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ÁGUA E METRÓPOLE: LIMITES E EXPECTATIVAS DO TEMPO

2020, EDITORA KOTEV/ COLEÇÃO ÁGUA EM FOCO 2. TESE GEOGRAFIA USP: 863 PÁGINAS, 1.284.343 CARACTERES E 93 IMAGENS, APROVADA NA ÍNTEGRA, SEM RESSALVAS E INDICADA PARA PUBLICAÇÃO. DOI: 10.11606/T.8.2006.tde-20062007-152538

https://doi.org/10.11606/T.8.2006

Água e Metrópole: Limites e Expectativas do Tempo - DOI: 10.11606/T.8.2006.tde-20062007-152538 -, corresponde a trabalho de pesquisa em nível de Doutoramento no campo disciplinar da geografia, tendo por orientador o Professor Doutor Ariovaldo Umbelino de Oliveira, trabalho desenvolvido sob a titularidade do Programa de Pós-Graduação do Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) ao longo dos anos 2000-2006. Analisando a complexa questão dos recursos hídricos na região metropolitana de São Paulo (RMSP), Água e Metrópole: Limites e Expectativas do Tempo, lado a lado a um plano de investigação mais amplo, atinente ao dramático problema da escassez crescente de água doce num prisma global, atende do mesmo modo ao debate do futuro do abastecimento do líquido na metrópole paulista, questão essa que infelizmente, como pode ser aferido a partir da leitura deste trabalho, agravou-se ano a ano no período posterior à defesa da tese, evento acadêmico que transcorreu em 10 de abril de 2006. Temos assim, um texto que tem por foco um dilema da mais alta gravidade, que como poderá ser aferido, não possui outra solução que não a revisão completa do modo e do sistema de vida constituído sob a batuta da modernidade. Neste sentido, fundamentalmente com base em inúmeras ponderações que destacam o texto desta tese como uma contribuição para o entendimento do problema, e a mais ver, em razão de que este persiste como nexo problemático para a RMSP, Água e Metrópole: Limites e Expectativas do Tempo está, pois, disponível nesta edição eletrônica confeccionada pela Editora Kotev (Kotev©), agora disponível em texto revisado e reformatado, assim como normatizado editorialmente para consulta e aferição dos interessados. No que respalda pareceres de que se trata de um encorpado material informativo e de análise com foco na temática da água e das metrópoles, nos plurifacetados ângulos com que o tema se apresenta junto à materialidade social, importa registrar que Água e Metrópole: Limites e Expectativas do Tempo é uma tese que foi aprovada sem ressalvas e indicada para publicação pela Banca Examinadora que analisou o trabalho, formada pelos professores Marcos Bernardino de Carvalho, Arlete Moyses Rodrigues, Dirce Maria Antunes Suertegaray e Jose William Vesentini, que colaboraram nos debates de uma longa sessão de Defesa da Tese (onze horas), encabeçada pelo orientador, o professor Ariovaldo Umbelino de Oliveira. Neste cadenciamento, o trabalho reúne 863 páginas de texto, ou então, 1.284.343 caracteres (incluindo espaços), emparceirados com 93 imagens: fotografias, planilhas, mapas, encartes, caixas de texto (box), tabelas, diagramas e gráficos, que tomando por base o formato modelar para teses acadêmicas, perfazem cinco volumes. No mais, tal como para qualquer outra linha de investigação, nos anos que seguiram à aprovação da tese, o autor manteve vínculos orgânicos com o debate sobre a água, que tal como foi observado, confirmam tanto o grave quadro de escassez do líquido, como do mesmo modo, as premissas fundantes da crise hídrica, na forma de artigos, papers, entrevistas, textos e livros do autor disponíveis para consulta no Anexo II - Referências Bibliográficas Adicionais. Finalmente, agradecendo e sempre recordando o incansável compromisso mantido pelo Professor Ariovaldo Umbelino de Oliveira com as metas e demandas do que então, era apenas um projeto de pesquisa, manifesto minha expectativa de que o material contemple as preocupações dos seus leitores. São Paulo, 24 de Abril de 2020.

1 1 ÍNDICE VOLUME I PREFÁCIO…..………………………………………..………...…….....7-9 INTRODUÇÃO………………………………………………...……...10-16 PARTE I ESPAÇO, GEOGRAFIA E MEIO AMBIENTE Capítulo 1 - Pressupostos, Opções e Metamorfoses 1.1. O Matrimônio Sagrado do Tempo com o Espaço…………….18-33 1.2. Geografia, Crise Ambiental e Sociedade………………..…… 33-46 Capítulo 2 - Circuitos, Tensões e Amplitudes 2.1. Espaço, Sustentabilidade e os Desafios da Natureza Hostil..47-60 2.2. O Curso das Águas e o Domínio da Cidade……………….....60-75 PARTE II MEIO URBANO, QUESTÃO AMBIENTAL E MODERNIDADE Capítulo 3 - Tempo, Modernidade e Natureza 3.1. Repensando a Ecologia a partir do Oikos………………...…..77-93 3.2. Tradição, Questão Ambiental e Modernidade………...….....93-115 3.3. A Imperiosidade da Discussão do Tempo..…………………116-125 3.4. A Modernidade e a Falência do Mundo Tradicional Europeu………………………………………………………...…...126-148 3.5. A Hegemonia dos Tempos Modernos e suas Sequelas…..149-163 2 2 Capítulo 4 - Urbanização, Tecnosfera e os Limites do Tempo 4.1. Progressividade, Modernidade e o Contexto da Cidade………………………………………………………………..164-187 4.2. Rede Urbana Mundial: Cenários e Desafios……………….187-220 4.3. Buscando um Novo Ponto de Equilíbrio…………………….220-229 VOLUME II PARTE III SOCIEDADE, ÁGUA E MEIO AMBIENTE Capítulo 5 - Água: Um Recurso Estratégico 5.1. A Água e Sua Importância para as Sociedades Humanas…………………………………………………….……...231-242 5.2. As Águas Doces no Planeta Terra…………...……….…….242-263 5.3. Água: Avaliando um Recurso sob Tensão…………….…...263-271 Capítulo 6 - Água: Um Recurso Indispensável 6.1. Água e Energia…………...…………………………...……...272-300 6.2. Água e Produção de Alimentos…………………………,,,,,,300-317 6.3. Água e Industrialização………………………………,,,,…...317-326 Capítulo 7 - Recursos Hídricos e Resíduos Sólidos 7.1. Resíduos Sólidos: Um Problema Crescente……………….327-338 7.2. Lixo e Água: Uma Interface Perpétua…………………...….338-349 7.3. Classificação e Destinação dos Resíduos Sólidos………..349-365 7.4. Repensando os Resíduos Sólidos Domiciliares……...…...365-376 7.5. Recursos Hídricos, Fração Orgânica e Reciclagem……...376-387 7.6. Recursos Hídricos, Fração Inorgânica e Reciclagem…….387-397 3 3 Capítulo 8 - A Geografia da Sede 8.1. Água: Natureza, Sociedade e Escassez………………..….398-424 8.2. A Exaustão dos Recursos Hídricos……………………...….424-442 8.3. Água, Globalização e Neoliberalismo……...……………….442-450 8.4. Água: Um Direito a ser Assegurado…………….…………..450-476 8.5. Desafios da Geopolítica da Sede………………………..….476-486 VOLUME III PARTE IV GRANDE ABC, PAULISTA RECURSOS HÍDRICOS E A METRÓPOLE Capítulo 9 - Recursos Hídricos e Questão Urbana no Brasil 9.1. Recursos Hídricos do Brasil..………………………………..488-502 9.2. Sede no País das Muitas Águas………………….…………502-537 Capítulo 10 - A Metrópole Paulista e a Questão dos Mananciais 10.1. A Grande São Paulo no Contexto da Escassez de Água…………………………………………………………………538-563 10.2. São Paulo, Águas Vadeantes e o Velho Caaguaçu…......563-586 Capítulo 11 - O Grande ABC e a Questão dos Mananciais 11.1. O Grande ABC no Contexto da RMSP……………...…….587-610 11.2. A Ecologia Política dos Mananciais………………...….......611-627 Capítulo 12 - Metrópole, Recursos Hídricos e Limites do Espaço 12.1. Represa Billings, Metrópole Sedenta e Metamorfoses da Natureza………………………………………………………...…..628-650 12.2. Os Mananciais Frente a “Não-Política” de Água Doce….650-664 12.3. Metrópole Expansionista e Destruição dos Mananciais...665-692 4 4 PARTE V - CONCLUSÕES: EM BUSCA DE UM FINAL TRANSITÓRIO Repensando um Trajeto…………………………………………...694-696 A Encruzilhada dos Tempos Modernos....……………………….696-701 Os Limites da Grande Metrópole………………………..……….702-708 Pensando o Curso das Águas………………………….……..….709-716 Natureza e Alternativas da Metamorfose…………….………….716-722 VI. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 6.1. Livros e Artigos……………………….………………….….723-766 6.2. Jornais e Revistas 6.2.1. Jornais………………………………………………….….....…...766 6.2.2. Revistas…………………………………………………...……...767 6.3. Documentos, Obras de Consulta e Manuais………...…768-773 6.4. Cartografia………………………………..…………………..773-774 6.5. Sites da Internet………………………..……………..……..774-775 6.6. Informativos Eletrônicos………………………………………...776 6.7. Dicionários………………..…………………………...…….…….776 6.8. Iconografia………………………..…………………….…….776-777 5 5 6.9. Fonografia……………………..……………..…………….……...777 6.10. Palestras……………………..……………………………...777-778 6.11. Filmografia….…………...……………………………………….778 ANEXOS ANEXO I - RIBEIRÃO PIRES: A REPRODUÇÃO DA METRÓPOLE Recorte geograficamente pontual das dinâmicas metropolitanas na relação com os recursos hídricos em Ribeirão Pires ………….780-811 Bibliografia do Anexo….……..……..…………………………..812-814 ANEXO II - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADICIONAIS Textos, papers, capítulos de livro, ebooks, entrevistas e depoimentos relativos à produção do autor no campo dos recursos hídricos posteriormente à defesa da Tese de Doutorado USP Água e Metrópole: Limites e Expectativas do Tempo, materiais disponíveis para acesso livre na Internet ………………...……...…………...815-822 APÊNDICES APÊNDICE 1: LEI Nº. 898, DE 18 DE DEZEMBRO DE 1975, que “Disciplina o uso do solo para a proteção dos mananciais, cursos e reservatórios de água e demais recursos hídricos de interesse da Região Metropolitana da Grande São Paulo e dá providências correlatas”…………………………………………………………..824-832 6 6 APÊNDICE 2: LEI Nº. 9.866, DE 28 DE NOVEMBRO DE 1997, que “Dispõe sobre diretrizes e normas para a proteção e recuperação das bacias hidrográficas dos mananciais de interesse regional do Estado de São Paulo e dá outras providências”.………………………..833-858 SOBRE O AUTOR………………..…………………..……………859-863 7 7 PREFÁCIO Água e Metrópole: Limites e Expectativas do Tempo - DOI: 10.11606/T.8.2006.tde-20062007-152538 -, corresponde a trabalho de pesquisa em nível de Doutoramento no campo disciplinar da geografia, tendo por orientador o Professor Doutor Ariovaldo Umbelino de Oliveira, trabalho desenvolvido sob a titularidade do Programa de Pós-Graduação do Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) ao longo dos anos 2000-2006. Analisando a complexa questão dos recursos hídricos na região metropolitana de São Paulo (RMSP), Água e Metrópole: Limites e Expectativas do Tempo, lado a lado a um plano de investigação mais amplo, atinente ao dramático problema da escassez crescente de água doce num prisma global, atende do mesmo modo ao debate do futuro do abastecimento do líquido na metrópole paulista, questão essa que infelizmente, como pode ser aferido a partir da leitura deste trabalho, agravou-se ano a ano no período posterior à defesa da tese, evento acadêmico que transcorreu em 10 de abril de 2006. Temos assim, um texto que tem por foco um dilema da mais alta gravidade, que como poderá ser aferido, não possui outra solução que não a revisão completa do modo e do sistema de vida constituído sob a batuta da modernidade. Neste sentido, fundamentalmente com base em inúmeras ponderações que destacam o texto desta tese como uma contribuição para o entendimento do problema, e a mais ver, em razão de que este persiste como nexo problemático para a 8 8 RMSP, Água e Metrópole: Limites e Expectativas do Tempo está, pois, disponível nesta edição eletrônica confeccionada pela Editora Kotev (Kotev©), agora disponível em texto revisado e reformatado, assim como normatizado editorialmente para consulta e aferição dos interessados. No que respalda pareceres de que se trata de um encorpado material informativo e de análise com foco na temática da água e das metrópoles, nos plurifacetados ângulos com que o tema se apresenta junto à materialidade social, importa registrar que Água e Metrópole: Limites e Expectativas do Tempo é uma tese que foi aprovada sem ressalvas e indicada para publicação pela Banca Examinadora que analisou o trabalho, formada pelos professores Marcos Bernardino de Carvalho, Arlete Moyses Rodrigues, Dirce Maria Antunes Suertegaray e Jose William Vesentini, que colaboraram nos debates de uma longa sessão de Defesa da Tese (onze horas), encabeçada pelo orientador, o professor Ariovaldo Umbelino de Oliveira. Neste cadenciamento, o trabalho reúne 863 páginas de texto, ou então, 1.284.343 caracteres (incluindo espaços), emparceirados com 93 imagens: fotografias, planilhas, mapas, encartes, caixas de texto (box), tabelas, diagramas e gráficos, que tomando por base o formato modelar para teses acadêmicas, perfazem cinco volumes. No mais, tal como para qualquer outra linha de investigação, nos anos que seguiram à aprovação da tese, o autor manteve vínculos orgânicos com o debate sobre a água, que tal como foi observado, confirmam tanto o grave quadro de escassez do líquido, como do mesmo modo, as premissas fundantes da crise hídrica, na forma de artigos, papers, 9 9 entrevistas, textos e livros do autor disponíveis para consulta no Anexo II - Referências Bibliográficas Adicionais. Finalmente, agradecendo e sempre recordando o incansável compromisso mantido pelo Professor Ariovaldo Umbelino de Oliveira com as metas e demandas do que então, era apenas um projeto de pesquisa, manifesto minha expectativa de que o material contemple as preocupações dos seus leitores. São Paulo, 24 de Abril de 2020. Maurício Waldman A Metrópole Paulista em 2004 (Fonte: < http://www.brazilbrazil.com/s/sat_058.jpg >. Acesso em: 03-11-2005) 1 10 INTRODUÇÃO Água e Metrópole: Limites e Expectativas do Tempo é um trabalho que versa a respeito da dificuldade crescente das metrópoles serem atendidas nas demandas por água doce. E esclarecendo de vez sobre a questão central deste trabalho, o texto que se estende desta página em diante discute uma hipótese básica: a de que não será possível atender tais necessidades a não ser que mudanças radicais em todas as escalas da sociedade humana moderna sejam colocadas em ação. Ainda que essa assertiva reporte a um amplo e complexo rol de temáticas, elegemos como eixo organizador da análise dois arranjos espaciais básicos, primacialmente conjuminados entre si: a Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) e o Grande ABC Paulista, a mais importante das sub-regiões da RMSP após a capital. Em seu interior, Ribeirão Pires, integrando o grupo de sete municípios que formam a sub-região, foi o espaço urbano mais recentemente abordado pelo pesquisador, vivência que permitiu certificarem muitas das hipóteses trabalhadas nesta tese quanto aos dois outros arranjos espaciais citados anteriormente. Quanto ao tema deste trabalho, tanto a RMSP quanto o Grande ABC, expressam uma problemática hídrica que de modo emblemático prognosticam as mais duras conclusões. Na voz do povo, repete-se que é muito difícil encarar a realidade de frente. Contudo, quando esta é escancarada, não resta nenhuma opção. Uma seria resignar- 1 11 se às imposições da conjuntura e não reagir. A outra, seria indignar-se e buscar respostas, revidando os desafios colocados pela realidade. A escolha que motivou esta tese foi a segunda, e com este ofício é que a análise que segue foi construída. Como sentenciou o cientista social alemão Max Weber, no plano das opções que o pesquisador realiza no campo da ciência, inexiste objetividade despida de subjetividade. Do ponto de vista da vivência e dos reflexionamentos emocionais, o Grande ABC Paulista reporta a um longo histórico de vida para o proponente deste trabalho. Meu pai, Wolf Waldman, imigrante judeu polonês que percorreu na condição de comerciante, durante muitos e muitos anos, as cidades da sub-região, fazia suas caminhadas intermináveis contando, quase sempre, com a minha companhia. Foi assim que tomei contato com São Caetano do Sul, Santo André, São Bernardo do Campo, Diadema, Mauá e Ribeirão Pires, cidades do Grande ABC que aprendi a reconhecer, acompanhando a conversa dos adultos, tal como se fossem uma só. As recordações destas andanças são assaz vívidas. Aprendi a identificar os marcos característicos da paisagem do Grande ABC e a desfrutar do que este encantador recanto da metrópole pode oferecer. Nessa época, não se falava nem em greve e muito menos em mobilização da sociedade. E, com o golpe militar de 1964, quem conhecia algo a respeito destes temas refugiou-se, ao menos em parte, num cauteloso silêncio. Porém, dificilmente uma região com a vitalidade do Grande ABC poderia ser silenciada e assim, este espaço se reapresentou na minha vida através do ativismo ambientalista. 1 12 A partir dos anos setenta, muitos segmentos da opinião pública passaram a evidenciar crescente inconformismo com a degradação da represa Billings e dos seus mananciais. Este temário, dantes restrito ao movimento ecologista, afirmou-se nas décadas seguintes tanto na consciência social quanto no plano das demandas objetivas de água por parte da metrópole em expansão. Capitaneada pela cidade de São Paulo, uma urbe que, dizia-se nas décadas passadas, “não poderia parar de crescer”, a região metropolitana expandiu-se, acirrando no seu interior toda sorte de antagonismos sociais e econômicos. Simultaneamente, motivada pelo seu dinamismo descontrolado, nesta marcha processual a metrópole inevitavelmente confrontou-se com os ciclos da natureza, afetando inclusive os que garantem aos humanos o desfrute da mais vital de todas as substâncias, relacionada diretamente com o sistema-vida: a água. Deste modo, na esteira da militância ecologista e da ascensão do Partido dos Trabalhadores (PT) terminei por exercer, no biênio 19911992, o cargo de Secretário do Meio Ambiente da Prefeitura Municipal de São Bernardo do Campo (PMSBC). Entretempos, postado no comando institucional de uma relevante administração do Grande ABC, as dinâmicas socioespaciais que se desenhavam na vida da cidade se explicitavam de modo irretorquível. Ademais, dado ser impossível dissociar esse dinamismo de quaisquer outras cidades do Grande ABC Paulista e destas, da RMSP, a agenda cotidiana de trabalho se encarregava de destacar os dilemas da subregião, assim como os da metrópole paulista como um todo. 1 13 Mantendo nos anos que se seguiram toda sua atualidade e potencialidade em termos dos desafios colocados para a questão do acesso à água, foi possível, no interregno 2002/2005, conferir esta problemática durante as pesquisas e o trabalho de campo visando esta tese de doutorado, desenvolvido em paralelo com a participação em projetos de educação ambiental voltados para o ABC Paulista, financiados pelo Fundo Estadual de Recursos Hídricos (FEHIDRO), e, no exercício do magistério em nível superior e desenvolvimento de cursos de capacitação para professores da rede municipal de ensino de Ribeirão Pires. Deste modo, a partir de 2001, quando já participava oficialmente do programa de pós-graduação em geografia humana da FFLCHUSP, e secundado por um processo de especulações pertinentes às preocupações que foram expostas, lentamente foi se sedimentando na proposta do trabalho de doutorado, a incorporação da temática da questão do abastecimento de água nas grandes cidades brasileiras, envolvendo a RMSP e o ABC Paulista, assim como, é evidente, a experiência vivida na cidade de Ribeirão Pires, formando uma massa de informações cruciais para esta tese. Deve ser ressalvado que ao estar centrado na questão do meio urbano e dos recursos hídricos, o temário proposto por Água e Metrópole: Limites e Expectativas do Tempo articula-se com outras problemáticas de importância fundamental para o futuro da RMSP, dentre estas, as da matriz energética, do lixo e as relacionadas com a questão do uso e ocupação do solo urbano. Assim sendo, esta tese de doutorado inclui temáticas que se estendem da poluição da água por cargas difusas, passando pela destinação dos resíduos sólidos e, 1 14 numa outra ponta deste espectro, com os problemas associados como a ocupação dos mananciais. Quanto ao Grande ABC em si mesmo, trata-se de um espaço extremamente dinâmico, concentrando formidável parque industrial e um pujante setor de serviços. Portanto, não é de se admirar que sua história tenha sido atravessada pelas mais turbulentas performances demográficas, com impactos evidentes nos mananciais da represa Billings. Numa perspectiva ambiental, o ABC é uma área de grande importância para os ciclos hidrológicos da RMSP, corporificados no reservatório Billings, nas suas matas remanescentes e no seu rico potencial de águas subterrâneas. Deste modo, o ABC em sua contextura hídrica indica enormes potencialidades em termos de animar expectativas voltadas para a compreensão da realidade materializada na RMSP, contribuindo tanto como dado adicional dirigido para a formulação de várias hipóteses, quanto para certificar uma visão crítica desta mesma realidade. Neste raiar do Século XXI, bem mais do que nas décadas anteriores, a questão do acesso à água potável e a necessidade de criar políticas urbanas empenhadas em contribuir de fato para com a superação das contradições surgidas de um processo de acumulação de capital que, em linhas gerais, tem mantido sua tendência em criar, e explicitamente recriar, sempre de modo cada vez mais ampliado e contraditório, desigualdades mais e mais profundas, atualizam de modo radical esta problemática. 1 15 Acelerado por um dinamismo temporal que vincula a realidade regional ao seu espelho global e vice-versa, as questões a serem debatidas nesta tese, Água e Metrópole: Limites e Expectativas do Tempo, constituem uma invitação para serem trilhados, a fortiori, as mais diversas circunscrições factuais e travessias teóricas. No entanto, todos conduzirão a um mesmo destino: a premência de dar conta de problemas somente passíveis de resolução através de novos paradigmas, habitados a decifrar dilemas e contradições que se expressam no tempo e no espaço. Com estas diretrizes à disposição, organizei a exposição numa sequência composta por cinco partes, divididas em 12 capítulos e 35 subcapítulos, nos quais o aprofundamento dos temas arrasta consigo as discussões precedentes, ao mesmo tempo em que as retoma e amplia. ➢ Na primeira parte da investigação, Espaço, Geografia e Meio Ambiente, discrimino as principais linhas teóricas que sustentam a tese, assim como os principais eixos da discussão; ➢ Na segunda, Meio Urbano, Questão Ambiental e Modernidade, os vínculos mantidos pela questão ambiental na modernidade com a ordenação social do tempo e do espaço, indissociáveis do desenho do meio urbano, estaqueiam-se de modo conjuminante, apontando para a crítica do modus operandi da sociedade ocidental e das formas desestabilizadoras que estabeleceu no relacionamento com o meio natural. Retenha-se que nesta tripartição, a análise tem por meta avaliar, de modo encadeante e norteador, a modelagem e progressão 1 16 da crise ambiental, lastro ontológico axial, complexo e multifacetado, que perpassa pela totalidade da tese; ➢ A terceira parte, Sociedade, Água e Meio Ambiente, a exemplo das anteriores, mantém-se rigidamente focada na geografia humana, detendo-se especialmente nos aspectos contraditórios das interações socioespaciais, ao mesmo tempo em que busca detalhar os vários prognósticos e perspectivas atinentes à questão das águas doces, ou como lhe seria consentâneo pelas lentes da economia, do ouro azul; ➢ Ao longo da quarta parte, Grande ABC, Recursos Hídricos e a Metrópole Paulista, o texto registra primeiramente um balanço dos recursos hídricos no Brasil e uma radiografia das dinâmicas urbanas do país, para posteriormente, situar a problemática da RMSP e do Grande ABC Paulista frente a um dinamismo socioespacial no qual a hegemonia da temporalidade moderna é um dado essencial para sua compreensão; ➢ Por último, na quinta parte, Em Busca de um Final Transitório, procuro, discriminando os limites da institucionalidade, enfatizar a necessidade de superação das contraposições encasteladas no que com muita propriedade, poderia ser classificado como “bomba-relógio do antropoceno”, cuja sintomatologia mais pungente, tem vedado a grupos, povos e nações a consecução de sua humanidade, dilema que como será argumentado, para ser ultrapassado não admite que sejam dispensadas as expectativas em prol da revisão dos axiomas da ordem global, a transformação da sociedade, a preservação da naturalidade que dinamiza e envolve o sistema-vida, e tal-qualmente, assegurar a conservação das águas doces, utopia maior deste texto. 1 17 PARTE I ESPAÇO, GEOGRAFIA E MEIO AMBIENTE 1 18 CAPÍTULO 1 PRESSUPOSTOS, OPÇÕES E METAMORFOSES 1.1. O MATRIMÔNIO SAGRADO DO TEMPO COM O ESPAÇO Este estudo localiza-se no campo do conhecimento geográfico. Portanto, nada mais compreensível que o conceito de espaço e seus desdobramentos constituam um foco obrigatório de análise e fonte de subsídios para substantivar esta pesquisa. Importa deixar claro que o enfoque da geografia é específico, diferindo das demais especialidades. Como se verá adiante, para os geógrafos, o espaço não se confunde com o espaço cultural, social ou econômico, tratados pela antropologia, sociologia e economia. Por outro lado, nada disto depõe em contrário quanto a geografia fazer uso dos conceitos de espaço de disciplinas afins, e de outras a ela menos relacionadas (Vide SILVA, 1978: 81/82). Uma vez esclarecida esta vocação pelo espaço, não haveria como marginalizar sua contrapartida, isto é, o tempo. Saliente-se que a dimensão espacial somente é devidamente apreendida, tanto na sua qualificação concreta quanto na imaginária, na hipótese de, na sua intelecção, ser afiançado o vínculo mantido com a dimensão temporal. 1 19 Salientemos, as esferas do espaço e do tempo configuram, vis-àvis, “realidades indissociáveis, em qualquer plano, escala ou sistema de relações” (Cf. ANDRADE, 1971: 93). Envolvendo-se mutuamente em termos de coexistência, permanência e transitoriedade, o binômio espaço-tempo consubstancia um poderoso plano de entendimento da realidade, daí decorrendo a importância dessa tematização para a geografia (Cf. OLIVEIRA, 1982c). Para a geografia, a interligação entre as dimensões temporal e espacial, objetivamente presentes no dinamismo de todas as formas conhecidas de organização do homem em sociedade, e, portanto, em nível do imaginário e da sua concretude, permitiria identificar as metamorfoses que marcam a transformação do espaço geográfico. A interdependência entre estas duas fatorações, absolutamente cabal, fulgura em toda sua luminância na análise das paisagens na pena do geógrafo francês Olivier DOLLFUS: A fisionomia da Terra está em perpétua transformação. Toda paisagem que reflete uma porção do espaço ostenta as marcas de um passado mais ou menos remoto, apagado ou modificado de maneira desigual, mas sempre presente. É um palimpsesto onde a análise das sucessivas heranças permite que se rastreiem as evoluções. O espaço geográfico se acha impregnado de história (1972: 11). Em especial, este debate é meritório devido seu entrelaçamento com a conceituação de formação socioespacial ou abreviadamente, espacial. Esta formulação, consensada ao longo de muitos debates travados no seio da geografia, filia-se a um escopo teórico de matriz marxista, embasando-se nos conceitos de formação social e de modo 2 20 de produção, modelos de análise intensamente debatidos pelas ciências sociais ao longo dos anos 1970 e 1980, interregno durante o qual, o campo acadêmico da geografia gerou uma literatura de vulto dedicada ao tema. Entretanto, seria cabível preliminarmente ponderar que antes da discussão que resultou no conceito de formação espacial, disciplinas como a sociologia, ciência política e a antropologia, desenvolveram estudos que exaltavam o papel do espaço no tocante à trajetória assumida pelas comunidades humanas. Em comum, tais análises contestavam a noção de que o tempo se prontificasse enquanto referência par excellence para o estudo da realidade, assim como a noção de que a dimensão espacial pudesse ser reduzida a um reles “receptáculo” do protagonismo do coletivo humano, um palco “neutro” do homem em sociedade. Essa orientação esteve presente na obra de sociólogos como Émile Durkheim, cujas investigações identificaram a correspondência entre as representações do espaço e sua respectiva origem social; de Maurice Halbwachs, na sua ênfase da importância do espaço para a memória coletiva; e de Georg Simmel, que avaliou a proeminência de um centro espacial para um Kirchenstaat (Estado eclesiástico), caso do Tibete, cuja capital, Lhasa, tinha na sua posição central o Potala, um altaneiro convento que era a sede do governo e para o qual, convergiam todas as estradas do país (Cf. BETTANINI, 1982: 81/110 e CUVILLIER, 1975: 138/161). Quanto à antropologia, não seria difícil discernir uma cognição consistente quanto ao espaço, que encontra justificativa no fato do 2 21 mundo tradicional operar insistentemente com base numa articulação orgânica entre espaço social e sistemas míticos, nos quais um entrosamento com os ciclos e dados naturais é indissociável da sua reprodução social. Assim, as pesquisas dos antropólogos Carlos SERRANO (1983), Marc AUGÉ (1985) e de Claude TARDITS (1985), centradas respectivamente no reino Ngoyo, na área cultural Bakongo 1, e na gubernatura Bamoun 2, na África centro-atlântica, reportaram direta ou indiretamente ao espaço. Cabe citar, elaborações aninhadas na seara da filosofia, também poderiam ser arroladas, que desvendaram, desde os antigos gregos, constructos axiais para a compreensão do espaço (ANDRADE, 1971). Entretanto, as iniciativas encabeçadas por várias das ciências humanas não necessariamente identificaram a espacialidade inerente a qualquer formação social. Basicamente, em razão de que ao se eximirem de articular conceitualmente uma totalidade socioespacial, seus dinamismos internos e, em especial, suas contradições no plano do espaço-tempo, tais esforços foram insuficientes para consolidar uma teorização abrangente, operacional de espaço. Atente-se para a sugestão do geógrafo Ruy MOREIRA, presente no excerto abaixo transcrito: O estudo mais e mais preciso do conceito e articulação de formação econômico-social e de modo de produção, a par Faz séculos, os Bakongo formam uma etnia espalhada pelas duas margens do Zaire, especialmente na costa e adjacências do estuário deste rio, ocupando territórios que hoje em dia integram Angola, a República Democrática do Congo e a República do Congo. 2 Estado tradicional africano localizado no trecho meridional da atual República dos Camarões, cujo território foi dominado pela Alemanha no final do Século XIX e a partir dos finais da I Guerra Mundial, repartido entre a França e o Reino Unido. 1 2 22 do estudo minucioso da economia política, das instituições e da ideologia, sem o qual não se pode mergulhar fundo na compreensão de uma formação econômico-social, e a convergência de tudo isso ao estudo do conceito, forma e processos da formação espacial, eis o que nos parece necessário para um bom trabalho de construção teórica do espaço (1982a: 63). Recorde-se que o conceito de modo de produção não se confunde com o de modo de produção de bens materiais. Este último subentende uma expressão descritiva, referindo-se unicamente à estrutura econômica da sociedade. Respaldar uma análise com base no marco teórico dos modos de produção, implica na adoção de um constructo apreendendo a materialidade social por inteiro, tanto a estrutura socioeconômica da sociedade, quanto balizamentos junto às esferas do jurídico, do político e do ideológico (Vide GEBRAN, 1978: 14), sopesamento que nesta vertente, credenciaria a formulação para um estudo científico do espaço. É importante precisar que o debate responsável pelos novos conceitos que passaram a seduzir o pensamento geográfico a partir dos anos 1980, esteve perpassado pela verve questionadora da geografia crítica, uma das correntes que medraram no interior do movimento de renovação de geografia. Constituindo um momento no qual o marxismo ganhou notoriedade no interior das especulações geográficas, a geografia crítica promoveu reavaliações teóricas cujo denominador comum, endossavam uma visão crítica da realidade. A receptividade encontrada pelo marxismo junto ao pensamento geográfico foi encorajada, no caso brasileiro, por um contexto no qual o país ensaiava os primeiros passos na direção da redemocratização. 2 23 Nessa perspectiva, estaria colocado à geografia, ao incorporar o marxismo no seu plano de análise, dar conta de uma contribuição de caráter eminentemente geográfico - isto é, espacial - de compreensão do movimento contraditório da sociedade e dos atores que a integram (MORAES, 1981: 112 et seq). Neste sentido, conviria ponderar que embora a geografia crítica tenha sido granjeada com adjetivações como geografia marxista, radical, ou, de relevância social, que no âmago, seu desenvolvimento teórico inspirou-se numa efervescência intelectual externa ao antigo mundo socialista, cuja produção geográfica acatava outros ditames e diretrizes. É sabido que na ex-URSS e nas repúblicas populares do Leste europeu, o saber geográfico se resumia a um arrolamento dos recursos naturais, no geral, abordados numa ótica economicista ou então, vinculado à geofísica e ciências naturais correlatas. Apenas a título excepcional, nos países governados por regimes marxistas, é encontrada uma geografia humana inspirada no chamado socialismo científico, muitas vezes uma produção encetada por cientistas sociais como sociólogos e antropólogos (Ver a respeito CHRISTOFOLETTI, 1985: 26/29 e MONTEIRO, 1980: 138/139). Seria também obrigatório lembrar a pluralidade de concepções que se abrigam no pensamento marxista. De fato, a geografia crítica diz respeito, além de Marx e Engels, a variada gama de pensadores, teóricos e ativistas. Numa listagem abrangente, pontificariam então, nomes como os de Leon Trotsky, Antonio Gramsci, Karl Wittfogel, Rosa Luxemburgo, Giorgy Luckács, Mao Tsé-Tung e Wladimir Ilitch 2 24 Ulianov (Lênin), cada um dos quais, defendendo posicionamentos teóricos e programáticos que não eram necessariamente coincidentes e longe disso, estiveram marcados por acentuadas discordâncias. Nesta sequência, seria mister escriturar que a incorporação do marxismo no pensamento geográfico não esteve isenta de obstáculos conceituais e metodológicos. O principal deles é que o marxismo, em igual medida com o conjunto das escolas filosóficas e dos sistemas de pensamento do mundo ocidental que precederam o Século XX, manteve-se sob o domínio do tempo. Na lógica do marxismo, as dinâmicas e categorias temporais constituem o âmago de sua argumentação. Teriam assegurado Karl MARX e seu parceiro Friedrich ENGELS em A Ideologia Alemã: “a única ciência que conhecemos é a ciência da história” (1977: 23) 3. Exatamente por esta razão, como sublinhou o geógrafo e urbanista norte-americano Edward Soja, o surgimento de um forte materialismo histórico não foi correspondido por um também robusto materialismo geográfico (SOJA, 1986: 4; ver também QUAINI, 1979: 34/47). Essa lacuna do pensamento clássico marxista quanto ao espaço mobilizou segmentos da geografia identificados com esta corrente na senda de não só resgatar o espaço quanto de espacializar conceitos marxistas temporalizantes, dentre estes, o de modo de produção (BERNARDES, 2001). Tal releitura impunha-se por si mesma, pois o Observa o geógrafo José Willian VESENTINI: “Essa frase, juntamente com algumas outras, foi riscada pelos autores, que inicialmente pretenderam publicar o manuscrito, mas desistiram após algumas dificuldades e, segundo argumentaram posteriormente, porque essas ideias serviram somente como amadurecimento intelectual” (1989: 44). Entretanto, independentemente dessa sentença ter constituído um exercício intelectual ou não, o caráter eminentemente temporal das argumentações marxistas e marxianas é inquestionável. 3 2 25 conceito de modo de produção, do ponto de vista epistemológico, incorpora o tempo e não o espaço, como primado de interpretação da realidade. O resultado destes esforços levou, muito sinteticamente, ao entendimento de que modo de produção e formação social, conceitos marxistas fortemente enraizados na tradição temporalizante ocidental, poderiam ser desdobrados numa tradução espacial. Nos termos pelos quais pretendo desenvolver esta avaliação, essas aferições constituem um indicativo básico para incorporar as contribuições de Milton Santos, “uma das mais amplas e substantivas empreendidas pela geografia crítica” (MORAES, 1981: 123). O vulto, vigor e a pertinência da produção deste estudioso da problemática do espaço, profundamente identificada com uma leitura questionadora da realidade, conquistou projeção principalmente a partir da década de 1980, demonstrando-se um acervo teórico dotado de capilaridade na escala nacional e internacional (MAMIGONIAN, 1996: 201/205). Motivo de orgulho para a nação brasileira, Milton Santos foi o primeiro geógrafo originário de um país periférico (único até o atual momento), a ser laureado com o Prêmio Vautrin Lud (1994), a maior distinção da geografia, considerado o Prêmio Nobel da disciplina. Tal teorização, possuindo nota predominante no conceito de espaço produzido, espaço habitado, espaço artificial ou simplesmente natureza segunda, constitui um subsídio de grande quilate para a geografia, hoje endossada como noção inseparável do patrimônio científico da disciplina. A dimensão do espaço, dantes divorciada do tempo, reencontra nessa ótica o pressuposto fundamental de sua completude cognitiva: as sociedades agem sobre o espaço e, mais precisamente, produzem um espaço específico enquanto expressão 2 26 do seu dinamismo histórico-social. Ocorre então que o espaço, ou espaço-paisagem, testemunha um modo de produção nestas suas manifestações concretas, o testemunho de um momento do mundo (apud SANTOS, 1978a: 138). Ao mesmo tempo, terminologias específicas como fixos, fluxos, objetos espaciais, sistemas técnicos, processos de espacialização e divisão espacial do trabalho, conquistaram popularidade nas análises costuradas pela geografia em temas como a organização territorial, exclusão espacial e a questão urbana. Este rol de conceituações está embasado pela poderosa aliança formada pelo binômio espaço-tempo, uma parceria onipresente nas especulações de Santos. Como explícito em venerável sentença deste notável geógrafo brasileiro, uma vez sendo verdadeiro que o tempo se transforma em espaço, seria igualmente correto pensar que o espaço também se transforma em tempo (Vide SANTOS, 1978a: 105). Claramente, estes enfoques explicitam a incorporação da preocupação com o espaço em processos dantes entendidos como eminentemente temporais. Nesta ordem de argumentação, os imperativos do espaço para o conceito de formação social poderiam ser compendiados por algumas premissas básicas, dentre as quais: 1. Analisar como o tempo se transforma em espaço e como o tempo passado e o tempo presente têm, cada qual, um papel específico no funcionamento do espaço atual (SANTOS, 1978a: 105); 2 27 2. Interpretar o espaço, na acepção deste constituir um fator, um fato e uma instância social (idem, 1978a: 130); 3. Compreender o papel pertinente às rugosidades, formas espaciais criadas pela ação humana, cuja inércia espacial condiciona novas localizações (idem, 1978a: 138); 4. Entender que as formas espaciais são duráveis, não se desfazendo e influenciando a organização do espaço mesmo com o fim dos processos que lhes deram origem, e neste passo, factíveis de serem revivificadas pelo movimento social (idem, 1978a: 149). 5. Sublinhar que a relação entre o homem e a natureza é uma relação que produz espaço, onde a natureza transformada, socializada, é um arranjo espacial, uma natureza segunda. Em suma, o espaço é uma herança dinâmica, no qual temos uma acumulação desigual de tempos (idem, 1978a: 201 e 209). Tais deduções prestam-se sumamente para a avaliação do papel das rugosidades. Esta noção, é uma das que no cenário analítico modelado na obra de Milton Santos, congraçam história e geografia, mutação e estabilidade, sociedade e memória, tempo e espaço, acenando no plano analítico, para “o espaço construído, o tempo histórico que se transformou em paisagem, incorporado ao espaço” (SANTOS, 1978a: 138). Assim, o espaço, longe de corporificar um elemento estático é ele mesmo agente de transformação, continuidade e/ou de revivescência. Desta reflexão intui-se que as rugosidades: 2 28 Criam imposições sobre a ação presente da sociedade; são uma ‘inércia dinâmica’ - tempo incorporado na paisagem - e duram mais que o processo que as criou. São assim uma herança espacial que influi no presente. Por esta razão, o espaço é também uma instância, no sentido de ser uma estrutura fixa e, como tal, uma determinação que atua no movimento da totalidade social. As formas espaciais são resultados de processos passados, mas são também condições para processos futuros. As velhas formas são continuamente revivificadas pela produção presente, que as articula em sua lógica (MORAES, 1981: 123/124). Com base neste enfoque, contribuem em igual medida para a organização do espaço os condicionamentos oriundos das heranças espaciais do passado. Não raro, objetos e formas espaciais pretéritas, tais como monólitos, sistemas de irrigação, vias de comunicação, aglomerados de aldeias, fortificações, assim como arranjos e objetos espaciais de todo tipo, constituem a base fixa para a rearticulação ou continuidade de determinado dinamismo espacial, mantendo e quando não, gerando novos fluxos no espaço. Caberia, deste modo, compreender como este movimento se efetiva. Em coerência com esta linha de raciocínio, dificilmente um modo de produção faz tabula rasa das condições espaciais preexistentes. Comumente, a nova organização social do espaço que sucede à anterior assimila as antigas rugosidades, ressemantizando-as. Isto é, decretando um novo regime de significados para as marcas e objetos espaciais herdados do passado. Por isso mesmo, é necessário repetir que as rugosidades, “são o espaço construído, o tempo histórico que se transformou em paisagem, incorporado ao espaço” (Cf. SANTOS, 1978a: 138). 2 29 Dado subjacente a esta arguição, as formações sociais, tecendo forte concordância com o espaço com o qual interagem, logo, não podem ser desvencilhadas in abstracto deste substrato, que alicerça a personalidade social, política, cultural e histórica das sociedades. Embalados nessa dedução, temos que nenhuma sociedade poderia ser plenamente compreendida sem levar o espaço em consideração. Propugnar formações sociais expurgadas de um “piso espacial” substantivaria, em todas as letras, um equívoco. Ademais, pensar um modo de produção tão só pelo prisma do tempo, desespacializado, seria pensar um tempo abstrato, prontificado a sinonimizar diferentes formações sociais. Do mesmo modo, o espaço, sem a dimensão tempo, torna-se um espaço congelado (Vide MOREIRA,1982a: 62 e SANTOS, 1978a: 199). No que evidencia o cabimento desse ajuizado, o conceito de formação espacial é fundamental para revelar a “fisionomia concreta” das sociedades. Nesta perspectiva, poder-se-ia inventariar diversos problemas decorrentes da noção de tempo abstrato constatados nos estudos das formações histórico-sociais. Exemplificando, foi em face de communis error derivados da nãoespacialização da história é que se terminou conferindo à formação feudal, fenômeno territorialmente restrito a uma porção do continente europeu, uma universalidade que nunca teve, determinando, por exemplo, fortes controvérsias sobre o modo de produção asiático, base material de sortido conjunto de sociedades extraeuropeias (Cf. MOREIRA, 1982a: 62; ver igualmente CARDOSO, 1990a e 1990b, BARTRA, 1978 e SOFRI, 1977). 3 30 Outra atrativa lógica do pensamento de Milton Santos reside na arguta visualização dos reflexos e desdobramentos decorrentes da ordenação temporal da modernidade para a organização do espaço, cuja feição mais representativa se expressa na geografia urbana. A urbanização, um fenômeno recente, crescente e aparente na escala do planeta por inteiro, constitui tema subjacente a todos debates que pontuam a sociedade contemporânea. Confira-se que entre 1800 e 1950, a população dos terranos multiplicou-se 2,5 vezes; todavia, a população urbana multiplicou-se vinte vezes nesse mesmo período histórico (Cf. SANTOS, 1981: 3/4). Particularmente, a maximização do fenômeno urbano, prontifica tanto a tecnoesfera (espaço artificial que inclui a cidade moderna assim como o meio rural a ela submetido), quanto a psicoesfera (o reino das expectativas que norteia o espaço concreto e que a ele se antecipa), enquanto ferramentas teóricas e conceituais de primeira ordem. Assumindo hodiernamente a fisionomia de um meio técnicocientífico-informacional, a tecnoesfera tem por finalidade precípua, subsidiar os fluxos do sistema, cuja velocidade impõe um cunho de transitoriedade cada vez mais flagrante ao espaço artificial (passim SANTOS, 1998). Como não poderia deixar de ser, esta dinâmica transmuta-se nas metamorfoses do espaço habitado e no direcionamento dos fluxos espaciais, cuja intempestividade, reflete-se nos rebatimentos da ação humana no meio físico-natural. Por isso mesmo, O problema do espaço ganha, nos dias de hoje, uma dimensão que ele não havia obtido jamais antes. Em 3 31 todos os tempos, a problemática da base territorial da vida humana sempre preocupou a sociedade. Mas, nesta fase atual da história, tais preocupações redobraram, porque os problemas também se acumularam (SANTOS, 1998: 17/18). Este é o mote por excelência para a compreensão da crise socioambiental do mundo moderno. Exacerbado por uma ordenação do tempo que se confunde com a apropriação privada da natureza, eclodiu um cenário de distúrbios em cujo centro, estão as próteses urbanas e a reverberação dos seus ciclos artificiais de funcionamento. A agudização das contradições entre cultura e natureza no mundo moderno constitui um epifenômeno impartível da torção do espaçotempo, e isto, de um modo como nunca foi observado na história. No que é característico da vida social moderna, os distúrbios presenciados na atualidade são eminentemente laicos. Ao contrário do que ocorria no pretérito, não há lugar para propiciações mágicas ou explicações de índole cosmológica. Fundamentalmente, porque os transtornos derivam unicamente do saber institucionalizado. Portanto, os riscos ecológicos do mundo moderno, virtualmente secularizados, disto diferem de todas as atribulações ambientais que ocorreram no mundo tradicional. Objetivamente, a faceta fundamental da crise socioambiental da modernidade se relaciona diretamente com o conteúdo de artificialidade da sociedade moderna e com os procedimentos da civilização científica, que açulam os contratempos com o meio ambiente e com os coletivos humanos (Cf. BETTANINI, 1982: 71/72). 3 32 Exposto este ponto, outra ordem de motivações quanto à obra de Milton Santos justifica-se pela pauta deste texto indexar a questão ambiental. Que fique claro: a crise ecológica, pensada enquanto um nexo de desequilíbrios advindos diretamente de um cadenciamento social do tempo e de uma crise espacial que com ela se relaciona, encontraria uma vez mais sustentáculo na obra deste geógrafo: O exame do que significa em nossos dias o espaço habitado, deixa entrever claramente que atingimos uma situação-limite, além da qual o processo destrutivo da espécie humana pode tornar-se irreversível [...] Senhor do mundo, patrão da Natureza, o homem se utiliza do saber científico e das invenções tecnológicas sem aquele senso de medida que caracterizará as suas primeiras relações com o entorno natural. O resultado, estamos vendo, é dramático (SANTOS, 1988: 44). Concerniria asseverar que em resposta às possíveis objeções eventualmente proferidas relativamente à “ausência de preocupações ambientalistas” na obra de Milton Santos (quando não de óbices que o autor esposaria para a temática em si mesma e aos seus expoentes políticos e sociais), esta tese se fixa sobremaneira na abrangência do método e das ferramentas conceituais desenvolvidas e propostas por Santos para a compreensão da questão ambiental. No mais, como em qualquer outra questão teórico-metodológica, faculta-se proficiência ao instrumental quando seus pressupostos estão apoiados na verificação de constituírem um critério de eficácia científica, dizendo respeito à sua competência na peritagem analítica, e em especial, ao paramento de que a toda teoria verdadeira deve corresponder uma eficácia operatória real (COLLINSON, 2004). 3 33 Finalmente, os argumentos de Milton SANTOS, contribuindo para realçar os vínculos inquebrantáveis existentes entre uma humanidade socialmente organizada e o espaço habitado, destacam o afazer geográfico no centro de um debate crucial: Nas condições atuais do mundo, ainda mais que na era precedente, o espaço está destinado a desempenhar um papel importante na escravidão ou na libertação do homem (1978a: 218). Assim sendo, nossa aspiração é a de que os capítulos seguintes possam, em coerência ao estaqueamento de uma avaliação espaçotemporal e com a preocupação basilar de explicitar as implicações dos desequilíbrios ecológicos, contribuir para esclarecer e inspirar formas de resistência e de reivindicação por um outro espaço de vida, socialmente justo e ecologicamente responsável. 1.2. GEOGRAFIA, CRISE AMBIENTAL E SOCIEDADE Diz o senso comum que as situações de crise são pródigas em propiciar releituras, recomendações e proposituras. Julgando com isenção, dificilmente poder-se-ia proferir objeções a este enunciado. Sabe-se intuitivamente que o desnudamento das contradições em toda sua crueza, colocando a prova posturas estabilizadas e vivenciadas como “naturais”, inauguram a consumação mais acabada de um tipping point (ponto de inflexão), a prenunciar o desenlace do point of no return (ponto de não retorno). 3 34 Nada como os estertores que prenunciam a crise para iluminar a necessidade de revisão de condutas. No final das contas, uma vez diante da aspereza do real, como lhe negar jurisprudência para rever procedimentos? É exatamente a consciência da falibilidade que justifica, dialeticamente, a superação das desventuras, a criação de novos entendimentos, a abertura de novos caminhos e a afirmação de novas pactuações. Nesta visada, a irrupção de crises inclui tanto a possibilidade de estagnação quanto de superação. O sucesso - ou insucesso -, simplesmente advém do que se aprende dessa vivência. Seria o caso de se replicar, diante da gravidade dos problemas ambientais, que a humanidade vive momentos fulcrais que solicitam mudança de paradigma? Quero crer que sim. Mas, antes de tudo há a necessidade de se certificar que essa transformação diz respeito a concepções inseridas historicamente, refletindo determinadas noções e consensos. Tais conformidades, que não são eternas, se dissolvem ou são revistas mediante a apresentação de novos problemas, que não encontrando resposta através do paradigma anterior, terminam gradativamente mutuadas por outras, afeitas à nova circunstância histórica (passim PRICE, 1976). Numa única palavra, a elaboração de um paradigma exclui a intervenção voluntarista e firma-se no terreno das práticas sociais concretas. O progresso do conhecimento teórico, “incluindo as formas mais elevadas da atividade científica, aparecem vinculadas com as necessidades práticas dos homens” (VAZQUEZ, 1980: 245). Portanto, não é uma teoria nova que reformula ordenação dos fatos, “mas é a nova ordenação dos fatos que encerra ela mesma uma nova escala 3 35 de valores e obriga a construção de uma nova teoria” (Cf. SANTOS, 1978a: 157). No que constitui exercício árduo, mas também enriquecedor, elaborar um paradigma admite a importação de contribuições de diferentes áreas do conhecimento. Propor paradigmas exclusivistas, particulares, de uma única ciência isoladamente, seria, neste sentido, um enunciado frágil em si mesmo. A noção de paradigma ...não pode ser derivada da história particular de uma ciência ou de uma descoberta feliz de um cientista caprichoso e genial. A noção de paradigma pertence à história e se impõe ao mesmo tempo em que os movimentos históricos de fundo (SANTOS, 1978a: 160). Nesse sentido, a conjuntura vivida pela humanitas nos dias atuais fornece azos para uma meditação ímpar. A crise socioambiental da modernidade, evidenciando a problemática da continuidade da vida, coloca radicalmente esta questão, obrigando a todos meditar sobre a possibilidade de um quadro de breakdown (colapso), anunciado para ocorrer nessa mesma geração: “A história humana, tão cheia de promessas e esperanças, chegaria por si própria para nos fazer merecer outro futuro. Um futuro diferente daquele que nos parece esperar nos próximos anos” (BOOKCHIN, 1989: 45). Diante de um emaranhado de problemas caracterizados por uma incisividade ecológica jamais vista, procuraremos respostas para tais aflições nos templos do conhecimento. E, ao adotar tal atitude, não há como se deixar enganar sequer por um instante: apenas a história é 3 36 quem pode instruir sobre o significado das coisas (SANTOS, 1998: 15). Ter-se-ia então pleno direito de perquirir: No que os saberes institucionalizados poderão contribuir para pensar um novo espaço de vida? Poderão fornecer programas de cunho decisório? Afinal, o que existe de efetivo nos tabernáculos do saber geográfico? É nessa ótica que a geografia se torna um caminho privilegiado, pois apreciar o extraordinário acumulo de discussão amealhado pela disciplina no tocante à inserção da temática ambiental junto ao seu campo de conhecimento certamente revelaria insuficiências. Mas, do mesmo modo explicitaria muitas potencialidades que magnetizam estes dois polos entre si. Ciência que pode orgulhosamente exibir na sua hagiografia nomes como de Bernard Varenius (1628-1650), que em pleno Século XVII foi responsável pela elaboração de requintado compêndio no qual esquadrinhava o cabedal de potencialidades da disciplina frente ao mundo natural 4, a este saber intuitivamente nosso olhar se dirige na busca de conforto e de esperança. Palmilhando esse cenário, não há como deixar de indexar a geografia como um dos raros campos do conhecimento que nutriram apaixonada cumplicidade com a questão ambiental, nexo certificado por várias pesquisas, que patenteiam junto à consciência social, uma associação que destaca o meio ambiente enquanto prerrogativa do trabalho dos geógrafos e dos biólogos (Ver ALBERTO, 2002). Trata-se de Geografia Generalis, obra escrita por este genial geógrafo na juventude de uma vida muito breve. Impressionando gigantes como Newton e Kant, é considerada seminal para os primeiros passos do conhecimento geográfico (Ver a respeito, ETGES, 2000). 4 3 37 Sendo claro e direto, este afilamento não encontraria nenhuma dificuldade para ser chancelado. Ontologicamente, a geografia, tanto quanto a biologia, de vez que ambas centram-se respectivamente nas relações entre o homem e o meio natural e no estudo das formas de vida, personificam por si mesmas mediações axiomáticas com o meio ambiente. Com base nesse dado objetivo, a percepção dos elos tanto da geografia e quanto da biologia com a questão ambiental, legitimada pelo próprio modus faciendi das duas disciplinas, desponta assim de modo tão notório no imaginário social, que ambas terminam inclusive identificadas com este telos de maneira quase que exclusiva (apud ALBERTO, 2002). No caso da biologia, seria pertinente respaldar tal consideração lançando mão de uma ponderação de Samuel Murgel BRANCO, pelo qual: A relação da questão ambiental com a biologia num contexto interdisciplinar é inegável. Mais do que isso: é fundamental, no sentido de que a biologia é, por definição, a ciência que trata da vida em seu amplo sentido, enquanto a preocupação com o meio ambiente diz respeito, objetivamente, à prevenção contra a extinção da vida em geral e, em particular, da vida humana (2001: 9). Quanto à geografia, o relacionamento mantido pelos homens em sociedade com o meio natural, estas mantiveram-se diuturnamente presentes no foco de análise da disciplina. Classicamente, o afazer geográfico, expondo a interconexão entre os humanos e a natureza, sistematicamente descortinou juízos que concatenados a essa raison d'être, não tinham como ser desvendados pelos demais saberes, 3 38 cujos objetos de análise, distanciavam-se em maior ou menor grau deste foco (MORAES, 2002: 92/93). Por exemplo, o geógrafo alemão Friedrich RATZEL discernia a forte conexão entre as condições naturais e o homem em sociedade, patente na classificação ratzeliana das vertentes que entendia como matriciais para o saber geográfico: a geografia física, a biogeografia e a antropogeografia (passim 1990), estaqueamento que, ao reclamar o ambiental como pilar cognitivo, ratifica, portanto, junto à elaboração teórica ratzeliana, a natureza enquanto um mandato epistemológico pivoteante do conhecimento geográfico (MORAES, 1990: 9 e também 1981: 60). Paul Vidal de la Blache, historiador e geógrafo, figura de proa da escola francesa de geografia, sanciona, com premissas diferentes de Ratzel, a centralidade desta proposição geográfica, calcadas no que o sábio francês carimbou como possibilismo. Na herdade lablachiana, o objeto dos estudos geográficos é a relação homem-natureza avaliada no prisma da paisagem, argumentação teórica na qual o coletivo humano, entendido como agente de transformação do espaço, está ajuramentado das credenciais de fator geográfico de primeira ordem. Na fisionomia do planeta, os humanos se impõem direta ou indiretamente, por sua atuação modeladora, por suas obras e pelas consequências dos seus artefatos. A visão lablachiana, a despeito de classificar a geografia como uma ciência natural, lhe reservava, em razão do antropismo, vocação substantiva em prol do estudo da interrelação entre o homem e o ambiente natural (Ver BLACHE, 1985: 37). 3 39 Como de resto está delineado no heterogêneo tecido conceitual da geografia, seria praticamente inconcebível imaginar uma análise geográfica na qual o espaço deixasse de evocar a atuação humana no meio natural. Aqui, pode-se resgatar o desabafo do geógrafo francês Pierre GEORGE, que diagnosticava com certa indignação: “Que sentido se poderia atribuir a um estudo sintético de paisagem natural a não ser definir as condições oferecidas à vida e à ação humana pelas ações recíprocas dos fatores físicos? ” (1972: 15). Porém, a despeito da geografia convergir para a relação homemnatureza, nada do que foi colocado excluiria insuficiências conceituais no trato da questão do meio ambiente. O crescimento da consciência ambiental, tonificado pelas profanações que vitimaram o meio natural, lancetado por todo o tipo de violências e intrusões, não admite aceitar como eficaz e satisfatório, meramente enfocar a inter-relação homemnatureza. Mais do que pautar este pressuposto, o que está intrinsecamente colocado pela crise ecológica é a criação de um saber ambiental devotado a decifrar a problemática, conferindo a esta preceptoria, o papel de provedor de proposições, alternativas e respostas (passim LEFF, 2004). Nesta perspectiva, o fato da inter-relação entre as sociedades humanas e a natureza ser um elemento permanente na elaboração geográfica, não obrigatoriamente posicionou a questão ambiental como um tema de proa no seu horizonte de análises. E contrariando a interpretação apressada de alguns, tal lacuna não resultou de uma 4 40 motivação de ordem exclusivamente cronológica, decorrente de um “ineditismo” dos problemas ecológicos. Na realidade, o conjunto de prédicas inseridas pela problemática ambiental, questionando ideias, valores, condutas e procedimentos que dinamizaram o mundo contemporâneo, dificilmente lhe granjearia adesões. Tampouco, qualquer facilidade para ser aceita. A questão do meio ambiente, tanto para as vertentes conservadoras quanto para as progressistas, ofereceu dificuldades em diversos sentidos para ser assimilada (Vide PIVOTTO, 2005; GONÇALVES, 2001; GUIMARÃES, 1991 e CAPRA, 1991). Certo é que não estou, nessa discussão, respaldando fabulações da questão ambiental, evocando inflexões de um naturalismo idealista desvinculado do homem enquanto entidade histórica e social. Acima de tudo porque o espaço geográfico que divisamos diante dos olhos, resultou de uma intensa agregação de trabalho humano. Seja dito, ecossistemas e biomas desembaraçados de alterações provocadas pelos humanos, simplesmente não existem (Cf. QUAINI, 1979: 49). Minha certificação suprema é o espaço, noção que encastoada num plano humanista e vinculada aos processos do coletivo social, atesta concomitantemente tanto a historicidade da natureza quanto a naturalidade da história. Portanto, esta análise não se resumiria a singelamente “levar em consideração” os ciclos naturais e seus reflexos para a vida humana. Bem mais do que discutir o equilíbrio ecológico, o que está priorizado nesta discussão é o estoicismo dos enxertos artificiais forjados pelos humanos. 4 41 Para a geografia, tendo diante de si um quadro ambiental no qual o fator determinante não é uma abstrata lei natural, mas acima de tudo um universo calcado pela materialidade social, pensar o nexo axiomático homem-natureza frente aos descompassos ecológicos derivados do modo de ser da modernidade, implicaria em optar por uma abrangência mais precisa, extensa e problematizadora. Nesta acepção, simplesmente pautar a conjuminação entre as sociedades e a natureza, além de insuficiente, seria abdicar da expectativa de encontrar respostas para a questão ambiental. Importa sobremaneira acentuar o caráter central do como a relação homemnatureza se concretiza, no que esta implica e em qual medida devese alterá-la para assegurar o futuro da sociedade humana. Ultima ratio, o que a questão ambiental ensina são os limites da natureza em um determinado contexto social, econômico e histórico. Em resumo, para cada situação vários usos da natureza são possíveis, mas não qualquer uso (Cf. GONÇALVES, 1988: 14, grifos nossos). Deste modo, a conexão da produção do espaço com os processos sociais, que se desenvolvem sob o signo da contradição entre os homens, impõe para a análise ambiental um inegável campo de interações com as determinações sociais. Decididamente, as lutas sociais do Século XIX, eclodindo em meio à ascensão do capitalismo, permitiram descortinar a existência de grupos com interesses opostos no interior da mesma sociedade. Os conflitos interclassistas, fossem estes vistos como “motores da história” (Marx e Engels), ou como “problemáticas para a ordem estabelecida” (Augusto Comte), passaram de um modo ou de outro a 4 42 reclamar as atenções dos cientistas sociais. Nos estudos geográficos, os velhos adágios que facilitavam o ocultamento ou até mesmo uma naturalização dos antagonismos presentes no seio das sociedades, cederam diante das evidências que se acumularam quanto ao caráter contraditório que perpassa pela construção do espaço, inferência para cuja detecção o conceito de formação social demonstrou notável protagonismo (Vide MAMIGONIAN, 1997 e 1996). Todavia, a contestação ao saber geográfico tradicional enfrentou resistências incrustadas no coração da disciplina. Recorde-se que a geografia tradicional, cuja ascensão ocorreu na fase triunfal da classe burguesa, assumiu um pendor manipulatório que suplantou em muito suas potencialidades científicas. Periodicamente, o saber geográfico terminou arregimentado como uma arma ideológica a serviço das classes dominantes ou então, acoplado à engrenagem da máquina de mando e da propaganda nacionalista dos governos. Com este leitmotiv em pauta, dificilmente seria possível estranhar o empenho da geografia pelo mascaramento das contradições na análise do espaço, colocando-a a serviço do exercício do poder, da condução da guerra e da atuação do aparato de Estado, acumulando enfoques anódinos que desta maneira, ampararam e protegeram a ordem político-social que a sustentava (GONÇALVES, 2001; QUAINI, 1979: 11/14; SANTOS, 1978a: 78/80 e LACOSTE, 1977). Estes posicionamentos repercutem diretamente quando o tema em debate é o ambiental. Pode-se perceber que embora a crise ecológica tenha se alçado, dada a sua gravidade, a um assunto do cotidiano, o relacionamento entre meio ambiente e organização social 4 43 continuou obscuro na literatura escolar, nos meios de comunicação e na fala institucional em geral. Posto isto, sequencialmente à abordagem dos problemas físicoambientais, de resto inevitável diante da escalada da devastação, o esforço em não diferenciar os atores imiscuídos à crise ecológica (ocultando deste modo a compreensão do problema), se evidencia em si mesma. É o que permite discernir, na galeria dos responsáveis anônimos da destruição do ambiente natural, atores e fatores como “o homem”, “a ganância”, “o egoísmo”, “a atividade industrial” e até mesmo um “instinto predatório”, este último, objeto de inscrição, por correntes da etologia e da teologia, como “inerente” à humanidade (WALDMAN et GARCIA, 1991a e 1991b). Estas argumentações, dado constituírem peças com propensão nitidamente ideológica, não visam interpretar a questão ambiental, nem mais, nem melhor, excluída a priori do plano de entendimento. Basicamente porque estas interpretações, em vista de encamparem argumentos mistificadores, actus simulatus nullius est momenti, não expressam, propriamente uma teoria, mas sim seu oposto. Como toda obstrução do entendimento do real, a pretensão é antes a construção de um retrato invertido, através do qual, as coisas passam a receber um significado que efetivamente não possuem, confundindo, e não esclarecendo as referências da realidade concreta que nos cerca (Ver a respeito ALTHUSSER, 1980: 69/104; SANTOS, 1978a: 157 e CUVILLIER, 1975: 19/30). 4 44 Replicada pelo campo educacional, pela comunicação de massa, por órgãos institucionais e empresariais, esta peça mistificadora da degradação ambiental lançou raízes na compreensão do cidadão comum quanto à crise ambiental. Neste consenso fabricado, a crise ecológica, ao endossar uma conceituação de humanidade anódina e genérica enquanto marco explicativo geral, fez com que o status quo ficasse isento de qualquer associação com o problema. Dado que nessa interpretação estamos diante de uma narrativa de cunho abrangente, e neste cabimento, “universal”, nada haveria de impedir que as grandes empresas, responsáveis por considerável devastação do meio ambiente, encabeçassem campanhas de defesa da natureza, pelo que, esta diegese mostrou-se proveitosa em blindar o establishment de críticas, paradoxalmente com base em pretensas ações de conservação ecológica. Exatamente por essa razão, seminal consideração do geógrafo Carlos Walter Porto Gonçalves nos anos 1980, apontava para o nódulo central dessa questão. De acordo com sua ponderação, seria preciso: Ir além daquela formulação tão em voga nos movimentos ecológicos de que os homens estão destruindo a natureza. Se um trabalhador opera uma serra elétrica que derruba milhares de árvores em algumas horas, não se pode responsabilizá-lo por esse ato sem que enfoquemos as relações sociais sob as quais vive (GONÇALVES, 1982: 223, grifos nossos). Entrementes, é claro que a análise da sociedade em si mesma, mesmo sendo crucial para a discussão do meio ambiente, não esgota 4 45 a compreensão da crise ecológica. Dada sua complexidade, nos problemas ambientais se entrecruzam, ombro a ombro à problemática da sociedade, aspectos relacionados com conhecimentos técnicos e científicos, com a gestão estatal, normas estéticas, valores culturais, sensos políticos e padrões econômicos. Essas derivações, ainda que dinamizadas por arrazoados diferenciados entre si e mesmo não sendo dicotômicas, reclamam rigor e diligência para com os múltiplos aspectos levantados, visto serem indistintamente centrais para esta discussão. Claro também é que nas próprias formulações marxistas “sempre se fala primeiramente da relação do homem trabalhando socialmente a natureza e somente depois da relação dos homens entre si” (Cf. WITTFOGEL, 1992: 80). Dito de modo claro e sintético: a oposição entre o homem e o meio natural detém precedência. Logo, não seria despropositado reclamar a proeminência desta formulação numa época em que se assiste, de um modo jamais visto, uma acelerada desaparição das grandes emanações da naturalidade. Ao mesmo tempo, nada disso contradiz uma premissa essencial da história dos humanos que é a potestade do dinamismo societário e sua capacidade de imprimir mudanças no mundo real. É esta a força habilitada a mudar o rumo dos acontecimentos, inaugurando o reino do inédito: Fluindo na direção da morte, a vida do homem arrastaria, consigo, inevitavelmente, todas as coisas humanas para a ruína e a destruição, se não fosse a faculdade humana de interrompê-las e iniciar algo novo, faculdade inerente à ação como perene advertência de que os homens, 4 46 embora devam morrer, não nascem para morrer, mas para começar (Hanna Arendt, citada in DIÓGENES, 1992: 8). Nesta argumentação, deve-se recordar que o aprendizado que frutificou do relacionamento objetivo com o mundo real contribuiu no passado, para gerar dos mais edificantes experimentos encetados na rica trajetória de resistência dos povos e da insurgência dos grupos oprimidos. Hodiernamente, a reconsideração dos regimes de sentido que seduzem o imaginário das coletividades admite, neste desenho, o fomento de visões alternativas de mundo, endossando expectativas e ideias que clamam por ação e emoção. Preciosos como a naturalidade que se esvai e se despede deste mundo a passos de gigante, são esses atos que poderão, quem sabe, alavancar precauções, paliativos e medidas agilizadas somente a título excepcional pela ordem dominante. É assim que esta época, tão prenhe de vicissitudes quanto de novos projetos, pode prenunciar momentos novos, inaugurando um período de possibilidades sem precedentes, prenunciando um tempo novo, correspondido por um novo espaço. Tarefa que continua requerendo a necessária e bem-vinda participação da geografia, uma dádiva que este texto pretende, nas limitações e alcances colocados pelo tema adotado, modestamente contribuir. 4 47 CAPÍTULO 2 CIRCUITOS, TENSÕES E AMPLITUDES 2.1. ESPAÇO, SUSTENTABILIDADE E OS DESAFIOS DA NATUREZA HOSTIL Entender a relação entre o homem e a natureza pressupõe a compreensão de um leque significativo de interconexões, nas quais se interpenetram estruturas sociais, culturais, políticas e econômicas. Sobretudo, subentende que a produção do espaço pelo homem em sociedade implica, moto-contínuo, num relacionamento específico com o meio natural, marco da identidade social, cultural, histórica e geográfica dos humanos. A relação com o meio natural está indelevelmente retratada na arena territorial esculturada, singularizada e mantida pelas formações socioespaciais. As sociedades, na sua perpétua predisposição em modelar o meio natural, se assenhorearam dos circuitos físicos e biológicos dos ecossistemas, exibindo na paisagem criada, diferentes “metabolismos” representativos do engajamento estabelecido através da artificialização da natureza. Sobejamente, estes atos conscientes, levados a efeito visando a edificação do artifício seriam, por definição, um predicado solene do homo faber. Tal peculiaridade constitui seu mais resoluto monopólio, marco divisório essencial na diferenciação frente aos demais seres vivos: 4 48 O animal apenas utiliza a natureza, nela produzindo modificações somente por sua presença; o homem a submete, colocando-a a serviço de seus fins determinados, imprimindo-lhe as modificações que julga necessárias, isto é, domina a natureza. E esta é a diferença essencial e decisiva entre o homem e os demais animais (ENGELS, 1979: 223). A intervenção das sociedades junto aos fluxos e ciclos do meio natural, na dependência dos desígnios sociais em voga, articula um contratualismo com as forças da natureza, conotado pela criação de arranjos espaciais aquinhoados com maior ou menor perdurabilidade, um desdobramento direto dos seus compromissos ambientais (Vide. QUAINI, 1979: 141/142). Para utilizar uma expressão muito em voga nos dias de hoje, no transcorrer da história as sociedades colocaram a prova graus variáveis de “sustentabilidade ecológica”, articulando processos espaciais que levaram à continuidade ou desaparecimento das culturas e das civilizações. Implicitamente, essa evidência repudia a presumida possibilidade de sociedades cotejadas por uma “simbiose com a natureza”. Tal suposição, alicerçada a partir de uma quimérica noção “equilíbrio”, tem sido consistentemente rejeitada com base nos mais diversos argumentos científicos. Adverte o físico russo Ilya PRIGOGINE, “um sistema em equilíbrio não tem, e nem pode ter história: apenas pode persistir no seu estado, no qual as flutuações são nulas” (1991: 42). De resto, esta aspiração sequer encontra respaldo em provas arqueológicas ou de qualquer outro tipo. Na realidade, o entorno natural foi transformado desde a entrada em cena dos primeiros humanos, que encetaram, premeditadamente 4 49 ou não, mudanças no ambiente terrestre. Certamente, a fisionomia de uma chusma de espaços, catalogados como pertencentes ao “reino natural”, seria irreconhecível na ausência do trabalho sedimentado por sucessivas comunidades humanas. Um convincente memorial de pistas e documentos respalda o juízo pelo qual as paisagens usualmente definidas por cartógrafos, biólogos e biogeógrafos como “naturais”, correspondem na realidade, a espaços extensivamente manipulados pelos humanos, nos quais o papel transformador das populações tradicionais foi, desde sempre, permanente e categórico (CARVALHO, 2000 e DIEGUES, 1994). Este diagnóstico dos espaços tradicionais como sendo “naturais” decorreu das veleidades da idiossincrasia ocidental, que posicionou como válida apenas a sua modalidade de transformação do meio natural. Consequentemente, recusou-se a conceder legitimidade para quaisquer acepções de ocupação do espaço geográfico longamente inventariadas pelas coletividades externas ao continente europeu. O pensamento ocidental, operando uma noção de natureza em estado puro e sugerindo o congelamento de dada situação ecológica, declinou de analisar as paisagens artificializadas pelos povos nãoocidentais com base nos anseios inerentes ao modo de ser dessas populações. Coerentemente, legendou como “naturais” as superfícies constitutivas dos espaços tradicionais, quaisquer que fossem, pelo que, em todos os continentes (inclusive o europeu), territórios inteiros, supostamente devotados para um não-uso, foram considerados “vazios” e, portanto, parte da natureza. 5 50 Uma vez constituindo interpretação carente de sentido, pode-se asseverar que a naturalidade foi alvo de uma intensa e contínua artificialização pelo conjunto das sociedades humanas, cada uma das quais imprimindo sua feição ao espaço. Os humanos, interagindo com o meio natural, e impulsionados por diferentes expectações históricosociais, sempre tiveram no espaço o suporte privilegiado dos seus anseios, diferindo caso a caso consoante o livre curso de sua história. Assim, independentemente da essencialidade de um pivot sinalizando para o natural para definir o meio ambiente, é na pertença decisiva da história que a natureza se afirma diante do coletivo humano (Ver entre outros DIEGUES, 1994 e CARVALHO, 1991). Acumulando sucessivas decantações de tempos pretéritos, o espaço geográfico evoca uma metamorfose incessante, uma mutação reveladora dos contratos assumidos com o dinamismo socioespacial. Portanto, a espaço habitado refere-se ao espelhamento concreto da transformação da natureza primeira, estando umbilicalmente atado aos apelos e demandas das sociedades. Recorrendo ao axioma do filósofo grego Heráclito de Éfeso, pelo qual não se atravessa um mesmo rio por duas vezes 5, o espaço, usufruindo da potencialidade de adquirir novas feições, tem na sua plasticidade, um celebrado eixo de teorizações e dos estudos em geografia. A natureza, sendo passível de arranjos e reacomodações, ajustes e metamorfoses, apropriações e reconvenções, justifica sua conceituação como entidade socialmente construída, culturalmente vivenciada, historicamente configurada e espacialmente explicitada. Note-se que tal juízo não é privativo deste filósofo, pois para o conjunto dos seus predecessores pré-socráticos, a mudança é vista como sendo incessante e universal (Cf. COLLINSON, 2004: 22). 5 5 51 Neste porte, uma vez que o modus operandi do espaço habitado materializa dinamismos apoiados no binômio espaço-tempo e que corporificam concomitantemente uma ordenação social dos ciclos de matéria e energia, seria incongruente desconectar as crises espaciais dos desequilíbrios ambientais que pari passu, contracenam com ela. Na reflexão do geógrafo Antonio Carlos Robert MORAES, “o ambiental não se homogeneíza num só alvo de ação, antes se difunde como faceta inerente a todo ato de produzir espaço” (2002: 30). Neste prisma, natureza e espaço não intercambiam somente um pleito de cumplicidade. Bem mais do que isso, convivem na condição de sinônimos (SANTOS, 1978a: 201). Logo, fenômenos como a fome, abundância, secas, epidemias, bonança, derrocada ou a continuidade das civilizações, constituem injunções focadas no que coabita em seu cerne: as relações mantidas entre o homem e o meio natural. Coincidindo com transtornos espaciais e síncopes ambientais, a hecatombe das civilizações assombrou a consciência social em todas as épocas e em todos os continentes. Na maioria das sociedades do mundo tradicional, a ruptura da unidade (diga-se: da espacialidade), traduzia-se pela imagem do caos, da desordem, de crises espaciais e ecológicas que punham a perder os fluxos socialmente apropriados de matéria e de energia. A contraposição arquetípica entre o cosmo (território habitado) e o caos (território estranho e/ou desconhecido), peculiar ao mundo da tradição (Cf. BETTANINI, 1982: 86/88), tinha na ruptura do espaço um momento marcado pelo triunfo da desordem. Era o fim do mundo, tão visceralmente pressagiado nas invectivas dos magos, dos sacerdotes e dos profetas vindicadores. 5 52 Distintamente, os impérios baseados na formação social asiática travavam uma guerra sem quartel contra a “abominação do caos” e as “forças do abismo”. No antigo oriente, tão somente um criativo gerenciamento das potencialidades naturais, apoiado numa base técnica que primava pela rusticidade, poderia conter o esgarçamento do arranjo espacial. Daí a administração dos serviços ecossistêmicos numa linha de perdurabilidade, a reposição da fertilidade dos solos e os equilíbrios hidrotécnicos pautados pelo monitoramento dos canais de irrigação, constituírem alvo prioritário do Estado oriental. Bem mais do que um “compromisso ambiental” ou de uma idílica “preocupação ecológica”, o zelo das realezas asiáticas pela integridade do espaço tinha por pressuposto que bons ou maus governos seriam revelados pelas colheitas, cujo desempenho, quando insatisfatório, era matricial para a eclosão de “tempestades no céu oriental”, confirmando ou não o benefício de um mandato celestial outorgado por deuses severos e irascíveis à monarquia então reinante (MARX, 1976: 22). Deste modo, em termos mais amplos vigora o auspício de que uma civilização se esgota quando não mais consegue viabilizar o “retrato ecológico” com o qual está identificada. Por conseguinte, a superação de um sistema social remete diretamente ao esgotamento das possibilidades de reprodução de um tempo social, do epílogo de um arranjo territorial e pela exaustão de um balanço energético. Uma vez inviabilizado o manejo dos fluxos de energia por parte do sistema dominante, isto necessariamente conduz à “extinção ou superação do modo de produção existente” (GUGLIELMO, 1991: 68). 5 53 Neste quesito, a discrepância identificada entre as sociedades de outrora e a sociedade moderna é patente. Outrora a construção do espaço prescrevia uma presença constante da naturalidade. As grandes marcas ou obras sociais que demarcavam a implantação do artifício (tais como canais, estradas ou diques), demandavam por conteúdos de naturalidade, permitindo a vazão dos fluxos do meio ambiente ou então, sua contenção dentro de limites de certo modo fluídos, que oscilavam ao sabor dos humores ecológicos. Deste modo, incorrendo amiúde em manejos de pequena monta da paisagem original, os sítios urbanos e as estradas acomodavamse nas nervuras da topografia e no gradiente altimétrico da paisagem; os canais de irrigação, adotavam como espinha dorsal o talhe de um rio copioso, valendo-se da ação da gravidade na toposequência dos banhados antrópicos; os diques, valorizavam os desníveis naturais da topografia e os reservatórios, eram planejados tendo sempre à vista, a oscilação do débito fluvial e a sazonalidade da pluviometria. Mesmo os mais ousados objetos espaciais implementados pelas civilizações do passado constituíam próteses assentadas num tecido natural, sendo que tais adições não necessariamente conflitavam com os fluxos da natureza. Fosse atuando nas franjas de um ecossistema (caça, pesca, coleta), ou ainda, através da socialização dos grandes ciclos presentes no ambiente natural (caso, por exemplo, do “controle despótico” da água no modo de produção asiático), os processos de territorialização detinham-se na charneira das manifestações maiores das dinâmicas temporais e espaciais do meio natural, espaldados na espessura úmida da naturalidade, acentuando um “colorido ecológico” hoje festejado pelos movimentos em defesa da natureza. 5 54 Ressaltemos que de um modo ou de outro, a instauração do artifício nas sociedades de outrora requisitava algum tipo de colóquio com o meio natural, engendrando uma naturalidade da metamorfose indissociável dos arranjos espaciais da antiguidade. Este precatório fazia com que o epílogo das civilizações “arcaicas” não induzisse necessariamente a esterilização das volições da wilderness. Pelo contrário, episódios recorrentes desvelam que a Zusammenbruch der Zivilisation (isto é: colapso ou hecatombe civilizatória), podia resenhar um prólogo prescrevendo um momento ambiental inédito, através do qual a reorganização do espaço apelava para o aproveitamento de outros patamares ecológicos, assumidos agora enquanto um novo ambiente de vida para as sociedades (Vide DIAMOND, 2005). Entrementes, este contexto se altera severamente no mundo contemporâneo. A expansão da sociedade moderna, tendo por base o capitalismo e a instauração de paradigmas que acirraram a oposição entre o homem e o meio natural, materializou um quadro sem paralelo de desequilíbrios. O triunfo da civilização ocidental, perpassado pela ideação de que a economia seria o pressuposto para a “libertação do homem da natureza”, exteriorizou-se numa “vitória” acompanhada de distúrbios socioambientais simplesmente impensáveis. O resultado deste êxito, foi a aparição de um quadro perturbador, no qual “as condições ambientais são ultrajadas, com agravos à saúde física e mental das populações. Deixamos de entrever a natureza amiga e criamos a natureza hostil” (SANTOS, 1988: 43). A eclosão deste cenário, tendo por cadenciamento um extensivo desfile de distúrbios resultantes do relacionamento institucionalizado pelo Ocidente para com a natureza, destaca a questão ambiental na 5 55 condição de reflexão-chave para qualquer campo do saber, inclusive para os círculos de conhecimento alheios a uma apreciação técnica ou científica em seu lato sensu. Este seria o caso da teologia, que passou a endereçar ao meio ambiente, carga ponderável de debates, assim como vertentes da gnose jurídica e das relações internacionais, que até pouco tempo, ignoravam o meio ambiente. Decididamente, a questão ambiental, tornando-se indissociável da bagagem conceitual do mundo contemporâneo, trouxe toda sorte de desafios, em particular pelo caráter premente que caracterizam seus sintomas, agravos e epifenômenos. É o que deixa transparecer o duro comentário do filósofo norte-americano Murray BOOKCHIN: A civilização, tal como hoje a conhecemos, com sua história e mitologia próprias, é ainda mais muda que a própria natureza que pretende interpretar, é ainda mais cega e elementar que as forças que ela pretende controlar. Esta civilização vive na oposição permanente com tudo que a rodeia a até consigo própria. As suas cidades anormais e desventradas, as suas terras mortas, seu ar envenenado, o seu espírito mercantil e estreito são o repertório cotidiano da sua imoralidade e da sua indiferença (1989: 45). Para a geografia, a proeminência dessa composição incentivou, acelerou ou colocou em xeque, determinadas tendências endógenas à disciplina. Ainda que as inter-relações entre natureza e sociedade sempre estivessem presentes no seu foco de análise (na verdade, uma vocação cultivada desde os tempos clássicos da disciplina), este filão não foi, todavia, internamente contemplado com a atenção que o público não-acadêmico credencia como inerente ao saber geográfico. 5 56 Abrigando tendências díspares quanto à questão ambiental, faria sentido relatar, por exemplo, que enquanto geógrafos brasileiros da área física se enveredavam ativamente nas discussões sobre meio ambiente, a geografia humana manteve-se cautelosamente ausente deste debate, no qual, condiscípulos da antropologia, sociologia e da economia, dentre as disciplinas correlatas, se embrenharam de modo determinado (Cf. MAMIGONIAN, 1982 e 1997: 1/2 e COIMBRA, 2002: 279 e 284). Porém, a emergência da crise socioambiental batendo à porta do mundo moderno, alterou a agenda de especulações da disciplina. As performances da natureza hostil, as dificuldades encontradas para a viabilização do way of life da sociedade moderna e a necessidade de reavaliação dos paradigmas correntes de relação o homem e o meio natural, dentre outras oclusões, ditaram desafios para a geografia. Inevitável enfatizar, a crise ambiental advoga outra roupagem para a crise espacial da modernidade, perpassada por curtos-circuitos que nada mais reproduzem do que as dicotomias implantadas nas relações entre os humanos e a natureza (passim SANTOS, 1978a e 1988). Enquanto tal, estes espasmos do sistema de engenharia que estorvam o desempenho do espaço da modernidade, externalizam a progressiva inoperância e o caráter destrutivo do modelo civilizatório em vigor, qual seja, sua insustentabilidade. Neste sentido, uma ponderação amplificada pela crise do meio ambiente diria respeito ao tempo nos inelutáveis compromissos que este mantém com o espaço. Na análise da questão ambiental, hoje vista como empapada por um sedutor geographic flavour, um fator 5 57 crucial é que a sociedade ocidental constituiu a primeira formação social junto a qual, a dimensão do tempo foi alçada à hegemonia, desenlace que se confunde com os enunciados que nortearam a economia de mercado desde seu surgimento. No capitalismo, o ritmo da fruição do tempo, cujo encorpamento materializou-se primeiramente em solo europeu, angariou amparo substantivo na sobreposição desarmoniosa com o tempo dos ciclos naturais, dos humanos e dos regramentos da temporalidade que vicejavam nas sociedades tradicionais, indistintamente percebidos enquanto obstáculos para a implantação dos ritmos e sequências da temporalidade moderna. A ordenação do tempo no espaço da modernidade maximaliza uma contradição com os ecossistemas, cuja mola mestra imanente é o desencaixe do tempo para com o espaço (passim GIDDENS, 1991). Assim, este tempo soberano, auferindo autonomia e à testa dos processos sociais, culturais, políticos e econômicos, imediatamente subordinou o espaço sob seu tacão, tanto o natural quanto aquele resultante da sua hegemonia. No que se refere à artificialidade, a reconstrução permanente do espaço no mundo contemporâneo, uma das suas marcas mais gritantes, expressa um dinamismo autofágico do sistema, agilizado por num desequilíbrio ecológico estrutural, uma circunstância indispensável para que a acepção de tempo autonômico perpetuasse seu império sobre a humanidade. Dada a relação de similaridade axial que articula a temporalidade ocidental moderna com a degradação da natureza e a imposição do 5 58 seu cadenciamento junto a vasta maioria dos humanos, é possível, a partir desta correlação, firmar o caráter igualmente correlato da torção do espaço-tempo social com a de dois outros estratos, quais sejam, o da natureza e dos humanos si mesmos. Dos bastidores desta torção generalizada, projeta-se a lógica funcional atinente à desconexão, desacoplamento, descolamento, desencaixe ou desajuste entre o tempo e o espaço, basilar para a compreensão do esgarçamento dos equilíbrios sociais, econômicos, culturais, políticos e naturais que hoje fissuram a modernidade. Ora, tais considerações trazem à baila um questionamento seminal, direcionado a respeito da forma de como conviria à geografia pensar a dimensão tempo. Recordando que na ótica que norteou a elaboração do conceito de formação espacial a transformação do tempo em espaço assume importância capital, faria sentido revisitar tal discernimento metodológico na memorável tecedura traçada pelo saudoso geógrafo Armando Corrêa da SILVA: Desse modo, a principal categoria do pensamento geográfico é o espaço e similarmente, por exemplo, ao tempo para a história. Contudo, o tempo interessa ao geógrafo, não tanto como sequência cronológica e significativa de eventos, mas do ponto de vista de como o espaço natural e o ocupado pelo homem estão organizados e estruturados em cada momento. Do ponto de vista do pesquisador, podem interessar, em particular, os momentos - da história natural e da história humana por assim dizer, críticos, de organização espontânea ou racional do espaço (1978: 82, grifos nossos). 5 59 Nesta ordem de preocupações, caberia à geografia responder a três interrogações básicas. A primeira delas refere-se à origem da crise espacial da modernidade. Uma segunda, diria respeito ao seu dimensionamento nas diversas escalas nas quais se explicita. Por último, teríamos uma indagação eivada por um senso propositivo, nem que unicamente para delinear as limitações colocadas pelo modelo civilizacional que comanda a humanidade. Na órbita destas três especulações, o conceito de formação socioespacial, ao lidar com as dimensões do tempo e do espaço, desponta enquanto uma versátil ferramenta de análise, mais ainda quando estamos às voltas com uma contribuição eminentemente geográfica para este debate (MAMIGONIAN, 1997 e 1996). O momento atual sugere a elaboração de um novo modo de relação com o meio natural, que repense o tempo, o espaço e a natureza na perspectiva de uma humanidade socialmente organizada e solidariamente comprometida. Sugere enfim um novo espaço de vida, cuja edificação transmuta-se mais e mais como uma prioridade inquestionável para o coletivo humano, quer disto tenha ciência ou não. Portanto, a formulação de um cenário alternativo deve caminhar numa direção oposta à temporalidade contemporânea, contrapondo ao artificial, o reforço da conservação da natureza, balanço no qual a historicidade da natureza, concerne ao ritmado da naturalidade da história. 6 60 A cientista política Lorraine ELLIOTT advertiu no final dos anos 1990, que o Século XXI poderia consumar uma espécie de ponto de não retorno ambiental. Portanto, devemos neste momento encetar opções corretas (1998: 253). E, que a análise ora em curso possa contribuir para alargar a consciência da gravidade do momento que se vive, com a finalidade única de superá-lo e promover uma nova perspectiva de futuro. 2.2. O CURSO DAS ÁGUAS E O DOMÍNIO DA CIDADE Uma observação da qual não poderia furtar-me é o fato da tese que estou expondo operar com dois marcos cuja inserção no mundo atual, impõem demarcações e averbações de cunho radical. Um destes, corresponde à cidade, espaço primevo no qual nidificou e se agigantou a moderna civilização ocidental. O outro seria a água, o mais indispensável de todos os recursos encontrados na natureza. Trabalhando com essas duas polaridades, dificilmente se poderia escapar da certificação de um itinerário crivado de questionamentos e controvérsias. Isto porque os dois temários - a água e a cidade - têm por pano de fundo, expressivos desequilíbrios socioambientais, que prognosticados em muitas projeções futuristas, se consubstanciam como dos mais corrosivos de toda a história humana, açulados que estão por um ordenamento social do tempo despido de qualquer outra meta que não a afirmação da sua materialidade disfuncional. 6 61 O acirramento das contradições entre a vida urbana e a utilização dos recursos hídricos, hoje dispostos numa rota de franca colisão, constitui a saliência mais dilacerante da cornucópia de desprazeres, embaraços e inquietações gestados pelas obstruções ambientais da modernidade. Reconhecidamente não há nenhuma questão que diga respeito a parcela tão expressiva da humanidade e que em paralelo, esteja concatenada a uma substância tão imprescindível para a vida. Todavia, é necessário recordar que as palavras água e cidade, em razão da densa conotação simbólica que perpassa por ambas, sugerem uma carga afetiva que de certo modo, as descolam da gravidade com que foram revestidas pelo mundo moderno. Raros são os termos que suscitam imagens de plenitude, resgatam emoções ou ensejam motivações existenciais tão envolventes. Isto significa que no âmago sensível dos humanos habitam outras aspirações, cujas declinações procuraremos apurar neste trabalho. Reservando um primeiro momento para discorrer sobre a água, assinale-se que ao líquido foram imputados os mais cativantes dos simbolismos. Nas coletividades tradicionais, é visível a constância que cerca a água no imaginário religioso, nos rituais e concepções que regravam sua injunção no pensamento cultural das sociedades. O filósofo, mitólogo e antropólogo romeno Mircea Eliade, baseado em consistentes estudos comparativos das culturas do passado, propôs atribuir ao líquido, em razão de um entendimento comum a todos os povos, uma simbologia universal. Esta seria a tradição das águas primordiais, constatada em numerosas linhagens das cosmogonias arcaicas e primitivas (Vide ELIADE, 2000: 5). 6 62 Nesta derivação, a água, ao afirmar-se como origem do mundo habitado e enquanto argumento fundante das manifestações da vida, jamais é considerada uma substância inerte. Pelo contrário, as águas são sempre germinativas, encerrando em sua unidade primordial não fragmentada, a nobreza de todas as formas existentes. Simbolizando a totalidade das virtudes, a água constitui um elemento primordial, da qual nascem todas as matrizes e arquétipos, e para a qual, estes retornam, por regressão ou cataclismo. Tal percepção cósmica do líquido animou as noções de antanho sobre a geografia terrestre, marcando presença nas representações cartográficas, cosmográficas e em farta elaboração cosmológica e modelos imagéticos (Vide ELIADE, 2000: 3/5 e SILVA, 1998: 19/25). Ad exhibendum, nas representações do mundo elaboradas pelos mesopotâmicos (Suméria, Caldeia, Babilônia), as terras emersas são circundadas por águas salgadas, e na Grécia, assim ocorre na imago mundi retratada pela Ilíada e a Odisseia de Homero. Nesta, as terras conhecidas pelos helenos, abarcando a bacia do Mediterrâneo, eram cingidas pelo Oceanus (na mitologia grega, origem de todas as águas da Terra), massa oceânica única aconchegando o mundo conhecido. Tal concepção reaparece em proposições do geógrafo grego Hecateu (circa 157 a.C.), para o qual, a Terra seria um disco flutuante cercado por um oceano sem fim. Por sua vez reencontra-se essa visão no pensamento hebraico. Em Bereshit, o livro massorético da criação (também conhecido como Gênesis), a instauração da criação ocorre através da diferenciação das águas eternas que preenchem o 6 63 universo 6, incluindo os céus, que para os antigos hebreus (assim como para outros povos do antigo Oriente), não era composto de ar, mas sim, por água 7. Quanto aos rios, escoando o fluxo de uma substância eivada de significados cósmicos, igualmente foram adereçados com atribuições simbólicas. Exemplificando, o curso do rio Meandro, situado na antiga Ásia Menor helênica (hoje rio Büyük Menderes, Turquia), miticamente identificado como filho de Oceanus e de Thetys (uma das cinquenta nereiades, charmosas ninfas do mar, filhas do deus marinho Nereus), era uma dádiva sagrada para os gregos jônicos. As crenças de Mileto, cidade localizada próxima da foz deste rio, referendavam que usufruir ritualmente das águas deste rio, poderia garantir a vida eterna. Além do honrado líquido que escoava em seu leito, as sinuosidades deste rio (origem da terminologia meandros, de largo uso entre geólogos e geomorfólogos), foram sacralizadas. Suas curvas graciosas, vadeando de um lado para outro, talhando vales e dando forma final à Baía de Mileto, eram consideradas símbolos da benevolência fluvial, sendo analogamente veneradas pelos frígios da Anatólia (SILVA, 1998: 22). Esse apanhado de liturgias louvando a essencialidade de um cosmos aquático, reflete a importância das águas para os processos vitais de continuidade da vida, uma consideração, aliás, amplamente 6 No primeiro versículo da gesta de origem, o Yom Echad (‫יום אחד‬: dia primeiro ou mais corretamente, dia um), podemos conferir baseados na tradução hebraicizante do poeta Haroldo de CAMPOS: 1. Nocomeçar Deus criando: o fogoágua e a terra; 2. Eaterra era lodo torvo, Eatreva sobre orostodoabismo, Eosopro-Deus revoa sobre orostodágua (1984). 