Anais X Encontro ANDHEP
ISSN:2317-0255
X Encontro ANDHEP
Direitos Humanos em Movimento: avanços e retrocessos nos 30 anos da Constituição
Cidadã e 70 anos da Declaração Universal
23 a 25/05/2018
UESPI, Teresina – PI
GT 01
Fundamentos Filosóficos e História dos Direitos Humanos
1
Anais X Encontro ANDHEP
ISSN:2317-0255
A SUBJETIVIDADE MODERNA E O SURGIMENTO DOS DIREITOS HUMANOS
Nicholas Arena Paliologo (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro)1
Daniel Machado Gomes (Universidade Católica de Petrópolis)2
Felipe César Santiago de Souza (Universidade Católica de Petrópolis)3
Tiago da Silva Cicilio (Universidade Católica de Petrópolis)4
INTRODUÇÃO
Compreender o surgimento e a consolidação dos direitos humanos passa por
investigar as características da subjetividade moderna que permitiram aos homens se
enxergarem como titulares de direitos universais como a liberdade, a vida, a
propriedade. Neste sentido, os direitos humanos são indissociáveis da percepção
moderna a respeito do que significa ser um sujeito. Assim, não é por acaso que estes
direitos nascem na modernidade em documentos escritos, assumindo a forma de
prerrogativas subjetivas que não existiam nem na antiguidade nem no mundo medieval.
O presente estudo tem o objetivo de investigar a relação entre a subjetividade
moderna e o surgimento dos direitos humanos, utilizando como marco teórico as ideias
do filósofo canadense Charles Taylor que aparecem no livro As Fontes do Self, obra em
que se discutem as diferentes raízes que formaram a concepção moderna da
subjetividade. Este estudo se justifica na medida em que, ao investigar os traços
determinantes do self moderno, lança novas luzes sobre a natureza dos direitos
humanos e sobre a extensão da proteção por eles conferida. A metodologia empregada
será a revisão bibliográfica com pesquisa em livros e artigos científicos, tendo como
principais fontes de análise as obras de Charles Taylor e O Segundo Tratado de Locke.
O texto que segue está dividido em três partes, na primeira serão indicadas as
características centrais da subjetividade moderna na ótica de Charles Taylor: a
autoexploração
e
a
autorresponsabilidade.
O
artigo
demonstrará
que
a
autorresponsabilidade, ou autonomia moral, se formulou em termos de direitos
humanos, devido à combinação de diferentes fontes que integram a tradição filosófica
ocidental, entre as quais se encontram as ideias de John Locke.
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito da UniRio.
Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da UCP.
3
Graduando em Direito da UCP.
4
Graduando em Direito da UCP.
1
2
23
Anais X Encontro ANDHEP
ISSN:2317-0255
A segunda parte do texto destaca a contribuição do pensamento de Locke para
o surgimento dos direitos humanos, uma vez que sua obra reforça a autonomia moral
subjetiva, concebendo o homem como um self pontual - uma interioridade neutra
desprendida do grupo social ao qual o indivíduo pertence. O estudo demonstrará que
Locke reforçou a autorresponsabilidade de cada um, característica que se traduziu em
direitos a serem invocados contra o Estado e contra os demais homens, quando houver
violação das liberdades.
Por fim, a terceira e última seção investigará uma importante faceta política do
self pontual: a possibilidade do direito de resistência ao exercício ilegítimo da autoridade,
conforme o entendimento de Locke. Com isso, foi produzida uma revolução na teoria do
direito natural, transformando-se os direitos naturais em prerrogativas subjetivas. Será
indicada a influência da teoria política de Locke na deflagração das revoluções
burguesas e das primeiras declarações jurídicas de direitos humanos.
CARACTERÍSTICAS DA SUBJETIVIDADE MODERNA
Segundo Charles Taylor (2013, p.241), os dois traços determinantes da
interioridade do sujeito moderno são a autoexploração e o autorresponsabilidade. O
primeiro confere importância à particularidade de cada pessoa e é uma das facetas mais
marcantes do self moderno, fazendo com que cada homem seja incondicionalmente
titular de respeito e de dignidade. O segundo traço se formula em termos da
responsabilidade do sujeito perante si mesmo que serve de base do respeito às
escolhas morais de cada pessoa, algo fundamental no projeto emancipatório moderno.
Por detrás da noção de autoexploração subjaz o reconhecimento de que cada
pessoa seja portadora de uma singularidade única e de uma originalidade. Este dado
por si só implica no respeito à autonomia moral de cada pessoa independentemente do
valor que possamos atribuir às escolhas dos outros. Esta autonomia moral é a
autorresponsabilidade do sujeito pela condução do seu self. No mundo ocidental, este
respeito à autonomia moral de cada um (autorresponsabilidade) se formulou em termos
de direitos subjetivos aos quais chamamos direitos humanos.
Dessa maneira, pode-se afirmar que existe uma vinculação direta dos aspectos
que caracterizam a subjetividade moderna – autoexploração e autorresponsabilidade –
com os direitos humanos. A atitude de se autoexplorar valorizando a própria
originalidade, levará o sujeito moderno a se enxergar como fonte de prerrogativas
morais (direitos) pelo simples fato de ser do modo como é. Na modernidade o “eu” passa
24
Anais X Encontro ANDHEP
ISSN:2317-0255
a titularizar direitos subjetivos que protegem a sua autonomia moral, os direitos
humanos que servem de fonte para o projeto emancipatório moderno.
