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Textos em rede

2005, Sinais de cena

Textos em rede Rui Cintra Em rede Sinais de cena 3. 2005 quarenta e cinco Textos em rede Rui Cintra Nós, que estamos vivos neste pedaço de História, podemos dizer que tivemos o privilégio de assistir a uma das maiores revoluções técnicas que veio influenciar o modo de compreensão que temos do mundo. Trata-se da internet, claro. Ainda hoje é-nos difícil ter plena consciência da dimensão do seu impacto. De repente, encontramo-nos numa posição semelhante à do homem do século XV que mal adivinhava a revolução que estava prestes a acontecer enquanto Gutenberg imprimia a sua Bíblia. Hoje podemos dizer que existia um mundo antes da internet e outro depois dela. E apanhou-nos a todos de surpresa. De todas as invenções que estavam previstas o homem alcançar (voar, viagens espaciais, computadores, envio de imagens à distância, etc.), a internet nunca foi intuída por ninguém até à altura em que começou a ser desenvolvida nos finais dos anos 60 e mesmo assim sem se prever o impacto que iria ter nas vidas de todos nós. A criação da internet encurtou distâncias, desfez barreiras temporais e físicas e acelerou as nossas vidas. Alterou, inclusive, a nossa percepção do corpo, obrigou-nos a repensar a ideia de privacidade, e até da própria sexualidade, como se discute hoje nos estudos de cibercultura. Entranhou-se, pois, no mais íntimo da nossa existência, ao modificar a nossa linguagem e ao impor-se como modelo de pensamento através da noção de rede. Tornou-se no “meio” por excelência ao levar até às últimas consequências a célebre fórmula de McLuhan que faz corresponder o meio à mensagem1. O que define a internet é pois o modo de acesso imediato: o ter à mão a informação (e não só) de que se precisa. O seu suporte é a linguagem, mas, mais importante do que isso, é o uso que faz dela através da abertura de possibilidades de relação que o hiper-texto e a hiper-ligação permitem, o que, à semelhança da rede neuronal, permite a relação significativa entre conceitos de uma forma muito mais rápida. Actualmente, as actividades dominantes no uso da internet compreendem a troca de correio electrónico, a busca de informação através de motores de busca e não só, a importação de software e de música. Mas dizem os especialistas que as áreas dominantes nos próximos tempos serão a procura de vídeo (será possível aceder a filmes do mesmo modo que hoje se descarrega música nos computadores), de televisão e de livros. Os três sítios que escolhi prendem-se com esta última actividade: a busca de textos autorais, em particular, de textos teatrais de forma livre e gratuita. São três exemplos do muito que podemos encontrar na internet acerca de autores consagrados que pertencem já ao património cultural da humanidade. Em Portugal é escassa ainda a oferta de ebooks (livros electrónicos) e ainda menor o acesso aos textos integrais dos nossos clássicos na internet. Poderá < William Shakespeare. < O Teatro Globo numa aguarela do séc. XVIII, feita a partir de uma gravura de 1616. 1 Para uma introdução clara e acessível aos aspectos sociais, históricos, económicos e culturais do fenómeno internet sugiro a leitura de Manuel Castells, The Internet Galaxy, Oxford, Oxford University Press, 2001. Sinais de cena 3. 2005 quarenta e seis Em rede Rui Cintra Textos em rede < First Folio (compilação organizada por John Heminges e Henry Condell), 1623. First Folio: Índice. > > O Teatro Globo reconstruído, 1997, fot. Richard Kalina. > Rei Lear, filme de Grigori Kozintsev, 1970. ser este mais um sintoma da nossa resistência constitutiva da não inscrição de que fala José Gil no seu Portugal hoje? Este pode ser mais um barco que vamos perder. A internet é um território que também se conquista através da imposição de cultura. O primeiro exemplo que menciono encontra-se em www.shakespeare.palomar.edu. Trata-se de um sítio inteiramente dedicado a Shakespeare que funciona mais ou menos como um portal e é quase uma referência obrigatória em muitos dos sítios dedicados àquele autor. Nas páginas aparece com o título genérico Mr. Shakespeare and the Internet e foi criado essencialmente para orientar os estudantes na busca de fontes acerca de Shakespeare. A apresentação é simples e ao mesmo tempo original: um texto vai fazendo referência às diferentes abordagens do que se pretende saber acerca de Shakespeare, como uma espécie de guia, comentando cada uma das ligações para onde nos reenvia. Esta página, que vai já na sua quarta versão é mantida pelo professor Terry Gray da Universidade de Palomar, Califórnia. Aqui podemos encontrar várias edições das obras do poeta inglês on-line, e até fac-similes de primeiras edições do século XVI. Segue-se uma secção dedicada à vida de Shakespeare onde não falta todo o tipo de ligações para as diversas teses acerca da identidade do poeta. Mas talvez a secção que mais nos interesse aqui seja a que diz respeito ao teatro isabelino. Nesta secção podemos encontrar páginas dedicadas à pronúncia do inglês da época de Shakespeare e à música da altura, de onde podemos importar ficheiros MIDI mediante inscrição. Não falta também uma visita virtual ao Globe Theatre, e são muitos os estudos sobre a arquitectura e arqueologia dos teatros isabelinos, bem como sobre a dança, a coreografia e a arte da esgrima do século XVI. E sem esquecer ligações para páginas acerca do vestuário da época. A área dedicada ao estudo e à crítica shakespeariana é a rainha deste sítio. É possível encontrar aqui ligações para quase tudo o que é departamento de estudos shakespearianos. Podemos perder-nos durante horas a explorar cada uma das várias ligações percorrendo bibliotecas, catálogos e estudos on-line. Outra área não menos importante é a dedicada à exploração das fontes das obras de Shakespeare. Estão lá as fontes bíblicas, as fontes clássicas (sem esquecer uma secção dedicada a Ovídio), e as fontes históricas, onde Shakespeare bebeu inspiração para algumas das suas tragédias. As restantes áreas são mais prosaicas, mas mesmo assim não deixam de merecer uma visita atenta. Na rubrica Other Sites, podemos encontrar alguns sítios divertidos inspirados na Textos em rede Rui Cintra Em rede Sinais de cena 3. 