Academia.eduAcademia.edu

Arquiteturas Contra as Secas (1909-1959)

2020, IAU/USP

https://doi.org/10.11606/9786586810080

Reflexões sobre o patrimônio cultural brasileiro: homenagem aos 80 anos do IPHAN

Edição Natalia Cappellari de Rezende Editor IAU-USP Produção gráfica e Diagramação Natalia Cappellari de Rezende e Rodrigo Sartori Jabur Revisão Maria Angela P. C. S. Bortolucci e Joana D’arc de Oliveira Imagem da capa e contracapa Fotografia de Pires, São Carlos, década de 1980. Acervo Maria Angela P. C. S. Bortolucci Os autores de todos os artigos completos autorizaram sua publicação no ebook Reflexões sobre o Patrimônio Cultural Brasileiro: Homenagem aos 80 anos do IPHAN, e declararam ser de sua inteira responsabilidade os textos e imagens contidos em seus artigos; em caso de imagens que não sejam de sua autoria, declararam possuir autorização do(s) autor(es) para seu uso, ou declararam ser de uso livre; em ambos os casos, declararam que a autoria de terceiros foi devidamente informada no trabalho; por fim, os autores declararam-se responsáveis por quaisquer consequências morais ou legais no caso do trabalho como um todo ou parte dele ser considerado inadequado ou plágio por terceiros que venham a se manifestar. "Esta obra é de acesso aberto. É permitida a reprodução parcial ou total desta obra, desde que citada a fonte e autoria e respeitando a Licença Creative Commons indicada" UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO - USP Vahan Agopyan [Reitor] Antonio Carlos Hernandes [Vice-Reitor] INSTITUTO DE ARQUITETURA E URBANISMO Joubert José Lancha [Diretor] Miguel Antôno Buzzar [Vice-Diretor] Tomás Antonio Moreira [Presidente da Comissão de Pós-Graduação] Karin Maria S. Chvatal [Presidente da Comissão de Pesquisa] Instituto de Arquitetura e Urbanismo Universidade de São Paulo Campus USP (Área 1) Av. do Trabalhador São-Carlense, 400, Centro CEP 13566-590, São Carlos - SP www.iau.usp.br Natalia Cappellari de Rezende Maria Angela P. C. S. Bortolucci Joana D’Arc de Oliveira Rodrigo Sartori Jabur É com muita satisfação que oferecemos a publicação deste livro que teve como premissa se tornar um desdobramento do 2º Seminário do Grupo de Pesquisa Patrimônio, Cidades e Territórios, realizado no dia 27 de outubro de 2017, no auditório Paulo de Camargo, do Instituto de Arquitetura e Urbanismo, da Universidade de São Paulo, em continuidade ao primeiro seminário do grupo de 2016. O tema do 2º Seminário, Reflexões sobre o Patrimônio Cultural Brasileiro: Homenagem aos 80 anos do IPHAN , teve por objetivo ser um momento de celebração da significativa trajetória de atuação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, ao mesmo tempo em que foi uma reflexão sobre o patrimônio cultural brasileiro em sua diversidade de expressões ao abarcar questões inerentes às temáticas de pesquisa desenvolvidas pelos membros do grupo de pesquisa. O capítulo desenvolvido por Amanda Cavalcante Moreira traz uma pequena parte dos resultados de sua pesquisa de doutorado sobre o patrimônio residencial do final do século XIX e início do século XX do Piauí ao tratar da cidade de Amarante. Ana Carolina Gleria Lima discute a importância da habitação urbana e rural de Ribeirão Preto como objeto de pesquisa e reflexão para além de sua constituição material. Joana D’Arc de Oliveira destaca a importância do registro das memórias negras por meio da História Oral. Marcus Vinicius Dantas de Queiroz analisou a arquitetura produzida pelo DNOCS – Departamento Nacional de Obras Contra as Secas –, entre os anos de 1909 e 1959, no semiárido do Brasil, por meio de fotografias publicadas em relatórios técnicos e boletins informativos do órgão. O capítulo de Maria Angela P. C. S. Bortolucci se constitui em uma reflexão da preservação das cidades médias e pequenas do interior paulista. A difusão do vocabulário formal do Rococó na decoração religiosa do estado de São Paulo é o tema discutido por Mateus Rosada. O capítulo de Mônica Cristina Brunini Frandi Ferreira trata do tema da higiene da habitação urbana paulista, entre 1880 e 1934, tendo Campinas como estudo de caso. Natalia Cappellari de Rezende utiliza fotografias e documentos primários para analisar as transformações e ressignificações da paisagem urbana do Centro Histórico de São José do Rio Pardo. Rodrigo Sartori Jabur realiza uma análise dos primeiros anos de atuação do IPHAN sob a ótica dos métodos de trabalho desenvolvidos pela equipe técnica da época. A arquitetura das fazendas mineiras que tiveram o abastecimento de regiões de mineração como principal atividade foi o tema analisado por Vladimir Benincasa. Finalmente, esclarecemos que o livro inclui uma maioria de capítulos que são decorrentes das apresentações realizadas por membros do grupo de pesquisa que participaram do referido seminário, mas que se completa abarcando capítulos de outros pesquisadores do grupo. Desse modo, se constitui numa obra de características singulares que certamente interessa àqueles que estudam a história da cidade, dos territórios e do patrimônio brasileiro. O grupo se organizou em 2012 no Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (IAU/USP), a partir do interesse de alguns pesquisadores em investigações que contemplam o patrimônio brasileiro constituído por cidades, conjuntos ru rais, sítios históricos e paisagens culturais, cumprindo um recorte temporal que abarca o período colonial, imperial até a primeira república, nas dimensões rural e urbana do território brasileiro, e incluindo modos de produção e de morar formados a partir de um saber local e/ou de experiências vindas de fo ra. Nas pesquisas desenvolvidas interessa sobretu do compreender a gênese e as transformações ocorridas nessas estrutu ras de cidades e territórios; a constituição desse patrimônio material e imaterial nos diversos segmentos da sociedade brasileira; e as pos sibilidades de conservação e preservação desses espaços. * dgp.cnpq.br/dgp/espelhog rupo /3722566502521574 Amanda Cavalcante Moreira Professor Assistente do Departamento de Construção Civil e Arquitetura da Universidade Federal do Piauí Universidade de São Paulo, Instituto de Arquitetura e Urbanismo, IAUUSP, São Carlos, SP, Brasil [email protected] Resumo O artigo aborda o patrimônio residencial do final do século XIX e início do século XX da cidade de Amarante, Piauí, como parte da pesquisa de doutorado em andamento intitulada “A moradia urbana do Piauí (1850-1940)”. A cidade foi fundada na segunda metade do século XX, no interior do estado, como resultado da intensa atividade comercial na região, dada, especialmente, pela proximidade com o rio Parnaíba. Os aspectos relativos à sua fundação certamente interferiram na singularidade de sua arquitetura, evidenciando assim a relevância de um estudo e análise das edificações em seus mais variados fatores, como implantação, planta baixa, técnicas e materiais construtivos, aberturas e elementos decorativos. Aborda as semelhanças e diferenças entre a arquitetura residencial da cidade e a de outros centros locais, e baseia a pesquisa bibliográfica em autores locais e nacionais; a pesquisa documental em arquivos públicos e privados e especialmente em levantamentos físicos in loco, resultando em um esforço de análise de suas características frente ao cenário piauiense. Palavras-chave: Arquitetura residencial do final de século XIX e começo do século XX. Patrimônio residencial de Amarante. Amarante - PI. Abstract The article addresses the residential heritage of the late 19th and early 20th centuries in the city of Amarante, Piauí State (Brazil), as part of the ongoing doctoral research entitled “The urban housing of Piauí (1850-1940)”. The city was founded in the second half of the 20th century, in the countryside of the state, as a result of the intense commercial activity in the region, given, especially, by its proximity to the Parnaíba river. The aspects related to its foundation certainly interfered in the uniqueness of its architecture, thus evidencing the relevance of a study and analysis of the buildings in their most diverse factors, such as implantation, floor plan, construction techniques and materials, openings and decorative elements. It addresses the similarities and differences between Amarante’s residential architecture and that of other local centers, and bases its bibliographic research on local and national authors; documentary research in public and private archives and especially in physical surveys in loco, resulting in an effort to analyze its characteristics in the context of the state of Piauí. Keywords: Residential Architecture from late 19th century to the beginning of the 20th century. Residential Heritage of Aramrante. Amarante, Piaui State, Brazil. Resumen El artículo aborda el patrimonio residencial de finales del siglo XIX y principios del XX de la ciudad de Amarante, en el Estado de Piauí - Brasil, como parte de la investigación del doctorado en curso titulada “La vivienda urbana de Piauí (1850-1940)”. La ciudad fue fundada en la segunda mitad del siglo XX, en el interior del estado, como resultado de la intensa actividad comercial de la región, debido, especialmente, a su cercanía al río Parnaíba. Los aspectos relacionados con su fundación ciertamente interfirieron en la singularidad de su arquitectura, evidenciando así la relevancia de un estudio y análisis de las edificaciones en sus más variados factores, tales como implantación, planta, técnicas y materiales constructivos, aberturas y elementos decorativos. Aborda las similitudes y diferencias entre la arquitectura residencial de la ciudad y la de otros centros locales, y basa su investigación bibliográfica en autores locales y nacionales; investigación documental en archivos públicos y privados y especialmente en levantamientos físicos in loco, resultando en un esfuerzo por analizar sus características en el contexto del estado Piauí. Palabras clave: Arquitectura residencial de fines del siglo XIX y principios del siglo XX. Patrimonio Residencial de Amarante. Amarante, estado de Piauí, Brasil. Introdução “A minha terra é um céu, se há um céu sobre a terra: É um céu sob outro céu tão límpido e tão brando, Que eterno sonho azul parece estar sonhando Sobre o vale natal, que o seio à luz descerra...” (Amarante – Da Costa e Silva) A cidade de Amarante situa-se no centro-sul do estado do Piauí, na divisa entre os estados do Piauí e do Maranhão. Sua localização (Figura 1) justifica fortemente sua fundação: ao contrário de muitas cidades dessa região, que foram resultado de aldeamentos rurais, Amarante desenvolveu-se devido ao comércio fluvial realizado entre os dois estados. Inicialmente conhecida como São Gonçalo, foi elevada à categoria de cidade em agosto de 1871, com a denominação de Amarante (SILVA FILHO, 2007). Falci (1992, p. 21) diz que o local onde surgiu a vila de São Gonçalo do Amarante foi em sua origem uma aldeia dos índios acroás e que: O progresso da povoação deveu-se à localização geográfica: meio da Província, ponto de ligação do norte, litorâneo, com o leste, centro político-administrativo, e o sul, quase despovoado. Era importante porto fluvial, na confluência dos rios Canindé e Parnaíba, local onde chegavam vapores com produtos de Portugal, Maranhão, Pernambuco e que, subindo o Canindé, iam até a capital. Figura 1 – Localização da cidade de Amarante. Fonte: Produzido por SILVA, 2018, com informações de Google Maps. A natureza do seu surgimento foi determinante na sua configuração urbana que, diferentemente do que ocorria nas cidades desse período, não se desenvolveu em torno da praça da igreja, mas sim a partir de um largo eixo comercial conhecido como Rua Grande (Figura 2) que, por ter grande largura em relação às demais aproximadamente doze metros em quanto as perpendiculares têm cerca de cinco metros - certamente fez as vezes de praça. Ao tratar dessa questão, Silva Filho (2007, p. 120) diz que [...] ao contrário das vilas da Colônia, em que a igreja matriz expressou a nucleação do povoado, aqui ela esteve ausente até a data da sua construção em 1874, 13 anos após instalada a Vila e três anos depois da cidade, já afastada do núcleo de origem, no bairro Villa-Nova. Figura 2 – Vista da cidade de Amarante, com destaque para sua via principal, A Rua Grande. Fonte: Acervo pessoal da autora. A peculiaridade de sua formação e consolidação como importante porto fluvial e entreposto comercial foi um dos fatores que nos levou a escolher Amarante como uma das cidades de nossa pesquisa de doutorado, pois acreditávamos que a grande circulação monetária, o fluxo de pessoas oriundas de lugares distintos e o comércio com outras localidades certamente interferiu na sua produção arquitetônica, notadamente a residencial. Além disso, ressaltamos ainda o fato de que Amarante, apesar de ainda não dispor de instrumento de tombamento estadual ou federal1, dentre os sítios históricos que estamos estudando é um dos mais bem preservados. A par desses fatores, destacamos a oportunidade de O IPHAN desenvolveu um estudo de tombamento da cidade, que consta de importante documentação dos imóveis da cidade, mas seu tombamento não foi efetivado. 1 realizar a caracterização e análise de sua arquitetura residencial, objetivo principal desse nosso artigo, como contribuição relevante para a compreensão do panorama geral da arquitetura residencial do Piauí e, por consequência, do processo de elaboração de nossa tese. A arquitetura residencial de Amarante O primeiro fator observado para análise das características das edificações residenciais de Amarante foi a implantação, onde encontramos 94% das edificações do seu núcleo histórico alinhadas a aos limites frontal e laterais dos lotes; 3% possuem um único recuo lateral e ao fundo; 1% apresenta apenas recuo frontal e 1% encontra-se recuada de todos os limites dos lotes. Dessa forma, foi a implantação majoritária dessas edificações que nos levou a apontar Amarante como uma grande representante, juntamente com a cidade de Oeiras, da arquitetura de feições tradicionais no Piauí, porque evidenciam de maneira muito forte a caracterização da arquitetura colonial urbana a partir da sua implantação. “A cidade é de casas térreas”, diz Silva Filho (2007, p.119)2. De fato, nos nossos levantamentos não encontramos edificações assobradadas no núcleo inicial da cidade, à exceção de uma Olavo Pereira da Silva Filho empreendeu vasta investigação em edificações piauienses em levantamento que teve início no ano de 1987, percorrendo grande área do estado do Piauí. Sua obra “Carnaúba Pedra e Barro”, publicada em 2007, é uma referência no estudo da arquitetura rural e urbana piauiense. 2 edificação possivelmente industrial e construída já em meados do século XX. Essa situação segue o que acontece nos outros núcleos urbanos do Piauí colonial. Esse aspecto já fora observado por Barreto3 (1975, p. 211), ao dizer que “os poucos prédios azulejados e os poucos sobrados que se encontram no Piauí são exemplares trazidos de longe”, ou que “os poucos sobrados piauienses são senhoriais”. Em nossos levantamentos in loco, bibliográficos e documentais, não encontramos, nas cidades de Amarante, Pedro II, Parnaguá e São Raimundo Nonato, relatos da existência de algum sobrado construído para fins residenciais até o fim do nosso recorte temporal (1850-1940). Na cidade de Oeiras, certamente por ter sido elevada à condição de capital, esse número é mais significativo, mas ainda insuficiente para dar a Oeiras um caráter mais verticalizado, o que, nesse aspecto, evidencia uma relação de semelhança entre Amarante e os demais núcleos urbanos da região. Um segundo aspecto observado na cidade foi a disposição em planta de suas residências. Não foi difícil encontrar os tipos descritos por meia morada e morada inteira, e até mesmo ¾ de morada e morada e meia, nos quais a existência de um corredor, central – na morada inteira e morada e meia –, ou lateral – nos outros tipos –, que distribui os fluxos para o restante da residência. Paulo Thedim Barreto (Rio de Janeiro, 1906/1973) foi um arquiteto e professor que durante a fase heróica do SPHAN atuou como um dos primeiros técnicos do órgão. Dentro de suas atividades, percorreu o Brasil em busca de monumentos arquitetônicos e, no ano de 1938, percorreu grande área do Piauí, o que resultou no tombamento de monumentos vários. Dentre a sua produção textual, destaca-se o artigo Casas de Câmara e Cadeia, publicado no nº 11 da revista do SPHAN. 3 É possível perceber, também, que esse corredor separava a parte social, geralmente os cômodos da frente, e a parte íntima, os cômodos posteriores. Essa separação era, inclusive, materializada com a instalação de portas ou cancelas. Destacamos, como importante parte do programa das casas de Amarante, a existência da varanda de refeições, que mais uma vez notamos ser tão recorrente ao longo do território piauiense, como um importante espaço íntimo, restrito aos familiares e serviçais, onde desenvolviam-se as mais diversas atividades cotidianas. Ilustramos as características dessas plantas baixas com a residência da família do Sr. Marcelino Leal Barroso de Carvalho, onde hoje funciona o Museu do Divino, um dos mais importantes pontos turísticos da região. A construção da edificação é da passagem do século XIX-XX para servir, inicialmente, como residência e comércio – apenas um dos cômodos da frente da casa era destinado às atividades comerciais. E consta na sua certidão de registro de imóvel que a casa era coberta de telhas e a fachada sul (voltada para a Rua Grande) era composta por três portas e duas janelas. Com a transformação da casa para apenas uso residencial, duas dessas portas foram substituídas por janelas. Ademais essas modificações, percebemos que a planta apresenta os cômodos principais na frente, acessados a partir de um corredor, com cômodos de serviço ao fundo e também a presença da varanda de refeições, como mostra a Figura 3. Figura 3 – Planta Baixa, fachada e varanda de refeições da residência da família do Sr. Marcelino Barbosa. Fonte: Acervo pessoal da autora, cedidas por Mônica Alves, Edilson Melo e João Ângelo Ferreira. Destacamos ainda que, assim como a grande maioria das edificações originalmente residenciais e ou residenciais e comerciais, a residência da família do Sr. Marcelino Leal Barroso de Carvalho situa-se nos limites frontais e laterais do lote, apresentando recuo apenas no fundo do terreno, que permite a existência de um pátio interno, responsável pela iluminação e ventilação de uma frende área da edificação. Apesar de ter sofrido algumas modificações pra abrigar o Museu do Divino, como a inserção da capela, a família optou por manter pelo menos parte da sua ambiência residencial. Além das residências unifamiliares, destacam-se nos programas de moradias da cidade de Amarante, as casas de uso misto – moradia e comércio e as moradias, comércio e rancho. Essas últimas são edificações que, além de moradia e comércio, também serviam de hospedaria, pela própria natureza do seu povoamento e desenvolvimento, sempre atrelados à atividade comercial, e também pelo fato de ser importante rota de passagem entre as regiões norte e sul do estado. Ainda sobre essa última tipologia, vale notar a afirmação de Silva Filho (2007, p. 39): O tipo moradia-comércio-e-rancho, tudo leva a crer, ser originário e quase exclusivo de Amarante. Constitui sua mais forte expressão, correspondendo às maiores e melhores casas da cidade, timbrando assim a natureza comercial das moradias. Nesse formato, encontramos uma ocorrência em Oeiras e quatro em Piracuruca, das quais uma com distinção na setorização dos ranchos. Com as laterais nas divisas, as moradias de centro de quadra não permitiam a implantação de rancho e nelas, pelo mesmo motivo, o comércio é reduzido. A “Casa dos azulejos4” ilustra bem a descrição de Silva Filho sobre o tipo “moradia-comércio-e-rancho”, sendo essa distribuição em planta repetida à exaustão em outros exemplares da cidade. Como as demais, foi implantada em um grande lote de esquina – nesse caso, na via mais importante da cidade, a Avenida Desembargador Amaral, conhecida como Rua Grande, no cruzamento com a Rua Marechal Floriano Peixoto. Em sua planta baixa (Figura 4) Segundo Silva Filho (2007, p. 201), é a “única casa da cidade com a fachada paramentada de azulejos estampilhados de manufatura portuguesa. Obedece à tipologia das casas de morada-comércio-e-rancho. O arco do corredor de entrada possui bandeira e cancela de torneados finos. Alvenaria de adobe e tijolo. Enquadros de madeira, folhas de calha e venezianas. Fechaduras e espelhos forjados. Cobertura de carnaúba corrida e telha vã. Beirais internos de cachorrada. Piso de ladrilho hidráulico”. 4 podemos perceber a independência entre as três funções que abriga: as atividades são muito bem setorizadas e a área residencial repete o padrão local, cômodos principais na frente e secundários ao fundo, com acesso por um corredor central. Apesar disso, a planta baixa da residência deixa evidente a possibilidade de acesso ao pátio. O uso dessa área e a relação entre o uso residencial e o de hospedagem é algo que buscaremos investigar na nossa tese. Figura 4 – Planta Baixa esquemática da moradia-comércio e rancho conhecida como Casa dos Azulejos. Fonte: SILVA FILHO, 2007. Editada pela autora. Outros aspectos observados nas residências de Amarante foram as técnicas e os materiais construtivos. Segundo Silva Filho (2007, p. 68), “as construções tradicionais do Piauí mostram sistemas correntes em toda a Colônia, como o adobe, a taipa de varas ou pau-a-pique, a pedra e barro, as tijoleiras e as alvenarias mistas”. Apesar dessa variedade de técnicas apontada pelo autor, encontramos, majoritariamente, construções de adobe ou de tijolo cozido. Um importante aspecto percebido nessas edificações foram as coberturas, elemento muito expressivo na composição volumétrica dessas residências. Barreto (1975, p. 205) diz que “o madeiramento é de tronco de carnaúba ao natural; o ripamento é do mesmo material. O Piauí não conhece a tesoura. A telha canal é a única aplicada.” Em parte, o autor tinha razão. A carnaúba foi amplamente utilizada na estrutura dos telhados das antigas casas piauienses e amarantinas. Em contrapartida a isso, vemos que Silva Filho (2007) discorda do autor ao mostrar que, de fato, as tesouras foram raras no Piauí, mas elas existiram e foram encontradas também na cidade de Amarante, ainda que seja muito mais como uma exceção à regra. Foi na forma das portas e janelas que encontramos uma das grandes peculiaridades das residências da cidade de Amarante. Nelas percebemos uma grande variação, apresentando, sem nenhuma grande predominância, aberturas com vergas retas, com arcos plenos, abatidos, ogivais ou contracurvas (Figura 5). Situação muito diferente de Oeiras, por exemplo, onde quase que a totalidade das casas apresenta vergas retas e alguns poucos casos de arcos plenos e abatidos. Figura 5 – Casas com verga em arco abatido, reta, arco ogival e contracurva em Amarante – Pi. Fonte: Acervo pessoal A. C. Moreira. Em “O Piauí e sua Arquitetura” (1975, p. 209), Barreto já observa parte dessa situação, ao falar da ogiva: A forma em ogiva e suas variantes, dos vãos de portas e janelas, são elementos construtivos-decorativos, que chamam atenção para quem salta em Teresina. Grande parte das casas adota esse elemento, que está espalhado pelo estado todo, mas que em Teresina se consagrou. A ogiva, encontramo-la em quase todos os Estados do Norte, porém em nenhum deles se fixou. São poucas as construções no gênero [...] O arquiteto Luís Saia, do departamento de Cultura da Prefeitura da cidade de São Paulo, com quem já havíamos estado em Teresina, informou-nos que em Caxias, no Maranhão, viu farta aplicação da ogiva. Acreditamos que ela tenha entrado no Piauí pelo segundo quartel do século passado. Em Oeiras são poucas as suas manifestações, e para o Norte do Estado, a aplicação da ogiva vai diminuindo gradativamente, a ponto de Parnaíba possuir também poucos exemplares. São Luís do Maranhão está no mesmo caso. Barreto (1975) aborda apenas o caso da Ogiva, mas o emprego do arco em contracurva, incomum em Oeiras, também é empregado de forma marcante em Amarante, e encontrado na cidade de Floriano. Ainda relacionado às aberturas, apontamos ainda o emprego de muxarabis em algumas residências de Amarante, entre janelas e bandeiras, o que não encontramos nos nossos levantamentos da cidade de Oeiras, por exemplo. Por ora, atribuímos esse fato à peculiar situação de Amarante, que foi por muito tempo um importante entreposto comercial fluvial do estado, além de rota de passagem de viajantes, certamente facilitando repercussões na arquitetura produzida pela possibilidade de contato frequente com diferentes influências e novidades. Ainda sobre as aberturas, é importante ressaltar que o primeiro Código de Posturas da cidade abordava alguns aspectos relativos a estas, ao afirmar que “Art. 32º [...] altura da soleira será máxima de 0,20 metros acima das calçadas, salvo d´aquellas que no próprio prédio forem obrigadas a alteração devida ao declive da rua (CÓDIGO, 1901)”. Um outro aspecto relativo às esquadrias que até o momento consideramos muito peculiar e restrito à cidade de Amarante é a ocorrência em uma edificação, originalmente residencial e hoje sem uso, de uma janela em madeira com bandeira em barro. Sobre essa prática não encontramos nenhuma menção na bibliografia local ou qualquer outro indício que a justifique, mas almejamos obter mais informações no decorrer da pesquisa. Considerações Mediante o exposto, ressaltamos alguns aspectos referentes à caracterização e análise do patrimônio residencial da cidade de Amarante, e o primeiro deles é que o caráter da sua formação urbana, atrelada principalmente à atividade comercial e ponto de passagem para várias outras localidades do estado, interferiu fortemente na configuração da sua arquitetura, fato materializado especialmente a partir da abundância das edificações relacionadas ao uso comercial e residencial e também das moradias, comércio e rancho. Apontamos também a forte ligação entre a arquitetura residencial local e a arquitetura colonial brasileira, mesmo quando a maioria dos seus exemplares foi construída após o fim desse período, o que pode ser percebido principalmente a partir da implantação desses exemplares e será objeto de investigação na continuidade da nossa pesquisa. Referências BARRETO, Paulo. O Piauí e sua Arquitetura. In: FAU/USP – MEC/IPHAN: Arquitetura Civil I: textos escolhidos da Revista do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. São Paulo: FAU/USP, 1975. CÓDIGO de Posturas – Leis e resoluções n.°s 37, 38, 39 e 40 do Conselho Municipal de Amarante do Estado do Piauhy. 1901. SILVA FILHO, Olavo Pereira da. Carnaúba, pedra e barro na Capitania de São José do Piauhy. Belo Horizonte: Ed. do Autor, 2007. 3v. FALCI, Miridan Brito Knox. O Piauí na primeira metade do século XIX. Teresina: Projeto Petronio Portella, 1992. 129p. Ana Carolina Gleria Lima Universidade de São Paulo, Instituto de Arquitetura e Urbanismo, IAUUSP, São Carlos, SP, Brasil [email protected] Resumo Aborda a relevância do estudo sobre a casa urbana e rural compreendendo a habitação como patrimônio cultural. Para tal analisa exemplares de moradias urbanas e rurais de Ribeirão Preto em suas características técnicas, formais e compositivas, abordando o programa, implantação, acesso, fluxo e intenção plástica. Tais análises permitem uma oportunidade de reflexão com o objetivo de evidenciar a complexidade e importância da pesquisa sobre a habitação para além de questões pertinentes exclusivamente à materialidade construtiva. O texto final apresentado aqui é decorrente da apresentação oral realizada no II Seminário do grupo de pesquisa Patrimônio, Cidades e Territórios. Palavras-chave: Casa urbana e rural. Arquitetura residencial. Patrimônio cultural. Pesquisa documental. Ribeirão Preto - SP, Brasil. Abstract It addresses the relevance of the study on urban and rural housing, understanding housing as cultural heritage. To this end, it analyzes examples of urban and rural houses in Ribeirão Preto in their technical, formal and compositional characteristics, addressing the program, implementation, access, flow and plastic intention. Such analyzes allow an opportunity for reflection in order to highlight the complexity and importance of research on housing, in addition to issues pertinent exclusively to constructive materiality. The final text presented here is the result of an oral presentation given at the II Seminar of the research group Heritage, Cities and Territories. Keywords: Urban and rural house. Residential architecture. Cultural heritage. Documentary research. Ribeirão Preto - SP, Brazil. Resumen Aborda la relevancia del estudio sobre vivienda urbana y rural, entendiendo la vivienda como patrimonio cultural. Para ello, analiza ejemplos de viviendas urbanas y rurales en Ribeirão Preto en sus características técnicas, formales y compositivas, abordando el programa, implementación, acceso, flujo e intención plástica. Dichos análisis permiten una oportunidad de reflexión con el fin de resaltar la complejidad e importancia de la investigación sobre vivienda, además de cuestiones pertinentes exclusivamente a la materialidad constructiva. El texto final que aquí se presenta es el resultado de una presentación oral realizada en el II Seminario del grupo de investigación Patrimonio, Ciudades y Territorios. Palabras clave: Vivienda urbana y rural. Arquitectura residencial. Patrimonio cultural. Investigación documental. Ribeirão Preto - SP, Brasil. Introdução A casa como construção cumpre a função primordial de abrigo, no entanto, quando investigamos a arquitetura residencial é possível reconhecer traços identitários daquela sociedade através das técnicas construtivas, manifestações estéticas, tipos de implantação, volumetria, legislações aplicadas e outras características. A habitação nos permite identificar as maneiras de morar, através da estruturação do espaço, ou seja da morfologia e distribuição em planta, e através do programa, que indicam os hábitos e costumes de uma sociedade, como nos mostra Pereira (2016, p.15)ao estudar às relações da habitação com as transformações da sociedade portuguesa "para além da dimensão estilística, duas dimensões de análise [são] fundamentais e interdependentes: a composição (funcional) e a configuração ou morfologia, relativas à lógica de estruturação do espaço doméstico." Há quase três décadas o arquiteto Lemos (1989, p.7) já chamava a atenção para a valorização do estudo das casas brasileiras, afirmando que Antes de tudo o ato de morar é uma manifestação de caráter cultural e enquanto as técnicas construtivas e os materiais variam com o progresso, além de manter vínculos com a modernidade também está relacionado com os usos e costumes tradicionais da sociedade. E como o Brasil é um país multifacetado, as famílias têm expectativas as mais diversas em relação à questão da moradia. (...) Por variados motivos devemos conhecer nossas casas, inclusive as velhas. (LEMOS, 1989, p. 7) Desta forma, a habitação deve ser reconhecida como objeto de pesquisa também pela expressão arquitetônica e social dos seus exemplares. No entanto, para além deste propósito devemos nos atentar para a possibilidade de incluir nas discussões de patrimônio cultural a representatividade que o estudo destas casas nos permite. No que se refere à formação do patrimônio cultural de uma sociedade a definição vigente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), no Artigo 216 da Constituição, que atualiza o Decreto de 1937, enfatiza a importância deste patrimônio ser composto por bens de natureza material e imaterial, e de representar diversos grupos da nossa sociedade. Enquanto o Decreto de 1937 estabelece como patrimônio “o conjunto de bens móveis e imóveis existentes no País e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico”, o Artigo 216 da Constituição conceitua patrimônio cultural como sendo os bens “de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”. (Portal IPHAN, acesso 2017). Tendo em vista a importância do morar e sua representatividade como patrimônio cultural, objetivamos sinalizar as possibilidades dos estudos sobre a casa e a busca pela valorização patrimonial da moradia percorrendo dois materiais de investigação, uma dissertação de mestrado1 sobre a casa rural e dados obtidos na pesquisa de doutorado em desenvolvimento2 que investiga os projetos das casas urbanas, ambos em Ribeirão Preto SP, Brasil. Casa como patrimônio: a perspectivado patrimônio cultural Do universo dos processos sistematizados, durante a pesquisa de doutorado, 3.275 são edificações de uso residencial ou misto, representando mais de 70% das construções aprovadas, comprovando que a moradia é a tipologia em maior número e se faz determinante na formação da paisagem da cidade. A pesquisa de mestrado "Um reconhecimento arquitetônico das fazendas cafeeiras do município de Ribeirão Preto (1870–1930)." foi defendida em 2013 na Universidade Presbiteriana Mackenzie, sob a orientação da Prof. Dra. Ruth Verde Zein. A dissertação se dedicou ao levantamento das edificações residenciais rurais do período cafeeiro remanescentes e selecionou alguns casos significativos de sedes de fazenda para análise e estudo de suas características arquitetônicas, formais e compositivas, verificando os partidos de composição adotados, os materiais e técnicas construtivas empregadas, os arranjos e usos dos ambientes e demais aspectos significativos dessas construções. 2 O doutorado "Arquitetura residencial urbana através do acervo de Obras Particulares do Arquivo Público e Histórico de Ribeirão Preto - SP." está em desenvolvimento desde 2016 no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo - IAU /USP, sob a orientação da Prof. Dra. Maria Angela P. C. S. Bortolucci. A pesquisa investiga a arquitetura residencial dentro perímetro urbano e através da pesquisa documental no Arquivo Público e Histórico de Ribeirão Preto (APHRP), do acervo de Obras Particulares, estabelecendo como recorte temporal o período compreendido entre os anos 1910 e 1933 e totalizando 4.545 processos, que incluem: solicitação para construção, reforma ou ampliação de imóveis no perímetro urbano de propriedade particular. Os processos foram sistematizados através da formação de um banco de dados organizado por meio de critérios de análise, primeiramente quantitativos, que auxiliassem a pesquisa a responder aos questionamentos dos objetivos específicos. O primeiro critério de análise foi o uso dos processos aprovados, divididos nas categorias residencial; comercial; industrial; institucional; serviço; misto; depósito, barracão e garagem; e aqueles processos que não continham a identificação de uso nos cômodos, foram sistematizados como uso não identificado. Outras informações foram extraídas dos desenhos, como por exemplo, característica da implantação e tipologia programática das habitações, bem como o cruzamento desta arquitetura com eventos e acontecimentos históricos, econômicos e sociais na cidade e no panorama mundial. 1 Atualmente, em Ribeirão Preto, a única habitação reconhecida como bem cultural em âmbito estadual é a Casa da Caramuru (antigo Solar Vila Lobos), tombada pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (CONDEPHAAT), no ano de 19883. O órgão municipal, o Conselho de Preservação do Patrimônio Artístico e Cultural de Ribeirão Preto (CONPPAC), tem na lista de bens imóveis tombados as casas: Palacete Joaquim Firmino, Solar Francisco Murdocco, Palacete Jorge Lobato, Palacete Albino de Camargo Neto, Palacete Camilo de Mattos e o Antigo Solar Vila Lobos4. Todas são casas de camadas de alto poder aquisitivo e localizadas no centro da cidade. Entretanto, dentre o conjunto de habitações levantadas no APHRP, no desenvolvimento da pesquisa mencionada, apenas 40 exemplares são palacetes e 74 têm a tipologia programática de alto padrão, ou seja, estes 114 exemplares somam apenas 3% das casas aprovadas para construção no período. Esse número nos ajuda a evidenciar que as habitações consideradas patrimônio hoje não representam a produção residencial, ou mesmo a produção edilícia do período, uma vez que a maior parte das edificações da cidade são caracterizadas como casas das classes média e notadamente populares, e nos alerta para o fato do patrimônio ainda ser discutido de maneira a não incluir símbolos importantes e representativos de todas as camadas sociais. O estudo das técnicas construtivas, 3 4 Livro do Tombo Histórico: inscrição n° 285, p. 73, 08/06/1989. Respectivamente Tombo n° 0006, 0008, 0009, 0014, 0015 e 0018. manifestações estéticas, tipos de implantação, volumetria, programa e legislação com a finalidade de sistematização e reconhecimento das casas de Ribeirão Preto, sejam elas da área rural ou urbana, devem auxiliar os debates na esfera do patrimônio cultural, visando sua ampliação e garantindo a representatividade dos exemplares nas esferas oficiais. A arquitetura residencial rural do café em Ribeirão Preto A arquitetura residencial rural em Ribeirão Preto, notadamente nas fazendas de café, é composta por diversas edificações e instalações5, dentre elas estão as colônias, residências dos trabalhadores livres a partir da abolição da escravidão, e casas sedes, residências dos proprietários. As colônias, foram ocupadas principalmente por trabalhadores estrangeiros, em especial italianos6. Tendo em vista o processo de produção do café, o resultado foi a construção de colônias extensas, Na referida dissertação foram identificados edifícios ligados à produção como terreiro, tulha e casa de máquinas, aqueles dedicados à religião, como as capelas, e os edifícios habitacionais como a casa sede e as colônias. Ainda que a finalidade desse complexo fosse a produção de café, era evidente o destaque dado à casa do proprietário, desde a implantação até os materiais e detalhes de acabamento. Das 65 fazendas remanescentes mapeadas durante a pesquisa de mestrado, foram exceção aquelas que apresentavam conjuntos íntegros, sendo a casa sede o edifício mais frequentemente preservado, provavelmente em função da solidez de sua construção, além da manutenção e uso por parte de seus proprietários. Esse fato justificou a escolha dos exemplares de sedes para análise durante a pesquisa. Sobre as sedes e os outros edifícios construídos no complexo cafeeiro consultar BENINCASA, Vladimir. Velhas fazendas. Arquitetura e cotidiano nos campos de Araraquara. 1830-1930. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado; São Carlos: EDUFSCar, 2003. 6 Pisani (1937, p.452-461) afirma a forte presença de italianos no município de Ribeirão Preto, contabilizando 15 mil italianos, sendo 30 mil contando com os filhos nascidos no Brasil, de uma população de 81.565 habitantes no ano de 1937. Afirma que erma dedicados a maior parte à agricultura, mas também a: artes e ofícios, comércio e indústria. 5 não raro construídas em mais de um ponto da fazenda, como no caso da Fazenda Monte Alegre, atual Campus da Universidade de São Paulo na cidade. Desde as últimas décadas do século XX, a substituição da cultura cafeeira pela exploração da cana de açúcar e a mecanização da colheita vem provocando a redução no número de moradores na área rural e consequentemente ocasionando a demolição dessas colônias. Durante o desenvolvimento da referida dissertação, foi possível constatar a predominância das colônias geminadas duas a duas, ou enfileiradas em grupos de até cinco casas. Nas fachadas observamos a composição das aberturas, portas e janelas, fechadas com folhas cegas de tábua corrida, sem o uso do vidro e sem nenhuma ornamentação. A planta também nos mostrou a simplicidade do cotidiano, sendo composta por três ou quatro cômodos podendo ter a cozinha externa, e banheiros adicionados posteriormente ao período de construção. Essas casas abrigavam apenas uma família por unidade e eram construídas com uma arquitetura singela, tendo em média cinco cômodos internos: a sala, dois quartos, a cozinha, e um banheiro, com um local para serviços na área externa. Nas habitações geminadas era comum a utilização de varandas na parte frontal, ou posterior. (SILVA, GLERIA, ROSA, FREITAS, MOLINA, 2014, p. 110). Sobre a implantação, Costa (2008, p. 52-53) identifica três tipos nas colônias das fazendas cafeeiras de Ribeirão Preto, a casa isolada, a geminada múltipla e a casa geminada simples. Aponta que em alguns casos a casa geminada múltipla foi a maneira de se aproveitar antigas senzalas, transformando-as em moradias para os novos trabalhadores livres, e ainda, naquelas fazendas onde o trabalho teve início com os imigrantes, a casa geminada múltipla era uma maneira de racionalizar material e espaço para os proprietários. Benincasa (2008, p. 297) afirma que a introdução do trabalho livre no Oeste Paulista “repercute na paisagem rural, com o surgimento de infindáveis fileiras de casinhas geminadas, espalhadas por todos os setores das fazendas, geralmente em fundos de vale, ou em locais impróprios para as plantações de café.” Costa (2008, p. 54) afirma ainda a influência da imigração italiana nessas construções, uma vez que, “algumas das fazendas criadas nesse período utilizaram mão-de-obra imigrante para a construção de suas edificações”, como na fazenda São Manuel, onde as casas foram construídas com tijolos de barro produzidas na própria fazenda. A predominância da alvenaria de tijolos de barro como técnica construtiva se estende também as casas sedes. Durante a pesquisa de mestrado constatamos que arquitetura da casa sede do período cafeeiro em Ribeirão Preto apresenta algumas constantes, ainda que os exemplares levantados se mostrassem muito heterogêneos e diversificados. Este objetivo proposto, decorre da impossibilidade de se estabelecer um padrão de edificação, ou de eleger um exemplar típico que fosse capaz de ilustrar de maneira genérica a morada dos fazendeiros deste período da produção cafeeira na cidade de Ribeirão Preto. Durante os levantamentos foi possível observar a grande diversidade de características em todos os elementos, e por isso, a proposta de reconhecimento de constantes que se repetem em três ou mais casos, e não de padrões, que seriam afirmativamente recorrentes em todos os casos. (GLERIA, 2013, p. 204). Dentre as constantes observadas nestes exemplares, podemos destacar a questão da hierarquia dos acessos e dos fluxos destas habitações. É frequente observar três formas de acesso a estas edificações, sendo o acesso social através da fachada frontal, o íntimo em uma das laterais, e o de serviço pelos fundos da edificação. Quando da existência de áreas destinadas ao recebimento de hóspedes e outros visitantes que vinham tratar de negócios, o acesso também era feito pela parte frontal da edificação, às vezes com porta diretamente para o exterior, sem passagem por dentro da edificação, preservando a intimidade da família dos olhares de fora. Esta característica de separação dos acessos e sua relação com o programa da casa nos indica a presença de uma hierarquia na moradia, onde a permissão de circulação pelos ambientes acontecia de acordo com a camada social e de seu papel no interior da habitação. Ou seja, os acessos e fluxos eram reflexo do modo de vida de uma classe de fazendeiros ainda carregados de antigos costumes, mas empenhados em adquirir hábitos mais aristocráticos advindos especialmente da sociedade europeia do período. Figura 1 – Planta da Fazenda Santana. Fonte: GLERIA, 2013, p. 221. A intenção plástica foi outra questão importante identificada nesses exemplares que apresentam elementos da arquitetura paulista e mineira, da arquitetura clássica e acadêmica, do ecletismo e do pitoresco. Praticamente observamos a excessiva preocupação com a sofisticação de composição e ornamentação nas fachadas de maior visibilidade, evidenciando a casa como representação simbólica de poder e riqueza, como esclarece Pereira (2016): Sinteticamente, no que concerne ao edifício, denota-se uma forte diferenciação entre a fachada e as traseiras. A dimensão simbólica dessa diferenciação é conferida pela nítida distinção dos materiais utilizados numa e noutra, bem como pelo nível de elaboração estética associado a cada uma. (...) A diferenciação funcional da fachada e das traseiras era inequívoca: a fachada estava indelevelmente associada ao domínio simbólico, referente à intenção implícita de demarcação estatuária, e as traseiras, essencialmente destinadas a serem utilizadas pela dona de casa, crianças, criados e fornecedores, representava o utilitário profano. (PEREIRA, 2016, p. 41-43). Dentre os diversos ornamentos levantados ao longo desta pesquisa, destacamos os capitéis das colunas na fachada frontal da fazenda São Manoel, e os lambrequins da fazenda Boa Vista e Monte Alegre que, embora estejam presentes ao redor de toda a edificação, apresentam maior apuro na fachada frontal. Figura 2 e 3 – Detalhe do capitel na fachada frontal da fazenda São Manuel e detalhe de ornamentação em madeira na fazenda Boa Vista. Fonte: GLERIA, 2013, p. 247 e 249. Desta forma, essa casa rural nos permitiu reconhecer traços da presença imigrante no período cafeeiro de Ribeirão Preto, e ainda, como eram alguns hábitos destas famílias -como, por exemplo, foi visto através da análise de acessos e fluxos - assinalando mais uma vez a importância do estudo sobre a casa, rural inclusive, e a necessidade de considerar essas edificações patrimônio cultural da cidade. Habitação urbana entre 1911-1933: da casa operária ao palacete Durante o levantamento mencionado no APHRP para elaboração da referida tese, os projetos foram classificados dentre tipologias programáticas, definidas através do número de cômodos e a presença ou não de certos compartimentos7. As casas populares correspondem a mais de 30%, sendo a maioria dos processos levantados. Dentre as casas populares uma tipologia frequente, a partir da década de 20, foram as vilas operárias, sendo que só no ano de 1924 localizamos cinco processos de solicitação de construção em série, os dois mais numerosos com 15 e 17 casas. É preciso considerarmos que neste momento havia uma crescente industrialização, bem como a necessidade de moradia para os trabalhadores. Bonduki (2011, p. 43-56) afirma que até a década de 30 era predominante a maneira de morar através do inquilinato, incluindo as casas em vilas operárias produzidas por investidores privados, uma vez que não existiam sistemas de financiamento para a casa própria. Segundo o autor, em 1925 na cidade de São Paulo apenas cerca de 25% da população vivia em casas próprias, por ser Critérios para a análise e sistematização das tipologias programáticas. Casas mínimas: até três cômodos, geralmente sem sanitário dentro da edificação e frequentemente com o programa sala, dormitório e cozinha, podendo ter variações. Casas populares: a partir de quatro cômodos, frequentemente com o programa sala, cozinha, banheiro e dormitórios. Casas de padrão médio: qualquer número de cômodos com duas salas, sendo elas sala de visitas e sala de jantar. Casas de padrão alto: além das duas salas, presença de escritório/gabinete e copa, ainda outra característica desse programa é a despensa, quarto de empregada, e algumas contam com edículas de serviço nos fundos. Palacete: diversos cômodos, onde haja um programa mais extenso que não permita a sobreposição de atividades, com a presença de corredores de circulação e halls, a implantação é majoritariamente solta no lote e as edificações frequentemente são sobrados com volumetria irregular, “morar à francesa”. 