Linguagem e ensino: Os mitos africanos no ensino
Cássio Silva Castanheira
Escola Estadual Benjamim Guimarães -E.E.B.G
Pça. Maria Ambrosina M. Guimarães,-Bom Sucesso/MG CEP:37220000
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Resumo: Esta pesquisa têm o suporte da minha experiência como professor do ensino básico na escola pública e também como pesquisador da cultura africana e afro-brasileira. A relevância deste estudo está no resgate do mito africano eivado de saberes ancestrais complementando o saber “racional moderno”, bem como dos fatores que influenciam a intolerância nas relações étnico-raciais. Ciência e mitologia africana em diálogo, se interagindo na produção do conhecimento, com a perspectiva de superar a dicotômica relação entre ciência e outras formas de saber, tais como os saberes artísticos e religiosos. Nosso ponto de partida é o campo teórico da Análise de discurso, na qual pudemos compreender a forte afetação da proposta historiográfica positivista que promove como efeito o silenciamento dos saberes da cultura africana e afro-brasileira. Percebemos que existe uma correlação entre a narrativa mítica de origem africana e a lógica ocidental de compreensão do mundo, sendo preciso produzir um instrumento para que os alunos possam lidar com os textos discursivos eurocêntricos que colocam à margem os saberes ancestrais africanos.
Palavras chave: linguagem; ensino; saberes africanos.
Abstract: This work starts from my experience as a teacher of basic education in public school and also as a researcher of African and Afro-Brazilian culture. The relevance of this study is in the restoration of the African myth impregnated with ancestral knowledge complementing the “modern rational” knowledge, as well as the factors that influence intolerance in ethnic-racial relations. African science and mythology in dialogue, interacting in the production of knowledge, with the perspective of overcoming the dichotomous relationship between science and other forms of knowledge, such as artistic and religious knowledge Our starting point is the theoretical field of Discourse Analysis, in which we could understand the strong affect of the positivist proposal that promotes the silencing of the knowledge of African and Afro-Brazilian culture. We realize that there is a co-relationship between the mythical narrative of African origin and the western logic of understanding the world, and it is necessary to produce an instrument for students to deal with the Eurocentric discursive texts that put African ancestral knowledge on the margins.
Keywords: language; teaching; African knowledge.
Introdução
A tradição narrativa da historiografia positivista que está na maioria dos livros didáticos referendados pelo Programa Nacional do Livro Didático-PNLD é marcada por uma cronologia linear, unidimensional e com personagens que ganham uma dimensão sobre-humana, reconhecendo-os como heróis que, em sua grande maioria, significam uma fortaleza de superioridade étnica e cultural branca e européia sobre as demais etnias e culturas. Os negros aparecem apenas como um grupo que deu algumas contribuições para a formação cultural do mundo, e nunca estão presentes como heróis ou como agentes históricos importantes. Este silenciamento da cultura africana promove como efeito a construção de sentidos que significam que são inferiores aos brancos ocidentais, fortalecendo uma situação de preconceito e exclusão social ainda no século XXI.
Nesse sentido, apresentamos uma narrativa que propõe uma relação entre o conhecimento científico moderno e a mitologia de matriz africana, como possibilidade para reflexões sobre como as diferentes formas de saber convivem e, sobretudo, como se complementam devendo ser inseridas nos aportes pedagógicos. De acordo com Barthes (1999, p. 163), “o mito não nega as coisas; a sua função é pelo contrário falar delas; simplesmente, purifica-as, dá-lhes uma clareza, não de explicação, mas de constatação”. Os mitos de matriz africana foram reconhecidos no Brasil pela lei 11.645/08 e é necessário incluí-los nos livros didáticos e paradidáticos. As incertezas relacionadas ao conhecimento científico acumulado nos últimos séculos sugerem novas propostas epistemológicas, na qual as interfaces entre diferentes percepções sobre a realidade são consideradas e tomadas como fundamentais.
