2020 – Estado da Questão
Coordenação editorial: José Morais Arnaud, César Neves e Andrea Martins
Design gráfico: Flatland Design
AAP – ISBN: 978-972-9451-89-8
CITCEM – ISBN: 978-989-8970-25-1
Associação dos Arqueólogos Portugueses e CITCEM
Lisboa, 2020
O conteúdo dos artigos é da inteira responsabilidade dos autores. Sendo assim a Associação dos
Arqueólogos Portugueses declina qualquer responsabilidade por eventuais equívocos ou questões
de ordem ética e legal.
Desenho de capa:
Planta do castro de Monte Mozinho (Museu Municipal de Penafiel).
Apoio:
DOI: https://doi.org/10.21747/978-989-8970-25-1/arqa60
novos trabalhos na lapa da
bugalheira (almonda, torres novas)
Filipa Rodrigues1, Pedro Souto2, Artur Ferreira2, Alexandre Varanda1, Luís Gomes1, Helena Gomes2, João Zilhão1,3,4
RESUMO
Apresentam-se os dados obtidos no primeiro ano das escavações arqueológicas realizadas na Lapa da Bugalheira (Almonda, Torres Novas) ao abrigo do projecto de investigação ARQEVO.
Esta intervenção permitiu reconhecer uma ocupação enquadrada no Neolítico Antigo, com um conjunto artefactual típico da primeira etapa da diacronia neolítica: cerâmica impressa cardial, “boquique”, geométricos e
elementos de adorno. Datações absolutas sobre Ovis e restos humanos confirmam a cronologia.
Esta ocupação encontra paralelos em sítios coevos do Maciço Calcário Estremenho (MCE), entre os quais se
destaca a Galeria da Cisterna (sistema cársico do Almonda).
Palavras-chave: Neolítico Antigo, Cardial, Maciço Calcário Estremenho, ARQEVO.
ABSTRACT
We present the results of the first year of the field work carried out at Lapa da Bugalheira (Almonda, Torres
Novas) by the ARQEVO research project. We have identified an Early Neolithic occupation featuring a characteristic artefact assemblage with impressed wares (both cardial and “boquique”), geometric microliths and
ornaments. The age of the assemblage has been corroborated by the radiocarbon dating of sheep and human
bone samples. Comparable, coeval occupation contexts exist in the Central Limestone Massif of Estremadura,
paramount among which is the Galeria da Cisterna’s (Almonda karst system).
Keywords: Early Neolithic, Cardial, Limestone Massif of Estremadura, ARQEVO.
1. INTRODUÇÃO
A Lapa da Bugalheira (Almonda, Torres Novas)
localiza-se no limite sul do Maciço Calcário Estremenho, mais concretamente numa escarpa de falha
com cerca de 75 m de altura, localmente conhecida
como “Arrife do Almonda”. É uma das cavidades
que integra o sistema cársico associado à nascente do
Rio Almonda, sendo uma surgência fóssil eventualmente relacionada com a Ribeira de Oeste, que drena o polje de Mira-Minde. Os primeiros trabalhos
arqueológicos realizados nesta cavidade remontam
à década de ’40 do século XX, e foram dirigidos e
publicados por Afonso do Paço (A. Paço), que refere
a existência de ocupações do período “Eneolítico”
(Paço, et al., 1971).
Em 1946, a Lapa da Bugalheira foi classificada como
Imóvel de Interesse Público (Decreto n.º 35817, DG,
I Série, n.º 187, de 20.08.1946). Mais tarde, na década de ‘80, um grupo de espeleologia local (STEA
– Sociedade Torrejana de Espeleologia e Arqueologia) efectuou a desobstrução de uma passagem para
uma galeria até então desconhecida – Sala do Ricardo (STEA, 1986) – na qual se identificou uma necró-
1. Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa (UNIARQ), Faculdade de Letras de Lisboa, Universidade de Lisboa, Alameda
da Universidade, 1600-214 Lisboa, Portugal; F. Rodrigues:
[email protected]; A. Varanda:
[email protected];
L. Gomes:
[email protected].
2. Sociedade Torrejana de Espeleologia e Arqueologia, Quinta da Lezíria, 2350-510, Torres Novas, Portugal; P. Souto: pedrojsouto@
gmail.com; H. Gomes:
[email protected].