7 Significativamente a palavra hebraica para o céu, Shamaim (‫ )שמים‬é uma contração de Shem e Maim, isto é, Deus e Água (Cf. BEREZIN, 1995: 640) 6 64 respaldada em fundamentos objetivos. A água perfaz nove décimos do volume total do corpo humano e cerca de dois terços de seu peso médio. Um ser humano pode deixar de comer por algumas semanas. Entretanto, não consegue passar mais do que dez dias sem beber (Vide RUTKOWSKI, 1999b: 5). A perpetuação da espécie humana na Terra, indissoluvelmente vinculada à presença da água, justifica o papel central que esta desempenha nas manifestações culturais e religiosas da maioria das sociedades. Quanto à cidade, seria obrigatório sublinhar a coleção de conotações fervorosas despertadas pelo conceito no ideário cultural dos povos e culturas. Prova disso é a profusão de alegorias urbanas impregnadas de sentidos utópicos, metafísicos ou inscritos na ordem do maravilhoso. No exame de Yi Fu TUAN, a cidade transcende as incertezas da vida; ela reflete a precisão, a ordem e a predição dos céus (Cf. 1980: 174). De um modo geral, a cidade transparece como sinônimo da aglutinação consagradora, antípoda da solidão que arrebata a alma humana. Logo, tal como subscritou Pierre DEFFONTAINES, a busca de companhia e de contato social constitui reconhecido fator para o surgimento dos aglomerados urbanos (Vide 2004: 131/133). Porém, a cidade não é simplesmente um sítio no qual as pessoas se concentram na busca de convívio com outros humanos. Na história da humanidade, a cidade foi o espaço que esplendidamente propiciou o despertar dos instintos criativos e a circulação do conhecimento. Reconhecidamente, foi no meio urbano, como fruto do intercâmbio e da medrança das ideias, que a civilização encontrou o seu berço. 6 65 Coerentemente, em muitas das línguas semíticas difundidas na orla do Fértil Crescente (área em que se acredita ter o urbanismo encontrado sua primeira arena geográfica, histórica e cultural), a palavra cidade compartilha raízes etimológicas com a noção de elevar e de despertar, tomar consciência do mundo concreto 8. Deste modo, longe de constituir coincidência, a antropologia elegeu a vida urbana como um dos traços mais típicos a singularizar o surgimento de um padrão civilizatório. Aliás, etimologicamente a própria palavra civilização decorre do latim civitas, isto é, cidade. Naturalmente não teria cabimento fazer uso destas pontuações para consagrar a cidade enquanto espaço isento de desacordos, a principiar pelos sociais. Uma coisa seria constatar a existência de imagens culturais e/ou metafóricas sobre a cidade, que reflexionam consensos relacionados às suas atribuições e significados simbólicos gerais. Outra coisa, seria esquecer sua sintaxe histórica. Não haveria como negar, as cidades, mesmo nos seus estágios históricos mais recuados, foram conflagradas por todo tipo de antagonismos e lutas entre castas, estamentos e classes sociais. Nesta linha de raciocínio, é interessante assinalar a centralidade da noção de conflito para pensar o surgimento da cidade no tempo e no espaço. Na ótica do processo de diferenciação social, a filiação da cidade com as mudanças ocorridas na economia agrícola comunal, natural ou autossuficiente, é patente. 8 Trata-se de raiz semítica que é origem da palavra hebraica ir (‫)עיר‬: ִ cidade, vila ou aldeia (Cf. BEREZIN, 1995: 500). 6 66 Foi apenas com a produção de um excedente alimentar que a cidade passou a dispor de condições materiais para alicerçar sua existência. Secundada pela criação de instituições que asseguraram a transferência do mais-produto do trabalho agrícola para os grupos dominantes, ficou aberto então o caminho para o surgimento da vida urbana (Vide MAMIGONIAN, 1982: 204/205 e SINGER, 2002: 7/12). Neste sentido, a origem da cidade se confunde com a eclosão da sociedade de classes, inter-relação tão enfática que não é permitido marginalizá-la, qualquer que seja o ângulo de análise. A expressão região, conforme argutamente assinalou o geógrafo francês Etienne Juillard, procede da raiz latina régis, diga-se, a área de dominação de uma realeza. Por extensão, um território gerenciado por um centro urbano, que coleta impostos e tributos (MAMIGONIAN, 1982: 205). As concentrações urbanas, onde quer que tenham sido fundadas, irrompem sob a égide das crispações socioeconômicas. Como tal, quase sempre substantivando segmentações dessimétricas com viés biestratificado, o meio urbano é deste modo referenciado numa antiga e pujante sucessão de materiais. Exemplificando, nos escritos do filósofo PLATÃO, a cidade não era uma, mas ao menos duas, ambas ferrenhas inimigas uma da outra: a dos pobres e a dos ricos (422e, 1990: 166/167, grifos nossos), logicidade ancestral que não admitiria visualizar a cidade enquanto uma entidade monolítica e tampouco, fraterna (Vide SANTOS, 2003: 172). Nesta correlação de forças, a cidade é por definição um espaço gerenciado pelas classes dominantes de uma formação social. A identificação da governança política com o meio urbano é nítida nos 6 67 anais militares dos impérios de toda a antiguidade. Toda vez que um conquistador se jacta das suas conquistas, as crônicas relatam um cipoal de saques das cidades conquistadas e a humilhação das elites derrotadas. Conquistar um país é queimar as cidades adversárias, ocupá-las e guarnecê-las com uma milícia leal ao novo governante. A cidade é sumamente a sede do poder. Tal nuança, justificaria longa série de étimos associados ao fenômeno urbano e seu universo de valores. Ora, burguês deriva do germânico burg, isto é, cidade; os adjetivos polido, o verbo polir, assim como as palavras política e polícia, derivam do grego polis, identicamente significando cidade (BRETON, 1990: 13). Assim, como se pode perceber, seria absurdo identificar no nascedouro das cidades as sementes da harmonia ou do equilíbrio. Todavia, esta inconformidade se acentuaria ainda mais para o caso das aglomerações modernas, que na modernidade, estão dilaceradas por clivagens sociais, culturais, políticas e econômicas do mais alto grau, contradições que repercutem sem desvios no espaço articulado. A cidade, que tão esperançosamente surgiu como anteparo para o florescimento das manifestações da arte, da ciência, do espírito e do refinamento, transfigurou-se sobremaneira, no espaço no qual viceja seu antônimo, seja sublinhado, a incivilidade (Vide SENNETT, 1993). Suprema manifestação da artificialidade da metamorfose, o meio urbano parece agora determinado a desmantelar as próprias pré-condições responsáveis pela sua manutenção, faina infatigável pela qual “a humanidade move-se, lenta e segura, para um fenômeno 6 68 de vampirização do espaço. A grande cidade é o centro que engole e drena os inumeráveis fluxos de circulação” (BETTANINI, 1982: 34). Nesta sequência, dificilmente encontrar-se-ia uma exposição tão flagrante da friabilidade da sociedade ocidental moderna quanto as que se divisam nas interfaces que articulam o funcionamento do meio urbano com a utilização dos recursos hídricos. Na modernidade o papel da água, em si mesmo de importância capital para os humanos, longe de perder importância, foi exacerbado ainda mais. Mormente porque a água, exteriorizando-se como quesito básico para todas as atividades, é uma substância verdadeiramente imprescindível, nuança particularmente notada no meio urbano e no aparato que o sustenta: A cultura urbano-industrial, entendendo aquelas [as águas] como recurso inesgotável, gera demandas hídricas de crescimento exponencial, obrigando a uma procura contínua por fontes hídricas, além de promover a urbanização dos corpos d’água criando novos desenhos hidrográficos interdependentes, que se sobrepõem na mesma paisagem. Qualquer função urbana - residencial, comercial ou industrial - depende prioritariamente da existência da água para atender às suas necessidades, tanto pela utilização direta, como dessedentação, quanto indireta, como a produção de energia hidráulica (Cf. RUTKOWSKI, 1999b: 16). O tempestuoso estrelato da sociedade ocidental provocou um desequilíbrio estrutural na utilização dos recursos naturais, dentre estes, os que se referem às águas. Embora o debate relacionado com os recursos hídricos esteja atualmente estampado em todos os jornais, praticamente ninguém na escala de poucas décadas atrás 6 69 anteviu a enormidade das provações que se avizinhavam ao mundo. A modernidade, vivenciando situação caracterizada por demandas hídricas em descompasso flagrante com a possibilidade destas serem atendidas, presencia a ameaça da generalização da sede. Tal situação, característica desta época, habilitou a popularização de um termo originalmente esboçado enquanto jargão específico de um cabedal técnico: estresse hídrico, conceito pioneiramente lançado no ano de 1989 pela hidróloga sueca Malin Falkenmark, um trabalho modelado pelo esforço de integrar de contribuições angariadas das ciências naturais e do campo das humanidades. Singularmente, a conceituação de estresse hídrico é bastante apropriada para explicitar a equação pela qual os recursos hídricos, em face do comprometimento da capacidade de reciclagem e de diluição dos poluentes pelo meio natural, foram colocados a uma distância cada vez maior da satisfação das necessidades humanas. Dado emblemático, a terminologia é proveniente de stress, palavra inglesa que significa pressão, esforço ou tensão, sendo neste exato sentido assumida no âmbito das geociências e das disciplinas afins (OLIVEIRA, 1995). Neste sentido, um acertado deferimento atenderia pela distinção traçada pelos especialistas entre os termos água e recurso hídrico. O primeiro refere-se ao elemento natural em si mesmo, desvinculado de todo e qualquer uso ou utilização. Por sua vez, recurso hídrico seria a consideração da água enquanto um bem utilizado pelas sociedades humanas, passível de tal finalidade. A noção de recurso hídrico não abarca a totalidade das águas presentes na Terra, pois estas não 7 70 necessariamente apresentam algum tipo de viabilidade econômica ou temperança social (Cf. REBOUÇAS, 2002a: 1). Neste contexto, seria inevitável recordar que o Brasil concentra o maior quinhão hídrico planetário, calculado em 12% de toda água doce de superfície (REBOUÇAS, 2002a: 29). O fato reunir gigantesco volume de águas atribui ao Brasil, paralelamente ao importante papel na discussão global sobre o futuro dos recursos hídricos mundiais (Cf. MARTINS, 2003), a necessidade de um posicionamento muito sério quanto à existência de regiões com carência de acesso à água doce. Esta perspectiva por si só denuncia a proeminência do enfoque socioeconômico, exaltando a associação da utilização dos serviços ecossistêmicos com as contradições que contrapõem os humanos entre si. Deste modo, sendo a geografia humana o vértice da discussão em pauta, mais do que propriamente uma análise sobre a água, este material versa sobre a problemática dos recursos hídricos. Em suma, mesmo que neste texto os aspectos gerais relativos à água sejam obviamente fundamentais, o que se está discutindo é basicamente a repercussão desta condicionalidade para as comunidades humanas. Tratando-se de um debate que emerge tendo por pano de fundo a deterioração dos corpos aquáticos por conta da intempestividade de um modelo civilizatório, será então no terreno das inferências sociais pertinentes a este padrão que esta problemática encontrará - ou não equacionamento apto a referendar a continuidade dos humanos no espaço terrestre, seja esta qual for. 7 71 Em conclusão, com base no que foi exposto, poderia relacionar aspectos diretamente envolvidos com as motivações que nortearam a confecção da tese que segue, operando como linhas de procedimento analítico e de pesquisa. Neste caminho, repudio com veemência a empáfia narcísica que seduz, muitas vezes, a confecção de trabalhos e de investigações acadêmicas, que parecem mais preocupados em realçar modismos teóricos e recortes temáticos repetitivos, do que esboçar o que seria finalidade última da ciência: registrar de modo claro a essência do que está em discussão. Seduzindo muitos intelectuais, esta propensão é criticada pelo geógrafo Armen MAMIGONIAN, para quem, a devoção em construir elaborações pretensamente calcadas no “ineditismo”, no mais das vezes somente recaindo numa discutível “especialização”, tem por resultado contumaz - crítica esta endossada em vários pontos desta tese -, eternalizar a invisibilidade dos problemas socioambientais (Cf. 1996: 205). Neste afã, dado que as matrizes, próceres e cenários foram anunciados, a pretensão implícita, portanto, não poderia ser outra que não a de agregar com esta investigação, um possível donativo para o conhecimento geográfico. Restaria então, evidenciar o que estou me propondo a desenvolver. Dessarte, seriam pontuações compulsoriamente indexadas às preocupações desta tese: 7 72 1. Avaliação detalhada da questão dos recursos hídricos: A água constitui suprimento prioritário na pauta dos recursos ambientais básicos do mundo moderno, particularmente para a grande cidade. Diversas análises apontam para uma grave situação de estresse hídrico para esta década, acentuando-se em futuro próximo, contexto que tem alavancado a comercialização da água em inúmeras escalas, envolvendo diversificado e complexo conjunto de entretons. Em tal forçante antropogênica, o saber geofísico, da distribuição natural, das estratégias e logísticas de abdução das águas doces, propiciando nitidez aos contornos da problemática, despontam como uma linha obrigatória de investigação. No plexo solar desta diretriz, o papel desempenhado pelo modelo de desenvolvimento existente, assim como das expectativas civilizatórias frente ao meio natural, junto aos quais os ordenamentos sociais do espaço e do tempo são fundamentais, acompanharão o rumo geral da discussão. 2. Avaliação dos aspectos geopolíticos pertinentes à questão dos recursos hídricos, em vista de que o recrudescimento da escassez da água por conta do aumento da demanda, da degradação ambiental e do uso perdulário do recurso, somado a um desenho urbano global que opõe as metrópoles do Norte, consumidoras por excelência de recursos hídricos, às metrópoles do Sul, também às voltas com o problema de abastecimento de água potável, articulam objetivamente a questão dos recursos hídricos com a estrutura de poder em seus inevitáveis rebatimentos nos planos internacional, nacional e local. Portanto, as contradições inscritas neste background, objetivamente matriciais em si mesmas, ocuparão espaço generoso nessa análise. 7 73 3. Avaliação do estresse hídrico nas regiões metropolitanas: A compreensão da questão dos recursos hídricos nas diferentes interfaces incorporadas por essa discussão, referenda-se pelo vínculo mantido especialmente com a questão urbana, incluindo, por exemplo, a interconexão das temáticas dos recursos hídricos com a dos resíduos sólidos e da matriz energética. O fato do Brasil potencialmente despontar como um pretendido provedor mundial de água doce, ao mesmo tempo em que reúne diversas regiões metropolitanas nas quais o abastecimento de água potável tem se mostrado notoriamente problemático, é decisivamente uma das contradições a serem discutidas neste texto. Tal é o contexto vivenciado pela Região Metropolitana de São Paulo, assim como pelo Grande ABC e a cidade de Ribeirão Pires, referências geográficas de peso nesta análise. 4. Analisar as políticas de abastecimento hídrico e seus vínculos com a questão energética: A despeito de pressupor uma utilização não-consuntiva dos recursos hídricos, isto de modo algum significa que o aproveitamento hidrelétrico no Brasil tenha se compatibilizado com as necessidades do abastecimento público de água potável. Esta ausência de articulação de políticas de gerenciamento dos recursos hídricos tem suscitado o aviltamento dos reservatórios, prejudicando o abastecimento a partir dos mananciais próximos das cidades e induzindo a contribuição de outras áreas mais distantes. É assim que, por exemplo, o Sistema Cantareira, hoje responsável pelo abastecimento de boa parte da capital paulista, foi implantado para suprir a demanda comprometida pela contaminação do reservatório 7 74 Billings, que passou a recrudescer em razão de uma estratégia de favorecimento dos interesses constituídos em função da geração de energia, consorciado aos esquemas de ocupação dos mananciais. 5. Compreender as potencialidades e os limites da atuação institucional frente a questão ambiental: Não haveria como dispensar do corpo desta análise a tematização relacionada com o plano da institucionalidade, até porque, como tal, esta se vincula objetivamente com a articulação e organização do espaço e, por conseguinte, com o gerenciamento dos recursos hídricos. Fato por vezes pouco notado, a atuação do Estado diante da questão ambiental materializa uma situação paradoxal: parte de sua engrenagem refere-se a canais institucionais de defesa ambiental, enquanto que outra parte, atua como um agente direto de devastação do meio ambiente (MORAES, 2002: 57). Além disso, mesmo quando se corporificam medidas em favor da conservação da natureza (principalmente na forma de políticas de planejamento e de ordenamento territorial), a limitação que estas demonstram diante do dinamismo espacial hegemônico é manifesta. Logo, o contexto sugere a necessidade de alertar para a fragilidade das concepções que intuem as ordenações legais como dotadas da mágica capacidade de regrar a apropriação do espaço urbano e de alterarem o cerne determinativo da ação tradicional do Estado. Nesta linha de especulações, a pressuposição é que o escopo jurídico estará reiteradamente fadado ao insucesso na eventualidade de insistir em ocultar, negar ou secundarizar uma leitura transparente 7 75 das cissiparidades sociais, em especial as que referendam a exclusão de grandes massas da população carente. Coerentemente, mais do que enfatizar a análise de decretos e de arquiteturas jurídicas, os processos reais de espacialização, passíveis de explicitar os limites das práticas e dos discursos políticos, é que serão adotados como indicadores para assegurar a compreensão do dinamismo concreto da formação socioespacial, tanto do que nele há de nevrálgico, quanto em termos de propugnar mudanças. 6. Reforçar o nexo que envolve justiça social e a defesa do meio ambiente. Em complementação ao item anterior, explicitar a limitação e a entropia de medidas e propostas, institucionais ou não, com foco na preservação ambiental, que se desdobra, na argumentação-chave que norteia esta investigação, em reiterar o referencial ecológico, sopesando numa perspectiva crítica, as estanqueidades interpostas à efetiva defesa das águas doces. Entende-se, pois que apenas neste prisma é que o exercício das legislações ambientais e do planejamento urbano poderá, até prova em contrário, se capacitar como instrumento efetivo para garantir o acesso à água doce, nexo que acena para o convite em posicionar o temário ambiental em agendas que ponderem sobre outros modos de relação com o meio natural e de organização da política, da economia e da sociedade, pensados e indicados como uma prática real, justa e ecologicamente responsável. 7 76 PARTE II MEIO URBANO, QUESTÃO AMBIENTAL E MODERNIDADE 7 77 CAPÍTULO 3 TEMPO, MODERNIDADE E NATUREZA 3.1. REPENSANDO A ECOLOGIA A PARTIR DO OIKOS Certamente, em função dos marcos que estão esboçados para este trabalho, a primeira preocupação seria alinhavar diretrizes centrais relacionadas com a conceituação de ecologia. A partir deste ponto, tendo por parâmetro nodal a modernidade, a discussão será retomada mais adiante na direção das concatenações que conjugam questão ambiental e tempo social, assim como nas implicações que este debate oferece para o conceito de meio urbano e tecnoesfera. Evidentemente, um objetivo implícito seria delinear a contribuição do enfoque geográfico nos termos de um melhor entendimento da problemática ambiental. Esta preocupação poderia ser respaldada, dentre muitos outros pronunciamentos, pelo proferido pela geógrafa portuguesa Alzira Filipe ALBERTO. Na sua opinião, a geografia é uma disciplina que subentende um projeto ambientalista, uma vez que, ao longo da sua história, “sempre se tem preocupado com as relações homem/meio” (2002). Neste particular, assinale-se que a contemporaneidade do debate relacionado ao meio ambiente imprime a esta discussão um cunho bastante instigante. Basta recordar que unicamente a partir das três últimas décadas do Século XX é que a defesa do meio natural, 7 78 envolvendo variegados segmentos sociais e de opinião, passou a inspirar pronunciamentos numa confluência planetária. Tal pregação, tomando partido em favor de uma relação equilibrada com a ecologia, corporificou-se em reivindicações advogando solução para problemas impensáveis mesmo em épocas historicamente recentes. Embora a questão ambiental estivesse potencialmente colocada desde a aurora do homem na Terra, apenas no Século XX é que esta eclodiu em toda sua magnitude. Ressalva inerente a uma avaliação com o perfil da que está sendo desenvolvida, inexiste história humana descolada de uma intervenção transformadora da natureza. Cada uma das formações socioespaciais articuladas ao longo da história constituiu expressão de uma forma específica de apropriação da natureza. Tal apropriação, numa assertiva que há muito se tornou senso comum para o conjunto das ciências sociais, “é uma condição necessária do intercâmbio material entre o homem e a natureza; é a condição natural eterna da vida humana” (MARX, 1975b: 208). Decididamente, já em longínquo passado detectam-se registros evidenciando conexão entre meio ambiente e dinamismos sociais. Além disso, na medida em que avançam as pesquisas arqueológicas, recua cada vez mais no tempo a constatação da presença do homem na Terra, e paralelamente, as provas de sua intervenção na natureza. Sumamente, os humanos provocaram alterações profundas na natureza original, acompanhadas da extinção de incontáveis espécies animais e vegetais. As pesquisas dos antropólogos, meteorologistas, biogeógrafos e historiadores, coletaram provas confirmando que as 7 79 sociedades do passado, impugnando a difusa fabulação de um antigo “paraíso perdido”, engendraram severas crises ambientais. Os desequilíbrios ecológicos que tiveram por palco a antiguidade, resultaram dos mecanismos sociais, espaciais, culturais e temporais que animavam as sociedades que nos antecederam. O declínio das civilizações antigas raramente decorreu exclusivamente da irrupção de desastres ou cataclismos naturais. Na pena do geógrafo e biólogo norte-americano Jared DIAMOND, Os povos do passado não eram maus administradores ignorantes que merecessem ser exterminados ou espoliados, nem ambientalistas conscientes que resolviam problemas que não podemos resolver hoje em dia [...] Tendiam ao sucesso ou ao fracasso, dependendo de circunstâncias similares àquelas que atualmente nos fazem tender ao sucesso ou ao fracasso (2005: 25). Seguramente, débâcles ambientais contribuem para explicar o porquê de civilizações como as da Núbia, do Ghana e do Zimbábue na África, do antigo império Maia na Mesoamérica, dos Anasazi no Oeste norte-americano e de Páscoa na Polinésia, dentre exemplos mais paradigmáticos, ingressaram numa espiral de decadência para finalmente sucumbirem de modo inarredável. O vínculo existente entre a derrocada das civilizações da aurora da história e o acirramento do relacionamento com o meio natural, pode ser rastreado através de uma profusa coletânea de mitos e relatos, nos quais os desequilíbrios ecológicos transparecem de modo inequívoco. Via de regra, estes constituíam um resultado direto da sobrecarga de tributos e do uso indevido do capital natural, gerando 8 80 as mais assombrosas prefigurações junto à consciência social (Figura 1). FIGURA 1 - A Visão do Caos no Imaginário Assírio: O mundo da antiguidade foi assoberbado por contradições próprias, que no plano do imaginário, engendravam as mais tenebrosas visões de desordem, todas com íntimas vinculações com a desarticulação da ordem ambiental existente. A desorganização associava-se quase sempre à noção de um fim de mundo, e não meramente com uma desarticulação conjuntural. Uma exemplificação de ordem imagética é a cataclísmica visão acima reproduzida, originaria da antiga assíria. Ela traduz por si mesma os aterradores sentimentos envolvidos com a noção de desordem no mundo antigo. As forças do abismo engolem num remoinho - que é uma espiral ao contrário - todas as formas de vida, tragadas irremediavelmente para o nada (Fonte: Charles James Ball, Light from the East, London: Eyre as Spottis, 1899, The Jewish Encyclopedia, página 144, Verbete Abyss; Vide também: < http://www.jewishencyclopedia.com/ >. Acesso em: 13-01-2005) No caso romano, a crise do império incluiu um recorte ambiental sub-repticiamente registrado pelas fontes da época. Roma, a odiada capital de um império que se arrogava a assumir o controle total da 8 81 bacia do Mediterrâneo (o mare nostrum), era o destino final de fluxos de imensas riquezas, que transformavam esta cidade num verdadeiro “ralo do mundo”. Eis como Aelius Aristides, documentalista grego do Século I d.C., expressou esta gigantesca movimentação de recursos, fruto do saque sistemático das províncias: De todas as partes da terra e dos mares afluem para vosso país produtos de todas as estações e de todos os países, os dos rios e dos lagos, e tudo que pode conceber a indústria dos gregos e dos bárbaros [ ... ] Há tantos navios de carga aportando no cais do Tibre que Roma de certa forma é o mercado universal do mundo. Os frutos da Índia e da Arábia.., os tecidos da Babilônia, as joias da Barbárie mais longínqua chegam a Roma em grande quantidade e com muita facilidade (citado in CLÉVENOT: 1979). Certamente muitas são as limitações das visões romanceadas sobre as sociedades do passado quanto à utilização dos recursos naturais, e neste recorte, o caso da ilha da Páscoa é um excelente exemplo do que estamos afirmando. Páscoa constitui o rasgo de terra habitada mais isolado do planeta, uma pequena ilha da Polinésia oriental (163,6 km²), distante 3.700 quilômetros do litoral da América do Sul e outros dois mil a leste do arquipélago das Pitcairn, um ponto igualmente remoto do Pacífico. Um detalhe importante é que esse espaço insular abrigou uma civilização que contrariando a norma da história pré-moderna (mas identicamente à moderna) não tinha nenhuma margem de manobra territorial. O espólio desta civilização extinta, estátuas gigantescas denominadas de moai na linguagem nativa, constituem testemunhas mudas de um passado encerrado abruptamente. 8 82 Tais monumentos, pontos terminais e próteses silenciosas de um padrão de relação com o meio ambiente que soçobrou de maneira inapelável, deixaram de ser compreendidos pela própria população remanescente. Em Páscoa, na esteira do implacável esgotamento dos serviços ecossistêmicos, a derrocada da formação espacial não tinha nenhum outro patamar ecológico para se realocar, razão de seu inglório crepúsculo (A respeito, consultem-se os relatos de DIAMOND, 2005: 105/152 e de PONTING, 1995: 19/29). Entretanto, este trágico cenário de esgotamento ecossistêmico constituiu uma notória exceção no mundo pré-moderno. Isto porque raramente as transformações ambientais da antiguidade, realizadas no transcorrer de prolongados lapsos de tempo, colocaram em perigo os ciclos ou os equilíbrios maiores atuantes na biosfera. Muito menos, ameaçaram, como nos dias de hoje, a perpetuação do sistema-vida na ecosfera do planeta. Em contraste com a modernidade, jamais no passado o ambiente de risco de uma dada cultura ou sociedade ameaçou a sobrevivência do conjunto da humanidade e das formas de vida na sua totalidade, concertação à qual pode-se agregar o episódio da ilha da Páscoa. Delicta facti permanentis, as crises ambientais que precederam a que se instalou no mundo contemporâneo, além de restritas a espaços isolados e igualmente na escala do tempo, nem de longe seriam equiparáveis aos pautados pela moderna civilização ocidental. As repercussões dos desequilíbrios ecológicos foram indubitavelmente menos intensas e inclusive, não necessariamente declinaram no epílogo de processos socioespaciais. Pelo contrário, à derrocada do 8 83 arranjo especial, comumente se apresentava a oportunidade de uma continuidade da vida biológica e da social. Um bom exemplo estaria substantivado na crise do Velho Império Maia, decorrente do esgotamento dos frágeis solos dos patamares da costa do Pacífico da América Central. Ponderando a respeito, Olivier DOLLFUS, assinala que essa notável civilização estava estruturada ...na cultura do milho praticada em clareiras abertas na floresta. O abandono desse meio talvez tenha sido provocado pelo esgotamento dos solos: este por sua vez, teria sido uma consequência da rotação demasiadamente rápida das culturas, motivada pelo crescimento da população (1972: 31/32). Mas, isto não decretou o ocaso da civilização. Audaciosamente, os maias deslocaram sua arena territorial para 400 quilômetros ao norte, no seio da Península do Yucatán, espaço no qual esta cultura pré-colombiana ganhou novo alento, lá erguendo cidades, pirâmides e templos, e assim se mantendo até a conquista espanhola. Ademais, tanto no caso Maia como em tantos outros, as áreas esgotadas não estavam fadadas à esterilidade perpétua. Os espaços territorializados pelas sociedades antigas, mesmo quando exauridos por práticas agrícolas inadequadas, pastoreio intensivo, sobrecaça, desmatamento e demais mazelas ambientais, terminaram, em muitos teatros do mundo antigo, retomados pelos ciclos dinâmicos do meio natural, que renaturalizaram áreas dantes humanizadas. Novamente aludindo para a história maia, atente-se que: 8 84 Certas regiões, atualmente abandonadas pelos homens e que aparentam jamais terem sido povoadas, são na realidade, setores transformados e empobrecidos por uma ação humana inconscientemente devastadora. A floresta que se estende ao Sul do Yucatán, na proximidade da fronteira guatemalteca, é quase desabitada. Ora, essa mesma região foi um dos focos da civilização maia, há uma dezena de séculos (DOLLFUS, 1972: 32). Deste modo, os dinamismos da natureza, ao resgatarem áreas ecologicamente dilapidadas pelos humanos agilizavam um autêntico movimento de “retorno da natureza”. Por isso os sítios de “cidades desaparecidas” como Wagadu (Mauritânia), Nínive (Norte do Iraque), Palenque (México) ou de majestosos complexos templários como os de Borobudur (em Java, Indonésia) e Angkor-Wat (Camboja), foram respectivamente retomados e agasalhados pela savana, pelo deserto e pela floresta equatorial. Contrariamente ao vaticínio que ensombra a consciência do homem contemporâneo, muitas das sociedades de outrora tiveram a possibiidade de uma vez mais, usufruir recursos reciclados pela natureza. Embora não esgotando a tematização da relação construída pelas sociedades de outrora com o meio natural, os exemplos citados evidenciam que a problemática ambiental das sociedades do passado difere em muito da que enfrentamos na atualidade. Indiscutivelmente, nas coletividades do mundo tradicional, o quadro posterior ao kaput ecológico contrastava de modo absoluto com o que é prognosticado pelas sequelas da ação humana moderna. No fundamental, em razão de que os padrões civilizatórios de antanho adotaram modos próprios e diferentes de perceber e de se relacionar com o meio natural. 8 85 O conjunto de sociedades que terminaram categorizadas como pertencentes ao mundo tradicional, mesmo se diferenciando entre si, resguardavam relativamente ao meio natural um complexo código de conduta que não admitia sua redução à condição de mero elemento à disposição da vontade humana e do incremento do artifício. Discorreu a respeito Joan Martínez ALIER: Até a grande experiência colonial que se inicia algo antes de 1492 e vai até a industrialização maciça da Europa, a relação com o meio ambiente não foi pensada como dominação ou transformação da natureza, senão como intercâmbio com forças naturais frequentemente sacralizadas em mitos ou cosmologias religiosas (1992: 49). Exatamente por esta razão que fica fragilizada a argumentação de que os processos de degradação ambiental do passado poderiam ser sinonimizados com os que se verificam no presente. Outra nuança é que a despeito do problema de a exploração dos recursos naturais estar objetivamente colocado para a sociedade ocidental desde pelo menos o Renascimento, apenas nas últimas décadas é que este reluziu na plenitude das suas implicações, caracterizando o que passou a ser denominado como crise ambiental. Neste sentido, não haveria como deixar de registrar que o Ocidente radicalizou uma oposição para com o mundo natural que parece ser, sobremodo, uma das características mais marcantes do seu modo de agir no mundo (Ver GIDDENS, 1991). Com toda certeza, este cenário enraíza-se nas peremptórias mudanças concertadas pela modernidade no relacionamento com o meio natural, e isto, com uma radicalidade que não têm precedentes. 8 86 Diferentemente da pré-modernidade, as anomalias ecológicas que caracterizam o mundo atual reportam a um cabedal de ameaças com feições assombrosamente alarmantes, inserindo perigos latentes quaisquer que sejam os ângulos pelos quais esta problemática seja analisada. Tudo isto faz com que a crise do meio ambiente conquiste caráter emergencial, um temário colocado, ipsis litteris, na ordem do dia. Desta inferência decorre que a ecologia tenha conquistado apelo universal exclusivamente a partir dos anos 1970, clara resposta ao acúmulo de passivos ambientais da modernidade (ELLIOTT, 1998). Definitivamente, não existe problemática tão contemporânea, ou em outras palavras, tão filha de nossa época quanto a ambiental. A questão ambiental constitui acima de tudo uma marca registrada do Século XX e de nenhum outro. Tendo por pano de fundo este cenário é que o termo ecologia se tornou corrente para o grande público, trafegando por todos os segmentos sociais. Difundida especialmente pelo movimento ambientalista, a ecologia conquistou a imprensa, as revistas, a televisão, o sistema escolar, os órgãos administrativos e governamentais em todos os níveis (Vide GUIMARÃES, 1991: 103). Retenha-se que isto aconteceu de um modo tão marcante, que a expressão passou a estar relacionada com os mais diversos aspectos da vida cotidiana. Assim sendo, as pessoas passaram a falar de um estilo de vida ecológico; em uma atuação ecológica; em maneiras ecologicamente corretas de ser e de viver; em defesa da natureza; em produtos verdes; em uma política ambiental e uma série imensa de posicionamentos em prol da natureza. O conceito de ecologia, que inicialmente transitava apenas no mundo intelectual e na militância 8 87 ambientalista, tornou-se inseparável do estoque de terminologias rotineiramente utilizadas por quase totalidade dos cidadãos. Uma vez triunfante na consciência da sociedade e dado que a terminologia encontrou aplicação para toda sorte de situações e contextos, ainda assim restaria indagar: decididamente, o que é ecologia? E o conceito com o qual mantém relação de sinonímia, a crise ambiental, do que exatamente se trata? Certamente, pode-se reportar a toda sorte de manuais e alfarrábios para responder esta pergunta e igualmente, buscar auxílio na profusão de textos leigos que nas quatro últimas décadas, se voltaram para discutir a temática. Todavia, neste momento o objetivo seria sopesar os sentidos prístinos da palavra ecologia. Pelo sim e pelo não, a enxurrada de significados atinentes a este étimo, quaisquer que sejam, constituem decantação das mais diversas compreensões, cujo piso conceitual provém de sua inserção no tempo e no espaço. Note-se que discutir uma terminologia, implica em descortinar posicionamentos, frente aos quais, contrapondo-nos ou não a eles, estes se apresentam enquanto uma rota de compreensão que além de desvendar as diferentes conceituações que foram sedimentadas com base na acepção original, permitem resgatar significados que, a despeito de estarem borrados ou esmaecidos pelo tempo, permitem aguçar a compreensão do seu significado atual. Por conseguinte, podemos iniciar a resposta explorando o significado etimológico da terminologia ecologia, acompanhada da contextualização histórica, cultural e social da qual é oriunda. Seja 8 88 destacado: não há como não consignar a importância da etimologia enquanto ferramenta de análise, procedente do fato de que os códigos linguísticos, normatizam direta ou indiretamente a contextura dos padrões cognitivos. Consequentemente, estes não podem ser destituídos da condição de indicadores do modo como determinada noção é auferida de concretude no mundo social (Ver SOUZA, 1991). Como sentenciou em certa ocasião o antropólogo norte-americano Edward HALL, “A própria percepção que o homem tem do mundo em torno de si, é programada pela língua que fala” (1981: 13/14). Certamente a definição clássica de ecologia é extensivamente conhecida. Formatada no âmbito das ciências naturais pelo biólogo e filósofo alemão Ernst Heinrich Haeckel, o termo aparece pela primeira vez no ano de 1866 numa nota de pé de página na obra Generelle Morphologie der Organismen, em substituição a biologia, cujo alcance foi considerado, na opinião deste pensador, indevidamente restritivo (ACOT, 1990: 27). Atente-se que ecologia é um termo dicionarizado, definida como estudo da casa. Não por outra razão, senão pelo fato de que numa etimologia literal, o termo decorre do grego oikos-logos, onde oikos reporta a vivenda, casa ou aposento e logos, por sua vez, corresponde a estudo, tratado, concepção ou entendimento (Além de ecologia, tem-se habitat, corriqueira sobremodo nos textos de escopo biológico, todavia, despossuída da mesma coloquialidade). Vale lembrar que a compreensão do termo ecologia passou a ser granjeada, por conta do dinamismo semântico que se assenhoreou do vocábulo, de sentidos edificados consoante sortida coletânea de interpelações romanceadas, nas quais a nota predominante são acepções de cunho naturalizante. Em face do entendimento usual de 8 89 ecologia, fica-se de um modo ou de outro diante de um universo conceitual socialmente amorfo, destituído de contradições. Sua meta suprema seria a perpetuação do “equilíbrio” e da “harmonia”, locuções que mais se prestariam para uma manipulação mistificadora (para não dizer reificadora), da relação das sociedades com o espaço natural, do que para primados científicos. Nesta via, as flexões sociais que perpassam na questão ambiental são expurgadas, penalizando de sobejo, a cognição das contradições que norteiam a relação entre o homem e a natureza (Ver a respeito, MORAES, 2002: 53). No entanto, seria possível abstrair da definição clássica muitas outras derivações, até porque a palavra grega oikos sugere uma ordem de enunciados largamente insuspeitos. Observe-se, antes de tudo, que além de “casa” relacionam-se ao termo oikos profícua oferta de entendimentos, a saber: oikeiotês: relação, aparentado, amizade; oikeiow: habitar, coabitar, reconciliar-se, manter-se familiarizado e finalmente, oikoumene: terra povoada, ocupada, mundo conhecido e/ou civilizado. Quanto a esse último significado, originalmente dizendo respeito aos territórios conhecidos pelo mundo greco-romano, posteriormente agregou o sentido de uma humanitas que se reconhece enquanto unidade, habitando um espaço unificado e convivendo uma mesma historicidade, ita est, uma ampliação do oikos. Mutatis mutandis e indo diretamente ao ponto, a primeira pontuação a respeito da ecologia, reclama avaliar sua fundamentação 9 90 não só nas raízes gregas da palavra, proveniente do grego oikoslogos, como igualmente sua ambientação histórico-social. Isto porque a recorrente definição estudo da casa, para além de não esgotar a problemática ambiental, habilita, mais do que um entendimento real, uma diversidade de entraves para sua intelecção (Ver este respeito, BAITELLO JÚNIOR, 2005: 52/53 e GEORGE, 1997). É válido ressalvar que oikos na descrição de Homero, tal como este nos apresenta o conceito na Ilíada e na Odisseia, e consoante com a consciência social do período arcaico grego, corresponderia a uma unidade autossuficiente de produção e consumo, da qual dependia a sobrevivência do grupo, subentendendo uma determinada organização social, política e econômica, territorialmente alicerçada numa porção específica do espaço geográfico (apud FLORENZANO, 1982: 14/23). Sumamente, o oikos direciona para uma inflexão social, cultural e histórica. Ontologicamente, seu pressuposto é um grupo socialmente organizado, economicamente credenciado e por fim, politicamente estruturado. No que seria significativo, o radical indo-europeu weik, do qual oikos é derivado, acena para uma unidade social imediatamente superior à residência do chefe de família. Plus aequo, a terminologia suscitaria uma reverberação biocenótica, encontradiça nas acepções consuetudinárias da palavra. Por conseguinte, não surpreende que os biocenóticos da atualidade de bom grado definam a ecologia como uma “ciência das comunidades” (Vide ACOT, 1990: 27). Nesta senda, nos textos de Homero, o oikos está associado ao comando de um chefe guerreiro, que encabeça a família e amplo rol 9 91 de agregados. Não era estranho ao oikos o exercício da guerra. O oikos encetava razzias contra as comunidades vizinhas, investidas acompanhadas de saques e de pilhagens, com o que, se desfaz qualquer antevisão idílica relativamente a esta organização social. Em coerência com o que foi colocado, uma primeira pontuação sinalizaria que se todo oikos na Grécia antiga constituía uma casa, nem toda casa necessariamente constituiria um oikos. Um segundo detalhamento é que oikos, dizendo respeito a produção e consumo, implicaria na impossibilidade de se excisar o conceito de ecologia do conceito de economia. Congruentemente, ecologia e economia compartilham idêntica origem etimológica: oikos. Deste modo, entendendo-se que ecologia significa estudo da casa, a palavra economia é por sua vez derivada de oikos-nomos, diga-se, ordem ou organização da casa. Pois então, qualquer enunciado que divorcie a questão ambiental das problemáticas econômicas, incorre num equívoco duplo. Isto porque uma economia que honre sua etimologia deve se assumir como uma economia ecológica, assim como uma ecologia coerente, deve da mesma maneira se prontificar como uma ecologia econômica (passim LEFF, 2004 e RAFFESTIN, 1993: 24). Um terceiro aspecto (e nisto, aproximando-se ainda mais do enfoque que desejo discutir), é que o oikos, independentemente da aura de romantismo que perpassa pelo conceito, inseria relações enfaticamente desiguais no seu interior. Poucos recordam que nesta perspectiva, o oikos era regrado pelo trabalho escravo e perpassado por clivagens de poder de todos os tipos. 9 92 Por este motivo, o modelo do oikos na Grécia desintegrou-se por conta das acirradas contradições que nasceram e proliferaram em seu interior, cujo desmonte, foi uma das origens seminais da polis, a cidade-estado grega, uma nova articulação espacial que desponta prioritariamente por conta dos antagonismos econômicos, sociais e políticos intrínsecos ao sistema escravista, contraposições estas, que as novas aglomerações se prontificaram em gerenciar. Nesta linha de abordagem, as avaliações preocupadas com os problemas ecológicos não podem (e não devem), dispensar os liames que pavimentam conexões com temáticas de índole cultural, social, políticas e econômicas. Tanto no passado do homem quanto nos dias atuais, a questão ambiental relaciona-se sumamente com um sistema de poder, não podendo ser aquilatada na ausência deste referencial. Até porque, a ecologia é inegavelmente, um dado inerente a todas as formas de dominação. No mais, fosse este pressuposto descompassado da realidade, as classes dominantes não se empenhariam no controle estratégico das fontes de recursos naturais e energéticos, para deste modo, submeter “os de baixo” à sua dependência. Outrossim, a apropriação da natureza igualmente demarca um domínio ecológico das classes dominadas (GUGLIELMO, 1991: 67). Por conseguinte, o oikos não se restringiria de modo algum a derivações “ecológicas”, ponto de partida para várias interpretações ambientalistas. Pelo contrário, entenda-se que esta discussão é uma temática muito mais ampla do que o “estudo da casa”, tal como é singelamente sugerido pelas leituras superficiais do conceito. 9 93 Crucialmente, claro é que uma preocupação tão sugestiva como esta, requereria, visando melhor elucidação, a agregação de outros enunciados e de vários outros parâmetros. Sugestão que acatada, pesponta nos parágrafos que seguem. 3.2. TRADIÇÃO, QUESTÃO AMBIENTAL E MODERNIDADE Ponderar a respeito de um temário que incorpora a ecologia como sustentação conceitual suscitaria, por definição, uma avaliação sobre as relações existentes entre modernidade e a questão ambiental. Constituindo uma noção que pressupõe estar a relação entre o homem e o meio natural impregnada pelas mais diversas contradições, nada mais correto do que se avaliar um momento da história humana no qual estas atingiram as raias do paroxismo. Recorde-se que além das proporções alcançadas pela crise do meio ambiente nos tempos modernos, esta incorpora especificidades extremamente bem demarcadas no espaço e no tempo, daí a imperiosidade de delinear seus motes frente ao tema. Deixar de levar em consideração este aspecto, além de implicar no comprometimento dos nexos que pretendo imprimir a esta discussão, acarretaria uma compreensão desestoricizada da questão ambiental, intercorrência que, tal como foi colocado, está de antemão excluída deste trabalho. Com base nesta preocupação, o primeiro ponto a ser pautado remeteria às radicais distinções que ratificam um corpus cujos pressupostos geográficos, culturais, históricos, sociais, políticos e 9 94 econômicos são em tudo dessemelhantes dos que vigoraram no antigo mundo tradicional. Neste sentido, recorrendo a um parecer cunhado pelo sociólogo britânico Anthony Giddens, a modernidade pode ser definida como uma sociedade promotora de um enquadramento simultaneamente técnico e unificador, via de regra grafada como ocidental, respaldando um conjunto de modos de vida que desvencilharam a humanitas de todos os tipos tradicionais de ordem social, e isto, de uma maneira que não têm precedentes (passim GIDDENS, 1991). Aditivamente, à civilização ocidental caberia, em função das prerrogativas que endossou, a transposição das suas perspectivas civilizatórias para o conjunto do globo, inaugurando uma Gesellschaft construída a seu gosto e colocada sob seu comando. Saliente-se que não seria fortuita a opção por este termo. No pensamento filosófico alemão, Gesellschaft (sociedade) está em oposição a Gemeinschaft (comunidade), uma antinomia que no memorável parecer do cientista social alemão novecentista Ferdinand Tönnies transpareceria como a seguir reproduzido: ...Gemeinschaft representava o passado, a aldeia, a família, o calor. Tinha motivação afetiva, era orgânica, lidava com relações locais e com interação. As normas e o controle davam-se através da união, do hábito, do costume e da religião. Seu círculo abrangia família, aldeia e cidade. Já Gesellschaft era a frieza, o egoísmo, fruto da calculista modernidade. Sua motivação era objetiva, era mecânica, observava relações supralocais e complexas. As normas e o controle davam-se através de convenção, lei e opinião pública. Seu círculo abrangia metrópole, nação, Estado e Mundo (RECUERO, 2001). 9 95 Nesta perspectiva, o mundo tradicional estaria inteiramente apartado da turbulenta, agitada e frenética sociedade ocidental. E de fato, procede em muito a constatação da existência de um dinamismo “mais lento” para as sociedades tradicionais, justificado pela presença de desígnios sociais que tipificam modos de vida e de percepção da realidade sem qualquer relação com os que triunfaram no Ocidente. Afirmação que dificilmente encontraria refutação, o homem imerso na esfera da tradição era regido por um dinamismo societário no qual a exigência de ordem e de continuidade sobrepujava sobre a entoação de mudanças (BALANDIER, 1976a: 235). Estas sociedades, consideradas “frias” ao gosto de uma linha de corte recomendada pelo antropólogo francês Claude LÉVI-STRAUSS (1970), contextualizariam, pois, modos de vida os quais, embora não fossem pautados por um “equilíbrio absoluto”, nestas, a história se “aqueceria” unicamente em lapsos mais prolongados de tempo. O mundo da tradição seria então, radicalmente distinto das “sociedades quentes”, no caso, as pertencentes ao contexto ocidental. Tal como assim definido, o pressuposto implícito neste raciocínio subentende o mundo inaugurado pela modernidade enquanto um “divisor de águas” dos processos sociais colocados à prova pela humanidade. Demarcando dois universos inteiramente opostos entre si, o moderno terminaria nesta acepção por se especificar enquanto um marco que dispensaria à tradição tudo o que está em desajuste com seus predicados, pressupostos e interesses (GIDDENS, 1991: 14 et seq). 9 96 No tocante ao duramên dessa exposição, outro desdobramento distinguindo modernidade e tradição como duas polaridades distintas, evidencia-se quando nos deparamos com a avaliação dos modelos adotados pela humanidade no relacionamento com o meio natural. Analisando as diferentes modalidades resultantes da determinada predisposição do homem em territorializar o espaço natural, pode-se discernir no mundo moderno, dinâmicas opostas às que imperaram nas sociedades tradicionais, inferência de resto, é passível de ser identificada tanto na concretude quanto no imaginário do mundo construído pelo Ocidente. Obviamente, retomando uma sugestão comentada parágrafos atrás, seria cabível recordar que o mundo tradicional, não obstante os vínculos notórios mantidos com o meio natural, nunca esteve facultado a esposar a aura de uma “idade do ouro perdida”. Tal visão se ajustaria à postura de avaliar as sociedades tradicionais como estáveis, isentas de contradições ou de conflitos, e por extensão, não propensas a mudanças e transformações. Este horizonte idealizado poderia filiar-se a um modelo de interpretação de sociedade calcado no funcionalismo, corroborando uma perspectiva marcada pela compreensão naturalista e harmônica de sociedade, sendo sua pedra de toque, o conceito de totalidade social e cultural integrada. Contrariando visões inspiradas neste arrazoado, hoje em dia é amplamente admitido que os grupos galardoados com a etiqueta de serem “povos dos ecossistemas”, forjaram profundas transformações ambientais, afetando os biomas numa coleção de nuanças. A título de exemplo, extensões a perder de vista de paisagens consideradas “naturais”, foram resultanrtes da caça pelo fogo. Entre outros casos, é 9 97 justamente esta prática que explicaria a origem de extensos nacos das savanas africanas e dos cerrados sul-americanos, com influência muito mais profunda do que influências edáficas ou de mote climático (Ver RIZZINI, 1979: 102 e também COUTINHO, 1977). Além do mais, as mudanças provocadas pelos humanos neste cenário natural, assim como em vários outros, teriam o privilégio da senioridade. Confirmando tal linha de interpretação, o antropólogo e geógrafo britânico David Russel HARRIS anotou, quanto aos espaços savaneiros, que “a ocupação do meio ambiente da savana, na África e na Ásia, remonta ao aparecimento do gênero homo, há mais de um milhão de anos atrás” (1982: 181). As migrações humanas deixaram atrás de si um rastro de destruição e mudanças ambientais, diretamente relacionadas com a implantação de novos assentamentos. Na pequena ilha de Malta, no Mediterrâneo, o elefante anão, uma autêntica relíquia zoológica, foi liquidado logo nas primeiras vagas de ocupação humana. Na Nova Zelândia, os maoris extinguiram, muito antes dos europeus, o moa, uma magnífica ave da Oceania. Durante o Paleolítico, a presença humana na América do Norte havia eliminado por volta de 10.000 a.C. ...grandes animais como o mamute, o cavalo, o camelo, a preguiça gigante, o tigre de dentes de sabre, e leões e cães selvagens, além de muitas aves, que foram totalmente dizimados e extintos do continente americano (PASCHOAL, 1978: 7). Nenhum espaço permaneceu incólume com a aparição dos humanos. Foi o que ocorreu em Madagascar, a grande ilha africana 9 98 ocupada por vagas de malaios da Insulíndia em tempos históricos. Destino semelhante acometeu a Ilha Maurício e as Kerguelen, ambas situadas no Índico, abordadas pelos navegantes europeus durante o processo da expansão marítima e comercial, assim como as ilhas Orkneys, Shetlands e Faröe, arquipélagos alcançados pela expansão viking 9 a partir da Escandinávia (Cf. DIAMOND, 2005: 219/258). No povoamento do continente americano, os humanos que cruzaram o estreito de Bering 14.000 anos atrás, transpondo a finisterra oriental asiática 10, foram cúmplices da extinção de grande quantidade de exemplares da fauna em seu trajeto rumo às paragens meridionais (TAKS et FOLADORI, 2002). A adoção da agricultura, ao promover o surgimento de campos de cultivo, que sumamente constituem “ecossistemas simplificados”, derivou em alterações ainda mais dramáticas. O chamado Fértil Crescente (o Vale do Nilo, da Mesopotâmia e áreas circunvizinhas), um dos berços da agricultura, “foi outrora vegetado com florestas de cedro e savanas ricas de fauna e flores” (Vide PASCHOAL, 1978: 7). No caso do Egito Faraônico, uma bem documentada ação humana permite avaliar a magnitude da transformação da paisagem pelas coletividades agrícolas, alterando drasticamente a paisagem original do vale do Nilo (VERCOUTTER, 1974: 17). Os vikings não constituíam uma etnia, mas sim um conjunto de povos germânicos estabelecidos na Europa setentrional. O termo parece derivar do germânico arcaico vikingar: saqueadores. 10 O início do povoamento da América tem sido reavaliado mediante a descoberta de novos jazigos arqueológicos. Se contada exclusivamente pelos registros fósseis da paleontologia física, o homo sapiens teria povoado o continente por volta de 14 mil anos atrás. Mas pela antropologia molecular, baseada no estudo do DNA de populações modernas, a data recua alguns milhares de anos. Evidências genéticas apontam para uma colonização anterior a 14 mil anos, segundo estudos apresentados no 51º Congresso Brasileiro de Genética (Manchetes Socioambientais, edição de 12-09-2005). 9 9 99 Na calha do rio Nilo, a planície atual estende-se sobre o que foi outrora, um terreno desértico. Desapareceram densas concentrações de palmares, quase verdadeiras florestas de palmeiras. Além do recuo do deserto, os pântanos, acompanhados de rica fauna e flora, foram praticamente extintos. Antigamente, no limiar dos aluviões anuais, “os confins do deserto eram charcos cobertos de grandes juncos ondulantes, povoados por milhares de espécies de aves e por numerosa fauna de pequenos carnívoros” (SAUNERON, 1970: 51). Estas alterações não se restringiram unicamente à paisagem, pois implicaram em importantes modificações hidrológicas, climáticas e da fauna, muitas vezes de modo irreversível. Pari passu, as atividades dos agricultores tradicionais, ao implicarem na seleção empírica do germoplasma, foi origem dos modernos exemplares de plantas como o milho, o arroz, feijões, batata, batata-doce, mandioca, trigo, cevada, centeio, inhame, amendoim e o sorgo. Estas espécies, fruto do labor humano, terminaram “naturalizadas” no transcorrer da história e deste modo, percebidas como provenientes do meio natural. O mesmo ocorreu quanto à domesticação dos animais, que além de implicar na seleção de espécimes, foram ampla e repetidamente introduzidos pelo homem em ambientes que lhes eram originalmente estranhos. Ressalve-se que os esforços estiveram concentrados na seleção de um pequeno número de animais, que foram a seguir privilegiados como elementos de base pelas economias antigas. Estes seriam, de acordo com o geógrafo Roland BRETON: a cabra e o carneiro no Fértil Crescente, o asno no Egito, o boi e o pato no sul da Europa, o boi zebu e talvez a galinha e o porco na Índia, o búfalo aquático no Sudeste Asiático, o iaque no Tibete, o camelo da Tartária 1 100 na Ásia Central, o dromedário nos desertos da Arábia, o cavalo nas estepes da Eurásia, a rena na Tundra, o peru na América do Norte e finalmente, a cobaia, a lhama e a alpaca na América do Sul (1990: 47). Os efeitos ecológicos das atividades antrópicas desenvolvidas pelo mundo tradicional, grande maioria dos quais não-premeditados, chamou a atenção de um leque de estudiosos, que registraram as sequelas deixadas pelas sociedades pré-modernas. Eis como o olhar arguto de Friedrich ENGELS captou estes acontecimentos: Os homens que na Mesopotâmia, na Grécia, na Ásia Menor e noutras partes destruíram os bosques para obter terra arável, não podiam imaginar que dessa forma, estavam dando origem à atual desolação dessas terras ao despojá-las de seus bosques, isto é, dos centros de captação e acumulação de umidade. Os italianos dos Alpes, quando devastaram, na sua vertente Sul, os bosques de pinheiros, tão cuidadosamente conservados na vertente Norte, nem sequer suspeitavam que, dessa maneira, estavam arrancando, em seu território, as raízes da economia das granjas leiteiras; e menos ainda suspeitavam que assim estavam eliminando a água das vertentes da montanha, durante a maior parte do ano e que, na época das chuvas, seriam derramadas furiosas torrentes sobre as planícies (1979: 224). Em decorrência, poder-se-ia rascunhar um ponderável elenco de alterações promovidas pelo homem tradicional a partir de atividades consideradas “ambientalmente brandas”, implicando na eliminação ou rarefação de centenas de espécies. Houve uma época em que os uros 11 deambulavam pelas florestas da Gália e da Bélgica; em que Os uros ou auroques, extintos desde 1627, são relatados por várias fontes romanas, em narrativas celtas, eslavas e germânicas. Em comum, se referem a um tipo de bovídeo gigantesco, observado nas terras da Europa Ocidental ainda nos tempos de Júlio César. 11 1 101 manadas de camelos atravessavam o vale do Mississipi; em que os leões se aqueciam ao Sol na Síria, Macedônia, Numídia, Pérsia, na Lacedemônia e no Bokhara; em que os crocodilos se refestelavam no delta do rio Nilo; em que os lobos e ursos tinham por habitat, os campos da Nortúmbia, do Danelaw e da Cornualha; em que os mares escandinavos pululavam de leões marinhos; em que os rinocerontes chafurdavam nos rios da Borgonha e da Provença. Afinal, onde foram parar estes admiráveis espécimes da fauna terrestre? Assim, as sociedades não-ocidentais imprimiram sua marca no meio natural e isto, de forma não necessariamente superficial. No que importa ao núcleo dessa discussão, o imaginário de um “paraíso ecológico”, mantendo estreita relação com o simbolismo da “idade do ouro”, cultuando sociedades supostamente caracterizadas por um suposto “entrosamento absoluto” com a paisagem natural, constituiria simplesmente uma peça de ficção. Como recorda Joan Martínez ALIER, nenhuma civilização foi ecologicamente inocente (1992: 49). Entretanto, outro é o parecer que povoa o imaginário social. No mais das vezes, os saudosos “Jardins do Éden”, tragados pela expansão do mundo ocidental, terminaram revestidos de expectativas e valores que no plano das aspirações do senso comum, são alvo de um resgate de tempos simultaneamente idílicos e nostálgicos. No limite, estas sedutoras imagens pressupõem que do passado poderia advir a solução para as angústias do presente. Porém, entenda-se que uma coisa, seria sustentar a inexistência de contradições entre homem e natureza nas sociedades de outrora; As imagens mais antigas dos uros estão retratadas em pinturas rupestres do complexo de cavernas de Lascaux (sudoeste da França), datadas em mais de 17.000 anos atrás. 1 102 uma outra, entender que o mundo tradicional comprometia em menor escala os recursos naturais; e uma outra coisa ainda, entender como possível transpor este modelo para o mundo da atualidade. De qualquer modo, seria plausível sumarizar que independentemente das implicações, estas posturas não deixam concretamente de frisar que o objeto de discussão é a crise ambiental da modernidade, e não a do mundo tradicional. Nesta sequência, é a discussão da relação mantida pela modernidade com o meio natural que se reveste de caráter central. Não mais porque seria exclusivamente da compreensão deste locus espacial e temporal que se torna possível compreender a eclosão da crise ambiental no seu sentido mais pungente, e por consequência, as alternativas de enfrentamento do problema e a possibilidade da humanidade manter uma relação minimamente equilibrada com o meio ambiente. Por isso mesmo, ao constituir um desafio novo, seria descabido entender o tradicional enquanto modelo capacitado a solucionar o que não é tradicional, mesmo porque a crise do meio ambiente, tal como atualmente materializada, não estava colocada para as sociedades da antiguidade. Sem meias palavras: uma sociedade ecológica está por ser instaurada, e não restaurada. Nesta ótica, importa identificar os epifenômenos associados à modernidade que atuaram de modo a ordená-la socialmente no plano interno e externamente, a impor sua vontade a outros povos e regiões, procedimentos que se desdobraram em comprometimentos ambientais de todo tipo. É neste sentido que se torna possível, com 1 103 base em diversas avaliações disponíveis para consultas, combinadas a comentários oriundos de diversas outras fontes (Vide entre outros VESENTINI, 1989: 20 e CAPRA, 1991), enumerar cinco imperativos pertinentes ao surgimento do mundo moderno e à sua consolidação como uma altissonante weltanschauung, que resumidamente seriam: 1. O Estado como organização política por excelência. Notado com pressuposto uma qualquer sociedade civilizada, evidentemente o aparelho estatal é aquele concebido a partir das condições históricas e sociais do mundo ocidental, sendo as demais formações estatais desqualificadas enquanto modalidades aceitáveis de organização e de exercício do poder. Neste prisma, os increpados “Estados despóticos do Oriente”, taxonomia que englobaria variegado conjunto de estruturas estatais extraeuropeias, estariam, tal como na enviesada averbação de Montesquieu consignada na obra O Espírito das Leis, caracterizados pela ausência de regras e do senso de justiça. No juízo contestador do antropólogo e sociólogo mexicano Roger BARTRA, neste enfoque, as formações estatais orientais achariam-se então, subordinadas a reis autocráticos, governando segundo sua vontade e seus caprichos, cujo mando, estaria respaldo na escravidão generalizada dos súditos, uma contestável acepção que transitou com afinco nas ideações dos ocidentais sobre os regimes políticos extraeuropeus (1978: 11/42). 2. Noção de trabalho exaustivo e produtivo, significando, no caso, o trabalho voltado para a produção de mercadorias, inserido na lógica de acumulação do capital. Neste prisma, apenas um tipo de trabalho, o voltado para a produção de valores de troca, seria considerado 1 104 válido e produtivo. Desta noção decorreu, por exemplo, a ideia de que as populações tradicionais seriam preguiçosas e que a organização econômica “pré-capitalista” seria arcaica e atrasada, dentre outros motivos, evidentemente pela resoluta oposição ao acúmulo de bens e revolucionamento das relações de produção. Esta revolução, no modus operandi qual a esfera do econômico passou a funcionar, embalou toda sorte de pontuações referentes aos novos tempos inaugurados pela economia de mercado. Nesta linha de argumentação, a diferença entre o mundo moderno e o tradicional, teria na radical alteração das perspectivas existenciais dos humanos, uma das suas notas mais marcantes. A economia, partindo de sistemas preocupados com uma talvez singela e prosaica satisfação limitada, atendendo desejos e anseios de coletividades fechadas e autárquicas, passou, desde então, a empenhar-se na construção de um estado permanente de insatisfação ilimitada, propensão que se ampliou incessantemente, vindo a abarcar o conjunto do planeta. Comparando as economias antigas com seu novel contraponto moderno, assim ajuizou o pensador Karl MARX: A antiga concepção segundo a qual o homem sempre aparece (por mais estreitamente religiosa, nacional ou política que seja a apreciação) como o objetivo da produção, parece muito mais elevada do que a do mundo moderno, na qual a produção é o objetivo do homem, e a riqueza, o objetivo da produção [...] Por isto, de certo modo, o mundo aparentemente infantil dos antigos mostra-se superior: e é assim, pois, na medida em que buscarmos contornos fechados, forma e limitação estabelecida. Os antigos proporcionavam satisfação limitada, enquanto o mundo moderno deixa-nos 1 105 insatisfeitos ou, quando parece satisfeito consigo mesmo, é [visto como] vulgar e mesquinho (1975a: 80/81). É com base nesta transformação que o mundo tangível dos humanos se torna, antes de materializar uma fonte de abundância, num epicentro da escassez. Nada doravante será como antes, pois a escala da insatisfação, contrariamente à da satisfação, se estende na escala do infinito, nisto ignorando o óbvio: a finitude do espaço e dos seus recursos. 3. A ciência vista como um conhecimento voltado para o domínio e o controle da natureza, conceituação que adquire crescente influência paralelamente à importância cada vez maior da economia de mercado. Seus pressupostos destacam o homem - sinonimizado com o gênero masculino - como um ser predestinado ao domínio dos demais seres vivos e da totalidade do meio natural, noção que reflete uma negação e/ou despromoção da natureza que ganhou corpo nos Séculos XVI e XVII com os novos métodos empíricos de investigação desenvolvidos no âmago da revolução mecanicista, que revolucionou as ideações até então em vigor no referente à relação com o meio natural, lançando as bases de um prepotente “chauvinismo humano”. A partir da revolução mecanicista, a ciência passa a alinhavar uma nova inteligibilidade, baseada no desenvolvimento da física, das experiências laboratoriais e numa verdadeira matematização do olhar. Nesta nova perspectiva, o objetivo do cientista é a descrição racional de todos os fenômenos naturais de acordo com leis matematizáveis, um quadro analítico que se tornou o axioma dominante do saber 1 106 científico sistematizado, influenciando todos os ramos da chamada ciência moderna (CARVALHO, 1991: 46/47). Dado inseparável desta ótica é que a investigação científica, tendo por meta finalidades predominantemente utilitárias, terminou reinventada de modo a distinguir-se radicalmente da postura que caracterizou as culturas antigas diante da natureza. Por isso mesmo, respaldando ansiedades desde logo manifestadas pela nascente civilização ocidental relativamente ao relacionamento com o ambiente natural, o filósofo britânico Francis Bacon defendeu este novo método de investigação em termos que seriam não só apaixonados, mas com frequência, francamente rancorosos. A natureza, na sua opinião, ...tinha que ser acossada em seus descaminhos, obrigada a servir e escravizada. Devia ser reduzida à obediência e o objetivo do cientista seria extrair da natureza, sob tortura, todos os seus segredos (CAPRA, 1991: 51/52). Definitivamente, com a modernidade a wilderness deixou de ser uma referência para tornar-se alvo de conquista e tornada uma “letra morta”, atitude que redundaria nas mais peremptórias consequências. 4. Concepção de natureza como um mero recurso voltado para manter e expandir incessantemente o progresso e o desenvolvimento econômico; nesta acepção, está implícita uma leitura ocidental do antropocentrismo, sugerindo não uma interlocução, mas sim a submissão da natureza a um homem concretamente identificado com os proprietários dos meios de produção, com os cidadãos ou mais exatamente, com a nova classe burguesa. Por conseguinte, não seria demasiado ressalvar a forte presença de um ideário patriarcal, 1 107 valorizando-se implicitamente o gênero masculino comparativamente ao feminino, tanto em nível do imaginário quanto no da concretude e do léxico social. Ilustrando esta linha deste certame, pode-se novamente recorrer ao pensamento de Francis Bacon. Com efeito, as imagens violentas trabalhadas por este pensador quanto ao relacionamento a ser mantido com a natureza, provavelmente foram inspiradas nos julgamentos das bruxas, tal como eram habitualmente realizados na sua época. A influência exercida por esta atmosfera persecutória na linha de investigação elaborada pelo intratável filósofo foi palpável e cabal. Dentre outros fatores, Francis Bacon estaria ...intimamente familiarizado com tais denúncias e libelos e, como a natureza era comumente vista como fêmea, não deve causar surpresa o fato dele transferir as metáforas usadas no tribunal para os seus escritos científicos. De fato, sua ideia da natureza como uma mulher cujos segredos têm que ser arrancados mediante tortura, com a ajuda de instrumentos mecânicos, sugere fortemente a tortura generalizada de mulheres nos julgamentos de bruxas do começo do Século XVII. A obra de Bacon representa, pois, notável exemplo da influência das atitudes patriarcais sobre o pensamento científico (CAPRA, 1991: 52). Essa visão cruamente antropocêntrica, reinante na Inglaterra do Século XVIII, subentendia que a autoridade humana sobre o mundo natural era soberanamente ilimitada. O matemático e filósofo francês René Descartes conceituou a cissura entre o homem e a natureza de modo extremo, pregando que os animais não seriam dotados de alma e que Deus seria totalmente transcendente, externo à criação (Vide DIEGUES, 1994: 36/37). Nesta derivação, os humanos, manifestação 1 108 única da esfera do racional, deteriam jurisdição inconteste sobre todos os seres vivos, abrindo caminho, por decurso lógico, para que fossem abandonados quaisquer pruridos no tratamento dispensado ao meio natural. Na tecedura desse arcabouço conceitual, deixando de encontrar amparo junto aos sistemas morais e religiosos, a natureza perdeu inexoravelmente toda a grandeza de que usufruía nos sistemas de pensamento do mundo da tradição. Na aurora e na juventude da humanidade, o mundo animal fora visto como parceiro a toda prova dos humanos. Recorde-se que a própria palavra animal se origina de anima, significando alma em latim, sentido que obviamente se enraíza num antigo entendimento tradicional dos viventes não-humanos. Mas, tudo isto deixa de ter qualquer sentido diante do antropocentrismo ocidental, para o qual a esfera do natural cede, de um modo como jamais ocorrera no passado, suas prerrogativas ancestrais em prol de beneplácitos meramente utilitaristas. 5. Eclosão, no plano do imaginário, da aspiração a um domínio simbólico da história, estimulando narrativas pautando o progresso e o mercado enquanto fatoração eterna e imutável, vistos inclusive como indissociáveis de uma suposta “natureza humana”. Em paralelo à consolidação do capitalismo, verificou-se, no interior do ideário dos ocidentais, uma tendência em compreender a economia de mercado como referência máxima de compreensão da realidade, inseparável do conceito de humanidade e de civilização. Assim, a economia de mercado atuaria como linha divisória na diferenciação do homem das demais espécies, cuja índole congênita, 1 109 incorporaria uma tendência natural inata para negociar, de trocar uma coisa por outra. Destarte, esta pulsão “trocativa”, postulada como uma característica-chave para deslindar a evolução da humanidade, seria, no entendimento de Adam Smith pai da economia clássica, próprio exclusivamente dos humanos. Eis como o economista ilustrou este silogismo em seu clássico A Riqueza das Nações: Ninguém nunca viu dois cães procederem a uma troca equitativa e deliberada de ossos, nunca se viu um animal tentando dizer a outro, através de gestos e gritos naturais, que uma coisa é ou não sua, ou que pretende trocar uma coisa pela outra (SMITH, 1979: 13). Tais imperativos fundamentaram uma desqualificação universal das sociedades não europeias. A economia de mercado e os valores que a legitimavam, constituíram parâmetros máximos para julgar as demais formações sociais, independentemente do fato dessas não postularem o mercado como referência para sua organização social, política, cultural e econômica. Largamente utilizados para alicerçar a dominação europeia sobre os chamados povos coloniais, estes conceitos conquistaram obviedade no ideário europeu, tornando-se inseparáveis da idiossincrasia ocidental, perpassando, em termos do imaginário do outro, como um dado óbvio. Portanto, aos “atrasados”, percebidos como vegetando em meio a uma ilimitada estupidez, foilhes prescrita toda sorte de estigmas e sinais denunciadores de uma abjeta e repulsiva condição de inferioridade: ...não acreditando em Deus, não tendo alma, não tendo acesso à linguagem, sendo assustadoramente feio e alimentando-se como um animal, o selvagem é apreendido nos modos de um bestiário. E esse discurso da alteridade, que recorre constantemente à metáfora 1 110 zoológica, abre o grande leque de ausências: sem moral, sem religião, sem lei, sem escrita, sem Estado, sem consciência, sem razão, sem objetivo, sem arte, sem passado, sem futuro (LAPLANTINE, 1988: 41). Para piorar, a estes malfadados primitivos estava reservado o supremo pecado de serem economicamente subalternos. Os grupos e populações que viviam sob regimes sociais estranhos à economia de mercado, julgamento que recai de modo particularmente duro sobre os grupos mais entrosados com o meio natural, estariam prisioneiros da carência, da adversidade, do domínio da brutalidade das forças da natureza e das intempéries, uma situação infeliz da qual certamente seriam resgatados pelo congraçamento com o triunfo do novo estilo de vida, impregnado pelos ideais de progresso e de desenvolvimento. Evidentemente, a resistência destas populações em adotar os novos modelos impostos pelos europeus foi codificada intempestivamente como evidência de contrariedade ao progresso e de indisposição à civilização, portanto, sujeita a sansões, medidas corretivas e punitivas. Logo, o atrasado seria inapelavelmente um “inferior”, alguém que não se ajusta ou optou por não se ajustar ao que é considerado avançado. Dele, simplesmente nada seria possível esperar. Na nova linha do tempo elaborada com base num sentido progressivo da história, é postulada uma sequência na qual os primitivos (do latim primi, ou seja, “primeiros”), os aborígines (isto é, “originários”), os silvícolas (“habitantes da selva”), ou então os naturvölker 12 (“povos da natureza” ao pé da letra, em alemão), são deslocados para um Expressão cunhada pela etnologia alemã, não se confunde com Urmensch, homem primitivo. Admoeste-se que no jargão geográfico alemão clássico, a denominação naturvölk não indicava povos vivendo relação íntima com a natureza, mas antes, sob o império desta (RATZEL 1990: 72). 12 1 111 remoto princípio da história, uma noite dos tempos habitada por todos aqueles que não foram agraciados pela reelaboração do tempoespaço promovida pela Europa. É neste sentido que o outro, no Ocidente, mais que um espaço diverso, habita uma época diferente. Destes paradigmas poucos atores do cosmo ocidental tentaram ou conseguiram, total ou parcialmente, se desprender. Cumpre exarar que estes parâmetros, ao tipificarem o ethos ocidental, relacionam-se não só com os expoentes diretamente relacionados com os modos de reprodução histórica deste padrão civilizatório, vale dizer, com a classe proprietária dos meios de produção, quanto também poderiam ser estendidos para linhas de pensamento que se posicionaram a partir de um ponto de vista em tese crítico ou antagônico a ele, dentre estas vertentes, as que fundamentam muitos primados marxistas mereceriam menção obrigatória. Vale lembrar, o fato de os genitores do materialismo histórico terem desenvolvido uma poderosa teorização crítica do capitalismo, não pode subentender uma ruptura completa com a visão imperante sobre o mundo extraeuropeu, e tampouco, até por falta de alternativa, com a matriz civilizatória na qual estavam imersos. Não por outra razão, senão pelo fato de que tanto Karl Marx quanto Friedrich Engels não estavam, e nem sequer poderiam deixar de estar, alheios às concepções da sua época e do seu mundo. Foi em função de uma atmosfera desenvolvimentista, reforçada pelo cogito iluminista setecentista, por sua vez empapado pela ideologia do progresso, que Karl Marx e Friedrich Engels foram categóricos, por exemplo, na defesa de uma necessidade histórica de um máximo 1 112 desenvolvimento das forças produtivas, cuja prossecução, era vista como uma alavanca para o progresso da história. Certamente contagiados pelo autêntico triunfalismo que caracterizou a expansão do capitalismo industrial, adscrições economicistas, produtivistas e eurocêntricas não deixaram de impregnar a produção teórica e as avaliações de Marx e Engels. Detalhando melhor, pode-se destacar a predisposição dessa vertente filosófica em considerar o avanço das forças produtivas como epítome da transformação do meio ambiente pela ação triunfante do homem, corporificando desse modo sua marca no meio natural 13. Promovida pelo capitalismo, tal tendência auguraria uma festejada “vitória sobre as forças da natureza” e na esteira desta, teríamos, fazendo jus ao panegírico desfecho do “progresso da história”, a instauração apoteótica da esperada sociedade socialista (COLLINSON, 2004: 190/196; MORIN et KERN, 2003: 79 e também VESENTINI, 1989: 48/50). Subliminarmente, às conceituações de “progresso” e também de “desenvolvimento das forças produtivas”, basilares na lógica marxista, se instala a estigmatização de “atrasado” a tudo que fosse entendido como incompatível com as exigências estruturais da modernidade. Daí que Marx e Engels, mesmo esboçando modelos preocupados com as especificidades das formações sociais “pré-capitalistas”, jamais deixaram de homenagear o Ocidente como parâmetro do 13 Lembre-se que a adoção do conceito de Produtvekraefte (forças produtivas), em oposição a Produtiveenergien, (energias produtivas), um dos debates apócrifos da parceria Marx-Engels, teve enormes repercussões para o marxismo, impedindo, por exemplo, o avanço na direção de uma visão “histórico-energética”, que poderia ter se estabelecido antes ou por si mesma (Cf. ALIER, 1992: 48. Ver também WITTFOGEL, 1992). 1 113 desenvolvimento geral da humanidade, uma meta obrigatoriamente pavimentada por uma visão unitária do devir histórico. Deste modo, ao desqualificarem o universo das plurifacetadas sociedades nãoocidentais, coerentemente se posicionaram em favor da dominação colonialista, entendida como “suporte da civilização” (SOFRI, 1977: 30; BALANDIER, 1969: 12/13). Dentre diversas exemplificações disponíveis, é possível recorrer às que seguem, reveladoras da índole com que o marxismo avaliava o mundo “pré-capitalista”. Karl MARX, no seu comentário sobre a dominação britânica na Índia avaliava que esta teria dois papéis a desempenhar naquele país: um “primeiramente destrutivo”, através do aniquilamento da velha sociedade asiática, e um outro posterior, de “caráter regenerador”, através do lançamento dos fundamentos materiais da sociedade ocidental na Ásia (1976: 27, grifos nossos). Marx também demonstrava grande indisposição para com a religião indiana, em face dos seus adeptos desenvolverem “um degradante culto à natureza, prostrando-se aos pés de Hanuman, a macaca, e de Sabala, a vaca” (idem, 1976: 25). Deve ser reconhecido que Marx e Engels, assim como Émile Durkheim e outros mestres fundadores das ciências sociais (com a notável exceção de Max Weber), observavam a era moderna como uma época turbulenta, permeada por contradições, ambiguidades e prenhe de quimeras de todo o tipo. Não obstante, acreditavam que nesse período histórico (e muito mais do que em qualquer outro), residiriam possibilidades promissoras, trazendo em seu bojo uma sociedade de tipo novo, capacitada a dar conta das vicissitudes ensejadas pela própria modernidade, superando indesejados efeitos 1 114 colaterais negativos. O marxismo entendia a luta de classes como uma fonte de dissidências fundamentais na ordem burguesa. Mas, ao mesmo tempo vislumbrava a partir dela a emergência de um sistema social mais humano (Cf. GIDDENS, 1991: 17). A linha clássica de argumentação do materialismo histórico, exaltando a fé no progresso, na ciência e no desenvolvimento das forças produtivas, termina basicamente por identificar como o grande e quase único problema a questão da apropriação privada e da irracionalidade burguesa na condução do mecanismo da economia. Por estas vias, tanto Marx quanto Engels, jamais questionaram o paradigma central, qual seja, a crença no primado da economia e no desenvolvimento incessante. No interior do pensamento marxista, tal como no da ordem imaginária moderna, a produção de riquezas não possui limites. Deste modo, a própria crítica elaborada por Karl Marx ao capitalismo, ...não é uma crítica ao desenvolvimento das forças produtivas. Marx é estritamente falando, um clássico da modernidade, tal como Adam Smith, David Ricardo e Stuart Mill, para assinalar alguns poucos dos que seriam conhecidos como economistas (GONÇALVES, 2001: 34). Por extensão, a racionalidade científica que embalaria a futura sociedade socialista, viria obviamente prosseguir com o progresso, que agora dispensando os nefastos desequilíbrios intrínsecos à forma de produção capitalista, derivados da anarquia de mercado e da ausência de planejamento, teria então um livre curso, para benefício da totalidade do corpo social (apud VESENTINI, 1989: 49). 1 115 A partir destes arrazoados, faria pleno sentido o consenso que paulatinamente se estabelece quanto ao ponto de vista pelo qual o socialismo, tal como foi efetivamente aplicado em muitos países, teve basicamente o mesmo telos que o sistema capitalista em relação ao meio natural, dispondo, para assegurar a “vitória” sobre as forças da natureza, de concepções e de aparatos técnicos e científicos pelo mínimo, assemelhados aos do Ocidente capitalista. O fato é que os dois sistemas explicitaram, a seu modo e a seu tempo, sociedades consagradas ao trabalho, tributárias do econômico, voltadas para a produção, entendendo o espaço público enquanto uma órbita de interesse do governo e do Estado, assentadas com base no primado do racional, ou no que interessaria mais diretamente, na oposição ao natural (Ver a respeito DIÓGENES, 1992). É neste sentido que a questão ambiental suscita um debate que se coloca qualitativamente adiante da mera discussão referente aos sistemas econômicos. Na realidade, o ponto nodal desta discussão é a crítica dirigida a um modelo civilizatório bifronte, modelado por duas ramificações diametrais: o capitalismo e o socialismo. Por esta razão, trabalhar com uma visão desmistificadora, demanda, para além do estudo de epifenômenos, precipuamente os primados ontológicos mais abrangentes que lhes caucionam sustentação. Assim, é justamente por intermédio desta via que a questão da ordenação social do tempo e da organização do espaço tornam-se relevantes, certificando quanto ao conteúdo de novidade que o mundo moderno historicamente inaugura, inclusive na comparação com a sociedade medieval europeia que o precedeu. 1 116 3.3. A IMPERIOSIDADE DA DISCUSSÃO DO TEMPO Até o presente momento, a análise em curso sumarizou as implicações do relacionamento mantido pelas sociedades tradicional e moderna no tocante ao meio ambiente. Entretanto, sublinhar a descontinuidade demarcada pela modernidade requer abordar, daqui em diante, as mudanças que o mundo ocidental instaurou no trato com a natureza, assim como as construções imaginárias talhadas para defini-la, apreendê-la e dominá-la. Aqui, importa grifar que o vocábulo “ecologia” está impregnado, como foi sopesado, de clara modernidade. Em consonância com esta linha de abordagem, em nada as intempestividades ambientais de outrora poderiam justificar qualquer identidade com o que se observa no mundo atual. Uma coisa é entender que o homem do passado não dispunha da “sensibilidade ambiental” muitas vezes apaixonadamente apregoada pelas criações mentais ambientalistas. Mas outra coisa, inteiramente diferente, é com isso pretender equipará-lo ao homo occidentallis. Nada mais falso e improcedente. Hoje, destrói-se o ambiente natural numa escala e velocidade nunca vista anteriormente e, para completar, numa ferocidade jamais registrada nas formações sociais do passado. A este respeito, incisivo relatório divulgado pela entidade World Wildlife Fundation (WWF), em outubro de 2004 informou que: A cada 13 minutos uma espécie de animal desaparece no mundo. As populações de animais terrestres, de água doce e marinha tiveram uma redução de 40% no período de 1970 a 2000. A redução da fauna é causada, de 1 117 acordo com o relatório Planeta Vivo 2004, pela crescente demanda por alimentos, fibras, energia e água, assim como pelos métodos não sustentáveis de produção. O relatório mediu também a taxa de uso dos recursos naturais do Planeta. A conclusão foi que a população mundial consome cerca de 20% a mais de recursos do que a Terra é capaz de repor. Desde 1961 a pressão humana sobre fontes de recursos naturais aumentou, em média, 160% (citado in Manchetes Socioambientais, edição de 22-10-2004). Como resultado, uma batelada dantesca de entropias ambientais assedia o homem contemporâneo, que por sua intratabilidade são repassadas, na premeditada busca de um “estado premeditado de desatenção civil”, para um temerário segundo plano (Vide GIDDENS, 1991:130). O mundo moderno vê-se diante de um pathos saturado de angústias, prisioneiro das ansiedades engendradas insensatamente pelo próprio modelo civilizatório que propõe. Deve-se a Sigmund Freud a célebre sentença mal-estar da cultura, título do conhecido ensaio no qual o egrégio pensador, pai da psicanálise, expõe um metódico alarma quanto as implicações de uma civilização técnica e racionalista, estopim da possibilidade de destruição total conferida pela lógica moderna na ciência à violência humana. Sem titubear, Sigmund Freud divisava do modo que segue a respeito das decorrências da propensão da razão ocidental em negar, ignorar ou desqualificar os tentames sensíveis nos quais os humanos se embeberam de afirmação existencial durante a maior parte de sua trajetória na Terra: Os homens alcançaram um domínio tal sobre as forças da natureza que se lhes tornou difícil hoje em dia servirse delas para se exterminarem até o último. Eles sabem 1 118 disto, e daí provém uma boa parte da inquietação atual, de seu mal-estar e de sua angústia. É de se esperar que o outro dos dois poderes celestes, o Eros eterno faça um esforço em afirmar-se na luta contra seu adversário, o Thanatos, também eterno. Mas quem é que poderá prever o resultado e o desfecho? (citado in LEÃO, 1992: 225). Objetivamente gerados pela ação de sistemas de conhecimento ocidentais, corporificou-se um ambiente de risco imantado por uma perturbadora pauta de agressões ao meio natural, quase sempre sem solução à vista (Vide ELLIOTT, 1998). Nada pior para embalar os pesadelos do homem contemporâneo, uma contabilidade infatigável de desequilíbrios difundiu-se planetariamente, tendo por pano de fundo a elevação do nível dos oceanos, a destruição da atmosfera terrestre, o exaurimento total do solo e o desaparecimento da maior parte das espécies animais e vegetais. No que ninguém até poucas décadas atrás ousou profetizar, até mesmo os abundantes (e vitais) recursos hídricos da Terra, também terminaram por ingressar nos prognósticos sombrios das substâncias colocadas cada vez mais à distância da satisfação das necessidades humanas. Este momento da civilização humana evidenciaria um mundo vitimado por sua própria racionalização e despaganização do cosmos. Deste modo, levada a defrontar-se com perigos laicos gerados pela dessacralização de valores, crenças e posturas que durante a maior parte da história da humanidade respaldavam sua conduta, a weltanschauung da modernidade repudia as antigas contribuições do mundo tradicional enquanto suporte ontológico e de percepção do real. Fato que se impõe por si mesmo, a modalidade contemporânea de crise ambiental estaria enraizada nesta nova correlação metafísica 1 119 que, reinando de modo absoluto, pode de fato vaticinar e conduzir a sociedade humana global para um malfadado império da desordem sem fim. Posicionados no centro de uma crise ambiental sem precedentes, o conjunto dos humanos possui motivos de sobra para repensar esta questão de modo a visualizar possibilidades para sua superação. Neste sentido, as construções sociais do espaço e do tempo, ao serem reveladoras do caráter dos modelos de relacionamento com o meio natural, constituem, mais do que quaisquer outros, aspectos indispensáveis para o entendimento dos mecanismos de perpetuação e reprodução dos sistemas de engenharia criados pelos humanos (passim SANTOS, 1978a e 1988). Não seria demasiado enfatizar, entre tempo e espaço se afirma uma solidariedade de mote perpétuo. Para determinada organização do espaço, associa-se determinado tempo social para assegurá-la, vínculo este de caráter mútuo. No apontamento do geógrafo Ariovaldo Umbelino de OLIVEIRA, as dimensões temporal e espacial, “tomadas em sua indissolúvel unidade, caracterizam a plenitude de existência do mundo material sob aspectos que se completam reciprocamente” (1982c: 109). Cabe assinalar, este relacionamento entre estas duas dimensões exclui mera interação mecânica. O traço geral do espaço e do tempo, no matrimônio que sacramenta a sinergia eterna que os mantém imantados, “consiste no fato de que neles estão unidos os momentos da mutação e da estabilidade” (Vide OLIVEIRA, 1982c: 97). 1 120 A singularidade deste emparceiramento reclama a agregação de comentários conceituais suplementares na órbita da temporalidade. Aparte as narrativas nas quais tempo e temporalidade convivem em condição de sinonímia, nas demais, estas terminologias remetem a duas diferenciadas conceituações: enquanto que tempo implica em um entendimento de uma acepção social mais geral, temporalidade diria respeito à forma como diferentes apreensões da fruição temporal se desenvolvem no interior do espaço de determinada sociedade. Advertia a este respeito o geógrafo Milton SANTOS: ...O território é, na verdade, uma superposição de sistemas de engenharia diferentemente datados, e usados, hoje, segundo tempos diversos. As diversas estradas, ruas, logradouros, não são percorridos por todos. Os ritmos de cada qual - empresas ou pessoas não são os mesmos. Talvez fosse mais correto utilizar aqui a expressão temporalidade em vez da palavra tempo (1998: 45/46). Seja como for, com base nesta pilastra cognitiva, a modernidade calibraria um brocardo comum ao passado da humanidade, visto que sumamente, não há nenhum sistema social que prescinda de uma forma de percepção e de organização do tempo. Convém assinalar que o significado forja o tempo na realidade simbólica da cultura e da história, e, portanto, esta dimensão não pode ser definida enquanto uma simplória sucessão de eventos (LEFF, 2004: 338). Deste modo, no tocante ao tempo social, tal noção constitui um dos traços identitários marcantes da personalidade histórica das civilizações. Recorrendo às palavras do historiador judeu russo Aaron Yakovlevich GOUREVITCH, as representações do tempo: 1 121 ...são componentes essenciais da consciência social, cuja estrutura, reflete os ritmos e as cadências que marcam a evolução da sociedade e da cultura [...], sendo que cada civilização percebe o tempo através de sistemas que lhe são próprios. Estes se formam durante a atividade prática dos homens, à base de sua própria experiência e da tradição herdada das gerações anteriores. A cada etapa do desenvolvimento da produção, da evolução da economia e do homem com relação ao meio natural, correspondem maneiras particulares de viver o mundo (1975: 263). Uma vez definido um percurso analítico que assume o espaço e o tempo como seu cerne, torna-se factível, deste ponto em diante, avaliar a asserção do mundo moderno resultar do predomínio de um gabarito temporal específico. A modernidade capitalista, tal como as demais formações socioespaciais da história, deve seu dinamismo a uma leitura particular da fruição do tempo, que a mesmerizou e direcionou rumo à hegemonia planetária. Nesta perspectiva, caberia evidenciar seus traços específicos assim como a sua dinâmica, de forma a resguardar a historicidade que lhe é inerente. Por contraste, assevere-se em primeiro lugar que no universo tradicional, de modo praticamente geral, os ritmos sociais estavam encadeados com visões rotatórias, cíclicas e não-lineares do tempo. Nas sociedades sob a tutela da tradição, a apreensão do tempo era modelada por ciclos naturais e astronômicos, como as fases da Lua, das estrelas ou da Terra em rotação e revolução. Entretanto, tal como adverte o geógrafo sino-americano Yi-Fu-TUAN, a ordenação da vida social por meio de fases ecológicas foi gradativamente escamoteada com o avanço da modernidade, de modo que: 1 122 O homem moderno reconhece estas fases recorrentes, mas para ele, pouco mais são do que ondas na direção da corrente do tempo. O tempo, para ele, tem direção e a mudança, é progressiva. Acredita-se que a visão escatológica do cristianismo promoveu o sentido de mudança progressiva. Entretanto, o sentido do tempo do homem medieval, refletindo o seu cosmo vertical e rotatório, era essencialmente cíclico. Foi somente no Século XVIII que o conceito linear e direcional do tempo tornou-se importante (1980: 170). Na pré-modernidade, o tempo não se desenrolava de maneira linear do passado para o futuro. O universo de valores do mundo da tradição, a partir dessa decidida recusa ontológica, excluía qualquer subordinação do fruir do tempo a lógicas que matematizassem o seu encadeamento, abstraíssem sua organicidade com o meio natural ou que as divorciassem de códigos rituais e simbólicos. Nas sociedades tradicionais o tempo ora é imóvel, ora é cíclico: Aquilo que já foi, retorna a intervalos determinados. Esta concepção do tempo, que se encontra também muito mais tarde, numa forma renovada e em sistemas muito mais evoluídos, está em grande parte ligada ao fato de que o homem não se desligou da natureza, e sua consciência se subordinou às transformações periódicas das estações do ano e dos ciclos de produção que lhe são adaptados (GOUREVITCH, 1975: 265/266). Na antiguidade, a interpretação do mundo natural e do universo social, regrado pela noção da circularidade do tempo 14, sustentava- A discussão sobre o tempo cíclico é de grande complexidade, ultrapassando os limites deste texto. Vale assinalar que a conceituação é objeto de controvérsias, em especial quanto à tendência em entendê-la como universal ao conjunto das civilizações nãoeuropeias. No caso africano, Sulayman S. NYANG sugere, por exemplo, uma outra interpretação, propondo uma introversão tridimensional pela qual o tempo seria simultaneamente passado, presente e futuro, repudiando as interpretações unilineares, tipicamente ocidentais, e a ascética, relativa ao Oriente (1983: 32). É possível, entretanto, destacar conexões e traços comuns aos tempos sociais das populações tradicionais, fundamentados na perdurabilidade e na afinidade para com aspectos 14 1 123 se num paradigma no qual este se renovava continuamente, que num apuro arquetípico, amparou elaborações como a conhecida crença no eterno retorno (Vide ELIADE, 1978). O tempo cíclico era presidido em nível do imaginário por forças e divindades poderosas, que presidindo o real a partir de um anteparo cósmico, amparavam sua emanação e continuidade. A intelecção do tempo, apelava para convocatórias mágicas e para uma idiossincrasia cultural alicerçada em uma trajetória histórica e social específica. Conclui-se então que o conceito de tempo cíclico, predominante nas sociedades primitivas e nas civilizações antigas, bem como em certos povos europeus 15, subentendia que este era: ...produzido por um outro estilo de vida, por uma concepção particular do mundo, por um tipo preponderante de sociedade. As concepções de tempo nesta ou naquela sociedade ou região cultural, refletem a cadência da evolução social. O predomínio, na consciência social, do tempo cíclico sobre o tempo linear, é condicionado pela relação específica entre os elementos dinâmicos e os elementos estáticos no processo histórico (GOUREVITCH, 1975: 283). Considere-se que estes enunciados não são redutíveis a elementos abstratos. Antes, estão impregnados por determinações concretas. A acepção do tempo cíclico, prescrevendo uma lógica na qual o passado, o presente e o futuro se entrelaçam numa única expressão temporal, pavimentava o substrato de uma identidade duradoura das relações sociais. O tempo circular, detendo um caráter qualitativos, sensíveis ou “topológicos” da realidade (passim WALDMAN, 1997 e 1994b). 