9
178
A Contra-Reforma em Portugal 1540-1700, | Federico Palomo, Lisboa, Livros Horizonte,
2006, 130 p. | Nota crítica à obra
o da pouca sustentabilidade de uma tal concepção aplicada ao caso português.
Assim, para o conhecimento da realidade política, religiosa e social
portuguesa, embora admitamos a utilidade12 dos conceitos de confessionalização
– este, contudo, de escassa aplicação – e disciplinamento – o que, de resto,
também notou Palomo13 –, é forçoso introduzir-lhes importantes salvaguardas.
Isto mesmo já foi observado noutro lugar. São elas:
1. embora admitindo como válida a constatação de que os caminhos seguidos
pelas diversas confissões tivessem tido rumos idênticos, isso não anula o facto
de que no seio do Cristianismo se criaram duas vias distintas – profundamente
distintas – do ponto de vista religioso e cultural e que, por conseguinte, a noção
de confessionalização não explica na íntegra, no que é o núcleo de questão, a
realidade político-religiosa que se viveu na Europa moderna;
2. esconde que no interior de cada uma das confissões não houve total
homogeneidade e que há diferenças que devem relativizar a ideia de uma
coerência integral de cada confissão. Para simplificar, é evidente que o
catolicismo português não foi absolutamente igual ao de Espanha e ao da
península itálica;
3. não reconhece que os processos de inculcação da doutrina e da norma,
isto é, de educação e de disciplinamento, não foram absolutamente idênticos
no campo católico e no campo protestante. E as distinções foram muitas vezes
decisivas, como, por exemplo, a espectacularização dos ritos e das devoções que
marcaram o universo católico, ou no modo e forma de acesso ao texto bíblico e
a outros livros doutrinais, que no mundo católico condicionaram que a maior
parte da povoação adoptasse uma religião que prescindiu a leitura directa e
pessoal do texto sagrado, ao passo que, nas regiões afectas à Reforma, houve
uma maior interiorização e intelectualização da fé;
4. presta pouca atenção à religiosidade e aos comportamentos da povoação,
dando por boa a noção de que toda a prática religiosa vem determinada de
cima para baixo, das elites para os fiéis. Esta leitura não facilita a compreensão
Neste pressuposto, considera-se que, ao contrário do que vinha sendo tradicionalmente defendido, Reforma
e Contra-Reforma teriam tido mais aspectos em comum do que diferenças. Destacam-se a definição clara da
doutrina de cada confissão; a difusão e o reforço de novas normas; a propaganda e a prevenção da contrapropaganda; a interiorização da nova ordem através da educação; o disciplinamento dos adeptos da confissão;
a aplicação de um ritual próprio; o impacto na linguagem pelo uso regular de nomes do Antigo Testamento
ou de santos. Cf. José Pedro PAIVA, El Estado en la Iglesia y la Iglesia en el Estado. Contaminaciones,
dependencias y disidencia entre la monarquía y la Iglesia del reino de Portugal (1495-1640), in Manuscrits.
Revista d’història moderna, número 25 (2007), 47. O autor, tomando como ponto de partida a panorâmica
traçada por um dos livros mais recentemente publicados sobre a aplicação do conceito de confessionalização,
repassa as propostas de Headley em John HEADLEY, J. HILLERBRAND, Anthony J. PAPALAS,
Confessionalization in Europe, 1555-1700. Essays in honor and memory of Bodo Nischam, Burlington,
Ashgate, 2004.
13
Federico PALOMO, A Contra-Reforma [...], ed. cit., 10-14 e 30-55.
12
179
Maria Helena Queirós
das especificidades de manifestações de origem não-letrada, do hibridismo
de crenças e práticas religiosas, nem dos fluxos de comunicação entre esferas
socioculturais distintas.
A verdade é que não há consenso quanto a considerar quem terá sido o
agente fundamental da disciplina social, se o indivíduo, se a comunidade, se
o clero, se o Estado. Para as comunidades rurais de Berna, na Confederação
Helvética, Heinrich Richard Schimdt parece ter chegado à conclusão do papel
preponderante da comunidade. Por seu turno, Christa Müller, no seu estudo do
vizinho Tirol, conclui pela acção repressiva do Carnaval por parte do estado da
Contra-Reforma. Para Harm Klueting, é o indivíduo que tem o papel decisivo
na cristianização da sociedade através da autodisciplina. Outros vêem-no na
disciplina social14.
