Academia.eduAcademia.edu

Saúde Pop. de Rua

1 Quem são os autores dessa Cartilha? O projeto da Cartilha ‘’Saúde da População em Situação de Rua’’ foi elaborado durante Encontro Regional dos Estudantes de Medicina (EREM) ocorrido em Botucatu em junho de 2017. Esse evento, organizado pela Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina (DENEM), reúne os e as estudantes das escolas médicas dos estados de Paraná e São Paulo. Diversas oficinas, mesas e fóruns ocorrem durantes os dias do evento e uma dessas oficinas foi ‘’Saúde da População em Situação de Rua’’. Com cerca de 70 pessoas participando, o debate foi rico e com muita troca de conhecimentos e experiências. Foi consenso durante a discussão que nós, enquanto estudantes, deveríamos expandir os assuntos para além da Oficina, do EREM e da Universidade. Pela dificuldade territorial, participantes convidados e de cidades e estados diferentes, optamos pela construção de um grupo de trabalho para criação de uma Cartilha de formação e discussão sobre o tema. Convidamos o Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), assim como outros profissionais e militantes da População em Situação de Rua, para construir esse material junto com o grupo de trabalho constituído. O intuito é fazer o produto final chegar às escolas médicas, às coordenações de outros cursos da saúde e às secretarias de saúde municipais, estaduais e ao Ministério da Saúde. 2 COLABORADORES Adam Wolff Pomim Luis Eduardo M Martins Alcyone Januzzi Manoela Fidelis Batista Leite Amanda Rodrigues Correa Frota Gomes Manuela Maria Insuellos Besen Amanda Toninato Tavares Marcela Tengler C. Takahashi Arthur Vizzotto Zolin Marcos Vinícius Comparoni Débora Anhaia de Campos Mariana da Cruz Torquato Erika Plascak Jorge Mariana Souza de Paula Gabriela de Araujo Mariana Valsirolli de Moura Gabrielly de Oliveira Nascimento Nicole Orlandini Costa Henrique Caetano Mingoranci Bassin Orlando Henrique Ferreira da Silva Hérica Dias Brito Paula Foresto Crivelini Horácio Leite Ferreira Rosana Giannoni José Carlos Varella Júnior Sara Gladys Toninato Julia Jorge Prevelatto Sarah Beatriz Coceiro Meirelles Félix Julia Miranda Menezes Stella Marinelli Pedrini Julio Canos Neto Thais Machado DIas Kátia Figueira de Oliveira Thamires Miyako Ito Sigole Lucas Campos Studart Vinícius Imakawa de Lucca 3 Carta ao leitor Tratar do tema de populações historicamente negligenciadas pelos Sistemas de Saúde (e aqui já se deixa a marca de não utilizar o termo “populações vulneráveis”, uma vez que a vulnerabilidade é condicionada pelos mecanismos da macroestrutura social desigual e excludente – a determinação social do processo saúde doença) é um desafio contra-hegemônico nos meios de formação, de modo que informar sobre tal assunto torna-se cada vez mais imperativo. Parte dos “esquecidos” são os indivíduos em situação de rua, cuja definição perpassa por três conceitos: sobrevivência por meio de atividades produtivas desenvolvidas nas ruas; vínculos familiares interrompidos ou fragilizados; não referência de moradia regular. Ainda em subnotificação extrema, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) apontava em 2015 sobre a população em situação de rua que: 24,8% não tinha algum documento e 61,6% não exerciam direito de voto. Indicativos de que a maioria não possui expressão e voz políticas e incomoda pelo simples fato de existir – vista como o devir da loucura, do sujo, do não civilizado foucaultiano. Resultado e condicionamento disso (o incomodar), eles sofrem violências diversas e (num jogo recíproco de distanciamentos e medos) têm dificuldades de acesso à Saúde. E quando há oportunidade para isso, não se sentem num acolhimento adequado, vítimas de um desespero crônico de marginalização que não ofereceu saídas. A partir de 2009, com a instauração da Política Nacional para a População em Situação de Rua e a expansão (ainda que pífia) dos ambulatórios de rua; assistentes sociais, médicos, enfermeiros, psicólogos e outros profissionais da área em contato com essa população verificaram a carga emocional pesada nos acolhimentos e a não romantização do serviço. Esses relatos servem de subsídio para que haja o entendimento de que vínculo e atendimentos devam ser uma política maior e não simplesmente resultados isolados de “compaixão” e “empatia” por certos profissionais, que por fim acabam se desgastando com as atividades. Significar e empreender Sistemas de Saúde para os indivíduos em rua deve partir de Secretarias Municipais e Estaduais fomentadas por profissionais que tiveram qualificação para esse cuidado em sua formação acadêmica – o que revela um projeto de Estado e Sociedade Civil articulados. Na música, ouve-se “Eu moro na rua, não tenho ninguém. Eu moro em qualquer lugar” e na poesia, lê-se que “O bicho não era um cão, Não era um gato, Não era um rato. O bicho, meu Deus, era um homem.” Esse fardo sentimental quando se entra em contato com indivíduos em situação de rua, em sua apavorada pobreza e desumanização, deve ser despertado. E a revolta que surge em seguida precisa ser (sim) um sinal de busca por resolução. Porém, que não seja fim em si próprio e que não seja individualizado. É preciso um plano de sociedade para agir, com reformas e revoluções: não deveriam existir pessoas de, na e em ruas. Enquanto a renovação e a insurreição por igualdades socioeconômicas se processam, é imprescindível que profissionais de saúde estejam atentos ao atual retrato do Brasil. Proponha-se, assim, o convite para que esta Cartilha seja instrumento introdutório de perturbação com informações que motivam agir. Luís Eduardo Moreira Martins Coordenação de Políticas de Saúde DENEM 2017. 4 SUMÁRIO POR QUE DECIDI TRABALHAR NO CONSULTÓRIO DE RUA? ...........................6 CARACTERIZAÇÃO DA POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA ..........................8 ACESSO À SAÚDE: PARA ALÉM DO COBERTOR E PAPELÃO ...........................11 ENCONTRO ENTRE ESTUDANTES DE MEDICINA E POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA ................................................................................................18 CRIAÇÃO DE VÍNCULO ..........................................................................................21 REDUÇÃO DE DANOS: UMA ESTRATÉGIA DE AMPLIAÇÃO DA VIDA ...............24 NO FIM DO ARCO-ÍRIS FICA A RUA ......................................................................27 UM OLHAR SOBRE A POPULAÇÃO DE RUA E O PRECONCEITO .....................31 ALFABETIZAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS: UM PROCESSO DE RETOMADA DA DIGNIDADA ............................................................................................................36 CONSULTÓRIO NA RUA DE CAMPINAS ...............................................................42 MOVIMENTO NACIONAL DA POPULAÇÃO DE RUA: ESTÓRIAS DE UMA HISTÓRIA ................................................................................................................46 O MNPR PEDE PASSAGEM ...................................................................................48 CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM SITUAÇÃO DE RUA .....................................66 MULHERES EM SITUAÇÃO DE RUA .....................................................................71 5 POR QUE DECIDI TRABALHAR NO CONSULTÓRIO DE RUA? Ao final da graduação, nada era saúde mental valia mais (e tudo bem, certo. Passar na residência não era às vezes a gente tem que dar um uma certeza, qual especialidade seguir tempo e se priorizar). Seria a volta pra não era uma certeza e mesmo querer vida de plantões esporádicos, afinal, as ser médica não era uma certeza. contas não iam se pagar sozinhas. Eis Residência não rolou, e aí? Caí no que, no meio do cumprimento do aviso “mundo”. E que queda! Percebi que a prévio, recebo de um amigo de vida de plantão não era pra mim e faculdade da enfermagem a consegui um emprego fixo no PSF, informação de que estavam abrindo com a doce ilusão de que “a atenção novas equipes de Consultório na Rua primária é mais tranquila”. Mas nada em São Paulo e havia vagas para com um grau de sucateamento no nível médicos. Eu não tinha nada a perder. que vivenciamos na saúde pode ser Mesmo recém-formada e com pouca chamado de tranquilo. experiência passei na seleção (por Descobri que o que importava incrível que pareça não tem tanto eram as metas. Meta de consultas, médico que quer trabalhar com meta de visitas domiciliares, meta de pessoas em situação de rua...). solicitações de mamografia, meta de Primeiras semanas e percebi coleta de papanicolau, meta de coleta que a lógica do cuidado era bem de BK. 15 minutos por consulta. diferente do que eu tinha vivenciado. Quinze minutos. QUINZE MINUTOS. Preciso ficar um dia inteiro resolvendo Já imaginaram fazer pré-natal nesse a situação de uma única paciente? tempo? Ou puericultura? Ou uma Tudo bem. Preciso ficar mais de uma consulta de saúde mental? Pois é, não hora com o mesmo paciente pra dá. Pelo menos não do jeito que entender sua história e programar deveria ser. É tudo mais ou menos, intervenções? Tudo bem. Preciso feito mais ou menos, e você vai se recuar por entender que o sentindo uma profissional mais ou protagonismo em muitos casos é de menos. outro profissional da equipe, seja da Seis meses e o burnout foi inevitável. Mesmo sem outro emprego assistência social, psicologia ou enfermagem? Tudo bem também. fixo em vista pedi demissão. Minha 6 E esse conjunto de fatores passou a dar mais sentido no dia a dia de trabalho. Não quero criar aqui uma ideia romantizada do serviço, até porque também é gerenciado por Organização Social (OSs), também sofre subfinanciamento, também é precarizado. E as histórias de vida e dia a dia com os pacientes te mostram a face mais cruel, excludente e machista da sociedade: muita história de abuso sexual na infância e na vida adulta, muita história de transtorno psiquiátrico incompreendido, muita história de dependência química grave, muita gente te dizendo todo dia “não tem mais jeito” e “não tenho mais motivos pra viver”. É pesado. É emocionalmente bem pesado, mas vale a pena. O Consultório na Rua não deveria existir, pelo simples fato de que não deveria haver pessoas em situação de rua, o que implica na luta por um modelo de organização econômica e social bem diferente do qual vivenciamos. E é com esse horizonte estratégico em mente que seguimos resistindo enquanto profissionais e seres sociais que somos. Erika Plascak Jorge Médica do Consultório na Rua em São Paulo/SP 7 CARACTERIZAÇÃO DA POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA Antes de qualquer tentativa de caracterização, devemos sempre ter em mente que essa população possui forte característica migratória. Isso quer dizer que os dados disponíveis foram obtidos como uma espécie de fotografia daquele momento, ou seja, meses depois as informações poderiam ser completamente diferentes. Isso não impede o governo de adotar políticas públicas para essa população, mas exige que os programas voltados à população de rua estejam em constante reavaliação e as pesquisas e censos sejam realizados com uma frequência maior. O Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), após debates com diversas entidades da sociedade civil, chegou a um consenso acerca de uma definição para esse grupo da sociedade, com intuito de facilitar o desenvolvimento de políticas públicas e ações: ‘’Grupo populacional heterogêneo constituído por pessoas que possuem em comum a garantia da sobrevivência por meio de atividades produtivas desenvolvidas nas ruas, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a não referência de moradia regular.’’ 1. As pessoas que ficam na rua – configuram uma situação circunstancial que reflete a precariedade da vida, pelo desemprego ou por estarem chegando na cidade em busca de emprego, de tratamento de saúde ou de parentes. Nesses casos, em razão do medo da violência e da própria condição vulnerável em que se encontram, costumam passar a noite em rodoviárias, albergues, ou locais públicos de movimento. 2. As pessoas que estão na rua – são aquelas que já não consideram a rua tão ameaçadora e, em razão disso, passam a estabelecer relações com as pessoas que vivem na ou da rua, assumindo como estratégia de sobrevivência a realização de pequenas tarefas com algum rendimento. É o caso dos guardadores de carro, descarregadores de carga, catadores de papéis ou latinhas. 3. As pessoas que são da rua – são aqueles que já estão faz um bom tempo na rua e, em função disso, foram sofrendo um processo de debilitação física e mental, especialmente pelo uso do álcool e das drogas, pela alimentação deficitária, pela exposição e pela vulnerabilidade à violência. No livro ‘’População de Rua: Quem É, Como Vive, Como É Vista’’, as autoras Cleisa Rosa, Eneida Bezerra e Maria Vieira, identificam três situações em relação à permanência na rua: 8 Frente a isso, reunimos alguns dados colhidos na Pesquisa Nacional Sobre População em Situação de Rua, publicada em 2008 pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome: 9 Pesquisa de 2015, feita pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), aponta uma população em torno de 100 mil pessoas vivendo nas ruas do Brasil. Dessas, cerca de 77,02% viviam em municípios com mais de 100 mil habitantes. Além disso, 48,9% estavam concentrados na região Sudeste, enquanto que apenas 4,32% na região Norte. A crítica que se faz a essa pesquisa é que a estimativa dessa população foi feita a partir do Cadastro Único para Programas Sociais. Segundo Vanilson Torres, líder do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), apenas 3 a 5% da população de rua está registrada no Cadastro Único. Em vista disso, o MNPR acredita que existem muito mais que 100 mil pessoas em situação de rua no Brasil, o que mostra a necessidade de um novo Censo e Pesquisa Nacional Sobre População em Situação de Rua, como foi feito em 2006, para atualização dos dados e reformulação das políticas públicas para a população de rua. Arthur Vizzotto Zolin, estudante do 4º de Medicina da Universidade Estadual de Londrina (UEL) Amanda Rodrigues Correa Frota Gomes, estudante do 1º ano de Medicina da Faculdade Barão de Mauá Julia Jorge Prevelatto, estudante do 1º ano de Medicina da Faculdade Barão de Mauá Nicole Orlandini Costa, estudante do 2º ano de Medicina da Universidade Estadual de Londrina (UEL) 10 ACESSO À SAÚDE: PARA ALÉM DO COBERTOR E PAPELÃO desenvolvimento do fragilização dos vínculos trabalhistas pela capitalismo e ascensão do modelo não qualificação profissional, inserção em neoliberal, o principal objetivo econômico é atividades produtivas com grande potencial a reprodução ampliada do capital, deixando de substituição, rendas limítrofes para a de lado a distribuição de riquezas e subsistência, estigmatização pelas aumentando assim o fenômeno da posições de trabalho que ocupam e exclusão social. Nesse contexto, há um desemprego. Com o número cada vez maior de pessoas excluídas dos direitos sociais básicos, como educação, saúde, trabalho, moradia e outros, e até mesmo dos direitos humanos, com alguns grupos relegados à invisibilidade (PAIVA et al., 2016). É nessa categorização que encontramos a População em Situação de Rua - PSR, que, segundo pesquisa publicada pelo Ipea, é estimada em mais de 100 mil brasileiros em 2017. Essa população desafia a universalidade, a equidade e a integralidade do Sistema Único de Saúde SUS, encontrando-se à margem da rede de atenção à saúde e sendo alvo de políticas de saúde focalizadoras, que ignoram a complexidade da PSR. Sob um contexto de exclusão social, a PSR vivencia diariamente inúmeras situações de violência, privação e miséria. Nesse sentido, cabe às políticas públicas sociais o desafio de adotar um conceito de saúde amplo, que reconhecesse a heterogeneidade dessa população e ultrapassasse a dimensão biológica, capazes de intervir nos determinantes relativos ao processo de saúde-doença. Entretanto, as políticas sociais atuais voltadas para essa população são, em sua maioria, compensatórias e assistencialistas, não garantindo à ela a efetivação de seu direito à saúde. Isso se dá por uma destituição de cidadania desses brasileiros, sendo tratados como problemas urbanos O grande número de brasileiros nas aos quais o Estado deve intervir com ruas escancara as contradições de uma medidas pontuais; e por um sociedade que tem a seguridade social desconhecimento dos profissionais de como direito constitucional e que assegura saúde do cotidiano vivido pela PSR, saúde como direito de todos e dever do limitando assim o entendimento da Estado. São inúmeros os determinantes complexidade de seu processo de saúde- individuais que levam essas pessoas para a doença e a identificação das reais rua, mas não se pode perder de vista o necessidades de saúde. processo social que empurra milhares de pessoas para essa condição. Ghirardi et al. (2005), apresentam como determinantes do processo de viver nas ruas a competição Além de colocar em cheque muitos dos princípios nos quais o SUS se baseia, a falta de assistência à PSR se opõe à caracterização da atenção básica pela acirrada do mercado de trabalho, 11 Política Nacional de Atenção Básica como Apesar das vicissitudes e contradições um conjunto de ações que abrange a apresentadas com relação ao acesso à promoção e a proteção da saúde, a saúde por pessoas em situação de rua, prevenção de agravos, a reabilitação, a deve-se ressaltar os avanços e conquistas redução de danos e a manutenção da adquiridos nos últimos anos. Com a saúde, com o objetivo de desenvolver uma redemocratização brasileira, essa questão atenção integral que impacte na situação ganhou visibilidade por meio da de saúde e autonomia das pessoas e nos organização do Movimento Nacional da determinantes e condicionantes de saúde População em Situação de Rua, que deu das coletividades. Especificamente sobre voz a esse grupo social. Em seu II Encontro os condicionantes de saúde, é importante Nacional, foi instituída a Política Nacional observar que a PSR é um grupo de para a População em Situação de Rua - indivíduos heterogêneo e que compartilham PNPSR, tendo como uma de suas metas o a situação de extrema pobreza e a vivência acesso simplificado, amplo e seguro aos na rua . O contexto social como serviços e programas constituintes das determinante dos processos de saúde políticas públicas de saúde, além de outras justifica essa diversidade, visto que cada garantias, como educação, previdência, território apresentará diferentes formas de assistência social e moradia. apoio (governamental e filantrópico), de repressão e de cuidado, gerando diferentes necessidades, traumas e vínculos à PSR. Além disso, a PNPSR garante a formação de gestores e profissionais capacitados para o trabalho intersetorial, transversal e Grande parte do material de pesquisa intergovernamental voltado à PSR, assim acerca dessa população aborda com maior como o meio de se realizar medidas ênfase os aspectos biológicos no âmbito da impactantes e à longo prazo. Outras saúde, no que diz respeito às condutas e conquistas importantes foram os aos meios preventivos. Essa visão Consultórios na Rua, com equipes biológica/patológica, predominante em itinerantes voltadas ao atendimento cartilhas e manuais, corrobora as políticas integral; a instituição do Centro Nacional de assistencialistas que perpetuam as Defesa dos Direitos Humanos da condições da PSR. O quadro social População em Situação de Rua; a inclusão apresentado por esses indivíduos traz da PSR no âmbito da proteção social consigo fortes evidências de um psicológico especial da Política Nacional de Assistência abalado, consequente do próprio contexto Social; e a instituição do Comitê de invisibilidade social e da vivência na rua. Intersetorial de Acompanhamento e A esfera social deve ser valorizada, a partir Monitoramento da PNPSR, visando a de um olhar mais aprofundado, coerente articulação intersetorial de políticas públicas com a sua importância para desencadear e para essa população e diálogo entre os agravar patologias, vícios e impotência representantes dessa política e perante à situação de rua. representantes Estaduais. (BRASIL, 2014). 