7 este investimento de moradia de aluguel na Primeira República muito atraente: incentivos fiscais, inexistência de controle dos alugueis, excedente econômicos nas mãos de investidores e restrita capacidade de aplicação do setor industrial. Com isso, a produção rentista propiciou o surgimento de várias modalidades de moradia para aluguel. Uma delas foi a vila operária, sob a forma de pequenas moradias unifamiliares construídas em série. Desde a emergência do problema da habitação popular em São Paulo, tal modalidade de alojamento foi sempre recomendada, pelo poder público e pelos higienistas, como a solução melhor e mais salubre para a habitação operária. Diversas leis previam incentivos fiscais para estimular sua construção e permitir um aluguel mais baixo. No entanto, só uma parcela dos operários teve acesso a essas moradias: em geral operários com alguma qualificação, funcionários públicos, comerciários e outros segmentos da baixa classe média. (BONDUKI, 2011, p. 47) O projeto da vila operária de propriedade de Adolpho Serra, assinado pelo engenheiro Nelson de Carvalho Junqueira, tem a fachada singela e sem ornamentação, ocupa a quadra entre as ruas Rio Branco, São José e avenida do Retiro, com 16 casas geminadas duas a duas, e uma solta no lote na esquina. As casas geminadas, além do recuo lateral estavam afastadas da testada do lote e contavam com o seguinte programa: sala de jantar, cozinha, área, w.c., e dois dormitórios8, como podemos observar na Figura 3. O nome dos cômodos dos projetos analisados através de material documental acompanha a denominação encontrada no desenho original. 8 Figura 3 – Planta padrão das casas geminadas duas a duas do projeto aprovado para a construção de vila operária com 17 casas. Fonte: Processo nº 279 de 1924 do Acervo APHRP. O projeto foi aprovado para construção pois atendia à legislação do período. Na cidade de Ribeirão Preto, o primeiro Código de Posturas da Câmara, aprovado em 1889, regulamenta a higiene e salubridade das edificações nos quintais e pátios mediante a fiscalização, no entanto, é no Código de Posturas da Câmara de 1902 que aparecem as primeiras restrições para o interior das construções no Art. 99 do Capítulo IV- Das edificações em particular. Este mesmo Código de Posturas legitima a construção de vilas operárias e casas construídas em série, proibindo apenas a construção de estalagens ou cortiços, e a construção de casas em fileiras estabelecendo a implantação de no máximo casas duas a duas, com um recuo lateral de dois metros. A vila operária era considerada uma habitação salubre, e para Rolnik (2013, p. 37) a legislação intervinha no dimensionamento mínimo e na preocupação com iluminação e ventilação das vilas uma vez que a ideia de agir nas casas dos trabalhadores "partiu da correlação entre condições sanitárias e o alastramento de epidemias pela cidade naquele tempo." Com a expansão das cidades ao longo do século XIX e XX e a proliferação de grandes epidemias, surge uma nova lógica de salubridade imposta por parte do Estado para a cidade, e também para o interior da habitação, os modos de morar urbano são pensados sob essa ótica. Correia (2004, p. 1) afirma que no Brasil, durante esse período, a moradia urbana “passou por ampla reforma, que envolveu mudanças de ordem espacial e alterações de uso e de significados”. Segundo a autora essas mudanças se baseavam nos fundamentos de conforto, higiene, economia objetivando "tornar a casa um ambiente solidário com a saúde, a privacidade, o fortalecimento dos laços familiares, o aumento da produtividade no trabalho e com um reordenamento das atividades e do uso do tempo no âmbito doméstico". Se nas casas destinadas às camadas de baixa renda a preocupação era o controle da higiene e da moral do trabalhador, nas casas de padrão alto e palacetes, por sua vez, encontramos uma habitação passando por transformações no que se refere à compartimentação em planta, aos novos programas, e à articulação entre os usos, de modo a proporcionar para a burguesia maior conforto, luxo e sofisticação. Homem (1996, p. 25-27) nos auxilia nessas constatações ao afirmar que as novas configurações sociais que emergem no século XIX “alteraram o espaço da habitação”, gerando uma compartimentação das plantas, consecutivamente a diminuição de dimensões dos cômodos, onde cada aposento teria uma função específica atendendo à separação de gêneros e papeis fixados pela sociedade. E nesse sentido, também nos ajuda Benjamin (1985, p. 38), quando afirma que “o interior não é apenas o universo do homem privado mas também o seu estojo”, onde cada cômodo tem uma função para cada figura familiar, e Guadet (1909, p. 37) quando define a mudança na organização dos espaços do "ponto de vista da distribuição" priorizando a independência das funções. Como foi possível observar nos projetos residenciais aprovados, levantados no APHRP, a adesão a esse paradigma ocorre de forma gradual, começando com o surgimento do hall de entrada externo, e depois o vestíbulo9, aparecem ainda os corredores de circulação que pouco a pouco passam a ser representativos, não apenas nas casas de padrão alto, mas também nas casas de classe média, até alcançar maior compartimentação dos espaços e tipos de uso nos palacetes. Para Corona e Lemos (1972, p. 470), a definição de vestíbulo é: "Antigamente mesmo que ÁTRIO, grande espaço na frente da casa no qual se deposita o fogo para o sacrifício em honra da deusa Vesta. Hoje em dia o termo designa a entrada principal de qualquer edifício." 9 Dentre os exemplares de palacete do período está a residência projetada para o fazendeiro e político Américo Batista10, na esquina entre as ruas Lafaiete e Visconde de Inhaúma, no ano de 1922. O projeto conta com um extenso programa dividido em dois pavimentos no corpo principal da edificação, e na edícula dos fundos. No pavimento térreo estão os três alpendres, hall, sala de visitas, escritório, sala de jantar, salão de música, saleta, copa, cozinha, engomar e despensa; e no pavimento superior, quatro quartos, dois toilettes, um w.c. e dois w.c. banho, uma rouparia, uma sala de café, hall, e dois terraços. A edícula conta com: tanque de roupas, garagem e moradia de empregados (com despensa, cozinha, w.c., tanque coberto e dois quartos, localizados no pavimento superior). Eleb e Debarre (1995, p. 65) ao estudar a evolução da casa e a evolução social e mental da sociedade francesa urbana na virada do século XIX, afirmam que as aberturas e articulações dos espaços de receber - como as que podemos observar no projeto para o palacete de Américo Batista - surgem do gosto pela vida mundana por parte da burguesia, sendo a valorização desses espaços de receber nascidas do desejo de ostentação e responsáveis por descrever a classe social da casa e seus ocupantes. O mesmo, afirmam sobre o hall (p. 76), descrevendo-o como um novo espaço de recepção luxuosa. Segundo Rosa e Registro (2007, p. 43) Américo Batista foi: "Cafeicultor, suplente de vereador, assumiu o poder de 1914 a 1917 e, de 1929 a 1932. Além disso, foi eleito vereador para o triênio 1936 e 1939, ocasião em que foi presidente da Câmara pelo PRP." 10 A casa de propriedade de Américo Batista, deixa claro o "estojo" de Walter Benjamin com uma extensa compartimentação da planta nos diversos usos, não deixando margem para a sobreposição de funções dentro da casa. Visitas, jantar, música, saleta e escritório, cada ambiente uma função, uma figura e um papel dentro da habitação. O próprio nome conferido ao projeto na prancha induz a pensar no "morar à francesa": "Projeto para uma Villa, propriedade de Ilmo. Sr. Américo Batista". Figura 5 e 6 – Plantas da casa Américo Batista, entre as ruas Lafaiete e Visconde de Inhaúma. Fonte: Processo nº 163 de 1922 do Acervo APHRP. A sofisticação dessas casas, se faz notar, não apenas pela compartimentação e pela extensão dos programas, mas também pelo requinte na ornamentação das fachadas. Lemos (1989, p. 50) chama a atenção para a presença do ecletismo nas casas paulistanas: “A par de novos partidos, nova ornamentação, novos estilos. Era o ecletismo. Era principalmente, o neoclássico totalmente despoliciado que chegou ao desregramento. Era o apelo à imaginação.” É importante apontar que constatamos nos palacetes levantados, além das manifestações mencionadas por Lemos, também a forte presença de referências à arquitetura neocolonial, art-nouveau, art-déco, arts and crafts e de uma nova "maneira moderna de se viver no início do século XX", representada pelo bungalow. A fachada da casa de Américo Batista, nos mostra como a habitação burguesa sofreu modificações em relação aos anos anteriores do final do século XIX, quando predominavam estilemas classicizantes referidos por Lemos (1989, p. 50). Podemos observar que esse projeto não conta com a platibanda ornamentada tão frequente nos projetos ecléticos, ao invés, permite que seja visto o telhado movimentado, com beirais, resultante da volumetria assimétrica da edificação. Chama a atenção também que as paredes externas estejam desenhadas com textura, provável representação de tijolos à vista que, juntamente com as floreiras, podem ser consideradas características das manifestações em voga, como o bangalô, o arts and crafts e o neocolonial. Notamos ainda que a fachada apresenta uma variedade de esquadrias, com verga reta ou em arco, de materiais de acabamento e de guarda corpos ornamentados, indicando uma liberdade compositiva. Figura 7 – Fachada da rua Lafaiete da casa Américo Batista. Fonte: Processo nº 163 de 1922 do Acervo APHRP. Sendo assim a análise e sistematização desta arquitetura residencial, através do estudo de projetos do acervo do APHRP, nos permitiu compreender como a legislação, a compartimentação e a intenção estética estiveram presentes na casa urbana do período e sua relação com a identidade da população do período, nas maneiras de morar. Considerações Afirmamos a importância do estudo da habitação como objeto de pesquisa, uma vez que este nos permite ir além das questões espaciais da arquitetura e também possibilita entender a organização social, as mudanças e as questões simbólicas. Como vimos, os acessos das edificações mostram a hierarquia social na distribuição do programa em planta, enquanto a ornamentação nas casas da área rural coloca a simbologia da fachada frontal como representação de poder e riqueza. Na cidade, a salubridade e higiene nas vilas operárias apontam para as mudanças pelas quais passaram as áreas centrais por força das posturas municipais com relação à habitação da classe de baixa renda, enquanto o estudo das casas de padrão alto, evidencia a mudança no conceito da família e da privacidade na área urbana. A tipologia residencial, extremamente relevante na paisagem da cidade construída, representava a maior parte de edificações na área central da cidade, e está relacionada diretamente à maneira como a população vive, por isso deve ser estudada também com a finalidade de alcançar o reconhecimento dessas construções como patrimônio cultural em sentido amplo e democrático. Referências BENJAMIN, Walter. Paris, capital do século XIX. In: KOTHE, Flávio R. (org.). Walter Benjamin. São Paulo: Ática, 1985, p. 30-43. BENINCASA, Vladimir. Velhas fazendas. Arquitetura e cotidiano nos campos de Araraquara. 1830-1930. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado; São Carlos: EDUFScar, 2003. 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Dentre os projetos e ações dos proprietários de escravos para essa população estava a tentativa de apagar suas tradições culturais garantindo assim, a total subserviência desses sujeitos ao sistema vigente e suas regras. No entanto, pesquisas recentes vêm apontando desde 1980 que, apesar das inúmeras tentativas, escravos e escravas resistiram estrategicamente ao apagamento de suas histórias e legados culturais e, segundo Hebe Mattos, a oralidade foi o grande instrumento de resistência dessas populações nas Américas. Para tal, dialoga com autores como Maurice Halbwachs, Jacques Le Goff, José Carlos Sebe Bom Meihy, entre outros. Por fim, apresenta a trajetória de Sebastiao Nunes, demonstrando a importância do emprego das técnicas da história oral para o registro dos saberes e oralidades preservados nas famílias negras, o que contribui significativamente para a preservação da cultura afro-brasileira em nossas sociedades. Palavras-chave: Memória. História Oral. Trajetórias Negras. Abstract This article deals with the importance of Afro-Brazilian cultural heritage, expressed in the stories and memories of black people and highlights the need for registration, with orality as the fundamental source. The article also emphasizes the importance of oral history and the use of their instruments for recording black histories. According to various sources, Brazil was the country in the Americans that received the most Africans during the slave system (1530-1888) to carry out many activities, both in rural and urban areas. Among the plans and actions of slave owners there was an intention to suppressing the cultural traditions of this population, thus guaranteeing total subservience to the current system. However, since 1980, despite countless attempts, recent research shows that slaves strategically resisted erasing their histories and cultural legacy. According to Hebe Mattos, orality was the great instrument of resistance of these people in the Americas. The analyses are also based on several authors, such as: Maurice Halbwachs, Jacques Le Goff, José Carlos Sebe Bom Meihy. Finally, the text includes the trajectory of Sebastião Nunes, showing the validity of the use of the techniques of oral history for the recording of knowledge and orality of black families, contributing significantly to the Afro-Brazilian cultural in our society. Keywords: Memory. Oral history. Black trajectories. Resumen Este artículo trata de la importancia del patrimonio cultural afrobrasileño, expresado en las historias y memorias de los negros y destaca la necesidad de registro, con la oralidad como fuente fundamental. El artículo también enfatiza la importancia de la historia oral y el uso de sus instrumentos para registrar historias negras. Según diversas fuentes, Brasil fue el país de las Américas que más africanos recibió durante el sistema esclavista (1530-1888) para realizar muchas actividades, tanto en áreas rurales como urbanas. Entre los planes y acciones de los dueños de esclavos existía la intención de suprimir las tradiciones culturales de esta población, garantizando así la total subordinación al sistema actual. Sin embargo, desde 1980, a pesar de innumerables intentos, investigaciones recientes muestran que los esclavos se resistieron estratégicamente a borrar sus historias y legado cultural. Según Hebe Mattos, la oralidad fue el gran instrumento de resistencia de estas personas en las Américas. Los análisis también se basan en varios autores, como: Maurice Halbwachs, Jacques Le Goff, José Carlos Sebe Bom Meihy. Finalmente, el texto incluye la trayectoria de Sebastião Nunes, mostrando la validez del uso de las técnicas de la historia oral para el registro del conocimiento y la oralidad de las familias negras, contribuyendo significativamente a la cultura afrobrasileña en nuestra sociedad. Palabras clave: Memoria. Historia oral. Trayectorias negras. Introdução O passado deixou na sociedade de hoje muitos vestígios, às vezes visíveis, e que também percebemos na expressão das imagens, no aspecto dos lugares e até nos modos de pensar e de sentir, inconscientemente conservados e reproduzidos por tais pessoas e tais ambientes (...) os costumes modernos repousam sobre camadas antigas que afloram em mais de um lugar1. Entre encontros e memórias, em meio a uma prosa agradável, acontecem as entrevistas, que venho realizando, com homens e mulheres negros no interior paulista, desde o ano de 2010. Quantas histórias, resistências, sentimentos, alegrias e tristezas já me foram reveladas nestas conversas, sempre regadas a café. Com alegria, ansiedade e um tanto de receio, os nossos depoentes nos esperam, e para isso colocam uma roupa bonita, arrumam o cabelo, deixam a casa impecável. Ah! A casa, quantas histórias ali registradas, nas paredes, nas trincas, nas pinturas, nos quadros, nos altares dos santos, nas fotografias e no mobiliário. A casa é o espaço de proteção familiar, mas é também o lugar de receber, de aconchegar, de trocar, com aqueles que são convidados a adentrar. Em seu livro A memória Coletiva, Halbwachs, relaciona a casa, os objetos e o mobiliário à memória. Halbwachs, Maurice. A memória Coletiva. Beatriz Silva (Tradução). São Paulo: Centauro, 2006, p. 87. 1 Nosso ambiente material traz ao mesmo tempo a nossa marca e a dos outros. Nossa casa, nossos móveis e a maneira como são arrumados, todo o arranjo das peças em que vivemos, nos lembram nossa família e os amigos que vemos com frequência nesse contexto. (...) móveis, enfeites, quadros, utensílios e bibelôs circulam dentro do grupo e nele são apreciados, comparados, a cada instante descortinam horizontes das novas orientações da moda e do gosto, e também nos recordam os costumes a as antigas distinções sociais. (Halbwachs, 2006, p. 158) O lugar ocupado por um grupo não é como um quadro negro, no qual se escreve e depois se apaga números e figuras. Não. Mas o local recebeu a marca do grupo e vice versa. Todas a ações do grupo podem ser traduzidas em termos espaciais, o lugar por ele ocupado é apenas a reunião de todos os termos. Cada aspecto, cada detalhe desse lugar tem um sentindo que só é inteligível para os membros do grupo. (Halbwachs, 2006, p. 160) Geralmente, o início da conversa nunca é natural, apresentam-se trêmulos e um tanto preocupados com as próprias formas de expressão. Mas o gelo logo é quebrado, principalmente quando percebem, que ali, naquele momento, eles são os protagonistas, que não existe certo e errado, verdadeiro ou falso, mas apenas a suas históriase experiências sociais para serem reveladas. Nesse momento, a experiência da escuta se faz essencial, demarcando o início de uma relação social, que por meio dos recursos da história oral capta as trajetórias, as memórias e as histórias dos sujeitos e suas significações materiais e simbólicas. Nesse processo, os gestos, os sentimentos, os olhares, a linguagem corporal, são elementos reveladores, carregados de significação, e nessa relação quase tudo é decodificável. Até mesmo o silêncio é capaz de revelar uma lágrima sufocada, uma emoção invisibilizada e um grito de revolta silenciado. Quantas histórias, quantas dores, quanta luta e resistência há nas falas dos homens e mulheres negros, que mesmo diante de tantas adversidades conseguiram preservar o seu legado cultural. Rememorar com eles é vivenciar o passado a partir de suas experiencias. Segundo Piere Nora: a memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, susceptível de longas latências e de repentinas revitalizações. (Nora, 1984, p. 9) a memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente. (...) Porque é afetiva e mágica, a memória não se acomoda a detalhes que a confortam; ela se alimenta de lembranças vagas, telescópicas, globais ou flutuantes, particulares ou simbólicas, sensível a todas a transferências, cenas, censura ou projeções. (...) a memória instala a lembrança no sagrado. (...) a memória emerge de um grupo que ela une. (...) ela é múltipla e desacelerada, coletiva, plural e individualizada. (...) a memória se enraiza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto. (Nora, 1984, p. 9) Nesse processo de rememoração a história oral se torna ferramenta chave para garantir o registro e a sistematização das revelações empreendidas pelos depoentes. Suas falas, carregadas de significações, expressam histórias comumente não retratadas nas narrativas que se construíram sobre o Brasil, cujas entonações, a partir de uma perspectiva eurocêntrica, destacam as culturas e os saberes dos colonizadores europeus. Nessa conjuntura, tanto as culturas dos povos nativos como as africanas, são relegadas a segundo plano e quando retratadas são comumente marginalizadas e consideradas selvagens. Essa visão sobre os outros povos, que não os europeus, contribuíram para a implementação, sustentação e legitimação dos projetos de colonização empreendidos pelos Europeus, a partir do século XV, cujos alvos eram os nativos dos continentes asiático, africano e americano. Com o objetivo de controlar e dominar outros territórios, apropriar-se das riquezas dos outros povos, garantir mão-de-obra e ainda auferir lucros com tais ações, os colonizadores não tiveram nenhum tipo de escrúpulo em dominar e comercializar seres humanos. Segundo Mbembe (2017), os colonizadores, pautados na premissa de que os africanos eram selvagens, bárbaros e destituídos de saberes e práticas culturais, e sem considerar sua diversidade étnica, territorial e cultural, os enquadraram na categoriade negros e destilaram sobre eles práticas cruéis de violência, dentre as quais, destacamos os projetos de invisibilidade do outro. Se fizermos um exercício de rememoração, veremos que, a história dita oficial, apresenta os africanos e seus descendentes sempre no papel de escravos. Quantos de nós crescemos aprendendo que, tanto os homens negros, quanto as mulheres negras, foram submissos ao sistema escravista? Que vieram de países sem cultura e sem saberes? Que não trouxeram consigo nenhum tipo de conhecimento? E que em solos brasileiros foram domesticados e submetidos à cultura dos colonizadores? Quantos de nós desconhecemos a multiplicidade de conhecimentos trazidos do continente africano e de atividades por eles e elas desenvolvidos? Henrique Cunha Jr (2019), grande pesquisador da cultura e das tecnologias africanas, evidencia em suas publicações o quanto o patrimônio cultural brasileiro é devedor dos saberes africanos. Suas tecnologias e conhecimentos foram empregados na arquitetura, na culinária, na música, nas religiões, nos trabalhos com o ferro, na marcenaria, na agricultura, nas artes, entre outros. Foi a partir da década de 1980 que houve uma reviravolta na forma de ver as contribuições de africanos e africanas para a construção e consolidação das histórias nas Américas. Nesse momento, as ciências sociais, principalmente a história e a arqueologia, direcionaram seus olhares para os registros deixados por esses sujeitos. Os arquivos passaram a ser fontes de investigação dos pesquisadores com registros da voz negra nos mais variados tipos documentais. Os arqueólogos encontraram vestígios materiais das contribuições africanas que trouxeram à tona a efervescência da cultura negra em nossos territórios. De acordo com Halbwaachs (2006), não é muito fácil modificar as relações que se estabeleceram entre as pedras e os homens. (p. 163). Não há memória coletiva que não aconteça em um contexto espacial. Ora, o espaço é uma realidade que dura: nossas impressões se sucedem umas às outras, nada permanece em nosso espírito e não compreenderíamos que seja possível retomar o passado se ele não estivesse conservado no ambiente material que nos circunda. (Halbwachs, 2006, p. 170) Desse modo, somadas às práticas científicas, recorreu-se obstinadamente ao registro das memórias afro-brasileiras por meio da história oral, que permitiu a emergência de histórias até então silenciadas. A História Oral como ferramentas de preservação Por um longo período, a história oral foi rejeitada pelas ciências acadêmicas, que a consideravam uma prática desprovida de rigor científico, por ter como base, principalmente, a memória e um narrador. Apesar das críticas, ela tem se consolidado como método de pesquisa científico nas mais variadas áreas do conhecimento. No Brasil, a metodologia foi introduzida na década de 1970, quando foi criado o Programa de História Oral do CPDOC (Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil). A partir dos anos 1990, o movimento em torno da história oral se fortaleceu e em 1994, foi criada a Associação Brasileira de História Oral, que passou a integrar membros de todas as regiões do país em prol da divulgação do método via encontros regionais e nacionais, e, também, por meio da edição de revista e boletim. Em 1996, foi criada a Associação Internacional de História Oral, que realiza congressos bianuais e edita uma revista e um boletim. Na contemporaneidade, em diversos países, é intensa a publicação de livros, revistas especializadas e artigos sobre história oral. Há inúmeros programas de pesquisas que utilizam os relatos pessoais sobre o passado para o estudo dos mais variados temas. Segundo Jorge Eduardo Aceves Lozano, a história oral, é muito mais que uma decisão técnica ou de procedimento; não é apenas a depuração técnica da entrevista gravada, nem pretende formar exclusivamente arquivos orais, não é apenas um roteiro para o processo de transcrição da oralidade, nem abandona a análise à iniciativa de historiadores futuros. Pelo contrário, é espaço de contato e influência interdisciplinares, sociais, em escalas e níveis locais e regionais, com ênfase nos fenômenos e eventos que permitam, através da oralidade, oferecer intepretações qualitativas de processos histórico-sociais. Para tal, conta com métodos e técnicas precisas, onde a constituição de arquivos orais assume um papel importante. Segundo José Carlos Sebe Bom Meihy (1994), a História Oral é o ato de documentar, analisar e construir um texto a partir do depoimento. Para que ocorra tem como premissa a existência do depoente, do pesquisador e do gravador. Mas, extrapola a conversa mediada por um gravador, tendo em vista ser um método complexo, que reúne desde a organização até a devolução do texto à comunidade que participou do processo. Sua importância para a elaboração do texto como documento, a difere de outros trabalhos ligados a entrevistas. Para Lozano (2006): A História Oral é um ramo da História Pública, gênero que se compromete com a comunidade que gera e consome a própria história. Ela centra sua análise na visão e versão que dimanam do interior e do mais profundo da experiência dos atores sociais. Considera o âmbito subjetivo da experiência humana. (p. 17) Fazer História Oral significa, portanto, produzir conhecimentos históricos, científicos e não simplesmente fazer um relato ordenado da vida e da experiência dos “outros”. Assim, o historiador oral, é algo mais que um gravador que registra os indivíduos sem “voz”, pois procura fazer com que o depoimento não desloque nem substitua a pesquisa e a consequente análise histórica. Ele deve exercer seu papel como pesquisador por completo e não deixar de lado seu papel analítico. (p.17) Lozano (2006) destaca que a história oral se constitui pela confluência multidisciplinar, tal como uma encruzilhada de caminhos, sendo, um ponto de contato e intercâmbio, entre a história e as demais ciências sociais e do comportamento, especialmente com a antropologia, a sociologia e a psicologia. É nessa interdisciplinaridade que se pauta a revalorização o reconhecimento da história oral. Dentre as características que tornam a história oral um método de pesquisa democrático, destacamos a possibilidade de trazer à tona histórias comumente silenciadas e invisibilizadas. Quando nos reportamos ao Patrimônio Cultural Afro-brasileiro, a história oral e seus recursos, se tornam fundamentais, tendo em vista que a oralidade é a ferramenta principal de preservação das culturas negras. Foi, por meio da oralidade, que homens e mulheres negros transmitiram seus saberes, suas crenças, suas recordações e suas histórias, garantindo que, tais conhecimentos, pudessem chegar às gerações atuais. Empreender entrevistas com famílias negras do interior paulista, como já apontado anteriormente, nos permitiu conhecer esse legado e apresentá-los à sociedade. Entre Memórias e Histórias: as andanças de Sebastião Nunes Sebastião Nunes, filho de escravo fugido, herdou do pai o gosto pela liberdade e destacou durante a entrevista que sua vida foi marcada pelas andanças mundo afora. Natural de São Carlos, ele fez questão de enfatizar o lugar em que nasceu, na Vila Pureza, no dia seis de março de 1927. Sua mãe Autília de Araújo Nunes, linda morena de bons dentes, nasceu também em São Carlos na Chácara Mattos. O pai nasceu na Bahia, onde, segundo Sebastião, foi escravo e de lá fugiu para Minas Gerais, determinado a mudar a condição a que estava submetido. De Minas Gerais, ele veio parar em São Carlos, porém não sabemos ao certo, se aqui ele trabalhava como negro livre, ou se era escravo do senhor José Mattos, onde trabalhou, como lavrador, por muitos anos e conheceu a jovem Autília, com quem, depois de algum tempo, se casou. Figura 1 − Sebastião Nunes. Jardim Centenário, São Carlos. 2013. Depois de casados, Autília e José, receberam um pedaço de terra do patrão na própria Chácara Mattos, que estava em processo de loteamento, e ali construíram a casa da família. Ela deixou a lida no campo e passou a cuidar da casa e dos treze filhos que tiveram. Nesta época, a nascente Vila Pureza tinha meia dúzia de casas feitas de barrote e entre elas estava a casa da família Nunes que, segundo Sebastião, era muito simples, não divergente, das moradias dos bairros populares da cidade, onde apenas algumas das necessidades básicas da família eram atendidas: A casa, nossa, tinha dois quartão, tinha a sala, a cozinha e a dispensa. Tudo isso de barro. Primeiro fazia aquele rodo em volta, depois então fazia aquelas paredes de barro no meio. Pra separar o quarto do meu pai e da minha mãe era uma parte, tinha um pedaço que era uma sala. O chão era terra embaixo e pegava aquela cinza e ponhava terra, amassava bem e fazia o piso, ficava duro, ficava um chumbo, podia varrer, a mesma coisa do ladrilho. Não tinha banheiro, era uma fossa pra fora de casa, distância, assim, de uns dez, quinze metros, então, tinha uma casinha ali, era a fossa ali. Pra tomar banho tomava na dispensa, tomava na gambela [gamela]. Na cozinha tinha uns paus enfincados [jirau], assim, e o fogão era feito de barro também. Era um fogão a lenha. (Nunes, Sebastião, 2013) Sebastião Nunes, ao contar um pouco sobre o processo de formação do bairro, destacou que antes de receber o nome de Vila Pureza o local teve outro nome, talvez mais inspirado nas pessoas do lugar. Ele enfatizou também o bom convívio entre os indivíduos e o início da urbanização, nos apresentando a sua visão sobre o processo de constituição do bairro: Primeiro era Vila São João. São João porque era os caras que moravam lá, era João não sei do que, João não sei do que, tudo mundo se tratava de João, aí pois o nome na vila de São João, depois que ela passou pra Vila Pureza. Falaram: não, aqui é uma vila, então vai ser Vila Pureza, porque é uma vila boa, tem tantas coisas, então passou Vila Pureza. Ali era todo mundo um irmão. Foi José de Mattos que deu um pedaço de terra pra cada um morar. Depois ele vendeu. Aí quando começou a vir gente, ele começou a picar os lotes, aí abriu as ruas. (Nunes, Sebastião, 2013) Vale destacarmos que a venda de lotes por José Manoel Antonio de Matos, de acordo com Natália Costa (2015), possibilitou que ele tivesse controle sobre o destino dado aos terrenos e ruas do bairro. Vemos assim, que desde a sua fundação, que ocorreu em 1891, a Vila Pureza contava com uma presença negra que na percepção de Sebastião Nunes, ainda quando criança, era tudo negro. Entretanto, destacamos que o bairro, depois de dezesseis anos, em 1907, de acordo com o recenseamento, havia um equilíbrio entre as duas etnias. Desse modo, é muito provável que mesmo na época de Sebastião essa situação se mantivesse, embora, os entrevistados com frequência se refiram ao bairro como espaço majoritariamente negro, impelidos pelo círculo de suas relações, ou seja, Sebastião via o bairro com a presença majoritária de negros porque era com eles que sua família se relacionava. Tinha o Seu Delfino, era o que morava embaixo, depois pra cima tinha o Lídio, mas era como distância daqui, na esquina lá de cima, a casa um do outro, depois tinha um que, aquele lá era o coiso, como é que chamava aquele lá. Era Tudo negro. Branco tinha umas duas, três famílias. A maioria era tudo negro. Tinha o Seu Alcides também que tinha uma carrada de filho, preto também. Tinha o Massá era família preta, também que vivia lá, pra cima tinha o Seu Albano, preto, tinha o Seu Otávio, preto, tinha o Seu Genô que era branco. Tinha um lá que todo mundo tratava ele de padrinho, porque ele era o mais velho, ele foi o primeiro que mudou ali. Era negro também. Ele chamava Seu Massá. E tinha o Luis Venção também, esse era branco, também era antigo, ele trabalhou na prefeitura. [Sobre a relação] Era bom, eles tratavam tudo bem, se davam, um ia na casa do outro. Não tinha preconceito não. Não tinha briga. Não tinha discussão quase. Discussão, era difícil, quando tinha. (Nunes, Sebastião, 2013) Apesar de Sebastião destacar a boa relação entre os moradores da Vila Pureza, no final, ele não negou a existência de conflitos, que podiam ser poucos e raros, mas existiam. A rotina da família era marcada pela vivência das crianças no quintal, pela dedicação da mãe aos afazeres domésticos e ao trabalho na lavoura que começava logo cedo. Autília e José não permitiram que os filhos frequentassem a escola, impedindo que tivessem acesso à educação formal, eram rígidos, cuidadosos e não deixavam com que saíssem do território familiar, configurado pela casa e quintal. Sobre a escola Sebastião foi enfático e afirmou que nunca fui não senhora porque a vida da gente era no meio do mato. Essa observação de José Nunes nos remete aos aspectos extremante rurais que marcavam ainda a Vila Pureza na década de 1930. Sobre a mãe, o pai e as brincadeiras ele nos contou: Ali [Vila Pureza] nóis brincava no fundo do quintal porque a minha família não era de soltar criança pra sair. Era dentro do quintal, quando a mãe ia conversar com uma pessoa todo mundo ficava lá no canto, eu não vinha perto, ela corria o zóio. O pai não era um homem de chegar e brincar com o filho não, se ele tivesse aqui conversando com a senhora nóis não podia nem passar aqui. Eu brincava com meus irmãos de pegar carretel, fazer caminhãzinho, brincava dessas coisas. (Nunes, Sebastião, 2013) Além de espaço para as brincadeiras, o quintal abrigava algumas plantações, hortas e criação de animais, destinado ao consumo da família. O cardápio se restringia a verduras, arroz, feijão com farinha e jabá. Na hora das refeições, cada um se dirigia a algum lugar da casa, hábito resultante, a nosso ver, por conta do pequeno tamanho do espaço destinado às refeições e também pelas poucas peças de mobiliário. Além da falta de espaço e mobiliário, a família era desprovida de utensílios de mesa. Tinha uma gamelinha, então, cada um catava a sua gamelinha, e ficava um pra cá, outro pra lá, e outro saía lá pro quintal comendo, era assim, e a gente pegava e comia com a mão. Vale destacarmos que a alimentação que era oferecida para as crianças, era diferente do virado que era feito para o pai, que adorava pimenta. Sobre o processo de preparo do virado de José Nunes, Sebastião destacou a participação dos membros da família: Fazia no pilão, então ficava um da banda de cá e outro na banda de lá, cada um com uma mão, sabe as mão de pilão, então, ali socava aquela farinha com aquele jabá, ia socando até virar um pó, depois ela [mãe] tirava dali depois que tava bem socada, aí pegava e socava uma concha daquela pimenta malagueta e ponhava ali dentro, aí nóis socavava mais, aí era a hora triste (risos) porque aquilo conforme socava, o zóio queimava tudo, mais socava bem socado, depois aí era a hora do trabalho dele [pai], aí ele pegava aquela comida, aquela farofa e jogava num tachinho assim, colocava ali e pegava uma, duas, conchas de gordura colocava ali dentro e mexia bem, mexia, mexia, mexia até dá o ponto certinho, aí ele ponhava numa lata com a tampa, ponhava em cima e deixava lá, então conforme ele ia pra um serviço ou outra coisa ele ia lá, tinha uma latinha, ele pegava, uma latinha e meia e ponhava num picuazinho, e aquilo ele levava, e uma garrafa de café. (Nunes, Sebastião, 2013) Os únicos momentos de lazer vivenciados pela família Nunes eram as pescas que faziam aos domingos de manhã com o pai, onde também nadavam. Havia ainda, a ida a igreja Matriz da cidade, a qual exigia um empenho considerável de todos, devido, aos obstáculos existentes no percurso, que faziam a pé. O depoimento de Sebastião nos demonstra o quanto o poder público local, dificultava a vinda dos moradores, geralmente pobres, ao centro da cidade. Mesmo assim, Sebastião salientou que via brancos e negros assistirem a missa na Catedral, demonstrando também que a presença negra, na região central, era uma estratégia adotada por eles de empoderamento e inserção social. O único lugar que nóis ia aquele tempo era lá na Catedral. Era longe, era uma barreira, ali também pra descer, que não tinha paralelepípedo, nada na calçada, era só terra. Da Vila Pureza pra ir lá nóis subia no estradão, aquela estrada que ia pra Araraquara, Ibaté, nóis subia no estradão, depois do estradão subia até o canto do posto e de lá subia pra pegar a Avenida Carlos Botelho, até chegar na Avenida São Carlos. E lá tinha branco e negro, tudo misturado. (Nunes, Sebastião, 2013) Quando Sebastião Nunes estava com sete anos de idade, no ano de 1934, sua mãe Autília faleceu e, diante da situação, José Nunes pegou os filhos menores e levou para morar com os filhos mais velhos deixando a Vila Pureza. Desse modo, Sebastião foi levado para Descalvado para morar com um irmão que acabara de se casar e trabalhava de carpir café numa fazenda, lá. Neste momento, tiveram início as andanças pelo mundo afora e a inserção do pequeno Sebastião no trabalho. Em Descalvado ele permaneceu até os 10 anos de idade e, depois disso, foi para Córrego Fundo-MG para morar e trabalhar com o pai em uma propriedade de Carlos Facchina. José Nunes se dedicava às atividades na lavoura e Sebastião era candeeiro, que segundo ele, consistia em guiar boiada: candeeiro é aquele que vai com a varinha na frente da boiada, então os bois vai e eu vou com a varinha, pra eles vim tudo atrás. Apesar de estar perto do pai, ele não gostava do trabalho que fazia, pois, era duro com aquela geada, ficava varrendo descalço. Porém, não foi o descontentamento com a atividade que exercia que fez Sebastião sumir dali de Córrego Fundo aos quatorze anos, e sim, um desentendimento com o pai. Aconteceu um negócio em casa do Paulino Fagundes, eu ganhei um cavalinho, então eu saía com esse cavalinho pra todo canto, eu gostava, aí o meu pai pegou o cavalinho um dia, e falou assim: de hoje em diante o cavalo seu vai ficar pra dona dele e eu vou te dar aquela mula, que era a mula empacadeira, aí eu pensei, pensei, falei: não, eu não dou. Juntei uma calça e uma camisa e saí, aquele tempo a gente já tava cortando lenha néh, aí quando chegou na beirada da picada eu puis o corote d’água, o machado ali, deixei ali com aquela calça e aquela camisa, o meu pai já tava lá no meio da picada, deixei ali e cai fora, eu sumi. (Nunes, Sebastião, 2013) Depois de deixar o pai no Estado de Minas Gerais, Sebastião voltou para São Carlos e ficou batendo um tempo, trabalhava pra um, pra outro, a troco da comida. Mas com medo que seu pai viesse atrás dele, logo tratou de ir para Jacareí, para trabalhar na construção de estradas. Lá, insatisfeito com as péssimas condições de trabalho, ele foi ajudado por um agenciador, que conseguiu emprego para ele em Bauru. Mas não havia limites espaciais para Sebastião que, sem pensar duas vezes, seguiu depois com o agenciador para a Bolívia, aos 16 anos de idade. Na Bolívia eu fui ser piloto, daqueles que trabalhava na carroça pra lá e pra cá, e o piloto ficava no meio, quando o burro ia devagar a gente ia e chacoalhava o reio com a carroça de terra pra levar pro lugar, então tinha um piloto de cada canto e eu fui trabalhar lá. (Nunes, Sebastião, 2013) Dono de suas vontades e destino, assim como seu pai que havia sido escravo fugido, Sebastião não aceitou novamente, as condições que eram oferecidas aos trabalhadores na Bolívia. Depois de quatro meses, ele reuniu um grupo de amigos e organizou a volta para o Brasil, que aconteceu em um caminhão. O grupo desembarcou no município de Corumbá-MS e de lá seguiu para Campo Grande-MT, onde conseguiu trabalho na estrada de ferro. Neste local Sebastião nos contou: ali fiquei uma temporada trabalhando, não saía dinheiro, não saía nada, aí falei: tá mal. Contou ainda, que as condições ruins de trabalho se estendiam à precariedade das cabanas em que dormiam: A gente vivia no trabalho. Nóis fazia aquelas cabanas e as pontas desciam no chão e cobria com aquelas folhas de coqueiro. Fazia assim, um pau lá, vamos supor um pau lá no canto da casa, pegava um varão grande e ponhava em cima, daqui de cima eu desci uns paus assim, ele era bem alto assim, descia assim e caía no chão, conforme caía no chão aí ia amarrando aquelas varas, pra modo depois de por o sapé, sapé, coqueiro em cima, não tinha um tijolo, não tinha nada. (Nunes, Sebastião, 2013) Depois de um ano e meio trabalhando lá, ele nos contou que conseguiu comprar uma passagem de trem para Bauru-SP. E quando desceu do trem na estação ferroviária, seguiu pela estrada caminhando, chegando a um sítio, cujo proprietário era um homem chamado Alexandre, ao qual ofereceu os seus serviços em troca de salário, teto e comida. Mas, mesmo gostando da família de Alexandre, Sebastião decidiu, depois de três meses, não permanecer no sítio, e sem avisar ninguém, engoliu a lua2. De lá seguiu para Itirapina, onde permaneceu por sete ou oito dias, trabalhando numa fazenda como carregador, e finalmente, voltou a São Carlos, com dezessete anos de idade. Ao chegar foi procurar pela irmã que morava na Vila Monteiro para saber notícias da família e do pai. Depois de matar a saudade, ele foi trabalhar como carreiro e carroceiro, todos os serviços que o pai ensinou, na fazenda da família Dória, em São Carlos, e lá ficou mais uma temporada. Cansado do trabalho no meio rural, ele decidiu migrar para a cidade para trabalhar e morar com a irmã. Mas os planos de Sebastião não saíram de acordo com o que havia pensado, pois acabou conhecendo, Sebastiana de Oliveira e decidiu passar a mão nela e engolir a lua de novo. O casal seguiu para o município de Santa Rosa e com ajuda do irmão de Sebastiana, o 2 Foi embora durante a noite. senhor José Nunes, pai de Sebastião, acabou assinando a autorização para o casamento do filho. Depois de casados, vieram para São Carlos morar nas proximidades da Igreja São Sebastião, numa garagem, cedida por um amigo do sogro, com a incumbência de ambos olharem o quintal. Nessa época, Sebastião começou a trabalhar na Prefeitura e, quando estava com 22 anos de idade e três filhos, por volta de 1949, a família se mudou para a Vila Pureza, no terreno onde morou quando criança, em uma casinha de barrote, construída por eles. A permanência no lote do seu pai não durou muito tempo, e vendo que aquilo não tava dando certo, Sebastião decidiu migrar com a família para Ibaté, onde alugou uma casa e foi trabalhar no corte de lenha. Larguei a casinha e fui embora pra Ibaté, quando tava cortando lenha, pagava quinhentos reis o metro, falei agora vamo arrumar a vida mesmo, aí fui pra lá, pagar dez merréis numa casinha de dois cômodos. Em Ibaté, eles ficaram por três anos, depois voltaram para São Carlos e se estabeleceram no Jardim Bandeirantes. As andanças de Sebastião e sua família, não parariam por aí, depois de algum tempo, voltaram para a Vila Pureza, numa casinha comprada por eles. A casa era de tijolo bem assentado. Tinha quatro cômodos, o piso era chão. Não tinha banheiro, era fossa. Na Vila Pureza a família Nunes morou por bastante tempo. De lá, Sebastiana pegava o Bonde na Santa Casa e ia até a Estação Ferroviária para fazer compras na cidade. Os filhos, que no total eram oito, estudaram até o quarto ano em escolas próximas ao bairro e não tiveram momentos de lazer com o pai, que destacou nunca os ter levado para passear e não ter tempo para brincar, ou contar histórias, mas fazia questão de lhes ensinar algumas lições, como, respeitar os mais velhos e não mexer em nada de ninguém. A vida parecia caminhar bem, até que, a pedido de sua esposa, Sebastião decidiu sair da Vila Pureza e se estabeleceu com a família no Jardim Centenário, em uma casa que barganhou e na qual se fixou definitivamente. Dentre os motivos da saída do bairro, ele alegou que a esposa não gostava do barulho praticado por um dos vizinhos. Ali [Vila Pureza] fiquemo bastante tempo, aí a mulher não gostava de lá porque tinha essa turma que morava pra baixo, era uma família de preto e era batucada, sábado ninguém dormia, domingo ninguém dormia. Figura 2 − Primeira comunhão dos filhos de Sebastião e Sebastiana. Da esq. Benedito, Carlos Roberto, Ademir Spedito. Sem data. Figura 3 − Sebastiana Oliveira Nunes. Foto da carteira de identidade. São Carlos. 