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FABULOSO DIREITO: METÁFORAS DO PODER EM O CONTO DOS CONTOS

2020, FABULOSO DIREITO: METÁFORAS DO PODER EM “O CONTO DOS CONTOS”, IN ANAMORPHOSIS, V. 6, N. 1 (2020), PP. 63-78

https://doi.org/10.21119/ANAMPS.61.63-78

RESUMO: A contribuição analisa a relação entre conto de fadas e discurso jurídico, entre direito e teatro. Como case study, concentra-se em O conto dos contos, de Giambattista Basile, texto clássico da tradição italiana, e no conto Le tre corone, em que se evidenciam conteúdos jurídicos e políticos. O ensaio sustenta a tese de que as fábulas são dispositivos narratológicos nos quais se condensam valores e arquétipos do inconsciente coletivo de determinadas comunidades, situadas no tempo e no espaço. Por esse motivo, elas são de grande interesse para a cultura literária do Direito.

ANAMORPHOSIS – Revista Internacional de Direito e Literatura v. 6, n. 1, janeiro-junho 2020 © 2020 by RDL – doi: 10.21119/anamps.61.63-78 FABULOSO DIREITO: METÁFORAS DO PODER EM O CONTO DOS CONTOS A LBERTO V ESPAZIANI 1 T RADUÇÃO DE A NDRÉ K ARAM T RINDADE RESUMO: A contribuição analisa a relação entre conto de fadas e discurso jurídico, entre direito e teatro. Como case study, concentrase em O conto dos contos, de Giambattista Basile, texto clássico da tradição italiana, e no conto Le tre corone, em que se evidenciam conteúdos jurídicos e políticos. O ensaio sustenta a tese de que as fábulas são dispositivos narratológicos nos quais se condensam valores e arquétipos do inconsciente coletivo de determinadas comunidades, situadas no tempo e no espaço. Por esse motivo, elas são de grande interesse para a cultura literária do Direito. PALAVRAS-CHAVE: direito; literatura; fábulas; Basile; Pentameron; valores; arquétipos. 1 DIREITO E TEATRO A cultura literária do Direito produziu estudos que investigaram a experiência jurídica a partir de suas interseções com outras dimensões narrativas da existência: a literatura, a música, o cinema, a mitologia etc. Também no que diz respeito à relação entre o direito e o teatro colocou-se a grande dicotomia entre “direito no teatro” e “direito como teatro”: a primeira corrente dedicou-se aos temas jurídicos presentes em obras teatrais, bastando pensar na vasta literatura sobre Shakespeare (Ghirardi, 2011), enquanto a segunda corrente analisou as dimensões teatrais de alguns fenômenos jurídicos, a começar pelo processo penal. 1 Professor Associado de Direito Público Comparado, Universitàdel (UNIMOL/Itália). Campobasso, Italia. E-mail: [email protected]. 63 Molise ANAMORPHOSIS – Revista Internacional de Direito e Literatura, v. 6, n. 1, p. 63-78 Esse ensaio insere-se no primeiro campo de pesquisa e evidencia questões jurídicas que exsurgem de um texto clássico da literatura italiana: O conto dos contos, de Giambattista Basile (2013; 2018). Primeiro livro europeu de contos de fada, O conto não é apenas uma coletânea de contos populares. Ele foi concebido como um roteiro teatral a ser representado, no início das tardes, após o almoço, às cortes napolitanas. Especificamente escrito e pensado por ser encenado com as técnicas do teatro de rua, O conto, apresenta múltiplas intersecções entre temas jurídicos e dimensão teatral. Como se sabe, O conto dos contos foi escrito por um aristocrata napolitano, antropólogo que viajou pela Campania e Lucania do século XVII, ouvindo e transcrevendo contos de fadas transmitidos a partir da tradição popular. Publicado somente depois da morte do autor, entre 1634 e 1636, sua difusão ocorreu graças às traduções espanhola e francesa que o tornaram, rapidamente, um texto clássico da literatura europeia. Convém repetir e enfatizar que se trata do primeiro livro europeu de contos de fadas e que as obras sucessivas de Perrault e dos irmãos Grimm retomaram e transformaram vários Contos, tornando alguns deles famosíssimos: basta recordar que A bela adormecida foi retirada de Sol, lua e talia (V,5); que Cinderela deriva de A gata borralheira (I,6); que Rapunzel desenvolve Petrosinella (II,1); que O gato de botas inspira-se em Cagliuso (II,4). Enquanto livro, O conto compartilha as ideias de reprodutibilidade e seriação com a revolução Gutemberg2: as histórias nele contidas são destinadas a ser mais representadas do que lidas, e portanto a sofrer infinitas possibilidades de variações na sua encenação; o teatro de rua pressupõem uma