Na barriga do peixe grande - Geledés
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Na barriga do peixe grande
O excepcional “testemunho” de um tubarão no combate ao tráfco de africanos
escravizados, na primeira metade do século XIX.
22/06/2020 em Esquecer? Jamais, Guest Post 7 min read
Fonte:
Por Aderivaldo Ramos de Santana, enviado para o Portal Geledés
The Gulf Stream, 1899 - Winslow Homer ©The Metropolitan Museum of Art
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No próximo dia 4 de setembro devemos relembrar uma data importante na história da nação
brasileira: 170 anos do fm do tráfco transatlântico de africanos escravizados. Quando em 1850,
pressionado pelos ingleses, Euzébio de Queiróz, então ministro da justiça, promulgou a segunda lei
de abolição do tráfco negreiro, o Brasil já havia recebido 4,8 milhões do total de mais de 5,3 milhões
de africanos deportados como escravos para trabalharem nas minas e plantações de algodão,
açúcar e café, nos serviços domésticos e nas diversas atividades urbanas.
https://www.geledes.org.br/na-barriga-do-peixe-grande/[05/07/2020 22:03:20]
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Na história do comércio de africanos escravizados e de sua repressão, os tubarões protagonizaram
boa parte das narrativas que detalham a travessia atlântica. Também na pintura, artistas como:
Winslow Homer e Joseph M. W. Turner representaram, realisticamente, esses vorazes predadores
que seguiam os navios negreiros, do ponto de compra até o ponto de venda, ávidos por
destroçarem, em fração de segundos, os corpos dos escravizados que adoeciam e também dos
amotinados, deixando impressionantes rastros de sangue. Instrumento brutal de controle, terror dos
marinheiros e escravizados, estimasse que, durante trezentos anos, os tubarões devoraram mais de
1,8 milhões de corpos jogados no Atlântico. Como parte integrante do tráfco de escravizados,
sempre parasitando em torno dos navios, eles também deglutiram documentos do infame comércio,
provas que foram encontradas, por acaso, pelos britânicos.
Uma dessas descobertas peculiares foi o caso do navio negreiro Carlotta, uma grande escuna, de
bandeira espanhola, cujos documentos foram encontrados no estômago de um tubarão nas Índias
Ocidentais.
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Pickle, comandado pelo tenente Christopher Bagot,
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o Carlotta, ninguém poderia imaginar o que iria
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(passaporte, diário de bordo e mapas). O número
incomum de barris de água a bordo, o convés
equipado para transportar escravizados e um
número maior de marinheiros, chamaram
rapidamente à atenção do comandante inglês que foi obrigado a liberar o negreiro com base nos
falsos documentos apresentados. Porém, para infelicidade do comandante espanhol, depois de duas
horas de averiguação, os marinheiros do Pickle perceberam algo estranho balançando em todas as
direções, tentando se liberar do anzol que eles haviam deixado próximo ao casco. Os ingleses
puxaram o anzol e levantaram um tubarão de 1,22m (4 pés). O animal só foi aberto na manhã do dia
seguinte e, para surpresa de todos, um maço de papel amarrado foi encontrado dentro do seu
estômago. Na verdade, se tratavam dos documentos pertencentes ao Carlotta, provando que ele
havia desembarcado, no litoral cubano, 293 africanos escravizados quatro horas antes de ser
abordada.
À primeira vista, a captura do Carlotta parece mais uma dessas incríveis histórias de pescador. É
impossível não pensar que tudo fazia parte de uma estratégia do comandante Bagot com objetivo de
capitalizar sua abordagem. No livro O Alufá Rufno, os historiadores João José Reis, Flávio Gomes e
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Marcus Carvalho narram casos em que alguns comandantes ingleses literalmente “plantaram”
provas para incriminar navios negreiros, em particular um brasileiro, o Ermelinda cuja captura, em
1841, foi enquadrada na lei do Equipamento (Equipment Act de 1839), com base nos indícios
materiais encontrados a bordo do navio. Porém, o apresamento do Carlotta ocorreu em 1835 e por
mais fctício que possa parece, o negreiro espanhol não foi o único navio capturado pelos ingleses
graças ao testemunho singular de um tubarão. Trinta e sete anos antes, também nas índias
Ocidentais, no contexto dos confitos envolvendo França, Espanha, Holanda e Inglaterra, o tenente
Hugh Whylie deteve o navio americano Nancy.
