LINGUAGEM EM FOCO
Revista do Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada da UECE
V. 6, N. 1, ano 2014
O DISCURSO AMOROSO: WERTHER E CHARLOTTE
1
Victor Hugo da Silva Vasconcellos (PUC-SP)*
RESUMO
O que há de maior impacto em um ser humano que não as suas emoções? Essa é inquietação
norteadora desta pesquisa. O problema é procurar marcas específicas do discurso amoroso. Dessa
feita, pergunta-se: quais são as marcas discursivas no discurso amoroso literário? Este artigo busca
destacar na Literatura dois breves discursos amorosos a fim de se perceber a movimentação desse
sujeito que ama e busca o amor; tema que não será esgotado. No entanto, busca-se discutir algumas
características dos discursos amorosos com a finalidade de que se possa contribuir com a literatura da
análise do discurso. Neste exercício de análise, os conceitos de Polifonia, Reversibilidade Discursiva,
Ethos Discursivo e Interdiscurso serão discutidos a fim de embasar a concretização desse discurso.
Palavras-chave: Análise do Discurso; Discurso Amoroso; Literatura; Linguística.
ABSTRACT
What’s the biggest impact on a human being than their emotions? This restlessness is guiding this
research. The problem is to search for specific tags loving speech, made this: what are the discursive
marks the literary love discourse? This article seeks to highlight in the literature two brief loving
speeches in order to perceive the movement of this subject who loves and seeks the love; topic that
will not be exhausted, yet it will seek to discuss some characteristics of loving speeches for the
purpose of which is to contribute to the literature of discourse analysis. In this screening exercise, the
concepts of polyphony, Reversibility Discourse, Discursive Ethos, interdiscourse will be discussed
in order to base the implementation of this loving discourse.
Keywords: Discourse Analysis; Loving Speech; literature; Linguistics.
Mestre em Língua Portuguesa pelo Programa de Estudos Pós-graduados em Língua portuguesa da PUC-SP.
Email:
[email protected]
*
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O discurso amoroso: Werther e Charlotte
INTRODUÇÃO
O que há de maior impacto em um ser humano que não as suas emoções? Tal questionamento
é válido e muito abordado principalmente pelas ciências humanas, em que a complexidade das
relações sociais é discutida amplamente por várias ramificações do conhecimento já estruturadas.
As emoções ganharam espaço para serem questionadas e observadas nos estudos do século
XX e XXI, com maior profundidade e relevância científica. O crescimento da psicologia e da
psicanálise, assim como da sociologia, da filosofia e, claro, da Linguística possibilitou a reflexão sobre
o sujeito que é mais do que sua consciência aparente, considerando-o como uma rede de discursos
sócio-histórico-ideológicos que emergem tanto em suas ações verbais como em seu silêncio mais
profundo. Por ser social, o sujeito interage com os outros e, a partir dessa interação, constrói seu
discurso; por estar situado cronologicamente, esse sujeito também é histórico; e por ter convicções
formadas a partir das ideologias com as quais mantém contato, ele também é ideológico.
As emoções emergem dentro de seu contexto histórico-social. A ilusão do controle sobre as
emoções e as manifestações discursivas é o que possibilita ao sujeito viver e produzir discursos,
estes que não são originais; com exceção do momento, do contexto, da situação, do destinatário,
das emoções que nunca mais se repetirão, assim como as águas de um rio que correm com destino
ao infinito azul do mar.
Cada momento, portanto, é único, pois reúne condições únicas para a cena da enunciação.
Mesmo que se coloquem os mesmos personagens no mesmo palco, as mesmas falas; elementos
sutis como o tempo e a memória discursiva dos atores, que não são os mesmos, não permitiriam
que se materializassem cenas idênticas, talvez semelhantes. A cada minuto que se passa, cada ser
torna-se diferente devido às novas experiências que se renovam a cada breve momento por meio
da ampliação de sua memória discursiva.
Sabendo da complexidade do psiquismo humano, não nos compete neste artigo tratar de
todos os sentimentos, até porque não seria uma tarefa possível de ser realizada com precisão. Para
delimitação de estudo e reflexão acerca da linguagem empregada por esse sujeito complexo, elegese o amor como sentimento a ser observado e os discursos que surgem em seu nome.