Mais delicadas são as implicações entre a dimensão política e a
confessionalização. Cai por terra parte da proposta de Headley, quando aplicada
a Portugal. Segundo o mesmo, a confessionalização teria provocado um reforço
interno e externo das unidades territoriais; contribuído para o disciplinamento
e para a ‘homogeneização’ dos súbditos, constituindo-se baluarte da afirmação
do poder político; estimulado a amplitude da intervenção dos Estados sobre a
Igreja e, especialmente, sobre os seus recursos materiais. Ora, como se sabe, no
caso português, as fronteiras físicas do reino e a própria identidade ‘confessional’
(incluindo o aspecto mítico que associava a fundação do reino a um milagre
divino) estavam definidas antes da Época Moderna. Por outro lado, um dos
riscos desta proposta é sugerir que terá sido possível construir uma sociedade
absolutamente homogénea e disciplinada, sendo que uma das consequências
dos limites das políticas de doutrinação foi a ignorância da generalidade da
população e mesmo do clero. Quanto ao último ponto, este parece encerrar
uma visão limitada pois não enuncia a reversibilidade do princípio, ou seja,
se é verdade que se assistiu a um reforço da intervenção do Estado na Igreja,
também o inverso o foi. Na expressiva formulação de Paolo Prodi, foi um
período de «teologização da política» e «politização da religião»15. A este aspecto
nos referimos já.
Acresce que tal concepção parece supor que tal processo só se iniciou na
«época da confessionalização» quando tem raízes mais remotas. Com efeito,
é na Idade Média que se devem buscar as raízes da disciplina social. Segundo
Dilwyn Knox, terá tido origem na rotina monástica, aplicada ao mundo laico,
através da Devotio Moderna e de Erasmo16. Outros estudiosos inclinam-se
Cf. Ronald Po-Chia HSIA, Disciplina social y catolicismo [...], art. cit., 35.
Citado por Vincenzo LAVENIA, L’infamia e il perdono. Tributi, pene e confessione nella teologia morale
della prima età moderna, Bolonia, Il Mulino, 2004, 31.
16
Cf. Ronald Po-Chia HSIA, Disciplina social y catolicismo [...], art. cit., 33.
14
15
180
A Contra-Reforma em Portugal 1540-1700, | Federico Palomo, Lisboa, Livros Horizonte,
2006, 130 p. | Nota crítica à obra
pelas comunidades urbanas tardo-medievais do Sacro Império Romano como
focos originários da disciplina social17; por uma Frankfurt do século XVI, em
que a adopção do luteranismo terá fortalecido a disciplina social18; ou ainda a
cidade imperial de Espira, também luterana19. Em qualquer um destes casos,
um consenso fundamental entre população e instituições em torno da noção
de bem comum foi decisivo para a interiorização da disciplina. Por outro lado,
este processo configura aquilo que Neumann considerou ser «disciplinamento
horizontal», distanciando-se da preeminência do Estado sobre o cidadão da
teorização de Oestreich.
E ainda a assinalar o facto de conceber a Igreja e o Estado como duas
entidades independentes e com fronteiras estanques. Na verdade, «excluyendo
ciertos aspectos obvios (por ejemplo, el rey no podía celebrar sacramentos y
los obispos no promulgaban edictos reales), Iglesia y Estado eran cuerpos que
no tenían competencias perfectamente delimitadas y estancas, esto es, que no
poseían una frontera definida que circunscribiese los ámbitos de actuación
de cada uno20». Paiva defende21 que esta diluição de fronteiras, esta «osmose»
se fazia de três formas essenciais: partilha e disputa de recursos materiais e
pessoas, sobreposição de competências jurisdicionais e circulação de princípios
doutrinais.