3. Institució Catalana de Recerca i Estudis Avançats (ICREA), Passeig Lluís Companys 23, 08010 Barcelona, Spain.
4. Universitat de Barcelona, Departament d’Història i Arqueologia, Facultat de Geografia i Història, c/Montalegre 6, 08001 Barcelona, Spain; J. Zilhão:
[email protected].
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Arqueologia em Portugal / 2020 – Estado da Questão
pole superficial datada do Neolítico Médio (ICEN
739, 5090±90 BP, 3990-3727 cal BC, 2s5) (Zilhão &
Carvalho, 1996).
Nessa altura, propõe-se uma nova campanha de escavações no Sistema Cársico associada à Nascente
do rio Almonda: “b) realização […] de sondagens
arqueológicas na gruta do Almonda, com vista à
avaliação da natureza da sua ocupação solutrense;
e na Lapa da Bugalheira, com vista a detecção de
eventuais depósitos paleolíticos sob a cascalheira de
grandes blocos que constitui a base actual do preenchimento sedimentar da sala da entrada, e ao levantamento do ossuário neolítico da “sala do Ricardo”
(Zilhão, 1987, 13). Porém, devido aos resultados
obtidos na Galeria da Cisterna e à consequente descoberta de novas entradas obstruídas com importantes ocupações paleolíticas – Grutas da Oliveira
e Aroeira e Lapa dos Coelhos – os trabalhos inicialmente previstos para a Lapa da Bugalheira só vieram
a começar em 2019, ao abrigo do projecto “ARQEVO - Arqueologia e Evolução dos primeiros humanos na fachada atlântica Península Ibérica” (PTDC/
HAR-ARQ/30413/2017).
2. SÍTIO, ESTRATIGRAFIA, CULTURA MATERIAL E DATAÇÕES ABSOLUTAS
Tradicionalmente designada como “lapa”, a Bugalheira é, na realidade, uma “gruta fóssil” actualmente constituída por duas salas: a sala escavada por A.
Paço, através da qual se entra hoje na cavidade e a
já referida Sala do Ricardo, mais interior, acessível
através de um corredor estreito. Na realidade, trata-se de um espaço único separado por um estreitamento completamente preenchido por sedimentos.
A escavação realizada em 2019 teve lugar na área
da desobstrução efectuada pela STEA que permitiu a passagem para a Sala do Ricardo (quadrados
M/N/O das fiadas 13 e 14 da quadrícula implantada; Figura 1) com os seguintes objectivos: i) avaliar
a preservação do sítio; ii) registar a sequência estratigráfica e respectivas ocupações; iii) aferir a(s)
cronologia(s), tipologia(s) e funcionalidade(s) da
ocupação ou ocupações registadas.
2.1. Estratigrafia
Reconheceu-se a seguinte sequência estratigráfica:
5. Datação sobre osso humano.
• Camada 1. Camada de remeximento, pulverulenta, castanho-escura, correspondente a terras depositadas sobre os grandes blocos pétreos
de desprendimento da parede da gruta ao nível
dos quais havia parado a escavação de A. Paço;
presença abundante de restos ósseos, muito fragmentados (<1 cm) e escassos materiais
arqueológicos.
• Camada 2. Camada silto-arenosa, amarelada,
solta, com áreas mais compactas devido à precipitação de carbonato de cálcio; presença de
alguns pequenos blocos de calcário; regista-se
a presença de tocas e raízes; esta camada tem
uma espessura máxima de cerca de 70 cm; corresponde ao nível arqueológico, com materiais
atribuíveis ao Neolítico Antigo.
• Camada 3. Camada laranja pulverulenta, solta;
no topo da camada foram recolhidos dois seixos
de quartzito, tendo-se revelado, em profundidade, estéril do ponto de vista arqueológico.
• Camada 4. Camada argilosa, de cor vermelha,
semi-compacta; presente em toda a área de escavação; estéril do ponto de vista arqueológico.
• Camada a. Camada carbonatada, descontínua e
irregular, de cor branca, cimentada, com inclusão de materiais arqueológicos, designadamente cerâmicas com decoração cardial; presente
nos quadrantes norte da quadrícula L14, oeste
das quadrículas M/13-14 e este das quadrículas N/13-14; removida com recurso a martelo
demolidor; possivelmente um espeleotema
(bandeira?) alterado e sedimento brechificado
a ele aderido.