Conforme avaliou Boaventura Santos (1987), o rigor do conhecimento científico conduziu a um processo de excessiva fragmentação do conhecimento, bem como ao afastamento de outras possibilidades de saber fundamentais para o conhecimento do mundo em que vivemos. Por isso o conhecimento de matriz africana se apresenta necessário para o desvendamento dos mistérios sobre a origem das tecnologias do governo do mundo e sobre os caminhos de cada um na luta cotidiana contra os infortúnios da vida. O diálogo do “senso comum” com o conhecimento científico dará origem a uma nova racionalidade sendo necessário para isto inverter a ruptura epistemológica da ciência moderna do salto qualitativo do conhecimento do senso comum através do diálogo. É possível que nos saberes da cultura africana, em especial na sua mitologia, encontram-se uma das chaves de acesso para compreensão do mundo e de inúmeras formas de pensamento.
O discurso do livro didático não deve ser visto como uma autoridade científica, e sim como uma proposta que auxilia na prática docente, e que pode e deve ser questionado. Ele deve também ser compreendido pelo professor e os alunos como um documento historicamente construído por diversos discursos, sejam eles governamentais, sociais, culturais e econômicos e, ainda que seja importante, não pode ser considerado o eixo-norteador do processo de ensino-aprendizagem.
Desenvolvimento
2.1. Os livros didáticos e paradidáticos e a Mundialização
O livro didático e a educação não podem ser pensados fora da sociedade, como muitas vezes nos vem sendo apresentados. São aspectos que influenciam e são influenciados pela sociedade, isto é, pela situação política, econômica e social de um determinado período histórico. Desde o século XIX, as políticas do livro didático e paradidático mantiveram conectados os interesses estatais aos interesses privados. Editores e autores sempre se interessaram por este produto que circula no mercado e produz lucro. Assim, editoras, buscando vender seus livros, seguem determinações da classe social que possui o domínio do capital. Nesse sentido, desde a segunda metade do século XIX, comissões, comitês e programas governamentais determinam os conteúdos a serem abordados, quanto à organização do livro e, principalmente, os paradigmas a serem trabalhados em sala de aula.
Com o tempo, o livro didático foi apresentado com diferentes configurações. A história antiga e a “pré-história”, seguindo uma linha cronológica linear, são apresentadas de uma forma resumida no sexto ano. Desde a metade do século XIX, quanto mais antiga a história é mais resumida e fragmentada. Como a história da África se destaca mais na chamada “pré-história” e na história antiga a tendência sempre foi um silenciamento deste período. O discurso eurocêntrico tradicional positivista que foi transferido para os manuais escolares sempre estabeleceu apagamentos e silenciamentos em relação à África. Os negros foram esquecidos como sujeitos singulares e destacáveis, enquanto o homem branco foi sempre lembrado em sua saga repleta de heróis. Orlandi (2003), explica que estes discursos mobilizam os sentidos já estabilizados acerca de uma suposta superioridade de brancos indicando ao leitor uma via de interpretação que sustentará uma inferioridade em relação às demais etnias. Conforme a autora, são discursos fundadores que vão se cristalizando na memória e estão em funcionamento nos livros didáticos e paradidáticos de história.
Atualmente, o que vem sendo difundido nos livros didáticos e paradidáticos é efeito do fenômeno da mundialização na qual os interesses internacionais se voltam para uma identidade global, em detrimento de uma identidade nacional. Bittencourt (2009), explica que a própria condição do sistema capitalista articula a modernização e a tecnologia num sentido global e, dessa forma, o nacional é considerado ultrapassado uma vez que preconiza o ideário de uma identidade supranacional para que todos possam sentir cidadãos do mundo. É importante destacar que estes livros são, em muitos lugares do Brasil, os únicos impressos a que têm acesso alunos e professores. Esse número fica mais relevante quando a população escolar tem menos acesso a bens econômicos e culturais, tornando-se a única referência para a escolarização (Batista, 2000).
