A crítica da modernidade em Hannah Arendt e Leonardo Boff
Alfons C. Salellas Bosch1
Introdução a duas vozes
O desmatamento da floresta amazônica2, que nos últimos anos padeceu um incremento
exponencial devido aos incêndios provocados em boa medida pela mão do homem, e a
pandemia do novo coronavirus (Covid-19), para a qual, enquanto estou escrevendo, a ciência
ainda não encontrou uma vacina, são os últimos exemplos que evidenciam a fragilidade sobre
a qual o nosso mundo está sentado. A estes, juntam-se a degradação do solo, a poluição do ar,
a extinção de espécies animais, a superpopulação e a possibilidade tecnológica de explodir
várias vezes o planeta. A humanidade deixou progressivamente de se ver a si mesma como
outro ser vivo dentro de um organismo maior e se autoproclamou dono e senhor da Terra e de
todas as outras espécies com as quais compartilha o seu lugar no cosmos. O período no qual
este processo foi se consolidando recebeu o nome de modernidade e parece que está dando
sintomas de esgotamento.
Aquele que é considerado o livro mais importante na teoria política de Hannah Arendt,
A condição humana (1958) está emoldurado pela preocupação primordial da autora sobre a
alienação humana cifrada na indiferença e no desprezo em relação ao mundo e à Terra e a um
recolhimento sobre si, que afastam perigosamente a deliberação pública ao redor daquilo que,
na diversidade, todos compartilhamos. Por isso, no prólogo, ela já anunciou que o propósito
final da sua análise histórica era o de
rastrear até sua origem a moderna alienação do mundo, em sua dupla fuga da Terra
para o universo e do mundo para o si-mesmo [self], a fim de chegar a uma
compreensão da natureza da sociedade, como esta se desenvolvera e se apresentava
no instante em que foi suplantada pelo advento de uma era nova e ainda desconhecida
(ARENDT, 2014, p. 7).
1
Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Uma versão abreviada deste texto, publicada no blog do Centro de Estudos Hannah Arendt da Universidade de
São Paulo (USP) em 3 de setembro de 2019, foi apresentada na Universidade Federal do Rio Grande (FURG)
durante o “III Colóquio de Estudo e Pesquisa da Complexidade: Educação e Complexidade num horizonte de
utopias viáveis” no dia 29 de novembro de 2018. Agradeço ao Grupo de Estudos de Pesquisa da Complexidade
GEC (FURG), organizador do evento, pelos seus comentários, que ajudaram a aprimorar esta versão final.
2
Por sua vez, A categoria do cuidado ganhou nas últimas décadas uma importância capital na
obra de Leonardo Boff, um dos intelectuais brasileiros contemporâneos mais reconhecidos
internacionalmente cujo enfoque se enquadra dentro da perspectiva do pensamento complexo.
Fundador e expoente iniludível da Teologia da Libertação, a trajetória de Boff se alimenta, entre
outras, da filosofia, psicologia, sociologia, política, ecologia e espiritualidade, no intuito de
reflexionar a partir de diversos lugares sobre o significado da vida humana, junto com a das
outras espécies, no mundo e na Terra.
Percebi que a lógica do sistema que oprime as pessoas, as classes sociais e a natureza
é a mesma que oprime a Terra. Portanto, a Teologia da Libertação deveria abraçar
uma perspectiva mais ampla. [...] A teologia deve reconstruir o sentido de pertença,
que se perdeu, porque temos tratado a Terra como objeto, no intuito de explorá-la.
No passado se via a Terra como mãe: os seres humanos se consideravam filhos da
Terra e a respeitavam como fonte de vida. Essa visão ainda se acha difundida entre
algumas culturas minoritárias (BOFF & ZOJA, 2016, p. 70/88).
O texto a seguir não tem a pretensão de estabelecer uma comparação entre Leonardo
Boff e Hannah Arendt, mas justapor um recorte das suas reflexões sobre a modernidade a fim
de observar como as duas dialogam entre si e apresentam aspectos críticos que desembocam na
necessidade da superação de um modelo já vencido.
As obras dos dois autores, a despeito de seus pontos de vista diferentes, devido à
diversidade de tempo, lugar, biografia e cultura das quais partem, compartilham análises e
diagnósticos muito semelhantes a propósito da modernidade. A era moderna, que
cientificamente teve seus começos entre os séculos XVI e XVII, está, segundo o pensador
brasileiro, dominada pelo paradigma ainda vigente da dominação e da conquista, se rege pelo
tipo de racionalidade instrumental-analítica e um ídolo norteia seu percurso: o progresso
indefinido, cuja equação assegura que riqueza mais poder equivale à felicidade para o maior
número. Com Descartes, o homem acreditou ser o dono e o senhor da natureza, em vez de ser
mais um na corrente da vida. Segundo Bacon, fundador do método científico moderno
experimental, o homem deve “tratar a natureza como o inquisidor trata o seu inquirido: torturálo até que entregue todos os seus segredos” (cf. BOFF, 2012, p. 72) , e nem Hobbes, nem Locke,
nem Rousseau, nem Kant, formuladores do pacto social que ainda subjaz no ordenamento das
nossas sociedades, incluíram a natureza ou a Terra nas suas reflexões, pois não suspeitavam
que tanto elas como a vida em geral pudessem algum dia estar ameaçadas pela mão do homem.
Este é, para Leonardo Boff, o grande equívoco de todo o projeto da modernidade: erguido sob
valores falsos, de conquista e dominação, desconsiderou a Terra, dando por descontado que ela
iria para sempre oferecer recursos, bens e serviços e seria ilimitada em sua resiliência. Assim,
o progresso subjugou até destruir culturas ancestrais, como a dos Guaranis, Maias, Quéchuas,
Mapuches, Incas e Astecas, assim como outras da África e da Ásia, com a falsa promessa, nunca
cumprida, de fazer participar tais povos da pretendida riqueza dos novos tempos. Desta forma,
sem desprezar aspectos inegavelmente positivos na medicina, na locomoção ou nas
comodidades domésticas, entre outros, Boff denuncia que a espécie humana, mediante a
tecnociência
ocupou 83% da superfície do planeta, depredando seus bens escassos e modificando
a base físico-química de sua infraestrutura ecológica. O consumo humano
ultrapassou em 30% a capacidade de reposição dos bens e serviços naturais
produzidos pela Terra [e] gases de efeito estufa, acumulados nos quatro séculos de
industrialização, estão provocando o aquecimento global do planeta (idem, p. 73).
