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A Fotografia

Se pudesse narrar com palavras, não necessitaria arrastar uma câmara atrás de mim".

A FOTOGRAFIA, ARTÍFICE DA EDUCAÇÃO VISUAL Carlos Leonardo Recuero1 “Se pudesse narrar com palavras, não necessitaria arrastar uma câmara atrás de mim”. Lewis Hime. A caverna de Platão é o nosso mundo ! Vivemos intensamente nesta caverna e não ousamos deixar nosso olhar transcender a tênue abertura entre a realidade e a ficção da vida moderna. A vida fascinante e excitante é cada vez mais permeada por imagens globalizantes de todos os recantos de um mundo atônito pela velocidade das mudanças e por uma avidez descontrolada do saber e do ver. A imagem é cada vez mais a frágil fronteira entre o real e o irreal, que o ser humano se impõe como forma de aprendizagem e atualização, frente às exigências de um pós - modernismo aviltante e que transcende a todas as imaginações passadas dentro das suas limitações e ansiedades de um planeta, que fazendo a sua história, não consegue enxergar e discernir entre o bem e o mal que lhe é imposto.* Os acontecimentos mundiais, a própria história do homem desde o “Neanderthal" até o “Astronauta Espacial”, só podem ser entendidos, quando ao retrocedermos o olhar, nos deparamos com o visual do passado, congelado em uma fotografia, pois dentro de nossa limitada capacidade de compreensão e entendimento só acreditamos naquilo que vemos. A realização de uma fotografia nos passa dois conceitos fundamentais: “... essa fantástica possibilidade de reportar o real...", segundo Ricardo Chaves2 e o que Mauro Koury3 relata como “Debruçado sobre a fotografia, o observador se encanta. Através dela, rememora. Por ela, o presente é corporificado como elos fixos de uma presença vivida. O passado torna-se uma rede de elementos fixos, presentes e ao alcance das mãos, que comprova o vivido e a vida do sujeito que as vê e as possui”. 1 Professor adjunto IV, no Centro de Educação e Comunicação nos cursos de Jornalismo, Publicidade e Propaganda, da Universidade Católica de Pelotas (UCPel); Doutorando em Lingüística Aplicada pela Universidade Católica de Pelotas; Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel); Mestre em Desenvolvimento Social pela UCPel; pesquisador do Nupecom (Núcleo de Pesquisas em Comunicação Social da Universidade Católica de Pelotas); Jornalista e fotógrafo. E-mail: [email protected] 2 CHAVES, Ricardo , no artigo "Fotojornalismo" pg.63, ACHUTTI, Luiz Eduardo(Org.) , ENSAIOS FOTOGRÁFICOS, Unidade Editorial Porto Alegre. RS. 1998. 3 KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro , no artigo " Relações Imaginárias : a fotografia e o real" pg.73, ACHUTTI, Luiz Eduardo (Org.), Ensaios Fotográficos, Unidade Editorial Porto Alegre. RS. 1998. A fotografia não é só como diz Susan Sontag 4 “... apropriar-se da coisa fotografada”. certamente vai muito além do que mostrar aquilo que está fora de nossa " caverna ", ou mesmo o inusitado que vemos comprovando o exótico que relatamos, ou a vida em toda a sua diversidade, pois seja na veracidade da realidade capturada através do ato de fotografar, que realizo com um feixe de luz processado e mecanizado artificialmente, ou no simples ato de capturar o real visível, obtenho sempre o mais terrível e verdadeiro espectro do real, que sobreviverá a morte e ao próprio tempo, por ser a solitária verdade de um momento precedente. As intrínsecas formas de alienação capitalista, que nos impõe os sistemas governamentais existentes, ou a nossa própria complexidade ao administrar a nossa vida social, não podem ser classificadas como forma distorcida de esquivar-se “burguesmente” nosso olhar da base da pirâmide social, fragmentando o aprender só no texto, ignorando a observação da visão e a imagem real , como algo dissociado do contexto do realismo como forma de educação e da embriaguez implícita e explícita, que uma imagem impõe ao observador humano. A nossa percepção de mundo, ainda que da “caverna de Platão", encontra-se centrada na visão. A educação convencional está baseada dentro de nossos primórdios conceitos de humanos, pois se baseia ainda nos pré-históricos registros que simbológicamente