A viagem do Nancy, um brigue de 125 toneladas, começou no porto de Baltimore, no dia 3 de julho
de 1799, e tinha por destino os portos de Curaçau e Santo Domingos (atual Haiti), para comprar
mercadorias que abasteceriam o comércio norte-americano. Após realizar a primeira etapa, o navio
seguiu seu destino rumo à Porto Príncipe, mas o mau tempo e um mastro quebrado o forçou a parar
na pequena Île à Vache (Ilha da Vaca), no sul do Haiti. Logo depois, o Nancy foi perseguido e
abordado pelo Sparrow, um dos cruzadores ingleses comandado pelo tenente Whylie, que vigiava o
litoral Haitiano. Suspeito de ser uma “boa presa” do tráfco ilegal de mercadorias com as nações
inimigas, o navio foi escoltado à Port Royal (Porto Real), na Jamaica, onde um processo foi
instaurado. O comandante do Nancy, Thomas Briggs, afrmava fervorosamente que a embarcação
era neutra, sem qualquer ligação com os holandeses ou espanhóis. Enquanto as investigações
avançavam, outro cruzador inglês, o H.M.S Aberdavenny, comandado pelo tenente Michael Fitton,
encontrou o principal indício para condenar Briggs e sua tripulação pelos crimes de perjúrio e
contrabando. No dia 30 de agosto, Fitton avistou, próximo a Jacmel, a 119 quilômetros da Ilha da
Vaca, um boi morto disputado por afamados tubarões, uma descrição que nos remete ao romance
Moby Dick, de Herman Melville. No interesse de capturar ao menos um dos predadores, o tenente
jogou uma isca e conseguiu atrair o maior de todos. Enquanto os marinheiros abriam e limpavam o
animal, encontraram, em seu estômago, um embrulho com documentos cuidadosamente amarrados.
Separadas no convés e postas para secarem ao sol, as folhas revelavam quem eram os verdadeiros
parceiros comerciais do brigue norte-americano.
Com exceção do envelope, as cartas estavam em perfeito estado. Uma delas, datada na ilha de
Curaçau, estava endereçada a Christopher Schultz, um comerciante judeu de Baltimore, e travava
de assuntos mercantis. Com base nessa documentação, o Nancy e sua carga foram condenados
como “boa presa” de guerra no dia 25 de novembro de 1799.
Para o tenente Fitton não haviam dúvidas de que o tubarão tinha seguido o Nancy quando o navio
deixou o porto de Curaçau, possivelmente na espera de abocanhar mais do que papéis. Sabemos
que o tráfco transatlântico de escravizados provocou uma mudança nos costumes dos tubarões do
oceano Atlântico que migraram instintivamente seguindo os navios negreiros, em busca de carne
humana. Para alguns pesquisadores, esse processo de adaptação é justamente o que os
diferenciam dos tubarões de outros oceanos.
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Caso encerrado, durante anos os verdadeiros documentos do Nancy e as mandíbulas do tubarão
que ajudou a incriminá-la foram preservados no Tribunal do Vice Almirantado inglês na Jamaica. Em
seguida foram expostos no Royal United Service Museum, em Londres. Em 1907, durante o
terremoto que abalou a capital Kingstown, os documentos do brigue norte-americano desapareceram
temporariamente e atualmente encontram-se no Instituto da Jamaica. O caso do Carlotta foi
amplamente divulgado na imprensa internacional e também no Brasil, cuja notícia foi traduzida e
publicada nos jornais Gazeta Comercial da Bahia e Diário de Pernambuco. De acordo com os
jornais, o navio foi recapturado e levado a julgamento, mas ainda não encontramos os papéis que
estavam na barriga do peixe grande.
Por seu caráter excepcional, os documentos supramencionados podem, por vezes, nos passar
desapercebidos. No entanto, eles apontam para uma pratica, talvez comum, de ocultação de provas.
Sendo assim, não devemos, em hipótese alguma, negligenciá-los por mais fccional que eles possam
parecer. Afnal de contas, a verdade é tão ou mais estranha e cruel do que a fcção.
O tráfco transatlântico de escravizados e os tubarões é, também, um dos centros de interesse do
historiador Marcus Rediker, autor do celebre livro O Navio Negreiro. Em 2007, Rediker compartilhou
sua descoberta de uma Petição dos Tubarões da África redigida no fnal do século XVIII, na qual os
tubarões pediam, com ironia, para que os parlamentares continuassem apoiando o grotesco sistema
que os alimentavam. Na verdade, tratava-se de um documento escrito pelo escocês James Tytler e
endereçada ao Parlamento Britânico. Médico, poeta e compositor, Tytler usou do seu insólito humor
para denunciar os horrores da travessia atlântica. Deu certo, sua petição foi reproduzida dentro e
fora da Grã-Bretanha, ampliando o debate e juntando esforços para pressionar o parlamento pelo fm
do infame comércio de seres humanos.
Quando no próximo dia 4 de setembro relembrarmos o fm do tráfco transatlântico de africanos
escravizados para o Brasil, não devemos esquecer que nos últimos 40 anos a historiografa não
parou de analisar, ler e reler documentos, alguns deles excepcionais como o “testemunho” de um
tubarão. Graças as pesquisas universitárias, sabemos que a luta por liberdade, melhores condições
de trabalho e sobrevivência foi, sobretudo, protagonizada por africanos escravizados e seus
descendentes, homens e mulheres que resistiram individual e coletivamente. Essa luta ainda
continua!
Aderivaldo Ramos de Santana
Historiador, professor no departamento de Estudos Lusófono da Universidade Bordeaux Montaigne,
doutorando da Universidade Paris Sorbonne. Membro do coletivo de Historiadorxs Negrxs
** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU
OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A
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