• Camada b. Depósito identificado nos quadrados O/13-14, concrecionado e de coloração
alaranjada; no seu topo foram recolhidas três
Theodoxus fluviatilis perfuradas; deverá corresponder ao contacto das camadas 2/3, alterado
pela proximidade à parede da gruta.
• Camada g. Depósito constituído por grandes
blocos de desprendimento das paredes da gruta;
eventualmente, corresponde ao que A. Paço e
colaboradores designaram por “chão da gruta”;
removido com recurso a martelo pneumático.
2.2. O conjunto artefactual
Os materiais recolhidos durante a campanha de
2019 perfazem um total de 504 entradas no inventário de campo. Entre eles contam-se cerâmica, indústria lítica (pedra lascada e pedra polida), elemen-
824
tos de adorno, indústria óssea, fauna (mamalógica
e malacológica) e restos humanos. A Tabela 1 dá a
distribuição destas grandes categorias.
2.2.1. Cerâmica
Das 223 entradas “cerâmica” que constam do inventário de campo, 135 correspondem a sacos gerais e 88
a fragmentos coordenados. Apesar de neste conjunto predominarem os fragmentos lisos, destaca-se a
presença de cerâmica com decoração impressa cardial e “boquique”. Com decoração impressa cardial
regista-se um número mínimo de dois recipientes,
com características distintas.
Um dos recipientes apresenta uma morfologia ovóide ou “em saco”, com mamilo de preensão junto ao
bordo; a decoração cardial organiza-se em bandas
paralelas junto ao bordo; na parte superior do recipiente observam-se grinaldas com impressões cardiais. O outro recipiente apresenta uma asa de rolo
junto ao bordo, estando a decoração cardial disposta
em bandas junto ao mesmo.
As asas estão igualmente presentes em pelo menos
dois outros recipientes:
• um fragmento recolhido durante a desobstrução efectuada pela STEA; trata-se de um bordo denteado com asa de perfuração horizontal
decorada com incisões verticais paralelas; neste
fragmento observa-se ainda o arranque de uma
grinalda realizada com recurso a puncionamento arrastado (“boquique”), o que permitiu
associá-lo a um bojo com a mesma decoração
recolhido na campanha de 2019;
• um bordo com asa de fita representa o outro
recipiente.
Outros elementos de preensão, tais como as pegas,
estão também presentes.
2.2.2. Pedra lascada
Estratigraficamente, a indústria lítica distribui-se da
seguinte forma: Camada 1 = 1; Camada a = 2; Camada 2 [remeximento] = 8; Camada 2 = 10. Está ausente
o tratamento térmico, e as categorias tecnológicas
representadas são as da Tabela 2.
Um dos núcleos enquadra-se no tipo morfotécnico
“prismático” (considerando os critérios de análise
tecnológica definidos para o Neolítico Antigo do Maciço Calcário das Serras d’Aire e Candeeiros) (Carvalho, 1998). Trata-se de um núcleo para extracção de
lâminas, embora sejam visíveis negativos de outros
produtos. Este núcleo apresenta-se calcinado.
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Arqueologia em Portugal / 2020 – Estado da Questão
Para a análise dos produtos alongados da Lapa da
Bugalheira, adoptou-se o limite dos 12 mm de largura para diferenciar as lamelas das lâminas. No total,
foram recolhidas quatro lâminas e seis lamelas, com
o padrão de fracturação apresentado na Tabela 3.
O córtex está ausente em todas as peças recolhidas,
verificando-se, contudo, as diferentes secções apresentadas na Tabela 4.
Há neste conjunto uma ponta de seta de base triangular, típica dos contextos do final do Neolítico da
Estremadura. Quer a sua tipologia quer o contexto
de recolha – níveis de remeximento – permitem
afirmar que se trata de uma intrusão residual relacionada com os horizontes arqueológicos escavados
por A. Paço.
O restante material é composto por armaduras geométricas, com predomínio dos trapézios (7) sobre
os crescentes (1), e uma raspadeira. No que respeita
aos trapézios, há um equilíbrio entre as peças com
secção trapezoidal (4) e triangular (3). Predomina o retoque curto e abrupto (6), observando-se
um exemplar com retoque directo, invasor, semi-abrupto. O crescente tem uma secção triangular,
com retoque directo, invasor e abrupto.
2.2.3. Pedra polida
São dois os elementos de pedra polida recolhidos na
campanha de 2019 na Lapa da Bugalheira: uma esquírola de xisto polido (@ 1 cm) e uma enxó votiva.
