Painéis
com rede
Ligações com sinal
Alvor-Silves
da Maia
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Faço este pró logo para assinalar que não tem prólogo.
Estão os textos identificados - ver são: 2009, 2013, 2018.
Consoante os períodos chamei-lhes 1) El, 2) Nós, 3) Voz.
Há repetições porque houve uma clarificação entre 2009, a versão abrupta,
e a de 2013, versão mais cuidada, enquanto a de 2018 foi feita mesmo só
para deixar a tampa do caixão fechada.
A História não morre, mas as almas perdidas que arrastam correntes são
apenas espectros de lucidez, com muita rede e pouco sinal, enquanto que a
todos restauros se torce o nariz, conforme foi torcido a Leonor (ver fim).
1. El
segunda-feira, 14 de dezembro de 2009
Nuno Gonçalves
Painéis de S. Vicente de Fora
O que está representado nos Painéis de S. Vicente de Fora?
Um longo instantâneo da família Avis, na sua interpretação em 1491-92.
1.1) A época
Painéis de Nuno Gonçalves
Para compreender os painéis de Nuno Gonçalves é preciso perceber o que
faz sentido e o que não faz...
Comecemos pelo 3º painel, dito Painel do Infante.
(i) O Infante D. Henrique está representado... isto é basicamente
indiscutível, dada a imagem semelhante que existe nas Crónicas dos
Feitos de Guiné de Zurara.
Dado que na imagem das Crónicas o Infante tem um aspecto ligeiramente
mais jovem, é de admitir que no mínimo, este quadro seja posterior ao das
Crónicas, posterior a 1453. Isso exclui teses mais estranhas, que colocam
esta pintura nos anos de 1440-50. É de notar que se o nome de Nuno
Gonçalves aparece como pintor da corte em 1463, será difícil conceber que o
tenha feito antes. E se não foi Nuno Gonçalves, então será preciso justificar
outro autor...
Por outro lado, o quadro deverá ser anterior a 1492, pois Nuno Gonçalves
terá desaparecido nessa altura. Surge uma hipótese habitual e que faz
sentido ~ entre 1470-80 ~ mas então é preciso admitir que o Infante D.
Henrique já está morto. Haverá maneira de ver isso?
(ii) O Infante D. Henrique, tal como outros personagens no quadro,
têm as mãos unidas. Típico sinal de falecimento, não será?
(iii) Assim, será ainda possível associar o Infante D. Pedro à figura
(muito semelhante ao seu retrato mais jovem) que surge em primeiro
plano no 5º painel, dito dos Cavaleiros.
Mas agora, reparemos noutro detalhe importante:
(iv) À excepção de um, no 5º painel (do qual não se vêem as mãos),
todos os personagens sem as mãos unidas têm a barba cortada...
nota-se aliás que há quem a use e a tenha mal feita.
Há algum facto de tal forma marcante, em que todas as pessoas do reino
tenham feito a barba?
Sim, ocorreu em 1491... foi a morte do herdeiro - o príncipe Afonso, filho de
D. João II.
Estamos no limite atribuível a Nuno Gonçalves... talvez exactamente por
razão deste quadro!
Este quadro terá sido encomendado por D. João II, para promover a sucessão
de Dom Jorge, seu filho "bastardo", e ao mesmo tempo prestar homenagem
ao filho morto... que não aparece no quadro.
Como a sucessão se deu pela linha oposta, ou seja, por D. Manuel, é natural
que o quadro tenha sido escondido durante séculos!
Nada é acidental... nem a consequente morte de D. João II, escolhida para
Alvor, nem o repouso em Silves, antes de seguir para o Mosteiro da Batalha.
O clima fúnebre e sinistro do quadro, mantém-se hoje...
1.2) Tese de Alvor Silves
Este quadro será um instantâneo único, de todo um processo que levou à
morte de D. João II em Alvor, fora da corte, quase isolado. Esse desfecho até
já se antevê no magnífico quadro!
Painel real (o terceiro)
Fará tudo o resto sentido, com base nesta hipótese?
(v) O rei ajoelhado no 3º painel é D. João II, aos 36 anos. A criança é
D. Jorge, com 10 anos. Não está ao lado da Rainha, está na sucessão
do pai, na linha do "navegador" D. Henrique.
(vi) Quem são as duas figuras femininas poderosas, que aparecem
nesse 3º painel? A mais velha e também a mais poderosa, será Dona
Beatriz de Viseu (com 61 anos), mãe da Rainha D. Leonor (com 33
anos), que se encontra ajoelhada, do outro lado do Rei. Ambas as
figuras fazem jus a outros retratos contemporâneos. Haverá outras
duas figuras femininas, mais marcantes, à época dos descobrimentos?
Todos estes protagonistas estão vivos, e sem dizer nada, dizem-nos muito!
Nuno Gonçalves capta a alma de forma muito sublime.
Nesse 3º painel, dito do Infante, falta apenas falar de uma figura que tem
algum destaque, mas que está na sombra dos acontecimentos... com as
mãos unidas, está morto. Poderia estar no 2º painel, mas não será
acidental o espaço que surge entre o personagem que se ajoelha por terra,
em sinal de penitência, e a personagem seguinte... trata-se de Dom Afonso,
1º Duque de Bragança. Aparece ao lado do meio-irmão, Henrique, em
aparente oposição, e mais acima!
O Infante Dom Pedro não poderia estar neste painel. Surge inequivocamente
no plano do seu neto, o Rei D. João II, mas noutro painel, no 5º painel.
A Batalha de Alfarrobeira nunca desaparecerá do futuro português.
Outros painéis
A partir daqui, não será tão fácil, mas é ainda assim possível encontrar uma
linha de raciocínio consistente.
(vii) No 1º painel (dito dos frades), estão por ordem de sucessão os reis
de Avis, anteriores a Dom João II. Ou seja, primeiro D. João I (mãos
juntas, morto), depois D. Duarte (dá indicação das mãos juntas,
morto), depois D. Afonso V (mãos juntas, morto). As figuras dos três
estão dentro das descrições ou outras imagens que temos deles. Este
será o Painel dos Reis... ou da Ordem de Avis, já que é natural que a
sua representação invoque a sucessão de Avis pelo lado religioso.
Dessa forma se justifica o aparecimento em bastidores de outros
protagonistas de menor relevo, ligado ao seu papel enquanto mestres
da ordem.
(viii) No 2º painel (dito dos pescadores), está a descendência pelo lado
de Nun'Álvares Pereira. Será ele o protagonista, em penitência, com as
mãos juntas (morreu bastante velho). Há um espaço em branco, de
onde terá saído o sucessor genro, o Duque de Bragança, que passou
para o 3º painel, por razões já explicadas (parcialmente). Por isso, a
seguir aparece uma figura dúbia, representando uma neta. Poderá ser
uma representação dupla, invocando a mãe de Dona Beatriz de Viseu,
pois assim aparece ao lado da filha (no painel seguinte). Mas também,
invocando a irmã, mãe da Rainha Isabel de Castela, a Católica. Parecerá
um pescador?
(ix) É natural que essa importante figura do 2º painel se pareça com
um pescador. Tem a rede, onde foi colocado o corpo do príncipe morto,
e daí ter surgido o símbolo do camaroeiro da Rainha D. Leonor. A rede
é uma rede política, muito complexa, que herdámos. D. João II olha de
frente, nessa direcção da sogra, herdeira das irmãs Bragança, pela sua
cumplicidade com a sobrinha, Rainha de Espanha. Procurará apontar aí
as culpas desse destino do filho? É muito provável. Não tenho ainda
dados suficientes consistentes, para alvitrar o personagem que se
encontra ao seu lado... Com a herança deixada por este painel, tornase clara a posição de grande penitência em que se encontra
Nun'Álvares.
(x) No 4º painel (dito do Arcebispo), em primeiro plano surge uma
corda. Representa, como habitual as navegações. Por razões, que mais
tarde explicarei, deverá representar Gama, o escolhido pelo Santo,
através de D. João II, para anunciar a Índia. Do outro lado, deverá ser
Diogo Cão, que será preterido na escolha. Neste é momento, apenas
posso conjecturar que colocado em posição semelhante à da mãe, surja
D. Diogo, o duque de Viseu, com as mãos juntas, morto pelo rei. Para
os outros dois há, entre os navegadores, demasiadas hipóteses. Em
cima, aparece um Cardeal ou Arcebispo, morto, poderá ser D. Pedro de
Noronha (mas não é de excluir a hipótese de ser Jorge da Costa, morto
para D. João II, exilado em Roma). Os bispos podem ser os próximos
de D. João II, o de Coimbra, de Tanger e do Algarve, e depois o prior
do Crato.
(xi) No 5º painel (dito dos Cavaleiros), aparece em destaque o Infante
Dom Pedro, o avô materno que foi grande inspirador de D. João II,
morto pelo seu pai em Alfarrobeira. Depois deveria aparecer outro
infante, o Infante Dom João, mas devendo estar morto, talvez as luvas
verdes permitam uma excepção simbólica... permitindo ainda incluir o
Infante posterior, o pai da Rainha Dona Leonor, Dom Fernando de
Viseu, também morto, e no seguimento desta sucessão aparece o filho
D. Manuel, irmão da Rainha e pretendente à sucessão. Por outro lado,
seguindo a linha dos primeiros Infantes, mais acima confirma-se dever
ser o Infante Santo, morto, e as suas mãos nem são vistas, indicando
talvez que não teve o repouso de morte digna.
(xii) No 6º painel (dito da Relíquia), devem estar representados em
destaque os dois sábios em que mais confiava D. João II. O físico-mor
Mestre Rodrigo (de Lucena) e o matemático Mestre Josepe (José
Vizinho, de origem judaica). O mais velho, parece ser alguém
representando o conhecimento popular, que não frequenta a corte, e
por isso está curvo, tal como dois navegadores no 4º painel. A relíquia,
o osso craniano, pode ser uma alusão ao defunto Afonso, indicando a
fractura da futura cabeça do reino. Falta a relíquia - o cérebro, para ler
tudo o que o painel representa. Falta ainda o cérebro para prosseguir a
herança do conhecimento de Avis - é essa a relíquia que o Mestre
Rodrigo nos mostra.
A representação dos diversos estratos sociais não é errada. Foram todos
habilmente vestidos para que os painéis permitam ainda essa interpretação
imediata. O 1º, 3º e 5º painéis representam protagonistas de realeza,
contendo figuras de infantes e reis, são os painéis ímpares. Os outros, painéis
pares, representam de alguma forma personagens igualmente fulcrais, mas
que não tinham ascendência directa na realeza.
O impacto deste retrato de família, promovendo como herdeiro Dom Jorge,
para além dos outros detalhes referidos, deve ter sido devastador na facção
já dominante na corte, que pretendia ver apenas como solução de sucessão
Dom Manuel. Essa sucessão foi mesmo inserida como condição no Tratado
de Tordesilhas. Não admira o desaparecimento do pintor, depois do quadro,
e finalmente o envenenamento do Rei (bem enfatizado por Garcia de
Resende, dadas as circunstâncias...) que ainda assim demorou mais tempo a
morrer.
Detalhes
A dualidade Poente-Nascente
Nuno Gonçalves, é um ímpar entre ímpares... e este quadro poderá ter
influenciado a "última ceia" de Leonardo da Vinci, que aparecerá poucos anos
depois. Estranho?
Os painéis exploram uma dualidade esquerda-direita, i.e. poente-nascente,
ou ainda ocidente-oriente!
O mesmo santo, S. Vicente, apareceria ora virado para ocidente, ora virado
para oriente!
Mesmo se S. Vicente estiver de fora... será irrelevante, pois o nome tanto
poderá resultar de terem ocultado os painéis, como pode ser o nome original,
e querer indicar que há dois santos.
Havendo dois santos é natural que possam representar uma dualidade entre
São Tiago e São Tomé, ou ainda entre São Jorge e São Bartolomeu... aqui há
demasiadas hipóteses!
De facto, não é acidentalmente que há personagens virados para ocidente e
outros virados para oriente. E isto não tem a ver com aspectos que promovam
a centralidade do quadro... o Infante Santo é o mais claro, e a sua direcção
oriental desfavorece essa centralidade:
Ocidente - é o lado de D. João II, e do Infante Dom Pedro, e por agora
ficamos por aqui...
Oriente - é o lado dos que se lhe opuseram, é o lado da gloriosa cruzada
contra os infiéis a Oriente, é o lado da guerra na Índia. Será o lado de
S. Bartolomeu... ou será coincidência que o nome de quem "dobra" o
cabo da Boa Esperança é o - até então - anónimo Bartolomeu Dias... ou
será melhor escrever mesmo:
DIA S
BARTOLOMEU
e será preciso dizer que o DIA S. BARTOLOMEU se torna um dia
repetidamente importante? Será preciso dizer que S. Bartolomeu é
suposto ter pregado o cristianismo na Índia? Será preciso dizer que a
tomada de Arzila, crucial para os preparativos da Cruzada, se deu no
Dia de S. Bartolomeu? Já não falo do Massacre de S. Bartolomeu, em
França... porque isso faz parte de capítulos seguintes. Claro que deve
ter havido alguém encontrado, que foi assim rebaptizado, mas isso não
foi feito com o devido profissionalismo, e deixou estas dúvidas.
Os painéis exploram assim a ideia de reflexão num espelho, e essa reflexão
faz parte da Relíquia do conhecimento nesta obra... mas há um desequilíbrio
propositado, tal como na "Última Ceia" de Leonardo de Vinci. Há uma força
que se vira para Oriente que é maior do que a força virada a Ocidente. Dada
a importância de Portugal à época, enquanto grande potência, convém notar
que o problema português está colocado num tabuleiro muito maior. 1
Leonor
Acerca de Camões, faltará dizer muito, e não é para já... mas não posso
deixar de incluir aqui a descrição que ele faz de Leonor - se o leitor quiser
fazer o esforço de se libertar de condicionantes culturais.... deveremos ver
Leonor como uma camponesa dos "amores mundanos" de Camões?
