1
Quem são os autores dessa Cartilha?
O projeto da Cartilha ‘’Saúde da População em Situação de Rua’’ foi
elaborado durante Encontro Regional dos Estudantes de Medicina (EREM) ocorrido
em Botucatu em junho de 2017. Esse evento, organizado pela Direção Executiva
Nacional dos Estudantes de Medicina (DENEM), reúne os e as estudantes das
escolas médicas dos estados de Paraná e São Paulo. Diversas oficinas, mesas e
fóruns ocorrem durantes os dias do evento e uma dessas oficinas foi ‘’Saúde da
População em Situação de Rua’’. Com cerca de 70 pessoas participando, o debate
foi rico e com muita troca de conhecimentos e experiências. Foi consenso durante a
discussão que nós, enquanto estudantes, deveríamos expandir os assuntos para
além da Oficina, do EREM e da Universidade.
Pela dificuldade territorial, participantes convidados e de cidades e estados
diferentes, optamos pela construção de um grupo de trabalho para criação de uma
Cartilha de formação e discussão sobre o tema. Convidamos o Movimento Nacional
da População de Rua (MNPR), assim como outros profissionais e militantes da
População em Situação de Rua, para construir esse material junto com o grupo de
trabalho constituído. O intuito é fazer o produto final chegar às escolas médicas, às
coordenações de outros cursos da saúde e às secretarias de saúde municipais,
estaduais e ao Ministério da Saúde.
2
COLABORADORES
Adam Wolff Pomim
Luis Eduardo M Martins
Alcyone Januzzi
Manoela Fidelis Batista Leite
Amanda Rodrigues Correa Frota Gomes
Manuela Maria Insuellos Besen
Amanda Toninato Tavares
Marcela Tengler C. Takahashi
Arthur Vizzotto Zolin
Marcos Vinícius Comparoni
Débora Anhaia de Campos
Mariana da Cruz Torquato
Erika Plascak Jorge
Mariana Souza de Paula
Gabriela de Araujo
Mariana Valsirolli de Moura
Gabrielly de Oliveira Nascimento
Nicole Orlandini Costa
Henrique Caetano Mingoranci Bassin
Orlando Henrique Ferreira da Silva
Hérica Dias Brito
Paula Foresto Crivelini
Horácio Leite Ferreira
Rosana Giannoni
José Carlos Varella Júnior
Sara Gladys Toninato
Julia Jorge Prevelatto
Sarah Beatriz Coceiro Meirelles Félix
Julia Miranda Menezes
Stella Marinelli Pedrini
Julio Canos Neto
Thais Machado DIas
Kátia Figueira de Oliveira
Thamires Miyako Ito Sigole
Lucas Campos Studart
Vinícius Imakawa de Lucca
3
Carta ao leitor
Tratar do tema de populações
historicamente negligenciadas pelos
Sistemas de Saúde (e aqui já se deixa a
marca de não utilizar o termo “populações
vulneráveis”, uma vez que a
vulnerabilidade é condicionada pelos
mecanismos da macroestrutura social
desigual e excludente – a determinação
social do processo saúde doença) é um
desafio contra-hegemônico nos meios de
formação, de modo que informar sobre tal
assunto torna-se cada vez mais
imperativo. Parte dos “esquecidos” são os
indivíduos em situação de rua, cuja
definição perpassa por três conceitos:
sobrevivência por meio de atividades
produtivas desenvolvidas nas ruas;
vínculos familiares interrompidos ou
fragilizados; não referência de moradia
regular. Ainda em subnotificação extrema,
o Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (IPEA) apontava em 2015 sobre
a população em situação de rua que:
24,8% não tinha algum documento e
61,6% não exerciam direito de voto.
Indicativos de que a maioria não possui
expressão e voz políticas e incomoda pelo
simples fato de existir – vista como o devir
da loucura, do sujo, do não civilizado
foucaultiano. Resultado e condicionamento
disso (o incomodar), eles sofrem violências
diversas e (num jogo recíproco de
distanciamentos e medos) têm dificuldades
de acesso à Saúde. E quando há
oportunidade para isso, não se sentem
num acolhimento adequado, vítimas de um
desespero crônico de marginalização que
não ofereceu saídas.
A partir de 2009, com a instauração da
Política Nacional para a População em
Situação de Rua e a expansão (ainda que
pífia) dos ambulatórios de rua; assistentes
sociais, médicos, enfermeiros, psicólogos
e outros profissionais da área em contato
com essa população verificaram a carga
emocional pesada nos acolhimentos e a
não romantização do serviço. Esses
relatos servem de subsídio para que haja o
entendimento de que vínculo e
atendimentos devam ser uma política
maior e não simplesmente resultados
isolados de “compaixão” e “empatia” por
certos profissionais, que por fim acabam
se desgastando com as atividades.
Significar e empreender Sistemas de
Saúde para os indivíduos em rua deve
partir de Secretarias Municipais e
Estaduais fomentadas por profissionais
que tiveram qualificação para esse
cuidado em sua formação acadêmica – o
que revela um projeto de Estado e
Sociedade Civil articulados.
Na música, ouve-se “Eu moro na rua, não
tenho ninguém. Eu moro em qualquer
lugar” e na poesia, lê-se que “O bicho não
era um cão, Não era um gato, Não era um
rato. O bicho, meu Deus, era um homem.”
Esse fardo sentimental quando se entra
em contato com indivíduos em situação de
rua, em sua apavorada pobreza e
desumanização, deve ser despertado. E a
revolta que surge em seguida precisa ser
(sim) um sinal de busca por resolução.
Porém, que não seja fim em si próprio e
que não seja individualizado. É preciso um
plano de sociedade para agir, com
reformas e revoluções: não deveriam
existir pessoas de, na e em ruas.
Enquanto a renovação e a insurreição por
igualdades socioeconômicas se
processam, é imprescindível que
profissionais de saúde estejam atentos ao
atual retrato do Brasil. Proponha-se,
assim, o convite para que esta Cartilha
seja instrumento introdutório de
perturbação com informações que
motivam agir.
Luís Eduardo Moreira Martins
Coordenação de Políticas de Saúde
DENEM 2017.
4
SUMÁRIO
POR QUE DECIDI TRABALHAR NO CONSULTÓRIO DE RUA? ...........................6
CARACTERIZAÇÃO DA POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA ..........................8
ACESSO À SAÚDE: PARA ALÉM DO COBERTOR E PAPELÃO ...........................11
ENCONTRO ENTRE ESTUDANTES DE MEDICINA E POPULAÇÃO EM
SITUAÇÃO DE RUA ................................................................................................18
CRIAÇÃO DE VÍNCULO ..........................................................................................21
REDUÇÃO DE DANOS: UMA ESTRATÉGIA DE AMPLIAÇÃO DA VIDA ...............24
NO FIM DO ARCO-ÍRIS FICA A RUA ......................................................................27
UM OLHAR SOBRE A POPULAÇÃO DE RUA E O PRECONCEITO .....................31
ALFABETIZAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS: UM PROCESSO DE RETOMADA DA
DIGNIDADA ............................................................................................................36
CONSULTÓRIO NA RUA DE CAMPINAS ...............................................................42
MOVIMENTO NACIONAL DA POPULAÇÃO DE RUA: ESTÓRIAS DE UMA
HISTÓRIA ................................................................................................................46
O MNPR PEDE PASSAGEM ...................................................................................48
CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM SITUAÇÃO DE RUA .....................................66
MULHERES EM SITUAÇÃO DE RUA .....................................................................71
5
POR QUE DECIDI TRABALHAR NO CONSULTÓRIO DE RUA?
Ao final da graduação, nada era
saúde mental valia mais (e tudo bem,
certo. Passar na residência não era
às vezes a gente tem que dar um
uma certeza, qual especialidade seguir
tempo e se priorizar). Seria a volta pra
não era uma certeza e mesmo querer
vida de plantões esporádicos, afinal, as
ser médica não era uma certeza.
contas não iam se pagar sozinhas. Eis
Residência não rolou, e aí? Caí no
que, no meio do cumprimento do aviso
“mundo”. E que queda! Percebi que a
prévio, recebo de um amigo de
vida de plantão não era pra mim e
faculdade da enfermagem a
consegui um emprego fixo no PSF,
informação de que estavam abrindo
com a doce ilusão de que “a atenção
novas equipes de Consultório na Rua
primária é mais tranquila”. Mas nada
em São Paulo e havia vagas para
com um grau de sucateamento no nível
médicos. Eu não tinha nada a perder.
que vivenciamos na saúde pode ser
Mesmo recém-formada e com pouca
chamado de tranquilo.
experiência passei na seleção (por
Descobri que o que importava
incrível que pareça não tem tanto
eram as metas. Meta de consultas,
médico que quer trabalhar com
meta de visitas domiciliares, meta de
pessoas em situação de rua...).
solicitações de mamografia, meta de
Primeiras semanas e percebi
coleta de papanicolau, meta de coleta
que a lógica do cuidado era bem
de BK. 15 minutos por consulta.
diferente do que eu tinha vivenciado.
Quinze minutos. QUINZE MINUTOS.
Preciso ficar um dia inteiro resolvendo
Já imaginaram fazer pré-natal nesse
a situação de uma única paciente?
tempo? Ou puericultura? Ou uma
Tudo bem. Preciso ficar mais de uma
consulta de saúde mental? Pois é, não
hora com o mesmo paciente pra
dá. Pelo menos não do jeito que
entender sua história e programar
deveria ser. É tudo mais ou menos,
intervenções? Tudo bem. Preciso
feito mais ou menos, e você vai se
recuar por entender que o
sentindo uma profissional mais ou
protagonismo em muitos casos é de
menos.
outro profissional da equipe, seja da
Seis meses e o burnout foi
inevitável. Mesmo sem outro emprego
assistência social, psicologia ou
enfermagem? Tudo bem também.
fixo em vista pedi demissão. Minha
6
E esse conjunto de fatores passou a dar mais sentido no dia a dia de trabalho.
Não quero criar aqui uma ideia romantizada do serviço, até porque também é
gerenciado por Organização Social (OSs), também sofre subfinanciamento, também é
precarizado. E as histórias de vida e dia a dia com os pacientes te mostram a face mais
cruel, excludente e machista da sociedade: muita história de abuso sexual na infância e
na vida adulta, muita história de transtorno psiquiátrico incompreendido, muita história
de dependência química grave, muita gente te dizendo todo dia “não tem mais jeito” e
“não tenho mais motivos pra viver”.
É pesado. É emocionalmente bem pesado,
mas vale a pena.
O Consultório na Rua não deveria existir, pelo simples fato de que não deveria
haver pessoas em situação de rua, o que implica na luta por um modelo de organização
econômica e social bem diferente do qual vivenciamos. E é com esse horizonte
estratégico em mente que seguimos resistindo enquanto profissionais e seres sociais
que somos.
Erika Plascak Jorge
Médica do Consultório na Rua em São Paulo/SP
7
CARACTERIZAÇÃO DA POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA
Antes de qualquer tentativa de
caracterização, devemos sempre ter em
mente que essa população possui forte
característica migratória. Isso quer dizer
que os dados disponíveis foram obtidos
como
uma
espécie
de
fotografia
daquele momento, ou seja, meses
depois as informações poderiam ser
completamente diferentes.
Isso
não
impede o governo de adotar políticas
públicas para essa população, mas
exige que os programas voltados à
população de rua estejam em constante
reavaliação e as pesquisas e censos
sejam realizados com uma frequência
maior.
O Ministério do Desenvolvimento Social
e Combate à Fome (MDS), após
debates com diversas entidades da
sociedade civil, chegou a um consenso
acerca de uma definição para esse
grupo da sociedade, com intuito de
facilitar o desenvolvimento de políticas
públicas e ações: ‘’Grupo populacional
heterogêneo constituído por pessoas
que possuem em comum a garantia da
sobrevivência por meio de atividades
produtivas desenvolvidas nas ruas, os
vínculos familiares
interrompidos
ou
fragilizados e a não referência de
moradia regular.’’
1. As pessoas que ficam na rua –
configuram uma situação circunstancial
que reflete a precariedade da vida, pelo
desemprego ou por estarem chegando
na cidade em busca de emprego, de
tratamento de saúde ou de parentes.
Nesses casos, em razão do medo da
violência
e
da própria
condição
vulnerável
em
que se
encontram,
costumam
passar
a noite
em
rodoviárias, albergues, ou locais públicos
de movimento.
2. As pessoas que estão na rua – são
aquelas que já não consideram a rua
tão ameaçadora e, em razão disso,
passam a estabelecer relações com as
pessoas que vivem na ou da rua,
assumindo como
estratégia
de
sobrevivência a realização de pequenas
tarefas com algum rendimento. É o
caso dos
guardadores
de
carro,
descarregadores de carga, catadores de
papéis ou latinhas.
3. As pessoas que são da rua – são
aqueles que já estão faz um bom
tempo na rua e, em função disso,
foram
sofrendo
um
processo
de
debilitação
física
e
mental,
especialmente pelo uso do álcool e das
drogas, pela alimentação deficitária, pela
exposição e pela vulnerabilidade à
violência.
No livro ‘’População de Rua: Quem É,
Como Vive, Como É Vista’’, as autoras
Cleisa Rosa, Eneida Bezerra e Maria
Vieira, identificam três situações em
relação à permanência na rua:
8
Frente a isso, reunimos alguns dados colhidos na Pesquisa Nacional Sobre
População em Situação de Rua, publicada em 2008 pelo Ministério do Desenvolvimento
Social e Combate à Fome:
9
Pesquisa de 2015, feita pelo Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (IPEA), aponta uma população em torno de
100 mil pessoas vivendo nas ruas do Brasil. Dessas, cerca de
77,02% viviam em municípios com mais de 100 mil habitantes.
Além disso, 48,9% estavam concentrados na região Sudeste,
enquanto que apenas 4,32% na região Norte. A crítica que se faz a
essa pesquisa é que a estimativa dessa população foi feita a partir
do Cadastro Único para Programas Sociais. Segundo Vanilson
Torres, líder do Movimento Nacional da População de Rua
(MNPR), apenas 3 a 5% da população de rua está registrada no
Cadastro Único. Em vista disso, o MNPR acredita que existem
muito mais que 100 mil pessoas em situação de rua no Brasil, o
que mostra a necessidade de um novo Censo e Pesquisa
Nacional Sobre População em Situação de Rua, como foi feito em
2006, para atualização dos dados e reformulação das políticas
públicas para a população de rua.
Arthur Vizzotto Zolin, estudante do 4º de Medicina da
Universidade Estadual de Londrina (UEL)
Amanda Rodrigues Correa Frota Gomes, estudante do 1º ano
de Medicina da Faculdade Barão de Mauá
Julia Jorge Prevelatto, estudante do 1º ano de Medicina da
Faculdade Barão de Mauá
Nicole Orlandini Costa, estudante do 2º ano de Medicina da
Universidade Estadual de Londrina (UEL)
10
ACESSO À SAÚDE: PARA ALÉM DO COBERTOR E PAPELÃO
desenvolvimento do
fragilização dos vínculos trabalhistas pela
capitalismo e ascensão do modelo
não qualificação profissional, inserção em
neoliberal, o principal objetivo econômico é
atividades produtivas com grande potencial
a reprodução ampliada do capital, deixando
de substituição, rendas limítrofes para a
de lado a distribuição de riquezas e
subsistência, estigmatização pelas
aumentando assim o fenômeno da
posições de trabalho que ocupam e
exclusão social. Nesse contexto, há um
desemprego.
Com o
número cada vez maior de pessoas
excluídas dos direitos sociais básicos,
como educação, saúde, trabalho, moradia e
outros, e até mesmo dos direitos humanos,
com alguns grupos relegados à
invisibilidade (PAIVA et al., 2016). É nessa
categorização que encontramos a
População em Situação de Rua - PSR, que,
segundo pesquisa publicada pelo Ipea, é
estimada em mais de 100 mil brasileiros em
2017. Essa população desafia a
universalidade, a equidade e a
integralidade do Sistema Único de Saúde SUS, encontrando-se à margem da rede de
atenção à saúde e sendo alvo de políticas
de saúde focalizadoras, que ignoram a
complexidade da PSR.
Sob um contexto de exclusão social,
a PSR vivencia diariamente inúmeras
situações de violência, privação e miséria.
Nesse sentido, cabe às políticas públicas
sociais o desafio de adotar um conceito de
saúde amplo, que reconhecesse a
heterogeneidade dessa população e
ultrapassasse a dimensão biológica,
capazes de intervir nos determinantes
relativos ao processo de saúde-doença.
Entretanto, as políticas sociais atuais
voltadas para essa população são, em sua
maioria, compensatórias e assistencialistas,
não garantindo à ela a efetivação de seu
direito à saúde. Isso se dá por uma
destituição de cidadania desses brasileiros,
sendo tratados como problemas urbanos
O grande número de brasileiros nas
aos quais o Estado deve intervir com
ruas escancara as contradições de uma
medidas pontuais; e por um
sociedade que tem a seguridade social
desconhecimento dos profissionais de
como direito constitucional e que assegura
saúde do cotidiano vivido pela PSR,
saúde como direito de todos e dever do
limitando assim o entendimento da
Estado. São inúmeros os determinantes
complexidade de seu processo de saúde-
individuais que levam essas pessoas para a
doença e a identificação das reais
rua, mas não se pode perder de vista o
necessidades de saúde.
processo social que empurra milhares de
pessoas para essa condição. Ghirardi et al.
(2005), apresentam como determinantes do
processo de viver nas ruas a competição
Além de colocar em cheque muitos
dos princípios nos quais o SUS se baseia, a
falta de assistência à PSR se opõe à
caracterização da atenção básica pela
acirrada do mercado de trabalho,
11
Política Nacional de Atenção Básica como
Apesar das vicissitudes e contradições
um conjunto de ações que abrange a
apresentadas com relação ao acesso à
promoção e a proteção da saúde, a
saúde por pessoas em situação de rua,
prevenção de agravos, a reabilitação, a
deve-se ressaltar os avanços e conquistas
redução de danos e a manutenção da
adquiridos nos últimos anos. Com a
saúde, com o objetivo de desenvolver uma
redemocratização brasileira, essa questão
atenção integral que impacte na situação
ganhou visibilidade por meio da
de saúde e autonomia das pessoas e nos
organização do Movimento Nacional da
determinantes e condicionantes de saúde
População em Situação de Rua, que deu
das coletividades. Especificamente sobre
voz a esse grupo social. Em seu II Encontro
os condicionantes de saúde, é importante
Nacional, foi instituída a Política Nacional
observar que a PSR é um grupo de
para a População em Situação de Rua -
indivíduos heterogêneo e que compartilham
PNPSR, tendo como uma de suas metas o
a situação de extrema pobreza e a vivência
acesso simplificado, amplo e seguro aos
na rua . O contexto social como
serviços e programas constituintes das
determinante dos processos de saúde
políticas públicas de saúde, além de outras
justifica essa diversidade, visto que cada
garantias, como educação, previdência,
território apresentará diferentes formas de
assistência social e moradia.
apoio (governamental e filantrópico), de
repressão e de cuidado, gerando diferentes
necessidades, traumas e vínculos à PSR.
