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A Mutação Interior

A maioria de nós parece considerar a ação individual como coisa sem importância, quando há tanta necessidade de ação coletiva. Supomos que a ação individual está geralmente em oposição à ação coletiva. Consideramos a ação coletiva bem mais importante e de maior significação para a sociedade do que a ação individual. Para nós, a ação individual a nenhuma parte conduz, não sendo suficientemente expressiva ou bastante criadora para produzir uma positiva alteração da ordem vigente, uma revolução real na sociedade. Dessarte, cremos ser a ação coletiva muito mais relevante, mais urgente do que a individual. Do ponto de vista técnico, mecânico, principalmente, num mundo em que prevalece cada vez mais a mentalidade técnica, mecânica, a ação individual tem pouca razão de ser; e, assim, gradualmente, decresce o valor do indivíduo e o “coletivo” se toma sobremodo importante. Pode-se observar esse fato hoje em dia, quando a mente humana está sendo controlada, “coletivizada” — se assim me posso expressar — e mais do que nunca forçada a ajustar-se. A mente já não é livre. Está sendo moldada pela política, pela educação, pela crença organizada, pelos dogmas religiosos. Em todas as partes do mundo a liberdade e o indivíduo se estão tornando cada vez menos significativos. Já deveis ter observado — não só em vossas vidas, mas também geralmente — que a liberdade feneceu, liberdade para pensar com independência, liberdade para descobrir, duvidar, investigar.

J. K R I S H N A M U R T I A MUTAÇÃO INTERIOR T ra d u ç ã o de H u g o E D IT O R A V e l o s o G U L T R IX SÃO PAULO SU M A R I O D bst em o r O Po d e r Do (V a ra n a s i — I ) M e n t a l (V a ra n a s i —: I I ) D ú v id a d a (V a ra n a s i — I I I ) C o n f l it o P e r c e b im e n t o C r ia d o r (V a ra n a s i — V ) C o m p r e e n d e r .. a V id a Pe n sa m e n t o Pr o g e s s o N eg a r d o D a T r a n sfo r m a ç ã o Os O b st á c u l o s Os A Fa t o r es Pa r a L ib e r d a d e O V er D a À C o m pl e t o M e n t e O r ig e m I n d o l ê n c ia e m N ã o d ó e Su r g e L ib e r t a ç ã o A Pa ssa d o o (N o v a D e li — I V ) Q u est ã o d a d a (N o v a D eli — V I I ) (B o m b aim — I I ) I n f l u e n c ia d a M ed o (B o m b aim — I I I ) (B o m b aim — I V ) A u t o c o m p a ix ã o o A mo r (B o m b aim — V ) (B o m b aim — V I ) E x p e r iê n c ia S im p l ic id a d e 56 71 84 97 107 117 126 136 (B o m b aim — I ) N a da 42 147 (N o v a D eli — V I I I ) A m o r e C o n f ia r Q u a n d o (N o v a D e li — I I I ) M u t a ç ã o So f r im e n t o d o (N o v a D eli — V I ) M e d it a ç ã o NÃo (N o v a D e li — I I ) (N o v a D e li ■ — V) R e l ig iã o M o r r er (N o v a D e li — I ) I n t e r io r P s ic o l ó g ic o s d a E s s ê n c ia (V a ra n a s i — V I ) (V a ra n a s i — V I I ) Fa l so o 31 (V a ra n a s i — I V ) O 7 19 (B om baim — V I I ) (B o m b aim -— V I I I ) 157 167 178 187 195 206 217 227 236 246 DESTEMOR MENTAL (V a r a n a s i — I) A m a io r ia de nós p a rece consid erar a ação in d iv id u al com o coisa sem im p o rtâ n c ia , q u a n d o h á ta n ta necessidade de ação coletiva. Supom os que a ação in d iv id u al está geralm ente em oposição à ação coletiva. C onsideram os a ação coletiv a bem m ais im p o rta n te e dé m aio r significação p a ra a sociedade do que a ação indiv idual. P a ra nós, a ação indiv idual a n e n h u m a p a rte conduz, n ã o sendo sufi­ cientem ente expressiva ou b a sta n te c ria d o ra p a ra p ro d u zir u m a po si­ tiv a alteração d a o rd em vigente, u m a rev olu ção re a l n a sociedade. D essarte, crem os ser a ação coletiva m u ito m ais relevante, m ais u rg en te do que a indiv id ual. D o p o n to de v ista técnico, m ecânico, p rin c ip alm en te, n u m m u n d o em que prevalece cad a vez m ais a m e n ta lid a d e técnica, m ecânica, a ação in d iv id u al tem p o u c a razão de se r; e, assim, g rad u alm en te, decresce o v alo r do indiv íduo e o “ coletivo” se to m a sobrem odo im p o rta n te. Pode-se ob servar esse fato hoje em dia, q u a n d o a m en te h u m a n a está sendo co ntrolada, “ coletivizada” —- se assim m e posso expressar — e m ais do q ue n u n c a fp rç a d a a ajustar-se. A m en te já n ão é livre. E stá sendo m o ld a d a p ela política, p ela educação, p e la cre n ça o rg a ­ n izada, pelos dogm as religiosos. E m todas as partes do m u n d o a lib er­ d a d e e o in div íduo se estão to rn a n d o c ad a vez m enos significativos. J á deveis ter observado — n ã o só em vossas vidas, m as tam bém g e ra l­ m en te — que a lib erd ad e feneceu, lib erd ad e p a ra p en sar com in d e ­ pendência, lib erd ad e p a ra descobrir, d u v id ar, investigar. O s guias se estão to rn a n d o c ad a vez m ais im p o rta n tes, p o rq u e querem os ser ensinados, querem os ser dirigidos e, infelizm ente, q u a n d o isso ocorre, é inevitável a corrupção, a deterio ração d a m en te — n ap d a m en te técnica, d a c a p ac id ad e de co n stru ir pontes, reato res atô - 7 micos, etc.; p o rém de terio ração d a m en te criad o ra. E sto u em pregan do a p a la v ra “ c ria d o ra ” n u m sentido com pletam ente d iferen te do usual. N ão digo “ c ria d o ra ” , com a significação de escrever poem as, construir pontes, ta lh a r n o m árm o re ou n u m a p e d ra u m a c e rta visão q ue se está c a p ta n d o — pois tu d o isso são m eras expressões do pensam ento o u sentim ento pessoal. Falam os de “m en te c ria d o ra ” n u m sen tid o .. todo d ife ren te ; referim o-no s à m en te q u e é livre e, p o r isso, capaz de criar. A m en te n ão sujeita aos dogm as, às crenças; a m ente que n ão se refugiou d e n tro dos lim ites d a exp eriência; a que ro m p e u todas as b a rre ira s d a trad ição , d a au to rid ad e, d a am bição, q u e já n ão está presa n a red e d a in v eja — eis a m en te criadora. N u m m u n d o sobre o q u a l p a ira a am eaça de g u erra, onde se observa g eral deterio ração — n ão tecno lo gicam ente, m as a todos os outro s respeitos — nesse m u n d o , p arece-m e, h á necessidade dessa m en te criad o ra. É ab so lu tam en te necessário e u rg en te a lte ra r de todo o curso do p en sam en to h u m an o , d a existência h u m a n a , que se está to rn a n d o c a d a vez m ais m ecanizada. E n ã o vejo com o o p e ra r essa com pleta revolução a n ão ser in d iv idualm ente. O “ coletivo” n ão po d e ser revo­ lu cio n ário ; o “ coletivo” só é capaz de seguir , ajustar-se, im itar, subm eter-se. M as só o indiv íduo — vós — po d e ro m p er as m u ralh as, destro­ ç a r todos esses cond icio nam entos, e se to rn a r, assim, criador. Ê a crise n a consciência q ue exige essa m en te nova. M as, a p a re n te m e n te , c o n ­ form e se observa, n inguém p en sa nisso; o q u e sem pre se p en sa é que, com m ais m elhoram ento s — n o cam po técnico ou m ecânico — se c riará, com o q ue m íracu losam ente, a m en te cria d o ra , a m en te sem m edo. Assim, nestas palestras n ão nos irem os o c u p a r d a m elhoria dos processos técnicos, necessários n o m u n d o d a ação m ecânica, coletiva, porém , tão só, de com o fazer nascer aq u ela m en te cria d o ra , aq u e la m en te nova. P o rq u e, neste país, estam os assistindo a u m declínio geral, à exceção, talvez, n o setor in d u strial — possibilidades de g a n h a r m ais dinh eiro, construção de ferrovias, dragagem de rios e canais, usinas siderúrgicas, p ro d u ção de m ais m ercadorias, tu d o isso, n a tu ­ ralm en te, necessário. M as n a d a disso p o d e c ria r u m a no v a civilização. T r a r á progresso; m as o progresso, conform e se observa, n ão d á lib er­ d a d e ao hom em . Coisas e m ercadorias $ão necessárias; m ais casas, m ais ro u p as, tu d o isso é indispensável; m as h á o u tra coisa que é i ig u alm en te necessária: o a to de “n e g a r” . D izer “N ã o ” é m u ito m ais im p o rta n te do q ue d izer “S im ” . Todos dizem os “ Sim ” ; n u n c a dizem os “ N ã o ” e nos m antem os firm es no “N ã o ” . É m u ito difícil n egar, e m u ito fácil subm eter-se; e a m aio ria 8 de nós se subm ete, p o rq u e n a d a m ais fácil do q ue resvalar p a r a o conform ism o, im pelid o pelo m edo, pelo desejo de segurança e ser levado, assim, à g rad u al estagnação e desintegração. M as o dizer “ N ã o ” exige a m ais a lta fo rm a de pensar, p o rq u an to dizer “ N ã o ” im plica pensam ento negativ o — isto é, ver o que é falso. O pró p rio percebim ento do falso, a clareza com que o percebem os, é ação criad o ra. O n eg ar u m a coisa, o pô-la em d ú v id a -—• p o r in ais sagrada, p o r m ais pod erosa que seja essa coisa, ou p o r m ais firm em en te esta ­ belecida — exige p ro fu n d a pen etração , exige a to ta l dem olição de nossas p ró p rias idéias e tradições. E um indivíd uo assim é absolutam ente necessário no m u n d o m oderno, onde a p ro p a g a n d a , o n d e a religião organizada, onde o em buste estão assum indo o controle de tu do . N ão sei se vós tam b ém percebeis a im p o rtâ n c ia disso — n ão v erb alm en te, n ao teoricam ente, p o rém de fato. Gom o sabeis, h á u m a m a n e ira de o lh a r as coifas. O u olham os d iretam en te, “ ex p e rim e n tan d o ” a coisa que vemos, o u consideram o-la verb alm ente, in te le ctu alm en te, tecendo teorias em to rn o do que è e p ro cu ra n d o explicações p a ra o que ê. M as o p erceber d ire tam e n te (sem se p ro cu ra re m explicações, sem se em itirem juízos — assuntos de que m ais a d ia n te tra ta r e i) , o p e rceb er d ire tam e n te u m a coisa com o falsa re q u e r atenção, re q u e r to d a a vossa cap acid ad e. M as, ao que parece, p rin cip alm en te neste d esafo rtu n ad o país, on d e a trad ição , a au to rid ad e , a c h a m a d a “ sabedoria a n tig a ” , im p eram e dom in am , h á co m p leta falta d a q u e la enérgica qualidade, necessária p a ra se v e r o que é falso e rejeitá-lo resolu tam ente. M as o investigar o que é falso re q u e r m en te livre. N ão podeis investigá-lo se estais ligado a u m a d a d a form a d e . crença, u m a d a d a fo rm a de experiência, u m a c e rta n o rm a de ação. Se estais lig ado a u m certo p a d rã o de governo, nao podeis n em ousais co n tro lar n a d a , p a ra n ao perd erdes vosso em prego, vossa posição, vossa in fluência, as coisas q ue tendes m edo de p erd er. E, tam bém , q u an d o estais ligado a u m a certa fo rm a d e religião, q u an d o sois h in d u ísta, bu dista, etc., n ão ousais contestar, n ao ousais ro m p er as m uralhas, d e stru ir tu d o , a fim de descobrir. M as, infelizm ente, em geral estam os bem com prom etidos, política, econôm ica, social ou relig iosam ente; e, p o r causa desse “ com prom isso”, n u n c a pom os em d ú v id a o p ró p rio centro, a p ró p ria coisa com que estam os com prom e­ tidos. P o r conseguinte, estam os sem pre a b u scar a lib erd ad e nas idéias, nos livros, em p alav ras e m ais palavras. Assim sendo, eu desejaria sugerir que, e n q u an to estiverdes a escutar, n ão vos lim iteis a ou v ir p alav ras, que são apenas u m m eio de com unicação, u m sím bolo que precisa ser in te rp re ta d o p o r ca d a 9 u m ; m as tam b ém que, p o r m eio das p alav ras, procu reis descobrir o estad o de vossa p ró p ria m ente, descobrir as coisas com q u e estais “ co m p ro m etid o ”, descobrir, p o r vós mesmos, as coisas que vos a ta m de pés e m ãos, d e m en te e de coração. D eveis descobrir realm en te tu d o isso e v e r se h á possibilidade de d e ita r abaixo as coisas a que estais ligados, a fim de descobrirdes o q u e é v erd adeiro. Pois n ão vejo de q u e o u tra m a n e ira realizar a regeneração do m undo. H a v e rá com oções sociais — > com unistas o u de o u tra n a tu re z a — h a v e rá m ais * pro sp erid ad e, 'm ais alim entos, m ais fábricas, m ais fertilizantes, m ais m otores, etc., m as isso, p o r certo, não constitui a to ta lid a d e d a vida, p o rém tão só u m a p a rte dela. E, se veneram os o fragm ento, se nele ficam os “v ivend o” , n ão resolverem os os pro blem as hum an os. C o n ti­ n u a rã o existentes a m orte, o sofrim ento , a ansiedade, a culp a, as to rtu ra s de num erosas idéias, esperanças, desesperos •— tu d o isso c o n tin u ará. Assim, ao escutardes, desejo sugerir-vos que o façais com u m a m en ­ te m ais in teressada em ex am in ar a si p ró p ria — os seus pró prios “proces­ sos” — do que em ou v ir palavras, p a ra c o n c o rd a r ou d isco rd ar — pois isso pou co im p o rta . P o rq u e só os fato s nos devem in te ressar: o fato de q ue os entes h um anos se estão to rn a n d o c a d a vez m ais m ecani­ zados; o fato de q ue h á c ad a vez m enos lib e rd ad e ; o fato de que, sem pre que nos vemos em confusão, apelam os p a ra a a u to rid a d e ; e o fato de q ue h á conflito, externam ente, n a form a de g u e rra , e in tern am en te, n a fo rm a de sofrim ento, desespero, m edo. T u d o isso são fatos, e temos de dar-lhes atenção, n ão teórica, p o rém realm ente. D essarte, o que nos in teressa é com o o p e ra r u m a tran sfo rm ação , u m a rev olu ção rad ic al no indivíduo , no ouvinte, pois só ele é capaz" de criar, e n ão o político, o líder, o hom em im p o rta n te ; estes estão “ com ­ prom etid os” e estabilizados n u m a ro tin a ; e necessitam de fam a, n e ­ cessitam de p oder, pdsiçao. Vós tam bém , p o rv en tu ra, desejais essas m esm as coisas, m as a in d a estais tate an d o o cam inho p a ra alcançá-las; p o r conseguinte, a in d a vos resta alg um a esp erança, já q ue ain d a não estais com prom etidos, com o os hom ens im p o rta n tes d a T e rra . A in d a sois gente insignificante, ain d a n ão sois líderes, n ão controlais form i­ dáveis organizações; ain d a sois sim ples hom ens com uns. Assim, a c h a n ­ do-vos m ais ou m enos livres de compromissos, ain d a h á p a ra vós u m pou co de esperança. P o r conseguinte, talvez ain d a seja possível, m esm o n a un d écim a h o ra, o p e ra r a transfo rm ação em vós mesmos. Só u m a coisa nos interessa a q u i; com o realizar essa ex tra o rd in á ria revolução em nós mesmos. 10 E m geral, só nos m odificam os sob com pulsão, atu ad o s p o r alg um a in flu ên cia ex tern a, pelo m edo, p ela am eaça de p u n ição o u prom essa de recom pensa — só isso nos faz m u d a r. N u n c a m udam os v o lu n ta ria ­ m en te ; só o fazemos q u a n d o h á u m m otivo. M a s to d a m u d a n ç a im p u l­ sio nada p o r m otivo n ão é m u d a n ç a n en h u m a. E estar cônscio dos m otivos, das influências, das com pulsões que nos fo rçam a m u d a r — estar cônscio de tu d o isso e rejeitá-lo é o p e ra r transfo rm ação. As circun stâncias nos fazem m u d a r; a fam ília, a lei, nossas ambições, nossos tem ores p ro d u zem m udanças. M as u m a m u d a n ç a dessas é apenas reação e, con seq üentem ente, resistência psicológica à com pu lsão; e essa resistência c ria a respectiva m odificação, alteração e, deste m odo, não é efetiva transfo rm ação. Se eu m udo, ou m e aju sto à sociedade p o rq u e d ela espero alg u m a coisa, isso é transfo rm ação? O u a tran sfo rm ação só é possível q u a n d o percebo as coisas q u e m e estão im pelin do a m u d a r e pe rcebo a sua falsid ade? P orque todas as in flu ê n ­ cias, boas ou m ás, condicionam a m en te ; e a m era aceitação desse co ndicionam ento cria u m a resistência in te rio r a q u a lq u e r espécie de m u d an ça, de tran sfo rm ação radical. Sendo assim, considerando-se a situ ação m u n d ia l — n ão apenas a deste país, m as a do m u n d o in te iro — onde o progresso constitu i u m a negação d a lib e rd ad e ; onde a p ro sp erid ad e está to rn a n d o a m en te c ad a vez m ais dep en d en te das coisas p a ra a p ró p ria segurança — havendo, p o r isso, c ad a vez m enos lib e rd ad e ; o n d e as organizações religiosas se estão a rro g an d o ca d a vez m ais a fó rm u la de crença que im p elirá o hom em a crer ou a não crer em D eus; considerando-se, ain d a, que a m en te se está to rn a n d o c a d a vez m ais m ecan izad a e, tam bém , que os cérebros eletrônicos e os m odernos conhecim ento s técnicos estão p ro p o rcio n an d o ao hom em m ais lazeres, considerando-se tu d o isso, cabe-nos descobrir o q u e ç liberdade, o q u e é realidade. Estas p erg u n tas n ão p o d em ser respo ndidas p e la m en te m ecan i­ zada. Tem os de fazê-las a nós m esmos — fu n d am en tal, p ro fu n d a , in terio rm en te — e tam b ém p o r nós a c h a r as respostas, se existem ; e isso, com efeito, significa co n testar to d a e q u a lq u e r au to rid ad e. E sta, a p a re n te m e n te , é u m a das coisas m ais difíceis. Ja m a is consideram os a sociedade com o nossa inim iga. G onsideram o-la com o o m eio em q u e tem os de viver, a que devemos subm eter-nos e aju star-n o s; n ão a consideram os n u n c a com o o rea l inim igo d o hom em , o in im igo d a lib erdade, o inim igo d a v irtu d e. R efle ti sobre isso, olhai-o. O am biente, que é a sociedade, está d estru in d o a liberdade. E le não precisa de hom ens livres: q u e r santos, reform ado res, p a r a m od ificarem , a m p a ra ­ rem , m an te re m de p é as instituições sociais. M as religião é coisa de 11 to do d iferen te, O ho m em religioso é o inim igo d a sociedade. N ão é religioso aquele q ue fre q ü e n ta a ig reja ou o tem plo, que lê o Gita, q ue p ra tic a p u ja d iariam e n te ; este n ão é religioso. V e rd a d eiram e n te religioso é quem se lib erto u de to d a am bição , inveja, avidez, tem or, a fim de investigar, de descobrir o que existe além das coisas q ue o hom em criou e a que ch a m a “ religião” . M as tu d o isso re q u e r exam e indiv idual, investigação p ró p ria ; sem essa base, nao é possível ir ^m uito longe. G om o vemos, faz-se m ister u m a revolu ção co m p leta •— n ão sim ­ ples m odificação, p o rém in te ira transfo rm ação d a m ente. C om o p ro ­ duzi-la? Eis o prob lem a. Percebem os que ela é necessária. T o d o h o ­ m em que refletiu nisso, q u e observou as condições m un diais, que é sensível ao que se está passando d e n tro e fo ra de si p ró p rio , h á de exigir essa m u ta ção . M as, com o operá-la? O ra , antes de m ais n a d a , existe alg u m “ com o” — send o “com o” o m étodo, o sistem a, a m an eira, a p rá tic a ? Se h á u m a m an eira, se existe u m m étodo, se existe u m sistem a, e vós o p raticais com o fim de p rom over a m u tação , vossa m ente se to rn a m e ra escrava desse sistem a, é m o ld a d a p o r ele, pelo m étodo , p ela p rá tic a e, p o r conse­ gu inte, n u n c a p o d e rá ser livre. É o m esm o que u m a pessoa se disci­ p lin a r p a ra ser livre. L ib erd ad e e discip lin a n u n c a a n d a m ju n ta s — e isso n ao significa q ue devais torn ar-v os indisciplinados. A busca d a lib erd ad e traz sua disciplina p ró p ria . M as a m en te q u e se disciplinou n u m sistem a, n u m a fórm ula, n u m a crença, em idéias, essa m en te n u n c a p o d e rá ser livre. D evem os, pois, ver, desde o com eço, que o “ com o” — que supõe p rática , disciplina, observância de u m a fó r­ m u la — im pede a realização d a m u d an ça. Essa é a p rim e ira coisa q ue se deve p e rceb er; p o rq u e a p rática, o sistema, se to rn a a a u to ­ rid a d e que neg a a liberdade e, p o rta n to , a transfo rm ação. Im p en d e p erceb er realm en te esse fato, perceber sua v erd ade. D izendo “ p e r­ ceber” não quero significar “perceber in telectu alm en te, v erb alm en te” m as, sim, “ estar em o cion alm ente em contato com o fa to ” . Ficam os em c o n ta to em ocio nal com o fato ao verm os u m a serp en te; nao h á , en tão , d ú v id a n e n h u m a : trata-se de u m desafio d ireto e de u m a d ire ta reação. D o m esm o m odo, devem os ver q ue todo sistema, ain d a o m elh o r concebido, e po r quem q u er q ue seja, a tu a p ro fu n d a m en te , destru in d o a lib erdade, p erv erte n d o a criação — “ p erv e rte n d o ” não , pondo fim à criação — p o rq u e todo sistem a supõe ganho , realização, chegad a, recom pensa, e, p o r conseguinte, é a v e rd a d e ira negação d a lib erdade. Eis a razão p o r que estais disposto a seguir u m a certa pessoa: desejais u m m eio de conseguir u m certo ganho, e esse m eio é sem pre alg u m a espécie de disciplina. 12 M as é preciso perceb er o fato de que a m en te deve ser in te ira ­ m en te livre (se isso é possível ou não, é o u tra q u e stã o ), o fato de que a liberdade é necessária, p o rq u e, sem ela, vos tornais m eros a u tô ­ m atos, sem elhantes a q u a lq u e r m áq u in a. Devem os p erceb er com to d a a clareza que a lib erd ad e é essencial. E só q u an d o h á lib erd ad e pode-se descobrir se h á, ou n ã o h á, D eus ou algo im enso, além das dimensões do hom em . C om eçareis, en tão , a contestar todos os sistemas, todas as auto ridades, todas as estru tu ras d a sociedade. E a presente crise exige essa m ente. Só ela, p o r certo, pode descobrir o verdadeiro . A p e ­ nas essa m en te po de descob rir se algo existe ou não, que transcen de o tem po, q ue tran scen d e as coisas criadas com o p en sar hu m an o . T u d o isso exige intensa energia, e a essência d a energia está na negação do conflito. A m en te envolvida em conflito não tem energ ia •—■q u e r se tra te de conflito in te rio r, q u er de conflito exterior, com o m undo. T u d o isso exige a m p la investigação e com preensão. Espero possam os fazê-lo nas seis reuniões vin douras — isto é, ficarm os côns­ cios do fato e observarm os o fato do prin cípio ao fim , p a ra verm os se a m en te ■ — nossa m en te, vossa m en te — pode rea lm e n te ser livre. P e r g u n t a : C o m o p o d e u m a pesso a sab e r se m u d o u ? Esse cavalheiro p e rg u n ta : Com o pode u m a pessoa saber se m u d o u ? A in d a que se tra te de u m a m u d a n ç a s a lu ta r p ro d u ­ zid a pelos fato s externos — n ão é ela desejável? C om o se sabe de q u a lq u e r coisa? “ C om o sabe u m indiv íduo que m u d o u ? ” é u m a p e rg u n ta im p o rta n te — assim o diz o referid o cavalheiro . V am os exam in á-la. C om o se sabe disso? Sabe-se, q u e r p o r experiência d ireta, q u e r p o r in term édio de o u trem . Só h á duas possibilidades de sabê-lo: o u alg uém vo-lo diz, o u vós .mesmo experim entais o fato. K r is h n a m u r t i: O ra , po d e a experiência servir-nos de critério , fazer-nos saber? V ossa exp eriência vos d irá o q u e é v erd ad eiro ? V ossa experiência é a reação a u m desafio, e essa experiência está co n d icio n ad a ao vosso fu n d o . P o r certo, “respo ndeis” a c a d a desafio em confo rm id ade com vosso fu n d o ; e O vosso fu n d o resu lta de in um eráv eis influências, de m ilênios de p ro p a g a n d a ; essa p ro p a g a n d a po d e ser boa o u po d e ser m á. Esse fu ndo pro v ém de vosso condicio nam ento, esse fu n d o é vosso co n d ic io n am en to ; e, de acord o com esse condicio nam ento, “resp o n ­ deis” a cad a desafio, p o r m ais insign ificante que seja. Ê esse o c ritério d o qu e é bom e do que é m a u ? O u o que é bom , realm en te salu tar, se en c o n tra fora do condicio nam ento ? E ntendeis? Este país com eça ag o ra a c u ltu a r bandeiras, a a d q u irir consciência n a c io n a l; essa a nova espécie de con dicionam ento que se está verificando aqui. 13 O nacio nalism o, evidentem ente, é u m veneno, p o rq u e irá sep arar o h o m em do hom em . E m nom e d a b a n d e ira irem os d e stru ir vidas h u m an as, não só neste país, m as tam b ém noutros países. Pensam os que ele (o nacionalism o) será o “ to que de re u n ir” , o fato r que u n irá os hom en s; esta é a m ais recente influ ência, a m ais nova fo rm a de pres­ são, a m ais n o v a p ro p ag a n d a . O ra , se n ão a contestam os, se aceitam os passivam ente a in fluência d a im p ren sa ou dos líderes políticos, com o girem os descobrir se ela é ju sta , se v e rd a d e ira ou falsa, no b re ou ignóbil? N ão h á in fluência q ue seja b o a ; e to d a in fluência pode ser m á. P o r conseguinte, vossa m en te precisa ser co rta n te com o u m a n av a lh a , p a ra penetrar , descobrir, e conservar-se sã n u m m u n d o onde se ren d e culto às coisas falsas. ' Eis p o r que deveis investig ar o vosso p ró p rio condicionam ento ; e essa investigação é o com eço do auto conhecim ento . Podem os con servar a m en te livre q u an d o estamos em c o n ta to com a n atu reza? P e r g u n t a : : P e rg u n ta esse c a v alh e iro : Ê possível u m a pessoa ser livre ao achar-se em co n tato com a n atu reza? N ão com preendo bem esta p e rg u n ta . T alv ez ele q u e ira dizer q ue estam os send o cons­ ta n te m e n te estim ulados pelos fatos externos, p o r nossos sentidos e que c a d a estím ulo deixa m arc a n a m en te, n a fo rm a de lem b ran ç a ; e com o po d e u m a pessoa ficar livre dessa lem b ran ça? Isto é — deixai-m e esclarecer a p e rg u n ta p a ra m im m esm o — com o p o d e u m ente h u m an o q u e a tod as as horas está recebendo “desafios” , n a fo rm a de estím ulos, e reagindo a esses desafios, consciente o u inconsciente­ m en te, com seu p ró p rio fu n d o , co m sua m em ó ria — com o pode a m en te, em tais condições, ser livre? T e m ela possibilidade de ser livre? K r is h n a m u r t i O ra , posso fo rm u la r a p e rg u n ta de o u tra m an e ira ? N ã o vou fu gir à p e rg u n ta , m as, sim, apenas fo rm u lá -la diferentem ente. T o d a expe­ riê n c ia de ix a m arc a n a m en te, n a fo rm a de le m b ran ç a ; q u a lq u e r experiência, consciente ou inconsciente, deixa u m “ a rra n h ã o ”, que cham am os lem b ran ça, m em ó ria ; e, e n q u a n to essa m em ó ria funciona, p o d e a m en te ser liv re? Q u e necessidade h á de m em ória? Preciso d ela p a ra saber onde m o ro ; do co n trá rio n ão p o d e ria regressar a casa. Ê tam b ém necessário p a ra a construção de u m a casa, p a ra se a n d a r de bicicleta, acio n ar u m m o to r. D essarte, a m em ória é essencial em relação às coisas m e­ cân ic as; e é p o r isso que críam os h áb ito s; u m a vez fo rm ado u m 14 hábito, funciono sem pensar, m aq u in alm en te. Assim sendo, nossa v id a se to rn a g rad u a lm e n te m ecân ica, m ercê do h ábito, d a m em ória, das ch am ad as experiências, q u e d eix am m arcas. D istingam os, pois, e n tre a necessidade d a m em ó ria m ecânica e a d a q u e la m em ó ria p re ­ ju d ic ia l à com p reensão. E u preciso saber escrever- essa m em ó ria é boa. O inglês q u e estou falan d o resu lta d a m em ória, e é indispensável p a ra q u e eu possa co m u n icar-m e convosco; o conhecim ento técnico q u e ad q u iri, o saber fazer as coisas, é-m e necessário p a ra d irig ir u m escritório, tra b a lh a r n u m a fáb rica, etc. M as, q u an d o a sociedade, p o r m eio d a c u ltu ra, d a trad ição , im põ e à m en te u m a certa c ren ça e de acord o com ela eu fico fu n cio n a n d o m ecanicam ente, essa c ren ça e m in h a consequente a tu a ç ã o m ecân ic a não p reju d icam a m en te e, p o r conseguinte, n ão constituem u m a negação d a lib erd ad e? Vós sois hind uístas. H á séculos q u e vos dizem isso; fostes educad os desde pequenos p a ra crerdes em certas coisas, e isso se vos to rn o u a u to ­ m ático, m ecânico; credes em D eus in co n d icio n alm en te; isso é m e ­ cânico. N ão deveis n e g a r tu d o isso p a ra pod erd es descobrir ? Se obser­ vardes bem , po dereis negá-lo, a p a g a r de todo essa lem b ran ç a de serdes hinduísta. H á , pois, lib erd ad e no v e r as coisas q u e vos fo ra m im postas ao pensam ento — com o conceito, com o idéia, com o crença, com o do g m a — no negá-las e no e x a m in ar todo o processo d a negação, o p o rq u ê d a negação. D aí resulta, en tão , lib erd ad e, em bora contin ueis a fu n cio n a r m ecanicam ente nos incidentes da v id a cotidiana. D izem q ue o hom em é m ero resu lta d o do am b ie n te — e com efeito o é. D e n a d a serve alegardes q u e n ao o sois, dizerdes que sois P aram atm an, pois isso é u m a espécie de p ro p a g a n d a q u e aceitastes passiv am ente, coisa q u e vos foi inculcada. P o rta n to , sois efetiv am en te resultado do am b ien te — d o clim a, d a alim entação, dos jo rn ais, das revistas, d a m ãe, d a avó, d a religião, d a sociedade, dos valores sociais e m orais. V ós sois isso, e n e n h u m b em vos faz o negardes, dizendo q u e sois D eu s; isso, tam b ém , é p u r a p ro p ag an d a. Precisam os a d m itir esse fato , percebê-lo, e libertar-nos dele. P o d em o s. lib ertar-nos dele? V e rb a l o u teo ricam en te, não é possível. M as, se o exam in ardes concretam én te , passo p o r passo e negardes de to d o que sois h in d u ísta, ou h in d u , o u cristão, o u seja o que fo r (e isso significa investig ar to d a a questão do m edo, q u e não vam os ex a m in ar ago ra, p o rq u a n to envolve m u ita co isa), podereis en tão descobrir se podem os ser livres o u n ã o ; m as é de todo in ú til o m ero especular sobre a lib erd ade. P e r g u n t a : O pen sam en to não fu nciona n a form a d e símbolos? 15 : D iz essa se n h o ra q u e o p en sam en to fu n cio n a n a fo rm a de símbolos, q u e o p ensam ento é p a la v ra ; e é possível elim in ar os símbolos e a p a la v ra e, p o r conseguinte, to rn a r existente u m p en sa­ m en to ribvo? Símbolos e p alav ras vêm -nos sendo im postos h á séculos e séculos. O ra , é possível estarm os cônscios dos sím bolos e d a respec­ tiv a fonte, e passarm os além deles? E m p rim eiro lu g ar, tem os de investig ar n ão ap en as a m en te ^consciente, m as tam b ém a inconsciente. D o c o n trário , estarem os a p e ­ nas lid a n d o com p alav ras — q u e r dizer, com m eros símbolos e n ao com a realid ad e. Só h á consciência. D ividim os a consciência em “ consciente” e “inconsciente” p o r conv eniência, m as, realm en te, n ão h á ta l divisão. D ividim o-la p o r co m o d id ad e; n ã o h á essa divisão de m e n te consciente e m en te inconsciente. A m en te consciente é a m en te ed u cad a, que a p re n d e u u m a no v a lín gua, u m a n o v a técn ica, p a ra tra b a lh a r n u m escritório, ac io n a r u m m o to r; ela foi e d u c ad a p a ra v iver neste m undo. O inconsciente, q u e com preende as cam adas m ais p ro fu n d as dessa m esm a m en te, é o resultado de séculos de h e ra n ç a racial, de tem ores raciais, do resíduo d a exp eriência h u m a n a — tan to coletiv a com o in d iv id u al — das coisas ouvidas n a in fân cia, das histó­ rias que a bisavó con tava, das influências recolhidas d a le itu ra dos jo rn ais — coisas de q u e n ão estam os cla ram e n te conscientes. Assim, as influências, o passado, q u e r im ed iato , q u e r de h á dez m il anos, tu d o isso está en raizad o no inconsciente. N ã o precisais de con co rd ar com igo; tra ta-se de u m fato psicológico e não de u m a inven ção m in h a , com a q u a l podeis c o n co rd ar ou n ão concord ar. Eis a realid ade. Assim é, m as precisais exam inar-vos, em vez de lerdes livros, p a ra dizerdes q ue assim é. Se p en etrard es em vós m esmos m u i p ro fu n d a ­ m en te, n ão deix areis de enc ontrar-vos com esse fato. Se m eram en te ledes livros e chegais a u m a conclusão, tra ta-se en tão de u m a questão de c o n c o rd a r o u d iscordar — e isso n e n h u m a im p o rtâ n c ia tem . T o d o o p e n sa r é simbólico. T o d o p e n sar resu lta de vossa m e­ m ória, é reação a vossa m em ó ria ; essa m em ó ria é bem p ro fu n d a , e ela “resp o n d e” p o r m eio de p alavras, de símbolos. E essa senho ra p e rg u n ta : É possível ficar-se liv re desses símbolos? Ê possível o cristão fic a r livre do sím bolo de Jesus e d a C ruz? É possível o h in d u ísta ficar livre d a id éia de K rish n a , d o G ita, etc.? A re fe rid a sen h o ra p e rg u n ta ta m b é m : Gomo a p a re c era m esses símbolos? Gom o sabeis, é m u ito m áis fácil nos deixarm os a rre b a ta r pelo sím bolo do qu e p e la rea li­ dade. O sím bolo é in stru m en to de p ro p ag a n d a , nas m ãos do p ro p a ­ gandista. O sím bolo é a b a n d e ira — e podeis apaix onar-vos terriv el­ m en te p o r cau sa d a b a n d e ira. Pois bem , o sím bolo d a G ruz, o símbolo d e K rish n a , etc, —- com o surgem eles? Eles surgem , ev id entem ente, K r is h n a m u r t i 16 a fim de ob rig ar o hom em a com po rtar-se d en tro de u m certo p a ­ drão, a subm eter-se, p o r m edo, à a u to rid a d e — p o rq u e este m u n d o está a deterio rar-se, é u m m u n d o em desordem , um m u n d o confuso; e a C ruz e K rish n a são símbolos graças aos quais podem os fu g ir a ele. A a u to rid a d e diz: “R eco rrei a isto, e sereis feliz; cultivai aquilo e vos to rn areis n o b re ”, e o u tras coisas que tais. Assim, p o r causa do m edo, do desejo de estarm os em segu rança, psicologicam ente, in te ­ riorm ente, surgem os símbolos. A m ente que in te rio rm en te, p ro fu n d am en te, é sem tem or, n e ­ n h u m símbolo tem . P o rq u e deveria te r q u a lq u e r símbolo que fosse? Q u a n d o a m en te já n ã o busca segurança de espécie alg um a, que necessidade tem de símbolos p a ra fu n cio n ar? E la se; a c h a em presença do fato, e não de u m a idéia a respeito do fato, idéia que se to rn a u m símbolo. D essarte, psicologicam ente, in terio rm en te, p a ra a m aio ria de nós, os símbolos assum em desm edid a im portância. E essa sen h o ra p e rg u n ta : Ê possível estarm os cônscios, não sd dos símbolos e de su a fonte, m as tam bém do m edo? E u p o d eria resp o n d er “Sim ” , m as isso n e n h u m v alo r teria, p o rq u a n to seria apenas a m in h a p a la v ra c o n tra a p a la v ra de outrem . M as, se p u d erd es p e n e tra r fu n d a m e n te em vós m esm a, se p uderd es p e n sar e estar cônscia de todo o processo de pen sam en to — p o rq u e pensais, com o pensais, e se h á possibilidade de tran scen d er a im agem — e investigardes bem isso, tra tar-se -á, então, de u m a experiên cia d ireta, vossa. E só a m en te q u e conhece a fon te do sím bolo e d a p a la v ra, só essa m en te pode ser livre. P K e r g u n t a : r is h n a m u r t i: Pode a m en te ser livre e ao m esm o tem p o te r fé? P e rg u n ta esse senhor: Pode a m en te livre te r fé? C laro que não. F é em q u e? P o rq u e deve ter fé n u m fato ? V e jo u m fa to — vejo que sou ciu m en to ; p o rq u e devo te r fé e dizer que u m d ia n ão serei m ais ciu m ento ? Estou em presença do fato, e o fato é q ue sou ciu m en to ; e eu v o u elim iná-lo. D escobrir com o fazê-lo — isso é m ais im p o rta n te p a ra m im do que te r fé em q ue n ão serei c iu ­ m ento , fé n a idéia. Assim, a m en te q ue está inv estig ando o que é a lib erdade tra ta d e d estru ir tu d o p a ra descobrir . Essa m ente, p o r conseguinte, é u m a m en te em extrem o perigosa. P o r conseguinte, a sociedade é su a inim iga. P e r g u n t a : C om o fazer a m en te p a ra r de condicionar-se? r is h n a m u r t i: P e rg u n ta esse cavalheiro: Q u a l a ação co n creta q u e d e te rá o co n dicionam ento ? Q u a l a ação positiva que fa rá a m e n te p a ra r de condicionar-se? K 17 E la só po de ser d e tid a ao estarm os cônscios do processo condicio­ n a n te . Q u a n d o ledes o jo rn a l — com o o fazeis todos os dias — no q u a l só se fala em política, o q ue ledes, obviam ente, se im p rim e n a vossa m ente. M as, ler o jo rn a l sem se deix ar in flu en ciar, v e r o m u n d o tal com o é e n ão sofrer sua influ ência, isso exige u m a m en te vigilante, p e n e tra n te , capaz de rac io cin a r de m odo são, racio n al, lógico; n u m a p a la v ra , u m a m en te bem sensível. A gora, a questão é: com o c ria r u m a m en te sensível? Senhores, n ão h á n e n h u m “ com o” , n e n h u m m éto d o ; se alg u m m étodo houvesse, o m esm o efeito se conseguiria to m an d o u m sedativo, u m com prim id o p a ra a c a lm a r a vossa agitação , fazer-vos dorm ir. Q u a n d o estais côns­ cio de todos os problem as (e isso significa conhecê-los, observá-los, senti-los, n ão v erb alm ente, p o rém realm en te — conhecê-los assim com o conheceis vossa fom e, vossos ap etites sex u ais), esse p ró p rio co­ nhecim ento, esse p ró p rio co n ta to com o fato to rn a a m en te sensível. O saberdes qu e n ão tendes coragem — não que deveis desenvolver a co ragem — saberdes qu e n ão sois in d ep en d en te, q u e sois in cap az de su ste n tar o que pensais — conhecerdes o fato de q u e careceis de c a p a ­ cid ade — tu d o isso vos d a rá cap acid ad e, e n ã o h á necessidade de a procurard es. 1 ° de janeiro de 1962. 18 O PODER DA DÚVIDA (V a r a n a s i — II) P e n s o q u e todos percebem os a necessidade de u m a c e rta m u d an ça. Q u a n to m ais intelig entes e p en etran tes somos, ta n to m ais p rem e n te , ta n to m ais u rg en te se nos m ostra a necessidade de m u d a n ç a ; m as, em geral, pensam os em m u d a n ç a n o nív el superficial — m u d an ç a das circunstâncias, m u d a n ç a de em prego, u m pouco m ais de d i­ nheiro, etc. M as nós nos referim os à m u d a n ç a to tal, co m p letam en te ra d ic a l e rev olucionária. P a ra prom overm os esta m u d an ça, precisam os fazer p erg u n tas fu n d am en tais. Im p o rta v erificar com o se faz u m a p erg u n ta. Podem os fazer p erg u n tas resultantes de reação. D esejo p ro d u zir u m a c e rta m u d an ç a em m im p ró p rio ou n a sociedade, e essa m u d an ç a bem po de ser u m a reação. A p e rg u n ta que faço a m im m esm o po d e ser o resultado de u m a reação ou in d ep en d en te de reação. Só h á duas m aneiras de fazer u m a p e rg u n ta : u m a que é reação, e a o u tra que n ão é reação. Se fazem os p erg u n tas resultantes de reação, receberem os invariavelm ente respostas superficiais. Pa zer perg untas n ã o p ro ce ­ dentes de reação é dificílim o, p o rq u e p a ra essas perg u n tas talvez n ã o h a ja resposta alg um a. D eve, pois, h a v e r u m in q u irir q u e fica sem resposta; e isso, a m e u ver, é bem m ais significativo do que fazer u m a p e rg u n ta q u e tem resposta. D esejo discorrer nesta ta rd e sobre u m a m u d a n ç a de todo in d is­ pensável à m en te que busca a revolução com pleta, to tal, a m ente q u e exige lib erd ad e com pleta, se tal coisa existe — liberdade com pleta. E, a m eu ver, p a ra investigarm os esta questão cu m p re em prim eiro lu g ar v erificar o verd ad eiro significado d a a u to rid ad e, p o rq u a n to a m en te de quase todos nós está sob o com pleto dom ínio d a au to rid ad e — a a u to rid a d e d a trad ição , a a u to rid a d e d a fam ília, a a u to rid a d e d a 19 técnica, a au to rid ad e do con hecim ento , d a religião e d a m o ral social. Eis as várias fo rm as de a u to rid a d e que nos m o ld am a m ente. A té que p o n to po de a m ente ficar livre delas, e que significa ser livre? D esejo ex am in ar esta m atéria, p o rq u e acho que a a u to rid ad e -—• se não for p erfe ita m e n te co m p reen d id a destrói to do o pensar, defo rm a o p ensam ento , e a m ente que só fu n cio n a m ecan icam en te, den tro dos lim ites do conh ecim ento , é in cap az de tra n sc en d e r a si p ró p ria. P o r conseguinte, parece-m e, cabe-nos investig ar d ev id am en te a questão d a au to rid ad e , interro gar-nos p o r que e em que nível obede­ cem os às leis físicas das experiências psicológicas que se to rn a m co­ n h ecim en to e nos orien tam . P orque deve h a v e r obediência? T odos os governos, p rin c ip alm e n te os governos tirânicos, n ão querem que os cidadãos em circu n stâ n cia n e n h u m a critiq u em os seus líderes. Pode-se v e r b em d a ra m e n te p o rq u e se exige essa o bediência absolu ta. T a m ­ b ém se p o d e v e r porque, psicologicam ente, nós seguimos a au to rid ad e — a a u to rid ad e do guru, a a u to rid ad e d a tradição, a a u to rid ad e d a experiên cia — a q u a l in variavelm ente gera hábito, bom ou m au , resistência ao m a u e sujeição ao bom . U m h á b ito se to rn a tam bém au to rid ad e , tal com o a a u to rid ad e do conh ecim ento , d o especialista, do policial, d a m u lh e r sobre o m arido o u do m arid o sobre a m ulh er. A té q ue p o n to po d e a m en te ser livre dessa au to rid ad e ? É pos­ sível obedecer à lei, ao G overno, ao policial e, in te rio rm en te, ser de todo livre d a a u to rid a d e , inclusive a a u to rid a d e d a experiência, com seu saber e sua m em ória? Se m e perm itis dizê-lo, seria sobrem odo lam en tá v el se vos lim itásseis a o u v ir esta p a le stra v erb alm ente, in te ­ lectualm ente, em vez de “ ex p erim entardes” deveras o que se está dizendo. Isto é, devemos p e rg u n tar-n o s sob q u e au to rid ad e, sob q ue com pulsão, nossa m en te fu n cio n a, e p erceb er que a exp eriência no-la está m old ando . D e tu d o isso precisam os estar b em cônscios, pois, afin al de contas, estam os falando, não p a ra fazer p ro p ag a n d a , n em p a ra Convencer-vos de alg u m a coisa o u forçar-vos a a d o ta r d e te rm in a d a n o rm a de ação. Só q u a n d o com eçam os a in te rro g ar-n o s, p a rc ial ou co m p letam en te, po d e h a v e r ação v e rd a d e ira ; só en tão p o d e rá term in a r to d a à nossa angústia. O u v ir estas p alav ras apenas v erb al o u intelectiíalm en te p arece-m e u m com pleto desperd ício de tem po. N ão se tr a ta a q u i de arg u m e n ta r, de c o n c o rd a r ou d isco rd ar; trata-se, sim, de o lh ar todos os fatos externos e observar com o, in te rio rm en te, a nossa m en te está escravizada p e la au to rid ad e, e investig ar se podem os fic ar livres d ela (pois, evid entem ente, a lib erd ad e supõe que se esteja livre d a a u to rid ad e ) e q u al o estado d a m en te q u a n d o realm en te livre d a a u to rid ad e , e, tam b ém , se é possível u m ta l estado. 20 P a ra descobrir p o r sí p ró p ria , deve a pessoa fazer p erg u n tas fu n d am e n ta is; e u m a das p erg u n ta s fu n d am en ta is é esta: Por que obedecem os — p o r q u e fazemos isto o u aquilo? {Não vos estou aco n ­ selhand o a obedecer o u desobedecer; m as, sem d ú v id a, cu m p re fazer ta l p e rg u n ta , p a r a poderm os descobrir.) Isso p o d e rá p a re c e r u m pouco in fan til, sem m ad u reza, m as se p uderm os p e n e tra r m u ito len ta m e n te n a m atéria, passo p o r passo, talvez venh am os a co m p reen d er se é possível, ou n ão , ficarm os in te i­ ram e n te livres d o passado — que é au to rid ad e. Eis u m a questão fu n d am e n ta l, p o rq u a n to o passado está-nos sem pre m o ld an d o a m en te — a p assad a experiência, o conhecim ento passado, os in cidentes e acid entes passados, as p reté rita s lisonjas, os insultos recebidos, o q u e disseram e o q u e será d ito em conseqüência do que disseram . E a p re ­ senta-se, assim, a questão de se é realm en te possível ficarm os livres dessa im ensa te ia do passado q u e está sem pre trad u zin d o o presente e, p o r conseguinte, p erv e rte n d o o p resen te q u e fo rm a o fu tu ro . Pois bem . P o r qu e obedecem os? O escolar obedece p o rq u e o p ro ­ fessor é u m hom em investido de au to rid ad e, de poderes discricionários, e p o rq u e tem de p assar em seus exam es, etc. E há, ain da, a ob ed iên ­ cia à lei, tam b ém m u ito com preensív el: obedecem os-lhe, geralm ente, p o rq u e tem em os ser p unidos e p o r várias o u tras razões. É necessária, sem dú vid a, u m a in teligente obe diência à lei. M as, h á necessidade de q u a lq u e r o u tra fo rm a de obediência? P o r q u e deve o passado — dig o psicologicam ente, in terio rm en te — co n d icio n ar a m en te e, p o r essa m an e ira , im por-lhe restrições, ob rig á-la á aju star-se ao seu p a d rã o ? Dizemos que, se n e n h u m passado tem os, n a fo rm a de conhecim ento , n ã o h á ação possível. Se não houvesse conhecim entos acum ulados — ou seja a ciência — n a d a poderíam os fazer, n ão poderíam os te r nossa m o d ern a existência. O conhecim ento científico, p o rta n to , é essencial, e um hom em precisa obedecer p a ra p o d er ser u m físico. M as esse hom em , p a ra ser u m físico criad o r, n ao u m sim ples in v en to r de n o v i­ dades m ecânicas, deve desem baraçar-se do con hecim ento e achar-se n u m to ta l estado de n egação — se posso e m p reg ar esta p a la v % — p a ra p o d er ser sensível, alertad o , em alto g rau , e, assim, capaz d e p e rc e b e r algo novo. A m en te é m o ld a d a pelo passado, pelo tem po , p o r c a d a incidente, c a d a m ovim ento , cad a p reced en te v ib ração — ou pensam ento . P o d e esse passado — qu e n a rea lid a d e é m em ória — ser a p ag ad o ? P orque, se o n ão apagarm os (e é possível apagá-lo), n u n c a verem os algo novo, n u n c a exp erim entarem os alg o to ta lm en te im previsto, desconhecido. N o e n ta n to , o passado está-nos sem pre guian do, m o ld a n d o ; c a d a 21 in stinto , c a d a pensam ento, c a d a sentim ento é p o r ele guiado , ele que se constitu i de m em ó ria ; e a m em ó ria nos im pele a obedecer, a seguir. Espero vos estejais observ ando em fu ncionam ento, e n q u a n to ouvis o q u e se está dizendo. O n d e a m em ó ria é necessária e essencial, e on d e n ão é? Pois a m em ó ria é u m a a u to rid a d e p a ra a m a io ria de nós. M em ó ria é to d a a experiência a c u m u lad a , do passado, d a raça, d a pessoa; e a reação # dessa m em ó ria é pensam ento . Q u a n d o vos deno m inais h in d u ísta ou cristão, ou estais ligado a d e te rm in ad o m ovim ento , tu d o isso é reação d a m em ória. Assim, só o hom em que com preendeu realm en te to d a a a n a to m ia , to d a a e stru tu ra d a a u to rid ad e , d a m em ória, po d e experi­ m e n ta r algo to ta lm e n te novo. P o r certo , se h á ou n ão h á D eus, isso só se p o d e descobrir q u a n d o a m en te é de todo nova, q u a n d o ela já n ão está co n d icio n ad a p e la tra d içã o de crença o u de descrença. Assim, pois, pode-se elim in ar co m p letam en te a a u to rid ad e , a m em ória, q ue g era m ed o e d a q u a l p rocede o im pulso p a r a obedecer? C om o a m a io ria de nós está buscando a segurança, n u m a o u n o u tra form a, seg u ran ça física o u seg u ran ça psicológica — p a ra term os segurança e x te m am e n te , precisam os obedecer à e stru tu ra d a sociedade, e, p a ra term os seg u ran ça in terio r, precisam os obedecer à exp eriência, aò co­ nhecim ento, à m em ó ria acu m u lad a, e arm azen ad a. Ê possível a p a g ar p o r in te iro a m em ória, exceto a m em ória m ecân ic a d a existência d iária, q ue em n a d a influ i, que n ão cria, n ão g era m ais m em ória? Q u a n to m ais velhos ficam os, m ais confiam os n a a u to rid a d e ; e, dessa m an e ira , to do o nosso p en sar se to rn a estreito, lim itado. P a ra poderm os o p e ra r u m a m u ta ç ão com pleta, cum pre d u v id ar a fu n d o d a au to rid ad e . P a ra m im , esse d u v id ar é bem m ais im p o r­ ta n te do q ue investig ar com o ficar livre d a a u to rid a d e ; p o rq u e, d u ­ v id an d o , desvendarem os a n a tu re za d a a u to rid ad e, su a significação, seu valo r, sua nociv id ade, seu c a rá te r venenoso. Pelo d u v id ar, descobre-se o q ue é v erd ad eiro . O p ro b le m a está en tão resolvido e n inguém precisa p e rg u n ta r a si m esm o: C om o p o d erei ficar livre d a au to rid ad e ? M as é ab so lu tam en te necessário d u v id ar de tu d o , de to das as form as de crença e todas as form as de trad ição , dem olir todo o edifício. D o co n trário , perm anecerem os m edíocres. N este país, pode ser u m a v er­ d a d e ira cala m id ad e a existência de líd eres; a a u to rid ad e política, a a u to rid ad e do guru , a a u to rid a d e dos livros sagrados d estruiu re a l­ m en te todo o pen sar e, p o r conseqüência, n ã o existe u m v erd ad eiro investigar. Se to das as investigações se in iciam com a aceitação d a a u to rid ad e do G ita, d a Bíblia, ou do que q u e r q ue seja, com o é possível prosseguir a investigação? £ com o o hom em q ue crê em D eus ou numa 22 c e rta u to p ia q u e re r in vestig ar, in d a g a r: seu investig ar n e n h u m a v a li­ d a d e tem . A m aio ria de nós com eça com a aceitação de um a c e rta a u to ri­ dade. P o d e rá ser necessária à crian ça a aceitação de d ete rm in a d a a u to rid a d e ; m as, q u a n d o a crian ça com eça a crescer, com eça a racio ­ cin ar, deve ser ensin ada a p ô r em d ú v id a os pais, a p ô r em d ú v id a o m estre, a p ô r em d ú v id a a sociedade; m as n u n c a lh a ensinamos. Isso, n a tu ra lm e n te , n ao sucede p o rq u e, b asicam ente, existe o m ed o ; e a m en te tem erosa só pode c riar ilusões. E do m edo nasce a a u to ri­ dade. O h o m em sem m edo n ao segue n en h u m a au to rid ad e , crença ou id eal; e só esse hom em , é óbvio, pode descobrir se h á, ou n a o , o Im ensurável. E n tre ta n to , a a u to rid ad e é necessária n a especialização. P a r a o hom em que busca a lib e rd ad e (não a lib erdade consistente em esta r livre de alg um a coisa, pois isso é u m a reação e, p o r conseguinte, não é lib e rd a d e ), p a ra o hom em q ue b u sca a lib erdade, a fim de desco­ brir , a lib erd ad e está ju sta m e n te n o com eço, e não n o fim . P a ra des­ cobrirm os o v erd ad eiro , descobri-lo p o r nós mesmos, e n ã o atrav és do que nos dizem , ou nos tran sm ite m livros sagrados (se eles e x istem ), a m en te deve ser livre. D o c o n trário , tornam o-no s apenas m ecaniza­ dos, passando em nossos exam es, obtendo em prego e seguindo o p a ­ d rão d a sociedade; e esse p a d rã o é sem pre c o rru p to r, sem pre destrutivo. C om efeito, p a ra q hom em que busca o v erd adeiro, a sociedade é um inim igo. Ele n ã o pode refo rm á-la. Ê u m a de nossas idéias fav o ­ ritas, essa de q ue os bons refo rm arão a sociedade. O bom ê o h om em que a b a n d o n a a sociedade. C om “ a b a n d o n a r” nao estou significando “a b a n d o n a r a casa, a ro u p a , o a b rig o ” m as, sim, a b a n d o n a r as coisas q ue a sociedade rep resen ta, o u sejam , basicam ente, a u to rid ad e, a m ­ bição, avidez, inv eja, ânsia de aquisição — a b a n d o n ar todas essas coisas q ue a sociedade to rn o u respeitáveis. R ealm en te , só com o p ro ­ fu n d o in vestigar é que com eçam os a destroçar o falso, a d em o lir o edifício erg uid o pelo pen sam en to p a ra sua m esm a proteção. P e r g u n t a : P a ra viverm os, n ao temos necessidade de segurança? D iz esse senhor q u e necessitam os de seguran ça, p o rq u e, do co ntrário, n ão podem os viver. N ós tem os de ser alim e n ta ­ dos, precisam os de ab rigo e de roup as, e com o é possível, a o m esm o tem po , a lib erdade? N ã o sei p o r q u e razão ele fez essa p e rg u n ta , com o se n ão possem possíveis as d u as coisas ju ntas. K r is h n a m u r t i: Ê possível estarm os fisicam ente em segurança e não d eix ar essa segurança física in te rfe rir psicolog icam ente? Pode h a v e r seg u ran ça 23 q u a n d o desejam os segu rança psicológica? C onsiderem os u m simples exem plo — eu n ã o gosto de a d u zir exemplos, m as v á lá — : h á fom e no m u n d o , m orre-se de fom e em to d a a Ásia, com o bem sabeis. H á m eios científicos de d a r alim ento a todos os hom ens, dar-lh es ro u p a e tam b ém m o rad a. P o r que não se faz? P raticam en te , isso é possível, n ão h á dú v id a n en h u m a e, no e n ta n to , n ão o estam os fazendo; p o r quê? O ra , p o r certo , a razão é psicológica, e n ão física; a razão é que .nos separam os un s dos ou tro s: somos hinduístas, m uçulm anos, cristãos, tem os governos separados, religiões separadas, dogm as, crenças, n a ­ cionalid ades, b an d eiras separadas, etc. etc. É isso que, fu n d a m e n ta l­ m ente, nos está im p ed in d o de alim e n ta r o hom em e d ar-lh e abrigo e m o rad a. O s com unistas alegam possuir um m é to d o ; e o m étodo se to rn a sobrem odo im p o rta n te e, p o r ele, todos estão dispostos a lu ta r, O m étodo lhes im p o rta m ais que a solução do p roblem a d a fome. T o d o o rg an izad o r se id en tifica com a organização, p o rq u e isso é u m a o u tra form a de auto -en g ran d ecim en to , de d a r m aio r im p o rtâ n c ia à p ró p ria pessoa; eis o q ue im pede a solução do p ro b le m a d a fome. D essarte, o hom em pode e deve estar fisicam ente em segurança; m as p o r q ue deseja segu rança psicológica? C om preendeis? Po r que essa exigência de segurança psicológica? Existe segu rança psicológica? R e ­ clam am os segurança em nossas relações conjugais, nas relações com os nossos filhos; e, q u an d o reclam am os essa segurança, q u e acontece? “ O a m o r foge p ela ja n e la ” . Pode-se estar em seg u ran ça em q u a lq u e r espécie de relação? Ê possível te r segurança com algo estático, m as n ão com algo viv o; no en tan to , desejam os, exigimos seg u ran ça em alg u m a coisa viva. Isso, n a tu ra lm e n te , n ão significa q u e devam os b u scar a in seg u ran ça; b u scar a insegurança só po d e lev ar a doenças m entais, e os hospitais e asilos estão repletos de doentes m entais que, de ta n to tem erem a insegurança, vivem in v en tan d o todas as v a rie ­ dades de s e g u ra n ç a . .. P o r qu e ta n to interesse n a segu rança? Existe alg u m a coisa segura, pode-se estar em seg u ran ça em alg u m a coisa? Assim, p o r que n ão a c eitar, p o rq u e n ão ver o fato de q u e não se pode a c h a r segurança psicológica q u a n d o pertencem os à fn d ia , à R ússia, etc. — pois só assim se p o d e rá c ria r u m m u n d o no q u a l todos tenham os segurança física? C om preendeis esta p erg u n ta , senhores? N in g u ém está disposto a a b a n d o n a r — in teligentem ente, sadiam ente, sem ser p ersuadido ou im pelido a fazê-lo — sua ligação com a nação, com seu especial p a d rã o de ação, seu especial p a d rã o de crença. P o r que devem os ser hinduístas? P o r que p e rte n c e r à ín d ia ? Sei que estais dispostos a ouvir-m e, m as isso vos é in diferente. J á vos estabilizastes em vossa fo rm a de crença, em vossa seg u ran ça; nascestes hinduístas, e hinduístas m o rre ­ 24 reis. N ão vos im p o rta realm en te o p ro b le m a d a fome. P or conse­ guinte, a p e rg u n ta desse cavalheiro é p u ram e n te teó rica; a fom e não é p a ra ele u m a realid ad e concreta. Se o fosse, se se tratasse de algo que tivesse de e n fre n ta r e resolver, então ele cu id aria de investigar a e stru tu ra d a sociedade. Po r que fazem os u m a p e rg u n ta ? P a ra enc ontrarm os u m a resposta? E u posso dar-vos u m a respo sta — q ue é, afinal, apenas u m a expli­ cação. E u m a explicação pode realm en te resolver o pro blem a? A qui está u m p ro b le m a: o m u n d o dividiu-se em nações separadas, estados soberanos, e isso é que im pede a solução do p roblem a d a fome, etc. Eis o fato. E n tre ta n to , co ntin uam os a ser hinduístas, m uçulm anos, Comunistas, socialistas, capitalistas; estam os ligados a u m a porção de coisas. E, ao in terro garm os, buscam os respostas satisfatórias, conform e o nosso cond icio nam ento. E ntendeis ? P o r conseguinte, esse in te rro ­ g a r é realm en te im atu ro . M as deveis fazer u m a p e rg u n ta sem visar a u m a resposta, p o rq u e, do co n trário , a respo sta será in variavelm ente de acord o com vosso co n d icio n am en to ; e, p a ra q u eb rard es o c o n d i­ cio nam ento , deveis fazer p erg u n tas sem o b jetiv a r respostas. Se desejais ser engenheiro , ten des de ler livros de m atem átic a. N ão se pode d e stru ir todos os conhecim ento acum ulados — m a te m á ­ tica, biologia, etc. — eles são necessários. M as, p o r que precisais do Gita? P o r que n ão term os p a r a com o Gita a m esm a a titu d e que tem os p a ra com q u a lq u e r o u tro livro ? P o rq u e nele buscam os nossa segurança, pensam os qu e foi in spirado p o r D eus em pessoa. . . A investigação c o n tin u a d a d a m em ó ria não fo rta ­ lece “ o c e n tro ” — o “ eu” ? P e r g u n t a : H á perigo em investig ar m ais p ro fu n d a m en te a m em ória? Existe perigo de, ex u m an d o d passado, to rn arm os m ais fo rte “o c en tro ” , qu e é resultado d o passado? V ejam os, p rim eiro , cla­ ram en te, q u al é a questão. Esse a p ro fu n d a r de m im m esm o — sendo esse “ m im m esm o” o c e n tro de todas as experiências, de to d a a nossa a cu m u lação de conhecim entos, de desejos fru strado s, etc. — esse a p ro ­ fu n d a r, esse inv estig ar de m im m esm o não to rn a rá m ais fo rte o “ e u ” , o “ c e n tro ” ? K r is h n a m u r t i: O ra , isso dep en d e de com o se investiga. Se investigais e vossa investigação se baseia no c o n d e n ar o u justificar, m ero a ju sta m e n to a p ad rã o , nesse caso a investigação fo rtale cerá o “ c en tro ” . M as, se n a d a condenam os, se nossa m en te apenas observa “o que é” , sem co n d en a­ ção, sem ju lg am en to , não h á en tão possibilidade de s e ' fo rta le c er o “ c e n tro ” . Q u e se e n te n d e p o r observar? O bservam os alg u m a coisa com pala v ras? V em os as coisas com palavras, com símbolos — isto é, com o p en sam en to ? V ejo o rio, observo o rio através das associações relativ as ao rio, ao seu nom e, às seculares tradições que o ro d e ia m (# ), ou observo o rio sim plesm ente, prescindin do de todas as tradições? Por. cònseqüência, ou observo com o pensam ento, ou observo livre d a p a la v ra , q ue é p ensam ento . O bservo, digam os, u m a flor. O bservo-a, >em associá-la a m eus conhecim entos botânicos, relativos à espécie, etc.? O bservo a flo r b o tan icam en te ou n a o -b o tan ic am en te? D e igual ríiodo, observais o ciúm e com esta p a la v ra já associada à condenação, à resistência, à ju stificação? O u o observais sim plesm ente, livre d a p a la v ra ? P orqu e, se observais com a p a la v ra, dais m ais força a ela (sendo a p a la v ra o símbolo, o p ensam ento , e o pensam ento reaçãò à m e m ó ria ), p o r conseguinte, fortaleceis o “ c en tro ” . M as, se observ ar­ des livre d a p a la v ra — e isso exige m u ita investigação d a p alav ra, de to d o o "processo” de verb alização — , podereis então olh ar, obser­ v ar, ver, sem fortalecer, sem en riq u ecer o “ c e n tro ” . P : e r g u n t a O o b se rv a d o r d ifere d o “ c o n te s ta d o r” ? r is h n a m u r t i: H á d iferença en tre o observado r e o “ co ntestador” ? E u d iria q ue n ã o h á. Foi p o r isso que m encionei, n o começo, a im p o rtâ n c ia de averigu ardes p o r vós m esm o de que m an e ira contestais. C om preendeis? Vós deveis co n testar esta sociedade caduca. Tem os de d em o lir a sociedade, contestando-a. P o r q u e contesto a sociedade? P o r q ue n ã o posso to rn a r-m e u m m em b ro im p o rta n te dela ? Sinto-m e fru strad o , p o rq u e n ão posso to rn ar-m e alguém nessa sociedade; assim, contesto -a, e isso é m era reação. T a l contestação d eriv a de m in has frustrações, tem ores, etc. P o r conseguinte, devo co n testar com o fim de descobrir a v e rd a d e acerca d a sociedade, descobrir q u al é a v e rd a d e ira v irtu d e — e n ã o a v irtu d e social, que n e n h u m a v irtu d e é. P reocupa-se a sociedade u n icam en te com a m o ral sexual, e n a d a m ais. P a ra descobrirdes q u a l é a v e rd ad eira v irtu d e, deveis co n testar a m o ra lid a d e social e, p o r conseguinte, dem olir a sociedade, to d a a m o ­ ra lid ad e p o r ela estabelecida. K O “ co n testad o r” n ão é o observador? O observ ador observa e dessa observação resu lta a contestação. M as, se o observador é apenas u m a en tid a d e nascida de reação, nesse caso sua observação será ta m ­ bém reação e, p o r conseguinte, de m odo n e n h u m será observação. P e r g u n t a (■*■) : A observação im plica cessação d a m em ória? R efere-se, ta lvez, ao rio G an g es — “o rio sa g ra d o ” . (N . do T .) r is h n a m u r t i: P e rg u n ta esse senhor: O bserv ação é o cessar d a m em ó ria? N ão sei se j á fizestes alg u m a exp eriência pessoal ao verdes algo, ao observardes algo. Ao olhardes p a ra alguém , olhais com todas as im pressões q u e recebestes dessa pessoa e, p o r conseguinte, n ã o a estais o lh an d o realm en te. E m m aio ria , com exceção dos estu dantes aq u i presentes, sois hom ens casados; olhais alg u m a vez vossa esposa? V ós olhais o re tra to , a im agem , as im pressões que tendes tid o dela, m as n u n c a olhais para ela; e, talvez, se a olhardes livre de todas as impressões, insultos, brigas, lem b ran ças que tendes acu m u lad o , p e n ­ sareis que algo terrív el esta rá suced endo; p o r conseguinte, m an ten d es à q u e la co rtin a en tre vós e ela. O o lh ar v erd ad eiram en te u m a coisa, livre d a m em ória — q u e é pensam ento , q ue é reação ac u m u lad a , etc. — o o lh a r o fato , livre d a p a la v ra, lib e rta energ ia, p o rq u e o p ró p rio fato p ro d u z en erg ia — e n ã o eu q u e estou olh an do. O lh a r o fato — n ão as explicações, as teorias, h ão a desnecessidade o u a necessidade dele — o lh a r a in teg ral e stru tu ra d a sociedade — isso p ro v o ca ria u m a tre m e n d a revo lu ção n o pensar. M as nós n ã o d eseja­ m os essa revolução, p o rq u e cau sa m u ita p e rtu rb a ç ã o ; talvez m e faça a b a n d o n a r m in h a profissão, a d o ta r o u tra m an e ira de viver. Assim sendo, tra to de p ro teg er-m e com a p a la v ra e de n u n c a o lh a r o fa to de fren te. E, p a ra a m aio ria de nós, filosofia e religião, e essa coisa im ensa q ue se c h a m a a V id a, são m eras palavras. O lib e rta r a m en te d a p a la v ra é, com efeito, u m a coisa ex trao rd in ária. K P e r g u n t a : É possível à m en te h u m a n a co m preender a V e rd a d e ? r is h n a m u r t i: A m en te h u m a n a pode co m p reen d er a V e rd a d e? Penso q ue nãò. Q u e é, no presente, a m en te h u m a n a ? Ex iste m e n te h u m a n a , ou se tr a ta de m era reação in stin tiv a do a n im al a in d a exis­ ten te em nos? Isto nao é sarcasm o. K A ntes de m ais n a d a , p a ra se co m p reen d er q u a lq u e r coisa n a v id a — nao só a V e rd a d e — p a ra eu co m p reen d er m in h a m u lh er, m eu sem elh ante, m eu filho — é necessária u m a certa q u ietu d e m en ta l (nao q u ietu d e discip lin ada, p o rq u e en tão a m ente não está qu ieta, p o rém m o rta ), pois u m a m en te em conflito im pede a observação de q u a lq u e r coisa, a observ ação de m im m esm o. O ra , eu m e vejo em co n tín u o conflito, em p e rp é tu o m ovim ento — sem pre e sem pre a m over-m e, a fala r, a in d ag a r, ex p licar; em tais condições, n ão h á possibilidade de observação. É isso o que está fazendo a m aio ria de nós, q u a n d o nos vem os fre n te à fre n te com “o que é” . V ê-se, pois, q u e só é possível a observação q u a n d o n ã o h á con­ flito. P a ra nao te r conflito, u m a pessoa po d e to m a r u m calm ante, u m 27 com prim id o, a fim de se to rn a r tra n q ü ila ; m as isso n ão lh e d a rá perc eb im en to ; fá-la-á do rm ir. Eis, pro vavelm ente, o q u e quase todos querem os. C onseqüentem en te, p a ra observar, necessita-se de u m a ce rta placidez m e n ta l; e, se en tão percebeis ou n ã o o que é verd adeiro; isso dep en d e d a q u a lid a d e de vossa m ente. A v e rd a d e n ão é u m a coisa estática. A V e rd a d e n ã o é u m a coisa fixa, sem força. É algo q u e deve ser vivo, ex tra o rd in a ria m e n te sensí^ v el, ativ o, dinâm ico, vital. E com o po d e u m a m en te co rro m p id a, insig­ n ifican te, a g itad a, co n tin u a m e n te a c ic a ta d a p e la am bição, com preen­ dê-la? A penas p o d e rá dizer q u e a V e rd a d e existe, ficar rep e tin d o essa frase e com ela hipno tizar-se. A questão, p o r conseguinte, n ão é se a m en te h u m a n a po d e p e r­ c eb er já V e rd ad e, porém , sim, se é possível q u e b ra r as fúteis m u ralh as q u e o hom em erg ueu em to rn o de si e a q u e c h a m a “ a m en te ” . Ê este o p ro b lem a real. U m a dessas m u ralh as — de q u e todos m u ito gostam os — é a au to rid ad e . P e r g u n t a : O A m or e a V e rd a d e n ão são u m a só e a m esm a coisa? r is h n a m u r t i: O A m or e a V e rd a d e são u m a só e a m esm a coisa? C om o sabeis, devem os desconfiar de todas as sem elhanças — m as existem sem elhanças. C onsidere-se a p a la v ra “ a m o r” . K O g eneral que se p re p a ra p a ra m a ta r, q u e está p la n e ja n d o m a ­ tanças, fala de seu am o r à P á tria , seu am o r à esposa e filhos, e até de seu am o r a D eus, O s políticos fazem o m esm o: fala m de “ voz in te rio r” , de D eus, de am or. Gom o se descobre o q ue é o am or, o que é a V erd ad e? N ã o se tr a ta de saber se são sem elhantes o u desse­ m elhantes, m as, sim, de saber o q ue é a m ar, o q ue isso significa. J á n ão nos sobra tem po p a ra entrarm os a pleno nesta questão. P a ra se descobrir o q u e é o am or, necessita-se de sensibilidade. P a ra a m aio ria de nós, a m o r é sexo, desejo. P o r causa d a tradição, p o r causa das sucessivas “ ondas” de santos que têm p e rco rrid o este p obre e d esafo rtu n ad o país, o am or desap areceu. P reg am o am or divino, o am o r h u m a n o ; e n tre ta n to , são hom ens terriv elm ente duros, to ta lm en te insensíveis — eles, os santos q ue venerais. N ega-se a Beleza: N ão olhes p a ra u m a árvore, n ão olhes p a ra u m a m u lh e r; foge dela, tra ta -a com o a um leproso, ou m an d a -lh e r a p a r a cabeça. D e q u an tas tretas somos capazes, q u an d o somos insensíveis! D essarte, precisam os ser sensíveis, pois então saberem os o q ue é o am or. P a ra ser deveras sensível, im p en d e ro m p e r com o passado. 28 lib ertar-se de todos os heróis e santos. D igo-o seriam ente. Se os seguis, estais im ita n d o ; e a m en te im ita d o ra não é sensível. P ergunto -m e a m im m esm o, esgotada esta h o ra de p a le stra e de respostas, que efeito te rá ela p ro duzido em vossa m en te — não d e m an e ira teórica o u ideológica, p o rém realm ente. T ornastes-vos m ais sensíveis? A quela jo v em diz q u e está com a m en te sobrem odo p e rtu rb a d a . M u ito folgo com isso. D eixai-vos fic ar p e rtu rb a d a p a ra o resto d a vida. A p e rtu rb aç ã o é apenas o com eço. M as q u e efeito real te m isso — estar p e rtu rb a d o ? Só os jovens são suscetíveis de pertu rb ar-se. O s velhos n ão se p e rtu rb a m , pois j á se a ch am p o r dem ais “co m p ro m eti­ dos” ; têm seu p u ja , seus santos, seus deuses, seus “ cam inhos d a sal­ v ação” , seus m étodos de salv ar a sociedade, etc. E stão “co m p ro m eti­ dos”, tão cheios de deveres e obrigações que nao h á m ais lu g a r p a ra o am or. Assim, ao dizerm os q u e estam os p e rtu rb ad o s, q u e significa isso? P ertu rb ad o s até qu e p ro fu n d id a d e? Q u a n d o u m rio é p e rtu rb a d o pelos ventos, ap arecem -lh e ru g as n a superfície; m as n o fu n d o do rio nao h á p e rtu rb aç ã o , p o rém a tra n q u ilid a d e d a m orte. Provavelm ente, o m esmo acontece conosco; nas cam adas m ais p ro fu n d a s não h á p e rtu rb aç ã o n e n h u m a . T alv ez os jovens possam ser p ertu rb ad o s — m as, depois, se casarão, farã o exames, a rra n ja rã o em prego — e estarão estabilizados p a ra o resto d a vida. N ão digo que n ã o devais casar-vos e em pregar-vos. M as, q u a n d o o fazeis, vossa p e rtu rb a ç ã o m u d a de o b jeto ; vedes-vos p ertu rb ad o s p o r causa do em prego, dese­ jais em prego m elho r, g a n h a r m ais din heiro. N ao estou tra ta n d o dessa espécie de p e rtu rb aç ã o , que é p o r dem ais elem entar. Falo d a m en te que está de fato p e rtu rb a d a , p e rtu rb a d a e sem e n c o n trar resposta. N o m om ento em que achais u m a resposta, pensais te r a solução do problem a. A v id a n ão é tão fácil assim. P o rta n to , q u a l o efeito re a l desta h o ra de palestra? U m a ru g a n a superfície, ou p ro fu n d a p e rtu rb a ç ã o — coisa sem elhante ao a r r a n ­ c a r u m a árv ore pelas raízes. J á vistes u m a árv o re ser a rra n c a d a pelas raízes? Sabeis o q ue sucede? T u d o se desprende dela. A árv o re m o rre p a ra tu d o a que estava ligada. E u gostaria de saber a té que p ro fu n d e ­ za u m a p alestra com o esta p o d e lan ç a r raízes. N ão podeis resp o n d e r; e eu n ão estou p ed in d o resposta. O m u n d o necessita de entes h um anos q u e n ão estejam m ecan i­ zados. O m u n d o necessita de hom ens que ten h a m v erd a d e ira m e n te ad q u irid o u m novo intelecto , u m a m en te nova. H á m ilhares de entes 29 m ecanizados, m as, p o r certo , to m a -se necessária u m a m en te nova p a r a resolver os inu m eráveis problem as existentes no m u n d o , p ro ­ blem as q u e se m u ltip lic am e crescem con tin u am en te. Nessas condições, se assim m e posso expressar, av eriguai se a casa está sendo dem olid a, o u se apenas a estais reform ando. 3 de janeiro de 1962. DO CONFLITO (V a r a n a s i — III) O e s e jo fa la r nesta ta rd e acerca de alg o relevante, o u seja, sobre o conflito, p a ra a v erig u ar se é possível viverm os neste m u n d o sem conflito. M as, antes de e n tra r nesta m até ria , p erm iti-m e sugerir-vos q ue olheis , q ue escuteis de m an e ira objetiva, desap aix o­ n a d a , sem vos p reo cu p ard es com a possibilidade o u im possibilidade dessa Vivência -— que olheis com o se olh a o fu n cio n am en to de u m m o to r; que n ão digais q ue “ po d e o u q u e não pode ser” ; q u e não vos pon h ais n a defensiva, n ã o rejeiteis, n ã o concordeis — q u e fiqueis apenas olhando , assim com o se o lh a p e la p rim e ira vez u m a m á q u in a adm irável. P a ra olhardes a m áq u in a , precisais estar advertidos, b e m atentos, sentir-vos interessados n e la ; depois podereis desm on tá-la, v e r se é fácil de m a n e ja r, se tem o u n ã o a lg u m v a lo r p rático. F a la re i a respeito do con flito e d a possibilidade de viv er sem conflito. P a ra a m a io ria de nós, a v id a, desde o m o m ento d e nascer­ mos até o m o m en to de m orrerm os, é u m a série de conflitos, de in te r­ m ináveis b atalh as, in te rn a e e x te rn am en te . N ossa m en te e nosso co ração são cam pos de b a ta lh a e estam os ten ta n d o co n stan tem en te m elh o ­ rar-nos, a lc a n ç ar u m certo resu ltad o , e n c o n trar o cu p ação co rreta , e fe tu a r diferentes reform as sociais, desejando ard en tem en te , em nosso íntim o, realiz ar u m a tran sfo rm ação . Essa co n tín u a b a ta lh a , violenta, o cu lta, trava-se d e n tro de c a d a u m de nós. D e la podem os e sta r côns­ cios o u não. Ao ficarm os cônscios de q u a lq ü e r conflito, isto é, q u a n d o nos pom os em d ire ta relação com ele, logo tratam o s de fug ir-lhe o u de reprim i-lo, de e n c o n trar u m m eio de vencê-lo. T u d o isso, p o r certo, im plica lu ta constante, u m en te d ian te e in findável “processo” . E se perm anecem os in conscientes do conflito existente d en tro d e nós, o u nos to m am o s to ta lm e n te m orto s, insensíveis, o u m anifestam -se doenças 31 psicossom áticas em v ariad as fo rm as; e, em nossas relações, em nossas atividades, em tudo o que fazemos, denotam os sen tir os efeitos dessa b a ta lh a incessante. T a l é nossa v id a — a d q u irir, p erd er, te n ta r ser alg u m a coisa e n u n c a o conseguir, esperar sem pre um p ro fu n d o e definitivo p ree n ­ ch im ento e ver-se sem pre fru stra d o ; e, ju n ta m e n te com isso, o sofri­ m ento, o ciú m e doloroso de outros que se estão p ree n c h e n d o — e tam b ém conh ecem a fru stração. E vem o-nos, assim, sem pre a to rm en ­ tados p o r cau sa dessa in findável b a ta lh a d e n tro de nós mesmos e com a sociedade. Isso é um fato. Podem os negá-lo, o u estar cegos p a ra ele, ou rejeitá-lo, o u dizer: “Q u e se po de fazer?” Podem os descobrir as diferen tes causas do con­ flito, d a b a ta lh a. M as o desco brim ento d a cau sa lib e rta rá a m en te d a b a ta lh a, do conflito? Isto é, se descubro p o rq u e sou cium ento, fic arei livre do ciúm e? Q u a n d o descubro o m otiv o do conflito e en co n tro a c o rre ta explicação disso, o conflito te rm in a rá ? O m ero descobrim ento d a causa — se observardes a te n ta m e n te — n ão põe fim a n en h u m conflito. P a ra u m hom em q u e sente fom e, explicações n a d a valem . P alav ras não lh e encherão o estôm ago. M as, estran h àvelm ente, acontece qu e em geral as explicações nos satisfazem ex­ plicações sobre p o r qu e lutam os, p o r que é inevitável lu ta r, e p o r que somos edu cados nessa base. Podem os, tam bém , p erceb er as razões: au to -en g ran d ecim en to , autocom paixão, am bição, e várias causas ocul­ tas q ue se to rn a m b astan te óbvias q u a n d o as exam inam os. C onhecé­ m os essas razoes. N o e n ta n to , nossa v id a c o n tin u a a ser u m a b a ta lh a e aceitam os essa b a ta lh a com o u m a condição do p ró p rio viver. Pois bem , eu gostaria de co n testar essa “condição” . “ C o n te sta r” , n ã o com o reação, pois a contestação n ão p ro ced e d a reação ao co n ­ flito. V ejo que h á consciência do conflito, vejo a m aio ria dos entes h um anos às voltas com elç, e desejo descobrir p o r q ue isso acontece — não j satisfazer-m e com explicações, o u sim plesm ente p ro c u ra r a cau sa d a lu ta ; desejo in d a g a r p ro fu n d a m en te se é possível viver sem conflito. Eis a v e rd a d e ira investigação, p o rq u a n to é óbvio q ue a m en te q ue se a c h a em incessante conflito depressa se gasta, se em bota. Pensam os q ue o conflito ag u ça a m e n te ; ele n ão a to rn a m ais sutil, p o rém m ais solerte. A v e rd a d e é que a m en te em conflito gasta-se de contín uo, assim com o um in stru m en to subm etid o a uso e a trito co n stan te deve gastar-se com rapidez. M as, h á alg u m a m an eira de viver sem conflito — de fato, e n ão teoricam ente, n ão verb alm ente, n ão con fo rm e p rescrito n u m certo 32 livro sagrado: rea lm en te ? Existe essa m an eira? P rovavelm ente, em m aio ria n u n c a nos fizemos esta p e rg u n ta , p o rq u e aceitam os o conflito com o inevitável, ta l com o a m orte. Q u a n d o fazemos a nós m esm os esta p e rg u n ta , devem os av erig u ar em q ue nível o fazemos. T ra ta -se m eram en te de u m a p e rg u n ta in telectu al, feita p o r curio sid ade, ou de u m a p e rg u n ta qu e ab re a p o rta que con duz a u m a nova p ercepção, u m novo p erfum e? E u creio que, nesse in d a g a r não-reativ o, verem os — no p ró p rio ato de in d a g a r — nascer u m a vida sem conflito. E isso significa não h a v e r n e n h u m m eio d e passar a v id a sem conflito, n en h u m m étod o, sistem a Ou p rática . Se tendes álg um m éto do, sistem a ou m an eira, está detid o o in d a g a r; aceitastes u m sistem a q u e esperais vos lev ará ao objetivo visado. E, com o o p ró p rio p ra tic a r do sistem a causa conflito, viveis c o n tin u a m e n te em conflito e esperando , que p o r m eio dele, alcançareis aq u ele estad o isento de conflito — o q u e é u m a ab so lu ta im possibilidade. N ão sei se m e estou fazendo claro a esse respeito. Poderem os discutir sobre a m a té ria após te rm in a r o q u e ten h o de dizer nesta tard e. P a ra m im , o p ró p rio ato de perceber a in te ira in an id ad e do conflito, sua to ta l falsidade, esse p ró p rio percebim ento é o fim do conflito. M as, p a ra perceberdes a com plexidade, a realid ad e do conflito, a sua an a to m ia , necessitais de u m a m ente p e n e tra n te , m en te bem ag u çad a, sensível; d o co n trário , n a d a podeis v e r — sobretudo em se tra ta n d o de questão tão com plexa com o esta. Se n ã o estais vig ilante, n ão podeis v e r . coisa algum a. N ão podeis v e r o rio, seus reflexos lum inosos, os pescadores, a beleza d aq u ela m argem v e rd e jan te , e as árvores m ais além , se n ã o estais in ten sam en te d esp erto ; apenasolhais, e contin uais vosso c am in h o 1. Assim, p a ra se p o d e r v e r u m a coisa to talm en te, necessita-se d e intensidade. Essa in ten sid ad e n ão é m era concen tração, p o rém e la vem q u a n d o h á e n erg ia; e essa energ ia só po d e v ir q u a n d o não h á conflito. Assim, o ato de p e rc e b e r u m a coisa to ta lm en te , o a to de v e r u m fato p o r inteiro, lib e rta energia, e com essa energia podetnòs v iver sem conflito. V ejo cla ram en te q u e o conflito, em q u a lq u e r fo rm a que seja, in tern o e externo, em q u a lq u e r nível q ue seja, consciente ou incons­ ciente, é sem pre destrutiv o, to rn a a m en te em b o tad a, estú pida, lerd a. A m en te em conflito acha-se n u m estad o “ n ão -criad o r’\ V ejo esse fa to em su a inteireza, n ão v erb alm ente, p o rém realm ente , assim com o vejo u m a serpente, assim com o vos estou ven d o sentados aí. O bservo qu e o conflito, em q u a lq u e r fo rm a, é o fato r d ete rio ra n te n a v ida — conflito existente no te n ta r “v ir a ser alg um a coisa”, te n ta r alc a n ç ar 33 D eus, te n ta r to rn à r-m e u m d irigente sup erio r, etc. V ejo tu d o isso, o p a d rã o com pleto. O fato é bem m ais im p o rta n te do q u e m in h a expli­ cação do fato , do qu e o desco brim ento d a sua causa. M ais im p o rta o fa to do que a fuga ao fato — o co rre r p a r a os deuses e tem plos, o ' to m ar drogas o u ex e cu ta r várias form as de fú til m ed ita ção p a r a e m b o ta r a m en te. Assim, o fa to e o ver o fato exigem a ten ção to tal, em que n ão h á fuga. N ã o podeis fu g ir ao dardes a ten ção a u m a coisa. O conflito g era antago nism o. E u posso dar-vos u m a explicação disso — pois a m aio ria de nós deseja explicações, entreter-se com explicações. M as as explicações n e n h u m a v alid ad e têm . O conflito to rn a a m en te em b o tad a, d esg asta-a; e p ro v o ca várias form as de doenças psicossom áticas. D oenças psicossom áticas são as decorrentes de conflito in terio r, de angú stia, de sofrim ento, de d o r in te rn a, estado que provoca desordens fisiológicas, m ales orgânicos, etc. E x terio r­ m en te, h á con flito en tre pessoas, en tre nações. V ejo -o em todas as relações de fam ília, en tre am igos, en tre o hom em im p o rta n te e o h o m em sem im p o rtân cia, e n tre o rico e o p obre. Percebo tam b ém o qu e ele realm en te causa. É isso u m fato , e n ã o teo ria. Assim, estou to ta lm e h te cônscio do c o n flito ,'in te rio r e exterio rm ente, consciente e inconscientem ente, e em todas as relações; v ejo os seus efeitos n a m en te, nas c h am ad as “emoções” ; estando ale rta d o e vigilan te, vejo to do o “ m a p a ” , to d a a a n a to m ia do conflito. N ã o preciso d o tem po, n ã o preciso ler m uito s livros p a ra ver, com o vejo, o q u e realm en te está sucedendo. P a ra verdes to ta lm en te , é óbvio, necessitais de energia. O ra , a observação do fato lib e rta energia, e esse p ró p rio ato de v e r é a “ m a ­ n e ira ” de viver sem conflito. N ão é n en h u m m ilagre ou tru q u e. O bservo que to d a espécie de conflito é m orte. P or conseguinte, ver to ta lm e n te c ad a pen sam en to e c ad a sentim ento g erad o r de conflito éj em verd ad e, p ô r fim àquele p ensam ento , àquele sentim ento , sem conflito, sem repressão, sem contro le, sem disciplina. Sendo assim, digo po sitivam ente que h á u m a “m a n e ira ” de viv er neste m u n d o sem conflito. Isso não é privilégio dos q ue h e rd a ra m dinheiro, dos que viv em luxuosam ente — in sen satam en te; n ão é esse o m odo de viv er sem conflito. R efiro-m e a u m m odo de vida em que a pessoa está cônscia do conflito e percebe o seu in te g ral significado, n ão teórica ou v erb alm en te, po rém , realm ente, com o fato. As guerras q ue se estão tra v a n d o no m u n d o , as divisões das pessoas em classes e castas, em religiões, em nações, todas as absurdas divisões q ue o hom em criou em to rn o de si — o p ró p rio ato de p erceb er tu d o isso abre a p o rta que cond uz a u m a v ida sem conflito. 