12 Mesmo com os avanços conquistados pela acesso à saúde, com políticas PSR nos últimos anos, o cenário universalistas capazes de formar os apresentado é ainda de grande profissionais para lidarem com a invisibilidade. Quando presentes, as complexidade dessa realidade, dar voz à políticas públicas não garantem a ela a essa população para que construa materialização do direito à saúde, sendo coletivamente tais ações e ter como medidas intervencionistas e paliativas, norteador que essa realidade de exclusão como a entrega de cobertores e não terá fim se não buscarmos um novo fornecimento de alimentação. Tendo em modelo econômico e social. Como afirma vista que essa população ultrapassa o Maria Lúcia, integrante do MNPR, “O tempo número de 100 mil brasileiros, é gritante a de cobertor e papelão passou, o que nós necessidade do Estado garantir o pleno queremos agora é Políticas Públicas”. Henrique Caetano Mingoranci Bassin e Vinícius Imakawa de Lucca Graduandos da terceira série de Medicina na Faculdade de Medicina de Marília (FAMEMA) REFERÊNCIAS BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Saúde da população em situação de rua: um direito humano. Brasília, 2014. Disponível em < http://bvsms.saude.gov.br/bvs/ publicacoes/saude_populacao_situacao_rua.pdf>. Acesso em: 28/09/2017. GHIRARDI, M. I. G. et al. Vida na rua e cooperativismo: transitando pela produção de valores. Interface – Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 9, n. 18, p.601-610, set./ dez. 2005. PAIVA, I. K. S. et al. Direito à saúde da população em situação de rua: reflexões sobre a problemática. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 21, n. 8, p. 2595-2606, ago. 2016. 13 14 ESPECIFICIDADES EM SAÚDE DA POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA Fazer parte de um contexto social particular remete a carregar características e especificidades desse meio. No caso da população em situação de rua, isso não é diferente. Por viverem na rua, essas pessoas carregam as vulnerabilidades e os riscos cumulativos que esse ambiente oferece. O Ministério da Saúde reuniu, no Manual sobre o Cuidado à Saúde junto a População em Situação de Rua, particularidades em saúde desse grupo social de forma mais generalizada, mas é i mportante lembrar que sempre há variações de uma pessoa para outra, pois cada ser humano é único. Assim, de modo geral, violência, alimentação inadequada, baixa ingestão de água ou consumo de água não potável, privação do sono, pouco afeto e autocuidado, variações climáticas, apoio em saúde limitado e falta de tempo e de informação para buscar auxílio em saúde são algumas das principais vulnerabilidades da população em situação de rua, além do álcool e das drogas bastante presentes na vida dessas pessoas. Quanto à violência, a pessoa em situação de rua a sofre diariamente, pois vive constantemente sem proteção e sem abrigo. A violência pode ser tanto física quanto moral. Independente de qual seja, essa crueldade leva a manifestações prejudicam a qualidade de vida do indivíduo. A respeito da alimentação, segundo pesquisa do Ministério da Saúde, uma em cada quatro pessoas em situação de rua não consegue se alimentar todos os dias. Assim, deficiência nutricional e até mesmo desnutrição severa podem ser observadas nesse contexto social. Ademais, disponibilidade e acesso a alimentos não são os únicos problemas que giram em torno desse aspecto. Na maioria das vezes, os alimentos obtidos são de baixa qualidade nutricional e a própria higienização é precária. Quanto a esse último aspecto, as pessoas em situação de rua tornam-se extremamente suscetíveis a doenças associadas à falta de saneamento básico, que poderiam facilmente ser evitadas por medidas públicas de intervenção. Dessa forma, leptospirose, verminoses em geral e infecções oportunistas são especificidades em saúde dessa população. A mesma linha de raciocínio aplicada para alimentação também convém para a questão da água. Vivendo na rua, as pessoas têm a água como um recurso extremamente escasso e, quando não, esse não é tratado de forma adequada, levando a graves casos de desidratação. A privação do sono é outro ponto a ser abordado. Isso acontece porque, diante do medo, da violência, do frio, do desconforto e do estômago vazio, nenhum ser humano 15 é capaz de ter paz e tranquilidade para dormir a quantidade e a qualidade adequada de horas de sono. Logo, doenças relacionadas ao pouco descanso são comumente manifestadas na população em situação de rua, como estresse, depressão e hipertensão, sendo que essas são fatores de risco e gatilhos para outros problemas mais sérios. Tanto a fome quanto a sede, o pouco sono e a violência atuam não só no aspecto físico, mas também no psicológico. Se já não bastasse tudo isso, a falta de afeto, os olhos julgadores e os passos apressados de quem anda por perto dificultam e tornam ainda mais sofrida a vida da pessoa em situação de rua. Dessa maneira, o indivíduo tende a se sentir desamparado e inferiorizado, mais uma vez tendo seu bem-estar mental prejudicado, aspecto que está intimamente atrelado à funcionalidade física da pessoa. Outra particularidade desse grupo de pessoas são as doenças dermatológicas, principalmente relacionadas aos pés. Esses problemas de pele podem ser decorrentes da exposição diária às variações climáticas e de doenças infectoparasitárias, como DSTs, parasitoses, micoses, infecções respiratórias (tuberculose e pneumonia), entre outras. A respeito das manifestações no pé, essas se devem às caminhadas por longos períodos sem calçados ou com calçados inadequados. Logo, estase venosa, edema e infecções são relatados com frequência. No entanto, a maior prevalência se dá na área da dependência química, tanto por drogas lícitas (álcool e tabaco) como ilícitas (solventes, cocaína, crack, entre outras). Os motivos que levam ao vício são inúmeros e muito particulares de cada indivíduo, contudo, as consequências são devastadoras e não fazem distinção entre um ser humano e outro. De todas as formas, o uso contínuo resulta em problemas preocupantes. No aspecto físico, observa-se contaminações por compartilhamento de seringas ou pelo próprio efeito destruidor da droga. Quanto à parte psicológica, tem-se a depressão cada vez mais acentuada e uma propensão maior ao suicídio. Diante de tantas necessidades importantes, o acesso à saúde dessa população é mais do que simples rotina de cuidado, é questão de sobrevivência. Contudo, o apoio em saúde é extremamente limitado. Isso porque, em muitas cidades, não há equipes específicas que atendam esse grupo de pessoas, que possui um estilo de vida tão particular. Mesmo nas Unidades Básicas de Saúde, as pessoas em situação de rua sofrem preconceitos e muitas já foram até proibidas de entrar nesses estabelecimentos. Vale ressaltar que, de acordo com a Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua, 18,4% das pessoas em situação de rua já passaram por experiências de privação de atendimento na rede de saúde. 16 Não obstante, a mera presença de uma equipe de saúde que cuide dessas pessoas não significa que essas sejam cuidadas de fato. A falta de tempo da pessoa em situação de rua por conta do seu trabalho, normalmente informal, bem como a pouca informação que chega até ela sobre o atendimento, prejudicam em vários sentidos o suporte oferecido por parte da equipe de saúde. Dessa forma, diante da impossibilidade ou de não saber a quem recorrer, o ser humano em situação de rua se vê praticamente obrigado a se “autocuidar”. Esse fenômeno diz respeito à pessoa que, apesar de estar doente, com dores e precisando de auxílio, nega ter a doença. Basicamente, o indivíduo aprende a conviver com o sofrimento e o naturaliza, deixando de encará-lo como um problema. Sendo assim, o “autocuidado” é outra especificidade em saúde muito particular desse grupo e exige que o profissional de saúde busque sempre aprofundar na intimidade do paciente para compreendê-lo integralmente. Quando, enfim, o atendimento chega à pessoa em situação de rua, as dificuldades não param por aí. A falta de adesão ao tratamento oferecido e a ausência de um acompanhante tornam-se grandes empecilhos. Ambos os aspectos nada mais são que frutos das vulnerabilidades carregadas por uma pessoa que vive em meio à hostilidade, ao abandono e à desesperança. Assim, superar e tratar as vulnerabilidades da população em situação de rua não é uma tarefa fácil e exige de nós equidade, empatia e luta para melhorar a qualidade de vida desse grupo social. Marcela Tengler C. Takahashi – Graduanda da segunda série de Medicina Albert Einstein. 17 ENCONTRO ENTRE ESTUDANTES DE MEDICINA E POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA Já afirmava Vinícius de Moraes: "A vida é a arte do encontro, embora haja tantos desencontros pela vida". E o que seria a relação entre um estudante de medicina e uma pessoa em situação de rua, senão, muitas vezes, um desencontro? Trata-se de dois universos completamente diferentes que se cruzam em situações banais. Nas praças, nas igrejas, no trânsito, nas ruas. Em todos os lugares. Ocasionalmente, essa confluência acontece em locais não tão banais, como os hospitais. Estamos preparados para atender uma população tão negligenciada? O desencontro tem força na nossa formação médica, que é cientificista em seu cerne e, por si só, excludente. Assim, um estudo generalista da população inibe um tratamento eficaz de diversos grupos vulneráveis, os quais, por suas particularidades, acabam invisíveis ao sistema de saúde. Não há em nossa formação, isto é, na nossa grade curricular, uma concepção do que implica estar em situação de rua, quais os problemas diários, a susceptibilidade a doenças, o histórico de violência, as restrições alimentares e sociais, o comprometimento do psicológico por uma exclusão permanente e violenta, o uso de drogas, o acesso precário à higiene ou, sobretudo, o acesso dessa população à saúde. A universalidade é um dos princípios fundamentais do Sistema Único de Saúde (SUS) e determina que todos os cidadãos brasileiros, sem qualquer tipo de discriminação, têm direito ao acesso às ações e serviços de saúde, mas a vulnerabilidade de determinadas populações torna frágil a prática desse princípio. E não só a formação, mas a própria dinâmica do indivíduo construído em uma sociedade marcada por vícios excludentes é responsável por esse desencontro. Segue a notícia do jornal BBC: "Deitado em posição fetal, protegido apenas por um cobertor fino e alguns papelões. Sem documentos, familiares ou amigos. Foi desta forma que policiais militares encontraram o corpo de um homem pardo, aparentando ter cerca de 35 anos, no fim da tarde desta terça no cruzamento entre a rua Teodoro Sampaio e a avenida Doutor Arnaldo, área nobre a poucos minutos da avenida Paulista, em São Paulo. O laudo que apontará a causa da morte ainda não ficou pronto, mas a principal linha de investigação é que ele tenha sido mais uma vítima do frio. Ironicamente, o corpo foi encontrado nos arredores do Hospital das Clínicas, o maior da América Latina." Nos arredores do Hospital das Clínicas, o maior da América Latina. Quantos profissionais de saúde podem ter passado por ali? Quantos médicos cruzaram com essa pessoa em situação de rua? E quantos estudantes de medicina o teriam encontrado? Não houve encontro, não há vínculo, pois essa é uma população marcada pela invisibilidade. 18 A mobilização estudantil sobre as populações de rua: onde nasce o problema? A Constituição Federal determina a saúde como um direito inalienável de todo cidadão e de todas as populações. Ainda assim, o SUS pouco promove, com projetos e trabalhos, a saúde dessa população. Contraditório, não? Porém, não é aqui que o problema começa. Como poderíamos imaginar que qualquer órgão público teria a mínima estrutura de cuidar dessas populações, se as instituições de ensino de medicina e ciências da saúde formam profissionais com uma preparação ínfima sobre esse assunto? Não só isso, mesmo as atividades extracurriculares organizadas por estudantes muitas vezes não abrangem as populações negligenciadas. Agora, sim, é aqui que o problema começa. Em um levantamento realizado este ano por estudantes de medicina (questionário com algumas perguntas sobre população em situação de rua disponibilizado para estudantes de medicina no mês de julho de 2017, realizado por grupo de alunos da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – USP), constatou-se que 91,1% desconhecem a existência ou nunca tiveram contato com os consultórios de rua. Ao mesmo tempo, 96% consideraram importante ou muito importante o contato com a população em questão para uma boa formação médica. Assim, constata-se que há pouca informação e, consequentemente, pouca mobilização dos estudantes, apesar do problema ser de elevada importância. Um estudo publicado em 2010 na Revista Brasileira de Educação Médica, que contou com 1372 estudantes de 13 cursos médicos espalhados em seis estados do Brasil, delineou o perfil do estudante de medicina no país. Segundo a pesquisa, 68% dos discentes desse curso são brancos, 69% habitam um imóvel próprio e 83% não trabalha em outra atividade. Esse último dado é um importante marcador da seleção elitista que existe para que alguém possa estudar medicina: muitos universitários trabalham e estudam, no entanto, para alguns, essa é a única forma de continuar estudando. Contudo, a carga horária dos cursos de medicina dificulta muito essa prática, quando não a impossibilita. Por isso, é um fator limitante do acesso populacional, uma vez que só é páreo para o curso quem tem dinheiro, e isso sem mencionar os alunos de faculdades particulares, que despendem, em média, 8 mil reais por mês na sua formação. Tal seleção, que ocorre direta ou indiretamente, é uma das explicações para o fato de que a maioria dos médicos se forma sem ter contato com a população em situação de rua. Numa simples pesquisa em sites de busca, é possível encontrar artigos que relatam desde a dificuldade de acesso de pessoas em situação de rua a serviços públicos da atenção básica em saúde, até casos extremos, como mortes que ocorreram após consecutivos pedidos por uma ambulância serem ignorados. Quantas vezes essa população é negligenciada por profissionais de saúde? O despreparo para esse 19 encontro inicia-se na formação desses profissionais. Como já foi citado, a discrepância entre as realidades vividas pelos estudantes de medicina e a população em situação de rua provoca um abismo que o ensino médico não tem sido capaz de superar. A ausência de abordagem específica das questões que permeiam o cuidado em saúde dessa população cria uma lacuna que leva à formação de profissionais despreparados para atender a essa demanda. Falta, também, incentivo por parte da universidade às atividades de extensão universitária, as quais poderiam contribuir para esse encontro e para a compreensão das distintas realidades que ali se tocam, além de suas implicações no cuidado em saúde. E, por fim, notamos que a participação dos próprios estudantes deveria ser maior na busca por maneiras de alterar essa realidade e exigir mudanças na sua formação. Diante disso, a transformação no quadro da banalizada invisibilidade da população em situação de rua é um processo que exige a participação de diversas instituições e segmentos sociais, dentre eles, os profissionais de saúde. A importância dos estudantes de medicina nesse processo é inquestionável e também deve ser reconhecida, primeiramente, pelos próprios estudantes, a fim de gerar uma busca ativa pela correção das lacunas existentes nos cursos de graduação. Reconhecer que o encontro é falho não basta; é preciso buscar ferramentas e meios que permitam que o desencontro seja substituído por construção – construção do profissional em formação a partir do estudante e construção de equidade e integralidade no acesso aos serviços de saúde por parte dessa população. Julio Canos Neto, 2º ano Paula Foresto Crivelini, 3º ano Horácio Leite Ferreira, 3º ano Gabrielly de Oliveira Nascimento, 3º ano Graduandos da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto 20 CRIAÇÃO DE VÍNCULO “Vinculação também é escolha, é seleção. Escolhamos, pois, os que nos humanizam e disponibilizam, sem medo. Um bom profissional é em primeiro lugar uma pessoa, que humaniza a vida!” (LANCELOTI, 2012 p.27). O vínculo é uma união, relação ou ligação de uma pessoa ou coisa com outra. Consoante a tal significado, encontra-se no Dicionário Houaiss “vínculo” definido como ”aquilo que ata, liga ou aperta: que estabelece um relacionamento lógico ou de dependência, que impõe uma restrição ou condição”. Ainda que os sentidos atribuídos não se correlacionem diretamente às questões de saúde, o vínculo é iniciado desde o primeiro contato com os profissionais da área e pode seguir um difícil trajeto até ser consolidado, podendo ser usado para interpretar o comportamento social das pessoas envolvidas de modo a interpretar a rede de relações sociais que estão ali presentes, determinando a densidade destas relações e o fluxo das interações que ali ocorrem. Trata-se, portanto, de um trabalho constante, intrinsicamente associado com o acolhimento e a relação profissional de saúde-paciente, de acordo com a Política Nacional de Humanização (PNH), implantada em 2003. No cenário da população em situação de rua, esta é considerada desgarrada da sociedade, portadora de um modo de vida marcado pela perda e rompimento de vínculos sociais, isto é, essas pessoas passam por uma ruptura gradual e, posteriormente, novas formas de sociabilidade são desenvolvidas com novos vínculos se estabelecendo, sendo eles: vínculo com a própria rua, com os abrigos