deram início ao ato da representação da palavra e se originaram na expressão dos desenhos, logo suplantados pela escrita e propagados pela gramática, pela retórica e pela filologia que, através do conhecimento científico, elevaram tais desenhos ao nível da cultura e da civilização. O visual e o verbal dentro da interdisciplinariedade globalizante do mundo não podem mais ser colocado em campos opostos e conflitantes na cientificidade do educar. A hipótese cientifica está intrinsecamente ligada a uma teoria, palavra está que em sua etimologia grega “theorein”, significa “ver, olhar, contemplar, mirar” · O homem não pode fundamentar o saber apenas na textualização do conhecimento, mas deve valer-se da expressividade do visual e da sua capacidade de definição expressiva e completa, onde a fotografia é o todo, contido num momento extraído da realidade. A fotografia incorpora em sua etimologia tal valor conceitual e o agir do ato fotográfico não é concluído no “clicar”, ou em uma fase precedente, como mirar, observar, retratar ou analisar. Acreditar nesta obviedade seria restringir a cientificidade, afastando-a para longe da inteligência humana, pois de fato para Aristóteles5 “o pensamento é impossível sem imagens”, e é esta a razão do nosso diferencial dos outros animais. O real e o imaginário encontram assim a possibilidade de coexistir em uma imagem contextualizada da realidade, onde o real e o seu espelho são a essência do vivificado , onde a compreensão de que se reveste a linguagem da luz traz na visão ocular, para cada espectador, a própria realidade da vida repleta de momentos, onde a qualidade sígnica da imagem e seus referenciais visuais agem semioticamente sobre o espectador, que é intronizado como testemunha da própria humanização e da desumanização contida no discurso explícito das imagens. 4 SONTAG, Susan , FOTOGRAFIA, Editora Arbor. 1981. pg.4 ARISTÓTELES., SOBRE A MEMÓRIA. 450 ª citado por SANTAELLA, Lucia e NÖTH, Winfried, IMAGEM, Cognição, semiótica, mídia, Editora Iluminuras.1998. pg.28 5 “O referente real é sentido como dominante na fotografia, [...] vestígio deixado sobre uma superfície especial pela combinação de luz e ação química” 6, e instantaneamente possuímos o observado. Possuímos ?... O tempo que temos na fotografia é um passado, um futuro do presente imediato passado, codificado pela luz e carregado de um discurso icônico, com codificação e possibilidades de decodificação. Porém, a fotografia é eterna, é um fragmento do passado observado, onde esta “fotografia é o ato de gravar sobre uma superfície suporte, pela ação da luz” ·, segundo Monforte, e que está sempre carregada da dialética da vida, da morte e do tabu que se impõe ao presente passado, detido inexoravelmente por sua essência de fragmentar o tempo. A importância da imagem na educação passa a ser contextualizada no plano da percepção, onde as imagens são idéias-modelo da realidade, percebidos através de nossos sensores visuais e que dentro de uma lógica organizacional irão constituir o pensamento icônico e o referencial da realidade que uma foto irá nos apresentar e obrigar a confrontar. A semiótica da educação é repleta de conceitos iconológicos, onde a ciência do conhecimento descreve através da textualização de tal cientificidade, mas, é a percepção, através de estímulos visuais, que formará as imagens no interior, como designa Piaget as imagens mentais, e que, posteriormente, irão transformar-se na textualização destas idéias. Ficariam estas dissociadas do processo do aprendizado ? A completa textualização da imagem me parece carecer de veracidade e de autenticidade uma vez que um gesto, uma distinção de um momento, um olhar, um desbragado ato brutal, nada disto pode ser percebido no seu ápice através da textualização do real, mas encontra em uma fotografia, recorte da realidade, a sua mais alta expressividade do real. O “prestar contas com fidelidade e realismo” é inerente e exclusivo da fotografia, ainda mais se for observado que uma vez dentro da ótica da nossa deficiência de visualizar a complexidade do movimento em toda a sua dimensão, seccioná-lo e textualizá-lo dentro do fenomelógico processo do