Arendt, como Boff, parte da hubris, ou seja, a desmedida à que chegou o conhecimento
técnico moderno ao ponto de fabricar bombas atómicas capazes de terminar com toda a vida
orgânica na Terra. Arendt abre sua reflexão com o significado do lançamento do satélite
artificial Sputnik em 1957. Surpreendentemente, e de acordo com ela, a reação que seguiu a
esse fato histórico inegável não foi a do orgulho diante do alcance do domínio tecnológico
humano, mas a de um alívio por ter encontrado uma saída daquilo que estava sendo considerado
uma prisão. Hannah Arendt distingue na sua obra entre mundo, o artifício humano que separa
a existência dos homens do ambiente meramente animal, e a Terra, que é “a própria
quintessência da condição humana, e a natureza terrestre”, o habitat que proporciona a vida que
liga o homem aos outros organismos vivos. Portanto, a distinção arendtiana não é, porque não
pode ser, absoluta, como por outro lado nenhuma das inúmeras distinções que esta pensadora
estabelece ao longo da sua obra – público, privado, social, ... – o são. À vista disso, ela se
pergunta: a emancipação e a secularização promovidas pela era moderna, desembocarão no
repúdio da Terra, “Mãe de todas as criaturas sob o firmamento”? 3 No ponto em que as
“verdades” da ciência moderna podem comprovar-se matematicamente e tecnologicamente,
mas não se prestam mais à expressão do pensamento e do discurso comum, a hora pode ter
chegado na qual já não possamos pensar e falar sobre aquilo que somos capazes de fazer. Neste
cenário, Arendt, em 1958 avisou que
se for comprovado o divórcio entre o conhecimento (no sentido moderno de
conhecimento técnico [know-how] e o pensamento, então passaríamos a ser, sem
dúvida, escravos indefesos, não tanto de nossas máquinas quanto de nosso
conhecimento técnico, criaturas desprovidas de pensamento à mercê de qualquer
Detalhe que costuma passar inadvertido, Arendt usa “mãe” para referir-se à Terra, em consonância com o
pensamento indígena latino-americano e com a posterior teologia ecológica de Leonardo Boff.
3
engenhoca tecnicamente possível, por mais mortífera que seja (ARENDT, 2014, p.
4).
Arendt lamenta, por um lado, aquilo que ela julga ser a falta de caráter dos cientistas ao não se
recusarem construir armas atômicas e, por outro, a sua ingenuidade ao não perceberem que eles
seriam consultados em último lugar enquanto ao uso desse arsenal, mas o motivo de real
desconfiança, aponta ela, é o fato deles se moverem em um mundo no qual o discurso tornouse irrelevante, sendo que “tudo o que os homens fazem, sabem ou experimentam só tem sentido
na medida em que se possa falar sobre” (idem, p. 5). Ou seja, Arendt aponta para o abismo
cada vez maior entre a linguagem formal do conhecimento técnico e científico e a linguagem
com a qual podemos nos entender entre todos, que é eminentemente política.4
1. Leonardo Boff: o cuidado pelo mundo
Leonardo Boff se preocupa por deixar claro nos seus artigos, livros e conferências que
a humanidade e a Terra não são entes separados, mas formam uma única entidade complexa.
Sem maiores preocupações com as instituições religiosas, a obra deste teólogo contempla o
seguinte pressuposto, verdadeiro alfa e ômega da sua reflexão: “não estamos apenas sobre a
Terra, mas fazemos parte dela; somos Terra que sente, pensa, ama e cuida” (BOFF, 2018, p.
32).5 De acordo com Boff, este é o sentido positivo e irrenunciável da planetização, que
contrapõe ao termo globalização, cujo significado, frisa, é apenas econômico. Nesta sequência,
devem ser mencionados três documentos que chegaram para emoldurar um pensamento já
formado: a oficialização da nomenclatura Mãe Terra pelas Nações Unidas, no dia 22 de abril
de 2009, e a Carta da Terra do ano 2000 – uma iniciativa da ONU, desenvolvida pela sociedade
A este respeito, André Duarte comentou que “se como afirma Arendt, o homem é um ser político na medida em
que é capaz de pensar e falar significativamente a respeito das realidades que aparecem publicamente a todos a
partir de uma pluralidade de perspectivas distintas, então a incapacidade de pensar, de compreender e de julgar o
avanço tecnocientífico representa um sério comprometimento para nossas capacidades genuinamente políticas. É
nesse sentido que o desenvolvimento tecnocientífico constitui um problema político de primeira grandeza”
(DUARTE, 2010, p. 51).
5
“Nos últimos anos, a Teologia da Libertação começou a ocupar-se com a vida em todas as suas formas, porque
o indivíduo não pode viver sozinho: é parte de um sistema maior, de uma rede que garante as bases físicas, químicas
e biológicas que possibilitam a existência neste planeta. O capitalismo globalizado está destruindo essas bases,
preparando a vinda de uma catástrofe ecológica mundial. [...] As instituições religiosas veneram as Escrituras, a
hóstia consagrada, o espaço do santuário, mas não são capazes de se abrirem ao mistério do mundo e à energia que
alimenta o Universo inteiro. Essa lacuna espiritual é um dos mais graves problemas da Modernidade, porque o
contrário da religião não é o ateísmo, mas a falta de conexão com o Todo” (BOFF, ZOJA, 2016, p. 73/78).
4
civil –6, que junto a Encíclica do Papa Francisco de 2015, Laudato Si, oficializaram a expressão
Casa Comum, com o objetivo de tornar transparente a profunda unidade da espécie humana
com o seu habitat natural.
Ao velho paradigma da dominação e da conquista (razão instrumental), Leonardo Boff
contrapõe uma cosmologia de transformação e de libertação sob o novo paradigma do cuidado
(razão sensível). Boff encontra seu fundamento filosófico em Ser e tempo de Martin Heidegger,
para quem a realidade recebe seu verdadeiro sentido através da preocupação inquieta do
cuidado. O filósofo alemão inspirou-se na Ética a Nicômaco e na Retórica de Aristóteles para
desenvolver a ideia de que “o cuidado é o modo de ser primeiro de todo ser humano em sua
relação para com o mundo, e não somente uma orientação particular e interior da alma, como
aparecia nos autores cristãos”. O cuidado coloca o homem como ser-no-mundo, é a estrutura
originária do Dasein – da existência humana – e portanto, ser homem, ser mulher, implica estar
constituído de cuidado. Nas palavras do próprio Heidegger: “o cuidado significa um fenômeno
ontológico-existencial básico” (HEIDEGGER, 2012, p. 261 apud BOFF, 2012, p. 53). Com
efeito, o ser humano é capaz de cuidar porque ele já é cuidado na sua estrutura originária básica.