1983. O incômodo de Sebastiana com os vizinhos nos traz à tona a prática das manifestações culturais dos negros no bairro. Os batuques, as rodas de samba e capoeira encontravam nos territórios (casa e quintal), espaços de liberdade, o que não significava que fossem aceitos e compartilhados por outros moradores, fossem eles, brancos ou negros. No caso da família Nunes, a prática os incomodou a ponto de os fazerem sair do bairro. Depois de se mudaram para o Jardim Centenário, Sebastião continuou a trabalhar na Prefeitura e Sebastiana a cuidar da casa e dos filhos. Quando estavam completando 63 anos de casados, eles resolveram se separar e Sebastião construiu um barrotinho no mesmo lote para morar enquanto construía uma casa de alvenaria de tijolos no fundo. Para lá se mudou e permaneceu até a morte da ex-esposa que ocorreu por volta do ano 2000. Sebastião não ficou viúvo por muito tempo, conheceu Eunice Gonçalves e com ela mora, na casa principal, há bastante tempo. Na casinha dos fundos, mora um neto com a esposa. Hoje Sebastião, que alega nunca ter sofrido preconceito na vida, mas já ter visto outros negros sofrerem, destaca ter muito orgulho em ser filho de escravo fugido e foi com muita emoção que nos contou um dos principais ensinamentos de seu pai sobre a importância da liberdade. Meu pai falava, agora sim que tamo bem, porque nóis somo o dono de nóis, nóis comemo, nóis trabalha, eles são obrigado a pagar nóis, pra nóis comer, naquele tempo não né, comia naquelas gambela [gamela] né, que nem porco, comia tudo com a mão e daquele jeito. (Nunes, Sebastião, 2013) Com muito orgulho também, Sebastião destaca que aprendeu, há pouco tempo, ler e escrever algumas coisas. Hoje ele dedica seu dia aos cuidados com o quintal onde tem muitas plantas, galinhas e uma pequena horta e também à troca de conversas e carinho com sua companheira. Sobre sua vida enfatizou, apesar deter sido sofrida, foi quase um romance né. Considerações finais Ao acompanhar as narrativas de famílias negras no interior paulista, das quais a trajetória de Sebastião Nunes é um exemplo, nos damos conta da importância do legado histórico-cultural preservado por esses sujeitos no meio de suas famílias e nos seus espaços de morar. Por meio da resistência e da transmissão dos saberes via oralidade as matrizes culturais africanas se materializam nas trajetórias negras. Segundo Halbwachs (2006, p. 73), A história de nossa vida faz parte da história em geral, portanto, relatos pessoas de negros e negras evidenciam processos complexos vivenciados por grande parte da população negra. A trajetória de Sebastião Nunes se aproxima de outras histórias das gentes negras, no que se refere à luta pela sobrevivência, aos enfrentamentos sociais, econômicos, políticos e culturais empreendidos por esse sujeitos. Nessa perspectiva, conhecer uma história é conhecer a história de outros. E o mapeamento e o registro dessas trajetórias se tornam essenciais para garantir a preservação desse importante patrimônio cultural que ainda sobrevive nos seios das famílias negras por todo o território nacional. Para o conhecimento desse legado cultural, a História Oral, como método de pesquisa, nos oferece os instrumentais para que esse registro se materialize e seja acessado pelos diferentes sujeitos. De acordo com Halbwachs, 2006: O único meio de preservar essas lembranças é fixá-los por escrito em uma narrativa, pois os escritos permanecem, enquanto as palavras e o pensamento morrem. (p. 87) Dessa forma, diante do exposto, podemos destacar que na contemporaneidade o registro das histórias negras é um desafio que se coloca aos mais variados campos científicos. É preciso caminhar para a inserção da história africana e afro-brasileira nos currículos acadêmicos do ensino fundamental ao superior, garantindo também o desenvolvimento de pesquisas em torno dessas temáticas. Os programas precisam, ainda, reconhecer a eficácia científica da História Oral como método de pesquisa. Tais consolidações nos permitem o reconhecimento, o registro e a Preservação do Patrimônio Cultural Afro-brasileiro e sua consequente valorização para além das famílias negras. Referências COSTA, Natália Alexandre. Espaços negros na cidade pósabolição: São Carlos, estudo de caso. Dissertação de Mestrado. São Carlos: Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (IAU-USP), 2015. CUNHA, Henrique. BIÉ, Estanislau Ferreira. Bairros Negros, Cidades Negras. Fortaleza: Editora Vila Dourada, 2019. FERREIRA, Marieta de Moraes e Amado, Janaína (Orgs.). Usos e Abusos da História Oral. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2006. HALBWACHS, Maurice. A memória Coletiva. Beatriz Silva (Tradução). São Paulo: Centauro, 2006. LE GOFF, Jacques, 1924 História e memória / Jacques Le Goff; tradução Bernardo Leitão ... [et al.] -- Campinas, SP Editora da UNICAMP, 1990. MBEMBE, A. Crítica da Razão Negra. Lisboa: Antígona, 2017. MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Definindo História Oral e Memória. 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Ainda de modo preliminar e especulativo, observa o contexto de surgimento das construções, mapeia sua abrangência e a inserção no território, investiga suas formas, espaços, usos e tecnologias de construção e traça um paralelo com as demais produções arquitetônicas do período, sejam em âmbito nacional ou internacional. Para tanto, averigua as edificações do morar, do trabalhar, das infraestruturas e das instituições (casas, laboratórios, oficinas, pontes, torres d’água, escolas). As análises acontecem a partir do exame de um conjunto de fotografias publicadas nos relatórios técnicos e nos boletins informativos do órgão. Por fim, conclui que o DNOCS foi um importante agente de modernização da arquitetura e da construção civil dos sertões semiáridos. Palavras-chave: Arquitetura. Seca. DNOCS. Semiárido do Brasil. Este texto apresenta resultados preliminares do ano de 2016 da pesquisa de doutorado do autor, intitulada Arquitetura, seca e território: ações da IFOCS no semiárido do Brasil (1919-1945). A investigação está sendo desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, sob a orientação da profa. Dra. Maria Ângela P. C. S. Bortolucci. 2 Arquiteto e Urbanista (UFPB), Mestre e Doutorando (IAUUSP), Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFCG. 1 Abstract The aim of this work is to study the architecture produced by the National Department of Works Against Drought (DNOCS in Portuguese) between 1909 and 1959 in the Brazilian semi-arid region. However preliminary or speculative, this study observes in which context the buildings were constructed, maps their range and insertion in the territory, investigates their forms, spaces, uses and construction technologies and draws a parallel with the other architectural productions of the period, whether in national or international contexts. For this, this work verifies the edifications of living, of working, of infrastructure, and of institutions (houses, laboratories, workshops, bridges, water towers, schools). The analysis takes place from the assessment of a set of photographs in the agency's technical reports and newsletters. Finally, it concludes that DNOCS was an important agent for modernizing architecture and civil construction in the semi-arid hinterlands. Keywords: Architecture. Drought. DNOCS. Brazilian semiarid. Resumen El objetivo de este trabajo es estudiar la arquitectura producida por el Departamento de Nacional de Obras Contra la Sequía (DNOCS) entre los años de 1909 y 1959 en la región semiárida de Brasil. Aunque de modo preliminar y especulativo, el estudio observa el contexto de surgimiento de las construcciones, mapea su abrangencia e inserción en el territorio, investiga sus formas, espacios, usos, tecnologías de construcción y hace un paralelo con las demás producciones arquitectónicas del período, sean nacionales o internacionales. Para esto, averigua las construcciones de vivienda, de trabajo, de la infraestructura y de las instituciones (casas, laboratorios, talleres, puentes, torres de agua, escuelas). Los análisis suceden a partir del examen de un conjunto de fotografías publicadas en los relatos técnicos y en los boletines informativos del departamento. Por fin, concluye que DNOCS fue un importante agente de modernización de la arquitectura y de la construcción civil del interior semiárido. Palabras clave: Arquitectura. Sequía. DNOCS. Semiárido de Brasil. Introdução “A edificação na sede [urbana das colônias agrícolas] será controlada pela Administração técnica afim de evitarem-se as monstruosidades arquitetônicas” (LEITÃO, 1937, p.114). Escrito em 1933, mas só publicado em 1937, o texto do engenheiro agrônomo Evaristo Leitão apresenta o relato da sua excursão por estados do Norte e Nordeste do país3. A mando do então Ministro da Viação e Obras Públicas, o paraibano José Américo de Almeida, a viagem tinha como finalidades o levantamento das condições dos flagelados da seca que assolava a região desde o começo da década de 1930 e a indicação de possíveis providências para minimizar os problemas derivados das estiagens. Ao final do volume, Leitão apresenta uma proposta para a colonização dos sertões semiáridos, que visava “solucionar a parte social do grande plano da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas” (LEITÃO, 1937, p.4). Sua ideia era a de ocupação do território através da instalação de colônias agrícolas em terras irrigáveis ao longo dos açudes e bacias hidrográficas da região, com a formação de unidades espaciais administradas em sistema de cooperativa e constituídas por zona rural, urbana, cinturão verde, praças, parques e residência-jardim, numa estreita, porém não assumida, relação com o ideário das Cidades Jardins4 europeias. Nesse modelo, o saber técnico e um determinado senso estético deveriam guiar e controlar a produção 3 4 Pará, Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Alagoas e Bahia. Cf. Howard (1996). dos edifícios, principalmente quando erguidos nas áreas urbanas, a fim de evitar as “monstruosidades arquitetônicas”. No atual estágio da nossa pesquisa, é difícil precisar o grau de incorporação de tais diretrizes. Porém, é possível perceber que a então Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS) foi um importante agente de incentivo e construção de edifícios nos sertões semiáridos, seja nas colônias e postos agrícolas implantados, seja nos acampamentos e vilas operárias erguidos para viabilizar a construção de barragens, rodovias e demais obras de infraestrutura. Dentre outras, a lista de edificações inclui residências, escolas, postos de saúde, hospitais, laboratórios, cinemas, clubes de lazer, hangar para aviões, oficinas, usinas de geração de energia, pontes, galpões, torres para tomada d’água, instalações para a criação de animais e manejo de plantas. De 1909, ano de criação da Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS), até 19595, quando já se chamava Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS), o órgão foi praticamente a única agência governamental federal executora de serviços de engenharia na região, também responsável pelo socorro às populações afetadas pelas estiagens cíclicas (DNOCS, 2015). Com o interesse de iniciar uma aproximação com esse patrimônio construído, o objetivo do presente trabalho é estudar a arquitetura produzida pelo DNOCS entre os anos de 1909 e 19596 no chamado Em 1959, foi criada a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE). Como já indicado, durante o período, o órgão passou por reestruturações e mudanças de nome. Aqui, vamos adotar a sua última denominação, que prevalece até os dias de hoje. 5 6 polígono das secas, hoje denominado semiárido do Brasil7. De modo preliminar, panorâmico e ainda especulativo, os intuitos são: 1) compreender em que contextos surgem tais construções, 2) mapear a sua abrangência e inserção no território, 3) analisar suas formas, espaços, usos e tecnologias de construção e 4) traçar um paralelo com as demais produções arquitetônicas do período, seja em escala nacional ou internacional. O nosso foco está voltado para as arquiteturas do morar, do trabalhar, das infraestruturas e das instituições, finalidades que formavam as bases de atuação do órgão. Através da dotação de obras hídricas e viárias, em maior medida, a inspetoria almejava a transformação das condições físicas das zonas secas como forma de fomentar o desenvolvimento social e econômico da região. De matriz agropecuária, tais políticas vislumbravam resultados além da mitigação dos efeitos das estiagens junto aos flagelados e tinham como um dos seus principais propósitos a modernização do trabalho, do homem e dos meios de produção do semiárido brasileiro, em consonância com a expansão do sistema capitalista no país. Por conseguinte, a modernização da arquitetura e da construção civil. Daí, a edificação de grandes barragens para a prática da agricultura irrigada e a construção de ferrovias, rodovias, redes telegráficas, sistemas de geração e distribuição de energia elétrica. Porém, quando nos referirmos a DNOCS, estaremos considerando o conjunto IOCS/IFOCS/DNOCS. 7 Estados do Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia e Minas Gerais. Para tanto, as análises partem do conjunto de fotografias publicadas nos relatórios técnicos e boletins informativos da instituição. Os relatórios, como o próprio nome sugere, tinham caráter técnico mais detalhado, aparentavam ser de circulação interna nas estruturas administrativas do governo e visavam descrever todos os serviços, estudos, expedientes e orçamentos executados. Talvez, por isso, sua maior constância durante o nosso período de estudo8. Já os boletins eram para divulgação das ações. Traziam notícias das realizações, artigos, estudos, impressões de viagem. Tinham circulação para além do DNOCS, visto que encontramos remessas destas publicações enviadas para outras instituições9. Começaram a ser publicados em 1934 e teve edições constantes até 1941, depois só retornando em 1958. Nos dois casos (relatórios e boletins), salta uma das maiores características do órgão: era, e ainda é, uma instituição de engenheiros, notadamente civis e agrônomos. Eles ocupavam os cargos mais importantes e assinavam a maioria dos textos10. Ao total, reunimos mais de 500 fotografias de situações diversas. Mais do que apresentar as obras concluídas, os registros flagram os processos e o cotidiano de construção, nos quais podemos acompanhar os trabalhadores em ação, os equipamentos e máquinas utilizados, as tecnologias e materiais empregados e, principalmente, a odisseia que foi aquilo tudo nos princípios do Localizamos relatórios publicados nos seguintes intervalos: 1912-13, 1916-17, 1920-29, 1931-41, 1943-53, 1958-59. 9 Até o momento, encontramos registro de envio dos boletins informativos para a Escola Politécnica da USP (ver Revista Polythecnica a partir de 1939). 10 Dentre outros, também encontramos referências a geógrafos, geólogos e botânicos. 8 século XX. Porém, as fontes possuem seus limites. As fotografias são registros oficiais, feitas pelo próprio órgão para compor uma publicação governamental. Assim, os ângulos são selecionados, muitas cenas são montadas, outras despovoadas. São comuns imagens que tentam mostrar certa magnitude dos trabalhos, num esforço constante de criar uma narrativa carregada de tons heroicos. Sem querer negar possíveis heroísmos na empreitada, mas eles não devem ter existido sem suas diversas matizes, contradições e oposições, formando uma cadeia complexa de episódios e realizações. A Casa [aos que chegam do sul] causa-lhes má impressão a quasi completa falta de elegancia e conforto das habitações sertanejas, pois nesse particular os nossos sertanejos, em geral, contentam se com o rigorosamente indispensavel. [...] Mas esses habitos elle os recebe das condições da terra em que vive [...]. Aquelle casebre arruinado, sem conforto e sem elegancia, elle não sabe até quando lhe poderá servir de agazalho: amanhã faltará, talvez, água em suas terras, e terá de retirar-se. O diminuto cercado deteriorado, não sabe se o deva cultivar todo, porque é muito provavel que si empregar o mesquinho capital de que dispõe, em sementes e em limpas, venha á perder até a semente e o bode que matou para auxiliar o trabalho. Árvores fructiferas... para que? Muito antes de colher o primeiro fructo estarão resequidas e mortas. Seus filhos e netos com certeza não se enraizarão alli, porque numerosos como são, não ha terrenos agricolas na pequena propriedade, capazes de satisfazer as necessidades da metade. Confortar sua habitação de móveis necessarios? Com que fim? Na provavel e breve retirada não será possível conduzí-los. Augmentar seu rebanho? Ahi vem a seca, ahi vem logo um anno escasso para dizimal-o. Essas incertezas e vacilações, esse facto de saber que o dia de amanhã, fatalmente, anniquilará seus esforços é que geram essa especie de imprevidencia e desleixo, que pode parecer a quem não conhece as condições de vida dos sertanejos, oriundos de inveterados habitos de preguiça (GUERRA, 1909, p. 183-185). O tema da casa é um dos mais recorrentes nos debates sobre os problemas das secas. Reproduzindo discursos médicos e técnicos comuns naquele começo do século XX, as preocupações recaem sobre o aspecto insalubre e perigoso da habitação rural do sertanejo pobre, lugar degenerativo e desarticulador da prosperidade e da vida familiar. Em 1933, na mesma publicação que abre esse texto, Evaristo Leitão, comparando as vantagens e desvantagens da vida no campo e na cidade, diz que são raros os proprietários rurais que dispõem de conforto doméstico e que os operários do campo habitam em “choças de palha onde não penetra ar e luz” (LEITÃO, 1937, p. 53). Em 1939, o boletim informativo dos meses de abril a junho apresenta a fotografia de uma casa feita de palha, madeira, telha e zinco com a seguinte legenda: “Tipo de casa feita por operário do Posto Agrícola de São Gonçalo [Paraíba], mostrando a diversidade do material de construção e a pouca durabilidade de acordo com o espírito nômade do flagelado” (DUQUE, 1939, p. 161) (Figura 1A). A sazonalidade do regime de chuvas e a impossibilidade de perspectivas em longo prazo eram tidas como fatores que desenraizavam o homem da terra e o colocava sempre em retirada, nômade, em situação de improviso e precariedade. Por isso, a morada quase como pouso efêmero, construída com o que se tinha em mãos e utilizando técnicas artesanais/vernaculares. Nas fotografias analisadas, predominam as edificações implantadas diretamente sobre o solo, pequenas, com estruturas de troncos e galhos de madeira, vedações de fibras vegetais ou taipa de mão (pau-a-pique) e coberturas de palha, telha ou algum componente industrializado (como chapas de zinco ou lona), geralmente de duas águas. As aberturas são poucas, quase sempre a porta de acesso e alguma janela frontal. Ao se referir a uma casa nesses moldes, construída no Posto Agrícola de São Gonçalo, Paraíba, Duque (1939, p.160) afirma que esse era “o tipo de casa mais comum do homem pobre do sertão nordestino”. Contudo, mesmo com essa recorrência dos engenheiros e técnicos do DNOCS em diagnosticar e apontar problemas no tipo de moradia rural que era comum entre a população mais pobre do polígono das secas, em matérias publicadas nos relatórios e boletins, até o momento não encontramos indícios de que o órgão tenha formulado e executado políticas direcionadas para a questão habitacional. Os documentos nos mostram que o esforço se concentrou, em maior medida, em criar as condições físicas que permitissem a fixação do homem no campo ou nas pequenas cidades, com a modernização da agropecuária e dos sistemas de comunicação, transporte, energia, armazenamento e distribuição de água. Assim, o espaço do morar surge como consequência ou suporte para essas ações, em três cenários distintos: 1) casas já existentes beneficiadas pelas novas infraestruturas e tecnologias domésticas, no campo ou na cidade, 2) residências construídas pelo DNOCS para engenheiros, técnicos e operários nas colônias e postos agrícolas e nos acampamentos para construção das grandes barragens, 3) residências construídas pelos próprios operários para sua moradia nas colônias e postos agrícolas e nos acampamentos para as grandes barragens, conforme os dois exemplos já citados do Posto Agrícola de São Gonçalo. Com relação ao primeiro cenário, a partir de 1912, os relatórios técnicos sempre trazem uma seção relativa à construção de poços e barragens, que poderiam ser públicos ou em propriedades particulares, tanto na zona urbana como rural (Figura 1B). Aqui, não estamos falando dos grandes represamentos, mas de açudes de pequeno e médio porte, justificados como necessários para as atividades agropecuárias e para o uso doméstico dos habitantes e proprietários do lugar. Em última análise, como uma medida econômica e higiênica. Interessante também notar que as revistas direcionadas para o homem do campo, que circulavam pelos postos do DNOCS e possivelmente pela região11, traziam anúncios de uma série de novidades tecnológicas que prometiam facilitar o cotidiano da vida no campo, com equipamentos mecânicos e elétricos voltados para o trabalho e afazeres da casa: carros, caminhonetes, 11 Os principais títulos são Chácaras de Quintais, a partir de 1912, e Sítios e Fazendas. tratores, moinhos, rádios, geradores elétricos, chocadeiras elétricas, geladeiras, ventiladores, ferros de passar roupa. Ainda não é possível mensurar a inserção dessas tecnologias e suas repercussões, mas podemos especular sobre uma provável mudança nos modos da vida de uma parcela dos homens do campo, com desdobramentos nas formas e nos usos dos espaços, especialmente da casa (instalações para sistemas sanitários e elétricos, surgimentos de novos cômodos, evolução dos banheiros etc.). Aos poucos, o conforto doméstico ia chegando, conforme reclamado por Leitão (1937, p.53). As casas construídas pelo DNOCS nos acampamentos para a construção das grandes barragens eram uma forma de arregimentar e concentrar trabalhadores nesses locais durante o tempo necessário para a realização da empreitada. As informações coletadas precisam ser melhor averiguadas, mas nos parece que os modelos se assemelhavam aos núcleos fabris implantados no país durante a primeira metade do século XX12: cotidiano regido pelas lógicas do trabalho e da disciplina, zoneamento de funções (trabalho, habitação e institucional/lazer) e hierarquização das residências a partir do nível de qualificação profissional. O engenheiro chefe morava na maior e, aparentemente, melhor casa, implantada em local de destaque. Havia uma diminuição e simplificação da morada de acordo com a escala profissional: engenheiros, técnicos, auxiliares (Figura 1C). Quase sempre, o órgão só construía residências para seu quadro técnico mais 12 Cf. Farah (1993) e Correia (1998 e 2010). qualificado, deixando que grande parte dos trabalhadores resolvesse por conta própria seu abrigo, ao acaso ou obedecendo algumas diretrizes de ocupação. Situação similar acontecia nas colônias e postos agrícolas13. Como exemplos, temos um conjunto de residências para operários construído no Posto Agrícola do Rio São Francisco e outro para “operários especializados” erguido no acampamento do Açude Poço da Cruz, ambos em Pernambuco (Figura 1F e 1G). Pelo que pudemos perceber nas fotografias dos relatórios técnicos e boletins informativos, o órgão construiu casas para dar suporte às seguintes obras: 1) Acampamento Açude Lima Campos (Icó, Ceará – fotos 1935-47), 2) Acampamento Açude General Sampaio (Canindé, Ceará – fotos 1934-51), 3) Acampamento Açude Jaibara (Sobral, Ceará – fotos 1934-36), 4) Acampamento do Açude Caxitoré (Aracati, Ceará – foto 1959), 5) Acampamento Açude Curema (Piancó, Paraíba – fotos 1935-40), 6) Acampamento Açude de São Gonçalo (Sousa, Paraíba – fotos 1922-52), 7) Acampamento Açude Poço do Cruz (Moxotó, Pernambuco – fotos 1939), 8) Acampamento Açude Boa Vista (Salgueiro, Pernambuco – foto de 1959), 9) Posto Agrícola Lima Campos (Icó, Ceará), 10) Posto Agrícola São Gonçalo (Sousa, Paraíba) e 11) Posto Agrícola Rio São Francisco (Pernambuco)14. As edificações de Lima Campos, Curema, São Gonçalo e do Rio São Francisco receberam maior Os postos agrícolas eram unidades de pesquisa e difusão de novos métodos e tecnologias para as atividades agropecuárias desenvolvidas no entorno dos grandes açudes construídos pelo DNOCS. 14 As fotografias dos postos agrícolas estão dentro do intervalo de tempo dos registros dos açudes. 13 atenção dos fotógrafos. Os documentos consultados indicam a construção de casas em outras obras da inspetoria, mas sem apresentar registro fotográfico. Pelas imagens encontradas, é interessante perceber a repetição de um partido para as residências dos chefes: 1) implantação em grandes terrenos, ocupando lugar de destaque (parte mais alta do sítio), 2) edificação solta no lote e elevada do nível do solo, com as quatro fachadas livres, 3) planta retangular, 4) alpendres em pelo menos duas fachadas, 5) grande número de esquadrias ao redor da casa, com uso de madeira, venezianas e vidro, 6) jogos complexos de telhado, porém com uma predominância das linhas de três ou quatro águas, 7) volumetria geral simples, com exceção da residência do Posto Agrícola de São Gonçalo, que apresenta maior diversidade de planos, alturas e reentrâncias, 8) presença de colunas e escadas marcando o acesso. Os desenhos das coberturas e alpendres, os arcos e frontões recortados aproximam essas construções das manifestações chamadas de bangalôs ou missões15, comuns entre os anos 1930 e 1940, principalmente em residências. Essa recorrência não soa estranha, visto que são todas de um mesmo período (segunda metade da década de 1930 e começo de 1940) e construídas pelo mesmo órgão para finalidades correlatas (Figura 1C, 1D e 1E). Uma possível análise das plantas poderia nos revelar maiores informações dessa produção. Porém, até o Esse aspecto merece maior estudo. Sobre bangalô ver Gowans (1987). Sobre missões ver Atique (2010). 15 momento, as fontes consultadas não nos permitem adentrar nas casas e compreender seus espaços. Outro fator que nos chama atenção é a proximidade de algumas dessas casas com a produção residencial do United States Bureau of Reclamation16 (USBR), instituição estadunidense, criada em 1902, para fomentar políticas e executar obras hídricas para o desenvolvimento econômico do oeste estadunidense, região semiárida daquele país. A então IOCS foi criada a partir desse modelo e há evidências de trocas e trânsitos entre os profissionais das duas instituições17. Essa relação precisa de maior investigação. Porém, sabemos que a contratação de empreiteiras do exterior para a execução de serviços, as missões técnicas internacionais e o estabelecimento de convênios para pesquisa e transferência de tecnologia entre o Brasil e outros países possibilitou que profissionais estrangeiros aportassem e circulassem pelos territórios semiáridos brasileiros. No acampamento para a construção do Açude de Curema, por exemplo, Mariz18 (1978, p. 93-94 apud ANDRADE, 2008, p. 127) relata que os engenheiros estadunidenses fizeram [...] casas do tipo mais ou menos ao gosto rural de seu país, adaptado ao nosso clima. Em geral, estilo e disposições bem diversos dos nossos de então. Foi notável a influência. Desde então foram aparecendo, no interior, casas à semelhança. Outra maneira interna e externa. Menos corredor, menos quarto escuro. O piso mais elevado. Sobre o assunto, ver Pfaff (2007). Sobre o assunto, ver Araújo (2013). 18 MARIZ, C. Evolução econômica da Paraíba. João Pessoa: A União Cia Editorial, 1978. 16 17 Algum movimento no teto. Até nas casinhas pobres de taipa, uma imitação proveitosa no sistema de arejamento e nos estilos de divisão e de fachada. É provável que isso tenha levado a um maior desenvolvimento da cadeia da construção civil do sertão nordestino, com a introdução e maior difusão de novos métodos construtivos, lógicas de trabalho, materiais, máquinas e espacializações, inclusive com a maior inserção do projeto como ferramenta de planejamento e execução19.Para citar dois exemplos, o DNOCS construiu e administrou uma indústria de cimento na região e, nos relatórios e boletins, são comuns fotografias exibindo as máquinas utilizadas nas obras como uma grande novidade (tratores, guindastes, gruas, reboques). As diferenças entre as arquiteturas existentes e as introduzidas pelo órgão podem ser parcialmente percebidas nos registros do acampamento para a construção do Açude de Lima Campos (Figura 1H). Em primeiro plano, temos o vilarejo existente. Suas formas reproduzem os modelos de produção de cidade que foram predominantes no país até o final do século XIX e começo do XX: residências implantadas em lotes estreitos e compridos, edificações alinhadas com a rua e coladas umas nas outras, coberta de duas águas e cumeeira paralela à rua. Possivelmente, sua distribuição interna também seguia o modelo da casa corredor. Já a fileira de casas em segundo plano apresenta as características indicadas na página anterior, quando nos referimos às residências dos chefes. Ainda não temos informações sobre os autores dos projetos arquitetônicos. Mas acreditamos que eram desenvolvidos pelos engenheiros, nos escritórios técnicos do órgão. 19 Na publicação Os postos agrícolas da Inspetoria de Secas, Trindade (1940), referindo-se à fotografia da residência do chefe da unidade de São Gonçalo, diz que “a irrigação dá ao lar rural do sertão um ambiente de rara beleza e conforto”. Mais uma vez, é a sequência dos debates que se desdobravam desde 1909 (GUERRA, 1909) e retomados por Leitão (1937) no começo dos anos 1930. Na verdade, seria sua concretização. A crença de que a melhoria do meio, no sentido de criar alternativas de desenvolvimento econômico para a região, e, com isso, fixar o homem no campo, traria como consequência maior perenidade e investimentos no ambiente doméstico, criando um lar de harmonia e conforto para a vida familiar. Se isso foi verdade para uns, parece-nos que não foi para a maioria. Como comentado, foram poucas as habitações construídas pelo DNOCS para operários, como as do Posto Agrícola do Rio São Francisco e do acampamento para a construção do Açude Poço do Cruz. As primeiras eram residências unifamiliares, soltas no lote. Já as segundas eram geminadas duas a duas, com um volume posterior, que suspeitamos fossem banheiros. Analisando as fotografias dessas moradias (Figura 1F e 1G), percebemos algumas características comuns: 1) base para proteger a edificação da umidade do solo, 2) dimensões modestas, 3) paredes em alvenaria de tijolos, 4) presença de janelas em todas as fachadas (madeira, veneziana, vidro), 5) coberturas de madeira e telhas em desenho de duas águas, 6) pequeno terraço lateral frontal, 7) simplicidade volumétrica e ausência de ornamentos. Essa última característica foi comum a quase toda a produção de casas analisadas até aqui, numa espécie de investimento, por parte dos engenheiros, na habitação higiênica e racional20. Porém, até o momento, as fontes nos deixam pistas de que, na maior parte dos casos, os operários tiveram que erguer suas próprias casas, seguindo todas as lógicas criticadas pelos próprios técnicos do DNOCS, como nos casos das residências levantadas no Posto Agrícola de São Gonçalo. O debate sobre a habitação higiênica e racional perpassou praticamente todos os congressos importantes realizados por engenheiros e arquitetos durante a primeira metade do século XX. 20 Conjunto de imagens 01. (A) Casa feita por operário do Posto Agrícola de São Gonçalo (PB). Fonte: Duque, 1939, p.161. (B) Poço Público Saquinho, 1949. Rodovia TeresinaValença-Picos. Fonte: DNOCS, 1950. (C) Parte do acampamento para a construção do Açude Curema, 1937. Piancó, Paraíba. Fonte: IFOCS, 1938. (D) Residência do Chefe do Posto Agrícola de Lima Campos, 1935. Icó, Ceará. Fonte: IFOCS, 1936. (E) Residência do Chefe do Posto Agrícola de São Gonçalo, década de 193021. Sousa, Paraíba. Fonte: https://goo.gl/JQHyQ4. (F) Residência para operário, Posto Agrícola do Rio São Francisco, 1946. Pernambuco. Fonte: DNOCS, 1947. (G) Residências para “operários especializados”, Acampamento Açude Poço do Cruz, 1939. Moxotó, Pernambuco. Fonte: IFOCS, 1944. (H) Acampamento Açude Lima Campos, Icó, Ceará, 1939. Fonte: IFOCS, 1944. Existem fotografias dessa casa no Relatório Técnico de 1937. Porém, decidimos apresentar essa imagem coletada da internet por apresentar um ângulo que nos permite verificar duas fachadas. 21 O trabalho e a infraestrutura O debate sobre a modernização do trabalho e do trabalhador dos sertões semiáridos foi tema recorrente durante nosso período de estudo. Em parte, as obras contra as secas surgiram como uma espécie de socorro aos flagelados, nas quais o governo oferecia alguma assistência (dinheiro, comida, serviços médicos e sanitários – com frequência, de modo muito precário) em troca de horas de labuta. Também era uma forma de controlar os fluxos migratórios para as capitais e maiores cidades, evitando o despovoamento do interior22. Além disso, acreditamos que as obras contra as secas foram uma oportunidade para se introduzir novas formas e relações de trabalho, a partir das lógicas industriais da disciplina e sincronização das atividades, em contraposição aos ritmos e ciclos da agropecuária praticada até então. Ao longo dos documentos do DNOCS, transparece o esforço para se constituir um operariado da construção civil na região que fosse capaz de trabalhar em grandes grupos organizados e de operar as inovações tecnológicas. Algumas das grandes obras de infraestrutura, notadamente as barragens, exigiam esforços concentrados e meios de produção específicos. Por isso, os acampamentos para arregimentar e treinar mão de obra qualificada. Nesse sentido, surgiu uma série de edificações que serviu como suporte para o desenvolvimento dessas atividades do trabalho e também para as infraestruturas instaladas: usinas termoelétricas, 22 Cf. Albuquerque Junior (1988). usinas para produção de cimento, casas de força, casas de bomba, galpões, estações de trem, oficinas, almoxarifados, hangar para aviões, estábulos, torres para suporte de fios de alta tensão, pontes, torres de tomada d’água. Desse universo, as pontes foram as que tiveram maior dispersão pelo semiárido, como parte dos serviços rodoviários e ferroviários. Porém, em grande medida, essas instalações estiverem vinculadas às obras das grandes barragens e das colônias e postos agrícolas. A partir das fotografias, é interessante observar como agiram para subverter a natureza e os limites geográficos dos sítios, promovendo uma transformação na paisagem rural da caatinga, principalmente durante os processos de construção. Há, em alguns registros, certa eloquência nessa demonstração. Assim como há uma aparente eloquência na demonstração dos contrastes entre o existente e o novo, o arcaico e o moderno. Analisando as construções mais de perto, percebemos uma grande variedade de tipos, linguagens, escalas, materiais, soluções estruturais e tecnologias construtivas, de acordo com o programa atendido. A necessidade por grandes vãos, espaços internos ventilados e iluminados e leveza das estruturas levou a uma diversidade nas resoluções das coberturas das casas de força, oficinas, galpões e hangares: tesouras de madeira, tesouras e arcos metálicos, telhas cerâmicas (tipo marselha) e metálicas, lanternins, grande número de planos envidraçados, coberturas soltas do corpo principal das construções. Em alguns casos, as coberturas surgem sobre um corpo principal construído por material mais pesado, perceptível pela espessura das paredes e pilares e pela relação entre cheios e vazios (alvenaria de tijolos, aparentemente). Em todos os casos, é uma arquitetura destituída de ornamentos, fruto das investigações e possibilidades técnicas e das exigências espaciais. Determinados partidos, somados à presença de chaminés, aproximam essa produção da arquitetura agroindustrial que tem sido alvo de estudos em livros e seminários23 recentes (Figura 2A, 2B e 2C). As construções de menor escala apresentam menor diversidade técnica e tipológica. Geralmente, são edificações de um pavimento, com pequenos vãos de espaços e aberturas de fachada, cobertas de duas ou quatro águas, com estruturas de madeira e telha cerâmica, paredes de alvenaria de tijolos, eixos de simetria, plantas retangulares, simplicidade volumétrica, esquadrias de madeira serrada (duas folhas, veneziana e vidro), predominância de cheios sobre vazios, simplicidade ou completa ausência de ornamentos (estações ferroviárias, casas de bomba, pequenas oficinas, almoxarifados e estábulos). Muitos desses edifícios tinham função secundária nos arranjos montados ou mesmo caráter efêmero, de um canteiro de obras que seria desmontado ou abandonado após a finalização dos serviços. Talvez, em parte, isso explique a austeridade das formas resultantes, que também pode ser atribuída a uma relação entre praticidade, demandas programáticas e contexto local de mão de obra e materiais disponíveis. 23 Cf. Correia e Bortolucci (2013). Aparentemente, os engenheiros dedicavam maiores esforços para as grandes e principais obras de infraestrutura (Figura 2D e 2E). Pelos registros fotográficos, os grandes arrojos e pesquisas técnicas estavam vinculados às obras de infraestrutura hídrica, rodoviária ou ferroviária. Desse universo, as pontes surgem como elementos de destacada atenção e experimentação da engenharia de estruturas. Os vãos transpostos são registrados em cada fotografia: 5, 8, 15, 20, 30, 40, 60, 75, 90, 180 metros. Os relatórios e boletins flagram o notório esforço na superação das barreiras naturais, vencendo abismos, desvãos e leitos de rios, conectando os territórios em prol de uma maior rapidez de circulação dos transportes mecânicos. Os materiais e as geometrias estruturais são variados e muitas vezes utilizados de forma associada: madeira, concreto, aço, concreto + aço, sistemas viga/pilar, arqueados, treliçados, pênsil (suspensas por cabos de aço). O uso do concreto armado é predominante nesses casos e também na construção de passadiços e torres de tomada d’água. Interessante observar certa recorrência do uso de elementos decorativos art déco nas torres de tomada d’água: linhas geométricas, reforço da verticalidade, marquises delgadas (Figura 2F e 2G). As instituições O DNOCS construiu ou ocupou alguns edifícios para abrigo de suas sedes em capitais do Nordeste, principalmente na cidade de Fortaleza (CE). Também há indícios, em alguns trabalhos acadêmicos (ANDRADE, 2008), de que o órgão ergueu cinemas (neocoloniais), clubes recreativos, hospitais, prédios para consultórios e hotéis nos acampamentos para a construção das grandes barragens. Porém, aqui, a nossa atenção está voltada para a produção institucional retratada nos relatórios técnicos e boletins informativos através de fotografias. Este patrimônio edificado surgiu com o propósito de oferecer suporte aos planos de modernização da infraestrutura, da agropecuária e da mão de obra do polígono das secas, oferecendo as condições para fixação do homem no meio rural. Além do camponês, houve o esforço para estabelecer no local técnicos e pesquisadores que pudessem desenvolver alternativas e difundir conhecimentos para a renovação das práticas agropecuárias. Nesse sentido, foram construídas escolas, laboratórios experimentais, institutos de pesquisa e escritórios técnicos. Assim como no item anterior, aqui também não é possível identificar um partido comum adotado para os edifícios institucionais, inclusive nos mesmos tipos de uso, como nas escolas. A não ser pela simplicidade técnica e construtiva, que pareceu predominar em grande parte a produção: volumetrias compactas de um ou dois pavimentos, alvenaria de tijolos24, uso de telhas cerâmicas em duas ou quatro águas, esquadrias de madeira, ausência de ornamentos. As linguagens estéticas possuem proximidades com bangalôs (telhado do Grupo Escolar de Curema), o neocolonial Os relatórios flagram alguns desses edifícios em construções, onde é possível observar a alvenaria de tijolos. 24 (marquises de telha do Escritório Secção Fito-Sanidade) e a arquitetura moderna (telhado borboleta e brises do Laboratório de Solos e Concreto). Interessante observar o uso de alpendres no Grupo Escolar de Curema e no Instituto José Augusto Trindade, possibilitando uma circulação em volta do prédio e garantindo o sombreamento das paredes do edifício. Em todos os casos, não há uma forte presença do aspecto simbólico ou monumental, recorrente em alguns edifícios institucionais como recurso para reforçar a imagem e a presença do Estado25 (Figura 2H e 2I). 25 Cf. as Escolas Práticas de Agricultura pesquisadas por Mascaro (2010). Conjunto de imagens 02. (A) Casa de Força. Acampamento Açude Curema, 1935. Sousa, Paraíba. Fonte: IFOCS, 1936. (B) Galpão para abrigo de locomotiva. Açude de Orós, 1929. Orós, Ceará. Fonte: IFOCS, 1930. (C) Hangar. Campo de Aviação de Sousa (PB), 1940. Fonte: IFOCS, 1946. (D) Estação de Trem, 192. Orós, Ceará. Fonte: IFOCS, 1924. (E) Oficina mecânica. Posto Agrícola São Francisco, 1946. Pernambuco. Fonte: DNOCS, 1947. (F) Ponte de concreto. Rodovia região de Icó, Ceará, 1939. Fonte: IFOCS, 1944. (G) Torre de Tomada D’água. Açude de São Gonçalo, 1935. Sousa, Paraíba. Fonte: IFOCS, 1936. (H) Instituto José Augusto Trindade, 1949. Açude de São Gonçalo. Sousa, Paraíba. Fonte: DNOCS, 1950. (I) Laboratório de Solos e Concreto, 1959. Campina Grande, Paraíba. Fonte: DNOCS, 1960. Considerações A partir do que foi apresentado ao longo do texto, podemos fazer algumas especulações sobre a produção de arquitetura e demais obras de infraestrutura do DNOCS: 1. 2. 3. 4. 5. O conjunto de realizações do órgão surgiu dentro do contexto de modernização da economia e da sociedade brasileira, que vinha tomando corpo desde o final do século XIX e ganhou vulto durante toda a primeira metade do século XX; As obras tinham como um dos objetivos instalar uma infraestrutura hídrica, de comunicação e transporte que criasse as bases para a expansão de um determinado tipo de economia capitalista na região, modernizando as atividades produtivas do semiárido; Junto a isso, promover progressos técnicos e materiais na agropecuária, no mundo do trabalho e nos modos de vida da população; As obras ocorreram por todo o polígono das secas, de forma difusa. Porém, as grandes realizações estruturantes foram mais visíveis no interior dos estados do Ceará, Paraíba, Rio Grande do Norte e Pernambuco (açudes, postos agrícolas, perímetros irrigados); Grosso modo, as residências construídas para os técnicos do órgão possuíam partidos similares e técnicas construtivas simples, com linguagens estéticas modestas (nenhum ou poucos ornamentos) e algumas vinculações com as produções arquitetônicas nacionais e internacionais vigentes na primeira metade do século XX (bangalôs, missões); 6. 7. As edificações para os demais programas não possuíam similaridades de partido. Eram fruto das demandas colocadas, das técnicas e da mão de obra disponíveis. A pesquisa e o arrojo estrutural estavam direcionados, em maior medida, para as obras de infraestrutura e não para as edificações (pontes, barragens, torres de tomada d’água); As obras foram projetadas por engenheiros. Assim, acreditamos que o DNOCS foi um importante agente de modernização da arquitetura e da construção civil no interior do Nordeste. Ao longo dos próximos anos de pesquisa, com o avanço da análise das fontes e a busca por novos documentos, algumas dessas colocações poderão ser confirmadas, contrariadas e/ou desdobradas, de modo a se ter um amplo retrato do que representou, em termos de arquitetura e produção de cidades, a entrada do Estado brasileiro, via DNOCS, nos territórios da caatinga. Referências ALBUQUERQUE JUNIOR, D. M. Falas de astúcia e de angústia: a seca no imaginário nordestino – de problema à solução (1877-1922). Dissertação (Mestrado). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 1988. ANDRADE, R. C. G. A cidade de Coremas-PB: geografia histórica de uma cidade pequena. Dissertação (Mestrado). Programa de PósGraduação em Geografia da Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2008. ARAÚJO, M. Z. T. 