Além disso, a PNPSR garante a formação
de gestores e profissionais capacitados
para o trabalho intersetorial, transversal e
Grande parte do material de pesquisa
intergovernamental voltado à PSR, assim
acerca dessa população aborda com maior
como o meio de se realizar medidas
ênfase os aspectos biológicos no âmbito da
impactantes e à longo prazo. Outras
saúde, no que diz respeito às condutas e
conquistas importantes foram os
aos meios preventivos. Essa visão
Consultórios na Rua, com equipes
biológica/patológica, predominante em
itinerantes voltadas ao atendimento
cartilhas e manuais, corrobora as políticas
integral; a instituição do Centro Nacional de
assistencialistas que perpetuam as
Defesa dos Direitos Humanos da
condições da PSR. O quadro social
População em Situação de Rua; a inclusão
apresentado por esses indivíduos traz
da PSR no âmbito da proteção social
consigo fortes evidências de um psicológico
especial da Política Nacional de Assistência
abalado, consequente do próprio contexto
Social; e a instituição do Comitê
de invisibilidade social e da vivência na rua.
Intersetorial de Acompanhamento e
A esfera social deve ser valorizada, a partir
Monitoramento da PNPSR, visando a
de um olhar mais aprofundado, coerente
articulação intersetorial de políticas públicas
com a sua importância para desencadear e
para essa população e diálogo entre os
agravar patologias, vícios e impotência
representantes dessa política e
perante à situação de rua.
representantes Estaduais. (BRASIL, 2014).
12
Mesmo com os avanços conquistados pela
acesso à saúde, com políticas
PSR nos últimos anos, o cenário
universalistas capazes de formar os
apresentado é ainda de grande
profissionais para lidarem com a
invisibilidade. Quando presentes, as
complexidade dessa realidade, dar voz à
políticas públicas não garantem a ela a
essa população para que construa
materialização do direito à saúde, sendo
coletivamente tais ações e ter como
medidas intervencionistas e paliativas,
norteador que essa realidade de exclusão
como a entrega de cobertores e
não terá fim se não buscarmos um novo
fornecimento de alimentação. Tendo em
modelo econômico e social. Como afirma
vista que essa população ultrapassa o
Maria Lúcia, integrante do MNPR, “O tempo
número de 100 mil brasileiros, é gritante a
de cobertor e papelão passou, o que nós
necessidade do Estado garantir o pleno
queremos agora é Políticas Públicas”.
Henrique Caetano Mingoranci Bassin e Vinícius Imakawa de Lucca
Graduandos da terceira série de Medicina na Faculdade de Medicina de Marília (FAMEMA)
REFERÊNCIAS
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa.
Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Saúde da população em situação de rua:
um direito humano. Brasília, 2014. Disponível em < http://bvsms.saude.gov.br/bvs/
publicacoes/saude_populacao_situacao_rua.pdf>. Acesso em: 28/09/2017.
GHIRARDI, M. I. G. et al. Vida na rua e cooperativismo: transitando pela produção de
valores. Interface – Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 9, n. 18, p.601-610, set./
dez. 2005.
PAIVA, I. K. S. et al. Direito à saúde da população em situação de rua: reflexões sobre a
problemática. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 21, n. 8, p. 2595-2606, ago.
2016.
13
14
ESPECIFICIDADES EM SAÚDE DA POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA
Fazer parte de um contexto
social particular
remete
a
carregar
características e especificidades desse
meio.
No
caso
da população
em
situação de rua, isso não é diferente.
Por viverem na rua, essas pessoas
carregam as vulnerabilidades e os
riscos
cumulativos
que
esse
ambiente oferece.
O Ministério da Saúde reuniu,
no Manual sobre o Cuidado à Saúde
junto a População em Situação de
Rua, particularidades em saúde desse
grupo social
de
forma
mais
generalizada,
mas
é i mportante
lembrar que sempre há variações de
uma pessoa para outra, pois cada
ser humano é único. Assim, de
modo geral, violência, alimentação
inadequada, baixa ingestão de água
ou consumo de água não potável,
privação do sono, pouco afeto e
autocuidado,
variações
climáticas,
apoio em saúde limitado e falta de
tempo e de informação para buscar
auxílio em saúde são algumas das
principais vulnerabilidades
da
população em situação de rua, além
do álcool e das drogas bastante
presentes na vida dessas pessoas.
Quanto à violência, a pessoa
em situação
de
rua a
sofre
diariamente, pois vive constantemente
sem proteção e sem abrigo. A
violência pode ser tanto física quanto
moral. Independente de qual seja,
essa crueldade leva a manifestações
prejudicam a qualidade de vida do
indivíduo.
A respeito da alimentação,
segundo pesquisa do Ministério da
Saúde, uma em cada quatro pessoas
em situação de rua não consegue se
alimentar
todos
os dias. Assim,
deficiência nutricional e até mesmo
desnutrição
severa
podem
ser
observadas nesse contexto social.
Ademais, disponibilidade e acesso a
alimentos
não
são
os
únicos
problemas que giram em torno desse
aspecto. Na maioria das vezes, os
alimentos
obtidos
são
de baixa
qualidade nutricional e a própria
higienização é precária. Quanto a
esse último aspecto, as pessoas em
situação
de
rua tornam-se
extremamente suscetíveis a doenças
associadas à falta de saneamento
básico, que poderiam facilmente ser
evitadas por medidas públicas de
intervenção.
Dessa
forma,
leptospirose, verminoses em geral e
infecções oportunistas
são
especificidades
em
saúde dessa
população.
A mesma linha de raciocínio
aplicada para alimentação também
convém para a questão da água.
Vivendo na rua, as pessoas têm a
água como um recurso extremamente
escasso e, quando não, esse não é
tratado de forma adequada, levando
a graves casos de desidratação.
A privação do sono é outro
ponto a ser abordado. Isso acontece
porque, diante do medo, da violência,
do
frio,
do desconforto
e
do
estômago vazio, nenhum ser humano
15
é capaz de ter paz e tranquilidade
para
dormir
a quantidade e a
qualidade adequada de horas de sono.
Logo, doenças relacionadas ao pouco
descanso
são
comumente
manifestadas
na
população
em
situação de rua, como estresse,
depressão e hipertensão, sendo que
essas são fatores de risco e gatilhos
para outros problemas mais sérios.
Tanto a fome quanto a sede,
o pouco sono e a violência atuam
não só no aspecto físico, mas
também no psicológico. Se já não
bastasse tudo isso, a falta de afeto,
os olhos julgadores e os passos
apressados de quem anda por perto
dificultam e tornam ainda mais
sofrida a vida da pessoa em situação
de rua. Dessa maneira, o indivíduo
tende a se sentir desamparado e
inferiorizado, mais uma vez tendo
seu bem-estar mental prejudicado,
aspecto
que
está
intimamente
atrelado à funcionalidade física da
pessoa.
Outra
particularidade
desse
grupo de pessoas são as doenças
dermatológicas,
principalmente
relacionadas
aos
pés.
Esses
problemas
de pele
podem
ser
decorrentes da exposição diária às
variações climáticas e de doenças
infectoparasitárias,
como
DSTs,
parasitoses,
micoses,
infecções
respiratórias
(tuberculose
e
pneumonia), entre outras. A respeito
das manifestações no pé, essas se
devem às caminhadas por longos
períodos sem calçados ou com
calçados inadequados. Logo, estase
venosa, edema e infecções são
relatados com frequência.
No
entanto,
a
maior
prevalência se dá na área da
dependência
química,
tanto por
drogas lícitas (álcool e tabaco) como
ilícitas (solventes, cocaína, crack,
entre outras). Os motivos que levam
ao vício são inúmeros e muito
particulares
de cada
indivíduo,
contudo,
as
consequências são
devastadoras e não fazem distinção
entre um ser humano e outro. De
todas as formas, o uso contínuo
resulta em problemas preocupantes.
No
aspecto
físico, observa-se
contaminações por compartilhamento
de seringas ou pelo próprio efeito
destruidor da droga. Quanto à parte
psicológica, tem-se a depressão cada
vez
mais
acentuada
e
uma
propensão maior ao suicídio.
Diante de tantas necessidades
importantes, o acesso à saúde
dessa população é mais do que
simples rotina de cuidado, é questão
de sobrevivência. Contudo, o apoio
em saúde é extremamente limitado.
Isso porque, em muitas cidades, não
há equipes específicas que atendam
esse grupo de pessoas, que possui
um estilo de vida tão particular.
Mesmo nas Unidades Básicas de
Saúde, as pessoas em situação de
rua sofrem preconceitos e muitas já
foram até proibidas de entrar nesses
estabelecimentos. Vale ressaltar que,
de acordo com a Pesquisa Nacional
sobre a População em Situação de
Rua, 18,4% das pessoas em situação
de rua já passaram por experiências
de privação de atendimento na rede
de saúde.
16
Não obstante, a mera presença de uma equipe de saúde que cuide
dessas pessoas não significa que essas sejam cuidadas de fato. A falta de
tempo da pessoa em situação de rua por conta do seu trabalho, normalmente
informal, bem como a pouca informação que chega até ela sobre o
atendimento, prejudicam em vários sentidos o suporte oferecido por parte da
equipe de saúde.
Dessa forma, diante da impossibilidade ou de não saber a quem
recorrer, o ser humano em situação de rua se vê praticamente obrigado a se
“autocuidar”. Esse fenômeno diz respeito à pessoa que, apesar de estar
doente, com dores e precisando de auxílio, nega ter a doença. Basicamente,
o indivíduo aprende a conviver com o sofrimento e o naturaliza, deixando de
encará-lo como um problema. Sendo assim, o “autocuidado” é outra
especificidade em saúde muito particular desse grupo e exige que o
profissional de saúde busque sempre aprofundar na intimidade do paciente
para compreendê-lo integralmente.
Quando, enfim, o atendimento chega à pessoa em situação de rua, as
dificuldades não param por aí. A falta de adesão ao tratamento oferecido e a
ausência de um acompanhante tornam-se grandes empecilhos. Ambos os
aspectos nada mais são que frutos das vulnerabilidades carregadas por uma
pessoa que vive em meio à hostilidade, ao abandono e à desesperança.
Assim, superar e tratar as vulnerabilidades da população em situação de rua
não é uma tarefa fácil e exige de nós equidade, empatia e luta para melhorar
a qualidade de vida desse grupo social.
Marcela Tengler C. Takahashi – Graduanda da segunda série de Medicina Albert Einstein.
17
ENCONTRO ENTRE ESTUDANTES DE MEDICINA E POPULAÇÃO EM
SITUAÇÃO DE RUA
Já
afirmava
Vinícius
de
Moraes: "A vida é a arte do
encontro,
embora
haja tantos
desencontros pela vida". E o que
seria a relação entre um estudante
de medicina e uma pessoa em
situação de rua, senão, muitas vezes,
um desencontro? Trata-se de dois
universos
completamente diferentes
que se cruzam em situações banais.
Nas praças, nas igrejas, no trânsito,
nas ruas. Em todos os lugares.
Ocasionalmente,
essa
confluência
acontece em locais não tão banais,
como
os hospitais.
Estamos
preparados
para atender
uma
população tão negligenciada?
O desencontro tem força na
nossa formação
médica,
que
é
cientificista em seu cerne e, por si
só, excludente. Assim, um estudo
generalista da população inibe um
tratamento eficaz de diversos grupos
vulneráveis, os quais, por suas
particularidades, acabam invisíveis ao
sistema de saúde. Não há em nossa
formação, isto é, na nossa grade
curricular, uma concepção do que
implica estar em situação de rua,
quais
os
problemas
diários, a
susceptibilidade
a
doenças,
o
histórico de violência, as restrições
alimentares
e sociais,
o
comprometimento do psicológico por
uma exclusão permanente e violenta,
o uso de drogas, o acesso precário
à higiene ou, sobretudo, o acesso
dessa
população
à saúde.
A
universalidade é um dos princípios
fundamentais do Sistema Único de
Saúde (SUS) e determina que todos
os cidadãos brasileiros, sem qualquer
tipo de discriminação, têm direito ao
acesso às ações e serviços de
saúde, mas a vulnerabilidade de
determinadas populações torna frágil
a prática desse princípio.
E não só a formação, mas a
própria dinâmica
do
indivíduo
construído
em uma sociedade
marcada por vícios excludentes é
responsável por esse desencontro.
Segue a notícia do jornal BBC:
"Deitado em posição fetal, protegido
apenas por um cobertor fino e
alguns papelões. Sem documentos,
familiares ou amigos. Foi desta forma
que policiais militares encontraram o
corpo
de
um
homem
pardo,
aparentando ter cerca de 35 anos,
no fim da tarde desta terça no
cruzamento entre a rua Teodoro
Sampaio e a avenida Doutor Arnaldo,
área nobre a poucos minutos da
avenida Paulista, em São Paulo. O
laudo que apontará a causa da
morte ainda não ficou pronto, mas a
principal linha de investigação é que
ele tenha sido mais uma vítima do
frio.
Ironicamente,
o
corpo
foi
encontrado nos arredores do Hospital
das Clínicas, o maior da América
Latina." Nos arredores do Hospital
das Clínicas, o maior da América
Latina. Quantos profissionais de
saúde podem ter passado por ali?
Quantos médicos cruzaram com essa
pessoa em situação de rua? E
quantos estudantes de medicina o
teriam
encontrado?
Não
houve
encontro, não há vínculo, pois essa
é uma população marcada pela
invisibilidade.
18
A mobilização estudantil sobre as
populações de rua: onde nasce o
problema?
A
Constituição
Federal
determina a saúde como um direito
inalienável de todo cidadão e de
todas as populações. Ainda assim, o
SUS pouco promove, com projetos e
trabalhos, a saúde dessa população.
Contraditório, não? Porém, não é
aqui que o problema começa. Como
poderíamos imaginar que qualquer
órgão
público
teria
a mínima
estrutura
de
cuidar
dessas
populações, se as instituições de
ensino de medicina e ciências da
saúde formam profissionais com uma
preparação
ínfima sobre
esse
assunto? Não só isso, mesmo as
atividades
extracurriculares
organizadas por estudantes muitas
vezes não abrangem as populações
negligenciadas. Agora, sim, é aqui
que o problema começa.
Em um levantamento realizado
este ano por estudantes de medicina
(questionário com algumas perguntas
sobre população em situação de rua
disponibilizado para estudantes de
medicina no mês de julho de 2017,
realizado por grupo de alunos da
Faculdade de Medicina de Ribeirão
Preto – USP), constatou-se que
91,1% desconhecem a existência ou
nunca tiveram
contato
com
os
consultórios
de
rua. Ao
mesmo
tempo, 96% consideraram importante
ou muito importante o contato com a
população em questão para uma boa
formação médica. Assim, constata-se
que
há
pouca
informação
e,
consequentemente, pouca mobilização
dos estudantes, apesar do problema
ser de elevada importância.
Um estudo publicado em 2010
na Revista Brasileira de Educação
Médica, que
contou
com
1372
estudantes de 13 cursos médicos
espalhados em seis estados do
Brasil, delineou o perfil do estudante
de medicina no país. Segundo a
pesquisa, 68% dos discentes desse
curso são brancos, 69% habitam um
imóvel próprio e 83% não trabalha
em outra atividade. Esse último dado
é
um importante
marcador
da
seleção elitista que existe para que
alguém
possa
estudar medicina:
muitos universitários trabalham e
estudam, no entanto, para alguns,
essa é a única forma de continuar
estudando. Contudo, a carga horária
dos cursos de medicina dificulta
muito essa prática, quando não a
impossibilita. Por isso, é um fator
limitante do acesso populacional,
uma vez que só é páreo para o
curso quem tem dinheiro, e isso sem
mencionar os alunos de faculdades
particulares,
que despendem,
em
média, 8 mil reais por mês na sua
formação. Tal seleção, que ocorre
direta ou indiretamente, é uma das
explicações para o fato de que a
maioria dos médicos se forma sem
ter contato com a população em
situação de rua.
Numa simples pesquisa em
sites de busca, é possível encontrar
artigos
que relatam
desde
a
dificuldade de acesso de pessoas em
situação de rua a serviços públicos
da atenção básica em saúde, até
casos extremos, como mortes que
ocorreram após consecutivos pedidos
por uma ambulância serem ignorados.
Quantas vezes essa população é
negligenciada
por profissionais
de
saúde? O despreparo para esse
19
encontro
inicia-se
na
formação
desses profissionais. Como já foi
citado,
a discrepância
entre
as
realidades vividas pelos estudantes
de medicina e a população em
situação de rua provoca um abismo
que o ensino médico não tem sido
capaz de superar. A ausência de
abordagem específica das questões
que permeiam o cuidado em saúde
dessa população cria uma lacuna
que leva à formação de profissionais
despreparados para atender a essa
demanda. Falta, também, incentivo
por
parte
da universidade
às
atividades de extensão universitária,
as quais poderiam contribuir para
esse
encontro
e
para
a
compreensão das distintas realidades
que ali se tocam, além de suas
implicações no cuidado em saúde. E,
por fim, notamos que a participação
dos próprios estudantes deveria ser
maior na busca por maneiras de
alterar essa realidade e exigir
mudanças na sua formação.
Diante disso, a transformação
no quadro da banalizada invisibilidade
da população em situação de rua é
um processo
que
exige
a
participação de diversas instituições e
segmentos sociais, dentre eles, os
profissionais de saúde. A importância
dos estudantes de medicina nesse
processo é inquestionável e também
deve ser reconhecida, primeiramente,
pelos próprios estudantes, a fim de
gerar uma busca ativa pela correção
das lacunas existentes nos cursos de
graduação. Reconhecer
que
o
encontro é falho não basta; é preciso
buscar ferramentas e meios que
permitam que o desencontro seja
substituído
por
construção
–
construção
do
profissional
em
formação a partir do estudante e
construção
de equidade
e
integralidade no acesso aos serviços
de saúde por parte dessa população.
Julio Canos Neto, 2º ano
Paula Foresto Crivelini, 3º ano
Horácio Leite Ferreira, 3º ano
Gabrielly de Oliveira Nascimento, 3º ano
Graduandos da Faculdade de Medicina de
Ribeirão Preto
20
CRIAÇÃO DE VÍNCULO
“Vinculação também é escolha, é seleção. Escolhamos,
pois, os que nos humanizam e disponibilizam, sem medo. Um
bom profissional é em primeiro lugar uma pessoa, que
humaniza a vida!” (LANCELOTI, 2012 p.27).
O vínculo é uma união, relação ou ligação de uma pessoa ou coisa com outra.
Consoante a tal significado, encontra-se no Dicionário Houaiss “vínculo” definido como
”aquilo que ata, liga ou aperta: que estabelece um relacionamento lógico ou de
dependência, que impõe uma restrição ou condição”. Ainda que os sentidos atribuídos não
se correlacionem diretamente às questões de saúde, o vínculo é iniciado desde o primeiro
contato com os profissionais da área e pode seguir um difícil trajeto até ser consolidado,
podendo ser usado para interpretar o comportamento social das pessoas envolvidas de
modo a interpretar a rede de relações sociais que estão ali presentes, determinando a
densidade destas relações e o fluxo das interações que ali ocorrem. Trata-se, portanto, de
um trabalho constante, intrinsicamente associado com o acolhimento e a relação profissional
de saúde-paciente, de acordo com a Política Nacional de Humanização (PNH), implantada
em 2003.