34 M as, o im p o rta n te não é e n c o n tra r um m odo de vida isento de conflito, m as, sim, perceb er de todo o significado do conflito. O ver n ão é in telectu al, em ocional, sen tim en tal ou verbal. V er o fato totalm en te — eis o qu e é deveras relevante. N o efetivo p erceb er que sou estúpido, e n ão no p ro c u ra r explicações, justificativas, etc. (q u an d o , p o r exem plo, digo q u e tenho m edo e p ro cu ro to rn ar-m e in te lig e n te ), nesse p róprio percebim ento está o alen to do novo. I n t e r pe l a n t e : A o b serv açã o é m u ito c a n sa tiv a , co n so m e en e rg ia. r is h n a m u r t i : D iz esse senhor que, p a ra todos nós, a observação é cansativ a, penosa, consum idora de energia. K P o r qu e can sativ a? Por q u e acham os cansativ o o lh a r u m fato, p o r qu e acham os q u e exige g ran d e dispêndio de energia? Exam inem os isso. N a o aceiteis u m a só p a la v ra do que v ou dizer, pois n ão sou a u to rid a d e n en h u m a. T ra ta -se de u m a coisa m aravilh osa, se a ex am i­ narm os bem . Por q ue achais difícil a observação, penosa e can sativ a? E m p rim eiro lugar, parece-m e, sem pre resistimos ao q u e é n ovo; e, q u a n d o alg uém vos diz que h á u m diferente m odo de viver, em vez de escutardes, em vez de averig uard es isso, resistis de p ro n to . E sta resistência vos ro u b a energia. E, tam b ém , tem eis as conseqüências d a observação, q u e pode a lte ra r o curso de nossa v ida — p o d e ser q u e altere, e pode ser q ue n ã o ; m as pensais q ue alte ra . H á m ed o ; h á tam bém a in certeza q u a n to ao que p o d eria acon tecer. Fixastes vossa v id a n u m certo curso, n u m a certa direção, n u m a c e rta ro tin a ; e, se observásseis a te n ta m e n te o fato, p o d eria acontecer que tivésseis de a lte ra r to do 9 “processo” . P o r isso, resistis. R esistência, tem or, e fa lta de inclinação p a ra v e r u m a coisa nova, tu d o isso evid entem ente c o n ­ some energ ia e, p o r conseguinte, vos im pede de observ ar o fato. C onsiderem os u m a coisa m u ito simples. Somos violentos ■ — todos o somos, de u m a o u de o u tra m an eira, n u m o u n o u tro grau. Sabem os jo que significa a violência. N ao m e peçais que analise o significado dessa p alav ra. O ra , nós n u n c a observam os o fato de que somos violentos; m as dizem os: “ Sou violento. Q u e devo fazer? C om o liv rar-m e disso?” U m id ea l d a rá resu lta d o nesse sentido? S u rtirá efeito seguir u m guru, ler u m livro? — estam os dispostos a fazer q u a lq u e r coisa q u e nos leve p a ra longe do fato de serm os violentos. Escutai! D eveis esta r perfeita m e n te cônscio de q ue sois violentos — e isso significa q ue j á n ão estais co n d en an d o 0 fato , já não o estais justificand o, nem p ro cu ra n d o in tro d u z ir u m novo fato r, ou seja, o ideal, q ue se to rn a a co n trad iç ão ao fato. Deveis estar to ta lm e n te cônscio do fato, e n a d a mais. Eis 35 u m a coisa bem difícil e á rd u a : o lh ar p a r a u m fato singelam ente, sem u m a só p alav ra. E x p erim entai-o, u m a vez. P : Q u a n d o p ro cu ro observar u m p ro b lem a, distraio* -me. Q u e devo fazer? e r g u n t a r is h n a m u r t i: Se en tendo c o rretam en te esse cavalh eiro , ele d iz q u e tem u m p ro b lem a e que, ao te n ta r observá-lo, outras idéias, * o u tra s crenças lh e assaltam a m en te e a d istra e m ; e p e rg u n ta o que deve fazer. K Q u e se en te n d e p o r “u m p ro b le m a ” ? E ntendem os — não é v erd ad e? ■ — algo qu e não está resolvido. Segui-m e, po r favor. A p ró p ria p a la v ra “p ro b le m a ” — a p a la v ra em si e n ão o fato — sugere con­ flito. A o dizer qu e ten h o u m problem a, deixei de o lh ar o fa to , in tro ­ d u zin d o a p a la v ra, qu e está to rn a n d o o fato u m pro blem a. A p a la v ra n ã o é a coisa. Assim, q u a n d o ten to co m p reen d er u m problem a, já com ecei a condená-lo. T o rn ei-m e, pois, escravo d a p a la v ra, e n ao do fato . M as, se estou cônscio do fato , n a d a m e distrai. Eis p o rq u e devem os co m p reen d er a p ro fu n d a in flu ên cia das p alav ras em nossa v id a — p alav ras com o “p ro b lem a” , “ D eus”, “ com unista” , “ G ita ” . Q u e e x tra o rd in á ria im p o rtâ n c ia essas p alav ras têm p a r a nós! G om o se to rn a ra m im p o rta n tes os símbolos — os símbolos, n ão os fatos! Pois bem . Tem os u m p roblem a — essa coisa a que cham am os “ p ro b le m a ” . C om o considero esse fato ? D ig o : “Preciso e n c o n tra r u m a resposta, preciso resolvê-lo ; ele m e ato rm en ta, m e p e rtu rb a, e n ã o gosto disso.” Assim, m eu interesse é resolvê-lo, e m e abeiro do fa to com o sentim ento, a id éia de que ele tem de ser resolvido. P o r­ tan to , que estou fazend o? Estou-m e chegando ao fa to com u m a opinião — isto é, qu ero que esse fato seja u m a coisa d iferente do que é. J á , se p erceb o a falsid ade das p alav ras, se o v ejo claram en te, resta só o fato. E então o fato com eça a tra d u z ir a si p ró p rio ; n a d a preciso fazer com ele: o próprio fato fa z algo. N ao sei se já expe­ rim entastes isso. Dissem os que, se estam os cônscios do fato , n ao h á distração. A tenham o-nos a isso, p o r en q u an to . Existe realm en te distração? Q u a n ­ do desejo con cen trar-m e n u m a c e rta coisa, e n tã o tu d o é distração. Percebeis? D esejo c o n cen trar-m e n u m q u ad ro , e alguém e n tra ; digo ser isso u m a distração. D uvid o que h a ja realm en te distração. Só h á d istração n o con flito d a con centração. A con centração, p o r conse­ guinte, é u m a resistência, é erg u er u m a m u ra lh a c o n tra to d a fo rm a de distração, to d a form a de pensam ento ten d e n te a digressionar. Assim, o p ro b le m a é a co ncentração e n ao a distração. T en h o , pois, de 36 inv estig ar a c o n cen tração e n ão a distração. Investig ando, descubro que con cen tração é resistência; ela restringe, com pele, im ita, força — e tu d o isso causa conflito. C on seqüentem ente, a co ncentração não é o m eio correto de ob serv ar coisa algum a, D essarte, se a co ncentração não é o m eio correto, q u a l é en tão o m eio isento de co n trad ição e, em conseqüência, de distração? N ã o sei se estais seguindo isto. H á atenção. O estad o de aten ção é sem pre u m presente ativo e, p o r conseguinte, n ão h á distração -— estar a te n to a qu em en tra, a te n to ao que se está dizendo, a te n to ao q u e se está passand o, a te n to a alg u ém q u e se coça, a te n to a tudo. Q u a n d o se está assim ate n to , o perceb im en to é então u m a m an eira d e observar sem concen tração. P e r g u n t a : A tenção n ão su p õ e concentração? K r is h n a m u r t i: Esse senho r deseja saber se a atenção não supõe ou in clui con cen tração. Estais-m e consultando com o se eu fosse u m a a u to rid ad e de quem esperais a p re n d e r alg u m a coisa. N ão quero ser colocado nessa posição. E u dig o: “A p ren d ei p o r vós m esm o, e n ão de m im . N ão sou vosso guru. N ao sou vosso in stru to r ou g u ia.” N ão m e ponhais nessa posi­ ção, que é ex trem am en te v u lg ar e sem significação alg um a. E la n a o a lte ra a vossa vida. Se dizeis p a ra vós m esm o, se vos interro gais e n ão a m im , e se de clarais: “N ã o com preen do bem o que entendeis p o r a te n ç ã o ; eu vos ten h o seguido e vejo que a v id a exige co n cen tração ” — p o r que dizeis ta l coisa? Q uereis alu d ir ao fato de n a aten ção h a v e r tam bém co n cen tração ? N ã o façais de m im u m oráculo , pois, dessa m an eira, vos enfraqueceis em vossa investigação. D eixai-m e ag o ra ex p licar o que en tendo p o r atenção. “E sta r a te n to ” significa estar escutand o, estar vendo, estar sentindo, e sta r p e n san d o ; fis p alav ras têm suas lim itações e, assim, o vosso p e n sar passou além d a p a la v ra ; p o r conseguinte, n ão h á pensam ento , p o rém sim ples observação d o ta d a de u m a in ten sid ad e que tu d o in clu i e n a d a exclui. T o d a espécie de co n cen tração é processo de exclusão. C om eçam os ag o ra a co m p reen d er o que é “estar a te n to ”.. T e n h o de execu tar u m certo tra b a lh o : ten h o de escrever, de fazer contas, etc. Posso ex e cu ta r esse tra b a lh o n u m “ estado de a te n ç ã o ”, ou devo d e ix a r de p a rte a aten ção e apenas to rn ar-m e co ncentrado? E u d ig o : “ M antende-v os a te n to , e fareis o serviço correta m en te, sem esforço. N o -m o m e n to em qu e intro duzis a con centração, com eça o esforço.” N ão sei se já a lg u m a v e z aprendestes. N ão podeis aprender , se estais 37 co n cen trad o . C o n cen tração é resistência. Ê o q u e acontece q u a n d o o professor diz p a ra o a lu n o : “ O lh a p a ra o livro, n ã o olhes p ela ja n e la !” O alu n o n ão está a p re n d e n d o : está apenas “ enc hendo a cabeça”, a b a rro ta n d o a m em ó ria; assim, ele passa nos exam es. . . E perm anece estúpido o resto d a vida. M as aprender é um estado de p e rc e b im e n to : o alu no po de o lh ar p ela jan ela, v e r os pássaros, ver tu d o em ativid ade, ,e m m o vim ento , e tam bém “o lh ar p a ra o livro” e ap ren d er. P or con^ seguinte, só podeis a p re n d e r q u an d o vossa m en te está despreocupada, q u a n d o sois feliz, q u a n d o estais b rin cando. C om o p o d e estar cônscia u m a m en te que s e a c h a em estad o de conflito? P e r g u n t a : P e rg u n ta esse cavalh eiro com o po d e estar cônscia u m a m en te qu e se a c h a em conflito? V o u fo rm u la r a p e rg u n ta de m a n e ira d ife ren te : O conflito n ão in d ic a a necessidade de perce­ bim ento ? Eis p o r qu e iniciei esta p a le stra falan d o sobre o conflito. P a ra com preen derdes o conflito, necessitais de perceb im en to pleno, q u e r dizer, percebim ento consciente e percebim ento inconsciente; p erceb i­ m en to com o corpo, com a m en te, com o coração: percebim ento total. Nesse estado de percebim ento , h á algum conflito? É só q u a n d o n ao estam os to ta lm e n te cônscios, atentos, q u e o conflito se m anifesta. C itei o exem plo d a violência. Q u a n d o estou to talm en te cônscio d a violência, nao h á conflito — com o ficar livre dela, etc, — a m en te deixa de ser vio lenta. K r is h n a m u r t i: M as, em geral, o difícil é estar to talm en te cônscio. E m p rim eiro lu g ar, gostam os d a vio lência; h á um. certo p razer n a violência, no fa la r b ru ta lm e n te a respeito de alguém , no fazer u m gesto b ru ta l, no ser u m líder im p o rta n te, u m a notável personagem — p roduto s d a violência, n a tu ra lm e n te ; e gostais dessa posição. C om o dizia, bem no fu n d o d e nós m esmos gostamos d a violência. Estais cônscio de que gostais dela, de que a desejais, a buscais, de q ue achais ju sto prosseguir com ela; m as n ão simuleis que desejais a nao-violência, etc. Assim, no perceb im en to — ao observardes to ta lm en te u m fato —■n ão h á conflito. O conflito está fo ra dessa estru tu ra. Pe : N ao tem os interesse n a M a te m átic a . C om o po d e­ rem os p restar-lh e atenção? r g u n t a r is h n a m u r t i: P o r que n ao sentis interesse n a M a te m átic a , n a G eografia e em tan ta s o u tras coisas d a v id a? P or quê? E p o r que estais sendo ensin ado erro n eam en te ou po r que não gostais do m estre e dos K 38 seus m étodos de ensino? H á in ú m eras razões p a ra n ão gostarm os de u m a d a d a coisa. E m vez de pro cu rarm o s saber p o r q u e n ã o gostam os de M atem ática, dizem os que tem os d e aprendê-la. E sta é u m a p e r­ g u n ta que n ao deveria, no m om ento, ser ap re se n ta d a po r estudantes. T ra ta re m o s d ela n o u tra reunião. U m a coisa qu e deve interessar-nos é a c h a r algo de q u e gostamos de fazer to d a a v id a — que gostam os de fazer, e não que ten h am o s de fazer p o rq u e nos p ro p o rc io n ará alg um a recom pensa. A m ar u m a coisa q ue desejais fazer d u ra n te to d a a v id a — p a ra isso n ão sois educados. Sois educados p a ra fazer q u a lq u e r coisa, m enos a m a r o q u e estais fazendo. Q u a n d o am am os o q u e fazemos, isso a b a rc a tudo, inclusive a M atem ática. O uvistes fa la r sobre o conflito e a m an e ira de viver sem conflito. C om o considerais esse assunto? D e que m an e ira estivestes ouvindo? Ides sair desta sala p a ra vos tran sfo rm ard es n u m cam p o de b a ta lh a ? O p ró p rio ato de escu tar — q u e é u m v erd ad eiro m ilagre, q u a n d o se sabe escu tar a d e q u ad a m en te — vos liv ra rá do conflito? E lim in a rá d efin itiv am en te o conflito? Se nao, q u e benefício h á em to m a r p a rte nestas reuniões? N ao nos estam os o cu p an d o com p ala v ras o u teorias in te le c tu ais; estam o-nos o cu p an d o d a vida, d a to ta lid ad e da vid a. C o nsiderai, p o r exem plo, o conflito. C onflito é am bição — a am bição do santo, a am bição d o político, a am bição do in stru to r q u e “q u e r m ais” . Sabeis o qu e significa am b ição : im pulso, lu ta p a ra ser, “ v ir a ser”, e to d a a respectiv a carg a de conflito. A am bição d esap areceu ? P o r certo, n ão desapareceu. Assim sendo, se m e perm itis a p e rg u n ta , de qu e vos serve escutar? Só serve p a ra dar-vos m ais um p ro b le m a : q ue se po de v iv er sem conflito, m as, com o estais em conflito, precisais saber com o a lc a n ç a r aquele m odo de viv er em que não h á conflito. Q u e r dizer, acrescenta-se o u tro p ro b le m a aos inum eráveis problem as já existentes. Pensai nisso de m an e ira com pleta. Espero que não acheis q ue vos estou d ificu ltan d o fazer perg untas. E m p rim eiro lu g ar, não com preendem os, em seu todo, a e stru tu ra do conflito . N a com p reensão do conflito, e n ão n a resistência a ele, no p erceb er suas profu ndezas, sua am plidão, suas altu ras, suas variaçõ es — isso, esse p ró p rio ver , d á percebim ento . S enhor, h á a m a n e ira de o lh a r u m a flo r b o tan icam en te e h á a m a n e ira de o lh á-la n ão -b o tan icam ente. Q u a n d o olhais a flo r b o tan icam en te, n ã o a estais ven d o to talm en te. V ós a vedes b o tan icam en te, n o tan d o -lh e a estru tu ra , a cor, o p erfu m e, a espécie, o p ó len ; m as n ão vedes a to talid ad e d a flor. A gora, p a r a verdes a to ta lid a d e d a flor, tendes de d e ix a r de ser b o tân ic o ; a in d a que seja vossa especialidade, deixai-a de p a rte , e 39 olhai. É isso que achais difícil. N ã o podem os p ô r de lad o os co nhe­ cim entos q u e adq uirim os, p a ra olhar u m a coisa; e é assim que susten­ tam os o conflito. É possível olharm os sem a p ala v ra, sem o sím bolo? E x p erim en tai fazê-lo, u m a vez: o lh ar u m a flor, o lh ar o vosso filho, vossa esposa, os políticos, os líderes, os sanyasis, os santos, etc .; olhá-los , in d ep en d en . tem en te de se gostais deles ou não, se pensais que estão certos ou errados em suas ten dências políticas. T u d o isso é opín ião pessoal vossa, a q u a l está b asead a em vossa experiência passada, p o r sua vez co ndi­ c io n a d a p e la c u ltu ra em que fostes educados e, po r conseguinte, sem v a lid a d e algum a. M as, q u a n d o quereis ver, esse p ró p rio im pulso põe tu d o isso p a ra o lado. P o r conseguinte, esse pró p rio im pulso constitui o m odo de v id a em qu e n l o h á conflito. P : E m vez de u m conflito p recisam ente definido, a pessoa tem u m sentim ento de in quietação. Q u e deve fazer? e r g u n t a r is h n a m u r t i: P o r qu e fica in q u ie ta u m a pessoa? Estive observando alguns dos senhores sentados à m in h a frente, a b a la n ç a re m as pernas, a p u x a re m os dedos, a fazerem con stan tem en te alg u m a coisa. Isso faz p a rte d a in quietação. Eles n ão estão cônscios desses atos. P o r que n ã o ficam sentados e quietos? P o r quê? T alvez, em p rim eiro lu g ar, p o rq u e n ao estejao sentados co m o d am en te; ou p o rq u e esses atos se lhes to rn a ra m h ab itu ais e, p o r isso, os executam in co nscientem ente; ou, ain d a , tu d o isso po de ser indício de rusgas dom ésticas com a m u lh er ou com o m arid o — enfim p o r u m a ou o u tra razão. K A inquietação, pois, é indício de u m a ce rta cau sa p ro fu n d a m en te a rra ig a d a e ain d a não descoberta. Podem os e n fre n ta r u m conflito m anifesto. P orqu e não enfrentam os a in q u ie ta ção ? P ode ser que, rea l­ m ente, estejais sá; nas profu ndezas de vosso ser estais cheios de a n ­ gústia, n ão descobristes o “cam inho d a v id a” , estais fru strad o , n ão am ais —- po d e h a v e r várias razões p a ra a in q u ietação ex tern a, expres­ são de nossa p ro fu n d a in tra n q ü ilid a d e in terio r. O p ro b lem a é, tam bém , com o investigar, com o desenredar, com o esclarecer a coisa q u e vos in q u ie ta . P e r g u n t a : Q u a l a fin alid ad e d a vid a? r is h n a m u r t i: E sta é a frase fa v o rita de todo aquele que em p reen ­ de a c h a m a d a “ b u sca” : Q u a l é a fin alid ad e d a vida? Q u e m faz esta p e rg u n ta n ão está vivendo. D eseja u m a fin alid ad e p a r a viv er em con­ fo rm id a d e com ela. A vida, p o r conseguinte, n ã o lh e b a sta ; n ão tem a beleza, a p ro fu n d id a d e que lh e são p ró p ria s; p o r isso, p ro cu ra a tri­ K 40 b u ir-lh e u m objetivo p o r ele in v en tad o ou d a d o p o r outro. U m hom em feliz precisa de “ fin a lid a d e ” ? E le é feliz. E stan d o intensam ente ativo, vivo, precisa de a lg u m a fin alid ade? Assim, q u an d o dizemos n ã o ter e n co n trad o u m objetivo, isso p o d e to rn ar-se u m a causa de inquietação. M as, sem investigarm os o v a lo r d a busca de fin alid ad e, querem os saber com o nos livrarm os d a in q u ie ­ tação. P o r que se to rn a in q u ie ta u m a pessoa? T alv ez p o rq u e lhe falte um alvo, u m a fin alid ad e, ou talvez p o rq u e se ache n u m estado de solidão. N ão rejeiteis isto; exam in ai-o bem. E n te n d o p o r “so lid ão” um sentim ento m u ito p ro fu n d o de isolam ento pessoal, de ausência de relações. E m b o ra ten h ais m u itas relações — m arido, m ulh er, filhos, etc. — n ão h á co n tato p ro fu n d o ; esse, em geral, é o sen tim ento de isolam ento pessoal gerado p ela solidão. O u pode ser, tam bém , que não tenhais en co n trad o a vossa m an e ira p ró p ria de viver. Pode ser que a pessoa esteja m al casada. P o d e h a v e r m uitas causas. N ão m encionei-as todas: a lista p o d eria to rn ar-se lo nga demais. E m vez de ten tard es descobrir com o p ô r fim à in q u ie ta ção , com o livrar-vos dela, digo-vos: “N ão vos preocup eis p o r causa d a in q u ietação , m as tra ta i de descobrir, de p e n e tra r a fu ndo em vós m esm os.” A “ tagarelice” é u m a das m anifestações favoritas da in q u ie ta ç ã o — o “ fa la r d a v id a a lh e ia ” . P o r que fazem os isso? N ã o h á necessidade de n en h u m a explicação. P a ra pordes fim à tagarelice, c u m p re inves­ tigar-vos p ro fu n d a m en te — coisa que a m aio ria de nós não q u e r fazer. A g o ra, respondestes à p e rg u n ta p a ra vós m esm o? Estivestes es­ c u ta n d o d u ra n te u m a h o ra e dez m inutos. T ra ta m o s suficien tem ente e com m ais ou m enos pro fu n d eza a questão do conflito. Isso teve p a ra vós alg um a significação. Podeis ag o ra “ d eix ar cair” o conflito, com pletam ente? Estais com eçando a p erceber que o conflito pode term in ar, e sois capaz de assim prosseguir p o r toda a v id a? O u ireis consid erar isso com o u m a das coisas que tendes “ ouvido dizer” , e não lhe dareis m ais atenção? P or favor, respondei a vós m esmo! Ser realm en te sério significa ex am in ar u m a coisa até o fim. E x a ­ m in ai até o fim o significado do conflito, con siderando-o de diferentes m aneiras, d ia p o r dia, sem perdê-lo de vista, vigiando-o, sem rejeitá-lo n em aceitá-lo, m as observando-lhe o florescer — e com eçareis, então, a ser vossa p ró p ria luz. N ão precisareis ler u m único livro. N ão neces­ sitareis de seguir um só guru. Esse exam e traz sua luz p ró p ria. M as vós tendes de d a r o p rim eiro passo, tendes de com eçar ; — de m an eira sem elh ante ao segurar-vos à c a u d a de um com eta, segurai-vos a isso e vos deixeis lev ar, . . 5 de janeiro de 1962. 41 PERCEBIMENTO CRIADOR . {V a r a n a s i — IV ) rj n o s s a reu n ião de an te o n tem estivemos falan d o sobre o conflito e a term in ação do conflito. H oje, desejo co n sid erar esse m esm o assunto de u m p onto de v ista diferente. N ota-se, no m u n d o inteiro, geral deterio ração, a n ão ser, talvez, m ecan icam en te — m as ela existe a todos os dem ais respeitos; fa lta o ím peto criador. E tem possibilidade o indiv íduo d e ro m p er essa b a rre ira m ecânica d a existência e pro v o car a “ perig osa explosão” — o d esab ro ch ar d a m ente criad o ra, a q u a l é necessariam ente livre de conflito, u m a vez que a criação n ão pode resu lta r de conflito? Q u e m qu er que te n h a in v en tad o algo, escrito um poem a, vislum brado aq u ela “o u tra coisa”, 4 eve ter estado com a m en te c o m p leta m en te q u ieta — m as n ão posta q u ieta à fo rça de disciplina — com a m en te livre de pro blem as, não a tu a d a p ela desesperança, pelo desespero — m en te disciplinada em lib erd ad e e n ão sob controle. Essa m en te n ão provém do tem po, não é p ro d u zid a p ela ju n çã o de várias partes. E la existe ou nao existe . A id éia de m u d a n ç a é to d a conflito e c au sad o ra de conflito. M u d a n ç a — pelo m enos p a ra nós. — significa conflito, p o rq u e p ro n ­ tam e n te nos recusam os a investigar, a descobrir os fatos, a v e rd a d e acerca d a segurança. Assim, p a ra a m aio ria de nós, m u d a n ç a é conflito. Im pelid os pelas circunstâncias, p e la p ro p ag a n d a , p e la necessidade, m u d am o s; e dessa m u d a n ç a fo rç a d a resu lta, sem dúvida, u m a c e rta m odificação. M as ta l m odificação, m esm o m u ltip lic ad a, n ão faz surg ir aq u ela m en te com a q u alid ad e de “ coisa no v a” , coisa to talm en te im p rev ista e n ao resu ltan te de m in ucio sa o u p ro lo n g a d a deliberação. C om o é possível fazê-la surgir? Q u a l a q u alid ad e, q u al o catalisad o r necessário p a ra rev o lu cio n ar co m p letam en te o nosso pensar, n ã o a pouco e pouco, 42 p o rém im ed iatam en te? P o rq u e, é claro, p o r m eio de u m processo g rad u a l, n ão h á m u ta ç ã o ; a p ró p ria p a la v ra “ m u ta ç ã o ” sugere “ algo im ed iato ” , efeito im ediato . G om o posso eu, que vivo neste m u n d o ro d ea d o de tan to s prob lem as, ta n ta s influências, p erceber a to ta lid a d e d a vida? O enorm e esforço causado pelo conflito, em q u a lq u e r nível qu e seja, não p ro d u z n e n h u m a m utação. Isso m e p arece óbvio. Pois deve estar b em claro, p a ra q u a lq u e r hom em que pensa, q u e n e n h u m processo g ra d u a l po d e d a r solução a seus pro blem as im ediatos. E, viv endo rodeados de problem as im ediato s e dissociados uns dos outro s, com o podem os v er alg o to ta lm en te ? C onsid ero este o p o n to im p o r­ ta n te : p erceber qu e essa no v a q u alid ad e de m en te n ão pode ser c ria d a p o r n e n h u m a in stitu ição, n e n h u m a espécie de educação, n e ­ n h u m a p rá tic a o u disciplina religiosa, n e n h u m esforço. É preciso p erceb er esse fato to talm en te, po rq u e, se p u d erm o s percebê-lo to ta l­ m en te, então, nesse p erceb im en to , nesse p ró p rio a to de percepção , ocorre a m u d an ç a . N esta tard e , desejo estender-m e u m pouco a esse respeito. Estam os acostum ad os a d e p e n d er do tem p o com o fa to r de m u ­ d ança. T em o-n os servido do tem po com o m eio de ch eg ar a alg u m a p a rte no processo de m u ta ç ã o de nossa consciência. D ele nos tem os u tilizado com o u m d eg rau q u e é preciso galgar. E , considerando-se n ão apenas a situ ação m u n d ia l, m as tam b ém que o tem po, em q u a l­ q u e r nível, não po de c ria r a nova q u alid ad e de m ente — se se percebe isso, não apenas in te le ctu al ou v erb alm ente, m as tam b ém estando-se em c o n ta to com o fato, em ocional e sensitivam ente — com o acontece ao verm os u m a serp ente — en tão o tem po já n e n h u m a validez tem , a n ão ser com o realid ad e cronológica. D e o u tra m an e ira , o tem p o n ão existe; q u a lq u e r o u tra fo rm a de tem po é indolência, in d o lê n cia psicológica, fu g a psicológica, ad iam en to psicológico. Se se p erceb e realm en te, e não verb alm ente, que o tem po já n a d a significa, então, nesse perceb im en to Ocorre a m utação. O u tr a pessoa vê, o u vós vedes u m a c e rta coisa m u ito d a ra m e n te , to ta lm e n te ; eu n ã o a vejo. Percebeis to do o significado d a d e p en d ên cia do hom em das instituiçòes, to d o o significado — que inclui au to rid ad e, guia, dependência, idéias convencionais — e eu não percebo. Precisarei de m uitos anos p a ra ver o q ue vedes. P o rq u e acontece isso — vós verdes e eu n ã o ver? V edes u m a coisa in teiram en te, totalm ente, com tod o o vosso ser. Percebeis o m al d a a u to rid ad e se posso em p reg ar a p a la v ra “ m a l” — e sabeis re je itá -la com pletam en te, e eu não sei. M ais tarde, sabê-lo-ei, m as, m esm o então, só o saberei parcialm en te! A a u to rid ad e m e p a re c e rá conveniente n u m certo sentido, porém ne­ cessária n o u tro sentido. M eu percebim ento , m in h a rejeição d a a u to ­ 43 rid a d e é ain d a p a rc ial; não é to ta l com o a vossa. P o r que acon tece isso? — Vós vedes e eu n ão vejo. P o r quê? N ão precisais de passar p ela experiência, não precisais a c u m u la r; vedes im ed ia tam en te , com vossa m en te nova, e eu vejo com m in h a m en te em b o tad a. P o r quê? Posso fazer essa p e rg u n ta , e pode nao h a v e r resposta p a ra ela. Eu penso que h á resposta, m as n ão h á. Porém , é preciso fazer essa p e r­ g u n ta, que considero u m a p e rg u n ta fu n d am en tal. P o r q u e vós não sois ^artista, e eu sou artista, p o r que sois intelig ente, e eu n ão o sou? ■ — estas são p erg u n tas superficiais, e não p erg u n tas fu n d am en tais. M as a q u e lo u tra é u m a p e rg u n ta essencial. V ós vedes, e eu não vejo — p o r que acontece isso? Penso que acontece p o rq u e estou envolvido no tem po. V ós não vedes as coisas no tem po, e eu as vejo no tem po . Vosso v er é u m a ação de todo o vosso ser, q ue não está preso n o tem po. N ao pensais em a lc a n ç ar u m a coisa g rad u alm en te — vós a vedes im ed ia ta m e n te ; e esse pró p rio p ercebim ento a tu a. E u não vejo ; desejo descobrir p o r q u e razão não vejo. Q u e é isso q ue m e fa rá v er u m a coisa to talm en te e, p o rta n to , co m preendê-la de im ed iato ? Vós vedes a to ta l e s tru tu ra d a v id a — a beleza, a feald ade, o sofrim ento, a aleg ria, a e x tra o rd in á ria sensibili­ d a d e — tu d o ; e eu não posso vê-la. Só posso v er u m a p a rte dela, e n ão sua totalidade. Se á p e rg u n ta vos é cla ra e a fazeis a vós m esm o — n ao p o rq u e vo-la estou dirig indo — se vos estais fazendo essa in te rro g ação , sem pro cu rard es justificações ou explicações, e . sem p ro ­ cu rard es respo sta (p o rq u e obviam ente n ão a sabeis) — então, vós e eu, no to can te a este in q u irir, estam os em com unhão. N ão sei se m e estou fazendo claro. O hom em que vê u m a coisa p o r inteiro , que vê a v id a totalm ente, deve necessariam ente estar fo ra do tem po. Senhores, prestai atenção, p o rq u e isto tem relação com a nossa existência d iá ria ; n ao é algo espiritual ou filosófico, estranho ao co tid ian o viver. Se com ­ p reenderm os isso, com preen derem os então nossa ro tin a d iária, nossos diários aborrecim ento s, tristezas, dolorosas ansiedades, tem ores. P o r­ tan to , nao o rejeiteis, dizendo: “ Q u e relação tem isso com a nossa exis­ tên cia d iá ria ? ” . T em -n a. Pode-se ver — eu pelo m enos o vejo com clareza — que é possível c o rta r im ed iatam en te todos os vínculos do sofrim ento. E é p o r essa razão que desejo ex am in ar isso ju n to convosco. O tem po é algo ex trao rd in ário , m as o tem p o só tem realid ad e m ecânica. H ouve u m ontem , h á u m hoje e h a v e rá u m a m a n h a ; m as n ão h á o u tra espécie de tem po. Precisa-se de tem po p a ra se co n stru ir u m a casa, e d u c ar os filhos; precisais de tem po p a ra vos tran sp o rtard es d a q u i a vossa casa. M as n ao existe realm en te o u tra espécie de tem po. É só o pensam ento q ue in v en ta o tem po, o pen sam en to q ue diz: “ P re ci­ so to rn ar-m e algo, g ran d e, n o b re; preciso “ ch eg ar” . — O processo de pen sam en to é conflito ; e desse conflito, dessa aridez, nasce o tem po psi­ cológico, interio r. Se n ã o houvesse tem p o psicológico, se n e n h u m a m a ­ n h ã houvesse, psicologicam ente, seríeis im ed ia tam en te um ser todo d ife­ rente. Se alguém vos dissesse que iríeis m o rre r no in stan te im ediato , sem vos d a r tem po p a ra pensar, veríeis a to talid ad e da v id a im ed iatam en te — p o rq u e é o pen sam en to cfue p e rtu rb a a percepção . O pen sam en to é tem po, o pen sam en to é reação d a m em ória, de m ilênios d e h e ra n ç a h u m an a , de m ilhares de lem bran ças, experiências. M as cu m p re sair dele porque, do co n trário , n e n h u m a possibilidade terem os de fic a r livres do sofrim ento, livres do conflito. N ão im p o rta o que façais •—qu er tom eis um calm ante, p ratiq u eis as m ais engenhosas form as de m ed itação a fim de tra n q u iliza r a anente, em b o tar a m en te ; q u e r leiais todos os livros sagrados do m u n d o — se n ão com preendeis a sem ente do sofrim ento, que é o tem po , o sofrim ento n ão terá fim , pois n ão o percebeis de m a n e ira total. T u d o isso im plica rejeição d a exp eriência, rejeição d o conheci­ m ento. N ão do conhecim ento m ecânico, do conhecim ento científico, do conhecim ento m atem ático — pois esses conhecim entos são essen­ ciais, necessários, p a ra poderm os existir, subsistir fisicam ente; e é necessário subsistirmos fisicam ente, no m ais alto nível. M as é preciso perceberm os o inteiro significado d a exp eriência e nos livrarm os d ela, p o rq u e a experiência n ã o nos lib erta do sofrim ento ; co n tin u a a h a v e r aflição, co n tin u a a h a v e r esforço, co n tin u a a desenrolar-se u m a b a ta ­ lha. Podeis saber a m an e ira de evitar, de resistir; m as tu do isso im p lica m ais conflito, a p ro fu n d a m ais ain d a a esterilidade do pensam ento . Assim, só é possível a m u tação q u a n d o a m en te rejeitou o tem po, em relação a cada u m a das coisas que pensam os dependerem do tem p o : progresso, “ c h e g ad a ”, p reen ch im en to , “vir a ser”, realização — tu d o isso precisa ser elim inado. Q u a l a coisa necessária p a ra se realizar isso (a rejeição do te m ­ po ) ? N ão são p ala v ras nem símbolos. Os símbolos n a d a significam . Só servem p a ra fins de co m unicação; em si mesmos são nulos. A coisa n ão é a palavra. Assim, que é q ue faz nascer a q u alid ad e a te m p o ral? A cho q ue só duas coisas: a afeição e a integ rid ade. P o r “ in teg rid ad e” n ão en te n d o fid elid ade a algum a coisa — pois isso é apenas submissão, m ero aju stam en to , im itação. T e r u m ideal, e a ele se a ju sta r, te r u m a crença e a ela se a ju star, ter u m a expe­ riên cia ou u m a idéia e a ela aju star-se, ser-lhe fiel — isso n ã o é in te ­ gridade. C om a p a la v ra “ in te g rid a d e ” refiro-m e à m ente q ue estu d a o “ ego”, o “ eu” , e a p re n d e todo o seu significado. Nesse a p re n d e r, h á 45 u m a in teg rid ad e n ã o n ascida do conh ecim ento , p o rém do ap ren d er. A p re n d e r a respeito de m im m esm o — que é u m a coisa in te rm in áv el — n ão é o m esm o qu e a d q u irir conhecim entos acerca de m in h a pessoa; são d u as coisas co m p letam en te diversas. Q u a n to m ais a p re n d o sobre m im — o consciente, o inconsciente, todos os m eus m ovim entos in terio res — tan to m ais se firm a a in teg rid ad e. M as, se estou m e ra ­ m en te a d q u irin d o con hecim entos acerca de m im m esm o, acu m u lan d o / ‘in fo rm ações” a m eu respeito e m an ten d o -m e fiel a tudo que acum ulei, * nesse caso estou crian d o um conflito dualista, pois tenho de m an ter-m e fiel ao que ap ren d i, ao que sei — e, assim, n u tro in d efin id am en te o conflito. T o d o conh ecim ento que acum ulam os sobre a nossa pessoa a u m e n ta o conflito in terio r, en q u a n to o aprenderm os a respeito de nós m esmos n ão o faz. H á necessidade, pois, desse ap ren d er, n ão apenas sobre m im p ró p rio , mas tam bém no referen te a todas as coisas. E, p a ra ap re n d e r, a m en te deve estar sem pre a lertad a, vigilante, a te n ta, p ro v an d o , sentindo, sem pre altam en te sensível; e isso n ão é possível q u a n d o h á conhecim ento, q u a n d o estais apenas acu m u lan d o co n h e­ cim entos. H á , p o rta n to , u m a espécie de in te g rid ad e não nascida de con­ flito, não ím ita tiv a, n ão aju stável — u m a in teg rid ad e nascida espon­ tan eam en te, sem ser p ro c u ra d a — q u a n d o estam os a p ren d en d o a respeito de nós mesmos. Essa in teg rid ad e é necessária; e tam bém o é a afeição. A “ explosão” d a afeição n ão é calculada, pensada. Sabeis o q ue entendo p o r afeição? E la é, obviam ente, a sensibilidade à beleza ~ qu er do hom em , q u e r d a m ulh er, d a crian ça, d a árvore, d a ave. E essa afeição é bem m ais necessária, m ais v ita l do que a p ró p ria in tegrid ade. D a afeição provém a beleza d a in tegrid ade. Essa afeição n ão pode ser an alisad a ou g e ra d a ; ela n ão vos será p ro p iciad a p o r n e n h u m livro, nem p o r vossa m u lh e r ou p o r vosso m a rid o ; ta m ­ b ém n ão o fa rá a sociedade. Penso que essa afeição vem ao rejeitarm os to das as coisas to talm en te, desconhecendo o a m an h ã. Podeis n eg ar o conhecim ento do a m a n h ã ; mas isso não é rejeição. Q u a n d o rejeitais tu d o , totalm ente, inclusive e p rin cip alm en te a vós m esm o, to das as trad içõ es e valores, então, nesse ex trao rd in ário estado de desconheci­ m en to do m om ento seguinte, nasce a afeição — e n ão o am argor, os sórdidos p ro d u to s do pensam ento. C on sequentem ente, a afeição e a in te g rid a d e são dois catalisadores. Se observardes, n otareis qúe a afeição e a in teg rid ad e não p erten cem ao tem po. N ão se pode te r m ais in te g rid ad e — isso é m era fraseologia política. N ão se pode ser mais afetuoso — ou sois afetuoso ou não sois. Assim, o percebim ento to ta l de algo significa sua rejeição. E xpe­ rim e n ta i isso, p a ra verdes q u a n to é difícil o rejeitar. P o rq u e só sabe­ 46 mos dizer "sim ” ; n u n c a dizem os “n ã o ” a coisa algum a. Estam os sem ­ p re transigin do o u a esquivar-nos. D izemos " n ã o ” ao que é desagra­ d áv el; à do r dizem os “ n ã o ” . M as dizer " n ã o ” ao p raz e r ta m b é m — rejeitá-lo co m p letam en te e assim p e rm an ecer, acho que essa é a q u alid ad e p ró p ria do "estad o a te m p o ra l”, e desse estado atem p o ral é qu e procede a afeição. I K : Estais sem pre falan d o a respeito do tem po, e n u n ca do espaço. n t e r pe l a n t e r is h n a m u r t i: D iz esse cavalheiro que sem pre falo do tem po, e jam ais do espaço. O espaço é pen sam en to — daqui até ali, dàqui à L ua. P a r a alcançardes a L u a, necessitais de um m eio m ecânico, um fo g u ete; e precisais de tem po p a ra tra n sp o r a distância de duzentas e ein q ü e n ta m il m ilhas, ou q u a n ta s sejam . O ra , existe espaço en tre m im , isto, e aquilo que desejo ser? Dissemos que h á espaço, interv alo. “D esejo u m d ia ser um santo, ou u m g ran d e hom em de negócios” . P a ra chegar, do que sou, à santidade, h á u m espaço p a ra p erc o rre r — u m “ p ro ­ cesso” grad u al. P o r m eio do tem po vos torn areis santo? T odos os santos dizem q ue sim. Exercitam -se, renunciam , sacrificam -se, c o n ­ trolam -se, põem em m ovim ento todo o m ecanism o do p ensam ento , p a ra “virem a ser” alg u m a coisa. M as se vísseis d iretam en te , p o r vós m esm o, agora, q ue nao h á espaço, q u e n ao h á tem po , exceto o tem p o e o espaço que o pen sam en to cria, q u e aconteceria? O bserva-se, neste país, d ete rio ra çã o ; ninguém p o d e rá negá-lo. O bserva-se terrív el decad ên cia in telectu al, m o ra l e física. A todos os respeitos, h á deterio ração. T alv ez eu não devesse e m p reg ar a p a la v ra "d ete rio raç ã o ” , p o rq u e o em prego dessa p a la v ra supõe que se alcan ço u o pináculo e, depois, se com eçou a declin ar. Prov avelm ente n u n c a foi alcançado o p in ácu lo ; con tinuou-se a p erc o rre r o m esm o cam inho d e sem pre e depois com eçou-se a declinar, a p io ra r; n ão houve ascensão a té u m certo p o n to e, a seguir, declínio. Isso é um fato. Esse fato se observa n a educação, n a m o ralid ad e política, observa-se em todas as coisas — u m decair, decair, decair. N ão o notais? Tem os m ais in d ú s­ trias, m ais represas, m ais ferrovias — m as tu d o isso é m ecânico, com o sabeis. H á c o rru p ç ã o ; o tem po a rem ed iará, u m novo governo a re m e ­ d iará ? U m novo p a rtid o — com unista ou socialista — p o d e rá a lterá-la ? Pode ser que sim e p o d e ser que não. D uvid o que possam alterá-la . O in div íduo precisa m u d a r ■ — n ã o o in divíd uo que se a ch a n a p eriferia, do lad o de fo ra, m as o in div íduo q ue se a c h a bem no m eio dos acontecim entos. O in div íduo precisa “ ex plo dir” . E essa “ explosão” 47 p recisará de tem po e de espaço — tem po p a ra ir daqui até lá? C o m ­ preend eis? Sabeis que a de terio ração é u m fato — u m fa to , e n ão u m a asserção m in h a. E la aí está, a en trar-nos pelos olhos; vós a conheceis em suas m inúcias e em sua extensão: tu d o está decaindo. E vós, que fazeis? Precisareis de tem po p a ra alterá-la ? N o tem po de que precisais p a ra alterá-la, ela se a c e n tu a rá m ais ainda. P o rta n to , é preciso detê-la. A ação tem de ser im ed iata, n ão pode ser d eix ad a p a ra am a n h ã , Ap o rq u e en tre agora e a m a n h ã tereis descido m ais ain d a. A ação tem de ser in ic ia d a im ed ia tam en te e, p o r conseguinte, não h á tem p o ; não podeis p e n sar em term os de passado, fu tu ro ou presente. A d e te rio ra ­ ção tem de ser sustada com pletam ente. E só podeis sustá-la se percebeis o declínio de m an e ira to ta l — e n ão com pequenas m ostras de b o n ­ dad e, de aperfeiçoam ento , de m elh o ram en to a q u i e ali, etc. Se, in terio rm en te, to talm en te, perceberdes essa to ta l d esin tegra­ ção, n ão tereis necessidade de fazer coisa alg um a em relação a ela. Esse p róprio percebim ento p ro v o cará tre m en d a com oção, u m a “explo­ são” . Eis p o rq u e precisais ver essa coisa “a g o ra ” , e n ão q u an d o esti­ verdes com o ite n ta anos ou no fu n d o de u m a cova. Q u e vos fa rá vê-la, q ue vos estim ulará, in flu en ciará a vê-la, q u a l a prom essa, q u al a am eaça q ue vos fa rá vê-la to talm en te? N ão será D eus, p o r certo, n em instituições, nem livros, nem prom essas, n em recom pensas, n em n a d a . Vós m esm o tendes de vê-la com pletam ente. P e r g u n t a : M as com o, senhor? r is h n a m u r t i: Aí está u m a sen h o ra que p e rg u n ta “ com o?” . O ra , “ com o” im plica tem po , “com o” im plica espaço en tre aqui e lá, e m é­ todo p a ra chegar lá. O v e r aq u ela coisa to talm en te exige u m a m en te nova, u m a nova dim ensão, u m a no v a q u alid ad e de m en te ; e eu digo qu e podeis tê-la de p ro n to , se virdes a coisa to talm en te. N ão p e rg u n ­ teis: “ C om o vê -la?” Se estais p e d in d o m étodo , sistem a, estais n a direção e rrad a. O s sistemas fo ram in ventado s pelo hom em p a ra a d ia r o m o m en to d a “ explosão” . K P K e r g u n t a : r is h n a m u r t i: P H á d iferença en tre lu ta e conflito? È. a m e sm a coisa. : E m pregastes a p a la v ra “ afeição” . V ós a diferençais do am or? e r g u n t a r is h n a m u r t i: S im ; j á q u e com preendestes, n ão h á necessidade de sutilizarm os a significação de palavras. Falem os m ais seriam ente. K 48 P : A percep ção o u é v o lu n tá ria , ou precisam os a g u a r­ d a r qu e a fé no-la tra g a ; q u e m ais é ela? e r g u n t a K r is h n a m u r t i: diz esse c a v a lh e iro q u e e la o u é v o lu n tá ria , n ã o p ro d u z id a p o r n e n h u m a in flu ê n c ia , o u é n ecessário esp erá-la. É isso q u e estais fa zen d o . M as e s p e ra é d ete rio ra ç ã o . P e r g u n t a : Gomo p e rc e b e r isso? r is h n a m u r t i: D eixem os de p a rte este assunto, p o r e n q u a n to ; a ele voltarei. Q u a n d o digo: “ Q u e devo fazer enquanto espero a “e x p lo ­ são” — o intervalo e n tre aqu ele m om ento e agora, a espera d a “explosão” , é d eterio ração. N ã o sei se com preendestes bem . Se n ão h á n e n h u m c am in h o p a r a p e rco rrer, se percebeis im ed iatam en te, v o ­ lu n tá ria e co m p letam en te, n ão precisais en tão do tem po, n ã o achais? T en d es de perceber, e essa p ró p ria u rgência é ação. K I : M as n ão intensidade. n t e r pe l a n t e se p o d e p erceber com a d esejad a r is h n a m u r t i: Q u e fazer, então? Se negais o tem po, o “ processo” criador de todos os santos, todos os deuses, todos os livros, to d a a tradição, vós o elim inais. Eis o q u e é necessário. K Vosso p roblem a só se ap resen ta q u an d o não o elim inastes. Q u e vos d a rá a possibilidade de elim iná-lo, de m o rre r p a ra todas as coisas do passado? Q u e vos d a rá essa possibilidade? N ad a. B asta q ue o vejais, m as vós n ão o vedes. P o r quê? Por que não vedes essa coisa? I : Isso parece u m paradoxo. Se não a vemos , não podem os p ercebê-la to ta lm e n te ; vem o-la vérb alm ente, n t e r pe l a n t e r is h n a m u r t i: V er v erb alm en te, v e r em ocionalm ente, v e r p a rc ia l­ m ente, n ão é ver. E en tã o ? Segui p a ra dian te, ide a té o fim . K P e r g u n t a : C hega-se ao fim e n a d a se encontra. N ão sei o que faça. r is h n a m u r t i: E n tã o não façais nad a. Estais rindo! M as eu estou falan d o sério: n ão façais n a d a , a não ser as coisas m ecânicas. M as estais sem pre fazendo o u tras coisas. N a d a façais, psicologicam ente, in te rio rm e n te; n a d a façais a n ão ser o que tendes de fazer o rd in a ria ­ m ente n a existência d iária. J á agistes assim alg um a vez, sem irdes p a ra r n u m hospital de alienados? N ã o é isso que tenho em m e n te ; m as, de fato, n ão façais n a d a , in terio rm ente. K 49 I : Peço lic ença p a ra d isco rd ar de vossa tese. Es­ p e ro m e desculpeis. Po de ser q u e estejam os declinando , m as só a p aren tem en te. Se con siderardes o presente estad o d e coisas, to rn ar-se-á evidente q u e os desejos estão subindo à to n a e, no deco rrer do tem po, serão purificados. n t e r p e l a s t e K r is h n a m u r t i: D iz esse cavalheiro que, pelo fato de term os ag o ra Jib e rd a d e política, todos os ocultos e reprim id os desejos e ânsias estão subindo à superfície e com o tem p o d esap arecerão ; e, tam bém , que a revelação de tod as as coisas que vêm sendo rep rim id as h á séculos n ã o é u m processo de d eterio ração, p o rém de purificação. É exato isso? O trazer tu d o isso à superfície é p u rificação? P o r q u a n to tem po co n tin u areis com esse “ exp urgo” in te rio r? Se dizeis que isso lev a tem po, en tão o p ró p rio fa to de precisard es de tem p o é in d icativ o de q u e estais d ete rio ran d o . Se m e perm itis explicar, n ão estou expondo n e n h u m a tese, n ão estou fala n d o com o fim de co n q u istar o g rau d e d o u to r em filosofia ou com o fim de a lcan çar vossa aprov ação. Estam o-nos o c u p an d o com fatos, e n ão com idéias. U m hom em que sofre n ão q u e r saber de teses; q u e r saber com o p ô r fim ao seu sofrim ento. H á várias m an eiras de fazê-lo cessar: to m an d o entorp ecentes, fre q ü e n ta n d o a ig reja, to m ando calm antes, p rep arad o s quím icos, esquecendo, fugindo. M as n a d a disso resolve o p ro b le m a; encontrá-lo-eis de novo ao voltardes ao estado norm al. É preciso estar-se cônscio de todo esse processo e p re sta r ate n ç ã o aos m eios de fu g a: drogas, bebidas, m ulheres, e tu d o o m ais q ue as pessoas costum am fazer p a ra e v ita r a coisa real. I : Se perm itis a in te rru p ç ã o , só h á u m cam inho, e este é a submissão a D eus. N ã o é u m “cam in h o ” teórico, p o rém prático . n t e r pe l a n t e r is h n a m u r t i: D iz esse cavalheiro q u e só h á u m c am in h o : a sub­ m issão a D eus. C om o é qu e vos subm eteis a D eus? Q u e significa isso? K I : N ão devem os preo cu p ar-n o s com os resultados de nossa ação. D evem os te r a q u e la atitu d e. n t e r pe l a n t e r is h n a m u r t i: Q u a l é o m eu dever? Ê o in dicado p e la sociedade? E u rejeito q u a lq u e r espécie de dever. K I n t e r pe l a n t e : Isso d e p e n d e d a pessoa. r is h n a m u r t i: V ó s e eu estam o-nos desen contrando. Pus em dis­ cussão a existência de D eus, a fim de descobrir se h á D eus. C ontestei K 50 rad ic al e com pletam ente a id éia de dever, de respon sabilidade, e in d a ­ guei quem é a e n tid a d e que deve subm eter-se. : Q u a n d o vemos u m prédio, logo pensam os, n a ­ tu ralm en te, q ue alguém o edificou. Ao verm os u m a coisa bela, apreciam os a intelig ência de seu criador. Id ên tica com ­ p aração podem os fazer com o nosso corpo. Se n ão existisse u m Ser que o c rio u . . . I n t e r pe l a n t e D iz esse senho r que, se n ão existisse um ser, D eus, criad o r de nosso corpo físico, com o exp licar o fato de sua existência? O s com unistas não creem em D eus, desprezam esta p ala v ra. F o ra m educados p a ra viver dessa m an eira. Assim com o vós fostes educados, lógica, sã e racio n alm en te, p a ra crerdes em D eus, assim tam b ém fo ram éles educados lógica, sã e racio n alm en te, p a ra n ão crerem em D eus. Q u a l a diferença en tre eles e vós? V ós estais condicionados de u m a m an eira, eles o estão de o u tra fo rm a. Estais condicionados p o r séculos de p ro p ag a n d a , eles p o r q u a re n ta anos de p ro p a g a n d a ; q u a l a d ife­ ren ça? A realid ad e d a v id a n ao depende d a id éia d e D eus, depende de nós mesmos. P rim eiro , postu lais a idéia d a existência de D eus e a desenvolveis co n v en ien tem en te — e isso significa que desistis de inves­ tigar, desistis de in d ag ar. N ão vedes q ue a educação, que tu d o falh o u neste m undo? Tivem os duas guerras desastrosas, e coisas m onstruosas estão ocorrend o no m undo. N e n h u m bem se faz dizendo-se que tu d o está certo. T odos seremos ating idos q u a n d o e n tra r em ação a b o m b a atô m ica; p o rta n to , precisam os fazer alg u m a coisa. K r is h n a m u r t i: Eis p o rq u ç é preciso co n te star tudo, n ão d eix ar u m a só p e d ra ou folha p o r v ira r; p ô r em d ú v id a m esm o a vossa lógica, que tao ilógica se to rn a q u a n d o estais condicionados. Se perm aneceis hinduístas e contin uais a racio cin ar nesse plan o, vosso raciocínio, vossa lógica, vossa sanidade m en tal devem ser subm etidos a exam e. N ã o dem ons­ trais pe rceber essa necessidade. Im p e n d e c ria r u m novo m u n d o —* n ão u m m u n d o h in d u ísta, n e m b râm an e, nem de acordo com o p a ­ drão de quem q u e r que seja. Algo novo precisa o co rrer em cad a u m de nós, e o “no vo” só p o d e verificar-se se h á m orte, destruição, alg u m a coisa que signifique rejeição to ta l, m as não seja u m a tese. I : N ã o fa lo co m o h in d u ís ta o u b u d is ta , ao d iz e r q u e h á u m p o d e r s o b re n a tu ra l q u e g o v e rn a to d a s as coisas. n t e r pe l a n t e r is h n a m u r t i: Q u a n d o dizeis que h á u m po d er so b ren atu ral que governa todas as coisas, que significa isso? U m p o d er que govern a as tiranias, gov ern a as guerras desastrosas, g o vern a nosso sofrim ento, K go vern a o infeliz ald eão qu e m o u re ja u m d ia in teiro p a ra g a n h a r u m a n in h aria, e n q u a n to eu vivo em conforto, en trete n d o -m e a respeito de D eus? P e r g u n t a : N egação difere de condenação? r is h n a m u r t i: Esse senhor p e rg u n ta se a negação (sobre q ue esti­ vemos falan d o no com eço) é diferen te d a con denação. K A condenação, evidentem ente, é pessoal, com o o bom gosto ; e a negação é com o a beleza, que n ão pode ser c o n ta m in a d a pelo gosto pessoal. Percebeis o q ue se está passando no m u n d o ? Estão rejeitan d o todos os líderes, im p u g n an d o todos os vossos deuses super-h um anos, tu do. V ossa crença n a d a tem q ue ver com isso, e ela tam bém está sendo im p u g n ad a. Se dizeis, com o os católicos: “N ão contesteis m in h a crença, p o rq u e se tra ta de um m istério ; n ão indagueis” — a q u i nao é o lu g ar a p ro p riad o p a ra dizerdes isso. P a ra m im , h á u m a R ealid ade, q ue nao é aquilo que vos foi ensin ado; existe algo bem m ais signi­ ficativo do q ue todas essas coisas, e precisam os descobri-lo, E não o descobrirem os, se n ão negarm os tu d o , com pletam en te. Senhor, p re ­ cisais m o rrer p a ra to das as coisas, p a ra nascerdes de n o v o ; precisais m o rrer, p a ra encontrardes u m a coisa nova. Vossa p e rg u n ta é: Q u a l a diferen ça en tre n egação e condenação? V ossa co ndenação se baseia em vosso condicio nam ento. Se n ão condenais u m a coisa, se percebeis a v erd ad e respectiva, estais livre de con­ dicionam ento. Fom os criados, desdp pequenos, p a r a co n d en ar, justifi­ car, aceitar, c rer; isso acontece n o m u n d o inteiro, no m u n d o com u­ nista e no nosso. É fácil c o n d e n a r; e pensam os que, ao condenarm os, com preendem os; m as isso é absurdo. Q u a n d o percebeis a falsidade do co ndenar, rejeitais a condenação, pois já n a o h á av aliação ; dizeis que ela é falsa, sem saberdes o q ue é verd adeiro. Ao perceberdes que a condenação é u m a reação con dicionada e, p o r conseguinte, a rejei­ tais, já n ão estais condenando, porém sim plesm ente vendo os fatos. N a o estou co n d ep an d o aq u ela “A lm a U n iv ersal” de que fala esse senhor. E sta é, de fato, u m a de nossas crenças favoritas, in cu lcad a através de séculos de lu ta h u m an a. H á n a F ra n ç a u m a cav ern a onde, h á cerca de dezessete m il anos, os hom ens de en tão p in ta ra m fig uras de touros lu ta n d o c o n tra hom ens, de adm irável colorido, v italid ad e e riq ueza de detalhes. Os touros rep resen tav am o M al em lu ta c o n tra o Bem. N ós estam os fazendo a m esm a coisa. M as eu digo q ue não devem os lu ta r. Este é o cam inho m ais irracio n al q ue se pode seguir: lu ta r, controlar, viv er em conflito. D evem os v e r as coisas feias como 52 vem os as coisas belas. Q u a n d o vedes o fato, esse m esm o fa to “explo­ d irá ” e tra r á à existência algo novo. Eis, a m eu ver, os fato s: existe am eaça de g u e rra ; os hom ens estão divididos pelas religiões, pelas dissensões políticas; processa-se u m a se­ p a ra ç ã o p o r línguas e n a c io n a lid a d e s( * ) ; e in terio rm ente, psicologica­ m en te, h á tam b ém decadência, declínio. P e r g u n t a : G om o p o d eis c h a m a r isso “ d e c lín io ”,? r is h n a m u r t i: R e tiro a p a la v ra “ declín io” . “ D eclínio” supõe q ue se alcançou u m a c e rta a ltu ra e, depois, com eçou-se a descer. E sto u apenas citan d o fatos. N ã o h á p az no m u n d o — p o rq u a n to p az supõe fra tern id a d e , etc. K P e r g u n t a : Q u e r dizer, então, que tendes u m ideal? r is h n a m u r t i: N ao ten h o id ea l nen h u m . Se m e perm itis dizê-lo, p arece-m e qu e estais a q u i p e la p rim e ira vez e, p o r isso, fazeis ta l p e rg u n ta . E m p rim eiro lu g ar, a dificuld ade é sem ântica, p ren d e-se à significação das p a la v ras: o em prego que eu faço d e certas p ala v ras e o em prego q ue fazeis dessas m esm as palavras. Nós tem os de e sta r em com u nh ão, n ã o só no nível verbal, m as tam b ém no nív el sem ân­ tico. Deveis ouvir u m pouco m ais p ro fu n d am en te. K Pe r g u n t a : Nós e s ta m o s d e s in te g ra d o s , n ã o ? r is h n a m u r t i: Sim, c ad a coisa supõe u m p ad rã o , u m ju lg am en to , u m a condenação. Q u a n to a m im , m in h a m an e ira de o lh ar não p ro ­ cede de n en h u m p o n to de vista ideológico, n en h u m p o n to de v ista em ocional. V ejo o fato m uito simples de que m e acho em sofrim ento ; eis o fato. N ão digo: “ F u i feliz o u tro ra ; com o to rn a rei a sê-lo?” M as o fato é que sou infeliz; se m in h a m u lh er m e aban d o n o u , isso m e cau sa so frer; se m eu filho m orreu, isso m e faz p e n a r. F alo do fato de estar em sofrim ento, e de com o resolver esse fato. Eis p o r q ue se to rn a difícil a com un icação en tre pessoas. P rin cip alm en te em assuntos desta n a tu ­ reza, as p ala v ras e os símbolos têm im p o rta n te pap el, e p o r isso é preciso tran scen d er a p a la v ra e o símbolo, e esse tran scen d er n a d a tem de m ístico ou de ex trao rd in ário . Se desejo com unicar-vos algo, n ao só tenho de com unicá-lo v erb alm en te, m as tam bém ten h o de expressá-lo de tal m an eira, que vós e eu nos encontrem os n u m c e rto p o n to fo ra do nível verbal. P a ra a m aio ria de nós, o nível verb al é o p o n to de co­ K (* ) R efere-se à In d ía . (N . do T .) 53 m u n ic ação e de e n c o n tro ; e o nível verb al im plica o que fo i , o que é, e o q ue será. I : n t e r pe l a n t e A c o m p a ra ç ã o , e m si, n ã o é u m m al. r is h n a m u r t i: Q u a n d o digo q u e esperar é d eterio ração, n ão estou co m p aran d o . E sto u percebendo o fato de que, e n q u a n to u m hom em está esperando, algo n a tu ra lm e n te lhe está suced endo — cham ai-o / ‘d eterio ração ” o u com o preferirdes. Se a pessoa não se põe em ação d ian te d o fa to de ser necessário fazer alg u m a coisa, e fica esperando — e n q u a n to estiver esperand o, algo tem de acontecer-lhe. E esse estado é d eterio ração. Ele n ão foi causado p e la com paração. K I n t e r pe l a n t e : H á u m a c e rta “afecçao” associada ao pró p rio m al. K r is h n a m u r t i: I T o d a “ afecção ” im p lica sofrim ento? n t e r pe l a n t e : Q u a n d o h á “ afecção”, u m hom em sofre. V ós sofreis? K r is h n a m u r t i: P e r g u n t a : A c h o q u e não . N em q u a n d o v ed es a lg u é m so frer? r is h n a m u r t i: Sei que ta l afirm ação p a rece terriv elm ente b ru tal. V ejo m eu filho sofrer. Q u e devo fazer, que posso fazer, realm ente? Q u e devo fazer? D a r-lh e alg u m din heiro. Ê tu d o o que posso fazer. K I n t e r p e l a n t e : N ã o se po d e ev itar o sofrim ento. r is h n a m u r t i: P o r quê? P o r que m in h a m u lh e r m e a b a n d o n o u , m eu filho m o rreu , p o r q u e n ão consigo a rra n ja r em prego — devo sofrer? K I K n t e r p e l a n t e r is h n a m u r t i: I : C onsiderem os o u tra coisa m ais p ro fu n d a . Q u e h á “m ais p ro fu n d o ” ? n t e r pe l a n t e : D igam os a m o rte de u m filho. r is h n a m u r t i: “ O fato de a m a r cau sa d o r”, dizemos, e aceitam os ta l asserção. E u a contesto. N ão será auto com paixão? N ã o será id en ­ tificação com m eu filho? N ã o será p o rq u e m e v e jo desam p arad o , sem n a d a p o d e r fazer, frustrado, que, p o r conseguinte, in d ire ta m e n te eu sofro? Sofro p o rq u e m eu filho m o rre u e eu m e vejo sozinho? Se n ão K com preen dem os isso, com o se po d e dizer q u e o a m o r e o sofrim ento “ a n d a m ju n to s” ? I K n t e r pe l a n t e K e r g u n t a : s in to q u e “ a n d a m ju n to s ” . Estais n e g a n d o o s o frim en to ? r is h n a m u r t i: I E u E stá ce rto . r is h n a m u r t i: P : N ao estou neg an d o o sofrim ento. n t e r p e l a n t e : C onhecem os o am or, e tam bém o sofrim ento. r is h n a m u r t i: A q uele senho r diz q ue o sofrim ento e o am o r “ a n ­ d a m ju n to s” . E u digo q ue “a n d a m ju n to s” en q u an to nao investigam os isso que cham am os sofrim ento, en q u a n to o am o r e o sofrim ento n ão fo rem com preen dido s to ta lm en te . M as nao teim eis em dizer que eles “ a n d a m ju n to s” , com o h á tam b ém quem d iga q ue o am o r e o ciúm e “ a n d a m ju n to s” . K I n t e r pe l a n t e : N ão m e refiro a m eu filh o ; refiro-m e a o so­ frim ento. r is h n a m u r t i: A lguém d iz q ue sofre p o r causa d a p á tria , o n d e coisas terríveis estão ocorrend o. Isso é sofrim ento? K I n t e r p e l a n t e : O ap e g o , e n a o o a m o r, é a c a u s a d o so frim en to . r is h n a m u r t i: C onform e o estado das coisas, sofrem os; dizemos qu e é p o rq u e am am os. N otai, p o r favor, q u e n ão vos estou contes­ tando. In d a g a i vós m esm o: se o am or, se o q u e cham ais sofrim ento n ão constitui autocom paixão. P ode ser q u e h a ja sentim ento d e solidão, de fru stração, sentim ento de in ca p a c id a d e p a r a fazer q u a lq u e r coisa. Se pudésseis fazer alg u m a coisa, não sofreríeis, então. Pode h a v e r dez explicações, e u m a delas p o d e rá exp licar o vosso sofrim ento. D epois de tu d o explicado, o n d e ficais? K D iz aquele senh or que o apego g e ra sofrim ento. Sim, todos sabe­ mos disso. Todo s somos apegados. P o r que en tã o n ã o quebrais tu d o isso, n ão vos livrais co m p leta m en te de vosso apego? 7 de janeiro de 1962. COMPREENDER A VIDA (V a r a n a s i — V ) I I a d i a s estivemos falan d o sobre o conflito, e m ostra com o o conflito leva a m ente a em botar-se. D esejo ap re c ia r este m esm o p ro b le m a po r u m diferen te ângulo, porque, assim m e p arece, a m aio ria de nós tem idéias q ue se to rn a m m ais im p o rta n tes e m ais significa­ tivas do q ue a p ró p ria realid ade. V ivem os n u m m u n d o de idéias, to talm en te divorciados dos fatos, te n ta n d o co n tin u a m e n te lig ar o fato à idéia. E u m a das causas de conflito é esta nossa te n ta tiv a de ap ro x im ar o fa to d a idéia. P o r q ue se to rn a ra m tão im p o rtan tes as idéias, os conceitos, as fó rm ulas? Se observard es a vós m esmo, descobrireis q u e as idéias, o que “d everia ser” , os conceitos intelectu ais, as fórm ulas intelectuais, são m uito m ais rigorosos, m u ito m ais im p o rtan tes do q u e o v iver rea l — aq uilo q ue está ocorrendo. Se vos observardes, descobrireis seguram ente com o as idéias u su rp a ra m de todo os dom ínios do pensam ento. N ós n ão nos estam os o c u p an d o com idéias, p o rq u a n to estas palestras n a d a têm que v e r com id éias; o q u e nos in teressa é a com p reensão do fato q u e é a vida, com todos os seus sofrim entos, angú stias, confusão, am bição, tem ores; suas p ro fu n d ezas; sua discip lin a e tam b ém sua corrupção. Estam os p ro c u ra n d o co m p reen d er a v id a, não em term os de idéias, p o rém realm ente; co m p reen d er a v id a p a ra v e r se n ão poderem os liv rar-no s das suas agitações, que ta n ta s ansiedades nos causam , q ue nos fazem sen tir “culpados”, e v er tam b é m se n ão poderem os elim in ar o m edo. Ê isso q ue desejo ex am in ar n esta tard e. P o r q ue é q ue as idéias se en raízam em nossa m en te? P o r que, em vez das idéias, n ão se to rn a m os fatos de sum a im p o rtân cia? P o r q ue é que as teorias se to rn a m m ais significativas d o que o fato? S e rá p o r que n ão somos capazes de co m p reen d er o fato, ou n ão nos 56 sentim os capazes de en fren tá -lo , o u tem os m edo de fazê-lo? Nessas condições, as idéias, as especulações, as teorias constituem u m a v ia de fu g a ao fato. P ro cu rai, p o r favor, ap licar o que estou dizendo a vós m esm o; não vos lim iteis a ouvi-lo. O q u e se está dizendo n ã o en cerra n e n h u m v alo r in trín seco ; m as tem v a lo r —■ pelo m enos assim m e p arece — q u a n d o podem os aplicá-lo a nós e experim entá-lo p ela d ire ta observação de nós mesmos. D o co ntrário, estas palestras serão to ta l­ m en te inanes, sem significação. Assim, p o r favor, prestai u m pouco de atenção. D ar-se-á q u e somos incapazes de e n fre n ta r fato s e, p o r conse­ g uinte, as idéias, em todos os níveis d a existência, nos oferecem u m m eio de fuga? O s fatos não p o d em a lterar-se; n ão im p o rta o que façais, os fatos p erm anecem . Podeis fu gir, fazer todas as coisas im ag i­ náveis; os fatos lá estão — o fato de ser irascível, o fato de alg uém ser am bicioso, o fato de u m a pessoa ser libidinosa, dúzias de fatos. Podeis reprim i-los, podeis "tra n sm u tá-lo s” — o que tam b ém é u m a espécie de repressão — podeis controlá-los; m as eles só são reprim idos, co n tro ­ lados, disciplinados, p o r m eio de idéias. È possível n ão viverm os com idéias, po rém u n ica m en te com fatos? As idéias n ã o nos g asta m a energ ia? As idéias n ão em botam a m en te? Podeis ser m u ito sutil no especular, no c ita r; m as, evidentem ente, é u m a m en te em b o tad a aq u ela que cita, a q u e la que m uito leu e c ita o que leu. É possível viverm os a to das as horas, todos os m in utos, com fatos? N ão sei se já alg u m a vez tentastes isso: viver com o fato — aquilo que realm en te é — e não ter, assim, n e n h u m a con tradição. Se viveis com o fato, elim inais de u m golpe o co n flito do oposto e, po r conseguinte, libertais a energia necessária p a ra e n fre n ta r o fato. P a ra a . m aio ria de nós, a co n trad ição é u m terren o ex traord inário, no q u a l a m en te ficou aprisio nada. D esejo fazer u m a coisa, e faço o u tra com pletam ente d iferen te; m as, se e n fren to o fato — o “ desejar fazer a coisa” — n ão h á c o n trad iç ão ; e, po r conseguinte, de u m só golpe, elim ino co m ­ p letam en te a idéia do oposto, ficando então m in h a m ente toda in te ­ ressada em o que ê, e n a com preensão do q ue é. E m geral, temos m edo, n u m a ou n o u tra fo rm a. N ã o nos in te ­ ressa aq u ilo qu e tem em os, não é disso que estam os tra ta n d o ; o que nos interessa é o m edo, não o m edo d a m orte, o m edo de m in h a m u lh e r o u de m eu m arid o , m ed o de p e rd e r o em prego, m ed o de m il e u m a coisas. Estam os interessados no m edo. Pode-se “v iver com o fa to ”, o m edo, sem p ro c u ra r fu g ir-lh e ,. sem c ria r o oposto e, dessa m an eira, e m b o ta r a m en te com o conflito? Tem os cap acid ad e p a ra “viver com o m edo” e essa cap acid ad e vem com o tem po? A cap aci­ dade de e n fre n ta r o m edo dep en d e de desenvolvim ento, de tpm po? 57 E u tenho de e n fre n ta r o fato , que é o tem or. E q u án d o enfrento o tem or, elim ino todo o conflito do oposto. O p ró p rio ato de e n fre n ta r o tem o r c ria rá sua p ecu liar cap acid ad e, sem que eu te n h a necessidade de desenvolvê-la? E xam inem os isso u m pou q u in h o . O m edo é u m a coisa ex trao rd in ária. Q uase todos nós tem em os u m a ou o u tra coisa. O m edo cria ilusões; faz-nos suspicazes, a rro g a n ­ tes; o m edo leva-nos a buscar to d a sorte de refúgios, todo gênero de èstú p id a s virtudes, m oralidades. E eu desejo enfrentá-lo , e não fu gir dele. O ra , qu e é esse “ estar cônscio do fa to ” ? O fato é o m edo e estou cônscio dele; q u e significa esse percebim ento ? T o d a escolha — n ão devo te r m edo, isso n ão d ev eria ser, aqu ilo d ev eria ser, o u o u tra escolha q u a lq u e r — é n e g a d a no m o m en to em q u e en fren to u m fato. O p erceb im en to é o estado em que enfrentam os o fato, estado em que n ão h á escolha. P ercebim ento é aquele estado d a m ente que observa u m a c e rta coisa sem con denação ou aceitação, q u e e n fre n ta sim ples­ m en te a coisa tal com o é. Q u a n d o olhais u m a flo r não -b o tan icam en te, vedes en tão a totalidade d a flo r; m as se vossa m en te está to d a o cu p ad a de conhecim entos botânicos relativos à flor, não estais vendo a flor totalm ente. A in d a que tenh ais conhecim ento d a flor, se esse conheci­ m en to vos o cu p a tod o o cam po m en tal, nesse caso n ão estais olhando a flo r to talm ente. Assim, o lh ar u m fato é estar cônscio. Nesse p ercebim ento n ão h á escolha, n a o h á con denação, gosto o u desgosto. M as em geral somos incapazes disso, p o rq u e trad icio n alm en te, pro fissio nalm ente, de todas as m aneiras, fom os educados p a ra co n d en ar, ap ro v ar, ju stifica r; eis, pois, o nosso fu n d o (b a ck g ro u n d ) . O lh a r p a ra u m a coisa sem esse fu n d o ê e n fre n ta r o fato. M as, com o não somos capazes de e n fre n ta r o fato sem nosso fu n d o , é necessário estarm os cônscios desse fun d o . Im p e n d e ficarm os cônscios d e nosso condicio nam ento, o q u al se nos rev ela q u a n d o observam os u m fa to ; e com o, então, o q u e nos interessa é observar o fato, e n ão o fu n d o , este últim o é elim inado. Q u a n d o estais interessado p rin cip alm en te em co m p reen d er o fato e vedes que o fu n d o vos im pede essa com preensão, então, esse v ita l interesse no fato elim in a o fun d o . Se estou todo interessado no m edo, então não o condeno nem o ju stifico ; h á m edo, e eu desejo ex a m in árlo ; n en h u m fu n d o , n e n h u m a com binação de idéias p re ju d ic a rá esse exam e, p o rq u e m eu interesse ê o de apenas co m p reen d er o m edo. O ra, qu e é o m edo? N a o n o s . interessam idéias e p a la v ras; esta­ m os tra ta n d o d a v id a, das coisas que se estão passando in te rn a e e x tern am en te e qu e to rn a m necessária u m a m en te bem clara, p en e­ tra n te , ob jetiv a, p a ra exam iná-las. N ão podem os ser sentim entais 58 n em emotivos a respeito dessas coisas. P ara com preenderd es o m edo, necessitais de clareza —- n ão clareza a respeito de u m a coisa que esperais obter, po rém a q u e la clareza o riu n d a d a com preensão d e q u e o fato é in fin ita m e n te m ais im p o rta n te do q u e q u alq u er idéia. Assim, q ue é o m edo, não o m edo de alg um a coisa? Existe isto — m edo p er se, p o r si só — ou está o m edo sem pre relacionado com alg u m a coisa? E existe o m edo? C onsiderem os, p o r exem plo, a m orte. V ós podeis su p rir vosso p ró p rio exemplo. H á m edo, se n ão h á pensam ento, isto é, se nao h á tem po? A m aio ria das pessoas tem em a m orte. P o r m ais que ten h a m conseguido racionalizá-la e qu aisq u er q u e sejam as suas crenças, nelas existe o m edo à m orte. Esse m edo é causado pelo tem po — pelo tem p o , nao p e la m o rte — sendo tem p o o in te rv alo en tre ag o ra e o q ue v ai suceder; eis o processo do pen sam en to , causador do m edo ao desconhecido. E isso é m edo ao desconhecido, ou m edo de p erd er as coisas conhecidas? Tem em os a m orte. N ão estam os discorrendo a res­ p eito d a m orte, do que sucede após a m o rte ; estam os falan d o sobre o tem or, em relação com a m o rte. P erg u n to : Esse tem o r é pro v o cad o p o r a q u e la coisa q u e desconheço? O b v iam en te, n a d a sei acerca d a m orte. Posso saber alg u m a coisa rela tiv a a ela — m as n ã o é este o p o n to q u e m e in teressa ago ra. Posso investigar, descobrir to d a a beleza, ou feald ad e, ou o h o rro r daq u ele ex trao rd in ário estado que deve ser a m orte. Se houver tem po, poderem os ap re c ia r isso m ais adiante. O m edo q ue tem os em relação à m o rte é causado p ela m o rte, a q u a l significa “ e n fre n ta r o desconhecido” ? O u é causado pelas coisas que m e serão tom adas? O m edo é o de que estas coisas m e sejam to m a ­ das, de que o “ e u ” d esap areça ou caia no esquecim ento. Po r essa razão, com eço a p ro teger-m e com to das as coisas q ue conheço, a “viver com elas” m ais in ten sam en te, a a g a rra r-m e a elas m uito m ais fo rtem en te, pois nao desejo e n fre n ta r o desconhecido. D e que ten h o m ed o? N ão é de e n fre n ta r o desconhecido, p o rém de e n fre n ta r algo que m e acontece­ rá q u a n d o eu fo r separado de todas as coisas que m e são caras, que m e são fam iliares; é disso q ue ten h o m edo, e n ã o da m orte. Q u e ten h o eu, realm en te, não teo ricam en te? N ã o sei se já vos fizestes u m a p e r ­ g u n ta fu n d a m e n ta l a fim de descobrirdes o que sois. N ã o traduzais isso de acordo com o G ita o u u m certo guru — o q u e seria absurdo. N a realid ad e, q u e sois vós? J á o p erg untastes e achastes respos­ ta? H á alg u m a resposta? Se h á resposta, n ão é nos term os do q ue já conheceis. M as o q ue conheceis é passado, e o passado é tem p o ; e o tem po n ão é “vós” . O “vós” está m u d an d o . N ão sei se estais seguindo bem isso. Se, p a ra descobrirdes o q ue sois, p erg untais “ Q u e sou e u ? ” , p rovavelm ente fazeis esta p e rg u n ta com a intenção de descobrir o “ e u ” que é estático. P or conseguinte, dizeis: “ Sei q ue sou isto”. Só podeis con hecer o q ue é estático; não podeis conh ecer o que é vivo. N ão sei se já pensastes nisso alg um a vez. Podeis especu lar a respeito do q ue é vivo ; podeis te r idéias sobre o> q ue é vivo, e p ro ­ c u ra r ju n ta r o que é vivo à idéia, ocasionando, assim, conflito. M as, se dizeis “D esejo saber o que sou” , fazeis esta p e rg u n ta a fim de ■descobrirdes po r vós m esmo o “ eu” estático, ou pode existir u m “ e u ” q ue n ão seja estático? N ão estou fazendo u m a conferência filosófica. Q u a n d o faço aq u e la p e rg u n ta a fim de descobrir o que sou, esse “o q ue sou” está sem pre no passado. O “ e u ” está sem pre n o passado. Só sou capaz de fazer a p e rg u n ta e de investig ar algo que é estático. E através dessa coisa estática, m o rta — o passado — q u ero in vestigar o q ue sou; con seqüentem ente, o m edo n u n c a desaparece. M as o m edo de saparece no in sta n te em que faço aq u ela p e rg u n ta e observo a m im m esm o c o n tin u am en te, dirig indo m in h a atenção, n ão p a ra o pas­ sado, p o rém p a ra o que realm en te está sucedendo — e isso é o “ eu ” vivo. P o r conseguinte, a coisa v iv a n u n c a gera tem or. Só pro d u z m edo a coisa p assad a ou a coisa q u e “ deveria ser” . C onsiderem os o m edo sob o u tro aspecto. H á a p a la v ra, e h á a coisa. A p a la v ra “ árv o re” n ão é a árvore. Prossigam os de m an e ira bem simples. T om em os apenas u m sím bolo: a p a la v ra “árv o re” n ao é a árv o re real. M as, p a ra nós, a p a la v ra é a árvore. P o rtan to , p re ­ cisam os v e r claram en te que a p a la v ra n ã o é a coisa. Isso é im p o r­ ta n te q u a n d o se tem de ex am in ar a questão d o m edo. O ra , a p a la v ra “ m ed o ” n ão é o estado real q u e se c h am a “m ed o ” . Este é u m a em oção, um sentim ento diferente, m as a p a la v ra n ão o é. A coisa d en o m in ad a “ m ed o ” n ão é a p a la v ra e, e n tre ta n to , estam os enredados n a p a la v ra. P o rq u e se to rn o u im p o rta n te a p a la v ra e nao a coisa? P o rq u e o símbolo, e nao o fato, é u m a idéia, e esta se to rn a m ais relev an te do q ue o fato, pois é fácil nos entreterm os com idéias, m as n ão com fatos. Assim, somos escravos das palavras, tais com o “ Ser S u p rem o ”, “ D eus” . Se desejo descobrir se existe Deus, é claro que a p a la v ra deve ser p o sta de lado, e com ela a a u to rid ad e de todos os santos e outros que tais. T e n h o de destruir co m pletam ente a p a la v ra ; do co n trário , n a d a poderei descobrir. O hom em que diz que h á D eus ou q ue não h á D eus, o ho m em q ue está en red ad o em palavras, n u n c a descobrirá nad a. D essarte, p a ra a com preensão do m edo, devemos estar cônscios d a p a la v ra e de to do o seu con teú d o ; q u er dizer, a m en te deve ficar livre das palavras. “ E star livre d a p a la v ra ” é u m estado ex trao rd in ário . Q u a n d o se está cônscio do símbolo — a p alav ra, 60 o nom e — h á o perceb im en to do fa to n u m a dim ensão diferente, se assim m e posso expressar. Pois bem , estou cônscio d o fato , q u e é o m edo, através d a p a la v ra, e seis p o r que se to rn a existente a p alav ra. E la representa u m m eio de fuga, é trad ição , é a base em que fui educado, p a r a n e g a r o m ed o e desenvolver a coragem — o oposto etc. — E, q u a n d o com preen do o in teiro alfcance d a p a la v ra, h á en tão u m percebim ento do fa to de to d o diferente. Nesse perceb im en to h á m edo? D escobrir, isto é, co n h ecer a si m esmo, é o processo de lib e rta r a m en te de tu d o , m enos do fa to ; e isso faz p a rte d a m editação. Se n ão com preendeis tu d o o que o m edo o u a am bição im plica, e ten tais m ed itar, tra ta n d o u n icam en te de re p e tir certas p alav ras fúteis, sem n e n h u m a significação, estais apenas crian d o u m a ilusão; isso n ã o é racional, são. Assim, o e n fre n ta r o fato a todas as horas, sem n e n h u m a idéia, sem elha o curso de u m rio. N o rio, a cid ade despeja todas as coisas possíveis, substâncias quím icas, as im undícies dos esgotos. T u d o v ai p a ra d e n tro do rio, n a sua passagem . E, três m ilhas a d ia n te, ele já se p u rific o u ; seu p ró p rio m ovim ento o purificou. D a m esm a m an e ira , a m en te se p urifica, de con tín u o , q u a n d o está e n fre n ta n d o o fato , “ vivendo com o fato ” e n a d a mais. P o rta n to , não existe c o n trad iç ão , nem , p o r conseguinte, con flito de opostos. Se “viVo com a vio lência” e a com preendo in teiram en te, que necessidade h á de oposto? Assim com o o rio está sem pre a purificar-se, assim tam bém e u o estou fazend o q u a n d o en fren to co n tin u a m e n te o fato. E, p a ra se e n fre n ta r o fato, necessita-se de e x tra o rd in á ria en erg ia; gera-se essa energ ia q u a n d o n ão h á con flito de opostos, q u a n d o n e n h u m esforço se faz p a ra “v ir a ser” algo. D este m odo, a m en te q u e está en fre n ta n d o u m fato n e n h u m a discip lin a tem , p o rq u e o p ró p rio fato disciplina a m ente — sem lhe im p o r ta l disciplina. N ã o sei se percebeis isso, se percebeis a beleza desse “viver com os fato s” , sem o q u a l n ão se po d e ir longe; e nós precisam os ir b em longe — m ais longe do que a L u a : p e n e tra r o in te rio r de nós mesmos. N ão se pode ir m u ito longe, direto com o u m a flecha, se n ao h á a base ad e q u ad a . E a base a d e q u a d a é o fato, não a idéia. A m ente pode, então, v o a r sem pre pelas altu ras, liv re d a ilusão. P : Q u a n d o olh o um fato, m eu condicio nam ento in te r­ fere. O condicionam ento é tam bém u m fato. Q u e devo fazer? e r g u n t a V ossa p e r g u n t a significa que, q u an d o estais o lh a n ­ do p a ra u m fato, vosso fu n d o — vosso condicion am ento, vosso h in duísm o, vosso cristianism o, vossa fo rm ação científica, vossa educação K r is h n a m u r t i: 61 — in te rfe re ; e, assim, o fato p a ra vós é o p ró p rio fu n d o , e nao aquele fato que quereis com preender. Q uereis c o m p reen d er a am bição. Sois am bicioso e isso é u m fato. D esejais o lh ar esse fa to ; m as o vosso fu n d o inteiro — vossa educação, vossa sociedade, vosso m eio c u ltu ral — diz: Q u e aconteceria, se n ao fôsseis am bicioso? — Assim, a um lado, tem os o fato de qu e sois am bicioso; e a o u tro lado, o fato rep re ­ sentado p o r vossa trad ição , vosso condicio nam ento. O ra , o conflito é e n tre esses dois fatos. O fato A é u m a realid ad e e o fato B —; vosso cond icio n am en to — tam b ém é u m a realid ad e. M as, se desejais co m p reen d er A, precisais co m preender B, n a tu ra lm e n te ; e, assim, to d a a vossa a ten ção se ap lica a B e não a A. C om o c o m p reen d er o fu n d o ? E sta é realm en te u m a questão m u ito com plexa, p o rq u a n to envolve n ão só a m en te consciente, m o ­ d ern a, e d u c a d a — aq u ela que se to rn o u m en te de funcionário , m en te de g o v ern ador, de b u ro c ra ta , de cap italista, etc. — m as tam b ém a m e n te q u e é inconsciente, a m en te ocu lta, p ro fu n d a. As duas ju n ta s constitu em a m en te condicionada, que rep re sen ta o passado. O que nos interessa é B e n ao A ; e p a r a com preenderm os B, tem os de exa­ m in a r to d a a questão d a consciência. A consciência n ão é algo que se descobre nos livros, p o rq u e o q u e se a c h a nos livros são p u ras idéias. A lguém diz q ue “ tal coisa” é “ assim ” , alg uém faz certas asserções. A id éia desse alguém po de rep resen tar u m a exp eriência p ró p ria e real, m as, q u a n d o a põe p o r escrito, já é u m a id é ia ; e, se seguis essa id éia ou obedeceis a essa idéia, im pedis a vós m esmo de descobrir o vosso p ró p rio estado de consciência. Assim, deveis deséobrir o que sois, o q ue é vossa consciência, não de acord o com outrem , porém realm ente. E u vo u fazê-lo, mas n ão p a ra ficardes ouvindo m inhas idéias; nós vam os ex am in ar juntos, eu v erb alm en te, e vós realm ente. V ou em p reg ar pa lavras, m as a p a la v ra n ão é a coisa. E “ a coisa” é que deveis e n fre n ta r o fato — o fato de vossa p ró p ria consciência, não d a de S an k h ara, de B uda, de m im , ou de outrem , que n en h u m valo r têm . Se está claro, com ecemos nosso exame. O q u e s o u a c h a -s e s e m p re n o p a s s a d o ; p o r q u e n a o n o p r e s e n te ? P e r g u n t a : r is h n a m u r t i: V o u responder com e x atid ão a vossa p erg u n ta, co n ta n to q u e tenhais a b o n d a d e de a c o m p a n h a r o que digo. Estam os ocupados com nossos próprios problem as. A co m p an h ai o que digo, e vossa p e rg u n ta será respo nd id a. K Estam os estu d an d o a vid a. H á a consciência, e que é isso? P restai aten ção à vossa p ró p ria m en te em fu n cio n am en to — e n ão à m in h a. 62 V em os cla ram en te q u e h á certos níveis de nossa consciência que constituem a m en te m o d ern a, ed u cad a, a m en te q u e está envolvida no conhecim ento , n a especialização, n a técnica, n a com preensão d e com o viver neste m u n d o , exercer u m em prego, fazer negócios, com todas as respectivas m an o b ras, corrupção, v e lh a c a ria — esse é u m nível. E tendes de fazer tu d o isso, p o rq u e, d o co ntrário, n ã o podeis viver. E m seguida, abaix o daquele, encontra-se o u tro nível. E m p rim eiro lu gar, n ão h á separação e n tre o consciente e o in co nsciente; nós os separam os só p o r conveniência. N a realid ad e, n ão existe essa divisão; h á u m a co n tín u a recip ro cid ad e en tre o consciente e o inconsciente. O inconsciente e o consciente estão recebendo inum eráveis expe­ riências a todas as horas. M as u m segm ento d a m ente que diz “p r e ­ ciso ser ed u cad o ” ed ucou a si p ró p rio a fim de viver n o m u n d o a tu a l, nó tem p o atu al. H á o u tra s p a rte s d a m en te, o u tra s p a rte s d a consciência, q ue são o resultado de nossa ra ç a — nossas tradições, as coisas que d e ­ vem ser feitas e as coisas que n ão devem ser feitas, as idéias, as coisas que nos en sin aram ; tu d o isso é o passado, oculto no inconsciente. E stais escutando m inhas p alavras, m as, de fato , estais v e n d o o q u e se passa em vós mesmo. O inconsciente é o m ecanism o do h á b ito ; é lá q u e estão arm azenadas todas as nossas experiências — experiências d a raç a , do h o m em ; as experiências do h in d u ísta, do budista, d o católico, ou de quem m ais seja; as experiências que se fo ra m a c u m u lan d o e q ue se ach am p ro fu n d a m en te ocultas; os tem ores, que n ã o posso agora e x am in ar com m in ú cia , pois lev aria m u ito tem po. Existe essa consciência. E , q u an d o h á u m passado, ele tem fro n ­ teiras, tem u m a estru tu ra , e lá se e n co n tra tu d o o que acabam os de descrever. T o d o esse fu n d o vos im pede de o lh ar u m fato. C um pre-nos, p o rta n to , e x am in ar esse fu n d o e dissolvê-lo. Isso é possível? C ertos psicólogos que se consideram ateístas dizem que ele n ã o pode de m odo n en h u m ser dissolvido; e aqueles que pensam que D eus existe a c h am igualm ente q ue ele n ão pode ser d issip ad o : o que se p o d e fazer é, tão só, a d o rn a r o fu n d o , p ro p o rcio n ar-lh e m ais educação, a fim de m odificá-lo, controlá-lo, m oldá-lo. C om o p o d e u m a pessoa livrar-se do passado — que são to das as experiências de o n tem a influ enciá-lo h o je e, assim, obv iam ente, condicionando o a m a n h ã ? T iv e on tem u m a experiência, fui in su ltad o ou elogiado, e essa experiên cia condi­ ciona-m e o p e n sar de a g o ra ; e q u an d o a m a n h a eu m e e n c o n trar convosco, ela esta rá m o ld an d o o m eu conceito sobre vós. D essarte, com o estam os vendo, o passado se serve do presente p a ra se to rn a r fu tu ro . 63 G ra , p a ra com preender o fato, devo olhá-lo sem aquele fu n d o } é claro. Isso é possível? E o fato n ão p erm anece estático: ele se m ove, é vivo. P a ra o com preender, ten h o de a co m p an h ar-lh e o m o­ v im en to ; m in h a m en te tem de ser tão ráp id a , tão ágil, tão sensível com o o fato. E a m en te n ão pode ser assim q u an d o tem u m fu n d o , q u a n d o está condicio nada. P restai atenção, p o r favor. O fu n d o deve ser am p u ta d o , im ed ia tam en te , p a ra que possam os a c o m p a n h a r o fato. , P o rta n to , n ão h á tem po p a ra se investig ar o fun do. : Só h á m ais u m a p e q u e n a dificuld ade n o m eio disso — isto é, algo q u e se in te rp õ e e n tre o fu n d o e o fato : u m a ten dência. I n t e r pe l a n t e K r is h n a m u r t i: N ão h á d ú v id a . E la se a p resen ta nesse m o m en to n u m a nova dim ensão q u e to m o u u m pouco do colorido do, fato , p o r­ q u a n to está em c o n ta to com o fun d o . I n t e r p e l a n t e : C onsiderem os essas idéias. Dizeis q u e o fundo, em relação com o fato, p ro d u z u m a tendência. F iq uem os aí. K r is h n a m u r t i: O fu n d o é m uito rico, m u ito v a ria d o , em v ir­ tu d e do contato do fato com ele. I n t e r p e l a n t e : N ão entendo bem . O que estais dizendo é isto n ão é? — que o fu ndo tem u m a h istó ria im ensa; o fu n d o é a h istó ria da h u m an id a d e, não só d a h u m a n id a d e d a ín d ia , m as de to d a a h u m a ­ nidade, de q ue a ín d ia é u m a p a rte ; o fu n d o in d ian o é “m o d ificad o ” , m as contém o fu n d o d a h u m an id ad e. Dizeis que, se se a p a g ar aquela lo nga história, n e n h u m fato m ais resta. H á aq u ela h istó ria im ensa, a q u a l d á colorido ao fato ; sem ele, o fato é estéril. É isso q ue quereis dizer? C onsiderem o-lo. K r is h n a m u r t i: C onform e entend o, u m a p a rte d a p e rg u n ta é esta: O fu n d o é nossa h istó ria; o fu n d o é toda a m itologia, todas as experiências d a h u m a n id a d e ; esse fu n d o é m u ito rico e, pelo fato de ser bem rico, é desonesto, com o tod o hom em rico é desonesto; e essa riqueza, ain d a q ue só levem ente p erv ertid a, desfig ura o fato. E u não nego q ue o fund o seja rico. Po r certo, o fu n d o é m uito rico ; e, p o rq u e é rico, necessariam ente desfigura. T em os dez m il anos de G ita, ou m ais — não im p o rtam d ata s — e ele condicionou vossa m ente, vosso pensar, vossa crença n a disciplina. A lguém , talvez algum guru, vos disse que deveis disciplinar-vos; e m ilhões de indivíduos têm 64 discip lin ado a si próp rio s, e isso deixou p a ra trás u m a im ensa história. M as o u tro ind ivíd uo , com o eu, chega e diz: “V ede, a disciplina n ã o é necessária. ‘V ivei com o fa to ’, e o fato c ria rá disciplina, n ã o tereis necessidade de disciplinar-vos.” O o lh a r o fato elim in a a co n trad ição , ou seja, o conflito e, p o r conseguinte, a dualidade. Assim sendo, diz ele: “ O lh a i o fa to ” . M as vós dizeis que isso é impossível. S a n k h a ra , B uda, vosso guru, o G ita, todos dizem : disciplina, disciplina, disciplina. C onseqüentem ente, n ão olhais os fatos n em escutais o q u e o u tro diz. M as é necessário observar o fund o, p a ra v e r se é verd ad eiro o u falso. Se é falso, a m p u ta i-o com u m bistu ri, n ão fiqueis ligado a ele p o r n e n h u m vínculo, elím inai-o, p a ra verdes o fato como é. M as n ão podeis ver o fato como é , se con tinuais com vosso fu n d o , com vossa disciplina. Isso é p e rfeitam en te claro. V ossa m en te é o resu lta d o de m il anos, m ais, de u m m ilh ão d e anos. N ão estou falan d o de reen carn ação . Sendo a m en te o resu ltad o d a v id a h u m a n a sobre a T e rra , tem ela um eno rm e passado de ex p e­ riência, e não é possível elim iná-la; m as essa m ente n ão deve in te r­ ferir no descobrim ento do v erd ad eiro , pois n e n h u m a relação te m com o q ue en tão se descobre. H á o con hecim ento científico. S eria absurd o b a n ir to d a essa som a de conhecim ento s; porém , o cientista q ue deseja descobrir algo novo n ão p o d e fazê-lo com sua carg a d e conhecim entos. Sabe q u e os con hecim entos co n tin u a m existenteSj e n ­ tre tan to , deles está livre p a ra investigar. Isso é tão simples. N ao sei se estais percebend o. D a m esm a m an e ira , se desejais in vestig ar o processo to ta l d o m edo, ten des de elim in ar tu d o o que adq uiristes, p a ra poderd es en tã o investigar, desco brir; pois vossas aquisições, evid entem ente, n ã o resol­ v eram o p ro b lem a do m edo, e continuais a tem er. O fa to é diferente d a p a rte d a m en te q u e in terfere?) Per g u n t a : “in te rfe rê n c ia ” ? (i.e., da : In d a g a essa senhora se o fato difere d a “ in terfe­ rên c ia ” . O ra , pensai, p a r a vos esclarecerdes a esse respeito. E u n ã o sou o oráculo de Delfos. K r is h n a m u r t i O fa to é d iferen te d a “in te rfe rê n c ia ” ? N ã o está tudo n a m esm a esfera, n o m esm o terren o ? O fa to n ão faz p a rte d a m ente? E u sou cium ento -— isso faz p a rte de m in h a m en te. E o u tra p a rte d a m en te diz: “N ão sejas ciu m ento, sê virtuoso (o u o que q u e r q u e s e ja ). C iú m e é ódio; p o rta n to , deves a m a r; p o r conseguinte, elim inai o ciú m e” . C om preend eis? E u sou ciu m ento , e a p a rte que in te rfere d iz 65 q ue não devo ser cium ento. O ra , am bas as p artes estão n o m esm o cam po , não ? O fato n ão está fo ra do cam po m en tal. E stá no cam po d a m en te, assim com o “a p a rte q ue in te rfe re ” está tam bém no cam po da m en te. M as conosco acontece que as “ in terferên cias” se to rn a ra m ex trem am en te fortes e im portantes, e ofuscam o fato. T em os atrib u íd o m aio r im p o rtâ n c ia às “ in terferências” do que ao fato. O ra , é possível não p e rm itir “ in te rfe rê n c ia ” de espécie alg u m a? * E u digo ser possível, m as é necessário co m preender prim eiro, inteiram e n te , a questão d a “ in te rfe rê n c ia ” . Eis a questão. T em os o fa to , a interferência, e o esforço p a ra co m p reen d er a “in terferên cia” . O ra , o fato , a “ in te rfe rê n c ia ” , e o im pulso p a ra co m p reen d er a “ in terferên cia” a fim de e n fre n ta r o fato , só surgem q u a n d o desejo e n fre n ta r o fato. Se p e rm ito qu e as “ in terferências” a tu e m co n tin u a m e n te — com o realm en te faço — n ão h á en tão fato n e n h u m e estou “vivendo com as in terferên cias” . M as eu disse; E n fre n ta i o fato, n ao deixeis as “ in terferências” a tu a re m ; m an tende-vos cônscios delas! — Tem os, assim, três p ro b le­ m as: o fato , a “ in te rfe rê n c ia ” e o “ estar cônscio d a in terferên cia” . T o d o s três se a ch am n a m esm a esfera. N ao estão separados em com ­ p a rtim e n to s estanques; estão todos n a mesma, esfera é n o m esm o terren o . O bservai isso. Segui-o aten tam en te. E xpe rim entai-o. M a n te n ­ de-vos to talm en te cônscios de tu d o isso, cônscios do fato , cônscios d a “ in te rfe rê n c ia ”, e cônscios de que n ão h á com p reensão do fato , se h á “in te rfe rê n c ia ” . M antende-v os to ta lm e n te cônscios de tu d o isso, côns­ cios de seu significado; podereis, assim, a p re e n d e r o significado de todas as três coisas, p o rq u e nesse percebim ento to ta l n e n h u m a sep ara­ ção existe. Gom o já expliquei, h av en d o atenção, n ão h á distração. Só n a con cen tração existe distração, p o rq u an to concentração ê exclu­ sãov E star to ta lm en te cônscio dessas três coisas é a te n ta r nelas, sem lin h as dem arcadoras. Assim, q ue acontece psicologicam ente, q ue se passa, ao estardes cônscio das três coisas com o u m todo, ao h a v e r perceb im en to d a to ta lid a d e : o fato , a “in terferên cia” e a com preensão d a “ in terfe­ rên cia” ? P e r g u n t a : O m e d o é coisa i n a t a o u a d q u irid a ? r is h n a m u r t i: Q u a n d o se vos d e p a ra u m a serpente, dais u m salto. Esse é u m m edo n a tu ra l, a u to p ro tetó rio ; sem ele, vos deixaríeis a tro ­ p e la r p o r u m autom óv el ou ônibus, m a ta r p o r u m a serpente. M as todos os outro s tem ores rep resen tam desejos psicológicos n ão n a tu rais, desejos de segu rança, etc. Se estais in te ira m e n te cônscio do fato e das K 66 “ in terferên cias”, com preendendo-as todas e tam b ém o desejo de preend ê-las — se vos m an te rd e s to talm en te cônscio de tudo dispensand o-lh e in te ira atenção, que acontece? Existe en tão o p e rd u ra en tão o fato de terdes m ed o? M as, seria ab su rd o se vos tásseis a a c eita r m in h a p ala v ra. co m ­ isso, fa to , lim i­ C hegam os até a q u i p o r m eio de indagações. Se só eu estive in d ag an d o e vós ficastes ap en as esperando o resultado, este n e n h u m valor terá. Ê a m esm a coisa q u e a lim e n ta r u m hom em fam in to com p a la v ras; ele c o n tin u a fam in to . M as, se seguistes m in h as p ala v ras interio rm ente , deveis forçosam ente te r chegad o a esta posição em q ue percebeis u m fato , u m a in terferên cia, e o im pulso p a r a c o m p reen d er a in terferên cia, e o im pulso p a ra co m p reen d er a in te rferên cia, a fim de co m p leta r o fato. Q u a n d o estais to ta lm e n te cônscios de todas essas três coisas e de seu significado, e n ão tra tais m eram en te de concen­ trar-v os no fato, ou n a in te rferên cia, o u n a com preensão d a in te rfe ­ rência, existe en tão o fato ? Existe en tão ciúm e, in veja? E u digo q ue não. O b v iam en te, fo ram elim inadas todas as form as de ciú m e e de inveja. O ra , senhores, isso é q ue é a v e rd a d e ira m editação. Se o fato não d eix ar de existir — se o ciúm e, a inveja, não d eix arem de existir co m pletam ente — com o será possível ir longe? C om o será possível descobrir algo q ue se ac h a além do tem po? Isso vós m esm os tendes de averigu ar, e não p o r m eio de S an k ara, B ud a, o u o u tro q u a lq u e r, pois n ão tem sentido apoiar-n os em alguém . Se desejais sab er se h á ou n ão h á “ aquilo q ue está fo ra do tem p o ” , ten des de fazê-lo p o r essa m an eira. Deveis ficar to ta lm en te livre do m ed o ; e, p a ra poderdes fic a r co m p leta m en te livre dele, cum pre-vos e n fre n ta r o fa to — o fato de que tem eis, o fato, tam bém , de que estais cond icio nado e que vosso condicio nam ento , p o r sua vez, “ in te rfe re ” no fato, e, ain d a , o im pulso p a ra fjcar livre do fu n d o , a fim de co m p reen d er o fato. E star to ta l­ m en te cônscio de tu d o isso é o com eço d a m ed itação — e não ficar sentado à m arg em do G anges a re p e tir palavras ocas, e todos os dem ais absurdos que se p ra tic a m com o nom e de “m ed ita ç ã o ” . T endes de lan ç a r a base correta. D o co n trário , vosso edifício v acilará, não te rá significação nem p e rm a n ec e rá de pé. O q ue nesta ta rd e fizemos foi u m a investigação de nós mesmos, sem pressuposições de q u a lq u e r n a tu re z a ; investigação em q ue n a o se diz que “ tal coisa” é p e rm a n en te ou iq ip erm an en te , pois tudo isso precisa ser varrid o d a m ente. Assim, com eçareis a com preender-vos. O auto conhecim ento , pois, é o com eço d a m editação. E podeis c o n tin u a r p e n e tran d o in fin itam en te nessa coisa m aravilhosa q ue se 67 c h a m a “m ed ita ç ã o ” , se tendes a base a d e q u a d a ; do co n trário , vereis a vós m esm o com o q ue p e rd id o n u m a floresta, em a ran h a d o em sensações, visões e to d a espécie de coisas absurdas, sem n en h u m a valid ad e p a ra o hom em q ue investiga. Se chegardes até aí, percebereis q ue estais aco m p a n h a n d o o m o vim ento do fato e, p o r conseguinte, fazendo-o term in a r a c ad a instante. A m en te se to rn a assim ex tra o rd in a ria m e n te flexível, ex trem am en te sensível. E sta é a base indispensável d a m ed itação. V ereis, então, se tiverdes p e n e trad o d evid am en te, que vossa m en te o u cérebro se to rn a rá sensível em alto g rau e, p o r conseguinte, sereno. O cérebro sensível está tra n q ü ílo , sem elha u m in stru m en to delicado — q uieto, sensível. Necessitais de u m cérebro co m p letam en te quieto , livre de contro le, p o rque, no m o m en to em que o controlais, está p e rd id a a sensibilidade. Só q u a n d o o cérebro se a c h a em to ta l placidez, livre d e influ ências, de atritos, de disciplina, de con tro le (não se pode a d q u irir m ed ia n te esforço u m cérebro tra n q u ilo ; p en sar em ta l possibilidade é fa lta de m ad u reza, ex trem am en te vão e sem sig n ificad o ), só en tão se po de descobrir se há, o u n ão , u m m ovim en to além dele. H á u m m ovim ento “ além dele” , e esse m ovim ento é criação, é D eus, ou com o quiserdes cham á-lo. Esse m ovim ento é que se faz necessário no m u n d o a tu al, p o rq u a n to estam os convertidos em m áquinas — m áq u in as científicas o u tecnológicas o u especializadas. Pensais q ue u m cérebro m ecânico será capaz de descobrir alg u m a coisa? I : É -m e d ifícil s e p a ra r a p a la v r a d a coisa e c o n ­ sid erá -las co m o d ife re n te s u m a d a o u tra . n t e r p e l a n t e r is h n a m u r t i: N o d iz e r d este c a v alh eiro , lh e é b e m d ifícil d is tin ­ g u ir e n tr e a p a la v r a e a coisa. K P o r q u e difícil? A p o rta que vedes é a m esn ja coisa que a p a la v ra “ p o rta ” ? E sta p a la v ra não d ifere d a p ró p ria coisa? D iz o referido sen h o r q u e n u n c a pô d e esquecer a p a la v ra, q u e esta jam ais está a u ­ sente, p o rém sem pre presente. À m aio ria das pessoas acontece o m esm o. A p a la v ra está presente, e a coisa ausente. Psicologicam ente, a p a la v ra se to rn a de sum a im p o rtâ n cia , p o rq u e rep resen ta u m m eio de fu g a ao fato. Considere-se a p a la v ra “in v eja” . A p a la v ra não é a coisa; m as a p a la v ra “ in v eja” m u ito nos im porta. Psicologicam ente, in te rio r­ m en te, n ã o sabem os o qu e fazer com a inveja. E la é respeitável. T o d a a nossa e stru tu ra social baseia-se n a inveja, nossa educação, desde a m eninice até q u a lq u e r id ad e q u e alcancem os, alicerça-se igualm ente 68 n a in v eja, e a in v eja é o símbolo d a posição, d a a u to rid ad e. Psicolo­ gicam ente, querem os q ue assim seja; e o símbolo se to rn o u respeitável, consagrado. Ele significa bom êxito, posição, pod er, etc.; assim, evi­ tam os a inveja,, e ficam os a d o ran d o o símbolo, a p alav ra. : E m reg ra, n ão sabem os q ue somos invejosos. Só vim os a sabê-lo n u m a fase m ais a d ian tad a. I n t e r pe l a n t e K r is h n a m u r t i : S egundo esse cavalh eiro, a in v eja tem duas fases. N u m a delas, a pessoa não está cônscia d a in v eja; acha-se como que esquecida de h a v e r in v e ja ; n ão sabe que é invejo sa; se c o n tin u a r a viver nesse estado, ele a lev ará in faliv elm ente à insanidade m en tal, à doença. Se a pessoa está cônscia d a inveja, h á en tão inveja? Se não está consciente de ser invejosa, a in v eja é en tão sua força m o to ra e a levará, p o r fim , à in sa n id a d e m en tal. M as, q u a n d o u m a pessoa se to rn a cônscia d a in v eja, todo o m ecanism o do p ensam ento se p õ e em m ovim ento, e o m ecanism o do pensam ento é verbal. O pen sam en to é a e stru tu ra d a p alav ra. Assim, p a ra aqu ele que deseja o lh a r a coisa sem a p a la v ra, pensam entos e p alav ras constituem apenas explicações. As explicações n ão p o d em satisfazer u m hom em que tem fom e. O ho m em com fom e diz: “D ai-m e co m id a!” Se o ho m em n ão está cônscio de sua in veja, ela gera doença. Ao percebê-la, com eça a verbalizar, a c o n stru ir u m a e stru tu ra d e palavras, a q u a l se to rn a pe nsam ento oposto ao fato. Só q u a n d o h á perfeito percebim ento de tu do, sem n en h u m pensam ento surgir n a m ente, a in v eja deixa d e existir. P e r g u n t a : Q u e pretendeis ao dizer que n ã o h á D eus? E u n u n c a disse q ue não h á Deus. T e n h o dito m uito cla ram e n te : P a ra descobrir se h á ou não h á Deus, é necessário abolir, a p a g ar d a m en te tod o e q u a lq u e r conceito relativo a Deus. P a ra des­ cobrirdes se h á ou n ã o h á D eus, precisais a p a g a r d a m en te to das as “in form ações” q ue tendes a respeito de D eus. As pessoas q ue vos d eram tais “in form ações” po d em esta r m u ito en g an ad as; tendes de descobrir tu d o p o r vós m esm o. E p a ra o descobrirdes po r vós m esm o, deveis livrar-vos de todas as auto rid ad es, co m p reen d er a e stru tu ra to ta l, a an a to m ia d a a u to rid a d e — seja a a u to rid a d e do policial, do governo, do g uru, seja a a u to rid a d e de vossos pró prio s desejos; c a d a u m a delas tem seu p a p e l especial. K r is h n a m u r t i: Se n ão h á com p reensão de tu d o isso, a m era busca daquilo q ue cham ais D eus n a d a significa. D eus é algo ex trao rd in ário n ão im ag i­ 69 n áv el p o r n e n h u m a espécie de crença. V ós tendes d e descobri-lo. E u n ã o afirm o q u e há n em que não há. P a ra descobrirdes, deveis p ri­ m eiram e n te estar livre. L ondres existe; isso é u m fato , u m fa to físico. O m esm o se p o d e dizer de u m fato físico observável p o r m eio de u m m icroscópio. V ós credes em D eus p o rq u e fostes criad o nessa crença. O com unista n ão crê em D eu s; diz que só existem fenôm enos físicos, todos explicáveis. 