Nossa intenção neste artigo é destacar, na Literatura, dois breves discursos amorosos a fim
de se perceber, por meio de um exercício de análise, a movimentação do sujeito que ama e busca
o amor. Esse tema não será esgotado, pois, consoante ao que diz Zygmunt Bauman (2004, p. 09),
na obra Amor Líquido, compreendemos que quando se diz tudo sobre os principais temas da vida
humana, as coisas mais importantes continuam por dizer. Contudo, buscaremos discutir ao longo
deste trabalho algumas características dos discursos amorosos com a finalidade de que se possa
contribuir com a literatura da análise do discurso.
1. AMOR E LITERATURA
Há várias definições para o sentimento Amor. Este trabalho não o definirá, já que não é o
objetivo desta pesquisa. No entanto, analisar-se-ão os enunciados que se apropriam do discurso
amoroso, em que o amante se diz digno do amado.
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Victor Hugo da Silva Vasconcellos
A Literatura (com letra maiúscula para se referir ao conjunto de produções artísticas cuja
circulação acontece pela modalidade escrita) é o ponto de partida para a discussão que desenvolvemos
neste trabalho por ser um discurso legitimado, isto é, conceber-se como um campo discursivo,
conforme Maingueneau (2012). Dessa feita, a Literatura se constitui e se legitima discursivamente,
bem como constitui outros discursos. É autoconstituinte por legitimar-se e heteroconstituinte por
constituir outros discursos.
Para Foucault (2010), todo indivíduo está imerso em um conjunto de formações discursivas,
já que o paradigma da dicotomia é o que constrói uma perspectiva de representação para o sujeito
que se forma pela desconstrução do ontem a fim da construção do hoje. Contra sua vontade, por isso
assujeitado, o indivíduo é “bombardeado” a todo tempo por discursos, filiando-se a uma ou mais
formações discursivas, isto é, regularidade atingida por meio do posicionamento no campo. Por
regularidade, compreende-se um paradigma de concepção da realidade vivenciada ou imaginada
a partir dos discursos reproduzidos. Os grupos sociais se formam por meio do compartilhamento
de preferências mais ou menos comuns. Um grupo, portanto, possui uma formação discursiva
semelhante se sua formação ideológica também apresenta pontos de contato.
Retomando o autor como um sujeito bombardeado pelas diversas formações discursivas, suas
marcas se tornam presentes no texto. Embora não se possam precisar as marcas subjetivas e/ou
biográficas, todo sujeito “pertence” a uma (ou mais) formação discursiva; suas marcas no discurso
podem ser de aproximação ou refutação de sua visão de mundo. O autor pode ou não fazer essa
escolha de refutar suas convicções ou aproximar suas personagens de sua visão de mundo; todavia,
não pode escolher uma maneira de esconder seu posicionamento já que este é revelada tanto por
suas impressões como por seu silêncio. Essa luta pelo ocultamento e ao mesmo tempo sua revelação
é o que Maigueneau (2012) conceitua como Paratopia.
As embreagens paratópicas do discurso literário emergem no lugar impossível dessa
enunciação, pois o autor cria e recria os lugares em que enuncia e para quem enuncia seu discurso
fundador, engendrando o discurso fundador literário.
Todo texto produzido carrega as marcas da subjetividade, sobretudo, um texto literário
apresenta essas marcas. A grande aceitação de um texto literário se dá, principalmente, por sua
verossimilhança, conceito aristotélico que significa “o que pode ser verdade”. O discurso ficcional
atinge o leitor em suas emoções por ser processado e interpretado de acordo com as experiências
do leitor, tornando-se real em sua psicose.
A seguir, analisar-se-ão trechos de duas cartas do romance epistolar Os sofrimentos do jovem
Werther, de Goethe, publicado em 1774. Livro que foi censurado; pois jovens que se identificavam
com o personagem Werther deram fim à própria vida como o herói do romance. Isso nos leva a
perceber que, embora se trate de uma história ficcional, os sentimentos gerados nos leitores foram
e são reais, legitimando a escolha do objeto da análise.
1.1 As condições para o discurso amoroso
Para se falar do amor, deve-se falar com amor, de amor(es) e para o amor. A linguagem
amorosa nasce e morre em si mesma, reinventa-se e renasce para uma nova morte e novo nascimento,
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O discurso amoroso: Werther e Charlotte
portanto, é eterna, isto é, sempre existiu e sempre existirá. O amor, a cada época, reinventa-se e
adapta-se aos enunciadores em cada cena social.
