heloisa
buarque
de hollanda
EXPLOSÃO
FEMINISTA
arte, cultura,
política e
universidade
Copyright © 2018 by Heloisa Buarque de Hollanda
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de
1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.
Capa e projeto gráfico
Tereza Bettinardi
Preparação
Julia Passos
Checagem
Luiza Miguez
Revisão
Angela das Neves
Adriana Moreira Pedro
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)
Explosão feminista : arte, cultura, política e universidade /
Heloisa Buarque de Hollanda — 1ª ed. — São Paulo: Companhia
das Letras, 2018.
Várias autoras.
isbn 978-85-359-3179-2
1. Feminismo 2. Igualdade 3. Liderança em mulheres
4. Mulheres – Aspectos sociais 5. Mulheres – Direitos
6. Mulheres – Educação 7. Mulheres – História 8. Mulheres
– Trabalho i. Hollanda, Heloisa Buarque de.
18-20428
cdd-305.42
Índice para catálogo sistemático:
1. Mulheres : Condições sociais : Sociologia 305.42
Iolanda Rodrigues Biode – Bibliotecária – crb-8/10014
[2018]
Todos os direitos desta edição reservados à
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Para Maria, Pê e duas Julias,
pela parceria e pelo afeto
Para Cata, Manu
e duas Ciças,
no momento certo
Quando não indicada a fonte,
a citação faz parte de
depoimentos recolhidos
especialmente para este livro.
Sumário
11
Introdução: O grifo é meu
23
Rua — com Maria Bogado
43
Rede — com Cristiane Costa
61
Política representativa — com Antonia Pellegrino
75
Nas artes — com Duda Kuhnert
105
Na poesia — com Julia Klien
138
No cinema — com Érica Sarmet e Marina Cavalcanti Tedesco
156
No teatro — com Julia de Cunto
179
Na música — com Julia de Cunto e Maria Bogado
205
Na academia — com Andrea Moraes e Patrícia Silveira de Farias
241
Falo eu, professora, 79 anos, mulher, branca e cisgênero —
parte 1: a nova geração política
parte 2: palavra forte
parte 3: os feminismos da diferença
por Heloisa Buarque de Hollanda
252
Feminismo negro — por Cidinha da Silva e Stephanie Ribeiro
301
Feminismo indígena — por Marize Vieira de Oliveira
325
Feminismo asiático — por Caroline Rica Lee, Gabriela Akemi
Shimabuko e Laís Miwa Higa
343
Transfeminismo — por Helena Vieira e Bia Pagliarini Bagagli
379
Feminismo lésbico — por Érica Sarmet
400
Feminismo radical — por Eloisa Samy
414
Feminismo protestante — por Lília Dias Mariano
parte 4: as veteranas ou um sinal de alerta
sobre uma memória não escrita
445
Bila Sorj
453
Sueli Carneiro
461
Jacqueline Pitanguy
480
Malu Heilborn
486
Schuma Schumaher
497
Maria Betânia Ávila
505
Branca Moreira Alves
515
Notas
531
Créditos das imagens
INTRODUÇÃO
o grifo é meu
Grifar quer dizer sublinhar, ressaltar, chamar atenção para.
Sou uma feminista da terceira onda. Minha militância foi
feita na academia, a partir de um desejo enorme de mudar a universidade, de descolonizar a universidade, de usar, ainda que de
forma marginal, o enorme capital que a universidade tem.
Nunca me interessei por uma carreira acadêmica tradicional. Senti, desde muito cedo, como minha missão intelectual,
pesquisar e abrir espaço para novas vozes, novos saberes e
novas políticas. Meu trabalho com mulheres, especialmente na
década de 1980, foi parte importante dessa tarefa.