Numa concepção que se exalta a mundialização, todos nós somos convidados a nos adequarmos a um modelo único, que procura excluir as diferenças sociais buscando uma nova homogeneização. É nesse sentido que se pretende colocar os livros didáticos e paradidáticos como espaço político-simbólico para a informação de conhecimentos que sejam voltados a um único objetivo que, com um viés mercadológico, pode alcançar uma padronização cultural. Os professores acabam tendo poucas opções, pois os livros têm como base a mesma historiografia e parecem todos iguais. E levando em conta a situação da educação no Brasil que mercantiliza o ensino, os livros se tornam insubstituíveis pois são os únicos veículos memorizáveis para a utilização de provas a serem prestadas para os vestibulares.
Neste contexto, é possível compreender porque os livros didáticos e paradidáticos assumiram um papel negativo entre muitos educadores, e utilizá-los demasiadamente já significou falta de preparo profissional. Acreditamos que estes livros são pensados no futuro como substitutos dos professores, quando deveriam ser um aporte pedagógico de apoio ao trabalho docente. Conforme MUNAKATA (2007), os programas de capacitação dos professores são considerados muito onerosos em relação a resultados segundo o Banco Mundial, e a melhora do salário docente não acarreta por si só o rendimento escolar. Numa política a partir de tanta desconfiança em relação ao professor, os livros assumem a centralidade para futuros financiamentos.
Os mitos africanos no ensino de História
A partir da teoria de Thomas Khun (2006), a ciência moderna tornou-se apenas uma entre muitas, e sem o peso do continuísmo, a ciência pôde se dedicar aos estudos de todos os saberes, de todas as eras e lugares, portanto, um estudo histórico, porque magia, alquimia, astrologia e mitologias, são também para determinados grupos, expressões do conhecimento. Segundo Prandi (2001), o conhecimento afro-religioso possui um caráter empírico, pois é baseado em vivências anteriormente experimentadas e recuperadas a partir de narrativas míticas. A aprendizagem não é uma esfera isolada da vida, como a nossa escola, mas um processo que se realiza a partir de dentro, participativamente. É preciso produzir um instrumental seja na forma de livro didático ou paradidático que ensine aos alunos que na vida tradicional africana é o homem quem produz o tempo e faz dele o que quiser, o tempo é cíclico, começa no finito e vai até o infinito. Não há escatologia para concluir o fim dos tempos, o tempo e a atividade humana se confundem, são intimamente unidos. Conforme Bastide (2001), os africanos entendem que o cosmo possui uma estrutura quádrupla, os deuses, os homens, a natureza e os mortos, estão em uma relação de apego e interdependência. O homem participa de uma força vital que o liga aos homens que devem, por sua vez, estar abertos e atentos aos sinais e aos símbolos. Assim a linguagem, a tradução e o diálogo são fundamentais na relação dos homens com a vida.
Segundo Henri Atlan (1974), o mito propõe uma imagem significativa do mundo, a partir de premissas e linguagens próprias: o que não implica em uma ausência de racionalidade, mas uma utilização da razão de modo diferente daquela proposta pelo pensamento científico moderno. Com o mito de oxaquiã que inventa o pilão, percebemos o início de uma tecnologia entendida como um modo de fazer sempre aperfeiçoado, ou um fazer sistemático sempre aprimorado. Para Mariza Peirano (2003), o ritual é um sistema cultural de comunicação simbólica, sendo constituído de sequências ordenadas e padronizadas de palavras e atos, expresso por múltiplos meios. Esta comunicação pode acontecer de maneira direta, quando o próprio orixá, incorporado a um dos fiéis por meio do transe de possessão ou de maneira indireta, oracular, fazendo consultas aos deuses, mediante o jogo de adivinhação, executado por um Sacerdote (Babalaôs) que têm o dom de traduzir, pelo jogo de mensagens e as palavras do orixá. O início da idade do ferro, que se acreditava datar de 1.000 a.C, foi alterada para incluir o conhecimento da metalurgia descoberta pelos africanos. Essa modificação se baseou em pesquisas que encontraram uma placa de ferro na pirâmide de Quéfrem no Egito que data de 3.700 a.C.. Conforme a cosmologia africana, Ogum representa uma revolução no mundo da tecnologia e do desenvolvimento, na medida em que entregou à humanidade o segredo da forja do ferro. Os ferreiros da África que confecciona instrumentos de ferro de altíssimas temperaturas são até hoje considerados feiticeiros e mágicos. Todas as grandes invenções da Humanidade como o fogo, a cerâmica, o ferro, os tecidos, são legados históricos silenciados nos livros didáticos e paradidáticos por serem de origem africana.