multiplicidade de lugares, situações e expectadores, em que advém a representação, na falta de “aparências”, como à época eram chamadas as cenografias. Como o texto clássico da primeira modernidade, o Conto relaciona-se à tradição oriental das Mil e uma noites: “a estrutura 2 Cf. M. Rak (2005, p. XIV): “Todas as cinquenta histórias do Conto apresentam a mesma estrutura e muitas outras histórias foram contadas e podem ser contadas a partir desta. Trata-se de uma aplicação ao conto do princípio da replicabilidade do experimento que circulava na fase de configuração da filosofia experimental. Nessa ótica, são observadas extraordinárias variações de Cinderela e de outras personagens e enredos em todas as culturas do planeta”. 64 VESPAZIANI | Fabuloso direito: metáforas do poder... do Conto é uma resposta filosófica, europeia e geométrica, à imagem ética, oriental e fractal das Mil e uma noites. Cinderela é a jovem que, como Sherazade, consegue escapar da morte social com todos os meios” (Rak, 2005, p. 3). Mas, como encadeamento de relatos, o Conto também se revela parente próximo do coevo Dom Quixote, que também é uma grande narrativa constituída de muitas pequenas histórias. No Conto, a linguagem exerce um papel essencial: o registro do conto de fadas é construído a partir da fecundidade das metáforas e da repetição de fórmulas, que, agregando o aspecto analítico das descrições, busca produzir um efeito cômico de acumulação de realidade3. A escolha de Basile de escrever em napolitano também se mostra um acerto. Reagindo ao imperialismo do toscano, que já havia se afirmado como o italiano paradigmático, o aristocrata da Campana opta por manter viva uma língua riquíssima, talvez mais próxima do espanhol das cortes da época do que fosse a língua das três coroas florentinas: Dante, Petrarca e Boccaccio. Desse último, particularmente, Basile retira a estrutura do livro, concebido como uma história coletiva, em que se alternam na narração dez anciãs, que contam uma história a cada dia, por cinco dias. É por isso que o livro também é conhecido pelo título Pentameron. Como ocorre em Decameron, cada conto vem introduzido por uma rubrica, por meio da qual se resumem os acontecimentos da narrativa, em vez de uma moral que antecipa o conteúdo axiológico do conto de fadas. Do ponto de vista estrutural, a principal diferença entre a novela decamerônica e o conto pentamerônico consiste na conclusão desse último sempre através de um provérbio de origem popular, que serve de verdadeiro e próprio fim de cena do evento representado (Picone, 2004, p. 109). Com o capolavoro boccacciano, o Conto também compartilha o caráter da modernidade: nele aflora o tema do indivíduo, da sua emancipação em relação aos vínculos da ordem medieval, a formação da subjetividade e, em sentido psicológico, da individualização, da libertação do sujeito dos esquemas predispostos e impostos pela ordem social. 3 Cf. M. Rak (2013, p. LXVIII): “O conjunto de jogos, danças, canções presentes no Conto tinha, evidentemente, a mesmo função de instruções para a prática da narrativa e marcava um texto emblemático distinto da fábula, resíduo do mito, e próximo dos contos de fadas, instrumento da persuasão”. 65 ANAMORPHOSIS – Revista Internacional de Direito e Literatura, v. 6, n. 1, p. 63-78 2 OS CONTOS DE FADAS E O DIREITO À cultura literária do Direito o Conto oferece o tema da relação entre representação teatral e discurso jurídico, de um lado, e exige uma ordenação do discurso fabular no interior da classificação dos gêneros narrativos, de outro. Inicialmente, tudo indica que a relação entre fábulas e direito seria de recíproca exclusão: contos destinados às crianças, as primeiras; conjunto de regras operacionais utilizados pelos adultos, o segundo. Todavia, uma investigação comparativa, diacrônica e histórica, sobre o gênero das fábulas recupera o fato de que somente a partir do século XVIII a humanidade começa a considerar as fábulas como histórias destinadas a um auditório infantil4. O Conto é, por sua vez, uma coletânea de histórias destinadas a serem representadas frente a um público composto de cortesãos e funcionários públicos, portanto adultos habituados a aplicar regras jurídicas para regular conflitos sociais. No que diz respeito à relação entre direito e contos de fadas, destacam três dimensões: (i) o lugar ocupado pelos contos de fadas nos gêneros narrativos; (ii) as