No cenário da população em situação de rua, esta é considerada desgarrada da
sociedade, portadora de um modo de vida marcado pela perda e rompimento de vínculos
sociais, isto é, essas pessoas passam por uma ruptura gradual e, posteriormente, novas
formas de sociabilidade são desenvolvidas com novos vínculos se estabelecendo, sendo
eles: vínculo com a própria rua, com os abrigos e com a nova rede social que passa a ser
formada. Os vínculos pessoais construídos neste espaço, embora frágeis e transitórios,
estão presentes na forma de agrupamento, em que a busca por segurança e sobrevivência
é a base fundamental destas relações.
Já no âmbito da saúde, a possibilidade de se construir vínculos é uma das condições
para o aumento da eficácia das intervenções clínicas, sejam essas terapêuticas, de
reabilitação ou diagnósticas do processo saúde-doença. Para isso, são necessárias
habilidades fundamentais, tais como: postura empática e compreensiva, escuta atenta,
aceitação desprovida de julgamentos, autenticidade, autoconfiança, flexibilidade,
comprometimento, tolerância e respeito. Ou seja, habilidades que fortaleçam a confiança,
segurança e confidencialidade, visando estabelecer o vínculo para que o paciente se sinta a
vontade em relatar informações necessárias, de maneira que possa facilitar a intervenção
do profissional da saúde. No entanto, em sociedades cuja realidade descrita pelo sociólogo
polonês Zygmunt Bauman em seu livro “Vida Líquida” se faz presente, os vínculos são
frágeis a ponto de diminuir o sofrimento do outro. Desse modo, comprometem-se a escuta, o
21
olhar e o cuidado pelo próximo, não apenas na relação do profissional da saúde-paciente,
mas em todas as relações humanas.
Deste modo, a população em situação de rua apresenta uma diversidade de vínculos
fragilizados, sendo eles a causa para a procura das ruas e posterior consequência da
dificuldade de obter acesso à saúde. Em sua maioria, são pessoas que às vezes tiveram
moradia, trabalho e família, mas por dificuldade em superar um vício ou pelo rompimento de
seus vínculos afetivos, buscaram as ruas para morar. É possível notar que essa população
apresenta trajetórias conturbadas, com problemas familiares, preconceito e falta de acesso
às condições mínimas e necessárias de sobrevivência digna e que são reforçados pela
invisibilidade que tem na sociedade, inclusive dos setores da saúde. Assim, em detrimento
de vínculos importantes, essa população é submetida a uma condição de desvalia pessoal e
de todos os tipos de agressões – inclusive àquela contra a própria saúde física e/ou mental.
Atualmente, o que se observa é uma baixa adesão de profissionais da saúde que
buscam estabelecer vínculo com a população em situação de rua. De um modo geral, este é
construído sobre uma frágil compreensão da complexidade e da dimensão social dessa
população, uma escuta pouco qualificada e condições que tangenciam o assistencialismo. É
importante ressaltar que essa relação não deve gerar uma dependência do paciente em
relação ao profissional, uma vez que o vínculo formado entre eles deve servir para incentivar
primeiro o autocuidado, conferindo-lhe autonomia e ampliar o seu acesso às áreas da
saúde. Em vários estudos foi relatado que o cansaço e, consequentemente, frágil vínculo
com os profissionais estão relacionados com a maneira fria e tecnicista com que essas
pessoas são abordadas e tratadas. Quando essa população percebe o cuidado para
consigo, é que você olha para a vida, e não só para a ferida, ela se deixa ver. A ferida ou a
doença é mais do que a dor de estar doente, é a dor de existir na situação que provoca essa
dor e sobreviver assim (LANCELOTI, 2012 p.27). São pessoas que, muitas vezes, não
sairão das ruas e ainda assim necessitam de cuidados. Dar-lhes atenção e atendê-los em
suas necessidades singulares, é tratá-los com, além de profissionalismo, equidade ansiada
no sistema de saúde – contribuindo também para a solidez do vínculo.
Por fim, o estabelecimento do vínculo entre profissionais de saúde e essa população
parece ser uma possibilidade de se construir uma nova prática que busque a melhoria da
qualidade da atenção à saúde. Para se assegurar a qualidade do cuidado prestado, é
necessário que se tenha em mente as noções de vínculo e, consequentemente, de
responsabilização da equipe pelo cuidado integral à saúde coletiva e individual. Dessa
forma, todos ganham; em especial a população em situação de rua que passa a ser vista e
humanizada nas diferentes instâncias que compõem uma boa saúde.
Thamires Miyako Ito Sigole e Hérica Dias Brito
Graduandas da segunda série de Medicina na Faculdade de Medicina de Marília (FAMEMA)
22
REFERÊNCIAS
Psicologado Artigos. Psicologia: vínculos, contribuições e desafios junto a população em
situação de rua. Disponível em: < https://psicologado.com/atuacao/psicologia-social/
psicologia-vinculos-contribuicoes-e-desafios-junto-a-populacao-em-situacao-de-rua>.
Acesso em: 11 de jul. 2017.
Gomes, M. C. P. A; Pinheiro, R. Reception and attachment: integral practices in health care
administration in large urban centers. Interface - Comunic., Saúde, Educ., Interface Comunic., Saúde, Educ. v.9, n.17, p.287-301, mar/ago 2005. Disponível em: < http://
www.scielo.br/
pdf/icse/v9n17/v9n17a06> . Acesso em: 10 de jul. 2017.
Brunello, M. E. F.O vínculo na atenção à saúde: revisão sistematizada na literatura, Brasil
(1998-2007). Acta Paul Enferm 2010;23(1):131-5. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/
23
REDUÇÃO DE DANOS: UMA ESTRATÉGIA DE AMPLIAÇÃO DA VIDA
“Os usuários de drogas da Cracolândia em São Paulo se dispersaram para
locais próximos à região da Luz após a ação realizada no domingo (21/05) pelas
polícias Civil e Militar de São Paulo com o objetivo de acabar com o uso de drogas
no local.”. Esse trecho foi extraído do portal de notícias da Globo (G1) do dia 22 de
maio de 2017 e relata uma das ações do projeto “Redenção” de João Dória, prefeito
de São Paulo. Nele é evidenciado como são comumente tratados os brasileiros que
se encontram em situação de rua: “usuários de drogas”. Tal redução não considera
seus nomes, histórias, necessidades de saúde e direitos, colocando o consumo de
substâncias psicoativas (SPAs) como papel central de suas vidas. Entretanto, ao
buscar a materialização do direito à saúde da população em situação de rua (PSR),
é necessário um olhar ampliado, tendo a redução de danos (RD) como estratégia
pragmática para a garantia de um cuidado integral.
A RD foi adotada como estratégia de saúde pública pela primeira vez no
Brasil no município de Santos-SP, em 1989. Tratava-se de um programa de
distribuição de novas seringas para usuários de drogas injetáveis em contrapartida do
recolhimento das seringas antigas, reduzindo as contaminações por sangue e
transmissão do vírus da AIDS. Tal programa teve curta duração, pois foi interrompido
por intervenção judicial, porém despertou inúmeras práticas semelhantes no país. Não
obstante a RD tenha inicialmente se destacado a partir dessa distribuição de agulhas
e seringas, é um equívoco limitá-la a isso na atualidade. A RD compreende um olhar
singular sobre o contexto de vida dos indivíduos, capaz de construir estratégias
práticas de reflexão sobre consumo de água, evitando a desidratação, importância de
uma alimentação nutritiva, uso de preservativos, cuidado com a higiene e outras
práticas de cuidado com a saúde (ABREU, 2017). São todas as ações capazes de
diminuir os danos inerentes a um evento que já ocorre, como as inúmeras situações
vulneráveis de se viver nas ruas, e que respeitam a autonomia do sujeito, lhe
conferindo o protagonismo de sua saúde.
Mesmo não se resumindo a isso, a RD tem papel crucial no cuidado de
pessoas em situação de rua que fazem uso problemático de SPAs. De forma
propositiva, ela problematiza a ênfase em uma abordagem biológica, unilateral e
repressiva, o distanciamento dos profissionais de saúde e a comum culpabilização
dos sujeitos. Busca, porém, uma abordagem metodológica a fim de enxergar junto ao
indivíduo as questões que estão por trás dessa situação e assim criar ações voltadas
à prevenção e cuidado do que pode se constituir enquanto danoso no uso de SPA,
sem necessariamente reduzir seu consumo. Cabe ressaltar que a RD não se propõe
a considerar normal ou saudável a utilização dessas substâncias, porém não
considera seu uso como elemento central da vida dessas pessoas (DENEM, 2017).
24
“ (...) ela se deitou sobre o balanço, apoiada sobre o estômago e com os
pés no chão. Andava em pequenos círculos, torcendo as correntes do balanço
o quanto podia. Levantava então seus pés do chão, fazendo com que as
correntes do balanço se desdobrassem, numa grande velocidade, o que fazia
com que ela girasse sobre si mesma (...) No momento em que as correntes
do balanço se desdobravam, a cabeça dela (...) passava a poucos centímetros
dos pés de ferro do balanço (...) Eu poderia ter dito para ela parar de
brincar, mas, obviamente, ela estava se divertindo muito com a brincadeira e
gostando da sensação de ficar tonta (talvez próxima à de intoxicar-se?) (...)
Assim, eu preferi dizer-lhe para dobrar bem a cabeça de modo que, quando
ela rodasse, a mantivesse a uma margem segura dos pés do balanço (...).
Havia uma clara decisão a ser tomada - proibição ou redução do
dano, ou seja, proibir, o que não teria grande sucesso em se tratando de
uma atividade prazerosa, ou reconhecer o valor da atividade para ela e tentar
reduzir os riscos daí decorrentes e, com isso, prevenir o dano.". (Pat O'Hare "Redução de danos: alguns princípios e a ação prática")
Por serem diariamente violentados, trabalhar com a PSR exige do profissional
de saúde um maior esforço para estabelecer vínculo com esses indivíduos, na
maioria das vezes, desconfiados de qualquer aproximação. Tendo isso em vista, a
RD é, sem dúvidas, a abordagem mais adequada, uma vez que não gera confrontos,
ao mesmo passo em que se cria uma relação profissional-paciente horizontal, sem
represálias e julgamentos, permitindo a adesão a práticas que promovam saúde
(OLIVEIRA, 2015). É importante ressaltar que a construção dessas ações deve
sempre ter seus sujeitos como protagonistas e, para isso, a RD tem como função
primordial buscar sensibilizar a PSR para a participação e engajamento, tanto no
autocuidado em saúde quanto na vida social, principalmente no seu reconhecimento
como sujeito de direito.
Porém, assim como o primeiro programa de troca de seringas no Brasil,
interrompido por intervenção judicial, cuja alegação era de que tal medida estimularia
o consumo de drogas, as políticas de RD ainda hoje sofrem grande resistência no
cenário brasileiro. Quando debatido o uso de SPAs, o discurso apresentado ainda é
de políticas proibicionistas, que vinculam-se ao binômio legalidade/ilegalidade e, em
seu cerne, à valorização que ofertam ao capital, por via, principalmente, da indústria
de segurança e farmacêutica (WACQUANT, 2011). Tal binômio apoia-se no discurso
biomédico – com o consumo de SPAs classificado como prejudicial à saúde e
necessário de “cura”- e em ações voltadas à segurança pública, que remetem a
operações militares - como “guerra às drogas” - e criminalizam as pessoas usuárias.
Essa abordagem higienista e repressora, evidenciada no projeto “Redenção” de
João Dória, mascara-se de um suposto discurso humanitário, que se propõe “resgatar
vidas” e “normalizar pessoas”, reduzindo os indivíduos em situação de rua a usuários
de drogas e potenciais criminosos, que devem ser tratados, preferencialmente, através
de internação. Tais ações intensificam ainda mais a situação de vulnerabilidade
dessas pessoas, ao tratá-las numa concepção manicomial, transcendendo-se assim,
de um “Estado Social” para um “Estado Penal”, incapaz de assegurar os direitos
básicos a esses brasileiros. (PAIVA, 2016).
Portanto, se o Estado busca cumprir seu dever de assegurar a saúde como
direito da PSR, é necessário ter a redução de danos como norteadora das políticas
de saúde, respeitando a autonomia dos indivíduos, desconstruindo o saber unilateral
do profissional de saúde e permitindo que os usuários sejam co-gestores na
25
construção de seu cuidado. Só assim, as ações estatais deixarão de ser punitivas e
ineficientes, sendo substituídas por uma estratégia que, em última instância, é de
ampliação da vida, retirando as pessoas em situação de rua da invisibilidade e
tornando-as protagonistas de suas histórias.
Glossário de termos utilizados por pessoas que fazem uso de SPAs:
Boca – local de venda ou reuniões
Gelado – o que está afastado do vício
Merla – droga derivada da cocaína
Mesclado – mistura de maconha com
crack
Mocó/Paiól – local onde se estoca a
droga
Pico – uso de droga injetável, picada
de seringa
Pedra - Crack
Pó ou Farinha - Cocaína
Henrique Caetano Mingoranci Bassin
Graduando da terceira série de Medicina na Faculdade de Medicina de Marília (FAMEMA)
REFERÊNCIAS
ABREU, D. Consultório na rua e redução de danos: estratégias de ampliação da vida. Rev
Bras Med Fam Comunidade. 2017;12(39):1-2.
DENEM - DIREÇÃO EXECUTIVA NACIONAL DOS ESTUDANTES DE MEDICINA. Cocult –
Coordenação de Cultura. Cartilha de drogas. 2017. 52 p. Disponível em: <http://
www.denem.org.br/cartilhas/Cartilha%20-%20Drogas%20-%20CoCult.pdf>. Acesso em: 11
out. 2017.
OLIVEIRA, R. et al. Redução de danos no atendimento a sujeitos em situação de rua.
Argumentum, v. 7, n. 2, p.221-234, 21 dez. 2015. Disponível em: <http://periodicos.ufes.br/
argumentum/article/viewFile/10440/8255>. Acesso em: 11 out. 2017.
PAIVA, I. K. S. et al. Direito à saúde da população em situação de rua: reflexões sobre a
problemática. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 21, n. 8, p. 2595-2606, ago.
2016.
WACQUANT, L. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
26
NO FIM DO ARCO-ÍRIS FICA A RUA
Tendo como base o censo realizado na cidade de São Paulo publicado em 2015
sobre a população em situação de rua, podemos afirmar que em torno de 10% dessa
população se autodeclara como pertencente à comunidade LGBT. Porém, em locais como
EUA, Austrália e Reino Unido, entre 20 e 40% das pessoas em situação de rua se
autodeclaram LGBTs.
Por que essa diferença? Podemos sugerir vários motivos: a invisibilidade dos
homens bissexuais (que são categorizados como ‘gays de coberta’ por terem relações
sexuais com outros homens à noite, nos abrigos por exemplo, mas se identificarem
enquanto heterossexuais na vida cotidiana, sendo que cerca de 60 a 80% dos homens nos
abrigos vivenciam sua sexualidade dessa forma), por não levar em conta as pessoas em
situação de rua que estavam internadas em clínicas e hospitais, as que estavam abrigadas
em entidades religiosas ou em entidades não conveniadas com a prefeitura e as que moram
em barracos em regiões degradadas como beira de córregos, fundo de vales, etc. Ou seja, é
importante levarmos em conta que a definição de uma pessoa em situação de rua/sem-teto
é bem ampla e contempla mais pessoas que as que estão dormindo nas vias públicas
literalmente.
E porque as pessoas LGBTs acabam ficando em situação de rua? O principal motivo
é a rejeição motivada pelo cisheterossexismo encontrado no tripé da socialização burguesa
compreendido pela família–escola–trabalho, em grande parte pautado pelas concepções
morais religiosas conservadoras e excludentes. Em relação à população LGBT não
podemos inclusive falar em evasão escolar e sim em expulsão escolar já que as agressões
físicas e verbais como o bullying, rotineiramente ignorado nas escolas, acabam por impedir
a participação na comunidade escolar dos adolescentes LGBTs. Tampouco o acesso a
emprego se isenta do cisheterossexismo, afetando especialmente os jovens afeminados e
as jovens masculinizadas e as pessoas trans e travestis (cerca de 90% da população trans
tem que se prostituir para sobreviver), dessa forma as pessoas LGBTs têm menos apoio
familiar nas crises financeiras e também tem empregos precarizados e com baixos salários.
E nas ruas? Se a família e a escola são os primeiros e principais locais de violência
contra as pessoas LGBTs, as ruas acabam reproduzindo os conflitos e as mesmas
discriminações, mesmo que em algum momento as pessoas LGBTs, especialmente as mais
afeminadas tidas como mais dóceis, sejam as responsáveis por algum cuidado (como lavar
as roupas) e pela disponibilização de afeto e sejam nesses momentos valorizadas.
A LGBTfobia também é uma barreira no acesso a serviços de saúde e de assistência
social já que muitos locais são mantidos ou pertencem à instituições religiosas, que cobram
das pessoas LGBTs uma ‘adequação’ para permanecerem nesses locais abrigados,
27
negando por exemplo a identidade das pessoas trans e travestis, uma clara violação dos
direitos humanos.
O papel dos abrigos e centros de acolhida é recuperar pelo menos em parte, a
cidadania que foi retirada da pessoa em situação de rua, fornecendo assistência para
recuperar seus documentos, inclusive retificar os documentos das pessoas trans e travestis
que assim quiserem, facilitar o acesso à justiça, aos serviços de saúde física e mental,
garantir o sigilo na escuta dessa pessoa, propiciar condições para que haja reintegração
familiar se assim for o desejo da pessoa com retorno à sua cidade natal e também propiciar
reintegração socioeconômica através de programas de educação e formação profissional.
Dessa forma, uma possibilidade para a população LGBT em situação de rua são as
casas abrigos que recentemente começaram a surgir em algumas cidades brasileiras ou
centros de abrigamento institucionalizados voltados especificamente à essa população, já
que os homens gays podem sofrer ainda mais violências quando abrigados com homens
héteros assim como as pessoas trans e travestis não são bem aceitas nem nos abrigos
masculinos nem nos femininos e também podem ser ainda mais violentadas.
De acordo com o censo de 2015 podemos levantar alguns dados que são
importantes para pensarmos em políticas públicas voltadas à população LGBT em situação
de rua (no censo de 2011 nem havia a categoria LGBT):
- em relação à idade: a população LGBT tinha como idade média 34,8 anos
enquanto os heteros tinham 42,8 anos, uma diferença de idade de 8 anos que reflete
a expulsão familiar das pessoas LGBTs ainda na adolescência ou no início da vida
adulta.
- do total analisado, 88% eram homens e das 16 mil pessoas entre 1 mil e 1.500
eram autodeclaradas LGBTs. De acordo ainda com dados de 2008, a maior parte
são negros (pretos e pardos) corroborando a exclusão do racismo estrutural na
sociedade brasileira, estudaram no máximo até o ensino médio e tem uma renda de
20 a 80 reais por semana.
- em relação ao censo de 2011 houve também um aumento expressivo de pessoas
vivendo só, passou de 18 para 69%.
- em relação a violência: 61% relatava já ter sofrido violência física contra 42% dos
heteros/cis; 77% já havia sofrido violência verbal contra 60% dos heteros/cis; 75% já
havia sofrido roubos e furtos contra 62% dos heteros/cis; 25% já havia sofrido
violência sexual contra apenas 3% dos heteros/cis; 28% já havia sofrido tentativa de
homicídio contra 19% dos heteros/cis e 46% já haviam sido barrados em espaços
públicos contra 30% dos heteros/cis.