2005 quarenta e sete < The Hamlet Company no Teatro Globo reconstruído, 2000, fot. John Tramper. vida e obra do dramaturgo inglês como a book-a-minute para quem não tem tempo para ler as peças na íntegra. O modo exaustivo como este Mr. Shakespeare and the Internet apresenta as correspondências para todo o universo da internet faz dele um instrumento indispensável e de consulta obrigatória para quem se dedique ao estudo de Shakespeare. Obrigatório figurar nos favoritos. O segundo sítio que proponho também é dedicado a um autor específico. Neste caso escolhi www.toutmoliere.net. Como o próprio nome indica trata-se de um sítio dedicado a Molière. Foi elaborado por Gabriel Conesa, professor da Universidade de Reims-Champagne Ardenne e especialista neste dramaturgo francês do século XVII. A estrutura do sítio é relativamente simples. A coluna da esquerda serve de guia permanente entre as diversas páginas. Depois da página introdutória, passamos a uma cronologia, organizada por anos, iniciando-se com o nascimento do autor. Paralelamente, temos também informações sobre acontecimentos culturais, políticos e sociais da época enquanto são descritos momentos-chave da vida de Molière. Segue-se a secção de obras. Aqui podemos encontrar todas as obras do dramaturgo podendo fazer a importação em formato PDF que facilita a posterior impressão. Esta edição contém notas do próprio Gabriel Conesa. Outra ferramenta de interesse é o dicionário de expressões utilizadas por Molière e de termos relacionados com o seu teatro. São mais de 300 entradas que apresentam uma explicação do termo, das obras em que figura e de como é utilizado. Outra secção de interesse é referente à iconografia, um instrumento útil que nem sempre é tido em conta na elaboração de sítios sobre autores. As imagens subdividem-se em três categorias: as personagens das peças de Molière, as imagens que ilustram essas peças e uma terceira categoria de “Diversos” que engloba ilustrações de época, teatros onde Molière representou, etc. A secção dedicada à bibliografia, organizada por ordem alfabética, comporta para cima de 5000 títulos e contém um motor de busca que facilita a pesquisa. Também de grande interesse poderá ser a secção que se segue, dedicada à filmografia em torno de obras de Molière. Trata-se de uma filmografia internacional que inclui também as versões feitas para televisão. A encerrar esta listagem vem a inevitável página de ligações, que faz acompanhar cada um deles por um breve comentário acerca do que comportam. Concluindo, trata-se de um sítio muito prático, de fácil utilização, e constitui um excelente ponto de partida para o estudo e a compreensão de Molière. < Molière retratado por Pierre Mignard, grande amigo do dramaturgo. Sinais de cena 3. 2005 quarenta e oito Em rede Rui Cintra Textos em rede > Molière retratado por Coypel, inspirado do quadro de Mignard. Por último, falo de um sítio obrigatório para figurar em todos os favoritos: o www.gutenberg.org, conhecido por Projecto Gutenberg. Trata-se do maior arquivo de livros electrónicos ou e-books em rede. Nascido experimentalmente em 1972, este projecto tem vindo desde então a desenvolver um enorme catálogo de obras, nas línguas originais (mais de 50 línguas) ou em traduções (sobretudo inglesas) de obras cujos direitos de autor expiraram, tendo já caído no domínio público. O projecto vive sobretudo dos contributos da comunidade electrónica, particulares ou instituições, que resolvem partilhar na internet, obras literárias ou ensaísticas consideradas património da humanidade. Aqui podemos encontrar autores como Homero, Platão, Camões, Kant, Leonardo da Vinci, Darwin, Tolstoi, Dostoievski, Kafka, etc., assim como podemos encontrar inúmeras peças de teatro, desde tragédias e comédias gregas de Ésquilo, Sófocles, Eurípides, Aristófanes, passando por Shakespeare, Corneille, Rabelais, até às peças de Tchekov ou de Eugene O’Neill, só para dar alguns exemplos. Através de um simples download, passamos a estar gratuitamente na posse de um livro electrónico que podemos imprimir, ler no ecrã ou num PDA (ou agenda electrónica). O que é interessante neste projecto é o seu poder de partilha. Embora grande parte das obras seja em inglês, podemos encontrar algumas obras em português, mas nenhuma de teatro, o que é uma pena. Mas a verdade é que está ao nosso alcance fazer a partilha. O projecto Gutenberg é o exemplo acabado do que é a filosofia cibernáutica, espaço de partilha de informação livre e gratuita para todos os que possam aceder. Um dos resultados imediatos da sua existência foi a baixa de preço dos livros cujos direitos de autor tenham passado a domínio comum. Outro resultado foi o de acabar com as desculpas para não se lerem os clássicos. Referências bibliográficas CASTELLS, Manuel (2001), The Internet Galaxy, Oxford, Oxford University Press. GIL, José (2005), Portugal hoje: O medo de existir, Lisboa, Relógio d’Água.