À esquerda,
a loura e alva Princesa Perfeitíssima, Leonor
Em baixo,
o poema de Luís Vaz de Camões
______________________________________
Descalça vai para a fonte
Leonor pela verdura
Vai fermosa e não segura
Leva na cabeça o pote
O testo nas mãos de prata
Cinta de fina escarlata
Sainho de chamelote
Traz a vasquinha de cote
Mais branca que a neve pura
Vai fermosa e não segura
Descobre a touca a garganta
Cabelos de ouro entrançado
Fita de cor de encarnado
Tão linda que o mundo espanta
Chove nela graça tanta
Que dá graça à fermosura
Vai fermosa e não segura
______________________________________
1
Na "Última Ceia", Da Vinci coloca obviamente um só Cristo, que se vira a Oriente, e coloca mais vida
numa representação de Andrea del Castagno (... época da morte do Infante Dom Pedro). Em Da Vinci,
a centralidade da coluna, atrás no horizonte, é deslocada e Cristo, ao centro, vira-se para o lado que
irá dominar, o lado Oriental-Nascente. - É o lado da Cruzada, dos sacrifícios de guerra por Cristo, é o
lado da Ordem de Cristo, e tem 8 elementos (inclusivé Cristo). Virado a Poente está João, o lado
Evangelista, ao lado de Cristo, mas caído (1495: data atribuída ao início do quadro, morte de João II).
Há apenas 5 elementos virados a ocidente, que ou protestam/ou se resignam a mais esta decisão de
Cristo. Podem parecer forçadas as comparações, para um posicionamento de reinos e não de figuras
nacionais, e por isso não adiantarei mais... já que não me parecem acidentais todas as relações que
aparecem na tese do "Código da Vinci", similares nas conexões, mas diferentes no moto e na essência!
Talvez me esteja a antecipar, Camões não será assim tão óbvio!
Onde está a fonte? Quem está descalça? Onde está a verdura?....
Optar por entender que é Leonor que vai descalça para a fonte... é opção do
leitor/comentador.
Retirei as pontuações, pois não tenho acesso ao original. Alguém terá? Fica
a cargo do leitor decidir.
2. Nós
terça-feira, 6 de março de 2012
1)
Peças dos Painéis de S. Vicente
Já há algum tempo tinha preparado um texto para retomar a peça sobre os Painéis
de S. Vicente... porém, já referi implicitamente nos comentários que considero
uma absoluta perda de tempo qualquer actividade humana com intenções sérias.
Numa farsa os personagens sérios são os mais facilmente ridicularizados, porque
o seu sentido de seriedade está desalinhado com a comédia ensaiada, aparecendo
como absurdos.
Porém, esta supressão do Knol motiva-me a escrever alguma coisa mais neste
blog. É claro que a farsa em que vivemos pode vir a ter autores conhecidos, mas
em última análise, não passam eles próprios de meros personagens risíveis numa
comédia de contornos complexos, que escapam por completo a uma simples
inspecção de mortais.
Numa carta de 1844 dirigida a Atanazy Raczyński, o visconde de Juromenha relata
sucintamente o que se conhecia da pintura portuguesa antes de 1500. Começava
por falar de Jorge Afonso, que pintou parte do Palácio de Sintra, ao tempo de D.
João I... e conhecia-se muito pouco mais.
Nessa altura ainda não tinham saído do sótão de S. Vicente de Fora os famosos
painéis.
S. Vicente de Fora em estampa - funeral de D. Pedro V
(Ilustração Portuguesa, 1867)
A saída dos painéis do sótão do Mosteiro de S. Vicente de Fora terá causado
alguma incomodidade imediata, já que subitamente a pintura quinhentista
portuguesa passava quase do zero ao infinito, com a notável cena retratada por
Nuno Gonçalves. Parece que os painéis foram descobertos em 1882 por um
entalhador Leandro Braga, quando estavam a ser usados como plataformas de
andaimes em obras no mosteiro... essa terá sido a "primeira redescoberta" oficial,
por ter sido atestada por Columbano Bordalo Pinheiro. Mesmo assim caiu no
esquecimento, e terá sido uma "farpa" de Ramalho Ortigão que voltou a trazer os
painéis a assunto público em 1895, mas só em 1909 foi autorizada a saída para o
Museu de Arte Antiga e o restauro de Luciano Freire.
Desde essa altura os painéis acabaram por fazer parte do imaginário pródigo de
especulação, havendo mesmo a tese de que Salazar teria procurado inserir o seu
retrato num personagem dos painéis.
Não foi longe desse espírito imaginativo que coloquei a hipótese de retratarem um
episódio marcante - a morte do filho de D. João II...
A tese habitual colocava os painéis em 1470-80, encaixando alguns detalhes
importantes, que Dagoberto Markl enumerava como impossibilidades de uma
datação anterior, em 1445, conforme se pretendeu entretanto admitir. Essa
datação de 1470-80 tinha um problema complicado, pois a imagem do Infante D.
Henrique aparecia claramente nos painéis, e este teria morrido em 1460... havia
ainda assim quem argumentasse que não se tratava do Infante D. Henrique - algo
meio ridículo dada a semelhança quase fotográfica entre as duas representações.
Apesar disso, tudo apontava para uma data posterior a 1470, desde os trajos a
outros detalhes que pude ler nas críticas de Dagoberto Markl, e que tornam a tese
de 1445 facilmente refutável.
Essa tese teria como argumento adicional uma datação dendocronológica...
colocando as tábuas num tempo aproximado, com a dúvida inerente ao processo,
e não menos óbvia possibilidade da pintura não ter ocorrido exactamente sobre
madeira acabada de recolher...
De qualquer forma, o mais engraçado acaba por ser a tentativa de justificar os
personagens... onde basicamente tudo é possível. Acho que cada cara já deve ter
tido pelo menos umas dez possibilidades de ser fulano X ou fulano Y... e não
havendo possibilidade de contraditório, tudo encaixa, especialmente recheando o
contexto de figuras menores.
O funeral "simbólico" do Infante Santo em 1445 até seria uma possibilidade
plausível, não houvessem tantos problemas, e apenas cito um que me parece
colocar um ponto final sobre essa hipótese - as figuras reais em primeiro plano
(no 3º painel, chamado Painel do Infante) não podem ser Isabel de Coimbra e o
D. Afonso V... por uma simples razão... D. Afonso V teria em 1445 não mais que
14 anos!
As diversas argumentações que coloquei em 2009 continuam a fazer todo o
sentido, e poderia alongar-me num ou noutro argumento, ou corrigir alguns
excessos de entusiasmo, mas dificilmente retiraria muitas virgulas ao que escrevi.
Há um interesse sinistro em manter o assunto como secreto, e apoiar as teses
menos consistentes, mas isso também não é nada de novo... faz parte da
alimentação da farsa! Continuará a fornecer matéria para argumentação e contraargumentação inútil ou fútil, mais ou menos ridícula, tanto ou pouco consistente.
Pela minha parte, já dei o que tinha a dar para esse peditório... pouco ou nada
me importa saber se esta tese será alguma vez considerada, interessa-me que
fez e faz todo sentido num quadro muito mais lato.
A maior crítica será justamente ter procurado ir demasiado ao detalhe e
interpretar algumas coisas direccionado numa perspectiva que acabava de
descobrir.
Mais do que o detalhe de determinar todos os personagens e particularidades,
interessa saber por que razão o quadro teve um destino de ocultação... e aí
nenhuma das outras teses "politicamente correctas", logicamente incorrectas,
esboça nenhuma resposta convincente... é claro que nem precisa, porque o
objectivo continua a ser a ocultação, agora uma ocultação educativa que permite
até ousar a sua exposição ao público.
A censura ganhou novos contornos... há muito que deixou de ser feita escondendo
ou destruindo as coisas, é feita publicitando o que devemos pensar, e
marginalizando eventuais pensamentos dissonantes.
Simples, porque afinal os cérebros são formatados na educação e dirigidos pela
informação... quem controla a educação e a informação só tem praticamente que
se preocupar com quem pensa por si próprio... manifestamente um pequeno
número de pessoas.
quinta-feira, 3 de janeiro de 2013
Este texto surge na sequência da interessante troca de comentários com Clemente
Baeta, a propósito dos Painéis de S. Vicente, e segue também dos textos:
Nuno-Gonçalves (14/12/2009)
Peças dos Painéis de S. Vicente
Quando escrevi a hipótese de os Painéis retratarem a questão da sucessão de D.
Jorge após a morte de D. Afonso, filho de D. João II e D. Leonor, considerei várias
coisas, muitas das quais já nem me lembro. Em compensação, hoje tenho também
mais informações.
Há um site excelente, paineis.org que tem múltipla informação, e avança outras
hipóteses. Longe de criticar quem questiona, interessaria que houvesse outros
assuntos fundamentais questionados, e não sempre os enigmas "mais
popularizados".
Porém, como é óbvio, tenho múltiplas razões para continuar a preferir a teoria de
1491-92, para a execução dos painéis. Se não tivesse, já teria avisado...
Fica aqui uma síntese, procurando agora mencionar aspectos das outras teorias
correntes.
2.1) Datação pelo quadro
A datação habitual dos painéis era 1470-80. As análises de datação anteriores
tinham sido inconclusivas, até que em 2001 leu-se o número 1445 numa bota.
Foi então feita uma análise dendrocronológica às pranchas de suporte que
terão revelado ser madeira colhida no Báltico entre 1442-52 (cf. Nuno
Crato).
Cientificamente, isso determinaria uma datação mínima (terminus post
quem) e nada diz sobre a datação máxima (terminus ante quem). Por isso,
pareceu-me natural fruto de entusiasmo ver pessoas que divulgam rigor
esquecerem alguns detalhes, e apressarem-se numa conclusão de datação.
Essa data, como se lerá hoje na wikipedia, colocaria a pintura portuguesa na
vanguarda máxima da pintura europeia, saindo do zero, e voltando ao zero...
pois não se conhece mais nada de semelhante no Séc. XV português.
Isso não é impossível, mas seria de um impressionante auto-didatismo.
Sobre a dendrocronologia. Como toda a ciência, os sistemas de datação
assentam em hipóteses que não devem ser esquecidas. Um dos problemas é
que os processos são calibrados aceitando mudanças "convenientes". Para
dar um exemplo, imagine-se que um novo sistema de datação atribuía 1000
anos ao Parténon... ninguém iria duvidar da idade do Parténon, mas sim do
sistema de datação! É assim que as coisas funcionam, por isso os sistemas
de datação não são ciência pura, são ciência contaminada com convicções
prévias.
No caso da dendrocronologia assume-se um crescimento regular dos anéis
em anos bons, e pior em anos maus, devido ao clima, ainda afectado pelos
ciclos de manchas solares (11 anos). É claro que isto esquece múltiplos
factores, que têm a ver com o crescimento da árvore em particular, por
exemplo, doenças, insectos, parasitas, etc.
Assumindo que se tem um registo do clima em todos os anos, pode reduzirse a procura num intervalo, e ver quando o registo de anéis corresponde ao
registo do clima. Obtida a concordância, e como normalmente os anéis
crescem um por ano, pode ter-se uma data precisa.
No entanto, isto funciona se: (i) o registo de clima for fiável ano-a-ano, (ii) o
número de anéis for adequado, (iii) haver uma outra datação que reduza as
possibilidades.
Os problemas em (i) podem ser reduzidos por calibração (com datas
assumidas), e os problemas em (iii) podem ser reduzidos por informação que
reduza o intervalo de possibilidades.
Resta (ii), o número de anéis - o que pode ser complicado em tábuas. As
tábuas são cortadas na vertical, habitualmente nas partes mais exteriores ficam poucos anéis, e é difícil "adivinhar" quantos anéis há até atingir o
interior (ou o exterior).
Por exemplo, pegando na imagem do link que dei acima, identifico o que seria
o perfil de um típica tábua extraída do interior (rectângulo vermelho), e que
apenas conteria informação de alguns anéis - o resto tem um pouco de ciência
e um pouco de fé... adivinhar partindo da imagem a negro:
Ainda assim, admitindo que as tábuas tinham nós suficientes para uma
datação precisa, surge o terminus ante quem, que é como quem diz, para um
quadro que é suposto durar séculos, ninguém vai pintar sobre madeira
fresca... convém dar alguns anos para a maturação da madeira. Seria natural
que as madeiras mais antigas se destinassem a quadros mais importantes.
Portanto, a dendrocronologia, que ainda tem muito para provar a si própria,
não prova nenhuma datação do quadro, conforme foi pretendido - no máximo
arrisca uma data para o derrube das madeiras.
2.2) Datação pela arte
A pintura de Nuno Gonçalves é importante, independentemente de se
datarem mais ou menos anos, e ganhará maior importância admitindo o que
representa...
É curioso que a madeira das pranchas tenha vindo do Báltico, porque era
também essa a origem dos quadros dos primeiros pintores holandeses. E
nesse aspecto convém referir os Van Eyck, pois o "Retábulo do Cordeiro
Místico" (1432) tem um Adão e uma Eva com um realismo surpreendente
para a data de execução. Este caso de "antecipação" pode favorecer uma
tese de 1445, mas a grande diferença, é que no caso da pintura holandesa
não é caso único, não surge do zero, nem volta ao zero...
Noutras paragens, temos outros pintores de vanguarda na técnica, por
exemplo, um Konrad Witz (1444) ou um Jean Fouquet (1450), mas é habitual
considerar que a maior influência europeia acabou por surgir de Itália.
Ora é da escola de Squarcione, que temos o notável Andrea Mantegna, que
tem um admirável S. Sebastião (c. 1455-60), que aqui comparamos com o
"S. Vicente" atribuído a Nuno Gonçalves.
Andrea Mantegna (S. Sebastião, 1455-60); Nuno Gonçalves (S. Vicente)
Há várias semelhanças e várias diferenças, mas são as semelhanças que me
colocam a hipótese de relação entre as duas composições (p.ex. posição na
coluna e chão geométrico). O quadro de Nuno Gonçalves não tem paisagem,
nem uma "ilusão"(?!) de Mantegna, com a nuvem:
Nuvem que forma um cavaleiro no S. Sebastião de Mantegna
Mantegna irá fazer outros S. Sebastião (ver) com características diferentes
(e se há mais "ilusões" escondidas, não as encontrei mencionadas). Não é de
excluir que o atelier de Mantegna tenha influenciado Nuno Gonçalves. No
reinado de D. João II havia uma ligação "instrutiva" com Veneza, com
Florença e os Medici, conforme vemos na correspondência de D. João II, e
essa era uma zona de influência de Mantegna.