Há pouquíssimo tempo, por volta de 2015, eu acreditava que
a minha geração teria sido, talvez, a última empenhada na luta
das mulheres. Até que um vozerio, marchas, protestos, campanhas na rede e meninas na rua se aglomeraram, gritando diante
da ameaça de retrocesso que representava a aprovação do Projeto de Lei 5069/2013, que dificultaria o acesso de vítimas de
estupro ao aborto legal. Levei um susto. Um susto alegre. Mais
alegre ainda ao perceber que aqueles não seriam gritos passageiros. A novidade era tão repentina quanto forte. Pelo menos,
ninguém menor de dezoito anos precisava disfarçar seu feminismo, como era a tônica das simpatizantes do movimento no
meu tempo. Elas chegaram e falaram, quiseram, exigiram. O
tom agora é de indignação. E, para meu maior espanto, suas
demandas feministas estão sendo ouvidas como nunca.
11
Penso em Grace Passô, artista, dramaturga, que para mim é
o ícone desta geração de jovens feministas. Grace, pura qualidade e agudeza, consegue ativar o sentimento, o desejo, a
revolta, a garra e a criatividade deste momento como poucas. E
é ela que assim expressa o diferencial das minas: “Historinhas
eu tenho mil, poderia contar várias, mas não é isso que importa.
Importa se ressoa, importa se te importa, se me exporta para ti,
leitor, importa se me ouve, se me escuta, se move tuas batidas,
se acelera, se retarda”.1
Eu ouvi, me encantei e quis/ quero registrar esse momento.
Mas sou uma feminista da terceira onda. Meu jeito e minhas
estratégias não são as que vejo em cena aberta. Como vou falar
por, ou mesmo sobre, essa geração que me tomou de assalto? O
feminismo hoje não é o mesmo da década de 1980. Se naquela
época eu ainda estava descobrindo as diferenças entre as mulheres, a interseccionalidade, a multiplicidade de sua opressão, de
suas demandas, agora os feminismos da diferença assumiram,
vitoriosos, seus lugares de fala, como uma das mais legítimas
disputas que têm pela frente. Por outro lado, vejo claramente a
existência de uma nova geração política, na qual se incluem as
feministas, com estratégias próprias, criando formas de organização desconhecidas para mim, autônomas, desprezando a
mediação representativa, horizontal, sem lideranças e protagonismos, baseadas em narrativas de si, de experiências pessoais
que ecoam coletivas, valorizando mais a ética do que a ideologia,
mais a insurgência do que a revolução. Enfim, outra geração.
Fui me aproximando e ouvindo, ouvindo muito. Ficou logo
claro para mim que este livro não seria escrito tranquilamente
em primeira pessoa. Eu precisava de um formato editorial que
enquadrasse, com um mínimo de justiça, o que eu percebia
nas ruas, nas redes, nas artes.
Eu precisava trazer aquela potência coletiva e horizontal,
suas vozes, para dentro deste projeto. Pensei, então, num livro12
-ocupação. Que venham as novas feministas e me atropelem,
me falem, me contem. Mas o livro tinha que ser meu, disse
Alice Sant’Anna, minha editora, poeta, feminista e também voz
deste livro. Lembrei então de uma outra palavra corrente nessa
geração digital: compartilhar. É isso. Neste livro, compartilho
a pesquisa e a escrita de todos os textos com as novas feministas. Escrever com não é fácil, como ficou comprovado durante
a realização deste trabalho. É uma outra experiência de escrita.
Rica. Densa. Afetiva. Bastante conflitiva. Emprestei um pouco
da minha experiência, das minhas leituras, das minhas lutas.
Recebi muitos saberes, perspectivas, vivências. O resultado é
um texto feito de grifos, alertas, discordâncias, identificações.
Quanto ao conteúdo, procurei produzir um panorama da
quarta onda feminista, examinando o contexto dos novos ativismos nas ruas e na rede, dos vários feminismos da diferença,
do feminismo na poesia, nas artes, na música, no cinema, no
teatro e na academia. Percebi, ao longo da pesquisa, uma inexplicável lacuna de memória na história da terceira onda feminista no Brasil. Abri, então, uma última parte, que chamei de
“As veteranas”, com depoimentos de lideranças importantes
daquele momento. A ideia da criação desse quase anexo, com
apenas sete depoimentos, entre tantos ausentes, não pretendeu dar conta dessa história. Veio como um alerta para a
urgência de um trabalho nesse sentido.