A esquírola de xisto foi recolhida na limpeza superficial da área de escavação e, por isso, deverá ser um
resíduo das escavações de A. Paço. As suas reduzidas dimensões não permitem associá-la a um grupo
artefactual específico, não se descartando a possibilidade de pertencer a um artefacto ideotécnico associado à necrópole eneolítica.
A enxó tem superfícies totalmente polidas, perfil
biconvexo e secção sub-rectangular. As suas dimensões reduzidas (comprimento máximo = 64,75 mm;
largura máxima = 37,35 mm), contexto de proveniência (O14NE, camada 2), e paralelo com os utensílios em pedra polida recolhidos na década de ´80
pela STEA permitem associá-la à necrópole neolítica identificada na Sala do Ricardo.
2.2.4. Adornos
No total foram recolhidos 26 elementos de adorno,
de tipologias e matérias-primas distintas (osso, rocha e concha), que remetem para diferentes cronologias dentro da Pré-história recente.
O adorno em osso corresponde a um fragmento de
cabeça postiça canelada, pertencente a um alfinete
de cabelo, e foi recolhido na área remexida pelos trabalhos de desobstrução da STEA. Este tipo de adorno é conhecido a partir do Neolítico Final, surgindo
igualmente em contextos do Calcolítico Inicial e
Pleno. Tal facto, aliado à sua proveniência, permite
afirmar que se trata de peça associada aos contextos
escavados por A. Paço.
A mesma conclusão pode ser aplicada às contas
discóides. Trata-se de três exemplares de pequenas
dimensões, elaboradas sobre rocha – calcário (2) e
xisto (1) – de ocorrência comum na etapa final do
Neolítico e no Calcolítico e de tipologia desconhecida em contextos do Neolítico Antigo.
À fase mais antiga da diacronia neolítica podem ser
atribuídos uma conta cilíndrica de Dentalium sp.
e os adornos elaborados sobre concha inteira (21).
Entre estes últimos foram reconhecidas duas espécies distintas: Columbella rustica (4) e Theodoxus
fluviatilis (17).
Os adornos sobre concha da Lapa da Bugalheira encontram paralelos tipológicos e cronológicos não
só na Galeria da Cisterna (Gruta do Almonda), mas
também nos contextos cardiais de Valencia (Espanha) (e.g. Cendres, Or, Sarsa) (Pascual Benito, 1998;
Zilhão, 2009).
2.2.5. Indústria óssea
Foi recolhido na Camada 1 um fragmento mesial de
utensílio indeterminado. Este fragmento está integralmente polido e tem uma ranhura longitudinal,
o que lhe confere uma secção convexo-côncava. Os
seus bordos laterais são arredondados. Este fragmento pode-se enquadrar tanto na categoria dos
alfinetes como na das agulhas, ou até mesmo na dos
alisadores/ furadores.
2.2.6. Fauna
No que respeita à fauna mamalógica estão presentes
os ovicaprídeos, incluindo restos classificáveis com
segurança como de ovelha, o veado e o coelho. Na
fauna malacológica regista-se a presença de Unio sp.,
Cerastoderma edule, Glycymeris sp. e Pecten maximus. O estudo destes elementos encontra-se ainda
em curso.
2.3. Restos humanos
Os ossos humanos – mandíbula, dentes soltos, clavícula, vértebras, costelas, fémur, tíbia – encontravam-
-se dispersos na área de escavação, não tendo sido
identificada qualquer conexão anatómica. O estudo
deste material encontra-se ainda em curso.
2.4. Datações Absolutas
Foram obtidas duas datações absolutas que são
compatíveis com a cultura material recolhida e confirmam a atribuição do contexto ao Neolítico Antigo
(Tabela 5).
3. CRONO-ESTRATIGRAFIA E
CONTEXTUALIZAÇÃO REGIONAL
Considerando i) a sequência estratigráfica publicada
por A. Paço, ii) os dados já publicados sobre a Sala
do Ricardo e iii) a campanha realizada no âmbito
do projecto ARQEVO, estabeleceu-se um quadro
crono-estratigráfico para as ocupações da Lapa da
Bugalheira (Tabela 6).