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Bortolucci Universidade de São Paulo, Instituto de Arquitetura e Urbanismo, IAUUSP, São Carlos, SP, Brasil [email protected] Resumo Este artigo se insere no tema da preservação do patrimônio urbano no Brasil, ao tomar por objeto as cidades médias e pequenas do interior paulista, que tiveram sua consolidação fortemente atrelada ao avanço da franja cafeeira, ocorrido em boa parte do século XIX e das primeiras décadas do século XX, graças ao avanço da ferrovia, à importação de materiais e à vinda de imigrantes. O poder de grandes proprietários de terras permitiu as condições ideais para o florescimento de novas arquiteturas e novos modos de morar em terras distantes dos maiores centros urbanos da época. O artigo observa que, em termos gerais, essas cidades apresentam um contexto insatisfatório no que se refere à preservação do patrimônio cultural, contribuindo para isso a ausência de políticas públicas de âmbito local e regional, o crescimento urbano desordenado e os interesses do setor imobiliário. Paralelamente a isso, há a falta de conhecimento das sociedades locais a respeito do próprio patrimônio edificado, o que têm impedido a possibilidade de se concretizar ações preservacionistas mais efetivas e prevalecido a atuação de forças que se opõem à preservação. A análise é ilustrada com a inclusão de dois casos de preservação espontânea – cidades de Mococa e Bocaina –, servindo, no entanto, para reafirmar a importância de políticas públicas de apoio à preservação e à conservação do patrimônio cultural dessas cidades médias e pequenas do interior paulista. A discussão está fundamentada em diversos autores, dentre eles: Furlaneto; Kühl; Meneses; Paladini; Nascimento; Rufinoni; Vieira, Roma e Miyazaki. Palavras-chave: Preservação do patrimônio urbano no Brasil. Cidades médias e pequenas. Interior paulista. Bocaina-SP. Mococa-SP. Abstract This article falls under the theme of the preservation of urban heritage in Brazil, by taking the medium and small cities of the interior of São Paulo (state) as the research object, that had their consolidation strongly linked to the advancement of coffee fringe, occurred in much of the 19th century and the first decades of the 20th century, thanks to the advance of the railway, the import of materials and the arrival of immigrants. The power of large landowners allowed the ideal conditions for the flourishing of new architectures and new ways of living in lands far from the largest urban centers of the time. The article notes that, broadly speaking, these cities present an unsatisfactory context with regarding the preservation of cultural heritage, contributing to this the absence of public policies at local and regional level, disorderly urban growth and the interests of real state sector. Parallel to this, there is a lack of knowledge of local societies about the built heritage itself, which have impeded the possibility of carrying out more effective preservation actions and the operation of forces that oppose the preservation prevailed. The analysis is illustrated with the inclusion of two cases of spontaneous preservation – Bocaina and Mococa cities –, serving, however, to reaffirm the importance of public policies to support the preservation and conservation of cultural heritage of these medium and small cities of São Paulo. The discussion is based on several authors, among them: Furlaneto; Kühl; Meneses; Paladini; Nascimento; Rufinoni; Vieira, Roma e Miyazaki. Keywords: Preservation of urban heritage in Brazil. Medium and small cities. Interior of São Paulo (state). Bocaina-SP. Mococa-SP. Resumen Este artículo se enmarca en el tema de la preservación del patrimonio urbano en Brasil, tomando como objeto de investigación las medianas y pequeñas ciudades del interior de São Paulo (estado), que tuvieron su consolidación fuertemente ligada al avance de la franja cafetera, ocurrido en gran parte del siglo XIX y las primeras décadas del siglo XX, gracias al avance del ferrocarril, la importación de materiales y la llegada de inmigrantes. El poder de los grandes terratenientes permitió las condiciones ideales para el florecimiento de nuevas arquitecturas y nuevas formas de vida en terrenos alejados de los mayores centros urbanos de la época. El artículo señala que, a grandes rasgos, estas ciudades presentan un contexto insatisfactorio con respecto a la preservación del patrimonio cultural, contribuyendo a ello la ausencia de políticas públicas a nivel local y regional, el crecimiento urbano desordenado y los intereses del sector inmobiliario. Paralelamente, existe un desconocimiento de las sociedades locales sobre el propio patrimonio construido, que han impedido la posibilidad de realizar acciones de preservación más efectivas y prevalecido el funcionamiento de fuerzas que se oponen a la preservación. El análisis se ilustra con la inclusión de dos casos de preservación espontánea – ciudades de Bocaina y Mococa –, sirviendo, sin embargo, para reafirmar la importancia de las políticas públicas para apoyar la preservación y la conservación del patrimonio cultural de estas medianas y pequeñas ciudades de São Paulo. La discusión se basa en varios autores, entre ellos: Furlaneto; Kühl; Meneses; Paladini; Nascimento; Rufinoni; Vieira, Roma e Miyazaki. Palabras clave: Preservación del patrimonio urbano en Brasil. Ciudades medianas y pequeñas. Interior de São Paulo (estado). Bocaina-SP. Mococa-SP. Introdução No âmbito da preservação do patrimônio urbano no Brasil, pretendemos canalizar o foco de discussão deste artigo para as pequenas e médias cidades do interior paulista1, que tiveram o surgimento, e/ou a consolidação, fortemente vinculados ao avanço da "franja cafeeira"2, ocupando terras virgens e expulsando índios, ou promovendo a substituição de antigas culturas pelo café, ao mesmo tempo em que se constituía um verdadeiro rosário de cidades3, ao longo de parte do século XIX e das primeiras décadas do século XX, graças ao avanço da ferrovia, à importação de materiais e à vinda de imigrantes4. Esses foram ingredientes Estamos nos referindo às cidades das regiões administrativas de Araçatuba, Barretos, Bauru, Campinas, Central (Araraquara e São Carlos), Franca, Marília, Presidente Prudente, Ribeirão Preto, São José do Rio Preto e Sorocaba, excetuando as regiões da Grande São Paulo, de Santos e do Litoral Sul, do Vale do Paraíba e do Litoral Norte. 2 Franja cafeeira foi a expressão usada por Pierre Monbeig (1984), em sua obra "Pioneiros e fazendeiros de São Paulo", referindo-se à avassaladora expansão da cultura cafeeira no território paulista. Para saber mais sobre esse aspecto e a ocupação dessa porção do território ver também Warren Dean (1977) "Rio Claro: um sistema brasileiro de grande lavoura 18201920". 3 Luís Saia, em seu livro "Morada Paulista", ao tratar da ocupação dessa porção do território paulista, usa a expressão "distribuição das cidades em rosários", devido à preferência pela localização nos espigões (SAIA, 1978, p.50). Entretanto, chamamos a atenção para o fato de que a pouca distância existente entre esses núcleos urbanos fornece ainda mais propriedade para sua utilização até nos dias atuais. 4 É farta a produção bibliográfica, antiga e recente, que trata da ocupação da região paulista sob a égide da cafeicultura abordando temas diversos – desde a abertura de uma fazenda de café e os meios de produção; a forma de transporte inicial e a instalação das ferrovias; a utilização de mão de obra escrava e de imigrantes europeus nas lavouras; as técnicas e materiais construtivos importados e a atuação dos profissionais imigrantes; dentre tantos outros –, sob a perspectiva das várias áreas do conhecimento – economia, sociologia, antropologia, engenharia, arquitetura, literatura etc.. Claro que nesse universo há margem para uma diversidade de enfoques e abordagens, onde por vezes encontramos posições divergentes, ou até um pouco superadas, de qualquer modo são leituras fundamentais. Alguns são verdadeiros clássicos indispensáveis – especialmente aos que se iniciam no tema –, como os já mencionados Warren Dean (1977) e Pierre Monbeig (1984) – cuja primeira versão foi editada em Paris em 1952 –, mas também, e não menos importantes, Odilon Nogueira de Mattos (1974), Sergio Milliet (1982), José Roberto do Amaral Lapa (1986), e certamente os 1 fundamentais para que houvesse a intensificação das relações urbanas e a incorporação de padrões estéticos e construtivos inspirados no gosto em voga na Europa, aos moldes do que ocorria na capital paulista, prevalecendo, de início, o ecletismo de viés classicizante e historicista até o limiar do século XX e, logo depois e até concomitantemente, admitindo novas expressões vinculadas ao art-nouveau, art-dèco, arts and crafts, missões e neocolonial (BORTOLUCCI, 1991). Podemos dizer, mesmo levando em conta as nuances de cada lugar, que em comum havia o forte desejo de modernidade e de modernização, e que o poder político e econômico de grandes proprietários de terra forneceu as condições ideais para o florescimento dessas arquiteturas e de novos modos de morar em terras distantes dos maiores centros urbanos da época (BORTOLUCCI, 1991 e 2019). As ponderações que trazemos aqui estão longe de qualquer pretensão de esgotar o assunto, ou de corresponder à complexidade que envolve a questão da preservação do patrimônio nesses núcleos urbanos do interior paulista. Nossa motivação é muito mais a de compartilhar inquietações que são fruto de alguma experiência de pesquisa e da observação de um processo de transformações que vem afetando essas cidades, dentre as quais está São Carlos, onde se localiza a instituição à qual mantivemos, desde 1983, o nosso vínculo profissional como docente e pesquisadora5. Nossos quinze volumes da história do café de Afonso de Taunay (1939), ou sua versão condensada (TAUNAY, 1945), dentre muitos outros. 5 Essa temática nos interessa desde a década de 1980, basicamente devido a dois motivos: o primeiro foi o vínculo como docente no então Departamento de Arquitetura e Planejamento da EESC/USP, em São Carlos; e o segundo foi o início do doutorado na FAU/USP, em interesses de pesquisa e ensino nos possibilitaram uma aproximação de inúmeras cidades e conjuntos rurais situados em municípios do interior paulista, notadamente, das seguintes regiões administrativas do estado de São Paulo: Central (Araraquara e São Carlos), Campinas, Ribeirão Preto, Bauru, São José do Rio Preto e Franca. Discutindo o problema Em termos gerais, podemos afirmar que, independentemente de circunstâncias peculiares locais, essas cidades médias e pequenas do interior paulista compartilharam, e ainda compartilham, de um quadro de semelhanças que vão muito além do contexto histórico e sócio-econômico que determinou sua gênese e/ou o desenvolvimento sob a égide da cafeicultura. Parece-nos fundamental iniciar a discussão pontuando alguns aspectos da 1985, sob orientação do Prof. Dr. Carlos Lemos, que resultou na tese intitulada "Moradias urbanas construídas em São Carlos no período cafeeiro" (BORTOLUCCI, 1991). Ainda sobre o assunto em tela e tendo São Carlos como estudo de caso, ver artigos mais recentes: "Triste sina dos casarões ecléticos de São Carlos" (BORTOUCCI, 2019) e "Preservação da arquitetura paulista do século XIX e das primeiras décadas do século XX: caso das moradias urbanas de São Carlos - SP" (BORTOLUCCI, 2017). Desde o ano de 1991 passamos a integrar o corpo docente do programa de pós-graduação (atual PPG-AU - IAU/USP), tendo a oportunidade de orientar dissertações e teses sobre a produção arquitetônica do interior paulista – ver mais sobre esse aspecto em Bortolucci (2018) –, como também liderar o grupo de pesquisa "Patrimônio, Cidades e Territórios", sediado no IAU/USP - São Carlos, SP, e criado no Diretório do CNPq em 2013, congregando pesquisadores afinados com temas pertinentes ao patrimônio brasileiro como um todo, embora seja destaque o número de pesquisas dedicadas ao contexto urbano e rural paulista. Além disso, não menos relevante foi a contribuição da disciplina IAU5908 - Produção Arquitetônica Paulista do Século XIX até Meados do Século XX, que ministramos desde o ano de 1999 no programa de pós-graduação, na qual o ensinar e o aprender estiveram sempre muito imbricados, nos permitindo ampliar o conhecimento a respeito da região paulista, notadamente porque, dentre outras atividades, a disciplina incluía visitas a cidades e conjuntos rurais que estivessem a uma distância de São Carlos em torno de 150 km, para que pudéssemos cumprir uma programação de apenas um dia a cada visita. história mais recente desses lugares relacionados à complexidade dos "processos e dinâmicas urbanas" e para isto nos valemos do texto de Vieira, Roma e Miyazaki (2007) que analisam essa questão de forma geral no âmbito brasileiro e particularmente no interior do estado de São Paulo. Segundo os autores: No contexto da intensificação do processo de urbanização e globalização, principalmente após a década de 1970, notase que as cidades médias e pequenas passam a desempenhar um papel cada vez mais relevante na configuração e estruturação da rede urbana brasileira. Em muitas cidades médias, verifica-se um crescimento demográfico superior aos das metrópoles, absorvendo populações atraídas pelas melhores condições de vida, bem como o aumento do PIB, pela atração de novos investimentos e serviços. Por outro lado, vale lembrar que esse crescimento se dá no contexto de uma urbanização desigual e excludente. As pequenas cidades também passam por mudanças significativas. Estes núcleos urbanos sofrem transformações frente às dinâmicas relacionadas à expansão agrícola e desconcentração industrial, sendo que, em alguns casos, superam a velha hierarquia urbana da rede, estabelecendo relações no contexto nacional e até mesmo internacional. (VIEIRA, ROMA E MIYAZAKI, 2007, p.152-3) Os autores (VIEIRA, ROMA E MIYAZAKI, 2007), neste artigo "Cidades médias e pequenas: uma leitura geográfica", analisam as "transformações da rede urbana, focalizando o processo de aglomeração que passa a se manifestar também nas cidades de porte médio e pequeno", a partir da discussão do tema "polêmico e controverso" dos critérios e variáveis para classificação dessas cidades. Afirmam que, dentre os critérios para a definição de cidade média está o demográfico, embora não exista uma correspondência absoluta entre o número da população e o desempenho na rede urbana, em geral são aceitas como cidades médias aquelas que apresentam uma demografia igual ou superior a 100 mil habitantes e até o limite de 500 mil. Enfatizam a importância de um segundo critério que observe "a relevância regional", considerando "a forma como as cidades interagem e se inter-relacionam com as outras ao seu redor, com as suas semelhantes e com as metrópoles", e também a sua capacidade industrial e de serviços de novas tecnologias, e quão mais atrativas são a novos investimentos do que as cidades vizinhas, desse modo afirmam seu "destaque regional". Além disso, chamam a atenção para os percentuais de "renda per capita" e de "outros índices sociais", que, no caso das cidades médias do interior paulista, apresentam uma média superior à média das cidades brasileiras. Sob essa perspectiva, os autores demonstram que nas cinco cidades analisadas – São José do Rio Preto, Marília, Presidente Prudente, Araçatuba e Bauru –, com base em dados do IPEA, todas apresentam IDH-M (Índice de Desenvolvimento Humano Municipal) superior a 0,8, enquanto a média brasileira é de 0,766. Sobre as pequenas cidades, ainda no mesmo artigo, trazem a classificação do IBGE que considera as cidades pequenas brasileiras "como sendo aglomerados urbanos com contingente populacional de até 50 mil habitantes" e, no intuito de incluir critérios qualitativos, buscam apoio em Milton Santos (1978 e 1981) que, ao levar em conta as dinâmicas existentes nesses espaços, cria o conceito de "cidade regional". Assim, ao considerar o desempenho regional da cidade e não apenas o número de habitantes, os autores evidenciam que cidades como Dracena, Adamantina e Osvaldo Cruz (10ª Região Administrativa de São Paulo) exercem esse "papel de atração, em relação às cidades menores de seu entorno", mas, ainda "dependem de serviços mais especializados" que estão nas cidades maiores das proximidades, evidenciando as limitações relativas à compreensão dessas pequenas cidades, que "podem ser consideradas cidades regionais, segundo determinados parâmetros, e apresentarem características típicas de cidades locais" (VIEIRA, ROMA e MIYAZAKI 2007, p.136-140). Nesse cenário, da mesma forma que os autores, assinalamos a pouca expressividade no número de pesquisas sobre as pequenas cidades brasileiras que, em menor escala, apresentam as mesmas dinâmicas e problemas das grandes cidades. Referindose ao estudo sobre a "Caracterização e Tendências da Rede Urbana do Brasil" (IPEA, 2001), os autores destacam a identificação de onze aglomerações urbanas não-metropolitanas de São Paulo – Santos; São José dos Campos; Guaratinguetá–Aparecida; Sorocaba; Jundiaí; Moji-Graçú–Moji-Mirim; Limeira; Araraquara; Ribeirão Preto; São José do Rio Preto; e Araçatuba –, das quais a maior parte está no interior do estado. Chamam a atenção para a necessidade de perceber que "outros centros urbanos do interior paulista também apresentam tendência à aglomeração, num processo que envolve cidades médias e pequenas", como o exemplo dado da cidade de Presidente Prudente que, "além de manter fortes vínculos com as cidades de seu entorno, já apresenta uma tendência à continuidade territorial urbana" (VIEIRA, ROMA e MIYAZAKI 2007, p.147-151). Ao buscar dados mais recentes sobre regiões metropolitanas e aglomerações urbanas de São Paulo na Biblioteca Virtual do Governo do Estado de São Paulo, encontramos que, atualmente, além da capital paulista, são consideradas mais cinco regiões metropolitanas, a da Baixada Santista, a do Vale do Paraíba e Litoral Norte, a de Campinas6, a de Ribeirão Preto7 e a de Sorocaba8. Entre as aglomerações urbanas, que diferentemente das regiões metropolitanas não possuem a caracterização de um município como pólo de atração, estão as de Franca9, Jundiaí10 e Piracicaba11. De qualquer modo, independentemente de oscilações nas categorizações observadas ao longo do tempo envolvendo essas cidades médias e pequenas, é evidente que esse processo de urbanização e globalização brasileiro, conforme assinalado pelos Com 19 municípios em um território de 3.645,67 km² e população em torno de 2.976.433 habitantes (Recuperado de http://www.bibliotecavirtual.sp.gov.br/). 7 Com 34 municípios, área de 14.787,89 km² e população estimada em 1.662.645 habitantes (Recuperado de http://www.bibliotecavirtual.sp.gov.br/). 8 Com 26 municípios, 9.821, 32 km² de área territorial e população em torno de 1.805.473 habitantes (Recuperado de http://www.bibliotecavirtual.sp.gov.br/). 9 Com 19 municípios da região de Franca, Ituverava e São Joaquim da Barra com uma população estimada em 657.753 habitantes (Recuperado de http://www.bibliotecavirtual.sp.gov.br/). 10 Inserida entre as regiões metropolitanas de São Paulo e Campinas, com sete municípios e população por volta de 804.936 habitantes (Recuperado de http://www.bibliotecavirtual.sp.gov.br/). 11 Com 23 municípios e população em torno de 1.481.652 habitantes (Recuperado de http://www.bibliotecavirtual.sp.gov.br/). 6 autores Vieira, Roma e Miyazaki (2007), atinge de modo particular e intenso essa porção do interior paulista12. Assim, desde os anos 1970 estamos diante de transformações que abarcam relações cada vez mais complexas de caráter intra-urbano e interurbano, com uma crescente intensificação de fluxos e vínculos econômicos, sociais e culturais, aliados à já conhecida identificação histórica, que extrapolam, quase sempre, o âmbito regional e alcançam diretamente esferas nacionais ou internacionais. Ao mesmo tempo em que ocorre a dispersão urbana de maneira cada vez mais acelerada, submetida a modos de vida e de consumo tipicamente metropolitanos, consequentemente aumenta a demanda por maior mobilidade e acessibilidade, se estabelecem No sentido de colaborar mais para a compreensão da magnitude desse processo de urbanização do interior paulista, trazemos o artigo de Moacir M. F. Silva (1946, p. 21-22) para a Revista Brasileira de Geografia. O autor, se valendo principalmente de dados do censo de 1940, apresenta uma "tentativa de classificação das cidades brasileiras", embora ele próprio faça a ressalva de utilizar "a população do município como sendo a da cidade que lhe dá o nome por não dispor de dados mais precisos", de qualquer modo, o que mais nos importa é que essa classificação nos permite constatar o posicionamento ainda bastante tímido das cidades paulistas naquele momento, notadamente ao compararmos com o quadro atual, ainda que também já demonstrasse certo destaque em relação ao cenário nacional. Naquela época, a capital paulista (São Paulo: 1.318.539 habitantes) aparece em segundo lugar dividindo com Rio de Janeiro (1.781.567 habitantes) o título de cidades grandes com mais de um milhão de habitantes. Dentre as cidades médias: acima de 150 mil habitantes aparece a cidade paulista de Santos (169.889 habitantes), dividindo essa classificação com outras quatro cidades brasileiras, dentre elas três capitais; abaixo de 150 mil habitantes estão treze cidades e apenas uma delas é uma paulista, Campinas (131.642 habitantes). Enquanto que dentre as cidades brasileiras com população entre 50 mil e 100mil habitantes, o autor apresenta 98, das quais 19 são de São Paulo, destas, sete apresentam uma população acima de 75.000 habitantes – Monte Aprazível (92.004 habitantes), Santo André (90.726 habitantes), Marília (81.396 habitantes), Ribeirão Preto (80.591 habitantes), Piracicaba (77.576 habitantes), Presidente Prudente (76.382 habitantes) e São José do Rio Preto (75.046 habitantes) – e, abaixo de 75 mil, são doze cidades paulistas – Sorocaba (70.835), Araraquara (68.496 habitantes), Lins (67.320 habitantes), Pirajuí (66.409 habitantes), Jundiaí (58.807 habitantes), Franca (56.542 habitantes), Pompéia (55. 918 habitantes), Bauru (55.855 habitantes), Bragança Paulista (53.066 habitantes), Tanabi (52.786 habitantes), Olímpia (51.469 habitantes) e Mirassol (51.254 habitantes). Ainda conforme dados apresentados por Moacir Silva (1946, p. 33), em 1940, outras quatro cidades paulistas apresentavam populações apenas um pouco abaixo de 50 mil habitantes – Jaboticabal (40.922 habitantes), Rio Claro (47718 habitantes), São Carlos (49.149 habitantes) e São João da Boa Vista (39.455 habitantes). 12 novas relações entre campo e cidade, entre centro e periferia, potencializados com a implantação de projetos de âmbito regional, intervenções urbanísticas de âmbito residencial, comercial, de lazer ou cultural, e alteram atratividades e centralidades, provocando, desse modo, efeitos irreversíveis no tecido urbano e no patrimônio construído dos núcleos antigos dessas cidades13. Aliado a tudo isso, atitudes desastrosas de gestores públicos, que se rendem com facilidade a interesses do setor imobiliário e abdicam de suas responsabilidades no controle do crescimento urbano, concomitantemente à falta de reconhecimento da própria população de suas referências culturais, colocam em risco a sobrevivência das edificações antigas, e contribuem para o esvaziamento, a degradação, ou a transformação das áreas centrais, especialmente nas cidades de maior vigor econômico. Essa situação de vulnerabilidade do patrimônio edificado antigo, lamentavelmente, persiste até em cidades que já dispõem de mecanismos locais de proteção do patrimônio, ou que tiveram edificações submetidas a tombamentos pelo CONDEPHAAT. Nascimento (2018, p.338-340)14 constata que "as políticas culturais Além dos autores Vieira, Roma e Miyazaki (2007) já citados, ver mais sobre a dispersão urbana e as novas formas de tecido urbano no Brasil em Reis Filho (2006 e 2007) e Bentes (2014) e sobre as cidades médias do estado de São Paulo em Sposito (2001). 14 O autor fez o mapeamento dos conselhos municipais de preservação do patrimônio cultural existentes no estado de São Paulo, usando como critério de escolha os municípios de porte médio com população entre 100 e 500 mil habitantes, excluindo os da região metropolitana, aliado à consulta aos sites das prefeituras correspondentes, dessa forma, identifica 16 municípios atendendo esse requisito, entretanto, apenas cinco (Cubatão, Bauru, Jundiaí, Piracicaba e Santos) disponibilizam informações completas e atualizadas. Sem deixar de reconhecer a valiosa contribuição da pesquisa de Nascimento, lamentamos que, provavelmente em decorrência do critério de limite populacional, tenham sido excluídas de suas análises experiências significativas quanto a de Amparo ou a de Campinas. Além disso, é preciso ponderar que nem sempre uma boa, ou má, apresentação de um site 13 municipais, de vertente patrimonial, na maioria dos municípios onde haja conselhos de preservação, são descontínuas, fragmentadas", visto que os gestores não dão continuidade aos trabalhos de seus antecessores, mesmo que os resultados sejam positivos. O autor identifica a "falta de recursos tanto materiais como humanos", a "ausência de apoio político", e mais sério ainda, "o encerramento de atividades de órgãos públicos de preservação", percebendo em suas análises o caráter excludente na forma de composição da grande maioria desses conselhos, tanto pela ausência de alguns segmentos da sociedade, como pela debilidade do corpo técnico, com a falta de profissionais das áreas de história, arquitetura, antropologia, dentre outras. Apesar da precariedade e fragilidade dos mecanismos de preservação do patrimônio dos centros antigos das cidades do interior paulista e da impossibilidade de concretização de ações preservacionistas mais efetivas, mesmo quando estão submetidos à proteção em âmbito local, defendemos a posição de que, igualmente ao próprio autor em seu artigo, é preciso "reconhecer e valorizar as práticas políticas e culturais dos órgãos municipais de patrimônio" (NASCIMENTO, 2018, p. 340), da mesma maneira que as de âmbito estadual (através do CONDEPHAAT desde 1968) e nacional (através do IPHAN desde 1937), como fundamentais para assegurar a preservação dos bens culturais, compreendendo-os em seu conceito atual mais alargado, de modo necessariamente corresponda à prática preservacionista do município analisado, justificando aqui a relevância das verificações in loco como método de pesquisa. a "integrar todas las manifestaciones y testimonios significativos de la actividad humana" (GONZÁLES-VARAS, 2005, p.21). Assim, ainda com base em Gonzáles-Varas (2005, p.15), acrescentamos que "la problemática de los bienes culturales, su conservación, gestión y difusión, ocupan y preocupan de un modo creciente a distintos campos profesionales y estamentos administrativos", com a ressalva de que essa visão favorável do autor se refere ao ambiente europeu, portanto, no Brasil em geral, e em particular no interior paulista, as conquistas ainda são tímidas, notadamente no campo da gestão administrativa, mesmo que seja um direito assegurado na Constituição brasileira15. Muitos autores brasileiros têm contribuído para a compreensão e a problematização do cenário da preservação urbana no Brasil e, embora enfocando quase sempre o contexto das capitais e de cidades tombadas pelo IPHAN, ou até daquelas que estão na lista de patrimônio da humanidade da UNESCO16, podemos nos valer desses subsídios, como a exemplo de Rufinoni. A referida autora, mesmo discutindo a questão dos sítios históricos industriais da cidade de São Paulo, nos instiga ao evidenciar indagações que acompanharam sua investigação, dentre elas, a de quais seriam as razões das "prerrogativas acordadas nas cartas patrimoniais internacionais" estarem ausentes de ações No artigo 215, a Constituição Brasileira (1988) reconhece que o "Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais", enquanto no artigo 216, declara que "constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira". 16 Ver mais sobre as cidades brasileiras tombadas pelo IPHAN, ou que estão na lista de patrimônio da humanidade da UNESCO, no próprio site do IPHAN (http://portal.iphan.gov.br/). 15 preservacionistas de conservação e intervenção. E, ainda acompanhando seu raciocínio, perguntamos se o cenário de descaso, para dizer o mínimo, por parte dos gestores municipais e da sociedade civil nas cidades médias e pequenas do interior paulista poderia ser fruto da "própria incompreensão do caráter patrimonial dessas estruturas"? (RUFINONI, 2013, p.20). Então, poderia ser mesmo uma questão de valor atribuído ao objeto, ao documento, como nos alerta Ulpiano Bezerra de Meneses, ao dizer que "atuar no campo do patrimônio cultural é se defrontar, antes de mais nada, com a problemática do valor, que ecoa em qualquer esfera do campo", e nas diversas dimensões desse valor cultural -– cognitivos, formais, afetivos, pragmáticos e éticos. Meneses acrescenta à discussão a dimensão econômica do bem cultural, sem antagonismos com o valor cultural, ao mesmo tempo em que reconhece se tratar de "uma arena de conflito, de confronto -– de avaliação, valoração. Por isso, o campo da cultura e, em consequência, o do patrimônio cultural, é um campo eminentemente político... a coisa comum, o interesse público" (MENESES, 2009, p. 32-38). Lamentavelmente, o que temos observado é a prevalência de uma política muito distante do "interesse público", do bem comum, que atende de forma exclusiva e distorcida à esfera do valor econômico em detrimento do valor cultural. Então, mais uma vez em concordância com Rufinoni, defendemos a necessidade de garantir que qualquer intervenção nessas áreas urbanas seja fundamentada na "busca por procedimentos e adequações que, de posse dos pressupostos teóricos amplamente debatidos, nos permitam conduzir soluções apropriadas e originais em diferentes situações..." (RUFINONI, 2013, p.210-211). Até seria possível afirmar, sem sombra de dúvidas, que as regiões do interior paulista do período cafeeiro possuem atributos para um reconhecimento enquanto paisagens culturais17, embora, nas circunstâncias atuais, se distanciem cada vez mais dessa dimensão. Mesmo assim, com tantas perdas irreparáveis a lamentar, ainda há um acervo significativo, tanto no que se refere ao patrimônio rural quanto urbano, e sobre os quais seria muito prazeroso nos debruçarmos porque, de fato, se constituem casos exemplares de manutenção e preservação. Todavia, diante da amplitude e complexidade do tema, decidimos trazer para ilustrar nossas reflexões um viés que estamos denominando de preservação espontânea, observado em algumas das cidades do interior paulista18, como, por exemplo, Bocaina19 e Mococa20, e que muito nos intriga ainda nos dias de hoje. A indagação que nos fazemos, no caso dessas duas cidades, similares sob certos aspectos e distintas Ver a respeito de paisagem cultural a definição de SCIFONI (2016). Lugares que tivemos a oportunidade de conhecer e acompanhar por algumas décadas, inclusive em diversas visitas com nossos alunos. Para conhecer mais sobre os locais visitados, acessar o perfil do Instagran “arquiteturapaulista19e20”. 19 Segundo dados obtidos no IBGE, Bocaina possui atualmente uma população estimada em 12.452 habitantes e densidade demográfica de 29,84 hab/km², com PIB per capita de R$18.705,27 e IDH-M de 0,742, sua área territorial é de 363,926 km² e está sob a influência econômica da região de Jaú. Conforme o mapa das regiões administrativas de São Paulo (IGC), Bocaina pertence à região administrativa de Bauru. 20 Segundo dados do IBGE, Mococa possui atualmente uma população estimada em 68.980 habitantes e densidade demográfica de 77,55 hab/km², com PIB per capita de R$32.298,34 e IDH-M de 0,762, sua área territorial é de 855,156 km² e está sob a influência econômica da região de Ribeirão Preto. Conforme o mapa das regiões administrativas de São Paulo (IGC), Mococa pertence à região administrativa de Campinas. 17 18 por outros, igualmente a muitas outras do ciclo cafeeiro paulista, é sobre quais as razões que as teriam levado a um processo de preservação de forma absolutamente desprotegida de qualquer apoio legal? Desse modo, seguimos externando nossas percepções sem a pretensão de alcançar respostas definitivas. Preservação espontânea: até quando? Ambas as cidades, Mococa e Bocaina, pertencem ao avanço da franja cafeeira e tiveram processos semelhantes em sua gênese, com a chegada de posseiros e sesmeiros atraídos pelas terras férteis, dos quais muitos eram paulistas, mas também houve os de outras regiões do Brasil, quase sempre mineiros, e ainda os estrangeiros.21 Vale observar a defasagem de alguns anos na ocupação das terras que formaram os dois municípios. Enquanto Mococa assinala a partir de 1820 a instalação das primeiras roças de subsistência e, em maior escala, o plantio de cana-de-açúcar e a criação de gado de corte, com as primeiras plantações de café a partir de 1845. Em Bocaina a ocupação inicial ocorre um pouco mais tarde, por volta de 1850, com plantações de cana-de-açúcar, algodão e fumo e criação de gado, concomitantemente ao plantio de café. A Villa de São João da Bocaina é fundada em 1891, em 1906 é elevada a A cafeicultura do interior paulista utilizou mão de obra escrava africana até que, graças ao movimento abolicionista, foi decretado o fim da escravidão no Brasil em 1888. No final do século XIX e primeiras décadas do século XX, a política eugênica brasileira de embranquecimento da população gerou a vinda de imigrantes europeus com vistas ao trabalho nas lavouras de café. Para saber mais sobre esse contexto, consultar, entre muitos outros autores: Costa (1998), Dias (1995), Machado (1994), Martins (1986), Slenes (1999) e Trento (1989). 21 cidade, adotando em 1938 a redução de sua denominação para Bocaina. Enquanto Mococa é elevada a vila já em 1841 com o nome de São Sebastião da Boa Vista, entretanto, oficializa sua denominação para Mococa quando se torna cidade em 1875. Entretanto, o desenvolvimento e a prosperidade advindos com a cafeicultura estavam atrelados às boas condições de escoamento e de transporte até o porto de Santos, ainda mais considerando grandes distâncias como era o caso das duas localidades. Assim, Mococa e Bocaina necessitaram da ferrovia para alcançar maior êxito na comercialização da produção de café. Foi a chegada da Companhia Mogiana de Estrada de Ferro em 1890 que assegurou a Mococa a sua fase de apogeu, escoando as grandes safras ocorridas entre os anos 1890 e 1895, consequência de uma recuperação que se iniciara em 1874 por causa de duas fortes geadas de 1870 e 1871, aliada à alta no preço do café entre 1893 e 1895. Essa feliz coincidência de fatores possibilitou o forte crescimento urbano e a construção dos sofisticados casarões dos fazendeiros. Bocaina, por sua vez, somente em 1910, conseguiu que os trilhos chegassem à cidade por meio da Companhia de Estrada de Ferro Douradense, ainda assim, foi motivo de muita festa para todos os bocainenses que puderam se libertar do penoso deslocamento de quase 20 km até a vizinha cidade de Jaú para alcançar os trilhos da Companhia Paulista de Estradas de Ferro. De qualquer modo, a partir dos anos 1900 as melhores safras de café já estavam acontecendo, antes até da chegada da ferrovia a Bocaina, permitindo aos fazendeiros a construção de seus casarões e maior incremento nas atividades urbanas, embora sem a pujança verificada em Mococa (PALADINI, 1995; FURLANETO, [2011?])22. Este breve relato sobre as duas localidades nos ajuda a perceber que, independentemente das similaridades que as aproximam, houve diferenças no desenvolvimento de ambas que repercutiram na produção do espaço urbano, em especial ao considerarmos a defasagem no período de apogeu de cada uma delas. Mococa, por ser mais antiga do que Bocaina, pode aproveitar melhor as oportunidades da conjuntura política do período cafeeiro, alcançando desenvolvimento econômico e força política. Inclusive posteriormente, no processo de recuperação a partir da crise de 1929, Mococa soube buscar alternativas para a agricultura e, concomitantemente, incentivar a industrialização e a prestação de serviços. Além do mais, localizada entre Campinas e Ribeirão Preto, se beneficia também por pertencer a uma rede de cidades de uma região do estado produtivamente consolidada. A pujança do lugar, constatada na produção arquitetônica herdada do período cafeeiro, ainda está presente na dinâmica econômica dos dias atuais. Mococa nos chama a atenção pelos elegantes e sofisticados casarões que bem simbolizam o poder econômico, político e social daqueles grandes fazendeiros (Figura 1). Esses casarões se concentram na área central da cidade formada por uma malha de traçado regular que inclui duas praças importantes, a atual Praça Major José Prado, Essa pequena síntese relacionada a fatos históricos de Bocaina e de Mococa está baseada em dois historiadores locais que tive a grata oportunidade de conhecer. Seus livros repletos de valiosas informações desafiam pesquisadores a prosseguir com os aprofundamentos que o tema exige. Para consultar sobre Mococa, ver a obra de Paladini, "Assim nasceu Mococa", e sobre Bocaina, ver a obra de Furlaneto, "Uma cidade e um pouco de sua história". 22 onde está a igreja de N. S. do Rosário, que foi erguida no lugar da matriz velha demolida em 1919 e lugar de início do povoado (Figura 2), e a atual Praça Marechal Deodoro, mais conhecida como Praça da Matriz por causa da nova matriz, igreja de São Sebastião inaugurada em 1896 (Figura 3). Prevalece nesses casarões de Mococa a arquitetura eclética, numa ambiência harmônica com exemplares de outros estilos, tais como art dèco, neocolonial e moderno (Figura 4), executados por alguns profissionais diplomados e muitos mestres e práticos licenciados, notadamente estrangeiros, ou descendentes23. Figura 1 – Casarões da área central. Mococa-SP. Fonte: Fotos da autora, 2009 a 2016. Ver mais sobre a arquitetura e a história de Mococa em Ribeiro (2011), Rodrigues (2006) e Paladini (1995). 23 Figura 2 – Igreja de N. S. do Rosário e Praça Major José Prado. Mococa-SP. Fonte: Fotos da autora, 2016. Figura 3 – Igreja Matriz de São Sebastião e Praça Marechal Deodoro, em destaque a escultura do artista Bruno Giorgi. Mococa-SP. Fonte: Fotos da autora, 2010 a 2016. Figura 4 – Cine Mococa em estilo art-dèco; Casarão em estilo neocolonial; Edifício moderno com painel em mosaico do artista Carlos Paladini. Mococa-SP. Fonte: Fotos da autora, 2010 a 2016. Bocaina, diferentemente de Mococa, apresentou um quadro econômico de menor vigor durante o período cafeeiro e continua sendo uma das pequenas cidades do interior paulista. Ainda que pertencesse, igualmente a Mococa, a uma região de grande produção de café, a crise de 1929 e o contexto no qual se inserem os municípios propiciaram mais dificuldades para Bocaina do que para Mococa, levando Bocaina a uma lenta recuperação e a resultados mais modestos. Por algumas décadas a partir da crise (1929), Bocaina seguiu tendo a agricultura enquanto base de sua atividade econômica, inclusive mantendo o café como o principal produto dentre as demais culturas, como algodão, milho e arroz (FURLANETO, [2011?]), até encontrar no plantio intensivo de cana-de-açúcar e na produção de açúcar e álcool24 uma opção para A retomada do plantio intensivo da cana-de-açúcar observado no Brasil nesses tempos recentes, notadamente em alguns estados da região Nordeste e no estado de São Paulo, se deu a partir da criação do Programa Nacional do Álcool (Proálcool), criado em 14 de novembro de 1975 (Decreto nº 76.593), para estímulo à produção de álcool, "visando o atendimento das necessidades do mercado interno e externo e da política de combustíveis". Conforme o decreto, "a produção do álcool oriundo da cana-de-açúcar, da mandioca ou de qualquer outro insumo deveria ser intensivada por meio da expansão da oferta de matérias primas, com especial ênfase no aumento da produção agrícola, da modernização e ampliação das destilarias existentes e da instalação de novas unidades produtoras, anexas a usinas ou autônomas, e de unidades armazenadoras" (dados extraídos do artigo "Proálcool-Programa Brasileiro de Álcool", de 29 jan 2006 - Última atualização em 04 mar 2012, da Revista 24 a retomada econômica, com a usina de açúcar e álcool da Sociedade Agrícola e Pecuária Santa Cândida, que atualmente é umas das unidades do grupo Raízen Energia. Paralelamente a esse processo, Bocaina conseguiu se especializar na produção de equipamentos de proteção individual feitos com raspas de couro e, desde o início dos anos de 1980, seus curtumes produzem EPIs, como luvas e aventais, para atender principalmente às usinas de açúcar e álcool da região, e camurças e couros semi-acabados para atender fábricas de Jaú e também outros mercados 25. Assim, é possível constatar que Bocaina, como desde a origem, mantém uma interação de dependência com Jaú sob todos os aspectos, notadamente na economia. Outro ponto a considerar é que ambos os setores das principais atividades econômicas do município, apesar de gerarem emprego, não oferecem condições satisfatórias de trabalho e nem de remuneração a seus empregados. De qualquer modo, é um lugar de boa qualidade de vida, com IDH-M acima da média brasileira, baixa densidade demográfica, menos que a metade do que Mococa, e boa estrutura urbana. A área central antiga de Bocaina, formada por algumas quadras organizadas em traçado reticulado e delimitadas basicamente pelo BiodieselBR, online. Recuperado de: https://www.biodieselbr.com/proalcool/proalcool/programa-etanol) 25 Segundo Contador Júnior, Bocaina apresenta um total de 94 empresas empregando cerca de 4.500 pessoas, que correspondem a "cerca de 70% da mão-de-obra ativa e contribui com a maior parcela na receita fiscal". Entretanto, alerta que na maioria desses curtumes a forma de produção é rudimentar, "são utilizados processos antigos, com máquinas e equipamentos ultrapassados...", além disso, a mão-de-obra "é totalmente artesanal" e de baixa qualificação (CONTADOR JÚNIOR, 2004, p. 112- 119; p. 149-150). Ver Contador Filho para saber mais sobre o processo produtivo coureiro-calçadista da região de Jaú que envolve seis municípios (Jaú, Barra Bonita, Dois Córregos, Mineiros do Tietê, Bocaina e Bariri), dos quais se destacam Jaú e Bocaina. entorno da praça da matriz e da praça da estação ferroviária, se consolidou no começo do século XX, coincidindo com a melhor fase da economia cafeeira no município. A antiga praça da estação deu origem às atuais praças Rui Barbosa e Zeca Livino. Enquanto a praça da matriz, atual Praça Pedro Izar, era o antigo Jardim Público (1899) e onde se ergueu a primeira capela dedicada a São João Batista. O edifício atual da matriz, inaugurado em 1910, contém um valioso acervo de telas de Benedicto Calixto, realizadas em 1923, e vitrais da Casa Conrado, além de muitos outros itens que compõem o seu interior, fazendo dessa pequena igreja um exemplar de esmerado acabamento e orgulho de todos os bocainenses26 (Figura 5). As moradias são quase sempre térreas, algumas de porão alto, e com o predomínio do estilo eclético (Figura 6), mas há também edifícios vinculados a outras tendências, como art-nouveau, art-dèco e neocolonial (Figura 7). No geral, o núcleo urbano é de caráter mais modesto, especialmente se comparado a Mococa, entretanto, de forma alguma isso o desqualificaria e, do mesmo modo que no caso de Mococa, suas Lamentavelmente, apenas as telas de Calixto foram alvo de tombamento pelo CONDEPHAAT em 1969, juntamente com o conjunto de obras do artista existente em outros municípios paulistas. Ainda que siga em tramitação um pedido protocolado para o tombamento da igreja no mesmo ano de 1969 e que em 2012 tenha havido deliberação favorável para estudo do referido tombamento, como também do núcleo histórico. Em contrapartida, o único edifício protegido pelo CONDEPHAAT na cidade continua sendo o antigo grupo escolar e atual Escola Municipal de Ensino Fundamental Deputado Leônidas Pacheco Ferreira (tombado em 2010). Para saber mais sobre esse assunto e sobre a igreja matriz como patrimônio histórico de Bocaina ver o artigo de Maria Helena Gabriel e Vladimir Benincasa (2019). 26 edificações formam um conjunto valioso e de muito interesse patrimonial27. Figura 5 – Igreja Matriz de São João da Boa Vista e Praça Pedro Izar, com destaque para a foto interna da igreja, em 2009, registrando a restauração das pinturas do artista Benedicto Calixto. Bocaina-SP. Fonte: Fotos da autora, 2009 a 2017. A Carta de Veneza (ICOMOS, 1964), Carta internacional sobre conservação e restauração de monumentos e sítios, em seu Artigo 1º, define que a "noção de monumento histórico compreende a criação arquitetônica isolada, bem como o sítio urbano ou rural que dá testemunho de uma civilização particular, de uma evolução significativa ou de um acontecimento histórico. Estende-se não só às grandes criações, mas também às obras modestas, que teriam adquirido, com o tempo, uma significação cultural". As cartas patrimoniais são documentos, conforme nos alerta Kühl (2010, p.288-289) em artigo sobre a Carta de Veneza, "que se colocam como base deontológica para as várias profissões envolvidas na preservação, mas não constituem receituário de simples aplicação". Nesse sentido, ao desenvolver suas análises sobre a Carta de Veneza, a autora situa os "postulados teóricos da época", bem como, "a origem de determinadas ideias, a forma como a Carta se aproxima ou difere de documentos anteriores, e as bases teóricas de determinadas proposições", contribuindo para ampliar a compreensão e aplicação do referido documento. Ver Kühl (2010) para melhor compreensão da importância e da complexidade do assunto. 