10 de janeiro de 1962. O PROCESSO DO PENSAMENTO (V a r a n a s i — V I) C o m o só terem os m ais duas palestras — a d e hoje e a do próxim o dom ingo — e hav en d o tantos assuntos p a ra consid erar, seria interessante investigarm os o p ro b le m a do ócio, do lazer, O ócio gera em quase todos nós d esco n ten ta m en to e, p o r isso, ocupam o-nos com ta n ta s coisas, a fim de m an term o s nossa m en te em ativ id ade. E xperim en tam os diferentes atividades, e aquelas que nos p arecem p ro m e ter êxito, lucro, satisfações, nessas nos estabilizam os. Passam os o resto d a v id a tra b a ­ lh an d o em p ro l d a cau sa ou d a coisa a que nos con sagram os; e a c h a ­ mos, assim, u m a m an e ira de o cu p ar nossos dias, nossos p ensam ento s e nossos sentim entos. E u considero o ócio m u ito im p o rta n te — aquele perío do em que n a d a tem os p a r a fazer, aqu ele m om ento em que n ã o existe n e n h u m pensam ento , n e n h u m a ocupação, em q u e a m e n te n ão está do rm in do, m as, sim, m u ito desperta. E m geral dispom os de poucas folgas, pois passam os nossos dias m u ito ocup ado s — g a n h a n d o e p erd en d o , exercendo nosso em prego, com parecendo a reuniões, ao clube, p ro cu ra n d o distrações, diversões; ou dam os p a ra ler e, se somos desses hom ens de ‘'inclinações religiosas” , dedicam o-nos à le itu ra dos livros considerados sagrados. D essarte, p a s­ sam os os dias e a v id a in te ira entregu es a nossas ocupações; não h á u m a p a rte d a m en te q u e este ja “de folga”, q u ie ta ; n ão h á u m a p a rte de nosso ser livre p a ra co m p reen d er to talm en te os trab alh o s, as ativ i­ dades, as coisas qu e tem os de fazer. E n tre ta n to , d en tro desse to d o se en c o n tra u m certo repouso, u m a c e rta tran q ü ilid ad e , u m a q u alid ad e q u e p erm an ece ín teg ra, u m a q u a lid a d e que se p u rific a c o n tin u am en te — assim com o u m rio que, p o r sua p ró p ria ativid ade, seu p ró p rio m ovim ento , se conserva lím pido, “ in ta to ”, n ã o corro m pido. P erm iti-m e sa lie n ta r que esta n ã o é u m a p ale stra in telectu al ou verbal, u m a exposição de idéias. A qui estam os reunidos, suponho, 71 com o fim de pôs investigarm os realm ente, de a b rir “ a p o rta d e acesso a nós m esm os” e descobrir o que é v e rd ad eiro e o que é falso. E , talvez, pelo sim ples escu tar de m inhas p alavras, possais v e r c la ra ­ m ente, p o r vós m esmos, o v e rd ad eiro processo d a m en te, as ten dências de vosso p ró p rio p en sar e os “hábito s” de vossos sentim entos. A m aio ria de nós se sente descontente. P a ra quase todos nós, o j d esco n ten tam en to é u m a to rtu ra . T en tam o s isto e aquilo e estam os sem pre desejosos de dedicar-n os a u m a d a d a n o rm a de ação. E nossa ação, de m odo in v ariáv el — se somos in te le ctu alm en te sensíveis — se dirige o u p a ra os trabalh os sociais, visando à m elh o ria d a sociedade, ou p a ra a c h a m a d a religião, à m argem d a vida. Nesse processo, nesse “p e re g rin a r” de nossa ação, en contram os alg u m a ativ id ad e q u e nos p arece p erfeitam en te satisfatória e n ela nos instalam os. M as a v id a não nos deix a em sossego. Sem pre en con­ tram os alg uém qu e diz algo que destoa do p a d rã o . E assim, de novo descontentes, nos pom os em m ovim ento, à p ro c u ra de alg u m a coisa; estam os sem pre ev itando o lazer, o m om ento de co m p leta desocupação. E stando a m en te deveras tra n q u ila , n ão to rtu ra d a p o r problem as, n ao o c u p a d a com eles a tod as as horas, talvez e n tã o , dessa placidez, possa n ascer u m a c e rta e diferente qualidade. N esta tard e, desejo investig ar aq u ela q u a lid a d e d a m en te q ue tem lazeres e n ão se a ch a c o m p ro m etid a com coisa n e n h u m a ; d a m en te capaz de ver, de a tu a r e, ao m esm o tem po , p e rm a n ec e r p u ra , n ão c o n ta m in ad a. D esejo, pois, se m o perm itis, investig ar aq u ela q u alid ad e — m as não a m an e ira de adquiri-la. D esd e já nos deve ficar bem claro q ue u m a m en te daq u ela q u alid ad e n ã o é encontrável p o r n en h u m m étod o, n e n h u m sistema, n e n h u m tra b a lh o , n e n h u m sacrifício, n e n h u m a virtude. T a l é a beleza d a q u e la m ente. M as, p a ra com preen dê-la, p a ra q ue ela possa su rg ir n a existência, temos de investig ar o processo do pensam ento, investig ar o q ue é o p en sar —r n ão p o r ser ele causador de sofrim ento, p o r ser com plexo, p o r c ria r prob lem as — q ue de fato cria. A cho necessário com preender todo o m ecanism o do pensam ento, p o rq u e, se não o com preen derm os, h av erá in evitavelm ente irra c io n a ­ lid ade, p en sar desequ ilibrado — e isso, n atu ra lm e n te , n ão é u m a m a n e ira saud ável de pensar. Precisam os de u m a razão clara, de p e n ­ sam ento lógico, preciso. Necessitam os de p ro fu n d a com preensão de com o fu n cio n a o m ecanism o do pensam ento. P orque a m ente, o cérebro que é in cap az de — verd ad eiram en te, d esap aix o n ad a e o b je ­ tiv am en te — o lh ar, observar, sentir, perceber, com p erfeito equilíbrio, de m a n e ira sã, n ão po de evidentem ente ir m u ito longe. D este m odo, 72 cum pre-nos descobrir o q u e é p e n sar e, ao m esm o tem po, descobrir a co n trad iç ão existente e n tre o p en sad o r e o pensam ento. E n q u a n to existe essa con trad iç ão , é inevitável o esforço e, p o r conseguinte, o conflito. D evem os, pois, co m p reen d er todo o processo do pensar. C om o sabeis, nós tem os u m a lo nga história, u m longo passado, u m tesouro im enso, acu m u lad o n ão só p e la m en te in div idual, m as tám b ém p e la m en te coletiva. E u duvid o q u e h a ja m ente in div idual. Provavelm ente ela n ão existe. A té q u e seja lib e rta d a , a m en te é só coletiva. M as a m en te p ro m a n a do tem p o ; o cérebro, com suas adm iráv eis aptidões, d eriv a do tem po , de m uito s m ilhares de dias passados. B iologicam ente, creio q u e a p a rte p o ste rio r d o cérebro é o resultado de todos os in s­ tin to s anim ais, a in d a conservados, e n q u a n to a p a rte a n te rio r a in d a está p o r desenvolver. M as, p a ra nós, o passado é o fu n d o de onde pensam os; o passado é a experiência, o conhecim ento, inum eráveis incidentes e in fluências que se foram arm azenando. A c u ltu ra, a civi­ lização em q u e fom os educados — tu d o isso é o passado. E, com base nesse passado, pensam os; ele constitui o nosso fu n d o ; ele é q ue d á o “ to m ”, a q u a lid a d e d o pensam ento. T o d a p e rg u n ta e todo “ d e ­ safio” são respondidos pelo passado. O p en sam en to é realm en te — se o exam inam os, se o observam os — reação d a m em ó ria; e, sem m em ória, n ao h á pensam ento , n ão h á pensar, O que q u er que nos seja p e rg u n ta d o , q u a lq u e r q u e seja o desafio que se nos apresente, e q u a lq u e r que seja a nossa reação a ele — tu d o prov ém do “ registro” , é reação do passado, d a m em ória, de todas as experiências acum uladas. Esse passado tem sem pre um centro , de on de pensam os; e esse centro se to rn a d a m aio r relevância em nossa v id a; torna-se proveitoso, garante-nos segurança. C om base nele, pensam os, agimos. T a l centro é m ais ou m enos estático; em bora seus “ desafios” d ifiram n a fo rm a, em bora lh e sejam acrescentadas e subtraíd as coisas, ele subsiste sem pre. Esse centro se to rn o u im p o r­ ta n te p a ra c ad a um de nós. Pode ele ser a fam ília; faculta-n os c o n ­ forto, p razer, é o ob jeto em to rn o do q u a l tan tas coisas tem os reu n id o p a ra nossa proteção. H á , pois, a existência desse centro, criado pelo p ensam ento — o m ecanism o do passado. E n q u a n to não co m p reen d e­ mos o p ensam ento e o pensad or, tem de h aver du alid ad e, tem de h a v e r conflito ; e todo conflito consom e energ ia, d e te rio ra a q u a lid a d e d a m ente. Assim, q u e m deseja realm en te co m preender esse processo de a c u m u la r energ ia deve, p o r certo, co m p reen d er de todo essa divisão e n tre o p en sad o r e o pensam ento , e o conflito existente e n tre os dois. 73 Nós tem os u m centro; e esse centro é criado pelo p ensam ento , cons­ titu i ele nosso fu n d o . Este fu n d o é bem am plo e “ histó rico” , e contém ta m b é m u m a g ran d e q u a n tid a d e de m ito logia e valores m orais d a sociedade. P o r m ais am plo que seja este fundo, nele h á sem pre u m centro, o “e u ”, m u ito m ais im p o rta n te do que a história. Esse “ e u ”, esse “ ego” é criad o pelo pensam ento, p o rq u an to , se n ã o h á pensar, n ão po d e h a v e r n e n h u m “ e u ” . N ão é u m a en tid a d e so b ren atu ral q u e j suscita o “ eu” ; ele é gerado pelos incidentes de c a d a dia, p o r c a d a acid en te, c a d a experiência, p o r in um eráv eis asserções e negações e buscas. É possível elim in ar o conflito en tre o censor e a coisa cen su rad a? Eis u m a p e rg u n ta realm en te im p o rta n te p a ra fazerdes a vós m esm o, p o rq u e com ela se elim in a todo o conflito, to d a a contradição. A m en te em contradição, em conflito, está-se desperdiçando, deterio ­ ra n d o ; todo p ro b lem a a q u e dam os tem po d e te rio ra a m en te, pois q u a lq u e r p ro b lem a tem de ser resolvido im ed ia tam en te , in sta n ta n e a ­ m ente. E o p ro b lem a a q u e nos referim os é im portantíssim o, p o rq u a n to se tr a ta do cen tro de o n d e em a n a m todos os pro blem as. É possível n ão term os centro alg um ? N ã o trad u zais isso em vossa lingu agem p ró p ria , o u tira d a do G ita o u de o u tro liv ro; esquecei tu d o isso e consid erai a questão. N ã o a in te rp rete is em vossa ling uagem p e c u liar — porque, assim, perdeis a v italid ad e d a percepção . Ê possível pensar, sentir, agir, fazer tu d o o q u e fazemos, sem aquele centro? As coisas que fazemos, e a angústia, o caos, a confusão, o sofrim ento, o extrem o desespero em que nos debatem os, existirão se n e n h u m c en tro existir, se n e n h u m a en tid ad e existir, assum in do o b ri­ gações e a tu a n d o sob o d ita d o de u m a coisa q u e se to rn o u m ero feixe de lem branças e q ue assum iu desm edida im p o rtân cia? P o r certo, só h á p en sar, e n ão h á n e n h u m centro que pensa. M as o pensam ento , p o r várias razões, criou o centro. U m a delas é q ue o pensam ento é inse­ guro , in ce rto ; e o p ensam ento po d e ser m odificado, n ã o tem segurança, n ão tem pouso, está sujeito a alterar-se, d ia p o r dia. O hom em , porém , está sem pre em busca de u m abrigo seguro, onde não seja p e rtu rb a d o em circunstância a lg u m a; e, assim, g rad u alm en te, o c en tro se to rn a psicologicam ente m u ito im p o rtan te, pois nele encontram os segurança. Existe de fato segurança em alg um a coisa — n a fam ília, no em prego, no q ue pensam os, no que sentim os? H á seguran ça, h á a lg u m a espécie de perm an ên cia? E n tre ta n to , o pensam ento b u sca a p e rm a n ên c ia em todas as coisas, e a busca de p e rm a n ên c ia é q ue p ro d u z o centro. O u v i isso, apenas, pois n a d a podeis fazer. N ão p e r­ gunteis; “ C om o p o d erei livrar-m e do ce n tro ? ” —: pois esta é u m a 74 p e rg u n ta p re m a tu ra e sem q u a lq u e r significação; m as, se observardes, se virdes sim plesm ente, se perceberdes os efeitos, en tão talvez se vos a b ra u m novo cam in ho. O p ensam ento , pois, é reação d a m em ória, d a experiência, do pa ssado; con stitui ele nossa m ente, nossa con sciência; e, nessa cons­ ciência, existe dor, alegria, sofrim ento, lá estão as coisas qué desejam os fazer, m elh o rar, m o d ific ar — tu d o p a rte de lá. E, q u an d o u m a pessoa se sente insatisfeita com tu do, a m enos que seja co m p letam en te in fan til, ac ab a en co n tran d o a lg u m a satisfação estúpid a, aí se in stala n d o p a ra o resto d a v id a ; ou, p o r esta r descontente, insatisfeita, deseja dedi­ car-se a um d ad o m o vim ento . E , depois de in ic ia r as ativ idades nesse cam po, verifica q ue n ão é bom o q u e está fazendo; e assim continua, passand o de u m a coisa p a ra o u tra, sem pre em perseguição de algo. P a ra nós, a idéia e n ão a ação se to rn o u de sum a im p o rtâ n cia , sendo a ação m ero a ju sta m e n to à idéia. Ê possível agir sem id éia e, p o rta n to , sem n e n h u m a ju stam en to , em tem p o alg um ? Isso significa, com efeito, q ue devemos e x a m in ar a questão de p o rq u e a id éia to m o u o lu g ar da ação. M u ito se fa la de ação, m u ito se p e rg u n ta : “Q u e é correto fazer?" O q ue é co rreto fazer não é u m a id éia d iv o rciad a d a ação, p o rq u e nesse caso a ação se to m a a ju sta m e n to à id éia e, po r conseguinte, a idéia c o n tin u a sendo im p o rta n te, e n ã o a ação. Assim, com o podereis a tu a r tão com pletam ente, tão to talm en te, que n ão h a ja aju stam en to n e n h u m , q ue vivais p len am en te a to das as horas? N ão tem en tão a pessoa n e n h u m a necessidade de idéias, de conceitos, de fórm ulas, de m étodos. N ão existe en tão o tem po, p o rém só ação. Só surge o tem po q u a n d o h á aju stam en to en tre a ação e a idéia. Isso p o d e rá p a re c e r ex tra v ag a n te e absurdo. M as, se já exam i­ nastes bem a questão do pen sam en to , a questão d a idéia (e visto que não podeis viv er sem a ç ã o ), deveis p e rg u n ta r; “É possível viver sem a idéia, sem a p a la v ra, p o rém som ente com a a ç ão ? ” Só depois de com preendido o m ecanism o do pensam ento, pode h a v e r ação que não seja aju stam en to . Sem dúv id a, se pensardes nisso, vos m esm o, vereis q ue coisa e x tra o rd in á ria é. Nós separam os a ação, o conhecim ento e o am or, e os m antem os a p a rta d o s; c a d a u m a dessas coisas tem o seu im pulso próprio, sua intensid ade p ró p ria, sua p ró p ria força, e c ad a um a está em co ntradição com as outras. Assim é nossa existência diária, nossa vida. Perceber o significado dessas ativid ades separadas que, n a realid ade, p erten cem à o rd em das idéias e n ã o dos fatos, e descobrir in d iv id u alm en te (q u er dizer, n ã o ap ren d ê-lo de o u tre m n em de livro algum , m as descobrir p o r si m esm o o estad o de ação sem idéia, o q u a l significa “ fazer c a d a 75 coisa to ta lm e n te ” ) , isso só é possível q u a n d o h á am or, afeição. O p e n sam en to c ria tod as as divisões existentes n a v id a — am o r divino, a m o r h u m an o , etc. O com pleto lazer d a m en te, resu lta n te d à com preensão, d a obser­ vação — essa q u a lid a d e n ão é quietude, percepção do silêncio? P a ra m im , todo esse processo de auto-inv estig ação é m editação. M ed itação |iã o é re p e tir p alav ras e fórm ulas, não é u m a pessoa hipnotizar-se p a ra e n tra r em estados fantásticos, de to d a espécie. Q u e m to m a ópio o u u m sedativo q u a lq u e r po d e ter visões m aravilhosas, m as isso n ão é m editação. A m editação é, em v erd ade, esse processo de auto-investigação. Se vós m esm o a a p ro fu n d a rd e s bem , não deixareis de a tin g ir aquele estado em q u e é possível p en sar sem o centro , v e r sem o c e n tro ; a tu a r tota lm en te, sem id éia nem a ju sta m e n to ; a m a r sem o centro e, p o r conseguinte, sem p en sam en to e sen tim ento . E depois de passardes po r esse estado, descobrireis p o r vós m esm o u m a m en te in teiram en te livre, sem lim ites, sem fro n teiras; u m a m en te desim pedida, sem tem or, não o riu n d a de n e n h u m a disciplina. A lcançado esse p o n to , com eçam os a perceber, m elho r, a m ente com eça a observ ar d ire tam e n te o p ró p rio m ecanism o do pensam ento, verificando-se, assim, u m a alteração com ­ p le ta d aq u ela q u alid ad e qu e é tem po , que é ontem , h o je e a m an h ã, de m od o que a ação já n ão se relacio n a com ontem , h o je e o dia im ediato. Essa ação n en h u m m otivo tem , pois todo m o tiv o está e n ra i­ zado no passado, e q u a lq u e r ação nascida de m otivo é sem pre aju stam ento . M ed itação , pois, é o p erceber to ta l de c a d a m ovim ento do p e n ­ sam ento, e jam ais negação dele; q u e r dizer, é d e ix a r cad a pensa­ m en to “ florescer” liv rem en te : pois só em lib erd ad e pode o pensam ento “ florescer” e term in a r. Assim, com esse tra b a lh o (se isso se pode c h a ­ m ar “ tra b a lh o ” ) ou, m elh or, com essa observação, a m en te tu d o com ­ p reendeu. Está en tão quieta, sabe o q u e reaím en te significa “esta r q u ie ta ” , estar v e rd a d e ira m e n te tra n q ü ila . E , nessa tran q ü ilid ad e , exis­ tem várias o u tras form as de m ovim ento que, p a ra qu em n u n c a refletiu a esse respeito, só verb alm en te se podem descrever. Pe : A pós u m d ia d e intenso trab alh o , a m en te se to rn a cansada. Q u e se d ev e fazer? r g u n t a A p e rg u n ta é esta: A pós u m d i a de tra b a lh o , cheio de ocupações, vê-se qu e o pouco tem p o disponível é todo o c u p a d o ; a m en te está c a n sa d a ; qu e se deve fazer? K r is h n a m u r t i: 76 V ede, nossa e stru tu ra social está to ta lm en te e rra d a ; nossa e d u ­ cação é ab su rd a ; essa c h a m a d a edu cação n a d a m ais é senão rep etir, “ m em orizar” , encher-se de conhecim entos. C om o po de u m a m en te que lu to u o d ia todo, a tu a n d o com o cientista, especialista, etc., q u e d u ra n te treze ho ras a n d o u tão o c u p a d a com isto ou com aquilo, com o pode essa m ente e n c o n trar u m lazer fecun do ? N ão pode. C om o podeis vós, após q u a re n ta ou c in q u e n ta anos que passastes com o cientista, b u ro cra ta , m édico ou o que q u er q ue seja (n ão estou dizendo q u e essas profissões n ão sejam necessárias), passar os próxim os dez anos com vossa m en te n ão con dicionada, n ão in ca p a c ita d a? A questão, pois, é realm en te esta: É possível u m a pessoa exercer um em prego, ser engenheiro, especialista em fertilizantes, ser um bom ed u cad o r e, ao m esm o tem po, em to do o deco rrer do dia, em cada m in uto, m a n te r a m ente sobrem odo p e n e tra n te , sensível, viva? Eis o verd adeiro p r o ­ blem a, e não com o te r tra n q u ilid ad e no fim do dia. V ós vos dedicais à en g en h aria ou a o u tra especialidad e; não podeis evitá-lo; a socie­ d ad e vo-lo exige, e vós tendes de tra b a lh a r. É possível, em vosso trab alh o , não vos deixardes colh er n a ro dagem dessa coisa m o nstruosa que se ch a m a sociedade? E u não posso dar-vos a resposta. D igo ser isso possível, n ão teoricam ente, p o rém realm ente. M as só é possível q u a n d o n e n h u m centro existe; foi p o r isso q u e vos falei a respeito do centro. C onsiderai u m especialista em oto rrin olaringolo gia q u e clin i­ cou d u ra n te cin q ü e n ta anos. Q u a l é o céu desse m édico? N a tu ra l­ m ente, é ouvido, nariz e g arg an ta. M as é possível ser-se u m m édico de p rim e ira o rd em e, ao m esm o tem po , fu n cio n ar, observar, e sta r cônscio de tudo, de todo o processo do p ensam ento ? P o r certo, isso é possível, m as re q u e r e x tra o rd in á ria energia. E essa energ ia é des­ p e rd iç a d a em conflitos, esforços; desperdiçais essa energ ia se sois vaidoso, am bicioso, invejoso. Ao pensarm os em energ ia, esse term o nos sugere a id éia de “ fazer a lg u m a coisa”, ou a c h a m a d a id éia religiosa de q u e se necessita d e im ensa energ ia p a ra a lc a n ç ar D eus e que, p a ra consegui-la, o hom em deve ser celib atário , deve fazer isto, aq u ilo e aqu ilo o u tro — sabeis com q u an tas coisas as pessoas religiosas en g an am a si próprias, e a cab am extenuadas, vazias, em bo tadas. D eus n ão q u e r gente em bo ­ ta d a , insensível. Só podem os c h e g ar a D eus cheios de v italid ad e, c a d a p a rte de nós bem viva, v ib ra n te ; m as, vede, a dificuld ade está em viverm os sem nos deixarm os c a ir n u m a ro tin a , em hábito s de p e n sa ­ m ento, de idéias, de ação. Se aplicardes dev id am en te a vossa m en te, vereis qu e se po d e viver neste m u n d o feio ■ — em prego a p a la v ra “ feio ” com seu significado lexicográfico, sem lhe d a r n e n h u m con teú d o em ocional — vereis q u e se p o d e viv er neste m u ndo, tra b a lh a r, agir, 77 e ao m esm o tem po m a n te r o céreb ro alertado, sem elhan te ao rio que co n sta n tem en te se p u rifica com seu p ró p rio m ovim ento. P K : A q u e espécie d e c o n flito vos referis, e q u e d eg e­ n e r a a m e n te ? e r g u n t a Esse sen h o r deseja saber q u e espécie de conflito r is h n a m u r t i: ^degenera a m ente. T o d o conflito (n ã o u m a série de conflitos, n ão u m d e te rm in ad o conflito ) n ão em b o ta a m ente? T o d o e q u a lq u e r conflito, em q u a l­ q u e r p ro fu n d id a d e q u e seja, n ão en fraquece a m en te, n ão a d eterio ra, n ão a to rn a insensível? Se discuto com m in h a m u lh e r o d ia inteiro, isso n ão em b o ta, n ão m e en fraq u ece a m en te? P K e r g u n t a : r is h n a m u r t i: O co n flito n ã o nos d á en e rg ia ? D iz esse cavalheiro que do conflito recebem os energia. Q u a lq u e r m áq u in a q u e fu n cio n a sujeita a a trito depressa p erd e a velo cidade, depressa se gasta, n ão é v erd ad e? M ecan icam en te , ta l­ vez n ã o seja possível in v e n ta r u m a m áq u in a q u e fu ncione sem a trito . T u d o q ué é subm etido a uso con stante, co n tín u o atrito , p o r força se gasta. Vós dizeis q ue o uso p ro d u z energ ia; é exato isso? Pode-se rece­ b e r energ ia do a trito ? Vós sabeis resistir. E a resistência p ro d u z de fato u m a c e rta energia, p o rém energ ia m u ito lim itad a, restrita, insig­ nificante. Ê difícil p erceb er ou co m p reen d er que todo conflito (que rep re sen ta desgaste) en tre nações, en tre pessoas, en tre duas idéias, to rn a a m en te em b o tad a? Tem os atu alm en te a teo ria d a tese e d a a n títe s e : a tese e seu oposto, a antítese, que causa a tr ito ; e desse a trito resu lta a síntese. Prim eiro a idéia, depois a resistência a essa idéia, qu e p ro d u zirá novas idéias; sem pre um certo “processo” e o seu oposto. T odos estam os cientes disso. Sinto cólera, e o oposto é “n ão te r cólera5’; e a síntese desses dois estados será u m estado “ n em de cólera, n em de n ã o cólera” , porém de algo to ta lm en te diferente. C ria-se alg u m a coisa, faz-se alg um a coisa com o resultado de atrito ? N ós fazem os, em nossa existência de c ad a dia. T u d o o que fazemos decorre de resistência, de atrito . M as eu digo que to d a espécie de a trito , to d a espécie de conflito em bota a m ente. Isso é p a ra vós u m a id éia n o v a e dizeis q ue n ão correspond e ao vosso m odo de ver. Vossa p rim e ira reação é resistir, pois estais h ab itu ad o s com o antigo sistema, ou o m o d ern o sistem a —^ tese, antítese e síntese ^— p o rta n to , resistis. Q u e acon tece com o resultado dessa resistência? 78 I n t e r pe l a n t e : M ovim ento. r is h n a m u r t i: Q u a n d o resistis, h á m ovim ento? Vós vos m oveis atrás de vossa m u ra lh a , e eu atrás d a m in h a, se a tenho . Estam os p ro c u ra n d o com preender, descobrir com o viver neste m un d o sem c o n ­ flito. Q u a n d o o político fala d e paz, q u e q u e r ele dizer? E q u e q u e re ­ mos nós dizer ao falarm os de paz? Q uerem os dizer ser ela cessação do conflito, n a tu ra lm e n te . K Pe r g u n t a : A tr a n q ü ilid a d e d a m e n te é a m e s m a coisa q u e in é rc ia ? K r is h n a m u r t i: A p a la v ra in ércia, con fo rm e a com preen do, sugere — n ão com o term o científico — a id éia de in ativ id ad e, indolência, a id éia de im o bilid ade, co m p leta ausência de ação. I : C onsoante a lei cien tífica d a in ércia, u m a coisa em repouso c o n tin u a em repouso, e u m a coisa em m ovi­ m en to (q u a n d o n ão está su jeita a alg u m a força e x tern a) co n tin u a a m over-se em lin h a reta. n t e r pe l a n t e r is h n a m u r t i: E x atam en te! U m a coisa q u e se m ove em lin h a r e ta q u an d o n ão h á obstáculo, q u a n d o n ã o h á conflito ; q u e se p u rific a a si p ró p ria ; que se m an té m sem pre em m ovim ento retilín eo ; e q u e , p o r conseguinte, co m p reen d e c a d a colisão, c a d a in flu ência, cada. expe­ riên cia q ue tra n sto rn a esse m ov im en to — aí está, ju stam en te, a q u a li­ d ad e de m en te a que m e refiro. K P e r g u n t a : É possível p ô r em m ovim ento o centro d e nossa ação? K r is h n a m u r t i: P e rg u n ta esse sen h o r: É possível, intensificando, ex­ p a n d in d o o centro , ficar-se livre de conflito? O cen tro im plica, p re c i­ sam ente, u m a periferia , não é v e rd a d e ? Essa p eriferia pode ser m u ito a m p la o u m u ito lim ita d a ; m as todo cen tro im plica fro n te ira, lim ite, p o r m ais extensa qu e seja a periferia . Q u a n d o alg uém é am bicioso, q u a n d o u m a pessoa é invejosa, isso é o centro que está p ro c u ra n d o expandir-se, n ã o é v erd ad e? E essa expansão g e ra conflito. M as é possível viver sem conflito? P : Q u a n d o m e to rn o cônscio de u m pensam ento, esse p ensam ento term in a. T o d a v ia, h á consciência do centro. e r g u n t a r is h n a m u r t i: D iz esse sen h o r: Q u a n d o nos torn am os cônscios d e nosso p ró p rio pensam ento , nesse in sta n te de percep ção o pen sam en to K 79 se d e té m ; to d av ia, h á consciência do centro . A p resenta-se u m certo p en sam en to — de m edo, de am bição, d e in v eja : ao perceberm os, ao nos to rn arm o s cônscios desse pensam ento, ele cessa m o m e n ta n e a m e n te; m ais tard e , volta , tao só p o rq u e esse pensam ento , nascido d a am bição, n ã o foi bem investigado, com preendid o. E n ão podeis p en etrá-lo to ta l­ m en te p o rq u e o cond enais ou o justificais, p o rq u e dizeis: “N ã o posso viv er neste m u n d o sem am bição e, p o r conseguinte, ten h o de ser am bix io so ” . Só se po d e co m p reen d er com pletam en te u m pensam ento se não h á co ndenação ou ju stificação — e isso significa que se deve deix ar o p e n sam en to “ florescer” livrem ente até term in ar. M as, se o pensam ento n ão term in a, isso acon tece p o rq u e o condenastes ou p o rq u e o justifi­ castes — e nisso to m a p a rte o centro , o fundo. D iz aqu ele senh or que o pen sam en to só po de ser estim ulado, ju stificado ou co ndenad o, q u a n d o em m ovim ento , q u a n d o vivo, q u an d o em ação; mas que, se o obser­ vam os, ele cessa e, po r essa razão, não pode ser exam in ado. Só se pode e x am in ar o pe nsam ento q u an d o vivo, em m ovim ento; m as se o condenam os, estim ulam os, justificam os, fazem o-lo parar; po r isso ele volta. Assim, cum pre-nos. a v erig u ar p o rq u e condenam os, temos de investig ar o p ensam ento , todo o processo de resistência, etc. C ita a in d a aqu ele senho r que, q u an d o observam os, h á “ obser­ v a d o r” e “ coisa ob serv ada” , “ aquele que vê” e “ a coisa que se vê” , e que isso significa d u alid ad e e, p o rta n to , conflito, etc. etc. É possível ver alg u m a coisa, sem que isso ocorra? É possível v er u m a coisa sem a p a la v ra, q ue é p ensam ento ? É possível olharm os p a ra q u a lq u e r coisa — a flor, m eu vizinho, m in h a m u lh er, m eu filho, m eu p a trã o — sem pensam ento , sem a p a la v ra? J á experim entastes fazê-lo? E x p eri­ m en tai-o , u m a vez, e descobrireis p o r vós m esm o ser possível o lh ar sem a p a la v ra — o que n a tu ra lm e n te n ão significa que esquecestes o passado, que vossa m em ória se apagou de todo. É com o o lh a r u m a flo r b o tan icam en te e “n ão -b o ta n ic a m e n te ” . Per g u n t a : O conflito não nos a ju d a a clarificar a m en te? Esse senhor p e rg u n ta : N ão estam os clarificando a nossa m en te com tal e tal conflito? K r is h n à m u r t i: H á conflito n a investigação? Só h á conflito n a resistência, n a aceitação, ou no aju stam en to . E u não sou n en h u m p ro p ag an d ista. D igo-vos; “ O bserv ai vossa m e n te ! N ão tenteis alterar, acrescen tar ou su b tra ir n a d a : observai, tão som ente,” Se aceitásseis o que estou dizendo, ou se a tal resistísseis p o r terdes vossas p ró p rias id éias,, isso seria u m conflito. M as eu vos digo: “N ão aceiteis o q ue digo, nãò rejeiteis o que digo, m as e s c u t a i - o Vós sois h induísta, b râm an e, cris­ 80 tão, o que q u er que seja, “ especializado” n u m a c e rta coisa; e tende? vosso fu n d o próprio. E u digo q ue o vosso fu n d o — n ão o m eu fu n d o , não o que estou dizendo, m as o vosso fu n d o vos está im pedin do de ver as coisas com o são. C onsiderem os um fato m u ito com plexo. H á fom e neste m u n d o ; todos bem o sabemos. H á m eios científicos de im pedi-lo. A ciência tem possibilidade de ev itar a fom e, de d a r com ida a todos, vestir a todos, dar-lh es casa p a ra m o ra r, e to rn a r este m u n d o um lu g ar m aravilhoso. Isso é possível; mas é im possibilitado pelos políticos, pelas divisões, pelas nacionalid ades, pelos governos soberanos, po r isso e p o r aquilo m ais. Eis algum as das razões. M as n inguém q u e r re tira r suas fro nteiras. Vós quereis p e rm a n ec e r h in d u ísta, e eu q u ero p erm an ecer m ao m e­ tan o ; e, assim, estam os im p ed in d o q ue todos os hom ens sejam alim en ­ tados. O ra , estais ouvin do isto e, com o sois hinduístas, dizeis: “ Gom o posso a b a n d o n a r m in h a religião? Posso to le rar o m uçulm ano, m as n ão posso a b a n d o n a r m in h a religião” . E o m uçu lm ano, p o r sua vez, diz: “ Posso tolerar-vos, m as não posso a b a n d o n a r m in h a religião” . M as n ão podem os, vós e eu, a b a n d o n a r nossas nacionalid ades, p a ra q ue todos os hom ens sejam alim entados? E u digo: “ O lh a i vosso p ró ­ p rio fu n d o . N ão m e abrais vossa m ente. O lh a i a vós m esmo, olh ai a m an e ira com o está fu n cio n an d o a vossa m e n te ; olhai vossa in v eja, vossa am bição” . E eu vos estou apenas m ostrando a m aneira de olhar. A quele senho r diz: “ Q u a n d o vos escuto, recebo o q u e dizeis; e nesse receber h á conflito. Ao vos ouvir, observo m in h a p ró p ria m en te em relação com o que estais dizendo e aum ento, assim, o conflito q ue irá p ro d u zir u m a sensibilidade de g ra u m ais elevado.” V o u te n ta r resp o n d er d a seguinte m a n e ira : E vid entem ente, estais escu tando e, p o r conseguinte, recebendo; m as esse receber vos é algo estranho, ou será que, nas coisas q ue o o ra d o r está dizendo, estais observando re a l­ m ente a vós m esm o, a vossa p ró p ria m en te e descobrindo o que n ela está sucedendo? Nesse receber, n ão aceiteis o que o o rad o r diz, m as olhai vossa p ró p ria m en te ;' nisso h á conflito? Só h á conflito q u an d o o receber exige aceitação. M as n ão é isso o que vos digo: o q ue digo é que olheis vossa p ró p ria m en te, que observeis a vossa m ente. Se o fazeis, on de o conflito? O cavalh eiro diz q ue nos acham os n u m “ p onto verb al m o rto ” , m as assim não m e parece. O que m e p arece é que não nos estam os e n te n d en d o bem . V ós dizeis: “ M in h a filosofia é cond icio nada, e vossa filosofia é c o n d ic io n ad a; e q u a n d o as duas se encontram , dá-se atrito , in evitavelm ente; e, graças a esse a trito , eu m e livro de m eu co n d i­ cio nam ento , e ele vos a ju d a a libertar-vos de vosso co n d ic io n am en to ; 81 essa lib erta ção , p o rta n to , é u m processo de con flito” . E m p rim eiro lu g ar, e u n ão ten h o n e n h u m à filosofia, n e n h u m sistem a, n e n h u m m é­ to d o ; podeis descontar tud o isso, com pletam ente. D igo-o a sério. N ão m e im p o rta o nom e q ue deis ao m e u ensino, m as n ão o considereis com o u m sistem a p a r a se a lc a n ç ar u m certo alvo. O cavalheiro diz: “ E u vos ouço fa la r; vós tendes algo p a ra dizer. E se tendes algo p a ra dizer, eu o recebo e nesse p róprio processo de recepção estou-m e m o­ d ific an d o ; no processo de escutar-vos, as coisas a que antes eu m e p re n d ia se estão so ltan d o ; e esse processo de d esp ren d im en to é con­ flito ; o desp ren d im en to se verifica p o r cau sa d o con flito e n tre os dois m odos de v er.” P o r que conflito? (N ão im p o rta o significado que deis à p a la v ra ). P o r que deve h a v e r conflito ao verdes algo d iferen te? P o r que o m eu ver — q u an d o vejo algo novo — ocasiona resistência o u atrito entre “o q u e se vê” e “ qu em v ê ” ? Q u a l a razão desse conflito? V o u dizer-vos p o rq u e ele surge. Ê p o rq u e, de c e rta m an eira, “ estou cond icio na­ d o ” ; e q u a n d o algo novo se m e oferece, eu o rejeito , a ele resisto” ; o u p ro cu ro ver com o a ju sta r ao m eu co ndicionam ento essa coisa nova, já que m eu co ndicionam ento m e im pede de v ê-la to ta lm e n te ; ou, q u a n d o escuto, não escuto com to do o m eu ser, p o rém com m eu ser co ndicio nad o e com ele qu ero assim ilar o q ue se está dizendo. Com o posso assim ilá-lo, se sou in cap az de digeri-lo? E u n ão posso digeri-lo ; só posso digeri-lo q u a n d o n ão ten h o condicio nam ento, q u a n d o estou a p to a observá-lo totalm ente. E u digo que, no processo de observação, a digestão se to rn a indigestão se h á condicio nam ento. E u sou com u­ nista, católico, etc. Vós m e dizeis algo novo. E u vos escuto e, então, ou resisto ou digo que isso é u m a coisa nova q ue preciso assim ilar. A bsorvo-o co m p letam en te p o rq u e de todo o com preendi. O u n ão posso absorvê-lo p o r causa de m eu fu n d o , de m eus hábitos, m eus tem o ­ res, q ue m e im p ed em de assim ilá-lo. O conflito se a p resen ta q u an d o te n to assim ilar o novo e ao m esm o tem po n ã o q u ero q u e b ra r m eu condicio nam ento. O o rad o r vos diz: “N ão vos preocupeis em aceitar o novo; isto n ão é n a d a novo. M as q u eb rai o vosso condicio nam ento, e n o q u e b ra r de vosso condicio nam ento ver-vos-eis renovado.” “ T o d o conflito — seja conflito en tre idéias è ideais, seja en tre m arid o e m u lh er, seja e n tre a sociedade e o indivíd uo — todo conflito, em q u a lq u e r nível, em bota a m en te, to rn a -a insensível. E eu digo: “ N ã o aceiteis o q u e digo, n ão crieis conflito e n tre o q u e digo e vós m esm o; se o fizerdes, saireis p erd endo, vos em botareis, criareis p ro b le­ m as. O bservai-vos, estai cônscio de vós m esm o, n ão deixeis a p a la v ra se to rn a r im p o rta n te, etc.” O o rad o r não está in tro d u z in d o n e n h u m a 82 nov id ade, n ão está dizendo “ Ê assim q ue se deve o lh a r” ; pelo co ntrário, ele nega tu d o e diz q ue no processo de negação n ão h á resistência e, p o r isso, podeis olhar. M as, se dizeis: “N ão, n ão posso q u e b ra r m eu fu n d o , o saber q ue possuo, as coisas que ex perim entei” — nesse caso m anifesta-se atrito . Vós estais condicio nado e eu — suponham os — estou cond icio nado . E u p ro c u ro im por-m e a vós, e vós resistis; isso, in ev itavelm ente, ocasio na conflito. P rocuro persuadir-vos, dizendo: “Deveis q u e b ra r vosso co n d ic io n am en to e a c e ita r m in has idéias, a d o ­ ta r o m eu m odo de v e r” ; e isso gera conflito. O u , digo-vos: “N a d a ten h o p a r a dizer, n ão ten h o idéias, idéias n ão m e interessam , p o rq u e p a ra m im u m a idéia é coisa inexistente, u m a co n trad ição . Assim, observai a vós m esm o, observai vossa m ente, observai vossa m an e ira de pensar, observai p o rq u e pensais com o h in d u ísta, p o rq u e pensais com o m ao m etan o , p o rq u e sentis dessa e d a q u e la m a n e ira ” — tu d o isso constitui u m a fo rm a n e g a tiv a de convidar-vos a olh ar, não u m a fo rm a positiv a de m andar-v os o lh a r de d ete rm in ad o m odo. Assim, p ela negação, vós vos “descondicionais”, e n ão p ela resis­ tência nem , p o r conseguinte, pelo conflito. A q uele senhor diz, po siti­ v a m e n te: “ Se eu vos am o, n ã o po d e h av er , conflito” . M as ele acres­ cento u a p a la v ra “se”, que é u m a m an e ira con dicional de p e n sa r; e pensam ento cond icio nal é idéia. Dizeis que, se am ais, não h á conflito. E n tão , senhor, am ail M as é esse o vosso estado ? É esse vosso estad o real, e n ã o um estado ideal? U m estado id eal é u m estado condicio nal, o que, p o rta n to , significa q u e não am ais. Q u a n d o dizeis q u e, se re a l­ m en te am ais, n ã o h á conflito, estais dizendo isso com base no fato , ou o estais dizendo com base n u m a id éia? N ã o se tra ta de u m sim ples racio cín io ? O ho m em q ue sente fom e diz: “D ai-m e co m id a!” . E le n ão q u er saber de idéias a respeito d e com ida, n ão tem n e n h u m c o n ­ ceito relativ o ao a lim en to : o q ue q u e r é o m a te ria l real, concreto, que lhe m a ta rá a fom e. Esse hom em é in te ira m e n te d iferen te d a ­ quele que pensa ter fom e e diz: “Se ten h o fome, vou fazer isto e aquilo e m ais aquilo ” . 12 de janeiro de 1962. 83 NEGAR O FALSO (V a r a n a s i — V II) E s t a é n o s s a ú ltim a palestra. D esde o com eço destas reuniões, tem os con siderado com o to rn a r existente u m a m en te nova, u m a m en te religiosa — não no sentido ortodo xo — u m a m en te sem raízes em crenças, dogm as, sistemas. Essa m en te não só é necessária em todos os tem pos, m as tam b ém essencial no p resen te período de ta m a n h a crise em todo o tnundo. Ê possível, n ã o teo ricam en te, porém realm en te, c ria r u m a m en te no v a ou tra n sfo rm ar a m en te a tu a l, tão confusa, em b o ta d a e insensível, em algo to talm en te d iferen te? Pela p rática , p e la disciplina, p o r m eio de u m certo exercício que force a m en te a aju star-se a um p ad rão , podem os consegui-lo? O u tem a m en te a cap acid ad e de perceber d ireta e im ed ia tam en te o que é falso e, assim, p ela negação , perceber o que é verd adeiro? Im p o rta esclarecer o que se en ten d e p o r negação e o que é p e n ­ sam ento positivo. E m geral com eçamos a p e n sar p a rtin d o de u m a base, u m a conclusão, u m a experiência. A dotam os u m a posição, isto é, crem os n u m a c e rta coisa — cren ça essa basead a n a experiência, no conh ecim ento, n a tradição — e, nessa base, pensam os e agimos. Essa posição, em reg ra, é a d a segu rança psicológica. E la consiste, o m ais das vezes, n u m a idéia, que cham am o s “ c re n ç a ” , n u m ideal, n u m exem plo — que é a in d a u m a idéia, e id éia é sem pre palavra. Busca­ m os refúg io nas pa lavras, e essa é a base em que nos firm am o s; dela agim os, dela pensam os. C onsidero ilógica essa posição; no en tan to , todos os nossos juízos, avaliações, considerações, investigações p a rte m d aí — de u m a posição, de u m a idéia, de u m a conclusão q ue nos im pede de inv estig ar o que é verd adeiro e o que é falso, ou de v er d iretam en te, in co n tin en ti, a realid ade. O ra , á-nos possível in q u irir, elim in ar a crença, elim inar nosso condicionam ento h in d u ísta, cristão, etc,, e investigar?. É assim que age 84 o c ien tista; ele n u n c a p a rte de u m a conclusão; possui conhecim entos, m as n ão p erm ite que in te rfira m em su a investigação. M as nossa exis­ tência n ão é assim tão p recisam ente d elin ead a, p o rq u e tem os m edo, desejam os segurança, desejam os tan tas coisas n a vida, desejam os nom e, posição, p oder, lib erd ad e e algo m ais; e tu d o isso constitui a base em q ue estam os firm ado s e de onde querem os investigar. D eixa de h a v e r investigação desde que adotam os u m a posição de onde passam os a observar. A investigação negativ a, ao co n trário (se posso em p reg ar aq u i o term o “ investigação” ) significa estar livre d e conclusões, de dogm as, de crenças, de con dicionam ento , p a ra investigar. T a l inves­ tig ação, pensareis, im pede a ação. P erg u n tareis: “ C om o se p o d e viv er, agir, e estar com a m en te em co n stan te in vestig ar?” T o d a ação resu lta de idéia, d a experiência, de co n h ecim en to ; é desse p o n to de p a rtid a que agim os; e pensam os n ão ser possível a g ir se perm anecerm os apenas n u m estado de co n stan te investigação. A ação, q u e r insignificante, q u e r ex trem am en te com plexa, q u e r c o m ­ p leta m e n te desinteressada (n ão egoísta) etc., não deixa d e existir q u an d o prevista, co n tro lad a, m o ld a d a de antem ão? N ã o deve a a ç ã o ser sem pre livre e p ro v ir sem pre de in vestigação? Assim, d o p e n sa r negativ o (que n ão significa buscar resultados positivos, porém , sim , n eg ar todas as posições positivas ad o tad as p e la m en te, e in v estig ar p a rtin d o dessa negação) n ão resulta ação m u ito m ais significativ a, m uito m ais eficaz do q ue a ação p ro ced en te de conclusões? V id a é ação, não é? N ossa v in d a aqui, o escu tar esta palestra, o m eu fa la r, o vosso escutar, tu d o o q ue fazemos é ação; e baseam os essa ação n u m a conclusão. Nossas ações estão confin adas ou lim itadas p e la idéia q ue temos, e id éia é resu ltad o d e experiência, A idéia nasce do conh ecim ento; e, com esse fu n d o fixo, m ais ou m enos confinado, lim itado, condicionado, querem os a tu a r sobre a v id a ; e a v id a está sem pre em m ovim ento; sem pre m u d a n d o ; resu lta d aí, p o rta n to , c o n ­ tradição, e d a co n trad ição sofrim ento ; e, p o r diferentes m an eiras, tra tam o s de fu g ir ao sofrim ento. V ede, senhores — se m e p erm itis expressar-m e d iferen tem en te — os m ais de vós aq u i presentes sois provavelm ente hinduístas ou estais ligados a um d ad o m ovim ento ou cre n ç a ; e, com esse fu n d o , com essas idéias, com esse pen sar cond icio nado, enfrentais a vida, enfrentais o m u n d o m oderno, que se está tra n sfo rm an d o tão vertig in o sam en te; assim, en tre o m undo que está m u d an d o e a m en te que se recusa a m u d ar, estabelece-se a con tradição. Vós adotastes u m a posição — com o h induísta, católico, etc. — e com essa tra d ição ides ao encontro d a v id a ; e o resu lta d o é contradição. É possível en fren ta rm o s a v id a sem to m arjn os posição de espécie alg um a? 85 E x tra o rd in á ria s tran sfo rm açõ es estão ocorrendo ex terio rm en te; m as o exterio r sem pre in fluencia o in terio r e, p o r isso, dividim os o ex terio r e o in te rio r com o se fossem coisas separadas. A fin al de contas, a v id a in te rio r, o ín tim o estado psicológico, tem o m esm o m ovim ento d a vida exterior, m ovim ento sem elh ante ao vaivém d a m aré. E p a ra co m p reen d er a m aré q ue “ e n tra ” é preciso co m p reen d er a m aré que “ sai” ; im pende co m p reen d er o m u n d o ; e se n ã o se co m p reen d er o "m ovim ento exterior, o m o vim ento in te rio r n en h u m v a lo r tem . Assim, o im p o rta n te n ão é divid ir a v id a em “m u n d o exterio r” e “m un d o in te rio r” , p o rém co m p reen d er a to ta lid a d e desse m ovim ento. N ão com ­ preendereis a to ta lid ad e desse m ovim ento se ado tais u m a posição, de q u a lq u e r espécie que seja. A m en te religiosa é a q u e la que n ao está lig ada a n a d a ; só ela p o d e descobrir o q ue é verd adeiro e o que é falso. Só ela pode desco­ b rir se h á, ou não, u m a R ealid ad e, D eus, u m a coisa A tem p o ral — m as nao a m en te lig ad a a alg um a coisa, a m en te que c rê ou n ão crê. P or certo , n ã o tem m en te religiosa o hom em que v ai à ig reja, que p ra tic a p u ja e to d a espécie de artifícios. A m en te religiosa vê a falsi­ d ad e de tu d o isso, to ta lm en te , com pleta m ente; assim sendo, po rq u e é livre e n ã o está firm a d a n u m a posição, n u m a base, d a q u a l p a rte p a ra investigar, ela in icia sua investigação liv rem ente. Essa m en te, p o r conseguinte, é d esapaixonada, sã, racional, capaz de racio cin ar — e ta l é, a fin a l de contas, a c a racte rístic a d a m en te cien tífica. M as a m en te cien tífica n ão é u m a m en te religiosa. A m en te científica está in teressad a em ex a m in ar u m a c e rta p a rte d a existência, u m segm ento d a v id a ; a m en te cien tífica, p o rta n to , n ao po d e co m p reen d er a to ta ­ lid ad e qu e a m en te religiosa com preende. P a r a se te r essa m en te religiosa, necessita-se de u m a revolução, n ão econ ôm ica o u social, porém psicológica — u m a revolu ção n a psique, n o p ró p rio processo de nosso pensar. O ra , com o fazer despon­ ta r essa m ente? V em os a necessidade dessa m en te — d a m en te nova, sem fro n te iras; d a m en te nova, n ão ligada a n e n h u m grupo, raça, fam ília, c u ltu ra ou civilização; d a m en te nova que n ã o resu lta d a m o ra lid a d e social. A m o ralid ad e social n ão é m o ralid ad e nen h u m a, pois só lh e interessa a m o ral sexual; c a d a u m pode ser ambicioso, cru el, vão e invejoso, à vontad e. E a m o ral social é a in im iga d a m en te religiosa. Assim, com o nascerá a m ente religiosa, a m en te nova? C om o tra ­ taríeis de obtê-la? E sta n ão é u m a p e rg u n ta retórica. A todos nós se a p re se n ta este p ro b le m a: com o te r u m a m en te fresca, jovem , nova — pois a m en te v elh a n ão resolveu coisa alg u m a e m u ltip licou os 86 seus problem as. Gom o trataríeis disso, q u e em preenderíeis p a r a susci­ ta r essa m en te? Precisais de alg u m sistem a, algum m étodo ? V ede, p o r favor, a im p o rtâ n c ia desta p e rg u n ta q u e estou fazendo, vede o seu significado. N ecessitam os de u m a m en te nova, q u e é de essencial im p o rtâ n c ia ; m as com o alcân çá-la? P o r m eio de alg u m m étodo —que é sistem a, p rá tic a , ação q u e se rep ete d ia p o r dia? U m m éto d o po d e p ro d u zir a m en te nova? A v eriguai, investigai isso ju n to com igo; n ã o vos lim iteis a ou vir-m e e depois to rn a r a p e n sar que necessitais de u m a p rá tic a , u m m étod o, p a r a ad q u irird es a m en te nova. Sem d ú v id a, todo m éto d o im plica p rá tic a co n tin u a d a, d irig id a p o r u m certo cam in ho , p a ra a o b ten ção de d e te rm in ad o resu ltad o — e isso, afin al, significa a d q u irir u m h á b ito m ecânico, e, p o r m eio desse h áb ito m ecânico, suscitar u m a m en te qUe n ão é m ecânica. É isso, essencíalm ente, o q u e o m éto d o im plica. Dizeis “ D isciplin a” , m as to d a disciplina se baseia n u m m étodo aju stad o a u m certo p a d rã o ; e o p a d rã o vos p ro m ete u m resultado, p red eterm in ad o p e la m e n te q u e já tem u m a d a d a crença, q u e já ad o to u u m a ce rta posição. Assim, p o d e u m m étod o, no sentido m ais am p lo o u m ais restrito d a p a la v ra, p ro d u zir a q u e la m en te n o v a? Se n ão pode, então o m étodo, com o hábito, deve d esap arecer co m p letam en te, p o rq u e falso. N ão im p o rta se foi S an k ara, B u d a o u o san to m ais m o d ern o que vos preconizou o m étodo, ele é co m p letam en te falso, p o rq u e to d o m étodo só serve p a r a condicionar a m en te de acord o com o resu lta d o desejado. M as, sabeis o que é a m en te no va — a m en te fresca, jovem , “in o cen te” ? C om o podeis sabê-lo? N ã o podeis sabê-lo; tendes d e descobri-la. P o r conse­ guinte, deveis abolir todo o processo m ecânico d a m en te. E scutai, ap en as; n ão im p o rta se fazeis o u deixais de fazer alg u m a coisa: isso d ep en d e de vós. Segui as m in has palavras. A m ente deve livrar-se de todo o processo m ecânico do pensam ento. N ã o é, pois, v e rd a d e ira a idéia de que um m étodo, sistem a, discip lin a, h áb ito , p ro d u zirá essa m ente. P o rta n to , tu d o isso tem de ser abolid o com pletam ente, p o r serem coisas m ecânicas. A m en te m ecân ica é u m a m en te tra d icio n a l, n ão está a p ta a e n fre n ta r a vida, q u e n ão é m ecân ica; o m éto do, consequentem ente, tem de ser posto de p a rte . D essarte, q u e se deve fazer p a ra alc a n ç ar a m en te nova? O conhecim ento — que é exp eriência — vos d a rá a m en te n o v a? E x p eriên cia é a reação a u m desafio, e o desafio, p o r certo , é de acordo com vossa m em ória, de acord o com vosso condicio nam ento . O conhecim ento , pois — que é exp eriência — vos a ju d a rá a alc a n ç ar a m en te nova? N ão deve a m en te no v a achar-se n u m estado de “ n ã o exp eriência” ? Se m o perm itis, vou estender-m e u m pouco sobre este tó pico; e, talvez, depois, possam os c o m p reen d er m elh o r p o r m eio de 87 pe rg untas. H á desafio e “ resposta” (re a ç ã o ). V ivem os dessa m an eira. A c ad a in stan te a v id a nos desafia, e nós “ resp on dem os” . R esponde­ mos segundo o nosso co ndicionam ento h induísta, m uçulm ano, etc. Se rejeitais o desafio externo — e m u i poucos o fazem — criais vosso p ró p rio desafio in te rn o , psicológico — as incertezas in teriores e vossas reações a elas. E tu d o isso, ta n to a reação ex tern a com o a in tern a, baseia-se n a experiência. E essa experiência sem pre se acu m u la como co n h ecim en to , com o tem po. N otai, po r favor, n ão ser difícil o que estou dizendo. Basta vos observardes p a ra verdes q ue estam os tra ta n d o apenas de fatos, e n ã o de teorias. Sendo o tem po experiência, n a fo rm a de conh ecim ento, ele p ro d u zirá a m ente nova? C la ro q u e não, p o rq u e a p ró p ria expressão “ m en te n o v a” sugere algo novo, to talm en te novo, que n ão po de ser produzido p ela experiência. A exp eriência é sem pre o passado — isto é, tem po. Percebe-se assim — se se aco m p an h o u o que estive dizendo — que nem o h ábito, nem a exp eriência com o conhecim ento , p ro d u zirão a m en te nova, e tam pouco a alcançarem os p o r m eio d o tem po. Se negardes tu d o isso — com o n ão podeis d e ix a r de fazer, se tiverdes p e n e tra d o em vós mesmos e vos exam in ad o — vereis en tão que a to ta l negação de tu d o o que sabeis, de to d a exp eriência, to d a tradição, to do m ovim ento nascido do tem po , é o com eço d a m ente nova. P a ra n e g a r to talm en te, necessita-se de energ ia. E m geral rece­ bem os energ ia d a resistência — h á necessidade de ex p licar isso? R e ­ cebem os energ ia d a fu g a; recebem os energia d a inveja, d a am bição, d a avidez, d a b ru ta lid a d e , do desejo de am or. M as essa energia cría a correspondente con tradição, e esta dissipa a energia. A m aioria de nós n ão tem energia p a ra n eg ar e p erm an ecer nesse estado de negação, qu e constitu i a m ais elevada form a de pensar. M as essa negação gera energia, p o rq u e n ela n ão h á contradição. Assim, a m ente religiosa, ou m en te nova, é a m en te revolucio­ nária. P orque, então, a m en te já n ão é am biciosa, in vejosa; p ercebeu o significado d a inv eja, d a am bição, d a a u to rid a d e e, p o r conseguinte, livrou-se delas — n ão no fim , porém no presente, im ed iatam en te. E essa n egação é p ró p ria d a m editação. M ed itação não é essa coisa sim plória consistente em re p e tir p alavras, sentado à fren te de u m a im agem , p ro c u ra n d o te r visões e to d as as correspo nd entes sensações; m editação é, sim, o perceb im en to constante q u e nos faz v er o falso e negá-lo to talm en te. Essa negação provê energ ia — n ão a energia q u e nasce do conflito, n ão a energ ia reco m en d ad a p e la c h a m a d a gente religiosa, qu e nos m a n d a ser celibatários to d a a v id a, etc. etc.; tu d o isso são form as de resistência e, p o r conseguinte, contradição. 88 P ode-se v e r re a lm e n te a to ta lid a d e desse processo, co m p re e n d ê -lo c o m p le ta m e n te , q u a n d o n ã o nos co locam os n u m “ p o n to a lto ” p a r a , d a í, o ex a m in a rm o s. Só a m e n te relig io sa p o d e i r m u ito lo n g e, só a m e n te relig io sa p o d e d e s c o b rir o q u e tra n s c e n d e as m e d id a s d a m e n te . P e r g u n t a : A n e g a ç ã o e a re je iç ã o n a o c o n s titu e m u m m é to d o ? r is h n a m u r t i: J á negastes alg um a vez u m a coisa, e h o u v e alg u m m otivo p a ra essa negação? Se houve m o tivo , houve negação? Se h á u m m otivo, e a negação p ro ced e desse m otivo, a negação é, então, u m m étodo. M as nós nos referim os à negação q ue n ão tem m otivo — re n u n c ia r a u m a coisa, a b a n d o n a r u m a coisa, sem m otivo. N ão co­ nheceis essa espécie de negação? J á fizestes alg um a coisa — já agistes, aband on astes, rejeitastes, renunciastes, negastes, etc., sem m otivo n e ­ nh u m ? J á fizestes isso? E q u a n d o o fazeis, isso g e ra alg u m m éto do, constitu i m étodo? K V ede, senhor, a d ificu ld ad e é dev id a às palavras. As p alav ras são p a ra nós extrem am ente im p o rtan tes — vivem os de p alavras, com o, p o r exem plo, a p a la v ra “ Í n d i a ” . Estam os a q u i investigando a m en te que não é escrava das palavras. N ós am am os im pelidos p o r a lg u m m otivo? H á am or, q u an d o h á m otivo? S erá m u ito fácil dizerdes: “N a tu ra lm e n te n ão h á ” — o u pelo m enos pro v av elm en te o seria, C om o é possível am a r sem m otivo ( “ com o” em p reg ad o com o in te rro ­ gativo e n ão com o m é to d o )? E m p rim eiro lu gar, deveis descobrir se tendes alg um m otivo , e em seguida co m p reen d er esse m otivo, p en etrá -lo ; essa p ró p ria p e n e traç ã o constitui, ju sta m e n te, a negação do m otivo. P : O desafio é, às vezes, de ta l o rd e m q u e nos p a r a ­ lisa, e n a o h á “ re s p o sta ” (re a ç ã o ) a d e q u a d a . Ê possível n ã o nos sen tirm o s com o q u e p a ra lisa d o s e re ag irm o s p r o n ta m e n te ao desafio? e r g u n t a r is h n a m u r t i: Esse senho r diz: U m a pessoa p o d e sentir-se a n i­ q u ila d a p e la reação a u m “desafio” . M o rre u m eu filho, e a reação é im e d ia ta ; e essa reação é de ta l m a n e ira lan c in an te , ab ala d o ra, que fico paralisado . Isso po de d u r a r u m ano, dois anos, ou u m dia. A p e rg u n ta desse senhor, se a com preendo bem , é: Ê possível reagirm os im ed ia tam en te , sem serm os aniq uilados p ela reação? M o rre m eu filho, e isso é um choq ue terrív el, u m inesperado, desgraçado, n a o desejado in cid en te em m in h a v id a; isso m e deixa com o que paralisado . E a questão é: Ê necessário fic a r paralisado, deix ar-m e a n iq u ila r p e la reação? N a tu ra lm e n te, não se pode firm a r u m prin cípio g eral a esse K 89 respeito. T u d o d ep en d e do g rau de sensibilidade o u de em b otam ento d a pessoa, do g rau de afeição, e de m u itas e com plexas razoes p a ra esse trem en d o sentim ento de paralisação, an iq u ila m e n to ; m as esses terríveis in cidentes n ão são freqüentes em nossa vida. H á só u m a ou duas espécies de “ desafio” que nos ab ala m v e rd a d e ira m e n te ; m as a to das as horas h á desafios secundários, dos quais estam os ou n ã o estam os cônscios —- desafios secundários, e n ã o aqueles de n a tu re za In co m u m , m ais im p o rtan te. E m geral, n ão sabem os que eles estão o co rren d o ; vivem os tão em botados, tão “ im u nizados” , no m u n d o que nos m esm os criam os! E p a ra a m en te em tais condições, “ desafio e reação ” são coisas inexistentes. É assim que vive a m aio ria dos sannyasis , dos santos, dos m o n g es: atrás de u m a m u ra lh a de idéias. R e n u n c iara m ao m u n d o p a ra viverem n u m m u n d o deles próprios, n u m m u n d o de idéias; eles n ao q u erem ser p e rtu rb ad o s; p a ra eles n ão h á “ desafio” , pois e n c o n trara m u m refúgio, u m abrig o p eren em en te satisfatório. Assim sendo, não h á, p a ra eles, “ reação e desafio” . Q u ase todos gos­ taríam os de estar n u m a situ ação dessas, onde n a d a nos atingisse. C om um ente, desejam os estar onde n a d a nos a tin ja (ta l é ju stam en te nossa idéia de D eus, nossa id éia de paz de espírito, e tc .). M as a v id a n ão nos deixa em sossego. M eu filho m orre, m in h a m u lh e r m e a b a n d o n a p o r o u tro hom em , perco o em prego, perco m eu dinheiro, h á doença, h á m o rte ; tu d o é desafio. E eu m e acostum ei a d ep en d er de u m a conclusão, das coisas q ue ap ren d i, da trad ição , etc. P o r con­ seguinte, m in h a rea ç ã o é fraca. Se m e p erm itis p e n e tra r m ais nesta questão, in dago, am p lian d o vossa p e rg u n ta : Ê possível a m en te estar tão a te n ta e tão sensível a todas as ho ras, que c ad a desafio seja “respondido” co m p leta e im e­ d iata m e n te, e seja alc an çad o u m estado sem “ desafio e re a ç ã o ” e em q ue a m en te já n ão se ache em “ estado de ex p e rim e n tar? ” R efleti sobre isso. Podeis rejeitá-lo , podeis dizer q ue é u m a teo ria m uito in te ­ ressante; m as, com o qu er q ue seja, considerai-o, olhai-o. Q u a n d o com ­ preend eis u m a coisa com pletam ente, quando, p o r exem plo, com pre­ endeis to ta lm e n te a a u to rid ad e, já nao há, então, p ro b le m a algum relativ o à a u to rid ad e, e n e n h u m a “exp eriência” de a u to rid ad e pode atingir-vos. P ela m esm a m an eira, se considerais a to talid ad e d a vida, com to das as suas com plexidades, e ficais assim livre d a in veja, d a avidez, do ciúm e, d a am bição, d a a u to rid ad e, h á en tão necessidade de “e x p eriên cia” ? A m eu ver, só nesse estado a m en te p o d e com ­ p re e n d e r o que é ve rd adeiro, o q ue é falso, e se algo existe além do tem po. Só nesse estado po de ela estar livre do “conh ecido” e, p o r conseguinte, n ão se a c h a r n u m m u n d o de experiência, de “ desafio e reação ” , e de con hecim ento; só essa m en te pode descobrir o atem poral. 90 A m en te nova será d a m esm a n a tu re za q u e a v id a? N ão e n te n d o bem a significação desta p e rg u n ta . Ê u m a p e rg u n ta teórica, não? N ão estou fazendo pouco caso de vossa p e rg u n ta — se a m en te nova será d a m esm a n a tu re z a que a vida. N ã o estam os aq u i in teressados em idéias, símbolos, com parações; ou tem os a m en te nova, ou n ão a tem os. Se a tem os, n a d a m ais h á q ue d izer; se n ão a tem os, d e que m a n e ira podem os tê-la? É isso que interessa, e não- o “ com o é ela?” . P e r g u n t a : K r is h n a m u r t i: P e r g u n t a : É po ssív el n ã o term os n e n h u m a e x p e riê n c ia p sico ­ ló g ica? K r is h n a m u r t i: Psicologicam ente falan d o esse senhor p e rg u n ta : Ê possível n ão term os experiên cia psicológica? M ecan icam en te, pode-se acrescen tar, podem os ap erfeiço ar um m o to r passando do m odelo d e pistão p a ra o m odelo de jato , ou a p ro v e ita r a força m otriz do áto m o ; h á sem pre possibilidade de ap erfeiçoam ento m ecânico. P erg u n ta is se é realm en te possível, psicologicam ente, ficarm os livres d a experiên cia. F azend o esta p e rg u n ta , que respo sta esperais de m im ? “ Sim” o u “N ã o ” ? Se resp on do “ Sim ” , q ue v alo r tem isso p a ra vós? Se respon­ do “N ã o ” , direis que isso d em o n stra que n ão é possível (ficarm os livres d a e x p e riê n c ia ). N o final de tu d o , onde ficais? Descobristes se, psicologicam ente, é possível ou não u m a pessoa ficar livre d a expe­ riên cia; descobristes isso p o r vós m esm o ou fo i outro que vo-lo disse? P a ra descobrirdes a verd ad e atin e n te à vossa p e rg u n ta , deveis p e n e tra r fu n d o em vós n ao achais? Deveis investigar, q u eim ar tu do , p a ra p o ­ derdes descobrir. Sabeis que a m o rte é u m a coisa ex trao rd in ária. N ao se p o d e a rg u m e n ta r com a m orte, n ão se p o d e transig ir com a m o rte, n ão se pode a d ia r a m orte. E la é absoluta e positiva, a m ais d estru tiv a das coisas. P a ra saberdes o q ue é a m orte, deveis m o rrer p a ra tu do. D e m odo sem elhante, p a ra descobrirdes se é possível viv er, * neste m undo, livre d a au to rid ad e , deveis p e n e tra r p ro fu n d a m en te em vós m esm o, n ão achais? E isso significa q u e im pende n e g a r to ta lm e n te a a u to rid a d e do gu ru , a a u to rid a d e d a fam ília, a au to rid ad e do E stad o ; deveis a v erig u ar onde é legítim a e onde não é leg ítim a a a u to rid ad e do E stad o ; q u an d o deveis obedecer ao policial, e q u an d o o policial não e n tra em lin h a de conta. P : Falastes sobre n egação e contradição. C o n trad ição não é negação? e r g u n t a n r is h n a m u r t i: Eis a p e rg u n ta : Falastes sobre negação e c o n tra ­ d ição ; c o n trad ição n ão é negação? S im plificando-a: N egação n ão é co n trad ição ? K Q u e se e n te n d e p o r co n trad ição ? Q u a n d o diferentes desejos nos p u x a m em diferentes direções, q u a n d o desejo fazer u m a coisa e faço o u tra coisa, q u a n d o desejo ser delicado, m as sou indelicado , h á con­ trad ição . E essa c o n trad ição m in a a energia. N egação é co n trad ição ? R e s p o n d o : N ão! N egação n ão é contradição, p o rq u e n egação n ão é reação. T e n d o co m p reen d id o em todos os seus níveis o significado d a a u to rid ad e , p ercebid o p o r in teiro a au to rid ad e, o u a in v eja — nego-a. Isso n ão é con trad iç ão , n ão é reação. A o negard es u m a ce rta coisa, o u o fazeis p o r força de u m m otivo — e en tão a n egação se con verte n u m a asserção — o u a negais p o r verdes que é falsa. Isto é m u ito com plexo. T od os vós credes em D eus, p o rq u e assim vos ensinaram , p o rq u e fostes educados, condicionados p a ra crer em D eus. E n tre ta n to , p a ra descobrirdes se h á D eus, deveis n e g a r o D eus em q u e cred es; m as essa negação se to rn a u m a reação, se p ro v ie r de desco n ten tam en to p a ra com o D eus de q u e m esperais a lg u m a coisa. Po rém , a negação n ao é reação q u a n d o a m en te diz: “ E n q u a n to eu tiv er u m a crença, de q u a lq u e r n a tu re z a q u e seja — cre n ç a em D eus o u c ren ça n a n ã o existência de D eus — n a d a p o d erei descobrir; p a ra descobrir se essa coisa existe, ten h o de re je ita r to d a cren ça.” O ra , isso é m uito claro. P : Dizeis que a negação sem reação traz energia. Q u a l a fo n te dessa energia? e r g u n t a r is h n a m u r t i : A n eg a ção q u e te m m otivo , a n e g a ç ã o q u e é p r o ­ d u to de alg o q u e se d ese ja n o fu tu ro — q u a lq u e r n e g a ç ã o dessa n a tu re z a n ã o tra z a e n e rg ia d e q u e estivem os fa la n d o . P elo c o n trá rio , a n e g a ç ã o sem re a ç ã o é q u e tra z en erg ia. K O in te rro g a n te deseja saber de que fonte em an a aq u ela energia. N ecessita-se de energia p a ra negar. A m aio r p a rte de nossa energ ia deriva de nossas fugas, de repressão, de resistência; m as essa energ ia n ão é a m esm a energ ia de que se necessita p a ra negar. Foi isso que eu disse e sustento. N ão posso revogá-lo. V ós podeis ver com o adquiris energ ia, o riu n d a d a resistência. Isso é m uito simples. N ão está claro? E u resisto, e nesse processo de resistência ad q u iro energ ia. A dquiro en erg ia q u a n d o penso no nacionalism o, n a b a n d e ira h in d u ; sinto-m e em ocio nalm ente ag itad o e daí pro v ém u m a c e rta fo rm a de energia. Q u a n d o odeio, isso pro d u z u m a fo rm a de energ ia. T o d a s essas coisas 92 ge ram con tradições e, p o r conseguinte, a energia p o r elas g e ra d a é dissipada po r essas contradiçõ es. M as a energia de que falo, a energ ia q ue vem com a negação, é d iferen te. P e rg u n ta o cav alh eiro : “ Q u a l é à fo n te dessa en erg ia?” E m p rim eiro lugar, q u a lq u e r espécie de m o ­ tivo g era energia. Q u ero ter dinheiro, e isso produz energ ia; sinto u m im pulso sexual, um im pulso biológico, e isso produz energia. Assim, todo m otivo — ao que sabem os — p ro d u z certas fo rm as d è energ ia, q ue se to rn am co n tra d itó ria s; e se negais com m otivo, aq u ela energ ia se dissipa. M as, se negais p o rq u e com preendeis totalm ente, essa energ ia é necessária p a ra p e n e trard e s m ais fu n d o no processo d a m ente. D e on de provém essa energia? D e onde pensais que vem ? N ão espereis a resposta. É u m a m era p e rg u n ta . N ão h á resposta. Se fazeis u m a p e rg u n ta sem desejar resposta, vós a encontrareis. M as, se fazeis a p e rg u n ta esperando a c h a r a resposta, esta será en tão de acordo com vosso cond icio nam ento. Já , se fazeis a p e rg u n ta sem n e n h u m m o tivo , esse p ró p rio in d a g a r é fonte de energia. D esejo saber o q u e é esse “ estado a te m p o ra l” de q u e ta n to se fala. Q u a l a fo n te dessa ân sia de saber? É p o rq u e q u ero fu g ir do m undo, das desinteligências com m in h a m u lh er, d a m orte, d a doença? Nesse caso, o im pulso p ro d u tiv o de en erg ia gera co n trad iç ão e, com esta, dissipa-se a energia. Se faço a p e rg u n ta sem m o tiv o algum , p o r­ que a faço sem m o tiv o ? P o rq u e com preendi m uito cla ram en te , co m ­ p letam en te, q u e u m a p e rg u n ta feita com m otivo é com o o p e n sam en to que está a n co rad o n u m a c re n ç a : não po d e ir m uito longe. P e r g u n t a : Q u a l a fin a lid a d e d e tu d o isso, sen h o r? K r is h n a m u r t i : N a d a ten h o p a ra oferecer. N ão vos tom o os vossos m eios de fu g a: E u vo-los m ostro, apenas. Podeis conservá-los, a d o rá -los, fazer o que quiserdes — isso é convosco. P ro cu rei fazer-vos v e r algo qu e é bem m ais significativo. Pe : Pode-se v iv e r neste m un d o sem n e n h u m a c o n tr a ­ dição, psicologicam ente? r g u n t a Pode-se v iver neste m u n d o n u m estado em que, psicologicam ente, n ão h a ja c o n trad iç ão ? D esejo e x p erim en tar esse estado. E le deve existir. C om o devo pro ced er? A chais m u ito difícil isso? Sim plifiquem os. K r is h n a m u r t i: Sabeis o qu e é a m o rte? T endes presenciado a m orte — a con­ tin uidade d a m orte, nos cortejos fúnebres, n a d iá ria crem ação de cadáveres. — E u desejo saber o que é m o rrer, e n q u an to estou vivo, e n ão q u a n d o ficar velho, achacado. D esejo saber o que é m o rre r e n q u a n to vivo e em p le n a posse de m in has faculd ades, e n q u a n to m eu cérebro p o d e racio cin ar, en q u a n to ele n ão enferm ar. D esejo conhecer o estado, o sentim ento de m o rrer, de estar m orto. D esejo conhecê-lo, n ã o p o rq u e ele m e assuste, m as p o rq u e, com o disse, u m m otivo n ão m e po d e lev ar m u ito longe — pois o m o tiv o p re d e te rm in a o percurso. P o r conseqüência, vejo que a m en te desejosa de sab er o q u e é a m o rte deve estar livre de m edo. G abe-m e, pois, investig ar o que § o tem or. Pode-se viv er neste m u n d o sem m edo? Assim sendo, inves­ tigo, vejo, confiro, estou cônscio de c ad a m o vim ento de pensam ento. E é só' então, q u an d o n ão h á m edo e, p o r conseguinte, n e n h u m m otivo — q ue posso descobrir o que é a m orte. Isso significa q ue tenho de a b a n d o n a r to ta lm e n te tu do o que conheço. D evo m o rre r p a ra todas as coisas conh ecidas — m in h a fam ília, m in h a trad ição , m in h a virtude, tudo. É possível m o rre r? E u digo que sim, m as o dizê-lo n ão tem p a r a vós n e n h u m a v a lid a d e; só tem v alia q u a n d o m orreis p a ra todas as coisas conhecidas. Ao m orrerd es d iariam e n te p a ra “ o conhecido” , e jam ais acum ulando , descobrireis então o que é a m orte. E o desco­ b rim e n to do qu e é a m o rte vem com a com p reensão d a to talid ad e do m edo e, p o r conseguinte,’ com a lib erta ção do m e d o ; e o estar livre do m ed o é a fonte d a energia. P e r g u n t a : O a m o r é u m s e n tim e n to ? r is h n a m u r t i: P e rg u n ta esse cav alh eiro : O A m or é u m senti­ m ento? Q u e é sentim ento ? O sentim ento é com o o pensam ento. Sen­ tim en to é sensação. V ejo u m a flo r e “re a jo ” a essa flo r: gosto ou n ão gosto dela. O “ gosto” ou o “ n ão gosto” é d ita d o p o r m eu pensa­ m en to, e o pe nsam ento é reação do fu n d o de m em ória. Assim, digo: “ Gosto d a q u e la flo r” ou “N ã o gosto d aq u ela flo r” ; “ Gosto deste sen tim en to ” o u “N ão gosto d aq u ele sentim ento” . O ra , o a m o r está em relação com o sentim ento ? Q u a l é vossa resp osta? V ed e o que m in h a p e rg u n ta significa. E scutai-a! O a m o r é u m sentim ento? Sentim ento é sensação, evidentem ente — sensação de gosto e desgosto, de bom e de m au, de sabor agradável, etc. Esse sentim ento está relacionado com o am o r? Eis a questão. E q u e significa p a r a vós o am or? K Associais o a m o r à m u lh e r o u ao hom em , associais p a m o r ao sexo? Vós o fazeis, p o r certo, p o rq u e negaste a beleza; todos os vossos santos n e g a ra m a beleza. E a beleza está associada à m ulh er. Assim, dissestes: “ F o ra com o sen tim en to !” — e ficastes cu ltiv an d o u m a p erso n alid ad e áspera, u m “ eu” ru d e, n eg ad o r d a beleza. J á observastes a r u a em q ue m orais, a m an eira com o viveis em vossas casas, vossa m an e ira de sentar, vossa m an eira de falar? E, tam bém , já observastes os santos q u e cultu ais? P a ra eles, paix ão significa “ sexo” , p o rta n to 94 negam a paix ão, negam a beleza — “ n eg am -n as” neste sentido: a fas­ tam -nas p a ra o lado. Assim, ju n to com a sensação, jogastes fo ra o am or, porque, dizeis: “A sensação fa rá de m im u m prisioneiro, u m escravo do desejo sexu al; p o r conseguinte, ten h o de e x tirp á-la ” . D essa m an eira, to rnastes o sexo um p ro b le m a im enso. O sexo é p ro b lem a p a ra todos vós; e todos os vossos deuses, aos quais desejais unir-vos, vos m an d a m ser sem sentim ento , n u n c a o lh a r p a ra uma, m u lh er, n u n ca o lh ar p a ra um hom em , n u n c a o lh ar p a ra u m a árvore, p a ra o rio, p a ra as belezas d a T e rra . Bem , o am o r é u m sentim ento ? D epois d e com preenderdes o sentim ento, com pleta e não parcíalm en te, d e ­ pois de o com preenderdes realm ente, em sua to ta lid a d e , sabereis o q u e é o am or. Q u a n d o p u d erd es ver a beleza da árvore, q u an d o puderd es v e r a beleza de u m sorriso, q u a n d o p u d erd es ver o Sol a deitar-se atrás dos m uros d a cid ade — ver to ta lm en te — sabereis en tã o o q u e é p am or. P : Falais so b re “estar livre d a exp eriência” . O ra , é ju sto ficarm os indiferentes àquele q ue sofre p ela m orte d e e r g u n t a a lg u ém ? K r is h n a m u r t i: O ra , senhores, q ue se en te n d e p o r “ ser in d iferen te” ? N ão sois indiferentes a tu d o o que se está passando neste país, em fran co declínio? N ão sois, todos vós, in diferentes à sordidez, à esqualidez d a v id a q ue vos cerca? Escutai , p o r favor. N ã o sois in d iferen te ao am or, não sois in diferente ao vosso pró xim o, à a ld e ia q u e p ad ece fom e? P o rq u e sois indiferentes, dizeis q ue precisais a g ir; p o rq u e sois insensíveis, obrigais-vos a fazer alg u m a coisa. A in d iferen ça e a insensibilidade são co m p an h eiras inseparáveis. M as a m ente sensível, q ue se n ão deixa em b o tar pelas “ experiências” , é capaz de sim patia, de am or, de afeição p a ra com o próxim o. E o im p o rta n te é ser sensível, não estar em botado p ela experiência, p e la tradição, p ela a u to rid ad e, pelos deuses que o hom em in ven tou. N e ­ cessitais de u m a m en te sensível, p a ra p e n e trard e s as coisas. P : N ão elegestes u m a a u to rid a d e p a r a lib ertar-v o s d e to d as as a u to rid a d e s , in clu siv e d e si p ró p r ia ? (i.e., dessa p r ó ­ p r ia a u to rid a d e q u e e le g e s te s ). e r g u n t a K r is h n a m u r t i: Esse senho r diz que eu tenho u m a au to rid ad e que m e lib erta de todas as au to rid ad es, inclusive de si pró p ria. D everia eu aceitar u m a tal a u to rid ad e ? Se eu encontrasse u m a a u to rid ad e que des­ truísse todas as anterio res auto ridades, inclusive a si p ró p ria , deveria eu a c eita r essa. au to rid ad e? N e n h u m a a u to rid ad e pode, em tem p o algum , lib ertar-v os de q u a lq u e r o u tra a u to rid a d e ; e se o faz, essa a u to - 95 rid a d e fica en ra iza d a em vós; p o rta n to , n a o destruístes a au to rid ad e, só trocastes a a n tig a au to rid ad e p o r u m a a u to rid ad e nova. Se essa a u to rid a d e negou as dem ais au to rid ad es e vos a ju d o u a libertar-v os de todas as au to rid ad es, inclusive de si p ró p ria , on d e a necessidade de a c e ita r q u a lq u e r a u to rid a d e que seja? V e jo q u e a a u to rid a d e é u m a coisa perniciosa. P en etrei-a e exam in èi-a bem . — N ão m e perg unteis n a d a sobre a a u to rid a d e d o policial, a a u to rid ad e do G overno, etc .; ^não desejo a p re c ia r este p o n to ago ra. A com preensão d a a u to rid a d e é de ab so lu ta necessidade p a ra a m en te livre; e só a m en te livre pode descobrir , e n ão a q u e la qu e está e n tra v a d a . Se com preen derdes o pleno significado d a au to rid ad e, n ão p o rq u e o u tra pessoa vos m a n d a o lh ar ou vos diz q u e só podereis ser livre q u a n d o vos lib erta rd es d a a u to ri­ d a d e — se com preenderd es, com o resultado de vosso p ró p rio exam e, vosso p ró p rio in d a g a r, vossa p ró p ria investigação, em c a d a d ia de vossa v id a, vereis en tão qu e n ão h á a u to rid ad e n e n h u m a . N ã o tendes necessidade de a c e ita r a u to rid ad e de espécie alg um a, inclusive a m in h a p ró p ria . M as isso req u e r e x tra o rd in á ria com preensão, percepção dos fatos. A questão é se a m ente religiosa é a m en te in d iv id u al o u a cole­ tiva. Q u será o u tra coisa? Senh or, a vossa m en te, a q u e la de q u e vos servis, é u m a m en te in div idual, q u e r dizer, in d ep en d en te? Vossa m en te é in d ep en d en te? O u ela é m eram en te “ coletiv a” , ação do “ co­ letiv o” , m o d ificad a no presente p o r várias experiências, incidentes e acid entes? V ossa m en te é in d iv id u al? Podeis exercer u m cargo técnico, u m a fu n çã o m ecân ic a; vossa m en te é in d iv id u al? N ã o pertenceis ao “ coletivo” ? T odos sois hind uístas, cristãos, católicos, budistas, com u­ nistas, hindus ou russos — vós sois o “coletivo” . O perceberdes que sois o “ coletivo” , o perceberdes este fato e lib ertard es a m en te do “ coletivo” — isso só é possível m ed ian te auto-ínvestigaçao, m ed ian te auto conhecim ento . E o lib e rta r a m en te de suas lim itações, pelo autoconhecim ento, suscita u m a m en te nova, que n ã o é indiv idual, nem coletiva, p o rém algo de to do novo. Posso dizer-vos u m a coisa, senhores? E m p rim eiro lugar, m uito vos aprecio a am abilidade de terdes vin d o ouvir m in h as palestras. M a s . elas serão to ta lm en te inúteis, sem v alo r algum , p u ras cinzas, se vos estivestes n u trin d o apenas de palavras, de idéias, de teorias, p a ra serem acrescentadas às velhas teorias q ue já possuís. Porém , se esti­ vestes escutand o de m an eira q ue o p róprio escu tar constituísse u m ato de auto-invetig ação, de auto con hecim ento, neste caso, estas pales­ tras terão real significação; então, elas vos levarão ao In finito. 14 de janeiro de 1962 . 96 DA TRANSFORMAÇÃO INTERIOR (N o v a D e l i — I) 5 e r i a interessante se pudéssem os, pelo m enos v erb alm en te, estabelecer com un icação en tre nós, já q u e p a ra a m a io ria das pessoas a lingu agem con stitui o único m eio de com unicação. N ão h á o u tra m an e ira de nos com un icarm os e, p o r conseguinte, a linguagem te m sem pre im p o rta n te p a p e l n a com unicação, n a com unhão. S eria n a tu ­ ralm en te m u ito bom se pudéssem os, dois ou três de nós, reu n ir-n o s p a ra e x a m in ar com calm a e p ro fu n d e z a estas questões, m as infeliz­ m en te tal n ão é possível. Assim sendo, o que podem os fazer é estabele­ cer, exata m en te no com eço, a c o rre ta relação en tre o o ra d o r e vós. N ão têm estas palestras n en h um objetiv o propag andístico. T a m ­ pouco se de stinam elas a dizer-vos o que deveis fazer o u de q u e m a n e ira deveis pensar, ou a encam in har-v os n u m a d ete rm in a d a n o rm a d e c o n d u ta ou o rd em de idéias. As idéias são tão só p en sam en to v e rb a ­ lizado e, em si, elas pouco significam . N ã o p o d em p ro d u zir tra n sfo rm a ­ ção rad ical, tra n sfo rm ar de to do a m ente. E aqueles que d ep en d em das idéias p a ra estim ulá-los a transfo rm ar-se sairão deste a c am p a ­ m en to de m ãos vazias, p o rq u a n to aqui não nos ocupam os com idéias. Estam os tra ta n d o de coisa m ais p ro fu n d a, m ais d u ra d o u ra , e q u e significa u m a revolução rad ic al n a qualidade d a p ró p ria m ente. E essa revolução não po de ser p ro d u zid a com palavras, nem com idéias. As palavras têm u m significado. P alav ras n ão são coisas; e as idéiàs — se as observam os bem ■ —• se a ju sta m a u m p a d rã o de pensam ento. E idéias e palavras n ão têm n e n h u m p a p e l significativo e p ro fu n d o em nossas vidas — pelo m enos n ã o o têm n a v id a dos hom ens p ro fu n d a ­ m en te refletidos e sérios. Assim, desde o com eço, devemos co m p reen ­ der-n os m u tu am en te. N ão tem p o r fim esta reu n ião converter-vos a q u a lq u e r idéia o u m odo de pe nsar indiv id ual. Pelo co n trário , irem os e x am in ar questões 97 às quais tereis de a p lic ar o vosso ser in te iro ; e n ão devereis — nu m a base m era m e n te in te lectu al — ac eita r ou re je ita r certas palavras. C u m p re, tam bém , te r sem pre presente que nao estam os falan d o como a u to rid ad e . N ão h á a u to rid ad e em questões espiritu ais; não h á seguir, n ão h á guia, n ão h á guru. C a d a u m tem de descobrir p o r si m esm o a luz. E o que d u ra n te estas palestras irem os te n ta r é, não só escla­ recer p a ra nós mesmos òs em pecilhos que nos são im postos p ela sociedade, m as tam b ém descobrir o cativ eiro em q u e a m en te está * sendo m an tid a . Nessas condições, irem os investigar, p rin cip alm en te, de que m a ­ n e ira fazer nascer u m a m ente n o v a e de todo diferente, u m a d iferen te m a n e ira de pensar, u m a a titu d e diversa, u m a no v a o rd em de valores. E p a ra ta l necessita-se de u m p en sar claro e preciso; necessita-se tam ­ bém de c a p a c id a d e p a ra e n fre n ta r a v id a in te ira m e n te só. E isso, p o r certo, n ão se consegue com a “ m en te coletiva*5, pois esta n u n c a será capaz de revolução. Só a m en te individual , a m en te não e n re d a d a n a sociedade, n a tra d içã o social, nas p ráticas d a sociedade — é capaz de revolução. N ecessita-se de in d iv id u alid ad e p a r a h a v e r u m a revo­ lução rad ical, e n ão de sim ples a ju stam en to a p a d rã o estabelecido p e la sociedade. A m ente in d iv id u al tem a possibilidade de fazer o necessário p a ra o p erar u m a tran sfo rm ação d u ra d o u ra , revolu cionária, no m un do . C um pre-nos, pois, d iferençar e n tre “ ação coletiva’* e “ação in d i­ v id u a l” . N ós não somos verd adeiros indiv íduos; somos o resu ltad o do “ coletivo” . Vós sois o resultado de vossa sociedade, d a religião, d a educação, do clim a, d a alim entação, dos trajo s, d a trad ição , do m eio em q ue fostes edu cado — sois isso, exatam ente. E pensardes que sois u m “in d iv íd u o ” constitui v e rd ad eiro absurdo, com o vereis, se investigardes p ro fu n d a m en te a questão. Podeis te r u m nom e, u m corpo diferente, u m a c o n ta no banco, certas qualid ad es superficiais; m as, essencialm ente, a to ta lid a d e de vossa m en te está bem condicio­ n a d a p e la sociedade e m ,q u e foi ed u cad a. E a c a p ac id ad e de p erceb er essa condição e de ro m p e r a cro sta secu lar do passado — essa é a q u alid ad e, a intensid ade, a com p reensão que faz nascer a in d iv id u a ­ lidade. P o rq u e só a en tid ad e in d iv id u al, e n ão a coletiva, é capaz d e desco brir o q u e é real. Só a m en te in div idual, e não a coletiva, pode verific ar se h á , o u se n ão h á a q u ilo q ue se ch a m a “D eu s” . A m en te coletiv a só sabe re p e tir a p a la v ra ; m as a p a la v ra “deus” não é D eus. A m en te “coletiv a” po d e ler o Gita, c ita r os U paniskads e todas as au to rid ad es religiosas; m as essa m en te n u n c a descobrirá o V erdadeiro. Só a m en te q u e ro m p eu com a tradição, q u e destroçou os palores 98 im postos p e la sociedade, que se lib erto u do passado — só ela é capaz de descobrir. E o qu e nos interessa é descobrim ento, e não asserções, acordos o u desacordos. N ós m esmos é que temos d e descobrir. M a s é quase impossível descobrir o v erd adeiro, descobrir se existe o atem p o ral, além dos lim ites d a m en te — se pertenceis a alg u m a religião, se sois h in d u ísta, p a rsi{* ), s ik h (* * ) , cristão, se pertenceis a q u a lq u e r religião o rg an izad a; p o rq u e c ren ça e d o g m a são, essencialm ente, obstáculos ao descobrim ento. Só a m en te que percebe todas ás falsid ades e influências co ndicionad oras dessa p ro p a g a n d a ro tu la d a de “religião” — só essa m en te p o d e lib ertar-se, descobrir. M as isso req u e r m u ita p e n e traç ã o , m u ita investigação, vigilância, percebim ento das coisas com o são, e não m e ra aceitação o u rejeição p u ra m e n te in telectu al. P o rq u e o a c e ita r o u re je ita r é sim ples questão de intercâm bio verbal. M as, se realm en te em preendem os o tra b a lh o de descobrir — e nós precisam os descobrir — tem os de p ô r em d ú v id a todas as instituições. Pois todos devem os torn ar-n os cônscios d a situ a ­ ção m u n d ial, d a geral deterio ração. As religiões fa lh a ra m co m p leta ­ m ente. A educação n ã o tro u x e a p az ao m u n d o , em b o ra se pensasse, o u tro ra, que, dand o-se in stru ção ao hom em , ele se to rn a ria tão civi­ lizado que d eix aria de h a v e r guerras, já n ão h a v e ria nacionalid ades. M as tu d o isso se foi “ por. á g u a ab aix o ”, p o rq u an to , com os atu ais m eios de interco m unicação , está-se verificando e x tra o rd in á ria m u ta ­ ção. A rap id ez com q ue se está pro cessando essa m u ta ç ão é bem m ais significativa do que a p ró p ria m u ta ção . E n ão h á p az neste m u n d o , e n en h u m político, de q u a lq u e r espécie q u e seja, jam ais conseguirá tra z er a paz ao m undo. Isso p o rq u e os políticos — ta l com o a gene­ ralid ad e das pessoas, que tam b ém são p arcialm en te políticas — estão interessados p rin cip alm en te nos problem as im ediatos: o im ediato bem -estar, a ação im e d ia ta , sem se p re o c u p a r com a persp ectiv a. O b ser­ vando vossa p ró p ria vida, podereis v er q u e n ão sentis interesse n a to talid ad e d a vid a, só vos interessand o o “ im ed iato ” — vosso em prego, vossa posição, vossa fam ília, etc. — tudo isso d e n tro dos lim ites do “ im ed iato ” . O po lítico é o b viam ente u m hom em interessado nas coisas im ediatas. E os cham ados líderes sociais e religiosos estão ig u al­ m en te interessados n o “ im ed iato ” . M as é necessário pro m o v er u m a revolução radical. Pode u m a pessoa n ão estar cônscia d a a tu a l dete rio ração m en tal. E n tre ta n to , se {*) (**■) p a r s i : h in d u sectá rio s ik h : d o Z o ro astria n ism o . a d e p to do s i k h i s m o , se ita h in d u ís ta . 