Porque precisou e recebeu um cuidado natural e objetivo, por parte de um “deus” ou de algum
outro, o ser humano é capaz, como projeto ético assumido conscientemente, de cuidar de si
mesmo e dos outros na qualidade de valor e propósito pessoal, social e planetário. Desta forma,
o cuidado passa de dado natural a dado cultural. Isto, observa Boff fazendo a análise de
Heidegger, pressupõe levar a sério a fragilidade e a vulnerabilidade como dados primeiros do
homem, ser que está “lançado no mundo” e continuamente exposto a riscos. Assim sendo, a
condição humana exige o cuidado, que Heidegger define como um existencial, uma
preocupação para o presente e para o futuro, não apenas de si, mas do outro e da vida. Para
Boff, “cuidado é não permitir que o desespero e o desamparo tolham o sentido da alegria de
viver, pois, de qualquer forma, jamais poderemos deter o curso irrefreável da morte, hospedada
dentro da vida desde o seu primeiro momento de existência” (BOFF, 2012, p. 63). A
humanidade do ser humano se deixa resumir na combinação entre cuidar e ser cuidado.
“Desta compreensão do cuidado, enquanto natureza do ser humano no mundo e na
história, emerge a dimensão ética, que não se deriva do cuidado. O próprio cuidado
é sinônimo de ética e do ético no sentido clássico do ethos grego, como cuidado da
casa e de todos os que nela habitam, seja a casa individual, seja a Casa Comum, que
é o planeta Terra” (idem, p. 65).
“O documento pede que os Estados passem da exploração da natureza ao respeito pela Mãe Terra como fonte de
vida, deem preferência ao valor de uso mais que ao valor de troca na atividade econômica, introduzam o princípio
da democracia em toda as relações humanas e promovam a interculturalidade” (BOFF & ZOJA, 2016, p. 81).
6
Do ponto de vista científico, Boff salienta que o cuidado já estava presente há 3,8 bilhões
de anos, quando a matéria alcançou o grau de complexidade e organização que permitiu a
emergência da vida na Terra. Na linguagem do autor, “a primeira bactéria com cuidado
singularíssimo dialogou quimicamente com o entorno, logrou um equilíbrio dinâmico que lhe
possibilitou sobreviver e continuar a evoluir.” (idem, p. 43). Desde uma perspectiva quântica,
sublinha o teólogo, esta foi uma possibilidade entre tantas outras, mas foi essa contingência
realizada a que deu lugar ao nosso mundo e não a outro. Nesta narrativa, com a aparição do ser
humano, o cuidado ganhou há sete ou nove milhões de anos uma qualidade nova: passou de um
processo ecológico a um propósito consciente e tornou-se “amor, reconhecimento e comunhão.
[...] Desta forma o cuidado entra na definição do próprio ser humano como existência-nomundo-com-os-outros, aberto à totalidade do Ser, ao futuro e à morte” (idem, p. 43-44).
No intuito de refundar o pacto natural, Leonardo Boff denuncia a quebra do contrato
entre a Terra e a humanidade. Os homens, explica, criaram um mundo próprio, exilaram-se da
Terra, sua casa, e estabeleceram com ela uma relação de troca, meramente comercial e extrativa.
O pacto social resultante desta automutilação considera os humanos como únicos seres de
direito, esquecendo o direito à vida dos outros seres que habitam o planeta e os direitos da Mãe
Terra. Boff entende que a consequência deste movimento
foi a solidão, a perda de raízes e de conexão com os outros seres humanos, centrados
somente sobre si mesmos. [...] Para resgatar a conexão com a Terra faz-se mister
articular o pacto social com o pacto natural, de forma que os elementos naturais
sejam reconhecidos em seus direitos e sejam igualmente considerados cidadãos. A
democracia, então, será sociocósmica; uma democracia da Terra, como o sonham
milhões de povos andinos (idem, p. 86).
Urge, pois, uma mudança importante em forma de refundação do vínculo do ser humano
com o mundo e com a Terra, da qual “hoje se sabe que é um superorganismo vivo, e que o ser
humano é apenas um elo da sua cadeia evolutiva” (BOFF & ZOJA, 2016, p. 75). Para Boff, o
cuidado deve substituir a dominação em uma nova cosmologia que em vez de anular as
diferenças, as acolha num biorregionalismo que valorize cada território. Não é verdade,
denuncia o autor, que o homem seja apenas um ser de necessidades e de desejo de acumulação
ilimitada, mas “um ser criativo, com fome de beleza, de comunhão e de espiritualidade”. O
sentido de um ecodesenvolvimento deve encontrar o seu sujeito não na mercadoria, não no
mercado, o setor privado ou o Estado, mas nos seres humanos, tomados pessoal e coletivamente,
e os demais seres vivos nas suas múltiplas dimensões. Em decorrência disso, Boff é partidário
de um decrescimento econômico – ou “acrescimento” –, que garanta a sustentabilidade
ambiental e a equidade social, que reduza a importância do quantitativo em favor da qualidade
de vida para o maior número, preservando os bens e os serviços que serão necessários as futuras
gerações. “A Terra não pode suportar um desenvolvimento infinito. [...] Como escrevia Eric
Hobsbawm no final de A era dos extremos (1995), os valores e princípios que moldaram a
cultura ocidental não têm mais condição para projetar o futuro. Ou mudamos ou perecemos”
(BOFF & ZOJA, 2016, p. 72/74). Urge pensar global e a longo prazo.
Trata-se do apelo a um sentimento de responsabilidade universal, porque para se
chegar a uma verdadeira transformação, faz-se necessário mudar o coração e a
mente, ver com outros olhos a realidade, substituir a abordagem funcional pela
inteligência emotiva, que é a sede dos valores, da sensibilidade e da espiritualidade
(idem, p. 79).