Há ainda uma datação pelo vestuário. Não sei quase nada sobre o assunto,
mas li nessa altura um artigo de Dagoberto Markl que mencionava os
detalhes, praticamente arrasando uma datação de 1445 ou similar.
2.3) Datação pelos personagens
Vamos aceitar que no 3º painel, dito do
Infante, está uma família real, ou seja,
Rei, Rainha, e um jovem Príncipe.
As possibilidades para o jovem príncipe,
admitindo uma idade entre 8 e 12 anos,
reduzem a datação:
(i) Afonso V (n. 1432) - datação: 1440-44;
(ii) João II (n. 1455) - datação: 1463-67;
(iii) Afonso (n. 1475)
- que morre em Santarém, datação: 1483-87;
incluo uma quarta hipótese, porque D. Jorge é colocado como pretendente
ao trono após 13/7/1491:
(iv) D. Jorge (n.1481) - filho de D. João II, datação: 1491-93.
Repare-se que só este aspecto exclui a hipótese tradicional 1470-80.
Falta agora juntar o par real, ao príncipe. As hipóteses de "rei" e "rainha"
seriam:
(i) - D. Pedro (n. 1392), regente, ou uma invocação de D. Duarte (já morto, 1438).
o D. Leonor de Aragão (viúva exilada, n. 1402).
(ii) - D. Afonso V (n. 1432), com 23 anos em 1465.
o D. Isabel de Coimbra (n. 1432, mas morre em 1455)
(iii) - D. João II (n. 1455), com 30 anos em 1485.
o D. Leonor (n. 1458), com 27 anos em 1485.
(iv) - D. João II (n. 1455), com 36 em 1491.
o D. Leonor de Viseu (n. 1458), com 33 anos em 1491.
Aqui há um problema de estarem todos vivos à data de execução.
Em caso afirmativo, exclui-se a hipótese (ii), e a (i) também fica complicada,
dado que D. Duarte está morto, e caso fosse D. Pedro, teria cerca de 50 anos.
Não é muito verosímil também a inclusão de D. Leonor de Aragão entre 144045, pois estava excluída do reino. Excluímos a hipótese de ser a mulher de D.
Pedro, pois passaria por provocação régia, face à sucessão do sobrinho,
Afonso V.
Isabel de Coimbra e Afonso V em 1445 tinham 13 anos, por isso associá-los
ao par real, é impensável (em 1455 já seria possível, mas o príncipe, D. João
II nasce nesse ano e a mãe morre).
Os rostos do rei e rainha são de adultos, podendo estar na casa dos 20 ou 30
anos, dificilmente muito mais que 40.
Ou seja, admitindo que se trata de uma família real, e que estão todos vivos,
as únicas possibilidades restantes são (iii) e (iv) - ou seja, D. Leonor de Viseu
e D. João II.
Relativamente à fisionomia, talvez se ache mais natural a hipótese (iii),
colocando os reis na casa dos 30 anos, mas nada impede as idades da
possibilidade (iv).
2.4) Conclusões da datação dos personagens
Por uma simples inspecção dos personagens, admitindo que se trata de uma
família real viva, ficamos reduzidos aos reis D. João II e D. Leonor.
É claro que há outras possibilidades - poderia nem se tratar de uma família
real, poderia ser outra nobreza, mas isso é inverosímil, dado todo o contexto
envolvente. Os dois elementos principais poderiam não ser rei e rainha,
haverá muitas possibilidades, mas também não convincentes.
Também poderiam não estar todos vivos, e isso é uma possibilidade que
iremos considerar, mas não para estes elementos em destaque.
É evidente que se tratando do reinado de D. João II, o Infante D. Henrique
já estaria morto.
Um ponto que me parece fulcral é não forçar o global aos detalhes. Os
detalhes não podem condicionar o global a algo inverosímil, podem é ajudar
a encontrar o contexto correcto. Mas, no final, todos os detalhes devem ser
colocados no seu lugar, ou seja, devem aparecer como detalhes, e não como
peças principais.
Não faz sentido colocar a obra como um enigma do pintor. Ainda que o pintor
possa ter colocado enigmas no quadro, o quadro fez sentido à época para
quem o viu, e é esse aspecto global que interessa encontrar primeiro. Só
depois disso é que faz sentido procurar mensagens que o pintor quis deixar
implícitas.
Quanto à datação artística, a menos que queiramos admitir um pioneirismo
autodidacta de Nuno Gonçalves, tudo aponta para uma influência externa em
Portugal. Poderia ter vindo de Konrad Witz, por razão das ligações de Afonso
V com a Dinamarca, por volta de 1470, também poderia ter vindo através de
Jean Fouquet, ou da Escola de Avignon, pela Borgonha, da Duquesa D. Isabel
(filha de D. João I).
No entanto, encontrámos mais semelhanças com Andrea Mantegna,
conforme já referimos. Isso por si só não é determinante, mas justifica a
possibilidade de influência italiana, razoavelmente posterior a 1460. Não
exclui a hipótese (ii) de 1465, mas faltaria justificar tão rápida aquisição de
competências.
As semelhanças com Mantegna e as relações de D. João II com Florença
parecem apontar para as datas (iii) ou (iv).
Para além disso, vemos que uma datação anterior a 1480, deixaria o
seguimento da pintura portuguesa com um enorme espaço em branco. Aí a
datação de 1491-93 é mais convincente no sentido da ligação a Grão Vasco,
por exemplo.
Sobre a datação dendocronológica, ainda que as tábuas sejam mais antigas,
permitindo uma datação mínima de 1442-1452, isso não condiciona a datação
máxima, havendo até razões para considerar tábuas mais antigas, que já
tivessem resistido a uma prova do tempo.
2.5) Mortos/Vivos
Quando se coloca uma datação à volta de 1465, ou posterior, temos o
problema de estarem mortos o Infante D. Henrique e a Rainha D. Isabel de
Coimbra.
Há alguma característica comum que permita identificar que a Rainha e
o Infante estão mortos?
Não seria estranho, diria mesmo profano, misturar vivos com mortos,
sem nenhum traço distintivo?
À época, creio que sim, e não conheço nenhum exemplo contrário, mesmo
nos séculos seguintes.
Por isso, só escrevi a hipótese quando encontrei um factor comum que
poderia distinguir mortos de vivos, à data de execução do quadro.
Esse factor comum seriam as mãos
frequentemente nos túmulos antigos.
unidas,
como
encontramos
Poderá pensar-se que uns estão a rezar e outros não, mas não há razão
aparente para só alguns estarem em sinal de devoção. Há sim uma forte
razão para distinguir os que já pereceram, através da evidência das mãos
unidas.
Seguindo as razões acima mencionadas, torna-se praticamente hipótese
única ser um quadro do reinado de D. João II. Poderia ter D. Afonso ou D.
Jorge como príncipes, pensados futuros reis.
Iremos abordar essa questão depois.
Primeiro vamos ver se é possível dar sentido aos restantes personagens do
quadro, neste contexto.
2.6) Infante D. Henrique
A identificação do Infante D. Henrique é erradamente tida como óbvia,
porque é a única familiar a todos nós. Porém, se tivessem sido divulgado
outras caras como sendo o Rei X, a Rainha Y, etc... então todos os rostos
seriam familiares e ninguém colocaria sequer dúvidas sobre o quadro.
Isto é instrutivo para perceber como funcionamos por via da educação...
aceitamos coisas como óbvias, sem pensar porquê.
Ora, aquela imagem do Infante D. Henrique foi popularizada durante a
ditadura de Salazar, que praticamente a colocou "imortalmente" no Padrão
dos Descobrimentos, na liderança da epopeia.
Por isso, há conotações políticas actuais, e não completa objectividade, em
assumir que aquela se trata da efectiva imagem do Infante D. Henrique.
Isso não foi feito com outras imagens dos Painéis, porque se tornara evidente
que aquele era o Infante, pela sua semelhança com a imagem existente na
Crónica da Guiné de Zurara. Colocamos aqui uma breve imagem que mostra
a coincidência de rostos:
Por isso, a utilização da imagem do Infante D. Henrique não foi nenhuma
escolha fortuita, foi baseada numa exacta coincidência com uma imagem de
outro documento, que continha ainda a sua divisa "talant de bien faire".
Acontece que se duvidou recentemente da autenticidade da própria Crónica
de Zurara, porque há uma notória mudança de aspecto entre a primeira e a
segunda página.
Curiosamente, parece que não se duvida que o texto tenha sido alterado obviamente o mais natural (e sabemos bem porquê), mas sim que a imagem
fosse outra.
Ora, uma alteração da imagem parece-me algo de arrojada conspiração, e
isto dito por mim, parecerá até estranho. Porém, digo isto porque não
encontro motivo para substituição de imagens, a menos que fosse alguém
que quisesse recolocar D. Pedro no seu devido lugar histórico. Aí tratar-se-ia
do Infante D. Pedro e não de D. Henrique... só encontro esse motivo, e posso
aceitá-lo. Outro, parece-me difícil.
Há porém uma série de argumentos, que estão resumidos em paineis.org.
Destaco a questão da face esculpida no túmulo da Batalha, porque me parece
o mais pertinente.
(i) Há um rosto que não corresponde ao padrão da escultura da época, tem
formas algo simplificadas, que não se ajustam ao outro detalhe. É
perfeitamente natural que uma escultura exposta tenha sido danificada quase
irremediavelmente, por algum partidário de D. Pedro, e certamente não
faltariam candidatos ao trabalho, logo à época, e especialmente no reinado
de D. João II.
No entanto, a escultura mantém traços que a ligam ao quadro em Zurara. O
corte de cabelo e o lobo da orelha são praticamente iguais. O olhar também
poderia corresponder sem dificuldade, é a parte inferior do rosto que tem
maior mudança, graças a traços demasiado vincados, que não se coadunam
com a malha fina que existe na coroa ornamental da cabeça. Aliás a parte
inferior da cara parece ajustar-se de facto à de D. Pedro, talvez por
deformação propositada, eliminando o típico bigode.
Por isso, se se considerar uma imagem errada em Zurara, num livro de
guarda pessoal, não se pode deixar de considerar uma deformação quase
evidente num busto exposto. Acresce que as coincidências notáveis na
posição do corte de cabelo, evidenciam tratar-se de D. Henrique. A confusão
com D. Pedro só aumenta pela coroa ornamental da cabeça, que é
semelhante à que se vê no "retrato" mais jovem de D. Pedro. Talvez o
trabalho de escopro tenha sido ao ponto de destruir o chapelão...
(ii) Há uma questão relativa à cor do cabelo, que me parece secundária, e
resulta de uma nova proposta de transcrição na leitura do manuscrito de
Zurara. Parece-me que pelo menos ambas as interpretações (a de João de
Barros, e a nova) são possíveis, e João de Barros teria maior proximidade
histórica, e outras fontes.
(iii) Há depois a questão de uma eventual alteração da divisa com o moto
"talAnt de bien fAi're".
O problema são os dois A maiúsculos... só que onde é vista uma adulteração,
pode ver-se outro sentido. Ou seja, os A maiúsculos deveriam passar para o
início das palavras, ficando
Atlant de bien Afri'e,
que é como quem diz "América por bem África"... juntando o moto de D. João
I (por bem), e remetendo à questão do paralelismo América-África, notado
também pela duquesa Medina-Sidonia.
O "fere" ao invés de "faire" não tinha o "i" conveniente, nem ao "talant"
convinha o "e", haveria mais o empenho do talento nos talentos (moeda)...
Para além disso, se é que interessa alguma coisa, poderia ainda ficar
"Atlantide", e o rabisco no d pode não ser bem um rabisco, e mais um minimapa com a península da Florida... mas isso são conjecturas.
Como diria Frei Luís de Sousa, tem duas pirâmides dos reis do Egipto... sim,
mas tinha uma em cada hemisfério, como se já soubesse que havia outras na
América, ou pior, como se já preconizasse uma divisão dos hemisférios pelo
meridiano de Tordesilhas. E assim, quem teve que "coser esse barrete", de
"duas metades", foi o seu sucessor de Viseu, D. Manuel, mas esse é outro
personagem.
(iv) A questão da simetria da cara nos painéis e na crónica... pode até ter
uma explicação, mas não creio que seja vendo o quadro como uma
"charada". É uma oposição política. Na crónica de Zurara, o Infante está
virado para Oriente, como sempre esteve, e é D. João II, na tentativa de
legitimação de D. Jorge, que irá virá-lo para onde lhe convém...
Sobre o Infante D. Henrique acrescento a sua saída (expulsão) da Ordem da
Jarreteira, talvez tenha preferido a Ordem do Tosão de Ouro, adoptado o
chapelão do borgonhês do "confrade" Filipe, por bem, o Bom, seu cunhado.
A dinastia podia omitir o passado bulhão, e a Ida, com os novos talentos,
passaria a afrancesar o talento com um sangue afonsinho borgonhês,
carimbado oficialmente.
2.7) Infante D. Pedro
Sobre o Infante D. Pedro, começo com esta descrição de Camões 7§77
(77)...
De um velho branco, aspecto venerando
Cujo nome não pode ser defunto
Enquanto houver no mundo trato humano:
No trajo a Grega usança está perfeita,
Um ramo por insígnia na direita.
78
Um ramo na mão tinha... Mas, ó cego!
Eu, que cometo insano e temerário,
Sem vós, Ninfas do Tejo e do Mondego,
Por caminho tão árduo, longo e vário!
Vosso favor invoco, que navego
Por alto mar, com vento tão contrário,
Que, se não me ajudais, hei grande medo
Que o meu fraco batel se alague cedo.
A "grega usança" tomo-a como referência às vestes de D. Pedro, nem sei se
alguma vez houve outro candidato para esta descrição de Camões. A imagem
do jovem Pedro lembra-me os Evzones gregos.