28
- em relação às condições de saúde: a taxa de HIV/AIDS diagnosticado e relatado
era 3 vezes maior que na população adulta de mesma idade com casa e também
tinham mais chances de ter tuberculose. Outras condições encontradas foi um maior
uso abusivo de substâncias (álcool, crack, cocaína e maconha), como forma de fuga
e de alívio de sofrimento mas também como forma de socializar com as outras
pessoas, e uma incidência maior de transtornos mentais, que podemos correlacionar
com o intenso sofrimento dada a rejeição em todas as esferas sociais. Além disso,
entre a população LGBT se usava menos o preservativo do que na população
hetero/cis em situação de rua. Porém um fator protetor que deve ser lembrado é que
as pessoas LGBTs procuram mais os serviços de saúde que as pessoas hetero/cis.
Importante ressaltar também, que mesmo procurando mais os serviços de saúde e
tendo piores condições de vida e com maiores chances de adoecimento, as pessoas
LGBTs também encontram resistências nesses serviços devido a discriminação
LGBTfóbica, à negligência dos agravos à saúde mental devido a discriminação e a
necessidade de endereço fixo (sedentarismo) para a realização de exames e
acompanhamento médico.
- em relação à sobrevivência nas ruas: 27% das LGBTs relataram alguma atividade
marginalizada (mendicância, prostituição, roubo, venda de drogas) contra apenas 5%
dos hetero/cis.
Outros dados importantes a serem colocados é que mesmo estando no Brasil, nas
regiões Sul e Sudeste a população de rua sofre ainda mais no inverno. Nos primeiros seis
meses de 2016, 113 pessoas já haviam morrido de frio só na cidade de São Paulo. A
população relata também que são barrados nos restaurantes populares quando estão ‘malvestidos’, além de terem confrontos cotidianos com a Guarda Municipal que são os
responsáveis pela zeladoria das vias públicas na cidade de São Paulo.
Ainda em relação à população LGBT não podemos deixar de mencionar as ‘famílias
LGBTs’, comuns na periferia de São Paulo, que são grupos diversos de pessoas LGBTs que
adotam o mesmo sobrenome sem ter laços de sangue e se unem em grupos para aumentar
a chance de sobreviver nas ruas, indo na contramão do aumento do número de pessoas
vivendo sozinhas nas ruas e os serviços de saúde, assistência, educação, justiça e
segurança pública precisam aceitar esse modelo de família também.
Uma outra especificidade que deve ser levado em conta na formulação de políticas
públicas voltadas a população em situação de rua é que nem todas as pessoas querem ter
uma vida sedentária (cerca de 10%). Temos que reconhecer que o nomadismo não é um
desvio e sim uma possibilidade de existência e socialização e assim como as famílias
LGBTs rompem com o ideal de vida burguesa cisheterossexista, logo as políticas públicas
devem considerar o nomadismo uma forma de vivência válida.
29
Em contraposição com as políticas higienistas e fascistas adotadas contra a
população em situação de rua especialmente nas grandes metrópoles brasileiras,
podemos citar programas que tentam resgatar a cidadania dessa população como o
Transcidadania, o Programa Operação Trabalho, Comitês PopRua, hotéis sociais, Centros
Pop, Pronatec PopRua, contratação de pessoas em situação de rua pelas empresas que
têm contratos com a prefeitura, etc. Quando pensamos a população em situação de rua,
temos que pensar inclusive a arquitetura das cidades, que com seus bancos de ferro,
marquises com grades e pregos, pedras pontudas embaixo
das pontes e viadutos também excluem e violentam as pessoas que vivem em
suas vias.
Até a revolução, existimos e resistimos!
Débora Anhaia de Campos, médica, feminista, bissexual e anticapitalista.
30
UM OLHAR SOBRE A POPULAÇÃO DE RUA E O PRECONCEITO
Trabalhando há mais de 10 anos no Serviço Especializado da
Abordagem Social que atende a população em situação de rua,
inadvertidamente, nos deparamos com situações em que somos acionados
pela comunidade para “retirar” as pessoas em situação de rua dos locais
onde elas permanecem, o que nos causa o que pode ser considerado um
“incômodo”. A proposta deste artigo é compartilhar este incômodo e, talvez,
contribuir para uma reflexão acerca desta temática sob a ótica do
preconceito.
Para fins de definição deste grupo social, consideramos o Decreto n
7.053 de 23 de dezembro de 2009, que institui a Política Nacional para a
População em Situação de Rua: considera-se a população em situação de rua
o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema,
os vínculos familiares rompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia
convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas
degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou
permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário
ou como moradia provisória.
De acordo com CANIATO (2010a) “O preconceito é uma atribuição
social de malignidade a determinados indivíduos e grupos, correspondente a
uma categorização de classe social que, muitas vezes, veicula uma atitude
política e étnica aversiva.” Citando outra autora, ela complementa esta
definição, afirmando que se constitui de um “conjunto de opiniões, crenças e
atitudes negativas contra grupos socialmente discriminados e se fundamenta
no medo irracional que desenvolvemos em relação a eles. A falta de contato
e convívio mais próximo com os grupos socialmente discriminados contribui,
sem dúvida, para aumentar esse medo” (CARONE, s/d; mimeo apud
CANIATO, 2010a).
Do ponto de vista político, pode se dizer que é um grupo social que
vive à margem da sociedade, não produz, vive dos restos da nossa
sociedade capitalista e, detalhe importante, a grande maioria não vota (pois
não tem documentos), ou seja, não tem expressividade e nem voz,
“incomodam” somente porque existem, por isso algumas pessoas insistem que
eles sejam “retirados da sua frente”. Em seu texto A Era da Avareza, Mariotti
(2001) explica que os valores do homem moderno se reduzem ao valor dos
bens e do dinheiro e, quando o ser humano é despojado deles, deixa de
existir, deixa de ser interessante, se transforma num estorvo. No entanto,
concordamos com Bauman, quando afirma que “as trancas podem ajudar a
manter o problema fora da vista e da mente, mas não pode forçá-lo a se
afastar de nossa vida”. (BAUMAN, 2004, p164). Já do ponto de vista étnico,
constitui-se, na sua grande maioria, de negros, que carregam consigo as
raízes ancestrais da história do Brasil: o perverso regime escravagista.
31
De uma maneira geral, na nossa sociedade, existe uma grande
dificuldade de aceitação do outro (aqui pensado como diferente), ou seja,
existem padrões e normas que, quando não são seguidos, geram a exclusão
e a marginalização e, consequentemente, o preconceito. A existência de um
grupo social excluído e marginalizado só pode ser pensado a partir de uma
análise da estrutura social, ou seja, há que se pensar em termos de um
todo, pois este grupo é o fruto da forma de organização da nossa sociedade
capitalista, produto do progresso econômico que, como afirma BAUMAN (2004)
acaba produzindo grandes quantidades de lixo humano. O autor utiliza este
termo para caracterizar a parcela da população que não se enquadra ou não
encontra lugar na indústria moderna, consequentemente, se exige que “... se
cortem, aparem, segreguem, separem ou extirpem as partes da matéria-prima
humana que sejam inadequadas para a nova ordem, incapazes ou
desprezadas para o preenchimento de qualquer de seus nichos.” (BAUMAN,
2004, p. 148). O “tirar da minha frente” reflete uma negação desta realidade,
aqui pensada no sentido freudiano do termo, como designando a recusa da
percepção de um fato que se impõe no mundo exterior (LAPLANCHE e
PONTALIS, 1995). Também podemos utilizar o conceito de negação
brilhantemente descrito por Di Loreto: “a negação é idêntica à alucinação, ao
contrário. A alucinação faz aparecer o que não existe; a negação faz
desaparecer o que existe!” (DI LORETO, 2007).
Por outro lado, existe o estigma do morador de rua como bandido, ou
marginal. A mídia reforça isso, na medida em que sempre mostra pessoas em
situação de rua , nas praças ou na “Crackolândia” em São Paulo, usando
drogas, passando uma “mensagem” que é só este grupo que consome
substâncias psicoativas. Tais imagens acabam fomentando o medo, a
intolerância e o preconceito, justificativa mais que plausível para a exclusão e
o distanciamento imposto a este grupo social. Marisa Feffermann nos alerta
para o perigo da associação da pobreza com a criminalidade e as armadilhas
que isto esconde: “... associar pobreza com criminalidade é uma concepção
ideológica, na qual a população pobre é vista como “classe perigosa” e
responsável pelos atos de transgressão. Sob essa lógica, a manutenção da
ordem exige que se afastem, cada vez mais, os já excluídos. A polícia,
detentora legal do uso da violência, garante essa “exclusão”.” (FEFFERMANN,
2006, p.23). Isso é confirmado na fala de alguns dos moradores de rua, que
relatam sofrer várias formas de violência, principalmente por parte da polícia
(que tem “permissão” para agredir, pois são os portadores da “violência
legítima”), que os espancam, expulsam de locais públicos e de grande
circulação de pessoas (numa tentativa de “tirá-los da vista”) e várias outras
formas de humilhações a que este grupo social é frequentemente submetido.
Tal como citamos anteriormente, o que caracteriza este grupo social é
o fato de terem vínculos familiares rompidos ou fragilizados, entretanto, ao
aceitarem ir para um abrigo ou outra instituição de acolhimento, a equipe
técnica é orientada a desenvolver um trabalho no sentido de não vincular o
usuário à instituição, pois o abrigamento é uma medida provisória e de
32
caráter temporário. Bauman, autor que contribui muito para o entendimento
das vinculações dos indivíduos na contemporaneidade, relata - acerca dos
moradores em campos de refugiados – que a localização destes indivíduos é
“... permanentemente temporária (...) não se estabeleceram, nem estão em
movimento. Não são sedentários nem nômades”. (BAUMAN, 2004, p.167). A
partir desta reflexão, este autor cunhou o termo “extraterritorialidade”, no
sentido de explicar as condições de vida dos refugiados, designando com isso
a permanência da transitoriedade das relações e dos vínculos, constitutivas do
que ele denomina fase “líquida” da modernidade. Com os moradores de rua
ocorre o mesmo, ou seja, eles podem até estar em tal abrigo, mas nunca
serão de tal abrigo, reforçando ao máximo a condição de não existência, não
pertencimento, fundamental para a constituição de um psiquismo minimamente
saudável, pois o ser humano se constitui na relação, no vínculo.
Outra questão que se coloca é: por que a grande maioria das pessoas
desenvolve um grande medo deste grupo social? No nosso dia-a-dia ouvimos
vários relatos da comunidade acerca do medo que este grupo desperta,
muitos ficam “impressionados” com a nossa “coragem” de nos aproximarmos e
até mesmo nos relacionarmos com “estas pessoas”. Como afirma Caniato
(2010), a intolerância e a rejeição, em um grau bastante significativo, é
dirigido a alguns grupos sociais, tornando-os “portadores do mal”. Algumas
vezes este medo é inconsciente, e se propaga no tecido social sem passar
pelo crivo de um exame crítico e acurado da questão. Reforça-se, com isso,
o preconceito e este “... preenche, mais ou menos intencionalmente, uma
função ideológica no contexto classista da sociedade capitalista, articulando e
justificando a exclusão de grupos (...). Consequências destrutivas permeiam a
vida dos estigmatizados pelo preconceito, em especial quando tais
representações
são
internalizadas
inconscientemente
pelos
indivíduos
destinatários do preconceito, que se tornam “portadores” de tais atribuições de
malignidade.” (CANIATO, 2010a). De acordo com esta mesma autora, a
irracionalidade, presente na concepção da existência deste “inimigo fatal
invencível”, acaba por contaminar as relações entre os indivíduos, gerando um
medo, muitas vezes coletivo, e também grande desconfiança projetadas neste
grupo social. Quem não se lembra, ou mesmo tenha ouvido comentários
acerca do “homem do saco”, que vinha pegar as crianças que não
obedeciam, ou que iam brincar na rua sem a ordem dos pais? A imagem do
mendigo ou morador de rua como “extremamente perigoso” já habitava o
nosso imaginário desde muito cedo!
Vivendo sob a influência da Indústria Cultural, (termo desenvolvido pelos
principais representantes da chamada Teoria Crítica da Escola de Frankfurt)
tudo se torna mercadoria, não somente produtos ou objetos de consumo, mas
principalmente “estilos de vida e a falta de questionamento da ordem
social.” (CANIATO e RODRIGUES, 2009). Assim, até mesmo o que pensamos
sobre determinado assunto se torna mercadoria, pois a mídia nos “educa” ao
seu bel prazer. Os mecanismos são sutis e cada vez mais eficazes e
sedutores, nos reduzindo a meros pseudo-indivíduos ou máscaras mortuárias,
33
metáfora utilizada por Adorno “...para exprimir a destruição do humano dos
homens, sob a engalanada aparência majestosa que lhe é imposta pelas
veleidades do consumo, mas
que esconde um homem morto-vivo porque
esvaziado de tudo o que é humano.” (CANIATO, 2010b). De acordo com esta
autora, a nossa subjetividade é atingida em cheio por esta violência simbólica
que nos é imputada pela Indústria Cultural, desvirtuando a compreensão
verdadeira dos acontecimentos que nos cercam, ludibriando e destruindo “...
os processos psíquicos superiores da consciência (percepção, memória,
pensamento, capacidade de julgar e decidir), tornando os seres humanos
idiotizados. A consciência moral fica à mercê da lógica do mercado e,
portanto, impedida de exercer sua função de orientação e proteção dos
indivíduos: a subjetividade humana fica entregue aos arbítrios da Indústria
Cultural e à destrutividade de um inconsciente capturado por esta tirania”.
(CANIATO, 2010b). Neste sentido, se destrói a capacidade de discernimento
real entre o bem e o mal, entre verdade e mentira. Qual seria a nossa
reação, ao ver um ser humano caído no chão, situação esta encontrada
diariamente no trabalho com Moradores de Rua? A reação mais encontrada,
que “ganha disparada” é: “tira isto da minha frente!” nos levando a pensar no
quanto é difícil, para não dizer impossível, pensar sobre os porquês de aquela
pessoa estar naquela situação. Difícil também é ir contra toda uma concepção
que nos é passada pela mídia relacionada a este grupo social. Como bem
descreve Mariotti (2001), preferimos confiar naquilo que nos manipula, que nos
transforma em rebanho, nos mantendo alienados. Enquanto pensarmos
questões ou grupos sociais de acordo com um “modelo mental
simplificador” (MARIOTTI, 2001) continuaremos alienados e passivos, pois tal
modelo nos impulsiona a análises recortadas, fragmentadas, “descoladas” do
todo, do macro. É importante entender a problemática de “pessoas em
situação de rua” inserida em um contexto social amplo, só assim não
cairemos nas armadilhas da Indústria Cultural, que nos impõe o que devemos
pensar e como devemos agir.
Enquanto classe trabalhadora, nós temos o dever de contribuir para
esta reflexão, não só entre os nossos pares, mas principalmente fomentar o
debate entre os atendidos, os Moradores de Rua, pois na medida em que
deixamos de vê-los como seres humanos e passamos a vê-los como
“Moradores de Rua”, significa que também fomos capturados pelo preconceito.
34
REFERÊNCIAS
ADORNO, T. W., HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento - fragmentos filosóficos. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
AGAMBEN, G. Lo que queda de Auschwitz. Valencia: Pre textos, 2005.
BAUMAN, Z. Amor Líquido. Sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2004.
DI LORETO, O. Posições tardias. Contribuições ao estudo do segundo ano de vida. São Paulo:
Casa do Psicólogo. 2007.
ESCOREL, S. Vidas ao léu. Trajetórias de exclusão social. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.
1999.
CANIATO, A. M. P., RODRIGUES, S. M. Sociedade de consumo e indústria cultural. 2009.
(mimeo)
CANIATO, Angela Maria Pires. A Violência do preconceito: a desagregação dos vínculos
coletivos e das subjetividades. 2010a (mimeo)
CANIATO, A. As Subjetividades contemporâneas: da máscara mortuária aos musulmans.
2010b. (mimeo)
FEFFERMANN, Marisa. Vidas arriscadas. O cotidiano dos jovens trabalhadores do tráfico. Rio
de Janeiro: Vozes, 2006.
LAPLANCHE, J e PONTALIS, B.P. Vocabulário de psicanálise. São Paulo: Martins Fontes,
1995.
MARIOTTI, H. A Era da avareza: a concentração de renda como patologia bio-psico-social. In:
PALLAS ATHENAS. Ciclo de Estudo: As Dores da Alma. São Paulo, 2001.
O TRECHEIRO. Notícias do povo da rua. “Pessoas em situação de rua denunciam o tratamento
que recebem da Polícia e da Prefeitura do Rio de janeiro”. Ano XIX, n 189, Julho 2010.
POLÍTICA NACIONAL PARA A POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA. Decreto n 7.053 de 23
de dezembro de 2009, publicada no Diário Oficial da União - DOU de 24 de dezembro de 2009.
SOUZA, M. L. R. Terra de ninguém: violência e vulnerabilidade. (s.d. mimeo).
Sara Gladys Toninato. Psicóloga – Especialista em Psicologia Clínica pela UEL/PR, Mestre
em Psicologia pela UEM/PR
Amanda Toninato Tavares – Acadêmica do Curso de Medicina na UEL/PR, Membro da Rede
Nacional de Médicas e Médicos Populares – Londrina/PR
35
ALFABETIZAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS: UM PROCESSO DE RETOMADA
DA DIGNIDADA
“Não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão.”
Paulo Freire
Alfabetizar é um processo de empoderamento que possibilita o acesso e o
protagonismo social.
No Brasil as pesquisas informam índices significativos de jovens e adultos com
pouca ou nenhuma escolaridade; resultado de inúmeras lacunas sociais ou educacionais, o
analfabetismo exclui, marginaliza e oprime.
No Brasil, 13 milhões de pessoas (9,3%) com 15 anos ou mais eram
analfabetas em 2014, conforme a Pnad - Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios. Tínhamos 65 milhões de pessoas com 15 anos ou mais que não
haviam concluído nem mesmo o ensino fundamental em 2010, segundo o
Censo Demográfico. Como muitas pessoas continuam no ensino fundamental
com 15 anos ou mais, não é menos assustador constatar que 47 milhões de
pessoas com 20 anos ou mais não tinham concluído essa etapa. Além
disso, 43% dos jovens com 19 anos não tinham concluído o ensino médio
em 2014. Catelli Jr, Roberto (Revista Época 23/06/2016 - 09h00 - Atualizado
23/06/2016 18h02)
A construção de processos de alfabetização de adultos em situação de rua tem
demonstrado que o acesso ao código escrito desencadeia um ciclo de outros acessos
sociais e possibilita o resgate da dignidade humana, descontruída pela situação social.
Perceber-se em situação de rua sem instrumentos cognitivos para articular-se no
mundo letrado, amplia o aspecto vulnerável que a própria questão já ocasiona. Ler e
escrever – decodificar e codificar este mundo – impulsiona o exercício do pensamento
reflexivo na busca por soluções que ampliem as possibilidades de sobrevivência.
Quanto maior nossa autonomia, maior nossas condições biopsicossociais.