e com a nova rede social que passa a ser formada. Os vínculos pessoais construídos neste espaço, embora frágeis e transitórios, estão presentes na forma de agrupamento, em que a busca por segurança e sobrevivência é a base fundamental destas relações. Já no âmbito da saúde, a possibilidade de se construir vínculos é uma das condições para o aumento da eficácia das intervenções clínicas, sejam essas terapêuticas, de reabilitação ou diagnósticas do processo saúde-doença. Para isso, são necessárias habilidades fundamentais, tais como: postura empática e compreensiva, escuta atenta, aceitação desprovida de julgamentos, autenticidade, autoconfiança, flexibilidade, comprometimento, tolerância e respeito. Ou seja, habilidades que fortaleçam a confiança, segurança e confidencialidade, visando estabelecer o vínculo para que o paciente se sinta a vontade em relatar informações necessárias, de maneira que possa facilitar a intervenção do profissional da saúde. No entanto, em sociedades cuja realidade descrita pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman em seu livro “Vida Líquida” se faz presente, os vínculos são frágeis a ponto de diminuir o sofrimento do outro. Desse modo, comprometem-se a escuta, o 21 olhar e o cuidado pelo próximo, não apenas na relação do profissional da saúde-paciente, mas em todas as relações humanas. Deste modo, a população em situação de rua apresenta uma diversidade de vínculos fragilizados, sendo eles a causa para a procura das ruas e posterior consequência da dificuldade de obter acesso à saúde. Em sua maioria, são pessoas que às vezes tiveram moradia, trabalho e família, mas por dificuldade em superar um vício ou pelo rompimento de seus vínculos afetivos, buscaram as ruas para morar. É possível notar que essa população apresenta trajetórias conturbadas, com problemas familiares, preconceito e falta de acesso às condições mínimas e necessárias de sobrevivência digna e que são reforçados pela invisibilidade que tem na sociedade, inclusive dos setores da saúde. Assim, em detrimento de vínculos importantes, essa população é submetida a uma condição de desvalia pessoal e de todos os tipos de agressões – inclusive àquela contra a própria saúde física e/ou mental. Atualmente, o que se observa é uma baixa adesão de profissionais da saúde que buscam estabelecer vínculo com a população em situação de rua. De um modo geral, este é construído sobre uma frágil compreensão da complexidade e da dimensão social dessa população, uma escuta pouco qualificada e condições que tangenciam o assistencialismo. É importante ressaltar que essa relação não deve gerar uma dependência do paciente em relação ao profissional, uma vez que o vínculo formado entre eles deve servir para incentivar primeiro o autocuidado, conferindo-lhe autonomia e ampliar o seu acesso às áreas da saúde. Em vários estudos foi relatado que o cansaço e, consequentemente, frágil vínculo com os profissionais estão relacionados com a maneira fria e tecnicista com que essas pessoas são abordadas e tratadas. Quando essa população percebe o cuidado para consigo, é que você olha para a vida, e não só para a ferida, ela se deixa ver. A ferida ou a doença é mais do que a dor de estar doente, é a dor de existir na situação que provoca essa dor e sobreviver assim (LANCELOTI, 2012 p.27). São pessoas que, muitas vezes, não sairão das ruas e ainda assim necessitam de cuidados. Dar-lhes atenção e atendê-los em suas necessidades singulares, é tratá-los com, além de profissionalismo, equidade ansiada no sistema de saúde – contribuindo também para a solidez do vínculo. Por fim, o estabelecimento do vínculo entre profissionais de saúde e essa população parece ser uma possibilidade de se construir uma nova prática que busque a melhoria da qualidade da atenção à saúde. Para se assegurar a qualidade do cuidado prestado, é necessário que se tenha em mente as noções de vínculo e, consequentemente, de responsabilização da equipe pelo cuidado integral à saúde coletiva e individual. Dessa forma, todos ganham; em especial a população em situação de rua que passa a ser vista e humanizada nas diferentes instâncias que compõem uma boa saúde. Thamires Miyako Ito Sigole e Hérica Dias Brito Graduandas da segunda série de Medicina na Faculdade de Medicina de Marília (FAMEMA) 22 REFERÊNCIAS Psicologado Artigos. Psicologia: vínculos, contribuições e desafios junto a população em situação de rua. Disponível em: < https://psicologado.com/atuacao/psicologia-social/ psicologia-vinculos-contribuicoes-e-desafios-junto-a-populacao-em-situacao-de-rua>. Acesso em: 11 de jul. 2017. Gomes, M. C. P. A; Pinheiro, R. Reception and attachment: integral practices in health care administration in large urban centers. Interface - Comunic., Saúde, Educ., Interface Comunic., Saúde, Educ. v.9, n.17, p.287-301, mar/ago 2005. Disponível em: < http:// www.scielo.br/ pdf/icse/v9n17/v9n17a06> . Acesso em: 10 de jul. 2017. Brunello, M. E. F.O vínculo na atenção à saúde: revisão sistematizada na literatura, Brasil (1998-2007). Acta Paul Enferm 2010;23(1):131-5. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ 23 REDUÇÃO DE DANOS: UMA ESTRATÉGIA DE AMPLIAÇÃO DA VIDA “Os usuários de drogas da Cracolândia em São Paulo se dispersaram para locais próximos à região da Luz após a ação realizada no domingo (21/05) pelas polícias Civil e Militar de São Paulo com o objetivo de acabar com o uso de drogas no local.”. Esse trecho foi extraído do portal de notícias da Globo (G1) do dia 22 de maio de 2017 e relata uma das ações do projeto “Redenção” de João Dória, prefeito de São Paulo. Nele é evidenciado como são comumente tratados os brasileiros que se encontram em situação de rua: “usuários de drogas”. Tal redução não considera seus nomes, histórias, necessidades de saúde e direitos, colocando o consumo de substâncias psicoativas (SPAs) como papel central de suas vidas. Entretanto, ao buscar a materialização do direito à saúde da população em situação de rua (PSR), é necessário um olhar ampliado, tendo a redução de danos (RD) como estratégia pragmática para a garantia de um cuidado integral. A RD foi adotada como estratégia de saúde pública pela primeira vez no Brasil no município de Santos-SP, em 1989. Tratava-se de um programa de distribuição de novas seringas para usuários de drogas injetáveis em contrapartida do recolhimento das seringas antigas, reduzindo as contaminações por sangue e transmissão do vírus da AIDS. Tal programa teve curta duração, pois foi interrompido por intervenção judicial, porém despertou inúmeras práticas semelhantes no país. Não obstante a RD tenha inicialmente se destacado a partir dessa distribuição de agulhas e seringas, é um equívoco limitá-la a isso na atualidade. A RD compreende um olhar singular sobre o contexto de vida dos indivíduos, capaz de construir estratégias práticas de reflexão sobre consumo de água, evitando a desidratação, importância de uma alimentação nutritiva, uso de preservativos, cuidado com a higiene e outras práticas de cuidado com a saúde (ABREU, 2017). São todas as ações capazes de diminuir os danos inerentes a um evento que já ocorre, como as inúmeras situações vulneráveis de se viver nas ruas, e que respeitam a autonomia do sujeito, lhe conferindo o protagonismo de sua saúde. Mesmo não se resumindo a isso, a RD tem papel crucial no cuidado de pessoas em situação de rua que fazem uso problemático de SPAs. De forma propositiva, ela problematiza a ênfase em uma abordagem biológica, unilateral e repressiva, o distanciamento dos profissionais de saúde e a comum culpabilização dos sujeitos. Busca, porém, uma abordagem metodológica a fim de enxergar junto ao indivíduo as questões que estão por trás dessa situação e assim criar ações voltadas à prevenção e cuidado do que pode se constituir enquanto danoso no uso de SPA, sem necessariamente reduzir seu consumo. Cabe ressaltar que a RD não se propõe a considerar normal ou saudável a utilização dessas substâncias, porém não considera seu uso como elemento central da vida dessas pessoas (DENEM, 2017). 24 “ (...) ela se deitou sobre o balanço, apoiada sobre o estômago e com os pés no chão. Andava em pequenos círculos, torcendo as correntes do balanço o quanto podia. Levantava então seus pés do chão, fazendo com que as correntes do balanço se desdobrassem, numa grande velocidade, o que fazia com que ela girasse sobre si mesma (...) No momento em que as correntes do balanço se desdobravam, a cabeça dela (...) passava a poucos centímetros dos pés de ferro do balanço (...) Eu poderia ter dito para ela parar de brincar, mas, obviamente, ela estava se divertindo muito com a brincadeira e gostando da sensação de ficar tonta (talvez próxima à de intoxicar-se?) (...) Assim, eu preferi dizer-lhe para dobrar bem a cabeça de modo que, quando ela rodasse, a mantivesse a uma margem segura dos pés do balanço (...). Havia uma clara decisão a ser tomada - proibição ou redução do dano, ou seja, proibir, o que não teria grande sucesso em se tratando de uma atividade prazerosa, ou reconhecer o valor da atividade para ela e tentar reduzir os riscos daí decorrentes e, com isso, prevenir o dano.". (Pat O'Hare "Redução de danos: alguns princípios e a ação prática") Por serem diariamente violentados, trabalhar com a PSR exige do profissional de saúde um maior esforço para estabelecer vínculo com esses indivíduos, na maioria das vezes, desconfiados de qualquer aproximação. Tendo isso em vista, a RD é, sem dúvidas, a abordagem mais adequada, uma vez que não gera confrontos, ao mesmo passo em que se cria uma relação profissional-paciente horizontal, sem represálias e julgamentos, permitindo a adesão a práticas que promovam saúde (OLIVEIRA, 2015). É importante ressaltar que a construção dessas ações deve sempre ter seus sujeitos como protagonistas e, para isso, a RD tem como função primordial buscar sensibilizar a PSR para a participação e engajamento, tanto no autocuidado em saúde quanto na vida social, principalmente no seu reconhecimento como sujeito de direito. Porém, assim como o primeiro programa de troca de seringas no Brasil, interrompido por intervenção judicial, cuja alegação era de que tal medida estimularia o consumo de drogas, as políticas de RD ainda hoje sofrem grande resistência no cenário brasileiro. Quando debatido o uso de SPAs, o discurso apresentado ainda é de políticas proibicionistas, que vinculam-se ao binômio legalidade/ilegalidade e, em seu cerne, à valorização que ofertam ao capital, por via, principalmente, da indústria de segurança e farmacêutica (WACQUANT, 2011). Tal binômio apoia-se no discurso biomédico – com o consumo de SPAs classificado como prejudicial à saúde e necessário de “cura”- e em ações voltadas à segurança pública, que remetem a operações militares - como “guerra às drogas” - e criminalizam as pessoas usuárias. Essa abordagem higienista e repressora, evidenciada no projeto “Redenção” de João Dória, mascara-se de um suposto discurso humanitário, que se propõe “resgatar vidas” e “normalizar pessoas”, reduzindo os indivíduos em situação de rua a usuários de drogas e potenciais criminosos, que devem ser tratados, preferencialmente, através de internação. Tais ações intensificam ainda mais a situação de vulnerabilidade dessas pessoas, ao tratá-las numa concepção manicomial, transcendendo-se assim, de um “Estado Social” para um “Estado Penal”, incapaz de assegurar os direitos básicos a esses brasileiros. (PAIVA, 2016). Portanto, se o Estado busca cumprir seu dever de assegurar a saúde como direito da PSR, é necessário ter a redução de danos como norteadora das políticas de saúde, respeitando a autonomia dos indivíduos, desconstruindo o saber unilateral do profissional de saúde e permitindo que os usuários sejam co-gestores na 25 construção de seu cuidado. Só assim, as ações estatais deixarão de ser punitivas e ineficientes, sendo substituídas por uma estratégia que, em última instância, é de ampliação da vida, retirando as pessoas em situação de rua da invisibilidade e tornando-as protagonistas de suas histórias. Glossário de termos utilizados por pessoas que fazem uso de SPAs: Boca – local de venda ou reuniões Gelado – o que está afastado do vício Merla – droga derivada da cocaína Mesclado – mistura de maconha com crack Mocó/Paiól – local onde se estoca a droga Pico – uso de droga injetável, picada de seringa Pedra - Crack Pó ou Farinha - Cocaína Henrique Caetano Mingoranci Bassin Graduando da terceira série de Medicina na Faculdade de Medicina de Marília (FAMEMA) REFERÊNCIAS ABREU, D. Consultório na rua e redução de danos: estratégias de ampliação da vida. Rev Bras Med Fam Comunidade. 2017;12(39):1-2. DENEM - DIREÇÃO EXECUTIVA NACIONAL DOS ESTUDANTES DE MEDICINA. Cocult – Coordenação de Cultura. Cartilha de drogas. 2017. 52 p. Disponível em: <http:// www.denem.org.br/cartilhas/Cartilha%20-%20Drogas%20-%20CoCult.pdf>. Acesso em: 11 out. 2017. OLIVEIRA, R. et al. Redução de danos no atendimento a sujeitos em situação de rua. Argumentum, v. 7, n. 2, p.221-234, 21 dez. 2015. Disponível em: <http://periodicos.ufes.br/ argumentum/article/viewFile/10440/8255>. Acesso em: 11 out. 2017. PAIVA, I. K. S. et al. Direito à saúde da população em situação de rua: reflexões sobre a problemática. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 21, n. 8, p. 2595-2606, ago. 2016. WACQUANT, L. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. 26 NO FIM DO ARCO-ÍRIS FICA A RUA Tendo como base o censo realizado na cidade de São Paulo publicado em 2015 sobre a população em situação de rua, podemos afirmar que em torno de 10% dessa população se autodeclara como pertencente à comunidade LGBT. Porém, em locais como EUA, Austrália e Reino Unido, entre 20 e 40% das pessoas em situação de rua se autodeclaram LGBTs. Por que essa diferença? Podemos sugerir vários motivos: a invisibilidade dos homens bissexuais (que são categorizados como ‘gays de coberta’ por terem relações sexuais com outros homens à noite, nos abrigos por exemplo, mas se identificarem enquanto heterossexuais na vida cotidiana, sendo que cerca de 60 a 80% dos homens nos abrigos vivenciam sua sexualidade dessa forma), por não levar em conta as pessoas em situação de rua que estavam internadas em clínicas e hospitais, as que estavam abrigadas em entidades religiosas ou em entidades não conveniadas com a prefeitura e as que moram em barracos em regiões degradadas como beira de córregos, fundo de vales, etc. Ou seja, é importante levarmos em conta que a definição de uma pessoa em situação de rua/sem-teto é bem ampla e contempla mais pessoas que as que estão dormindo nas vias públicas literalmente. E porque as pessoas LGBTs acabam ficando em situação de rua? O principal motivo é a rejeição motivada pelo cisheterossexismo encontrado no tripé da socialização burguesa compreendido pela família–escola–trabalho, em grande parte pautado pelas concepções morais religiosas conservadoras e excludentes. Em relação à população LGBT não podemos inclusive falar em evasão escolar e sim em expulsão escolar já que as agressões físicas e verbais como o bullying, rotineiramente ignorado nas escolas, acabam por impedir a participação na comunidade escolar dos adolescentes LGBTs. Tampouco o acesso a emprego se isenta do cisheterossexismo, afetando especialmente os jovens afeminados e as jovens masculinizadas e as pessoas trans e travestis (cerca de 90% da população trans tem que se prostituir para sobreviver), dessa forma as pessoas LGBTs têm menos apoio familiar nas crises financeiras e também tem empregos precarizados e com baixos salários. E nas ruas? Se a família e a escola são os primeiros e principais locais de violência contra as pessoas LGBTs, as ruas acabam reproduzindo os conflitos e as mesmas discriminações, mesmo que em algum momento as pessoas LGBTs, especialmente as mais afeminadas tidas como mais dóceis, sejam as responsáveis por algum cuidado (como lavar as roupas) e pela disponibilização de afeto e sejam nesses momentos valorizadas. A LGBTfobia também é uma barreira no acesso a serviços de saúde e de assistência social já que muitos locais são mantidos ou pertencem à instituições religiosas, que cobram das pessoas LGBTs uma ‘adequação’ para permanecerem nesses locais abrigados, 27 negando por exemplo a identidade das pessoas trans e travestis, uma clara violação dos direitos humanos. O papel dos abrigos e centros de acolhida é recuperar pelo menos em parte, a cidadania que foi retirada da pessoa em situação de rua, fornecendo assistência para recuperar seus documentos, inclusive retificar os documentos das pessoas trans e travestis que assim quiserem, facilitar o acesso à justiça, aos serviços de saúde física e mental, garantir o sigilo na escuta dessa pessoa, propiciar condições para que haja reintegração familiar se assim for o desejo da pessoa com retorno à sua cidade natal e também propiciar reintegração socioeconômica através de programas de educação e formação profissional. Dessa forma, uma possibilidade para a população LGBT em situação de rua são as casas abrigos que recentemente começaram a surgir em algumas cidades brasileiras ou centros de abrigamento institucionalizados voltados especificamente à essa população, já que os homens gays podem sofrer ainda mais violências quando abrigados com homens héteros assim como as pessoas trans e travestis não são bem aceitas nem nos abrigos masculinos nem nos femininos e também podem ser ainda mais violentadas. De acordo com o censo de 2015 podemos levantar alguns dados que são importantes para pensarmos em políticas públicas voltadas à população LGBT em situação de rua (no censo de 2011 nem havia a categoria LGBT): - em relação à idade: a população LGBT tinha como idade média 34,8 anos enquanto os heteros tinham 42,8 anos, uma diferença de idade de 8 anos que reflete a expulsão familiar das pessoas LGBTs ainda na adolescência ou no início da vida adulta. - do total analisado, 88% eram homens e das 16 mil pessoas entre 1 mil e 1.500 eram autodeclaradas LGBTs. De acordo ainda com dados de 2008, a maior parte são negros (pretos e pardos) corroborando a exclusão do racismo estrutural na sociedade brasileira, estudaram no máximo até o ensino médio e tem uma renda de 20 a 80 reais por semana. - em relação ao censo de 2011 houve também um aumento expressivo de pessoas vivendo só, passou de 18 para 69%. - em relação a violência: 61% relatava já ter sofrido violência física contra 42% dos heteros/cis; 77% já havia sofrido violência verbal contra 60% dos heteros/cis; 75% já havia sofrido roubos e furtos contra 62% dos heteros/cis; 25% já havia sofrido violência sexual contra apenas 3% dos heteros/cis; 28% já havia sofrido tentativa de homicídio contra 19% dos heteros/cis e 46% já haviam sido barrados em espaços públicos contra 30% dos heteros/cis. 28 - em relação às condições de saúde: a taxa de HIV/AIDS diagnosticado e relatado era 3 vezes maior que na população adulta de mesma idade com casa e também tinham mais chances de ter tuberculose. Outras condições encontradas foi um maior uso abusivo de substâncias (álcool, crack, cocaína e maconha), como forma de fuga e de alívio de sofrimento mas também como forma de socializar com as outras pessoas, e uma incidência maior de transtornos mentais, que podemos correlacionar com o intenso sofrimento dada a rejeição em todas as esferas sociais. Além disso, entre a população LGBT se usava menos o preservativo do que na população hetero/cis em situação de rua. Porém um fator protetor que deve ser lembrado é que as pessoas LGBTs procuram mais os serviços de saúde que as pessoas hetero/cis. Importante ressaltar também, que mesmo procurando mais os serviços de saúde e tendo piores condições de vida e com maiores chances de adoecimento, as pessoas LGBTs também encontram resistências nesses serviços devido a discriminação LGBTfóbica, à negligência dos agravos à saúde mental devido a discriminação e a necessidade de endereço fixo (sedentarismo) para a realização de exames e acompanhamento médico. - em relação à sobrevivência nas ruas: 27% das LGBTs relataram alguma atividade marginalizada (mendicância, prostituição, roubo, venda de drogas) contra apenas 5% dos hetero/cis. Outros dados importantes a serem colocados é que mesmo estando no Brasil, nas regiões Sul e Sudeste a população de rua sofre ainda mais no inverno. Nos primeiros seis meses de 2016, 113 pessoas já haviam morrido de frio só na cidade de São Paulo. A população relata também que são barrados nos restaurantes populares quando estão ‘malvestidos’, além de terem confrontos cotidianos com a Guarda Municipal que são os responsáveis pela zeladoria das vias públicas na cidade de São Paulo. Ainda em relação à população LGBT não podemos deixar de mencionar as ‘famílias LGBTs’, comuns na periferia de São Paulo, que são grupos diversos de pessoas LGBTs que adotam o mesmo sobrenome sem ter laços de sangue e se unem em grupos para aumentar a chance de sobreviver nas ruas, indo na contramão do aumento do número de pessoas vivendo sozinhas nas ruas e os serviços de saúde, assistência, educação, justiça e segurança pública precisam aceitar esse modelo de família também. Uma outra especificidade que deve ser levado em conta na formulação de políticas públicas voltadas a população em situação de rua é que nem todas as pessoas querem ter uma vida sedentária (cerca de 10%). Temos que reconhecer que o nomadismo não é um desvio e sim uma possibilidade de existência e socialização e assim como as famílias LGBTs rompem com o ideal de vida burguesa cisheterossexista, logo as políticas públicas devem considerar o nomadismo uma forma de vivência válida. 