A mitologia de matriz africana em diálogo com a ciência moderna interage e produz um conhecimento mais dinâmico, carregado de sentimentos e significados que possibilita a configuração de um novo conhecimento científico. É de fundamental importância que diferentes níveis de percepção da realidade possam ser conectados possibilitando não apenas a sua coexistência, mas também a construção de um conhecimento mais humano. O poder do conhecimento que o homem tradicional africano procura é antes de tudo aquele que consiste na natureza dos seres. Possuir tal conhecimento permite aos alunos explorar mais as forças do universo, da natureza em função do seu próprio desenvolvimento integral e da sua libertação. Conforme Le Goff (2003), a memória se constitui como elemento essencial do que se costuma chamar de identidade coletiva. E esta memória, segundo o mesmo historiador, é um instrumento de poder. É preciso construir um equilíbrio, garantindo que os saberes de todas as etnias cheguem a todos os alunos.
Os livros didáticos e paradidáticos atuais mobilizam um discurso imposto, tanto no sentido de ser obrigatório quanto no sentido de ser um discurso oriundo de uma “autoridade”. Conforme Orlandi (1999), este discurso dificulta a polissemia, dando margem para que pensemos este discurso como performativo. Dessa maneira, é possível entender a força dos discursos fundadores positivistas, petrificando sentidos nos livros didáticos e paradidáticos. Esta permanência dos discursos fundadores está ligada a falta de diálogo entre as recentes pesquisas acadêmicas e a produção da escrita didática. Muitos professores de história estão distantes da produção do saber histórico, submetendo assim, acriticamente ao saber que foi condensado nos livros didáticos e paradidáticos. Dessa maneira é possível perceber que a história da África e dos afro-descendentes ocupa um espaço menor nos livros, e é trabalhada de forma secundária. Quando um discurso fundador africano é inserido na forma de um mito, é sempre entendido como uma curiosidade, um texto pitoresco. Os autores dos livros inserem temas africanos de maneira tão simplista e resumida que parece que a cultura negra não faz parte do cotidiano da sociedade brasileira.
São muitos os discursos que se atravessam na formação social do Brasil. As pesquisas sobre a história da África e dos afro-descendentes se aprofundam e novas correntes historiográficas se inserem no debate. Acreditamos que o grande desafio será a inserção dos discursos fundadores africanos nos livros didáticos e paradidáticos respeitando suas epistemologias sem privilegiar um em relação aos outros. O ensino de história africana é fundamental para a conformação de uma outra relação com o passado, e deve propor um rompimento com a memória tradicional do século XIX constituindo um novo conceito de nacionalidade do qual os negros e pardos não permaneçam como estrangeiros em seu próprio país. É necessário destacar que esta história não interessa apenas aos alunos de ascendência negra. Interessa também aos alunos de outras ascendências étnicas, pois ao receberem uma educação envenenada pelos preconceitos, eles tiveram suas estruturas psíquicas afetadas (Munanga, 2005).
