ANAMORPHOSIS – Revista Internacional de Direito e Literatura
v. 6, n. 1, janeiro-junho 2020
© 2020 by RDL – doi: 10.21119/anamps.61.63-78
FABULOSO DIREITO: METÁFORAS DO PODER
EM O CONTO DOS CONTOS
A LBERTO V ESPAZIANI 1
T RADUÇÃO DE A NDRÉ K ARAM T RINDADE
RESUMO: A contribuição analisa a relação entre conto de fadas e
discurso jurídico, entre direito e teatro. Como case study, concentrase em O conto dos contos, de Giambattista Basile, texto clássico da
tradição italiana, e no conto Le tre corone, em que se evidenciam
conteúdos jurídicos e políticos. O ensaio sustenta a tese de que as
fábulas são dispositivos narratológicos nos quais se condensam
valores e arquétipos do inconsciente coletivo de determinadas
comunidades, situadas no tempo e no espaço. Por esse motivo, elas
são de grande interesse para a cultura literária do Direito.
PALAVRAS-CHAVE: direito; literatura; fábulas; Basile; Pentameron;
valores; arquétipos.
1
DIREITO E TEATRO
A cultura literária do Direito produziu estudos que investigaram a
experiência jurídica a partir de suas interseções com outras dimensões
narrativas da existência: a literatura, a música, o cinema, a mitologia etc.
Também no que diz respeito à relação entre o direito e o teatro colocou-se
a grande dicotomia entre “direito no teatro” e “direito como teatro”: a
primeira corrente dedicou-se aos temas jurídicos presentes em obras
teatrais, bastando pensar na vasta literatura sobre Shakespeare (Ghirardi,
2011), enquanto a segunda corrente analisou as dimensões teatrais de
alguns fenômenos jurídicos, a começar pelo processo penal.
1
Professor Associado de Direito Público Comparado, Universitàdel
(UNIMOL/Itália). Campobasso, Italia. E-mail:
[email protected].
63
Molise
ANAMORPHOSIS – Revista Internacional de Direito e Literatura, v. 6, n. 1, p. 63-78
Esse ensaio insere-se no primeiro campo de pesquisa e evidencia
questões jurídicas que exsurgem de um texto clássico da literatura
italiana: O conto dos contos, de Giambattista Basile (2013; 2018).
Primeiro livro europeu de contos de fada, O conto não é apenas uma
coletânea de contos populares. Ele foi concebido como um roteiro teatral a
ser representado, no início das tardes, após o almoço, às cortes
napolitanas. Especificamente escrito e pensado por ser encenado com as
técnicas do teatro de rua, O conto, apresenta múltiplas intersecções entre
temas jurídicos e dimensão teatral.
Como se sabe, O conto dos contos foi escrito por um aristocrata
napolitano, antropólogo que viajou pela Campania e Lucania do século
XVII, ouvindo e transcrevendo contos de fadas transmitidos a partir da
tradição popular. Publicado somente depois da morte do autor, entre 1634
e 1636, sua difusão ocorreu graças às traduções espanhola e francesa que o
tornaram, rapidamente, um texto clássico da literatura europeia. Convém
repetir e enfatizar que se trata do primeiro livro europeu de contos de
fadas e que as obras sucessivas de Perrault e dos irmãos Grimm
retomaram e transformaram vários Contos, tornando alguns deles
famosíssimos: basta recordar que A bela adormecida foi retirada de Sol,
lua e talia (V,5); que Cinderela deriva de A gata borralheira (I,6); que
Rapunzel desenvolve Petrosinella (II,1); que O gato de botas inspira-se
em Cagliuso (II,4).
Enquanto livro, O conto compartilha as ideias de reprodutibilidade e
seriação com a revolução Gutemberg2: as histórias nele contidas são
destinadas a ser mais representadas do que lidas, e portanto a sofrer
infinitas possibilidades de variações na sua encenação; o teatro de rua
pressupõem uma multiplicidade de lugares, situações e expectadores, em
que advém a representação, na falta de “aparências”, como à época eram
chamadas as cenografias. Como o texto clássico da primeira modernidade,
o Conto relaciona-se à tradição oriental das Mil e uma noites: “a estrutura
2
Cf. M. Rak (2005, p. XIV): “Todas as cinquenta histórias do Conto apresentam a mesma
estrutura e muitas outras histórias foram contadas e podem ser contadas a partir desta.