Vemos nos painéis a fivela do cinto da Jarreteira, desapertada, e talvez a
blusa evidencie uma "grega usança"... o ramo já não tinha, e se tinha, foi
ocultado por uma espada. Essa espada, mal posicionada entre as mãos, e
sem continuação notória do gume/bainha, parece ser uma inserção posterior
(seria importante ter uma imagem radiográfica desta parte).
Já assinalei possíveis confusões entre as imagens de D. Pedro e do busto de
D. Henrique no túmulo da Batalha, que coloco nesta imagem:
A semelhança mais importante é o ornamento da coroa (assinalo as folhas
semelhantes com quadrados vermelhos).
Há ainda alguma semelhança na parte inferior do rosto, identificada em
paineis.org. Como já referi, pode ter-se tratado de uma adulteração do busto
inicial. O Mosteiro da Batalha, longe de estar imune a alterações, sofreu
consideráveis mudanças. Relembro, por exemplo, a parte hoje vazia, e
atribuída ao "soldado desconhecido". Faz falta uma outra, atribuída aos
"navegadores e exploradores desconhecidos".
D. Pedro, estando já morto, cumpre o critério das mãos juntas, tal como D.
Henrique, faltará só o ramo nas mãos, que nos parece ter sido substituído
pela parte superior de uma espada.
2.8) D. Beatriz de Viseu e D. Manuel
Uma outra figura importante nos painéis é a da velha senhora, por cima da
Rainha, dando uma possível ideia de parentesco, mas não só. As duas
mulheres têm um lugar de destaque no conjunto.
D. Beatriz de Viseu, é mãe da Rainha D. Leonor, e é uma peça central na
época. Substitui-se quase ao Papa, como mediadora no Tratado de Alcáçovas,
entre D. João II e Isabel de Castela, mantendo os filhos de ambos como
reféns, nas Terciarias de Moura.
É portuguesa, mas aparece como "parte terceira", numa questão entre os
seus sobrinhos, mas também entre Portugal e Espanha.
O seu filho é D. Manuel, e sucederá a D. João II, que preferia D. Jorge, seu
filho "bastardo".
Há semelhanças físicas face a um outro retrato de D. Beatriz, onde aparece
mais nova, mas com trajo religioso algo similar.
Nascida em 1430, teria 55 anos na hipótese (iii) de 1485, e 61 anos na
hipótese (iv) de 1491. Uma idade próxima dos 60 anos é consistente com a
fisionomia do seu rosto.
A figura retratada é religiosa, vê-se
o terço, mas nos painéis não está a
rezar.
No outro quadro, D. Beatriz está a
rezar, com as mãos juntas. Nos
painéis não pode ter as mãos juntas,
porque está viva à época.
No outro painel, em posição semelhante, à
de D. Beatriz, em oposição ao "príncipe",
aparece outro jovem, com o "barrete
cosido" que identificámos antes com D.
Diogo. Faço agora uma comparação com D.
Manuel, com uns anos e uns quilos de
diferença:
O contorno, da sobrancelha ao nariz, é muito semelhante. Nascido em 1469
teria 16 anos em 1485, e 22 anos em 1491.
Porém, há um detalhe, que me obrigou a afastar a hipótese de ser D. Manuel
- o jovem parece ter as mãos juntas (só se vê uma mão), e assim, pela regra,
estaria morto... Poderia por isso ser o irmão, D. Diogo, assassinado pelo rei
em
1484.
A cerimónia em questão, c. 1485, seria assim uma reabilitação de D. João II,
prostrado no chão, pedindo perdão à Rainha, sua irmã, e à mãe, D. Beatriz,
pelo assassinato do filho.
O quadro seria encomendado para esse efeito...
Essa hipótese de 1485 estava para mim quase como definitiva, pela sua
razoabilidade, até reparar num outro detalhe, pouco tempo antes de escrever
o texto:
todos os personagens tinham a barba aparada, excepto os que tinham
as mãos juntas.
Ou seja, os vivos tinham a barba rapada, e isso correspondia a um
acontecimento preciso - a morte de D. Afonso, na queda de cavalo em
Santarém.
O rei D. João II rapou a barba, e todos fizeram o mesmo, segundo Garcia de
Resende.
Poderia haver uma excepção a essa regra, no 5º painel, que presumi ser o
Infante Santo, D. Fernando. No entanto, na posição do personagem, a
perspectiva não tornaria visíveis as suas mãos. Portanto, não havia uma
quebra efectiva de regra, e todo o enquadramento faria sentido.
Faltava recolocar D. Manuel. Uma outra figura no 5º painel tinha algumas
semelhanças com outro retrato de D. Manuel, e na altura considerei a
hipótese de estar ali representado. No entanto, dadas as semelhanças com
este retrato, é possível que estivesse ainda retratado na figura do Duque de
Viseu, como duas partes do mesmo projecto.
sábado, 5 de janeiro de 2013
continuação
2.9) Camaroeiro
Reduzimos as possibilidades a dois eventos marcantes no reinado de D. João
II:
(iii) 1484 - Assassínio de D. Diogo de Viseu, irmão da rainha, por D. João II;
(iv) 1491 - Morte de D. Afonso, e fica D. Jorge como candidato ao trono;
Na hipótese (iii) não fazia muito sentido um perdão sobre a morte de D.
Diogo, se ele aparecesse como um mero personagem no quadro, sem
destaque especial.
A hipótese (iv) teria a favor a questão da "barba rapada", que se estende a
todos os elementos de bastidores, sem excepção, tratam-se de 35 pessoas,
havendo mesmo apenas 3 com barba pronunciada no conjunto de 60. Uma
questão que se levantava: - era isso comum à época?... Ora, sabemos que
ao contrário, a barba era normal, que D. João II usava barba, e aproveitamos
para comparar retratos conhecidos de D. João II, com o constante dos
painéis:
Os outros dois rostos divulgados não são muito semelhantes entre si, e se há
algumas semelhanças são também encontradas na imagem dos painéis. Em
ambos os casos D.João II tem barba, que usava normalmente, e só cortou
pela ocasião da morte do filho.
Porém, aqui também se impõe a pergunta... se houvesse um talento como o
de Nuno Gonçalves na corte, teria sido só aproveitado numa ocasião? A corte
recorreria a outros pintores inferiores para os seus retratos? Nuno Gonçalves
ficaria apenas com 4 ou 5 imagens de santos?
Há até quem já o faça morto em 1471, esquecendo a datação anterior 147080 quando a sua morte era apontada para 1492... Ora, Gonçalves havia
muitos e Nunos também.
Seja quem for, mais nenhum pintor aprendera nada com ele, para melhores
retratos reais?
Adiante. Passamos a D. Leonor, cujo símbolo adoptado, após a morte do filho
foi o camaroeiro, simbolizando a rede em que Afonso lhe terá sido trazido,
por pescadores.
Há um painel, denominado "dos pescadores" e que tem uma rede...
Só este pormenor seria razão mais que suficiente para a suspeita imediata,
e por isso se houve alguma primeira teoria, creio que terá sido essa. Estou
longe de pensar que esta tese de 1491-92 tivesse sido colocada aqui pela
primeira vez... muito pelo contrário, terá sido provavelmente a primeira tese,
se calhar dos Bordalo Pinheiro, que viram o quadro (1882). Um dos irmãos,
Rafael, até se acabou por estabelecer (1884) no local de eleição de D. Leonor
- as Caldas, e será uma farpa de Ramalho Ortigão (nascido nas Caldas da
Rainha), que retomará o assunto dos painéis, entretanto "esquecidos", de
novo. Uma coincidência, certamente...
Na altura de Bordalo Pinheiro não havia exames por Raios X, e parece agora
que a rede não será visível a essa inspecção... talvez haja outras redes a
serem inspeccionadas. Ora, conforme é bem observado em paineis.org, no
exame radiográfico parece que se vêem pelo menos as bóias de cortiça, e
portanto, entramos na "mitologia dos exames que dizem coisas". Os exames
não "dizem nada", as pessoas é que falam e escrevem. Basta olhar para uma
radiografia (paineis.org) e ver que a intensidade pode esbater contrastes,
mal permitindo ver os contornos das pessoas nos bastidores. Assim, é natural
que não apareça a rede!
Agora, se a radiografia mostrasse um ramo nas mãos de Pedro, aí sim, aí
tínhamos espiga!
Tra la spica e la man qual muro e messo...
Uma coisa é um olhar primevo, e outra coisa é o olhar educado... porque o
olhar educado tende a seguir um caminho trilhado, e a procurar onde lhe é
sugerido. Ainda que se afaste, já avançou muito no trilho. Só assim consigo
explicar que a maioria dos estudiosos nem sequer refira a hipótese de os
painéis serem posteriores a 1480. Refiro-me a estudiosos e não a
conhecedores - os estudiosos não sabem e procuram saber, ao passo que os
conhecedores, porque lhes foi dito, já sabem, e basicamente estudam os
estudiosos.
Os estudiosos não sabem que os outros sabem... e se quiserem mesmo saber,
com alguma cerimónia, podem candidatar-se a "conhecedores".
Este apontamento é dirigido a curiosos e estudiosos, e críticas sérias são bem
vindas.
Adiante. Temos portanto uma rede, um camaroeiro, uma Rainha, Leonor... a
data é 1491-92, confirmado pelas deduções anteriores. A rainha parecer-seà com Leonor?
É dito que Leonor seria alourada, e os cabelos da rainha, ainda que
apanhados, sugerem isso.
Quanto ao rosto, vejamos a comparação com um quadro conhecido:
As feições parecem-me razoavelmente semelhantes (à época dos painéis
seria bem mais velha), e sobre a curva do "nariz torcido", onde pode
levantar-se dúvida, nota-se também uma inclinação vincada no outro quadro.
O pescoço nos painéis parece mais comprido. Mas há uma desproporção e
uma técnica mais arcaica no quadro mais antigo. Só as mãos estão "melhor"
que em Nuno Gonçalves (que não parece dar muita atenção ao desenho das
mãos em todo o painel). Se os painéis fossem anteriores ao quadro da rainha
(c. 1475), parece pois que Nuno Gonçalves e discípulos andariam ocupados
a pintar santos...
Vejamos ainda o ornamento das vestes de Leonor, no quadro mais antigo.
Esse será um "padrão da moda", no final do Séc. XV e também o vemos nos
painéis. Depois há a questão da manga... é vermelha, tal como nos painéis,
e cobre razoavelmente a mão.
Ainda sobre a moda no vestuário, fui reler um pouco, lembrando
profundamente os confrades do Vinho do Porto. E falando em barretes, e
chapelões, recordei a figura algo caricata de Afonso V, não pelo chapelão,
que o tio é que ficou com ele, mas pelos seus sapatos bicudos. Era esse o
outro ponto que tinha contra a tal possibilidade do quadro ser de 1445-50,
pelo menos. Pelo menos, porque essa moda durou mais de um século, circa
1470 ainda encontramos quadros com esses sapatos, manifestamente já
ausentes dos painéis.
Ambas as imagens parecem ter a proveniência de Georg von Ehingen,
que entra ao serviço de Afonso V c. 1460 (a imagem é suposta ser c. 1470 - ver)
É claro que poderíamos estar com uma antecipação de moda (parece que
tudo pode mudar para justificar um quadro...), mas o jovem Afonso V
cometeu a imprudência de usar outros sapatos, e não as botas, que só entram
na moda no final do século XV, e que são usadas nos painéis.
2.10) A Rede
E quem são os personagens no Camaroeiro de Leonor, "apanhados na rede"?
Aqui começa a ser mais complicado... porque
há várias "redes", mas só uma visível no
quadro (com ajuda de exames alguns
concluiriam que nem essa deveria ser
vista...).
Bom, mas a rede visível engloba três
personagens, a primeira personagem em
destaque dificilmente a vejo como um
homem, tudo indica que se tratará de uma
"velha senhora", tem feições que sugerem
isso.
Ocupa um grande destaque em toda a
composição.
Poderia ser um "modelo indistinto"?
Precisaria esse "pescador" de alguém, a seu
lado, que parece "conspirar ao ouvido"?
E quanto ao homem nos bastidores, que
"passou por ser Salazar", quereria ele ver-se
no meio daquela rede?
Porquê?
A composição tem os painéis alinhados com a perspectiva dos azulejos, e por
isso não há nenhuma troca de painéis (como também já foi sugerido).
Em paineis.org faz-se ainda notar que a iluminação neste painel é diferente...
e nessa boa observação não tinha reparado. Isso ajuda a teoria da "rede", os
restantes estão iluminados pelo sol nascente, e os conspiradores pela luz do
poente. Não é a mesma luz que os ilumina, e por isso os seus caminhos são
outros, desviantes.
Compreenda-se que estamos a entrar nos detalhes, e nada tem a ver com a datação...
apenas se procura não deixar vazio o restante enquadramento, tentando dar-lhe um
maior sentido global.
Poderíamos ser mais "politicamente correctos", e deixar os restantes personagens fora
de identificação. Estão identificados os principais personagens, a data, o motivo
(promoção de D. Jorge a sucessor), e poderíamos deixar os pescadores no abstracto,
falar numa penitência, nas preces dos frades, etc... Porém, o nosso único cometimento é
com a consistência global, verdadeira, e não com uma educação condicionada.
2.11) Os fundadores de Avis
Vejamos os 1º e 2º painéis, ditos dos "frades" e "pescadores".
No 2º painel, apesar da direcção da luz oposta, há uma sombra mal definida,
no outro sentido, junto ao penitente prostrado no chão.
Apesar de ter sombra (no painel até os santos têm), esse penitente em
destaque estará morto pela "regra das mãos"... Ora, estando morto, isso dá
uma grande indeterminação para o personagem, é preciso encontrar algum
motivo que o coloque em tão grande destaque e em penitência, no painel da
"rede".
Tratando-se da época de D. João II, é sabido que o seu maior problema
conspirativo é com a Casa de Bragança, a quem fez executar o Duque
Fernando, e também com Viseu, assassinando o Duque Diogo.