Explicado o livro, me explico como feminista, ou seja, de que
lugar eu falo, como me encontrei com as feministas de hoje.
Como muitas mulheres da década de 1960 que participaram
dos movimentos estudantis, da une, dos cpcs2 e da cultura de
oposição à ditadura, militei em várias frentes, mas, inicialmente, não me identifiquei diretamente com as lutas feministas, que surgiam na Europa e nos Estados Unidos levantando
a bandeira “o pessoal é político” e defendendo o direito ao
corpo, ao aborto, à liberdade sexual e ao fim das desigualdades
13
no trabalho e no contexto familiar. No Brasil, a coisa foi diferente. A maioria dessas bandeiras confrontavam, diretamente,
vários dogmas da Igreja, uma das principais instituições progressistas na época. Assim mesmo, as iniciativas feministas
conseguiam se articular com a Igreja ou com o Partido Comunista que, da mesma forma, era um parceiro importante na
luta contra o regime militar, mas se tornava um complicador
para o movimento de mulheres. A Igreja, por sua recusa ao
aborto e à liberdade sexual, e o Partido Comunista, pela insistência numa luta mais ampla na qual não cabiam as demandas
singularizadas das feministas.
O resultado foi uma fragilização inicial do nosso feminismo,
que mostrava certo recuo em relação ao feminismo internacional, concentrando-se, prioritariamente, nas questões trabalhistas, na demanda por creches, no controle da violência doméstica e no enfrentamento das desigualdades sociais entre homens
e mulheres ao longo da década de 1970.
Nesse momento, e ainda sob a pressão da ditadura, eu trabalhava com a cultura de resistência, ou marginal, e não me
sentia particularmente suscetível às lutas das mulheres. Em
1982, antes dos movimentos por eleições diretas, fui fazer um
pós-doutorado sobre as relações entre política e cultura na Universidade de Columbia, nos Estados Unidos. Não se passaram
três meses e a ficha caiu. Me descobri feminista a 7666 quilômetros do Brasil. Meu caso não foi único. Estudos3 mostram
que a maioria das feministas da chamada terceira onda passou
um período fora do país, seja por exílio, por estudos ou por
circunstâncias desfavoráveis de trabalho e criação no Brasil
dos anos de chumbo. O que haveria na cultura das diferenças
no Brasil que não se mostrava solo firme para as ideias feministas ou raciais? Essa pergunta fica em aberto.
Por outro lado, na época da transição democrática, que
cobre as décadas de 1980 e 1990, o feminismo nos surpreendeu
14
ao construir fortes articulações com instituições políticas e
organizações não governamentais. Esse movimento procurava,
sobretudo, o uso de ferramentas institucionais para pressionar
a criação e a aprovação de políticas públicas que favorecessem
as mulheres.
No final deste livro, vemos, nos depoimentos das veteranas,
a atuação feminista que, já em 1985, se mostrava viva e atuante
na campanha pelas Diretas Já, na formação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher e pelas Delegacias Especializadas no
Atendimento à Mulher. Nas eleições de 1985, a maioria dos partidos apresentou propostas encaminhadas por grupos feministas. Em 1988, o Lobby do Batom, no contexto das decisões da
Assembleia Constituinte, se desdobrou em mobilizações por
todo o país e alcançou grandes conquistas. Na academia, lutou-se pela institucionalização dos estudos feministas e de gênero.
Foi nesse espaço que coloquei meu desejo e meu ativismo.
De volta ao Brasil após meu período na Universidade de
Columbia, cheia de entusiasmo e pilhas de cópias de livros e
artigos da produção acadêmica das mulheres daquele momento,
desenhei o projeto de um núcleo de pesquisa de gênero na
Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (ufrj). Em vão. Levado ao Conselho da Escola, o projeto
foi recusado por uma razão interessante: a área de Comunicação
não seria adequada para o desenvolvimento dos estudos de
gênero. Em vão, também, a maior parte do material contido nas
minhas tantas cópias. Pelo menos no campo dos estudos literários, a crítica feminista anglo-saxã parecia não “encaixar”, não
oferecer os instrumentos analíticos ideais para o estudo das
relações de poder entre homens e mulheres no Brasil. Esse aparente empecilho transformou-se numa paixão interpretativa, e
então mergulhei nas figuras matriarcais nordestinas, na pesquisa sobre as amas de leite, nas leituras regionalistas de Norte
a Sul do país e suas especificidades riquíssimas. Deixei a acade15
mia americana para trás, seus modelos institucionais e analíticos, e iniciei um momento muito feliz de trabalho no ciec. O
ciec era o Centro Interdisciplinar de Estudos Culturais, um
guarda-chuva dissimulado para a pesquisa de gênero, raça,
classe, imigração e tudo mais que não cabia, segundo o Conselho mencionado, na enigmática área de Comunicação.