A subjetividade moderna apresenta várias facetas pois existem diversas
vertentes do que significa ser um sujeito, um agente humano, uma pessoa. A partir das
ideias dos pensadores que formam a tradição ocidental, Taylor se dedica a investigar
as origens das características do sujeito moderno na obra As Fontes do Self. Para o
autor (2013, p.15), a investigação acerca do “eu” moderno depende da compreensão de
como nossas representações de bem evoluíram, ele vincula individualidade e bem,
identidade e moralidade. Por isso, uma arqueologia das ideias a respeito do “eu”, do self
pode auxiliar a definição de uma ética contemporânea que responda aos desafios
impostas pela democracia.
Taylor explica (idem, p. 149) que a ideia moderna do self (sujeito) está ligada ao
sentido que damos à noção de interioridade. Isso significa que enxergamos nossas
capacidades ou potencialidades como interiores, à espera do desenvolvimento que se
realizará na esfera exterior (pública). A “geografia” a respeito do que está dentro e do
que está fora é em grande parte característica do nosso mundo – o mundo dos
ocidentais modernos, pois a percepção do que compõe a nossa interioridade não é
universal e se trata de uma forma historicamente limitada de autocompreensão.
A obra As Fontes do Self de Taylor se propõe a percorrer o caminho pelo qual a
subjetividade moderna se consolidou, analisando como o pensamento de certos autores
serviu de paradigma aos mais diversos aspectos que integram a interioridade do sujeito
moderno. Nesse percurso da nossa autocompreensão, o autor ressalta as contribuições
de alguns pensadores cujas ideias exprimem fontes importantes. É o caso de Platão e
a importância do autodomínio expresso pela sua doutrina moral, Agostinho e o voltarse para dentro, Descartes e o papel do cogito, Locke e a rejeição a qualquer princípio
inato, Montaigne e a importância conferida à originalidade de cada homem. Segundo
Taylor (idem, p. 241), a soma destas influências fará com que na virada do século XVIII
algo bem parecido com o self moderno esteja em formação na Europa com ramificações
americanas.
Vale ressaltar que além das ideias filosóficas, outros processos de ordem
econômica, política e militar também colaboraram para a formação da noção moderna
de subjetividade e para a consequente atribuição de direitos subjetivos. Caberia indagar
também até que ponto os filósofos influenciaram a modernidade com suas ideias ou
descreveram um processo em curso, categorizando as novas formas como o sujeito
passava a se enxergar. Nenhuma destas questões, entretanto, será analisada
detalhadamente neste trabalho, uma vez que nosso objetivo é simplesmente
correlacionar a reflexão sobre a subjetividade com os direitos humanos.
25
Anais X Encontro ANDHEP
ISSN:2317-0255
A partir do conjunto de visões mencionadas acima que atuam como fontes
morais para a autocompreensão subjetiva, Taylor aponta dois traços determinantes da
interioridade do sujeito moderno: a autoexploração e o autocontrole, sendo ambos de
herança agostiniana. O primeiro confere importância à particularidade de cada pessoa
e é uma das facetas mais marcantes do self moderno, fazendo com que cada homem e
cada mulher sejam incondicionalmente titulares de respeito e de dignidade. O segundo
traço nomeado de autocontrole se formula em termos da responsabilidade do sujeito
perante si mesmo e é a base do respeito às escolhas morais de cada pessoa, algo
fundamental no projeto emancipatório moderno. Autoexploração e autocontrole são
fatores determinantes para o surgimento dos direitos humanos, mas também sofrem
influência destes direitos na medida em que a positivação assegura e alimenta a
institucionalização do self moderno.
Por detrás da noção de autoexploração subjaz o reconhecimento de que cada
pessoa seja portadora de uma singularidade única e de uma originalidade. Este dado
por si só implica no respeito à autonomia moral de cada pessoa independentemente do
valor que possamos atribuir às suas escolhas. Taylor explica (2013, p. 25) que no
Ocidente moderno este respeito à autonomia moral de cada um se formulou em termos
de direitos subjetivos que nomeamos de direitos humanos.
Pode-se afirmar, portanto, que a autorreflexão leva à autorresponsabilidade e ao
reconhecimento de que cada um seja considerado titular de dignidade e de direitos. Ao
buscar se autoexplorar, o sujeito revela a consciência de ter uma consciência a ser
formada, atitude que pode ser bem ilustrada pela obra Os Ensaios, de Michel de
Montaigne. O livro é exemplar deste tipo de comportamento autorreflexivo determinante
para o valor emancipatório que a singularidade do indivíduo assume no projeto da
modernidade. Por outro lado, nosso senso moderno de interioridade também é marcado
pela percepção de que temos possibilidade de nos remodelar por meio de uma ação
metódica e racional, segundo Taylor (2013, p.210). Esta faceta desprendida do sujeito
é nomeada pelo autor canadense como “self pontual”, uma vertente importante da
subjetividade moderna que deve seu desenvolvimento a John Locke.