15 Convém sublinhar que o pensamento grego não omitia, por exemplo, a concepção de tempo cíclico, prolóquio que transparece na filosofia e nos mitos dos helenos (Ver a respeito, LLOYD, 1975). 1 124 reversível, declinava numa segurança ontológica imiscuída nas práticas rotinizadas pela tradição, constituindo a mola mestra propulsora da temporalidade (Cf. GIDDENS, 1991: 107). Tal postura frente ao tempo, presente nas cosmogonias relativas ao tempo nas sociedades antigas, integrava uma prefiguração imaginária maior, na qual um tempo cósmico, articulado com os fluxos maiores do meio natural, formava uma identidade inquebrantável do espaço-tempo social com o natural, do espaço habitado com o cosmos no sentido mais amplo (Cf. ELIADE, 1978 e BANU, 1969). Ora, a modernidade altera radical e visceralmente este quadro de organização do tempo. Na lógica de reprodução do capitalismo: ...as máquinas só são produtivas, ou seja, só funcionam como capital em movimento. Os trabalhadores só produzem no processo de trabalho. As matérias primas são riquezas que por si só podem ser destruídas. É, portanto da essência do processo de produção material que as relações sejam um fluxo contínuo (SEABRA, 1987: 148, grifos nossos). Neste sentido, a organização do tempo no capitalismo advoga uma ordenação linear e progressiva da temporalidade, que esteve (como ainda está), diretamente articulada com o tempo da produção, da circulação, do consumo e da realização da mais valia (SANTOS, 1988). Naturalmente, este entendimento moderno da temporalidade não surgiu de uma hora para outra. Antes, resultou dos anseios da nascente ordem capitalista, aconchegada à axiomática auri sacra fames, com a qual, enveredou por um longo, exaustivo e cumulativo compêndio de especulações intelectuais. 1 125 E, no que há de singular, nada semelhante à temporalidade moderna pode ser localizado no passado do homem. A temporalidade inaugurada pela economia de mercado é alheia aos ciclos presentes no espaço natural, que outrora foram referência determinante para a organização do próprio tempo social. Uma vez extintos os laços de solidariedade que sempre haviam conectado de forma inquebrantável o espaço e o tempo, sobreveio então uma hegemonia inconteste do tempo. Na modernidade, e unicamente a partir do seu surgimento, é que o espaço passa a ser verdadeiramente remate de uma produção, emanação direta dos fluxos do tempo, resultado objetivo, concreto e material da dimensão temporal. A irmandade imemorial que sempre havia governado as relações do espaço com o tempo foi rompida, sobrevindo mecanismos que alargaram cada vez mais o fosso entre estas duas esferas, disto decorrendo a necessária menção ao que terminou categorizado como desencaixe do tempo para com o espaço (GIDDENS, 1991: 25/27). É deste modo que o ordenamento da temporalidade edificado pela modernidade termina por calçar e afiançar, no final das contas, os mecanismos catalisadores de entreveros ambientais. Contrastando com todas as demais acepções do tempo a ele anteriores, este fato impõe a exigência de discutirmos o tempo linear e progressivo. Presente direta ou indiretamente em todas as manifestações do mundo contemporâneo, tanto nas concretas quanto nas imaginárias, uma linha de investigação tocada pela decifração desta normatização temporal solicita obrigatoriamente uma exegese sobre sua gênese e desdobramentos. 1 126 3.4. A MODERNIDADE E A FALÊNCIA DO MUNDO TRADICIONAL EUROPEU Em similitude com o que foi colocado, a investigação do tempo social remete ao modelo de mundo engastado a este ou aquele momento histórico, sua especificidade geográfica, suas expectativas sociais, assim como os demais desdobramentos a ele pertinentes. Nesta linha de análise, a plena compreensão da instauração do tempo linear e progressivo ou então, vetorial (Cf. TUAN, 1980), não poderia se circunscrever à modernidade. Resultando de um processo que se estendeu ao longo de muitos séculos, esta análise requer que seja passado a limpo o continuum que serviu de nascedouro para o nascente sistema capitalista, qual seja, a Europa medieval. Por esta via, o primeiro aspecto digno de nota é o fato da temporalidade moderna nascer do interior de uma formação social, o feudalismo, que de forma semelhante às demais sociedades prémodernas, tinha na perdurabilidade, na multiplicidade e numa afinidade sensível para com a fruição do tempo, uma das suas marcas mais proeminentes. No sistema feudal, a temporalidade estava em consonância com um mundo agropastoril, autárquico, autossuficiente e produtor de valores de uso, no qual o mercado era uma entidade muito distante de posicionar-se uma esfera central da sociedade (Vide POLANYI, 2000: 76/88). Embora muitas análises notifiquem que o mundo feudal não era regrado por uma economia propriamente “natural”, isto é, na qual as 1 127 transações monetárias e o comércio fossem inexistentes, ressalve-se, de outra parte, que o mercado detinha expressão meramente local, desprovido da autorregulação assumida nas etapas contemporâneas capitalismo (POLANYI, 2000). Quanto ao intercâmbio mercantil com terras estrangeiras, ocorrendo de modo esporádico e voltado para o consumo suntuoso das elites, este não desempenha nenhum papel determinante nos fins e nos métodos de produção, detendo escasso poder de influência em uma sociedade orientada pelo costume e pela tradição (Cf. SWEEZY, 1977: 22/23). Neste recorte, o localismo de poder era regra. A ordem social correspondente a este estado de coisas, formada por camponeses, guerreiros e sacerdotes, primava por uma “lentidão” condicionada pela sazonalidade da organização agrária predominante. O universo medieval era ainda perpassado pela religiosidade, que expressava, de modo bastante modelar, a acomodação com este estado geral de coisas. Em suma, a partir dos escombros do Império Romano, o feudalismo estabelece o tempo eclesiástico ou da Igreja. Ao longo de toda a Idade Média, e semelhantemente ao mundo tradicional em geral, o tempo, dado seu imbricamento com o meio natural, encaixava-se com o espaço. Tal determinação, era reforçada em nível do imaginário social, por representações simbólicas que preconizavam e reafirmavam o isolamento de um pequeno mundo povoado em grande parte por agricultores, cujo cotidiano apenas excepcionalmente era constrangido pelas tempestades da política 16. Numa das múltiplas exemplificações que poderiam ser perfilhadas quanto ao conjuminamento do espaço das antigas coletividades humanas com o universo e a convivialidade cósmica, observe-se que no idioma russo, a palavra mir (мир) significa simultaneamente aldeia, paz e mundo. 16 1 128 Nesta formação social, o desconhecido, o estranho, o alienígena enfim, era por motivos óbvios repudiado por ser um elemento potencialmente perturbador de um universo avesso a novidades, aferrado à repetição dos trabalhos, normas, ritmos e das técnicas recebidos de forma hereditária, produzindo os mesmos produtos e sistematicamente entregando parte da produção à mesma família dominante, que se perpetuava no poder por um código estamental. A territorialidade eminentemente local do feudalismo implicava que a alteridade também estivesse concatenada nos planos concreto e imaginário a uma contextualização espacial. Não fosse deste modo, dificilmente esta poderia estar vinculada à construção de um discurso justamente preocupado em assinalar sua singularidade por meio de linhas identitárias que circunscrevia espacialmente o mundo feudal. Os alienígenas, de modo comum ao conjunto do pensamento tradicional, habitavam os bordos do espaço, situam-se após os limites do mundo conhecido, vivendo para além das fronteiras reconhecidas. Quando muito, “o outro” habitava na melhor das hipóteses os “poros” de uma dada sociedade, manifestando-se enquanto uma organização de alógenos que coabitava de modo estanque um espaço social e politicamente referendado por elementos sociais com os quais não comungavam anseios de qualquer índole. Esta conformação é patente na relação com “o outro” medieval que era, por excelência, o judeu. Os preconceitos contrários a esta minoria, centrados na alegoria do Ahasverus (o judeu errante), tinha por sustentação uma argumentação de fundo teológico e religioso voltada contrariamente a um grupo etno-social que, face aos critérios 1 129 feudais, constituía um segmento desterritorializado. O Ahasverus respondia por um imaginário por meio do qual o judeu era integrado pela rejeição, engendrado como marginal e diferenciado para que não deixasse de existir (Cf. PINSKY, 1981: 11). Por conseguinte, este antagonismo, mais do que por critérios de ordem religiosa, estava articulado com a atividade que lhes fora reservada pelo próprio sistema feudal: a de responsáveis pela restrita circulação monetária admissível num modus economicus autárquico, atividade estigmatizada por estar em contradição com os mecanismos maiores de reprodução social e econômica do feudalismo. Em suma, o feudalismo materializa uma sociedade voltada para si mesma, mostrando-se desinteressado pela ampliação dos contatos e das comunicações. Na escala do continente, a indisposição em ultrapassar os temidos limites conhecidos abrigou-se num imaginário impeditivo da ultrapassagem das fronteiras geográficas. Em todo o medievo, grassavam crenças pelas quais, por exemplo, as latitudes equatoriais seriam inabitáveis devido ao calor escaldante. Não fosse suficiente, existia o temor de monstros, espíritos e criaturas malignas incrustadas em nichos mal conhecidos das terras emersas, dos rios e oceanos (silfos, elfos, vampiros, bruxas, dragões, serpentes marinhas, demônios, basiliscos, harpias e salamandras). Este sentimento estava associado a uma visão demonizante das paragens limítrofes à Europa, possível pátria de populações temidas e estigmatizadas (lotófagos, antropófagos, pagãos e semi-humanos em geral), que para piorar, também poderiam estar adereçadas, como os países maometanos, do status de inimigos da Cristandade. 1 130 Além destas, crenças como as da terra quadrada, findando após a ultrapassagem da última vaga do oceano num abismo sem fim, literalmente aprisionaram os europeus durante séculos no seu compartimento continental. Neste quesito recorde-se que a imagem de um mundo quadrado, comum a diversas culturas e civilizações pré-modernas, não poderia ser preconceituosamente indicativa de “sinal de atraso” do homem tradicional. A humanidade, durante a maior parte da história, habitou compartimentos territoriais dos quais raramente se distanciava. A noção da “Terra chata” e/ou “quadrada”, era alimentada pelo enraizamento do homem tradicional no seu espaço vivido, que lhe fornecia uma base objetiva para este tipo de compreensão. Assim sendo, a “quadratura do mundo” refletia tão só uma apreciação empírica (a propósito, fenomenologicamente correta), assumindo o compartimento territorial como observatório da trajetória do Sol: ...A direção da marcha aparente do Sol no firmamento, permitiu ao homem considerar um primeiro eixo estável, com um ponto fixo correspondendo ao lado em que o Sol aparece no horizonte, e outro lado em que ele desaparece. A partir deste eixo Leste-Oeste, não foi difícil estabelecer outro no sentido Norte-Sul (OLIVEIRA, 1978: 36). Logo, refutando julgamentos plenificados por ilações indevidas, Cristóvão Colombo, em sua jornada de “descoberta” da América, não propriamente contestou, por exemplo, a “ignorância” da tripulação. No fundamental, o navegante denegou uma concepção tradicional de espaço que acudia no âmago dos corações e das mentes dos seus marinheiros, repetida de geração em geração, e no que a revestia dos 1 131 lauréis de um axioma indefectível, empiricamente observada no dia a dia, conquistando assim foro de verdade indiscutível. Numa das variadas confirmações de que a visão geral do mundo transcende a realidade objetiva, isoladamente ou em conjunto, tais elementos imaginários constituíram fatores determinantes para o enclausuramento dos europeus, reforçando o sentido autárquico do sistema feudal. Os aterrorizantes sentimentos que inundavam a mentalidade europeia são representativos do quanto o imaginário termina pautando as relações dos humanos com o espaço habitado. Como argumentou o geógrafo norte-americano David LOWENTHAL: As esperanças e o medo da mente humana frequentemente animam as percepções de senso comum. A localização suposta e os aspectos do paraíso estimularam muitos cartógrafos medievais, muitas expedições de exploração procuraram alusivos Eldorados (1985: 119). Deste modo, mesmo quando o homem medieval encetava formidáveis caminhadas para fora de seu compartimento continental era em função de referências maravilhosas que impregnavam seu espírito. Por exemplo, viajantes isolados partiram em busca de impérios fabulosos, como o legendário reino de Prestes João, um mirabolante governo cristão instalado em algum nebuloso rincão da Etiópia ou das Índias. Muitas crônicas descreviam este reino mítico repleto de riquezas infinitas. Ameaçado pelos irascíveis muçulmanos e por pagãos convictos, este país, farol da mensagem do espírito santo num espaço sufocado pelas forças do mal, aguardaria por um auspicioso contato com a Cristandade. Esta notícia, espalhando-se pela Europa ao longo do Século XII, inundou os mapas da época, 1 132 seduzindo aventureiros a assumirem as mais desatinadas peripécias. Nos albores do Século XVI, este reino persistia em fazer-se presente nos mapas confeccionados por Diogo Homem, Abraham Ortelius e muitos ilustres cartógrafos, demonstrando a força das configurações imaginárias na percepção do espaço, assim como o animus que as mobilizava (NEBENZAHL, 2004: 9 e 52). Todavia, a partir da Baixa Idade Média, o imaginário espacial do mundo tradicional europeu termina profundamente convulsionado por uma ordem de considerações associada ao avanço da modernidade, expulsando os temores relacionados com seres desconhecidos e aos espaços interditos aos ocidentais. Decididamente, os antigos móveis da percepção do espaço expunham uma volição carente de quaisquer analogias com o novo universo de valores, eivado pela racionalidade, força motriz dos novos relacionamentos engendrados pela economia de mercado. Os ensejos que passariam a alimentar as aventuras dos viajantes europeus seriam outros, absolutamente diferentes da Era Medieval. Lenta, mas inexoravelmente, uma outra ordem das coisas vai sendo instaurada, desintegrando a antiga sociedade e todos os elementos que a compunham, que durante gerações sucessivas, lhe oferecia afago e segurança. O fortalecimento do comércio no interior do espaço europeu originou, ao longo das florescentes rotas comerciais de Flandres, Borgonha e Norte da França e da Itália, um desenvolvimento urbano que credenciou as cidades como uma articulação espacial passível de desagregar o feudalismo. As concentrações urbanas passaram a ser o cenário no qual se abrigou e fortaleceu um novo ator social, a burguesia. Sintomaticamente, a classe burguesa deve sua identidade 1 133 ao burg, diga-se, à cidade, tal como este espaço é conhecido em muitas das línguas germânicas. Os objetivos desta nova categoria social para com o tempo diferiam consideravelmente de tudo aquilo que até então havia sido formulado ao longo da história. A classe burguesa, construindo uma compreensão de mundo adequada aos seus interesses, foi, passo a passo, elaborando sua própria concepção da temporalidade. Além das óbvias pré-condições materiais, o tempo social da modernidade firmou-se com base em elaborações filosóficas e científicas, vale dizer, na formação de um imaginário, primeiramente evidenciado nas obras dos pensadores da Renascença. Neste período, ...um conjunto de circunstâncias instituiu a prática da observação atenta e metódica da natureza, acompanhada pela intervenção do observador por meio de experimentos, configurante de uma atitude mais tarde denominada científica (SEVCENKO, 1984: 11). O objetivo deste desenvolvimento científico e tecnológico era o domínio do meio natural, garantindo a exploração de todos os recursos possíveis em proveito do tempo de mercado. Definindo uma visão de mundo sem paralelo na história humana, este imaginário inseriu um alcance insuspeito mesmo para seus mais entusiasmados próceres, arautos e apologistas. A ciência, objetivando a dominação da natureza, passou a ser concebida com base em pressupostos eminentemente racionais. Este posicionamento, tendo por pretensão uma descrição matemática da realidade, induziu a preocupação com as propriedades quantificáveis da matéria. Consequentemente, as experiências decorrentes da sensibilidade estética e ética, valores, 1 134 qualidade e sentimentos, motivos e intenções, não redutíveis a este paradigma, foram por definição expulsas dos domínios do discurso científico e prontamente excluídas das especulações dos cientistas, por serem consideradas desprovidas de respeitabilidade (Cf. CAPRA, 1991: 51). Coerentemente, o conhecimento científico moderno abandonou as dimensões qualitativas nas quais a consciência social dos humanos movimentou-se durante a maior parte da história. A ciência foi inteiramente laicizada e expurgada das considerações de ordem cósmica que haviam influenciado seus fundamentos até um passado não muito distante. Paralelamente, a compatibilidade entre ciência e técnica de um lado, e a arte e a vida, do outro, patentes, por exemplo, na etimologia da palavra tecnologia (do grego teckne, qual seja, arte), desapareceu, criando um fosso que se aprofundou cada vez mais, reverberando de modo inconteste até a atualidade. Fato pouco sublinhado, o fenômeno renascentista prenunciava a moderna sociedade capitalista. Neste sentido, como assinalou Pascal ACOT, este período consuma antes uma transição que propriamente um renascimento na qual o cosmos por inteiro foi geometrizado e revisto matematicamente (Cf. 1990: 13). Neste paradigma, a natureza deixa de reverberar significados cosmogênicos, sendo esvaziada dos antigos sentidos sensíveis e transformada tão somente em uma fonte de recursos para o sistema de produção de mercadorias em marcha. As cosmogonias antigas, caracterizadas por uma proximidade com a natureza e seus ciclos, foram definitivamente abandonadas. Foram substituídas por uma nova mitologia, em cujo centro estava 1 135 assente uma versão do antropocentrismo negadora da natureza e dos vínculos dos humanos com o cosmos. Esta nova relação com o meio natural foi destacada em verso pelo poeta inglês John Donne (15721631). Sem maiores rodeios, este homem das letras registrou: “Nós esporeamos, freamos as estrelas em seu curso. Elas se dispõem diversamente para aceitar nosso comportamento” (in ACOT, 1990: 131). Este antropocentrismo, diverso dos anteriores por justamente ignorar as pulsões e os ritmos do meio natural, justificou acelerada depleção dos recursos ecossistêmicos. Tal como foi observado, é indiscutível que as populações tradicionais, ao estabelecerem formas geralmente mais brandas na relação com o ambiente, preservaram, conscientemente ou não, os recursos naturais. Ironicamente, poderse-ia ressaltar, foi esta a estratégia que assegurou, na escala do planeta, a prodigalidade de bens naturais incorporados pela expansão da sociedade moderna, propiciando aos ocidentais, a possibilidade de posteriormente dilapidá-los sem piedade. Nesta consideração poder-se-ia recordar o destino das florestas europeias. Transformadas em fonte de matéria prima essencial para a exigente indústria naval e como matriz energética para a produção do ferro, foram abatidas com uma voracidade nunca dantes registrada na história humana. Foi paradoxalmente devido aos elevados índices de desmatamento que já no início do Século XIV surgiram os primeiros decretos visando controlar o desflorestamento. A estes se agregaram mais adiante, amplas e minuciosas legislações versando sobre o tema, caso do célebre decreto do ministro Jean-Baptiste Colbert, Das Águas e das Florestas (1669). Recorde-se, entretanto, que estas 1 136 normatizações não incluíam “compromissos ecológicos” de qualquer tipo, pois miravam sobretudo, a consecução de uma base ambiental de reprodução para o nascente sistema de produção de mercadorias. A erosão ambiental ganhou velocidade conjuntamente com uma erosão/desmantelamento cultural, consubstanciada na unificação, ou melhor, homogeneização, no âmbito linguístico, religioso e nacional, indiscernível do processo de centralização monárquica que alicerçou o predomínio da nova classe burguesa. Nada disto ocorrera antes, e certamente, sem o concurso da nova interpretação social do tempo, tal não teria ocorrido. Inspirando um cabedal de noções científicas estreantes, a novel acepção da temporalidade foi aceleradamente implantada, animando o expansionismo colonial, rompendo e/ou submetendo ao cadenciamento da produção, os diferentes tempos eleitos como objeto de domesticação: o dos humanos, o da natureza e o das formações histórico-sociais do cosmos extraeuropeu. Em resumo, a legitimação global do processo de expansão do Ocidente reportou a esta interpretação da fruição do tempo social. A criação de um novo imaginário histórico-cultural dito “nacional”, foi uma petulante peça imaginária associada a esta preocupação. Sua predisposição foi, por definição, escorraçar e sobrepujar tudo o que não fosse branco, ocidental e burguês. Neste imaginário, a burguesia reinventou a totalidade da história humana, criou personagens novos, privilegiou os detalhes que melhor se ajustavam ao padrão proposto e ao mesmo tempo desqualificou ou negou o que não lhe interessava. Atuando como polo organizador, o imaginário ocidental gestou novos modelos identitários, inspirados na rememoração e ressemantização 1 137 da herança linguística, de marcadores territoriais e de “ancestrais míticos”, hipotéticos povos fundadores das diversas nacionalidades. Por isso mesmo, uma mitologia nacional passou a “provar” que bretões, provençais, alsacianos, borgonheses e normandos, seriam franceses (isto é, seriam descendentes dos francos), e que bávaros, renanos, turíngios, pomeranos, silesianos e prussianos, seriam sem exceção, alemães (ou seja, descendentes dos alamanos). Melhor ainda, esta pretensiosa mitologia prescrevia que cada um dos novos agrupamentos nacionais, ladrilhados numa mescla de falas e dialetos díspares, de tradições locais e de particularismos irredutíveis, sempre teriam formado a França e a Alemanha, afirmações que do ponto de vista geográfico, histórico, econômico e antropológico, soariam como grosseiras, rudimentares e insolentes. O mesmo sucedeu por toda a Europa, na qual cedo ou tarde, a totalidade das populações viu-se subitamente investida do privilégio de pertencer a esta ou aquela “nacionalidade”. Nos novos modelos de identidade nacional, a Gália ancestral, povoada de celtas e adornada por menires, tornou-se uma evocação romântica do “passado do povo francês”. A Dácia, inspirou poetas e historiadores nacionalistas da Romênia na defesa de uma “ilha latina” contra o desprezado mundo eslavo e magiar circundante. A avoenga Germânia, miticamente coberta de névoa e por florestas de carvalho, terminou transformada no “território ancestral” do moderno Estado alemão. A antiga Panônia e seus cavaleiros ugrianos egressos das estepes da Ásia, tornou-se o território mítico do moderno Estado húngaro. A Roma Republicana, seus ícones e legendas teriam na Itália hodierna a herdeira das suas antigas glórias. Quanto à velha 1 138 Hélade, mesmo dividida em poleis dilaceradas por guerras intestinas entre si e que nunca desfrutaram de qualquer afinidade sociopolítica, encontraria, apesar de tudo, sua aclamada reencarnação no prosaico Estado nacional grego moderno. Sem que a afirmação sugira qualquer exagero, este processo redundou na criação de entidades étnicas e nacionais que outrora, eram virtualmente inexistentes. Para tanto, apelou-se para uma dura jurisprudência respaldada num estatuto de desnaturalização, aplicado com denodado afinco junto a vastos contingentes populacionais. Este processo, tipificado em diversas situações no transcorrer da criação dos chamados Estados “nacionais” europeus, obcecado em lapidar as novas identidades nacionais, sugeria implícita e necessariamente a remodelagem dos marcos étnicos anteriores. Entre outros exemplos, o rompante Criamos a Itália, resta-nos criar os italianos, como se sabe, uma arguição textual do primeiroministro Cavour ao rei Vittorio Emanuele nos instantes finais da unificação de uma península supostamente habitada por um único povo, escancara inequivocamente este hiato. À propos, importaria comentar que ainda hoje a Itália presencia a pertinaz militância dos particularismos regionais, inconformados com a redução dos seus linguajares (como o napolitano, vêneto, sardo e o siciliano) à condição de “dialetos” do italiano, noção que do ponto de vista linguístico, simplesmente não teria nenhum cabimento 17. Tudo isso, nada mais denuncia do que as dificuldades de construção de uma identidade italiana, assim como de diversas outras “nacionalidades”, aceitas pelo Por ocasião da unificação italiana (1870), rubrique-se que apenas 3% da população se expressava no idioma toscano, proclamado como “língua oficial” do novo Estado italiano (Cf. SOUZA, 1991: 21). 17 1 139 senso comum como realidades culturais dadas e raramente sujeitas a uma avaliação crítica. Em resumo, como negar que o imaginário nacional não enlevou cenários míticos, que de um momento para outro, foram travestidos dos lauréis de uma verdade? Na origem, o fenômeno de modelagem das nacionalidades possuiu relação siamesa com a formação dos mercados nacionais, com a criação das moedas únicas e com o fortalecimento do absolutismo real. Paralelamente, foram decretadas línguas nacionais (ou melhor, de Estado ou oficiais), geralmente com base em um linguajar com maior proeminência literária (caso do toscano, na Itália), política (o falar da corte, na França) ou comercial (o holandês, nos Países Baixos). Nestes termos, a imposição de um código linguístico unificado em nível de cada “nação”, normatizou direta ou indiretamente um conjunto de padrões de compreensão da realidade, pois programando os eventos de maneira completamente diferente, estas línguas criaram percepcionamentos dantes difusos ou inexistentes. Este processo caminhou na contramão de uma heterogeneidade que sempre, assim como para o conjunto da pré-modernidade, havia caracterizado a totalidade do continente. Tradicionalmente, a Europa esteve retalhada numa imensa Babel, aglutinando uma miríade de idiomas por sua vez fracionados em um número incontável de dialetos. No mundo medieval, a possível influência unificadora do papado não conseguiu consolidar-se frente à fragmentação objetiva do poder. Mesmo a liturgia da Igreja, vertida em latim, era um falar estrangeiro para a maioria da população. O feudalismo se nutria ao mesmo tempo em que reforçava relações de cunho local/patrimonial 1 140 que eram sua essência indiscutível. A espacialidade europeia estava decomposta em unidades territoriais autárquicas e autossuficientes, cuja fragmentação, era reforçada pela dependência funcional do meio natural. Secundando tal segmentação, povos e etnias se interpenetravam uns relativamente aos demais, com papéis sociais engastados com recortes e qualificações étnicas. Exemplificando, em regiões como a Curlândia e a Livônia, no Báltico Oriental, a Ordem dos Cavaleiros Teutônicos, classe senhorial de ascendência germânica, polarizava com uma massa camponesa de origem estoniana ou leto-lituana. Por toda a Rutênia, os latifundiários, denominados localmente de pans, eram poloneses e não ucranianos. Nas extensas planuras da GrãBretanha, os daneses, um antigo grupo viking que havia migrado da Escandinávia e se instalado em posições fortificadas na “nova pátria”, exerciam seu poder sobre um campesinato de origem celta ou anglosaxônica. Para completar, as cidades europeias, quando de caráter mercantil, reuniam fervilhantes colônias de alógenos, particularmente de judeus, armênios e outras etnias cosmopolitas. Por conseguinte, nada mais estranho ao mundo feudal do que a homogeneização aplicada pela nova classe dominante burguesa no espaço europeu. Muitas gerações antes de inaugurar o massacre das populações indígenas, de escravizar milhões de africanos e de submeter os povos da Ásia e Oceania ao seu tacão, a criação das novas identidades nacionais europeias (por sinal das quais vasta maioria seria dificilmente identificável no tecido étnico do continente apenas alguns séculos antes), ensejou um genocídio físico e cultural de proporções até então desconhecidas, acometendo centenas de 1 141 grupos, e concomitantemente, as falas, gostos, festividades, aptidões e relações socioambientais que os particularizavam, majoritariamente desmanteladas ou corrompidas, quando não, desaparecendo para sempre. A aguda percepção deste processo está contemplada nas ácidas considerações com que o geógrafo Carlos Walter Porto GONÇALVES registrou esta performance: Geralmente fala-se muito que os europeus destruíram as civilizações dos Maias e Astecas, quando da conquista da América, mas nos esquecemos que eles primeiro eliminaram os diferentes dentro da própria Europa. Onde estão os godos, visigodos e celtas, por exemplo? No próprio continente europeu, quem não era hegemônico, quem não era dominante, também foi destruído (1992: 6). Por conseguinte, e ao contrário do que é pensado por muitos, o fortalecimento das modernas monarquias nacionais europeias não se especificou exclusivamente na discriminação contra os judeus, muçulmanos ou ciganos, mas também contra todos os que fossem diferentes no próprio âmbito europeu, aí incluídos os etnicamente assemelhados. Milhares de comunidades camponesas, seus hábitos, suas tradições seculares e suas leituras da temporalidade, foram destroçadas para que pudesse vingar o tempo progressivo e o novo arranjo territorial que prontamente o acompanhava alguns passos atrás. A brutalidade destas “campanhas de homogeneização” pode ser aquilatada em função do universo da temporalidade tradicional no qual os camponeses europeus estavam imersos. Na Europa Feudal, 1 142 o tempo linear, completamente estranho ao mundo tradicional, era objetivamente ignorado pela população camponesa. O campesinato medieval estava em larga medida apegado a noções mitológicas e mágicas derivadas de um estilo de vida regrado pela sazonalidade das estações e dos ciclos agrícolas, o que justifica a popularidade das antigas práticas pagãs, criminalizadas como “bruxaria” e “paganismo” pelas autoridades eclesiásticas. Durante toda a Idade Média, o ideário cristão “não conseguiu superar o apego característico da consciência arcaica do arquétipo mítico, a atitude ritual e mágica diante da realidade e em particular, do fluir do tempo” (Cf. GOUREVITCH, 1975: 275). Isto posto, foi posteriormente a uma desmesurada operação de “purificação étnica” realizada em solo europeu, que as potências colonialistas se lançaram à imposição de seu domínio no além-mar, com resultados que, aliás, rivalizaram com estrondoso sucesso frente a estes primeiros, e nefandos, experimentos de aniquilação e de genocídio (Vide CROSBY, 2000: 71/98). A formação do Estado espanhol ilustra as linhas gerais desse processo. Primeiramente foi selada a unificação monárquica, pela união dos Reinos de Castela e de Aragão, no ano de 1479. Sucedese rapidamente a ofensiva contra o derradeiro reduto muçulmano na Península Ibérica, o Reino de Granada e a expulsão dos judeus espanhóis. Após esta purificação étnica, inicia-se então, a partir da “descoberta” da América, o genocídio dos africanos e dos indígenas americanos. A interconexão entre estes acontecimentos, transparece cristalinamente em nível cronológico: a destruição do reino mouro de Granada, o banimento dos judeus e a viagem de Cristóvão Colombo 1 143 (considerada como marco da opressão do negro e dos ameríndios), são eventos que ocorreram num mesmo e fatídico ano: 1492. Este prontuário de ações intempestivas foi referendado por um novo imaginário sociocultural, germinando nas entranhas dos burgos para posteriormente, impregnar integralmente a cultura ocidental. Contrariamente às configurações do passado, este imaginário de tipo novo não incluía as emanações e os fluxos naturais. Tratava-se de uma percepção divorciada da natureza, propondo uma compreensão totalmente artificial e geometrizada, expressão da matematização do tempo e de sua autonomia frente a quaisquer outras dinâmicas. Este “arquétipo” exaltou traços meliorativos como a humanidade, o limpo, o retilíneo, o puro, o alto, o superior, o racional, o masculino e o nãosexual. Excluiu como antinomias as esferas da animalidade, do curvo, do impuro, do sujo, do baixo, do inferior, do prazer, do feminino e da sexualidade. Substantivamente, este dualismo esboçou processos de significação ensaiados antes mesmo da constituição dos signos. Tal construção imaginária teve nítidos reflexos na compreensão do espaço e do tempo. Na Idade Média, como se pode presumir, o imaginário espacial estava eivado de conotações hoje entendidas como arcaicas ou ingênuas. Explicitariam esta interpretação fabulosa do espaço do período medieval: a explicação ptolomaica do universo, com uma Terra plana ocupando seu centro; Jerusalém como o omphalos 18 do mundo habitado e em decorrência disto, do universo; o registro, nos mapas medievais, de toda sorte de bestas e animais fantásticos, procedentes de uma biologia maravilhosa; o domínio de Omphalos significa umbigo em grego, sendo metaforicamente interpretado para referirse ao centro do universo. Na antiga Grécia era toponimicamente identificado com o sítio ocupado pelo Oráculo de Delfos (Ver PLATÃO, 427a, 1990:175). 18 1 144 concepções mágicas relativas aos ventos, às marés, grutas, vulcões, bosques, terremotos e tufões; a crença de que o espaço habitado coexistiria com o Jardim do Éden, Babel, a Ilha das Sete Cidades e Trapalanda, referências espaciais supostamente reais, desenhadas a esmo nas cartas geográficas anteriores às navegações europeias (Cf. SCHEINES, 1991: 13). Pouco a pouco, mas determinadamente, o imaginário que surge com a modernidade borrou por inteiro as representações precedentes feudais. Constituindo uma representação matematizada e laicizada da realidade, esta nova forma de entendimento da realidade expulsou da consciência social aquelas representações típicas da iconografia religiosa europeia medieval, desterrando topologias como o paraíso terrestre do Éden, a Arca de Noé, a Torre de Babel e a posição central de Jerusalém, costumeiras na cartografia dos séculos anteriores. Desapareceram também diversos continentes insólitos, tais como Thule e Atlântis. Criaturas fantásticas, integrantes de uma “zoologia maravilhosa”, tais como sátiros, dragões, serpentes marinhas, grifos, basiliscos, sereias, a ave roc, as harpias, o odradec, os unicórnios, as salamandras e os antílopes de seis patas, foram empurrados para uma reserva imaginária do natural, pois eram incompatíveis com um espaço cada vez mais geometrizado. Tais símbolos, referências, seres e territórios, em alguns casos acompanhados dos povos e das populações que haviam constituído seus interlocutores concretos, migraram penosamente para o domínio das lendas, do folclore popular ou então para a esfera do irracional. Desta derradeira fortaleza, estes excluídos, agora metamorfoseados 1 145 em criaturas monstruosas, lançaram-se, vez por outra, em investidas no espaço do sono e dos sonhos, gerando pesadelos e sobressaltos. No plano concreto, este processo terá rebatimentos, fora dos limites europeus, materializados na desterritorialização dos não-ocidentais e consequentemente, na releitura dos espaços que dantes ocupavam, rotulados ao capricho dos novos dominadores europeus (Vide TUAN, 1980: 47/51 e passim NEBENZAHL, 2004). Nada melhor exterioriza tais injunções imaginárias do que a toponímia que passou a impregnar a cartografia desenvolvida no Ocidente 19. Para o caso da Europa recorreu-se a uma simbologia cujas origens perdiam-se em meio à antiguidade clássica. Nos mitos gregos, Europa correspondia a uma amante de Zeus, vista como relacionada com a civilização minoica, e, não sem razão incorporada com uma referência central para a identidade ocidental durante a renascença. Porém, no exercício destas fantasmagorias, os novos senhores do mundo se viram diante de certas dificuldades na tarefa de inventarem a si próprios. Na cortante ponderação do geógrafo Rogério HAESBAERT, seria oportuno lembrar que ...a Europa nunca existiu de fato. Nem mesmo a geografia tradicional conseguiu resolver o dilema de definir a Europa como algo mais do que uma grande península ou ‘um simples promontório da Ásia’, como disse Paul Valéry (1997: 30). A Cartografia espelha as prefigurações espaciais de uma dada cultura ou civilização. Os mapas, ao resultarem de uma seleção de dados implementada em atendimento ao que é considerado relevante para um imaginário espacial, guardam forte identidade com coordenadas históricas, políticas e culturais (RAFFESTIN, 1993: 145). O saber e o afazer cartográfico faz uso, seja este ato consciente ou não, de um aparato simbólico cujas significações decorrem das expectativas espaciais pertinentes a um determinado padrão civilizatório e sendo assim, seu papel extrapola a mera aferição objetiva do espaço (passim NEBENZAHL, 2004). 19 1 146 Todavia, se existiram objeções para mapear as identidades que vão sendo construídas no plano imaginário, estas foram inexistentes quando o que estava em pauta eram as necessidades práticas do mundo da economia e do poder. A cartografia ocidental, esboçada com base em um sistema que repudiava os fluxos da natureza, outorga substância social às novas prefigurações racionalizantes, excluindo um conjunto de elementos míticos que deixaram de possuir sentido com o avanço da modernidade. O eurocentrismo, acompanhado da racionalização do espaço, passou a imperar nas representações cartográficas. A Europa passou a ser representada na parte superior dos mapas, posição antes ocupada pela Ásia (caso do Mapa de Roda do medievo, ou Orbis Terrarum). Jerusalém, que era costumeiramente destacada no centro do mundo, perdeu esta investidura com a descoberta da rotundidade da Terra. Neste mesmo encadeamento de evocações, as representações cartográficas passaram a ser, enquanto reflexo da matematização do tempo, rigorosamente esquadrinhadas por uma rede de coordenadas geográficas cada vez mais precisas. Ocupando o lugar dos antigos conceitos, estas noções asseguravam a hegemonia da interpretação progressiva do tempo social. O objetivo desta empreitada era claro: “garantir a segurança e exatidão das viagens marítimas e sucesso dos negócios dos mercadores europeus” (SEVCENKO, 1984: 11). Expressão do domínio espacial incessante do capitalismo, as grandes jornadas transoceânicas, tais como a Viagem de Colombo (1492), a chegada de Vasco da Gama em Calicut, na Índia (1502) e a 1 147 circunavegação do globo por Fernão de Magalhães e Sebastião Del Cano (1519 a 1522), não poderiam ser dissociados dos avanços da geometria, da física, da matemática e da astronomia, assim como das novas metodologias de confecção de mapas criadas pelo cartógrafo flamengo Gerhard Kremer 20. No plano epistemológico, a mundialização da formação social capitalista foi legitimada por enfoques que traduziam as injunções do novo cadenciamento temporal linear e progressivo, mesmo porque, ontologicamente, este tempo social arrogava-se como universal. O Ocidente passou a ser apresentado como o único a possuir história efetiva, eivada de significados progressivos, desenvolvimentistas e eurocêntricos. Os demais povos, os ditos “atrasados” (expressão esta de nítida conotação temporal), foram rechaçados, restritos e enclausurados em marcações cronologicamente subalternas ou então, simplesmente deixaram de possuir história. Em resumo, o atrasado é acima de tudo definido pelo crivo da negatividade. Desta noção, decorre a conhecida declinação desqualificante, presente inclusive no jargão acadêmico de muitos concertos das ciências sociais, por intermédio dos quais, as sociedades ditas “primitivas”, são caracterizadas por uma ótica da negatividade, costumeiramente rotuladas como sem Estado, sem classes sociais e sem propriedade privada. No plano geográfico e espacial, este tempo, primordialmente restrito a pequenos bolsões da Europa Ocidental, passou a pivotear Também conhecido na forma latinizada de Gerhard Mercator (1512-1594), este geógrafo foi autor da famosa projeção homônima, proveitosa nas navegações marítimas por priorizar as coordenadas geográficas, vitais para determinar trajetos e a localização nos trajetos transoceânicos. 20 1 148 os ritmos de uma produção material cujo cenário tangível confundiuse com o planeta por inteiro. Coerentemente, esta regulação social do tempo opõe-se explicitamente aos particularismos e por extensão, à heterogeneidade, manifesta na coexistência ladrilhada e simultânea de diferentes regulações sociais do tempo-espaço. Ao contrário das acepções perduráveis que geriam os antigos tempos sociais, a concepção que irrompeu na Europa Ocidental não era espacialmente circunscrita, e sua propensão, era a dominação do horizonte terrestre: “Às caravelas e a imprensa, se junta a pólvora, atrás de cujo poder de morte, a noção de obstáculo desaparece” (Cf. BETTANINI, 1982: 24). Esta profunda alteração dos padrões sensíveis que no passado caracterizaram as sociedades humanas em geral e que atualmente demarcam a maior encruzilhada de que a humanidade jamais teve notícia, atenderam a uma estratégia deliberada de colocar povos e regiões a serviço da acumulação de capital, sempre encabeçada pelo tempo linear e progressivo. Em função desta necessidade, foram profanados e mortificados todos os espaços, criados ou reelaborados outros signos, símbolos e estigmas, cruciais para a organização do tempo social, do espaço habitado e requalificação posicional dos seus habitantes humanos e não-humanos. Corolário complexo que somente um detalhamento mais preciso do tempo da modernidade poderia explicitar. 1 149 3.5. A HEGEMONIA DOS TEMPOS MODERNOS E SUAS SEQUELAS Na análise das sociedades, dificilmente seria possível identificar mudanças em qualquer âmbito, desobrigando-se da salutar atribuição de anotar a substituição dos símbolos e das manifestações do poder constituído na medida em que este, muda de mãos no decorrer do tempo histórico. Tal ponderação, seria enfim indispensável em vista dos próprios detentores do mando social, político e econômico, jamais se eximirem de demonstrar quem, no final das contas, detém de fato, as rédeas do comando da sociedade. Nessa pauta de considerações, os aparatos que expressam o controle material do fruir do tempo ocupam destaque obrigatório. Qual observador das sociedades poderia ser descuidado a ponto de não perceber a importância deste fato, que se manifesta em sociedades tão díspares quanto as responsáveis pela construção do círculo arqueoastronômico do Stonehange, as estabelecidas com base no controle dos eventos sociais pelas realezas tradicionais da África e no férreo exercício da instauração dos calendários nas sociedades teocráticas por parte dos impérios orientais? Exatamente movidos por este intuito, à guisa de comentar a irrupção da nova ordenação social do tempo, é que primeiramente, urgiria apreender o simbolismo político, histórico, geográfico e cultural dos marcadores da marcha do tempo que irromperam sob signo do capitalismo, vale dizer, dos relógios implantados nos burgos europeus no transcorrer da supremacia interposta pela nova temporalidade 1 150 firmada com base na economia de mercado, assim como nos demais epifenômenos dela decorrentes. É preciso recordar primeiramente que longe de constituir uma coincidência, a ascensão da burguesia como nova classe dominante e a implantação de relógios mecânicos nos torreões das prefeituras municipais no continente europeu constituíram fatos correlatos e mutuamente interdependentes entre si. Esses relógios, requintados e esplendidamente instalados, para além de um marco artístico ou estético na paisagem urbana, eram o símbolo da supremacia de uma temporalidade, linear e progressiva, que substantivou a imperiosidade de um processo histórico que expurgou do universo da percepção as conotações plásticas, sensíveis, pulsantes e qualitativas da fruição do tempo, nuanças que caracteristicamente tinham orientado os povos da Europa durante o interregnum medieval. Neste particular, pistas denunciadoras das averbações temporais dos antigos, fornecendo amplo cabedal de informações, podem ser encontradas na história da relojoaria. Os gnomons (ou relógios de Sol), as clepsidras (ou relógios de água) e as ampulhetas (ou relógios de areia), acompanhados de uma série de habilidosos dispositivos mecânicos, foram construídos com base em princípios cosmológicos avessos à noção moderna de uma temporalidade abstrata, fluindo a despeito do espaço. No que é absolutamente representativo das inquietações temporais da antiguidade, o relógio solar greco-romano “raramente indicava, por meio de números, as linhas das horas, mas quase invariavelmente, as linhas do Equador e dos Trópicos estavam ali adequadamente inscritas” (Cf. PRICE, 1976: 61). 1 151 Quanto aos relógios da antiguidade, embora em vários casos tecnicamente muito consistentes e intuindo conceitos mecânicos bastante avançados, dentre estes, o de simulacra e de automata (respectivamente dispositivos que retratam e que se movem por si mesmos), as acepções quantitativas do tempo raramente estavam espelhadas nestes engenhos. Ao invés disto, os relógios mecânicos da Europa pré-moderna conotavam, amiúde, preocupações de índole inteiramente diferente. O mais complexo destes relógios, construído por Giovanni de Dondi em Pádua no ano de 1264, dispunha de sete mostradores, “cada um deles exibindo um planeta e apresentando toda sorte de dados astronômicos e, mais um modesto mostrador extra, que demarcava o tempo” (PRICE, 1976: 41, grifos nossos). Vale a pena refletir que, alicerçado num vínculo de tempo e lugar, no qual as ocorrências naturais regulares desempenham importante papel, o mundo tradicional fundamentalmente se reconhecia em razão de um espaço-tempo, e não de um tempo-espaço. Ao contrário da modernidade, a tradição entendia o espaço enquanto a suprema medida do tempo, paradigma plenamente constatado numa vasta gama de manifestações da cultura espiritual dos antigos. Não é à toa que mesmo nas chamadas línguas “modernas” do tronco indo-europeu (alemão, inglês, holandês, castelhano, francês, etc.), percebe-se esta tendência pela persistência, na nomenclatura dos dias da semana, dos nomes de astros e planetas, adotados como marcadores espaciais para a fruição do tempo. Seguramente, muito mais que regido por um tempo próprio, o homem do passado sentiase em comunhão com inferências e contributos cosmológicos, que os 1 152 relógios da antiguidade e outros expedientes de acompanhamento da fruição temporal procuravam atestar. Em nada disto diferia a velha ordem feudal. Cabe aquilatar, no medievo o tempo estava sacralizado, ordenado e ritualizado mediante um calendário povoado por santos, procissões, peregrinações, cultos e festividades religiosas dos mais diferentes matizes. O transcorrer do dia, era normatizado pelos ofícios religiosos, por preces obrigatórias e por toda sorte de rituais. O tempo não possuía aquele valor que mais tarde se tornaria sua característica inseparável. O homem medieval vivenciava o tempo como o tempo da vida dos homens, e não como algo exterior a ele. O badalar dos sinos, representação máxima de um tempo eclesiástico, não era sentido como uma entidade neutra, mas antes, como uma materialidade, conectada com as práticas do cotidiano. Esta regulação social do tempo era ainda influenciada pelo predomínio dos ciclos agrícolas como principal meio de subsistência, cuja sazonalidade foi, em maior ou menor grau, assumida pelo tempo da Igreja. Entretanto, sob o carrilhão dos torreões municipais, o ciclo de produção do artesão deixou de ser determinado pela alternância das estações ou pelas oscilações climáticas: Se o agricultor estava diretamente envolvido no ciclo natural e não podia livrar-se dele a não ser com dificuldade e incompletamente, o artesão da cidade estava ligado à natureza por relações mais complexas a contraditórias. Havia criado entre ela e ele um ambiente artificial constituído por seus diversos instrumentos de trabalho e por todas as espécies de dispositivos e 1 153 mecanismos que mediatizavam suas relações com o ambiente natural (GOUREVITCH, 1975: 279). Crescentemente, o homem percebia-se como criador autônomo de seu próprio mundo artificial, distinto da natureza: A atividade dos vendedores exige que as distâncias entre os pontos comerciais sejam vencidas rapidamente. Os empresários se preocupam em produzir o mais possível numa unidade de tempo determinada e de aumentar o tempo de trabalho; os pequenos artesãos e os operários têm interesse em que as horas de trabalho sejam medidas com precisão. O tempo, ou mais precisamente a hora se torna a medida do trabalho. Ele adquire grande valor, transformando-se em fator essencial da produção (GOUREVITCH, 1975: 280, grifos nossos). Desta maneira, entendendo-se que a temporalidade eclesiástica podia mostrar-se displicente quanto aos aspectos quantitativos do tempo, evidentemente, tal não poderia ocorrer com o tempo social de mercado. Assinalar a passagem do tempo através da posição do Sol no horizonte, pela passagem dos equinócios e dos solstícios, pela sucessão das dinastias, pela implantação dos pontificados, pela celebração das festividades religiosas, pela passagem dos cometas e das estrelas cadentes ou pelo calendário agrícola, deixou de fazer sentido em um sistema no qual a própria hora transformou-se numa mercadoria. Esta inferência foi registrada pelo cientista e autor estadunidense Benjamin Franklin no aforismo que se tornou a referência simbólica fundante do mundo moderno: Tempo é Dinheiro. O tempo linear, ao se infiltrar em sociometrias tão diferenciadas quanto as relações de trabalho, o convívio social e o lazer, tem justamente nesta frase, um 1 154 reconhecido apotegma da modernidade. Na sua essencialidade mais profunda, este postulado explicita um consenso social e cultural do mundo moderno pelo qual uma eficaz administração do tempo, sob o signo da velocidade, da rapidez e do revolucionamento permanente da produção e do conhecimento técnico e científico, constitui a base que habilita aos humanos a geração de riquezas. Isto posto, uma pregação constante, por vezes apaixonada, em prol de um trabalho físico e/ou mental incessante, coberta de objeções éticas e morais quanto à indolência e a sensualidade, ao sono e conversas ociosas, transformaram a perda de tempo no primeiro e principal de todos os pecados (WEBER, 1967: 112). Esse tempo impessoal, cujo caráter sobrenatural liga-se a sua essência não-natural, foi gradativamente imposto ao conjunto da sociedade, internalizado pelos seus atores sociais e posteriormente colocado como regente da totalidade do mundo conhecido, isto é, do planeta. No Renascimento, com a criação dos relógios de bolso, foi dado o primeiro passo para tornar corporal o ritmo social hegemônico. Mais tarde, com os relógios de pulso, desdobramento dos de bolso, este ritmado fica permanentemente à vista dos seus portadores, uma garantia da sincronia dos dinamismos corporais com as demandas temporais solicitadas pelo sistema. Embora em princípio esta obsessão com as finalidades práticas do uso do tempo não estivesse necessariamente vinculada com uma precisão de ordem técnica, ela não tardou em tornar-se referência inquestionável, impondo-se virtualmente a todos os membros da população. A difusão do relógio mecânico, um fenômeno que data dos finais do Século XVIII, foi de significação-chave para universalizar um 1 155 tempo vazio, separado do espaço, quantificado de maneira a permitir a designação precisa de zonas do dia, como por exemplo, a jornada de trabalho (GIDDENS, 1991: 26). A socialização do aparato biológico, constituindo uma fisiotécnica, perpassada por relações desiguais e hierárquicas, passa a comportar a explicitação de uma instrumentalização das diferenças dos corpos preocupada com seu disciplinamento para levar a cabo os intuitos da nova temporalidade triunfante (Cf. VIDART, 1996). No caso da classe operária, essa domesticação incluiu processos impecavelmente mortificadores, brutais e violentos. Por exemplo, no Século XVI, a população rural inglesa, expropriada e expulsa de suas terras e, em seguida, compelida à vagabundagem, “foi enquadrada na disciplina exigida pelo trabalho assalariado por meio de um grotesco terrorismo legalizado que empregava o acoite, o ferro em brasa e a tortura” (MARX, 1975b: 854). A vigilância patronal que se estabeleceu sobre o tempo de trabalho foi desde o princípio, objeto de rude e escrupuloso controle, corporificando, numa ótica normativa, um confisco da temporalidade humana, repaginada em meio a um dos mais opressivos capítulos da exploração do homem pelo homem. Na ausência dessa premissa, o industrialismo, alicerçado sobre um terreno crivado de crimes contra o campesinato, pavimentado por carceragens e reformatórios, incluindo práticas genocidas, trabalho infantil, migrações forçadas e usurpação de direitos das populações tradicionais, nunca teria obtido o menor sucesso. 1 156 No detalhamento cada vez mais preciso da apropriação do tempo alheio, o taylorismo 21, edificado como doutrina disciplinar do trabalho seriado nos Estados Unidos a partir dos princípios do Século XX, prontificou-se como paradigma máximo da temporalidade capitalista. Empenhado numa guerra aberta e declarada contra as leituras do tempo social discrepantes das que endossava, o taylorismo impôs uma estandardização forçada, quebrando, usurpando e submetendo as formas tradicionais de organização do trabalho. Sob seu timbre, nunca mais a rotina das oficinas foi a mesma: ...os capatazes impuseram a nova modalidade de trabalho repetitivo e designaram tarefas segundo ordens patronais. Os cronômetros se instalaram sobre os ombros dos operários qualificados para descobrir seus tempos e movimentos. Com estes índices, logo se elaboraram tábuas de produção sujeitas a ritmos muito mais intensos. Através do roubo do saber artesanal, o taylorismo transferiu, em bloco, o conhecimento das operações e os projetos à gerência (KATZ, 1995: 14, grifos nossos). Nesta sina, o tempo social, acompanhando o frenético ritmo de desenvolvimento das forças produtivas, distanciou-se das inferências provenientes da natureza, sobrepondo-se a elas. O relógio atômico do Século XX constituiria um dos símbolos quase paradigmáticos deste tempo. Ele assinala a passagem dos segundos, minutos, horas, dias, meses e anos, ativado por uma central própria de energia, sinal de que o tempo social baniu o tempo da natureza. O novo tempo inaugurado pelo mercado criou um mundo à sua própria imagem, no qual o início e o final dos dias deixaram de ser governados, como sempre o fora no passado do homem, pelo movimento do Sol, da Lua Neologismo referente a Frederick Winslow Taylor (1856-1915), considerado “Pai da produtividade”, autor de The Principles of Scientific Management (1911). 21 1 157 ou das estrelas. Agora, este passa a ser demarcado pelo transcorrer da jornada de trabalho, independentemente dos ciclos naturais, do período do ano ou das condições meteorológicas. O tempo linear e progressivo, emanação de forças sociais que subentendem os humanos e a natureza como elementos à disposição do progresso e do desenvolvimento, excluiu todas as acepções sensíveis porventura assimiláveis ao intelecto humano. As vigentes em solo europeu num primeiro momento. As do restante do mundo, no seguinte. A dimensão cósmica que sempre havia habitado o tempo e o espaço, entrelaçando a ambos e os unindo simultaneamente aos humanos, foi abolida e substituída por uma outra, de cunho eminentemente prático e quantitativo, descolando o tempo do espaço. A ruptura desta parceria com o espaço representou a possibilidade do tempo substantivar-se em uma cronologia temporal alheia a qualquer outra derrelição, e nesta, um certo sentido de velocidade que passou a ser a marca característica da modernidade (Cf. GREGOTTI, 1975: 77). Preceituado retilineamente, o fruir do tempo, diferentemente das concepções de outrora, deixou de possuir uma “respiração”, de ser uma entidade viva e pulsante. Em franca oposição a um modelo cíclico que foi, dentro de determinados limites, o grande paradigma temporal das civilizações de outrora, o tempo linear projeta a história continuamente para frente. Preconizando uma compulsiva ênfase evolutiva estranha a qualquer outro padrão civilizatório do passado, esse tempo necessariamente entra em contradição com modos de 1 158 vida regrados pela estabilidade, pela repetição, pelo convívio com as energias sutis do corpo, do território e do cosmos. Na dimensão dos regimes de sentido, visto que as dinâmicas temporais são alçadas a plena soberania, o espaço, desencaixado do tempo e a ele subordinado, é recalcado e subalternizado, perdendo sua significação sensível. O homem da modernidade, contrariamente aos seus ancestrais, é sumamente um ser que trafega junto aos fluxos do tempo, que subordina seu cotidiano em meio a um espaço crescentemente indiferenciado. Caracterizado por fluxos de produção avessos ao tempo-espaço da natureza, o tempo linear e progressivo termina por adiantar-se ao próprio espaço construído, que constitui seu reflexo direto. Esta prevalescência ontológica do tempo está muito longe de constituir uma afirmação meramente conceitual. Pelo contrário, ela é instilada no mundo material, refletindo-se no universo vocabular do homem moderno, conotando formas específicas de apreensão do espaço, justificando que em meio aos afazeres cotidianos, os homens contemporâneos apelem constantemente, quase sem perceber, para designativos de cunho temporalizante quando estes se defrontam com a necessidade de mensurar ou de qualificar as distâncias. Ex expositis, tem-se que habitualmente o cidadão comum refirase a “horas de viagem”, “minutos de trajeto”, “dias de viagem” e/ou “tempo de percurso” para identificar distâncias no espaço geográfico. Mesmo quando a referência é o espaço extraterrestre, esta tendência manifesta-se pela utilização de marcadores como o “ano-luz”, cuja conotação temporal se evidencia por si mesma. 1 159 Ao contrário das culturas tradicionais, nas quais o passado era honrado e os símbolos valorizados por chancelarem a experiência de gerações, na modernidade esta diligência temporal deixa de contribuir para com que é definido como segurança ontológica. Nesta ótica, o que é considerado pretérito passa a ser abstraído de significação em um mundo no qual o próprio presente tornou-se um instante volátil e fugidio, lapso que vai do passado para o futuro e que rapidamente, transforma o futuro em passado (apud GOUREVITCH, 1975: 282). Neste sequenciamento, o antes e o depois se tornaram marcos de uma marcha processual na qual o futuro, assim que capturado pelo presente, é rapidamente erodido e transformado em um aluvião, composto de partículas cuja inteligibilidade, uma vez desfeito o sentido organizador do presente, desaparece. Com isso, a própria memória do passado também é eliminada. Os eventos, sucedendo-se rapidamente, como que encarcerados num caleidoscópio a virtualizar seu sentido, são metamorfoseados em simulacros, fluindo por breves momentos perdidos na voragem de um tempo dominador e inflexível. Sinteticamente, a modernidade é um modo de vida em que tudo se torna prontamente parte do passado. Desta forma, o tempo, não mais vivenciado como o tempo de cada coisa, mas sim, como um ritmo ao qual todo homem deve se submeter, é unificado em uma escala cada vez mais ampliada. O sistema de redes ferroviárias construídas na Europa ao longo do Século XIX, concorre para a padronização em nível do Estado-nação, via implantação das horas oficiais nacionais e logo em seguida, na sincronização dos continentes, por meio da institucionalização do sistema internacional dos fusos horários. Os trilhos, estatuindo uma 1 160 comunicação regional, nacional e posteriormente global, expandem ao longo de milhares de quilômetros um tempo único, tornado padrão para os demais tempos. Esta sincronização é sucedida pela exatidão. A temporalidade moderna encontra sua explicitação mais acabada no relógio digital. Ao contrário dos relógios confeccionados no Renascimento, que ainda resguardavam reminiscências do extinto tempo cíclico, com mostradores e ponteiros dando voltas ao redor de um eixo, esta última manifestação da circularidade do tempo é secundada pelo cristal líquido dos relógios digitalizados. O tempo passa a cristalizarse, desintegrando-se molecularmente para ressurgir com base em um novo impulso elétrico. Graças aos cristais do quartzo, nem mesmo as frações de segundo são poupadas do desperdício. Nos locais de trabalho, nos meios de comunicação e ao longo das vias expressas das urbes modernas, os relógios digitais lembram incessantemente que sua onipresença é sinal de que os humanos, paradoxalmente, deixaram de possuir qualquer tempo. Anteriormente múltiplo, permeável e qualitativo, o tempo carrega agora consigo a marca inelutável da opressão, inerente a um sistema de produção de mercadorias sob cujo tacão, é mister que a produção e o trabalho se efetuem ordenadamente, com vistas a um fim (MARX, 1978: 17). Este modelo encontra seu grande paradigma na moderna linha de montagem, primeiramente concebida nos matadouros nos finais do Século XIX (Vide KATZ, 1995: 15), e meticulosamente aplicada na indústria automobilística por um entrepreneur, o emblemático Henry 1 161 Ford, que sintomaticamente era, além de engenheiro, um aficionado da relojoaria 22. A Era Industrial somente pode ser explicada por uma máquinachave que não é a máquina a vapor, mas sim, o relógio. O contrário seria fetichizar a máquina. Isto porque a máquina não existe sozinha, mas sim, como representação concreta de uma organização do tempo à qual está ajustada, cuja lógica, acata e obedece. Então, resulta adequado enfatizar, a racionalidade na fabricação inequivocamente antecede a operacionalidade do que é fabricado (Cf. VIDART, 1996). Assim sendo, as engrenagens constituem antes a materialização de uma concepção de tempo do que origem da sua manifestação. O severo reducionismo do tempo linear e progressivo, ao encarcerar esta esfera sensível em prol de compromissos sem rosto, que são sua tradução sociológica e antropológica, redundou em um mundo universalmente povoado por estranhos (Vide GIDDENS, 1991: 84). Submerso pelo narcisismo, o atomizado homem contemporâneo está obcecado por dúvidas, angústias, perturbações e distúrbios toda Henry Ford (1863-1947), também chegou a esta concepção com o concurso das ideias de Frederick W. Taylor, de Henry Fayol (1841-1925), tido como o tutor da estrutura por funções, autor de General Principles of Management (1916) e do sociólogo alemão Max Weber (1864-1920), cujas teorias a respeito do modelo burocrático foram fundamentais para a moderna teoria da organização. Caberia uma advertência aos que sinonimizam o fordismo, assim entendido como o modelo implantado por Henry Ford nas suas indústrias, ao sistema capitalista. Não poucos autores recordam o parentesco entre os seus métodos e os que foram implantados na década dos anos 1930 na antiga URSS sob a égide de Aleksei Grigorievich Stakhanov (1906-1977), Herói Socialista do Trabalho, cujas proposições, raiz do neologismo Stakhanovismo, foram extensivamente carimbadas como uma espécie de fordismo socialista. 22 1 162 vez que o reflexo do outro o alcança. Acostumado com a vida de cada um por si, tornou-se difícil para o absorto homem contemporâneo, “compreender que para a maior parte da história do homem, todos os homens viviam uma vida, por necessidade, envolvida com o bemestar dos seus semelhantes” (MC LUHAN et FIORE, 1971: 24). Sob o impulso catalisador da progressividade, os homens foram induzidos a uma volatilidade pela qual, os relacionamentos, tal como as coisas, foram se tornando cada vez mais transitórios, efêmeros. Consolidou-se, pois o que foi magnificamente definido pelo escritor norte-americano Alvin TOFLER (1973) como Era da Transitoriedade. Enfraquecidos os laços que atavam um humano aos demais, o mundo moderno substantivou-se a partir de uma ruptura radical com a antiga vida pública, que se absteve de atuar como fator de interação (passim SENNETT, 1993 e BETTANINI, 1982: 130/131). Com isto, aquele equilíbrio no final das contas tão necessário para a estabilidade emocional dos humanos, igualmente deixou de existir. Multidões de pessoas estão agora preocupadas, mais do que nunca, apenas com as histórias de suas próprias vidas e com as suas emoções particulares (SENNETT, 1993: 17). Anteriormente à eclosão do tempo linear e progressivo, o entrelaçamento da convivialidade comunitária com os espaços de vida, constituía um embasamento prioritário para os velhos modos de produção, articulando-se com a personalidade cultural dos grupos e o funcionamento dos arranjos espaciais. 1 163 As formações socioespaciais do passado prescreviam enquanto códice magno para suas pretensões civilizacionais, as diretivas da perdurabilidade, reciprocidade, sustentabilidade e da estabilidade, observáveis nas convivialidades mantidas com a natureza assim como nos que regravam a vida social. Deste prolóquio, raramente as comunidades da pré-modernidade se distanciaram. Contudo, tal normatização, outrora básica para uma apreensão qualitativa do cosmos e do homem, foi preterida e abandonada pela adoção das novas premissas reducionistas e quantitativas, afeitas à implantação da temporalidade moderna. A sociedade contemporânea perdeu de vista que, na história, ao lado da evolução, a cadência da estabilidade desempenhou um papel igualmente fundamental (Vide GOUREVITCH, 1975: 283). Neste novo ditame, produzir é melhor do que viver; consumir, melhor do que perpetuar; mudar, preferível a permanecer; e quem sabe, como destacou o cineasta canadense David Cronemberg na película Videodrome (1982), virtualizar, seria melhor do que existir. Frente a tamanha e tão detalhada elaboração implicando numa supremacia temporalmente totalizante, surgiria a tentação de indagar sobre os rebatimentos espaciais desta postura. Afinal, o que poderia se equiparar em termos de ineditismo frente a ela? É exatamente este caráter nunca visto que incita a refletir um pouco mais aprofundadamente sobre este tema, ampliando o nosso próprio potencial de respostas e de perspectivas. 1 164 CAPÍTULO 4 URBANIZAÇÃO, TECNOESFERA E OS LIMITES DO TEMPO 4.1. PROGRESSIVIDADE, MODERNIDADE E O CONTEXTO DA CIDADE Refletir a respeito da temporalidade moderna em momento algum poderia se desvencilhar do mapeamento dos indicadores concretos e abstratos que motivaram o mundo europeu a encerrar de modo tão abrupto os modos tradicionais de relação com a realidade. Foi observado, à medida que se impunham os parâmetros cultivados pelo pensamento renascentista, o mundo medieval europeu era sacudido nos seus alicerces e substituído por um novo sistema de valores, que desmantelava sem piedade as antigas verdades. Inequivocamente, surgiria a predisposição em definir a nova situação criada pelos tempos modernos como uma inversão profunda da organização social humana, ao menos no tocante às formas imemoriais de compreensão e de interação com o ambiente imediato. O triunfo da razão como alicerce do entendimento da realidade inseriu problemáticas inéditas, perceptíveis até os dias atuais. Ponderando a respeito, a socióloga Glória Maria dos Santos DIÓGENES recorda que tal racionalização do mundo estaria ...carregada daquela angústia mítica radicalizada travestida de controle, de certeza, de onipotência, de exatidão, da verdade, do não-medo. O homem seria o mentor do progresso, o construtor de sua história, o transformador da natureza, e com isso, mudaria a feição 1 165 do mundo e a de si próprio. Progresso vem significar domínio, em relações reconhecidamente assimétricas, onde se justifica em seu nome a morte das ‘culturas atrasadas’, de povos que entravam o desenvolvimento, das tradições que insistem em manter crenças fora dessa ‘nova’ ordem universal (1992: 3). Constituindo seu sucedâneo obrigatório, o cadenciamento do tempo proposto pela modernidade, em face da nítida precedência conquistada na nova ordem das coisas, reclamaria sobremodo, naco substancial das nossas atenções. Prisioneira de um tempo subtraído do corpo vivo de uma história dantes saturada de significações e de regimes de sentido, a sociedade humana observa-se ensombrada pelo espectro de um tempo exclusivista e absoluto: Dissemos que a cidade havia se tornado senhora de seu próprio tempo; quer dizer que este fugira ao controle da Igreja. Mas também é verdade que precisamente na cidade o homem deixa de ser senhor do tempo, pois este, tendo futuramente a possibilidade de fluir independentemente dos homens e dos eventos, estabelece a sua tirania, à qual os homens são obrigados a se sujeitar (GOUREVITCH, 1975: 282). Visto que as dinâmicas temporais predominam sobre quaisquer outras, uma consequência inevitável foi que a dimensão espacial, uma vez desencaixada do tempo, terminasse esvaziada das suas significações sensíveis. O homem da modernidade é sumamente um ser que trafega junto aos fluxos do tempo, que subordinam seu cotidiano em meio a um espaço crescentemente indiferenciado. Na modernidade, como destacou Anthony GIDDENS, “a coordenação através do tempo, é a base para o controle do espaço” (1991: 26). 1 166 Numa assertiva que constitui desdobramento direto do que estamos pautando, no passado, a produção do espaço era um feito condicionado por impulsos temporais encadeados ao próprio espaço, e este, por sua vez, atendia como pré-condição para a reprodução de determinado tempo social. Mas com o surgimento da economia de mercado, é o tempo que está no comando processual de todos os dinamismos, consideração que reportaria ao sentido de velocidade que em particular, tipifica este novo estágio da história humana. Por conseguinte, não surpreende que no cosmo da modernidade, ao contrário das sociedades tradicionais, nas quais os fatos pretéritos eram honrados e os símbolos, valorizados por conterem a experiência de gerações, o passado tenha deixado de constituir um referencial existencial. Estratificando um tempo descompassado das demais dinâmicas e via de regra, adiantado a elas, a espacialidade do tempo linear ganha uma conotação de transitoriedade que é, tão somente, a manifestação de uma temporalidade que rege soberanamente a edificação das marcas espaciais de um modelado eminentemente artificial. Não por outra razão, basicamente pelo fato de que na flexão temporal moderna, nada é permanente. A velocidade dos fluxos, materializada numa espacialização incontida e irrefreável dos tempos modernos, é uma característica observável a todo o momento na paisagem urbana contemporânea 23. O espaço, premido por um tempo febricitado pela vazão incontrolável dos seus dinamismos, é induzido a uma transmutação constante. Tal frénésie foi admiravelmente captada na película Koyaanisqatsi (1983), dirigida por Geofrey Reggio. Avaliada pelos críticos como um poema sinfônico em time lapse, o filme centra-se no registro de paisagens artificiais urbanas, moduladas exclusivamente pela trilha sonora de Philip Glass. Na língua da etnia hopi, dos Estados Unidos, Koyaanisqatsi significa vida fora de equilíbrio. 23 1 167 Disto decorre a ininterrupta territorialização do espaço, agregando elementos novos que vão sendo constantemente incorporados à paisagem criada na substituição das formas antigas, descartadas sem demora. Caracterizado por fluxos de produção avessos ao espaçotempo natural, o tempo linear e progressivo termina por adiantar-se ao próprio espaço artificial ou espaço-prótese, do qual constitui seu reflexo direto. Por esta razão, os sistemas voltados para a fruição do tempo são constantemente esgotados e substituídos por outros mais novos e mais velozes ainda. No caso da malha viária, é isto que leva, por exemplo, ao asfaltamento das estradas de terra e à duplicação das já asfaltadas 24. No meio urbano, tal variável orienta a construção de corredores de alta velocidade, implantação ou expansão dos sistemas de metrô e surgimento de serviços de comunicação aérea (caso dos helicópteros executivos). Idêntica expressão da proeminência destes fluxos, os sistemas de comunicação que rasgaram o leito submarino e desafiaram longos braços de mar, conectando a Grã-Bretanha ao continente europeu e unificando as ilhas do arquipélago nipônico, antecipam o dia em que o mundo inteiro poderá estar cortado por escoadouros do tempo linear. Na medida em que se decantam os fluidos do tempo, forma-se um cenário artificial compósito formado por plásticos, vidro, alumínio, aço, concreto e asfalto, materiais que se confundem com a própria vida moderna. Os obstáculos a artificialização incessante do ambiente são canalizados ou retificados (rios, córregos e arroios), drenados Note-se também neste processo, a influência da força locacional das marcas espaciais pretéritas, promovendo a reapropriação e ressignificação das rugosidades anteriormente edificadas no espaço habitado. 24 1 168 (pântanos e alagadiços), aplainados (morros, colinas e matacões) ou aterrados (reentrâncias da topografia). Os centros urbanos, nascendo no entrecruzamento destes fluxos ou naqueles sítios nos quais são circunstancialmente arrefecidos, interrompidos ou detidos, engendram concreções, nódulos, terminais, polos e pontos fixos, espaços que concentram um quantum de conteúdos de tempo, numa contiguidade isocrônica que se expressa nos rebatimentos concretos e simbólicos do cotidiano dos humanos. Entretanto, a amplificação da artificialidade não está qualificada exclusivamente pelas alterações da natureza primeira ou de suas reminiscências. Vivências oriundas de uma acumulação passada de tempos, terminam igualmente recompostas, refeitas e recombinadas, pois na artificialidade moderna, tudo é transitório. Esta transmutação do espaço é inerente ao predomínio do tempo linear e progressivo, que vai corroendo inexoravelmente os sinais herdados do passado. Deste modo, o arquiteto Luís Saia, recorda que no caso do primeiro assentamento urbano de São Paulo, utilizando paredes de taipa de pilão, dele nada restou nas reconstruções urbanas posteriores, que apagaram todas as suas marcas (SAIA 1978. Ver também CARLOS, 2001: 33). Disto decorre a dificuldade de se vislumbrar a história que se descortina diante dos nossos próprios olhos: “Quem desembarca em São Paulo reconhece a história dos objetos presentes, mas não a história da cidade” (SANTOS, 1988: 68, 1998: 138). Neste processo perpassado por (des)entendimentos, a cidade, uma obra humana lato sensu, não impõe sua presença apenas pela acumulação de tempos. A perda dos referenciais urbanos, respaldando um espaço amnésico 1 169 e um tempo efêmero, constituem um produto da celeridade com que a morfologia urbana se transforma, redefinindo a prática socioespacial e fazendo a todos mergulhar, queira-se ou não, na vertigem do vácuo (CARLOS, 2001: 348). Outro dado, é que, independentemente das metamorfoses da paisagem urbana tidas como “espontâneas”, estas também podem resultar de um planejamento premeditado, via de regra ocorrendo sob o signo da prepotência dos planejadores, configurando, como no caso da célebre intervenção promovida na Paris do Século XIX pelo Barão Eugène Haussmann, uma indelével tabula rasa. Visando implantar vias rápidas de circulação, racionalizar a ocupação do espaço urbano, segregar espacialmente as classes sociais e inclusive, controlar a turbulência do proletariado, Haussmann, entronizado nos registros históricos como Le artisté démoliseur, não hesitou em desmantelar severamente o traçado urbanístico da Paris oitocentista, considerado inconveniente para exigências formadas num fruir urbano “moderno”. Todavia, certifique-se que a cidade moderna, planejada ou não, oriunda de tempos passados ou edificada de alto a baixo pelas defluências da economia moderna, prima por estar sob a batuta da artificialidade. Este é o seu mandato impreterível e a sua imanência mais característica. Não existe cidade alheia ao espaço mundializado, à economia-mundo ou ao seu elemento pivotante, que é o tempo linear. Consequentemente, de uma forma ou de outra, o meio urbano é mais e mais claramente, um meio artificial fabricado com restos de uma natureza primitiva crescentemente encobertos pelas obras dos homens (Vide SANTOS, 1988: 42). 1 170 Vale assentar que na modernidade, a inércia espacial, ou melhor dizendo, a tendência de o espaço motivar revivificações e retomadas do tempo social, constitui substancialmente um desdobramento tendencial da instalação do tempo no espaço e não, como ocorria nas sociedades tradicionais, uma irradiação do tempo a partir das marcas espaciais preexistentes. Sobretudo, o modelado urbano hegemônico reflete um torvelinho do tempo, sugando recursos e trabalho humano, cristalizado em próteses urbanas, nódulos de tempo nos quais o espaço é articulado para responder às suas demandas. É do tempo e do seu dinamismo, concreto e simbólico, que se pode compreender a disseminação e supremacia da vida urbana moderna, indiscernível do padrão temporal com o qual se confunde. A cidade, articulação espacial na qual primeiramente acomodouse o tempo linear, foi o eixo por excelência de sua difusão, daí a urbanização como um fenômeno típico da modernidade. Funcionando enquanto um foco de irradiação de dinâmicas temporais colocadas permanentemente à sua frente em razão do dinamismo irrefreável do próprio tempo, as cidades atraíram recursos materiais e humanos numa razão diretamente proporcional à ampliação da influência do campo de força do tempo linear. Neste andamento, o ritmo temporal iniciado a partir de alguns rincões isolados da Europa Ocidental, conquistou não só conotação planetária como também, manifestou firme determinação em colocar a maior parcela da humanidade sob seu controle direto. O espaço urbano, constituindo o âmago da ordenação econômica, social e geopolítica existente, transformou o planeta inteiro numa espécie 1 171 hinterland, num entorno da rede mundial de cidades (Cf. BOYDEN et CELECIA, 1981). Obviamente, ao formar um modelado artificial, o espaço urbano não pode subentender os humanos enquanto um mero elo de uma “cadeia” ou “sistema ecológico”. No final das contas, estou referindome a um espaço construído, e não aos que foram presenteados como os adereços da naturalidade. De um ponto de vista ambiental, as relações que os homens sustentam com a natureza num meio urbano alteraram enormemente o ritmo e o funcionamento dos ecossistemas, diferindo do que é encontrado nas inter-relações das fatorações fisiográficas. Estas, passaram a variar ou adequarem-se de acordo com a imperiosidade do artifício. À vista disso, dificilmente tendem à perdurabilidade, podendo ser mais bem definidas como antagônicas ao meio natural e de ruptura dos equilíbrios (Vide SEABRA, 1991; AMARAL E SILVA et SOBRAL, 1989:75). Suprema materialização do que se define como distanciamento do tempo social para com os ritmos e cadências do tempo-espaço natural, a cidade, enquanto um sistema de engenharia (Cf. SANTOS, 1978a e 1988), expressa uma construção do espaço que sendo de caráter incessante, requisita um imenso volume de recursos naturais, indispensáveis para o abastecimento e funcionamento dos seus ciclos artificiais de vida. Embora dependente de uma vasta periferia de ecossistemas, a grande cidade moderna, ao mesmo tempo em que traga recursos do entorno natural, não retribui senão enquanto um foco de permanente e sistemática agressão à natureza, tendência esta, indissociável em razão da intensificação do volume de insumos que incessantemente é instada a açambarcar. 1 172 As cidades, como insiste o ecólogo Genebaldo Freire DIAS, “são pontos emanadores de indução de alterações ambientais globais” (2002b: 15), observação confirmada pela grande influência das urbes no quesito do consumo das matérias primas. Métrica apurada por pesquisa desenvolvida pelo WorldWatch Institute, assegura que “as cidades ocupam cerca de 2% da superfície terrestre, mas contribuem para o consumo de 76% da madeira industrializada e 60% da água doce” (JOHN, 2000). Na mesma linha de raciocínio, um demonstrativo sintético aponta que o meio urbano absorve aproximadamente 75% dos recursos naturais planetários (Vide DIAS, 2002b: 15). Um outro tipo de avaliação quantitativa se insere no conceito de ecological footprint (literalmente “pegada ecológica”), correspondendo à área equivalente de terra produtiva e de ecossistemas aquáticos necessários para gerar bens requeridos por determinado padrão social, econômico e cultural e para assimilar os resíduos decorrentes das demandas de uma dada população sob um determinado estilo de vida. Com base neste parâmetro, evidencia-se que as cidades são sustentadas à custa da apropriação dos recursos de espaços várias vezes superiores à área que efetivamente ocupam, determinando um “deficit ecológico” estrutural (ISA, 2004: 42 e 360); DIAS, 2002b: 31 e 185/194; De acordo com Mathis WACKERNAGEL, especialista suíço em planificação ambiental, o conjunto das 29 maiores urbes europeias requisita, para o atendimento das suas necessidades, um ecological footprint com áreas entre 565 a 1130 vezes mais extensas do que aquelas que estão ocupando (Vide 998: 2/3). Outro bom exemplo é o indicador de que uma metrópole como Londres, na Inglaterra, requer 1 173 uma área 58 vezes maior do que a que ocupa para obter alimentos e madeira para sustentar seus habitantes. Neste raciocínio perturbador, caso o padrão das metrópoles afluentes fosse estendido ao resto das populações urbanas do mundo, seriam necessários três planetas Terra para sustentar todos os terranos (Cf. JOHN, 2000). Não existiria, então, qualquer exagero em afirmar que as cidades “sugam” recursos ambientais numa escala territorial gigantesca. Esta “vampirização” do espaço-tempo natural gera zonas devastadas que se ampliam cada vez mais, em vista de que as cidades, necessitam cobrir distâncias extraordinárias para captar os insumos necessários à sua existência e para o depósito de seus resíduos sólidos e líquidos (Vide VIOLA et LEIS, 1991: 33). Assim sendo, pressionadas por suas demandas crescentes e sob o risco de morrerem asfixiadas sob o acúmulo dos lixos que ejetam, as metrópoles modernas geram impactos que se estendem numa escala extremamente ampla do tempo-espaço. As cidades impactam a totalidade da biosfera, pois articuladas entre si através de circuitos que associam uma concreção urbana à outra, transformaram, por definição, o mundo inteiro no vertedouro dos seus fluxos. Contudo, nada disso caracterizou as sociedades da antiguidade. Dado que as formações socioespaciais de outrora não dissociavam, temporal e espacialmente, o campo da cidade, as redes urbanas confundiam-se com os terminais dos fluxos, mesclando-se à rede de tributação e às necessidades de sua perpetuação. Cidades maiores ou menores traduziam fluxos maiores ou menores de tributos, não correspondendo, portanto, em eventuais progressos de uma autêntica 1 174 economia urbana. Todavia, com o advento da modernidade o meio rural, inversamente do passado, mais do que uma inferência para a ruralização da cidade é, em si mesmo, um espaço progressivamente urbanizado, calcado na reprodução das codificações simbólicas e da própria espacialidade urbana (MARX, 1975a: 75). Dada a dependência do meio agrícola para com as dinâmicas temporais e espaciais cujo suporte é a cidade e seu aparato fabril e de consumo, não há como este manter-se indiferente às solicitações da urbanização, que deste modo, impõe assim uma “industrialização” da agricultura (Vide SINGER, 2002: 25/26). Para fornecer recursos ao meio urbano, e fazê-lo rapidamente, o campo foi compelido a uma padronização da produção, inserindo elevados custos energéticos, dispêndio de recursos e solapamento dos serviços ecossistêmicos. Destarte, a agricultura, que se expande apoiada em agrotóxicos, maquinário agrícola, fertilizantes artificiais e na simplificação biótica, é matriz geradora de processos erosivos, contaminação, adelgaçamento e compactação dos solos agrícolas, e ademais, de consideráveis perdas de biodiversidade. Objetivamente, as disfunções ecológicas localizadas no meio rural não podem ser dissociadas das influências urbanas, que se tornam deste modo o centro de qualquer discussão ambiental desenvolvida nos termos da modernidade. Saliente-se que este conjunto de agravos não se restringe aos impactos disseminados no entorno urbano ou alhures. Para além de influenciar ampla periferia geográfica, ressalve-se que o meio urbano impacta, antes de tudo, a si mesmo, daí a necessidade de rediscuti-lo 1 175 criticamente. Basicamente, os transtornos presentes nos seus ciclos artificiais de vida fundamentam-se na extrema velocidade dos inputs e outputs que percorrem este imponente sistema artificial, configurando o que muito apropriadamente, tem sido definido como curtos-circuitos (passim SANTOS, 1988 e 1978a). Exemplificando, a alteração dos equilíbrios naturais, vários deles possivelmente irreversíveis, possibilitaram o surgimento, em meio ao contexto urbano, de uma meteorologia distintamente artificial 25. Estes novos dinamismos climáticos, inaugurados pela urbe moderna, estão consignados nas ilhas de calor, nas inversões térmicas, nos bolsões de gases tóxicos e na chuva ácida, um ambiente condizente com a artificialidade do tempo social que o engendrou. Tais ciclos dinâmicos artificiais, se notabilizam pela nocividade, intempestividade, extensividade e caráter destrutivo. A concentração industrial, proliferação de megalojas, expansão da frota de veículos particulares e a impermeabilização do solo pelo envelopamento das redes fluviais, edificações e capeamento asfáltico, propiciariam, por exemplo, a irrupção de disritmias pluviométricas acompanhadas de fortes inundações. A presença de abundante material particulado em suspensão na atmosfera acelera o processo de condensação, com consequente ocorrência de pancadas de chuvas, que desabam em curtos espaços de tempo, marcadas por avassaladora intensidade pluviométrica (Vide CASSETI, 1991: 118). Com a blindagem do espaço urbano, os cursos d’água, privados dos meandros por obras de retificação ou transformados em canais, A respeito da temática da meteorologia e do clima urbano artificial, ver TARIFA et AZEVEDO, 2001. 25 1 176 são transformados em escoadouros de um sistema de drenagem artificial, que ao potencializar o débito fluvial original, tornam inevitável a ocorrência de enchentes e transbordamentos. As chuvas, agora torrenciais, escoam pelos sulcos do traçado urbano (ruas e sarjetas), acumulando-se nos espaços anteriormente ocupados por lagos, por várzeas inundáveis, fundos de vale e áreas que dantes, admitiam a absorção da água. Nestas ocasiões, os rios, os córregos e os arroios, escorraçando intempestivamente as obras humanas que encontram no seu trajeto, ignoram as formas artificiais que tentaram encarcerálos e transbordam violentamente, provocando cheias catastróficas, rotineiras na pauta dos serviços noticiosos em todo o mundo 26. Do mesmo modo que numerosos outros problemas de gestão do meio ambiente urbano, as enchentes terminam instrumentalizadas com base em soluções que agudizam ainda mais o problema. Isto em razão de que as respostas institucionais a estas calamidades, correm no sentido de reforçar os espaços impermeabilizados, via implantação de coletores e sistemas de drenagem, obras que por motivos óbvios, atraem as atenções das grandes empreiteiras. Deste modo, em nome do equacionamento do problema, as inundações são transferidas para locais mais distantes, o que além de não solucionar a questão, tendem a acentuar o distúrbio ao agregarem ainda mais águas aos volumes que não encontram infiltração no solo (Cf. BRAZIL/CANADA, 1991). Estas ponderações, atribuem ao espaço urbano uma significação matricial o futuro da maioria dos humanos. Particularmente, pelo fato deste espaço ser o fulcro de uma torção do tempo-espaço na qual as 26 Quanto ao fenômeno das enchentes na Grande São Paulo, Ver CUSTÓDIO, 2001. 1 177 dinâmicas temporais são predominantes e pivoteantes. Defrontados com um estranho mundo novo regido por um tempo inexorável, os humanos, ou ao menos uma parcela destes, não deixam de serem assaltados pela perplexidade ante uma dominação que se imiscui por todos os poros da sociedade, que ao materializar-se desta forma, difunde sua crise pela totalidade social que compõe a modernidade. Por conseguinte, dada a crescente urbanização do espaço no qual o essencial da vida moderna está assentado, avançam numa mesma direção ritmos e sequências regidos de um modo cada vez mais intenso pelo artifício e menos pela natureza (BALANDIER, 1988: 146). A sociedade moderna, aprofundando visceralmente todas as contradições possíveis com o meio natural, com “os outros” e com o próprio homem, parece deslumbrada em replicar sem descanso o cenário artificial emoldurado por urbes resplandecentes, encimadas por esguias e flamejantes torres que despontam como seu traço mais singular. Estes pináculos da modernidade, pioneiramente antevistos nos rascunhos visionários da cinematografia futurista (caso da torre central nas memoráveis películas Metropolis, de Fritz Lang e em Blade Runner, de Ridley Scott), para depois serem materializados junto ao real, são o ícone confesso da metrópole, espelhando suas expectativas, devaneios e contradições (Figura 2) Não restam, na modernidade, quaisquer vestígios das antigas divindades ou forças cósmicas. O espaço foi esterilizado para que pudesse servir de matéria-prima para a irrefreável propensão do tempo linear em engendrar, a partir de suas entranhas, o cosmo da 1 178 mercadoria. Coerentemente, não é demasiado lembrar que mercado e espaço passam a conviver em sinonímia, pois um, não tem como ser entendido na ausência do outro (SANTOS, 1993b: 99). FIGURA 2 - As Torres Reais da Modernidade: Nova York e as torres gêmeas do World Trade Center (WTC), em Manhattan, enquanto ainda existiam (Fonte: < http://www.ridgewoodcameraclub.org/WTC_Tribute.htm >. Acesso em: 24-08-2005) Tal epítome se estruturou a partir das ações convergentes do mercadeio, da intervenção do aparato de poder e da divisão espacial do trabalho, reforçando uma hierarquia dos lugares, criando novas centralidades, magnetizando e periferializando pessoas e espaços. Nesta contextualização, a cidade torna-se a condição medular da produção, formando elos de uma cadeia que integra, além da mão de obra, os processos produtivos, centros de intercâmbio, de serviços e, como não poderia deixar de ser, o próprio mercado (CARLOS, 2001: 14). 1 179 No terreno das relações econômicas, não há como duvidar que a cidade se faz e refaz como garantia de reprodução da artificialidade enquanto mercadoria. Nessa interpretação, o meio urbano, enquanto o grande ambiente de risco da modernidade, resulta diretamente da implicância do tempo vetorial em concentrar geograficamente aqueles elementos, tais como homens, máquinas, matérias primas e matrizes energéticas, que são garantia de sua reprodução material e subsídio basilar de sua funcionalidade. A cidade é, pois, a máxima explicitação de um contexto que assinala o predomínio do tempo sobre o espaço, do interesse particular sobre o coletivo, do que é mundial sobre o que é local. Complementando esta convulsiva arquitetura da artificialidade, irrompe, no interior da espacialidade urbana, uma ordem adjunta de disritmias, cuja raison d'être, repete a constância do padrão temporal que subordinou todos os tempos ao seu comando único. In extremis expressão de uma civilização construída com a resoluta obstinação de unificar, mas não de unir, seu resultado inevitável foi, em razão da mundialização do tempo linear estar acompanhada da integração desigual dos humanos na fruição temporal dominante, a formação de um populoso conjunto de excluídos (apud SANTOS, 1998: 35). Este processo foi sustentado pela desapropriação dos meios de produção cuja posse era geralmente detida, nas formações sociais de antanho, por daqueles que os utilizavam. O capitalismo, ao apropriarse de todos os pré-requisitos de reprodução da vida material e de subsistência, ou seja, da possibilidade dos homens comandarem seu 1 180 próprio tempo, engendrou assim o trabalho livre e assalariado, um eufemismo para mascarar a submissão dos humanos ao capital 27. Convém destacar que o caráter excludente do tempo linear se justifica, para além de substantivar-se como instrumento de domínio político, de subordinação econômica e social, de domesticação psíquica e corporal, pelo fato da modernidade imprimir um cunho de mercadoria ao cadenciamento temporal. Como argumenta Anthony GIDDENS, reportando ao historiador e filósofo alemão Georg Simmel, o dinheiro constituiria, no prisma da análise que aqui está sendo endossada, um potente mecanismo de desencaixe, um meio de distanciamento temporal e espacial, pois possibilita a realização de transações entre agentes amplamente separados no tempo e no espaço (1991: 32). Assim, pode-se inverter o preceito de Benjamim Franklin, afiançando que dinheiro também pode ser tempo. Detendo a posse do capital, a burguesia dispõe da última palavra na ordenação do tempo, permitindo-lhe coordenar o dinamismo social e tutelá-lo sob seu tacão. Presumivelmente, seria demasiado simplória a pretensão de isentar a ação dessas forças em marcha, da irrupção de contradições. Afinal, na medida em que o industrialismo se propaga vitoriosamente pelo mundo, o operariado industrial, de igual modo como a burguesia, uma das “classes puras” da sociedade capitalista (Cf. LUKÁCS, 1981: Retenha-se que Karl Marx distingue claramente a forma-dinheiro da forma-capital: “a circulação de mercadorias é o ponto de partida do capital. A produção de mercadorias e o comércio, forma desenvolvida da circulação de mercadorias, constituem as condições históricas quer dão origem ao capital. O comércio e o mercado mundiais inauguram no Século XVI a moderna história do capital” (MARX, 1975b: 165). No texto em curso, o termo dinheiro está sintonizado com o de capital. 