Para tanto, se faz necessária a construção de uma democracia integral na qual o
indivíduo se transforme num “cidadão-sujeito” empoderado, isto é, dono do seu
desenvolvimento pessoal, mas também do coletivo; que coopere com os outros em vez de
competir e concorrer contra eles; e que se autoeduque continuamente para exercer a cidadania
junto com o seus concidadãos. Desta maneira se desenvolverá a práxis, ou seja, “esse
movimento dialético entre a conversão do conhecimento em ação transformadora e a conversão
transformadora em conhecimento”. Essa conversão permite que não mude apenas a realidade,
mas também o sujeito. Para Boff, é imperativo superar o reducionismo da visão mecanicista
para “assumir a cultura da complexidade, da corresponsabilidade e do cuidado”, através de três
eixos: a sociedade sustentável, a democracia socioecológica e a educação libertadora. Em
diálogo com os antropólogos chilenos, Jorge Maturana e Francisco Varela, com o pensador
francês da complexidade, Edgar Morin, ou com o cosmólogo norte-americano Brian Swimme
– os quais afirmam que o humano é um ser de socialidade, cooperação e convivialidade –; em
diálogo também com a física quântica de Niels Bohr e Werner Heisenberg, Leonardo Boff
reafirma a lei fundamental do processo cosmogênico:
Tudo tem a ver com tudo em todos os pontos e em todos os momentos; tudo está
inter-relacionado, e nada existe fora dessa panrelacionalidade. Portanto, nada existe
justaposto ou desarticulado. Senão que as coisas estão de tal modo interconectadas,
que formam um incomensurável sistema (BOFF, 2018, p. 202).
Esta lei fundamental da cosmogênese está em profunda conexão com a teologia ecofeminista
tal como apresentada pela teóloga brasileira Ivone Gebara, segundo a qual “a interdependência
ou relacionalidade é a experiência mais básica de todos os seres, anterior a nossa consciência
dela” (GEBARA, 1997, p. 60). O que aqui está em jogo é o reconhecimento de que as nossas
situações vitais concretas, as nossas crenças, pensamentos e atitudes são fruto de interconexões
mais bastas que influenciam e condicionam a nossa vida: “não se trata apenas da
interdependência e relação com os outros seres humanos, mas com a natureza, as forças da
Terra e do Cosmos” (idem, p. 61). Trata-se, assim, de ir além não só da nossa individualidade,
mas do próprio antropocentrismo, porque, de acordo com Gebara, só seremos capazes de cuidar
da Terra quando internalizemos a nossa conexão não só com os outros seres humanos, mas com
os animais e vegetais que também a habitam; um vínculo, destaca esta autora, que ainda não foi
trazido à luz da consciência porque os nossos sentidos ainda não foram educados nesse sentido.
Ivone Gebara faz questão de sublinhar que o ecofeminismo não é uma nova perspectiva
essencialista biológica ou filosófica que diferencie entre aproximações masculinas e
abordagens femininas, mas abre a epistemologia “para uma perspectiva plural que inclui
aspectos comuns a homens e mulheres de uma dada cultura” (idem, p. 68), incluindo
características diferentes originadas em experiências diversas. A teologia ecofeminista de Ivone
Gebara consolidou-se como um aporte necessário e crítico à Teologia da Libertação, na qual,
por vezes, ainda pode se detectar um caráter androcêntrico.7 Em vista disso, Gebara defende
uma epistemologia inclusiva com características afetivas, reconhecendo que
a gama imensa de emoções e afeições se manifesta em homens e mulheres em sua
originalidade pessoal, seus condicionamentos e cultura. Natureza e cultura não são
realidades separadas no universo humano, mas são realidades interconectadas que
nos permitem ser o que somos e permitem a Terra ser hoje o que ela é. Natureza e
cultura são inseparavelmente razão e emoção (idem, p. 74).
Ainda dentro da teologia feminista, para Elisabeth A. Johnson foi se revelando cada vez
com mais clareza que um universo moral limitado somente aos seres humanos deixou de ser
adequado. Para esta teóloga norte-americana, a reflexão ética precisa ir além da humanidade,
focalizar sua atenção na comunidade da vida como um todo e tomar uma responsabilidade
assertiva para o cuidado com a Terra, da qual, segundo ela, somos tanto filhos como cocriadores.8 “A destruição contínua da Terra através dos atos humanos de ecocídio, biocídio e
geocídio são uma profanação profundamente pecaminosa” (JOHNSON, 2008, p. 19). Assim,
continua esta autora, aqueles que respeitam a tradição da profecia bíblica e o espirito de Jesus
devem se opor a essa destruição agindo para o cuidado, proteção, restauração e cura da natureza,
7
Explicar detalhadamente a obra, as críticas e os aportes de Ivone Gebara à Teologia da Libertação excederia em
muito os objetivos deste texto. Além disto, cabe lembrar que Gebara foi condenada em 1995 pelo Vaticano por
fazer críticas à rigidez da doutrina moral ofical da hierarquia da Igreja Católica com a mesma punição com à qual
Leonardo Boff foi atingido dez anos antes: o “silêncio obsequioso”.
8
Como o próprio Boff lembra, em muitas culturas do ocidente e do oriente, a criação do ser humano se deu “a
partir do barro da terra, plasmado a partir do húmus que significa terra fértil. De húmus deriva seu nome: homem,
filho e filha da terra fecunda (húmus)” (BOFF, 2014, p. 67).
contrariando quando for necessário os interesses econômicos e os poderes políticos
estabelecidos. Quando a natureza é o novo pobre, assegura Johnson, a procura por justiça para
os humilhados e oprimidos deve estender-se para incluir “sistemas de vida e outras espécies
sob ameaça. ‘Salvar a floresta tropical’ torna-se uma aplicação moral concreta do mandamento:
‘Não matarás.’” (idem).9
Em diálogo com a teologia feminista e junto ao pensador brasileiro, radicado na França,
Michel Löwy, a utopia para a qual aponta Boff é a de um ecosocialismo que se apresenta como
inscrito na lógica global das coisas e é sua expressão histórico-social. Assim visto, o
ecosocialismo transformaria num projeto político aquilo que a natureza prescreve em seu
dinamismo interno, numa visão consciente do mundo e numa ética de solidariedade, cooperação
e inclusão (cf. LÖWY, 2014, p. 63ss apud BOFF, 2018, p. 202). Boff não tem interesse algum
em resgatar nenhuma utopia maximalista vinda do passado, nenhuma daquelas que custaram
tantas vidas para nada, mas acredita com Shakespeare que o ser humano está feito de sonhos e,
através do “princípio-esperança” de Ernst Bloch como guia norteador, pensa e age de acordo
com o “viável possível” teorizado por Paulo Freire, ou seja, de acordo com aquelas utopias
minimalistas que no dizer do pedagogo, fazem a sociedade “menos malvada e tornam menos
difícil o amor”. Assim, para Boff, na sua perspectiva ecoteológica,
crer significa romper com o mundo da pura razão, da funcionalidade das instituições
e da lógica linear, para as quais não há e não deve haver surpresas. Crer é abrir espaço
para o imprevisto, para a magia e para o “milagre” de que as coisas podem, de
repente, mudar e ganhar outra configuração que abre um horizonte de esperança para
a vida humana (BOFF, 2018, p. 254).