São vários os exemplos de influência do Estado sobre a Igreja, como o são os
da intervenção da Igreja no Estado. Enunciamos alguns dos mais importantes:
eleição de bispos e arcebispos, clérigos com benefícios capitulares, abades de
mosteiros e párocos (relacionado com o direito de Padroado); apropriação de
benefícios materiais da Igreja (colocação de clientelas em certos benefícios
eclesiásticos), Bula da Cruzada e subsídios obtidos a partir das rendas das igrejas
e contribuições do clero, entre outros privilégios; interferência no governo da
Igreja, como imposição de preceitos de actuação aos bispos, manutenção de
funcionários em tempo de Sé Vaga, impedimento de dar posse de benefícios
eclesiásticos a certos indivíduos, patrocínio real à criação de ordens e reforma
de outras, organização da geografia eclesiástica, repreensões aos bispos por
impedirem certas ordens de missionar na diocese, intervenção dos monarcas
Gérald Chaix, por exemplo, estudou o caso de Colónia, nos finais do século XV. Apud Ronald Po-Chia
HSIA, Disciplina social y catolicismo [...], art. cit., 34.
18
Caso estudado por Anja Johann apud Ronald Po-Chia HSIA, Disciplina social y catolicismo [...], art. cit., 34.
19
Sobre ela se debruçou Hubert Neumann. Apud Ronald Po-Chia HSIA, Disciplina social y catolicismo [...],
art. cit., 34 e 35.
20
José Pedro PAIVA, El Estado en la Iglesia [...], art. cit., p. 50. Aqui reside o centro da sua tese, a qual,
aliás, já vinha explicitada no verbete A Igreja e o poder in História Religiosa de Portugal, Lisboa, Círculo
de Leitores, vol. II, 135-185.
21
À semelhança de Domínguez ORTIZ, em Regalismo y relaciones Iglesia-Estado en el siglo XVII in Historia
de la Iglesia en España. La Iglesia en la España de los siglos XVII-XVIII (dir. Ricardo García-Villoslada),
Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos, 1979, 73-121.
17
181
Maria Helena Queirós
na resolução de conflitos. Quanto à intervenção da Igreja sobre o Estado, basta
pensar na aceitação da participação de clérigos nas actividades do centro político;
no reconhecimento e a defesa de muitos privilégios da Igreja; na interferência
régia nos assuntos eclesiásticos e na capacidade de penetração através da rede
paroquial.
Não resistimos a ler aqui uma frase do beneditino Juan de Salazar (1619),
que bem pode espelhar o que acabamos de dizer: «También es cierto que
quien tiene [las cabezas] sujetas y rendidas y obedientes al superior [...] son los
hombres doctos y eclesiásticos, en especial los religiosos y predicadores [...],
predicando ellos continuamente al pueblo que es voluntad de Dios obedecer a
los reyes»22. Evocando Paolo Prodi, diríamos «disciplina da alma, do corpo e da
sociedade»23. Por amplificação, se a vontade do rei é a vontade de Deus, a Igreja
será, obviamente, o intermediário. Liminarmente, para se obter o favor de Deus
é necessário estar de bem com a Igreja.
São diversas as funções em que o Estado se serviu do clero. Lembremos a
concessão de cargos na governação e órgãos centrais (conselho do rei, Conselho
de Estado, Desembargo do Paço, secretários, pregadores e capelães da Capela
Real, confessores régios), a utilização do saber e da pastoral e a fundamentação
teórico-doutrinal da legitimação do regime, do rei e das políticas. De salientar
ainda a presença dos eclesiásticos em certos rituais políticos (aclamações,
entradas régias, recepções etc.) e a implicação do clero ao serviço da Coroa no
terreno militar. Trata-se de um domínio das consciências, de rituais, de estéticas,
de comportamentos. Neste ponto, contudo, vale a pena ir um pouco mais além.
Esta presença dos prelados nas cerimónias régias é já um elemento que configura
o carácter sagrado da monarquia.
Sem disciplina social não parece ter sido de todo possível a confessionalização
católica: «Fue el creciente poder del Estado moderno en general, y no sólo del
Estado católico en particular, lo que permetió la renovación del catolicismo24».