29 Em contraposição com as políticas higienistas e fascistas adotadas contra a população em situação de rua especialmente nas grandes metrópoles brasileiras, podemos citar programas que tentam resgatar a cidadania dessa população como o Transcidadania, o Programa Operação Trabalho, Comitês PopRua, hotéis sociais, Centros Pop, Pronatec PopRua, contratação de pessoas em situação de rua pelas empresas que têm contratos com a prefeitura, etc. Quando pensamos a população em situação de rua, temos que pensar inclusive a arquitetura das cidades, que com seus bancos de ferro, marquises com grades e pregos, pedras pontudas embaixo das pontes e viadutos também excluem e violentam as pessoas que vivem em suas vias. Até a revolução, existimos e resistimos! Débora Anhaia de Campos, médica, feminista, bissexual e anticapitalista. 30 UM OLHAR SOBRE A POPULAÇÃO DE RUA E O PRECONCEITO Trabalhando há mais de 10 anos no Serviço Especializado da Abordagem Social que atende a população em situação de rua, inadvertidamente, nos deparamos com situações em que somos acionados pela comunidade para “retirar” as pessoas em situação de rua dos locais onde elas permanecem, o que nos causa o que pode ser considerado um “incômodo”. A proposta deste artigo é compartilhar este incômodo e, talvez, contribuir para uma reflexão acerca desta temática sob a ótica do preconceito. Para fins de definição deste grupo social, consideramos o Decreto n 7.053 de 23 de dezembro de 2009, que institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua: considera-se a população em situação de rua o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares rompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória. De acordo com CANIATO (2010a) “O preconceito é uma atribuição social de malignidade a determinados indivíduos e grupos, correspondente a uma categorização de classe social que, muitas vezes, veicula uma atitude política e étnica aversiva.” Citando outra autora, ela complementa esta definição, afirmando que se constitui de um “conjunto de opiniões, crenças e atitudes negativas contra grupos socialmente discriminados e se fundamenta no medo irracional que desenvolvemos em relação a eles. A falta de contato e convívio mais próximo com os grupos socialmente discriminados contribui, sem dúvida, para aumentar esse medo” (CARONE, s/d; mimeo apud CANIATO, 2010a). Do ponto de vista político, pode se dizer que é um grupo social que vive à margem da sociedade, não produz, vive dos restos da nossa sociedade capitalista e, detalhe importante, a grande maioria não vota (pois não tem documentos), ou seja, não tem expressividade e nem voz, “incomodam” somente porque existem, por isso algumas pessoas insistem que eles sejam “retirados da sua frente”. Em seu texto A Era da Avareza, Mariotti (2001) explica que os valores do homem moderno se reduzem ao valor dos bens e do dinheiro e, quando o ser humano é despojado deles, deixa de existir, deixa de ser interessante, se transforma num estorvo. No entanto, concordamos com Bauman, quando afirma que “as trancas podem ajudar a manter o problema fora da vista e da mente, mas não pode forçá-lo a se afastar de nossa vida”. (BAUMAN, 2004, p164). Já do ponto de vista étnico, constitui-se, na sua grande maioria, de negros, que carregam consigo as raízes ancestrais da história do Brasil: o perverso regime escravagista. 31 De uma maneira geral, na nossa sociedade, existe uma grande dificuldade de aceitação do outro (aqui pensado como diferente), ou seja, existem padrões e normas que, quando não são seguidos, geram a exclusão e a marginalização e, consequentemente, o preconceito. A existência de um grupo social excluído e marginalizado só pode ser pensado a partir de uma análise da estrutura social, ou seja, há que se pensar em termos de um todo, pois este grupo é o fruto da forma de organização da nossa sociedade capitalista, produto do progresso econômico que, como afirma BAUMAN (2004) acaba produzindo grandes quantidades de lixo humano. O autor utiliza este termo para caracterizar a parcela da população que não se enquadra ou não encontra lugar na indústria moderna, consequentemente, se exige que “... se cortem, aparem, segreguem, separem ou extirpem as partes da matéria-prima humana que sejam inadequadas para a nova ordem, incapazes ou desprezadas para o preenchimento de qualquer de seus nichos.” (BAUMAN, 2004, p. 148). O “tirar da minha frente” reflete uma negação desta realidade, aqui pensada no sentido freudiano do termo, como designando a recusa da percepção de um fato que se impõe no mundo exterior (LAPLANCHE e PONTALIS, 1995). Também podemos utilizar o conceito de negação brilhantemente descrito por Di Loreto: “a negação é idêntica à alucinação, ao contrário. A alucinação faz aparecer o que não existe; a negação faz desaparecer o que existe!” (DI LORETO, 2007). Por outro lado, existe o estigma do morador de rua como bandido, ou marginal. A mídia reforça isso, na medida em que sempre mostra pessoas em situação de rua , nas praças ou na “Crackolândia” em São Paulo, usando drogas, passando uma “mensagem” que é só este grupo que consome substâncias psicoativas. Tais imagens acabam fomentando o medo, a intolerância e o preconceito, justificativa mais que plausível para a exclusão e o distanciamento imposto a este grupo social. Marisa Feffermann nos alerta para o perigo da associação da pobreza com a criminalidade e as armadilhas que isto esconde: “... associar pobreza com criminalidade é uma concepção ideológica, na qual a população pobre é vista como “classe perigosa” e responsável pelos atos de transgressão. Sob essa lógica, a manutenção da ordem exige que se afastem, cada vez mais, os já excluídos. A polícia, detentora legal do uso da violência, garante essa “exclusão”.” (FEFFERMANN, 2006, p.23). Isso é confirmado na fala de alguns dos moradores de rua, que relatam sofrer várias formas de violência, principalmente por parte da polícia (que tem “permissão” para agredir, pois são os portadores da “violência legítima”), que os espancam, expulsam de locais públicos e de grande circulação de pessoas (numa tentativa de “tirá-los da vista”) e várias outras formas de humilhações a que este grupo social é frequentemente submetido. Tal como citamos anteriormente, o que caracteriza este grupo social é o fato de terem vínculos familiares rompidos ou fragilizados, entretanto, ao aceitarem ir para um abrigo ou outra instituição de acolhimento, a equipe técnica é orientada a desenvolver um trabalho no sentido de não vincular o usuário à instituição, pois o abrigamento é uma medida provisória e de 32 caráter temporário. Bauman, autor que contribui muito para o entendimento das vinculações dos indivíduos na contemporaneidade, relata - acerca dos moradores em campos de refugiados – que a localização destes indivíduos é “... permanentemente temporária (...) não se estabeleceram, nem estão em movimento. Não são sedentários nem nômades”. (BAUMAN, 2004, p.167). A partir desta reflexão, este autor cunhou o termo “extraterritorialidade”, no sentido de explicar as condições de vida dos refugiados, designando com isso a permanência da transitoriedade das relações e dos vínculos, constitutivas do que ele denomina fase “líquida” da modernidade. Com os moradores de rua ocorre o mesmo, ou seja, eles podem até estar em tal abrigo, mas nunca serão de tal abrigo, reforçando ao máximo a condição de não existência, não pertencimento, fundamental para a constituição de um psiquismo minimamente saudável, pois o ser humano se constitui na relação, no vínculo. Outra questão que se coloca é: por que a grande maioria das pessoas desenvolve um grande medo deste grupo social? No nosso dia-a-dia ouvimos vários relatos da comunidade acerca do medo que este grupo desperta, muitos ficam “impressionados” com a nossa “coragem” de nos aproximarmos e até mesmo nos relacionarmos com “estas pessoas”. Como afirma Caniato (2010), a intolerância e a rejeição, em um grau bastante significativo, é dirigido a alguns grupos sociais, tornando-os “portadores do mal”. Algumas vezes este medo é inconsciente, e se propaga no tecido social sem passar pelo crivo de um exame crítico e acurado da questão. Reforça-se, com isso, o preconceito e este “... preenche, mais ou menos intencionalmente, uma função ideológica no contexto classista da sociedade capitalista, articulando e justificando a exclusão de grupos (...). Consequências destrutivas permeiam a vida dos estigmatizados pelo preconceito, em especial quando tais representações são internalizadas inconscientemente pelos indivíduos destinatários do preconceito, que se tornam “portadores” de tais atribuições de malignidade.” (CANIATO, 2010a). De acordo com esta mesma autora, a irracionalidade, presente na concepção da existência deste “inimigo fatal invencível”, acaba por contaminar as relações entre os indivíduos, gerando um medo, muitas vezes coletivo, e também grande desconfiança projetadas neste grupo social. Quem não se lembra, ou mesmo tenha ouvido comentários acerca do “homem do saco”, que vinha pegar as crianças que não obedeciam, ou que iam brincar na rua sem a ordem dos pais? A imagem do mendigo ou morador de rua como “extremamente perigoso” já habitava o nosso imaginário desde muito cedo! Vivendo sob a influência da Indústria Cultural, (termo desenvolvido pelos principais representantes da chamada Teoria Crítica da Escola de Frankfurt) tudo se torna mercadoria, não somente produtos ou objetos de consumo, mas principalmente “estilos de vida e a falta de questionamento da ordem social.” (CANIATO e RODRIGUES, 2009). Assim, até mesmo o que pensamos sobre determinado assunto se torna mercadoria, pois a mídia nos “educa” ao seu bel prazer. Os mecanismos são sutis e cada vez mais eficazes e sedutores, nos reduzindo a meros pseudo-indivíduos ou máscaras mortuárias, 33 metáfora utilizada por Adorno “...para exprimir a destruição do humano dos homens, sob a engalanada aparência majestosa que lhe é imposta pelas veleidades do consumo, mas que esconde um homem morto-vivo porque esvaziado de tudo o que é humano.” (CANIATO, 2010b). De acordo com esta autora, a nossa subjetividade é atingida em cheio por esta violência simbólica que nos é imputada pela Indústria Cultural, desvirtuando a compreensão verdadeira dos acontecimentos que nos cercam, ludibriando e destruindo “... os processos psíquicos superiores da consciência (percepção, memória, pensamento, capacidade de julgar e decidir), tornando os seres humanos idiotizados. A consciência moral fica à mercê da lógica do mercado e, portanto, impedida de exercer sua função de orientação e proteção dos indivíduos: a subjetividade humana fica entregue aos arbítrios da Indústria Cultural e à destrutividade de um inconsciente capturado por esta tirania”. (CANIATO, 2010b). Neste sentido, se destrói a capacidade de discernimento real entre o bem e o mal, entre verdade e mentira. Qual seria a nossa reação, ao ver um ser humano caído no chão, situação esta encontrada diariamente no trabalho com Moradores de Rua? A reação mais encontrada, que “ganha disparada” é: “tira isto da minha frente!” nos levando a pensar no quanto é difícil, para não dizer impossível, pensar sobre os porquês de aquela pessoa estar naquela situação. Difícil também é ir contra toda uma concepção que nos é passada pela mídia relacionada a este grupo social. Como bem descreve Mariotti (2001), preferimos confiar naquilo que nos manipula, que nos transforma em rebanho, nos mantendo alienados. Enquanto pensarmos questões ou grupos sociais de acordo com um “modelo mental simplificador” (MARIOTTI, 2001) continuaremos alienados e passivos, pois tal modelo nos impulsiona a análises recortadas, fragmentadas, “descoladas” do todo, do macro. É importante entender a problemática de “pessoas em situação de rua” inserida em um contexto social amplo, só assim não cairemos nas armadilhas da Indústria Cultural, que nos impõe o que devemos pensar e como devemos agir. Enquanto classe trabalhadora, nós temos o dever de contribuir para esta reflexão, não só entre os nossos pares, mas principalmente fomentar o debate entre os atendidos, os Moradores de Rua, pois na medida em que deixamos de vê-los como seres humanos e passamos a vê-los como “Moradores de Rua”, significa que também fomos capturados pelo preconceito. 34 REFERÊNCIAS ADORNO, T. W., HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento - fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. AGAMBEN, G. Lo que queda de Auschwitz. Valencia: Pre textos, 2005. BAUMAN, Z. Amor Líquido. Sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. DI LORETO, O. Posições tardias. Contribuições ao estudo do segundo ano de vida. São Paulo: Casa do Psicólogo. 2007. ESCOREL, S. Vidas ao léu. Trajetórias de exclusão social. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. 1999. CANIATO, A. M. P., RODRIGUES, S. M. Sociedade de consumo e indústria cultural. 2009. (mimeo) CANIATO, Angela Maria Pires. A Violência do preconceito: a desagregação dos vínculos coletivos e das subjetividades. 2010a (mimeo) CANIATO, A. As Subjetividades contemporâneas: da máscara mortuária aos musulmans. 2010b. (mimeo) FEFFERMANN, Marisa. Vidas arriscadas. O cotidiano dos jovens trabalhadores do tráfico. Rio de Janeiro: Vozes, 2006. LAPLANCHE, J e PONTALIS, B.P. Vocabulário de psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1995. MARIOTTI, H. A Era da avareza: a concentração de renda como patologia bio-psico-social. In: PALLAS ATHENAS. Ciclo de Estudo: As Dores da Alma. São Paulo, 2001. O TRECHEIRO. Notícias do povo da rua. “Pessoas em situação de rua denunciam o tratamento que recebem da Polícia e da Prefeitura do Rio de janeiro”. Ano XIX, n 189, Julho 2010. POLÍTICA NACIONAL PARA A POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA. Decreto n 7.053 de 23 de dezembro de 2009, publicada no Diário Oficial da União - DOU de 24 de dezembro de 2009. SOUZA, M. L. R. Terra de ninguém: violência e vulnerabilidade. (s.d. mimeo). Sara Gladys Toninato. Psicóloga – Especialista em Psicologia Clínica pela UEL/PR, Mestre em Psicologia pela UEM/PR Amanda Toninato Tavares – Acadêmica do Curso de Medicina na UEL/PR, Membro da Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares – Londrina/PR 35 ALFABETIZAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS: UM PROCESSO DE RETOMADA DA DIGNIDADA “Não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão.” Paulo Freire Alfabetizar é um processo de empoderamento que possibilita o acesso e o protagonismo social. No Brasil as pesquisas informam índices significativos de jovens e adultos com pouca ou nenhuma escolaridade; resultado de inúmeras lacunas sociais ou educacionais, o analfabetismo exclui, marginaliza e oprime. No Brasil, 13 milhões de pessoas (9,3%) com 15 anos ou mais eram analfabetas em 2014, conforme a Pnad - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Tínhamos 65 milhões de pessoas com 15 anos ou mais que não haviam concluído nem mesmo o ensino fundamental em 2010, segundo o Censo Demográfico. Como muitas pessoas continuam no ensino fundamental com 15 anos ou mais, não é menos assustador constatar que 47 milhões de pessoas com 20 anos ou mais não tinham concluído essa etapa. Além disso, 43% dos jovens com 19 anos não tinham concluído o ensino médio em 2014. Catelli Jr, Roberto (Revista Época 23/06/2016 - 09h00 - Atualizado 23/06/2016 18h02) A construção de processos de alfabetização de adultos em situação de rua tem demonstrado que o acesso ao código escrito desencadeia um ciclo de outros acessos sociais e possibilita o resgate da dignidade humana, descontruída pela situação social. Perceber-se em situação de rua sem instrumentos cognitivos para articular-se no mundo letrado, amplia o aspecto vulnerável que a própria questão já ocasiona. Ler e escrever – decodificar e codificar este mundo – impulsiona o exercício do pensamento reflexivo na busca por soluções que ampliem as possibilidades de sobrevivência. Quanto maior nossa autonomia, maior nossas condições biopsicossociais. Foi por acreditar na alfabetização como um instrumento de ressignificação humana que construímos projetos que convidam jovens e adultos a mergulharem no mundo das letras, a fim de conquistarem fôlego para transformações maiores. 