Os trabalhos estão numa fase inicial e, por esse motivo, este quadro é preliminar. No futuro, com mais
escavação e mais desobstrução, deverão ser clarificadas algumas questões que por agora se mantêm em
aberto:
• haverá uma ocupação plistocénica, como sugerem Octávio da Veiga Ferreira e Jean Roche, no
seu artigo sobre “Os elementos de adorno do
Paleolítico superior de Portugal” (1980)?
• terá havido outra entrada para a cavidade, ainda
utilizada durante as primeiras etapas do Neolítico, que permitia o acesso à Sala do Ricardo?
• estarão os níveis do Neolítico Antigo em posição primária ou são o resultado de uma redeposição (e, portanto, potencialmente, mistura)
de contextos que, na Sala do Ricardo, ocorrerão estratificados?
Independentemente dos resultados futuros, está
confirmada a ocupação do Neolítico Antigo com datações que a enquadram em sítios coevos da região.
Efectivamente, quer as datações quer o conjunto
artefactual permitem estabelecer paralelos com as
ocupações já conhecidas e publicadas nas grutas-necrópole do Algar do Picoto e da Galeria da Cisterna (sistema cársico da nascente do Almonda),
ambas localizadas a <5 km da Lapa da Bugalheira.
Se, por um lado, são as datações do Algar do Picoto
que mais se aproximam das da Lapa da Bugalheira, é
por outro lado na componente artefactual da Galeria da Cisterna que se encontram os melhores paralelos para o conjunto aqui descrito. Com efeito, no
826
Algar do Picoto, onde não houve qualquer escavação arqueológica (os artefactos e os restos humanos
datados foram recolhidos à superfície), predominam os recipientes decorados com caneluras, tipo
de decoração ausente na Bugalheira. Os paralelos
para esta última encontram-se no conjunto da Galeria da Cisterna. Ainda que este represente um “[…]
palimpsesto de usos funerários distribuídos ao longo de um período de tempo considerável” (Zilhão,
2009, p. 827), a tipologia das cerâmicas atribuíveis
ao Neolítico Antigo sugere três fases de ocupação
(Zilhão, 2009):
• Cardial antigo, com um número mínimo de dois
recipientes, de “tradição cardial barroca”, decorados com concha de Cardium e pente, com paralelos nas ocupações mais antigas do Neolítico
da região de Valencia;
• Cardial recente, com um número mínimo de
25 recipientes, com decoração impressa, predominantemente cardial (17), registando-se igualmente impressão a pente (2);
• Epicardial, com um número mínimo de 13 vasos, estando presente a cerâmica impressa, “boquique”, incisões e caneluras.
Associado a este importante conjunto cerâmico
está uma extensa colecção de elementos de adorno,
que, à semelhança da baixela cerâmica, encontra paralelos nos sítios de Valencia, tais como Cova de les
Cendres, Cova de l’Or e Cova de la Sarsa. A maioria destes adornos – caninos de veado perfurados e
suas imitações em osso, pendentes ovais em concha,
pendentes em concha inteira de Theodoxus fluviatilis – terão sido depositados durante o Cardial antigo e
recente. Este enquadramento cronológico é baseado
i) nas datações absolutas, ii) nos paralelos valencianos e iii) nos dados da Gruta do Caldeirão (Tomar)
(Zilhão, 2009).
Desta comparação resulta assim que, a partir de critérios tecno-tipológicos respeitantes tanto às cerâmicas como aos adornos, a ocupação representada
pela camada 2 da nossa sondagem se enquadra na
fase “Cardial recente” da Cisterna. No que respeita à
indústria lítica, a prevalência dos trapézios na Bugalheira está também em conformidade com os dados
publicados para o “Cardial recente” representado
pelo Horizonte NA2 da Gruta do Caldeirão (Tomar).
Com base nas datações absolutas, o “Cardial recente” da Cisterna seria, porém, mais antigo que o da
Bugalheira e, na Cisterna, os vasos com decoração
de tipo “boquique” semelhantes aos da Bugalheira
827
Arqueologia em Portugal / 2020 – Estado da Questão
foram atribuídos ao Epicardial. Deste modo, o conjunto da Bugalheira ou (a) é homogéneo e representa uma fase intermédia entre o Cardial recente e
o Epicardial ou (b) é heterogéneo e inclui material
procedente de duas ocupações funerárias distintas,
Cardial recente e Epicardial, pertencendo as amostras datadas a esta última. São alternativas cuja validade a continuação dos trabalhos deverá esclarecer.