A origem da Casa de Bragança remonta à união da filha de Nun'Álvares com
o filho primogénito de D. João I (porém em casamento anterior ao pai ser
rei), ou seja, Afonso feito depois 1º Duque de Bragança. Portanto, poderia
ser Afonso, mas num lugar de tão grande destaque, parece ser o próprio D.
Nuno Álvares Pereira. Nun'Álvares que se dedicou no final da sua vida a uma
reclusão monástica carmelita.
Comparemos os retratos, notando ao mesmo tempo que no 1º painel, em 1ª
posição surge uma figura, também com as mãos juntas, cujas feições se
podem assemelhar às de D. João I.
Quanto a Nun'Álvares, há uma coincidência fisionómica razoável, a começar
pela sua calvíce e longas barbas. Em ambos os quadros o nariz é pronunciado,
mais fino no retrato do que nos painéis (e por isso colocamos uma outra
pequena imagem, que mostra que o nariz "não seria tão fino quanto isso").
Quanto a D. João I, apesar da imagem antiga não permitir grandes detalhes,
há uma considerável semelhança, talvez à excepção do queixo, feito muito
delicado na imagem histórica.
Se seguirmos o 1º painel, dos frades, vemos ainda um personagem de longas
barbas, tal como D. Afonso V iria usar:
Isso levou-nos a suspeitar que os "frades" representassem o seguimento da
linha de D. João I, tendo pelo meio D. Duarte, e aqui D. Afonso V. Não temos
nenhum comparativo com a imagem de D. Duarte (que já foi até visto com a
imagem do Infante D. Henrique, numa certa ousadia interpretativa), temos
apenas um pseudo-retrato formulado uns séculos depois, e a visita ao túmulo
da Batalha não é muito mais eficaz - mas não se vislumbra grande barba:
A eventual imagem de D. Duarte nos painéis (que parece usar uma ligeira
barba branca), parece adequar-se à escultura do túmulo (falta imagem
melhor), e não tanto à da suposição posterior (creio que do Séc. XVI).
Esta suposição baseia-se mais na procura de coerência na composição, não
afectaria muito o restante ser outro personagem.
Assim, este primeiro painel, teria como "frades" falecidos - a sucessão de
Avis, anterior a D. João II. Ou seja, começando com D. João I, subindo para
D. Duarte, próximo do seu filho D. Afonso V, pai de D. João II. Acima deles
estão outros 3 personagens que já não pertencem à realeza... será
complicado determinar, talvez os mestres das ordens, não sei, não me parece
relevante para a compreensão do conjunto.
2.12) A pesca
Passamos de novo ao 2º painel, dos pescadores.
Acima do penitente, que julgamos ser Nun'Álvares, está um grande espaço,
parecendo faltar um personagem. A sua sucessão dá-se com D. Afonso de
Bragança, que pensámos ter ido parar ao painel seguinte. Porquê?
Porque se não estivesse faltaria alguém do Ducado de Bragança. O pequeno
D. Jorge seria já duque de Coimbra, a duquesa de Viseu está presente, e o
primeiro duque, D. Henrique, também. Seria formalmente incorrecto deixar
de fora o ducado de Bragança, nesse conjunto real. A solução encontrada
poderá ter contribuído para a morte dos artistas (há dois... o pintor e o rei
que certamente supervisiona).
Aceitando ser o velho Afonso de Bragança que sai do 2º painel para o 3º,
vejamos onde ele é colocado... ao nível dos bastidores, acima do Infante D.
Henrique. Tem algum destaque, mas é relegado para uma posição que
afectaria a sua posição ao nível da nobreza. Especialmente porque no 4º
painel, o rei vai chamar ao primeiro plano, semelhante ao real, os seus
navegadores. Isto seria uma afronta velada, mas minimamente correcta na
formalidade da composição. Por cima de D. Beatriz surgiria provavelmente
um outro Bragança, que esconde as mãos... poderá não ter paz, pela
execução, poderia ser Fernando, o neto de Afonso, executado por D. João II.
Estaria assim um par, D. Beatriz de Viseu e por cima D. Fernando II de
Bragança, e outro par, D. Henrique de Viseu e por cima D. Afonso de
Bragança... e teria significado.
Henrique e Afonso foram o primeiro par aliado de Viseu e Bragança
derrotando D. Pedro (de Coimbra). Implicitamente, D. João II colocaria aqui
Beatriz e Fernando como segundo par aliado de Viseu e Bragança, contra si,
que se via como herdeiro do avô D. Pedro de Coimbra.
A confirmar-se esta "solução artística" no painel, iria bater forte, em
particular na herança Bragança, sempre questionada pela sua ascendência
nobre "meio bastarda".
Deveria ainda haver outra intenção - a sua inclusão ali procurava dar uma
outra mensagem, porque D. Jorge também era considerado bastardo (... o
rei não poderia admitir outra coisa, e não adianto mais).
Se o velho Bragança se considerava injustiçado, pelo casamento posterior do
pai com D. Filipa de Lencastre, que o afastou do trono e afectava a sua
nobreza, a questão da sucessão por D. Jorge envolvia conceitos semelhantes.
Acresce que o próprio D. João I não seguia da linha directa, e era um bastardo
legitimado pela Revolução de 1383-85, onde foi apoiado por Nun'Álvares (ele
próprio não primogénito, batendo-se contra o irmão em Aljubarrota).
Estes personagens, pela sua importância, fariam ainda sentido no espaço
seguinte a Nun'Álvares, mas seriam colocados no painel principal, para
efeitos formais e procurando evidenciar a base moral de legitimação de D.
Jorge.
A personagem seguinte acima de Nun'Álvares, tem essa ambiguidade de
poder ser vista como um pescador, mas parece-me uma velha senhora, e pela
"regra das mãos" estaria morta. Era muito mais fácil encontrar um candidato
entre "homens mortos", facilmente colocaria ali D. Fernando II de Bragança.
Mas, estando convencido que se tratava de uma mulher, não poderia ser a
sua mulher Isabel de Viseu, que era viva, sendo natural aliada da mãe e da
irmã contra a pretensão do executor do seu marido, obviamente apoiando o
irmão D. Manuel e sendo contra D. Jorge.
Há assim uma ambiguidade, também de género, e permitiria vários
candidatos, mas considerei a hipótese de ser uma evocação de D. Isabel de
Barcelos, pelas várias ligações. Por um lado, era filha de Afonso e tia de
Fernando II de Bragança, por outro lado, era mãe de D. Beatriz, e
principalmente porque se retirou para Castela, onde viveu com a Rainha, sua
filha, e com a neta, a futura rainha de Espanha, Isabel, a Católica. Quatro
ligações a opositores de D. João II e à Casa de Coimbra.
A múltipla ligação atingia ainda vários problemas que induziram conflitos
entre Portugal e Espanha. Do casamento da filha de Isabel de Barcelos com
D. Juan II de Espanha, surge um problema de sucessão entre a neta D. Isabel
e a sobrinha de Afonso V, D. Joana.
D. Joana, neta de D. Duarte, a "Excelente Senhora" (ou a "Beltraneja").
A pedido do pai, Henrique IV de Castela, D. Afonso V tomará o partido da sua
sobrinha Joana, e irá casar-se com ela - seria uma união ibérica com centro
em Lisboa, o que não agradava certamente aos castelhanos, pelo mesmo
motivo que o oposto não tinha agradado aos portugueses um século antes.
Os castelhanos duvidaram da paternidade chamando-lhe "Beltraneja", e
viraram-se para Isabel, a neta de Isabel de Barcelos, que tinha casado com
Fernando de Aragão. A Batalha de Toro é decisiva, e a derrota de Afonso V
só é compensada pelo auxílio das forças do filho, João II.
Se D. Joana não está presente no quadro, não deixa de estar presente nos
motivos do quadro. O seu sobrinho, D. João II, não deixará de considerar a
também "madrasta" como "Excelente Senhora", sendo mais uma vítima dos
processos cortesãos, de "selecção natural dos espécimes".
Sem Joana no caminho, forma-se a Espanha dos Reis Católicos, que entra em
acordos de paz com Portugal de D. João II, através da mediação de D. Beatriz
de Viseu, no Tratado de Alcáçovas. A mesma Beatriz, que era mãe da rainha
D. Leonor, mas também a tia comum aos reis de Portugal e Espanha,
promovendo um novo casamento, agora entre a sobrinha-neta e o neto... e
com o neto morto, casaria de novo com o filho, D. Manuel.
Regressamos a D. Isabel de Barcelos, mãe de D. Beatriz e tia de D. Fernando
II de Bragança.
Para D. João II, poderia ser natural ver naquela filha de Afonso de Bragança,
uma representação de um problema de gerações: - o pai dela estava na causa
da morte do seu avô, a neta na derrota do pai, o sobrinho na conspiração
contra si, a tudo isto junta a morte recente do filho Afonso... Ou seja, quatro
gerações apareciam como vítimas da hostilidade da Casa de Bragança, e da
aliança com Viseu.
Falta falar do homem que está ao seu lado (de Isabel de Barcelos),
parecendo-lhe segredar algo, e assim virado a ocidente... para efeitos do
quadro não é muito importante, acho que não perdi tempo com isso. Está
dentro da "rede"... a sua orientação pode já ter a ver com os planos de
partilha das descobertas, que seriam oferecidos aos espanhóis através da
personagem Colombo. Pode ser D. Álvaro de Bragança, ainda vivo, refugiado
em Castela desde a morte do irmão Fernando. É próximo de Isabel, a
Católica, que lhe dará posses em Espanha, regressará a Portugal logo após a
morte de D. João II. Poderá segredar os planos colombófilos ocidentais à
neta de Isabel de Barcelos, também Isabel, assim numa identificação
intemporal.
O homem de bastidores, ainda dentro da "rede", poderá ser visto como um
executor do "acidente" que vitimou o príncipe Afonso. Se alguém quis ver aí
Salazar, dificilmente terá sido o próprio, a menos que ele estivesse
convencido da versão "frades, pescadores... e Companhia". Nesse caso
estaria talvez a ser vítima de uma piada cortesã, de piadas e boatos que se
disseminam como doença, numa sociedade fragilizada pelos códigos e
segredos da grande confraria lusitana. Outra possibilidade é que o sistema
estivesse tão seguro de controlar educacionalmente a versão oficial, que até
a incorporasse como teste...
De qualquer forma, esse "boato" acabou por divulgar ainda mais a existência
dos painéis.
E, se nessa época se divulgou a imagem do Infante com uma sustentação
sólida, não se usou mais nenhuma, as restantes ficaram como incógnitas. Ao
contrário, hoje vemos divulgados rostos associando as caras dos painéis a
figuras históricas, com base nas mais frágeis teorias. A próxima geração,
como novo teste, terá que perceber adicionalmente que os rostos que lhes
eram familiares, eram afinal meras suposições.
domingo, 6 de janeiro de 2013
[continuação)
2.13) Santos
Talvez a primeira coisa a notar é que não será fácil encontrar "santos" nesta
história.
Há projectos familiares, heranças, que se disputam pelo interesse
patrimonial, indiferentemente de serem grandes terras, um simples cordão
de ouro da avó, ou um território de caça de um felino.
Algo completamente diferente é um projecto social, uma solução de
convivência com vantagens para os diversos intervenientes, um sistema
protector das diversas ameaças.
Os conceitos misturam-se de forma complexa nos conflitos históricos, e se
os projectos familiares se apoderaram do projecto social, outras vezes, raras,
foram os próprios projectos familiares a cederem face ao futuro do projecto
social idealizado. A nobreza é o projecto social, e degenerou pela sua
confusão com o projecto familiar... projectos familiares todos têm, mesmo
as alimárias. A separação de classes seria uma protecção do modelo da
ordem medieval, não tinha benefícios em ser estanque, e isso acabou por
perverter o seu sentido, tornando-se num conjunto cada vez mais caótico de
projectos familiares.
Um grande pelicano seria capaz de sacrificar a sua carne para alimentar um
ideal de sociedade. E isso deixou marcas profundas, de admiração, mas
também de indignação.
Não consta ter havido nenhum apuramento especial das circunstâncias
"misteriosas" em que ocorreu a morte do príncipe Afonso. Para um rei que
puniu exemplarmente eventuais conspirações contra si, seria de esperar um
outro tipo de reacção, e não propriamente deixar sem grande investigação o
"acidente". Porém, creio que a D. João II não o preocupava especialmente a
sua pessoa, mas sim o projecto social - pela lei, pela grei. Mas, pela grei,
colocava-se, se necessário, acima da lei. Há um poder executivo que dá
relevo ao poder da justiça, e de certa forma à representação do povo (que já
existia nas cortes pela figura dos concelhos). Parece-nos um prelúdio de uma
separação de poderes, tendo como objectivo o serviço da população e não
apenas dos interesses da nobreza.
Dificilmente encontramos outro quadro europeu da época que coloque com
destaque semelhante frades e pescadores, reis, navegadores, cavaleiros e
sábios. Porque essa sugestão de representação também se encontra no
quadro, e motivou as designações popularizadas.
Só por si, essa sugestão, reflexo da ousadia na governação, e não da ousadia
arriscada de um pintor, deixaria a datação circunscrita a duas regências - a
do Infante D. Pedro, ou mais provavelmente do neto, D. João II.
Quanto aos dois Santos, pareceu-me ver aí uma oposição de destinos na
orientação das navegações.
Pelo lado ocidental, abria-se o livro do Novo Mundo e a colonização, não
impediria ainda o comércio com o Oriente, evitando o conflito no Índico. Pelo
lado oriental, fechava-se o negro pano, dava-se a batuta de comando, e
haveria conflito nos mares. Pelo lado oriental, antevia-se ainda uma
sangrenta expedição, com o velho motivo da Cruzada templária do Infante,
e recordamos de novo as palavras do Cardeal Saraiva:
He portanto fora de duvida, que o sábio Infante levou na gloriosa empreza de
seus descobrimentos hum fim mais alto e mais importante do que a mesquinha
idéa de colher os Mouros pela retaguarda, idéa da qual se não diz uma só
palavra na vida do Infante, nem de seu augusto pai, nem tão pouco em
historia alguma dos descobrimentos Portuguezes.