99 observardes, vereis q u e h á c a d a vez m enos lib erd ad e n o m u ndo. As dem ocracias „falam de lib e rd ad e ; m as todos têm de subm eter-se às regras do p a rtid o , o u à trad ição . E a observância d a trad ição é, evi­ d e n te m en te, u m a coisa fatal, p o rq u e im possibilita o h om em de ver c laram en te, de discern ir p ro fu n d a m en te . E, em vista n ão só d o estado em qu e se a c h a o m u ndo, m as tam b ém d a an g ú stia e da confusão n ele reinantes, os q u e pensam com c e rta clareza tra ta m de n e g a r a im p o rtâ n c ia dos líderes e d a a u to rid a d e ; e o resu lta d o é m ais con^ fusão, m ais con flito e, p o r conseguinte, m ais deterio ração. Esto u certo de qu e tendes feito a vós m esmos esta p e rg u n ta : Q u e se deve fazer n u m m u n d o que se a c h a em ráp id o declínio ; que se po de fazer a rèspeito d a g u erra, d a am eaça d a b o m b a ( * ) , d a tira n ia e do cerceam ento d a lib erd ad e; e que po d e fazer u m indiv íduo em face do p ro b le m a d a fom e em todo o O rien te , d a pobreza, d a d eg ra­ dação , d a geral desu m an id ad e? Q u e podem os, vós e eu, fazer? O u a ação çabe ao G overno e em n a d a con cerne ao in div íd u o ? E, tam bém , deveis ter p e rg u n ta d o a vós m esm os: V endo-se o m u n d o com o é, existe alg um a realid ade, u m a coisa q u e se possa “ ex p e rim e n tar” , descobrir? Estas p erg u n tas só po d em ser feitas q u a n d o a pessoa está m u ito p ro fu n d a m en te insatisfeita, em p ro fu n d o descontentam ento. M as a m aio ria de nós, q u an d o nos vem os descontentes, encontram os fáceis possibilidades de nos contentarm os, fáceis m an eiras de nos satisfazerm os. E n ão sei se tendes n o tad o que, q u a n to m aio r a confusão, q u a n to m aio r a in certeza, ta n to m aio r se to rn à a busca de au to rid ad e , ta n to m aio r o desejo de apo iar-n os nas coisas do passado. E, obser­ v a n d o tu d o isso, observ ando os fato s que estão realm en te sucedendo — os fatos, e n ão as opiniões relativas aos fatos, n ão o vosso con­ c o rd a r ou vossa tra d u ç ã o dos fatos em confo rm id ade com vosso fu n d o — torn a-se èvid ente a necessidade de terdes u m a m en te nova, p a ra e n fre n ta r esses fatos, p a ra com preendê-los e in stitu ir u m a diferen te m an e ira de viver. Sem d ú v id a, o p ro b lem a é q u e h á u m im enso acúm ulo de conh e­ cim entos proven ientes dos séculos passados, o peso do passado d ian te d o fu tu ro , q u e é desconhecido, u m a p a re d e lisa, q u e desconheceis co m p letam en te, m as o traduzis nos term os do p re té rito e, p o r conse­ g uinte, pensais conhecê-lo. M as, realm en te, n ã o o conheceis. E esse m e p a rece ser o p ro b le m a c e n tral p a ra o hom em q u e realm en te sen tiu e, p ro fu n d a m en te , fez a si p ró p rio p erg u n tas irrespondíveis — (* ) 100 R efere-se à b o m b a d e h id ro g ên io . (N . d o T .) pois a m aio ria das pessoas faz p erg u n tas com o fim de e n c o n tra r as respostas. P erm ití-m e dizer, aqui, q ue h á u m a m an e ira d e escutar , e u m a m a n e ira de apenas ouvir palavras. A capacidade d e escutar é u m a arte, p o rq u e, q u an d o escutam os, escutam os sem trad u zir, sem in te r­ p re ta r. Escutam os, en tão , n ão com o fim de con co rd ar o u discordar, pois isso é falta de m ad u re za ; m as p a ra realm en te descobrir. P o rtan to , deveis escu tar. M as n ão podeis escutar, se ficais trad u zin d o o que ouvis em term os do q ue já conheceis, daquilo com q ue estais fam ilia­ rizado. T alv ez desconheçais o que se está dizendo ; po r conseguinte, deveis escutá-lo sem o in te rp re ta rd e s consoante o vosso fu n d o , pois, se assim estais fazendo, cessastes de escutar. T e n h o dúvidas sobre se já alg u m a vez escutam os alg um a coisa! E m geral, não desejam os escutar, p o rq u e isso é m u ito perigoso: tem os m edo de desp ed açar as coisas que nos são caras, as coisas com que estam os habitu ados. Assim, lim i­ tam o-nos a o u v ir pa lavras, p a ra , in telectualm ente, con co rd ar o u dis­ cordar. E dizemos, e n tã o : “ C om o ju n ta r a ação àquilo q u e pensam os? In te lec tu alm en te concordam os com o que estais dizendo, m as com o pô-lo em p rá tic a ? ” T a l coisa n ão existe: com p reensão in telectu al; o que estais dizendo significa apenas que ouvis as p alav ras e que elas têm certos significados idênticos aos q u e conheceis; e essa id e n ­ tid ad e de significados é o q ue cham ais com preensão, co n co rd ân cia in telectual. N ão h á co n co rd ân cia in tele ctu al, tal coisa n ão existe. O u com preendeis o u n ão com preendeis. E p a ra com preender p ro fu n d a m en te , realm en te, com todo o vosso ser, tendes de escutar. J á escutastes vossa esposa, vosso m arid o , vosso filho, ou m esm o vosso p a trã o ? N ós não ousam os escutar. E q u an d o ten tard es fazê-lo (talvez o deixeis p a ra o u tra ocasião ou talvez o façais a q u i), vereis que no p ró p rio a to de escu tar se verifica u m a p ro fu n d a tra nsfo rm ação. O p ró p rio ato de escutar, e n ão o de c o n co rd ar com u m a idéia, p ro d u z essa transform ação. Se assim escutais, se escutais com to do o vosso ser — com todos os vossos sentidos, vossa m ente, vosso coração — se escutais to ta lm en te o que vos dizem , o que sentis , ficais aptos a discernir o q ue é verd ad eiro e o q u e é falso. E, escutando, descobrireis p o r vós m esm o o verd adeiro, pois o a to de escutar é o ato de descobrim ento do fato. E n tre ta n to , estam os sem pre evitando o fato, q u a lq u e r q u e ele seja, p o rq u e tem os opiniões a seu respeito. N u n c a o olham os, p o rq u e desejam os fazèr alg um a coisa a respeito dele, p rocuram os organizar-n os de m an e ira q ue possam os a tu a r sobre o fato. C onsiderem os u m a coisa m u ito simples q ue está ocorrend o neste d esafo rtu n ad o p aís: a doença do nacionalism o. O s políticos estão-lhe 101 av iv an d o a cham a. E, se observardes, vereis q u e o fato é que as nacio ­ nalidades estão sem pre em g u e rra en tre si, e q u e elas são responsáveis pelas gu erras. A ve neração d a b a n d e ira é u m sím bolo. E o símbolo, segundo se supõe, cria a u nidade. M as ele, com efeito, n ão d á de m odo n e n h u m u n id ad e ao m und o. Bem ao c o n trário , as b an d eiras estão sep aran d o os hom ens, tal com o o têm feito as religiões. Isso é u m fato. Q u e r o adm itais, q u e r não, é u m fato. Esse fato está ocorj ren d o em nosso p a ís; ésse veneno , que n u n c a existiu aqui, está-nos sendo in o cu lad o n a m en te, a fim de se c ria r a u n id ad e. M as a u n id ad e n ão po d e ser c ria d a com u m a b a n d eira. N ão se po d e c ria r a u n id ad e m ed ia n te u m símbolo. U m símbolo é m e ra p a la v ra, n ão é a coisa real. E p a r a en fren ta rd es esse fato , p a r a descobrirdes o q u e é v er­ d ad eiro , necessitais de to d a a vossa cap acid ad e, to d a a vossa in teli­ gência. E isso significa q u e deveis dissociar-vos co m p letam en te do “coletiv o” . M as ta l é dificílim o, p o rq u e correis o risco de p e rd e r o em prego , de vos ind isp ordes com vossa fam ília; p o d e rá h a v e r u m sem -nú m ero de obstáculos inconscientes a vos im p ed irem de o lh a r o fato. C onsiderem os o u tro fa to m u ito simples. V ós vos denom in ais h in duístas, sikhs, m uçu lm anos, e sabe D eus o q u e m ais. P o r m eio de secular p ro p a g a n d a fizeram -vos p en sar que sois isto e aquilo . M as isso n ã o vos faz ser u m a pessoa religiosa, n ão vos d á a q u alid ad e d a v e rd a d e ira m en te religiosa. O bedeceis ao p a d rã o d a religião organi­ za d a — dessa suposta religião, q ue tem dou trinas, crenças e dogm as religiosos. E , agora, p a ra en fren tard es esse fato, deveis escutar , p a ra conhecer a q u alid ad e d a v e rd a d e ira m en te religiosa. E , q u a n d o assim escutais, isso significa que estais com eçando a dissociar-vos d a p ro ­ p a g a n d a a que ch am am religião. Nessas condições, senhores, p a ra poderdes e fe tu ar a transfo rm ação in te rio r de vós m esmos e, p o rta n to , do m undo, n ão d everá essa tra n s­ fo rm ação p ro ce d e r de n en h u m a com pulsão, nem de concordâncias, n em de p ala v ras e argum entos in telectu ais, p o rém do descobrim ento do v erd ad eiro , realizado p o r vós m esm os (pois n inguém vo-lo pode m o strar) m ed ian te o percebim ento pró prio. Podeis dizer q ue estais de acordo, p o r en q u an to , intelectualm ente, talvez. M as, depois de vos irdes d aq u i, continuareis a ser h in d u ísta, continuareis a ser cristão, sikh, m uçu lm an o , o u qu aisquer que sejam vossos títu los e rótulos. M as, se rea lm e n te vos escutardes, escutardes o “ processo” de vosso p ró p rio pensar, observardes os fatos, vereis então que j á n ão fazeis p a rte do “coletivo” , nem d a trad ição , já em processo de dissolução. E essa lib ertação n ão resu lta de esforço consciente, pois esforço consciente é m e ra reação, e to d a reação provoca novas reações. 102 Estais, pois, escutando o q ue aq u i se está dizendo — q u er dizer, estais realm en te escutando a vós meâmo, $ não ao orad o r. O o rad o r só vos está dan d o indicações p o r m eio de palavras. M as, se seguis apenas as p ala v ras e seus significados, elas n ão vos levarão longe. M as, escutand o, vereis de fren te o fa to d a d eterio ração que, m ais rá p id a , talvez, do qu e nu n ca, está ocorrendo n o m u n d o ; vereis q u e o m u n d o está cain d o nas m ãos dos políticos, dos tiranos, dos reacionários. C o m a p a la v ra “ reacio nário s” refiro -m e aos que se in titu la m revolucio ná­ rios m as são v e rd a d e ira m e n te tirânicos p o r cau sa d a reação, p o rq u an to baseiam n a reação tod as as suas ativid ades e pensam entos. O com unis­ m o, p o r exem plo, é u m a reação ao capitalism o. E reação significa a p en as reavivar, de fo rm a m o d ificad a, o passado. Assim sendo, observando-se tu d o isso — que a religião p e rd e u tod o o seu significado, q ue a edu cação está fo rm an d o técnicos e nao entes hum anos, que a existência m o d ern a é ex trem am en te superficial — que cu m p re fazer? C om o e n c o n tra r u m a saída desse m atagal, desse caos? T u d o de pende d a m an e ira com o fazeis essa p erg u n ta. Podeis fazê-la em consequência de reação e encontrar, assim, u m a respo sta q ue será tam bém re a ç ã o ; ou podeis fazê-la sem esperar res­ posta algum a. Ao fazerdes u m a p e rg u n ta sem esperar resposta, pois n ão h á resposta, sois reen v iad o a vós m esm o e, po r conseguinte, te n ­ des de in d ag a r d en tro em vós m esm o e n ã o fo ra d e vós. E m geral, fazemos p erg u n tas p o rq u e desejam os respostas. T e n h o u m p ro b lem a qu e desejo resolv er; p o rta n to , faço u m a p erg u n ta. N ã o desejo desco brir a v e rd a d e c o n tid a n o p ró p rio problem a, n ão desejo p en etrá-lo p ro fu n d a e in flexiv elm ente; o que eu quero , a todo transe, é e n c o n tra r a solução, p o rq u e o p ro b lem a m e p e rtu rb a . D esejo u m a respo sta satisfató ria, c o n fo rtan te, con veniente — e essa resposta, n a ­ tu ra lm e n te , será u m a reação. D essarte, to d a in d ag ação p ro d u tiv a de reação só po d e p ro d u zir m ais reações e, conseqüentem ente, m ais problem as. Podeis a p lic ar isso a vós pró prios, se vos apraz, p o r vós m esmos podeis v er a seqü ência lógica de ta l in d ag ar. O u podeis p e rg u n ta r, sem estar buscando , sem estar desejand o n e n h u m a resp o sta; e, então, q u a n d o o fazeis, sois reenviado a vós m esm o e, p o r conse­ g uinte, tendes de in d ag a r, in te rio rm en te, com o vossa m en te pensa, o q u e pensais e p o rq u e o pensais — pois o que pensais e porque pensais , o que sentis e p orque sentis , isso é que cria o problem a. Se, sem com ­ preender-vos, vos lim itais a fazer u m a p e rg u n ta q u e vos p ro p o rcio n e respo sta satisfató ria, estais evitando o fa to — o que é — e esse fa to é que vós sois o c ria d o r do problem a, e n ão a sociedade, n ão a religião, em seu estado atu al. 103 Assim, m u ito im p o rta a m an e ira com o fazeis a p e rg u n ta — e vós tendes de fazê-la. Se a form ulais com o desejo de e n c o n tra r u m a saíd a das aflições e da confusão rein an tes n o m u n d o , encontrareis facilm ente algum gu ru, algum p ro feta, alg u m guia o u líd er q u e m o ­ m e n ta n ea m e n te p o d e rá a p la c a r vosso descontentam ento, vossa aflição. M as, no fim de tu d o , onde ficais? C o n tin u ais n o m esm o lu g a r onde estáveis, p o r n ao terdes com preendido que sois o c ria d o r dos prob lei m as. M as, se p erg u n tais e não tentais obter resposta, vossa p e rg u n ta tem en tão o fim de descob rir; m as só podeis descobrir e x am in an d o vosso p ró p rio p en sar, a q u a lid a d e do vosso sentir, a n a tu re z a d e vossas emoções. O qu e, pois, vam os fazer nestas p alestras n ao é d a r soluções a p roblem as, já q u e isso é sem valo r, triv ia l; o que vam os fazer é a p re n d e r com o olhar os problem as, com o in vestig ar c a d a p ro b le m a que a v id a ap resen ta, de m odo que, pelo c o rreto investigar, possam os descobrir. C om as p alav ras “c o rreto investig ar” q u ero d izer: jam ais p ro c u ra r a solução em nin guém , em n e n h u m livro, n e n h u m a a u to ri­ dade, porém , sim, investigar com o fim de co m preender todo o c o n te ú ­ do do prob lem a. E p a ra esse in vestig ar necessita-se de u m a m en te bem clara, p en e tran te , lógica, sã, capaz de e n fre n ta r fatos. Deveis v e r que vossa m en te está co m p letam en te presa ao passado, à trad ição , à m em ória, à experiên cia d e m ilh ares de dias idos, e que com ela é q ue olhais a v id a — a vida, q ue é peren e m ovim ento e variação , que n u n c a p á ra . Assim, a m en te p ro m a n a do tem po , sendo “ tem p o ” o passado que m o ld a c ad a p ensam ento e sentim ento. C o m essa m ente, que é o passado, o resultado de séculos de tem po , estam os ten ta n d o co m p reen d er a e x tra o rd in á ria m u ta ç ão que está ocorrendo no m undo, estam os p ro c u ra n d o co m p reen d er o sofrim ento. C o m essa m ente, bus­ cam os c o m p reen d er o fu tu ro , o desconhecido. Assim, im p en d e co m p reen d er p o r nós mesmos, e p a ra isso p rec i­ samos inv estig ar o estad o de nossa p ró p ria m en te — nao ten ta n d o “ resolver” o estado d a m en te, porém , sim , com preendê-lo. É necessário com preendê-lo . C o m a p a la v ra “ co m p reen d er” quero dizer: o lh ar as coisas sem con denação, olhá-las sem ava liação — o q u e é dificílim o p a r a a m aio ria das pessoas, senão to d as; olhar, ver, escutar, sem in ­ tro d u zir opiniões, juízos, condenações e justificações: o lh a r apenas. N ã o sei se já alg u m a vez fizestes isto — o lh a r sem pensam ento , o lh ar u m a flor sem lh e ap licar todos os vossos con hecim entos de b o tân ica — o lhá-la, sim plesm ente. Se o exp erim entardes, vereis q u a n to isso é difícil, pois a m en te é escrava das palavras. A p a la v ra é m ais signifi­ c a tiv a p a ra a m aio ria de nós d o que o fato. E, e n q u a n to a m en te 104 fo r escrava de p alavras, de conclusões, de idéias, será to ta lm en te in cap az de olhar e com preender. C o m p ree n d e r u m fato n ã o é te r opinião a respeito dele, m as, sim, ter a cap acid ad e de olhá-lo — olhá-lo sem julg a m en to , sem a palavra. N ão sei se já alg u m a vez olhastes p a ra u m a ave ou u m a árv ore, o u p a ra a esqualidez, a im un dície das ruas. E sto u em pregan do as p ala v ras “ esqualidez” e “ im u n d ície” no sentido lexicográfico, sem lhes e m p resta r n e n h u m co nteúdo em ocional. P orq ue, vede bem , se estais a p to a o lh ar, deixa de h av er m edo. N ão h á tem or ao serdes capaz de olh ar, capaz de o lh ar a vós m esm o. E precisais o lh ar dessa m an eira, pois só assim podereis conhecer-vos. Se n ão vos conheceis, n e n h u m a razão tendes p a ra pensar, n e n h u m a base tendes p a ra o p ensam ento , pois sois u m m ero au tô m ato , que pen sa o que se lhe m a n d a pensar. M as, se fordes cap az de observar-vos, d e observar vossos m odos d e ser, vosso pensar, vossas atividades, observar com o olhais as pessoas, o que vedes, o que fazeis, com o falais — tu d o isso — descobrireis en tã o que essa observação, esse ver, esse to ta l percebim ento é energia, é a ch a m a q ue consom e o passado. E vereis então, p o r vós m esm o, q ue a m en te p e n e tro u fundo em si pró p ria. A m en te tem de p e n e tra r em si m esm a p ro fu n d am en te, po rque o fo m ento d a educação, do progresso, d a industrialização, nos está to rn a n d o c ad a vez m ais superficiais. E a v id a n ão é só in d ú stria , n ã o é só exercer um em prego, g a n h a r dinheiro e g e ra r filhos. A vida é coisa bem m ais grand io sa do que tu d o isso, in clu in d o tam b ém tu d o isso. M as o m en o r n ão pode conter o m aio r; o m aio r é q u e contém o m enor. E n tre ta n to , ap are n te m e n te , contentam o-nos com o m en o r e, p o r conseguinte, estam os interessados no “ im ed iato ” . E a v id a se está to rn a n d o sobrem odo superficial. Pensais q ue ir sem anal ou d ia ria ­ m en te a u m a cerim ônia h induísta, a isto ou àquilo, vos to rn a m u ito “ d ireto ” , pensais ser m u ito atila d o p o rq u e lestes u n s tantos livros; m as tu d o isso é m u ito superficial. O p ro fu n d o n ão se en c o n tra em n en h u m livro, a in d a q ue seja o G ita ou os U panishads. N ã o se en co n ­ tra em n e n h u m guru, n e n h u m tem plo ou ig reja. C u m p re ser en co n ­ tra d o d e n tro de vós mesmos. T en d es de p e n e tra r m uito , p e n e tra r p ro fu n d a m en te em vós m esm o, passo po r passo, observando c a d a m ovim ento de vosso ser, c ad a ação, c a d a sentim ento. E vereis e n tã o que n ã o h á lim ite, q ue n u n c a se alcan ça o fu n d o d aq u ilo q ue vedes. P o r certo, só a m en te que de to do se dissociou d a sociedade, d a trad ição , que se to rn o u capaz de estar com pletam ente só, só ela p o d e descobrir se existe o inefável, o incognoscível. E existe. Digo q ue existe; m as isso n e n h u m v alo r tem p a ra vós, absolu tam ente, p o rq u e vós é q u e ten des de descobri-lo. O lab o rató rio sois vós m esm o; cabe-vos dem olir, d e stru ir tu do, p a ra poderdes descobrir. Essa ê a ú n ica revo­ lu ção interessante, de p ro fu n d a significação; não o é a revolução econôm ica, a rev olu ção social, a revolução in d u stria l a que estam os assistindo neste país. Só h á u m a revo lução: a revolução d a m ente, a revolução d a consciência; e essa rev olu ção não se realiza com discussões, com p ala ^ vras, com inferên cias e conclusões. Essa revolu ção chega , p ro fu n d a , d u ra d o u ra , precisa, ao p e n etrard es em vós m esm o, sem a c eita r coisa alg um a e, p o r conseguinte, con testando tudo. E, com esse pró p rio co n te star, q ue n ã o é busca de n e n h u m a resposta, descobrireis que u m a e x tra o rd in á ria revolução ocorrerá sem esforço algum . E só então a m en te po de descobrir p o r si m esm a se h á, ou não, o atem poral. 21 de janeiro de 1962. 106 OS OBSTÁCULOS PSICOLÓGICOS (N o v a D e u — II) D i z í a m o s , em nossa ú ltim a reu n ião , no dom ingo, q u a n to é im p o rta n te q ue se realize u m a revolução to ta l — não sim ples re ­ fo rm a, reorganização d a sociedade, porém a com pleta e in te rio r revolução m en tal. Dissemos q ue se faz necessária u m a n o v a m en te, não só p a ra e n fre n ta r a p resen te crise, que c o n tin u am en te se expande e p io ra, m as essa m en te nova é tam bém necessária p a ra descobrirm os p o r nós m esmos o que é verd ad eiro e se h á u m estado de criação fo ra do tem po . D e m a n d a isso u m a m en te nova, u m a m en te n ã o escravi­ za d a p e la obediência à a u to rid ad e e que encerre em si, to ta lm en te , aquele estado de h u m ild ad e n o q u al, tão só, é possível aprender . E , com o disse antes, po d e a pessoa libertar-se d a sociedade? Pois é só pelo lib ertar-se d a sociedade que surge o indivíd uo , a in d iv id u a ­ lid ade. E tem esse indiv íduo alg u m a possibilidade de to rn a r existente u m a m en te nov a? Dissem os q u e a sociedade é o passado e que c a d a u m de nós é o resu lta d o do passado. C a d a u m de nós resu lta de seu am biente, d a sociedade em q u e vive, do m eio c u ltu ral em q u e se criou, d a p ro p a g a n d a religiosa in cu lc ad a através d e séculos. C a d a u m é resu lta d o de tu d o isso, o u seja, do passado. É possível o in d i­ víduo libertar-se to talm en te desse passado, q u e n ã o é apenas o d ia de o ntem , p o rém m uito s m ilh ares de dias p reté rito s; o passado, q u e é a bo m ba atô m ica e é tam b ém a tradição do h induísta, do cristão, do b u d ista ou de tod as as o u tra s religiões, do revolu cionário social que é o com un ista? O passado n ão é apenas tradição, m as tam b ém o resultado dessa tra d ição que, em con ju nção com o presente, cria o fu tu ro . V isto q u e p a ra a m aio ria de nós a tra d içã o é im portantíssim a, devemos co m ­ p reen d ê-la. H á a trad ição do tecelão, a trad ição do cientista, a tra d i­ 107 ção do eru dito, a tra d ição d a c h a m a d a “ pessoa religiosa” , a tra d içã o d o técnica. O n d e tra ç a r a lin h a de dem arcação en tre todas essas v ariedad es de trad ição , e q u a n d o é que o conhecim ento técnico é essencial p a ra se viver neste m undo, e q u a n d o é to talm en te p reju d icia l à m en te c riad o ra? Penso que c a d a um de nós d everia com preender esse pro blem a ,da trad ição , p o rq u a n to a tra d ição é a fin al de contas “ h á b ito a m a d u ­ recid o pelo tem p o ” , E esse h á b ito d á fo rm a ao nosso p ensam ento , m o ld a a nossa existência, força-nos a exercer u m em prego, a m a n te r u m a fam ília, o q u e a c a rre ta responsabilidades, deveres e m o ralid ad e, q ue tam b ém in clui a obediência. T o d as essas coisas sao, p o r certo , trad ição , com põem a tradição, con stituem a tradição. Pode a tra d içã o con correr p a ra suscitar a m en te criad o ra, isto é, a m en te no va? O u o h á b ito im pede a total apreensão d aq u ilo que se a c h a além do tem po ? N ão h á h á b ito bom e h á b ito m au — todo h á b ito é a m esm a coisa. M as, sem dúvida, é de e x tra o rd in á ria im p o r­ tâ n c ia lib e rta r a m en te do h ábito, p o rq u a n to u m h á b ito n a d a m ais é qu e u m a técnica, u m a m an e ira fácil de viver, e m que n ão se necessita p e n sa r p ro fu n d am en te. É p o r essa razão q u e a m aio ria de nós cu ltiv a hábito s, os quais se to rn a m quase auto m áticos, de form a que n ão tem os necessidade de exercer em dem asia nossa v italid ad e ou nosso pensar. Assim, cultivam os os hábitos, os quais, g rad u alm en te, com o tem po, se to rn a m tradição. O ra , tu d o isso vem a ser o passado, o passado que in clui as idéias, os deuses, as diversas influências conscientes e inconscientes, as várias com pulsões e ânsias, as nu m erosas acum ulações a q ue estam os a p e ­ gados. T u d o isso — n ão apenas as m em órias acu m u lad as do indivíd uo, d a pessoa, m as tam b ém os conhecim entos acum ulado s p ela h u m a n i­ dad e, através dos séculos —- con stitui o passado. A acum ulação, no consciente, é a a tu a l edu cação técnica, as influências am bientes e sociais do presente. H á , tam bém , no inconsciente, o resíd uo de m ilê­ nios de esforços h um anos — conhecim entos, esperanças, frustrações, exigências im previstas. Eis o passado. O passado sois vós, e n a d a m ais h á senão o passado. E considero m u ito im p o rta n te com preen der isso. P or “ co m p reen d er” n ão se e n te n d a “co m p reen d er in telectualrnente, v erb alm en te” . Se m eram en te assentis no que se está dizendo, m eram en te concordais ou discordais e, v erb alm ente, in telectu alm en te, acrescentais o u tras p articu larid ad es ao q ue se disse, nesse caso n ão estais com preendendo, pois q u a lq u e r um pode c o n co rd ar com q u alq u er 108 coisa o u ser p ersu ad id o a n ã o co ncord ar. M as, sem d ú v id a, a co m ­ preensão difere p o r inteiro. E la surge q u a n d o dais to d a a vossa aten ção n ão só às p alav ras e sua significação, m as tam b ém à vossa reação às palavras e àq u e la reação q ue é a “resposta” d e vossa m e ­ m ória, ou seja, do pa ssado; todo esse processo g era a com preensão. E estas palestras não são u n icam en te verbais, n ão se destinam a ser apenas u m a série de idéias p a ra com elas vos entreterdes. Elas se dirigem aos q ue sentem sério interesse, a rd o r, que estão dispostos o u desejam ir até o fim com a in ten ção de descobrir —- a té ao fim , m as n ão o estéril fim in te le c tu al das p alav ras e teorias: a té o ú ltim o lim ite d e u m a idéia, de u m p en sam en to , ta l com o “ o passado ” ; com a in te n ção de inv estig ar p ro fu n d a m en te , prosseguir lógica, sã, ra c io ­ nalm en te , até o fim . Q u em assim p ro ced e é v erd ad eiram en te sério, n ão se d e ix a rá e n tra v a r p o r n e n h u m a fórm ula. E este é o nosso prop ósito, n e sta tard e , isto é, n ão apenas inves­ tig a r verb alm en te, m as tam b ém estar em ocio nalm ente em c o n ta to com a p alav ra. H á d iferen ça e n tre essas d u as coisas. A m e ra v e rb a ­ lização n ão está em conexão com nossas emoções, nossos sentim ento s; h á separação en tre a id éia e o sentim ento que d á orig em à ação. Q u a n d o separam os a idéia, iso lam o -la do sen tim en to ; e h á , en tã o , a co n trad ição en tre o sentim ento e a idéia. E a m aio ria d e nós c o n ­ some q seu tem po p ro cu ra n d o u m a m an e ira de u n ir o intervalo e n tre a idéia e a ação. Id é ia é sim plesm ente p a la v ra, idéia é sim plesm ente u m a série de pensam entos verbalizados. As idéias n e n h u m valo r têm . C om o deveis te r observado, todos os políticos, no m u n d o inteiro, falam de paz. São pregações falsas. Eles falam de paz, e n q u a n to p re p a ­ ram a gu erra. F a lam de não am bicio narem p o d er, posição, prestíg io e, no e n ta n to , estão sequiosos, ard en d o em desejos disso. T ra ta -se , pois, de idéia. M as nós não estam os interessados em id éias; estam os in teressados no fato de qu e a ação só é possível q u a n d o h á co n ta to em ocional com o fato. E u estou certo de que o passado po d e ser co m p letam en te dissol­ vido. O fu tu ro , o desconhecido, acha-se além d a m u ra lh a d o passado. M as, p a ra ir além , p a ra ro m p e r a m u ra lh a , o indivíd uo precisa ex a­ m in a r a fu ndo a qu estão do passado. N ão é possível p e n e tra r v e rb a l­ m en te o in teiro processo d a consciência. N ã o é possível in v estig ar com o pensam ento. O pen sam en to é in cap az de investigação, p o rq u e o pensam ento nasce d e reação. O pen sam en to é reação d a m em ó­ ria, e a m em ó ria p ro m a n a d a exp eriência; a experiência é o co n d i­ cio nam ento em que fomos criados. O pensam ento, pois, não constitui o m eio de investigar, o in s tru m e n to ;de indagação, in q u irição . 109 Assim, ao perceberm os m u ito cláram ente, p e n e tran te m e n te, q ue o pen sam en to não é o in stru m en to de investigação, de que m an e ira poderem os, e n tã o , investigar, com preender? E n q u a n to falo, ten d e a b o n d a d e de escutar, p a ra verdes q u al é o estad o de vossa p ró p ria m ente. N ã o vos lim iteis a ouvir p alav ras, p o rém servi-vos delas p a ra a b rir a p o rta de vossa p ró p ria m ente. P orque, nesta tard e , o q ue deveras estam os fazendo rep re sen ta o “processo” de a b rir a p o rta de * acesso a vós m esm o, a vosso in terio r. Estam os fazendo u m a in te rn a p ereg rin ação , fazend o ju n to s u m a viag em de explo ração de todo o processo d a m en te. Se estais apenas ouvin do p alav ras, isso n en h u m v a lo r terá. M as, se m e estais a c o m p a n h a n d o —- n ão apenas m e ouvind o, p o rém v iaja n d o ju n to comigo -— descobrireis en tão p o r vós m esm o a v e rd a d e o u a falsidade do que se está dizendo. E se o intelecto não é o in stru m en to de investigação, n ão é o m eio de a b rir a p o rta , q u al é en tão esse m eio? N ão estou em pregando a p a la v ra “ m eio” no sentido de m étodo , sistem a, p rá tic a , disciplina — pois tu d o isso são in fantilid ades, n ão im p o rta q u e m d ig a o con­ trá rio . A m en te qu e segue u m sistem a é u m a m en te estreita, lim itad a. E a m en te disciplinada, m o ld ad a, co n tro lad a, deix a de pensar. M as eu estou em p reg an d o a p a la v ra “ m eio” n o u tro sentido, e in d ag an d o se isso a q ue acabo de referir-m e n ão constitui o meio, q u e é en tão q ue o constitui? Se o pensam ento n ã o é o m eio de descobrir com o dissol­ v e r o passado, p o rq u e o p ró p rio pensam ento é o passado, resu ltad o do passado — e, p o r conseguinte, in capaz de dissolver o passado — q u a l é en tão o m e io ? C om o pode o passado ser dissolvido? Espero esteja p e rfe ita m e n te claro o que estou dizendo. A m ão que d á n ão pode ao m esm o tem po to m ar. O pensam ento deseja dissolver o passado e, no e n ta n to , o pensam ento origina-se do passado. N e n h u m a ação, n e n h u m a “ p ro jeção ”, n en h u m desejo, n e n h u ­ m a volição p ro ce d e n te do passado pode dissolvê-lo, pois tu d o isso são a in d a coisas do passado. T u d o o que fizerdes, c ad a ação, ca d a sacri­ fício, c a d a m ovim en to d a m en te é coisa do passado; e o pensam ento, o qu e q u e r q u e faça, n ão po d e dissolvê-lo. Se isso está bem claro, n ã o apenas de acord o com vosso m odo de p en sar — pois n ão se tra ta ap en as de concord ardes comigo, o que n e n h u m a im p o rtâ n c ia tem — en tão o relev an te é descobrir se se po d e dissolver o passado. O passado pode d a r a técnica d a existência diária, con stitui ele o m ecanism o d a existência c o tid ia n a ; oferece-nos meios, facilidades, m as n ão p o d e levar-nos m u ito longe. E nós tem os de em preender u m a viagem p a ra além dq passado, do tem p o ; e isso é necessário p o rq u e a ú n ica re ­ volu ção im p o rta n te é a rev olu ção religiosa. E só essa revolução pode 110 ex tra ir a o rd em desta desordem . E xplicarei isso m ais ad ian te. N ã o é um a contradição. O pensam ento, pois, em n e n h u m a circu n stâ n cia nos oferece o m eio de sairm os do passado. O passado é necessário, pois, do c o n trá ­ rio, não poderíam os saber onde m oram os, n ão saberíam os nosso pró p rio nom e, não poderíam os dirigir-nos ao escritório, n ã o reconheceríam os nossa m ulh er, nosso m arid o , nossos amigos, nossos filhos, não sabería­ mos sequer falar. O passado é m em ória, e a m em ória é essencial. N ão podem os jo gá-la fora. M as o cultivo d a m em ória, que é o conheci­ m ento, que é a expansão do p ensam ento , não pode de m odo n en h u m q u e b ra r a m u ra lh a do passado. E a m ente, p o r conseguinte, n u n c a é nova, fresca, jovem , inocen te. E é só essa m en te nova, fresca, inocente q ue conhece a h u m ild ad e — e não aq u ela que está lev and o a c a rg a do passado. Assim, com o ro m p e r o passado? H á u m ato q ue se realiza com o ver. Prestai, p o r favor, u m pouco de a te n ção ao q u e se está dizendo. Ju sta m en te p o r ser tão simples, achareis difícil com preendê-lo; nossa m en te é p o r dem ais com plicada, im a tu ra , cheia de inform ações sem n e n h u m valor, tão tem erosa e insegura. V endo-se insegura, a m en te busca a segu rança e, dessa m an eira, au m e n ta a in seg u ran ça; e essa m ente é in capaz de v e r q u a lq u e r coisa sim ples e, p o r conseguinte, de agir com sim plicidade. V o u estender-m e u m po u co sobre o ato de ver, que, ta l com o o ouvir, é um ato ex trao rd in ário . O u v ir sem ju lg am en to , sem p e n sa ­ m en to, sem a p a la v ra, sem in te rp re ta ç ã o , sem c o n d e n ar n em a c e ita r; apenas ouvir, q ue rep resen ta u m estado d a m en te sobrem odo a te n ta ; ouvir u m a pessoa, n ão im p o rta quem , vosso filho, vosso m arid o , vosso p a trã o , o co n d u to r do ônibus; ou v ir co m p letam en te — isso re q u e r m u ita atenção, não co n cen tração , p o rém atenção, sim plesm ente. E o ver e o escutar im plicam essa atenção. H á o passado, n in g u ém o p o d e negar. Ele aí está, sólido, em b rutecendo, e m utilan d o , e destru in d o a m en te nova, que deve conservar-se bem viva. Isso é u m fato, n ão apenas u m fato exterior, m as tam b ém u m fa to psicológico. É preciso v e r o fato sem co ndenação, sem ju lg am en to , vê-lo m eram en te, v e r o que é o passado. D eixai-m e agora co n sid erar de o u tra fo rm a a questão do ver. P a ra a m aio ria de nós a a u to rid ad e é im p o rtan tíssim a — a a u to rid ad e dos livros, dos cham ado s “ livros sagrados” ; a a u to rid ad e do policial, d a lei; a a u to rid ad e do p a trã o , d a tra d iç ã o ; a au to rid ad e sob o aspecto de dom ínio do m arid o sobre a m u lh e r ou d a m u lh e r sobre o m arid o e dos pais sobre os filhos; a a u to rid ad e q u e obrig a a o b ed ecer; a 111 a u to rid a d e qu e ta n ta desordem criou neste m undo. P orque, p e ia obe­ diência, n ão se c ria ordem , p o rém só desordem — com o o fazem to d as as tiranias. Isso tam b ém é u m fato , ta n to externo com o in tern o — o fato de obedecerdes. E vosso constante desejo é de e n c o n trar u m a au to rid ad e q u e vos dê seg u ran ça e conforto , u m a a u to rid ad e d u ra d o u ra , que vos propicie aq u ela grande, im ensa satisfação q ue cham ais “p a z ” . P restai a ten ção a tu d o isso, aplicando-o a vossa pessoa. N ão estais escu tando p alav ras, estais escu tando a vós m esmo. N ão estais escu tan d o idéias, estais a observar-vos n u m espelho. Podeis v o lta r as costas ao espelho, n ão olhá-lo; m as ele lá está, se quiserdes servir-vos dele. E n q u a n to a q u i estais, olhai-vos no espelho que sois vós m esm o. N ã o h á en tão n e n h u m a a u to rid a d e — a au to rid ad e q u e vos o b rig a a fazer coisas, a a u to rid a d e d a c o n d u ta correta, a a u to rid ad e que diz q u e deveis e q u e não deveis, a a u to rid a d e que destrói to d a ação c ria ­ d o ra — com o se vê no caso do soldado. Ao soldado n ão é p erm itid o pensar. Só se lhe p erm ite obedecer. Q u a n to m ais co m p letam en te obe­ dece à a u to rid ad e , sem hesitação, ta n to m ais com pleto é o soldado. P o rq u e p a ra ele n ão h á respo nsabilidades: seus superiores assum em a responsabilidade; eis p o rq u e a g u e rra é tã o “ p o p u la r” . É isto o que a m aio ria de nós deseja: a a u to rid a d e do guru q u e nos diz o q ue devem os fazer; e n ã o precisam os pensar, n ão precisam os sentir, porém , som ente, seguir. E a obediência se to rn a, assim, quase u m a seg und a n atu reza. E u m a nação e d u c ad a n a obediência deixa de ser u m a nação . Ê o que está acontecen do em nosso p obre país. N inguém contesta n a d a , n a d a se faz p a ra q u e b ra r a au to rid ad e . N ão m e refiro à a u to rid ad e do governo, nem à a u to rid ad e d a L ei; se q u eb rard es esta, se sonegardes im postos, ireis p a ra r n a prisão. Isso é b em claro e não é esta espécie de a u to rid ad e q ue digo que se precisa q u e b ra r; isso seria m u ito estú­ pid o e in fan til. Ao dizer que se precisa q u e b ra r a a u to rid ad e, refiro -m e à q u e b ra d a a u to rid ad e psicológica, a a u to rid ad e que c a d a u m form ou d e n tro de sl p ró p rio , e que significa obedecer: obedecer ao guru, obe­ decer à tradição, obedecer ao preceito , d o b rar o joelh o à c h a m a d a religião, que o u tra coisa não é senão p ro p ag a n d a . A preciarem os, m ais tard e, essa questão religiosa. A a u to rid ad e, pois, m utila, a au to rid ad e causa d ete rio ração ; a pessoa n u n c a é livre, e h á sem pre m edo. E com o pode a m ente subm etid a a auto ridad es de to d a espécie, d a p e q u e n a a u to rid ad e à sum a a u to rid a d e do guru, de S an k ara e de todos os santos — com o pode essa m ente descobrir, p o r si p ró p ria, o que é v erd adeiro? E la deve, p o r certo, descobrir po r si o que é v e rd a ­ 112 deiro. E la n ão precisa q u e m il gurus lhe dig am o q u e é verd adeiro, pois todos eles p o d em estar enganados, e pro vavelm ente estão. M as vós m esm o ten des de desco brir; e p a ra pod erd es descobrir, devéis destru ir to d a e q u a lq u e r a u to rid a d e q u e criastes d e n tro de vós. Essa p ró p ria rejeição p ro d u zirá algo que podereis c h a m a r desordem , p o rém essa desordem é, n a realid ad e, o m ed o que surge q u a n d o se com eça a contestar a a u to rid a d e in terio r, a dem olir a casa edificada atrav és de séculos, p rin cip alm en te neste nosso país, o ra em estado de d e te ­ rioração. Percebeis o fato , q u e é a au to rid ad e, e a seguis, dizend o: Q u e aconteceria se n ão houvesse n e n h u m a au to rid ad e in te rio r? P ro ­ vavelm ente, se n ão houvesse a u to rid ad e interio r, vos veríeis p e rtu r ­ ba do p o r uns poucos dias, m as não tard aríeis a a c h a r o u tra a u to rid a ­ de p a ra su bstitu ir a ve lh a. E, n o ín te rim , h á desordem , e essa desordem vos assusta. C erto , senhores, ten des de dem olir tu d o , p a ra serdes capazes de criar, cu m p re im p u g n a r tudo. E, nesse p ró p rio im p u g n a r, to rn a-se existente a in d iv id u alid ad e ; d o c o n trário , con tinuam os a ser “ a m assa” . E , certam ente, isso é q u e é necessário hoje em d ia: d u v id ar de tu d o , d u v id ar, m as sem de sejar e n c o n tra r a solução. Se duvidam os com um m otivo , isso já n ão é d u v id a r; o que se q u e r é m eram en te u m resultad o. M as, se se d u v id a sem m otivo n e n h u m — o q u e é u m a coisa v e rd a d e ira m e n te e x tra o rd in á ria — a m en te está en tão c a p ac i­ ta d a p a ra ver o qu e é verd adeiro. É, p o rta n to , m uito im p o rta n te q u e se to rn e existente u m a m en te nova, u m a m en te fresca. E a m en te n ão p o d e to rn ar-se assim, se está sob a c arg a d a au to rid ad e. A u to rid a d e não é apenas a do guru, a do livro, a d a m u lh e r e do m arid o , etc., a d a v o n tad e de d o m in ar, m as h á tam b ém u m a a u to rid ad e de significação m ais p ro fu n d a , q u e é a d a experiência. P o rq u e quase todos nós vivem os segundo a experiência, esta se to rn a nossa a u to rid ad e . H á a exp eriência do cien tista que, d u ra n te séculos, acu m u lo u conh ecim ento s — e isso é a u to rid a d e ; e h á tam b ém a exp eriência q u e c a d a u m de nós acu m u lo u e q u e se to rn a nossa a u to rid a d e — e isso, m ais u m a vez, é o passado : a a u to ­ rid a d e de qu e a m en te consciente está cônscia e tam b ém a a u to rid ad e constitu ída p e la experiência a c u m u la d a no inconsciente. E x p eriên cia é reação a desafio. Perg unto -vos u m a coisa. O p ró p rio p e rg u n ta r é u m “desafio” a q u e “ respo ndeis” , e esse “resp o n d er” é “ e x p e rim e n tar” . E esse e x p erim en tar decorre de vossas experiências <anteriores, conver­ tidas em a u to rid ad e. V ede, p o r favor, o q u a n to isto é simples. P o d e rá parecer-v os m uito com plicado , m as n ão é. T o d a experiência p erten ce ao passado. 113 E n e n h u m a “ respo sta” o u reação d a experiência, p e rte n ce n te ao pas­ sado, pode q u eb rar-lh e a m u ra lh a. Assim, a a u to rid ad e , de q u a lq u e r espécie qu e seja, in te rn a o u ex tern a, n ão lib e rta rá a m en te do passado. E n u n c a sereis senh or do fu tu ro , a n ão ser nas coisas m ecânicas, p o rq u a n to o fu tu ro é o “desconhecido” . M as, nós olham os o fu tu ro , o a m a n h ã , com os olhos do passado e, p o r conseguinte, pensam os p o d e r controlá-lo. E , de fato, m ecanicam ente, nós o contro lam os: ^ a m a n h ã irei ao escritório, a m a n h ã colherei certos resultados de m i­ n h as atividades, etc. etc. M ecan icam en te , freis fazer coisas de todo g ên ero ; p o r isso pensais q u e sois o senh or do fu tu ro , m as n ão o sois. Psicologicam ente, n ã o sois senh or do fu tu ro , q u e é o a m an h ã. Pois, com o podeis ser senh or de algo q u e desconheceis? C om o podeis ser o sen h o r de u m a m en te nova, fresca, inocente? Assim, ao verdes — e em prego o verbo “ v e r” no sentido já antes explicado — ao verdes q ue certas form as externas de a u to rid ad e são necessárias, tal a au to ­ rid a d e do engenh eiro, do m édico, do governo, d a Lei, do policial, m as que q u a lq u e r o u tra form a de au to rid ad e é destru tiv a e im pede a m en te de ser livre, então vossa m en te p o d e rá ser livre. E só a m ente livre po de p assar além. C om o vimos, somos o resultado do passado. Nós somos o pas­ sado. E n e n h u m a “ p ro jeção ” do passado é o fu tu ro , a n ã o ser m eca­ n icam en te, a não ser no tem po. T o d a s as “pro jeções” p a r a o fu tu ro , tais com o “ Serei isto psicologicam ente”, “A lcançarei o alv o”, o u “ D es­ cobrirei a V e rd a d e ” — todas elas procedem do passado e, conseq ü en tem en te, causam conflito. A go ra, se sois capazes de v er isso n a to ta lid a d e — isto é, ver to talm en te, con fo rm e e x p liq u e i: com vossa m en te, vosso coração, vossos sentidos, vossos olhos, vosso nariz, vossos ouvidos, e tam bém m e n ta l e em ocionalm ente; se sois capazes de v e r q u a lq u e r coisa sem contradição, sem esforço — decobrireis en tão q u e o passado po d e ser dem olido, n ão a pouco e pouco, p o rém to ta l e im ed ia tam en te , p o rq u e o ver n ao p e rm ite interv alo. N ão h á intervalo e n tre ver e atuar . Espero esteja claro o qu e estou dizendo. C om o vedes, senhores, m uito im p o rta a fa star a contradição, liv rarm o-nos d a con tradição, p o rq u e a co n trad ição p ro d u z conflito. R efiro-m e à co n trad ição in te rio r, psicológica, às falas insinceras do político — e a m aio ria de nós se deixa in flu en ciar p o r tais pregações. E se, ao qu ererdes p e n e tra r realm en te até ao fim de c ad a pensa­ m en to, introduzis a contradição, ela vos im pede de ir m ais longe, pois n ela ficais envolvido. O q ue estam os, pois, encarecendo é o ver to ta lm en te} sem contradição, 114 Senhor, o verdes q u e estais encolerizado — que significa esse ver? O fato é que estais encolerizado. E q u a n d o vedes esse fato , sem co n ­ testá-lo, sem justificá-lo n em d izer: “ Isto é co rreto ” ou “ Isto é in ­ co rreto ” — q u a n d o estais sim plesm ente cônscio, sem n e n h u m a escolha, do fato de qu e estais encolerizado, en tão esse p ró p rio fa to p ro d u zirá u m a ação não co n tra d itó ria . E n tão , n ão procurais a p a re n ta r o c o n ­ trário , não procurais persuadir-vos do contrário, nem disciplinar-vos p á ra não sentirdes cólera, p o rq u a n to no p ró p rio ato de v e r não h á contradição. E é m u ito im p o rta n te com preender esse a to de ver, p o rq u e em torn o desse p o n to g ira rá tu d o o que v o u dizer, já q u e é este o único fa to r lib e rta d o r: o ato de ver, o ato de escutar. N ao tereis então necessidade de fazer coisa algum a. M as, p a ra poderd es v er tão co m p letam en te deveis estar aten to , e a aten ção exclui a contradição. N ã o podeis p resta r aten ção q u an d o estais co n denando. N ã o podeis d a r to d a a vossa aten ção se lutais p a ra n ão serdes ciu m ento. Só q u a n d o estais p erfeitam en te cônscio de q ue sois ciu m ento o u invejoso, só en tão essa fato pro d u z sua p e c u liar e n e r­ gia. E necessita-se de u m a energ ia tre m en d a p a ra essa atenção. E o ato de v er é atenção. N ão estou fala n d o de n e n h u m a coisa m ística, de n en h u m processo especial, de n e n h u m a m an e ira especial de p e n sar — tu d o isso é só absurdo. Estam o-nos m ovendo de fa to p a ra fato. E o ato de ver, sem co n d en ação , ju lg am en to , avaliação, sem a p a la v ra, que é p en sam en to ; o ato de olhar, observando c a d a m ovi­ m ento, c ad a sentim ento, p restan d o aten ção to ta l a tu d o o que vedes e sentis -— esse ato de v e r p ro d u z u m a m ente nova, u m a m en te fresca. Essa m en te n o v a n ão é c ria d a pelo pensam ento, p e la m o d ern a e d u ­ cação, pelo fre q ü e n ta r o tem plo, ler incessantem ente o Gita o u o Corão ou a Bíblia. E la só p o d e nascer do ver; e, p a rã poderdes ver, tendes de contestar com todas as forças. E o p ró p rio a to de v e r é bem destru tiv o, p o rq u a n to destró i a sociedade em que fostes criado. J á não vos in teressa n e n h u m a refo rm a d a sociedade. N ã o podeis refo rm a r a sociedade, p o rq u a n to a sociedade é resultado d o passado. E se a quiserdes refo rm ar, estais a in d a d e n tro d o passado. M as o hom em qu e q u eb ro u co m p letam en te o passado — e isso é possível — esse hom em , u m a vez q u e está só, po d e in flu ir n a sociedade; m as isso é secundário. P o r conseguinte, o im p o rta n te e essencial é ver-se a necessidade de u m a m en te nova. E a m en te no v a n ao pode ser c ria d a pelos artifícios d a m en te, o u seja o pensam ento. A m en te no v a só p o d e n ascer q u a n d o se contesta a sociedade em q u e se foi criado. M as n ão podeis contestá-la se ten des u m m otivo. Assim, o ver a :a u to rid a d e , o 115 ver a obediência lib erta a m en te d a obediência. A fin al de contas, o q ue nos im pede de ver é a co ndenação, a ju stificação — e isso é o passado. Assim, q u a n d o olhais, q u a n d o vedes, q u an d o escutais, sem condenação, estais livre do passado. V ós podeis olhar , e p a ra fazê-lo necessitais d a a te n ç ã o ; e a aten ção é a essência d a energ ia. E essa en erg ia só p o d e torn ar-se existente q u a n d o estais co n stan tem en te o lh an d o , vig iando, observando, vendo, con testando . * Assim, em v irtu d e desse ex trao rd in ário escu tar e v er a m en te desfez suas am arras, sua ligação com o passado. A m en te está anco­ ra d a n o passado, a m ente é o passado; m as q u a n d o a m en te d á to d a a ate n ção ao ver, está q u eb rad o o passado. E só essa m en te fresca, jovem , inocente, po de u ltra p assa r as lim itações q u e a m en te a si p ró p ria impôs. Só en tã o é possível u m a pessoa descobrir p o r si p ró p ria, com o in divíduo q ue já n ão faz p a rte d a sociedade, se h á o u se não h á o Im ensurável. 24 de janeiro de 1962. 116 OS FATORES DA MUTAÇÃO (N o v a D e l i — III) 5 e m e p e r m i t i s , co n tin u a re i com o assunto de que está ­ vam os tra ta n d o em nossa reu n iã o de sexta-feira passada. D izíam os en tão q u e e ra su m am en te im p o rta n te adotarm os u m a no v a m a n e ira de p en sar e, tam b ém , que e ra de to d a a necessidade u m a nova m a ­ n e ira de viver, neste m u n d o q u e se to rn o u tã o superficial, com cres­ centes prob lem as e a co n stan te perspectiva de trem endos perigos. N ão deno tam os perceber — p rin c ip alm e n te neste país •— quão grave é o prob lem a. A qui, acham o-nos em relativ a seg u ran ça; talvez estejam os m u ito corrom pidos, m as tem os segurança. T em os nossos problem as: o nacionalism o se in ten sifica, en q u a n to noutros países está sendo re p u d ia d o ; tem os a in d a líderes, q u a n d o noutros países os estão re je i­ tan d o ; tem os tam bém a a u to rid a d e d a posição, en q u a n to noutros países a a u to rid ad e está sendo posta em dúvida. A q u i m u ito se fala de religião, m as, n a realid ade, n ão somos religiosos, ab solu tam ente; vivemos, com o q u a lq u e r outro , superficialm ente, interessados apenas em g a n h a r dinheiro, te r êxito, pro g red ir, divertir-nos, com o todos os dem ais h a b ita n te s deste m u n d o , em bora falemos em alto som a respeito de D eus, etc. Nessas condições, p arece-m e de essencial necessidade o ad vento de u m a nova m entalidade. N ão deixareis de reconhecer q u a n to é u rg en te essa necessidade, se observardes as condições m undiais, a geral superficialidade, os êxitos m ecânicos, o progresso técnico, as trem endas influências postas em ação. Se observam os ain d a m ais a te n tam e n te essas condições, p en etran d o -as com certa p ro fu ndeza, n ã o podem os d eix ar de ver que é indispensável u m a nova m entalidade. E essa no v a q u a lid a d e não pode ser c ria d a po r n en h u m a espécie d e progresso técnico. C u m p re perceber isso bem claram ente. E , se m e perm itis, 117 desejo estend er-m e m ais u m pouco sobre o q u e estava dizendo n a ú ltim a sexta-feira. Gomo sabeis, vós sois o resultado do passado, de m uitos dias que ficaram p a ra trás. Sois o resultado de vosso am biente, d a sociedade em que fostes educados, d a p ro p ag a n d a c h a m a d a religião que h á séculos vem sendo in stilad a em vós. Podeis fa la r m u ito eloqüentem en te sobre as idéias religiosas e a in fluência o cid en tal n a m ente ’’'o rie n ta l, n a vossa m en te ; m as tu d o isso co n tin u a a ser m u ito perfunctório. Pe rcebendo bem isso, q u a lq u e r pessoa v e rd ad eiram en te séria n ão po de d e ix a r de p e rg u n ta r a si p r ó p ria : P a ra onde nos está levando tu d o isso, q u a l a fin alid ad e disso? Ao fazerdes com to d a a seriedade esta p e rg u n ta , podereis re to rn a r ao vosso condicionam ento e responder q ue tu d o “ d a rá c e rto ” , que se tra ta apenas de u m a tem p o rária m u ­ tação p ela q u a l o ho m em está passando, e que no fim desta confusão tu d o sairá certo, p o rq u e h á D eus, p o rq u e h á Ju stiça, Beleza, A m or. M as tu d o isso são só palavras sem m u ita significação. O hom em fam in to n ão se satisfaz com p ala v ras: ele q u e r com ida. Se fizerdes seriam ente aq u ela p e rg u n ta a vós mesmo, vereis que, com o já salien­ tam os, sois o resu ltad o do passado — o au tên tico resu ltad o — e que n ão h á n a d a novo. T o d a te n ta tiv a p a ra alc an çar o novo é realm en te u m a reação do “ velho” , p ro je ção de u m a ce rta p a rte do velho, sendo “ o velho” a religião em qu e fostes criado , o m eio cu ltu ral, a in flu ên cia d a fam ília, d a trad ição , etc. Assim, não h á n a d a novo. E , en tre ta n to , as circun stâncias d a v id a — a crise atu al, a presente confusão, m iséria, sofrim ento, fom e — exigem o ap arecim en to de u m a no v a m en ta lid a d e ; n ão de u m a no v a o rd em de idéias, pois não se necessita de novas idéias o u ideais, p o rém , antes, de “u m novo acesso à v id a ” , de todo diferente. E esse “novo acesso” n ã o é de m odo n e n h u m questão de tem po . Isto é, precisam os de m u ta ção , de im e d ia ta tra nsfo rm ação, de u m a no v a q u a lid a d e m en tal, p a ra p ro d u zir u m a ação de q u alid ad e diferente, novos valores. E com o irá efetuar-se essa m u ta ç ão ? E ra sobre isso que estávam os ten ta n d o fa la r n a ú ltim a sexta-feira, e desejo prosseguir com este tópico. Estivem os dizendo q u e é im p o rta n te co m p reen d er u m fato : o fa to de q u e estam os im itando, de que estam os em busca de êxito, de. que somos ambiciosos — que relev a verm os esse fato . P o rq u e o p ró p rio a to de ver o fato pro d u z a m u ta ção . O p ró p rio ato de ver u m a c e rta coisa com o u m fato, sem e m itir opinião, n em ju lg am ento, sem cond enação, pro d u z o necessário ím peto, a energ ia que o p e ra rá a m u ta ção . T alvez a m aio ria de vós n ão com p reen d a o significado 118 desse ver, desse escutar. E desejo a p re c ia r esse ponto , p o rq u an to , p a ra m im , o ato de ver, o ato de escu tar constitu i o ún ico m eio, o único in stru m en to q u e o p e ra rá u m a revolução, a tran sfo rm ação d a m ente. E m m aio ria desejam os o bom êxito. V o u fa la r a esse respeito, a fim de aju dar-v os a v e r o fa to — n ã o p a ra o rejeitard es, não p a r a o aceitard es: aju d ar-v o s a vê-lo, sim plesm ente. E m re g ra se a d o ra o su­ cesso, o sucesso neste m u n d o ; ou, tam b ém , desejam os ser b em suced i­ dos psicologicam ente. E p a ra se ser b em sucedido tem de h a v e r im i­ tação , cópia, c o n tin u id a d e do q u e foi. E, se observardes a vós m esm o, vereis ser isto o q u e desejais: sucesso; n ã o só neste m u n d o , m as tam b ém in te rio rm en te aspirais a u m resultado, E esse desejo de resu l­ ta d o im plica, p o r certo, a observ ância de certo p a d rã o , n ão é verd ade? E q u a n d o ten des de observ ar u m p a d rã o , n ão h á possibilidade de transfo rm ação fu n d am en tal. T o d o a fastam en to do p a d rã o gera m edo. E, a fim de e v ita r o m edo, seguis as linhas tra ç ad a s p ela au to rid ad e , e obedeceis a essa a u to rid a d e — q u e p o d e rá ser o Gita, o u o líd er político, ou o gu ru, o u qu em q u e r q u e seja — a fim de terdes êxito, p a ra estardes livres d e p erturbações, evitardes todo e q u a lq u e r c o n ­ flito, sem pre ten d o em m en te u m resu lta d o satisfatório, q u e represente um “ sucesso” . A gora, se m e perm itis dig ressio nar u m pouco — se isso de fato constitu i digressão — deixai-m e re p e tir que n ão nos interessam os p o r palavras ou frases, q u e n ão estam os cu n h a n d o novas idéias. Nosso real interesse é p ro d u zir a m u ta ç ão d a m ente. E p a ra poderdes re a ­ lizar, em vós mesmos, essa rev olucio nária tran sfo rm ação in te rio r, precisais escutar — não a c eitar, não n egar, não c o m p a ra r; escutar, sim plesm ente — e isso é b em difícil, visto q u e a m aio ria de nós, ao escutarm os u m a coisa, tratam o s de justificá-la, ou d e cóm p ará-la com o qu e conhecem os, o u de subm etê-la a u m a certa a u to rid a d e com o q u e conhecem os, ou de subm etê-la a u m a c e rta a u to rid a d e que p a ra nós estabelecem os. Q u a n d o assim fazeis, não estais rea lm e n te e scu tan ­ do, pois vos desviastes, vos afastastes do cam in ho . Assim, sugiro-vos escu tar-m e sem co m p a rar, escu tar sim plesm ente, sem ju lg am ento, pois n ão sabeis o q u e v ou dizer. E p a ra poderd es co m preender o q u e o o ra d o r va i dizer, ten des de escu ta r; m as n ão é possível escutardes o qu e se diz, se o estais sem pre in te rp re ta n d o . Assim, o a to de escu tar é o ato de p erceber a a tiv id a d e de vossa p ró p ria m ente. N o a to de escu tar estais ap ren d en d o a respeito de vós m esm o, conhecendo o q u e vos im p ed e de ver, o q u e vos im p ed e de escutar. M as, ao verificardes q u e n ão estais escutando, pensais q u e deveis obrigar-vos a escu tar. E a com pulsão p a ra escu tar é tam b ém 119 u m a distração. Eis p o r que é tão difícil escutar não apenas o que o o ra d o r está dizendo, m as tu d o o m ais, n a v id a: escu tar vossa esposa, vosso m arid o , o discurso do político, escutar o que se está dizendo no rád io — se costum ais ouvir rád io — escutar o q ue ledes nos jorn ais — v e r tu d o c la ram en te , sem preconceito algum , sem ju lg am ento. E espero q ue assim fareis e n q u a n to eu estiver falando, p o rq u a n to esse escu tar é um ato de h u m ildade. Só a m en te v erd a d e ira m e n te -hum ild e p o d e a p re n d e r, A m en te n ão pode cu ltiv ar a h u m ild ad e p o rq u e, então, isso é v aid ad e vestid a de h u m ild ad e. M as h á h u m ild ad e q u a n d o estais escutando sem co m p arar, sem ju lg ar, sem d izer: ele tem razão, ele não tem razão, isto é exato, isto é v erd ad eiro , o u isto é falso. N ão estam os ten ta n d o fazer p ro p ag a n d a , n ão estam os te n ta n ­ do forçar-vos a p e n sar de c e rta m a n e ira ; o que estam os ten ta n d o é ver fatos. E , p a ra se ver u m fato, requer-se im ensa energ ia, im ensa atenção. E n ão se po de p resta r n en h u m a aten ção se a m en te está a v alian d o o q ue se está dizendo. V ede, p o r favor, a im p o rtâ n c ia disso; vede-o, n ã o só agora, m as vede, através d a v id a, a im p o rtâ n c ia de tu d o o q ue ouvis. C om preendereis, então, que, desse ver, desse escutar, nasce a energ ia necessária p a ra se ver um fa to q u e se m od ifica constantem ente. Assim, n u n c a é dem ais re p e tir isto: a im p o rtâ n c ia de ver, a rele­ v â n c ia de escutar. Q u a n d o h á atenção, floresce a b o n d a d e ; n ã o h a ­ vendo atenção, ap a re c e o m al, em todas as suas form as. A atenção, pois, é a ú n ica v irtu d e. E não podeis p resta r aten ção se a todas as horas estais em conflito com vós mesmo. E desejo n e sta ta rd e fa la r sobre esse conflito. P or qu e razão todos nós adm itim os o conflito com o p a rte d a existência? P o r q ue aceitam os o conflito com o coisa essencial à v id a? Se observardes vossa p ró p ria vida, vereis q ue estais em conflito, não só com vosso próxim o e o m undo, m as tam bém psicolog icam ente; in te ­ rio rm en te vos achais n u m conflito m uito m aio r. N ão sabeis o q ue fazer. O u , se sabeis o que deveis fazer, vós o fazeis; e o resu lta d o é u m p roblem a, é sofrim ento, a trito , lu ta . T u d o isso, com o sabemos, é c o n flito ; e estam os sem pre p ro cu ra n d o e v ita r esse conflito, fu g ir dele. Isso é u m fato. N ão estou te n ta n d o dizer-vos com o ser liv re de conflito — m ostrar-vos o cam in ho , a v ia de fuga. A fuga, a coisa p a ra a q u a l fugim os, se to rn a m u ito m ais im p o rta n te do que o p róprio conflito. Essa coisa — bebida, vossa igreja, vossos deuses, sexo, p o d er, am bição — se to rn a im p o rta n te ; tu do isso rep resen ta u m a fuga do fato de que estais em conflito. Eis a realid ade. P o r favor, vede esse fato ; vede^o no sentido q ue d o p à p a la v ra “ v e r” ; n ão negueis, n ão 120 digais: “ Q u e devo fazer com esse fa to ? ” , “ Gom o poderei fu g ir d e le ? ” ; vede o fato de qu e estais em conflito e de que h á esse im pulso a fu g ir do conflito. E que, depois de fugirdes, a coisa p a ra a q u al fugistes se to rn a de sum a im p o rtân cia. V ossa religião, vosso nacionalism o, vosso g uru, os ideais, os santos — tu d o isso são fugas do fa to c e n tral de que vos achais em conflito, de q u e vos achais em sofrim ento. O ra , com o surge o con flito '— n ão apenas os pequenos conflitos d a v id a d iária, m as tam b ém os pro fu n d o s conflitos in terio res, os con­ flitos inconscientes e conscientes, q u e ficaram sem solução? C om o surge esse conflito? N o ta i m ais u m a vez q u e não deveis a c e ita r nem re je ita r isso, m as, sim, verific ar se o o ra d o r está dizendo a v erd ade, v erificar — não c o n co rd ar — se estais em conflito. Se estais realm en te cônscio de vossas p ró p rias condições, deveis fic ar cônscio d e estardes em conflito. Estais em co n flito ; p o r quê? H á conflito, p o rq u e h á c o n ­ tradição. Q uereis fazer u m a c e rta coisa e ao m esm o tem p o desejais fazer o oposto d ela; isso é u m a co n trad iç ão , com o o é o am or e o ódio, o ser ambicioso e ao m esm o tem p o fingir-se não am bicioso, o d esejar ser rico e sim u lta n eam en te fazer o m esm o jogo do político sim ulando pobreza. H á o fato , “ o q ue sois” , e a id éia de “o que deveríeis ser” ; o fato do que realm en te é e a id éia d o que deveria ser — u m a contradição. Sois educado n a id éia do q u e “ deveríeis ser” , e de que não deveis e n fre n ta r o fato. Sois educados p a ra serdes n ão violentos e n u n c a en fren tard es o fato de q ue sois violentos. Ê o q u e se vem ensin and o neste país h á anos e anos: q u e deveis ser n ã o violentos que deveis ser idealistas, E os ideais se to rn a m m ais im p o rtan tes do que “ o que é” . Assim, en tre o que ê e o q u e deveria ser abre-se um vão, e o esforço p a ra la n ç a r u m a p o n te sobre esse vão g e ra conflito. O bserv ai a vós m esm o. Esto u apenas pon d o em p alav ras aquilo que constitu i o fato real, Ê assim que surge a co n tra d iç ã o ; d a co n trad iç ão surge o conflito e, depois, vem o esforço. G ostam os de fazer esforços. P a ra nós o esforço é m uito im p o rta n te. T u d o o q u e fazem os é resu lta d o de esforço. Isso é u m fato. Ê o q ue estam os acostum ados a fazer. P o r q u e devemos forcejar? N ão é possível viver-se neste m u n d o sem esforço alg um ? Só podeis responder a esta p e rg u n ta se com preen derdes todo o processo do conflito, ta n to ex te rio r com o in terio rm en te — conflito en tre n a ­ ções e e n tre as pessoas, e x te rio rm e n te ; e o conflito, a p ro fu n d a ansiedade in terio r. E, q u a n d o h á conflito, h á esse esforço p a r a dom iná-lo. P or conseguinte, o conflito surge p o r causa d a contradição. E hav en d o contradição, com -os sofrim entos, as agitações e ansiedades q u e a aco m ­ 121 p a n h a m , h á o im pulso p a ra se fazer esforço a fim de d o m in a r esse co n flito ; e neste círculo ficam os presos. E todo o nosso interesse se co n c en tra em fugirm os desse fato, resultando, d aí, con seqüentem ente, m ais conflito — m ais esforço em nossas p rática s religiosas, com o fim de discip lin ar, de m old ar, com pelir, ren u n ciar, obedecer. D essa m an eira, nossa m en te n u n c a se a c h a q u ieta, n u n c a é capaz de o lh ar q u a lq u e r coisa, de escu tar q u a lq u e r coisa p len am en te, com pletam en te. E la está sem pre ag itad a. E com o p o d e a m en te a g ita d a co m preender o que q u e r q u e seja? A v id a é u m a coisa im ensa que precisa ser co m preendida. A vida n ã o é sim plesm ente exercer em prego, g e ra r filhos, n ão é m eram en te sexo, m era m e n te p ro sp erid ad e; a v id a n ão é u m a série de êxitos, n ão é o p reen ch im en to de am bições; ela é m u ito m ais do q u e tu d o isso. A v id a é tam b ém investigação, p a ra descobrir se h á ou se n ão h á D eus, algo q u e se e n c o n tra além das p a la v ras; p a ra descobrir se o am o r existe; descobrir com o en fre n ta r e co m preender o desespero, o senti­ m e n to de c u lp a, o im enso sofrim ento, a an sie d ad e ja c e n te no coração do hom em . T u d o isso é a vid a. E, p a ra com preendê-la, necessita-se d e u m a m en te serena, n ã o u m a m en te ta la d a pelo conflito, p e la agitação. E q ue acon tece q u a n d o nos vemos fren te a fren te com tu d o isso? V olvem os ao passado, ou reco rrem os a u m certo livro, u m a certa a u to rid a d e ; e pensam os ter com preen did o to d a essa enorm e com p le­ x id ad e seguindo u m a certa fó rm u la absurd a, ou o Gita, o u u m guru, este ou aquele livro. M as, p a ra com preenderd es essa im ensidade é necessário u m a revolução em vossa m en te — n ão revolu ção econô­ m ica e social, p orém , sim, m u tação d a q u alid ad e d a m ente. Essa m u ta ç ão não p o d e ser efetu ad a p o r volição, p o rq u e, q u a n to m ais recorrerdes ao passado, tan to m ais co ndicionam ento h a v e rá e, p o r conseguinte, n e n h u m a possibilidade de m u ta ção . V ed e pois o fato — que é tu d o isso — vede q u a n to nos to rn am os m ecanizados. A v irtu d e p e rd e u seu significado, pois q u a lq u e r u m pode tornar-se virtuoso com in g erir certas substâncias quím icas. N ão sei se tendes visto tu d o o que se está passand o no m undo . A pessoa pode to m a r u m a p ílu la e to rn ar-se tran q ü ila . A tra n q ü ilid ad e , p o rta n to , p erd eu sua significação. Podeis to m a r u m com prim ido, u m p re p a ra d o quím ico, p a ra vos to rn ard es m enos irritadiço, m enos cium ento, m enos ran co ro ­ so, etc. Se sois sexualm ente apaix onado, podeis to m a r u m a p ílu la e a c a lm a r o am or. P erd eram , pois, as virtudes o seu significado. E os com putadores, os cérebros m ecânicos, essas ex trao rd in árias m áq u in as eletrônicas estão-se encarregando de pen sar p o r nós; e, de fato, se d esem penham de suas tarefas b em m elh o r ido q ue o hom em - E a 122 ‘'a u to m atização ” — m áq u in as q u e farã o fu n cio n ar o u tras m áq u in as -— está tam bém prestes a surgir. Estam o-nos to rn a n d o — n ão só a q u i n a ín d ia , m as tam b ém no resto do m u n d o — m u ito superficiais, p o rq u e nos estam os m ecanizando . C onsiderando-se tu d o isso, que são fatos e n ão invenções m in has, os deuses já n a d a significam , as reli­ giões p e rd e ra m toda a sua im p o rtâ n c ia ; e estam os n a expectativa de im inentes perigos. O fu tu ro é desconhecido; o que tendes é u n ic a ­ m ente o passado, e n a d a m ais — o passado, constituíd o pelo q u e conheceis, pelo q ue aprendestes, o passado relativ o à bo m b a atô m ica, à vossa trad ição , etc. etc. Eis o que tendes. V ossa m en te é só isso, e n a d a mais. O ra , com o o perar, dessa base, aq u ela e x tra o rd in á ria m u ta ção , aq u e la revolução rad ical? Este é q u e é o verd ad eiro problem a. Espero tenhais com preendido a p e rg u n ta ; n ão se tra ta de “o q u e se deve fazer” . D evem os p rim eiram en te co m p reen d er a p e rg u n ta e seu v e rd a ­ deiro significado. V ede, senhores, vós ledes o Gita, sois cristãos, b u ­ distas, m aom etanos ou o que m ais seja. O q u e faz a d iferen ça não é o que o G ita diz, m as o que realm en te sois; n ã o são vossos tu rb a n tes e casacos, vossa eru d ição e saber, m as o que sois. Se isso vos é retirad o , resta-vos apenas o passado, algo q u e j á existiu, algo que conhecestes, enfim , o m ecanism o do passado. E tu d o o que fizerdes com base no passado co n d icio n ará o fu tu ro e, p o r conseguinte, será a in d a o passado. V ede, po r favor, a im p o rtâ n c ia do que se está dizendo. Se fizer­ des q u a lq u e r esforço p a r a o p e ra r a m u ta ç ã o — e essa m u ta ç ã o é absolu tam ente necessária no m u n d o a tu a l — esse im pu lso p ro v irá do passado e, p o r conseguinte, co n d icio n ará a m u ta ção , que, p o r­ tanto, já não será m u ta ção , e, sim, m eram en te, u m pro lo n g am en to do passado, O q ue v e rd a d e ira m e n te nos in teressa é a m u ta ção , u m a m ente nova, cap az de p erceb er a to ta lid a d e d a existência, e não sim ­ plesm ente u m a p a rte dela. H o u v e tem p o em que vos diziam , neste país, que n ão devíeis ser pro vincialistas, separando-vos d o resto d a n a ç ão ; e é estran h o co n sta tar que ag o ra vos estais to rn a n d o n acio ­ nalistas, m as con tinuais divididos. O que vos deve in teressar é o to d o d a v id a; não a ín d ia , os h indus ou os budistas, m as o hom em , o fu tu ro do hom em , a m en te do hom em , de q ue tam b ém fazeis p a rte . Assim, ao perceberdes esse fato, esse percebim ento deve obrigar-vos a in d ag a r fu n d a m en ta lm en te. M as, se pro cu rard es resposta p a ra aq u e la p e rg u n ta , a resposta p ro ced erá do passado ; assim, deveis fazer a p e rg u n ta sem p ro c u ra r resposta. E isso é dificílim o: lim itar-se a fazer a p e rg u n ta , e investigar. Nosso prob lem a, p o rta n to , é este: H á necessidade de u m a rad ic al revolução in terio r, n a m ente, n a consciência. A o verificar-se essa rev o ­ lução, ela a tu a rá n a esfera social e econôm ica, e de fo rm a singular. O ra , com o p rom over essa revolução? Esto u em pregando a p a la v ra “com o” , n ão p a ra sugerir um m étodo, um sistem a -— pois, se tendes alg um m étodo ou sistema, isso faz p a rte a in d a do passado; estou em p reg an d o -a ap en as com o m eio de investigação e n ão com o m eio de o ferecer u m sistem a. C om o p rom over essa revolu ção? E m p rim eiro lug ar, p a ra se viver plenam ente, p a ra se ver claraÃm en te q u a lq u e r coisa, é preciso que n ão h a ja conflito de espécie a lg u m a ; p o r conseguinte, deve h av er com preensão de todo . o p ro ­ b lem a d a co n trad ição — e isso significa investigar, o b serv ar as o p e ra ­ ções d a p ró p ria m en te e v e r q ue q u a lq u e r fo rm a de am bição, d e o rd em ex tern a ou in te rn a , p ro d u z contradição. Sem pre que h á p re e n ­ ch im en to pessoal, sem pre que h á im pulso p a r a o p reen ch im en to — im pulso p a ra ser isto ou não ser aquilo — nesse p ró p rio desejo de p reen ch im en to h á contradição, ou seja, fru stração. D este m odo, a am bição, o sucesso, o preen ch im en to im plicam fru stração, e d a fru s­ tra ç ã o resu lta conflito. T u d o isso são fatos psicológicos, e n ão in v en ­ ções m in has. Se vos observardes, verificareis serem esses os fatos q ue estão ocorrendo. Assim, a m en te que está p ro cu ra n d o co m preender o q u e a m u ­ tação im p lica já deixou de ser am biciosa. Perguntareis, e n tã o : C om o pode essa m en te viv er neste m u n d o — este m u n d o feito de conflito, de am bição, de cru eldade, em q u e c a d a u m só cuid a de si — com o pode a m en te n ã o am biciosa v iver neste m u n d o ? N ã o pode. P or conseguinte, q u a n d o tiverdes com preen did o e a b a n d o n ad o co m p leta ­ m en te a am bição , vereis q ue podereis viver sem os preceitos d a v elh a sociedade, pois tereis criado um novo m undo. C o m preendeis, senhores, 0 que estam os dizendo? U m novo m u n d o precisa v ir à existência. E não po dereis c ria r u m novo m undo, se apenas dizeis: “T e n h o de aju s­ tar-m e, p a ra viv er neste m u n d o ” . Vós tendes de d e stru ir esta socie­ dade, p a ra criardes u m m u n d o novo. N ão estou falan d o d a destru ição de construções, p o rém d a destru ição dos valores sociais. E isso não desejais fazer, p o rq u e tem eis; p o r conseguinte, nov am ente vos vedes envolvido em conflito. T endes, pois, de ver com clareza que, havendo am b ição de q u a l­ q u e r espécie, h á tam b ém conflito, sofrim ento. M as, com o sabeis, somos criados n a am bição , n a com petição. T o d o escolar é ensinado a com petir. Ensina-se-lhe a a d o ra r o êxito. E com o rejeitareis todo esse p a d rã o , o p a d rã o em q ue fostes ed ucad o? V ós o rejeitareis q u an d o perceberdes a im p o rtâ n c ia de rejeitá-lo , q u a n d o estiverdes e n fre n ta n d o u m a crise. E a crise a tu a l rec lam a u m a m en te nova. 124 É o q ue ela reclam a, e n ão u m a m a n e ira de refo rm a r o velho p a d rã o . Assim, u m a vez cônscio d a crise, uma, vez cônscio de tu d o o q u e a am bição im plica, após terd es p e n e tra d o a fu n d o em vós m esm o p a r a descobrirdes a fonte d a am bição •— p o rq u e sois am bicioso, p o rq u e h á com petição, lu ta, ânsia de posição, de prestígio pessoal — depois de terdes co m p reen d id o to d a a a n a to m ia d a am bição, o u ficareis com a am bição e suas cru eld ad es, o u saireis dela. E o hom em q u e “ saiu ” d ela cria u m a m en te nova, u m p e n sar de n o v a q ualid ade. Assim, o q ue deveras nos in teressa é perceber a im p o rtâ n c ia dessa p ro fu n d a revolução in te rio r e descob rir se ela é possível, ou não, a c ad a u m de nós. A época a exige, as circunstâncias tam bém , vossa p ró p ria v id a a im põe; e o e x tra o rd in á rio nisso é q ue não h á tem po. N ã o podeis d izer: “com o tem p o eu m u d arei, acu m u larei a en erg ia necessária p a ra e fe tu a r a m u ta ç ã o ” . O tem po não vos d á energ ia. O tem p o vos ro u b a en e rg ia; envelheceis, definhais. O q u e vos d á energ ia p a ra in vestig ar p ro fu n d a m e n te é o e n fre n ta r o fato , sim plesm ente e n fre n ta r o fato, q u a lq u e r q u e seja ele. E vereis que, do e n fre n ta r o fato , nasce a energ ia. E la n ão nasce d a negação do fa to ; esta n u n c a d á energia. E vós necessitais de tre m e n d a energia, p o rq u e não só é necessário e n fre n ta r e co m p reen d er as triv ialid ades d a vid a, m as é necessário tam b ém ultrapassá-las. H á a in d a o u tra coisa m ais signi­ ficativ a e que re q u e r to d a a vossa aten ção : Precisais descobrir p o r vós m esmo, n ao p o r m eio de palavras, p o rém realm ente, se a lg u m a coisa existe além dos lim ites d a m ente, algo ch am ad o o Im en su ráv el, que transcende a m orte, as p ala v ras, o p ensam ento . Se n ão desco­ brim os isso, a v id a se to rn a b em superficial, m ecân ic a; e ela é e n tã o to d a de sofrim entos e agitações. E p a ra o descobrirdes, necessitais d e im ensa energia. M as essa energ ia só pode v ir q u a n d o co m p reen d id a a “ q u alid ad e de v er” , a “q u a lid a d e de escu tar” , q u a n d o a pessoa é capaz de o lh a r os fatos, o lh a r o p ró p rio ciúm e, a p ró p ria am bição, o lh a r as p ró p rias paixões e todos os absurdos de q u e se cercou e a q u e c h a m a “re li­ gião” . E q u a n d o tem os a c a p ac id ad e de e n fre n ta r esses fato s e de n ão reagir, desse e n fre n ta r re su lta energ ia. E é essa q u alid ad e de energ ia q u e o p e ra a m u ta ção . E só en tão a m en te se to rn a algo e x tra ­ o rd in á rio ; já n ão é p ro d u to d o am b ien te , já n ão é p ro d u to da e x p e ­ riên cia. F ica e n tã o a p ta a renov ar-se c o n sta n tem en te ; passa a te r a q u e la q u a lid a d e d e n o m in a d a ju v en tu d e, inocência. E ela necessita dessa q u a lid a d e que é a inocência, a p e rfe ita hum ildade, a fim de descobrir o q ue se a ch a além d a s palavras, além do p ensam ento , além do tem po, 28 de janeiro de 1962. m A ESSÊNCIA DO SOFRIMENTO & (N o v a D e l i IV ) D e s e jo fala r nesta ta rd e sobre a disciplina, o conheci­ m en to e o sofrim ento. M as, antes de e n tra r nestes assuntos, considero im p o rta n te esclarecer q u e n ã o nos estamos o c u p an d o com idéias, teorias o u abstrações, pois n a d a disso tem v a lo r algum . Q u a n d o estam os interessados n a v id a real, nos fato s reais de c a d a dia, as m eras teorias, abstrações e idéias pouco ou n e n h u m a im p o rtâ n c ia têm , E c u m p re esclarecer bem que vam os fa la r de tais p a rticu la rid a d es sem traduzi-las em idéias, sem fo rm ulá-las em vagas abstrações, p o rq u an to o q ue nos interessa é o p ro b le m a d a v id a, no seu todo — a v id a que vivem os todos os dias, a v id a em que h á ta n ta dor e agitação, ta n ta agonia, desespero, fru stração. N ã o estam os interessados em palavras. O hom em q u e v erd ad ei­ ra m e n te com preen de, v erd ad eiram en te sério , e que está aprendendo , tem de u ltra p assa r as palavras. As palavras em geral são empecilhos, p o rq u a n to tom am os os símbolos po r realidades, tom am ps a p a la v ra p e la coisa. M as a coisa n ão é a p ala v ra. A p a la v ra “ árv o re” n ã o é a árv o re real. E n tre ta n to , a p a la v ra “ árvore” se to rn a sum am ente im ­ p o rta n te q u an d o estam os lid an d o com palavras, com idéias. M as se estam os lid an d o com os fatos, en tão a árvore, sep arad a d a p alav ra, tem im ensa significação. D e m odo idêntico, n ão estam os aqui in te ­ ressados em pa lavras, nem em idéias, nem em abstrações. Interessam o-nos tão só p ela existência real de c ad a dia, com seus sofrim entos, seus pequenos êxitos e alegrias, suas constantes ânsias e labores. T ra ta m o s, pois, d a vida, e não de palavras. A disciplina é im posta à m aio ria de nós pelas circunstâncias — exercer em prego, fazer exames, viver de u m a c e rta m an eira, seguir Icertas idéias, ob servar d e te rm in a d a disciplina. E quase todos nós, n ão 126 apenas as ch am ad as “pessoas religiös,as”, p raticam o s essa constante disciplina. O hom em q ue tra b a lh a n u m escritório tem de lev antar-se a u m a certa h o ra e lá ch eg ar p o n tu alm e n te ; e o rap a z q ue deseja passar n u m exam e tem de estu dar, aju star-se à fo rça a u m p a d rã o — com o o faz a m aio ria de nós — e esse p a d rã o é im posto p e la sociedade ou p e la p ró p ria pessoa, E, se observardes a te n tam e n te , vereis q ue essa im posição de u m p a d rã o im plica to d a espécie de repressão consciente e inconsciente — n ão só repressão, m as tam bém resistência, Q u a n d o reprim is, cultivais a resistência. Se sentis cólera, vos disciplinais p a ra n ão terdes cólera. Se sois lascivo, vos disciplinais, vos controlais p a ra não serdes lascivo; e issó é resistir. O u se a resistência não é possível, p rocura-se um substituto, cultiva-se o u tra fo rm a de resistência: resistir à cólera com u m a idéia. O b servando-vos com atenção, vereis ser isso o que fazeis o dia inteiro. D esejais fazer u m a c e rta coisa, esp o n tâ n ea e n atu ra lm e n te , p o rém a sociedade — com suas norm as e sua “ord em estab elecid a” , seu culto d a respeitabilidade — está sem pre a co n tro ­ lar-vos, a m oldar-vos. E a discip lin a se to rn a assim, g rad u alm en te, u m a form a de repressão, resistência, ou um substituto — u m a fu g a ao. fato. N otai, po r favor, que n ão estais a q u i ap en as p a ra ouvir o o rad o r, m as tam bém p a ra vos observardes. P orque é m ais in teressante, m ais vital, m ais significativo observardes a vós m esmos p o r m eio das p a la ­ vras do orad o r, a fim de vos conhecerdes. E o conhecim ento de si p ró p rio — d aq u ilo q u e rea lm e n te está sucedendo — im p o rta m ais do qu e m era m e n te seguir u m discurso verbal. Assim, se vos obser­ vardes, n ão apenas n o nível consciente, m as ta m b é m n o p ro fu n d o nível inconsciente — o q u e talvez seja m ais significativo do que lim i­ tar-se a seguir con scientem ente u m a id éia — vereis q u e a discip lin a é u m a fo rm a de resistência, de repressão. E , no m o m en to em q u e reprim is, estais resistindo àq u ilo q u e ocorre psicologicam ente, in te ­ rio rm ente. E x terio rm en te pode-se v e r a repressão ta l com o é. M a s quan d o , in te rio rm en te, forçais, com pelis, controlais, m oldais, reprim is aq u ilo q u e está reälm en te acontecendo, isso se c h am a disciplina. Se p e n e trard e s sufic ientem ente e m vós m esm o, vereis existir u m a co n trad iç ão e n tre o fato — o que é — e a id é ia d aq u ilo q u e deveria ser. O fato é q u e estais encolerizado, e o “ n ão fa to ” é a id éia de q u e n ão deveríeis estar encolerizado; e, assim, o a ju stam en to a o p a d rã o — que n ão é o fa to — se c h a m a disciplina. O aju sta m e n to a u m a id éia é disciplina; isto é, se sois violento, tendes u m a idéia, u m id eal, u m a c ren ça n a “n ão vio lência” e vos aju stais a isso. Esse 127 aju stam en to , esse co n stan te processo de te n ta r u n ir o vão existente e n tre o fa to — o que é — e o id eal —■ o que deveria ser — se c h a m a disciplina. Nesse processo de au to d iscip lin am en to em confor­ m id a d e com u m a id éia, u m p ad rã o , u m a crença, criam -se in v aria ­ velm ente contradições psicológicas e, em conseqüência, h á u m a con­ tin u id a d e de m ais conflito, e n ão de m enos conflito. A m en te em conflito é u m a m en te e m b o ta d a; ela depressa se gasta, ta l com o a , m á q u in a que, su jeita a co n stan te atrito , p e rd e sua eficiência. A discip lin a, pois, se bem observardes, é n ão só o processo de c ria r co n trad iç ão in terio r, m as tam b ém de dissip ar a q u e la energia necessária ao aprender. A final de contas, m ais releva o a p re n d e r do que a disciplina; se aprendeis sobre c e rta coisa, esse pró p rio ato d e a p re n d e r é u m a discip lin a não im posta. A p re n d e r n ão é acrescen tar co n tin u am en te a lg u m a coisa; nisso n ão h á ap re n d e r, porém , m e ra ­ m en te, acum ulação. A crescentar ao q u e já se sabe — o q u e é co­ n h ecim en to — não é ap ren d er. O a p re n d e r é u m processo constante e vivo: observar, esta r cônscio das coisas com o estão realm en te suce­ dendo . E, com issò, a m en te se to rn a a le rta d a , vigilante, aprende. Se m eram en te acum ulais e traduzis conhecim entos, se in te rp re ta is o u tr a ­ duzis ou com parais aquilo que já sabeis com o que realm en te ocorre, nesse caso estais m eram en te a c u m u lan d o o q u e extraís do fato — o que é — acrescentando-o àqu ilo que já sabeis. E ta l processo n ã o é ap ren d er. P a r a a p re n d e r, necessita-se de h u m ild ad e ; p a ra a p re n d e r, a m en te deve achar-se n u m estado de “n ão saber” . “N ã o saber” é a essência d a h u m ild ad e. A m en te que acu m u lo u conhecim entos, que sabe, n ã o é hum ilde. Só a m en te que possui a essência d a h u m ild ad e p o d e ap re n d e r, e essa h u m ild ad e, p o r conseguinte, jam ais acum ula. Se vos observardes alg u m a vez, vereis que, n o m o m en to em que vos servis do a p re n d e r com o m eio de acu m u lação , desse a to d e ac u m u lar, resulta, invariav elm ente, co n trad iç ão psicológica, p o rq u e esse a p re n d e r é u m processo estático, esse conhecim ento é estático; e, desse p o n to estático, tentais com preen der, c o n tro lar o u m o ld a r u m a coisa viva, e, p o r conseqüência, h á con trad iç ão , conflito. O a p re n d e r n u n c a é conflito. Se vossa m en te se a c h a a le rta d a , p e n e tran te , vigi­ lante, aprendendo, esse a p re n d e r p ro d u z sua discip lin a p ró p ria e e x tra o rd in a ria m e n te sutil, e n ão c o n tro la d a ; a m en te, p o r conse­ g uinte, está sem pre jovem , inocente, fresca. H á , pois, discip lin a ao con trolarm os o fa to p o r aquilo q ue já conhecem os. E scutai, po r favor, o q ue o o rad o r deseja dizer-vos. C om “e scu ta r” q u ero dizer “n ão escutar com o que já sabeis” , Se escutais 128 de u m centro de conh ecim ento , de vosso livro, de vosso saber, d e vossa experiên cia, do G ita, etc., de u m cen tro que j á conheceis — se estais escu tan d o daí, n ão estais rea lm e n te escutand o. T u d o isso cons­ titu i a co rtin a através d a q u a l estais e scu tan d o as p alav ras do orad o r. M as, se realm en te escutais, n e n h u m a c o rtin a tendes, não estais p a r ­ tin d o de algo qu e já conheceis. V ossa m en te, p o r conseguinte, se to rn o u sobrem odo d esp erta; ela, p o rta n to , se a c h a n u m estado de h u m ild ad e — e isso n ão significa disciplina, porém , sim, ap ren d er, p ro c u ra r com preender, ver o que é verd ad eiro — um estado n ão relacionado com o que foi. A disciplina, com o sabeis, é a tu a lm e n te p ra tic a d a pelas pessoas, ch am ad as “ religiosas” — q ue realm en te n ão são religiosas — q ue se em p en h am em aju star-se ao m odelo estabelecido de u m a v id a reli­ giosa. É tam bém p ra tic a d a pelos que tra b a lh a m em escritórios, pelos lav radores, que todas as m an h ã s têm de sair p a ra o tra b a lh o — coisa que lhes deve p arecer ex trem am en te en ted ian te. E essa p rá tic a d a disciplina resu lta de u m desejo de sucesso, de atin g ir um alvo; p o r conseguinte, p ro d u z c o n flito ; e o estado de conflito conduz °à repressão, à resistência. T u d o isso se ch a m a disciplina, tan to em relação à v id a religiosa, com o em relação à v id a am biciosa de êxito. A m ente discip lin ada, pois, com o a tu alm en te co m preendida, é incapaz de a p re n d e r, in capaz de co m p reen d er; não é suficien tem ente sutil, livre, nova . M as, se com eçardes a c o m p reen d er a to ta lid a d e desse processo, vereis en tã o q ue o conhecim ento tem significado to d o d iferen te, u m a posição co m pletam ente diferente. O conhecim ento é necessário. U m bo m “ b u ro c ra ta ” , u m bom cientista, u m bom m ecânico, um bom professor deve possuir conhecim entos. E q u an d o ele aprende, isso consiste apenas em acrescen tar ao que já sabe; é um novo des­ cob rim ento científico; ele acrescenta m ais alg um a coisa ao que já sabia, a u m e n ta seu conhecim ento . M as a m en te que está acu m u lan d o conhecim entos, e com seus conhecim entos experim entando e ju n ta n d o m ais conhecim entos, p a ra acrescentá-los a si p ró p ria — essa m en te não é criado ra. C onsiderem os m ais um pouco esta questão. O m u n d o está-se desenvolvendo c o n tin u a m e n te ; superficialm ente, ad q u ire m ais in fo r­ m ações, m ais conhecim entos; e o sab er s e ' ex p an d e c a d a vez m ais. A m en te d a m aio ria das pessoas está sendo “ tre in a d a ” científica o u m ecanicam ente, ou p a ra fu n cio n a r n u m a fábrica. T a l conhecim ento é obviam ente necessário; do co ntrário, as ativ idades m u n d an a s n a o po d em ser conduzidas a d e q u a d a e eficientem ente (o que, aliás, n ã o está acontecen do — m as, com o q u e r que seja, isso não im p o r ta ) . E ficiência im p lica conh ecim ento , e to d a pessoa eficiente se em p en h a em a c u m u lar conhecim entos, a fim de se to rn a r m ais eficiente. Eis o que em geral nos interessa: to rn ar-n o s m ais e m ais eficientes — e isso, au to m aticam en te , to rn a o hom em ca d a vez m ais cruel. O b serv ai bem vossa m ente. Vós não estais escu tan d o a m im . N ão é isso que im p o rta . O relev an te é vossa p ró p ria v id a ; observai-á. M as, q u a n d o o conhecim ento se to rn a de su p rem a im p o rtân cia, cessa i o ap re n d e r. Só a m ente capaz de a p re n d e r ch e g ará a sentir o que é ser criad o r, p o rq u e ela, n u m certo sentido, tem h u m ild ad e. Assim, a m en te q u e n ão está a d q u irin d o conhecim ento e, p o r conseguinte, n ã o se está disciplinando em confo rm id ade com o desejo de ad q u irir, só essa m en te po d e ap ren d er. M as a m aio ria d e nós está p ra tica n d o disciplina: o político am bicioso se disciplina à sua to rtu o sa m a n e ira ; o hom em q u e deseja enriq u ecer se disciplina em su a desonestidade. N ã o ê; porém , dessas disciplinas que estam os falando. R eferim o-nos a u m a disciplina b em m ais rad ical, q u e é a p ró p ria essência do a p re n ­ d e r sem a c u m u la r — coisa que req u e r m ente m uito a le rta d a e p e n e ­ tra n te , sobrem odo vigilante. Q u a n to m ais u m a pessoa acu m u la, ta n to m ais em b o ta d a se to rn a. N u n c a notastes isso? U m hom em , assim que consegue u m em prego seguro, assim q u e constitui fam ília — pondo-se em seguran ça, to r­ nando -se resp eitável p e ra n te os outro s hom ens, p e ra n te a lei, os filhos, a fam ília, tu d o enfim — logo se to rn a em botado. V ós sorris; m as o fato real é que ele p e rd e u in teiram en te sua acuid ade, perd eu de todo sua c a p acid ad e de observar, o lh ar, ver, ap ren d er, p o rq u e se firm ou n a respeitabilidad e. A m ente que se to rn a respeitável p o r ação d a sociedade, de u m a disciplina prescrita de acord o com o m odelo esta­ belecid o p e la sociedade — essa m ente, é claro, n u n c a descobrirá o verd adeiro, n u n c a desco brirá se h á ou n ão h á D eus. O in q u irir, o a p re n d e r a respeito do sofrim ento é algo ex tra o r­ d inário. Nós tem os de a p re n d e r sobre o sofrim ento, p o rq u an to em re g ra sofremos — sofrem os p o r falta de u m bom em prego, sofremos com a m o rte de alguém , p o r m o tiv o de doença, p o r autocom paixão. N ã o estam os fala n d o sobre a cau sa do sofrim ento, porém , sim, p ro ­ c u ra n d o co m p reen d er-lh e o p ro b lem a to tal. M as, p a ra se co m p reen ­ d e r esse p ro b lem a, n ão deve h a v e r fuga ao sofrim ento. P a ra com pre­ enderdes u m a coisa, tendes de exam in á-la, a lc a n ç ar sua beleza, seu significado, suas profun dezas e altu ras, sua vio lência — conh ecer tu do . Porém , n ão podeis conhecê-la, se estais sem pre p ro cu ra n d o evitá-la. N ão podeis conhecer, n ão podeis co m p reen d er as p ro fu n ­ dezas do sofrim ento, se m éram en te tentais encobri-lo com num erosas 130 crenças, p ro cu ra n d o fu gir, utilizan d o abstrações e idéias com o cortinas en tre vós m esm o e o fato . E a m aio ria de nós é a tin g id a pelo sofri­ m ento , n u m a ou n o u tra fo rm a — m o rte, fru stração, as in ju stiças do m u ndo, o m arid o q u e a b a n d o n a a m u lh e r o u a m u lh e r q u e ab a n d o n a o m arido, reconhecim ento d a p ró p ria in cap acid ad e, o viver n a obscuri­ dade, n a ansiedade, n o tem or, n a solidão, o viver com u m a m en te v u lg ar q u e se co m p a ra co n tin u a m e n te com o u tra coisa. T u d o isso rep re sen ta os sintom as, as causas, m as o fato é que existe o sofrim ento. M as, com o se po d e ch eg ar a co m p reen d er o sofrim ento? Pois, se não com preendem os o sofrim ento, n ão podem os ficar livres dele. Podem os negá-lo, racionalizá-lo, tira r u m a conclusão a respeito dele e “ em p u rrá-lo ” p a ra longe d e nós; podem os fre q u e n ta r o tem plo, ou a b rir um livro, ou ligar o rádio, o u reco rrer ã b e b id a : n ã o im p o rta o que façam os, ele nos a c o m p a n h a sem pre com o u m a som bra. Podem os ler todos os livros sagrados, e stu d a r in cansavelm ente os U panishads, a Bíblia, o C orão, o q ue q u er que seja; o sofrim ento lá e sta rá sem pre, com o u m a ferid a in fe c d o n a d a . M as, como ireis com preendê-lo ? O ra , po r que fazer do so frim ento um p ro b le m a? P o r que deve ser u m p ro b le m a p a ra o hom em , algo que precisa resolver, com ­ p ree n d e r? P a ra a m aio ria de nós, o sofrim ento é u m p ro b lem a; n ão sabeis com o fazê-lo cessar, com o vos livrardes dele, com o afastá-lo. A m en te em b o tad a jam ais p o d e rá resolvê-lo, p o rq u a n to se a c h a n u m estado de deterio ração. T o d a s as pessoas são po r ele afligidas, e, p o r essa razão, fazem d ele u m pro b lem a? P o r quê? Por “ p ro b le m a ” en te n d o algo q ue n ão está resolvido, algo q ue tem co n tin u id ad e em nossa m em ória. E m prim eiro lug ar, o sofrim ento é in dício de u m a m en te em b o ­ tad a. P restai atenção a isto, p o r fav o r; escutai, apenas, O sofrim ento é u m indício de que a m ente se pós a d o rm ir, é u m sinal de a u to com paixão, isto é, de q ue ela tem com paix ão de si p ró p ria. Ele m o stra a força de vossa m em ória, q ue é o passado. Q uereis as coisas com o eram , ou as quereis com o deveriam ser; ou desejais u m a co n tin u id ad e, úm p reen ch im en to de vossas am bições, q u e vos fazem sen tir fru s­ tra d o ; ou tivestes d e c h o rar a m o rte de alguém . N ã o estam os falan d o sobre a m o rte ; sobre ela falarem os n o u tra ocasião. A ludim os ao sofri­ m en to, pois precisam os saber que ele se a c h a bem no fu n d o de nossa m ente, de nosso coração, rep rim id o e sem nos ser revelado. Podem os, ocasionalm ente, to rn ar-n os cônscios dele. M as o que querem os é esquecê-lo, fugir-lhe o m ais ráp id o possível, livrar-nos dele. N em o sacerd ote nem o quím ico pode, em tem po algum , resol­ vê-lo. O sofrim ento re q u e r com preensão. P recisa ser exposto à luz. E in isso n ão podeis fazer se o evitais con tin u am en te, ou se de alg um a fo rm a o explicais — é tão fácil d a r explicações! — e a explicação se to rn a u m a co rtin a, atrás d a q ual vos escondeis, vos abrigais. O bservai tu d o isso em vós mesmo. Nós nos estam os pondo a desco­ berto , Assim, n a essência, o p e n a r é autocom paixão, lem b ran ç a do que fo i e do q u e deveria ser, e a esperança de alcançardes o q u e deveria ser. A essência do sofrim ento é esse conhecim ento, esse “ te r p e n a de si j p ró p rio ” , esse co ntínuo c o m p a rar de si p róprio com o que fo i ou deveria ser, o c o m p a ra r de si p ró p rio com outro s — sem pre os outro s q u e são m ais poderosos, m ais ricos, m ais felizes, m ais isto e m ais aquilo. E a co m p aração é psicológica, b aseada n a auto com paixão. T e n ­ des, pois, de olhar o fato do sofrim ento, e não te n ta r in te rp re ta r o sofrim ento, n ão te n ta r explicá-lo, p a ra afastá-lo de vós {isso n ã o podeis fazer, pois ele co n tin u a p re se n te ), não buscar refúg io n um tem plo , n u m livro, n a fam ília, em quadros, em bebidas ou o que q u e r q ue seja; vós tendes de vê-lo, senti-lo. Ê m u ito difícil v er o fato do sofrim ento, p o rq u e a p a la v ra “sofri­ m e n to ” in te rfe re n o fato. Se desejais saber, a p re n d e r e co m p reen d er se h á essa coisa e x tra o rd in á ria q u e se c h a m a D eus, deveis u ltra p assa r a p a la v ra “D eus” . In d u b itav elm en te, a p a la v ra não é a realid ade. C onseqüentem ente, se u m hom em deseja descobrir, ele tem de ir a té o fim , a b a n d o n a r a p a la v ra, a b a n d o n a r tu d o o que “sabe” a respeito de D eus — to das as do utrinas, todas as crenças, todos os dogm as — tem de a b a n d o n a r to ta lm en te tu d o isso, a fim de descobrir. D e m odo idêntico, a p a la v ra “ sofrim ento” tem , em si, u m peso ex trao rd in ário , u m a incom um significação. Nós a fizemos respeitável, fizem o-la g ra n ­ diosa. O “H o m em de D ores” (* ) — que coisa e x tra o rd in á ria isso se to rn o u p a ra os cristãos! Eles ren d em culto à D or. E n tre ta n to , o sofri­ m en to , sendo de n a tu re za em ocional, não deve ser desprezado; é preciso com preendê-lo e elim iná-lo com pletam ente. M as, é possível elim inar p o r in teiro o sofrim ento, de m od o que a m en te deixe de ser p o r ele o prim id a? D o co n trário , a v id a se to r­ n a rá m u ito vazia e superficial. J á n ão notastes vossa m en te em sofrim ento ? J á n ao notastes u m en te das pessoas que sofrem ? C om o é vazia essa m ente, com o é. superficial, sem pro fu n d eza! E la p o d e rá ser capaz de discorrer com m u ita pro ficiê n cia ; m as o sofrim ento, a pouco e po uco, to rn a a m en te p eq u en a, em botada. É possível ficar-se liv re do sofrim ento? N a o podeis descobrir se isso é possível ou n ao , porém , som ente, que se pode aprender a respeito (■#) “ M a n o f S o rro w s; Je su s C h rist” g ra d a : Isaía s, 5 3 -3 .) 