Foi por acreditar na alfabetização como um instrumento de ressignificação humana
que construímos projetos que convidam jovens e adultos a mergulharem no mundo das
letras, a fim de conquistarem fôlego para transformações maiores.
36
O processo de alfabetização de jovens e adultos em situação de rua ou alta
vulnerabilidade biopsicossocial foi estruturado a partir de temas geradores que procuram
facilitar o acesso ao código escrito através de uma pedagogia reflexiva, que considera o
aluno protagonista de sua história e vida.
Cada tema apresentado gera momentos de reflexão e troca de informações, de
forma que ocorram no mínimo dois processos de aprendizagem e desenvolvimento:
cognitivo, por meio do pensamento reflexivo, e social, como identificação de seu estado
oprimido e resgate de seu papel nesta sociedade.
Ao aprender a ler e escrever, o aluno lê seu mundo e reescreve sua história.
Os principais temas trabalhados perpassam por questões relacionadas à:
Identidade (nome/documentos pessoais/identificação espacial/migração e
emigração/identidade de gênero/respeito)
Família (histórias de vida/infância, adolescência e fase adulta/pertencimento social/
medos/desejos/de onde vim e para onde vou)
Trabalho (trabalhador/funcionário/operário/documentos relacionados/segurança e
saúde/ direitos e deveres/a mulher no trabalho/anúncios e classificados/currículo/
distorções no mundo do trabalho)
Cultura e manifestações culturais (diversidade social/espaços públicos/o homem
como um ser cultural)
Saúde e aprendizagem de novos hábitos (alimentação/as realidades de uma cidade/
lixo/doenças/ condições sociais e saúde pública)
A metodologia é composta pela junção de pesquisas relacionadas à construção do
conhecimento e metalinguagem.
O aluno trabalha os temas associando diferentes instrumentos pedagógicos e
desenvolvendo habilidades cognitivas como: identificação, classificação, ordenação,
associação, comparação, seleção, diferenciação, entre outros.
Nesta reconstrução e construção do pensamento aprende as letras, identifica
sílabas, forma palavras, organiza frases e constrói textos.
A cada tema percebemos um novo olhar a respeito de seu significado social: a
educação reflexiva gera o empoderamento, um estado de autonomia que fortalece o
humano, ampliando suas condições de resistência.
Se não me dão voz, não aprendo a falar.
37
Se não me reconhecem como capaz, reforço minha incapacidade diariamente,
desistindo de existir como pessoa, de resistir como humano.
Educação de rua: para além dos muros da escola
Nos projetos de alfabetização de rua, todo território é educativo, nos apropriamos
das ruas como espaços de saber, aprendemos com a realidade posta, facilitando a
transposição dos conhecimentos adquiridos.
Para o importante teórico do movimento, Jaume Trilla Bernet, em uma perspectiva
educadora, a cidade pode ser considerada a partir de três dimensões distintas, mas
complementares:
“Em primeiro lugar como entorno, contexto ou contida de instituições e
acontecimentos educativos: “educar-se ou aprender na cidade” seria o lema
que descreve esta dimensão. Em segundo lugar, a cidade é também um
agente, um veículo, um instrumento, um emissor de educação (aprender da
cidade). E em terceiro lugar, a cidade constitui em si mesma um objeto de
conhecimento, um objetivo ou conteúdo de aprendizagem: aprender a cidade.
De fato, se trata de três dimensões conceitualmente diferentes e que em
algumas ocasiões convém diferenciar por motivos metodológicos, mas que na
realidade se dão notavelmente mescladas: quando aprendemos de e na
cidade aprendemos simultaneamente a conhecê-la e a usá-la”.
Em São Paulo, na Av. Paulista, cenário do projeto piloto, os espaços sociais se
tornaram nosso objeto de investigação: as imagens, palavras, frases e textos desvelavam a
realidade, facilitando compreender o vivido e transformá-lo.
A construção de projetos desta ordem requer paciência: a composição da demanda é
feita de forma gradativa, um aluno traz outros conforme começa a perceber-se diferente,
aprendendo o mundo. Precisamos compreender que muita coragem é necessária para
admitirmos que não sabemos diante de tamanha vulnerabilidade, porém nossa experiência
tem demonstrado que os resultados do processo geram reais transformações.
A reintegração na sociedade perpassa inúmeras ações que, entrelaçadas,
reumanizam, devolvendo dignidade e redirecionando a rota social.
Cada qual, a seu modo, pode fazer diferente, pode construir caminhos, enfrentado os
problemas sociais de forma realista.
“Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda.”
- Paulo Freire
38
REFERÊNCIAS
ARROYO, Miguel.O direito a tempos-espaços de um justo e digno viver. In: MOLL, Jaqueline
(org.), Caminhos da educação integral no Brasil: direito a outros tempos e espaços educativos.
Porto Alegre: Penso, 2012.
BERNET, J. T.Introdução. In: E. A. Educadores, La Ciudad Educadora = La Ville Éducatrice
Barcelona, Barcelona: Ajuntament de Barcelona, 1990 (pp. 6-21). Carta das cidades Educadoras.
Acesso online em 24/08/2017.
TEIXEIRA, Anísio. O ensino cabe à sociedade. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Rio de
Janeiro, v.31, n.74, 1959. p. 290-298.
MALUF, Maria Regina (org.) - Metalinguagem e aquisição da escrita: contribuições da pesquisa
para a prática da alfabetização. São Paulo. Editora casa do psicólogo. 2003.
Professora Ms. Rosana Giannoni
Mestre em Psicologia da Educação
39
CONHECER PARA MELHOR CUIDAR: PESQUISANDO PESSOAS EM SITUAÇÃO DE
RUA
A vida nos apresenta oportunidades únicas e mesmo um curto espaço de tempo que
passamos com pessoas em situação de rua nos imprime marcas que levamos por toda
nossa história. A experiência de participar de uma pesquisa cujos sujeitos são pessoas que
vivem esta realidade oportuniza conhecer indivíduos cheios de histórias, as regras do lugar,
os pactos de convivência, trejeitos, linguagem, uma realidade inesperada e única.
O jeito de interpretar o mundo e o modo de andar a vida do outro é colocado para
conversar com nossos conceitos e como não, com nossos regimes de verdade de como as
coisas devem ser. Pode ocorrer estranhamento ao que nos é diferente, pois
experimentamos várias sensações no contato que esta outra maneira de viver. Para
participar de uma pesquisa com pessoas em situação de rua precisamos antes de tudo estar
abertos ao afeto, à afetação e à mudança de nosso modo de olhar o mundo.
No momento da pesquisa em campo, o sentar junto nos aproxima e faz o outro
colocar em nossas mãos uma série de revelações e ele se expõe. Por vezes se fecha aos
questionamentos mais delicados, mas a entrega vai acontecendo no decorrer do encontro. A
vulnerabilidade do indivíduo está ali, sua vida exposta. A conversa flui para além de um ato
de pesquisar. Pesquisador e pesquisado sendo transformados, novos sujeitos vão se
produzindo naquele encontro. O pesquisador tem sua vida mexida, revisita conceitos, se
sente tocado, sensibilizado pela história do outro e o indivíduo pesquisado, ao falar de si,
também encontra respostas ou expressa coisas que nunca antes havia parado para refletir.
Na conversa, a escuta acaba por ser também um ato de cuidado.
Tudo isto leva a pensar na vulnerabilidade desta população. Sua vida pode ser o
objeto de estudo do pesquisador e cuidados éticos especiais devem ser tomados com
aquele indivíduo que ali parece estar sem proteção. Primeiramente é fundamental um
embasamento teórico do pesquisador para elaborar seu projeto de pesquisa. O Comitê de
Ética em Pesquisa da instituição a qual o estudo estiver vinculado fará todo o check-list para
a aprovação, entretanto, ainda na redação do projeto, o instrumento de pesquisa precisa ser
construído levando em conta a redação de enunciados que podem enunciar algum
preconceito ou ser indutor de determinadas respostas.
Qual abordagem utilizar, seja qualitativa ou quantitativa dependerá do objetivo do
estudo. Uma vez aprovado o estudo pelo Comitê de Ética, os pesquisadores calibrados para
a coleta, o local escolhido e o pré-teste do instrumento realizado, agora é o momento da
entrada no campo.
Nesta população, o momento da coleta requer tempo e a forma de obter os dados
deve ser levado em consideração. Como abordar e como se comportar no campo necessita
ser cuidadosamente discutido com o grupo da pesquisa e o pesquisador responsável. A
40
atitude do pesquisador na abordagem deve ser de respeito, pergunte se ele está disponível
para conversar e convide explicando os propósitos da pesquisa, tudo deve ser feito às claras. O
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido deve ser assinado. Perceba se o convite não interfere
em uma situação especial da sua rotina: se você não está atrapalhando o sagrado momento da
refeição, talvez a única do dia; de uma roda de conversa em que estão tratando de assuntos que
você não deva tomar conhecimento; se ele estiver de saída para algum “corre” com os amigos que
costuma conviver.
A gravação das conversas, quando a entrevista for o instrumento escolhido para a coleta,
deve ser autorizada e auxiliará na análise das falas e resgate de alguns detalhes que não puderam
ser anotados. Não se espante se, no meio da conversa, o indivíduo cansar e sair. Isto acontece,
não desanime. Reavalie o que aconteceu e tente novamente em outra situação. Não estamos
isentos de levar para o campo o juízo de valor e regras sociais, reconhecer as limitações e
preconceitos do pesquisador é fundamental para um bom encontro.
As pesquisas com pessoas em situação de rua devem ter como foco principal levantar
dados que nos auxiliem no conhecimento das necessidades destes indivíduos, suas regras, seu
modo de andar a vida. Um cuidado em saúde planejado a partir destas informações e pactuado
com os próprios indivíduos, é muito mais potente. Há potência em todo lugar, pois toda vida vale a
pena!
Profa. Sarah Beatriz Coceiro Meirelles Félix
Fisioterapeuta, Mestre em Saúde e Gestão do Trabalho, Doutoranda em Saúde Coletiva, Docente
Depto. Saúde Coletiva Universidade Estadual de Londrina. Professora colaboradora na Pesquisa
“População em situação de rua e o acesso ao cuidado em saúde” (Universidade Estadual de
Londrina).
41
CONSULTÓRIO NA RUA DE CAMPINAS
Entrevista com Alcyone Januzzi, coordenadora do Consultório na Rua de Campinas
O Consultório na Rua de Campinas iniciou suas atividades em Setembro de 2012, a
princípio com uma equipe. Desde sua criação, somos modalidade 3, ou seja, com
profissionais de nível superior, médio e médico.
O CnaR cresceu e hoje somos em duas equipes modalidade 3 dentro da atenção
básica, com vínculo com o Centro de Saúde. Ao todo, temos dois psicólogos, três técnicos
de enfermagem, duas enfermeiras, uma técnica de saúde bucal, três redutores de danos,
uma assistente social, uma terapeuta ocupacional, uma médica psiquiátrica, um médico
sanitarista, dois médicos de família e comunidade, uma técnica administrativa, dois
motoristas e uma coordenadora educadora física com gestão em negócios.
Nós atendemos de segunda a sexta-feira, das 7h às 18h, revezando dentro do
distrito de saúde leste, onde está inserida a região central de Campinas. Temos campos
fixos, que não são alterados para que os usuários possam nos procurar, e campos móveis,
que têm como contrapartida o compartilhamento de casos, busca ativa e construção de
vínculo com os usuários que não acessam nosso trabalho.
O CnaR atende qualquer pessoa que se encontre vulnerável, estando esta em
situação de rua ou morando na rua, e preferencialmente adultos, embora saibamos que
atendemos crianças e adolescentes, mesmo esse não sendo nosso objetivo, visto que essa
42
população não deve permanecer em situação de rua. Quando temos
pacientes gestantes ou com tuberculose nossa área de abrangência é
ampliada, uma vez que nossos usuários são itinerantes por toda
Campinas.
A perspectiva para o futuro é que tenhamos mais uma equipe
de Consultório na Rua para que possamos atender os demais distritos
do município e fazer com que os usuários estabeleçam vínculo e
acessem a rede formal de saúde. Para além disso, temos sempre
como perspectiva o compartilhamento de casos não só com outros
equipamentos da saúde mas como da assistência, educação, jurídico,
conselho tutelar, entre outros.
43
QUANDO O PODER PÚBLICO TIRA DAS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA OS
SEUS DIREITOS BÁSICOS
O artigo 5º da Constituição Brasileira diz que: “Todos são iguais perante a lei,
sem distinção de qualquer natureza”.
Mas a realidade da população em situação de rua no Brasil não corresponde
a este artigo. Somos mesmo todos iguais?
Considerados por muitos como inconvenientes e por outros como invisíveis,
estas pessoas se encontram marginalizadas em nossa sociedade e sem o apoio do
poder público que deveria zelar por sua integridade física e psicológica.
Sem ter onde morar, as pessoas que se encontram em situação de rua
costumam sofrer todo tipo de preconceito, perseguições e até mesmo violência física.
Estar nas ruas, para muitos, não é uma escolha, mas uma necessidade. Não existe
espaço para eles em nossa sociedade e a política assistencialista não pode ser vista
como política pública.
As pessoas questionam o fato de elas fazerem suas necessidades nas ruas,
mas esquecem que não existe banheiros que elas possam utilizar. Assim como são
pouquíssimas vagas disponíveis em abrigos que comportem estas pessoas.
O número de moradores em situação de rua tem crescido cada vez mais no
país, e isso se deve, principalmente, à grave crise econômica que estamos
atravessando, com a falta de empregos e oportunidades. Oportunidades que não
incluem estas pessoas que tanto precisam de acolhimento. É raro encontrar uma
vaga de emprego que aceite alguém sem comprovante de residência. E quando não
se tem uma moradia fixa, elas deixam de ter assegurados seus direitos básicos
enquanto cidadãos brasileiros.
Trabalho, saúde e moradia são questões latentes entre os moradores em
situação de rua.
Eles querem mais que um prato de sopa, um cobertor e uma vaga no
albergue. Eles querem respeito, querem oportunidades, querem ferramentas que
possam ajudá-los a retornarem para a sociedade como cidadãos participativos.
Eles buscam no poder público seus direitos assegurados nas leis. E para isso
é necessário que ações conjuntas sejam feitas.
As dificuldades desta população se dão, principalmente, nos órgãos públicos
onde são discriminados. É preciso implantar o atendimento humanizado. Só
conseguirão fazer uma política e implementá-la se todos os lados forem ouvidos. É
preciso ouvir a população de rua, afinal as políticas públicas devem ser feitas por
quem e para quem precisa.
44
Quando criarem estas leis de forma participativa que busquem soluções para estas
pessoas, ouvindo-as e respeitando seus direitos, finalmente o artigo 5º da nossa
Constituição estará correto.
Kátia Figueira de Oliveira
Gestora de Mídias do Movimento Nacional de População em Situação de Rua de São Paulo
45
MOVIMENTO NACIONAL DA POPULAÇÃO DE RUA: ESTÓRIAS DE UMA HISTÓRIA
Como uma pessoa na realidade das ruas tem capacidade, força, vontade de sonhar
e de lutar por um movimento social?
Entendendo que a Justiça é uma construção social da cidadania, o MNPR levanta
sua bandeira para esfrega-la na cara dessa sociedade e gritar que não se cansará de lutar
pela Justiça.
Dentro do processo histórico da redemocratização do país, no dia 7 de setembro de
1995; a Pastoral Social realizou conjuntamente com as demais igrejas do Conselho Nacional
das Igrejas Cristãs, um Ato que ficou conhecido como O Grito dos Excluídos, trazendo uma
forte crítica aos rumos, ou falta deles, que as pessoas em situação de vulnerabilidade social
tinham naquele momento histórico. Mais tarde, em 2001 foi a vez da Marcha para Brasília
marcar a presença das reivindicações da população de rua, que caminhava junto aos
Catadores de Lixo. Com a morte brutal de moradores de rua na região central de São Paulo
nas noites dos dias 19 a 22 de agosto de 2004, diversos movimentos sociais e organizações
da sociedade civil se manifestaram, expressando a necessidade de se organizar um
movimento social com o objetivo de dar visibilidade aos direitos e necessidades da
população de rua, lutando por Políticas Públicas para essa população. Em 2005, o conjunto
dos catadores, pessoas em situação de rua de Belo Horizonte, convidou representantes dos
movimentos similares do Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia e Cuiabá para participarem do 4º
Festival Lixo e Cidadania e deste encontro, surgiu a proposta e o lançamento do Movimento
Nacional da População de Rua (MNPR).
Em 2009, no I Encontro Nacional sobre a População de Rua, utilizando os dados
recolhidos na primeira pesquisa nacional sobre a população de rua, foi estabelecida e
avaliada a proposta Intersetorial da Política Nacional para a População de Rua, que seria
consolidada por meio do Decreto nº 7.053 de 23 de Dezembro de 2009.
Em 2010, o MNPR desenvolveu um projeto para seu fortalecimento realizando
capacitações de lideranças, seminários e fóruns em várias cidades do país, além da criação
de um Portal Fala Rua (www.falarua.org), confecções de bandeiras, banners e camisetas.
Em 2011 foram instituídos pela Política Nacional da Atenção Básica PNAB/Ministério
da Saúde na Portaria 2.488 de 21/10/2011; vários serviços de apoio e atenção psicossocial
aos usuários de drogas e álcool e moradores de rua, como o Consultório na Rua, os CAPS,
as UATIS (Unidades de Acolhimento Transitório), dentre outras; revelando a preocupação
com a População de Rua e seus agravos em saúde.
No âmbito da Assistência Social, o MDS criou os Centros POP, que são unidades de
acolhimento e apoio para a população de rua, proporcionando apoio para aquisição de
documentos, alimentação e higiene pessoal, além de trabalhar o fortalecimento de vínculos
e buscar a recondução dos pop rua para suas famílias (recâmbio) e as Casas de Passagem,
Abrigos, albergues etc.
46
A População em Situação de Rua é uma das esperanças de mudança
desse país! Nós, profissionais da saúde não temos uma visão Plena, Total e
Absoluta, mas apenas relativa dessa questão. Precisamos da População de Rua
para nos ajudar, somar saberes e nos empoderar; pois quem olha de fora só vê
nossos defeitos!
A Rua tem qualidade, tem valor, é preciosa e digna. Contudo, é necessário
Resistir e persistir, para que ela nos veja, entenda e aceite!
José Carlos Varella Júnior, formado em Serviço Social, atua no Consultório da
Rua em Praia Grande atendendo a população em situação de rua e usuários de
álcool
47
O MNPR PEDE PASSAGEM
A DENEM esteve presente no evento que celebrou os 10 anos do Movimento
Nacional da População de Rua no Paraná. Nesse evento foi possível realizar algumas
entrevistas com intuito de trazer a voz do Movimento para a Cartilha.
Vanilson Torres, Natal/RN
DENEM: Qual é o seu nome? De onde veio? Quanto tempo de MNPR?
Vanilson Torres: Meu nome é Vanilson torres, sou de Natal/RN, morei 27 anos nas ruas de
Natal. Estou há 5 anos no Movimento Nacional da População de Rua, sou conselheiro do
Conselho Nacional de Saúde (CNS) pelo movimento e estou na Coordenação Nacional do
MNPR.