A narrativa dos livros didáticos e paradidáticos precisa ser lúdica, capaz de estimular a sensibilidade para os saberes das diversas culturas, dentro de uma proposta ética que pressupõe abrir-se para o outro, para o diferente. É preciso novos discursos que problematizem as verdades, que não forneçam certezas, que põem em questão o dogma. O novo desafio é transformar estes novos discursos em discursos fundadores, que funcionam como referência básica no imaginário constitutivo do país, e vão se cristalizando na memória nacional (Orlandi, 2003). Reiterando que não se trata de sobrepor o conhecimento mitológico de matriz africana à objetividade científica, mas de uma complementaridade no próprio conhecimento do ser humano, como conhecedor de si mesmo e avaliador da circunstância que compreende.
Com a mitologia percebemos como foram criados os instrumentos que os africanos trouxeram para o Brasil, bem como técnicas de mineração, tecelagem, técnicas de criação extensiva de gado, vegetais e mais uma infinidade de elementos. Os livros didáticos e paradidáticos têm uma tendência perversa de falar apenas em “escravos”. Não falam em banto, Fon, ioruba ou congo. O que se estabeleceu no Brasil foi um diálogo de culturas, um quadro extremamente complexo. Os livros continuam cometendo o erro de ver a África como um grande país, não percebendo que existem várias Áfricas, várias culturas, várias histórias. Conforme Diop (1967), a África não é só a origem da civilização, como também o berço do desenvolvimento social, cultural, científico e político. O que são as características comuns de toda África é o matriarcado, a espiritualidade, o humanismo e o pacifismo. Houve um silenciamento da memória mundial e da história da pedagogia. Fatos como a produção de aço por povos da Tanzânia, a descoberta das propriedades do triângulo retângulo antes de Pitágoras, a sabedoria que conhecia os valores da constante geométrica PI antes de Arquimedes, o uso do bastão de Ishango, com dois sistemas de numeração, 18 mil anos mais antigo que a matemática grega, o conhecimento de fisiologia e anatomia praticadas pelo médico negro Imhotep, do Egito, 25 séculos antes de Hipócrates, a prática da cesariana com assepsia e cauterização e mais quantas descobertas e práticas ficaram perdidas no tempo. Esse silêncio dos livros didáticos e paradidáticos contribuiu para que os alunos afro-descendentes se sentissem impossibilitados de lutar com os seus próprios instrumentos culturais, pois são na atualidade desestimulados a valorizarem a si mesmos e aos seus grupos de pertencimento.
Conforme, Aranha (1986), os mitos e a razão se complementam: os mitos são as primeiras leituras do mundo, e o advento de outras abordagens do real que não expulsa do homem aquilo que constitui a raiz da sua inteligibilidade, isto é, os mitos são o ponto de partida para compreensão do ser. Tudo o que pensamos e queremos se situa inicialmente no horizonte da imaginação, nos pressupostos míticos, cujo sentido existencial serve de base para todo trabalho posterior da confiança do homem em si mesmo. As narrativas míticas de matriz africana conferem aos processos de construção da tecnologia uma luminosidade atemporal, permitindo um mergulho prazeroso na alteridade das culturas africanas. É necessária a popularização da ciência e da tecnologia com a contribuição da cultura africana, até mesmo porque os primeiros passos da ciência foram dados no continente africano, ou seja, no Egito antigo, conforme atestou o próprio “pai da história”, o grego Heródoto, que afirmou: os egípcios tiveram a primazia da ciência e eles eram negros.