2. Hannah Arendt: a alienação do mundo e da Terra
No exame fenomenológico que Hannah Arendt apresenta em A condição humana
existem três termos: as condições da existência humana, das atividades humanas e dos domínios
nos quais desenvolvem-se essas atividades. As condições da existência humana são: a vida
mesma, a natalidade, a mortalidade, a pluralidade, a mundanidade e a Terra. Todas essas
9
Da perspectiva feminista, outras abordagens que levam em consideração o tópico da cura e do cuidado devem
incluir, ainda dentro da teologia, as de Elisabeth Moltmann, Mary E. Hunt e Teresa Forcades; na antropologia, as
de Margaret Mead e Yayo Herrero; na psicologia, Nancy Chodorov; na história antiga, Mary Beard e, na economia,
Miren Etxezarreta. Agradeço a Neus Forcano, feminista e teóloga, por chamar renovadamente minha atenção,
numa conversa que se estende por anos, sobre a importância de incorporar a obra destas autoras num debate sério
e multidisciplinar sobre a crise política, ética e ecológica da contemporaneidade.
condições estão conectadas com as atividades humanas que compõem a vita activa: o trabalho,
a obra e a ação. Segundo a autora, o trabalho [labor] e a obra [work] sempre se confundiram
historicamente, porém não são a mesma coisa. A condição humana do trabalho é a vida e inclui
todas aquelas atividades cujo propósito básico é atender às necessidades próprias das funções
biológicas mais elementares do homem. O ser humano precisa comer, beber, vestir, dormir e,
ademais, ganhar o pão, isto é, participar do processo coletivo de produção material e, assim,
conseguir o cumprimento dos bens mais básicos. Tem também que preservar a espécie,
reproduzindo-a, e, para tanto, tem que gerar filhos. Cansado, ao final do dia precisa de repouso,
mas no dia seguinte o processo recomeça. A atividade humana do trabalho compartilha com as
funções biológicas da pessoa e da natureza uma categoria que define as três por igual: a
categoria do eterno retorno cíclico. As atividades incluídas no nome genérico de trabalho não
têm outro objetivo do que o de sustentar, preservar, perpetuar, ajudar e periodicamente
recuperar as energias perdidas; sua origem reside no fato de que o homem é um ser corporal
que possui um instinto de conservação e precisa exercê-lo.
Aquilo que é produzido pelo trabalho não perdura, sequer nem está destinado a perdurar.
Paradoxalmente, as coisas que menos duram são as mais necessárias durante o processo da vida.
Logo, precisamos voltar a produzi-las. Trabalho, descanso, recuperação das energias, trabalho.
Comer, assimilar uma parte do que foi ingerido, expulsar o resto, e comer de novo. Este é o
ciclo vital dos homens, um círculo que jamais é concluído, até que a morte chega, uma linha
que passa sempre pelos mesmos pontos e que sempre volta ao ponto de partida. O trabalho não
produz algo permanente, pois seus produtos são consumidos pelo processo da vida, e devem
ser re-produzidos continuamente. Eles não têm identidade nem independência, e seu significado
deriva do seu lugar no processo vital. Os produtos do trabalho são bens de consumo.
O trabalho e o consumo são duas etapas do sempre repetido ciclo da vida biológica. Esse
ciclo é sustentado pelo consumo, e a atividade que proporciona os meios para o consumo é o
trabalho. De modo que a sociedade de consumo é a sociedade do animal laborans. Mesmo
necessário, o trabalho é fútil, pois seus produtos não podem originar um mundo “objetivo” em
que qualquer um possa se instalar permanentemente. Ademais, do momento em que seus
movimentos estão ditados pelo processo da vida, o trabalho não requer muita iniciativa ou
pensamento. Ao contrário da atividade da obra [working], que termina quando o objeto está
acabado e pronto para ser acrescentado ao mundo comum de coisas, “a atividade do trabalho
[laboring] move-se sempre no mesmo círculo prescrito pelo processo biológico do organismo
vivo, e o fim de suas ‘fadigas e penas’ só advém com a morte desse organismo” (ARENDT,
2014, p. 121, grifos no original). É por isso, afirma Arendt, que muitas ferramentas antigas
puderam ser substituídas, no mundo moderno, por máquinas que, ainda com seu processo
singular, combinaram-se bem com o próprio processo do trabalho.
Sob o nome genérico de obra, a autora inclui todas aquelas atividades com as quais o
homem produz objetos duráveis a partir do material natural, desde simples objetos de uso até
as obras de arte. À diferença do trabalho, que produz bens consumíveis, e da ação, que não
produz algo tangível, a obra produz “obras” e “objetos”. Um objeto possui uma relativa
independência em relação a seu criador e precisa ser tratado de uma maneira específica.
Diferentemente dos bens de consumo, ou produtos do trabalho, os objetos produzidos pela obra
têm a pretensão de durar e de não serem absorvidos do momento da sua aparição. Além disso,
“embora o uso esteja vinculado à deterioração desses objetos, a deterioração não é o destino
destes últimos, no mesmo sentido em que a destruição é o fim intrínseco de todas as coisas
destinadas ao consumo. O que o uso desgasta é a durabilidade” (idem, p. 170). Os objetos, feitos
para serem utilizados, possuem a nova dimensão de oferecerem resistência ao homem (ob-jecta)
e de estabelecerem-se no mundo. Para dizê-lo de um modo diferente, se não são usados, não se
“evaporam” facilmente, pois eles possuem sua própria “vida” e podem sobreviver à indiferença
ou à negligência humanas. Resistentes à passagem do tempo, às vezes os produtos da obra não
são apreciados tanto pelo serviço que oferecem quanto por sua capacidade de duração.
Inversamente, utilizando-os, também nós somos utilizados por eles e pelo mundo que eles
criam. Desde que os produtos da obra têm a capacidade de constituir um mundo de aparências,
são-lhes feitas algumas exigências, isto é, espera-se que eles sejam bonitos e agradáveis à vista,
debate-se sobre seu estilo, são datados e incorporados à história pessoal e coletiva, e são
procuradas formas de preservá-los e mantê-los. Assim, não é pouco frequente depositar
sentimentos nos objetos, coisa não tão habitual quando a relação é com os bens de consumo.