36 O processo de alfabetização de jovens e adultos em situação de rua ou alta vulnerabilidade biopsicossocial foi estruturado a partir de temas geradores que procuram facilitar o acesso ao código escrito através de uma pedagogia reflexiva, que considera o aluno protagonista de sua história e vida. Cada tema apresentado gera momentos de reflexão e troca de informações, de forma que ocorram no mínimo dois processos de aprendizagem e desenvolvimento: cognitivo, por meio do pensamento reflexivo, e social, como identificação de seu estado oprimido e resgate de seu papel nesta sociedade. Ao aprender a ler e escrever, o aluno lê seu mundo e reescreve sua história. Os principais temas trabalhados perpassam por questões relacionadas à: Identidade (nome/documentos pessoais/identificação espacial/migração e emigração/identidade de gênero/respeito) Família (histórias de vida/infância, adolescência e fase adulta/pertencimento social/ medos/desejos/de onde vim e para onde vou) Trabalho (trabalhador/funcionário/operário/documentos relacionados/segurança e saúde/ direitos e deveres/a mulher no trabalho/anúncios e classificados/currículo/ distorções no mundo do trabalho) Cultura e manifestações culturais (diversidade social/espaços públicos/o homem como um ser cultural) Saúde e aprendizagem de novos hábitos (alimentação/as realidades de uma cidade/ lixo/doenças/ condições sociais e saúde pública) A metodologia é composta pela junção de pesquisas relacionadas à construção do conhecimento e metalinguagem. O aluno trabalha os temas associando diferentes instrumentos pedagógicos e desenvolvendo habilidades cognitivas como: identificação, classificação, ordenação, associação, comparação, seleção, diferenciação, entre outros. Nesta reconstrução e construção do pensamento aprende as letras, identifica sílabas, forma palavras, organiza frases e constrói textos. A cada tema percebemos um novo olhar a respeito de seu significado social: a educação reflexiva gera o empoderamento, um estado de autonomia que fortalece o humano, ampliando suas condições de resistência. Se não me dão voz, não aprendo a falar. 37 Se não me reconhecem como capaz, reforço minha incapacidade diariamente, desistindo de existir como pessoa, de resistir como humano. Educação de rua: para além dos muros da escola Nos projetos de alfabetização de rua, todo território é educativo, nos apropriamos das ruas como espaços de saber, aprendemos com a realidade posta, facilitando a transposição dos conhecimentos adquiridos. Para o importante teórico do movimento, Jaume Trilla Bernet, em uma perspectiva educadora, a cidade pode ser considerada a partir de três dimensões distintas, mas complementares: “Em primeiro lugar como entorno, contexto ou contida de instituições e acontecimentos educativos: “educar-se ou aprender na cidade” seria o lema que descreve esta dimensão. Em segundo lugar, a cidade é também um agente, um veículo, um instrumento, um emissor de educação (aprender da cidade). E em terceiro lugar, a cidade constitui em si mesma um objeto de conhecimento, um objetivo ou conteúdo de aprendizagem: aprender a cidade. De fato, se trata de três dimensões conceitualmente diferentes e que em algumas ocasiões convém diferenciar por motivos metodológicos, mas que na realidade se dão notavelmente mescladas: quando aprendemos de e na cidade aprendemos simultaneamente a conhecê-la e a usá-la”. Em São Paulo, na Av. Paulista, cenário do projeto piloto, os espaços sociais se tornaram nosso objeto de investigação: as imagens, palavras, frases e textos desvelavam a realidade, facilitando compreender o vivido e transformá-lo. A construção de projetos desta ordem requer paciência: a composição da demanda é feita de forma gradativa, um aluno traz outros conforme começa a perceber-se diferente, aprendendo o mundo. Precisamos compreender que muita coragem é necessária para admitirmos que não sabemos diante de tamanha vulnerabilidade, porém nossa experiência tem demonstrado que os resultados do processo geram reais transformações. A reintegração na sociedade perpassa inúmeras ações que, entrelaçadas, reumanizam, devolvendo dignidade e redirecionando a rota social. Cada qual, a seu modo, pode fazer diferente, pode construir caminhos, enfrentado os problemas sociais de forma realista. “Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda.” - Paulo Freire 38 REFERÊNCIAS ARROYO, Miguel.O direito a tempos-espaços de um justo e digno viver. In: MOLL, Jaqueline (org.), Caminhos da educação integral no Brasil: direito a outros tempos e espaços educativos. Porto Alegre: Penso, 2012. BERNET, J. T.Introdução. In: E. A. Educadores, La Ciudad Educadora = La Ville Éducatrice Barcelona, Barcelona: Ajuntament de Barcelona, 1990 (pp. 6-21). Carta das cidades Educadoras. Acesso online em 24/08/2017. TEIXEIRA, Anísio. O ensino cabe à sociedade. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Rio de Janeiro, v.31, n.74, 1959. p. 290-298. MALUF, Maria Regina (org.) - Metalinguagem e aquisição da escrita: contribuições da pesquisa para a prática da alfabetização. São Paulo. Editora casa do psicólogo. 2003. Professora Ms. Rosana Giannoni Mestre em Psicologia da Educação 39 CONHECER PARA MELHOR CUIDAR: PESQUISANDO PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA A vida nos apresenta oportunidades únicas e mesmo um curto espaço de tempo que passamos com pessoas em situação de rua nos imprime marcas que levamos por toda nossa história. A experiência de participar de uma pesquisa cujos sujeitos são pessoas que vivem esta realidade oportuniza conhecer indivíduos cheios de histórias, as regras do lugar, os pactos de convivência, trejeitos, linguagem, uma realidade inesperada e única. O jeito de interpretar o mundo e o modo de andar a vida do outro é colocado para conversar com nossos conceitos e como não, com nossos regimes de verdade de como as coisas devem ser. Pode ocorrer estranhamento ao que nos é diferente, pois experimentamos várias sensações no contato que esta outra maneira de viver. Para participar de uma pesquisa com pessoas em situação de rua precisamos antes de tudo estar abertos ao afeto, à afetação e à mudança de nosso modo de olhar o mundo. No momento da pesquisa em campo, o sentar junto nos aproxima e faz o outro colocar em nossas mãos uma série de revelações e ele se expõe. Por vezes se fecha aos questionamentos mais delicados, mas a entrega vai acontecendo no decorrer do encontro. A vulnerabilidade do indivíduo está ali, sua vida exposta. A conversa flui para além de um ato de pesquisar. Pesquisador e pesquisado sendo transformados, novos sujeitos vão se produzindo naquele encontro. O pesquisador tem sua vida mexida, revisita conceitos, se sente tocado, sensibilizado pela história do outro e o indivíduo pesquisado, ao falar de si, também encontra respostas ou expressa coisas que nunca antes havia parado para refletir. Na conversa, a escuta acaba por ser também um ato de cuidado. Tudo isto leva a pensar na vulnerabilidade desta população. Sua vida pode ser o objeto de estudo do pesquisador e cuidados éticos especiais devem ser tomados com aquele indivíduo que ali parece estar sem proteção. Primeiramente é fundamental um embasamento teórico do pesquisador para elaborar seu projeto de pesquisa. O Comitê de Ética em Pesquisa da instituição a qual o estudo estiver vinculado fará todo o check-list para a aprovação, entretanto, ainda na redação do projeto, o instrumento de pesquisa precisa ser construído levando em conta a redação de enunciados que podem enunciar algum preconceito ou ser indutor de determinadas respostas. Qual abordagem utilizar, seja qualitativa ou quantitativa dependerá do objetivo do estudo. Uma vez aprovado o estudo pelo Comitê de Ética, os pesquisadores calibrados para a coleta, o local escolhido e o pré-teste do instrumento realizado, agora é o momento da entrada no campo. Nesta população, o momento da coleta requer tempo e a forma de obter os dados deve ser levado em consideração. Como abordar e como se comportar no campo necessita ser cuidadosamente discutido com o grupo da pesquisa e o pesquisador responsável. A 40 atitude do pesquisador na abordagem deve ser de respeito, pergunte se ele está disponível para conversar e convide explicando os propósitos da pesquisa, tudo deve ser feito às claras. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido deve ser assinado. Perceba se o convite não interfere em uma situação especial da sua rotina: se você não está atrapalhando o sagrado momento da refeição, talvez a única do dia; de uma roda de conversa em que estão tratando de assuntos que você não deva tomar conhecimento; se ele estiver de saída para algum “corre” com os amigos que costuma conviver. A gravação das conversas, quando a entrevista for o instrumento escolhido para a coleta, deve ser autorizada e auxiliará na análise das falas e resgate de alguns detalhes que não puderam ser anotados. Não se espante se, no meio da conversa, o indivíduo cansar e sair. Isto acontece, não desanime. Reavalie o que aconteceu e tente novamente em outra situação. Não estamos isentos de levar para o campo o juízo de valor e regras sociais, reconhecer as limitações e preconceitos do pesquisador é fundamental para um bom encontro. As pesquisas com pessoas em situação de rua devem ter como foco principal levantar dados que nos auxiliem no conhecimento das necessidades destes indivíduos, suas regras, seu modo de andar a vida. Um cuidado em saúde planejado a partir destas informações e pactuado com os próprios indivíduos, é muito mais potente. Há potência em todo lugar, pois toda vida vale a pena! Profa. Sarah Beatriz Coceiro Meirelles Félix Fisioterapeuta, Mestre em Saúde e Gestão do Trabalho, Doutoranda em Saúde Coletiva, Docente Depto. Saúde Coletiva Universidade Estadual de Londrina. Professora colaboradora na Pesquisa “População em situação de rua e o acesso ao cuidado em saúde” (Universidade Estadual de Londrina). 41 CONSULTÓRIO NA RUA DE CAMPINAS Entrevista com Alcyone Januzzi, coordenadora do Consultório na Rua de Campinas O Consultório na Rua de Campinas iniciou suas atividades em Setembro de 2012, a princípio com uma equipe. Desde sua criação, somos modalidade 3, ou seja, com profissionais de nível superior, médio e médico. O CnaR cresceu e hoje somos em duas equipes modalidade 3 dentro da atenção básica, com vínculo com o Centro de Saúde. Ao todo, temos dois psicólogos, três técnicos de enfermagem, duas enfermeiras, uma técnica de saúde bucal, três redutores de danos, uma assistente social, uma terapeuta ocupacional, uma médica psiquiátrica, um médico sanitarista, dois médicos de família e comunidade, uma técnica administrativa, dois motoristas e uma coordenadora educadora física com gestão em negócios. Nós atendemos de segunda a sexta-feira, das 7h às 18h, revezando dentro do distrito de saúde leste, onde está inserida a região central de Campinas. Temos campos fixos, que não são alterados para que os usuários possam nos procurar, e campos móveis, que têm como contrapartida o compartilhamento de casos, busca ativa e construção de vínculo com os usuários que não acessam nosso trabalho. O CnaR atende qualquer pessoa que se encontre vulnerável, estando esta em situação de rua ou morando na rua, e preferencialmente adultos, embora saibamos que atendemos crianças e adolescentes, mesmo esse não sendo nosso objetivo, visto que essa 42 população não deve permanecer em situação de rua. Quando temos pacientes gestantes ou com tuberculose nossa área de abrangência é ampliada, uma vez que nossos usuários são itinerantes por toda Campinas. A perspectiva para o futuro é que tenhamos mais uma equipe de Consultório na Rua para que possamos atender os demais distritos do município e fazer com que os usuários estabeleçam vínculo e acessem a rede formal de saúde. Para além disso, temos sempre como perspectiva o compartilhamento de casos não só com outros equipamentos da saúde mas como da assistência, educação, jurídico, conselho tutelar, entre outros. 43 QUANDO O PODER PÚBLICO TIRA DAS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA OS SEUS DIREITOS BÁSICOS O artigo 5º da Constituição Brasileira diz que: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Mas a realidade da população em situação de rua no Brasil não corresponde a este artigo. Somos mesmo todos iguais? Considerados por muitos como inconvenientes e por outros como invisíveis, estas pessoas se encontram marginalizadas em nossa sociedade e sem o apoio do poder público que deveria zelar por sua integridade física e psicológica. Sem ter onde morar, as pessoas que se encontram em situação de rua costumam sofrer todo tipo de preconceito, perseguições e até mesmo violência física. Estar nas ruas, para muitos, não é uma escolha, mas uma necessidade. Não existe espaço para eles em nossa sociedade e a política assistencialista não pode ser vista como política pública. As pessoas questionam o fato de elas fazerem suas necessidades nas ruas, mas esquecem que não existe banheiros que elas possam utilizar. Assim como são pouquíssimas vagas disponíveis em abrigos que comportem estas pessoas. O número de moradores em situação de rua tem crescido cada vez mais no país, e isso se deve, principalmente, à grave crise econômica que estamos atravessando, com a falta de empregos e oportunidades. Oportunidades que não incluem estas pessoas que tanto precisam de acolhimento. É raro encontrar uma vaga de emprego que aceite alguém sem comprovante de residência. E quando não se tem uma moradia fixa, elas deixam de ter assegurados seus direitos básicos enquanto cidadãos brasileiros. Trabalho, saúde e moradia são questões latentes entre os moradores em situação de rua. Eles querem mais que um prato de sopa, um cobertor e uma vaga no albergue. Eles querem respeito, querem oportunidades, querem ferramentas que possam ajudá-los a retornarem para a sociedade como cidadãos participativos. Eles buscam no poder público seus direitos assegurados nas leis. E para isso é necessário que ações conjuntas sejam feitas. As dificuldades desta população se dão, principalmente, nos órgãos públicos onde são discriminados. É preciso implantar o atendimento humanizado. Só conseguirão fazer uma política e implementá-la se todos os lados forem ouvidos. É preciso ouvir a população de rua, afinal as políticas públicas devem ser feitas por quem e para quem precisa. 44 Quando criarem estas leis de forma participativa que busquem soluções para estas pessoas, ouvindo-as e respeitando seus direitos, finalmente o artigo 5º da nossa Constituição estará correto. Kátia Figueira de Oliveira Gestora de Mídias do Movimento Nacional de População em Situação de Rua de São Paulo 45 MOVIMENTO NACIONAL DA POPULAÇÃO DE RUA: ESTÓRIAS DE UMA HISTÓRIA Como uma pessoa na realidade das ruas tem capacidade, força, vontade de sonhar e de lutar por um movimento social? Entendendo que a Justiça é uma construção social da cidadania, o MNPR levanta sua bandeira para esfrega-la na cara dessa sociedade e gritar que não se cansará de lutar pela Justiça. Dentro do processo histórico da redemocratização do país, no dia 7 de setembro de 1995; a Pastoral Social realizou conjuntamente com as demais igrejas do Conselho Nacional das Igrejas Cristãs, um Ato que ficou conhecido como O Grito dos Excluídos, trazendo uma forte crítica aos rumos, ou falta deles, que as pessoas em situação de vulnerabilidade social tinham naquele momento histórico. Mais tarde, em 2001 foi a vez da Marcha para Brasília marcar a presença das reivindicações da população de rua, que caminhava junto aos Catadores de Lixo. Com a morte brutal de moradores de rua na região central de São Paulo nas noites dos dias 19 a 22 de agosto de 2004, diversos movimentos sociais e organizações da sociedade civil se manifestaram, expressando a necessidade de se organizar um movimento social com o objetivo de dar visibilidade aos direitos e necessidades da população de rua, lutando por Políticas Públicas para essa população. Em 2005, o conjunto dos catadores, pessoas em situação de rua de Belo Horizonte, convidou representantes dos movimentos similares do Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia e Cuiabá para participarem do 4º Festival Lixo e Cidadania e deste encontro, surgiu a proposta e o lançamento do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR). Em 2009, no I Encontro Nacional sobre a População de Rua, utilizando os dados recolhidos na primeira pesquisa nacional sobre a população de rua, foi estabelecida e avaliada a proposta Intersetorial da Política Nacional para a População de Rua, que seria consolidada por meio do Decreto nº 7.053 de 23 de Dezembro de 2009. Em 2010, o MNPR desenvolveu um projeto para seu fortalecimento realizando capacitações de lideranças, seminários e fóruns em várias cidades do país, além da criação de um Portal Fala Rua (www.falarua.org), confecções de bandeiras, banners e camisetas. Em 2011 foram instituídos pela Política Nacional da Atenção Básica PNAB/Ministério da Saúde na Portaria 2.488 de 21/10/2011; vários serviços de apoio e atenção psicossocial aos usuários de drogas e álcool e moradores de rua, como o Consultório na Rua, os CAPS, as UATIS (Unidades de Acolhimento Transitório), dentre outras; revelando a preocupação com a População de Rua e seus agravos em saúde. No âmbito da Assistência Social, o MDS criou os Centros POP, que são unidades de acolhimento e apoio para a população de rua, proporcionando apoio para aquisição de documentos, alimentação e higiene pessoal, além de trabalhar o fortalecimento de vínculos e buscar a recondução dos pop rua para suas famílias (recâmbio) e as Casas de Passagem, Abrigos, albergues etc. 46 A População em Situação de Rua é uma das esperanças de mudança desse país! Nós, profissionais da saúde não temos uma visão Plena, Total e Absoluta, mas apenas relativa dessa questão. Precisamos da População de Rua para nos ajudar, somar saberes e nos empoderar; pois quem olha de fora só vê nossos defeitos! A Rua tem qualidade, tem valor, é preciosa e digna. Contudo, é necessário Resistir e persistir, para que ela nos veja, entenda e aceite! José Carlos Varella Júnior, formado em Serviço Social, atua no Consultório da Rua em Praia Grande atendendo a população em situação de rua e usuários de álcool 47 O MNPR PEDE PASSAGEM A DENEM esteve presente no evento que celebrou os 10 anos do Movimento Nacional da População de Rua no Paraná. Nesse evento foi possível realizar algumas entrevistas com intuito de trazer a voz do Movimento para a Cartilha. Vanilson Torres, Natal/RN DENEM: Qual é o seu nome? De onde veio? Quanto tempo de MNPR? Vanilson Torres: Meu nome é Vanilson torres, sou de Natal/RN, morei 27 anos nas ruas de Natal. Estou há 5 anos no Movimento Nacional da População de Rua, sou conselheiro do Conselho Nacional de Saúde (CNS) pelo movimento e estou na Coordenação Nacional do MNPR. DENEM: Vanilson, como você enxerga a saúde como um todo no Brasil hoje, não apenas