(Cardeal Saraiva, Obras Completas, 1875)
[... e o ficheiro PDF onde coloquei isto, entretanto desapareceu-lhe o link, e terei que repor isso]
Aos Infantes abriam-se duas perspectivas, e ainda que D. João II tenha
virado o tio a ocidente, acho que a tal "ideia mesquinha de colher os Mouros
pela retaguarda", da qual "se continua a não dizer palavra"... essa ideia
oriental, era a parte principal do projecto de D. Henrique.
Nessa perspectiva, procurámos identificar um Santo como Bartolomeu, que
marcava a data das novas investidas contra os marroquinos, em Arzila e
Tanger. Colocámos outras possibilidades, uma dualidade S. Jorge/ S.
Bartolomeu ou S. Vicente/ S. Tomé, ainda a possibilidade de serem duas
faces de S. Vicente, e não esquecendo o nome do mosteiro "São Vicente de
Fora", admitimos que o nome pudesse resultar desse Santo não estar
presente, ou de uma alusão à ocultação dos painéis.
Pois bem, essa questão do Santo estar "de Fora" parece ganhar um novo
dado
Lendo entretanto o site paineis.org, retive este excerto sobre o "manuscrito
do Rio", que desconhecia:
Por outro lado, o único testemunho histórico que parece referir de forma
inequívoca pelo menos dois dos painéis (os maiores), coloca-os no retábulo
das relíquias de S. Vicente na Sé de Lisboa, mas limita-se a descrever de forma
vaga cenas que não entende. Trata-se do frequentemente citado manuscrito
do Rio de Janeiro, descoberto por Artur da Motta Alves em 1936, onde um
autor anónimo faz uma resenha dos retratos de figuras reais existentes em
igrejas e mosteiros de Lisboa.
O documento data de fins do séc. XVI, e nele se refere expressamente que os
dois painéis, descritos de memória, já não se encontram no local, sendo o seu
paradeiro ignorado («... dirão os cónegos onde estão...»).
A forma como o autor recorda os painéis, atribuindo-os a um tal Mota, pintor
de D. João II, não identificando uma única das figuras que rodeiam o «santo»,
e justificando o estranho aspecto efeminado deste último através da
identificação do seu rosto com o de um adolescente – o infante D. Afonso, filho
de D. João II, nascido em 1475 e falecido aos 16 anos – indica uma estranha
ignorância do significado das duas cenas e da identidade dos seus
protagonistas, por parte de quem se mostra informado acerca de outros
retratos de reis existentes em Lisboa. Note-se que o exame radiográfico indica
que a hipotética repintura tardia de um rosto adolescente numa figura adulta,
necessária à sua identificação com o do malogrado príncipe, não teve lugar.
Desta importante informação adicional, que destaquei, fica clara a atribuição
que era dada ao quadro no Séc. XVI... como se dúvidas ainda houvesse.
S. Vicente está "de fora", é aí colocado o príncipe D. Afonso. Não é que isto
seja determinante na interpretação, as interpretações são múltiplas, mesmo
em quadros actuais. Nem será pelo facto de ter feito todo o caminho de
dedução para a datação, e contexto envolvente na execução, que as minhas
opiniões interpretativas, sejam mais que isso - opiniões pessoais, mas
justificadas.
O objectivo destes textos era justificar "melhor" a opinião que coloquei há
três anos, não me afectaria muito que ela fosse considerada certa ou errada,
interessava-me que ela fosse consistente com a informação que procurei,
sem omitir as eventuais fragilidades da tese. Penso ser este o melhor
caminho para a procura de uma verdade comum, partilhada.
Bom, pode-se dizer que aqui eu estava errado - é possível, não escrevi a
hipótese de D. Afonso ser a figura representada num santo, mas também me
lembro que não deixei de considerar essa possibilidade.
Agora, que ela fica mais clara, pela revelação do "manuscrito do Rio", avanço
então com a possibilidade "mais profana", no sentido de que seriam elevados
a santos outras figuras.
Há duas caras nos santos, e parece claro que não seria por falta de engenho
do pintor... foi propositado, e assim haveria dois modelos. Que modelos
poderiam ser ali considerados ao nível de "santos"?
Um, como já ficou claro pelo manuscrito, é D. Afonso, e está no 4º painel.
Quem é o outro "santo" que está no 3º painel?
- Santa Joana Princesa, irmã do rei, que cuidou de D. Jorge, como uma mãe...
como já o tinha feito com o próprio irmão, órfão à nascença da sua mãe, D.
Isabel de Coimbra.
Talvez até estejam as duas Joanas (irmã e tia), na própria representação de
mãe, que D. João II nem conheceu, mas sendo já três invocações,
continuarei as contas da forma que um célebre reitor/cantor ensinou "...
quatro, cinco, seis, é uma história de reis", não deixando por isso de
considerar que as dualidades de santos, que escrevi, fazem sentido ainda
como parte desta história.
Para quem considerar esta tese, percebe a riqueza da composição, do mau e
bom génio de um enorme Rei, e percebe como é complicado aceitar que isto
seja ocultado. Perceberá também porque nem gosto muito de recordar o
assunto.
Não falei muito da Rainha D. Leonor, mas será uma peça chave no que se
seguirá em Portugal.
O seu drama pessoal será enorme.
Depois de ver o seu irmão assassinado pelo marido, tem o filho morto em
circunstâncias suspeitas... um filho que o marido considerava fraco, e
manifestara as suas dúvidas sobre a sua capacidade de governação.
Promovia agora outro filho, em detrimento do seu irmão D. Manuel.
Por esta razão fiz aquela pequena introdução sobre como a dualidade entre
o projecto social e o projecto familiar poderiam entrar em profundo conflito
na nobreza. Que rei seria capaz de ferir a sua própria carne? O pelicano de
D. João II certamente que não ajudaria às interrogações de D. Leonor.
Houve assim suspeitas que não estivesse completamente alheada da
cobrança que D. João II sofreu na carne, que o terá envenenado,
irremediavelmente, vindo a morrer poucos anos depois (1495).
D. Leonor era de Viseu, D. João assumia a herança de Coimbra, do seu avô,
o quadro apontava para terceiros culpados, os Bragança e as ligações a
Castela/Espanha... Porém, a colocação das peças no quadro revela o génio,
o bom e o mau... Aquele quadro, mas sobretudo o enquadramento da sua
intemperança, poderão ter ditado a morte do artista... ou dos artistas, porque
pouco mais se soube de Nuno Gonçalves. O seu nome foi até esquecido, e
poderá ter sido confundido com outro, não é relevante. Lê-se
na Infopedia que o último documento que o menciona em 1492 é já a título
póstumo. Pensamos perceber porquê, mas se o "braço artista" do rei foi
cortado, também parece ter sido o da pintura, durante alguns anos.
Passados muitos séculos, a sua arte viu a luz, ocultando-se a condução da
composição, do rei. Temos dúvidas que Nuno Gonçalves possa ser banido por
algum código da nobreza, ele não seria nobre, e pode até ter sido um simples
executor de instruções reais, se as entendeu ou não, era irrelevante.
Compreendemos que num estrito formalismo, em que a sintaxe suplanta a
semântica, a arte de D. João II seja ainda banida pelos circuitos mais
conservadores, "vencedores" da velha querela.
Apesar de ter logo dito
"O clima fúnebre e sinistro do quadro, mantém-se hoje..."
... não esperava que esse tipo de mentalidade ainda estivesse tão activa, mas
fui aprendendo.
2.14) A Relíquia
Não li ainda a obra de Eça de Queirós, mas já deveria ter lido.
Bom, no 6º painel, a que é dado o nome "relíquia", considerei que os
personagens principais se tratavam dois sábios da confiança de D. João II,
ou seja Mestre Rodrigo de Lucena, médico (ou "físico-mor"), e mais acima
Mestre José Vizinho, matemático, de origem judaica.
O escrito anterior reforça essa hipótese e por isso pouco tenho a acrescentar
de novo. Noto agora que a existência de dois livros, um em latim, e outro em
hebreu, mesmo em segundo plano, poderá ter aberto outro problema religioso.
A interpretação de que a relíquia se tratava do osso do crânio de D. Afonso
mantém-se válida, disse então:
A relíquia, o osso craniano, pode ser uma alusão ao defunto
Afonso, indicando a fractura da futura cabeça do reino. Falta a relíquia - o
cérebro, para ler tudo o que o painel representa. Falta ainda o cérebro para
prosseguir a herança do conhecimento de Avis - é essa a relíquia que o Mestre
Rodrigo nos mostra.
Só para esclarecer eventuais mal-entendidos que, como sabemos há muitos,
quando referi que faltava" - o cérebro para ler tudo o que painel
representa...", estava obviamente a referir ao de um qualquer observador!
Não considerei que o intuito do quadro fosse um enigma por resolver, apenas
é visto assim pelas condicionantes que se criaram à sua volta.
Não falei da caixa, e nem tinha reparado que se considera outra, preta, no 1º
painel. Admito que possa ser o caixão que foi temporariamente aberto para
permitir toda a representação, juntando presentes e ausentes (a parte preta
seria a sua tampa).
Quanto ao "velho", que nem tem a barba bem feita, trata-se claramente de
uma figura popular, talvez quem tenha descoberto "a relíquia", ou levado o
corpo do príncipe morto. Por outro lado, será genuinamente a única figura
que não frequentava o paço real, o povo distante de Lisboa. A melhor
compreensão deste painel passará ainda por identificar os dois personagens
nos bastidores, algo que nem sequer tentei.
2.15) Navegar
O 4º painel, de que pouco falei até aqui, considerei-o dos "navegantes",
genericamente.
Adiantei uma possível identificação de Gama, talvez Paulo e não tanto Vasco,
não especifiquei, porque creio que Paulo, mais velho, seria o preferido por D.
João II, mas para reduzir as explicações ao mínimo, não quis entrar em
detalhes,
na
altura.
Assim sendo, com este nível de incerteza, não valerá muito a pena comparar
imagens, mas o excelente quadro de Vasco da Gama atribuído a Gregório
Lopes, poderia ser uma comparação possível, e com essa latitude não vejo
impedimento que se tratassem de irmãos.
O caminho das Índias seria atribuído aos Gamas, pedido posterior de D. João
II a D. Manuel (quando já se afigurava incontornável a sucessão),
provavelmente por recompensa de outras navegações notáveis. Lembramos
que havia uma "Angra dos Gamas" na Carta ou Portulano do Atlântico Norte,
naquilo que poderia ser uma procura da entrada para a Passagem Noroeste,
ou seja, outra ligação para a China. Se os Corte-Real a tentaram de novo,
pode ter sido porque Paulo da Gama já era morto. Paulo recusara ser o
protagonista da viagem de circum-navegação africana, mas acompanharia o
seu irmão. Morreu na viagem de regresso e o seu barco, S. Rafael, foi
queimado... Apenas resta dizer que, se assim foi, pelo menos a sua memória
permaneceu nos painéis.
Do lado sul, convém lembrar que Pigafeta "descai-se" sobre a viagem de
Magalhães, dizendo que Magalhães sabia de memória um mapa de Martin
Behaim que teria o caminho do estreito... e como já dissemos, Behaim
acompanhava Diogo Cão em 1483, quando foi declarada a chegada ao Congo
(o suposto grande feito de avançar mais umas tantas milhas na costa
africana, cheia de "praias difíceis"!).
Não se conhecem a Behaim muitas mais viagens, ou pretensões de outras
navegações. Se Behaim tinha esse mapa, foi porque provavelmente
acompanhou Diogo Cão na outra parte dessa viagem ao "Congo" - e pelo
caminho descobriu assim a "Cola do Dragão", ou seja, o Estreito "de
Magalhães"... em 1483.
A norte, Paulo da Gama, a sul, Diogo Cão, pouco importa, dois hipotéticos
protagonistas das passagens americanas, ficariam colocados com um
destaque de realeza, tal como Mestre Rodrigo, aliás.
Sendo este "Nuno Gonçalves" o segundo texto da série de sete que
apresentava na altura, não iria logo descriminar estes detalhes, que foram
aparecendo nos textos seguintes.
A batuta era dada a Paulo da Gama, mas para usar um caminho diferente, e
isso justificaria a sua posterior recusa perante a oferta de D. Manuel. O
quadro talvez mostrasse uma cedência parcial de D. João II - o caminho seria
o oriental, mas não contornando África. Esse caminho teve D. João II muito
tempo (7 anos) para o abrir, declarado o Monte Prasso (depois Cabo da Boa
Esperança) em 1488, por um certo Bartolomeu Dias, cujo nome nos sugeriu
Dia S Bartolomeu.
Esse caminho de S. Bartolomeu, manifestamente não parece ter sido
pretendido por D. João II, mas foi depois retomado por D. Manuel, mas já
com outro Gama.
Talvez... Paulo da Gama e Diogo Cão
A colocação neste painel de um D. Diogo morto, ou de um D. Manuel,
levantaria ainda mais impossibilidades de qualquer aceitação de tal cenário
numa corte plena de hostilidade. Mas D. João II não era hostil a D. Manuel,
ainda jovem, por isso preferi considerar que poderia estar no 5º painel, dos
"cavaleiros". A colocação de D. Diogo naquela posição talvez se referisse ao
diferendo que houve entre ambos e que levou ao seu assassinato... era
possível que D. Diogo pretendesse aquele protagonismo de descobertas para
a nobreza, para si! Se aquele era um rosto similar ao de D. Manuel, poderia
constituir um "aviso de navegação", sobre atitudes similares, ou negociatas
de partilha de explorações com os espanhóis.
Um pouco mais acima, temos dois personagens em destaque, mas mais
difíceis de identificar.
À esquerda, pela sua idade, creio que pensei em Diogo de Azambuja, homem
de confiança de D. João II, a quem confiara o Castelo de S. Jorge da Mina
(outro santo escolhido), à direita acho que não pensei em nenhum candidato,
mas haverá certamente muitos, e entre aqueles cuja história o nome não
lembra. Não creio que seja necessariamente um navegador, talvez alguém
mais ligado à parte militar.