132 (D ie. W e b s te r). (C f. B íb lia S a­ dele. Segui, p o r favor, o q u e estou dizendo — m as n ão com o discípulos a escu tar u m guru — segui-o, em vós mesmos, passo a passo, c e n tí­ m etro p o r centím etro. Se observardes os fatos, vereis q u e estam os sendo adestrados — p ela educação, pelas influências religiosas e a m ­ bientes — p a ra n u n c a olh arm os u m a coisa diretam ente. Estam os sem pre p ro cu ra n d o evasivas, sem pre evitando o fato. É p o r isso que sofrem os? Podem -se d a r m il explicações do p o rq u ê do sofrim ento neste m u n d o — em v irtu d e de nossa ig norância. P o r “ig n o rân cia ” n ão en ten d o “falta de conh ecim ento s”, p o rém a ignorância deliberada do q ue se está p assando psicologicam ente, in te rio rm e n te; eis a v e rd a d e ira ig norância, isto é, o desconhecim ento do processo to ta l dos fatos que estão o co rrendo n a consciência, d en tro de vós mesmos. Assim, p o d e ­ mos ter m il explicações, m as, no fin al de tu do, continuarem os em sofrim ento. Pois b em ; com o fic a r liv re do sofrim ento ? O u esta p e rg u n ta é in co rreta? Se digo “ C om o livrar-m e dele?” , o “corno” se to rn a u m problem a. E a m en te qu e tem u m p ro b lem a sofre, p o rq u a n to se a c h a n u m estado de contradição, u m estad o em q u e p ro c u ra ajustar-se p a ra ev itar o sofrim ento. P o r favor, segui isto. N o m o m en to em que dizeis “ com o” , criastes u m problem a. E a m ente cheia de problem as a fli­ ge-se; a m ente qu e n ão tem problem as n ão conhece o p en ar. Essa m en te sem prob lem as existe, e ela é capaz de e n fre n ta r problem as. M as, se com eçais p e rg u n ta n d o : “C om o posso ficar livre do sofrim en­ to ? ” , estais c rian d o um prob lem a, q ue vos im p e d irá de com preender . Isto não é lógica. N ão vos deixeis p re n d e r in telectualm ente p ela seqüência lógica destas palavras. O fazer u m a p e rg u n ta e rrô n ea: “ Com o ser liv re?” p rovoca in v a ­ riav elm en te u m a resposta errônea. M as o o lh a r o fato de q u e a m en te se ac h a em sofrim ento, olhá-lo sem in terp retação , sem opinião, sem n e n h u m a conclusão, observá-lo sim plesm ente — esse olhar , essa obser­ v ação exige atenção. N o m om ento em que estais aten to , em que dais vossa in teira atenção, já n ã o h á problem a. Só a m en te q ue não d á to ta l atenção cria o problem a. Q u a n d o prestais atenção com vosso corpo, vossa m ente, vosso coração, com todos os vossos sentidos, to ta l­ m ente — aí, não h á p ro b le m a nen h u m . M as n u n c a dam os in teira aten ção a coisa alg um a, p o rq u e fom os educad os p a ra p en sar sem pre com u m m otivo. Prestais a ten ção p o r­ q u e desejais ser u m h om em im p o rta n te, ou p o rq u e desejais ter m ais din h eiro ou u m em prego m elh or. D esejais ser u m a person agem m ais im p o rta n te, m aio r p o e ta , pessoa d é ren o m e; d a í a atenção. M as isso n ão é atenção. H av en d o u m m o tiv o que vos im pele a d a r atenção, o m o tiv o é en tão m ais im p o rta n te d o que a a te n ç ã o ; p o r isso h á co n tra d iç ã o ; p o r isSq h á conflito ; e p o r isso n u n c a dareis atenção co m p leta a coisa n en h u m a. E q u a n d o se d á aten ção co m p leta a alg u m a coisa, n ão h á p roblem a e a m ente, p o r conseguinte, pode investig ar o fato do sofrim ento. V ereis — se prestard es ta l atenção — que dessa ate n ção nasce f energia. Só n a aten ção h á v irtu d e, só n a aten ção h á b o n d a d e ; não h á o u tra v irtu d e ou o u tra b o ndade. A atenção incom pleta que se d á q u a n d o u m a pessoa p ro cu ra c u ltiv ar a v irtu d e, é vício, não é virtude. M as a m en te que d á atenção com pleta — e p o r essa a te n ção e n te n d o : a q u e la q u e n ão só observa, vê, escuta, m as q ue tam bém sente, com todos os seus órgãos altam en te despertos, n ão em botados — tem sen­ sib ilid ade; a ate n ç ã o im plica sensibilidade. N ã o podeis estar ate n to , se sois insensível ■ — insensível à sordidez; insensível às crianças, a vossos trajos, à alim en tação q ue tom ais, à m a n e ira com o sentais, com o andais, com o falais; insensível às aves, às árvores, a todas as coisas q u e vos cercam . Se sois insensível, n ão ten des n e n h u m a possibilidade de p re sta r in te ira atenção. E scutai apenas isso, sem d izerd es: “ Gom o posso to r­ n a r-m e sensível?” E sta é u m a p e rg u n ta in co rreta. V ós ten des de saber, de estar cônscio, de reco n h ecer que sois insensível, e n ao p ro c u ra r p a ra isso u m a explicação. O fa to é q u e sois insensível; se assim n ã o fosse, este p obre e infeliz país n ão se en c o n traria n e sta sua terrív el situ ação a tu a l: ú m país dom in ado pelos políticos. E essa insensibili­ d ad e só po de existir q u an d o não estais cônscios. É préciso o reconhe­ cim ento do fato, o percebim ento do fato — não a aceitação — p o rq u e no m om ento em que aceitais u m a coisa surge o processo d u al, surge a co n trad ição e, p o r conseguinte, o conflito. Assim, analo gam ente, ao observardes, ao verdes q u e o sofrim ento existe, ao perceberd es o fato de que nesse sofrim ento está im p lic ad a a auto com paixão, a solidão d a autocom paixão, a aflição d a autocom paix ão, o isolam ento da auto com paixão, e o peso d a m em ória q u e faz erguer-se o sofrim ento — q u a n d o observais tu d o isso, q u a n d o vedes tu d o isso, descobrireis en tão que estareis com pleta e to talm en te livre do sofrim ento. O sofrim ento, p o r certo, é u m p ro b lem a; e se o p ro ­ blem a lan ç a raízes n a m en te, ta n to m aio r é o sofrim ento. M as, se, q u a n d o a coisa se vos ap resen ta, vós a enfrentais logo, se a vedes, im e­ d ia ta e com pletam ente, com todo o vosso ser, en tão a m ente se to rn a to d a diferente. A m en te aflita não tem am or. P o d erá te r com p aix ão, m ostrar-se bondosa e te rn a p a r a com ou tro s; m as, ela n ão tem a m o r p o rq u e só 134 está interessada em si p ró p ria e p o rq u e tem o pro blem a do p en ar. Só q u an d o a m en te n ão sofre po d e h av er am or. E stan d o d o m in ad à pelo sofrim ento, n ã o im p o rta o que ela faça, n ã o h á a m o r — n ã o o am o r de D eus e o a m o r das id éias; n a d a disso é am or, é só ideação, sem n e n h u m significado. O a m o r n ã o é abstração. Ele é v ita lid ad e ex tra o rd in á ria , espanto sa energ ia, de excepcional pro fu n d eza, a q u a l vem ao com preen derm os o sofrer. N ã o se p o d e co m preender o sofrim ento e essa coisa vasta, im ensa, qu e se c h am a a vida, se n ão h á hum ildade. E o conhecim ento im pede a hu m ildade. A m en te que está a p ren d en d o , observando, vendo, sem ac u m u lar, essa m en te se a c h a n u m estado de h u m ild ad e — n ã o a h u m ild ad e dos santos, n ão a h u m ild ad e dos políticos, n ao a h u m il­ d ad e do hom em de m u ito saber q ue p ro c u ra m ostrar-se hum ild e, m as, sim, aq u ela h u m ild ad e que jam ais galgou os degraus d o sucesso, aq u ela h u m ild ad e qu e n u n c a a d q u iriu , a q u e la h u m ild ad e q u e n ão se fortaleceu com o conhecim ento. Só q u an d o desconhecido. se está livre do conhecido, pode apresentar-se 31 de janeiro de 1962. 135 o R E LI G I Ã O (N o v a D e l i — V ) E s t iv e m o s falan d o sobre a necessidade de term os u m a m en te nova, u m a m en te capaz de e n fre n ta r todos os pro blem as d a v id a, em todos os níveis e tam b ém nas profun dezas de nossa consciên­ cia. Estivem os falan d o sobre a necessidade de u m a revolução, n ã o econô m ica o u social, p o rém revolução religiosa. N e sta ta rd e desejo fala r a respeito d a m en te religiosa. M as, antes de com eçar, cu m p re assinalar — pois considero isso im p o rta n te — a necessidade d a negação do pensam ento. N ós n u n c a negam os, só sabem os dizer “sim ”. A cei­ tam os as coisas segundo as nossas tendências e idiossincrasias. Q u a n d o negam os, essa negação é u m a reação e, p o r conseguinte, não é n egação nen h u m a. D esejo fazer algum as considerações sobre a negação, pois im p o rta co m p reen d er isso p a ra nos habilitarm os a investig ar e com preender, p o r nós mesmos, o que é a m en te religiosa. Nós n u n c a negam os. Se vos tend es observado com atenção e seriedade, tereis visto que sem pre encon tram os u m cam inho fácil, sem pre aceitam os a solução m ais fácil. A ceitam os a trad ição e várias influências cultu rais, econôm icas e sociais. N u n c a reagim os a elas; ou, se o fazemos, reagím os p e la força e n u n c a com b o a-v o n tad e e com preensão. Po r conseguinte, nossa negação é sem pre eiv ada de m edo. E la sem pre se p ro d u z m ed ian te u m a d a d a fo rm a de aceitação, a q u a l nos oferece u m a esperança. N u n c a é u m a negação em que não se sabe o que acontecerá; é u m a negação com aceitação de u m fu tu ro bem regulado e ordenado. Escutai o qu e estou dizendo, p o rq u a n to , q u a n d o falarm os a respeito d a m en te religiosa, irem os n e g a r to d a a e stru tu ra d a religião, ta l com o a conhecem os, negá-la to ta lm en te po rq u e é de todo falsa, po rq u e n e n h u m a significação tem . E, p a ra com preenderd es o q ue 136 irem os dizer m ais a d ian te, deveis, se m e perm itis salientá-lo, com ­ p re e n d e r p ro fu n d a m en te esse a to de negação. Podeis ser fo rçad o a n e g a r ; certas circunstâncias p o d em obrig ar-vos o u com pelir-vos a dizer “n ã o ” . C ircu nstâncias tais com o falta de dinheiro, u m a trib u lação q u alq u er, podem forçar-vos a dizer “ n ã o ” . M as o dizer “n a o ”, com clareza, sem m otivo algum , sem n en h u m desejo de recom pensa ou m edo de p u n içã o ; dizer “n a o ” deliberad am ente, a algo a q ue destes vossa atenção com pletam en te, in co n d i­ cionalm ente; dizer “ n ã o ” , depois de terdes pensado no p ro b lem a do p rin cip io ao fim , seriam ente — isso é questão m u ito diferente. D izer “ n ã o ” seriam ente significa ex am in ar u m p ro b lem a até o fim, n ão ro m an ticam en te, não em ocio nalm ente, não de acordo com vossa p a r ­ tic u la r idiossincrasia de v aid ad e, de p ra z e r o u desejo, exam in á-lo até o fim , po n d o de p a rte vossas fantasias pessoais, vossos m itos, gostos e desgostos. “ I r até o fim ” de um p en sam en to , de u m a idéia, de u m sentim ento é ser sério. D esejo n esta ta rd e ex am in ar a questão d a religião, porque, a m eu ver, se pu derm os sair deste p av ilh ão com um a m en te d a r a , forte, religiosa, estarem os aptos a resolver os nossos problem as. R elig ião é algo que inclui tu do, n a d a exclui. A m en te religiosa n ão tem n a c io ­ nalid ad e, nem provincialism o, N ão p erten ce a n e n h u m g ru p o o rg a ­ nizado. N ã o é o resu ltad o de dez m il ou dois m il anos de p ro p ag a n d a . N e n h u m dogm a tem , n e n h u m a crença. É u m a m en te q u e se m ove de fato p a ra fa to ; m ente q u e com preende o p en sam en to em su a to ta lid a d e — n ã o apenas o p en sam en to óbvio, superficial, o p en sa­ m en to “e d u cad o ”, m as tam b ém o p ensam ento “ n ao e d u cad o ” , o pensam ento e os m otivos inconscientes e pro fund os. Q u a n d o a m en te investig a a to ta lid a d e de alg u m a coisa, quan d o , p o r m eio dessa inves­ tigação, reconhecer o qu e é falso, e o nega p o rq u e é falso, então essa to ta l negação pro d u z u m a m ente de no v a q u alid ad e, u m a m en te religiosa, rev olucio nária. M as a religião, p a r a a m aio ria de nós, é n ao só a m e ra p a la v ra, o sím bolo, senão tam b ém o resu lta d o de nosso cond icio nam ento. V ós sois h in d u ísta p o rq u e desde p eq u en in o vos dizem q u e sois h in d u ísta e yos in cu lcam todas as superstições, crenças, dogm as :e tradições de hinduísm o; e todos vós aceitastes o q u e vos foi ensinado, O m esm o se pode dizer d o m uçu lm an o , do cristão, etc. Assim com o o com unista aceita, desde pequeno, a n ão existência de D eus, assim tam bém vós aceitais a existência de D eus. N ao h á m u ita diferen ça en tre vós e aquele que n eg a D eu s; pois o q u e am bos pensais d im a n a de u m a m en te con dicionada. N o tai, p o r favor, que não vos estou a ta c a n d o ; p o rta n to , n ão há necessidade de vos d e fe n ­ derdes, de resistirdes. N ós estam os tra ta n d o de fatos; e seria com pleta 137 fa lta de sensatez resistir a u m fato, isso n en h u m a significação teria. O m u n d o se e n co n tra n u m caos de tal ord em que, m esm o que delibera d a m e n te em preendêsseis to rn á-lo a in d a m ais caótico, não o conse­ guiríeis — n em com a a ju d a dos p o lític o s. . . E é necessária u m a m en te bem p en e tran te , clara, decid id a, sadia, p a ra resolver essas condições caóticas. C reio que u m a m ente dessas só v irá à existência m ed ian te o perceb im en to religioso. T e n d e a b o n d ad e de aco m p a n h a r as operações de vossa p ró p ria m en te — n ao a p ala v ra, não o orad or, com ele co n cord ando ou dele discordando. Se observardes o vosso p róprio condicionam ento — n ao p o rq u e eu vos m an d o fazê-lo, m as p o rq u e ele é um fato — se olh ardes esse fato, esse condicio nam ento, podeis então tr a ta r de dissolvê-lo. M as, em p rim eiro lugar, deveis estar cônscio do fato de que vossa m en te está cond icionada. Q u a n d o ela diz que é h induísta, está cond icionada, m o ld a d a pelo passado, po r u m a secular c u ltu ra ; ela resu lta de um processo histórico-m itológico. As religiões que professais originam -se das experiências de outras pessoas. V ossa religião não constitui experiên cia pessoal, d ire ta ; ela é o que apren destes em a lg u m livro, com alg um instruto r, ou alg um filósofo; n ão é coisa que vós m esm o experim entais. Só q u an d o vossa m en te está to d a descondicio nada, podeis ex p erim en tar ou descobrir se h á algo rea l ou não. M as se, antes de descondicionar a vossa m en te, vos dizeis reli­ gioso, vos dizeis h induísta, m uçulm ano, b udista ou cristão — isso n a d a significa, absolutam ente. É p u ro “rom antism o” , explo rado pelo sacer­ dote, p o r um grupo org anizado, político ou religioso, que têm nisso seu p ró p rio interesse. T u d o isso são fatos, q u e r gosteis, q u e r n ao gosteis. A p enas estou descrevendo tais fatos. Essas divisões em grupos religiosos q u e crêem nisto e naq u ilo , que aceitam este do g m a e negam aquele, a n ­ d a n d o de prisão em prisão, de tem plo em tem plo, p ra tic a n d o in te r­ m ináveis ritos — n a d a disso constitui a m en te religiosa; trata-se, tão só, de u m a m en te tradicional, d o m in ad a pelo m edo. E, p o r certo, a m en te com tem o r n u n c a descob rirá se h á ou se n ão h á algo além d a p a la v ra, além dos lim ites m entais. E scu tai n ão só o qu e o o rad o r está dizendo, m as tam b ém as ope­ rações de vossa p ró p ria m en te. A o em p reg ar a p a la v ra “ escutai” , n ão vos estou d a n d o u m a ordem . E m p reg o -a com u m significado especial. E sc u ta r é u m a a rte, p o rq u e nós n u n c a escutam os. Escutam os indife­ ren tem en te, com nossos pensam entos n o u tra p a rte . E scutam os com co n d en ação o u com paração. Escutam os com certos gostos e aversões. Escutam os p a ra c o n c o rd a r ou discordar. Escutam os, co m p aran d o o q u e ouvim os com o qu e já sabemos. P o r isso, h á sem pre distração; jam ais existe o a to de escutar. E v aleria bem a p e n a escutardes sem 138 n e n h u m a dessas distrações do pensam ento, de m odo que esse p ró p rio ato de escu tar co n stitu a u m a q u e b ra d a q u e la condição. Q u a n d o m e utilizo d a p a la v ra “ religião” , acodem -vos à m en te im agens de to d a espécie, todas as espécies de símbolos. O cristão tem seus próprios símbolos, dogm as e crença. O h in d u ísta, o m uçulm ano, todos aqueles q ue se dizem religiosos têm sua m an e ira p e c u liar de raciocinar, conform e sua idiossincrasia, sua tra d iç ã o ; p o r essa razão, n u n c a pod em rac io cin a r c laram en te sobre esta questão. Eles sao, em p rim eiro lug ar, hin duístas ou m u çu lm an o s; e depois é q u e com eçam a investigar. Assim, p a ra se descobrir se h á ou se não h á alg um a coisa tran scen d en te ao p ensam ento , algo não m ensurável p e la m ente, esta deve, prim eiro , estar livre. O u tra p ecu liarid ad e das pessoas re ­ ligiosas é o serem to ta lm e n te ilógicas. Psicologicam ente, carecem de sanidade. A ceitam sem investig ar; e sua investigação é m o tiv ad a pelo m edo, pelo desejo de segurança, que lhes im pede o p e n sar; tornam -se . “ ro m ân tic as” , p o rq u e tal lhes apraz. Entregam -se a devoções, pois isso lhes d á u m sentim ento de alegria, de felicidade. M as essa n ão é a m ente religiosa; é u m a m en te cheia de fantasias, u m a m ente sem realid ade. Se observardes vossa p ró p ria m ente, vereis com o está ela a b a rro ­ ta d a e sobrecarregada de cre n ç a ; e considerais necessária a crença. U tilizais a cren ça com o u m a hipótese — e isso é p u ro contra-senso. Q u a n d o um hom em investiga, não com eça com u m a hip ó tese; sua m ente é livre. N ao se sente a tra íd o p o r n en h u m dogm a, nao está dom in ado p o r n e n h u m tem or. Prim eiro n eg a tu d o isso e, depois, com eça a investigar. M as vós n u n c a negais, p o r várias razões. N u n c a negais, p o rq u e isso seria “ desrespeitável” n u m a sociedade respeitável — em bora, n a v erd ad e, essa sociedade esteja apodrecida. N ao negais, p o r m edo de p e rd e r vosso em prego o u posição. N ão negais, p o r causa de vossa fam ília; ten des de casar vossa filh a, vosso filho, ten des de fazer isto ou aquilo. P o r conseguinte, consciente ou inco nscientem ente, estais sob a sujeição do m edo, do dogm a, d a trad ição em que fostes ed ucad o. Isso tam b ém é u m fato ; n ão é fan ta sia m in ha. É u m fato psicológico de todos os dias. Assim, a m ente que está sob a sujeição de u m a crença, um dogm a, p o r m ais an tig o ou p o r m ais m o derno q u e seja, — ta l o com unism o — essa m en te é incapaz de p ro d u zir u m m u n d o de o rdem , u m m un d o sadio. E la é in cap az de estar livre do sofrim ento, do co n ­ flito. P o r certo, só a m ente liv re de conflito, livre de problem as, livre de sofrim ento, está a p ta a in vestig ar e descobrir. E vós tendes de descobrir, p o rq u a n to esta é a ú n ica saída de to d a a aflição e c o n ­ fusão q u e criam os neste m u n d o ; a sa íd a não se en c o n tra ingressando-se 139 em grupos incontáveis, ou retornando-se à a n tig a tradição, já m o rta, ou seguindo-se u m novo guia ou líder. N ão sei se não tendes observado que, q u an d o seguis alguém , destruístes vosso p ró p rio pensar, perdestes vossa p ró p ria in d ep en d ên cia, perdestes vossa lib erdade, n ao só p o lí­ tica, m as tam bém — e m uito m ais — psicologicam ente, não só exte­ rio rm en te, m as tam bém , e p rin cipalm ente, in terio rm ente. Assim, sem pre que h á o seguir, sem pre que h á o guia, em m a ­ téria realm en te espiritual, tem de h a v e r necessariam ente confusão, p o rq u e existe, aí, u m a co n trad ição psicológica en tre nossos pro fundo s im pulsos e compulsões e as exigências do líder e bem assim nossas p ró p rias exigências, relativas ao que pensam os que devemos fa z e r; e essa co n trad ição leva a conflito; e onde h á conflito h á esforço; e, hav en d o esforço, h á deform ação. A m en te religiosa n ão tem conflito. E la n ão segue ninguém . A m en te religiosa n ão segue n en h u m a au to rid ad e. A u to rid a d e im p lica im itação, a u to rid ad e im plica aju stam ento . E h á aju stam en to p o rq u e desejais êxito, desejais realizar algo; e, p o r conseguinte, h á m edo. Se n ão dissolverdes o m edo com pletam ente, com o podereis realizar a investigação, com o podereis e m p reen d er o descobrim ento? Essas n ão são p erg u n tas retóricas. Se ten h o m edo, vejo -m e obrig ado a bu scar conforto, abrigo, segurança, no que q u e r que seja, p o rq u e o tem o r ordena; m as a sanid ade e a clareza n ão orden am . O tem or o rd e n a o aju stam en to , o rd en a-m e im itar, o rd en a-m e segu ir alguém , n a esperança de e n c o n tra r conforto. A m en te religiosa n ão obedece a a u to rid a d e de espécie a lg u m a; e isso nos é m u ito difícil de aceita r, p o rq u e fomos educados sob a au to rid ad e. O Gita, os U panishads , a B íblia, o C o rão e todos os dem ais livros cham ados “ sagrados” to m a ram o lu g ar de nosso p ró p rio pensar, de nosso pró p rio sofrer; dão-nos conforto n a ilusão; nao são, afin al, reais. Vós fazeis deles realidades, p o rq u e neles, nas palavras m ortas de outros, encontrais conforto, n a a u to rid a d e de o u tre m encon trais luz. Podeis v e r q u a n to isso é re a l­ m en te absurdo, se o exam in ardes; e, no e n ta n to , sois tidos p o r pessoas educad as, sãs, racionais! N o to can te a questões religiosas, somos com pletam ente irracionais, insan os; e tu d o isso con stitui as m u ralh as de nosso condicio nam ento. A í tendes m ais u m fato, um inegável fato psicológico. Vós fre qüentais o tem plo, vós ledes o G ita e m u rm u rais um am o n to ad o de p alavras q ue p e rd e ra m to d a a sua significação. Isso n ão constitui, de m odo n en h u m , u m a m en te religiosa. Esse ler, esse rep e tir to rn a a m ente e m b o tad a, insensível. H á con tradição en tre o viver diário e aquilo q ue pensam os ser real. N ã o h á o viver de u m a vida religiosa. D ivor­ 140 ciastes a v id a d a religião, divorciastes a ética da religião. E vivendo nessa d u alid ad e, nessa co n trad ição , nessa divisão, a m en te está criando o m undo a tu a l; traz c a d a vez m ais caos ao m undo. Estam os vendo tud o isso. S em pre que h á confusão, sem pre q ue h á aflição, as pessoas se vo ltam p a ra a a u to rid ad e, p a ra a tira n ia — n ão só politicam ente, m as tam bém religiosam ente. GuruSj idéias, crenças, dogm as m ultiplicam -se e florescem , p o rq u e n u n ca nos p enetram os a fundo p a ra descobrirm os o que é verdadeiro . O com eço d a m en te religiosa é o autoconhecim ento — n ã o o conhecim ento do Ser S u p rem o ; isso é p u ro contra-senso. Gom o pode um a m en te m edíocre, estreita, nacionalista, gerada pelo m edo, p ela com pulsão, p ela im itação, p ela a u to rid ad e — como pode essa m ente descobrir o que é o Ser Sup rem o? A busca do Ser Suprem o é u m a fu g a; é p u ro e au tê n tic o “ ro m an tism o ” . O fato é: vós tendes, p rim e i­ ram en te , de co m p reen d er a vós m esm o. C om o pode um p ensam ento resu lta n te do m edo in vestig ar? Gom o pode um pen sam en to oriu ndo d a contradição, do sofrim ento, d a dor, d a am bição, d a inveja, pes­ qu isar o “im pesquisável” ? N ão pode, obv iam ente; m as é isso o que sem pre estam os fàzendo. Assim, o com eçardes a com preender-vos tais com o sois ê o começo d a sabedoria. E, tam bém , o com eço d a m ed ita ção é perceber, sem deform ação, o f a to . rep resen tad o pelo que sois e n ã o pelo que pensais q ue deveríeis ser. Q u a n d o pensais -— com o geralm ente fazeis — . que sois o Suprem o Ser, q u e . em vós existe u m a en tid ad e espiritu al, essa id éia é in teiram en te o resu lta d o de vosso con dicionam ento passado? Deveis estar cônscio do fato, e n ão aceita r a id éia de que sois o S uprem o Ser. Essa id éia n e n h u m a significação tem . O v e rd a d e ira ­ m en te significativo é o fato rep resen tad o p o r a q u ilo q u e sois c a d a dia, e não aqu ilo qu e deveríeis ser. O utro ssim , a id éia, a ideação, o ideal é u m “ artig o ” d e m itolo gia; n a d a significa. O fato é que tem significação. O fato de que sois invejoso tem im p o rtân cia, e n ã o a idéia de que deveríeis achar-vos n u m estado de “ n ão in v e ja ”. O u tr a p ecu liarid ad e d a m en te religiosa é o estar livre de idéias, livre de ideais. T od os vós sois idealistas — isto é, sem pre vos p re o ­ cupais com o q ue deveríeis ser e n a o com o que sois. M as a m en te religiosa só está interessada nó fa to , e se m ove com o fato. O cientista se interessa pelo fato. Ele investig a a m até ria , investiga a vid a, sob a form a de m atéria, em seu lab o rató rio . In vestig a-a sob o seu m icroscó­ pio. Ele n ao tem m edo; m ove-se de fato p a ra fato e desenvolve o seu sa b e r; e esse saber aju d a -o a lev ar m ais longe suas investigações, sem pre n u m d eterm in ad o plan o, lim itado e restrito, que é a ciência. 141 M as nós estam os interessados n a to ta lid a d e d a vid a, e n ão n a ciência a p e n as; n ão estam os interessados ap en as em edificações, m as tam bém n o ódio, n a am bição, n as disputas, n a q u ilo q u e somos — enfim , n a to ta lid a d e d a vid a. A ciência n ão a b a rc a a to talid ad e d a vid a, m as a m en te religiosa ab arca-a. Q u a n d o os econom istas o u os sociólogos p ro cu ra m resolver os p ro b lem as h u m anos, estão a tu a n d o apenas p a rc ialm en te e, p o r con^ seguinte, c rian d o m ais caos, m ais aflição. M as a m en te religiosa não está in teressada n a parcela. E la se interessa pelo in teiro desenvol­ v im ento do h o m em ; está interessada n a en tid a d e to ta l do hom em — isto é, o m ovim en to exterio r d a v id a é o m esm o m ovim en to in terio r. O m ovim en to ex te rio r é com o a m aré v asan te; e o m ovim ento in terio r é com o a m a ré en c h en te ; m as é a m esm a m aré que v a i e vem . — Se os dois m ovim entos — o in te rio r e o exterio r — estão divorciados, estão separados, ten des então conflito, tendes aflição. As pessoas ch am ad as “religiosas” div id iram a v id a em “ex te rio r” e “ in te rio r” . N ão a olh am com o u m processo u n itá rio . E v ita m o “ ex te rio r” recolhendo-se a u m m osteiro ou vestindo o m a n to do sannyasi. N egam o m u n d o ex terio r; m as n ão negam o m u n d o d a tra ­ dição, o do conh ecim ento, o de seu condicio nam ento. S ep aram os dois m u nd os e, p o r isso, h á contradição. M as a m ente religiosa n ão os separa. P a ra a m en te religiosa o m ovim ento ex te rio r d a v id a e o m ovim ento in te rio r d a v id a fo rm am u m m ovim ento u n itá rio , com o o m ovim ento d a m a ré que vai e volta. T e n d e a b o n d a d e de escu tar tudo isso, sem a c e ita r n em negar. E u n ã o vos estou a ta c a n d o ; p o rta n to , não ten d em necessidade de p ro c u ra r refúg io o u de resistir. T a m p o u co estou fazendo p ro p ag a n d a . E sto u ap en as a p o n ta n d o algo. Podeis aceitá-lo, se quiserdes. Podeis vê-lo, ou re je itá -lo ; m as antes, a in d a que in telectu al ou verb alm ente, olhai-o . Podeis n ã o de sejar p e rco rrer to d o o cam in h o a té o fim . M as, ao m enos, podeis olhá-lo verb alm ente, in te le ctu alraen te, in vestig á-ío ; e, com essa com p reensão in telectu al, que abso lu tam en te não é a com p reensão com pleta, talvez possais v e r a su a in te ira significação. O conhecim ento de vós m esm o é o início d a m editação. O co n h e­ cerdes a vós m esm o, psicologicam ente, tal com o sois, é o com eço d a m en te religiosa. M as não podeis conhecer-vos se negais o que vedes, se p ro cu rais in te rp re ta r o que vedes. Segui isto, p o r favor. Se negais psicologicam ente o q u e vedes em vós m esmo, o u se desejais tra n sfo r­ m á-lo n o u tra coisa, neste caso n ão estais com preendendo o fato de o q u e é. Se sois vaidoso e p rocurais m o d ificar essa q u alid ad e com o cultivo d a h u m ild ad e , h á en tão contradição. Se sois vaidoso e procu rais 142 c u ltiv ar o id eal d a h u m ild ad e, h á co n trad ição e n tre as d u as coisas; e essa co n trad ição em bo ta a m ente, produz conflito. T endes de olhar o fato de que sois vaidoso; tendes dé vê-lo em sua in teireza, sem in tro ­ duzirdes um id eal co n trad itó rio . M as, p a ra verdes que sois vaidoso, n ão podeis dizer “N ã o devo ser vaidoso” . Isso é b astan te simples e óbvio, porque, p a ra poderdes ver u m a coisa, deveis aplicar-lh e vossa total atenção. Ao dizerdes q ue não deveis ser vaidoso, vossa m en te se afastou do fato, e esse afastam ento do fato cria u m p ro b le m a; nao é o fato que o cria. O fato jam ais cria problem a. Só o evitar o fato , o fu gir ao fato, o te n ta r m odificá-lo, o te n ta r aju stá-lo ao ideal, isso é que cria o p ro b le m a; o fato n u n c a o cria. Assim, q u an d o vos observardes com to d a a clareza, q u an d o esti­ verdes cônscio, sem escolha, de c ad a pensam ento , de cada sentim ento, descobrireis en tão algo, ou seja: que h á u m p en sad o r e h á o p e n sa ­ m en to ; que h á u m ex p erim entador, u m observador, e h á a experiência, a coisa observada. Isso é u m fato, n ao ? H á u m censor, u m a en tid ad e que ju lg a, que avalia, que pensa, q ue observa; e h á a coisa observada. Po r favor, investigai vossa p ró p ria m en te; não estais aqui p a ra ouvir m in has pa lavras. As p alav ras n a d a significam . E n q u a n to falo, observai vossa p ró p ria m en te a fu n cio n ar. Assim, ir-vos-eis d a q u i com a m ente clara, p e n e tra n te e sã. H á , pois, p ensador e pensam ento . H á divisão en tre p e n sad o r e pensam ento , sendo que o p en sad o r p ro c u ra d o m in a r o pen sam en to , a lte ra r o pensam ento , m odificar o pensam ento , controlá-lo , forçá-lo, p ro cu ra im ita r, etc. A divisão en tre p en sad o r e p en sam en to cria c o n ­ flito, p o rq u e o p en sad o r é sem pre o censor, a en tid a d e que ju lg a, q ue avalia. Essa en tid a d e é u m a en tid a d e condicionada, p o rq u a n to se to rn o u existente com o u m a reação ao pensam ento, o q u al, p o r sua vez, é m eram en te reação do con dicionam ento , d a m em ória. Estais com preen dendo, senhores? Isso é u m a coisa m uito sim ples e que vós m esmos podeis descobrir. O pensam ento é a reação d a m em ória. Pergunto-vos u m a coisa, e vós respondeis de acord o com vossa m em ória. O in te rv alo e n tre a p e rg u n ta e a respo sta é tem p o ; e d u ra n te esse tem po refletis e, depois, dais a resposta. Se estais fam iliarizado com a resposta, esta é im e d ia ta ; e se a p e rg u n ta é m u ito com plicada, precisais de m ais tem po, de u m a de m ora, de u m a distância m a io r e n tre a resposta e a p erg u n ta. D u ­ ra n te essa dem ora, vossa m em ória está reagindo e, depois, respondeis. O pensam ento, pois, é a “resposta” d a m em ória, d a associação co m ò passado. H á , pois, pensam ento e h á p e n sad o r; o p en sad o r é condicio­ nado, e seu pen sam en to tam b ém se to rn a condicionado. Q u a n d o h á 143 separação e n tre o p ensador e o pensam ento, h á co n trad ição ; e, e n ­ q u a n to h o u v er essa separação en tre o p ensador e o pensam ento, h a v e rá in findável conflito. Pode-se afastar essa cqntradição, esse con­ flito, significando isso qu e não h á pensad or com o en tid a d e ce n tral a tu a n te , p o rém apenas p ensam ento ? E sta é u m a questão m u ito com ­ plexa. D eveis descobrir p o r vós m esm o tudo o que este p ro b le m a im plica. Pode-se v e r que, q u a n d o h á separação en tre o p en sad o r e o p e n ­ sam ento, tem de h a v e r contradição. E co n trad ição im plica conflito; e o conflito em b o ta a m ente, to rn a -a estúpid a, insensível. O conflito, de q u a lq u e r espécie que seja — conflito en tre vossa esposa e vós, e n tre vós e a sociedade, en tre vós e vosso p a trã o , en tre vós e o u tro q u a lq u e r — em bota a m ente. Se se deseja co m p reen d er o conflito cen tral, é necessário investigar está questão (e n ão sim plesm ente acei­ tá-la) — se h á, p rim eiro, o p en sad o r e, depois, o pensam ento. Se dizeis que assim é, estais de v o lta à vossa trad ição , ao vosso condi­ cionam ento . T endes de investigar, pelo vosso pensam ento, com o vossa m em ó ria reage. E n q u a n to essa m em ória — q ue é co n d icio n ad a p o r c ad a m ovim ento de pensam ento, cada in fluência — reage, tem de h a v e r conflito e aflição. Se exam in ardes isso bem p rb fu n d am en te, descobrireis p o r vós m esm o que a ação ba seada n u m a idéia, que é pensam ento, g era dis­ córd ia, p o rq u e quereis m o ld ar a ação de acordo com a idéia. D esco­ brireis, pois, depois de vos terdes p e n e trad o a fun do, q u e ação não é idéia. H á ação sem m otivo. E só a m en te religiosa, q u e olh ou p a ra si p ró p ria , que p ro fu n d a m en te se investigou, só essa m en te p o d e a tu a r sem id éia, sem m o tivo , p o rq u a n to ela n ão tem n e n h u m centro, n e ­ n h u m a en tid ad e que, com o pensad or, dirige a ação. Essa ação n ão é caótica. Assim, o autoconhecim ento , o aprenderdes acerca de vós m esm o todos os dias, p ro d u z — psicologicam ente, in terio rm en te — u m a m ente nova — p o rq u e negastes a m en te velha. C om o auto conhecim ento , negastes p o r in te iro o vosso condicio nam ento. O condicio nam ento m e n ta l só po de ser de tod o negado q u an d o a m en te está cônscia de suas p ró p ria s operações — com o funcio na, com o pensa, o que diz, quais são os seus m otivos. H á , aq u i, o u tro fa to r p a ra considerar. Pensam os q u e o lib e rta r a m ên te do con dicionam ento é u m processo grad u al, que re q u e r te m p o j P o r favor, segui o que estou dizendo. Pensam os que serão precisos m uitos dias ou m uito s anos p a ra descond icionar nossa m en te con d icio n ad a, significando isso que terem os de fazê-lo g rad u alm en te, 144 dia p o r dia. Q u e im p lica isso? Im p lic a, po r certo , aquisição de conhecim ento a fim de dissipar o condicionam ento — em vez de a p re n d e r, ad q u irir. A m en te que está a d q u irin d o jam ais aprende. M as a m ente que se serve do conhecim ento a fim de “ ch e g ar” , de ter êxito, de alc a n ç ar u m sentim ento de lib ertação — essa m en te necessita do tem po. Essa m en te diz: “ Preciso de tem po p a ra lib erta r-m e de m eu co n d ic io n am en to ” — entendendo-se com isso que ela v ai a d q u irir conhecim entos e, à m ed id a que se am p liarem os seus conhecim entos, ela se to rn a rá c ad a vez m ais livre. Isso é de todo em todo falso. A través do tem po, p ela m u ltip licação de m uitos “a m an h ãs”, não h á libertação. Só h á lib e rta ç ão n a negação d a coisa que se vê d ire ta ­ m ente. A pessoa reage p ro n ta m en te ao ver um a serp ente venenosa; não h á pensam ento, p o rém ação im ediata. Essa ação é resu ltad o do m edo e do conhecim ento q ue a d q u iriu a respeito d a serpente. Essa aquisição exige tem po. H á, pois, u m m odo de p erceb er m ed ia n te o conhecim ento, q u e req u e r tem po. H á tam b ém u m a q u alid ad e de percebim ento q ue não req u e r tem po. E u estou falan d o sobre a m ente q ue vê “ fo ra do tem p o ”, que vê sem pensam ento , pois a m en te resulta de m uitos dias passados, a m en te origina-se do tem po. Isso tam bém é um fato. N ão estam os tra ta n d o de u m a suposição, de u m a teoria. V ossa m en te deriva de num erosos dias passados, vossa m en te é o resultado do passado. E, se n ão estam os to talm en te livres d o p a s­ sado, n ã o é possível term os u m a m en te nova, u m a m en te religiosa. O ra , o v er esse passado to ta lm en te , com pletam en te, o vê-lo im e d ia ­ tam ente, significa q u e b ra r de p ro n to o passado. M as, n ão podeis q u e b ra r in co n tin en ti o passado se vossa m en te está sob o con tro le do conhecim ento, q u e diz: “ A cu m u larei conheci­ m entos g rad u a lm e n te e, no fim , q u eb rarei o con dicionam ento ” . A m ente deve ver o condicionam ento im ed iatam en te. P o r exem plo, Se vedes q u a n to é ab su rd o o nacionalism o, se “vedes” o veneno do nacionalism o, se vedes isso e o com preendeis com pletam ente —- e isso é possível, se prestais to d a a vossa aten ção — então, n o m esm o in stan te em qu e o com preendeis, estais livre d o n acio nalism o; o nacionalism o n u n c a m ais vos interessará. M as, nós n ão percebem os a natu reza venenosa do nacio nalism o p o rq u e ele é geralm ente sancionado, p o rq u e vos sentis reun id os em torn o de u m a b a n d e ira — coisa m u ito absurda. T endes um sentim ento de u n id ad e , u m sentim ento de coesão em to rn o de n a d a , pois a b a n d e ira é m era m e n te u m a idéia, u m símbolo, sem n e n h u m a realid ade, q ue os políticos e outros gostam de explorar. M as, se virdes esse fato — e podeis vê-lo d an d o -lh e toda a vossa atenção, sem p ro c u ra r justificá-lo, dizendo que podeis p e rd e r vosso em prego, etc. — q u a n d o dais in te ira aten ção ao fato do nacionalism o, ele se irá 145 p a r a sem pre. A tenção é a to ta l negação do passado, to ta l negação d a separação e n tre o pen sad o r e o pensam ento. A m en te religiosa, pois, é aquela q u e n ão tem crença, q u e n ão tem dogm a, q u e n ão tem m edo, que ab solu tam ente n ão segue a u to ­ rid a d e de espécie alg um a. E la é a luz de si p ró p ria . Essa m en te, p o rq u e é livre, po d e ir m u ito longe. M as essa lib erd ad e tem de com eçar bem de p erto , isto é, ela se en c o n tra em vós m esm o, no com p reen d er-v o s; A podereis, assim, ir m u ito longe. D escobrireis então, p o r vós pró prio s, a q u e la e x tra o rd in á ria serenid ade m en ta l — que n ão é u m a idéia, p o rém u m fa to au tên tico . A m en te de todo tra n q u ila , sem distração alg um a, — a m en te p lác id a e não a m en te ro m â n tic a — m as a m en te q u e n ão foi g e ra d a pelo conflito, o u p e la contradição, ou p e la aflição — só ela po d e estar com pletam ente q u ieta e, p o r conseguinte, to ta l­ m en te viv a, sensível; só essa m en te po d e receb er o Im ensurável. 4 de fevereiro de 1962. 146 MEDITAÇÃO (N o v a D e l i ■ — V I) S e m e p e r m i t i s , desejo co n sid erar n e sta ta rd e a questão d a m ed itação, pois, no m eu sentir, se não com preenderm os o in te iro significado d a m ed itação, n ão p o d e rá surg ir aq u ela m en tè religiosa acerca d a qual vos ten h o falado. C om o já acentu am os, a m ente reli­ giosa con tém o espírito científico, m as a m en te científica n ão contém o espírito religioso. A m ente científica é p arcial, in te ressad a que está nas coisas superficiais; m as a m en te religiosa interessa-se p e la to ta li­ dad e d a vida. Se não se com preen de e conhece o p ro fu n d o significado d a m ed itação, n ão h á possibilidade n e n h u m a de se te r a q u e la q u a ­ lidade de m en te cap az de elevar-se acim a e além do tem po. M as, antes de e n tra r nesta m até ria , considero im p o rta n te c o m p reen d er a n a tu re z a da m ed iocridade. A m ediocridade é p ró p ria d a m en te vulg ar, d a m en te estreita, lim itad a. E m reg ra, a m en te v u lg ar está in teressad a nas coisas im e­ d iata s; e as coisas im ediatas podem ser p ro je tad as p a r a o fu tu ro , m as co n tin u a m a ser “as coisas im e d ia ta s” . Os políticos, a in d a q u e se interessem pelo fu tu ro , estão realm en te interessados no “ im ed iato ” , em relação com o fu tu ro . A m a io ria de nós tam b ém está interessada nas coisas im ediatas — a “ persp ectiv a c u rta ” em vez d a “ perspectiva lo n g a” — nossa v id a está c ircu n scrita aos interesses im ediatos. Isto n ão significa q u e o im ed iato n ão seja im p o rta n te; m as se ele se to rn a de su m a im p o rtâ n c ia e nos esquecem os to talm en te d a “ perspectiv a lo ng a” , en tão a im e d ia ta p reo c u p a ç ão pelo p ão de c a d a dia — a m an e ira de viver, o m arid o , a m u lh er, os pensam entos banais — esta “perspectiva c u rta ” , lim itad a, estreita, conduz à aflição, conduz ao sofrim ento e à luta. E a m en te vulgar, m edíocre, sem pre se devota a um certo m o vim ento , u m a certa crença, u m certo dogm a. Ê d a n atu reza d a m en te m edío cre o p e rte n ce r a alg um a coisa. Ê da n a tu ­ 147 reza d a m ed iocridade, hoje tão generalizada no m undo, o interessar-se e x ag erad am en te p e la sociedade. E , se m e p erm itis assinalar — com o venho assinalando em todas estas palestras — nós n ão estam os tra ta n d o de idéias, n ão estamos “ v erb alizan d o ”, n ão nos estam os en treten d o com teorias. Estam os, sim, tra ta n d o de fatos reais, e a com preensão dos fatos é nosso único p ro ­ blem a. C om o disse h á dias, to d a fu g a aos fatos cria problem as. Ao * falarm os d a m en te m edíocre, da m ente superficial, não a estam os con­ siderando com o u m a idéia — com o coisa que devemos desfazer, que devem os su bstitu ir p o r um a m ente bem intelig ente, m u ito ativ a, am p la e p ro fu n d a. Estam os, apenas, m o stran d o que a m ente m edíocre é o solo em que m ed ra o sofrim ento. E, com o a m aio ria de nós se encon­ tra em sofrim ento, desta ou d a q u e la natu reza, se n ão tratarm o s de d e ita r abaixo os m uros d a m edio crid ade, o sofrim ento invariav elm ente c o n tin u a rá existente. C om o já tivemos ocasião de ap o n tar, o escu tar é u m a a rte — escutar, n ã o ap en as o que se diz, m as tam bém todas as coisas d a v id a — as aves, a alg azarra das crianças, os sons de u m a fla u ta ao a m a n h e c er; escutar, sem in te rp reta ção , sem com paração, sem co nde­ n a ç ão ; escutar, sim plesm ente. Nesse escutar podereis descobrir p o r vós mesmos, se escutardes aten tam en te, como vossa m en te fu n cio n a ; em b o ra eu o esteja descrevendo, estais observando o v e rd ad eiro estado de vossa m en te, de vosso pensam ento e sentim ento. N ã o nos estam os en treten d o com idéias, com binações de idéias, ideais. O ho m em in teressado nos fatos n ão tem id eais; e nós estam os interessados nos fatos. O fato é que h á m ed io cridade, v u lg arid ad e — e isto não significa qu e o u tro q u a lq u e r seja m edío cre, m as, sim, que c a d a u m de nós é m edíocre. Assim, devemos estar cônscios desse fato, devem os aplicá-lo a nós mesmos. A m ais elevada fo rm a d a crítica é a a u to c rític a ; m as n ão gostam os de criticar-nos: tratam o s m e ra ­ m en te de e v ita r o q u e vemos. A o falarm os de m ediocridade, v u lg ari­ d ad e, superficialidade, ficai cônscios disso em vós mesmos. O perce­ bê-lo apenas v erb alm en te n en h u m v alo r tem . Essa p ercepção n e n h u m a m odificação o p e ra n a m en te m edíocre. A m en te m edíocre se dedica a u m a d a d a ação — ação social, ação econôm ica, ação política, ou à aquisição de conhecim entos. A m en te v u lg a r está sem pre assum indo com prom issos; ela sem pre p e r­ tence a /a lg u m a coisa -— e o desejo de p e rte n c e r é u m fenôm eno psicológico d a m en te in telectual. H oje, ela p erten ce ao p a rtid o co­ m u n ista e a m a n h ã o re je ita ; está entregue a u m a c e rta ativ id ad e dogm ático-religiosa, que m ais ta rd e rejeita. D eveis observar, se ten- 148 des n o tad o esse fato , q u e os ch am ad o s “in telectu ais” aderem , coletiva ou in d iv idualm ente, a u m a d a d a teo ria, u m a d a d a u to p ia, um certo m ov im ento religioso. O desejo de p erte n ce r é desejo de p erm an ên cia. Segui o q u e estou dizendo, p o r favor, pois estam os inv estig and o o processo d a m editação, e isto faz p a rte d a m editação. T odos vós pertenceis a alg u m a coisa. N ã o sois u m a en tid a d e in div idual, in te ­ g rad a. Sois agru pados p e la sociedade, pelas influências am bientes, qu e vos im pelem a pertencer. Sem pre que u m a pessoa se interessa em o p e ra r u m a m odificação no m u ndo, p e rte n ce a alg u m a coisa. T od os nós pertencem os a crenças de várias form as, dogm as e ativi­ dades várias, po rq u e, no p erten cer, nós n ão som ente nos expandim os, m as tam bém , id entificando-nos com a coisa a que nos devotam os, tem os o sentim ento d e a tu a r — in tele ctu al, física, em ocio nalm ente — com o u m a en tid a d e to tal n u m m u n d o em desintegração. Se n ã o se com preende o im pulso e nos devotam os a d e te rm in a d a n o rm a de açao — q u a lq u e r q u e seja ela, u m certo pensam ento, u m a c e rta id éia, um certo aspecto do saber técnico — o u pertencem os a alg u m a coisa, isso p o r certo é u m indício de m ed iocridade. A m ente m edíocre q u e r en tão investig ar a im ensid ade d a vida. T e n d o -se ligado a alg um a coisa, q u e r então, em v irtu d e dessa ligação, co m p reen d er o sentido de todas as coisas. O r a bem , cum pre-nos inves­ tig ar o que é a m editação — algo v e rd a d e ira m e n te m aravilhoso, que n a d a tem que ver com rom antism os, com com binações de idéias, especulações, visões, ou sensações de to d a o rd em — pois tudo isso é co m pletam ente in fan til. Assim, esse im pulso a p erten cer, a ligar-se a u m m étodo, u m sistema, tem de ser com preendido. A m aio ria de nós —- se m e perm itis dizê-lo sem n e n h u m des­ respeito — é m edío cre; m esm o os mais talentosos são m edíocres, p o rq u e seu talen to é p arcial, lim itado , estreito. N e n h u m dom vos d e v a acim a d a m ediocridade. Pode um p in to r p in ta r os m ais belos quadros, mas é a in d a u m a pessoa m edíocre se tem ânsia de fam a, de reco n h ecim en to p ela sociedade. Ele q u er to rn ar-se rico, conhecido, fam oso e tu d o isso é indicativ o de um a m ente p e q u en in a, su p er­ ficial, vu lg ar, em bora d o ta d a de talento. E m geral, infelizm ente, n ão tem os grandes talentos n e m g ran d e cap acid ad e de pensam ento. T alv ez seja m elh o r assim, p o rq u an to , q u an d o desejam os a rd e n te ­ m en te investigar, descobrir algo, o hom em que se ligou a a lg u m a coisa se recusa a investigar o que q u e r que seja a n ão ser pelas d ire ­ trizes q ue ele p ró p rio escolheu. Nessas condições, p a ra descobrir o que é a m en te m ed ita tiv a nao deve h a v e r ligação n en h u m a — e isso é dificílim o, visto q u e a pessoa 149 p o d e estar in te ira m e n te d ev o tad a à oração, à rep etiç ão de palavras, à m ed ita ç ã o sobre u m a d a d a coisa, ou d ev o tad a a u m símbolo. A m a io r p a rte de nós estam os devotados a símbolos — e n ão à realid ade, p o rq u e a realid ad e é perigosa dem ais, sobrem odo destru tiv a. A m en te v u lg a r n ão po d e c o n te r a re a lid a d e ; p o r conseqüência, p ro c u ra sím ­ bolos, devotou-se aos símbolos — o símbolo d a igreja, do cristianism o; o sím bolo do h in d u ísm o ; o sím bolo do islam ismo, etc. A m en te m e^d ío cre se ligou ao sím bolo, à p a la v ra, à som bra, ao irre a l; não ao fato, m as à im agem esculpida p ela m en te ou p ela m ão, no tem plo, ou n a m esqu ita, ou n a igreja. O bserv ai isso, vede-o vós m esm o. U m a vez ligado a alg u m a coisa, tra tais de m e d ita r e precisais, então, de m éto ­ dos, de sistemas, p a ra alcançardes o que pensais ser o p e rm a n en te , o que pensais ser D eus, o que pensais ser a m ais m aravilh osa das vi­ sões. O que pensais é condicio nado po r vosso passado, p ela sociedade em q ue viveis. N a tu ra lm e n te, se sois cristão, tendes visões e x tra o r­ d in árias do Cristo, e “p ro je tais” essas visões. Se sois h induísta, tendes vossas p ró p rias im agens, vossas pró p rias visões. T o d a visão, toda im agem , u m a vez p ro je ta d a , p ro p o rcio n a u m a ce rta sensação; a isso cham ais m ed itação. M as, se o exam inardes, vereis q u a n to é in fantil, p o rq u e é vosso p ró p rio desejo q ue está a buscar preen ch im en to n u m a irre alid a d e sem n e n h u m a base, a não ser vosso p ró p rio p en sam en to ; este se a c h a cond icio nado pelo passado, p ela sociedade em q u e viveis, p ela experiên cia que acum ulastes em v irtu d e dessa condição. A m ed itação , pois, n ão é u m a busca de visões, im ersão n a oração. A oração im plica súplica, rogo. Q u a n d o pedis algo? Q u a n d o buscais? Q u a n d o achais? Fazeis tu d o isso q u a n d o vos vedes p e rtu rb a d o , so­ frendo, aflito, q u a n d o estais em conflito. E isso significa que desejais confo rto — n ão o confo rto do lar, p o rém con forto psicológico. P o r isso, orais; e, infelizm ente, vossa oração é ouvida, p o rq u e achais o desejado conforto. Esse confo rto é provocado, form ado, n u m a idéia q u e tendes p ro je tad o , n u m a id éia o u n u m a c ren ça o u n u m dogm a em q u e buscais abrigo, assim com o qu em busca abrigo n u m a tem ­ p e sta d e — u m abrigo feito de palavras, de idéias. C o m o perseverar nessa p rá tic a , o devo tar-se in te iram en te a ela, a pessoa espera en con­ tr a r ab rig o ; m as esse ab rigo consiste apenas em palavras, não é a realid ad e, algo substancial. E isso satisfaz à m aio ria de nós. M ed itação , pois, não é oração, não é o desejo de a e h a r a V e r­ dade. A m en te v u lg a r que busca D eus e n c o n tra rá o D eus de sua p ró p ria vulg arid ad e. C om preendeis, senhores? Se ten h o u m a m en te com um , lim itad a, estreita, superficial, cheia de am bição e avidez, de in v eja e 'ciúm e d e o u tre m — e com eço a pen sar em D eus, m eu D eus é ig u alm en te v u lg ar, estú pido; e essa estupidez m e satisfaz. 150 Pois bem , estam os investigando o processo d a m editação. P a ra investigar, deveis em p rim e iro lu g a r negar, deveis p ro ced er n eg ati­ v a m e n te — isto é, deveis e sta r cônscio de algo q u e n e n h u m a rea li­ dade tem , a n ão ser a realid ad e p ro je ta d a de vosso p ró p rio desejo, vossa p ró p ria fan ta sia ; deveis re p u d ia r o falso. Assim, pelo p e n sar negativo vam os descobrir alg u m a coisa positiva. M as o p e n sar n e g a ­ tivo é essencial, pois é a m ais elev ad a fo rm a de p en sar e nao o p en sar positivo. P ensar positivo é processo de im itação, m ovim ento de conhecid o p a ra conhecido. Ja m a is descobrirem os o desconhecido se nos m ovem os m eram en te do conh ecid o p a ra o conhecido, que é o ch am ad o processo positivo. D essa m an eira, jam ais descobrireis po r vós m esmo o qu e é a m ed ita ção real. As coisas q u e nos têm sido oferecidas com o m ed ita ção são p o r dem ais elem entares, co m p leta ­ m en te desprovidas de base psicológica. Assim, se tendes suficiente interesse, se desejais realm en te e x a m in ar até o fim a q u estão d a m ed i­ tação — e não apenas vos en trete rd es com ela —- deveis m e d ita r q u an d o vos dirigis ao escritório, q u a n d o constituís fam ília, q u a n d o gerais filhos. A m editação é necessária, p o rq u e destrói os m uros d a m ed iocridade, os m uros d a respeitabilidade e d a im itação. N ecessária é u m a m ente de tod o livre e x atam en te n o começo, e n ão no fim . Estam os, pois, p ensando n eg ativ am en te p a ra descobrir o que é a m editação. M ed itação não é co n te m p la ção : co n tem p lar é p e n sar n u m a idéia, concen trar-se n u m a c e rta coisa, geralm ente u m símbolo ou u m a frase lid a nos cham ados “ livros sagrados” •—• q u e em n a d a são sagrados, p o rém simples livros com o outros quaisq u er. Selecio­ nais u m a frase e n ela começais a re fle tir; e cham ais isso “co n te m ­ p lação ” . N ão cuidais de investig ar a en tid a d e que contem pla. Essa en tid a d e é co n d icio n ad a; essa en tid ad e é m edío cre, estreita, c iu ­ m en ta. E essa é a en tid ad e q u e investiga, q u e se c o n c en tra n a c o n ­ tem p lação de u m a c e rta coisa! A m editação, pois, não é oração. M ed itação n ão é co n te m p la ­ ção. M ed itação não é observância de u m d a d o m étodo o u sistema, O m étodo ou sistem a con dicio na a m en te. E, aq u ilo que o m étodo ou o sistem a oferece, obtereis; mas o que obtiverdes será u m a coisa m o rta. É com o te r u m a m en te e m b o tad a e estú p id a que se discip lin ou p o r u m sistem a e se recusa a p en sar m ais; essa m en te p e rd e u to d a a flexibilidade, to d a a sensib ilidade; já n ão é nova. Assim, a m ed itação n ão é u m sistema p a ra ser p raticad o . N ão é, p o r igual, u m processo de discip lin ar a m ente. Segui in té lectu alm en te tu d o isso que estou dizendo, se n ão p u d erd es fazê-lo realm en te. Se n a rea lid a d e o se­ guirdes, podereis ir m uito longe. N esta tard e, p rete n d o ir m u ito longe crom aqueles qu e sejam capazes de aco m p an h ar-m e, sem bagagens, livres. C onsequentem ente, a m editação n ão é n e n h u m a dessas coisas, nem tam pouco é disciplina. Q u e significa disciplina? D iscip lin a signi­ fica obediência, im itação, aju stam en to a um p a d rã o , u m a idéia, um id eal; p o r conseguinte, exprim e “ c o n tro le” que, p o r su a vez, im plica repressão — m as isso não q u er dizer que u m a pessoa pode fazer o "'que entender. Estam os ex am in an d o todo o m ecanism o d a disciplina. S em p re q u e h á repressão, h á co n trad ição ; e sem pre q u e h á c o n tra ­ dição, h á conflito e esforço. A m en te que fo rceja p a ra a lc a n ç a r algo — com exceção de coisas m ecânicas — a lc a n ç ar aqu ilo a que ch a m a D eus, a lc a n ç a r u m alvo, u m fim — é u m a m en te m o rta. P a ra a m ed ita ção necessita-se de u m a m en te sobrem aneira flexível, a lta ­ m en te sensível. E n inguém pode ser sensível se está “ co m p ro m etid o ” , se está preso a u m sistem a in v en tad o pelo hom em sob a com pulsão do m edo. N a d a disso, pois, é m editação. M as é preciso p re p a ra r a base p a ra a m ed itação. N ão sendo ela n e n h u m a daquelas coisas, é de to do fútil p en sar sequer nos óbvios artifícios psicológicos com que nos tem os en g an ad o atrav és/ de séculos. É preciso la n ç a r a base cor­ reta . A base c o rre ta d a m editação é: não ser am bicioso, não te r inveja, n ão aceitar a u to rid ad e de espécie alg um a. O lan çam en to d a base é d a m ais a lta im p o rtân cia, p o rq u an to sem ela n ão podem os edificar. N ã o se p o d e co n stru ir u m a casa sem alicerces; ela desaba. S e r sem am bição, sem au to rid ad e, sem in veja, sem m edo, sem ciúm e, tem de ser u m a coisa qu e deve ser vista im ed iatam en te, e n ão culti­ v a d a com o id ea l; e aí é q u e está a dificuldade. A im p o rtâ n c ia de lan ç a r a base d a m editação tem de ser de p ro n to p erceb id a. Se dizeis: “E u lançarei a base” , estais in tro d u zin d o o fa to r tem po. Servindo-vos apenas de u m tijolo — a in v eja — p a ra lan çard es a base, podeis d izer: “ N ão serei invejoso” , p o r terdes p e r­ cebido in te le c tu alm e n te qu e n ão é vantajoso sê-lo, q u e a inveja im p lic a tensão, lu ta , penas. M as a m e ra aceitação in te le c tu al n ão vos liv ra d a in v eja ; tam p o u co vos lib e rta rá o dizerdes: “U sarei de um id eal, a fim de livrar-m e d a in v eja ; isto é, n ão serei invejoso” «— p o rq u e esse “ serei” supõe o tem po . Ao afirm ard es “ N ã o serei inve­ joso” , estais in tro d u zin d o o fa to r tem p o ; isto é, pensais que necessi­ tareis de tem po p a r a vos liv rard es d a in v eja e dizeis que d a q u i a algun s anos ou em ce rta d a ta fu tu ra estareis livre d a in veja. E q u a n d o se in tro d u z o tem po, a in v eja p e rd u ra , sem solução de con­ tin u id a d e ; vós n ão ficais livre d e la ; sois a in d a invejoso q u a n d o dizeis: “N ão deve h a v e r in v eja ”. P o r favor, com preendei isto: a in v eja tem de ser c o rta d a im ed ia tam en te , e só p o d e rá ser c o rta d a im ed ia­ tam e n te q u a n d o virdes a coisa, q u a n d o virdes a inveja. C om o já tive ocasião de dizer, nós n ão “vemos” , n em tam pou co escutam os. N u n c a vemos, p o rq u e tem os opiniões a respeito d aquilo q u e vemos. Q u a n d o sois invejoso e vos pondes a refletir sobre a inveja, vós a justificais, p o rq u e to d a a e stru tu ra social baseia-se n a in v eja e vós sois educado p a ra serdes invejoso; e dizeis: “ C om o p oderei viver neste m u n d o sem in v eja ? ” Assim, considerais o fato, q ue é a inv eja, com u m a o pinião p reco n ceb id a a respeito dele. A p a la v ra “ in veja” já é c o n d e n ató ria e, p o r isso, considerais a in v eja com con­ denação. P o r conseguinte, p a ra verdes a inveja, tendes de estar livre d a palavra. O que estou dizendo n ão é com plicado; é bem simples. Em v erd ad e, é e x tra o rd in a ria m e n te simples, se escutais, se tentais, m esm o in telectu alm en te, escutar. A p a la v ra n ao é a coisa. A p a la v ra é o símbolo. Nós somos criados com símbolos e nao com realid ades, com aq u ilo qu e constitui o fato. A in veja n ão é coisa que se possa adiar. O u sois invejoso, o u nao sois invejoso. O hom em q u e d eseja m ed ita r, qu e deseja inv estig ar em p ro fu n d id a d e a questão d a m editação, não tem tem po p a ra a d ia r a inveja. A in veja tem de cessar com pleta­ m ente, totalm ente. T a m b é m a am bição tem de cessar p o r inteiro, p o rq u e o h o m em ambicioso não tem am or. A queles que, im pelidos p ela am bição, buscam posição, prestígio, p o d er, n ã o têm am or, ain d a que falem de paz e de fra tern id a d e . Po derão ter com paix ão, piedade, cap acid ad e o rg an izad o ra p a ra a ação social; mas, am o r n a o têm . A pessoa invejosa, q ue co m p ara, que deseja, que busca poder, posição, a u to rid ad e , não tem am or. Pode-se ler a respeito do am or no G ita, nos U panishads e n butro s livros; m as o am or n ã o v em p o r m eio dos livros. Só vem o a m o r se deixastes de ser invejoso, am bicioso, se já n ã o buscais o po d er, se já não sois escravo d a m o ralid ad e social. À m o ralid ad e social só u m a coisa in teressa: o sexo. N a o in teressa à sociedade a com p reensão d a avidez, d a am bição, d a inveja, n em a razão p o r q u e seguim os isto ou aquilo. P a ra m editardes, precisais la n ç a r a base co rreta, n ã o nos dias vin do uros, p o rém ím ed iatam en te. Isso é dificílim o — é em verd ad e o p o n to cru cial d a questão, pois nós querem os ser ambiciosos, que­ rem os ser invejosos; e tam b ém falam os a respeito de D eus, d a V e r­ d ad e, etc. N en h u m v alo r têm vossos deuses e vossas verd ades, en­ q u a n to não h o u v er a base correta. Q u a n d o já n ão estais preso n a engrenagem d a sociedade e de sua m oralid ade, q u e r dizer, q u an d o 153 vossa m en te está livre d a am bição , d a avidez, d a in v eja, do p o d er e de todas as coisas que o h o m em busca p o rq u e a isso a sociedade o estim ulo u desde a in fân cia — então, h á lib e rd ad e ; n ão a m a n h ã , não no fim de vossa v id a, p o rém ex atam en te no com eço — agora! Esse é o início d a m editação. Im p lic a o conhecim ento de si m esm o, e n ão o conhecim ento d o Ser Suprem o. N ão h á Ser S uprem o p a ra a m en te vulg ar, a n ão ser aqu ilo que ela in v en to u e a que *fchama “ S er S u p rem o ”. Assim, q u a n d o a m ente é livre — n ão a m a ­ n h ã , p o rém realm en te, im e d ia ta e in sta n ta n e a m e n te — d a in v eja, d a avidez, d a am bição d a busca de fa m a e de poder, então, com eça a m ed itação. P a ra essa m en te cessou o buscar. A o dizerdes que estais “b u scan d o ” , q ue buscais? Estais b u scando algo que já conheceis; do co n trário , n ão “buscaríeis” . N ão podeis b uscar algo q ue desconheceis; podeis buscar algo q u e se p o d e reconhecer — e o recon hecim ento vem d o passado. O reconhecim ento é p a rte essencial do conheci­ m en to — isto é, do conhecido. Assim, quan d o , m ed ian te o autoconhecim ento, negais de todo a am bição, a avidçz, a in v eja, a a u to ri­ d ad e, vos tornastes a luz de vós m esm o; a m ente, estand o en tão livre, n ã o “ co m p ro m etid a” , já não busca, p o rq u e n a d a tem que b u scar; ela está tran q ü ila. C om o po de u m a m ente lim ita d a buscar a Im en sid ad e? Só será capaz de tra d u z ir a Im en sid ad e nos term os de sua p ró p ria vul­ g a rid a d e è superficialidad e. A m en te, p o r conseguinte, deve fic a r livre de todas essas coisas. Q u a n d o in te ira m e n te livre de todas elas, a m en te se to rn a tra n q ü ila ; não tem então necessidade de b uscar paz de espírito, pois isso seria absurdo, coisa sem elhan te a p re g a r c o n tra a c o rru p ção e ao m esm o tem po q u e re r ap oderar-se do dinheiro alheio. A pessoa precisa desligar-se com pletam ente d a sociedade. ' Isso não significa a b a n d o n a r a sociedade, retirar-se p a ra u m a floresta, to r­ nar-se e rem ita — o que é u m a m era tro ca de roupas, m u d an ç a de hab itação . V ós tendes de desligar-vos d a sociedade, p a ra ficardes só; vossa m en te já não estará, então, in flu en ciad a p ela sociedade. Q u a n d o a m en te deixa de sofrer a in flu ên cia social, ela se to rn a capaz de ficar só. C om eça, então, a m editação. N o tareis, assim, q ue o cérebro — q ue é resu lta d o do tem p o ; o resultado de todos os ins­ tin to s anim ais, biológicos; o resultado d o conh ecim ento acu m u lad o p e la sociedade, p e la nação, p ela raç a , p e la fam ília — notareis en tão que o cérebro se to rn a sobrem odo quieto , p o rq u e já n ã o está bus­ cando . O cérebro já n ão está assustado; já não está a p erseguir u m a id éia ; já não está a a n sia r p o r conforto, segurança, perm an ên cia. P o r isso, ele se to rn a ex tra o rd in a ria m e n te q u ieto ; e ele precisa estar V4 quieto, p o rq u e to do m ovim ento do cérebro, que é im pulsionado pelo passado, ten d e a “ p ro jetar-se” e c ria r ilusões. P o r conseguinte, o cérebro deve estar com pletam ente sereno. A serenidade do cérebro n ão é adq uirível. N ão se p o d e a d q u irir q u ie tu d e ; n ão se po d e p ra tic a r a tran q u ilid ad e, p o rq u e o céreb ro q ue a p ra tic a é u m cérebro m orto. Gom o é possível fo rç a r o cérebro, em extrem o ativo e, necessariam ente, sensível — a fic a r quieto? Podeis destruí-lo — e de fa to o destruís — ren u n cian d o ao m u n d o e fugin do p a ra u m a espécie de “ o u tro m u n d o ” , d estruin do a beleza e p en san d o qu e D eus é d iferen te dela. A m en te sensível n ã o po d e ser d e stru íd a ; ela tem de p e rm a n ec e r sensível. Se com preen derdes o inteiro significado d a disciplina, vereis q u e h á u m a e x tra o rd in á ria disciplina, resu lta n te d a lib erdade, livre de controle. A o p raticard es u m a disciplina, a p raticais p o r m edo ao castigo ou p o r desejo de recom pensa, o u p a ra gan h ard es algo que cobiçais. Essa espécie de discip lin a to rn a o cérebo em bo tado, insensível. A v id a n ão p e rte n ce ao erem ita, nem ao sannyasi, n e m ao p o lí­ tico, a in d a qu e virtuoso. A v ida é algo e x tra o rd in a ria m e n te vasto, im ensurável. A m en te m edío cre n ão tem possibilidade d e com pre­ endê-la, E la é essencialm ente u m a m en te am biciosa, á v id a, aq u isi­ tiva. E no m om ento em q u e deixais de ser am bicioso, sob q u a lq u e r aspecto — m esmo q ue se tra te d a am bição de descobrir D eus — ao ab an d o n ard es a am bição , vosso cérebro se to rn a sin gularm ente quieto. E stá en tão sem n e n h u m m ov im ento de desejo, p o rq u e o desèjo foi com preen did o. Se u m hom em co m p reen d eu as visões d a im agin ação, se com p reen d eu o significado do p e rte n ce r a isto o u àq uilo, e tu d o isso foi posto de p a rte , esquecido, esse hom em já n ão é, então, p ri­ sioneiro do conhecido. E m g eral nos m ovem os do conhecido p a ra o conhecido; esta é nossa ativ id ad e d iária. T o d a a vossa v id a se con­ some n u m escritório o u n u m tra b a lh o técnico, n u m co n stan te m o­ vim ento do conhecido p a ra o conhecido. Vossa m en te pensa em term os do “ co nhecido” e, p o r conseguinte, n u n c a está livre do conhecido. A m ente m ed ita tiv a é livre do conhecido — isto é, livre da p a la v ra, do sím bolo, d a id éia, d a crença, do dogm a, das projeções d o passado. Q u a n d o o cérebro está liv re do passado, ou, antes, q u a n d o o cérebro está quieto, a consciência se to rn a com pletam ente tra n q ü ila — a to ta lid a d e d a consciência, e n ão apenas u m a p a rte dela — p o rq u e está, então, de todo sá, liv re de influências. J á não p e r­ tence a n e n h u m a sociedade, n e n h u m grupo, n e n h u m a casta, n e n h u ­ m a religião, n e n h u m dogm a; p a ra ela tudo isso se acab a. P o rta n to , h á tra n q u ilid ad e co m p leta n a m en te ; e nessa q u ietu d e n ão existe observ ado r nem coisa ob servada — p o rq u e o observador, conform e já expliq uei, resu lta d a reação do p en sam en to ; o observador, o pensador, é reação do pensam ento. Podeis p en sar nisso de m an e ira com pleta, m ais tard e , se vos interessa. N ão h á, pois, “ estado de ex p e rim e n tar” ; é m u ito im p o rta n te co m p reen d er isso. A experiência — rá p id a e concisam ente d efin id a g— ê aquele estado em q u e h á reação a u m desafio. T o d a reação a desafio p ro d u z u m a experiência, e essa experiência p ro m a n a de vosso condicio nam ento. Se sois h in d u ísta, com esse fu n d o é que reagis aos desafios, p o r insignificantes q u e eles sejam . M esm o a u m “desafio ” in significante, “reagis” com o fu n d o de vosso hinduísm o, de vosso condicionam ento , e essa reação é experiência. Assim, a m en te que está ex p erim en tan d o está reag in d o e, p o r conseguinte, n ã o é u m a m en te livre. A m en te tra n q ü ila n u n c a está em busca de exp eriência, d e q u a lq u e r espécie que seja. E , se n ão está b u scando e, p o r conseguinte, está p erfe ita m e n te serena, sem n e n h u m m ovim ento do passado e, p o rta n to , do con hecido, podereis ver, então, que h á u m m ovim ento do D esconhecido, o q u al n ão é reconhecível, nem traduzível, n e m exprim ível p o r p a la v ras; podereis ver, então, q u e h á u m m o vim ento q ue é o m ovim ento d a Im ensidade. Esse m ovim ento é o m ovim ento do A tem poral, p o rq u e, nele, o tem po n ão existe, n a d a existe p a ra ex p erim en tar, n a d a p a ra g an h a r, alcançar. A m ente conhece, então, a criação — não a criação do p in to r, do p o eta , do discursador, p o rém aq u e la cria çã o que n ão tem “m otivo” , que n ão tem expressão. Essa criação é a m o r e m orte. T u d o isso, do com eço ao fim , é o cam in ho que a m ed itação pe rcorre. O hom em q u e deseja m e d ita r deve co m p reen d er a si próprio. Se n ão conheceis a vós m esmo, n ã o podeis ir longe. P o r m ais que ten ­ teis ir longe, n u n c a ultrapassareis vossa p ró p ria “pro jeção ” ; e vossa p ró p ria “ p ro je ç ão ” está m u ito perto, e a p a rte alg u m a vos leva. M ed itação é aquele processo de la n ç a r im ed iatam en te a base e de fazer nascer — n a tu ra lm e n te , sem esforço alg u m — aquele estado de tra n q ü ilid ad e . Só en tão existe u m a m ente fo ra do tem po, fo ra da experiência e fo ra do conhecim ento. 7 de fevereiro de 1962. MORRER PARA O PASSADO (N o v a D e l i — V II) F a l a r e i nesta ta rd e sobre a m orte, m as, antes de e n tra r­ m os n e sta im ensa questão, penso q ue devemos co m p reen d er a c a p a ­ cid a d e d e investigar, a c a p acid ad e d e in q u irir, d e descobrir, p o r­ q u a n to isso m u ito im p o rta p a ra se co m p reen d er a questão relativ a à m orte. Se form os capazes de in q u irir, investigar, in d ag a r, descobrir, estarem os então livres do m edo. Se n ão estam os livres do m edo, em todas as suas fo rm as — q u e r exteriores, q u e r interio res — se n ã o tem os a com preensão ta n to dos tem ores externos com o dos tem ores psicológicos, n u n c a seremos capazes d e co m p reen d er a im ensa ques­ tão d a m orte. Q u e é essa cap acid ad e de investigar? C om o nasce ela? Q u a is .. são os “ requisitos” necessários, se posso em pregar essa p alav ra, p a r a se te r essa c a p acid ad e d ireto ra, com preensiva, que a b rirá a p o rta p a ra o desco brim ento? E m p rim eiro lu g ar, parece-m e, n ão dev e h av er “ m o tiv o” alg u m no investigar. N ão deve a busca ser “m o ti­ v a d a ” p o r idiossincrasias pessoais, ou p o r propósitos utilitários, n e m colorida p o r n e n h u m desejo de segurança. Isso é a b so lu tam en te essen­ cial a to d a investigação, seja u m a investigação cien tífica, seja u m a investigação psicológica. N esta tard e , nós vam os investigar, n o cam po psicológico, a questão d a m o rte ; e, p a ra p o d e r fazê-lo, a m ente deve estar livre de “m o tiv a” . U m a das coisas m ais difíceis, psicologicam ente, é es­ tar-se livre de “ m otivo” , de u m propósito, de um a fin alid ad e a que se visa consciente ou inco nscientem ente. Se u m hom em deseja lib e r­ tar-se d a agonia que o m edo causa a respeito d a m orte, ele deve, p o r certo, estar livre de “ m otivo” — entendendo-se p o r “ m otivo” nao só a causa, m as tam b ém a busca de u m fim. P a ra ven cer o m ed o, UJ cu m p re descobrir-lhe a cau sa e bem assim o desejo de estar livre dele, qu e im p ed e a investigação. Espero que escuteis, investigando vossa p ró p ria m ente, vosso p ró p rio coração, e não ac eita n d o o u negando, v erb alm ente, ou refu ­ ta n d o com arg u m en to s -— pois isso d e n a d a serve: vereis, no fim , q u e n ão chegastes a p a rte alg um a, e o m edo c o n tin u a rá existente. É possível estarm os de todo livres do m edo, psicologicam ente, in terio rim e n te , e aptos a investig ar esta questão, n ão de m an e ira in te le ctu al o u v erb al, p o rém realm ente? Seria m aravilhoso sairm os deste p a ­ v ilh ão, sem tem o r; estaríam os, então, livres d a sociedade e d a agonia das relações q u e constitu em a so cie d ad e; n ão nos veríam os a to r­ m entados pelos in um eráveis conflitos, problem as, ansiedades, pesa­ res, existentes n a m en te e no coração de todo en te hum ano. E, p a r a in vestig ar esta questão, a m en te deve, com o disse, estar in te ira m e n te liv re de “m otivo” . Po de a m en te ser livre, e lev a tem po isso? Se se percebe a necessidade de estar co m p letam en te livre do m edo, en tão esse p ró p rio percebim ento elim ina o “m otivo” — pois vossa in ten ção , vòsso im pulso, vosso em penho é de vos livrardes do tem o r; e percebeis que a investigação d a questão do m edo é im p e­ d id a q u an d o existe alg um “m otivo” . P o r conseguinte, ao com preen­ derdes a necessidade de estar livre do m edo, d esaparece o “m otivo” . Isto é um fato psicológico: q ú an d o h á um a coisa m ais im p o rtan te, a m enos im p o rta n te desaparece — com o tu d o o m ais n a vida. Assim, ao investigarm os a questão do m edo, devemos co m p reen ­ der em prim eiro lu g ar o que isso significa e o que é q ue está im pli­ cado no processo d a investigação, não do m edo, p o rém d a m ente capaz de in vestigar o m edo. Estam os, p o r o ra, interessados apenas n a ca p ac id ad e de investigar — não a cap acid ad e de investig ar a m orte, o am or, a beleza, a am bição ou o que q u er que seja, em p a r­ ticular. A c a p acid ad e de investig ar é n eg ad a se a m en te está p ro ­ cu ra n d o libertar-se do problem a. G eralm en te tem os interesse em nos liv rarm os do m edo e, p o r conseguinte, o evitam os; e, no m om ento em q ue a m en te reco rre à fuga, cessou a investigação. P o rtan d o , n a investigação n ão deve h a v e r fuga. E é dificílim o n ã o fugir. Precisa­ mos estar cônscios do que está im plicado no “m otivo” e tam bém n a fug a, p o rq u e, se desejam os fugir, evitar, cessa en tão com pleta­ m en te o processo de investigação. E cessa, tam bém , a investigação se n ela intro du zis vossa opinião pessoal, ou vossa p ró p ria idiossin­ crasia, ou as coisas q ue tendes ap ren d id o . Gom o dizia, cessa a inves­ tigação de q u a lq u e r prob lem a, p rin cip alm en te um p ro b le m a psico­ lógico, q u an d o n ela introduzis vossa opinião pessoal ou p conheci­ 158 m en to ad q u irid o de o u trem , o u q u a n d o n e la “ p ro je tais” vossas p ró ­ prias experiências, baseadas em vosso cond icionam ento. V ede, pois, p o r favor, todas as im plicações e dificuldades in e ­ rentes à investigação. Gom o estam os fala n d o sobre questões m u itò sérias e sobre coisas m u ito urgentes, vós deveis p re sta r atenção. N a aten ção n ã o h á d istração, p o rq u e ela faz p a rte do processo de investigação — e a opin ião, o, ju lg am en to , a avaliação constituem u m a d istração q u e im p ed e a investigação. N ós vam os investigar, em sua to ta lid ad e, a qu estão d o m edo. V ossa m ente, p o rta n to , deve e sta r p re p a ra d a p a ra in vestig ar; a m e ra aceitação ou rejeição d o que se está dizendo n e n h u m v a lo r tem . O q u e vos in teressa é o v iver — o viv er de c a d a dia, com todos os sofrim entos, ansiedades, aflições, dores e alegrias passageiras. Q u a n ­ d o tu d o isso vos interessa, a m e ra aceitação de explicações verbais, ou a m era asserção de con hecim entos obtidos em alg u m livro, n ão resolverá vossos problem as. O s pro blem as só p o d em ser resolvidos p e la investigação, p e la p e rfe ita com p reensão deles. O p ro b lem a do m edo é u m p ro b lem a urgentíssim o. H á o m edo à m orte. N a o im p o rta se se tr a ta de ge nte v e lh a o u de gente nova, p o rq u e a m o rte está à fren te de c a d a u m de nós, velhos e moços. E p a ra com preen der, p e ­ n e tra r v e rd a d e ira m e n te este p ro b lem a relativ o ao m o rre r, requer-se u m a m en te a p ta a investigar. A investigação, com o já assinalei, é im pedid a, n eg ad a, q u a n d o h á “m otivo” . Q u a n d o tendes u m fim em vista, q u a n d o “ p ro je tais” em vossa investigação u m a opin ião pessoal ou os conhecim entos q u e adquiristes, eessa de todo a investigação. Assim, se estais investi­ gando, deveis estar b em cônscio desses fatos — os “m otiv os” , a ân sia de atin g ir u m fim , a ânsia de fugir, e as sutis form as de opiniões e avaliações e juízos. Se isto está bem claro p a ra todos os ouvintes, podem os e n tra r n a investigação do m edo. Q u e é o m ed o? Q u e é q ue sente m edo, e com o surge ele? O m edo p re ju d ic a a percepção, a clareza. A m en te tem ero sa vive sem pre n a ilusão, seja a ilusão de D eus, seja a ilu são de ajustar-se à sociedade, seja a ilusão de b uscar o p ró p rio a p erfei­ çoam ento. E n q u a n to ho u v er q u a lq u e r fo rm a de m ed o psicológico em q u a lq u e r nível, existirá a desfiguração d o pensam ento , a desfi­ gu ração do percebim ento. P o r conseqüência, m uito im p o rta p a ra o viv er são, sensível, não só que a m en te co m p reen d a to do o “processo” do m edo, m as tam bém que descub ra se podem os viv er sem m edo. A essência do tem o r é a “ não-existência” , pois todos desejam os viver, c o n tin u a r existentes, de q u a lq u e r m aneira, a in d a q ue vossa 159 v id a seja lastim ável, vulg ar, estreita, estúpid a, sem riqueza, sem p len itu d e . P o r m áís superficial que a v ida seja, nós querem os viver, querem os expressar-nos, querem os estar em relação com alg um a coisa. E esse desejo de estar em relação com o u trem , com a n atu reza, com idéias, é a p ró p rià essência do desejo de viver, de a m a r e ser am ad o , de expressão e p reenchim ento , com tôdas as respectivas ansiedades e frustrações. O m edo, p o r certo,, só existe em relação > com alg u m a coisa; o m edo n ão existe a b stratam en te, p o r si só. Ele existe n o desejo de c o n tin u a r e de buscar, descobrir, e estabelecer u m estado de p erm an ên cia. V ed e, p o r favor, qu e, com o disse, vós n ã o estais escu tando a m im , n em m in has p alav ras, n e m certas idéias; escutais, observais vossa p ró p ria m en te e vosso p ró p rio coração. Estais observando os vossos pró p rio s “ processos” em vossa p ró p ria vida. As p alav ras são apenas u m espelho, m as o espelho n ão é a v id a. O espelho m o stra o que h ã em vosso coração, em vossa m en te ; m as, se vos lim itais a escutar p alav ras, a a c e ita r ou re je ita r essas p alavras, n ao estais en tão obser­ v a n d o vossa m en te e coração. Estas palestras n ão têm a fin alid ad e de oferecer-vos m ais idéias e com binações de idéias, porém , sim, de m ostrar-vo s o fu n cio n am en to de vossa p ró p ria m en te e coração. Assim sendo, observai vossa p ró p ria m ente. T am b ém , com o já ten h o d ito fre q ü en te m en te, o escu tar é u m a arte. Se sabeis escu tar corretam ente, h á im e d ia ta percep ção e com ­ preensão — escu tar q u a lq u e r coisa to talm en te, com todo o vosso ser; q u e r dizer, com todos os vossos sentidos, com vosso coração, vossa m ente,, vosso corpo — to talm en te! V ereis, e n tã o , q u e nesse p ró p rio ato de escutar, a coisa que tem eis, a coisa q u e Ivos faz m edo, desaparece com pletam ente. M as, vós n ao escutais; n u n c a escutais p o rq u e estais cansado, p o rq u e tendes vossos pró prios pro blem as; e, q u a n d o ouvis algo, vós o com parais com aqu ilo que j á sabeis. V ossa m en te, p o r conseguinte, n u n c a está tra n q ü ila p a ra escu tar; está sem pre ag itad a, q u an d o escuta. E a m en te a g ita d a n ão pode co m p reen d er nem escutar. E o p ro b lem a é de co m preender im edia­ tam en te . A com preensão nao nasce do tem po , d a co m paração. E la vem q u a n d o a m en te está clara, q u a n d o é p e n e tra n te e racio nal. E n tã o , com preendeis im ed iatam en te, e esse “ im e d ia ta m e n te ” d a com ­ preensão é essencial. Gomo sabeis, o m un d o e vós m esmos estais ago­ niados, entregu es à ansiedade e ao sofrim ento. A n siedade e sofri­ m en to n ão são m eras p ãlavras, m eros símbolos. V ós ten des de com ­ p reen d ê-la s; tendes de p en etrá-las até às raízes, e extirpá-las, p a ra poderd es descobrir. Assim, se sabeis escutar, e se escutais com aten - 160 ção, de m an e ira com pleta, vereis que, e n q u a n to escutais, a p ró p ria coisa de que tínheis m edo, consciente o u in conscientem ente, vos está sendo rev e lad a ; e, assim, a elim in areis com pletam ente, to talm en te, p a ra sem pre. A m ente com tem o r é u m a m en te corrom pid a. Pode ela o c u p a r u m a a lta posição, fre q ü e n ta r a ig reja o u o tem plo e re c ita r in te rm i­ n avelm en te certas p ala v ras sagradas — n a d a disso tem significação, p o rq u e a m en te e o coração estão corrom pid os pelo m edo. A co m ­ preensão do m edo é u m p ro b lem a v erd ad eiram en te difícil. M as, m u ito im p o rta com preendê-lo . Existe o m edo — n ão só de peq u en as coisas, m as tam b ém de grandes coisas. T em eis vossa m u lh e r ou m arido, tem eis p e rd e r o em prego, tem eis a opinião pú b lica, tem eis n a d a terdes de p e rm a n en te em vossa vid a. T odo s os que têm m ed o buscam alg um a fo rm a de p erm a n ên c ia . N ã o h á p e rm a n ên c ia neste m u n d o ; não h á p e rm a n ên c ia nas relações e n tre vossa esposa e vós, en tre vosso m arid o e vós, e n tre vós e a sociedade, e n tre vós e vosso p a trã o e vosso em prego. N a d a h á de p e rm a n en te neste m u n d o ; p o r isso, a m en te busca algo q u e seja m uito m ais p e rm a n en te , a q u e ch a m a “ D eus’1 — u m a idéia. E, depois de a d o ta r essa id éia, a m en te a conserva a p e rta d a ao coração. Existe, psicologicam ente, alg u m a coisa p e rm an en te? Sabeis que, ex terio rm ente, n a d a existe p e rm a n en te . In te rio rm e n te, desejam os a p e rm a n ên c ia ; m as não h á n a d a p e rm a n e n te — n e m vossa esposa, ou m arido, filhos, idéias, crenças, dogm as. N a d a é p erm an en te. M a s vós vos recusais — vossa m en te se recu sa — a p erceber isso, p o rq u e to d a a nossa sociedade, todas as nossas virtudes, todos os nossos prin cíp ios se baseiam n a id éia d a p erm an ên cia. N asce o m edo ao ser co n testad a essa p erm an ên cia. N ela nós alicerçam os o nosso ser. Id entificam o-n os com u m a idéia, que dizemos p erm an en te, ta l com o a idéia do D eus S uprem o e todos os dem ais term os d a fraseologia ideológica. E q u an d o se põe em d ú v id a essa p erm an ên cia, ergue-se, então, to d a a e stru tu ra do m edo. H á o m edo ao im ediato , e m edo ao fu tu ro . O fu tu ro , isto é, am a n h ã , é a “p ro jeção ” do tem po, q ue é p ensam ento . Esto u falan d o de m a n e ira sim ples sobre u m p ro b le m a com plicado. Só ao conside­ rarm os com sim plicidade um p ro b le m a com plicado, podem os com e­ ç a r a vê-lo com clareza. O pen sam en to é a “reação ” do tem po. O pen sam en to é reação d a m em ória, q ue é o passado. O pen sam en to q ue é o presente, e q ue fo i o passado, cria o fu tu ro . Nós temos de co m p reen d er o processo do pensar, p a ra poderm os co m p reen d er o m ed o ; e p a ra com preenderm os o m edo, precisam os c o m p reen d er o tem po. 161 Investiguem os, pois, p rím eiram en te, a questão do pensam ento. Q u e é o p en sar? E sto u fazendo u m a p e rg u n ta : Q u e é o p en sar? E vossa p ro n ta reação, se d ela estais cônscio, é o ativ am en to d a m em ória, que se p õe a p ro c u ra r a resposta. Peço-vos p re sta r aten ção a isto. É m u ito simples. D eix ai-m e expressá-lo dife rentem ente. P e r­ gunto-vos: “ O n d e m orais?” V ossa resposta é im ed iata, p o rq u e estais bem fam iliarizado còm isso. N ão h á intervalo en tre a p e rg u n ta e a re sp o sta ; vós a sabeis im ed iatam en te, p o rq u e é u m a coisa com que estais fam iliarizado. Faço-vos u m a p e rg u n ta u m pouco m ais com ­ p lex a ; h á en tão u m intervalo de silêncio, u m intervalo de tem p o ; c d u ra n te esse intervalo vossa m em ó ria está ativa, e, depois, respon­ deis. Assim, en tre ã p e rg u n ta e a resposta, o intervalo de tem po rep re sen ta o processo em q u e a m em ó ria se p õ e em fu n ção e o p en sa­ m e n to sai expresso em palavras. O p ensam ento , pois, é reação d a m em ória. E a m em ó ria é a m ultiplicação de um m ilh a r de dias passados, com to das as suas experiências e conhecim entos. O m eio c u ltu ra l em que a pessoa foi criad a, a educação q ue — consciente ou inconscientem ente, recebeu — esse é o fu n d o de conhecim ento e m em ó ria de oride procede a “resposta” a c a d a desafio; e o “ respon­ d e r” é u m a ação q ue precede o pensam ento. O pen sam en to vem e a tu a . Esse é o inteiro m ecanism o d a m em ória. Assim, se n ã o tiv er­ des com preendido esse m ecanism o d a m em ória, do p en sam en to , n ão podereis co m p reen d er o q ue é o tem po. H á o tem p o cronológico, m edido pelo relógio, o tem po represen­ ta d o p o r v in te e q u a tro horas, o tem p o rep resen tad o pelo ontem , h o je e a m a n h ã . A o falarm os do tem po , não nos estam os referin d o a esse tem p o ; referim o-nos ao tem p o psicológico. O tem p o que constitu i o a m a n h a , o tem p o q u e o pensam ento d á à esperança, o tem po rep resen tad o pelo fu tu ro , em q u e vos to rn areis algo im p o rta n te, o tem p o com o realização de alg u m a coisa, com o c h eg ad a à m eta, com o g a n h o — tudo isso é tem p o psicológico; não é tem p o cronológico. Assim, a m en te q u e deseja conhecer e co m preender o p ro b lem a do m ed o tem de c o m p reen d er o processo do pensar, em si p ró p ria — n ão em alg u m livro — , o processo de seu p ró p rio pensam ento e de com o este “fab rica ” o tem po. Se n ão h á pensam ento , não h á tem po. Se n ão h á tem po, não h á m edo. Se vos dizem qu e ides m o rre r neste in stante, a g o ra m esm o, n ã o h á m edo, p o rq u e j ã estais m orto. Só se a p resen ta o m edo q u a n d o h á u m in te rv alo e n tre o fato e aqu ilo q u e esperais n ã o aconteça. O p en sam en to , pois, é m edo, o pensam ento é te m p o ; e o fin d a r do p e n ­ sam en to é o fin d a r do m edo. E scutai isso, apenas. N ã o p erg unteis com o p o r fim ao pensam ento. Se fordes capa? de escu tar jsso, com - 162 preendereis. Assim, no investig ar do m edo im pende c o m p reen d er o pensam ento. O p ensam ento é reação d a m em ó ria ; e m em ó ria é o passado, não só o passado con stitu ído p o r m ilh ares de dias p re té ­ ritos, m as tam b ém o passado que foi o ntem , o passado de vossa ed u cação ao ap ren d erd es inglês, a p ren d erd es técnicas. A reação to ta l d o passado constitu i o tem po, q u e é pensam ento. E o m edo surge q u a n d o o p en sàm en to se to rn a cônscio de su a p ró p ria contradição. Se n ão h á co n trad iç ão , se n ão h á conflito, se n a o h á ânsia de p reen ch im en to , n ao existe então a consciência d a esfera do tem po . P en sar é reação d a m em ó ria ; e essa m em ória é o c e n tro de onde p a rte m tod as as ações — o eu, m in h a fam ília, m in h a p á tria , m eu em prego, m in h a v irtu d e — ; é o c e n tro de o n d e pro ced em todos os pensam entos, q u e são reações. E n q u a n to existir esse centro , tem de h a v e r m edo. Esse cen tro n ão é n a d a de ex trao rd in ário , n a d a de espiritu al. É sim plesm ente o m ecanism o d a m em ória. Ê u m feixe de m em órias. H á m edo ao se p ô r em d ú v id a esse centro , q u a n d o o fazem os sentir-se inseguro, ao sentir-Se ele in cap az d e a lc a n ç ar alg u m a coisa, ao sentir-se fru stra d o , ao sentir-se to ta lm e n te só. V am os ex a m in ar esta questão d a solidão, p o rq u e esta é a v e rd a d e ira essência do tem or. N ão sei se j á alg u m a vez percebestes com o é g ran d e a vossa solidão. N ã o m e refiro a o “ estar desacom ­ p a n h a d o ” , ao “estar só” : refiro -m e ao sen tim ento de solidão. Sentis essa solidão q u an d o m orre alguém que am ais, o u q u a n d o alguém que am ais se vo lta c o n tra vós. Se a pessoa que am ais vos ab an d o n a, sentis ciú m e; e esse ciúm e é a reação d a solidão a m e a ç ad o ra daquele p ró p rio c en tro q ue exige a p erm an ên cia. N ão sei se já conhecestes esse estado d e solidão, a d o r d a solidão, o com pleto isolam ento, em q ue n ão se está em relação com coisa alg um a. J á o deveis te r sentido. T o d o aquele q u e é sensível, que reflete, q ue observa, o sente, sem d ú v id a ; e, e n tã o , ao sentir essa solidão de onde surge o m edo, o hom em tr a ta de fu g ir d e la : com eça a beber, a p ro c u ra r m ulheres, D eus, a p ra tic a r ritos, q u a lq u e r coisa — pois seu desejo é fu g ir desse sentim ento de solidão p a ra algo m ais satisfatório. P a r a qu an to s se dizem “ religiosos”, D eus se to rn a u m a fu g a m arav ilh o sa; p a r a os m undanos, a racio nalização in telectu al con stitui a fu g a; e, p a ra os que “têm dinheiro, a fu g a é a b eb id a ou o sexo. H á m il e u m a coisas em que nos podem os refu g iar d a solidão. E essas fugas se to rn a m su m am en te im p o rta n tes, p o rq u e nos tran sm item um sen ti­ m en to de p erm an ên cia. Q u a n d o a m e a ç a d a essa p erm an ên cia, vem o-nos de v o lta ao p ro b lem a d a solidão e d o m ed o ; e p rocurais p re e n ­ ch er essa solidão com conhecim entos, in stru ção, sexo, v irtu d e, M as n a d a pode preenchê-la. Se tiverdes p en etrad o em vós m esm o e 163 observado todo esse processo, sabereis que n a d a po d e preenchê-la. O q u e se p o d e fazer a respeito d a solidão é o lh á-la de frente. O lhá-lo de fre n te é, p o r igual, o que podem os fazer com o m edo. Isso é, a p a la v ra n ão é a coisa. P restai a ten ção a isto, p o r favor. A p a la v ra n ão é a coisa. A p a la v ra “m ed o ” n ao é o m edo. M as p a ra a m aio ria de nós a p a la v ra se to rn o u im p o rta n te, n ã o só em relação ao m edo, m as tam b ém __em relação a D eus, ao sexo, ao com unism o, à política. E m relação a tu d o as p alav ras o u símbolos se to rn a ra m relevantes, e n ão o fato — e isso significa qu e a m en te é escrava das p alavras. V ós sois escravos de p alav ras tais com o “ C om unism o” , o u “ P a rla m en to ”, ou “H in d u ísta ” , o u “ B udista” , o u “ M u çu lm an o ” . Assim, se desejais com ­ p re e n d e r o m edo, vossa m en te deve estar livre d a p alav ra. A p a la v ra e n c erra condenação, é, p o r conseguinte, n ao podeis ex a m in ar o fato se vossa m en te está escravizada à p a la v ra. V o u dizê-lo de m a n e ira m u ito simples. C onsiderem os a p a la v ra “ ciúm e” ; n e sta p a la v ra, em si, h á u m sentido condenató rio. D o m esm o m odo, a p a la v ra “cólera” ; seu significado sugere que nao deveis te r cólera. E se desejais inves­ tig ar a p a la v ra e co m p reen d er o sentim ento que o ciú m e im plica, deveis estar livre d a p ala v ra. O ra , sem dúvida, isto é bem simples. Assim, q u a n d o estais investigando o m edo, deveis estar liv re d a p a la v ra — não só d a p a la v ra m edo, m as tam bém de todo o sistem a de p a la v ra e símbolos a que a m en te se escravizou. A te n ta i p a ra isto, p o rq u e, se não o com preenderd es, perd ereis co m p letam en te o sen­ tid o do q ue explicarei ad ian te. A p a la v ra “D eus” n ão é D eus. M as, p a ra poderm os ficar livres dessa p a la v ra, m u ito im p o rta descobrir o que é D eus ou se h á D eus. Id en ticam en te, o m edo é u m a p a la v ra, u m a opinião, u m a fu g a ao fato. Se vos vedes d iretam en te em p re ­ sença do fato, n ã o h á m edo. Tendes de olhá-lo. Assim o p en sa­ m en to. N ao h á p en sar sem verbalização. M as a p a la v ra im plica o tem po, que é p e n sam en to ; e, hav en d o pensam ento, h á u m in terv alo e n tre o fato e o processo do p en sar; p o r isso, n u n c a vedes o fato. H á a m o rte — u m fato inegável. V ós a vedes todos os dias. E m to d a casa ela en tra. T o d o ser h u m an o a .conhece. E la é u m fim — absoluto, definitivo, irrevogável. Podeis tecer u m a p o rção de teo rias em to rn o d e la — dizer q ue h á co n tin u id ad e, q ue h á o “ a lé m ”, qu e h á u m a v id a fu tu ra , etc. etc. M as o fa to é u m fato. Se com preendeis o fato, descobrireis o que h á além . M as, se n ã o com preendeis o fato , se n ão enfrentais o fato , n ã o podeis p assar além . O fa to é q u e h á a m o rte ; e c o n tra esse fato n ão h á argum ento s. N ão podeis a rg u m e n ta r com a m orte. N ã o podeis dizer-lhe “vem a m a n h ã ” . Q u e é, pois, m o rre r? H á , decerto , u m m o rre r fisiológico, em q u e o 164 corpo se acab a. A m o rte v irá, in ev itavelm ente, p a r a o corp o, p o rq u e o corp o é u m a m áq u in a , u m organism o q u e se g asta pelo m a u uso qu e dele se faz pelo conflito, p o r pressões, lutas, p e la alim en tação in ad e q u a d a , e tc .; assim, todo esse processo chega a seu fim . P o d e­ m o-lo a d m itir m u ito fácil e p ro n ta m en te . M as isso é tu d o ? E m vivi, lu tei, a d q u iri exp eriência, to rn ei-m e m u ito poderoso — p a ra que? Se eu m o rrer, tu d o isso d esap arecerá o u te rá c o n ti­ n u id ad e ? C om o descobri-lo? C o m preendeis, senhores? N ã o m e estais escutand o, p a r a receberdes novas idéias. N ã o vos estou forn ecendo argum entos, n ã o estou re fu ta n d o o q u e credes e oferecendo, com o substituto, m in h a c ren ça p a rticu la r. N esta m até ria , n ão ten h o cren ça a lg u m a ; só te n h o fatos. D esejo saber o que é a m o rte, e n ã o p o d erei sabê-lo se n ão sei m o rrer. Fisicam ente, vosso corpo tem c o n tin u id ad e — com o sabeis — até chegard es ao fim , a té a m áq u in a m o rrer. O ra , é possível m o rre r psicologicam ente? Sabeis o q u e significa m o rrer, fin d a r? E ntendeis m in h a p e rg u n ta ? F a ç o -a com clareza? V ede, senhores, h á a m orte, algo que n ã o conheceis. E aq uilo q ue desconheceis, tem eis. Pelo m enos pensais que tem eis aquilo que desconheceis. N ã o é v erd ad e? C om o podeis te r m ed o de u m a coisa q ue desconheceis? T en d es m ed o é de p e rd e r algo q u e j á conheceis. E sta a causa real do m ed o ; o m edo n ão é ao desconhecido. Tem eis p e rd e r algo q ue acum ulastes. Tem eis p e rd e r o conhecido, e n ã o o desconhecido. O ra , pode-se m o rre r p a ra o desconhecido? Podeis m o rre r p a ra a lem b ran ça de ontem , p a ra todas as vossas realizações, p a ra to das às coisas que tendes acu m u lad o ? Podeis m o rrer livre e facilm ente, e dito sam ente, p a ra as coisas q ue vos são caras? Podeis a m a r vossa fam ília -— m as eu tenho m in has dúvidas a esse respeito ; se amásseis v erd ad eiram en te vossa fam ília, a a tu a l sociedade n ã o seria tão c o r­ ru p ta , Podeis m o rre r p a ra vosso prazer, p a ra vossas vaidades, a m b i­ ções, p a ra vossa avidez — im ed ia tam en te ? Pois é isso que irá a c o n ­ tecer ao m orrerdes. M o rre r p a ra ontem , m o rre r p a ra c a d a m in u to , m o rre r p a ra todas as coisas acu m u lad as — isso é m orte. Q u e r dizer, podeis viver sem pre n u m estado de “n ão saber” e, p o r conseguinte, sem pre jovem , novo, “ in o cen te” ? A m o rte é u m a coisa ex tra o rd in á ria . A m o rte é o desconhecido. N ão podeis chegar-vos a ela com o con hecido; n ão podeis chegar-vos a ela com todas as vossas cargas. A m o rte vos d esp o jará de tu d o — d e vossa fam ília, vossos filhos, vosso c a ráter, vossas am bições. P orque, então, vós m esm o não vos despojais de tu d o isso agora? Q u a n d o o fizerdes, sabereis o que signi­ fica a m orte. E eu vos g aran to que, q u an d o o souberdes, conhecereis u m a g ran d e beleza. Sabereis en tão o que é o am or, p o rq u e a m orte, o a m o r e a beleza, a n d a m sem pre juntos. Essa coisa q ue ch am am os am o r n ao é o a m o r; é m era m em ória. O q ue am ais é o vosso interesse pessoal. V ossa fam ília é a c o n tin u id ad e de vós m esm o; vossa fam ília é vossa p erten ça. E , bem o sabeis, q u a n d o m orreis, acabou-se a fam ília; n a d a m ais existe. Assim, é possível m o rre r p a r a tu d o o q u e conheceis? Isto n ã o significa an iq u ila m e n to ; n ão significa negação; n ao significa “n a d a * ser” . H á u m a im ensidade, u m a vastidão, algo q u e u ltra p assa todas as p a la v ras, q u a n d o sabeis n e g a r todas as bases, n e g a r tu d o o que ten d es conhecido. M o rre r asssim, p a r a tu d o o que conheceis, a c ad a m o m en to , significa n u n c a recolher, n u n c a a c u m u la r e, p o r conse­ g uinte, jam ais te r o conflito d a separação. A m o rte é o estado em q u e a m en te p e rd e u o recon hecim ento de si p ró p ria e das fro nteiras d o tem po . O n d e h á c o n tin u id a d e d e p en sam en to — q u e é o q u e em geral desejam os, q u e é tu d o o q u e sabem os — nasce sofrim ento, ansiedade, sen tim ento de c u lp a e to das as agitações d a v id a ; o p ensam ento tem su a p e c u liar co n tin u id ad e, m as o pen sam en to está lim itad o pelo tem po. Q u a n d o o pen sam en to m o rre p a ra si p ró p rio , q u a n d o o m ecanism o d a m em ória, com o p e n ­ sam ento, te rm in a — falo do pensam ento psicológico e não d o p en sa­ m en to m ecânico d o con hecim ento — vereis en tão q u e a coisa q ue tem eis n ão existe. Gessa in te ira m e n te o m edo. Estais então vivendo com pletam fente, in te g ralm en te, totalm ente, m om ento p o r m o m e n to ; e isso é criação. P a ra nós, a beleza é u m a coisa co n stru íd a p ela m ente. P a ra nós, beleza é a m u lh e r ou o hom em , é assistência social, é u m edifício, u m q u a d ro , u m a pe ça de cerâm ica, ou u m a idéia. M as h á u m a beleza q ue tran scen d e o pen sam en to e o sentim ento, q ue n ao é cons­ tru íd a p ela m ente. E essa beleza é o am or. Sem esse am or, a v id a se to rn a in te ira m e n te va zia — com o o é a v id a d a m aio ria das pessoas; em b o ra te n h a m fam ílias, em b o ra te n h a m virtudes, em b o ra te n h a m em pregos, sua v id a é v u lg ar, superficial, vazia. M as, q u a n d o tiverdes m o rrid o p a ra tu d o , psicologicam ente, q u a n d o tiverdes alc an çad o esse p o n to , vereis que d o m o rre r surge u m viv er — u m v iver qu e n ao tem significação, c o m p a rad o com o presente viver. Esse viv er é o estado de criação , e essa criação n ão conh ece o tem po. É o im enso, o im ensurável, o incognoscível. E só a m e n te q ue m o rre u p a ra si p ró p ria e p a ra to das as coisas conheci­ das co nhecerá o Incognoscível. 