AGRADECIMENTOS
Ao José António Crispim e Pedro Marote, da Sociedade Portuguesa de Espeleologia (SPE), pela realização e cedência da topografia espeleológica da Lapa
da Bugalheira.
Ao Simon Davis e ao David Gonçalves, do Laboratório de Arqueociências (LARC – DGPC), pela classificação da fauna e restos humanos, respectivamente.
Ao António Monge Soares e Paulo Portela pela análise CN dos ossos datados.
Este trabalho foi apoiado pela FCT (Fundação para a
Ciência e a Tecnologia, Portugal) através do projecto PTDC/HAR-ARQ/30413/2017). O trabalho de
campo foi financiado pela CM Torres Novas e pela
FCT, com o apoio logístico da A Renova.
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Portugal Meridional. Os exemplos do Maciço Calcário Estremenho e do Algarve Ocidental. Promontoria Monográfica,
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Cerâmica
223
Indústria lítica
Lascada
Polida
Adornos/
Ind. Óssea
36
2
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Fauna
Mm
Ml
49
22
Restos humanos
Amostras
Carvão
35
26
Tabela 1 – Inventário Geral (materiais coordenados (campanha de 2019)*.
* Os sacos (86) pertencentes à categoria “Gerais” não estão contabilizados nesta tabela; Fauna Mm = mamalógica; Fauna Ml
= malacológica.
Categoria Tecnológica
Núcleos
Produtos de debitagem
Utensílios
Sílex
Núcleo prismático
1
Lâminas
4
Lamelas
6
Raspadeira
1
Geométricos
8
Ponta de seta
1
TOTAL
21
Tabela 2 – Inventário geral dos materiais de pedra lascada, distribuídos por categoria tecnológica e matéria-prima.
Fractura
Lamelas
Lâminas
TOTAL
Inteira
1
–
1
Proximal
4
1
5
Mesial
1
1
2
Distal
–
2
2
TOTAL
6
4
10
Tabela 3 –Fracturação dos produtos alongados.
828
Secção
Lamelas
Lâminas
TOTAL
Trapezoidal*
1
3
4
Triangular*
3
1
4
Irregular
2
-
2
* sem córtex; fase plena da debitagem.
Tabela 4 – Secção dos produtos alongados.
Código do
Laboratório
Amostra
Contexto
Datação BP
Calibração cal BC
VERA-7047
LpBug.139
Metápode de Ovis
M/13, C2, na 2
6084±26
5196BC (2.0%) 5180BC
5063BC (92.5%) 4932BC
4921BC (0.8%) 4912BC
VERA-7048
LpBug.142
Fémur humano
M/13, C2, na 2
6128±26
5209BC (95. 4%) 4992BC
Tabela 5 – Datações de radiocarbono.
Cronologia (BC)
Período
Componente artefactual
Contexto
–
Vários
“[…] moedas de bronze do princípio do século XIX, um botão
pombalino, objectos de ferro e de bronze; cerâmica romana
e de permeio uma mó manual e algumas pontas de seta
neolíticas […]” (Paço et al., 1971, p. 28)
Camada a
Remeximento
recente
(Paço et al., 1971)
–
Camada b
Eneolítico “[…] restos humanos em associação com fragmentos de
Funerário
cerâmica, entre os quais diversos fragmentos de bordos e de
fundos de vasos lisos e apenas dois fragmentos de cerâmica
ornamentada […]”; “ […] o material colhido (ossos humanos,
cerâmica, placas de xisto, etc.) era bastante disperso e
fragmentado […]” (Paço et al., p. 2 4)
4000 – 3700
Neolítico
Médio
“[…] pedra polida e um vaso liso de boca elíptica com asas
verticais de perfuração em túnel […]” (Zilhão & Carvalho,
1996, p. 665)
Funerário
– necrópole
superficial
5200 – 4900
Neolítico
Antigo
Cerâmica impressa cardial, “boquique”, lamelas,
geométricos, adornos em concha, …
Funerário (?) –
remeximento
antigo; camadas
2, a, b
Tabela 6 – Quadro crono-estratigráfico.
829
Arqueologia em Portugal / 2020 – Estado da Questão
Sítio
Datação
Amostra
Componente artefactual
Algar do
Picoto*
ICEN-736, 6000±150 BP,
5256-4528 cal BC (2 s)
Osso,
Homo
Pedra lascada: conjunto composto por indústria
sobre lasca em sílex, quartzo e quartzito, e utensílios
retocados de “fundo comum”.