Acima de todos, surge um arcebispo, que dá nome ao painel. Pensei em D.
Pedro de Noronha, não com razões especiais, para além de se poder ajustar...
ou ainda em D. Jorge Costa, um arcebispo exilado em Roma, inimigo que
considerava morto, e a sua colocação, próximo de Afonso de Bragança,
poderia indicar essa hostilidade. Como já foi notado por outros, a sua jóia
assenta no "barrete mal cosido" de D. Diogo/ D. Manuel. Isto favorece a
dupla representação, já que Roma certamente que apoiaria D. Manuel e não
D. Jorge (que tem apenas uma pequena pérola no seu "barrete",
contrastando com a magnífica jóia que "acidentalmente" fica no barrete de
D. Manuel).
Para compensar aquela figura hostil morta/viva, que se oporia em Roma aos
planos de D. João II, procurei saber os bispos que seriam seus eventuais
aliados, enumerando Coimbra, Tanger e Algarve, e também o Prior do Crato...
Como é óbvio, tudo isto foram apenas suposições secundárias, com uma
escolha de personagens ligeira, com eventuais falhas, mas que em nada
afectava a interpretação global já avançada.
Finalmente, é claro, a corda no chão contribuiu bastante para esta associação
às navegações.
D. Leonor tem no seu símbolo de camaroeiro uma corda, provavelmente
ligada à rede, mas não creio que se tratasse dessa ligação.
Se a ideia do quadro era uma união através daquela corda, há pelo menos
uma ponta solta, e até uma sombra rectangular, demasiado errada,
parecendo uma emenda.
As cordas farão parte integrante da chamada "arquitectura manuelina", mas
já se nota a sua presença em muitas construções, ainda no Séc. XV.
2.16) Últimos Cavaleiros
Já fui descrevendo porque considerei a ambivalente a possibilidade de D.
Manuel estar representado também neste painel, acima do pai D. Fernando
de Viseu, e do seu tio-avô, o Infante D. Pedro.
Esta seria uma linha em que D. João II poderia mostrar à sua mulher, D.
Leonor, que a prezava, por aquela ascendência paterna, e não pela sua outra
ligação materna, que através de D. Beatriz tocava o "lado Bragança", como
mostrava no painel simetricamente oposto. Este seria o painel para uma
ligação Coimbra-Viseu, que invocaria o avô/tio-avô D. Pedro, o tio/pai D.
Fernando, e o primo/irmão D. Manuel.
Poderia ter considerado o Infante D. João, não fora quebrar a "regra das
mãos", e daria seguimento acima, para o "Infante Santo, D. Fernando", onde
se vislumbram sinais do seu martírio africano, quer pelo capacete, que já foi
entendido, por outros, mostrar em reflexo a "janela de Arzila", da sua cela.
No entanto, podemos considerar a omissão do Infante D. João pelo seu
casamento com Isabel de Barcelos, e para mais, remetemos ao comentário
sobre o painel dos "pescadores".
Era mais natural ver a seguir a D. Pedro, de que já falámos, D. Fernando de
Viseu, um tio que provavelmente D. João II admirava, pela sua faceta de
navegador pelas paragens atlânticas, americanas, mais do que pelo simples
facto de ser pai de D. Leonor.
D. Fernando de Viseu estava já morto, e desde essa data tinha sido a mulher,
D. Beatriz, a dirigir a Casa de Viseu, e não só... tornou-se na única mulher a
ser Mestre da Ordem de Cristo, sucedendo assim ao seu marido, e não
deixando de financiar expedições a ocidente.
Ora, estando D. Fernando morto, mais uma vez colocava-se o problema "das
mãos", que não estavam em sinal de paz, mas por outro lado também não se
viam, porque era o único elemento da composição com luvas. Assumi que
isso poderia ser entendido como uma excepção, dadas as luvas, e o seu "não
descanso"...
Quanto a uma comparação com um retrato conhecido, dificilmente se pode
considerar muito favorável.
No retrato mais antigo usa barba, e não são visíveis grandes detalhes do
rosto. A linha do nariz não é incompatível, mas está longe de ser convincente.
Ainda que o retrato antigo não seja de grande qualidade, os olhos e a ligação
ao rosto não parecem condizer.
Poderá ser outro personagem, mas estragaria a lógica deste painel (não dos
restantes).
Bom, mas foi com base nessa eventual lógica que prossegui para o seu filho,
D. Manuel (talvez trocando feições com D. Diogo), e acima apareceria, algo
deslocado, o Infante Santo.
A sua presença teria lógica como um aviso sobre a vontade de Cruzada, que
era herdada por D. Manuel pela Casa de Viseu, do Infante D. Henrique.
O que se teria passado com o sacrifício do Infante D. Fernando arriscava a
voltar a acontecer com a ideia de Cruzada pelo Índico, em direcção a
Jerusalém, pela "retaguarda".
Foi assim que entendi, e preferi a lógica do conjunto à maior ou menor
parecença dos retratos.
---------------------------
Creio que abordei extensamente os diversos pontos que levantei, e alguns que outros
levantaram, já que da outra vez fui necessariamente breve nas explicações, que me
demorariam todo este tempo e detalhe.
Agradeço ao Clamente Baeta ter despertado de novo o assunto, que estava
enterrado, para mim. É tempo de voltar a fechar a tampa do caixão e dar nova paz
a este assunto.
3. Voz
domingo, 19 de agosto de 2018
Terminei o último texto relativo aos Painéis de S. Vicente (4) da seguinte forma:
Agradeço ao Clemente Baeta ter despertado de novo o assunto, que estava enterrado, para
mim.
É tempo de voltar a fechar a tampa do caixão e dar nova paz a este assunto.
Escrevi isso na primeira semana de 2013, e já lá vão mais de 5 anos... quem diria!
Não tenho quase nada a acrescentar, porque não me preocupei mais com o assunto.
No entanto, relendo o que escrevi à época, terá interesse resumir o assunto à matéria de facto,
num pequeno texto. Numa troca de emails com Clemente Baeta, foi-me dado conta que voltou
um cheiro bafiento a rondar o caixão, cheiro de plágio literal de textos ou de ideias antigas de
outrém, por exemplo, das já constantes do site paineis.org, de António Salvador Marques.
A minha opinião acerca dos painéis é diversa da maioria das opiniões actualmente existentes,
porque é demasiado óbvia e não vai buscar nada de estranho. Creio que terá sido opinião de muito
boa gente, cuja voz terá sido esmagada por um nonsense mais conveniente. De facto, sendo uma
obra singular, resultante de um espírito singular (D. João II), não teve o propósito ser mistério,
mesmo que requeresse uma interpretação além do trivial.
Foi inicialmente apresentada esta tese em 2009, neste texto:
https://alvor-silves.blogspot.com/2012/03/nuno-goncalves-14122009.html
e depois desenvolvida em 3 textos:
https://alvor-silves.blogspot.com/2013/01/pecas-dos-paineis-de-s-vicente-2.html
https://alvor-silves.blogspot.com/2013/01/pecas-dos-paineis-de-s-vicente-3.html
https://alvor-silves.blogspot.com/2013/01/pecas-dos-paineis-de-s-vicente-4.html
Aqui ficará um resumo do essencial, sem acrescentar nada muito significativo de novo.
3.1) Os painéis de S. Vicente
Os painéis estiveram fora do conhecimento popular, até que foram notados
em 1882 por Columbano Bordalo Pinheiro, quando serviam de andaimes na
restauração da Igreja de S. Vicente de Fora. Desde aí serviram para inúmeras
teorias, umas mais estranhas que outras.
Painés de S. Vicente - em melhor resolução na Wikipedia
Este é o posicionamento clássico e correcto dos painéis, resultante das
marcas no pavimento, que definem um ponto de fuga, típico da pintura da
época.
Que o segundo painel possa ter uma iluminação diferente nas sombras (algo
especulativo) tem menos relevo que notar que no quarto painel as sombras
não fazem qualquer sentido (veja-se que o ângulo das sombras dos dois
cavaleiros ajoelhados não é concordante com uma mesma fonte de luz).
3.2) A datação
(a) Uma análise dendocronológica estabeleceu a datação mínima (terminus
post quem) para as madeiras, reportando-as a 1442-52, mas como é óbvio
isso não implica nenhuma datação máxima (terminus ante quem), e parece
natural que para uma pintura importante seja usada madeira mais velha e
não madeira acabada de cortar, que poderia depois empenar.
(b) O manuscrito do Rio de Janeiro.
Esse manuscrito é aparentemente a única fonte antiga(*) que refere os
painéis e corta a direito nas teorias actuais. Conforme se pode ler
em paineis.org
O documento [Manuscrito do Rio de Janeiro] data de fins do séc. XVI, e nele
se refere expressamente que os dois painéis, descritos de memória, já não
se encontram no local, sendo o seu paradeiro ignorado («... dirão os cónegos
onde
estão...»).
A forma como o autor recorda os painéis, atribuindo-os a um tal Mota, pintor
de D. João II, não identificando uma única das figuras que rodeiam o
«santo», e justificando o estranho aspecto efeminado deste último através
da identificação do seu rosto com o de um adolescente – o infante D. Afonso,
filho de D. João II, nascido em 1475 e falecido aos 16 anos – indica uma
estranha ignorância do significado das duas cenas e da identidade dos seus
protagonistas, por parte de quem se mostra informado acerca de outros
retratos de reis existentes em Lisboa.
Acontece que sem saber deste manuscrito, e por razões mais óbvias,
tinhamos chegado à "mesma ignorância", ou seja que:
- Os painéis foram feitos a propósito da morte do príncipe D. Afonso,
filho de D. João II.
Não é preciso muito para concluir isso. Admitindo que o terceiro painel tem
a figura de um rei, de uma rainha e de um príncipe, as hipóteses ficam
reduzidas.
Sendo o rei D. Afonso V, convém notar que o príncipe só poderia ser D. João
II, que nasceu no ano em que a mãe morreu. Ora, isso fica assim fora de
causa, e seria suficiente para deitar abaixo qualquer pretensão minimamente
racional nesse sentido... se houvesse racionalidade na discussão!
Devido à datação das madeiras, não teria sido feito no reinado de D. Duarte
(que morre em 1438), e tudo isto empurra-nos imediatamente para D. João
II.
O pequeno príncipe poderia ser o príncipe D. Afonso, mas não é isso que
indica o Manuscrito do Rio. Resta pois a execução a propósito da morte de
D. Afonso em 1491, altura em que D. Jorge tinha 10 anos, o que se ajusta
perfeitamente à sua aparência.
(c) As datações usadas estão separadas por mais de 40 anos. A moda e a
pintura sofreram algumas mudanças. Colocar uma obra destas até 1460 é
esquecer o trajo típico com que nessa data era apresentado D. Afonso V:
Imagens de D. Afonso V em 1460 possivelmente do pintor Georg von Ehingen.
... ou seja, e por exemplo, ainda subsistia a moda de sapatos pontiaguados,
inexistente no quadro (o rei usa botas de pele, redondas).
Depois, há um outro detalhe complicado... a menos que a obra tivesse sido
executada no estrangeiro (onde e por quem?), a pintura portuguesa teria
aqui um epifenómeno, que não influenciaria nada nem ninguém nas décadas
seguintes. Os traços semelhantes, inclusive no pavimento, usados por Nuno
Gonçalves noutras pinturas identificadas, podem indicar a sua autoria, mas
nada impedia que fosse o tal Mota, talvez seu discípulo. É um detalhe
secundário ou terciário, face a tudo o resto.
3.3) A rede e o camaroeiro
Há quem goste de ver no 2º painel um pescador com uma rede.
Mas, por azar das coincidências, o corpo do príncipe D. Afonso foi trazido na
rede de um pescador, e a mãe, a rainha D. Leonor, deu tal importância ao
assunto, que colocou a rede do camaroeiro como seu símbolo, associando-o
a si, e às vilas de seu domínio.
Essa rede inclui três personagens desse 2º painel... e se o intuito era
simplesmente ilustrar pescadores (e que pescadores!), havia outras
maneiras de colocar a "rede", sem ser a envolvê-los.
É este painel que é suposto ser aquele que tem uma iluminação discordante...
o que seria ainda natural se o pintor quisesse focar que estavam guiados por
uma luz discordante, na rede que os envolvia, ou apanhava.
3.4) As barbas e o barbadão
O que descrevi até aqui é mais do que suficiente para datar o quadro, e o que
trata. Diria que são os factores principais, sem necessidade de grande
interpretação ou conjectura.
Suspeito que dezenas de pessoas terão concluído o mesmo, ou algo similar.
Se eu trouxe alguma coisa de novo à discussão foi em ter reparado num outro
detalhe concordante...
Por exemplo, pode ler-se em Garcia de Resende, no episódio da morte do
príncipe D. Afonso:
(...) e disse aos que na casa estavam: "Ahi vos fica o principe meu filho", sem
poder dizer mays pallavra. E com ysto se levantou antre todos hum muyto
grande, muyto triste e desaventurado pranto, dando todos em si muytas
bofetadas, depenando muitas e muy honrradas barbas e cabellos, e as
molheres desfazendo com suas unhas e mãos a fermosura de seus rostros que
lhe corriam em sangue, cousa tam espantosa e triste que se nam vio nem
cuydou.
(...) El-rey por tamanha perda, tamanho nojo e sentimento se trosquiou. E elle
e a raynha se vestiram de muyto baixo pano negro. E a princesa trosquiou os
seus prezados cabellos e se vestio toda d' almafegua e a cabeça cuberta de
negro vaso. E na corte e en todo o reyno nam ficou senhor nem pessoa
principal nem homem conhecido que se nam trosquiasse.
Acontece que nos painéis eram apenas três as figuras que não estavam
"tosquiadas", mantendo larga barba e cabelo. Duas delas tinham as mãos
juntas, e à outra não se viam as mãos. Lembrei-me dos túmulos, onde é
frequente ver as pessoas de mãos juntas, e pensei que essa seria uma
codificação para indicar quem figurava no quadro, mas já estava morto à
data.
Ora, com essa simples sinalética fazia sentido a ver o Infante D. Henrique ali,
já depois de morto.