Trata-se de uma aplicação ao conto do princípio da replicabilidade do experimento que
circulava na fase de configuração da filosofia experimental. Nessa ótica, são observadas
extraordinárias variações de Cinderela e de outras personagens e enredos em todas as
culturas do planeta”.
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VESPAZIANI | Fabuloso direito: metáforas do poder...
do Conto é uma resposta filosófica, europeia e geométrica, à imagem ética,
oriental e fractal das Mil e uma noites. Cinderela é a jovem que, como
Sherazade, consegue escapar da morte social com todos os meios” (Rak,
2005, p. 3). Mas, como encadeamento de relatos, o Conto também se
revela parente próximo do coevo Dom Quixote, que também é uma grande
narrativa constituída de muitas pequenas histórias.
No Conto, a linguagem exerce um papel essencial: o registro do
conto de fadas é construído a partir da fecundidade das metáforas e da
repetição de fórmulas, que, agregando o aspecto analítico das descrições,
busca produzir um efeito cômico de acumulação de realidade3. A escolha
de Basile de escrever em napolitano também se mostra um acerto.
Reagindo ao imperialismo do toscano, que já havia se afirmado como o
italiano paradigmático, o aristocrata da Campana opta por manter viva
uma língua riquíssima, talvez mais próxima do espanhol das cortes da
época do que fosse a língua das três coroas florentinas: Dante, Petrarca e
Boccaccio. Desse último, particularmente, Basile retira a estrutura do
livro, concebido como uma história coletiva, em que se alternam na
narração dez anciãs, que contam uma história a cada dia, por cinco dias. É
por isso que o livro também é conhecido pelo título Pentameron. Como
ocorre em Decameron, cada conto vem introduzido por uma rubrica, por
meio da qual se resumem os acontecimentos da narrativa, em vez de uma
moral que antecipa o conteúdo axiológico do conto de fadas. Do ponto de
vista estrutural, a principal diferença entre a novela decamerônica e o
conto pentamerônico consiste na conclusão desse último sempre através
de um provérbio de origem popular, que serve de verdadeiro e próprio fim
de cena do evento representado (Picone, 2004, p. 109).
Com o capolavoro boccacciano, o Conto também compartilha o
caráter da modernidade: nele aflora o tema do indivíduo, da sua
emancipação em relação aos vínculos da ordem medieval, a formação da
subjetividade e, em sentido psicológico, da individualização, da libertação
do sujeito dos esquemas predispostos e impostos pela ordem social.
3
Cf. M. Rak (2013, p. LXVIII): “O conjunto de jogos, danças, canções presentes no Conto
tinha, evidentemente, a mesmo função de instruções para a prática da narrativa e
marcava um texto emblemático distinto da fábula, resíduo do mito, e próximo dos
contos de fadas, instrumento da persuasão”.
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2
OS CONTOS DE FADAS E O DIREITO
À cultura literária do Direito o Conto oferece o tema da relação entre
representação teatral e discurso jurídico, de um lado, e exige uma
ordenação do discurso fabular no interior da classificação dos gêneros
narrativos, de outro.
Inicialmente, tudo indica que a relação entre fábulas e direito seria
de recíproca exclusão: contos destinados às crianças, as primeiras;
conjunto de regras operacionais utilizados pelos adultos, o segundo.
Todavia, uma investigação comparativa, diacrônica e histórica, sobre o
gênero das fábulas recupera o fato de que somente a partir do século
XVIII a humanidade começa a considerar as fábulas como histórias
destinadas a um auditório infantil4. O Conto é, por sua vez, uma coletânea
de histórias destinadas a serem representadas frente a um público
composto de cortesãos e funcionários públicos, portanto adultos
habituados a aplicar regras jurídicas para regular conflitos sociais.
No que diz respeito à relação entre direito e contos de fadas,
destacam três dimensões: (i) o lugar ocupado pelos contos de fadas nos
gêneros narrativos; (ii) as regras dos contos de fadas; (iii) o conteúdo
arquetípico e axiológico depositado nos contos de fadas.
A primeira dimensão refere-se ao problema da classificação do
gênero dos contos de fadas no sistema da fenomenologia narratológica e,
portanto, a relação entre conto e conto de fadas, a distinção entre conto de
fadas e fábula etc., uma clássica questão de teoria literária.