Foi no ciec que organizei a Coleção Quase Catálogo, mapeamento de mulheres em áreas como cinema, cinema mudo e
artes visuais. Foi ainda no ciec que, com Lena Lavinas e o
comitê da Fundação Carlos Chagas, criamos, em 1992, a Revista
de Estudos Feministas, atualmente sediada no Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina (cfh/ ufsc). Foi lá que organizei o seminário “¿Y nosotras
Latinoamericanas?”, um encontro em busca das particularidades e horizontes de nosso feminismo. Estudava e dava cursos
sobre relações de gênero, um termo novo naquele momento.
Tempo bom. Conselhos nacionais e estaduais avançavam na
defesa de direitos, ongs e apoio a mulheres proliferavam, os
estudos de gênero se ampliavam (ou se infiltravam?) nas universidades. Jean Franco, minha orientadora, feminista e professora na Universidade de Columbia, defendia com unhas e dentes o “direito de interpretar”.
No quadro no qual se desenvolviam os estudos feministas, os
discursos sobre identidade foram progressivamente conquistando posições mais flexíveis, passando agora a se assumir
como estudos de gênero. Essa mudança se dá por volta de 1975,
quando a antropologia começava a questionar as narrativas de
Marx, Engels, Freud e Lacan. Foi nesse impulso que Gayle Rubin
enfrenta Lévi-Strauss e usa, pela primeira vez, o termo gênero,
afirmando a existência de um sistema de sexo-gênero associado
à própria passagem da natureza para a cultura. Gayle oferecia ali
elementos para a futura elaboração do conceito de gênero e,
mais perturbador ainda, já enfrentava o pressuposto da hetero16
normatividade. Não é por acaso que Judith Butler demonstra
frequentemente sua admiração e mesmo compromisso com o
trabalho de Gayle Rubin. Mas o texto da autora que mais me
marcou foi o artigo “Pensando sexo: Notas para uma teoria radical da política da sexualidade”, publicado em 1984, no qual a
autora afirmava a necessidade da separação analítica entre
gênero e sexualidade, propondo que o sexo, enquanto vetor de
opressão, atravessa todos os modos de desigualdade social,
como classe, raça, etnicidade ou gênero. É fácil perceber o efeito
inaugural e provocador dos textos de Gayle Rubin para o feminismo histórico, hoje percebido como branco ou universal.
Viver aquele momento foi um privilégio. Lembro-me de
meus modelos teóricos se reformulando a cada leitura, da
minha perplexidade com a abertura de caminhos a partir do
encontro com novas teorias, novos enfrentamentos, novos
compromissos.
Mas nada se compara com o choque produzido pela chegada do livro This Bridge Called my Back: Writings by Radical
Women of Color, organizado por Cherríe Moraga e Gloria Anzaldúa, em 1981. Era um livro muito diferente dos textos acadêmicos e ativistas que começavam a surgir com uma frequência
inesperada. Era um livro de escrita acessível, íntima, de fala
localizada, quase uma roda de conversa na qual as relações
entre mulheres ganhavam uma inédita visibilidade. Um formato editorial absolutamente novo, que misturava poemas,
textos de análise, crítica, desenhos, testemunhos, depoimentos, entrevistas; enfim, um livro pensado para acolher todas as
camadas da experiência e do pensamento das mulheres de
“cor” — no caso, negras, latinas, chicanas, judias, asiáticas, terceiro-mundistas. Um livro solidário, um corpo que se estende
como ponte para suas companheiras, como diz o título. Um
xeque-mate no ideal utópico da sororidade feminista. Percebi
que eu não sabia nada sobre mulheres.