27 1 181 31), estreia seu protagonismo no cenário social 28. Aos trabalhadores industriais é imposto, não sem que estes deixem de manifestar denodadas provas de inconformismo, o papel de acatar os ritmos e frequências da produção fabril. Paralelamente é engendrado um outro contingente populacional, sazonalmente convocado pelas atividades produtivas. Categorizado profusamente como exército industrial de reserva, este se apresenta como um stock de força de trabalho que extrapola em muito as necessidades do capital, sendo na sua essencialidade, um verdadeiro reservatório de tempo à disposição do sistema. Assim, este subproletariado tem justamente na desocupação, um dos móveis que asseguram as taxas de lucro, revigorando com sua paralisia forçada, o poderio do próprio sistema que o oprime (Vide SINGER, 2002: 60 e VIANA, 1982: 126/127). Esta lógica de exploração está sincronizada com os intuitos que o tempo linear aspira quanto ao espaço. Na equação que promoveu o adensamento de uma grande massa de protagonistas colocados numa situação de subalternidade diante da temporalidade moderna, pode-se identificar vários elos comuns. Quase sempre, os excluídos são humanos procedentes do meio rural, pertencendo a uma variada gama de grupos e coletividades, porém, sendo em geral não-brancos, não-ocidentais e evidentemente, não-burgueses. Estes segmentos, formam um largo caudal de novos estranhos que tomou o rumo das cidades embalado pelos sonhos do progresso, A noção de “classe pura” expressa uma polaridade social do capitalismo, possuindo caráter essencialmente histórico. Portanto, pode suscitar reavaliações concatenadas com mudanças estruturais operadas no plano da dinâmica das sociedades fundamentadas na economia de mercado em seu sentido mais amplo. 28 1 182 do consumo, do desenvolvimento e porque não, do ingresso no fulgor da modernidade. Entretanto, estes homens e mulheres descobrem rapidamente que nas cidades, não existe espaço para eles. Cognita causa: na ótica da estratificação hegemônica do meio urbano, estas milionárias parcelas da humanidade, uma vez desapropriadas de seu tempo, não tem como escapar da sina de serem impreterivelmente desespacializadas. Estes segmentos de excluídos são os eternos consumidores de uma cidade imaginária, emblemática por não existir de fato para eles, perversa por ser apropriada por poucos, por alguns. Estes forasteiros do tempo hegemônico, marginalizados e punidos por, após terem sido privados do seu tempo, não terem sido integrados ao próprio sistema que os espoliou, fundam, quase sempre nas imediações da pujante e aparentemente inexpugnável arquitetura dos segmentos que, direta ou indiretamente, monitoram o fruir do tempo vetorial, uma cidade díspar, materializando um espaço desigualmente integrado à grande urbe, estigmatizado e não-reconhecido pelos paramentos da cidade institucional. Fundamentalmente, isto acontece porque ao menos no sentido convencional, é preciso reconhecer que para as massas pobres, não há rede urbana (apud SANTOS, 1981: 151). Na realidade, este espaço “informal”, que tipifica a periferia das metrópoles do Terceiro Mundo 29, materializa a forma como um Os debates relacionados com a terminologia Terceiro Mundo inspiraram desde os anos 1970, acesos pronunciamentos na geografia, relacionados à taxonomia do conceito e as implicações nas análises da ordem global (Cf. LACOSTE, 1980). A partir dos anos noventa, alterações promovidas pela internacionalização dos fluxos de capitais, integração das economias nacionais, deslocamento dos centros de poder e a dissolução do Segundo Mundo (Leste Europeu), suscitaram novos modelos teóricos, fazendo jus a uma Nova Ordem Mundial (Ver HAESBAERT, 1997 e MAGNOLI, 1993: 17/18 e 61/62). Neste texto, a terminologia está despida das pretensões de postular um bloco monolítico ou expressar linhas de protagonismo político, tais como o terceiro mundismo ou a 29 1 183 contingente expressivo dos novos metropolitas solucionou a questão da habitação. Desassistidos pelos programas oficiais de moradia e subestimados enquanto prioridade pelos gestores do planejamento urbano, estes setores resolvem do seu próprio modo as agruras das “não-políticas” de habitação. É o que um texto pioneiro datado dos finais dos anos setenta com foco na RMSP registra, identificando os loteamentos periféricos e a produção maciça de casa própria através da autoconstrução, como estratégias visando solucionar demandas objetivamente ignoradas pela cidade formal (Cf. OLIVEIRA, 1982b). É deste modo que o território dos excluídos, a cidade excluída, o espaço dos trabalhadores, repudiado enquanto expressão malévola de um suposto “caos urbano”, se ergue, recusando-se a ser privado da sua humanidade. Embora evidente, não seria demasiado repetir que esta concepção de “caos urbano”, possui nítidos compromissos ideológicos. Intensamente utilizada pela mídia e presente em muitas análises, esta noção observa o ilógico no que é lógico, terminando por respaldar manipulações de índole tecnocrática que subentendem os desequilíbrios urbanos enquanto “expressões desviantes”, fatores conjunturais e não estruturais do funcionamento do sistema, portanto, passíveis de serem solucionados por meio de políticas de ajustes e correções (SANTOS, 1993b: 105/107; OLIVEIRA, 1982b: 142/143). Nesta ordem de averbações, impregnada pelo contraditório, por conflitos e desequilíbrios, a metrópole moderna, bastião do tempo, prótese dos fluxos e concreção da exclusão, conquista contornos e solidariedade Sul-Sul. Antes, identifica realidades que na hierarquia espacial implantada com base na ordenação desigual dos fluxos, formata zonas opacas, discrepantes das zonas luminosas, ou ainda, os espaços do mandar e os espaços do fazer (SANTOS, 1998: 106/108; 1993b: 51, 114/116 e 1988: 50/53). 1 184 atributos imprevistos por um imaginário assoberbado pela justificação ideológica da modernidade enquanto uma contraposição ao atraso, à barbárie, à imutabilidade e à estagnação. Aparentemente alheios ao fato de que a desordem é apenas a ordem do possível, já que nada é desordenado, a cidade dita “informal” é corriqueiramente categorizada no jargão dos administradores e planejadores urbanos, como áreas de crescimento desordenado (SANTOS, 1988: 66). Mas, é óbvio que tais espaços constituem dado indissociável do padrão temporal vigente, em cuja lógica de reprodução espacial estão encartados. Tal espacialidade mantém, na realidade, uma articulação desigual e combinada com o tempo social dominante, no qual, o descompasso e a desarmonia são as notas predominantes. Através desta lógica funcional, compreende-se o surgimento destas áreas junto à maioria das metrópoles da modernidade. De forma quase imprevisível, tais espaços brotam literalmente do dia para a noite, ou melhor, da noite para o dia, aparição quase mágica que se reflete na linguagem coloquial, caso da palavra callampas (ita est: cogumelos), usual nos países hispanófonos na América Latina. Alheias aos critérios institucionais e espalhando-se por entre as nervuras da topografia e artificializando a seu modo a natureza primeira, este espaço é construído pelos principais arquitetos do Terceiro Mundo: as famílias pobres que constroem sua própria casa (SALAS, 1987: 16). Utilizando os mais inusitados e bizarros materiais, como restos de demolições, sucata, lataria e pedaços de madeira, sua natureza precária é evidente no termo bidonville (cidade de lata), comum nos países francófonos. Estas favelas, enfim, formam uma 1 185 caricatura da cidade imaginária, uma rugosidade que prolifera em terrenos pouco propícios à edificação. Ressalvou Milton Santos, os nichos ocupados por estes humanos desigualmente integrados ao tempo linear caracterizam-se por uma inadaptação do habitat ao sítio. Estes são reiteradamente de caráter clandestino, o que remete à constatação de que a cidade informal comumente está implantada junto a áreas de risco e outros espaços desprezados pela cidade formal. Neste caso, seria possível enumerar regiões com declive acentuado ou afloramentos rochosos como os cerros de Caracas e os morros do Rio de Janeiro; depósitos de lixo urbano nas cidades de Lima e Manila; terrenos pantanosos na Ásia das monções, caso de Kolkata (ex-Calcutá, Índia) e da Cidade Ho Chi Min (ex-Saigon, na República do Vietnã); ou a orla insalubre dos rios, estuários e braços de mar, exemplificados em Salvador, Hong Kong e em Phnom Penh (SANTOS, 1981: 179). O crescimento destes núcleos é incentivado por um processo perverso de especulação imobiliária que sempre reserva as áreas mais desfavoráveis para a população de baixa renda. No Brasil, por exemplo, não há dúvida de que são sempre as baixadas sujeitas a toda sorte de sinistros e inundações, ou as encostas, onde a planta bidimensional esconde as medidas e a situação real do lote nos banners das imobiliárias, as primeiras áreas colocadas à venda (Vide PELOGGIA, 1998: 59/70 e OLIVEIRA, 1982b: 113). Fato comum às principais concentrações urbanas do hemisfério sul, este processo de ocupação atira-se ainda sobre as áreas de preservação ambiental e mananciais de água potável. Mesmo à 1 186 margem dos planejamentos oficiais, o percentual de humanos que habitam estes espaços é significativa em meio a todas as grandes concentrações urbanas do Terceiro Mundo. No início do II Milênio, a mídia começou a popularizar a expressão megafavela, destacando a entrada em cena das primeiras “metrópoles informais”, aglomerando concentrações milionárias de seres humanos. Este seria o caso de Dharavi, favela situada em Mumbai (ex-Bombaim, Índia), que reúne um milhão de domiciliados e que, de acordo com as previsões de especialistas, seria apenas uma, das contas de um colar cosmopolita de cidades informais milionárias 30. Este quadro sintético de crises que está sendo exposto nos seus incontroláveis rebatimentos socioespaciais (tanto no quadro natural quanto no artificial), é indiscutivelmente o mais preocupante retrato da modernidade, resultado de uma temporalidade irrefreável que abdicou do espaço como seu espelho estável. Esta crise, torna-se ainda mais espicaçada pelo fato de inexistir qualquer outro patamar espacial exequível de dar conta das contradições geradas por este processo. Pelo menos por enquanto, a colonização em massa do espaço sideral habita exclusivamente as projeções futuristas, e neste prisma, apenas nas mais entusiasmadas. Restaria então, estabelecer respostas centradas nos espaços efetivamente à mão, ao alcance imediato das expectativas e da ação concreta. Certo é que nada pode ser colocado de taxativo na história A favela de Dharavi, muito comentada como exemplo de “cidade informal” está, no entanto, distante de constituir caso único. A despeito de algumas controvérsias quanto às datações estatísticas, a favela de Neza-Chalco-Itza, na Cidade do México, teria quatro vezes a população de Dharavi. Na Ásia, o distrito de Orangi, em Carachi (Paquistão), teria mais habitantes do que Dharavi, sem contar que mesmo em Mumbai, há outras concentrações “informais” que rivalizam e se equiparam a esta icônica megafavela em superpovoamento e pobreza. 30 1 187 humana, mesmo quando o panorama que se desvela a vista de todos, é justamente o que foi instituído pelo mundo contemporâneo. Neste sentido, pensar as contradições que assenhoreiam a modernidade deve, acima de tudo, ser um convite para amealharmos modelos e conceitos que nos auxiliem a compreender a crise. E isto para que a profundidade desta crise venha a constituir um convite para que numa mesma direção, seja possível aprofundar a compreensão e a magnitude das medidas que poderão - ou não contê-la e/ou ultrapassá-la. 4.2. REDE URBANA MUNDIAL: CENÁRIOS E DESAFIOS Até este momento, delineamos um prontuário de sinais que em princípio, são visíveis a um observador seduzido com a preocupação de decodificar geograficamente a paisagem forjada pela sociedade moderna, que por si mesma, denuncia as dissintonias estruturais inauguradas pelo tempo linear, mormente na sua inscrição urbana. Importa enfatizar que numa paisagem hegemonizada por fluxos, a proeminência de estacas concretas é fundamental, mesmo porque, uma geografia dos fluxos não tem como desprezar a geografia dos fixos (apud SANTOS, 1999: 202). Nesta sequência, pode-se considerar que o tempo vetorial, ao condensar uma rede de pontos fixos interconectados em um tecido ou malha de escopo planetário, implementou paralelamente, processos 1 188 de urbanização com características nitidamente diferentes daquelas que imperaram no passado, daí a relevância em trazer a baila os condicionantes e desdobramentos mesclados ao seu dinamismo. Deslocando nossa atenção para este ângulo, a compreensão da escala da rede urbana do mundo atual, e ademais, dos impactos a ela relacionados, reclamaria discernir cinco fatos estruturais básicos, a saber: 1. Em primeiro lugar, estariam os aspectos quantitativos da urbanização mundial; A medida em que as vagas do tempo vetorial alcançavam o espaço rural, este desprendia enormes contingentes populacionais, anabolizando a vida urbana por meio de migrações gigantescas, as maiores da história. Em 1973, alertava o historiador britânico Arnold TOYNBEE que grupos de camponeses vivendo “em comunidades aldeãs, no estilo da Idade Neolítica, ainda constituíam a maioria da geração humana então viva” [ ... ], antepondo-se também que estes, “estavam rapidamente escoando do campo para as favelas que envolviam as cidades” (1979: 717). Deste modo, pela régua delineada em 1984 durante o Colóquio A Cidade, Hoje e Amanhã, realizado sob os auspícios da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e Cultura (UNESCO), antecipava que no início do Século XXI, o meio urbano estaria pela primeira vez na história albergando a maior parte da humanidade sob o seu domínio direto: não menos que 52% dos humanos, inferência confirmada por documento divulgado no ano de 1997 pelo The World Resources Institute em parceria com a UNEP (United Nations Environment Programme), a UNDP (United Nations Development Programme) e o Banco Mundial (World Bank). 1 189 O ineditismo desta cifra é flagrante quando se sabe que, tomando o globo como um todo numa perspectiva histórica, que a população “considerada urbana representava apenas 1,7% do total nos inícios do Século XIX; em 1950, tal percentual era de 21%, percentagem que ascende para 25% em 1960, 37,4% em 1970 e cerca de 41,5% em 1980” (SANTOS, 1988: 41). Outra nota, discutida em 1996 na Conferência da ONU HABITAT II 31, prevê por sua vez, que as cidades aglutinarão no ano de 2025 uma porcentagem antevista em 60,1% da humanidade (1996: 3). Não poderia, pois, existir divergência quanto ao fato de que este processo, evidencia a urbanização enquanto fenômeno espacial, temporal, cultural e socialmente cosmopolita, e por isso mesmo, um dado fulcral para qualquer prognóstico alusivo ao futuro da humanidade. 2. Em segundo lugar, cumpriria avaliar os aspectos qualitativos desta urbanização; No passado, mesmo as cidades que abrigaram a nascente classe mercantil europeia eram modestas e ainda não haviam perdido seus vínculos com o meio rural. Contudo, a partir do Século XVIII, a população urbanizada tendeu a concentrar-se em urbes cada vez mais populosas, primeiramente em metrópoles e posteriormente, nas megalópoles, as maiores manchas urbanas de todos os tempos. Pois então, a grande cidade, mais do que qualquer outra obra esculturada pelos coletivos humanos, consiste no ícone por definição da sociedade contemporânea (Cf. LEFF, 2004: 288), e tendencialmente, as urbes que hoje ponteiam na superfície terrestre, Esta conferência mundial foi convocada pela ONU para discutir a urbanização mundial. Tratou-se da segunda e última reunião de cúpula internacional sobre o tema realizada pela ONU no Segundo Milênio, realizada em Istambul, na Turquia (a primeira ocorreu em Vancouver, no Canadá, em 1976). 31 1 190 formando uma contextura de fundamental importância do ponto de vista demográfico, o serão, ao que tudo indica, mais ainda em futuro próximo (Vide Figura 3). FIGURA 3 - Concentrações urbanas no ano 2000 e projeção para 2015, com respectivos rankings e cifras em milhões de habitantes (Fonte: World Prospects: The 1994 Revision (1995), United Nations Department for Economic and Social Information and Policy Analysis Population Division) 1 191 Agregue-se a este comentário a singularidade da urbanização ter se difundido planetariamente. A expansão urbana aos tempos do industrialismo primordial tinha fortalecido suas raízes particularmente nas nações ocidentais. Outrossim, este processo transbordou seus limites geográficos originais, que basicamente acatavam as fronteiras naturais da Europa. Atualmente, das 21 cidades superpovoadas do planeta, treze são asiáticas (incluindo Tóquio, Osaka e Seul), quatro localizam-se na América Latina (Cidade do México, São Paulo, Rio de Janeiro e Buenos Aires), duas situam-se no continente africano (Lagos e Cairo) e por fim, duas são norte-americanas (Nova York e Los Angeles). Entrementes, seria interessante assinalar que a Europa, justamente o berço da metrópole moderna, não abriga no ano 2000, nenhuma das 21 maiores cidades do mundo 32. Para uma melhor apreciação deste tema, deve-se frisar que do ponto de vista geográfico a urbanização passou a localizar-se, a partir dos meados do Século XX, na periferia da ordem global. Sinal claro Na perspectiva da economia urbana mundial, a urbanização asiática reclamaria certa atenção. Particularmente na Ásia Oriental, estão sendo erguidos os maiores conjuntos de torres, irrompendo em cidades como Bangcoc, Seul, Taipé, Cingapura, Kuala Lampur e Djakarta. Estes novos e orgulhosos skyscrapers do Oriente não desafiam apenas os ventos ou a instabilidade geológica de vários dos sítios nos quais foram construídos. Para seus habitantes, constituem ícones de um capitalismo regional determinado a assumir uma “fisionomia oriental”, desenhando uma leitura própria da modernidade. Neste conjunto, repetindo a contradição Norte/Sul, encontramos metrópoles afluentes (Tóquio, Osaka, Hong Kong e Seul) e periféricas (Manila, Bangcoc, Djakarta e Rangum). Mas simultaneamente, esta contextura assegura-se em comum, de um marco identitário próprio. Mantendo intenso intercâmbio entre si, essas novas metrópoles constituem as estacas do espaço regionalizado Leste Asiático. O crescimento das trocas econômicas regionais constitui um dos seus fundamentos. Fluxos migratórios internos, assim como uma nascente “personalidade cultural” (baseada, por exemplo, na radiodifusão de uma “música popular asiática” transmitida de Tóquio a Kuala Lampur, passando por Hong Kong, Taipé, Seul e Manila), contribui para um crescente senso de identidade lesteasiático e de autonomia no espaço articulado por estas audaciosas megalópoles da Ásia (O Mundo Hoje, 1996: 35). 32 1 192 de que algo grandiosamente diferente passou a interferir nos destinos da maior parte da humanidade, as cidades do continente europeu e norte-americanas, outrora capitaneando o processo urbano mundial, perderam crescentemente sua importância demográfica diante das novas cidades da periferia do sistema. Ainda que as cifras referentes às aglomerações metropolitanas localizadas nos países periféricos sejam consideradas espantosas aos olhos de muitos segmentos de opinião, saliente-se que estas não constituem novidade em qualquer sentido. Recorrendo novamente aos dados do Colóquio A Cidade, Hoje e Amanhã, estes esclareciam que por volta do ano 2.000, quando metade dos seis bilhões de humanos estaria concentrada nas áreas urbanas, dois bilhões residiriam em metrópoles dos países periféricos e um bilhão, nas dos países centrais. Subscrevia igualmente que, das 60 cidades com mais de cinco milhões de residentes, 47 estariam situadas no Terceiro Mundo. Esta parte do globo concentraria também 12 das 15 megalópoles (Vide UNESCO, 1984: 24). Vale sublinhar, em larga medida, tais prognósticos demonstraram grande precisão, confirmando o crepúsculo da supremacia das urbes dos países centrais, relegando-a a um episódio perdido nas páginas da história. Reflita-se que para o ano de 2015, prevê-se que apenas duas metrópoles setentrionais, Tóquio e Nova York, constarão do ranking das quinze maiores cidades do mundo. Também está previsto para 2015 que das 27 maiores metrópoles, somente cinco estariam localizadas no Norte: Nova York, Los Angeles, Tóquio, Osaka e Paris, esta última, ocupando uma singela 22ª posição (passim HABITAT II, 1996). 1 193 Porém, em 1950, sete das 15 maiores aglomerações situavam-se nos países afluentes, proporção que diminuiu drasticamente para 3 no ano 2000. Nesta relação das grandes cidades globais, Londres, que sempre liderou mundialmente o mundo urbano, estará ausente. E o que falar então das aristocráticas São Petersburgo e de Viena, que em 1900 constavam do ranking das dez maiores cidades? Novamente com base no ano de 2015, estima-se que a terceira maior metrópole mundial será Lagos, na Nigéria, com 22,5 milhões de habitantes. Só perderá para Tóquio e para Mumbai, que então, estará apinhada com 27,4 milhões de urbanitas. Além de Mumbai e de Lagos, um exaustivo elenco de metrópoles periféricas poderia ser alinhavado. Dentre estas seria obrigatório registrar: Xangai, que terá então 23,4 milhões; Djakarta, na Indonésia, com 21,2 milhões; São Paulo, 20,8 milhões; Carachi, no Paquistão terá 20,6; Pequim, 19,4; Daca, capital do miserável Bangladesh, 19 milhões e a Cidade do México, 18,8 milhões de habitantes. Tais números, quase impensáveis em função do recorte social que grava todas estas concentrações urbanas, seriam nesta ótica estarrecedores em si mesmos, justificando presságios sombrios. No ano de 1985, numa das audiências públicas preparatórias para o Relatório Brundtland, da CMMDA, realizadas na cidade de São Paulo, foram coletados veredictos dos participantes, sendo que um destes, vaticinava o cenário que segue: As cidades do Terceiro Mundo serão cada vez mais centros de competição acirrada por um pedaço de terra onde se possa construir um abrigo, por um quarto para alugar, por um leito de hospital, por um lugar numa escola 1 194 ou num ônibus, sobretudo por uma vaga nos poucos empregos estáveis adequadamente remunerados, e até mesmo, pelo espaço numa praça ou calçada onde se possa expor e vender mercadorias, atividade de que dependem tantas famílias (1988: 266). Estas considerações se impõem em qualquer discussão sobre o meio urbano do mundo global, e simultaneamente, sinalizam para a precariedade de se trabalhar com um conceito de metrópole calcado na trajetória das sociedades do Norte. A metrópole que se apresenta com força cada vez mais intensa é não-branca, não-ocidental e para completar, periférica. É este meio urbano, caótico e em linhas gerais, disfuncional, que deve absorver com todo denodo possível a atenção dos que se dedicam ao estudo da questão urbana global. 3. Num terceiro apontamento, considere-se que as cidades no mundo atual mantêm intenso intercâmbio entre si, reconhecidamente dessimétrico em toda a sua extensão. A malha urbana mundial reflete uma estruturação social, política e econômica, cujas contradições, articuladas nas mais diversas normatizações, materializam-se, fato óbvio, de um modo global, contudo, sempre desigualmente, tecedura que varia de um contexto a outro. A saber, não existe um global indistinto, porém, um global que se decanta dessimetricamente, daí a necessidade de refletir sobre a especificidade dos diferentes espaços urbanos do mundo atual. Por conseguinte, temos que ao menos parcialmente, a explicação relativa ao funcionamento das metrópoles da periferia reportaria ao relacionamento mantido com as metrópoles do hemisfério norte (Cf. SANTOS, 1982: 17/18). Desempenhando um papel subordinado, as 1 195 metrópoles da periferia materializam uma geografia urbana própria, que mesmo mantendo diferentes fisionomias, compartilham várias características comuns em todo o mundo subdesenvolvido, expressão da sua integração desigual no mundo global: Não se trata aqui de negar o caráter global do estudo do espaço, já o mostramos em outro lugar: mas de distinguir, num nível inferior de generalidade, o espaço dos países desenvolvidos e o espaço dos países subdesenvolvidos (SANTOS: 1978b: 103). Sintetizando o que foi colocado, comentar de modo genérico a respeito de uma crise urbana mundial, não faria nenhum sentido. O relacionamento mantido entre as cidades está consubstanciado por relações marcadamente desiguais, que por sua vez respaldam sua interação na rede urbana global. Em paralelo, esta configuração urbana articula as urbes num conjunto hierarquicamente diferenciado, demograficamente polarizado e também, incompletamente integrado na economia urbana hegemônica. Reproduzindo uma lógica inerente à reprodução do sistema, o relacionamento entre as metrópoles que formam a rede global está crivado e demarcado, de alto a baixo, por contratos marcadamente dessimétricos, transformando as megalópoles dos países do Sul em pontos de apoio de uma vasta rede planetária, por intermédio da qual os fluxos econômicos transitam continuamente da periferia na direção do centro do sistema. Isto ocorre porque embora uma lógica funcional articule as metrópoles do Norte e do Sul numa mesma rede urbana mundial, esta é de fato hegemonizada de fato pelas metrópoles dos 1 196 países centrais (passim SANTOS, 1988. Ver também SINGER, 2002: 71/72). Nesta linha de interpretação, categorizar as megacidades do Terceiro Mundo como inviáveis, constituiria uma afirmação carente de qualquer estatuto científico. Nada mais incorreto do que julgamentos imprudentes como este, pois quem colocaria em questão que as metrópoles afluentes do Norte constituem, em razão do seu estilo de vida perdulário e consumista, o verdadeiro epicentro da crise urbana e ambiental da modernidade? Poder-se-ia considerar “viáveis” as grandes cidades dos países centrais regidas por uma consumolatria conspícua e esbanjadora? E qual seria a base de sua viabilidade, lembrando-se que para manterem-se em funcionamento, tenderão a apelar cada vez mais para recursos obtidos à custa da espoliação de outras áreas, insumos estes que no mais das vezes, são procedentes dos países do Sul? Neste sentido, a crise urbana dos países do Sul conquista caráter estrutural, que por isso mesmo, deriva em descompassos dificilmente solucionáveis nos marcos do relacionamento Norte/Sul atualmente em vigor, que isto posto, sinaliza para uma revisão do modelo de civilização que atualmente comanda a humanidade. O próprio fato dos recursos naturais da Terra serem insuficientes para universalizar o modelo urbano ideacionado pelo Ocidente, e numa mesma ordem, o processo de globalização que o sustenta, é um dos pontos que, portanto, entrelaçam a crise urbana com o explosivo descompasso socioambiental da modernidade. 1 197 A civilização urbana, tal como foi estruturada nos países do Norte, embora fulcral para que o fenômeno da globalização possa ser compreendido, também nos revela que paradoxalmente, o processo de globalização não dispõe de espaço para ser global. Disto decorre a essencialidade de discutir-se não apenas o tempo social, mas numa mesma direção, o espaço geográfico, e particularmente, o urbano. 4. Numa quarta pontuação, as metrópoles desempenham papel de liderança no comando da rede urbana, eventualmente alterando sua forma, porém salvaguardando seus vetores dominantes. No encalço das transformações ocorridas nas últimas décadas do Século XX, as regiões metropolitanas, polos axiais que titularizam os circuitos que imantam a espacialidade urbana global, observaram alterações qualitativas quanto aos seus dinamismos socioespaciais. Veja-se que a partir dos anos 1970, uma constelação de mudanças inéditas modificou as determinações até então válidas para a organização do espaço, apontando novos desenhos para as áreas metropolitanas. Basicamente, este quadro associou-se à imposição de novos padrões de acumulação afiançados pelo processo de globalização da economia. Tais transformações filiam-se sob diversos ângulos a uma releitura das relações com o tempo e o espaço, associadas também com marcantes inovações tecnológicas, no geral, passíveis de serem agrupadas em algumas linhas básicas (tais como a microeletrônica, robótica, automação e biotecnologia), e do mesmo modo, com uma “repactuação” firmada com o objetivo de estipular novas regras entre os trabalhadores e os pilares da economia. Deve-se acentuar que tais processos (mudanças tecnológicas e reengenharia socioeconômica), não são estanques, relacionando-se e interagindo entre si, tonificando 1 198 a impregnação da materialidade social com os valores transmitidos pela globalização. Nesta ampla redefinição que transcorre nos dias atuais, tem-se um movimento contingente, sujeito a marchas e contramarchas, que se apresenta sob diversas formas, mas deixando marca indelével na sociedade global. O motor desta repaginação é a competitividade, eleita enquanto paradigma central para a organização da economia e da sociedade, tornando-se um eixo que por excelência, orienta os movimentos da globalização, cujo anseio máximo é a afirmação da velocidade absoluta (SANTOS, 1997:8). Nutrificada por pregações floreadas por arroubos retóricos como “anulação dos privilégios corporativos”, o “mercado como princípio regulador geral” e a “desregulamentação das relações de trabalho”, estas aporias transparecem como verdadeiras pedras de toque que impulsionam o nexo assumido pela economia-mundo, sob comando iniludível das nações do Norte. A implementação destas teses pela ordem mundial capitalista foi favorecida por um panorama geopolítico no qual o Leste Europeu (o oponente por excelência do mundo ocidental durante mais de setenta anos), deixou de existir enquanto contraponto ideológico, econômico, político e cultural, ao mesmo tempo em que as forças sociais que se mantém em contraposição ao modus faciendi global, enfrentam uma dificuldade lapidar para formatar um conjunto minimamente articulado de proposições e programas políticos que barrem efetivamente sua afirmação (Vide HAESBAERT, 1997; OLIC, 1993: 81/83 e MAGNOLI, 1993: 46/62). 1 199 Pois então, a economia de mercado dispõe, neste momento de mundo, de condições que lhes são mais do que favoráveis para impor e exacerbar seu código de gerenciamento do tempo até as últimas consequências, abrindo mão de eventuais volubilidades e aplicando sem restrições a sistemática do mercado total. Tais diretrizes destronaram conceitos consagrados no bojo da antiga civilização industrial e urbana, abrindo caminho para que os postulados “clássicos” (caso do exército industrial de reserva e da mobilidade dos trabalhadores), passassem a ser revistos e refeitos mediante uma ótica inteiramente nova. Com a admissão das novas tecnologias, a força de trabalho, que no início da Era Capitalista tinha importância fundamental, passa a contar cada vez menos. Dito de outra forma, os aumentos de produtividade ocorrem em paralelo a uma menor expressão da participação do trabalho vivo no interior dos processos produtivos. Observa-se do que é catalogado no jargão economicista como jobless growth, isto é, crescimento sem emprego. Este balanço propicia uma potencialização da exclusão social, hoje exponencializada como nunca. Tal como ressalvado no candente ensaio da geógrafa Maria de Fátima Almeida MARTINS, a dianteira técnica lograda a partir dos finais do Século XX, encerraria: ...não mais a virtualidade da emancipação do homem em relação ao dispêndio intenso de trabalho vivo, uma vez que isso já se constitui em fato histórico concreto. Mas, se as forças sociais despertadas pelo capital engendram um mundo onde a natureza bruta já não mais se põe como ameaça à reprodução social, o horizonte do não-trabalho posto por esta forma de sociedade não anuncia nada de emancipatório, haja vista que a possibilidade do não 2 200 trabalho se transforma, desgraçadamente, em desemprego, ou em trabalho precário, o que, não sem alguma razão, tem alimentado algumas das interpretações que ultimamente vêm ganhando expressão na explicação do mundo atual (1998: 56). Fazendo uma reedição de comentário registrado nos parágrafos anteriores, tem-se que se no passado, os grupos “liberados” do meio rural foram, após serem subtraídos da sua temporalidade, conduzidos para os centros urbanos para ingressarem no parque fabril e imersos no cadenciamento temporal das indústrias, as declinações hodiernas da modernidade sugerem induções desmesuradamente perversas. Uma conduta idiossincrática da economia globalizada tem sido a de excluir nacos expressivos da população trabalhadora das relações de produção, fomentando a ampliação do contingente de pessoas não diretamente incorporadas às relações formais de produção. Este agrupamento, formado pelo que a literatura acadêmica das ciências sociais define como “protoproletários”, são os excluídos e os, “sobrantes” que não se ajustam sequer na conceituação tradicional de exército industrial de reserva (MARTINS, 1998: 56, grifos nossos. Ver também SANTOS, 2003: 16/17 e KURZ, 1992: 192/197). Tal “reengenharia” vincula-se organicamente com a lógica interna encontrada no cadenciamento da fruição linear e progressiva do tempo. Nesta estratégia, se inscrevem as novas tecnologias aplicadas na esfera da produção, comunicações e dos serviços, introjetadas sob a égide tutelar do jobless growth. 2 201 Neste caso se inscreveriam, a título de exemplo, os sistemas de transmissão instantânea, on line ou em tempo real. Paradigmáticos no cotidiano contemporâneo, modelos informacionais como os caixas 24 horas e o comércio eletrônico, além contrariarem os sentidos imemoriais dos intercâmbios, desfigurando a majestade relacional, promovendo sua virtualização crescente e eliminarem postos de trabalho, implicam numa releitura da relação com o espaço. Inferência inquestionável, os objetos geográficos neste compasso são, a cada dia, mais carregados de informação (apud SANTOS, 1998: 140). No que tange à organização territorial urbana, a formação de estruturas organizadas em redes horizontais, nas quais o fenômeno da polarização de certo modo se dilui para dar lugar a um conjunto de fixos funcionalmente articulados e integrados entre si com base em fluxos rápidos e ágeis, implicou na ressignificação do tecido urbano, agraciado com dispositivos afirmativos de um meio técnico-científicoinformacional. Este direcionamento inclina-se a formatar uma única bacia de empregos, de residências e de atividades, logística que alimenta forte relacionamento com o mercado em todos os níveis. É preciso dizer que se está claramente diante de um outro avatar da metrópole moderna, cujo desempenho econômico e social se faz em estreito intercâmbio entre núcleos que mantém entre si trocas permanentes, impregnados da temporalidade de mercado e dos seus conteúdos. Ora, este cenário difere substancialmente da antiga metrópole industrial. O grande centro urbano esculturado a partir do triunfo da maquinofatura, foi comutado por polos de serviços que agregam 2 202 tecnologias de ponta (high-tech), requisitando padrões específicos de intercâmbio social e de trabalho. Esta realidade instiga, outrossim, processos organizacionais que primam por uma menor verticalidade e por segmentações menos rígidas. Daí que passa a ocorrer, conforme pontuado no texto da geógrafa Rosa MOURA, “uma refuncionalização dos espaços metropolitanos, recolocando-os como polos modificados, que se tornam cada vez mais seletivos para a alocação de atividades e população. As funções de comando e gestão, que passam a caracterizar as metrópoles, altamente tecnificadas, dispensam trabalhadores, particularmente os menos qualificados” (2003: 8). Exatamente por esta razão, mais do que uma alegoria, o termo “desindustrialização”, mais do que um conceito abstrato, transparece a olhos vistos na concretude da grande urbe. Efetivamente o coração das metrópoles “perdeu” indústrias, e não em pequena proporção. Galpões em ruínas, chaminés que não soltam mais nenhuma fumaça, armazéns destelhados que se transformam em habitação de pombos, ramais ferroviários tomados pelo mato, pátios abandonados, muros e portais em ruínas, construções abandonadas com vidros quebrados, contêineres pichados, vagões relegados à ação da ferrugem e silos que contemplam o vazio, são algumas das celebrizadas “miragens” de desolação, ruína e da decadência das antigas zonas industriais, onipresentes nas áreas metropolitanas de todo o mundo. A consequência esperada deste leque de transformações foi a diminuição das taxas de crescimento demográfico, especialmente no núcleo das grandes manchas metropolitanas. Tendo por base esta constatação do “esvaziamento” da grande cidade, passaram a medrar 2 203 fabulações, sub-repticiamente estimulando vozes a insinuar que as metrópoles perderiam a capacidade de liderar redes urbanas. Existiria nesta sugestão um raciocínio subliminar pelo qual população é poder, e, por conseguinte, que a estagnação ou o retrocesso demográfico dos grandes centros, constituiria sinal de fragilização das metrópoles na hierarquia de comando das redes, um quadro no mais, acirrado pela desindustrialização, que objetivamente a promoveu. Entretanto, trabalhando mais detalhadamente esta exposição, pode-se perceber que a realidade não estaria em concordância com esta interpretação. Mais corretamente, as metrópoles colocaram em marcha uma reengenharia das relações de poder econômico, político e social que sustenta sua parti pris de mando com o concurso de outros modelos de supremacia. Tratar-se-ia de uma reacomodação dos elementos que articulam o espaço urbano, não para alterar esta hegemonia, mas perpetuá-la, buscando assim confirmação, e não sua negação. Exemplificando, uma abordagem relacionada com a metrópole paulista evidencia que os novos objetos urbanos enxertados neste tecido, despertaram uma onda de valorização imobiliária, induzindo ...um deslocamento de atividades subsidiárias e de ocupações menos solváveis para áreas mais distantes, porém conectadas ao núcleo central. Assim, grandes metrópoles e mesmo suas áreas metropolitanas podem crescer menos, porém expandem-se. Mas também se expandem as metrópoles de menor porte, estendendo suas áreas periféricas e incorporando novos municípios ao núcleo metropolitano, que se tornam similares às suas próprias centralidades intraurbanas (MOURA, 2003: 8, grifos nossos). 2 204 Seguindo os passos desta interpretação, o que temos pela frente não seria uma desindustrialização, mas antes, uma desconcentração industrial, que ao procurar pelo entorno das metrópoles e tendo nesta periferia uma realocação preferencial, confirma em inúmeros casos, uma desconcentração centralizada. Esta terminologia, que não é um mero recurso semântico, nos esclarece, que este reposicionamento intercorre mantendo o antigo núcleo como core area, em cujos arredores as atividades econômicas são reorganizadas, cabendo a este centro, o processo de gestão de fluxos particularizados pela utilização intensa e maciça de ciência e tecnologia. Disto desdobram-se não apenas as crescentes exigências concernentes à especialização dos trabalhadores, mas também, uma supressão seletiva da indexação e participação de trabalho vivo nos processos produtivos, que realimentam deste modo, a dinâmica de esvaziamento da urbe e da exclusão social (Cf. MARTINS, 1998: 56). Verazmente, cabe atestar que a noção de “desmetropolização”, requer no mínimo, certa cautela. Alicerçado numa releitura das formas de reprodução da formação socioespacial capitalista, na realidade o dinamismo metropolitano apenas tem reafirmado uma propensão de expansão da grande cidade. Neste sentido, o papel das metrópoles na liderança das redes urbanas é mantido e aliás, inclusive reforçado. Trazendo a lume o parecer de Milton Santos quanto a aderência do conceito à dinâmicas socioespaciais como a brasileira, fenômenos aparentemente contraditórios como a metropolização e a sua putativa contraface, a desmetropolização, são na verdade, complementares, e o que assistimos seria muito mais verdadeiramente o reforço da 2 205 metropolização somado a uma matriz singular de desmetropolização (apud SANTOS, 1993b: 286, grifos nossos. Ver também SANTOS, 2003). Acatando esta linha de argumentação, é antes a natureza do desafio urbano metropolitano que se alterou, entretanto não a sua proeminência enquanto “nó górdio” da modernidade. A metrópole mantém-se, para todos os efeitos, enquanto arena privilegiada para o futuro dos humanos, instigando não só as reivindicações por outra temporalidade, como também por uma nova espacialidade. 5. Em quinto lugar, a despeito da percepção das áreas pobres das metrópoles enquanto espaço instigador de impactos ambientais, não há como analisar os desequilíbrios ambientais urbanos em desconsideração de uma visão crítica, dirigida no sentido exatamente oposto, qual seja, polemizando o estilo de vida afluente, tutelado por um sistema dual, reprodutor de cissiparidades. Podemos facilmente localizar na iconografia e na literatura publicizada pelos meios de comunicação, assim como por órgãos e instituições com mandato na difusão de notícias e informes ambientais, farta informação revelando um quadro de óbices ecológicos que conotam os espaços ocupados pela população pobre das grandes cidades. Na verdade, desde os primórdios da urbanização moderna são abundantes os relatos detalhando condições adversas de vida urbana em todos os campos da expressão cultural e do conhecimento. Por exemplo, na literatura podemos mencionar a obra do escritor britânico Charles Dickens (1812-1870), que conformou um libelo carregado de 2 206 denúncias explicitando o deteriorado ambiente de vida e de trabalho imposto ao operariado da época em que Dickens viveu. Seria também possível deparar com apontamentos relativos a desequilíbrios ambientais em A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra, texto de autoria de Friedrich Engels. Esta obra, expõe um cáustico relato centrado na condição operária num momento em que se presenciavam as dores do parto do industrialismo, no qual o ruído, a sujeira, os miasmas, as águas infectadas e as moradias insalubres, estão descritas em todas as suas cores. Estes problemas, que ninguém hoje obstaria em classificar como ambientais, evidenciam que o silêncio histórico incidindo sobre a questão ecológica, encontra sua justificativa no fato dos trabalhadores terem sido por um longo tempo as vítimas exclusivas da degradação ecológica. Apenas a partir do momento em que a destruição do meio ambiente atingiu grupos pequeno-burgueses e passou a ameaçar os setores dominantes, postando-se numa ordem de grandeza em si mesma impeditiva do ocultamento da discussão, é que o debate ambiental ganhou espaço nos meios de comunicação, promovendo conjuntamente, dada sua popularidade, o alastramento de vigorosa agenda de iniciativas e de produtos culturais dedicados ao tema (Vide GONÇALVES, 1982: 222). Assim, é possível identificar um itinerário que transitou da não visibilidade da questão ambiental 33 33, alcançando na outra ponta seu Embora esporadicamente, considere-se que a percepção dos riscos ambientais, que costuma ser exclusivamente identificada ao mundo contemporâneo, pode ser apontada nos séculos passados. No Brasil, os protestos visionários de Frei Vicente Salvador (1564-c. 1636), condenando o mau uso da terra e o eloquente posicionamento de José Bonifácio em prol da conservação das florestas (1823), explicitam uma tradição 2 207 entendimento enquanto situação condizente com as más condições de vida ou a condição de exclusão. Todavia esta constatação, em que pese a existência de um conteúdo de verdade, não permite descuidos relativamente às generalizações e determinados lugares comuns que povoam avaliações sobre a questão ambiental. Uma destas refere-se à associação mecânica entre pobreza e destruição da natureza. Esta sinonímia, falsa por englobar contextos cuja concretude reclama nexo específico de análise, é merecedora de apensos, notas e retificações. É necessário recordar que na visão dominante, tudo aquilo que não integra o regime de afluência proposto, é considerado “pobre”, independentemente da sua relação funcional com a economia de mercado. Este recorte, que restringe a compreensão do mundo a uma perspectiva regrada por oposições binárias radicais, inevitavelmente gera equívocos para a compreensão da equação que conjumina as sociedades humanas e a natureza. Seria, neste caso, interessante analisar a passagem reproduzida a seguir: Enquanto populações ribeirinhas e migrantes podem ser igualmente qualificadas como populações ‘pobres’, elas apresentam diferentes culturas ecológicas e produzem diferentes impactos ambientais, desafiando, deste modo, o consenso expresso no Relatório Brundtland, na Eco 92 e em publicações oficiais, de que pobreza e degradação ambiental estejam necessária e intimamente relacionadas (LIMA et POZZOBON, 2000). Desta forma, além da pobreza não estar necessariamente colada à noção de desequilíbrio ecológico, existiria também o perigo desta ser entendida não como resultado, mas sim enquanto condição para esquecida de crítica ecológica, digna do interesse social e acadêmico (Ver a respeito, MARCONDES, 2005 e PÁDUA, 2002). 2 208 o surgimento dos problemas ambientais, ou seja, ser sua causa. Tal argumento surge de um modo ou de outro em diversas publicações, dentre estas o celebrado Relatório Brundtland. Considerado uma das principais matrizes das teses do “desenvolvimento sustentável”, podese conferir no corpo deste documento o que segue: A própria pobreza polui o meio ambiente, criando outro tipo de desgaste ambiental. Para sobreviver, os pobres e os famintos muitas vezes destroem seu próprio meio ambiente: derrubam florestas, permitem o pastoreio intensivo excessivo, exaurem as terras marginais e ocorrem em número cada vez maior para as cidades já congestionadas (CMMAD, 1988: 30, grifos nossos). Aparentemente, no Relatório Brundtland, como em muitos outros materiais, as pessoas pobres são movidas por atos de pura vontade, independentemente dos contextos e das relações sociais, ignorando assim os soberbos e clamorosos apelos em defesa do meio natural. Posturas com este perfil, desprezando compreensões de mote social, tendem a construir axiomas pelos quais, a solução da problemática ecológica termina por ser encontrada em políticas ou em estratégias eminentemente econômicas. Na sequência a esta formulação, e até por coerência pospositiva, a pobreza, sendo-lhe imputado o papel de degradar o ambiente, teria no seu contrário, a riqueza, o pressuposto para alcançar o tão caro e almejado equilíbrio com a natureza. Desta feita, eis novamente o que registra o citado relatório: A pobreza reduz a capacidade das pessoas para usar os recursos de modo sustentável, levando-as a exercer pressão sobre o meio ambiente. A maioria dos pobres 2 209 absolutos vive nos países em desenvolvimento [...] Uma condição necessária, mas não suficiente, para a eliminação da pobreza absoluta é o aumento relativamente rápido das rendas per capita do Terceiro Mundo. Portanto, é essencial inverter as atuais tendências de estagnação do crescimento (CMMAD, 1988: 53, grifos nossos). Levando-se em conta esta perspectiva, os problemas sociais e econômicos seriam corrigidos pela aceleração do desenvolvimento, preferencialmente carregado de sustentabilidade. Nesta derivação, os padecimentos da sociedade humana derivariam não propriamente da lógica inerente à sua arquitetura social, cultural, política e econômica, mas antes, das falhas em gerenciá-la de modo eficaz, problemáticas que de resto, seriam plenamente solucionáveis mediante a aplicação de um programa sistemático de ajustes e correções (Ver a respeito, SANTOS, 1992 e 1991). Fórmulas como estas constituem atalho para anistiar um sistema reprodutor de desconformidades, justificando assim sua continuidade. A fragilidade deste argumento é subentender que o problema reside na esfera da produção, quando na realidade a questão precípua do mundo contemporâneo centra-se na distribuição do produto social. Aliás, ressalve-se que nunca existiu um período da história humana no qual a produção de bens tenha alcançado patamares tão avultados quanto os atuais, pelo que o postulado do desenvolvimento termina encarcerado numa situação paradoxal, em vista de tornar ininteligível a existência de uma crise de acesso aos bens num mesmo momento em que a cornucópia de mercadorias opera com velocidade total. 2 210 Neste sentido, um enfoque autenticamente operacional, não tem como contestar que a questão da apropriação da riqueza e o seu vínculo com a questão ambiental é que constitui o ponto de partida para desconstrução da percepção da exclusão como geradora de desequilíbrio ambiental. De antemão, deve ser avaliado que seria a afluência, tal como esta foi estipulada pelo mundo ocidental, o dado fundante para se compreender a problemática ambiental urbana. E este esclarecimento pode ser deduzido a partir da análise da ocupação do espaço da cidade moderna e dos estilos de vida associados à sua reprodução. Por extensão, a continuidade analítica desta temática conecta-se, portanto, com a discussão da dinâmica vivenciada pelas metrópoles a partir dos finais do século passado. Foi comentado, desde os anos setenta tem-se conhecimento do que terminou definido como sinais de estagnação do “núcleo duro” das grandes manchas urbanas. Primeiramente nos países centrais, este contexto foi acompanhado por um ponderável deslocamento demográfico direcionado para a periferia das metrópoles, dinamismo espacial cuja lógica expressaria um processo de suburbanização (Cf. SANTOS, 1981: 3 et seq). Os estudos confirmam, uma das nações onde primeiramente detectou-se esta inclinação foi a Grã-Bretanha, onde a redistribuição demográfica caminhou par a par com a retração populacional nos principais centros urbanos, trasladação esta, propagandeada como “revitalização de pequenas cidades rurais” (Vide HABITAT II, 1996: 3). 2 211 Obviamente, seria insuficiente esgotar esta discussão nos termos de um “deslocamento populacional”. É necessário também indagar quais grupos sociais, no final das contas, mudaram sua residência para o entorno das grandes metrópoles. Neste particular, as análises sinalizam que as ondas migratórias intraurbanas foram imantadas especialmente pelas classes médias e por segmentos sociais mais bem aquinhoados, instigados tanto pela fuga da “violência urbana”, quanto pela reconquista da “qualidade de vida perdida”. Esta transferência foi também motivada pela sedução do discurso visando a retomada do “contato com a natureza” e do “acesso ao verde”, legitimando novas experiências urbanísticas. Nos EUA, o gigantesco movimento migratório das classes médias urbanas para a periferia das grandes cidades, conhecido pela rubrica urban sprawl (difusão ou alastramento urbano), integrou milhões de estadunidenses em proposições eminentemente horizontais de uso e ocupação do solo, baseadas em unidades residenciais familiares aglutinadas em um tecido urbano de cunho condominial. Este modelo, conhecido como suburb, constitui contraponto à visão tradicional da “floresta de edifícios”. Note-se que além de materializar um primado habitacional, este “nicho imaginário” está subsidiado por um estilo de vida, tipificado por elevados patamares de consumo energético e de matérias primas. A expansão desta modalidade de ocupação do solo formou formidáveis cinturões de casarios na circunvizinhança dos grandes complexos metropolitanos, áreas nas quais um oceano de casas de alto padrão constitui sua representação visível mais conhecida (Figura 4). 2 212 FIGURA 4 - O Oceano de Casas: registro fotográfico de um suburb localizado em Las Vegas (Arizona), uma das áreas metropolitanas de maior crescimento nos EUA. Os lagos artificiais deste condomínio são sustentados pela importação de água de outras áreas e de lençóis subterrâneos, sobejamente porque a região é desértica, na qual, em princípio, o líquido é escasso ou inexistente (Foto de Sarah Leen, National Geography, julho de 2001, in MITCHEL, 2001:58/59) Reconhecidamente, este dinamismo demográfico impulsionou a multiplicação dos impactos ambientais. Primeiramente por ampliar consideravelmente a superfície ocupada pelas áreas urbanas. Uma série de estatísticas indicam que em 1950, cerca de 70 milhões de 2 213 norte-americanos que viviam em áreas urbanizadas, ocupando 13 mil milhas quadradas de território (that is to say, 33.700 km²). No entanto, no ano de 1990, quando a população urbana dos Estados Unidos dobrou, alcançando a marca de 140 milhões de pessoas, a superfície ocupada pelas cidades multiplicou-se por cinco, cobrindo 60 mil milhas quadradas (ou 155.400 km²), transformando os sistemas de vias expressas em meras avenidas unificando uma área conurbada à imediatamente vizinha (MITCHELL, 2001: 55). Por sinal, este processo não tem dado mostras de arrefecimento. Acredita-se que em 2025 a população estadunidense agregará mais 63 milhões de novos habitantes, provocando uma demanda adicional de 30 milhões de novas residências, agravando os impactos desta suburbanização desenfreada. A expansão dos suburbs tem absorvido uma superfície de 1,2 milhão de acres (ou seja, cerca de 4.860 km²) de solo por ano. Na voz de todos os especialistas no tema, o urban sprawl tem atuado como fator de comprometimento da preservação das florestas, da vida selvagem e provocando perda de solo agrícola. Esta cifra, somada à requisição de áreas já antropizadas, alcançaria então a espantosa superfície de dois milhões de acres (equivalente a 8.093 km²), área abduzida a cada doze meses (MITCHELL, 2001: 58). Em segundo lugar, o padrão suburb insere impactos relacionados com a infraestrutura e equipamentos necessários para sustentar esta modalidade condominial. Dentre estes, figuram os concernentes ao transporte individual, opção por excelência, até porque única, para os 2 214 deslocamentos dos que estão radicados nestes conjuntos. No geral, cada família moradora de um suburb possui mais de dois automóveis, realizando um promédio de dez viagens de carro diariamente. Esta espantosa média de veículos gera congestionamentos que aprisionam as pessoas no trânsito por tormentosas 500 horas/ano, ocasionando perdas anuais de US$ 72 bilhões em gasolina (dados de 2001). Tal disfuncionalidade contribui para explicar o surpreendente consumo de combustível dos norte-americanos, no patamar de 459 galões por pessoa/ano (cada galão equivale a 3,78 litros), índice este, considerado o mais alto do mundo 34. Muito embora a propalada “selva de pedra” formada pela intensa aglomeração de edifícios esteja distante de ser propriamente um paraíso ecológico, é evidente que o suburb, desmentindo o consenso fabricado pelas imobiliárias, distancia-se ainda mais desta referência. Nos níveis concreto e imaginário, este modelo individualista de vida exige para sua sustentação muito mais insumos, intensificando a pressão sobre o meio natural. Nestes espaços horizontalizados, as “elites do tempo” usufruem benesses que poucas décadas atrás eram oferecidas pelos arranhacéus de altíssimo padrão das metrópoles. Sintomaticamente, o urban sprawl tem difundido estragos de tal monta, que se entrou na mira 34 Comparemos este índice com os de outros países do Norte global: Canadá, 303 galões habitante/ano; Alemanha, 140; Japão, 113; Rússia, 55 (Dados do US Energy Information Administration, WorldWatch Institute e BP Amoco Statistical Review of World Energy 2000, in National Geographic, edição de março de 2001). Evidentemente, os níveis de consumo energético seriam outros, caso a organização do espaço propiciasse, nos termos de mobilidade urbana, a implantação de circuitos de transporte coletivo e formas alternativas para os deslocamentos - tais como as ciclovias -, e garantisse seguridade e apoio ao pedestrianismo. 2 215 preferencial dos ecologistas radicais norte-americanos, numa escala que se estende de pichações e pequenas travessuras, a incêndios premeditados de residências colocadas à venda (Vide Figura 5). FIGURA 5 - A Resistência ao Urban Sprawl: Ambientalistas radicais da Frente de Libertação da Terra picharam esta casa em um condomínio de Long Island, Nova York, e queimaram diversas outras. “A Terra não está morrendo, está sendo assassinada”, proclamou um comunicado do grupo, “e aqueles que a estão matando, possuem nomes e endereços” (Foto de Sarah Leen, National Geography, julho de 2001, pp. 71 in MITCHEL, 2001: 71) Confira-se que o suburb, após consolidar posição no imaginário de afluência dos Estados Unidos, passou a ser adotado pelos setores de alta renda em todo o mundo. Além dos grupos bem aquinhoados da Europa Ocidental, a fina-flor dos países periféricos, por conta tanto de um “efeito imitação”, quanto pelo desejo de um “refúgio tranquilo” 35 da própria temporalidade que os granjeia à condição de comando Com efeito, este é um slogan recidivo no marketing voltado para a comercialização dos condomínios fechados. 35 2 216 da sociedade local, passaram a instalar versões indígenas destes condomínios 36, implantando ilhas com “padrão californiano” muitas vezes cercadas por bairros pobres ou por favelas. Encastelados em sociedades crivadas por desigualdades de todo tipo, estes “bolsões de opulência” recorrem a todo tipo de tecnologia de segurança para conter a intratabilidade social urbana, subliminarmente inscrita em amedrontadores “arrastões urbanos”. Por sinal, estes temores não encontraram guarida somente na psicose das natas metropolitas dos países sulistas. Após a II Guerra Mundial, a prosperidade renovada dos países europeus inverteu a tradicional corrente migratória que escoava dos países “velhos” na direção de países “novos”. Bafejadas por uma renovada afluência, as sociedades do Norte passam a desdenhar funções estigmatizadas como schwartz arbeit (“trabalho negro”: tarefas consideradas sujas, servis, indignas e/ou degradantes), induzindo que recepcionassem maciços grupos de imigrantes do Terceiro Mundo para o desempenho destas ocupações, motivando movimentação que recorreu tanto para vias legais quanto para esquemas clandestinos. No tocante às migrações não-documentadas, estas, organizadas pelas redes de snakeheads (tradução: cabeças de cobra, como são conhecidos os contrabandistas de pessoas), transformaram-se num verdadeiro rodamoinho demográfico. Dado seu caráter ilegal, o envolvimento do crime organizado com o lucrativo tráfico de pessoas Na RMSP, um dos empreendimentos inspirados na tipologia suburb, revestido dos ouropéis de ícone imobiliário, atende pelo “modelo Alfaville”, pioneiramente implantado em Barueri, município integrante da Grande São Paulo. 36 2 217 (homens, mulheres e crianças), caso da Yasuka japonesa, das Triads chinesas e da Máfia italiana, tem se tornado praxe nos informes policiais de todo o mudo. A despeito de serem alvo de rancorosas recriminações por parte de políticos conservadores em todo o mundo, estas altercações demográficas, ao acatarem necessidades objetivas da ordem global, dificilmente deixarão de existir. Justamente neste sentido é que a contraface da colonização, residiria na colorização da Europa (SANTOS, 1988: 41). Sobremaneira, é este o imperativo que torna compreensível a insistência com que o bloqueio da linha de limites entre o Norte e o Sul esteja sendo colocado à prova incessantemente, perpetrado por ondas migratórias que burlando barreiras dispostas em terra, mar e ar, reclamam inserção nos espaços afluentes. Há quem considere esta massa de desvalidos como o dínamo de um “arrastão planetário”, cenário que ensejaria redobrada vigilância das entradas e saídas dos espaços centrais. Porém, a movimentação dos “sobrantes”, apesar de contidos, detidos, expulsos ou mesmo mortos, é pura e simplesmente incontrolável. Isto porque resulta das pré-condições objetivas que tem restringido cada vez mais o espaço de parcelas consideráveis dos humanos. Esses alienígenas de tipo novo, obsequiados com uma série de adjetivações universalizadas pelos meios de comunicação (foreign people, ausländer, illegal migrants, clandestinos, gatecrasher, boat people, émigrés, outsiders, refugees, displaced persons), integram deslocamentos num tropel que se acentua em escala e impacto, nutrido pela lógica do intercâmbio mundial, que expele os rejeitados 2 218 para fora do sistema. Conforme as forças da globalização se tornam mais penetrantes e a fricção da distância excisando regiões e nações se dilui, as vagas se encorpam de modo incontinenti, realimentando estruturalmente a entropia do processo como um todo (Cf. HUGO, 1998: 11). Ex ante, nas grandes cidades de todo o globo, a presença destes alógenos afirma-se acompanhada de longo prontuário de conflitos e animosidades dos recém-chegados com as sociedades receptoras. Repudiados socialmente, marginalizados economicamente, banidos politicamente e culturalmente exorcizados, os alógenos se organizam em bolsões carregados de tensões étnicas e raciais, explodindo com o estranhamento que lhes é devotado pela sociedade afluente. Este estado de insolvência do sistema contraria profecias, como as alentadas pelos economistas clássicos, pelas quais o capitalismo difundiria em todas as camadas sociais a abundância generalizada (Cf. SMITH, 1979: 11). Entrementes, na nova ordem mundial, ...a pobreza dissemina-se por toda a superfície do globo, avançando sobre as fronteiras do Primeiro Mundo e instalando-se no coração dos Estados Unidos e da Europa ocidental. No mundo todo, microespaços de prosperidade convivem com cinturões envolventes de pobreza e desemprego. Vastas regiões da África subsaariana, América Latina e Ásia meridional conhecem as tragédias associadas à miséria absoluta (MAGNOLI, 1993: 62). Por tudo isso, a urbanização moderna não só representa um modelo de civilização como igualmente um modo de relacionamento com o meio ambiente que experimenta uma crise estrutural profunda, 2 219 que exatamente por esta razão, solicita revisão urgente. Tendo por cenário maior uma realidade crivada por contradições, todos seriam tentados a compreender que não haveria como almejar expectativas alvissareiras para os dilemas urbanos da sociedade moderna, pois decididamente, as cidades estão doentes mais do que em qualquer outra época da história do ser humano (DIAS, 2002b: 35). No entanto, recordemos que “o sentido da cidade enquanto obra da civilização, que não se reduz à sua construção física, diz respeito à construção da humanidade do homem” (Cf. CARLOS, 2004: 29). Neste senso, é necessário assomar que desde sua origem, a noção de pertencer à cidade, a uma coletividade organizada que reúne um conjunto de cidadãos, esteve, tal como ponderou o geógrafo francês Roland Breton, ligada semanticamente à ideia de refinamento. É o que se pode apreender quando se toma conhecimento que os termos civilização e cidadania, da mesma forma que o advérbio civilmente, o adjetivo civil e o conceito de civilidade, originaram-se do latim civitas, isto é, cidade. De uma outra raiz latina, urbs, também reportando à cidade, procedem os adjetivos urbano e o substantivo urbanidade (Cf. BRETON, 1990: 13). Seria oportuno comentar, a questão percepção do meio ambiente enquanto móvel das atitudes que adotada com relação à natureza, conquistou desde os anos 1980 o merecido reconhecimento que lhe cabe nas ciências sociais e, no que interessa diretamente a este trabalho, no pensamento geográfico (Ver GONÇALVES, 1982 e 1990; MOREIRA, 1982b). 2 220 Caberia, pois certificar uma percepção ambiental tendo por cerne o espaço urbano, e com base nesta preocupação, pensar um projeto político de tipo novo, posicionando a cidade enquanto um espaço habilitado a assegurar a inclusão da maioria dos humanos, e não sua apartação. Tendo-se em mente a sentença pela qual a crise ambiental da modernidade ou será resolvida no meio urbano ou terá nas cidades seu epitáfio, o resgate do sentido original da palavra cidade sinaliza para a necessidade de repensar os valores que têm legitimado sua existência na perspectiva de uma sociedade justa e ecologicamente responsável. Exatamente por esta razão é que poderíamos, neste momento, finalizar este caudal de comentários e explicações apontando para alguns dos entendimentos propostos por um oikos-logos ampliado, uma outra oikoumene, alternativa à da modernidade excludente. 4.3. BUSCANDO UM NOVO PONTO DE EQUILÍBRIO Em conformidade com o que foi exposto, a partir da modernidade a interferência do homem no ambiente acentuou-se, gerando intensa artificialização do espaço habitado. A fruição linear e progressiva do tempo suscitou a eclosão de um espaço normatizado por circuitos eminentemente artificiais, no qual pespontam objetos técnicos mantidos por fluxos que perfazem uma artificialidade avassaladora, uma concretude cuja reprodução, está 2 221 assegurada por fabulações imaginárias referendando a integração em espaços gravados por disfuncionalidades em síncope (Figura 6). FIGURA 6 - O cinema constitui uma das mais poderosas máquinas de geração de imagens de mundo da sociedade moderna, antecipando ou ratificando tendências da materialidade social e do imaginário cultural. A celebrada película Blade Runner, do cineasta norte-americano Ridley SCOTT (1982), transpõe, numa narrativa futurista, o tema da metrópole moderna (foto). Nesta obra, uma emblemática distopia, às clivagens étnicas e degradação ambiental, soma-se uma manifesta iconofagia, materializada numa Los Angeles regurgitante de imagens videográficas, informatizada por meio de painéis gigantes, veiculando animações publicitárias de modo flagrante e ininterrupto. Um espaço no qual o subtexto é a subjugação do mundo concreto em nome da fabulação dos desejos imaginários (Fonte: < http://www3.sympatico.ca/philippe.lemieux2/index.html >. Acesso em: 2611-2004) Nesta visiva, a paisagem cultural substituiu a paisagem natural e os artefatos assumiram sobre a superfície terrestre um status altivo. Este espaço-prótese, pesponteado, ul possidetis, pela onipresença de objetos espaciais idealizados pelos humanos e articulados entre si por meio de sistemas, consubstancia um compartimento artificial engendrado pela Gesellschaft humana e submetido unicamente ao seu comando. A tecnoesfera, ou seja, uma esfera técnica ou então, o antropoceno, forma o resultado final deste processo. 2 222 A tecnoesfera, distinguindo-se como um meio técnico-científicoinformacional, é sumamente a espacialidade da sociedade moderna. Reunindo a cidade, imensas parcelas tecnificadas do espaço rural, assim como seus predicativos técnicos, estruturais e sistêmicos, o funcionamento deste meio artificial demanda a agregação incessante de conteúdos maiores de tempo, assegurando fluidez e velocidade cada vez intensas ao conjunto do sistema, uma aceleração que constitui sua essência mais marcante e inescapável (Vide SANTOS, 1998: 31/33, 44/45, 127/128 e 139/140). Verdadeiramente, a tecnoesfera é um espaço no qual a atuação da espécie humana é tão incisiva e sua influência de tal envergadura, que se tornou inevitável conceituá-la enquanto elemento operacional distinto. Daí o consenso em perfilar a tecnoesfera como uma sexta camada, uma cronostratigrafia humana e artificial, usufruindo estatuto similar à litosfera, hidrosfera, criosfera, atmosfera e a biosfera. As denominações eleitas ao gosto deste ou daquele autor, apurando termos como esfera artificial, humana, da inteligência, camada técnica ou noosfera 37, em nada se omitem em decalcar este significado ou de esclarecer o quanto este requerimento do artifício confere a um crédito do engenho humano (SANTOS, 1988, 1998 e REBOUÇAS, 2002a: 5). Reconhecidamente, a tecnoesfera perde inteligibilidade no caso de ser dissociada da cognição do meio urbano enquanto seu núcleo ativante. As cidades, materializando o cerne da ordem econômica, Termo cunhado por Teilhard de Chardin (1881-1955), definindo o mundo do espírito e do pensamento humano, um lençol habitado por inteligências livres, tendo por meta a ascensão da consciência. 37 2 223 social e política existente, transformaram a totalidade do globo num espaço subordinado aos seus dinamismos de reprodução. Em face desta inferência, rede urbana mundial e tecnoesfera mantém íntima relação entre si, potencializada pela organicidade que solda estas instâncias uma à outra. Tal interação, legitimada por fixos e fluxos das mais diversas taxonomias e consistências, engendra a mais singular das materialidades do mundo moderno (Figura 7). FIGURA 7 - A Galáxia de Luz da Tecnoesfera: Montagem fotográfica da madrugada terrestre de 27 de novembro de 2000, evidenciando galáxias de luzes formadas a partir das aglomerações urbanas e outros objetos espaciais luminosos no antropoceno (Fonte: Astronomy picture of the day, imagem divulgada pela Nasa: < antwrp.gsfc.nasa.gov/apod/astropix.html >. Acesso em: 12-01-2005) Portanto, não seria de estranhar que justamente em nível das dinâmicas substantivadas na tecnoesfera vislumbra-se o retrato mais fiel da torção do espaço-tempo da modernidade. Concretamente, as problemáticas decorrentes da esfera técnica são de tal modo ubíquas, que se torna obrigatório pautar este compartimento em todo debate pertinente à contemporaneidade. Não existe a menor possibilidade de pensar a crise socioambiental da atualidade ignorando a influência e 2 224 o caráter decisivo que este meio artificializado desempenha para a existência presente e futura da totalidade dos humanos. Entretanto, a complexidade deste fenômeno não se esgota nas nuanças concretas da tecnoesfera. Pelo contrário, compreendê-la de um modo mais pleno impõe o alargamento da percepção, atendendo não só para as instâncias visíveis quanto também para as invisíveis, colaborando para sua resiliência e perpetuação. As prefigurações imaginárias, enredadas a sistemas sêmicos, arquétipos culturais e códigos topológicos, revelam uma força insubstituível na objetivação do espaço, cabendo-lhes papel central nas motivações que moldam e remodelam incessantemente o espaço habitado pelos humanos. As padronagens imaginárias do espaço, resultando de processos históricos, culturais e sociais, articulam-se com o funcionamento do arranjo espacial, gerando um continuum que assegura a ligação entre os objetivos intencionais das sociedades e a materialização destas no espaço. Logo, o engendramento das representações espaciais seria, por si mesma, uma apropriação, uma empresa e um controle. Mesmo quando esta permanece nos limites de um conhecimento intelectivo, isto em nada compromete a noção de que qualquer projeto expresso por uma representação revela a imagem desejada de um território, de um local de relações, passível de ser, cedo ou tarde, materializado no próprio espaço (Cf. RAFFESTIN,1993: 144). A este respeito, também poder-se-ia recorrer à fala do geógrafo francês Paul CLAVAL, para o qual: 2 225 O espaço é um dos apoios privilegiados da atividade simbólica. Ele é percebido e valorizado de forma diversa pelos que o habilitam e lhe dão valor; à extensão que ocupam, percorrem e utilizam superpõe em seu espírito, aquela que conhecem, amam e que é para eles signo de segurança, motivo de orgulho ou fonte de apego. O espaço vive assim sob a forma de imagens mentais; elas são tão importantes para compreender a configuração de grupos e forças que trabalham quanto às realidades reais do território que ocupam (1979: 20/21). Por tudo isso interessaria emendar que o pensamento de Milton Santos, ao propor uma proposição de totalidade social que engloba isocronicamente a esfera do concreto e a do ideal, subentende que a fruição da tecnoesfera correlaciona-se a uma psicoesfera. Dessarte, um apenso central reporta à noção de concrescência, elaborada pelo filósofo britânico Alfred Whitehead. Este conceito, apresentado como intelecção do processo de concreção, conjumina ao mesmo tempo, aspectos físicos e espirituais, indissoluvelmente conectados e ativos entre si, que se retroalimentando continuamente, são o amálgama de um postulado epistemológico no qual o pressuposto basilar, é lajeado por uma apreensão unificadora das sequências e encadeamentos do dinamismo das sociedades (Vide ABBAGNANO, 1991: 210). Nesta perspectiva, tecnoesfera e psicoesfera, longe de serem estanques, formam um binômio inextricável, repleto de interações e correspondências de todo tipo. Com base neste intercâmbio modelar, a psicoesfera, agremiando as crenças, desejos, paixões, vontades e hábitos que inspiram a prática concreta, assim como as relações interpessoais, os comportamentos filosóficos e a comunhão com o universo social, é confidente das expectativas sociais que antecedem, apoiam e sustentam no plano imaginário, a futura materialidade do 2 226 meio lapidado pelos humanos (Cf. SANTOS, 1999: 203/204; 1998: 32 e 1993b: 50/51). A importância da psicoesfera se torna patente por destrinchar, contrariamente aos postulados caros às teceduras vulgares do materialismo histórico, que a consciência detém um papel de magno desempenho nos sequenciamentos da espacialização. Tal premissa é manifesta pelo fato da reprodução do espaço ser sufragada por pressupostos imaginários, capacitados a antecipar as expectativas colocadas pela territorialização. No caso do Brasil, ...como tecnoesfera, o meio técnico-científico se dá como um fenômeno contínuo na maior parte do Sudeste e do Sul, desbordando para grande parte do Mato Grosso do Sul. Como psicoesfera, ele é o domínio do país inteiro (SANTOS, 1998: 32/33). Por esta via de entendimento, mais do que prisioneiro de uma lógica que o comanda, os humanos podem, a partir do que venha a residir como expectativa de futuro em nível do imaginário, devassar um outro porvir, absolutamente diverso do que se descortina diante das disfuncionalidades que se abatem sobre as ordens macrossocial e macroplanetária, cada vez mais descoladas de si mesmas. Esta inferência se ancora no predicado pelo qual as informações não criam ideias, mas pelo contrário, são as ideias que engendram informações. A psicoesfera, reflexionando com um dado empírico (a materialidade social), ao remeter para uma inscrição no campo das ideações humanas, sugeriria assim, a possibilidade de releituras, sinalizando para o reino da liberdade (SANTOS, 1998: 84). 2 227 Com este dado em mãos, pode-se advertir que a fragilidade da oikoumene existente, do seu frenesi infrene que nada mais evidencia do que as pulsões da sua crise, não está credenciada a arrastar de modo irreversível a humanidade consigo no torvelinho do tempo que engendrou. Afinal, neste momento da história, é a própria sociedade ocidental, diferentemente dos tempos em que esta avançava sem reconhecer quaisquer obstáculos à sua expansão, hoje admite a existência de desequilíbrios. Tal postura é perceptível nos discursos que colocam em questão os parâmetros nos quais o Ocidente se amparou durante séculos, que par a par, propõem alternativas para sua continuidade. Assim, o famoso informe divulgado nos finais dos anos 1960 pelo Clube de Roma, significativamente publicado sob o título Limites do Crescimento (documento também citado como Relatório Meadows), constitui ótima exemplificação deste ponto de inflexão. Esta escritura materializou pela primeira vez no regaço de uma sociedade obcecada pelo produtivismo, uma glosa com amarradura científica, assumindo abertamente a existência de limites concretos para o desenvolvimento (sempre sinonimizado com o crescimento material), advertindo para a inexequibilidade da economia-mundo pretender a continuidade de uma expansão ilimitada. Daí a preocupação em ao menos enunciar as limitações e os entraves objetivos colocados crescentemente à forma de reprodução da sociedade contemporânea, dentre estes, obviamente aqueles com base na relação mantida com o meio natural (GONÇALVES, 2001: 8). É igualmente interessante notar que logo nos parágrafos iniciais de Limites do Crescimento, o espaço-tempo está demarcado como 2 228 padrão de referência para a vida humana, um argumento imanente que percorre o corpo da publicação num variado rol de temários, tais como as limitações do crescimento exponencial, da capacidade de suporte do ambiente, o estado de equilíbrio global, etc. Nesta ordem de considerações, estaria a ecologia, entendida como obstáculo às estratégias de desnaturalização e inserindo uma discussão com conteúdos temporais, capacitada a assumir o papel, tal como pontuado pelo antropólogo francês Georges BALANDIER (1988:195), de uma ciência do tempo? Poder-se-ia pensar a ecologia enquanto eixo motivador de rediscussão do espaço de vida dos homens e de sua reavaliação em termos de um conceito humanista e não-excludente? Acredito que a resposta poderá ser dada não por meio de conceitos abstratos, mas sim por uma prática real preocupada com um novo projeto de oikoumene. Este seria um excelente momento para escordar - dado que estamos nos referindo à crise de uma ordenação social do tempo advinda do Renascimento e que terminou por engolfar o planeta inteiro sob sua hegemonia - que seu calcanhar de Aquiles é justamente a aceleração. Tanto procede esta observação, que os grupos desigualmente integrados à sociedade moderna cedo descobriram nas greves e nas “operações-padrão”, ou “tartaruga”, modalidades eficazes de colocar em cheque a fruição do tempo hegemônico. Resumidamente: a força dos fracos é o seu ritmo lento (SANTOS, 1993a e 1998: 81/86). 2 229 Neste sentido, talvez os mais autênticos senhores do tempo não sejam aqueles que habitam as imponentes torres das próteses do tempo. Inversamente ao que muitos arautos da velocidade imaginam, pode-se entender que nos “espaços opacos” das urbes modernas, áreas ocupadas pela informalidade e pelos atores que de um modo ou de outro, são colocados como externos ao que é pautado como moderno, é que a aufklärung do que implica este momento de mundo, e por extensão as respostas aos dilemas que entrepõe, pode ser encontrada: A força é dos ‘lentos’ e não dos que detêm a velocidade elogiada por um Virílio em delírio na esteira de um Valéry sonhador. Quem na cidade tem mobilidade - e pode percorrê-la e esquadrinhá-la - acaba por ver pouco da Cidade e do Mundo. Sua comunhão com as imagens, frequentemente pré-fabricadas, é a sua perdição. Seu conforto, que não desejam perder, vem exatamente do convívio com essas imagens. Os homens ‘lentos’, por seu turno, para quem estas imagens são miragens, não podem, por muito tempo, estar em fase com este imaginário perverso e acabam descobrindo as fabulações (SANTOS, 1998: 84). Trata-se então das possibilidades de uma nova temporalidade, heterogênea, voltada para unir e não meramente unificar, capacitada a resgatar os sentidos de humanidade e de naturalidade para que estes possam ser materializados no espaço habitado. Possibilidades que acima de tudo residem na esperança, que se confunde com a resistência, cujo sentido último é dado pela história concreta de homens dispostos a resgatarem seu próprio destino. Desafio que se coloca a todos, em todos os espaços e todos os tempos! 2 230 PARTE III SOCIEDADE, ÁGUA E MEIO AMBIENTE 2 231 CAPÍTULO 5 ÁGUA: UM RECURSO ESTRATÉGICO 5.1. A ÁGUA E SUA IMPORTÂNCIA PARA AS SOCIEDADES HUMANAS Como se sabe, a água é um recurso natural essencial. Isto, em razão de constituir um componente bioquímico indispensável para a totalidade dos seres vivos, incluindo-se nesta acepção, o conjunto da raça humana. O líquido é cabalmente, de jure et de facto, ambiente vital para infindas espécies animais e vegetais. Seres extremamente simples sobrevivem na ausência de oxigênio. Porém, nenhuma forma de vida consegue sobreviver sem água (RUTKOWSKI, 1999b: 5). Os vínculos que relacionam a água com as manifestações de vida são de tal modo evidentes, que tornam obrigatória a recordação desta associação qualquer que seja o estudo ou a avaliação técnica versando sobre a importância do recurso. Importaria consignar, especialidades relacionadas diretamente com o domínio das águas, como seria possível citar, a hidrologia e a limnologia, de forma alguma se omitem em recomendar este vínculo. Pelo contrário, frisam a todo o instante este relacionamento. Neste sentido, a limnologia, voltada para o estudo interdisciplinar dos meios aquáticos, manifesta uma preocupação irrevogável com os aspectos que interagem com o conjunto dos seres vivos. Quanto à hidrologia, mesmo dando especial atenção à água em termos da sua 2 232 ocorrência, circulação e distribuição, suas propriedades físicas e químicas, está igualmente voltada para a relação mantida com o ambiente natural e com as formas de vida, categoria que obviamente inclui os seres humanos (Cf. CHORLEY et HAGGETT, 1975: 104). A água esteve presente em todas as etapas do surgimento e posterior expansão da espécie humana na Terra. Na ausência deste líquido vital, o surgimento das poderosas civilizações do passado, fortemente identificadas com a presença da água, seria impensável. Recorda Fernando de AVILA-PIRES, dentre os fatores ecológicos que influenciaram na seleção dos locais propícios para o estabelecimento dos primeiros núcleos de povoamento, um dos mais importantes foi reconhecidamente a ocorrência de água potável (1983: 47). De fato, a espacialidade tradicional foi claramente marcada pela coalescência da proximidade aos veios do líquido. Exemplificando, no continente africano, registros arqueológicos referentes ao intercâmbio comercial transaariano dão conta de que as calçadas de comércio acatavam premissas bastante claras, roteiros muito bem definidos nos quais a reserva de água era a consideração primordial (JONES, 1966: 222/223). Assim, não admira que no longínquo passado a proeminência da substância já estivesse consolidada. Fato incontestável, as regiões agraciadas com a presença de água, caso típico dos grandes vales fluviais (Nilo, Hindus, Ganges, Amarelo, Mekong, Niger, Zambeze, Tigre e Eufrates) e de regiões lacustres intensamente irrigadas (caso do Vale do México e da bacia do lago Tonle Sap, na Indochina), marcaram de modo indelével a vida e a organização social, política e 2 233 econômica dos povos que os ocuparam. Como ponderou o geógrafo e antropólogo italiano Eugenio TURRI, isto o demonstra a história dos grandes rios, de diversas formas e em épocas diferentes (1983: 4). De outra parte, os perfilhamentos de oásis como os do SinkiangDzungária, do Kara-Kum e do colar de afloramentos saarianos de brotos d’água, foram do mesmo modo fundamentais para a criação de colônias agropastoris, paradas de reabastecimento e entrepostos comerciais, sítios nos quais a convivialidade humana regurgitava em marcante contraste com a opacidade que lustra os desertos (MAULL, 1959: 64/65). Nas civilizações erguidas com base nas ocorrências naturais de água (por sinal consistindo, do ponto de vista histórico, nos primeiros arranjos espaciais de vulto), é possível identificar um embrião de estratégias de gerenciamento dos recursos hídricos. Esta constatação é a valer, particularmente verdadeira para as sociedades ditas “hidráulicas” ou “de regadio”, regidas pela formação social asiática, despótica, tributária ou oriental. No mundo “asiático” (ou como advogavam Karl Marx e Friedrich Engels, na “Velha Ásia”), a gestão dos insumos ambientais, sobejamente dos hídricos, era uma prioridade indiscutível (MAMIGONIAN, 1997; BARTRA, 1978; SOFRI, 1977 e BANU, 1969). Nestas antigas formações sociais, a prosperidade, decorrendo diretamente do regadio, exaltava as águas e os drenos construídos para escoá-las, como elemento-chave indissociável da perpetuação do espaço articulado. Este seria o caso do Sri Lanka, país no qual 2 234 850 anos atrás, o líquido já era objeto de meticulosa regulamentação. Esta previa não somente as modalidades de sua distribuição, ...como também determinava as responsabilidades quanto à conservação dos reservatórios e canais de irrigação. Até se tornarem obsoletas com o advento da economia monetarista, essas disposições foram aplicadas através de um sistema de cooperação mútua. A tradição persiste em muitas aldeias isoladas (GURUGÉ, 1985: 30). Esta “hidrofilia” das antigas sociedades baseadas na agricultura irrigada dizia respeito a necessidades absolutamente objetivas, uma questão de vida ou morte para os impérios asiáticos: ...essa fertilização artificial do solo, dependendo de um governo central e caindo em decadência desde que a irrigação ou a drenagem fosse negligenciada, explica o seguinte tato, que de outro modo pareceria estranho: territórios inteiros, outrora admiravelmente cultivados, como Palmyra, Petra, as ruínas do Yêmen, vastas províncias do Egito, da Pérsia e do Indostão, encontramse hoje estéreis e desérticos. Assim como explica porque uma única guerra devastadora pôde despovoar o país durante séculos e privá-lo de toda a sua civilização (MARX, 1976: 22). Exatamente esta fatalidade desmantelou para sempre a fortuna da Felix Arábia de antanho (atual Yêmen), após a ruptura do açude que represava o flume do Adhanat por um abalo sísmico em 542 d.C., barragem que coletava as oscilantes precipitações pluviais, reservas de umidade das montanhas e as águas das torrentes ocasionais do perímetro sul-arábico, caudais zelosamente conduzidos para campos irrigados por intermédio de uma intrincada rede de canais. 2 235 Objeto artificial imprescindível para a manutenção do sistema de irrigação que transformou a Arábia Meridional em um jardim de especiarias ao longo de um milênio e meio, o rompimento do dique foi golpe decisivo para destruir para sempre o arranjo espacial formado pelos chamados “Reinos do Incenso”: Sabá (ou Sheba), Hadramaut e Qataban. Estes principados, afamados na Antiguidade Oriental pela produção de perfumes e essências aromáticas para todos os gostos, como o aloés, mirra, especiarias e mais expressivamente, o incenso, descreveram desde então, uma incontida trajetória de definhamento, sendo por fim, sepultados pelas areias e pelo esquecimento. Reconhecidamente, a proeminência da água para as atividades agrícolas é cabal. Na atualidade, tal como outrora, em nível mundial a agricultura é de longe, além de atividade mais suscetível à escassez do líquido, o mais importante usuário de recursos hídricos. Em média, esta atividade consome entre 65% e 70% do total global, percentual respeitável na comparação com o bocado de 24% requisitado pela indústria, e mais ainda, quando o termo de referência da comparação é o consumo das residências. Rubrique-se, neste particular, que as atividades domésticas, alvo frequente das campanhas de prevenção do desperdício de água, respondem por uma fração de 8% a 10% do consumo total, seguramente o menos representativo dos usos do líquido (Vide Figura 8). As lides agrícolas têm sido responsáveis por notável utilização consuntiva dos recursos hídricos, inclusive por conta da necessidade premente de expansão da oferta de alimentos, impulsionada em especial pela irrigação. Nesta perspectiva, assinale-se que nos países em desenvolvimento, o percentual utilizado pela agropecuária pode 2 236 ser até mais alto, chegando a alcançar o patamar de 80% (Ver entre outros RODRIGUES, 1998: 25). FIGURA 8 - Consumo médio residencial de água por atividade domiciliar (Fonte: Armand, 1998, L’eau en danger, Collection Les Essentiels, Milan/Paris) A magnitude do consumo de recursos hídricos pelas atividades rurais é facilmente compreensível. Não por outro motivo senão pelo fato da água ser insubstituível nos processos agrários e zootécnicos. A importância do líquido transparece quando se sabe que a água pode representar até 90% da composição dos vegetais. A disponibilidade inadequada do recurso em períodos como os do crescimento das plantas, pode comprometer lavouras inteiras e gerar crises de fome em larga escala. Em vastas porções do meio rural em todo o mundo, a ausência de chuva é interpretada como um capricho cruel da natureza, preconizando toda sorte de ansiedades e momentos tormentosos, um verdadeiro fantasma que amedronta o camponês até os recônditos da sua alma. No referente à pecuária, a importância da água não é menor. Poucas imagens se tornaram tão familiares quanto às de rebanhos calmamente se deleitando nas beiras de um afloramento aquático 2 237 qualquer. O líquido é vital para a dessedentação dos animais, para a produção de ração, para o funcionamento dos matadouros e no mais, para o processamento da carne pela indústria alimentícia. Além disso, ressalve-se que a ração incorpora água não só para ser produzida, como também solicita determinado teor de umidade para consumarse eficazmente enquanto forragem. Contabilizando o volume total de água solicitado pelos rebanhos, chegamos a um enorme input hídrico, fato raramente conhecido pelo cidadão comum. Os índices de consumo do líquido pelos rebanhos, variam, como seria de se esperar, em face das condições ambientais, dos métodos de criação e das suas finalidades. Porém, de qualquer modo, o volume consumido jamais pode ser considerado desprezível. Uma avaliação elaborada com base em levantamentos procedentes do semiárido do Nordeste nos indicaria, somente no referente às quantidades para a dessedentação dos animais nos criadouros, os seguintes valores: 53 litros diários para os rebanhos bovinos; 41 para cavalos e jumentos; 6 para os suínos, cabras e ovelhas; 0,2 para galinhas (REBOUÇAS, 2004: 49). Coerentemente, dada a importância da água para a criação dos animais, não admira que nas regiões áridas e semiáridas do planeta, nas quais a escassez do líquido é notória, os pastores nômades tenham desenvolvido agudo senso de reconhecimento do recurso no ambiente natural, prospectando poços de água e explorando os veios que afloram superficialmente, como no caso dos poços e dos oásis que irrompem através dos desertos, nos quais é possível repousar, desfrutar de sombra, obter alimento e matar a sede do gado. 2 238 Ao menos em tese, o consumo agropecuário de água se manterá majoritário em termos do consumo global. O crescimento das áreas de lavoura irrigada e das pastagens conquistadas ao meio natural permanecerá, ao que tudo indica, responsável pela maior parcela da utilização dos recursos hídricos nos próximos 25 anos. O grande leitmotiv é que a água nunca pode estar ausente nas atividades rurais. A título de exemplificação, deve-se atentar que “para se produzir uma tonelada de grãos são necessárias mil toneladas de água, e para uma tonelada de arroz, duas mil toneladas de água” (Cf. SALATI, LEMOS et SALATI, 2002: 49). Outra certeza é que a industrialização está cada vez mais se destacando no consumo de água. Analisando esta questão, registra o renomado agrônomo e ambientalista estadunidense Lester BROWN: As mil toneladas de água utilizadas na Índia para produzir uma tonelada de trigo, valendo talvez US$ 200, podem também ser utilizadas para incrementar facilmente a produção industrial em US$ 10 mil, ou seja, 50 vezes mais. Essa relação ajuda a explicar por que, no Oeste americano, a venda de direitos de água de irrigação para os centros urbanos pelos fazendeiros é uma ocorrência quase diária (2001). Entretanto, nada nestes emolumentos obsta as considerações primordiais relacionadas com a alimentação. Afinal, ninguém pode comer vidro, papel, plástico, aço ou peças de alumínio. Nesta linha de raciocínio, a ampliação da produção agrícola seria, em princípio, indissociável de um consumo hídrico que é sua condição sine qua non, inerente ao seu próprio dinamismo. 2 239 Tal assertiva é particularmente adequada quando o assunto em pauta é a irrigação, prática que tem respondido pelos aumentos de produtividade agrícola registrados em quase todo os países. Mesmo que as terras irrigadas representem neste exato momento apenas um sexto de toda a área agrícola mundial, recorde-se que este quinhão é, na contramão, fornecedor de mais de um terço da produção global de alimentos (VILLIERS, 2002: 199). Dada a associação entre população humana e alimentação, a expansão demográfica constitui um motivo frequentemente apontado para explicar a ampliação do consumo de água doce. Atualmente, a humanidade soma 6,2 bilhões de indivíduos. Acredita-se que este total passará para 7 bilhões no ano de 2010, 8,5 bilhões em 2025 e presumivelmente alcançando a cifra de 10,5 bilhões em 2050 (Ver a respeito NYT, 2000: 482). Sublinhe-se que a população humana cresce à razão de noventa milhões de indivíduos por ano. Isto equivaleria, com base em dados demográficos do ano 2005, à população de um país como o México a cada doze meses, ou a três Marrocos, seis Repúblicas Malgaches ou ainda a oito nações do porte da Grécia, no mesmo período de tempo (Ver entre outros BROWN, 2001). No entanto, é necessário ressalvar, de uma vez por todas, que o crescimento populacional não constitui, em si mesmo, um elemento motivador da ampliação das áreas voltadas para produzir alimentos e tampouco, da ampliação do consumo de recursos hídricos. A saber, na realidade, 2 240 ...todo modo histórico de produção tem suas leis próprias de população, validas dentro de limites históricos. Uma lei abstrata de população só existe para plantas e animais, e apenas na medida em que esteja excluída a ação humana (MARX, 1975b: 733). Bem mais do que a expansão demográfica, pesa a persistência, dentre diferentes arrazoados, das inferências econômicas em nível da atividade agropastoril consorciadas com modelos do uso do solo e dos recursos naturais, e colateralmente, com indiscutíveis interfaces culturais, sociais e políticas. Estas, por sua vez, estão vinculadas com formas perdulárias de utilização dos recursos hídricos, largamente hegemônicas como modelo preferencial para obter alimentos em todos os cenários geográficos do planeta. Em suma, são os fatos influentes da arquitetura social, bem mais do que alegações demográficas, que têm respaldado os prognósticos crescentemente preocupantes quanto à disponibilidade de água doce. Nesta acepção, o crescimento populacional per se não constitui razão para a aceleração do consumo do líquido. Sequer de epifenômenos correlatos à expansão de modelos agrícolas, que tem sido objeto de toda sorte de questionamentos socioambientais. Num elenco sumário, poderíamos mencionar o alastramento de campos antropogênicos, arroteamentos voltados para a produção de carne (especialmente da bovina), e de culturas comerciais (cana-deaçúcar, soja, algodão), ambas as atividades lesionando diretamente áreas florestadas e arbustivas, que de uma forma ou de outra, estão assimiladas, de um modo ou de outro, a ambientes naturais 38. Em maio de 2005, dados divulgados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) relevaram que no Brasil, a área desmatada entre agosto de 2004 e agosto de 2005 alcançou a assombrosa cifra de 26.130km² (quase uma Alagoas), o segundo maior 38 2 241 Em síntese, a grandiosidade da expansão demográfica, que em algumas análises seria agravada por um caráter exponencial, não evidenciaria uma problemática hidrológica singelamente vinculada com o crescimento da população, ainda que este último tenha se explicitado de um modo historicamente sem precedentes. Como se verá adiante, muito mais do que na demografia, a explicação para o crescente problema do acesso aos recursos hídricos reside numa ordem de motivações bem mais complexa. Esta recusaria o atraente, porém friável, entendimento superficial da realidade. Entenda-se que o cerne da problemática hídrica é o modelo de desenvolvimento em curso, gerador da crise socioambiental em nível mais amplo e da penúria do líquido em seu sentido mais particular. Deste modo, ainda que a distribuição natural dos recursos hídricos e sua administração seja por definição objeto de interesse de toda investigação com foco nos recursos hídricos, a problematização ora apresentada reclamaria as atenções sejam concentradas no campo das inferências sociais. Na ausência deste enfoque, as estatísticas e as declinações contábeis, poderiam arvorar-se em ciência social e em tal seguimento, a perspectiva endossada neste trabalho deixaria de fazer qualquer sentido. Clarifico que mesmo com o registro destes reparos, tal questão, por demais complexa para ser esgotada na brevidade de alguns poucos parágrafos, frequentará as notações desta explanação nos mais diversos ângulos e perspectivas. O temário que será objeto de índice desde o ano de 1988, quando o monitoramento começou a ser realizado. Quase metade da devastação (12.586 km²), ocorreu em Mato Grosso. Em grande parte, o desflorestamento foi motivado pela expansão da pecuária, do cultivo da soja e da exploração madeireira (Manchetes Socioambientais, edição de 19-05-2005). 