27 Figura 6 – Casarões da área central. Bocaina-SP. Fonte: Fotos da autora, 2009 a 2017. Figura 7 – Edificações art-dèco: Cine Jequitinhonha, Estação Ferroviária localizada na Praça Rui Barbosa, Posto de Gasolina Megale e edifício de uso misto –residência e comércio; Paço Municipal, um exemplar de art-nouveau; Igreja de Santa Luzia, em estilo neocolonial, localizada na Praça Zeca Livino. Bocaina-SP. Fonte: Fotos da autora, 2009 e 2010. Diante do exposto e persistindo no nosso viés da preservação espontânea, poderíamos afirmar que o lento desenvolvimento, para não dizer estagnação, de Bocaina poderia ser a causa da manutenção quase na íntegra de seu conjunto urbano do período cafeeiro. Entretanto, esse mesmo argumento definitivamente não se aplicaria a Mococa, que também conseguiu manter seu centro antigo, mesmo experimentando progresso econômico e expansão urbana. Somente conhecendo e desvelando um pouco mais a história local é que conseguimos avançar em nossas especulações, identificando a ocorrência de fatos que poderiam ter contribuído para que, em ambas as cidades, os moradores tenham sido tocados por um sentimento forte de pertencimento em relação às suas edificações históricas, a ponto de preservá-las até os dias atuais sem apoio governamental. Talvez, o luto provocado pela perda de um bem importante e significativo, tenha sido o gatilho para uma consciência identitária coletiva. Porque, de fato, tivemos a oportunidade de constatar o orgulho e a satisfação, tanto de mocoquenses quanto de bocainenses, em nossas rotineiras visitas com os alunos. Sempre éramos muito bem recebidos, especialmente pelos moradores mais antigos sensibilizados com o nosso interesse, de modo que, muito cordialmente, por diversas vezes, nos permitiram entrar em suas casas e constatarmos o cuidado na preservação também nos espaços privados através da manutenção de mobiliários e utensílios de época. Ao contarem suas histórias nessas ocasiões, pudemos perceber o quanto era recorrente a menção à perda de uma determinada edificação antiga: ambas as localidades passaram por episódios semelhantes. No caso de Mococa, nos referimos à demolição da residência do Dr. Augusto Freire de Mattos Barretto, um dos casarões localizados na praça da matriz nova (Praça Marechal Deodoro). Juntamente com a nova matriz (1896), segundo Paladini (1995, p.82), esses casarões formaram "um conjunto arquitetônico, que deu um traço diferencial original à feição definitiva da praça", onde já existiam alguns prédios públicos, como a primeira Câmara (1872), a primeira escola pública (1879) e o teatro São Sebastião (1894). Em consonância com Paladini, Rodrigues (2006, p.108) afirma em sua dissertação de mestrado que o casarão do Dr. Barretto foi construído em 1893 "em estilo neoclássico", embora não mostrando imagens. Todavia, mesmo sem acesso a registros visuais dessa antiga edificação, acreditamos que seu aspecto deveria seguir de fato a opção pelo ecletismo, predominante nas demais edificações do conjunto urbano. Rodrigues (2006, p.108) acrescenta que, após a demolição do casarão, foi construída em seu lugar no ano de 1980 a residência com dois pavimentos de propriedade de Esther de Figueiredo Ferraz e Carlos Augusto Lerro Barretto (Figura 8), "projetada em linhas arquitetônicas modernas", pela empresa Figueiredo Ferraz28. É preciso destacar que nesse conjunto Em consulta aos sites CPDOC/FGV e ARCADAS - Associação dos Antigos Alunos da Faculdade de Direito da USP, constatamos que Carlos Augusto Lerro Barretto era advogado formado na Faculdade de Direito da USP em 1942, concluindo seu curso apenas dois anos antes de Esther de Figueiredo Ferraz, também advogada formada em 1944 pela mesma instituição. Esther foi docente da Faculdade de Direito de USP, reitora da Universidade Presbiteriana Mackenzie, ocupou diversos cargos públicos, dentre eles o de ministra da educação no período de 1982 a 1985, durante o governo de João Batista Figueiredo (197928 de edificações antigas do centro de Mococa, a demolição do casarão do Dr. Barretto não se constitui em um caso isolado de alterações que já podem ser observadas em razão de pressões do setor imobiliário, inclusive na própria praça da matriz, por exemplo, a edificação reformada e descaracterizada para novo uso onde está a escola de inglês Wizard e um prédio de apartamentos com 12 pavimentos, o edifício Mococa (Figura 9). Entretanto, por alguma razão, a perda do casarão do Dr. Barretto ainda é o motivo maior de queixa por parte dos moradores mais antigos, talvez pela notabilidade do primeiro proprietário, ou pelas características singulares da edificação, ou exatamente pelo fato de que se deve a sua demolição a, nada mais nada menos, uma ministra da educação! Figura 8 – Residência de Esther de Figueiredo Ferraz e Carlos Augusto Lerro Barretto, construída no lugar do Casarão do Dr. Augusto Freire de Mattos Barretto. Mococa-SP. Fonte: Foto de J. A. Rodrigues, 2006, encontrada em Rodrigues, 2006, p. 108. 1985). A empresa Figueiredo Ferraz foi fundada em 1941 por seu irmão José Carlos de Figueiredo Ferraz, formado em engenharia pela Escola Politécnica da USP em 1940. Ele foi também uma personalidade de muita influência em sua época, chegando a ser prefeito de São Paulo entre 1971 e 1973. Figura 9 – Edificação descaracterizada para novo uso (atual Escola Wizard) e Edifício Mococa (visto na paisagem e em detalhe), ambos localizados na Praça da Matriz (Praça Marechal Deodoro). Mococa-SP. Fonte: Fotos da autora, 2011, 2016 e 2009, respectivamente. Em Bocaina, o episódio de perda envolveu o edifício da Societá Operária Di Mutuo Soccorso Fascio Italiano (Figura 10), construído em 1905 por imigrantes italianos e localizado na Rua Floriano Peixoto esquina com a Rua Tiradentes. Era "uma construção belíssima" de dois pavimentos com cerca de 800 m², que seguia o "estilo romano", segundo Furlaneto. Certamente, sua afirmação se deve ao uso do arco pleno definindo as aberturas do pavimento térreo e o arremate da platibanda, que assinala o acesso na fachada principal de rigorosa simetria, aparentemente estendida à conformação da planta. Esses detalhes, aliados ao emprego de molduras cercando as esquadrias, cimalhas e discretas bossagens no pavimento térreo, davam ao edifício um aspecto sóbrio e imponente, como pudemos constatar nas imagens do edifício disponibilizadas por Furlaneto em sua obra. O autor informa que a organização em planta do edifício era composta de "um grande salão de festas, palco, sala para conferências, camarins, cinema e uma escada que dava acesso aos camarotes". Conforme dados obtidos "junto a moradores mais antigos", Furlaneto afirma que a partir dos anos 1930 se iniciou um processo de "abandono" do edifício, entretanto, foi somente em 1948 que se extinguiu a sociedade e os últimos associados formalizaram a sua doação à prefeitura. Segundo Furlaneto, entre os anos de 1948 e 1951, nele foi instalado o Posto de Puericultura, sendo a partir daí definitivamente abandonado e demolido na década de 1960 para dar lugar a uma moderna construção onde foi instalada a Casa da Lavoura. É interessante observar como Furlaneto denomina seu texto sobre a história do edifício: "Fascio Italiano: uma demolição até hoje contestada". Em suas considerações sobre esse sentimento de perda por parte da população, que também nos foi possível constatar em nossas visitas à cidade, o autor acrescenta que "apesar de hoje os boicanenses lastimarem a demolição do Fascio Italiano", não houve naquela ocasião "nenhum movimento popular para impedi-la", o que permitiu à prefeitura se "livrar de um estorvo", em referência às dificuldades a serem transpostas na recuperação e adaptação do edifício a um novo uso. De qualquer modo, nos dias atuais, é evidente que "os bocainenses que conheceram o Fascio Italiano não se conformam com a sua demolição. Foi como se tivessem tirado um pedaço de suas vidas" (FURLANETO, [2011?], p.72-73). Seria sensato supor que essa posição de inconformismo diante da perda do edifício, que ainda constatamos nos dias atuais, esteja atrelada ao fato de se tratar de uma das mais imponentes edificações da cidade, mas também pode se dever aos vínculos estabelecidos pelos moradores que tiveram a oportunidade de frequentar as diversas atividades desenvolvidas em suas instalações, incluindo ensino primário, música e idioma italiano. Rememorações passadas de geração a geração! Figura 10 – Edifício da Societá Operária Di Mutuo Soccorso Fascio Italiano, demolido na década de 1960. Foto de autoria desconhecida, encontrada em Furlaneto, [2011], p. 72. De qualquer modo, convém ressaltar que Bocaina, da mesma forma que Mococa, padece da vulnerabilidade de não contar com apoio governamental para a preservação de seu patrimônio. No intuito de exemplificar a gravidade da questão, desde os anos de 1970, os prefeitos de Bocaina insistem no asfaltamento das ruas centrais de paralelepípedos, gerando polêmica e dividindo opiniões entre moradores e políticos. Entretanto, a partir da atual gestão municipal os riscos se tornaram realidade29, desde que o prefeito Marco Em publicação do dia 30 de julho de 2020, a prefeitura noticia a assinatura do convênio da 7ª Etapa de recapeamento e pavimentação de Bocaina. Segundo declaração da diretora de Planejamento e Mobilidade Deborah Cristina Granai, "Bocaina continua sendo contemplada com obras que visam o bem estar de nossa população. Estamos trabalhando para que nossa cidade siga no caminho do desenvolvimento e buscando cada vez mais recursos, através de 29 Antônio Giro obteve para Bocaina, em 21 de março de 2019, o Certificado de Município de Interesse Turístico (MIT), facilitandolhe o acesso a financiamentos estaduais e federais, e a viabilização de planos de propósitos equivocadamente estritos, sob a prerrogativa de fomentar o turismo no município, como podemos constatar em sua declaração ao jornal Bocaina Informa, em 21 de abril de 2019: "MIT é telas de Calixto e festa junina". Assim, é possível vislumbrar o quanto está sob ameaça a sobrevivência dos respectivos centros antigos das duas cidades de Mococa e Bocaina. Foram décadas em que ambas estiveram submetidas apenas à preservação espontânea e, conforme vimos, isso foi de certo modo até favorecido pelo processo de uma significativa perda. Contudo, o que parecia ser suficiente agora já não o é. A verdade, a qual não podemos nos furtar de enxergar, caso permaneça a ausência de amparo legal, ou de mobilizações populares, é que esse legado está sob o risco de desaparecer em poucos anos, ou, no mínimo, de perder a integridade ainda existente. Considerações finais Conforme vimos ao longo do artigo, as dificuldades para a preservação de bens culturais, materiais e imateriais, certamente convênios como este. A população é quem ganha". A meta desse governo é concluir o asfaltamento de "todos os bairros da cidade", inclusive das "ruas da região central" (Ver: BOCAINA Prefeitura. Prefeitura assina Convênio...). passam pela maneira como vem sendo conduzida a gestão pública nessas pequenas e médias cidades que estão, em geral, à mercê de governantes comprometidos com outras pautas, por incapacidade administrativa, ou por má-fé, mas de todo modo, quase sempre livres para atuar com pouca, ou nenhuma, pressão por parte das diversas camadas da população, organizada ou não, com alguma percepção do valor patrimonial de seus bens culturais, ou não, mas que ao final exercem pouca influência na tomada de decisões, especialmente no âmbito do patrimônio cultural. Exatamente como vimos nos casos analisados, onde estão sendo mais eloquentes as pressões do setor imobiliário, em Mococa, e as iniciativas equivocadas com vistas ao turismo, em Bocaina. A alternativa de estímulo ao turismo como estratégia de fortalecimento econômico é oportuna, mas é fundamental que esteja atrelada a um planejamento mais amplo que contemple paralelamente a criação de mecanismos de defesa do patrimônio em cada cidade, sem perder de vista o âmbito regional porque, como vimos anteriormente, as tensões extrapolam os limites dessas cidades pequenas e médias do interior paulista. Portanto, defendemos a criação e o fortalecimento de conselhos municipais de preservação do patrimônio cultural, sim, mas aliados a políticas públicas de âmbito local e regional, que promovam a valorização e o reconhecimento do patrimônio cultural, em seu sentido mais amplo, incluindo a participação de todos os segmentos da sociedade. Salientamos ainda que a produção acadêmica – como é o caso do nosso grupo de pesquisa – deve contribuir de forma crescente para ampliar o conhecimento da história e do legado cultural do interior paulista, embora ainda reverberando muito timidamente junto às gestões locais e gerando pouco benefício às políticas de preservação. São enormes os desafios para pesquisadores e gestores públicos devido à premência por uma maior compreensão desse contexto de intensas transformações e dinâmicas urbanas, e de tantos interesses envolvidos. Urge a aplicação de políticas públicas que abarquem adequadamente a preservação do patrimônio cultural de cada localidade, seja qual for a dimensão da sua ocupação territorial, o seu desenvolvimento econômico, ou o total da sua população. Todas estão sob riscos iminentes de perdas irreparáveis. Enfrentar adequadamente esse processo de transformações dos núcleos antigos das pequenas e médias cidades do interior paulista exige mudanças que implicam necessariamente na revisão de critérios, técnicas e métodos de planejamento e de gestão pública apoiada nas reflexões e no conhecimento científico acumulado nas áreas de planejamento urbano e patrimônio cultural. Referências ARCADAS. Associação dos Antigos Alunos da Faculdade de Direito da USP. Disponível em: http://www.arcadas.org.br/antigos_alunos.php. Acesso em: 25 nov. 2020. BENTES, Júlio Cláudio da Gama. Dispersão urbana no Médio Paraíba fluminense. São Paulo: FAUUSP, 2014. BIBLIOTECA VIRTUAL do governo do estado de São Paulo. São Paulo aspectos territoriais. Disponível em: http://www.bibliotecavirtual.sp.gov.br/. Acesso em: 22 set. 2020. BOCAINA NÃO TEM CONSELHO MUNICIPAL DE PATRIMÔNIO - Polêmica envolvendo decisão da prefeitura em asfaltar ruas históricas divide opiniões na cidade. Bocaina Informa. Bocaina (SP), 21 abr. 2019. 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Em São Paulo, especialmente, tornou-se o estilo dominante nas igrejas do período, sendo o principal padrão ornamental religioso do período colonial que encontramos hoje no Estado. Palavras-Chaves: Rococó. São Paulo (Estado). Igreja. Arquitetura Religiosa. Abstract This text deals the way in which the rococo formal vocabulary spread and adapted in the religious decoration environment in the State of São Paulo between the last quarter of the 18th century and the first quarter of the 19th century. Style born in the court of King Louis XV of France, rococo had great acceptance in civil decoration, but its religious use found resistance in several countries, so that the style was adopted in temples in few nations, being in present-day expressive only in Germany, Austria, Portugal and Brazil. Particularly in São Paulo, it became the dominant style in the churches in this historical setting, being the main religious ornamental pattern of the colonial period that we find today in the State. Keywords: Rococo. São Paulo (State). Catholic Church. Religious Architecture. Resumen Este artículo aborda la forma en que el vocabulario formal Rococó se difundió y se adaptó en el ámbito de la decoración religiosa en el estado brasileño de São Paulo entre el último cuarto del siglo XVIII y el primer cuarto del siglo XIX. Estilo nascido en la corte del rey Luis XV de Francia, el Rococó logró una gran aceptación en la decoración civil, pero su uso religioso encontró resistencia en varios países, por lo que el estilo fue adoptado en templos de algunas pocas naciones, siendo expresivo solo en la actual Alemania, Austria, en Portugal y Brasil. En São Paulo, especialmente, se convirtió en el estilo dominante en las iglesias de la época, y es el principal patrón ornamental religioso del período colonial que encontramos hoy en el Estado. Palabras clave: Rococó. São Paulo (estado). Iglesia. Arquitectura religiosa. O Barroco e o Rococó No Brasil, o entendimento do Rococó como estilo autônomo e independente do Barroco é relativamente recente e, pelo fato de boa parte de nossa historiografia das artes tê-lo classificado como uma última fase do Barroco, predecessora do Neoclassicismo, levaremos um tempo para que o conceito e essa divisão se assentem na comunidade acadêmica e, ainda mais, na população, que replica os conceitos. Houve teóricos que consideraram o Rococó como uma última manifestação do movimento (SMITH, 1962, p.129), um tardo-Barroco, denominando-o, por vezes, como Barroco-Rococó (SANTOS, 1951). No entanto, a literatura mais recente tende a entendê-lo de outra forma, como um movimento renovador, ainda que contaminado pela grande carga decorativa já assimilada pelos costumes dos séculos XVII e XVIII, mas não uma progressão do anterior (OLIVEIRA, 2003, p.17-21). Se observarmos de forma detalhada, será possível entender que ambos os movimentos, o Barroco e o Rococó, já possuem diferenças de concepção em suas próprias origens. O primeiro iniciou-se na Itália em fins do século XVI, como um estilo eminentemente retórico e engajado, especialmente nos países católicos, resultado da Contrarreforma, com forte intuito de educação do povo, conversão e convencimento dos fiéis católicos, que se daria pela efusão dos elementos e pelas composições dramáticas e gloriosas dos santos e mártires. Já o segundo nasceu na primeira metade do século XVIII, na França, como um movimento estritamente civil, embrionado na corte do Rei Luís XV, e com um caráter muito mais celebrativo, leve e hedonista, procurando um distanciamento de toda a carga dramática e emocional barroca. O padrão rocaille, por seu caráter despreocupado e sem maiores engajamentos religiosos e filosóficos, não possui, de início, qualquer comprometimento com a religião. Em suas próprias origens, os movimentos são antagônicos, uma vez que um possui um forte viés de doutrinação e de negação dos prazeres terrenos (o prazer está apenas no céu, na vida eterna), enquanto o outro não se propõe a discursos de convencimento e, ainda, celebra as possibilidades e as alegrias da vida neste mundo. Difusão do estilo Por ser exuberante e ter uma estética menos carregada e “opressiva” do que o padrão vigente até então, o Rococó ganha o gosto da aristocracia com certa velocidade e tão logo as outras classes sociais o adotam, ainda que de forma mais comedida. Nas décadas de 1720 e 1730, já tinha extrapolado os limites da França e aparecia em decorações na Suábia, Francônia, Bavária e Boêmia (atuais sul da Alemanha e República Tcheca). Contribuiu demasiadamente para a sua divulgação a grande produção de gravuras que floresceu nesse período, e cujo maior centro era a cidade de Augsburgo: Desde fins do século XVII, Augsburgo assumira posição de liderança no mercado internacional de estampa, principalmente no setor das gravuras ornamentais, vendidas em folhas soltas ou em séries destinadas a servir de modelo aos estucadores, pintores, ourives, marceneiros e outros profissionais das chamadas ‘artes decorativas’. A influência das gravuras de Augsburgo foi decisiva, tanto na divulgação na Alemanha do Regência e do rococó franceses, quanto da elaboração e divulgação européia do rokoko germânico, subsidiário do rocaille francês, mas com características próprias. (RIBEIRO, 2003, p. 91-92). Dessa maneira, o estilo, embora nascido na França, mudou seu centro de irradiação e passou a ser divulgado mormente pelos teutos: “Foi a França quem iniciou o processo. Mas foi, pelo menos na arquitectura, a Alemanha que produziu o maior número de realizações, alargando também o estilo – que no país de origem se limitou às moradias senhoriais – à arquitetura monumental, civil e religiosa” (CONTI, 1987, p.04). A disseminação das estampas augsburguenses (Fig.01) permitiu que os modelos de rocalhas chegassem a nações mais distantes do centro europeu, e até mesmo, fora do continente, como foram os casos, respectivamente, de Portugal e de sua colônia mais rica àquela época: o Brasil. Em meados do século, o país ibérico tomava contato com a estética Rococó, graças à profusão de imagens do estilo rocaille que chegavam ao principais centros lusos. As estampas de Augsburgo eram, de fato: [...] portadoras de repertório temático e formal internacionalizado que tocou toda a Europa e as colónias americanas dos países Ibéricos. Em grande parte de origem francesa, encontraram em Jeremias Wolff um dos principais editores dessas formas, que seduziam pela plasticidade e que vinham afinal ao encontro do gosto de encomendadores e artistas do Noroeste [português]. Os conventos da região, como o de Tibães, conservavam nas suas bibliotecas colecções dessas edições que, juntamente com os Registos dos Santos, vendidos em festas e romarias, constituirão factores de divulgação das formas rocaille (PEREIRA, 1992, p.137-8). Figura 1 − Gravura com Rocalhas de Franz Xaver Habermann, meados do século XVIII. Fonte: Acervo do Rijksmuseum, domínio público. https://www.rijksmuseum.nl/nl/collectie/RP-P-1944-626 As estampas foram um instrumento importantíssimo de disseminação de padrões e estilos, pois eram leves e de dimensões que poderiam ser transportadas em pastas ou enroladas em canudos. Eram, também, produtos que tinham valores relativamente acessíveis, dada a sua materialidade – papel e tinta – e a produção em larga escala dos motivos estampados. Elas causariam, ainda, modificações na forma como os artistas desempenhavam seus próprios processos de pintura ou de entalhe/escultura, uma vez que eles passaram a prescindir, em parte das vezes, da contratação de modelos reais. O Rococó Religioso, na Europa e em Portugal Um fator interessante a se destacar é que o Rococó nasceu num ambiente estritamente aristocrata e civil: a corte de Versalhes. Sua aplicação, de início, se deu apenas em ambientes palacianos e seria de se esperar que o estilo não vingasse na decoração de interiores religiosos, já que o seu elemento básico é a rocalha, que é o resultado do esgarçamento da forma de uma concha tridacna, com fusão de mais alguns elementos, resultando, muitas vezes em uma composição que, após um processo compositivo que cria vários amorfismos, se torna abstrata. Ora, um elemento abstrato não é interessante de ser colocado dentro de um templo, uma vez que todo o programa visual de uma igreja necessita de um discurso engajado em sua fé, que inspire a conversão e a educação constante do fiel. No entanto, uma rocalha, abstrata por sua própria concepção, não transmite diretamente nenhuma mensagem, sendo puramente decorativa e vazia de discurso. Acontece que estamos no século XVIII, Século das Luzes, e a forma de ver e sentir o mundo e, especialmente, os prazeres terrenos, se modifica bastante. Há uma valorização do homem e do hedonismo que atravessa a centúria, fazendo da busca da felicidade e do prazer uma obsessão constante na vida do homem setecentista (PEREIRA, 1992, p.52). Aos poucos, essa postura mais aberta e menos rígida caminhou num crescendo de consenso entre a população europeia e associou-se à corrente filosófica que pregava que não havia mal em se ter prazeres respeitosos à fé cristã e que o fiel virtuoso poderia gozar de alegria e prazer ainda no plano terrestre. Dessa forma, o ato lançar mão de uma decoração que apenas proporciona prazer por sua própria beleza abstrata, caso da composição rocaille, ainda que desprovida de discursos cristãos em seus elementos, passa a ser aceito pela filosofia católica de então e, mais que isso, desejado pela exuberância visual do novo estilo. Por esse caminho, o Rococó é assimilado também em sua vertente religiosa. Essa assimilação dentro das igrejas não ocorreu de maneira uniforme em todos os países católicos de então: nações como a França e a Espanha (e, por conseguinte, suas colônias americanas) foram regiões cujo clero manteve-se mais reticente ao uso das rocalhas na decoração de seus templos. De forma oposta, o Rococó religioso é adotado à larga especialmente no sul da atual Alemanha (regiões da Francônia, Suábia e Bavária), na República Tcheca (Boêmia), em Portugal e suas colônias (BONAZZI DA COSTA, 2014, p.87), destacadamente o Brasil. Viria a ser o estilo dominante na segunda metade do século XVIII em Portugal: A fase final da talha setecentista coincidiu com o florescimento do estilo rococó. Durante o meio século decorrido entre 1750 e 1800, os entalhadores portugueses, como todos os artistas nacionais, sentiram o encanto prolongado dessa [que então se entendia como] nova versão prolongada do barroco, do estilo suave e requintado que deu a toda sorte de arte religiosa um sabor palaciano. [...] No reinado de D. Maria I, o gosto concretizou-se, prolongando o domínio do rococó em Portugal mais tempo do que em outros países. (SMITH, 1962, p.129) Os primeiros sinais do estilo em Portugal se deram antes em outras artes decorativas, como na azulejaria, no mobiliário e na produção de estampas. Na talha religiosa, os dois primeiros exemplos, concomitantes, parecem ser as obras de entalhe das igrejas das Mercês e de Nossa Senhora Mãe dos Homens em Lisboa, realizadas no ano de 1745 (SMITH, 1962, p.130). O novo padrão seria empregado com frequência e desenvoltura cada vez maiores a partir de então, dominando o cenário da talha religiosa já a partir da década de 1750 em boa parte do território do Reino. A talha religiosa de Portugal foi de tal forma modificada no final do setecentos que, quando se aborda o Barroco português, inevitavelmente se trata também (ou apenas) do Rococó: A arte portuguesa setecentista diferiu essencialmente da espanhola por ser Rococó e usar ornamentação assimétrica; na segunda metade do século, com exceção da arte bracarense, sua tendência era para a elegância, e ela não diferia muito da arte da Suábia e da Francônia (BAZIN, 2010, p.214). Enquanto a sede da Coroa adotou, na reconstrução da capital que se seguiu ao fatídico terremoto de 1755, um padrão de tardobarroco posteriormente chamado de pombalino (alçado praticamente à condição de estilo oficial do Reino), o Norte, região com outras relações comerciais influências distintas, com maior contato com comerciantes ingleses e alemães e, além de tudo, alimentando uma rivalidade com a capital, resistiria ao estilo da corte e se manteria alinhado à estética rocaille, criando novas variantes de sabores locais. A aventura barroca da arquitetura portuense detinha-se assim, para além de inevitáveis anacronismos, cedendo lugar a uma nova estética [pombalina] de uma sociedade em transformação. [...] Mas a vitalidade do Barroco [rococó, no caso] continuava actuante no Norte. Trata-se do prolongamento de um estilo, numa situação tardo-barroca que aceita o vocabulário rocaille em oposição à racionalidade pombalina, erigida então em discurso oficial (PEREIRA, 1992, p.137-8). No norte português, o Rococó seria substituído apenas na virada para o século XIX pelo neoclassicismo, por uma influência de via inglesa, neopaladiana, (dado o forte comércio portuense com a GrãBretanha), sem ter apresentado exemplares significativos de arquitetura pombalina, ao passo que o pombalino da corte evoluiria para um neoclássico com mais elementos franceses. Que se ressalte a presença tímida de algumas edificações de linguagem pombalina no Brasil: todas, sem exceção, em cidades costeiras, e concentradas nos maiores portos, com ligação direta com Lisboa. São casos assim As igrejas do Carmo (portada) e da Santa Cruz dos Militares, no Rio de Janeiro; do Pilar (portada) e da Conceição da Praia, em Salvador; e de São Francisco, no Recife. Em menor número, houve casos de influência indireta, por via de uma dessas grandes cidades, a exemplo do Santuário do Bom Jesus, em Iguape, no Estado de São Paulo, cujos profissionais que a executaram vieram do Rio de Janeiro (essa igreja sofreu uma reforma classicizante no século XIX e perdeu as características pombalinas). O Estilo Rocaille no Brasil O Brasil ainda era um território sob o domínio de Portugal, distante dos grandes centros que ditavam os padrões estéticos da época e separado da Europa por uma grande barreira natural: o Oceano Atlântico. Toda e qualquer influência aqui chegava por via da metrópole e, dessa forma, levava alguns anos a mais para que novidades se estabelecessem em terras brasileiras. Não era fato incomum que, quando uma moda atingia seu auge na colônia, apresentava-se em franca decadência no Reino. Essa dinâmica não foi muito diferente na adoção do Rococó. O estilo, em sua vertente religiosa, é inaugurado na talha da Igreja de Santa Rita (Fig.02), no Rio de Janeiro, em 1753 (NARA JR., 2016), ou seja, apenas oito anos após as primeiras obras do gênero na metrópole. Na década seguinte, tinha substituído definitivamente o Barroco e era o padrão ornamental dominante no território da colônia. É interessante destacar a sua longevidade em terras americanas: o Rococó vigorou no Brasil por oitenta anos, manifestando-se de 1760 até 1840 (CAMPOS, 2006), a despeito da introdução oficial do neoclassicismo pela corte no Rio de Janeiro em 1816. O estilo foi reinventado e ganhou sabores regionais nas terras brasileiras e sua aceitação foi tamanha que custou ao gosto local abandoná-lo para aderir ao estilo que o substituiria. Figura 2 − Interior da Igreja de Santa Rita, Rio de Janeiro. Foto: Mateus Rosada, 2014. Vale lembrar que o século XVIII marca a descoberta de enormes quantidades de ouro no Brasil e a colônia atingiu desenvolvimento e incremento populacional inéditos. A população do Brasil decuplica na centúria: passa de 300 mil habitantes em 1700, para 3,25 milhões em 1800 (IBGE, 2000). Tamanha expansão resultou na construção de mais de um milhar de novas igrejas nas tantas vilas que se estabeleceram, assim como para a reformas de atualização estilística nas preexistentes. Esse processo ocorreu em parte sob a estética barroca, nos dois primeiros terços do século, e a renovação continuou com o rococó, no terço final do período. Grande parte dos templos brasileiros nascidos barrocos sofreram alguma reforma estilística de sabor Rococó até o alvorecer do século XIX. Portanto, não é exagero afirmar que a parcela mais expressiva dos exemplares que turisticamente chamamos hoje de “Barroco brasileiro” ou “Barroco mineiro” é, na verdade, Rococó. O poderio econômico dado aos maiores centros mineradores e portuários possibilitou o incremento recursos materiais e humanos que lograram a realização de obras religiosas de grande vulto e indiscutível qualidade artística, rivalizando com a metrópole, por vezes, a ponto de importantes estudiosos da arte, como Germain Bazin, afirmarem que “os melhores exemplos [do Rococó de padrão português] estão no Brasil” (2010, p.214). De qualquer forma, a influência da metrópole sobre sua colônia é visível e se evidencia nas características regionais da talha em Portugal. Muitas vezes, é possível identificar a região de origem de determinado entalhador português atuante no Brasil a partir da presença de alguns estilemas característicos de sua região de origem. Na segunda metade do século XVIII, os principais centros de onde partiram artífices que se estabeleceram na colônia foram Lisboa, Porto e Braga. Enquanto a talha da capital do Reino se caracterizava por um Rococó mais castiço, afrancesado, com muitos resquícios ainda do Barroco Joanino que o antecedeu, as obras de madeira do Norte Português já possuíam uma estruturação diferenciada ao período anterior e com maior usos de elementos tipicamente germânicos bastante abstratos, como os auriculares, já presentes na cultura visual germânica através “estilo auricular” do século XVII (ohrmuschtelstil), que foi englobado pela padronagem abstrata do rokoko e com ele se fundiu. Os auriculares serão marcantes e encontráveis em um sem-número de obras em Minas Gerais e, especialmente, em São Paulo. O Rococó chega a São Paulo Estima-se que seja década de 1760, alguns anos depois da capital da colônia e praticamente ao mesmo tempo que os principais centros urbanos brasileiros da época, que surgem as primeiras manifestações do Rococó na Capitania de São Paulo. Aqui cabe uma explicação, pois não é possível até o momento, com a documentação que se tem contato, fixar o ano no qual se realiza a primeira obra. Imaginava-se que o primeiro retábulo Rococó de São Paulo seria o da Igreja da Venerável Ordem Terceira do Carmo, na capital, entalhado por Antônio Ludovico em 1759 (ANDRADE, 1963, p.155). No entanto, em documentação à qual apenas recentemente tivemos acesso (2019), há a informação que o retábulo mencionado foi desmanchado e vendido pela Ordem Terceira em 1799 (VOTCSP, 1742-1820, f.108-109) e que o atual seria de 1800-1801. Com pouquíssimas informações sobre as datas de faturas de outras obras de talha nas mais de 120 igrejas coloniais paulistas, fica difícil precisar o ano em que os entalhadores começaram a utilizar o vocabulário rocaille na região, mas, pela linha evolutiva dos retábulos, é possível fixar com boa segurança a década de 1760 como inicial para o estilo em São Paulo. Essa segunda metade do século XVIII coincidiu com uma fase de importante crescimento econômico para a região, com a expansão do comércio tropeiro e um segundo e mais vistoso ciclo sucrocultor (ARAÚJO, 2006, p.26). O incremento econômico permitiu que muitas reformas, ampliações e reconstruções de igrejas fossem levadas a cabo, tanto na capital como no litoral e em outros centros da então Capitania. É possível se afirmar que a arquitetura religiosa encontrada hoje no Estado de São Paulo, conheceu uma segunda fase na segunda metade do século XVIII, quando se construíram igrejas maiores e de ornamentação mais sofisticada. Todas as cidades paulistas mais ricas desse período, como a capital, Itu, Santos, Sorocaba, Mogi das Cruzes, Guaratinguetá e Taubaté reformaram suas igrejas, demoliram e reconstruíram templos antigos ou mesmo erigiram novos espaços de culto. Ao período de desenvolvimento econômico soma-se um fator religioso importante: em 1745, São Paulo torna-se sede de bispado, com território eclesiástico desmembrado do Rio de Janeiro. Esse ato significa duas coisas: a primeira, corrobora a boa fase da economia paulista no período, pois a Igreja Católica se certificava que a nova diocese só seria instalada em cidade que tivesse capacidade de sustentar financeiramente sua estrutura; a segunda, a influência nas artes: a separação da circunscrição eclesiástica vai significar também uma maior autonomia artística em relação ao bispado do Rio de Janeiro, que até antes desse ato era a referência para as artes religiosas dos paulistas. A instalação do bispado seria um dos fatores determinantes para que as igrejas da capital fossem seguidamente reformadas: dezessete das dezoito igrejas do núcleosede da capital foram reformadas ou reconstruídas entre 1740 e 1800 (SILVA-NIGRA, 1958, p.821-837). Os fatores econômico e eclesiástico foram importantes para que o Rococó fosse adotado em quase todas as igrejas do período, substituindo a ornamentação que existia até então. É na segunda metade do século XVIII que a Capitania tem meios para dar um salto na produção artística e, por ser um período um pouco mais próximo da atualidade, fase da qual restou um pouco mais de documentação preservada, que possibilita identificar alguns autores. Nesse momento, ainda, ao mesmo tempo em que a Capitania de São Paulo atinge certa autonomia artística em relação a outras dioceses (os domínios da circunscrição eclesiástica abrangiam toda a capitania), também se conecta mais estreitamente com outras regiões graças ao avanço do comércio, recebendo artistas imigrantes de outras partes da colônia (especialmente Rio de Janeiro e Minas Gerais) e até mesmo do Reino (com destaque para o Porto e Lisboa). Esses profissionais vão se fixar e abrir oficinas não só na capital, mas também nos outros núcleos urbanos mais proeminentes: há registros de oficinas de artífices com obras Rococós pelo menos em Santos, Taubaté, Guaratinguetá, Itu e na própria São Paulo. É certo que outras cidades tiveram oficinas de entalhadores nessa época, e uma pesquisa mais aprofundadas nos arquivos municipais evidenciaria isso. Artífices da Talha Rococó Paulista O entalhador mais influente desse período é provavelmente Bartholomeu Teixeira Guimarães (Lugar do Passal, próximo a Guimarães, Portugal, c.1738- Itu, 1806) (GUIMARÃES, 1806-07), estabelecido com oficina em Itu a partir de 1786. Documentalmente comprovada é sua autoria no retábulo-mor da Igreja de Nossa Senhora da Candelária (fig.03), matriz daquela cidade (CERQUEIRA, 2015, p.03-05). A obra mais antiga provavelmente de seu grupo1 é o retábulo-mor da igreja do Convento do Carmo de Santos, o principal porto paulista. Em poucos anos, obras de talha com as mesmas características foram realizadas em São Paulo, Cotia, Sorocaba e Itu, onde se estabeleceu definitivamente, além de um curioso caso de retábulo levado para Viamão-RS (ROSADA, 2016, p.292-302). Os elementos que o caracterizam são os auriculares em C ou S, elementos de origem bávara, que marcaram não só a obra do grupo ao qual pertencia, como foram também utilizados por outros artistas paulistas de 1760 À época da redação da Tese de Doutorado optamos por classificar as obras de entalhe por grupos de características comuns. Os grupos receberam o nome do entalhador que possuía alguma obra com registro de autoria no rol dentro da classificação. Essa divisão foi realizada para demonstrar características comuns e atentar para a possibilidade de as obras sem autoria terem sido realizadas pelo entalhador referido ou por discípulos dele, pois não é possível precisa-la. 1 a 1830, durante setenta anos. É interessante que se note que esses elementos são muito comuns no Norte de Portugal, especialmente nas regiões de influência de Braga, Porto e Vila Real, e que, não por acaso, Bartholomeu Teixeira Guimarães nasceu no Arcebispado de Braga. Figura 3 − Retábulo-mor da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Candelária, Itu. Foto: Mateus Rosada, 2019. Com muitas semelhanças com as obras de Guimarães, com uso de auriculares muito semelhantes, que chegam a confundir o observador, estão os altares realizados por José Fernandes de Oliveira e seu grupo, responsável pela talha de quinze igrejas no Estado de São Paulo, em doze cidades na faixa que vai de Sorocaba a Aparecida, passando por São Paulo e incluindo também Santos. É documentada sua autoria no retábulo-mor da Igreja da Ordem Terceira da Penitência (Igreja das Chagas do Seráfico Pai São Francisco) (Fig.04) de São Paulo, realizado em 1791 (ORTMANN, 1951, p.323-29). É provável que Fernandes de Oliveira tenha trabalhado com Bartholomeu Teixeira Guimarães, dada a enorme semelhança dos elementos, identificáveis apenas pelo fato de Oliveira optar por auriculares menos protuberantes e mais abertos, esparramados do que os de seu provável mestre. O tema dos auriculares com aquelas características muito próximas surge ainda nos trabalhos de dois artífices atuantes na década de 1820 na mesma igreja da Penitência de São Paulo: Floriano José e Guilherme Francisco Vieira (ORTMANN, 1951, P.335), ainda que de forma mais simplificada e com uma menor qualidade de acabamento. São obras mais recentes, o que pode indicar terem sido discípulos nesse mesmo grupo em que atuou Fernandes de Oliveira. Essa sequência de nomes – Bartholomeu Teixeira Guimarães (ativo em 1786), José Fernandes de Oliveira (ativo em 1791-1793), Floriano José (ativo em 1826) e Guilherme Francisco Vieira (ativo em 1828) – apresenta uma linha de evolução tanto da composição geral dos altares como dos elementos auriculares a eles aplicados, e corrobora que uma sequência de ensinamentos e influências ocorreu na talha paulista. Figura 4 − Retábulo-mor da Igreja das Chagas do Seráfico Pai São Francisco, São Paulo. Foto: Mateus Rosada, 2017. Documentos comprovam também o avanço do Rococó adentrando o século XIX em São Paulo. Outro agrupamento importante será o de obras semelhantes ao retábulo da Igreja da Ordem Terceira do Carmo de São Paulo, realizado em 1800, provavelmente por Manoel José Antunes (São Paulo, c.1762 – s.l., 18??), único entalhador estabelecido na cidade naqueles anos (SÃO PAULO, 1807, p.85, fogo 453). Esse conjunto possui como algumas de suas características a talha com rocalhas maciças e protuberantes, com grande projeção para fora dos planos em que são aplicadas, encontros de volutas com curvas concorrentes, acróteras com agrafes, que se agarram às cornijas abaixo de si e lambrequins com pingentes com enrolamentos assimétricos. Há exemplares em São Paulo, Itu e Santos. Já com obras na virada do século XVIII e XIX está o grupo de João da Cruz (Rio de Janeiro, c.1865 – s.l., 18??), artífice natural do Rio e com oficina estabelecida em Taubaté no ano de 1807 (SÃO PAULO, 1807, p.61, fogo 248). Também neste caso, há apenas um registro confirmando ser dele uma obra: os livros de receita e despesa da Ordem Terceira do Carmo de Mogi das Cruzes acusam pagamento em 1815 pelo retábulo-mor (Fig.05) (ORDEM TERCEIRA, 1768-1818, f.88). As obras desse artífice se caracterizam, em especial, pelas mísulas com enrolamentos bastante protuberantes para os lados, colunas lisas ou com frisos que não percorrem todo o fuste, festões de flores, rocalhas em forma de “ƛ” (lâmbida) sobre arranques de frontões nas laterais, frontão central com resplendor e ladeado por volutas, e por pendentes com flores de lis (ROSADA, 2016, p.310-318). Os retábulos desse padrão decoram igrejas desde a cidade de São Paulo até Taubaté e Tremembé, no Vale do Paraíba, concentrando-se os trabalhos em Mogi das Cruzes e Guararema. Figura 5 − Retábulo-mor da Igreja da Ordem Terceira do Carmo, Mogi das Cruzes. Figura 6 − Retábulo-mor da Igreja Matriz de Santo Antônio, Guaratinguetá. Foto: Mateus Rosada, 2014. Foto: Mateus Rosada, 2017. As igrejas da Capitania de São Paulo continuaram recebendo alguma influência da ornamentação Rococó do Rio de Janeiro na região do Vale do Paraíba, caminho que ligava São Paulo à Capital da Colônia e área de transição entre as capitanias, com presença de pessoas naturais de ambas. Os Maços de População de 1792 a 1808 de Guaratinguetá acusam a presença de um único entalhador vivendo na cidade: Guardiano José das Chagas (Rio de Janeiro, c.1744 – Guaratinguetá [?], 18??), natural do Rio de Janeiro, tendo vivido uma parte de sua vida em Parati, e depois estabelecendo-se Guaratinguetá (SÃO PAULO, 1792, fogo 23; SÃO PAULO, 1809, f.28, fogo 103). Não parece ser acaso que as obras de talha da virada entre o século XVIII e XIX das regiões de Parati e Guaratinguetá (Aparecida e Cunha incluídas), cidades onde viveu Guardiano, se assemelhem enormemente com os retábulos e arcos-cruzeiros Rococós do Rio de Janeiro (local onde ele nasceu), especialmente os executados por um dos mais requisitados entalhadores da capital da colônia na segunda metade do século XVIII: Ignacio Ferreira Pinto. (RABELO, 2001). Os altares que se atribuem ao grupo de Chagas (Fig.06) se destacam pelas colunas com frisos salientes arrematados no primeiro terço e nas partes superior e inferior do fuste por elementos fitomorfos, e com capitéis com as folhas de acanto estilizadas; contam também com a presença de auriculares nas cartelas e tarjas. Os arcos-cruzeiros são únicos no Estado de São Paulo, pois possuem exuberante ornamentação rocaille com aletas laterais acima de suas molduras, estas ornadas com cartelas nas faces externas e no intradorso. À Guisa de Conclusão: um Rococó Paulista A talha religiosa Rococó em São Paulo apresenta, ao fim do século XVIII, traços característicos regionais e é perceptível que determinados grupos de entalhadores influenciaram outros que se seguiram, sendo possível afirmar que se cria, nesse momento, uma espécie de escola paulista de artífices com padrões locais (ARAÚJO, 1997). A maior parte das obras do Rococó Paulista passa a ter variações locais e únicas, e são perceptíveis quatro padrões dominantes, que indicam “escolas” e grupos cujos entalhadores deram continuidade a padrões de seus mestres:    Dois grandes padrões dominantes num raio de 100km no entorno da capital São Paulo. O primeiro, com centro em Itu, tributário da obra de Bartholomeu Teixeira Guimarães, com obras também dos grupos de José Fernandes de Oliveira, Floriano José e Guilherme Francisco Vieira, que demonstram uma sequência de padronagem que vigora por pelo menos sessenta anos. E o segundo, sediado na capital, de uma linguagem mais compacta e volumosa, atrelado, provavelmente, ao entalhador Manoel José Antunes. Um padrão, ainda que não se diferencie substancialmente do realizado no Rio de Janeiro, que decorou as igrejas na área de influência de Guaratinguetá, com obras de Guardiano José das Chagas e seus possíveis discípulos, abrangendo realizações no Caminho Velho da Estrada Real, chegando até a cidade fluminense de Paraty. Um quarto padrão na faixa ao longo do caminho que ligava o Rio a São Paulo, de artífices seguidores da decoração criada pelo carioca João da Cruz, com as obras gravitando entre Mogi das Cruzes e Taubaté e cidades próximas, e características no entremeio dos padrões estritamente paulistas da capital e do estilo fluminense de Guardiano José das Chagas, que atuava na cidade vizinha à da oficina de João da Cruz. Esses são nomes de entalhadores cujos grupos ou círculos mais próximos produziram objetos de talha nas igrejas paulistas durante a vigência do Rococó. Outros mais existiram, anônimos, cujos nomes nunca foram recuperados, com obras em menor número, muitas vezes de ocorrência única, em apenas um templo, como é o caso de boa parte das irmandades pobres do Rosário dos Pretos, existentes em quase toda vila colonial. Toda comunidade religiosa, por singela que fosse, procurou dar à Casa de Deus a melhor dignidade possível, e ela se deu, no período de 1760 a 1840, com a ornamentação rocaille. E assim, o Rococó, estilo nascido na França, que chegou à Baviera, foi ali editado, transformado, copiado e impresso, chegou a Portugal e cruzou o oceano, atingindo as franjas mais longínquas do domínio português na América. O Rococó conquistou o gosto da população, substituiu ornamentações anteriores e depois ainda resistiu a novas modas estéticas que chegavam ao Brasil, perdurando por muito mais tempo do que em outros lugares do globo. Atualmente, das 120 igrejas construídas até o advento da República e que ainda remanescem no solo de São Paulo, 81 delas, pouco mais de dois terços, possui decoração rococó (ROSADA, 2016, p.163172), no todo ou ao menos em parte, o que demonstra a importância e a representatividade desse estilo para a arte religiosa paulista. Compreender melhor essa arte é valorizar elementos que são constitutivos da formação e da cultura do Estado, e demonstrar como é imperiosa a sua preservação. Referências ANDRADE, Mário de. Padre Jesuíno do Monte Carmelo. São Paulo: Martins, 1963. ARAÚJO, Maria Lucília Viveiros. O Mestre-pintor José Patrício da Silva Manso e a pintura paulistana do setecentos. Dissertação (Mestrado). Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras e Artes. 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Na ocasião, confirmou-se a hipótese de que as medidas tomadas pelo governo de São Paulo e pela municipalidade, no final do século XIX, sob a organização do regime republicano e para combater as epidemias de febre amarela, estiveram fundamentadas nos princípios do urbanismo sanitarista europeu, que foram sistematizados na legislação sanitária estadual e edilícia municipal, embasando as práticas relacionadas à higiene das habitações e orientando a atividade edificativa em Campinas. Respaldado na análise do panorama da construção civil em Campinas, este artigo elucida o procedimento administrativo que autorizou as licenças para a construção de moradias, que foi formalizado na legislação edilícia e organizado na Repartição de Obras, identificando os protagonistas na concepção e na análise dos requerimentos para aprovação dos projetos arquitetônicos. Na tese concluiu-se que a normativa municipal para construções, atendendo aos preceitos da legislação sanitária estadual e dando suporte ao aparato sanitarista, foi decisiva para promover as alterações nos prédios existentes e para orientar a construção de novas habitações em Campinas/SP, ao estabelecer a obediência às determinações técnicas de aspecto, de solidez e de higiene, principalmente relacionadas à impermeabilização, à insolação e ao arejamento das edificações urbanas. Palavras-chave: Higiene da habitação. Habitação urbana paulista. Legislação sanitária. Legislação edilícia. Urbanismo sanitarista. Abstract It deals with a chapter of the doctoral thesis that worked with the theme of hygiene of urban housing of São Paulo and that aimed to analyze in original documentary sources how it was included in government initiatives to improve sanitary conditions of the city of Campinas / SP, between 1880 and 1934. On this occasion, the hypothesis was confirmed that the measures taken by the government of São Paulo and by the municipality, in the late 19th century, under the organization of the republican regime and to combat yellow fever epidemics, were based on the principles of European sanitary urbanism, which were systematized in the state sanitary legislation and municipal building, supporting the practices related to house hygiene and guiding the building activity in Campinas. Supported in the analysis of the panorama of civil construction in Campinas, this article clarifies the administrative procedure that authorized the licenses for the construction of houses, which was formalized in the building legislation and organized in the Works Department, identifying the protagonists in the design and analysis of the requirements for approval of architectural projects. In the thesis it was concluded that the municipal norm for constructions, in compliance with the precepts of the state sanitary legislation and supporting the sanitary apparatus, was decisive to promote the alterations in the existing buildings and to guide the construction of new houses in Campinas / SP, when establishing obedience to the technical determinations of appearance, solidity and hygiene, mainly related to waterproofing, insolation and ventilation of urban buildings. Keywords: Housing hygiene. São Paulo urban housing. Sanitary legislation. Building legislation. Sanitary urbanism. Resumen Se trata de un capítulo de la tesis doctoral que trabajó con el tema de la higiene de la vivienda urbana en São Paulo y que tuvo como objetivo analizar en fuentes documentales originales cómo se incluyó la vivienda en las iniciativas gubernamentales para mejorar el estado de salud de Campinas / SP, entre 1880 y 1934. En esta ocasión se confirmó la hipótesis de que las medidas tomadas por el gobierno de São Paulo y por el municipio, a fines del siglo XIX, bajo la organización del régimen republicano y para combatir las epidemias de fiebre amarilla, se basaron en los principios del urbanismo sanitario europeo. , los cuales fueron sistematizados en la legislación sanitaria estatal y de edificación municipal, apoyando las prácticas relacionadas con la higiene de la vivienda y orientando la actividad de edificación en Campinas. Apoyado en el análisis del panorama de la construcción civil en Campinas, este artículo aclara el trámite administrativo que autorizó las licencias para la construcción de viviendas, que se formalizó en la legislación de edificación y se organizó en el Departamento de Obras, identificando a los protagonistas en el diseño y análisis de los requisitos. para aprobación de proyectos arquitectónicos. En la tesis se concluyó que la normativa municipal para construcciones, en cumplimiento de los preceptos de la legislación sanitaria estatal y de apoyo al aparato sanitario, fue determinante para promover las reformas en las edificaciones existentes y orientar la construcción de nuevas viviendas en Campinas / SP, al establecer obediencia a las determinaciones técnicas de apariencia, solidez e higiene, principalmente relacionadas con la impermeabilización, insolación y ventilación de edificios urbanos. Palabras clave: Higiene de la vivenda. Vivienda urbana de São Paulo. Legislación sanitária. Legislación de la construcción. Urbanismo sanitario. O procedimento para aprovação de edificação de obras particulares sistematizado na legislação edilícia A partir de 1893, os proprietários dos terrenos urbanos ou seus representantes legais, que tivessem a intenção de realizar qualquer obra civil em Campinas deveriam obedecer ao procedimento administrativo que foi instituído por meio da Resolução Municipal nº 15, de 30/06/1890. Por meio desta lei, as plantas arquitetônicas que fossem apresentadas junto aos requerimentos para as obras particulares poderiam ser imediatamente executadas após a análise técnica do engenheiro municipal e a aprovação final exclusiva do presidente do Conselho de Intendência, não necessariamente de todos os seus três membros (CAMPINAS [Município], Resolução nº 15, 30 jun. 1890). Naquele ano, Antonio Alvares Lobo respondia pela presidência do Conselho de Intendentes e ainda pela Intendência de Higiene e Instrução Pública1, com atribuições que o qualificavam como o Após a Proclamação da República, o Decreto Estadual nº13, de 15/01/1890, estabeleceu que, até a definitiva constituição do Estado de São Paulo, o poder ou governo dos municípios seria exercido por Conselhos de Intendência, que estariam compostos de 3 a 9 membros, nomeados pelo Governador, sendo um deles o presidente, onde todos deliberariam sobre todos os assuntos da competência das câmaras municipais. Dentre suas atribuições estaria aquela de “alterar, substituir e revogar as atuais posturas municipais, decretar novas, si assim exigir o bem do município”. Em janeiro de 1890, o advogado Antonio Álvares Lobo foi nomeado o primeiro presidente do Conselho de Intendência da cidade de Campinas/SP e no ano de 1893, data dos requerimentos descritos, como membro da Junta de três Intendentes, respondia pela Intendência de Higiene e Instrução Pública, como fora estabelecido pela Lei Municipal nº01, de 12/10/1892, permanecendo nesta função até 1895. Na condição do seu cargo, dentre os três intendentes municipais, Antonio Álvares Lobo teria a atribuição legal de deliberar sobre a “construção e higiene das habitações”. Os outros dois intendentes seriam Antonio Carlos do Amaral Lapa, que recebeu as solicitações em 1893, e José Maximiano Pereira Bueno. As competências do Intendente Municipal de Higiene e Instrução Pública foram determinadas no Capítulo II, da Lei Municipal nº01, de 12/10/1892 e seriam: “Estatuir e prescrever todas as medidas que interessar possam à higiene do município, decretando as providências que forem a benefício da salubridade do lugar e da 1 mais indicado para deliberar sobre a “construção e higiene das habitações”. Foi ele quem recebeu e deu o parecer final aos requerimentos, apesar da imprecisão dos proprietários no endereçamento dos documentos, pois ainda verificamos em 1893 que ele remeteu os pedidos ora a Lobo, ora a Lapa, que respondia naquele momento pela Intendência de Obras Públicas e Posturas2. saúde dos munícipes; Deliberar de harmonia com a lei municipal as questões sobre limpeza pública, fontes chafarizes, poços, desobstrução de rios, lavanderias, construção e higiene das habitações, além dos logradouros públicos; Inspecionar o serviço do matadouro, talhos e açougues, mercado, qualidade dos gêneros de consumo sujeitos a deteriorações, fábrica de bebidas e natureza destas; Determinar o trabalho de desinfecções, examinando o abastecimento de água, serviço de esgotos e irrigações de ruas e praças; Fiscalizar os estabelecimentos hospitalares e de obras pias, serviço de assistência pública, regime do cemitério e enterramentos; Superintender as fábricas que produzam matérias que possam prejudicar a saúde pública; Estabelecer as lotações de colégios, hotéis, hospedarias e casas particulares, e Impor multas aos infratores dos regulamentos e leis de higiene, subscrevendo os autos que serão remetidos a quem de direito”. O mesmo Intendente ainda seria responsável por resolver, de acordo com as leis municipais, “as questões relativas à instrução pública, em qualquer de seus ramos”. No Capítulo III, da mesma Lei Municipal, foram estabelecidas as competências do Intendente de Obras Públicas e Posturas: “Zelar dos próprios municipais, representando ao poder competente toda a vez que for mister qualquer reparo ou obra nos mesmos; Resolver os negócios referentes a alinhamento, demolição, enumeração de prédios, de ruas e praças, conservação, reparo e pintura de muros, construções de pontes viadutos, servidões, caminhos, jardins públicos, calçadas e arborização; Resolver as questões relativas a feiras, depósito e fabrico de inflamáveis e outros que possam prejudicar a propriedade e sossego público, bem como sobre iluminação, serviço de extinção de incêndio, transporte de veículos, telegráfico e telefônico; Regulamentar as matérias concernentes ao uso de armas nas povoações nas povoações, mediante editais que farão expedir notando quais sejam as proibidas; sobre caça e pesca; sobre espetáculos e divertimentos públicos e jogos; lavoura, comércio e indústrias, imigração e colonização, e Organizar a polícia municipal, fiscalizando a que for instituída por decreto do poder legislativo, bem como gerir os negócios de estatística e nomeadamente do recenseamento da população e cadastro do município”. Dentre ambos, o mais qualificado para responder aos requerimentos sobre a construção de obras particulares seria mesmo o Intendente de Higiene e Instrução Pública e não o Intendente de Obras Públicas e Posturas, pessoa para o qual alguns dos requerimentos daquele ano de 1893 foram endereçados. Completaria ainda o Conselho de Intendência o Intendente de Finanças (SÃO PAULO [Estado], Decreto nº13, 15 jan. 1890; CAMPINAS [Município], Lei nº 01, 12 out 1892; OCTAVIO e MEMILLO, Vicente [org], 1911, p.28). 2 Os requerimentos do ano de 1893, data inicial da pesquisa na documentação primária, foram endereçados ao Intendente de Obras Públicas, ao Intendente de Higiene e ao Presidente da Intendência Municipal. Informou Pareto Junior (2011, p.60) que na cidade de São Paulo a Lei Municipal nº 38, de 1893, determinou a exigência da apresentação de plantas das novas edificações, que resultaria no fornecimento de um alvará de licença que autorizaria o início de qualquer obra de construção civil na cidade, documento que seria lavrado pelo engenheiro chefe da Diretoria de Obras, Victor da Silva Freire. Na sessão ordinária da Câmara Municipal de 30/06/1890, data da aprovação da Resolução nº 15, Antonio Alvares Lobo leu aos vereadores presentes um ofício enviado pelo Dr. Charles Shalders, recém empossado engenheiro da Câmara Municipal de Campinas, que tratava do mesmo assunto. Atento às qualidades técnicas do projeto arquitetônico apresentado pelos proprietários, que seria por ele analisado e aprovado, o Dr. Shalders declarou em ofício que não mais assinaria as plantas sobre construções particulares que lhe fossem apresentadas para dar parecer, quando as mesmas não fossem “traçadas a tinta, visto poderem as mesmas serem alteradas, estando nelas a sua assinatura”3. O engenheiro da Câmara apontou igualmente a conveniência da Intendência em ficar com uma cópia das plantas, de forma a “poder fiscalizar essas construções” em qualquer momento da execução das obras, exemplar que deveria ser, segundo as suas sugestões, elaborado em papel transparente, pois ofereceria “maior comodidade aos requerentes, por ser muito mais fácil copiar um desenho em papel transparente do que fazer segundo, em papel branco”. Na sequência dos assuntos apresentados e discutidos naquele dia, o Intendente Lobo, na qualidade de presidente do Conselho de Intendência, apresentou aos vereadores ao final daquela sessão, a indicação de redação para a lei que regulamentaria o procedimento para a apresentação de projetos de obras particulares em Campinas. O Dr. Charles Shalders foi nomeado engenheiro da Intendência na data de 23/06/1890, substituindo o Dr. Henrique Florence. Na sessão ordinária seguinte à sua nomeação, em 30/06/1890, o recém empossado engenheiro da Câmara Municipal já apresentou a sua sugestão para o procedimento de aprovação de edificações na cidade (CAMPINAS [Município], Ata [...], 23 jun. 1890; CAMPINAS [Município], Ata [...], 30 jun. 1890). 3 O texto da Resolução nº 15 apresentou o mesmo conteúdo e redação deste que foi sugerido por Lobo e apresentado aos vereadores na sessão ordinária da Câmara Municipal do dia 30/06/1890, como podemos observar a seguir, o primeiro trecho com a sugestão de Lobo e o segundo trecho da Resolução Municipal: Todas as plantas de edificações que tiverem obtido o visto e aprovação do engenheiro poderão ser desde logo executadas sem dependência do Conselho, devendo, porém, os requerimentos ser presentes ao Presidente para mandá-los ao engenheiro. (CAMPINAS [Município], Ata [...], 30 jun. 1890.) Art. único. Todas as plantas das edificações que tiverem obtido o – visto - e aprovação do engenheiro, poderão ser, desde logo, executadas, sem dependência do Conselho de Intendência, devendo, porém, os requerimentos ser apresentados ao cidadão presidente, para mandá-los ao engenheiro (CAMPINAS [Município], Resolução nº15, 30 jun. 1890). Por sugestão de Lobo, as recomendações do Dr. Shalders quanto aos desenhos a tinta e as cópias das plantas arquitetônicas, apesar de não estarem expressamente contidas na Resolução nº 15/1890, deveriam tornar-se públicas por meio de edital, para que fossem atendidas pelos proprietários, na ocasião da apresentação dos requerimentos. Foram de Lobo as palavras a seguir: Relativamente ao ofício do Dr. Engenheiro da Intendência ficou resolvido fazer pública por meio de edital a deliberação ultimamente tomada sobre a apresentação de plantas de prédios devendo-se observar o que diz o mesmo engenheiro em seu ofício lido hoje (CAMPINAS [Município], Ata [...], 30 jun. 1890). Obedecendo ao trâmite legalmente estabelecido através da Resolução nº 15, de 1890, os requerimentos para a construção de obras particulares foram protocolados na Intendência pelos proprietários dos terrenos e encaminhados ao seu presidente, Antonio Alvares Lobo, que se responsabilizou por aprová-los, não sem antes remetê-los à avaliação técnica do engenheiro municipal, naquele momento o Dr. Emílio Daufresne de la Chevallerie4. Esse procedimento foi alterado somente na ocasião em que, pela falta de pessoa qualificada para ocupar o cargo de engenheiro deixado por Charles Shaldres, em 26/09/1890, os proprietários enviaram as solicitações para análise da Comissão de Obras Públicas da Câmara Municipal. Mesmo após a nomeação do engenheiro Daufresne, registrada em ata do dia 11/07/1892, alguns proprietários continuaram a protocolar os requerimentos na Câmara e não na Intendência Municipal. Na ata da sessão ordinária de 05/09/1892, por exemplo, a dupla de construtores de obras, Macchi & Mazzuchelli, solicitou autorização da Intendência para edificar um prédio à Rua Senador Saraiva nº 66, para D. Jacintha Maria da Conceição, assim como o engenheiro Dr. Antonio Raffin, Emílio Daufresne de la Chevallerie iniciou suas atividades como engenheiro da Câmara Municipal em 11/07/1892 e teve atuação de destaque nas questões relacionadas à higiene das habitações particulares. Permaneceu no cargo até finais de 1900, quando escreveu o parecer do requerimento para construção de obras particulares nº207, na data de 26/11, sendo substituído pelo engenheiro Vergniaud Neger, que já assinou a solicitação de nº209, protocolada no mesmo dia 26/11/1900 (CAMPINAS [Município], Ata [...], 11 jul. 1892; Req. 1900/209). 4 requisitou licença para a construção de prédio à Rua Dr. Quirino, nº 15, para o proprietário Claudio Celestino de Abreu Soares. Verificamos outro exemplo na ata da sessão ordinária da Câmara Municipal do dia 26/09/1892, onde o secretário registrou a leitura dos requerimentos de Domingos Balthasar Gomes e novamente da dupla de construtores Macchi & Mazzuchelli, pedindo permissão para construir prédios no bairro Guanabara, à Rua 28 de Setembro e à Rua Ferreira Penteado nº 132, respectivamente. Consta nas duas atas que as solicitações receberam do Presidente do Conselho o despacho de que seus pedidos seriam encaminhados ao engenheiro da Câmara, “para providenciar”, como deveria acontecer no procedimento estabelecido na lei de 18905. Mas a expressiva maioria dos documentos seguiu o procedimento estabelecido em lei. Em 18/04/1893, por exemplo, o proprietário Manoel Egydio do Nascimento, mediante apresentação de Como Presidente do Conselho de Intendência, o advogado Dr. Antonio Álvares Lobo também presidia as sessões da Câmara Municipal. Certamente que as solicitações para construção de obras particulares deveriam ser endereçadas ao Intendente Lobo, que ainda respondia pela Intendência de Higiene e Instrução Pública, que lhe incumbia de cuidar da construção e da higiene das habitações, mas os requerimentos deveriam chegar ao destinatário por caminho diferente daquele que foi tentado pelos construtores Macchi & Mazzuchelli, pelo engenheiro Antonio Raffin e por Domingos Balthasar Gomes. Os solicitantes deveriam ter protocolado seus requerimentos e não levado para serem apresentados, discutidos e registrados em atas de sessões da Câmara Municipal de Campinas. A dupla Julio Macchi & Mazzuchelli estava registrada no Livro de lançamentos dos Impostos de Indústrias e Profissões como “C. de obras”, certamente a versão abreviada de “constructor de obras”, a partir de 1896, com endereço comercial à Rua José de Alencar nº 55. O Dr. Antonio Raffin estava registrado como contribuinte do Imposto Municipal de Indústria e Profissões como engenheiro, com endereço comercial à Rua Barão de Jaguara, nº 45 (no período 1893/1895) e à Rua General Osório nº 140 (entre 1896/1899) e nº 63 (entre 1900 e 1903, data limite desta pesquisa). Não foi encontrada no Livro de Lançamentos dos Impostos de Indústrias e Profissões, em período entre 1890-1903, nenhuma informação a respeito de Domingos Balthasar Gomes (CAMPINAS [Município], Livro [...], 1890-1903; CAMPINAS [Município], Ata [...], 05 set. 1892; CAMPINAS [Município], Ata [...], 26 set. 1892). 5 requerimento endereçado ao presidente e demais membros da Comissão de Obras Públicas da Cidade de Campinas, solicitou autorização para fazer uma casa na Rua das Flores n0 70, conforme a planta inclusa, e no dia 5 do mesmo mês obteve a assinatura do engenheiro da Câmara Municipal – Dr.Emílio Daufresne – autorizando o início da construção. Nos requerimentos encontramos declarações manuscritas dos proprietários dos lotes urbanos e material gráfico composto de planta arquitetônica e do desenho da fachada. Essas declarações foram endereçadas ao Intendente Municipal e seguiram uma padronização na forma (disposição do texto na folha tamanho ofício) e no conteúdo (informações manuscritas), com textos redigidos pelos proprietários que indicavam a localização da obra e a intenção de construir novas edificações ou de reconstruir prédios existentes na cidade de Campinas6. Nas reformas ou reconstruções de edificações os requerimentos costumavam ter informações complementares, de forma a especificar minimamente as obras que estavam relacionadas à execução de melhorias nas condições de higiene, de solidez e de aspecto das construções urbanas. Nos processos pesquisados a partir do ano de 1893 há solicitações diversas e não somente para a construção de moradias. Dentre elas há pedidos para execução de alinhamento; para a edificação de muros de fecho dos terrenos; para reformas e adaptações de moradias existentes, principalmente para o assentamento de portas e janelas, e também para demolições e reconstruções das fachadas dos prédios existentes, edificados em taipa. Embora todos apresentassem o requerimento contendo a intenção e a localização da obra, a minoria continha o material gráfico com as representações da planta arquitetônica, fachadas e seções, documento que pode ter sido desmembrado da documentação original ou não ter resistido à ação do tempo em virtude da fragilidade do suporte material (papel vegetal) onde ele geralmente era elaborado. 6 O procedimento de apresentação de requerimentos foi alterado pela Lei Municipal nº 29, de 11/01/1894. O novo texto legal reiterou a obrigatoriedade da apresentação de documento à Intendência, indicando a intenção e o local da construção, apontando também para a obrigatoriedade das novas construções estarem “sujeitas ao padrão legal prescrito pela Câmara”, principalmente quanto ao alinhamento, à altura do prédio e as dimensões de portas e janelas, com pena de multa e desmanche da obra, à custa dos proprietários ou dos construtores, sem qualquer indenização por parte do poder público. Essa nova lei especificou que os requerimentos que fossem solicitados pelo “proprietário, empreiteiro da obra ou interessado”, para serem construídos especificamente “nos bairros suburbanos e nos do Arraial de Souzas, Valinhos e Rebouças e outros existentes e que de futuro se formarem”, deveriam informar o “local do prédio, suas dimensões, dando sucinta descrição dos aposentos”, para que fossem analisados pelo engenheiro municipal “para atender a matéria, conforme for de lei”. Ao que nos pareceu, esse texto legal de 1894, ao indicar a “descrição sucinta dos compartimentos”, não tornou obrigatória a apresentação da planta arquitetônica e da fachada dos edifícios situados fora da área central da cidade, uma vez que em muitos pedidos o material gráfico foi substituído pela descrição dos aposentos, com no máximo um esquema da composição da testada principal (CAMPINAS [Município], Lei nº 29, 11 jan. 1894). Em diversos requerimentos os proprietários apontaram a obediência ao “art.2º das novas posturas municipais”, possivelmente referindo-se à Lei nº29, de 11/01/1894, onde foi possível observar descrições bastante simplificadas do espaço interno das moradias, algumas vezes acompanhadas por desenhos que representaram somente a organização formal das fachadas. Segundo descrição do proprietário de terreno no Arraial de Souzas, “o prédio em questão terá 7,40 de fundo e 8,20 de largura, dividido da maneira seguinte: uma porta na frente e duas janelas, tendo uma sala, duas alcovas, varanda e cozinha”, que justifica a não apresentação de planta “em vista da pequenez do prédio”. No requerimento de Manoel Gomes da Graça, o proprietário solicitou a construção de casa em terreno da estrada do Taquaral e recebeu o seguinte despacho do engenheiro da Câmara: “[...] tenho a informar que o requerimento além de não apresentar planta, não dá nenhum detalhe a respeito da construção que pretende fazer, não dá comprimento nem fundo do prédio, altura, não dá o número de portas, janelas, e nem as suas dimensões, de modo que torna-se impossível dar despacho ao dito requerimento”. Indeferido, o solicitante executa o croquis, feito, de forma improvisada, no canto esquerdo inferior da folha, e teve seu requerimento aprovado. Essas exigências da Lei Municipal nº 29/1894, relativas ao procedimento para solicitação e aprovação de novas construções ou reconstruções na cidade, foram reiteradas em 27/08/1895, data em que o Intendente Antonio Álvares Lobo decretou e promulgou a Lei Municipal nº 43, que tratou das edificações em geral.7 Ainda Na ata da Câmara Municipal, da sessão ordinária de 16/11/1891, foi encontrada uma referência a uma tentativa de elaboração de novas posturas que complementariam ou substituiriam as determinações do Código de 1880, mas que não teve prosseguimento. 7 dependente de regulamento próprio, “estabelecendo as condições de higiene, de solidez e de aspecto” para os edifícios na cidade, a nova lei municipal sobre construções pouco alterou e ainda consolidou as determinações do Código de Posturas de 18808, e incorporou determinações relativas ao procedimento para solicitação de obras particulares9. O processo de aprovação da Lei Municipal nº 43 apareceu registrado nas atas da Câmara Municipal a partir da sessão ordinária de 02/07/1895. Naquele dia, a Comissão de Obras Públicas, formada pelos vereadores José Falque, Alfredo Francisco e Antônio Carlos do Amaral Lapa, apresentou um projeto de lei Segundo consta no documento, naquele dia fora remetido à Comissão de Higiene o parecer da Comissão de Obras Públicas, que “aprovou, na parte que lhe diz respeito, os artigos, projetos de posturas, indicados pelo Sr. Dr. Ricardo”, referindo-se ao Dr. Ricardo Gumbleton Daunt, que naquele momento respondia pela presidência do Conselho de Intendência. Em ata anterior, da sessão ordinária de 18/04/1891, verificou-se o registro do presidente da Intendência, nomeando os membros das seguintes comissões: a) Comissão de Posturas: Dr. Francisco de Paula Cunha e Paulino Muniz; Comissão de Contas: Carlos Kaysel e José Teodoro de Oliveira Andrade; Comissão de Obras Públicas: Tenente Francisco José de Abreu e Luís Gomes Pinto; Comissão de Justiça e Redação: Paulino Muniz e Dr. Germano Melchert, e a Comissão de Instrução e Higiene: Dr. Francisco de Paula Cunha e Christiano Wohnrath (CAMPINAS [Município], Ata [...], 18 abr. 1891; CAMPINAS [Município], Ata [...], 16 nov. 1891). 8 No Código de Posturas de 1880 não estava estabelecido nenhum procedimento para apresentação de plantas Em seu artigo 8º estava determinado que as “casas que d’ora em diante se edificarem na cidade, poderão ser feitas de acordo com o gosto e a arquitetura das construções modernas”, desde que respeitassem determinadas condições de aspecto (altura da testada, dimensionamento e composição das aberturas e organização do telhado com beirais e platibanda) e de solidez (paredes) (CAMPINAS [Município], Resolução nº20, 10 jun. 1880, art.8º). 9 Os preceitos da Lei Municipal nº 43, de 27/08/1895, teriam validade para as edificações situadas no perímetro urbano, definido em Lei Municipal nº 31, de 14/02/1894, e nos “subúrbios e bairros”. A Lei Municipal nº 29, de 11/01/1894, determinou que nenhum prédio fosse construído ou reconstruído na cidade, bairros suburbanos e arrabaldes, sem que se precedesse licença do poder público, através de requerimento contendo o local do prédio, suas dimensões e sucinta descrição dos aposentos, estando ainda sujeitas ao padrão legal prescrito pela Câmara, quanto à altura do prédio, dimensões de portas e janelas, alinhamento, etc, com pena de multa e desmanche da obra, à custa dos proprietários ou construtores (CAMPINAS [Município], Lei nº 43, 27 ago. 1895). relativo às edificações, com a justificativa de adequar as antigas posturas às “exigências modernas” de uma cidade que eles acreditavam estar em “período de transformação”, como pode ser verificado no trecho transcrito a seguir: Convindo reformar o Código de Posturas, na parte relativa às edificações, pondo-se de acordo com as exigências modernas, visto atravessar a cidade o seu período de transformação e de reorganização, oferece à Comissão de obras públicas o presente projeto de lei (CAMPINAS [Município], Ata [...], 02 jul. 1895). Na sessão ordinária de 05/08/1895, o referido projeto de lei foi aprovado em segunda discussão, tal como fora apresentado. No dia 26/08/1985, em terceira e definitiva votação, foi apresentada aos vereadores presentes naquela sessão ordinária, escrita pelos membros da Comissão de Redação, Ricardo Coelho e Alfredo Franco, a redação da Lei nº 43, que “altera o código de posturas de 1880, na parte relativa a edificações”, que foi oficialmente publicada no dia seguinte. Foi somente com o Regulamento da Lei nº 43/189510, publicado em 22/09/1896, que ficou padronizada e mais claramente definida O Regulamento da Lei nº 43, de 22/09/1896, consolidou as normas para apresentação dos projetos que foram determinadas nos textos legais anteriores, como a Lei Municipal nº 29, de 11/01/1894, e a Lei Municipal nº 43, de 27/08/1895, além de incorporar a sugestão feita pelo antigo engenheiro da Câmara Municipal, Dr. Shalders, que na sessão ordinária de 30/06/1890, sugeriu que os desenhos das obras particulares fossem feitos em duplicidade, de forma a ter sempre um exemplar no local da obra para uma possível inspeção. As construções e reconstruções situadas fora do perímetro urbano estariam dispensadas do pagamento de imposto de alinhamento e de construção, mas não da prévia licença da Intendência Municipal. O Regulamento de 1896, assim como havia sido feito na Lei nº 43/1895, apontou que continuariam em vigor “todas as posturas municipais sobre construções e viação pública anteriormente promulgadas”, cujas disposições não estivessem em desacordo com as novas determinações. Neste sentido, ainda não foram totalmente revogadas as disposições legais estabelecidas pelo Código de Posturas de 1880, que nada 10 a forma de apresentação do material gráfico que acompanharia os requerimentos endereçados ao Intendente Municipal, na época Manoel de Assis Vieira Bueno, solicitando autorização para executar qualquer obra civil de construção e de reconstrução, dentro ou fora do perímetro da cidade de Campinas. De acordo com o Regulamento, para obter essa licença prévia, o proprietário da obra ou seu representante legal, deveria juntar ao seu pedido com as informações tradicionais de intenção e de localização da obra, os desenhos das plantas de cada pavimento, da “elevação geométrica das fachadas principais” e das “seções longitudinais e transversais suficientes para a inteira compreensão do projeto, e em que se indicará com muito cuidado a colocação das latrinas, encanamentos de esgotos, sifões e tubos de ventilação”, além dos “planos completos de quaisquer dependências que tenha a mesma obra”. Na intenção de padronizar a forma de apresentação do documento, os desenhos tiveram escalas definidas em 1/100 (plantas) e em 1/50 (elevações e seções), e deveriam ser elaborados em duplicidade, com um exemplar feito em papel branco comum de desenho e o outro em papel tela, de modo que cada folha de desenho tivesse altura mínima de 50cm, “dobrada de modo a ter 0,21 + 0,81 centímetros, conforme a fôrma do papel do requerimento”. A partir de 1896, os requerimentos que não apresentaram restrição legal ganharam de Daufresne o despacho padronizado com as seguintes palavras: “Aprovado conforme o regulamento da Lei n0 apontou sobre o procedimento para solicitação das licenças para obras particulares de edificações (CAMPINAS [Município], Lei nº 43, 27 ago. 1895, art. 1º, 6º e 7º; CAMPINAS [Município], Regulamento da Lei nº43, 22 set. 1896, art.36). 43”. O engenheiro costumava ser bastante rigoroso com os proprietários quanto à forma de apresentação dos requerimentos. Em alguns casos, onde a documentação não estava condizente com a legislação municipal, até mesmo impossibilitando a sua análise técnica, ele solicitava ao interessado a adequação às normas. Foi o que ele fez com Marciano Tortoriello, proprietário do terreno e da casa que desejava demolir a Rua Major Solon n0 58. Sobre a planta da nova edificação, Daufresne deu o seguinte parecer: “Não posso aceitar a planta apresentada porque além de ser muito mal desenhada, não se acha nas condições exigidas pelo Regulamento da Lei n0 43 [...]”. O procedimento de apresentação de requerimentos para construção de obras particulares em Campinas foi alterado após três décadas de prática administrativa, com a promulgação da Lei Municipal nº 400, de 26/02/1927, que também abordou essa questão quando tratou do abastecimento de águas, dos esgotos sanitários e das águas pluviais em Campinas. Essa normativa municipal certamente atendeu às determinações das leis estaduais que, embora não especificassem as normas para apresentação dos projetos arquitetônicos, impuseram a obrigatoriedade da apresentação dos mesmos antes de ser iniciada qualquer construção e reconstrução na cidade, e ainda “organizada de acordo com as posturas municipais e as leis sanitárias do Estado”11. Entre 1911 e 1918 o Estado de São Paulo publicou quatro importantes leis que trataram do Serviço Sanitário e do Código Sanitário, onde estavam determinadas prescrições para a normatização da atividade construtiva, tanto para os aspectos construtivos com para a polícia sanitária das habitações, que deveriam ser incorporadas pelos municípios paulistas, quando da atualização das suas posturas. O Decreto nº 2.141, de 14 de novembro de 1911, 11 Os procedimentos apresentados em 1927 foram finalmente consolidados no Código de Construções de 1934, através do Decreto Municipal nº 76, de 16/03/1934, denominado “Código de Construções”12. Na comparação entre os textos de 1927 e 1934, a Lei Municipal nº 400/1927 foi bastante minuciosa e consolidou a normativa para o procedimento de apresentação de projetos, com o objetivo de obter o “alvará de construção”, termo que apareceu pela primeira vez em lei, substituindo a antiga “licença prévia para construir”13. No Código de Construções de 1934 houve neste sentido a complementação de que, antes de ser expedido qualquer alvará para o início da construção, a Repartição de Obras e Viação faria uma vistoria para verificar as condições do local das obras. Não estava expressamente especificada qual seria essa preocupação, mas provavelmente estaria relacionada à situação do terreno, em termos reorganizou o Serviço Sanitário e estabeleceu o seu Regulamento; a Lei nº 1.310, de 30 de dezembro de 1911, aprovou o decreto nº 2.141, com modificações; a Lei nº 1.596, de 29 de dezembro de 1917, reorganizou o Serviço Sanitário do Estado e, por fim, o Decreto nº 2.918, de 09 de abril de 1918, dá execução do Código Sanitário do Estado de São Paulo, normativa esta que, até o limite temporal de 1934, foi a última a tratar do controle da atividade edilícia no Estado de São Paulo. 12 Existiu uma alteração anterior, através da Lei Municipal nº 264, de 29/10/1920, que, embora tratasse do assunto edificações, não alterou o procedimento para apresentação de requerimentos para obras particulares. Naquele texto estava determinado que a Repartição de Obras somente aprovaria as plantas para construções e reconstruções de prédios na cidade, “depois de verificadas a solidez e a conformação do respectivo terreno e de prédios vizinhos, no caso destes serem aproveitados, e a exatidão dos projetos apresentados” (CAMPINAS [Município], Lei nº 264, 29 out. 1920; CAMPINAS [Município], Lei nº 400, 26 fev. 1927; CAMPINAS [Município], Decreto nº 76, 16 mar. 1934). 13 O interessado poderia modificar o plano aprovado, desde que solicitasse novo alvará, apresentando à Prefeitura o projeto com as alterações. Não seria necessária nova licença para a execução de pequenas modificações como: altura máxima dos edifícios; altura mínima dos pés direitos; espessura mínima das paredes; superfície mínima de iluminação; máximo das saliências; acréscimo da superfície dos pisos dos cômodos dos prédios em construção, com planta aprovada, até 3% da superfície aprovada, desde que não sejam afetados os mínimos dos espaços livres, áreas, saguões e corredores (CAMPINAS [Município], Lei nº 400, 26 fev. 1927). do plano do retalhamento da quadra em lotes, em virtude da crescente expansão da cidade para além da área de urbanização tradicional. Em 1927, os requerimentos deveriam ser assinados pelo proprietário do terreno ou da obra e também pelo construtor responsável pela concepção e pela execução da obra, e notamos que alguns construtores substituíram os antigos manuscritos por requerimentos datilografados, alguns elaborados em papel timbrado. Em relação à produção do material gráfico, a Lei de 1927 determinou que o interessado deveria, conjuntamente com o requerimento em que submeteria à Prefeitura o projeto da obra, apresentar, em papel ferro prussiato14, ou em outro semelhante, os detalhes do projeto, todos desenhados em duplicata. No Código de Construções de 1934 as cópias deveriam ser “apresentadas em triplicata, e desenhadas com nitidez em papel de boa qualidade, sem emendas, rasuras ou explicações que as alterem ou modifiquem, dobradas em formato ofício e devidamente grampeadas”15. Segundo as prerrogativas da Lei nº 400/1927, o material gráfico que deveria ser apresentado junto ao pedido de licença para a O papel ferro prussiato, que foi encontrado em alguns requerimentos, corresponde ao papel de base azul em que eram feitas as cópias dos desenhos originais. Havia outro tipo de papel de cópia, em tom sépia, que era denominado ferrogálico. 15 O Regulamento da Lei nº 43/1896 já havia determinado a necessidade da apresentação de planta de cada pavimento, elevação geométrica das fachadas principais e as seções longitudinais e transversais, apontadas como “suficientes para a inteira compreensão do projeto”, todos desenhados em duplicata, de forma a que uma cópia permaneça na obra para consulta dos técnicos e fiscais municipais, a qualquer hora (CAMPINAS [Município], Regulamento da Lei nº 43, 22 set. 1896). 14 construção de obras particulares em Campinas, deveria ser constituído por: a) - planta de cada um dos pavimentos que tiver o edifício, indicando o destino dos compartimentos e suas dimensões; b) elevação da fachada ou fachadas voltadas para a via pública; c) - cortes transversal e longitudinal do edifício; d) - planta da situação do edifício em relação às divisas do lote e às vias públicas, indicando as construções limítrofes, as curvas de nível do terreno de 20 em 20 centímetros, entre o fundo da construção e a via pública e a orientação do edifício; e) - memorial descritivo dos materiais a empregar e do destino da obra; f) - sempre que a Repartição julgue conveniente poderá exigir a apresentação dos cálculos de resistência e estabilidade da obra (CAMPINAS [Município], Lei nº 400, 26 fev. 127, art.4º). O destaque da Lei Municipal nº 400/1927 foi para a elaboração da “planta da situação do edifício”, que deveria representar a situação do lote na quadra e da casa no lote, destacando o recuo frontal e os afastamentos laterais, além da apresentação do “memorial descritivo dos materiais a empregar” e dos “cálculos de resistência e estabilidade da obra”. O Código de Construções de 1934 reiterou e complementou essas prerrogativas, acrescentando a obrigatoriedade do desenho da planta do porão, do telhado, das dependências16 e dos gradis ou muros voltados para a via pública. As dependências como garagem, cocheiras, latrinas externas e telheiros dependeriam de alvará de construção se fossem construídas posteriormente à edificação principal. Não precisariam de alvará de construção nem da apresentação de projeto, mas de simples requerimento e autorização da Prefeitura, as edículas não destinadas à habitação (galinheiros, estufas, caramanchão, etc), os serviços de limpeza, pintura, concertos e pequenas reparações, tanto no interior como no exterior como no interior dos prédios, desde que não alterassem 16 Outras inclusões do Código de 1934 na planta de situação foram relativas à indicação da orientação norte/sul, possivelmente para que a edificação melhor aproveitasse dos benefícios de uma implantação que levasse em consideração o movimento solar, e da marcação dos perfis longitudinais e transversais do terreno, provavelmente visando o adequado escoamento das águas superficiais do terreno. Outro documento obrigatório a partir de 1934 foi o comprovante da titularidade do terreno, devidamente registrado na Repartição de Estatística Imobiliária. O maior rigor no desenho técnico estaria complementado na Lei Municipal de 1927 pela normatização das escalas mínimas, sendo de 1:100 para plantas e fachadas, de 1:50 para cortes, e de 1:200 para planta de situação, o que não dispensaria que os compartimentos apresentassem medidas em “cotas”, que prevaleceriam sobre as dimensões em escala gráfica17. Exigidas em 1934, as plantas arquitetônicas do porão e das dependências teriam a escala dos pavimentos, 1:100, sendo seções e elevações em 1:50, pormenores em 1:20 e planta de situação em 1:200, não dispensando a indicação de cotas. A convenção do traçado à tinta apareceu em 1927, de acordo com a seguinte normativa: “tinta preta – indicará construção nova, ou partes a serem conservadas; tinta vermelha – obra projetada; tinta amarela – edificação a ser demolida; tinta azul – obra em ferro”. Essa prerrogativa foi ligeiramente alterada em 1934: a construção em parte essencial ou dependessem de andaimes e tapumes (CAMPINAS [Município], Decreto nº 76, 16 mar. 1934, arts.160-162). 17 As escalas já haviam sido definidas no Regulamento da Lei nº 43/1896, idênticas em 1:100 para as plantas e em 1:50 para os cortes, e somente a escala da fachada, que era de 1:50 em 1896 passou a ser 1:100 em 1927. tinta preta para partes conservadas; tinta vermelha para construção nova; tinta amarela para partes a demolir; tinta azul para obra de ferro ou aço; tinta verde para obra de concreto armado e tinta terra de siena para as partes em madeira. Segundo o novo trâmite, em 1927 e em 1934, após a aprovação pela Repartição de Obras e Viação, os projetos seriam encaminhados à Repartição de Águas e Esgotos para que os técnicos complementassem o projeto com as instalações domiciliares e a sua ligação às redes públicas de águas e esgotos18. O tempo máximo para a análise dos requerimentos nas repartições e a consequente autorização para o início das obras foi determinado em 1927 e reiterado em 1934, como sendo de vinte dias úteis, a contar da data de apresentação das solicitações “na portaria da Prefeitura”, não podendo os projetos permanecer por mais de oito dias em cada uma das duas repartições. Se após o tempo limite o interessado não tivesse obtido solução para o seu requerimento, o mesmo poderia, mediante aviso prévio à Repartição de Obras, dar início às obras. Na análise que seria realizada em qualquer uma das duas repartições municipais, os técnicos poderiam recusar “o destino da obra, em seu conjunto e em seus elementos componentes” quando fossem “julgados inadequados ou inconvenientes, sob os pontos de vista de segurança, higiene e salubridade da habitação, quer se trate de peças de uso noturno quer de uso diurno”, indicando medidas Estaria vedado aos proprietários fazer qualquer tipo de alteração no projeto organizado pela Repartição de Águas e Esgotos. Caso houvesse a necessidade de pequenas correções, os funcionários municipais entrariam em contato com o interessado, pelo “jornal oficial”, para prestar os esclarecimentos necessários à compreensão do projeto e, passados oito dias do aviso, o não comparecimento encerraria automaticamente o procedimento administrativo. 18 relacionadas ao uso e à ocupação do solo, que nas décadas seguintes foram sistematizadas na lei de zoneamento municipal. A Lei Municipal nº 401/2719, apresentou no seu artigo 8º um glossário com a definição de várias “palavras” relacionadas à atividade edificativa que eram comumente utilizadas nos requerimentos, nas plantas arquitetônicas e na legislação edilícia, O Código de Construções de 193420 complementou os termos anteriormente definidos, incluindo diversos outros no “Apêndice n.2 – Das definições”. Referências (Documentos primários) CAMPINAS [Município]. Ata da sessão ordinária da Câmara Municipal, 30/06/1890; 18/04/1891; 16/11/1891; 11/07/1892; 17/08/1892; 05/09/1892; 26/09/1892; 02/07/1895; 05/08/1895; 26/08/1895. Os termos definidos na Lei Municipal nº 401/1927 foram, pela ordem em que se apresentaram no artigo 8º: altura; áreas; saguões, corredores e reentrâncias; habitação; lotes; frente; insolação; alinhamento; passeio, calçada; partes essenciais da construção; construir, edificar; reconstruir, alinhamento; passeio, calçada; partes essenciais da construção; construir, edificar; reconstruir, reformar, concertar; vias públicas; porão; embasamento; “rés-do-chão”; loja; sobrelojas; andar; ático e pé-direito. 