A segunda dimensão demanda tanto investigações estruturalistas,
voltadas a catalogar analiticamente as variáveis do conto de fadas (Propp,
2000; Mazzoleni, 2016), qaunto as perspectivas psicanalíticas e literárias
que buscam evidenciar as constantes dos contos de fadas. Tanto umas
quanto as outras chegam às mesmas conclusões: existe uma estrutura
fundamentalmente unitária do conto de fadas.
Percebendo a semelhança das fábulas em todo o globo terrestre,
Propp resume os quatro resultados fundamentais da sua análise:
4
Uma ótima análise das razões burguesas do disciplinamento do discuso infantil foi
desenvolvida por André Karam Trindade e Henriete Karam (2016).
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VESPAZIANI | Fabuloso direito: metáforas do poder...
I. Os elementos constantes, permanentes, do conto
maravilhoso são as funções dos personagens,
independentemente da maneira pela qual eles as
executam. Essas funções formam as partes constituintes
básicas do conto. II. O número de funções dos contos de
magia conhecidos é limitado. III. A sequência das
funções é sempre idêntica. IV. Todos os contos de magia
são monotípicos quanto à construção (Propp, 2000, p.
27-29).
Marie-Louise von Franz chega a conclusões similares, a partir de
uma maior valorização da historicidade dos contos de fadas:
depois de ter analisado muitos contos de fadas
europeus, japoneses, chineses e africanos, conclui-se
que existe um tipo de estrutura de base que é eterna.
Sempre se encontram o mago, o príncipe, o rei, a bruxa
e o animal que ajuda, porém a situação específica
representa, às vezes, a resposta a uma situação
particular da consciência (Franz, 2018b, p. 80);
Tenho a sensação de que, reagrupando e interpretando
muitos contos de fadas em relação recíproca entre elas,
no fundo se tem uma mesma disposição arquetípica
transcendental [...] Todas os diversos contos de fadas
giram em torno de um único e idêntico conteúdo, o Self
(Franz, 2018a, p. 188).
Do um ponto de vista da crítica literária, Michele Rak observa que
“no Conto é narrada cinquenta vezes a mesma história” (2005, p. 87) e
que “nessa obra vem repetida 50 vezes a mesma pergunta: como se faz
para mudar de classe social?” (2004, p. 17) 5.
Estruturalmente, todos os contos obedecem a uma tripartição: (1) a
história começa com uma crise familiar, é a ruptura de um equilíbrio
inicial que produz um evento que (2) prossegue com uma viagem, cheia de
perigos, em que o/a protagonista atravessa bosques e tempestades,
encontrando seres humanos e animais monstruosos e ameaçadores, para
finalmente (3) retornar ao lugar ou à família de origem, havendo logo uma
transformação no corpo ou na ordem social6. A estrutura tripartida
5
6
Cf. M. Rak (2004, p. 17): “A resposta é dupla: ou com o capricho do príncipe, e enquadra
na lógica cortesã e é uma forma de evento imprevisível equivalente à aparição dos
deuses ctônicos (os ogros e as fadas) na mentalidade laica e fatalista da Europa
ocidental, ou com a habilidade da pessoa do conto de fadas, que vem da emergente
mentalidade laica e pragmatista”.
Aqui, o Conto confirma uma regulariade estrutural do registro do conto de fadas. Cf. M.
L. Von Franz (2018, p. 35-36): “No início da história, há sempre dificuldades, porque
sem elas não existiria a própria história [...] Segue, Depois, segue a peripéteia, que pode
ser breve ou longa: são os altos e os baixos da história [...] Por fim, chega-s, geralmente,
ao ponto culminante, decisivo, em que todo o evento leva à tragédia ou se resolve de
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testemunha dos valores arquetípicos da sociedade italiana meridional do
século XVII, suspensa entre a herança da aristocracia/nobreza e o
surgimento da modernidade, com personagens empreendedores que
desejam mudar de classe social, desenvolvendo as próprias habilidades.
Mas, para além das regras estruturais, aquilo que mais interessa o
jurista que lê Pentameron é o sistema de valores veiculado7. Os contos de
fadas populares são lugares ideais para observar as dinâmicas do
inconsciente coletivo8. Não é por acaso que a racionalidade positivista do
século XVIII tenha confinado tanto o conto de fadas quanto o inconsciente
no mundo da marginalidade ou da infância. Os contos de fadas são
abundantes em figuras jurídicas, espelho dos valores dominantes de uma
comunidade determinada no espaço e no tempo. Frequentemente, os
protagonistas são animais, que representam, assim como as crianças, os
sujeitos marginais, aqueles que são assujeitados pelo poder, e que melhor
compreendem o seu funcionamento. Às vezes, os animais falam, segundo
a tradição esópica e oriental do duplo discurso: fala-se dos animais para
falar da sociedade e de quem e como se exercita o poder. Como observou
Michele Rak (2005, p. 5),
caprichos e paixões são duas das descobertas e dos
argumentos de estudo e de reflexão da cultura barroca.
As fadas e os ogros, que doam, por razões impalpáveis,
são metáforas do poder absoluto que regula cada nível
da sociedade das classes. As razões pela qual as fadas
não riem e os ogros fazem doações ou devoram os
infelizes continuam enigmáticas. Naturalmente, o poder
é uma força cuja essência mostra-se manifesta e
indiscutível, aspecto inquietante para a mobilidade da
7
8
maneira feliz. É o ápice da tensão, depois da qual sempre vem uma lise ou, às vezes,
uma catástrofe, uma solução positiva ou negativa, um êxito final [...] essas fórmulas
conclusivas de um conto de fadas são um rite de sortie: assim, um conto de fadas nos
conduz distante no mundo onírico infantil do inconsciente coletivo, onde não podemos
permanecer, mas do qual é necessário sair”.
Cf. M. Rak (2005, p. 168): “No Conto, estão alinhadas, com a precisão espectral dos
contos de fadas, as regras da sociedade de classes e o seu sistema de valores, que
alimenta – sugere, impõe – os possíveis comportamentos das pessoas e as tramas de
suas aventuras. O Conto também pode ser lido como um texto de boas maneiras. Além
de uma ética, o conto de fadas veicula uma etiqueta”.
Cf. Bettelheim (1991, p. 36): “O conto de fadas […] é muito o resultado do conteúdo
consciente e inconsciente comuns tendo sido formatado pela mente consciente, não de
uma pessoa em particular, mas o consenso de muitos em relação ao que eles veem como
problemas humanos universais, e o que eles aceitam como soluções desejáveis”.
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VESPAZIANI | Fabuloso direito: metáforas do poder...
sociedade moderna que se inicia no discurso sobre o
direito natural e na afirmação de novos grupos que
contradizem os seculares e persistentes, mas hoje
irracionais, organogramas da sociedade feudal.
Para a cultura literária do Direito (Calvo González, 2012, p. 340), o
gênero do conto de fadas apresenta surpreendentes analogias com a
common law: nas fábulas encontramos articulados princípios gerais
(subjetividade, liberdade individual, exercício do poder etc.) sempre
presentes na perspectiva casuística, em que as circunstâncias concretas e
os eventos que se sucedem adquirem uma relevância narratológica.
Mas,
para
uma
hermenêutica
jusliterária,
é
necessária
a
reconstrução de um compêndio de regras de interpretação dos contos de
fadas? Entendo que não. Como na interpretação dos sonhos, o conteúdo
arquetípico está, indissoluvelmente, entrelaçado com a experiência
individual. Portanto, a classificação de regras interpretativas levaria à
supressão da especificidade própria do conto de fadas. Se, como diz Jung,
o sonho é a melhor explicação de si mesmo, disso resulta que “a
interpretação do sonho é sempre inferior ao próprio sonho” (Franz, 2018a,
p. 33). Assim, podemos dizer que o conto de fadas é sempre superior à sua
interpretação.
Com esse espírito, perseguindo a analogia entre registro do conto de
fadas e common law, a atenção se dirige, agora, para um case study: a
análise do Entretenimento sexto da quarta jornada, chamado As três
coroas (Basile, 2018, p. 456).
3
AS TRÊS COROAS: UM CONTO POLÍTICO
As três coroas é um conto que, provavelmente, emprega mais do que
outras figuras e metáforas do mundo do direito e do poder: da sorte à
virtude,
da
sucessão
hereditária
à
soberania,
da
filiação
ao
reconhecimento, do direito de defesa ao justo processo. A premissa moral
inicial concentra-se na tensão entre verdade e mentira e, conformidade
com a logica do conto de fadas de que o valor positivo deve triunfar em
relação àquele negativo, prevê uma vitória da primeira sobre a segunda.
Todavia, os temas da dissimulação e do travestimento contrastam com as
intrigas da difamação nos alternados acontecimentos do acaso.
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O conto inicial com o desejo frustrado do rei de Valletescuosse –
alusão à natureza telúrica do lugar em que o conto vem ambientado, mas
também aos alternados e imprevisíveis percursos da sorte – de ter filhos.
Notamos como, desde o início, o rei quer uma herdeira mulher. Todo o
conto é construído a partir da tensão ente o masculino e o feminino.
Invocando, repetidamente, os céus para que lhe enviem um herdeiro do
trono, certo dia o rei ingressa num jardim – lugar que simboliza o desejo –
e lá ouve uma voz que lhe coloca o seguinte dilema: “Rei, o que você
prefere, uma filha que fuja ou um filho que te destrua?” (Basile, 2018, p.
457). A sorte apresenta-se ao rei em forma de voz misteriosa que, nesse
episódio do jardim, propõe-lhe uma escolha trágica entre uma filha
mulher, destinada a abandoná-lo, ou um filho homem, que o combaterá e
o destruirá. A alternativa inicial, portanto, é entre o princípio masculino
da honra, ordenado porém destruidor, e o princípio feminino da vida,
gerador porém ingovernável.
Diante desse dilema, o rei indeciso dirige-convoca os sábios da
Corte, que começam uma discussão moral sofisticadíssima sobre a
preeminência a ser conferida à honra ou à vida.
Uma primeira opinião sustenta a primazia da honra; uma segunda
opinião, a vida, na qualidade da sua natureza de bem intrínseco. Um
terceiro cortesão observa, cinicamente, a natureza transeunte da
existência, em vez dos bens materiais “que são colinas da vida postas
sobre a roda de vidro da fortuna”, enquanto considera prioritária a honra,
sendo que ela é capaz de gerar fama e glória. Um quarto defende, ao
contrário, a prioridade da vida, pela qual se conserva a espécie e os bens e
se mantém, assim, a grandeza da família, enquanto a honra é somente
“opinião em relação à virtude”, de tal maneira que o fato de perder uma
filha por culpa da fortuna, e não por seu erro próprio, não prejudica a
virtude do pai e não mancha a honra da casa.
Diante de toda essa variedade de opiniões e de conselhos da Corte,
sobressai a posição de “algumas outras”, portanto de um grupo de
mulheres que sustentam a natureza essencialmente masculina da
categoria da honra e que um príncipe justo deve preocupar-se mais com o
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VESPAZIANI | Fabuloso direito: metáforas do poder...
“benefício comum do que o interesse particular”. Ademais, elas notam que
a filha mulher fugitiva (foieiticcia) causa somente vergonha à honra
paterna, mas a raiva e a depressão de um filho “mau” arriscam destruir
tanto a dimensão privada da casa quanto a dimensão pública do reino.
Portanto, aconselham o rei a optar pela filha, porque não teria colocado
em perigo nem a vida, nem o estado.
O parecer expresso pelas conselheiras mulheres no sentido da
preferência do feminino vem acolhido pelo rei, que, voltando ao jardim e
ouvindo a mesma pergunta, responde “menina” e, prontamente, consegue
engravidar sua esposa, tendo logo em seguida uma filha, que resolve,
porém, enclausurar em um palácio, custodiado pelos guardas. Aqui,
repete-se um tema clássico da literatura de conto de fadas: o temor por
parte do pai de que a filha desenvolva uma sexualidade autônoma,
ocultado por trás de um discurso moralista do desejo de proporcionar a
melhor educação possível. Nesse sentido, a repressão paterna conduz à
tentativa de matrimônio combinado com um amigo seu, o rei de
Perdejuízo. Ao final da juventude da filha do rei, a essa altura do conto
ainda inominada, chega, porém, a sorte, sob as aparências de uma
ventania, quase um furacão. O vento arrebata a jovem – que recém havia
saído de casa, pela primeira vez para ser conduzida ao marido prometido
– e a leva até um bosque escuro, mais precisamente à frente da casa de
uma ogra. O bosque é um lugar simbólico recorrente que remete à
incerteza do destino e aos perigos que cada transformação comporta.
Podemos também compará-lo ao processo: um estado em que se sabe
como se entra, mas não se sabe como dele se sai; um iter doloroso e
imprevisível que contém lutas e metamorfoses.
No bosque, termina a juventude da protagonista e começa o segundo
ato do conto, no qual assistimos ao seu coming of age, à sua emancipação
face ao destino imposto pela tradição familiar e à sua luta pelo
reconhecimento da própria subjetividade, que envolve toda a sua astucia e
virtude. No limiar da casa da ogra, a jovem encontra uma velha, que a
considera tão malvestida e malcheirosa a ponto de enojar as presas da
ogra. Então, a velha sugere que a jovem fique sob sua proteção, desde que
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sirva para realizar as tarefas domésticas e se esconda da visão da ogra. Ao
propor proteção em troca de obediência, a velha se oferece para ser tutora
da jovem: “Basta, tenha juízo e paciência, que você vai passar todos os
golfos e superar todas as tempestades” (Basile, 2018, p. 459).
Precisamente no momento em que, pela primeira vez na sua vida, a
jovem é aceita por aquilo que ela é, e não por aquilo que ela representa,
conhecemos o seu nome: Marchetta. Aqui, nomear e reconhecer
coincidem. Ao fazer da necessidade uma virtude, Marchetta dedica-se às
tarefas domésticas com grande diligência, de tal maneira que logo é
percebida pela ogra, que começa a suspeitar que alguém, além da velha,
está habitando a casa. De sua parte, a velha se dirige, maternalmente, a
Marchetta e lhe propõe que tente a sorte: faça alguma coisa bonita, com
suas mãos, que possa agradar à ogra; se ela jurar pelas três coroas, então,
finalmente, deixe-se ver.
Marchetta aceita de bom grado a proposta e decide preparar uma
saborosa refeição para ser servir em uma mesa bonita e perfumada9.
Surpreendida, a ogra inicia uma daquelas fórmulas típicas do Conto, em
que exprime o seu desejo de conhecer o cozinheiro misterioso, concluindo:
“Pelas minhas três coroas, se eu souber quem foi a boa dona-de-casa que
me fez tantos bons serviços, quero lhe fazer tantos carinhos e mimos que
ela não pode imaginar” (Basile, 2018, p. 461).
Ao ouvir a invocação das três coroas, Marchetta aparece e revela-se
à ogra, que, mesmo chocada pelo fato de ter sido enganada, acolhe a
jovem como uma filha, entrega-lhe as chaves dos quartos e a nomeia
patroa, prometendo fazê-la casar riquíssima, se continuar a lhe servindo,
porém com uma ressalva: nunca abrir, por nenhuma razão, o último
quarto. Afastando-se da ogra, Marchetta não resiste à curiosidade de saber
9
Cf. M. L. Von Franz (2018, p. 112): “Historicamente, a cozinha é o centro da casa e é por
isso o lugar dos cultos domésticos. Os deuses da casa eram postos sobre o forno da
cozinha e, em tempos pré-históricos, os mortos eram sepultados sob o fogo. Lugar da
transformação química do alimento, a cozinha é análoga ao estômago. É o centro da
paixão que disseca e consome, que ilumina e aquece, e ambos os aspectos mostram que
a luz da sabedoria pode surgir somente do fogo da paixão”.
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o que há dentro do quarto proibido10. Ao abrir a porta, ela encontra três
meninas vestidas de ouro, que pareciam adormecidas. Essas eram filhas
da fada, “hibernadas” pela mãe, porque sabia que correriam grande perigo
se não viesse acordá-las uma filha de rei; por isso, as havia enclausurado
naquele quarto, “para evitar o risco que lhes ameaçava as estrelas” (Basile,
2018, p. 462).
A subjetividade de Marchetta, suspensa no bosque pelo vento da
Fortuna que a salva do projeto sufocante do pai, encontra três figuras
femininas, isoladas por sua mãe em face dos riscos da liberdade por parte
da mãe, que pretendia exilá-las na segurança estéril da dinastia
monárquica. Mas Marchetta está, agora, emancipada da opressão das
origens e sua vitalidade é contagiosa: o barulho de seus passos desperta as
meninas e o seu apetite. Marchetta cozinha nas cinzas três ovos para cada
uma delas e, assim, as reaviva. A liberdade e a energia reconquistada pelas
meninas encontram logo o controle censor da ogra, que, ao se dar conta
do ocorrido, pune severamente Marchetta, dando-lhe um bofetão. A jovem
fica tão ofendida, que no mesmo instante pede à ogra permissão para ir
embora, em busca de sua própria sorte.
Após a separação da família de origem e do domínio masculino do
pai e do futuro marido, Marchetta enfrenta a separação da sociedade
(in)civil, da família adotiva todas feminina constituída pela ogra, pela
velha e pelas três meninas. O processo de individualização comporta tanto
uma rejeição do domínio masculino, constituído pelo pai que a cria
afastada no palácio para depois entregá-la a um outro rei, em um
casamento combinado, quanto na recusa da solidariedade feminina que
oferece proteção em troca de total obediência e, portanto, de renúncia à
liberdade.
Em face da revolta de Marchetta, a ogra busca inutilmente persuadila a ficar, mostrando seu lado compassivo, ao dizer que estava brincando e
que não faria de novo, mas, diante da insistência da jovem em seu projeto
10
Destaca V. J. Propp (2000, p. 36): “as proibições são sempre violadas, enquanto, por
outro lado, os convites insidiosos são sempre bem recebidos e implementados”.
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emancipador, resta obrigada a deixá-la partir, dando-lhe de dois objetos
que a permitirão enfrentar as adversidades do destino: um anel – que
deveria usar com a pedra voltada para o interior da mão, e jamais o olhar,
a não ser quando, se estivesse em grande perigo, escutasse o eco chamar
seu nome – e uma bela roupa de homem, que Marchetta lhe havia pedido.
Portanto, dois são os objetos que simbolizam a saída da protagonista da
comunidade de adoção: o anel, que representa a fidelidade e a gratidão
pelo acolhimento e pela proteção recebida, e o hábito masculino, que
assinala a necessidade de travestimento e da dissimulação para enfrentar
os perigos da sociedade política11.
A nova partida de Marchetta conduz, rapidamente, a outro bosque,
que, de novo, significa a queda em um estado mais profundo do
inconsciente, com perigos ainda mais insidiosos, no qual encontra um rei
que vai à caça. Diferentemente do rei/pai ao qual estava sujeita enquanto
filha/menina, agora a filha/mulher encontra o rei/marido. Símbolo da
potência e do domínio, ícone da soberania, “o rei é representado como o
dominante da consciência coletiva, como um símbolo do Eu, que se torna
visível no interior de uma comunidade e como tal é adorado” (Franz,
2018b, p. 37).
Enquanto no primeiro ato, o rei dominava sobre um equilíbrio
precário inicial, que concorria para quebrar o desejo de filiação e de
domínio sobre a filha; e, no segundo ato, era a ogra quem funcionava
como rainha do reino do bosque; é somente no terceiro movimento da
peregrinação que a protagonista depara-se com um casal sortido rei +
rainha, cuja separação conseguirá através da sedução da rainha, com sua
aparência masculina, e do rei, com a sua real feminilidade.
Na presença do aparente jovem, o rei pergunta-lhe de onde vem e o
ques está fazendo. Ao que ela responde que é filho de um mercador, que
fugiu após a morte da mãe porque sofria maus tratos de sua madrasta. À
dissimulação fenomênica da substituição da aparência feminina por
11
Cf. M. L. Von Franz (2018, p. 108): “o anel é um símbolo do Eu e representa,
particularmente, o fator que cria a relação e a totalidade do ser interior essencial”.
74
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aquela masculina, Marchetta agrega a narração mentirosa de que ele é um
burguês comerciante, órfão e vítima de opressão feminina. A salvação da
protagonista
depende,
aqui,
de
um
duplo
níel
de
estratégia
dissimuladora.
Essa habilidade retórica ganha a simpatia do rei, que o leva,
imediatamente, para dentro de sua Corte. Junto ao palácio, porém, do
jovem enamora-se a rainha, que tenta de pronto uma estratégia de
sedução, articulada em um mix de bajulações e ameaças. Em face da
frustação do seu desejo, a rainha “mudou o registro, transformando o
amor em ódio e a vontade de gozar da coisa amada em desejo de vingança”
(Basile, 2018, p. 465). Então, a rainha difama o jovem, acusando-o, em
frente ao rei, de querer “ser o cobrador da dívida matrimonial que tenho
com você” (Basile, 2018, p. 465), isto é, de haver tentado possuí-la
carnalmente. Vejamos a formulação jurídica da acusação: a fidelidade
matrimonial vem conceituada como uma relação de obrigação; nas
palavras da rainha, a linguagem jurídica serve para formular uma
acusação e para ocultar um desejo frustrado.