A linguagem é um jogo, uma disputa acirrada ideológica em que um enunciador materializa
seu discurso para atingir o enunciatário seja para convencer, impor ou seduzir. A linguagem amorosa
é um combate medieval entre cavaleiros sem armadura, armados com lanças e espadas e o peito
desprotegido prestes a ser perfurado.
O discurso do amor é uma violência verbal e sentimental, pois quebra as estruturas, violenta a
rotina, desfragmenta a razão e potencializa os sentimentos mais obscuros de um sujeito enamorado.
O protagonista Werther, de Os Sofrimentos do Jovem Werther (Goethe. 2002, p. 52) questiona
em uma carta de 18 de agosto: “Por que é que aquilo que faz a felicidade do homem acaba sendo
também a fonte de suas desgraças?”. O discurso amoroso é movido pelo desejo.
Conforme Ferreira, (2001, p. 44),
o sujeito da análise do discurso não é só o do inconsciente; é também, como vimos,
o da ideologia, ambos são revestidos pela linguagem e nela se materializam.
Essa é uma particularidade que assegura ao campo discursivo tratar de uma
dupla determinação do sujeito – de ordem da interioridade (o inconsciente) e da
exterioridade (a ideologia). Essa relação conjuntiva entre desejo e poder é que
torna tão especial e complexo esse campo teórico.
O livro Os Sofrimentos do Jovem Werther apresenta como protagonistas os jovens Werther
e Charlotte (ou Lotte – como Werther a chama carinhosamente). Ele é um rapaz com muita
sensibilidade que viaja para longe de sua família a fim de trabalhar em outra região da Alemanha
ainda não unificada politicamente. Ela é uma jovem moça, a mais velha entre os irmãos, que é noiva
e, posteriormente, esposa de Albert.
Werther apaixona-se e deseja concretizar seu sentimento amoroso, talvez saiba que não pode,
já que Charlotte é uma moça comprometida. A luta que ocorre inicialmente é entre o desejo e o
poder do jovem apaixonado, que cede aos seus desejos mais íntimos e busca moldar seu discurso
para concretizar sua vontade de amar Lotte.
O desejo, que é inerente ao homem, torna-se um objetivo a ser perseguido, construindo-se,
assim, como o mundo propriamente dito, o ícone do desejo e felicidade plena. Bauman (2004, p.
13) aproxima o desejo do amor:
Tal como o desejo, o amor é uma ameaça ao seu objeto. O desejo destrói seu objeto,
destruindo a si mesmo nesse processo; a rede protetora carinhosamente tecida pelo
amor em torno de seu objeto escraviza esse objeto. O amor aprisiona e coloca o
detido sob custódia. Ele prende para proteger o prisioneiro.
A finalidade do discurso amoroso é, predominantemente, concretizar a união com o ser
amado. Para isso, é necessário criar um espaço social aprazível e seguro para a memória discursiva
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Victor Hugo da Silva Vasconcellos
e formações ideológicas propiciarem o compartilhamento das emoções com a emersão do sujeito
“inconsciente” (paixão) por meio da linguagem. Conforme Barthes (2010, p. 99-100):
A linguagem é uma pele: fricciono minha linguagem contra o outro. Como se eu
tivesse palavras à guisa de dedos, ou dedos na ponta de minhas palavras. Minha
linguagem treme de desejo. A comoção vem de um duplo contato: de um lado, toda
a atividade do discurso vem realçar discretamente, indiretamente, um significado
único, que é “eu te desejo”, e libera-o, alimenta-o, ramifica-o, fá-lo explodir (a
linguagem goza ao tocar a si mesma); de outro lado envolvo o outro em minhas
palavras, acaricio-o, roço-o, cultivo este roçar, nada pouco para fazer durar o
comentário ao qual submeto a relação. (Falar amorosamente, é gastar infinitamente,
sem crise; é praticar uma relação sem orgasmo. Existe talvez uma forma literária
deste coitus reservatus: é a galanteria).
Barthes ilustra bem o que virá a ser o discurso amoroso de Werther para com Charlotte.
A galanteria permeia as ações do jovem apaixonado, o que será apresentada nas duas cartas que
escreve a seu amigo.
2. CARTA DE 13 DE JULHO
O primeiro discurso a ser analisado é a carta de 13 de julho que Werther envia a Wilhelm.