regras dos contos de fadas; (iii) o conteúdo arquetípico e axiológico depositado nos contos de fadas. A primeira dimensão refere-se ao problema da classificação do gênero dos contos de fadas no sistema da fenomenologia narratológica e, portanto, a relação entre conto e conto de fadas, a distinção entre conto de fadas e fábula etc., uma clássica questão de teoria literária. A segunda dimensão demanda tanto investigações estruturalistas, voltadas a catalogar analiticamente as variáveis do conto de fadas (Propp, 2000; Mazzoleni, 2016), qaunto as perspectivas psicanalíticas e literárias que buscam evidenciar as constantes dos contos de fadas. Tanto umas quanto as outras chegam às mesmas conclusões: existe uma estrutura fundamentalmente unitária do conto de fadas. Percebendo a semelhança das fábulas em todo o globo terrestre, Propp resume os quatro resultados fundamentais da sua análise: 4 Uma ótima análise das razões burguesas do disciplinamento do discuso infantil foi desenvolvida por André Karam Trindade e Henriete Karam (2016). 66 VESPAZIANI | Fabuloso direito: metáforas do poder... I. Os elementos constantes, permanentes, do conto maravilhoso são as funções dos personagens, independentemente da maneira pela qual eles as executam. Essas funções formam as partes constituintes básicas do conto. II. O número de funções dos contos de magia conhecidos é limitado. III. A sequência das funções é sempre idêntica. IV. Todos os contos de magia são monotípicos quanto à construção (Propp, 2000, p. 27-29). Marie-Louise von Franz chega a conclusões similares, a partir de uma maior valorização da historicidade dos contos de fadas: depois de ter analisado muitos contos de fadas europeus, japoneses, chineses e africanos, conclui-se que existe um tipo de estrutura de base que é eterna. Sempre se encontram o mago, o príncipe, o rei, a bruxa e o animal que ajuda, porém a situação específica representa, às vezes, a resposta a uma situação particular da consciência (Franz, 2018b, p. 80); Tenho a sensação de que, reagrupando e interpretando muitos contos de fadas em relação recíproca entre elas, no fundo se tem uma mesma disposição arquetípica transcendental [...] Todas os diversos contos de fadas giram em torno de um único e idêntico conteúdo, o Self (Franz, 2018a, p. 188). Do um ponto de vista da crítica literária, Michele Rak observa que “no Conto é narrada cinquenta vezes a mesma história” (2005, p. 87) e que “nessa obra vem repetida 50 vezes a mesma pergunta: como se faz para mudar de classe social?” (2004, p. 17) 5. Estruturalmente, todos os contos obedecem a uma tripartição: (1) a história começa com uma crise familiar, é a ruptura de um equilíbrio inicial que produz um evento que (2) prossegue com uma viagem, cheia de perigos, em que o/a protagonista atravessa bosques e tempestades, encontrando seres humanos e animais monstruosos e ameaçadores, para finalmente (3) retornar ao lugar ou à família de origem, havendo logo uma transformação no corpo ou na ordem social6. A estrutura tripartida 5 6 Cf. M. Rak (2004, p. 17): “A resposta é dupla: ou com o capricho do príncipe, e enquadra na lógica cortesã e é uma forma de evento imprevisível equivalente à aparição dos deuses ctônicos (os ogros e as fadas) na mentalidade laica e fatalista da Europa ocidental, ou com a habilidade da pessoa do conto de fadas, que vem da emergente mentalidade laica e pragmatista”. Aqui, o Conto confirma uma regulariade estrutural do registro do conto de fadas. Cf. M. L. Von Franz (2018, p. 35-36): “No início da história, há sempre dificuldades, porque sem elas não existiria a própria história [...] Segue, Depois, segue a peripéteia, que pode ser breve ou longa: são os altos e os baixos da história [...] Por fim, chega-s, geralmente, ao ponto culminante, decisivo, em que todo o evento leva à tragédia ou se resolve de 67 ANAMORPHOSIS – Revista Internacional de Direito e Literatura, v. 6, n. 1, p. 63-78 testemunha dos valores arquetípicos da sociedade italiana meridional do século XVII, suspensa entre a herança da aristocracia/nobreza e o surgimento da modernidade, com personagens empreendedores que desejam mudar de classe social, desenvolvendo as próprias habilidades. Mas, para além das regras estruturais, aquilo que mais interessa o jurista que lê Pentameron é o sistema de valores veiculado7. Os contos de fadas populares são lugares ideais para observar as dinâmicas