acontecimento, nos é praticamente impossível ou nos induziria à omissão de alguma parte do processo completo, quando não fornecêssemos uma mera interpretação permeada pelo nosso psicológico. A sobreposição de acontecimentos, sobrepostos imediatamente pelos que lhes seguem de imediato e ocasionais, através do processo de continuidade, só podem, na feitura da fotografia, ser seccionados e rompidos de forma fracionária, repletos da irredutível realidade, o que estará possibilitando a tentativa de educar e narrar através destas imagens representativas da inexorável verdade retratada. A realidade na qual estamos envolvidos e até mesmo sendo manipulado ou conduzido para uma alienação total, fruto do fisiologismo político temporal e ideológico, vem, através dos meios de comunicação globalizantes, condicionando o conhecimento de cada um, em uma forma redutiva e relacionada com o lógico e o biológico da percepção sensorial do mundo que cada um de nós possui, abstraído o visual e sua parcela de real. Através da fotografia e do ato de fotografar podemos sempre nos reportar a dois importantes elementos na construção da educação e da comunicação visual, ou seja, as referências externas, que servirá para a produção da foto e a mensagem 6 METZ, Christian, PHOTOGRAPHY AND FETISH, 1985, pg. 82 . SANTAELLA, Lucia e NÖTH, Winfried , IMAGEM, Cognição, semiótica, mídia. Editora Iluminuras, Ltda. 1998. pg.121. fruto desta execução é que irá gerar o impacto do real, o questionamento e finalmente a formação do processo crítico e a elaboração da decodificação, etapa primeira da dialética do ver, julgar e agir. As referências externas, conhecidas nos meios técnicos como "assunto" ou objeto da fotografia, é resultado de uma série de elementos e estímulos sensoriais que nos levam a elaborar, desejar e realizar o ato de fotografar. A possibilidade de nos apossarmos daquela referência, quando entendida como atendimento de nossos desejos de posse, ou quando é fundamentalmente a estruturação de uma relação existente entre a realidade percebida e os estímulos que nos levaram a fotografá-la, nada mais é do que a forma de espelhar a realidade . O ato de fotografar, de se fazer fotografia, é mais complexo do que pode parecer num primeiro momento, avaliado através de conceitos técnicos e de uma análise superficial fora da cientificidade do estudo da imagem como forma de educação. A referência que a fotografia nos dá, como espelho da realidade, é o comprovante real e visual de que o fotografado existe ou existiu em algum momento do presente passado. Esta constatação é de maneira inequívoca e está implícita na força da fotografia, que mostra a existência de uma realidade visual, na qual nenhum artista pôde influenciar, modificar ou adulterar na sua estrutura mais pura e completa na elaboração do existencial. Isso só é permitido à fotografia, fidedigna cópia do real, e que no dizer de Barthes 7 "... a foto sempre continua carregando seu referente com ela”. O ato fotográfico pode ser entendido então como uma “clonagem” da realidade visual existente. Uma cópia do real, da sua comprovação existencial física dentro de um espaço finito de tempo e obtida através da mecanicidade da fotografia. Este referencial fotográfico carece, no entanto da necessidade de qualquer prática racional, uma vez que é obtida através da reprodução de movimentos préestabelecidos e convencionados para a sua realização, como ver, olhar, ajustar, fotografar, revelar, ampliar e novamente olhar. Assim sendo, muitas vezes obtido de forma instintiva e desprovida de conhecimento cientifico , mas condicionado a satisfação interior de um desejo incontrolável de possuir a realidade, de parar o avanço do tempo, de apoderar-se de um momento de alegria, de felicidade, do incomum ou mesmo do doloroso, a fotografia vai sendo construída e obtida, para que num futuro comprove tal existência como realidade de um passado. Este é o entendimento do referente externo, ambíguo, porém carregado de humanidade que acompanha a fotografia desde o seu surgimento. Este referente externo é, no entanto, a mola do desejo e o impulsor do ato fotográfico, que será realizado pelo fotógrafo. O realizador da