AUTOEXPLORAÇÃO E AUTORRESPONSABILIDADE
De acordo com Taylor (2013, p.239), a autoexploração pode ser exemplificada
pelas ideias do filósofo renascentista Michel de Montaigne, autor que funda um tipo de
reflexão radical que adquire importância fundamental para a modernidade. Montaigne
apresenta um caminho de internalização que é uma das fontes para a construção da
subjetividade moderna. Montaigne seculariza o “voltar-se para dentro” de Agostinho,
26
Anais X Encontro ANDHEP
ISSN:2317-0255
atitude que teve muita influência na noção de subjetividade ocidental. Ele explora o que
somos a fim de estabelecer nossa singularidade e não uma natureza universal do
homem, a procura do autoconhecimento não significa o conhecimento impessoal da
natureza humana mas significa compreender o seu próprio modo de ser.
Montaigne escreve Os Ensaios no Renascimento do século XVI, trata-se de um
autorretrato composto por palavras que expõe os diversos movimentos internos do seu
percurso reflexivo. Segundo o próprio Montaigne (2004, p.805), ele não pinta o ser, mas
a passagem, como se pode ler no Livro III. Em qualquer que seja o tema do ensaio, o
autor busca conhecer a si próprio, aproximando a obra de um diálogo consigo mesmo
do qual resulta uma filosofia acidental. Neste sentido, a obra de Montaigne espelha a
busca pelo autoconhecimento desde o primeiro capítulo.
O autorretrato montaigniano pretende exprimir o movimento variante do discurso
do autor sobre si mesmo e não a essência do eu. Montaigne descreve a sua inconstante
e incompleta interioridade, dispensando a descrição de feitos ou ações externas. Por
isso, o sujeito que emerge dos Ensaios na sua irrepetível singularidade precisa de
alguma estabilidade para orientar o agir que se mostra heterogêneo, múltiplo, disperso,
mutável e incontrolável.
Taylor (2013, p. 237), explica que, apesar de Descartes também ser um dos
fundadores do individualismo moderno, sua postura em relação ao self é oposta a
Montaigne, porque a perspectiva cartesiana despreza a experiência comum,
objetivando uma ciência do sujeito em sua essência geral através de provas do
raciocínio impessoal. Já a obra de Montaigne identifica no sujeito uma diferença
irrepetível, por meio de uma crítica de autointerpretações que leva à compreensão da
própria originalidade, das exigências, aspirações e desejos do eu. Montaigne não quer
apenas encontrar uma ordem intelectual que permita a compreensão das coisas, ele
procura os modos de expressão que permitam que o particular não seja desprezado. A
aspiração de Montaigne é afrouxar as categorias gerais de funcionamento normal e
libertar nossa autocompreensão do peso monumental das interpretações universais
para tornar visível nossa originalidade.
Quando Montaigne se permite falar em nome próprio, ele se confere o direito de
expressar a sua experiência personalizada, adotando uma atitude de autoexploração
que leva o sujeito a se desgarrar da tradição em direção à emancipação pessoal. A
autoexploração conduz à autorresponsabilidade pois o agente que explora seu self
passa a assumir a responsabilidade de conduzi-lo, libertando-se do que possa dificultar
seu projeto pessoal. Os Ensaios representam bem a atitude moderna em relação à
subjetividade que é marcada pelas noções de autoexploração e autorresponsabilidade.
27
Anais X Encontro ANDHEP
ISSN:2317-0255
A partir do momento em que o projeto de emancipação se universalizou na
consciência dos modernos, surgiu o caminho que levou aos direitos humanos como
forma de institucionalização desta nova perspectiva sobre o self. Conforme será
explicado na sessão abaixo, com o self pontual, Locke radicaliza a percepção moderna
sobre o “eu” baseada na autoexploração e na autorresponsabilidade, que é tão bem
ilustrada pelos Ensaios.
SELF PONTUAL
O self pontual adquire o sentido de uma interioridade neutra, motivada pelo
sentido de desprendimento em relação a qualquer conhecimento inato e em relação
ao grupo social ao qual o indivíduo está inserido. Esta importante tendência da
subjetividade moderna aparece expressa pelas ideias de John Locke, que foram
determinantes para a concepção ética atomista que radicaliza a independência do
sujeito em relação à comunidade. Nesta seção buscaremos compreender o sentido
do self pontual, sua relação com a rejeição à teoria das ideias inatas e, por fim, a
influência em relação ao atomismo.
A chave para se compreender o self pontual é o desprendimento que envolve
uma postura instrumental em relação às propriedades, desejos, inclinações,
tendências, sentimentos, para que possam ser elaborados, fortalecendo alguns e
eliminando outros. Segundo Taylor (2013, p.215), Locke rejeita toda e qualquer forma
de doutrina das ideias inatas, apesar de esta rejeição ser normalmente interpretada
apenas no âmbito epistemológico. Taylor demonstra (idem, p.216) que o autor amplia
a perspectiva antiteleológica da natureza humana para além do campo relacionado
com o conhecimento, atingindo também a noção de moralidade.
Locke entende que a mente é tábula rasa desprovida de conteúdo, razão
pela qual o saber humano seria determinado pelas impressões advindas da
experiência e não de um fundamento inteligível inato. Por isso, Locke é contrário a
qualquer visão que considere o homem naturalmente inclinado para a verdade ou
sintonizado com ela. Ele crê que as concepções do homem sobre o mundo
constituiriam uma síntese das ideias que recebemos originalmente da experiência.
Na perspectiva lockeana, a influência da paixão, do costume e da educação
inculca erros no indivíduo, de maneira que o contratualista inglês sugere um
movimento duplo de suspensão e exame como modo de superar o paradigma de que
o homem já possuiria determinadas ideias ínsitas a si próprio. Sob esta ótica, o
inatismo constitui em verdade tudo aquilo que os indivíduos receberam pela
experiência ao longo de suas vidas - pelas sensações e pela reflexão -, o que refuta
28
Anais X Encontro ANDHEP
ISSN:2317-0255
a ideia de consenso universal (tão preconizada no início do século XVIII).
A propósito da crítica de Locke, Taylor indica (2013, p.215) que não se trata
de algo novo em si. A novidade, porém, está na extensão do desprendimento que
Locke propôs, pois ele reifica a mente num grau extraordinário e adota um atomismo
profundo, de modo a demonstrar que mesmo as ideias de nossa mente que têm
importância genérica são, em si, particulares.
O objetivo deste duplo movimento é remontar a visão do homem a partir de
sua própria consciência por intermédio das experiências advindas das sensações e
da reflexão que nos fazem assumir a responsabilidade por nossas concepções de
vida. Por este processo de purificação da razão, ela se autonomiza dos costumes,
da educação e das autoridades locais dominantes. Isso será fundamental para o
desenvolvimento dos ideais democráticos no campo da política, bem como para a
própria concepção de indivíduo enquanto sujeito de direito no contexto social.
Locke não concebe outra alternativa para o adequado conhecimento das
coisas fora do indivíduo senão pelas sensações. Através delas, as diversas ideias simples e complexas - são impressas na mente por intermédio da experiência,
pressupondo-se a existência de um mundo exterior ao sujeito e à consciência que a
percebe.
Para Locke, somente as ideias extrínsecas ao indivíduo é que serão
capazes de dar notícia de que existe efetivamente algo fora dele, ainda que não seja
possível acessar qualquer informação acerca dos meios e modos pelos quais tais
ideias foram constituídas e produzidas. Nesta ótica, a mera ideia no pensamento não
é capaz de provar a existência de algo extrínseco ao próprio ser, pois a recepção
efetiva das ideias advém das sensações obrigatoriamente. O ato de se ter na ideia
qualquer coisa não tem o condão de provar a existência dessa coisa, conforme
ensina Locke (1999, p.875).
Em Locke, o saber humano está determinado pelas impressões advindas
destas sensações a partir das experiências vivenciadas por cada indivíduo, de modo
que cada pessoa terá a sua própria verdade na medida em que possui sua própria
percepção sobre a realidade. A recepção efetiva de determinada coisa exterior por
meio dos sentidos é que permite o conhecimento por nossa mente de sua efetiva
existência, ainda que não se saiba como foi produzida. Portanto, Locke é contrário
a qualquer visão que nos considere inclinados para a verdade ou vinculados por
natureza a ela.
O contratualista inglês é avesso ao argumento de que a razão poderia
constituir a única fonte do conhecimento humano. O argumento do consenso
universal, que foi usado por aqueles autores que defendiam a existência de
29
Anais X Encontro ANDHEP
ISSN:2317-0255
princípios inatos ao longo do século XVIII, parecia-lhe provar exatamente o contrário.
A sua própria experiência acerca da humanidade não lhe permitiria admitir a ideia de
qualquer princípio universalmente aceito, conforme afirmava Locke (1999, p.32).
Importante notar que esta teoria não era nova, outros pensadores já haviam
realizado igual crítica anteriormente. A novidade em Locke, entretanto, que o
diferencia dos demais autores, está na extensão da proposta de desprendimento que
ele busca realizar ao reificar a mente em grau extraordinário, adotando a visão do
atomismo profundo a partir da compreensão de que todo conhecimento passível de
ser realizado estaria, em sua origem, desprovido de qualquer conteúdo.
Seriam os dados da experiência que imprimiriam na mente tudo aquilo que
se conhece, razão pela qual o saber humano seria determinado pelas impressões
advindas da sensação e não por qualquer fundamento inteligível racional. A crítica à
teoria das ideias inatas revela-se evidente quando nos deparamos com a famosa
comparação de Locke da mente humana a uma folha de papel em branco, quando
afirma:
suponhamos, então que a mente seja, como se diz, um papel
branco, vazio de todos os caracteres, sem quaisquer ideias. Como
chega a recebê-las? De onde obtém esta prodigiosa abundância de
ideias, que activa e ilimitada fantasia do homem nele pintou, com
uma variedade quase infinita? De onde tira todos os materiais da
razão e do conhecimento? A isto respondo com uma só palavra: da
experiência. Aí está o fundamento de todo o nosso conhecimento;
em última instância daí deriva todo ele (LOCKE, 1999, p. 107).
Para além da teoria epistemológica, a crítica ao argumento do consenso
universal permitiu a Locke questionar também as referências das diferentes práticas
morais. Isso porque, segundo Locke (1999, p. 59), não seria possível justificar por
imperativo da própria consciência, os motivos que levam a práticas éticas
contraditórias pelos homens, se a consciência fosse uma prova da existência de
princípios inatos.