do inconsciente coletivo8. Não é por acaso que a racionalidade positivista do século XVIII tenha confinado tanto o conto de fadas quanto o inconsciente no mundo da marginalidade ou da infância. Os contos de fadas são abundantes em figuras jurídicas, espelho dos valores dominantes de uma comunidade determinada no espaço e no tempo. Frequentemente, os protagonistas são animais, que representam, assim como as crianças, os sujeitos marginais, aqueles que são assujeitados pelo poder, e que melhor compreendem o seu funcionamento. Às vezes, os animais falam, segundo a tradição esópica e oriental do duplo discurso: fala-se dos animais para falar da sociedade e de quem e como se exercita o poder. Como observou Michele Rak (2005, p. 5), caprichos e paixões são duas das descobertas e dos argumentos de estudo e de reflexão da cultura barroca. As fadas e os ogros, que doam, por razões impalpáveis, são metáforas do poder absoluto que regula cada nível da sociedade das classes. As razões pela qual as fadas não riem e os ogros fazem doações ou devoram os infelizes continuam enigmáticas. Naturalmente, o poder é uma força cuja essência mostra-se manifesta e indiscutível, aspecto inquietante para a mobilidade da 7 8 maneira feliz. É o ápice da tensão, depois da qual sempre vem uma lise ou, às vezes, uma catástrofe, uma solução positiva ou negativa, um êxito final [...] essas fórmulas conclusivas de um conto de fadas são um rite de sortie: assim, um conto de fadas nos conduz distante no mundo onírico infantil do inconsciente coletivo, onde não podemos permanecer, mas do qual é necessário sair”. Cf. M. Rak (2005, p. 168): “No Conto, estão alinhadas, com a precisão espectral dos contos de fadas, as regras da sociedade de classes e o seu sistema de valores, que alimenta – sugere, impõe – os possíveis comportamentos das pessoas e as tramas de suas aventuras. O Conto também pode ser lido como um texto de boas maneiras. Além de uma ética, o conto de fadas veicula uma etiqueta”. Cf. Bettelheim (1991, p. 36): “O conto de fadas […] é muito o resultado do conteúdo consciente e inconsciente comuns tendo sido formatado pela mente consciente, não de uma pessoa em particular, mas o consenso de muitos em relação ao que eles veem como problemas humanos universais, e o que eles aceitam como soluções desejáveis”. 68 VESPAZIANI | Fabuloso direito: metáforas do poder... sociedade moderna que se inicia no discurso sobre o direito natural e na afirmação de novos grupos que contradizem os seculares e persistentes, mas hoje irracionais, organogramas da sociedade feudal. Para a cultura literária do Direito (Calvo González, 2012, p. 340), o gênero do conto de fadas apresenta surpreendentes analogias com a common law: nas fábulas encontramos articulados princípios gerais (subjetividade, liberdade individual, exercício do poder etc.) sempre presentes na perspectiva casuística, em que as circunstâncias concretas e os eventos que se sucedem adquirem uma relevância narratológica. Mas, para uma hermenêutica jusliterária, é necessária a reconstrução de um compêndio de regras de interpretação dos contos de fadas? Entendo que não. Como na interpretação dos sonhos, o conteúdo arquetípico está, indissoluvelmente, entrelaçado com a experiência individual. Portanto, a classificação de regras interpretativas levaria à supressão da especificidade própria do conto de fadas. Se, como diz Jung, o sonho é a melhor explicação de si mesmo, disso resulta que “a interpretação do sonho é sempre inferior ao próprio sonho” (Franz, 2018a, p. 33). Assim, podemos dizer que o conto de fadas é sempre superior à sua interpretação. Com esse espírito, perseguindo a analogia entre registro do conto de fadas e common law, a atenção se dirige, agora, para um case study: a análise do Entretenimento sexto da quarta jornada, chamado As três coroas (Basile, 2018, p. 456). 3 AS TRÊS COROAS: UM CONTO POLÍTICO As três coroas é um conto que, provavelmente, emprega mais do que outras figuras e metáforas do mundo do direito e do poder: da sorte à virtude, da sucessão hereditária à soberania, da filiação ao reconhecimento, do direito de defesa ao justo processo. A premissa moral inicial concentra-se na tensão entre verdade e mentira e, conformidade com a logica do conto de fadas de que o valor positivo deve triunfar em relação àquele negativo, prevê uma vitória da primeira sobre a segunda. Todavia, os temas da dissimulação e do travestimento contrastam com as intrigas da difamação nos alternados acontecimentos do acaso. 