Na altura, é claro, nem me passava pela cabeça a "teoria da conspiração"
que pretende estabelecer que nas Crónicas de Zurara o rosto do Infante D.
Henrique foi substituído... Bom, mas isso é já um detalhe secundário,
irrelevante para a datação.
Bom, e como há sempre mais um detalhe, note-se a rainha com a "cabeça
coberta de negro vaso"... tal como têm um "vaso negro" na cabeça o pequeno
príncipe, D. Jorge, ou o pai, D. João II. A almafega era um burel branco de
baixa qualidade, usado no luto da nobreza, mas aqui o tom foi negro, como
indica Garcia de Resende. De alguma forma isso contrasta com os barretes
coloridos do 4º painel, talvez porque não fossem pessoas directamente
ligadas à família real.
Curiosamente, e ao contrário, ninguém fez barba ou cabelo, aquando da
morte de D. João II:
E todo o reyno foy vestido de burel, almafega, e vaso, com tamanho nojo e
tristeza, que ha cidade de Lisboa alem dos grandes e solemnes saymentos que
polla sua alma fez, mandou apregoar que nenhum barbeiro fizesse barba nem
cabello dahi a seis meses sob muy graves penas e assi se comprio muy
inteiramente o que nunca se vio nem leo que por outro rey se fizesse.
E ainda como curiosidade, a questão relativa à "rede" liga-se nas barbas ao
Barbadão, cognome do judeu sapateiro avô materno do primeiro Duque de
Bragança.
3.5) A descrição do príncipe D. Afonso
Já o tinha referido, mas coloco aqui em citação Garcia de Resende, sobre a
opinião que havia do malogrado príncipe. Na boca do rei coloca a seguinte
frase:
"Eu verdadeiramente per cima de tanta tristeza, tanto nojo, e desconsolaçam
dou muitas graças a Deos pois elle foy servido de me assi levar meu filho, que
elle soo sabe o que faz, e nós nam podemos saber nem alcançar seus secretos
e escondidos juyzos. E vos certefico que de hũa cousa soo estou em algũa
maneyra confortado, que he parecer-me que Nosso Senhor Jesu Christo se
lembra da gente destes reynos, porque meu filho nam era pera ser rey deles."
Ora dizer que estava confortado porque "... Cristo se lembrava da gente
destes reinos, porque o filho não era para ser rei deles", não seria
propriamente algo que D. Leonor gostasse de ouvir. Mas Resende vai mais
longe e explica logo de seguida:
E dizia el-rey ysto porque o principe era muyto cheo de branduras e prezavase muito de sua gentileza; e vistia-se sempre de tabardos, e com martas ao
pescoço forradas de cetim e guarnecidas d' ouro, cousa mais de molheres
que de homens; (... e continua)
Ou seja, D. João II e próximos, achavam que o filho era fraco e efeminado,
o que corrobora a opinião constante do Manuscrito do Rio de Janeiro.
Por isso, por muito que o Príncipe Perfeito, que encomenda os Painéis,
colocasse a rede na casa de Bragança, a sua "grande boca" teria levado a
Princesa Perfeitíssima a considerar outro autor, solícito a promover como
sucessor o seu bastardo, D. Jorge. E no meio dessa tão grande perfeição
surgiu logo de seguida a "peçonha" que vitimaria D. João II.
3.6) Os personagens
Os descendentes do judeu sapateiro Barbadão, os Duques de Bragança,
reinavam em Portugal aquando da descoberta dos painéis... e não estariam
propriamente interessados em recordar aquele episódio (ou até em ouvir a
Barca do Inferno de Gil Vicente). Já tinham arrumado com o ducado de
Aveiro/Coimbra no processo dos Távoras e não queriam mais tormentos da
sua bastardia.
A classificação dos personagens é secundária, definidos os principais do 3º
painel, onde só falta acrescentar D. Beatriz de Viseu, a mãe da rainha, mulher
poderosa, que intermediou as contendas entre D. João II e a rainha Isabel,
a Católica, de Castela, sua sobrinha.
Quanto aos restantes, deixo aqui o que me pareceu possível e consistente,
remetendo uma explicação mais detalhada para os 3 textos anteriores.
Identificar um a um é tarefa algo impensável para um amador, e pouco
interessa ir a esse detalhe.
Interessa apenas para exibir a consistência que encontrei.
Possível identificação dos principais personagens dos Painéis, conforme escrevi em 2013.
(a) Que o primeiro painel tenha os reis da Dinastia de Avis que antecederam
D. João II, pois isso não é só uma tentativa de dar consistência aos painéis.
Num quadro deste tipo não apareceriam frades ou bispos com posição de
tanto destaque. Especialmente se já estivessem mortos, como parece indicar
a regra das mãos juntas. Há ainda semelhanças de fisionomia que não
descartei, é claro.
(b) O segundo painel tem os opositores a D. João II, pelo lado Bragança,
começando com um provável D. Nuno Álvares Pereira, em posição de
mendigo penitente. O seu aparecimento ao lado de D. João I parece indicar
isso, e a fisionomia conhecida também. É sogro de Afonso de Bragança, e daí
terão chegado ao genro os diversos condados com que foi granjeado. Há um
espaço para o sucessor, aparecendo directamente Isabel de Barcelos, sua
neta, como principal artífice da rede bragantina. Era mãe de D. Beatriz de
Viseu, avó da Rainha Isabel de Castela, e há quatro razões para ali ser
colocada... não as repito aqui.
(c) O terceiro e principal painel tem a família real, conforme já indiquei. Na
altura, assumi que seria o Infante D. Henrique, com as mãos juntas, e o
chapéu borgonhês. Devo dizer agora que se fosse D. Fernando, marido de D.
Beatriz, e pai de D. Leonor, era melhor para a consistência do painel, mas
tudo isso é de facto irrelevante. Creio ser o Infante D. Henrique pela posição
em que está D. Jorge... ou seja, D. Jorge seria também o sucessor da casa
de Viseu no projecto das navegações. Mais acima optei por trazer dois
Bragança para o painel principal, mas em lugar secundário... e remeto as
explicações para os textos anteriores, notando apenas que a situação de
Afonso de Bragança era semelhante à de D. Jorge, já que ambos eram
bastardos reais.
(d) Qual dos santos seria o príncipe D. Afonso? Sendo apenas um deles, quem
seria o outro?
Santa Joana Princesa, foi regente do reino, quando o pai (D. Afonso V) e o
irmão (D. João II) partiram para a conquista de Arzila... numa aventura da
realeza que poderia ter dado problemas de sucessão, tal como acontecera
quando D. João I levou os filhos à conquista de Ceuta. Toda a gente parece
esquecer isso, quando critica a aventura irresponsável de D. Sebastião.
Santa Joana estava num pedestal para D. João II, pela admiração que lhe
tinha. Ora, ela morreu em 1490, pouco antes do sobrinho, e não seria de
estranhar que D. João II achasse que lhe devia tanta ou maior homenagem,
enquanto dono da obra.
Por isso, e pelas razões supra acerca do filho, coloquei o príncipe D. Afonso
no 4º painel.
Ora, o 4º painel afigura-se o mais difícil para encontrar personagens, já que
temos ali armaduras que não são simplesmente decorativas. Entendi isso
como uma elevação dos principais do reino na navegação, o grande orgulho
pátrio, e facilmente D. João II consideraria que aquela era a verdadeira
nobreza nacional, pelos actos realizados.
Aliás o 4º painel encontra-se quase em simetria perfeita na oposição dos
elementos principais do 3º painel.
Daí ter a dualidade entre D. Diogo (morto) e o irmão D. Manuel (futuro rei)
na oposição a D. Jorge.
Depois há toda uma dialética de orientação dos personagens a Ocidente ou a
Oriente, que remeteria para uma difícil escolha na navegação - rumar a
Ocidente e à América, ou rumar a Oriente e à Ásia.
É isso que leva a escolher Paulo da Gama versus Diogo Cão.
Diogo Cão é conhecido pela descoberta do Congo, mas a revelação de Fernão
de Magalhães - de que seguiria um mapa de Martin Behaim, faz suspeitar que
o alemão acompanhou Diogo Cão a outras paragens... ao sul da América. Do
outro lado, poderia colocar Bartolomeu Dias, mas interessava mais a D. João
II a navegação pela América. Suspeito que os Gamas estivessem encarregues
de explorar a passagem pelo norte do Canadá (devido aos nomes aí
encontrados). Findo esse projecto pelo Tratado de Tordesilhas, consta que
D. João II tinha planeado dar a Paulo da Gama a chefia da expedição à Índia,
que depois foi concretizada pelo irmão - Vasco da Gama.
De qualquer forma, nesse painel, para além de D. Diogo que parece ali estar
por razão de simetria, os outros 4 parecem-me ser apenas navegadores.
A escolha do rei, que estava voltado para o Ocidente, acabou por ser pelo
Oriente, e a razão ali colocada parece ser a morte do filho - é ele que indica
o escolhido - Paulo da Gama.
(e) O quinto painel começa com o Infante D. Pedro, e ali colocaria D. Pedro,
D. Henrique, D. João e D. Fernando, os infantes da ínclita geração. Mas não
me pareceu ser tão fácil, trocar o Infante D. Henrique com D. Fernando de
Viseu, seu sucessor no ducado de Viseu. Primeiro, porque não vejo muito
sentido na "teoria da conspiração" que alteraria o códice (neste caso seria D.
Manuel a colocar o retrato do pai em vez do tio-avô). Segundo, porque D.
Manuel teria que aparecer nos Painéis, não sendo misturável com o destino
funesto do irmão D. Diogo - por muito que o rei o quisesse avisar.
Haverá ainda a hipótese de D. Manuel estar no lugar que atribuí a Paulo da
Gama, no sentido de oposição ao rei, sendo-lhe dada a sucessão de lei pelo
Santo, o príncipe D. Afonso. Esta hipótese que faz bastante sentido, pelo
menos parcialmente, não a considerei. Talvez porque estragasse um pouco a
lógica do conjunto, não encontrando elemento lógico no personagem em
oposição.
Acresce que nem me interessa falar de outras coincidências:
- como o nome de Bartolomeu Dias dar Dia S. Bartolomeu (aliás o dia do
funeral de Afonso), um dia importante, por outras razões que escrevi.
- ou como o nome de Diogo Cão aparece nas navegações exactamente no ano
em que D. João II mata o primo e cunhado, D. Diogo.
Deixo as outras considerações, nomeadamente
sobre o Infante D. Pedro para os textos
anteriores. Insisto que entre as suas mãos
poderia estar não uma espada, mas sim uma
espiga... tra la man et la spica, ou relembrando
Camões 7§77:
(77)...
De um velho branco, aspecto venerando
Cujo nome não pode ser defunto
Enquanto houver no mundo trato humano:
No trajo a Grega usança está perfeita,
Um ramo por insígnia na direita.
(78)
Um ramo na mão tinha... Mas, ó cego!
Eu, que cometo insano e temerário,
Sem vós, Ninfas do Tejo e do Mondego,
Por caminho tão árduo, longo e vário!
Vosso favor invoco, que navego
Por alto mar, com vento tão contrário,
Que, se não me ajudais, hei grande medo
Que o meu fraco batel se alague cedo.
(f) Finalmente, o sexto painel, tornou natural a escolha de Mestre Rodrigo de
Lucena, e Mestre José Vizinho, pela proximidade ao rei. Já o velho poderia
ser simplesmente o pescador que encontrou o corpo.
O médico exibirá a relíquia do santo, neste caso o príncipe defunto, ou como
escrevi ainda em 2009: A relíquia, o osso craniano, pode ser uma alusão ao
defunto Afonso, indicando a fractura da futura cabeça do reino.
Este era no fundo todo o problema dos Painéis. Definir quem seria a cabeça
sucessória no reino.
O rei claramente favorecia D. Jorge, a rainha favorecia D. Manuel, que foi o
legítimo herdeiro.
Esta seria uma obra encomendada pelo rei, talvez para dar à rainha, que terá
sobrevivido enquanto homenagem única ao príncipe falecido, mas que depois
teria os seus dias contados... Ao tempo do manuscrito do Rio pareciam restar
apenas dois painéis (os centrais), até a obra ser reencontrada por olhos de
ver, no fim do Séc. XIX. Conforme disse, o resto pode ser encontrado nos
links que deixei inicialmente.
Que eu saiba esta tese foi apenas comentada em 2011 por Luís Duarte no seu
blog - "A rês pública".
Não acho isso minimamente anormal.
Apenas reflecte o conceito de normalidade vigente, isto é, não vi gente!
____________
Observações (21.08.2018):
(*) - Num comentário incluso, Clemente Baeta fez notar que os painéis devem também ser
considerados numa referência de Fernando Pestana Pereira de 1531 (ver "Painéis de S.
Vicente de Fora. Novos Documentos. Novas Revelações" , pág. 139) , entre outras, quando
pede a D. João III que no dia de S. Vicente vá à Sé ver os "famosos reis", "armados tão
formosos" e "gentis-homens", que "estariam no Paraíso", sugerindo estar mais que dois painéis
à vista. Aliás, a observação de que estariam "famosos reis", no plural, concorda com colocar
nos painéis os diversos reis da Dinastia de Avis...
(**) - Um pequeno detalhe - mudei a referência "infante D. Afonso" por "príncipe D. Afonso",
já que o infante mais velho, ou o herdeiro da coroa, passou a ter o título de príncipe, o que
foi primeiro usado com D. Afonso V.
(***) - Um maior detalhe é que Clemente Baeta apontou uma imagem mais nítida dos
painéis em:
https://www.europeana.eu/portal/pt/record/2063606/POR_280_002.html
que é significativamente melhor que a que está na Wikipedia. Em particular, a imagem da
Wikipedia omite partes do quadro, e tem as cores bastante mais escurecidas (pode
interessar saber o que pode ou não surgir de restauro).
____________
Aditamento (22.08.2018):
Acerca do restauro podemos torcer o nariz, se repararmos na face da imagem da rainha
conforme retirei do livro "Iconografia e Simbólica dos Painéis de S. Vicente", na página 343: