Edição
Natalia Cappellari de Rezende
Editor
IAU-USP
Produção gráfica e Diagramação
Natalia Cappellari de Rezende e Rodrigo Sartori Jabur
Revisão
Maria Angela P. C. S. Bortolucci e Joana D’arc de Oliveira
Imagem da capa e contracapa
Fotografia de Pires, São Carlos, década de 1980.
Acervo Maria Angela P. C. S. Bortolucci
Os autores de todos os artigos completos autorizaram sua publicação no ebook Reflexões sobre o Patrimônio Cultural
Brasileiro: Homenagem aos 80 anos do IPHAN, e declararam ser de sua inteira responsabilidade os textos e imagens
contidos em seus artigos; em caso de imagens que não sejam de sua autoria, declararam possuir autorização do(s)
autor(es) para seu uso, ou declararam ser de uso livre; em ambos os casos, declararam que a autoria de terceiros foi
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Commons indicada"
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO - USP
Vahan Agopyan [Reitor]
Antonio Carlos Hernandes [Vice-Reitor]
INSTITUTO DE ARQUITETURA E URBANISMO
Joubert José Lancha [Diretor]
Miguel Antôno Buzzar [Vice-Diretor]
Tomás Antonio Moreira [Presidente da Comissão de Pós-Graduação]
Karin Maria S. Chvatal [Presidente da Comissão de Pesquisa]
Instituto de Arquitetura e Urbanismo
Universidade de São Paulo
Campus USP (Área 1)
Av. do Trabalhador São-Carlense, 400,
Centro
CEP 13566-590, São Carlos - SP
www.iau.usp.br
Natalia Cappellari de Rezende
Maria Angela P. C. S. Bortolucci
Joana D’Arc de Oliveira
Rodrigo Sartori Jabur
É com muita satisfação que oferecemos a publicação
deste livro que teve como premissa se tornar um
desdobramento do 2º Seminário do Grupo de Pesquisa
Patrimônio, Cidades e Territórios, realizado no dia 27 de
outubro de 2017, no auditório Paulo de Camargo, do
Instituto de Arquitetura e Urbanismo, da Universidade de
São Paulo, em continuidade ao primeiro seminário do
grupo de 2016.
O tema do 2º Seminário, Reflexões sobre o Patrimônio
Cultural Brasileiro: Homenagem aos 80 anos do IPHAN ,
teve por objetivo ser um momento de celebração da
significativa
trajetória
de
atuação
do
Instituto
do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, ao mesmo
tempo em que foi uma reflexão sobre o patrimônio
cultural brasileiro em sua diversidade de expressões ao
abarcar questões inerentes às temáticas de pesquisa
desenvolvidas pelos membros do grupo de pesquisa.
O capítulo desenvolvido por Amanda Cavalcante Moreira
traz uma pequena parte dos resultados de sua pesquisa de
doutorado sobre o patrimônio residencial do final do
século XIX e início do século XX do Piauí ao tratar da cidade
de Amarante. Ana Carolina Gleria Lima discute a
importância da habitação urbana e rural de Ribeirão Preto
como objeto de pesquisa e reflexão para além de sua
constituição material. Joana D’Arc de Oliveira destaca a
importância do registro das memórias negras por meio da
História Oral. Marcus Vinicius Dantas de Queiroz analisou a
arquitetura produzida pelo DNOCS – Departamento
Nacional de Obras Contra as Secas –, entre os anos de 1909
e 1959, no semiárido do Brasil, por meio de fotografias
publicadas em relatórios técnicos e boletins informativos
do órgão. O capítulo de Maria Angela P. C. S. Bortolucci se
constitui em uma reflexão da preservação das cidades
médias e pequenas do interior paulista. A difusão do
vocabulário formal do Rococó na decoração religiosa do
estado de São Paulo é o tema discutido por Mateus
Rosada. O capítulo de Mônica Cristina Brunini Frandi
Ferreira trata do tema da higiene da habitação urbana
paulista, entre 1880 e 1934, tendo Campinas como estudo
de caso. Natalia Cappellari de Rezende utiliza fotografias e
documentos primários para analisar as transformações e
ressignificações da paisagem urbana do Centro Histórico
de São José do Rio Pardo. Rodrigo Sartori Jabur realiza
uma análise dos primeiros anos de atuação do IPHAN sob
a ótica dos métodos de trabalho desenvolvidos pela
equipe técnica da época. A arquitetura das fazendas
mineiras que tiveram o abastecimento de regiões de
mineração como principal atividade foi o tema analisado
por Vladimir Benincasa.
Finalmente, esclarecemos que o livro inclui uma maioria
de capítulos que são decorrentes das apresentações
realizadas por membros do grupo de pesquisa que
participaram do referido seminário, mas que se completa
abarcando capítulos de outros pesquisadores do grupo.
Desse modo, se constitui numa obra de características
singulares que certamente interessa àqueles que estudam
a história da cidade, dos territórios e do patrimônio
brasileiro.
O grupo se organizou em 2012 no Instituto de
Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São
Paulo (IAU/USP), a partir do interesse de alguns
pesquisadores em investigações que contemplam
o patrimônio brasileiro constituído por cidades,
conjuntos ru rais, sítios históricos e paisagens
culturais, cumprindo um recorte temporal que
abarca o período colonial, imperial até a primeira
república, nas dimensões rural e urbana do
território brasileiro, e incluindo modos de
produção e de morar formados a partir de um
saber local e/ou de experiências vindas de fo ra.
Nas pesquisas desenvolvidas interessa sobretu do
compreender a gênese e as transformações
ocorridas
nessas
estrutu ras
de
cidades
e
territórios; a constituição desse patrimônio
material e imaterial nos diversos segmentos da
sociedade brasileira; e as pos sibilidades de
conservação e preservação desses espaços.
* dgp.cnpq.br/dgp/espelhog rupo /3722566502521574
Amanda Cavalcante Moreira
Professor Assistente do Departamento de Construção Civil e Arquitetura
da Universidade Federal do Piauí
Universidade de São Paulo, Instituto de Arquitetura e Urbanismo, IAUUSP, São Carlos, SP, Brasil
[email protected]
Resumo
O artigo aborda o patrimônio residencial do final do século XIX e
início do século XX da cidade de Amarante, Piauí, como parte da
pesquisa de doutorado em andamento intitulada “A moradia urbana
do Piauí (1850-1940)”. A cidade foi fundada na segunda metade do
século XX, no interior do estado, como resultado da intensa
atividade comercial na região, dada, especialmente, pela
proximidade com o rio Parnaíba. Os aspectos relativos à sua
fundação certamente interferiram na singularidade de sua
arquitetura, evidenciando assim a relevância de um estudo e análise
das edificações em seus mais variados fatores, como implantação,
planta baixa, técnicas e materiais construtivos, aberturas e
elementos decorativos. Aborda as semelhanças e diferenças entre a
arquitetura residencial da cidade e a de outros centros locais, e
baseia a pesquisa bibliográfica em autores locais e nacionais; a
pesquisa documental em arquivos públicos e privados e
especialmente em levantamentos físicos in loco, resultando em um
esforço de análise de suas características frente ao cenário piauiense.
Palavras-chave: Arquitetura residencial do final de século XIX e
começo do século XX. Patrimônio residencial de Amarante.
Amarante - PI.
Abstract
The article addresses the residential heritage of the late 19th and
early 20th centuries in the city of Amarante, Piauí State (Brazil), as
part of the ongoing doctoral research entitled “The urban housing
of Piauí (1850-1940)”. The city was founded in the second half of
the 20th century, in the countryside of the state, as a result of the
intense commercial activity in the region, given, especially, by its
proximity to the Parnaíba river. The aspects related to its
foundation certainly interfered in the uniqueness of its architecture,
thus evidencing the relevance of a study and analysis of the
buildings in their most diverse factors, such as implantation, floor
plan, construction techniques and materials, openings and
decorative elements. It addresses the similarities and differences
between Amarante’s residential architecture and that of other local
centers, and bases its bibliographic research on local and national
authors; documentary research in public and private archives and
especially in physical surveys in loco, resulting in an effort to
analyze its characteristics in the context of the state of Piauí.
Keywords: Residential Architecture from late 19th century to the
beginning of the 20th century. Residential Heritage of Aramrante.
Amarante, Piaui State, Brazil.
Resumen
El artículo aborda el patrimonio residencial de finales del siglo XIX
y principios del XX de la ciudad de Amarante, en el Estado de Piauí
- Brasil, como parte de la investigación del doctorado en curso
titulada “La vivienda urbana de Piauí (1850-1940)”. La ciudad fue
fundada en la segunda mitad del siglo XX, en el interior del estado,
como resultado de la intensa actividad comercial de la región,
debido, especialmente, a su cercanía al río Parnaíba. Los aspectos
relacionados con su fundación ciertamente interfirieron en la
singularidad de su arquitectura, evidenciando así la relevancia de un
estudio y análisis de las edificaciones en sus más variados factores,
tales como implantación, planta, técnicas y materiales
constructivos, aberturas y elementos decorativos. Aborda las
similitudes y diferencias entre la arquitectura residencial de la ciudad
y la de otros centros locales, y basa su investigación bibliográfica en
autores locales y nacionales; investigación documental en archivos
públicos y privados y especialmente en levantamientos físicos in
loco, resultando en un esfuerzo por analizar sus características en el
contexto del estado Piauí.
Palabras clave: Arquitectura residencial de fines del siglo XIX y
principios del siglo XX. Patrimonio Residencial de Amarante.
Amarante, estado de Piauí, Brasil.
Introdução
“A minha terra é um céu, se há um céu sobre a terra:
É um céu sob outro céu tão límpido e tão brando,
Que eterno sonho azul parece estar sonhando
Sobre o vale natal, que o seio à luz descerra...”
(Amarante – Da Costa e Silva)
A cidade de Amarante situa-se no centro-sul do estado do Piauí, na
divisa entre os estados do Piauí e do Maranhão. Sua localização
(Figura 1) justifica fortemente sua fundação: ao contrário de muitas
cidades dessa região, que foram resultado de aldeamentos rurais,
Amarante desenvolveu-se devido ao comércio fluvial realizado
entre os dois estados. Inicialmente conhecida como São Gonçalo,
foi elevada à categoria de cidade em agosto de 1871, com a
denominação de Amarante (SILVA FILHO, 2007). Falci (1992, p.
21) diz que o local onde surgiu a vila de São Gonçalo do Amarante
foi em sua origem uma aldeia dos índios acroás e que:
O progresso da povoação deveu-se à
localização geográfica: meio da Província,
ponto de ligação do norte, litorâneo, com
o leste, centro político-administrativo, e o
sul, quase despovoado. Era importante
porto fluvial, na confluência dos rios
Canindé e Parnaíba, local onde chegavam
vapores com produtos de Portugal,
Maranhão, Pernambuco e que, subindo o
Canindé, iam até a capital.
Figura 1 – Localização da cidade de Amarante.
Fonte: Produzido por SILVA, 2018, com informações de Google Maps.
A natureza do seu surgimento foi determinante na sua configuração
urbana que, diferentemente do que ocorria nas cidades desse
período, não se desenvolveu em torno da praça da igreja, mas sim
a partir de um largo eixo comercial conhecido como Rua Grande
(Figura 2) que, por ter grande largura em relação às demais aproximadamente doze metros em quanto as perpendiculares têm
cerca de cinco metros - certamente fez as vezes de praça. Ao tratar
dessa questão, Silva Filho (2007, p. 120) diz que
[...] ao contrário das vilas da Colônia, em que
a igreja matriz expressou a nucleação do
povoado, aqui ela esteve ausente até a data
da sua construção em 1874, 13 anos após
instalada a Vila e três anos depois da cidade,
já afastada do núcleo de origem, no bairro
Villa-Nova.
Figura 2 – Vista da cidade de Amarante, com destaque para sua via principal,
A Rua Grande.
Fonte: Acervo pessoal da autora.
A peculiaridade de sua formação e consolidação como importante
porto fluvial e entreposto comercial foi um dos fatores que nos
levou a escolher Amarante como uma das cidades de nossa pesquisa
de doutorado, pois acreditávamos que a grande circulação
monetária, o fluxo de pessoas oriundas de lugares distintos e o
comércio com outras localidades certamente interferiu na sua
produção arquitetônica, notadamente a residencial. Além disso,
ressaltamos ainda o fato de que Amarante, apesar de ainda não
dispor de instrumento de tombamento estadual ou federal1, dentre
os sítios históricos que estamos estudando é um dos mais bem
preservados. A par desses fatores, destacamos a oportunidade de
O IPHAN desenvolveu um estudo de tombamento da cidade, que consta de importante
documentação dos imóveis da cidade, mas seu tombamento não foi efetivado.
1
realizar a caracterização e análise de sua arquitetura residencial,
objetivo principal desse nosso artigo, como contribuição relevante
para a compreensão do panorama geral da arquitetura residencial
do Piauí e, por consequência, do processo de elaboração de nossa
tese.
A arquitetura residencial de Amarante
O primeiro fator observado para análise das características das
edificações residenciais de Amarante foi a implantação, onde
encontramos 94% das edificações do seu núcleo histórico alinhadas
a aos limites frontal e laterais dos lotes; 3% possuem um único
recuo lateral e ao fundo; 1% apresenta apenas recuo frontal e 1%
encontra-se recuada de todos os limites dos lotes. Dessa forma, foi
a implantação majoritária dessas edificações que nos levou a
apontar Amarante como uma grande representante, juntamente
com a cidade de Oeiras, da arquitetura de feições tradicionais no
Piauí, porque evidenciam de maneira muito forte a caracterização
da arquitetura colonial urbana a partir da sua implantação.
“A cidade é de casas térreas”, diz Silva Filho (2007, p.119)2. De fato,
nos
nossos
levantamentos
não
encontramos
edificações
assobradadas no núcleo inicial da cidade, à exceção de uma
Olavo Pereira da Silva Filho empreendeu vasta investigação em edificações piauienses em
levantamento que teve início no ano de 1987, percorrendo grande área do estado do Piauí.
Sua obra “Carnaúba Pedra e Barro”, publicada em 2007, é uma referência no estudo da
arquitetura rural e urbana piauiense.
2
edificação possivelmente industrial e construída já em meados do
século XX. Essa situação segue o que acontece nos outros núcleos
urbanos do Piauí colonial. Esse aspecto já fora observado por
Barreto3 (1975, p. 211), ao dizer que “os poucos prédios azulejados
e os poucos sobrados que se encontram no Piauí são exemplares
trazidos de longe”, ou que “os poucos sobrados piauienses são
senhoriais”.
Em nossos levantamentos in loco, bibliográficos e documentais, não
encontramos, nas cidades de Amarante, Pedro II, Parnaguá e São
Raimundo Nonato, relatos da existência de algum sobrado
construído para fins residenciais até o fim do nosso recorte
temporal (1850-1940). Na cidade de Oeiras, certamente por ter sido
elevada à condição de capital, esse número é mais significativo, mas
ainda insuficiente para dar a Oeiras um caráter mais verticalizado, o
que, nesse aspecto, evidencia uma relação de semelhança entre
Amarante e os demais núcleos urbanos da região.
Um segundo aspecto observado na cidade foi a disposição em
planta de suas residências. Não foi difícil encontrar os tipos
descritos por meia morada e morada inteira, e até mesmo ¾ de
morada e morada e meia, nos quais a existência de um corredor,
central – na morada inteira e morada e meia –, ou lateral – nos
outros tipos –, que distribui os fluxos para o restante da residência.
Paulo Thedim Barreto (Rio de Janeiro, 1906/1973) foi um arquiteto e professor que durante
a fase heróica do SPHAN atuou como um dos primeiros técnicos do órgão. Dentro de suas
atividades, percorreu o Brasil em busca de monumentos arquitetônicos e, no ano de 1938,
percorreu grande área do Piauí, o que resultou no tombamento de monumentos vários.
Dentre a sua produção textual, destaca-se o artigo Casas de Câmara e Cadeia, publicado no
nº 11 da revista do SPHAN.
3
É possível perceber, também, que esse corredor separava a parte
social, geralmente os cômodos da frente, e a parte íntima, os
cômodos posteriores. Essa separação era, inclusive, materializada
com a instalação de portas ou cancelas. Destacamos, como
importante parte do programa das casas de Amarante, a existência
da varanda de refeições, que mais uma vez notamos ser tão
recorrente ao longo do território piauiense, como um importante
espaço íntimo, restrito aos familiares e serviçais, onde
desenvolviam-se as mais diversas atividades cotidianas.
Ilustramos as características dessas plantas baixas com a residência
da família do Sr. Marcelino Leal Barroso de Carvalho, onde hoje
funciona o Museu do Divino, um dos mais importantes pontos
turísticos da região. A construção da edificação é da passagem do
século XIX-XX para servir, inicialmente, como residência e
comércio – apenas um dos cômodos da frente da casa era destinado
às atividades comerciais. E consta na sua certidão de registro de
imóvel que a casa era coberta de telhas e a fachada sul (voltada para
a Rua Grande) era composta por três portas e duas janelas. Com a
transformação da casa para apenas uso residencial, duas dessas
portas foram substituídas por janelas. Ademais essas modificações,
percebemos que a planta apresenta os cômodos principais na
frente, acessados a partir de um corredor, com cômodos de serviço
ao fundo e também a presença da varanda de refeições, como
mostra a Figura 3.
Figura 3 – Planta Baixa, fachada e varanda de refeições da residência da
família do Sr. Marcelino Barbosa.
Fonte: Acervo pessoal da autora, cedidas por Mônica Alves, Edilson Melo e
João Ângelo Ferreira.
Destacamos ainda que, assim como a grande maioria das
edificações originalmente residenciais e ou residenciais e
comerciais, a residência da família do Sr. Marcelino Leal Barroso de
Carvalho situa-se nos limites frontais e laterais do lote,
apresentando recuo apenas no fundo do terreno, que permite a
existência de um pátio interno, responsável pela iluminação e
ventilação de uma frende área da edificação. Apesar de ter sofrido
algumas modificações pra abrigar o Museu do Divino, como a
inserção da capela, a família optou por manter pelo menos parte da
sua ambiência residencial.
Além das residências unifamiliares, destacam-se nos programas de
moradias da cidade de Amarante, as casas de uso misto – moradia
e comércio e as moradias, comércio e rancho. Essas últimas são
edificações que, além de moradia e comércio, também serviam de
hospedaria, pela própria natureza do seu povoamento e
desenvolvimento, sempre atrelados à atividade comercial, e
também pelo fato de ser importante rota de passagem entre as
regiões norte e sul do estado. Ainda sobre essa última tipologia, vale
notar a afirmação de Silva Filho (2007, p. 39):
O tipo moradia-comércio-e-rancho, tudo
leva a crer, ser originário e quase exclusivo
de Amarante. Constitui sua mais forte
expressão, correspondendo às maiores e
melhores casas da cidade, timbrando assim a
natureza comercial das moradias. Nesse
formato, encontramos uma ocorrência em
Oeiras e quatro em Piracuruca, das quais
uma com distinção na setorização dos
ranchos. Com as laterais nas divisas, as
moradias de centro de quadra não permitiam
a implantação de rancho e nelas, pelo
mesmo motivo, o comércio é reduzido.
A “Casa dos azulejos4” ilustra bem a descrição de Silva Filho sobre
o tipo “moradia-comércio-e-rancho”, sendo essa distribuição em
planta repetida à exaustão em outros exemplares da cidade. Como
as demais, foi implantada em um grande lote de esquina – nesse
caso, na via mais importante da cidade, a Avenida Desembargador
Amaral, conhecida como Rua Grande, no cruzamento com a Rua
Marechal Floriano Peixoto. Em sua planta baixa (Figura 4)
Segundo Silva Filho (2007, p. 201), é a “única casa da cidade com a fachada paramentada
de azulejos estampilhados de manufatura portuguesa. Obedece à tipologia das casas de
morada-comércio-e-rancho. O arco do corredor de entrada possui bandeira e cancela de
torneados finos. Alvenaria de adobe e tijolo. Enquadros de madeira, folhas de calha e
venezianas. Fechaduras e espelhos forjados. Cobertura de carnaúba corrida e telha vã. Beirais
internos de cachorrada. Piso de ladrilho hidráulico”.
4
podemos perceber a independência entre as três funções que abriga:
as atividades são muito bem setorizadas e a área residencial repete
o padrão local, cômodos principais na frente e secundários ao
fundo, com acesso por um corredor central. Apesar disso, a planta
baixa da residência deixa evidente a possibilidade de acesso ao pátio.
O uso dessa área e a relação entre o uso residencial e o de
hospedagem é algo que buscaremos investigar na nossa tese.
Figura 4 – Planta Baixa esquemática da moradia-comércio e rancho conhecida
como Casa dos Azulejos.
Fonte: SILVA FILHO, 2007. Editada pela autora.
Outros aspectos observados nas residências de Amarante foram as
técnicas e os materiais construtivos. Segundo Silva Filho (2007, p.
68), “as construções tradicionais do Piauí mostram sistemas
correntes em toda a Colônia, como o adobe, a taipa de varas ou
pau-a-pique, a pedra e barro, as tijoleiras e as alvenarias mistas”.
Apesar dessa variedade de técnicas apontada pelo autor,
encontramos, majoritariamente, construções de adobe ou de tijolo
cozido.
Um importante aspecto percebido nessas edificações foram as
coberturas, elemento muito expressivo na composição volumétrica
dessas residências. Barreto (1975, p. 205) diz que “o madeiramento
é de tronco de carnaúba ao natural; o ripamento é do mesmo
material. O Piauí não conhece a tesoura. A telha canal é a única
aplicada.” Em parte, o autor tinha razão. A carnaúba foi
amplamente utilizada na estrutura dos telhados das antigas casas
piauienses e amarantinas. Em contrapartida a isso, vemos que Silva
Filho (2007) discorda do autor ao mostrar que, de fato, as tesouras
foram raras no Piauí, mas elas existiram e foram encontradas
também na cidade de Amarante, ainda que seja muito mais como
uma exceção à regra.
Foi na forma das portas e janelas que encontramos uma das grandes
peculiaridades das residências da cidade de Amarante. Nelas
percebemos uma grande variação, apresentando, sem nenhuma
grande predominância, aberturas com vergas retas, com arcos
plenos, abatidos, ogivais ou contracurvas (Figura 5). Situação muito
diferente de Oeiras, por exemplo, onde quase que a totalidade das
casas apresenta vergas retas e alguns poucos casos de arcos plenos
e abatidos.
Figura 5 – Casas com verga em arco abatido, reta, arco ogival e contracurva
em Amarante – Pi.
Fonte: Acervo pessoal A. C. Moreira.
Em “O Piauí e sua Arquitetura” (1975, p. 209), Barreto já observa
parte dessa situação, ao falar da ogiva:
A forma em ogiva e suas variantes, dos vãos
de portas e janelas, são elementos
construtivos-decorativos, que chamam
atenção para quem salta em Teresina.
Grande parte das casas adota esse elemento,
que está espalhado pelo estado todo, mas
que em Teresina se consagrou. A ogiva,
encontramo-la em quase todos os Estados
do Norte, porém em nenhum deles se fixou.
São poucas as construções no gênero [...] O
arquiteto Luís Saia, do departamento de
Cultura da Prefeitura da cidade de São Paulo,
com quem já havíamos estado em Teresina,
informou-nos que em Caxias, no Maranhão,
viu farta aplicação da ogiva. Acreditamos
que ela tenha entrado no Piauí pelo segundo
quartel do século passado. Em Oeiras são
poucas as suas manifestações, e para o Norte
do Estado, a aplicação da ogiva vai
diminuindo gradativamente, a ponto de
Parnaíba
possuir
também
poucos
exemplares. São Luís do Maranhão está no
mesmo caso.
Barreto (1975) aborda apenas o caso da Ogiva, mas o emprego do
arco em contracurva, incomum em Oeiras, também é empregado
de forma marcante em Amarante, e encontrado na cidade de
Floriano. Ainda relacionado às aberturas, apontamos ainda o
emprego de muxarabis em algumas residências de Amarante, entre
janelas e bandeiras, o que não encontramos nos nossos
levantamentos da cidade de Oeiras, por exemplo. Por ora,
atribuímos esse fato à peculiar situação de Amarante, que foi por
muito tempo um importante entreposto comercial fluvial do
estado, além de rota de passagem de viajantes, certamente
facilitando repercussões na arquitetura produzida pela possibilidade
de contato frequente com diferentes influências e novidades.
Ainda sobre as aberturas, é importante ressaltar que o primeiro
Código de Posturas da cidade abordava alguns aspectos relativos a
estas, ao afirmar que “Art. 32º [...] altura da soleira será máxima de
0,20 metros acima das calçadas, salvo d´aquellas que no próprio
prédio forem obrigadas a alteração devida ao declive da rua
(CÓDIGO, 1901)”.
Um outro aspecto relativo às esquadrias que até o momento
consideramos muito peculiar e restrito à cidade de Amarante é a
ocorrência em uma edificação, originalmente residencial e hoje sem
uso, de uma janela em madeira com bandeira em barro. Sobre essa
prática não encontramos nenhuma menção na bibliografia local ou
qualquer outro indício que a justifique, mas almejamos obter mais
informações no decorrer da pesquisa.
Considerações
Mediante o exposto, ressaltamos alguns aspectos referentes à
caracterização e análise do patrimônio residencial da cidade de
Amarante, e o primeiro deles é que o caráter da sua formação
urbana, atrelada principalmente à atividade comercial e ponto de
passagem para várias outras localidades do estado, interferiu
fortemente na configuração da sua arquitetura, fato materializado
especialmente a partir da abundância das edificações relacionadas
ao uso comercial e residencial e também das moradias, comércio e
rancho.
Apontamos também a forte ligação entre a arquitetura residencial
local e a arquitetura colonial brasileira, mesmo quando a maioria
dos seus exemplares foi construída após o fim desse período, o que
pode ser percebido principalmente a partir da implantação desses
exemplares e será objeto de investigação na continuidade da nossa
pesquisa.
Referências
BARRETO, Paulo. O Piauí e sua Arquitetura. In: FAU/USP –
MEC/IPHAN: Arquitetura Civil I: textos escolhidos da Revista do
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. São Paulo:
FAU/USP, 1975.
CÓDIGO de Posturas – Leis e resoluções n.°s 37, 38, 39 e 40 do
Conselho Municipal de Amarante do Estado do Piauhy. 1901.
SILVA FILHO, Olavo Pereira da. Carnaúba, pedra e barro na
Capitania de São José do Piauhy. Belo Horizonte: Ed. do Autor,
2007. 3v.
FALCI, Miridan Brito Knox. O Piauí na primeira metade do século
XIX. Teresina: Projeto Petronio Portella, 1992. 129p.
Ana Carolina Gleria Lima
Universidade de São Paulo, Instituto de Arquitetura e Urbanismo, IAUUSP, São Carlos, SP, Brasil
[email protected]
Resumo
Aborda a relevância do estudo sobre a casa urbana e rural
compreendendo a habitação como patrimônio cultural. Para tal
analisa exemplares de moradias urbanas e rurais de Ribeirão Preto
em suas características técnicas, formais e compositivas, abordando
o programa, implantação, acesso, fluxo e intenção plástica. Tais
análises permitem uma oportunidade de reflexão com o objetivo de
evidenciar a complexidade e importância da pesquisa sobre a
habitação para além de questões pertinentes exclusivamente à
materialidade construtiva. O texto final apresentado aqui é
decorrente da apresentação oral realizada no II Seminário do grupo
de pesquisa Patrimônio, Cidades e Territórios.
Palavras-chave: Casa urbana e rural. Arquitetura residencial.
Patrimônio cultural. Pesquisa documental. Ribeirão Preto - SP,
Brasil.
Abstract
It addresses the relevance of the study on urban and rural housing,
understanding housing as cultural heritage. To this end, it analyzes
examples of urban and rural houses in Ribeirão Preto in their
technical, formal and compositional characteristics, addressing the
program, implementation, access, flow and plastic intention. Such
analyzes allow an opportunity for reflection in order to highlight
the complexity and importance of research on housing, in addition
to issues pertinent exclusively to constructive materiality. The final
text presented here is the result of an oral presentation given at the
II Seminar of the research group Heritage, Cities and Territories.
Keywords: Urban and rural house. Residential architecture.
Cultural heritage. Documentary research. Ribeirão Preto - SP,
Brazil.
Resumen
Aborda la relevancia del estudio sobre vivienda urbana y rural,
entendiendo la vivienda como patrimonio cultural. Para ello, analiza
ejemplos de viviendas urbanas y rurales en Ribeirão Preto en sus
características técnicas, formales y compositivas, abordando el
programa, implementación, acceso, flujo e intención plástica.
Dichos análisis permiten una oportunidad de reflexión con el fin de
resaltar la complejidad e importancia de la investigación sobre
vivienda, además de cuestiones pertinentes exclusivamente a la
materialidad constructiva. El texto final que aquí se presenta es el
resultado de una presentación oral realizada en el II Seminario del
grupo de investigación Patrimonio, Ciudades y Territorios.
Palabras clave: Vivienda urbana y rural. Arquitectura residencial.
Patrimonio cultural. Investigación documental. Ribeirão Preto - SP,
Brasil.
Introdução
A casa como construção cumpre a função primordial de abrigo, no
entanto, quando investigamos a arquitetura residencial é possível
reconhecer traços identitários daquela sociedade através das
técnicas construtivas, manifestações estéticas, tipos de implantação,
volumetria, legislações aplicadas e outras características. A
habitação nos permite identificar as maneiras de morar, através da
estruturação do espaço, ou seja da morfologia e distribuição em
planta, e através do programa, que indicam os hábitos e costumes
de uma sociedade, como nos mostra Pereira (2016, p.15)ao estudar
às relações da habitação com as transformações da sociedade
portuguesa "para além da dimensão estilística, duas dimensões de
análise [são] fundamentais e interdependentes: a composição
(funcional) e a configuração ou morfologia, relativas à lógica de
estruturação do espaço doméstico."
Há quase três décadas o arquiteto Lemos (1989, p.7) já chamava a
atenção para a valorização do estudo das casas brasileiras,
afirmando que
Antes de tudo o ato de morar é uma
manifestação de caráter cultural e enquanto
as técnicas construtivas e os materiais variam
com o progresso, além de manter vínculos
com a modernidade também está
relacionado com os usos e costumes
tradicionais da sociedade. E como o Brasil é
um país multifacetado, as famílias têm
expectativas as mais diversas em relação à
questão da moradia. (...) Por variados
motivos devemos conhecer nossas casas,
inclusive as velhas. (LEMOS, 1989, p. 7)
Desta forma, a habitação deve ser reconhecida como objeto de
pesquisa também pela expressão arquitetônica e social dos seus
exemplares. No entanto, para além deste propósito devemos nos
atentar para a possibilidade de incluir nas discussões de patrimônio
cultural a representatividade que o estudo destas casas nos permite.
No que se refere à formação do patrimônio cultural de uma
sociedade a definição vigente do Instituto do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional (IPHAN), no Artigo 216 da Constituição, que
atualiza o Decreto de 1937, enfatiza a importância deste patrimônio
ser composto por bens de natureza material e imaterial, e de
representar diversos grupos da nossa sociedade.
Enquanto o Decreto de 1937 estabelece
como patrimônio “o conjunto de bens
móveis e imóveis existentes no País e cuja
conservação seja de interesse público, quer
por sua vinculação a fatos memoráveis da
história do Brasil, quer por seu excepcional
valor arqueológico ou
etnográfico,
bibliográfico ou artístico”, o Artigo 216 da
Constituição conceitua patrimônio cultural
como sendo os bens “de natureza material e
imaterial, tomados individualmente ou em
conjunto, portadores de referência à
identidade, à ação, à memória dos diferentes
grupos formadores da sociedade brasileira”.
(Portal IPHAN, acesso 2017).
Tendo em vista a importância do morar e sua representatividade
como patrimônio cultural, objetivamos sinalizar as possibilidades
dos estudos sobre a casa e a busca pela valorização patrimonial da
moradia percorrendo dois materiais de investigação, uma
dissertação de mestrado1 sobre a casa rural e dados obtidos na
pesquisa de doutorado em desenvolvimento2 que investiga os
projetos das casas urbanas, ambos em Ribeirão Preto SP, Brasil.
Casa como patrimônio: a perspectivado patrimônio
cultural
Do universo dos processos sistematizados, durante a pesquisa de
doutorado, 3.275 são edificações de uso residencial ou misto,
representando mais de 70% das construções aprovadas,
comprovando que a moradia é a tipologia em maior número e se
faz determinante na formação da paisagem da cidade.
A pesquisa de mestrado "Um reconhecimento arquitetônico das fazendas cafeeiras do
município de Ribeirão Preto (1870–1930)." foi defendida em 2013 na Universidade
Presbiteriana Mackenzie, sob a orientação da Prof. Dra. Ruth Verde Zein. A dissertação se
dedicou ao levantamento das edificações residenciais rurais do período cafeeiro
remanescentes e selecionou alguns casos significativos de sedes de fazenda para análise e
estudo de suas características arquitetônicas, formais e compositivas, verificando os partidos
de composição adotados, os materiais e técnicas construtivas empregadas, os arranjos e usos
dos ambientes e demais aspectos significativos dessas construções.
2 O doutorado "Arquitetura residencial urbana através do acervo de Obras Particulares do
Arquivo Público e Histórico de Ribeirão Preto - SP." está em desenvolvimento desde 2016
no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo do Instituto de Arquitetura e
Urbanismo da Universidade de São Paulo - IAU /USP, sob a orientação da Prof. Dra. Maria
Angela P. C. S. Bortolucci. A pesquisa investiga a arquitetura residencial dentro perímetro
urbano e através da pesquisa documental no Arquivo Público e Histórico de Ribeirão Preto
(APHRP), do acervo de Obras Particulares, estabelecendo como recorte temporal o período
compreendido entre os anos 1910 e 1933 e totalizando 4.545 processos, que incluem:
solicitação para construção, reforma ou ampliação de imóveis no perímetro urbano de
propriedade particular. Os processos foram sistematizados através da formação de um banco
de dados organizado por meio de critérios de análise, primeiramente quantitativos, que
auxiliassem a pesquisa a responder aos questionamentos dos objetivos específicos. O
primeiro critério de análise foi o uso dos processos aprovados, divididos nas categorias
residencial; comercial; industrial; institucional; serviço; misto; depósito, barracão e garagem;
e aqueles processos que não continham a identificação de uso nos cômodos, foram
sistematizados como uso não identificado. Outras informações foram extraídas dos
desenhos, como por exemplo, característica da implantação e tipologia programática das
habitações, bem como o cruzamento desta arquitetura com eventos e acontecimentos
históricos, econômicos e sociais na cidade e no panorama mundial.
1
Atualmente, em Ribeirão Preto, a única habitação reconhecida
como bem cultural em âmbito estadual é a Casa da Caramuru
(antigo Solar Vila Lobos), tombada pelo Conselho de Defesa do
Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico
(CONDEPHAAT), no ano de 19883. O órgão municipal, o
Conselho de Preservação do Patrimônio Artístico e Cultural de
Ribeirão Preto (CONPPAC), tem na lista de bens imóveis
tombados as casas: Palacete Joaquim Firmino, Solar Francisco
Murdocco, Palacete Jorge Lobato, Palacete Albino de Camargo
Neto, Palacete Camilo de Mattos e o Antigo Solar Vila Lobos4.
Todas são casas de camadas de alto poder aquisitivo e localizadas
no centro da cidade.
Entretanto, dentre o conjunto de habitações levantadas no
APHRP, no desenvolvimento da pesquisa mencionada, apenas 40
exemplares são palacetes e 74 têm a tipologia programática de alto
padrão, ou seja, estes 114 exemplares somam apenas 3% das casas
aprovadas para construção no período. Esse número nos ajuda a
evidenciar que as habitações consideradas patrimônio hoje não
representam a produção residencial, ou mesmo a produção edilícia
do período, uma vez que a maior parte das edificações da cidade
são caracterizadas como casas das classes média e notadamente
populares, e nos alerta para o fato do patrimônio ainda ser discutido
de maneira a não incluir símbolos importantes e representativos de
todas as camadas sociais. O estudo das técnicas construtivas,
3
4
Livro do Tombo Histórico: inscrição n° 285, p. 73, 08/06/1989.
Respectivamente Tombo n° 0006, 0008, 0009, 0014, 0015 e 0018.
manifestações estéticas, tipos de implantação, volumetria,
programa e legislação com a finalidade de sistematização e
reconhecimento das casas de Ribeirão Preto, sejam elas da área rural
ou urbana, devem auxiliar os debates na esfera do patrimônio
cultural, visando sua ampliação e garantindo a representatividade
dos exemplares nas esferas oficiais.
A arquitetura residencial rural do café em Ribeirão Preto
A arquitetura residencial rural em Ribeirão Preto, notadamente nas
fazendas de café, é composta por diversas edificações e instalações5,
dentre elas estão as colônias, residências dos trabalhadores livres a
partir da abolição da escravidão, e casas sedes, residências dos
proprietários.
As colônias, foram ocupadas principalmente por trabalhadores
estrangeiros, em especial italianos6. Tendo em vista o processo de
produção do café, o resultado foi a construção de colônias extensas,
Na referida dissertação foram identificados edifícios ligados à produção como terreiro, tulha
e casa de máquinas, aqueles dedicados à religião, como as capelas, e os edifícios habitacionais
como a casa sede e as colônias. Ainda que a finalidade desse complexo fosse a produção de
café, era evidente o destaque dado à casa do proprietário, desde a implantação até os materiais
e detalhes de acabamento. Das 65 fazendas remanescentes mapeadas durante a pesquisa de
mestrado, foram exceção aquelas que apresentavam conjuntos íntegros, sendo a casa sede o
edifício mais frequentemente preservado, provavelmente em função da solidez de sua
construção, além da manutenção e uso por parte de seus proprietários. Esse fato justificou a
escolha dos exemplares de sedes para análise durante a pesquisa. Sobre as sedes e os outros
edifícios construídos no complexo cafeeiro consultar BENINCASA, Vladimir. Velhas
fazendas. Arquitetura e cotidiano nos campos de Araraquara. 1830-1930. São Paulo:
Imprensa Oficial do Estado; São Carlos: EDUFSCar, 2003.
6 Pisani (1937, p.452-461) afirma a forte presença de italianos no município de Ribeirão Preto,
contabilizando 15 mil italianos, sendo 30 mil contando com os filhos nascidos no Brasil, de
uma população de 81.565 habitantes no ano de 1937. Afirma que erma dedicados a maior
parte à agricultura, mas também a: artes e ofícios, comércio e indústria.
5
não raro construídas em mais de um ponto da fazenda, como no
caso da Fazenda Monte Alegre, atual Campus da Universidade de
São Paulo na cidade. Desde as últimas décadas do século XX, a
substituição da cultura cafeeira pela exploração da cana de açúcar e
a mecanização da colheita vem provocando a redução no número
de moradores na área rural e consequentemente ocasionando a
demolição dessas colônias.
Durante o desenvolvimento da referida dissertação, foi possível
constatar a predominância das colônias geminadas duas a duas, ou
enfileiradas em grupos de até cinco casas. Nas fachadas observamos
a composição das aberturas, portas e janelas, fechadas com folhas
cegas de tábua corrida, sem o uso do vidro e sem nenhuma
ornamentação. A planta também nos mostrou a simplicidade do
cotidiano, sendo composta por três ou quatro cômodos podendo
ter a cozinha externa, e banheiros adicionados posteriormente ao
período de construção.
Essas casas abrigavam apenas uma família
por unidade e eram construídas com uma
arquitetura singela, tendo em média cinco
cômodos internos: a sala, dois quartos, a
cozinha, e um banheiro, com um local para
serviços na área externa. Nas habitações
geminadas era comum a utilização de
varandas na parte frontal, ou posterior.
(SILVA, GLERIA, ROSA, FREITAS,
MOLINA, 2014, p. 110).
Sobre a implantação, Costa (2008, p. 52-53) identifica três tipos nas
colônias das fazendas cafeeiras de Ribeirão Preto, a casa isolada, a
geminada múltipla e a casa geminada simples. Aponta que em
alguns casos a casa geminada múltipla foi a maneira de se aproveitar
antigas senzalas, transformando-as em moradias para os novos
trabalhadores livres, e ainda, naquelas fazendas onde o trabalho teve
início com os imigrantes, a casa geminada múltipla era uma maneira
de racionalizar material e espaço para os proprietários. Benincasa
(2008, p. 297) afirma que a introdução do trabalho livre no Oeste
Paulista “repercute na paisagem rural, com o surgimento de
infindáveis fileiras de casinhas geminadas, espalhadas por todos os
setores das fazendas, geralmente em fundos de vale, ou em locais
impróprios para as plantações de café.”
Costa (2008, p. 54) afirma ainda a influência da imigração italiana
nessas construções, uma vez que, “algumas das fazendas criadas
nesse período utilizaram mão-de-obra imigrante para a construção
de suas edificações”, como na fazenda São Manuel, onde as casas
foram construídas com tijolos de barro produzidas na própria
fazenda. A predominância da alvenaria de tijolos de barro como
técnica construtiva se estende também as casas sedes.
Durante a pesquisa de mestrado constatamos que arquitetura da
casa sede do período cafeeiro em Ribeirão Preto apresenta algumas
constantes, ainda que os exemplares levantados se mostrassem
muito heterogêneos e diversificados.
Este objetivo proposto, decorre da
impossibilidade de se estabelecer um padrão
de edificação, ou de eleger um exemplar
típico que fosse capaz de ilustrar de maneira
genérica a morada dos fazendeiros deste
período da produção cafeeira na cidade de
Ribeirão Preto. Durante os levantamentos
foi possível observar a grande diversidade de
características em todos os elementos, e por
isso, a proposta de reconhecimento de
constantes que se repetem em três ou mais
casos, e não de padrões, que seriam
afirmativamente recorrentes em todos os
casos. (GLERIA, 2013, p. 204).
Dentre as constantes observadas nestes exemplares, podemos
destacar a questão da hierarquia dos acessos e dos fluxos destas
habitações. É frequente observar três formas de acesso a estas
edificações, sendo o acesso social através da fachada frontal, o
íntimo em uma das laterais, e o de serviço pelos fundos da
edificação. Quando da existência de áreas destinadas ao
recebimento de hóspedes e outros visitantes que vinham tratar de
negócios, o acesso também era feito pela parte frontal da edificação,
às vezes com porta diretamente para o exterior, sem passagem por
dentro da edificação, preservando a intimidade da família dos
olhares de fora. Esta característica de separação dos acessos e sua
relação com o programa da casa nos indica a presença de uma
hierarquia na moradia, onde a permissão de circulação pelos
ambientes acontecia de acordo com a camada social e de seu papel
no interior da habitação. Ou seja, os acessos e fluxos eram reflexo
do modo de vida de uma classe de fazendeiros ainda carregados de
antigos costumes, mas empenhados em adquirir hábitos mais
aristocráticos advindos especialmente da sociedade europeia do
período.
Figura 1 – Planta da Fazenda Santana.
Fonte: GLERIA, 2013, p. 221.
A intenção plástica foi outra questão importante identificada nesses
exemplares que apresentam elementos da arquitetura paulista e
mineira, da arquitetura clássica e acadêmica, do ecletismo e do
pitoresco. Praticamente observamos a excessiva preocupação com
a sofisticação de composição e ornamentação nas fachadas de
maior visibilidade, evidenciando a casa como representação
simbólica de poder e riqueza, como esclarece Pereira (2016):
Sinteticamente, no que concerne ao edifício,
denota-se uma forte diferenciação entre a
fachada e as traseiras. A dimensão simbólica
dessa diferenciação é conferida pela nítida
distinção dos materiais utilizados numa e
noutra, bem como pelo nível de elaboração
estética associado a cada uma. (...)
A diferenciação funcional da fachada e das
traseiras era inequívoca: a fachada estava
indelevelmente associada ao domínio
simbólico, referente à intenção implícita de
demarcação estatuária, e as traseiras,
essencialmente destinadas a serem utilizadas
pela dona de casa, crianças, criados e
fornecedores, representava o utilitário
profano. (PEREIRA, 2016, p. 41-43).
Dentre os diversos ornamentos levantados ao longo desta pesquisa,
destacamos os capitéis das colunas na fachada frontal da fazenda
São Manoel, e os lambrequins da fazenda Boa Vista e Monte Alegre
que, embora estejam presentes ao redor de toda a edificação,
apresentam maior apuro na fachada frontal.
Figura 2 e 3 – Detalhe do capitel na fachada frontal da fazenda São Manuel e
detalhe de ornamentação em madeira na fazenda Boa Vista.
Fonte: GLERIA, 2013, p. 247 e 249.
Desta forma, essa casa rural nos permitiu reconhecer traços da
presença imigrante no período cafeeiro de Ribeirão Preto, e ainda,
como eram alguns hábitos destas famílias -como, por exemplo, foi
visto através da análise de acessos e fluxos - assinalando mais uma
vez a importância do estudo sobre a casa, rural inclusive, e a
necessidade de considerar essas edificações patrimônio cultural da
cidade.
Habitação urbana entre 1911-1933: da casa operária ao
palacete
Durante o levantamento mencionado no APHRP para elaboração
da referida tese, os projetos foram classificados dentre tipologias
programáticas, definidas através do número de cômodos e a
presença ou não de certos compartimentos7.
As casas populares correspondem a mais de 30%, sendo a maioria
dos processos levantados. Dentre as casas populares uma tipologia
frequente, a partir da década de 20, foram as vilas operárias, sendo
que só no ano de 1924 localizamos cinco processos de solicitação
de construção em série, os dois mais numerosos com 15 e 17 casas.
É preciso considerarmos que neste momento havia uma crescente
industrialização, bem como a necessidade de moradia para os
trabalhadores. Bonduki (2011, p. 43-56) afirma que até a década de
30 era predominante a maneira de morar através do inquilinato,
incluindo as casas em vilas operárias produzidas por investidores
privados, uma vez que não existiam sistemas de financiamento para
a casa própria. Segundo o autor, em 1925 na cidade de São Paulo
apenas cerca de 25% da população vivia em casas próprias, por ser
Critérios para a análise e sistematização das tipologias programáticas. Casas mínimas: até
três cômodos, geralmente sem sanitário dentro da edificação e frequentemente com o
programa sala, dormitório e cozinha, podendo ter variações. Casas populares: a partir de
quatro cômodos, frequentemente com o programa sala, cozinha, banheiro e dormitórios.
Casas de padrão médio: qualquer número de cômodos com duas salas, sendo elas sala de
visitas e sala de jantar. Casas de padrão alto: além das duas salas, presença de
escritório/gabinete e copa, ainda outra característica desse programa é a despensa, quarto de
empregada, e algumas contam com edículas de serviço nos fundos. Palacete: diversos
cômodos, onde haja um programa mais extenso que não permita a sobreposição de
atividades, com a presença de corredores de circulação e halls, a implantação é
majoritariamente solta no lote e as edificações frequentemente são sobrados com volumetria
irregular, “morar à francesa”.
7
este investimento de moradia de aluguel na Primeira República
muito atraente: incentivos fiscais, inexistência de controle dos
alugueis, excedente econômicos nas mãos de investidores e restrita
capacidade de aplicação do setor industrial.
Com isso, a produção rentista propiciou o
surgimento de várias modalidades de
moradia para aluguel. Uma delas foi a vila
operária, sob a forma de pequenas moradias
unifamiliares construídas em série. Desde a
emergência do problema da habitação
popular em São Paulo, tal modalidade de
alojamento foi sempre recomendada, pelo
poder público e pelos higienistas, como a
solução melhor e mais salubre para a
habitação operária. Diversas leis previam
incentivos fiscais para estimular sua
construção e permitir um aluguel mais baixo.
No entanto, só uma parcela dos operários
teve acesso a essas moradias: em geral
operários com alguma qualificação,
funcionários públicos, comerciários e outros
segmentos da baixa classe média.
(BONDUKI, 2011, p. 47)
O projeto da vila operária de propriedade de Adolpho Serra,
assinado pelo engenheiro Nelson de Carvalho Junqueira, tem a
fachada singela e sem ornamentação, ocupa a quadra entre as ruas
Rio Branco, São José e avenida do Retiro, com 16 casas geminadas
duas a duas, e uma solta no lote na esquina. As casas geminadas,
além do recuo lateral estavam afastadas da testada do lote e
contavam com o seguinte programa: sala de jantar, cozinha, área,
w.c., e dois dormitórios8, como podemos observar na Figura 3.
O nome dos cômodos dos projetos analisados através de material documental acompanha
a denominação encontrada no desenho original.
8
Figura 3 – Planta padrão das casas geminadas duas a duas do projeto aprovado
para a construção de vila operária com 17 casas.
Fonte: Processo nº 279 de 1924 do Acervo APHRP.
O projeto foi aprovado para construção pois atendia à legislação do
período. Na cidade de Ribeirão Preto, o primeiro Código de
Posturas da Câmara, aprovado em 1889, regulamenta a higiene e
salubridade das edificações nos quintais e pátios mediante a
fiscalização, no entanto, é no Código de Posturas da Câmara de
1902 que aparecem as primeiras restrições para o interior das
construções no Art. 99 do Capítulo IV- Das edificações em
particular. Este mesmo Código de Posturas legitima a construção
de vilas operárias e casas construídas em série, proibindo apenas a
construção de estalagens ou cortiços, e a construção de casas em
fileiras estabelecendo a implantação de no máximo casas duas a
duas, com um recuo lateral de dois metros.
A vila operária era considerada uma habitação salubre, e para Rolnik
(2013, p. 37) a legislação intervinha no dimensionamento mínimo e
na preocupação com iluminação e ventilação das vilas uma vez que
a ideia de agir nas casas dos trabalhadores "partiu da correlação
entre condições sanitárias e o alastramento de epidemias pela cidade
naquele tempo."
Com a expansão das cidades ao longo do século XIX e XX e a
proliferação de grandes epidemias, surge uma nova lógica de
salubridade imposta por parte do Estado para a cidade, e também
para o interior da habitação, os modos de morar urbano são
pensados sob essa ótica. Correia (2004, p. 1) afirma que no Brasil,
durante esse período, a moradia urbana “passou por ampla reforma,
que envolveu mudanças de ordem espacial e alterações de uso e de
significados”. Segundo a autora essas mudanças se baseavam nos
fundamentos de conforto, higiene, economia objetivando "tornar a
casa um ambiente solidário com a saúde, a privacidade, o
fortalecimento dos laços familiares, o aumento da produtividade no
trabalho e com um reordenamento das atividades e do uso do
tempo no âmbito doméstico".
Se nas casas destinadas às camadas de baixa renda a preocupação
era o controle da higiene e da moral do trabalhador, nas casas de
padrão alto e palacetes, por sua vez, encontramos uma habitação
passando por transformações no que se refere à compartimentação
em planta, aos novos programas, e à articulação entre os usos, de
modo a proporcionar para a burguesia maior conforto, luxo e
sofisticação.
Homem (1996, p. 25-27) nos auxilia nessas constatações ao afirmar
que as novas configurações sociais que emergem no século XIX
“alteraram o espaço da habitação”, gerando uma compartimentação
das plantas, consecutivamente a diminuição de dimensões dos
cômodos, onde cada aposento teria uma função específica
atendendo à separação de gêneros e papeis fixados pela sociedade.
E nesse sentido, também nos ajuda Benjamin (1985, p. 38), quando
afirma que “o interior não é apenas o universo do homem privado
mas também o seu estojo”, onde cada cômodo tem uma função
para cada figura familiar, e Guadet (1909, p. 37) quando define a
mudança na organização dos espaços do "ponto de vista da
distribuição" priorizando a independência das funções. Como foi
possível observar nos projetos residenciais aprovados, levantados
no APHRP, a adesão a esse paradigma ocorre de forma gradual,
começando com o surgimento do hall de entrada externo, e depois
o vestíbulo9, aparecem ainda os corredores de circulação que pouco
a pouco passam a ser representativos, não apenas nas casas de
padrão alto, mas também nas casas de classe média, até alcançar
maior compartimentação dos espaços e tipos de uso nos palacetes.
Para Corona e Lemos (1972, p. 470), a definição de vestíbulo é: "Antigamente mesmo que
ÁTRIO, grande espaço na frente da casa no qual se deposita o fogo para o sacrifício em
honra da deusa Vesta. Hoje em dia o termo designa a entrada principal de qualquer edifício."
9
Dentre os exemplares de palacete do período está a residência
projetada para o fazendeiro e político Américo Batista10, na esquina
entre as ruas Lafaiete e Visconde de Inhaúma, no ano de 1922. O
projeto conta com um extenso programa dividido em dois
pavimentos no corpo principal da edificação, e na edícula dos
fundos. No pavimento térreo estão os três alpendres, hall, sala de
visitas, escritório, sala de jantar, salão de música, saleta, copa,
cozinha, engomar e despensa; e no pavimento superior, quatro
quartos, dois toilettes, um w.c. e dois w.c. banho, uma rouparia, uma
sala de café, hall, e dois terraços. A edícula conta com: tanque de
roupas, garagem e moradia de empregados (com despensa, cozinha,
w.c., tanque coberto e dois quartos, localizados no pavimento
superior).
Eleb e Debarre (1995, p. 65) ao estudar a evolução da casa e a
evolução social e mental da sociedade francesa urbana na virada do
século XIX, afirmam que as aberturas e articulações dos espaços de
receber - como as que podemos observar no projeto para o palacete
de Américo Batista - surgem do gosto pela vida mundana por parte
da burguesia, sendo a valorização desses espaços de receber
nascidas do desejo de ostentação e responsáveis por descrever a
classe social da casa e seus ocupantes. O mesmo, afirmam sobre o
hall (p. 76), descrevendo-o como um novo espaço de recepção
luxuosa.
Segundo Rosa e Registro (2007, p. 43) Américo Batista foi: "Cafeicultor, suplente de
vereador, assumiu o poder de 1914 a 1917 e, de 1929 a 1932. Além disso, foi eleito vereador
para o triênio 1936 e 1939, ocasião em que foi presidente da Câmara pelo PRP."
10
A casa de propriedade de Américo Batista, deixa claro o "estojo" de
Walter Benjamin com uma extensa compartimentação da planta
nos diversos usos, não deixando margem para a sobreposição de
funções dentro da casa. Visitas, jantar, música, saleta e escritório,
cada ambiente uma função, uma figura e um papel dentro da
habitação. O próprio nome conferido ao projeto na prancha induz
a pensar no "morar à francesa": "Projeto para uma Villa,
propriedade de Ilmo. Sr. Américo Batista".
Figura 5 e 6 – Plantas da casa Américo Batista, entre as ruas Lafaiete e Visconde
de Inhaúma.
Fonte: Processo nº 163 de 1922 do Acervo APHRP.
A sofisticação dessas casas, se faz notar, não apenas pela
compartimentação e pela extensão dos programas, mas também
pelo requinte na ornamentação das fachadas. Lemos (1989, p. 50)
chama a atenção para a presença do ecletismo nas casas paulistanas:
“A par de novos partidos, nova ornamentação, novos estilos. Era o
ecletismo.
Era
principalmente,
o
neoclássico
totalmente
despoliciado que chegou ao desregramento. Era o apelo à
imaginação.” É importante apontar que constatamos nos palacetes
levantados, além das manifestações mencionadas por Lemos,
também a forte presença de referências à arquitetura neocolonial,
art-nouveau, art-déco, arts and crafts e de uma nova "maneira moderna
de se viver no início do século XX", representada pelo bungalow.
A fachada da casa de Américo Batista, nos mostra como a habitação
burguesa sofreu modificações em relação aos anos anteriores do
final do século XIX, quando predominavam estilemas classicizantes
referidos por Lemos (1989, p. 50). Podemos observar que esse
projeto não conta com a platibanda ornamentada tão frequente nos
projetos ecléticos, ao invés, permite que seja visto o telhado
movimentado, com beirais, resultante da volumetria assimétrica da
edificação. Chama a atenção também que as paredes externas
estejam desenhadas com textura, provável representação de tijolos
à vista que, juntamente com as floreiras, podem ser consideradas
características das manifestações em voga, como o bangalô, o arts
and crafts e o neocolonial. Notamos ainda que a fachada apresenta
uma variedade de esquadrias, com verga reta ou em arco, de
materiais de acabamento e de guarda corpos ornamentados,
indicando uma liberdade compositiva.
Figura 7 – Fachada da rua Lafaiete da casa Américo Batista.
Fonte: Processo nº 163 de 1922 do Acervo APHRP.
Sendo assim a análise e sistematização desta arquitetura residencial,
através do estudo de projetos do acervo do APHRP, nos permitiu
compreender como a legislação, a compartimentação e a intenção
estética estiveram presentes na casa urbana do período e sua relação
com a identidade da população do período, nas maneiras de morar.
Considerações
Afirmamos a importância do estudo da habitação como objeto de
pesquisa, uma vez que este nos permite ir além das questões
espaciais da arquitetura e também possibilita entender a
organização social, as mudanças e as questões simbólicas. Como
vimos, os acessos das edificações mostram a hierarquia social na
distribuição do programa em planta, enquanto a ornamentação nas
casas da área rural coloca a simbologia da fachada frontal como
representação de poder e riqueza. Na cidade, a salubridade e higiene
nas vilas operárias apontam para as mudanças pelas quais passaram
as áreas centrais por força das posturas municipais com relação à
habitação da classe de baixa renda, enquanto o estudo das casas de
padrão alto, evidencia a mudança no conceito da família e da
privacidade na área urbana.
A tipologia residencial, extremamente relevante na paisagem da
cidade construída, representava a maior parte de edificações na área
central da cidade, e está relacionada diretamente à maneira como a
população vive, por isso deve ser estudada também com a
finalidade de alcançar o reconhecimento dessas construções como
patrimônio cultural em sentido amplo e democrático.
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fazendas cafeeiras do Município de Ribeirão Preto (1870 -1930).
Dissertação (Mestrado em Teoria e História da Arquitetura e do
Urbanismo) - Programa de Pós-Graduação de Arquitetura e
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Joana D’Arc de Oliveira
Universidade de São Paulo, Instituto de Arquitetura e Urbanismo, IAUUSP, São Carlos, SP, Brasil
[email protected]
Resumo
Aborda a importância do Patrimônio Cultural Afrobrasileiro,
expresso nas histórias e memórias das gentes negras. Destaca a
necessidade de seu registro, tendo como fonte fundamental a
oralidade. Enfatiza a importância da história oral e do emprego de
seus instrumentais para o registro das histórias negras. Segundo
fontes variadas, o Brasil foi o país das Américas que mais recebeu
africanos e africanas durante a vigência do sistema escravista (15301888) para exercerem atividades variadas tanto no meio urbano
como no rural. Dentre os projetos e ações dos proprietários de
escravos para essa população estava a tentativa de apagar suas
tradições culturais garantindo assim, a total subserviência desses
sujeitos ao sistema vigente e suas regras. No entanto, pesquisas
recentes vêm apontando desde 1980 que, apesar das inúmeras
tentativas, escravos e escravas resistiram estrategicamente ao
apagamento de suas histórias e legados culturais e, segundo Hebe
Mattos, a oralidade foi o grande instrumento de resistência dessas
populações nas Américas. Para tal, dialoga com autores como
Maurice Halbwachs, Jacques Le Goff, José Carlos Sebe Bom
Meihy, entre outros. Por fim, apresenta a trajetória de Sebastiao
Nunes, demonstrando a importância do emprego das técnicas da
história oral para o registro dos saberes e oralidades preservados
nas famílias negras, o que contribui significativamente para a
preservação da cultura afro-brasileira em nossas sociedades.
Palavras-chave: Memória. História Oral. Trajetórias Negras.
Abstract
This article deals with the importance of Afro-Brazilian cultural
heritage, expressed in the stories and memories of black people and
highlights the need for registration, with orality as the fundamental
source. The article also emphasizes the importance of oral history
and the use of their instruments for recording black histories.
According to various sources, Brazil was the country in the
Americans that received the most Africans during the slave system
(1530-1888) to carry out many activities, both in rural and urban
areas. Among the plans and actions of slave owners there was an
intention to suppressing the cultural traditions of this population,
thus guaranteeing total subservience to the current system.
However, since 1980, despite countless attempts, recent research
shows that slaves strategically resisted erasing their histories and
cultural legacy. According to Hebe Mattos, orality was the great
instrument of resistance of these people in the Americas. The
analyses are also based on several authors, such as: Maurice
Halbwachs, Jacques Le Goff, José Carlos Sebe Bom Meihy. Finally,
the text includes the trajectory of Sebastião Nunes, showing the
validity of the use of the techniques of oral history for the recording
of knowledge and orality of black families, contributing significantly
to the Afro-Brazilian cultural in our society.
Keywords: Memory. Oral history. Black trajectories.
Resumen
Este artículo trata de la importancia del patrimonio cultural afrobrasileño, expresado en las historias y memorias de los negros y
destaca la necesidad de registro, con la oralidad como fuente
fundamental. El artículo también enfatiza la importancia de la
historia oral y el uso de sus instrumentos para registrar historias
negras. Según diversas fuentes, Brasil fue el país de las Américas
que más africanos recibió durante el sistema esclavista (1530-1888)
para realizar muchas actividades, tanto en áreas rurales como
urbanas. Entre los planes y acciones de los dueños de esclavos
existía la intención de suprimir las tradiciones culturales de esta
población, garantizando así la total subordinación al sistema actual.
Sin embargo, desde 1980, a pesar de innumerables intentos,
investigaciones recientes muestran que los esclavos se resistieron
estratégicamente a borrar sus historias y legado cultural. Según
Hebe Mattos, la oralidad fue el gran instrumento de resistencia de
estas personas en las Américas. Los análisis también se basan en
varios autores, como: Maurice Halbwachs, Jacques Le Goff, José
Carlos Sebe Bom Meihy. Finalmente, el texto incluye la trayectoria
de Sebastião Nunes, mostrando la validez del uso de las técnicas de
la historia oral para el registro del conocimiento y la oralidad de las
familias negras, contribuyendo significativamente a la cultura afrobrasileña en nuestra sociedad.
Palabras clave: Memoria. Historia oral. Trayectorias negras.
Introdução
O passado deixou na sociedade de hoje
muitos vestígios, às vezes visíveis, e que
também percebemos na expressão das
imagens, no aspecto dos lugares e até nos
modos de pensar e de sentir,
inconscientemente
conservados
e
reproduzidos por tais pessoas e tais
ambientes (...) os costumes modernos
repousam sobre camadas antigas que
afloram em mais de um lugar1.
Entre encontros e memórias, em meio a uma prosa agradável,
acontecem as entrevistas, que venho realizando, com homens e
mulheres negros no interior paulista, desde o ano de 2010. Quantas
histórias, resistências, sentimentos, alegrias e tristezas já me foram
reveladas nestas conversas, sempre regadas a café. Com alegria,
ansiedade e um tanto de receio, os nossos depoentes nos esperam,
e para isso colocam uma roupa bonita, arrumam o cabelo, deixam
a casa impecável. Ah! A casa, quantas histórias ali registradas, nas
paredes, nas trincas, nas pinturas, nos quadros, nos altares dos
santos, nas fotografias e no mobiliário. A casa é o espaço de
proteção familiar, mas é também o lugar de receber, de aconchegar,
de trocar, com aqueles que são convidados a adentrar. Em seu livro
A memória Coletiva, Halbwachs, relaciona a casa, os objetos e o
mobiliário à memória.
Halbwachs, Maurice. A memória Coletiva. Beatriz Silva (Tradução). São Paulo: Centauro,
2006, p. 87.
1
Nosso ambiente material traz ao mesmo
tempo a nossa marca e a dos outros. Nossa
casa, nossos móveis e a maneira como são
arrumados, todo o arranjo das peças em que
vivemos, nos lembram nossa família e os
amigos que vemos com frequência nesse
contexto. (...) móveis, enfeites, quadros,
utensílios e bibelôs circulam dentro do
grupo e nele são apreciados, comparados, a
cada instante descortinam horizontes das
novas orientações da moda e do gosto, e
também nos recordam os costumes a as
antigas distinções sociais. (Halbwachs, 2006,
p. 158)
O lugar ocupado por um grupo não é como
um quadro negro, no qual se escreve e
depois se apaga números e figuras. Não. Mas
o local recebeu a marca do grupo e vice
versa. Todas a ações do grupo podem ser
traduzidas em termos espaciais, o lugar por
ele ocupado é apenas a reunião de todos os
termos. Cada aspecto, cada detalhe desse
lugar tem um sentindo que só é inteligível
para os membros do grupo. (Halbwachs,
2006, p. 160)
Geralmente, o início da conversa nunca é natural, apresentam-se
trêmulos e um tanto preocupados com as próprias formas de
expressão. Mas o gelo logo é quebrado, principalmente quando
percebem, que ali, naquele momento, eles são os protagonistas, que
não existe certo e errado, verdadeiro ou falso, mas apenas a suas
históriase experiências sociais para serem reveladas. Nesse
momento, a experiência da escuta se faz essencial, demarcando o
início de uma relação social, que por meio dos recursos da história
oral capta as trajetórias, as memórias e as histórias dos sujeitos e
suas significações materiais e simbólicas. Nesse processo, os gestos,
os sentimentos, os olhares, a linguagem corporal, são elementos
reveladores, carregados de significação, e nessa relação quase tudo
é decodificável. Até mesmo o silêncio é capaz de revelar uma
lágrima sufocada, uma emoção invisibilizada e um grito de revolta
silenciado. Quantas histórias, quantas dores, quanta luta e
resistência há nas falas dos homens e mulheres negros, que mesmo
diante de tantas adversidades conseguiram preservar o seu legado
cultural. Rememorar com eles é vivenciar o passado a partir de suas
experiencias. Segundo Piere Nora:
a memória é a vida, sempre carregada por
grupos vivos e, nesse sentido, ela está em
permanente evolução, aberta à dialética da
lembrança e do esquecimento, inconsciente
de suas deformações sucessivas, vulnerável a
todos os usos e manipulações, susceptível de
longas latências e de repentinas
revitalizações. (Nora, 1984, p. 9)
a memória é um fenômeno sempre atual, um
elo vivido no eterno presente. (...) Porque é
afetiva e mágica, a memória não se acomoda
a detalhes que a confortam; ela se alimenta
de lembranças vagas, telescópicas, globais
ou flutuantes, particulares ou simbólicas,
sensível a todas a transferências, cenas,
censura ou projeções. (...) a memória instala
a lembrança no sagrado. (...) a memória
emerge de um grupo que ela une. (...) ela é
múltipla e desacelerada, coletiva, plural e
individualizada. (...) a memória se enraiza no
concreto, no espaço, no gesto, na imagem,
no objeto. (Nora, 1984, p. 9)
Nesse processo de rememoração a história oral se torna ferramenta
chave para garantir o registro e a sistematização das revelações
empreendidas pelos depoentes. Suas falas, carregadas de
significações, expressam histórias comumente não retratadas nas
narrativas que se construíram sobre o Brasil, cujas entonações, a
partir de uma perspectiva eurocêntrica, destacam as culturas e os
saberes dos colonizadores europeus. Nessa conjuntura, tanto as
culturas dos povos nativos como as africanas, são relegadas a
segundo plano e quando retratadas são comumente marginalizadas
e consideradas selvagens. Essa visão sobre os outros povos, que
não os europeus, contribuíram para a implementação, sustentação
e legitimação dos projetos de colonização empreendidos pelos
Europeus, a partir do século XV, cujos alvos eram os nativos dos
continentes asiático, africano e americano. Com o objetivo de
controlar e dominar outros territórios, apropriar-se das riquezas dos
outros povos, garantir mão-de-obra e ainda auferir lucros com tais
ações, os colonizadores não tiveram nenhum tipo de escrúpulo em
dominar e comercializar seres humanos. Segundo Mbembe (2017),
os colonizadores, pautados na premissa de que os africanos eram
selvagens, bárbaros e destituídos de saberes e práticas culturais, e
sem considerar sua diversidade étnica, territorial e cultural, os
enquadraram na categoriade negros e destilaram sobre eles práticas
cruéis de violência, dentre as quais, destacamos os projetos de
invisibilidade do outro.
Se fizermos um exercício de rememoração, veremos que, a história
dita oficial, apresenta os africanos e seus descendentes sempre no
papel de escravos. Quantos de nós crescemos aprendendo que,
tanto os homens negros, quanto as mulheres negras, foram
submissos ao sistema escravista? Que vieram de países sem cultura
e sem saberes? Que não trouxeram consigo nenhum tipo de
conhecimento? E que em solos brasileiros foram domesticados e
submetidos à cultura dos colonizadores? Quantos de nós
desconhecemos a multiplicidade de conhecimentos trazidos do
continente africano e de atividades por eles e elas desenvolvidos?
Henrique Cunha Jr (2019), grande pesquisador da cultura e das
tecnologias africanas, evidencia em suas publicações o quanto o
patrimônio cultural brasileiro é devedor dos saberes africanos. Suas
tecnologias e conhecimentos foram empregados na arquitetura, na
culinária, na música, nas religiões, nos trabalhos com o ferro, na
marcenaria, na agricultura, nas artes, entre outros.
Foi a partir da década de 1980 que houve uma reviravolta na forma
de ver as contribuições de africanos e africanas para a construção e
consolidação das histórias nas Américas. Nesse momento, as
ciências sociais, principalmente a história e a arqueologia,
direcionaram seus olhares para os registros deixados por esses
sujeitos. Os arquivos passaram a ser fontes de investigação dos
pesquisadores com registros da voz negra nos mais variados tipos
documentais. Os arqueólogos encontraram vestígios materiais das
contribuições africanas que trouxeram à tona a efervescência da
cultura negra em nossos territórios. De acordo com Halbwaachs
(2006), não é muito fácil modificar as relações que se estabeleceram entre as
pedras e os homens. (p. 163).
Não há memória coletiva que não aconteça
em um contexto espacial. Ora, o espaço é
uma realidade que dura: nossas impressões
se sucedem umas às outras, nada permanece
em nosso espírito e não compreenderíamos
que seja possível retomar o passado se ele
não estivesse conservado no ambiente
material que nos circunda. (Halbwachs,
2006, p. 170)
Desse modo, somadas às práticas científicas, recorreu-se
obstinadamente ao registro das memórias afro-brasileiras por meio
da história oral, que permitiu a emergência de histórias até então
silenciadas.
A História Oral como ferramentas de preservação
Por um longo período, a história oral foi rejeitada pelas ciências
acadêmicas, que a consideravam uma prática desprovida de rigor
científico, por ter como base, principalmente, a memória e um
narrador. Apesar das críticas, ela tem se consolidado como método
de pesquisa científico nas mais variadas áreas do conhecimento. No
Brasil, a metodologia foi introduzida na década de 1970, quando foi
criado o Programa de História Oral do CPDOC (Centro de
Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil).
A partir dos anos 1990, o movimento em torno da história oral se
fortaleceu e em 1994, foi criada a Associação Brasileira de História
Oral, que passou a integrar membros de todas as regiões do país em
prol da divulgação do método via encontros regionais e nacionais,
e, também, por meio da edição de revista e boletim. Em 1996, foi
criada a Associação Internacional de História Oral, que realiza
congressos bianuais e edita uma revista e um boletim. Na
contemporaneidade, em diversos países, é intensa a publicação de
livros, revistas especializadas e artigos sobre história oral. Há
inúmeros programas de pesquisas que utilizam os relatos pessoais
sobre o passado para o estudo dos mais variados temas.
Segundo Jorge Eduardo Aceves Lozano, a história oral, é muito
mais que uma decisão técnica ou de procedimento; não é apenas a
depuração técnica da entrevista gravada, nem pretende formar
exclusivamente arquivos orais, não é apenas um roteiro para o
processo de transcrição da oralidade, nem abandona a análise à
iniciativa de historiadores futuros. Pelo contrário, é espaço de
contato e influência interdisciplinares, sociais, em escalas e níveis
locais e regionais, com ênfase nos fenômenos e eventos que
permitam, através da oralidade, oferecer intepretações qualitativas de
processos histórico-sociais. Para tal, conta com métodos e técnicas
precisas, onde a constituição de arquivos orais assume um papel
importante. Segundo José Carlos Sebe Bom Meihy (1994), a
História Oral é o ato de documentar, analisar e construir um texto
a partir do depoimento. Para que ocorra tem como premissa a
existência do depoente, do pesquisador e do gravador. Mas,
extrapola a conversa mediada por um gravador, tendo em vista ser
um método complexo, que reúne desde a organização até a
devolução do texto à comunidade que participou do processo. Sua
importância para a elaboração do texto como documento, a difere
de outros trabalhos ligados a entrevistas. Para Lozano (2006):
A História Oral é um ramo da História
Pública, gênero que se compromete com a
comunidade que gera e consome a própria
história. Ela centra sua análise na visão e
versão que dimanam do interior e do mais
profundo da experiência dos atores sociais.
Considera o âmbito subjetivo da experiência
humana. (p. 17)
Fazer História Oral significa, portanto,
produzir
conhecimentos
históricos,
científicos e não simplesmente fazer um
relato ordenado da vida e da experiência dos
“outros”. Assim, o historiador oral, é algo
mais que um gravador que registra os
indivíduos sem “voz”, pois procura fazer
com que o depoimento não desloque nem
substitua a pesquisa e a consequente análise
histórica. Ele deve exercer seu papel como
pesquisador por completo e não deixar de
lado seu papel analítico. (p.17)
Lozano (2006) destaca que a história oral se constitui pela
confluência multidisciplinar, tal como uma encruzilhada de
caminhos, sendo, um ponto de contato e intercâmbio, entre a
história e as demais ciências sociais e do comportamento,
especialmente com a antropologia, a sociologia e a psicologia. É
nessa interdisciplinaridade que se pauta a revalorização o
reconhecimento da história oral. Dentre as características que
tornam a história oral um método de pesquisa democrático,
destacamos a possibilidade de trazer à tona histórias comumente
silenciadas e invisibilizadas.
Quando nos reportamos ao Patrimônio Cultural Afro-brasileiro, a
história oral e seus recursos, se tornam fundamentais, tendo em
vista que a oralidade é a ferramenta principal de preservação das
culturas negras. Foi, por meio da oralidade, que homens e mulheres
negros transmitiram seus saberes, suas crenças, suas recordações e
suas histórias, garantindo que, tais conhecimentos, pudessem
chegar às gerações atuais. Empreender entrevistas com famílias
negras do interior paulista, como já apontado anteriormente, nos
permitiu conhecer esse legado e apresentá-los à sociedade.
Entre Memórias e Histórias: as andanças de Sebastião
Nunes
Sebastião Nunes, filho de escravo fugido, herdou do pai o gosto
pela liberdade e destacou durante a entrevista que sua vida foi
marcada pelas andanças mundo afora. Natural de São Carlos, ele fez
questão de enfatizar o lugar em que nasceu, na Vila Pureza, no dia
seis de março de 1927. Sua mãe Autília de Araújo Nunes, linda
morena de bons dentes, nasceu também em São Carlos na Chácara
Mattos. O pai nasceu na Bahia, onde, segundo Sebastião, foi
escravo e de lá fugiu para Minas Gerais, determinado a mudar a
condição a que estava submetido. De Minas Gerais, ele veio parar
em São Carlos, porém não sabemos ao certo, se aqui ele trabalhava
como negro livre, ou se era escravo do senhor José Mattos, onde
trabalhou, como lavrador, por muitos anos e conheceu a jovem
Autília, com quem, depois de algum tempo, se casou.
Figura 1 − Sebastião Nunes.
Jardim Centenário, São Carlos.
2013.
Depois de casados, Autília e José, receberam um pedaço de terra do
patrão na própria Chácara Mattos, que estava em processo de
loteamento, e ali construíram a casa da família. Ela deixou a lida no
campo e passou a cuidar da casa e dos treze filhos que tiveram.
Nesta época, a nascente Vila Pureza tinha meia dúzia de casas feitas de
barrote e entre elas estava a casa da família Nunes que, segundo
Sebastião, era muito simples, não divergente, das moradias dos
bairros populares da cidade, onde apenas algumas das necessidades
básicas da família eram atendidas:
A casa, nossa, tinha dois quartão, tinha a
sala, a cozinha e a dispensa. Tudo isso de
barro. Primeiro fazia aquele rodo em volta,
depois então fazia aquelas paredes de barro
no meio. Pra separar o quarto do meu pai e
da minha mãe era uma parte, tinha um
pedaço que era uma sala. O chão era terra
embaixo e pegava aquela cinza e ponhava
terra, amassava bem e fazia o piso, ficava
duro, ficava um chumbo, podia varrer, a
mesma coisa do ladrilho. Não tinha
banheiro, era uma fossa pra fora de casa,
distância, assim, de uns dez, quinze metros,
então, tinha uma casinha ali, era a fossa ali.
Pra tomar banho tomava na dispensa,
tomava na gambela [gamela]. Na cozinha
tinha uns paus enfincados [jirau], assim, e o
fogão era feito de barro também. Era um
fogão a lenha. (Nunes, Sebastião, 2013)
Sebastião Nunes, ao contar um pouco sobre o processo de
formação do bairro, destacou que antes de receber o nome de Vila
Pureza o local teve outro nome, talvez mais inspirado nas pessoas
do lugar. Ele enfatizou também o bom convívio entre os indivíduos
e o início da urbanização, nos apresentando a sua visão sobre o
processo de constituição do bairro:
Primeiro era Vila São João. São João porque
era os caras que moravam lá, era João não
sei do que, João não sei do que, tudo mundo
se tratava de João, aí pois o nome na vila de
São João, depois que ela passou pra Vila
Pureza. Falaram: não, aqui é uma vila, então vai
ser Vila Pureza, porque é uma vila boa, tem tantas
coisas, então passou Vila Pureza. Ali era todo
mundo um irmão. Foi José de Mattos que
deu um pedaço de terra pra cada um morar.
Depois ele vendeu. Aí quando começou a vir
gente, ele começou a picar os lotes, aí abriu
as ruas. (Nunes, Sebastião, 2013)
Vale destacarmos que a venda de lotes por José Manoel Antonio de
Matos, de acordo com Natália Costa (2015), possibilitou que ele
tivesse controle sobre o destino dado aos terrenos e ruas do bairro.
Vemos assim, que desde a sua fundação, que ocorreu em 1891, a
Vila Pureza contava com uma presença negra que na percepção de
Sebastião Nunes, ainda quando criança, era tudo negro. Entretanto,
destacamos que o bairro, depois de dezesseis anos, em 1907, de
acordo com o recenseamento, havia um equilíbrio entre as duas
etnias. Desse modo, é muito provável que mesmo na época de
Sebastião essa situação se mantivesse, embora, os entrevistados
com frequência se refiram ao bairro como espaço majoritariamente
negro, impelidos pelo círculo de suas relações, ou seja, Sebastião via
o bairro com a presença majoritária de negros porque era com eles
que sua família se relacionava.
Tinha o Seu Delfino, era o que morava
embaixo, depois pra cima tinha o Lídio, mas
era como distância daqui, na esquina lá de
cima, a casa um do outro, depois tinha um
que, aquele lá era o coiso, como é que
chamava aquele lá. Era Tudo negro. Branco
tinha umas duas, três famílias. A maioria era
tudo negro. Tinha o Seu Alcides também
que tinha uma carrada de filho, preto
também. Tinha o Massá era família preta,
também que vivia lá, pra cima tinha o Seu
Albano, preto, tinha o Seu Otávio, preto,
tinha o Seu Genô que era branco. Tinha um
lá que todo mundo tratava ele de padrinho,
porque ele era o mais velho, ele foi o
primeiro que mudou ali. Era negro também.
Ele chamava Seu Massá. E tinha o Luis
Venção também, esse era branco, também
era antigo, ele trabalhou na prefeitura.
[Sobre a relação] Era bom, eles tratavam
tudo bem, se davam, um ia na casa do outro.
Não tinha preconceito não. Não tinha briga.
Não tinha discussão quase. Discussão, era
difícil, quando tinha. (Nunes, Sebastião,
2013)
Apesar de Sebastião destacar a boa relação entre os moradores da
Vila Pureza, no final, ele não negou a existência de conflitos, que
podiam ser poucos e raros, mas existiam. A rotina da família era
marcada pela vivência das crianças no quintal, pela dedicação da
mãe aos afazeres domésticos e ao trabalho na lavoura que começava
logo cedo. Autília e José não permitiram que os filhos
frequentassem a escola, impedindo que tivessem acesso à educação
formal, eram rígidos, cuidadosos e não deixavam com que saíssem
do território familiar, configurado pela casa e quintal. Sobre a escola
Sebastião foi enfático e afirmou que nunca fui não senhora porque a vida
da gente era no meio do mato. Essa observação de José Nunes nos
remete aos aspectos extremante rurais que marcavam ainda a Vila
Pureza na década de 1930. Sobre a mãe, o pai e as brincadeiras ele
nos contou:
Ali [Vila Pureza] nóis brincava no fundo do
quintal porque a minha família não era de
soltar criança pra sair. Era dentro do quintal,
quando a mãe ia conversar com uma pessoa
todo mundo ficava lá no canto, eu não vinha
perto, ela corria o zóio. O pai não era um
homem de chegar e brincar com o filho não,
se ele tivesse aqui conversando com a
senhora nóis não podia nem passar aqui. Eu
brincava com meus irmãos de pegar carretel,
fazer caminhãzinho, brincava dessas coisas.
(Nunes, Sebastião, 2013)
Além de espaço para as brincadeiras, o quintal abrigava algumas
plantações, hortas e criação de animais, destinado ao consumo da
família. O cardápio se restringia a verduras, arroz, feijão com
farinha e jabá. Na hora das refeições, cada um se dirigia a algum
lugar da casa, hábito resultante, a nosso ver, por conta do pequeno
tamanho do espaço destinado às refeições e também pelas poucas
peças de mobiliário. Além da falta de espaço e mobiliário, a família
era desprovida de utensílios de mesa. Tinha uma gamelinha, então, cada
um catava a sua gamelinha, e ficava um pra cá, outro pra lá, e outro saía lá
pro quintal comendo, era assim, e a gente pegava e comia com a mão. Vale
destacarmos que a alimentação que era oferecida para as crianças,
era diferente do virado que era feito para o pai, que adorava
pimenta. Sobre o processo de preparo do virado de José Nunes,
Sebastião destacou a participação dos membros da família:
Fazia no pilão, então ficava um da banda de
cá e outro na banda de lá, cada um com uma
mão, sabe as mão de pilão, então, ali socava
aquela farinha com aquele jabá, ia socando
até virar um pó, depois ela [mãe] tirava dali
depois que tava bem socada, aí pegava e
socava uma concha daquela pimenta
malagueta e ponhava ali dentro, aí nóis
socavava mais, aí era a hora triste (risos)
porque aquilo conforme socava, o zóio
queimava tudo, mais socava bem socado,
depois aí era a hora do trabalho dele [pai], aí
ele pegava aquela comida, aquela farofa e
jogava num tachinho assim, colocava ali e
pegava uma, duas, conchas de gordura
colocava ali dentro e mexia bem, mexia,
mexia, mexia até dá o ponto certinho, aí ele
ponhava numa lata com a tampa, ponhava
em cima e deixava lá, então conforme ele ia
pra um serviço ou outra coisa ele ia lá, tinha
uma latinha, ele pegava, uma latinha e meia
e ponhava num picuazinho, e aquilo ele
levava, e uma garrafa de café. (Nunes,
Sebastião, 2013)
Os únicos momentos de lazer vivenciados pela família Nunes eram
as pescas que faziam aos domingos de manhã com o pai, onde também
nadavam. Havia ainda, a ida a igreja Matriz da cidade, a qual exigia
um empenho considerável de todos, devido, aos obstáculos
existentes no percurso, que faziam a pé. O depoimento de Sebastião
nos demonstra o quanto o poder público local, dificultava a vinda
dos moradores, geralmente pobres, ao centro da cidade. Mesmo
assim, Sebastião salientou que via brancos e negros assistirem a
missa na Catedral, demonstrando também que a presença negra, na
região central, era uma estratégia adotada por eles de
empoderamento e inserção social.
O único lugar que nóis ia aquele tempo era
lá na Catedral. Era longe, era uma barreira,
ali também pra descer, que não tinha
paralelepípedo, nada na calçada, era só terra.
Da Vila Pureza pra ir lá nóis subia no
estradão, aquela estrada que ia pra
Araraquara, Ibaté, nóis subia no estradão,
depois do estradão subia até o canto do
posto e de lá subia pra pegar a Avenida
Carlos Botelho, até chegar na Avenida São
Carlos. E lá tinha branco e negro, tudo
misturado. (Nunes, Sebastião, 2013)
Quando Sebastião Nunes estava com sete anos de idade, no ano de
1934, sua mãe Autília faleceu e, diante da situação, José Nunes
pegou os filhos menores e levou para morar com os filhos mais
velhos deixando a Vila Pureza. Desse modo, Sebastião foi levado
para Descalvado para morar com um irmão que acabara de se casar
e trabalhava de carpir café numa fazenda, lá. Neste momento, tiveram
início as andanças pelo mundo afora e a inserção do pequeno Sebastião
no trabalho. Em Descalvado ele permaneceu até os 10 anos de
idade e, depois disso, foi para Córrego Fundo-MG para morar e
trabalhar com o pai em uma propriedade de Carlos Facchina. José
Nunes se dedicava às atividades na lavoura e Sebastião era
candeeiro, que segundo ele, consistia em guiar boiada: candeeiro é
aquele que vai com a varinha na frente da boiada, então os bois vai e eu vou
com a varinha, pra eles vim tudo atrás. Apesar de estar perto do pai, ele
não gostava do trabalho que fazia, pois, era duro com aquela geada,
ficava varrendo descalço. Porém, não foi o descontentamento com a
atividade que exercia que fez Sebastião sumir dali de Córrego Fundo
aos quatorze anos, e sim, um desentendimento com o pai.
Aconteceu um negócio em casa do Paulino
Fagundes, eu ganhei um cavalinho, então eu
saía com esse cavalinho pra todo canto, eu
gostava, aí o meu pai pegou o cavalinho um
dia, e falou assim: de hoje em diante o cavalo seu
vai ficar pra dona dele e eu vou te dar aquela mula,
que era a mula empacadeira, aí eu pensei,
pensei, falei: não, eu não dou. Juntei uma calça
e uma camisa e saí, aquele tempo a gente já
tava cortando lenha néh, aí quando chegou
na beirada da picada eu puis o corote d’água,
o machado ali, deixei ali com aquela calça e
aquela camisa, o meu pai já tava lá no meio
da picada, deixei ali e cai fora, eu sumi.
(Nunes, Sebastião, 2013)
Depois de deixar o pai no Estado de Minas Gerais, Sebastião voltou
para São Carlos e ficou batendo um tempo, trabalhava pra um, pra outro, a
troco da comida. Mas com medo que seu pai viesse atrás dele, logo
tratou de ir para Jacareí, para trabalhar na construção de estradas.
Lá, insatisfeito com as péssimas condições de trabalho, ele foi
ajudado por um agenciador, que conseguiu emprego para ele em
Bauru. Mas não havia limites espaciais para Sebastião que, sem
pensar duas vezes, seguiu depois com o agenciador para a Bolívia,
aos 16 anos de idade.
Na Bolívia eu fui ser piloto, daqueles que
trabalhava na carroça pra lá e pra cá, e o
piloto ficava no meio, quando o burro ia
devagar a gente ia e chacoalhava o reio com
a carroça de terra pra levar pro lugar, então
tinha um piloto de cada canto e eu fui
trabalhar lá. (Nunes, Sebastião, 2013)
Dono de suas vontades e destino, assim como seu pai que havia
sido escravo fugido, Sebastião não aceitou novamente, as condições
que eram oferecidas aos trabalhadores na Bolívia. Depois de quatro
meses, ele reuniu um grupo de amigos e organizou a volta para o
Brasil, que aconteceu em um caminhão. O grupo desembarcou no
município de Corumbá-MS e de lá seguiu para Campo Grande-MT,
onde conseguiu trabalho na estrada de ferro. Neste local Sebastião
nos contou: ali fiquei uma temporada trabalhando, não saía dinheiro, não
saía nada, aí falei: tá mal. Contou ainda, que as condições ruins de
trabalho se estendiam à precariedade das cabanas em que dormiam:
A gente vivia no trabalho. Nóis fazia aquelas
cabanas e as pontas desciam no chão e
cobria com aquelas folhas de coqueiro. Fazia
assim, um pau lá, vamos supor um pau lá no
canto da casa, pegava um varão grande e
ponhava em cima, daqui de cima eu desci
uns paus assim, ele era bem alto assim,
descia assim e caía no chão, conforme caía
no chão aí ia amarrando aquelas varas, pra
modo depois de por o sapé, sapé, coqueiro
em cima, não tinha um tijolo, não tinha nada.
(Nunes, Sebastião, 2013)
Depois de um ano e meio trabalhando lá, ele nos contou que
conseguiu comprar uma passagem de trem para Bauru-SP. E
quando desceu do trem na estação ferroviária, seguiu pela estrada
caminhando, chegando a um sítio, cujo proprietário era um homem
chamado Alexandre, ao qual ofereceu os seus serviços em troca de
salário, teto e comida. Mas, mesmo gostando da família de
Alexandre, Sebastião decidiu, depois de três meses, não permanecer
no sítio, e sem avisar ninguém, engoliu a lua2. De lá seguiu para
Itirapina, onde permaneceu por sete ou oito dias, trabalhando numa
fazenda como carregador, e finalmente, voltou a São Carlos, com
dezessete anos de idade. Ao chegar foi procurar pela irmã que
morava na Vila Monteiro para saber notícias da família e do pai.
Depois de matar a saudade, ele foi trabalhar como carreiro e carroceiro,
todos os serviços que o pai ensinou, na fazenda da família Dória, em São
Carlos, e lá ficou mais uma temporada. Cansado do trabalho no meio
rural, ele decidiu migrar para a cidade para trabalhar e morar com a
irmã. Mas os planos de Sebastião não saíram de acordo com o que
havia pensado, pois acabou conhecendo, Sebastiana de Oliveira e
decidiu passar a mão nela e engolir a lua de novo. O casal seguiu para o
município de Santa Rosa e com ajuda do irmão de Sebastiana, o
2
Foi embora durante a noite.
senhor José Nunes, pai de Sebastião, acabou assinando a
autorização para o casamento do filho.
Depois de casados, vieram para São Carlos morar nas proximidades
da Igreja São Sebastião, numa garagem, cedida por um amigo do
sogro, com a incumbência de ambos olharem o quintal. Nessa época,
Sebastião começou a trabalhar na Prefeitura e, quando estava com
22 anos de idade e três filhos, por volta de 1949, a família se mudou
para a Vila Pureza, no terreno onde morou quando criança, em uma
casinha de barrote, construída por eles. A permanência no lote do seu
pai não durou muito tempo, e vendo que aquilo não tava dando certo,
Sebastião decidiu migrar com a família para Ibaté, onde alugou uma
casa e foi trabalhar no corte de lenha. Larguei a casinha e fui embora
pra Ibaté, quando tava cortando lenha, pagava quinhentos reis o metro, falei
agora vamo arrumar a vida mesmo, aí fui pra lá, pagar dez merréis numa
casinha de dois cômodos. Em Ibaté, eles ficaram por três anos, depois
voltaram para São Carlos e se estabeleceram no Jardim
Bandeirantes. As andanças de Sebastião e sua família, não parariam
por aí, depois de algum tempo, voltaram para a Vila Pureza, numa
casinha comprada por eles. A casa era de tijolo bem assentado. Tinha
quatro cômodos, o piso era chão. Não tinha banheiro, era fossa.
Na Vila Pureza a família Nunes morou por bastante tempo. De lá,
Sebastiana pegava o Bonde na Santa Casa e ia até a Estação
Ferroviária para fazer compras na cidade. Os filhos, que no total
eram oito, estudaram até o quarto ano em escolas próximas ao
bairro e não tiveram momentos de lazer com o pai, que destacou
nunca os ter levado para passear e não ter tempo para brincar, ou contar
histórias, mas fazia questão de lhes ensinar algumas lições, como,
respeitar os mais velhos e não mexer em nada de ninguém. A vida
parecia caminhar bem, até que, a pedido de sua esposa, Sebastião
decidiu sair da Vila Pureza e se estabeleceu com a família no Jardim
Centenário, em uma casa que barganhou e na qual se fixou
definitivamente. Dentre os motivos da saída do bairro, ele alegou
que a esposa não gostava do barulho praticado por um dos
vizinhos. Ali [Vila Pureza] fiquemo bastante tempo, aí a mulher não
gostava de lá porque tinha essa turma que morava pra baixo, era uma família
de preto e era batucada, sábado ninguém dormia, domingo ninguém dormia.
Figura 2 − Primeira comunhão dos
filhos de Sebastião e Sebastiana. Da
esq. Benedito, Carlos Roberto,
Ademir Spedito.
Sem data.
Figura 3 − Sebastiana Oliveira Nunes.
Foto da carteira de identidade. São
Carlos. 1983.
O incômodo de Sebastiana com os vizinhos nos traz à tona a prática
das manifestações culturais dos negros no bairro. Os batuques, as
rodas de samba e capoeira encontravam nos territórios (casa e
quintal), espaços de liberdade, o que não significava que fossem
aceitos e compartilhados por outros moradores, fossem eles,
brancos ou negros. No caso da família Nunes, a prática os
incomodou a ponto de os fazerem sair do bairro.
Depois de se mudaram para o Jardim Centenário, Sebastião
continuou a trabalhar na Prefeitura e Sebastiana a cuidar da casa e
dos filhos. Quando estavam completando 63 anos de casados, eles
resolveram se separar e Sebastião construiu um barrotinho no mesmo
lote para morar enquanto construía uma casa de alvenaria de tijolos
no fundo. Para lá se mudou e permaneceu até a morte da ex-esposa
que ocorreu por volta do ano 2000. Sebastião não ficou viúvo por
muito tempo, conheceu Eunice Gonçalves e com ela mora, na casa
principal, há bastante tempo. Na casinha dos fundos, mora um neto
com a esposa. Hoje Sebastião, que alega nunca ter sofrido
preconceito na vida, mas já ter visto outros negros sofrerem, destaca ter
muito orgulho em ser filho de escravo fugido e foi com muita
emoção que nos contou um dos principais ensinamentos de seu pai
sobre a importância da liberdade.
Meu pai falava, agora sim que tamo bem,
porque nóis somo o dono de nóis, nóis
comemo, nóis trabalha, eles são obrigado a
pagar nóis, pra nóis comer, naquele tempo
não né, comia naquelas gambela [gamela] né,
que nem porco, comia tudo com a mão e
daquele jeito. (Nunes, Sebastião, 2013)
Com muito orgulho também, Sebastião destaca que aprendeu, há
pouco tempo, ler e escrever algumas coisas. Hoje ele dedica seu dia aos
cuidados com o quintal onde tem muitas plantas, galinhas e uma
pequena horta e também à troca de conversas e carinho com sua
companheira. Sobre sua vida enfatizou, apesar deter sido sofrida, foi
quase um romance né.
Considerações finais
Ao acompanhar as narrativas de famílias negras no interior paulista,
das quais a trajetória de Sebastião Nunes é um exemplo, nos damos
conta da importância do legado histórico-cultural preservado por
esses sujeitos no meio de suas famílias e nos seus espaços de morar.
Por meio da resistência e da transmissão dos saberes via oralidade
as matrizes culturais africanas se materializam nas trajetórias negras.
Segundo Halbwachs (2006, p. 73), A história de nossa vida faz parte da
história em geral, portanto, relatos pessoas de negros e negras
evidenciam processos complexos vivenciados por grande parte da
população negra. A trajetória de Sebastião Nunes se aproxima de
outras histórias das gentes negras, no que se refere à luta pela
sobrevivência, aos enfrentamentos sociais, econômicos, políticos e
culturais empreendidos por esse sujeitos. Nessa perspectiva,
conhecer uma história é conhecer a história de outros. E o
mapeamento e o registro dessas trajetórias se tornam essenciais para
garantir a preservação desse importante patrimônio cultural que
ainda sobrevive nos seios das famílias negras por todo o território
nacional.
Para o conhecimento desse legado cultural, a História Oral, como
método de pesquisa, nos oferece os instrumentais para que esse
registro se materialize e seja acessado pelos diferentes sujeitos. De
acordo com Halbwachs, 2006:
O único meio de preservar essas lembranças
é fixá-los por escrito em uma narrativa, pois
os escritos permanecem, enquanto as
palavras e o pensamento morrem. (p. 87)
Dessa forma, diante do exposto, podemos destacar que na
contemporaneidade o registro das histórias negras é um desafio que
se coloca aos mais variados campos científicos. É preciso caminhar
para a inserção da história africana e afro-brasileira nos currículos
acadêmicos do ensino fundamental ao superior, garantindo
também o desenvolvimento de pesquisas em torno dessas
temáticas. Os programas precisam, ainda, reconhecer a eficácia
científica da História Oral como método de pesquisa. Tais
consolidações nos permitem o reconhecimento, o registro e a
Preservação do Patrimônio Cultural Afro-brasileiro e sua
consequente valorização para além das famílias negras.
Referências
COSTA, Natália Alexandre. Espaços negros na cidade pósabolição: São Carlos, estudo de caso. Dissertação de Mestrado. São
Carlos: Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São
Paulo (IAU-USP), 2015.
CUNHA, Henrique. BIÉ, Estanislau Ferreira. Bairros Negros,
Cidades Negras. Fortaleza: Editora Vila Dourada, 2019.
FERREIRA, Marieta de Moraes e Amado, Janaína (Orgs.). Usos e
Abusos da História Oral. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2006.
HALBWACHS, Maurice. A memória Coletiva. Beatriz Silva
(Tradução). São Paulo: Centauro, 2006.
LE GOFF, Jacques, 1924 História e memória / Jacques Le Goff;
tradução Bernardo Leitão ... [et al.] -- Campinas, SP Editora da
UNICAMP, 1990.
MBEMBE, A. Crítica da Razão Negra. Lisboa: Antígona, 2017.
MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Definindo História Oral e
Memória. Cadernos CERU, nº5, série 2, 1994.
NORA, Pierre. Entre Memória e História: A Problemática dos
Lugares. Tradução:
Yara
AunKhoury.
Disponível
in:
https://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/view/12101/876
3.
OLIVEIRA, Joana D. Da senzala para onde: negros e negras no
pós-abolição em São Carlos (1880-1910). São Carlos: Fundação PróMemória de São Carlos, 2018.
RIOS, Ana Lugão, MATTOS, Hebe. Memórias do Cativeiro.
Família, Trabalho e Cidadania no pós-abolição. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2000.
Marcus Vinicius Dantas de Queiroz2
Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFCG, PB, Brasil
[email protected]
Resumo
Estuda a arquitetura produzida pelo Departamento Nacional de
Obras Contra as Secas (DNOCS) entre os anos de 1909 e 1959 no
semiárido do Brasil. Ainda de modo preliminar e especulativo,
observa o contexto de surgimento das construções, mapeia sua
abrangência e a inserção no território, investiga suas formas,
espaços, usos e tecnologias de construção e traça um paralelo com
as demais produções arquitetônicas do período, sejam em âmbito
nacional ou internacional. Para tanto, averigua as edificações do
morar, do trabalhar, das infraestruturas e das instituições (casas,
laboratórios, oficinas, pontes, torres d’água, escolas). As análises
acontecem a partir do exame de um conjunto de fotografias
publicadas nos relatórios técnicos e nos boletins informativos do
órgão. Por fim, conclui que o DNOCS foi um importante agente
de modernização da arquitetura e da construção civil dos sertões
semiáridos.
Palavras-chave: Arquitetura. Seca. DNOCS. Semiárido do Brasil.
Este texto apresenta resultados preliminares do ano de 2016 da pesquisa de doutorado do
autor, intitulada Arquitetura, seca e território: ações da IFOCS no semiárido do Brasil (1919-1945). A
investigação está sendo desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e
Urbanismo do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, sob a
orientação da profa. Dra. Maria Ângela P. C. S. Bortolucci.
2 Arquiteto e Urbanista (UFPB), Mestre e Doutorando (IAUUSP), Professor do Curso de
Arquitetura e Urbanismo da UFCG.
1
Abstract
The aim of this work is to study the architecture produced by the
National Department of Works Against Drought (DNOCS in
Portuguese) between 1909 and 1959 in the Brazilian semi-arid
region. However preliminary or speculative, this study observes in
which context the buildings were constructed, maps their range and
insertion in the territory, investigates their forms, spaces, uses and
construction technologies and draws a parallel with the other
architectural productions of the period, whether in national or
international contexts. For this, this work verifies the edifications
of living, of working, of infrastructure, and of institutions (houses,
laboratories, workshops, bridges, water towers, schools). The
analysis takes place from the assessment of a set of photographs in
the agency's technical reports and newsletters. Finally, it concludes
that DNOCS was an important agent for modernizing architecture
and civil construction in the semi-arid hinterlands.
Keywords: Architecture. Drought. DNOCS. Brazilian semiarid.
Resumen
El objetivo de este trabajo es estudiar la arquitectura producida por
el Departamento de Nacional de Obras Contra la Sequía (DNOCS)
entre los años de 1909 y 1959 en la región semiárida de Brasil.
Aunque de modo preliminar y especulativo, el estudio observa el
contexto de surgimiento de las construcciones, mapea su
abrangencia e inserción en el territorio, investiga sus formas,
espacios, usos, tecnologías de construcción y hace un paralelo con
las demás producciones arquitectónicas del período, sean
nacionales o internacionales. Para esto, averigua las construcciones
de vivienda, de trabajo, de la infraestructura y de las instituciones
(casas, laboratorios, talleres, puentes, torres de agua, escuelas). Los
análisis suceden a partir del examen de un conjunto de fotografías
publicadas en los relatos técnicos y en los boletines informativos
del departamento. Por fin, concluye que DNOCS fue un
importante agente de modernización de la arquitectura y de la
construcción civil del interior semiárido.
Palabras clave: Arquitectura. Sequía. DNOCS. Semiárido de
Brasil.
Introdução
“A edificação na sede [urbana das colônias agrícolas] será
controlada pela Administração técnica afim de evitarem-se as
monstruosidades arquitetônicas” (LEITÃO, 1937, p.114).
Escrito em 1933, mas só publicado em 1937, o texto do engenheiro
agrônomo Evaristo Leitão apresenta o relato da sua excursão por
estados do Norte e Nordeste do país3. A mando do então Ministro
da Viação e Obras Públicas, o paraibano José Américo de Almeida,
a viagem tinha como finalidades o levantamento das condições dos
flagelados da seca que assolava a região desde o começo da década
de 1930 e a indicação de possíveis providências para minimizar os
problemas derivados das estiagens. Ao final do volume, Leitão
apresenta uma proposta para a colonização dos sertões semiáridos,
que visava “solucionar a parte social do grande plano da Inspetoria
Federal de Obras Contra as Secas” (LEITÃO, 1937, p.4). Sua ideia
era a de ocupação do território através da instalação de colônias
agrícolas em terras irrigáveis ao longo dos açudes e bacias
hidrográficas da região, com a formação de unidades espaciais
administradas em sistema de cooperativa e constituídas por zona
rural, urbana, cinturão verde, praças, parques e residência-jardim,
numa estreita, porém não assumida, relação com o ideário das
Cidades Jardins4 europeias. Nesse modelo, o saber técnico e um
determinado senso estético deveriam guiar e controlar a produção
3
4
Pará, Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Alagoas e Bahia.
Cf. Howard (1996).
dos edifícios, principalmente quando erguidos nas áreas urbanas, a
fim de evitar as “monstruosidades arquitetônicas”.
No atual estágio da nossa pesquisa, é difícil precisar o grau de
incorporação de tais diretrizes. Porém, é possível perceber que a
então Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS) foi um
importante agente de incentivo e construção de edifícios nos
sertões semiáridos, seja nas colônias e postos agrícolas implantados,
seja nos acampamentos e vilas operárias erguidos para viabilizar a
construção de barragens, rodovias e demais obras de infraestrutura.
Dentre outras, a lista de edificações inclui residências, escolas,
postos de saúde, hospitais, laboratórios, cinemas, clubes de lazer,
hangar para aviões, oficinas, usinas de geração de energia, pontes,
galpões, torres para tomada d’água, instalações para a criação de
animais e manejo de plantas. De 1909, ano de criação da Inspetoria
de Obras Contra as Secas (IOCS), até 19595, quando já se chamava
Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS), o
órgão foi praticamente a única agência governamental federal
executora de serviços de engenharia na região, também responsável
pelo socorro às populações afetadas pelas estiagens cíclicas
(DNOCS, 2015).
Com o interesse de iniciar uma aproximação com esse patrimônio
construído, o objetivo do presente trabalho é estudar a arquitetura
produzida pelo DNOCS entre os anos de 1909 e 19596 no chamado
Em 1959, foi criada a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE).
Como já indicado, durante o período, o órgão passou por reestruturações e mudanças de
nome. Aqui, vamos adotar a sua última denominação, que prevalece até os dias de hoje.
5
6
polígono das secas, hoje denominado semiárido do Brasil7. De
modo preliminar, panorâmico e ainda especulativo, os intuitos são:
1) compreender em que contextos surgem tais construções, 2)
mapear a sua abrangência e inserção no território, 3) analisar suas
formas, espaços, usos e tecnologias de construção e 4) traçar um
paralelo com as demais produções arquitetônicas do período, seja
em escala nacional ou internacional. O nosso foco está voltado para
as arquiteturas do morar, do trabalhar, das infraestruturas e das
instituições, finalidades que formavam as bases de atuação do
órgão. Através da dotação de obras hídricas e viárias, em maior
medida, a inspetoria almejava a transformação das condições físicas
das zonas secas como forma de fomentar o desenvolvimento social
e econômico da região. De matriz agropecuária, tais políticas
vislumbravam resultados além da mitigação dos efeitos das
estiagens junto aos flagelados e tinham como um dos seus
principais propósitos a modernização do trabalho, do homem e dos
meios de produção do semiárido brasileiro, em consonância com a
expansão do sistema capitalista no país. Por conseguinte, a
modernização da arquitetura e da construção civil. Daí, a edificação
de grandes barragens para a prática da agricultura irrigada e a
construção de ferrovias, rodovias, redes telegráficas, sistemas de
geração e distribuição de energia elétrica.
Porém, quando nos referirmos a DNOCS, estaremos considerando o conjunto
IOCS/IFOCS/DNOCS.
7 Estados do Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe,
Bahia e Minas Gerais.
Para tanto, as análises partem do conjunto de fotografias publicadas
nos relatórios técnicos e boletins informativos da instituição. Os
relatórios, como o próprio nome sugere, tinham caráter técnico
mais detalhado, aparentavam ser de circulação interna nas
estruturas administrativas do governo e visavam descrever todos os
serviços, estudos, expedientes e orçamentos executados. Talvez,
por isso, sua maior constância durante o nosso período de estudo8.
Já os boletins eram para divulgação das ações. Traziam notícias das
realizações, artigos, estudos, impressões de viagem. Tinham
circulação para além do DNOCS, visto que encontramos remessas
destas publicações enviadas para outras instituições9. Começaram a
ser publicados em 1934 e teve edições constantes até 1941, depois
só retornando em 1958. Nos dois casos (relatórios e boletins), salta
uma das maiores características do órgão: era, e ainda é, uma
instituição de engenheiros, notadamente civis e agrônomos. Eles
ocupavam os cargos mais importantes e assinavam a maioria dos
textos10.
Ao total, reunimos mais de 500 fotografias de situações diversas.
Mais do que apresentar as obras concluídas, os registros flagram os
processos e o cotidiano de construção, nos quais podemos
acompanhar os trabalhadores em ação, os equipamentos e
máquinas utilizados, as tecnologias e materiais empregados e,
principalmente, a odisseia que foi aquilo tudo nos princípios do
Localizamos relatórios publicados nos seguintes intervalos: 1912-13, 1916-17, 1920-29,
1931-41, 1943-53, 1958-59.
9 Até o momento, encontramos registro de envio dos boletins informativos para a Escola
Politécnica da USP (ver Revista Polythecnica a partir de 1939).
10 Dentre outros, também encontramos referências a geógrafos, geólogos e botânicos.
8
século XX. Porém, as fontes possuem seus limites. As fotografias
são registros oficiais, feitas pelo próprio órgão para compor uma
publicação governamental. Assim, os ângulos são selecionados,
muitas cenas são montadas, outras despovoadas. São comuns
imagens que tentam mostrar certa magnitude dos trabalhos, num
esforço constante de criar uma narrativa carregada de tons heroicos.
Sem querer negar possíveis heroísmos na empreitada, mas eles não
devem ter existido sem suas diversas matizes, contradições e
oposições, formando uma cadeia complexa de episódios e
realizações.
A Casa
[aos que chegam do sul] causa-lhes má
impressão a quasi completa falta de
elegancia e conforto das habitações
sertanejas, pois nesse particular os nossos
sertanejos, em geral, contentam se com o
rigorosamente indispensavel. [...] Mas esses
habitos elle os recebe das condições da terra
em que vive [...]. Aquelle casebre arruinado,
sem conforto e sem elegancia, elle não sabe
até quando lhe poderá servir de agazalho:
amanhã faltará, talvez, água em suas terras, e
terá de retirar-se. O diminuto cercado
deteriorado, não sabe se o deva cultivar
todo, porque é muito provavel que si
empregar o mesquinho capital de que
dispõe, em sementes e em limpas, venha á
perder até a semente e o bode que matou
para auxiliar o trabalho. Árvores fructiferas...
para que? Muito antes de colher o primeiro
fructo estarão resequidas e mortas. Seus
filhos e netos com certeza não se enraizarão
alli, porque numerosos como são, não ha
terrenos agricolas na pequena propriedade,
capazes de satisfazer as necessidades da
metade. Confortar sua habitação de móveis
necessarios? Com que fim? Na provavel e
breve retirada não será possível conduzí-los.
Augmentar seu rebanho? Ahi vem a seca, ahi
vem logo um anno escasso para dizimal-o.
Essas incertezas e vacilações, esse facto de
saber que o dia de amanhã, fatalmente,
anniquilará seus esforços é que geram essa
especie de imprevidencia e desleixo, que
pode parecer a quem não conhece as
condições de vida dos sertanejos, oriundos
de inveterados habitos de preguiça
(GUERRA, 1909, p. 183-185).
O tema da casa é um dos mais recorrentes nos debates sobre os
problemas das secas. Reproduzindo discursos médicos e técnicos
comuns naquele começo do século XX, as preocupações recaem
sobre o aspecto insalubre e perigoso da habitação rural do sertanejo
pobre, lugar degenerativo e desarticulador da prosperidade e da vida
familiar. Em 1933, na mesma publicação que abre esse texto,
Evaristo Leitão, comparando as vantagens e desvantagens da vida
no campo e na cidade, diz que são raros os proprietários rurais que
dispõem de conforto doméstico e que os operários do campo
habitam em “choças de palha onde não penetra ar e luz” (LEITÃO,
1937, p. 53). Em 1939, o boletim informativo dos meses de abril a
junho apresenta a fotografia de uma casa feita de palha, madeira,
telha e zinco com a seguinte legenda: “Tipo de casa feita por
operário do Posto Agrícola de São Gonçalo [Paraíba], mostrando a
diversidade do material de construção e a pouca durabilidade de
acordo com o espírito nômade do flagelado” (DUQUE, 1939, p.
161) (Figura 1A).
A sazonalidade do regime de chuvas e a impossibilidade de
perspectivas em longo prazo eram tidas como fatores que
desenraizavam o homem da terra e o colocava sempre em retirada,
nômade, em situação de improviso e precariedade. Por isso, a
morada quase como pouso efêmero, construída com o que se tinha
em mãos e utilizando técnicas artesanais/vernaculares. Nas
fotografias analisadas, predominam as edificações implantadas
diretamente sobre o solo, pequenas, com estruturas de troncos e
galhos de madeira, vedações de fibras vegetais ou taipa de mão
(pau-a-pique) e coberturas de palha, telha ou algum componente
industrializado (como chapas de zinco ou lona), geralmente de duas
águas. As aberturas são poucas, quase sempre a porta de acesso e
alguma janela frontal. Ao se referir a uma casa nesses moldes,
construída no Posto Agrícola de São Gonçalo, Paraíba, Duque
(1939, p.160) afirma que esse era “o tipo de casa mais comum do
homem pobre do sertão nordestino”.
Contudo, mesmo com essa recorrência dos engenheiros e técnicos
do DNOCS em diagnosticar e apontar problemas no tipo de
moradia rural que era comum entre a população mais pobre do
polígono das secas, em matérias publicadas nos relatórios e
boletins, até o momento não encontramos indícios de que o órgão
tenha formulado e executado políticas direcionadas para a questão
habitacional. Os documentos nos mostram que o esforço se
concentrou, em maior medida, em criar as condições físicas que
permitissem a fixação do homem no campo ou nas pequenas
cidades, com a modernização da agropecuária e dos sistemas de
comunicação, transporte, energia, armazenamento e distribuição de
água. Assim, o espaço do morar surge como consequência ou
suporte para essas ações, em três cenários distintos: 1) casas já
existentes beneficiadas pelas novas infraestruturas e tecnologias
domésticas, no campo ou na cidade, 2) residências construídas pelo
DNOCS para engenheiros, técnicos e operários nas colônias e
postos agrícolas e nos acampamentos para construção das grandes
barragens, 3) residências construídas pelos próprios operários para
sua moradia nas colônias e postos agrícolas e nos acampamentos
para as grandes barragens, conforme os dois exemplos já citados do
Posto Agrícola de São Gonçalo.
Com relação ao primeiro cenário, a partir de 1912, os relatórios
técnicos sempre trazem uma seção relativa à construção de poços e
barragens, que poderiam ser públicos ou em propriedades
particulares, tanto na zona urbana como rural (Figura 1B). Aqui,
não estamos falando dos grandes represamentos, mas de açudes de
pequeno e médio porte, justificados como necessários para as
atividades agropecuárias e para o uso doméstico dos habitantes e
proprietários do lugar. Em última análise, como uma medida
econômica e higiênica. Interessante também notar que as revistas
direcionadas para o homem do campo, que circulavam pelos postos
do DNOCS e possivelmente pela região11, traziam anúncios de uma
série de novidades tecnológicas que prometiam facilitar o cotidiano
da vida no campo, com equipamentos mecânicos e elétricos
voltados para o trabalho e afazeres da casa: carros, caminhonetes,
11
Os principais títulos são Chácaras de Quintais, a partir de 1912, e Sítios e Fazendas.
tratores, moinhos, rádios, geradores elétricos, chocadeiras elétricas,
geladeiras, ventiladores, ferros de passar roupa. Ainda não é
possível mensurar a inserção dessas tecnologias e suas repercussões,
mas podemos especular sobre uma provável mudança nos modos
da vida de uma parcela dos homens do campo, com
desdobramentos nas formas e nos usos dos espaços, especialmente
da casa (instalações para sistemas sanitários e elétricos, surgimentos
de novos cômodos, evolução dos banheiros etc.). Aos poucos, o
conforto doméstico ia chegando, conforme reclamado por Leitão
(1937, p.53).
As casas construídas pelo DNOCS nos acampamentos para a
construção das grandes barragens eram uma forma de arregimentar
e concentrar trabalhadores nesses locais durante o tempo
necessário para a realização da empreitada. As informações
coletadas precisam ser melhor averiguadas, mas nos parece que os
modelos se assemelhavam aos núcleos fabris implantados no país
durante a primeira metade do século XX12: cotidiano regido pelas
lógicas do trabalho e da disciplina, zoneamento de funções
(trabalho, habitação e institucional/lazer) e hierarquização das
residências a partir do nível de qualificação profissional. O
engenheiro chefe morava na maior e, aparentemente, melhor casa,
implantada em local de destaque. Havia uma diminuição e
simplificação da morada de acordo com a escala profissional:
engenheiros, técnicos, auxiliares (Figura 1C). Quase sempre, o
órgão só construía residências para seu quadro técnico mais
12
Cf. Farah (1993) e Correia (1998 e 2010).
qualificado, deixando que grande parte dos trabalhadores resolvesse
por conta própria seu abrigo, ao acaso ou obedecendo algumas
diretrizes de ocupação. Situação similar acontecia nas colônias e
postos agrícolas13. Como exemplos, temos um conjunto de
residências para operários construído no Posto Agrícola do Rio São
Francisco e outro para “operários especializados” erguido no
acampamento do Açude Poço da Cruz, ambos em Pernambuco
(Figura 1F e 1G).
Pelo que pudemos perceber nas fotografias dos relatórios técnicos
e boletins informativos, o órgão construiu casas para dar suporte às
seguintes obras: 1) Acampamento Açude Lima Campos (Icó, Ceará
– fotos 1935-47), 2) Acampamento Açude General Sampaio
(Canindé, Ceará – fotos 1934-51), 3) Acampamento Açude Jaibara
(Sobral, Ceará – fotos 1934-36), 4) Acampamento do Açude
Caxitoré (Aracati, Ceará – foto 1959), 5) Acampamento Açude
Curema (Piancó, Paraíba – fotos 1935-40), 6) Acampamento Açude
de São Gonçalo (Sousa, Paraíba – fotos 1922-52), 7) Acampamento
Açude Poço do Cruz (Moxotó, Pernambuco – fotos 1939), 8)
Acampamento Açude Boa Vista (Salgueiro, Pernambuco – foto de
1959), 9) Posto Agrícola Lima Campos (Icó, Ceará), 10) Posto
Agrícola São Gonçalo (Sousa, Paraíba) e 11) Posto Agrícola Rio São
Francisco (Pernambuco)14. As edificações de Lima Campos,
Curema, São Gonçalo e do Rio São Francisco receberam maior
Os postos agrícolas eram unidades de pesquisa e difusão de novos métodos e tecnologias
para as atividades agropecuárias desenvolvidas no entorno dos grandes açudes construídos
pelo DNOCS.
14 As fotografias dos postos agrícolas estão dentro do intervalo de tempo dos registros dos
açudes.
13
atenção dos fotógrafos. Os documentos consultados indicam a
construção de casas em outras obras da inspetoria, mas sem
apresentar registro fotográfico.
Pelas imagens encontradas, é interessante perceber a repetição de
um partido para as residências dos chefes: 1) implantação em
grandes terrenos, ocupando lugar de destaque (parte mais alta do
sítio), 2) edificação solta no lote e elevada do nível do solo, com as
quatro fachadas livres, 3) planta retangular, 4) alpendres em pelo
menos duas fachadas, 5) grande número de esquadrias ao redor da
casa, com uso de madeira, venezianas e vidro, 6) jogos complexos
de telhado, porém com uma predominância das linhas de três ou
quatro águas, 7) volumetria geral simples, com exceção da
residência do Posto Agrícola de São Gonçalo, que apresenta maior
diversidade de planos, alturas e reentrâncias, 8) presença de colunas
e escadas marcando o acesso. Os desenhos das coberturas e
alpendres, os arcos e frontões recortados aproximam essas
construções das manifestações chamadas de bangalôs ou missões15,
comuns entre os anos 1930 e 1940, principalmente em residências.
Essa recorrência não soa estranha, visto que são todas de um
mesmo período (segunda metade da década de 1930 e começo de
1940) e construídas pelo mesmo órgão para finalidades correlatas
(Figura 1C, 1D e 1E). Uma possível análise das plantas poderia nos
revelar maiores informações dessa produção. Porém, até o
Esse aspecto merece maior estudo. Sobre bangalô ver Gowans (1987). Sobre missões ver
Atique (2010).
15
momento, as fontes consultadas não nos permitem adentrar nas
casas e compreender seus espaços.
Outro fator que nos chama atenção é a proximidade de algumas
dessas casas com a produção residencial do United States Bureau of
Reclamation16 (USBR), instituição estadunidense, criada em 1902,
para fomentar políticas e executar obras hídricas para o
desenvolvimento econômico do oeste estadunidense, região
semiárida daquele país. A então IOCS foi criada a partir desse
modelo e há evidências de trocas e trânsitos entre os profissionais
das duas instituições17. Essa relação precisa de maior investigação.
Porém, sabemos que a contratação de empreiteiras do exterior para
a execução de serviços, as missões técnicas internacionais e o
estabelecimento de convênios para pesquisa e transferência de
tecnologia entre o Brasil e outros países possibilitou que
profissionais estrangeiros aportassem e circulassem pelos territórios
semiáridos brasileiros. No acampamento para a construção do
Açude de Curema, por exemplo, Mariz18 (1978, p. 93-94 apud
ANDRADE, 2008, p. 127)
relata
que
os
engenheiros
estadunidenses fizeram
[...] casas do tipo mais ou menos ao gosto
rural de seu país, adaptado ao nosso clima.
Em geral, estilo e disposições bem diversos
dos nossos de então. Foi notável a
influência. Desde então foram aparecendo,
no interior, casas à semelhança. Outra
maneira interna e externa. Menos corredor,
menos quarto escuro. O piso mais elevado.
Sobre o assunto, ver Pfaff (2007).
Sobre o assunto, ver Araújo (2013).
18 MARIZ, C. Evolução econômica da Paraíba. João Pessoa: A União Cia Editorial, 1978.
16
17
Algum movimento no teto. Até nas casinhas
pobres de taipa, uma imitação proveitosa no
sistema de arejamento e nos estilos de
divisão e de fachada.
É provável que isso tenha levado a um maior desenvolvimento da
cadeia da construção civil do sertão nordestino, com a introdução
e maior difusão de novos métodos construtivos, lógicas de trabalho,
materiais, máquinas e espacializações, inclusive com a maior
inserção do projeto como ferramenta de planejamento e
execução19.Para citar dois exemplos, o DNOCS construiu e
administrou uma indústria de cimento na região e, nos relatórios e
boletins, são comuns fotografias exibindo as máquinas utilizadas
nas obras como uma grande novidade (tratores, guindastes, gruas,
reboques). As diferenças entre as arquiteturas existentes e as
introduzidas pelo órgão podem ser parcialmente percebidas nos
registros do acampamento para a construção do Açude de Lima
Campos (Figura 1H). Em primeiro plano, temos o vilarejo
existente. Suas formas reproduzem os modelos de produção de
cidade que foram predominantes no país até o final do século XIX
e começo do XX: residências implantadas em lotes estreitos e
compridos, edificações alinhadas com a rua e coladas umas nas
outras, coberta de duas águas e cumeeira paralela à rua.
Possivelmente, sua distribuição interna também seguia o modelo da
casa corredor. Já a fileira de casas em segundo plano apresenta as
características indicadas na página anterior, quando nos referimos
às residências dos chefes.
Ainda não temos informações sobre os autores dos projetos arquitetônicos. Mas
acreditamos que eram desenvolvidos pelos engenheiros, nos escritórios técnicos do órgão.
19
Na publicação Os postos agrícolas da Inspetoria de Secas, Trindade
(1940), referindo-se à fotografia da residência do chefe da unidade
de São Gonçalo, diz que “a irrigação dá ao lar rural do sertão um
ambiente de rara beleza e conforto”. Mais uma vez, é a sequência
dos debates que se desdobravam desde 1909 (GUERRA, 1909) e
retomados por Leitão (1937) no começo dos anos 1930. Na
verdade, seria sua concretização. A crença de que a melhoria do
meio, no sentido de criar alternativas de desenvolvimento
econômico para a região, e, com isso, fixar o homem no campo,
traria como consequência maior perenidade e investimentos no
ambiente doméstico, criando um lar de harmonia e conforto para a
vida familiar. Se isso foi verdade para uns, parece-nos que não foi
para a maioria.
Como comentado, foram poucas as habitações construídas pelo
DNOCS para operários, como as do Posto Agrícola do Rio São
Francisco e do acampamento para a construção do Açude Poço do
Cruz. As primeiras eram residências unifamiliares, soltas no lote. Já
as segundas eram geminadas duas a duas, com um volume
posterior, que suspeitamos fossem banheiros. Analisando as
fotografias dessas moradias (Figura 1F e 1G), percebemos algumas
características comuns: 1) base para proteger a edificação da
umidade do solo, 2) dimensões modestas, 3) paredes em alvenaria
de tijolos, 4) presença de janelas em todas as fachadas (madeira,
veneziana, vidro), 5) coberturas de madeira e telhas em desenho de
duas águas, 6) pequeno terraço lateral frontal, 7) simplicidade
volumétrica e ausência de ornamentos. Essa última característica foi
comum a quase toda a produção de casas analisadas até aqui, numa
espécie de investimento, por parte dos engenheiros, na habitação
higiênica e racional20. Porém, até o momento, as fontes nos deixam
pistas de que, na maior parte dos casos, os operários tiveram que
erguer suas próprias casas, seguindo todas as lógicas criticadas pelos
próprios técnicos do DNOCS, como nos casos das residências
levantadas no Posto Agrícola de São Gonçalo.
O debate sobre a habitação higiênica e racional perpassou praticamente todos os
congressos importantes realizados por engenheiros e arquitetos durante a primeira metade
do século XX.
20
Conjunto de imagens 01.
(A) Casa feita por operário do Posto Agrícola de São Gonçalo (PB). Fonte:
Duque, 1939, p.161. (B) Poço Público Saquinho, 1949. Rodovia TeresinaValença-Picos. Fonte: DNOCS, 1950. (C) Parte do acampamento para a
construção do Açude Curema, 1937. Piancó, Paraíba. Fonte: IFOCS, 1938. (D)
Residência do Chefe do Posto Agrícola de Lima Campos, 1935. Icó, Ceará.
Fonte: IFOCS, 1936. (E) Residência do Chefe do Posto Agrícola de São
Gonçalo, década de 193021. Sousa, Paraíba. Fonte: https://goo.gl/JQHyQ4. (F)
Residência para operário, Posto Agrícola do Rio São Francisco, 1946.
Pernambuco. Fonte: DNOCS, 1947. (G) Residências para “operários
especializados”, Acampamento Açude Poço do Cruz, 1939. Moxotó,
Pernambuco. Fonte: IFOCS, 1944. (H) Acampamento Açude Lima Campos, Icó,
Ceará, 1939. Fonte: IFOCS, 1944.
Existem fotografias dessa casa no Relatório Técnico de 1937. Porém, decidimos apresentar
essa imagem coletada da internet por apresentar um ângulo que nos permite verificar duas
fachadas.
21
O trabalho e a infraestrutura
O debate sobre a modernização do trabalho e do trabalhador dos
sertões semiáridos foi tema recorrente durante nosso período de
estudo. Em parte, as obras contra as secas surgiram como uma
espécie de socorro aos flagelados, nas quais o governo oferecia
alguma assistência (dinheiro, comida, serviços médicos e sanitários
– com frequência, de modo muito precário) em troca de horas de
labuta. Também era uma forma de controlar os fluxos migratórios
para as capitais e maiores cidades, evitando o despovoamento do
interior22. Além disso, acreditamos que as obras contra as secas
foram uma oportunidade para se introduzir novas formas e relações
de trabalho, a partir das lógicas industriais da disciplina e
sincronização das atividades, em contraposição aos ritmos e ciclos
da agropecuária praticada até então. Ao longo dos documentos do
DNOCS, transparece o esforço para se constituir um operariado da
construção civil na região que fosse capaz de trabalhar em grandes
grupos organizados e de operar as inovações tecnológicas. Algumas
das grandes obras de infraestrutura, notadamente as barragens,
exigiam esforços concentrados e meios de produção específicos.
Por isso, os acampamentos para arregimentar e treinar mão de obra
qualificada.
Nesse sentido, surgiu uma série de edificações que serviu como
suporte para o desenvolvimento dessas atividades do trabalho e
também para as infraestruturas instaladas: usinas termoelétricas,
22
Cf. Albuquerque Junior (1988).
usinas para produção de cimento, casas de força, casas de bomba,
galpões, estações de trem, oficinas, almoxarifados, hangar para
aviões, estábulos, torres para suporte de fios de alta tensão, pontes,
torres de tomada d’água. Desse universo, as pontes foram as que
tiveram maior dispersão pelo semiárido, como parte dos serviços
rodoviários e ferroviários. Porém, em grande medida, essas
instalações estiverem vinculadas às obras das grandes barragens e
das colônias e postos agrícolas. A partir das fotografias, é
interessante observar como agiram para subverter a natureza e os
limites geográficos dos sítios, promovendo uma transformação na
paisagem rural da caatinga, principalmente durante os processos de
construção. Há, em alguns registros, certa eloquência nessa
demonstração. Assim como há uma aparente eloquência na
demonstração dos contrastes entre o existente e o novo, o arcaico
e o moderno.
Analisando as construções mais de perto, percebemos uma grande
variedade de tipos, linguagens, escalas, materiais, soluções
estruturais e tecnologias construtivas, de acordo com o programa
atendido. A necessidade por grandes vãos, espaços internos
ventilados e iluminados e leveza das estruturas levou a uma
diversidade nas resoluções das coberturas das casas de força,
oficinas, galpões e hangares: tesouras de madeira, tesouras e arcos
metálicos, telhas cerâmicas (tipo marselha) e metálicas, lanternins,
grande número de planos envidraçados, coberturas soltas do corpo
principal das construções. Em alguns casos, as coberturas surgem
sobre um corpo principal construído por material mais pesado,
perceptível pela espessura das paredes e pilares e pela relação entre
cheios e vazios (alvenaria de tijolos, aparentemente). Em todos os
casos, é uma arquitetura destituída de ornamentos, fruto das
investigações e possibilidades técnicas e das exigências espaciais.
Determinados partidos, somados à presença de chaminés,
aproximam essa produção da arquitetura agroindustrial que tem
sido alvo de estudos em livros e seminários23 recentes (Figura 2A,
2B e 2C).
As construções de menor escala apresentam menor diversidade
técnica e tipológica. Geralmente, são edificações de um pavimento,
com pequenos vãos de espaços e aberturas de fachada, cobertas de
duas ou quatro águas, com estruturas de madeira e telha cerâmica,
paredes de alvenaria de tijolos, eixos de simetria, plantas
retangulares, simplicidade volumétrica, esquadrias de madeira
serrada (duas folhas, veneziana e vidro), predominância de cheios
sobre vazios, simplicidade ou completa ausência de ornamentos
(estações ferroviárias, casas de bomba, pequenas oficinas,
almoxarifados e estábulos). Muitos desses edifícios tinham função
secundária nos arranjos montados ou mesmo caráter efêmero, de
um canteiro de obras que seria desmontado ou abandonado após a
finalização dos serviços. Talvez, em parte, isso explique a
austeridade das formas resultantes, que também pode ser atribuída
a uma relação entre praticidade, demandas programáticas e
contexto local de mão de obra e materiais disponíveis.
23
Cf. Correia e Bortolucci (2013).
Aparentemente, os engenheiros dedicavam maiores esforços para
as grandes e principais obras de infraestrutura (Figura 2D e 2E).
Pelos registros fotográficos, os grandes arrojos e pesquisas técnicas
estavam vinculados às obras de infraestrutura hídrica, rodoviária ou
ferroviária. Desse universo, as pontes surgem como elementos de
destacada atenção e experimentação da engenharia de estruturas.
Os vãos transpostos são registrados em cada fotografia: 5, 8, 15, 20,
30, 40, 60, 75, 90, 180 metros. Os relatórios e boletins flagram o
notório esforço na superação das barreiras naturais, vencendo
abismos, desvãos e leitos de rios, conectando os territórios em prol
de uma maior rapidez de circulação dos transportes mecânicos. Os
materiais e as geometrias estruturais são variados e muitas vezes
utilizados de forma associada: madeira, concreto, aço, concreto +
aço, sistemas viga/pilar, arqueados, treliçados, pênsil (suspensas
por cabos de aço). O uso do concreto armado é predominante
nesses casos e também na construção de passadiços e torres de
tomada d’água. Interessante observar certa recorrência do uso de
elementos decorativos art déco nas torres de tomada d’água: linhas
geométricas, reforço da verticalidade, marquises delgadas (Figura
2F e 2G).
As instituições
O DNOCS construiu ou ocupou alguns edifícios para abrigo de
suas sedes em capitais do Nordeste, principalmente na cidade de
Fortaleza (CE). Também há indícios, em alguns trabalhos
acadêmicos (ANDRADE, 2008), de que o órgão ergueu cinemas
(neocoloniais),
clubes
recreativos,
hospitais,
prédios
para
consultórios e hotéis nos acampamentos para a construção das
grandes barragens. Porém, aqui, a nossa atenção está voltada para a
produção institucional retratada nos relatórios técnicos e boletins
informativos através de fotografias. Este patrimônio edificado
surgiu com o propósito de oferecer suporte aos planos de
modernização da infraestrutura, da agropecuária e da mão de obra
do polígono das secas, oferecendo as condições para fixação do
homem no meio rural. Além do camponês, houve o esforço para
estabelecer no local técnicos e pesquisadores que pudessem
desenvolver alternativas e difundir conhecimentos para a renovação
das práticas agropecuárias. Nesse sentido, foram construídas
escolas, laboratórios experimentais, institutos de pesquisa e
escritórios técnicos.
Assim como no item anterior, aqui também não é possível
identificar um partido comum adotado para os edifícios
institucionais, inclusive nos mesmos tipos de uso, como nas escolas.
A não ser pela simplicidade técnica e construtiva, que pareceu
predominar em grande parte a produção: volumetrias compactas de
um ou dois pavimentos, alvenaria de tijolos24, uso de telhas
cerâmicas em duas ou quatro águas, esquadrias de madeira, ausência
de ornamentos. As linguagens estéticas possuem proximidades com
bangalôs (telhado do Grupo Escolar de Curema), o neocolonial
Os relatórios flagram alguns desses edifícios em construções, onde é possível observar a
alvenaria de tijolos.
24
(marquises de telha do Escritório Secção Fito-Sanidade) e a
arquitetura moderna (telhado borboleta e brises do Laboratório de
Solos e Concreto). Interessante observar o uso de alpendres no
Grupo Escolar de Curema e no Instituto José Augusto Trindade,
possibilitando uma circulação em volta do prédio e garantindo o
sombreamento das paredes do edifício. Em todos os casos, não há
uma forte presença do aspecto simbólico ou monumental,
recorrente em alguns edifícios institucionais como recurso para
reforçar a imagem e a presença do Estado25 (Figura 2H e 2I).
25
Cf. as Escolas Práticas de Agricultura pesquisadas por Mascaro (2010).
Conjunto de imagens 02.
(A) Casa de Força. Acampamento Açude Curema, 1935. Sousa, Paraíba. Fonte:
IFOCS, 1936. (B) Galpão para abrigo de locomotiva. Açude de Orós, 1929.
Orós, Ceará. Fonte: IFOCS, 1930. (C) Hangar. Campo de Aviação de Sousa
(PB), 1940. Fonte: IFOCS, 1946. (D) Estação de Trem, 192. Orós, Ceará. Fonte:
IFOCS, 1924. (E) Oficina mecânica. Posto Agrícola São Francisco, 1946.
Pernambuco. Fonte: DNOCS, 1947. (F) Ponte de concreto. Rodovia região de
Icó, Ceará, 1939. Fonte: IFOCS, 1944. (G) Torre de Tomada D’água. Açude de
São Gonçalo, 1935. Sousa, Paraíba. Fonte: IFOCS, 1936. (H) Instituto José
Augusto Trindade, 1949. Açude de São Gonçalo. Sousa, Paraíba. Fonte:
DNOCS, 1950. (I) Laboratório de Solos e Concreto, 1959. Campina Grande,
Paraíba. Fonte: DNOCS, 1960.
Considerações
A partir do que foi apresentado ao longo do texto, podemos fazer
algumas especulações sobre a produção de arquitetura e demais
obras de infraestrutura do DNOCS:
1.
2.
3.
4.
5.
O conjunto de realizações do órgão surgiu dentro do
contexto de modernização da economia e da sociedade
brasileira, que vinha tomando corpo desde o final do século
XIX e ganhou vulto durante toda a primeira metade do
século XX;
As obras tinham como um dos objetivos instalar uma
infraestrutura hídrica, de comunicação e transporte que
criasse as bases para a expansão de um determinado tipo de
economia capitalista na região, modernizando as atividades
produtivas do semiárido;
Junto a isso, promover progressos técnicos e materiais na
agropecuária, no mundo do trabalho e nos modos de vida da
população;
As obras ocorreram por todo o polígono das secas, de forma
difusa. Porém, as grandes realizações estruturantes foram
mais visíveis no interior dos estados do Ceará, Paraíba, Rio
Grande do Norte e Pernambuco (açudes, postos agrícolas,
perímetros irrigados);
Grosso modo, as residências construídas para os técnicos do
órgão possuíam partidos similares e técnicas construtivas
simples, com linguagens estéticas modestas (nenhum ou
poucos ornamentos) e algumas vinculações com as
produções arquitetônicas nacionais e internacionais vigentes
na primeira metade do século XX (bangalôs, missões);
6.
7.
As edificações para os demais programas não possuíam
similaridades de partido. Eram fruto das demandas
colocadas, das técnicas e da mão de obra disponíveis. A
pesquisa e o arrojo estrutural estavam direcionados, em
maior medida, para as obras de infraestrutura e não para as
edificações (pontes, barragens, torres de tomada d’água);
As obras foram projetadas por engenheiros.
Assim, acreditamos que o DNOCS foi um importante agente de
modernização da arquitetura e da construção civil no interior do
Nordeste. Ao longo dos próximos anos de pesquisa, com o avanço
da análise das fontes e a busca por novos documentos, algumas
dessas colocações poderão ser confirmadas, contrariadas e/ou
desdobradas, de modo a se ter um amplo retrato do que
representou, em termos de arquitetura e produção de cidades, a
entrada do Estado brasileiro, via DNOCS, nos territórios da
caatinga.
Referências
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Maria Angela P. C. S. Bortolucci
Universidade de São Paulo, Instituto de Arquitetura e Urbanismo, IAUUSP, São Carlos, SP, Brasil
[email protected]
Resumo
Este artigo se insere no tema da preservação do patrimônio urbano no
Brasil, ao tomar por objeto as cidades médias e pequenas do interior
paulista, que tiveram sua consolidação fortemente atrelada ao avanço
da franja cafeeira, ocorrido em boa parte do século XIX e das primeiras
décadas do século XX, graças ao avanço da ferrovia, à importação de
materiais e à vinda de imigrantes. O poder de grandes proprietários de
terras permitiu as condições ideais para o florescimento de novas
arquiteturas e novos modos de morar em terras distantes dos maiores
centros urbanos da época. O artigo observa que, em termos gerais,
essas cidades apresentam um contexto insatisfatório no que se refere à
preservação do patrimônio cultural, contribuindo para isso a ausência
de políticas públicas de âmbito local e regional, o crescimento urbano
desordenado e os interesses do setor imobiliário. Paralelamente a isso,
há a falta de conhecimento das sociedades locais a respeito do próprio
patrimônio edificado, o que têm impedido a possibilidade de se
concretizar ações preservacionistas mais efetivas e prevalecido a
atuação de forças que se opõem à preservação. A análise é ilustrada
com a inclusão de dois casos de preservação espontânea – cidades de
Mococa e Bocaina –, servindo, no entanto, para reafirmar a
importância de políticas públicas de apoio à preservação e à
conservação do patrimônio cultural dessas cidades médias e pequenas
do interior paulista. A discussão está fundamentada em diversos
autores, dentre eles: Furlaneto; Kühl; Meneses; Paladini; Nascimento;
Rufinoni; Vieira, Roma e Miyazaki.
Palavras-chave: Preservação do patrimônio urbano no Brasil.
Cidades médias e pequenas. Interior paulista. Bocaina-SP. Mococa-SP.
Abstract
This article falls under the theme of the preservation of urban
heritage in Brazil, by taking the medium and small cities of the
interior of São Paulo (state) as the research object, that had their
consolidation strongly linked to the advancement of coffee fringe,
occurred in much of the 19th century and the first decades of the
20th century, thanks to the advance of the railway, the import of
materials and the arrival of immigrants. The power of large
landowners allowed the ideal conditions for the flourishing of new
architectures and new ways of living in lands far from the largest
urban centers of the time. The article notes that, broadly speaking,
these cities present an unsatisfactory context with regarding the
preservation of cultural heritage, contributing to this the absence of
public policies at local and regional level, disorderly urban growth
and the interests of real state sector. Parallel to this, there is a lack
of knowledge of local societies about the built heritage itself, which
have impeded the possibility of carrying out more effective
preservation actions and the operation of forces that oppose the
preservation prevailed. The analysis is illustrated with the inclusion
of two cases of spontaneous preservation – Bocaina and Mococa
cities –, serving, however, to reaffirm the importance of public
policies to support the preservation and conservation of cultural
heritage of these medium and small cities of São Paulo. The
discussion is based on several authors, among them: Furlaneto;
Kühl; Meneses; Paladini; Nascimento; Rufinoni; Vieira, Roma e
Miyazaki.
Keywords: Preservation of urban heritage in Brazil. Medium and
small cities. Interior of São Paulo (state). Bocaina-SP. Mococa-SP.
Resumen
Este artículo se enmarca en el tema de la preservación del
patrimonio urbano en Brasil, tomando como objeto de
investigación las medianas y pequeñas ciudades del interior de São
Paulo (estado), que tuvieron su consolidación fuertemente ligada al
avance de la franja cafetera, ocurrido en gran parte del siglo XIX y
las primeras décadas del siglo XX, gracias al avance del ferrocarril,
la importación de materiales y la llegada de inmigrantes. El poder
de los grandes terratenientes permitió las condiciones ideales para
el florecimiento de nuevas arquitecturas y nuevas formas de vida en
terrenos alejados de los mayores centros urbanos de la época. El
artículo señala que, a grandes rasgos, estas ciudades presentan un
contexto insatisfactorio con respecto a la preservación del
patrimonio cultural, contribuyendo a ello la ausencia de políticas
públicas a nivel local y regional, el crecimiento urbano desordenado
y los intereses del sector inmobiliario. Paralelamente, existe un
desconocimiento de las sociedades locales sobre el propio
patrimonio construido, que han impedido la posibilidad de realizar
acciones de preservación más efectivas y prevalecido el
funcionamiento de fuerzas que se oponen a la preservación. El
análisis se ilustra con la inclusión de dos casos de preservación
espontánea – ciudades de Bocaina y Mococa –, sirviendo, sin
embargo, para reafirmar la importancia de las políticas públicas para
apoyar la preservación y la conservación del patrimonio cultural de
estas medianas y pequeñas ciudades de São Paulo. La discusión se
basa en varios autores, entre ellos: Furlaneto; Kühl; Meneses;
Paladini; Nascimento; Rufinoni; Vieira, Roma e Miyazaki.
Palabras clave: Preservación del patrimonio urbano en Brasil.
Ciudades medianas y pequeñas. Interior de São Paulo (estado).
Bocaina-SP. Mococa-SP.
Introdução
No âmbito da preservação do patrimônio urbano no Brasil,
pretendemos canalizar o foco de discussão deste artigo para as
pequenas e médias cidades do interior paulista1, que tiveram o
surgimento, e/ou a consolidação, fortemente vinculados ao avanço
da "franja cafeeira"2, ocupando terras virgens e expulsando índios,
ou promovendo a substituição de antigas culturas pelo café, ao
mesmo tempo em que se constituía um verdadeiro rosário de
cidades3, ao longo de parte do século XIX e das primeiras décadas
do século XX, graças ao avanço da ferrovia, à importação de
materiais e à vinda de imigrantes4. Esses foram ingredientes
Estamos nos referindo às cidades das regiões administrativas de Araçatuba, Barretos, Bauru,
Campinas, Central (Araraquara e São Carlos), Franca, Marília, Presidente Prudente, Ribeirão
Preto, São José do Rio Preto e Sorocaba, excetuando as regiões da Grande São Paulo, de
Santos e do Litoral Sul, do Vale do Paraíba e do Litoral Norte.
2 Franja cafeeira foi a expressão usada por Pierre Monbeig (1984), em sua obra "Pioneiros e
fazendeiros de São Paulo", referindo-se à avassaladora expansão da cultura cafeeira no
território paulista. Para saber mais sobre esse aspecto e a ocupação dessa porção do território
ver também Warren Dean (1977) "Rio Claro: um sistema brasileiro de grande lavoura 18201920".
3 Luís Saia, em seu livro "Morada Paulista", ao tratar da ocupação dessa porção do território
paulista, usa a expressão "distribuição das cidades em rosários", devido à preferência pela
localização nos espigões (SAIA, 1978, p.50). Entretanto, chamamos a atenção para o fato de
que a pouca distância existente entre esses núcleos urbanos fornece ainda mais propriedade
para sua utilização até nos dias atuais.
4 É farta a produção bibliográfica, antiga e recente, que trata da ocupação da região paulista
sob a égide da cafeicultura abordando temas diversos – desde a abertura de uma fazenda de
café e os meios de produção; a forma de transporte inicial e a instalação das ferrovias; a
utilização de mão de obra escrava e de imigrantes europeus nas lavouras; as técnicas e
materiais construtivos importados e a atuação dos profissionais imigrantes; dentre tantos
outros –, sob a perspectiva das várias áreas do conhecimento – economia, sociologia,
antropologia, engenharia, arquitetura, literatura etc.. Claro que nesse universo há margem
para uma diversidade de enfoques e abordagens, onde por vezes encontramos posições
divergentes, ou até um pouco superadas, de qualquer modo são leituras fundamentais. Alguns
são verdadeiros clássicos indispensáveis – especialmente aos que se iniciam no tema –, como
os já mencionados Warren Dean (1977) e Pierre Monbeig (1984) – cuja primeira versão foi
editada em Paris em 1952 –, mas também, e não menos importantes, Odilon Nogueira de
Mattos (1974), Sergio Milliet (1982), José Roberto do Amaral Lapa (1986), e certamente os
1
fundamentais para que houvesse a intensificação das relações
urbanas e a incorporação de padrões estéticos e construtivos
inspirados no gosto em voga na Europa, aos moldes do que ocorria
na capital paulista, prevalecendo, de início, o ecletismo de viés
classicizante e historicista até o limiar do século XX e, logo depois
e até concomitantemente, admitindo novas expressões vinculadas
ao art-nouveau, art-dèco, arts and crafts, missões e neocolonial
(BORTOLUCCI, 1991). Podemos dizer, mesmo levando em conta
as nuances de cada lugar, que em comum havia o forte desejo de
modernidade e de modernização, e que o poder político e
econômico de grandes proprietários de terra forneceu as condições
ideais para o florescimento dessas arquiteturas e de novos modos
de morar em terras distantes dos maiores centros urbanos da época
(BORTOLUCCI, 1991 e 2019).
As ponderações que trazemos aqui estão longe de qualquer
pretensão de esgotar o assunto, ou de corresponder à complexidade
que envolve a questão da preservação do patrimônio nesses núcleos
urbanos do interior paulista. Nossa motivação é muito mais a de
compartilhar inquietações que são fruto de alguma experiência de
pesquisa e da observação de um processo de transformações que
vem afetando essas cidades, dentre as quais está São Carlos, onde
se localiza a instituição à qual mantivemos, desde 1983, o nosso
vínculo profissional como docente e pesquisadora5. Nossos
quinze volumes da história do café de Afonso de Taunay (1939), ou sua versão condensada
(TAUNAY, 1945), dentre muitos outros.
5 Essa temática nos interessa desde a década de 1980, basicamente devido a dois motivos: o
primeiro foi o vínculo como docente no então Departamento de Arquitetura e Planejamento
da EESC/USP, em São Carlos; e o segundo foi o início do doutorado na FAU/USP, em
interesses de pesquisa e ensino nos possibilitaram uma aproximação
de inúmeras cidades e conjuntos rurais situados em municípios do
interior paulista, notadamente, das seguintes regiões administrativas
do estado de São Paulo: Central (Araraquara e São Carlos),
Campinas, Ribeirão Preto, Bauru, São José do Rio Preto e Franca.
Discutindo o problema
Em termos gerais, podemos afirmar que, independentemente de
circunstâncias peculiares locais, essas cidades médias e pequenas do
interior paulista compartilharam, e ainda compartilham, de um
quadro de semelhanças que vão muito além do contexto histórico
e sócio-econômico que determinou sua gênese e/ou o
desenvolvimento sob a égide da cafeicultura. Parece-nos
fundamental iniciar a discussão pontuando alguns aspectos da
1985, sob orientação do Prof. Dr. Carlos Lemos, que resultou na tese intitulada "Moradias
urbanas construídas em São Carlos no período cafeeiro" (BORTOLUCCI, 1991). Ainda
sobre o assunto em tela e tendo São Carlos como estudo de caso, ver artigos mais recentes:
"Triste sina dos casarões ecléticos de São Carlos" (BORTOUCCI, 2019) e "Preservação da
arquitetura paulista do século XIX e das primeiras décadas do século XX: caso das moradias
urbanas de São Carlos - SP" (BORTOLUCCI, 2017). Desde o ano de 1991 passamos a
integrar o corpo docente do programa de pós-graduação (atual PPG-AU - IAU/USP), tendo
a oportunidade de orientar dissertações e teses sobre a produção arquitetônica do interior
paulista – ver mais sobre esse aspecto em Bortolucci (2018) –, como também liderar o grupo
de pesquisa "Patrimônio, Cidades e Territórios", sediado no IAU/USP - São Carlos, SP, e
criado no Diretório do CNPq em 2013, congregando pesquisadores afinados com temas
pertinentes ao patrimônio brasileiro como um todo, embora seja destaque o número de
pesquisas dedicadas ao contexto urbano e rural paulista. Além disso, não menos relevante foi
a contribuição da disciplina IAU5908 - Produção Arquitetônica Paulista do Século XIX até
Meados do Século XX, que ministramos desde o ano de 1999 no programa de pós-graduação,
na qual o ensinar e o aprender estiveram sempre muito imbricados, nos permitindo ampliar
o conhecimento a respeito da região paulista, notadamente porque, dentre outras atividades,
a disciplina incluía visitas a cidades e conjuntos rurais que estivessem a uma distância de São
Carlos em torno de 150 km, para que pudéssemos cumprir uma programação de apenas um
dia a cada visita.
história mais recente desses lugares relacionados à complexidade
dos "processos e dinâmicas urbanas" e para isto nos valemos do
texto de Vieira, Roma e Miyazaki (2007) que analisam essa questão
de forma geral no âmbito brasileiro e particularmente no interior
do estado de São Paulo. Segundo os autores:
No contexto da intensificação do processo
de
urbanização
e
globalização,
principalmente após a década de 1970, notase que as cidades médias e pequenas passam
a desempenhar um papel cada vez mais
relevante na configuração e estruturação da
rede urbana brasileira.
Em muitas cidades médias, verifica-se um
crescimento demográfico superior aos das
metrópoles, absorvendo populações atraídas
pelas melhores condições de vida, bem
como o aumento do PIB, pela atração de
novos investimentos e serviços. Por outro
lado, vale lembrar que esse crescimento se
dá no contexto de uma urbanização desigual
e excludente.
As pequenas cidades também passam por
mudanças significativas. Estes núcleos
urbanos sofrem transformações frente às
dinâmicas relacionadas à expansão agrícola e
desconcentração industrial, sendo que, em
alguns casos, superam a velha hierarquia
urbana da rede, estabelecendo relações no
contexto
nacional
e
até
mesmo
internacional. (VIEIRA, ROMA E
MIYAZAKI, 2007, p.152-3)
Os autores (VIEIRA, ROMA E MIYAZAKI, 2007), neste artigo
"Cidades médias e pequenas: uma leitura geográfica", analisam as
"transformações da rede urbana, focalizando o processo de
aglomeração que passa a se manifestar também nas cidades de porte
médio e pequeno", a partir da discussão do tema "polêmico e
controverso" dos critérios e variáveis para classificação dessas
cidades. Afirmam que, dentre os critérios para a definição de cidade
média está o demográfico, embora não exista uma correspondência
absoluta entre o número da população e o desempenho na rede
urbana, em geral são aceitas como cidades médias aquelas que
apresentam uma demografia igual ou superior a 100 mil habitantes
e até o limite de 500 mil. Enfatizam a importância de um segundo
critério que observe "a relevância regional", considerando "a forma
como as cidades interagem e se inter-relacionam com as outras ao
seu redor, com as suas semelhantes e com as metrópoles", e
também a sua capacidade industrial e de serviços de novas
tecnologias, e quão mais atrativas são a novos investimentos do que
as cidades vizinhas, desse modo afirmam seu "destaque regional".
Além disso, chamam a atenção para os percentuais de "renda per
capita" e de "outros índices sociais", que, no caso das cidades
médias do interior paulista, apresentam uma média superior à média
das cidades brasileiras. Sob essa perspectiva, os autores
demonstram que nas cinco cidades analisadas – São José do Rio
Preto, Marília, Presidente Prudente, Araçatuba e Bauru –, com base
em dados do IPEA, todas apresentam IDH-M (Índice de
Desenvolvimento Humano Municipal) superior a 0,8, enquanto a
média brasileira é de 0,766. Sobre as pequenas cidades, ainda no
mesmo artigo, trazem a classificação do IBGE que considera as
cidades pequenas brasileiras "como sendo aglomerados urbanos
com contingente populacional de até 50 mil habitantes" e, no
intuito de incluir critérios qualitativos, buscam apoio em Milton
Santos (1978 e 1981) que, ao levar em conta as dinâmicas existentes
nesses espaços, cria o conceito de "cidade regional". Assim, ao
considerar o desempenho regional da cidade e não apenas o
número de habitantes, os autores evidenciam que cidades como
Dracena, Adamantina e Osvaldo Cruz (10ª Região Administrativa
de São Paulo) exercem esse "papel de atração, em relação às cidades
menores de seu entorno", mas, ainda "dependem de serviços mais
especializados" que estão nas cidades maiores das proximidades,
evidenciando as limitações relativas à compreensão dessas
pequenas cidades, que "podem ser consideradas cidades regionais,
segundo determinados parâmetros, e apresentarem características
típicas de cidades locais" (VIEIRA, ROMA e MIYAZAKI 2007,
p.136-140). Nesse cenário, da mesma forma que os autores,
assinalamos a pouca expressividade no número de pesquisas sobre
as pequenas cidades brasileiras que, em menor escala, apresentam
as mesmas dinâmicas e problemas das grandes cidades. Referindose ao estudo sobre a "Caracterização e Tendências da Rede Urbana
do Brasil" (IPEA, 2001), os autores destacam a identificação de
onze aglomerações urbanas não-metropolitanas de São Paulo –
Santos; São José dos Campos; Guaratinguetá–Aparecida; Sorocaba;
Jundiaí; Moji-Graçú–Moji-Mirim; Limeira; Araraquara; Ribeirão
Preto; São José do Rio Preto; e Araçatuba –, das quais a maior parte
está no interior do estado. Chamam a atenção para a necessidade
de perceber que "outros centros urbanos do interior paulista
também apresentam tendência à aglomeração, num processo que
envolve cidades médias e pequenas", como o exemplo dado da
cidade de Presidente Prudente que, "além de manter fortes vínculos
com as cidades de seu entorno, já apresenta uma tendência à
continuidade territorial urbana" (VIEIRA, ROMA e MIYAZAKI
2007, p.147-151).
Ao buscar dados mais recentes sobre regiões metropolitanas e
aglomerações urbanas de São Paulo na Biblioteca Virtual do
Governo do Estado de São Paulo, encontramos que, atualmente,
além da capital paulista, são consideradas mais cinco regiões
metropolitanas, a da Baixada Santista, a do Vale do Paraíba e Litoral
Norte, a de Campinas6, a de Ribeirão Preto7 e a de Sorocaba8. Entre
as aglomerações urbanas, que diferentemente das regiões
metropolitanas não possuem a caracterização de um município
como pólo de atração, estão as de Franca9, Jundiaí10 e Piracicaba11.
De qualquer modo, independentemente de oscilações nas
categorizações observadas ao longo do tempo envolvendo essas
cidades médias e pequenas, é evidente que esse processo de
urbanização e globalização brasileiro, conforme assinalado pelos
Com 19 municípios em um território de 3.645,67 km² e população em torno de 2.976.433
habitantes (Recuperado de http://www.bibliotecavirtual.sp.gov.br/).
7 Com 34 municípios, área de 14.787,89 km² e população estimada em 1.662.645 habitantes
(Recuperado de http://www.bibliotecavirtual.sp.gov.br/).
8 Com 26 municípios, 9.821, 32 km² de área territorial e população em torno de 1.805.473
habitantes (Recuperado de http://www.bibliotecavirtual.sp.gov.br/).
9 Com 19 municípios da região de Franca, Ituverava e São Joaquim da Barra com uma
população
estimada
em
657.753
habitantes
(Recuperado
de
http://www.bibliotecavirtual.sp.gov.br/).
10 Inserida entre as regiões metropolitanas de São Paulo e Campinas, com sete municípios e
população
por
volta
de
804.936
habitantes
(Recuperado
de
http://www.bibliotecavirtual.sp.gov.br/).
11 Com 23 municípios e população em torno de 1.481.652 habitantes (Recuperado de
http://www.bibliotecavirtual.sp.gov.br/).
6
autores Vieira, Roma e Miyazaki (2007), atinge de modo particular
e intenso essa porção do interior paulista12.
Assim, desde os anos 1970 estamos diante de transformações que
abarcam relações cada vez mais complexas de caráter intra-urbano
e interurbano, com uma crescente intensificação de fluxos e
vínculos econômicos, sociais e culturais, aliados à já conhecida
identificação histórica, que extrapolam, quase sempre, o âmbito
regional e alcançam diretamente esferas nacionais ou internacionais.
Ao mesmo tempo em que ocorre a dispersão urbana de maneira
cada vez mais acelerada, submetida a modos de vida e de consumo
tipicamente
metropolitanos,
consequentemente
aumenta
a
demanda por maior mobilidade e acessibilidade, se estabelecem
No sentido de colaborar mais para a compreensão da magnitude desse processo de
urbanização do interior paulista, trazemos o artigo de Moacir M. F. Silva (1946, p. 21-22)
para a Revista Brasileira de Geografia. O autor, se valendo principalmente de dados do censo
de 1940, apresenta uma "tentativa de classificação das cidades brasileiras", embora ele próprio
faça a ressalva de utilizar "a população do município como sendo a da cidade que lhe dá o
nome por não dispor de dados mais precisos", de qualquer modo, o que mais nos importa é
que essa classificação nos permite constatar o posicionamento ainda bastante tímido das
cidades paulistas naquele momento, notadamente ao compararmos com o quadro atual,
ainda que também já demonstrasse certo destaque em relação ao cenário nacional. Naquela
época, a capital paulista (São Paulo: 1.318.539 habitantes) aparece em segundo lugar
dividindo com Rio de Janeiro (1.781.567 habitantes) o título de cidades grandes com mais de
um milhão de habitantes. Dentre as cidades médias: acima de 150 mil habitantes aparece a
cidade paulista de Santos (169.889 habitantes), dividindo essa classificação com outras quatro
cidades brasileiras, dentre elas três capitais; abaixo de 150 mil habitantes estão treze cidades
e apenas uma delas é uma paulista, Campinas (131.642 habitantes). Enquanto que dentre as
cidades brasileiras com população entre 50 mil e 100mil habitantes, o autor apresenta 98, das
quais 19 são de São Paulo, destas, sete apresentam uma população acima de 75.000 habitantes
– Monte Aprazível (92.004 habitantes), Santo André (90.726 habitantes), Marília (81.396
habitantes), Ribeirão Preto (80.591 habitantes), Piracicaba (77.576 habitantes), Presidente
Prudente (76.382 habitantes) e São José do Rio Preto (75.046 habitantes) – e, abaixo de 75
mil, são doze cidades paulistas – Sorocaba (70.835), Araraquara (68.496 habitantes), Lins
(67.320 habitantes), Pirajuí (66.409 habitantes), Jundiaí (58.807 habitantes), Franca (56.542
habitantes), Pompéia (55. 918 habitantes), Bauru (55.855 habitantes), Bragança Paulista
(53.066 habitantes), Tanabi (52.786 habitantes), Olímpia (51.469 habitantes) e Mirassol
(51.254 habitantes). Ainda conforme dados apresentados por Moacir Silva (1946, p. 33), em
1940, outras quatro cidades paulistas apresentavam populações apenas um pouco abaixo de
50 mil habitantes – Jaboticabal (40.922 habitantes), Rio Claro (47718 habitantes), São Carlos
(49.149 habitantes) e São João da Boa Vista (39.455 habitantes).
12
novas relações entre campo e cidade, entre centro e periferia,
potencializados com a implantação de projetos de âmbito regional,
intervenções urbanísticas de âmbito residencial, comercial, de lazer
ou cultural, e alteram atratividades e centralidades, provocando,
desse modo, efeitos irreversíveis no tecido urbano e no patrimônio
construído dos núcleos antigos dessas cidades13. Aliado a tudo isso,
atitudes desastrosas de gestores públicos, que se rendem com
facilidade a interesses do setor imobiliário e abdicam de suas
responsabilidades
no
controle
do
crescimento
urbano,
concomitantemente à falta de reconhecimento da própria
população de suas referências culturais, colocam em risco a
sobrevivência das edificações antigas, e contribuem para o
esvaziamento, a degradação, ou a transformação das áreas centrais,
especialmente nas cidades de maior vigor econômico.
Essa situação de vulnerabilidade do patrimônio edificado antigo,
lamentavelmente, persiste até em cidades que já dispõem de
mecanismos locais de proteção do patrimônio, ou que tiveram
edificações submetidas a tombamentos pelo CONDEPHAAT.
Nascimento (2018, p.338-340)14 constata que "as políticas culturais
Além dos autores Vieira, Roma e Miyazaki (2007) já citados, ver mais sobre a dispersão
urbana e as novas formas de tecido urbano no Brasil em Reis Filho (2006 e 2007) e Bentes
(2014) e sobre as cidades médias do estado de São Paulo em Sposito (2001).
14 O autor fez o mapeamento dos conselhos municipais de preservação do patrimônio
cultural existentes no estado de São Paulo, usando como critério de escolha os municípios
de porte médio com população entre 100 e 500 mil habitantes, excluindo os da região
metropolitana, aliado à consulta aos sites das prefeituras correspondentes, dessa forma,
identifica 16 municípios atendendo esse requisito, entretanto, apenas cinco (Cubatão, Bauru,
Jundiaí, Piracicaba e Santos) disponibilizam informações completas e atualizadas. Sem deixar
de reconhecer a valiosa contribuição da pesquisa de Nascimento, lamentamos que,
provavelmente em decorrência do critério de limite populacional, tenham sido excluídas de
suas análises experiências significativas quanto a de Amparo ou a de Campinas. Além disso,
é preciso ponderar que nem sempre uma boa, ou má, apresentação de um site
13
municipais, de vertente patrimonial, na maioria dos municípios
onde
haja
conselhos
de
preservação,
são
descontínuas,
fragmentadas", visto que os gestores não dão continuidade aos
trabalhos de seus antecessores, mesmo que os resultados sejam
positivos. O autor identifica a "falta de recursos tanto materiais
como humanos", a "ausência de apoio político", e mais sério ainda,
"o encerramento de atividades de órgãos públicos de preservação",
percebendo em suas análises o caráter excludente na forma de
composição da grande maioria desses conselhos, tanto pela
ausência de alguns segmentos da sociedade, como pela debilidade
do corpo técnico, com a falta de profissionais das áreas de história,
arquitetura, antropologia, dentre outras.
Apesar da precariedade e fragilidade dos mecanismos de
preservação do patrimônio dos centros antigos das cidades do
interior paulista e da impossibilidade de concretização de ações
preservacionistas mais efetivas, mesmo quando estão submetidos à
proteção em âmbito local, defendemos a posição de que,
igualmente ao próprio autor em seu artigo, é preciso "reconhecer e
valorizar as práticas políticas e culturais dos órgãos municipais de
patrimônio" (NASCIMENTO, 2018, p. 340), da mesma maneira
que as de âmbito estadual (através do CONDEPHAAT desde
1968) e nacional (através do IPHAN desde 1937), como
fundamentais para assegurar a preservação dos bens culturais,
compreendendo-os em seu conceito atual mais alargado, de modo
necessariamente corresponda à prática preservacionista do município analisado, justificando
aqui a relevância das verificações in loco como método de pesquisa.
a "integrar todas las manifestaciones y testimonios significativos de
la actividad humana" (GONZÁLES-VARAS, 2005, p.21). Assim,
ainda com base em Gonzáles-Varas (2005, p.15), acrescentamos
que "la problemática de los bienes culturales, su conservación,
gestión y difusión, ocupan y preocupan de un modo creciente a
distintos campos profesionales y estamentos administrativos", com
a ressalva de que essa visão favorável do autor se refere ao ambiente
europeu, portanto, no Brasil em geral, e em particular no interior
paulista, as conquistas ainda são tímidas, notadamente no campo da
gestão administrativa, mesmo que seja um direito assegurado na
Constituição brasileira15. Muitos autores brasileiros têm contribuído
para a compreensão e a problematização do cenário da preservação
urbana no Brasil e, embora enfocando quase sempre o contexto das
capitais e de cidades tombadas pelo IPHAN, ou até daquelas que
estão na lista de patrimônio da humanidade da UNESCO16,
podemos nos valer desses subsídios, como a exemplo de Rufinoni.
A referida autora, mesmo discutindo a questão dos sítios históricos
industriais da cidade de São Paulo, nos instiga ao evidenciar
indagações que acompanharam sua investigação, dentre elas, a de
quais seriam as razões das "prerrogativas acordadas nas cartas
patrimoniais
internacionais"
estarem
ausentes
de
ações
No artigo 215, a Constituição Brasileira (1988) reconhece que o "Estado garantirá a todos
o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e
incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais", enquanto no artigo 216,
declara que "constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e
imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à
ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira".
16 Ver mais sobre as cidades brasileiras tombadas pelo IPHAN, ou que estão na lista de
patrimônio da humanidade da UNESCO, no próprio site do IPHAN
(http://portal.iphan.gov.br/).
15
preservacionistas de conservação e intervenção. E, ainda
acompanhando seu raciocínio, perguntamos se o cenário de
descaso, para dizer o mínimo, por parte dos gestores municipais e
da sociedade civil nas cidades médias e pequenas do interior paulista
poderia ser fruto da "própria incompreensão do caráter patrimonial
dessas estruturas"? (RUFINONI, 2013, p.20). Então, poderia ser
mesmo uma questão de valor atribuído ao objeto, ao documento,
como nos alerta Ulpiano Bezerra de Meneses, ao dizer que "atuar
no campo do patrimônio cultural é se defrontar, antes de mais nada,
com a problemática do valor, que ecoa em qualquer esfera do
campo", e nas diversas dimensões desse valor cultural -– cognitivos,
formais, afetivos, pragmáticos e éticos. Meneses acrescenta à
discussão a dimensão econômica do bem cultural, sem
antagonismos com o valor cultural, ao mesmo tempo em que
reconhece se tratar de "uma arena de conflito, de confronto -– de
avaliação, valoração. Por isso, o campo da cultura e, em
consequência,
o
do
patrimônio
cultural,
é
um
campo
eminentemente político... a coisa comum, o interesse público"
(MENESES, 2009, p. 32-38). Lamentavelmente, o que temos
observado é a prevalência de uma política muito distante do
"interesse público", do bem comum, que atende de forma exclusiva
e distorcida à esfera do valor econômico em detrimento do valor
cultural. Então, mais uma vez em concordância com Rufinoni,
defendemos a necessidade de garantir que qualquer intervenção
nessas áreas urbanas seja fundamentada na "busca por
procedimentos e adequações que, de posse dos pressupostos
teóricos amplamente debatidos, nos permitam conduzir soluções
apropriadas e originais em diferentes situações..." (RUFINONI,
2013, p.210-211).
Até seria possível afirmar, sem sombra de dúvidas, que as regiões
do interior paulista do período cafeeiro possuem atributos para um
reconhecimento enquanto paisagens culturais17, embora, nas
circunstâncias atuais, se distanciem cada vez mais dessa dimensão.
Mesmo assim, com tantas perdas irreparáveis a lamentar, ainda há
um acervo significativo, tanto no que se refere ao patrimônio rural
quanto urbano, e sobre os quais seria muito prazeroso nos
debruçarmos porque, de fato, se constituem casos exemplares de
manutenção e preservação. Todavia, diante da amplitude e
complexidade do tema, decidimos trazer para ilustrar nossas
reflexões um viés que estamos denominando de preservação
espontânea, observado em algumas das cidades do interior
paulista18, como, por exemplo, Bocaina19 e Mococa20, e que muito
nos intriga ainda nos dias de hoje. A indagação que nos fazemos,
no caso dessas duas cidades, similares sob certos aspectos e distintas
Ver a respeito de paisagem cultural a definição de SCIFONI (2016).
Lugares que tivemos a oportunidade de conhecer e acompanhar por algumas décadas,
inclusive em diversas visitas com nossos alunos. Para conhecer mais sobre os locais visitados,
acessar o perfil do Instagran “arquiteturapaulista19e20”.
19 Segundo dados obtidos no IBGE, Bocaina possui atualmente uma população estimada em
12.452 habitantes e densidade demográfica de 29,84 hab/km², com PIB per capita de
R$18.705,27 e IDH-M de 0,742, sua área territorial é de 363,926 km² e está sob a influência
econômica da região de Jaú. Conforme o mapa das regiões administrativas de São Paulo
(IGC), Bocaina pertence à região administrativa de Bauru.
20 Segundo dados do IBGE, Mococa possui atualmente uma população estimada em 68.980
habitantes e densidade demográfica de 77,55 hab/km², com PIB per capita de R$32.298,34
e IDH-M de 0,762, sua área territorial é de 855,156 km² e está sob a influência econômica da
região de Ribeirão Preto. Conforme o mapa das regiões administrativas de São Paulo (IGC),
Mococa pertence à região administrativa de Campinas.
17
18
por outros, igualmente a muitas outras do ciclo cafeeiro paulista, é
sobre quais as razões que as teriam levado a um processo de
preservação de forma absolutamente desprotegida de qualquer
apoio legal? Desse modo, seguimos externando nossas percepções
sem a pretensão de alcançar respostas definitivas.
Preservação espontânea: até quando?
Ambas as cidades, Mococa e Bocaina, pertencem ao avanço da
franja cafeeira e tiveram processos semelhantes em sua gênese, com
a chegada de posseiros e sesmeiros atraídos pelas terras férteis, dos
quais muitos eram paulistas, mas também houve os de outras
regiões do Brasil, quase sempre mineiros, e ainda os estrangeiros.21
Vale observar a defasagem de alguns anos na ocupação das terras
que formaram os dois municípios. Enquanto Mococa assinala a
partir de 1820 a instalação das primeiras roças de subsistência e, em
maior escala, o plantio de cana-de-açúcar e a criação de gado de
corte, com as primeiras plantações de café a partir de 1845. Em
Bocaina a ocupação inicial ocorre um pouco mais tarde, por volta
de 1850, com plantações de cana-de-açúcar, algodão e fumo e
criação de gado, concomitantemente ao plantio de café. A Villa de
São João da Bocaina é fundada em 1891, em 1906 é elevada a
A cafeicultura do interior paulista utilizou mão de obra escrava africana até que, graças ao
movimento abolicionista, foi decretado o fim da escravidão no Brasil em 1888. No final do
século XIX e primeiras décadas do século XX, a política eugênica brasileira de
embranquecimento da população gerou a vinda de imigrantes europeus com vistas ao
trabalho nas lavouras de café. Para saber mais sobre esse contexto, consultar, entre muitos
outros autores: Costa (1998), Dias (1995), Machado (1994), Martins (1986), Slenes (1999) e
Trento (1989).
21
cidade, adotando em 1938 a redução de sua denominação para
Bocaina. Enquanto Mococa é elevada a vila já em 1841 com o nome
de São Sebastião da Boa Vista, entretanto, oficializa sua
denominação para Mococa quando se torna cidade em 1875.
Entretanto, o desenvolvimento e a prosperidade advindos com a
cafeicultura estavam atrelados às boas condições de escoamento e
de transporte até o porto de Santos, ainda mais considerando
grandes distâncias como era o caso das duas localidades. Assim,
Mococa e Bocaina necessitaram da ferrovia para alcançar maior
êxito na comercialização da produção de café. Foi a chegada da
Companhia Mogiana de Estrada de Ferro em 1890 que assegurou a
Mococa a sua fase de apogeu, escoando as grandes safras ocorridas
entre os anos 1890 e 1895, consequência de uma recuperação que
se iniciara em 1874 por causa de duas fortes geadas de 1870 e 1871,
aliada à alta no preço do café entre 1893 e 1895. Essa feliz
coincidência de fatores possibilitou o forte crescimento urbano e a
construção dos sofisticados casarões dos fazendeiros. Bocaina, por
sua vez, somente em 1910, conseguiu que os trilhos chegassem à
cidade por meio da Companhia de Estrada de Ferro Douradense,
ainda assim, foi motivo de muita festa para todos os bocainenses
que puderam se libertar do penoso deslocamento de quase 20 km
até a vizinha cidade de Jaú para alcançar os trilhos da Companhia
Paulista de Estradas de Ferro. De qualquer modo, a partir dos anos
1900 as melhores safras de café já estavam acontecendo, antes até
da chegada da ferrovia a Bocaina, permitindo aos fazendeiros a
construção de seus casarões e maior incremento nas atividades
urbanas, embora sem a pujança verificada em Mococa
(PALADINI, 1995; FURLANETO, [2011?])22.
Este breve relato sobre as duas localidades nos ajuda a perceber
que, independentemente das similaridades que as aproximam,
houve diferenças no desenvolvimento de ambas que repercutiram
na produção do espaço urbano, em especial ao considerarmos a
defasagem no período de apogeu de cada uma delas. Mococa, por
ser mais antiga do que Bocaina, pode aproveitar melhor as
oportunidades da conjuntura política do período cafeeiro,
alcançando desenvolvimento econômico e força política. Inclusive
posteriormente, no processo de recuperação a partir da crise de
1929, Mococa soube buscar alternativas para a agricultura e,
concomitantemente, incentivar a industrialização e a prestação de
serviços. Além do mais, localizada entre Campinas e Ribeirão Preto,
se beneficia também por pertencer a uma rede de cidades de uma
região do estado produtivamente consolidada. A pujança do lugar,
constatada na produção arquitetônica herdada do período cafeeiro,
ainda está presente na dinâmica econômica dos dias atuais. Mococa
nos chama a atenção pelos elegantes e sofisticados casarões que
bem simbolizam o poder econômico, político e social daqueles
grandes fazendeiros (Figura 1). Esses casarões se concentram na
área central da cidade formada por uma malha de traçado regular
que inclui duas praças importantes, a atual Praça Major José Prado,
Essa pequena síntese relacionada a fatos históricos de Bocaina e de Mococa está baseada
em dois historiadores locais que tive a grata oportunidade de conhecer. Seus livros repletos
de valiosas informações desafiam pesquisadores a prosseguir com os aprofundamentos que
o tema exige. Para consultar sobre Mococa, ver a obra de Paladini, "Assim nasceu Mococa",
e sobre Bocaina, ver a obra de Furlaneto, "Uma cidade e um pouco de sua história".
22
onde está a igreja de N. S. do Rosário, que foi erguida no lugar da
matriz velha demolida em 1919 e lugar de início do povoado (Figura
2), e a atual Praça Marechal Deodoro, mais conhecida como Praça
da Matriz por causa da nova matriz, igreja de São Sebastião
inaugurada em 1896 (Figura 3). Prevalece nesses casarões de
Mococa a arquitetura eclética, numa ambiência harmônica com
exemplares de outros estilos, tais como art dèco, neocolonial e
moderno (Figura 4), executados por alguns profissionais
diplomados e muitos mestres e práticos licenciados, notadamente
estrangeiros, ou descendentes23.
Figura 1 – Casarões da área central. Mococa-SP.
Fonte: Fotos da autora, 2009 a 2016.
Ver mais sobre a arquitetura e a história de Mococa em Ribeiro (2011), Rodrigues (2006)
e Paladini (1995).
23
Figura 2 – Igreja de N. S. do Rosário e Praça Major José Prado. Mococa-SP.
Fonte: Fotos da autora, 2016.
Figura 3 – Igreja Matriz de São Sebastião e Praça Marechal Deodoro, em
destaque a escultura do artista Bruno Giorgi. Mococa-SP.
Fonte: Fotos da autora, 2010 a 2016.
Figura 4 – Cine Mococa em estilo art-dèco; Casarão em estilo neocolonial;
Edifício moderno com painel em mosaico do artista Carlos Paladini. Mococa-SP.
Fonte: Fotos da autora, 2010 a 2016.
Bocaina, diferentemente de Mococa, apresentou um quadro
econômico de menor vigor durante o período cafeeiro e continua
sendo uma das pequenas cidades do interior paulista. Ainda que
pertencesse, igualmente a Mococa, a uma região de grande
produção de café, a crise de 1929 e o contexto no qual se inserem
os municípios propiciaram mais dificuldades para Bocaina do que
para Mococa, levando Bocaina a uma lenta recuperação e a
resultados mais modestos. Por algumas décadas a partir da crise
(1929), Bocaina seguiu tendo a agricultura enquanto base de sua
atividade econômica, inclusive mantendo o café como o principal
produto dentre as demais culturas, como algodão, milho e arroz
(FURLANETO, [2011?]), até encontrar no plantio intensivo de
cana-de-açúcar e na produção de açúcar e álcool24 uma opção para
A retomada do plantio intensivo da cana-de-açúcar observado no Brasil nesses tempos
recentes, notadamente em alguns estados da região Nordeste e no estado de São Paulo, se
deu a partir da criação do Programa Nacional do Álcool (Proálcool), criado em 14 de
novembro de 1975 (Decreto nº 76.593), para estímulo à produção de álcool, "visando o
atendimento das necessidades do mercado interno e externo e da política de combustíveis".
Conforme o decreto, "a produção do álcool oriundo da cana-de-açúcar, da mandioca ou de
qualquer outro insumo deveria ser intensivada por meio da expansão da oferta de matérias
primas, com especial ênfase no aumento da produção agrícola, da modernização e ampliação
das destilarias existentes e da instalação de novas unidades produtoras, anexas a usinas ou
autônomas, e de unidades armazenadoras" (dados extraídos do artigo "Proálcool-Programa
Brasileiro de Álcool", de 29 jan 2006 - Última atualização em 04 mar 2012, da Revista
24
a retomada econômica, com a usina de açúcar e álcool da Sociedade
Agrícola e Pecuária Santa Cândida, que atualmente é umas das
unidades do grupo Raízen Energia. Paralelamente a esse processo,
Bocaina conseguiu se especializar na produção de equipamentos de
proteção individual feitos com raspas de couro e, desde o início dos
anos de 1980, seus curtumes produzem EPIs, como luvas e
aventais, para atender principalmente às usinas de açúcar e álcool
da região, e camurças e couros semi-acabados para atender fábricas
de Jaú e também outros mercados 25. Assim, é possível constatar
que Bocaina, como desde a origem, mantém uma interação de
dependência com Jaú sob todos os aspectos, notadamente na
economia. Outro ponto a considerar é que ambos os setores das
principais atividades econômicas do município, apesar de gerarem
emprego, não oferecem condições satisfatórias de trabalho e nem
de remuneração a seus empregados. De qualquer modo, é um lugar
de boa qualidade de vida, com IDH-M acima da média brasileira,
baixa densidade demográfica, menos que a metade do que Mococa,
e boa estrutura urbana.
A área central antiga de Bocaina, formada por algumas quadras
organizadas em traçado reticulado e delimitadas basicamente pelo
BiodieselBR, online. Recuperado de: https://www.biodieselbr.com/proalcool/proalcool/programa-etanol)
25 Segundo Contador Júnior, Bocaina apresenta um total de 94 empresas empregando cerca
de 4.500 pessoas, que correspondem a "cerca de 70% da mão-de-obra ativa e contribui com
a maior parcela na receita fiscal". Entretanto, alerta que na maioria desses curtumes a forma
de produção é rudimentar, "são utilizados processos antigos, com máquinas e equipamentos
ultrapassados...", além disso, a mão-de-obra "é totalmente artesanal" e de baixa qualificação
(CONTADOR JÚNIOR, 2004, p. 112- 119; p. 149-150). Ver Contador Filho para saber mais
sobre o processo produtivo coureiro-calçadista da região de Jaú que envolve seis municípios
(Jaú, Barra Bonita, Dois Córregos, Mineiros do Tietê, Bocaina e Bariri), dos quais se destacam
Jaú e Bocaina.
entorno da praça da matriz e da praça da estação ferroviária, se
consolidou no começo do século XX, coincidindo com a melhor
fase da economia cafeeira no município. A antiga praça da estação
deu origem às atuais praças Rui Barbosa e Zeca Livino. Enquanto
a praça da matriz, atual Praça Pedro Izar, era o antigo Jardim
Público (1899) e onde se ergueu a primeira capela dedicada a São
João Batista. O edifício atual da matriz, inaugurado em 1910,
contém um valioso acervo de telas de Benedicto Calixto, realizadas
em 1923, e vitrais da Casa Conrado, além de muitos outros itens
que compõem o seu interior, fazendo dessa pequena igreja um
exemplar de esmerado acabamento e orgulho de todos os
bocainenses26 (Figura 5). As moradias são quase sempre térreas,
algumas de porão alto, e com o predomínio do estilo eclético
(Figura 6), mas há também edifícios vinculados a outras tendências,
como art-nouveau, art-dèco e neocolonial (Figura 7). No geral, o
núcleo urbano é de caráter mais modesto, especialmente se
comparado a Mococa, entretanto, de forma alguma isso o
desqualificaria e, do mesmo modo que no caso de Mococa, suas
Lamentavelmente, apenas as telas de Calixto foram alvo de tombamento pelo
CONDEPHAAT em 1969, juntamente com o conjunto de obras do artista existente em
outros municípios paulistas. Ainda que siga em tramitação um pedido protocolado para o
tombamento da igreja no mesmo ano de 1969 e que em 2012 tenha havido deliberação
favorável para estudo do referido tombamento, como também do núcleo histórico. Em
contrapartida, o único edifício protegido pelo CONDEPHAAT na cidade continua sendo o
antigo grupo escolar e atual Escola Municipal de Ensino Fundamental Deputado Leônidas
Pacheco Ferreira (tombado em 2010). Para saber mais sobre esse assunto e sobre a igreja
matriz como patrimônio histórico de Bocaina ver o artigo de Maria Helena Gabriel e
Vladimir Benincasa (2019).
26
edificações formam um conjunto valioso e de muito interesse
patrimonial27.
Figura 5 – Igreja Matriz de São João da Boa Vista e Praça Pedro Izar, com
destaque para a foto interna da igreja, em 2009, registrando a restauração das
pinturas do artista Benedicto Calixto. Bocaina-SP.
Fonte: Fotos da autora, 2009 a 2017.
A Carta de Veneza (ICOMOS, 1964), Carta internacional sobre conservação e restauração de
monumentos e sítios, em seu Artigo 1º, define que a "noção de monumento histórico
compreende a criação arquitetônica isolada, bem como o sítio urbano ou rural que dá
testemunho de uma civilização particular, de uma evolução significativa ou de um
acontecimento histórico. Estende-se não só às grandes criações, mas também às obras
modestas, que teriam adquirido, com o tempo, uma significação cultural". As cartas
patrimoniais são documentos, conforme nos alerta Kühl (2010, p.288-289) em artigo sobre
a Carta de Veneza, "que se colocam como base deontológica para as várias profissões
envolvidas na preservação, mas não constituem receituário de simples aplicação". Nesse
sentido, ao desenvolver suas análises sobre a Carta de Veneza, a autora situa os "postulados
teóricos da época", bem como, "a origem de determinadas ideias, a forma como a Carta se
aproxima ou difere de documentos anteriores, e as bases teóricas de determinadas
proposições", contribuindo para ampliar a compreensão e aplicação do referido documento.
Ver Kühl (2010) para melhor compreensão da importância e da complexidade do assunto.
27
Figura 6 – Casarões da área central. Bocaina-SP.
Fonte: Fotos da autora, 2009 a 2017.
Figura 7 – Edificações art-dèco: Cine Jequitinhonha, Estação Ferroviária
localizada na Praça Rui Barbosa, Posto de Gasolina Megale e edifício de uso
misto –residência e comércio; Paço Municipal, um exemplar de art-nouveau;
Igreja de Santa Luzia, em estilo neocolonial, localizada na Praça Zeca Livino.
Bocaina-SP.
Fonte: Fotos da autora, 2009 e 2010.
Diante do exposto e persistindo no nosso viés da preservação
espontânea, poderíamos afirmar que o lento desenvolvimento, para
não dizer estagnação, de Bocaina poderia ser a causa da manutenção
quase na íntegra de seu conjunto urbano do período cafeeiro.
Entretanto, esse mesmo argumento definitivamente não se aplicaria
a Mococa, que também conseguiu manter seu centro antigo, mesmo
experimentando progresso econômico e expansão urbana. Somente
conhecendo e desvelando um pouco mais a história local é que
conseguimos avançar em nossas especulações, identificando a
ocorrência de fatos que poderiam ter contribuído para que, em
ambas as cidades, os moradores tenham sido tocados por um
sentimento forte de pertencimento em relação às suas edificações
históricas, a ponto de preservá-las até os dias atuais sem apoio
governamental. Talvez, o luto provocado pela perda de um bem
importante e significativo, tenha sido o gatilho para uma
consciência identitária coletiva. Porque, de fato, tivemos a
oportunidade de constatar o orgulho e a satisfação, tanto de
mocoquenses quanto de bocainenses, em nossas rotineiras visitas
com os alunos. Sempre éramos muito bem recebidos,
especialmente pelos moradores mais antigos sensibilizados com o
nosso interesse, de modo que, muito cordialmente, por diversas
vezes, nos permitiram entrar em suas casas e constatarmos o
cuidado na preservação também nos espaços privados através da
manutenção de mobiliários e utensílios de época. Ao contarem suas
histórias nessas ocasiões, pudemos perceber o quanto era
recorrente a menção à perda de uma determinada edificação antiga:
ambas as localidades passaram por episódios semelhantes.
No caso de Mococa, nos referimos à demolição da residência do
Dr. Augusto Freire de Mattos Barretto, um dos casarões localizados
na praça da matriz nova (Praça Marechal Deodoro). Juntamente
com a nova matriz (1896), segundo Paladini (1995, p.82), esses
casarões formaram "um conjunto arquitetônico, que deu um traço
diferencial original à feição definitiva da praça", onde já existiam
alguns prédios públicos, como a primeira Câmara (1872), a primeira
escola pública (1879) e o teatro São Sebastião (1894). Em
consonância com Paladini, Rodrigues (2006, p.108) afirma em sua
dissertação de mestrado que o casarão do Dr. Barretto foi
construído em 1893 "em estilo neoclássico", embora não
mostrando imagens. Todavia, mesmo sem acesso a registros visuais
dessa antiga edificação, acreditamos que seu aspecto deveria seguir
de fato a opção pelo ecletismo, predominante nas demais
edificações do conjunto urbano. Rodrigues (2006, p.108) acrescenta
que, após a demolição do casarão, foi construída em seu lugar no
ano de 1980 a residência com dois pavimentos de propriedade de
Esther de Figueiredo Ferraz e Carlos Augusto Lerro Barretto
(Figura 8), "projetada em linhas arquitetônicas modernas", pela
empresa Figueiredo Ferraz28. É preciso destacar que nesse conjunto
Em consulta aos sites CPDOC/FGV e ARCADAS - Associação dos Antigos Alunos da
Faculdade de Direito da USP, constatamos que Carlos Augusto Lerro Barretto era advogado
formado na Faculdade de Direito da USP em 1942, concluindo seu curso apenas dois anos
antes de Esther de Figueiredo Ferraz, também advogada formada em 1944 pela mesma
instituição. Esther foi docente da Faculdade de Direito de USP, reitora da Universidade
Presbiteriana Mackenzie, ocupou diversos cargos públicos, dentre eles o de ministra da
educação no período de 1982 a 1985, durante o governo de João Batista Figueiredo (197928
de edificações antigas do centro de Mococa, a demolição do casarão
do Dr. Barretto não se constitui em um caso isolado de alterações
que já podem ser observadas em razão de pressões do setor
imobiliário, inclusive na própria praça da matriz, por exemplo, a
edificação reformada e descaracterizada para novo uso onde está a
escola de inglês Wizard e um prédio de apartamentos com 12
pavimentos, o edifício Mococa (Figura 9). Entretanto, por alguma
razão, a perda do casarão do Dr. Barretto ainda é o motivo maior
de queixa por parte dos moradores mais antigos, talvez pela
notabilidade do primeiro proprietário, ou pelas características
singulares da edificação, ou exatamente pelo fato de que se deve a
sua demolição a, nada mais nada menos, uma ministra da educação!
Figura 8 – Residência de Esther de Figueiredo Ferraz e Carlos Augusto Lerro
Barretto, construída no lugar do Casarão do Dr. Augusto Freire de Mattos
Barretto. Mococa-SP.
Fonte: Foto de J. A. Rodrigues, 2006, encontrada em Rodrigues, 2006, p. 108.
1985). A empresa Figueiredo Ferraz foi fundada em 1941 por seu irmão José Carlos de
Figueiredo Ferraz, formado em engenharia pela Escola Politécnica da USP em 1940. Ele foi
também uma personalidade de muita influência em sua época, chegando a ser prefeito de
São Paulo entre 1971 e 1973.
Figura 9 – Edificação descaracterizada para novo uso (atual Escola Wizard) e
Edifício Mococa (visto na paisagem e em detalhe), ambos localizados na Praça da
Matriz (Praça Marechal Deodoro). Mococa-SP.
Fonte: Fotos da autora, 2011, 2016 e 2009, respectivamente.
Em Bocaina, o episódio de perda envolveu o edifício da Societá
Operária Di Mutuo Soccorso Fascio Italiano (Figura 10),
construído em 1905 por imigrantes italianos e localizado na Rua
Floriano Peixoto esquina com a Rua Tiradentes. Era "uma
construção belíssima" de dois pavimentos com cerca de 800 m²,
que seguia o "estilo romano", segundo Furlaneto. Certamente, sua
afirmação se deve ao uso do arco pleno definindo as aberturas do
pavimento térreo e o arremate da platibanda, que assinala o acesso
na fachada principal de rigorosa simetria, aparentemente estendida
à conformação da planta. Esses detalhes, aliados ao emprego de
molduras cercando as esquadrias, cimalhas e discretas bossagens no
pavimento térreo, davam ao edifício um aspecto sóbrio e
imponente, como pudemos constatar nas imagens do edifício
disponibilizadas por Furlaneto em sua obra. O autor informa que a
organização em planta do edifício era composta de "um grande
salão de festas, palco, sala para conferências, camarins, cinema e
uma escada que dava acesso aos camarotes". Conforme dados
obtidos "junto a moradores mais antigos", Furlaneto afirma que a
partir dos anos 1930 se iniciou um processo de "abandono" do
edifício, entretanto, foi somente em 1948 que se extinguiu a
sociedade e os últimos associados formalizaram a sua doação à
prefeitura. Segundo Furlaneto, entre os anos de 1948 e 1951, nele
foi instalado o Posto de Puericultura, sendo a partir daí
definitivamente abandonado e demolido na década de 1960 para
dar lugar a uma moderna construção onde foi instalada a Casa da
Lavoura. É interessante observar como Furlaneto denomina seu
texto sobre a história do edifício: "Fascio Italiano: uma demolição
até hoje contestada". Em suas considerações sobre esse sentimento
de perda por parte da população, que também nos foi possível
constatar em nossas visitas à cidade, o autor acrescenta que "apesar
de hoje os boicanenses lastimarem a demolição do Fascio Italiano",
não houve naquela ocasião "nenhum movimento popular para
impedi-la", o que permitiu à prefeitura se "livrar de um estorvo",
em referência às dificuldades a serem transpostas na recuperação e
adaptação do edifício a um novo uso. De qualquer modo, nos dias
atuais, é evidente que "os bocainenses que conheceram o Fascio
Italiano não se conformam com a sua demolição. Foi como se
tivessem tirado um pedaço de suas vidas" (FURLANETO, [2011?],
p.72-73). Seria sensato supor que essa posição de inconformismo
diante da perda do edifício, que ainda constatamos nos dias atuais,
esteja atrelada ao fato de se tratar de uma das mais imponentes
edificações da cidade, mas também pode se dever aos vínculos
estabelecidos pelos moradores que tiveram a oportunidade de
frequentar as diversas atividades desenvolvidas em suas instalações,
incluindo ensino primário, música e idioma italiano. Rememorações
passadas de geração a geração!
Figura 10 – Edifício da Societá Operária Di Mutuo Soccorso Fascio Italiano,
demolido na década de 1960.
Foto de autoria desconhecida, encontrada em Furlaneto, [2011], p. 72.
De qualquer modo, convém ressaltar que Bocaina, da mesma forma
que Mococa, padece da vulnerabilidade de não contar com apoio
governamental para a preservação de seu patrimônio. No intuito de
exemplificar a gravidade da questão, desde os anos de 1970, os
prefeitos de Bocaina insistem no asfaltamento das ruas centrais de
paralelepípedos, gerando polêmica e dividindo opiniões entre
moradores e políticos. Entretanto, a partir da atual gestão municipal
os riscos se tornaram realidade29, desde que o prefeito Marco
Em publicação do dia 30 de julho de 2020, a prefeitura noticia a assinatura do convênio da
7ª Etapa de recapeamento e pavimentação de Bocaina. Segundo declaração da diretora de
Planejamento e Mobilidade Deborah Cristina Granai, "Bocaina continua sendo contemplada
com obras que visam o bem estar de nossa população. Estamos trabalhando para que nossa
cidade siga no caminho do desenvolvimento e buscando cada vez mais recursos, através de
29
Antônio Giro obteve para Bocaina, em 21 de março de 2019, o
Certificado de Município de Interesse Turístico (MIT), facilitandolhe o acesso a financiamentos estaduais e federais, e a viabilização
de planos de propósitos equivocadamente estritos, sob a
prerrogativa de fomentar o turismo no município, como podemos
constatar em sua declaração ao jornal Bocaina Informa, em 21 de
abril de 2019: "MIT é telas de Calixto e festa junina".
Assim, é possível vislumbrar o quanto está sob ameaça a
sobrevivência dos respectivos centros antigos das duas cidades de
Mococa e Bocaina. Foram décadas em que ambas estiveram
submetidas apenas à preservação espontânea e, conforme vimos,
isso foi de certo modo até favorecido pelo processo de uma
significativa perda. Contudo, o que parecia ser suficiente agora já
não o é. A verdade, a qual não podemos nos furtar de enxergar,
caso permaneça a ausência de amparo legal, ou de mobilizações
populares, é que esse legado está sob o risco de desaparecer em
poucos anos, ou, no mínimo, de perder a integridade ainda
existente.
Considerações finais
Conforme vimos ao longo do artigo, as dificuldades para a
preservação de bens culturais, materiais e imateriais, certamente
convênios como este. A população é quem ganha". A meta desse governo é concluir o
asfaltamento de "todos os bairros da cidade", inclusive das "ruas da região central" (Ver:
BOCAINA Prefeitura. Prefeitura assina Convênio...).
passam pela maneira como vem sendo conduzida a gestão pública
nessas pequenas e médias cidades que estão, em geral, à mercê de
governantes comprometidos com outras pautas, por incapacidade
administrativa, ou por má-fé, mas de todo modo, quase sempre
livres para atuar com pouca, ou nenhuma, pressão por parte das
diversas camadas da população, organizada ou não, com alguma
percepção do valor patrimonial de seus bens culturais, ou não, mas
que ao final exercem pouca influência na tomada de decisões,
especialmente no âmbito do patrimônio cultural. Exatamente como
vimos nos casos analisados, onde estão sendo mais eloquentes as
pressões do setor imobiliário, em Mococa, e as iniciativas
equivocadas com vistas ao turismo, em Bocaina.
A alternativa de estímulo ao turismo como estratégia de
fortalecimento econômico é oportuna, mas é fundamental que
esteja atrelada a um planejamento mais amplo que contemple
paralelamente a criação de mecanismos de defesa do patrimônio em
cada cidade, sem perder de vista o âmbito regional porque, como
vimos anteriormente, as tensões extrapolam os limites dessas
cidades pequenas e médias do interior paulista. Portanto,
defendemos a criação e o fortalecimento de conselhos municipais
de preservação do patrimônio cultural, sim, mas aliados a políticas
públicas de âmbito local e regional, que promovam a valorização e
o reconhecimento do patrimônio cultural, em seu sentido mais
amplo, incluindo a participação de todos os segmentos da
sociedade.
Salientamos ainda que a produção acadêmica – como é o caso do
nosso grupo de pesquisa – deve contribuir de forma crescente para
ampliar o conhecimento da história e do legado cultural do interior
paulista, embora ainda reverberando muito timidamente junto às
gestões locais e gerando pouco benefício às políticas de
preservação. São enormes os desafios para pesquisadores e gestores
públicos devido à premência por uma maior compreensão desse
contexto de intensas transformações e dinâmicas urbanas, e de
tantos interesses envolvidos. Urge a aplicação de políticas públicas
que abarquem adequadamente a preservação do patrimônio cultural
de cada localidade, seja qual for a dimensão da sua ocupação
territorial, o seu desenvolvimento econômico, ou o total da sua
população. Todas estão sob riscos iminentes de perdas irreparáveis.
Enfrentar adequadamente esse processo de transformações dos
núcleos antigos das pequenas e médias cidades do interior paulista
exige mudanças que implicam necessariamente na revisão de
critérios, técnicas e métodos de planejamento e de gestão pública
apoiada nas reflexões e no conhecimento científico acumulado nas
áreas de planejamento urbano e patrimônio cultural.
Referências
ARCADAS. Associação dos Antigos Alunos da Faculdade de
Direito
da
USP.
Disponível
em:
http://www.arcadas.org.br/antigos_alunos.php. Acesso em: 25 nov.
2020.
BENTES, Júlio Cláudio da Gama. Dispersão urbana no Médio
Paraíba fluminense. São Paulo: FAUUSP, 2014.
BIBLIOTECA VIRTUAL do governo do estado de São Paulo. São
Paulo
aspectos
territoriais.
Disponível
em:
http://www.bibliotecavirtual.sp.gov.br/. Acesso em: 22 set. 2020.
BOCAINA NÃO TEM CONSELHO MUNICIPAL DE
PATRIMÔNIO - Polêmica envolvendo decisão da prefeitura em
asfaltar ruas históricas divide opiniões na cidade. Bocaina Informa.
Bocaina
(SP),
21
abr.
2019.
Disponível
em:
https://bocainainforma.com.br/cidade/bocaina-nao-tem-conselhomunicipal-de-patrimonio/. Acesso em: 20 out. 2020.
BOCAINA Prefeitura. Bocaina - Cidade Linda - Nossa Terra Paraíso
do
nosso
Brasil.
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Mateus Rosada
Escola de Arquitetura, Universidade Federal de Minas Gerais, MG,
Brasil
[email protected]
Resumo
Este texto se propõe a abordar a forma como o vocabulário formal
do Rococó se difundiu e se adaptou no ambiente da decoração
religiosa no Estado de São Paulo entre o último quartel do século
XVIII e primeiro do século XIX. Estilo nascido na corte do Rei
Luís XV da França, o Rococó atingiu grande aceitação na decoração
civil, mas seu uso religioso encontrou resistência em vários países,
de modo que o estilo foi adotado em templos de poucas nações,
sendo expressivo apenas nos atuais Alemanha, Áustria, Portugal e
Brasil. Em São Paulo, especialmente, tornou-se o estilo dominante
nas igrejas do período, sendo o principal padrão ornamental
religioso do período colonial que encontramos hoje no Estado.
Palavras-Chaves: Rococó. São Paulo (Estado). Igreja. Arquitetura
Religiosa.
Abstract
This text deals the way in which the rococo formal vocabulary
spread and adapted in the religious decoration environment in the
State of São Paulo between the last quarter of the 18th century and
the first quarter of the 19th century. Style born in the court of King
Louis XV of France, rococo had great acceptance in civil
decoration, but its religious use found resistance in several
countries, so that the style was adopted in temples in few nations,
being in present-day expressive only in Germany, Austria, Portugal
and Brazil. Particularly in São Paulo, it became the dominant style
in the churches in this historical setting, being the main religious
ornamental pattern of the colonial period that we find today in the
State.
Keywords: Rococo. São Paulo (State). Catholic Church. Religious
Architecture.
Resumen
Este artículo aborda la forma en que el vocabulario formal Rococó
se difundió y se adaptó en el ámbito de la decoración religiosa en el
estado brasileño de São Paulo entre el último cuarto del siglo XVIII
y el primer cuarto del siglo XIX. Estilo nascido en la corte del rey
Luis XV de Francia, el Rococó logró una gran aceptación en la
decoración civil, pero su uso religioso encontró resistencia en varios
países, por lo que el estilo fue adoptado en templos de algunas
pocas naciones, siendo expresivo solo en la actual Alemania,
Austria, en Portugal y Brasil. En São Paulo, especialmente, se
convirtió en el estilo dominante en las iglesias de la época, y es el
principal patrón ornamental religioso del período colonial que
encontramos hoy en el Estado.
Palabras clave: Rococó. São Paulo (estado). Iglesia. Arquitectura
religiosa.
O Barroco e o Rococó
No Brasil, o entendimento do Rococó como estilo autônomo e
independente do Barroco é relativamente recente e, pelo fato de
boa parte de nossa historiografia das artes tê-lo classificado como
uma última fase do Barroco, predecessora do Neoclassicismo,
levaremos um tempo para que o conceito e essa divisão se assentem
na comunidade acadêmica e, ainda mais, na população, que replica
os conceitos. Houve teóricos que consideraram o Rococó como
uma última manifestação do movimento (SMITH, 1962, p.129), um
tardo-Barroco, denominando-o, por vezes, como Barroco-Rococó
(SANTOS, 1951). No entanto, a literatura mais recente tende a
entendê-lo de outra forma, como um movimento renovador, ainda
que contaminado pela grande carga decorativa já assimilada pelos
costumes dos séculos XVII e XVIII, mas não uma progressão do
anterior (OLIVEIRA, 2003, p.17-21).
Se observarmos de forma detalhada, será possível entender que
ambos os movimentos, o Barroco e o Rococó, já possuem
diferenças de concepção em suas próprias origens. O primeiro
iniciou-se na Itália em fins do século XVI, como um estilo
eminentemente retórico e engajado, especialmente nos países
católicos, resultado da Contrarreforma, com forte intuito de
educação do povo, conversão e convencimento dos fiéis católicos,
que se daria pela efusão dos elementos e pelas composições
dramáticas e gloriosas dos santos e mártires. Já o segundo nasceu
na primeira metade do século XVIII, na França, como um
movimento estritamente civil, embrionado na corte do Rei Luís
XV, e com um caráter muito mais celebrativo, leve e hedonista,
procurando um distanciamento de toda a carga dramática e
emocional barroca. O padrão rocaille, por seu caráter despreocupado
e sem maiores engajamentos religiosos e filosóficos, não possui, de
início, qualquer comprometimento com a religião. Em suas
próprias origens, os movimentos são antagônicos, uma vez que um
possui um forte viés de doutrinação e de negação dos prazeres
terrenos (o prazer está apenas no céu, na vida eterna), enquanto o
outro não se propõe a discursos de convencimento e, ainda, celebra
as possibilidades e as alegrias da vida neste mundo.
Difusão do estilo
Por ser exuberante e ter uma estética menos carregada e “opressiva”
do que o padrão vigente até então, o Rococó ganha o gosto da
aristocracia com certa velocidade e tão logo as outras classes sociais
o adotam, ainda que de forma mais comedida. Nas décadas de 1720
e 1730, já tinha extrapolado os limites da França e aparecia em
decorações na Suábia, Francônia, Bavária e Boêmia (atuais sul da
Alemanha e República Tcheca). Contribuiu demasiadamente para a
sua divulgação a grande produção de gravuras que floresceu nesse
período, e cujo maior centro era a cidade de Augsburgo:
Desde fins do século XVII, Augsburgo
assumira posição de liderança no mercado
internacional de estampa, principalmente no
setor das gravuras ornamentais, vendidas em
folhas soltas ou em séries destinadas a servir
de modelo aos estucadores, pintores,
ourives, marceneiros e outros profissionais
das chamadas ‘artes decorativas’. A
influência das gravuras de Augsburgo foi
decisiva, tanto na divulgação na Alemanha
do Regência e do rococó franceses, quanto
da elaboração e divulgação européia do
rokoko germânico, subsidiário do rocaille
francês, mas com características próprias.
(RIBEIRO, 2003, p. 91-92).
Dessa maneira, o estilo, embora nascido na França, mudou seu
centro de irradiação e passou a ser divulgado mormente pelos
teutos: “Foi a França quem iniciou o processo. Mas foi, pelo menos
na arquitectura, a Alemanha que produziu o maior número de
realizações, alargando também o estilo – que no país de origem se
limitou às moradias senhoriais – à arquitetura monumental, civil e
religiosa” (CONTI, 1987, p.04). A disseminação das estampas
augsburguenses (Fig.01) permitiu que os modelos de rocalhas
chegassem a nações mais distantes do centro europeu, e até mesmo,
fora do continente, como foram os casos, respectivamente, de
Portugal e de sua colônia mais rica àquela época: o Brasil. Em
meados do século, o país ibérico tomava contato com a estética
Rococó, graças à profusão de imagens do estilo rocaille que
chegavam ao principais centros lusos. As estampas de Augsburgo
eram, de fato:
[...] portadoras de repertório temático e
formal internacionalizado que tocou toda a
Europa e as colónias americanas dos países
Ibéricos. Em grande parte de origem
francesa, encontraram em Jeremias Wolff
um dos principais editores dessas formas,
que seduziam pela plasticidade e que vinham
afinal ao encontro do gosto de
encomendadores e artistas do Noroeste
[português]. Os conventos da região, como
o de Tibães, conservavam nas suas
bibliotecas colecções dessas edições que,
juntamente com os Registos dos Santos,
vendidos em festas e romarias, constituirão
factores de divulgação das formas rocaille
(PEREIRA, 1992, p.137-8).
Figura 1 − Gravura com Rocalhas de Franz Xaver Habermann, meados do
século XVIII.
Fonte: Acervo do Rijksmuseum, domínio público.
https://www.rijksmuseum.nl/nl/collectie/RP-P-1944-626
As estampas foram um instrumento importantíssimo de
disseminação de padrões e estilos, pois eram leves e de dimensões
que poderiam ser transportadas em pastas ou enroladas em
canudos.
Eram,
também,
produtos
que
tinham
valores
relativamente acessíveis, dada a sua materialidade – papel e tinta –
e a produção em larga escala dos motivos estampados. Elas
causariam, ainda, modificações na forma como os artistas
desempenhavam seus próprios processos de pintura ou de
entalhe/escultura, uma vez que eles passaram a prescindir, em parte
das vezes, da contratação de modelos reais.
O Rococó Religioso, na Europa e em Portugal
Um fator interessante a se destacar é que o Rococó nasceu num
ambiente estritamente aristocrata e civil: a corte de Versalhes. Sua
aplicação, de início, se deu apenas em ambientes palacianos e seria
de se esperar que o estilo não vingasse na decoração de interiores
religiosos, já que o seu elemento básico é a rocalha, que é o
resultado do esgarçamento da forma de uma concha tridacna, com
fusão de mais alguns elementos, resultando, muitas vezes em uma
composição que, após um processo compositivo que cria vários
amorfismos, se torna abstrata. Ora, um elemento abstrato não é
interessante de ser colocado dentro de um templo, uma vez que
todo o programa visual de uma igreja necessita de um discurso
engajado em sua fé, que inspire a conversão e a educação constante
do fiel. No entanto, uma rocalha, abstrata por sua própria
concepção, não transmite diretamente nenhuma mensagem, sendo
puramente decorativa e vazia de discurso. Acontece que estamos
no século XVIII, Século das Luzes, e a forma de ver e sentir o
mundo e, especialmente, os prazeres terrenos, se modifica bastante.
Há uma valorização do homem e do hedonismo que atravessa a
centúria, fazendo da busca da felicidade e do prazer uma obsessão
constante na vida do homem setecentista (PEREIRA, 1992, p.52).
Aos poucos, essa postura mais aberta e menos rígida caminhou
num crescendo de consenso entre a população europeia e associou-se
à corrente filosófica que pregava que não havia mal em se ter
prazeres respeitosos à fé cristã e que o fiel virtuoso poderia gozar
de alegria e prazer ainda no plano terrestre. Dessa forma, o ato
lançar mão de uma decoração que apenas proporciona prazer por
sua própria beleza abstrata, caso da composição rocaille, ainda que
desprovida de discursos cristãos em seus elementos, passa a ser
aceito pela filosofia católica de então e, mais que isso, desejado pela
exuberância visual do novo estilo.
Por esse caminho, o Rococó é assimilado também em sua vertente
religiosa. Essa assimilação dentro das igrejas não ocorreu de
maneira uniforme em todos os países católicos de então: nações
como a França e a Espanha (e, por conseguinte, suas colônias
americanas) foram regiões cujo clero manteve-se mais reticente ao
uso das rocalhas na decoração de seus templos. De forma oposta,
o Rococó religioso é adotado à larga especialmente no sul da atual
Alemanha (regiões da Francônia, Suábia e Bavária), na República
Tcheca (Boêmia), em Portugal e suas colônias (BONAZZI DA
COSTA,
2014, p.87),
destacadamente o Brasil. Viria a ser o estilo
dominante na segunda metade do século XVIII em Portugal:
A fase final da talha setecentista coincidiu
com o florescimento do estilo rococó.
Durante o meio século decorrido entre 1750
e 1800, os entalhadores portugueses, como
todos os artistas nacionais, sentiram o
encanto prolongado dessa [que então se
entendia como] nova versão prolongada do
barroco, do estilo suave e requintado que
deu a toda sorte de arte religiosa um sabor
palaciano. [...] No reinado de D. Maria I, o
gosto concretizou-se, prolongando o
domínio do rococó em Portugal mais tempo
do que em outros países. (SMITH, 1962,
p.129)
Os primeiros sinais do estilo em Portugal se deram antes em outras
artes decorativas, como na azulejaria, no mobiliário e na produção
de estampas. Na talha religiosa, os dois primeiros exemplos,
concomitantes, parecem ser as obras de entalhe das igrejas das
Mercês e de Nossa Senhora Mãe dos Homens em Lisboa, realizadas
no ano de 1745 (SMITH, 1962, p.130). O novo padrão seria
empregado com frequência e desenvoltura cada vez maiores a partir
de então, dominando o cenário da talha religiosa já a partir da
década de 1750 em boa parte do território do Reino.
A talha religiosa de Portugal foi de tal forma modificada no final do
setecentos que, quando se aborda o Barroco português,
inevitavelmente se trata também (ou apenas) do Rococó:
A arte portuguesa setecentista diferiu
essencialmente da espanhola por ser Rococó
e usar ornamentação assimétrica; na segunda
metade do século, com exceção da arte
bracarense, sua tendência era para a
elegância, e ela não diferia muito da arte da
Suábia e da Francônia (BAZIN, 2010,
p.214).
Enquanto a sede da Coroa adotou, na reconstrução da capital que
se seguiu ao fatídico terremoto de 1755, um padrão de tardobarroco
posteriormente
chamado
de
pombalino
(alçado
praticamente à condição de estilo oficial do Reino), o Norte, região
com outras relações comerciais influências distintas, com maior
contato com comerciantes ingleses e alemães e, além de tudo,
alimentando uma rivalidade com a capital, resistiria ao estilo da
corte e se manteria alinhado à estética rocaille, criando novas
variantes de sabores locais.
A aventura barroca da arquitetura portuense
detinha-se assim, para além de inevitáveis
anacronismos, cedendo lugar a uma nova
estética [pombalina] de uma sociedade em
transformação. [...] Mas a vitalidade do
Barroco [rococó, no caso] continuava
actuante
no
Norte.
Trata-se
do
prolongamento de um estilo, numa situação
tardo-barroca que aceita o vocabulário
rocaille em oposição à racionalidade
pombalina, erigida então em discurso oficial
(PEREIRA, 1992, p.137-8).
No norte português, o Rococó seria substituído apenas na virada
para o século XIX pelo neoclassicismo, por uma influência de via
inglesa, neopaladiana, (dado o forte comércio portuense com a GrãBretanha), sem ter apresentado exemplares significativos de
arquitetura pombalina, ao passo que o pombalino da corte evoluiria
para um neoclássico com mais elementos franceses.
Que se ressalte a presença tímida de algumas edificações de
linguagem pombalina no Brasil: todas, sem exceção, em cidades
costeiras, e concentradas nos maiores portos, com ligação direta
com Lisboa. São casos assim As igrejas do Carmo (portada) e da
Santa Cruz dos Militares, no Rio de Janeiro; do Pilar (portada) e da
Conceição da Praia, em Salvador; e de São Francisco, no Recife.
Em menor número, houve casos de influência indireta, por via de
uma dessas grandes cidades, a exemplo do Santuário do Bom Jesus,
em Iguape, no Estado de São Paulo, cujos profissionais que a
executaram vieram do Rio de Janeiro (essa igreja sofreu uma
reforma classicizante no século XIX e perdeu as características
pombalinas).
O Estilo Rocaille no Brasil
O Brasil ainda era um território sob o domínio de Portugal, distante
dos grandes centros que ditavam os padrões estéticos da época e
separado da Europa por uma grande barreira natural: o Oceano
Atlântico. Toda e qualquer influência aqui chegava por via da
metrópole e, dessa forma, levava alguns anos a mais para que
novidades se estabelecessem em terras brasileiras. Não era fato
incomum que, quando uma moda atingia seu auge na colônia,
apresentava-se em franca decadência no Reino. Essa dinâmica não
foi muito diferente na adoção do Rococó. O estilo, em sua vertente
religiosa, é inaugurado na talha da Igreja de Santa Rita (Fig.02), no
Rio de Janeiro, em 1753 (NARA JR., 2016), ou seja, apenas oito
anos após as primeiras obras do gênero na metrópole. Na década
seguinte, tinha substituído definitivamente o Barroco e era o padrão
ornamental dominante no território da colônia. É interessante
destacar a sua longevidade em terras americanas: o Rococó vigorou
no Brasil por oitenta anos, manifestando-se de 1760 até 1840
(CAMPOS, 2006), a despeito da introdução oficial do
neoclassicismo pela corte no Rio de Janeiro em 1816. O estilo foi
reinventado e ganhou sabores regionais nas terras brasileiras e sua
aceitação foi tamanha que custou ao gosto local abandoná-lo para
aderir ao estilo que o substituiria.
Figura 2 − Interior da Igreja de Santa Rita, Rio de Janeiro.
Foto: Mateus Rosada, 2014.
Vale lembrar que o século XVIII marca a descoberta de enormes
quantidades de ouro no Brasil e a colônia atingiu desenvolvimento
e incremento populacional inéditos. A população do Brasil
decuplica na centúria: passa de 300 mil habitantes em 1700, para
3,25 milhões em 1800 (IBGE, 2000). Tamanha expansão resultou
na construção de mais de um milhar de novas igrejas nas tantas vilas
que se estabeleceram, assim como para a reformas de atualização
estilística nas preexistentes. Esse processo ocorreu em parte sob a
estética barroca, nos dois primeiros terços do século, e a renovação
continuou com o rococó, no terço final do período. Grande parte
dos templos brasileiros nascidos barrocos sofreram alguma reforma
estilística de sabor Rococó até o alvorecer do século XIX. Portanto,
não é exagero afirmar que a parcela mais expressiva dos exemplares
que turisticamente chamamos hoje de “Barroco brasileiro” ou
“Barroco mineiro” é, na verdade, Rococó. O poderio econômico
dado aos maiores centros mineradores e portuários possibilitou o
incremento recursos materiais e humanos que lograram a realização
de obras religiosas de grande vulto e indiscutível qualidade artística,
rivalizando com a metrópole, por vezes, a ponto de importantes
estudiosos da arte, como Germain Bazin, afirmarem que “os
melhores exemplos [do Rococó de padrão português] estão no
Brasil” (2010, p.214).
De qualquer forma, a influência da metrópole sobre sua colônia é
visível e se evidencia nas características regionais da talha em
Portugal. Muitas vezes, é possível identificar a região de origem de
determinado entalhador português atuante no Brasil a partir da
presença de alguns estilemas característicos de sua região de origem.
Na segunda metade do século XVIII, os principais centros de onde
partiram artífices que se estabeleceram na colônia foram Lisboa,
Porto e Braga. Enquanto a talha da capital do Reino se caracterizava
por um Rococó mais castiço, afrancesado, com muitos resquícios
ainda do Barroco Joanino que o antecedeu, as obras de madeira do
Norte Português já possuíam uma estruturação diferenciada ao
período anterior e com maior usos de elementos tipicamente
germânicos bastante abstratos, como os auriculares, já presentes na
cultura visual germânica através “estilo auricular” do século XVII
(ohrmuschtelstil), que foi englobado pela padronagem abstrata do
rokoko e com ele se fundiu. Os auriculares serão marcantes e
encontráveis em um sem-número de obras em Minas Gerais e,
especialmente, em São Paulo.
O Rococó chega a São Paulo
Estima-se que seja década de 1760, alguns anos depois da capital da
colônia e praticamente ao mesmo tempo que os principais centros
urbanos brasileiros da época, que surgem as primeiras
manifestações do Rococó na Capitania de São Paulo.
Aqui cabe uma explicação, pois não é possível até o momento, com
a documentação que se tem contato, fixar o ano no qual se realiza
a primeira obra. Imaginava-se que o primeiro retábulo Rococó de
São Paulo seria o da Igreja da Venerável Ordem Terceira do Carmo,
na capital, entalhado por Antônio Ludovico em 1759 (ANDRADE,
1963, p.155). No entanto, em documentação à qual apenas
recentemente tivemos acesso (2019), há a informação que o
retábulo mencionado foi desmanchado e vendido pela Ordem
Terceira em 1799 (VOTCSP, 1742-1820, f.108-109) e que o atual
seria de 1800-1801. Com pouquíssimas informações sobre as datas
de faturas de outras obras de talha nas mais de 120 igrejas coloniais
paulistas, fica difícil precisar o ano em que os entalhadores
começaram a utilizar o vocabulário rocaille na região, mas, pela linha
evolutiva dos retábulos, é possível fixar com boa segurança a década
de 1760 como inicial para o estilo em São Paulo.
Essa segunda metade do século XVIII coincidiu com uma fase de
importante crescimento econômico para a região, com a expansão
do comércio tropeiro e um segundo e mais vistoso ciclo sucrocultor
(ARAÚJO, 2006, p.26). O incremento econômico permitiu que
muitas reformas, ampliações e reconstruções de igrejas fossem
levadas a cabo, tanto na capital como no litoral e em outros centros
da então Capitania. É possível se afirmar que a arquitetura religiosa
encontrada hoje no Estado de São Paulo, conheceu uma segunda
fase na segunda metade do século XVIII, quando se construíram
igrejas maiores e de ornamentação mais sofisticada. Todas as
cidades paulistas mais ricas desse período, como a capital, Itu,
Santos, Sorocaba, Mogi das Cruzes, Guaratinguetá e Taubaté
reformaram suas igrejas, demoliram e reconstruíram templos
antigos ou mesmo erigiram novos espaços de culto.
Ao período de desenvolvimento econômico soma-se um fator
religioso importante: em 1745, São Paulo torna-se sede de bispado,
com território eclesiástico desmembrado do Rio de Janeiro. Esse
ato significa duas coisas: a primeira, corrobora a boa fase da
economia paulista no período, pois a Igreja Católica se certificava
que a nova diocese só seria instalada em cidade que tivesse
capacidade de sustentar financeiramente sua estrutura; a segunda, a
influência nas artes: a separação da circunscrição eclesiástica vai
significar também uma maior autonomia artística em relação ao
bispado do Rio de Janeiro, que até antes desse ato era a referência
para as artes religiosas dos paulistas. A instalação do bispado seria
um dos fatores determinantes para que as igrejas da capital fossem
seguidamente reformadas: dezessete das dezoito igrejas do núcleosede da capital foram reformadas ou reconstruídas entre 1740 e
1800 (SILVA-NIGRA, 1958, p.821-837).
Os fatores econômico e eclesiástico foram importantes para que o
Rococó fosse adotado em quase todas as igrejas do período,
substituindo a ornamentação que existia até então. É na segunda
metade do século XVIII que a Capitania tem meios para dar um
salto na produção artística e, por ser um período um pouco mais
próximo da atualidade, fase da qual restou um pouco mais de
documentação preservada, que possibilita identificar alguns
autores.
Nesse momento, ainda, ao mesmo tempo em que a Capitania de
São Paulo atinge certa autonomia artística em relação a outras
dioceses (os domínios da circunscrição eclesiástica abrangiam toda
a capitania), também se conecta mais estreitamente com outras
regiões graças ao avanço do comércio, recebendo artistas
imigrantes de outras partes da colônia (especialmente Rio de Janeiro
e Minas Gerais) e até mesmo do Reino (com destaque para o Porto
e Lisboa). Esses profissionais vão se fixar e abrir oficinas não só na
capital, mas também nos outros núcleos urbanos mais
proeminentes: há registros de oficinas de artífices com obras
Rococós pelo menos em Santos, Taubaté, Guaratinguetá, Itu e na
própria São Paulo. É certo que outras cidades tiveram oficinas de
entalhadores nessa época, e uma pesquisa mais aprofundadas nos
arquivos municipais evidenciaria isso.
Artífices da Talha Rococó Paulista
O entalhador mais influente desse período é provavelmente
Bartholomeu Teixeira Guimarães (Lugar do Passal, próximo a
Guimarães, Portugal, c.1738- Itu, 1806) (GUIMARÃES, 1806-07),
estabelecido
com
oficina
em
Itu
a
partir
de
1786.
Documentalmente comprovada é sua autoria no retábulo-mor da
Igreja de Nossa Senhora da Candelária (fig.03), matriz daquela
cidade (CERQUEIRA, 2015, p.03-05). A obra mais antiga
provavelmente de seu grupo1 é o retábulo-mor da igreja do
Convento do Carmo de Santos, o principal porto paulista. Em
poucos anos, obras de talha com as mesmas características foram
realizadas em São Paulo, Cotia, Sorocaba e Itu, onde se estabeleceu
definitivamente, além de um curioso caso de retábulo levado para
Viamão-RS (ROSADA, 2016, p.292-302). Os elementos que o
caracterizam são os auriculares em C ou S, elementos de origem
bávara, que marcaram não só a obra do grupo ao qual pertencia,
como foram também utilizados por outros artistas paulistas de 1760
À época da redação da Tese de Doutorado optamos por classificar as obras de entalhe por
grupos de características comuns. Os grupos receberam o nome do entalhador que possuía
alguma obra com registro de autoria no rol dentro da classificação. Essa divisão foi realizada
para demonstrar características comuns e atentar para a possibilidade de as obras sem autoria
terem sido realizadas pelo entalhador referido ou por discípulos dele, pois não é possível
precisa-la.
1
a 1830, durante setenta anos. É interessante que se note que esses
elementos são muito comuns no Norte de Portugal, especialmente
nas regiões de influência de Braga, Porto e Vila Real, e que, não por
acaso, Bartholomeu Teixeira Guimarães nasceu no Arcebispado de
Braga.
Figura 3 − Retábulo-mor da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Candelária,
Itu.
Foto: Mateus Rosada, 2019.
Com muitas semelhanças com as obras de Guimarães, com uso de
auriculares muito semelhantes, que chegam a confundir o
observador, estão os altares realizados por José Fernandes de
Oliveira e seu grupo, responsável pela talha de quinze igrejas no
Estado de São Paulo, em doze cidades na faixa que vai de Sorocaba
a Aparecida, passando por São Paulo e incluindo também Santos.
É documentada sua autoria no retábulo-mor da Igreja da Ordem
Terceira da Penitência (Igreja das Chagas do Seráfico Pai São
Francisco) (Fig.04) de São Paulo, realizado em 1791 (ORTMANN,
1951, p.323-29). É provável que Fernandes de Oliveira tenha
trabalhado com Bartholomeu Teixeira Guimarães, dada a enorme
semelhança dos elementos, identificáveis apenas pelo fato de
Oliveira optar por auriculares menos protuberantes e mais abertos,
esparramados do que os de seu provável mestre. O tema dos
auriculares com aquelas características muito próximas surge ainda
nos trabalhos de dois artífices atuantes na década de 1820 na mesma
igreja da Penitência de São Paulo: Floriano José e Guilherme
Francisco Vieira (ORTMANN, 1951, P.335), ainda que de forma
mais simplificada e com uma menor qualidade de acabamento. São
obras mais recentes, o que pode indicar terem sido discípulos nesse
mesmo grupo em que atuou Fernandes de Oliveira. Essa sequência
de nomes – Bartholomeu Teixeira Guimarães (ativo em 1786), José
Fernandes de Oliveira (ativo em 1791-1793), Floriano José (ativo
em 1826) e Guilherme Francisco Vieira (ativo em 1828) – apresenta
uma linha de evolução tanto da composição geral dos altares como
dos elementos auriculares a eles aplicados, e corrobora que uma
sequência de ensinamentos e influências ocorreu na talha paulista.
Figura 4 − Retábulo-mor da Igreja das Chagas do Seráfico Pai São Francisco,
São Paulo.
Foto: Mateus Rosada, 2017.
Documentos comprovam também o avanço do Rococó
adentrando o século XIX em São Paulo. Outro agrupamento
importante será o de obras semelhantes ao retábulo da Igreja da
Ordem Terceira do Carmo de São Paulo, realizado em 1800,
provavelmente por Manoel José Antunes (São Paulo, c.1762 – s.l.,
18??), único entalhador estabelecido na cidade naqueles anos (SÃO
PAULO, 1807, p.85, fogo 453). Esse conjunto possui como
algumas de suas características a talha com rocalhas maciças e
protuberantes, com grande projeção para fora dos planos em que
são aplicadas, encontros de volutas com curvas concorrentes,
acróteras com agrafes, que se agarram às cornijas abaixo de si e
lambrequins com pingentes com enrolamentos assimétricos. Há
exemplares em São Paulo, Itu e Santos.
Já com obras na virada do século XVIII e XIX está o grupo de João
da Cruz (Rio de Janeiro, c.1865 – s.l., 18??), artífice natural do Rio
e com oficina estabelecida em Taubaté no ano de 1807 (SÃO
PAULO, 1807, p.61, fogo 248). Também neste caso, há apenas um
registro confirmando ser dele uma obra: os livros de receita e
despesa da Ordem Terceira do Carmo de Mogi das Cruzes acusam
pagamento em 1815 pelo retábulo-mor (Fig.05) (ORDEM
TERCEIRA, 1768-1818, f.88). As obras desse artífice se
caracterizam, em especial, pelas mísulas com enrolamentos bastante
protuberantes para os lados, colunas lisas ou com frisos que não
percorrem todo o fuste, festões de flores, rocalhas em forma de “ƛ”
(lâmbida) sobre arranques de frontões nas laterais, frontão central
com resplendor e ladeado por volutas, e por pendentes com flores
de lis (ROSADA, 2016, p.310-318). Os retábulos desse padrão
decoram igrejas desde a cidade de São Paulo até Taubaté e
Tremembé, no Vale do Paraíba, concentrando-se os trabalhos em
Mogi das Cruzes e Guararema.
Figura 5 − Retábulo-mor da Igreja da
Ordem Terceira do Carmo, Mogi das
Cruzes.
Figura 6 − Retábulo-mor da Igreja
Matriz de Santo Antônio,
Guaratinguetá.
Foto: Mateus Rosada, 2014.
Foto: Mateus Rosada, 2017.
As igrejas da Capitania de São Paulo continuaram recebendo
alguma influência da ornamentação Rococó do Rio de Janeiro na
região do Vale do Paraíba, caminho que ligava São Paulo à Capital
da Colônia e área de transição entre as capitanias, com presença de
pessoas naturais de ambas. Os Maços de População de 1792 a 1808
de Guaratinguetá acusam a presença de um único entalhador
vivendo na cidade: Guardiano José das Chagas (Rio de Janeiro,
c.1744 – Guaratinguetá [?], 18??), natural do Rio de Janeiro, tendo
vivido uma parte de sua vida em Parati, e depois estabelecendo-se
Guaratinguetá (SÃO PAULO, 1792, fogo 23; SÃO PAULO, 1809,
f.28, fogo 103). Não parece ser acaso que as obras de talha da virada
entre o século XVIII e XIX das regiões de Parati e Guaratinguetá
(Aparecida e Cunha incluídas), cidades onde viveu Guardiano, se
assemelhem enormemente com os retábulos e arcos-cruzeiros
Rococós do Rio de Janeiro (local onde ele nasceu), especialmente
os executados por um dos mais requisitados entalhadores da capital
da colônia na segunda metade do século XVIII: Ignacio Ferreira
Pinto. (RABELO, 2001). Os altares que se atribuem ao grupo de
Chagas (Fig.06) se destacam pelas colunas com frisos salientes
arrematados no primeiro terço e nas partes superior e inferior do
fuste por elementos fitomorfos, e com capitéis com as folhas de
acanto estilizadas; contam também com a presença de auriculares
nas cartelas e tarjas. Os arcos-cruzeiros são únicos no Estado de
São Paulo, pois possuem exuberante ornamentação rocaille com
aletas laterais acima de suas molduras, estas ornadas com cartelas
nas faces externas e no intradorso.
À Guisa de Conclusão: um Rococó Paulista
A talha religiosa Rococó em São Paulo apresenta, ao fim do século
XVIII, traços característicos regionais e é perceptível que
determinados grupos de entalhadores influenciaram outros que se
seguiram, sendo possível afirmar que se cria, nesse momento, uma
espécie de escola paulista de artífices com padrões locais
(ARAÚJO, 1997). A maior parte das obras do Rococó Paulista
passa a ter variações locais e únicas, e são perceptíveis quatro
padrões dominantes, que indicam “escolas” e grupos cujos
entalhadores deram continuidade a padrões de seus mestres:
Dois grandes padrões dominantes num raio de 100km no
entorno da capital São Paulo. O primeiro, com centro em Itu,
tributário da obra de Bartholomeu Teixeira Guimarães, com
obras também dos grupos de José Fernandes de Oliveira,
Floriano José e Guilherme Francisco Vieira, que demonstram
uma sequência de padronagem que vigora por pelo menos
sessenta anos. E o segundo, sediado na capital, de uma
linguagem mais compacta e volumosa, atrelado,
provavelmente, ao entalhador Manoel José Antunes.
Um padrão, ainda que não se diferencie substancialmente do
realizado no Rio de Janeiro, que decorou as igrejas na área de
influência de Guaratinguetá, com obras de Guardiano José das
Chagas e seus possíveis discípulos, abrangendo realizações no
Caminho Velho da Estrada Real, chegando até a cidade
fluminense de Paraty.
Um quarto padrão na faixa ao longo do caminho que ligava o
Rio a São Paulo, de artífices seguidores da decoração criada
pelo carioca João da Cruz, com as obras gravitando entre Mogi
das Cruzes e Taubaté e cidades próximas, e características no
entremeio dos padrões estritamente paulistas da capital e do
estilo fluminense de Guardiano José das Chagas, que atuava na
cidade vizinha à da oficina de João da Cruz.
Esses são nomes de entalhadores cujos grupos ou círculos mais
próximos produziram objetos de talha nas igrejas paulistas durante
a vigência do Rococó. Outros mais existiram, anônimos, cujos
nomes nunca foram recuperados, com obras em menor número,
muitas vezes de ocorrência única, em apenas um templo, como é o
caso de boa parte das irmandades pobres do Rosário dos Pretos,
existentes em quase toda vila colonial. Toda comunidade religiosa,
por singela que fosse, procurou dar à Casa de Deus a melhor
dignidade possível, e ela se deu, no período de 1760 a 1840, com a
ornamentação rocaille. E assim, o Rococó, estilo nascido na França,
que chegou à Baviera, foi ali editado, transformado, copiado e
impresso, chegou a Portugal e cruzou o oceano, atingindo as franjas
mais longínquas do domínio português na América. O Rococó
conquistou o gosto da população, substituiu ornamentações
anteriores e depois ainda resistiu a novas modas estéticas que
chegavam ao Brasil, perdurando por muito mais tempo do que em
outros lugares do globo.
Atualmente, das 120 igrejas construídas até o advento da República
e que ainda remanescem no solo de São Paulo, 81 delas, pouco mais
de dois terços, possui decoração rococó (ROSADA, 2016, p.163172), no todo ou ao menos em parte, o que demonstra a
importância e a representatividade desse estilo para a arte religiosa
paulista. Compreender melhor essa arte é valorizar elementos que
são constitutivos da formação e da cultura do Estado, e demonstrar
como é imperiosa a sua preservação.
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Santo Elias, Belo Horizonte.
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Termos. São Paulo, 1742-1820. Manuscrito. Arquivo Metropolitano
Dom Duarte Leopoldo e Silva da Arquidiocese de São Paulo.
Anotação cedida por Carlos Gutierrez Cerqueira.
Monica Cristina Brunini Frandi Ferreira
Arquivo Público e Histórico do Município de Rio Claro
Centro Universitário Central Paulista UNICEP – Unidades Rio Claro e
Porto Ferreira, SP, Brasil
[email protected]
Resumo
Trata de capítulo da tese de doutorado que trabalhou com o tema da
higiene da habitação urbana paulista e que objetivou analisar em fontes
documentais originais como a moradia foi incluída nas iniciativas
governamentais para melhorar o estado sanitário de Campinas/SP,
entre 1880 e 1934. Na ocasião, confirmou-se a hipótese de que as
medidas tomadas pelo governo de São Paulo e pela municipalidade, no
final do século XIX, sob a organização do regime republicano e para
combater as epidemias de febre amarela, estiveram fundamentadas nos
princípios do urbanismo sanitarista europeu, que foram sistematizados
na legislação sanitária estadual e edilícia municipal, embasando as
práticas relacionadas à higiene das habitações e orientando a atividade
edificativa em Campinas. Respaldado na análise do panorama da
construção civil em Campinas, este artigo elucida o procedimento
administrativo que autorizou as licenças para a construção de
moradias, que foi formalizado na legislação edilícia e organizado na
Repartição de Obras, identificando os protagonistas na concepção e na
análise dos requerimentos para aprovação dos projetos arquitetônicos.
Na tese concluiu-se que a normativa municipal para construções,
atendendo aos preceitos da legislação sanitária estadual e dando
suporte ao aparato sanitarista, foi decisiva para promover as alterações
nos prédios existentes e para orientar a construção de novas habitações
em Campinas/SP, ao estabelecer a obediência às determinações
técnicas de aspecto, de solidez e de higiene, principalmente
relacionadas à impermeabilização, à insolação e ao arejamento das
edificações urbanas.
Palavras-chave: Higiene da habitação. Habitação urbana paulista.
Legislação sanitária. Legislação edilícia. Urbanismo sanitarista.
Abstract
It deals with a chapter of the doctoral thesis that worked with the
theme of hygiene of urban housing of São Paulo and that aimed to
analyze in original documentary sources how it was included in
government initiatives to improve sanitary conditions of the city of
Campinas / SP, between 1880 and 1934. On this occasion, the
hypothesis was confirmed that the measures taken by the
government of São Paulo and by the municipality, in the late 19th
century, under the organization of the republican regime and to
combat yellow fever epidemics, were based on the principles of
European sanitary urbanism, which were systematized in the state
sanitary legislation and municipal building, supporting the practices
related to house hygiene and guiding the building activity in
Campinas. Supported in the analysis of the panorama of civil
construction in Campinas, this article clarifies the administrative
procedure that authorized the licenses for the construction of
houses, which was formalized in the building legislation and
organized in the Works Department, identifying the protagonists in
the design and analysis of the requirements for approval of
architectural projects. In the thesis it was concluded that the
municipal norm for constructions, in compliance with the precepts
of the state sanitary legislation and supporting the sanitary
apparatus, was decisive to promote the alterations in the existing
buildings and to guide the construction of new houses in Campinas
/ SP, when establishing obedience to the technical determinations
of appearance, solidity and hygiene, mainly related to
waterproofing, insolation and ventilation of urban buildings.
Keywords: Housing hygiene. São Paulo urban housing. Sanitary
legislation. Building legislation. Sanitary urbanism.
Resumen
Se trata de un capítulo de la tesis doctoral que trabajó con el tema
de la higiene de la vivienda urbana en São Paulo y que tuvo como
objetivo analizar en fuentes documentales originales cómo se
incluyó la vivienda en las iniciativas gubernamentales para mejorar
el estado de salud de Campinas / SP, entre 1880 y 1934. En esta
ocasión se confirmó la hipótesis de que las medidas tomadas por el
gobierno de São Paulo y por el municipio, a fines del siglo XIX,
bajo la organización del régimen republicano y para combatir las
epidemias de fiebre amarilla, se basaron en los principios del
urbanismo sanitario europeo. , los cuales fueron sistematizados en
la legislación sanitaria estatal y de edificación municipal, apoyando
las prácticas relacionadas con la higiene de la vivienda y orientando
la actividad de edificación en Campinas. Apoyado en el análisis del
panorama de la construcción civil en Campinas, este artículo aclara
el trámite administrativo que autorizó las licencias para la
construcción de viviendas, que se formalizó en la legislación de
edificación y se organizó en el Departamento de Obras,
identificando a los protagonistas en el diseño y análisis de los
requisitos. para aprobación de proyectos arquitectónicos. En la tesis
se concluyó que la normativa municipal para construcciones, en
cumplimiento de los preceptos de la legislación sanitaria estatal y de
apoyo al aparato sanitario, fue determinante para promover las
reformas en las edificaciones existentes y orientar la construcción
de nuevas viviendas en Campinas / SP, al establecer obediencia a
las determinaciones técnicas de apariencia, solidez e higiene,
principalmente relacionadas con la impermeabilización, insolación
y ventilación de edificios urbanos.
Palabras clave: Higiene de la vivenda. Vivienda urbana de São
Paulo. Legislación sanitária. Legislación de la construcción.
Urbanismo sanitario.
O procedimento para aprovação de edificação de obras
particulares sistematizado na legislação edilícia
A partir de 1893, os proprietários dos terrenos urbanos ou seus
representantes legais, que tivessem a intenção de realizar qualquer
obra civil em Campinas deveriam obedecer ao procedimento
administrativo que foi instituído por meio da Resolução Municipal
nº 15, de 30/06/1890. Por meio desta lei, as plantas arquitetônicas
que fossem apresentadas junto aos requerimentos para as obras
particulares poderiam ser imediatamente executadas após a análise
técnica do engenheiro municipal e a aprovação final exclusiva do
presidente do Conselho de Intendência, não necessariamente de
todos os seus três membros (CAMPINAS [Município], Resolução
nº 15, 30 jun. 1890).
Naquele ano, Antonio Alvares Lobo respondia pela presidência do
Conselho de Intendentes e ainda pela Intendência de Higiene e
Instrução Pública1, com atribuições que o qualificavam como o
Após a Proclamação da República, o Decreto Estadual nº13, de 15/01/1890, estabeleceu
que, até a definitiva constituição do Estado de São Paulo, o poder ou governo dos municípios
seria exercido por Conselhos de Intendência, que estariam compostos de 3 a 9 membros,
nomeados pelo Governador, sendo um deles o presidente, onde todos deliberariam sobre
todos os assuntos da competência das câmaras municipais. Dentre suas atribuições estaria
aquela de “alterar, substituir e revogar as atuais posturas municipais, decretar novas, si assim
exigir o bem do município”. Em janeiro de 1890, o advogado Antonio Álvares Lobo foi
nomeado o primeiro presidente do Conselho de Intendência da cidade de Campinas/SP e
no ano de 1893, data dos requerimentos descritos, como membro da Junta de três
Intendentes, respondia pela Intendência de Higiene e Instrução Pública, como fora
estabelecido pela Lei Municipal nº01, de 12/10/1892, permanecendo nesta função até 1895.
Na condição do seu cargo, dentre os três intendentes municipais, Antonio Álvares Lobo teria
a atribuição legal de deliberar sobre a “construção e higiene das habitações”. Os outros dois
intendentes seriam Antonio Carlos do Amaral Lapa, que recebeu as solicitações em 1893, e
José Maximiano Pereira Bueno. As competências do Intendente Municipal de Higiene e
Instrução Pública foram determinadas no Capítulo II, da Lei Municipal nº01, de 12/10/1892
e seriam: “Estatuir e prescrever todas as medidas que interessar possam à higiene do
município, decretando as providências que forem a benefício da salubridade do lugar e da
1
mais indicado para deliberar sobre a “construção e higiene das
habitações”. Foi ele quem recebeu e deu o parecer final aos
requerimentos, apesar da imprecisão dos proprietários no
endereçamento dos documentos, pois ainda verificamos em 1893
que ele remeteu os pedidos ora a Lobo, ora a Lapa, que respondia
naquele momento pela Intendência de Obras Públicas e Posturas2.
saúde dos munícipes; Deliberar de harmonia com a lei municipal as questões sobre limpeza
pública, fontes chafarizes, poços, desobstrução de rios, lavanderias, construção e higiene das
habitações, além dos logradouros públicos; Inspecionar o serviço do matadouro, talhos e
açougues, mercado, qualidade dos gêneros de consumo sujeitos a deteriorações, fábrica de
bebidas e natureza destas; Determinar o trabalho de desinfecções, examinando o
abastecimento de água, serviço de esgotos e irrigações de ruas e praças; Fiscalizar os
estabelecimentos hospitalares e de obras pias, serviço de assistência pública, regime do
cemitério e enterramentos; Superintender as fábricas que produzam matérias que possam
prejudicar a saúde pública; Estabelecer as lotações de colégios, hotéis, hospedarias e casas
particulares, e Impor multas aos infratores dos regulamentos e leis de higiene, subscrevendo
os autos que serão remetidos a quem de direito”. O mesmo Intendente ainda seria
responsável por resolver, de acordo com as leis municipais, “as questões relativas à instrução
pública, em qualquer de seus ramos”. No Capítulo III, da mesma Lei Municipal, foram
estabelecidas as competências do Intendente de Obras Públicas e Posturas: “Zelar dos
próprios municipais, representando ao poder competente toda a vez que for mister qualquer
reparo ou obra nos mesmos; Resolver os negócios referentes a alinhamento, demolição,
enumeração de prédios, de ruas e praças, conservação, reparo e pintura de muros,
construções de pontes viadutos, servidões, caminhos, jardins públicos, calçadas e
arborização; Resolver as questões relativas a feiras, depósito e fabrico de inflamáveis e outros
que possam prejudicar a propriedade e sossego público, bem como sobre iluminação, serviço
de extinção de incêndio, transporte de veículos, telegráfico e telefônico; Regulamentar as
matérias concernentes ao uso de armas nas povoações nas povoações, mediante editais que
farão expedir notando quais sejam as proibidas; sobre caça e pesca; sobre espetáculos e
divertimentos públicos e jogos; lavoura, comércio e indústrias, imigração e colonização, e
Organizar a polícia municipal, fiscalizando a que for instituída por decreto do poder
legislativo, bem como gerir os negócios de estatística e nomeadamente do recenseamento da
população e cadastro do município”. Dentre ambos, o mais qualificado para responder aos
requerimentos sobre a construção de obras particulares seria mesmo o Intendente de Higiene
e Instrução Pública e não o Intendente de Obras Públicas e Posturas, pessoa para o qual
alguns dos requerimentos daquele ano de 1893 foram endereçados. Completaria ainda o
Conselho de Intendência o Intendente de Finanças (SÃO PAULO [Estado], Decreto nº13,
15 jan. 1890; CAMPINAS [Município], Lei nº 01, 12 out 1892; OCTAVIO e MEMILLO,
Vicente [org], 1911, p.28).
2 Os requerimentos do ano de 1893, data inicial da pesquisa na documentação primária,
foram endereçados ao Intendente de Obras Públicas, ao Intendente de Higiene e ao
Presidente da Intendência Municipal. Informou Pareto Junior (2011, p.60) que na cidade de
São Paulo a Lei Municipal nº 38, de 1893, determinou a exigência da apresentação de plantas
das novas edificações, que resultaria no fornecimento de um alvará de licença que autorizaria
o início de qualquer obra de construção civil na cidade, documento que seria lavrado pelo
engenheiro chefe da Diretoria de Obras, Victor da Silva Freire.
Na sessão ordinária da Câmara Municipal de 30/06/1890, data da
aprovação da Resolução nº 15, Antonio Alvares Lobo leu aos
vereadores presentes um ofício enviado pelo Dr. Charles Shalders,
recém empossado engenheiro da Câmara Municipal de Campinas,
que tratava do mesmo assunto. Atento às qualidades técnicas do
projeto arquitetônico apresentado pelos proprietários, que seria por
ele analisado e aprovado, o Dr. Shalders declarou em ofício que não
mais assinaria as plantas sobre construções particulares que lhe
fossem apresentadas para dar parecer, quando as mesmas não
fossem “traçadas a tinta, visto poderem as mesmas serem alteradas,
estando nelas a sua assinatura”3. O engenheiro da Câmara apontou
igualmente a conveniência da Intendência em ficar com uma cópia
das plantas, de forma a “poder fiscalizar essas construções” em
qualquer momento da execução das obras, exemplar que deveria
ser, segundo as suas sugestões, elaborado em papel transparente,
pois ofereceria “maior comodidade aos requerentes, por ser muito
mais fácil copiar um desenho em papel transparente do que fazer
segundo, em papel branco”.
Na sequência dos assuntos apresentados e discutidos naquele dia, o
Intendente Lobo, na qualidade de presidente do Conselho de
Intendência, apresentou aos vereadores ao final daquela sessão, a
indicação de redação para a lei que regulamentaria o procedimento
para a apresentação de projetos de obras particulares em Campinas.
O Dr. Charles Shalders foi nomeado engenheiro da Intendência na data de 23/06/1890,
substituindo o Dr. Henrique Florence. Na sessão ordinária seguinte à sua nomeação, em
30/06/1890, o recém empossado engenheiro da Câmara Municipal já apresentou a sua
sugestão para o procedimento de aprovação de edificações na cidade (CAMPINAS
[Município], Ata [...], 23 jun. 1890; CAMPINAS [Município], Ata [...], 30 jun. 1890).
3
O texto da Resolução nº 15 apresentou o mesmo conteúdo e
redação deste que foi sugerido por Lobo e apresentado aos
vereadores na sessão ordinária da Câmara Municipal do dia
30/06/1890, como podemos observar a seguir, o primeiro trecho
com a sugestão de Lobo e o segundo trecho da Resolução
Municipal:
Todas as plantas de edificações que tiverem
obtido o visto e aprovação do engenheiro
poderão ser desde logo executadas sem
dependência do Conselho, devendo, porém,
os requerimentos ser presentes ao
Presidente para mandá-los ao engenheiro.
(CAMPINAS [Município], Ata [...], 30 jun.
1890.)
Art. único. Todas as plantas das edificações
que tiverem obtido o – visto - e aprovação
do engenheiro, poderão ser, desde logo,
executadas, sem dependência do Conselho
de Intendência, devendo, porém, os
requerimentos ser apresentados ao cidadão
presidente, para mandá-los ao engenheiro
(CAMPINAS [Município], Resolução nº15,
30 jun. 1890).
Por sugestão de Lobo, as recomendações do Dr. Shalders quanto
aos desenhos a tinta e as cópias das plantas arquitetônicas, apesar
de não estarem expressamente contidas na Resolução nº 15/1890,
deveriam tornar-se públicas por meio de edital, para que fossem
atendidas pelos proprietários, na ocasião da apresentação dos
requerimentos. Foram de Lobo as palavras a seguir:
Relativamente ao ofício do Dr. Engenheiro
da Intendência ficou resolvido fazer pública
por meio de edital a deliberação ultimamente
tomada sobre a apresentação de plantas de
prédios devendo-se observar o que diz o
mesmo engenheiro em seu ofício lido hoje
(CAMPINAS [Município], Ata [...], 30 jun.
1890).
Obedecendo ao trâmite legalmente estabelecido através da
Resolução nº 15, de 1890, os requerimentos para a construção de
obras particulares foram protocolados na Intendência pelos
proprietários dos terrenos e encaminhados ao seu presidente,
Antonio Alvares Lobo, que se responsabilizou por aprová-los, não
sem antes remetê-los à avaliação técnica do engenheiro municipal,
naquele momento o Dr. Emílio Daufresne de la Chevallerie4.
Esse procedimento foi alterado somente na ocasião em que, pela
falta de pessoa qualificada para ocupar o cargo de engenheiro
deixado por Charles Shaldres, em 26/09/1890, os proprietários
enviaram as solicitações para análise da Comissão de Obras
Públicas da Câmara Municipal. Mesmo após a nomeação do
engenheiro Daufresne, registrada em ata do dia 11/07/1892, alguns
proprietários continuaram a protocolar os requerimentos na
Câmara e não na Intendência Municipal. Na ata da sessão ordinária
de 05/09/1892, por exemplo, a dupla de construtores de obras,
Macchi & Mazzuchelli, solicitou autorização da Intendência para
edificar um prédio à Rua Senador Saraiva nº 66, para D. Jacintha
Maria da Conceição, assim como o engenheiro Dr. Antonio Raffin,
Emílio Daufresne de la Chevallerie iniciou suas atividades como engenheiro da Câmara
Municipal em 11/07/1892 e teve atuação de destaque nas questões relacionadas à higiene
das habitações particulares. Permaneceu no cargo até finais de 1900, quando escreveu o
parecer do requerimento para construção de obras particulares nº207, na data de 26/11,
sendo substituído pelo engenheiro Vergniaud Neger, que já assinou a solicitação de nº209,
protocolada no mesmo dia 26/11/1900 (CAMPINAS [Município], Ata [...], 11 jul. 1892; Req.
1900/209).
4
requisitou licença para a construção de prédio à Rua Dr. Quirino,
nº 15, para o proprietário Claudio Celestino de Abreu Soares.
Verificamos outro exemplo na ata da sessão ordinária da Câmara
Municipal do dia 26/09/1892, onde o secretário registrou a leitura
dos requerimentos de Domingos Balthasar Gomes e novamente da
dupla de construtores Macchi & Mazzuchelli, pedindo permissão
para construir prédios no bairro Guanabara, à Rua 28 de Setembro
e à Rua Ferreira Penteado nº 132, respectivamente. Consta nas duas
atas que as solicitações receberam do Presidente do Conselho o
despacho de que seus pedidos seriam encaminhados ao engenheiro
da Câmara, “para providenciar”, como deveria acontecer no
procedimento estabelecido na lei de 18905.
Mas a expressiva maioria dos documentos seguiu o procedimento
estabelecido em lei. Em 18/04/1893, por exemplo, o proprietário
Manoel Egydio do Nascimento, mediante apresentação de
Como Presidente do Conselho de Intendência, o advogado Dr. Antonio Álvares Lobo
também presidia as sessões da Câmara Municipal. Certamente que as solicitações para
construção de obras particulares deveriam ser endereçadas ao Intendente Lobo, que ainda
respondia pela Intendência de Higiene e Instrução Pública, que lhe incumbia de cuidar da
construção e da higiene das habitações, mas os requerimentos deveriam chegar ao
destinatário por caminho diferente daquele que foi tentado pelos construtores Macchi &
Mazzuchelli, pelo engenheiro Antonio Raffin e por Domingos Balthasar Gomes. Os
solicitantes deveriam ter protocolado seus requerimentos e não levado para serem
apresentados, discutidos e registrados em atas de sessões da Câmara Municipal de Campinas.
A dupla Julio Macchi & Mazzuchelli estava registrada no Livro de lançamentos dos Impostos
de Indústrias e Profissões como “C. de obras”, certamente a versão abreviada de
“constructor de obras”, a partir de 1896, com endereço comercial à Rua José de Alencar nº
55. O Dr. Antonio Raffin estava registrado como contribuinte do Imposto Municipal de
Indústria e Profissões como engenheiro, com endereço comercial à Rua Barão de Jaguara, nº
45 (no período 1893/1895) e à Rua General Osório nº 140 (entre 1896/1899) e nº 63 (entre
1900 e 1903, data limite desta pesquisa). Não foi encontrada no Livro de Lançamentos dos
Impostos de Indústrias e Profissões, em período entre 1890-1903, nenhuma informação a
respeito de Domingos Balthasar Gomes (CAMPINAS [Município], Livro [...], 1890-1903;
CAMPINAS [Município], Ata [...], 05 set. 1892; CAMPINAS [Município], Ata [...], 26 set.
1892).
5
requerimento endereçado ao presidente e demais membros da
Comissão de Obras Públicas da Cidade de Campinas, solicitou
autorização para fazer uma casa na Rua das Flores n0 70, conforme
a planta inclusa, e no dia 5 do mesmo mês obteve a assinatura do
engenheiro da Câmara Municipal – Dr.Emílio Daufresne –
autorizando o início da construção.
Nos requerimentos encontramos declarações manuscritas dos
proprietários dos lotes urbanos e material gráfico composto de
planta arquitetônica e do desenho da fachada. Essas declarações
foram endereçadas ao Intendente Municipal e seguiram uma
padronização na forma (disposição do texto na folha tamanho
ofício) e no conteúdo (informações manuscritas), com textos
redigidos pelos proprietários que indicavam a localização da obra e
a intenção de construir novas edificações ou de reconstruir prédios
existentes na cidade de Campinas6.
Nas reformas ou reconstruções de edificações os requerimentos
costumavam ter informações complementares, de forma a
especificar minimamente as obras que estavam relacionadas à
execução de melhorias nas condições de higiene, de solidez e de
aspecto das construções urbanas.
Nos processos pesquisados a partir do ano de 1893 há solicitações diversas e não somente
para a construção de moradias. Dentre elas há pedidos para execução de alinhamento; para
a edificação de muros de fecho dos terrenos; para reformas e adaptações de moradias
existentes, principalmente para o assentamento de portas e janelas, e também para
demolições e reconstruções das fachadas dos prédios existentes, edificados em taipa. Embora
todos apresentassem o requerimento contendo a intenção e a localização da obra, a minoria
continha o material gráfico com as representações da planta arquitetônica, fachadas e seções,
documento que pode ter sido desmembrado da documentação original ou não ter resistido
à ação do tempo em virtude da fragilidade do suporte material (papel vegetal) onde ele
geralmente era elaborado.
6
O procedimento de apresentação de requerimentos foi alterado
pela Lei Municipal nº 29, de 11/01/1894. O novo texto legal
reiterou a obrigatoriedade da apresentação de documento à
Intendência, indicando a intenção e o local da construção,
apontando também para a obrigatoriedade das novas construções
estarem “sujeitas ao padrão legal prescrito pela Câmara”,
principalmente quanto ao alinhamento, à altura do prédio e as
dimensões de portas e janelas, com pena de multa e desmanche da
obra, à custa dos proprietários ou dos construtores, sem qualquer
indenização por parte do poder público. Essa nova lei especificou
que os requerimentos que fossem solicitados pelo “proprietário,
empreiteiro da obra ou interessado”, para serem construídos
especificamente “nos bairros suburbanos e nos do Arraial de
Souzas, Valinhos e Rebouças e outros existentes e que de futuro se
formarem”, deveriam informar o “local do prédio, suas dimensões,
dando sucinta descrição dos aposentos”, para que fossem
analisados pelo engenheiro municipal “para atender a matéria,
conforme for de lei”. Ao que nos pareceu, esse texto legal de 1894,
ao indicar a “descrição sucinta dos compartimentos”, não tornou
obrigatória a apresentação da planta arquitetônica e da fachada dos
edifícios situados fora da área central da cidade, uma vez que em
muitos pedidos o material gráfico foi substituído pela descrição dos
aposentos, com no máximo um esquema da composição da testada
principal (CAMPINAS [Município], Lei nº 29, 11 jan. 1894).
Em diversos requerimentos os proprietários apontaram a
obediência
ao
“art.2º
das
novas
posturas
municipais”,
possivelmente referindo-se à Lei nº29, de 11/01/1894, onde foi
possível observar descrições bastante simplificadas do espaço
interno das moradias, algumas vezes acompanhadas por desenhos
que representaram somente a organização formal das fachadas.
Segundo descrição do proprietário de terreno no Arraial de Souzas,
“o prédio em questão terá 7,40 de fundo e 8,20 de largura, dividido
da maneira seguinte: uma porta na frente e duas janelas, tendo uma
sala, duas alcovas, varanda e cozinha”, que justifica a não
apresentação de planta “em vista da pequenez do prédio”. No
requerimento de Manoel Gomes da Graça, o proprietário solicitou
a construção de casa em terreno da estrada do Taquaral e recebeu
o seguinte despacho do engenheiro da Câmara: “[...] tenho a
informar que o requerimento além de não apresentar planta, não dá
nenhum detalhe a respeito da construção que pretende fazer, não
dá comprimento nem fundo do prédio, altura, não dá o número de
portas, janelas, e nem as suas dimensões, de modo que torna-se
impossível dar despacho ao dito requerimento”. Indeferido, o
solicitante executa o croquis, feito, de forma improvisada, no canto
esquerdo inferior da folha, e teve seu requerimento aprovado.
Essas exigências da Lei Municipal nº 29/1894, relativas ao
procedimento para solicitação e aprovação de novas construções
ou reconstruções na cidade, foram reiteradas em 27/08/1895, data
em que o Intendente Antonio Álvares Lobo decretou e promulgou
a Lei Municipal nº 43, que tratou das edificações em geral.7 Ainda
Na ata da Câmara Municipal, da sessão ordinária de 16/11/1891, foi encontrada uma
referência a uma tentativa de elaboração de novas posturas que complementariam ou
substituiriam as determinações do Código de 1880, mas que não teve prosseguimento.
7
dependente de regulamento próprio, “estabelecendo as condições
de higiene, de solidez e de aspecto” para os edifícios na cidade, a
nova lei municipal sobre construções pouco alterou e ainda
consolidou as determinações do Código de Posturas de 18808, e
incorporou determinações relativas ao procedimento para
solicitação de obras particulares9.
O processo de aprovação da Lei Municipal nº 43 apareceu
registrado nas atas da Câmara Municipal a partir da sessão ordinária
de 02/07/1895. Naquele dia, a Comissão de Obras Públicas,
formada pelos vereadores José Falque, Alfredo Francisco e
Antônio Carlos do Amaral Lapa, apresentou um projeto de lei
Segundo consta no documento, naquele dia fora remetido à Comissão de Higiene o parecer
da Comissão de Obras Públicas, que “aprovou, na parte que lhe diz respeito, os artigos,
projetos de posturas, indicados pelo Sr. Dr. Ricardo”, referindo-se ao Dr. Ricardo
Gumbleton Daunt, que naquele momento respondia pela presidência do Conselho de
Intendência. Em ata anterior, da sessão ordinária de 18/04/1891, verificou-se o registro do
presidente da Intendência, nomeando os membros das seguintes comissões: a) Comissão de
Posturas: Dr. Francisco de Paula Cunha e Paulino Muniz; Comissão de Contas: Carlos Kaysel
e José Teodoro de Oliveira Andrade; Comissão de Obras Públicas: Tenente Francisco José
de Abreu e Luís Gomes Pinto; Comissão de Justiça e Redação: Paulino Muniz e Dr. Germano
Melchert, e a Comissão de Instrução e Higiene: Dr. Francisco de Paula Cunha e Christiano
Wohnrath (CAMPINAS [Município], Ata [...], 18 abr. 1891; CAMPINAS [Município], Ata
[...], 16 nov. 1891).
8 No Código de Posturas de 1880 não estava estabelecido nenhum procedimento para
apresentação de plantas Em seu artigo 8º estava determinado que as “casas que d’ora em
diante se edificarem na cidade, poderão ser feitas de acordo com o gosto e a arquitetura das
construções modernas”, desde que respeitassem determinadas condições de aspecto (altura
da testada, dimensionamento e composição das aberturas e organização do telhado com
beirais e platibanda) e de solidez (paredes) (CAMPINAS [Município], Resolução nº20, 10
jun. 1880, art.8º).
9 Os preceitos da Lei Municipal nº 43, de 27/08/1895, teriam validade para as edificações
situadas no perímetro urbano, definido em Lei Municipal nº 31, de 14/02/1894, e nos
“subúrbios e bairros”. A Lei Municipal nº 29, de 11/01/1894, determinou que nenhum
prédio fosse construído ou reconstruído na cidade, bairros suburbanos e arrabaldes, sem que
se precedesse licença do poder público, através de requerimento contendo o local do prédio,
suas dimensões e sucinta descrição dos aposentos, estando ainda sujeitas ao padrão legal
prescrito pela Câmara, quanto à altura do prédio, dimensões de portas e janelas, alinhamento,
etc, com pena de multa e desmanche da obra, à custa dos proprietários ou construtores
(CAMPINAS [Município], Lei nº 43, 27 ago. 1895).
relativo às edificações, com a justificativa de adequar as antigas
posturas às “exigências modernas” de uma cidade que eles
acreditavam estar em “período de transformação”, como pode ser
verificado no trecho transcrito a seguir:
Convindo reformar o Código de Posturas,
na parte relativa às edificações, pondo-se de
acordo com as exigências modernas, visto
atravessar a cidade o seu período de
transformação e de reorganização, oferece à
Comissão de obras públicas o presente
projeto de lei (CAMPINAS [Município], Ata
[...], 02 jul. 1895).
Na sessão ordinária de 05/08/1895, o referido projeto de lei foi
aprovado em segunda discussão, tal como fora apresentado. No dia
26/08/1985, em terceira e definitiva votação, foi apresentada aos
vereadores presentes naquela sessão ordinária, escrita pelos
membros da Comissão de Redação, Ricardo Coelho e Alfredo
Franco, a redação da Lei nº 43, que “altera o código de posturas de
1880, na parte relativa a edificações”, que foi oficialmente publicada
no dia seguinte.
Foi somente com o Regulamento da Lei nº 43/189510, publicado
em 22/09/1896, que ficou padronizada e mais claramente definida
O Regulamento da Lei nº 43, de 22/09/1896, consolidou as normas para apresentação dos
projetos que foram determinadas nos textos legais anteriores, como a Lei Municipal nº 29,
de 11/01/1894, e a Lei Municipal nº 43, de 27/08/1895, além de incorporar a sugestão feita
pelo antigo engenheiro da Câmara Municipal, Dr. Shalders, que na sessão ordinária de
30/06/1890, sugeriu que os desenhos das obras particulares fossem feitos em duplicidade,
de forma a ter sempre um exemplar no local da obra para uma possível inspeção. As
construções e reconstruções situadas fora do perímetro urbano estariam dispensadas do
pagamento de imposto de alinhamento e de construção, mas não da prévia licença da
Intendência Municipal. O Regulamento de 1896, assim como havia sido feito na Lei nº
43/1895, apontou que continuariam em vigor “todas as posturas municipais sobre
construções e viação pública anteriormente promulgadas”, cujas disposições não estivessem
em desacordo com as novas determinações. Neste sentido, ainda não foram totalmente
revogadas as disposições legais estabelecidas pelo Código de Posturas de 1880, que nada
10
a forma de apresentação do material gráfico que acompanharia os
requerimentos endereçados ao Intendente Municipal, na época
Manoel de Assis Vieira Bueno, solicitando autorização para
executar qualquer obra civil de construção e de reconstrução,
dentro ou fora do perímetro da cidade de Campinas. De acordo
com o Regulamento, para obter essa licença prévia, o proprietário
da obra ou seu representante legal, deveria juntar ao seu pedido com
as informações tradicionais de intenção e de localização da obra, os
desenhos das plantas de cada pavimento, da “elevação geométrica
das fachadas principais” e das “seções longitudinais e transversais
suficientes para a inteira compreensão do projeto, e em que se
indicará com muito cuidado a colocação das latrinas, encanamentos
de esgotos, sifões e tubos de ventilação”, além dos “planos
completos de quaisquer dependências que tenha a mesma obra”.
Na intenção de padronizar a forma de apresentação do documento,
os desenhos tiveram escalas definidas em 1/100 (plantas) e em 1/50
(elevações e seções), e deveriam ser elaborados em duplicidade,
com um exemplar feito em papel branco comum de desenho e o
outro em papel tela, de modo que cada folha de desenho tivesse
altura mínima de 50cm, “dobrada de modo a ter 0,21 + 0,81
centímetros, conforme a fôrma do papel do requerimento”.
A partir de 1896, os requerimentos que não apresentaram restrição
legal ganharam de Daufresne o despacho padronizado com as
seguintes palavras: “Aprovado conforme o regulamento da Lei n0
apontou sobre o procedimento para solicitação das licenças para obras particulares de
edificações (CAMPINAS [Município], Lei nº 43, 27 ago. 1895, art. 1º, 6º e 7º; CAMPINAS
[Município], Regulamento da Lei nº43, 22 set. 1896, art.36).
43”. O engenheiro costumava ser bastante rigoroso com os
proprietários quanto à forma de apresentação dos requerimentos.
Em alguns casos, onde a documentação não estava condizente com
a legislação municipal, até mesmo impossibilitando a sua análise
técnica, ele solicitava ao interessado a adequação às normas. Foi o
que ele fez com Marciano Tortoriello, proprietário do terreno e da
casa que desejava demolir a Rua Major Solon n0 58. Sobre a planta
da nova edificação, Daufresne deu o seguinte parecer: “Não posso
aceitar a planta apresentada porque além de ser muito mal
desenhada, não se acha nas condições exigidas pelo Regulamento
da Lei n0 43 [...]”.
O procedimento de apresentação de requerimentos para
construção de obras particulares em Campinas foi alterado após
três décadas de prática administrativa, com a promulgação da Lei
Municipal nº 400, de 26/02/1927, que também abordou essa
questão quando tratou do abastecimento de águas, dos esgotos
sanitários e das águas pluviais em Campinas. Essa normativa
municipal certamente atendeu às determinações das leis estaduais
que, embora não especificassem as normas para apresentação dos
projetos
arquitetônicos,
impuseram
a
obrigatoriedade
da
apresentação dos mesmos antes de ser iniciada qualquer construção
e reconstrução na cidade, e ainda “organizada de acordo com as
posturas municipais e as leis sanitárias do Estado”11.
Entre 1911 e 1918 o Estado de São Paulo publicou quatro importantes leis que trataram
do Serviço Sanitário e do Código Sanitário, onde estavam determinadas prescrições para a
normatização da atividade construtiva, tanto para os aspectos construtivos com para a polícia
sanitária das habitações, que deveriam ser incorporadas pelos municípios paulistas, quando
da atualização das suas posturas. O Decreto nº 2.141, de 14 de novembro de 1911,
11
Os procedimentos apresentados em 1927 foram finalmente
consolidados no Código de Construções de 1934, através do
Decreto Municipal nº 76, de 16/03/1934, denominado “Código de
Construções”12.
Na comparação entre os textos de 1927 e 1934, a Lei Municipal nº
400/1927 foi bastante minuciosa e consolidou a normativa para o
procedimento de apresentação de projetos, com o objetivo de obter
o “alvará de construção”, termo que apareceu pela primeira vez em
lei, substituindo a antiga “licença prévia para construir”13. No
Código de Construções de 1934 houve neste sentido a
complementação de que, antes de ser expedido qualquer alvará para
o início da construção, a Repartição de Obras e Viação faria uma
vistoria para verificar as condições do local das obras. Não estava
expressamente especificada qual seria essa preocupação, mas
provavelmente estaria relacionada à situação do terreno, em termos
reorganizou o Serviço Sanitário e estabeleceu o seu Regulamento; a Lei nº 1.310, de 30 de
dezembro de 1911, aprovou o decreto nº 2.141, com modificações; a Lei nº 1.596, de 29 de
dezembro de 1917, reorganizou o Serviço Sanitário do Estado e, por fim, o Decreto nº 2.918,
de 09 de abril de 1918, dá execução do Código Sanitário do Estado de São Paulo, normativa
esta que, até o limite temporal de 1934, foi a última a tratar do controle da atividade edilícia
no Estado de São Paulo.
12 Existiu uma alteração anterior, através da Lei Municipal nº 264, de 29/10/1920, que,
embora tratasse do assunto edificações, não alterou o procedimento para apresentação de
requerimentos para obras particulares. Naquele texto estava determinado que a Repartição
de Obras somente aprovaria as plantas para construções e reconstruções de prédios na
cidade, “depois de verificadas a solidez e a conformação do respectivo terreno e de prédios
vizinhos, no caso destes serem aproveitados, e a exatidão dos projetos apresentados”
(CAMPINAS [Município], Lei nº 264, 29 out. 1920; CAMPINAS [Município], Lei nº 400, 26
fev. 1927; CAMPINAS [Município], Decreto nº 76, 16 mar. 1934).
13 O interessado poderia modificar o plano aprovado, desde que solicitasse novo alvará,
apresentando à Prefeitura o projeto com as alterações. Não seria necessária nova licença para
a execução de pequenas modificações como: altura máxima dos edifícios; altura mínima dos
pés direitos; espessura mínima das paredes; superfície mínima de iluminação; máximo das
saliências; acréscimo da superfície dos pisos dos cômodos dos prédios em construção, com
planta aprovada, até 3% da superfície aprovada, desde que não sejam afetados os mínimos
dos espaços livres, áreas, saguões e corredores (CAMPINAS [Município], Lei nº 400, 26 fev.
1927).
do plano do retalhamento da quadra em lotes, em virtude da
crescente expansão da cidade para além da área de urbanização
tradicional.
Em 1927, os requerimentos deveriam ser assinados pelo
proprietário do terreno ou da obra e também pelo construtor
responsável pela concepção e pela execução da obra, e notamos que
alguns construtores substituíram os antigos manuscritos por
requerimentos datilografados, alguns elaborados em papel
timbrado. Em relação à produção do material gráfico, a Lei de 1927
determinou que o interessado deveria, conjuntamente com o
requerimento em que submeteria à Prefeitura o projeto da obra,
apresentar, em papel ferro prussiato14, ou em outro semelhante, os
detalhes do projeto, todos desenhados em duplicata. No Código de
Construções de 1934 as cópias deveriam ser “apresentadas em
triplicata, e desenhadas com nitidez em papel de boa qualidade, sem
emendas, rasuras ou explicações que as alterem ou modifiquem,
dobradas em formato ofício e devidamente grampeadas”15.
Segundo as prerrogativas da Lei nº 400/1927, o material gráfico que
deveria ser apresentado junto ao pedido de licença para a
O papel ferro prussiato, que foi encontrado em alguns requerimentos, corresponde ao
papel de base azul em que eram feitas as cópias dos desenhos originais. Havia outro tipo de
papel de cópia, em tom sépia, que era denominado ferrogálico.
15 O Regulamento da Lei nº 43/1896 já havia determinado a necessidade da apresentação de
planta de cada pavimento, elevação geométrica das fachadas principais e as seções
longitudinais e transversais, apontadas como “suficientes para a inteira compreensão do
projeto”, todos desenhados em duplicata, de forma a que uma cópia permaneça na obra para
consulta dos técnicos e fiscais municipais, a qualquer hora (CAMPINAS [Município],
Regulamento da Lei nº 43, 22 set. 1896).
14
construção de obras particulares em Campinas, deveria ser
constituído por:
a) - planta de cada um dos pavimentos que
tiver o edifício, indicando o destino dos
compartimentos e suas dimensões; b) elevação da fachada ou fachadas voltadas
para a via pública; c) - cortes transversal e
longitudinal do edifício; d) - planta da
situação do edifício em relação às divisas do
lote e às vias públicas, indicando as
construções limítrofes, as curvas de nível do
terreno de 20 em 20 centímetros, entre o
fundo da construção e a via pública e a
orientação do edifício; e) - memorial
descritivo dos materiais a empregar e do
destino da obra; f) - sempre que a Repartição
julgue conveniente poderá exigir a
apresentação dos cálculos de resistência e
estabilidade
da
obra
(CAMPINAS
[Município], Lei nº 400, 26 fev. 127, art.4º).
O destaque da Lei Municipal nº 400/1927 foi para a elaboração da
“planta da situação do edifício”, que deveria representar a situação
do lote na quadra e da casa no lote, destacando o recuo frontal e os
afastamentos laterais, além da apresentação do “memorial
descritivo dos materiais a empregar” e dos “cálculos de resistência
e estabilidade da obra”. O Código de Construções de 1934 reiterou
e
complementou
essas
prerrogativas,
acrescentando
a
obrigatoriedade do desenho da planta do porão, do telhado, das
dependências16 e dos gradis ou muros voltados para a via pública.
As dependências como garagem, cocheiras, latrinas externas e telheiros dependeriam de
alvará de construção se fossem construídas posteriormente à edificação principal. Não
precisariam de alvará de construção nem da apresentação de projeto, mas de simples
requerimento e autorização da Prefeitura, as edículas não destinadas à habitação (galinheiros,
estufas, caramanchão, etc), os serviços de limpeza, pintura, concertos e pequenas reparações,
tanto no interior como no exterior como no interior dos prédios, desde que não alterassem
16
Outras inclusões do Código de 1934 na planta de situação foram
relativas à indicação da orientação norte/sul, possivelmente para
que a edificação melhor aproveitasse dos benefícios de uma
implantação que levasse em consideração o movimento solar, e da
marcação dos perfis longitudinais e transversais do terreno,
provavelmente visando o adequado escoamento das águas
superficiais do terreno. Outro documento obrigatório a partir de
1934 foi o comprovante da titularidade do terreno, devidamente
registrado na Repartição de Estatística Imobiliária.
O maior rigor no desenho técnico estaria complementado na Lei
Municipal de 1927 pela normatização das escalas mínimas, sendo
de 1:100 para plantas e fachadas, de 1:50 para cortes, e de 1:200 para
planta de situação, o que não dispensaria que os compartimentos
apresentassem medidas em “cotas”, que prevaleceriam sobre as
dimensões em escala gráfica17. Exigidas em 1934, as plantas
arquitetônicas do porão e das dependências teriam a escala dos
pavimentos, 1:100, sendo seções e elevações em 1:50, pormenores
em 1:20 e planta de situação em 1:200, não dispensando a indicação
de cotas. A convenção do traçado à tinta apareceu em 1927, de
acordo com a seguinte normativa: “tinta preta – indicará construção
nova, ou partes a serem conservadas; tinta vermelha – obra
projetada; tinta amarela – edificação a ser demolida; tinta azul –
obra em ferro”. Essa prerrogativa foi ligeiramente alterada em 1934:
a construção em parte essencial ou dependessem de andaimes e tapumes (CAMPINAS
[Município], Decreto nº 76, 16 mar. 1934, arts.160-162).
17 As escalas já haviam sido definidas no Regulamento da Lei nº 43/1896, idênticas em 1:100
para as plantas e em 1:50 para os cortes, e somente a escala da fachada, que era de 1:50 em
1896 passou a ser 1:100 em 1927.
tinta preta para partes conservadas; tinta vermelha para construção
nova; tinta amarela para partes a demolir; tinta azul para obra de
ferro ou aço; tinta verde para obra de concreto armado e tinta terra
de siena para as partes em madeira.
Segundo o novo trâmite, em 1927 e em 1934, após a aprovação pela
Repartição de Obras e Viação, os projetos seriam encaminhados à
Repartição de Águas e Esgotos para que os técnicos
complementassem o projeto com as instalações domiciliares e a sua
ligação às redes públicas de águas e esgotos18. O tempo máximo
para a análise dos requerimentos nas repartições e a consequente
autorização para o início das obras foi determinado em 1927 e
reiterado em 1934, como sendo de vinte dias úteis, a contar da data
de apresentação das solicitações “na portaria da Prefeitura”, não
podendo os projetos permanecer por mais de oito dias em cada uma
das duas repartições. Se após o tempo limite o interessado não
tivesse obtido solução para o seu requerimento, o mesmo poderia,
mediante aviso prévio à Repartição de Obras, dar início às obras.
Na análise que seria realizada em qualquer uma das duas repartições
municipais, os técnicos poderiam recusar “o destino da obra, em
seu conjunto e em seus elementos componentes” quando fossem
“julgados inadequados ou inconvenientes, sob os pontos de vista
de segurança, higiene e salubridade da habitação, quer se trate de
peças de uso noturno quer de uso diurno”, indicando medidas
Estaria vedado aos proprietários fazer qualquer tipo de alteração no projeto organizado
pela Repartição de Águas e Esgotos. Caso houvesse a necessidade de pequenas correções, os
funcionários municipais entrariam em contato com o interessado, pelo “jornal oficial”, para
prestar os esclarecimentos necessários à compreensão do projeto e, passados oito dias do
aviso, o não comparecimento encerraria automaticamente o procedimento administrativo.
18
relacionadas ao uso e à ocupação do solo, que nas décadas seguintes
foram sistematizadas na lei de zoneamento municipal. A Lei
Municipal nº 401/2719, apresentou no seu artigo 8º um glossário
com a definição de várias “palavras” relacionadas à atividade
edificativa que eram comumente utilizadas nos requerimentos, nas
plantas arquitetônicas e na legislação edilícia, O Código de
Construções de 193420 complementou os termos anteriormente
definidos, incluindo diversos outros no “Apêndice n.2 – Das
definições”.
Referências (Documentos primários)
CAMPINAS [Município]. Ata da sessão ordinária da Câmara
Municipal, 30/06/1890; 18/04/1891; 16/11/1891; 11/07/1892;
17/08/1892; 05/09/1892; 26/09/1892; 02/07/1895; 05/08/1895;
26/08/1895.
Os termos definidos na Lei Municipal nº 401/1927 foram, pela ordem em que se
apresentaram no artigo 8º: altura; áreas; saguões, corredores e reentrâncias; habitação; lotes;
frente; insolação; alinhamento; passeio, calçada; partes essenciais da construção; construir,
edificar; reconstruir, alinhamento; passeio, calçada; partes essenciais da construção; construir,
edificar; reconstruir, reformar, concertar; vias públicas; porão; embasamento; “rés-do-chão”;
loja; sobrelojas; andar; ático e pé-direito.
20 No Código de Construções de 1934 os termos definidos, apresentados em ordem
alfabética, no “Apêndice n.2 – Das definições”, foram: acréscimo; alinhamento; altura; andar;
andar térreo; área; área de frente; área de fundo; área lateral, passagem ou corredor; área
interior; área de divisa; área exterior; área comum; calçada de um prédio; cava ou subterrâneo;
concertos de um prédio; construir; edificar; embasamento; família; frente do lote; fundo do
lote; girão; habitação; insolação; logradouro público; loja ou rés-do-chão; lote; modificação
de um prédio; palanque; parte carroçável de um logradouro; partes essenciais; passeio de um
logradouro; passagem; pé-direito; porão; prédio térreo; prédio assobradado; prédio de
sobrado; primeiro andar; profundidade do lote; reconstruir; reforma de um edifício;
reentrância; reparos ligeiros ou pequenos concertos; sobreloja; sótão, água-furtada ou
mansarda e vias públicas.
19
______ . Decreto nº 76, 16 mar. 1934. Código de Construções.
Separata do Código de Posturas Municipais. Campinas: Casa Genoud,
1935.
______ . Lei nº 01, 12 out. 1892. Disponível em: <http://arqcamp.campinas.sp.gov.br/index.php/p19> acesso em abr.2015; Lei
nº 29, 11 jan. 1894. Leis, provimentos, resoluções e regulamentos
promulgados em 1894. Campinas: Livro Azul, 1895, p.3-4; Lei nº 43,
27 ago. 1895. Leis, provimentos, resoluções e regulamentos
promulgados em 1895. Campinas: Livro Azul, 1895, p.21-22; Lei nº
264, 29 out. 1920. Leis, resoluções e mais actos promulgados durante
o anno de 1920. Campinas: Casa Genoud, 1921, p.18-19; Lei nº 400,
26 fev. 1927. Leis, provimentos, resoluções e regulamentos
promulgados em 1927. Campinas: Casa Mascote, 1928, p.15-37; Lei
nº 401, 26 fev. 1927. Leis, provimentos, resoluções e regulamentos
promulgados em 1927. Campinas: Casa Mascote, 1928, p.37-43; Lei
nº 407, 26 mai. 1927. Leis, provimentos, resoluções e regulamentos
promulgados em 1927. Campinas: Casa Mascote, 1928, p.47.
______ . Livro de lançamentos dos impostos de indústrias e
profissões: 1890 a 1903.
______ . Regulamento da Lei nº 43, 22 set. 1896. Leis, provimentos,
resoluções e regulamentos promulgados em 1896. Campinas: Livro
Azul, 1895, p.7-13; Regulamento da Repartição de Obras
Municipaes, 12 jan. 1912. Leis, Resoluções e mais actos promulgados
durante o anno de 1912. Campinas: Casa Genoud, 1923, p.12-16.
______ . Resolução nº15, 30 jun. 1890. Resoluções relativas aos annos
de 1890 a 1892. Campinas: Livro Azul, 1900, p.11.
______ . Solicitações para obras particulares de edificações.
Requerimentos (Req.) 1893: 12 (05/01); 14 (18/04); 24 (12/07); 24ª
(11/07); 26 (25/07); 27 (31/07); 29 (03/05); 31 (14/10); 34 (08/12).
(Req.) 1894: 04 (15/01); 05 (22/01); 29 (22/01); 35 (16/05); 42
(31/05); 47 (08/06); 50 (14/06); 54 (23/06); 66 (11/07); 76 (31/09);
94 (28/08); 96 (31/08); 100 (14/06); 109 (02/10); 110 (08/10); 111A
(11/10); 112 (13/10); 115 (17/10); 117 (20/10); 124 (00/00); 126
(13/11); 129 (30/11); 130 (01/11); 134 (07/12). (Req.) 1895: 15
(22/01); 20 (06/02) 27 (17/02); 73 (31/05); 88 (05/07); 90 (06/07);
129 (30/09). (Req.) 1896: 02 (03/01); 04 (08/01); 08 (14/01); 10
(13/01); 11 (15/01); 12 (17/01); 18 (27/01); 24 (03/02); 61 (27/05);
67 (05/06); 72 (15/06); 93 (31/08); 96 (01/09); 119 (14/10); 122
(21/10); 136 (16/11); 142 (28/11); 157 (18/12); 158 (18/12); 159
(18/12). (Req.) 1897: 06 (18/01); 07 (21/01); 12 (11/02); 30 (01/30);
45 (23/03); 47 (23/03); 62 (07/04); 85 (18/06); 101 (09/07); 103
(23/07); 118 (09/08); 119 (10/08); 121 (10/08); 128 (20/08); 133
(24/08); 140 (28/08); 146 (14/09); 148 (18/09); 157 (04/10); 161
(05/10); 162 (05/10); 176 (29/10); 187 (17/11); 201 (04/12); 207
(12/12). (Req.) 1898: 18 (27/01); 119 (25/06); 140 (04/08). (Req.)
1899: 01 (03/01); 06 (05/01); 19 (22/01); 36 (18/02); 47 (28/02); 51
(03/03); 66 (22/03); 73 (06/04); 91 (13/05); 102 (27/05); 107 (03/06);
125 (31/07); 134 (22/08); 141 (05/09); 143 (11/09); 144 (11/09); 145
(13/09); 154 (21/09); 164 (05/10); 173 (27/10); 185 (20/11). (Req.)
1900: 28 (17/02); 29 (17/02); sem número (05/03); 49 (13/03); 63
(29/03); 66 (02/04); 79 (02/05); 93 (24/03); 137 (28/07); 167 (23/09);
208 (26/11); 209 (26/11); 210 (27/11); 224 (21/12). (Req.) 1903: 108
(02/05); 115 (05/05); 121 (11/05); 122 (11/05); 127 (15/05); 128
(16/05); 145 (25/05). (Req.) 1908: 32 (30/01); 37 (01/02); 59 (15/02).
(Req.) 1911: 74 (25/02); 96 (09/03); 106 (15/03); 114 (23/03); 144
(17/04); 145 (17/04); 152 (04/07); 229 (16/06); 234 (11/11); 252
(04/07); 258 (12/07). (Req.) 1918: 41 (01/02); 100 (06/02); 111
(15/02); 273 (01/05); 433 (17/07); 465 (05/08); 555 (17/09); 590
(04/10); 679 (27/11). (Req.) 1924: 26 (03/01); 80 (20/05); 108
(26/05); 118 (31/01); 119 (31/01); 162 (16/05); 166 (10/06); 171
(12/02); 192 (18/02); 195 (17/06); 215 (23/02); 221 (25/02); 227
(24/06); 230 (26/02); 246 (03/03); 260 (07/03); 270 (11/03), 327
(25/03); 328 (25/03); 354 (02/04); 396 (16/04). (Req.) 1927: 13
(10/01); 43 (10/01); 64 (13/01); 68 (14/01); 91 (19/01); 108 (20/01);
123 (24/01); 243 (12/02). (Req.) 1928: 19 (05/01); 36 (10/01); 44
(11/01); 45 (11/01); 69 (16/01); 152 (31/01); 263 (16/02); 494
(04/04); 549 (13/04); 556 (16/04); 642 (28/04); 662 (07/05); 679
(09/05); 740 (18/05); 766 (21/05); 897 (11/06); 960 (20/06); 1.022
(04/07); 1.301 (20/08); 1.497 (26/09); 1.779 (09/11); 1.826 (21/11);
1.864 (28/11); 2003 (26/12). (Req.) 1930: 05 (03/01); 14 (04/01); 25
(06/01); 59 (14/01); 60 (14/01); 67 (15/01); 72 (16/01); 87 (21/01);
100 (22/01); 159 (31/01). (Req.) 1934: 09 (03/01); 26 (09/01); 28
(09/01); 30 (10/01); 50 (13/01); 54 (13/01); 84 (19/01); 94 (20/01);
95 (20/01); 106 (23/01); 111 (24/01); 127 (27/01); 136 (29/01); 163
(02/02); 171 (05/02); 181 (06/02); 182 (06/02); 205 (14/02); 216
(15/02); 226 (19/02); 231 (20/02); 256 (24/02); 284 (01/03); 380
(21/03); 381 (21/03); 383 (21/03); 419 (27/03); 431 (02/04); 435
(02/04); 447 (03/04); 780 (05/06); 1.130 (31/07); 1.227 (14/08); 1.235
(17/08); 1.332 (04/09); 1.381 (13/09); 1.453 (25/09); 1.454 (25/09);
1.463 (26/09); 1.490 (03/10); 1.491 (03/10); 1.580 (18/10); 1.622
(24/10); 1.828 (05/12); 1.934 (25/08).
CAMPINAS [Província], Resolução nº 20, 10 jun. 1880, disponível
em: <http://arq-camp.campinas.sp.gov.br/index.php/p3>, acesso
em abr. 2015.
DAUFRESNE, Emílio; LOBO, Antonio Alvares. Relatório de
vistoria, nº 0178/894. Campinas, 13 abr. 1894.
______ . Relatório de vistoria, nº 0620/895. Campinas, 19 out. 1895.
______ . Relatório de vistoria, nº 0633/895. Campinas, 25 out. 1895.
DAUFRESNE, Emílio; BUENO, Manoel de Assis Vieira. Relatório
de vistoria, nº 0047/896. Campinas, 18 jan. 1896.
______ . Relatório de vistoria, nº 0009/897. Campinas, 11 jan. 1897.
______ . Relatório de vistoria, nº 0021/897. Campinas, 15 jan. 1897.
______ . Relatório de vistoria, nº 0044/897. Campinas, 28 jan. 1897.
______ . Relatório de vistoria, nº 0054/897. Campinas, 04 fev. 1897.
DAUFRESNE, Emílio; SARMENTO, Joaquim Ulysses. Relatório de
vistoria, s.n./898. Campinas, 09 fev. 1898.
DAUFRESNE, Emílio; SARMENTO, Joaquim Ulysses; BARROS,
José Ferraz de. Relatório de vistoria, s.n./898. Campinas, 09 fev.
1898.
DAUFRESNE, Emílio; SARMENTO, Joaquim Ulysses; FALQUE,
José. Relatório de vistoria, s.n./897. Campinas, 22 out. 1897.
DAUFRESNE, Emílio; BUENO; MAGALHÃES, Eduardo
Figueiredo. Relatório de vistoria enviado ao Intendente Manoel de
Assis Vieira Bueno, nº 0223/896. Campinas, 22 mai. 1896.
DAUFRESNE, Emílio; MACHADO, Octavio; CANTAGALLO,
Benedicto; SARMENTO, Joaquim Ulysses. Relatório de vistoria, nº
0762/1898. Campinas, 23 dez. 1898.
DAUFRESNE, Emílio; MIQUELINO, Julio. Relatório de vistoria,
nº 0076/1899. Campinas, 19 jan. 1899.
DAUFRESNE, Emílio; RAFFIN, Antonin; FERREIRA, Tito
Martins; BUENO, Manoel de Assis Vieira. Relatório de vistoria, nº
0047/896 e nº 0054/896. Campinas, 18 jan. 1896.
DAUFRESNE, Emílio; RAFFIN, Antonin; FERREIRA, Tito
Martins; LOBO, Antonio Alvares. Relatório de vistoria, nº
0657/895. Campinas, 07 nov. 1895.
DAUFRESNE, Emílio; RAFFIN, Antonin; GOMIDE, Candido;
BUENO, Manoel de Assis Veira. Relatório de vistoria, nº 0456/896.
Campinas, 10 nov. 1896.
DAFRESNE, Emílio; RIBAS, Emílio Marcondes; SILVA, Eduardo
Lopes da; SARMENTO, Joaquim Ulysses. Relatório de vistoria, nº
0472/897. Campinas, 11 set. 1897.
LOBO, Antonio Alvares (org). Relatorio apresentado à Camara
Municipal de Campinas sobre os serviços sanitários e instrucção
publica relativo ao período de 9 de janeiro a 30 de julho do
corrente anno, pelo Dr. Antonio Alvares Lobo, Intendente de
Hygiene e Instrucção Publica. Campinas: Livro Azul, 1893.
LOBO, Antonio Alvares (org). Relatorio apresentado à Camara
Municipal de Campinas sobre os serviços sanitários e instrucção
publica relativo ao período de 9 de janeiro a 30 de julho do
corrente anno, pelo Dr. Antonio Alvares Lobo, Intendente de
Hygiene e Instrucção Publica. Campinas: Livro Azul, 1893.
______ . Relatorio do Intendente Municipal. Campinas: Cardona,
1895a.
______ . Relatorio apresentado à Camara pelo Intendente
Municipal Dr. Antonio Alvares Lobo, referente ao 1º trimestre de
1º de Janeiro a 31 de Março de 1895. Campinas: Livro Azul, 1895b.
______ . Relatorio apresentado à Camara pelo Intendente
Municipal Dr. Antonio Alvares Lobo, sobre o período de 1º de
Abril à 30 de Junho de 1895. Campinas: Livro Azul, 1895c.
______ . Relatorio apresentado à Camara pelo Intendente
Municipal Dr. Antonio Alvares Lobo, referente ao 4º trimestre de
1895 e ao triennio de 1893 a 1895. Campinas: Livro Azul, 1896.
OCTAVIO, Benedicto; MEMILLO, Vicente (org). Almanach
Histórico e Estatístico de Campinas: 1912. Campinas: Casa
Mascotte, 1911.
SÃO PAULO [Estado], Decreto nº 13, 15 jan. 1890; Decreto nº 2.141,
14 nov. 1911; Decreto nº 2.918, 09 abr. 1918.
______ . Lei nº 1.310, de 30 set. 1911; Lei nº 1.357, 19 dez. 1912; Lei
nº 1.585, 21 dez. 1917; Lei nº 1.596, 29 dez. 1917.
Natalia Cappellari de Rezende
Universidade de São Paulo, Instituto de Arquitetura e Urbanismo, IAUUSP, São Carlos, SP, Brasil
[email protected]
Resumo
Analisa a arquitetura do Centro Histórico de São José do Rio Pardo
através de fotografias e da base documental consultada no Arquivo
Público da Secretaria de Obras. Objetiva a identificação das
sucessivas transformações e ressignificações pelas quais passaram a
arquitetura e a paisagem urbana em proveito de rentáveis espaços
comerciais. Reconhece nesse processo a constituição dos traços da
localidade através da construção, desconstrução e conservação de
artefatos, trazendo à tona a relação entre materialidade, preservação
e memória.
Palavras-chave: Arquitetura urbana. Paisagem urbana.
Transformações urbanas. Centro Histórico de São José do Rio
Pardo. São José do Rio Pardo - cidade.
Abstract
It analyzes the architecture of the Historic Center of São José do
Rio Pardo through photographs and the documentary base
consulted in the Public Archives of the Secretariat of Works. It aims
to identify the successive transformations and reframing that
architecture and the urban landscape went through for the benefit
of profitable commercial spaces. In this process, it recognizes the
constitution of the features of the locality through the construction,
deconstruction and conservation of artifacts, bringing up the
relationship between materiality, preservation and memory.
Keywords: Urban architecture. Urban landscape. Urban
transformations. Historic Center of São José do Rio Pardo. São José
do Rio Pardo - city.
Resumen
Analiza la arquitectura del Centro Histórico de São José do Rio
Pardo a través de fotografías y la base documental consultada en el
Archivo Público de la Secretaría de Obras. Tiene como objetivo
identificar las sucesivas transformaciones y reinterpretaciones que
han experimentado la arquitectura y el paisaje urbano en beneficio
de espacios comerciales rentables. En este proceso, reconoce la
constitución de los rasgos de la localidad a través de la construcción,
deconstrucción y conservación de artefactos, sacando a la luz la
relación entre materialidad, preservación y memoria.
Palabras clave: Arquitectura urbana. Paisaje urbano.
Transformaciones urbanas. Centro histórico de São José do Rio
Pardo. São José do Rio Pardo - ciudad.
Introdução1
Valendo-se do entendimento de Santos (1984), o espaço urbano é
um produto de pluralidades resultado da agregação do trabalho
humano que confere a cada sítio uma linguagem peculiar onde
muitas articulações são possíveis. Nessa perspectiva, os produtos
urbanos e arquitetônicos, por estarem inseridos em um processo
acumulativo, têm a capacidade de con-formar e in-formar, e ao
mesmo tempo “estão no presente, mas podem demonstrar como já
foi e como, talvez, será” (SANTOS, 1984, p. 60). E ainda, Lepetit
(2001), com base nas reflexões de Halbwachs, afirma que a imagem
do espaço propicia a sensação de reencontrar o passado no
presente, e mesmo que ocorra em cada etapa de desenvolvimento
a transformação do espaço, “a sociedade remaneja suas lembranças
de forma a adequá-las às condições do momento de seu
funcionamento” (LEPETIT, 2001, p. 149). O que levou Lepetit
(2001) a afirmar que
o território é essencialmente uma memória,
e seu conteúdo é todo constituído de formas
passadas – isto é, de algumas dentre elas, das
quais só subsiste o que pode ser
compreendido pela sociedade que, em cada
época, trabalha em seus quadros.
(LEPETIT, 2001, p. 149).
Este texto contempla resultados preliminares da pesquisa de mestrado da autora, intitulada
A cidade de São José do Rio Pardo e as moradias do Centro Histórico (1865-1940), desenvolvida no
Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo do Instituto de Arquitetura e
Urbanismo da Universidade de São Paulo, sob a orientação da profa. Dra. Maria Ângela P.
C. S. Bortolucci e com bolsa do CNPq (Processo nº 153114/2016-9).
1
Logo, as ressalvas feitas por Santos (1984, p. 60) sobre “a melodia
não é harmónica, nem cantam todos no mesmo diapasão. De um
campo para outro existem superposições, é verdade, mas são
abundantes os desencontros e as autonomias”. Ou seja, é a
diversidade de expressões concretizadas nas edificações e lugares
que confere à cidade o lócus do intercâmbio de informações. Este
fato é possível porque há uma relação entre guardar e proteger,
alterar e recriar. São essas ações que mantêm viva a cidade.
O olhar sobre o passado e o reconhecimento da importância da
preservação para a manutenção do suporte tangível, que é essencial
na caracterização de um grupo de indivíduos no tempo e no espaço,
contribui para a ideia de identidade e memória, união e afirmação
cultural. Ao mesmo tempo, as constantes transformações que são
próprias do homem na dinâmica natural da vida levam à perda da
matéria, dissolvendo gradualmente os vínculos estabelecidos. Nesse
sentido, concordamos com as afirmações de Gallo (2017)
As transformações da vida e as alterações de
nosso espaço físico dissolvem os vínculos
estabelecidos com as coisas, com perdas
temporais e físico-espaciais da matéria. Mas
a perda gradual de vinculações com uma
época e contexto é própria das formulações
humanas, porquanto estas são fixas e a vida
é móvel e mutável (...) O olhar sobre o
passado é sempre estabelecido a partir do
tempo presente. Os limites entre
permanência e alteração são fundantes para
a preservação, pois nem é possível tudo
transformar, porquanto perderíamos a
identidade e o pertencimento, nem é
possível preservar-se tudo, porquanto
anularíamos a dinâmica natural da vida
(GALLO, 2017, p. 365-367).
Esta problemática é mais visível nas regiões centrais das cidades,
sobretudo quando elas correspondem ao núcleo urbano inicial.
Nesse caso, por ser a área mais antiga é onde se condensam as mais
profundas e densas cargas simbólicas, materiais e imateriais. É nessa
região que se concentram as primeiras edificações que guardam em
sua fachada, no seu interior, no material utilizado e nas histórias de
seus usuários, “uma lenda do começo de tudo, quase um mito de
origem das cidades” (FREIRE, 1997, p. 221). Mas, é esta mesma
região que em geral está sujeita às mais profundas mutilações e
agressões frente às ações do setor imobiliário rentista, decorrente
das mudanças de uso e adensamentos atendendo à demanda
comercial e de serviços. Este fato é facilitado e reforçado pelo forte
receio dos proprietários dos imóveis que associam medidas
preservacionistas a prejuízos econômicos e perda no direito de
propriedade. Isso é claramente visível quando se caminha pelo
Centro Histórico da cidade de São José do Rio Pardo2 (Figura 1).
O Centro Histórico de São José do Rio Pardo é reconhecido pelo governo local através da
Lei Municipal n° 2920, de 15 de janeiro de 2007, que “dispõe sobre o Plano Diretor
Participativo do Município de São José do Rio Pardo, estabelecendo as diretrizes gerais da
política municipal de desenvolvimento territorial, e dá outras providências” (LEI N.
2920/2007, p. 1).
2
Figura 1 – Mapa de São José do Rio Pardo indicando a área reconhecida como
Centro Histórico.
Fonte: Produzido pela autora com base em mapa da Prefeitura Municipal de São
José do Rio Pardo, 2017.
Os processos de demolição e transformação de sua arquitetura faz
com que se corra sério risco de que, em poucos anos, não restar um
único edifício da fase inicial da cidade3. Até pode-se dizer que, mais
do que a perda material, é a irreparável perda da identidade e do
sentimento de pertencimento. Diante disso, procura-se neste texto
evidenciar as descaracterizações e demolições da arquitetura de
outrora, a partir da comparação entre fotografias de diferentes
O reconhecimento legal do Centro Histórico de São José do Rio Pardo através da Lei
Municipal n° 2920, de 15 de janeiro de 2007, não conduziu a ações de proteção mais efetivas
como pontuado no artigo 40: I- proteger e preservar bens que possuam qualidade estéticas e
históricas, significados culturais e afetivos, ou que constituem referenciais urbanos,
ambientais e de memória, a fim de se evitar a perda ou o desaparecimento das características
que lhe confiram peculiaridade. (LEI N. 2920/2007).
3
períodos, utilizando também a base documental levantada no
Arquivo Público da Secretaria de Obras de São José do Rio Pardo.
As fotografias e os processos de obras como registro
histórico
Kossoy, em seu livro Fotografia & História (2001, p. 28), destaca a
fotografia como “um intrigante documento visual cujo conteúdo é
a um só tempo revelador de informações e denotador de emoções”.
Contudo, e segundo as ressalvas feitas por este autor (2001, p. 30),
a utilização da iconografia no trabalho histórico ainda se apresenta
de maneira tímida em razão da tradição acerca da escrita “como
forma de transmissão de saber”. No entanto, no sentido de
contribuir para romper a constatação feita por esse autor, a imagem
será utilizada como instrumento de apoio de pesquisa e explorada
como “meio de conhecimento visual da cena passada e, portanto,
como uma possibilidade de descoberta” (KOSSOY, 2001, p. 53).
Há dois importantes acervos fotográficos em São José do Rio
Pardo, a Hemeroteca Paschoal Artese, que conta com um banco
digital de aproximadamente duas mil iconografias, fruto do
levantamento realizado pelo historiador e pesquisador Rodolpho
José Del Guerra, e o Centro da Memória Rio-pardense, que possui
em seu acervo cerca de 15 mil fotografias que retratam a cidade, sua
arquitetura e manifestações culturais do final do século XIX até o
início do atual. E, ainda que ambos acervos sejam de grande
relevância, foram pouco explorados até o momento como
documento de pesquisa.
Outra fonte documental importante e que vem sendo cada vez mais
explorada são os processos de aprovação de construções, material
comumente arquivado em acervos públicos municipais. Nesse
sentido, as teses “Manifestações da arquitetura residencial
paulistana entre as Grandes Guerras” (D’ALAMBERT, 2003),
“Arquitetura e Cidade: Obras particulares em São Paulo 19061915” (LODY, 2015), e “Construtores anônimos em Campinas
(1892-1933): fortuna crítica de suas obras na historiografia e nas
políticas de preservação da cidade” (FRANCISCO, 2013), são
alguns exemplos de trabalhos elaborados que tem esse documento
como base de análise, contribuindo, dessa forma, na ampliação do
debate sobre o seu uso como fonte de pesquisa da história da
arquitetura e da cidade, além de propiciar o conhecimento dos
agentes partícipes. Todavia, esse esforço é possível de ser feito
apenas em municípios que possuem uma estrutura arquivista
constituída, pública e acessível, a qual, segundo o Conselho
Nacional de Arquivos, é quase uma exceção na realidade brasileira,
sendo mais grave quando se trata de médias e pequenas cidades
(CONARQ, 2014). Felizmente, São José do Rio Pardo é uma das
cidades que possui o Arquivo Público da Secretaria de Obras e
conta com um acervo de projetos aprovados a partir de 1925, apesar
da sua obrigatoriedade ocorrer desde 1918 (CÓDIGO...,1918)4.
Conforme artigo 38 das Posturas Municipais era “absolutamente vedado o início de
construcção ou reconstrucção de edifício, bem como de obras de qualquer natureza, a face
das ruas, avenidas ou praças, no perímetro urbano e suburbano da cidade e povoações do
4
Foram consultados e analisados 345 processos entre projetos
públicos e privados compreendendo os anos de 1925 a 1939. Cabe
ressaltar que não são todos os processos que apresentam
informações completas, como o nome do proprietário, localização
da edificação, responsável pelo projeto e obra, e na maioria a
representação gráfica é parcial. Desse modo foram analisados
apenas 138 projetos cuja representação inclui planta com as
denominações dos ambientes, corte e elevação. Todavia, é um
arquivo de suma importância para o (re)conhecimento da história
da arquitetura, em seus aspectos formais e funcionais, e da própria
produção da cidade.
Ambos os materiais, fotográfico e processos de aprovação de
construções – o que inclui os projetos arquitetônicos -, servem de
base para evidenciar o forte processo de intervenção e
descaracterização da arquitetura do Centro Histórico rio-pardense
e consequentemente a alteração da paisagem desse lugar.
A cidade e sua arquitetura
De acordo com a reflexão feita por Santos (2012), na paisagem,
nada tem de fixo, imóvel. Cada vez que a
sociedade passa por um processo de
mudança, a economia, as relações sociais e
políticas também mudam, em ritmos e
Município, sem o preenchimento das condicções impostas pelo Código Sanitário do Estado,
e sem previa licença do Executivo”. Entre as condições estava a imprescindível aprovação
de projetos que apresentassem planta do terreno e dos pavimentos, elevações das fachadas,
cortes longitudinais e transversais e a disposição dos encanamentos para água e esgoto
(CÓDIGO DE POSTURAS, 1918, p. 7).
intensidades variados, a mesma coisa
acontece em relação ao espaço e à paisagem
que se transforma para se adaptar às novas
necessidades da sociedade. (SANTOS, 2012,
p. 54).
Complementando a colocação acima, Ribeiro (2007) aponta a
imprescindibilidade de compreender a paisagem como um sistema
interconexo e orgânico decorrente de diferentes processos
construídos socialmente que não se desfaz e não se esgota frente às
mudanças. Estas por sua vez, significam a substituição, mas não o
fim por completo de uma paisagem. Ainda que concordando com
Ribeiro (2007), vale acrescentar que a paisagem da região central de
São José do Rio Pardo está sofrendo um processo acelerado de
alterações, principalmente em função de sua arquitetura que está
sendo sumariamente substituída de forma impositiva e arbitrária,
contribuindo para agravar a dificuldade na manutenção dos
vínculos estabelecidos de pertencimento e identidade cultural. Tais
mudanças são passíveis de serem evidenciadas através da
confrontação de fotografias de diferentes períodos e de projetos
arquitetônicos, os quais se apresentam a seguir5.
O primeiro exemplar a ser analisado é a edificação (Figura 2.1) na
esquina da Rua Francisco Glicério com a Rua Marechal Deodoro
que foi construída na década de 1880, antes da estrada de ferro
alcançar as terras rio-pardenses6. Nessa época, predominava na
Ressalta-se ainda que não faz parte deste trabalho discutir os motivos conceituais das
linguagens estilísticas adotadas.
6 Em 1884 foi criada a Companhia Ramal Férreo do Rio Pardo composta por 144 acionistas
que angariaram um capital de 751 contos para a construção de um ramal férreo que partiria
de Casa Branca, fazendo um entroncamento na linha da Companhia Mogyana de Estradas
5
paisagem rio-pardense a horizontalidade das edificações de baixo
gabarito e cumeeiras alinhadas. Eventualmente essa configuração
era rompida com o afastamento de alguma edificação dos limites
do lote, ou a ocorrência de mais de um pavimento, como foi o caso
da residência do fazendeiro, político e empresário Honório Luiz
Dias7. Essa faustosa edificação de esquina em feição eclética,
popularmente conhecida como “Fortaleza Republicana”8 por ter
servido de abrigo aos rio-pardenses que combateram a Monarquia,
exibia em suas fachadas forte adesão aos elementos do neoclássico
e do neo-renascentismo. Com uma volumetria compacta em forma
de “L”, apresentava modenatura ritmada e com proporções rígidas,
aberturas em arco pleno e em verga reta, nessas os vãos eram
encimados por molduras em arco abatido, pilastras com feições
toscana e jônica, e balcões nas fachadas que davam para a rua. Em
termos construtivos, o uso da platibanda, das vidraças nas janelas e
do telhado de soluções mais complexas com calhas e condutores
de Ferro. No dia 27 de agosto de 1887 chegou o primeiro trem, enquanto a estação foi
inaugurada no dia 7 de setembro do mesmo ano.
7 Natural de Cabo Verde-MG, Honório era filho de Vicente Alves de Araújo Dias e Lucinda
Candida de Jesus que adquiriram terras em São José do Rio Pardo formando a fazenda
Tubaca em 1870 (CASSASSOLA, 2009, p. 84). Aos 17 anos, antes da transferência completa
da família para essa cidade (1876), Honório assumiu a administração da fazenda de seu pai,
começando ali a formação de suas posses. Proprietário de grandes extensões de terra nessa
cidade, em Poços de Caldas-MG, São João da Boa Vista-SP e Cascata-MG, Honório investiu
o capital proveniente de sua produção cafeeira em empreendimentos diversificados como a
fundação de casas comissárias em Santos; exploração de mina de zircônio no atual município
de Águas da Prata; e na produção de energia elétrica para o município, como sócio no
“Syndicato da Luz Electrica de São José do Rio Pardo”. Outros investimentos também
ocorreram no comércio local com armazéns de secos e molhados, e lojas de fazenda,
armarinhos, ferragens e louças. Honório ainda se envolveu na política como vereador riopardense entre os anos de 1887 a 1889 e integrante do Conselho de Intendência de 1890 a
1892, mas neste último caso por um curto período de tempo (CASSASSOLA, 2009).
8 A denominação “Fortaleza Republicana” ocorreu após Honório, líder do Movimento
Republicano local, utilizar seu sobrado para aprisionar defensores da monarquia e afugentar
a tropa republicana.
importados demonstrava, não apenas o esforço para a incorporação
de técnicas e materiais construtivos, mas também o poder do
proprietário e o interesse em obter melhores condições de conforto
no interior da moradia, quando o núcleo urbano ainda era marcado
pela precariedade em infraestrutura e condições sanitárias. Sem
dúvida alguma havia um significado e um valor atribuído pela
população local a essa edificação, a ponto de ser denominada de
“Fortaleza Republicana”, o que demonstra a relação da sociedade
com o espaço construído. Não obstante, toda a representatividade
em termos materiais e simbólicos foi insuficiente para impedir a sua
demolição em meados do século XX, dando lugar, na década de
1990, a uma nova edificação, cujo volume ocupava praticamente
todo o lote original, de aberturas em grandes vãos e cobertura em
telha metálica, de uso comercial (Figura 2.2). Esta última edificação
também foi demolida em 2019, cedendo lugar a um
estacionamento, como é possível observar na figura 2.3.
Outro exemplo é o sobrado do italiano Paschoal Artese9,
construído no início da década de 1910, e conhecido como
“Casarão do Artese”10 (Figura 2.4). Serviu a diversos usos desde
moradia, escritório, gráfica e edição de jornal, creche e escola.
Localizava-se nas proximidades do grupo escolar “Cândido
Rodrigues”, onde predominavam edificações térreas, conferindo a
Paschoal Artese chegou a São José do Rio Pardo no ano de 1897 onde exerceu os ofícios
de marceneiro e entalhador, professor de desenho, jornalista, político e escritor, alcançando
muito destaque na sociedade rio-pardense, sobretudo pela sua atuação como construtor,
empreiteiro, formador de mão de obra e agitador político. Para saber mais sobre Artese, sua
atuação da construção da modernidade urbano-arquitetônica rio-pardense e os conflitos
materiais e simbólicos que permearam sua trajetória, ver Rezende e Bortolucci (2020).
10 Sobre o Casarão do Artese, ver mais em Rezende (2019) e Rezende e Bortolucci (2020).
9
essa moradia de dois pavimentos maior destaque na paisagem.
Dentre as características do prédio, sobressai
a riqueza de detalhes na composição da
fachada principal, marcada pela disposição
ritmada das molduras das aberturas em arco
pleno, verga reta e arco ogival. As pilastras e
os pilares, que remetiam às ordens coríntia e
jônica, demonstram mais uma vez que
Artese no mínimo detinha noções básicas da
gramática clássica. Todo o peitoril da sacada
e da varanda era decorado com balaustrada,
enquanto a platibanda era marcada pela
composição livre de elementos florais.
(REZENDE & BORTOLUCCI, 2020, p.
15-16)
Contudo, no início dos anos 1920, o Casarão foi reformado e
ampliado pelo próprio Artese, o que resultou em uma alteração
parcial das características do edifício, que passou a ostentar
elementos inspirados no estilo art nouveau, com figuras mitológicas
e da natureza, além de um arranjo volumétrico contrastante entre
cheios e vazios, os quais podem ser observadas na figura 2.5.
No início dos anos 2000, o Casarão apresentava estado de ruína e
seus herdeiros decidiram colocá-lo à venda, que foi concretizada em
2006. Em 2008, o Conselho de Defesa e Estudos do Patrimônio
Histórico, Artístico e Cultural de São José do Rio Pardo
(CONDEPHAC-SJRP) iniciou um estudo de tombamento
bastante moroso dado as dificuldades apresentadas na composição
de um corpo técnico e os embates frente aos interesses privados11
O Conselho de Defesa e Estudos do Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural de São José
do Rio Pardo foi criado em 1994 e instituído e regulamentado em 2008 através da Lei n°3029,
11
que foi insuficiente e, sem o aval do CONDEPHAC-SJRP, o
edifício foi demolido. Entretanto, por decisão judicial, coube ao
proprietário reconstruir a fachada nos moldes do antigo Casarão.
Desse modo, independentemente do uso e da espacialização interna
do novo edifício projetado para atender a uso comercial e de
serviço, a fachada foi reconstruída e finalizada em 2015 (Figura 2.6).
A problemática dessa decisão se assenta nas discussões atuais acerca
da autenticidade12 e do risco de constituição de cenários urbanos
espetaculares13, em contraposição à preservação e conservação de
bens culturais que representam significado e valor para as
sociedades que os constituíram. Nesse sentido, a reconstrução da
fachada do Casarão Artese resultou em um “falso histórico” ou
"simulacro"14, que segundo Brandi (2005) se coloca como reversível
a uma situação inexistente constituindo uma afronta à história e à
estética, porque ao simular o objeto antes existente, a reconstrução
decodifica a imagem de um tempo passado e de uma realidade que
não mais existe.
Outro exemplo analisado é o do Pavilhão XV de Novembro, que
foi construído em 1910 pelo empreiteiro e construtor Paschoal
Artese para o fim específico de exibições cinematográficas.
motivado pela necessidade de um estudo de tombamento do “Casarão do Artese”. Apesar
do esforço do Conselho, dificuldades na formação de um corpo técnico e a inexperiência
dos membros no desenvolvimento de um processo de tombamento que se estendeu por
anos, aliado a enfática defesa de impossibilidade de conservação do prédio pelo proprietário,
resultou no agravamento da ruína e consequente demolição do mesmo.
12 Para saber mais, ver Jokilehto (2006).
13 Para Jacques (2003), ao espetacularizar edifícios e cidades forja-se uma imagem singular e
em potencial para ser explorada como mercadoria. Sobre isso, ver Jameson (1997) e Zukin
(1996).
14 Sobre o conceito de simulacro, ver Baudrillard (1991).
Apresentava uma fachada mais simplificada com suaves linhas
curvas e pináculos que podem ser apreendidos a partir de uma
fotografia que retratava um grupo de pessoas numa quermesse
próxima ao pavilhão, como pode ser observada na figura 2.7, e na
sua ampliação através do zoom. Em 1922 o edifício passou por uma
grande reforma para ampliar seu espaço interno, alterando
completamente a sua fachada (Figura 2.8). No geral, era uma
composição
estritamente
simétrica
e
com
ornamentos
simplificados, como frisos e folhagens estilizadas. Depois de várias
décadas em funcionamento, o Pavilhão cedeu seu espaço para
funcionar outro cinema, o Cine São Francisco, inaugurado em 1963
(DEL GUERRA, 2003). Porém, em 1975, o Cine encerrou suas
atividades e o antigo prédio foi demolido. Em seu lugar foi
construído um edifício de características moderna para atender a
uma agência bancária, como pode ser observado na figura 2.9.
Mais uma edificação que teve sua feição externa e disposição interna
alteradas foi a moradia do Dr. Heitor da Gama Correa15, situada na
Praça Capitão Vicente Dias onde está localizada a igreja Matriz. O
projeto dessa residência é datado de 1933 (Figuras 2.10 e 2.11) e
adotou expressões do “neocolonial simplificado” segundo as
características
apontadas
pela
bibliografia16.
Desenhada
e
construída isolada no lote, possuía dois pavimentos com largos
beirais e sob eles havia um barrado de frisos, apresentando também
Heitor era filho de imigrantes italianos, nasceu em 1889 na cidade de Ribeirão Preto,
tornou-se médico, e em 1929 seu nome figurava no Almanack (1929) juntamente com outros
profissionais atuantes em São José do Rio Pardo.
16 Para saber mais sobre isso, ver Lemos (1989).
15
varanda inferior e superior com guarda corpos ornamentados, ora
com elementos geométricos ora com elementos orgânicos.
Todavia, essas características foram sumariamente suprimidas após
intervenções realizadas sob a responsabilidade da Casa Paroquial
que, ao passar a ocupá-la, transformou-a em um edifício térreo na
década de 1980, e desde o final dos anos 2000 apresenta-se
conforme a Figura 2.12.
Figura 2 – Edificações do Centro Histórico rio-pardense que foram demolidas
ou alteradas.
Fonte: Centro da Memória Rio-pardense, Arquivo Público da Secretaria
de Obras e acervo pessoal da autora.
Esses são alguns dos muitos exemplos que poderiam ter sido
apresentados neste trabalho, como retratado na figura 3, em que a
arquitetura materialmente densa de significados enquanto
constituinte da paisagem do Centro Histórico rio-pardense foi
demolida para dar lugar a edificações novas de uso comercial e
serviço. O que muito contribui para esse quadro que vem se
agravando nos últimos anos é a pressão do mercado imobiliário,
que juntamente com a inatividade do CONDEPHAC-SJRP está
permitindo essas demolições.
Figura 3 – Edificações do Centro Histórico rio-pardense que foram demolidas
ou alteradas.
Fonte: Centro da Memória Rio-pardense e acervo pessoal da autora (2017).
A percepção desse quadro lastimável foi preconizado na década de
1980, quando foi criada uma comissão de defesa e estudos do
patrimônio histórico, artístico e cultural17, concatenado com o
quadro que estava ocorrendo no restante do Brasil. Foi com a
redemocratização que novas perspectivas de preservação vieram à
tona
como
direito
demandado
pela
sociedade
civil
(NASCIMENTO, 2016). Segundo Chuva (2008) e enfatizado por
Nascimento (2016), foi nessa década que dois aspectos
fundamentais contribuíram para que houvesse no Brasil uma
ampliação dos estudos e das práticas de preservação, alargando o
quadro de áreas e bens protegidos. De acordo com Nascimento
(2016) a primeira ação decisiva foi
a mudança do papel do Estado e a inclusão
de outras esferas do poder público, fruto de
novos interesses e de setores da sociedade
civil organizada, e a ampliação da noção de
patrimônio, atingindo um leque mais amplo
e diversificado de bens para muito além da
perspectiva da identidade nacional unívoca
(NASCIMENTO, 2016, p. 4).
A proposta de pensar a cidade como documento e materialização
da história para além do edifício único ganhou corpo, resultando
em estudos que delimitaram uma área de proteção e preservação18,
posteriormente contemplado no Plano Diretor através da Lei
Municipal n° 2920, de 15 de janeiro de 2007. O CONDEPHAC-
Lei n° 1.162, de 08 de julho de 1983. “Constitui comissão para estudos relacionados à
criação do Conselho de defesa e estudos do patrimônio histórico, artístico e cultural de São
José do Rio Pardo (CONDEPHAC –SJRP)”.
18 O objetivo desse zoneamento especial é “proteger e preservar bens que possuam
qualidades estéticas e históricas, significados culturais e afetivos, ou que constituem
referenciais urbanos, ambientais e de memória” (LEI N. 2920/2007).
17
SJRP foi criado em 1994 quando foi normatizado o tombamento
no município, e instituído e regulamentado em 2008 através da Lei
n° 3029 que atribuiu a ele o caráter “normativo, consultivo,
deliberativo e fiscalizador de todas as questões pertinentes à defesa
e aos estudos do patrimônio histórico, artístico e cultural” local
(LEI N°3029, DE 02 DE JANEIRO DE 2008). No entanto, apesar
da existência desse órgão, pouco tem sido feito, principalmente no
que diz respeito ao enfrentamento dos interesses do setor
imobiliário, ao desenvolvimento de estudos, e a promoção de
informações sobre o patrimônio cultural de modo a contribuir para
diminuir o desconhecimento da população acerca dessa produção.
Malgrado esse quadro lastimável, atualmente há no município
pouquíssimos bens imóveis tombados pelo Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), Conselho de Defesa do
Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico
(CONDEPHAAT) e CONDEPHAC-SJRP19, todos na área
urbana, e em sua maioria são de propriedade pública. Diante desse
quadro, pode-se afirmar sem nenhuma dúvida que a existência de
uma legislação que contempla a preservação não impede que
proprietários agridem e destruam seu patrimônio de forma
criminosa.
Bens imóveis tombados: Cabana de Zinco (IPHAN, 1939; CONDEPHAAT, 1975); Casa
Euclidiana (CONDEPHAAT, 1973); Ponte metálica Euclides da Cunha (CONDEPHAAT,
1987); antiga Casa de Câmara e Cadeia (decreto municipal em 1979; CONDEPHAC-SJRP,
2010; CONDEPHAAT, 2015); Capela São Miguel Arcanjo (CONDEPHAC-SJRP, 2008);
Residência Beatriz Cristina Granado do Prado (CONDEPHAC-SJRP, 2008); Estação
ferroviária Central (CONDEPHAC-SJRP, 2010); Mercado Municipal (CONDEPHACSJRP, 2010); Cine Colombo (CONDEPHAC-SJRP, 2012); Centro Cultural Ítalo-Brasileiro
(CONDEPHAC-SJRP, 2012); Antigo Fórum e Cadeia (CONDEPHAAT, 2015).
19
Considerações
Os artefatos fotográficos e projetuais como registro visual reúnem
múltiplas informações sobre um determinado elemento do espaço
em um tempo estabelecido, e enquanto documentos nos permitem
compreender a paisagem e a configuração dos ambientes em um
processo intemporal de sobreposição de camadas. A confrontação
dessas fontes nos tornou possível à análise do processo de
transformações da arquitetura e consequentemente da paisagem do
Centro Histórico rio-pardense. Ao tratar desses objetos,
reconhecemos que há um limiar bastante tênue entre a permanência
e a mudança que coloca em risco a manutenção de bens que diz
muito sobre os traços da vida dessa sociedade. O desvanecimento
de uma arquitetura para dar lugar a outras mais alinhadas com os
arranjos formais e espaciais de seu tempo é compreensível, mas
também é compreensível a prevalência da visualidade, da
fragmentação, da perda de integridade, e da falta de
(re)conhecimento social da importância da preservação dos
edifícios do Centro Histórico rio-pardense. Dentro dessa análise, a
atuação de órgãos de defesa e estudo do patrimônio cultural é de
fundamental importância, e sua atuação deve ir além de uma
legislação para proteção dos bens, dos estudos, dos inventários e
dos tombamentos, deve objetivar a promoção de fontes de
informação que auxiliem a sociedade a compreender as razões que
justifiquem a proteção.
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Rodrigo Sartori Jabur
Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do
Paraná, PR, Brasil
[email protected]
Resumo
O IPHAN em sua trajetória de atuação, estabeleceu métodos para
a seleção de bens culturais, destinados a representar a identidade do
país. Nos primeiros anos de trabalho, a equipe de técnicos do
patrimônio desenvolveu maneiras para obter informações que
resultaram no grande número de tombamentos. Portanto,
buscamos apresentar alguns dos métodos de reconhecimento
destes bens e consequentemente das redes de trabalho estabelecidas
entre São Paulo, Paraná e Rio de Janeiro durante os primeiros anos
de atividade desta instituição, demonstrado a maneira como estas
informações circulavam pelas redes estabelecidas entre técnicos e
outros profissionais.
Palavras-chave: IPHAN. Fotografia. Tombamentos. Patrimônio
Arquitetônico.
Abstract
The IPHAN (the Brazilian National Institute of Historic and
Artistic Heritage), in the course of its work, has established
methods for the selection of cultural assets, intended to represent
the country's identity. In its early years, a team of heritage
technicians developed methods for obtaining information that
resulted in a large number of designations of cultural heritage sites.
Therefore, we seek to present some of the methods for recognition
of these assets and, consequently, the professional networks that
were established across the states of São Paulo, Paraná and Rio de
Janeiro during the first years of activity of this institution, in order
to demonstrate how this information circulated through the
networks established between technicians and other professionals.
Keywords: IPHAN. Photography. Cultural Heritage Management.
Architectural Heritage.
Resumen
El IPHAN, (Instituto Histórico e Artístico Nacional en Brasil) en
su trayectoria, estableció métodos para la selección de bienes
culturales, destinados a representar la identidad del país. En los
primeros años de actuación, el equipo de técnicos del património
desarrolló formas de obtener información que resultaran en la gran
cantidad de protecciones jurídicas. Por lo tanto, buscamos
presentar algunos de los métodos de reconocimiento de estos
monumentos y, en consecuencia, de las redes de trabajo
establecidas entre las províncias de São Paulo, Paraná y Río de
Janeiro durante los primeros años de actividad de esta institución,
demostrando la forma en que esta información circuló a través de
las redes establecidas entre técnicos y otros profesionales.
Palabras clave: IPHAN. Fotografía. Protección Jurídica.
Património Arquitectónico.
Introdução
Quando criado em 1937, o Serviço do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional tinha por principal objetivo o reconhecimento
dos bens de caráter nacional existentes no território brasileiro,
contando com o trabalho hercúleo de catalogação das informações
relativas a estes bens. Sabemos que o retrato da nação brasileira
produzida pelos técnicos da instituição, nas primeiras décadas de
trabalho, apresenta a história de um país predominantemente
setecentista, ou seja, são as igrejas, as fortalezas, ou os fatos
memoráveis que serviram como construção material da identidade
nacional apresentada1. Mas esta seleção, posteriormente registrada
nos livros Tombo, se estabeleceu a partir de um reconhecimento
que tem por origem processos metodológicos, este processo trata
de organizar e catalogar uma infinidade de informações sobre os
bens em todo o território nacional. Desta maneira, já conhecemos,
através das pesquisas e publicações quais eram estes bens e qual foi
o papel dos profissionais frente a isso, mas há um fato importante
que merece ser analisado com mais cuidado: como estas
informações chegaram aos técnicos do SPHAN e qual era o tipo de
dado ou suporte que serviu como fonte para os procedimentos de
tombamento?
De acordo com Cínthia Nigro (2003, p. 167): As primeiras instituições oficiais de
preservação do patrimônio em vários países do mundo ocidental e, inclusive, no Brasil se
estabeleceram a partir de um modelo centralizado de gestão, que revestiu os bens culturais
de um forte caráter patriótico, sagrado, prestigioso, exclusivista e elitista, relativo ao universo
de bens materiais etc.
1
Antes de respondê-la, é válido constatar o notável número de
tombamentos realizados em 1938, primeiro ano de registros nos
livros Tombo, quando comparados com anos posteriores da gestão
do diretor Rodrigo Melo Franco de Andrade (1898-1969). Em
1938, foram registrados 301 bens nos livros Tombo, número
excepcional, de modo que em outros anos desta gestão, os
tombamentos não ultrapassaram as duas casas decimais2. Ou seja,
havia uma pronta necessidade de catalogar o mais rápido possível
um grande número de bens materiais que seriam o primeiro
parâmetro ou base para as ações nos próximos anos da instituição.
Com estes dados, nos questionamos: como uma instituição recémcriada conseguiu este feito em tão pouco tempo numa busca em
território
de
dimensões
continentais?
As
duas
questões
apresentadas anteriormente permitem uma relação em suas
respostas, de forma a compreender as ações destes técnicos ao
longo dos primeiros anos do SPHAN.
Métodos de trabalho: a ação do Sphan e a rede de
colaboradores
Sabemos que os procedimentos de obtenção de dados e
inventariação de bens patrimoniais não foi iniciado pelo SPHAN, a
primeira instituição com vínculos patrimoniais estabelecida no
Brasil deu início a estes trabalhos no Estado de Minas Gerais. A
Os dados foram contabilizados a partir da listagem de bens tombados e em processo de
tombamento, disponibilizados no site do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, sendo o último levantamento, atualizado em 2018.
2
Inspetoria de Monumentos Nacionais, criada em 1934 e sob a gestão do
Diretor do Museu Histórico e Artístico Nacional, Gustavo Barroso,
organizou um documentário iconográfico principalmente das
cidades mineiras e também atuou em obras de restauração na cidade
de Ouro Preto desde 1928 e na produção de relatórios das obras e
dos monumentos, contendo fotografias e o diagnóstico destes bens.
(MAGALHÃES, 2017).
No caso do SPHAN, instituído oficialmente em 1937, os
procedimentos para a obtenção de informações sobre os
monumentos já eram iniciadas no ano anterior, mesmo com o
parco orçamento destinado à estes trabalhos. Em 1936, os jornais
de grande circulação publicavam notas sobre a organização do
serviço de proteção ao patrimônio nacional3 e principalmente na
elaboração do projeto por Mario de Andrade, à pedido do Ministro
Gustavo Capanema, além de Mario já era estruturada a primeira
base provisória da instituição com a indicação para diretor de
Rodrigo Melo Franco de Andrade e do secretário, o pintor Oswaldo
Teixeira, por intermédio do Presidente Getúlio Vargas4.
O primeiro endereço do Serviço situava-se no Edifício Nilomex,
localizado na Avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro, lá estavam
inicialmente Rodrigo e sua secretária Judith Martins. O primeiro
passo de Rodrigo foi a obtenção das informações sobre os possíveis
São encontrados em jornais de grande circulação como o Jornal do Brasil e Correio da
Manhã.
4 A indicação de Oswaldo Teixeira pelo Presidente Getúlio Vargas causou incômodo entre
as primeiras figuras da instituição, em entrevista Judith Martins comenta que o pintor "Ficava
lá desenhando, fazendo o perfil da gente […]”, quando criado o Serviço, Oswaldo foi
transferido para o Museu Nacional de Belas Artes. (THOMPSON, 2009, p. 32).
3
bens a serem reconhecidos pela instituição, e para isto contou com
a rede de contatos que o Diretor possuía em alguns estados
brasileiros, como comenta Judith Martins (2009, p.32), secretária de
Rodrigo:
Lá, se estruturaram os primeiros arquivos.
Dr. Rodrigo começou a fazer pesquisas,
indicava a bibliografia de monumentos e
pedia a amigos, na Bahia, em Minas Gerais,
informações, documentação fotográfica...
Foi tudo praticamente de graça. O Serviço
ainda não tinha sido criado. Fazia parte do
Ministério [da Educação e Saúde], mas não
tinha verba, não tinha nada. Era por meio de
amizade mesmo – o Dr. Rodrigo tinha
muitas – que se conseguiam informações.
São estas amizades que permitiram a coleta das primeiras
informações necessárias, Rodrigo estabeleceu uma rede de contatos
nos estados brasileiros afim de obter informações sobre possíveis
bens a serem tombados pela nova instituição. No Paraná os dados
foram obtidos com David Carneiro, o paranaense pertencia a uma
família ligada ao comércio da Erva-Mate, seu avô teve negócios
associados ao Barão do Serro Azul, seu pai foi um conhecido
industrial em Curitiba também ligado ao beneficiamento da ErvaMate. David tem forte influência das escolas militares, era um dos
divulgadores da filosofia Positivista e estudou no Colégio Militar do
Rio de Janeiro entre 1919 a 1922, posteriormente cursou
Engenharia Civil na Universidade do Paraná. Suas pesquisas
envolviam a história do Paraná, publicando livros relativos a
Revolução Federalista e ao Cerco da Lapa. Como colecionador,
reuniu ao longo dos anos um extenso acervo de peças militares que
se tornou uma das maiores coleções particulares do país.
(MACHADO, 2012). Provavelmente seu interesse pela história
paranaense e sua coleção são o elo inicial de ligação entre ele e
Rodrigo Melo Franco de Andrade.
O diálogo foi iniciado em março de 19375 quando Rodrigo solicitou
a David Carneiro o catálogo, as publicações e o histórico do Museu
Coronel David Carneiro, o que foi respondido em 24 de março
enviando ao Rio de Janeiro publicações de sua autoria. Em outra
carta, datada de 5 de abril, Rodrigo consulta-o sobre a
“possibilidade de tomar a si o encargo de relacionar as obras de
arquitetura civil, religiosa e militar existentes no Paraná e que
possam ser consideradas de excepcional valor artístico ou
histórico.” Da mesma maneira ocorreu o pedido da listagem das
obras à Mário de Andrade, em maio de 1937, referentes ao Estado
de São Paulo. Em carta Rodrigo explica suas intenções:
O que lhe peço é apenas um inventário
preliminar, com os seguintes dados a
respeito de cada edificação a relacionar:
descrição sumária, histórico breve, autoria
da obra (quando for possível apurá-la),
material empregado na construção (cantaria,
taipa ou o que for),estado atual de
conservação, reforma ou alterações que tiver
sofrido, reparos urgentes de que precisar,
referências bibliográficas que existirem a seu
respeito e, por fim, documentação
As cartas entre Rodrigo Melo Franco e David Carneiro datam desde 19 de março de 1937
até 16 de julho de 1937, a maior parte delas não foi encontrada nos arquivos do Iphan,
encontramos duas cópias na superintendência paranaense. Na superintendência paulista,
encontramos duas páginas manuscritas que identificam de forma resumida o diálogo entre
David e Rodrigo, o manuscrito não possui autoria nem data, mas nos auxilia na compreensão
desse importante contato inicial que culminou nos primeiros tombamentos no Paraná.
5
fotográfica (esta última tão completa quanto
possível) (ANDRADE, 1987, p.125)
Em 8 de abril de 1937, David Carneiro enviou à Rodrigo a listagem
solicitada, alegando que no Paraná são poucas as obras com
excepcional valor artístico e histórico. De maneira geral, não foram
muitas obras selecionadas por David, apenas seis e deduzimos que
aquelas listadas já eram de conhecimento do paranaense, uma vez
que a carta de Rodrigo foi respondida num intervalo de poucos
dias6. Ao contrário de Mario de Andrade, por exemplo, que realizou
viagens pelo interior de São Paulo e preparou o relatório após cinco
meses de estudos. Segundo Cristiane Gonçalves (2007, p. 53):
Nesse primeiro levantamento, foram
mapeados mais de quarenta exemplares de
edifícios religiosos, entre eles a Igreja de São
Miguel, em São Paulo; a capela de Santo
Antônio, em São Roque; a Matriz de São
Luiz do Paraitinga e a de Santana do
Parnaíba; a Capela do Pilar, em Taubaté;
pouco mais de uma dezena de casas de
cadeias e fortes, no litoral; e pouquíssimos
exemplares de arquitetura civil, visivelmente
menos detalhados. Aparecem ainda listados
os conjuntos urbanos de Iguape e Cananéia.
A rede estabelecida pelos contatos estava presente em outros
Estados brasileiros, com o intuito de recolher dados sobre os bens
materiais representativos, isso foi reportado por Rodrigo em carta
a Mário em 17 de maio de 1937(ANDRADE, 1987, p.126):
Estou providenciando ativamente para
intensificar também os trabalhos na Paraíba,
São listadas no litoral a Fortaleza da Ilha do Mel e o Colégio dos Jesuítas, no 1 Planalto a
cidade da Lapa, a Igreja, a Casa Lacerda e a Casa do General Gomes Carneiro, no 2 Planalto
a Fazenda Fortaleza e no 3 Planalto nenhum bem foi citado. Carta de David Carneiro a
Rodrigo Melo Franco de Andrade em 8 de abril de 1937. (Arquivo IPHAN-PR).
6
em Pernambuco, Bahia, Minas, Paraná, Rio
Grande do Sul e aqui no Distrito Federal, a
fim de que, ao terminar o primeiro semestre
do ano, já tenhamos um inventário
apreciável do patrimônio histórico e artístico
nacional em matéria de arquitetura. Do que
há de mais importante faltarão apenas dados
sobre o Maranhão e o estado do Rio, que
procurarei coligir no segundo semestre,
juntamente com os relativos aos outros
estados de patrimônio mais pobre.
Outra maneira de obter dados sobre os monumentos, contava com
a participação da sociedade civil, através da divulgação de algumas
notas7 pela imprensa nacional, solicitando aos leitores o envio de
fotografias de monumentos de arte e de história do Brasil à primeira
sede do SPHAN, no edifício Nilomex no Rio de Janeiro. O
resultado desta iniciativa não foi exitoso, apenas um voluntário
enviou informações de uma antiga porta de igreja, com o intuito de
vendê-la, outra iniciativa foi do professor do Colégio Pedro II,
Antenor Nascentes, que enviou um conjunto de fotografias.
As informações recebidas eram então organizadas pelos primeiros
funcionários, a partir dos dados enviados pelos contatos de Rodrigo
Melo Franco, o pedido basicamente era o mesmo para todos: a
listagem de edifícios civis, religiosos e militares selecionados à partir
de um quesito principal: o caráter de excepcionalidade. O material
Em uma pequena nota no jornal Correio da Manhã encontramos: Há alguns meses, por
intermédio da imprensa, o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, do
Ministério da Educação, apelou para espírito de cooperação de todos os brasileiros que
possuam documentação fotográfica referente aos monumentos de arte e da história do pais,
no sentido de fornecerem as respectivas reproduções aquela repartição, com o objetivo de
facilitar o tombamento dos bens de valor artístico e histórico, existentes no Brasil. Apenas
um comerciante de antiguidades remetera a fotografia de uma porta de igreja no norte de
Minas, com o pensamento de vender o original da peça a quaisquer dos museus nacionais.
(PARA, 1937, p.7)
7
obtido nestes pedidos eram cartas, pequenos relatórios dos
monumentos e fotografias, sem nenhuma clareza normativa ou de
sistematização, apenas cumprindo as exigências de informações
definidas por Rodrigo.
Retornando aos contatos próximos de Rodrigo Melo Franco,
apesar de instruir pelas cartas os itens que deveriam conter nos
inventários solicitados, cada relatório foi organizado de uma
maneira, Mário de Andrade enviou um relatório mais detalhado,
enquanto David uma carta de três páginas com breves descrições
dos monumentos e algumas fotografias. Essa diferença dos
inventários, produzidos pelos contatos de Rodrigo pode ter sido o
motivo que o levou a desenvolver um modelo de ficha padrão que
seria preenchido com os critérios já pré-estabelecidos. Poucas
informações são encontradas sobre o envio das fichas e sua
elaboração, sabemos que Rodrigo enviou a Mário de Andrade em
26 de junho de 1937“[...] sob registro, 50 fichas destinadas ao
tombamento de arquitetura nesse estado.”(ANDRADE, 1987,
p.132). Também foram enviadas 30 fichas a Augusto Meyer,
contato do Rio Grande do Sul, na mesma data, destinadas ao
tombamento. São as únicas evidências encontradas sobre o envio
das fichas, se desconhece a iniciativa de elaboração desse
documento, ou se estes foram baseados em outras experiências do
gênero, no entanto, podemos afirmar que foi a primeira tentativa
do SPHAN em sistematizar a inventariação dos monumentos.
Um exemplo deste processo de inventariação encontra-se nas
fichas preenchidas por David Carneiro, guardadas no Arquivo
Central do Rio de Janeiro. Elas contêm itens que deveriam ser
preenchidos e assinados pelo “encarregado do tombamento”, os
itens eram: designação, autoria, época, situação, proprietário,
referências, observações, esquema ou fotografia e caracteres
descritivos. A relação de fichas enviadas por David Carneiro difere
da primeira listagem de 1937, pois o número de bens sugeridos em
Paranaguá foi ampliado. Nas fichas foram catalogados: o Colégio
dos Jesuítas, o Palacete Visconde de Nácar, a Fortaleza de
Paranaguá, a Igreja Matriz, a Igreja da Ordem Terceira de São
Francisco das Chagas e a Igreja de São Benedito.
Portanto, constatamos que o ano de 1937 foi marcado pelo contato
de Rodrigo com diversas personalidades dos Estados, antes mesmo
da oficialização da instituição, solicitando informações e fotografias
de obras arquitetônicas religiosas e civis que pudessem fazer parte
do rol de bens e monumentos reconhecidos pelo órgão em
constituição, além disso, após a instituição do IPHAN, a busca de
informações também passou a ser amplamente divulgada nos meios
de comunicação. Apesar de tal procedimento parecer uma
estratégia descentralizada, na verdade era apenas uma mera
consulta, pois as decisões eram efetivamente centralizadas no Rio
de Janeiro, onde se reuniam os principais nomes da fase inicial da
instituição, como o próprio Rodrigo Melo Franco, Lucio Costa e
Carlos Drummond de Andrade. Ficam evidentes a hierarquização
das atividades e o controle através das correspondências aos
representantes regionais, demonstrando que as decisões finais
estavam a cabo de poucas pessoas detentoras do discurso oficial.
(CHUVA, 2009).
O ideário do patrimônio nacional se constrói a partir dessa
centralização, que decidia e classificava aquilo que era considerado
parte do conjunto que representava o passado nacional. Ou seja, a
partir desses monumentos foi possível construir o que Néstor
Canclini (1994) aponta como uma unidade e coerência imaginária,
que se forma a partir dos discursos e análises elaborados
principalmente pelos intelectuais da área de arquitetura. São os
discursos que tornam o monumento inserido num contexto
histórico e artístico de caráter nacional, e Rodrigo Melo Franco em
seus discursos insere os bens que integram o patrimônio dentro de
uma totalidade que supostamente era integrada e contínua.
(GONÇALVES, 1996).
É valido salientar que além das fichas, o uso da fotografia foi
fundamental neste momento, com distintas formas de apropriação:
tanto como documento para obtenção de informações como
também meio de divulgação destes bens ao público. A fotografia
foi essencial para os trabalhos de inventário, Lucio Costa em seu
texto sobre o Plano de Trabalho Para a Divisão de Estudos e Tombamento
da DPHAN de 1949, apontava para a necessidade de cursos e
aparelhos fotográficos em cada Distrito:
Além disso, cada distrito deverá possuir um
aparelho Leica, ou similar, completo, e
contratar com fotógrafo competente um
curso prático de fotografia com o propósito
de fazer de cada um dos funcionários
técnicos da repartição um fotógrafo
habilitado, capaz de fazer a sua própria
documentação
nas
viagens
de
reconhecimento, pesquisa ou inspeção.
(PESSÔA, 2004, p.87)
Neste contexto além da contribuição da rede de contatos, há
também o papel fundamental dos fotógrafos contratados pelo
SPHAN, como parte da continuidade dos levantamentos de dados
que serão lastro no reconhecimento de bens e de seu tombamento.
Há a organização dos procedimentos de registro dos monumentos,
dados pelos técnicos da área de arquitetura, como relata o fotógrafo
Eric Hess (2013, p.114):
Mas também era sempre a mesma coisa,
compreendeu? Eu sabia o que precisavam, o
que era bonito, interessante. As igrejas de
Minas, lá de Caeté e de Brumado, Rodrigo
não conhecia. Mas, na nossa viagem à Bahia
e Recife, quando foi junto o Dr. Rodrigo, aí
me mostraram exatamente: “Queremos isso,
isso e isso”. Mas na maioria das viagens que
eu fiz sozinho, já pela prática, sabia. Aqui no
Rio, acho que foi o Dr. Thedim Barreto que
me indicou [o que fotografar] na Igreja de
Santo Antônio. A maior parte eu sabia fazer
sozinho: a parte mais interessante da
fachada, o forro, os arcos laterais, as santas.
Rodrigo era especial amigo de Santana; era
uma imagem preferida dele. Ele tinha
sempre afeição especial, cultuava aquela
imagem.
Este conjunto representativo de fotografias foi uma das
ferramentas para a tomada de decisão sobre as listagens de bens
tombados, mas também serviu para a difusão da imagem construída
pelo SPHAN, dos bens relacionados a história nacional, como por
exemplo a exposição no térreo do Edifício do Castelo, vizinho ao
Nilomex, em 16 de agosto de 1938. Intitulado Exposição
Permanente do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, possuía
como material predominante as fotografias, a exposição seria
renovada bimestralmente, na primeira estavam expostas imagens de
igrejas e fortalezas de Estados como Rio de Janeiro, Rio Grande do
Sul, Pernambuco e São Paulo, além das fotografias foram expostos
documentos atribuídos a Aleijadinho, estampas de cerâmica Marajó
e peças de mobiliário nacional8.
Na segunda exposição que ocorreu em dezembro de 1938, houve a
ampliação dos bens e Estados contemplados, são igrejas, obras civis
e fortalezas dos Estados do Piauí, Paraíba, Pará, Maranhão, Rio de
Janeiro, Paraná, Pernambuco, Espirito Santo e Minas Gerais, além
das fotografias contavam com peças de mobiliário, como ocorreu
na primeira exposição e também objetos indígenas, temática pouco
explorada nos primeiros anos de trabalho do SPHAN9. Vale
Constam nesta exposição: Rio de Janeiro: Fazenda do Viegas, Ponte dos Jesuítas sobre o
Rio Guandú, Mosteiro de São Bento, Academia Imperial de Belas Artes, Convento São
Bernardino de Sena, Capela do Bomfim e Convento do Carmo; Bahia: Claustro do Convento
São Francisco de Assis, Porta do Antigo Paço do Saldanha e ruínas do Castelo Garcia
d`Ávilla; Rio Grande do Sul: ruínas e imagens da Igreja de São Miguel; Pernambuco: Igreja
São Cosme e Damião, Capela Nossa Senhora da Conceição e Igreja de São Miguel; São Paulo:
Matriz de Nossa Senhora da Conceição e Igreja de Carapicuíba; há também fotografias de
outros Estado, mas não são especificados pela reportagem. (UMA, 1938, p. 2)
9 As fotografias nesta exposição, de acordo com reportagem à época são: Paraíba: Convento
São Francisco de Assis e Fortaleza de Santa Catarina; Piauí: Portas da Igreja de São Benedito
e Construções civis e rurais das cidades de Livramento, Campo Maior e Oeiras; Pará: Igreja
de Santo Alexandre, Ponte do Ribeirão e Portão da Quinta das Laranjeiras; Maranhão:
Convento de Nossa Senhora dos Anjos; Rio de Janeiro: Forte de São Mateus e Engenho
d`Água; Paraná: Fortaleza da Barra e Convento dos Jesuítas; Pernambuco: Igreja da Ordem
Terceira de São Francisco de Assis, Igreja de Nossa Senhora do Carmo, Igreja de Santo
Antonio, Painéis da Batalha dos Guararapes, Igreja São Pedro dos Clérigos, Convento de
São Francisco e Coleção de Arte Sacra de Olinda; Espírito Santo: Igreja do Rosário, Igreja
dos Reis Magos, Igreja Nossa Senhora da Assunção e Convento da Penha; Minas Gerais:
Chafariz do Padre Faria, Capela Nossa Senhora do Rosário e Fazenda Manso. (A
SEGUNDA, 1938, p.3)
8
lembrar que as duas exposições aconteceram no ano em que são
registradas as primeiras listagens de bens tombados pelo Serviço.
Desta forma, percebemos que as primeiras ações dos técnicos da
instituição tem início a partir dos contatos que Rodrigo Melo
Franco estabeleceu com amigos, ou indicções de pessoas
interessadas na temática que pudessem colaborar com as
informações necessárias de cada um dos estados brasileiros para
que chegassem à central de decisões, a sede do SPHAN no Rio de
Janeiro, esta medida não indicava que todos os bens catalogados
pelos representantes dos Estados seriam tombados, apenas
serviriam como fonte num processo de seleção que tem por palavra
final os técnicos da instituição carioca e desta maneira registrados
nos livros Tombo. O ano de 1938 é fundamental para
compreendermos como este processo se desenvolveu ao longo dos
próximos anos, já fica claro na primeira listagem quais são as
principais referências para o patrimônio brasileiro que delinearão os
próximos bens tombados em pelo menos três décadas de atividades
do Serviço.
Percebe-se que esta ação inicial é fundamental para reforçar a
importância deste Serviço, sua eficácia no governo Vargas e
promover a divulgação pelos meios de comunicação, naquele
momento principalmente pelos meios impressos, do que se
apresenta como passado da arquitetura brasileira. São ações como
estas que fomentam a construção da imagem identificadora do
patrimônio brasileiro, neste processo de seleção pelos técnicos, mas
também na divulgação daqueles edifícios selecionados, deste modo
a fotografia tem papel fundamental neste processo, tornando-se
ferramenta de identificação e divulgação do patrimônio brasileiro
pelo SPHAN.
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Vladimir Benincasa
Departamento de Arquitetura, Urbanismo e Paisagismo, Faculdade de
Arquitetura, Artes e Comunicação, FAAC-UNESP, SP, Brasil
[email protected]
Resumo
Analisa a arquitetura residencial senhorial do século XVIII, de
fazendas situadas na Comarca do Rio das Mortes, de Minas
Gerais, que tiveram como atividade principal, abastecer as
regiões mineradoras. A região da antiga Comarca do Rio das Mortes,
se encontra dividida, atualmente, em duas mesorregiões:
Metropolitana de Belo Horizonte e dos Campos das Vertentes, ao
sul. Nelas conserva-se ainda um grande número de fazendas
setecentistas, cujas atividades originais estavam ligadas à pecuária
extensiva de gado bovino, além da criação de suínos, muares e
gêneros alimentícios. A pesquisa levanta, por amostragem,
exemplares residenciais da arquitetura rural dessas duas regiões,
remanescentes dos séculos XVIII e XIX - e se vale de pesquisa em
fontes primárias (inventários, processos criminais e cíveis, etc.),
para identificar as suas principais características físicas.
Palavras-chave: Arquitetura residencial rural mineira. Fazendas do
século XVIII. Fazendas do ciclo do ouro. Fazendas de
abastecimento.
Abstract
The text analyzes the stately residential architecture of the 18th
century, of the farms located in the old Comarca of Rio das Mortes,
in Minas Gerais, whose main function was to supply the mining
regions. The region is currently divided into two mesoregions:
Metropolitan Belo Horizonte and Campos das Vertentes, to the
south. There is still a large number of farms from the 18th century,
whose original activities were linked to extensive livestock, as well
as raising pigs, mules and food. The survey collects, by sampling,
rural residential examples from these two regions, reminiscent of
the 18th and 19th centuries, and uses research from primary sources
(inventories, criminal and civil cases, etc.) to identify their main
physical characteristics.
Keywords: Rural residential architecture in Minas Gerais. Farms
from the 18th century. Farms from the gold cycle. Supply farms.
Resumen
El texto analiza la arquitectura residencial señorial del siglo XVIII,
de las fincas ubicadas en la antigua Comarca de Rio das Mortes, en
Minas Gerais, cuya principal función fue abastecer las regiones
mineras. La región, en la actualidad, se divide en dos mesorregiones:
Metropolitana de Belo Horizonte y Campos das Vertentes, al sur.
Allí aún se conserva un gran número de fincas del siglo XVIII,
cuyas actividades originales estaban ligadas a la ganadería extensiva,
además de la cría de cerdos, mulas y alimentos. La encuesta recoge,
por muestreo, ejemplos residenciales rurales de estas dos regiones,
que recuerdan a los siglos XVIII y XIX, y utiliza investigaciones de
fuentes primarias (inventarios, casos penales y civiles, etc.), para
identificar sus principales características físicas.
Palabras clave: Arquitectura residencial rural en Minas Gerais.
Fincas del siglo XVIII. Fincas del ciclo del oro. Fincas de
suministro.
A descoberta das minas e a formação de um contexto
agropecuário
A notícia da descoberta de ouro às margens do córrego Tripuí, na
atual Ouro Preto, em fins do século XVII espalhou-se rapidamente
e fez acorrer à região milhares de exploradores para os sertões de
Minas Gerais, vindos de diversas partes do Brasil, de Portugal e de
outros países europeus, provocando um surto urbanizador
surpreendentemente rápido. Uma infinidade de povoados surgiu da
noite para o dia à beira dos rios auríferos, dos quais vários, já no
início do século XVIII, devido ao rápido desenvolvimento, foram
elevados à categoria de vila.
Não há consenso sobre quando, onde e quem primeiro descobriu
o ouro nos sertões mineiros: há divergências (PAULA, 2007, p.280281). Mas é sabido, porém, que a maioria dos garimpeiros que ali
estabeleceram as primeiras lavras produtivas era formada por
paulistas, já adentrada a segunda metade do século XVII.
A Comarca do Rio das Mortes, possui relevo bastante
movimentado, caracterizando-se pela presença dos “mares de
morros”, altas montanhas escarpadas e vales profundos, sendo
parte integrante do Planalto Central brasileiro. As altitudes, que vão
dos 800 aos 1.500m, proporcionam clima mais ameno que o de
outras regiões de mesma latitude, com invernos frios e secos e
verões quentes e úmidos. Nas regiões mais altas ocorrem os solos
arenosos, com afloramento de rochas, cristais e predominância de
campos em que abundam gramíneas, arbustos e árvores de pequeno
porte; nos vales, os solos são mais férteis, ocorrendo florestas
subtropicais de altitude (SAINT-HILAIRE, 1975a, p.47).
Neste cenário, surgiu uma rede de caminhos para o escoamento da
produção aurífera e para a importação de gêneros, por onde
transitavam inúmeras tropas de mercadorias. No entanto, no início
dos setecentos, o abastecimento de alimentos ainda era insuficiente
para atender a demanda crescente, o que ocasionou um intenso
processo inflacionário e crises de fome, levando a Coroa
Portuguesa a “preocupar-se com a questão do abastecimento das
Minas” (GUIMARÃES; REIS, 2007, p.323). Sesmarias foram
doadas, num cinturão de terras férteis, envoltório às zonas
mineradoras, para solucionar o problema. Nele, surgiram fazendas
que além de alimentos, continham uma eficaz agroindústria
manufatureira, que produzia e comerciava nos mercados urbanos
locais açúcar, cachaça, queijos, manteiga, produtos de couro, doces,
tecidos grosseiros de lã e algodão, farinhas de milho e mandioca,
polvilho, mel, tabaco, etc. (GUIMARÃES; REIS, 2007, p. 323).
Muitos dos proprietários rurais eram também donos de minas.
Quando do esgotamento das lavras de ouro, a produção
agropecuária dessas fazendas foi a grande responsável pela
manutenção da economia mineira, evitando um colapso ainda
maior da região (MARTINS, 1998, p.24). Ao final do século XVIII,
seus
proprietários
tiveram
de
buscar
novos
mercados
consumidores, notadamente a Corte carioca e as novas zonas
açucareiras paulistas (Quadrilátero do Açúcar e Vale do Paraíba),
aproveitando a vasta rede de caminhos que fora estabelecida
durante o ciclo do ouro.
Nesse contexto do ciclo aurífero mineiro, rapidamente exposto, um
grande e importante patrimônio arquitetônico rural foi criado, mas
que tem ficado à margem de estudos e sem divulgação, além de
pouco protegido pelos órgãos oficiais, ofuscado pelo conjunto
excepcional do patrimônio arquitetônico urbano das cidades
históricas mineiras. Diante da vastidão e complexidade do tema da
arquitetura rural, nesse pequeno texto, tratar-se-á apenas da
arquitetura residencial senhorial dessas fazendas mineiras do século
XVIII.
As casas senhoriais rurais nas Minas setecentistas
No que tange à arquitetura do período colonial, Minas Gerais foi
bastante influenciada pela tradição construtiva do norte português
(Douro e Minho). O contingente populacional português era muito
mais numeroso que o paulista, e se fixou à terra com a contribuição
da Coroa Portuguesa, lançando aí suas tradições (FREITAS, 1986,
p. 12). Os paulistas, em menor número, foram praticamente
expulsos de Minas Gerais nos vários embates com os forasteiros,
tendo que partir em busca de novas minas. Poucos paulistas ficaram
em Minas Gerais. Com isso, uma arquitetura com fortes
características portuguesas se desenvolveu no meio urbano mineiro,
quase sem influências, principalmente quanto ao aspecto externo.
Figura 1 – Fazenda do Ribeirão, século XVIII, Dom Joaquim-MG.
Foto do autor, 2016.
A técnica mais utilizada pelos portugueses, principalmente em
habitações e edificações em geral, foi a estrutura autônoma de
madeira, ou “gaiola”, como ficou conhecida. Nada mais era que um
tipo de enxaimel, introduzido na Península Ibérica por povos saxões
do norte europeu, que invadiram a região logo após a derrocada do
Império Romano. Aperfeiçoada durante a reconstrução de Lisboa,
após o terremoto de 1755, quando se valeu do travamento diagonal
dos esteios, para responder melhor a possíveis abalos, ela foi trazida
a Minas Gerais no auge da mineração e se adaptou perfeitamente
ao seu acidentado relevo.
No entanto, em Minas Gerais, principalmente no meio rural, a
arquitetura portuguesa adaptou-se ao relevo, clima e materiais
disponíveis (vide Fig. 1). Em Portugal, a “gaiola” de madeira era
preenchida, em geral, por uma estrutura chamada de tabique (trama
de madeira serrada fixada por cravos e preenchida por barro). Em
Minas, os tabiques foram substituídos pela vedação de pau-a-pique
(trama mais grosseira, feita com troncos finos de coqueiros e ramos
de árvores ou bambus, solidarizada por cipós, uma provável
influência indígena ou africana), por adobe ou por madeira – esses
dois últimos também usados em Portugal. Essas vedações não
tinham caráter estrutural. A estrutura da “gaiola”, constituía-se de
vigas baldrames de madeira, de onde saíam os pés direitos ou
esteios (de pedra ou madeira); estes, por sua vez, recebiam os
esforços do telhado através dos frechais. Nas residências, as paredes
do porão, abaixo das vigas-baldrames, em geral eram de pedra,
podendo também ser totalmente abertos ou fechados parcialmente
com taipa de mão ou tábuas. Nesses espaços, o piso comumente
era de terra batida, misturada com sangue de boi, para a obtenção
de uma melhor liga; no entanto, também há os revestidos de pedras
ou de ladrilhos de barro, dependendo do seu uso: depósitos, abrigos
de animais, etc.
A taipa de pilão é vista em exemplares mais antigos, da primeira
metade do XVIII, principalmente nos trechos primitivos das
edificações: ampliações futuras, feitas ainda durante o século XVIII
ou XIX, já se utilizam de adobe ou pau a pique. Essa técnica mista
pode ser observada nos casarões das fazendas São Miguel e Mato
Dentro, em Ritápolis. Na planta de ambas é possível notar o
quadrado original, com paredes em taipa de pilão, acrescido das
paredes posteriores de adobe ou taipa de mão. É necessário lembrar
que essas fazendas não foram estanques, nem tiveram todas as
edificações construídas ao mesmo tempo: elas se alteraram,
aumentaram, diminuíram com o passar dos tempos.
A técnica do barro apiloado não se adaptou em Minas, pois
necessitava de terraplenos para se livrar das prejudiciais enxurradas:
em terrenos muito inclinados, esses terraplenos consumiam muitos
recursos e eram pouco úteis.
Pedras foram comuns principalmente nos alicerces de edificações,
raras vezes sendo usadas em paredes inteiras. Mas encontram-se
exemplos de pedra aparelhada, como na – hoje em ruínas – Fazenda
Braço Livre, do século XVIII, localizada no distrito de Glaura, de
Ouro Preto. Ali blocos de pedra muito bem cortados e esguios, são
assentados uns sobre os outros, numa referência direta a
construções portuguesas, numa técnica pouco usual no Brasil. A
mão-de-obra provavelmente foi portuguesa e acostumada a
trabalhar com esse tipo de cantaria. Chama a atenção a janela
tripartida existente ao fundo da edificação, um tipo de solução
também não usual, principalmente por seus batentes em pedra
lavrada.
Em geral, a arquitetura rural mineira do século XVIII foi mais
prática que confortável, atendendo às necessidades locais, quase
sempre se ressentindo da falta da mão-de-obra mais qualificada. No
entanto, a abundância de matéria-prima, a largueza e a fertilidade
das terras e o pouco custo da mão de obra favoreciam a construção
de espaços generosos e variados. Na adaptação porque passou no
campo, podemos afirmar que, em relação à casa portuguesa, a casa
rural mineira possui mais e maiores cômodos.
Segundo nos contam os viajantes e comprovam os inventários, as
fazendas mineiras dividiam-se em duas grandes categorias, grosso
modo: aquelas somente destinadas à produção agropecuária e
pequena manufatura; e aquelas que, além disso, possuíam lavras ou,
para usar um termo da época, que possuíam “terras minerais”.
Nas primeiras, o aspecto geral era modesto, acanhado, reflexo do
cotidiano de trabalho ligado à terra dos proprietários e sua família.
Nas segundas, a riqueza dos donos, muitas vezes pessoa ilustrada e
“estudada” se refletia em instalações de melhor aspecto, suas casas
chegavam mesmo a ter certo grau de conforto e senso estético,
incomuns na zona rural.
A
“gaiola”
possibilitava
grande
liberdade
de
expressão,
principalmente no século XVIII, quando as casas eram mais
orgânicas, crescendo ou diminuindo conforme a necessidade.
Esteios, pés direitos, baldrames e frechais eram deixados aparentes
e pintados em cores vivas, compondo um interessante efeito
plástico na fachada, em contraste com os panos de vedação caiados
de branco. De certa forma, essa maleabilidade seria perdida no
século XIX, quando a planta em “L”, com a incorporação definitiva
do anexo de serviços, e uma nova composição de fachada,
influenciada pelos padrões eruditos neoclássicos, imporiam
espaçamento de vãos regulares, simetrias, criando novas harmonias
e ritmos. A arquitetura perderia muito de seu caráter espontâneo,
inovador e gracioso.
Antes disso, porém, houve imensa possibilidade de se trabalhar as
aberturas - portas e janelas - nas mais diferentes formas e
quantidade. Em alguns exemplares é possível ver esteios sendo
usados simultaneamente como umbral de portas ou janelas; às vezes
um só esteio virava umbral (ou ombreira) para duas aberturas ao
mesmo tempo; em outras, justapunham-se uma série de janelas,
onde as ombreiras
intermediárias serviam a dois
vãos
simultaneamente, formando um grande vão envidraçado, numa
evidente praticidade e economia de madeira, conjugadas de maneira
bastante criativa.
Com relação ao formato dos vãos, aparecem os de vergas retas e os
de arco abatido (ou meia canga). Esses últimos foram introduzidos
em Minas Gerais em 1741, com a construção do Palácio dos
Governadores, projeto do engenheiro-militar José Fernandes Pinto
Alpoim, e construído por Manuel Francisco Lisboa, arquiteto
português e pai de Aleijadinho.
O fechamento de vãos era quase sempre feito por duas folhas (ou
batentes) de escuros simples, com tábuas com encaixe macho e
fêmea, travadas por travessas perpendiculares. Excepcionalmente,
usavam-se folhas externas com treliças (urupemas), ou com
recortes de madeira, como balaústres, que permitiam a ventilação.
Também foram comuns as portas ou janelas com postigos. Essas
folhas podiam abrir à francesa, ou seja, como rótulas de eixo
vertical, ou através de eixos horizontais, chamadas por alguns de
gelosias.
A partir do início do século XVIII, os escuros começaram a ser
acompanhados por folhas externas com aberturas à inglesa
(guilhotinas), introduzidas por ingleses, que se difundiram por
todos os cantos do país. Também devido ao preço e escassez do
vidro, muitas vezes, os vãos eram preenchidos por treliças.
Acomodada ao desnível constante dos terrenos, sem necessidade
de grandes cortes, a casa rural mineira apoiava-se parcialmente no
solo, o que lhe dava em parte um aspecto térreo, em outro,
assobradado. O acesso poderia dar-se por vários lados. No caso do
assobradado, entra-se por escada externa, situada perpendicular ou
paralelamente a essa face, o que favorecia o controle. Caso essa
elevação fosse a principal, a escada ganhava desenho elaborado,
podendo ser em madeira ou pedra, com guarda-corpos com
balaústres em variados formatos e desenhos, levando diretamente a
porta de entrada, ou acessando alpendre ou varanda entalada: essas
três soluções são encontradas por todas as regiões de Minas, cada
tipo predominando numa região. Por exemplo, as varandas e os
alpendres, em suas mais variadas formas, aparecem nos Campos das
Vertentes (século XVIII) e na Região de Ouro (séculos XVIII e
XIX). Já nas casas do Sul de Minas, eles são elementos incomuns,
geralmente acréscimos posteriores (CRUZ, 2010, p.46-47).
O alpendre é, talvez, um dos elementos mais característicos da
arquitetura e do caráter do habitante da área rural de Minas Gerais
- espaço de recepção, de estar e de vigilância, representava na casa
mineira limite físico, transição entre áreas social e íntima. As
varandas e os alpendres eram importantes elementos de
composição de fachada, suavizando a volumetria compacta. Na
parte traseira, quando existiam, eram espaços femininos, da
fazendeira: de onde ela controlava a horta e o pomar (FREITAS, 1986,
p.45). Foi comum a existência de cômodos em um ou em ambos os
lados do alpendre frontal, muitas vezes sem comunicação com o
interior da casa, usados como quarto de hóspedes e/ou capela.
Adentrando a casa estava a sala, de acesso restrito a íntimos da
família ou a convidados ilustres. Acopladas a ela, poderiam haver
outras salas. A zona de estar completava-se com a sala de jantar, seu
maior cômodo e de múltiplas funções: além das refeições e
conversas pós-jantar, servia para atividades das mulheres e crianças.
Era espaço de reunião familiar. Seu mobiliário, como de resto, era
simples: mesa, bancos, poucas cadeiras e tamboretes com assento
de couro e alguns cabides justapostos à estrutura da edificação para
chapéus, capas, etc. (SAINT-HILAIRE, 1974, p.46).
Segundo Saint-Hilaire, o interior das casas de fazendas mineiras:
(...) oferecem, em regra, poucas
comodidades e não possuem, (...), nenhum
ornato sobre a brancura das paredes. (...).
Não se conhecem nas casas de fazendeiros
nenhum desses móveis que acumulamos em
nossos aposentos, guardam-se as roupas nas
malas, ou, antes, dependuram-se em cordas,
a fim de preservá-las da umidade e dos
insetos. As cadeiras são raras, e as pessoas se
sentam em bancos, tamboretes de madeira e
escabelos. Nas casas dos ricos, os leitos são
os móveis que merecem mais cuidados, as
cortinas e as colchas são muitas vezes de
damasco, e os lençóis de um tecido de
algodão muito fino, têm guarnições de
renda. Quanto ao colchão, compõe-se
simplesmente de um fardo de palha de milho
desfiada; mas, em país tão quente, dormirse-ia pior sobre lã ou penas. (SAINTHILAIRE, 1975b, p.96)
O forro dessas casas rurais variou bastante: por vezes, tabuado
corrido, em outras, esteiras de taquara. “Os forros de esteira eram
trançados formando desenhos simples ou mais complexos. Eram
esticados sobre barrotes e acabados com molduras junto à parede”
(FREITAS,1986, p.47). São mais encontrados nas dependências de
serviço dessas casas. Recebiam, como proteção extra, uma camada
de caiação branca, ou tingiam-se as taquaras de antemão e com elas
compunham-se mosaicos geométricos e coloridos. Esse forro era
trocado regularmente, pois se degradavam com o tempo,
prejudicados por goteiras ou cupins.O tabuado corrido era mais
usado nos demais aposentos. A partir da segunda metade do XIX,
adotou-se o forro do tipo saia e camisa. Também foi usual o guardapó nos beirais, desde o século XVIII.
Na parte social e íntima, o piso invariavelmente era formado por
tábuas de madeira de tamanhos variáveis, assentadas sobre barrotes
dispostos ao longo do baldrame. Essas tábuas possuíam de 20 a 40
centímetros de largura por cerca de três centímetros de espessura.
Até o século XVIII, usava-se madeira de muito boa qualidade para
este fim: jacarandá, canela parda ou preta, jatobá, entre outras
(VASCONCELLOS, 1979, p.60).
Nos fundos da habitação, estava a ala de serviços, composta por
cozinha, cozinha “suja” e a despensa. A cozinha possuía, ao centro,
o fogão a lenha, sem chaminé, e uma trempe de pedras ou alvenaria.
Quando o fogão era encostado na parede, abria-se um buraco para
tiragem do fumo (RODRIGUES, 1975, 300). Junto à cozinha,
outro cômodo abrigava o forno de barro, que podia estar protegido
apenas por uma cobertura, e até mesmo solto no quintal. Ocorria,
também, a solução da cozinha num puxado, ao fundo da edificação.
Eram espaços essencialmente femininos.
Na área de serviço, tanto o piso de terra batida, os ladrilhos
cerâmicos ou as lajes de pedras foram utilizados, às vezes,
conjuntamente, isto é, enquanto na cozinha e despensa se revestia
o piso com os ladrilhos ou pedras, no quarto do forno era de terra
batida, por exemplo. Isto variou de fazenda para fazenda, mas o
que se nota é o menor cuidado com tais dependências, não
destinados à presença ou visitação de estranhos, logo,
desnecessários maiores cuidados.
Nas proximidades, havia, geralmente, um rego d’água, ou mesmo
água encanada, trazida de alguma mina através de bambus abertos
ao meio ou de alcatruzes de pedra-sabão. E, também, os jardins
com suas hortas e pomares.
O espaço religioso também esteve presente nas casas rurais
mineiras, em várias conformações. As capelas internas, chamadas
de ermidas, ficavam situadas junto ao alpendre fronteiro, ou,
quando mais adentro, junto à sala de receber. Nessas ermidas
percebe-se sempre uma intenção decorativa que não se encontra no
resto da edificação: quase sempre há paredes e/ou teto pintados
com maior ou menor grau de apuro; altar com douramentos
encimado por imagens e castiçais (vide Fig. 2). Muitas delas
apresentam janelas em parede lateral que se comunica com o
cômodo contíguo: as folhas dessas janelas eram abertas para que as
mulheres da casa pudessem assistir ao ofício religioso e, ao mesmo
tempo, ficarem apartadas de estranhos que porventura estivessem
no cômodo para onde se abria a porta principal. Já as capelas
externas foram raras, sendo quase todas do século XIX. Por vezes,
chegavam a ter um capelão próprio e pia batismal, para atendimento
da população das redondezas da fazenda (FREITAS, 1986, 52).
Figura 2 – Forro da ermida, pintada supostamente pelo Mestre Ataíde. Fazenda
Mato Dentro, séc. XVIII, Ritápolis-MG.
Foto do autor, 2016.
Quando não havia capelas, destinava-se um cômodo para a prática
religiosa íntima (FREITAS, 1986, 53), o chamado “quarto dos
santos”, com oratório e imagens. Aí não havia celebrações de missa:
servia para os pedidos e rezas diários.
A cobertura do corpo principal da casa rural mineira variou muito,
assim como sua planta. As casas primitivas foram cobertas com
capim, mas já no século XVIII predominavam as telhas cerâmicas
romanas, também conhecidas como capa e canal, ou capa e bica.
Em geral a cobertura do corpo principal da casa rural mineira era
feita em quatro águas simples; prolongava-se uma das águas para
cobertura ou puxava-se telhado independente para o alpendre
exterior. Já a cobertura da área de serviços, geralmente com pé
direito inferior, se fazia com um puxado de uma só água. Caso esta
fosse muito grande em comprimento e estivesse em posição
perpendicular àquele corpo principal, a cobertura se faria com duas
ou três águas.
Nas casas com planta em “L” também ocorreu o uso do telhado da
área de serviços acoplado ao corpo principal, então se recorrendo
aos rincões. No geral, a cobertura da arquitetura rural mineira foi
simples, pouco se valendo de maiores movimentações. As telhas
eram feitas em olarias temporárias, abertas dentro da própria
fazenda, durante o período de construção e, logo após a finalização,
eram abandonadas.
Conclusão
O cotidiano nas fazendas mineiras de produção agropastoril do
século XVIII foi austero e de muito trabalho. Uma vida de pouco
luxo e muito isolamento. Uma das explicações pode ser a realidade
que molda culturalmente o mineiro, que produziu muito, mas
pouco se aproveitou de sua riqueza; sempre sob vigilância da Corte
Portuguesa, e fortemente influenciado pela Contrarreforma
católica.
Apesar dos poucos contatos externos, as culturas antagônicas de
negros e portugueses estreitaram-se com a erudição iluminista,
trazida por padres e por aqueles que estudavam em Coimbra, Rio
de Janeiro ou Mariana. A solidão era interrompida pelos tropeiros
e pelos viajantes ocasionais que traziam as novidades do mundo,
ouvidas com interesse e curiosidade pelo fazendeiro e seus
familiares. Por tudo isso, talvez, o fazendeiro mineiro setecentista
tenha aprendido a receber bem os desconhecidos, mas sempre
mantendo certa distância respeitosa, mas desconfiada, nunca
deixando que a sua intimidade fosse totalmente devassada - estava
cansado de tanta vigilância! Ele preferiu abraçar a cordialidade, a
mansidão, atestadas nos relatos dos viajantes: Auguste de SaintHilaire, John Mawe, George Gardner, Langsdorff, entre outros,
elogiam os modos com que foram recebidos em quase todas as
oportunidades.
As fazendas surgidas naquela economia mineral, e seus habitantes,
refletiram as contradições do seu tempo e sofreram com o desfecho
do esgotamento das minas, mesmo encontrando outras
possibilidades de expandir seus negócios para as novas fronteiras
agrícolas que se abriam, como o nordeste paulista ou o Vale do
Paraíba.
A austera arquitetura rural mineira de então privilegiou a
funcionalidade e a resolução dos problemas desse complexo e rude
cotidiano naqueles sertões de grandes montanhas e vales
profundos. Mesmo assim, pode surpreender em algum cômodo
mais ornamentado, onde pinturas de um mestre como Ataíde
surgem quando menos se espera. Em suma, o mineiro campesino
do século XVIII soube extrair da matriz portuguesa, formas
simples, de poucos elementos, mas que conformaram uma
arquitetura de grande plasticidade e beleza.
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