69 ANAMORPHOSIS – Revista Internacional de Direito e Literatura, v. 6, n. 1, p. 63-78 O conto inicial com o desejo frustrado do rei de Valletescuosse – alusão à natureza telúrica do lugar em que o conto vem ambientado, mas também aos alternados e imprevisíveis percursos da sorte – de ter filhos. Notamos como, desde o início, o rei quer uma herdeira mulher. Todo o conto é construído a partir da tensão ente o masculino e o feminino. Invocando, repetidamente, os céus para que lhe enviem um herdeiro do trono, certo dia o rei ingressa num jardim – lugar que simboliza o desejo – e lá ouve uma voz que lhe coloca o seguinte dilema: “Rei, o que você prefere, uma filha que fuja ou um filho que te destrua?” (Basile, 2018, p. 457). A sorte apresenta-se ao rei em forma de voz misteriosa que, nesse episódio do jardim, propõe-lhe uma escolha trágica entre uma filha mulher, destinada a abandoná-lo, ou um filho homem, que o combaterá e o destruirá. A alternativa inicial, portanto, é entre o princípio masculino da honra, ordenado porém destruidor, e o princípio feminino da vida, gerador porém ingovernável. Diante desse dilema, o rei indeciso dirige-convoca os sábios da Corte, que começam uma discussão moral sofisticadíssima sobre a preeminência a ser conferida à honra ou à vida. Uma primeira opinião sustenta a primazia da honra; uma segunda opinião, a vida, na qualidade da sua natureza de bem intrínseco. Um terceiro cortesão observa, cinicamente, a natureza transeunte da existência, em vez dos bens materiais “que são colinas da vida postas sobre a roda de vidro da fortuna”, enquanto considera prioritária a honra, sendo que ela é capaz de gerar fama e glória. Um quarto defende, ao contrário, a prioridade da vida, pela qual se conserva a espécie e os bens e se mantém, assim, a grandeza da família, enquanto a honra é somente “opinião em relação à virtude”, de tal maneira que o fato de perder uma filha por culpa da fortuna, e não por seu erro próprio, não prejudica a virtude do pai e não mancha a honra da casa. Diante de toda essa variedade de opiniões e de conselhos da Corte, sobressai a posição de “algumas outras”, portanto de um grupo de mulheres que sustentam a natureza essencialmente masculina da categoria da honra e que um príncipe justo deve preocupar-se mais com o 70 VESPAZIANI | Fabuloso direito: metáforas do poder... “benefício comum do que o interesse particular”. Ademais, elas notam que a filha mulher fugitiva (foieiticcia) causa somente vergonha à honra paterna, mas a raiva e a depressão de um filho “mau” arriscam destruir tanto a dimensão privada da casa quanto a dimensão pública do reino. Portanto, aconselham o rei a optar pela filha, porque não teria colocado em perigo nem a vida, nem o estado. O parecer expresso pelas conselheiras mulheres no sentido da preferência do feminino vem acolhido pelo rei, que, voltando ao jardim e ouvindo a mesma pergunta, responde “menina” e, prontamente, consegue engravidar sua esposa, tendo logo em seguida uma filha, que resolve, porém, enclausurar em um palácio, custodiado pelos guardas. Aqui, repete-se um tema clássico da literatura de conto de fadas: o temor por parte do pai de que a filha desenvolva uma sexualidade autônoma, ocultado por trás de um discurso moralista do desejo de proporcionar a melhor educação possível. Nesse sentido, a repressão paterna conduz à tentativa de matrimônio combinado com um amigo seu, o rei de Perdejuízo. Ao final da juventude da filha do rei, a essa altura do conto ainda inominada, chega, porém, a sorte, sob as aparências de uma ventania, quase um furacão. O vento arrebata a jovem – que recém havia saído de casa, pela primeira vez para ser conduzida ao marido prometido – e a leva até um bosque escuro, mais precisamente à frente da casa de uma ogra. O bosque é um lugar simbólico recorrente que remete à incerteza do destino e aos perigos que cada transformação comporta. Podemos também compará-lo ao processo: um estado em que se sabe como se entra, mas não se sabe como dele se sai; um iter doloroso e imprevisível que contém lutas e metamorfoses. No bosque, termina a juventude da protagonista e começa o segundo ato do conto, no qual assistimos ao seu coming of age, à sua emancipação face ao destino imposto pela tradição familiar e à sua luta pelo reconhecimento