WK-17216, 5904±36 BP,
4702-4822 cal BC (2 s)
Osso,
Homo
Cerâmica: número mínimo de seis recipientes, lisos
(Vaso 1), decorados com caneluras (Vasos 2, 3 4 e 6) e
incisões formando triângulos preenchidos (Vaso 5).
Restos humanos: número mínimo de dois
indivíduos (jovem adulto do sexo feminino e adulto
do sexo masculino), com dieta típica de sociedades
de agricultores.
Galeria da
Cisterna
(Gruta do
Almonda)
**
OxA-9287, 6445±45BP,
5477-5321 cal BC (2 s)
canino
perfurado,
veado
Pedra lascada: conjunto dominado pelo sílex, com
núcleos prismáticos, lamelas (registando-se o talhe
por pressão e percussão indirecta) e segmentos.
OxA-9288, 6445±45 BP
5477-5321 cal BC (2 s)
Adorno
em osso
OxA-28855, 6280±34BP,
5325-5209 cal BC (2 s)
Osso,
Homo
S-EVA-27412, 6319±22 BP,
5345-5322 cal BC (2 s)
Mandíbula,
Homo
Cerâmica: número mínimo de 40 vasos, dos quais
18 apresentam decoração cardial (dois de “tradição
cardial barroca”), estando também presente
o “boquique”, as caneluras e as incisões, com
diferentes temas decorativos, nos quais se inclui a
“falsa folha de acácia”.
Wk-38574, 6270±30 BP,
5314-5212 cal BC (2 s)
Mandíbula,
Homo
Wk-38575, 6253±30 BP,
5312-5079 cal BC (2 s)
Mandíbula,
Homo
Wk-38576, 6312±31 BP
5352-5219 cal BC (2 s)
Osso,
Homo
Adornos: pendentes ovais sobre concha
(Glycymeris sp., Unio pictorum, Sepia officinalis),
pendentes sobre concha inteira (Theodoxus
fluviatilis, Columbella rustica, Glycymeris sp.,
Pecten maximus, Unio pictorum, Hinia reticulata,
Hinia pfeifferi), pendentes sobre dente inteiro
(Vulpes vulpes, Canis lupus, Cervus elaphus);
pendentes ovais em osso, imitando os caninos de
veado, contas cilíndricas em concha (Dentalium sp.)
e contas discóides em calcário.
* Zilhão & Carvalho, 1996; Carvalho, 2008; Carvalho, 2018.
** Zilhão, 2001; Carvalho 2008; Zilhão, 2009; Martins et al., 2015; Carvalho, 2018.
Tabela 7 – Datações e componente artefactual das grutas-necrópole a <5 Km da Lapa da Bugalheira.
830
Figura 1 – Topografia espeleológica da Lapa da Bugalheira com indicação da área escavada em 2019 (autoria: J.A. Crispim & P.
Marote/ SPE/ 2019).
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Arqueologia em Portugal / 2020 – Estado da Questão
Figura 2 – Cerâmica: A e B. Recipiente ovóide de decoração compósita (impressão + decoração plástica),
com banda paralela ao bordo e grinalda de impressões cardiais; C. Bordo com asa de rolo e banda paralela
ao bordo composta por impressões cardiais; D. Bordo com asa de fita; E. Bojo com decoração de tipo
“boquique”, em grinalda; F, Colagem entre o bojo representado em E e fragmento recolhido na década
de ´80 pela STEA apresentando bordo denteado, asa de perfuração horizontal decorada com série de
incisões, e arranque de decoração a puncionamento arrastado (Fotos: P. Souto & F. Rodrigues).
832
Figura 3 – Pedra lascada: A. Núcleo prismático para lâminas, calcinado; B. Geométricos (trapézios e crescentes); C.
Produtos alongados (lâminas e lamelas) e raspadeira (Fotos: P. Souto & F. Rodrigues).
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Arqueologia em Portugal / 2020 – Estado da Questão
Figura 4 – Adornos: A. Adornos em concha inteira: A.1. Theodoxus fluviatilis; A.2. Columbella rustica; B. Conta cilíndrica de
Dentalium sp.; C. Contas discóides em calcário e xisto.
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Figura 5 – Grutas-necrópole do Neolítico Antigo localizadas a <5 km da Lapa da Bugalheira.
835
Arqueologia em Portugal / 2020 – Estado da Questão
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