Considerações finais
No discurso científico moderno, os saberes dos africanos sempre foram associados à religião, naturalizando-se uma forma de pensar as culturas africanas, sem levar em consideração os acontecimentos que elas produziram e produzem sobre o universo. As pesquisas de Silva, (2005), demonstram que apesar da diversidade cultural registrada nos documentos oficiais que mostra que as escolas são povoadas por alunos de diferentes origens étnico-raciais, os discursos dos livros didáticos ainda apresentam como padrão o discurso fundador da historiografia positivista. Cabe ressaltar que também não é excluindo todo o discurso positivista que se escreve uma história ideal, partindo da proposta da Nova História Cultural, é preciso estabelecer relações e reflexões acerca das temáticas que são inseridas nos livros. Segundo Vainfas (1997), a cultura das elites pode carregar características de uma cultura do povo, e a cultura do povo pode ser identificada pelos aspectos que filtram da cultura das elites. Portanto, deve-se trabalhar de forma simultânea entre a cultura européia e cultura africana, uma vez que uma carrega características da outra, conforme os valores que são apropriados pelos povos, ainda que ambas ocupem o mesmo espaço e apresentam disparidades no tempo.
Os livros didáticos e paradidáticos deveriam constituir um discurso que unisse fios do passado com o presente em um processo ativo de tomada da diversidade com uma proposta de dês alienação da História. Mesmo após a implantação da lei 11.645/08 no Brasil, é possível identificar que a abordagem sobre a cultura negra foi pouco modificada. A história e a cultura são pouco trabalhadas, e quando são, aparecem de uma maneira uniformizada, sem ressaltar as diferenças de etnias, defasadas e com dados equivocados. Este silenciamento dos discursos africanos e afro-descendentes precisa sistematicamente de novas leituras. Pensamos que, assim como propõe Orlandi (1997, p. 23), “se a linguagem implica silêncio, este, por sua vez, é o não dito visto do interior da linguagem. Não é o nada, não é o vazio sem história. É o vazio significante.”
Acreditamos que os mitos constituem os discursos fundadores da cultura e da identidade africana, e são eles que fornecem as estruturas da cultura brasileira. Para incluir estes discursos nos livros didáticos e paradidáticos é necessário um diálogo constante entre os resultados das pesquisas acadêmicas nas áreas de história oral, antropologia e a história da produção da escrita didática. São poucos os livros que abordam conhecimentos que fazem parte da constituição do Brasil como, por exemplo, a experiência dos negros na observação da natureza e no desenvolvimento de atividades cotidianas, como a produção e obtenção de alimentos e materiais técnicos de construção, utilização de recursos naturais que possibilitam a permanência em determinado território e garantam a sua subsistência. O esquecimento de práticas ancestrais empobrece as futuras gerações, que estarão desprovidas de saberes que foram fundamentais para a sobrevivência de uma parte da humanidade.
E importante que sejam abordadas nos livros didáticos e paradidáticos as vivências das sociedades africanas em situações anteriores ao contato colonial. A história da África valoriza a contribuição cultural desses povos na formação da sociedade brasileira e de sua participação na história do Brasil. Retomando Bittencourt (2009), é importante salientar que não se trata de exaltar a importância de um acontecimento em detrimento de outros, mas sim de dar devida importância aos que fundamentam a constituição de uma nação. Este discurso deve também ser compreendido pelo professor e os alunos como um documento historicamente construído, isto é, construído por diversos discursos, sejam eles governamentais, sociais, culturais ou econômicos.
O livro didático e paradidático tem que estar ancorado em saberes historiográficos que possam construir um novo discurso. E nesse discurso ratifica a necessidade de uma ruptura com um passado de intolerância e preconceito, que possam ensinar que a diferença é bela, que a diversidade é enriquecedora e não pode ser sinônimo de desigualdade e que forme cidadãos ativos que possam transformar esta nação. Acreditamos que a ciência moderna em diálogo com os mitos africanos vai produzir um conhecimento que podemos relacionar com a visão de Espinosa sobre Deus com parte do todo e não fora dele. Lembrando também uma tradição bakongo que diz: Nganga Zambi fez tudo junto como um pacote e dentro desse pacote colocou tudo, estava criado o ciclo da vida. A separação veio depois, mas estar no mundo é fazer parte da Kanga. Nganga Zambi amarrou todas as coisas dando início a tudo que têm princípio, mas não têm fim, pois a vida é um eterno renascimento.
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