da própria subjetividade, que envolve toda a sua astucia e virtude. No limiar da casa da ogra, a jovem encontra uma velha, que a considera tão malvestida e malcheirosa a ponto de enojar as presas da ogra. Então, a velha sugere que a jovem fique sob sua proteção, desde que 71 ANAMORPHOSIS – Revista Internacional de Direito e Literatura, v. 6, n. 1, p. 63-78 sirva para realizar as tarefas domésticas e se esconda da visão da ogra. Ao propor proteção em troca de obediência, a velha se oferece para ser tutora da jovem: “Basta, tenha juízo e paciência, que você vai passar todos os golfos e superar todas as tempestades” (Basile, 2018, p. 459). Precisamente no momento em que, pela primeira vez na sua vida, a jovem é aceita por aquilo que ela é, e não por aquilo que ela representa, conhecemos o seu nome: Marchetta. Aqui, nomear e reconhecer coincidem. Ao fazer da necessidade uma virtude, Marchetta dedica-se às tarefas domésticas com grande diligência, de tal maneira que logo é percebida pela ogra, que começa a suspeitar que alguém, além da velha, está habitando a casa. De sua parte, a velha se dirige, maternalmente, a Marchetta e lhe propõe que tente a sorte: faça alguma coisa bonita, com suas mãos, que possa agradar à ogra; se ela jurar pelas três coroas, então, finalmente, deixe-se ver. Marchetta aceita de bom grado a proposta e decide preparar uma saborosa refeição para ser servir em uma mesa bonita e perfumada9. Surpreendida, a ogra inicia uma daquelas fórmulas típicas do Conto, em que exprime o seu desejo de conhecer o cozinheiro misterioso, concluindo: “Pelas minhas três coroas, se eu souber quem foi a boa dona-de-casa que me fez tantos bons serviços, quero lhe fazer tantos carinhos e mimos que ela não pode imaginar” (Basile, 2018, p. 461). Ao ouvir a invocação das três coroas, Marchetta aparece e revela-se à ogra, que, mesmo chocada pelo fato de ter sido enganada, acolhe a jovem como uma filha, entrega-lhe as chaves dos quartos e a nomeia patroa, prometendo fazê-la casar riquíssima, se continuar a lhe servindo, porém com uma ressalva: nunca abrir, por nenhuma razão, o último quarto. Afastando-se da ogra, Marchetta não resiste à curiosidade de saber 9 Cf. M. L. Von Franz (2018, p. 112): “Historicamente, a cozinha é o centro da casa e é por isso o lugar dos cultos domésticos. Os deuses da casa eram postos sobre o forno da cozinha e, em tempos pré-históricos, os mortos eram sepultados sob o fogo. Lugar da transformação química do alimento, a cozinha é análoga ao estômago. É o centro da paixão que disseca e consome, que ilumina e aquece, e ambos os aspectos mostram que a luz da sabedoria pode surgir somente do fogo da paixão”. 72 VESPAZIANI | Fabuloso direito: metáforas do poder... o que há dentro do quarto proibido10. Ao abrir a porta, ela encontra três meninas vestidas de ouro, que pareciam adormecidas. Essas eram filhas da fada, “hibernadas” pela mãe, porque sabia que correriam grande perigo se não viesse acordá-las uma filha de rei; por isso, as havia enclausurado naquele quarto, “para evitar o risco que lhes ameaçava as estrelas” (Basile, 2018, p. 462). A subjetividade de Marchetta, suspensa no bosque pelo vento da Fortuna que a salva do projeto sufocante do pai, encontra três figuras femininas, isoladas por sua mãe em face dos riscos da liberdade por parte da mãe, que pretendia exilá-las na segurança estéril da dinastia monárquica. Mas Marchetta está, agora, emancipada da opressão das origens e sua vitalidade é contagiosa: o barulho de seus passos desperta as meninas e o seu apetite. Marchetta cozinha nas cinzas três ovos para cada uma delas e, assim, as reaviva. A liberdade e a energia reconquistada pelas meninas encontram logo o controle censor da ogra, que, ao se dar conta do ocorrido, pune severamente Marchetta, dando-lhe um bofetão. A jovem fica tão ofendida, que no mesmo instante pede à ogra permissão para ir embora, em busca de sua própria sorte. Após a separação da família de origem e do domínio masculino do pai e do futuro marido, Marchetta enfrenta a separação da sociedade (in)civil, da família adotiva todas feminina constituída pela ogra, pela velha e pelas três meninas. O processo de individualização comporta tanto uma rejeição do domínio masculino, constituído pelo pai que a cria afastada no palácio para depois entregá-la a um outro rei, em um casamento combinado, quanto na recusa da solidariedade feminina que oferece proteção em troca de total obediência e, portanto, de renúncia à liberdade. Em face da revolta de Marchetta, a ogra busca inutilmente persuadila a ficar, mostrando seu lado compassivo, ao dizer que estava brincando e que não faria de novo, mas, diante da insistência da jovem em seu projeto 10 Destaca V. J. Propp (2000, p. 36): “as proibições são sempre violadas, enquanto, por outro lado, os convites insidiosos são sempre bem recebidos e implementados”. 