11 de fevereiro de 1962 . 166 LIBERDADE E AMOR (N o v a D e l i — V III) E s t a é nossa ú ltim a palestra. D esejo, n esta tard e, fa la r a respeito d a lib erd ad e e d a q u alid ad e de energia necessária p a ra se descob rir u m a n o v a m a n e ira de viver. Estivemos falan d o sobre m u i­ tos assuntos concernentes à v id a de c a d a dia. N ã o estivem os tra ta n d o de abstrações, idéias; tam p o u co nos estivemos en trete n d o com co n ­ cepções e “ form ulações” escolásticas o u teológicas. Estivem os tra ta n d o de fatos. E seria m il vezes lam en táv el se aqueles q u e nos escu taram fossem a g o ra tra d u z ir tu d o o que dissemos em m eras idéias, conclu ­ sões, fo rm u lar certos preceitos, p a r a segui-los com o u m m étodo, a fim de alc a n ç are m o q u e pen sam ser a realid ad e final. N ã o estivem os tra ç an d o n e n h u m cam inho, p o rq u e n ão h á senda, n ã o h á cam in ho , n ão h á sistem a. O q u e nos in teressa é o todo, a to ta lid a d e d a vid a, e n ão u m segm ento, u m a p a rte , u m a id éia ou série de idéias. Interessa-nos o viver, a to talid ad e d a v id a. E —com o se observa em nossas ativid ades diárias, em nossas tribulações e pesares — nossa v id a se está to rn a n d o c a d a vez m ais com plexa. T o rn a -se c a d a vez m a io r a divisão e a c o n trad ição existentes em nos m esmos e n a sociedade, em nós com o indivíduos, e n a sociedade com o coletiv id ade h u m an a . M ais e m ais se está neg an d o â lib erd ad e em nom e d a religião, em no m e d o espiritu alism o e d a c ren ça organizados, ou d a ação p o lític a p a rtid á ria . Se observardes — e isso n ã o req u e r in v u lg a r inteligência — vereis que a p o lític a se to m o u e x tra o rd in a ria m e n te im p o rta n te e os líderes políticos p a re c e m estar-se a p o d eran d o do m u n d o inteiro, com seu pensam ento , suas atividades, com o q u e dizem o u d eix am de dizer. Eles nos estão con dicio nando. O u tro ra , 167 os sacerdotes das religiões nos m old avam a m e n te ; hoje, os polí­ ticos e os jo rn ais nos m o ld am o pensam ento -— to m am o lu g a r dos sacerdotes. E isso m ostra com o estam os vivendo superficialm ente. F alam os de lib erdade, n u m nível superficial. Falam os sobre ser livre dc alg u m a coisa. E star liv re de alg u m a coisa é a v e rd a d e ira lib er­ d ad e, o u será m e ra reação e, p o r conseguinte, n ã o é lib erd ad e n en h u m a ? Precisam os de lib erd ad e; m as n ão se tra ta d a m era lib erd ad e política, do sim ples libertar-se das religiões organizadas. Penso que a m aio ria das pessoas que estão bem cônscias d a situ ação m u n d ia l já se desligaram dessas m aneiras convencionais de v iv er; em b o ra elas pos­ sam ter tid o a lg u m efeito superficial em nossa vida, não fo ra m pro-, fu n d a m e n te eficazes. Se querem os saber o q ue é lib erd ad e, devem os co n te star tu do, co n te star todas as instituições — fam ília, religião, m atrim ô n io , trad ição , todos os valores que a sociedade nos impôs, to d a e stru tu ra d a organização social e m oral. M as nós, q u a n d o con­ testam os, n ão o fazem os p a ra descobrir o q ue é v erd ad eiro , porém , antes, p a ra acharm os u m a “saíd a” ; e, po r conseguinte, n u n c a esta ­ m os psicologicam ente livres. M ais nos in teressa a resistência do que a lib erd ade. A cho im p o rta n te co m p reen d er isso. T o d a a nossa v id a está assentada n a resistência, n a defesa. A m en te que se refu g ia atrás de defesas n u n c a po d e ser liv re; e nós precisam os de lib erd ad e — liberdade com pleta, absolu ta. M as, p a ra com preenderm os a q u alid ad e e a pro fu n d eza d a lib erdade, devem os p rim e iram e n te saber de q u e m an e ira e em que p ro fu n d id a d e co n stru í­ m os, psicologicam ente, defesas e resistências, e o g ra u em q u e d e ­ pend em os dessas defesas e resistências. D etrás dessas m u ralh as o lh a ­ mos a v id a ; detrás dessas defesas olham os e in terp retam o s a vida. Assim, antes de poderm os investigar e descobrir o q u e é a lib erd ad e, devem os c o m p reen d er as resistências q ue temos construíd o e, tam bém , n u n c a m ais to rn a r a co n stru ir q u a lq u e r espécie de resistência. Essas duas coisas precisam ser com preendidas, a fim de p o d e r h a v e r lib er­ dade. Nós levantam os resistências, ideológica, verb al, tra d icio n a l­ m en te, porque, psicologicam ente, nos protegem os com elas. Se vos observardes, vereis ser isso u m fato. Nós não estam os discutin do; n ao estam os fazendo u m m ero in tercâm b io de p a la v ras: interessam o-nos p e la com preen são de nós mesmos. N ã o podeis ir m u ito longe se não vos conheceis com o sois — n ao com o S uprem o Ser, div ino ser, e todas as dem ais idéias e disparates teológicos: o que realm en te sois, m o ­ m e n to p o r m o m en to : n ã o as idéias que tendes a respeito de vós m esm o, n ão o q u e desejais ser, p o rém o que de fa to sois — e isso q u e de fa to sois v a ria con stantem ente, n u n c a se detém . Isso é neces» 168 sário com preender. Isto é, h á necessidade de auto conhecim ento , do conh ecim ento de ves m esmo. Se n ão vos conheceis, é de to do im po s­ sível viverdes sem ilusão. N ão estamos, pois, inv estig ando idéias, nem novas fórm ulas, n em novas teorias e sp ecu lativ as: estam os, em v erd ade, o lh an d o a nós mesmos, com o que a u m espelho, e, com essa observação, desco­ b rin d o in d iv id u alm en te o que é ser livre. Se tem os a cap acid ad e de olhar-nos sem desfiguração, de ver o que realm en te somos, en tão to d a form a de resistência, to d a form a de dep en d ên cia deixa de exis­ tir. E é isso q u e vam os fazer. C om o dizia, nós construím os resistências p o r nos acharm os sem pre em conflito. N ão h á jam ais um m om ento em que estejam os livres de lu ta , de agitação, de aflição, d e conflito, de u m a d a d a fo rm a de confusão. E, p a ra fugirm os a essa confusão, essa aflição, essa insuficiência, essa pobreza interio r, construím os m uralhas, atrás das qu ais buscam os a segurança. E essas m u ralh as são idéias; elas são co m pletam ente sem v alo r; são m eras idéias, m eras estrutu ras verbais. Vós vos deno m in ais h induísta, ou m aom etano, ou cristão, ou o que q u er que seja — e tu d o isso são p u ras idéias, p a la ­ vras sem n en h u m a re a lid a d e ; são, apenas, símbolos. O símbolo n e ­ n h u m a realid ad e tem , é m era som bra. M as, p a ra se descobrir o que h á além d a som bra, cu m p re o lh ar através das defesas, dos refúgios, das resistências. N o decurso de vossa v id a tendes construído m u ­ ralhas de resistência — resistência com o id éia, com o ideal. Q u a n to m ais“ e sp iritu al” sois, ta n to m ais ideais tendes. E ideais são resis­ tência, n ão são fatos. O fato de serdes violento é re a l; m as o id eal d a “não-violência” é p u ra teo ria, n e n h u m v alo r tem . Esse id ea l é fo rm a de resistência q u e vos im p ed e de v er o fato de que sois violento. Ê necessário a lib erd ad e — falarei m ais a d ia n te sobre isso e vereis o seu v e rd a d e iro significado. A m en te que está in vestig ando a liberdade deve estar to ta lm en te livre de idéias rom ânticas, p o rq u e elas são irreais. O s ideais q u e as igrejas estabeleceram , q u e as reli­ giões estabeleceram , q u e os santos estabeleceram são, todos eles, fo r­ m as de resistência e n e n h u m a valid ad e têm . O que tem v alid ad e é o fa to — isto é, que sois violento, que sois am bicioso, ávido, invejoso, c ria d o r de inim izade. E a m en te que — com o em geral acontece — está im p re g n ad a de ideais recebidos dos livros, recebidos dos gurus, recebidos d a sociedade, n u n c a será livre, p o rq u e nós estam os lid ando com a realid ade, com fatos, e nao com ideais, não com teorias, n ão com especulações. C om o disse antes, a m en te religiosa está interessada em fatos; assim com o a m en te científica se interessa p o r fatos observáveis ao m icroscópio, nós nos interessam os pelos fato s 169 psicológicos. E q u an d o estam os exa m inando esses fatos psicológicos, só se estiverm os livres de resistências será possível a m utação. M u d a n ç a im p lica resistência ao presente, “ co n tin u id ad e m o d i­ fic a d a ” do p resen te: c o n tin u id ad e do que ê, apenas m odificado. Isso n ão é m u ta ção . Q u a n d o nos interessa a lib erdade, devemos investig ar a questão d a m u d an ça. A m en te que se em p e n h a em m u ­ d a r g rad u alm en te, através do tem po, d u ran te um longo período, j através de u m “processo”, essa m en te está apenas passando p o r u m a m odificação, m as sem pre pelo m esm o e velho m odelo. A m u tação n ão é m u d a n ç a g rad u a l. A id éia de q u e podeis m u d a r g rad u alm en te é u m a o u tra fo rm a de resistência. O u m udais im ed ia tam en te , o u não m u d ais em n ad a. V ós não m udais, p o rq u e o pró p rio processo de m u ­ d a n ç a supóe revolução, e tendes m edo do que p o d e ria acontecer. Assim, m e d ia n te o tem or, resistis a q u a lq u e r m u d an ç a . E a m en te q u e resiste n u n c a co m p reen d erá o significado d a m utação. Sentis cólera e dizeis; “E u m e liv rarei disso; to rn ar-m e-ei “sem có lera” . D essa m an e ira criastes o u tro problem a, q u e é o id eal e, p o r conseguinte, h á con flito en tre o que sois e o q u e deveríeis ser. A id éia se to rn a en tão o in stru m en to d a m u d a n ç a g rad u al. P o r esta razão, não m udais realm ente. Só h á m u ta ç ão q u a n d o vedes a cólera d ire tam e n te e não levantais a defesa com u m a idéia. T e n d e a b o n ­ dad e de ob serv ar isso, de nele m ed ita r, de olhá-lo. Gom o ten h o explica­ do, deveis o lh ar a vós m esm o. N ã o aceiteis o que estam os dizendo. N ão h á no m u n d o n en h u m a a u to rid ad e em questões espiritu ais; se aceitais a lg u m a au to rid ad e , estais m o rto . Assim, ao introduzirdes o fa to r tem po, ao dizerdes “ M u d a re i g rad u a lm e n te ”, n ao m udais de m odo n en h u m . O processo g rad u al é u m a fo rm a de resistência, p o r­ q ue introduzistes u m a id éia sem realid ad e alg um a. O q ue tem re a ­ lid ad e é o serdes irascível, violento, am bicioso, invejoso, ávido de aquisição. T u d o isso são fatos. O ra , o olhá-los e deles ficar livre im ed iatam en te é d a m áxim a im portância. E podeis alterá-los im e­ d iatam en te, se n ão tendes idéias, se n ão tendes ideais, se sois capaz de olhá-los. A lib erdade, pois, é a capacidade de o lh ar u m fato psicológico sem desfigu rá-lo ; e essa lib erd ad e se en c o n tra no com eço e n ão no fim . D eveis co m p reen d er que o tem po é um processo de fuga, e não u m fato — excetuado o tem po cronológico, que é real. M as o tem po psicológico, que nós introduzim os — aquele em que g rad u alm en te pro du zis u m a m u d an ç a em vós m esm o — n en h u m a valid ad e tem . P orque, q u an d o sois irascível, q u an d o sois am bicioso, q u an d o sois invejoso, en co n trais p razer nisso, desejais isso; e a id éia de que g ra ­ 170 d u alm en te m udareis, n e n h u m a p ro fu n d id a d e tem . Assim, observar o fato e não p e rm itir que a m ente se p re n d a a conclusões irreais, ab stratas, teóricas, é elim in ar todas as resistências psicológicas. Q u a n ­ do estais em presença de u m fato , n ão h á possibilidade de resis­ tên cia; o fato lá está. D este m odo, lib erd ad e é o lh a r u m fa to sem n e n h u m a idéia, o lh ar u m fato sem pe nsam ento . E x am in arei isso m ais a d ia n te ; vereis o que qu ero dizer. V ós olhais p a ra o fa to com p alavras, que são pensam entos, o u conclusões, q u e tam b ém são pensam entos e palavras, ou com o conhecim ento p rev iam en te adquirido, o q u al é tam b ém p alav ras, baseadas n a experiência — o resultado d a m em ória, co n ­ dicionando to d a fo rm a de experiência. Assim, deveis o lh ar u m a coisa sem p en sam en to — o que n ão significa o lh á-la com a m en te “ em b ran c o ” , vazia, porém , sim, com a com p reensão do v erd ad eiro signi­ ficado do pensam ento. Senhores, posso sug erir u m a coisa? V ejo vários dos presentes a to m arem notas. D eix ai-m e sugerir-vos que não tom eis notas. Isto n ão é u m a con ferência p a r a levardes “p a ra casa” a fim de refle­ tirdes. Estais refletin do agora. Estais escu tan d o a g o ra — n ã o a m an h ã, n ão depois de term in a r esta reunião. N ão é possível escu tar e ao m esm o tem po to m a r notas. O escutar re q u e r atenção, e n ã o podeis estar atentos fazendo outras coisas e p resta n d o aten ção só no nível verbal. A tenção co m p leta exige escutar com pleto -— não, c o n c e n tra ­ ção — significa escu tar com todo o nosso ser, com o nosso coração e nossa m en te ; trata-se de nossa vida. Parecem os p en sar q ue as coisas nos devem ser com o que “ servidas n u m a b a n d e ja de p r a ta ” , sem term os de fazer esforço algum . M as, nós tem os de tra b a lh a r a rd u a ­ m ente, p a ra nos salvarm os d a aflitiva confusão deste m u n d o político, deste m u n d o religioso, d a sociedade; do contrário , estam os c a m in h a n ­ do p a ra a destruição. Isto n ão é u m a asserção retórica, p o rém u m fato real. Assim, se tendes sério interesse — e deveis te r alg um interesse, p a ra virdes e perm anecerdes a q u i u m a h o ra in te ira — prestai a te n ­ ção. N ão escrevais, n ão estejais inquieto s; aplicai to d a a vossa m en te. T ra ta -se de vossa p ró p ria vida. Se estais em presença de u m fato, q u a lq u e r pen sam en to é u m a form a d e resistência a esse fato. P o rq u e precisais do p ensam ento ? N ã o podeis o lh ar u m a coisa sem pensam ento ? Podeis o lh ar u m a flor, u m a árvore, u m hom em , u m a m ulh er, u m â criança, u m anim al, sem pensam ento? Isto é, podeis o lh ar p a ra um a flor “ não -b o tan ic a m e n te ” — ain d a q ue ten h ais conhecim entos acerca d a flo r — de 171 su a espécie, q u alid ad e, etc.? A cor, o p erfum e, a beleza, tu d o isso constitu i u m a in te rferên cia, q u a n d o olhais p a ra a flo r; isto é, o “processo” de pen sam en to vos im pede o olhá-la. P ro c u ra i com preen­ d e r isto. N ã o digais “ G om o alcançarei este g ra u ? ” ou “C om o posso o lh a r sem p en sam en to ?” N ão h á sistem a alg u m ; n ão h á “ p o d e r” . M as, se com preenderdes que n a d a se po d e ver clara, precisa, sãm ente, q u a n d o o p en sam en to in terfere, o pensam ento cessará, então, olhais, i L ib erd ad e, pois, é aquele estad o d a m en te q u e se m an ifesta q u a n ­ do estou interessado apenas n u m fato , e n ão n u m a opinião. E, se olhardes a vós m esm o nesse “ espelho de lib erd ad e”, com o q u e r q ue sejais, sem o efeito defo rm ad o r produzido pelo pensam ento, h á , então, m u ta ç ão im ed ia ta, in stan tâ n ea. Se puderd es olhar-vos q u a n d o sentis cólera, se p u d erd es co n h ecer o fato de que sois irascível, invejoso, ávido, e qu e a in v eja, a avidez, a am bição, etc., constituem a estru ­ tu ra sobre a q u al está edificada a sociedade; se p u d erd es olhar a m o ­ ralid ad e d a sociedade, qu e é “vós m esm o” em relação com o u tro ; en tão , ao vos verdes com o realm en te sois, sem n e n h u m a in te rferên cia do pensam ento, verifica-se u m a m u ta ção ab so lu ta; deixais de ser invejoso. Se vos d á prazer, se vos p ro p o rcio n a benefícios o ser invejoso, am bicioso — com o acontece com a m aio ria dos políticos — então não desejareis escu tar o que se está dizendo. M as o hom em que está investigando o in teiro processo d a liberdade chegará necessariam ente a este p o n to em q ue a m u tação ocorre fo ra do tem po. E isso só pode aco n tecer q u a n d o o pensam ento não está in te rferin d o n o fa to ; n ão h á en tão resistência algum a. Deveis saber que a m aio ria de nós se a c h a em conflito, vivendo u m a v ida de con tradição, n ão só ex tern a m as tam bém in tern am en te. C o n trad ição im plica esforço. T e n d e a b o n d ad e de observar-vos. E u estou ex p lican d o ; m as estou explicando “vós m esm o” . Se h á esforço, h á desperdício — desperdício de energia. Se h á contradição, h á conflito. Se h á conflito, h á esforço p a ra v encer o conflito — e isso con stitui m ais um a form a de resistência. E, ta m ­ bém , q u an d o resistis, gera-se u m a certa espécíe de en erg ia; sabeis disso, sabeis que q u an d o resistis a u m a coisa, essa p ró p ria resistência g era energia. E u resisto ao que estais dizendo ; m eu resistir ao q u e estais dizendo é u m a fo rm a de en erg ia; e essa en erg ia im pede de m e liv ra r d a con tradição. Pois b em ; p ela resistência pode-se c ria r en erg ia; p ela co n trad ição pode-se c ria r en erg ia; assim faz a m aio ria das pes­ soas. C om o sabeis, h á pessoas cu jo “ eu” é co n trad itó rio , dividido em partes opostas; querem fazer isto e não querem fazer aquilo. Q u a n d o os dois elem entos — o bom e o m a u —- e n tra m em atrito , fazem -nos atu a r. 172 T o d a ação se b aseia nesse a trito entre o “devo” e o “ não d ev o ”. E essa fo rm a de resistência, essa fo rm a de conflito g era en erg ia; m as, essa energ ia, se a observardes bem , é m uito destrutiva, não é criadora. C om a p a la v ra “c riação ” q u ero referir-m e a u m a coisa com pleta­ m en te diferente, qu e havereis de co m p reen d er q u a n d o eu a exam inar. A m aio ria das pessoas se a c h a em contradição. E, se têm alg u m dom , talen to p a ra escrever ou p a ra p in ta r, p a ra fazer isto o u aquilo , a tensão que esse p e n d o r lhes confere dá-lhes en erg ia p a r a expressar, p a ra criar, p a ra escrever, p a ra ser. Q u a n to m aio r a tensão, m aio r o conflito, m a io r a p ro d u tiv id a d e ; e é isso q u e cham am os “c riação ” . M as, n ão é ab solu tam ente criação. É u m resu lta d o de conflito. O o lh ar d iretam en te o fa to de que estais em conflito, de q u e estais em co n trad ição , g e ra rá a q u e la q u a lid a d e d e energ ia q u e n ã o é p ro d u to d a resistência. P o r favor, com preendei isto; vede, a m a io ria de vós pro vavel­ m ente vos dirigis a vossos em pregos todas as m an h ãs; vindes fazendo isso h á dez, o u vinte, o u trin ta anos. Isso deve co n stitu ir u m esforço h o rriv elm en te en te d ian te e to rtu ra n te , a m enos que estejais d e tal m an e ira m ecanizados, que vos m ovim entais q u al u m a m áq u in a. O ra bem , observai o fato de que estais sendo destruíd o p o r essa m á q u in a ; observai-o sim plesm ente, olh ai-o; n ão digais “ D evo” ou “ N ão devo” ou “ Q u e devo fazer? C om o deixarei de e n ted iar-m e?” — observai, sim plesm ente, o fato. E n tão , com essa observação do fato, vereis com o vossa m ente se to rn o u m ecânica, e com o o escritório, o em prego to m ou o lu g ar d a vida, do viv er — o que n ã o significa q ue se d ev a a b a n d o ­ n a r o em prego, porém , sim, co m p reen d er o inteiro significado da ação. D eix ai-m e expressá-lo de m an e ira diferente. P a ra a m aio ria de nós, a ação se baseia n u m a id éia. E u devo ser b o m ; a ín d ia é u m a n ação ; p o r conseguinte, devo resistir, devo tra b a lh a r e p ro d u zir — u m a idéia, em seguida, ação. P o r conseguinte, se observardes, vereis q u e h á , aí, co n tra d iç ã o ; e, p a ra vos liv rardes dessa contradição, criais m ais idéias. M udais vossas idéias, m as a ação está sem pre basead a n u m a idéia. Pois b em ; se observardes que vossa ação se baseia n u m a idéia, vereis que a id éia é u m a fo rm a de resistência à ação com pleta. V ed e, senhores, e n q u a n to fordes ávidos, invejosos, am biciosos, sequio­ sos de poder, de posição, de prestígio, a sociedade a p ro v a rá tu do isso; e nisso baseais vossa ação. Essa a ç lo é con sid erada respeitável, m oral. M as, absolu tam ente, n ã o é m oral. O p o d e r, em q u a lq u e r fo rm a que seja, é coisa m á — o p o d e r do m arid o sobre a m u lh e r o u d a m u lh e r sobre o m arid o , o p o d e r dos políticos. Q u a n to m ais tirânico, q u a n to m ais fan ático , q u a n to m ais religioso o p o d er, tan to m aior o m al. Isto W ç Um fato , u m fa to dem o nstráv el, observável; m as a sociedade o apro va. T o d o s vós endeusais o hom em investido de poder, e baseais a vossa ação nesse po der. Assim, se observardes que vossa ação se baseia n a ânsia de a d q u irir p o d er, no desejo de êxito, no desejo de ser pessoa im p o rta n te neste m u n d o co rru p to , então, essa observação d ire ta do fato p ro d u zirá u m a ação to talm en te diferente, e esta é a ação v e rd a d e ira — e n ão a ação q u e a sociedade im pôs ao indivíd uo. â A m o ralid ad e social, pois, n ão é m o ralid ad e n e n h u m a ; é im o ra l; é u m a o u tra m a n e ira de nos defenderm os; e, p o r conseguinte, g ra d u a l­ m en te, estam os sendo destruídos p e la sociedade. O h o m em q u e deseja c o m p reen d er a lib erd ad e deve, sem rem orsos, livrar-se d a sociedade — psicologicam ente, não fisicam ente. N ão podeis estar liv re d a socie­ d a d e fisicam ente, p o rq u e, p a ra tu d o , dependeis d a sociedade — p a ra a ro u p a q u e vestis, o din h eiro de que necessitais, etc. E x terio rm en te , n ão , psicologicam ente, depend eis d a sociedade. M as o estar livre d a sociedade im p lic a lib erd ad e psicológica — i s t o . é, estar to ta lm en te livre d a am bição , d a in v eja, d a avidez, d a v o n tad e de p o d er, de posi­ ção, de prestígio. M as, infelizm ente, tem os in te rp re ta d o d a m a n e ira m ais a b su rd a o estar livre d a sociedade. Pensam os q u e o lib ertar-se significa “ tro c a r de ro u p as” — pondes as vestes d o sannyasi, e pensais qu e ficastes liv re do m u n d o ; o u vos torn ais m onge e pensais que, d e certo m od o, destruístes o m u n d o e a sociedade. M u ito ao c o n trá rio ; podeis vestir u m a tan g a, m as, in te rio rm en te, estais psicologicam ente lig ad o à sociedade, p o rq u e contin uais a ser am bicioso, invejoso, dese­ joso de po der. Assim, a m ente que está inv estig ando o q u e é a lib erd ad e deve esta r de todo livre d a sociedade, psicologicam ente, e livre, tam bém , d a dep en d ên cia d a fam ília. A fam ília é a fo rm a m ais conveniente de resistência, p o rq u e essa resistência é con sid erada altam en te respeitável p ela sociedade; e, se observardes, podereis ver q u a n to a m en te se v inculou à fam ília. A fam ília se to rn o u o m eio de vosso p reen ch im en to ; a fam ília se to rn ou o m eio de vossa im ortalid ade, pelo nom e, p e la idéia, p ela tradição. N ão estou dizendo que se d estru a a fam ília; to d a revolução tem te n ­ tad o fazê-lo; a fam ília é indestru tív el. M as, o in div íduo precisa fic ar psicologicam ente livre d a fam ília, não d ep en d er d a fam ília, in te rio r­ m ente. P o r que depende u m a pessoa? J á alg u m a vez exam inastes a questão d a dep en d ên cia psicológica? Se a tiverdes exa m inado a fund o, deveis saber que a m aio ria de nós está terriv elm ente só. E m reg ra temos a m en te tão superficial, tão vazia! D e o rd in ário , n ão sabemos o q ue significa o am or. E, assim, p o r causa dessa solidão, dessa insuficiência, dessa priv ação de vida, estam os ligados a alg u m a coisa, estam os apegados à fam ília; d ela d e ­ 174 pendem os. E q u a n d o o m arid o ou a esposa vos v o lta as costas, to m a ­ m o-nos cium entos. C iú m e n ão é a m o r; m as o a m o r que a sociedade reconhece, n a fam ília, é con siderado respeitável. Essa é u m a o u tra fo rm a de defesa, u m a o u tra fo rm a de fu g a a nós mesmos. C om o vemos, to d a fo rm a de resistência c ria dependência. A m en te d e p e n ­ d en te n u n c a p o d e ser livre. V ós necessitais d e lib erd ad e, p o rq u e a m en te livre te m a essên­ cia d a h u m ild ad e. Essa m en te que é livre e, p o r conseguinte, tem h u m ild ad e, po d e a p re n d e r — m as n ão p o d e a p re n d e r a m en te q ue resiste. A p re n d e r é u m a coisa e x tra o rd in á ria ; ap ren d er, e n ã o a c u m u ­ la r conhecim ento. A c u m u la r conhecim ento é algo bem diferente. O q u e cham am os “ co n h ecim en to ” é coisa relativ am en te fácil, po is é u m m ov im ento do conhecido p a r a o conhecido. M as a p re n d e r é u m m ov im ento do conhecido para o desconhecido — só assim se apren d e, n ão achais? D eveis observar-vos. Se já sabeis algo e dizeis “ V o u a p re n d e r” — o qu e ides fazer é a u m e n ta r o conhecim ento q u e já possuís. P o r isso, n u n c a estais a p ren d en d o , estais apenas a d q u irin d o , acrescentando; trata-se de u m processo aditivo. M as, aprender sig ni­ fica lib erd ade. Só se p o d e a p re n d e r em lib erdade, e n a o co m o a d q u i­ rir. A m en te livre está a p ren d en d o e, p o r conseguinte, dispõe d a q u e là energia e x tra o rd in á ria e in corruptível. A m ente recebe energ ia d a resistência, do conflito, d a c o n tra d i­ ção. T odos nós conhecem os essa fo rm a de energia. M as h á u m a energia que se m an ifesta q u an d o n ão h á conflito de espécie alg u m a e que, p o r conseguinte, é inco rruptív el. V o u explicar isso. P o r “m e n te ”, e n te n d o a to talid ad e d a consciência, e a in d a mais. O cérebro é u m a coisa, e a m en te o u tra coisa. O cérebro, que é resultado do tem po, que é sensação, que tem conhecim ento acum ulado através de séculos de experiência — esse cérebro é cond icio nado, assim com o tam b ém é co n d ic io n ad a a consciência to tal. Estas palavras, “ consciência” e “ co n ­ d icio n am en to ” são m u ito simples. Ê o que sois; a m en te ed u cad a, a m en te inconsciente, a m ente acu m u lad a, a consciência a c u m u la d a do tem p o — tu d o isso sois vós. O que pensais, o q ue sentis, q u a n d o vos denom inais h in d u ísta, q u an d o vos denom inais m u çu lm an o , cristão, isto ou aquilo — to d a essa vossa “h istó ria pessoal” constitu i a cons­ ciência total. Se pensais ser o Suprem o-Ser, o A tm a n p o r excelência, o u o que m ais seja — isso está ain d a d e n tro d a esfera d a consciência, d en tro d a esfera do p ensam ento . E o pensam ento é condicionado. A gora, nesse estado de condicio nam ento, de resistência à vid a, vós gerais energia. Q u a n to m aio r a resistência m a io r o conflito e m aio r a energia que tendes; e essa energia é de n a tu re z a a m ais des- 175 tru tiv a . R isso o que está realm en te sucedendo no m undo. Essa energia se dissipa. E la é sem pre co rru p to ra. R e q u e r estím ulo constante, ne­ cessita sem pre de u m a certa form a de apego, de onde lh e v e n h a p oder, força, expansão. P restai ate n ção a tu d o isso, p o r favor. Ao reconhe­ cerdes esse fato, ao verdes esse fato — isto é, q ue nossa en erg ia nasce d a resistência —- e q u a n d o tiverdes com preendido to d a a “ h istó ria ” de vossa co n trad ição in te rio r, então, desse percebim ento do fato nasce ^ u m a energ ia de espécie diferente. A energ ia a q ue m e refiro n ã o é a energ ia p reg a d a p ela relig ião; n ão é a energia do bram achari, do celib atário que re je ita o sexo p o rq u e a sp ira à “su p rem a exp eriência” . P orq ue todo esse processo de viver — a v id a do sannyasi , a v id a do m onge — é u m a fo rm a de re ­ sistência; e isso, de fato, vos dá energia — u m a en erg ia b em lim itad a, estreita, d e stru tiv a ; é o que nos oferece a m aio ria das religiões. M as nós nos estam os referin d o a u m a energia de q u alid ad e to ta lm en te diversa. Essa energ ia nasce d a lib erd ade, e n ão d a resistência, n ão d a ren ú n cia, não de ativid ades e discussões no nível das idéias. Se com preendestes tu d o o que estive dizendo, e en fren ta rd es esses fatos, daí virá, p o r certo , u m a energia in co rru p tív el — p o rq u e essa en e rg ia é paixão. N ão a p aix ão do sexo, de vossa id en tificação com a p á tria , com u m a idéia, pois tal p aix ão é d estru tiv a; ela tam b ém vos d á u m a c e rta espécie de energia. J á não notastes que as pessoas, que se id en tificaram com sua nação , seu país, seu em prego, têm u m a p e ­ c u liar energ ia? Assim tam b ém a m aio ria dos políticos, dos cham ados “m issionários” , de todos os que se id en tificaram com u m a id éia, u m a crença, u m dogm a, com o os com unistas — são dotado s de u m a p e c u lia r energia, q uè é a ltam en te destrutiv a? M as a energ ia c riad o ra no m ais a lto g rau , essa não tem id en tificação ; ela vem com a lib e rd ad e ; essa e n erg ia é criação. O hom em , através das idades, tem buscad o D eus, tem -no negado ou aceitado. T e m -n o negado, com o o fazem aqueles q u e são educados com o ateístas ou com unistas; e tem -n o aceito, com o vós hinduístas o fazeis, p o r terd es sido ed ucad os n a crença. M as n ão sois m ais religiosos do q ue o ho m em ed u cad o n a descrença. Sois todos m ais o u m enos iguais. A vós conv ém crer em D eus, a eles n ão convém . É tu d o questão ,d e educação, de in flu ên cia do am biente o u cultural. M as o h o m em tem estado em p en h ad o nesta busca através de séculos. H á algo im enso, n ão m ensurável pelo ho m em , n ã o com preensível p ela m ente q u e está to d a entregue à resistência, à am bição, à in v eja, à avidez. Essa m en te n ão po de co m p reen d er aq u ela energ ia criad o ra. 176 Existe essa energia que é in co rruptível. E la p o d e viv er e a tu a r neste m undo. Pode o p e ra r d iariam en te em vossos escritórios, em vos­ sas fam ílias — p o rq u e essa energ ia é a m o r; nao o am o r de vossa m u lh e r e de vossos filhos, que, em absoluto, n a o é am or. A quela criação, aq u ela energ ia é destru tiv a. V ede o q u e fizestes p a r a descobrir essa energia! T u d o destruístes em to rn o de vós, psicologicam ente; in te rio r m ente, deitastes abaixo tu d o o que a sociedade, a religião, os políticos edificaram . Essa energ ia, pois, é m orte. A m orte é to talm en te destrutiv a. Essa en erg ia é am or, e o am o r, p o r conseqüência, é destru tiv o, e n ão a q u e la coisa m an sa de que é c o n stitu íd a a fam ília, n ão a q u e la coisa m an sa q u e as religiões têm n u trid o . Assim, a q u ela energ ia é criação — n ão o p o em a qu e escreveis, n ao a e státu a que esculpis no m á r­ m o re; isso é apenas u m a cap acid ad e e u m talen to p a r a expressar algo qu e se sente. M as a coisa a q u e nos referim os tran scen d e o sentim ento, tran scen d e o pensam ento. A m en te que, n o sentido psico­ lógico, nao se lib e rta de todo d a sociedade — sendo a sociedade: am bição, inveja, avidez, aquisição, p o d e r — essa m en te, o q ue q u e r que faça, n u n c a a ach ará. E nós tem os de achá-la, p o rq u e ela é a ú n ica salvação do hom em , p o rq u e só n ela h á ação re a l; e ela p ró p ria , q u a n d o atu a, é ação. 14 de fevereiro de 1962. 177 O VER COMPLETO (B o m b a im — I) D e v e s e r b a sta n te óbvia, p a ra a m aio ria das pessoas, a necessidade de realizar-se, n o m u n d o in teiro, u m a tre m en d a revolu­ ção — revolução n ão de p alavras, n em de idéias ; n ão simples tro ca d e crenças o u dogm as, p o rém u m a transfo rm ação, u m a m u ta ç ão to ta l no pensam ento. P orque, neste m u n d o que é nosso, neste m u n d o em que vivemos, que vós e eu habitam os, as com panhias, as relações, o trab alh o , as idéias, e as cren ças e dogm as q u e sustentam os têm -n o to rn a d o m onstruoso, um m u n d o de conflito, aflição e p erp étu o sofri­ m ento. N ão h á n eg ar isso. E m b o ra todos estejam os bem cônscios desse terrív el estado de coisas que se observa n o m undo, aceitam o-lo com o u m a cond ição n o rm al, com ele nos conform am os, d ia p o r dia, n u n c a investig ando a necessidade, a u rg ên cia de u m a revolução não-econôm ica n e m po lítica, p o rém de n a tu re z a fu n d am en tal. E é disso que vam os tra ta r, é isso qu e vam os a p re c ia r ju nto s, ex p lo rar junto s, no decurso destas três sem anas. M as, p a r a investigar, necessita-se de lib erdad e. P a ra u m a inves­ tig ação real, p ro fu n d a , durável, tendes de a b a n d o n a r vossos livros, vossas idéias, vossas trad içõ es; p o rq u e, sem lib erdad e, n ão h á explora­ ção possível. N e n h u m a possibilidade h á de investigação q u an d o a m en te está a c o rre n ta d a a q u a lq u e r espécie de dogm a, a u m a trad ição , u m a crença, etc. O obstáculo que se a p resen ta à m aio ria de nós não é in ca p a c id a d e de investigação, porém , antes, nossa ap a re n te im possibilidade de largarm os as coisas, pô-las à m arg em e, assim, com a m en te fresca, com a m en te nova, com a m en te “ in o cén te” , o lh ar­ m os o m u n d o e os fatos terríveis q u e nele estão sucedendo. P a ra investigarm os todas as questões con cernentes à nossa vida — m orte, nascim ento, casam ento, sexo, relações, se h á ou não algo 178 qu e tran scen d e a m ente, o q u e é a v irtu d e — necessitam os de lib e r­ da de p a ra dem olir, p o rq u e só q u a n d o somos capazes de d e stru ir com pletam ente tu d o q u a n to tem os tid o p o r sagrado, ju sto ou v ir­ tuoso, só en tã o pod erem os descobrir o que é a v erd ade. N ós vam os investigar tu do, co n te star tu do, d e ita r abaixo o edifício q ue o hom em construiu através de séculos, a fim de descobrirm os o que é a verdade. E isso re q u e r lib erd ade, u m a m ente capaz de in d ag ar, u m a m en te séria. P or “ seriedade” en te n d o cap acid ad e p a ra seguir c a d a p en sa­ m en to até o fim , p a r a in d ag a r sem tem er conseqüências. D e o u tro m odo, não h á possibilidade de investigação. Ficam os apenas n a su­ perfície, entretendo-nos com p alav ras, idéias. E, quem te n h a observado suficientem ente as coisas q u e estão ocorrendo — n ão apenas n a esfera m ecân ic a e técnica, m as tam b é m n as relações en tre pessoas — q u e m te n h a observado que, em todo o m u ndo, o progresso está cerceando a lib erd ad e; qu em te n h a observado a força d a sociedade, n a q u a l o indiv íduo deixou de existir co m p letam en te; qu em te n h a observado com o as nacio n alid ad es estão d ivid indo cad a vez m ais a h u m a n id a d e — n ão d eix ará de rec o n h e c er a u rg ên cia de u m a p ro fu n d a rev olta. Parece-m e qu e a p rim e ira coisa q u e cu m p re investig ar é a socie­ dade — q u al a e stru tu ra e q u a l a n a tu re z a d a sociedade — p o rq u a n to nós somos entes sociais. N ão podeis v iver sozinho; a in d a que vos retireis p á ra o H im alaia , o u vos to rneis ere m ita o u sannyasi, n ão podeis viv er sozinho; con tin uais em relação com alguém , e as relações com o u tre m criam a e stru tu ra que cham am os “ sociedade” . Essa e stru tu ra c o n tro la as relações; isto é, vós e eu estam os em relação, em co m u n h ão u m com o o u tro ; nessa co m u n h ão , nessa relação, criam os a e stru tu ra c h a ­ m ad a “ sociedade” , Essa sociedade con trola-nos a m en te, m olda-n os a m ente, m odela as nossas ações — n ão im p o rta se vivem os n u m a sociedade com unista, n u m a sociedade h induísta, o u n u m m u n d o cristão. A sociedade, com sua estru tu ra , m o ld a a m en te d e c a d a ser h u m an o , consciente ou in conscien tem ente. O m eio c u ltu ra l em q ue vivem os, as tradições, as religiões, a política, a ed ucação — tudo isso, ta n to passado com o presente, nos m o ld a o pensam ento. E p a ra p o ­ derm os p ro m o v er u m a revolução co m p leta — e tem de haver u m a revolução, u m a crise n a consciência — tem os de co n testar a e stru tu ra d a sociedade. E u acrescen taria, aqu i, que as p alav ras p erd em seu significado se delas nos servimos apenas com o símbolos, sem as ultrapassarm os. A m aio ria de nós somos escravos das p a la v ra s; q u e r nos denom inem os hinduístas, q u e r nos cham em os parses ou m uçu lm anos, somos escravos das p alavras. E e n q u a n to as p alav ras c o n tin u arem im p o rta n tes, n ã o poderem os ultrapassá-las. Q u a n d o falam os sobre a sociedade, su a 179 cu ltu ra, sua estru tu ra , tu d o isso são m eras p a la v ras; e, p a ra u ltr a ­ passarm os essas pa lavras, devemos ver-nos em relação com a estru tu ra, em relação com o q ue está sucedendo no m u n d o , e em relação com o que está ocorrend o em nossa p ró p ria vida. P alavras são apenas u m m eio de com unicação; m as, se nos detem os nas p alav ras, cessa to d a com un icação, exceto a verbal. N ós n ão estam os considerando idéias, não estam os consid erando crenças ou dogm as. Estam os interessados em p ro d u zir u m a ação dife­ ren te , u m a m en te diferente, u m a e n tid ad e h u m a n a diversa; e p a ra poderm os p e n e tra r rea l e p ro fu n d a m en te nesta m até ria , devem os deix ar 4e ser escravos das p alavras. M u ito im p o rta co m p reen d er isso logo de cpm eço, p o rq u an to a p a la v ra n u n c a é a coisa. A p a la v ra “ pássaro ” rião é o pássaro. São duas coisas diferentes. M as à m aio ria de nós a p a la v ra satisfaz, m as não nos satisfaz o verm os além d a p ala v ra. Satisfaz-nos denom in arm o-nos indivíduos e fa la r sobre a sociedade e sua e s tru tu ra ; m as, existe realm en te u m in d iv íd u o ? P o rq u e nós somos o resu ltad o de in flu ências am bientes, somos a sociedade, somos o resultado dessa e stru tu ra que cham am o s <£a sociedade” . Só q u a n d o vos livrais co m p leta e to ta lm e n te d a sociedade, podeis ser u m in d iv íd u o ; m as a tu a l­ m en te, n ão sois absolu tam ente u m indivíduo , pois sois o resu ltad o das influências de vosso am biente. Estais sendo educados com o h in duístas, com o budistas, ou o que m ais seja ; sois o resu lta d o d a in flu ên ­ cia de u m a d ete rm in a d a sociedade. Assim, devem os estar m uito atentos p a r a a in flu ên cia das p alavras, a fim de descobrirm os p o r nós m esmos em qu e grau, em qu e p ro fu n d id a d e estam os escravizados às palavras. Estas reuniões n ão constituem n en h u m e n tre te n im e n to ; não são p ro p ag a n d a , n ão são trocas de idéias. M as o q u e essencial e p ro fu n d a ­ m en te nos in teressa é pro m o v er u m a revolução rad ical, religiosa. E isso exige tre m e n d a investigação de si m esm o; exige q u e se p o n h a em d ú v id a tu d o o qu e o h om em construiu, todas as atitu des, todos os valores, tod as as tradições, todas as relações; e nós vam os fazer isso, n ão vam os d eix ar u m a só p e d ra p o r v irar. N a o h á n a d a divino, n a d a sagrado . P o r conseguinte, p a ra investigar, necessitais de u m a m en te p e n e tra n te , clara, o b jetiv a — e n ão u m a m en te ene voada de idéias, de p alav ras, de sentim entos. E p a ra se p o d e r p en sar com clareza, necessita-se de lib e rd ad e ; do co n trário , n ão é possível p en sar livre­ m en te. Se sois h in d u ísta, ou parse, ou o que q u e r que seja, se ta l é a base de vosso p ensam ento — o u se esse é vosso p o n to de p a rtid a p a ra p e n sa r — é abso lu tam en te impossível pensar, p o rq u e n ão sois livre. Assim, o p rim eiro requ isito essencial d a investigação é a lib e rd ad e ; p o rq u e se po de en tão com eçar a in te rro g ar. H á duas m an eiras de in te rro g a r. A p rim e ira é in te rro g a r cotn u m m o tiv o e, p o rta n to , te n ta r a c h a r u m a respo sta à interro gação. A segunda é in te rro g a r sem m otivo, e, p o r conseguinte, n ão b u sc ar resposta algum a. É realm en te im p o rta n te, se desejais seguir o q u e se está dizendo, qu e com preendais a d iferença en tre essas duas m aneiras de in terro g ar. E m geral in terro gam os, e nosso in te rro g a r é u m a reação. N ão gosto de u m a c e rta coisa, e a contesto o u rejeito o u m odifico; m eu in te rro g a r obedece ao estím ulo o u à exigência daquilo q u e desejo. Essa espécie de in terro g ação , p o rta n to , tem u m m otivo a im peli-la; e esse in te rro g a r é u m a reação. Sabeis o que é u m a rea ç ã o : não gosto de u m a coisa e c o n tra ela m e revolto. Essa rev o lta é, m eram en te, u m a reação, u m a “ respo sta” a algo de que n ão gosto. M as h á u m in te rro g a r d iferen te, qu e n ão tem m otivo , q u e n a o é reação, e consistente em observar, “ in te rro g a r” a coisa que rep re sen ta u m fato. N ao gosto de d a r exemplos, p o rq u e os exem plos não nos levam m u ito longe. As analogias são coisas perigosas; m as p o d eriam a ju ­ dar-nos um pouco a exp licar a d iferença en tre as duas espécies de in terro g ação — o in te rro g a r q ue qu er resposta, e o in te rro g a r que n ão busca respo sta e é, apenas, in te rro g a r. C onsiderai o que está aco n te­ cendo neste país, on de p rev alecem o nacionalism o e os preconceito s de casta. Isto é u m fato. A v eneração d a b a n d e ira é u m a ab o m i­ nação , p o rq u e separa os entes hum anos, p o rq u e cau sa a guerra. Essa v en eração d a b a n d e ira, com espírito nacionalista, é u m fa to q u e se observa a tu a lm e n te neste país. O ra , podeis “in te rro g a r” isso, a fim de descobrirdes p o rq u e assim aco n te ce; descobrir a v erd ad e resp ec­ tiva, sem n e n h u m m o tiv o e, p o r conseguinte, n e n h u m a defesa, sem atacá-lo, porém , sim plesm ente, “ in terro g á-lo ” p en e tran te m e n te com o fim de descobrir. O u , a in d a, podeis “ in terro g á-lo ” a c eita n d o o nacionalism o — o q u e significa a c e ita r a separação das pessoas em castas, classes, g rupos; e, q u a n d o in terro gais dessa m an e ira , h á u m m o tiv o atrás dessa in terro g ação , de m odo q u e ela n ã o revela a v e rd a d e rela tiv a à questão. H á duas m an eiras de “in te rro g a r” o processo d o viver. U m a delas é: o “ in te rro g a r” com m otivo, buscando u m resultado, o u seja, u m a resposta, qu e é reação. C om esse in terro g ar, p o rta n to , n ã o en c o n tra ­ reis a v erd ade. A o u tra m an e ira é: in te rro g a r sem m otivo, sem b u scar n e n h u m a resposta. É o que vam os fazer. N o m om ento em q u e buscais u m a resposta, esta será invariavelm ente u m a conclusão verb al, se­ p a ra d a dos fatos. N ós vam os “ in te rro g a r” to d a a e stru tu ra d a sociedade. V am os “ in te rro g a r” as relações do hom em com o hom em , d o hom em com as 181 idéias, com su a existência con ceptual, suas abstrações, sua c o n d u ta co tid ia n a. E com esse in te rro g a r irem os descobrir, p o r nós mesmos, o q ue realm en te somos. P orqu e, se n ão vos conhecerdes n ão podeis ir m u ito lo nge; se n ã o sabeis o que sois, consciente ou in conscien tem ente, o q ue pensais, o que sentis, c a d a m o vim ento de idéias, c a d a senti­ m en to ; se n ão descobrirdes e com preenderdes os “ processos”, os m o ­ tivos, os im pulsos, as com pulsões, as fru strações, as falhas, o írrem eã diáv el isolam ento, os desesperos, ansiedades, o sentim ento de cu lp a •— n ã o po dereis ir m u ito longe. E sta é a base, e ela req u e r lib erdade. A lib erd ad e n ão se e n co n tra no fim , p o rém no com eço, p o rq u e só com ela sereis capazes de v er a vós mesmos e x a ta m e n te com o sois, de v er o qu e sois em vossas relações; e essas relações constitu em a e s tru tu ra d a sociedade. ImpÕe-se u m a com pleta m u ta ç ão em nossas relações, p o rq u e to d a relação é ação. R elação é ação, e vossas rela ­ ções estão, p e la m a io r p a rte , baseadas n u m a idéia. V ossa relação com vossa esposa n ão é u m a id éia ; m as vossa relação com vosso sem e­ lh an te , vossa p á tria , vossos deuses, é u m a idéia. V ossa relação com vossa m u lh er, com vossos filhos, p o d e estar b aseada n u m a id éia : o q u e desejais q u e vossa esposa e vossos filhos se ja m ; m as o fa to rea l é q u e estais relacio n ad o com a pessoa p o r m eio de vossos sentim entos, vossas exigências sexuais, vossos im pulsos protetó rio s. Estam os vendo, pois, q u e a sociedade é relações. E essa e stru tu ra social, tal com o existe atu alm en te, baseia-se n a am bição, n a avidez, n a in v eja, n a ân sia de p oder, de posição, de prestígio e de todas as coisas que o hom em considera de ex tra o rd in á ria significação n a vida. Este é o fato real — n ão os vossos deuses, nem o Gxta, nem vosso guru, n em vossos santos e salvadores; o fato real é vossa v id a de c ad a dia, ou seja, vossa am bição, vossa avidez, vossa inveja, vossa busca do p o d er, d a riqueza, d a posição que am bicionais. E se não h o u v er u m a rad ic al alteração de tu d o isso, se n ão se dem olir todo o sistema, não será possível n e n h u m a rev olu ção religiosa. U m a revolução religiosa é a ú n ica rev olu ção significativa, p o rq u an to todas as o u tras revolu­ ções falh a ra m . A R evolução F ran cesa e a revolução com unista fa ­ lh ara m , am bas co m p leta e totalm ente, p o rq u e essas revoluções fo ram revoluções reacio n árias; co n stitu íram u m a reação ao q ue é. A revo­ lu ção com unista foi reação ao capitalism o — a v e rd a d e ira reação. E to d a reação p ro d u z o m esm o p a d rã o , sob form a diferente. U m a rev olução religiosa n ã o visa à reação de espécie algum a. V isa a com ­ p re e n d e r u m fato e d e stru ir esse fato ; isto é, perceb er que nossas relações, que nossa e stru tu ra social, baseiam -se em nosso estranho senso dos valores, n a am bição, n a avidez, n a in v eja; e d e stru ir tu d o isso, com pletam ente, em nós mesmos, desarraigá-lo to ta l e com ple- 182 tam ente. T a l é o com eço de u m a rev olu ção religiosa e nao o cultivo de u m a idéia, a que cham ais Deus. Se n ão lançard es a base a d e q u ad a , com o podereis ir longe, com o podereis descobrir se algo existe além das palavras, além das divisões, além do co ndicionam ento h u m an o ? Sem dúvida, senhores, essa coisa q u e denom in am os “m o ra lid a d e d a sociedade” —- a q u al p e rm ite que sejais am bicioso, invejoso, ávidò, poderoso e tu d o o m ais — essa coisa cultiv ais; e com o podereis, com essa m oralid ade, com essa v irtude, descobrir algo existente além de to d as as virtudes, existente além do tem po ? Existe algo além do tem po , algo im ensurável, a te m p o ra l; m as, p a ra o encon trardes, p a ra o descobrirdes, deveis la n ç a r a base a d e ­ q u a d a ; e p a ra lançard es essa base, cu m p re despedaçar a sociedade. P o r “ sociedade” n ão en ten d o a e s tru tu ra e x te rn a; n ao se tr a ta de d in a m ita r edifícios, d e tira r as ro upas e vestir u m m a n to d e sahnyasi , de to rn ar-se erem ita; isso nao fa rá r u ir a sociedade. Q u a n d o falo de sociedade, refiro-m e à e stru tu ra psicológica, à e stru tu ra in te rn a de nossa m ente, de nosso cérebro, aos processos psicológicos de nosso p e n sar; estes têm de ser com pletam ente destruídos, p a ra q ue se possa descobrir, c riar u m a m en te nova. V ós necessitais de u m a m en te nova, porque, se observardes o q ue se está p assando no m undo, vereis c a d a vez m ais claram en te que a lib erd ad e está sendo n e g a d a pelos p o lí­ ticos, pelo progresso, pelas religiões organizadas, pelos processos m e ­ cânicos, técnicos. M ais e m ais os co m putadores estão su bstitu indo o hom em , e está certo que assim seja. A v irtu d e está sendo “p ro d u ­ zid a” com p rep a ra d o s quím icos: to m an d o d e te rm in ad o p re p a ra d o quím ico, podeis ficar livre d a cólera, d a irrita b ilid a d e , d a v a id a d e ; podeis q u ie ta r vossa m en te, to m an d o u m calm an te, e podeis torn ar-v os m u ito pacífico. C om o vedes, vossa v irtu d e está sendo reg u la d a q u im i­ ca m e n te ; já n ao precisais subm eter-vos à tira n ia d a discip lin a p a ra vos to rn ard es virtuoso. T u d o isso está oco rrendo no m u ndo. E, assim, tem os de c riar u m novo m undo, n ão no sentido quím ico, n e m in d u s­ tria l ou político, p o rém esp iritu alm en te — se posso u sar esta p a la v ra já tã o gasta, tao desvalorizada pelos políticos, pelos religiosos. N ao podeis ser esp iritual se p ertenceis a alg um a religião, a alg u m a n acio ­ n alidade. Se vos deno m in ais h in d u ísta, parse, m u çu lm an o o u cristão, n u n c a sereis espiritual. Só sereis esp iritual ao destruirdes a e stru tu ra social de vosso ser — isto é, o m u n d o em que viveis, m u n d o de am bição , de avidez, de inveja, de sede de poder. P a ra a m aio ria de nós, esse m u n d o é a realid ad e, e n a d a m ais o é ; é a ele q u e todos nós aspiram os; do m ais a lto político à m ais insig nificante pessoa do povo, do m aio r dos santos ao devo to v u lg ar — é a ele q u e todos aspiram . 183 Se n ão o q u eb rard es, n ã o im p o rta o que façais, n u n c a tereis am or, n u n c a atingireis a felicidade, e estareis sem pre em conflito e aflição. Assim, com o disse, vam os investig ar a e stru tu ra d a sociedade. Essa e s tru tu ra é p ro d u zid a pelo pen sam en to ; a e stru tu ra d a sociedade nasceu no cérebro q ue a tu a lm e n te possuímos —- o cérebro de que a g o ra nos servimos p a ra ad q u irir, com petir, to rn ar-n o s poderosos, g a n h a r dinheiro h o n esta ou desonestam ente. O cérebro é o resultado / i a sociedade em q ue vivemos, do m eio c u ltu ral em q ue crescemos, dos preconceitos, dogm as, crenças, tradições d a re lig iã o ; tu d o isso é o cérebro — resu ltad o do passado. E x am in ai a vós mesmos, p o r favor, n ão vos lim iteis a ouvir o que se está dizendo. H á duas m an eiras de escutar. U m a delas é: ouvir m eram en te as p ala v ras e seguir o seu significado — e isso é escutar, ouvir co m p a­ rativ am e n te , q u e r dizer, co m p arar, cond enar, trad u zir, in te rp re ta r o q ue se está dizendo. É o q ue faz a m aioria das pessoas; é assim que escutam os. Q u a n d o se diz u m a coisa, vosso cérebro im ed ia tam en te a tra d u z ■ — p o r efeito de reação — em vossa p ró p ria term inologia, vossas pró p rias experiências; e, ou aceitais o que a g rad a, ou rejeitais o q ue desagrada. Estais apenas “ reag in d o ” , n ão estais escutando. E h á a o u tra m a n e ira de escutar. E sta re q u e r im ensa atenção, p o rq u e nesse escutar n ão h á trad u ção , n ão h á in terp retação , n e m condenação, nem co m p a raç ã o ; estais escutand o, sim plesm ente, com to d o o vosso ser. A m en te capaz de escu tar tão a te n tam e n te com preende de im e d ia to ; está livre do tem p o e d o cérebro, q u e é o resu lta d o d a e stru tu ra social em q u e fom os criados. E n q u a n to esse cérebro não se tiv er to rn a d o de todo qu ieto — m as ao m esm o tem p o in ten sam en te a te n to , ativ o — , en q u a n to isso n ão o correr, c a d a pensam ento, c a d a experiência será p o r ele tra d u ­ zid a de acord o com seu con dicionam ento e, p o r conseguinte, cad a p e n ­ sam ento , c a d a sentim ento se to rn a rá u m obstáculo à investigação total. V ede, senhores, a m aio ria das pessoas a q u i presentes é parse, h in d u ísta o u cristã. D esde a in fâ n c ia vos dizem que sois h in d u ísta; essa lem b ran ça se conserva p o r associação nas células cereb rais; e c a d a experiência, c ad a pensam ento é trad u zid o segundo esse con­ d icio n am en to ; e esse co ndicionam ento im pede a vossa com preensão to ta l d a vida. A v id a não é a vida de u m h induísta, ou de u m cristão; a v id a é algo m u ito m ais vasto, m uito m ais significativo, q ue a m ente c o n d ic io n ad a de m od o n en h u m pode com preen der. A v id a é ir p a ra o em p reg o ; a v id a é so frim ento; a v id a é p ra z e r; a v id a é e x tra o r­ d in ário senso d a beleza; a v id a é am o r; a v id a é pesar, ansiedade, sentim ento de c u lp a — tu d o isso. E se n ão a com preendeis, n a d a descobrireis. N ã o h á “ saída” do sofrim ento. E , p a r a c o m p reen d er a to ta lid a d e d a v id a, o cérebro deve estar co m p letam en te qu ieto •— 184 o cérebro q u e está condicio nado pelo m eio c u ltu ral em que fostes criado, p o r c a d a pensam ento , que é reação de vossa m em ória, p o r c a d a experiência, que é “resposta” a desafio, “ resposta” do passado, nele con centrado. Se n ão com preenderm os todo esse processo, o cére­ b ro n u n c a fic a rá qu ieto . E p a ra que possa nascer u m a m en te nova, é ab solu tam ente necessário que o cérebro co m p reen d a a si p ró p rio , esteja cônscio de suas p ró p rias reações, seu p ró p rio em botam ento, estupidez:, cond icio nam ento. O cérebro deve estar cônscio de si p ró ­ p rio e, p o r conseguinte, deve “ in te rro g a r” a si pró p rio , sem bu scar resposta, p o rq u e to d a respo sta será p ro je ta d a do seu p ró p rio passado. P o r conseguinte, q u a n d o “ in te rro g ais” interessado n u m a resposta, a respo sta estará a in d a d e n tro dos lim ites d a m ente condicionada, do cérebro condicionado. Assim, ao “ in terro g ard es” -— o q u e significa qu e estais cônscio de vós m esm o, de vossas atividades, de vossas m a ­ neiras de p en sar, de sentir, de vossa m a n e ira de fala r, de a n d a r, etc. -— n ão busqueis resposta, p o rém apenas, olhai, observai. E vereis que, com o resu lta d o dessa observação, o cérebro com eçará a p e rd e r o seu es­ ta d o condicion ado. E q u a n d o isso acontecer, estareis fo ra d a sociedade. Assim, o m ais im p o rta n te de tu d o é vos investigardes ■ —■e n a o o q u e o S an k ara, B u d a ou vosso guru vos disse; investigar a vós m esm o, investig ar os m ovim entos de vossa m ente, de vosso cérebro, os m ovi­ m entos de vosso pensam ento. E m u tação difere de m u d an ça. Po r favor, escutai, prestai atenção! M u d a n ç a im plica tem po, g rad u alid ad e, m u d an ç a im plica c o n tin u i­ d ad e do que f o i ; m as, m u tação im plica u m a quebra co m p leta e a verificação de algo novo. M u d a n ça im p lica tem po, esforço, c o n tin u i­ dade, m odificação que req u er tem po. N a m utação, n ão existe o tem p o ; ela é im ediata. O qu e nos interessa é a m utação, e não a m u dança. O que nos interessa é a com pleta e im e d ia ta cessação d a am bição, e essa quebra im e d ia ta d a am bição é m u tação — q ue ocorre im e d ia ta ­ m en te, que não ad m ite o tem po. C o n tin u arem o s a ex am in ar esta questão. M as, p o r ora, p ro cu rai a p re n d e r o significado disto : a té a g o ra vivem os através de séculos de tem po , m u d an d o g rad u alm en te, g rad u alm en te m old an d o nossa m en te, nosso coração, nossos pensam entos, nossos sentim entos; nesse processo tem os vivido, em constante sofrim ento, co n stan te conflito; n u n c a houve u m a dia, n u n c a houve u m m om ento de co m p leta lib er­ tação do sofrim ento; o sofrim ento sem pre existiu, escondido, re p ri­ m ido. E a coisa sobre que ag o ra estam os falan d o é u m a term in ação co m p leta e, p o rta n to , u m a to ta l m u ta ç ã o ; e essa m u ta ç ã o é a revo­ lução religiosa. Explicarem os isso, um pouco, n esta tarde. m O im p o rta n te é com preender a capacidade de ver, a cap acid ad e de escutar. H á duas m aneiras de ver — só duas. O u vedes com o conhecim ento, com o p e n sam en to ; ou vedes d iretam en te, sem co n h e­ cim ento, sem pensam ento . Q u a n d o vedes com o conh ecim ento , com o p ensam ento , o q ue realm en te sucede é que n ão estais vendo, porém in te rp re ta n d o , d a n d o opiniões, im pedin do a vós m esmo de ver. M as, q u a n d o vedes sem pensam ento , sem con hecim ento —: o q ue n ão signi­ f i c a que, q u a n d o vedes, vossa m en te está “em b ra n c o ” ; a o .co n trário , vedes co m pleta m ente -— esse ver é o fim do tem po e, p o r isso, h á m u ta ç ão im ediata. P o r exem plo, se sois am bicioso, dizeis que g ra ­ d u alm en te m udareis —■ ■esse é o hábito que a sociedade sem pre a p ro ­ v o u ; a sociedade in v en to u todos os m eios e m odos possíveis, de vos liv rard es a pouco e pouco de vossa am bição; no e n ta n to , no fim de vossa v id a sois a in d a am bicioso, estais a in d a em conflito — e isso é co m p letam en te in fan til, sem m adureza. M a d u re z a é e n fre n ta r o fato e d ar-lh e fim im ediato . E podeis p ô r fim ao fato p ro n ta m en te q u an d o o observais sem pensam ento , sem conhecim ento. O conh ecim ento é a acum ulação do passado, d a q ual b ro ta o p ensam ento . P or conseguinte, o pensam ento n ão con stitui o m eio de p ro m o v er a m u ta ç ã o ; ele im pede a m utação. P o r favor, ten des de e x a m in ar isto m u ito ate n tam e n te , e n ão apenas aceitá-lo o u rejeitá-lo . C o n sid erarei isso d u ra n te estas p alestras; m as p ro c u ra i desde já a p re ­ e n d e r o seu significado, o seu perfum e. Po rque, p a ra m im , só h á m u ta ção , e n ã o m u d an ça. O u sois ou não sois; n ã o se tr a ta de, q u an d o sois am bicioso, cuidardes de torn ar-v os m enos am biciosos; isso é p ro ­ ced er com o os políticos qu e falam d a extinção d a política e do p oder, e co n tin u a m n a política. São falas insinceras. O que nos interessa é a term in ação im ed ia ta, p a ra que possa nascer u m a m en te nova. E vós necessitais de u m a m en te nova, p o rq u e u m novo m u n d o precisa ser criad o — n ão pelos políticos, n ã o pelos indivíduos religio­ sos, n ão pelos técnicos, p o rém p o r vós e p o r m im , que somos sim ples pessoas com un s; p o rq u e somos nós que tem os de m u d a r co m p leta ­ m en te, somos nós qu e tem os de o p e ra r u m a m u ta ç ã o em nossa m en te e nosso coração. Isso po d e ser feito im ed iatam en te, desde que possais ver o fa to e “ p e rm an ecer com o fato ” — sem p ro c u ra r pretextos, dognias, ideais, fugas; “p e rm an ecer com o fa to ” to talm en te, com pleta­ m ente. Percebereis, en tão , q u e o ver com pleto poe fim ao conflito. O conflito tem de term in ar. É só q u a n d o a m en te está p o r in teiro qu ieta, e n ao n u m estado de conflito, é só então q u e ela po d e p e n e tra r fu n d o n as esferas q u e estão além do tem po, do pensam ento , do sentim ento. 21 de fevereiro d%,1962. 186 NÃO CONFIAR EM NADA (B o m b a im — II) E m n o s s a ú ltim a reu n ião estivemos fala n d o sobre q u a n to im p o rta que, desta sociedade caótica, su rja o ind ivíd uo. Só o in d i­ v íd u o po d e e n c o n trar a re a lid a d e ; e ele deve en co n trá-la, descobri-la p o r si pró p rio . E p a r a poderm os en c o n trar, descobrir a realid ad e, tem os de co m preender a e stru tu ra social e fic ar livres d a sociedade; p o rq u e a essência d a in d iv id u alid ad e é a lib erd ad e. L ib e rd a d e n ã o significa fazer c ad a u m o q u e lhe ap raz. Significa, sim , n ã o ser o b ri­ gado a subm eter-se, aju star-se, obedecer. M a s im p en d e c o m p reen d er a e stru tu ra d a sociedade; e, no p ró p rio processo de c o m p re en d e r a in te ira e s tru tu ra d a sociedade, surg irá, em v irtu d e dessa com p reensão, o indivíduo. Pois, se isso n ão acontecer, nossas vid as co n tin u a rã o su­ perficiais, vazias, m onóto nas — com o o é a v id a d a m aio ria das pessoas. Podeis ter fo rtu n a , podeis p e rte n c e r a q u a lq u e r tip o absurd o de g ru p o p olítico; podeis p e rte n c e r a q u a lq u e r espécie d e religião o rganizada, p ra tic a r ritos todos os dias, seguir o vosso guru. M as, a m enos qu e com preendais a e s tru tu ra psicológica d a sociedade e d ela vos livreis, n ão h á esperanças p a ra vós, p a r a o hom em , p o rq u a n to o hom em está n e g a n d o a in d iv id u alid ad e ; o m u n d o , com seu sistem a educativ o, com sua p ro p ag a n d a , seu governo, suas religiões o rganiza­ das, com a fam ília, está n eg an d o a in div id u alid ad e. E p a ra que possa to rn ar-se existente u m a m en te nova, u m a n o v a m an e ira de vida, u m a n o v a geração, deve su rg ir o in d iv íd u o ; e ele só p o d e rá su rg ir n u m estado de to ta l lib erta ção d a e stru tu ra psicológica d a sociedade. Foi sobre isso que estivemos falan d o n a ú ltim a vez que nos reunim os aqui. Se m e perm itis, desejo falar, n esta tard e, acerca d a necessidade de dem olir, psicologicam ente, a e stru tu ra d a sociedade, q u e n ão só nos te m m old ado a c o n d u ta e o pen sam en to , m as tam b ém im p osto à 187 nossa m en te u m a série de deveres e proibições , u m a série de dogm as, conclusões, idéias. E o in div íduo que deverá su rg ir deve estar to ta l­ m en te incerto. N ão h á certeza em coisa alg um a •— n em em vossos sentidos, nem em vossas idéias, n em em vossa fam ília, n em n a nação, n em nos livros. H á , apenas, u m a c o n tin u id ad e de idéias, no p en sa­ m en to — pen sam en to v e rb a l; e as idéias criam u m a co n tin u id ad e que é tem po, co n tin u id ad e que se estabeleceu através de séculos, m e d ia n te processos psicológicos. E o indivíd uo que dev erá surg ir te rá de ser livre e, p o r conseguinte, n ão deverá aceita r n e n h u m a fo rm a psicológica de sociedade. N o tai, p o r favor, que n ão estamos considerand o idéias, teorias: estam os expo nd o fatos; e, a respeito de fatos, n ão h á c o n co rd ar nem discordar, m as o q ue se tem de fazer é, apenas, olhá-los. E vós podeis n ão d esejar olhá-los, e com razão ; m as, n e g a r o fato, “ ta p a r ” o fato, forçar-vos a ver ou a n ao ver, im pede o perceb im en to claro. O que nos interessa é a clareza, a com p reensão; só é possível co m p reen d er q u a n d o se percebe o fato, e n ao m ed ian te o ato de c o n c o rd a r ou disco rd ar. Assim, im p o rta pensarm os junto s n o problem a, sem pensarm os q ue o p ro b le m a é de o u tra pessoa que no-lo q u e r in cu lcar. Nós n ao estam os fazendo p ro p a g a n d a , n ao estam os p ro c u ra n d o convencer-vos de n a d a , p o rq u e a m en te que se convence, que chega a u m a conclusão, está m o rta. M as a realid ad e é que em n a d a podeis confiar, e essa é u m a rea lid a d e terrív el, q u e r nos agrade, q u e r não. Psicologicam ente, n a d a existe no m u n d o em que possais dep o sitar vossa fé, vossa con­ fia n ç a ou crença. N em vossos deuses, nem vossa eiência p o d em sal­ var-vos, dar-vos certeza psicológica; e vós tendes de a d m itir que em n a d a , absolu tam ente, se po de confiar. Isto é u m fato c ie n tífic o ,. e tam b ém u m fato psicológico. P o rq u e vossos líderes — religiosos e p o ­ líticos — e vossos livros, sagrados e profanos — todos falh a ra m e continuais n a m esm a confusão, aflição, no m esm o conflito. P o rtan to , trata-se de um fato inegável. Nós vam os e x a m in ar u m dos p rin cip ais aspectos psicológicos dessa e s tru tu ra que é a a u to rid a d e ; e, se h o u v er tem po , irem os averiguar, p o r nós mesmos, o que é am ar. O espírito de posse, em q u a lq u e r form a que seja, g era a a u to ri­ d a d e — a u to rid ad e d a fam ília, a u to rid ad e dos livros, a u to rid a d e d a crença, a u to rid ad e d a lei. Assim, devemos capacitar-n os p a ra discern ir p o r nós mesmos a a u to rid ad e psicológica. A a u to rid ad e d a lei é bas­ ta n te óbvia — o policial, os impostos, o governo. N ão se pode deso­ bedecer à a u to rid a d e d a lei. Podeis d esejar desobedecer a ela, desejar 188 n ão p a g a r im postos; e, pro vavelm ente, m u ita gente rica — os co r­ rupto s, em geral, são ricos — dev erá sonegar im postos. N ós tem os d e discernir, in teligente e liv rem ente, esta questão d a obediência à lei e à a u to rid a d e psicológica. A obediência à lei é necessária; m as, psicologicam ente, a ob ediência ao que q u e r que seja •—- à fam ília, ao pa i, à m ãe, aos avós, à sociedade, é coisa m á, u m a vez que to d o p o d e r é m au , seja o p o d e r do político, do d itad o r, seja o p o d e r do guru. Assim, a ob ediência à fam ília, a aceitação psicológica d a a u to ­ rid ade, é coisa m á. J á explico p o r que. N ão sois obrigados a a c e ita r a m in h a p ala v ra. Peço-vos, apenas, q u e escuteis. Podeis ser e x trem a­ m en te apegad o a vossa fam ília; m as apego não é am or. Podeis d esejar ard e n tem e n te q u e vosso filho o u filh a recebam u m a b o a e d u ­ cação, façam u m bom casam ento . M as esse apego ao filho e à filh a rep re sen ta u m m al, p o rq u a n to gera a au to rid ad e, é sinal de posse. P orq ue, com o disse n a p a le stra an te rio r, p a r a descobrirm os o q u e é v e rd ad eiro irem os d e ita r abaix o to d a a e stru tu ra que a m en te h u m a n a edificou através de séculos. V am os “in te rro g a r” sem m o tiv o a lg u m ; p o rque, m otivo sem pre lev a à reação, e não à ação. V am os “in te rro ­ g a r” , sem m otivo, to d a essa e stru tu ra de a u to rid ad e e obediência. Podeis n ã o de sejar escu tar; m as, já q u e estais a q u i p a r a escu tar e vos destes ao tra b a lh o de vir, ten d e a b o n d a d e de escutar. P o r “ escu tar” n ão en ten d o a c e ita r ou reje ita r, p o rém escu tar com o fim de descobrir, de exp lorar, de desvendar, de investigar. H á séculos que temos a a u to rid a d e ; todo santo, todo guru , todo d ita d o r, o pai, a m ãe -— vós m o ld a ram a m en te de m odo psicológico. E nós vam os “in te rro g a r” , dem olir, a fim de descobrir o q ue é a v erd ad e, pois, descobrindo po r vós m esm o o que é a v erd ad e, desse descobri­ m en to n ascerá a lib erdade. E dessa lib erdade, nessa lib erdade, surge o indivíduo. N essa liberdade h á u m a discip lin a não sujeita a contro le. Só o in div íduo pode descobrir o E tern o — se o E tern o existe. N ão digo que n ão exista o E te rn o — pois ele pode existir. P a ra m im , ele existe, m as n ão p a ra vós. Vós tendes de descobrir, tendes de in vestig ar vossa m en te e vosso coração, tendes de d eitar abaixo todas as m u ra ­ lhas qu e construístes; todas as p edras devem ser “v ira d a s” , psicolo­ gicam ente, p a ra que, daí, possais su rg ir com u m a m ente p u ra, sã, destem erosa, e n ão com um a m en te obediente. P a ra escutardes o q ue se está dizendo, necessitais de ate n ç ã o ; e a atenção não é possível q u an d o h á distração. N ão en te n d o po r " d is­ tra ç ã o ” o g rasn a r dos corvos, ou o a g ita r d a p a lm e ira ao vento, ou o hom em ao vosso lado q ue está a coçar o braço ou a cab eça; n a d a disso é “d istração ” ; tu d o faz p a rte desse ex trao rd in ário percebim ento 189 to tal. P o r “ d istração ” en tendo aqu ilo q u e vos im pede de escutar. Se ten des opiniões, concíüsões, com parações, elas vos im pedem o escu tar. Q u a n d o ten des u m a idéia, q u a n d o ju lg ais o que se está dizen­ do, q u a n d o opondes u m a opinião ao q u e ouvis dizer — tu d o isso são distrações. Ao co m p arard es o q u e ouvis com o que já sabeis, com o q u e lestes, isso é distração. Assim, p a ra ouvirdes ate n tam e n te , é n e ­ cessário q u e term in e m todas as distrações. V ós deveis escu tar to tal, m en te. E se escutardes assim, ate n tam e n te , vereis acontecer algo v e r­ d a d e ira m e n te m iraculoso; vereis que, nesse a to de escutar, h á lib er­ d ad e, p o rq u e a V e rd a d e lib erta, sem necessidade de n e n h u m esforço. M as, in felizm ente, nós n ão somos capazes de ver, n ão somos capazes de estar atentos, p o rq u e to d a a nossa v id a é um a. distração. Ser cap az de ver, de escutar , de observar, é ter u m a m en te em q u e não h á distração, m as qu e apenas observa o fa to com objetiv id ade. C om o disse, o n d e existe a posse, aí existe tam b ém o desejo de estar em segu rança psicológica, e, assim, to rn a-se existente a a u to ri­ dade. O rico reco rre à a u to rid a d e do policial, p o rq u e deseja estar em segurança com seu d in h eiro ; m a n té m o status quo de u m a c e rta sociedade; não deseja revolução n e n h u m a ; n ão deseja m u d a n ç a ; d e ­ seja c o n tin u a r no estad o psicológico tra d icio n a l que a sociedade lh e facu lto u ~ a a u to rid a d e do p ai, a a u to rid ad e d a fam ília, a a u to rid ad e d a posse, n a fam ília — posse do filho, d a filh a •— e educa o filho p a ra obedecer, ajustar-se, im itar. E nesse aju sta m e n to ao p a d rã o encontra-se seg u ran ça; m as, p a ra a m ertte que busca a segurança, h á sem pre aflição. Só a m en te livre fião conhece aflição. E a m en te isenta de aflição tem de co m preender de todo a im ensa e stru tu ra d a a u to ­ rid ad e. Q u a n d o buscam os seg u ran ça em q u a lq u e r fo rm a que seja, fisiológica ou psicológica, in te rio r o u exterio r, existe necessariam ente o m edo, g erad o r d a au to rid ad e, d a obediência. E m g eral desejam os segurança, e encon tram os essa seg u ran ça no possuir — possuir conh e­ cim entos técnicos, fam ília, dinh eiro, p o d er, posição, prestígio. Esse prestígio, esse poder, essa fam ília, p o d erão d u ra r algun s anos; nisso buscam os nossa segurança. E nosso sistem a m a trim o n ia l está in te ira ­ m en te baseado nessa seguran ça, consistente em possuir a esposa, o m a rid o ; e a essa posse se c h a m a “a m o r” . Escutai, senhores, p o r favor. E u não estou a ta c a n d o vosso sistem a. A p ró p ria v id a o está dem o­ lind o. Só o h om em in teligente será cap az de olhá-lo, de com preendê-lo, de e d u c a r o filho ou a filh a de m a n e ira d iferente e criar, assim, u m no vo Estado , u m novo m u n d o , u m novo en te h u m an o , u m a m en te nova. Q u a lq u e r fo rm a de posse, de apego, in d ic a im pulso de dom ínio. T a is são as condições d a fam ília: dom ínio sobre a esposa ou sobre o 190 m arid o (a que se ch a m a “ a m o r” ) ; dom ínio sobre os filhos, interesse em casá-los ric a m e n te; só isso vos interessa, isto é, e n c o n tra r segurança p a ra vós m esmo e p a ra vossos filhos. A isso cham ais “ a m o r” . Assim, o “processo” e a e stru tu ra d a a u to rid ad e com eçam com a fam ília, e a fam ília constitu i a base desse desejo çle segurança. N ão h á n a d a “ seguro” no m u n d o — nem vossas idéias, nem vossos livros, nem vossos deuses, nem vosso ritu a l; n a d a em que se possa co n fiar — nem m esm o em vossa fam ília, n e m no dinheiro depositado no b an co ; pois po de v ir o com unism o, pode vir o socialismo, p o d e sobrevir u m a revolução, u m terrem o to , q u a lq u e r coisa pode acontecer. E a lg u ­ m a coisa h á de acon tecer. P a ra q ue u m hom em esteja cônscio de tu d o isso e p erceb a q ue a realid ad e n ão é só p a ra o rico ou p a r a o p obre, d everá co m p reen d er a e stru tu ra d a a u to rid ad e, b asead a n a segurança, a q u a l tem suas raízes n a fam ília. E o h o m em que bu sca a realid ad e d ev erá de struir, psicologicam ente > a fam ília. R efleti! E sta é a razão po r que os sannyasis e os m onges a b a n d o n am a fam ília; en tre ta n to , n ão a b a n d o n am a e stru tu ra psicológica; a b a n d o n a m u m a fam ília, um nom e, m as a d o ta m novo nom e e, psicologicam ente, c o n ­ tin u a m cond icio nado s; c o n tin u a m a obedecer, a segu ir u m certo p a ­ d rão de pensam ento, resu ltan te d a sociedade, do m eio c u ltu ral em que viveram e cresceram . O s m onges cristãos e os sannyasis h induístas n ão são entes hu m an o s livres; a b a n d o n a ra m o ch am ad o “ m u n d o ex­ terio r” e tro caram de roupás — só' isso. N e n h u m a tro c a de ro u p as d á lib erdade a n in g u ém ; tão pouco a d á o to m a r u m a só refeição ao d ia ou u sar um a tan g a. O que traz a lib erd ad e é a com preensão d a au to rid ad e. H á tam bém a lib erd ad e consistente em ser livre d ò conhecim ento . A m aio ria de nós e n co n tra segurança no conhecim ento. H o je em d ia o conhecim ento, a ciência, se to rn o u nossa segurança — n ã o m ais os deuses, nem os livros, nem m esm o a fam ília, talvez; o conhecim ento , a técnica. Q u e é o con hecim ento e p o r que lh e a trib u i a m ente, p o r que lhe atribuím os nós, tão desm edid a im p o rtâ n c ia ? Considerais os vossos livros — os cham ados livros sagrados, o Gita, os U panishads , a Bíblia, etc. — sum am ente im p o rtan tes, p o rq u e estão refertos de sabe­ doria. Palavras n ão fazem sabedoria, os livros n ão contêm a sabed o­ ria. A m ente, p a ra ser sábia, p recisa e sta r livre. A essência d a sabedoria é a negação d a experiência, e a negação d a experiên cia é a negação do conhecim ento, p o rq u a n to a experiên cia se to rn o u nossa a u to ri­ dade. D o pon to de v ista tecnológico, o conhecim ento tem razão de ser; q u a n to m ais conhecim ento u m a pessoa possui, sobre com o o p e ra r u m m oto r, gerir u m escritório, dirigir u m foguete, m a n e ja r u m co m p u ­ tad o r, ta n to m ais co m petente é. Desse conhecim ento tendes necessida- 191 j d e ; m as a exp eriência psicológica ac u m u lad o ra de conhecim entos — essa é qu e im pugnam os. P rocurai, p o r favor, com preender isso, pelo m enos u m pouco. P o d erá ser u m ta n to difícil, p o rq u e nós vam os c o n te star a experiência. A m en te que está bu scan do experiência — m ecânica, tecnológica — é a in d a im a tu ra ; p o d e rá acrescentar ou su b tra ir; m as, com o ela, não pode h av er u m en te h u m an o am adurecido, pleno, in te rio rm en te ric o ; o conh ecim ento tecnológico n ão d á n a d a disso, e tam p o u co o d á a experiência. E m q ue se baseia a exp eriência? E x p eriên cia é “res­ p o sta ” a um “desafio” , quer insignificante, q u er im p o rtan te. Ao verdes aqueles corvos a voar, isso é u m a experiência. Q u a n d o o m u n d o se ac h a em crise, e vós “respondeis” a essa crise, essa “res­ p o sta ” (re ação) é experiência. T u d o é experiência, e nós estam os p o n to em d ú v id a toda experiência. E u digo que a m en te que se lim ita a experim enta r e acum ular é sem m ad u reza; e a m ente que se a c h a além e acim a d a experiência, essa é a m en te livre, a m en te nova, a m en te jovem . A experiência, pois, é a trad u ção de c a d a “desafio e resposta” , e essa tra d u ç ã o se baseia em vosso condicio nam ento, em vosso co­ n h ecim en to prévio, no passado, n a tradição. N ã o ex perim entais n a d a nov o ; não o podeis. Estais sem pre trad u zin d o o que é novo nos term os do “velho” , nos term os de vossa tradição, nos term os do que j á sabeis, do que recolhestes, do que acum ulastes, do q u e arm azenastes do passado. O passado d ita, m o ld a as “respostas” (reaçõ es). E u vos insulto ou vos lisonjeio; guard ais isso n a lem b ran ç a ; e, n a p ró x im a vez que vos encontrais comigo, “reagis” de acord o com aquele insulto ou aq u e la lisonja. T a l é u m a exp eriência b asead a n o conhecim ento; e esse conh ecim ento, esse passado, se converte em a u to rid a d e ; e em co n fo rm id ade com essa experiência, consoante esse conhecim ento, m oldais a vossa vida, o vosso pensam ento, a vossa c o n d u ta . E, q u an d o pondes em d ú v id a essa experiência, essa a u to rid ad e b a sea d a n a expe­ riência, n a d a m ais vos resta. A o duv id ardes de todas as experiências de u m h o m em religioso — seja um santo cristão, seja u m m onge h in d u ísta —- q u a lq u e r hom em religioso — vereis que o que ele diz, suas visões, suas idéias, resultam de su a “ c u ltu ra ”, de seu passado; q ue são sem v alo r e significação; que são m e ra p ro jeção do passado, daq u ilo que ele a p re n d e u ; e vereis, tam bém , como sua m en te foi m o ld a d a p ela sociedade. O conhecim ento, pois -— exceto o con hecim ento técnico — o saber ler e escrever, etc. — é u m em pecilho à lib erd ade. H á co n h e­ cim ento psicológico; e q u a lq u e r fo rm a de conhecim ento psicológico im pede a lib erd ad e e, p o r conseguinte, nao h á in d iv id u alid ad e; h á 192 u m a “ c o n tin u id a d e do q u e /o t” , c o n tin u id a d e q u e p o d e rá m odificar-se, m as c o n tin u a rá n a e stru tu ra d o q u e fo i — d a sociedade. N o ta i: Psico­ lo gicam ente, n ão podeis co n fiar no q u e vedes, n o q u e experim entais, n c q u e conheceis, A obediência, pois, p e rd e seu significado, a a u to ri­ d ad e n a d a significa, exceto a a u to rid a d e d a lei — a q u al é n e g a d a pelos políticos q u a n d o lhes convém ; eles fazem a gu erra, se lhes c o n ­ v é m ; o ra são pacifistas, o ra “ trafican tes de g uerras” . C ohseqüentem en te, n ão podeis am p arar-v o s n a a u to rid ad e , n e la n ã o podeis co n fiar. E no p ró p rio processo de investig ar a a u to rid a d e — com o o r a estam os fazendo — n ão vos revoltais c o n tra a au to rid ad e d o p ai, d a m ãe, d a e stru tu ra psicológica. N o p ró p rio processo de in vestigar, d e in q u irir, vossa m en te com eça a ser disciplinada, p o rq u e, p a r a inv estig ar, p a ra in q u irir, necessitais de m en te m u ito p e n e tra n te , m e n te destem erosa. Q u a n d o a m en te já n ão tem m edo, nem ansiedade, n e m busca a segurança, d a í pro v ém u m a discip lin a e x trao rd in ária, q u e n ã o é a discip lin a im p o sta p e la a u to rid a d e ; q u e n ã o é a discip lin a im posta p ela sociedade, p o r vosso g u ru, p o r vossos in stru to res; q u e n ão é a discip lin a qu e a vós m esm o im pusestes, pensando serdes livre, a qual, realm en te, é a “ c o n tin u id a d e ” d a com pulsão psicológica d a sociedade. Peço-vos to d a a a ten ção a isso. Q u a n d o dizeis — “ E u m e disci­ p lin arei, não de acord o com u m p a d rã o estabelecido p o r ou tro , p o rém segundo m in h a p ró p ria experiência” — vede, p o r favor, q u e “vossa p ró p ria experiên cia” é o resultado de vosso passado, de vosso co n d i­ cionam ento. N ã o podeis co n fiar em vossa disciplina, p o rq u e essa disciplina estreita a m en te, destró i a m en te, to rn a a m en te, o cérebro, in ad e q u a d a , em b o tad a, insensível. Assim, pelo d u v id ar, p elo inves­ tig ar, ap arece u m a discip lin a e x trao rd in ária, sem com pulsão, sem im itação, sem a ju stam en to , p o rq u e n ão h á p a d rã o a que aju star-se, p o rq u e n ão h á seg u ran ça n en h u m a. Ao verdes isso, ao com preen derdes isso, então, com essa com ­ preensão, surgirá o a m o r — pois a a u to rid a d e e o a m o r n u n c a p o d erão coexistir, e tam p o u co p o d em coexistir o apego e o am or. M as, vós sois apegados — n ão sois? — a vossas fam ílias, vossas idéias, vossos gurus , vossas visões, vossos rituais, vosso dinh eiro. E a in d a falais d e am or! P a ra vós, a m o r é segurança. E com o po d e a m en te q u e im põe a ob ediência, q u e está ensin ando todo m u n d o a ajustar-se, q u e só se m o stra e m p e n h a d a n a aquisição de con hecim entos m undanos, técnicos — com o pode essa m en te a m a r? O q u e desejais é só seguran ça, p a r a vós m esmos e p a ra vossos filhos. Só nisso estais interessados, e em levá-los a ajustar-se. O ra , a m o r n ão é àpego. O am or n e n h u m m otivo 193 te m ; e o am o r é á rd u o , exige tra b a lh o in gente, tra b a lh o psicológico — e não q u e fiqueis sentado à som bra de u m a árvore, ou q ue p r a ­ tiq ueis ritos ou disciplinas. Isso n ão é trab alh o , é falta de m ad u reza, p u r a in fan tilid ad e. M as, p a ra vos investigardes p ro fu n d am en te, tereis de lev ar vossa invetig ação a té o fim . E, então, dessa lib erd ade, surg irá o am or. M as, vede, a m aio ria de nós se satisfaz com a m a r su perficialm ente; ^ em g eral nos satisfazem os com g a n h a r nosso sustento, se conseguim os u m m odesto em prego , on de nos deixam os estiolar. E m geral, estam os satisfeitos com nossa co n ta b an cária , se somos ricos; e gostamos de ta g a re la r a respeito de DeuS, rituais, etc. etc. M as nossos corações estão vazios, to rn aram -se vazios sob a in ­ flu ência de u m a m en te em botada, estúpid a, que só pensa em term os de a u to rid ad e e obediência. Assim, a destru ição d a e stru tu ra d a sociedade, que é vosso cérebro, q ue sois vós, é u m a absoluta necessi­ d a d e p a ra o hom em v erd a d e ira m e n te interessado em descobrir o im ensurável, em descobrir se existe essa coisa c h a m a d a “ O Im e n ­ surável” . D essarte, a au to rid ad e , q ue en g en d ra o poder, é coisa m á. O hom em poderoso, o ho m em de posição, de prestígio, é tão terrív el e tão venenoso com o u m a serp en te; a m ente religiosa n a d a tem q ue ver com tais pessoas. N e n h u m hom em rico ch eg ará a saber o que é o am or, e n q u a n to o din h eiro fo r o seu D eus. N este país, infelizm ente, os poderosos, os ricos, estão m old an d o as m entes dos dem ais. N in g u ém tra ta de lib ertar-se dessa estru tu ra. T o rn aram -se todos “conform istas” , todos dizem “ sim ”, n in g u ém diz “n ã o ” . E o dizer “n ã o ” n ã o é rev o lta, p ò rém com p reensão psicológica de to d a a e stru tu ra d a a tu a l sociedade. O hom em , pois, que deseja ser livre, que deseja co m p reen d er o R eal, tem de libertar-se d a e stru tu ra psicológica d a sociedade; esta é a p rim e ira coisa q ue tem de fazer — e, não, p ra tic a r ritos, fre q u e n ­ ta r igrejas, etc. — coisas que p e rd e ra m todo o v alo r e nas quais não se po d e con fiar. Deveis estar co m p letam en te só. H á beleza neste estar só, que é am or. Só nessa solitude se e n co n tra a possibilidade in denom in ável, o im ensurável. de descobrir o 25 de fevereiro de 1962 . 