Locke considera que nossas visões de mundo são sínteses das ideias que
originalmente foram recebidas por intermédio da sensação e da reflexão sob
influência de pensamentos pré-concebidos, quer pela verificação expressa ou tácita,
quer pela resolução da autoridade das pessoas que se respeita. Ambos
determinantes, no entanto, para que tais opiniões se transformassem em verdades
indiscutíveis, evidentes e supostamente inatas, pautadas, enquanto aspecto
essencial da vida moral, por preconceitos que gerariam erros e enganos na própria
mente do indivíduo.
A visão de Locke sobre as questões morais é que estas poderiam constituir
proposições evidentes por si próprias, passíveis, inclusive, de análise racional e
30
Anais X Encontro ANDHEP
ISSN:2317-0255
realizada a priori, tal como a matemática. Locke (1999, p.775) acreditava que a
medida da correção de determinados atos morais poderia ser deduzida de
proposições evidentes por si mesmas, tão incontestáveis que seria possível aplicalos com a mesma indiferença e com a mesma atenção com que se aplica os
raciocínios da matemática.
A busca da verdade para Locke passa pelo desprendimento de toda
experiência percebida, a partir do cuidadoso uso das faculdades mentais. O
conhecimento somente será efetivamente verdadeiro quando houver conformidade
entre as ideias do indivíduo e a realidade das coisas. A tarefa primordial para se
alcançar a adequada percepção pressupõe, portanto, a demolição de tudo aquilo
que foi incutido indevidamente na mente humana: demolir para reconstruir um novo
paradigma que terá o indivíduo e sua própria consciência como bases sólidas para
o efetivo acesso ao verdadeiro conhecimento.
Este processo de desprendimento das atividades do pensamento irrefletidas
em nossas mentes (e que nos afastam da verdade segundo Locke) propiciará a
apreensão do conhecimento a partir da nossa experiência e de nossas próprias
ideias, constituindo o cerne para a proposta de “eu” que o mundo moderno
demandará. Taylor descreve esta ideia de “eu” em termos do self pontual, concepção
subjetiva segundo a qual o desprendimento de ideias de nossa mente nos permite
cumprir com o ideal de autorrealização individual.
Este ideal de sujeito é compreendido como alguém livre de influências pré concebidas, alguém apto a realizar a sua independência e a responder perante a
própria consciência pelas escolhas morais. O objetivo da desmontagem de Locke é
remontar nossa visão de mundo pela suspensão e pelo exame das nossas ideias. A
sua busca pelo conhecimento pressupõe a atividade autorreflexiva do homem que
nos permite assumir a responsabilidade por nossas concepções de vida, de
liberdade e de razão. Trata-se da autorresponsabilidade, característica determinante
para o surgimento dos direitos humanos.
O termo autorresponsabilidade foi empregado pela primeira vez por Husserl
para designar a oposição de Descartes ao uso do argumento de autoridade como
fundamento de nossas escolhas morais. Locke compartilha com Descartes da mesma
oposição essencial à autoridade, incitando-nos a pensar por nós mesmos através da
razão desprendida que é própria da modernidade. Por isso, Taylor (2013, p.219)
resolveu estender a Locke a noção husserliana de autorresponsabilidade para designar
a autonomia moral conjugada com uma percepção procedimental da razão.
Para Locke, todos somos chamados a construir nossa própria descrição
racional das coisas, o procedimento é reflexivo e envolve essencialmente a perspectiva
31
Anais X Encontro ANDHEP
ISSN:2317-0255
da primeira pessoa. Assim, o sujeito se desprende de suas crenças a fim de submetêlas a exame, sendo que cada pessoa deve fazer este procedimento por si mesma. De
acordo com esta formulação, não ficamos independentes só depois de adquirir ciência,
todo o caminho para o conhecimento já deve pressupor a independência do indivíduo.
Taylor explica (2013, p.220) que em Locke a exigência da razão desprendida
fica ainda mais intensificada pelo princípio protestante da adesão pessoal. A visão
antiteleológica de Locke sobre a mente exclui as teorias do conhecimento que supõem
uma verdade inata, bem como as teorias morais que enxergam o homem inclinado para
o bem, por natureza.
Locke desenvolve toda sua teoria de identidade tendo como pressuposto o fato
de que as pessoas constituem seres pensantes em si, que não só raciocinam e refletem
sobre as coisas, mas também possuem a capacidade de pensar a si próprio como ser
pensante. O autor inglês (1999, p.459) concebe como pessoa o “eu” interior, fundindo
a identidade da pessoa com a identidade de sua consciência e, como consequência,
Locke intensifica a responsabilidade moral do indivíduo por seus pensamentos e atos.
Identidade e consciência se fundem de maneira que a consciência moral da
identidade pessoal afetará toda a teoria ética e política de Locke. No primeiro caso, a
teoria ética se caracteriza pela oposição do uso de argumentos de autoridade para
definir as escolhas morais dos indivíduos. No segundo caso, a teoria política é marcada
pela oposição à autoridade governamental que tenha violado os direitos naturais, causa
da ilegitimidade do poder segundo Locke, conforme veremos na próxima seção.