DENEM: Vanilson, como você enxerga a saúde como um todo no Brasil hoje, não
apenas a saúde em específico para população em situação de rua, a saúde no geral?
VT: Meu amigo, acho que o resto do dia não dá pra falar sobre isso, porque o momento é de
total retrocessos, não só na saúde, mas em todas políticas desse país. Mas falando de
saúde, como é nosso tema específico, é um desmonte, ou seja, a destruição do SUS. Hoje,
esse governo que está aí não prioriza as pessoas. Ele prioriza, sim, as elites. Ele busca na
EC 95 o sepultamento do SUS que já está na UTI. Com essa EC, ele faz com que congelese por 20 anos investimentos na saúde e educação. E ainda acabou com as farmácias
populares. Os remédios para DSTs e AIDS... não existe garantia da continuidade do
tratamento por falta dos remédios. Hoje, também, estamos enfrentando a revisão da PNAB,
que é a Política Nacional da Atenção Básica, onde eu faço parte do GT, do CNS, da revisão,
onde simplesmente o engenheiro e ministro Ricardo Barros quer fazer é implementar no
Brasil planos populares. Ou seja, privatizar a porta de entrada da atenção básica. Sabemos
que no Brasil de hoje nem os planos mais famosos, como UNIMED e outros, eles dão conta
de tudo. Então, planos populares é fazer com que o pobre, já miseravelmente sofrido por
falta de políticas públicas e por falta de vergonha na cara desse governo safado, o povo
tenha que pagar pelo atendimento de uma consulta, etc, por atendimentos que o SUS já
realiza. Não gratuitamente, porque o SUS não é gratuito, é pago pelos nossos impostos.
Parece que é gratuito no geral porque a população não tem que pagar pela consulta.O que
nós vimos hoje é que 60% do investimento na saúde vai pro setor privado, só 40% é
investido nas questões próprias. Se nós formos pensar, por que o Brasil não tem serviços de
alta complexidade, ou seja, hospitais que fazem exames complexos? Claro, porque isso é
uma lógica do setor privado, que é abocanhar grande parte dos recursos que é destinado à
saúde. Então hoje no Brasil nós vemos que: querem acabar com o SUS. Esse governo que
está aí, está acabando não só com o SUS, mas acabando com os direitos trabalhistas, com
os direitos previdenciários, com a esperança e com a vida de milhares de brasileiros e
48
brasileiras que historicamente lutaram para conquistar seus direitos e hoje estão sendo
tirados do dia pra noite. A cada dia nós amanhecemos sem um direito. O cúmulo do absurdo
agora foi tirar 10 reais do salário mínimo pra economizar 30 bilhões de reais. Aí eu te
pergunto: por que o Temer não cobra as grandes fortunas? Por que não cobra os grandes
devedores da Previdência? Por que o Temer pagou a 12 bilhões a deputados corruptos para
que ele não fosse cassado? É uma lógica inversa e uma perversidade muito grande de um
governo que só veio para retirar direitos do povo brasileiro. É muito triste nós vermos um
cenário político onde 98% dos políticos estão envolvidos em corrupção. E são esses
mesmos políticos que estão definindo o destino do país. Como escapar disso? Com muita
luta e estratégia.
DENEM: A questão da saúde para população de rua, acesso à saúde, como está? O
Cartão SUS está sendo respeitado, precisa de algum documento para ter acesso?
VT: A questão da população de rua sempre foi negado o acesso à saúde. A população de
rua, quando consegue passar do segurança, muitas vezes ela esbarra em uma
recepcionista que às vezes por questões salariais ou por questões de assédio ou por
problemas em casa e pela condição dele às vezes estar sujo ou com odor, ela o trata como
se fosse lixo. Ou seja, ela não quer recebê-lo mesmo sabendo que aquele cara é um
morador de rua, mas é um cidadão que tem direitos. Hoje, a grande dificuldade é o acesso
ao serviço e à saúde. Aí pensando nisso, o MNPR fez uma convocação e conseguimos o
Consultório de Rua. Mas o Consultório de Rua, não era ‘’Na Rua’’ ainda, quando começou
há 7 anos atrás. Mas aí começou a tratar a população de rua, porque o Consultório de Rua
era no viés da saúde mental. Então começou a tratar essas pessoas somente por álcool e
drogas, como se essas pessoas não tivessem pulmão, dor de dente, dor de cabeça, perna
quebrada, etc. Então o Movimento lutou e conseguiu com que tivesse também o Consultório
na Rua, que passou pra Atenção Básica. Porque a gente entende que população em
situação de rua não é só alcoolismo e drogadição, ela tem todos os problemas, ou mais, que
qualquer cidadão que tem sua casa. Mas mesmo com o Consultório na Rua, esse acesso
ainda é dificultado por várias questões. Sabemos que a saúde no Brasil não está boa pra
ninguém. Se pessoas que tem suas casas, que tem uma estabilidade emocional, que tem
um teto, elas tem dificuldade de no acesso, marcam uma consulta pra daqui 20 dias,
imagina a população de rua, meu caro. Quando ela chega em qualquer serviço sozinha, pra
ela ser atendida, se o cara não for esperto e não conhecer a portaria 940/2011, que garante
o atendimento sem precisar de documentos ou fazer o Cartão SUS sem precisar de
comprovante de residência, se ele não tiver esses conhecimentos, se ela não conhecer o
decreto 7.053, ela vai levar um ‘’não’’ e não vai saber responder à altura pra ter o acesso e
seu direito garantido. Então assim, ainda hoje há dificuldade da população de rua em
acessar serviço de saúde no Brasil, ainda mais que o Consultório na Rua está sendo
desmontado. Desde 2013, só temos 148 equipes no Brasil, numa população que o IPEA diz
49
que é 101 mil, mas o IPEA fez pelo CadÚnico, mas sabemos que 3 a 5% da população de
rua faz o Cadastro Único, mas nós imaginamos que a população de rua no Brasil hoje passa
das 500 mil pessoas. Ainda mais com a EC 95 que congela gastos. Há um desmonte do
Consultório na Rua, não há mais equipes sendo colocadas, pois desde 2013 que não há
equipes sendo renovadas. E isso dificulta para população de rua, porque muitas vezes os
insumos estão disponíveis nas equipes de consultórios na rua. Então assim, o que nós
percebemos são alguns serviços feitos para população de rua, mas são serviços paliativos,
ou seja, vou dizer que tem mas na real ele não vai dar conta do que é previsto. Então, é
difícil de mais, por isso nossa luta é todo dia, é árdua, é no Conselho Nacional de Saúde, é
em qualquer local que assim nós pudermos ocupar.
DENEM: Então as perspectivas que o MNPR tem para os próximos tempos, em
relação à saúde, são ruins?
VT: Sim, porque a gente tá gente que tá tendo um retrocesso atrás de retrocesso no Brasil.
E mesmo nos governos de esquerda havia uma abertura mas não havia uma total coresponsabilidade do governo para com essa população. Você imagina agora um governo
temeroso que o cara tá privatizando agora, meu irmão, a Casa da Moeda, 15 aeroportos, o
Banco do Brasil, os Correios. Então assim, é entregar o Brasil para o setor privado. A
perspectiva é ruim, mas isso é combustível para a gente continuar na luta, porque pra gente
nunca foi fácil e não vai ser agora. Mas nós sabemos também que isso tudo tem uma força
maior. Na minha percepção, eu vejo que o Temer é só uma marionete de uma mão maior do
que ele. Ele tá ali ocupando uma cadeira, vai cumprir seu papel, mas mais retrocessos tão
vindo, porque infelizmente os fascistas estão ganhando espaço. Até em pessoas comuns
que tiveram benefícios, mas que diante de todo esse caos social, eles acham que um
Bolsonaro da vida é o melhor caminho, que o Marco Feliciano tá certo, que o Temer mesmo
assim deve continuar. Se o Brasil não acordar, talvez quando acorde já tenha passado o
bonde do tempo.
DENEM: O que você espera quando vai numa consulta médica?
VT: Pois é, eu espero que, pelo menos, ele me escute cinco minutos, primeiramente. Aí
segundamente que ele me escute cinco minutos. Já tive experiências muito ruins. Não é só
eu não. Porque os médicos hoje estão trabalhando no SUS, mas são de cooperativas,
ganham muito dinheiro. Eles estão ali, mas tem um tempo a cumprir. Quando você chega
num médico ele diz assim: ‘’você sente o que?’’, aí eu digo ‘’dor nas articulações’’ e ele nem
olha pra minha cara. Você vai ser médico, não faça assim. Ele nem olha na minha cara,
sente dor e já passa remédio. Nem me ouve! Os médicos, geralmente, nem olham na nossa
cara. As pessoas que estão aqui perto podem confirmar, não é senhora? Ela tá confirmando
aqui. Você diz que tá com uma dor no ombro, pronto, já diz que é bursite e te dá um
remédio. Porque o tempo é dinheiro. O capitalismo faz isso, então ele me dispensando ele
50
vai ter tempo de atender ela, e mais ela, etc, no tempo que ele atenderia um ele atende
cinco e isso gera renda pra ele. E até acho que não é culpa do médico em si, mas é culpa
de uma lógica que existe que o brasileiro sempre dá um jeitinho. Acho que a gente tem que
dar um jeitão sim, mas é no que se refere às questões sociais do povo brasileiro.
DENEM: As perguntas acabaram, se quiser falar algo mais o espaço está aberto e será
transcrito na íntegra.
VT: Beleza. Eu só queria dizer que estamos participando aqui do evento de 10 anos do
MNPR no Paraná. É mais um espaço de debate sobre população de rua, saúde, direitos
humanos, etc. Mas eu gostaria de terminar com dois poemas, um poema que é o ‘’Dia de
Luta’’ e o ‘’Rap da Rua’’, que são de autoria do Movimento do RN, do qual eu faço parte, e o
Rap da Rua começa assim:
Rap da Rua
“Sorrir? Quero! Posso? Não!
Porque cama, calçada, lençol, papelão
O poder não liga pra nós
Bem alto gritamos, mas eles não querem ouvir a nossa voz
Nômades nós somos, é preciso!
Pá-Pá-Pá, corremos perigo!
O Deus do céu cuida da gente: é dono do passado, futuro e presente
Dormir nas ruas: incertezas um aberto, outro fechado, olhando as redondezas
Lutar não é esperar! Mudanças virão, temos que continuar a lutar
Lutar não é esperar! Mudanças virão, temos que continuar a lutar, lutar, lutar, lutar...”
Dia de Luta
No dia 19 de agosto de 2004 um triste fato ocorreu
Sete pessoas em situação de rua na Praça da Sé morreu
Mataram covardemente sem dar nenhuma defesa
Mataram sete brasileiros que viviam na incerteza
51
Na incerteza de um dia que ainda ia raiar
Mas vieram os meliantes pra sua vida ceifar
Após aquela macabra noite algo começou a mudar
Surgiu o Movimento de Rua pros seus direitos lutar
Começou em dois estados, São Paulo e Minas Gerais
Hoje estamos em quatorze na luta por direitos sociais
Mas não pense que é fácil, o massacre continua
Quando é negado direitos a população de rua
Alguns estados conquistaram direito à trabalho, saúde e até habitação
Porém outros lugares, inclusive em Natal, é negado até dormir no chão
Por isso, sigamos na luta porque nesse país nada é de graça
Se não temos sede própria, vamos lutando na praça
19 de agosto é o dia de luta do povo da rua
Nós não vamos nos calar jamais
Porque nossa luta continua’’
Esse poema nós fizemos em Natal, mas vemos que nesse país vemos que
pessoas, em situação de rua ou não, morrem por falta de políticas públicas. E vou
terminar com essa frase que fundamental e fenomenal ‘’um país que prioriza
construção de presídios ao invés de escolas, esse país não tem futuro’’.
Darci Costa, São Paulo/SP
DENEM: Nome, local, tempo de MRPR?
Darci Costa: Sou Darci Costa de SP, faço parte do MNPR (Movimento Nacional
População de Rua), coordenador nacional, estou no movimento desde 2013.
52
DENEM: Na sua visão, como está a saúde geral no Brasil? Como está a saúde da
população de rua?
DC: O SUS é uma proposta muito inovadora porque ela garante o acesso à saúde de toda a
população a nível nacional. A questão é toda essa corrupção continuada que a gente vê
dentro do Sistema Único de Saúde, a precarização dos equipamentos, dos serviços e do
atendimento. Em especial, o preconceito com a população em situação de rua que tem
grande dificuldade de acessibilidade ao sistema convencional de saúde. A População de
Rua é excluída e ela se sente, de fato, excluída. Isso dificulta ela ir procurar uma UBS, por
exemplo. Por isso, como Movimento, nos apoiamos muito a questão do Consultório na Rua,
que isso possa se estender a nível nacional, que é a busca ativa. Há diversas enfermidades
na População em Situação de Rua, uma população fragilizada, como a tuberculose, a
Vigilância Sanitária, a própria AIDS e a questão da saúde mental. Além disso, existem
diversas dificuldades na População em Situação de Rua. Então o SUS é uma proposta
viável quando se há seriedade no trabalho, quando os recursos de fato chegam na ponta
onde se deve chegar, no profissional, na formação de todos os servidores de ponta, no
atendimento. A pessoa como digna de respeito, independente da condição social, ela deve
prezar muito a questão da dignidade e da liberdade da pessoa.”
DENEM: Como está a saúde da população de Rua em SP e do MNPR depois das ações
truculentas do Prefeito João Dória?
DC: Na questão da saúde a População de Rua está recebendo como primeira oferta a
internação. Há cinco hospitais psiquiátricos recebendo essas pessoas. Ouvimos dizer que
as internações não são compulsórias, mas não sabemos como essas mediações são feitas.
Tem aumentado o número de pessoas internadas e elas não ficam muito tempo internadas.
Com 10 ou 15 dias estão de volta às ruas, ao uso, então não vemos com bons olhos esse
tipo de ação e não sabemos se funciona. Acredito que não irá funcionar e acho que o
programa deve ser pensado melhor, buscando experiências com resultados, ver como se
pode implementar, principalmente de forma experimental. A região da Luz, por exemplo,
poderia ser utilizada como um grande laboratório de forma experimental para uma
metodologia que traga ao paciente possibilidade de desprendimento das drogas e de outras
doenças da região.
DENEM: Quais as perspectivas do MRPR e as suas em relação à saúde?
DC: Existe um cenário pessimista devido ao congelamento. Nos preocupamos muito que
isso chegue até a saúde. Sabemos que em São Paulo, por exemplo,a saúde já congelou 1
bilhão de reais do município, abriu-se uma operação de crédito para captação de recursos
para a questão da saúde na região da Luz, conhecida como Cracolândia. Isso vemos de
forma um tanto preocupante, que a responsabilidade mesmo da promoção da saúde e
53
acesso a todos fique na mão de empresas privadas e elas cobrem por isso. Nossa
preocupação é o que o SUS e o Município deixem de cumprir seu papel e a saúde caia
dentro de uma iniciativa privada que visa o lucro. Tanto a saúde quanto a habitação e a
assistência social tem que ser direito de todos, independente de quem precisar. Nos
preocupamos que se não houver uma mudança e integração da realidade da População em
Situação de Rua, a tendência seja criar um conflito maior em um serviço já bastante
precarizado.
DENEM: O que você espera quando vai para uma consulta médica? Já teve alguma
experiência ruim?
DC: Esperamos atendimento humanizado. Já tive várias experiências ruins de mortes na
família, de pessoas conhecidas e de mal atendimento. O primeiro atendimento não
consegue identificar a enfermidade de fato e algumas pessoas foram a óbito por
negligência, falta de avaliação correta dos sintomas que o paciente apresentava. Isso é
preocupante se tratando de um Médico, figura na qual as pessoas depositam bastante
confiança e esperança. Às vezes uma dor aparentemente simples que possa ser resolvida
em primeiro olhar com analgésicos, volta e poucas horas depois determina um óbito. É
muito triste identificarmos casos de reumatismo, por exemplo, que foram negligenciados a
princípio e que levaram a óbito, descobrindo depois que era um caso de reumatismo no
sangue. Ou uma pessoa com dor que morre logo depois de ter voltado da busca por
atendimento. Vemos muito isso nos albergues, uma pessoa com dor que aparentemente é
comum, mas na verdade ela precisa de um atendimento profissional. Muitas vezes a gente
não consegue essa atenção profissional.
DENEM: O espaço está livre, deseja falar algo a mais?
DC: A gente acredita muito que as Saúde é um dos pilares da política pública, junto com a
habitação e a assistência social, então o profissional de saúde tem que estar sempre
próximo das questões de vulnerabilidade, prestar atenção na proximidade das pessoas de
ambientes que possam contribuir para a proliferação de enfermidades, principalmente os
albergues, onde há uma grande concentração de pessoas tuberculosas e outras doenças
transmissíveis. Então, precisamos criar um ambiente humanizado e buscar a prevenção ao
invés de só tratamento da doença. Temos muito mais a ganhar com a prevenção.
54
Marialice, Rio de Janeiro/RJ
DENEM: Primeiro seu nome, de onde você vem, quanto tempo que você tá no
movimento.
Marialice: Meu nome é Marialice, eu sou do Movimento Nacional de População em
Situação de Rua, coordenação estadual. Sou do Rio de Janeiro. E já tô no movimento há
cinco anos.
DENEM: Marialice, pra você como que a saúde no Brasil, em geral, não só da
população de rua… Em geral, ela tá hoje? Como que você analisa isso?
M: Olha, a saúde no Brasil, hoje, no geral… Ela tá um caos. E pra nós, que somos pessoas
em situação de rua, está pior ainda. Porque, te digo da temática de nós, mulheres… Nós
mulheres não temos acesso à saúde. O que nos socorre, entre aspas, são os Consultórios
na Rua, que vai… Se os consultórios da rua não nos levar, nós não temos acesso à saúde.
Pra fazer o exame ginecológico, nós, mulheres em situação de rua, nós não vamos acessar
a ginecologia. Por que? Na rua é muito difícil nós fazermos a higiene pessoal. E nas
unidades de saúde não tem um lugar adequado para nós fazermos a higiene. Então, nós
ficamos muito constrangidas de fazer um preventivo. Porque nós somos mal cheirosas e nós
vamos constranger o profissional que lá trabalha, que muitos não vão nem querer nos
atender.
DENEM: Qual o problema com a mulher de situação de rua que engravida? Como que
acontece? Ela chega a ter acesso ao pré-natal, ela chega a fazer alguma consulta?
M: Olha só, nós, mulheres, quando engravidamos na rua, nós relutamos muito em fazer o
pré-natal. Por que? Porque vêm os conselhos tutelares da vida, na hora que a gente tem os
nossos bebês, pra nos tirar os nossos filhos e levar para os abrigos. E eles são postos para
doação. Eles falam que não, mas na maioria dos casos as crianças são doadas e nunca
mais essas mãe ver os seus filhos. Eles acha que tão fazendo o melhor pra criança, sem
pensar nas mães. Elas são mulheres, são conselheiras tutelar, elas não se colocam no lugar
dessas mães que tão sendo, que elas arrancam seus filhos pra levar pra doação. Eu queria
ver e saber, com elas, se fosse com elas que isso acontecesse, como elas se portaria, como
elas ficaria de ver seus filhos arrancado e ser levados pro lugar, ignorado. Muitas
conselheiras mentem, como tem caso no Rio de Janeiro - que essa criança a gente
recuperou -, que dizem que a criança morreu e a criança não morreu, já tava com outra
família. E essas criança, não é dizer que elas não tem família, elas tem família, tem avó, que
às vezes até querem ficar… Mas o nosso Estado, que não é bom para a população em
situação de rua e não quer dar guarda para os familiares dessas crianças que nascem em
situação de rua.