194 DA MENTE NÃO INFLUENCIADA (B o m b a im — III) F ! s t i v e m o s fala n d o sobre a necessidade d a “ em ersão” do indivíd uo . A sociedade, com suas com plexas in flu ências e seu c o n d i­ cionam ento , m o ld a o p en sam en to ; e p a ra q u e possa “ em ergir” o in d iv íd u o — pois só o indiv íduo tem a possibilidade de descobrir o Im enso — afigura-se-nos necessário co m p reen d er essa in flu ên cia social, sua m o ralid ad e, seus perniciosos sistemas d e idéias. P o d e a m en te, qu e de tal m an e ira foi co n d ic io n ad a — c a d a pen sam en to fo r­ m ad o, m oldado po r in flu ências de to d a o rd em — em erg ir, in te g ral, p u ra, im acu la d a, co m pletam ente livre? P o rq u e só a m en te in c o rru p ta —■ a m en te n ão m o ld ad a pelas circunstâncias, pelas in flu ências — p o d e ir m u ito longe n a pesquisa d a v erd ad e, só ela p o d e descobrir se existe u m a realid ad e tra n scen d en te às m edid as m entais. E, com o assinalam os em nossa reu n ião an te rio r, o p o d er e a posição, em q u a lq u e r fo rm a, ge ram a au to rid ad e. N esta tard e, acho que poderíam os e x a m in ar a questão d o desejo, d a am bição e do p reen ch im en to , e in d a g a r se a m en te pode em erg ir com pletam ente ilesa d e tu d o isso. C om o estivemos salien tan d o em todas estas palestras, im p o rta co m p reen d er o q ue é escutar — escutar, apenas, co m p leta e n a tu ra l­ m ente, sem esforço algum . P o rq u e é o esforço, a lu ta , o q u e im pede a clareza. É o esforço que p erv erte e desfigura. E é possível escutar alg um a coisa sem lu ta, sem desfiguração? V e r u m a flor, d eix an d o de lado os conhecim entos de b o tân ica e h o rtic u ltu ra , vê-la realm en te — que significa isso? É m u ito difícil verdes um am igo, verdes vossa esposa, vossos filhos, sem desfiguração, sem n e n h u m a opinião, sem o aco m p an h am en to de num erosas idéias — observá-los, sim plesm ente. Dessa observação e desse escutar provém u m a ação q ue traz consigo u m a clareza q ue n e n h u m esforço exige. E , p arece-m e, se c a d a u m de nós fosse capaz de escu tar assim, de v e r sim plesm ente e sem esforço, então, todo o processo do viver se tra n sfig u ra ria sem lu ta alg um a. E isso é possível, pois o h om em tu d o p o d e com sua m ente, com seu cérebro. E la já foi o u está p a r a ir à L u a , co nstruiu co m putadores e tem realizado coisas ex trao rd in árias, ex terio rm en te; e n tre ta n to , a in d a não p e n e tro u p ro fu n d a m en te em si m esm o. A viag em à L u a é m u ito cu rta , em co m p aração com a viag em in te rio r; e pouquíssim os têm v o n tad e de e m p reen d er essa v ia ­ gem in te rio r, p o rq u a n to ela exige atenção, só atenção. Exige ate n ção to tal, p a r a escutar, p a ra v e r ex ata m en te, em c a d a m in u to , sem des­ fig uração, c a d a pe nsam ento , c a d a sentim ento. Peço-vos encarecidam en te q u e escuteis dessa m an eira. E m reg ra, somos ambiciosos, dom ina-nos o desejo de êxito, d e fam a , de n o to rie d ad e : é u m a lu ta , u m esforço, interm in áveis. A p a ­ ren te m e n te, c a d a u m aceita o esforço com o u m a necessidade — esforço p a r a ap re n d e r, p a ra educar-se, p a ra exercer u m em prego, g alg ar os degraus d o êxito, co m preender o que é a V e rd a d e ; tu d o se to rn a questão de lu ta, de esforço. P ensar, am a r, ser bondoso, h u m ild e — tu d o se red u ziu a u m a fó rm u la de lu ta e esforço, controle e disci­ p lin a. P a ra m im , u m a v id a de disciplina, de controle, lu ta , subjugação, aju stam en to , causa a destruição d o indiv íduo q u e dev erá “ em erg ir” ; pois só o in div íduo p o d e rá descobrir o E tern o, descobrir se o E te rn o existe. C um pre-no s, pois, co m p reen d er a lu ta. Esto u em pregando a p a ­ la v ra “ c o m p reen d er” , não no sentido de con siderar in te le ctu alm en te o u v erb alm en te, p o rém no sentido de observar realm en te o fato do que sois, o, fato de q ue lu tais d a m a n h a à noite, desde o m om ento de nascerdes até o m om ento de m orrerd es — lu ta n d o , d isp utando, em penhados n u m esforço incessante, in term ináv el. O ra , p o r certo, deve h a v e r um diferen te “ c am in h o ”, u m a diferen te m a n e ira de viver. M as nós aceitam os o cam inho d a lu ta ; o colegial o aceita, nossos m aiores o a c e ita ra m ; e todos os santos, todos os filósofos, todos os in stru to res têm p reg ad o íjue se deve lu ta r, q ue se deve forcejar. E u estou assinalando, p a ra quem quiser escutar, que h á u m a m an e ira de viv er sem esforço — m as isso n ã o . significa to rn ar-se in dolente, inerte, estacio nário , senão ao contrário. Esse esforço, essa lu ta , é desperd ício de en erg ia; e q u an d o a lu ta , o esforço cessa de to do , h á u m a m an e ira de viv er com pleta m ente, com aq u e la energia. E, p a ra se descob rir essa m a n e ira de viver, cu m p re investig ar diligente, sensata e in te lig en te m en te o p ro b lem a d a luta. N ós estam os in vestig ando; n ão se tra ta de aceitar ou de re je ita r o q u e se está dizendo. N ã o estam os fazendo p ro p a g a n d a ; deixem os 196 isso p a ra os políticos e outros. F azer p ro p a g a n d a é d a r co n tin u id ad e ao q u e n ão é fa to \ e quem deseja co m p reen d er u m fato deve vê-lo sem desfiguração, v e r cla ram e n te todos os pro blem as relativos à am bição, ao desejo, à lu ta . E nós vam os investig ar ju nto s. Por conse­ guinte, ides p e n e tra r em vós m esmos e n ão sim plesm ente a c e ita r o q u e se está dizendo. P o r qu e lutam os? Q u a l é a essência d a lu ta, q u a l a essência d a am bição? Sem d ú v id a, é o conflito a essência d a am bição. P o r que somos tão p ersev eran tem en te am biciosos em todos os níveis de nossa existência? O ch am ad o “ hom em e sp iritu al” , o m onge h in d u , “o hom em de longas b arb as” , os políticos, o negociante, o h o m em que está a c u m u lan d o con hecim entos — todos são ambiciosos. P o r quê? P o r que esse con flito e essa lu ta ? O con flito existe p o r cau sa d a c o n ­ trad ição . Se n ão houvesse co n trad iç ão , n ão h av eria luta. P o r favor, segui o que se está dizendo — n ão as p alavras, p o rém observando-vos com o q u e n u m espelho. Se n ão houvesse co n trad ição , n ão h a v e ria necessidade de n en h u m esforço. M as, nós somos u m a v e rd a d e ira m assa de contradições. P o r que nos a rra sta o desejo em diferentes direções? V endo-nos arrastad o s em diversas direções, dize­ mos p a r a nós m esm os: “ N ã o devo ter desejo ”. Psicologicam ente, é impossível co n tro lar o desejo ; necessário é com preendê-lo, decifrá-lo, percorrê-lo em to d a a extensão, e n ão n a sua expressão, n o seu p re ­ enchim ento — co m p reen d er o inteiro significado do desejo, causador d a contradição. P orq ue g e ra con tradição, nós resistimos ao desejo, p rocuram os reprim i-lo , dizemos p a ra nós m esm os: “D evem os ser isen­ tos de desejo” — e isso é d e stru ir a im ensid ade d a vida. P o rq u e o desejo faz p a rte d a v id a; e se tratam o s m eram en te de reprim i-lo, de negá-lo, de contro lá-lo , fecham o-nos à im ensid ade d a vida. D este m od o, existe lu ta p o rq u e h á co n trad ição , ex terio r e in terio rm ente. E x terio rm en te , h á a a tra ç ã o do p oder, d a posição, do prestígio, p a ra o hom em que busca u m a situ ação n a vida. H á u m viver q ue é função. Tem os de fu n cio n ar com o seres hum anos, exercer u m em prego, ap re n d e r, fazer diferentes coisas — tudo isso função. M as, com a função vem o desejo de ser m ais do q u e “fu n cio n á rio ” ; pois nos servimos d a fu n ção com o m eio de ad q u irirm o s p o d er, posição, prestíg io; e, p o r isso, h á contradição. A fu n ção pro d u z co n trad ição sem pre qu e h á o desejo de nos servirm os d a fu n ção p a ra a lc a n ç a r nossos alvos, a lc a n ç ar êxito, poder. O bservai, p o r favor. Isso é u m fato . S er cozinheiro é considerado, n ão com o fu n ção , p o rém com o posição, u m a situ ação, e, p o rta n to , com o cond ição desprezível; h á , assim, contradição. 197 O m inistro, o hom em poderoso, o hom em de posição, o hom em rico — a q u a lq u e r desses tratais com respeito, com enorm e conside­ ração , p o rq u e po de dar-vos ou oferecer-vos favores. Ele, p o rta n to , serve-se de sua fu n ção p a ra te r posição — que é o q ue tam bém d e ­ sejais — e p o r isso h á con tradição. Assim, sem pre que a fu nção serve p a ra d a r posição, tem de h a v e r con tradição. E nisto se baseia a so cied ad e: a fu nção n ão é im p o rtan te, p o rém a posição é relevante e posição sig nifica po der. Eis a co n trad ição m a n tid a p ela socie­ dade. Q u e r se tra te d a fu nção de M inistro , q u e r d a “ fu n ção ” de santo, a ela está associado o prestígio, E o q ue vós desejais n ão é a fu n ção , p o rém a posição; p o r isso, h á contradição. O h o m em q ue se serve d a fu nção p a ra te r posição n u n ca será eficiente. E nós tem os de ser eficientes, neste m undo, p o rq u e a função é de enorm e im p o rtâ n cia . O foguete que vai à L u a tem u m m ilh ão de peças — sem exagero : u m m ilhão de peças — e se u m a só dessas peças não fu n cio n a r a d eq u ad am en te, o foguete tam bém n ão fu n ­ c io n a rá satisfatoriam ente. E o hom em que p la n e ja e desenha o foguete n ão p o d e fazê-lo com o fim de a d q u irir posição; deve a m a r o que está fazen d o ; do co n trário , não fará trab alh o perfeito . Só o hom em q ue a m a o q ue está fazendo — sem asp irar, com isso, a u m a situação, u m a posição psicológica — só esse pode ser eficiente e iserito de c ru eld ad e. O h o m em q ue se serve d a fu n ção com o m eio d e a lc a n ç ar posição, esse é q u e se to rn a cruel. O ra , n ão h á necessidade d e lu ta p a ra se a p re n d e r u m a técn ica. M as o m eio social em q u e cresceis vos força, p e la educação, a n ã o a m a r o q u e fazeis; força-vos a fazer o indispensável p a ra a te n d e r a u m a d a d a necessidade social. A sociedade necessita a tu a lm e n te de engenheiros e cientistas, e todos estão-se to rn a n d o engenheiros o u cientistas, p o rq u e é m ais lu crativo. M as, m ui poucos são v erd a d e i­ ros cientistas, ve rd adeiros engenheiros, p o rq u e a m aio ria se está ser­ v indo d a ciência e d a e n g e n h aria com o meios de a d q u irir dinheiro, posição, prestígio. Assim se g era a co n trad ição . E , exterio rm ente, tem os tod as as “ expressões” d a sociedade — su a riq ueza, seus co nfo r­ tos, seu progresso. T od os desejam os a riq ueza, todos estam os dom i­ nados p e la m a n ia de alc a n ç ar sucesso, fam a. P o r q ue esse intenso desejo^ p o r p a rte de cada u m — p o r p a rte de quase todos — de a d q u irir fam a? P o r que existe esse desejo? N ão sei se tendes considerado bem esta questão. E xam inem o-la. T ratem o s de descobrir p o rq u e desejais preencher-v os, p o rq u e desejais êxito n a v id a, p o rq u e essa incessante b a ta lh a com vós mesmos. Sem dúv id a, p a ra a m a io ria de nós existe alg u m m om ento em que, consciente o u 198 in conscientem ente, nos torn am os cônscios d e u m g ran d e vazio, u m a g ran d e solidão in terio r. Sabeis o q u e significa esta frase: “ Sentir-se .íd” ? Sign ifica: E n co n trar-se n u m estado de n ão relação com coisa alg um a, um estado de isolam ento, de solidão; significa sentir-se, de súbido, no íntim o, co m p leta m en te só. E a todas as h o ras estam os lu ta n d o , psicologicam ente, p a ra p ree n c h e r essa solidão, d ela fu gir. N ão sei se estais cônscio de vossa p ró p riá solidão, se alg u m a vez já vos encontrastes com ela. E p o rq u e tem em os ta n to essa solidão, evitam o-la; p o r isso, h á contradição. Procuram os fug ir-lhe p o r m eio do conhecim ento , do bom êxito, do dinheiro , do sexo, d a religião — p o r todos os meios. M as o fato é que estais n a solidão, e n ão quereis e n fre n tá -la ; o fato é que estais fu g in d o d e la ; p o r isso, h á co n trad ição , g erad o ra de conflito. O que nos interessa a q u i é o conflito. O hom em livre do c o n ­ flito n ão é am bicioso. E o hom em am bicioso é in cap az de a m a r; n ão sabe o que significa am ar , p o rq u e só está interessado em si p ró p rio , suas idéias, seus ganhos. O hom em que busca a fam a — com o po de esse hom em am ar, ser bondoso, generoso? E esse espírito de g an h o só se m an ifesta q u a n d o h á fuga ao fato — à solidão. N ã o im p o rta o que fizerdes, en q u a n to n ã o com preenderd es essa e x tra o r­ d in ária solidão, vossos deuses, vosso saber, vosso p o d e r o u posição, n e n h u m valor te rã o ; n em o te rá a virtude. O ra , com o nasce essa solidão? C o m preen deis o q u e en te n d o p ela p a la v ra “ solidão” ? P rovavelm ente, m uito s de vós jam ais a sentistes, p o rq u e n u n c a ficastes sás> sem pre cercados q u e estais de vossos amigos, de vossas fam ílias; estais sem pre fazendo alg um a coisa: indo ao cinem a, a u m tem plo, p ra tic a n d o ritos — sem pre em ativ id ad e e, p o rta n to , jam ais cônscios de vós m esmos ou d o q u e se está passando den tro de vós. D este m odo, são pouquíssim os os que conhecem esse sentim ento de co m p leta solidão. J á vos deveis te r en co n trad o com ele; talvez, em d a d a ocasião, v iajan d o sozinho n u m ônibus, em conversa com vossa esposa ou m arido, em co m p an h ia de vqssos am igos — vos torn ais su b itam en te cônscio de estar com p letan ien te só, isolado. Esse é u m en contro bem assustador; e, sen­ tin d o m edo e n ão tendo possibilidade de fazer coisa a lg u m a c o n tra a solidão, tra tais de fu gir d ela, criando , assim, con tradição. E o n d e h á contradição, aí h á conflito. P o r conseguinte, nossa vida, aonde q u e r q ue vam os, o que q u e r q ue toquem os, é to d a de conflito. H á alg um a m a n e ira de v iver sem conflito? H á u m a m an e ira de viv er sem conflito, sem lu ta — m as que n ão é to rn ar-se in dolente, deix ar a m en te estagnar-se, 199 em botar-se. Essa m a n e ira de viv er sem esforço só se to rn a rá exis­ te n te ao com preenderm os p o r inteiro o processo do conflito. Existe co n trad iç ão sem pre que h á alg um ideal. O id eal d a nobreza, o id eal d a b ondade, o ideal d a “ não-vio lência” — deveis ser "assim ” , n ão deveis ser “assim ” — todos g eram contradição. E sc u ta i; p o rq u e, se fordes capazes de escutar, podereis sair d aq u i livres de conflito p a ra o resto d a vida. A am bição, a lu ta e a J b ru ta lid a d e d a am bição — tu d o desaparecerá. T ereis u m a m en te simples, cla ra, im acu lad a. Só a m en te im acu lad a pode fu n cio n a r com clareza, sem desígnios errôneos, sem b u scar posição; p o rta n to , só ela é capaz de a m a r o que faz. Só o am or n ão é c o n tra d itó rio ; e, p a ra com preenderdes esse estado ex trao rd in ário , deveis co m p reen d er a co n trad iç ão existente em vós. Existe, pois, co n trad ição q u a n d o h á a p reo cu p ação de e v ita r o fato -—- o fato de q ue estais íó r, o fato de sentirdes cólera, o fato d e serdes violento. Sois violento, sentis cólera, sois am bicioso — ta l é o fato. “ N ão deveis sentir cólera”, “ N ão deveis ser violento” , o u “N ã o deveis ser am bicioso” — são apenas idéias, n ã o são fatos. O s ideais, pois, que são sem realidade, sem substância, g eram a contradição, O hom em que e n fre n ta o fato de c a d a dia, de c a d a m in u to , sem des­ figurá-lo — esse hom em é livre de conflito. M as, o viv er sem conflito exige tre m e n d a energia. Isso não significa que p hom em sem conflito seja sem en erg ia: ele está "esb a n jan d o ” energia. N ã o significa q ue o ho m em ambicioso seja sem energ ia: ele tem a energ ia g e ra d a p e la resistência e que é um a energia destrutiva. M as, há a energ ia q ue nasce q u a n d o n ão h á conflito, q u a n d o estais em p resen ça do fato, a c ad a m in uto. C om a p a la v ra " fa to ”, estou-m e referin d o ao fa to psicológico — o que sois interiorm ente. O ra , p a ra pod erdes c o m p reen d er o fato psicológico, deveis com ­ p re e n d e r o m ov im ento ex terno tam bém — o m ovim en to extern o de expressão, desenho, cor, e stru tu ra , função. O s dois m ovim entos estão m u tu a m e n te relacionados. N ão podeis com preender o m u n d o in te rio r se n ão com preenderdes o m u n d o exterior — isto é, se n ão co m p reen ­ derdes a sociedade, que é relações. As relações e n tre duas pessoas constitu em a sociedade, E esse estado de relação constituiu a e stru tu ra social — que é de am bição, avidez, inveja, im piedade, cru eldad e, g uerra, corru pção. É o que se vê, atu alm en te, n a Ín d ia , com o bem sabeis. Se n ão com preenderd es todo esse m o vim ento externo da vida, n ão po dereis co m p reen d er o m o vim ento interno. O s dois estão relacionados; são com o a m aré que “ sai” e “ e n tra ” . N ão podeis d iv id ir a m aré em “ ex te rio r” e “ in te rio r” : é u m m ovim ento único. E só a m en te n ão c o rro m p id a pode “n av eg ar” nesse m ovim ento. 200 Eis, pois, o fato, e é necessário com preendê-lo. Nós não o com ­ preend em os p o rq u e nossa consciência resu lta de influências. N ão podem os ver o fato p o r causa d a in flu ên cia que nos m o ld a o p en sa­ m ento, a influ ência q ue está m old ando tan to a m en te consciente com o a inconsciente. C o m preend eis? O s jo rn ais, os discursos, os livros, o cinem a, a alim entação, as roupas, o am biente, os edifícios, o a r — tu d o vos influ encia, in flu en cia vossa m en te, consciente ou inconscien­ tem ente. T o d a fo rm a de p ro p a g a n d a , p o lític a o u religiosa, os c h a ­ m ados deuses tradicio nais — tudo in flu en cia e m o ld a o p ensam ento . Estais escu tando o q u e se diz sem vos deix ardes influ enciar. N ão sois influ enciado s, p o rq u e não estais sendo dirigidos, com pelidos, “ pressionados” . O o rad o r apenas vos diz: O lhai , observai , escutai , sede vigilantes! P o r conseguinte, o q u e ele diz n ão vos in flu e n cia de m odo n en h u m , nem consciente, nem in conscien tem ente. M as, vós te n ­ des de co m preender a in flu ên cia social. É possível a m en te livrar-se de to d a in flu ên cia? C om preendeis, senhor, o qu e é in fluência? — a p a la v ra , a fam ília, vossa esposa, vosso m arid o , os livros qu e ledes, as coisas que, in conscientem ente, vos assaltam a m en te. Podeis estar cônscio de cad a influência, cônscio sem escolha — sim plesm ente cônscio de c a d a in flu ên cia que vos cerca? É possível isso? P orque, se fordes livre, se p u d erd es observar a in flu ência, isso vos a g u çará a m en te, to rn a n d o -a capaz de lib er­ tar-se dela. E sta é u m a m a té ria com plexa, que exige atenção, q ue exige to d a a vossa ca p ac id ad e de p e n sar e descobrir, p o rq u e sois o resultado de influências. Ao crerdes ser o “ E u S u p erio r”, etc., ao dizerdes que em vós h a b ita D eus, a D iv in d ad e, o A tm a n —■tu d o isso rep resen ta influ ência. Q u a n d o o com unista diz n ã o cre r em D eus, está tam b ém influenciado. P o rta n to , a vida de todos está su je ita a influências. E é possível libertarm o-no s to ta lm en te delas? D o co n trário , n ão im p o rta o que penseis, o q ue negueis, o q ue façais — tu d o resu lta rá do passado, do vosso co n d icio n am en to ; p o r conseguinte, em tais condições, nao pode a m ente, de m odo n en h u m , descobrir se existe a R ealid ad e. Assim sendo, é possível ficar-se livre da influ ência? O que, com efeito, sig­ n ific a: É possível ficar-se livre d a exp eriência? C hegarem os a este p onto m ais adiante. P o r certo , não é possível ficarm os livres de todas as influências. Só podeis ficar livre daquelas de que estais cônscio. M as só podeis estar cônscio de u m peq u en o núm ero de influências — pois o inconsciente está de contínuo a ser influ enciado. T e n d e a b o n d ad e de escutar. É possível estar-se livre de todas as influências? D e o u tro m odo, n ã o se po d e p assar a in v estig ar a 201 questão d a lib erd ad e, e ser livre. C om o disse, n u n c a poderem os estar livres de in flu ên cias; m as poderem os m anter-nos sem pre vigilantes p a ra o b serv ar c a d a in flu ên cia q u e vem ao nosso encontro. Isso signi­ fic a estarm os atento s, a c a d a m in u to , ao que estam os fazendo , ao q ue estam os pe nsando, ao qu e estam os sentin do — n ão p erm itin d o , com essa vig ilância, n e n h u m a desfiguração, n e n h u m a o pinião sobre nós m esm os, n em avaliações — resultado, tu d o isso, de influências. Q u a l^ q u e r in flu ên cia é m á , assim com o o é to d a au to rid ad e. N ão h á dis­ tin ção de “ in flu ên cia b o a ” e “ in flu ên cia m á ” , p o rq u a n to todas as influências m o ld am a m en te, corrom pem a m ente. Assim, se com preenderm os o fato de q u e q u a lq u e r fo rm a de in flu ên cia — n ão im p o rta se “b o a” ou “ m á ” — p erv erte , m u tila, corrom pe a m e n te ; se p u d erm o s co m p reen d er esse fato , vê-lo, to r­ nar-nos-em os to ta h n e n te cônscios de c a d a in flu ên cia q u e nos assalta a m en te. Isto é : n o n eg ar, n a negação, surge o fato , a v erd ad e. Q u a n d o negais, q u a n d o dizeis “ n ã o ” , vós o fazeis ou com m o tiv o ou sem m otivo. P rovavelm ente, n u n c a dissestes “ n ã o ” . P o rq u e em geral costum am os dizer “sim ” ; hab itu am o -n o s a a c e ita r; n u n c a dizemos “ n ã o ” a coisa alg um a, sem term os algum m o tiv o ; e isto significa que, q u a n d o dizem os “n ã o ” sem m otivo, estam os libertados d a in flu ência. P o r favor, p ro c u ra i co m p reen d er isso. É u m a coisa m u ito sim ­ ples, u m a vez com preendida. A o dizerdes “ n ão ” , em relação ao p oder, à fam a, à am bição, à au to rid ad e , vós o dizeis p o rq u e acontece q ue n ão tendes a u to rid ad e, que n ão tendes poder, posição — m as gosta­ ríeis de tê-los. E v íd en te m en te não tendes possibilidade de alcançá-los, e, p o r conseguinte, dizeis “n ã o ” ; não posso obtê-los” . Assim procede a m aio ria das pessoas; m as que se lhes dê posição, ofereça-se-lhes a u to ri­ d ad e, e as aceitarão. D essarte, h á negação com m otivo, dizer " n ã o ” com m otivo. E h á tam bém a negação, o dizer “ n ã o ” sem m otiv o — q u e significa: p erceb er o fato de que a am bição, em q u a lq u e r fo rm a, esp iritual ou não, m u n d a n a ou in te rio r — destrói, corro m pe. Se perceberdes isso com o ve rd adeiro, estareis en tão cônscio de todas as fo rm as de influ ência, ta n to positivas com o negativas. E n tão , só o jato vos interessará. Assim, a n egação — e n ão a m en te positiva — é o fim d a in fluência. P o r “ m en te positiva” entendo a m en te q ue se aju sta, a m en te que im ita, a m en te que obedece, a m en te que se to rn o u res­ p eitáv el aos olhos d a sociedade — ou seja, aq u ela q ue aceito u e está observando um certo p a d rã o de viver d ita d o p ela sociedade, pelo am biente, pelo m eio cu ltu ral. Essa m ente se ch am a “m en te positiva” ; 202 m as de m odo n en h u m é positiva: é u m a m en te m o rta. P o r “ m en te neg ativ a” en tendo a q u e nega sem te r n en h u m m otivo. A o negardes a a titu d e do político q u e se ju lg a cap az de a lte ra r a o rd em das coisas, de a lte ra r o h o m em ; ao negardes essa a titu d e , estais to ta lm e n te livre desse tip o de influência. O político está in teressado no “im ed iato ”, p ro je ta d o no fu tu ro — q u e ele con sidera com o o “ prazo longo” , a “perspectiva lo n g a” ; m as essa “lo n g a perspectiva” é, em v erd ad e, u m a “ persp ectiv a c u rta ” . Isto é, o político, com o todo técnico, não está interessado n o hom em in te g ral; só lh e in teressa o exterior. E , se negais o exterio r — a perspectiva c u rta — sem terdes n e n h u m m otivo, estais então co m p letam en te fo ra dessa esfera; o que en tã o vos interessa é o ser tota l d o hom em . Im p o rta , pois, co m p reen d er a m en te q u e e n c a ra os fatos n eg a­ tiv am ente, e p erm an ece “só com o fa to ” . Espero n ã o estar to rn a n d o isso m u ito difícil. O q u e estam os dizendo não é difícil. Se, p o r exem plo, sinto cólera, o fa to é este: sinto cólera. E n tão , o n e g a r que sinto cólera, o substituir, o a lte ra r, o co n d en ar esse estado, o b u scar o id eal — tu d o isso são negações do fato, distrações q ue m e afastam do fato . E, q u a n d o nego to ta lm en te todas as form as de fuga, todas as distrações, então, só e n tã o , m in h a m en te está vazia de todas as influências e, p o rta n to , a p ta a olhar o fato ; então, eu olho o fato. P o r favor, p ro cu ra i fazer isso e n q u a n to m e estais escutando . E m regra, sois am biciosos; viveis, em m aioria, u m a v id a c o n tra d itó ria e conheceis as agonias d a contradição. Estais p ro cu ra n d o p ree n c h i­ m ento, seja p o r m eio d a fam ília, do nom e, do escrever u m livro, dos filhos, seja ten ta n d o torn ar-v os “ hom em im p o rta n te ” — estais sem ­ p re em busca de preen ch im en to . E, q u a n d o h á essa ânsia de p re e n ­ chim ento , h á tam b ém a fru stração com suas agonias. T e n tais p re e n ­ cher-vos po rq u e vos vedes sós, in te rio rm en te vazios. Isso é u m fato. Pois bem , olhai o fato de que sois am bicioso, sem p ro c u ra r desculpas e sem dizer: “ Q u e irei fazer p a ra v iver n esta sociedade corrom pid a, a licerçad a que está n a aquisição, n o p o d er e n a am b ição ?” N egando esta sociedade, estais fo ra d e la ; p o r conseguinte, podeis viver u m a v id a d iferen te e, e n tre ta n to , estar em sociedade. Assim, deveis o lh ar o fa to de qu e sois am bicioso, de q u e sois invejoso, ávido, e to rn ar-v os cônscio das in fluências que vos im pedem de olhá-lo — o u seja, os ideais, etc. Q u a n d o negais as influências, podeis m over-vos de fato p a ra fato . Assim, d a negação nasce a e n erg ia necessária p a ra o lh a r o fa to ; e necessitais de e x tra o rd in á ria energ ia e de co m p leta ausência de a trito . 20 } H av en d o conflito, h á sem pre dissipação de energia. Se h á p re ­ enchim ento, a u to p reen ch im en to , em q u a lq u e r sen tid o — era D eus, n u m livro, n u m a m ulh er, em vossos filhos — h á dissipação de energia, p o rq u e o conflito g era frustração, con tradição. O negar o p ree n c h i­ m en to significa e n fre n ta r o fato de serdes am bicioso. E esse fato vos revela p o r que am bicionais. N a d a precisais fazer; observai, apenas, o fato, e ele se vos revelará. O que tendes de fazer é ap en as observar sem com paração, sem ju lg am ento, sem avaliação; podereis en tão ver q u a n to estais vazio. T endes em prego, tendes esposa, tendes m arido, tendes dinheiro, tend es saber, exteriorm ente. M as, in terio rm en te, é im ensa a pobreza, h á u m vazio, u m a solidão q ue n a d a pode p re e n ­ c h e r; e a fu g a a esse estado é a essência d a con tradição. O ra , vós tendes de olhar essa solidão. V ou considerá-la po r alguns m om entos m ais, consid erar de que m an e ira podem os olhá-la. E m p rim eiro lu g ar, o fato é que estais só; o fa to é q u e vossa m en te está de tod o defo rm ad a p o r in fluência d a sociedade; o fato é que estais p ro cu ra n d o fu g ir à realid ade, ao que sois — - que n a d a é, absolu tam ente. N a d a sois; m as isso não im plica desespero, desgosto: é u m fato. O ra , ob servar o fato significa negação, com o estive expli­ cando, sem com paração, ju lg am ento, avaliação. M as, tam bém , o o lh a r o fato exige com preensão d a p ala v ra. E ntendeis? A p a la v ra “ cólera” , a p a la v ra “D eus” , a p a la v ra “ com un ista” , a p a la v ra “ C ongresso” , a p a la v ra “ ín d ia ” — de todas estas p a la v ras somos escravos. E a m en te escravizada a u m a p a la v ra n ão po d e ver o fato. Q u a n d o pensam os n a ín d ia , torn am o-n os em ocio nalm ente agi­ tados — trata-se de nossa venerável nação, etc. — e isso nos im pede o olhar. N e g a r tod o o passado, p a ra v e r o fato — disso somos in ca ­ pazes, p o r causa d a p ala v ra, d a im p o rtâ n cia que a p a la v ra “ Ín d ia ” nos confere — p a la v ra com que estamos identificados, esquecendo a realid ade. Q u a l a realid ade, in d ep en d en te d a p a la v ra? D o m esm o m odo, com o é que olham os a p a la v ra “cólera” ? A p a la v ra “có le ra” é, em si m esm a, c o n d e n a tó ria ; e com o podçrem os livrar-nos dela, p a ra olharm os aquilo que se c h a m a “ cólera” ? D essa m an eira, podeis com eçar a descobrir, p o r vós m esm o, o q u a n to o p e n sam en to está escravizado à p ala v ra. E vereis, se p en e­ tra rd es fu ndo, q ue n ão h á pensam ento d esaco m p an h ad o de p alav ra. V ereis tam bém , se vos ap ro fu n d ard es m ais ainda, que onde h á p en sad o r e pen sam en to h á contradição, e que toda fo rm a de expe­ riê n c ia só serve p a ra dividir e fo rtalecer o p ensador e o pensam ento com o processos separados. Assim só q u an d o todo esse processo —q ue estive explicando desde o com eço a té agora — tiver sido com ­ 204 preen d id o , exam in ado, observado, p o d e rá a m en te “ em ergir” d a es­ tru tu ra social, am b ien te e verb al, com o u m a m en te in co rru p ta , clara, sã. E n tã o ela já n ão está sujeita a n e n h u m a in flu ên cia; está co m ­ p leta m e n te vazia. Só essa m en te p o d e transcender o T em p o e o Es­ paço. Só en tão d e sp o n ta o Im en su ráv el, o Incognoscível. 28 de fevereiro de 1962- 205 A ORIGEM DO MEDO (B o m b a im — IV ) 17 C /S T à t a r d e desejo fa la r sobre o m edo. E p rete n d o fala r de m a n e ira ta l que todos nós, ao sairm os d aq u i, estejam os livres do m edo —^ não, tem p o raria m en te , p o rém to ta l e defin itivam ente. Isso é possível. M as, antes d e e n tra r nesta m atéria, d esejaria c h a m a r vossa ate n ção p a ra a q u alid ad e q ue se ch a m a h u m ild ad e — pois h á tão p o u c a h u m ildade. Sem h u m ildade, não podem os a p re n d e r; e a p re n ­ d e r n ã o é a c u m u la r; o a p re n d e r que acu m u la torn a-se m ero co nhe­ cim ento. H á enorm e diferença e n tre as inform ações q u e acum ulam os com o conhecim ento , e o a p re n d e r em q u e não h á “ c en tro de a c u m u ­ lação ” . E im p o rta co m p reen d er isso, p o rque, depois, q u a n d o falarm os sobre o m ed o — o fato do m edo — aprenderem os. Se n ão h á h u ­ m ild ad e, n u n c a vos libertareis dessa coisa e x tra o rd in á ria d en o m in ad a “m ed o ” . Tem os, pois, de co m p reen d er o que é “a p re n d e r” . O a p re n d e r exige u m a m en te lú cid a, p ro n ta , compassiva. A n ão ser assim não h á h u m ild ad e, isto é, n ão h á u m a m ente capaz de p en sar com clareza, de m od o racio n al e são, n ã o -p e rv e rtid o ; e u m coração q u e “resp o n d e” com presteza. Essas duas coisas devem existir o n d e está a h u m ild ad e ; e h u m ild ad e im plica ap ren d er. A h u m ild ad e não é u m a q u alid ad e cultivável. N o cultivá-la, já não h á hum ild ad e. H u m ild a d e nao é v irtu d e. V irtu d e é apenas ordem . Ê necessária a ordem . O rd e m em ^nosso q u arto , o rd em em nossa m ente, ord em em nossa vida, ordem em nosso fa la r e vestir, etc., o rd em em nosso c o m p o rtam en to -— tu d o isso supõe v irtu d e. M as a h u m ild ad e n ão é virtude. E la existe m o ­ m en to p o r m om ento. Existe q u an d o a m en te está vigilante, a p re n ­ dend o, investigando, absorvendo. E a h u m ild ad e é, essencialm ente, 206 u m a q u alid ad e d a m esm a n a tu re z a que a afeição; p o rque, se n ão tendes afeição, se n ão tendes u m p ro fu n d o sen tim ento de am o r, n ão podeis ap ren d er. Assim, m uito im p o rta o a p re n d e r — o a p re n d e r que não é p ro ­ cesso de acum ulação. Podeis a p re n d e r de vossa esposa, de vosso m arido, de vossos filhos, de vosso em prego. Podeis a p re n d e r de vosso com p o rtam en to — d a m a n e ira com o vos com p ortais, o q ue dizeis, o que fazeis. Podeis a p re n d e r q u ão p ro fu n d a m en te vãos e fru strados sois. E esse processo de a p re n d e r se verifica em clarões, m om ento p o r m om ento. P o r favor, com preendei isto: o a p re n d e r n ão pode ser co n tín u o ; ao ter c o n tin u id ad e, torn a-se “ acu m u la tivo” e, p o rta n to , já n ão é ap ren d er. Só se po d e a p re n d e r q u a n d o a m en te é nova, ard orosa, “ in ocente” , q u a n d o não h á acum ulação, “ a ju n ta m e n to ” , arm azen am en to n u m centro, de onde se aprende. Se h á u m c en tro de o n d e se a p ren d e, esse a p re n d e r n ã o passa de m ero processo “a d i­ tivo” e, p o rta n to , deix a de ser ap ren d er. V am os a p re n d e r sobre o p ro b lem a do m edo. M as a com preensão do m edo req u e r cap acid ad e p a ra in vestig ar e a p re n d e r dessa investi­ gação — m as não com a id éia de fic a r p e rm a n en te m e n te liv re do m edo. N cs vam os a p re n d e r; m as, se dizeis: “Preciso fic a r p e rm a ­ n en te m en te livre do m ed o ” , já consolidastes o conhecim ento d a con­ tin u id ad e e, po r essa razão, n u n c a ficareis livre do tem or. V am os, pois, ap ren d er. E, p a ra ap ren d er, é necessário clareza de espírito e p ro n ta com paixão. Sem essas duas coisas, não é possível a p re n d e r e a h u m ild ad e n ão existe. H erdam os d a sociedade m uitos problem as. N ascem os com p ro ­ blem as e com eles m orrem os. Tem o-los aos m ilhares; tu d o o que tocam os, tu d o a cujo respeito pensam os se to rn a u m p ro b le m a ; e n u n c a , p o r u m dia, p o r u m a h o ra, sequer, estam os livres de problem as. M esm o do rm indo, somos ato rm en tad o s p o r problem as. A c o n tin u i­ d ad e de u m p ro b lem a em b o ta a m en te, corrom pe-a. O p ro b lem a q ue “ tran sp o rtaste s” de o n tem p a r a hoje j á vos tu rv o u a m en te, a clareza do pensam ento. M as nós passam os de u m d ia p a ra o o u tro , de ano p a ra ano , com prob lem as n ão resolvidos, n ão com preen did os; e esses prob lem as se to rn a m u m a c arg a q u e perv erte, q u e corrom pe, que em b o ta a m ente. H á , não só os prob lem as conscientes, m as tam bém os pro blem as inconscientes, que se m an ifestam p o r m eio dos sonhos — sonhos que req u erem in te rp reta ção , E, assim, q u e r acordados, q u er dorm in do, tem os prob lem as e m ais problem as. P ro b lem a é tu d o aquilo que não foi resolvido, que não foi co m p reen d id o ; e d a sociedade herdam os 207 num erosos problem as, aos quais se acrescentaram os de nossa exis­ tên cia indiv idual. A p rim e ira coisa — parece-m e — que im pende co m p reen d er é q ue um p ro b le m a deve ser liq u id ad o im ed ia tam en te , e não “ tra n sp o rta d o ” p a ra o fu tu ro — q u alq u er que seja esse p ro ­ blem a. P orqu e, se não o liquidam os p ro n ta m en te , acostum am o-nos com o p roblem a, ele se to rn a h á b ito ; e a m en te que fu n cio n a n a ro tin a do h á b ito n ão po de p en sar com lucidez, não tem com paixão. Necessita-se, pois, de p ro n ta reflexão, p a ra se p ô r fim a u m p ro ­ b lem a in co n tin en ti, tão logo desponte, e q u a lq u e r q ue ele seja ■ —• físico ou psicológico. Se estais doente, n ão deixeis a doença c ria r raízes n a m ente, p o rq u e en tão ela se to rn a psicossom ática — isto é, to m a-se u m p ro b le m a psicológico que p erv erte o pen sam en to e, p o r conseguinte, atin g e o corpo físico. Nessas condições, é essencial solu­ c io n a r de im ed ia to c ad a prob lem a, assim q ue surge, p a ra n ão se en ra iza r n a m en te. Ê possível viver com pletam en te sem problem as; mas isso, n a ­ tu ra lm e n te , não significa evitar a sociedade ou retrair-se e desapa­ recer en tre as m o n ta n h a s . . . ou n u m hospício. A c a d a m in u to existe u m problem a. E u vos estou p ro p o n d o agora u m p roblem a ao dizer q ue é possível viv er sem p roblem a algum , extin guindo c ad a p ro ­ b lem a im ed ia tam en te . Isso se to rn a p a ra vós um p roblem a, po rq u e logo p erg u n tais: “ C om o?” J á tendes u m a in fin id ad e de pro blem as, aos quais acrescentais m ais este pro blem a. N ã o h á “ com o?” M as deveis co m p reen d er a im p o rtâ n c ia de d a r fim a u m p ro b lem a im e­ d iata m e n te, logo q u e surg e; deveis v er q u e q u a n d o a m en te tem u m p ro b lem a e está “viv endo com ele” (n ão im p o rta q u a l seja a p ro ­ b lem a : p ro b lem a d o m arid o , p ro b lem a d a m u lh er, do sexo, de D eus, d a bebid a, do g a n h a r o sustento — q u a lq u e r p ro b lem a, e n fim ), se n ão tra tarm o s de lh e d a r p ro n ta solução, ele em botará, co rro m p erá a m e n te ; e a m en te será in capaz de ap ren d er. Se tendes problem as, não podeis ser afetu oso; sois egocêntrico, vos torn ais cruel, m ordaz. Assim sendo, é preciso e n fre n ta r o p ro b le m a (que é u m conflito, u m “caso” n ão resolvido) logo que surge, ap re n d e r, logo que ele surge, tu d o q u a n to lhe diz respeito. E n ão podeis ap re n d e r, se vos abeirais do p ro b lem a com co nhe­ cim ento trazid o do passado. Eis p o r q u e releva co m preender o que é ap re n d e r. P a r a a m aio ria de nós, a p re n d e r é u m processo aditivo. D ireis: A p ren d erei, experim entarei, acrescentarei; e, d a í p o r dian te, serei cap az de lev ar u m a v id a m elho r, p o d erei com preender m elh o r” . A com preensão é resu ltad o de um processo acum ulativo, com o o conhecim ento ? O u a com preensão é ação im ed ia ta? Isto é, q u a n d o 208 n e n h u m p ro b lem a tem , a m en te é capaz de olhar, de observar, de estar atenta , de escutar, in sta n ta n e a m e n te. E isso só é possível se c ad a um com preende a enorm e im p o rtâ n c ia d e resolver c a d a p ro b le m a logo q ue surge, sem deixá-lo la n ç a r raízes no solo d a m ente. N as q u a tro ou cinco palestras seguintes — n ão sei q u an ta s a in d a h averá — p rete n d o fa la r acerca de m uitos outros assunto^ tais com o a m orte, a religião, a m editação. P o r isso, im p o rta c o m p reen d er o que é a p re n d e r “ a respeito d e um p ro b lem a” . M as não podeis a p re n ­ d e r ra p id a m e n te “ a respeito de u m p ro b le m a ” , se ficais afeito a ele; m uito im p o rta , pois, n ão vos acostu m ardes com o problem a. E n tre ­ tan to , é ju stam en te isso o q ue acontece com a m aioria de nós: brigam os com nossa m u lh er, com nossos filhos, com nossos vizinhos; percorrem os ru as im undas, sentam o-nos em ônibus sujos — m as n u n c a notam os n a d a disso, p o rq u e com tu d o nos habituam os. N u n c a no tareis u m a árv o re bela, a p a lm e ira q ue se ergue p e rto de vossa casa, p o rq u e vos acostum astes com elas. J á se vos to rn o u h á b ito a m an e ira com o falais aos vossos serviçais; e o enorm e respeito que dem on strais p a ra com o h o m em de quem esperais o b ter alg u m a coisa — com isso tam bém vos acostum ais. Assim, desde q ue nos h a b i­ tu am os com u m a coisa, com um p ro b le m a q u alq u er, com eça a co r­ ru p ção , com eça o em botam ento. E sto u citan d o todos estes fatos p o rq u e (já que vam os in vestigar a questão do m edo e a p re n d e r o q u e ele significa — e não fazer dele u m p roblem a) tem os de co m p re en d e r p ro fu n d a m en te o signi­ ficad o do ap ren d er. P o rq u e, vede bem , o a m o r re q u e r u m a m en te livre, u m a m en te im acu la d a. M as nossa m en te n ão é im aculada. N ós n ão somos livres, não sabem os o que significa o am or. Sabemos o q u e significa concupiscência, sabem os o q ue significa o apego “ pos­ sessivo” à fam ília; m as isso n ão é am or. E q u an d o a m en te está cheia de problem as, d ila c era d a p o r tantos “ casos” não resolvidos — n u n c a po d erá am ar. Nossos sentim entos estão m ortos. E foram os prob lem as q ue m a ta ra m to d a a nossa beleza, que esm agaram nossas reações instintiv as, n a tu ra is, espontâneas, a “ presteza” de nosso coração. Se nesta ta rd e escutardes (n ão intelectualm ente, n e m v e rb a l­ m ente, n ão com a idéia de que, escutand o, ireis resolver os vossos p ro b le m a s), escutardes, sim plesm ente, en tão vós e eu poderem os co­ m u n g a r naqu ele nível onde existe a com paixão q ue responde com precisão, a com paix ão que tra z clareza à m en te. Só q u an d o , em ocio­ n alm en te — n ão sentim entalm ente, ro m an tic am en te, p o rém em o­ cionalm ente — estais em c o n ta to com u m p ro b lem a, p o d e este ser 209 resolvido. M as n u n c a estam os em co n tato dessa m a n e ira ; estam os em co n ta to com o p ro b lem a in te lectu al ou v erb alm ente, m as n u n c a em o ­ cio n alm en te; p o rq u e nos acostum am os com a vid a, nos acostum am os com a nossa m a n e ira de viver; acostum am o-nos com nossas m ulheres e filhos, com nossos em pregos, com a cid ade suja, com as religiões org anizadas. N u n c a vedes o m a r a g itad o , n em a beleza do ocaso, p o r­ que ten des problem as. E a m en te que tem u m p ro b lem a n u n c a é u m a ê m en te audaz, u m a m en te ju v en il; m as, p a ra ap re n d e r, deveis te r u m a m en te nova, u m a m en te sem com prom issos, n ão co m p ro m etid a com n e n h u m a crença, n e n h u m a igreja, n e n h u m a org anização p o lítica o u religiosa, n em com a fam ília. Só en tão podereis aprender . H á b e ­ leza em ap re n d e r, n ão em a d q u irir conhecim entos, q u e se to rn a m en ted ian tes; on d e h á aquisição, am o n to a r de conhecim entos, aí existe v a id a d e ; e a v aid a d e , qu e é a essência do p reen ch im en to , se to rn a acrim on io sa, m ordaz. V am os, pois, a p re n d e r o que é o tem or. N ão vam os resolver o p ro b le m a d o m ed o ; m as, a p ren d en d o o que ele é, irem os dissolvê-lo c o m p leta m en te e, assim, extingui-lo. M as, se com eçais com u m a intenção , consciente o u inconsciente, dizendo com o seria, m aravilh oso estar livre do m edo, nesse caso n u n c a vos lib ertareis dele, e jam ais aprendereis. E nós vam os ap ren d er. O m edo n u n c a é co n sta n te; ele existe p o r causa do pensam ento, que p ro je ta essa ansiedade p a ra o fu tu ro , ou porque, em v irtu d e de seu conhecim ento do passado, sabe o q ue é “te r m ed o ” e, po r conseguinte, deseja evitá-lo. T e n d e a b o n d ad e de a c o m p a n h a r isso, n ão verb alm ente, p o rém realm ente, em vós mesmos. Sabeis que tem eis m u itas coisas n ão é verd ade? M edo de vossa m u lh er, de vosso m arido, m edo de vosso vizinho, m edo a respeito de vosso em prego, m edo de n ão a lcan çar o céu, m ed o d a m orte, d a opin ião pú blica, de m il e u m a coisas. T o m a i u m desses tem ores que vos afligem , um com que estejais b em fam iliarizado, e exam in ai-o en q u a n to falo sobre o m ed o ; exam inai-o, investigai-o, observai-o, p restai-lh e atenção. N ão tenteis livrar-vos dele, dizend o: “V o u observá-lo, a fim àe ficar livre dele ” . D essa m an e ira n u n c a ficareis livre dele. T en d es de a p re n d e r tu d o o que a ele se refe re ; m as só o fareis se perceberdes q u e não podeis livrar-vos dele. T endes de a p re n d e r tu d o a seu respeito e, p o r conseguinte, com preen dê-lo ; se assim procederd es, ficareis co m p letam en te livre dele. O p en sam en to é a orig em do m edo. Se n ão houvesse pensa­ m ento, n ão h a v e ria m edo. Se n e n h u m pensam ento tivéssemos a res­ p eito d a m o rte (com o, p o r exem plo, “ q u e aco n te ceria se e u m o r­ resse?” ) e a m o rte ocorresse neste m esm p in stan te , n ão teríeis m edo n en h u m . É o p en sam en to a respeito d a m orte que vos in fu n d e tem o r 210 — tem o r p ro v en ien te d a exp eriência do passado e “p ro je ta d o ” no fu tu ro . N otai, p o r favor, q u e o que estou dizendo é m u ito simples. O bservai-o vós m esmo. O pen sam en to resu lta do tem p o ; o tem p o é m em ória. M as n ão estou falan d o acerca do tem p o ; estou falan d o sobre o p ensam ento com o tem po. Estam os fala n d o a respeito do pensam ento e n ão a respeito do tem po. O pensam ento fo rm ou, p o r m eio d a experiência, reações au to p ro tetó rias, tan to fisiológicas, com o psicológicas. Q u a n d o encontrais u m a cobra, h á u m a reação instintiva de au to proteção. E sta espécie de m edo, que é a u to p ro tetó ria , é ne­ cessária; porque, do co n trário , seríeis d estru íd o ; de outro m odo, não prestaríeis atenção a u m ônibus e correríeis de encontro a ele, ou cairíeis n u m fosso. H á , pois, esse in stin to au to p ro tetó rio , o instinto fisiológico de au to p ro teção , que se form ou com o tem po, com a expe­ riência, com o m em ória. Esse in stin to reage ao vos d eparardes com u m a cobra ou u m an im al feroz, ou ao verdes um ônibus em d isp ara­ da. Essa reação deve existir, p a ra a m en te equilibrada, sã. M as n e ­ n h u m a o u tra fo rm a de m edo é saudável, p o rq u e foi c ria d a pelo p e n ­ sam ento, p ela reação d a m em ória, q ue se acum ulo u através de séculos de experiência, e é “p ro je ta d a ” pelo pensam ento. Assim, é necessário co m p reen d er o processo do p en sar, se dese­ jais co m p reen d er o m edo -— e isso significa que deveis c o m p reen d er o p ensador e o pensam ento. N otai, p o r favor, que o que estou dizendo é b em sim ples; estou dizendo o que v e rd a d e ira m e n te penso: isto é realm en te simples. M as, se vos abeirais do q u e estou dizendo com o vosso co n d icionam ento — isso é que o to rn a difícil. N ã o vos aplicais à questão, n ão escutais o q ue estou dizendo, com u m a m en te nova. V in des p a ra a q u i co m o que já sabeis, com aq u ilo que S an k ara, B u d a ou o u tro q u a lq u e r disse a respeito do pen sad o r e do p en sam en to ; p o r conseguinte, vos abeirais do q u e estou dizendo com u m a conclusão, com a m em ória, com conhecim entos prévio s; e é isso q u e to rn a a quçstão difícil. V ede-o, p o r favor. Bem, se desejais a p re n d e r algo a respeito do que digo, tendes de p ô r de lado tu d o aq u ilo ; e só o podeis p ô r de la d o q u a n d o estais em co n tato em ocio nal com o q u e se está dizendo. C om o sabeis, se g u ra r a m ão de alg uém n ã o é u m fato in te le c tu al; q u a n d o estais em relação em ocional com a pessoa, h á h a rm o n ia, co­ m u n h ão , h á u m sentim ento e n tre as duas pessoas. D a m esm a m an e ira , p a ra com un garm os uns com os outros, devemos dar-n os as m ãos, em ocio nalm ente, não in te le ctu alm en te. Esse m esm o co n ta to em ocio­ n al, com passivo, afetuoso, deveis te r com o fato do m edo, com o fato do pensam ento, qu e vam os exam inar. A m enos q u e estejais eraocxo- 211 n alm en te em co n ta to com o fato, vitalm ente, d iretam en te em co n tato com ele, n ão passareis além das prim eiras poucas p alavras. E n q u a n to h o u v er divisão en tre p ensador e pensam ento, será inevitável o m edo. V ede p o rq u e isso acontece: p o rq u e h á con tradição en tre o pen sad o r e o p ensam ento . O p ensador está p ro cu ra n d o guiar, co ntrolar, m ol­ d a r, discip lin ar o p en sam en to ; m as, p o r causa dessa divisão, h á con­ flito, h á co n tra d iç ã o ; e on d e h á contradição, h á o im pulso p a ra doã m in á-la , tran scen d ê-la — e aí está a p ró p ria essência do m edo. Assim, vós tend es de co m p reen d er o processo pelo q u al surge essa separação e n tre o pen sad o r e o pensam ento, e não ac eita r o q ue o u tro q u a lq u e r disse — n ã o im p o rta qu em seja : o m ais antigo, m ais ilu m in ad o dos instrutores, ou o m ais m oderno. N ao aceiteis n a d a de nin gu ém , m as investigai sem pre. N ão sigais n in g u é m ; q u an d o seguis, sois in cap az de ap ren d er, E só podeis a p re n d e r se estais investi­ gando sem te r u m m otivo. Se estais inv estig ando com um m otivo, estais apenas adicionan do, p ro cu ran d o resolver algo q ue n ao pode ser resolvido. P o r conseguinte, n ão sigais o q ue aqui se está dizendo, n e m o aceiteis com o verd ad e evangélica — p o rq u e não o é. O que o u tro diz n ão é a v e rd a d e evangélica; vós tendes de descobrir p o r vós m esm o, sem n e n h u m a restrição. E isso só é possível q u an d o sois livre, q u an d o vossa m ente é im a c u la d a e com passiva. H á o p en sad o r e h á o p ensam ento . Sabem os disso. Ê o q u e f a ­ zemos todos os dias: essa divisão. O pen sad o r é o censor, o p en sad o r é o juiz, o p en sad o r é o cen tro a c u m u lad o r de conhecim ento , de experiên cia psicológica, etc. Ê o pen sad o r que reage a todo “ desafio” ; e sua com unh ão, seu co n tato com u m a coisa se efetu a p o r m eio do pen sam en to — se n ão pensásseis, n ão h a v e ria pensad or. Essa divisão, esse conflito, gera o m edo. O centro, o observador, o ex p erim entador, o pensador, está estabilizado; e o pensam ento é erran te , move-se, m odifica-se. O centro n u n c a m u d a ; ajusta-se, disfarça-se, cobre-se com novas roupagens, novo verniz, novas características; m as ele lá está, sem pre. E esse centro gera o m edo, p o rq u e “reag e” sem pre de u m p o n to fixo, em bora possa ser flexível. O pensam ento , poís, in stitu i o p en sad o r; n ão é o p ensador que in stitu i o p en sam en to ; porque, se n ao h á pensam ento , nao h á p e n ­ sador. É possível n ão p en sar absolutam ente, n ao te r um só pensam ento q u e seja, e esse ex trao rd in ário estado m en tal é que é vazio e, p o r­ ta n to , contém todo o espaço. Só é realizável esse estado p ela m ed ita ­ ção. M as n ao digais: “ A g u ard arei o d ia em que falareis sobre a m ed itação ; en tão investigarei” . N ã o podereis fazê-lo então. Precisais la n ç a r as bases; e p a ra lançard es as bases, deveis estar em c o n ta to ; 212 e n ão podeis estar em c o n ta to se apenas vos pondes em relação in telectu al ou sentim ental. D eveis estar em contato to talm ente, com todo o vosso ser — vosso corpo, vossos sentidos, vosso coração, tu d o o que tendes. P o rta n to , deveis co m p reen d er o processo do pensam ento. P e n ­ sar é reação a um “desafio” , peq u en o ou gran de. Essa reação p ro ­ m a n a d a m em ória q ue tendes acum ulado. A o p erg untar-vos se sois h induísta, direis “ sim ” . Esta “ resposta” , ou reação, é im ediata, p o r­ que fostes criado nessa sociedade, nessa c u ltu ra d en o m in ad a h in d u ísta, parse, etc. T o d o p e n sa r é reação d a m em ória. E m em ó ria é associa­ ção. A m em ória resulta de in um eráveis experiências, conscientes e inconscientes. V ede q ue o q ue estou dizendo não é n a d a novo. Q u a l­ q u e r psicólogo, q u a lq u e r pessoa que te n h a refletid o um pouco a esse respeito, vos p o d e rá dizer a m esm a coisa; m as, p a ra com preenderdes o processo do p en sar e elim inardes to talm en te o c e n tro rep resen tad o pelo pensador, e que gera o m edo — p a ra isso necessitais de clareza, precisais de um escalpelo in telectual, p a ra “ ab rird es” tu d o o que n ão com preendeis com pletam ente. P o r conseguinte, o necessário n ão é te r u m a a u to rid a d e — a a u to rid ad e d a p ró p ria m em ória, ou a a u to rid ad e d e vossa ex p eriên ­ cia, que foi co n d icio n ad a através de séculos e q u e criou o “ eu” , o “ ego” . E n q u a n to existir esse cen tro — e esse cen tro c ria a divisão en tre si p ró p rio e o p en sam en to — tem de h a v e r m edo. A questão, pois, é de com o ultrapassarm os, com o nos livrarm os desse centro. N ão o tradu zais com o “ego”, e n ão junteis idéias de to d a espécie a respeito d ele; atende-vos ao fato de que existe u m cen tro de o n d e julgais, avaliais, censurais. Esse cen tro de experiências acu m u lad as cria u m a divisão en tre si p ró p rio e o pensam ento. E q u a n d o p ro ­ cu ram os su p erar essa divisão e não o conseguim os, gera-se o m edo. Se p uderd es ju n ta r as du as coisas, n ão h a v e rá m ed o ; m as n ão podeis ju n tá-las, p o rq u e só existe u m fa to que é o pensam ento , e n ã o o pensador. Ao dizerdes “o p en sad o r” — isto n ao correspond e a n e n h u m a realid ad e. O “ e u ” é u m feixe de lem bran ças, n a d a p e rm a n e n te ; n ão é m ais p e rm a n en te do que o pensam ento. M as a m en te, o p en sa­ m ento, deseja a seg u ran ça; o pensam ento deseja p e rm a n ên c ia ; p o r conseguinte, o pensam ento se estabelece com o “c e n tro ” , e esse c e n tro fala de “ E u S u p erio r P e rm a n e n te ” , “ E u C ósm ico” , “D eus” , e tc .; m as, tu d o é a in d a processo de pensam ento. Assim, a m enos q ue tenhais co m preen did o in te ira m e n te o m ecanism o d o pensar, o m ed o existirá sem pre. C om o sabeis, h á a tu a lm e n te certos p rep arad o s q u í- 213 m icos, drogas, q u e podem livrar-vos de vosso m ed o ; podeis to m a r u m com prim ido e tornar-v os com pletam ente tra n q u ilo , sereno, p lá ­ cido. A ansiedade, o sentim ento de culp a, a inveja, e todas as coisas com q ue o h o m em vem b a ta lh a n d o h á séculos podem ser afastadas com u m com prim id o. M as, vede que, tom ando u m a pílu la, n ão ficais livres de vossa m en te m edíocre, estreita, lim itad a, estulta. E la con­ tin u a existente; vós apenas a narcotizastes, suspendestes o seu fun * cio nam ento. O que nos interessa não é oferecer n em to m ar pílulas, m as elim in ar a m ed iocridade d a m ente, q u er dizer, a m edíocriadade do p e n sam en to ; o pensam ento é m edíocre, p o rq u e o pensam ento n u n c a é livre, p o rq u e pen sam en to é reação do que antes /oi, em relação com o q ue virá a ser, A questão, pois, é esta: é possível, com a com preensão do m edo, te rm in a r o pen sam en to — isto é, não d eix ar o pensam ento p ro jetar-se no fu tu ro , e fazer que a m ente v e ja o fato que surge a c ad a m in uto, sem n e n h u m a “ p ro jeção ” ? C o m preendeis? O fato é: tem em os a m orte. N ão estam os falan d o acerca d a m o rte ; isso fic a rá p a r a o u tra ocasião; estam os agora falan d o sobre o tem or. O ra , o pen sam en to se p ro je ta no fu tu ro . E le n ão deseja m o rre r; n ão sabe o q u e ele p ró p rio v irá a ser; sabe o q ue é no p resente, com to d a a agitação, dor, ansiedade, sofrim ento, an g ú stia em q ue viv e; p o r isso, p ro jeta-se no fu tu ro e sente m edo. P o rq u e está con­ fuso, in certo , sem clareza, ele “ p ro je ta ” u m a idéia de p erm an ên cia, e, p o r conseguinte, tem e n ão a lcan çar essa perm an ên cia. T e m m ed o à opin ião pú blica, p o rq u e deseja ser respeitável; p o rq u e a resp eitab i­ lid ad e é u m a coisa m u ito v a n ta jo sa; a sociedade a ap ro v a, conside­ ra -a “ n o b re” . P o r isso, ele atem oriza-se com que a sociedade possa dizer, e, assim, busca proteger-se. T em m edo de todos os in cid entes conscientes e inconscientes. M as tudo é a in d a processo de pensar. Assim, pois, devem os e n fre n ta r c a d a fato ao surgir, sem p e n sam en to ; observar sim plesm ente c ad a fato que surge, com o n u m clarão. A gora, senhores, vou explicar isso um pouco m ais, pois vejo q ue n ão sereis capazes de seguir com rap id ez. Existe o fato de q ue ten h o m edo de m in h a m ulher. O pensam ento criou esse fato, m in has ações o criaram , e sinto m edo. Esto u to m ando isso p a ra exem plo; n a v e rd a d e n ão ten h o m edo n en h u m , pois n ão sou casado. Vós podeis p e n sar n o u tra coisa que tem eis. E u tem o m in h a m ulh er. Fiz algo de que m e envergon ho ou q ue n ão desejo que ela saiba. O u , ela gosta de m e c o n tra ria r, e eu n ao quero tal coisa; p o rta n to , acho m elhor aco stu m ar-m e com ela. E acostum ei-m e — q u e r dizer, m in h a m en te aceito u o fato , e essa aceitação se to rn o u u m h á b ito ; n ao d ou m ais 214 a te n ç ã o ao que ela diz. M in h a m ente, pois, form ou u m hábito. Essa aceitação (isso é, o ouvir o que ela diz sem lhe lig ar im p o rtân cia) corrom peu-m e a m en te ; to rn o u -a em b o tad a p a ra o fa to ; isso se to rn o u u m h ábito, e eu não ouso quebrá-lo , p o rq u e o q u e b ra r o h á b ito supõe m u d an ça, e eu não desejo m u d ar. Assim sendo, ten h o m edo. E esse é o fato. M as, com o é possível co m p reen d er o fato do tem or sem in te r­ ferência do p ensam ento ? Pois o p en sam èn to o u deseja “ p ro je ta r” o fato, ou aceitá-lo, m u dá-lo, m odificá-lo, con fo rm e sua conveniência. E ntendeis? G om o e n fre n ta r o fato d e q ue ten h o m edo, sem aquele fu n d o de tem or, de p en sam en to ? P o rq u e o pensam ento q u e re rá tr a ­ duzi-lo, in terp retá-lo , m oldá-lo, negá-lo, livrar-se dele, superá-lo . O pensam ento não o co m preenderá, p o rq u e o p en sam en to resu lta d a m em ó ria ; só é capaz de “re a g ir” ao que já conhece, sendo, p o rta n to , in cap az de e n fre n ta r o m edo. O m edo sem pre “ vem e v a i” , n ã o é con stante. E m b o ra possa existir p e rm a n en te m e n te n o inconsciente, o m edo n ã o se m an ifesta c o n tin u am en te, p o rém com o q u e e m re ­ lâm pagos. Gomo e n fre n ta r esses “relâm p ag o s” de m edo, sem p e n ­ sam ento ? O s qu e tem em p e rm a n en te m e n te se to rn a m n eu ró tico s; têm o u ­ tros problem as. M as os que são m ais ou m enos racio nais não têm n e n h u m m edo no in co nsciente; en fre n ta m o m edo, ocasionalm ente ou fre q u en te m en te, n a p resença de suas esposas. Assim, ao en fre n ­ tard es o m edo, deveis enfrentá-lo sem pensam ento, en fren tá -lo com ­ p le ta m e n te; e isso significa te r com preendido todo o processo do pensar, in telectu alm en te, v erb alm en te, e com com paixão, a q u a l fa ­ cu lta a exatid ão que possibilita o co n tato im ediato com o fato. E n ­ fre n ta r o fato to ta lm en te significa n ão apenas enfrentá-lo in te le c tu al­ m en te, m as tam bém em ocio nalm ente. Esse processo de "a p re n d e r do fa to ” n ão é possível q u a n d o vos abeirais do fa to com o p en sa­ m en to que já con heceu, pois o pensam ento p ro m a n a do “ co nhecido” . Podeis e n fre n ta r o tem o r sem o conh ecido ? Se p uderd es fazê-lo, vereis que já n ão existe tem or, p o rq u a n to é a projeção do conhecido q ue o to rn a existente. A p ro je ção do pensam ento, que é resu ltad o ou “ re a ç ã o ” do “co nhecido” , cria o m edo. O p ensam ento , com o tem po, produz m edo. E q u an d o com preendeis todo o processo do p ensam ento e sois capaz de o lh ar o fato, de ver. o fato, de estar em c o n ta to com ele em ocio nalm ente, to talm en te, e n tã o , já n ã o vos abeirais dele com o pensam ento, p ro d u to do “ conhecido” ; p o r conseqüência, vos a b e i­ rais do fato de m an e ira nova. U m a m en te no v a não tem e, u m a m en te n o v a investiga. D essarte, com o disse no com eço desta p alestra, h á necessidade de h u m ild ad e. A h u m ild ad e n u n c a aceita n em rejeita. É arro g ân cia a c e ita r o u reje ita r. H u m ild a d e é aq u ela e x tra o rd in á ria cap acid ad e de ap re n d e r, de descobrir, de investigar. M as, se j á tendes u m a a cu m u lação de resultados de vossas investigações, en tão já n ã o estais a p re n d e n d o ; p o r conseguinte, deixais de ser hum ild e. M u ito im p o rta term os h u m ild ad e, p o rq u e é essa q u alid ad e essencial q u e tem afeição. j Sem h u m ild ad e, n ão h á am or, e o a m o r não é u m a coisa q u e tem raízes n a m en te, raízes no pensam ento. Assim, só desse ex trao rd in ário sentim ento de h u m ild ad e resu lta o sen tim ento de exatidão com pas­ siva, e a clareza d a m ente. É só então que o m edo deixa de existir. E q u a n d o o m edo deix a de existir, q u a n d o o m edo finda, n ão h á m ais sofrim ento. 2 de m arço de 1962. 216 INDOLÊNCIA E AUTOCOMPAIXÂO (B o m b a im — V) ] ^ J e s t a t a r d e p rete n d o fa la r sobre a indolência, o sofri­ m ento , a ação e, se h o u v er tem po , sobre a beleza. As idéias o u teorias n ã o tran sfo rm am de fa to a m en te e o coração. N ão h á persuasão, n ão h á castigo o u recom pen sa que possa im p e d ir a astúcia d a m en te e a cru eld ad e d o coração. N a o h á cre n ça o u dogm a cap az de dissuadir a m en te, fazê-la a b a n d o n a r o curso qu e está seguindo, p a ra a lc a n ç ar aq u ilo q u e deseja. E seria lam e n ­ táv el se c a d a u m de nós saísse destas reuniõ es levando u m a taça cheia de cinzas — de m eras idéias e p alavras, q u e n e n h u m a tra n s­ fo rm ação produzem . E a transfo rm ação só é possível q u an d o p e r­ cebem os ou vem os o fato real. M u ito tem os discutido, analisado, citad o , a rg u m e n ta d o p ró ou c o n tra ; e n tre ta n to , con tinuam os ex a ta m e n te com o éram os: em b o ­ tados, insuficientes, insensíveis, co m p letam en te absorvidos em nossos próprios compromissos e problem as. E n ão h á q u a n tid a d e d e re ­ flexão, de ansied ade ou de tem o r q ue possa dissolver nossos p ro b le ­ m as. V ou fa la r a respeito desses problem as, com o já falei a respeito do m edo, do poder, d a posição, e d a au to rid ad e. N ã o nos interessam id éias; p ro p a g a n d a n ao revela o fato , e vós tendes de co m p reen d er o fato. N em o tem plo, n em o livro, nem o guru po d e ensin ar-vos a o lh a r; m as, vós tendes de olhar-vos, tendes de ser vossa p ró p ria luz; e p a ra serdes vossa p ró p ria luz, não deveis seguir nin guém . N en h u m a a u to rid a d e h á q u a n d o sois vossa p ró p ria luz — n ão tendes guru, n ão sois um seguidor. Ao serdes vossa p ró p ria luz, sois u m a en tid ad e criad o ra. M as nao h á possibilidade de criação se existe q u alq u er fo rm a d e indolência. A in d o lên cia é a essência d a autocom paixão. Nós somos p re ­ guiçosos, indolentes, dados a p en sar de m an e ira negligente, sem 217 exatid ão . N ossa m en te está tão confusa com o nosso coração e ig u a l­ m en te em botada. E, p a ra co m p reen d er a indolência — n ão “com o” livrar-se d a indolência — cu m p re a p re n d e r o que ela é. Gom o assinalam os em nossa ú ltim a reu n ião , é m u ito m ais im ­ p o rta n te a p re n d e r do q ue sim plesm ente resolver u m problem a. Se p u d erd es a p re n d e r a respeito de u m prob lem a, tê-lo-eis resolvido. V am os a p re n d e r acerca d a indolência, dessa e x tra o rd in á ria in do lên■í cia de nossa m e n te ; n ã o vam os a c u m u lar con hecim entos sobre a indolência, conhecim entos que se to rn a m p u ram e n te verbais. O a p re n ­ d e r im plica investigação. M as, p a ra investigar, a m en te deve estar livre p a ra desco b rir; e n ão h á lib erdade, se vos lim itais a aquiescer, a c o n c o rd a r o u n egar, o u a defender-vos atrás de u m a b a rre ira de p alav ras e conclusões. Essas coisas são distrações q u e im pedem a clareza necessária ao ap ren d er. N o tai, pois, que vam os a p re n d e r ju n to s a respeito d a indolência. Isso concerne p rin cip alm en te aos q u e vivem neste clim a, q u e têm estado sujeitos a várias fo rm as d e tira n ia e a u to rid ad e , e q u e facilm ente deslizam p a ra a letarg ia m en ­ tal, a in do lência, facilm ente aceita m atitu des e valores. Assim, im ­ p e n d e p erceb er qu e, p a ra ap ren d er, necessita-se de lib erd ad e p a ra investigar. Nós vam os a p re n d e r acerca dessa q u alid ad e, dessa coisa c h a ­ m a d a “ in d o lên cia” . C om o disse, a essência d a in dolência é a au to com paixão. V ou estend er-m e em considerações sobre esta asserção, p o rq u a n to , se n ão com p reenderm os este p roblem a, esta quéstão d a auto com paixão, não com preenderem os o p ro b le m a seguinte, ou seja, o sofrim ento. Ê ju sto ser in dolente, é bom ser in dolente — no sentido de n ão estarm os incessantem ente ativos, com o form igas, ou sem pre a fazer a lg u m a coisa, com o u m m acaco. A m ente d a m aio ria d e nós está p e rp e tu am e n te o c u p a d a com alg um a coisa: palavras, problem as, idéias, resultados; sem pre a ta g a re la r en tre si, n u n ca in ativ a, n u n c a q u ie ta — sem pre sob tensão. E a m en te que n ão é in do lente, que n ão é preguiçosa, m as tem aq u ela placidez e sua essencial suavi­ dad e, p erceb e n u m clarão o que é verdadeiro . Essa in ativ id ad e, essa “in d o lên cia” , essa consciência de um lazer infinito, n ão deve ser co n fu n d id a com o conforto. A m ente que tem lazer é u m a m ente excepcional, p o rq u a n to n ão está envolvida n a red e d a ação, não está p eren em en te a ta g a re la r e n tre si o u a respeito de alg u m a coisa. H á , pois, u m a q u alid ad e de lazer, de quietude, u m “senso” de in diferença, q u e é necessário. M as esse estado de quietude, esse “ senso” de ilim itado vazio, em que pode o correr u m lam p ejo do re a l — só é possível q u a n d o se com preende n ao só a indolência 218 ^ do corpo, m as tam b ém a in d o lên cia com q u e aceitam os idéias, p e n ­ sam entos, asserções e conclusões, q u e se to rn a m as ro tinas que fic a ­ m os seguindo, ta l com o u m c a rro elétrico sobre trilhos. E n ão sa­ bemos, nem sequ er estam os cônscios dessas ro tin as. Isso é in d o lê n cia : n ão saberdes, n ão estardes côncio de que vosso p ensam ento , vosso sentim ento e vossas ativ id ades “ co rrem ” p e rp e tu am e n te pelas m esm as “ lin h as”, pelas m esm as rotin as. O m esm o que, aos vin te e cinco ou trin ta anos, pensáveis a respeito de u m a coisa, pensais a in d a hoje. N ão h á alteração, n ão h á ro m p im en to : n a d a novo, n a d a fresco. E , q u a n to à p reg u iça d o corpo, à in dolência q ue a m aio ria das pessoas tem — essa, todos se sentem capazes de ativ a r, pelo disciplin am en to co rp o ral, pelo fo rçar, im pelir, com pelir o corpo. M as, to d a fo rm a de com pulsão gera conflito ; e a m en te em conflito com o corpo n ão d á energ ia ao corpo, ao organism o: só cria conflito ; e esse conflito n ão é a “ q u a lid a d e ” g e rad o ra d a energ ia necessária p a ra a tiv a r o corpo. Nessas condições, a disciplina, o con tro le, o fo rç a r o organism o a subm eter-se, a erguer-se d o leito, a ex e cu ta r várias coisas p a r a “ p o sitiv ar” sua ativ id ad e —- tu d o isso só c ria resistência. E on d e h á resistência, aí h á co n trad ição ; e é essa co n trad iç ão que, in co m p reen ­ dida, g e ra a indolência. Q u e m estu dou e observou o p ró p rio co rp o deve saber q u a n d o ele necessita e q u a n d o n ão necessita d e repouso. D eve saber q ue n ão h á necessidade de com pelir, forçar, im p elir o corpo a fazer d e te rm in a d a coisa; o corpo a fará , n a tu ra l, espontânea, facilm ente. M as é preciso c o m p reen d er todo o processo d a in dolência m ental. Se u m hom em se excede n o com er, e é in d u lg en te consigo m esmo a vários respeitos, isso d e n o ta u m estado de e x tra o rd in á ria lassidão, p o rq u e sua m en te está ad o rm ecid a; ele se deixa, sim ples­ m en te, lev ar p o r tal o u q u a l ap etite, e isso se to rn a h áb ito , e esse h áb ito n ão é m ais do que a “c o n tin u id a d e ” , sem n e n h u m a reflexão, d o q u e fo i . Assim, im p o rta c o m p reen d er o processo d a m en te que se to rn o u indolente. H á in d o lên cia q u a n d o h á aju stam en to , estabilização n u m “c a n tin h o ” qu e talh astes p a r a vós m esm o e vossa fam ília e on d e vos sentis seguro, em ocional e m en ta lm e n te — cônscio de terdes a lc a n ­ çado u m certo resu lta d o e felicitando-vos p o r esse êxito. Isso in d ic a q u e alcançastes u m p o n to em que vos sentis bem seguro, livre de to d a p e rtu rb ação . Ê en tão q u e com eça a indolência. E tal in do lência é a essência d a auto com paixão. Sabeis o q ue en te n d o p o r “ au to co m p aix ão ” ? A uto com paix ão significa o ín tim o sentim ento de n ã o p o d er c o n ta r com n in g u ém ; 219 te r in tim a m en te o sentim ento de estar ab an d o n ad o , desprezado; de n ã o ser am ad o , em b o ra a m e ; de te r fracassado c ò m p le ta m e n te ; d e q ue é necessário ter alg u m êxito ; de ser isto ou de não ser aquilo — a perene “asserção” do p ró p rio “e u ” ! E m vossas lágrim as, em vossas alegrias, em vossa frustração, em vossas agonias, está o fio, o fio inquebrável, d a autocom paixão, atravessando to d a a vossa v id à ; e isso é indolência. Foi aí que começastes a subm eter-vos, a . estabilizar-vos, a “ e n g o rd a r” m en talm ente. E todos buscam , nessa indolência, a segurança. E , u m a vez firm ad o esse sentim ento de se­ g u ran ç a psicológica, ele se to rn a o sentim ento “ de on d e” agis, “ de o n d e ” existis, “ de o n d e ” se n u tre a vossa vida. G om o disse, n ão vos lim iteis a escutar palavras, m as tra ta i de observar vossa p ró p ria m ente, vosso p róprio estado de consciência; p ro c u ra i v e r em que g ra u de exatid ão as palavras rep resen tam vosso p ró p rio estado; observai vossa p ró p ria m en te em fu ncionam ento . E n tã o o q u e estou dizendo te rá significação; m as, se vos estais a m p a ­ ra n d o u n icam en te nas palavras, neste caso estais vazios; e vossas taças jam ais se encherão, ain d a que fiqueis a buscar p o r to d a a etern id ad e. Assim, escutar é, com efeito, a observação de vossa p ró ­ p ria m e n te ; ver é, com efeito, observar o m o vim ento de vosso p ró p rio p ensam ento . P o rq u e é o p ensam ento , a p a la v ra, que vos im pede o escutar , o ver, E se desejais com preen der, çm sua inteireza, o p ro ­ b lem a do sofrim ento, o p ro b lem a d a ação, deveis comprefender a auto com paixão. O sofrim ento é, ao m esm o tem po , a ação p ró p ria e a ação rec íp ro c a d a au to co m p aix ão e d a m em ória. V ós sofreis p o r terdes p erd id o alg u ém ; sofreis p o rq u e alg uém n ão vos a m a ; sofreis p o rq u e n ão conseguis u m em prego m elh o r; sofreis p o rq u e alg uém é m ais belo, m ais intelig ente, m ais ativo , m ais sensível do que vós. Sois ciu m ento , invejoso, ávido. T u d o isso são sinais de conflito e de sofrim ento. O sofrim ento n ão é u m a “ crise tre m e n d a ” cau sad a p o r algo inco ntrolável ou incom preensível. Vós podeis tra n sfo rm ar vossa m en te de m a n e ira com p leta, podeis ficar de todo livre do sofrim ento e n u n c a m ais serdes p o r ele atingido. Se nesta ta rd e ficard es escutando —• escutando realm ente, sem esforço algum , sem o desejo de vos liv rard es do sofrim ento — se p u d erd es escu tar com o que n u m “ e n can tam en to ” , com n a tu ra lid a d e, com prazer, assim com o contem plais o en ta rd ecer, o esvoaçar de u m a ave ou de u m a fo lh a — com o se o q ue escutais n ão se relacionasse convosco — vereis que a carg a do sofrim ento será re tira d a de vossos om bros, n ão „m o m en ta n eam en te, não p o r um d ia : estareis livre do sofrim ento. 220 Se p u d erd es co m p reen d er o sofrim ento — o fa to , e n ão as idéias q ue form ais e n u tris a respeito do sofrim ento — tereis descoberto o m eio de fazê-lo cessar. Existe a id éia do sofrim ento e existe o fato real, o so frim en to ; são duas coisas diferentes. E m geral, tem os a id éia do sofrim ento. Se m eu filho m orre, se perco m in h a m u lh er, se alguém não m e am a, se n ão são tão inteligente com o vós, a id éia im p o rta m ais do qu e o fato . N ã o sabem os e n fre n ta r o fato de q u e h á sofri­ m en to (não a id éia de so frim e n to ). P o r favor, p ro c u ra i co m p reen d er a diferen ça e n tre as duas coises. Po rque olham os o sofrim ento através d a idéia e, form ando idéias a seu respeito, n ão o olham os v erd ad eiram en te. O n u trir idéias sobre o p e n a r é auto com paixão, é reação d a m em ó ria e, p o r conseguinte, não é o sofrim ento. A idéia de alim ento n ão é o alim ento. M as a m aio ria de nós vive d e idéias, h erd ad as ou ad q u irid as; essa é nossa n u trição m en tal, com q ue nos satisfazem os. P or isso, nossa m en te se to rn a em botada, insensível, desatenta, vazia. P erceber o fato do sofrim ento é “ estar fo ra ” d a auto com paixão, livre dela. A utocom paix ão é u m a idéia q ue tem os acerca de nós mesmos. “ P o rq u e isso acontece a m im , e não a vós; p o rq u e n ão sou tão poderoso, tão fam oso, tão im p o rta n te, tão p o p u la r com o sois; p o rq u e m e foi a rre b a ta d o m e u filho, m in h a m u lh e r; p o rq u e fu i p o r ela a b a n d o n a d o ; p o rq u e n a o sou am ad o ? — T u d o isso são idéias, nascidas d a auto co m p aix ão , reações d a m em ória. E com essa a u to ­ com paixão, com essa reação d a m em ória, olham os aq u ilo que c o n ­ sideram os “ sofrim ento ” . O que olham os, p o r conseguinte, nao é o sofrim ento, p o rém , sim, o m ovim ento d a auto com paixão. Isso p o d e rá ferir-vos os ouvidos, m as é o fato — o fa to psicológico. Se disserdes a u m a pessoa qu e p e rd e u o p ai, a m u lh er, o irm ão, q uem q u e r que s e ja : “ O lh a i o fato , n ão vos deixeis d o m in a r p o r vossa a u to c o m p ai­ xão” — essa pessoa vos co n sid erará m u ito cruel, sem coração, sem com paixão, sem am or. O fato é que n in g u ém está livre do sofrim ento. Se observardes a vós m esm o em sofrim ento, vereis que, só co m p reendendo-lh e o processo in tegral, podeis deix ar de sofrer. Ao observardes vosso p ró ­ p rio sofrim ento, vereis quão estreitam en te ele está relacionado com a au to com paixão e com to das as lem branças de coisas passadas. São as coisas que p assaram e a lem b ran ça que delas g uard am os, que ge­ ram a autocom paixão e o sentim ento de solidão. E , assim , o p e n a r co n tin u a, d ia após dia, mês após m ês, até m orrerd es. L evantastes em torn o de vós m esm o u m a m u ra lh a de auto com paixão, u m a m u ra lh a de lem bran ças fru stradas. Estais vivendo n u m tú m u lo e vossa vid a 221 p e rd e u to d a a significação. D aí, investigais o sofrim ento, d ai ledes livros, daí pro cu rais descobrir com o dele escapar. Po r isso, tendes vossos deuses, vossos livros, vossos cinem as, vos­ sas diversões. T o d as essas coisas estão no m esm o nível. Se recorreis a u m a b b id a ou se preferis ir aò em plo — é a m esm a coisa. T u d o são vias de fuga, nascidas de u m a m en te que é a p ró p ria essência d a auto co m p aix ão . N ã o podeis livrar-vos d a au to co m p aix ão ; não digais: £ “ G om o m e liv rarei d a a u to co m p aix ão ?” Isso é o u tra fo rm a de p reo ­ c u p ação com vós m esm o e, p o rta n to , autocom paixão. O m ais q u e podeis fazer é p ro c u ra r conhecer o que vos im pede de o lh ar o fato — o so frim en to ; o fato — a angú stia, a confusão, a desdita q ue vos envolvem . C om o olhais o fato do sofrim ento? Q u a n d o o olhais sem autocom com paix ão, sem a recordação das coisas que passaram , h á en tão so­ frim en to ? Se não houvesse a lem b ran ça de m eu filho, de com o era belo, feliz, o que p o d eria to m a r-se ; se n ão m e estou im olando à lem b ran ça d ele; se, p o r m eio dele, n ão “im o rtalizar” a m im p ró p rio ; se nele n ão depositei tu d o — m in h a p ró p ria pessoa, m in has idéias, m in h as esperanças, m eus tem ores, m in has frustrações — tu d o lem ­ b ran ças de coisas p retéritas — e se a auto com paixão e a lem b ran ça das coisas que pa ssaram n ão existem , h á en tão sofrim ento? N ão posso, en tão , o lh ar o fato com u m a m en te de todo d iferen te? Essa m en te n ão é in d o len te; e stá livre das coisas que p ro d u zem a indolência, a p reg u iça, a in é rc ia Isto é, a auto com paixão e a le m b ra n ç a são as causas q u e to rn a m a m en te e m b o ta d a ; são elas que im pedem o com pleto e in sta n tâ n e o p ercebim ento do fato. Assim, quem deseja c o m p reen d er o sofrim ento deve co m p reen d er todo esse processo d e ação egocêntrica e “ expansível” , e o m ecanism o d o h ábito, d a m e­ m ória. V ós sois o que sois — u m cam po de b a ta lh a de vossas lem ­ b ranças, e n a d a m ais. R etirem -se as lem bran ças d a in fân cia, d a ju v en ­ tu d e, de tod as as coisas q u e tendes ad q u irid o , de q u an tas ten d es ex p erim en tad o e sofrido, das coisas que pensais que sois — e q u e re sta rá de vós? É o sentim ento de solidão, de vazio, de insuficiência, q u e cau sa a a u to co m p aix ão ; e esse p en sam en to g era in finito p e n a r e agitação . Estais-m e escu tando a fim de vos com p reenderd es. E , co m p reen d en d o o qu e estou dizendo, pod ereis elim in ar in sta n ta n e a ­ m en te esse processo d a autocom paixão. N ão necessitais do tem po. O tem p o não ê a v ia d a tran sfo r­ m aç ã o ; o tem po n u n c a pro d u z tran sfo rm ação ; o tem po traz a aceita ­ ção, o h á b ito : vós vos acostum ais, vos enfastiais, vos to rnais em b o ta­ do, estulto. M as, p a ra poderd es livrar-vos d a “ c o n tin u id a d e ” d a 222 auíocom paix ão, g erad o ra de sofrim ento, deveis vê-la in co n tin en ti. E podeis v e d a n u m instante. Podeis acrescen tar-lh e m ais p a rtic u la ­ rid ad es; m as, p a rticu la rid a d es não im p o rtam , razões n a d a significam , e não valem as conclusões. A verd ad e é q ue sois in capaz de en fren ­ ta r o fato — o fato de terd es p e rd id o vosso filho, de n ão serdes tão intelig ente, tão cheio de v italid ad e com o eu ; q u an d o enfrentais esse fato sem autocom paixão, estais e n tã o livre de m im , já n ão vos achais n u m “ estad o de co m p a raç ã o ” . A m en te, pois, se p re o c u p a consigo p ró p ria , com o o faz a m aio ­ ria das pessoas. Deveis p reocupar-v os com vós mesmos, n u m certo nível — pois precisais g a n h a r a v id a. M as a preo cu p ação pessoal n u m nível m ais pro fu n d o , n o p ro fu n d o nível psicológico, p ro v o ca a in ércia, qu e é indo lência. Psicologicam ente, in terio rm en te, se vos observardes e ao m u n d o q u e vos c ircu n d a, podeis v e r que vossa ação é sim plesm ente u m a reação, q u e todas as vossas ativ idades são reações, “ respostas” correspo nd entes a vossos gostos o u aversões. A com panhai-m e p o r m ais alguns instantes, pois desejo m o strar q u e çxiste u m a ativ id ad e n ã o resu ltan te de idéia. V ereis q u e h á u m a ação p rocedente d a to ta l negação d a reação, ação que, p o r conse­ g uinte, é criadora. P a ra co m p reen d er isso, p a r a p e n e tra r esta questão — que, em v erd ad e, n ão é com plexa, p o rém re q u e r u m estado m e n ­ ta l fo ra do com um — im p en d e com preen derdes as vossas reações, das quais se orig in a a vossa ação d iária. N ós reagim os, nos revoltam os, defendem os, resistimos, adq uirim os, subm etem o-nos, e tu d o isso são reações. Digo-vos alg um a coisa q ue vos desag rad a e, p o rta n to , tra ta is de fazer algo em reação a isso de q u e não gostais e que n ã o quereis aceitar. Nesse nível estam os a tu a n d o a todas as horas. Fostes educado, condicio nado p a ra seguir u m certo p a d rã o de v id a ; esse p a d rã o fica sendo vossa p ró p ria v id a, vossa n o rm a de vid a, in te rio r e exteriorm ente. E, q u an d o alg uém o con testa, vos revoltais, reagis de acord o com vosso condicio nam ento, consoante os vossos h á b ito s; dessa re a ­ ção origina-se o u tra ação. V ivem os, assim, a m over-nos de reação p a ra reação e, p o r conseguinte, n u n c a estam os livres. E sta é u m a das origens do sofrim ento. P o r favor, p ro cu ra i c o m p reen d er isso. N ã o pode d eix ar de h a v e r reação. A o verdes u m a coisa feia, vossa m ente tem de re a g ir; ao verdes algo belo, ela tem de re a g ir; ao verdes u m a serp en te venenosa, ela tem de re a g ir; se assim n ã o fosse, estaríeis m orto , insensibilizado, desvitalizado, em botado. M as essa reação difere d a reação que a sociedade e vós mesmos desen­ volvestes, m ed ia n te vossas experiências e que se to rn o u vosso cond i- 223 cio nam en to . Se, ao verdes u m a árvore, o pôr-do-sol, n ão reagis, estais entorp ecido . M as, q u a n d o “ reagis” em confo rm id ade com vossa autocom paix ão, com vossas conclusões, vossos hábitos, vossos fracassos, êxitos, esperanças, desesperos — ta l reação lev a à ação in co m p leta e, conseqüentem ente, à c o n tin u ação do con flito e do sofrim ento. ^ Espero estejais pe rcebendo a d iferen ça e n tre as duas qualid ades de reação. A reação q ue vê e não trad u z o q ue vê segundo seu p ró p rio condicionam ento — essa é u m a q u alid ad e de re a ç ã o ; é a ação real. E a o u tra q u a lid a d e de reação é aq u ela que vê e diz: “ Isto é belo, q u ero possuí-lo” . Essa reação procede do cond icio nam ento, d a m em ória, d a auto com paixão, do desejo, etc. A reação nascida d a id éia é u m a coisa, e o u tra coisa é a reação sem idéia. A reação nas­ c id a d a “ id eação ” , de conclusões, de hábitos, de tradições, conduz ao cativ eiro , à a m arg u ra. E a reação sem id éia, consistente p u ram e n te em observar, essa con du z à lib erd ad e — ou, m elhor, ela é lib erd ad e — n ão “ con du z” ; a lib erd ad e n ão vos conduz a p a rte algum a. Só a m en te livre se a c h a n o estado de negação — negação das reações positivas de u m a m en te cond icio nada. E só a m en te m a n tid a n a negação, n o estado de negação, pode p erceber, n u m clarão, o q u e é v erd adeiro. V ede, p o r favor, que n ão estou dizendo n a d a de com plexo; isto n ã o é com plexo, é m uito simples. M as, ju stam en te p o r causa de sua sim plicidade, perdeis seu significado. Po rque vossa m en te é tão com plicada, quereis a c h a r m uitas coisas no que estou dizendo — que, afin al de contas, é b em simples. Vossas reações são p ro d u to de vosso co ndicionam ento de h induísta, de hom em rico, de ho m em po bre, de m ulh er, de hom em — do que q u e r que sejais — com todas as vossas experiências, vossas esperanças, vossos deuses, vossas ânsias, vossos apegos; o co ndicio nam ento existe, e vossas re a ­ ções p a rte m dele. E q u a n to m ais reagis, ta n to m ais esias reações se a p ro fu n d a m em vós m esm o. C ontin uais, assim, no cativ eiro de vos­ sas pró p rias reações, de vossas p ró p rias lim itações. Isto é b asta n te simples. N ão re q u e r m inuciosa investigação psicológica. M as, o que v erd a d e ira m e n te exige energia, atenção, é a negação to ta l das reações positivas d a m en te condicio nada. Ao negardes, observais sem “ idea-* çao ” sem n e n h u m p e n sam en to ; estais olh ando . O ra , senhores, q u an d o desejais com preender vossos desditosos filhos — desditosos, p o rq u e não sabeis educá-los — tratais de m a n ­ dá-los p a ra e s c o la ... e está tudo acab ad o : as crianças se to rn a m m áquin as. N ão estou fazendo u m a preleção sobre educação. Se tendes u m filho, deveis observá-lo, prestar-lh e atenção. Se desejais conhecê-lo, 224 n ão digais que ele deve ser isto ou aquilo, não o obrigueis a fazer isto o u aquilo; observai, aprendei, p o rq u e é vosso coração que deve “ resp o n d er” , e não vossa p e q u e n a e feia m e n ta lid a d e possessiva. Assim, deveis a p re n d e r a conhecer o vosso filho. E n ão podeis a p re n d e r se “respond eis”, se “reagis” com o p ai, com vossa a u to ri­ dade, vosso exagerado senso de im p o rtâ n c ia — com o se de fato tivés­ seis criad o u m m u n d o m aravilh oso! Assim, se desejais co m p reen d er u m a criança, deveis o lh á-la sem pen sam en to n en h u m , d escobrir o q u e ela sente, o qu e pensa. O ra , se a olhais dessa m an eira, vossa m en te estará nesse m o m en to vazia, p o rq u e estareis interessado n a criança. N ão a estareis “vestindo” com vossas idéias, vossas esperanças e tem ores; desejais v e r o que ela é. Pois b em ; se sou capaz de o lh ar o sofrim ento — o in cid en te , a m o rte de m eu filho; se sou capaz de o lh a r isso, o lh a r o ja to , nesse caso, o lho sem n e n h u m a reação ; m in h a au to co m p aix ão e m in h as lem branças fo ra m postas de p a rte . M as, em geral, nos com prazem os n a auto com paixão. N ã o tem os o u tra coisa de que nos n u trirm o s e, p o r conseguinte, a au to co m p aix ão se to rn o u nossa n u triç ão . Q u a n to m ais velhos ficam os, m ais im p o rta n tes se to rn a m as lem bran ças, as coisas pretéritas. P e ste m odo, a ação, nascida de reação gera sofrim ento. Nossos pensam entos resultam , quase todos, do passado, d o tem po. A m en te n ão alicerçada no passado, que bem co m p reen d eu esse “processo” de reação, po de a tu a r, a c ad a m in uto, de m an e ira to tal, com pleta. T e n d e a b o n d ad e de escutar, pois o que a g o ra v ou dizer será talvez u m pouco difícil. E scutai-o, pois, com to d a a atenção, com o se estivésseis distanciados de m im . V o u fa la r sobre u m a coisa q u e ireis en co n trar, se tiverdes feito com ag rad o , com p razer, tu d o o q ue ind iquei. D epois de terd es exam in ado todo o processo d a aç ão n ascida d a reação, e negado essa ação, com enlevo, com alegria — e n ão com pesar — vereis que, n a tu ra l e facilm ente, alcançareis u m estado m en tal que é a v era essência d a beleza. Im p o rta co m p reen d er a beleza. A m en te que não é bela, q u e n ão se e n c an ta com u m a árv ore, u m a flor, u m belo rosto, u m so rri­ so; q ue não se detém à b e ira do m a r a co n tem p lar as vagas in ­ q u ietas; que n ã o tem n e n h u m senso de beleza — essa m en te n u n ca, descobrirá o am or, a v erd ade. Essa beleza vos foi n e g a d a p o rq u e ela exige pa ix ão, exige to d a a vossa energia, re q u e r ate n ção co m ­ p leta, n ão d iv id id a; e essa aten ção com pleta, não divid ida, é n e g a ­ ção, u m estado de negação. 