20 No Código de Construções de 1934 os termos definidos, apresentados em ordem alfabética, no “Apêndice n.2 – Das definições”, foram: acréscimo; alinhamento; altura; andar; andar térreo; área; área de frente; área de fundo; área lateral, passagem ou corredor; área interior; área de divisa; área exterior; área comum; calçada de um prédio; cava ou subterrâneo; concertos de um prédio; construir; edificar; embasamento; família; frente do lote; fundo do lote; girão; habitação; insolação; logradouro público; loja ou rés-do-chão; lote; modificação de um prédio; palanque; parte carroçável de um logradouro; partes essenciais; passeio de um logradouro; passagem; pé-direito; porão; prédio térreo; prédio assobradado; prédio de sobrado; primeiro andar; profundidade do lote; reconstruir; reforma de um edifício; reentrância; reparos ligeiros ou pequenos concertos; sobreloja; sótão, água-furtada ou mansarda e vias públicas. 19 ______ . Decreto nº 76, 16 mar. 1934. Código de Construções. Separata do Código de Posturas Municipais. Campinas: Casa Genoud, 1935. ______ . Lei nº 01, 12 out. 1892. Disponível em: <http://arqcamp.campinas.sp.gov.br/index.php/p19> acesso em abr.2015; Lei nº 29, 11 jan. 1894. Leis, provimentos, resoluções e regulamentos promulgados em 1894. Campinas: Livro Azul, 1895, p.3-4; Lei nº 43, 27 ago. 1895. Leis, provimentos, resoluções e regulamentos promulgados em 1895. Campinas: Livro Azul, 1895, p.21-22; Lei nº 264, 29 out. 1920. Leis, resoluções e mais actos promulgados durante o anno de 1920. Campinas: Casa Genoud, 1921, p.18-19; Lei nº 400, 26 fev. 1927. Leis, provimentos, resoluções e regulamentos promulgados em 1927. Campinas: Casa Mascote, 1928, p.15-37; Lei nº 401, 26 fev. 1927. Leis, provimentos, resoluções e regulamentos promulgados em 1927. Campinas: Casa Mascote, 1928, p.37-43; Lei nº 407, 26 mai. 1927. Leis, provimentos, resoluções e regulamentos promulgados em 1927. Campinas: Casa Mascote, 1928, p.47. ______ . Livro de lançamentos dos impostos de indústrias e profissões: 1890 a 1903. ______ . Regulamento da Lei nº 43, 22 set. 1896. Leis, provimentos, resoluções e regulamentos promulgados em 1896. Campinas: Livro Azul, 1895, p.7-13; Regulamento da Repartição de Obras Municipaes, 12 jan. 1912. Leis, Resoluções e mais actos promulgados durante o anno de 1912. Campinas: Casa Genoud, 1923, p.12-16. ______ . Resolução nº15, 30 jun. 1890. Resoluções relativas aos annos de 1890 a 1892. Campinas: Livro Azul, 1900, p.11. ______ . Solicitações para obras particulares de edificações. Requerimentos (Req.) 1893: 12 (05/01); 14 (18/04); 24 (12/07); 24ª (11/07); 26 (25/07); 27 (31/07); 29 (03/05); 31 (14/10); 34 (08/12). (Req.) 1894: 04 (15/01); 05 (22/01); 29 (22/01); 35 (16/05); 42 (31/05); 47 (08/06); 50 (14/06); 54 (23/06); 66 (11/07); 76 (31/09); 94 (28/08); 96 (31/08); 100 (14/06); 109 (02/10); 110 (08/10); 111A (11/10); 112 (13/10); 115 (17/10); 117 (20/10); 124 (00/00); 126 (13/11); 129 (30/11); 130 (01/11); 134 (07/12). (Req.) 1895: 15 (22/01); 20 (06/02) 27 (17/02); 73 (31/05); 88 (05/07); 90 (06/07); 129 (30/09). (Req.) 1896: 02 (03/01); 04 (08/01); 08 (14/01); 10 (13/01); 11 (15/01); 12 (17/01); 18 (27/01); 24 (03/02); 61 (27/05); 67 (05/06); 72 (15/06); 93 (31/08); 96 (01/09); 119 (14/10); 122 (21/10); 136 (16/11); 142 (28/11); 157 (18/12); 158 (18/12); 159 (18/12). (Req.) 1897: 06 (18/01); 07 (21/01); 12 (11/02); 30 (01/30); 45 (23/03); 47 (23/03); 62 (07/04); 85 (18/06); 101 (09/07); 103 (23/07); 118 (09/08); 119 (10/08); 121 (10/08); 128 (20/08); 133 (24/08); 140 (28/08); 146 (14/09); 148 (18/09); 157 (04/10); 161 (05/10); 162 (05/10); 176 (29/10); 187 (17/11); 201 (04/12); 207 (12/12). (Req.) 1898: 18 (27/01); 119 (25/06); 140 (04/08). (Req.) 1899: 01 (03/01); 06 (05/01); 19 (22/01); 36 (18/02); 47 (28/02); 51 (03/03); 66 (22/03); 73 (06/04); 91 (13/05); 102 (27/05); 107 (03/06); 125 (31/07); 134 (22/08); 141 (05/09); 143 (11/09); 144 (11/09); 145 (13/09); 154 (21/09); 164 (05/10); 173 (27/10); 185 (20/11). (Req.) 1900: 28 (17/02); 29 (17/02); sem número (05/03); 49 (13/03); 63 (29/03); 66 (02/04); 79 (02/05); 93 (24/03); 137 (28/07); 167 (23/09); 208 (26/11); 209 (26/11); 210 (27/11); 224 (21/12). (Req.) 1903: 108 (02/05); 115 (05/05); 121 (11/05); 122 (11/05); 127 (15/05); 128 (16/05); 145 (25/05). 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(Req.) 1934: 09 (03/01); 26 (09/01); 28 (09/01); 30 (10/01); 50 (13/01); 54 (13/01); 84 (19/01); 94 (20/01); 95 (20/01); 106 (23/01); 111 (24/01); 127 (27/01); 136 (29/01); 163 (02/02); 171 (05/02); 181 (06/02); 182 (06/02); 205 (14/02); 216 (15/02); 226 (19/02); 231 (20/02); 256 (24/02); 284 (01/03); 380 (21/03); 381 (21/03); 383 (21/03); 419 (27/03); 431 (02/04); 435 (02/04); 447 (03/04); 780 (05/06); 1.130 (31/07); 1.227 (14/08); 1.235 (17/08); 1.332 (04/09); 1.381 (13/09); 1.453 (25/09); 1.454 (25/09); 1.463 (26/09); 1.490 (03/10); 1.491 (03/10); 1.580 (18/10); 1.622 (24/10); 1.828 (05/12); 1.934 (25/08). CAMPINAS [Província], Resolução nº 20, 10 jun. 1880, disponível em: <http://arq-camp.campinas.sp.gov.br/index.php/p3>, acesso em abr. 2015. DAUFRESNE, Emílio; LOBO, Antonio Alvares. Relatório de vistoria, nº 0178/894. Campinas, 13 abr. 1894. ______ . Relatório de vistoria, nº 0620/895. Campinas, 19 out. 1895. ______ . Relatório de vistoria, nº 0633/895. Campinas, 25 out. 1895. DAUFRESNE, Emílio; BUENO, Manoel de Assis Vieira. Relatório de vistoria, nº 0047/896. Campinas, 18 jan. 1896. ______ . Relatório de vistoria, nº 0009/897. Campinas, 11 jan. 1897. ______ . Relatório de vistoria, nº 0021/897. Campinas, 15 jan. 1897. ______ . Relatório de vistoria, nº 0044/897. Campinas, 28 jan. 1897. ______ . Relatório de vistoria, nº 0054/897. Campinas, 04 fev. 1897. DAUFRESNE, Emílio; SARMENTO, Joaquim Ulysses. Relatório de vistoria, s.n./898. Campinas, 09 fev. 1898. DAUFRESNE, Emílio; SARMENTO, Joaquim Ulysses; BARROS, José Ferraz de. Relatório de vistoria, s.n./898. Campinas, 09 fev. 1898. DAUFRESNE, Emílio; SARMENTO, Joaquim Ulysses; FALQUE, José. Relatório de vistoria, s.n./897. Campinas, 22 out. 1897. DAUFRESNE, Emílio; BUENO; MAGALHÃES, Eduardo Figueiredo. Relatório de vistoria enviado ao Intendente Manoel de Assis Vieira Bueno, nº 0223/896. Campinas, 22 mai. 1896. DAUFRESNE, Emílio; MACHADO, Octavio; CANTAGALLO, Benedicto; SARMENTO, Joaquim Ulysses. Relatório de vistoria, nº 0762/1898. Campinas, 23 dez. 1898. DAUFRESNE, Emílio; MIQUELINO, Julio. Relatório de vistoria, nº 0076/1899. Campinas, 19 jan. 1899. DAUFRESNE, Emílio; RAFFIN, Antonin; FERREIRA, Tito Martins; BUENO, Manoel de Assis Vieira. Relatório de vistoria, nº 0047/896 e nº 0054/896. Campinas, 18 jan. 1896. DAUFRESNE, Emílio; RAFFIN, Antonin; FERREIRA, Tito Martins; LOBO, Antonio Alvares. Relatório de vistoria, nº 0657/895. Campinas, 07 nov. 1895. DAUFRESNE, Emílio; RAFFIN, Antonin; GOMIDE, Candido; BUENO, Manoel de Assis Veira. Relatório de vistoria, nº 0456/896. Campinas, 10 nov. 1896. DAFRESNE, Emílio; RIBAS, Emílio Marcondes; SILVA, Eduardo Lopes da; SARMENTO, Joaquim Ulysses. Relatório de vistoria, nº 0472/897. Campinas, 11 set. 1897. LOBO, Antonio Alvares (org). Relatorio apresentado à Camara Municipal de Campinas sobre os serviços sanitários e instrucção publica relativo ao período de 9 de janeiro a 30 de julho do corrente anno, pelo Dr. Antonio Alvares Lobo, Intendente de Hygiene e Instrucção Publica. Campinas: Livro Azul, 1893. LOBO, Antonio Alvares (org). Relatorio apresentado à Camara Municipal de Campinas sobre os serviços sanitários e instrucção publica relativo ao período de 9 de janeiro a 30 de julho do corrente anno, pelo Dr. Antonio Alvares Lobo, Intendente de Hygiene e Instrucção Publica. Campinas: Livro Azul, 1893. ______ . Relatorio do Intendente Municipal. Campinas: Cardona, 1895a. ______ . Relatorio apresentado à Camara pelo Intendente Municipal Dr. Antonio Alvares Lobo, referente ao 1º trimestre de 1º de Janeiro a 31 de Março de 1895. Campinas: Livro Azul, 1895b. ______ . Relatorio apresentado à Camara pelo Intendente Municipal Dr. Antonio Alvares Lobo, sobre o período de 1º de Abril à 30 de Junho de 1895. Campinas: Livro Azul, 1895c. ______ . Relatorio apresentado à Camara pelo Intendente Municipal Dr. Antonio Alvares Lobo, referente ao 4º trimestre de 1895 e ao triennio de 1893 a 1895. Campinas: Livro Azul, 1896. OCTAVIO, Benedicto; MEMILLO, Vicente (org). Almanach Histórico e Estatístico de Campinas: 1912. Campinas: Casa Mascotte, 1911. SÃO PAULO [Estado], Decreto nº 13, 15 jan. 1890; Decreto nº 2.141, 14 nov. 1911; Decreto nº 2.918, 09 abr. 1918. ______ . Lei nº 1.310, de 30 set. 1911; Lei nº 1.357, 19 dez. 1912; Lei nº 1.585, 21 dez. 1917; Lei nº 1.596, 29 dez. 1917. Natalia Cappellari de Rezende Universidade de São Paulo, Instituto de Arquitetura e Urbanismo, IAUUSP, São Carlos, SP, Brasil [email protected] Resumo Analisa a arquitetura do Centro Histórico de São José do Rio Pardo através de fotografias e da base documental consultada no Arquivo Público da Secretaria de Obras. Objetiva a identificação das sucessivas transformações e ressignificações pelas quais passaram a arquitetura e a paisagem urbana em proveito de rentáveis espaços comerciais. Reconhece nesse processo a constituição dos traços da localidade através da construção, desconstrução e conservação de artefatos, trazendo à tona a relação entre materialidade, preservação e memória. Palavras-chave: Arquitetura urbana. Paisagem urbana. Transformações urbanas. Centro Histórico de São José do Rio Pardo. São José do Rio Pardo - cidade. Abstract It analyzes the architecture of the Historic Center of São José do Rio Pardo through photographs and the documentary base consulted in the Public Archives of the Secretariat of Works. It aims to identify the successive transformations and reframing that architecture and the urban landscape went through for the benefit of profitable commercial spaces. In this process, it recognizes the constitution of the features of the locality through the construction, deconstruction and conservation of artifacts, bringing up the relationship between materiality, preservation and memory. Keywords: Urban architecture. Urban landscape. Urban transformations. Historic Center of São José do Rio Pardo. São José do Rio Pardo - city. Resumen Analiza la arquitectura del Centro Histórico de São José do Rio Pardo a través de fotografías y la base documental consultada en el Archivo Público de la Secretaría de Obras. Tiene como objetivo identificar las sucesivas transformaciones y reinterpretaciones que han experimentado la arquitectura y el paisaje urbano en beneficio de espacios comerciales rentables. En este proceso, reconoce la constitución de los rasgos de la localidad a través de la construcción, deconstrucción y conservación de artefactos, sacando a la luz la relación entre materialidad, preservación y memoria. Palabras clave: Arquitectura urbana. Paisaje urbano. Transformaciones urbanas. Centro histórico de São José do Rio Pardo. São José do Rio Pardo - ciudad. Introdução1 Valendo-se do entendimento de Santos (1984), o espaço urbano é um produto de pluralidades resultado da agregação do trabalho humano que confere a cada sítio uma linguagem peculiar onde muitas articulações são possíveis. Nessa perspectiva, os produtos urbanos e arquitetônicos, por estarem inseridos em um processo acumulativo, têm a capacidade de con-formar e in-formar, e ao mesmo tempo “estão no presente, mas podem demonstrar como já foi e como, talvez, será” (SANTOS, 1984, p. 60). E ainda, Lepetit (2001), com base nas reflexões de Halbwachs, afirma que a imagem do espaço propicia a sensação de reencontrar o passado no presente, e mesmo que ocorra em cada etapa de desenvolvimento a transformação do espaço, “a sociedade remaneja suas lembranças de forma a adequá-las às condições do momento de seu funcionamento” (LEPETIT, 2001, p. 149). O que levou Lepetit (2001) a afirmar que o território é essencialmente uma memória, e seu conteúdo é todo constituído de formas passadas – isto é, de algumas dentre elas, das quais só subsiste o que pode ser compreendido pela sociedade que, em cada época, trabalha em seus quadros. (LEPETIT, 2001, p. 149). Este texto contempla resultados preliminares da pesquisa de mestrado da autora, intitulada A cidade de São José do Rio Pardo e as moradias do Centro Histórico (1865-1940), desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, sob a orientação da profa. Dra. Maria Ângela P. C. S. Bortolucci e com bolsa do CNPq (Processo nº 153114/2016-9). 1 Logo, as ressalvas feitas por Santos (1984, p. 60) sobre “a melodia não é harmónica, nem cantam todos no mesmo diapasão. De um campo para outro existem superposições, é verdade, mas são abundantes os desencontros e as autonomias”. Ou seja, é a diversidade de expressões concretizadas nas edificações e lugares que confere à cidade o lócus do intercâmbio de informações. Este fato é possível porque há uma relação entre guardar e proteger, alterar e recriar. São essas ações que mantêm viva a cidade. O olhar sobre o passado e o reconhecimento da importância da preservação para a manutenção do suporte tangível, que é essencial na caracterização de um grupo de indivíduos no tempo e no espaço, contribui para a ideia de identidade e memória, união e afirmação cultural. Ao mesmo tempo, as constantes transformações que são próprias do homem na dinâmica natural da vida levam à perda da matéria, dissolvendo gradualmente os vínculos estabelecidos. Nesse sentido, concordamos com as afirmações de Gallo (2017) As transformações da vida e as alterações de nosso espaço físico dissolvem os vínculos estabelecidos com as coisas, com perdas temporais e físico-espaciais da matéria. Mas a perda gradual de vinculações com uma época e contexto é própria das formulações humanas, porquanto estas são fixas e a vida é móvel e mutável (...) O olhar sobre o passado é sempre estabelecido a partir do tempo presente. Os limites entre permanência e alteração são fundantes para a preservação, pois nem é possível tudo transformar, porquanto perderíamos a identidade e o pertencimento, nem é possível preservar-se tudo, porquanto anularíamos a dinâmica natural da vida (GALLO, 2017, p. 365-367). Esta problemática é mais visível nas regiões centrais das cidades, sobretudo quando elas correspondem ao núcleo urbano inicial. Nesse caso, por ser a área mais antiga é onde se condensam as mais profundas e densas cargas simbólicas, materiais e imateriais. É nessa região que se concentram as primeiras edificações que guardam em sua fachada, no seu interior, no material utilizado e nas histórias de seus usuários, “uma lenda do começo de tudo, quase um mito de origem das cidades” (FREIRE, 1997, p. 221). Mas, é esta mesma região que em geral está sujeita às mais profundas mutilações e agressões frente às ações do setor imobiliário rentista, decorrente das mudanças de uso e adensamentos atendendo à demanda comercial e de serviços. Este fato é facilitado e reforçado pelo forte receio dos proprietários dos imóveis que associam medidas preservacionistas a prejuízos econômicos e perda no direito de propriedade. Isso é claramente visível quando se caminha pelo Centro Histórico da cidade de São José do Rio Pardo2 (Figura 1). O Centro Histórico de São José do Rio Pardo é reconhecido pelo governo local através da Lei Municipal n° 2920, de 15 de janeiro de 2007, que “dispõe sobre o Plano Diretor Participativo do Município de São José do Rio Pardo, estabelecendo as diretrizes gerais da política municipal de desenvolvimento territorial, e dá outras providências” (LEI N. 2920/2007, p. 1). 2 Figura 1 – Mapa de São José do Rio Pardo indicando a área reconhecida como Centro Histórico. Fonte: Produzido pela autora com base em mapa da Prefeitura Municipal de São José do Rio Pardo, 2017. Os processos de demolição e transformação de sua arquitetura faz com que se corra sério risco de que, em poucos anos, não restar um único edifício da fase inicial da cidade3. Até pode-se dizer que, mais do que a perda material, é a irreparável perda da identidade e do sentimento de pertencimento. Diante disso, procura-se neste texto evidenciar as descaracterizações e demolições da arquitetura de outrora, a partir da comparação entre fotografias de diferentes O reconhecimento legal do Centro Histórico de São José do Rio Pardo através da Lei Municipal n° 2920, de 15 de janeiro de 2007, não conduziu a ações de proteção mais efetivas como pontuado no artigo 40: I- proteger e preservar bens que possuam qualidade estéticas e históricas, significados culturais e afetivos, ou que constituem referenciais urbanos, ambientais e de memória, a fim de se evitar a perda ou o desaparecimento das características que lhe confiram peculiaridade. (LEI N. 2920/2007). 3 períodos, utilizando também a base documental levantada no Arquivo Público da Secretaria de Obras de São José do Rio Pardo. As fotografias e os processos de obras como registro histórico Kossoy, em seu livro Fotografia & História (2001, p. 28), destaca a fotografia como “um intrigante documento visual cujo conteúdo é a um só tempo revelador de informações e denotador de emoções”. Contudo, e segundo as ressalvas feitas por este autor (2001, p. 30), a utilização da iconografia no trabalho histórico ainda se apresenta de maneira tímida em razão da tradição acerca da escrita “como forma de transmissão de saber”. No entanto, no sentido de contribuir para romper a constatação feita por esse autor, a imagem será utilizada como instrumento de apoio de pesquisa e explorada como “meio de conhecimento visual da cena passada e, portanto, como uma possibilidade de descoberta” (KOSSOY, 2001, p. 53). Há dois importantes acervos fotográficos em São José do Rio Pardo, a Hemeroteca Paschoal Artese, que conta com um banco digital de aproximadamente duas mil iconografias, fruto do levantamento realizado pelo historiador e pesquisador Rodolpho José Del Guerra, e o Centro da Memória Rio-pardense, que possui em seu acervo cerca de 15 mil fotografias que retratam a cidade, sua arquitetura e manifestações culturais do final do século XIX até o início do atual. E, ainda que ambos acervos sejam de grande relevância, foram pouco explorados até o momento como documento de pesquisa. Outra fonte documental importante e que vem sendo cada vez mais explorada são os processos de aprovação de construções, material comumente arquivado em acervos públicos municipais. Nesse sentido, as teses “Manifestações da arquitetura residencial paulistana entre as Grandes Guerras” (D’ALAMBERT, 2003), “Arquitetura e Cidade: Obras particulares em São Paulo 19061915” (LODY, 2015), e “Construtores anônimos em Campinas (1892-1933): fortuna crítica de suas obras na historiografia e nas políticas de preservação da cidade” (FRANCISCO, 2013), são alguns exemplos de trabalhos elaborados que tem esse documento como base de análise, contribuindo, dessa forma, na ampliação do debate sobre o seu uso como fonte de pesquisa da história da arquitetura e da cidade, além de propiciar o conhecimento dos agentes partícipes. Todavia, esse esforço é possível de ser feito apenas em municípios que possuem uma estrutura arquivista constituída, pública e acessível, a qual, segundo o Conselho Nacional de Arquivos, é quase uma exceção na realidade brasileira, sendo mais grave quando se trata de médias e pequenas cidades (CONARQ, 2014). Felizmente, São José do Rio Pardo é uma das cidades que possui o Arquivo Público da Secretaria de Obras e conta com um acervo de projetos aprovados a partir de 1925, apesar da sua obrigatoriedade ocorrer desde 1918 (CÓDIGO...,1918)4. Conforme artigo 38 das Posturas Municipais era “absolutamente vedado o início de construcção ou reconstrucção de edifício, bem como de obras de qualquer natureza, a face das ruas, avenidas ou praças, no perímetro urbano e suburbano da cidade e povoações do 4 Foram consultados e analisados 345 processos entre projetos públicos e privados compreendendo os anos de 1925 a 1939. Cabe ressaltar que não são todos os processos que apresentam informações completas, como o nome do proprietário, localização da edificação, responsável pelo projeto e obra, e na maioria a representação gráfica é parcial. Desse modo foram analisados apenas 138 projetos cuja representação inclui planta com as denominações dos ambientes, corte e elevação. Todavia, é um arquivo de suma importância para o (re)conhecimento da história da arquitetura, em seus aspectos formais e funcionais, e da própria produção da cidade. Ambos os materiais, fotográfico e processos de aprovação de construções – o que inclui os projetos arquitetônicos -, servem de base para evidenciar o forte processo de intervenção e descaracterização da arquitetura do Centro Histórico rio-pardense e consequentemente a alteração da paisagem desse lugar. A cidade e sua arquitetura De acordo com a reflexão feita por Santos (2012), na paisagem, nada tem de fixo, imóvel. Cada vez que a sociedade passa por um processo de mudança, a economia, as relações sociais e políticas também mudam, em ritmos e Município, sem o preenchimento das condicções impostas pelo Código Sanitário do Estado, e sem previa licença do Executivo”. Entre as condições estava a imprescindível aprovação de projetos que apresentassem planta do terreno e dos pavimentos, elevações das fachadas, cortes longitudinais e transversais e a disposição dos encanamentos para água e esgoto (CÓDIGO DE POSTURAS, 1918, p. 7). intensidades variados, a mesma coisa acontece em relação ao espaço e à paisagem que se transforma para se adaptar às novas necessidades da sociedade. (SANTOS, 2012, p. 54). Complementando a colocação acima, Ribeiro (2007) aponta a imprescindibilidade de compreender a paisagem como um sistema interconexo e orgânico decorrente de diferentes processos construídos socialmente que não se desfaz e não se esgota frente às mudanças. Estas por sua vez, significam a substituição, mas não o fim por completo de uma paisagem. Ainda que concordando com Ribeiro (2007), vale acrescentar que a paisagem da região central de São José do Rio Pardo está sofrendo um processo acelerado de alterações, principalmente em função de sua arquitetura que está sendo sumariamente substituída de forma impositiva e arbitrária, contribuindo para agravar a dificuldade na manutenção dos vínculos estabelecidos de pertencimento e identidade cultural. Tais mudanças são passíveis de serem evidenciadas através da confrontação de fotografias de diferentes períodos e de projetos arquitetônicos, os quais se apresentam a seguir5. O primeiro exemplar a ser analisado é a edificação (Figura 2.1) na esquina da Rua Francisco Glicério com a Rua Marechal Deodoro que foi construída na década de 1880, antes da estrada de ferro alcançar as terras rio-pardenses6. Nessa época, predominava na Ressalta-se ainda que não faz parte deste trabalho discutir os motivos conceituais das linguagens estilísticas adotadas. 6 Em 1884 foi criada a Companhia Ramal Férreo do Rio Pardo composta por 144 acionistas que angariaram um capital de 751 contos para a construção de um ramal férreo que partiria de Casa Branca, fazendo um entroncamento na linha da Companhia Mogyana de Estradas 5 paisagem rio-pardense a horizontalidade das edificações de baixo gabarito e cumeeiras alinhadas. Eventualmente essa configuração era rompida com o afastamento de alguma edificação dos limites do lote, ou a ocorrência de mais de um pavimento, como foi o caso da residência do fazendeiro, político e empresário Honório Luiz Dias7. Essa faustosa edificação de esquina em feição eclética, popularmente conhecida como “Fortaleza Republicana”8 por ter servido de abrigo aos rio-pardenses que combateram a Monarquia, exibia em suas fachadas forte adesão aos elementos do neoclássico e do neo-renascentismo. Com uma volumetria compacta em forma de “L”, apresentava modenatura ritmada e com proporções rígidas, aberturas em arco pleno e em verga reta, nessas os vãos eram encimados por molduras em arco abatido, pilastras com feições toscana e jônica, e balcões nas fachadas que davam para a rua. Em termos construtivos, o uso da platibanda, das vidraças nas janelas e do telhado de soluções mais complexas com calhas e condutores de Ferro. No dia 27 de agosto de 1887 chegou o primeiro trem, enquanto a estação foi inaugurada no dia 7 de setembro do mesmo ano. 7 Natural de Cabo Verde-MG, Honório era filho de Vicente Alves de Araújo Dias e Lucinda Candida de Jesus que adquiriram terras em São José do Rio Pardo formando a fazenda Tubaca em 1870 (CASSASSOLA, 2009, p. 84). Aos 17 anos, antes da transferência completa da família para essa cidade (1876), Honório assumiu a administração da fazenda de seu pai, começando ali a formação de suas posses. Proprietário de grandes extensões de terra nessa cidade, em Poços de Caldas-MG, São João da Boa Vista-SP e Cascata-MG, Honório investiu o capital proveniente de sua produção cafeeira em empreendimentos diversificados como a fundação de casas comissárias em Santos; exploração de mina de zircônio no atual município de Águas da Prata; e na produção de energia elétrica para o município, como sócio no “Syndicato da Luz Electrica de São José do Rio Pardo”. Outros investimentos também ocorreram no comércio local com armazéns de secos e molhados, e lojas de fazenda, armarinhos, ferragens e louças. Honório ainda se envolveu na política como vereador riopardense entre os anos de 1887 a 1889 e integrante do Conselho de Intendência de 1890 a 1892, mas neste último caso por um curto período de tempo (CASSASSOLA, 2009). 8 A denominação “Fortaleza Republicana” ocorreu após Honório, líder do Movimento Republicano local, utilizar seu sobrado para aprisionar defensores da monarquia e afugentar a tropa republicana. importados demonstrava, não apenas o esforço para a incorporação de técnicas e materiais construtivos, mas também o poder do proprietário e o interesse em obter melhores condições de conforto no interior da moradia, quando o núcleo urbano ainda era marcado pela precariedade em infraestrutura e condições sanitárias. Sem dúvida alguma havia um significado e um valor atribuído pela população local a essa edificação, a ponto de ser denominada de “Fortaleza Republicana”, o que demonstra a relação da sociedade com o espaço construído. Não obstante, toda a representatividade em termos materiais e simbólicos foi insuficiente para impedir a sua demolição em meados do século XX, dando lugar, na década de 1990, a uma nova edificação, cujo volume ocupava praticamente todo o lote original, de aberturas em grandes vãos e cobertura em telha metálica, de uso comercial (Figura 2.2). Esta última edificação também foi demolida em 2019, cedendo lugar a um estacionamento, como é possível observar na figura 2.3. Outro exemplo é o sobrado do italiano Paschoal Artese9, construído no início da década de 1910, e conhecido como “Casarão do Artese”10 (Figura 2.4). Serviu a diversos usos desde moradia, escritório, gráfica e edição de jornal, creche e escola. Localizava-se nas proximidades do grupo escolar “Cândido Rodrigues”, onde predominavam edificações térreas, conferindo a Paschoal Artese chegou a São José do Rio Pardo no ano de 1897 onde exerceu os ofícios de marceneiro e entalhador, professor de desenho, jornalista, político e escritor, alcançando muito destaque na sociedade rio-pardense, sobretudo pela sua atuação como construtor, empreiteiro, formador de mão de obra e agitador político. Para saber mais sobre Artese, sua atuação da construção da modernidade urbano-arquitetônica rio-pardense e os conflitos materiais e simbólicos que permearam sua trajetória, ver Rezende e Bortolucci (2020). 10 Sobre o Casarão do Artese, ver mais em Rezende (2019) e Rezende e Bortolucci (2020). 9 essa moradia de dois pavimentos maior destaque na paisagem. Dentre as características do prédio, sobressai a riqueza de detalhes na composição da fachada principal, marcada pela disposição ritmada das molduras das aberturas em arco pleno, verga reta e arco ogival. As pilastras e os pilares, que remetiam às ordens coríntia e jônica, demonstram mais uma vez que Artese no mínimo detinha noções básicas da gramática clássica. Todo o peitoril da sacada e da varanda era decorado com balaustrada, enquanto a platibanda era marcada pela composição livre de elementos florais. (REZENDE & BORTOLUCCI, 2020, p. 15-16) Contudo, no início dos anos 1920, o Casarão foi reformado e ampliado pelo próprio Artese, o que resultou em uma alteração parcial das características do edifício, que passou a ostentar elementos inspirados no estilo art nouveau, com figuras mitológicas e da natureza, além de um arranjo volumétrico contrastante entre cheios e vazios, os quais podem ser observadas na figura 2.5. No início dos anos 2000, o Casarão apresentava estado de ruína e seus herdeiros decidiram colocá-lo à venda, que foi concretizada em 2006. Em 2008, o Conselho de Defesa e Estudos do Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural de São José do Rio Pardo (CONDEPHAC-SJRP) iniciou um estudo de tombamento bastante moroso dado as dificuldades apresentadas na composição de um corpo técnico e os embates frente aos interesses privados11 O Conselho de Defesa e Estudos do Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural de São José do Rio Pardo foi criado em 1994 e instituído e regulamentado em 2008 através da Lei n°3029, 11 que foi insuficiente e, sem o aval do CONDEPHAC-SJRP, o edifício foi demolido. Entretanto, por decisão judicial, coube ao proprietário reconstruir a fachada nos moldes do antigo Casarão. Desse modo, independentemente do uso e da espacialização interna do novo edifício projetado para atender a uso comercial e de serviço, a fachada foi reconstruída e finalizada em 2015 (Figura 2.6). A problemática dessa decisão se assenta nas discussões atuais acerca da autenticidade12 e do risco de constituição de cenários urbanos espetaculares13, em contraposição à preservação e conservação de bens culturais que representam significado e valor para as sociedades que os constituíram. Nesse sentido, a reconstrução da fachada do Casarão Artese resultou em um “falso histórico” ou "simulacro"14, que segundo Brandi (2005) se coloca como reversível a uma situação inexistente constituindo uma afronta à história e à estética, porque ao simular o objeto antes existente, a reconstrução decodifica a imagem de um tempo passado e de uma realidade que não mais existe. Outro exemplo analisado é o do Pavilhão XV de Novembro, que foi construído em 1910 pelo empreiteiro e construtor Paschoal Artese para o fim específico de exibições cinematográficas. motivado pela necessidade de um estudo de tombamento do “Casarão do Artese”. Apesar do esforço do Conselho, dificuldades na formação de um corpo técnico e a inexperiência dos membros no desenvolvimento de um processo de tombamento que se estendeu por anos, aliado a enfática defesa de impossibilidade de conservação do prédio pelo proprietário, resultou no agravamento da ruína e consequente demolição do mesmo. 12 Para saber mais, ver Jokilehto (2006). 13 Para Jacques (2003), ao espetacularizar edifícios e cidades forja-se uma imagem singular e em potencial para ser explorada como mercadoria. Sobre isso, ver Jameson (1997) e Zukin (1996). 14 Sobre o conceito de simulacro, ver Baudrillard (1991). Apresentava uma fachada mais simplificada com suaves linhas curvas e pináculos que podem ser apreendidos a partir de uma fotografia que retratava um grupo de pessoas numa quermesse próxima ao pavilhão, como pode ser observada na figura 2.7, e na sua ampliação através do zoom. Em 1922 o edifício passou por uma grande reforma para ampliar seu espaço interno, alterando completamente a sua fachada (Figura 2.8). No geral, era uma composição estritamente simétrica e com ornamentos simplificados, como frisos e folhagens estilizadas. Depois de várias décadas em funcionamento, o Pavilhão cedeu seu espaço para funcionar outro cinema, o Cine São Francisco, inaugurado em 1963 (DEL GUERRA, 2003). Porém, em 1975, o Cine encerrou suas atividades e o antigo prédio foi demolido. Em seu lugar foi construído um edifício de características moderna para atender a uma agência bancária, como pode ser observado na figura 2.9. Mais uma edificação que teve sua feição externa e disposição interna alteradas foi a moradia do Dr. Heitor da Gama Correa15, situada na Praça Capitão Vicente Dias onde está localizada a igreja Matriz. O projeto dessa residência é datado de 1933 (Figuras 2.10 e 2.11) e adotou expressões do “neocolonial simplificado” segundo as características apontadas pela bibliografia16. Desenhada e construída isolada no lote, possuía dois pavimentos com largos beirais e sob eles havia um barrado de frisos, apresentando também Heitor era filho de imigrantes italianos, nasceu em 1889 na cidade de Ribeirão Preto, tornou-se médico, e em 1929 seu nome figurava no Almanack (1929) juntamente com outros profissionais atuantes em São José do Rio Pardo. 16 Para saber mais sobre isso, ver Lemos (1989). 15 varanda inferior e superior com guarda corpos ornamentados, ora com elementos geométricos ora com elementos orgânicos. Todavia, essas características foram sumariamente suprimidas após intervenções realizadas sob a responsabilidade da Casa Paroquial que, ao passar a ocupá-la, transformou-a em um edifício térreo na década de 1980, e desde o final dos anos 2000 apresenta-se conforme a Figura 2.12. Figura 2 – Edificações do Centro Histórico rio-pardense que foram demolidas ou alteradas. Fonte: Centro da Memória Rio-pardense, Arquivo Público da Secretaria de Obras e acervo pessoal da autora. Esses são alguns dos muitos exemplos que poderiam ter sido apresentados neste trabalho, como retratado na figura 3, em que a arquitetura materialmente densa de significados enquanto constituinte da paisagem do Centro Histórico rio-pardense foi demolida para dar lugar a edificações novas de uso comercial e serviço. O que muito contribui para esse quadro que vem se agravando nos últimos anos é a pressão do mercado imobiliário, que juntamente com a inatividade do CONDEPHAC-SJRP está permitindo essas demolições. Figura 3 – Edificações do Centro Histórico rio-pardense que foram demolidas ou alteradas. Fonte: Centro da Memória Rio-pardense e acervo pessoal da autora (2017). A percepção desse quadro lastimável foi preconizado na década de 1980, quando foi criada uma comissão de defesa e estudos do patrimônio histórico, artístico e cultural17, concatenado com o quadro que estava ocorrendo no restante do Brasil. Foi com a redemocratização que novas perspectivas de preservação vieram à tona como direito demandado pela sociedade civil (NASCIMENTO, 2016). Segundo Chuva (2008) e enfatizado por Nascimento (2016), foi nessa década que dois aspectos fundamentais contribuíram para que houvesse no Brasil uma ampliação dos estudos e das práticas de preservação, alargando o quadro de áreas e bens protegidos. De acordo com Nascimento (2016) a primeira ação decisiva foi a mudança do papel do Estado e a inclusão de outras esferas do poder público, fruto de novos interesses e de setores da sociedade civil organizada, e a ampliação da noção de patrimônio, atingindo um leque mais amplo e diversificado de bens para muito além da perspectiva da identidade nacional unívoca (NASCIMENTO, 2016, p. 4). A proposta de pensar a cidade como documento e materialização da história para além do edifício único ganhou corpo, resultando em estudos que delimitaram uma área de proteção e preservação18, posteriormente contemplado no Plano Diretor através da Lei Municipal n° 2920, de 15 de janeiro de 2007. O CONDEPHAC- Lei n° 1.162, de 08 de julho de 1983. “Constitui comissão para estudos relacionados à criação do Conselho de defesa e estudos do patrimônio histórico, artístico e cultural de São José do Rio Pardo (CONDEPHAC –SJRP)”. 18 O objetivo desse zoneamento especial é “proteger e preservar bens que possuam qualidades estéticas e históricas, significados culturais e afetivos, ou que constituem referenciais urbanos, ambientais e de memória” (LEI N. 2920/2007). 17 SJRP foi criado em 1994 quando foi normatizado o tombamento no município, e instituído e regulamentado em 2008 através da Lei n° 3029 que atribuiu a ele o caráter “normativo, consultivo, deliberativo e fiscalizador de todas as questões pertinentes à defesa e aos estudos do patrimônio histórico, artístico e cultural” local (LEI N°3029, DE 02 DE JANEIRO DE 2008). No entanto, apesar da existência desse órgão, pouco tem sido feito, principalmente no que diz respeito ao enfrentamento dos interesses do setor imobiliário, ao desenvolvimento de estudos, e a promoção de informações sobre o patrimônio cultural de modo a contribuir para diminuir o desconhecimento da população acerca dessa produção. Malgrado esse quadro lastimável, atualmente há no município pouquíssimos bens imóveis tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (CONDEPHAAT) e CONDEPHAC-SJRP19, todos na área urbana, e em sua maioria são de propriedade pública. Diante desse quadro, pode-se afirmar sem nenhuma dúvida que a existência de uma legislação que contempla a preservação não impede que proprietários agridem e destruam seu patrimônio de forma criminosa. Bens imóveis tombados: Cabana de Zinco (IPHAN, 1939; CONDEPHAAT, 1975); Casa Euclidiana (CONDEPHAAT, 1973); Ponte metálica Euclides da Cunha (CONDEPHAAT, 1987); antiga Casa de Câmara e Cadeia (decreto municipal em 1979; CONDEPHAC-SJRP, 2010; CONDEPHAAT, 2015); Capela São Miguel Arcanjo (CONDEPHAC-SJRP, 2008); Residência Beatriz Cristina Granado do Prado (CONDEPHAC-SJRP, 2008); Estação ferroviária Central (CONDEPHAC-SJRP, 2010); Mercado Municipal (CONDEPHACSJRP, 2010); Cine Colombo (CONDEPHAC-SJRP, 2012); Centro Cultural Ítalo-Brasileiro (CONDEPHAC-SJRP, 2012); Antigo Fórum e Cadeia (CONDEPHAAT, 2015). 19 Considerações Os artefatos fotográficos e projetuais como registro visual reúnem múltiplas informações sobre um determinado elemento do espaço em um tempo estabelecido, e enquanto documentos nos permitem compreender a paisagem e a configuração dos ambientes em um processo intemporal de sobreposição de camadas. A confrontação dessas fontes nos tornou possível à análise do processo de transformações da arquitetura e consequentemente da paisagem do Centro Histórico rio-pardense. Ao tratar desses objetos, reconhecemos que há um limiar bastante tênue entre a permanência e a mudança que coloca em risco a manutenção de bens que diz muito sobre os traços da vida dessa sociedade. O desvanecimento de uma arquitetura para dar lugar a outras mais alinhadas com os arranjos formais e espaciais de seu tempo é compreensível, mas também é compreensível a prevalência da visualidade, da fragmentação, da perda de integridade, e da falta de (re)conhecimento social da importância da preservação dos edifícios do Centro Histórico rio-pardense. Dentro dessa análise, a atuação de órgãos de defesa e estudo do patrimônio cultural é de fundamental importância, e sua atuação deve ir além de uma legislação para proteção dos bens, dos estudos, dos inventários e dos tombamentos, deve objetivar a promoção de fontes de informação que auxiliem a sociedade a compreender as razões que justifiquem a proteção. Referências BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio d’Água, 1991. BRANDI, Cesare. Teoria da Restauração. Cotia: Ateliê Editorial, 2005. CASSASSOLA, Luiz A. Família, Capitalismo e Modernização: um estudo de caso da família Dias de São José do Rio Pardo - SP (1870-1930). Dissertação (Mestrado). Franca: Faculdade de História, Direito e Serviço Social de Franca da Universidade Estadual Paulista, 2009. CONSELHO NACIONAL DE ARQUIVOS (CONARQ) [Brasil]. Criação e desenvolvimento de arquivos públicos municipais: transparência e acesso à informação para o exercício da cidadania. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2014. 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Rodrigo Sartori Jabur Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Paraná, PR, Brasil [email protected] Resumo O IPHAN em sua trajetória de atuação, estabeleceu métodos para a seleção de bens culturais, destinados a representar a identidade do país. Nos primeiros anos de trabalho, a equipe de técnicos do patrimônio desenvolveu maneiras para obter informações que resultaram no grande número de tombamentos. Portanto, buscamos apresentar alguns dos métodos de reconhecimento destes bens e consequentemente das redes de trabalho estabelecidas entre São Paulo, Paraná e Rio de Janeiro durante os primeiros anos de atividade desta instituição, demonstrado a maneira como estas informações circulavam pelas redes estabelecidas entre técnicos e outros profissionais. Palavras-chave: IPHAN. Fotografia. Tombamentos. Patrimônio Arquitetônico. Abstract The IPHAN (the Brazilian National Institute of Historic and Artistic Heritage), in the course of its work, has established methods for the selection of cultural assets, intended to represent the country's identity. In its early years, a team of heritage technicians developed methods for obtaining information that resulted in a large number of designations of cultural heritage sites. Therefore, we seek to present some of the methods for recognition of these assets and, consequently, the professional networks that were established across the states of São Paulo, Paraná and Rio de Janeiro during the first years of activity of this institution, in order to demonstrate how this information circulated through the networks established between technicians and other professionals. Keywords: IPHAN. Photography. Cultural Heritage Management. Architectural Heritage. Resumen El IPHAN, (Instituto Histórico e Artístico Nacional en Brasil) en su trayectoria, estableció métodos para la selección de bienes culturales, destinados a representar la identidad del país. En los primeros años de actuación, el equipo de técnicos del património desarrolló formas de obtener información que resultaran en la gran cantidad de protecciones jurídicas. Por lo tanto, buscamos presentar algunos de los métodos de reconocimiento de estos monumentos y, en consecuencia, de las redes de trabajo establecidas entre las províncias de São Paulo, Paraná y Río de Janeiro durante los primeros años de actividad de esta institución, demostrando la forma en que esta información circuló a través de las redes establecidas entre técnicos y otros profesionales. Palabras clave: IPHAN. Fotografía. Protección Jurídica. Património Arquitectónico. Introdução Quando criado em 1937, o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional tinha por principal objetivo o reconhecimento dos bens de caráter nacional existentes no território brasileiro, contando com o trabalho hercúleo de catalogação das informações relativas a estes bens. Sabemos que o retrato da nação brasileira produzida pelos técnicos da instituição, nas primeiras décadas de trabalho, apresenta a história de um país predominantemente setecentista, ou seja, são as igrejas, as fortalezas, ou os fatos memoráveis que serviram como construção material da identidade nacional apresentada1. Mas esta seleção, posteriormente registrada nos livros Tombo, se estabeleceu a partir de um reconhecimento que tem por origem processos metodológicos, este processo trata de organizar e catalogar uma infinidade de informações sobre os bens em todo o território nacional. Desta maneira, já conhecemos, através das pesquisas e publicações quais eram estes bens e qual foi o papel dos profissionais frente a isso, mas há um fato importante que merece ser analisado com mais cuidado: como estas informações chegaram aos técnicos do SPHAN e qual era o tipo de dado ou suporte que serviu como fonte para os procedimentos de tombamento? De acordo com Cínthia Nigro (2003, p. 167): As primeiras instituições oficiais de preservação do patrimônio em vários países do mundo ocidental e, inclusive, no Brasil se estabeleceram a partir de um modelo centralizado de gestão, que revestiu os bens culturais de um forte caráter patriótico, sagrado, prestigioso, exclusivista e elitista, relativo ao universo de bens materiais etc. 1 Antes de respondê-la, é válido constatar o notável número de tombamentos realizados em 1938, primeiro ano de registros nos livros Tombo, quando comparados com anos posteriores da gestão do diretor Rodrigo Melo Franco de Andrade (1898-1969). Em 1938, foram registrados 301 bens nos livros Tombo, número excepcional, de modo que em outros anos desta gestão, os tombamentos não ultrapassaram as duas casas decimais2. Ou seja, havia uma pronta necessidade de catalogar o mais rápido possível um grande número de bens materiais que seriam o primeiro parâmetro ou base para as ações nos próximos anos da instituição. Com estes dados, nos questionamos: como uma instituição recémcriada conseguiu este feito em tão pouco tempo numa busca em território de dimensões continentais? As duas questões apresentadas anteriormente permitem uma relação em suas respostas, de forma a compreender as ações destes técnicos ao longo dos primeiros anos do SPHAN. Métodos de trabalho: a ação do Sphan e a rede de colaboradores Sabemos que os procedimentos de obtenção de dados e inventariação de bens patrimoniais não foi iniciado pelo SPHAN, a primeira instituição com vínculos patrimoniais estabelecida no Brasil deu início a estes trabalhos no Estado de Minas Gerais. A Os dados foram contabilizados a partir da listagem de bens tombados e em processo de tombamento, disponibilizados no site do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, sendo o último levantamento, atualizado em 2018. 