a saúde em específico para população em situação de rua, a saúde no geral? VT: Meu amigo, acho que o resto do dia não dá pra falar sobre isso, porque o momento é de total retrocessos, não só na saúde, mas em todas políticas desse país. Mas falando de saúde, como é nosso tema específico, é um desmonte, ou seja, a destruição do SUS. Hoje, esse governo que está aí não prioriza as pessoas. Ele prioriza, sim, as elites. Ele busca na EC 95 o sepultamento do SUS que já está na UTI. Com essa EC, ele faz com que congelese por 20 anos investimentos na saúde e educação. E ainda acabou com as farmácias populares. Os remédios para DSTs e AIDS... não existe garantia da continuidade do tratamento por falta dos remédios. Hoje, também, estamos enfrentando a revisão da PNAB, que é a Política Nacional da Atenção Básica, onde eu faço parte do GT, do CNS, da revisão, onde simplesmente o engenheiro e ministro Ricardo Barros quer fazer é implementar no Brasil planos populares. Ou seja, privatizar a porta de entrada da atenção básica. Sabemos que no Brasil de hoje nem os planos mais famosos, como UNIMED e outros, eles dão conta de tudo. Então, planos populares é fazer com que o pobre, já miseravelmente sofrido por falta de políticas públicas e por falta de vergonha na cara desse governo safado, o povo tenha que pagar pelo atendimento de uma consulta, etc, por atendimentos que o SUS já realiza. Não gratuitamente, porque o SUS não é gratuito, é pago pelos nossos impostos. Parece que é gratuito no geral porque a população não tem que pagar pela consulta.O que nós vimos hoje é que 60% do investimento na saúde vai pro setor privado, só 40% é investido nas questões próprias. Se nós formos pensar, por que o Brasil não tem serviços de alta complexidade, ou seja, hospitais que fazem exames complexos? Claro, porque isso é uma lógica do setor privado, que é abocanhar grande parte dos recursos que é destinado à saúde. Então hoje no Brasil nós vemos que: querem acabar com o SUS. Esse governo que está aí, está acabando não só com o SUS, mas acabando com os direitos trabalhistas, com os direitos previdenciários, com a esperança e com a vida de milhares de brasileiros e 48 brasileiras que historicamente lutaram para conquistar seus direitos e hoje estão sendo tirados do dia pra noite. A cada dia nós amanhecemos sem um direito. O cúmulo do absurdo agora foi tirar 10 reais do salário mínimo pra economizar 30 bilhões de reais. Aí eu te pergunto: por que o Temer não cobra as grandes fortunas? Por que não cobra os grandes devedores da Previdência? Por que o Temer pagou a 12 bilhões a deputados corruptos para que ele não fosse cassado? É uma lógica inversa e uma perversidade muito grande de um governo que só veio para retirar direitos do povo brasileiro. É muito triste nós vermos um cenário político onde 98% dos políticos estão envolvidos em corrupção. E são esses mesmos políticos que estão definindo o destino do país. Como escapar disso? Com muita luta e estratégia. DENEM: A questão da saúde para população de rua, acesso à saúde, como está? O Cartão SUS está sendo respeitado, precisa de algum documento para ter acesso? VT: A questão da população de rua sempre foi negado o acesso à saúde. A população de rua, quando consegue passar do segurança, muitas vezes ela esbarra em uma recepcionista que às vezes por questões salariais ou por questões de assédio ou por problemas em casa e pela condição dele às vezes estar sujo ou com odor, ela o trata como se fosse lixo. Ou seja, ela não quer recebê-lo mesmo sabendo que aquele cara é um morador de rua, mas é um cidadão que tem direitos. Hoje, a grande dificuldade é o acesso ao serviço e à saúde. Aí pensando nisso, o MNPR fez uma convocação e conseguimos o Consultório de Rua. Mas o Consultório de Rua, não era ‘’Na Rua’’ ainda, quando começou há 7 anos atrás. Mas aí começou a tratar a população de rua, porque o Consultório de Rua era no viés da saúde mental. Então começou a tratar essas pessoas somente por álcool e drogas, como se essas pessoas não tivessem pulmão, dor de dente, dor de cabeça, perna quebrada, etc. Então o Movimento lutou e conseguiu com que tivesse também o Consultório na Rua, que passou pra Atenção Básica. Porque a gente entende que população em situação de rua não é só alcoolismo e drogadição, ela tem todos os problemas, ou mais, que qualquer cidadão que tem sua casa. Mas mesmo com o Consultório na Rua, esse acesso ainda é dificultado por várias questões. Sabemos que a saúde no Brasil não está boa pra ninguém. Se pessoas que tem suas casas, que tem uma estabilidade emocional, que tem um teto, elas tem dificuldade de no acesso, marcam uma consulta pra daqui 20 dias, imagina a população de rua, meu caro. Quando ela chega em qualquer serviço sozinha, pra ela ser atendida, se o cara não for esperto e não conhecer a portaria 940/2011, que garante o atendimento sem precisar de documentos ou fazer o Cartão SUS sem precisar de comprovante de residência, se ele não tiver esses conhecimentos, se ela não conhecer o decreto 7.053, ela vai levar um ‘’não’’ e não vai saber responder à altura pra ter o acesso e seu direito garantido. Então assim, ainda hoje há dificuldade da população de rua em acessar serviço de saúde no Brasil, ainda mais que o Consultório na Rua está sendo desmontado. Desde 2013, só temos 148 equipes no Brasil, numa população que o IPEA diz 49 que é 101 mil, mas o IPEA fez pelo CadÚnico, mas sabemos que 3 a 5% da população de rua faz o Cadastro Único, mas nós imaginamos que a população de rua no Brasil hoje passa das 500 mil pessoas. Ainda mais com a EC 95 que congela gastos. Há um desmonte do Consultório na Rua, não há mais equipes sendo colocadas, pois desde 2013 que não há equipes sendo renovadas. E isso dificulta para população de rua, porque muitas vezes os insumos estão disponíveis nas equipes de consultórios na rua. Então assim, o que nós percebemos são alguns serviços feitos para população de rua, mas são serviços paliativos, ou seja, vou dizer que tem mas na real ele não vai dar conta do que é previsto. Então, é difícil de mais, por isso nossa luta é todo dia, é árdua, é no Conselho Nacional de Saúde, é em qualquer local que assim nós pudermos ocupar. DENEM: Então as perspectivas que o MNPR tem para os próximos tempos, em relação à saúde, são ruins? VT: Sim, porque a gente tá gente que tá tendo um retrocesso atrás de retrocesso no Brasil. E mesmo nos governos de esquerda havia uma abertura mas não havia uma total coresponsabilidade do governo para com essa população. Você imagina agora um governo temeroso que o cara tá privatizando agora, meu irmão, a Casa da Moeda, 15 aeroportos, o Banco do Brasil, os Correios. Então assim, é entregar o Brasil para o setor privado. A perspectiva é ruim, mas isso é combustível para a gente continuar na luta, porque pra gente nunca foi fácil e não vai ser agora. Mas nós sabemos também que isso tudo tem uma força maior. Na minha percepção, eu vejo que o Temer é só uma marionete de uma mão maior do que ele. Ele tá ali ocupando uma cadeira, vai cumprir seu papel, mas mais retrocessos tão vindo, porque infelizmente os fascistas estão ganhando espaço. Até em pessoas comuns que tiveram benefícios, mas que diante de todo esse caos social, eles acham que um Bolsonaro da vida é o melhor caminho, que o Marco Feliciano tá certo, que o Temer mesmo assim deve continuar. Se o Brasil não acordar, talvez quando acorde já tenha passado o bonde do tempo. DENEM: O que você espera quando vai numa consulta médica? VT: Pois é, eu espero que, pelo menos, ele me escute cinco minutos, primeiramente. Aí segundamente que ele me escute cinco minutos. Já tive experiências muito ruins. Não é só eu não. Porque os médicos hoje estão trabalhando no SUS, mas são de cooperativas, ganham muito dinheiro. Eles estão ali, mas tem um tempo a cumprir. Quando você chega num médico ele diz assim: ‘’você sente o que?’’, aí eu digo ‘’dor nas articulações’’ e ele nem olha pra minha cara. Você vai ser médico, não faça assim. Ele nem olha na minha cara, sente dor e já passa remédio. Nem me ouve! Os médicos, geralmente, nem olham na nossa cara. As pessoas que estão aqui perto podem confirmar, não é senhora? Ela tá confirmando aqui. Você diz que tá com uma dor no ombro, pronto, já diz que é bursite e te dá um remédio. Porque o tempo é dinheiro. O capitalismo faz isso, então ele me dispensando ele 50 vai ter tempo de atender ela, e mais ela, etc, no tempo que ele atenderia um ele atende cinco e isso gera renda pra ele. E até acho que não é culpa do médico em si, mas é culpa de uma lógica que existe que o brasileiro sempre dá um jeitinho. Acho que a gente tem que dar um jeitão sim, mas é no que se refere às questões sociais do povo brasileiro. DENEM: As perguntas acabaram, se quiser falar algo mais o espaço está aberto e será transcrito na íntegra. VT: Beleza. Eu só queria dizer que estamos participando aqui do evento de 10 anos do MNPR no Paraná. É mais um espaço de debate sobre população de rua, saúde, direitos humanos, etc. Mas eu gostaria de terminar com dois poemas, um poema que é o ‘’Dia de Luta’’ e o ‘’Rap da Rua’’, que são de autoria do Movimento do RN, do qual eu faço parte, e o Rap da Rua começa assim: Rap da Rua “Sorrir? Quero! Posso? Não! Porque cama, calçada, lençol, papelão O poder não liga pra nós Bem alto gritamos, mas eles não querem ouvir a nossa voz Nômades nós somos, é preciso! Pá-Pá-Pá, corremos perigo! O Deus do céu cuida da gente: é dono do passado, futuro e presente Dormir nas ruas: incertezas um aberto, outro fechado, olhando as redondezas Lutar não é esperar! Mudanças virão, temos que continuar a lutar Lutar não é esperar! Mudanças virão, temos que continuar a lutar, lutar, lutar, lutar...” Dia de Luta No dia 19 de agosto de 2004 um triste fato ocorreu Sete pessoas em situação de rua na Praça da Sé morreu Mataram covardemente sem dar nenhuma defesa Mataram sete brasileiros que viviam na incerteza 51 Na incerteza de um dia que ainda ia raiar Mas vieram os meliantes pra sua vida ceifar Após aquela macabra noite algo começou a mudar Surgiu o Movimento de Rua pros seus direitos lutar Começou em dois estados, São Paulo e Minas Gerais Hoje estamos em quatorze na luta por direitos sociais Mas não pense que é fácil, o massacre continua Quando é negado direitos a população de rua Alguns estados conquistaram direito à trabalho, saúde e até habitação Porém outros lugares, inclusive em Natal, é negado até dormir no chão Por isso, sigamos na luta porque nesse país nada é de graça Se não temos sede própria, vamos lutando na praça 19 de agosto é o dia de luta do povo da rua Nós não vamos nos calar jamais Porque nossa luta continua’’ Esse poema nós fizemos em Natal, mas vemos que nesse país vemos que pessoas, em situação de rua ou não, morrem por falta de políticas públicas. E vou terminar com essa frase que fundamental e fenomenal ‘’um país que prioriza construção de presídios ao invés de escolas, esse país não tem futuro’’. Darci Costa, São Paulo/SP DENEM: Nome, local, tempo de MRPR? Darci Costa: Sou Darci Costa de SP, faço parte do MNPR (Movimento Nacional População de Rua), coordenador nacional, estou no movimento desde 2013. 52 DENEM: Na sua visão, como está a saúde geral no Brasil? Como está a saúde da população de rua? DC: O SUS é uma proposta muito inovadora porque ela garante o acesso à saúde de toda a população a nível nacional. A questão é toda essa corrupção continuada que a gente vê dentro do Sistema Único de Saúde, a precarização dos equipamentos, dos serviços e do atendimento. Em especial, o preconceito com a população em situação de rua que tem grande dificuldade de acessibilidade ao sistema convencional de saúde. A População de Rua é excluída e ela se sente, de fato, excluída. Isso dificulta ela ir procurar uma UBS, por exemplo. Por isso, como Movimento, nos apoiamos muito a questão do Consultório na Rua, que isso possa se estender a nível nacional, que é a busca ativa. Há diversas enfermidades na População em Situação de Rua, uma população fragilizada, como a tuberculose, a Vigilância Sanitária, a própria AIDS e a questão da saúde mental. Além disso, existem diversas dificuldades na População em Situação de Rua. Então o SUS é uma proposta viável quando se há seriedade no trabalho, quando os recursos de fato chegam na ponta onde se deve chegar, no profissional, na formação de todos os servidores de ponta, no atendimento. A pessoa como digna de respeito, independente da condição social, ela deve prezar muito a questão da dignidade e da liberdade da pessoa.” DENEM: Como está a saúde da população de Rua em SP e do MNPR depois das ações truculentas do Prefeito João Dória? DC: Na questão da saúde a População de Rua está recebendo como primeira oferta a internação. Há cinco hospitais psiquiátricos recebendo essas pessoas. Ouvimos dizer que as internações não são compulsórias, mas não sabemos como essas mediações são feitas. Tem aumentado o número de pessoas internadas e elas não ficam muito tempo internadas. Com 10 ou 15 dias estão de volta às ruas, ao uso, então não vemos com bons olhos esse tipo de ação e não sabemos se funciona. Acredito que não irá funcionar e acho que o programa deve ser pensado melhor, buscando experiências com resultados, ver como se pode implementar, principalmente de forma experimental. A região da Luz, por exemplo, poderia ser utilizada como um grande laboratório de forma experimental para uma metodologia que traga ao paciente possibilidade de desprendimento das drogas e de outras doenças da região. DENEM: Quais as perspectivas do MRPR e as suas em relação à saúde? DC: Existe um cenário pessimista devido ao congelamento. Nos preocupamos muito que isso chegue até a saúde. Sabemos que em São Paulo, por exemplo,a saúde já congelou 1 bilhão de reais do município, abriu-se uma operação de crédito para captação de recursos para a questão da saúde na região da Luz, conhecida como Cracolândia. Isso vemos de forma um tanto preocupante, que a responsabilidade mesmo da promoção da saúde e 53 acesso a todos fique na mão de empresas privadas e elas cobrem por isso. Nossa preocupação é o que o SUS e o Município deixem de cumprir seu papel e a saúde caia dentro de uma iniciativa privada que visa o lucro. Tanto a saúde quanto a habitação e a assistência social tem que ser direito de todos, independente de quem precisar. Nos preocupamos que se não houver uma mudança e integração da realidade da População em Situação de Rua, a tendência seja criar um conflito maior em um serviço já bastante precarizado. DENEM: O que você espera quando vai para uma consulta médica? Já teve alguma experiência ruim? DC: Esperamos atendimento humanizado. Já tive várias experiências ruins de mortes na família, de pessoas conhecidas e de mal atendimento. O primeiro atendimento não consegue identificar a enfermidade de fato e algumas pessoas foram a óbito por negligência, falta de avaliação correta dos sintomas que o paciente apresentava. Isso é preocupante se tratando de um Médico, figura na qual as pessoas depositam bastante confiança e esperança. Às vezes uma dor aparentemente simples que possa ser resolvida em primeiro olhar com analgésicos, volta e poucas horas depois determina um óbito. É muito triste identificarmos casos de reumatismo, por exemplo, que foram negligenciados a princípio e que levaram a óbito, descobrindo depois que era um caso de reumatismo no sangue. Ou uma pessoa com dor que morre logo depois de ter voltado da busca por atendimento. Vemos muito isso nos albergues, uma pessoa com dor que aparentemente é comum, mas na verdade ela precisa de um atendimento profissional. Muitas vezes a gente não consegue essa atenção profissional. DENEM: O espaço está livre, deseja falar algo a mais? DC: A gente acredita muito que as Saúde é um dos pilares da política pública, junto com a habitação e a assistência social, então o profissional de saúde tem que estar sempre próximo das questões de vulnerabilidade, prestar atenção na proximidade das pessoas de ambientes que possam contribuir para a proliferação de enfermidades, principalmente os albergues, onde há uma grande concentração de pessoas tuberculosas e outras doenças transmissíveis. Então, precisamos criar um ambiente humanizado e buscar a prevenção ao invés de só tratamento da doença. Temos muito mais a ganhar com a prevenção. 