Serão cinco os traços gerais da disciplina social e confessionalização católica na
Europa central: a substituição de oficiais protestantes por católicos; a chamada
de jesuítas à educação; o disciplinamento do Clero pelo aparelho de Estado; a
repressão da oposição estamental e dos levantamentos populares; o exílio de
dissidentes protestantes.
Se entre os processos de disciplinamento protestante e católico se divisa um
substrato comum, não são, contudo, despiciendas as diferenças entre ambos.
Eloquente é, por exemplo, que os pastores tenham sido reduzidos ao estatuto de
Citado a partir de José Pedro PAIVA, El Estado en la Iglesia [...], art. cit., 52.
Paolo PRODI, Disciplina dell’anima, disciplina del corpo e disciplina della società tra medioevo ed età
moderna, Bolonia, Il Mulino, 1994.
24
Ronald Po-Chia HSIA, Disciplina social y catolicismo [...], art. cit., 36.
22
23
182
A Contra-Reforma em Portugal 1540-1700, | Federico Palomo, Lisboa, Livros Horizonte,
2006, 130 p. | Nota crítica à obra
funcionários (ou, pelo menos, de politicamente subordinados), face a um clero
católico que devia uma dupla lealdade ao monarca e ao Papa. Estes clérigos
são homens políticos que dão uma visão apostólica da sua acção política. Não
poderá deduzir-se isso mesmo das palavras do beneditino Fr. Juan de Salazar25?
Facilmente se compreende onde residia o cerne dos conflitos de jurisdição:
se o Papa reivindicava a suprema autoridade espiritual e eclesiástica, já o
monarca invocava o chamamento divino. Às palavras do beneditino Juan de
Salazar, poderíamos contrapor as de Bartolomé Torres: «Los Príncipes, en
cuanto príncipes, en alguma manera son curas de almas. Quiero decir que no
basta que rijan y gobiernen en paz la República, sino son obligados cuanto es en
sí a trabajar para hacer buenos y virtuosos a los súbditos26.»
No caso português, é manifesta, a partir de 1495, «una evidente política
de la Corona tendente a aumentar su poder frente a la Iglesia, tanto a nivel
interno como en el plano de las relaciones con la Santa Sede»27, plasmando-se
na transferência a exclusiva competência do rei da eleição dos bispos de todas
as dioceses do reino, o mesmo acontecendo com os abades dos mosteiros; no
domínio das ordens militares, tornando-se os reis seus Grãos-Mestres; na obtenção
de rendas das igrejas para aplicação na expansão; na interferência do rei na reforma
das ordens religiosas; na aquisição de privilégios especiais para a Capela Real e seus
capelães; no direito de padroado nos territórios do império ultramarino.
Aqui reside uma lacuna na obra de Palomo. É certo que não se propôs estudar
a realidade ultramarina, mas cingir-se exclusivamente à metrópole parece um
escopo demasiado estreito dado o carácter de eleição de toda a problemática do
Padroado português para a análise das relações Estado-Igreja.
Por volta de 1640, ter-se-á iniciado «un período de cerca de 30 años caracterizado
por el alejamiento de la Corona de la Santa Sede, debido al hecho de que el papado
no reconocía la nueva dinastía instaurada por el golpe político del 1 diciembre
de 164028». Como se sabe, desta situação resultou uma grave crise para a Igreja
portuguesa ao impedir a nomeação de novos bispos. Muitas Sedes Vacantes, portanto.
É evidente o impacto na vida dos fiéis e no relacionamento das duas instituições,
num momento-chave de fortalecimento da legitimação da nova dinastia. Duas
datas que marcam dois panoramas bem diferentes. Segundo Paiva, em inícios do
século XVII, a Coroa intensifica a restrição da jurisdição eclesiástica; no entanto, «la
Teria muito interesse fazer-se um estudo sobre a legitimação doutrinal através da parenética (se existiu,
de todo, para o caso português), por exemplo, destas lógicas místico-políticas ou religioso-políticas e que,
face ao tradicional quadro das três vias – via apostólica, via política e via mista – configuraria esta última.
Este estudo poderia, aliás, aferir da aplicabilidade e alcance dos próprios conceitos de confessionalização e
disciplinamento entre nós e das constantes/variantes contra-reformísticas em todo o mundo católico.