2 Inspetoria de Monumentos Nacionais, criada em 1934 e sob a gestão do Diretor do Museu Histórico e Artístico Nacional, Gustavo Barroso, organizou um documentário iconográfico principalmente das cidades mineiras e também atuou em obras de restauração na cidade de Ouro Preto desde 1928 e na produção de relatórios das obras e dos monumentos, contendo fotografias e o diagnóstico destes bens. (MAGALHÃES, 2017). No caso do SPHAN, instituído oficialmente em 1937, os procedimentos para a obtenção de informações sobre os monumentos já eram iniciadas no ano anterior, mesmo com o parco orçamento destinado à estes trabalhos. Em 1936, os jornais de grande circulação publicavam notas sobre a organização do serviço de proteção ao patrimônio nacional3 e principalmente na elaboração do projeto por Mario de Andrade, à pedido do Ministro Gustavo Capanema, além de Mario já era estruturada a primeira base provisória da instituição com a indicação para diretor de Rodrigo Melo Franco de Andrade e do secretário, o pintor Oswaldo Teixeira, por intermédio do Presidente Getúlio Vargas4. O primeiro endereço do Serviço situava-se no Edifício Nilomex, localizado na Avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro, lá estavam inicialmente Rodrigo e sua secretária Judith Martins. O primeiro passo de Rodrigo foi a obtenção das informações sobre os possíveis São encontrados em jornais de grande circulação como o Jornal do Brasil e Correio da Manhã. 4 A indicação de Oswaldo Teixeira pelo Presidente Getúlio Vargas causou incômodo entre as primeiras figuras da instituição, em entrevista Judith Martins comenta que o pintor "Ficava lá desenhando, fazendo o perfil da gente […]”, quando criado o Serviço, Oswaldo foi transferido para o Museu Nacional de Belas Artes. (THOMPSON, 2009, p. 32). 3 bens a serem reconhecidos pela instituição, e para isto contou com a rede de contatos que o Diretor possuía em alguns estados brasileiros, como comenta Judith Martins (2009, p.32), secretária de Rodrigo: Lá, se estruturaram os primeiros arquivos. Dr. Rodrigo começou a fazer pesquisas, indicava a bibliografia de monumentos e pedia a amigos, na Bahia, em Minas Gerais, informações, documentação fotográfica... Foi tudo praticamente de graça. O Serviço ainda não tinha sido criado. Fazia parte do Ministério [da Educação e Saúde], mas não tinha verba, não tinha nada. Era por meio de amizade mesmo – o Dr. Rodrigo tinha muitas – que se conseguiam informações. São estas amizades que permitiram a coleta das primeiras informações necessárias, Rodrigo estabeleceu uma rede de contatos nos estados brasileiros afim de obter informações sobre possíveis bens a serem tombados pela nova instituição. No Paraná os dados foram obtidos com David Carneiro, o paranaense pertencia a uma família ligada ao comércio da Erva-Mate, seu avô teve negócios associados ao Barão do Serro Azul, seu pai foi um conhecido industrial em Curitiba também ligado ao beneficiamento da ErvaMate. David tem forte influência das escolas militares, era um dos divulgadores da filosofia Positivista e estudou no Colégio Militar do Rio de Janeiro entre 1919 a 1922, posteriormente cursou Engenharia Civil na Universidade do Paraná. Suas pesquisas envolviam a história do Paraná, publicando livros relativos a Revolução Federalista e ao Cerco da Lapa. Como colecionador, reuniu ao longo dos anos um extenso acervo de peças militares que se tornou uma das maiores coleções particulares do país. (MACHADO, 2012). Provavelmente seu interesse pela história paranaense e sua coleção são o elo inicial de ligação entre ele e Rodrigo Melo Franco de Andrade. O diálogo foi iniciado em março de 19375 quando Rodrigo solicitou a David Carneiro o catálogo, as publicações e o histórico do Museu Coronel David Carneiro, o que foi respondido em 24 de março enviando ao Rio de Janeiro publicações de sua autoria. Em outra carta, datada de 5 de abril, Rodrigo consulta-o sobre a “possibilidade de tomar a si o encargo de relacionar as obras de arquitetura civil, religiosa e militar existentes no Paraná e que possam ser consideradas de excepcional valor artístico ou histórico.” Da mesma maneira ocorreu o pedido da listagem das obras à Mário de Andrade, em maio de 1937, referentes ao Estado de São Paulo. Em carta Rodrigo explica suas intenções: O que lhe peço é apenas um inventário preliminar, com os seguintes dados a respeito de cada edificação a relacionar: descrição sumária, histórico breve, autoria da obra (quando for possível apurá-la), material empregado na construção (cantaria, taipa ou o que for),estado atual de conservação, reforma ou alterações que tiver sofrido, reparos urgentes de que precisar, referências bibliográficas que existirem a seu respeito e, por fim, documentação As cartas entre Rodrigo Melo Franco e David Carneiro datam desde 19 de março de 1937 até 16 de julho de 1937, a maior parte delas não foi encontrada nos arquivos do Iphan, encontramos duas cópias na superintendência paranaense. Na superintendência paulista, encontramos duas páginas manuscritas que identificam de forma resumida o diálogo entre David e Rodrigo, o manuscrito não possui autoria nem data, mas nos auxilia na compreensão desse importante contato inicial que culminou nos primeiros tombamentos no Paraná. 5 fotográfica (esta última tão completa quanto possível) (ANDRADE, 1987, p.125) Em 8 de abril de 1937, David Carneiro enviou à Rodrigo a listagem solicitada, alegando que no Paraná são poucas as obras com excepcional valor artístico e histórico. De maneira geral, não foram muitas obras selecionadas por David, apenas seis e deduzimos que aquelas listadas já eram de conhecimento do paranaense, uma vez que a carta de Rodrigo foi respondida num intervalo de poucos dias6. Ao contrário de Mario de Andrade, por exemplo, que realizou viagens pelo interior de São Paulo e preparou o relatório após cinco meses de estudos. Segundo Cristiane Gonçalves (2007, p. 53): Nesse primeiro levantamento, foram mapeados mais de quarenta exemplares de edifícios religiosos, entre eles a Igreja de São Miguel, em São Paulo; a capela de Santo Antônio, em São Roque; a Matriz de São Luiz do Paraitinga e a de Santana do Parnaíba; a Capela do Pilar, em Taubaté; pouco mais de uma dezena de casas de cadeias e fortes, no litoral; e pouquíssimos exemplares de arquitetura civil, visivelmente menos detalhados. Aparecem ainda listados os conjuntos urbanos de Iguape e Cananéia. A rede estabelecida pelos contatos estava presente em outros Estados brasileiros, com o intuito de recolher dados sobre os bens materiais representativos, isso foi reportado por Rodrigo em carta a Mário em 17 de maio de 1937(ANDRADE, 1987, p.126): Estou providenciando ativamente para intensificar também os trabalhos na Paraíba, São listadas no litoral a Fortaleza da Ilha do Mel e o Colégio dos Jesuítas, no 1 Planalto a cidade da Lapa, a Igreja, a Casa Lacerda e a Casa do General Gomes Carneiro, no 2 Planalto a Fazenda Fortaleza e no 3 Planalto nenhum bem foi citado. Carta de David Carneiro a Rodrigo Melo Franco de Andrade em 8 de abril de 1937. (Arquivo IPHAN-PR). 6 em Pernambuco, Bahia, Minas, Paraná, Rio Grande do Sul e aqui no Distrito Federal, a fim de que, ao terminar o primeiro semestre do ano, já tenhamos um inventário apreciável do patrimônio histórico e artístico nacional em matéria de arquitetura. Do que há de mais importante faltarão apenas dados sobre o Maranhão e o estado do Rio, que procurarei coligir no segundo semestre, juntamente com os relativos aos outros estados de patrimônio mais pobre. Outra maneira de obter dados sobre os monumentos, contava com a participação da sociedade civil, através da divulgação de algumas notas7 pela imprensa nacional, solicitando aos leitores o envio de fotografias de monumentos de arte e de história do Brasil à primeira sede do SPHAN, no edifício Nilomex no Rio de Janeiro. O resultado desta iniciativa não foi exitoso, apenas um voluntário enviou informações de uma antiga porta de igreja, com o intuito de vendê-la, outra iniciativa foi do professor do Colégio Pedro II, Antenor Nascentes, que enviou um conjunto de fotografias. As informações recebidas eram então organizadas pelos primeiros funcionários, a partir dos dados enviados pelos contatos de Rodrigo Melo Franco, o pedido basicamente era o mesmo para todos: a listagem de edifícios civis, religiosos e militares selecionados à partir de um quesito principal: o caráter de excepcionalidade. O material Em uma pequena nota no jornal Correio da Manhã encontramos: Há alguns meses, por intermédio da imprensa, o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, do Ministério da Educação, apelou para espírito de cooperação de todos os brasileiros que possuam documentação fotográfica referente aos monumentos de arte e da história do pais, no sentido de fornecerem as respectivas reproduções aquela repartição, com o objetivo de facilitar o tombamento dos bens de valor artístico e histórico, existentes no Brasil. Apenas um comerciante de antiguidades remetera a fotografia de uma porta de igreja no norte de Minas, com o pensamento de vender o original da peça a quaisquer dos museus nacionais. (PARA, 1937, p.7) 7 obtido nestes pedidos eram cartas, pequenos relatórios dos monumentos e fotografias, sem nenhuma clareza normativa ou de sistematização, apenas cumprindo as exigências de informações definidas por Rodrigo. Retornando aos contatos próximos de Rodrigo Melo Franco, apesar de instruir pelas cartas os itens que deveriam conter nos inventários solicitados, cada relatório foi organizado de uma maneira, Mário de Andrade enviou um relatório mais detalhado, enquanto David uma carta de três páginas com breves descrições dos monumentos e algumas fotografias. Essa diferença dos inventários, produzidos pelos contatos de Rodrigo pode ter sido o motivo que o levou a desenvolver um modelo de ficha padrão que seria preenchido com os critérios já pré-estabelecidos. Poucas informações são encontradas sobre o envio das fichas e sua elaboração, sabemos que Rodrigo enviou a Mário de Andrade em 26 de junho de 1937“[...] sob registro, 50 fichas destinadas ao tombamento de arquitetura nesse estado.”(ANDRADE, 1987, p.132). Também foram enviadas 30 fichas a Augusto Meyer, contato do Rio Grande do Sul, na mesma data, destinadas ao tombamento. São as únicas evidências encontradas sobre o envio das fichas, se desconhece a iniciativa de elaboração desse documento, ou se estes foram baseados em outras experiências do gênero, no entanto, podemos afirmar que foi a primeira tentativa do SPHAN em sistematizar a inventariação dos monumentos. Um exemplo deste processo de inventariação encontra-se nas fichas preenchidas por David Carneiro, guardadas no Arquivo Central do Rio de Janeiro. Elas contêm itens que deveriam ser preenchidos e assinados pelo “encarregado do tombamento”, os itens eram: designação, autoria, época, situação, proprietário, referências, observações, esquema ou fotografia e caracteres descritivos. A relação de fichas enviadas por David Carneiro difere da primeira listagem de 1937, pois o número de bens sugeridos em Paranaguá foi ampliado. Nas fichas foram catalogados: o Colégio dos Jesuítas, o Palacete Visconde de Nácar, a Fortaleza de Paranaguá, a Igreja Matriz, a Igreja da Ordem Terceira de São Francisco das Chagas e a Igreja de São Benedito. Portanto, constatamos que o ano de 1937 foi marcado pelo contato de Rodrigo com diversas personalidades dos Estados, antes mesmo da oficialização da instituição, solicitando informações e fotografias de obras arquitetônicas religiosas e civis que pudessem fazer parte do rol de bens e monumentos reconhecidos pelo órgão em constituição, além disso, após a instituição do IPHAN, a busca de informações também passou a ser amplamente divulgada nos meios de comunicação. Apesar de tal procedimento parecer uma estratégia descentralizada, na verdade era apenas uma mera consulta, pois as decisões eram efetivamente centralizadas no Rio de Janeiro, onde se reuniam os principais nomes da fase inicial da instituição, como o próprio Rodrigo Melo Franco, Lucio Costa e Carlos Drummond de Andrade. Ficam evidentes a hierarquização das atividades e o controle através das correspondências aos representantes regionais, demonstrando que as decisões finais estavam a cabo de poucas pessoas detentoras do discurso oficial. (CHUVA, 2009). O ideário do patrimônio nacional se constrói a partir dessa centralização, que decidia e classificava aquilo que era considerado parte do conjunto que representava o passado nacional. Ou seja, a partir desses monumentos foi possível construir o que Néstor Canclini (1994) aponta como uma unidade e coerência imaginária, que se forma a partir dos discursos e análises elaborados principalmente pelos intelectuais da área de arquitetura. São os discursos que tornam o monumento inserido num contexto histórico e artístico de caráter nacional, e Rodrigo Melo Franco em seus discursos insere os bens que integram o patrimônio dentro de uma totalidade que supostamente era integrada e contínua. (GONÇALVES, 1996). É valido salientar que além das fichas, o uso da fotografia foi fundamental neste momento, com distintas formas de apropriação: tanto como documento para obtenção de informações como também meio de divulgação destes bens ao público. A fotografia foi essencial para os trabalhos de inventário, Lucio Costa em seu texto sobre o Plano de Trabalho Para a Divisão de Estudos e Tombamento da DPHAN de 1949, apontava para a necessidade de cursos e aparelhos fotográficos em cada Distrito: Além disso, cada distrito deverá possuir um aparelho Leica, ou similar, completo, e contratar com fotógrafo competente um curso prático de fotografia com o propósito de fazer de cada um dos funcionários técnicos da repartição um fotógrafo habilitado, capaz de fazer a sua própria documentação nas viagens de reconhecimento, pesquisa ou inspeção. (PESSÔA, 2004, p.87) Neste contexto além da contribuição da rede de contatos, há também o papel fundamental dos fotógrafos contratados pelo SPHAN, como parte da continuidade dos levantamentos de dados que serão lastro no reconhecimento de bens e de seu tombamento. Há a organização dos procedimentos de registro dos monumentos, dados pelos técnicos da área de arquitetura, como relata o fotógrafo Eric Hess (2013, p.114): Mas também era sempre a mesma coisa, compreendeu? Eu sabia o que precisavam, o que era bonito, interessante. As igrejas de Minas, lá de Caeté e de Brumado, Rodrigo não conhecia. Mas, na nossa viagem à Bahia e Recife, quando foi junto o Dr. Rodrigo, aí me mostraram exatamente: “Queremos isso, isso e isso”. Mas na maioria das viagens que eu fiz sozinho, já pela prática, sabia. Aqui no Rio, acho que foi o Dr. Thedim Barreto que me indicou [o que fotografar] na Igreja de Santo Antônio. A maior parte eu sabia fazer sozinho: a parte mais interessante da fachada, o forro, os arcos laterais, as santas. Rodrigo era especial amigo de Santana; era uma imagem preferida dele. Ele tinha sempre afeição especial, cultuava aquela imagem. Este conjunto representativo de fotografias foi uma das ferramentas para a tomada de decisão sobre as listagens de bens tombados, mas também serviu para a difusão da imagem construída pelo SPHAN, dos bens relacionados a história nacional, como por exemplo a exposição no térreo do Edifício do Castelo, vizinho ao Nilomex, em 16 de agosto de 1938. Intitulado Exposição Permanente do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, possuía como material predominante as fotografias, a exposição seria renovada bimestralmente, na primeira estavam expostas imagens de igrejas e fortalezas de Estados como Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Pernambuco e São Paulo, além das fotografias foram expostos documentos atribuídos a Aleijadinho, estampas de cerâmica Marajó e peças de mobiliário nacional8. Na segunda exposição que ocorreu em dezembro de 1938, houve a ampliação dos bens e Estados contemplados, são igrejas, obras civis e fortalezas dos Estados do Piauí, Paraíba, Pará, Maranhão, Rio de Janeiro, Paraná, Pernambuco, Espirito Santo e Minas Gerais, além das fotografias contavam com peças de mobiliário, como ocorreu na primeira exposição e também objetos indígenas, temática pouco explorada nos primeiros anos de trabalho do SPHAN9. Vale Constam nesta exposição: Rio de Janeiro: Fazenda do Viegas, Ponte dos Jesuítas sobre o Rio Guandú, Mosteiro de São Bento, Academia Imperial de Belas Artes, Convento São Bernardino de Sena, Capela do Bomfim e Convento do Carmo; Bahia: Claustro do Convento São Francisco de Assis, Porta do Antigo Paço do Saldanha e ruínas do Castelo Garcia d`Ávilla; Rio Grande do Sul: ruínas e imagens da Igreja de São Miguel; Pernambuco: Igreja São Cosme e Damião, Capela Nossa Senhora da Conceição e Igreja de São Miguel; São Paulo: Matriz de Nossa Senhora da Conceição e Igreja de Carapicuíba; há também fotografias de outros Estado, mas não são especificados pela reportagem. (UMA, 1938, p. 2) 9 As fotografias nesta exposição, de acordo com reportagem à época são: Paraíba: Convento São Francisco de Assis e Fortaleza de Santa Catarina; Piauí: Portas da Igreja de São Benedito e Construções civis e rurais das cidades de Livramento, Campo Maior e Oeiras; Pará: Igreja de Santo Alexandre, Ponte do Ribeirão e Portão da Quinta das Laranjeiras; Maranhão: Convento de Nossa Senhora dos Anjos; Rio de Janeiro: Forte de São Mateus e Engenho d`Água; Paraná: Fortaleza da Barra e Convento dos Jesuítas; Pernambuco: Igreja da Ordem Terceira de São Francisco de Assis, Igreja de Nossa Senhora do Carmo, Igreja de Santo Antonio, Painéis da Batalha dos Guararapes, Igreja São Pedro dos Clérigos, Convento de São Francisco e Coleção de Arte Sacra de Olinda; Espírito Santo: Igreja do Rosário, Igreja dos Reis Magos, Igreja Nossa Senhora da Assunção e Convento da Penha; Minas Gerais: Chafariz do Padre Faria, Capela Nossa Senhora do Rosário e Fazenda Manso. (A SEGUNDA, 1938, p.3) 8 lembrar que as duas exposições aconteceram no ano em que são registradas as primeiras listagens de bens tombados pelo Serviço. Desta forma, percebemos que as primeiras ações dos técnicos da instituição tem início a partir dos contatos que Rodrigo Melo Franco estabeleceu com amigos, ou indicções de pessoas interessadas na temática que pudessem colaborar com as informações necessárias de cada um dos estados brasileiros para que chegassem à central de decisões, a sede do SPHAN no Rio de Janeiro, esta medida não indicava que todos os bens catalogados pelos representantes dos Estados seriam tombados, apenas serviriam como fonte num processo de seleção que tem por palavra final os técnicos da instituição carioca e desta maneira registrados nos livros Tombo. O ano de 1938 é fundamental para compreendermos como este processo se desenvolveu ao longo dos próximos anos, já fica claro na primeira listagem quais são as principais referências para o patrimônio brasileiro que delinearão os próximos bens tombados em pelo menos três décadas de atividades do Serviço. Percebe-se que esta ação inicial é fundamental para reforçar a importância deste Serviço, sua eficácia no governo Vargas e promover a divulgação pelos meios de comunicação, naquele momento principalmente pelos meios impressos, do que se apresenta como passado da arquitetura brasileira. São ações como estas que fomentam a construção da imagem identificadora do patrimônio brasileiro, neste processo de seleção pelos técnicos, mas também na divulgação daqueles edifícios selecionados, deste modo a fotografia tem papel fundamental neste processo, tornando-se ferramenta de identificação e divulgação do patrimônio brasileiro pelo SPHAN. Referências A SEGUNDA mostra do Serviço do Patrimônio Histórico. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, p. 3, 18 de dezembro de 1938. ANDRADE, Rodrigo Melo Franco. Rodrigo e o SPHAN: Coletânea de textos sobre o patrimônio cultural. Rio de Janeiro: Ministério da Cultura/Fundação Nacional Pró-Memória, 1987. CANCLINI, Nestor. O patrimônio cultural e a construção imaginária do nacional. Revista do IPHAN, nº 23, 1994, p. 94-115. CHUVA, Márcia Regina Romeiro. Os Arquitetos da Memória: sociogênese das práticas de preservação do patrimônio cultural no Brasil (anos 1930-1940). Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2009. GONÇALVES, Cristiane Souza. Restauração Arquitetônica: A Experiência do SPHAN em São Paulo, 1973-1975. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2007. GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A retórica da perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996. HESS, Eric. Entrevista com Erich Joachim Hess. [Org. Bettina Zellner Grieco]. (Memórias do Patrimônio, 3). 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A região da antiga Comarca do Rio das Mortes, se encontra dividida, atualmente, em duas mesorregiões: Metropolitana de Belo Horizonte e dos Campos das Vertentes, ao sul. Nelas conserva-se ainda um grande número de fazendas setecentistas, cujas atividades originais estavam ligadas à pecuária extensiva de gado bovino, além da criação de suínos, muares e gêneros alimentícios. A pesquisa levanta, por amostragem, exemplares residenciais da arquitetura rural dessas duas regiões, remanescentes dos séculos XVIII e XIX - e se vale de pesquisa em fontes primárias (inventários, processos criminais e cíveis, etc.), para identificar as suas principais características físicas. Palavras-chave: Arquitetura residencial rural mineira. Fazendas do século XVIII. Fazendas do ciclo do ouro. Fazendas de abastecimento. Abstract The text analyzes the stately residential architecture of the 18th century, of the farms located in the old Comarca of Rio das Mortes, in Minas Gerais, whose main function was to supply the mining regions. The region is currently divided into two mesoregions: Metropolitan Belo Horizonte and Campos das Vertentes, to the south. There is still a large number of farms from the 18th century, whose original activities were linked to extensive livestock, as well as raising pigs, mules and food. The survey collects, by sampling, rural residential examples from these two regions, reminiscent of the 18th and 19th centuries, and uses research from primary sources (inventories, criminal and civil cases, etc.) to identify their main physical characteristics. Keywords: Rural residential architecture in Minas Gerais. Farms from the 18th century. Farms from the gold cycle. Supply farms. Resumen El texto analiza la arquitectura residencial señorial del siglo XVIII, de las fincas ubicadas en la antigua Comarca de Rio das Mortes, en Minas Gerais, cuya principal función fue abastecer las regiones mineras. La región, en la actualidad, se divide en dos mesorregiones: Metropolitana de Belo Horizonte y Campos das Vertentes, al sur. Allí aún se conserva un gran número de fincas del siglo XVIII, cuyas actividades originales estaban ligadas a la ganadería extensiva, además de la cría de cerdos, mulas y alimentos. La encuesta recoge, por muestreo, ejemplos residenciales rurales de estas dos regiones, que recuerdan a los siglos XVIII y XIX, y utiliza investigaciones de fuentes primarias (inventarios, casos penales y civiles, etc.), para identificar sus principales características físicas. Palabras clave: Arquitectura residencial rural en Minas Gerais. Fincas del siglo XVIII. Fincas del ciclo del oro. Fincas de suministro. A descoberta das minas e a formação de um contexto agropecuário A notícia da descoberta de ouro às margens do córrego Tripuí, na atual Ouro Preto, em fins do século XVII espalhou-se rapidamente e fez acorrer à região milhares de exploradores para os sertões de Minas Gerais, vindos de diversas partes do Brasil, de Portugal e de outros países europeus, provocando um surto urbanizador surpreendentemente rápido. Uma infinidade de povoados surgiu da noite para o dia à beira dos rios auríferos, dos quais vários, já no início do século XVIII, devido ao rápido desenvolvimento, foram elevados à categoria de vila. Não há consenso sobre quando, onde e quem primeiro descobriu o ouro nos sertões mineiros: há divergências (PAULA, 2007, p.280281). Mas é sabido, porém, que a maioria dos garimpeiros que ali estabeleceram as primeiras lavras produtivas era formada por paulistas, já adentrada a segunda metade do século XVII. A Comarca do Rio das Mortes, possui relevo bastante movimentado, caracterizando-se pela presença dos “mares de morros”, altas montanhas escarpadas e vales profundos, sendo parte integrante do Planalto Central brasileiro. As altitudes, que vão dos 800 aos 1.500m, proporcionam clima mais ameno que o de outras regiões de mesma latitude, com invernos frios e secos e verões quentes e úmidos. Nas regiões mais altas ocorrem os solos arenosos, com afloramento de rochas, cristais e predominância de campos em que abundam gramíneas, arbustos e árvores de pequeno porte; nos vales, os solos são mais férteis, ocorrendo florestas subtropicais de altitude (SAINT-HILAIRE, 1975a, p.47). Neste cenário, surgiu uma rede de caminhos para o escoamento da produção aurífera e para a importação de gêneros, por onde transitavam inúmeras tropas de mercadorias. No entanto, no início dos setecentos, o abastecimento de alimentos ainda era insuficiente para atender a demanda crescente, o que ocasionou um intenso processo inflacionário e crises de fome, levando a Coroa Portuguesa a “preocupar-se com a questão do abastecimento das Minas” (GUIMARÃES; REIS, 2007, p.323). Sesmarias foram doadas, num cinturão de terras férteis, envoltório às zonas mineradoras, para solucionar o problema. Nele, surgiram fazendas que além de alimentos, continham uma eficaz agroindústria manufatureira, que produzia e comerciava nos mercados urbanos locais açúcar, cachaça, queijos, manteiga, produtos de couro, doces, tecidos grosseiros de lã e algodão, farinhas de milho e mandioca, polvilho, mel, tabaco, etc. (GUIMARÃES; REIS, 2007, p. 323). Muitos dos proprietários rurais eram também donos de minas. Quando do esgotamento das lavras de ouro, a produção agropecuária dessas fazendas foi a grande responsável pela manutenção da economia mineira, evitando um colapso ainda maior da região (MARTINS, 1998, p.24). Ao final do século XVIII, seus proprietários tiveram de buscar novos mercados consumidores, notadamente a Corte carioca e as novas zonas açucareiras paulistas (Quadrilátero do Açúcar e Vale do Paraíba), aproveitando a vasta rede de caminhos que fora estabelecida durante o ciclo do ouro. Nesse contexto do ciclo aurífero mineiro, rapidamente exposto, um grande e importante patrimônio arquitetônico rural foi criado, mas que tem ficado à margem de estudos e sem divulgação, além de pouco protegido pelos órgãos oficiais, ofuscado pelo conjunto excepcional do patrimônio arquitetônico urbano das cidades históricas mineiras. Diante da vastidão e complexidade do tema da arquitetura rural, nesse pequeno texto, tratar-se-á apenas da arquitetura residencial senhorial dessas fazendas mineiras do século XVIII. As casas senhoriais rurais nas Minas setecentistas No que tange à arquitetura do período colonial, Minas Gerais foi bastante influenciada pela tradição construtiva do norte português (Douro e Minho). O contingente populacional português era muito mais numeroso que o paulista, e se fixou à terra com a contribuição da Coroa Portuguesa, lançando aí suas tradições (FREITAS, 1986, p. 12). Os paulistas, em menor número, foram praticamente expulsos de Minas Gerais nos vários embates com os forasteiros, tendo que partir em busca de novas minas. Poucos paulistas ficaram em Minas Gerais. Com isso, uma arquitetura com fortes características portuguesas se desenvolveu no meio urbano mineiro, quase sem influências, principalmente quanto ao aspecto externo. Figura 1 – Fazenda do Ribeirão, século XVIII, Dom Joaquim-MG. Foto do autor, 2016. A técnica mais utilizada pelos portugueses, principalmente em habitações e edificações em geral, foi a estrutura autônoma de madeira, ou “gaiola”, como ficou conhecida. Nada mais era que um tipo de enxaimel, introduzido na Península Ibérica por povos saxões do norte europeu, que invadiram a região logo após a derrocada do Império Romano. Aperfeiçoada durante a reconstrução de Lisboa, após o terremoto de 1755, quando se valeu do travamento diagonal dos esteios, para responder melhor a possíveis abalos, ela foi trazida a Minas Gerais no auge da mineração e se adaptou perfeitamente ao seu acidentado relevo. No entanto, em Minas Gerais, principalmente no meio rural, a arquitetura portuguesa adaptou-se ao relevo, clima e materiais disponíveis (vide Fig. 1). Em Portugal, a “gaiola” de madeira era preenchida, em geral, por uma estrutura chamada de tabique (trama de madeira serrada fixada por cravos e preenchida por barro). Em Minas, os tabiques foram substituídos pela vedação de pau-a-pique (trama mais grosseira, feita com troncos finos de coqueiros e ramos de árvores ou bambus, solidarizada por cipós, uma provável influência indígena ou africana), por adobe ou por madeira – esses dois últimos também usados em Portugal. Essas vedações não tinham caráter estrutural. A estrutura da “gaiola”, constituía-se de vigas baldrames de madeira, de onde saíam os pés direitos ou esteios (de pedra ou madeira); estes, por sua vez, recebiam os esforços do telhado através dos frechais. Nas residências, as paredes do porão, abaixo das vigas-baldrames, em geral eram de pedra, podendo também ser totalmente abertos ou fechados parcialmente com taipa de mão ou tábuas. Nesses espaços, o piso comumente era de terra batida, misturada com sangue de boi, para a obtenção de uma melhor liga; no entanto, também há os revestidos de pedras ou de ladrilhos de barro, dependendo do seu uso: depósitos, abrigos de animais, etc. A taipa de pilão é vista em exemplares mais antigos, da primeira metade do XVIII, principalmente nos trechos primitivos das edificações: ampliações futuras, feitas ainda durante o século XVIII ou XIX, já se utilizam de adobe ou pau a pique. Essa técnica mista pode ser observada nos casarões das fazendas São Miguel e Mato Dentro, em Ritápolis. Na planta de ambas é possível notar o quadrado original, com paredes em taipa de pilão, acrescido das paredes posteriores de adobe ou taipa de mão. É necessário lembrar que essas fazendas não foram estanques, nem tiveram todas as edificações construídas ao mesmo tempo: elas se alteraram, aumentaram, diminuíram com o passar dos tempos. A técnica do barro apiloado não se adaptou em Minas, pois necessitava de terraplenos para se livrar das prejudiciais enxurradas: em terrenos muito inclinados, esses terraplenos consumiam muitos recursos e eram pouco úteis. Pedras foram comuns principalmente nos alicerces de edificações, raras vezes sendo usadas em paredes inteiras. Mas encontram-se exemplos de pedra aparelhada, como na – hoje em ruínas – Fazenda Braço Livre, do século XVIII, localizada no distrito de Glaura, de Ouro Preto. Ali blocos de pedra muito bem cortados e esguios, são assentados uns sobre os outros, numa referência direta a construções portuguesas, numa técnica pouco usual no Brasil. A mão-de-obra provavelmente foi portuguesa e acostumada a trabalhar com esse tipo de cantaria. Chama a atenção a janela tripartida existente ao fundo da edificação, um tipo de solução também não usual, principalmente por seus batentes em pedra lavrada. Em geral, a arquitetura rural mineira do século XVIII foi mais prática que confortável, atendendo às necessidades locais, quase sempre se ressentindo da falta da mão-de-obra mais qualificada. No entanto, a abundância de matéria-prima, a largueza e a fertilidade das terras e o pouco custo da mão de obra favoreciam a construção de espaços generosos e variados. Na adaptação porque passou no campo, podemos afirmar que, em relação à casa portuguesa, a casa rural mineira possui mais e maiores cômodos. Segundo nos contam os viajantes e comprovam os inventários, as fazendas mineiras dividiam-se em duas grandes categorias, grosso modo: aquelas somente destinadas à produção agropecuária e pequena manufatura; e aquelas que, além disso, possuíam lavras ou, para usar um termo da época, que possuíam “terras minerais”. Nas primeiras, o aspecto geral era modesto, acanhado, reflexo do cotidiano de trabalho ligado à terra dos proprietários e sua família. Nas segundas, a riqueza dos donos, muitas vezes pessoa ilustrada e “estudada” se refletia em instalações de melhor aspecto, suas casas chegavam mesmo a ter certo grau de conforto e senso estético, incomuns na zona rural. A “gaiola” possibilitava grande liberdade de expressão, principalmente no século XVIII, quando as casas eram mais orgânicas, crescendo ou diminuindo conforme a necessidade. Esteios, pés direitos, baldrames e frechais eram deixados aparentes e pintados em cores vivas, compondo um interessante efeito plástico na fachada, em contraste com os panos de vedação caiados de branco. De certa forma, essa maleabilidade seria perdida no século XIX, quando a planta em “L”, com a incorporação definitiva do anexo de serviços, e uma nova composição de fachada, influenciada pelos padrões eruditos neoclássicos, imporiam espaçamento de vãos regulares, simetrias, criando novas harmonias e ritmos. A arquitetura perderia muito de seu caráter espontâneo, inovador e gracioso. Antes disso, porém, houve imensa possibilidade de se trabalhar as aberturas - portas e janelas - nas mais diferentes formas e quantidade. Em alguns exemplares é possível ver esteios sendo usados simultaneamente como umbral de portas ou janelas; às vezes um só esteio virava umbral (ou ombreira) para duas aberturas ao mesmo tempo; em outras, justapunham-se uma série de janelas, onde as ombreiras intermediárias serviam a dois vãos simultaneamente, formando um grande vão envidraçado, numa evidente praticidade e economia de madeira, conjugadas de maneira bastante criativa. Com relação ao formato dos vãos, aparecem os de vergas retas e os de arco abatido (ou meia canga). Esses últimos foram introduzidos em Minas Gerais em 1741, com a construção do Palácio dos Governadores, projeto do engenheiro-militar José Fernandes Pinto Alpoim, e construído por Manuel Francisco Lisboa, arquiteto português e pai de Aleijadinho. O fechamento de vãos era quase sempre feito por duas folhas (ou batentes) de escuros simples, com tábuas com encaixe macho e fêmea, travadas por travessas perpendiculares. Excepcionalmente, usavam-se folhas externas com treliças (urupemas), ou com recortes de madeira, como balaústres, que permitiam a ventilação. Também foram comuns as portas ou janelas com postigos. Essas folhas podiam abrir à francesa, ou seja, como rótulas de eixo vertical, ou através de eixos horizontais, chamadas por alguns de gelosias. A partir do início do século XVIII, os escuros começaram a ser acompanhados por folhas externas com aberturas à inglesa (guilhotinas), introduzidas por ingleses, que se difundiram por todos os cantos do país. Também devido ao preço e escassez do vidro, muitas vezes, os vãos eram preenchidos por treliças. Acomodada ao desnível constante dos terrenos, sem necessidade de grandes cortes, a casa rural mineira apoiava-se parcialmente no solo, o que lhe dava em parte um aspecto térreo, em outro, assobradado. O acesso poderia dar-se por vários lados. No caso do assobradado, entra-se por escada externa, situada perpendicular ou paralelamente a essa face, o que favorecia o controle. Caso essa elevação fosse a principal, a escada ganhava desenho elaborado, podendo ser em madeira ou pedra, com guarda-corpos com balaústres em variados formatos e desenhos, levando diretamente a porta de entrada, ou acessando alpendre ou varanda entalada: essas três soluções são encontradas por todas as regiões de Minas, cada tipo predominando numa região. Por exemplo, as varandas e os alpendres, em suas mais variadas formas, aparecem nos Campos das Vertentes (século XVIII) e na Região de Ouro (séculos XVIII e XIX). Já nas casas do Sul de Minas, eles são elementos incomuns, geralmente acréscimos posteriores (CRUZ, 2010, p.46-47). O alpendre é, talvez, um dos elementos mais característicos da arquitetura e do caráter do habitante da área rural de Minas Gerais - espaço de recepção, de estar e de vigilância, representava na casa mineira limite físico, transição entre áreas social e íntima. As varandas e os alpendres eram importantes elementos de composição de fachada, suavizando a volumetria compacta. Na parte traseira, quando existiam, eram espaços femininos, da fazendeira: de onde ela controlava a horta e o pomar (FREITAS, 1986, p.45). Foi comum a existência de cômodos em um ou em ambos os lados do alpendre frontal, muitas vezes sem comunicação com o interior da casa, usados como quarto de hóspedes e/ou capela. Adentrando a casa estava a sala, de acesso restrito a íntimos da família ou a convidados ilustres. Acopladas a ela, poderiam haver outras salas. A zona de estar completava-se com a sala de jantar, seu maior cômodo e de múltiplas funções: além das refeições e conversas pós-jantar, servia para atividades das mulheres e crianças. Era espaço de reunião familiar. Seu mobiliário, como de resto, era simples: mesa, bancos, poucas cadeiras e tamboretes com assento de couro e alguns cabides justapostos à estrutura da edificação para chapéus, capas, etc. (SAINT-HILAIRE, 1974, p.46). Segundo Saint-Hilaire, o interior das casas de fazendas mineiras: (...) oferecem, em regra, poucas comodidades e não possuem, (...), nenhum ornato sobre a brancura das paredes. (...). Não se conhecem nas casas de fazendeiros nenhum desses móveis que acumulamos em nossos aposentos, guardam-se as roupas nas malas, ou, antes, dependuram-se em cordas, a fim de preservá-las da umidade e dos insetos. As cadeiras são raras, e as pessoas se sentam em bancos, tamboretes de madeira e escabelos. Nas casas dos ricos, os leitos são os móveis que merecem mais cuidados, as cortinas e as colchas são muitas vezes de damasco, e os lençóis de um tecido de algodão muito fino, têm guarnições de renda. Quanto ao colchão, compõe-se simplesmente de um fardo de palha de milho desfiada; mas, em país tão quente, dormirse-ia pior sobre lã ou penas. (SAINTHILAIRE, 1975b, p.96) O forro dessas casas rurais variou bastante: por vezes, tabuado corrido, em outras, esteiras de taquara. “Os forros de esteira eram trançados formando desenhos simples ou mais complexos. Eram esticados sobre barrotes e acabados com molduras junto à parede” (FREITAS,1986, p.47). São mais encontrados nas dependências de serviço dessas casas. Recebiam, como proteção extra, uma camada de caiação branca, ou tingiam-se as taquaras de antemão e com elas compunham-se mosaicos geométricos e coloridos. Esse forro era trocado regularmente, pois se degradavam com o tempo, prejudicados por goteiras ou cupins.O tabuado corrido era mais usado nos demais aposentos. A partir da segunda metade do XIX, adotou-se o forro do tipo saia e camisa. Também foi usual o guardapó nos beirais, desde o século XVIII. Na parte social e íntima, o piso invariavelmente era formado por tábuas de madeira de tamanhos variáveis, assentadas sobre barrotes dispostos ao longo do baldrame. Essas tábuas possuíam de 20 a 40 centímetros de largura por cerca de três centímetros de espessura. Até o século XVIII, usava-se madeira de muito boa qualidade para este fim: jacarandá, canela parda ou preta, jatobá, entre outras (VASCONCELLOS, 1979, p.60). Nos fundos da habitação, estava a ala de serviços, composta por cozinha, cozinha “suja” e a despensa. A cozinha possuía, ao centro, o fogão a lenha, sem chaminé, e uma trempe de pedras ou alvenaria. Quando o fogão era encostado na parede, abria-se um buraco para tiragem do fumo (RODRIGUES, 1975, 300). Junto à cozinha, outro cômodo abrigava o forno de barro, que podia estar protegido apenas por uma cobertura, e até mesmo solto no quintal. Ocorria, também, a solução da cozinha num puxado, ao fundo da edificação. Eram espaços essencialmente femininos. Na área de serviço, tanto o piso de terra batida, os ladrilhos cerâmicos ou as lajes de pedras foram utilizados, às vezes, conjuntamente, isto é, enquanto na cozinha e despensa se revestia o piso com os ladrilhos ou pedras, no quarto do forno era de terra batida, por exemplo. Isto variou de fazenda para fazenda, mas o que se nota é o menor cuidado com tais dependências, não destinados à presença ou visitação de estranhos, logo, desnecessários maiores cuidados. Nas proximidades, havia, geralmente, um rego d’água, ou mesmo água encanada, trazida de alguma mina através de bambus abertos ao meio ou de alcatruzes de pedra-sabão. E, também, os jardins com suas hortas e pomares. O espaço religioso também esteve presente nas casas rurais mineiras, em várias conformações. As capelas internas, chamadas de ermidas, ficavam situadas junto ao alpendre fronteiro, ou, quando mais adentro, junto à sala de receber. Nessas ermidas percebe-se sempre uma intenção decorativa que não se encontra no resto da edificação: quase sempre há paredes e/ou teto pintados com maior ou menor grau de apuro; altar com douramentos encimado por imagens e castiçais (vide Fig. 2). Muitas delas apresentam janelas em parede lateral que se comunica com o cômodo contíguo: as folhas dessas janelas eram abertas para que as mulheres da casa pudessem assistir ao ofício religioso e, ao mesmo tempo, ficarem apartadas de estranhos que porventura estivessem no cômodo para onde se abria a porta principal. Já as capelas externas foram raras, sendo quase todas do século XIX. Por vezes, chegavam a ter um capelão próprio e pia batismal, para atendimento da população das redondezas da fazenda (FREITAS, 1986, 52). Figura 2 – Forro da ermida, pintada supostamente pelo Mestre Ataíde. Fazenda Mato Dentro, séc. XVIII, Ritápolis-MG. Foto do autor, 2016. Quando não havia capelas, destinava-se um cômodo para a prática religiosa íntima (FREITAS, 1986, 53), o chamado “quarto dos santos”, com oratório e imagens. Aí não havia celebrações de missa: servia para os pedidos e rezas diários. A cobertura do corpo principal da casa rural mineira variou muito, assim como sua planta. As casas primitivas foram cobertas com capim, mas já no século XVIII predominavam as telhas cerâmicas romanas, também conhecidas como capa e canal, ou capa e bica. Em geral a cobertura do corpo principal da casa rural mineira era feita em quatro águas simples; prolongava-se uma das águas para cobertura ou puxava-se telhado independente para o alpendre exterior. Já a cobertura da área de serviços, geralmente com pé direito inferior, se fazia com um puxado de uma só água. Caso esta fosse muito grande em comprimento e estivesse em posição perpendicular àquele corpo principal, a cobertura se faria com duas ou três águas. Nas casas com planta em “L” também ocorreu o uso do telhado da área de serviços acoplado ao corpo principal, então se recorrendo aos rincões. No geral, a cobertura da arquitetura rural mineira foi simples, pouco se valendo de maiores movimentações. As telhas eram feitas em olarias temporárias, abertas dentro da própria fazenda, durante o período de construção e, logo após a finalização, eram abandonadas. Conclusão O cotidiano nas fazendas mineiras de produção agropastoril do século XVIII foi austero e de muito trabalho. Uma vida de pouco luxo e muito isolamento. Uma das explicações pode ser a realidade que molda culturalmente o mineiro, que produziu muito, mas pouco se aproveitou de sua riqueza; sempre sob vigilância da Corte Portuguesa, e fortemente influenciado pela Contrarreforma católica. Apesar dos poucos contatos externos, as culturas antagônicas de negros e portugueses estreitaram-se com a erudição iluminista, trazida por padres e por aqueles que estudavam em Coimbra, Rio de Janeiro ou Mariana. A solidão era interrompida pelos tropeiros e pelos viajantes ocasionais que traziam as novidades do mundo, ouvidas com interesse e curiosidade pelo fazendeiro e seus familiares. Por tudo isso, talvez, o fazendeiro mineiro setecentista tenha aprendido a receber bem os desconhecidos, mas sempre mantendo certa distância respeitosa, mas desconfiada, nunca deixando que a sua intimidade fosse totalmente devassada - estava cansado de tanta vigilância! Ele preferiu abraçar a cordialidade, a mansidão, atestadas nos relatos dos viajantes: Auguste de SaintHilaire, John Mawe, George Gardner, Langsdorff, entre outros, elogiam os modos com que foram recebidos em quase todas as oportunidades. As fazendas surgidas naquela economia mineral, e seus habitantes, refletiram as contradições do seu tempo e sofreram com o desfecho do esgotamento das minas, mesmo encontrando outras possibilidades de expandir seus negócios para as novas fronteiras agrícolas que se abriam, como o nordeste paulista ou o Vale do Paraíba. A austera arquitetura rural mineira de então privilegiou a funcionalidade e a resolução dos problemas desse complexo e rude cotidiano naqueles sertões de grandes montanhas e vales profundos. Mesmo assim, pode surpreender em algum cômodo mais ornamentado, onde pinturas de um mestre como Ataíde surgem quando menos se espera. Em suma, o mineiro campesino do século XVIII soube extrair da matriz portuguesa, formas simples, de poucos elementos, mas que conformaram uma arquitetura de grande plasticidade e beleza. Referências BURTON, R. Viagem de Canoa de Sabará ao Oceano Atlântico. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1977. BURTON, R. Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp,1976. CRUZ, C. F. Fazendas do Sul de Minas Gerais. Arquitetura rural nos séculos XVIII e XIX. Brasília: IPHAN/Monumenta, 2010. FREITAS, D. C. A. de. Arquitetura Rural no Nordeste Paulista: Influências Mineiras. 1800-1874. São Paulo: Escola de Sociologia e Política de São Paulo-USP, 1986. GUIMARÃES, C. M.; REIS, F. M. M. Agricultura e mineração no século XVIII. In: Resende, M. E. L.; Villalta, L. C. (Org.). As Minas Setecentistas. Belo Horizonte: Autêntica; Companhia do Tempo, 2007, p. 321-355. MARTINS, H. T. Sedes de Fazendas Mineiras. Campos das Vertentes, séculos XVIII e XIX. 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