2 242 análise nos próximos parágrafos, referente à presença da água no espaço terrestre e as atribuições concernentes às demandas dos humanos, consistirá em mais um dos momentos que teremos pela frente para exercitar o exame pertinente a este trabalho. 5.2. AS ÁGUAS DOCES NO PLANETA TERRA A água é a substância mais abundante na superfície do mundo. Visível por todo o planeta, a conhecida divisa A Terra é Azul, proferida pelo astronauta soviético Yuri Gagarin ao entrar em órbita terrestre em 12 de abril de 1961, reflete em grande parte este fato objetivo. Esta imagem do planeta, um corpo celeste predominantemente azul contrastando com a escuridão infinita do universo, constituiu um experimento contundente e singular, alterando desde então a clássica percepção do relacionamento dos humanos com o ambiente, e com a água, em particular (REBOUÇAS, BRAGA et TUNDISI, 2002: III). O surgimento do estoque natural de água existente no planeta, estimado em 1.386.000.000 de km³, realizou-se na escala do tempo geológico, somando dezenas de milhões de anos. O volume citado, é geralmente tomado como referência básica para pensar a questão dos recursos hídricos no planeta, que basicamente remonta a um balanço hídrico em permanente circulação, que no transcorrer dos tempos históricos, seria fundamentalmente o mesmo (Vide NEGRET, 1982: 35). 2 243 Este montante, formou-se durante as convulsões mais críticas da Era Pré-cambriana, concomitantemente ao resfriamento da crosta e a eclosão de chuvas torrenciais contínuas, originando os reservatórios hídricos, processo este catalisado em menor escala, por vários outros fenômenos, dentre os quais, seria possível mencionar os jazimentos subterrâneos de águas com progenitura juvenil, qual seja, geradas pelos processos magmáticos do interior da crosta terrestre, estimadas em cerca de 300 m³ por ano e as águas que ingressam na biosfera através do vulcanismo (Vide REBOUÇAS, 2002b: 127). Quanto ao volume composto pelas águas superficiais, de modo imemorial tem ocorrido o ingresso de porções alienígenas do líquido por meio dos chamados cometas de água, que carregam consigo, desde os confins do espaço sideral, uma ninfa azul encapsulada. Entendimento postulado por vozes da física e do saber astronômico, estes corpos celestes seriam responsáveis pelo ponderável regalo de aproximadamente três trilhões de toneladas de água extraterrestre a cada dez mil anos, que anonimamente se diluem nas massas líquidas do planeta (Ver a respeito GARCIA et DAQUE, 2004: 13). Mais notável, contudo, foram as modificações ocorridas na forma de distribuição espacial, isto é, a presença em corpos líquidos como rios, lagos, aquíferos, geleiras, oceanos e mares 39, em alguns casos de magnitude considerável. Foi o que ocorreu durante os períodos Tradicionalmente, os mares constituem comumente parcelas dos oceanos. Todavia, note-se que muitos lagos salgados, como no caso do Mar Morto (no Oriente Médio) e do Mar de Aral (no Turquestão), recebem esta denominação, o que pode gerar equívocos de compreensão. A respeito, ressalvem-se as justificativas decorrentes dos contextos histórico-culturais. Por exemplo, o Mar Morto foi assim denominado por constituir a única grande extensão de águas salgadas conhecida no passado pelas tribos hebraicas que deambulavam por esta parte do mundo. O mesmo pode ser dito quanto ao Mar de Aral relativamente aos povos turânicos da Ásia Central. 39 2 244 glaciais. Com o avanço das geleiras, a fisionomia das águas, e da Terra em si mesma, foram profundamente transformadas, processos que promoveram em igual medida amplas alterações ambientais. As marchas e contramarchas das glaciações inscreveram ao seu tempo, mudanças radicais na distribuição desta substância em toda extensão da Terra, conformando o surgimento de um meio natural que mutatis mutandis, seria aquele que acolheu as primeiras grandes sociedades humanas (REBOUÇAS, 2002a: 6/8; SHIKLOMANOV, 1999 e POPP, 1983: 97/98). Porém, independentemente das alterações na sua distribuição, a continuidade dos mecanismos naturais de renovação das águas, constitui um dado inerente à circulação do líquido no planeta. Assim sendo, o estoque hídrico terrestre tem sido constantemente reciclado por intermédio do ciclo hidrológico, ou da água, fundamental para o sistema-vida e a sua perpetuação. É em decorrência das águas planetárias serem constantemente depuradas que as demandas do conjunto dos ecossistemas e dos seres vivos têm sido satisfeitas. Isto, sem contar a participação das vitais dinâmicas climáticas e geofísicas gerais da Terra, estreitamente vinculadas a este ciclo. A importância em explicitar um quadro geral da distribuição da água reporta ao fato da totalidade da substância ao longo da Terra formar, do ponto de vista geofísico, uma única entidade. Recorde-se que nos movimentos da atmosfera, aos quais a água se associa de modo inquebrantável, não se pode isolar nenhuma parte, pois cada uma delas age sobre sua vizinha (BLACHE, 1985: 38, grifos nossos). 2 245 Assim, dado que a água disponível no globo integra um mesmo ciclo hidrológico, temos uma sequência de fenômenos pelos quais a água transita por diferentes estados físicos (liquido, sólido e gasoso), ao mesmo tempo em que percorre os diversos reservatórios naturais existentes no planeta. Deste modo, as águas salgadas, por exemplo, tornam-se num dado momento, doces, e estas, por sua vez, retornam à sua condição salina anterior (NEGRET, 1982: 34). Neste contexto, como em muitos outros, pode-se perceber a estreita correlação existente na natureza entre a água e a energia. A movimentação da água está duplamente relacionada à energia. Em primeiro lugar, porque a evaporação depende do fornecimento de energia à água. Em segundo, em face da manutenção da umidade do ar depender da temperatura, isto é, da energia contida na atmosfera. Ocorrendo perda desta energia (resfriamento), o vapor retorna então ao estado líquido. Atesta Samuel Murgel BRANCO (1993: 27/29), o ciclo da água está intimamente ligado ao ciclo energético, ita est, com a difusão na Terra da energia proveniente do Astro-rei. O calor do Sol aquece a superfície das águas, dos oceanos, dos lagos, dos rios, das geleiras e do próprio solo úmido, motivando a evaporação, ou seja, o enriquecimento do ar em vapor. Quando o ar absorve a máxima quantidade de vapor que é capaz de reter, ele fica saturado. Uma vez sucedendo este fenômeno, o excesso de vapor que não pode ser absorvido condensa-se. Retornando ao estado líquido, sucedem as chuvas e outros hidrometeoros, dentre os quais pode-se mencionar o orvalho, nevadas, geadas, garoas e nevoeiros. Como é possível inferir, além da energia radiante do Sol, a força da gravidade contribui poderosamente para a efetivação deste ciclo. 2 246 Geomorfologicamente, hidrosfera (do grego, “esfera de água”), é a denominação dada ao conjunto dos corpos líquidos da Terra. Esta corresponde, ao lado da atmosfera (“esfera de ar”), da litosfera (“esfera de pedra”) e da biosfera (“esfera de vida”), a um dos quatro grandes compartimentos naturais reconhecidos pela geografia física. Quanto à tecnoesfera (esfera técnica) ou antropoesfera (esfera humana), trata-se de um compartimento que substancializa, em observância com o que foi comentado, o espaço artificial construído pelos humanos. Atualmente sua influência sobre os ciclos naturais terrestres é de tal monta, que torna essencial o conhecimento do sistema de engenharia que o rege para o futuro das massas líquidas e da natureza em geral. No planeta, a ubiquidade da hidrosfera é clara e inequívoca. Citando exclusivamente as superfícies ocupadas por oceanos e mares, ressalve-se que estas remetem a 71% da superfície terrestre, ou seja, 3/4 do total (361 milhões de km²). Quanto às terras emersas (continentes e ilhas), estas ocupam somente os 29% restantes, ou seja, aproximadamente 1/4 da superfície total (149 milhões de km²). Em síntese, na ponta do lápis a Terra seria muito mais um Planeta Água do que Terra. Todavia, apenas uma fração diminuta da massa líquida existente é apropriada para o consumo humano. Isto porque a água destinada ao consumo residencial, industrial, agrícola e pecuário deve ser doce (Freshwater). A água doce, tanto a presente na superfície do planeta (Blue Water Flow), quanto no subsolo (Gray Water Flow) ou no próprio organismo dos seres vivos (Green Water Flow), não pode, a 2 247 despeito de qualquer sinonímia, ser classificada em função da quantidade de sais dissolvidos no líquido. Isto porque a referência de salinidade não corresponde propriamente aos sais, mas sim, ao teor de Sólidos Totais Dissolvidos (STD). Neste particular, o critério mundial de classificação das águas considera como doce apenas aquelas que apresentam STD inferior a 1.000 mg/l, presente, ordinariamente, no corpo líquido dos rios, lagos e depósitos subterrâneos da Terra. Por sua vez, os montantes de águas classificadas como salobras, alojadas nas camadas do subsolo e na faixa de transição entre os oceanos e os estuários dos rios, possuem STD entre 1.000 e 10.000 mg/l, e enfim, as que concentram proporção superior a 10.000 mg/l, correspondem às águas salgadas, associadas ao volume dos mares e oceanos (REBOUÇAS, 2002a: 1). Outra sinonímia recorrente, gerando frequentes mal-entendidos, é a que reporta à identificação da água doce como necessariamente potável. Entretanto, nada mais incorreto. As águas entendidas como potáveis condizem às soluções aquosas apropriadas para a ingestão humana, preparo dos alimentos, assim como para tarefas de limpeza e higienização. Coerentemente, devem apresentar baixa presença de sólidos em suspensão, e ademais, devem ser saudáveis e seguras, isentas de microrganismos patogênicos e de substâncias orgânicas dissolvidas. Portanto, convém distinguir água doce de água potável, pois se toda água potável constitui uma água doce, o contrário, não é obrigatoriamente verdadeiro (CAMARGO et PEREIRA, 2003: 49). Outra consideração a ser registrada quanto a potabilidade, está relacionada com o surgimento da química moderna e a constituição 2 248 dos modernos sistemas urbanos de abastecimento. A partir deste momento, adotou-se a convenção de que a água catalogada como potável é, ou deveria ser, além de líquida na temperatura média anual da Terra (14 ºC), pura, insípida, inodora e incolor. Estes pré-requisitos limnológicos (alusivos às condições físicas, químicas, meteorológicas e biológicas da água) e organolépticos (ou seja, capazes impressionar os sentidos humanos), mesmo integrando um difuso senso comum e repetidos ad nauseam, divergem, e em várias nuanças, das características da água no seu soberbo estado natural. Sumamente porque a água na natureza não é “pura”. Mesmo a água da chuva, que passou por um processo natural de purificação, contém partículas de outras substâncias incorporadas durante a precipitação, decorrente do contato com o ar, poluído pelos humanos ou não. O mesmo poderia ser dito das águas de um regato tranquilo, ou de um lago soberanamente indexado à paisagem natural dos seus arredores. Não fosse esta a condição primeva deste líquido ímpar, jamais a água poderia ser alcunhada como “solvente universal”. A suposta água “pura, insípida, inodora e incolor”, simplesmente não existe no meio natural. Tal definição é, acima de tudo, própria de um manual de química, não fazendo qualquer sentido para o leque das substâncias naturais existentes no planeta. Sinteticamente, a água na natureza é uma “solução diluída de elementos dissolvidos na superfície da Terra, ou precipitados do ar” (VILLIERS, 2002: 157). Outro aspecto, é que a água quimicamente pura pode não ser boa para inúmeras funções. Como já percebiam os 2 249 antigos, a água para ser adequada à vida deve carrear a qualidade de ser germinativa, ita est, ser capaz de abrigar o surgimento de seres vivos, o que sugere uma distância pelo mínimo cautelosa do critério de “pureza”. Finalmente, é a presença de gases e também de sais e de outros compostos, que tornam a água apta “a sustentar a vida aquática: os peixes e outros seres não poderiam viver em água pura” (BRANCO, 1993: 40). Coerentemente, a água considerada potável possui, sim, os mais diversos gostos e sabores. A água existente na Terra é sempre uma mistura de quase todos os elementos encontrados na superfície do globo terrestre (apud BRANCO, 1993: 22). Em sendo assim, o líquido caracteriza-se por apresentar uma seriação infinitamente variável de soluções aquosas acompanhadas de amplo rol de substâncias e/ou compostos químicos. À propos, sendo o solvente universal por excelência, dificilmente a água poderia ser “insípida”. Não mais porque, a água potável deve possuir substâncias que “lhe deem o gosto característico e um mínimo de salinidade compatível com a composição de nossas células. A água fervida, torna-se insípida exatamente por dissipar os gases, como o gás carbônico, durante o aquecimento” (Cf. BRANCO, 1993:40). Um exemplo concreto negando a insipidez enquanto propriedade positivamente aceitável, reside no fato de presenciarmos nos dias de hoje, enorme ofensiva comercial tendo por base as águas minerais. E estas, por definição, são águas nobres cujo diferencial é justamente seu sabor peculiar. Poderia tal situação sugerir a aferição pela qual os 2 250 humanos poderiam ser transformados em sommeliers da água? Dada a popularidade conquistada pelas águas minerais, dificilmente esta indagação poderia resultar numa resposta negativa. Claramente, a água com gosto chegou para ficar, tendencialmente sinalizando para considerá-la como as melhores safras dos tintos e brancos de Baco (CARLONI, 2003). Uma vez esclarecido nosso ajuizado referente ao critério técnico de água doce (qual seja, a classificação englobando o líquido cuja concentração de STD é inferior a 1.000 mg/l), restaria identificar sua manifestação no planeta. Neste sentido, a única conclusão possível é que esta constitui fração mínima dos estoques hídricos mundiais. Ademais, dificilmente este veredicto técnico, sentenciando as águas doces ao status de exiguidade, comportaria qualquer exercício de revisão. Indo direto ao ponto, a descoberta de concentrações de água doce em regiões distantes ou em ambientes nos quais sua presença é inusual, ainda que ampliando os prognósticos referentes ao estoque hídrico global, não alteraria em absolutamente nada o julgamento referente à difusão restrita destas águas. Neste pormenor, seria cabível registrar manifestações incomuns. Dentre estas, a constatação de vastos depósitos de água doce nas profundidades do subsolo marinho, formando reservatórios que tem sido passim explotados, embora em pequena escala, com o concurso de diversas inovações tecnológicas (LQES, 2003). Ocasionalmente, são registradas fontes borbulhantes mar adentro, uma singularidade providencial para os primeiros ilhéus que, por exemplo, pioneiramente povoaram a ilha Henderson, na Oceania (Vide DIAMOND, 2005: 157). 2 251 Além destes depósitos, expedições encetadas pela antiga União Soviética desde os anos 1950, evidenciaram a existência de corpos líquidos gigantescos, nunca dantes imaginados, tais como os lagos subglaciais da Antártida. Na última década do Século XX, pesquisas sistemáticas comprovaram a existência sob a capa de gelo da calota polar antártica de não menos que 76 lagos subglaciais, descoberta inusitada sob qualquer ponto de vista. Destes ambientes, o destaque caberia ao lago Vostok, cuja existência foi confirmada em 1996 por glaciólogos russos e britânicos. O Vostok (“oriente”, em russo), o maior de todos os lagos subglaciais, localiza-se numa inóspita porção central do continente gelado (por sinal, apontada como recordista mundial em baixas temperaturas), patenteando-se enquanto uma descoberta que justificadamente, tem reclamado a atenção dos geógrafos, biólogos, físicos e muitos outros especialistas. Algumas avaliações indicam que o Vostok está pelo mínimo a três e possivelmente trinta milhões de anos, sem quaisquer contatos com os demais ecossistemas do planeta. O Vostok possui 240 km de comprimento e 50 km de largura, cobrindo uma área de 14.300 km², equivalente ao Lago Ontário, um dos Cinco Grandes Lagos da América do Norte. Todavia, é muito mais profundo. Enquanto o Ontário possui no ponto máximo, 244 metros de profundidade, o Vostok alcança 1.000 metros em alguns pontos. As águas do Vostok permanecem líquidas devido à pressão do gelo (equivalente a 350 atmosferas) e também pela atividade de uma fonte geotérmica no fundo do lago. Selado pela calota antártica numa espessura variando entre 3.700 e 4.100 metros, este corpo d’água é o 2 252 mais importante ambiente aquático isolado da Terra (KAPITSA, A. P., RIDLEY, J.K., ROBIN, G.Q., SIEGERT, M.J. et ZOTIKOV, A., 1996). Não obstante, descobertas como estas, surpreendentes nos mais diversos sentidos, em nada desmerecem o sentenciamento primordial quanto à exiguidade das águas doces no planeta. Em resumo: as águas doces totalizam somente 2,5% do montante hídrico total do planeta. De pronto, este dado remete diretamente a outro, referente aos demais 97,5% das águas terrestres. Este percentual, atendendo ao maior de todos os reservatórios da hidrosfera, refere-se à massa líquida dos oceanos, mares e lagos salgados. Apesar de representar volume gigantesco, esta proporção é evidentemente imprópria para o consumo direto. Neste particular, a proposta de dessalinização da água presente nos corpos líquidos salinos (no caso incluindo, além da água do mar, a potabilização das águas subterrâneas com elevado STD), exequível de ser empreendida por meio de processos como os da destilação e da osmose reversa, tem sido postulada com certa frequência. No final das contas, a massa líquida dos oceanos, em vista de somente 3,5% da sua composição ser constituída por sólidos em dissolução, poderia ser rubricada como um tipo de “água doce disfarçada”, sugerindo convincente potencialidade de conversão das águas marinhas a uma condição de potabilidade. A dessalinização tem, deste modo e não sem razão, magnetizado a imaginação de não poucos segmentos de opinião. O impacto desta tecnologia no imaginário é axiomático: inexistem cenários futuristas dispensando turbinas eólicas, seres clonados, antenas parabólicas, 2 253 cidades artificialmente climatizadas, boards multimodais de controle e naturalmente, gigantescas usinas de dessalinização. Nesta linha de argumentação, a questão da escassez dos recursos hídricos deixaria virtualmente de pertencer à pauta de preocupações da humanidade. Contudo, a popularidade da proposta deve ser convenientemente contrastada com alguns comentários elucidadores. O primeiro deles seria endereçado às objeções decorrentes do mau entendimento da própria terminologia. Corroborado por inúmeros pareceres, o termo dessalinização, no perspicaz comentário do biólogo Samuel Murgel BRANCO, seria tecnicamente contestável, justificando, deveras, que fosse substituído por dessalgamento (1993: 61). A alegação, longe de ser mero preciosismo de linguagem, é que o processo de dessalinização não se destina a remover toda a salinidade marinha. Antes, tais tecnologias se prestam apenas a retirar o excesso de sais da água, tornando-a potável. Respaldando esta colocação está o fato da água doce não ser, como se viu, destituída de sólidos dissolvidos, seja qual for sua emanação no meio natural. Essa provocação de Samuel Murgel Branco sugere uma outra consideração: a de que não necessariamente necessita-se de “águas sem sal” para as atividades que asseguram a sobrevivência. Deve-se levar em consideração que as águas grafadas como de “qualidade inferior”, categoria que incluiria águas como as salobras, as servidas ou com patamares de STD não obrigatoriamente condizentes como o padrão das supostas “águas puras”, estarem habilitadas a atender diversas necessidades humanas. 2 254 Assinale-se que esta taxonomia de águas pode se prestar, apelando para a utilização de processos de dessalinização de menor escala, ao atendimento de diferenciada gama de demandas, uma compreensão inexistente em passado recente, visto que se estipulava apenas as “águas com grau elevado de pureza” como apropriadas para satisfazer as necessidades humanas. Afora tais apontamentos, interessa ainda trazer considerações no tocante à dessalinização no seu sentido clássico, isto é, aquela que assume massa dos oceanos e mares como “matéria prima”, para a qual, existiriam, neste sentido, três alentados busílis. O primeiro seria o custo econômico da dessalinização. Caro por excelência, este processo está situado fora do alcance da maioria das nações. Um segundo obstáculo residiria no fato de que tanto a destilação quanto a osmose reversa são notórias devoradoras de energia 40. Mormente derivada da queima de combustíveis fósseis, em especial o petróleo e o carvão (e dos dois insumos, especialmente o primeiro), tecnologicamente este processo tem por pressuposto confesso um farto suprimento de combustíveis fósseis (BARLOW et CLARKE, 2003: 157). Em função do que foi exposto, temos que a implantação de usinas de água dessalinizada não seria tão fácil quanto algumas expectativas pressupõem. Nesta perspectiva, não é de se admirar Os dois recursos, solo e água, que como acabamos de anotar são objeto de relações de poder e estão no centro de múltiplas estratégias e logísticas de controle, estão integrados a técnicas que evoluem constantemente. As técnicas de utilização do solo e da água não param de ser aperfeiçoadas, para obter plantas e animais alimentares ou não. Porém, essas técnicas são consumidoras, num nível cada vez mais elevado, de recursos não renováveis e, em particular, de energia (apud RAFFESTIN, 1993: 232). 40 2 255 que a maioria das centrais de dessalinização estejam concentradas nos países do Oriente Médio. Nesta parte do globo situam-se países que além de contarem com polpudas receitas do petróleo, dispõem de fartas jazidas de hidrocarbonetos à disposição. Das 7.500 usinas de destilação em operação no mundo, dois terços localizam-se nesta região, particularmente na Arábia Saudita, nação que concentra 26% deste total, correspondendo à maior usuária de água dessalinizada do mundo (VILLIERS, 2002: 392). Existiriam ainda, em terceiro lugar, sequelas de ordem ambiental. Ressalve-se que a dessalinização, para cada volume de água do mar processado, produz apenas 1/3 deste mesmo volume em água doce, sendo os 2/3 restantes, um efluente constituído por uma salmoura altamente concentrada, que escoada em temperaturas elevadas para os oceanos, é uma preocupante fonte de poluição marinha. Por fim, conformando objeção bem mais séria que a precedente, o processo de potabilização adiciona à atmosfera gases efeito estufa (GEE), um dos principais inimigos dos suprimentos de água doce do mundo, dentre os quais podemos destacar o gás carbônico (CO²), o metano (CH4) e o óxido nitroso (N²O). Em razão destes contratempos, esta alternativa defronta-se com óbvias inadequações do ponto de vista ambiental. Assim sendo, conclui-se que as atenções devem concentrar-se nos 2,5% correspondentes às águas doces. Contudo, os problemas persistem quando se recorda a questão do acesso humano a este líquido. Para começar, seria bom frisar que 68,9% das águas doces estão encarceradas nas neves eternas de altas regiões montanhosas 2 256 (caso dos Andes, Cáucaso, Atlas, Alpes, Himalaia, Rochosas, etc.), em geleiras (na Rússia, Canadá, Noruega, Finlândia, Suíça, Islândia, Áustria, Alasca, Patagônia, Groenlândia, etc.) ou nas calotas polares. No tocante às calotas, reinam de modo inconteste os inlandsis, gigantescas e compactas geleiras que agasalham quase totalmente a topografia da Groenlândia e sobremaneira, da Antártida. Quanto ao continente gelado, assinale-se que, em seu solene isolamento, este armazena cerca 90% do gelo mundial. Ocupando cerca de 10% da superfície total da Terra, as regiões cobertas por água em estado sólido (isto é, gelo) constituem o mais importante estoque de água doce do mundo. Sua importância para o equilíbrio climático terrestre é simplesmente fundamental. No Brasil, os avanços e os recuos da massa de ar polar antártica condicionam diretamente as dinâmicas atmosféricas, a começar pela pluviometria, de vastas porções do país. Estes considerandos, inspiram no plano da ciência, a existência de um quinto compartimento natural, a saber, a “esfera de gelo e das neves”: a criosfera. Entendida como elemento operacional distinto, a criosfera passaria a usufruir, de um ponto de vista conceitual, um status compatível com sua importância objetiva para os destinos do planeta (Ver a respeito REBOUÇAS, 2002a: 4). Mas, estando ou não dispostos a concordar com tal proposição, tornou-se de qualquer modo inevitável que a criosfera passasse a ser percebida como um possível manancial 41 para satisfazer um mundo Neste parágrafo e em outros pontos do texto, “manancial” refere-se a uma definição genérica, definindo “qualquer corpo d’água, superficial ou subterrâneo, utilizado para 41 2 257 sedento. Afinal, se existem registros históricos de mineração de gelo alpino no império romano, porque então se eximir de repetir este feito amparado em máquinas e meios tecnológicos mais avançados? Por isso, a apresentação de sugestões de “garimpar água” da criosfera, suscitando cenários que a subentendem como uma reserva destinada à prospecção de imensos blocos de gelo, rebocados com o auxílio de cabos de aço pelos oceanos do mundo para aplacar a sede dos homens, rotineiramente surgem no recesso das narrativas dos seus defensores. No entanto, aparentemente uma proposta interessante, minerar os estoques de água congelada para obter água doce suscitaria pelo mínimo algumas ressalvas. O procedimento oferece dificuldades de toda ordem, a começar pela alteração da estabilidade das geleiras. Irrevogavelmente, a extração e desestabilização das colossais camadas de gelo da criosfera contribuiria para maximizar o fenômeno do aquecimento global, que tem sido apontado como responsável por mudanças climáticas em todo o planeta. A comprovar esta dita, desde o ano de 1986, os glaciólogos têm registrado, por exemplo, a multiplicação dos icebergs nos oceanos, assim como a aparição de icebergs de proporções inusitadas, que se destacam, quase sempre sem alarde, especialmente dos beirais da Antártida e da Groenlândia (Figura 9). abastecimento humano, industrial, animal ou para irrigação”, tal como discriminado no Vocabulário de Meio Ambiente (FEEMA, 1991, in CEPAM-FPFL, 1991). As implicações conceituais mais profundas desta terminologia serão retomadas adiante, particularmente no item 4.2.4 do Capítulo IV. 2 258 FIGURA 9 - Montagem fotográfica de um Iceberg gigante vadeando na costa da Terra Nova, no Canadá (Fonte: < http://www.canofenley.com/images/Iceberg. Jpg >, Ralph A Clevenger/Corbis. Acesso em: 23-06-2005) 2 259 A gênese do fenômeno, tem sido relacionada com o derretimento das calotas, apontada por diversos estudos como causa direta da elevação do nível dos mares em nível mundial. Além disso, visto que estas reservas hídricas se localizam em quadrantes de difícil acesso, o custo econômico e logístico da empreitada seria elevadíssimo e para complementar, estando consideravelmente distantes dos centros consumidores, o frete requereria custos adicionais. Obviamente, existem imensas massas de gelo concentradas nas regiões montanhosas de todo o planeta, em alguns casos situadas próximas dos prováveis consumidores. Neste particular, não há como não listar países que, como a Áustria e a Noruega, ao disporem de amplas reservas de água na forma de gelo, estariam predestinados ao papel de mineradores das geleiras. A água potável obtida através da empreitada poderia então alcançar os centros urbanos por meio de sistemas de aquedutos, relegando a escassez do líquido a uma mera declamação infundada de um ambientalismo inconsequente. Nesta acepção, a realidade transformou em um dado concreto o que um dia foi classificado como engenharia visionária: hoje, um aqueduto de alta tecnologia transporta água dos Alpes para Viena, existindo planos para construir corredores de aquedutos conduzindo, através de uma Rede de Água Europeia, o líquido obtido destas montanhas para a Espanha, Grécia e quiçá algures. Como seria de se esperar, a proposta de exploração das geleiras alpinas tem perturbado, com toda razão, mais de um segmento de opinião. Na própria Áustria, este projeto instila temores justificados. Seguidamente, os ecologistas locais têm advertido sobre os danos 2 260 que as exportações em grande volume do líquido poderão ocasionar ao sensível ecossistema das altas montanhas, um dos celebrados cartões-postais deste país alpino (BARLOW et CLARKE, 2003: 158). Em nível mais amplo, assevere-se que a mineração do gelo, ao contribuir com a aceleração do efeito estufa, poderá catalisar a falência da prospecção glacial por contribuir ela mesma para com a desaparição das próprias geleiras. Longe de ser um alarme falso, o desnudamento total das neves do monte Kilimandjaro (Tanzânia, nas proximidades da fronteira com o Quênia), de acordo com testemunho fotográfico datado de 2005 divulgado pela mídia mundial, ilustra de modo eloquente a ameaça real associada com a atividade mineradora nos glaciares e as interdições inerentes à explotação das geleiras. Diante disso, oferecendo obstáculos de monta, dentre os quais os de mote ecológico, a obtenção de água das reservas congeladas tem sido preterida em favor de alternativas menos impactantes, uma destas, direcionada para obter o líquido dos depósitos subterrâneos ou água fóssil, tal como controversamente estes reservatórios são catalogados por parte da comunidade dos hidrólogos. Evitando entendimentos errôneos, que fique claro que as águas subterrâneas não existem independentemente do ciclo natural da água. Em sentido estrito, isto significa que a água julgada “fóssil”, acomodada nos reservatórios subterrâneos, não constitui uma água estancada e tampouco, “que não esteja submetida a um processo de renovação” [...] “isto simplesmente quer dizer que sua renovação é extremamente lenta” (Cf. MARGAT et SAAD, 1985:15). Em função das características deste mecanismo natural, as águas subterrâneas 2 261 devem ser alvo de exploração absolutamente criteriosa, cercada de todas as cautelas técnicas possíveis (REBOUÇAS, 2004 e 2002b: 139/142). Contudo, no afã de retirar a água escondida nos veios da Terra, estima-se que cerca de 250 milhões de poços foram colocados em operação no mundo, dos quais presumivelmente 10% no Brasil (Cf. REBOUÇAS, 2004:45). Alegadamente, a intensidade das perfurações justifica-se pelos números estonteantes das águas subterrâneas. De fato, estes estoques, armazenando 29,9% da água doce do planeta, acumulados notadamente em aquíferos, são simplesmente colossais. Apesar disto, atente-se que a exploração destas reservas implica em pesados investimentos em estudos geotécnicos preliminares, gastos com perfuração e outras providências. Outros cuidados estão relacionados com a recarga natural dos reservatórios subterrâneos, que pode reivindicar dezenas, centenas ou mesmo milhares de anos. Consequentemente, o pressuposto para a exploração dos aquíferos solicita contrapartidas sérias, zelando pela preservação das águas, sugerindo, para impedir a contaminação dos veios subterrâneos, normatizações estritas quanto ao uso e ocupação do solo na superfície. Infelizmente, a adoção de regras de proteção destes reservatórios não tem progredido na velocidade desejada (Cf. SAMPAT, 2000). Desta forma, mesmo somando um enorme volume, pensar este estoque como possibilidade habilitada a satisfazer as demandas por água doce, solicita estratégias tecnicamente eficientes de gestão, sugerindo descartar qualquer otimismo fácil no seu aproveitamento. 2 262 Finalmente, outros 0,9% corresponderiam às águas estocadas no solo, isto é, nas camadas mais superficiais da litosfera, em contato praticamente direto com as dinâmicas atmosféricas e com a biosfera em geral. A umidade e a fração do líquido que impregna terras úmidas como pântanos e alagadiços em geral (Okavango, Sundarbans, Barel-Ghazal, Asmat, Pripet, etc.) ou então, os volumes compactados no permafrost, são exemplos do grupo das terras úmidas, que no saber pedológico, são aquelas áreas nas quais o lençol d’água se encontra em estado superficial durante a maior parte do ano (Vide ANDERSON et alli, 1979: 56). Quanto ao permafrost, trata-se de um tipo de terreno congelado encontrado em latitudes circumpolares, como no Norte da Sibéria, na Lapônia, no Canadá Setentrional e no Alasca, assim como solos em domínios de elevadas altitudes (cadeias montanhosas como o Altai, as Rochosas, o Himalaia e altos planaltos, caso do Tibete). Neste caso, tal como nos anteriores, os óbices não são poucos. Além de gerar fortes impactos ambientais, são óbvios os empecilhos para obter água nestes ambientes. No caso do permafrost, a retirada de água teria os mesmos inconvenientes da exploração das geleiras, com a agravante de impactar um ecossistema muito suscetível frente a intervenções antropogênicas. No tocante ao caso específico das terras úmidas, recorde-se que estes espaços funcionam como sistemas naturais de filtragem e absorção das águas doces, áreas de armazenamento, criadouros e habitat de considerável número de espécies da vida selvagem. Para complicar, estes ambientes já foram, visando a expansão dos pastos, 2 263 ampliação da fronteira agrícola ou obter áreas para assentamentos humanos, intensamente drenados no decorrer da história humana. Em resumo, a água doce em estado livre na natureza, presente em corpos d’água como rios, lagos e oásis, ao alcance imediato da satisfação das necessidades humanas, perfaz ínfima porcentagem das águas planetárias: 0,3% dos 2,5%, percentual que representaria 200.000 km³, diga-se, tão só 0,014% das reservas mundiais de águas doces. É deste reduzido estoque do líquido, também denominado águas superficiais ou então, azuis, que cabalmente depende a continuidade da existência humana e do sistema-vida em sua totalidade. Justificase, portanto, atenções redobradas relativamente ao gerenciamento deste suprimento. 5.3. ÁGUA: AVALIANDO UM RECURSO SOB TENSÃO Como foi possível inferir, embora em reciclagem ininterrupta pela natureza, as águas doces constituem um recurso finito em termos da disponibilidade para os humanos. Com base nos ciclos naturais, as águas doces superficiais armazenadas nos rios e nos lagos sempre foram eficientemente depuradas, contando-se dentre os mecanismos naturais de limpeza das águas, a sedimentação, aeração, diluição e os processos bacterianos. Contudo, ...o aumento da população e a acelerada industrialização superaram as propriedades naturais de reciclagem dos 2 264 cursos d’água, o que resultou em uma brutal poluição e uma crescente ameaça tanto à saúde humana como ao abastecimento de água em geral (VILLIERS, 2002: 143). Portanto, apresenta-se uma conjuntura dramática que induziria a todos indagar a respeito da quantidade de água solicitada pelos seres humanos. Quanta água, no final das contas, é reclamada para a sobrevivência? Qual seria o mínimo necessário para tal? A partir de que momento poder-se-ia então considerar uma situação de estresse hídrico? Respostas é que não faltam. Há quem proponha o índice de 25 litros diários enquanto volume de água voltado exclusivamente para a subsistência (BARLOW et CLARKE, 2003: 285). No mais, ampliando este dado, várias agências internacionais propõem que 50 litros por pessoa/dia seriam suficientes para cobrir as necessidades humanas básicas do líquido para consumo, limpeza, higiene e culinária (CMB, 2000). Entretanto, na hipótese de o indivíduo dispor de esgotamento sanitário, a realidade demonstra a impossibilidade de pensarmos uma taxa de consumo inferior a 100 litros/pessoa/dia (REBOUÇAS, 2004: 59). Recorde-se que as quantidades consideradas vitais variam de acordo com padrões climáticos, sociais e culturais. Por esta exata razão, encontramos profícuo conjunto de prontuários e estatísticas a respeito do assunto. Mas, existe certo consenso em considerar que o volume de 100 litros per capita/dia, correspondendo a 36,5 m³ por ano, poderia ser alçado como volumetria mínima para satisfazer o consumo pessoal (SELBOURNE, 2002: 45). 2 265 Apurando a discussão, esta torna-se acirrada quando se visualiza o conceito numa ótica mais ampla, abarcando os volumes destinados para a indústria, agropecuária e geração de energia, atividades que não poderiam, é óbvio, serem desvinculadas do way of life do mundo moderno. Neste discernimento, divergências e descompassos, tanto no sentido quantitativo quanto no qualitativo, podem ser arrolados quanto à compreensão do mínimo de água doce indispensável para perpetuar a vida humana. Caso se queira levar em conta os pareceres propostos em 1989 pela hidróloga sueca Malin Falkenmark, a oferta de recursos hídricos satisfatórios para o atendimento das demandas humanas (incluindo nesta contabilidade as requisições da agricultura, da indústria e da produção energética), não poderia ser inferior ao patamar de 1.700 m³/pessoa/ano. Esta referência, também conhecida como Índice de Estresse Hídrico (WSI, abreviatura técnica de Water Stress Index) ou Indicador de Falkenmark, indicaria o chamado estado de alerta, que ocorre toda vez em que este índice encontra dificuldades para ser disponibilizado. Por sua vez, índices inferiores a 1.000 m³/hab./ano demarcariam para Falkenmark uma situação de escassez crônica de água (Chronic Water Scarcity), e abaixo de 500 m³/hab./ano, um estado de penúria hídrica absoluta (Absolute Water Scarcity), ainda mais problemática quanto à oferta de água. Deve-se ressalvar que a noção de estresse hídrico, tal como delimitada por Malin Falkenmark, convive com variados graus de concordância e antagonismo com outras formulações. De um ponto 2 266 de vista quantitativo, é extremamente difícil, por exemplo, adotar um padrão que contemple a heterogeneidade de situações vivenciadas pela humanidade. No que parece constituir uma crítica procedente, os indicadores propostos por Falkenmark parecem ignorar, por exemplo, a existência de regiões que convivem relativamente bem com a escassez e/ou penúria de recursos hídricos, dentre estas, a Andaluzia (Sul da Espanha) e amplas regiões do Levante (Vide SHUVAL, 1998). Logo, sem desconsiderar o arrojo indiscutível da cientista sueca em lançar o conceito de estresse hídrico, este tem sido intensamente debatido e sua sustentação teórica questionada das mais diversas formas, inclusive no tocante à especificidade política, social e geográfica (Ver a respeito RIJSBERMAN, 2004; GRANAHAN, 2002; OHLSSON, 1999 e 1998; SHUVAL, 1998). Assim, nesta lógica de especulações, não há rigorosamente ninguém que proclame como definitivo o Indicador de Falkenmark (GRANAHAN, 2002: 20). Outrossim, as análises de Falkenmark, sob as quais pesam o justificado veredicto de refletirem o modo de vida das sociedades afluentes (mas não do conjunto da humanidade), tem convivido com a apresentação de outras indicações quantitativas. Embora o índice de 1.700 m³/pessoa/ano seja fundamental para avaliar número considerável de contextos, conjunto significativo de pesquisadores, abarcando desde especialistas do Banco Mundial e departamentos da ONU, até assessorias técnicas especializadas e instituições dedicadas aos cuidados e manejo dos recursos hídricos, tem proposto o patamar de 1.000 m³/pessoa/ano como parâmetro mais universal para reconhecer uma condição de estresse hídrico. 2 267 Quanto à escassez de água, esta, se configuraria nas situações nas quais a oferta é inferior a 500 m³/hab./ano. Não diferentemente, seria desta forma que muitos pesquisadores brasileiros têm pautado a insuficiência de água de um ponto de vista técnico e conceitual (Vide REBOUÇAS, 2004: 68/69 e 2002a: 19). Mas, note-se que critérios quantitativos, quaisquer que sejam, e desde que pensados unicamente como medianidades matemáticas, demonstram inaptidão para esgotarem as problemáticas econômicas, políticas e sociais que rondam o debate dos recursos hídricos. Tanto procede tal contestação, que seria possível identificar propostas que trabalham com índices ainda menores que 1.000 m³/pessoa/ano. Por exemplo, o engenheiro ambiental israelense Hillel SHUVAL (1998), tem proposto uma média de consumo de 125 m³/pessoa/ano para os habitantes das áreas urbanas dos países áridos do Oriente Médio, o Minimum Water Requirement (MWR). Isto com base na renomada experiência da gestão israelense de recursos hídricos, que como se sabe, remete a uma nação reconhecidamente competente na administração das águas doces (REBOUÇAS, 2004: 71 e 136). Afora padrões numéricos, há com certeza um cabedal expressivo de objeções quanto ao uso recorrente de promédios matemáticos na avaliação da disponibilidade dos recursos hídricos. Estas poderiam incluir as seguintes limitações: as médias anuais, particularmente as de índole nacional, mascaram situações profundas de escassez em escalas menores, locais, regionais e urbanas, ambas extremamente significativas; os indicadores quantitativos não identificam o peso das obras de infraestrutura quanto às modificações que provocam na 2 268 disponibilidade de água; igualmente, a adoção de limiares técnicos não reflete importantes variações na demanda por água, decorrentes de determinado estilo de vida, do clima e do contexto histórico- social (passim RIJSBERMAN, 2004). Por isso mesmo, a propensão quantitativa existente no Indicador de Falkenmark, foi objeto de reavaliações e enriquecida por outras contribuições, dentre as quais, caberia uma menção obrigatória para o Índice de Estresse Hídrico Social (Social Water Stress Index), proposto por outro cientista sueco, Leif Ohlsson, especialista em água e ecopolítica. Tomando por base a dificuldade de acesso aos recursos hídricos e relacionando-o com o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), proposto pela ONU em 1990, o trabalho de Leif Ohlsson chama a atenção para o entrelaçamento da condição de exclusão social com a da situação de indigência hidrológica, contextualização que grava vastos segmentos populacionais, inclusive em países considerados ricos em água doce. Portanto, a contribuição de OHLSSON (1999 e 1998), ao incluir um componente sociométrico repetidamente vezes secundarizado em avaliações que lançam mão exclusivamente métodos quantitativos, é absolutamente pertinente, necessária e imprescindível. Isto posto, saliente-se que não haveria como dispensar os dois recortes em discussão, quais sejam, os de mote quantitativo e os fundamentados em critérios qualitativos. A adoção de um parâmetro numérico para um tema tão objetivo quanto a disponibilidade hídrica é 2 269 em si mesmo imperioso. Este contribui para identificar (mesmo que cercado de ressalvas), questões associadas com a oferta de água para atender necessidades humanas elementares de saúde, higiene e bem-estar. Simultaneamente, o necessário aporte referente aos cenários sociais, culturais, políticos e econômicos, faria pleno sentido para enriquecer estas avaliações com os aspectos contraditórios que perpassam nos espaços da sociedade contemporânea. Em particular, estes interessariam para a análise da escassez urbana de água, um problema que arrosta as metrópoles da periferia, dentre as quais, as aglomerações brasileiras. A dramaticidade desta questão é evidente quando se sabe que, segundo estimativas da ONU, cerca de 30% da população mundial, mormente os setores excluídos, já vive a situação de estresse hídrico. Pensando um referencial com base em 50 litros diários per capita (em linhas gerais a quantidade consumida por uma cabeça de gado bovino unicamente para dessedentação), um bilhão de pessoas vive, nos dias de hoje, com uma oferta menor do que esta. Em 2025, cerca de 3,5 bilhões de pessoas habitarão áreas com carência de água, conjunto no qual o destaque caberia aos países pobres. Em 2050, novamente adotando como referência o padrão de 50 litros diários, poderão ser 4,2 bilhões de pessoas para as quais não será possível garantir sequer este volume (CMB, 2000). Outro fator inquietante adicional são as projeções que acenam para 2025 uma situação de estresse hídrico para muitos dos países 2 270 centrais, consumidores por excelência de água. Em mais de uma acareação, repete-se que o consumo destes países é muitas vezes superior ao dos países pobres. Uma criança nascida num país rico utilizaria, por exemplo, cerca de 30 a 50 vezes mais água do que uma de um país periférico 42. A demanda dos países centrais, detentores de um padrão de consumo de água muitíssimo mais elevado do que o dos países do Terceiro Mundo, admite (quando não impõe), prognosticar cenários perpassados por enfrentamentos e toda sorte de pendências políticas e atritos interestatais centrados na questão do acesso a este líquido vital. Uma observação bastante instigante é a demarcada por meio da comparação dos dados da disponibilidade per capita de água doce no ano 2000 e 2025, isto é, avaliações centradas exclusivamente em dados físicos e quantitativos, com aqueles perpassados pelo crivo da dimensão social e econômica projetados para o ano 2025. Atente-se, deste modo, que gorda parcela dos países periféricos que despontam com excedente hídrico físico no ano 2000, vivenciará situação de escassez econômica de água em 2025. Por outro lado, os países do Norte, grande parte dos quais não são agraciados com recursos hídricos, estarão pelo contrário, e a despeito do possível - e esperado -, recrudescimento da escassez física de recursos hídricos, desfrutando de largo acesso à água doce (Vide RIJSBERMAN, 2004). 42 Jornal O Globo (RJ), Caderno Ciência, edição de 6/3/2003. 2 271 Estes prognósticos em si mesmos constituiriam claro indicativo de uma crise (em curso ou potencial) quanto ao abastecimento de água potável, flertando com disfuncionalidades que atormentam o conjunto da população global, agraciada ou não de acesso ao líquido. Inserindo heterogênea coleção de conflitos, o temário da água doce transparece como o dilema mais espicaçante a ser enfrentado pela humanidade em futuro próximo. Justamente por isso, sublinhar quanto à emergência de uma problemática internacional de água, é uma asserção que supera em muito, uma mera nota especulativa (Cf. VILLIERS, 2002: 56). Meritoriamente, a preocupação com a preservação do líquido passou a se difundir por tudo o mundo, motivando a adoção do dia 22 de março como Dia Mundial da Água, efeméride referendada pela ONU em 1992. Entretanto, até que ponto a questão da escassez, agora sub-repticiamente inscrita num evento comemorativo global, atinge de fato os habitantes do planeta? E de que modo as atividades humanas estão ou serão afetadas por esta problemática? Isto posto, atinando-se que a natureza não dá saltos (natura non facit saltus), alinhavar lineamentos na busca de respostas a estas indagações é um convite para a confecção do panorama pertinente ao futuro próximo dos humanos, que independentemente do que as métricas e os arrazoados podem explicitar, será exatamente este, o intuito assumido dos próximos capítulos. 2 272 CAPÍTULO 6 ÁGUA: RECURSO INDISPENSÁVEL 6.1. ÁGUA E ENERGIA A energia é um aspecto sumamente vinculado à vida moderna, nas suas mais diferentes derivações. É impossível conceber, nos marcos da modernidade, um conglomerado urbano ou uma instalação industrial, seja lá qual for seu porte, dispensando conexões funcionais com provisões e/ou insumos energéticos. Por conseguinte, o consumo de energia (ou melhor conferindo, conversão da energia, terminologia considerada mais adequada do ponto de vista técnico), cresceu exponencialmente com o advento do mundo ocidental. Sem dúvida alguma, em nenhum outro momento da história a demanda por suprimentos energéticos alcançou patamares tão grandiloquentes. Este crescimento se especificou particularmente na produção de bens, na prestação de serviços e na contextura dos processos de reprodução social e cultural que caracterizam a vida contemporânea. Tal evidência está claramente consignada no quadro seguinte (Figura 10), que explicita o avanço das demandas energéticas ao longo da história humana. Contudo, a dependência do meio técnico-científico-informacional no tocante à energia empresta a esta discussão um cunho de certa 2 273 excepcionalidade. Isto porque o mundo moderno, para atender reclamos social e historicamente necessários para seu modo de vida, reivindica vasto input energético. FIGURA 10 - A Expansão do consumo de energia na escala do tempo histórico (Fonte: SASSIN, 1981: 11) Exemplificando, para produzir vidros, papéis, plásticos, aço e alumínio, materiais que praticamente simbolizam a vida moderna, são requeridos ponderáveis inputs energéticos. Numa visada meramente quantitativa, para obter uma tonelada de vidro precisamos de 4,83 mil kilowatt por hora (kWh); para o papel, 4,98 mil kWh para cada tonelada produzida; para o plástico, 6,74 mil kWh por tonelada; cada tonelada de aço solicita 6,84 mil kWh; finalmente, uma tonelada de alumínio não pode ser produzida com menos de 17,6 mil kWh (Cf. CALDERONI, 2003: 197, 213, 228, 242 e 183). 2 274 A magnitude destas métricas é evidente quando se compara o custo energético do vidro com os demais materiais listados. Recordese que o vidro, apesar de constituir o produto menos exigente em eletricidade da listagem, trata-se de um material cujo input energético já é elevado pelo simples motivo de resultar da fusão de matérias primas inorgânicas, dentre as quais, um papel fundamental caberia à areia 43. Não por acaso, o Líbano, país que corresponde em linhas gerais à Fenícia da antiguidade, foi intensamente desmatado dezenas de séculos atrás, inclusive devido as exigências da indústria vidreira desta antiga civilização do Levante 44. Neste recorte, um caso mais embaraçoso é sem dúvida alguma, referente ao alumínio. Este metal, mais que qualquer outro, se tornou representativo do estilo de vida da modernidade. Ele está fortemente presente na construção civil, na indústria aeronáutica, na manufatura de peças e implementos mecânicos, em objetos de uso diário, nas embalagens e na exploração do cosmos. O sucesso do alumínio é por demais evidente. A onipresença do material é perceptível não só num ostensivo conjunto de itens e na própria paisagem criada, quanto nas formas de consumo simbólico, associadas que estão às faculdades estéticas e físicas deste metal, Assinale-se que não existe propriamente vidro, mas sim, a tipologia vidros, cada um dos quais, resultante de uma combinação específica de componentes minerais, o que impõe trajetos diferenciados de reciclagem. De um modo ou de outro, esta asserção poderia ser estendida a todo conjunto de recicláveis: papéis, plásticos e diferentes processamentos e ligas de metais. 44 O antigo Líbano era coberto por densa vegetação, inclusive por florestas inteiras de cedro, encantando os cronistas da Bíblia e todos os povos do Oriente Médio de outrora. Note-se que muito embora a bandeira libanesa exibir um exemplar desta árvore em seu campo central, o cedro foi praticamente extinto. Esta espécie está atualmente reduzida a alguns exemplares protegidos por lei. A eliminação da cobertura vegetal do Líbano é um dos exemplos de como as tecnologias ditas “pouco exigentes” ou de “baixo impacto”, interferem de modo cumulativo no meio ambiente, promovendo transtornos irreversíveis. 43 2 275 explícitas nas representações que remetem às propriedades deste metal em termos de textura, da cor, ou mesmo, do brilho. Esta predileção pelo alumínio, em vista de que a prospecção e beneficiamento do minério desdobram-se em impactos de todo o tipo no ambiente, implica em externalidades de gestão extremamente dificultosa. Incontestavelmente, pode-se precisar que os processos de obtenção dos metais são, geral, lesivos para o meio natural. Por exemplo, rejeitos e efluentes 45 provenientes da mineração do ferro representam aproximadamente a metade da tonelagem do minério retirado das jazidas. Porém, esta proporção é significativamente mais alta para a bauxita, minério do qual é obtida na prática, a totalidade do alumínio primário: nada menos do que três quartos do montante removido das minas é pura canga, rebute com grande impacto ecológico. Importa registrar que a elevada carga de revolvimento do solo decorre do teor médio relativamente baixo do metal na bauxita (ou terra vermelha, como igualmente este mineral é denominado), no geral, oscilando em torno de 25% (CALDERONI, 2003: 180; SEVÁ, 1997: 16 e GEORGE, 1980: 112). Além dos impactos ocasionados pela mineração implicarem no deslocamento de portentosas camadas de solo e poluição por uma nefasta carga de detritos resultantes do beneficiamento nas usinas metalúrgicas, o alumínio igualmente é, por definição, um produto eletrointensivo. Os dados expostos esclarecem que a produção deste 45 “Efluente: Qualquer tipo de água ou líquido, que flui de um sistema de coleta, como tubulações, canais, reservatórios, elevatórios ou de um sistema de tratamento ou disposição final, com estações de tratamento e corpos de água” (Glossário Ambiental). 2 276 metal consome 17.600 kWh/tonelada. Ora, uma contabilidade simples nos revela, portanto, que o material utiliza cerca de 3,6 vezes mais energia que o vidro, 3,5 vezes mais que o papel, 2,61 vezes o plástico e aproximadamente 2,57 vezes do que o aço. Outro cálculo indica que uma latinha de alumínio incorpora energia suficiente para manter uma lâmpada de 100 Watts acesa durante aproximadamente 3:30 horas ou manter a televisão ligada por pouco mais de 3 horas 46. Fato plenamente observável, a identificação deste metal com o estilo de vida da modernidade, difundiu extensivamente sua utilização em todo o cotidiano e nos mais diversos campos da indústria e da cadeia produtiva. Nesta linha de aferições, no prontuário ambiental do alumínio deve-se indexar os agravos decorrentes da implantação e manutenção de centrais de eletricidade cuja energia está destinada a trazê-lo ao mundo. Por isso mesmo, dentre outras razões, o alumínio é responsável por fração ponderável do consumo energético. No Brasil, as empresas encarregadas da produção do metal, confiscam cerca de 10% da hidroeletricidade gerada no território nacional (Cf. CEMPRE, Cempre Informa). O vulto da participação do alumínio no consumo energético, também deve ser avaliado com base no fato de que os setores fabris responsáveis por produzi-lo, são do mesmo modo, agraciados com tarifas significativamente mais baixas do que as pagas pelo cidadão comum. As medidas de apoio das administrações federais têm sido explícitas quando se sabe que desde a entrada em operação da Usina Hidrelétrica (UHE) de Tucuruí em 1984, as Centrais Elétricas do Norte do Brasil SA (ELETRONORTE), tem fornecido a energia a 46 Informação divulgada no site da ALCOA Alumínio SA (Acesso: 22-03-2005). 2 277 preços subsidiados para as processadoras de alumínio do Pará e do Maranhão (SANTOS FILHO, 1999: 134), prática que, a propósito, prossegue até os dias de hoje. Comparativamente aos consumidores residenciais, a megaempresa Companhia Alumínio Brasileiro SA (ALBRÁS, sediada em Barcarena, Pará), cujas instalações produzem alumínio para exportação, paga pela energia fornecida, tão só 10% do total pago pelas residências. Um dos cálculos disponíveis avalia que cerca de U$ 250 milhões são desta forma repassados a cada ano para as indústrias exportadoras de alumínio, significando um claro subsídio em prol do consumo deste metal por parte das economias afluentes dos países do centro 47. Estes dados são em si mesmo, reveladores dos pressupostos que regem a matriz energética brasileira. Pensando-se que poucos anos atrás a nação foi sacudida pelo fantasma do chamado “apagão”, fica evidente a necessidade de antes de serem estabelecidas “regras para a contenção do desperdício” e ou mesmo de “racionamento”, que sejam revistas as prioridades do uso da energia produzida no território nacional. Ao Brasil, constituindo uma nação com destacada posição na geração da hidroeletricidade e que agrega a esta condição a de ser grande produtor e exportador de alumínio, coloca-se na ordem do dia repensar o gerenciamento da matriz energética. Por outro lado, é evidente que mensurar os índices de consumo energético dos materiais utilizados pelo mundo moderno, por mais preocupantes que estes sejam, não esgota a discussão relativa à energia no sentido mais amplo. Além dos aspectos mencionados, destaque-se sobretudo, os que se prontificam a uma articulação com Informação obtida na home-page do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB): < http://www.mabnacional.org.br/ >,(Acesso: 19-06-2005). 47 2 278 a questão dos recursos hídricos. Basicamente em razão da geração de energia sempre remeter a algum tipo de vínculo como os recursos hídricos. Exatamente por isso, ponderações atinentes aos impactos socioambientais constituem pauta obrigatória nesta discussão. Antes de tudo, é válido lembrar que a água está presente em praticamente todas as formas atualmente existentes de conversão da energia. Esta locução se expressa de modo explícito para o caso da hidroeletricidade; noutros processos, tais como a biomassa, energia termonuclear e termoelétrica, a água também contempla parceria com a produção de energia. Ademais, impactos ambientais com origem na matriz energética terminam atingindo, de um modo ou de outro, os corpos aquáticos. Exemplificando, até mesmo as usinas maremotoras, funcionando com base no aproveitamento energético do deslocamento das marés 48 e normalmente percebidas como isentas de comprometimentos ambientais, apresentam efeitos colaterais para o ambiente. Embora Esta fonte de energia interessa principalmente para as regiões com grande diferença entre as marés alta e baixa, podendo ser explorada através das usinas maremotoras, instalações que convertem a energia das marés em energia elétrica. Elas funcionam de modo semelhante às hidrelétricas, dispondo de turbinas movimentadas pela água do mar represada. Este represamento é obtido pela construção de barragens em recortes apropriados do litoral, amplos e profundos. Quando ocorre a maré alta, estes trechos do litoral são ocupados pela água do mar e antes que a água do mar recue, as comportas são fechadas, represando a massa líquida. Mais adiante, este volume é gradativamente liberado de modo a acionar turbinas geradoras de eletricidade. A construção de usinas maremotoras solicita a existência de diversas pré-condições, tais como a ocorrência de marés altas e condições geográficas apropriadas. Embora a energia maremotriz seja uma das grandes fontes renováveis de energia do mundo, concentra-se, contudo, em regiões litorâneas como o Canal da Mancha, o Mar da Irlanda, Mar de Barentz e o Mar Branco. O uso da energia das marés pode diminuir a necessidade da emergia nuclear, com seus riscos associados à radiação. O imenso potencial energético das marés é ainda pouco utilizado na escala mundial. Uma das mais conhecidas experiências de aproveitamento da energia maremotora é a estação maremotriz do Rance, situada na península da Bretanha, na França. Concebida para ser a primeira de uma série de estações maremotrizes, o programa de construção de estações maremotoras da França foi paralisado, suplantado pela expansão da construção de usinas nucleares nos anos 1960. 48 2 279 diversos estudos evidenciem serem pontuais os impactos das usinas maremotoras (que diferem de um sítio para outro, na dependência direta das características geográficas de cada área), e da energia maremotriz não resultar na emissão de gases responsáveis pelo aquecimento global e tampouco em deposições ácidas, o bloqueio do fluxo da maré, represado numa baía, canal, estuário ou qualquer outra reentrância costeira por essas instalações, pode resultar em molestas perturbações para os ecossistemas fluviais e marinhos. De resto, a intervenção na linha da costa pode ser prejudicial para a navegação, pesca e recreação. A articulação entre as questões dos recursos hídricos e da matriz energética se repete no caso das novas tecnologias de geração de energia, caso das células de combustível. Esta tecnologia, proposta pela primeira vez em 1839, adota por insumo energético a própria água. No Século XIX, a descoberta da possibilidade de utilizar o líquido para fornecer à humanidade toda a energia de que necessita estimulou o fervor visionário de muitos pensadores, cientistas e escritores. Escreveu Júlio Verne na sua obra A Ilha Misteriosa (1874): “A água será um dia um combustível. O hidrogênio e o oxigênio que a constituem, utilizados separadamente oferecerão uma fonte de calor e de luz inexauríveis”. Nas células de combustível, a energia é obtida pela separação dos átomos de hidrogênio e de oxigênio presentes no líquido, que através de transformação exotérmica, gera calor e energia elétrica. Este processo, além de não acarretar qualquer tipo de poluição, tem por efluente somente uma água despida de resíduos. Entretanto, exatamente o fato de propor a utilização energética de um recurso 2 280 difuso (a água) e de não propiciar controle estatocêntrico (visto que a energia é gerada nos locais de consumo), é que bloqueou sua difusão e o aprofundamento das pesquisas. Numa realidade social em que a economia foi construída com base em combustíveis fósseis e com o intento declarado de dominar a vida dos humanos, é fácil adivinhar os motivos que engavetaram os estudos para viabilizar as células de combustível como opção factível. Assim, aguardando aprimoramentos técnicos, a tecnologia hoje desperta renovado interesse, recolocando na ordem do dia a conexão entre a energia e a água. De qualquer modo, tudo isso confirma que os recursos hídricos não podem, qualquer que seja o ponto de vista, serem dissociados das avaliações relacionadas com a matriz energética, mesmo porque, a produção de energia, de uma maneira ou de outra, sempre possui a água enquanto pressuposto logístico e/ou funcional. Neste sentido, avantajado escopo de argumentações pavimenta a advertência no sentido de jamais desvincular o debate relacionado com os recursos hídricos das condizentes com a matriz energética. Gerar e disponibilizar energia implica, quando o assunto em pauta é a sociedade moderna, em demanda amplificada de recursos hídricos, o que por sua vez, se relaciona ordinariamente com plurimus impactos socioambientais. E, dificilmente poder-se-ia minimizar esta preocupação quando a modalidade de matriz de energia é a hidroeletricidade. Constituindo uma modalidade de geração de energia na qual a associação com os recursos hídricos apresenta-se de modo indiscutível, a importância da hidroeletricidade no universo das opções energéticas disponíveis no 2 281 Brasil é manifesta. O país ocupa atualmente a terceira posição no ranking planetário em capacidade instalada de geração hidrelétrica, superado apenas pelos Estados Unidos e Canadá. Na escala dos dez maiores produtores globais, o Brasil perfila, acompanhado da Índia e da China continental, como um dos três únicos grandes geradores de hidroeletricidade situados fora do contexto dos países centrais ou das nações tradicionalmente industrializadas. Este fato contribui para justificar a expressiva participação da hidroeletricidade no total da produção elétrica nacional. Nas últimas décadas, a hidroeletricidade tem respondido, pelo mínimo, por 90% da energia gerada, cabendo a produção da fração restante ao labor das usinas termoelétricas e nucleares. Sublinhe-se que no Brasil, a construção de hidrelétricas está associada ao imaginário referendado com a modernização e decerto, a proliferação de barragens erguidas desde primórdios do século passado em todo o território nacional certamente corroboraria este julgamento. A proeminência do primado energético baseado na construção de represas tem sido, aliás, origem de um dos problemas mais sérios vivenciados pela população urbana do país. Observe-se que em linhas gerais, os interesses mobilizados pela geração de energia com base na água armazenada em represas, respaldados solidamente no poder econômico e político, tenderam a se afirmar frente aos voltados para o abastecimento de água potável para a população. Bem assim, embora os reservatórios possibilitem dupla finalidade (gerar energia e fornecer água potável), a produção de energia foi priorizada de facto, impondo aos demais usos dos recursos hídricos, 2 282 as prioridades e as expectativas deste segmento. Em tal perspectiva, numa flagrante inversão dos termos pelos quais a água se prontifica como fator básico para a continuidade da vida, o líquido represado restringe-se à função de mera energia potencial a disposição da movimentação das turbinas, inexistindo cuidados visando a qualidade das águas. Paralelamente a estas colocações, pode-se registrar outra ordem de problemas, pois num ponto de vista ambiental, as hidrelétricas, geralmente apontadas como forma ambientalmente adequada (ou até mesmo “limpa”), de geração de energia, não escapariam, a bem da verdade, de diversos outros questionamentos, atendendo inclusive a problemáticas conceituais. Recorde-se que embora constitua uma locução constantemente repetida, dificilmente se poderia apontar uma forma verdadeiramente limpa de geração de energia. Neste particular, existiriam, no máximo, apenas fontes de energia menos sujas, mas não fontes verdadeiramente limpas, parecer este que incluiria as matrizes consideradas alternativas. Precisando melhor esta nota, as modalidades soft, carimbadas como “limpas”, possuem como denominador comum o fato de serem renováveis e serem bastante adaptadas ao meio natural. No entanto, isto não significa ausência de impactos, pois as energias renováveis também impactam o meio ambiente e ao bem-estar das populações. Exemplificando, os painéis solares ocasionam desde ferimentos ocasionados por quedas totais ou parciais dos equipamentos durante a manutenção e o inconveniente brilho da luz solar nas superfícies de vidro, até incômodos em termos da poluição sonora gerada pelas 2 283 modernas turbinas movidas a vento, podendo também afetar as migrações e os voos dos pássaros. No mais, certificando os comentários dos parágrafos anteriores, pode-se agregar que a suposta característica “menos impactante” da energia hidrelétrica constitui um discurso que amiúde, descarta uma série de agressões socioambientais, a começar pelas que atingem as populações deslocadas pela construção de barragens. Praxe repetida em múltiplos cenários, os projetos hidrelétricos, tanto no passado quanto hoje, resultam em alterações radicais de ordem econômica, social, política e cultural. Não há como negar, a implantação das plantas hidrelétricas, particularmente os chamados megaprojetos, tem perturbado o modo de vida de significativos grupos populacionais em todo o mundo. Onerados diretamente pelo impacto da construção dos reservatórios, aos grupos de deslocados, resta, quando muito, aderir a impositivos programas de reassentamento, sendo indenizadas apenas quando se mobilizam com este fim. Outro óbice é que dentre os segmentos atingidos pela construção dos reservatórios das represas, um contingente muito significativo é formado por povos indígenas, minorias étnicas e grupos tradicionais como camponeses, ribeirinhos e extrativistas em geral (CMB, 2000). Estruturadas em arranjos territorialmente singulares, tais populações têm sua vida social alicerçada num entrosamento com o meio natural, fatoração que as tornam enormemente sensíveis aos impactos provocados pela construção de grandes barragens (Vide SANTOS et ANDRADE, 1988). 2 284 De resto, dado que estes grupos estão em maior ou menor grau, desigualmente integrados às sociedades sob cujos marcos vivem, tal situação é origem de diversas dessimetrias no relacionamento com os Estados nacionais, a começar pela fragilidade política das populações afetadas diante das instâncias governamentais em todos os níveis, e naturalmente, às construtoras. Assim sendo, estes segmentos sofrem um nível desproporcionalmente alto de deslocamentos, ocasionando impactos tremendamente negativos sobre nos meios de subsistência, na sua cultura e práticas tradicionais (CMB, 2000). Não sem razão, estas populações terminam por serem apreendidos como intérpretes de mobilizações ecológicas contrárias à construção dos reservatórios. Não fosse suficiente, os projetos hidrelétricos potencializam desequilíbrios ambientais de ampla e diversificada taxonomia, no geral pouquíssimo conhecidos pela opinião pública. Notadamente, um destes remeteria às emissões dos GEE, decorrentes do enchimento de reservatórios das hidrelétricas, construídos em áreas de florestas tropicais densas. Com o afogamento e posterior putrefação da massa dos vegetais, gera-se metano (conhecido como “gás dos pântanos”) e dióxido de carbono, ambos em quantidades excepcionais. Os gases oriundos dos reservatórios contribuem diretamente, lado a lado com a queima de combustíveis de matriz fóssil, junto com as emissões provenientes dos lixos e do esterco dos rebanhos, para vitaminar o aquecimento global. Certo é que a formação dos lagos artificiais hidrelétricos pode, independentemente das alterações ecológicas que acompanham seu surgimento, corresponder a um padrão de fornecimento de energia sugerindo que os custos ecossistêmicos da construção de barragens 2 285 estariam, ao menos justificados por mercês ambientalmente eficientes quanto ao fornecimento de energia para a sociedade mais ampla. Nesta linha de interpretação seria o caso de se mencionar a UHE de Paulo Afonso I-IV, responsável pela geração de 3.984 MW com base numa área alagada de 1.600 hectares. Matematicamente, Paulo Afonso gera 2.490 kW para cada hectare alagado, índice considerado plausível na comparação com a maioria das hidrelétricas. No sistema hidrelétrico brasileiro, em termos da capacidade instalada, Itaipu gera 93 kW/hectare alagado; o sistema Billings, 69,7 49; Jupiá, 42; São Simão, 41; patamares considerados tecnicamente bons ou aceitáveis. Entretanto, numa outra ponta a usina de Sobradinho gera 1.050 MW tendo por contrapartida um reservatório cobrindo 421.400 hectares, consumando um índice de apenas dois kW por hectare alagado. São considerações deste tipo que induzem muitos especialistas a recomendarem, ...como menos prejudiciais do ponto de vista ecológicosanitário, represas que se caracterizem por um máximo volume de água represada, com mínima superfície de inundação ou, expresso de outra maneira, máxima capacidade geradora por área inundada (BRANCO, 2002: 239, grifos nossos). A despeito da sabedoria desta doutrina, não necessariamente os órgãos estatais de planejamento atendem ao primado da utilização minimamente racional do capital hídrico. Pelo contrário, são inúmeros os exemplos de obras hidrelétricas construídas ignorando quaisquer Valor obtido com base em informação prestada por Edson Fernando Escames, gestor ambiental da Empresa Metropolitana de Águas e Energia (EMAE), em 07-12-2005. 49 2 286 arrazoados da boa engenharia e infelizmente, respondendo por impactos socioambientais terrivelmente repetitivos. Um caso notório que instrumentalizou a água enquanto item a serviço do desequilíbrio ambiental foi o referente à UHE de Balbina, construída no final dos anos 1980 no Amazonas, obra considerada um dos piores desastres ecológicos de todos os tempos. O lago da hidrelétrica, cuja área equivale à metade do Distrito Federal, afogou compacta extensão de matas, destruiu sítios arqueológicos e inundou parte da reserva indígena Waimiri-Atroari. A Hidrelétrica de Balbina libera três milhões de toneladas de CO² por ano (o mais abundante dos GEE, sendo nesta escala, o mais daninho de todos), e o fará durante 20 anos, enquanto que uma termoelétrica a gás libera em média 0,35 milhão de toneladas por ano (NOVAES, 2000). Assinalese que estes custos ambientais não se justificariam nem mesmo por presumidos benefícios em termos de abastecimento energético: Balbina gera um mísero quilowatt por hectare alagado, sendo seu potencial energético insuficiente para abastecer Manaus, a capital do Amazonas, que em tese atenderia. Outro aspecto pertinente neste arrolamento, é que a proliferação indiscriminada de barragens é em si mesma, elemento determinante da diminuição da oferta dos recursos hídricos, em razão da elevação das taxas de evaporação e destruição dos próprios sistemas naturais provedores de água doce. Este fenômeno é alçado a proporções verdadeiramente dantescas na República Popular da China. Além de encaminhar a construção da maior hidrelétrica do mundo, a das Três Gargantas 50, recorde-se que a China reúne 46% das barragens no Em razão da experiência acumulada pela engenharia nacional na construção de grandes barragens, a empresa brasileira FURNAS Centrais Elétricas SA participa deste 50 2 287 mundo (Vide CMB, 2000). O protagonismo dos projetos chineses de construção de barragens é incontestável: Em 1900, não havia no mundo barragens mais altas do que 15 metros. Por volta de 1950, havia 5.270, duas delas na China. Trinta anos depois havia 36.562, das quais não menos de 18.820 na China (VILLIERS, 2002: 179). Para complicar, sequelas derivadas do gigantismo desmesurado e inconsequente dos planejadores do setor elétrico implicam, de uma maneira ou de outra, na concentração de águas que anteriormente, estavam parcimoniosamente distribuídas no meio natural. Existe farta documentação atestando que amiúde, os megaprojetos hidrelétricos, incensados pela propaganda oficial, interferem cedo ou tarde nos ciclos hidrológicos das bacias hidrográficas, comprometendo suas características, como a velocidade e a vazão das águas dos rios. Ocorrem também deterioração ambiental devido aos desmatamentos, defaunação e inutilização de terras agrícolas com a instalação de linhas de transmissão; perda de acervos históricos, paisagísticos e culturais; potencialização da concentração de sedimentos; e para completar, alterações nos microclimas locais. Paralelamente, as barragens hidrelétricas são responsáveis por solapar equilíbrios físicos e biocenóticos de importância imprescritível para a manutenção dos recursos hídricos, afetando diversas formas de vida dos cursos dos rios, e de modo particularmente direto, a ictiofauna e as populações ribeirinhas dependentes da pesca. polêmico empreendimento. As proporções monumentais desta represa, são patentes quando se sabe que o lago artificial de Três Gargantas, com capacidade de acumular 40 km³ de água, alterará a rotação da Terra, prolongando a duração dos dias em 0,06 microssegundos devido ao represamento de imensas massas líquidas pela barragem. 2 288 Sendo assim, em face do número considerável de problemas gerados pelos projetos hidrelétricos, as populações atingidas em todo o mundo têm se organizado na defesa dos seus espaços de vida. Recorde-se que o Brasil contabilizou em 2005, mais de duas mil barragens construídas em todo território nacional, responsáveis pelo alagamento de uma extensão de 34 mil km² (a título de comparação, Alagoas cobre 29.107 km²), acarretando o deslocamento de mais de 1 milhão de pessoas. E apesar da enormidade destes números, nada disto parece sensibilizar os órgãos governamentais em esmorecer a construção de novas represas 51. Não admira então que no país, os embaraços provocados pela construção de hidrelétricas tenham movido a formação do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), movimento social considerado, ao lado do seu congênere indiano, como um dos mais vigorosos de todo o mundo. Recorde-se que mesmo nos países centrais, caso dos Estados Unidos, a conscientização dos infortúnios provocados pelos barramentos indiscriminados dos rios suscitou mobilizações inéditas solicitando a desativação estas obras, consideradas contrárias aos interesses vitais da população 52. Em solo estadunidense, a era da edificação de represas parece ter virtualmente cessado de existir. Embora posicionando-se desde o Século XIX como um dos líderes mundiais na construção de represas, Informações divulgadas em 17/06/2005 pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), davam conta de que até 2008, outras 100.000 pessoas seriam deslocadas no Brasil pela construção de represas (nota postada no site do MAB). 52 Caberia admoestar que esta tendência deve ser acompanhada com cautela. Muitos setores do ambientalismo sugerem que o lobby da indústria nuclear seria beneficiário direto da desativação e demolição das barragens. Retenha-se que o nuclear tem expandido sua capacidade geradora nas últimas três décadas e seu potencial para influenciar decisões governamentais corre no mesmo sentido. 51 2 289 hoje os Estados Unidos lideram o desmantelamento das represas: “O país está desativando mais do que construindo a cada ano, e já removeu pelo menos 465 delas, consoante um estudo da American Rivers, Friends of the Earth, e da Trout Unlimited. A França e outros países estão seguindo o mesmo caminho” (RUNYAN, 2001: 31). Apresentadas no alvorecer da modernização como marco do “crescimento econômico” e da “vitória do homem sobre a natureza”, as barragens, obras reconhecidamente emblemáticas da ascendência dos humanos sobre o meio natural, ingressaram no novo milênio marcadas por estigmas e pela indignação pelos problemas que tem suscitado. Porém, não se pode esquecer que este tipo de planta energética não constitui o único vetor de dilapidação e comprometimento das águas doces. Contradizendo difundido senso comum, um poderoso agente de danos aos corpos aquáticos está compendiado por termoelétricas. Neste aspecto, anote-se que em inúmeros segmentos sociais, está sedimentado o parecer de que estas centrais, tendo por base a produção de energia a partir da queima de combustíveis fósseis, dispensariam a utilização de água para o seu funcionamento. Este pressuposto transitou com muita tranquilidade nas polêmicas relacionadas com o “apagão” durante o ano de 2001, quando então, uma forte corrente de opinião advogou a criação de termoelétricas enquanto alternativa válida às hidrelétricas, visto serem entendidas como pouco ou nada dependentes do caudal fluvial e da pluviometria. Todavia, a despeito do mencionado senso comum pelo qual as hidrelétricas são consideradas consumidoras por excelência de água, 2 290 e que as plantas termoelétricas, pelo contrário, poupariam recursos hídricos, cumpre salientar que a termoeletricidade também se destaca como ávida devoradora do líquido. Fato largamente desconhecido pela opinião pública, as termoelétricas requisitam água em diversas etapas da sua operação. Dentre estas, podemos citar a geração de vapor, refrigeração e manutenção do sistema, e isto, numa proporção considerável. Não é de se admirar, portanto, que as termoelétricas ocupem posição privilegiada na relação dos grandes consumidores de água em diversos países, incluindo nesta observação os países do Norte que estão às voltas com o problema do estresse hídrico. Faria sentido, portanto, analisar a partir de um registro recente e tecnicamente fidedigno (LANNA, 2002: 543), cômputos que ilustram estas afirmações: ➢ O consumo de água pelas termoelétricas constitui nos Estados Unidos, a segunda maior atividade de consumo de água doce (726 m³/hab./ano), perdendo por pouco apenas para a irrigação, a primeira colocada (774 m³/hab./ano). Alerte-se que tais dados são por sua vez significativamente superiores aos relativos ao abastecimento urbano (218 m³/hab./ano) e do consumo das indústrias (128 m³/hab./ano). Neste último caso, constate-se que o parque fabril é o último item da pauta de consumo do país mais industrializado do mundo; ➢ Além da nação norte-americana, muitos outros países seriam exemplos da enorme demanda hídrica das centrais termoelétricas. Na República Federal da Alemanha, tais instalações lideram na abdução de água (534 m³/hab./ano), índice muito acima do consumo urbano (79 m³/hab./ano) e industrial (30 m³/hab./ano); 2 291 ➢ Identicamente, na França as termoelétricas detêm a liderança (395 m³/hab./ano), relegando o abastecimento urbano a um modesto segundo lugar (108 m³/hab./ano), sucedido pela agricultura irrigada (87 m³/hab./ano) e pelo uso industrial (79 m³/hab./ano), padrão que é repetido em países com matriz termoelétrica (LANNA, idem). Nesta sequência, perceba-se que além de utilizarem recursos hídricos em larga escala, há que serem considerados os impactos indiretos das termoelétricas nos corpos d’água, como os relacionados com as deposições ácidas. Atente-se que deposição úmida se refere às chuvas, nevoeiro ou neve ácidas. Por sua vez, a deposição seca refere-se aos gases e partículas ácidas. Fato pouco conhecido, quase metade da acidificação da atmosfera decorre da deposição seca, não tendo necessariamente como vetor, as precipitações pluviométricas. Em muitas regiões industrializadas as deposições ácidas secas, e não os nevoeiros, chuvas e as neves ácidas (todos pertencentes à categoria das deposições úmidas), correspondem ao “carro-chefe” da acidificação do meio ambiente. Deste modo, a chuva ácida constitui um dos fenômenos relacionados com as deposições ácidas, e não necessariamente a mais frequente. Assinale-se também que em seu stricto sensu, toda chuva é ao menos levemente ácida, pela ação da combinação com o dióxido de carbono do ar (Vide LEWGOY, 1986: 58/59). Obviamente, em nada isto se compara com a acidificação promovida pelo industrialismo, diretamente responsável pela entrada em cena das deposições secas. Desta maneira, tanto as chuvas quanto os ventos constituem fatores de acidificação do ambiente, difundindo gases e partículas 2 292 ácidas sobre edificações, automóveis, moradias, vegetação e corpos aquáticos em geral. Suas consequências para a saúde humana e o meio ambiente são tremendas e isto, sem contar os danos para a economia, também notórios e indiscutíveis. Veja-se que os depósitos ácidos, mesmo quando solubilizados pelas chuvas e tempestades, as águas resultantes do contato com substâncias acidificantes terminam por transferir o problema para áreas mais distantes. Nesta linha de argumentações, uma vez que as termoelétricas utilizam combustíveis fósseis para gerar eletricidade, tais instalações o fazem de modo a emitir enorme quantidade de enxofre e de óxidos de nitrogênio, ambos indissociáveis da gênese de substâncias ácidas na atmosfera. Deste modo, as termoelétricas são um foco potencial da acidificação dos recursos hídricos, que em razão das dinâmicas atmosféricas, indexaria ao mapa de riscos deste processo, inclusive os corpos d’água localizados a uma distância considerável destas. Os vínculos existentes entre estas instalações e a deposição ácida na massa líquida dos rios, lagos e mares, também seria origem, num segundo momento, da infiltração e contaminação dos reservatórios subterrâneos, constituindo, pois um fato preocupante a reclamar claro posicionamento por parte da sociedade. Registre-se ainda dentre os efeitos negativos das termoelétricas para a preservação das águas doces, os decorrentes da mineração do carvão e da prospecção dos hidrocarbonetos, matérias primas energéticas mais comumente utilizadas por estas instalações. Por exemplo, a indústria petrolífera lança mão do método de injetar água nos poços, pressionando os lençóis de petróleo visando maximizar a produção, procedimento que além de retirar água do ciclo hidrológico, 2 293 promove a contaminação do líquido. No tocante às minas de carvão, estas trazem à tona volumes descomunais de água altamente salina típica dos veios carboníferos, indiscriminadamente lançada no meio ambiente. Posteriormente, tanto o beneficiamento do petróleo, quanto do minério de carvão, reclama um quinhão adicional de impactos nos recursos hídricos. Neste recorte, direta ou indiretamente, o funcionamento e a expansão das termoelétricas repercute diretamente na qualidade das águas doces, conformando-se como importante fator de aceleração da escassez. Por isso mesmo, é possível considerar que os recursos hídricos estarão muito mais protegidos com o concurso da revisão da matriz energética do que simplesmente substituindo hidrelétricas por termoelétricas. Neste sentido, deveríamos agregar na discussão que conjuga os recursos hídricos e a matriz energética, a reflexão sobre os impactos provocados pelas formas através das quais a energia é consumida, que se tornam, sem que disto o cidadão comum se dê conta, em instrumentos da malversação dos recursos hídricos. Confira-se, por exemplo, a questão referente às pilhas comuns. Esse artefato, contendo metais pesados como o cádmio, chumbo e mercúrio na composição, estimula, por extensão um enorme potencial de danos ambientais. Deveras, as pilhas têm sido alvo de orientações minuciosas quanto ao seu descarte final, procedimentos legais que entretanto, reclamam fiscalização para terem efetividade. No caso do Brasil, a Resolução nº. 257 do Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA), tecnicamente em vigor desde 30-06-1999, prescreve a proibição do lançamento de pilhas e baterias pós-uso a céu aberto, tanto em áreas urbanas quanto rurais; proíbe seu despejo em corpos 2 294 aquáticos e áreas sujeitas a inundação; interdita a combustão em ambiente aberto, assim como em instalações inadequadas; de resto, obriga as empresas a criarem serviços de reutilização, reciclagem ou de destinação final adequada para este resíduo. Entrementes, estas diretivas legais têm sido ignoradas, abrindo, pois caminho para a liberação de quantidade assombrosa de substâncias tóxicas no meio ambiente. Outro caso paradigmático poderia ser endereçado às lâmpadas fluorescentes. Fato bastante conhecido, este modelo de iluminação é mais econômico do que as lâmpadas incandescentes convencionais, reduzindo entre 70 a 80% a demanda por energia. Esta peculiaridade tem sido frisada pelos fabricantes e como estratégia adotada pelo comércio para incentivar as vendas do produto em nome do uso racional de energia. Por estes motivos, o item conquistou em 2001, prestigiada reputação diante da ameaça do “apagão”, gerando uma demanda tão alta naquele momento, que para ser atendida, teve que apelar para a importação, inclusive com isenção de impostos. Afinal, economizar energia seria pelo mínimo, uma forma de preservar um fornecimento ameaçado de interrupção. No entanto, aspecto raramente recordado é que cada lâmpada fluorescente contém em média 15 miligramas de mercúrio metálico, um metal pesado malfazejo. Por si só, esta quantidade é desprezível. Porém, multiplicada por milhões de unidades, torna-se um perigo real. Liberado na forma de vapor toda vez que o invólucro da lâmpada é rompido, o mercúrio possui ação tóxica e afeta o sistema nervoso, sendo que, aliás, a falta de critério na ruptura das lâmpadas, é uma das mais nocivas injúrias ao meio ambiente e à saúde pública. 2 295 Não por acaso, a legislação ambiental norte-americana classifica as lâmpadas fluorescentes como um resíduo perigoso, estando, pois, sujeitas a uma legislação especial. Na Alemanha, as leis determinam que estas lâmpadas precisam ser moídas, embaladas, enterradas e lacradas para sempre em minas abandonadas. Outros códigos legais europeus repetem esta preocupação por meio de recomendações específicas, severas e contundentes. Nas grandes cidades europeias, faz parte do cenário urbano observar o trabalho de pequenos veículos e de profissionais especializados recolhendo de tempos em tempos, maços de lâmpadas fluorescentes dispostas em espaços demarcados nas ruas para encaminhá-las a um confinamento em local seguro. O Brasil, embora descarte entre 100 e 150 milhões de lâmpadas fluorescentes, não possui nenhuma legislação proibindo a disposição destas lâmpadas no lixo domiciliar, inerte, hospitalar, comercial ou industrial. Para exemplificar a respeito da gravidade desta situação, pode-se anotar que na cidade de São Paulo, o consumo anual oscila entre 8 e 10 milhões de lâmpadas fluorescentes por ano, um total que corresponderia à assombrosa soma de 31.950 lâmpadas por dia útil (Cf. Dossier Limpurb: A Questão das Lâmpadas Fluorescentes, 2000). Em si mesmos, estes números sugeririam a implantação imediata de serviço de coleta específica e destinação adequada para as lâmpadas fluorescentes. No que importa diretamente ao tema central deste texto, esta discussão é inerente às características do próprio produto. Conforme assinalado, quando fendidas, as lâmpadas liberam mercúrio metálico, sendo que o destino desta substância nociva será, cedo ou tarde, um corpo aquático, quando não rios, lagos ou reservatórios destinados ao 2 296 fornecimento de água “potável”. O volumoso e quase inacreditável monturo de lâmpadas descartadas torna-se assim, mais uma nefasta contribuição para o comprometimento do acervo hidrológico nacional. Caberia, pois indagar: ao se utilizar lâmpadas fluorescentes sem o amparo de medidas ambientalmente corretas de disposição final dos resíduos, estar-se-ia, no final das contas economizando o que, água ou energia? Ou estaríamos, na realidade, malbaratando os dois recursos? Em resumo, propor uma política de uso inteligente de cada gota de água disponível prescreveria não só a aplicação de estratégias, tal como sublinhado pelo jargão técnico, de conservação e energética, mas do mesmo modo, a revisão do modelo de geração, distribuição e acesso à energia. Na ausência deste horizonte conceitual, qualquer proposição visando resguardar a água doce e de utilização racional dos recursos hídricos na interface com a questão energética, perde eficácia operacional em termos da saúde pública e do meio ambiente. Isto posto, a mitigação dos impactos sobre os recursos hídricos tendo por base a requalificação da matriz energética, sugeriria várias medidas, colocadas no transcorrer de muitos posicionamentos (Cf. SEVÁ, 1990: 19), mas nem por isso, menos atuais. Tais seriam: ➢ Maximização do aproveitamento das reservas energéticas disponíveis; ➢ Endurecimento da legislação relacionada com o consumo energético dos equipamentos domésticos e industriais; 2 297 ➢ Implantação e expansão de programas de conservação de energia nas residências, indústrias e em todos os campos da atividade econômica; ➢ Revisão do modelo industrial, cessando os privilégios que sustentam a industrialização de produtos eletrointensivos, como seria o caso, em particular, do alumínio; ➢ Implantação de programas de educação ambiental e de projetos de coleta seletiva de lixo (CSL), preferencialmente os primeiros antecedendo a implantação dos segundos; ➢ Redução e controle da poluição do meio ambiente, com o estabelecimento de normas adequadas para a disposição final de resíduos que, como no caso das lâmpadas fluorescentes, possam comprometer a saúde humana, o meio ambiente e os corpos d’água; ➢ Opção preferencial pela construção de barragens de pequeno e médio porte, desativando-se os planos voltados para megabarragens. A saber, anote-se que a hidroenergia das barragens de âmbito local é menos dispendiosa do que o aproveitamento energético do vento, da geotermia, das marés e do Sol; ➢ Adoção, incentivo e investimentos para a investigação de fontes menos poluentes e alternativas de geração de energia, caso das células de combustível, do gradiente térmico oceânico, das marés, da energia maremotora, solar, biomassa e da energia eólica. 2 298 Quanto à energia solar e a biomassa, seria meritório destacar o potencial brasileiro no concernente a estas duas fontes de energia, maximizado pela articulação que do ponto de vista dos dinamismos naturais, as irmana de modo irretorquível. O Brasil é a maior “nação solar” do planeta: seu território recebe por dia o equivalente à energia gerada por 320.000 hidrelétricas do porte de Itaipu. Simultaneamente, nenhuma outra nação detém supera o Brasil em água, contrapartida indispensável para a formação de hidratos de carbono da biomassa, que é justamente fruto do entrosamento do Sol com as águas. Estas duas potencialidades poderiam assegurar um novo modelo energético para o país, que sendo renovável e sob controle nacional, garantiria plena autonomia energética, fato que ademais, apontaria para uma inserção potencialmente diferente do país junto à ordem global (Cf. VASCONCELOS et VIDAL, 2001: 11 e 20. Quanto ao álcool carburante, ver ANDRADE, 1994). Circa merita, repensar a utilização da energia também significa sopesar tecnologias apropriadas para as finalidades desejadas. Por exemplo, deve-se patrocinar a adoção de sistemas de aquecimento doméstico preferencialmente com base na energia solar, que possui custos ambientais bem menores. O Brasil, segundo consta, é o único país do mundo que universalizou o chuveiro elétrico, sendo que os investimentos necessários para garantir a instalação de apenas um destes dispositivos, são da ordem de US$ 8.000. Logo, a substituição dos sistemas de aquecimento com base na energia elétrica, pode redundar numa formidável economia orçamentária e, além disso, em forte diminuição dos impactos ambientais (DIAS, 2003: 529). 