O self pontual atua como fonte dos direitos humanos por se tratar de uma
subjetividade dotada de irrestrita capacidade autorreflexiva que dispõe da
possibilidade de se moldar e se remoldar independentemente da comunidade. Ele é
um átomo humano que passa a ter a responsabilidade e também o direito de definir
as próprias concepções de vida, de liberdade e de razão. Esta forma de subjetividade
(self pontual) é a origem das liberdades fundamentais modernas pois apenas um
sujeito emancipado de tal forma poderia se autoproclamar titular do direito de
liberdade de associação, de consciência religiosa, de expressão artística, de ir e vir,
enfim dos chamados de direitos humanos de primeira dimensão. Em suma, retiramos
a noção de que somos titulares de prerrogativas inatas (direitos humanos) das
concepções que partilhamos sobre o que significa sermos humanos, neste ponto é
flagrante a contribuição das ideias de John Locke para a formação da cultura
ocidental.
32
Anais X Encontro ANDHEP
ISSN:2317-0255
DIREITO DE RESISTÊNCIA E DIREITOS HUMANOS
As ideias políticas de Locke sobre o direito de resistência podem ser
interpretadas como desdobramentos da sua concepção a respeito da subjetividade
que assume a forma do self pontual. A visão atomista sobre o sujeito leva Locke a
prever direitos naturais que servem para limitar o uso do poder pela autoridade,
conforme se percebe no Segundo Tratado sobre o Governo Civil. Desta forma, o
pensamento de Locke influencia diretamente o aparecimento das revoluções burguesas
e das primeiras declarações de direitos do homem.
Ao defender que a comunidade atribui o poder ao homem, Locke rompe com
a obediência cega ao soberano. Na visão do autor, Deus concede o cetro ao povo
para entregá-lo ao soberano, razão pela qual este passa a ter poderes limitados e
não mais absolutos. Um governo absoluto não tem legitimidade porque é pior do que
o estado de natureza no qual os indivíduos consentem na institucionalização do
poder, cedendo parte de suas liberdades para a formação da sociedade civil. A falta
de legitimidade dá sustentação à desobediência já que os cidadãos devem obedecer
apenas ao governo legítimo.
Assim, Locke vincula a legitimidade da autoridade com os direitos do indivíduo
perante o Estado, concebendo o sistema jurídico como inspiração lógica das leis
naturais. O direito natural ocupa a posição de uma condição-limite do governante, caso
contrário ele pode ser derrubado. Esta perspectiva é extremamente inovadora na época,
Locke confere uma posição inédita aos direitos que, anos depois, passará a ser ocupada
pelos direitos humanos.
No Segundo Tratado Locke descreve a passagem da sociedade de natureza à
sociedade civil, prevendo um direito de resistência oponível ao soberano ilegítimo. Este
direito nasce para a comunidade organizada na forma de dever de reagir aos
desmandos daquele que age em descompasso com as leis naturais, o que configura
uma traição dos agentes do Estado na perspectiva de Locke. Os direitos naturais
servem, portanto, de fundamento das leis que regem o homem na sociedade e também
das leis que regem o estado de natureza.
Locke partilha da ideia do sistema jurídico como inspiração lógica das leis
naturais. José Carlos Buzanello bem explica a inserção de Locke entre os
jusnaturalistas:
Admitem-se três períodos distintos na evolução dos direitos naturais:
o primeiro período compreende a teoria de Grócio, Hobbes, Spinoza e
Pufendorf: o Direito natural residia meramente na prudência do
governante. Entretanto, a “teoria dos direitos naturais nasce com
33
Anais X Encontro ANDHEP
ISSN:2317-0255
Hobbes”, uma teoria completa que se tornará, mais tarde, por outros
autores, um expediente para fundar a teoria dos limites da soberania.
Em Hobbes, o Direito natural apenas sinaliza a virtude da força do
soberano, nunca numa condição de limite. O segundo período é
caracterizado pelo liberalismo de Locke e Montesquieu. Locke salienta
o Direito natural como condição-limite do governante, caso contrário
ele pode ser derrubado; já o terceiro período é marcado pela crença da
legitimidade do poder por meio da democracia, na lavra de Rousseau
e Kant (BUZANELLO, 2001, p.26).
Para Locke, o homem detém o poder político no estado de natureza e por
um pacto mútuo passa ao estado social a fim de conservar a propriedade em sentido
amplo que contempla a vida, a liberdade e os bens. Locke deixa claro que a liberdade
é mantida, sendo limitada somente quando da punição de atentados aos próprios
direitos. Noutras palavras, o corpo político substitui as armas individuais de defesa das
liberdades, passando a ser o garantidor da vida, da liberdade e dos bens:
A única maneira pela qual alguém se despoja de sua liberdade natural
e se coloca dentro das limitações da sociedade civil é através de
acordo com outros homens para se associarem e se unirem em uma
comunidade para uma vida confortável, segura e pacífica uns com os
outros, desfrutando com segurança de suas propriedades e melhor
protegidos contra aqueles que não são daquela comunidade.