Carta de 13 de julho1
Não, não estou enganado! Li em seus olhos negros um verdadeiro interesse por
mim e pela minha sorte. Sim, eu sinto que meu coração pode crer que ela... ousarei,
será que poderei pronunciar estas palavras que resumem o paraíso? ... eu sinto
que ela me ama!
Ela me ama! E quanto eu me estimo cada vez mais, quanto ... eu me adoro a
mim mesmo, depois que ela me ama! Será presunção? Será o sentimento do meu
verdadeiro estado?... não conheço homem nenhum de quem possa temer qualquer
interferência capaz de diminuir-me no coração de Lotte. E, no entanto, quando
ela, com tanto calor e afeto, fala do seu noivo... é como se eu fosse um homem
destituído de toda a honra e dignidade, e ao qual arrebatassem a própria espada.
Nessa carta, de 13 de julho, Werther escreve algumas considerações sobre seu relacionamento
com Lotte ao seu amigo Wilhelm. O discurso proferido pelo apaixonado apresenta interdiscursos
na sua constituição, gerando efeitos de sentido diversos para o leitor, já que não é apenas o discurso
amoroso que surge com relevância.
Por interdiscurso, pode-se compreender os diversos discursos que constituem um discurso
principal. São oriundos de vários campos discursivos (áreas diversas que se complementam por
escolha do enunciador) que estruturam a formação discursiva de um sujeito, portanto, apresentam
regularidade, já que são proferidos a partir de condições sócio-históricas de produção.
1
GOETHE, 2002, p. 40.
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O discurso amoroso: Werther e Charlotte
Os interdiscursos “atravessam” o discurso “principal” a fim de estruturá-lo linguisticamente e
como prática social. Os interdiscursos selecionados no trecho foram: social (familiar), institucional
(casamento) e amoroso (paixão).
2.1 Os interdiscursos
O interdiscurso social (familar) surge na idealização da constituição familiar com Lotte,
sendo ela sua esposa e ele, seu marido. A ideia de união amorosa é o desejo do herói. O material
linguístico enunciado por Werther, para reforçar essa ideia, é: “interesse por mim e pela minha
sorte”, “ela me ama”, “não conheço homem nenhum de quem possa temer qualquer interferência
capaz de diminuir-me no coração de Lotte”.
Trechos como “interesse por mim”, “ela me ama” e “não conheço homem nenhum [...] capaz
de diminuir-me no coração de Lotte” remetem ao imaginário da relação amorosa em que se busca
a família, segurança e felicidade. A constituição da família é um porto seguro para a felicidade.
O interdiscurso institucional (casamento) ocorre quando há menção aos costumes que se
referem à união de dois amantes. Werther não se deixa esquecer que Lotte é comprometida com
Albert, portanto vacila ao dizer que ela o ama, já que a instituição deve ser respeitada. A dúvida
ocorre por prudência e conhecimento da quão delicada é essa situação.
“Sim, eu sinto que meu coração pode crer que ela... ousarei, será que poderei pronunciar
estas palavras”, “Será presunção?”. O vacilo do personagem é marcado por meio das reticências e
pelo ponto de interrogação. A pontuação marca a hesitação de Werther ao lembrar-se da instituição
que liga Lotte a Albert, da mesma maneira como descreve o modo que a amada fala de seu noivo:
“quando ela, com tanto calor e afeto, fala do seu noivo... é como se eu fosse um homem destituído
de toda a honra”.
O interdiscurso amoroso permeia todo o discurso, lembrando que Werther é um eterno amante
e apaixonado pelo amor. Ele deseja Lotte independente da questão institucional e social, pois o
desejo controla sua razão, é o inconsciente do sujeito emergindo e colocando suas emoções em
primeiro plano.
Para alguns leitores mais céticos, Werther pode ser um corajoso ao desafiar as normas sociais
no quesito respeito às mulheres casadas em pleno século XVIII. Para outros são o amor/desejo/
loucura sendo antropomorfizados no próprio personagem. O recorte discursivo para justificar tamanha
expressividade é: “Li em seus olhos negros”, “estas palavras que resumem o paraíso? ... eu sinto
que ela me ama!”, “eu me adoro a mim mesmo, depois que ela me ama!”.