fotografia, aquele que no ápice do desejo e da satisfação de um momento visual real, realiza o que diz Philipe Dubois8 “um ato global e único”, pois na foto "tudo é dado de uma só vez", consegue a mais perfeita "imitação da realidade", onde ele impõe ao suporte físico da luz a sua interpretação de mundo. O ato de fotografar é ainda técnico, pois a distribuição visual realizada através da composição, do enquadramento, da escolha técnica do equipamento do 7 8 BARTHES, Roland, A CÃMARA CLARA, Editora Nova Fronteira, 5ª edição.1980. pg.17. DUBOI, Philipe , O ATO DE FOTOGRAFICO, 2ª Edição.. Editora Papirus .1998. pg. 98 ponto de vista da escolha de objetivas e filmes, é sempre condicionada ao fator “humano”, onde o emotivo é uma das molas mestras do ato fotográfico. A dissociação do conceito de que o fotógrafo é o “Operator", segundo Roland Barthes 9, e não apenas o assistente humano do "artista mecânico", mas o próprio criador, onde em um momento ,como um deus, faz a criação da mensagem através da imagem estética, dentro de uma plástica artística, permeada pela técnica e com seu equipamento fotográfico. Assim obtém as condições de estabelecer a relação entre o “referente" e a "mensagem", a qual irá dar ao espectador a satisfação, a rejeição, o desejo ou a indiferença, frente à realidade. O provérbio “Uma imagem vale por mil palavras” dá a dimensão do imensurável potencial semiótico de uma imagem, e quando nos referimos à fotografia e a seu valor icônico, podemos citar Peirce 10,quando a ela se refere “nós sabemos que eles são em certos aspectos exatamente como os objetos que representam". A credibilidade do visual, o “ver para crer", tão presente na cultura humana, é o propulsor analógico dos elementos fundamentais da relação entre assunto, fotógrafo e mensagem. Inegavelmente a fotografia nos remete a códigos, a ícones, mas fundamentalmente, nos confronta com ideologias, sejam estas visíveis ou invisíveis, as quais o “Spectator" de Roland Barthes11 deverá olhar, decodificar e envolver-se emocionalmente ou permanecer em uma terrível indiferença. O “Operator” não sabe o que resultará do seu trabalho, nem quando a decodificação do referente por parte do "Spectator" ocorrerá, mas pode pretender, mesmo intencionalmente, que ele chegue à decodificação imaginada no ato fotográfico, mesmo sendo a fotografia um valor único, como ícone do real, e tendo o seu valor intrínseco na imagem. Os condicionantes desta singularidade visual e simbológica do real estarão sempre afetos a temporalidade, podendo ocorrer neste espaço mutações iconográficas da mensagem. Entretanto, entre a idéia de representatividade do “referente" e a decodificação realizada, pode ser determinante a existência do ruído da comunicação, afetado este pelo psicológico do destinatário, o qual então decodificaria de forma negativa ao que fora intencionado, ou mesmo de forma ilusória e aleatória, gerando uma desconstrução da mensagem construída pela origem, ou uma negação com fundo de características ideológicas. As reações diante de uma fotografia são sempre divergentes, ambíguas e subjetivas, contrapondo-se, muitas vezes, ao referente de forma castrante, relativisando o real de forma irreal, como uma mensagem estereotipada de seu contexto de realidade "clonada". Esta possibilidade de existência de desconstrução visual do real, enquanto é a fotografia uma "minese" do real, é de fato o contraponto de partida para uma investigação científica da relação entre o referente, o "Operator", o “Spectator" e a mensagem visual repleta de seu poder visível e invisível, contido na foto. (((A leitura, que a apresentação de uma fotografia nos proporciona, possuí metodologicamente alguns pontos de partida que podemos identificar como sendo 9 BARTHES. Roland . A CÃMARA CLARA, 5ª Edição, Editora Nova Fronteira . 1980.pg. 4. PEIRCE, Charles, WRITINGS OF CHARLES S. PEIRCE, 1867, vol.2, pg. 281, SANTAELLA, Lucia e NÖRTH, Winfried, IMAGEM, Cognição, semiótica, mídia . Editora Iluminuras Ltda. 1998. Pg. 197. 11 BARTHES, Roland, A CÃMARA CLARA, 5ª Edição, Editora Nova Fronteira. 1980. Pg.4. 