Pois o que move uma comunidade é sempre o consentimento dos
indivíduos que a compõem, e como todo objeto que forma um único
corpo deve se mover em uma única direção, este deve se mover na
direção em que o puxa a força maior, ou seja, o consentimento da
maioria; do contrário, é impossível ele atuar ou subsistir como um
corpo, como uma comunidade, como assim decidiu o consentimento
individual de cada um; por isso cada um é obrigado a se submeter às
decisões da maioria (LOCKE, 1994, p.139-140).
O despotismo da autoridade recoloca os indivíduos no estado de natureza.
Neste sentido, o governo que exerce o poder político para realizar os próprios
interesses é tirânico, empreendendo a força para a preservação dos próprios poderes.
Este governo deixa de gozar de legitimidade, pois age de forma contrária aos interesses
comuns que são a própria razão para a existência da sociedade civil. Igualmente grave
é quando o governo deixa de se guiar pelas leis naturais, que são, em estado de
natureza, a preservação da vida, da liberdade e da propriedade em sentido estrito.
Locke afirma que os direitos naturais são inerentes à vida no estado de
natureza. A ameaça de transgressões aos direitos naturais (vida, a liberdade,
propriedade) faz com que os indivíduos em comunidade acordem em estabelecer um
governo civil que tem por responsabilidade a salvaguarda dos cidadãos em primeiro
34
Anais X Encontro ANDHEP
ISSN:2317-0255
plano e a salvaguarda de si próprio. A mesma responsabilidade do governante também
recai sobre o poder legislativo já que, uma vez constituído, este não pode fazer leis que
retirem dos indivíduos a propriedade (em sentido amplo): ”a preservação da propriedade
é o objetivo do governo, e a razão por que o homem entrou em sociedade” (LOCKE,
1994, p.166).
Quando o legislativo passa a fazer leis que pouco ou nada tem de afetação de
direitos naturais, o legislador impõe aos cidadãos uma restrição desmesurada do direito
de propriedade em sentido amplo (vida, liberdade e bens):
O legislativo age contra a confiança nele depositada quando tenta
invadir a propriedade do súdito e transformar a si, ou qualquer parte da
comunidade em senhores que dispõem arbitrariamente da vida,
liberdade ou bens do povo (LOCKE, 1994, p.218).
Enfim, a resistência nasce por causa das arbitrariedades do governante que
deixa de se orientar pelo bem comum e passa a se guiar pelos próprios interesses. Em
relação ao poder executivo, Locke assim se manifesta:
age contra ambas quando começa a estabelecer sua própria vontade
arbitrária como a lei da sociedade. Ele age também contrário a sua
confiança quando emprega a força, os recursos do Tesouro e os cargos
públicos da sociedade para corromper os representantes e obter sua
conivência com seus propósitos; ou se abertamente ele alicia os
eleitores (LOCKE, 1994, p.219).
A resistência em Locke é uma manifestação de contrariedade ao direito
instituído, não é uma mera ilegalidade. Ela se opõe ao mandamento legal em sentido
amplo, por isso nem sempre a restrição aos direitos fundamentais leva à resistência, já
que é tarefa estatal harmonizar os diversos interesses. A questão se põe nos limites das
restrições para o bem comum que não ultrapassem os direitos naturais, pois estes
permaneceram valendo no estado de sociedade uma vez que não foram alienados
quando da passagem do estado de natureza.
O pensamento de John Locke sobre a resistência influencia a genealogia dos
direitos humanos, porque serve de fundamento para a invocação de prerrogativas
inseparáveis do sujeito, que podem ser usadas como trunfos em face do poder.
Trata-se do germe que levará ao surgimento de diversas revoluções liberais de
inspiração burguesa como foi o caso da Revolução Francesa. A noção de resistência
também está por detrás de diversos documentos jurídicos produzidos ao longo do
século XVIII que consignaram direitos humanos como, por exemplo, a Declaração
de Independência dos EUA ou a Declaração Universal de Direitos do Homem e do
Cidadão na França.
35
Anais X Encontro ANDHEP
ISSN:2317-0255
Em Locke o direito de resistência nasce da falta de legitimidade de um governo
que não se esforça em proteger os direitos naturais. Este pensamento do autor colabora
para o surgimento dos direitos humanos por transformar os direitos naturais (vida,
liberdade e bens) no padrão crítico da lei positiva. Locke concebe os direitos naturais
como prerrogativas exigíveis da autoridade que, uma vez violadas, podem ensejar o uso
da resistência.
Na perspectiva de Locke, os direitos se tornam, portanto, um fator de mobilização
que é capaz de gerar revoluções, em que pese o fato de que para ele a resistência só
se justifique na medida em que o governante desrespeite os direitos naturais à vida,
à liberdade e à propriedade. Pode-se afirmar, desse modo, que Locke planta a
semente da qual os direitos humanos germinaram já que estes direitos surgem como
uma promessa para eliminar ou limitar o poder sob a premissa da liberdade natural do
indivíduo.
Apesar de o Ocidente possuir uma longa tradição de contestação à lei e às
estruturas de poder que remonta aos gregos, foi na modernidade com o aparecimento
dos direitos humanos que esta crítica adquiriu um novo sentido, possibilitando a
oposição de direitos subjetivos ao Estado e aos demais cidadãos. Uma tal atitude
diante do mundo foi viabilizada a partir das ideias de diversos pensadores que
reformularam o sentido das relações de poder em função do projeto emancipatório
moderno. Neste sentido, as ideias políticas de Locke sobre resistência favoreceram
o surgimento dos direitos humanos e podem ser enxergadas como um corolário da
concepção de subjetividade humana idealizada pelo autor na forma do self pontual.