17
Daí em diante, se acelerou a discussão das matrizes e paradigmas do próprio feminismo. Algumas figuras foram decisivas para mim. Em 1983, Gayatri Spivak colocou a pergunta que
se tornou ícone: “Pode um subalterno falar?”, abrindo um
enorme campo de debates sobre posicionalidades dos sujeitos
em quadros de dominação colonial e racial.
Pouco depois, em 1985, Donna Haraway publica o ensaio
“Manifesto ciborgue: Ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século xx”. Promovendo um avanço radical nos
debates feministas, o manifesto se vale da estranha figura do
ciborgue, entre o animal e a máquina, e desafia frontalmente as
políticas de identidade em curso no ativismo feminista. Implacavelmente contra qualquer essencialismo, o manifesto apresenta uma criatura pós-gênero que apaga todos os marcadores
binários das definições identitárias, liberando espaço para
novas formas híbridas de sexualidade. Na sequência, em 1987,
Teresa de Lauretis traz a noção de tecnologias de gênero, que
imprimem nos discursos sociais a ideia do que é ser homem ou
mulher, que adequam os corpos aos limites dos gêneros,
domesticam o desejo e impõem normas a serem seguidas. Teresa
é a primeira feminista a usar o termo queer como atravessamento
das barreiras do gênero.
Essa onda teórico-feminista, bem maior do que imaginávamos, fecha um ciclo, em 1990, com a publicação de Problemas de
gênero, de Judith Butler, considerado “o ponto de virada do
gênero”. Judith Butler, de certa forma, sistematizou o pensamento mais radical da década de 1980 e avançou com a noção de
devir gênero, de que ecoa de longe a ideia de devir mulher, de
Simone de Beauvoir. O devir gênero implica necessariamente em
outra noção, a de performatividade de gênero, que permite o estudo
da proliferação das configurações culturais de sexo e gênero e põe
em cena definitivamente o feminismo queer. Para Judith, não é
possível falar em teoria queer sem pensarmos na categoria de
18
“gênero” como sendo algo fluido, socialmente construído, performado e sistêmico. Chegávamos, afinal, num ponto em que se tornava impossível falar em gênero sem falar no aparato de produção mediante o qual os próprios sexos são estabelecidos.
O boom teórico da terceira onda feminista foi, sem dúvida,
um momento de fortes emoções epistemológicas. Foi nesse
momento que me aproximei e me comprometi de forma mais
efetiva com o feminismo. Pensando hoje, o que é mais surpreendente é que essa virada de eixo do pensamento feminista já
com mais de trinta anos, só hoje entra com mais conforto no
espaço público do ativismo feminista e na experiência social de
feministas lgbtqis.
Quando falo dessas teóricas e de seus feitos, estou falando,
na verdade, de caminhos pessoais, de como vivi meus encontros
teóricos e, sobretudo, minhas afinidades eletivas enquanto feminista e acadêmica. Muito provavelmente, a trajetória do pensamento feminista não se deu nessa “linha evolutiva” que trago
aqui. Mas foi essa a minha experiência intelectual nos anos 1980
e que orientou decisivamente meu trabalho e minhas ações (e
recuos) político-institucionais no campo dos estudos de gênero.
De tudo isso, se eu for avaliar, diria que fiquei com a lição de
Anzaldúa: “É somente através de existirmos no modo da tradução, constante tradução, que teremos alguma chance de produzir um entendimento das mulheres ou, de fato, da sociedade”.
Foi mais ou menos por aí que se deu o meu encontro e este
meu trabalho com as novas feministas.
Rio de Janeiro, agosto de 2018
19
1
a nova
geração
política
21
22
Rua
COM MARIA BOGADO
Eu vejo muita gente hoje negligenciando a importância das
jornadas de junho de 2013. Acho que todas essas pessoas
que foram pra rua, de todos os posicionamentos políticos,
descobriram uma força incrível que antes não conheciam.