73 ANAMORPHOSIS – Revista Internacional de Direito e Literatura, v. 6, n. 1, p. 63-78 emancipador, resta obrigada a deixá-la partir, dando-lhe de dois objetos que a permitirão enfrentar as adversidades do destino: um anel – que deveria usar com a pedra voltada para o interior da mão, e jamais o olhar, a não ser quando, se estivesse em grande perigo, escutasse o eco chamar seu nome – e uma bela roupa de homem, que Marchetta lhe havia pedido. Portanto, dois são os objetos que simbolizam a saída da protagonista da comunidade de adoção: o anel, que representa a fidelidade e a gratidão pelo acolhimento e pela proteção recebida, e o hábito masculino, que assinala a necessidade de travestimento e da dissimulação para enfrentar os perigos da sociedade política11. A nova partida de Marchetta conduz, rapidamente, a outro bosque, que, de novo, significa a queda em um estado mais profundo do inconsciente, com perigos ainda mais insidiosos, no qual encontra um rei que vai à caça. Diferentemente do rei/pai ao qual estava sujeita enquanto filha/menina, agora a filha/mulher encontra o rei/marido. Símbolo da potência e do domínio, ícone da soberania, “o rei é representado como o dominante da consciência coletiva, como um símbolo do Eu, que se torna visível no interior de uma comunidade e como tal é adorado” (Franz, 2018b, p. 37). Enquanto no primeiro ato, o rei dominava sobre um equilíbrio precário inicial, que concorria para quebrar o desejo de filiação e de domínio sobre a filha; e, no segundo ato, era a ogra quem funcionava como rainha do reino do bosque; é somente no terceiro movimento da peregrinação que a protagonista depara-se com um casal sortido rei + rainha, cuja separação conseguirá através da sedução da rainha, com sua aparência masculina, e do rei, com a sua real feminilidade. Na presença do aparente jovem, o rei pergunta-lhe de onde vem e o ques está fazendo. Ao que ela responde que é filho de um mercador, que fugiu após a morte da mãe porque sofria maus tratos de sua madrasta. À dissimulação fenomênica da substituição da aparência feminina por 11 Cf. M. L. Von Franz (2018, p. 108): “o anel é um símbolo do Eu e representa, particularmente, o fator que cria a relação e a totalidade do ser interior essencial”. 74 VESPAZIANI | Fabuloso direito: metáforas do poder... aquela masculina, Marchetta agrega a narração mentirosa de que ele é um burguês comerciante, órfão e vítima de opressão feminina. A salvação da protagonista depende, aqui, de um duplo níel de estratégia dissimuladora. Essa habilidade retórica ganha a simpatia do rei, que o leva, imediatamente, para dentro de sua Corte. Junto ao palácio, porém, do jovem enamora-se a rainha, que tenta de pronto uma estratégia de sedução, articulada em um mix de bajulações e ameaças. Em face da frustação do seu desejo, a rainha “mudou o registro, transformando o amor em ódio e a vontade de gozar da coisa amada em desejo de vingança” (Basile, 2018, p. 465). Então, a rainha difama o jovem, acusando-o, em frente ao rei, de querer “ser o cobrador da dívida matrimonial que tenho com você” (Basile, 2018, p. 465), isto é, de haver tentado possuí-la carnalmente. Vejamos a formulação jurídica da acusação: a fidelidade matrimonial vem conceituada como uma relação de obrigação; nas palavras da rainha, a linguagem jurídica serve para formular uma acusação e para ocultar um desejo frustrado. Frente às acusações movidas por sua consorte, de pronto, o reu determina a execução sumária do acusado, ordenando a sua condenação à morte por enforcamento. Nessa passagem, observamos a violação de dois princípio jurídicos: aquele probatório e aquele do justo processo. O princípio da audiatur er altera pars é, conscientemente, violado pelo rei, enquanto a oitiva de outras testemunhas poderia “prejudicar a fé e a autoridade da esposa” (Basile, 2018, p. 465); o direito de defesa (“sem lhe dar ocasião de defesa” [Basile, 2018, p. 465]), por sua vez, é suprimido