Em consequência, a atividade da obra corresponde à condição humana da mundanidade. Com
cada objeto durável o homem constrói um ambiente, um meio, e incrementa a distância entre
ele e a natureza. Correlacionado, o mundo provê o homem do sentimento de continuidade no
tempo: pelo hábito de ver, mais ou menos, as mesmas coisas cada dia, se faz consciente de ser
ele mesmo um dia apôs o outro. O mundo substitui o conceito cíclico do tempo da natureza
pelo retilíneo, que é o distintivo do ser humano (nasce, vive e morre). Em outras palavras,
“contra a subjetividade dos homens afirma-se a objetividade do mundo feito pelo homem”
(idem, p. 171).
No último capítulo de A condição humana, Hannah Arendt cita três grandes eventos que
estão na origem da era moderna e determinam seu caráter. Em primeiro lugar, a descoberta da
América sinaliza o momento em que a Terra se torna sujeita à capacidade de pesquisa humana.
Com essa descoberta, o ambiente terreno do homem começa a ser concebido como objeto. Em
segundo, a Reforma protestante deu início ao processo de expropriação por meio do qual
milhões de pessoas perderam sua propriedade, seu lugar no mundo, e ficaram sujeitos ao
acúmulo ilimitado e insaciável de riqueza por parte dos novos capitalistas.
A expropriação, o despojamento de certos grupos do seu lugar no mundo e sua nua
exposição às exigências da vida, criou tanto o original acúmulo de riqueza como a
possibilidade de transformar essa riqueza em capital mediante o trabalho. Tudo isso
junto constituiu as condições para o surgimento de uma economia capitalista. Desde
o começo, séculos antes da revolução industrial, era evidente que este
desdobramento, iniciado pela expropriação e nutrido por ela, resultaria em um
enorme aumento da produtividade humana. A nova classe trabalhadora, que
literalmente vivia da mão à boca, estava não só diretamente sob a urgência
constrangedora das necessidades da vida, mas ao mesmo tempo, alienada de
qualquer cuidado ou preocupação que não decorresse imediatamente do próprio
processo vital (idem, p. 319).
Como visto, esta expropriação, através da qual certos estratos da população são privados de sua
parcela de propriedade privada dentro de um mundo comum, prepara o terreno para uma maior
apropriação e para um processo de acumulação de riqueza que se tornou social e infinito.
Finalmente, a invenção do telescópio por Galileu confirmou a teoria de Copérnico e demonstrou
que o homem estava sendo enganado por seus sentidos. Com essa confirmação, o conceito
tradicional de verdade foi destruído.
Da perspectiva de Arendt, cada um desses eventos figura como uma origem da alienação
do mundo moderno. Como constelação, eles marcam uma transformação fundamental na
relação do homem ocidental com seu entorno, seu "estar-no-mundo". Assim, a descoberta da
América dá início ao processo de encolhimento pelo qual a vastidão da Terra é reduzida a
dimensões objetificáveis - um processo recentemente concluído. Com a descoberta do mundo,
a Terra passa a ser um objeto representável e, por sua vez, essa representação é a condição sine
qua non do seu poder de conquista.
A invenção do telescópio representa a última grande origem da alienação do mundo
moderno, o ponto de vista universal da ciência moderna. O que a invenção de Galileu fez foi
sublinhar a necessidade de assumir uma posição fora do mundo, se alguém quisesse evitar ser
enganado pelos sentidos:
se desejarmos colocar isso em uma perspectiva histórica, é como se a descoberta de
Galileu comprovasse com um fato demonstrável que tanto o pior temor quanto a
mais presunçosa esperança da especulação humana – o antigo temor de que os nossos
sentidos, nossos órgãos de recepção da realidade, podem nos trair, e o desejo
arquimediano de um ponto fora da Terra a partir do qual o homem pudesse erguer o
mundo – só pudessem se mostrar verdadeiros ao mesmo tempo, como se o desejo só
pudesse ser satisfeito contanto que perdêssemos a realidade, e o temor só se
consumasse se compensado pela adquisição de poderes supramundanos (idem, p.
326-327).10
Descartes fez a tradução filosófica das descobertas científicas e das invenções
tecnológicas do seu tempo. Com seu Discours de la méthode, o filósofo francês colocou uma
dúvida universal que afeta tanto aos dados empíricos ou sensíveis quanto aos enganos dos
nossos sentidos e do nosso pensamento, e consiste em recusar como falso tudo aquilo que
aparece aos olhos do nosso corpo e aos do nosso espírito. Esse subjetivismo está
intrinsecamente ligado a um ponto de vista científico e técnico, de modo que a realidade pensase como vinculada a um processo de construção que torna o visível suspeito. A revelação
através dos sentidos não é mais uma prova do real, precisando para sua certidão de uma
reconstrução científico-técnica que venha demonstrar a realidade do real. Por conseguinte,
somente pode ser considerado verdadeiro aquilo que foi construído pelas mãos do homem. Em
consequência, o mundo da vida quotidiana, do qual não percebemos o mecanismo interno, é
um mundo ilusório. Em contrapartida, aquilo que a ciência, com a ajuda da técnica, constrói,
não reveste nenhum mistério nem segredo, não guarda nenhuma dimensão incompreensível.
Portanto,
a solução cartesiana da dúvida universal ou o seu despertar dos dois pesadelos
interligados – de que tudo é um sonho e que não existe a realidade, e de que não
Deus, mas um espírito mau reina sobre o mundo e zomba dos homens – foi
semelhante, em método e conteúdo, à substituição da verdade [truth] pela veracidade
[truthfulness] e da realidade [reality] pela confiabilidade [reliability]. A convicção
de Descartes, de que, “embora a nossa mente não seja a medida das coisas e da
verdade, certamente tem de ser a medida do que afirmamos ou negamos”, ecoa
aquilo que os cientistas, em geral e sem articulação explícita, haviam descoberto:
que, mesmo que não exista a verdade, o homem pode ser veraz, e mesmo que não
exista certeza confiável, o homem pode ser confiável. Se alguma salvação existia,
devia estar no próprio homem; e se houvesse resposta para as perguntas levantadas
pelo ato de duvidar, tinham de decorrer do próprio ato de duvidar (idem, p. 348).