Para os movimentos das minorias isso é muito importante.
O feminismo teve um boom depois de 2013, o movimento
negro também. Eu vejo que a nossa juventude está caminhando no sentido de incluir a política nas nossas relações,
no dia a dia. Então por isso é que sofremos essa guinada conservadora, ela é uma resposta a esse processo de
conscientização pelo qual estamos passando.
isabella dias, estudante secundarista1
O ano de 2013 já vinha sendo perpassado por pequenas manifestações relacionadas ao aumento do preço do transporte
público. Em março, protestos em Manaus e em Porto Alegre
criticaram o aumento das tarifas. No dia 16 de maio, um ato em
Goiânia reuniu mil pessoas. Já em São Paulo, no dia 19 de maio,
o Movimento Passe Livre (mpl) promoveu ações na Virada Cultural e seguiu militando ao longo do mês. No dia 6 de junho,
um protesto também em São Paulo reuniu mais 5 mil estudantes, número considerado expressivo até então.
23
Vídeos, fotos e relatos em tempo real tomaram conta das
redes sociais. No dia 17 de junho, o Twitter foi dominado, por
volta das seis horas da tarde, por quase 20 mil compartilhamentos com as hashtags #WhiteMonday, #VemPraRua e #VemPraJanela. Era uma segunda-feira, e o Brasil se surpreendeu com pelo
menos 270 mil pessoas saindo às ruas em trinta cidades do país.
Na terça-feira, o impacto continuava: cerca de 110 mil pessoas
ocuparam mais de quarenta cidades. O embalo seguiu na quarta-feira, quando mais de 140 mil pessoas inundaram trinta cidades. Até que, quando não se esperava mais que a explosão
pudesse aumentar, cerca de 1,4 milhão de pessoas ocuparam 130
cidades do país na quinta-feira, dia 20 de junho.
As redes sociais difundiam o mapa colaborativo da chamada Revolta do Vinagre, ou Jornadas de Junho, e informavam
locais de concentração dos protestos, pontos de conflito, rotas
livres e se havia feridos. A frase “Desculpem o transtorno, estamos mudando o país” era um dos achados do momento.
O clima de otimismo era latente: em uma pesquisa realizada
pelo Ibope, a pergunta “Você acha que essas manifestações vão
conseguir promover as mudanças que você reivindica?” obteve 94%
de respostas positivas.2 As marchas permitiram novas formas políticas de afeto, no sentido de afetar e ser afetado pela multidão.
Como percebe Ivana Bentes, os contornos dessa nova geração política já se delineavam a partir de múltiplas frentes,
incluindo demandas contra a especulação imobiliária e direitos dos povos indígenas:
Destaco a emergência de novas linguagens nesses movimentos urbanos: as mulheres da Marcha das Vadias exibindo seus
seios e corpos pintados, reivindicando direitos e liberdade, ou
as bicicletadas com os manifestantes pedalando nus pelas avenidas e ruas de São Paulo e enfatizando a relação do corpo
com seu transporte e fazendo do corpo outdoors contra as
24
mortes dos ciclistas numa cultura dominada por automóveis.
Ou ainda os corpos em risco e o confronto dos black blocs.
Ou seja, falamos de uma reinserção do corpo e dos corpos
nas manifestações. Estamos nesse momento intenso de
potencialização política e da emergência de novos discursos e
atores que usam as redes sociais e se organizam conectando
as redes digitais com os territórios e os corpos. Olhando para
as imagens produzidas, cartazes, memes na internet, hashtags,
vídeos e fotografias, encontramos uma transversalidade e
complementaridade desses movimentos e discursos.