54 Marialice, Rio de Janeiro/RJ DENEM: Primeiro seu nome, de onde você vem, quanto tempo que você tá no movimento. Marialice: Meu nome é Marialice, eu sou do Movimento Nacional de População em Situação de Rua, coordenação estadual. Sou do Rio de Janeiro. E já tô no movimento há cinco anos. DENEM: Marialice, pra você como que a saúde no Brasil, em geral, não só da população de rua… Em geral, ela tá hoje? Como que você analisa isso? M: Olha, a saúde no Brasil, hoje, no geral… Ela tá um caos. E pra nós, que somos pessoas em situação de rua, está pior ainda. Porque, te digo da temática de nós, mulheres… Nós mulheres não temos acesso à saúde. O que nos socorre, entre aspas, são os Consultórios na Rua, que vai… Se os consultórios da rua não nos levar, nós não temos acesso à saúde. Pra fazer o exame ginecológico, nós, mulheres em situação de rua, nós não vamos acessar a ginecologia. Por que? Na rua é muito difícil nós fazermos a higiene pessoal. E nas unidades de saúde não tem um lugar adequado para nós fazermos a higiene. Então, nós ficamos muito constrangidas de fazer um preventivo. Porque nós somos mal cheirosas e nós vamos constranger o profissional que lá trabalha, que muitos não vão nem querer nos atender. DENEM: Qual o problema com a mulher de situação de rua que engravida? Como que acontece? Ela chega a ter acesso ao pré-natal, ela chega a fazer alguma consulta? M: Olha só, nós, mulheres, quando engravidamos na rua, nós relutamos muito em fazer o pré-natal. Por que? Porque vêm os conselhos tutelares da vida, na hora que a gente tem os nossos bebês, pra nos tirar os nossos filhos e levar para os abrigos. E eles são postos para doação. Eles falam que não, mas na maioria dos casos as crianças são doadas e nunca mais essas mãe ver os seus filhos. Eles acha que tão fazendo o melhor pra criança, sem pensar nas mães. Elas são mulheres, são conselheiras tutelar, elas não se colocam no lugar dessas mães que tão sendo, que elas arrancam seus filhos pra levar pra doação. Eu queria ver e saber, com elas, se fosse com elas que isso acontecesse, como elas se portaria, como elas ficaria de ver seus filhos arrancado e ser levados pro lugar, ignorado. Muitas conselheiras mentem, como tem caso no Rio de Janeiro - que essa criança a gente recuperou -, que dizem que a criança morreu e a criança não morreu, já tava com outra família. E essas criança, não é dizer que elas não tem família, elas tem família, tem avó, que às vezes até querem ficar… Mas o nosso Estado, que não é bom para a população em situação de rua e não quer dar guarda para os familiares dessas crianças que nascem em situação de rua. 55 DENEM: Quais são as violências que as mulheres mais sofrem na rua? O que você mais vê? M: Todos os tipos de violência que você pode imaginar. Violência física, violência moral e violência institucional. Nós somos violentadas, nós somos estupradas, nós apanhamos… E fica por isso mesmo. Nós temos que ter relação sexual com os companheiros de rua e com pessoas, homens, da sociedade comum. Então, é uma violação dos direito muito grande. Porque nós somos cidadãs de direito que não temos direito. DENEM: Quando você vai ser atendida por um médico ou por uma médica, o que você espera desse atendimento, o que você espera desse profissional? M: Eu espero ter um atendimento humanizado, que nem sempre é assim que acontece, porque quando você vai acessar um serviço de saúde, as pessoas já te olham você com outro olhar, um olhar de reprovação, como se você tivesse feito alguma coisa muito ruim por você estar na rua. E, muitas vezes, eu chegava cedo nas unidades de saúde, e o que acontecia? Aí um médico atendia todo mundo, e eu tô vendo os hospitais, né? Esvaziando, ia lá, “mas cadê o doutor?”, “ah, já foi embora…”. Porque sabia que eu era população em situação de rua e se negava a me dar o atendimento. DENEM: Se você deseja falar mais alguma coisa sobre qualquer situação que já vivenciou, pode ficar a vontade que a gente vai transcrever na íntegra, qualquer denúncia que tiver para fazer. M: É, olha só, eu, na rua… Um empresário tentou me violentar três vezes. Na última vez, ele me deu uma bebida chamada rabo de galo e café, porque estava muito frio. Só que nem todo mundo que vive nas ruas usa álcool e droga, eu não usava nem álcool e nem droga, eu fui para as ruas porque eu trabalhava. Eu tinha um contrato com a secretaria estadual de saúde. E quando mudou a gestão, né, o governo, o governo me botou na rua, não pagou. E eu, com vergonha de voltar pra casa, fui pras ruas. Então, eu não usava droga, nem álcool. E, a gente, na rua… É, a gente sofre as piores barbáries, as mulheres. No Rio, tem vários lugares que tem banheiros químicos, para homem. E nós mulheres que ficamos menstruada, não tem banheiros químicos. E todos os homens, todos os ser humano, ele nasce de quê? De uma mulher. Então, nós precisamos de políticas públicas eficaz para as mulheres em situação de rua. Porque a lei Maria da Penha, ela não chega em nós. Ela não chega nem nas mulheres da sociedade comum, porque tem tantas mulheres com medida protetiva e sendo mortas pelos seus vizinhos, seus maridos e seus companheiros. Então, era só pra isso que eu tenho pra dizer. Porque, mulheres, nós temos que se unir. 56 Luciano, Maceió/AL DENEM: Qual seu nome, local e tempo de MNPR? Luciano: Eu sou Luciano, do estado de Alagoas e faz um ano que faço parte do Movimento. Ainda sou um embrião aqui, mas dentro desse tempo posso dizer que o movimento é muito positivo DENEM: Na sua visão, como está a saúde geral no Brasil? L: Eu vejo um apocalipse, o fim do mundo. Nós temos um Brasil falido na saúde e a retirada de direitos. Quando você faz isso, mexe com toda a temática da saúde. O SUS já está pedindo S.O.S, as pessoas em estado de vulnerabilidade não podem pagar um hospital particular. Então, como fica essa população? Não só a população de rua, mas pessoas que moram na favela, nas periferias. É uma situação para se problematizar, por que do jeito que está não pode. O povo em geral, o Brasil, tem que fazer alguma coisa por que o SUS pede socorro. A vida pede socorro. Aquele ditado que diz assim “pra quem não tem nada podemos dar qualquer coisa” e não é assim, não é essa ideologia. DENEM: Como está a saúde da população de Rua? L: É difícil. Temos acesso mas ele é muito restrito pra essa população. Começar pelos problemas nos serviços, tanto no centro POP e nos albergues. Seja qual for o serviço que abrace a causa, a gente vê uma lacuna muito grande. Existem pessoas que buscam melhorias, que vestem a camisa e lutam pelos direitos de toda a população que precisa ser vista como ser humano. Acho que precisamos, como seres humanos, nos policiar diante do outro para podermos melhorar as coisas. As coisas não vão melhorar da noite pro dia, vão amenizar. Acho que deveria haver mais empenho tanto das políticas públicas quanto dos usuários, da população que precisa. Ela deveria ir pra rua reivindicar melhorias enquanto temos muitos parlamentares contra tudo isso, derrubando direitos, pisando a constituição, afligindo o povo brasileiro. Quem mais sofre são as pessoas humildes e os pobres. É muito difícil, mas estamos na luta. Não se vê vitória sem luta. Só se vence uma guerra lutando. É uma constante luta, a vida é uma guerra e podemos mais tarde dizer que somos vitoriosos, que alcançamos nossos objetivos. Essa é a vida, né. Temos que caminhar pra frente. DENEM: Quais as perspectivas do MRPR e as suas em relação à saúde? L: Enquanto tivermos um governo como esse Temer, que possui todas essas características pra ser o anticristo, satânico, diabólico, e mentiroso, as coisas não vão andar. Como eu falei logo no começo, é o apocalipse, o fim dos tempos. Que apocalipse é esse? Eu considero os homens como os antigos senhores feudais, que massacram os lavradores, os trabalhadores. Então, ter um representante como esse é inadmissível e não representa o povo. Se ele fosse humano, faria diferente. Fechar as portas, tirar todos os direitos do povo 57 que foram conseguidos com luta e sangue, pessoas que revolucionaram, fizeram história para que hoje déssemos continuidade a essa história. Não só de Curitiba, de são Paulo, do nordeste ou do sudeste. É do Brasil inteiro, da raça humana. Ele não representa. Enquanto tiver tomando conta, estando no poder, ele nunca vai sair das costas do pobre. Enquanto ele não puder esmagar, pisotear e humilhar ele não sossega. Então a resposta para tudo isso é que o povo brasileiro tem que se unir muito mais que em dia de eleição, ir pra rua e fazer uma revolução. Dizer não! Precisamos, como povo, se reunir. Seja como ONG, movimento, igreja, LGBT, afrodescendentes, de rua ou não rua, brancos, negros, ricos e pobres com ideais de Ser Humano, revolucionar a história, gritar. Um presidente como esse não faz história, só destrói a história. DENEM: O que você espera quando vai para uma consulta médica? Já teve alguma experiência ruim? L: Experiência brutal. Já tive experiência de entrar na sala do consultório e ser ouvido, ser assistido e ser examinado. Mas existe profissional que ele ama o tempo de faculdade e quando vai atuar eu acho que ele não se encontra, não era aquilo que ele queria. Eu acho que pra ser um médico é preciso mais que ser um artista, precisa ser um salva-vidas. Eu percebo que muitos profissionais da área não são muito humanos. Não estou desmerecendo, mas você tem aquela quantidade de pessoas boas e de pessoas más, na medicina também. A experiência brutal que tive foi que quando entrei na sala da médica, ela me desprezou com o olhar, como se pensasse “eu tenho que atender essa coisa?”. Foi muito humilhante pra mim, discutimos e eu tive que sair às pressas para não ser preso, porque acabei desacatando pela falta de respeito daquela profissional. Só com o olhar foi humilhante, imagina se tivesse aberto a boca?. Então assim, eu valorizo a medicina, acho ótimo, fundamental, vem desde o princípio da humanidade para cuidar do ser humano, cuidar do seu bem estar e ter uma vida longa. São esses profissionais que conhecem o que a população precisa, por isso que quando o indivíduo vai na consulta ele espera tudo, não é como um abraço de mãe e de irmão. Alguns médicos deixam a desejar, não sou todos, mas... DENEM: Como você enxerga a influência desse nosso Sistema, deixando de lado um pouco a Medicina pela essência dela, cuidar do próximo, mas esse sistema de ganhar dinheiro e ter um status social? L: Eu acho que as pessoas não visam mais o ser humano. Eles estão ali, estudam aparentemente dedicados por que precisam de uma formação. Às vezes por pressão da família por precisar ter uma formação, outros porque se identificam mesmo, mas a maioria por status. Ficou muito essa ideologia hoje, de a pessoa se formar médico mais pelos lucros do que por amor. DENEM: O espaço está livre, deseja falar algo a mais? 58 L: Eu, como ex-morador de rua, conheci na pele o que é dormir ao relento, a fome, a nudez por não ter uma sandália boa pra calçar e por não ter uma vida estável. Mas eu tenho uma única esperança: que existe um Deus e até aqui ele me ajudou, estou dentro desse movimento social e só tenho mais a somar para que a gente possa mudar essa história e ter uma perspectiva de vida melhor com o passar do tempo eu percebo que a história vai ser mais opressora para os necessitados e para os pobres, mas cabe a cada um saber o seu papel, se juntar a movimentos, agregar valores, para que a gente consiga um Brasil melhor. Agradeço pelo momento e que deus abençoe. Rafael Machado, Maceió/AL DENEM: Primeiro seu nome, de onde você é e quanto tempo que você tá no movimento? Rafael: Meu nome é Rafael Machado da Silva. Eu, atualmente, sou do estado de Alagoas, Maceió. Sou representante do Movimento, do Movimento Estadual da População de Rua. Coordeno lá o movimento no estado. Há cinco anos que milito pela população em situação de rua. Passei catorze anos nas ruas, no uso abusivo de álcool e outras drogas. E pude conhecer, através do programa Consultório na Rua, quando lançou o Fique De Boa, né? Que trabalhava a redução de danos, as perspectivas da redução de danos, aonde eu pude começar a acessar todos os serviços que atendem a população em situação de rua. Sofri sete tentativas de homicídios, mas hoje estou aí na luta, né? É, consegui voltar para a minha família já tem dois anos e seis meses, já tô indo pra três… Voltei pra minha família, consegui um trabalho e hoje luto em prol desses direito da população em situação de rua. DENEM: Na sua concepção, como que tá a saúde no Brasil, como um todo, assim? Não só para a população de rua. R: Tá um caos. Um caos, um caos mesmo, né? A saúde no Brasil pede socorro. Principalmente quando se fala do uso abusivo de álcool e drogas, né? É, o povo acha que, é… Que o álcool e outras drogas não é problema de CAPS, é problema de comunidade terapêutica. E não, a saúde… a droga é um caso de saúde pública, mesmo, tá entendendo? Que é uma questão de saúde, que, é, eu… Que através dos compartilhamentos de seringa, de cachimbos, de lata, dos usuários de maconha… Se a gente tiver uma tuberculose, a gente pode transmitir, se compartilhar uma seringa, a gente pode compartilhar o vírus. É, tem sobre a doença sexualmente transmissível, que precisa ser mais esclarecidas e tratadas porque hoje, no Brasil, existem pessoas que… O maior número da população em situação de rua são soropositivos por conta das próprias pessoas que sai repassando uns aos outros. E as famílias que são atingidas, porque a maioria dos profissionais, a maioria da população em situação de rua, muitas mulheres e travestis são profissionais do sexo, 59 mantém o uso com questão de programas, né? Então, um homem casado sai da sua casa para fazer programa com um deles e termina se contagiando. E contagia sua mulher, sua parceira em casa, né? Então, assim, é isso… DENEM: É, a saúde da população em situação de rua, a questão de acesso ao SUS, ao cartão do SUS? R: É muito negada. Não, só pro cartão do SUS até que melhorou, mas o que que é que adianta a gente, a gente ter um cartão SUS mas chega no hospital geral e não é atendido? Chega no posto de saúde e o povo não tem estrutura, porque ele tá fedendo, porque ele tá de shorts, porque ele tá de bermuda, porque ele não tomou um banho… Então existe essa questão de preconceito, tá entendendo? Que poderia ser vista em outro olhar. Porque nem todo mundo, né, que tá na rua tem a oportunidade de tomar um banho, nem todo mundo que tá na rua tem uma oportunidade de uma roupa nova, né? Então, esse, esse é um dos mais, de um protocolo, a questão da aparência da população em situação de rua. O atendimento, ele as vezes é dado pela aparência. DENEM: E quais são as suas perspectivas e do movimento para a saúde nos próximos períodos que tão vindo aí? R: Ah, a nossa perspectiva é de perda, né? Porque o ministro agora, ele tenta fazer negociação com… Com aquela rede que fortalece muito o consultório na rua. Que é… Meu Deus, eu esqueci o nome. Ai, sumiu.. Sumiu da mente. Mas, assim, quando teve agora um posicionamento, né? Que ele quer privatizar, né? Quando ele quer privatizar, né? Então, quando ele quer privatizar o SUS, né? O SUS, ele já é um caos assim, imagina pra quem não tem condições de um acesso a ele? DENEM: E quando você é consultado por um médico ou por uma médica, o que você espera desse profissional? R: Assim, hoje é muito difícil se ter, nas modalidades do consultório na rua, médico. Que deveria ter clínico, deveria ter um dentista, mesmo. Deveria ter um infectologista pra trabalhar mais essa questão, né? Da população de situação de rua. DENEM: E em alguma consulta médica, você já sofreu algum tipo de violência, alguma coisa que te deixou desconfortável? R: Não, não, por enquanto não. Eu não tenho do que reclamar, não, dos atendimentos. Principalmente do CAPS, dos profissionais do consultório de rua, eu não tenho, não, o que falar, não. DENEM: Está aberto pra você falar sobre qualquer de situação de rua, a sua experiência, você pode ficar a vontade. 60 R: É, assim, que realmente, que viesse a existir mesmo, né? Uma atenção mais voltada da população em situação de rua, mesmo, na questão da saúde. Porque a saúde é a vida, né? Aparece uma doença, aparece várias. A saúde, ela só quer um pé. Pronto, é como eu falei, o ministro, ele, ele, ele tá querendo acabar com a Fiocruz. A Fiocruz é uma das que mantém o SUS, né, assim, predominaria da população em situação de rua, né? Então, quando ele tenta atingir a Fiocruz, ele tá tentando atingir essa população também. Porque é a pior… Porque a classe que mais vai sofrer é a classe minoritária, é a minoria, né? E nós somos a minoria, nós somos essa minoria. E eu posso falar, hoje, porque, assim, através do consultório na rua eu fui uma pessoa que eu me cuidei, na rua. E não contraí o vírus do HIV. Tive sífilis, tratei, cuidei, no acompanhamento, tudo. E se não tivesse o consultório na rua? Eu acho que nem aqui, hoje, eu estava. Eu estaria morto. Então, assim, é, questão da medicação, dar atenção psicossocial para essa população… Que aqui não tem, tem no papel. E eu acho que, assim, quando se discute saúde da população de rua, a gente tem que discutir mais a prática do que a teoria. Cleo, Curitiba/PR DENEM: Primeiro seu nome, de onde você vem, quanto tempo que você tá no movimento. Cleo: Tá gravando já? Eu sou Cléo, meu nome social é Cleo. Eu sou de Pelotas, sou natural de Pelotas, mas estou aqui em Curitiba faz uns cinco anos, mais ou menos. E no movimento, eu acho que tô há uns meses… Acho que uns dois ou três meses no movimento. DENEM: Como é a questão saúde no Brasil, em geral, tá pra você? Como que você enxerga isso? C: Ah, eu acho que tá meia precária, sabia? O governo tá cortando muitos gastos, muitas coisas… Falta medicamento nas farmácias. Eu me consulto aqui no consultório… No consultório na rua, não. Eu me consulto aqui no Ouvidor Pardinho, onde é meu cadastro, e eu vejo que tem muita falta de remédio. Tá bem precário, eu acho. DENEM: E pra questão da população em situação de rua, como você vê o acesso, do cartão SUS, do nome social? C: Ah, algumas coisas assim tá, tá direitinho. Mas tem algumas coisas… Tem algumas pessoas que tão em situação de rua que eles negam o trabalho, não fazem o trabalho. 61 DENEM: Só por estar em situação de rua? C: É, as vezes, acho que aí depende do… Da pessoa que tá trabalhando, que atende bem. Outros não atendem mal ou atendem de má vontade. Eu vejo assim, desse modo. DENEM: E como que vocês enxergam pros próximos tempos, assim, a questão da saúde? Se vai melhorar? C: Ah, eu acho que… Com esse movimento, eu acho que vai melhorar, sim. Que tão lutando por isso, né? DENEM: E quando você é consultada por um médico ou por uma médica, o que você espera dessa pessoa? C: Como assim? DENEM: Como você espera que seja o atendimento, como você espera que seja tratada? C: Ah, na minha parte, eu já faço… Aonde eu consulto, eu já botei o meu nome social. Eles me tratam… Pelo menos, eu não tenho nenhuma reclamação deles. DENEM: Você já sofreu alguma violência de parte de algum médico? C: Não, não, não. Eles sempre me respeitaram. DENEM: Bom, são essas perguntas, se você quiser falar mais alguma coisa que te interesse. Pode falar, tá aberto. C: Não, não, tá bom Maurício, Curitiba/PR DENEM: Gostaria que você falasse seu nome, o local que você mora, quanto tempo está na MNPR e se tem algum cargo. Maurício: Meu nome é Maurício Pereira, sou técnico de enfermagem por formação. Estou na militância do movimento nacional da população de rua no estado do Paraná, desde 2013, e agora estou fazendo o tensionamento da política pública para a área da saúde aqui do município e do estado também. Faço a coordenação do município de Curitiba na militância do movimento. DENEM: Como está a saúde, em geral, no Brasil? M: Pensando enquanto município, a gente tem, aqui em Curitiba, um bom equipamento de atendimento para a população em situação de rua que vem a ser o consultório na rua. Hoje 62 é referência nacional. Ele vem dando sensibilizações, técnicas de bom acolhimento e boa criação de vínculo com essa população. Está conseguindo atingir bastante pessoas em situação de rua e também fazendo as questões da assistência social do município. Essas linkagens intersetoriais entre o serviço social, o CAPS, que é de alta complexidade, e outros internamentos. Inclusive as questões da tuberculose (TB) e da sífilis aqui é um número muito baixo perto de números de outros estados e outros municípios. DENEM: Quais as perspectivas do MNPR em relação ao consultório na rua, em Curitiba? M: O consultório da rua é um atendimento da atenção básica. É uma boa porta de entrada para a população em situação de rua para os atendimentos da saúde, para essa acessibilidade, mas ela precisa de muito mais, de um recurso maior, de atualização constante e essas coisas não acontecem. É uma pena que o consultório na rua, por exemplo, tem um médico que faz a consulta, examina a pessoa, diagnostica, mas não tem a medicação para disponibilizar para essa população em situação de rua. E aí, a gente precisa ir até o posto de saúde, onde lá começam todas as violações a partir de um atendimento de recepção de guarda municipal e preconceito do próprio colaborador, do próprio servidor público municipal, e a gente percebe isso também nos outros espaços. É bem complicado. O consultório na rua ainda precisa ter novos projetos, tem que agregar novas possibilidades. Uma delas é trazer a mediação para dentro do espaço móvel deles para que a gente possa também acessar, o mais rapidamente, o que o médico prescreveu e começar, mais que imediatamente, o