Frente às acusações movidas por sua consorte, de pronto, o reu
determina a execução sumária do acusado, ordenando a sua condenação à
morte por enforcamento. Nessa passagem, observamos a violação de dois
princípio jurídicos: aquele probatório e aquele do justo processo. O
princípio da audiatur er altera pars é, conscientemente, violado pelo rei,
enquanto a oitiva de outras testemunhas poderia “prejudicar a fé e a
autoridade da esposa” (Basile, 2018, p. 465); o direito de defesa (“sem
lhe dar ocasião de defesa” [Basile, 2018, p. 465]), por sua vez, é
suprimido para garantir o reforço da soberania mediante uma execução
sumária.
E Marchetta, carregada à força até o lugar da execução, sem saber o
que tinha ocorrido e sem saber ter praticado qualquer mal, começou a
gritar e a implorar: “Quem me ajuda em tanto perigo? Quem me livra
dessa forca?” (Basile, 2018, p. 466). “Ogra”, respondeu o eco, e Marchetta,
ao escutara essa resposta, lembra-se do anel que carregava no dedo e das
palavras que lhe disse a ogra na ocasião da sua partida. Então, olhando a
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ANAMORPHOSIS – Revista Internacional de Direito e Literatura, v. 6, n. 1, p. 63-78
pedra que nunca havia olhado, eis que ouve três vezes uma voz pelo ar:
“Deixem-na ir, pois é mulher!” (Basile, 2018, p. 466).
O eco é a força que salva Marchetta, a repetição sonora que arranca
a subjetividade do seu isolamento e da sua dissimulação, inicialmente
providencial e sucessivamente mortal, restituindo-a à sua verdadeira
natureza. A potência reveladora do eco é tal que faz tremer o palácio real
até duas fundações, provocando a fuga de todos os cortesãos; então, o rei
ordena à Marchetta que diga a verdade e que conte a sua história. A
narração possibilita que o rei reconheça Marchetta pelo que ela era e, ao
mesmo tempo, dê-se conta da maldade da esposa, ordenando que fosse
lançada ao mar, amarrada a uma pedra. Em seguida, convidou para um
banquete o pai e a mãe de Marchetta, tomando-a como esposa; e, assim,
ela provou que “para barco desesperado Deus encontra porto” (Basile,
2018, p. 466).
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VALORES E ARQUÉTIPOS DO CONTO DE FADAS
As três coroas é um conto que merece a atenção do jurista em face
dos temas nele explorados: soberania, sucessão hereditária, casamento,
identidade de gênero, direito de defesa, processo justo. O registro do conto
de fadas articula sofisticados conteúdos jurídicos e revela os arquétipos e
os valores fndamentais da cultura do sul da Itália do século XVII. Em
particular, o Conto apresenta o problema da relação com a violência e a
cegueira do poder soberano, a necessidade da fuga diante de uma ordem
social preestabelecida e sufocante, as virtudes e os perigos da
dissimulação. A um só tempo símbolo da moeda e da realeza, a coroa
remete à natureza, substancialmente, ambigua da soberania, com a sua
impossível promessa de controle e de disciplina, de um lado, e a sua
necessidade de contaminação para conseguir a reprodução, de outro.
Assim como ocorre com a coroa, em relação a outras figuras do conto,
também é possível desenvolver opções interpretativas capazes de conferir
sentido às simbologias presentes na história: o jardim representa o lugar
do desejo; o bosque remete ao processo e à transformação; o vento
significa a sorte e a providência; a velha sugere a figura do tutor; a ogra
retrara os perigos da sociedade (in)civil; o anel refere-se à promessa
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VESPAZIANI | Fabuloso direito: metáforas do poder...
impossível; a roupa de homem exprime a identidade sexual e a
dissimulação política; o eco equivale ao impulso salvador antinarcisista; a
rainha correpsonde à autoridade repressiva do desejo frustrado; a forca
reflete a punição injusta; o rei simboliza a affectio como ideal normativo
do soberano justo.
REFERÊNCIAS
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2016. Doi: http://dx.doi.org/10.14210/nej.v21n3.p1119-1154.
Idioma original: Italiano
Recebido: 03/03/20
Aceito: 24/04/20
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