10 os seguintes: 1-) A fotografia como espelho do real; 2-) A fotografia como mensagem iconográfica; 3-) A decodificação da fotografia. Uma foto me detém e entretém tanto como um discurso iconográfico, pois traz consigo a realidade do mundo atual, como uma crítica ideológica ao próprio ato do homem de viver. É uma fotografia realizada por Sebastião Salgado 12, no Piauí, em 1983, que utilizaremos na exemplificação e análise na compreensão da educação visual. A FOTOGRAFIA COMO ESPELHO DO REAL 12 SALGADO, Sebastião, fotografo brasileiro, em seu livro TERRA, Cia. das Letras. 1997. Pg. 60. A fotografia refere-se à "Grande Seca” que assolou o estado do Piauí, no Brasil, em 1982. A ação do “Operator” foi registrar jornalisticamente o fato. A fotografia como espelho do real, onde observamos uma cena centrada em uma fruteira / sapataria e que também é uma funerária. Há duas meninas, nesta fotografia, que chupam picolés, próximas à porta, onde uma olha para o fotógrafo e a outra fita o que se descortina lá fora .O homem voltado para as mesmas, não as fita, mas dirige seu olhar para o chão. A luz que ilumina a fotografia provém da abertura da porta. A FOTOGRAFIA COMO MENSAGEM ICONOGRÁFICA A mensagem iconográfica desta fotografia, dentro de uma das suas possibilidades, pode ser observada: Existem dois ícones que se contrapõe de forma contrastante e aviltando nosso olhar, a morte a vida. O tabu convive fora do seu contexto moderno e com sua relação humana. A morte (representada pelos caixões); a vida (representada pelos alimentos); o velho e o novo nos apresentam a dualidade do ser humanas, tanto sexual, contida na beleza feminina e sua sedução, em contraponto com o semblante sério do macho, como a juventude e a sua inocência defrontam-se com a experiência que a idade no reserva e contempla (as meninas e o homem). Existe ainda uma verdade social enfática, onde a pobreza, a simplicidade da vida nos reporta a um passado não muito distante, mas desgarrado do moderno atual, onde sua presença só pode ser percebida com um olhar mais acurado, dirigido às embalagens “plásticas” que contêm as frutas (no ambiente).Seria está foto uma foto do nosso tempo? A DECODIFICAÇÃO DA FOTOGRAFIA A possibilidade da vida está de tal forma entrelaçada com a morte no contexto da realidade social vivida pelas pessoas retratadas, que “chupar" picolé na porta da funerária é a mesma coisa que ir comprar um caixão de defunto e aproveitar para trazer uma dúzia de ovos para o jantar. Nesta fotografia o velho e o novo se relacionam sem a presença do “moderno”, pois o reduto final da morte está ligado à possibilidade do comer e do viver; o alimento que é a própria vida se dispõe na vida humana sem complexos ou questões de rejeição comportamental. A vida vivida é compreendida pela idade do homem, o qual não fita o futuro, mas dirige seu olhar, resignado, a contragosto, para frente, porém, para baixo. Seria a pedido do fotógrafo ? As meninas representam a dualidade do comportamento humano, onde o olhar matreiro de uma delas observa algo que não percebemos e nem podemos intuir. A outra, com uma expressão infantil sonhadora, observa lá fora. O mundo ? A miséria ronda a todos, dentro dos alimentos naturais, nos sapatos artesanais, na singeleza da vida que se observa entre os elementos humanos da fotografia, mas pode ser compreendida através de todo o contexto visual. E a morte está nos caixões ?. A fotografia, como espelho do real, como mensagem iconográfica e a sua decodificação no entender de Roland Barthes, em seu livro “Câmara Clara”, pode nos apresentar o “studium”, que podemos entender como a "quantidade de interesse” que esta fotografia nos desperta e o “punctum”, que seria o quanto nos perturba, nos fere, emotivando de forma mais ou menos brutal, o nosso ser com uma intensidade diversificada. As reações contrárias a este momento visual não podem ser entendidas como compensações psicológicas frente ao real, ou como o vertedouro de um sentimento de indiferença frente ao visual, ou como fruto de uma simples “olhadela”, que não contendo a volúpia do saber, do questionar, remete o “Spectator” a um torpor mental, que lhe bloqueia a possibilidade de ler a muda comunicação fotográfica. Entender a fotografia, como uma crônica que vai testemunhando o