tratamento. DENEM: O que você espera quando vai para uma consulta médica? M: Humanidade. Escuta qualificada. Às vezes, a pessoa não fala diretamente o que sente, mas no contar a história a gente consegue absorver muito melhor a problemática de saúde que essa pessoa tem. Acho que uma boa escuta qualificada e um atendimento humanizado, de fato. DENEM: Você já teve experiências ruins com algum médico(a) por estar em situação de rua? M: Não, na minha época não. Diferente das pessoas que tinham pouco conhecimento dos seus direitos, eu fui servidor público municipal antes de passar pela trajetória de rua. Eu trabalhei durante oito anos dentro de um posto de saúde, em uma perspectiva de PSF. A gente entendia muito bem o fluxo e os protocolos de tratamento. Então, quando eu ia buscar a saúde, eu tinha o entendimento disso enquanto formação política já. Nunca tive problema nenhum. Mas a gente consegue ver na nossa militância as impossibilidades que a população em situação de rua, que não está formada politicamente, não entende dos seus direitos, acaba não acessando por medo, vergonha de estar sujo, de estar extremamente drogado ou do não acesso pela segurança pública do município para aquele posto. Enfim, 63 são essas as dificuldades que a gente acaba encontrando e a não continuidade dos tratamentos. A gente precisa, às vezes, de um internamento e não consegue. Precisa da medicação e não consegue. A gente precisa de orientação, visto que mesmo os profissionais dentro dos postos de saúde não têm isso incutido. A gente conseguiu trazer aqui para o município de Curitiba o decreto 940 fazendo com que os colaboradores do serviço municipal da saúde, dentro dos postos de saúde, os atendessem sem a obrigatoriedade do uso de documento ou comprovante de residência podendo expandir o atendimento não só com o consultório na rua, que nada mais é do que um atendimento básico. O que a unidade de saúde também deve dar conta dos seus da sua região, mesmo que a população em situação de rua more em um bairro onde existe uma comunidade que tem seu endereço, sua referência enquanto comprovação de residência, a população em situação de rua que está naquele espaço também é de pertinência do atendimento, das orientações, do tratamento, daquele posto de saúde daquela região. DENEM: O espaço está livre. Deseja falar algo mais? M: Eu acho que o Movimento Nacional da População de Rua, aqui no estado do Paraná, anda e está tendo algumas conquistas na questão da saúde, até porque ela houve a adesão do comitê técnico municipal de saúde também. A gente consegue trazer todos os profissionais desses departamentos, os técnicos desses departamentos, de cada segmento do que a gente precisa da área da saúde para vir discutir com o MNPR, com as pessoas em situação de rua para que tenham uma melhor eficácia nas ações, nos planejamentos e toda a logística que eles têm enquanto demanda de encaminhamentos. 64 65 CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM SITUAÇÃO DE RUA Proteger as crianças da negligência, risco e violência, lhes garantindo promoção, garantia e defesa de direitos e desenvolvimento saudável são responsabilidades básicas do Estado, sociedade e família, devendo esses usar de artifícios para erradicar os possíveis danos às crianças. A aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), na década de 90, tornou as crianças e adolescentes sujeitos de direito, visando a garantia e preservação dos direitos humanos, cidadania e proteção. Entretanto, ainda convivemos com um fenômeno social resultante da história e política econômica brasileira, sustentada pelas desigualdades social e racial, que são as crianças que vivem em situação de rua. Essa condição configura uma das mais preocupantes situações de vulnerabilidade, pois viola direitos básicos preconizados pelo ECA, como direitos à saúde, à alimentação, à vida, à liberdade, à dignidade, ao respeito, ao ambiente familiar saudável, à convivência comunitária, à cultura, à educação e ao esporte e lazer. Uma pesquisa do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente CONANDA, realizada em 75 cidades do país, abrangendo capitais e municípios com mais de 300 mil habitantes, apontou que aproximadamente 24 mil crianças e adolescentes vivem em situação de rua no país. Sendo 71,8% deles do sexo masculino e 45,13% entre 12 e 15 anos. Segundo a pesquisa, 70% deles sofria violência doméstica intrafamiliar, sendo: brigas verbais constantes (32,2%), violência física (30,6%) e violência sexual (8,8%) as formas mais comuns. Além disso, a falta de políticas públicas, a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero, a violência de gênero, a intolerância por motivos religiosos, a falta de acesso à informação e as já mencionadas violências física e sexual são condicionantes à ocorrência e continuidade dessa condição. Outro dado importante apontado pela pesquisa é que 72,8% das crianças em situação de rua declarou-se negra, proporção muito superior à observada no conjunto da população em geral. Esse número evidencia a marginalização histórica sofrida pelos negros, tendo no racismo institucional um fator determinante no (não)acesso aos mais diversos serviços, principalmente para as mulheres e meninas negras, que sofrem duplamente com a desigualdade de gênero e a desigualdade racial. As vulnerabilidades já vivenciadas pela população negra, quando aliada a situação de rua amplia ainda mais a marginalização e complexidade desse 66 fenômeno, resultado de processos sociais, econômicos e políticos, pautados no sistema capitalista e patriarcal desse país. Verifica-se que a saída de casa é um fenômeno processual, na maioria das vezes motivada pela tentativa de romper vínculos familiares e buscar alternativas de autonomia, liberdade e fuga de eventos estressores, como a violência e a pobreza. Contudo, na rua, as crianças estão expostas à violência e ao desrespeito aos direitos básicos, ali encaram a marginalização social, a humilhação e a invisibilidade. Na rua, os agressores deixam de ser os familiares e passam a ser os companheiros, integrantes de grupos organizados, a polícia e a população em geral, que banalizam a existência dessas crianças e, por vezes, as sujeitam a exploração sexual comercial, através do turismo sexual, tráfico sexual e a pornografia. Desta maneira, percebe-se que crianças vivendo em situação de rua, em muitos casos, são consequência e-ou agravamento de violação de direitos já existentes em ambiente intrafamiliar. A ocorrência de eventos estressores, principalmente a violência sexual na infância durante o processo formativo, quando o cérebro está sendo fisicamente desenvolvido, pode deixar marcas em sua estrutura e função, provocando efeitos que alteram - irreversivelmente - o desenvolvimento neuronal, o que predispõe ao desenvolvimento de psicopatologias, principalmente o Transtorno de Estresse Pós Traumático, depressão, ansiedade, conduta hipersexualizada, uso-abuso de substâncias, isolamento social e comportamentos autodestrutivos. Além disso, a vida cotidiana na rua pode agravar ainda mais essas condições. Ainda de acordo com a pesquisa do CONANDA, quase 37% já foram impedidos de entrar em estabelecimentos comerciais, 31,3% em transporte coletivo, 27,4% em bancos, 20,1% em órgãos públicos e quase 13% não receberam atendimento na rede de saúde. Isso evidencia que os órgãos públicos e profissionais de diversas áreas não estão preparados para lidar com esse público. As poucas intervenções dedicam-se na direcionalidade da marginalização ou da salvação, com um único objetivo: tirá-los das ruas compulsoriamente, sem qualquer construção de vínculo. Quando o mais sensato seria entender essas crianças como parte do processo de cuidado, com aproximação das redes de atenção à saúde, redes protetivas e intensa preparação dos profissionais, para que promovam cuidado e promoção de direitos. 67 O manual de Cuidado à saúde da População em Situação de Rua e a Linha de cuidado para Atenção Integral à saúde de crianças, adolescentes e suas famílias em situação de violências, preconizam 4 eixos para o atendimento à saúde de crianças e adolescentes em situação de rua, são eles: I. Aproximação e Abordagem Recursos lúdicos devem ser considerados como estratégia de abordagem, levando em conta os potenciais, capacidades e saindo da lógica da aproximação pela carência. Atividades grupais podem facilitar a aproximação e a criação de vínculos. II. Acolhimento e Vínculo O vínculo aqui exige perseverança e permanência, já que a maioria dos vínculos dessas crianças encontram-se fragilizados, pois desenvolvem profunda desconfiança em suas relações com adultos, principalmente nas interações profissionais, com policiais, professores, assistentes sociais, etc. Por isso, a equipe deve priorizar uma observação e escuta qualificada, com valorização e respeito aos diversos saberes e modos de viver desses indivíduos. III. Atendimento As ações desenvolvidas com crianças e adolescentes devem ser orientadas, de acordo com os seguintes objetivos: ● Garantir acolhimento e dignidade na rede de saúde; ● Fomentar a construção e reconstrução de novos projetos de vida, respeitando as escolhas e individualidades; ● Contribuir na restauração e preservação da integridade e autonomia; ● Promover ações voltadas à reinserção familiar e comunitária; ● Ter atenção especializada voltada ao fortalecimento, resgate ou construção dos laços familiares e comunitários; 68 ● Cuidar, resgatar e minimizar danos decorrentes de vivências de violências e abusos; ● Ter sua integridade, história e identidade preservadas; ● Ter vivências pautadas pelo respeito a si próprio e aos outros, fundamentados na ética, justiça e cidadania; ● Fortalecer a autoestima; ● Alcançar autonomia e condições de bem-estar; ● Possibilitar a expressão de necessidades, interesses e possibilidades. IV. Notificação Compulsória Os artigos 13 e 245 do ECA descrevem a obrigatoriedade, por parte dos profissionais de saúde, da notificação ao Conselho Tutelar dos casos de maus-tratos a crianças e adolescentes, como forma de garantir o direito à sua integridade física. A notificação não deve ser vista como forma de coerção, cada caso deve ser analisado individualmente, priorizando a aproximação, formação de vínculo, acolhimento e acompanhamento longitudinal. Com isso, entendemos a necessidade da inclusão de políticas e estratégias que versem sobre este público, contemplem suas demandas e considerem os determinantes e condicionantes envolvidos nesse fenômeno. Além disso, atuem no combate à discriminação e lutem para o reconhecimento da cidadania e direitos das crianças e adolescentes, os tirando da invisibilidade. Investindo em ações de prevenção, divulgação e sensibilidade da população em geral, desconstruindo as características pejorativas e estereotipadas relacionadas às crianças em situação de rua, percebendo os determinantes sociais e a rede de apoio para enfrentar a vulnerabilidade e os riscos aos quais elas estão expostas. “Todas as pessoas grandes foram um dia crianças, mas poucas se lembram disso” Antoine de Saint-Exupéry Gabriela de Araujo - 8° período Faculdades Pequeno Príncipe (FPP) 69 REFERÊNCIAS APTEKAR, L. (1996). Crianças de rua nos países em desenvolvimento: Uma revisão de suas condições. Psicologia: Reflexão e Crítica. BRASIL. (1990). Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei n. 8.069, de 13/07/1990. São Paulo: Cortez. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas. Linha de Cuidado para a Atenção Integral à Saúde de Crianças, Adolescentes e suas Famílias em Situação de Violências. Brasília 2010. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção à Saúde. Manual sobre o cuidado à Saúde junto a População em Situação de Rua. Brasília, 2012. GONTIJO, D.; MEDEIROS, M. Crianças e adolescentes em situação de rua: contribuições para a compreensão dos processos de vulnerabilidade e desfiliação social. Ciência & Saúde Coletiva MALFITANO, Ana Paula Serrata e ADORNO, Rubens de Camargo Ferreira. Infância, juventude e vivências nas ruas: entre o imaginário da instituição e do direito. Imaginario [online]. 2006. http:// www.direitosdacrianca.gov.br/migrados/pesquisa-do-conanda-revela-as-condicoes-de-vida-de-criancas-eadolescentes-em-situacao-de-rua. Acesso em 01-02-2018 70 MULHERES EM SITUAÇÃO DE RUA A atual Política Nacional para População em situação de Rua, decreto presidencial 7.053 de 23 de dezembro de 2009 define essas pessoas como “ grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados inexistência de moradia convencional regular e que utiliza logradouros públicos as áreas degradadas como espaço de moradia e sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória”. A pesquisa nacional sobre população em situação de rua, que tentou caracterizar essa população em 2007, e foi publicada em 2008, mostra um número predominantemente masculino, 82% frente a 18% de mulheres (hoje, dez anos depois certamente o número de mulheres vem aumentando consideravelmente), jovem, 53% possui entre 25 e 44 anos e negro, aproximadamente 69% se declararam afrodescendentes. Além disso, 17% da população era de analfabetos, sendo que 8,3% sabiam escrever apenas o próprio nome. Os principais motivos que levaram essas pessoas à situação de rua foram: uso abusivo de álcool e outras drogas (35,5%), desemprego (28,8%) e desavenças familiares (29,1%), sendo que muitos iniciaram o uso de substâncias após a situação de rua. Ser mulher no Brasil significa que somente há 140 anos você foi autorizada a estudar no ensino superior (ainda que essa escolha implicasse em muitos preconceitos no início). Antes de 1932 não era possível votar. Em 1945, a igualdade entre homens e mulheres precisou ser aprovada na Carta das Nações Unidas e no Brasil isso só aconteceu na constituição de 1988, portanto, há menos de 30 anos. Em 1951, a igualdade salarial para a mesma função precisou ser aprovada pela Organização Internacional do Trabalho e ainda hoje não foi efetivada de forma plena. Somente em 1962 foi aprovado no Brasil o Estatuto da Mulher Casada, que garantia à mulher a não necessidade de autorização do marido para trabalhar ou receber herança e que a permitia tentar a guarda dos filhos em caso de divórcio. Podíamos aqui elencar uma série de dados e estatísticas para dizer do machismo estrutural presente na nossa sociedade, que passa pelos diversos tipos de violência, como física, psicológica, sexual e patrimonial. A mulher em situação de rua está numa posição na sociedade especialmente vulnerável a todos esses tipos de violência. Ao mesmo tempo que se tratam de histórias de vida completamente trágicas em sua maioria, são também de grande força de sobrevivência e resiliência, mulheres potentes e transgressoras. Enquanto sempre foi destinado à mulher o espaço privado da casa, o comportamento “belo, recatado e do lar”, essas mulheres, essencialmente, recusam essa identidade e vão assumir e ocupar o espaço da rua, 71 tradicionalmente masculino. Assim acontece também com as mulheres que fazem uso abusivo de substâncias, como tabaco, álcool ou drogas ilícitas, antes hábito associado aos homens; mulheres que exercem, com ou sem penalidades legais, a violência, como assassinatos, tráficos e roubos, ou que exercem sexualidade livre ou prostituição. Sendo todas as situações acima muito comuns nas ruas. “Mulher bêbada é horrível” “a mulher rodada” “mulher barraqueira”... São múltiplos e cotidianos os exemplos concretos de comportamentos permitidos e naturalizados ao masculino e vetados ao feminino. É possível ver esse reflexo inclusive dentro dos CAPS AD (Centro de Atenção Psicossocial ao Álcool e a outras Drogas), único serviço de saúde de toda a rede com maior número de frequentadores homens do que mulheres, que em geral são sempre a maioria esmagadora em qualquer serviço de saúde. Longe de romantizar as mazelas sociais infindáveis que levam uma pessoa ao uso compulsivo de substância psicoativa, à violência e à situação de rua, ou ignorar a barbárie de um sistema que produz e naturaliza a desigualdade social extrema, o fato é que: se encaramos a luta feminista como uma luta de identidade, em que se recusa a identidade previamente imposta para as mulheres do lar, da maternidade compulsória, da reclusão doméstica, da moral e bons costumes, a própria existência dessas mulheres é feminista, pois o tempo todo nos mostram outras formas possíveis de identidade feminina. Identidade essa que passa sim pelo exercício da violência, da rua e da sexualidade, e tudo isso de uma forma que sempre foi associada somente aos homens. Ainda que seja importante salientar a força e a potência da existência da forma de vida dessas mulheres, é impossível não mencionar toda a vulnerabilidade que se somam a isso. Neste caso são mulheres nas quais se sobrepõem tudo o que essa sociedade produz de pior em termos de violência e exclusão social. A pobreza extrema faz com que muitas vezes estejam mais vulneráveis aos homens diversos, seus parceiros ou não, tanto a violência patrimonial, física e sexual. Muitas vezes são trabalhadoras sexuais, tema que divide tradicionalmente o movimento feminista, que por vezes vê o trabalho sexual como autonomia da mulher sobre o próprio corpo e sexualidade, abandono de regras e juízos morais sobre o feminino; por vezes vê como a mercantilização do corpo e do consentimento sexual, e sendo assim, um estupro, pois trata-se de ter uma relação sexual com alguém que nunca se teria por vontade própria, visto que, se assim o fosse, o pagamento não seria necessário. Independente disso, o trabalho sexual também torna as mulheres mais vulneráveis à violência física, psicológica, patrimonial e sexual. Para além da discussão de raça, pois tratam-se em sua grande maioria de mulheres negras expostas, sobremaneira, ao racismo estrutural da nossa sociedade. Mulheres que sobrepõem assim todas as mazelas sociais de classe, gênero e raça. 72 Aliada a uma perspectiva feminista, não nos colocamos a chama-las de vítimas, o que reforça a ideia de fraqueza ou de passividade. Cada uma que circula pelas ruas diariamente são sobreviventes - substantivo que enfatiza a garra própria dessas mulheres - de tudo que essa sociedade produziu de pior entre machismo, racismo e desigualdade social. E com sua força colocam cotidianamente sua existência diante de nossos olhos, e nos desafiam na construção de políticas públicas a elas destinadas e construção de outras possibilidades de produção da vida e afeto, para que possam viver em sociedade e não sobreviver a ela. É preciso que não nos esqueçamos nunca de Makarenko que dizia que “O futuro tem mais força que o passado”, para que possamos no encontro com essas mulheres de trajetórias tão difíceis, produzir um espaço no qual possam vislumbrar a própria força e consigam, com afeto, construir novas formas de (r)existência e luta. Thais Machado Dias, ex-médica do Consultório na Rua de Campinas e docente de Medicina de Família e Comunidade da UNICAMP. 73 74