para garantir o reforço da soberania mediante uma execução sumária. E Marchetta, carregada à força até o lugar da execução, sem saber o que tinha ocorrido e sem saber ter praticado qualquer mal, começou a gritar e a implorar: “Quem me ajuda em tanto perigo? Quem me livra dessa forca?” (Basile, 2018, p. 466). “Ogra”, respondeu o eco, e Marchetta, ao escutara essa resposta, lembra-se do anel que carregava no dedo e das palavras que lhe disse a ogra na ocasião da sua partida. Então, olhando a 75 ANAMORPHOSIS – Revista Internacional de Direito e Literatura, v. 6, n. 1, p. 63-78 pedra que nunca havia olhado, eis que ouve três vezes uma voz pelo ar: “Deixem-na ir, pois é mulher!” (Basile, 2018, p. 466). O eco é a força que salva Marchetta, a repetição sonora que arranca a subjetividade do seu isolamento e da sua dissimulação, inicialmente providencial e sucessivamente mortal, restituindo-a à sua verdadeira natureza. A potência reveladora do eco é tal que faz tremer o palácio real até duas fundações, provocando a fuga de todos os cortesãos; então, o rei ordena à Marchetta que diga a verdade e que conte a sua história. A narração possibilita que o rei reconheça Marchetta pelo que ela era e, ao mesmo tempo, dê-se conta da maldade da esposa, ordenando que fosse lançada ao mar, amarrada a uma pedra. Em seguida, convidou para um banquete o pai e a mãe de Marchetta, tomando-a como esposa; e, assim, ela provou que “para barco desesperado Deus encontra porto” (Basile, 2018, p. 466). 4 VALORES E ARQUÉTIPOS DO CONTO DE FADAS As três coroas é um conto que merece a atenção do jurista em face dos temas nele explorados: soberania, sucessão hereditária, casamento, identidade de gênero, direito de defesa, processo justo. O registro do conto de fadas articula sofisticados conteúdos jurídicos e revela os arquétipos e os valores fndamentais da cultura do sul da Itália do século XVII. Em particular, o Conto apresenta o problema da relação com a violência e a cegueira do poder soberano, a necessidade da fuga diante de uma ordem social preestabelecida e sufocante, as virtudes e os perigos da dissimulação. A um só tempo símbolo da moeda e da realeza, a coroa remete à natureza, substancialmente, ambigua da soberania, com a sua impossível promessa de controle e de disciplina, de um lado, e a sua necessidade de contaminação para conseguir a reprodução, de outro. Assim como ocorre com a coroa, em relação a outras figuras do conto, também é possível desenvolver opções interpretativas capazes de conferir sentido às simbologias presentes na história: o jardim representa o lugar do desejo; o bosque remete ao processo e à transformação; o vento significa a sorte e a providência; a velha sugere a figura do tutor; a ogra retrara os perigos da sociedade (in)civil; o anel refere-se à promessa 76 VESPAZIANI | Fabuloso direito: metáforas do poder... impossível; a roupa de homem exprime a identidade sexual e a dissimulação política; o eco equivale ao impulso salvador antinarcisista; a rainha correpsonde à autoridade repressiva do desejo frustrado; a forca reflete a punição injusta; o rei simboliza a affectio como ideal normativo do soberano justo. REFERÊNCIAS BASILE, Giambattista. Lo Cunto de li Cunti [a cura di Michele Rak]. Milano: Garzanti, 2013. BASILE, Giambattista. O conto dos contos: PENTAMERON ou o entretenimento dos pequeninos. Trad. de Marco Haurélio. São Paulo: Nova Alexandria, 2018. BETTELHEIM, Bruno. The Uses of Enchantment: The Meaning and Importance of Fairy Tales. London: Penguin, 1991. CALVO GONZÁLEZ, José. El Escudo de Perseo: La Cultura Literaria del Derecho. Granada: Comares, 2012. FRANZ, Marie-Louise von. Le Fiabe Interpretate. Trad. di Nadia Neri. Torino: Bollati Boringhieri, 2018a. FRANZ, Marie-Louise von. L’Ombra e il Male nella Fiaba. Trad. di Silvia Stefani. Torino: Bollati Boringhieri, 2018b. GHIRARDI, José Garcez. O mundo fora de prumo: transformação social e teoria política em Shakespeare. São Paulo: Almedina, 2011. MAZZOLENI, Emil. Il Diritto nella Fiaba Popolare Europea, Milano: Franco Angeli, 2016. PICONE, Michelangelo. La Cornice novellistica dal «Decameron» al «Pentamerone». In: PICONE, Michelangelo; MESSERLI, Alfred (a cura di). Giovan Battista Basile e l’Invenzione della Fiaba. Ravenna: Longo, 2004. PROPP, Vladimir. Morfologia della Fiaba. Torino: Einaudi, 2000. RAK, Michele. 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