26
Citado a partir de Ronald Po-Chia HSIA, Disciplina social y catolicismo [...], art. cit., 38.
27
José Pedro PAIVA, El Estado en la Iglesia [...], art. cit., 46.
28
José Pedro PAIVA, El Estado en la Iglesia [...], art. cit. 47.
25
183
Maria Helena Queirós
contaminación y los lazos de dependencia creados eran más fuertes y tejieron una
trama de interpenetraciones entre el Estado y la Iglesia que no fue quebrantada por
los enfrentamientos conocidos29».
Nas razões do êxito da Reforma Católica, face a um suposto fracasso da
protestante30, encontramos factores que matizam a grande relevância dada a
confessionalização e disciplinamento e consequente necessidade de distinguir bem
as suas singularidades, em contexto protestante e em contexto católico. A aceitação
de práticas e costumes tradicionais, incorporando-os e ratificando-os; a utilização de
todos os meios ao alcance, desde a imprensa ao teatro ou à pintura; a simplificação
dos conteúdos teológicos, adoptando «una fe de dos pistas», uma dirigida ao povo
simples e outra ao clero parecem ser traços que, se, por um lado, fazem visível o êxito
da Reforma Católica, por outro, a diferenciam da protestante31.
No mesmo sentido parece caminhar a teorização de William Christian. Embora
divirja quanto à consideração de êxito ou fracasso da Reforma Católica, o seu conceito
de ‘religiosidade local’ traz à sede da discussão dois tipos de Catolicismo: um da
Igreja Universal, baseado nos sacramentos, na liturgia e calendário romanos e cujo
intermediário é o clero; e um Catolicismo, por assim dizer, local, feito de lugares,
imagens e relíquias e cujo intermediário são os santos espalhados por todo o território.
A teorização de Christian, admitindo embora a depuração de alguns costumes e a
eliminação de certos aspectos contraditórios com Roma, considera escassos os efeitos
da Reforma, que mal terá logrado alterar os costumes das populações arreigadas a uma
religião conservadora e de cor local. O conceito por si cunhado vem pôr um travão
ou, pelo menos, suavizar o peso – que, frequentemente, parece excessivo – que se
tem atribuído a um entendimento da Reforma Católica como processo de controlo e
mudança, ou seja, de disciplinamento social e de confessionalização.
Gostaríamos ainda de trazer à colação o contributo de Ignasi Terricabras, que fala
na necessidade de se substituir a concepção de êxito/fracasso da Reforma tout court por
uma formulação que conjugue outras variáveis, sintetizada numa formulação tipo:
os locais onde houve êxitos ou fracassos e as datas em que os mesmos se deram. Por
outro lado, também consideramos pertinentes as suas observações na revisão que faz
do conceito de religiosidade local. São três os aspectos que aponta:
- o questionar do suposto carácter local de um Cristianismo pré-Tridentino que
encontra, ao cabo, tantas semelhanças de lugar para lugar;
- o entendimento das concepções de religiosidade local e tridentina como
interactuantes e não opostas ou disjuntivas;
José Pedro PAIVA, El Estado en la Iglesia [...], art. cit. 55.
Oportunamente nos referiremos aos critérios de consideração de êxito/fracasso.
Apresentamos conclusões de Geoffrey Parker a partir de Ignasi Fernández TERRICABRAS, Éxitos y
fracasos de la Reforma católica. Francia y España (siglos XVI-XVII), in Manuscrits. Revista d’història
moderna, número 25 (2007), 130 e 131.
29
30
31
184
A Contra-Reforma em Portugal 1540-1700, | Federico Palomo, Lisboa, Livros Horizonte,
2006, 130 p. | Nota crítica à obra
- o problematizar de um suposto carácter socialmente uniforme do conceito de
religiosidade local.
Trabalhos recentes vêm enfatizar isto mesmo. Recordamos o contributo de Anne
Bouzon que, para Beauvais, realça a Reforma Católica como mecanismo de resposta
às aspirações dos fiéis e não somente de repressão vindo das elites para as classes abaixo.