Os termos selecionados são expressões que ressaltam a idealização e o desejo do amor
por concretizar. São os sentimentos que emergem para desejar seu objeto amado: Charlotte.
A figura metafórica “ler nos olhos” ressaltam a posição de fixação de olhares entre os dois,
segundo a interpretação de Werther, pois só temos suas palavras. A hipérbole que segue sobre o
paraíso de que ele se ama muito mais confirma o discurso amoroso e idealizado do enunciador
apaixonado.
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Não é por acaso que o discurso amoroso torna-se interessante, é perceptível a nuance do
discurso, de idealizado para mais racional e, depois, triste, decepcionado. A locução conjuntiva
adversativa “no entanto” é a responsável por introduzir a mudança do discurso idealizado para o
racional, tendo como consequência a tristeza do apaixonado.
2.2 Polifonia
Na carta, há a voz do Werther na materialidade linguística, contudo é possível perceber as outras
vozes que constituem o discurso, como a voz de Lotte. A polifonia faz-se presente, assim como os
interdiscursos, para compor a voz de Werther. Por polifonia, entende-se a multiplicidade de vozes
que compõem um discurso. Na composição do discurso de Werther, pode-se perceber com maior
nitidez as nuances da voz de Werther, já mencionadas: ápice da paixão, racional e decepcionado; a
voz de Lotte e, por último, de seu amigo Wilhelm.
a) A voz de Werther foi separada em três momentos para ilustrar que o personagem se apresenta
como se fossem três personagens, um discurso muito profícuo para a psicanálise (e para o analista
do discurso), já que é possível perceber a ápice do desejo (loucura?), o momento da reflexão (o
pai? o perfil racional?) e a consequência do choque das duas personalidades (um rapaz insatisfeito e
triste? frágil? em dúvida com a realidade?). “Sou a única testemunha da minha loucura” (BARTHES,
2010, p.17).
Werther passa o romance inteiro nessa tripla intermitência, apresentando-se com um ou outro
perfil, não raro os três de uma vez, como na carta mencionada.
b) A voz de Lotte, mesmo não estando marcada linguisticamente, faz-se presente no discurso
de Werther. Ele diz que leu em seus olhos (de Lotte) o amor que tanto deseja. Lotte está ali, dizendolhe que pode ser amada por ele (agora um cuidado com essa possibilidade!). “Quer deseje provar
seu amor, quer se esforce para decifrar se o outro o ama, o sujeito amoroso não tem à sua disposição
nenhum sistema de signos confiáveis” (Op. cit., p. 311) Entender o que Werther diz é jogar com
dados escuros no chão de ruas mal iluminadas. Pode-se apenas supor, com base nos elementos
linguísticos e completar com as teorias sociais, o comportamento e a suposta veracidade de um
louco e perturbado amante que violentado foi por um anjo de sorrisos doces e facas disfarçadas em
palavras perfumadas construídas em sua psicose. “Todo desejo que não o meu não é acaso louco?”
(Op. cit., p. 23).
Pode-se inferir que Lotte permitia, com alguns comportamentos, as falas do apaixonado;
todavia essa expectativa é fragilizada por ela, construindo uma intermitência dos dois em um
jogo sedutor. Os dois gostam desse jogo. Com o fim deste, não haveria razão para ali estarem. Ao
mesmo tempo em que Werther lê nos olhos de Lotte o desejo que julga ser para si (por causa de
sua companhia, atenção, carinho e sua dedicação - confirmados no final da história), não se permite
esquecer da maneira carinhosa que elogia a Albert, seu noivo. O jogo do aproxima e afasta, desejo e
razão, perversão e pudor acontece o tempo todo, desde a primeira vez que se encontraram. Sua voz
está presente sempre. Não há Werther sem Charlotte. Werther existe por existir Lotte, a voz da amada
não se apaga mesmo quando não está em cena como enunciadora; pois surge como coenunciadora
da voz de Werther. “Sempre há, no discurso sobre o amor, uma pessoa a quem nos dirigimos, mesmo
105
O discurso amoroso: Werther e Charlotte
se essa pessoa houver passado ao estado de fantasma ou de criatura a vir. Ninguém tem vontade
de falar do amor, se não for para alguém” (BARTHES, pp. 100-101). Lotte é o fantasma, passado,
presente e futuro de Werther.