2 299 Arrematando a discussão, permite-se anotar que uma sociedade preocupada em garantir acesso universal à água por parte da atual geração, assim como das próximas, deve também ser uma sociedade voltada para a conservação de energia e otimização dos processos de produção e consumo energético. Nada do que foi exposto poderá alcançar sucesso dispensando uma urgente revisão dos padrões de consumo vigentes e do estilo de vida contemporâneo, calcado em padrões manifestadamente perdulários e em absoluta contradição com o ambiente, reforçados por flagrantes dicotomias sociais. Neste senso, mais do que uma crítica enragé, qualquer avaliação permitiria adjetivar como iníquo o quadro mundial de consumo de energia. A nação-líder do planeta, os Estados Unidos, reúne somente 5% da população mundial, mas consumia em 1988 quase 30% da produção global de energia. Neste mesmo lapso de tempo, a África, cuja população é cerca de três vezes a dos EUA, consumia apenas 3% da energia planetária 53. Pois então, a repetição deste modelo, ostensivamente marcado pela desigualdade, seguramente implica em ampliar a escala de constrangimentos ambientais, e em paralelo, os de índole social. Nos inícios dos anos 1980, o físico alemão Wolfgang SASSIN ponderava, em paper disponibilizado pela UNESCO, que a solução do problema energético estava se tornando cada vez mais uma corrida contra o tempo (Cf. 1981: 12), cuja fruição, impõe avaliar que a crise energética está relacionada à crise dos recursos hídricos, disto 53 US Energy Information Administration, WorldWatch Institute e BP Amoco statistical review of World Energy (ano-base de 1998), in revista National Geography, março de 2001, pp. x/xi. 3 300 decorrendo a impossibilidade dissociar a questão da água da questão da energia. Por isso mesmo, a questão dos recursos hídricos constitui caminho privilegiado para repensar os desafios colocados pela matriz energética, compatibilizando duas problemáticas que admitem, em uníssono, substantivar uma solução. 6.2. ÁGUA E PRODUÇÃO DE ALIMENTOS Como se sabe, o consumo de água no mundo contemporâneo expandiu-se de modo incessante. Paralelamente, esta demanda tem sido confrontada com uma exiguidade cada vez maior do recurso. Uma vez que, a rigor, inexiste qualquer possibilidade de ampliação do estoque natural das águas a disposição dos humanos, a necessidade de repensar o uso dos recursos hídricos se impõe por si mesma. Certamente, esta observação poderia com muita tranquilidade ser dirigida à produção de alimentos. Afinal, em razão com o que foi explicado, a agropecuária é responsável pela “parte do leão” da utilização dos recursos hídricos mundiais, em média 70% do total (Cf. REBOUÇAS, 2004: 9). Deixar de enfocar o papel da produção de alimentos, inviabilizaria não só a compreensão do problema dos recursos hídricos, como principalmente a sua resolubilidade, que se apruma como pauta prioritária para o conjunto da humanidade já nos próximos anos. Nesta ordem de considerações, sinaliza um relatório da ONU: ...À medida que aumenta a população e crescem as economias, a água vai convertendo-se em um recurso 3 301 mais escasso e valioso. Em muitos países, a competição entre a agricultura, a indústria e os núcleos urbanos pelos recursos hídricos já está limitando as iniciativas de desenvolvimento (FAO, 1996). Em particular, a agricultura irrigada, em função de notáveis taxas de expansão e pela importância crescente que desempenha para a oferta de alimentos, ocupa um papel central na discussão sobre as águas doces. Confirmando esta asserção, note-se que entre o ano de 1800 e os dias que correm, a superfície irrigada no mundo cresceu aproximadamente trinta vezes. Compreensivelmente, uma tendência no sentido de concatenar a escassez de água no mundo como decorrente pura e simplesmente da irrigação é bastante sedutora, consignada em muitas avaliações. Porém, a bem da verdade, relacionar mecanicamente escassez do líquido com a agricultura irrigada pode endossar juízos precipitados, como o equívoco de outra locução comentada neste texto, vinculando o problema do acesso à água com o mero crescimento populacional. Possivelmente, o primeiro quesito a ser problematizado seria não propriamente a irrigação, mas sim a forma perdulária com que esta prática tem sido levada adiante no mundo. Um detalhe que chama a atenção dos pesquisadores é a onipresença de métodos de notória baixa eficiência, utilizados inclusive em países assenhoreados pela escassez de água. Uma ilha de excelência neste quesito, o Estado de Israel e seus métodos de irrigação por gotejamento, monitorados on demand em tempo real por sensores e redes informatizadas, é a rigor, uma notória exceção num quadro crivado por desperdícios de todo o tipo. 3 302 Na prática, imperam sistemas arcaicos operando com base em elevado patamar de perdas, evaporação e infiltração descontrolada. Dentre as técnicas consideradas perdulárias em recursos hídricos, poder-se-ia citar a irrigação superficial, os sistemas autopropelidos e os de pivô central, este último, uma autêntica norma do agronegócio na América Latina e nos continentes africano e asiático. No Brasil, relativamente ao esbanjamento de água pela agricultura, ...deve-se considerar que sobre cerca de 93% dos quase três milhões de hectares irrigados no Brasil, ainda se utilizam métodos de irrigação menos eficientes do mundo, tais como o espalhamento superficial (56%), pivô central (19%) e aspersão convencional (18%) (REBOUÇAS, 2004: 43). Matematicamente, o que transparece com clareza, é que existe algo de verdadeiro na ponderação de técnicos da área de recursos hídricos pela qual, não ocorre propriamente uma crise de água, mas antes, uma crise de gerenciamento do recurso. Julgamento repetido em seminários e simpósios, é evidente que caso fosse poupada uma fração aceitável de 10% da água utilizada na agricultura, então a escassez de água potável no mundo virtualmente deixaria de existir, detendo a ofensiva do império da sede e das mazelas da falta d’água. Mas, esta equação tentadora é incompleta quando recordamos que o dinamismo social não é redutível à contabilidade. Caso assim o fosse, não existiria fome no Brasil e tampouco problemas com acesso à terra e de moradia, pois não existe carência de alimentos, sequer de solo agrícola ou de terrenos nas cidades. Arrematando, em face dos estoques hídricos do país, também não haveria sede. Por esta exata razão, importa aos preocupados com a questão dos recursos 3 303 hídricos, conhecer os dados culturais, políticos, sociais, econômicos, técnicos e ambientais que entrelaçam a temática da água com a da produção e consumo dos alimentos, decodificando-as numa ótica não fragmentada, com lupa a focalizar os dissensos que os fenômenos do mundo social mantêm entre si. Este quadro mais detalhado pode contribuir na identificação dos motes que condicionam a disputa cada vez mais acirrada pela posse das águas azuis. Conforme diagnosticado, em futuro bem próximo, “os usuários de água para fins doméstico e industrial vão competir cada vez mais com a agricultura irrigada, principalmente em algumas regiões da Ásia e da África” (SALATI, LEMOS et SALATI, 2002: 49). Esta problemática conquista complexidade quando se sabe que a expansão da agropecuária, no geral afetando ambientes que dantes constituíam reservas de umidade, contribui para reforçar fenômenos como os da aridez e da escassez de águas doces, embaladas pelo acirramento das mudanças climáticas, a atingir com mais incisividade as nações pobres, justamente o grupo de países que tem despontado nas estatísticas como importadores líquidos de cereais, que em parte, procede da agricultura tecnificada de economias afluentes do Norte como a Austrália e os Estados Unidos. Nesta perspectiva, o que se tem à frente é um quadro degradado das condições ambientais, atado a conflitos, disputas e contradições sociais, políticas e econômicas. Esmiuçando este ponto, salienta a australiana Lorraine ELLIOTT, especialista em ecopolítica e direito ambiental internacional: Estas nações, as quais são comumente tidas como as mais afetadas pelos impactos das mudanças climáticas, 3 304 como as mudanças de temperatura, pela elevação do nível dos oceanos, pelas alterações nas zonas agrícolas, pelo possível incremento acelerado das condições meteorológicas, pelas variações dos estoques de águas e dos suprimentos pluviométricos, constituem as nações mais pobres do mundo, cujos ecossistemas já estão degradados e cujas economias e infraestruturas são menos flexíveis e menos adaptadas face à degradação ambiental (1998:227). Dado que a agropecuária responde por percentual significativo do consumo planetário de água, uma ponderação fundamental (apesar de frequentemente esquecida), é o instigante exercício de se avaliar o custo hídrico dos alimentos. Apenas satisfazendo esta preocupação é que se pode tomar conhecimento da complexidade e a dimensão real desta problemática, até porque, no tocante à continuidade da vida humana, a água é consumida muito mais através da alimentação do que pelo simplório ato da dessedentação. Na sequência desta explanação, seria, pois, condizente recordar a avaliação do engenheiro Antonio Eduardo LANNA, ressalvando que 1 m³ de água potável é suficiente para suprir a necessidade biológica de dessedentação anual de um indivíduo e que outros 100 m³ anuais em média, dariam conta dos propósitos domésticos (2002: 534). Uma vez mais, deve-se recordar que a porcentagem consumida para o uso residencial das águas globais, não passa, estatisticamente, dos 10% do montante total. Exatamente por conta do que foi exposto, esta aferição impõe conclusivamente que não será controlando as torneiras no âmbito doméstico que a crise dos recursos hídricos encontrará solução. Por extensão, deve-se centrar as atenções nas atividades que reclamam 3 305 para si, na escala planetária, o essencial das águas doces. Com base neste exercício, evocam-se então nexos que calçariam uma avaliação crítica das interações mantidas entre a agropecuária e a questão dos recursos hídricos. Neste particular, é preciso primeiramente deter as atenções no consumo de água pela agropecuária. Para a agricultura, uma gorda literatura confirma a proporção maximalista de água tradicionalmente solicitada pelo meio rural. Exemplificando, a produção de um quilo de trigo reclama o suprimento de 900 litros de água. Para produzir um quilo de milho, são necessários 1.400 litros. Um quilo de arroz implica em 1.910 litros. Quanto à criação de animais, um quilo de carne de frango solicita 3.500 litros e a carne bovina, pressupõe na melhor das hipóteses, vultosos 16.193 litros para cada quilo produzido, quantum requerido tomando por base uma pecuária zootecnicamente high-tech quanto ao consumo do líquido. A pecuária bovina pode ainda alcançar a fabulosa quantia de 100.000 litros de água para cada quilo no caso da criação extensiva funcionando com escassos ou nulos apensos tecnológicos, ou mesmo, cifras superiores a esta (Cf. SHUVAL, 1998 ARMAND, 1998 e também PIMENTEL, 1997). Procurando assimilar o significado destes dados, assinale-se que os 100.000 litros de água requisitados para produzir 1 quilo de carne bovina equivalem a 100 caixas d’água residenciais, o que de chofre, já significa muito líquido. Pois bem, recordando que uma caixa d’água 3 306 acumula 1 m³ de água, qual seja, um milhar de litros do líquido 54, isto significa que a produção de cada quilo de proteína bovina equivaleria ao volume de 100 m³ d’água, dado perturbador quando se sabe que a falta de água assola milhões de pessoas, que dispõem no dia a dia bem menos do que uma fração deste volume. Uma outra forma de contabilizar este montante é sopesar que esta quantidade de água é suficiente para uma pessoa tomar banho de ducha durante quatro anos e oito meses e banho de imersão durante um ano e sete meses. Por conseguinte, poupa-se mais água deixando de comer meio quilo de carne do que se isentando de tomar banho durante um ano inteiro. Para além dos impactos propriamente hídricos, a pecuária bovina insere sequelas para a saúde humana. Estudos desenvolvidos nas últimas décadas têm demonstrado que o mundo ocidental se alimenta com uma dieta excessiva em proteína, gorduras saturadas com colesterol, pesticidas e pouquíssima fibra. Este tipo de cardápio, cujo esteio é em larga medida gabaritado pela proteína bovina, ocasiona portentosos custos médicos, farmacêuticos e de saúde, matando as pessoas e destruindo o ambiente. Este padrão alimentar, identificado com as sociedades urbanas e opulentas do Norte, é responsável pelo desaparecimento da pequena propriedade e avanços do latifúndio e da agricultura industrializada, nunca beneficiando o trabalhador rural. Além disso, dentre outros impactos socioambientais, a produção de carne, tendo por pressuposto a criação de animais, igualmente implica na produção de dejetos. A criação confinada em cocheiras O comércio de materiais de construção também disponibiliza modelos que armazenam 500 litros de água, isto é, 0,5 m³. 54 3 307 geralmente abarrotadas transforma as modernas instalações de criação de animais em verdadeiras “cidades sem esgoto”, com uma geração de estrume em tal proporção que se torna difícil dispensá-lo com segurança. O esterco é um produto orgânico altamente poluente, podendo gerar a falência dos cursos d’água em razão da DBO (Demanda Bioquímica de Oxigênio). A pecuária suína insere, neste particular, aspectos bastante preocupantes. Isto porque um litro diário de dejetos de porco polui tanto quanto a mesma quantidade de fezes de cem pessoas. Neste sentido, e tomando por base o município de Concórdia, situado em Santa Catarina, temos que as 250.000 cabeças de gado suíno da região, geram tanta poluição orgânica quanto uma cidade com 25.000.000 habitantes. Nesta mesma linha de argumentação, o Oeste catarinense, abrangendo uma área de 30.000 km² e formado por 60 municípios, ao concentrar um plantel de 3.000.000 de porcos, impactaria o meio natural no tocante aos excrementos, tanto quanto uma concentração de 300.000.000 de pessoas (TELLES, 2002: 327), total equivalente a mais do que o dobro dos habitantes do populoso Bangladesh no ano de 2005 55. Existem também implicações relacionadas, por exemplo, com a disponibilização do produto para o consumidor final. No caso da carne, o processamento nos matadouros e frigoríficos tem por précondição um volumoso consumo de água. Na preparação da carne de aves são necessários 25 litros por quilo e no caso dos suínos, 1.200 litros por quilo. No caso do frango, as granjas brasileiras já trabalham 55 De acordo com várias estimativas, a população do Bangladesh alcançou em julho de 2005, o total de 144.319.628 habitantes. 3 308 com metas otimizadas, mas que ainda assim são altas: nada menos do que 14 quilos de água por quilo de carne. Quanto aos bovinos, estes consomem 2.500 litros para cada rês abatida. Além dos custos hídricos na higienização e processamento das carcaças, os rejeitos aquosos dos matadouros, caracterizados por alta DBO, presença de sólidos suspensos e materiais graxos, são uma fonte inegável de preocupações (SILVA et SIMÕES, 2002: 357 e BRANCO, 2002: 228). Outro dado, é que lado a lado com a agropecuária, a aquicultura igualmente se destaca enquanto atividade consumidora de água. A aquicultura é um termo relativamente amplo, podendo ser entendido como o cultivo de animais ou vegetais que requisitam ambientes aquáticos para seu desenvolvimento (BORGHETTI et OSTRENSKY, 2002: 459). A atividade engloba o cultivo de peixes, répteis, ostras, mexilhões, algas, abalones, ouriços do mar, anfíbios, lagostins e de camarões, sendo esta última atividade, conhecida como carcinicultura 56. Nesta acepção, a terminologia piscicultura (regularmente utilizada como sinônimo de aquicultura ou aquacultura), se restringiria aos criadouros em ambiente confinado dos peixes, que, aliás, geralmente correspondem à maior parte das espécies cultivadas. Seria aceitável sublinhar neste momento, o consumo de recursos hídricos solicitado pela agricultura e pecuária poderá entrar em futuro próximo em contradição com as demandas da aquicultura. Diante da destruição dos meios aquáticos que tradicionalmente tem fornecido a proteína dos peixes e de criaturas marinhas, lacustres e fluviais à população humana, a produção aquícola tende a se tornar um forte concorrente na disputa pelas águas azuis disponíveis. A respeito da criação confinada de camarões, considerado o ouro rosa desta atividade, conferir os comentários precisos e alarmantes de Joan Martínez ALIER (passim, 2005). 56 3 309 Mais um impacto é a introdução de espécies estrangeiras, que escapando das fazendas de aquicultura e dos pesqueiros recreativos invadem os ambientes nativos, eliminando ou causando a retração da ictiofauna local. Este seria o caso da tilápia, peixe africano introduzido no Brasil e que tende a dominar as águas nas quais é lançado. A dimensão econômica alcançada pela aquicultura pode ser mais bem avaliada na eventualidade de se frisar que na atualidade, um em cada três peixes degustados pela população mundial é proveniente de fazendas de piscicultura. No setor, ocupa posição de destaque a República Popular da China, país em que uma plêiade de instalações responde por cerca de 90% da produção mundial do setor. Na escala global, a expansão da aquicultura tem promovido a desaparição de mangues, alagadiços e pântanos 57, que cedem espaço para os criadouros de peixes e camarões. A criação confinada uma vez mais reforça a tendência em encarcerar a água em sistemas produtivos fechados, tendência que se torna inevitável diante da destruição do recurso no meio natural livre (Vide também CMMAD, 1988: 151/152). Deve-se também atentar para os dados relativos para impactos correlatos acarretados pela produção de alimentos nos recursos hídricos. Neste entendimento, podemos arrolar: ➢ No Brasil, apenas quanto ao item dessedentação, os rebanhos são responsáveis por 5% da água consumida no país, sendo que deste total, o gado bovino absorve cerca de 93%, dos quais a região Centro-Oeste é responsável pela terça parte do consumo (Cf. TUCCI, HESPANHOL et NETTO, 2001: 60); Outro caso bastante conhecido é o da piscicultura israelense, que surgiu ao custo da destruição dos pântanos do Hule, situados no Norte desta nação. 57 3 310 ➢ Em congruência com o que foi colocado, a produção de carne, ao relacionar-se diretamente com criadouros de animais, significa também produzir dejetos. Os restos orgânicos dos rebanhos, além de contaminarem profundamente os cursos d’água, contribuem para com o aquecimento global, dado que emitem metano, um potente GEE; ➢ Um aspecto importante do consumo de água reside no quesito produção de bebidas e refrigerantes. Contando com uma legislação corporativista atuando a seu favor, os fabricantes oferecem bebidas engarrafadas a um preço mais baixo do que água mineral ou mesmo do que o leite. Acatando esta lógica perversa, cada mexicano ingeria em média nos anos 1990, uma quantidade três vezes maior de refrigerantes do que de leite, apesar deste último ser mais barato e nutritivo (DELPEUCH, 1990: 109); ➢ Aspecto também negligenciado nas discussões de alimentos, é o custo energético que envolve a fabricação e a distribuição dos alimentos, envolvendo um percentual energético tem expandido por conta da refrigeração e refeições de consumo rápido, caso dos pratos congelados e legumes pré-cozidos; ➢ Na sequência ao item anterior, na contabilidade da energia deve ser incorporado o input energético das embalagens, cuja difusão caminha paralelamente ao fortalecimento do modo ocidental de vida. Recorde-se que enquanto nos Estados Unidos a indústria processa de 70 a 90% dos alimentos, esta porcentagem cai para 70% no caso da Europa e para um percentual entre 10 e 30% para os países subdesenvolvidos, métricas que obviamente implicam em diferentes 3 311 perfis energéticos no que respeita à comercialização da produção alimentícia (DELPEUCH, 1990); ➢ Neste prisma, embora a energia empregada na agricultura represente somente 2% do total em um país como a França, a atividade alimentar como um todo, desde a fabricação de adubos até o consumidor final, reivindica entre 16 e 17% do total da energia consumida neste país. Por conseguinte, não há, de fato, como se desvencilhar da questão da alimentação dos aspectos pertinentes à água e à energia (Ver a respeito DELPEUCH, 1990: 43); ➢ A importância dada pelos ocidentais ao consumo de carne e de vegetais cultivados fora da estação é uma influência palpável no acréscimo do input energético dos alimentos. De resto, os alimentos “viajam” cada vez mais nos países afluentes: cerca de 2.100 km em média nos Estados Unidos (Cf. SILVA, 2003); ➢ Ademais, articulando os aspectos mencionados com a questão do comportamento alimentar, não haveria como deixar de pensar na repercussão ambiental promovida pela alimentação. Visando ilustrar este ponto, nada melhor do que as clarividentes palavras do geógrafo Josué de CASTRO, que no seu célebre “Geografia da Fome”, assim discorreu sobre o assunto: Nenhum fenômeno se presta mais para ponto de referência no estudo ecológico destas correlações entre os grupos humanos e os quadros regionais que eles ocupam, do que o fenômeno da alimentação - o estudo dos recursos naturais que o meio fornece para subsistência das populações locais e o estudo dos processos através dos quais essas populações se 3 312 organizam para satisfazer as suas fundamentais em alimentos (1965: 15). necessidades Levando-se estas premissas em consideração, admita-se então albergar na contabilidade relacionada com os impactos provocados nos recursos hídricos, os derivados das opções culturais. Estas incorporam considerável importância, e não podem, de forma alguma, serem negligenciadas. Para tanto, assinale-se que a pauta alimentar é um dado cultural que conquista materialidade com base em gostos e sabores socialmente preceituados, condicionando deste modo, o perfil do consumo de água. Não por outra razão, senão pelo fato objetivo de que toda e qualquer pauta culinária necessariamente implica em um input hídrico igualmente específico. Desta forma, temos que o consumo de água via alimentos variará enormemente em função do universo cultural, pois deste decorre a pauta alimentar das sociedades humanas. Exemplificando, enquanto que nos Estados Unidos a produção da dieta californiana típica reclama 2.200 m³/per capita/ano (dos quais 64 % são encaminhados para a produção de carne), na Tunísia, nação norte-africana, metade deste volume, ou seja, 1.100 m³/per capita/ano (dos quais somente 27% estão voltados para a produção de carne), são suficientes para alimentar satisfatoriamente os habitantes deste país (FAO, 1996). Seria interessante recordar que a tonificação do modelo ocidental de alimentação, o qual igualmente associa-se um padrão de afluência social, é normalmente acompanhado de uma demanda adicional de água. Recorda a respeito o ambientalista Lester BROWN, 3 313 ...à medida que as pessoas ascendem na cadeia alimentícia e passam a consumir mais carne bovina, suína, aves, ovos e laticínios, consomem mais grãos” (…) “Uma dieta americana rica em produtos pecuários requer 800 quilos de grãos por pessoa por ano, enquanto as dietas na Índia, dominadas por uma alimentação básica de amidos como arroz, caracteristicamente necessitam apenas de 200 quilos. O consumo quatro vezes maior de grãos por pessoa significa igual crescimento no consumo de água” (2001). Face ao exposto, é necessário repensar não apenas a questão do modelo gastronômico ocidental, fortemente apoiado no consumo de proteína de origem animal, como também nas tensões ambientais provocadas por este padrão, alheio aos impactos inerentes a sua forma de relação com os insumos ecossistêmicos 58. Todavia, saliente-se que apesar dos problemas gerados, o que se pode perceber é a difusão ampliada da pauta alimentar afluente. O consumo de proteína bovina tem sido respaldado por intermédio de cadeias de lanchonetes fast food, cujas metas mercadológicas estão marcadamente voltadas para a difusão do sanduíche de hambúrguer 59, dos refrigerantes e da batata frita. Configurando pela primeira vez na história um sistema dedicado a oferecer lanches rápidos numa escala global, estas redes difundem hábitos de consumo que corroem os padrões culinários locais, sem 58 Neste particular, o meio rural tradicional de muitas regiões do mundo encontrou soluções ambientalmente mais eficientes do que as adotadas pelo padrão moderno de agropecuária. Na Índia, por exemplo, registram-se prescrições contrárias ao descarte do esterco bovino em corpos líquidos. A utilização dos dejetos animais como fonte de energia, atenuou o problema da contaminação do ambiente e a transformação das florestas em lenha. 59 Assinale-se que em alguns países, as “multinacionais do sanduíche” tiveram que adaptar seus produtos em função de restrições religiosas locais. No caso da Índia, substituindo a carne bovina pela de porco. 3 314 serem, do ponto de vista qualitativo, necessariamente melhores do que estes últimos. Estas questões conquistam caráter geopolítico quando se percebe a íntima articulação entre a questão alimentar e a influência exercida pelo colonialismo. Corrobore-se que em países historicamente marcados pelo mando colonial estrangeiro, a pauta alimentar reproduz padrões impostos pelos colonizadores, articulados com averbações sociais, econômicas e políticas. Os aspectos históricos exercem, nesta contextualização, papel determinante nas opções culinárias de povos, grupos e pessoas. Estes contribuem, por exemplo, para compreender a razão do porquê da Somália, parte qual constituiu ex-possessão italiana que jamais se sobressaiu na produção de massas, ser uma nação consumidora de espaguete e o porquê do Brasil, ex-colônia portuguesa, importar azeitonas e azeite de oliva em tonelagem substancial, sem em contrapartida posicionar-se como país olivicultor de vulto. Esta propensão encontra confirmação no meio urbano de muitas nações do Terceiro Mundo. As urbes da periferia, sendo fortemente influenciadas pelos padrões culturais das antigas metrópoles e por excelência, consistindo no espaço de vida das elites dominantes, caracterizam-se por uma pauta alimentar absolutamente diversa dos camponeses do interior, que ainda se atém aos padrões culinários tradicionais, enraizados na realidade local e que geralmente, são ambientalmente mais sadios e equilibrados. Tomando como exemplo Dacar, capital do Senegal, os cidadãos desta urbe africana, influenciados pela cultura da França, a exmetrópole, consomem uma média de 10 kg de milho miúdo, 77 kg de 3 315 arroz e de 33 kg de farinha de trigo. Pari passu, o cardápio dos seus conterrâneos do campo requisita respectivamente um meão de 158 kg, 19 kg e 2 kg destes mesmos produtos (DELPEUCH, 1990: 63). Necessário recordar, esta ocidentalização, e uniformização, dos gostos gastronômicos contou, para além da influência cultural das exmetrópoles, com a estratégia do “auxílio alimentar” encaminhado para regiões do Terceiro Mundo. Basicamente de origem norte-americana, a doação de alimentos, concretamente materializa um procedimento que reforça a demanda por produtos importados (DELPEUCH, 1990), alterando a pauta nutricional das populações agraciadas com este auxílio. Inevitável comentar, através da oferta de alimentos gratuitos ou oferecidos politicamente a baixo custo, esta estratégia transplantou novos hábitos alimentares nos países periféricos, criando mercados consumidores dantes inexistentes. Novamente reportando a Dacar, metrópole senegalesa na qual a baguette preparada com farinha de trigo tornou-se um verdadeiro ícone culinário, cereais como o painço, o sorgo e o milhete, tradicionalmente apreciados na Senegâmbia, passaram a representar menos de 10% do consumo dos metropolitas, fato que de resto, condiz ao motto de que a cidade, seria a “Paris da África Ocidental” (DELPEUCH, 1990: 99). A mais ver, nos últimos anos, muita tinta tem sido gasta na crítica ao modo ao padrão alimentar e culinário ocidental e ao lado disso, a imprensa tem sido inundada com artigos advertindo quanto ao paradoxal avanço da obesidade em um mundo faminto, fato que à luz da lógica do concreto, ata-se tanto ao colonialismo cultural, quanto às 3 316 modalidades de utilização da água que primam por ignorarem o uso equilibrado e eficiente do líquido. Assim, uma vez que discutir alimentação reporta a discutir água, e, dada a magnitude do consumo dos recursos hídricos na produção de alimentos, vale a pena, por fim, frisar que mais do que fechar a torneira é necessário ponderar a respeito do padrão de alimentação adotado, assim como formas de produção, distribuição e preparo dos alimentos. Inexistindo uma estratégia que construa cenários incorporando as complexidades do equacionamento da questão dos recursos hídricos e da alimentação, fica comprometido o êxito de planos e de políticas preocupadas com a preservação das águas. Como está implícito nas considerações tecidas por este texto, a técnica, modalidades do uso do solo e a incoercível pressão do poder econômico imprimem sua marca na questão da alimentação e dos recursos hídricos. No entanto, uma mudança de perspectivas sugere que ao lado das variáveis citadas, que se faça sentir a necessidade uma nova forma de usufruir a água, de observá-la nos alimentos. Dispensando essa preocupação, a crise hídrica pode até mesmo ser atenuada no curto e no médio prazo por conta de outras estratégias. Porém, com certeza continuará sem solução no longo prazo. A perdurabilidade dos recursos hídricos constituiria, praesumptio juris et de jure, o cerne de condutas movidas pela preocupação com a disponibilidade de água doce para as sociedades humanas. Razão 3 317 adicional para se repensar a conexão existente entre as águas doces e os alimentos. 6.3. ÁGUA E INDUSTRIALIZAÇÃO Dado que a competição pelo acesso às águas doces disponíveis têm se recrudescido cada vez mais e sabendo-se que algo entre 24% dos recursos hídricos são destinados para as manufaturas, importa tomar conhecimento dos diversos perfis de demanda do líquido por parte deste segmento da economia moderna. A preocupação justifica-se porque mesmo sendo o consumo do parque industrial menor que o da agropecuária, desde o início da revolução industrial as solicitações do líquido pelas maquinofaturas se avolumam incansavelmente. A este respeito, recorde-se que, tal como para a agropecuária, não há nenhuma atividade industrial que prescinda da água. O líquido é fundamental para o funcionamento dos sistemas de refrigeração, lavagem de tanques e caldeiras, cocção e hidratação dos insumos. Qualquer produto oriundo das indústrias pressupõe um input hídrico para ser elaborado ou processado. Mas, tal como acontece com a produção rural, a importância dos recursos hídricos para os parques industriais impregnou muito pouco o imaginário social. Daí a sugestão de amealhar alguns comentários visando ilustrar este aspecto. 3 318 Neste sentido, os dados relacionados com a atividade industrial quase sempre revelam elevada proporção de dependência para com os recursos hídricos. Basta tomar ciência dos prontuários arrolados a seguir: a fabricação de cerveja consome de 4 a 7 litros de água para produzir 1 litro da bebida, rapidamente consumida numa festa ou restaurante; para produzir 1 kg de açúcar, são consumidos 100 litros; no caso da gasolina, 1 litro do combustível corresponde, em geral, a um promédio de 10 litros de água; no caso do papel, 1 kg do material implica na abdução de 250 litros de água (ARMAND, 1998). O biólogo e engenheiro Samuel Murgel Branco expõe por sua vez outros dados, igualmente reveladores do papel fundamental que a água ocupa nas atividades industriais: os alimentos em conserva requisitariam de 7 a 35 m³ de água para cada tonelada produzida; numa refinaria de petróleo, são gastos 18 litros do líquido para cada litro de petróleo processado; na fabricação de fibras sintéticas, são consumidas entre 375 e 835 m³ por tonelada; no tocante à borracha sintética, esta requisita de 83 a 2.800 m³ por tonelada; finalmente, nas lavanderias, são utilizados de 20 a 50 m³ de água para cada tonelada de roupa lavada (BRANCO, 2002: 228). A metalurgia, basicamente entendida pelo senso comum como atividade consumidora de energia, é uma insaciável consumidora de água. Assinalam os engenheiros Gil Anderi da Silva e Reinaldo Augusto Gomes Simões, que o trabalho de extração dos metais dos seus minérios, ricos em óxidos e carbonatos, implica num elevado consumo de água na etapa do beneficiamento primário, que ocorre em seguida à extração do minério. 3 319 Mais adiante, os processos metalúrgicos continuam a solicitar água. No caso do aço, é reclamado m volume entre 100 e 500 m³ por tonelada. Nas coquerias, a água utilizada para resfriamento do coque e dos gases é da ordem de 170 a 580 litros para cada tonelada de carvão processada e no trato e recuperação dos gases voláteis, são consumidos entre 75 a 95 litros (SILVA et SIMÕES, 2002: 361). Existiria também uma menção obrigatória envolvendo o consumo de água pela produção do alumínio. Este material, ocupando o topo no ranking dos bens exigentes em água, solicita para sua fabricação extraordinário input hídrico: 100.000 litros para cada quilo produzido (ARMAND, 1998), Deste modo, grande parte dos produtos finais que saem das indústrias caracteriza-se pelo intenso consumo de água. Acredita-se que sejam necessários 400.000 litros de água para produzir um único automóvel (Vide BARLOW et CLARKE, 2003: 9). Mesmo computando exclusivamente as etapas finais da montagem dos veículos, em razão da indústria automobilística operar com um amplo leque de materiais já processados (portanto materializando input hídrico pretérito), estas também consomem muita água. Deste modo, descontando a água já incorporada nos metais, vidros, plásticos, tintas, pneus e borrachas de vedação, um automóvel médio apresenta um custo hídrico de aproximadamente 700 litros de água por unidade produzida. Por esta exata razão, a fábrica da Fiat localizada na cidade de Betim (MG) apesar dos avanços técnicos incorporados ao processo produtivo, consome mensalmente tanta água quanto uma cidade de 60.000 habitantes (FREITAS, 1998). 3 320 Destas ressalvas não escaparia a chamada indústria high tech, de alta tecnologia, incensada por diferentes correntes de opinião, inclusive as preocupadas com o meio ambiente, como sendo uma “indústria limpa”. Mas, contrariamente ao imaginado, este segmento da economia moderna utiliza grandiosos volumes de água ionizada para fabricar aparelhos e equipamentos, e por esta razão, requisita incessantemente novas fontes do líquido. Trocado em miúdos: os gadgets tecnológicos têm por legado uma impressionante carga de poluição dos recursos hídricos. Atualmente, o Vale do Silício, na Califórnia, acolhe mais locais de assentamento de resíduos tóxicos registrados pela Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos (Environment Protection Agency, ou EPA), do que qualquer outra área daquele país. Este levantamento indica nada menos do que 150 locais de contaminação dos lençóis freáticos. As empresas de alta tecnologia seriam responsáveis ainda, por 50% da contaminação da água subterrânea de Phoenix (Arizona), polo da indústria tecnológica e dos seus arredores, comprometendo o abastecimento da população urbana (BARLOW et CLARKE, 2003: 9). Não fosse suficiente, aos dados do consumo industrial devemos agregar os relativos à poluição das águas de superfície. Na maioria das regiões industrializadas do planeta, os rios que percorrem os centros urbanos funcionam como lixeiras das empresas. Na maior parte dos casos, os efluentes, isto é, a carga líquida poluída lançada pelos estabelecimentos industriais, alcança as águas dos rios, lagos e dos oceanos dispensando qualquer tratamento prévio, prejudicando o 3 321 abastecimento humano e solapando o meio natural e as cadeias tróficas das massas líquidas. Por isso mesmo, a industrialização tem sido apontada como um dos principais motivos da escassez de água em muitas regiões do mundo. Recorde-se que os impactos provocados pela indústria não são restritos àqueles que acometem diretamente os corpos de água doce, podendo incluir os relacionados com o cultivo de matériasprimas. Centrando as atenções na indústria do papel, este material tem solicitado como fonte de celulose, a madeira oriunda de florestas homogêneas de eucalipto, cultivado em regiões que dantes eram cobertas por matas nativas, inclusive a título de sequestrar o carbono e contribuir com a mitigação do aquecimento global e a preservação do meio ambiente (passim ALIER, 2005). No entanto, além de afetar as formas de vida locais, a silvicultura baseada no eucalipto é extremamente exigente em água, implicando no drástico rebaixamento dos lençóis freáticos e aridificação do solo. Por isso mesmo, associações camponesas em todo o mundo têm resistido à expansão deste cultivo. Num episódio umbrátil, datado de agosto de 1983, milhares de lavradores de Karnataka (Sul da Índia), revoltados com os menoscabos do plantio homogêneo do eucalipto, “marcharam em massa para o viveiro florestal e arrancaram milhões de mudas de eucalipto, colocando em seu lugar sementes de tamarindo e de manga” (SHIVA et BANDYOPADHYAY, 1991: 65). 3 322 Contemporaneamente, a implantação de novos polos industriais em espaços periféricos localizados no Brasil, México, China, Malásia, Índia, Tailândia, África do Sul e Indonésia, além da expansão dos já existentes, acirrará a disputa pelos estoques remanescentes de água azul. Esta inferência é comprovada por estudos indicando que o setor industrial, avançando sem o amparo de qualquer cautela ambiental, tem se apropriado dos corpos aquáticos tradicionalmente destinados aos cultivos. Evidência que ninguém contesta, a produção agrícola, ao constituir, na comparação com a indústria, atividade que incorpora menor valor agregado, recuou em muitos países diante da avidez das indústrias pelos recursos hídricos. Pelo visto, o recrudescimento das tensões hídricas é inerente à tendência de expansão dos polos fabris. Alavancada pela logística hídrico-intensiva de um sistema que alicerça a hegemonia do setor, o labor industrial, além do viés limitante da crise hídrica, bate de frente com os ditames da reprodução biológica dos humanos. Repetindo o que foi colocado parágrafos atrás, não é possível alimentar-se de metais, plásticos e de materiais manufaturados. Dado que as indústrias, persistindo a atual tendência de crescimento, reclamarão, antes de 2025, a duplicação do quantum que lhes cabe no consumo total do líquido (BARLOW et CLARKE, 2003: 8), um panorama povoado de prognósticos sombrios pode ser radiografado por qualquer observador mais atento. 3 323 Não seria improcedente recordar os violentos distúrbios ocorridos em 1993 em Delhi, capital da Índia, provocados pela precariedade do abastecimento, fazendo as torneiras roncarem. Em Daca, no vizinho Bangladesh, os urbanitas sublevaram-se sem aviso prévio em 1999 contra as autoridades, indignados com a falta de água para beber 60. Sintomaticamente, estes enfrentamentos revelam em si mesmos as limitações da economia-mundo num momento em que esta se confronta com as necessidades humanas mais elementares: água para dessedentação e água para alimentação. Em síntese, mesmo sabendo-se que o mundo moderno seria impensável descartando a industrialização e a sua capacidade inata em multiplicar bens, há também que ser lavrado o comentário de que estes processos se dão em um mundo no qual a escassez de água já é uma realidade, a qual tende, inequivocamente, a agravar-se cada vez mais. O ponto pacífico é que os processos industriais, ao menos da forma como foram concebidos e desenvolvidos, não poderão ser mantidos. Será necessário não só atenuar impactos, mas também repensar os modelos tecnológicos hídrico-intensivos, apontando para uma nova forma de convívio com o ambiente natural. Neste sentido, a indústria pode oferecer contribuições positivas, adotando, por exemplo, práticas conservacionistas na utilização de águas de qualidade inferior. Ao lado de medidas gênero end-of-pipe, Paradoxalmente, Bangladesh integra um seleto grupo de países considerados ricos em água doce, avaliação esta, de mote quantitativo, referência que não implica na oferta de líquido de boa qualidade para as solicitações humanas de base. 60 3 324 como estações de tratamento que livram previamente as águas dos resíduos antes de despejá-las nos rios (Vide PEREIRA, 2002: 99), a reciclagem habilita uma redução de consumo de material virgem num promissor porcentual de 50% ou mais, com a vantagem adicional de diminuir a carga poluidora da produção (SELBORNE, 2002: 36). Estes avanços são patentes na experiência do parque fabril da Alemanha Ocidental. Neste país, a reciclagem da água descartada pelas indústrias (iniciada nos anos 1970), não obstante a expansão da produção, permitiu manter um nível de consumo praticamente idêntico dos recursos hídricos durante mais de vinte anos (BARLOW et CLARKE, 2003: 278). Recorde-se que, conforme sugerido nos parágrafos anteriores, os processos de transformação industrial não necessariamente exigem recursos hídricos com grau de pureza elevado. Podemos resgatar o conceito formulado pelo Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, segundo o qual, “a não ser que exista grande disponibilidade, nenhuma água de boa qualidade deve ser utilizada para usos que toleram águas de qualidade inferior” (citado in REBOUÇAS, 2004: 31). De resto, deve-se lembrar que a redução do consumo de água bruta pode recorrer à substituição das tecnologias tradicionais, dentre estas, a substituição da água nos processos de resfriamento pela injeção de ar, que minimizam de modo extraordinário a utilização de recursos hídricos (Ver a respeito, SILVA et SIMÕES, 2002: 351/353). 3 325 No entanto, a despeito da existência de modelos tecnicamente exequíveis, viáveis e eficientes na otimização e minimização do uso de recursos hídricos, sublinhe-se, contrariando o otimismo de grupos de especialistas, que estes não tem sido incorporados pelo segmento industrial na velocidade desejada. Conduta aparentemente contraditória num mundo às portas de um colapso hídrico sem precedentes, esta incorpora, acertadamente, uma lógica sistêmica que a justifica. Logo, seria pertinente indagar as razões desta resiliência, pois no final das contas, as “ecotécnicas”, embora concretamente exequíveis, não são adotadas, convocadas, quando muito, exclusivamente quando não há nenhuma outra forma de manter em operação os circuitos de produção já existentes. Neste momento, seria obrigatório frisar que nenhuma qualificação técnica é, em si mesma, consagradora da sua aceitação ou de sua difusão social. Nunca, em nenhum lugar e em época alguma, virtudes abstratas conseguiram se impor ignorando os mecanismos sociais existentes. Analisando por este ângulo, pressupor uma materialidade social imanente para as técnicas, incorreria pelo mínimo, nos riscos inerentes a um “idealismo” cabalmente despropositado. Deste modo, ressalve-se que qualquer tecnologia inédita, aparte sua viabilidade técnica e operacional, reclama ambientação histórica, social e política que habilite sua materialização junto a concretude social e ao mundo econômico real. Que fique então sublinhado: na ausência destes pressupostos nenhuma nova criação do espírito humano encontra sua devida materialidade. 3 326 Tais considerações, no tocante ao uso dos recursos hídricos pela indústria, são particularmente verdadeiras quando recuperamos uma questão que tem perpassado ao longo de todo este texto, remetendo à forma de reprodução do sistema. Os primados que governam os mecanismos centrais do sistema de engenharia da modernidade, em correspondência com o que foi exaustivamente explanado, têm por substrato medular a velocidade, a transitoriedade e o tempo do capital, inferências que condicionam diretamente suas formas de reprodução material. Com base nesta aferição, estará o setor industrial fadado a se tornar não um fator de prosperidade e de bem-estar para o homem, mas sim, em um elemento desestabilizador da sociedade humana? Tal indagação, que pode ser endereçada a quaisquer outras ações de intervenção do homem no meio natural, não poderia deixar de estar emaranhada com os ditames civilizatórios no seio dos quais, a industrialização encontrou abrigo e sustentação. Motivo adicional para registrarmos nos capítulos que seguem, evitando assim conclusões precipitadas, lineamentos para aprofundar a compreensão da problemática apontada ao longo do capítulo que ora estamos a finalizar. 3 327 CAPÍTULO 7 RECURSOS HÍDRICOS E RESÍDUOS SÓLIDOS 7.1. RESÍDUOS SÓLIDOS: UM PROBLEMA CRESCENTE Contrariamente à água, percepcionada de modo culturalmente positivo pelo conjunto das culturas humanas, raras hermenêuticas evocam significados e afetações tão negativadas quanto o vocábulo lixo. Fato notório, lixo reportaria, junto ao imaginário social, a toda sorte de substâncias sujas, inúteis, contaminadas e/ou repugnantes. Uma vez incomodando, oferecendo desconforto estético e perigos latentes ou imediatos às coletividades humanas, o lixo deve então, e por definição, permanecer longe do convívio das pessoas. Não por acaso, a presença de sobras amontoadas nas calçadas ou nas áreas que carecem de coleta adequada é interpretada como indício de apartação social, desmazelo dos moradores, carência de gestão e de depreciação imobiliária. Nos lugares nos quais os descartes são depositados de modo irregular, ou seja, em espaços coloquialmente definidos pelo cidadão comum como “lixões”, são comuns os deslizamentos, as enchentes, os odores pestilentos, focos de doenças, de insetos e a nidificação de insetos e animais estigmatizados, caso emblemático das ratazanas, 3 328 baratas e dos urubus 61. Nesta ordem de considerações, o lixo tornouse sinônimo de itens, petrechos e bugigangas imprestáveis, fadadas a serem colocadas longe da vista das pessoas o mais rápido possível. Lado a lado com as abjeções que povoam o imaginário social, os enormes volumes de materiais descartados que dia a dia entopem as lixeiras e contaminam o meio ambiente, transmudaram a gestão dos resíduos num desafio de primeira grandeza em praticamente todos os países e em todas as cidades do globo (POSTIGLIONE, 1992). As montanhas diárias de resíduos são um problema presente numa escala verdadeiramente planetária, presente numa gama de espaços que se estende desde as mais faustosas metrópoles até os remotos assentamentos de populações tradicionais. Não constituísse esta sentença uma realidade, ao menos as paragens esquecidas e ermas do planeta estariam a salvo de serem entupidas com lixo. Porém, mesmo no ponto culminante da Terra, o pico do Everest (Nepal/Tibete), no Himalaia, desde a base da montanha até o cume, calcula-se que existam centenas de toneladas de sobras a denunciar a passagem do homo occidentalis: latas de alimentos em conserva, tubos de oxigênio, utensílios, ferramentas, plásticos, cordas, roupas e minudências em geral. Notadamente, fatores de ordem cultural interferem na maledicência ou aversão pura e simples devotada a estes seres. As formigas, por exemplo, convivem nos lixões com as baratas, os pombos com os ratos, e as garças, com os urubus. No entanto, isto não impede que a formiga seja percepcionada como “amante do trabalho”; o pombo, que está vinculado pelo cristianismo ao espírito santo, é bem-visto; quanto à garça, esta seria uma “ave elegante”. Assim, formigas, pombos e garças, a despeito de idênticas no convívio com a sujeira com outras espécies (e inclusive, até mesmo num grau mais pronunciado do que as baratas, ratos e urubus), terminam positivamente qualificados junto à natureza idealizada que domina o imaginário social. Claro sinal do quanto as imagens mentais, ou a fenomenologia dos signos que pesam na percepção do mundo natural, por certo, fazem valer um caráter seletivo imposto às imagens coladas à natureza. 61 3 329 No Arquipélago das Pitcairn, um isolado grupo de ilhas situado na Oceania e distante por completo de qualquer rota de navegação 62, um pesquisador britânico, que lá desembarcou em 1991 para coletar e pesquisar a entomofauna local, ficou indignado com a quantidade de restolhos ao léu nas praias do atol. Em relatório encaminhado para uma Organização Não-Governamental (ONG), o cientista registrou volumoso achado de 953 objetos, que taxonomicamente, incluía, por exemplo, 171 recipientes de vidro, 25 calçados, 2 cabeças de boneca e uma bombinha de asma. No total, atualmente o mundo gera a cada dia, dois milhões de toneladas de resíduos sólidos domiciliares (RSD). Com base neste dado, chega-se ao portentoso resultado de 730 milhões de toneladas por ano. Jamais na história da humanidade descartou-se tamanho volume de tralhas, objetos e substâncias. As proporções assumidas pelos resíduos gerados pela produção e o consumo são de tal ordem, que o geógrafo francês Jean Gottman não titubeou em referir-se à época atual não como uma glamourosa “Idade do Aço”, “do Petróleo”, “da Energia Nuclear” ou “da Conquista da Lua”, mas sim, como a Era do Lixo ou do Refugo (Vide QUAINI, 1979: 142). Como seria permitido antecipar, a progênie dos rebotalhos é absolutamente dessimétrica, modalizada de acordo com indicadores culturais, políticos, sociais e econômicos. Neste recorte, o destaque d’un petit comité de economias na produção mundial de rebotalhos, Situado a meio caminho entre a Nova Zelândia e a América do Sul, este arquipélago se enquadraria no que é geograficamente definido como finisterra (BRETON, 1990: 33/34). Estas ilhas isoladas foram ocupadas entre os Séculos IX-XV d.C. pelos polinésios, cuja colonização soçobrou em virtude de descompassos ecológicos (Vide DIAMOND, 2005: 153/170). Em 1790, quando lá aportaram os amotinados do Bounty em fuga da justiça naval britânica, a ilha estava carente de qualquer habitante. 62 3 330 que como seria esperado, pertencem ao grupo dos países centrais, é um fato inobjetável. Por exemplo, os Estados Unidos são responsáveis por 230 milhões de toneladas de descartes por ano, representando 31% do total dos rebotalhos domiciliares gerados no mundo (Figura 11). Este volume, somado com a contribuição do Canadá e dos países Europa ocidental, totaliza um fabuloso percentual de 56% do lixo global (Cf. GRIMBERG, 2002). Conclusão inevitável, nos países do hemisfério norte a média de geração de resíduos por habitante é bastante superior à dos países do Sul. No Canadá a média é de 1,9 kg por pessoa/dia e nos Estados Unidos, 1,5 kg/pessoa/dia. Outrossim, no Brasil, este volume se reduz para 0,7 kg/pessoa/dia, e na Índia, para 0,4 kg/pessoa/dia. Em meio aos segmentos sociais menos favorecidos, este índice pode baixar para 0,3 kg/pessoa/dia ou até menos. Em geral, nos países pouco industrializados, a média oscila entre 0,4 e 0,9 kg/pessoa/dia (Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), para o ano de 1995, tal como citados em GRIMBERG, 2002. Quanto às características dos RSD no Brasil e no exterior, vide FIALHO, 1998: 59/63). Outra observação pertinente é que a substancialização dos lixos apresenta um vínculo explícito com o estilo ocidental de vida. A forma de reprodução sistêmica deste padrão civilizatório, caracterizando-se por uma incessante requisição dos insumos naturais, é, em si mesma, um fator que outorga a todos os componentes do sistema, mesmo que de modo desigual e acatando diferentes sequenciamentos, uma parcela de responsabilidade pela proveniência dos refugos. 3 331 FIGURA 11 - Descarte de lixo domiciliar nos Estados Unidos. Observe-se o predomínio de itens da fração seca, entremeados na massa dos resíduos (Foto: POSTIGLIONE, 1992: 19) 3 332 Assim, embora os resíduos sejam majoritariamente gerados por reduzido conjunto de nações ricas, afluentes e perdulárias, a questão da destinação dos resíduos também conquistou gravidade na periferia do mundo global, especialmente nas áreas metropolitanas. Neste particular, assinale-se que na América Latina, mais de 100 milhões de toneladas de refugos residenciais são ejetados anualmente, total que corresponde a cerca de 13% do total mundial (Cf. GRIMBERG, 2002). A escalada do descarte de resíduos assumiu tal proporção, que nas décadas finais do Século XX o mundo assistiu ao surgimento de um tipo inédito de deslocamento internacional: o envio de lixo dos países centrais para sítios localizados no Terceiro Mundo (CMMAD, 1988: 253/254). O assunto, dada sua manifesta notoriedade, tornou necessária uma legislação internacional voltada para normatizar a disposição das sobras em locais diferentes daqueles nos quais foram gerados. Daí o surgimento da Convenção da Basileia (1989), preocupada em regulamentar a movimentação dos lixos e inclusive, seu tráfico transfronteiriço. Até junho de 2002, 151 países haviam ratificado a convenção. Entretanto, ainda que seis dos países pertencentes ao G7 (o bloco das nações mais industrializadas do planeta), tivessem ratificado o tratado, os Estados Unidos, o campeão mundial na ejeção de refugos, ainda em 2005 se recusavam a endossar o documento. No que evidencia limitações objetivas dessa convenção, embora a maioria das nações tenham firmado a Convenção da Basileia, isto não significa que estejam se empenhando em efetivamente brecar o tráfico ilegal de sobras, que prossegue à revelia das determinações 3 333 legais. No ano de 2004, mais de 50% do total de resíduos perigosos produzidos no primeiro mundo foram transferidos para os países periféricos (VEIGA, 2004: 73). Na realidade, a simples existência da Convenção da Basileia, embora definindo um referencial para discutir o problema, obviamente não o solucionou. Existem brechas que permitem justificativas para o trânsito de resíduos, até mesmo a título de prover a indústria da reciclagem de matéria prima. Exemplificando, o Brasil é signatário da convenção, ratificada desde 16/06/1992. Todavia, isto não impediu o país de tornar-se alvo da polêmica importação de pneus descartados. As previsões para 2005 estimam que serão importados 11 milhões de unidades 63. Acredita-se que em 2006 a questão irá se acirrar tanto no Brasil como em nível global, pois neste ano, a Europa proibirá a desova de pneumáticos em aterros e o continente terá 80 milhões de pneus/ano para descartar, protegidos pelo anonimato de itens que constituindo marcas globais, podem ter sido produzidos nos mais variados países. Além disso, países como a China continental adotaram políticas de permissionamento pago para recepcionar resíduos, que em 1997, somou uma montanha de aproximadamente 11.000.000 de toneladas, descartes no geral, oriundos do Primeiro Mundo, que para complicar, mantêm taxas incessantes de ejeção de lixo (DIAMOND, 2005: 443). Embora não constitua resíduo perigoso, os pneus provocam diversos estorvos ambientais. Por isso, a controvertida problemática do descarte de pneus fora de uso, tem gerado inconformismo em vários segmentos de opinião e mobilizado as atenções do movimento ambientalista (Ver a respeito, ABES INFORMA, exemplar de maio/junho de 2004, página 5) 63 3 334 Agravando este problema, os rebotalhos, do ponto de vista histórico, além de observarem uma expansão em termos de volume, passaram a incorporar um número crescente de materiais novos, que foram somando-se ao montante de tralhas e itens descartados. Na medida em que os resíduos foram aumentando em quantidade e se diversificava a natureza da composição dos monturos, as soluções para o problema também conquistaram maior complexidade. Neste sentido, em nada adiantaria advogar em favor da tese de que o lixo constituiria um antigo e persistente problema para as comunidades humanas. Apesar de correto, este argumento perde força quando recordamos que na civilização moderna, contrariamente ao mundo tradicional, os materiais são largamente industrializados, consistindo de aglomerados cada vez mais artificializados. Por esta razão, pura e simplesmente possuem um tempo de permanência no ambiente muito mais amplo, resistindo à reintegração no meio natural. Respaldar esta afirmação não ofereceria nenhuma dificuldade. De acordo com comprovações coletadas de amplo leque de literatura específica a respeito dos resíduos sólidos, sabe-se que a degradação do papel no ambiente requereria pelo mínimo de 6 meses; as pontas de cigarro, de 1 a 2 anos; a goma de mascar, 5 anos; as embalagens tetrapak (comercialmente conhecidas como longa vida), cerca de 5 anos; quanto às latas de ferro, sua reincorporação ao ambiente solicitaria entre 10 e 30 anos; latas de alumínio, entre 100 e 500 anos; pilhas, entre 100 e 500 anos; sacos plásticos, entre 10 e 20 anos; os termoplásticos, entre 400 e 500 anos; as garrafas plásticas, cerca de 100 anos; quanto a materiais como a espuma de nylon e o vidro, estes demandariam lapsos indeterminados de tempo. 3 335 Assinale-se que a simples presença física de itens descartados no ambiente, além de apresentarem degradabilidade dificultosa e serem agentes de contaminação, promovem inúmeros distúrbios. Por exemplo, o entupimento dos bueiros e das canaletas de drenagem por garrafas e sacos plásticos têm sido apontados como um dos mais persistentes motivos das enchentes nas grandes cidades do mundo. Esta afirmação poderia estar dirigida ao próprio Brasil. No país, são produzidas 210 mil toneladas anuais de plástico filme para sacos descartáveis, montante que representou 9,7% de todo o lixo domiciliar do país em 2003. Abandonadas indistintamente nos logradouros, as sacolinhas plásticas, quando emaranhadas na rede de drenagem das cidades, freiam o escoamento das águas pluviais, constituindo notório fator complicador para as inundações urbanas e para o alastramento de problemas sanitários (passim TRIGUEIRO 2003). Face ao exposto, não há rigorosamente qualquer administração urbana que não tenha que se defrontar com a questão da destinação dos resíduos. Embora o Brasil possa apresentar números modestos na comparação com os países economicamente desenvolvidos, estes ainda assim seriam impressionantes. Sabe-se que são jogados nas lixeiras cerca de 62 milhões de copinhos de café todos os dias. Quanto ao papel branco usado anualmente, este seria suficiente para circundar a Terra 48 vezes pela linha do Equador e, somando-se outros tipos de papéis, poderíamos ir e voltar da Terra à Lua 25 vezes por ano. Os brasileiros igualmente descartam vultosas 4.980 toneladas de lenços e 15.000 toneladas de guardanapos de papel todos os anos (Cf. LEGASPE, 1996: 157). 3 336 Agregue-se que este inventário de descartes pode ser ataviado de apontamentos adicionais a formar um catálogo infindável e estarrecedor. No Brasil, o ato de descartar resíduos implica na geração de 130 mil toneladas de lixo domiciliar por dia. Isto é, seriam 47,5 milhões de toneladas por ano, em grande parte aguardando uma destinação adequada. Recorde-se que apenas 60% dos resíduos urbanos do Brasil são coletados, quase sempre nos bairros centrais, zonas de comércio e residenciais de maior poder aquisitivo. O resto permanece nas vias públicas, terrenos baldios, encostas, córregos e rios. Porém, mesmo quando coletado, em 88% dos 5.507 municípios brasileiros, os rebotalhos são descartados de modo inadequado. Costumeiramente, as sobras terminam desovadas a céu aberto nos lixões ou em aterros ditos “controlados”, situação que implica em óbvios impactos ambientais, dentre estes a contaminação do ar, dos lençóis freáticos e de solos agricultáveis pelos efluentes originários da degradação dos lixos. Num panorama como este, ressalve-se que tão só 451 municípios brasileiros, irrisórios 8,11% do total, desenvolvem programas de reciclagem, uma mostra supletiva da insensatez dos governantes (CALDERONI, 2003) Um tópico essencial são os encargos econômicos decorrentes do gerenciamento dos lixos, envolvendo custos nada desprezíveis, em especial quando muitos países se defrontam com carências em áreas essenciais como saúde, educação e investimentos em infraestrutura. No caso brasileiro, “os serviços de limpeza absorvem de 7 a 15% dos recursos de um orçamento municipal, dos quais cerca de 50 a 3 337 70% são destinados para a coleta e ao transporte do lixo” (Cf. CEMPRE, 2000: 45/46). A coleta de resíduos possui rebatimentos para diversos outros setores da economia. No Brasil, os serviços de coleta de lixo constituem o mercado preferencial de veículos pesados. Praticamente a cada quatro anos, a totalidade frota de coleta de resíduos do país é reposta com veículos novos (REMAI, 1991). Por fim, a lógica da geração de resíduos termina por deslocar os efeitos perversos do descarte para as áreas periféricas das cidades, exatamente as que são habitadas pelos “de baixo”. Neste sentido, um paradigmático estudo desenvolvido nos anos 1990 pelo California Waste Management Board (Conselho de Administração de Rejeitos da Califórnia), apontou as comunidades pobres, bem mais abertas ou suscetíveis às promessas de benefícios econômicos, excluídas e formadas por trabalhadores com pequena ou nenhuma qualificação, como as de menor oposição ao locally undesirable land-use, diga-se, uso localmente indesejável do solo. Não há como negar, os lixões, aterros, incineradores e áreas de desova em geral, tem localização preferencial nas cercanias urbanas, espaço de vida dos excluídos (que seja dito de passagem, são os que geram menor proporção de refugos), assim como, no que interessa à discussão em curso, de produção de água doce. Seja ressalvado algo importante: a problemática do lixo, ao afetar das mais diversas formas o dinamismo social, econômico e ambiental das comunidades, e num prisma geoespacial, o espaço habitado na totalidade dos elementos que o constituem, dificilmente poderia ser sonegada nos debates voltados para os recursos hídricos. 3 338 Detalhar e precisar melhor este foco torna-se, pois, um passo que se soma aos que já foram dados até este momento. 7.2. ÁGUA E LIXO: UMA INTERFACE PERPÉTUA Foi consignada nos parágrafos anteriores uma breve exposição sobre o lixo, alinhavando aspectos relacionados ao perfil volumétrico e gravimétrico, gastos relacionados com a sua destinação final, o complexo rol de substâncias incorporados naquilo que sobra, e os distúrbios suscitados no ambiente de vida dos humanos. Além destes pontos, importaria é óbvio, ressalvar a articulação mantida entre resíduos sólidos e recursos hídricos. Isto porque de um ponto de vista eminentemente geográfico, dissociar os dois temas poderia causar estranheza, em especial quando recordamos que de um ponto de vista espacial, ambos relacionam-se entre si. Por sinal, um relevante papel caberia à intersecção da temática dos recursos hídricos, além da condizente com os resíduos sólidos, com a da matriz energética. Formando um trinômio inextricavelmente articulado entre si, esta tríade é indissociável de qualquer estudo envolvendo estes três temários, em vista dos aspectos relacionados com cada um, condicionar menção aos demais. Sumarizando: não há como avalizar qualquer debate relevante acerca dos recursos hídricos, resíduos sólidos e matriz energética, renunciando a esta intersecção temática (Figura 12). Nesta interface, 3 339 a problemática urbana reclamaria proeminência. Afinal, o meio urbano refere-se a uma modalidade de organização do espaço identificada, mais do que qualquer outra, com a modernidade e o mundo inaugurado pela economia de mercado. FIGURA 12 - Esquema da Tríade Temática: Uma Proposição Gráfica (Cf. Waldman, 2003a) Ostensivamente, a cidade, exercendo papel de polo estaqueador da produção e da circulação de mercadorias, avoca para si, o essencial do nódulo que entrelaça os recursos hídricos, a matriz 3 340 energética e os resíduos sólidos 64. Ademais, auferindo primazia enquanto máxima emanação de um estilo de vida considerado matriz do uso perdulário dos recursos naturais, o meio urbano é o palco por excelência da geração de vasta quantidade de resíduos. O vulto territorial conquistado pelos espaços urbanos, derivando na alteração profunda de paisagens naturais inteiras, agora ocupadas por redes viárias, edificações, fábricas e obras técnicas, resulta em definitivo numa sequência de eventos nos quais o lixo repetidamente se conjuga com a problemática das águas doces. Decididamente, as estratégias de gerenciamento dos resíduos sólidos possuem vínculo umbilical com a preservação da qualidade dos recursos hídricos que abastecem as concentrações urbanas, não sendo possível, qualquer que seja a mediação, dissociar uma temática da outra. Ressalve-se que a questão dos resíduos sólidos urbanos, tem sido apontada como uma das que poderão, sem que exista nesta afirmação qualquer alarmismo, comprometer de modo irremediável o abastecimento de água no espaço urbano nacional, um verdadeiro paradoxo, pois o território do país é detentor da mais pródiga reserva de água doce do mundo. A urgência da adoção de ações para o lixo somaria, pois com esforços a serem desenvolvidos para preservar os recursos hídricos, assegurando a potabilidade e a qualificação do líquido. A este respeito, reconhece conceituado manual com foco no gerenciamento dos resíduos sólidos: A concretude desses vínculos encontra reflexo nas criações artísticas e culturais, tais como na filmografia. Por exemplo, o curta-metragem “Ilha das Flores”, dirigido por Jorge Furtado (1989), sintomaticamente localiza espacialmente um alegórico lixão numa ilha, com monturos cercados por corpos aquáticos. 64 3 341 Num futuro não muito distante, será possível defrontar-se com sérios problemas de disponibilidade de água potável e de elevação dos custos para sua adução e tratamento, sendo plausível estimar que, se nada for feito, em 10 anos, o desabastecimento poderá atingir grandes centros urbanos, como São Paulo, Recife, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e a maioria das áreas metropolitanas do país, em função da poluição e da queda de produção de mananciais e conflitos do uso múltiplo não planejado: irrigação, lazer, navegação, esgoto, etc. (CEMPRE, 2000: 8). De resto, de vez que temos presenciado o aprofundamento da crise de abastecimento de água, esta referência arroga a consecução de trabalhos operando leques de variáveis os mais amplos possíveis. Decerto, a sociedade brasileira está postada diante de um problema ambiental de primeira grandeza, cuja gravidade se acentua em razão da débil percepção de que desfruta no imaginário social. Neste senso, atentemos ao excerto que segue: Grande parte das cidades brasileiras ainda não chega ao estágio de se preocupar com a poluição dos esgotos pluviais, já que o esgoto cloacal é ainda o problema maior [...] O lixo, conjugado com a produção de sedimentos e com a lavagem das ruas, exige criativos procedimentos de combate com custos razoáveis para se evitar que, no início do período chuvoso, a qualidade dos cursos d’água seja ainda mais deteriorada. Esse processo de poluição ocorre, principalmente, na macrodrenagem das cidades. Infelizmente, os grandes investimentos hoje existentes nos programas de recuperação ambiental das metrópoles brasileiras estão ainda no estágio de reduzir somente a carga do cloacal (TUCCI, HESPANHOL et NETTO, 2001: 48). Por esta razão, o meio urbano, ao explicitar forte interpenetração das discussões do abastecimento de água potável e do saneamento 3 342 com a questão da drenagem urbana e das enchentes e destas, por sua vez, com a dos resíduos sólidos e da energia, ensejaria a adoção de um planejamento integrado, preocupado de modo simultâneo com a performance destas temáticas, todas imprescindíveis para o efetivo funcionamento do sistema de engenharia urbano, noção que deve buscar respaldo em modelos conceituais aptos a trabalhar com tais inter-relações, um debate que embora persistente, é em linhas gerais, ainda incipiente (Ver a respeito, PITTON, 2003: 44/46). Uma outra ordem de considerações, cujo palco privilegiado é do mesmo modo, a cidade, decorre do universo da produção econômica, particularmente a industrial. Com efeito, a relação simbiótica mantida pelos resíduos sólidos com os recursos hídricos, manifesta-se no ajuizado pelo qual toda sorte de bens produzidos materializa, direta ou indiretamente, um certo input hídrico. Esta demanda pelo líquido apresenta-se ao longo de todo o processo produtivo, e ademais, no suprimento energético, cujo pressuposto é, quase sempre, a água. A relevância da água pode ser conferida tomando por base a chamada Análise do Ciclo de Vida dos produtos, ou simplesmente ACV. Constituindo ferramenta conceitual por intermédio da qual, o processo de produção dos materiais ou atividades é analisado por completo, a ACV analisa a extração e o processamento de matériasprimas; sua fabricação; o transporte e a distribuição; consumo ou utilização dos produtos; e por fim, sua reutilização, manutenção, reciclagem e disposição final (SETAC, 1993). No Brasil, os princípios e a estruturação, assim como os marcos teóricos e os requisitos metodológicos para a condução de estudos 3 343 de ACV, são fornecidos pela NBR ISO 14040. Detalhes adicionais relativos às metodologias e procedimentos, estão referendados por normas complementares, tais como a ISO 14041, ISO 14042 e ISO 14043, todos se relacionando às diversas fases da ACV. Em linhas gerais, a ACV documentaria a história de um produto, envolvendo todas as etapas que induziram seu surgimento, desde a fase de obtenção das matérias primas até sua transformação em lixo. Este prisma, com base na análise funcional do inventário produtivo, é de fundamental importância para a compreensão e a minimização dos impactos ambientais. Na perspectiva da engenharia industrial, ...o mais importante efeito da aplicação do ACV é a minimização da magnitude da poluição causada por um determinado processo. A conservação de matérias primas não renováveis, como as fontes de energia, podem ser também o objetivo de uma avaliação, assim como a conservação de sistemas ecológicos em áreas sujeitas a um balanço de suprimentos delicado, como regiões onde a água é escassa. A produção de resíduos representa perda de reservas e resulta em degradação do meio ambiente (RIBEIRO, GIANETTI et ALMEIDA, 2005). Com base nestes princípios, quando, por exemplo, são realizadas pesquisas sobre os impactos ambientais dos automóveis (geralmente restritas aos indicadores de poluição decorrentes do funcionamento dos veículos), a ACV procura distinguir os efeitos causados pelo processo de fabricação, incluindo demandas por água, energia convertida, matérias primas, a produção dos componentes (peças de motores, válvulas, vidros, borrachas, plásticos, pneus, etc.) e por último, a forma como ocorre a destinação final dos resíduos. 3 344 Por conseguinte, a ACV traça uma documentação ambiental dos produtos literalmente “do berço ao túmulo”, ou considerando-se o aproveitamento do produto após sua utilização, do “berço ao berço” (Vide RIBEIRO, GIANETTI et ALMEIDA, 2005). Com base nesta premissa, é patente que em praticamente todas as etapas da produção, está presente uma demanda por recursos hídricos. É o que ocorre no primeiro estágio (extração dos insumos naturais), visando obter suprimentos brutos e seu beneficiamento primário. No estágio seguinte, usinagem e montagem dos produtos, a novo, a água segue presente. Na terceira etapa, o embalamento e o transporte atuam como abdutores diretos ou indiretos de água. Entenda-se bem: as duas últimas fases, referentes ao consumo e à utilização dos bens, assim como o descarte ou a própria reciclagem, formalizam etapas que para serem concretizadas, apelam de igual modo para o consumo do líquido. Em síntese, a simbiose dos ciclos de vida dos produtos com os recursos hídricos é de tal monta, que seria impossível concebê-lo na ausência de água (Figura 13). De resto, a interação com os recursos hídricos não cessa com a “morte” do produto, ou seja, quando o mesmo se torna um resíduo. No final das contas, toma-se por base uma sociedade geradora de enorme quantidade de rebutes. Assim, este contexto oferece variado elenco de interfaces com a questão da qualidade da água oferecida no meio urbano, sendo uma destas, justamente a que transparece por ocasião do descarte final. 3 345 A gestão dos resíduos sólidos objetivando a atenuação de impactos, requer destinação correta e confinamento seguro, nexo que compõe um pacote de tecnologias, normatizações e gerenciamento. Dentre estes, constituindo modalidades nas quais a relação com a água é mais evidente junto ao senso comum, pode-se citar a CSL, a tipologia dos aterros, os incineradores e as usinas de compostagem. FIGURA 13 - Cemitério de pneus fora de uso nos Estados Unidos. Um dia, estes pneus foram água. Agora estorvam o fluxo das águas (Fonte: DIAS, 2002a: 56/57) Mas nem sempre outras formas de monitoramento dos resíduos são percebidas no alcance que possuem quanto à preservação das águas doces. Por exemplo, a varrição das ruas e a limpeza urbana em geral, interferem de modo decisivo para a manutenção dos corpos líquidos. Será em decorrência da eficácia destes serviços que os 3 346 impactos provocados nas águas interiores pelas cargas difusas, serão maximizados, atenuados ou eliminados. As cargas difusas têm origem nas descargas pluviais, que em função da dinâmica de escoamento da drenagem urbana, lavam superfícies contaminadas por todo tipo de refugos, como telhados, bueiros e vias públicas, reunindo enorme proporção de substâncias e partículas poluentes com origem orgânica e inorgânica, uma massa líquida que termina por afetar os mananciais voltados para o consumo humano (TUCCI, HESPANHOL et NETTO, 2001: 48 et seq). Certamente, além do lixo lançado às ruas, dos restolhos deixados para trás por falhas dos serviços de limpeza, dos dejetos humanos e de animais, tal e qual do vazamento de chorume dos sacos de lixo e dos caminhões de coleta, outras interferências urbanas poderiam ingressar nas cargas difusas, comprometendo a qualidade das águas doces. Este seria o caso do trânsito de automotores, que amplifica a quantidade de resíduos nas ruas principalmente pela desagregação do pavimento asfáltico, assim como o material particulado resultante da decantação da fumaça das indústrias, catalisando uma ejeção de poluentes que potencializa os resíduos enquanto matriz fundamental desta problemática (Ver FIALHO, 1998: 59). Fato pouco conhecido, as cargas difusas, por conta da expansão da urbanização, da industrialização e da geração cada vez maior de resíduos, têm sido responsabilizadas pela maximização das cargas poluidoras nos rios e reservatórios. Estima-se que 25% da poluição 3 347 dos rios urbanos seja motivada por cargas difusas, sendo que durante o período das cheias, “a carga poluente do pluvial pode chegar até a 80% da carga de esgoto doméstico” (TUCCI, HESPANHOL et NETTO, 2001: 48). Portanto, estas não podem ser esquecidas nas estratégias e logísticas de preservação dos corpos líquidos e tampouco, secundarizadas pelo gerenciamento dos resíduos urbanos. Em conclusão, pode-se pautar na discussão sobre as interfaces entre resíduos sólidos e recursos hídricos, um trajeto que novamente associa estas duas variáveis, agora no sentido oposto, isto é, dizendo respeito aos desdobramentos do gerenciamento das águas urbanas na direção dos refugos. Este seria o caso do tratamento primário dos esgotos, conjunto de processos cuja finalidade é remover os materiais insolúveis contidos nas águas servidas. Após a passagem forçada dos esgotos por grades metálicas, estas retêm detritos como latas, recipientes, garrafas plásticas e toda sorte de petrechos, enviados posteriormente para os aterros sanitários (Vide BRANCO, 1993: 56). Quanto ao lodo residual subsequente à reciclagem das águas servidas nas Estações de Tratamento de Esgoto (ETE), este também segue para aterros ou incineradores, e isto, em enorme quantidade. Por exemplo, de acordo com dados da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (SABESP), apenas a ETE de Barueri, na RMSP, despacha cerca de 250 toneladas de lodo todos os dias. Portanto, o descarte destes volumes é um ponto nevrálgico. Sem contar que a disposição final do lodo dos esgotos chega a perfazer 3 348 60% do custo operacional das plantas de purificação, o grande volume de material despachado para os aterros sanitários contribui para abrevar a vida útil destes equipamentos, já sobrecarregados pelos refugos urbanos. Inexoravelmente, a expansão do esgotamento sanitário no Brasil ampliará os volumes de lodo encaminhados aos aterros. Mais uma vez estampando a indissociabilidade existente entre o temário da água e a dos descartes, a carência de espaços nos aterros têm sustentado denúncias persistentes de confinamento irregular de lodo residual, inclusive em áreas de mananciais. Uma forma de superar este problema seria a aplicação bruta do lodo (tecnicamente classificado como biosólido), nos cultivos. Afinal, embora a composição do lodo não apresente todos os suprimentos solicitados pelo metabolismo dos vegetais, contém macronutrientes importantes para o desenvolvimento das plantas. Assim, procurando reforçar o rendimento das colheitas, pequenos agricultores de Jundiaí e de Franca (SP), autorizam o despejo de praticamente 100% do lodo obtido das ETE da região nos cultivos. Porém, existem problemas. O lodo apresenta elevado porcentual de metais pesados e significativa incidência de patógenos, neste último caso, um claro reflexo das deploráveis condições sanitárias vigentes no país. A deposição do lodo pode provocar queda da biodiversidade dos solos, contaminar os lençóis freáticos e depósitos subterrâneos de profundidade. Em resumo, muitos são os elos que conectam reciprocamente a água e o lixo, e ambos, com a vida urbana moderna. Taxativamente, a preservação das águas doces dependerá diretamente do que vier a 3 349 ser estabelecido como estratégia de gerenciamento do lixo (SEMA, 1998). E, justamente tal somatória de problemas é que sugere uma radiografia aprofundada dos resíduos sólidos, pré-condição inerente à identificação do relacionamento desta questão com a dos recursos hídricos. Como será examinado em seguida, uma delimitação precisa dos impactos, abrindo caminho para uma clara identificação da natureza dos resíduos, das modalidades de descarte e de tratamento dos lixos, ocupa nexo central quando o foco do debate se refere à água, fato que em suma, advém, do engaste dos dois temários no constructo teórico corporificado na tríade temática. Enfocar o entrelaçamento de ambas questões interessaria, pois, por lançar luz mais abrangente quanto à complexidade de problemas que norteiam o gerenciamento das águas doces na atualidade, assim como o pródigo ciclo virtuoso propiciado por um gerenciamento ótimo dos resíduos sólidos. 7.3. CLASSIFICAÇÃO E DESTINAÇÃO DOS RESÍDUOS SÓLIDOS Consideração praticamente ignorada pelo senso comum, a terminologia lixo, dado reportar a uma variada gama de substâncias, é em si mesma genérica, e, portanto, pouco consistente de um ponto de vista técnico e teórico. Além disso, na linguagem corrente (e até mesmo na literatura técnica), esta palavra guarda sinonímia com resíduos e rejeitos, constatação que primeiramente, enseja recordar a existência de diferenciações sutis. 3 350 Certamente um arrazoado de senso comum justificaria a adoção de uma ou de outra terminologia, consoante o momento e a intenção da nossa fala. Entretanto, isto não seria impeditivo de se buscar maior precisão para ambos os termos. Semanticamente, pode-se certificar que lixo seria todo o material inútil, todo material descartado disposto em lugar público, tudo aquilo que “se joga fora”, “não presta”, ao qual se agrega longas catilinárias devotadas à sua nocividade, periculosidade e toxidade. Quanto ao termo resíduo, este designaria as sobras do processo produtivo, geralmente de origem industrial. Assinale-se também que estes dois termos podem ser tratados com base em outras acepções, consoante a visão institucional ou de acordo com sua significação econômica (apud CALDERONI, 2003: 49). No plano do jargão técnico e de gestão, de acordo com a Norma Brasileira Registrada (NBR) 10.004 da ABNT, de setembro de 1987, os resíduos sólidos seriam os refugos que se apresentam “no estado sólido, resultante das atividades da comunidade de origem: industrial, doméstica, hospitalar, comercial, de serviços de varrição e agrícola” (citada em SCHALCH, LEITE et GOMES, 1990: 150). Em igual passo, são também ínsitos nesta definição ...os lodos provenientes de sistemas de tratamento de água, aqueles gerados em equipamentos e instalações de controle da poluição, bem como determinados líquidos cujas partículas tornem inviáveis o lançamento na rede pública de esgotos ou corpos d’água, ou exijam para isso soluções técnicas e economicamente inviáveis em face a melhor tecnologia disponível (idem). 3 351 Nesta formulação técnica, tal como em muitas outras, o termo resíduo (embora não excluindo de todo o uso da expressão lixo), é amplamente utilizado, sendo costumeiro na maioria das publicações científicas. Existem, é evidente, uma série de motivos que justificam uma opção preferencial pelo termo resíduo no lugar de lixo. Todavia, dado que a precedência neste momento é discutir a classificação dos resíduos, seria suficiente manter por enquanto esta indicação prévia, entendida como patamar para detalhamentos que serão pespontados com maior precisão mais adiante. Assim, as “sobras” da civilização moderna, contrariando o senso comum, remetem a um conjunto eclético de materiais e substâncias, admitindo classificação em categorias básicas quando é adotado um crivo preocupado com a identificação da fonte geradora. Tendo por foco o funcionamento do meio urbano, os experts em lixo distinguem: os Resíduos ou Materiais Inertes, Resíduos Especiais, Resíduos Industriais, Resíduos Comerciais e os Resíduos Sólidos Domiciliares. Os Resíduos Inertes correspondem sobretudo ao entulho oriundo de demolição e da construção de obras de todos os tipos. Os inertes, normalmente compreendidos como um estorvo, podem ser de grande valia para a recomposição paisagística e recuperação de áreas como pedreiras abandonadas e regiões com solo pouco compactado, que deste modo podem ser viabilizadas como parques, áreas de lazer e equipamentos públicos. Sendo menos impactantes que os demais resíduos, a sugestão dos técnicos prescreve o encaminhamento do entulho para aterros destinados exclusivamente para esta tipologia de sobras, cujo monitoramento tem um custo mais baixo. 3 352 Quanto aos Resíduos Especiais, estes são constituídos por alimentos e fármacos com validade vencida, sobras de matadouros, materiais descartados pelas clínicas veterinárias, produtos químicos corrosivos, tóxicos e inflamáveis, e pelo chamado lixo hospitalar. Este último, é atualmente classificado como Resíduo de Serviços de Saúde (RSS), denominação que atende à lógica de que vários tipos de estabelecimentos geram restos com características similares às dos hospitais, caso das farmácias, consultórios médicos, postos de saúde, clínicas veterinárias, ambulatórios e instalações assemelhadas (Cf. MOREL, 1991). A partir de dezembro de 1987, a nomenclatura Resíduos de Serviços de Saúde foi endossada pela ABNT, escorada pelas normas da referida associação, estatuídas na NBR 12.807, com validade a partir de 01-04-1993. A intensa informatização das atividades administrativas, do setor de serviços como um todo e a popularização em nível domiciliar dos minicomputadores ou Personal Computers (PC), vitalizou a geração de índices significativos do chamado lixo digital ou e-waste. Além dos PC são incluídos nesta categoria gadgets chamados de periféricos: cartuchos de impressoras, diversos tipos de fios e cabos, transformadores, disquetes, teclados, mouses, scanners, CDs, HDs, adaptadores e nobreaks, itens que passaram a engrossar em grau acentuado a cornucópia dos rebotalhos urbanos. Tem sido proposta uma nominata específica para esta tipologia de objetos descartados: Resíduos de Equipamentos Eletroeletrônicos (REEE), tradução direta do inglês Waste Electrical and Electronic Equipment (WEEE). 3 353 De um modo geral, os REEE resultam de produtos que inserem quantidades elevadas de metais pesados e substâncias halogenadas, ambas com forte periculosidade para a qualidade das águas doces. A produção dos equipamentos eletroeletrônicos solicita o emprego de ácidos, gases tóxicos e de solventes, além de grande conjunto de substâncias químicas cancerígenas. Uma definição mais abrangente dos REEE integraria, além dos aparelhos rubricados como “digitais” e telefones celulares, bens como fornos de micro-ondas, aspiradores de pó, aparelhos de televisão, CD players, máquinas de lavar roupa, rádios e gadgets em geral. Estes rebotalhos têm sido alvo de preocupação da opinião pública, dos gestores do lixo urbanos e dos especialistas em resíduos, suscitando posicionamentos institucionais para este segmento dos refugos. Os Resíduos Industriais são os gerados pela transformação das matérias primas por parte da indústria. Particularmente, os resíduos resultantes da indústria química e petrolífera apresentam uma série de substâncias que constituem fonte de preocupação das autoridades e da comunidade ambientalista. Por extensão, tais resíduos sugerem um controle rigoroso. Farta literatura de cunho técnico justifica o encaminhamento destas sobras, em conformidade com a tipologia dos impactos passíveis de serem desencadeados no meio ambiente, para centrais de incineração ou para equipamentos específicos, os aterros industriais. Seria oportuno citar que um dos mais documentados desastres ambientais da história, o de Minamata, ocorrido no Japão em 1956, 3 354 foi provocado pelo lançamento de resíduos industriais em corpos líquidos. Este acidente teve origem no despejo de águas residuárias contendo mercúrio por parte de uma indústria local, provocando a contaminação dos peixes e dos crustáceos, que consumidos pela população, deram origem, durante anos seguidos, a uma doença incurável, deformante e assustadora, com sintomatologia implacável, que se tornou conhecida como Mal de Minamata (SCHALCH, LEITE et GOMES, 1990: 149). No que concerne as Resíduos Comerciais, estes são compostos essencialmente por papéis da área administrativa e por plásticos, vidro e papelão resultante do descarte das embalagens. Portanto, este tipo de rebotalho seria em tese, menos influenciado por fatores externos (Ver a respeito, FIALHO, 1998: 56/57). Por último, temos os Resíduos Sólidos Domiciliares (RSD). Estes correspondem à parte mais volumosa dos refugos gerados pelo meio urbano, reportando a um dos nexos medulares da análise ora em curso por se tratar do elo final dos ciclos produtivos geradores de lixo. Na composição dos RSD está presente elevada proporção de matéria orgânica, proveniente dos restos de alimentos, serviços de jardinagem e dos detritos oriundos da varrição de parques e logradouros públicos, monturo que inclui folhas, galhos e troncos. Simultaneamente, os RSD incluem itens inorgânicos como plásticos, vidros, papéis e metais. Tal composição dos resíduos sólidos domiciliares, heterogênea e complexa, inspirou, junto à literatura especializada, a identificação de 3 355 duas categorias básicas dos RSD, a saber: a fração inorgânica, seca ou ainda reciclável e a fração orgânica, também conhecida como úmida ou molhada. Além destas duas frações, há ainda os rejeitos, que como veremos, refere-se a uma nominata técnica específica. Sinteticamente, tais categorias podem ser descritas na forma como segue: ➢ Fração inorgânica, seca ou reciclável: categoria composta pelos metais (caso do cobre, do aço e do alumínio na forma de cabos elétricos descartados, embalagens, peças, chapas e qualquer produto metálico fora de uso); vidros (frascos, garrafas, cacos e fragmentos em geral); papel e papelão (das modalidades mais variadas); e pelos plásticos (dos mais diversos tipos). Acredita-se que este conjunto de materiais represente aproximadamente 20% do total dos RSD; ➢ Fração orgânica, úmida ou molhada: categoria formada pela matéria orgânica presente no lixo urbano, incluindo restos de alimentos, talos, cascas, palha, grãos recusados, filtro de papel para café, da poda de jardim e assim por diante. No Brasil, estima-se que a fração úmida represente entre 50% e 60% da massa do lixo; ➢ Rejeitos: categoria que abrange itens e substâncias que não pertencem às duas frações anteriores. Nesta estão presentes o papel higiênico, papel de fax, fraldas descartáveis, absorventes higiênicos, jornais e revistas sujos de gordura, o isopor, o celofane, cerâmicas, espelhos, cristais quebrados, fotografias, cinzas, tocos de cigarro, etc. Estima-se que no país, os rejeitos representem cerca de 30% do perfil dos lixos. 3 356 Saliente-se que a definição de rejeito solicita muita cautela, repudiando conotações genéricas e aleatórias, pois com o avanço das tecnologias de reciclagem, materiais anteriormente desprezados tornam-se dignos das atenções da indústria recicladora. Ajusta-se a este parecer a embalagem tetrapak, cuja participação no montante dos rebotalhos tem expandido ano a ano. Observe-se que até os anos 1980, esta embalagem era carimbada como nãoreciclável. Entretanto, constitui atualmente uma prestigiada fonte de plástico, alumínio e de itens celulósicos recuperados por métodos de reciclagem com base na: na hidratação das mesmas, por equipamento apropriado, ocorrendo a separação das fibras celulósicas, do plástico com alumínio. As fibras celulósicas recuperadas são utilizadas na fabricação de papel e o resíduo composto por plástico com o alumínio é usado na fabricação de peças plásticas (CEMPRE, 2000: 136). No cômputo geral dos lixos, o portentoso volume dos RSD incitou o surgimento de diversas propostas de gestão, que condizem a um acúmulo de considerável de estudos sobre a temática. Consensualmente, as proposições quanto à destinação final dos RSD, todas implicando em recortes de interesse para o meio urbano e as águas doces, estão apoiadas em três linhas básicas de políticas públicas para os refugos urbanos: as usinas de compostagem, os incineradores e os aterros. Nas usinas de compostagem, a fração úmida dos rebotalhos é transformada em composto orgânico. O processo de transformação 3 357 dos refugos orgânicos em composto é assaz antigo, constituindo uma prática tradicional nas coletividades agrícolas em todo o mundo e em todas as épocas. O composto orgânico, definido pelo linguajar comum como “adubo”, é acima de tudo um revitalizador ou um condicionador dos solos. Na realidade, o composto é deste modo classificado ...pelo fato de sua matéria orgânica humificada estar em maior proporção e que corresponde a cerca de 40 a 70%. No entanto, além do efeito condicionador ou melhorador do solo, o composto é também classificado como um fertilizante de baixa concentração em nutrientes, razão pela qual, são sempre empregadas doses elevadas, geralmente acima de 10 toneladas por hectare (SCHALCH, LEITE et GOMES, 1990: 87). A qualidade do composto produzido nestas usinas possui relação direta com o rigor da segregação dos itens inorgânicos. Fato óbvio, a presença maior ou menor de detritos procedentes da fração seca, repercute no perfil final e na ação biológica do produto compostado. É importante recordar quando bem orientada e monitorada, a compostagem pode ser implantada nos quintais das residências, jardins públicos, em hortas comunitárias e equipamentos urbanos, promovendo sensível melhora dos cultivos, e para mais, minimizando os impactos do descarte in natura dos lixos (GRIMBERG, 2002). A implantação dos incineradores tem sido proposta por diversas indicações técnicas, exaltando particularmente a redução do volume e da massa dos RSD como seu principal benefício. Mais recentemente, uma nova geração de incineradores (Waste to Energy, WTE) opera com base no reaproveitamento energético, isto é, utiliza-se a energia 3 358 liberada pela queima dos refugos para a produção de vapor e de eletricidade, que dependendo do porte da usina, pode ser apreciável. O processamento de materiais de alto risco, caso em particular dos resíduos especiais, tem sido costumeiramente endereçada para as fornalhas dos incineradores 65. Quanto às cinzas finais resultantes da queima, em tese inócuas, estas são encaminhadas para aterros ou reintroduzidas em ciclos produtivos como o do cimento. Entrementes, num ajuizado ambiental, as usinas de incineração tem sido culpabilizadas pela emissão de compostos tóxicos presentes nas cinzas e por uma ponderável carga de emissões de furanos e dioxinas, substâncias repetidamente denunciadas como altamente tóxicas e lesivas à saúde humana e ao meio ambiente, prejudicando em especial, a população residente no entorno destas instalações. No rol de inconvenientes, há que ser arrolada a desvalorização imobiliária, a insatisfação dos habitantes das redondezas, o incômodo dos odores, a poluição visual, o elevado custo destes equipamentos (pagos com os impostos dos contribuintes) e a dilapidação em larga escala de recicláveis. Last, but definitely not least, tem-se a contaminação dos recursos hídricos por conta das emissões gasosas e das cargas difusas, que alcançam espaços situados a jusante dos incineradores. Não admira então que as normatizações estejam cada vez mais rigorosas em relação a construção e operação dos incineradores (Cf. CALDERONI, 2003: 133/134; SCHALCH, LEITE et GOMES, 1990: 1). 65 A respeito, consultar SCHALCH, ANDRADE, et GAUSZER, 1995, assim como SCHALCH, LEITE et GOMES, 1990: 212 e seguintes. 3 359 Nesta senda, os impactos acarretados pelos incineradores têm motivado diversas críticas por parte dos ecologistas e da área técnica, objeções subsidiadas por compilações científicas que de longa data, refutam estes equipamentos como apropriados para o tratamento de dos refugos, qualquer tipologia que seja (Vide GREENPEACE, 1991). Por sinal, inclusive no corpus da comunidade médica, não existe consenso no sentido de aprovar a operação dos incineradores como opção de excelência na gestão do lixo hospitalar. A incineração pode, em contextos específicos, até constituir pontualmente uma alternativa, “embora não necessariamente um ótimo meio de destruição para todos os resíduos clínicos” (NABHAN, 1986: 2). A rigor, experiências de monitoramento dos refugos hospitalares, embora atravessadas por polêmicas acirradas, contestam a opção da incineração como solução adequada, única e exclusiva. Em Vitória (ES), durante a gestão do prefeito Victor Buaiz (19891992), aliás, médico de profissão, a administração municipal levou a cabo uma programação considerada radical, excluindo a utilização de incineradores como destinação final para os resíduos hospitalares, medida respaldada por amplo leque de considerandos médicos e sanitários 66, colocando em xeque metodologias de monitoramento e noções estereotipadas tradicionalmente imputadas aos resíduos dos serviços de saúde, que verdade seja dita, beneficiavam os consórcios privados de incineração do lixo hospitalar (Figura 14). Observe-se que “a maior parte dos resíduos produzidos em um hospital não oferece maiores perigos que os associados aos resíduos municipais comuns” (MONREAL, 1992: 2). Ademais, as opções pela reutilização e reciclagem não podem ser esquecidas (Ver entre outros, SALOMÃO et alli, 2004 e KARG JÚNIOR, 1991). 