225 Só do n a d a p o d e sair a criação ; desse vazio surge aq u ela criação q ue é a to talização d a energia. M as vós n ão podeis alcançá-la. Deveis d eix ar bem longe a vós m esm o, perder-vos p o r longe, esquecer-vos; p a ra alcançá-la, deveis estar im aculado, sem lem brança, sem p e n ­ sam ento , sem m em ória. P orque, ai3 n a d a podeis ex p erim en tar, não há e x p e rim e n tar; se buscais experiência, estais a in d a preso ao “ co n h e­ cid o ” , às coisas d e ontem . ’t E sto u falan d o a respeito d a m en te não in dolente, que n ão tem auto com paixão, q ue n ão tem m em ória, salvo a m em ó ria m ecânica, necessária ao viv er — o lu g ar onde se reside, o em prego que se exerce, os atos norm ais d a vida. Essa m en te n ã o tem “ m em ória psi­ cológica” e, p o r conseguinte, n a d a precisa ex p e rim e n tar; p o r conse­ g u in te , n ão h á “ desafio” . Só essa m en te é, e la p r ó p r i a , ^ realid ade, a criação, a beleza. A beleza n ão está no rosto, p o r m ais delicados q u e sejam os seus traços. N ão é p ro d u to d a ativ id a d e h u m a n a . N em resu lta do p ensam ento , do sen tim ento . Beleza é aq u ela co m u n h ão com todas as coisas, sem reação alg u m a, co m u n h ão com o feio e com o c h a ­ m ad o “belo ” . Essa com unhão sai d o n a d a ; nesse estado h á aq u e la beleza q ue é A m or. 4 de m arço de 1962 . 226 QUANDO SURGE O AMOR (B o m b a im -— V I ) Í ~ J o je v o u a p r e c i a r a questão d a m orte. A preciá-la-ei em conexão com a velhice e a m ad u re za m en tal, o tem p o e a ne­ gação, q ue é am or. M as, antes de com eçar, devemos p erceber cla ­ ram e n te e co m p reen d er a fu n d o , q u e o m edo, em q u a lq u e r de suas form as, p erv erte e cria a ilusão, e que o sofrim ento em b o ta a m ente. A m en te em botada, a que se a c h a e n re d a d a em q u a lq u e r espécie de ilusão, n e n h u m a possibilidade tem d e e n te n d e r a e x tra o rd in á ria q u es­ tão d a m orte. Nós buscam os abrigo n a ilusão, n a fan ta sia , no m ito , em ficções de todo o gênero. E a m en te que de tal m a n e ira se deixou e m b o ta r n ão po de d e m odo n e n h u m co m p reen d er essa coisa q ue se c h a m a “a m o rte ” ; tam p o u co po d e a lcan çá-la a m en te em b o ­ ta d a p elo sofrim ento — conform e explicam os em p a le stra a n te rio r. A questão do m edo e d o sofrim ento n ão a d m ite filosofar, n em fugir. E la nos a c o m p a n h a com o nossa som bra, e tem os de co m p reen ­ dê-la d ire ta e im ed ia tam en te . N ã o podem os “ tra n sp o rtá -la ” de d ia p a ra d ia, p o r m ais p ro fu n d o q u e nos p a re ç a ser o p e n a r o u o tem o r; q u e r consciente, q u e r inconsciente, o m edo tem de ser p ro n ta m e n te com preendido. A com preensão é im e d ia ta ; n ão vem no d e c o rre r do tem po . N ã o d e riv a d o co n tín u o investigar, buscar, in d ag a r, exigir. O u vedes tu d o , com pletam ente, “n u m clarão ” , o u n a d a vedes. J á tra te i disto suficientem ente n as d u as palestras precedentes, em q ue estivem os co nsid erando o m ed o e o sofrim ento. N e sta ta rd e desejo ex am in ar essa coisa c h a m a d a “m o rte ” — tão fam iliar a todos nós. T e m o -la observado, tem o -la visto, m as n u n c a a expe rim çntam os; n u n c a tivem os o p o rtu n id a d e de tra n sp o r os u m ­ b rais d a m orte. E la deve ser u m estado ex trao rd in ário . D esejo ex a­ m in á-la , não sen tím en talm en te ou ro m a n tic a m e n te, n ão com um 227 c o n ju n to de crenças organizadas, p o rém em sua realid ad e, com o u m fa to : to m a r conh ecim ento d ela assim com o tom o conhecim ento do g rasn a r d aq u ele corvo q ue está pousado n a m an g u e ira — d a m esm a m a n e ira con creta. M as, p a ra perceberd es u m a coisa concretam ente, deveis ou v ir com a m esm a a ten ção com que ouvis aq u ela av e; não fazeis esforço algum , m as estais ouvindo. N ã o dizeis “ Q u e corvo im p o rtu n o ! Preciso escu tar o q u e alg uém está dizend o” ; m as ouvis i a ave e tam b ém o q u e se está dizendo. M as, q u a n d o quereis ouvir apenas o o rad o r e resistir à ave e ao b aru lh o que faz, n ão ficais ouvind o nem a ave n em o orador. E é de su p o r que seja isso o q u e acontece com a m a io ria de vós q u a n d o desejais escu tar alg uém falar sobre u m com plexo e p ro fu n d o problem a. E m m aioria, n u n c a aplicam os nossa m en te de m a n e ira to ta l, com pleta. N u n c a “ viajastes” com u m p ensam ento a té o seu final. Ja m a is vos entretiv estes com u m a idéia, p a ra verdes todo o seu con­ teú d o e u ltrap assá-la. P o r isso, será m u ito difícil, p a ra vós, o q ue v ou dizer, se n ão prestard es atenção, isto é, se n ão escutardes sem esforço, com p razer, gracio sam ente, d espreocupadam ente. É coisa dificílim a p a ra a m aio ria de nós: escu tar. P o rq u e estam os sem pre trad u zin d o , sem escu tar v e rd a d e ira m e n te o q u e se diz. D esejo consid erar a m o rte com o u m fa to — n ã o vossa m orte, nem m in h a m orte, nem a m orte de alguém , alg uém de quem gostais ou de qu em n ão gostais: a m o rte çom o problem a. G om o sabeis, somos governados pelas im agens, pelos sím bolos; os símbolos têm p a ra nós desm edida im p o rtân cia, to rn aram -se m ais “ reais” do q ue a p ró p ria realid ade. Se com eço a fa la r sobre a m o rte, pensais logo em alguém q ue perdestes, e isso vos im pede de olhar o fato. V o u ap re c ia r esta questão de diferentes pontos de acesso — n ão sim plèsm en te o q ue é a m o rte e o q u e h á após a m o rte ; estas são p erg u n tas de todo in fantis. Q u a n d o se com preende que a m o rte im plica algo v e rd a d e ira m e n te ex trao rd in ário , n ao se faz a p e rg u n ta “ Q u e h á depois d a m o rte ? ” Assim, é necessário co n sid erar o q u e é a m adureza . U m a m en te am a d u rec id a n u n c a p e rg u n ta rá : “ q u e h á após a m o rte, h á u m a v id a fu tu ra , u m a c o n tin u id a d e ? ” T ratem o s, pois, de co m p reen d er o q u e é o p en sar am adurecido, o q u e é m ad u re za e o qu e é velhice. A m a io ria de nós sabe o q u e é a velhice, pois, q u e r nos agrade, q u e r n ão , todos envelhecem os. V elhice n ao significa m ad u reza. A m ad u re za m en ta l n e n h u m a relação tem com o saber. A velhice p o ­ d e rá c o n te r o saber, e n ão co n ter a m adureza. E p o d e rá c o n tin u a r cu ltiv an d o seus con hecim entos e tradições. A id ad e é u m processo 228 m ecânico do organism o que envelhece pelo uso constante. T o d o corp o q u e se gasta co nstantem ente, em lutas, agitações, sofrim entos, m edo — depressa envelhece, ta l q u al u m a m áq u in a . M as o organism o envelhecido n ão constitui a m ente am adurecida. Tem os, pois, de co m p reen d er a d iferença e n tre velhice e m ad u reza. E m geral, nascem os jovens; m as a geração q u e envelheceu n ã o ta r d a a to rn a r velhos os jovens. A geração p reced en te, envelhecida no saber, n a dissipação, n a discórdia, no sofrim ento, n o tem or, exerce sua in flu ên cia nos m oços e, depois, com o já é v elh a n a id ad e, desa­ pa rece. T a l é a sina de c a d a geração que fica to lh id a p e la e stru tu ra social d a geração an terio r. A sociedade n ã o cria u m a pessoa nova, u m a n o v a e n tid a d e: q u e r q u e ela seja respeitável e, p o r conseguinte, m o ld a-a, dá -lhe a fo rm a desejada, destruin do, assim, o frescor, a inocência d a m ocid ade. É isso o q u e estam os fazendo com todos os jovens, a q u i e no m u n d o in teiro . E esses jovens, ao alcan çarem a virilidade, já estão velhos; n u n c a am adurecerão. A m ad u reza re q u e r a destruição d a sociedade, isto é, d a e stru tu ra psicológica social. A m enos q ue sejais duros com vós m esm o, a m enos q ue estejais com pletam ente lib e rta d o d a sociedade, n u n c a a m a d u re ­ cereis. A e stru tu ra social — essa e stru tu ra psicológica de avidez, in veja, po der, posição, obediência — se d ela n ã o vos lib erta rd es de todo, psicologicam ente, n u n c a sereis u m en te am ad u recid o . E vós necessitais de u m a m en te m a d u ra . A m en te que em sua m ad u re za está só, a m en te que n ão está sendo m u tila d a , m ac u lad a , e q ue n e n h u m a c arg a lev a — só essa é a m en te m ad u ra. E deveis co m p reen d er isto: a m ad u reza não dep en d e do tem po. Se cla ram e n te perceberdes, sem n e n h u m a desfiguração, a e stru tu ra psicológica d a sociedade em q u e nascestes, em que estais send o criado, educad o, então, n o m esm o in sta n te dessa percepção, estareis livre dela. A m ad u re za vem in sta n ta n e a m e n te, e n ão no d eco rrer do tem po. N ã o podeis a m a d u rec e r com o o fru to n a árvore. O fru to necessita d e tem po , de som bra, luz, de a r p u ro , de c h u v a ; e, nesse “ processo” , ele am ad u rece, p rep ara-se p a r a cair. M as a m ad u re za n ã o “a m a ­ d u rec e ” : é in sta n tâ n e a ; ou estais m ad u ro o u não estais. Eis p o rq u e ta n to releva, psicologicam ente, p erceb er com o vossa m en te está to ­ lh id a n a e s tru tu ra psicológica d a sociedade em q u e fostes educado, d a sociedade q u e vos fez respeitável, q u e vos obrigou a aju star-v os, q u e vos im pôs o p a d rã o de suas atividades. A cho qu e é possível ver, to ta l e im ed iatam en te, a n a tu re z a v en e­ no sa d a sociedade, assim com o se vê u m a g a rra fa com a etiq u eta “ v eneno” . Q u a n d o a virdes assim, n ã o tocareis n ela, p o rq u e sabeis 229 ser perigosa. M as, vós n ão sabeis que a sociedade é u m perigo, que ela é, p a ra o h o m em am ad u recid o , u m veneno m o rtal. P o rq u e m ad u re za é aquele estado em q u e a m en te está só, n ã o in flu en ciad a, ao passo q u e a e s tru tu ra psicológica social n u n c a deix a u m h o m em p e rm an ecer só, pois está sem pre a m oldá-lo, consciente e incons­ cientem ente. A m en te m a d u ra é a m en te de todo só, desim pedid a; p o rq u e com preendeu, ela é livre. E essa lib erdade é in stan tâ n ea, N ão a p o d e is tra b a lh a r p a ra conquistá-la, não podeis p ro cu rá-la, n ão podeis disciplinar-vos, a fim de a o bterdes; e essa é a beleza d a lib erdade. Â lib erd ad e n ão resu lta d o p en sam en to ; o p ensam ento n u n c a é livre, n ã o po d e ser livre. Assim, se está co m p reen d id a a índole d a m adureza , podem os a g o ra consid erar o tem po e a co n tin u id ad e. P a ra a m a io ria de nós, o tem po é u m a realid ad e con creta. O tem po m edid o pelo relógio é u m a rea lid a d e co n creta — nós tem os de e n c errar esta reu n ião às 7 h o ras ou 7,15; lev a tem po p a ra chegardes a vossa casa; precisa-se de tem po p a ra a d q u irir conhecim entos; é tam bém necessário p a ra se a p re n d e r u m a técnica. M as, afo ra esse, existe o u tro tem po? Existe tem po psicológico? Nós construím os o tem po psicológico, o tem po rep resen tad o p ela d istância, o espaço existente en tre m im e aquilo q ue desejo ser, en tre o passado, que fu i “ eu” , o presente q u e sou “ eu” , e o fu tu ro , q ue a in d a serei “ e u ” . É assim q u e o pensam ento constrói o tem p o psicológico. M as, existe esse tem po? P a ra desco­ b rird es isso p o r vós m esm o, deveis consid erar a co ntinuid ade. Q u e se e n te n d e p e la p a la v ra “c o n tin u id a d e ” ? Q u a l o sen tid o p ro fu n d o desta p a la v ra, tão com um em nossos lábios? Se pensardes co n tin u a m e n te n u m a c e rta coisa, como, p o r exem plo, n u m p razer q u e experim entastes, se nele pensais co nstantem ente, todos os dias, todos os m in uto s, esse p e n sa r confere co n tin u id ad e àquele p razer fruído. Se pensais em algo doloroso, tan to n o passado com o n o fu tu ro , esse pensam ento lh e d á co n tin u id ad e. Isto é simples. Se gosto de u m a c e rta coisa, e n ela penso, esse p en sar estabelece u m a relação e n tre o q u e fo i e m eu desejo de tê-la de novo. V ereis a sim plicidade disto se lh e ap licard es a vossa m en te ; não é u m a coisa com plexa. Se n ã o com p reendeis o que é a co n tin u id ad e, n ão com preendereis o q u e v ou dizer sobre a m orte. Deveis co m p reen d er o q u e estive expressando, n ão com o u m a teo ria o u crença, p o rém com o u m a rea lid a d e q u e podeis p erceber p o r vós m esmo. Se pensais a to das as horas em vossa m u lh er, em vossa casa, em vosso filho, em vosso em prego, estabelecestes u m a “ co n tin u id ad e” , n ão é exato? Se tendes u m ressentim ento, u m tem or, u m sentim ento 230 de culp a, e nisso pensais fre q ü e n tem ente, recordando-o , lem b ran ­ do-o, tiran d o -o do passado, estabelecestes u m a “ c o n tin u id a d e ”. N ossa m ente fu n cio n a nessa c o n tin u id ad e, todo o nosso p en sar é constituíd o dessa c o n tin u id ad e. Psicologicam ente, vós sois violento ; e pensais em “ n ão ser violento” — n o id e a l; e, assim, com vosso p e n sa r em “ n ão ser violento ” estabelecestes a co n tin u id ad e do “ser violento” . V ede, p o r favor, a necessidade de co m preender isto, q u e é b ém simples, u m a vez percebido que o pensam ento , que o p en sar n u m a ce rta coisa dá c o n tin u id a d e a essa coisa, q u e r seja ela ag rad áv el, q u e r d esag ra­ dável, q u e r p ro p o rcio n e a le g ria o u sofrim ento, q u e r p e rte n ç a ao passado o u seja algo que irá verificar-se a m a n h ã o u n a p ró x im a sem ana. Assim, é ò p ensam ento q u e firm a a co n tin u id ad e d a ação — p o r exem plo, a ação de ir p a ra o escritório, dia após dia, mês após mês, d u ra n te trin ta ano s a té a m en te se to rn a r u m a m en te m o rta . D o m esm o m odo estabeleceis u m a “c o n tin u id a d e ” com a fam ília. D izeis: “ É m in h a fam ília” ; n e la p ensais; p rocurais p ro teg ê-la; bu s­ cais co n stru ir u m a p ro te ção psicológica, n ela e ao red o r dela. D essarte, a fam ília se to rn a sum am ente im p o rtan te, e vós estais destruído. A fam ília destrói; é m o rtífera, p o rq u e faz p a rte d a e stru tu ra social que p re n d e o ind ivíd uo . Assim, u m a vez estabelecida a c o n tin u i­ dade, psicológica e fisicam ente, o tem p o se to rn a m u ito im p o rta n te — n ão o tem po m arc ad o no relógio, p o rém o tem p o com o m eio de “c h e g ar”, o tem po com o m eio de alcan çar, de g a n h a r, de ter êxito , psicologicam ente. N ão podeis te r êxito, n ão podeis g a n h a r, a m enos q ue penseis nisso, até vossa m en te ficar to d a e n treg u e a esse p en sa­ m ento. Assim, psicologicam ente, o desejo de co n tin u id ad e segue o “ c am in h o ” do tem po, e o tem po g era o m ed o ; e o pensam ento , com o tem po, tem p a v o r à m orte. D este m odo, se n ão fosse o “tem p o in te rio r” , a m o rte o co rreria a c ad a in stante, e n ão seria tem ível. Isto é, se a cad a m in u to do dia, o pensam ento n ão d er c o n tin u id a d e ao p ra z e r o u à d o r, ao p re ­ en chim ento o u à fa lta de p reen ch im en to , ao insulto, à lisonja, a tu d o aquilo a q u e o pen sam en to d á atenção, a m o rte ocorre en tã o a c a d a m in u to . D evem os m o rre r a c a d a m in u to — n ã o teo ricam en te. Eis p o rq u e im p o rta co m p reen d er o m ecanism o d o pensam ento. O pensam ento é m era m e n te u m a “resposta” , u m reflexo d o passado; ele n ã o tem a v a lid a d e d a árv ore que vedes concretam ente. Assim, p a ra com preen derdes o ex trao rd in ário significado d a m orte — pois a m o rte tem significação, e sobre isso fala re i m ais a d ia n te — deveis co m p reen d er esta questão d a c o n tin u id ad e, p erce­ Z31 ber a verd ad e respectiva, perceber o m ecanism o do pensam ento, criad o r d a co n tin u id ad e. G osto de vosso rosto, e nele penso; estabeleci, assim, convosco u m a relação de “ c o n tin u id a d e ” . N ão gosto de vós, e penso nisso; estabeleci assim a c o n tin u id ad e desse sentim ento. A gora, se n ão p e n ­ sardes naquilo q u e vos causa p razer ou dor, se n ão pensardes no a m a n h ã ou no q ue esperais g an h ar, se ides ter êxito, se ides te r fam a, notoriedade, e tc .; se n ão pensardes, absolutam ente, em vossa v irtu d e, vossa respeitabilidad e, no que os outros dizem ou deix am de d izer; se vos m an tiv erdes to ta l e co m pletam ente in d iferen te — n ão h a v e rá en tão “ c o n tin u id a d e ” . N ão sei se sois, de alg um a m an eira, indiferentes a alg um a coisa. N ão m e refiro ao acostum ar-se com ela; vós vos acostum astes com a feira de B om baim , a im un dície das ruas, à m a n e ira com o viveis. A costum astes-vos; isso n ão significa q ue sois indiferente. F ic ar acos­ tu m ad o com u m a coisa, habituar s e a ela, em bota, insensibiliza a m ente. M as, ser in d iferen te é coisa m u ito diversa. • N asce a in d ife­ ren ç a ao rejeitard es, aq negardes um hábito. Q u a n d o vedes o feio, e dele estais cônscio; q u an d o vedes a beleza do céu, n u m a c e rta tard e, e estais consciente d ela; q u an d o vedes sem d esejar n em recusar, sem aceitar nem rep elir, sem “ fe c h a r a p o rta ” a coisa alg u m a — sois en tão to tá lm en te , in te rio rm en te, sensível a tu d o o q u e vos çerca. D aí resu lta u m a in d ife re n ç a de e x tra o rd in á ria fo rça. E tu d o o q ue é fo rte é "v u ln eráv el” (sen sív el), p o rq u e sem resistência. M as a m en te qu e só resiste está ap risio n ad a n o h áb ito e, p o r conseguinte, em b o tad a, insensibilizada. A m en te in d iferen te está cônscia de q u a n to é artificial nossa civilização, nosso pe nsam ento , de com o são feias as nossas relações; percebe a beleza d e u m a árvore, de u m rosto, de u m sorriso; e ela n a d a rejeita, n em aceita, porém , sim plesm ente, observa — n ão in te ­ lectu alm en te, n ã o friam en te , p o rém com ferv en te e am orosa in d ife­ rença. Essa observação n ão significa desapego, pois n a d a h á a q u e se ap eg ar. Só q u a n d o a m en te tem apego — à casa, à fam ília, ao em ­ prego — é q u e se po d e fala r em desapego. M as, h á n a “in d iferen ça” u m a do çura, u m p erfum e, u m a q u alid ad e de e x tra o rd in á ria e v ita l en erg ia (talvez n ão seja esta a definição lexicográfica d a p a la v ra “in d ife re n ç a ” ) . D evem os ser indiferentes — em relação à saú d e; à solidão, ao q u e dizem o u ao que n ão dizem ; ao êxito e ao n ão êx ito ; indiferentes à a u to rid ad e. A go ra, se prestais atenção, podeis ou v ir u m a pessoa a tiran d o , fazendo m u ito b a ru lh o com u m a espingard a. Podeis m u ito facilm ente 232 acostu m ar-vos com isso; pro v av elm en te já estais acostu m ados e fazeis ouvidos m oucos — m as isso n ão é indiferença. In d iferen ça é escu tar sem resistência, “a c o m p a n h a r” o b aru lh o , nele “ v ia ja r” , in d efin id a ­ m ente. O b aru lh o , então, n ão vos p e rtu rb a , n ão vos perv erte, n ão vos fa z in diferente. Escutais en tão todo e q u a lq u e r b a ru lh o — o b a ru lh o de vossos filhos, de vossa m u lh er, dos pássaros, o b aru lh o do falató rio dos políticos; escutais tu d o com indiferença é, p o rta n to , com com preensão. A m en te, p a ra c o m p reen d er o tem p o e a co n tin u id ad e, tem de ser in d ife re n te ao tem po, n ã o p ro c u ra r en ch er esse espaço a que ch a m a “ tem p o ” com div ertim ento s, com devoções, com b aru lh o , com leitu ras, com assistir a u m film e — de todas as m an eiras possí­ veis — com o a g o ra estais fazendo. E , enchendo -o com o p ensam ento , com a ação, com div ertim ento s, com sensações, com bebidas, com u m a m ulh er, com u m hom em , com D eus, com vosso sab er — lh e destes c o n tin u id a d e ; p o r esta razão n u n c a sabereis o que é m o rrer. O ra , a m o rte é destruição. A m o rte é p erem p tó ria . N ã o podeis a rg u m e n ta r com ela, dizer-lhe: “A in d a não! E sp erai piais uns dias” . N ã o h á discutir, n ão h á im plorar. A m o rte é inexorável, absoluta. N u n c a fazem os fren te ao q u e é inexorável, absolu to; sem pre p ro ­ curam os contorná-lo . P o r isso, tem em os ta n to a m orte. Podem os in ­ v e n ta r idéias, esperanças, tem ores; e ter crenças, como a de q ue “ seremos ressuscitados” , de q u e “ renascerem os” — tudo sutilezas d a m ente, em sua esperança de u m a c o n tin u id a d e que é do tem po, q ue n ão ê u m fa to , que é m era criação do pensam ento. F alan d o sobre a m o rte, n ão m e refiro a vossa m o rte ou m in h a m o rte ; falo a c erca d a m orte, esse fenôm eno ex trao rd in ário . P a ra vós, u m rio significa aquele rio com q u e estais fam iliari­ zado, o G anges ou o rio de vossa aldeia. Ao ouvirdes a p a la v ra “ rio ” , im e d ia ta m e n te vos acode ao espírito a im agem de d eterm in ad o rio. m as jam ais conhecereis a n a tu re z a re a l de todos os rios, o “ rio reaV \ se à vossa m en te só se a p resen ta o sím bolo de d e te rm in a d o rio. O rio são as águas ru tila n tes, as m argens pitorescas, as árvores que o o rla m ; n ão u m certo rio, m as a “ q u alid ad e-d e-rio ” de todos os rios, a beleza de todos os rios, a graciosa c u rv a de todo curso d ’ág u a, to d a corrente. O hom em q u e só vê um certo rio tem m en te m e ­ díocre, superficial. M as a m en te que vê o rio com o u m m ovim ento , com o ág u a, n ã o o relacio n am en to com certo país, c e rta ocasião, c e rta a ld e ia ; qu e vê sua beleza, essa m en te se lib erto u do “ p a rtic u la r” . Se — com o h in d u ísta, criad o com vossos livros sagrados, etc. — pensais n u m a m o n ta n h a , à vossa m en te se a p re se n ta pro v av elm en te 233 a visão do H im ala ia , q u e é o que p a ra vós significa “ u m a m o n ta n h a ” . Essa a im agem q u e p ro n ta m en te se vos apresenta. M as a m o n ta n h a n ão é o H im ala ia . A m o n ta n h a é aq u ela a ltu ra lá n o céu azul, de n e n h u m país, co b e rta de b ra n c u ra , m o d elad a pelos ventos e os terrem otos. A m en te q u e pensa nas m o n tan h as de m an e ira am p la, em rios q u e n ão são de n e n h u m país, n ã o é m edío cre, n ão é u m a m en te in i* b id a p ela pequ enez. Se pensais n a p a la v ra “ fam ília” , ocorre-vos im ed ia ta m e n te vossa p ró p ria fam ília; p o r isso, a fam ília se to rn a u m a coisa m o rtal. N u n c a -sereis capaz de ap re c ia r o p ro b lem a d a fam ília em geral, p o rq u e estais sem pre a relacion á-lo — p ela co n tin u id ad e do p en sam en to — com a q u e la “ p a rtic u la r” fam ília a que pertenceis. Assim, fala n d o sobre a m orte, n ão estam os fala n d o de vossa m o rte o u de m in h a m orte. D e fato , n ão im p o rta m u ito se vós m orreis ou se eu m orro. T o d o s m orrerem os, felizes o u desgraçados. Felizes, se tiverm os viv ido p len a m en te , com pletam en te, com todos os nossos sen­ tidos, com todo o nosso ser, cheios de v italid ad e e de saúde, O u m orrerem os com o cria tu ra s lastim áveis, debilitados p e la id ade, fru s­ trados, to rtu rad o s, sem n u n c a term os conh ecido u m d ia feliz, rico, u m a m o m e n tâ n e a visão do Sublim e. Estou, pois, fala n d o sobre a M o rte, e n ão a m o rte de d e te rm in a d a pessoa. A m o rte significa o fim . E o que nos assusta, o q u e nos a p a v o ra é o fim cessar de tra b a lh a r, a b a n d o n a r tu d o , p a rtir — p e rd e r a fam ília — p e rd e r alguém q ue pensam os a m a r — o a c a b a r de u m a “c o n tin u id a d e ” em que tan to pensam os no deco rrer dos anos, O que tem em os é o fin dar. N ão sei se alg um a vez tentastes, delib erad a, consciente e reso lutam ente, pôr fim a alg um a coisa — ao h á b ito de fu m ar, de beber, de fre q u e n ta r o tem plo, ao desejo de p o d er — extin gui-la rad icalm en te, assim com o o escalpelo do cirurg ião ex tirp a u m câncer. J á tentastes alg um a vez “ e x tirp a r” a coisa que m ais p raz e r vos dá? É fácil rem over u m a coisa que nos causa d o r; m as não é fácil “ e x tirp a r” , de liberadam ente, com a precisão de u m c iru r­ gião, com sensível precisão, algo que é agradável, sem saber o q u e a m a n h ã acontecerá, sem saber o q ue acontecerá u m m om ento após. Se, ao “ e x tirp á-lo ”, já sabeis o q ue acontecerá depois, nesse caso, não estais “o p era n d o ” verd ad eiram en te. Se já fizestes isso, deveis saber o q u e significa m o rrer. Se já elim inastes tu d o o q u e em vós existia, todas as raízes psicológicas —■esperança, desespero, sen tim ento de c u lp a, ansiedade, êxito, ap ego — e n tã o , dessa “ o p eração ”, dessa negação d a in te ira e stru tu ra social (n ão sabendo o q u e vos sucederá, se "o p erard es” 234 ra d ic a lm e n te ), dessa negação to ta l p ro v irá a energia com que p o d e ­ reis e n fre n ta r isso q ue cham am o s a M o rte. Ju sta m en te esse “m o rre r” p a ra tu d o o q u e ten des con hecido, essa d elib erad a ex tirp ação de tu d o o q u e conheceis —- é m orrer. T e n ta i-o u m a vez — não com o u m consciente e deliberado a to de v irtu d e, visante a descobrir alg o; ten tai-o , com o qu e a b rin c a r — pois aprend e-se m ais “b rin c a n d o ” do que com o esforço consciente e deliberado. Q u a n d o negais dessa m an eira, destruís tu d o ; e ten des de d estru ir tu d o ; p o rq u e, sem dúvid a, d a destruição su rg irá a p u rez a — a m en te im acu la d a. Psicologicam ente, n a d a do que a geração p assad a construiu m e­ rece ser conservado. O lh a i a sociedade, o m u n d o que a geração passad a criou. Se alguém tentasse to rn a r o m u n d o m ais confuso, m ais desgraçado ain d a, n ão o conseguiria. T en d es de elim in ar tudo isso in sta n ta n e a m e n te, va rrê-lo p a ra a sarjeta. E p a ra “ extirpá-lo ” , varrê-lo, destruí-lo, necessitais de com preensão e tam b ém de algo bem m ais im p o rta n te do q ue a com preensão, ou seja, a “ com paix ão ” , a sensibilidade. V ede, nós n ão am am os. Só vem o am o r q u an d o n a d a m ais resta, depois de negardes co m p leta m en te o m u n d o — n ão essa coisa enorm e c h a m a d a “ o m u n d o ” : o peq u en o m u n d o em que viveis — a fam ília, o apego, as disputas, o dom ínio, vossos êxitos, vossas esperanças, vos­ sos “ p ecad os” , vossas obediências, vosso^ deuses e vossos m itos. Q u a n d o negais esse m u n d o in teiram en te, q u a n d o n a d a m ais resta de vossos deuses, esperanças, desesperos; q u a n d ó n a d a m ais buscais — então, desse g ran d e vazio, surge o A m or, q u e é u m a sin g u lar realid ad e, um fato ex trao rd in ário n ão p rovocado p e la m en te que tem “c o n tin u id a ­ d e ” m ed ian te a fam ília, o sexo, o desejo. E, se vos fa lta o a m o r — que, n a realid ad e, é o “ desconhecido” — n ão im p o rta o qu e façais, o m u n d o p e rm an ecerá no caos. Só com a to ta l negação do “ conhecido” — o que sabeis, vossas experiências, vosso con hecim ento (n ão vosso conhecim ento técnico, p o rém o co­ n h ecim en to de vossas am bições, de vossas experiências, de vossa fa m ília ), só q u a n d o tiverdes n egado to ta lm en te o “ conhecido” , o tiverdes a p a g ad o de todo, “m o rrid o ” p a ra ele, vereis que re sta rá um vazio ex trao rd in ário , u m ex trao rd in ário espaço em vossa m en te. A p enas nesse espaço sabem os o q u e é am ar. N ele apenas é possível a criação — n ã o a criação consistente em g e ra r filhos ou e m espalhar tin tas sobre u m a tela : a q u ela C riação que é a energ ia to tal, o In co gnoscível. M as, p a ra a alcançardes, deveis m o rre r p a ra tu d o o que conheceis. Nesse m o rre r h á g ran d e beleza, inesgotável e v ita r energia. 7 de m arço de 1962. 235 J LIBERTAÇÃO DA EXPERIÊNCIA (B o m b a im — V II) o u f a l a r nesta ta rd e sobre diferentes tópicos, p o rém o p o n to ce n tral desta p a le stra será a m editação. M as, p a ra com ­ p ree n d e r p len am en te, p e n e tra r o significado, não só d a p alav ra, m as tam b ém d a a tiv id ad e d a m en te que m ed ita, necessita-se de u m a certa in te n sid ad e de pensam ento , clareza de percepção. E sta é m a té ria m u ito com plexa, e o qu e vou dizer, o que v ou investigar, n ão é tr a ­ dicional, sob n en h u m aspecto. Assim, se desejais a c o m p an h ar-m e nesta “viag em ”, neste exam e d a questão d a m ed itação e d a m en te q u e m ed ita, deveis estar atentos — atentos, n ã o no sentido de fazer u m tre m en d o esforço de concen tração p a ra a p re n d e r um as poucas frases ou a d q u irir algum as idéias, p o rém atentos n o am p lo sen tid o d a p ala v ra, atentos não só ao que vos rodeia, e n q u a n to estais a í sentados — as árvores, a luz que b rilh a n a árvore, o c h ilrear dos pássaros, a brisa — mas tam bém ao fu n cio n am en to de vossa m ente. T u d o isso re q u e r u m a certa clareza de atenção, sem co ncentração e sem esforço algum . M as, p a ra a m en te que se aplica, enérgica, ard o ro sa e in te n sa ­ m en te a investigar, pesquisar, p e n e tra r a questão d a m ed itação, deve h av er tam b ém a arte de escutar. C om esta expressão entendo “ es­ c u ta r, sem rejeição ou aceita ção ; escutar sem co m p arar, com o fim de descobrir ” , Se com parais, se ouvis m eram en te u m a série de p a la ­ vras e idéias, nesse caso, n ão estais escutando. O escu tar é u m fa to ex trao rd in ário . E nós ra ra m e n te escutam os de tal m a n e ira — com liberdade e enlevo, com um sorriso nos lábios, a fim de descobrir. F a lare i de algo que req u e r u m a m ente capaz de p e n e tra r bem fund o. D evem os com eçar com o que está m u ito p e rto de nós, pois não pod erem os: ir m uito longe se n ão com eçam os com o que está 2 .% m ais p erto , se n ão sabem os d a r o p rim eiro passo. O florescer da m ed itação é a b ondade, e a generosidade do coração é o começo d a m editação. Estivem os falan d o sobre m uitas coisas concernentes à vid a, à au to rid ad e , à am bição, ao m edo, à avidez, à inveja, à m orte, ao tem p o ; sobre m uito s assuntos estivemos falando. Se tiverdes p e ­ n e tra d o bem o que se disse, escutado co rretam en te, deveis saber q ue isso constitui a base d a m en te que é capaz d e m ed ita r. Se sois am b i­ cioso, n ão podeis m e d ita r; só podeis entreter-v os com a id éia de m editação. Se vossa m e n te está in te ira m e n te subm issa à a u to rid ad e, ap risio n ad a n a trad ição , a ceita n d o e seguindo, jam ais conhecereis a e x tra o rd in á ria beleza do m ed ita r. E com o j á exam inam os bem tu d o isso, desejo a p re c ia r nesta ta rd e a questão d a b o n d ad e e d a g en e­ rosidade. O orgulho, em q u a lq u e r fo rm a, im pede a generosidade d a m en te e d o coração — orgu lho de te r realizado algo im p o rta n te, orgulho do saber, do alvo visado, org ulho d a raça. T od os somos orgulhosos, consciente o u in conscientem ente. E a m en te orgulhosa jam ais p o d e rá ser generosa, n u n c a te rá a excelência do coração, n u n c a te rá h u m il­ dad e — com o estivemos dizendo h á dias — a q u a l é o com eço do ap ren d er, qu e é sabedoria. O florescim ento d a generosidade n ão pode oco rrer no árido solo d a m ente. A m en te n ão pode ser generosa; só o podem ser o coração e a m ão. A m en te p o d e rá im a g in a r quais são as qualidades d a genero sidad e e p ro c u ra r cu ltiv ar a genero sidade; m as “ c u ltiv ar generosidade” não é “ser generoso” . Ê a p ró p ria busca de p reen ch im en to , através do tem po, q ue im pede a generosidade. E vós necessitais de u m a m en te generosa; não só de u m a m ente am p la, de u m a m ente “espaçosa” , m as tam b ém de u m coração que dá, sem n e n h u m pensam ento , n e n h u m m otivo e que não visa, em troca, a n e n h u m a recom pensa. D ar — o pouco ou o m u ito que tem os — a espontaneid ade n o d espen der, sem res­ trições, sem reservas, é u m a q u alid ad e necessária. N ão pode h a v e r m ed itação se n ão h á generosidade, se n ã o h á b o n d a d e — e isso significa ser livre, n u n c a te n ta r g alg ar os degraus do êxito, n u n c a saber o que é ser fam oso — vale dizer, m orrer, a c a d a m in u to do dia, p a ra tu d o o q u e tem os realizado. Só nesse terren o fértil pode m e d ra r e florescer a b ondade. A m ed ita ção é o florescer d a bondade. Peço-vos que escuteis — m as não com o fim de a lcan çar a bondade, pois n ão podeis alcançá-la. N ão se pode “ p ra tic a r b o n d a d e ” . A b o n d ad e é u m a flor que desabrocha d u ra n te a n o ite ; nasce sem a desejardes, sem a buscardes, sem a cultivardes. Só vem pelo escutar. M anifesta-se subitam ente, em p len o florir. A b o n d a d e n ã o é rep eti237 ção do q ue fo i ; n ã o podeis ser bom se relem brais o passado — o p razer ou a dor, o insulto ou a lisonja. Nesse terren o ela jam ais m ed rará. Jam ais n ascerá no solo do tem po, pois v em à existência sem a esperardes. N ão po de existir bon d ad e q u an d o h á orgulho, e a b o n d ad e é a p ró p ria essência do “n u n c a a c u m u lar” e, p o r conse­ guinte, “ n u n c a p e rd e r” ; só h á perder q u an d o houve acum ulação. M as n a m en te que se a ch a em m o vim ento constante, em contínuo fluir, sem rep o u sar em p a rte alg um a, sem re to m a r ao passado — a suas lem branças, seu conhecim ento , a to das as coisas q ue experim en­ to u — só nessa m en te po de flo rir a bon d ad e e existir a generosidade. V ós tendes de descobrir o q ue é m editação. Im p o rta saber o q ue é m ed ita ç ã o ; não “com o” m ed ita r, n ão o sistema, a p rática , p o rém a essência d a m editação. O estado de espírito ad eq u ad o , a disposição p a ra m ed ita r, req u e r u m a m en te bem generosa, u m a m en te sem lim ites, u m a m en te n ão ap risio nada no processo do tem po. A m en te q ue n ão está lig ad a a coisa alg um a — a n e n h u m a ativi­ dade, n en h u m p ensam ento , n e n h u m dogm a, n e n h u m a fam ília, n e ­ n h u m nom e — só essa m en te pode ser generosa; só essa m en te pode com eçar a co m p reen d er a p ro fu ndeza, a beleza, a ex tra o rd in á ria d o ç u ra d a m editação. V ou, pois, con siderar a m editação nesta tard e , n ão apenas v er­ b alm en te (q u e é a ú n ica m an e ira p ela q u a l vós e eu podem os com u­ n ic a r-n o s), m as tam b ém de fo rm a não verbal. E p a r a co m p reen d er o processo n ao v erb al d a m editação, deve a m en te estar livre d a p a la v ra. A p a la v ra é o sím bolo, e o sím bolo jam ais é a v erd ade. Assim, o h om em q u e se p ren d e u à p a la v ra n u n c a p o d e rá e x ercitar aq u ela fo rm a de m editação que está além e acim a d a p alav ra, além do sím bolo, além d a visão. M as, p a ra poderm os fazer este exam e, tem os de co m eçar com o q ue está m u ito p erto , m u ito próxim o, e prosseguir passo a passo. A m editação faz p a rte d a v id a, assim com o o ird es p a ra o em prego, o tom ardes vossas refeições, vosso fa la r, vosso a tu a r, fazem p a rte d a vid á. E, sendo a m ed ita ção u m a p a rte d a v id a, n ao deveis descuidar-vos dela, assim com o n ão descurais de escovar os dentes, de banhar-vos, de ir p a ra o em prego. Po rém , em g eral nos descuidam os dessa p a rte d a vid a, p o rq u e é sobrem odo á rd u a , exigindo m u ito m ais intensid ade, m uito m ais persistência. A m editação é o com eço do auto conhecim ento . Conhecer a si m esm o — n a d a m ais do que isso — é m editação. Saberdes o q ue estais pe nsando, o q ue estais sentindo, quais sao os vossos m otivos, estar cônscio deles, sem escolha, encará-lo s com o fa to s , sem d a r opin ião n em fo rm a r juízo a respeito desses fatos — eis, exatam ente, o início 238 d a m editação. Se n u n c a fizestes ta l coisa em vossa v id a, ten d o sem pre p ra tic a d o a m ed ita ção trad icio n al, consistente em fic a r sentado n u m can to sossegado, ten ta n d o focar a aten ção em d a d a coisa — nesse caso, podeis c o n tin u a r sentados d u ra n te dez m il anos, rep etin d o p a la ­ vras e m antras, hip no tizando -v os com a rep etição d e p a la v ras a p ro ­ p riad as p a ra q u ieta r a m en te. M as essa q u ietu d e a p a rte n e n h u m a cond uz senão à m orte, à decom posição, ao defin h ar. Peço-vos que presteis a ten ção a isto. N ã o estam os co n d en an d o n in g u ém e, p o rta n to , n ão h á necessidade de resistirdes. Estam os a p e ­ nas apontando alg o; podeis levá-lo, o u deixá-lo aqui. O com eço d a m ed itação é auto-inv estig ação, auto p erceb im en to crítico; é, sim ples­ m ente, saberdes o q ue sois. D essa sim plicidade surge u m a im ensidão q ue tran scen d e as p ala v ras, o tem po, o pensam ento. M as deveis com eçar com aquele p rim eiro passo m uito simples, im ediato . E m regra, não desejam os saber o que somos. In v en tam o s o “ E u S uperio r” , o “ E u S u p rem o ” , o A tm a n , inum eráveis idéias, a fim de fugirm os d a realid ad e do que somos — a realid ad e concreta, d iária, daquilo que somos. E n ão sabemos o que somos, d ia po r d ia; a isso sobrepom os algo q ue o pensam ento criou com o nom e de A tm a n , algo que a tra d ição nos tran sm itiu e denom in ou E u Superior. C om isso nos cobrim os, e p ro cu ram o s a lc a n ç a i essa coisa in v en ta d a p ela m e n te ; e depois, se a alcançam os, vem os que ela é vazia, q ue é só cinzas, q ue n a d a significa. Assim, p a ra m ed ita r, deveis d estru ir tudo, to ta lm e n te , re je ita r co m p leta m en te todas as coisas que vos estão sendo im postas; re je ita r o G ita, a B íblia, o C o rão — tu do. E isso é dificílim o, p o rq u an to necessitam os dessas coisas p a ra nossa segurança, p a ra nosso arrim o nas horas de tribulação, de dor, de sofrim ento. M as, todas elas são sim ples vias de fuga — vosso K rish n a, vossos Salvadores, etc. O que tem im p o rtâ n c ia e significação é vossa existência de c a d a dia — o q u e pensais e o qu e sentis. E n ão podeis c o m p reen d er o q u e pensais e o q u e sentis se estais to lh ido pelo peso do con hecim ento do passado, de tu d o o. qu e os livros disseram . Assim, o com eço d a m ed ita ção é o conhecim ento de vós m esm o — não o q u e pensais que deveríeis ser , não o que S an k ara pensa q ue deveríeis ser: o conhecim ento de vós m esm o tal como sois, assim com o vos vedes n u m espelho. D este m odo, se seguirdes o cam in ho do au toconhecim ento com eçareis a investig ar o que sois, vossas a tiv i­ dades diárias, a m an e ira com o falais a vosso serviçal, a m an e ira com o tratais vossa m u lh er, vosso m arido, a m an e ira com o vós com portais p e ra n te as pessoas im p o rtan tes, o sem pre vivo desejo de serdes alguém . 239 Se n ão conhecerdes toda a esfera consciente e inconsciente de vossa existência, p o r m ais que vos esforceis n u n ca sabereis o q ue é m editação. Gom o disse, o início d a m ed itação é a rejeição de toda espécie de a u to rid ad e , p o rq u e vós tendes de ser vossa p ró p ria luz. E o hom em q ue é sua p ró p ria luz nao depende de a u to rid ad e em tem po algum , nem no com eço, n em no fim . “ Ser a luz de si m esm o” significa nao ter m ed o ; já tra tei disso. “ Ser a luz de si m esm o” significa n ão ter £ apego de espécie algum a, nem à m ulh er, nem ao m arido, n em ao conh ecim ento, n em à experiên cia; p o rq u e todas essas coisas p ro je ta m som bras e vos im pedem a ilu m inação. E, m ais a in d a, p a ra serdes vossa p ró p ria luz deveis investig ar a experiência. A experiência é a essência do tem po, a experiên cia constrói o tem po com o conhecim ento , a experiência condiciona a m ente. Se sois h in d u ísta, cristão o u b u d ista, estais sendo educad o n u m a certa c u ltu ra (civ ilização ), consistente n a religião, n a edu cação, n a fam ília, n a tra d içã o dessa c u ltu ra o u civilização; vossa m en te é fo rm ad a, m o ld a d a consoan te essa c u ltu ra, essa tradição. O u credes em K rish n a, o u credes em C risto, ou credes n o que q u e r q u e seja — e tal é vosso co n d ic io n am en to ; conform e esse condicio nam ento, tereis vossas expe­ riências. A m en te q u e ex p erim en ta de acordo com ta l co ndicio na­ m en to n ão tem n e n h u m a possibilidade de con hecer o im enso signi­ ficado d a m editação. Estam os investigand o a m editação. Espero que estejais escutando — não m eram en te seguindo a exposição verbal, p o ré m vivendo o q ue se está explicando, a fim de poderdes sair d a q u i conhecendo a im ensid ade, a beleza, b êxtase d a m ed itação (q ue não im plica trab alh o , esforço p a ra alc a n ç ar um certo estado, u m a certa v isão ). P orqu e a visão q ue desejais, q ue ansiais, é p u ro resultado de vosso cond icio nam ento. A o verdes K rish n a, ou R a m a , ou o u tro qu alq u er, foi o vosso condicionam ento que o projetou. Esse condicio nam ento se fo rm ou através de séculos de tem po, sob a in fluência do m edo, d a aflição, do sofrim ento; e, q u a lq u e r visão n ascida desse condicio na­ m en to é to ta lm e n te vazia, sem significação; a m en te nele ap risio n ad a jam ais con h ecerá a lib erd ad e que h á n a m editação. Deveis co m p reen d er o significado d a p a la v ra “e x periência” . T o ­ dos desejam os m ais experiência — m ais e sem pre mais: m ais riquezas, m ais posses, m ais am or, m ais êxito, m ais fam a, m ais beleza; e dese­ jam os, tam b ém , m ais experiência, conhecim ento. Prestai atenção, p o r favor. A m en te q u e está sem pre experim entando é d e p en d en te d a ex p eriên cia; e a exp eriência, em ú ltim a análise, é a “resposta” a u m “ desafio” . Espero estejais en ten d en d o , pois isto não é m u ito com ­ 240 plexo. A m en te sem pre sequiosa de maiSj que deseja m ais expe­ riência, m ais conh ecim ento , m ais sensações, m ais êxtases, é u m a m ente dependente. E q u a n d o a m en te depend e, q u an d o ^necessita de alg um a coisa p a ra a m p a rá -la — isso sig n ific a ,' apenas, que está dorm in do . P or conseguinte, c ad a “ desafio” significa p a ra ela u m a experiên cia que a de sperta p o r um m o m ento e a faz ad o rm ecer de novo. Assim, to do “ desafio e resposta” con stitui u m indício de q u e a m en te se a ch a a do rm ir. H á in úm ero s desafios no decurso de nossa v id a ; h á influ ências a todas as ho ras, im p regnando-nos a m en te e o coração, e delas podem os estar ou n ão estar conscientes. O g rasn a r do corvo já passou p a ra o vosso inconsciente, lá está g u a rd a d o ; a c o r d aq u ele sari, q u e r a tenhais n o tad o , q u e r nao, já gravou sua im pressão; o poente, a nuvem q u e vistes n u m a c e rta ta rd e b a n h a d a de luz, d eix a­ ra m sua m arca. Assim, a m en te consciente e inconsciente está c h eia dessas im pressões; e delas, dessas impressões, nascem todas as expe­ riências. T u d o isso são fatos psicológicos , que não a d m ite m discussão, concord ância ou discordância. E a m en te que dep en d e d a experiên ­ cia com o m eio de progresso, desenvolvim ento, am ad u recim en to , evo­ lução . . . é b em óbvio q u e essa m ente, d e p en d en d o do tem po, d a experiência, n u n c a será cap az de p e n e tra r n a q u ilo que se ach a além do tem po e d a experiência. P o r conseqüência, tendes de co m p reen ­ d e r p ro fu n d a m en te o significado d a experiência. A experiência em bota a m ente. A experiência não ilu m in a a m ente, p o rq u e é sem pre o resu ltad o de “ resposta” a u m “ desafio” , respo sta o riu n d a de vosso fu n d o de conhecim ento. Assim, c a d a expe­ riên cia só po de to rn a r m ais fo rte o q ue conheceis e, po r conseguinte, n ao podeis libertar-vos do “ co nhecido” . A m ed itação é o verd ad eiro com eço do libertar-se do “c o n h e ­ cido” . V ós deveis m ed ita r, n ão p o rq u e um a certa pessoa vos diz que o façais, p o rq u e um certo hom em vos fala e vos extasia a respeito d a m editação. Deveis m ed ita r p o rq u e esta é a ação m ais n a tu ra l deste m undo. A m ed itação vos confere u m a adm irável sensibilidade, sensibilidade , que, em b o ra m u ito fo rte, é tam bém vulnerável. Isso p o d e rá parecer-vos co n trad itó rio , m as nao é. A m en te que se fo rm ou p ela ação do tem po, d a experiência, do conhecim ento, do conflito, d a arrogância, d a agressividade, d a am bição — n ão é u m a m en te fo rte ; só tem cap acid ad e de resistência. E u m e refiro a u m a fo rç a de q u alid ad e com pletam ente diferente, u m ai força que é “ V ulnerá­ ve l” , sem resistência; essa, p o r conseguinte, é a m en te capaz de u ltra p assa r a experiência. 241 Deveis co m p reen d er a significação, a p ro fu n d eza e qu alid ad e d a experiência que todos desejais. V e r R a m a , K rish n a, Cristo, etc. — a isso cham ais m editação. M as n ã o é m ed itação, p o rém tão só u m a p ro je ção do passado, u m a p ro je ção d a crença em que fostes educado. U m cristão vê o C risto e se extasia com essa visão. M as o hom em q ue n ão foi c riad o p a ra a d o ra r Cristo, com o Sa lvad or ou o que qu er que seja, n u n c a v erá Cristo, com o vós tam pouco o vereis, edu,#cados que fostes p a ra crer em K rish n a, N u n c a vereis outros deuses senão vossos p róprios deuses; e, q u an d o estais presos a vossos deuses, estais presos à vossa p ró p ria ilusão. A m en te que se p re n d e u a u m a experiência, o que q u e r q ue faç a n u n c a p e n e tra rá as profundezas, o com pleto silêncio do espaço vazio; e isso faz p a rte d a m editação. Assim, p ela com preensão do in teiro processo d a experiência, vos torn areis capazes de negar co m pletam ente o “ co nhecido” . H á u m a v a rie d ad e de drogas que to rn a m a m en te sensível. T a is drogas exis­ tem a tu a lm e n te n a A m érica e n a E u ro p a, e provav elm ente chegarão até cá. P ro p o rcio n am elas u m a gran d e cap acid ad e p a ra perceber, de m odo inten so e vivo, a cor, a fo rm a, a lu z; e quem as to m a pode te r experiências ex trao rd in árias. M as o que se vê a p oder de drogas — as visões, experiências, sensações, a clareza, a beleza de u m tro n co de árvore ou de u m a to alh a de m esa — tudo está contido n a esfera do “ co nhecido” . Essas drogas n u n c a lib erta rão a m en te do “co n h e­ cid o” e, p o r conseguinte, n ão h á possibilidade de se to m a r existente o “desconhecido” . Estais, pois, com eçando a v er p o r vós m esmos — se estais escutando — q u e to d a espécie de pensam ento , p rá tic a , disciplina, de c a rá te r “rep e titiv o ”, to d a espécie de exp eriência só pode c ria r o desejo, a ânsia de m ais experiência; n u n c a vos satisfazeis com u m a só experiência, quereis sem pre m ais, e m ais, e m ais. — Estais, pois, com eçando a v er q u e não hã m étod o algum . M éto d o é o costum e, a tra d içã o de ex ecu tar u m a c e rta coisa repetidam ente , de seguir u m a c e rta id éia, u m a c e rta n o rm a de ação — e isso só serve p a ra em b o tar a m ente. P o r conseguinte, não há m étod o, não há cam inho. T e n d e a b o n d ad e de p resta r atenção. N ão h á c am in h o p a ra a ilum inação. C om eçais a p erceber q u e to d a fo rm a de experiência deve ser n e g a d a p e la com preensão, já q u e foda exp eriência em b o ta a m en te, já q u e q u a lq u e r experiência é u m a tra d u ç ão do “ conhecido”, do passado. A m en te ap risio n ad a n o tem po n u n c a u ltra p assa rá o tem po. Assim, ao negardes a au to rid ad e , ao negardes a discip lin a com o “ coisa co n h ecid a” , p ra tic a d a segundo u m m étod o, tendes en tão com ­ p reen d id o e re je ita d o co m p letam en te a experiência. 242 E m geral; somos educados n a concentração. E m criança, m a n ­ d a m concentrar-v os em vosso livro ; se quereis o lh a r p e la ja n e la p a ra ver os pássaros a voar, u m a fo lh a levada pelo vento, u m carro de bois que passa — o m estre vos diz: “C oncentrai-vos, p resta i a te n ­ ção a vossa ta re fa ” . Sabeis o efeito q ue isso pro d u z em vós? C ria um novo conflito, u m a co n trad ição . A crian ça ab sorv ida n u m b rin q u ed o está co n cen trad a. Deveis te r observado vossos filhos; q ü a n d o têm um b rin q u ed o , deixam -se absorver to talm en te nesse b rin q u e d o ; o b rin q u ed o se apodera deles. E cham ais isso “co n cen tração ” . V ós vos concentrais n u m a id é ia ; a m en te se põe a divagar em todos os sen­ tidos e tra tais de fixá-la nessa id éia; m as a m ente to rn a a fu g ir; de novo a fazeis voltar, e nov am ente ela foge. E aí está o conflito. A isso cham ais “ m ed ita ç ã o ”, m as é coisa tao “im a tu ra ”, tão infantil! M as, vós tendes de seguir cada pensam ento , co m p reen d er cada pensam ento q ue surge, e n ão dizer que to do pensam ento n ão “ c o n ­ c e n tra d o ” é distração. Se n ão o dizeis, e tra tais d e ex am in ar c a d a pensam ento, de segui-lo até o fim , n ã o h á en tão d istração. E p o rq u e não h á concen tração, estais co m p reendendo c a d a m ov im ento de pensam ento, c ad a m ov im ento d a m ente. Q u a n d o seguis c a d a m ovi­ m ento d a m ente, nesse seguir n ão h á distração. N ão h á d istração ao escutardes o corvo grasnar. D istração n ão existe q u a n d o escutais o b aru lh o do tráfego. M as h á distração se dizeis: “ Q u e ro co n cen trar-m e nesta coisa e re je ita r tu d o o m ais” . E n tão , “ tu d o o m ais” se to rn a u m a distração. Assim, a m en te que ap re n d e u a concen trar-se torn a-se u m a m en te estreita e em bo tada. N ã o estou rejeitan d o a con centração, que vou ex am in ar agora. Q u a n d o com preendeis o v e rd ad eiro significado d a concen tração, consistente em resistir e excluir, em fo ca r a m en te n u m a d a d a coisa, podeis v e r que esse fo car estreita a m ente, em bota-a. Esse focar é u m a espécie de resistência e, p o rta n to , g erad o r de conflito. E a. m en te em conflito n u n c a será cap az de a lc a n ç a r a pro fu n d eza, o êxtase d a m editação. C om preendendo -se o in te iro significado d a con centração, h á e n ­ tão atenção, lucidez (a w a ren ess) ; a atenção n ã o se foca, p o rém inclui tu d o : podeis escutar os pássaros, escu tar o b aru lh o d o tráfego, escu tar o orad o r, observar os m ovim entos d a folha levada pelo v ento , v e r o pôr-do-sol, a luz refletid a no edifício. Nessa lucidez não h á lim ites; ela tu do ab raça, tu d o inclui. E a m en te a te n ta, q u e tu d o recebe, é capaz de concentrar-se; m as essa co ncentração não é resistência, essa co ncentração é livre de conflito. O lh a i o q ue realm en te está o c o r­ ren d o ag o ra — se estais observando, O o rad o r está falan d o , expondo, 243 e ao m esm o tem po escutand o os pássaros, o tráfego, vendo a luz, a im ob ilidade d a folha, as estrelas — tu d o recebend o e, p o r conseguinte, n a d a rejeitan d o . A m ente qu e ex perim entou e co m p reen d eu a concentração, a experiência, p ercebeu, de m a n e ira clara, que não h á m étodo, n em sistem a, n em p rá tic a . Essa m en te se a c h a em estado de atenção. G om preende o que é a tran q ü ilid ad e. O cérebro, o cérebro m aterial, ^está co n sta n tem en te ativo. Ele p ro m a n a do tem p o ; o cérebro é re ­ su ltado dos instintos anim ais, das necessidades anim ais, dos impulsos anim ais. A com preensão de todo esse “processo” do cérebro é, com efeito, autocom preensão, p o rq u e é o céreb ro q ue tem os impulsos de am bição , de avidez, de inveja. O cérebro funciona p o r associação, funciona com base no m esmo p rin cíp io que o céreb ro eletrônico. É necessário, pois, co m p reen d er o “processo” do cérebro, fo r­ m ad o p o r in flu ên cia social, sendo, assim, resultado d a sociedade. O s instintos, os im pulsos, os tem ores, as ambições, a avidez, a in v eja — tu d o isso está con tid o n o cérebro. O cérebro pode fic a r com pleta­ m en te, ex tra o rd in a ria m e n te q u ieto —- n ã o à fo rça, n ão sob com pul­ são, n ão p o r m eio de disciplina, m as pelo co m p reen d er e fic a r livre d a am bição, d a avidez, d a inveja, do desejo de êxito, do m edo — que in clu i o m edo à op in ião pública, à “v irtu o sa im o ralid ad e” social — pelo ab an d o n o com pleto de tu d o isso. A m en te q ue busca a p az *— com o o faz a m aio ria de nós — ' só está buscan do a escuridão. M as, ao com preenderdes o inteiro processo d a e stru tu ra psicológica da so­ ciedade, que im p rim iu no cérebro todas as lem bran ças, associações, resultados — dessa com preensão provém a q u ietu d e do cérebro. Se n ão o houverdes com preendid o, se vosso cérebro n ão estiver com ­ p leta m e n te qu ieto — quieto , m as não narcotizado po r drogas, não h ipnotizado — não h av erá espaço n e n h u m n a m ente. V ós necessitais de espaço n a m ente. M as n ão pode existir espaço q u a n d o n ão h á q u ietu d e com pleta. Esse espaço n ão é im aginário, n ão é ro m ân tico , não é criado p o r insensatas idéias de esforço e re a ­ lização; ele se to rn a existente q u a n d o o céreb rb com preendeu e se to rn o u c o m p leta m en te quieto. H á , então, espaço no in terio r d a m ente. D eve h a v e r espaço n a m en te, e esse espaço é “inocência” . N e ­ n h u m a sociedade, n e n h u m pensam ento, n e n h u m sentim ento, n e n h u ­ m a experiência, po d e e n tra r nesse espaço, que é o “ desconhecido” . Ele n ão é o espaço qu e os foguetes descobrem , o espaço q ue se es­ ten d e acim a de nós. É u m espaço q ue n ã o p o d e ser desco berto; n ão podeis bu scá-lo ; n ão h á cam in ho a ele cond ucente. M as esse espaço existirá q u a n d o tiverdes com preendido to d a a e stru tu ra psicológica, 244 consciente e inconscien te, de vosso ser. Podeis com preendê-la in sta n ­ tan eam en te, n u m m om ento , sem necessidade das com plicações d a análise, d a in vestigação; podeis ch eg ar a ele im e d ia ta m e n te ; e q u a n ­ do chegais, lá está ele. Esse espaço é co m p letam en te vazio; n ele n e n h u m pensam ento, n e n h u m sentim ento po d e e n tra r. P en sam en to e sentim ento são reações do “ co nhecido” ; e o cérebro contém asso­ ciações que se fo rm a ra m e c o n stitu íram o “ eu” , sob as in flu ências sociais. P o r conseguinte, “lib ertação do conh ecido ” significa q u ie ta ­ ção do cérebro. O qu é a g o ra vou dizer acerca desse espaço n ão te rá significação p a ra vós, será p u ra teoria. N ão terá v a lo r p a ra vós, a n ã o ser p a ra efeito de rep etição ; m as o q u e se rep ete n e n h u m a significação tem . E n tre ta n to , falo-vos a esse respeito p a ra verdes que ta l espaço existe; p a ra o verdes in d iferen tem en te — e não p a ra o “ pegard es” e g u a r­ d a rd e s; é tão im possível “ g u a rd á -lo ” , com o ap risio n ar o vento n a m ão fechada. M as deveis conhecer a poesia de algo belo. P a ra se ver aquele espaço, necessita-se de e x tra o rd in á ria sensibilidade. O ra , nesse espaço n a d a existe, p o rq u e a m en te está vazia — n ã o h á , nela, n e ­ n h u m pensam ento, n e n h u m sentim ento. E p o rq u e está vazio, esse espaço contém energ ia -— n ão a en erg ia c ria d a p e la resistência. P o r­ que h á vazio, espaço , existe aq u ela energ ia que é criação. A criação é tam bém destruição. T o d a coisa cria d a é ò “c o n h e ­ cid o” . M as aq u ela criação , q ue é “ inocência” , é d e stru tiv a de tudo q u a n to é con hecido; o “ conhecido” não p o d e en tra r. E, p o rq u e é criação e ao m esmo tem po destruição, há, nela. A m or — n ão o a m o r d a m em ória, o am o r de vosso m arid o ou esposa, o am o r de vossos filhos; tais sentim entos são apenas a reação de vários desejos, im p u l­ sos, am bições, e preenchim entos. N aq u ele am o r não h á divisão: é A m or. E a m en te ta n to pode a m a r u m só com o m uitos, pois n ão h á divisão nesse Am or. A m ed itação, pois, é o florescim ento inicial da b ondade. Q u a n d o a bo n d ad e floresce p ro fu n d a m en te em nós, sem q ue n a m en te su b ­ sista n e n h u m a raiz do “e u ” , de autocom paixao, de m em ória, desse sim ples com eço surge a im ensidade que n ão é do tem po, que n ão tem com eço n em fim , E isto é o E tern o , o Im ensurável. 11 de m arço de 1962 . 245 A QUESTÃO DA SIMPLICIDADE £ (B o m b a im — V III) E s t a é A ú l t i m a p alestra. N esta tard e , vou fala r sobre a m en te religiosa e a m en te nova. E, p a ra exam in arm os este assunto — e desejo fazê-lo com c e rta p ro fu n d eza — acho necessário com ­ p reenderm os o significado das palavras. U sam os as p a la v ras p a r a com unicação; m as, as p alav ras se to r­ n a m b arreiras à com unicação q u a n d o aceitam os a acepção com um de u m a p a la v ra , e esta se to rn a o p a d rã o de nosso pensar. V o u em ­ p re g a r a p a la v ra “religioso” n u m sentido todo diferente. A m en te tem c a p acid ad e p a ra agir to talm en te, n ão em fragm ento s, n ão em partes. A m en te q ue é capaz de ver, no “ im ed iato ” , n o presente, o todo e n ão apenas a p a rte ; a m en te capaz de com preender, no agora “ im ed iato ” , a to talid ad e d a existência —- essa m en te encerra, em essência, a beleza e a lucidez do am or, o único que pode u n ir a ação ao T odo. E é necessário co m p reen d er essa q u alid ad e d a m ente religiosa, c u ja ação não é div idid a, fracio n ad a, frag m en tad a, porém total. E m si, essa m en te é livre d a “ideação” com o m em ória, como efeito do “ eu” . Ê o “ eu” q ue fracio n a a ação; é o “e u ” q ue im pele à aquisição. Esse im pulso de apego jam ais co m p reen d erá a ação to tal, p ró p ria d a m en te religiosa. Assim, estou em pregando a expressão “m en te religiosa” p a ra designar um estado de ação q ue u ne todas as diferentes ações d a vida. Essa m en te n ão se a c h a div id id a em “ m u n d o ” e “ n ão m u n d o ” , “ exterio r” e “in te rio r” . N ão h á “m u n d o exterio r” e “ m undo in te ­ rio r” , H á só u m m ovim ento, o ra externo, o ra interno, qual o d a m aré, que “ sai” e to rn a a “ e n tra r” . A m en te religiosa tem a facu l­ d ad e de co m p reen d er o exterior e, com essa com preensão do exterior, passar, n a tu ra l e facilm ente, ao in terio r, sem divid ir o m u n d o em “ ex te rio r” e “ in te rio r” . 246 M as, p a ra se co m p reen d er a to talid ad e d a m en te religiosa, é p re ­ ciso com eçar a inv estig ar os vários e com plexos problem as do viver. Nosso viver diário é ex trem am en te con fuso; é u m viver d e conflito, d a aflições in úm eras, de contradições, lu ta p e re n e ; assim é nossa vida. E é só essa a v id a q u e conhecem os. N e n h u m a ação conhecem os que n ão seja reação. Essa reação é q u e gera sofrim ento; e, em v irtu d e desse sofrim ento, m ais se a c en tu a a divisão em “ exterio r” é “in te rio r”, “ilusão” e “ realid ad e” . Só h á ü m m undo, e não “m u n d o exterio r” e “m u n d o in te rio r” . E, se n ão com preendeis a ação to ta l d a m en te religiosa, p o r m ais q ue vos esforceis, po r m ais revoluções que façais — econôm icas, sociais, de q u a lq u e r espécie — p o r m ais que planejeis, a p ro sp erid ad e d aí resu lta n te se to rn a rá ap en as um m eio de d e stru ir a lib erd ad e; e, em bora nos seja necessária, a p ro sp erid ad e se to rn a en tão u m m eio de segurança psicológica. E a m en te que, no sentido psicológico, se a ch a em segurança, n ao é u m a m en te religiosa. Assim, p a ra poderm os investig ar a n a tu re za d a m en te religiosa — aquele estado em que a m en te é livre do conflito do “ eu” — devem os ex am in ar a questão d a sim plicidade, descobrir o q u e é “ ser sim ples” ; nao a idéia d a sim plicidade, o id eal d a sim plicidade, n a o o símbolo d a sim plicidade, p o rém o v e rd ad eiro estado d a m en te n a realid ad e simples. C om a p a la v ra “ sim ples” quero sig nificar: en fre n ­ ta r ca d a fato d a v id a de c a d a dia e de c a d a m in u to sem n e n h u m a com plexid ade; o lh ar os fato s sem o com plexo processo do p e n sa ­ m en to ; o lh ar os fatos sem “id eação ” , sem ideal. Essa sim plicidade n ao está m eram en te n o m odo de tra ja r, no a n d a r de tan g a, no to m a r u m a só refeição d iá ria ; no u sa r longas barb as ou a c a ra to d a ra p a d a . R efiro-m e à sim plicidade q u e tem precisão n o pensar, q u e n en h u m conflito tem , h e n h u m a ilusão, n e n h u m fu tu ro , q u e e n c a ra o fato, só o fato , n a d a m ais senão o fato. Essa m en talid ad e, essa a titu d e , p e ra n te a vida, traz consigo u m sentim ento de inefável deleite. Poucos de nós somos felizes, n a tu ra l, fácil e esp ontaneam ente felizes; tão com plexos somos, tao num erosos são os nossos problem as! T u d o o q u e tocam os com a m ão , o u com a m ente, se to rn a feio. E q u a n d o q u a lq u e r coisa se to m a seca, v u l­ gar, n ão h á m ais sensibilidade; p o r conseguinte, n ão h á apreciação das coisas com o sã. Só no a p re c ia r as coisas com o são, no enfrentá-las e m sua realid ad e, só daí, dessa com preensão, pode v ir a v erd ad eira revolução. Essa revolução n ao se opera consoante o p a d rã o estabelecido p o r o u tre m — pelo econom ista, pelo refo rm ad o r, pelo político. A rev olução a q ue rae refiro só nasce q u an d o sois cap az de ver o fa to 247 e de ag ir de m o m en to a m om ento em con fo rm id ade com esse fato. Assim, vereis que, dessa sim plicidade, n ão só v em u m ex trao rd in ário sentim ento de desafogo, de alívio, m as tam b ém p ro fu n d o deleite. E, sem essa alegria, sem essa centelh a, sem essa canção no coração, a v id a se to rn a ex trem am en te vazia. Podeis ser m u ito talentoso, possuir m u itas casas, o c u p a r posições im p o rtan tes, in flu e n cia r m ilh ares de pessoas p o r m eio d a im p ren sa; m as, atrás dessa fa c h a d a de palavras, aposição, prestígio, tu d o é vazio, oco. E é relev an te, p a ra o indivíd uo, p a ra c a d a u m de nós, possuir esse sentim ento de in fin ita alegria. E le vem , n ão p o r terdes u m bom em prego, p o r terdes feito u m casam ento feliz qu in feliz; vem sem n e n h u m a razão. E essa alegria existe; m as só podeis en co n trá-la “no escuro” , sem o saberdes, ao com preenderd es a sim plicidade d a v irtu d e. À v irtu d e n ão é u m a coisa p a ra se a lc a n ç ar m ed ia n te esforço — p o r­ que, então, de ix a de ser v irtu d e. Q u a n d o u m hom em vaidoso “ p ra ­ tic a ” a h u m ild ad e, essa h u m ild ad e é a p ró p ria essência d a v aid ade. M as, a v irtu d e é o rd em : o rd em n a m en te. E n ão podeis te r o rd em se essa o rd em é apenas u m p a d rã o sancio nado p e la sociedade, se é u m a m e ra p rá tic a , u m h á b ito ; a m en te se to rn a, então, em botada. E u m a m en te e m b o tad a n ão é v irtu o sa; p o d e rá te r hábito s excelentes, n u n c a irritar-se, m ostrar-se “v irtu o sa” e observar os preceitos d a sociedade; m as, essa m ente n ão é sensível e, p o r conseguinte, n ão é u m a m en te virtuosa. T e n d e a b o n d a d e de p restar ate n ç ã o ; m as isso n ão significa que, fazendo-o, vos tornareis rep e n tin a m en te virtuosos. Sereis virtuosos, de rep en te, n o m esm o instante, se não estais seguindo o p a d rã o de u m a sociedade feia e c o rru p ta ; desse m odo, tereis o rd em e espaço m en tal. Essa o rd em traz eficiência. A m en te eficaz no pensar, isenta de conflito, essa é q u e é a m en te virtuosa, a m en te q u e vive com v ir­ tuosidade. Q u a n d o a v irtu d e é resultado de conflito, resultado d e constante lu ta , ou seja d a b a ta lh a dos “opostos” , a m en te n ão só se to rn a insensível, m as é tam b ém in cap az de voo célere. Só a m en te eficiente tem presteza p a ra ver as coisas num clarão. P o rq u e a v er­ d a d e só p o d e ser p erceb id a n u m cla rão ; a verd ad e n ã o tem conti­ n u id ad e. O qu e tem co n tin u id ad e p erten ce ao tem p o ; e o que é do tem p o n ã o tem espaço. Pois só a m en te que tem espaço po d e ver, n u m clarão, o qu e é verd adeiro. Só a m en te v irtu o sa tem espaço ; p o r conseguinte, som ente ela pode, n u m clarão, v er a Im ensid ade, o E tern o, A v irtu d e n ão é p ro d u to d a m em ória. Se a v irtu d e é p ro d u to d a m em ó ria é, então, u m a reação à m em ó ria; “ reação ” 248 é reflexo d a m em ória. A v irtu d e reco n h ecid a p e la sociedade, pelas ordens religiosas, po r grupos, g era conflito; sendo assim, a m en te nao é simples. Gom o sabeis, o m u n d o se está to rn a n d o c a d a vez m ais com ­ plexo. Vossas atu ais relações se estão to rn a n d o c a d a vez m ais com ­ plexas, e n ão m ais simples. A com plexid ade d a v id a só po d e ser co m p reen d id a q u a n d o a considerais de m an e ira simples, bem sim ­ ples. A v id a n ão é apenas vossa existência d iária — ir p a ra o em prego, discutir com a esposa ou o m arid o , os aborrecim ento s, as angústias, o conflito d a existência de c a d a dia. A v id a inclui n ão só* o passado, q u e se p ro je ta no fu tu ro , m as tam b ém m orte, felicidade, e algo q ue se a ch a além do tem po, além do pensam ento, do sentim ento. E é p re ­ ciso co m p reen d er essa im ensa to talid ad e d a vida — não só o “c a n ti­ n h o ” de vossa existência, a p e q u e n a porção de te rra q ue cham ais vossa p á tria , o pequeno tem plo construído p ela m ão, e sem n en h u m significado. A v ida é u m a coisa ex trao rd in ária, u m a coisa to ta l, na q u a l tu d o está contido. E, se n ão com preenderd es a im ensidade da vida, que tu d o ab a rc a — c ad a grito, cada lágrim a, c ad a canção de ave, as angústias e sofrim entos e agitações d a existência — se n ao com preenderdes essa totalidade, n u n c a tereis u m clarão d aq u ela im ensidade. P a ra com preenderd es esta coisa e x tra o rd in á ria q u e se c h a m a a v id a — com suas necessidades sexuais, suas am bições, im pulsos, frustrações, velhice, declínio, d eterio ração — deveis consid erá-la de m a n e ira bera simples. E aí é que está a nossa d ificu ld ad e; p o rq u e somos entes hum an os tão com plexos e ta n ta s idéias tem os. Somos m uito talentosos, m as somos entes “ de segu nda m ã o ” ; n ã o h á n a d a orig inal em nós; e é a o rig in alid ad e que lev a à sim plicidade, e nao a excentricid ade, a cap acid ad e de in v en tar. M as, essa sim plicidade é a sim plicidade d a m en te que co m p reen d eu todas ás facetas d a vida — n ão a vida técnica, a v id a de conhecim entos acum ulado s, p o rq u e o saber e o conhecim ento técnico podem expand ir-se in d efin id a­ m ente. Sabereis m ais e c ad a vez m ais a respeito das coisas, a respeito de V énus, a respeito d a L u a ; m as sabereis c ad a vez m enos sobre vós, sobre o que sois. O q ue sois é a to ta lid a d e d a vida. P orque sois entes lastim áveis, infelizes, po r causa das angústias, do “sentim ento de c u lp a ” , e das agonias que sofreis, em silêncio ou ab ertam en te , p o r­ q ue sois assim, p a ra com preenderd es a vid a, deveis p rim eiram en te co m p reen d er a vós mesmos. Podeis co m p reen d er a vós m esm o, que sois u m a en tid ad e com ­ p lex a , observando-vos com to d a a sim plicidade. E, com essa percep249 çao, esse ver, esse escu tar, com preendereis. Deveis escu tar a vós m esm o, n ão a vosso “ E u S u p erio r” — n ão h á n e n h u m “eu superior” , n e n h u m A tm a n ; isso é in ven ção d a m ente, resultado do pensam ento, do pensam ento qu e é reação d a m en te, das coisas q u e fo ram . Assim, q u a n d o vos olhais c a d a dia, em c a d a p a la v ra que pronunciais, q u a n ­ do buscais o c am in h o p a ra as profu ndezas de vosso coração, então, desse o lh ar, desse ver, desse escu tar e ouvir, vem a simplicidade,* Se dessa sim plicidade vem a le g ria ; e isso é virtude. A m en te religiosa n ão tem realm en te n e n h u m a experiência. Im p o rta co m p reen d er isso, p o rq u a n to todos desejam os experiências e m ais experiências. E to d a experiência, com o assinalei o u tro dia, é “resposta” a u m “ desafio” , de acord o com vosso fu n d o , vosso condi­ c io n am en to ; p o r conseguinte, c a d a exp eriência fortalece aquele con­ dicionam ento, e n ão lib e rta a m ente. M as vós deveis co m p reen d er a n a tu re z a de vosso p ró p rio pensam ento , a m an e ira com o agis, a m a ­ n e ira com o olhais o ro sto do m oto rista de ônibus. A lgum a vez olhaste p a ra o m o to rista do ônibus? A lgum a vez olhastes p a ra o seu rosto? O bservai-o, u m a vez ou o u tra , ao irdes p a ra o escritório. V ede com o é m acilento, com o parece cansado , esgotado! P e rco rrer o m esm o cam in ho, “p a ra cim a e p a ra baixo” , todo o santo dia, m ês após mês — nisso n ão h á alegria, não h á n a d a senão h á b ito m ecânico e, em tais condições, n u n c a po de um hom em observ ar as coisas q u e o ro deiam . Isso ind ica, p o r certo , u m a m en te que se to rn o u calejad a, em botada. E n tre ta n to , essa pessoa fala a respeito de D eus, d a V e r­ dade, do desejo de com preender, m as não está cônscia das coisas existentes em re d o r de si, de sua m an e ira de se vestir, sua m an e ira de falar, sua m an e ira de o lh ar os indivíduos im p o rtan tes e os não im portantes. Se n ão conhecerdes tu d o isso, se não lançard es a base p a ra tud o isso, não podereis ir m u ito longe. E v irtu d e é o percebim ento do presente. V ede, estam os sem pre vivendo no passado e no fu tu ro . P rin ­ cipalm ente q u a n d o vos tornais m ais velho, o passado assum e ex trao r­ d in ária significação, e o fu tu ro é o q ue cham ais “m o rte ” . P o r essa razão, volveis ao passado e evitais o fu tu ro ; pensais n a p re té rita feli­ cidade, n a ditosa ju v e n tu d e ou n a lam entável existência que levastes. V ivem os, assim, en tre o passado e o fu tu ro . Se a in d a sois jovem , tendes a in d a o fu tu ro p a r a dele fazerdes alg um a coisa, e o m oldais conform e o passado. Estais, pois, aprisionado en tre o passado e o fu tu ro . O bserv ai vossa p ró p ria m ente, vossa p ró p ria vida. N ao vos lim iteis a ouvir o q ue estou dizendo, m as observai efetiv am ente a vossa existência. V ereis com o está div id id a en tre o passado e o fu tu ro ; e, s,e não está, isso significa q ue viveis m eram en te no “im ed iato ”, no 250 d ia a dia, e p ro c u ra n d o tira r d aí o m elh o r proveito possível. P orque po d e v ir u m a g u erra, po d e v ir.u m a revolu ção política, u m a revolução econôm ica, u m a com oção social; q u a lq u e r coisa po d e acontecer a m a ­ n h ã ; o a m a n h ã é ' incerto. P o r conseguinte, se n ã o viveis en tre o passado e o fu tu ro , viveis apenas p a r a hoje. H á m uito s q u e vivem p a ra ho je e q u e ch a m a m a si pró prios p o r diversos nom es. E q u an d o , consciente o u inco nscientem ente, p rocurais tira r de h oje o m elh o r pro v eito possível, estais fad a d o ao desespero. E scutai o qu e estou dizendo. Achais-vos em desespero se viveis n o passado o u no fu tu ro ; estais tam b ém em desespero, se estais viv endo u n icam en te p a r a h o je — com o está fazendo a m aio ria das pessoas; esse é o m un d o político. E ste p o b re país está sob o contro le dos políticos; e os políticos só têm interesse n o “ im ed iato ’1. Esse im e­ d iato po de ser pro lo n g ad o p o r certo tem po, m as suas fontes estão a in d a no “ im ed iato ” . A m a io ria das pessoas deseja ser feliz im e d ia ­ tam en te , deseja êxito im ediato . Q u a n d o só nos interessa o “ im ed iato ”, to das as m anifestações de nossa existência são em term os d o im ediato . F o rcejan d o pelo “im ed iato ”, encontrareis, in ev itavelm ente, in fin ito desespero; e, p o r causa desse desespero, inventais filosofias, e o tra n s­ form ais em virtude. E q u a n to m ais intelectu ais, q u a n d o m ais in stru í­ dos e ilustrados fordes, ta n to m ais sup erficial se to rn a rá o “ im ed iato ” . Assim, q u e r vivais no passado, q u er no fu tu ro , q u e r vivais apenas para hoje , todos estais aprisionados n u m a v id a de aflição, de a g ita ­ ção, n u m a v id a ex trem am en te superficial. P o r “ sup erficial” não estou e n te n d en d o “ alim entação, ro u p a e m o ra d a ” , pois necessitam os des­ sas coisas; refiro-m e à superficialidade psicológica d a existência. Porém , se com preendeis o tem p o passado, o tem p o p resen te e o tem po fu tu ro — causadores de sofrim entos e desespero, de ansiedade e “c u lp a ” — n ão a pouco e pouco, n em ex am in an d o ou a n a lisan d o o passado, m as vendo a coisa com o u m todo, podeis, então, v er a to ta ­ lid ad e do tem po , qu e estava div id id o em passado, fu tu ro e o agora. Se virdes isso, se o com preenderd es realm en te, dessa m an eira, com o coisa to tal, vereis qu e com essa com preensão, a m en te se to rn a livre do passado, do presente e do fu tu ro . E a m en te deve ser livre. É dessa lib erd ad e q u e nasce o in d ivíd u o . É de im ensa im p o rtâ n c ia q u e sejais u m ind ivíd u o , p o rq u a n to os governos, a educação, a sociedade e a religião vos estão o b ri­ g a n d o a aju star-v os, estão fazendo de vós u m a “m á q u in a de c re r” ou de “ não c re r” . Sem pre pensam os em revo lu ção em term os de com oção econôm ica, social o u estru tu ral. M as to d a rev irav o lta é u m reflexo do passado e, p o r conseguinte, in stitu i u m p a d rã o sem elh ante (ao do p a ssa d o ), p o rém com “ outros hom ens” , com o u tro sistem a de id éias; m as, é sem pre o m esm o padrão. N ós estam os falan d o de u m a m en te religiosa q u e com preendeu sua p ró p ria e to ta l e stru tu ra , seu p ró p rio estado e, p o r conseguinte, é capaz de negar . V ós deveis n e g a r; deveis ser indivíduos q u e dizem “n ã o ”, n u n c a “ sim ” . Sabeis q u a n to é difícil dizer “n ã o ” — n ão só a vossa esposa ou vosso m arido, pois isso é relativ am en te fácil; m as dizer “ n ã o ” à sociedade, dizer i “n ã o ” a vossa am bição, dizer “ n ã o ” a vossos tem ores, dizer “ n ã o ” à a u to rid ad e. Q u a n d o dizeis “n ã o ” , entendeis “n ã o ” — term in a n ­ tem ente “ n ã o ” ! Se disserdes “ n ão ” , descobrireis com o isso é ex tra o r­ d in ariam e n te com plexo. M as, dizendo “ n ã o ”, descobrireis tudo a respeito de vós m esm o, o de q ue sois feito, com o funciona vosso pensam ento, os pro fu ndos recessos, o p ro fu n d o e n u n ca “ fre q ü e n ta d o ” espaço existente em vossa m en te, o q u a l n u n c a exam inastes. Só q u a n d o descobris a vós m esm o, podeis “ em erg ir” d a sociedade, torn ar-v os u m indivíduo. Ao dizerdes “n ã o ” vereis que d aí nasce energia. V ós necessitais de energia. T en d es energ ia p a r a .. ir ao escritório todos os d ias; achais isso absurdo, m as ides. Q u a n d o exerceis vossas ocupações, q u a n d o falais, q u a n d o viajais de ônibus ou em vosso p ró p rio carro — isso é u m a fo rm a de energia. A v id a é energia. C a d a pensam ento , c a d a sen­ tim ento é u m a fo rm a de energia. M as a energ ia que nós mesmos geram os e cultivam os nasce d a resistência — do resistir, c o n tra d ita r, aquiescer, im ita r. P ela resistência, p e la repressão, tendes energ ia; é só essa a energ ia q ue conhecem os; se vos em p u rro , em p u rrais ta m ­ bém , resistindo. M as essa energ ia é com pletam ente diferente d a energ ia de q ue estam os falando . A energ ia a q u e nos referim os n ão p ro m a n a de resistência. R e ­ sistência im p lic a sem pre m o tivo , ou seja, m edo, solidão, sentim ento de c u lp a o u a lg u m a fo rm a de apego, etc. P o r favor, exam inai vossa p ró p ria m ente, e vosso coração, e vereis. V ós tendes energ ia g erad a p o r alg u m m o tiv o ; p o r conseguinte, essa energia en c o n tra resistência e com eça, assim, a b a ta lh a em nossa vida. Essa é a ú n ic a fo rm a de en erg ia q u e conhecem os. As pessoas cham adas religiosas, aquelas que estão p e ren em en te em busca de D eus, sem n u n c a e n co n trarem D eus, cu ltiv am a en erg ia p e la negação com m o tiv o ; pensam que n ascerá energ ia se se to rn a re m celib atárias, se n egarem a v id a, o processo n a tu ra l d a vida, retiran d o -se p a r a u m m osteiro e p ra tic a n d o “ boas o b ras” , pelo controle de si m esm as. Isso, efetiv am ente, dá energ ia; m as essa en erg ia nasce d a resistência, nasce do conflito, nasce d a repressão. A repressão gera e x tra o rd in á ria energ ia, tal com o o v ap o r sob pressão; m as essa repressão se to rn a “ religiosa”, e fica associada 252 a Jesus, K rish n a o u outro . E n tre ta n to , in te rio rm en te, essa energia g era in fin ita aflição. Se escutardes o. qu e estou dizendo, vereis com o é p ro d u z id a a vossa energia. Q u a n d o descobris, desvendais os vossos m otivos e deles vos livrais, e, então, dessa lib erdade, pro v ém u m a energ ia de espécie diferente. Essa energ ia nasce sem m otivo, p o rq u e ela é a v e ra essência de u m a m en te de todo vazia — m as n ão “em b ran co ” . A m en te vazia n ão tem resistência; p o rq u e todo pen sam en to é resistência. É essa a energ ia qu e deveis ter, e n ão a energ ia p ro d u zid a p o r m otivo, c o n ­ flito, contradição, tensão. Po rque essa energ ia, com o podeis ver, tra z in a u d ita aflição, sofrim ento. Assim é a v id a, vossa existência d iária. V ós ten des de co m p reen d er isso, m as sem te n ta r a c h a r a q u e la energia não m otivada, pois n ão podeis achá-la. Deveis ser liv re de resistência. E só podeis ser livre de resistência ao serdes capaz de olhar a v id a de m an e ira simples, o lh a r a vós m esm o sem n e n h u m a id éia, n e n h u m conceito, n e n h u m a fórm ula, n e n h u m a co m p aração : olhar, sim ples­ m ente. D aí su rg irá — com o vereis, se alcançardes este p o n to — a m en te livre, que n ão é resu lta d o d e n e n h u m a busca. C om o sabeis, todos vivem os buscando — cad a u m de nós. B us­ cam os a verd ade, a felicid ade, a fin alid ad e d a vida. Q u e im p lic a esse buscar? Só podeis p ro c u ra r algo que perd estes ou algo que já co n h e­ ceis; desejais achá-lo. Q u a n d o dizeis q ue estais em busca d a V erd ad e, isso é p u ro contra-senso. Se dizeis tal coisa, já deveis ter pro v ad o o sabor d a v erd ade, te r com preendido o que é a v erd ade. E, se estais a buscá-la, deveis en tão tê-la p e rd id o ; m as a v e rd a d e n ão é coisa que se possa p erd er, e não é possível e n co n trá-la p o r m eio de busca. T o d a busca deve cessar com pletam en te. E sta é a beleza d a verdade. N o m om ento em que com eçais a buscar, vede-vos em co n flito ; no m om ento em q ue com eçais a buscar, pondes em ação a energia d a fuga — fuga ao fato, fu ga ao que sois. Assim, a m ente q u e busca n u n c a a c h ará , p o rq u e a q u e la Im e n ­ sid ade n ão é reconhecível. O que podeis reco n h ecer é coisa já co n h e­ cid a — reconheceis vossa m u lh er, vossos filhos, vossa cid ade, p o rq u e já os conheceis. M as o que já sabeis a respeito d a v erd ad e não é a v erd ad e. A v erd ad e está além do tem po. T o d a busca supõe distância — disto até aquilo. Assim se gera o tem po. A m en te q u e busca a verd ad e n u n c a a ac h ará . Escutai, p o r fav or! P ro cu rai c o m p re en d e r isto de u m a vez p o r todas! Se o fizerdes, n u n c a m ais p ro cu rareis a verdade. Q u a n d o vos pondes a buscar, a busca se to rn a u m pro blem a. N ão deveis te r prob lem as n a vida, n ão deveis te r u m único pro- b lem a, n em sequer o p roblem a de D eus, ou o p roblem a d a verd ade, ou o p ro b le m a d a felicidade. N ão deveis te r p roblem a nenhum , p o rq u e tod o p ro b le m a im plica lu ta , conflito. E a m en te em conflito n u n c a será capaz de co m p reen d er o que é a v erd ade. T ra ta i de resolver o p ro b le m a p ela com preensão daquilo q u e o p roblem a im plica, d a raiz do problem a. N ão tenteis resolvê-lo, n ão tenteis analisá-lo, n ã o tenteis d a r-lh e solução. M as estudai-o, penetrai-o, i olhai-o, com todo o vosso ser. A m en te q u e tem pro blem as n u n c a será cap az de com preen são e, p o r conseguinte, n u n c a será livre. N ão vou m ostrar-vos com o ev itar os problem as, p o rq u e cada dia ê u m problem a. M as, se estais a te n to , v erd ad eiram en te a te n to , em c a d a m in u to , n a d a se to rn a rá u m problem a. H á u rn a constante observa­ ção, u m a co n stan te atenção, que é a “ resposta”, não d a m em ória, m as de algo m u ito m ais signficativo, m u ito m ais am p lo e p ro fu ndo. A m en te religiosa, pois, n ão é u m a m en te q u e busca. A m en te religiosa está livre de todos os pro blem as e, p o r conseguinte, pode e n fre n ta r os problem as liv rem ente, n u n c a oferecendo solo pro pício a u m problem a, p a ra arraig ar-se n a m ente. T u d o isso p o d e rá p arecer dificílim o. M as vossa v id a é difícil. É dificílim a a v id a que levais: o incessante ir e v ir, o m o rrer, o v iver d ia p o r dia, sem n en h u m a certeza, n e n h u m a segu rança, em desespero. Ê dificílim a a v id a q ue levais. M as, h á u m a v id a q ue n ão é difícil, em absoluto. Ê isto m esm o q ue qu ero dizer : essa v id a n ão é difícil, absolutam ente, ó que tendes de fazer é só p re sta r atenção, p re sta r a te n ção ao que estais fazendo. A atenção é v irtu d e, a atenção é ord em , a ate n ção d á eficiência. Po­ deis ser cozinheiro, ou b u ro cra ta , ou fu n cionário do governo, isto ou a q u ilo ; q u an d o prestais atenção, com pletam en te, com todo o vosso ser, há v irtu d e. V irtu d e n a o é essa coisa insíp id a que a sociedade vos estim ula a cultivar. C om o disse, p a ra a m en te religiosa é o am o r que in te g ra to d a ação. P o rq u e vê c ad a v erd ade, m om ento p o r m om ento, a m ente religiosa possui aq u e la q u alid ad e de am o r q ue in te g ra a ação. N ao sei se alg um a vez já am astes alguém , se am astes com todo o vosso ser, com vosso coração, vossa m ente, vosso corpo, vosso pensam ento, vosso sentim ento, com tu d o o que tendes. Se j á am astes tão com ­ p le ta e to ta lm en te , sabereis, então, em v irtu d e desse estado, que em c a d a ação — q u a lq u e r q u e ela seja, n en h u m conflito h á, n en h u m problem a. C a d a ação é integral , n ão provém de id éia algum a, n ão se a d a p ta a n e n h u m prin cíp io vosso. Po rque só a m en te religiosa com preende a to ta lid a d e d a existência, que tão terriv elm ente tem os 254 fracio nado. Só a m en te religiosa possui essa q u alid ad e de am o r e, p o r conseguinte, po d e viver neste m undo. E o am or é qu e é cap az de destruição. Vós deveis d estru ir — d estru ir a sociedade; m as isso não significa d e stru ir edifícios, jo g a r bom bas sobre gov ernantes e políticos; estes têm seu p ró p rio destino: deixai-os nas m ãos dele. M as a destruição, a destruição psicológica de tu d o o q u e a sociedade fez de vós, essa é necessária. E só podeis d estru ir co m p letam en te q u a n d o existe a q u a lid a d e da com paixão. Só se to rn a existente a com paix ão com a to ta l com preensão da vida. Sem essa com preensão, podeis ser m uito atenciosos, m uito bondosos, m u ito delicados; m as, delicadeza, gentileza, b ondade, n ã o é am o r; faz p a rte do am o r, m as n ão é o am or. N ão tem am o r a m en te que não é a te n ta, que não olha p a ra si m esm a e p a ra o m eio em q ue vive. O am or n ão é u m a p a la v ra, p o rém u m estado real. Se n ão h á am or, n ão podeis destruir; só podeis torn ar-v os u m reform ador. O a m o r e a destruição estão sem pre unidos, e essa u n iã o é c ria ­ ção. Estas três coisas — criação, fin d a r o u m orrer, e a m o r — estão sem pre unid as, são inseparáveis. Essa criação — que n ã o significa p in ta r quadros ou g e ra r filhos — é energ ia sem m otivo. Essa m o rte está fo ra do tem po. E com ela vem o am or. — Só en taõ se po d e ver o que existe além do tem po, além de todo o pensam ento. Só então é a m en te capaz de ver, “n u m relâm p ag o ”, aquilo a q u e se não pode d a r nom e, E h á, então, o E tern o q ue n ã o é invenção d a m ente, invenção do G ita} d a Bíblia. T en d es de p ô r de p a rte todos os livros, todas as idéias, todos os ideais, to das as tradições; ficar co m p leta ­ m en te nu , vazio, sozinho. Só en tão se p o d e ver aq u e la R ealid ade. 13 de m arço de 1962. 255