55
DENEM: Quais são as violências que as mulheres mais sofrem na rua? O que você
mais vê?
M: Todos os tipos de violência que você pode imaginar. Violência física, violência moral e
violência institucional. Nós somos violentadas, nós somos estupradas, nós apanhamos… E
fica por isso mesmo. Nós temos que ter relação sexual com os companheiros de rua e com
pessoas, homens, da sociedade comum. Então, é uma violação dos direito muito grande.
Porque nós somos cidadãs de direito que não temos direito.
DENEM: Quando você vai ser atendida por um médico ou por uma médica, o que você
espera desse atendimento, o que você espera desse profissional?
M: Eu espero ter um atendimento humanizado, que nem sempre é assim que acontece,
porque quando você vai acessar um serviço de saúde, as pessoas já te olham você com
outro olhar, um olhar de reprovação, como se você tivesse feito alguma coisa muito ruim por
você estar na rua. E, muitas vezes, eu chegava cedo nas unidades de saúde, e o que
acontecia? Aí um médico atendia todo mundo, e eu tô vendo os hospitais, né? Esvaziando,
ia lá, “mas cadê o doutor?”, “ah, já foi embora…”. Porque sabia que eu era população em
situação de rua e se negava a me dar o atendimento.
DENEM: Se você deseja falar mais alguma coisa sobre qualquer situação que já
vivenciou, pode ficar a vontade que a gente vai transcrever na íntegra, qualquer
denúncia que tiver para fazer.
M: É, olha só, eu, na rua… Um empresário tentou me violentar três vezes. Na última vez, ele
me deu uma bebida chamada rabo de galo e café, porque estava muito frio. Só que nem
todo mundo que vive nas ruas usa álcool e droga, eu não usava nem álcool e nem droga, eu
fui para as ruas porque eu trabalhava. Eu tinha um contrato com a secretaria estadual de
saúde. E quando mudou a gestão, né, o governo, o governo me botou na rua, não pagou. E
eu, com vergonha de voltar pra casa, fui pras ruas. Então, eu não usava droga, nem álcool.
E, a gente, na rua… É, a gente sofre as piores barbáries, as mulheres. No Rio, tem vários
lugares que tem banheiros químicos, para homem. E nós mulheres que ficamos
menstruada, não tem banheiros químicos. E todos os homens, todos os ser humano, ele
nasce de quê? De uma mulher. Então, nós precisamos de políticas públicas eficaz para as
mulheres em situação de rua. Porque a lei Maria da Penha, ela não chega em nós. Ela não
chega nem nas mulheres da sociedade comum, porque tem tantas mulheres com medida
protetiva e sendo mortas pelos seus vizinhos, seus maridos e seus companheiros. Então,
era só pra isso que eu tenho pra dizer. Porque, mulheres, nós temos que se unir.
56
Luciano, Maceió/AL
DENEM: Qual seu nome, local e tempo de MNPR?
Luciano: Eu sou Luciano, do estado de Alagoas e faz um ano que faço parte do Movimento.
Ainda sou um embrião aqui, mas dentro desse tempo posso dizer que o movimento é muito
positivo
DENEM: Na sua visão, como está a saúde geral no Brasil?
L: Eu vejo um apocalipse, o fim do mundo. Nós temos um Brasil falido na saúde e a retirada
de direitos. Quando você faz isso, mexe com toda a temática da saúde. O SUS já está
pedindo S.O.S, as pessoas em estado de vulnerabilidade não podem pagar um hospital
particular. Então, como fica essa população? Não só a população de rua, mas pessoas que
moram na favela, nas periferias. É uma situação para se problematizar, por que do jeito que
está não pode. O povo em geral, o Brasil, tem que fazer alguma coisa por que o SUS pede
socorro. A vida pede socorro. Aquele ditado que diz assim “pra quem não tem nada
podemos dar qualquer coisa” e não é assim, não é essa ideologia.
DENEM: Como está a saúde da população de Rua?
L: É difícil. Temos acesso mas ele é muito restrito pra essa população. Começar pelos
problemas nos serviços, tanto no centro POP e nos albergues. Seja qual for o serviço que
abrace a causa, a gente vê uma lacuna muito grande. Existem pessoas que buscam
melhorias, que vestem a camisa e lutam pelos direitos de toda a população que precisa ser
vista como ser humano. Acho que precisamos, como seres humanos, nos policiar diante do
outro para podermos melhorar as coisas. As coisas não vão melhorar da noite pro dia, vão
amenizar. Acho que deveria haver mais empenho tanto das políticas públicas quanto dos
usuários, da população que precisa. Ela deveria ir pra rua reivindicar melhorias enquanto
temos muitos parlamentares contra tudo isso, derrubando direitos, pisando a constituição,
afligindo o povo brasileiro. Quem mais sofre são as pessoas humildes e os pobres. É muito
difícil, mas estamos na luta. Não se vê vitória sem luta. Só se vence uma guerra lutando. É
uma constante luta, a vida é uma guerra e podemos mais tarde dizer que somos vitoriosos,
que alcançamos nossos objetivos. Essa é a vida, né. Temos que caminhar pra frente.
DENEM: Quais as perspectivas do MRPR e as suas em relação à saúde?
L: Enquanto tivermos um governo como esse Temer, que possui todas essas características
pra ser o anticristo, satânico, diabólico, e mentiroso, as coisas não vão andar. Como eu falei
logo no começo, é o apocalipse, o fim dos tempos. Que apocalipse é esse? Eu considero os
homens como os antigos senhores feudais, que massacram os lavradores, os
trabalhadores. Então, ter um representante como esse é inadmissível e não representa o
povo. Se ele fosse humano, faria diferente. Fechar as portas, tirar todos os direitos do povo
57
que foram conseguidos com luta e sangue, pessoas que revolucionaram, fizeram história
para que hoje déssemos continuidade a essa história. Não só de Curitiba, de são Paulo, do
nordeste ou do sudeste. É do Brasil inteiro, da raça humana. Ele não representa. Enquanto
tiver tomando conta, estando no poder, ele nunca vai sair das costas do pobre. Enquanto ele
não puder esmagar, pisotear e humilhar ele não sossega. Então a resposta para tudo isso é
que o povo brasileiro tem que se unir muito mais que em dia de eleição, ir pra rua e fazer
uma revolução. Dizer não! Precisamos, como povo, se reunir. Seja como ONG, movimento,
igreja, LGBT, afrodescendentes, de rua ou não rua, brancos, negros, ricos e pobres com
ideais de Ser Humano, revolucionar a história, gritar. Um presidente como esse não faz
história, só destrói a história.
DENEM: O que você espera quando vai para uma consulta médica? Já teve alguma
experiência ruim?
L: Experiência brutal. Já tive experiência de entrar na sala do consultório e ser ouvido, ser
assistido e ser examinado. Mas existe profissional que ele ama o tempo de faculdade e
quando vai atuar eu acho que ele não se encontra, não era aquilo que ele queria. Eu acho
que pra ser um médico é preciso mais que ser um artista, precisa ser um salva-vidas. Eu
percebo que muitos profissionais da área não são muito humanos. Não estou
desmerecendo, mas você tem aquela quantidade de pessoas boas e de pessoas más, na
medicina também. A experiência brutal que tive foi que quando entrei na sala da médica, ela
me desprezou com o olhar, como se pensasse “eu tenho que atender essa coisa?”. Foi
muito humilhante pra mim, discutimos e eu tive que sair às pressas para não ser preso,
porque acabei desacatando pela falta de respeito daquela profissional. Só com o olhar foi
humilhante, imagina se tivesse aberto a boca?. Então assim, eu valorizo a medicina, acho
ótimo, fundamental, vem desde o princípio da humanidade para cuidar do ser humano,
cuidar do seu bem estar e ter uma vida longa. São esses profissionais que conhecem o que
a população precisa, por isso que quando o indivíduo vai na consulta ele espera tudo, não é
como um abraço de mãe e de irmão. Alguns médicos deixam a desejar, não sou todos,
mas...
DENEM: Como você enxerga a influência desse nosso Sistema, deixando de lado um
pouco a Medicina pela essência dela, cuidar do próximo, mas esse sistema de ganhar
dinheiro e ter um status social?
L: Eu acho que as pessoas não visam mais o ser humano. Eles estão ali, estudam
aparentemente dedicados por que precisam de uma formação. Às vezes por pressão da
família por precisar ter uma formação, outros porque se identificam mesmo, mas a maioria
por status. Ficou muito essa ideologia hoje, de a pessoa se formar médico mais pelos lucros
do que por amor.
DENEM: O espaço está livre, deseja falar algo a mais?
58
L: Eu, como ex-morador de rua, conheci na pele o que é dormir ao relento, a fome, a nudez
por não ter uma sandália boa pra calçar e por não ter uma vida estável. Mas eu tenho uma
única esperança: que existe um Deus e até aqui ele me ajudou, estou dentro desse
movimento social e só tenho mais a somar para que a gente possa mudar essa história e
ter uma perspectiva de vida melhor com o passar do tempo eu percebo que a história vai ser
mais opressora para os necessitados e para os pobres, mas cabe a cada um saber o seu
papel, se juntar a movimentos, agregar valores, para que a gente consiga um Brasil melhor.
Agradeço pelo momento e que deus abençoe.
Rafael Machado, Maceió/AL
DENEM: Primeiro seu nome, de onde você é e quanto tempo que você tá no
movimento?
Rafael: Meu nome é Rafael Machado da Silva. Eu, atualmente, sou do estado de Alagoas,
Maceió. Sou representante do Movimento, do Movimento Estadual da População de Rua.
Coordeno lá o movimento no estado. Há cinco anos que milito pela população em situação
de rua. Passei catorze anos nas ruas, no uso abusivo de álcool e outras drogas. E pude
conhecer, através do programa Consultório na Rua, quando lançou o Fique De Boa, né?
Que trabalhava a redução de danos, as perspectivas da redução de danos, aonde eu pude
começar a acessar todos os serviços que atendem a população em situação de rua. Sofri
sete tentativas de homicídios, mas hoje estou aí na luta, né? É, consegui voltar para a minha
família já tem dois anos e seis meses, já tô indo pra três… Voltei pra minha família, consegui
um trabalho e hoje luto em prol desses direito da população em situação de rua.
DENEM: Na sua concepção, como que tá a saúde no Brasil, como um todo, assim?
Não só para a população de rua.
R: Tá um caos. Um caos, um caos mesmo, né? A saúde no Brasil pede socorro.
Principalmente quando se fala do uso abusivo de álcool e drogas, né? É, o povo acha que,
é… Que o álcool e outras drogas não é problema de CAPS, é problema de comunidade
terapêutica. E não, a saúde… a droga é um caso de saúde pública, mesmo, tá entendendo?
Que é uma questão de saúde, que, é, eu… Que através dos compartilhamentos de seringa,
de cachimbos, de lata, dos usuários de maconha… Se a gente tiver uma tuberculose, a
gente pode transmitir, se compartilhar uma seringa, a gente pode compartilhar o vírus. É,
tem sobre a doença sexualmente transmissível, que precisa ser mais esclarecidas e
tratadas porque hoje, no Brasil, existem pessoas que… O maior número da população em
situação de rua são soropositivos por conta das próprias pessoas que sai repassando uns
aos outros. E as famílias que são atingidas, porque a maioria dos profissionais, a maioria da
população em situação de rua, muitas mulheres e travestis são profissionais do sexo,
59
mantém o uso com questão de programas, né? Então, um homem casado sai da sua casa
para fazer programa com um deles e termina se contagiando. E contagia sua mulher, sua
parceira em casa, né? Então, assim, é isso…
DENEM: É, a saúde da população em situação de rua, a questão de acesso ao SUS, ao
cartão do SUS?
R: É muito negada. Não, só pro cartão do SUS até que melhorou, mas o que que é que
adianta a gente, a gente ter um cartão SUS mas chega no hospital geral e não é atendido?
Chega no posto de saúde e o povo não tem estrutura, porque ele tá fedendo, porque ele tá
de shorts, porque ele tá de bermuda, porque ele não tomou um banho… Então existe essa
questão de preconceito, tá entendendo? Que poderia ser vista em outro olhar. Porque nem
todo mundo, né, que tá na rua tem a oportunidade de tomar um banho, nem todo mundo
que tá na rua tem uma oportunidade de uma roupa nova, né? Então, esse, esse é um dos
mais, de um protocolo, a questão da aparência da população em situação de rua. O
atendimento, ele as vezes é dado pela aparência.
DENEM: E quais são as suas perspectivas e do movimento para a saúde nos
próximos períodos que tão vindo aí?
R: Ah, a nossa perspectiva é de perda, né? Porque o ministro agora, ele tenta fazer
negociação com… Com aquela rede que fortalece muito o consultório na rua. Que é… Meu
Deus, eu esqueci o nome. Ai, sumiu.. Sumiu da mente. Mas, assim, quando teve agora um
posicionamento, né? Que ele quer privatizar, né? Quando ele quer privatizar, né? Então,
quando ele quer privatizar o SUS, né? O SUS, ele já é um caos assim, imagina pra quem
não tem condições de um acesso a ele?
DENEM: E quando você é consultado por um médico ou por uma médica, o que você
espera desse profissional?
R: Assim, hoje é muito difícil se ter, nas modalidades do consultório na rua, médico. Que
deveria ter clínico, deveria ter um dentista, mesmo. Deveria ter um infectologista pra
trabalhar mais essa questão, né? Da população de situação de rua.
DENEM: E em alguma consulta médica, você já sofreu algum tipo de violência,
alguma coisa que te deixou desconfortável?
R: Não, não, por enquanto não. Eu não tenho do que reclamar, não, dos atendimentos.
Principalmente do CAPS, dos profissionais do consultório de rua, eu não tenho, não, o que
falar, não.
DENEM: Está aberto pra você falar sobre qualquer de situação de rua, a sua
experiência, você pode ficar a vontade.
60
R: É, assim, que realmente, que viesse a existir mesmo, né? Uma atenção mais voltada da
população em situação de rua, mesmo, na questão da saúde. Porque a saúde é a vida, né?
Aparece uma doença, aparece várias. A saúde, ela só quer um pé. Pronto, é como eu falei,
o ministro, ele, ele, ele tá querendo acabar com a Fiocruz. A Fiocruz é uma das que mantém
o SUS, né, assim, predominaria da população em situação de rua, né? Então, quando ele
tenta atingir a Fiocruz, ele tá tentando atingir essa população também. Porque é a pior…
Porque a classe que mais vai sofrer é a classe minoritária, é a minoria, né? E nós somos a
minoria, nós somos essa minoria. E eu posso falar, hoje, porque, assim, através do
consultório na rua eu fui uma pessoa que eu me cuidei, na rua. E não contraí o vírus do HIV.
Tive sífilis, tratei, cuidei, no acompanhamento, tudo. E se não tivesse o consultório na rua?
Eu acho que nem aqui, hoje, eu estava. Eu estaria morto. Então, assim, é, questão da
medicação, dar atenção psicossocial para essa população… Que aqui não tem, tem no
papel. E eu acho que, assim, quando se discute saúde da população de rua, a gente tem
que discutir mais a prática do que a teoria.
Cleo, Curitiba/PR
DENEM: Primeiro seu nome, de onde você vem, quanto tempo que você tá no
movimento.
Cleo: Tá gravando já? Eu sou Cléo, meu nome social é Cleo. Eu sou de Pelotas, sou natural
de Pelotas, mas estou aqui em Curitiba faz uns cinco anos, mais ou menos. E no
movimento, eu acho que tô há uns meses… Acho que uns dois ou três meses no
movimento.
DENEM: Como é a questão saúde no Brasil, em geral, tá pra você? Como que você
enxerga isso?
C: Ah, eu acho que tá meia precária, sabia? O governo tá cortando muitos gastos, muitas
coisas… Falta medicamento nas farmácias. Eu me consulto aqui no consultório… No
consultório na rua, não. Eu me consulto aqui no Ouvidor Pardinho, onde é meu cadastro, e
eu vejo que tem muita falta de remédio. Tá bem precário, eu acho.
DENEM: E pra questão da população em situação de rua, como você vê o acesso, do
cartão SUS, do nome social?
C: Ah, algumas coisas assim tá, tá direitinho. Mas tem algumas coisas… Tem algumas
pessoas que tão em situação de rua que eles negam o trabalho, não fazem o trabalho.
61
DENEM: Só por estar em situação de rua?
C: É, as vezes, acho que aí depende do… Da pessoa que tá trabalhando, que atende bem.
Outros não atendem mal ou atendem de má vontade. Eu vejo assim, desse modo.
DENEM: E como que vocês enxergam pros próximos tempos, assim, a questão da
saúde? Se vai melhorar?
C: Ah, eu acho que… Com esse movimento, eu acho que vai melhorar, sim. Que tão lutando
por isso, né?
DENEM: E quando você é consultada por um médico ou por uma médica, o que você
espera dessa pessoa?
C: Como assim?
DENEM: Como você espera que seja o atendimento, como você espera que seja
tratada?
C: Ah, na minha parte, eu já faço… Aonde eu consulto, eu já botei o meu nome social. Eles
me tratam… Pelo menos, eu não tenho nenhuma reclamação deles.
DENEM: Você já sofreu alguma violência de parte de algum médico?
C: Não, não, não. Eles sempre me respeitaram.
DENEM: Bom, são essas perguntas, se você quiser falar mais alguma coisa que te
interesse. Pode falar, tá aberto.
C: Não, não, tá bom
Maurício, Curitiba/PR
DENEM: Gostaria que você falasse seu nome, o local que você mora, quanto tempo
está na MNPR e se tem algum cargo.
Maurício: Meu nome é Maurício Pereira, sou técnico de enfermagem por formação. Estou
na militância do movimento nacional da população de rua no estado do Paraná, desde 2013,
e agora estou fazendo o tensionamento da política pública para a área da saúde aqui do
município e do estado também. Faço a coordenação do município de Curitiba na militância
do movimento.
DENEM: Como está a saúde, em geral, no Brasil?
M: Pensando enquanto município, a gente tem, aqui em Curitiba, um bom equipamento de
atendimento para a população em situação de rua que vem a ser o consultório na rua. Hoje
62
é referência nacional. Ele vem dando sensibilizações, técnicas de bom acolhimento e boa
criação de vínculo com essa população. Está conseguindo atingir bastante pessoas em
situação de rua e também fazendo as questões da assistência social do município. Essas
linkagens intersetoriais entre o serviço social, o CAPS, que é de alta complexidade, e outros
internamentos. Inclusive as questões da tuberculose (TB) e da sífilis aqui é um número
muito baixo perto de números de outros estados e outros municípios.
DENEM: Quais as perspectivas do MNPR em relação ao consultório na rua, em
Curitiba?