66 3 360 FIGURA 14 - O Fantasma da Incineração, Mito ou Realidade? Foi com este enfoque que a campanha de esclarecimento da Prefeitura Municipal de Vitória, enfocou a questão do lixo hospitalar, consignada no folheto de campanha reproduzido acima (Fonte: Secretaria do Meio Ambiente da Prefeitura Municipal de Vitória, 1991) 3 361 No Brasil, nos contextos nos quais as municipalidades dispõem de serviços de coleta, os aterros constituem a modalidade de gestão corrente. Os aterros constituem uma releitura da prática ancestral de enterrar restos, constante nas comunidades camponesas tradicionais e em tradições culturais e religiosas na maioria dos povos 67. Diferenciados em comuns, controlados ou sanitários, os aterros, na dependência da sua especificidade, inserem desdobramentos técnicos, sociais e ambientais muito diferentes entre si. Destas três categorias, os mais encontrados nos municípios brasileiros são os aterros comuns, nominados como sumidouros, vazadouros, lixeiras, ou como é mais frequente, de lixões. Caberia, no entanto, advertir que na fala popular toda instalação ou sítio destinado a recepcionar rebotalhos termina impropriamente rotulado como lixão, termo que na condição de estigma, recai sobre toda sorte de equipamentos: incineradores, aterros sanitários, usinas de compostagem, bota-fora, e até mesmo, contêineres de recicláveis. Este equívoco é infelizmente reforçado pelos jornais, e pelo noticiário de rádio e televisão, que usualmente empregam esta terminologia de um modo totalmente improcedente, confusão que deve ser evitada a todo custo (CALDERONI, 2003: 118). Reconhecidamente prejudiciais ao meio ambiente e à população, os aterros comuns correspondem ao despejo direto dos descartes, independentemente de sua taxonomia, para locais que não foram merecedores de nenhum estudo prévio do ponto de vista geotécnico, Podemos ler no Antigo Testamento: “Fora do acampamento, terás lugar onde te possas retirar para as necessidades. Tu levarás no equipamento uma pá para fazer as necessidades. Antes de voltar, cobrirás os excrementos” (Deuteronômio 23: 13-14). 67 3 362 procedimento que se acorre ignorando medidas de acompanhamento e de mitigação dos impactos negativos, quaisquer que sejam. Como confirma a própria definição da ABNT, o lixão consiste na descarga de rebotalhos in natura a céu aberto, isenta de quaisquer predicativos técnicos, sanitários ou ambientais (Vide NBR-1073/89). A despeito dos malefícios inerentes a esta prática, estimativas apontam para o número de 12.000 lixões em funcionamento, espalhados por praticamente todo o território nacional (JURAS, 2000: 4). Nas palavras do geógrafo Pompeu Figueiredo de CARVALHO, concorre para esta onipresença dos lixões, a conduta omissiva das autoridades, pois são “promovidos e permitidos pelas administrações municipais, além dos depósitos ditos clandestinos, às vezes acusados pela ineficácia dos serviços de coleta” (2003: 29). Notadamente, estes espaços constituem origem de funesta série de impactos negativos para a sociedade e o ambiente na maioria dos municípios: “muitos destes lixões estão em áreas alagadiças ou nas fronteiras d’água. É comum o uso de nascentes, ampliadas em vagas recessivas de erosão, causadas pela urbanização, como solução para os entulhos” (CARVALHO, 2003: 29). Mas, estes problemas não constituem exclusividade dos “lixões”, sendo também constatados nos assim chamados aterros controlados. Considerados uma “versão melhorada” da prática anterior, o único ponto a diferenciá-los dos lixões é que os descartes recebem uma cobertura diária de material inerte, no geral entulho ou solo retirado das proximidades. 3 363 Mas, esta medida não estanca o vazamento do chorume, nem do metano. Da mesma forma que nos aterros comuns, o chorume infiltrase no solo ou então, escoa diretamente para os corpos líquidos. Outra consideração cabível é a questão das emissões de metano, gerado pela decomposição dos resíduos. Gás inflamável e passível, quando em concentração entre 5 e 15% no ar, de combustão espontânea, o metano constitui um emérito agente do efeito estufa, que no mínimo, é cerca de vinte vezes mais potente que o CO². Em resumo, os lixões e os aterros controlados, não dão conta de nenhum dos problemas ambientais gerados pelos lixos. Circa merita, os aterros sanitários, mesmo não constituindo uma solução ideal, ao menos perfazem uma metodologia menos nociva do que as duas anteriores. Fundamentados em critérios de engenharia e contando com amplo cabedal de pré-condições técnicas, ao menos em princípio, nos aterros sanitários os lixos permanecem confinados de modo seguro, assegurando-se a proteção do meio ambiente. Ao final da vida útil do equipamento, estando estabilizados os processos de decomposição da matéria orgânica e finalizada a acomodação das camadas de terra e dos recalques, as áreas destinadas aos aterros podem atender outros usos, recepcionando equipamentos urbanos. Recorde-se que a implantação dos aterros sanitários requer a realização prévia de Estudos de Impacto Ambiental (EIA), objetivando avaliar as características geotécnicas da área, prevendo igualmente a proteção do subsolo e o controle das emissões do gás metano e da infiltração do chorume (Quanto à drenagem de gases e percolados, consulte-se CEMPRE, 2000: 284/285; SCHALCH, LEITE et GOMES, 1990: 81/85). 3 364 Contudo, é importante refletir que os aterros sanitários, por mais bem administrados que sejam, integram um pacote de medidas, não excluindo de modo algum, a utilização de tecnologias coadjuvantes ou métodos de disposição final. Para as grandes cidades, ...é necessário, não mais apenas um aterro sanitário bem planejado, bem projetado e bem localizado. Não se pode prescindir da coleta seletiva para aumentar a vida útil dos aterros. É necessário também incorporar as usinas de tratamento e beneficiamento de lixo, incluindo os diversos componentes, destacando a compostagem orgânica e a reciclagem dos entulhos, em grande parte oriundos da construção civil. Somente assim os cursos d’água poderão deixar de ser repositório do lixo urbano (CARVALHO, 2003: 29). Finalmente, advirta-se que apesar do rigor técnico sugerido pelo modelo, os aterros sanitários incorporam diversos questionamentos, como a utilização de vastas áreas de terreno, além de implicarem em custos milionários para encarcerar matéria prima, um contrassenso manifesto. Categorizados, numa sistematização geológica como “depósitos tectogênicos construídos”, os aterros podem acarretar situações de acidentes potenciais, como escorregamentos, escapes de metano e chorume, recalques, trincamentos e rupturas estruturais (PELOGGIA, 1998: 129/136). Além do mais, este equipamento, estando sujeito a falhas operacionais, pode igualmente promover acidentes ambientais como o transbordamento e infiltração de lixiviado nos solos e nas águas e o escapamento de gases. 3 365 Restaria, por conta do que foi colocado, reservar comentários mais substantivos para a otimização e reaproveitamento dos itens descartados, discernimento nos conduz diretamente para a seara da coleta seletiva de lixo, procedimento pleiteado como sendo o aresto mais adequado para o tratamento dos resíduos sólidos. Esta forma de gestão, proposta inserida num debate bem mais amplo, é que estará em debate nos próximos parágrafos. 7.4. REPENSANDO OS RESÍDUOS SÓLIDOS DOMICILIARES O volume e os impactos gerados pelo lixo na sociedade moderna originaram uma série de especulações por parte dos especialistas em resíduos sólidos. Neste toque, a conotação técnica do que é entendido como lixo terminou colocada em questão. Conforme foi observado, os refugos incorporam um prontuário de estereotipias 68 negativas, permitindo evocar nesta discussão, ponderações de ordem cultural, histórica, social e ambiental. Assinale-se que em princípio, não estaria reservado ao termo lixo um sentido a priori adjetivado. Etimologicamente, a palavra tem origem na língua latina, aparentemente decorrendo de lix, significando cinza ou lixívia. A lix associa-se o verbo lixare, reportando a polir, O termo estereotipia procede do grego estéreo, que significa sólido. A estereotipia corresponde ao um contexto psicológico e afetações imaginárias pelas quais, a repetição constante de um conceito engendra sua materialidade social, isto é, sua integração ao mundo concreto. 68 3 366 desbastar, arrancar o excedente. Assim, uma vez retirado o supérfluo, impõe-se definir o destino do resíduo, isto é, do lixo. A partir desta noção, paulatinamente lixo passou a estar ligado ao universo semântico de sujeira, daquilo que não presta e que jogamos fora. Esta conceituação transparece na curiosa expressão estar se lixando para algo ou alguém, peculiar do português do Brasil. Em outras palavras, reserva-se aos que estão em dissintonia com um dado grupo social, o que não se deseja ou não faz falta a ninguém. De qualquer modo, registros históricos revelam uma convivência rotineira de diversas sociedades do passado com o lixo. Nos Séculos XV e XVI, aos tempos do filósofo Erasmo de Roterdam, as cidades europeias, ...não possuindo as casas esgotos, nem existindo o serviço de lixo ou limpeza pública, as imundícies eram, à noite, atiradas nas ruas, sendo impossível dar-se um passo sem encontrar algo muito desagradável (LINS, 1967: 72). Ademais, veredictos apontando a ausência de serviços de coleta no mundo moderno, neste incluindo as cidades europeias nascidas com o advento da modernidade, poderia ser subscrito com certa tranquilidade (PONTING, 1995: 562/564). Evidentemente, é possível identificar no antigo mundo tradicional, definições desqualificantes relacionadas com os lixos. Nesta ordem de considerações, recorde-se que a palavra hebraica para inferno, ‫ גגי ב ִנ‬, gehena em grego, termo derivado do hebraico), gehinom (‫ֶן־הנם‬ 3 367 refere-se a um vale próximo de Jerusalém (Hinnom), no qual restos e impurezas eram acumuladas e queimadas (Cf. BEREZIN, 1995: 72). Todavia, isto de modo algum significa que o mundo da tradição esposasse uma visão totalizante presumindo os rebotalhos como materiais imprestáveis ou poluentes, até porque, a percepção do que pode ou não integrar o mundo das substâncias com as quais se admite algum tipo de convivência, não encontra fundamentação tão só em apreciações objetivas, mas de igual modo, em entonações de mote cultural. Não fosse assim, divergências quanto à proximidade socialmente permitida para com o que seria considerado nefasto ou impróprio de convívio com os humanos, uma acepção que se estende dos mais prosaicos atos culinários até os dejetos animais e humanos, seria inexistente. A título de exemplo, note-se que em muitas civilizações antigas, as fezes humanas eram utilizadas na agricultura 69, e além do mais, no extremo oriente, tal como expressamente colocado por doutrinas religiosas como o Budismo, a matéria fecal é considerada como associada aos ciclos da vida, e neste senso, seria portanto, um recurso e não um refugo, legitimando o uso frequente das dejeções como fertilizante (Ver a respeito, WARNER, 2000: 38). Do modo como se pretende calçar este texto, as transformações que se processaram na forma como a sociedade contemporânea (ou ao menos parte desta), passou a perceber tanto a geração, quanto o gerenciamento do lixo, constitui um aspecto primordial. Neste plano A palavra fezes não evoca por si, um significado negativo. Geneticamente oriunda do latim faex, significando lama ou sedimento, etimologicamente discrimina um ente isento de adjetivação negativa. 69 3 368 de discussões, estas se inscrevem enquanto condição sine qua non para a consolidação de novos ordenamentos teóricos, que passaram a impregnar o corpo conceitual e as prioridades concretas suscitadas pelo conhecimento científico dos resíduos sólidos. Justamente esta evidência, é que permite entender o motivo de debates como os que perpassam, por exemplo, sobre as implicações de palavras como lixo e resíduo. Quanto a este ponto, qualquer sinopse revelaria que no dia a dia, ambos os termos são utilizados indistintamente. Porém, esta atitude tem observado mudanças graduais. De tal sorte, embora nada obste a menção coloquial ou utilização eventual da palavra lixo, um claro elemento motivador para a opção pela terminologia resíduos sólidos reside no fato de que este termo, contrariamente à palavra lixo, exclui adjetivações negativas. No geral, considera-se que resíduos sólidos conformam uma expressão muito mais adequada para o contexto das novas estratégias de relacionamento com os bens materiais e o seu descarte, e concretamente, a terminologia goza de clara preferência nos círculos de especialistas, que evitam a utilização da expressão lixo. A conceituação de resíduos sólidos, além de preferível em função de borrar reincidentes estereótipos culturais que rondam o “lixo”, é mais apropriada para temário como, por exemplo, a reciclagem. É um bom alvitre recordar que o trato dos resíduos domésticos, em face da presença de metais, plásticos, vidros, papéis e de significativa matéria orgânica, habilita a aplicação da recuperação em larga escala. Mas não só neste caso. 3 369 Vários itens dos rebotalhos industriais, dos resíduos inertes e mesmo de alguns que integram a categoria dos resíduos especiais, também poderiam ser reciclados, pelo que, respeitável proporção de matérias até poucas décadas atrás sentenciadas como “inúteis”, são agora objeto de releitura técnica e conceitual pelas redes produtivas. Nesta linha de argumentação, a cultura do lixo deveria desaparecer para ceder lugar à cultura dos resíduos sólidos, insumos dignos de reaproveitamento (DIAS, 2002a: 75). Um ponto marcante é que as interpelações mais contemporâneas sobre os refugos centram suas atenções muito mais na geração dos resíduos do que no lixo em si mesmo. Em outras palavras, busca-se focar a questão da gestão dos descartes antes e não depois da lata de lixo. Desvendando singularidades técnicas, sociais, econômicas, políticas e culturais que induzem a ejeção de materiais, tais linhas de ação subsidiam estratégias de diminuição e otimização do uso dos recursos naturais, diferindo dos enfoques clássicos, que priorizavam o gerenciamento dos itens já descartados. Nesta ótica, a gestão dos rebotalhos seria sumamente uma questão de procedimento, e não de investimento. Foi a preocupação com a diminuição da produção dos resíduos e a minimização do descarte que justificou a receptividade, a partir dos anos 1980, da proposição dos chamados três “Rs”, abreviatura que corresponde em igual número de posturas iniciadas com a letra “R”. Estas atendem ao R de Reduzir, R de Reutilizar e R de Reciclar. Nos últimos anos, agregou-se um quarto R, o de Repensar, instado ao primeiro posto da sequência. 3 370 Assinale-se que os quatro “Rs” formam uma sucessão que acata uma hierarquia de posturas, iniciando-se com a revisão do modelo de vida existente (Repensar), seguido, na ordem de disposição, dos demais trâmites. É importante registrar que esta metodologia, embora conquistando aceitação em especial entre os especialistas em RSD, não exclui aplicabilidade para as demais categorias dos rebotalhos e tampouco, quanto a temáticas como a água e a energia. Das quatro atitudes citadas, a que conquistou maior notoriedade social foi indiscutivelmente a reciclagem. O afazer reciclador esteariase no resultado “de uma série de atividades, pela qual os materiais que se tornariam lixo, ou estão no lixo, são desviados, coletados, separados e processados para serem usados como matéria-prima na manufatura de novos produtos” (CEMPRE, 2000: 81). Por consequência, do ponto de vista do reaproveitamento dos recursos, lixo propriamente não existe, que seria apenas a coisa certa colocada no lugar errado. A reciclagem, cabe ressalvar, transformouse numa atividade empresarial de grande porte, mobilizando grande estofo de recursos financeiros e dotada de formidável engenharia de processamento e circuitos econômicos que consolidam sua atuação, em especial nas metrópoles (Vide LEGASPE, 1996: 123/160). A popularidade granjeada pela recuperação de materiais é em boa parte, resultante da intensa pregação ambientalista em favor da CSL. De fato, a reciclagem de itens descartados implica em menor ônus para o meio ambiente, economia de energia e preservação dos recursos naturais, preservando o ambiente de vida das sociedades. 3 371 Não seria demasiado repetir, o custo dos serviços de limpeza é alto e extremamente oneroso para a sociedade, ônus que pode ser minimizado pela diminuição do volume de lixos a serem retirados das ruas. Ademais, o reaproveitamento diminui a quantidade de detritos destinadas aos aterros, ampliando sua vida útil e evitando a ocupação de novas áreas para esta finalidade, aliás, cada vez mais exíguas nas regiões urbanizadas (Vide CALDERONI, 2003; GRIMBERG, 2002 e CEMPRE, 2000: 79/86). Igualmente mereceria destaque a atuação dos trabalhadores da catação, que nas últimas décadas tornaram-se parte do panorama urbano das cidades do país. Os catadores, num parecer sintético, ...são profissionais que não tem carteira assinada, são mal reconhecidos, estão desorganizados na quase totalidade das cidades nas quais atuam e, no entanto, alimentam poderosos setores industriais com matériaprima barata, aliviando os custos da limpeza pública com cada tonelada de materiais que retiram das ruas (WALDMAN et SCHNEIDER, 2000: 124). A categoria, conhecida com o concurso de várias denominações, tais como garrafeiro, carrinheiro, aparista e sucateiro 70, mobiliza nos dias atuais aproximadamente 300.000 pessoas em todo o país. Este contingente, encorpado por crises econômicas consecutivas, tem por teatro preferencial as áreas urbanas, em especial as mais populosas. A visibilidade da categoria no cenário urbano tornou-se expressiva na última década, resultando na formação de cooperativas de reciclagem e na consolidação de um movimento nacional de catadores. Note-se que estes vocábulos, a despeito de serem equalizados como sinônimos, são relacionados a atividades específicas: carrinheiro é quem retira os resíduos das ruas e das residências, sucateiro e aparista, quem armazena e vende. 70 3 372 Observe-se que a catação de materiais recicláveis passou a ser, em diversos contextos, uma das únicas alternativas disponíveis de geração de renda para os grupos excluídos. Neste senso, a irrupção dos movimentos de catadores não se restringe enquanto evidência objetiva das potencialidades inerentes à reciclagem, mas igualmente, das formas que a população excluída tem encontrado para afirmar sua sobrevivência e porque não, sua identidade enquanto cidadão 71. Um aspecto bastante pertinente é que a reciclagem pressupõe, dado entrelaçar-se com as práticas do cotidiano, um vínculo real com a conservação da natureza. O exercício da reciclagem pode constituir ato de conscientização ecológica, pelo que iniciativas norteadas pela recuperação dos materiais inserem claro pendor pedagógico, sendo facilmente ajustáveis aos programas de educação ambiental. Animando finalidades ambientalmente corretas nas ações do cotidiano urbano, o conjunto dos cidadãos pode deste modo, tomar consciência de questões mais complexas, posicionando-se de modo construtivo e participante na realidade em que vive. Mas, o entusiasmo pela reciclagem não permite ignorar reparos técnicos, sociais, econômicos e políticos, recomendação que corre no sentido de sugerir que o protagonismo da reciclagem nas estratégias de conservação da natureza e do gerenciamento dos resíduos, assim como o seu lugar nos programas de preservação das águas doces, solicitam maior detalhamento. A psicóloga Marina DURAN, apreciando sobre a necessidade de reconhecimento de inserção destes trabalhadores na coletividade cidadã, argutamente salienta que no itinerário diário dos catadores pelas grandes cidades, “além de um cachorro que os acompanha, não é raro encontrar uma bandeirinha do Brasil arranjada em algum lugar da carroça junto aos objetos recolhidos” (2005: 188). 71 3 373 Caberia aqui a admoestação de que propugnar a reciclagem de modo acrítico, pode suscitar equívocos, dos quais não se dissociam enredamentos de cunho ideológico. Tal como sentenciou o geógrafo Luciano LEGASPE, “não podemos cair no erro de enfocar o lixo e a indústria da reciclagem sem manipularmos o arsenal publicitário que subsidia todo o comércio atrelado à indústria” (1996: 123). Nos últimos anos, os avanços da chamada “conscientização ecológica” em setores do empresariado pouco teriam a ver com a preocupação pelo equilíbrio ambiental. Basicamente, a adoção de políticas de preservação por parte das empresas obedece tanto a pressões utilitárias, da sociedade e do mercado internacional, quanto a estratégias de puro marketing. Na argumentação da socióloga e economista Raquel da Silva PEREIRA, ...as bandeiras ecológicas levantadas por empresas agregam simpatia às que se apoiam no marketing ecológico para atribuir força as suas marcas e à sua imagem institucional. No Brasil, o mercado potencial para produtos com apelo ecológico está em grande crescimento (2002: 66). Deste modo, note-se que a reciclagem, além de não se contrapor à dinâmica geral do sistema de produção de mercadorias, contribui, pelo contrário, para reproduzi-lo num outro patamar, inserindo agora uma logicidade “sustentável” e “ecológica”, quando não, emprestando funcionalidade ao que vozes críticas categorizam como capitalismo verde ou então, eco-capitalismo. Por isso mesmo, a forte expansão da reciclagem a partir das últimas décadas do século passado, nada mais expressaria do que a 3 374 confirmação do veredicto pelo qual esta, se harmoniza a funções metafóricas, condizentes a uma “fantasia do eco-capitalismo”, sendo ao mesmo tempo, eficaz e necessária para a legitimação objetiva do sistema econômico em curso (LEGASPE, 1996). Pois então, caberia primeiramente certificar a abrangência e as potencialidades do aproveitamento dos materiais. Recorde-se que no geral, a reciclagem está praticamente centrada em cinco itens básicos da fração seca: vidros, papéis, plásticos, aço e alumínio. O fato de vigorar clara valorização destes componentes da fração inorgânica decorre, em última análise, destas sucatas incorporarem maior valor agregado. Seria exatamente esta, a nuança que licencia estes itens para serem prioritariamente inseridos nos circuitos da reciclagem, atividade com manifesta expressão empresarial. Destarte, a partir de clarividente sentença emanada do mundo empresarial, podemos conferir: Deve ficar claro que a possibilidade de reciclar materiais só existe se houver demanda por produtos gerados pelo processamento destes [...] A análise do mercado de recicláveis, principalmente da região, ditará quais os produtos do lixo que poderão ser reciclados industrialmente (CEMPRE, 2000: 81). Deste modo, a fundamentação que justificaria a classificação dos RSD em fração inorgânica, orgânica e em rejeitos, das quais somente a primeira destas (a fração seca) é rubricada como reciclável, reclama apontamentos adicionais, a começar pela sinonímia que iguala fração seca com reciclagem, prédica que induz a um claro, porém coerente, reducionismo conceitual. 3 375 Atente-se de que o termo reciclagem implica na retomada de um ciclo, tornando o conceito aplicável para diversos contextos. Neste particular, a fração orgânica do lixo domiciliar, ao ser formada por substâncias que podem retornar à natureza através da compostagem, seria merecedora de inclusão na categoria dos recicláveis, interesse ou não esta atividade para as plantas ou para o mercado reciclador. Entretanto, o que de fato interessa ressalvar, além das críticas cabíveis quanto aos intuitos não necessariamente “ambientalistas” da indústria da reciclagem (o que não nega seus méritos em termos da minimização da geração de resíduos e de integrar uma estratégia geral de conservação da natureza), é que, na realidade, melhor do que reciclar resíduos impõe-se com maior rigor a necessidade de diminuir a geração de lixo. Não por outra razão a reciclagem é a última das quatro atitudes iniciadas com a letra “R”. Basta retomar a sucessão pela qual antes de Reciclar, alinham-se Repensar, Reduzir e Reutilizar. Logo, apenas antecedida destas três condutas é que Reciclar faria sentido. Este na realidade constitui o aspecto fundamental para se pensar a associação dos recursos hídricos com os resíduos sólidos. Como vimos, os resíduos resultam do descarte de bens que implicaram em considerável input hídrico para serem trazidos ao mundo. Além disso, impactam o meio ambiente por intermédio das cargas difusas e pelo descarte inadequado. 3 376 Logo, será na ótica do uso racional dos recursos, aqui entendido numa ótica em que o repensar está priorizado, que o debate sobre os recursos hídricos pode ser enfocado com mais clareza e intensidade. Por isso mesmo, a fração úmida conquistaria relevo especial, até porque, ao consumir naco substancial das águas doces, dificilmente permite-se conceber uma política eficiente dos recursos hídricos sem o concurso de analisá-la detalhadamente nas interfaces que sustenta no cômputo geral o uso dos recursos do meio natural e da questão ambiental. Enfoque que estará no cerne das próximas considerações. 7.5. RECURSOS HÍDRICOS, FRAÇÃO ORGÂNICA E RECICLAGEM Costumeiramente, as pontuações associadas com a conservação dos recursos hídricos fazem uso da imagem da torneira doméstica, da mangueira, das goteiras ou do chuveiro, que advertem as campanhas de contenção do desperdício, devem ser rigorosamente fiscalizadas pelo cidadão. Tais imagens, efusivamente transmitidas e retransmitidas pela mídia, induzem à conclusão de que basta fechar as torneiras para se solucionar a escassez da água, simples assim. Porém, trata-se de medidas que estão distantes de garantir que a água permaneça ao alcance dos humanos. Na crítica a estes apelos, o Seminário Abastecimento de Água na Macro-Região de São Paulo: Perspectivas a Curto, Médio e Longo Prazo, promovido pela Associação Brasileira de Engenharia Sanitária 3 377 e Ambiental (ABES), realizado na capital paulista entre 20 e 21-112003), aquilatou em meio às suas resoluções finais, que “além dos tradicionais apelos anuais à população para que economize (água), algo mais concreto deve ser feito” 72. Este sentenciamento, sugere que existem formas de desperdício de água que a despeito de serem menos “cinematográficas”, nem por isso poderiam estar ausentes das reflexões atinentes à resolução do problema. Um argumento expressivo é que as lides da agropecuária consomem em média 70% dos recursos hídricos mundiais. Portanto, avaliar o desperdício de alimentos transforma-se num dado importância capital. Já foi explicitado nos capítulos anteriores os vínculos que interligam a produção alimentícia com os recursos hídricos no referente à esfera da produção. Restaria, então, avaliar os impactos provocados com os descartes. Refletindo primeiramente com base na informação de que os resíduos orgânicos representam, em média, algo como 60% do lixo brasileiro, a metáfora da montanha de alimentos desperdiçados seria, infelizmente, bem mais do que mero arroubo de oratória. Nesta linha de compreensão, cumpriria preliminarmente refletir para os números a seguir, coletados do informe O Desperdício em Números, publicado pelo Boletim do Compromisso Empresarial para a Reciclagem (CEMPRE) 73: ➢ O Ministério da Agricultura do Brasil estima que cerca de 14 bilhões de toneladas de alimentos são perdidos anualmente; 72 73 ABES Informa, edição de novembro/dezembro de 2003, página 10. Edição nº. 39, maio/junho de 1998, página 3. 3 378 ➢ Pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE), demonstra que os brasileiros desperdiçam uma verdadeira fábula em frutas, verduras, legumes e outros alimentos perecíveis. Percentualmente, as laranjas registram perdas entre 10% a 15%; hortaliças e pimentões 30%; grãos, 31%; arroz, 21%; carne de frango, 25%; tubérculos, 15,8%; leite, 75%; ➢ No caso das bananas, se contabilizando a perda na estocagem e na exposição para a venda, o comércio varejista dispõe 1,66 kg do produto para cada quilo vendido, que somado à perda de 20% na produção, responde pelo incrível desperdício de praticamente 60% da produção; ➢ Outros 20% de milho, soja e feijão estragam por falhas na operação das máquinas agrícolas no armazenamento. Verifica-se o apodrecimento dos grãos em razão de excesso de umidade ou por estarem acondicionados em sacos e embalagens impróprias; ➢ Por falta de informação, os brasileiros descartam 20% de certos alimentos, como cascas e folhas, de alto poder nutritivo; ➢ As embalagens mal projetadas são responsáveis por 30% das indenizações de seguros no transporte rodoviário; ➢ Nos bares e restaurantes, os brasileiros deixam no prato 20% da comida que solicitam. Estas estatísticas estonteantes são ombreadas pela averiguação de que o país desperdiça em torno de 14 milhões de toneladas de 3 379 alimentos por ano. Isto numa conjuntura na qual 44 milhões de nacionais vivem abaixo da linha de pobreza e uma entre cada quatro crianças é vulnerável a alimentação insuficiente (GRIMBERG, 2002). De forma inequívoca, o tema do desperdício residencial e do lixo culinário, torna-se questão de interesse obrigatório para o conjunto da sociedade brasileira: governantes, partidos políticos, órgãos estatais, cientistas e homens do povo em geral. Os efeitos da ejeção dos refugos domésticos ampliam-se quando se sabe que estes, no geral, não encontram destinação tecnicamente correta, sendo na maior parte dos casos despejados no curso dos flumes, lagos e córregos, ou então, seguindo para os lixões ou para os aterros ditos controlados. Consequentemente, o gigantesco volume de lixo culinário tornase um elemento adicional no ciclo de impactos infringidos às águas doces. Grande parte da imensa massa de matéria orgânica dos RSD, dispostos sem critério no ambiente e entrando em decomposição, apadrinha a proliferação de vetores de inúmeras doenças, tais como ratos, baratas, moscas e outros insetos. Pior ainda, a degradação da fração orgânica do lixo constitui uma prodigiosa fonte geradora de chorume, fluído também designado por denominações como sumeiro (ou chumeiro), calda negra, lixiviado e líquido percolado, constituindo, lado a lado com o plutônio e a dioxina, uma das três substâncias mais nocivas para o meio ambiente jamais catalogadas. 3 380 Resultante da decomposição da fração orgânica e agregando variados elementos biologicamente comprometedores dos equilíbrios ambientais, o chorume é um líquido residual escuro, ácido e com elevada concentração de elementos orgânicos, possuindo reduzida biodegradabilidade e alta DBO, entre 30 e 100, ou mesmo 200 vezes maior do que a do esgoto urbano. Para completar, a calda negra é rica em metais pesados 74. O estudo da gênese e dos efeitos do chorume tem suscitado sortidas tentativas de enquadramento conceitual. Nos últimos anos, a literatura científica tem indexado o termo “lixiviado” para referir-se o efluente. Transitando em inúmeros seminários e debates relacionados com a questão dos resíduos sólidos, a nova terminologia tem por pretensão uma reconfiguração etimológica de caráter mais científico dos que as terminologias precedentes, ou seja, calda negra, chorume e percolado. Num prisma técnico, o termo percolado destaca o processo de lavagem dos detritos desovados nos aterros, em vista de que o líquido apresenta diversificado leque de substâncias, todas originárias dos processos aquosos de circulação na massa do lixo, assimilando partículas e exsudações das frações orgânica e inorgânica. Porém, seja qual for a denominação que se venha a utilizar, o chorume é, para sintetizar, uma substância perigosamente poluidora, à qual cabe elevada responsabilidade pela contaminação do solo, tornando-o estéril e inútil para a agropecuária e o assento humano. Informações técnicas mais pormenorizadas sobre o chorume estão disponíveis in CEMPRE 2000: 295/312. 74 3 381 Outro óbice notório deste efluente são os corpos líquidos. A imprensa tem noticiado ocorrências repetidas de reservatórios de água potável transformados na foz dos fluxos incessantes de percolado, com graves consequências para o abastecimento público. Complicando este cenário, a infiltração do chorume alcança os aquíferos, comprometendo de modo irremediável a qualidade da água subterrânea (OLIVEIRA e PASCAL, 2004). Esta seria, aliás, uma das ameaças que podem afetar o imenso aquífero Guarani. Ao que tudo indica, este reservatório foi contaminado em vários pontos por plumas de lixiviado, afetando um patrimônio hidrológico de inquestionável importância para o conjunto da sociedade nacional (UNPP/BR, 2000 e também MISLEH, 2005). Podemos nestes marcos subscritar que a questão da produção de alimentos e dos recursos hídricos se entrelaça, amiúde, com a do gerenciamento dos resíduos sólidos, e arrematando, numa variada oferta de sequelas perversas. É o que ocorre nos grandes centros urbanos, concretamente responsáveis pela geração da fração mais embaraçosa dos resíduos, o que explica o incômodo dos gestores urbanos em solucionar ou, pelo menos, minimizar os óbices gerados pela fração orgânica do lixo. Além de medidas objetivando maior eficiência no aproveitamento dos alimentos, recomendando a revisão de hábitos e valores culturais quanto às verduras, talos, folhas, raízes, sementes, cascas de frutas e de ovos, sobras com potencial para serem plenamente utilizados e de resto, garantindo alimentação mais saudável e nutritiva, as opções mais conhecidas reportariam à prática da compostagem. 3 382 Processos ditos domésticos ou mesmo artesanais, capacitados a transformar a fração orgânica do lixo culinário em recompositor de solos, podem ser acordados mais uma vez. Estando ao alcance do cidadão comum e de qualquer funcionário de limpeza, estes métodos podem ser aplicados em áreas como parques, canteiros e recantos ajardinados, requerendo basicamente uma pauta de orientação e muito pouco, ou nada, do numerário público. No plano das ações governamentais, as usinas de compostagem constituem instalações cujo histórico, perfilando desempenhos bemsucedidos na gestão do lixo orgânico, justifica que sejam lembradas como opção a ser pautada pelas administrações municipais. Do ponto de vista técnico, tais instalações nada mais são do que uma tradução contemporânea de práticas ancestrais constatadas nas concepções rurais mais longínquas, e nem por isso, menos eficientes. Para ser transformado em composto, o RSD é previamente triado em esteiras móveis (que podem incluir sistemas de eletroímãs), visando segregar os itens da fração seca (posteriormente vendidos para as indústrias de reciclagem), dos resíduos orgânicos. A seguir, esta massa orgânica é encaminhada para biodigestores, nos quais, a ação dos microrganismos, catalisada por movimentos mecânicos rotatórios, resulta em composto orgânico, posteriormente recepcionado por uma rede de produtores rurais e administrações municipais (SCHALCH, LEITE et GOMES, 1990: 87/121). Todavia, as usinas de compostagem podem apresentar certo número de entraves funcionais, desde os relacionados ao sítio (Figura 3 383 15) e administração gerencial destas instalações, até os aspectos relativos à qualidade do produto obtido, nem sempre satisfatório. Num plano logístico, o fato dos resíduos serem encaminhados sem prévia segregação para as usinas, faz com que nem sempre a seleção seja eficiente. Como resultância, o composto pode apresentar fragmentos de cacos de vidro, metais, plásticos e pequenos objetos. FIGURA 15 - Vista da Usina de Compostagem de São Mateus, na capital paulista: (1) Biodigestores rotativos modelo Dano, desenvolvido nos anos 1950. Este sistema opera com base em cilindros levemente inclinados de rotação lenta, no interior dos quais a fração úmida é introduzida. (2) Galpão de cura do material retirado dos biodigestores, onde o composto é estabilizado. Localizada no interior de uma área de preservação ambiental na zona leste da capital paulista (a APA da Mata do Carmo), a usina foi desativada na gestão da prefeita Marta Vasconcellos Suplicy (2001/2004), e atualmente a área abriga um projeto de educação ambiental (Foto: Hemeroteca do LIMPURB, 2000) Além disso, constatam-se intercorrências derivadas da presença de metais pesados e resíduos contaminados, sequelas do descarte de frascos de remédios, lâmpadas fluorescentes, pilhas e baterias no lixo doméstico, procedimentos acintosamente inadequados, que por sinal, solicitam formas específicas de tratamento e destinação final. 3 384 Um complicador adicional advém da governança administrativa das usinas. Constituindo uma instalação de cunho estruturalmente industrial, a capacitação gerencial e a qualificação do corpo técnico, lado a lado com manutenção constante do equipamento, obviamente faz toda a diferença quanto às características do composto. Paralelamente às usinas de compostagem, outra solução residiria no encaminhamento dos rebotalhos para os aterros sanitários. Foi observado anteriormente, esta modalidade de destinação final do lixo, é um modelo fundamentado em critérios de engenharia e normas operacionais específicas, permitindo uma confinação em tese segura em termos de controle da poluição ambiental e proteção ao meio ambiente. Ao menos em princípio, num aterro sanitário o chorume é contido por sistemas de impermeabilização, coletado por meio de drenagem e encaminhado para lagoas de estabilização, evitando a contaminação do solo e dos lençóis freáticos. Além do monitoramento dos efluentes líquidos (chorume), realiza-se o acompanhamento e o controle da difusão dos efluentes gasosos, em especial do metano. No entanto, a realidade, em muitas situações, desmente estes pressupostos. Os aterros sanitários solicitam gerenciamento técnico sério, competente e contínuo, indicativos que não necessariamente possuem, em virtude inclusive da labilidade da jactanciosa “função pública” do Estado brasileiro, solução de continuidade na vida política e administrativa 75 75. Relativamente à situação dos aterros no Estado de São Paulo, consultar o documento Inventário dos Resíduos Sólidos 2002 (CETESB, 2002). 3 385 Independentemente da proficiência da gestão, os problemas ficam agravados pela própria dificuldade de monitorar a persistente proliferação do lixiviado. Assim, a migração da calda negra para o entorno do aterro, afetando águas superficiais e subterrâneas em razão da governança deficiente, é uma possibilidade real, sinistro que se verifica inclusive nos aterros tecnicamente bem gerenciados. Além do mais, não se deve esquecer que os aterros mantêm a geração de chorume, assim como a de metano, por várias décadas após o esgotamento da capacidade das instalações, lapso temporal no qual demandam por rigorosa fiscalização. Evidentemente, quanto maior a dimensão do aterro, tanto mais avultado será o problema. A título de exemplo, o aterro São João, considerado de grande porte, localizado na capital paulista e ainda em operação 76, regurgita 13 litros de chorume por segundo. Embora contabilize uma emissão aparentemente insignificante, este volume significa 780 litros por minuto, 46.800 litros por hora e 1.123.200 litros por dia, algo como a capacidade de 11.230 caixas d’água a cada 24 horas de percolado. E este, seria tão só um dos inúmeros aterros em funcionamento ou em processo de estabilização na região da RMSP. Certamente existem questões ainda mais problemáticas, caso dos lixões, que substantivam um notório expediente para a disposição final do lixo em quase 90% dos municípios brasileiros. Nestes locais, O Aterro São João entrou em operação em dezembro de 1992. A área total deste equipamento é 456.000 m² (45,60 ha), dispondo 200.000 m² (20,00 ha) de área útil (Cf. CALDERONI, 2003:126; ter também SANTOS, ACHOA et BITAR, 1995). 76 3 386 a matéria orgânica, como se viu, resultante de um extraordinário input de recursos hídricos captados do meio natural, tem por resultado sua transformação em líquido percolado. No que poderia compor um quadro orquestrado por uma sinfonia trágica, poucos poderiam em algum momento advogar a origem do percolado na captação da água de um regato silencioso ou de um gotejante broto d’água silvestre. Contrastivamente, o chorume parece simbolizar uma sucessão de maus tratos destinados à água, que se transforma assim no retrato da sociedade que o criou. Nesta ordem de pontuações, os modelos de gestão atinentes às usinas de compostagem e aterros sanitários, constituem paliativos e quando muito, formas de atenuar o problema do lixo, mas não de efetivamente deslindá-lo. Indo direto ao ponto, solução autêntica existirá somente com a edificação de uma sociedade afeita ao respeito aos recursos naturais e avessa ao desperdício, premissas para cuja consecução, concorre em caráter obrigatório, a revisão das prioridades do sistema produtivo acompanhada de maior justiça social. Por conseguinte, a expansão dos serviços de CSL certamente representa um atenuante, e ao lado destes, a compostagem dos lixos orgânicos. Todavia, certo também é que ambas, não são uma solução definitiva da questão. Em concordância com o que foi abordado noutro momento deste texto, a verdadeira chave para dar conta das montanhas de rebutes é 3 387 justamente não as criar. Para isto, é preciso, antes de tudo, Repensar o padrão de vida, Reduzindo a geração de Lixo e Reutilizar tudo o que for possível. Eis com certeza, uma via para pensar e repensar a crise hídrica e quiçá, em futuro próximo, aplicar uma gestão de excelência efetiva para os recursos hídricos. 7.6. RECURSOS HÍDRICOS, FRAÇÃO INORGÂNICA E RECICLAGEM Neste trabalho, avalia-se que o lixo é acima de tudo, um produto caro, ambientalmente oneroso e altamente impactante na ótica dos recursos hídricos. Adiante, procuraremos evidenciar os vínculos que conectam a temática dos recursos hídricos à dos resíduos sólidos urbanos, enfatizando-se primeiro, o componente inorgânico dos lixos. A despeito de raramente avaliados de modo articulado, caberia observar que as problemáticas dos recursos hídricos e da fração seca dos RSD compartilham interfaces inseparáveis em diversas escalas e ângulos. É justamente esta visão de conjunto, consorciando ambas questões, que evidencia um quadro de comprometimentos ambientais mais complexo e detalhado do que o explicitado quando as temáticas são analisadas em separado. No referente ao reino das ações concretas, a proposição neste trabalho é que uma visão mais abrangente poderá pontuar como um 3 388 dado adicional para repaginar posturas e procedimentos, sinalizando para as possíveis soluções ou pelo menos, para a minimização dos problemas a serem enfrentados quanto ao binômio água e lixo. No caso brasileiro, a essencialidade desta discussão pode ser explicitada pela própria participação da fração seca na contextura dos RSD. Respaldando esta observação, sabe-se que apesar de escassas, falhas e conflitantes, as estatísticas indicam que a fração inorgânica dos refugos urbanos, alinha algo entre 20% e 30% do total dos lixos domiciliares coletados no país, percentual que aumenta ano a ano. O fenômeno tem explicação na consolidação dos processos citadinos, matriz de novos hábitos de consumo, em parceria com os quais, as práticas contemporâneas de embalamento e distribuição tornam-se correntes. Por conseguinte, a proporção deste componente na massa total dos resíduos sólidos domiciliares gradativamente se amplia, alavancando a atuação de um setor voltado exclusivamente para a reciclagem dos materiais nele encontrados. Paralelamente ao avanço do parque reciclador, as narrativas que enfatizam os ganhos ambientais da recuperação dos materiais, é recorrente na comunicação institucional difundida pelas empresas do setor e pelas instâncias governamentais facilitadoras da reciclagem. Obviamente, é claro que esta informação procede. Sem contar a poupança de matérias primas, constata-se a redução da poluição, economia de energia (esta última vinculada intimamente com a água) e uma efetiva conservação dos recursos hídricos. Afinal, como revela a ACV, todas as etapas da produção requerem um consumo de 3 389 recursos hídricos e mesmo a “morte” de um bem, não significa que seu relacionamento com a água tenha terminado. Nesta linha de raciocínio, podemos apontar relevantes benefícios ambientais. De pronto, tem-se a diminuição de volumoso montante de bens em circulação com base em materiais recuperados, contexto com óbvias implicações positivas para com a preservação das águas. Exemplificando, para citarmos apenas a problemática do plástico, as estimativas disponíveis informam que a produção do material, passou de 6 milhões de toneladas no ano de 1960 (nos primórdios da introdução deste produto), para 27 milhões em 1970; 53 milhões em 1980; 93 milhões em 1990 e alcançando em 1994, a estrondosa cifra de 110 milhões de toneladas (CALDERONI, 2003: 225). Confrontados com estes números e sabendo-se sobre a notável resistência que este material apresenta em termos de degradação no ambiente, não há como discordar que a reciclagem é bem-vinda e reclamada pela sociedade moderna. Isto, sem contar um inventário bem provido de ganhos passíveis de serem apontados não só para o plástico, como para todos os itens da fração seca. Assim, baseados em levantamentos amealhados por um pool de empresas associadas ao CEMPRE, tais como a ABAL (Associação Brasileira do Alumínio), ABIVIDRO (Associação Técnica Brasileira das Indústrias Automáticas de Vidro), ABEPET (Associação Brasileira dos Fabricantes de Embalagem de PET), PLASTIVIDA (Instituto Socioambiental de Plásticos), PROLATA (Programa de Valorização da 3 390 Embalagem Metálica), BRACELPA (Associação Brasileira de Celulose e Papel) e na atuação do parque reciclador ➢ 77, permite-se pontuar: Quando o aço é produzido inteiramente a partir de sucata, o ganho de energia chega a 70% do que se gasta com a produção de base do minério de origem. Além disso, tem-se a redução da poluição do ar (em torno de 85%) e do consumo de água (cerca de 76%). São eliminados, ainda, todos os impactos da atividade de mineração, que afetam a atmosfera, o solo e as bacias hidrográficas; ➢ Quanto ao papel, para produzir uma tonelada do produto, são solicitados aproximadamente 100 mil litros de água, muita energia e mais de 50 árvores adultas. Entrementes, quando é reaproveitado o papel descartado, os gastos são reduzidos para 2.000 litros de água, economiza-se entre 50 a 80% de energia e o corte de 20 a 30 árvores adultas. Ademais, há uma sensível redução de elementos poluentes (gases e efluentes líquidos). Para finalizar, recorde-se que quase 25% dos resíduos da fração seca são constituídos por papéis; ➢ O papel-jornal produzido a partir das aparas requer 25% a 60% menos energia elétrica que a necessária para obter papel da polpa da madeira. Produtos celulósicos feitos com material reciclável, além de conterem a derrubada de árvores, reduzem em 74% os poluentes liberados no ar e em 35% dos que são despejados nas águas; ➢ Na reciclagem do vidro é possível economizar cerca de 70% de energia incorporada ao produto original e pelo menos 50% de água. Informações consignadas na publicação CEMPRE Informa nº. 59, edição de setembro/outubro de 2001. 77 3 391 Portanto, os efeitos diretamente benéficos para as águas doces seriam em definitivo, pertinentes e louváveis. Pari passu aos números e valores apresentados, a reciclagem proporciona economia de água em todos os processos produtivos e no ciclo de vida dos produtos. No caso das latas de aço e do papel, a quantificação dos valores associados à redução do consumo de água, indica, na devida ordem, 4 m³/tonelada para a lata de aço e 29,2 m³/tonelada para o papel. Logo, temos num plano consuntivo, exemplos concretos de economia de recursos hídricos. Esta poupança de água, “deve-se ao fato de que a produção a partir de recicláveis requer menos água do que a produção de matérias-primas virgens” (CALDERONI, 2003: 88 e 266). Ao mesmo tempo, a reciclagem, subtraindo resíduos das ruas e das lixeiras, abriu nova frente de negócios e de renda, pavimentando a adoção de tecnologias inovadoras. Tudo isso tem concorrido para, por exemplo, para alavancar a reciclagem dos plásticos, incentivando maior requisição deste material nos circuitos dos recicláveis e é óbvio, do PET em especial. No caso da indústria têxtil, as garrafas de polietileno tereftalato (comumente conhecidas como garrafas PET), tem encontrado uma promissora perspectiva com a utilização da fibra do PET descartado como componente da trama de tecidos novos. Paralelamente a esta recuperação de matéria prima, as indústrias têxteis obtêm um ganho secundário em razão das roupas de fio reciclado possuírem um apelo “ecológico”, devidamente explorado por um marketing especializado. 3 392 No Brasil, também se faz notar esta tendência. No ano 2000, o índice de reciclagem de garrafas PET foi 24,8%, posicionando o país entre os que mais reaproveitam esta sucata em todo o mundo (estatística da Associação Brasileira dos Fabricantes de Embalagens PET, a ABEPET). Igualmente no ano 2000, o país reciclou 67 mil toneladas do produto, ou seja, cerca de 1,5 bilhão de garrafas. Apesar da reciclagem de PET no país ter entrado em operação somente em 1994, “o índice brasileiro é maior que o de países do Primeiro Mundo que já realizam a atividade há 20 anos, como os Estados Unidos e Japão, que reciclaram 23% e 22% de suas garrafas PET no ano passado” (ESCOBAR, 2000). A reciclagem do alumínio, ao se tratar de atividade na qual o Brasil desponta com a maior porcentagem global, ensejaria alguns comentários adicionais. Incentivada por campanhas promovidas pelas recicladoras, as latas de alumínio, encaminhadas através de centros de triagem ou provenientes do paciente trabalho dos catadores, são, sem dúvida alguma, o reciclável mais valioso, com preço cinco vezes superior ao plástico, o segundo, ad valorem. A coleta das “latinhas” oferece remuneração vantajosa decorrente do seu valor agregado, e não sem motivo, esta sucata é considerada como “o ouro dos catadores”. Em 2003, o país se tornou campeão mundial em reciclagem de invólucros de alumínio pelo terceiro ano consecutivo, com 89% das embalagens recolhidas, pontuação que decorre quase exclusivamente da faina diária dos trabalhadores da catação (Cf. CORDIOLI, 2005; CALDERONI, 2003: 179). 3 393 Certamente, existiria no bojo destes prontuários uma miríade de motivos suficientes para celebrar os índices de aproveitamento dos recicláveis. Alicerçada com base neste panorama, a expansão da reciclagem tem sido exibida com certo triunfalismo, fazendo uso de discursos reiteradamente apoiados no conceito de desenvolvimento sustentável. Aparentemente, a reciclagem resolveria de uma vez por todas os efeitos perniciosos da industrialização e o mundo moderno poderia enfim encontrar tranquilidade para manter seus hábitos de consumo a vontade. Entrementes, esta percepção deve ser balanceada com objetividade, revelando que grosso modo, este elenco de conquistas é acima de tudo condizente com a meta de assegurar a perpetuação da economia de mercado e seu modelo de gestão da produção. Neste sentido, recorde-se que a formação social capitalista se acoplou, no trajeto que transcorre desde o surgimento dos burgos no final da Idade Média até a globalização, a muitas ressignificações. No bojo destas alterações, a prática capitalista adquiriu novas feições, respondendo às inflexões históricas que se apresentavam. Todavia, ainda que ininterruptamente mimoseando-se com o que seria inédito, a linha mestra da economia de mercado permaneceu intocada desde o princípio. Nesta vertente de continuidade, antes de ser condicionado pela crise ambiental, foi o sistema econômico que desta se apropriou em prol dos motes de reprodução socioespacial que lhe apetecem. 3 394 Tome-se, por exemplo, o caso do alumínio. Material estratégico no mundo contemporâneo, o fabrico do material está sob comando do chamado “Cartel das Seis Irmãs”, composto pela Alcoa, Alusuisse, Reynolds 78, Kaiser, Pechiney e Alcan. Este grupo de firmas é quem dá a última palavra quanto à plotagem espacial de qualquer fábrica de alumínio no planeta. Seguramente, este ramo da metalurgia constitui um dos mais poderosos monopólios existentes no mundo. Consequentemente, não seria estranho que a reciclagem deste material também materialize um segmento altamente concentrado e monopolizado. Exemplificando essa propensão, no Brasil, a LATASA é a única fabricante de latas de alumínio e única compradora desta sucata 79, logo, materializando um misto de monopólio e monopsônio (CALDERONI, 2003: 177/188). Este é um, dentre muitos relatos, explicitando que a reciclagem simplesmente não está em contradição com as diretrizes maiores do establishment econômico-industrial. Em tempo: a reciclagem observa expansão tão só quando deixa de ser possível manter o processo predatório anterior, questionado por modelos “ambientalmente mais contemporâneos”. A escassez de recursos, resultado direto do triunfo da moderna economia de mercado, passa então a justificar a reciclabilidade dos resíduos, inclusive enquanto estratégia para realimentar os fluxos da economia. Atada às lógicas do mercado, a indústria da reciclagem Confirmando este dinamismo, em junho de 2004 foi anunciada a fusão entre a ALCOA e a Reynolds (Vide CAVALCANTI, 2005) 79 Esta empresa resultou de uma associação, datada de 1990, entre o Banco Bradesco, J. P. Morgan e a Reynolds Metals Company, sendo que a participação desta última foi repassada para a ALCOA, multinacional de capital norte-americano, a principal do segmento da cadeia produtiva da bauxita e da metalurgia do alumínio. 78 3 395 passa a instrumentalizar e a nutrir-se das mesmas dinâmicas que perpassam pelo modus operandi do sistema. Assim, a captação dos recicláveis tem se avolumado através da arregimentação de desempregados e da população de rua e não como resultado de mudanças comportamentais. Muito mais do que pelo esperado sucesso dos programas de educação ambiental, é pela salvaguarda de sobrevivência mínima que o exército de catadores das cidades brasileiras se anima a retirar das ruas tudo que possa ser imediatamente comercializado no ponto de captação mais próximo. Esta arguição, é respaldada por pesquisas do IBGE, que expõem o contraste entre os índices de reciclagem e os serviços de coleta seletiva dos resíduos. Enquanto que, por exemplo, 89% das latas de alumínio são recicladas, apenas 1,9% dos descartes são coletados de forma seletiva 80. Tais dados comprovam assim, a enorme capacidade do mercado exercer hegemonia convocando numeroso contingente de excluídos do mercado formal de trabalho para que atuem como catadores. Nesta lógica, fica bastante claro que não é devido aos progressos da “conscientização ecológica” que a reciclagem avança. As inflexões da “economia desregulamentada” orientam bem mais a estruturação deste ramo empresarial do que a preocupação com a conservação dos recursos naturais. Ipso facto, a cadência da incorporação destes procedimentos pelo sistema econômico no seu sentido mais amplo, tem avançado homeopaticamente. 80 Cf. Manchetes Socioambientais, edição de 05-11-2004. 3 396 Vale repetir, a testemunhar esta tendência, de acordo com dados do IBGE referentes a 2002, somente 451 dos 5.507 municípios do país promovem programas de reciclagem, como foi frisado, 8,11% do total, porcentagem que fala bem alto quanto ao menoscabo oficial pela catação e recuperação das sucatas. Outro dado é que a adoção da reciclagem, ao ser assimilada de modo gradativo (até porque, uma vez atendendo aos mecanismos de reprodução do sistema estes tendem, sobremodo, a incidir nos elos mais capitalizados da economia, o que reforça a adoção seletiva da reciclagem), são dispensadas, à vista disso, mudanças estruturais no universo econômico. Consequentemente, a cultura utilitarista de uso dos insumos naturais e dos recursos hídricos, observa, quando muito, alterações pontuais, mas não estruturais. Não por outra razão senão pelo fato de que a reciclagem, uma vez transcorrendo sem requalificar o conjunto do aparato produtivo, anula eventuais “ganhos de produtividade” pela expansão do próprio sistema de produção de mercadorias. Por conseguinte, um número maior de empresas operando com base em “métodos racionais”, termina por tensionar a requisição dos insumos naturais numa escala ainda mais ampla do que antes. Foi sinalizado nos parágrafos anteriores, a equação que articula os recursos hídricos aos resíduos sólidos, tem na revisão das metas e das premissas do padrão civilizatório hegemônico, uma precedência que se explicita por si mesma. Em acerto com esta evidência, a reciclagem ajusta-se à condição de paliativo, porém, não de solução 3 397 efetiva dos problemas ambientais, assim como não esgota a questão da utilização racional das águas doces. Concretamente, o que se impõe é o primeiro dos quatro “Rs”: Repensar. Por extensão, impõe-se a necessidade de se rever o modo de vida característico da Modernidade. Esta questão envolveria a necessidade de revisão conceitual e procedimental da relação entre a sociedade moderna e natureza, bem como das formas culturais de concepção existentes a respeito do meio ambiente 81, habilitando uma compreensão mais profunda dos problemas e por esta via, da solução destes. Logo, repensar implica em menos embalagens na distribuição das mercadorias; em restringir a utilização do alumínio; menor uso do petróleo na produção de energia e menor consumo nos transportes; diminuição do desperdício por parte dos cidadãos, potencializando os efeitos cumulativos da somatória de cada atitude individual; significa consumo responsável e não-consumista, tendo por fundamento uma vida regrada pelo primado da simplicidade voluntária, atenta ao que de fato é essencial para o futuro dos humanos no planeta; pressupõe reforço da vida comunitária, com cidadãos integrados no contexto do seu espaço de vida imediato e com o meio social no qual vivem e reproduzem as suas esperanças. E isto pelo simples motivo de que repensar, ao significar menos lixo, significa mais água para todos. 81 A respeito, sublinhou o antropólogo Georges BALANDIER, “Toda sociedade possui uma teoria de natureza que lhe é própria, que se expressa em suas configurações intelectuais, senão igualmente em complexos de símbolos, de instrumentos e de práticas” (1988: 194). 3 398 CAPÍTULO 8 A GEOGRAFIA DA SEDE 8.1. ÁGUA: NATUREZA, SOCIEDADE E ESCASSEZ O contexto atualmente vivido pela humanidade é pródigo em dilemas, descortinando embargos aos quais amplas camadas sociais dispensavam, em tempos recentes, pouca ou nenhuma atenção. Quem nos séculos passados ousaria pontuar questões como a oferta decrescente de solo agrícola, madeira, pescado e de outros recursos naturais? No entanto, hoje são corriqueiros os comentários a respeito da erosão da biodiversidade, extremos climáticos globais, refugiados ambientais, temas que não frequentavam, nem mesmo em sonhos, a imaginação do mais visionário dos pensadores. Nesta perspectiva, seria inevitável incluir na extensa seriação de problemáticas contundentes relacionadas com o acesso à água doce, a variante ambiental, que justamente constitui um dos tópicos centrais desta tese de doutorado. Certamente, em função de várias pontuações colocadas em diversos momentos ao longo deste texto, os fatos relacionados com o modo de funcionamento dos sistemas de engenharia (Vide SANTOS, 1978a e 1988), se destacariam de modo relevante nesta discussão. Sentença esposada por diversos cientistas sociais, as contradições mantidas pela humanidade com o meio natural não podem, em 3 399 nenhum momento, serem desvinculadas das contraposições que os humanos sustentam entre si. Consequentemente, na modelagem do espaço geográfico, nos arranjos espaciais articulados pelos humanos com base nos acervos ecológicos incrustados na natureza primeira, temos o espelhamento das relações sociais mantidas pelos homens entre si, e destes, com o meio natural. Neste processo, a natureza original ou primeira, é transformada numa natureza segunda, artificial, criada pelo homem. Constituindo pontuação indissociável da obra de Karl Marx e de Friedrich Engels, fundadores do materialismo histórico, a esta consideração, nem os marxistas não geógrafos e tampouco os geógrafos marxistas, se dispuseram a granjear uma merecida atenção (Vide SANTOS, 1978a: 201). A despeito disto, este entendimento configura um soberbo quadro conceitual apto a decifrar as formas como a desequilibrada plotagem dos insumos naturais no espaço, terminou instrumentalizada para formar, reafirmar e dar continuidade a uma multíplice forqueaduras de poder. A partir deste momento seria, pois, pertinente vincular os dados referentes aos modos pelos quais as sociedades têm animado suas modalidades de reprodução socioeconômica, com os relacionados com a distribuição geográfica das águas doces. A desigual repartição das águas doces ao redor do planeta constitui aspecto merecedor de inúmeras pontuações. Não por outra razão, senão pelo fato da água 4 400 doce apresentar-se como um elemento de magna importância, visto conferir, pela primeira vez na história, a um item marcante em nível de preocupações globais. Na sequência, uma primeira ponderação quanto à oferta natural dos recursos hídricos, é que esta, ao ser reconhecidamente irregular, engendraria por si mesma, disparidades quanto ao atendimento da humana demanda por água. No final das contas, como ignorar que os rios da Sibéria centrosetentrional descarregam enorme volume de água nos mares gélidos do Ártico, lado a lado com a populosa demografia da Ásia Oriental? Ou ainda, materializando outra situação bastante representativa, que o sistema hidrográfico formado pelos rios Ganges e Bramaputra, no Norte da Índia, ambos compreendendo 1% da superfície da Terra, abrigam em seus vales, não menos que 10% da humanidade? Num mundo em que o acesso à água confunde-se cada vez mais com a lógica do poder, unicamente esta nuança justificaria a intenção em identificar tanto as nações com fartos provimentos hídricos quanto aquelas nas quais estes são escassos. Disto decorre que parâmetros técnicos, de matriz volumétrica e quantitativa, largamente utilizados, seriam propícios como ferramentas para identificar variada gama de situações. Estes discriminam como muito ricos os países que, segundo seu potencial e uso dos recursos hídricos, apresentam índices superiores a 100.000 m³ de água doce/habitante/ano. Quanto aos países ricos, estes corresponderiam aos situados na faixa de disponibilidade entre 4 401 10.000 até 100.000 m³/habitante/ano. Numa ordenação decrescente, poderíamos mencionar nações cujo potencial seria suficiente, entre 2.000/10.000 m³/habitante/ano; regular, com base em 1.000/2.000 m³/habitante/ano; pobre, entre 500 e 1.000 m³/habitante/ano; e muito pobre, com potencial inferior a 500 m³/habitante/ano (Vide a respeito REBOUÇAS, 2002a: 15). Estes patamares permitiriam focalizar, em termos de abundância de águas doces, um afortunado conjunto de nações. Um conjunto de países muito ricos em recursos hídricos seria composto pela Guiana Francesa, Islândia, República Cooperativa da Guiana, Suriname, Gabão e a Papua-Nova Guiné. Na listagem dos países ricos, estariam presentes, dentre outros, os “dois Congos” 82, a República de Angola, as Ilhas Salomão, Venezuela, Colômbia, Brasil, Mali, Bangladesh, Camerun, Bolívia, Tchad, Vietnã, a Suécia, a Finlândia e a Indonésia, nações que poderiam integrar seleto bloco de países potencialmente provedores de água (Figura 16). É de se notar quase todos os países mencionados são tropicais, integram a periferia do sistema global e que ademais, três dos seis países mais bem agraciados com reservas hídricas, estão situados na área da Bacia Amazônica. Outra singularidade, é que quatro nações da América Latina, dentre estas o Brasil, constam na lista dos países ricos em água doce (MARTINS, 2003). Entretanto, uma vez que vários dos países citados possuem área e população pouco significativas na escala mundial, nada sugere que Estes são a República Democrática do Congo (ex-Zaire ou Congo Kinshasa, no passado uma colônia belga) e a República Popular do Congo (ou Congo Brazzaville, anteriormente uma possessão francesa). 82 4 402 sejam necessariamente detentores de grandes provisões hídricas. A título de exemplo, o Gabão, a Guiana Francesa e a Islândia, embora consistindo de espaços formados por territórios drenados por uma vigorosa trama de rios e córregos, perfazem territórios e populações de pouca expressão. FIGURA 16 - Perfil do acervo hidrológico dos países potencialmente provedores de água doce (Esquema elaborado a partir de dados compilados em Margart, J., Repartition des ressources et des utilisations d’eau dans lê monde: Disparités Présents et Futures, La Houille Blanche, nº. 2, pp. 40-51, 1998) Na ponta do lápis, estes países possuem extensão relativamente pequena (respectivamente 267.667 km², 91.000 km² e 103.000 km²), 4 403 concentram população absoluta muito modesta (1.208.435, 172.905 e 279.000 habitantes) e apresentam baixa população relativa (4,5; 2,7 e 1,9 hab./km²). Para completar, nestes países, a parte do leão do contingente demográfico está concentrado numa fração mínima dos espaços nacionais (a orla marítima, e nesta, basicamente as capitais), fazendo sentido, portanto, anotar que são largamente despovoados. Por isso mesmo, apesar de disporem de significativo excedente hídrico per capita, do ponto de vista absoluto a importância destes espaços quanto aos recursos hídricos globais, não seria em nada comparável aos “gigantes hídricos”. Na realidade, o grupo de países com maior concentração de recursos hídricos reúne nações com vastos territórios e abundante rede hidrográfica, formando o que tem sido denominado como “G6 da água”. Este bloco, integrado pelo Brasil, Estado Unidos, Canadá, China, Índia e Federação Russa, concentraria, de acordo com cálculos do eminente hidrólogo russo Igor SHIKLOMANOV (1999), algo como 40% do escoamento da água de superfície de todo o mundo. Além dos países citados, interessaria do mesmo modo consignar adendo reparador, endereçado à República Democrática do Congo (RDC). Observe-se então que apesar de a mídia insistir na existência de um “G6”, este último país, em parceria com os seis primeiros, em virtude de ser abundantemente irrigado pela bacia do rio Zaire, poderia mais corretamente, justificar a identificação um G7 da Água. Quanto ao quinhão brasileiro no montante total dos recursos hídricos planetários, além da cifra de 12% (REBOUÇAS, 2002a:29), praticamente um consenso no meio especializado, poderíamos citar 4 404 avaliações adicionais. Fala-se em 8% (cifra mais difundida na década passada, eventualmente utilizada), em 11% (Cf. TUCCI, HESPANHOL et NETTO, 2001:42), e 13% (Cf. MARTINS, 2003), levantamentos que diferem em razão da discrepância das matrizes teóricas adotadas. De qualquer modo, nenhum destes registros contesta o fato do Brasil ser o maior possessor de recursos hídricos na escala mundial. Francamente, em se tratando de 8, 11, 12 ou 13% da água mundial, estamos nos referindo, em qualquer uma dessas circunstâncias, a um volume descomunal do líquido. Por fim, esclareça-se que a porcentagem de 17%, eventualmente atribuída ao Brasil em alguns textos, refere-se à somatória da vazão gerada no território brasileiro com a que escoa dos países vizinhos, dita particularmente verdadeira no tocante à Bacia Amazônica (Vide TUCCI, HESPANHOL et NETTO, 2001: 34 e 42). Note-se que o Brasil é o único país pertencente ao G7 da Água que se encontra em situação favorável em termos de disponibilidade hídrica. Nos Estados Unidos, as solicitações da economia e do estilo de vida consumolátrico em vigor neste país, a despeito do gigantismo dos recursos em água, fazem com que se avizinhe grave carência hídrica já na terceira década deste século. O Canadá certamente dispõe de muita água congelada. Mas, tal como foi alertado, a mineração deste estoque contribuiria diretamente com o aquecimento global, comprometendo ainda mais o equilíbrio da biosfera terrestre. O mesmo pode ser dito para a Federação Russa. De resto, tanto o Canadá quanto a Rússia, nações com significativos 4 405 parques industriais, apresentam elevados níveis de poluição dos seus rios e lagos, tendo ainda de dar conta das suas crescentes demandas internas 83. No tocante à China, Índia e a República Democrática do Congo, países do Terceiro Mundo, o cenário não admitiria euforia. Na China e na Índia, os recursos hídricos têm sido intensamente malbaratados por um esgotamento sanitário deficiente, pelos efluentes resultantes de uma industrialização/urbanização desenfreada, e no caso chinês e indiano, pelo gigantismo demográfico, respectivamente a primeira e a segunda posição no ranking da demografia mundial. Finalmente, a RDC tem se caracterizado pela intermitente turbulência política e seu quadro sanitário deixaria pelo mínimo, muito a desejar. Portanto, em termos do G7 da Água, o Brasil seria uma nação propensa a ocupar um papel de ponta no comércio internacional de água doce, de um modo que dificilmente encontraria competidores (MARTINS, 2003). Todavia, a escassez de água doce é difusa, não se restringindo às nações citadas. Em paralelo aos países cujos acervos hídricos, embora imensos, tornaram-se insuficientes, pode-se identificar no extremo oposto do ranking da disponibilidade, nações extremamente pobres em recursos hídricos. Estados insulares como Maldivas, Cabo Verde, Malta, Bahamas, Chipre e Cingapura estariam incluídos nesta relação, nações nas quais as condições naturais, somadas à pequena extensão e à citada condição de insularidade, explicam a exiguidade da rede hidrográfica e o baixo potencial de captação de descargas fluviais, justifica objetivamente a escassez de recursos hídricos. No caso canadense, recentes declarações das autoridades norte-americanas propondo a construção de aquedutos para abastecer os Estados Unidos têm motivado vívida contrariedade entre os agricultores e da população urbana do Canadá, temerosos de serem vitimados com a falta de água em razão da exportação da água doce do país. 83 4 406 Porém, deve-se, vis-à-vis, encorpar a avaliação com o concurso de notórias injunções de ordem socioeconômica e dos desequilíbrios globais da biosfera 84. Anote-se que apesar de países como Nauru, Vanuatu, Kiribati, Micronésia e ilhas Marshall, na Oceania, recorrerem à captação das precipitações pluviométricas para assegurarem seu suprimento de água, estas, além de passíveis de serem afetadas pelas mudanças climáticas, são açambarcadas em boa parte pela atividade turística, vital para as economias destes arquipélagos. Logo, não seria desmotivado profetizar que em futuro próximo muitas outras ilhas ingressarão na lista dos territórios assolados pela sede, quando não, fadados à desaparição pelas intercorrências ecológicas de uma economia-mundo sobre a qual não detém nenhum controle, e que as arrola às sistematizações econômicas que terminarão por destrui-las. As regiões áridas e semiáridas formam outro sabido conjunto crítico. Estas áreas caracterizam um quadro natural dificultoso ao qual se agrega, em muitos casos, uma notável contabilidade de crispações geopolíticos. No Oriente Médio, um exaustivo elenco de contradições opõe países, etnias e classes sociais relativamente ao acesso às águas doces, uma rivalidade que põe a nu a origem etimológica desta palavra, procedente do latim rivus, que justamente significa rio. Por exemplo, dos onze países mais pobres em água doce do mundo, sete são nações árabes: Kuwait, Qatar, Arábia Saudita, Líbia, Bahrain, Jordânia e os Emirados Árabes Unidos, aos quais pode-se somar a Faixa de Gaza, ocupada por Israel, dramaticamente afetada Exemplificando, a cidade de Cingapura representa um modelo clássico de urbe faustosa devoradora de recursos hídricos, importando o líquido da vizinha Federação da Malásia. A crise de abastecimento de Chipre, das Maldivas e das Bahamas se explica em grande parte pelo fluxo turístico, cujo consumo de água é garantido, sendo praticamente intocável. 84 4 407 pela escassez de água. Tais países e territórios integram uma região estratégica, o Machrek 85, conhecida pela turbulência política crônica, suscetível de ser agravada pela escassez de água (Cf. REBOUÇAS, 2002a: 19). Na Ásia Ocidental, não o abundante ouro negro, mas sim a água rarefeita, é o recurso estratégico por excelência. É possível imaginar um Oriente Médio sem petróleo. Todavia, sem água, esta região, tal como qualquer outra, simplesmente deixaria de existir. É por esta razão que a questão dos recursos hídricos não pode em nenhum momento ser marginalizada da avaliação dos problemas geopolíticos regionais. Insistir numa ótica exclusivamente política, econômica ou cultural, além de irrealista, seria ineficaz para compreender situações críticas, e de modo substantivo, em face dos conflitos do Machrek subscritarem dilemas associados ao acesso à água. Significativamente, um report do governo dos Estados Unidos, elaborado nos anos 1980, alertava que dentre dez áreas nas quais poderiam ser previstos conflitos associados com a escassez de água, metade destas situava-se no Oriente Médio. Nesta parte do mundo, quinze países competem com sofreguidão pelas águas de vazão cada vez menor dos rios Tigre, Eufrates, Nilo e do Jordão. Por sinal, em 1975 o Iraque e a Síria estiveram próximos de uma guerra por conta da barragem de Al-Thawrah, construída por este último país no trecho superior do Eufrates. Trata-se de um topônimo de origem árabe significando “Ilha de Oriente”, sendo empregado para designar as regiões que a geografia ocidental reconhece como “Oriente Médio”. O Machrek, no imaginário espacial árabe, contrapõe-se ao Magreb, ou “Ilha de Ocidente”, correspondendo à Berberia antiga da cartografia europeia, grosso modo, os atuais Marrocos, Argélia e Tunísia. 85 4 408 Nem mesmo as copiosas águas do Nilo constituem uma fonte de estabilidade regional. Quando o governo etíope anunciou planos de represamento dos afluentes do Nilo, no distante planalto abissínio, o então presidente Anwar Sadat, do Egito, nação definida no passado pelo historiador grego Heródoto como “Dádiva do Nilo”, a luz do fato do país depender das águas caudalosas deste grande rio, ameaçou a Etiópia em 1979 com uma declaração de guerra. Neste contexto, um dos conflitos mais espicaçados pela posse dos recursos hídricos tem sido protagonizado pela Turquia, que, aliás, é o único Estado-membro da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) situado no Oriente Médio. O Estado turco tem levado adiante o Projeto Grande Anatólia, foco de desavenças com os países vizinhos por apropriar-se dos recursos hídricos da alta mesopotâmia, região que concentra os raros, porém dos mais extensos e volumosos caudais d’água do antigo Fértil Crescente. Este megaprojeto turco consiste no represamento a montante, isto é, junto às cabeceiras do rio Eufrates, de imensas quantidades de água, portanto, subtraindo a vazão natural rio abaixo, qual seja, a jusante. Como não poderia deixar de ser, este plano foi interpretado pelos vizinhos meridionais, a Síria e o Iraque, como uma ameaça aos seus interesses vitais, pois necessariamente o programa turco implica na diminuição do suprimento do líquido para ambos os países (Cf. VILLIERS, 2002: 295/310 e ELLIOTT, 1998: 223). Mas, nenhuma destas situações, conflitantes ou potencialmente geradoras de conflagrações, repercute de modo tão intenso em nível da política regional e internacional quanto às contendas que opõem 4 409 Israel e os países árabes. Para além das contradições políticas, territoriais, religiosas e de identidade nacional, que grosso modo são reconhecidamente “mais fotogênicas”, estão implicitamente colocadas disputas associadas com a posse per se da água doce. Reproduzindo um comentário sintético a este respeito, ...modernamente o conflito mais grave da água é vivenciado por israelenses e palestinos, cujos mananciais disponíveis dependem de acordos entre Jordânia, Síria, Líbano, Egito e Arábia Saudita (REBOUÇAS, 2002a: 19). Existe com toda certeza, um quadro hidrológico nada benfazejo marcando a geografia dos países atualmente em conflito. Por sinal, poucas regiões do mundo possuem relatos tão incisivos sobre a falta de água quanto esta, a começar pelo que pode ser consultado no Antigo Testamento e num repetitivo leque de relatos gerados pelas culturas locais nos últimos três milênios. Registros antropológicos documentam a luta ferrenha das tribos do deserto pela posse dos oásis e dos acanhados, porém essenciais, poços de água perdidos nas areias. Textos cuneiformes procedentes das chancelarias da Suméria compilam, por sua vez, escaramuças entre as cidades da mesopotâmia pelas águas do Tigre e do Eufrates. Cidades como Meca e Reinos como o de Sabá, dependiam de uma rigorosa administração de ínfimos veios d’água. Caberia atestar que uma das áreas mais tórridas do mundo, o deserto do Rub Al-Khali (“recanto seco” em árabe), alojado no Sudeste da península arábica, é um autêntico “cul-de-sac” absolutamente árido, circundado por um colar de superfícies desérticas que compõem os torrões do Machrek. 4 410 É possível também subsidiar estas observações com base em outras referências, dentre estas, a sugestiva comparação feita entre Israel e o semiárido nordestino, região que no mais das vezes, integra um imaginário “geográfico” como sinônimo de a falta de água. Relembre-se que nos anos 1970, quando a agricultura irrigada israelense tinha conquistado a mídia mundial mediante a tonitruante apresentação dos sucessos repetidos das suas colheitas, assinalou com aguda perspicácia o geógrafo pernambucano Manuel Correia de ANDRADE, relativamente à escassez de água neste país: Convém salientar, para dar uma ideia do deficit de umidade, que no sertão brasileiro, em Cabaceiras, na Paraíba, o município mais seco do país, chove 259 mm por ano, dez vezes a quantidade de chuvas que caem em certas áreas de Israel (1977: 68, grifos nossos). Como que confirmando a sagaz notação do geógrafo brasileiro, esta ponderação reaparece de maneira emblemática numa célebre declaração realizada pelo político israelense David Ben-Gurion em um encontro público travado com a comunidade judaica de São Paulo por ocasião de um tour em 1969 pelas coletividades da América Latina. Consta que inquirido pelo presidente brasileiro a respeito de um presente que o Brasil poderia oferecer ao Estado de Israel, diante do repto, o visitante teria respondido sem pestanejar: “Por favor, me presenteiem com um rio, qualquer um, pode ser um destes que eu vi pelo caminho...”. Deveras, na impossibilidade de receber um rio como presente, o Estado de Israel, adotou, obrigatoriamente, padrões de indiscutível 4 411 eficiência na gestão dos recursos hídricos localizados nos territórios sob sua administração direta, um know-how disputado no mercado internacional de tecnologias de aproveitamento da água (Cf. DAR et HERMONI, 2005). A magnificência técnica que tipifica a agricultura de Israel, é um dado merecidamente recordado nas avaliações sobre o uso inteligente da água nesta árida nação levantina (Cf. REBOUÇAS, 2004: 96). Recorde-se que este país ...pratica irrigação numa faixa do seu território onde a pluviometria média é de apenas 200 mm/ano, logrando alta produtividade agrícola com a aplicação de uma taxa de irrigação da ordem de 6.000 m³/ha/ano. Esta taxa situa-se entre 12.000 e 20.000 m³/ha/ano em outras regiões do mundo, relativamente mais favorecidas em termos de disponibilidades de água e clima (REBOUÇAS, 2002a: 19). No entanto, sem desmerecer a proverbial competência israelense na gestão das águas do seu território, esta é, no entanto, insuficiente para o atendimento das demandas das redes produtivas e consumo individual na escala mais ampla. Com base neste fato objetivo, esta lacuna induziu o Estado de Israel a uma política premeditada de apropriação de recursos hídricos alheios à sua circunscrição territorial direta (aqui entendida como a delimitada pelas fronteiras de 1949). Tal observação diz respeito de forma cabal à requisição da água doce extraída dos territórios ocupados da Cisjordânia (West Bank) e de Gaza (Gaza Strip), bem como da região das Colinas do Golan, todos constituindo áreas em litígio com os povos vizinhos (Figura 17). Apenas deste modo Israel tem logrado assegurar à sua população um índice de consumo de água em média cinco vezes superior ao dos 4 412 países dos arredores, situação ímpar em todo o Levante (ELLIOTT, 1998: 224). FIGURA 17 - O mapa evidencia Israel (em verde), Gaza e Cisjordânia (em laranja), e o Golan, (Golan Heights), território sírio ocupado desde a Guerra dos Seis Dias (1967). Gaza e Cisjordânia são partes do Estado Palestino programado para ser estabelecido pela Partilha da Palestina. Entretanto, após a Guerra de Independência de Israel (1948-1949), estes territórios foram respectivamente ocupados pelo Egito e Jordânia, sendo em 1967 tomados por Israel. Hoje, Gaza está sob controle do Hamas e a Cisjordânia, sob mando parcial da Autoridade Nacional Palestina (ANP). Note-se que a ANP e o Hamas são hostis entre si, protagonizando uma cruenta guerra civil após a vitória do Hamas nas eleições parlamentares da Palestina, ocorrida no ano de 2006 (Fonte: Free World Maps, < https://www.freeworldmaps.net/ >. Acesso em: 4-01-2015) 4 413 No caso dos territórios ocupados da Cisjordânia, a conflituosa pendência da apropriação dos recursos hídricos locais explicita-se, por exemplo, através da proibição imposta pela ocupação israelense quanto à perfuração de novos poços pela população civil local e pelo veto ao acesso desta às águas do rio Jordão. Ao mesmo tempo, os assentamentos israelenses ilegalmente instalados nestas regiões desfrutam de acesso irrestrito à água, em flagrante contraste com a indigência hídrica da população palestina. De acordo com o Banco Mundial, com paramento em informes disponíveis para o ano 2000, cerca de 90% da água da Cisjordânia é apropriada por Israel, enquanto que os locais dispõem dos 10% restantes. As águas dos aquíferos da Cisjordânia hoje fornecem cerca de 25% do total consumido pelos israelenses, cujo ritmo de retiradas, extrapolando a capacidade natural, está conduzindo ao esgotamento irrefreável destes reservatórios. Em Gaza, a situação é ainda mais crítica. Neste pequeno enclave com apenas 365 km², estão assentados aproximadamente 1,1 milhão de palestinos (estimativa de 2002), elevada proporção dos quais habitando campos de refugiados. A Faixa de Gaza é uma das regiões mais densamente povoadas do planeta: 2.000 habitantes/km². Em Gaza, o avanço dos níveis de poluição e o precário sistema de evacuação dos efluentes domésticos, tornam o líquido dos lençóis subterrâneos crescentemente impróprio para o consumo. Constata-se paralelamente um aumento da salinidade decorrente da exaustão dos aquíferos, pois a retirada excessiva de água favoreceu intrusão salina 4 414 provocada pela infiltração das águas salgadas do Mediterrâneo. Em 1996, um relatório elaborado pelo Banco Mundial assinala que Gaza constitui o mais inquietante de todos os casos de estresse hídrico até aquele momento registrado em todo o mundo. Para tal situação, contribuiu o impacto dos assentamentos ilegais implantados por Israel na região logo após a Guerra dos Seis Dias, ocorrida em junho de 1967. Estudo da Fundação Americana para a Paz no Oriente Próximo, datado de julho de 1998 e divulgado por entidades palestinas e israelenses, relaciona a escassez diretamente ao animus apropriandi de terras pelas colônias ilegais e áreas sob o controle estratégico e militar de Israel. Isto porque as instalações estão associadas ao confisco da água doce, desviada para manter projetos de colonização, assentamentos diretamente responsáveis pelo comprometimento do abastecimento da população local. Em 2005, acredita-se que 40% da população de Gaza não disponha de água segura para suas necessidades diárias. Em Gaza, até o momento em que Israel encetou em setembro de 2005 a “Operação Desengajamento”, os 24 assentamentos ilegais instalados nesse território perfaziam 0,6% da população residente da Faixa de Gaza. Ao mesmo tempo, esta minoria controlava 25% das terras agricultáveis, garantindo-lhes um índice 699 vezes maior de acesso à terra do que os habitantes dos campos de refugiados, seus vizinhos imediatos. Ademais, este grupo consumia 47% dos recursos hídricos desta nesga sedenta de território. 4 415 O fim do controle direto exercido por Israel na Faixa de Gaza, pouco modificou este horizonte de carestia hídrica. A retirada dos colonos não implicou numa alteração da política israelense de gestão dos recursos hídricos no território, até porque as autoridades de Israel não renunciaram ao usufruto dos recursos hídricos locais e seguem omissas quanto à transferência da titularidade das fontes regionais para a administração palestina. Com relação ao disputado planalto do Golan, o que está em jogo é o controle dos mananciais setentrionais que abastecem o Jordão, por sinal compartilhado por países conhecidos pela aridez e pelas dificuldades quanto ao desfrute da água doce. As nascentes deste rio, situadas nos cumes nevados da Síria e do Líbano, originam um curso fluvial permanente, ocorrência muito rara num espaço perpassado pela escassez de recursos hídricos, daí o interesse israelense em manter a posse destas cobiçadas colinas. Esta região, tomada aos sírios pelos israelenses durante a Guerra dos Seis Dias e mantidas após a Guerra do Dia do Perdão (ou do Yom Kipur) em 1973, é um território que reúne, ao lado dos seus atributos geofísicos, uma cabal qualificação estratégica. Assinale-se que o rio Jordão, nanico para os padrões brasileiros, escoa em 251 quilômetros de extensão linear. A título de exemplo, o rio Tietê, que é somente um dentre centenas de cursos d´água que deságuam no rio Paraná, possui 1.100 quilômetros de extensão e é deveras, mais caudaloso. Mas, a despeito de sua acanhada extensão e caudal diminuto, ainda assim, o Jordão constitui o mais importante curso d'água da região ocidental do Oriente Médio (Figura 18). 4 416 FIGURA 18 - Meandros do Rio Jordão: Esta foto, datada dos anos 1940, registra o trecho final do Jordão, pouco antes deste desaguar no Mar Morto. Os inúmeros meandros que serpenteiam ao longo da calha fluvial resultam da ação das águas do rio. Tratando-se de uma calha formada por sedimentos recentes (Cenozoico), o terreno oferece baixa resistência aos dinamismos hidrológicos do rio, que desenha deste modo um trajeto errático. A Oeste do vale está o deserto da Judeia e a Leste, o deserto de Moab. Ambos contrastam com a vegetação luxuriante que ocupa a calha central do vale deste rio (Fonte: Israel - Die Goldenen Bücher, 1969, página 81. A seta indica a direção norte) O acirrado grau de contradições inseridos na disputa pelas águas minguadas deste modesto curso d’água, é patente quando tomamos conhecimento de que o Jordão é um rio internacional. Nada menos do que cinco entidades nacionais existentes ou em formação relacionamse com o Jordão: Líbano, Síria, Israel, Jordânia e a ANP (Autoridade 4 417 Nacional Palestina). Do ponto de vista ambiental, é do adequado aproveitamento e da preservação das águas da Bacia do Jordão que depende o equilíbrio hidrológico da área drenada pelo seu fluxo. Esta assertiva condiz, entre outros aspectos, com a questão da evaporação do Mar Morto, lago salgado localizado na charneira fronteiriça na qual confluem os territórios de Israel, Jordânia e da Palestina, cuja retração resulta da diminuição do caudal do Jordão. Lamentavelmente, em face do fluxo fluvial do Jordão corresponder atualmente a apenas 1/8 do volume registrado cinco décadas atrás, o apreensivo cenário pelo qual o Mar Morto pode estar eliminado dos mapas da geografia física é, infelizmente, bem mais do que uma mera premonição. Outrossim, mesmo crivado por toda sorte de contradições, um dado preocupante é que o Oriente Médio não constitui a única região do mundo a vivenciar problemas sérios vinculados com os recursos hídricos. Em função da degradação ambiental, espaços anteriormente brindados com ampla oferta do líquido ressentem-se no início do II Milênio da escassez de água doce. Fenômenos como as mudanças climáticas estão promovendo impactos múltiplos, todos relacionados com a redução dos estoques de água. Dentre estes, poderíamos citar a desertificação, diminuição do caudal e comprometimento da vazão das bacias hidrográficas, supressão volumétrica drástica de bacias lacustres e a elevação do nível dos mares. 4 418 Neste último caso, análises produzidas nas últimas oito décadas demonstram elevação média do nível dos oceanos na ordem de 1,2 mm/ano. O fenômeno relaciona-se com o fato das massas oceânicas estarem incorporando a cada ano, 430 km³ de água proveniente das águas continentais. Ao mesmo tempo em que ocorrem acréscimos do nível dos mares, estes provocam uma subtração ainda maior da área das terras emersas e portanto, variações da quantidade e qualidade dos recursos hídricos nas regiões litorâneas (NEGRET, 1982: 35). Além do Machrek, tensões relacionadas com os direitos sobre os recursos hídricos podem ser arrolados nas bacias dos rios Mekong (compartilhada entre o Laos, Burma 86, China, Tailândia, Vietnã e o Camboja), da Prata (irrigando o Brasil, Bolívia, Uruguai, Paraguai e Argentina) e do curso do rio Lauca (atravessando a Bolívia e o Chile). Palpavelmente, as hostilidades entre a Índia e o Bangladesh tem sido vitaminadas pela disputa em torno das águas do Ganges, o mesmo ocorrendo na Europa Central entre os países banhados pelo Danúbio. E estes constituem somente alguns dos enfrentamentos que tem promovido desavenças entre nações, povos e etnias que ocupam bacias fluviais e lacustres transfronteiriças. Na realidade, o compartilhamento da água constitui atualmente um problema difundido na escala internacional. Nada menos do que 155 dos maiores sistemas hidrográficos do mundo estão fracionados entre duas nações e, além disso, 59 estão divididos entre três a doze países. Por exemplo, no continente africano o rio Níger, percorre dez Burma passou a ser conhecida como Mianmar por decisão unilateral dos governantes militares deste país a partir de junho de 1989. Ressalve-se que além do movimento de oposição ao regime, um largo segmento da opinião pública não reconhece a validade desta decisão e continuam a se referir ao país como Burma. 86 4 419 países; os rios Nilo e o Zaire banham outros nove; o Zambeze, oito; quanto ao Volta, são seis países. Quase 40% da população da Terra habita bacias hidrográficas multinacionais (ELLIOTT, 1998: 223). Ressalve-se que a pressão exercida sobre os estoques naturais das águas doces, decorrente, por um lado, de demandas incessantes pelo líquido por parte das residências, indústria e agricultura, e de outro, pela contaminação em larga escala das reservas hídricas, tem crescido de tal forma que a própria questão da destinação, ou não, de recursos hídricos para os ecossistemas, ingressou, desde finais do Século XX, na pauta das especulações técnicas e das proposições de planejamento ambiental (SELBORNE, 2002:48). Neste panorama, não há como deixar de registrar as recidivas controvérsias opondo medidas de proteção à vida selvagem (inclusive as ameaçadas de extinção), com as requisições da agricultura e da pecuária, conflitos nos quais a produção de alimentos entra em rota de colisão com a jurisprudência hídrica voltada para a conservação do meio natural (BARLOW et CLARKE, 2003: 79). Nesta conjuntura, os sistemas naturais listados como prioritários numa estratégia de aproveitamento da água doce seriam aqueles que, reconhecidamente, são considerados como indispensáveis para o abastecimento humano, desempenhando marcante papel para o atendimento das necessidades humanas, especialmente as do meio urbano. Nesta situação, se inscreveriam os ecossistemas concentradores de umidade que concorrem para a perpetuação dos mananciais de 4 420 água potável, cuja localização geográfica, logo na circunvizinhança de áreas de concentração urbana, valorizaria sua manutenção. Sendo assim, se justificaria uma perturbadora indagação sobre o futuro dos demais sistemas naturais que, num contexto de escassez crescente de água, os tornariam “supérfluos”, e, por conseguinte, predestinados ao aniquilamento. De qualquer modo, quaisquer que sejam os contextos enfocados, o rol de problemas relacionados com os recursos hídricos reclamaria alguma concisão quando ao nódulo central que induz e reproduz este instigante elenco de prognósticos, todos firmados, em maior ou menor grau, na situação de estresse e/ou de rarefação da água. Novamente, pode-se resgatar o primado pelo qual a crise dos recursos hídricos da atualidade é um fato largamente subsidiado por uma contextualização histórica, econômica e social, equação em cujo seio, a fatoração natural, mesmo concorrendo para a eclosão da crise dos recursos hídricos, não pode, sob nenhum pretexto, isoladamente ser responsabilizada como fator desencadeador desta perturbação. Há que ser sistematicamente repetido que o cosmos global é conotado por desarmonias sociais sem paralelo em toda a história da humanidade. Basta assinalar que os cinco países mais ricos, somam 86% do consumo de todos os bens produzidos no planeta, sendo que estes contrastes que não cessam de se aprofundar. Esta assertiva é inequívoca quando consultamos os dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). No ano de 2002, estes anunciavam que a quinta parte mais afluente da 4 421 população mundial consumia 45% de toda a carne e do pescado, enquanto que a quinta parte mais pobre, somente 5%. Para outros suprimentos, estes percentuais seriam respectivamente: 84% e 1,1% para o papel; 74% e 1,5% para as linhas telefônicas; 87% contra menos de 1% de toda a frota mundial de veículos; 58% contrapostos a menos de 4% quanto à energia. Os dados expostos balizam uma crítica de mão dupla. Ela estaria endereçada para os setores de opinião que alertam para uma “crise hídrica” exposta de modo alheio ao substrato social, assim como para os que responsabilizam mecanicamente a “explosão demográfica” como causa primordial de todos os males do mundo contemporâneo, um argumento sorrateiro que açula o percepcionamento do Terceiro Mundo como motivador sine qua non da escassez de água doce. Um argumento em contrário é que não se pode negligenciar o fato de que os países do Norte, graças aos seus hábitos referendados num estilo de vida afluente, constituem não somente consumidores de bens, como também, de recursos hídricos. Certificar esta situação não oferece quaisquer dificuldades de monta. Basta prestar atenção para o que segue: Os norte-americanos usam 1.280 m³ de água por pessoa todos os anos; os europeus usam 694; os asiáticos usam 535; os sul-americanos usam 311; e os africanos usam 186. Embora o europeu comum use apenas a metade da água utilizada por um norte-americano comum, seus níveis de consumo ainda são altos se comparados aos níveis de cidadãos de países não-industrializados (BARLOW et CLARKE, 2003: 68). 4 422 Por conseguinte, o mais provocativo dos cenários relacionados com a água, está direcionado para a questão do abastecimento dos países da União Europeia, Japão e Estados Unidos, que caminham a passos de gigante da situação de estresse hídrico. Em concordância com o que frisamos anteriormente, este grupo de nações, detentoras de gigantescos parques fabris, compondo os maiores polos de consumo e de esbanjamento de recursos, estarão se defrontando em futuro próximo com a premência de dar conta da “sua” crise hídrica, que se aproxima adereçada de fisionomia própria. Promotoras do modelo de desenvolvimento ao qual cabem as maiores responsabilidades pela crise hídrica que assola o planeta, estas nações veem-se, pois à volta com os dilemas que retrogradam aos espaços vetoriais de desequilíbrios carregados de radicalizado leque de contradições, daí o recorrente apelo teledirigido e da grande mídia insistindo na “dramaticidade” da crise. A despeito do estresse hídrico já ser, desde muitas décadas, uma realidade para a periferia pobre dos grandes centros urbanos, apenas quando esta crise acudiu nos núcleos do sistema global, é que sua visibilidade se impôs aos núcleos de afluência (VIANA, 2005). Numa visada física, ambiental, geoeconômica e geopolítica (ou mais acertadamente, estas quatro dimensões em sinergia), o contexto suscitaria indagações quanto aos cenários que se desenham para estes países satisfazerem suas exigências de água doce, escapando assim, da sina que já acomete os países e as populações pobres. 