c) A voz de seu amigo Wilhelm é presente na modalização do seu discurso. A hesitação de
Werther é uma maneira de mostrar ao amigo que está raciocinando e que possui o controle aparente
da situação, embora fique cada vez mais distante do bom senso e racionalidade, conforme as
“broncas” e orientações que recebe do amigo. A alteridade é presente, Werther constrói seu discurso
sobre o ethos de Wilhelm. Por alteridade, entende-se a consideração do interlocutor para moldar o
discurso, as palavras interdependem do outro para se construir um enunciado mais efetivo a partir
das escolhas do enunciador. Werther preocupa-se em fazer suas revelações a Wilhelm, mas em
um nível discursivo que seja convincente com o efeito de sentido desejado e adequado ao espaço
discursivo em que os dois interagem.
3. CARTA DE 16 DE JUNHO
O segundo discurso a ser analisado são trechos da carta de 16 de junho que Werther envia a
Wilhelm.
16 de junho2
Ela cortava um pão preto em fatias circulares, entregando-as com amabilidade a
cada criança, de acordo com sua idade e apetite.
- Perdoe-me – disse-me ela – pelo trabalho de vir até aqui e fazer esperar as damas.
Fiz-lhe um cumprimento qualquer, mas minha alma estava inteiramente presa do
encanto do seu rosto, da sua voz, da sua conduta.
[...]
Na ida ao baile fomos conversando por todo o trajeto deixando alheia as outras
duas damas. A prosa caiu sobre o prazer da dança.
- Se essa paixão é um crime, não posso ocultá-lo; para mim não há nada melhor
do que a dança. Se alguma coisa perturba a minha cabeça, é só sentar-me ao meu
cravo desafinado e martelar uma contradança que tudo volta ao normal.
Enquanto ela falava, eu me deleitei em fitar seus olhos negros.
[...]
Dançamos vários minuetos. [...] Convidei-a para a segunda contradança e ela me
concedeu a terceira. Combinamos que dançaríamos a valsa. [...]
- Se não é indiscrição, quem é esse Albert?
- Não há o que lhe esconder. Albert, um moço honrado, é meu noivo.
2
Goethe, 2002, pp. 24-30.
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Isso não era novidade para mim, pois durante o trajeto, as outras moças me
haviam contado [...]
A tempestade passara; acompanhei Lotte até o salão, a chuva estava fina e o ar
estava tépido. Percebi que Lotte estava com os olhos cheios de lágrimas, entregueime as emoções e beijei-a. Eu vi a apoteose naquele olhar!
O trecho destacado é da carta de 16 de junho, logo que Werther conhece Lotte. Pelo trecho é
possível perceber a construção do discurso amoroso por meio de elementos verbais e não-verbais.
Werther encanta-se por Lotte e passa a firmar sua posição para construir o discurso da aproximação
ajustando seu ethos. Por ethos, de acordo com Maingueneau, entende-se a construção da imagem
do enunciador sobre o enunciatário, uma imagem construída e manipulada por aquele por meio do
discurso; por isso ethos discursivo. Pela materialidade linguística é que Werther constrói seu ethos para
Lotte, é seu discurso (e suas ações) que constrói a possibilidade de trocas enunciativas com sua amada,
possibilitando a ele uma oportunidade de proferir o discurso amoroso em busca de sua concretização.
3.1 Reversibilidade
O discurso é de Werther, busca convencer Lotte de suas qualidades a fim de sua concretização
amorosa. Embora o apaixonado precise firmar sua posição, seu discurso não é preparado previamente,
é construído sobre o discurso de Lotte. O discurso amoroso necessita ajustar-se para que as condições
tornem-se reais para a concretização amorosa.
Como sua construção é simultânea e depende da resposta do(a) amado(a), o conceito de
reversibilidade discursiva faz-se presente. Por reversibilidade, entende-se a condição do outro de
responder e participar da construção do discurso. O discurso amoroso não trata de um para o outro?
E para que se concretize no ápice da emoção não é necessária uma resposta (verbal ou não)? Por
isso, essa resposta (e construção simultânea) é imprescindível à sua constituição e desenvolvimento.
O discurso amoroso não pode ser unívoco, caso contrário não seria um discurso amoroso.
Werther, por suas ações descritas e falas resumidas na carta, deixa clara a reversibilidade de
seu discurso, construindo-o sobre os interesses de Charlotte. Os dois falaram sobre os assuntos que
interessavam a ela, por meio da alteridade e da dialogia, o espaço discursivo aprazível é concretizado.