CONCLUSÃO
O presente texto partiu da premissa de que compreender o surgimento e a
consolidação dos direitos humanos passa por investigar os traços característicos do “eu”
moderno que permitiram ao agente se conceder direitos universais (a liberdade, a vida,
a propriedade) formulados em documentos escritos como a Declaração de
Independência dos EUA e a Declaração Universal do Homem e do Cidadão. Desta
forma, buscou-se compreender os aspectos do “self” estabelecidos na obra de Locke
que possibilitaram nos enxergarmos como titulares de direitos humanos na
modernidade.
Na primeira parte do artigo foram apresentados os traços determinantes da
interioridade do sujeito moderno, segundo Charles Taylor: a autoexploração que confere
36
Anais X Encontro ANDHEP
ISSN:2317-0255
importância à particularidade de cada pessoa e a autorresponsabilidade que serve de
base do respeito às escolhas morais de cada pessoa. Assim ficou demonstrada a
existência de uma vinculação direta entre a autorresponsabilidade e os direitos
humanos, pois a autonomia moral de cada um fez com que o sujeito se enxergasse
como fonte de prerrogativas morais (direitos) pelo simples fato de ser do modo como é.
O artigo demonstrou que a atitude de Michel de Montaigne, consignada na obra
Os
Ensaios,
é
paradigmática
autorresponsabilidade,
da
consideradas
autoexploração
por
Taylor
os
e,
por
conseguinte,
da
pontos
fundamentais
da
subjetividade moderna. Foi percebido que os Ensaios são elaborados na forma de um
quadro que expõe os diversos movimentos internos do percurso reflexivo do autor,
valorizando a originalidade de cada homem. Nele o “eu” não é visto como uma
substância que possa ser compreendida universalmente, mas aparece como uma
singularidade. A obra de Montaigne espelha a busca pelo autoconhecimento sem
procurar o universal, pois Montaigne identifica no sujeito uma diferença irrepetível.
A percepção da própria originalidade, das exigências e aspirações do “eu”
encaminhou o sujeito moderno para a consciência dos direitos humanos. Nesta
trajetória, o self pontual, que resulta das ideias de Locke, radicaliza a percepção
moderna sobre o “eu” baseada na autoexploração e na autorresponsabilidade. O texto
analisou o sentido do self pontual e demonstrou de que forma a visão de Locke sobre a
subjetividade influencia o surgimento da consciência dos direitos humanos na
modernidade. Foi visto que Locke concebe o sujeito humano de modo desprendido em
relação à comunidade, um verdadeiro self pontual que se caracteriza principalmente
pela autorresponsabilidade, ou seja, pela possibilidade de assumir a autonomia de suas
escolhas morais, atitude que é fonte para os direitos humanos.
Por fim, o texto relacionou a concepção de subjetividade em Locke (self pontual)
e a teoria política sobre o uso do direito de resistência. Foi apontado que Locke
inaugura a possibilidade do rompimento com a obediência cega ao soberano, por
defender o uso do direito de resistência quando a autoridade violar os direitos naturais.
Percebe-se, portanto, que Locke transforma os direitos naturais em prerrogativas
exigíveis (direitos subjetivos) em face do exercício ilegítimo do poder, no entanto, tal
transformação só é possível na medida em que o autor concebe a subjetividade humana
desprendida das velhas estruturas que amarravam o homem à comunidade e que o
obrigavam a obedecer cegamente às autoridades.
Por todo exposto, percebe-se que os direitos humanos nascem no contexto da
modernidade em função de uma nova perspectiva, que não existia no mundo da
37
Anais X Encontro ANDHEP
ISSN:2317-0255
tradição, sobre o que significa ser um sujeito. A visão moderna a respeito do self é
marcada pelas noções de autoexploração e autorresponsabilidade, características que
derivaram na possibilidade de o homem se atribuir direitos subjetivos (prerrogativas) em
face dos demais e do Estado – direitos humanos. Assim, pode-se concluir que o sujeito
moderno é tanto causa quanto consequência dos direitos humanos, na medida em que
estes direitos resultam da concepção moderna da subjetividade e também alimentam
esta concepção, encorajando e radicalizando os traços distintivos do “eu” moderno.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BUZANELLO, José Carlos. O direito de resistência como problema constitucional.
2001. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade em Direito, Universidade Federal de
Santa Catarina, Florianópolis.
LOCKE, John. Ensaio sobre o entendimento humano. Trad. de Eduardo Abranches de
Soveral. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999.
___. Segundo tratado sobre o governo civil: ensaio sobre a origem, os limites e os
fins verdadeiros do governo civil. Trad. de Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa. 4
ed. Petrópolis: Vozes, 1994.
MONTAIGNE, Michel Eyquem de. Les Essais. Ed. Pierre Villey, V.-L. Saulnier. Paris:
PUF, 2004 (col. Quadrige).
TAYLOR, Charles. As fontes do self: a construção da identidade moderna. 4. ed. Trad.
de Adail Sobral e Dinah de Azevedo. São Paulo: Loyola, 2013.
38