Nesse quadro, Ivana destaca, no texto “Hackear, narrar: As
novas linguagens do ativismo”, a atuação dos midiativistas, eficazes ao promover novas narrativas políticas. A Mídia Ninja
teve um papel fundamental na reconfiguração midiática:
Os Ninjas, inspirados na ética hacker e na cultura digital,
tomaram como prática o “hackeamento” das narrativas, o que
significa dizer que, além de produzirem um contradiscurso
em torno do sentido das manifestações, também pautaram a
mídia corporativa e os telejornais em alguns episódios, notadamente o que revelou policiais infiltrados à paisana jogando
coquetéis molotov na multidão, entre outras práticas arbitrárias (implantação de “provas”, abusos policiais etc.).3
Voltando ao caso específico dos protestos de junho de 2013,
como a coletividade se sobrepunha à ação individual, o que
inquietava a grande mídia e a polícia era a tentativa frustrada
de localizar lideranças dentro dos movimentos. Os manifestantes, porém, se mantinham anônimos e não mostravam uma
estrutura hierárquica. A um jornalista que perguntou seu
nome, uma manifestante do Movimento Passe Livre respondeu: “Anota aí, eu sou ninguém”.4 A força da multidão tinha
25
sido descoberta por jovens que se deixavam atrair pelo magnetismo de um pertencimento provisório e precário. Testemunhávamos a emergência de uma nova linguagem tecnopolítica
que superava o “clickativismo”, mas que claramente nasceu
nas redes sociais.
É importante, nesse sentido, mencionar a análise da professora Tatiana Roque, que desvia estrategicamente das conexões
produzidas na rede e enfoca nos laços formados entre movimentos, organizados em torno de interesses diversos. Tatiana
demonstra, sobretudo, como os grandes momentos das marchas
são aqueles em que as diferenças produziram circuitos imprevisíveis. Em busca de parâmetros analíticos para as novas insurreições, ela se pergunta: Quais modos de existência elas propõem?
Qual o potencial de conexão entre os questionamentos que
levantam e suas reivindicações? Para isso, Tatiana procura trabalhar com a heterogeneidade de posições que entram em cena.
Enquanto muitos insistiam em perguntar “o que” os manifestantes queriam, Luiz Eduardo Soares estava mais atento ao
“como” se expressavam e a uma possível nova linguagem política que se revelava nas manifestações:
Sendo pequenos os cartazes e pequenas as letras em que as
palavras estavam escritas, quem os podia ler? Para quem
foram feitos? Para o outro com O minúsculo, o próximo, o
vizinho da caminhada, o parceiro ou a parceira de travessia,
quem estivesse ao lado e se dispusesse a olhar, ler e mostrar
ao interlocutor o seu próprio cartaz, acrescentando comentários, talvez. O espaço do pequeno cartaz individualizado e
expressivo é o do diálogo. Diálogo do tipo eu-tu, que só se
sustenta se os sujeitos se supõem iguais, enquanto interlocutores, partícipes de um conjunto mais abrangente que os
compreende, os inclui.5
26
A dinâmica particular dos múltiplos embates e negociações
com O outro, com “o” minúsculo, era perceptível. É importante
sublinhar um sintoma novo e relevante. Quando o mpl reivindicou a diminuição do preço das passagens — e mesmo a sua
gratuidade — e os black blocs pediram o fim da Polícia Militar
e a melhoria nos serviços públicos, eles mostraram que podiam
ter voz sem a mediação de representantes políticos. Ampliaram
o espaço da ação política e se valeram da possibilidade de pressionar as instituições do lado de fora. Revelaram, na verdade,
um traço importante que caracterizou diversas manifestações
similares ao redor do mundo, como o 15M espanhol, ou as
manifestações turcas que também eclodiram em 2013, após a
ocupação do parque Taksim Gezi. Não se ouviam apenas referências a representantes políticos, ideologias ou questionamentos a partidos e governos. Ao contrário, o que estava ali era uma
visível autonomia dos participantes, que não dependiam exclusivamente do sistema político e operavam também por meio
das ações diretas e dos debates e laços criados na ocupação coletiva dos espaços públicos. Anônimos do Comitê Invísivel explicitam bem a potência em gestação nesse tipo de movimento:
O que aqui se constrói não é nem a “sociedade nova” em seu
estado embrionário nem a organização que finalmente derrubará o poder para constituir um novo, é antes a potência
coletiva que, por via da sua consistência e da sua inteligência,
condena o poder à impotência, frustrando, uma a uma, todas
as suas manobras. […] Há, nas insurreições contemporâneas,
algo que os desconcerta de modo particular: elas não partem
mais de ideologias políticas, mas de verdades éticas.6
Assim, conexões improváveis e surpreendentes podem acontecer. Como lembra Tatiana Roque, as manifestações de 2013
desencadearam alianças que não poderiam ser programadas:
27
no Rio de Janeiro, por exemplo, professores sindicalizados se
uniram a grupos de tendência anarquista como os black blocs;
garis se juntaram a midiativistas e, durante a greve de fevereiro
de 2014, encontraram o apoio de foliões do Carnaval.