Neste sentido, Dana Villa salientou no seu livro de interpretação comparativa que “O verdadeiro problema, tanto
para Heidegger quanto para Arendt, é o ressentimento existencial que leva a humanidade moderna a se afastar
tanto do mundo, a atribuir a si mesma uma posição da qual o mundo poderia ser eliminado. A novidade radical da
modernidade consiste no fato de que "agora, pela primeira vez, existe algo como uma 'posição' do homem". Agora,
"pela primeira vez", existe uma distância, uma alienação, que encoraja e torna plausível o projeto arquimediano
de transformar totalmente as condições da existência humana” (VILLA, 1996, p. 193). Por outro lado, Étienne
Tassin, reforçou que “Arendt interpreta a revolução copernicana como uma alienação radical e irreversível do
mundo: para a humanidade moderna, a Terra nada mais é do que um móvel qualquer” (TASSIN, 1999, p. 129).
10
O cientificismo – essa concepção da vida, resultado de uma combinação entre ciência e
técnica – corresponde-se, segundo Arendt, com a vitória, na era moderna, do homo faber, ou
seja, uma forma de entender o mundo baseada na fabricação e na instrumentalização. O homo
faber reduz tudo em geral à categoria de meio-fim, e a natureza em particular a um simples
material, isto é, a um simples recurso para o uso do homem, autoconstituído como finalidade
última de todas as atividades (antropomorfismo) e vencedor de qualquer obstáculo
(prometeísmo).11 Logo, se o único que pode se ter por verdadeiro é aquilo que surge do próprio
homem, perdemos tanto o senso comum como o mundo, uma vez que
essa teoria é certamente aquilo que Whitehead a chama: “o resultado do senso
comum em retirada”. Pois o senso comum, que fora antes aquele sentido por meio
do qual todos os outros, com as suas sensações estritamente privadas, se ajustavam
ao mundo visível, tornou-se então uma faculdade interior sem qualquer relação com
o mundo. Esse sentido era agora chamado de comum meramente por ser comum a
todos. O que os homens têm agora em comum não é o mundo, mas a estrutura de
suas mentes, e isso eles não podem, a rigor, ter em comum; o que pode ocorrer é
apenas que a faculdade de raciocínio seja a mesma para todos (Idem, p. 353, grifo
nosso).
Para Arendt, não só a filosofia moderna, inaugurada por Descartes, é subjetivista, mas a
mentalidade moderna como um todo o é, e, por extensão, toda a época, a idade moderna. Nela
se operam duas inversões em relação com a antiguidade. A primeira diz respeito à
contemplação, que não é simplesmente substituída pela ação, mas abandonada e excluída por
insignificante. A segunda tem a ver entre o pensar e o fazer, visto que se do único que podemos
ter certeza é daquilo que nós mesmos produzimos, o fazer e o produzir passam a ocupar o lugar
que antes ocupava a contemplação. Mas existe ainda uma terceira inversão, que diz respeito à
vida considerada como um infindável processo de meios e fins instaurada na idade moderna, e
que consiste na identificação, que na verdade é uma suplantação da ação pela fabricação. O
problema do utilitarismo, que Arendt considera ser a filosofia da idade moderna,
reside em que a natureza da rede categorial de fins e meios transforma imediatamente
cada fim conseguido no meio para um novo fim, e, desse modo, onde quer que seja
aplicada, destrói o sentido, inclusive no seio do aparentemente inacabável interrogar
utilitarista: Qual é o uso de...?; no seio de um aparentemente inacabável progresso,
no qual o fim de hoje torna-se o meio de um futuro melhor, a única pergunta que
Neste sentido, Leonardo Boff explica que “para caracterizar bem nossa era, que conheceu o impacto da atuação
da espécie humana sobre os ecossistemas, o biólogo norte-americano Eugene Stoermer cunhou nos anos 1980 o
termo antropoceno, mas tarde divulgado pelo prêmio Nobel de Química Paul Crutzen. Ele não define em sentido
estrito e preciso uma era geológica, mas um período que começa, segundo muitos cientistas, a partir da Revolução
Industrial. Edward O. Wilson, o biólogo que criou a palavra biodiversidade, também usa esse conceito para
explicar que o ser humano é a única forma de vida que se transformou em uma força destruidora. Nem a religião,
nem a ética, nem a cultura foram capazes de conter seus efeitos (BOFF & ZOJA, 2016, p. 84).
11
surge e que nenhum pensamento utilitarista pode jamais responder é “E qual é o uso
do uso?” (ARENDT, 1995, p. 63).
Deste modo, perdendo a capacidade de distinguir entre meios e fins, é como a fabricação [work],
transforma-se em trabalho [labor], na medida em que a roda de produção para o consumo apaga
a distinção entre uns e outros. De acordo com Arendt,
o que está em jogo não é, naturalmente, a instrumentalidade como tal, o emprego de
meios para atingir um fim, mas antes a generalização da experiência da fabricação,
na qual a serventia e a utilidade são estabelecidas como critérios últimos para a vida
e para o mundo dos homens. Essa generalização é inerente à atividade do homo faber
porque a experiência dos meios e do fim, como está presente na fabricação, não
desaparece com o produto acabado, mas prolonga-se até o destino final deste último,
que é o de servir como objeto de uso. A instrumentalização de todo o mundo e de
toda a Terra, essa ilimitada desvalorização de tudo o que é dado, esse processo de
crescente ausência de significado no qual todo fim é transformado em um meio e
que só pode ser interrompido quando se faz do próprio homem o amo e senhor de
todas as coisas, não provém diretamente do processo de fabricação; pois, do ponto
de vista da fabricação, o produto acabado é um fim em si mesmo, uma entidade
independente e durável, dotada de existência própria, tal como o homem é um fim
em si mesmo na filosofia de Kant. Somente na medida em que a fabricação fabrica
principalmente objetos de uso o produto acabado novamente se torna um meio, e
somente na medida em que o processo vital se apodera das coisas e as utiliza para
seus fins é que a instrumentalidade limitada e produtiva da fabricação se transforma
na instrumentalização ilimitada de tudo o que existe (ARENDT, 2014, p. 195-196,
grifo nosso).
Para Arendt, o drama do mundo moderno é o de ter-se transformado numa sociedade de
animal laborans, que destrói tudo o que cria em vez de construir para a duração. Embora sujeito
de maneira limitada à lógica dos meios e dos fins, o homo faber da era moderna, entre os séculos
XVII e XIX, era capaz de criar e de estabelecer um mundo. A novidade do animal laborans no
século XX é a de levar ao extremo essa mesma lógica, que já não é a da criação duradoura mas
a da destruição constante, num império do efêmero no qual a segurança de qualquer tipo deixou
de existir. Isto termina por colocar em perigo o mundo e a vida humana neste planeta, que
também podem acabar por serem consumidos. Arendt coloca o acento e deplora justamente
aquilo que para um entendimento superficial aparece seguramente como um paradoxo, isto é, a
extensão que a esfera da necessidade – o natural, o biológico, isto é, o meramente cíclico –
experimentou no mundo moderno em detrimento do artifício, isto é, da capacidade humana de
criar um mundo estável e duradouro. Portanto, se, como escreve no seu Diário filosófico (cf.