M: O consultório da rua é um atendimento da atenção básica. É uma boa porta de entrada
para a população em situação de rua para os atendimentos da saúde, para essa
acessibilidade, mas ela precisa de muito mais, de um recurso maior, de atualização
constante e essas coisas não acontecem. É uma pena que o consultório na rua, por
exemplo, tem um médico que faz a consulta, examina a pessoa, diagnostica, mas não tem a
medicação para disponibilizar para essa população em situação de rua. E aí, a gente
precisa ir até o posto de saúde, onde lá começam todas as violações a partir de um
atendimento de recepção de guarda municipal e preconceito do próprio colaborador, do
próprio servidor público municipal, e a gente percebe isso também nos outros espaços. É
bem complicado. O consultório na rua ainda precisa ter novos projetos, tem que agregar
novas possibilidades. Uma delas é trazer a mediação para dentro do espaço móvel deles
para que a gente possa também acessar, o mais rapidamente, o que o médico prescreveu e
começar, mais que imediatamente, o tratamento.
DENEM: O que você espera quando vai para uma consulta médica?
M: Humanidade. Escuta qualificada. Às vezes, a pessoa não fala diretamente o que sente,
mas no contar a história a gente consegue absorver muito melhor a problemática de saúde
que essa pessoa tem. Acho que uma boa escuta qualificada e um atendimento humanizado,
de fato.
DENEM: Você já teve experiências ruins com algum médico(a) por estar em situação
de rua?
M: Não, na minha época não. Diferente das pessoas que tinham pouco conhecimento dos
seus direitos, eu fui servidor público municipal antes de passar pela trajetória de rua. Eu
trabalhei durante oito anos dentro de um posto de saúde, em uma perspectiva de PSF. A
gente entendia muito bem o fluxo e os protocolos de tratamento. Então, quando eu ia buscar
a saúde, eu tinha o entendimento disso enquanto formação política já. Nunca tive problema
nenhum. Mas a gente consegue ver na nossa militância as impossibilidades que a
população em situação de rua, que não está formada politicamente, não entende dos seus
direitos, acaba não acessando por medo, vergonha de estar sujo, de estar extremamente
drogado ou do não acesso pela segurança pública do município para aquele posto. Enfim,
63
são essas as dificuldades que a gente acaba encontrando e a não continuidade dos
tratamentos. A gente precisa, às vezes, de um internamento e não consegue. Precisa da
medicação e não consegue. A gente precisa de orientação, visto que mesmo os
profissionais dentro dos postos de saúde não têm isso incutido. A gente conseguiu trazer
aqui para o município de Curitiba o decreto 940 fazendo com que os colaboradores do
serviço municipal da saúde, dentro dos postos de saúde, os atendessem sem a
obrigatoriedade do uso de documento ou comprovante de residência podendo expandir o
atendimento não só com o consultório na rua, que nada mais é do que um atendimento
básico. O que a unidade de saúde também deve dar conta dos seus da sua região, mesmo
que a população em situação de rua more em um bairro onde existe uma comunidade que
tem seu endereço, sua referência enquanto comprovação de residência, a população em
situação de rua que está naquele espaço também é de pertinência do atendimento, das
orientações, do tratamento, daquele posto de saúde daquela região.
DENEM: O espaço está livre. Deseja falar algo mais?
M: Eu acho que o Movimento Nacional da População de Rua, aqui no estado do Paraná,
anda e está tendo algumas conquistas na questão da saúde, até porque ela houve a adesão
do comitê técnico municipal de saúde também. A gente consegue trazer todos os
profissionais desses departamentos, os técnicos desses departamentos, de cada segmento
do que a gente precisa da área da saúde para vir discutir com o MNPR, com as pessoas em
situação de rua para que tenham uma melhor eficácia nas ações, nos planejamentos e toda
a logística que eles têm enquanto demanda de encaminhamentos.
64
65
CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM SITUAÇÃO DE RUA
Proteger as crianças da negligência, risco e violência, lhes garantindo
promoção, garantia e defesa de direitos e desenvolvimento saudável são
responsabilidades básicas do Estado, sociedade e família, devendo esses usar de
artifícios para erradicar os possíveis danos às crianças. A aprovação do Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA), na década de 90, tornou as crianças e
adolescentes sujeitos de direito, visando a garantia e preservação dos direitos
humanos, cidadania e proteção. Entretanto, ainda convivemos com um fenômeno
social resultante da história e política econômica brasileira, sustentada pelas
desigualdades social e racial, que são as crianças que vivem em situação de rua.
Essa condição configura uma das mais preocupantes situações de vulnerabilidade,
pois viola direitos básicos preconizados pelo ECA, como direitos à saúde, à
alimentação, à vida, à liberdade, à dignidade, ao respeito, ao ambiente familiar
saudável, à convivência comunitária, à cultura, à educação e ao esporte e lazer.
Uma pesquisa do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente CONANDA, realizada em 75 cidades do país, abrangendo capitais e municípios com
mais de 300 mil habitantes, apontou que aproximadamente 24 mil crianças e
adolescentes vivem em situação de rua no país. Sendo 71,8% deles do sexo
masculino e 45,13% entre 12 e 15 anos. Segundo a pesquisa, 70% deles sofria
violência doméstica intrafamiliar, sendo: brigas verbais constantes (32,2%), violência
física (30,6%) e violência sexual (8,8%) as formas mais comuns. Além disso, a falta
de políticas públicas, a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero,
a violência de gênero, a intolerância por motivos religiosos, a falta de acesso à
informação e as já mencionadas violências física e sexual são condicionantes à
ocorrência e continuidade dessa condição.
Outro dado importante apontado pela pesquisa é que 72,8% das crianças em
situação de rua declarou-se negra, proporção muito superior à observada no
conjunto da população em geral. Esse número evidencia a marginalização histórica
sofrida pelos negros, tendo no racismo institucional um fator determinante no
(não)acesso aos mais diversos serviços, principalmente para as mulheres e meninas
negras, que sofrem duplamente com a desigualdade de gênero e a desigualdade
racial. As vulnerabilidades já vivenciadas pela população negra, quando aliada a
situação de rua amplia ainda mais a marginalização e complexidade desse
66
fenômeno, resultado de processos sociais, econômicos e políticos, pautados no
sistema capitalista e patriarcal desse país.
Verifica-se que a saída de casa é um fenômeno processual, na maioria das
vezes motivada pela tentativa de romper vínculos familiares e buscar alternativas de
autonomia, liberdade e fuga de eventos estressores, como a violência e a pobreza.
Contudo, na rua, as crianças estão expostas à violência e ao desrespeito aos
direitos básicos, ali encaram a marginalização social, a humilhação e a invisibilidade.
Na rua, os agressores deixam de ser os familiares e passam a ser os companheiros,
integrantes de grupos organizados, a polícia e a população em geral, que banalizam
a existência dessas crianças e, por vezes, as sujeitam a exploração sexual
comercial, através do turismo sexual, tráfico sexual e a pornografia. Desta maneira,
percebe-se que crianças vivendo em situação de rua, em muitos casos, são
consequência e-ou agravamento de violação de direitos já existentes em ambiente
intrafamiliar. A ocorrência de eventos estressores, principalmente a violência sexual
na infância durante o processo formativo, quando o cérebro está sendo fisicamente
desenvolvido, pode deixar marcas em sua estrutura e função, provocando efeitos
que alteram - irreversivelmente - o desenvolvimento neuronal, o que predispõe ao
desenvolvimento de psicopatologias, principalmente o Transtorno de Estresse Pós
Traumático, depressão, ansiedade, conduta hipersexualizada, uso-abuso de
substâncias, isolamento social e comportamentos autodestrutivos. Além disso, a vida
cotidiana na rua pode agravar ainda mais essas condições.
Ainda de acordo com a pesquisa do CONANDA, quase 37% já foram
impedidos de entrar em estabelecimentos comerciais, 31,3% em transporte coletivo,
27,4% em bancos, 20,1% em órgãos públicos e quase 13% não receberam
atendimento na rede de saúde. Isso evidencia que os órgãos públicos e profissionais
de diversas áreas não estão preparados para lidar com esse público. As poucas
intervenções dedicam-se na direcionalidade da marginalização ou da salvação, com
um único objetivo: tirá-los das ruas compulsoriamente, sem qualquer construção de
vínculo. Quando o mais sensato seria entender essas crianças como parte do
processo de cuidado, com aproximação das redes de atenção à saúde, redes
protetivas e intensa preparação dos profissionais, para que promovam cuidado e
promoção de direitos.
67
O manual de Cuidado à saúde da População em Situação de Rua e a Linha
de cuidado para Atenção Integral à saúde de crianças, adolescentes e suas famílias
em situação de violências, preconizam 4 eixos para o atendimento à saúde de
crianças e adolescentes em situação de rua, são eles:
I. Aproximação e Abordagem
Recursos lúdicos devem ser considerados como estratégia de abordagem,
levando em conta os potenciais, capacidades e saindo da lógica da aproximação
pela carência. Atividades grupais podem facilitar a aproximação e a criação de
vínculos.
II. Acolhimento e Vínculo
O vínculo aqui exige perseverança e permanência, já que a maioria dos
vínculos dessas crianças encontram-se fragilizados, pois desenvolvem profunda
desconfiança em suas relações com adultos, principalmente nas interações
profissionais, com policiais, professores, assistentes sociais, etc. Por isso, a equipe
deve priorizar uma observação e escuta qualificada, com valorização e respeito aos
diversos saberes e modos de viver desses indivíduos.
III. Atendimento
As ações desenvolvidas com crianças e adolescentes devem ser orientadas,
de acordo com os seguintes objetivos:
● Garantir acolhimento e dignidade na rede de saúde;
● Fomentar a construção e reconstrução de novos projetos de vida, respeitando
as escolhas e individualidades;
● Contribuir na restauração e preservação da integridade e autonomia;
● Promover ações voltadas à reinserção familiar e comunitária;
● Ter atenção especializada voltada ao fortalecimento, resgate ou construção
dos laços familiares e comunitários;
68
● Cuidar, resgatar e minimizar danos decorrentes de vivências de violências e
abusos;
● Ter sua integridade, história e identidade preservadas;
● Ter vivências pautadas pelo respeito a si próprio e aos outros, fundamentados
na ética, justiça e cidadania;
● Fortalecer a autoestima;
● Alcançar autonomia e condições de bem-estar;
● Possibilitar a expressão de necessidades, interesses e possibilidades.
IV. Notificação Compulsória
Os artigos 13 e 245 do ECA descrevem a obrigatoriedade, por parte dos
profissionais de saúde, da notificação ao Conselho Tutelar dos casos de maus-tratos
a crianças e adolescentes, como forma de garantir o direito à sua integridade física.
A notificação não deve ser vista como forma de coerção, cada caso deve ser
analisado individualmente, priorizando a aproximação, formação de vínculo,
acolhimento e acompanhamento longitudinal.
Com isso, entendemos a necessidade da inclusão de políticas e estratégias
que versem sobre este público, contemplem suas demandas e considerem os
determinantes e condicionantes envolvidos nesse fenômeno. Além disso, atuem no
combate à discriminação e lutem para o reconhecimento da cidadania e direitos das
crianças e adolescentes, os tirando da invisibilidade. Investindo em ações de
prevenção, divulgação e sensibilidade da população em geral, desconstruindo as
características pejorativas e estereotipadas relacionadas às crianças em situação de
rua, percebendo os determinantes sociais e a rede de apoio para enfrentar a
vulnerabilidade e os riscos aos quais elas estão expostas.
“Todas as pessoas grandes foram um dia crianças, mas poucas se lembram disso”
Antoine de Saint-Exupéry
Gabriela de Araujo - 8° período Faculdades Pequeno Príncipe (FPP)
69
REFERÊNCIAS
APTEKAR, L. (1996). Crianças de rua nos países em desenvolvimento: Uma revisão de suas condições.
Psicologia: Reflexão e Crítica.
BRASIL. (1990). Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei n. 8.069, de 13/07/1990. São Paulo: Cortez.
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas e
Estratégicas. Linha de Cuidado para a Atenção Integral à Saúde de Crianças, Adolescentes e suas Famílias
em Situação de Violências. Brasília 2010.
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção à Saúde. Manual
sobre o cuidado à Saúde junto a População em Situação de Rua. Brasília, 2012.
GONTIJO, D.; MEDEIROS, M. Crianças e adolescentes em situação de rua: contribuições para a
compreensão dos processos de vulnerabilidade e desfiliação social. Ciência & Saúde Coletiva
MALFITANO, Ana Paula Serrata e ADORNO, Rubens de Camargo Ferreira. Infância, juventude e vivências
nas ruas: entre o imaginário da instituição e do direito. Imaginario [online]. 2006. http://
www.direitosdacrianca.gov.br/migrados/pesquisa-do-conanda-revela-as-condicoes-de-vida-de-criancas-eadolescentes-em-situacao-de-rua. Acesso em 01-02-2018
70
MULHERES EM SITUAÇÃO DE RUA
A atual Política Nacional para População em situação de Rua, decreto
presidencial 7.053 de 23 de dezembro de 2009 define essas pessoas como “
grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os
vínculos familiares interrompidos ou fragilizados inexistência de moradia
convencional regular e que utiliza logradouros públicos as áreas degradadas
como espaço de moradia e sustento, de forma temporária ou permanente,
bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como
moradia provisória”.
A pesquisa nacional sobre população em situação de rua, que tentou
caracterizar essa população em 2007, e foi publicada em 2008, mostra um
número predominantemente masculino, 82% frente a 18% de mulheres (hoje,
dez anos depois certamente o número de mulheres vem aumentando
consideravelmente), jovem, 53% possui entre 25 e 44 anos e negro,
aproximadamente 69% se declararam afrodescendentes. Além disso, 17% da
população era de analfabetos, sendo que 8,3% sabiam escrever apenas o
próprio nome. Os principais motivos que levaram essas pessoas à situação de
rua foram: uso abusivo de álcool e outras drogas (35,5%), desemprego
(28,8%) e desavenças familiares (29,1%), sendo que muitos iniciaram o uso de
substâncias após a situação de rua.
Ser mulher no Brasil significa que somente há 140 anos você foi
autorizada a estudar no ensino superior (ainda que essa escolha implicasse
em muitos preconceitos no início). Antes de 1932 não era possível votar. Em
1945, a igualdade entre homens e mulheres precisou ser aprovada na Carta
das Nações Unidas e no Brasil isso só aconteceu na constituição de 1988,
portanto, há menos de 30 anos. Em 1951, a igualdade salarial para a mesma
função precisou ser aprovada pela Organização Internacional do Trabalho e
ainda hoje não foi efetivada de forma plena. Somente em 1962 foi aprovado
no Brasil o Estatuto da Mulher Casada, que garantia à mulher a não
necessidade de autorização do marido para trabalhar ou receber herança e
que a permitia tentar a guarda dos filhos em caso de divórcio. Podíamos aqui
elencar uma série de dados e estatísticas para dizer do machismo estrutural
presente na nossa sociedade, que passa pelos diversos tipos de violência,
como física, psicológica, sexual e patrimonial.
A mulher em situação de rua está numa posição na sociedade
especialmente vulnerável a todos esses tipos de violência. Ao mesmo tempo
que se tratam de histórias de vida completamente trágicas em sua maioria,
são também de grande força de sobrevivência e resiliência, mulheres potentes
e transgressoras.
Enquanto sempre foi destinado à mulher o espaço privado da casa, o
comportamento “belo, recatado e do lar”, essas mulheres, essencialmente,
recusam essa identidade e vão assumir e ocupar o espaço da rua,
71
tradicionalmente masculino. Assim acontece também com as mulheres que
fazem uso abusivo de substâncias, como tabaco, álcool ou drogas ilícitas, antes
hábito associado aos homens; mulheres que exercem, com ou sem penalidades
legais, a violência, como assassinatos, tráficos e roubos, ou que exercem
sexualidade livre ou prostituição. Sendo todas as situações acima muito comuns
nas ruas.
“Mulher bêbada é horrível” “a mulher rodada” “mulher barraqueira”...
São múltiplos e cotidianos os exemplos concretos de comportamentos
permitidos e naturalizados ao masculino e vetados ao feminino. É possível ver
esse reflexo inclusive dentro dos CAPS AD (Centro de Atenção Psicossocial
ao Álcool e a outras Drogas), único serviço de saúde de toda a rede com
maior número de frequentadores homens do que mulheres, que em geral são
sempre a maioria esmagadora em qualquer serviço de saúde.
Longe de romantizar as mazelas sociais infindáveis que levam uma
pessoa ao uso compulsivo de substância psicoativa, à violência e à situação
de rua, ou ignorar a barbárie de um sistema que produz e naturaliza a
desigualdade social extrema, o fato é que: se encaramos a luta feminista
como uma luta de identidade, em que se recusa a identidade previamente
imposta para as mulheres do lar, da maternidade compulsória, da reclusão
doméstica, da moral e bons costumes, a própria existência dessas mulheres é
feminista, pois o tempo todo nos mostram outras formas possíveis de
identidade feminina. Identidade essa que passa sim pelo exercício da
violência, da rua e da sexualidade, e tudo isso de uma forma que sempre foi
associada somente aos homens.
Ainda que seja importante salientar a força e a potência da existência
da forma de vida dessas mulheres, é impossível não mencionar toda a
vulnerabilidade que se somam a isso. Neste caso são mulheres nas quais se
sobrepõem tudo o que essa sociedade produz de pior em termos de violência
e exclusão social. A pobreza extrema faz com que muitas vezes estejam mais
vulneráveis aos homens diversos, seus parceiros ou não, tanto a violência
patrimonial, física e sexual. Muitas vezes são trabalhadoras sexuais, tema que
divide tradicionalmente o movimento feminista, que por vezes vê o trabalho
sexual como autonomia da mulher sobre o próprio corpo e sexualidade,
abandono de regras e juízos morais sobre o feminino; por vezes vê como a
mercantilização do corpo e do consentimento sexual, e sendo assim, um
estupro, pois trata-se de ter uma relação sexual com alguém que nunca se
teria por vontade própria, visto que, se assim o fosse, o pagamento não seria
necessário. Independente disso, o trabalho sexual também torna as mulheres
mais vulneráveis à violência física, psicológica, patrimonial e sexual. Para além
da discussão de raça, pois tratam-se em sua grande maioria de mulheres
negras expostas, sobremaneira, ao racismo estrutural da nossa sociedade.
Mulheres que sobrepõem assim todas as mazelas sociais de classe, gênero e
raça.
72
Aliada a uma perspectiva feminista, não nos colocamos a chama-las de
vítimas, o que reforça a ideia de fraqueza ou de passividade. Cada uma que
circula pelas ruas diariamente são sobreviventes - substantivo que enfatiza a
garra própria dessas mulheres - de tudo que essa sociedade produziu de pior
entre machismo, racismo e desigualdade social. E com sua força colocam
cotidianamente sua existência diante de nossos olhos, e nos desafiam na
construção de políticas públicas a elas destinadas e construção de outras
possibilidades de produção da vida e afeto, para que possam viver em
sociedade e não sobreviver a ela.
É preciso que não nos esqueçamos nunca de Makarenko que dizia que
“O futuro tem mais força que o passado”, para que possamos no encontro
com essas mulheres de trajetórias tão difíceis, produzir um espaço no qual
possam vislumbrar a própria força e consigam, com afeto, construir novas
formas de (r)existência e luta.
Thais Machado Dias, ex-médica do Consultório na Rua de Campinas e docente de
Medicina de Família e Comunidade da UNICAMP.
73
74