As redes sociais, nesse momento, não eram vividas apenas
como veículo eficaz para a propagação de informações, mas
lançaram também as bases desejadas para um novo tipo de
organização política: uma democracia conectada, participativa, transparente.
São fascinantes as novidades trazidas pelas linguagens e
estratégias da nova geração política. O pesquisador Rodrigo
Nunes aponta de forma certeira algumas questões bastante
bem-vindas no artigo “Anônimo, vanguarda, imperceptível”,
publicado no número 24 da revista serrote.
Nunes repensa os limites dos fatores binários de certas leituras, que opõem expressividade/ representação, anonimato/ identificação, horizontalidade/ verticalidade, além de trazer uma perspectiva genealógica das inovações introduzidas pelo levante do
Exército Zapatista de Libertação Nacional (ezln), no México. As
estratégias zapatistas de uso das redes e de “não ter rosto” mostram-se como traços recorrentes e distintivos nos movimentos
atuais. Passados cerca de 35 anos, a crise aguda da democracia e
a desconfiança radical em qualquer tipo de representação, somadas ao desenvolvimento exponencial das mídias sociais, retomam
a rede e a recusa a lideranças como eixo central da linguagem da
nova geração política. No entanto, como aponta Rodrigo Nunes,
se o anonimato e a ausência de representação são fatores férteis
enquanto catalisadores de protestos, esse desejo de abertura costuma esbarrar a longo prazo em certos limites nas organizações.
Em lutas continuadas, o que se vê é uma tendência à criação de
lideranças ou símbolos que as representem.
As ruas não mantiveram a temperatura de junho, mas o
entusiasmo dos manifestantes que acreditavam nessas trans28
formações definitivamente não se perdeu. Pelo contrário, desdobrou-se em outras marchas, outras demandas, outros movimentos, estratégias e linguagens políticas, visceralmente
ligadas ao éthos de junho.
Foi nesse quadro que o feminismo ganhou terreno e se tornou o maior representante da continuidade da nova geração
política. Na sequência das grandes marchas, as mulheres conquistaram o primeiro plano e roubaram a cena da resistência
ao cenário conservador que ameaça o país.
DEPOIS DE JUNHO V EM A PRIMAV ERA
Em 2015, as mulheres protagonizaram com rapidez impressionante uma reação diante do retrocesso que significou a aprovação do projeto de lei (pl) 5069/2013, apresentado por Eduardo
Cunha, cujo objetivo era dificultar o acesso de vítimas de estupro a cuidados médicos essenciais. Por todo o Brasil, eclodiram mobilizações semanais com fortes protestos que culminaram em um ato nacional pelo “Fora, Cunha!”, no dia 13 de
novembro. Nas ruas, vozes femininas ressoavam palavras de
ordem como: “O Cunha sai, a pílula fica”, “Meu útero não é da
Suíça para ser da sua conta”, “As puta, as bi, as trava, as sapatão, tá tudo organizada pra fazer revolução” e “O Estado é laico,
não pode ser machista, o corpo é nosso, não da bancada moralista”. A ativista Manoela Miklos se impressionou com as ruas
ocupadas: “Eu nunca tinha parado para pensar em quão natural é que a voz do coletivo seja sempre masculina. E naquele
dia, o som das mulheres gritando juntas foi muito marcante”.7
A força dessas vozes demonstra como, em 2015, a luta feminista
já alcançava patamares inéditos e levava milhares de manifestantes às ruas das grandes cidades do país. No dia 10 de novembro de
2015, a jornalista Luciana Araújo explicava os motivos da revolta:
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