2006, p. 541), a natureza do homem estivesse descoberta no animal laborans, isso significaria
o final do humanismo, pois este teria alcançado o seu fim.12
Conclusão
Leonardo Boff compartilha com Hannah Arendt uma ética da responsabilidade em
relação ao mundo e à Terra. Porém, a diferença de Boff, o pensamento arendtiano não é
normativo. Não existe um plano ou uma linha de pensamento concreta na obra desta pensadora
que trace a maneira com a qual as nossas sociedades deveriam lidar para mudar o paradigma
do animal laborans – trabalho e consumo num ritmo cíclico – em que desde os primórdios do
capitalismo e do homo faber foram se sumindo progressivamente. Esta é a razão pela qual
diferentes tradições político-filosóficas continuam tentando domesticar a teoria política
arendtiana em benefício próprio, desde habermasianos até comunitaristas, passando por aqueles
que gostariam de ver superada a fase da democracia representativa em favor de uma
participação mais direta nos assuntos públicos por parte da cidadania. Mesmo dando muitos
elementos para ser pensado, Arendt não aponta para um ecosocialismo à maneira de Leonardo
Boff e, como todos os seus leitores sabem, mostrou-se continuadamente uma antagonista do
liberalismo. Todavia, parece-me que aquilo que pode ser afirmado de Arendt sem grandes
problemas é que ela foi uma pensadora dos limites com uma janela aberta à esperança.
Arendt forjou sua sensibilidade e seu pensamento políticos na resistência antinazista na
qual ela mesma participou. Essa experiência induziu Arendt a pensar e a escrever sobre o
Vale a pena observar que Arendt abre A condição humana constatando no prólogo o paradoxo de que o auge da
automação, que pode liberar o homem do “seu fardo mais antigo e mais natural”, se dá na mesma época que
glorificou o trabalho e subjugou as outras atividades “superiores e mais significativas” para as quais a liberdade
devia ser conquistada: “é uma sociedade de trabalhadores a que está para ser liberada dos grilhões do trabalho”
(ARENDT, 2014, p. 5). Depois, ela fechará o círculo nas últimas páginas do livro assegurando que “mesmo agora,
trabalho é uma palavra muito elevada, muito ambiciosa para o que estamos fazendo ou pensamos que estamos
fazendo no mundo em que passamos a viver. O último estágio da sociedade de trabalhadores, o qual é a sociedade
de empregados, requer de seus membros um funcionamento puramente automático, como se a vida individual
realmente houvesse sido submergida no processo vital global da espécie e a única decisão ativa exigida do
indivíduo fosse deixar-se levar, por assim dizer, abandonar a sua individualidade, as dores e as penas de viver
ainda sentidas individualmente, e aquiescer a um tipo funcional, entorpecido e “tranquilizado” de comportamento.
[...] É perfeitamente possível que a era moderna – que teve início com um surto tão promissor e tão sem precedentes
de atividade humana – venha terminar na passividade mais mortal e estéril que a história jamais conheceu” (Idem,
p. 403).
12
niilismo do mundo moderno, caraterizado pela quantidade ingente de pessoas sem teto,
deslocadas e consideradas supérfluas – que é o termo que ela usava para significar descartáveis.
Levou-a também a reflexionar sobre a guerra e a violência, sem esquecer que a invenção da
bomba atômica marcou sua época com o perigo – ao qual já parecemos estar acostumados – de
explodir o mundo, eliminar as espécies e pôr em risco a vida e o futuro do planeta. Essa
experiência a persuadiu da importância da ameaça da hubris, a palavra grega que simboliza a
desmedida causada pela imprevisibilidade da ação humana e que no século XX manifestou-se
nas manobras de líderes totalitários, mas também dos revolucionários que esqueceram da
contingência e dos limites da potência das ações dos homens, empenhando assim a força dos
seus mais nobres impulsos.13 O corolário quase inevitável dessa agenda intelectual foi a
importância que Hannah Arendt outorgou à coragem dos movimentos de resistência que
historicamente lutam contra a opressão e a desumanização, e tentam construir espaços públicos
provisórios – esses, como sabemos, são sempre provisórios – que permitam empoderar os
cidadãos para conseguir estabelecer as bases do novo, os alicerces de outra esperança.
O diagnóstico arendtiano da modernidade é inegavelmente pessimista. Não obstante,
em A condição humana, Arendt lembra que “a instrumentalização da ação e a degradação da
política em um meio para atingir outra coisa certamente jamais conseguiram eliminar de fato a
ação, evitar que ela seja uma das experiências decisivas, nem destruir por completo o domínio
dos assuntos humanos” (ARENDT, 2014, p. 287). Para a pensadora, a faculdade da ação tem
sua raiz ontológica no fato da natalidade, que é para ela “o milagre que salva o mundo” (idem,
p. 308). O nascimento de um ser humano marca a aparição de um ser irrepetível, único, dotado
da liberdade e da capacidade de atuar de forma imprevisível. “O fato de o homem ser capaz de
agir – escreve Arendt – significa que se pode esperar dele o inesperado, que ele é capaz de
realizar o infinitamente improvável” (idem, p. 222). Arendt mostra-se convencida de que só a
plena experiência da capacidade para introduzir novos começos pode conferir ao mundo “fé e
esperança” (Idem, p. 308); essa esperança que é para Boff “mais do que uma virtude entre
outras; é um motor que temos dentro de nós e que alimenta todas as demais virtudes, lançando
13
Margaret Canovan (cf. 2006, p. 56-57) destacou que contra um dos dogmas mais importantes do pensamento
moderno, Arendt não professava a fé no progresso, isto é, a ideia que a construção do mundo feita pelo homem se
condiz com o curso natural das coisas. Arendt era certamente muito sensível à ideia de um novo começo encarnado
na figura de cada ser humano, mas também se preocupava com o potencial desestabilizador das ações humanas e
com a necessidade de colocar limites que as refreiem.
para frente, suscitando novos sonhos de uma sociedade melhor e a coragem de realiza-los”
(BOFF, 2018, p. 101).
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