real, é provavelmente possuir memória no futuro, pois assim relendo o passado visual é possível estruturar o encadeamento do vivido, tão necessário para a elaboração da transformação ansiada pelo tempo e demonstrada com o maior ou menor interesse pelo que foi relatado. Os estudos visuais, que o “Spectator” realiza, é, portanto uma possibilidade de educação visual. O impacto visual, agressivo, emocional é caracterizado pela comprovação aviltante da realidade visual, através de seu espelho do real. Esta imagem que perfura o nosso ser vai além da compreensão e do entendimento, pois indo de encontro ao inconsciente, o corrompe, se imprime na alma e mostra, ainda que seja apenas uma fotografia, que aquilo que vemos é muito mais real, do que o próprio fato “bidimensionalizado" no papel sensibilizado através da luz. Este processo visual para Susan Sontag 13 “tanto contribui para obscurecer-nos a consciência quanto para despertá-la”, porém vivemos um momento onde tudo se resume em imagens, imagens estas que podem ser o que são, podem ser frutos do que penso que são, ou são frutos do pensamento de outrem. As visões proporcionadas por uma fotografia fazem parte do aprendizado do homem e da sua própria condição de humanidade e formação social, pois já, em 1865, poucos anos após a invenção da fotografia, Charles S. Peirce afirmava: “A fotografia, e em particular as fotografias instantâneas, são muito instrutivas porque sabemos que, sob certos aspectos, elas se parecem exatamente com os objetos que representam”.14 Entretanto, existe algo de insidioso neste processo de semelhança do real e do seu espelho, pois é somente através do espelho, imóveis, congelados, que podemos perceber toda a dimensão do acontecimento, cortado abruptamente por uma fotografia, mas carregado de toda a sua dinamicidade, complexidade e ápice de acontecimentos. A inovação, com a utilização da imagem como forma de informação e com caráter científico, é textualizado pela própria iconografia que lhe é inerente, o visual, e sendo utilizada como forma de educação vai sensibilizar o olhar, de forma crítica, pois abordando a realidade e embora construída vai relacionando determinados códigos impregnados pelo “Operator" e que irão influir no “Spectator” formando ideais. 13 SONTAG, Susan . FOTOGRAFIA, Editora Arbor. 1981. PEIRCE, Charles, COLLECTED PAPERS, Nova York, Harward University Press,1931 (vol. 1) 1960 (vol 2) citado por SHAEFFER, Jean-Marie, A IMAGEM PRECÁRIA. São Paulo. 1996. 14 A fotografia mudou a história futura, educando o homem contra a sua própria barbárie, que foi documentada fotograficamente durante o acontecimento ou mesmo no seu imediato momento passado. Através das fotografias pioneiras de Mathew Brady, Jacob Ris, Lewis Hime que denunciaram as conseqüências da guerra, da exploração do trabalho infantil ou das terríveis condições de sobrevivência humana na América, complementadas pelas fotografias de George Rodger, Willian Vandivert, Johnny Florea e Margareth Bourke-White que mostraram o que significava ser judeu nos campos de concentração, passando pelo ataque atômico aos japoneses em 1945, o genocídio do Khmer Vermelho, em 1970, até as fotografias de Sebastião Salgado sobre o massacre de Carajás, em 1996, aqui no Brasil, nos é incontestável dizer que este espelho da realidade atesta de forma inequívoca: “ISTO É VERDADE! ISTO ACONTECEU! EIS A IMAGEM, A FOTOGRÁFIA DESTE ACONTECIMENTO”. O mundo aprendeu, a fotografia o educou visualmente e lhe impôs um novo rumo em seu agir, para que realizasse as mudanças que se impunham para a própria sobrevivência do próprio homem e para a continuação da espécie, do “Bicho - Homem”, então por que não o educar na formação de uma nova consciência através do visual fotográfico? Afinal, não é a fotografia que ultrapassa os limites da imaginação que o texto é incapaz de nos levar a imaginar e nos coloca frente a frente com a mediocridade brutal da realidade em sua forma mais pura e real ? Certamente, isto nos leva a concluir com Lewis Hime: “Se pudesse narrar com palavras, não necessitaria arrastar uma câmara atrás de mim”.15 15 HIME, Lewis, citado por SONTAG, Susan, FOTOGRAFIA, Editora Arbor.1981. pg.177.