Parece ser de um encontro de vontades e aspirações entre bispos e fiéis que resulta o
êxito da Reforma. Já em Cuenca, o programa de catequização respondia às aspirações
dos fiéis, motivo na base do seu êxito. E também já foi notado como os eclesiásticos
não são voz única no processo de renovação religiosa, necessitando para tal de suporte
financeiro32.
Assim, terá sido «o peso da geografia física e humana33» o factor determinante
do triunfo/fracasso da Reforma Católica neste ou naquele lugar. Entenda-se:
de um lado êxito, em zonas planas, com importantes vias de comunicação;
de outro, a inércia ou imutabilidade, em zonas montanhosas, escassamente
povoadas e com pouco trato comercial34. Definido o Catolicismo pós-Tridentino
como uma «parrochially-grounded institution35», o seu sucesso medir-se-ia no
estabelecimento de uma «prática paroquial uniforme», que quebrasse os velhos
laços clientelares e de parentesco fundados na Idade Média. Julgamos, pois,
produtiva a perspectiva de Terricabras fundada sobre a conjugação de três
factores que corporizam a permeabilidade ao exterior de determinado local e
consequente êxito da Reforma: relevo plano, rede urbana e economia mercantil.
Como nota final, A Contra-Reforma em Portugal é uma boa leitura,
sobretudo, na nossa opinião, para quem começa o seu adentramento na História
da Reforma Católica, fazendo-o de uma perspectiva que realça o ponto de vista
da História Cultural. Também relevante é o facto de, ao longo das suas páginas,
nos deixar um avultado número de reptos à investigação, pois vai elencando
uma série de campos de estudo por desbravar entre nós. Na inexistência de
estudos que permitissem avançar mais o nosso estado de conhecimento, o autor
refere o trabalho a fazer.
De notar ainda que a não-referenciação/não-citação de fontes (pouco
comparece e, quando tal acontece, nunca aparece a página) coarcta o trabalho
do investigador ou mero curioso. Trata-se de uma opção justificada em sede de
Introdução, é certo; no entanto, resulta sempre ‘movediço’ ler afirmações de
Cf. Ignasi Fernández TERRICABRAS, Éxitos y fracasos de la Reforma católica [...], art. cit., 145.
Ignasi Fernández TERRICABRAS, Éxitos y fracasos de la Reforma católica [...], art. cit., 146.
34
Servimo-nos das conclusões de M. VENARD, Réforme protestante, Réforme catholique dans la province
d’Avignon – XVIème siècle, Paris, Éditions du Cerf, 1146, que citamos a partir de Ignasi Fernández
TERRICABRAS, Éxitos y fracasos de la Reforma católica [...], art. cit., 148.
35
J. BOSSY, The Counter-Reformation and the People of Catholic Europe, in Past and Present, 47 (Maio
1970), 53. Citado a partir de Ignasi Fernández TERRICABRAS, Éxitos y fracasos de la Reforma católica
[...], art. cit., 148.
32
33
185
Maria Helena Queirós
outrem sem respectiva indicação de fonte.
Consideramos ter interesse para o investigador por trazer os conceitos de
confessionalização e disciplinamento ao estudo da Contra-Reforma em Portugal.
Por outro lado, como senão, traça uma panorâmica sobre a Contra-Reforma
que, por generalista, encontra sempre aplicabilidade ao estudo da política e da
religião em Portugal na Época Moderna. Peca por não prever as limitações da
aplicação dos conceitos para o caso português.
Os matizes a introduzir à teorização alemã de que fala Palomo são, como
vimos, imperceptíveis ao longo do seu estudo. Nesta nota crítica, pretendemos
evidenciar isso mesmo, repassando brevemente alguns dos estudos que fazem
a história da questão e bem assim fazendo um pouco a revisão da literatura à
luz dos mais recentes contributos, colocando alguns pontos nevrálgicos frente
a frente. Mantendo-se, embora, a pertinência dos conceitos de disciplinamento
social e confessionalização e verificados os limites da sua aplicabilidade ao
contexto português, cremos evidenciada a sua precariedade enquanto categorias
de análise e o muito que há a ganhar na conjugação de aproximações teóricas.
Maria Helena Queirós
Investigadora do CITCEM
[email protected]
186