Atenção, dedicação, interesse e agradabilidade construídos no discurso e pelo discurso aproximaram
o amante de sua amada, possibilitando novos encontros e a ampliação desse sentimento amoroso.
A materialidade linguística destacada para justificar essas afirmações é: “Na ida ao baile fomos
conversando por todo o trajeto”, “Dançamos vários minuetos. [...] Convidei-a para a segunda
contradança e ela me concedeu a terceira. Combinamos que dançaríamos a valsa” e “acompanhei
Lotte até o salão”.
A figura de Werther é firmada como alguém confiável e digno por Charlotte, pois dança com
o rapaz por toda a festa mesmo com advertências de outras damas presentes no evento festivo,
seu ethos é aceito pela moça. O seguinte trecho confirma a aceitação de sua amada: “Percebi que
Lotte estava com os olhos cheios de lágrimas, entreguei-me as emoções e beijei-a. Eu vi a apoteose
naquele olhar!”.
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O discurso amoroso é um discurso de sedução. A função da linguagem, segundo Yakobson
(1995), que trata de convencer o outro é a função conativa. No entanto, no discurso amoroso, outras
duas funções acabam surgindo em segundo plano: a emotiva e a poética.
A função conativa está em primeiro plano, pois seduzir é provar ao outro sobre suas qualidades.
O discurso é moldado a fim de validar seu ethos. A função emotiva se faz presente para justificar
esse sujeito que se apresenta. As emoções, pensamentos e comportamentos do enunciador devem
ficar em evidência para ser aceito ou não. A função poética trataria do cuidado com a linguagem.
Há várias maneiras de se dizer algo, contudo a linguagem bem trabalhada toca como um canoro
e maravilhoso canto aos ouvidos do enunciatário. Werther transita nas três funções da linguagem
na construção de seu discurso amoroso: fala de si, utiliza a linguagem dos poetas e busca a todo
instante convencer Lotte de seu amor e que foram feitos um para o outro.
ÚLTIMAS CONSIDERAÇÕES
O discurso amoroso é um discurso problemático por ser concebido, principalmente, no desejo
e na volúpia da concretização (ou percurso, como no caso de Werther e Charlotte). Este artigo foi
uma experiência de análise a fim de se instigar a produção acadêmica sobre o discurso amoroso,
ao discutir suas peculiaridades com a teoria enunciativa-discursiva no texto literário.
Há muito para se estudar e investigar sobre o discurso amoroso. Acredita-se que esse discurso
é peculiar na sua gênese e por isso merecedor dos estudos da AD francesa, pois o discurso amoroso
pode se manifestar sob as diversas cenografias e gêneros discursivos.
O discurso literário apresenta apenas a cenografia desse discurso instigante ao estudo dos
eventos discursivos. O discurso literário, como constituinte, engloba e produz a cena genérica
literária por meio de suas embreagens paratópicas. Não se trata, portanto, de um discurso amoroso
propriamente dito. A experiência de análise valida-se na observação desses enunciados que buscam
sua legitimidade e verossimilhança para com seus co-enunciadores.
Vasconcellos (2015) apresenta o estudo sobre o discurso amoroso partindo da proposta de
separá-lo do discurso literário amoroso. Dessa feita, a cena englobante é o discurso amoroso e não
mais o literário, o que vai apresentar dispositivos próprios enunciativos, pois a sua gênese não
está mais nos discursos tidos como constituintes, ou paratópicos; mas na outra extremidade que
Maingueneau (2012) denomina de atópicos.
Werther e Charlotte encenam um romance e as cartas de Werther demonstram uma relação
amorosa de impossível concretização, é velada e apresenta intermitências da concretização e da
não-concretização, o que mantém a tensão do gênero de discurso. A construção é verossímil e, por
isso, é validada.
As vozes que emergem do discurso de Werther não se calam diante de seu amor sufocado; pelo
contrário, endossam seu discurso de amor. As funções conativa, poética e emotiva da linguagem
permeiam todo o discurso.
Cada discurso apresenta seus próprios dispositivos. O discurso amoroso literário, ao representar
a cenografia do campo amoroso, adota os dispositivos da cena de amor entre um homem e uma mulher.
Victor Hugo da Silva Vasconcellos
REFERÊNCIAS
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