4 423 Destarte, lado a lado com prognósticos otimistas, antecipando um comércio de água beneficiando provedores e compradores do líquido, pode-se também escriturar a possibilidade de conflitos, cenário este que se materializou historicamente em diversos contextos nos quais se acendeu o interesse por recursos indispensáveis. De resto, mesmo existindo anuência que a água se transforme em um bem de mercado, como estará garantido o abastecimento daqueles segmentos colocados à margem da ordem mercadológica e excluídos de participação na sociedade? Decerto, a escassez atingirá, e com maior ênfase, as populações do Terceiro Mundo, habitantes de países que em muitos casos serão justamente os solicitados para atender o consumo dos países do centro. Para complementar, quem contestaria a afirmação de que a comercialização da água, prioritariamente garantirá o abastecimento daqueles setores que, no Norte e no Sul do planeta, dispõem de numerário para pagar pelo acesso ao líquido? Esta somatória de problemas nos conduz inevitavelmente a destacar o papel das reservas brasileiras de água. Uma reconhecida avaliação, amplamente aceita, estabelece que o Brasil seria detentor, no interior da sua cimalha territorial, de 12% da água superficial do planeta (Cf. REBOUÇAS, 2002a: 29), montante significativo não só do ponto de vista quantitativo como também do qualitativo. Situação verdadeiramente ímpar no mundo, está comprovada a existência no território brasileiro de imensos corpos líquidos altamente competitivos em termos de pureza, passíveis de serem integrados à pauta do comércio exterior. 4 424 Somente este fato justificaria a importância da problemática das águas doces para o conjunto da sociedade brasileira, constituindo motivo adicional para que esta preocupação seja discutida com maior rigor e detalhamentos, apurando os aspectos econômicos, sociais e políticos desta questão. Iniciando então este detalhamento pelos que rondam o planeta como um todo, cujos reflexos, cedo ou tarde, influenciarão pareceres em todos os níveis sobre a destinação a ser proposta aos recursos hídricos localizados sob jurisdição brasileira. 8.2. A EXAUSTÃO DOS RECURSOS HÍDRICOS O mainstream se acostumou a apreender o petróleo, assim como os metais, enquanto insumos pertencentes à pauta das provisões estratégicas. Mais recentemente, a biodiversidade, ou o ouro verde, também passou a integrar o cadastro de recursos inventariados como estruturantes das molas da economia-mundo. No entanto, o imaginário social ainda não se deu conta de que a água possa igualmente estar em vias de se transformar, se é que tal fato já não ocorreu, em mais um, senão o mais vital e cobiçado dos recursos estratégicos, o ouro azul do II Milênio. Isto porque em razão da escassez galopante, a água, recurso natural renovável, mas não inesgotável, tornou-se um bem disputado, constituindo-se na atualidade como um fator de estabilidade social interna e da balança de poder na arena internacional. A água é cada 4 425 vez mais um recurso sobre o qual incidem com força as atenções do poder. Deste modo, a disputa por esta substância consolida-se como fonte de toda sorte de antagonismos, em curso ou potenciais. É o que se pode inferir a partir do clarividente comentário do geógrafo francês Claude RAFFESTIN: Foi-se o tempo em que a água era considerada um bem livre. Ela só o era, aliás - e a economia política que nos desculpe - onde era superabundante em relação às necessidades [...] De fato, no passado as sociedades que elaboravam ‘políticas da água’ estavam localizadas em zonas de fraca precipitação e de temperatura média elevada, como no Egito, na Mesopotâmia, em certas regiões da China, etc. Hoje, por causa da utilização e do consumo aumentados pelo crescimento demográfico e econômico, todos os países se confrontam com problemas relacionados com a água. A água, como qualquer outro recurso, é motivo para relações de poder e de conflitos (1993: 231). Os sinais de uma crise hídrica inédita na história humana estão por toda parte. Um claro indício de que o precioso líquido escasseou, é o surgimento de um negócio internacional de águas doces. Nos anos finais do Século XX, a água potável passou a integrar a pauta de importações de países tão diferentes quanto Chipre, Cingapura, Kuwait, Japão, Israel e os Emirados Árabes Unidos. Outra informação é que dos anos 1970 em diante, expandiu-se apressuradamente a comercialização de água mineral engarrafada. Fato simplesmente impensável décadas atrás, os galões de plástico utilizados para acondicionar o líquido para vendê-lo, transformaram- 4 426 se em verdadeiros ícones urbanos, inseparáveis do cotidiano ubíquo das grandes cidades do mundo. O século passado, testemunhou a degradação de vales fluviais inteiros, tanto pelo comprometimento da vazão natural em face da destruição do meio ambiente, quanto da retirada excessiva de água para as lavouras, atividades industriais e para o consumo residencial. Nesta vertente, seria inescapável registrar o destino de rios como o Colorado, que drena naco considerável do Sudoeste americano e tem foz no México. Este curso d’água, que no passado chegou a ser referido como “Nilo americano”, está praticamente secando. Quando alcança a foz, no Golfo da Califórnia, grande parte do caudal (90%) foi desviado pela agricultura irrigada do Arizona, do Colorado e de Utah, e para atender as cidades do trecho norte-americano do vale. Deste modo, a controvertida abdução das águas desta bacia hidrográfica pelos EUA, paralelamente às considerações de mote ambiental, tem motivado múltiplos incidentes e crispações entre a federação norte-americana e o México (VILLIERS, 2002: 311/319). Situação similar acomete o rio Amarelo, ou Hoang-Ho, na China. Outrora correndo vigorosamente através das planícies de loess 87 do Norte deste país e constituindo uma das bases do surgimento da grandiosa civilização sínica, o rio Amarelo está morrendo. Sabe-se que desde 1985 seu curso tem secado todos os anos, e o período em que permanece sem água tem gradativamente se estendido. No ano de 1996, o rio ficou seco por 133 dias. Entrementes, em 1997, ano 87 Depósito eólico composto de partículas muito finas, acumuladas marginalmente às regiões desérticas, propiciando a formação de terrenos de alta fertilidade. 4 427 especialmente castigado pela seca, este rio deixou de atingir o mar durante exatos 226 dias (Vide VILLIERS, 2002: 363). Embora fato desalentador, este dramático acontecimento não constitui caso único. Pelo contrário, integra vasto elenco de agressões que tem destruído os mais diversos corpos líquidos, tanto na China quanto em boa parte do planeta. Indiscutivelmente as alterações impostas ao fluxo dos grandes vales fluviais declinaram em soberbos desastres ambientais, e isto, numa escala nunca vista. Dois destes exemplos seriam os rios AmuDarya e Syr-Daria, que banham as repúblicas da antiga Ásia Central Soviética (ou Turquestão russo), alvos de desequilíbrios hidrológicos de tal monta, que levaram à virtual destruição do vasto Mar de Aral. Outrora formando um lago salgado localizado na confluência das fronteiras do Cazaquistão e do Uzbequistão, o Aral observa um rápido processo de desaparição. O desmatamento da vegetação nativa e o uso intensivo do solo provocaram assoreamento acelerado. Este processo agravou-se, em obediência aos Planos Quinquenais da economia centralmente planejada, executados pela burocracia da exURSS, estipulando o desvio das águas dos rios Amu-Darya e SirDarya para a cultura mecanizada do algodão. Como resultado, o Mar de Aral deixou de receber o essencial da contribuição hídrica que mantinha o volume d’água. Perdendo metade da massa do líquido nos últimos trinta anos, as margens do Mar de Aral chegaram a recuar 80 km. A navegação interior ficou impedida e a pesca, que sustentava a produção de caviar (10% da produção da ex-URSS), praticamente findou. A salinidade multiplicou-se por três e 4 428 nas áreas agora secas correspondentes ao antigo leito marinho, os ventos passaram a carregar uma poeira salina saturada de pesticidas para pontos até 500 km de distância, criando e expandindo novos desertos. Desastres semelhantes estão previstos para outros corpos líquidos salgados, como o já mencionado Mar Morto, cujas margens têm registrado estrondoso retrocesso nos últimos anos 88. Outro problema sério é o destino das massas líquidas formadas pelos lagos de águas doces. Embora cobrindo área 12 vezes menor do que a calha dos rios, estes corpos líquidos acumulam um volume aproximadamente 35 vezes maior de água do que os caudais fluviais de toda a Terra, incluindo seus escaninhos (SHIKLOMANOV, 1999). Regiões lacustres como os Grandes Lagos da América do Norte (EUA/Canadá) e do Lago Baikal, na Sibéria oriental (Rússia), são insistentemente citados como afetados pela poluição, muitas vezes de modo irreversível. Assinale-se o vulto dos ambientes citados, concentrando no primeiro caso 27% da água das regiões lacustres do planeta, e 25%, no segundo (VILLIERS, 2002: 57). Last but important, além dos esgotos e das águas residuárias das indústrias, as deposições ácidas colaboram com o seu quinhão na dilapidação das bacias lacustres em todas as regiões industrializadas. Quanto aos aquíferos, sabe-se que os mesmos estão sendo explotados num ritmo muito superior ao da recarga, disto resultando a Com o objetivo de salvar o Mar Morto da agonia, em 2005 Israel e Jordânia iniciaram estudos de viabilidade de um ambicioso projeto de transposição das águas do Mar Vermelho para o Mar Morto, consistindo na construção de um canal que além de repor o nível da lâmina de água deste lago salgado, abasteceria usinas de dessalinização, uma iniciativa que também beneficiaria a população palestina (Ver AMBROSIO, 2005). 88 4 429 exaustão e o esgotamento dos reservatórios. Recorde-se que a água subterrânea possui um tempo de renovação em média muito dilatado: segundo estimativas dos especialistas, em torno de 1.400 anos (Vide SHIKLOMANOV, 1999). Levando-se em consideração este tipo de informação, salienta a especialista indiana Payal SAMPAT: ...à medida que nossa dependência da água subterrânea aumenta, a disponibilidade deste recurso se torna mais limitada. Em quase todos os continentes, muitos dos principais aquíferos estão sendo exauridos com uma rapidez maior do que sua taxa natural de recarga (2000: 12). Intercorrências deste tipo são maximizadas pelo porte de projetos nos quais o longo prazo não consta na planilha dos planejadores. Cite-se o projeto de explotação do aquífero da Núbia, megaprojeto do governo de Al-Gaddafi, da Líbia, propagandeado como “Grande Rio Construído pelo Homem”, executado quando as fontes convencionais litorâneas do país, exploradas até a exaustão, praticamente secaram. Serpenteando por mais de 1.800 quilômetros de tubulações que cortam o Saara, este aqueduto, a “Oitava Maravilha do Mundo”, tal como o projeto é emulado pela propaganda governamental, conduz água extraída de mais de mil poços da árida província saariana do Fezzan e da região de Kufra, para a sedenta costa setentrional do país. Contudo, esta água benfazeja, está sendo bombeada de um lençol subterrâneo que se estende pelas nações vizinhas, provocando inconformismo na opinião pública de países como o Egito, que rotula o megaprojeto (aliás acertadamente), como um desavergonhado caso de “roubo de água”, rixa que abespinha as relações com a Líbia, em face do histórico de hostilidades do Egito com o regime de Al-Gaddafi. 4 430 Polêmicas à parte, em favor do Grande Rio Construído pelo Homem, existe o fato concreto de que este, afugentou o “fantasma das torneiras secas”, e ofereceu uma seguridade hídrica à população desta árida nação norte-africana. Para mais, a oferta de água pelo projeto tem sustentado a expansão de sistemas de agricultura irrigada e inclusive, de bombeamento de águas servidas para recarregar e assegurar o provimento futuro dos aquíferos litorâneos situados na Cirenaica e na Tripolitânia. Porém, a exploração dos veios destes reservatórios saarianos está sendo operada dispensando quaisquer preocupações quanto ao fato do estoque natural suportar não mais do que algumas décadas de prospecção, ao menos no ritmo pelo qual, suas águas têm sido extraídas. E após o esgotamento do aquífero da Núbia, onde os líbios poderão encontrar água? E os países ao redor, caso reivindiquem sua proporção de águas do aquífero, como será possível indenizá-los? Comumente, o histórico da exploração dos lençóis subterrâneos alude a impasses e contenciosos, que tal como no projeto líbio, tem por epílogo, as incertezas que acodem as sociedades quando a água deixa de jorrar dos poços. Neste prisma, o caso do aquífero Ogallala, nos Estados Unidos, é ilustrativo das repercussões ruinosas da sobre-exploração da água subterrânea pelas coletividades humanas. O rebaixamento do nível do Ogallala, que abastece 1/5 da agricultura irrigada estadunidense e respondem pelo funcionamento de uma província agrícola de primeira grandeza, pode conduzir a cenários muito preocupantes. 4 431 A saber, parte significativa da exportação americana de grãos é proveniente do Ogallala, bem como metade da carne produzida neste país, sendo básico para a economia de oito estados americanos: Dacota do Sul, Nebraska, Wyoming, Colorado, Kansas, Oklahoma, Novo México e Texas. Mas, o bombeamento indiscriminado da água subterrânea, fez as profundidades dos poços baixarem de 30 metros, 40 anos atrás, para mais de 100 metros no raiar do novo Milênio (Cf. REBOUÇAS, 2004: 91). Então, como tem sido prognosticado, caso ...a crise de água da China forçá-la a procurar o mercado mundial em busca de grãos, e se esse aumento de demanda vier quando o aquífero de Ogallala estiver exaurido ou o bombeamento da água tiver se tornado caro demais, isso poderá gerar uma crise global de alimentos (VILLIERS, 2002: 227). Face ao exposto, a gestão e utilização das águas de superfície coloca-se na ordem do dia. Examine-se que mesmo configurando, numa ótica quantitativa, um estoque reduzido, a fração formada pelos fluxos classificados como superficiais pelo jargão dos especialistas (quais sejam, os encontrados nos rios, lagos, oásis e afloramentos que brotam na extensão da crosta), estampa um suprimento colossal, que em tese, permitiria atender a comunidade mundial, que adentrou o Século XXI com seis bilhões de membros. Restaria, pois indagar, o porque da sede existir no mundo e principalmente as razões que a tem acentuado. Evidentemente, a opressão das minorias étnicas, a repressão dos povos não-representados e as desigualdades sociais, contribuem para explicar o consumo dessimétrico do líquido, e igualmente, as mediações colocadas para seu acesso. Em muitas partes do Terceiro 4 432 Mundo, enquanto a alta sociedade urbana adquire água mineral, faz perfurações à vontade e usufrui do acesso aos sistemas públicos de abastecimento de água potável, as camadas pobres da população se veem obrigadas a apelar para o oneroso e irregular fornecimento de comerciantes particulares (CMMAD, 1988:283). Esta água, vendida através de caminhões pipas, além de pouco confiável quanto a potabilidade, chega a alcançar dez a doze vezes o preço pago pelas moradias conectadas à rede oficial, e os clientes, tem ainda que resguardá-la em baldes, garrafas e latões, geralmente armazenando-a de modo precário. Em outras situações o privilégio de dispor de água, articula-se explosivamente com marcadores sociais étnicos e raciais. Na República da África do Sul, fazendeiros brancos com genealogia bôer 89, apropriaram-se, grosso modo do essencial da água, comprometendo o abastecimento de imensas massas rurais formadas por africanos autóctones, cujos territórios ancestrais lhes foram, por sinal, ilegitimamente usurpados (ELLIOTT, 1998: 228). Um levantamento sobejamente conhecido indica que neste país, 600 mil fazendeiros de origem europeia monopolizam 60% da água, destinada à irrigação, enquanto que 15 milhões de negros nativos sulafricanos, vegetam em meio a uma profunda indigência hidrológica (BARLOW et CLARKE, 2003: 71). Neste recorte, tal como em fartos outros, não propriamente a natureza, porém antes, a natureza dos sistemas sociais, parece condenar os humanos às agruras da sede. Fato que se impõe por si Bôer ou africâner é a denominação dada aos descendentes de europeus, basicamente holandeses, que se instalaram na província do Cabo, na atual República Sul-Africana, durante a colonização batava. No Século XX, constituíram o esteio do finado regime de supremacia branca do Apartheid. 89 4 433 mesmo, o dinamismo do processo urbano inerente à modernidade, ao qual estão associadas dessimetrias sociais, políticas e econômicas, apresenta sua quota de responsabilidades, tornando insuficiente uma oferta preexistente de água. É o que a história do ancestral Vale do México pode revelar, cujo epicentro, gravitava em torno do então lago Texcoco (ou “Lago da Lua”, na língua materna dos antigos astecas). Antes abrigando numa das suas ilhas a capital asteca, a cidade de Tenochtitlán, a região formada por este notável corpo líquido (7.800 km²), o principal do planalto de Anahuac 90, jamais foi obsedada pela carência de água. Aliás, os mitos fundadores dos indígenas esclarecem o papel deste esplêndido afloramento de água e dos brotos d’água dos arredores, que animaram o surgimento desta civilização singular. O conglomerado urbano pré-colombiano do vale do México tinha por núcleo central Tenochtitlán, dotada de esplêndida arquitetura. Sua população alcançava 100.000 domiciliados no Século XVI, o dobro de qualquer localidade europeia no mesmo período. Magnetizando todas as localidades postadas nas margens do Texcoco, a metrópole asteca era servida por um sofisticado sistema de distribuição de água, com fontanários, tanques, bicas e reservatórios cuidadosamente plotados ao longo da urbe. A cidade, engastava um pujante quadriculado de jardins e hortas flutuantes (as chinampas), que garantiam a alimentação de numerosa população indígena. Relatos pré-colombianos, em paralelo com as crônicas do interregno colonial espanhol, ressaltam a abundância dos Emblematicamente, Anahuac na língua nahuatl, falada pelo povo asteca, significa “próximo da água”. 90 4 434 recursos hídricos existentes nessa região. Sensatamente, o vale foi nominado pelos espanhóis, em razão da prodigalidade dos lagos, amuradas e canais, como “Veneza do Novo Mundo”. Entretanto, a atual Cidade do México (Figura 19), a quinta maior concentração urbana da tecnoesfera, implantada sobre as ruínas do antigo assentamento asteca e em espaços aterrados tomados do que antes, formava o corpo líquido do Texcoco, resultou numa metrópole conhecida por notórios problemas quanto ao abastecimento de água. A mancha urbana da metrópole, uma macrocefalia urbana de primeira ordem que exerce o papel de núcleo da formação espacial mexicana, constitui o teatro por excelência de um dos quadros mais críticos de crise do abastecimento de água. O problema, reporta ao dinamismo descontrolado desta megalópole, somado a um longo histórico de agressões ambientais, através do qual as fontes locais de recursos hídricos foram brutalizadas e esgotadas. O ponto de partida desta situação foi a dominação espanhola. Quase imediatamente à vitória de Fernão Cortez sobre o Império Asteca (1521), encetou-se uma ensandecida demolição das grandes construções e dos diques, recorrendo o poder colonial para tanto, ao trabalho escravo dos novos súditos indígenas. A cobertura vegetal das redondezas do vale também foi arrasada, descompondo os equilíbrios hidrológicos do Texcoco. Assim, a meta dos espanhóis, que a Cidade do México, agora capital da província da Nova Espanha, se assemelhasse o máximo possível de uma urbe castelhana, porém jamais de Veneza, foi finalmente alcançada. 4 435 FIGURA 19 - Vista de Netzahualcoyotl, populoso arrabalde da capital asteca (Foto: Revista O Correio da UNESCO, março de 1985, nº. 3, página 25) 4 436 Contudo, este feito foi o prenúncio da falta de água. Hoje, para abastecer a metrópole, mananciais distantes 300 km são reclamados para satisfazê-la. Com a mesma finalidade, foram perfurados poços com profundidades que alcançam mais de 1.900 metros, e que ainda assim, não cessam de competir para ultrapassar esta marca. Basicamente, a cidade depende em 70% destes aquíferos, cujas águas estão sendo abduzidas em ritmos superiores em até 80% às taxas de recarga. Simultaneamente, a metrópole vivencia problemas de estabilidade do solo devido às drenagens inadequadas do Lago Texcoco, decorrendo em recalques do solo que afetam áreas inteiras do pavimento urbano. A Cidade do México está literalmente ficando sem água, e para complicar, nada permite antever solução para o problema (Vide BARLOW et CLARKE, 2003: 21/22; UNESCO, 1984). Articulada como polo urbano que recorre à abdução das águas de um entorno que se estendeu mais e mais, a progressiva expansão da metrópole mexicana transformou-a num sorvedouro de recursos hídricos de uma dilatada adjacência geográfica, um autêntico nódulo indutor do ressecamento do espaço. Além da Cidade do México, muitas outras metrópoles periféricas, dentre as quais Djakarta (Indonésia), Mumbai (Índia), São Paulo (Brasil), Damasco (Síria), Cairo (Egito), Bangcoc (Tailândia), Kolkata (Índia), Sana (Yêmen), Daca (Bangladesh), Sana (Iêmen), Lagos (Nigéria), Pequim (China) e Adis Abeba (Etiópia), apresentam quadros preocupantes quanto à disponibilidade do líquido, situação também motivada pela malversação dos recursos hídricos locais e regionais. 4 437 Os distúrbios que sacudiram Delhi e Dacca, ilustram o caráter explosivo que a questão do abastecimento de água potável insere. Em várias das metrópoles periféricas, parte significativa da população conta quando muito, com água de má ou péssima qualidade para atender as necessidades cotidianas, ocasionando gravíssima penúria hídrica e más condições sanitárias. Recorde-se que em razão do despejo de esgotos in natura nos rios, caudais potencialmente aptos para atender as demandas das metrópoles, foram transformados em depositários de efluentes de todo tipo. A degradação das reservas urbanas de água, intensamente afetadas do ponto de vista ambiental pelo reforço de nutrientes oriundos do lançamento indiscriminado de esgotos, se explicita na turbidez, da emanação de maus odores, na lama fecal e na eutrofização destes corpos líquidos. Espetáculo mais “fotogênico”, o aumento do florescimento de algas e de outras plantas aquáticas relaciona-se diretamente com o material orgânico dos esgotos domésticos (Figura 20), afugentando a avifauna, asfixiando peixes e moluscos, assim como afetando tanto o aproveitamento econômico da água, quanto o consumo humano. Adicionalmente, seria essencial registrar o viés político associado à depredação dos reservatórios. Por exemplo, a Região Metropolitana de São Paulo, mesmo dispondo de magníficos lagos artificiais, como as represas Billings e Guarapiranga, adota o impopular sistema de rodízio como consequência da poluição, da extensividade seletiva da rede, assoreamento e comprometimento das águas destes sistemas, óbices anabolizados pela implantação de loteamentos clandestinos, solidamente articulados com esquemas de corrupção, pistolagem, clientelismo e de favoritismo político. 4 438 FIGURA 20 - A eutrofização das águas: Por conta de fatores ambientais como o reforço de nutrientes acompanhado do aumento da temperatura da água, tem ocorrido um aumento crescente de florescimento de algas em todo o mundo, asfixiando peixes, moluscos e outras espécies. Durante a seca do verão de 1999, a lentilha d'água floresceu num ritmo milhares de vezes acima do normal nas águas lentas do Rio Schuylkill, na Pensilvânia (EUA), ocupando por completo a superfície da água. A planta nutriu-se dos despejos das estações de tratamento de esgotos, e sua proliferação, afetou o abastecimento das cidades da região (Foto: Revista World Watch, Volume 14, nº. 1, 2001, contracapa) 4 439 Ademais, noutras importantes regiões provedoras de água da RMSP, incluindo a bacia do Alto Tietê e do Sistema Cantareira, mesmo considerando-se a gravidade da situação vivida pela região metropolitana, também não se reserva qualquer otimismo quanto à preservação das represas. Por sinal, as cidades seriam, de um ponto de vista sistêmico, vetor axial das agruras da sede. Os impactos decorrentes das edificações e do asfaltamento, empreendimentos que se generalizaram com a expansão do modelo urbanístico ocidental, desempenham um papel desmantelador dos equilíbrios hidrológicos. Pesquisas empreendidas pelo hidrólogo eslovaco Michal Kravcik nos anos 1990, atestam que a impermeabilização do solo atua como poderoso fator de rarefação dos recursos hídricos. O campo de estudos deste pesquisador foi seu país de origem: a Eslováquia, uma nação da Europa central com 49.000 km² (pouco maior que o Espírito Santo, que totaliza 45.733 km²), cuja população, somando 5.400.000 habitantes, urbanizou-se celeremente, em resposta aos planos de desenvolvimento econômico levados adiante pela antiga República da Tchecoslováquia, a partir dos finais da II Guerra Mundial. As dimensões relativamente pequenas deste país, assim como a industrialização e urbanização historicamente recentes, possibilitaram estudos de fundo sobre a dinâmica dos recursos hídricos. Através de uma avaliação detalhada do território eslovaco, uma das conclusões de Michal Kravcik é cada m² de asfalto provoca perdas anuais entre 200 e 300 litros de água. Matematicamente, chegou-se ao resultado pelo qual anualmente, a Eslováquia dissipa de modo irreversível o equivalente a 1% das águas de sua rede fluvial. Outra consequência das intervenções antropogênicas seria a retração da pluviometria. 4 440 Acredita-se que no território da Eslováquia as precipitações tenham diminuído em torno de 35% nos últimos 50 anos. A explicação é que a água, em vez de se infiltrar ou impregnar reservas de umidade no solo, campos, pântanos, bosques e florestas, passa a escoar diretamente para os rios e destes, para as massas oceânicas. Os objetos espaciais construídos pela ação humana, ao eliminarem etapas como a reservação e a transpiração, induzem a retirada de enormes volumes de água do ciclo hidrológico, ao mesmo tempo em que conduzindo mais água para os oceanos, avolumam as perdas do líquido em razão da elevação do nível dos mares. Deste modo, a aceleração do índice de expansão urbana global tenderá a acentuar o fenômeno, diminuindo assim a quantidade real de água fresca disponível no planeta. Nas preocupantes projeções de Michal Kravcik, o ciclo hidrológico terrestre como um todo estará inapelavelmente exaurido nos próximos cem anos. Convivendo com este cenário perpassado por nuanças das mais ameaçadoras, certo é que a apresentação de soluções rubricadas como “alternativas”, ofereceriam certa esperança. É, justamente esta a razão que termina por granjeá-las com popularidade junto a atores sociais e institucionais com mandato na gestão dos recursos hídricos, assim como no imo da sociedade civil organizada. Poderíamos, sem dúvida alguma, registrar benefícios irrefutáveis nos programas de otimização e conservação dos recursos hídricos. Dentre estes, os que prescrevem a implantação de “calçadas verdes” (construídas com blocos vazados permitindo a infiltração da água), a 4 441 reservação da massa líquida captada da precipitação pluviométrica 91 e das águas servidas classificadas como “cinzas”, para usos nãopotáveis 92. Neste quesito poder-se-ia incluir o esgotamento sanitário, assim como a lavagem de calçadas e dos quintais das residências, funções para as quais o uso da água tratada, clorada, fluoretada e encanada constituiria procedimento exemplar de esbanjamento despropositado. Também seria possível postular a substituição dos sistemas usuais de expulsão dos efluentes residenciais em favor de modelos baseados em descargas reduzidas, hidrologicamente mais eficientes e mais adequados do ponto de vista ambiental. No caso dos Estados Unidos, a simples aplicação de legislação datada do ano de 1994, impondo maior eficiência nas instalações sanitárias, tornou factível a redução em até 70%, da quantidade de água da rede consumida por milhões de banheiros norte-americanos (BARLOW et CLARKE, 2003: 277). Entretanto, como não poderia deixar de ser, caberia evidenciar quanto à difusão das proposições técnicas o peso dos contextos historicamente situados, que dão a última palavra no tocante à incorporação de novas metodologias de gerenciamento dos recursos naturais, inclusive as qualificadas em contribuir com a preservação da qualidade das águas voltadas para o abastecimento das grandes cidades. No estado do Rio de Janeiro, a Lei nº. 4.248 (16-12-2003) instituiu o Programa de Captação de Águas Pluviais, visando oferecer treinamento aos habitantes das cidades para a coletar as águas das chuvas. Na cidade do Rio de Janeiro, o Decreto nº. 23.940 (30-01-2004), tornou obrigatória nos casos previstos, a adoção de reservatórios que permitam o retardo do escoamento das águas pluviais para a rede de drenagem, objetivando também o reúso para finalidades não potáveis. 92 As águas cinzas corresponderiam, neste contexto, à água de banho e da lavagem de roupa, não se confundindo com as Gray Water Flow, jargão técnico anglófono para os depósitos de águas subterrâneas. 91 4 442 Tal panorama certamente reservaria cenários pouco atraentes, em especial porque injunções de ordem social, política e econômica, estão frequentemente em exata oposição à conservação dos recursos hídricos. No que constitui reapresentação de uma sentença histórica e sociológica por demais conhecida e repetida, o pendor do modelo de utilização dos recursos hídricos estará fadado a apelar, até o último momento quanto for possível - optima video, deteriora sequor -, para as pulsões perdulárias no uso do líquido. Nesta ordem de argumentações, seria conveniente recordar célebre diagnóstico lavrado pelo filósofo Karl Marx, segundo o qual: Nunca uma ordem social desaparece antes de todas as forças produtivas, que nela tem lugar, tenham se desenvolvido; e nunca, novas e poderosas relações de produção surgem antes das condições materiais de existência tenham se esgotado no útero da velha sociedade (in Uma Contribuição à Crítica da Economia Política, citado em COLLINSON, 2004: 192). Todavia, na hipótese desta citação reapresentar-se mais uma vez junto ao panorama histórico concreto, quem arriscaria prognosticar a possibilidade de uma nova pactuação com o meio natural num mundo exaurido de sua água? 8.3. ÁGUA, GLOBALIZAÇÃO E NEOLIBERALISMO O conjunto de prédicas arroladas permitiria considerar que, indiscutivelmente, presencia-se o desenrolar de uma era marcada pelo pipocar de espicaçadas atribulações. Atualmente, mais do que 4 443 em qualquer outra época precedente, o mundo assiste à irrupção de uma pauta diversificada de contendas, dentre as quais, pespontam de modo sistemático as relacionadas com a água doce. Seria, pois, cabível aprofundar esta discussão nos termos pelos quais as disputas centradas no controle do líquido terminaram por encontrar fundamento em conceitos voltados para o enquadramento da água enquanto recurso econômico. Lado a lado com a afirmação deste paradigma noviciário para os recursos hídricos, a entronizada fórmula que subentende a água enquanto um direito, passou a ser crescentemente erodida. Quando muito, esta noção consuetudinária foi substituída por uma locução de alcance bem menor, entendendo a água enquanto uma necessidade. Neste patamar, pode-se recorrer ao cotejamento do geógrafo Claude RAFFESTIN pelo qual, todo recurso seria a priori, produto de uma relação social e historicamente contextualizada com a natureza e, com base neste ponto de vista, não existiriam recursos naturais em si mesmos, mas antes e por princípio, matérias naturais (1993: 225). Por conseguinte, qualquer matéria natural, categoria que é óbvio, incluiria a água, seria passível de se tornar um recurso em função de determinados entrosamentos das coletividades humanas com o meio natural. Ademais, dado que “toda relação com a matéria é uma relação de poder, que se inscreve no campo político por intermédio do modo de produção” (RAFFESTIN, 1993: 225), não haveria como esta conjugação deixar de encontrar respaldo numa arquitetura de mando, que passa a subordinar a utilização dos recursos ao seu gosto e vontade. 4 444 Estes enunciados destacam uma amarradura de arrazoados que transformaram a questão dos recursos hídricos num debate central na sociedade contemporânea, vicejando na esteira da globalização, e articulada no interior desta, com o evangelho neoliberal. Nesta toada, estejamos nos referindo ou não a este processo nas soldaduras da privatização, precificação ou tarifação da água, a transformação da água em mercadoria traz em seu cerne uma série de repercussões, com influência determinante quanto ao acesso ao líquido. Perceptível no horizonte global no qual está integrada a maioria absoluta dos humanos, este movimento enseja as mais duras provas para amplos segmentos sociais. Nesta sequência, os fatos inerentes à totalidade social, política e econômica que soldam a globalização não admitiram, de modo algum, minimizar a ordem de impactos que inserem. Tampouco, uma tomada de posição diante das alterações radicais costuradas quanto à reordenação dos usos da água doce. Obviamente, esta inscrição reclama a voz da massa de excluídos que se agigantou com o concurso da globalização. Como se sabe, no bojo da modernidade vasta maioria dos humanos tem sido instada a participar não como coadjuvante ativo, porém fundamentalmente, enquanto atores nela desigualmente integrados, uma “universalização perversa” que se recompõe dia a dia mediante exegeses cada vez mais impetuosas (passim SANTOS, 1978a). Paralelamente aos dolos que tem tipificado o cotidiano de amplas maiorias, num espectro que se estende da falta de moradia e do desemprego, incorporando a fome e a violência urbana, agora estes 4 445 mesmos segmentos são o alvo preferencial das inclemências da crise hídrica global. Fosse improcedente tal reflexão, não haveria como cadastrar que 26% da população mundial vive atualmente as agruras do estresse hídrico, e grande parte desta, no Terceiro Mundo; que, de acordo com a ONU, antes de 2025, do total de humanos, 47% serão formados por cidadãos de baixa renda, atormentados pela falta d’água; que nas megacidades, hoje um traço distintivo dos países do Sul, 50% da população não tem à mão suprimentos confiáveis de água; que por fim, antes de 2030, mais da metade da população das metrópoles da periferia será moradora de favelas, carente de acesso aos serviços de abastecimento e saneamento básico (MAUDE et CLARKE, 2003: 67). Seria lícito refletir que a amplitude da exclusão social induziria obrigatoriamente a apresentação de formulações que apreendessem a origem da problemática. Daí a imperiosidade de categorias como a da globalização, quase sempre flexionada concomitantemente com a do neoliberalismo, justificando-se no fundamental, pelas premissas que no seio deste proselitismo, realçam as notas mais impulsivas que deram vazão à expansão do Ocidente e a supremacia da economia de mercado nos últimos séculos. Numa conceituação sintética, o neoliberalismo seria correlato às proposições do capitalismo dito “liberalizado”, liberto das amarras do “corporativismo” e dos obstáculos subsequentes a uma intervenção “excessiva” por parte do aparato estatal. Marcando especialmente as últimas décadas do Século XX, esta linha de interpretação se opõe a uma série de experiências de índole social-democrática que sugeriam 4 446 a possibilidade de um “capitalismo com rosto humano”, assim como versões advogando propostas de cunho democrático, progressista, reformista, e/ou nacionalista. De um ponto de vista político, o neoliberalismo irrompe numa conjuntura em que setores conservadores ocidentais costuraram um projeto que excluindo medidas sociais como forma de arrefecer a pressão dos movimentos populares e do Leste Europeu, pautaram, pelo contrário, uma conduta assentada no que o capitalismo teria de mais seminal, a começar pelo primado do mercado. À luz desta conjuntura, sem dúvida alguma o neoliberalismo espelhou, no plano das ideias políticas, o endurecimento dos embates com os países do bloco soviético, revigorando a atmosfera da Guerra Fria, que surgida após a II Guerra Mundial, estava aparentemente domesticada. Vis-à-vis, a propagação da catequese neoliberal ocorre em sintonia com a da globalização econômica, amalgamando-se com seu modus economicus nos planos cronológico e factual (OLIVEIRA, 1992: 12/19 e SANTOS, 2000). Desde então, a totalidade dos teóricos neoliberais tem destacado as “vantagens competitivas”, “integração” e “privatização” enquanto tópicos inegociáveis de uma “condução eficiente” da economia e da sociedade. A estas key-words, uma terminologia complementar, que também tipifica o léxico globalizado, temos a “desregulamentação do mercado”, sinonimizada aos assim chamados “ajustes estruturais”, calibrando uma retórica cujo eixo, está firmado não nos reclamos ou nas demandas sociais, porém prevalecentemente, nas expectativas pautadas pela agenda das corporações (Cf. GEORGE, 1997). 4 447 O neoliberalismo ingressou no léxico coloquial contemporâneo especialmente a partir dos anos 1980, quando secundado pelo triunfo eleitoral de Ronald Reagan nos Estados Unidos (1981/1989) e de Margareth Thatcher, no Reino Unido (1979/1990), passou a desfrutar de indisputada popularidade no discurso não só dos economistas, como igualmente, de apreciáveis parcelas da opinião pública global (passim BOITO JÚNIOR, 1999). Descartando arroubos reformistas, a interpretação neoliberal do oikos-nomos postula uma sociedade regrada pelo mercado total, um novo “reino iluminado” no qual o exercício do consumo, realizado por indivíduos colocados à inteira disposição das pulsões do mercado, constituiria o ápice da liberdade individual e porque não afirmar, do progresso, plenificado por um mundo transformado num gigantesco hipermercado. Como frisado reiteradas vezes, em contraposição às leituras que, direta ou indiretamente, estatuíam de algum modo, condicionalidades sociais na forma de reprodução da economia, o modo de organização econômico sob a égide neoliberal diverge dos que caracterizaram conjunturas específicas da história ocidental. No neoliberalismo, o capitalismo está compelido a dar vazão ao que nele existiria de mais peculiar e característico, apresentando-se como uma weltanschauung a reger soberanamente o edifício social do mundo contemporâneo (SANTOS, 2000). No que interessaria diretamente aos ditames da nossa discussão, as políticas públicas que pautaram no século passado a gestão dos recursos hídricos, tornaram-se objeto de questionamentos por esta 4 448 nova ideologia hegemônica, que propõe agora narrativas cujo estofo, é uma reinterpretação das relações que mediatizam a conexão entre meio ambiente e economia. Augurando as mais sérias consequências para a questão do acesso às águas doces, os ditames estratégicos do neoliberalismo realçam uma suposta competência do mercado em solucionar o problema da escassez: Se nos anos 1970, a crise ambiental alertou para a necessidade de frear o crescimento diante da iminência do colapso ecológico (Meadows et alli), agora o discurso neoliberal afirma que não existe contradição entre ambiente e crescimento. Os mecanismos de mercado se convertem no meio mais certo e eficaz de internalizar as condições ecológicas e os valores ambientais no processo de crescimento econômico. Nesta perspectiva, os problemas ecológicos não surgem como resultado da acumulação de capital. Para a proposta neoliberal teríamos que atribuir direitos de propriedade e preços aos bens e serviços da natureza para que as clarividentes leis do mercado se encarreguem de ajustar os desequilíbrios ecológicos e as diferenças sociais, a fim de alcançar um desenvolvimento sustentável com equidade e justiça (LEFF, 2004: 22, grifos nossos). Como se percebe, a intenção é “desobrigar” o mercado. Deste modo, a sociedade global passou a relacionar-se com uma dimensão autônoma da esfera da economia, “destravada” e “livre de amarras”, um estridente convencionalismo econômico que procura aplicar com empáfia as teses mais intransigentes da escola liberal de mercado, sendo este, precisamente o élan mais pungente da globalização. Pari passu, um fator essencial para a difusão do neoliberalismo residiu no crepúsculo do Leste Europeu. Desde a queda do Muro de Berlim em 1989, episódio que assinala o colapso do campo socialista, 4 449 a economia de mercado, agora campeando sem obstáculos políticos e geoeconômicos, livrou-se dos antigos impedimentos e objeções em relação ao chamado “livre curso da economia”. Desta cenarização, afloraram as ideações neoliberais, que passam a campear junto à intelligentsia do campo econômico a partir das duas décadas finais do Século XX, ofertando às políticas e programas de privatização um impulso ponderável, tipo bola de neve, arrostando tudo e a todos em sua desabalada trajetória (GEORGE, 1997 e CHESNAIS, 1996: 23). Evidentemente, como todo fenômeno localizado no tempo e no espaço, recorde-se que a globalização não se explicita de um modo homogêneo e tampouco, que os subtextos, molduras e os resultados da ofensiva neoliberal sejam idênticos em todo a ordem global. Por sinal, a “globalização” incorpora uma diversidade de matizes, e avaliar de modo precipitado seus diferentes avatares, pode incitar inúmeras equivocidades conceituais e políticas (Cf. BOITO JÚNIOR, 1999). Em complemento, devido ao inter-relacionamento do discurso político e ideológico neoliberal com a globalização, no olhar crítico de vertentes de pesquisadores, esta transpareceria como um conceito legitimador da estratégia mundial do capitalismo, solicitando, pois, cautela quando de sua utilização. Motivando objeções, não seria nada surpreendente que a expressão “mundialização do capital” tenha sido pautada para permutar, numa percepção politicamente engajada, o que foi popularizado como “globalização” (CHESNAIS, 1996: 13/25). Outra consideração importante é que paralelamente, o ideário neoliberal demonstrou enorme capacidade de tirar proveito da crise ambiental de modo a alavancar a mercantilização da água. Permite- 4 450 se repertoriar outra vez, os recursos hídricos foram progressivamente colocados a distância das demandas humanas através do processo de artificialização da natureza, pelo qual, uma vez comprometidos em quantidade e em qualidade, terminaram incorporados ao universo das commodities 93, embasando o emergente mercado de água doce. Insistindo na argumentação-chave, este processo em nada se diferencia da exposição registrada anteriormente referente à lógica pela qual o capitalismo, visando transmudar insumos dantes de livre acesso no meio natural em mercadorias, é induzido a implementar sua destruição ecológica estrutural, pelo qual estes são num segundo momento, depois de tornados escassos, oferecidos exatamente aos que precedentemente, destes usufruíam alheios a quaisquer outras intermediações que não suas demandas concretas. Nesta lógica, a água passou a ser reivindicada, sem que nesta colocação esteja presente qualquer arroubo de linguagem, como o Ouro Azul do Século XXI (BARLOW et CLARKE, 2003), constituindo nesta derivação, um alvo prioritário das novas formas de afirmação do sistema de produção de mercadorias. 8.4. ÁGUA: UM DIREITO A SER ASSEGURADO Entretanto, neste corpus, um diferencial é que as conceituações tradicionais, ao questionarem as novas diretrizes de apropriação da água, constituem justificado ponto de referência. O jargão econômico reconhece como commodities produtos in natura, oriundos da agropecuária ou da extração mineral, que podem ser estocados por certo tempo sem perda sensível de qualidade. 93 4 451 Tratando-se de uma substância de importância excepcional, honrada e enaltecida desde tempos imemoriais no imaginário cultural da totalidade das sociedades, o acesso à água constitui nota comum, repetidamente reiterada, de um direito inalienável tanto para as comunidades humanas quanto para as formas de vida que coabitam o planeta Terra em parceria com os humanos (BARLOW et CLARKE, 2003: 250). Esta relevância, aclamada ab integro por todas as concepções jurídicas, filosóficas, éticas e religiosas do mundo da tradição, tem por justificativa, o fato concreto de que não existe possibilidade da vida se fazer presente independentemente deste líquido. A água, essencial ao funcionamento das sociedades, constituiria um recurso comum, passível de usufruto por todo e qualquer membro dos coletivos humanos, ad vitam aeternam, auferida da condição de imprescindibilidade para a contiguidade das relações sociais/culturais que atravessam o tempo e o espaço. A releitura deste padrão de relacionamento com a água doce, materializando uma linha de ruptura inédita na história, foi certamente tonificada pela crescente escassez do líquido. O grau de ineditismo que ronda as polêmicas centradas nos recursos hídricos transparece na gradativa substantivação de novas circunscrições semânticas em paralelo com a agudização da crise do acesso às águas doces. Este caráter de novidade é explícito, a título de exemplo, quando lemos mais atentamente o relatório Limites do Crescimento. Este documento, titularizado pelo Clube de Roma em abril do ano de 1968, 4 452 testificou um momento excepcional quanto à tomada de consciência da crise ecológica, que adotou como base de análise, a investigação de cinco grandes tendências de interesse global: o ritmo acelerado de industrialização; o rápido crescimento demográfico; a desnutrição generalizada; o esgotamento dos recursos naturais não-renováveis; e, a deterioração ambiental. Todavia, apesar da profundidade e do alcance do relato, o texto deste documento dedica à questão dos recursos hídricos não mais que menções esparsas, sequer sinalizando para a possibilidade de uma crise na escala hoje à vista de todos. Deste modo, a despeito de ter sido elaborado a pouco menos de quatro décadas atrás (isto é, num lapso temporal que historicamente poderíamos considerar como “ontem”), Limites do Crescimento, do mesmo modo que muitos outros documentos confeccionados neste mesmo período, ignora solenemente prognósticos mais detalhados a respeito do esgotamento dos mananciais de águas doces, assunto cuja proeminência nos dias de hoje é incontestável. Obviamente, tal lacuna fundamenta-se em razão de um contexto histórico específico, no qual a sugestão de que a água pudesse faltar era simplesmente impensável, assim como é reveladora do quanto, nas últimas décadas, a deterioração ambiental aprofundou-se. Na realidade, quem poderia supor, lá pelos idos de 1960, um panorama tão desolador da oferta quantitativa e qualitativa de água, acompanhado de toda sorte de contratempos ambientais, da morte de grandes rios e da destruição em larga escala dos sistemas aquáticos? 4 453 Quem levaria a sério a possibilidade da sede se alastrar e se transformar num problema em escala global ou imaginar a irrupção de um comércio de água engarrafada? E as dramáticas estatísticas relacionadas com a exclusão hídrica, quem esboçaria tal cenário? Ao lado destas considerações, augura-se factível agregar outras, identificando as implicações políticas e a repercussão da crise dos recursos hídricos junto às relações internacionais. Na atualidade, a água doce constitui motivação estratégica e item inseparável da soberania dos povos. Fato em si mesmo emblemático, a primeira vez em que um caso relacionado ao meio ambiente foi arbitrado pelo Tribunal de Haia dizia respeito ao líquido, calçada numa contenda datada de 1988 opondo a Hungria e a Eslováquia tendo por pomo da discórdia, o represamento do rio Danúbio pela barragem Gabcikovo-Nagymaros, megaprojeto hidrelétrico cingido por vívidas polêmicas, origem de um desacordo que até o presente momento, continua sem solução à vista (BARLOW et CLARKE, 2003: 89 e 239; VILLIERS, 2002: 244/254). A depredação dos recursos hídricos, implicando na diminuição do montante hidrológico disponível, exaltou a relevância dos estoques remanescentes, que escassos, acirraram as disputas pelo líquido. Escassa, a água tem-se revelado motivo de fortes antagonismos, os quais assumem um caráter belicoso ao terem por alvo, mananciais cuja distribuição, já desigual no meio natural, foi acentuada pela devastação ambiental. Não por acaso, órgãos de informação tem-se 4 454 manifestado repetidamente quanto às guerras da água, explicitando um papel inédito do recurso na organização geopolítica mundial. Esta possibilidade transparece na apreciação do cientista político norte-americano Daniel Horace Deudney: “As deficiências globais e a degradação dos recursos naturais, acompanhadas da distribuição desigual destas matérias-primas, podem conduzir a rivalidades nacionais e, evidentemente, à guerra” (citado in ELLIOTT, 1998: 220). Foi nesta mesma perspectiva que Warren Christopher, Secretário de Estado dos EUA na gestão Bill Clinton entre 1993/1997, proclamou serem “os temas vinculados aos recursos naturais extremamente importantes para obter estabilidade política e econômica” (citado in OHLSSON, 1998). Evidentemente, é possível argumentar que o controle de recursos para propósitos estratégicos têm sido, diuturni temporis, associado à esfera do poder. Na medida em que as riquezas naturais constituem subsídio essencial para assegurar o predomínio político, a intenção permanente do poder é zelar e impedir que recursos de interesse estejam ao alcance de adversários potenciais. O especialista alemão em ecopolítica, o professor Lothar Brock, pondera que, ao longo da história, a utilização dos recursos naturais tem significado lutas entre entidades sociais, voltadas para o acesso e distribuição dos insumos (ELLIOTT, 1998: 221). Por conseguinte, a luta pelos recursos naturais seria tão antiga quanto a humanidade (RAFFESTIN, 1993: 252). 4 455 Mas, embora os recursos naturais tenham desempenhado desde passado mais remoto importante papel na definição do equilíbrio de poder e inclusive tendo cumprido o papel de casus belli em inúmeras conflagrações, estes não tiveram a complexidade e o ressalto que hoje revestem os litígios em torno dos recursos hídricos. Basicamente porque a água é, acima de tudo, fonte da vida, de continuidade da existência humana e biológica em geral, sendo, portanto, essencial, fundamental e insubstituível. Não é a toa que o Tratado de Água Doce do Fórum Global da Conferência Eco-92, considera que o usufruto da água potável “se constitui num direito fundamental à qualidade de vida” (1992: 2). O reconhecimento da disponibilidade e do acesso equitativo à água enquanto uma prioridade está, deste modo, presente nas políticas públicas de abastecimento, que endossam esta diretriz de um modo praticamente universal. No entanto, o neoliberalismo propõe nova e radical interpretação desta máxima. Num contexto timbrado pela hegemonia do mercado, o objetivo declarado passou a ser colocar as águas sob a tutela da iniciativa privada, e preferencialmente, das grandes empresas. Esta intenção é bem clara numa pretensiosa declaração de Rebecca Mark, alta executiva da Azurix (empresa subsidiária da Enron), que nos anos 1990 afirmou num só fôlego: “Não descansarei até que a água de todo mundo esteja privatizada”. Nesta ótica, o prioritário passa a ser apreciar a água enquanto uma mercadoria em detrimento de qualquer outra consideração. A privatização dos serviços públicos da água (captação, purificação, 4 456 distribuição, conservação e tratamento), passou a ser identificada como uma forma de implementar uma “gestão racional dos recursos hídricos”. Em tese, através da lei da oferta e da procura, assim como em razão de metodologias mais avançadas de controle e gestão, tal modelo asseguraria a redução do desperdício, da poluição e das falhas de distribuição. Ab argumentandum tantum, muitos debates se passaram desde o momento em que o economista britânico David RICARDO, um dos decanos da economia clássica, proclamou que “a água e o ar são grandemente úteis; são de fato, indispensáveis à existência, embora, em circunstâncias comuns, nada se possa obter em troca deles” (1979: 259, grifos nossos). Seguramente, a alteração abrupta da forma como o acesso às águas doces têm sido estipulado, constitui leitmotiv de réplicas de ordem ética. Eis como Lord Selbourne, presidente da Subcomissão sobre Ética da Água Doce da COMEST mondiale d'éthique des 94 (acrônimo de Commission connaissances scientifiques et des technologies, qual seja, Comissão Mundial de Ética do Conhecimento Científico e Tecnológico), pondera quanto a esta conexão: O reconhecimento de que a água é um bem econômico, manifestado agora em muitas declarações e na política dos principais provedores de doações e empréstimos, tem gerado um debate político intenso e muitos temores, revelando valores culturais fundamentalmente diferentes com respeito à água. Alguns reclamam que promover a noção da água como um bem comercializável distrai a 94 A COMEST é um departamento criado em 1998 para assessorar o programa em defesa da ética no conhecimento científico e tecnológico da UNESCO. 4 457 percepção do público da realidade de que a água é um bem comum, e do sentido de responsabilidade e dever compartilhados. Em outras palavras, há implicações éticas profundas na percepção de que somos, com relação à água, cidadãos e não simples consumidores. Ver a água como um bem comum põe em foco essa sua característica, enquanto a questão da propriedade pública ou privada acentua a posição de consumidor (SELBORNE, 2002: 59, grifos nossos). Todavia, no prisma neoliberal, exames de ordem ética terminam secundarizados por perspectivas consideradas “práticas”. Nesta ótica, o entendimento da água como um bem econômico é defendido, por exemplo, como a única maneira de eliminar a escassez. Isto porque a comercialização da água acatando as regras da livre concorrência permitiria a eliminação de conflitos cuja origem seria a persistência de legislações e condutas incompatíveis com os assim chamados “usos sustentáveis”, ao mesmo tempo em que faria vigorar uma “remuneração justa” pelos serviços e acesso ao líquido. Nesta linha de entendimento, a gestão pública dos recursos hídricos, mormente quando movida por pontos de vista sociais, somente poderia ser considerada inadequada e ineficaz. Conviria, então, transferir a administração dos recursos hídricos para as empresas, preferencialmente adotando o modelo francês de gestão delegada, permitindo que a sociedade pudesse desfrutar de um abastecimento eficiente e afinado com a realidade de mercado, uma diretriz que a valer, está perfeitamente alinhada com a estratégia de privatização dos serviços públicos de fornecimento de gás, energia elétrica, transportes, telecomunicações, coleta de lixo e dos correios, em voga no sistema global. 4 458 Evidentemente, a privatização rechaça o étimo da água como um direito, pois tal formulação, postulando obrigações e restrições, tornase prejudicial para a “liberdade dos investidores”. Por isso mesmo, a defesa da conceituação da água como mercadoria tem sido a tônica constante, repetida com devoção apaixonada nos fóruns patrocinados pelos órgãos financeiros internacionais, governos do hemisfério norte e grandes empresas. Nesse contexto, cabe recordar que a criação em 1994 do World Water Forum (Conselho Mundial da Água) contou com o apoio de governos dos países centrais, como a França, Holanda e Canadá e de um poderoso bloco de empresas com interesses comerciais numa nova jurisprudência para o ouro azul. Por fim, o Banco Mundial (World Bank), articulado com órgãos da Organização das Nações Unidas, tais como a UNESCO, o PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), o PNUMA (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente), a FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação) e OMS (Organização Mundial de Saúde), atua enquanto um dos principais atores da entidade. Em 1996 o World Water Forum atribuiu a si mesmo a prerrogativa de definir uma visão global de longo prazo sobre a água, sendo seu objetivo explícito a formulação de propostas visando a uma política mundial de recursos hídricos tendo por base o novo credo mercantil das águas, ita est, sua “comoditização”. 4 459 Nas palavras de Maurice Strong, secretário-geral da Eco-92 e conselheiro do World Water Forum, ...a chave para a água é a economia de mercado [...] A água barata subsidia a ineficiência. E já existem subsídios perversos demais: o erário está sendo usado para propósitos antipúblicos (citado in VILLIERS, 2002: 412). As prédicas em torno da consolidação da água enquanto uma mercadoria, é evidente nos eventos internacionais relacionados com os recursos hídricos. Dentre estes, poderíamos destacar os Fóruns Mundiais da Água de Marrakech (Marrocos, 1997), de Haia (Holanda, 2000), e de Kioto (Japão, 2003, neste último caso também tendo por palco as cidades de Osaka e Shiga), assim como eventos como a Conferência de Água Doce de Bonn (Alemanha, 2001). Recorde-se, neste particular, que encontros internacionais como a Cúpula Mundial para o Desenvolvimento Sustentável, ocorrida em Johanesburgo (África do Sul, 2002), embora centrados em temários ambientais, tiveram nos recursos hídricos um destaque indiscutível. O mesmo pode ser afirmado para a Quarta Conferência da Organização Mundial do Comércio de Doha (Emirados Árabes Unidos, 2001). Neste sentido, a atuação do World Water Forum nos encontros internacionais não tem deixado dúvidas quanto à sua predisposição em reforçar, em âmbito mundial, a privatização da água doce. Patrick McCully, especialista da Internacional Rivers Network, ONG voltada para a atuação em áreas ribeirinhas degradadas nos cursos fluviais, reservou palavras duras para a entidade. 4 460 No seu parecer, o Conselho Mundial da Água não passaria de um “grupo lobista, constituído por construtoras, financiadores de barragens e corporações interessadas no tratamento, distribuição de água e saneamento” (Cf. SACCHETTA, 2003). Buscando reforçar a ofensiva em prol da privatização, o Banco Mundial encetou esforços em lançar, no ano de 1996, a Global Water Partnership (GWP), Parceria Mundial pela Água, cujo mandato organizacional é favorecer a aproximação entre autoridades públicas e os investidores privados. Sintomaticamente, o GWP é presidido pelo vice-presidente para investimentos do Banco Mundial e o faturamento dos seus 67 membros empresariais soma parte expressiva do Produto Interno Bruto (PIB) mundial. Entre as metas do GWP está a expansão do modelo das Parcerias Público-Privada (PPP) e o fortalecimento do International Centre for Settlement of Investiment Disputes (ou ICSID, Centro Internacional para Resolução de Disputas e de Investimentos), um tribunal de arbitragem internacional para o campo corporativo. Ao lado da batalha pelos corações e mentes da opinião pública e da liderança nas esferas de decisão, corporações empresariais têm rapidamente implantado seu controle sobre os recursos hídricos. A escalada da privatização da água avançou em todos os continentes, numa progressão galopante. Nesta averbação, os anos noventa evidenciaram o nascimento e expansão de um fenômeno inédito: a companhia internacional de água, hoje formada por uma soberba listagem de grandes empresas, dotadas de proeminente musculatura econômica, e sem restrições, sediadas ou possuindo controle acionário dos países afluentes (Figura 21). 4 461 FIGURA 21 - Listagem das nove principais corporações da água. Notar que fundamentalmente, são empresas de países afluentes, e mais precisamente ainda, com sede em nações do Velho Mundo (Fonte: REBRIP, 2004: 3 e MAUDE et CLARKE, 2003: 128/129) A súbita aparição destes conglomerados na economia mundial constitui a mais pura comprovação de que a magnitude dos negócios é gigantesca. Do petróleo dependem os proprietários de automóveis, as indústrias e as plantas energéticas. Todavia, da água não há quem dela não dependa. Por isso acredita-se que as receitas anuais da indústria da água tenham chegado em poucos anos a ganhos correspondentes a 40% das rendas do setor petrolífero, que além do mais, seriam 1/3 maiores do que as do opulento setor farmacêutico. De acordo com planilhas do Banco Mundial, o mercado mundial de água realizou em 1998, um giro de aproximadamente US$ 800 bilhões, projeção posteriormente elevada para US$ 1 trilhão (REBRIP, 2004: 3). E, certamente este mercado crescerá ainda mais, pois as 4 462 empresas de abastecimento de água atendem na atualidade em torno de 10% da população mundial, percentual que tem crescido ano após ano. As novas multinacionais da água, possuidoras de forte projeção no ranking dos grandes negócios, expressam através do vulto dos seus lucros o fato indiscutível de que o comércio do líquido se tem confirmado como uma empreitada de grande futuro. Tanto assim, que caso porventura nos detenhamos na atuação destas corporações numa radiciação geográfica, seria inevitável observar que estas estão presentes em praticamente todo o planeta (Vide Figura 22). Ad summam: a água é um excelente negócio, demarcando um mercado de água doce que sob o império da globalização neoliberal, está corporificado num pequeno número de empresas, oligopólios que atuam em diferentes setores: gestão da água potável, sistemas de tratamento de água, água engarrafada, bebidas gaseificadas, etc. Contudo, note-se que os interesses destas grandes empresas não são coincidentes, podendo implicar em confrontos e dissensos. De acordo com o economista italiano Ricardo PETRELLA, cada um dos setores hegemônicos no mercado dos recursos hídricos, água potável, engarrafada, bebidas gaseificadas, tratamento de esgotos, ...tem no momento, seus protagonistas, suas especialidades, seus mercados, seus conflitos. A água potável das torneiras, por exemplo, tem Vivendi, SuezLyonnaise des Eaux, Thames Water, Biwater, SaurBouygues e suas filiais. A água mineral engarrafada tem, sobretudo, a Nestlé e a Danone, respectivamente número 1 e número 2 mundiais, em muito superiores aos outros 4 463 engarrafadores. Estes últimos, além da Coca-Cola e da Pepsi-Cola, tornaram-se concorrentes das empresas de tratamento d’água, graças ao desenvolvimento e comercialização (mesmo nas empresas e residências), de uma água dita de síntese, purificada, apresentada como mais sadia que a das torneiras (2003). FIGURA 22 - Na repartição continental da atuação das grandes empresas da água, chama a atenção que tanto a Vivendi quanto a RWE-Thames River, operam em todos os continentes, assim como a força dos vínculos econômicos, o que explica a presença da AGBAR, uma empresa espanhola, na América Latina, o que reporta aos elos gerados desde o início da colonização das Américas, par a par com a American Water, corporação estadunidense, nesta derivação, expressão de um hegemonismo ultimado por uma circunscrição historicamente recente (Fonte: THE WATER PAGE, in MAUDE et CLARK, 2003: 128 et seq) Com base em fontes de índole diversa, sabe-se que em 2000, a receita das duas maiores corporações de água, ambas de capital francês, as empresas Vivendi (antiga Générale des Eaux) e Suez (ex- 4 464 Suez-Lyonnaise des Eaux), apontavam respectivamente para lucros atingindo as fabulosas somas de US$ 12 e US$ 9 bilhões, renda resultante do controle de 70% que estas companhias exercem sobre o novo mercado de água doce ao redor do mundo. A rápida supremacia conquistada pela Vivendi e pela Suez neste novo mercado, origina-se da larga experiência destas corporações enquanto prestadoras de serviço no setor do fornecimento de água potável no seu país de origem, onde a privatização da água foi levada a cabo em meados do Século XIX pelo Imperador Napoleão III, fato que certamente contribui para a performance gaulesa no segmento. Estas duas empresas, consideradas a “General Motors” e a “Ford Motor Company” do mercadeio de água, reunindo grande experiência a partir do trato no mercado doméstico, capacitaram-se para o passo seguinte, qual seja, a busca pela hegemonia nas transações globais do líquido. Secundando as empresas veteranas nos negócios da água doce, conglomerados empresariais, tais como a gigante alemã de energia, mineração de carvão e distribuição de gás, a Rheinisch-Westfälisches Elektrizitätswerk Aktiengesellschaft (RWE, fundada na Westfália em 1898), tem conquistado progressão constante no mercado da água. Em 1990 a RWE adquiriu a Thames Water, do Reino Unido, formando a RWE-Thames Water, com planos para expandir atuação no cenário internacional. A Vivendi, a Suez e a RWE despontam entre as cem maiores empresas do mundo, atuando em dezenas de países 4 465 em todos os continentes. A RWE opera atualmente em 46 países, a Vivendi em 90, e a Suez-Lyonnaise, em 130 nações. Mas, o rápido sucesso das novas corporações da água não pode ser explicado unicamente pelo histórico empresarial, competência administrativa e/ou experiência comercial. Para tanto, concorreu o inestimável apoio materializado nas grandes instituições financeiras globais, cujos arautos, não se cansam de tecer loas ao mercado. A estratégica de mercantilização da água tem sido subsidiada pelos chamados Structural Adjustment Programs (SAP), Programas de Ajustes Estruturais, estipulados pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). Estes programas são tradicionalmente baseados na eliminação dos subsídios, na anulação das barreiras protecionistas, no corte de investimentos públicos destinados para a educação e a saúde, na flexibilização dos direitos trabalhistas e evidentemente, no diktat da privatização. Contudo, esta pauta foi ampliada ao longo dos últimos anos com a inclusão de cláusulas laudatórias do mundo corporativo, claramente comprometidas com a meta de privatizar os recursos hídricos. Os acordos comerciais firmados pela Organização Mundial do Comércio (OMC) procuram, por exemplo, impulsionar a privatização dos serviços de água, exigindo que os convênios sejam abertos à mercantilização e competição por parte das corporações privadas, proposição que também aparece como exigência modelar do Banco Mundial e do FMI na contratação de empréstimos internacionais. 4 466 Nesta amarradura, “uma folheada em históricos de dívida de 40 países com o FMI durante 2000 mostra que 12 deles tiveram como imposição pelo Fundo o aumento nos preços e a privatização da água” (KALILI, 2004). Somando-se ao respaldo corporativo, a mercantilização da água vem sendo apoiada por diversos governos periféricos alinhados com a política econômica neoliberal, nações que se caracterizam, na sua maioria, pelo escasso poder de mobilização da sociedade, pormenor que justifica uma velocidade maior da privatização nos países do Terceiro Mundo (Vide Figura 23). FIGURA 23 - Na tabela acima, é evidente que os três continentes da periferia da ordem global, isto é, a África, Ásia e a América Latina, são aqueles em que os prognósticos indicam avanço acelerado da privatização da água doce (Fonte: THE WATER PAGE, in MAUDE et CLARK, 2003: 128 et seq) Na argumentação dos experts, este direcionamento transparece não só na “flexibilização” das normatizações atinentes aos recursos hídricos, mas conjuntamente com a defesa do “Estado mínimo” e do 4 467 expediente de sucatear os serviços públicos, induzindo de um modo deliberado uma situação de insolvência e de não-operacionalidade das empresas públicas através do corte e retração de investimentos. Uma vez tornados inoperantes, tais serviços seriam, então, a pretexto de implantar métodos modernos e eficientes de gestão, transferidos para a iniciativa privada. No Brasil, em especial no frigir das duas gestões do presidente Fernando Henrique Cardoso (1995/1999 e 1999/2002), desenvolveuse claramente uma orientação no sentido de privatizar dos serviços de água, até então sob titularidade exclusiva de empresas públicas. Esta tendência é cristalina, por exemplo, na Lei nº. 9.433 de 08/01/1997, que institui a Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH), estatui o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (SNGRH) e regulamenta o inciso XIX do artigo 21 da Constituição Federal 95. Tal legislação, embora considerando a água como um “bem de domínio público” (artigo 1º, I), e que em caso de escassez, caberia priorizar “a pessoa humana e os animais” (artigo 1º, III), inova ao estabelecer que a água seria igualmente “dotada de valor econômico” (artigo 1º, II). A implantação desta normatização foi propelida com respaldo das agências internacionais de fomento. Dados do Banco Mundial para o o quinquênio 1995-2000 mostram que a maior parte dos empréstimos A saber: “Instituir sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos e definir critérios de outorga de direitos de seu uso” (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988). 95 4 468 efetuados para o país, concentrou-se no segmento de água potável, saneamento básico e obras contra enchentes. No biênio 1999-2000, enquanto a título comparativo, a educação recebeu financiamento de US$ 1 bilhão, estes alcançaram a vultosa soma de US$ 6 bilhões. Os resultados desta política são evidentes: hoje, cerca de 58 municípios (dentre os quais Manaus, Campo Grande e Limeira), estão com os seus serviços de abastecimento controlados pela iniciativa privada. Observe-se que esta linha de conduta não sofreu alterações na gestão do presidente Luís Inácio Lula da Silva, que desde o início do mandato (2002), deu clara continuidade a esta política. Deste modo, as Parcerias Público-Privado, uma peça central dos mecanismos de privatização, tem sido defendida na nova administração como forma para ampliar investimentos nos serviços de água e saneamento. Esta estratégia tem seguidamente recebido apoio de setores empresariais com interesse na área, caso da PPP do saneamento, perscrutada com zelo por grandes grupos de capital privado, como as construtoras brasileiras Andrade Gutierrez e Odebrecht, e pela Degremont, empresa de saneamento ligada à Suez Ambiental 96. A posição do governo federal tem sido reiterada por declarações de membros do staff governamental, como as expostas em entrevista concedida pelo Secretário de Saneamento Ambiental do Ministério das Cidades, Abelardo de Oliveira Filho, ao jornal O Estado de S. Paulo, que inclusive se posicionando de modo contrário ao colocado na campanha eleitoral de Lula em 2002, foi enfático ao destacar que 96 Nota divulgada na versão eletrônica do jornal Valor Econômico, edição de 22/4/2004, 4 469 “é importante a participação do setor privado […], não há divergências quanto a isso” (OTTA, 2004). Todavia, os resultados das privatizações têm contrastado com a apologia que ronda sua difusão. Um exemplo paradigmático é o de Cochabamba, a terceira mais populosa da Bolívia. Nesta cidade, os serviços públicos de água foram privatizados no governo do general Hugo Banzer com as bênçãos dos Programas de Ajuste Estrutural. Coube à multinacional estadunidense Bechtel Corporation, por intermédio da subsidiária Águas del Tunari, aplicar a “versão hídrica” do receituário neoliberal em Cochabamba. O resultado da execução da hipotética “gestão racional dos recursos hídricos”, desde logo se fez sentir no bolso dos citadinos. Em Cochabamba, a majoração das tarifas de água, entre dezembro de 1999 e janeiro do ano 2000, foi de 100% a 200%, chegando a consumir 80% da renda familiar. No que constituiu a primeira grande mobilização popular do Século XXI, a população, com os nervos à flor da pele, lotou as ruas, participando em protestos generalizados (Figura 24), inconformada com a majoração dos preços promovida pelos novos administradores da água da cidade. A “Guerra da Água”, tal como prontamente o conflito passou a ser publicizado pela imprensa mundial, logrou colocar um basta nesta experiência de privatização, lavrando o tento inédito de revertê-la e de restabelecer o controle público sobre a distribuição da água. Embora os desdobramentos deste embate aguardem sentença de pendências jurídicas nas cortes internacionais, Cochabamba constituiu episódio 4 470 inequívoco da afirmação da água enquanto direito, e não mercadoria (LOBINA, 2000). FIGURA 24 - Cena da “Guerra da Água” em Cochabamba, Bolívia, no ano 2000, que assumiu as proporções de um levante. (Foto: People’s Global Action, in: < http://www.nadir.org/nadir/initiativ/agp/free/imf/bolivia/images/000205cochabamba_ youths.jpg >. Acesso em: 10-12-2004) Há também, em termos das novas metodologias de fornecimento, resultados decepcionantes do atendimento aos consumidores, dentre estas o sistema pré-pago de água. No Brasil, existem, ao menos três companhias testando este sistema: a SABESP (SP), a SANEATINS (TO) e a SANEAGO (GO). Este modelo funciona identicamente à telefonia celular, sendo o acesso à água facultado na proporção dos créditos adquiridos, e cortado, quando esgotado o valor (crédito) adquirido. Na ótica dos 4 471 seus defensores, este sistema permitiria melhor controle do consumo, monitoramento da rede, gestão da demanda e detecção imediata de vazamentos. Assim, graças a melhor utilização e controle mais rígido do fornecimento, a medida repercutiria positivamente na distribuição e preservação das águas doces. Claramente, o sistema pré-pago se insere na ótica da eficiência e da remuneração por serviços prestados presentes nas estratégias e no discurso neoliberal, e por esta razão, tem sido implantado pelas empresas de fornecimento de água com endosso do Banco Mundial. Outro aspecto nodal é que o lucro das empresas de água é por definição assegurado, uma vez que o fornecimento de água somente é liberado com pagamento prévio. Deste modo, eventuais problemas de inadimplência encontram uma “solução” definitiva na implantação de uma tipologia de gestão vinculada ao que tem sido catalogado como exclusão hídrica ou mais duramente, apartheid hidrológico, catalisando sérios impactos sociais e sanitários. O mais interessante é notar que o sistema pré-pago enfrentou sua primeira grande oposição não em uma nação do Sul, mas sim no refinado e tecnologicamente avançado Reino Unido. Em razão de múltiplos problemas, dentre estes o aumento dos casos de disenteria e de problemas de saúde relacionados com o corte de fornecimento de água, o governo britânico decidiu em 1998, banir o sistema prépago do país. Com base nesta resolução, restaria, pois, indagar sobre as perspectivas sanitárias pouco animadoras que o sistema pré-pago 4 472 poderia engendrar em países com padrão de vida inferior (ou mesmo muito inferior) aos vigentes na Grã-Bretanha. Considere-se também que a própria excelência do produto oferecido pelas empresas privadas não as posiciona necessariamente como prestadoras de serviços de qualidade. Por exemplo, as águas minerais obtiveram expressiva projeção econômica pela presumível segurança oferecida pelo produto, permitindo a vertiginosa expansão do mercado consumidor de água engarrafada. No que seria indicativo das potencialidades deste mercado, nos anos 1970, o volume anual mundial de águas engarrafadas foi de aproximadamente um bilhão de litros. Antes do final desta década, eram 2,5 bilhões de litros. No encerramento dos anos 1980, o total atingia 7,5 bilhões de litros e no ano 2000, foram 84 bilhões de litros de água engarrafada. No entanto, um relatório da FAO informa que a água engarrafada não possui qualidade melhor do que a oferecida pelas torneiras, até porque, em muitos países, estas águas estão sujeitas a análises e padrões bem menos rigorosos do que os aplicados aos sistemas tradicionais de abastecimento (BARLOW et CLARKE, 2003: 170/172). Isto, sem contar os impactos provocados pelo modelo de distribuição de água engarrafada, particularmente os que envolvem a produção de plásticos. O uso de vasilhames plásticos tem se expandido com base numa sinergia de fatores, dentre os quais podemos contar a influência da indústria petroquímica, razões de ordem prática (como o peso menor 4 473 e a maior resistência à tração mecânica e ao rompimento por conta da queda dos recipientes) e inclusive, o vínculo da matéria plástica com o imaginário moderno, reforçado por insistentes campanhas de marketing. Pois então, em 2001, a banalização das garrafas descartáveis implicou na produção de 1,5 milhão de toneladas de plásticos, transformados em refugos tão logo o consumidor se satisfaz com o último gole, acarretando deletérias sequelas para o meio ambiente, advindas tanto da produção dos cascos, quanto pela multiplicação do descarte inadequado dos vasilhames (RAMOS, 2004: 14). Outro questionamento, é o fato de muitas empresas alterarem a composição química original de fontes colocadas sob sua jurisdição. Em particular, o contencioso opondo desde os anos 1990 a sociedade civil e a multinacional Nestlé na cidade de São Lourenço (MG), são reveladoras das implicações da mercantilização da água mineral. Em 1992 a Nestlé adquiriu o controle mundial da empresa Perrier Vittel, incluindo nesse espólio a concessão da exploração comercial das fontes do Parque das Águas de São Lourenço. A cidade de São Lourenço, que integra polo turístico do Circuito das Águas do Sul de Minas Gerais, tem uma economia organicamente dependente das fontes de água mineral, conhecidas desde 1826 e afamadas pelo indiscutível valor medicinal. A Nestlé, agora senhora do Parque das Águas da cidade, perfurou em 1996 um novo poço com o intuito de fabricar a água de marca Pure Life (isto é: Vida Pura). Nesse processo, a água mineral 4 474 (que por definição, trata-se de uma regalia natural invulgar, nobre e específica), é, após a extração, desmineralizada e artificialmente enriquecida de sais, acatando fórmula padrão colocada à venda nos diversos países nos quais esta marca é industrializada. Este líquido, na realidade um produto adereçado de apelos imaginários, constitui uma malsinada espécie de ersatzwasser (qual seja, um sucedâneo da água natural). A desmineralização do líquido é contestada por pesquisadores, repudiada pelos ambientalistas e criticada por entidades de defesa do consumidor, que observam na prática da Nestlé, um capítulo adicional do processo de estandardização inerente ao ethos da modernidade. Para complementar, ressalve-se que este processo não é permitido por lei. Mas mesmo assim, a empresa continuou a fabricar a Pure Life. Acresce-se que lado a lado das polêmicas jurídicas, a empresa, visando atender suas ultimações comerciais, febricitou o ritmo de bombeamento das fontes, comprometendo os lençóis subterrâneos e provocando em 2002, a desaparição da fonte magnesiana, seguida do recalque do terreno da área da concessão (Vide VILLELA, 2005). Estes impactos ambientais, extremamente sérios, motivaram a mobilização da comunidade local na defesa do Parque das Águas de São Lourenço, impetrando ações judiciais contra a multinacional com o apoio de movimentos sociais. No que evidencia as limitações do Estado mínimo frente ao poder político e econômico das megaempresas, esta mobilização, mesmo 4 475 angariando respaldo jurisprudencial no país de origem da Nestlé (a Suíça), e farta visibilidade na mídia europeia (contrastando com o cauteloso silêncio da imprensa nacional durante este episódio), terminou frustrada por manobras burocráticas e pela influência da poderosa multinacional. Bastou a companhia anunciar o fechamento da unidade para que as autoridades estaduais e federais corressem em seu socorro. No Estado de Minas Gerais, foi prontamente concedida à Nestlé uma licença corretiva permitindo a continuidade do funcionamento da fábrica e, em nível federal, o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) anunciou a publicação de nova portaria autorizando a desmineralização “parcial” das águas minerais. Este deletério elenco de posturas, postas em prática à revelia da legislação, foram metodicamente analisadas pela Curadoria do Meio Ambiente da cidade de São Lourenço. Na ação civil pública instruída em dezembro de 2001 pelo promotor de justiça e curador do Meio Ambiente do município, o Doutor Pedro Paulo Barreiros Aina, listou um calhamaço de agravos lancetados ao arrepio da lei. Notitia criminis, está subscritado nos autos: a perfuração do poço foi ilegal, já que não houve autorização do DNPM; o DNPM constatou a irregularidade e não tomou nenhuma atitude; a comunidade vem sendo ameaçada pela degradação ambiental promovida pela Nestlé, que pode afetar suas atividades sociais e econômicas, que giram em torno do turismo e das águas; a produção da Pure Life configura uso irracional de recurso ambiental raro e limitado por parte de uma empresa cujo único interesse é o lucro. 4 476 No que explicita a força como o neoliberalismo se enraizou no país e no que pese a consistência da argumentação legal que consta na ação civil pública, o histórico de agressões aos recursos hídricos inaugurado sem maiores delongas pela Nestlé nos anos 1990, em plena gestão FHC, prolongou-se sem modificações na administração do presidente Luís Inácio Lula da Silva. Assim sendo, como evidencia o transcorrer deste episódio, seria lícito questionar a encomiástica eficácia dos “marcos regulatórios” que de modo repetido, são lisonjeiramente pleiteados como “modalidade contemporânea” de gestão, habilitados a “controlar” a atuação das grandes empresas no mundo globalizado. Neste panorama, de vez que o que se tem à disposição é um aparato estatal tão dócil aos grandes interesses, qual seria no final das contas a contrapartida colocada à disposição da sociedade? 8.5. DESAFIOS DA GEOPOLÍTICA DA SEDE No que foi exposto até agora, seria mister pontuar reparos quanto ao polêmico modelo de gestão neoliberal dos recursos hídricos. Ao mesmo tempo, este, além de suscitar aflitivas prognoses para o futuro do planeta, permite, numa imantação inversa, preconizar pontuações atentas para formas diferentes de compreensão de mundo, economia e sociedade. Alvitrando a partir deste piso de especulações, seria permitido alinhavar diversificada coletânea de ponderações, dentre as quais: 4 477 1. Há que ser registrado que a escassez e a demanda crescente por água doce é potencialmente indutora de prognósticos geopolíticos cujos horizontes sinalizariam, no limite, para o controle exclusivista da totalidade dos recursos hídricos planetários. Tendo-se em vista de que este processo está tendencialmente assentado na rarefação do líquido, esse poderia rapidamente transmutar-se numa geopolítica da sede, inspirando uma cartilha intervencionista cujo enunciado incondicional pontifica um poder azul, ateste-se, formas de dominação sustentadas a partir do controle dos ambientes aquáticos e dos insumos hídricos. Conforme foi sugerido, a questão dos recursos hídricos explicita, em termos do que ela representa para os interesses dominantes, uma das formas pelas quais, algumas preocupações ecológicas terminam por se tornar mais globais do que outras. Portanto, o que se tem testemunhado não confere a um “global” tal como apreendido nas acepções meramente coloquiais, que visam criptografar uma presumida “interdependência ambiental global”, um prolóquio veiculado, amiúde, pelos discursos de tradição reformista. Mais do que isso, constitui um termo político, que de acordo com a ambientalista indiana Vandana Shiva, testificaria para o Norte, um novo espaço político para controlar o Sul, criando dessa forma uma base moral para um “imperialismo verde” (ELLIOTT, 1998: 251/252). Por isso mesmo, os espaços prenhes de águas doces poderão conformar alvo de cobiça direta por parte dos países centrais. Neste 4 478 panorama, o fato de existirem grandes conglomerados baseados no comércio das águas azuis seria, em si mesmo, um pressuposto para a concretização deste cenário, com desdobramentos materializados na intervenção militar estrangeira e guerras desencadeadas pela posse do líquido. Como adverte o cientista político Armando BOITO JÚNIOR: “Cada Estado imperialista adota os interesses das suas empresas multinacionais como referência básica para a definição de sua política internacional” (1999: 35). 2. No que diria respeito ao Brasil e países sul-americanos, seria inescapável mencionar que esta região detém várias pré-condições para ser alçada à condição de área de interesse prioritário em um mundo assediado pela sede, a começar pela presença do gigantesco estoque hídrico da Amazônia. Esta conjuntura instigaria entabular um debate geoestratégico habilitado a discernir, por exemplo, formas de relacionamento a serem estabelecidas por nações como a Bolívia, Venezuela, Colômbia, Peru e o Brasil, que simultaneamente usufruem a condição serem países amazônicos e compossuidores deste reservatório transfronteiriço de águas doces. E isto, com certa premência. No passado, o presidente Theodore Roosevelt (1858-1919), um dos próceres do ethos geopolítico estadunidense 97, entendendo que os Estados Unidos estavam predestinados a assumir a balança de poder mundial (o manifest destiny: destino manifesto), inaugurou, com Não sem razão, o monumento nacional de Mount Rushmore (Dakota do Sul), dispõe Roosevelt ombro a ombro com três outros grandes ícones da americanidade: George Washington, Thomas Jefferson e Abraham Lincoln. 97 4 479 base nas concepções geopolíticas do almirante Alfred Tayer Mahan, a chamada política do big stick ou, do grande porrete. O objetivo confesso desta doutrina, era manter e robustecer os regimes alinhados com o hegemonismo norte-americano, assegurado por intermédio de ações intervencionistas, especialmente no teatro caribenho. Muito longe de ter desaparecido, esta lógica reaparece num diversificado mostruário de predicações geopolíticas nas quais a nota comum tem sido a “integração” da América Latina sob a égide norte-americana (Vide MELLO, 1999: 113/114). Conforme difusamente noticiado, desde os anos 1990 os Estados Unidos têm realizado intervenções diretas na América do Sul a título de combater a insurgência armada e o narcotráfico. A presença militar deste país foi acompanhada pela criação de instalações militares no Equador, Colômbia e Peru (PETRAS, 2002:33). Mais recentemente, sinais insistentes apontam para o interesse da administração George Walker Bush em manter instalações de inteligência e militares no território do Paraguai, país estratégico no tocante à Bacia da Prata e ao Aquífero Guarani. Assim, a percepção de uma movimentação militar, inclusive por contar com antecedentes históricos, seria bem mais consistente do que um devaneio da imprensa politicamente engajada 98 98. Ao lado da moderação necessária para evitar pressuposições fantasistas, é óbvio que geoestrategicamente existem duas formas clássicas para dominar bacias hidrográficas, fundamentalmente através do controle das cabeceiras ou da foz. É o que sugere a localização de bases dos EUA nos países andinos e a pretensão por Alcântara (Maranhão). Quanto ao Paraguai, as especulações se acentuaram com a visita do secretário de defesa dos EUA Donald Rumsfeld a Assunção, ocorrida em agosto de 2005 (Manchetes Socioambientais, edição de 13-09-2005). 4 480 Além disso, a lógica das relações internacionais do mundo atual, permite obter acesso aos recursos hídricos prescindindo de opções manu militari. A proposta da Free Trade Area of the Americas (FTAA) ou Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), constituiria um excelente atalho para alcançar este objetivo. Alicerçada na evangelização neoliberal, a ALCA é um tratado que propõe, a título de arrostar a concorrência alógena dos europeus e asiáticos, a desregulamentação e flexibilização comercial e financeira entre a maior potência econômica, bancária, cultural, informacional, científica, tecnológica e militar do continente, os EUA, e seus vizinhos latino-americanos, desde o Rio Grande até a Terra do Fogo (Ver entre outros, COGGIOLA, 2005). Na voz dos seus críticos, a criação da ALCA não implicaria em qualquer “integração”, com exceção da voltada para catapultar os interesses econômicos hegemônicos. Logo, a ALCA intensificaria a mercantilização dos bens naturais, impondo à biodiversidade, aos recursos minerais e aos acervos hídricos, as leis do mercado e os ditames das transnacionais. Especificamente no quesito água, a aproximação dos Estados Unidos da condição de estresse hídrico tem motivado propostas de megaempreendimentos que anteveem a viabilização do transporte de maciça volumetria do líquido. Tal como argutamente foi registrado por Maude BARLOW e Tony CLARKE, existem nada menos que cinco grandes projetos de canais transoceânicos em andamento, programados para cortar o istmo 4 481 centro-americano visando consolidar a infraestrutura voltada para o novo, e promissor, comércio mundial de água potável (Consulte-se 2003: 164/167). Em suma, a titularidade da exploração dos estoques de água doce, revestidos do laurel de um recurso estratégico de importância capital, descartaria estas predicações enquanto simples fabulação de uma imprensa xenófoba. Pelo contrário, trata-se de um tema a ser discutido com toda seriedade e atenção possível. A mesma que os grandes interesses econômicos têm dedicado a esta questão. 3. O avanço da mercantilização da água doce respaldaria o questionamento de clássicas interpolações conceituais. Uma destas reportaria ao significado que o neoliberalismo impingiu para a “esfera do econômico”, referendada neste cânon como parâmetro exclusivo de gerenciamento da totalidade das sociedades humanas. Entretanto, contrariamente a este primado, vigoraram no passado dos humanos, múltiplas interpretações e estratificações da economia, sendo a presunção de confiná-la às volições modeladas no bojo da expansão ocidental, além de ilegítima, uma inverdade absoluta. Do mesmo modo que em muitas outras polêmicas, o resgate dos sentidos que outrora perpassavam pelo imaginário e pelo léxico social contribui para lançar uma nova luz sobre as (in)certezas metafísicas esposadas pelo mundo contemporâneo. Voltando novamente nosso olhar para as sociedades tradicionais, toma-se conhecimento de que a economia se irmanava com outras 4 482 finalidades, por intermédio das quais esta era entendida como um esteio voltado para satisfazer as pessoas e fortalecer os vínculos da antiga Gemeinschaft, jamais a si mesma. No mundo da tradição, “em vez da economia estar embutida nas relações sociais, são as relações sociais que estão embutidas no sistema econômico” (Cf. POLANYI, 2000: 77). Neste senso, inverter o padrão que passou a guiar a experiência econômica do mundo ocidental, qual seja, as relações econômicas enquanto axis magnetizador das demais esferas da vida humana, pressupõe repensar não apenas os axiomas que regem a economia e a sociedade, mas também, sufragar outras dimensões tiradas de cena pelo forçante econômico. Isto porque sobejamente, o “espelhamento invertido” do mundo moderno inspira refletir sobre os vínculos solenes da economia com a dimensão do cultural e o engaste do coletivo humano com o meio natural, premissa que não tem sido de modo algum, uma prioridade no império da modernidade (CARVALHO, 1978). Consequentemente, a economia deveria incorporar uma ótica diferente da que hoje governa a sociedade humana, promovendo a participação, inclusão e o equilíbrio ambiental, estendidos ao conjunto dos atores que participam do mundo globalizado. Como foi sintetizado pelo geógrafo Claude RAFFESTIN: Em outros termos, coloca-se o problema fundamental da repartição das coisas entre os seres humanos. Ou todo mundo recebe a mesma quantidade de bens e de serviços e então se trata de uma ‘eco-nomia’ no sentido 4 483 etimológico, ou então se estabelece um conjunto de critérios que determinam aqui a abundância, e ali a rarefação. Então, não se trata mais de uma economia, mas de uma política cujas finalidades não são a expressão de uma necessidade endógena que implica a permanência de uma estrutura, mas a expressão de uma vontade exógena que determina as finalidades das partes da estrutura que se devem manter (1993: 34). 4. Como seria evidente, uma releitura da economia implicaria na ampliação do universo de inquirições. Extrapolando o campo da economia, percebe-se que grande maioria das instituições existentes, como poderia ser anunciado pela mais rápida das consultas de uma bibliografia basilar centrada na questão ambiental, não foi desenhada para ocupar-se dos dilemas básicos da escassez ecológica. Esta admoestação sugere que o Estado passe a ser repensado nesta perspectiva, sob pena de não se dar conta da problemática ambiental (GUIMARÃES, 1991: 123). Ademais, seria inerente a esta proposição, que a intervenção estatal passe a ser exercitada numa direção oposta aos defensores do “Estado mínimo”. Isto porque a questão ambiental reclama um Estado forte e não fraco (ELLIOTT, 1998: 250). No caso da água doce, esta é uma condição necessária para caucionar que o recurso possa tornar-se, na lei e na prática, um patrimônio da sociedade, sob o controle de modalidades públicas de gestão. Entretanto, o fortalecimento da representação da sociedade é uma equação passível de desventuras e desencontros, em vista de que a instituição pura e simples de “canais de participação”, não 4 484 garante em si mesma (equívoco comum a muitas abordagens, incluso as “bem-intencionadas”), uma real “democratização das decisões”. Muitas vezes, os compromissos em prol de instituições baseadas na soberania cooperativa reforçam processos políticos por meio dos quais os interesses privilegiados de poucos, se tornam mais bem representados do que os interesses democráticos da maioria. As instituições internacionais e os processos de gerenciamento socioambiental, não são nesta perspectiva, realmente democráticas, censura também endereçada à atuação das ONG, mesmo porque, diversas arguições admoestam que a participação destas entidades em empreendimentos conjuntos com a esfera estatal, são, na prática, um caminho aberto para uma cooptação a posteriori. Para mais, a gestão ambiental prossegue, numa visão engajada, enquanto uma coalizão de regimes afluentes e poderosos, corporações e esquemas financeiros. Por estas vias, o direcionamento oferecido pelas instituições estatocêntricas, tem sido deslocar o debate relativo à resolução da crise ambiental para fora das mãos daqueles que são, de fato, os mais diretamente afetados por ela, uma nuança que solicita revisão urgente (ELLIOTT, 1998: 251). 5. Finalizando, atente-se que a globalização não é um fenômeno irreversível, sendo exequíveis outras possibilidades. O momento ora vivido é uma das vias abertas pela história, mas não constitui, em absoluto, o único caminho a ser trilhado. 4 485 Esta ressalva importa tanto em razão de que nada poderia obstar o surgimento de circunstâncias que venham a agudizar a entropia e os agravos socioambientais que tipificam o mundo contemporâneo, quanto também, de sustar a eclosão de inciativas que imponham o recuo do processo de degradação. Caberia ao movimento vivo da sociedade descortinar alternativas ao que se tem presenciado e quem sabe, substituir este panorama por outro, afeito às necessidades da imensa maioria dos humanos. Refletindo sobre a possibilidade de novas expectativas, asseverou François CHESNAIS: Destacar que seriam ‘irreversíveis’ a hipertrofia financeira e todo o seu séquito de desgraça é cair num molde muito suspeito de determinismo histórico. No sentido mais forte, seria atribuir a processos sociais, produtos da atividade humana, caráter análogo ao das evoluções biológicas. Para certos autores, apelar para a ideia de ‘irreversibilidade’, muitas vezes junto com um chamado ao ‘realismo’, sempre foi como justificar a ordem estabelecida (‘a ordem natural das coisas’). Para outros, essa ideia traduz uma submissão resignada diante de relações econômicas e políticas das quais não parece fácil livrarse, quando parece não haver saídas ou alternativas claras (1998: 32). Por conseguinte, contrariando o état d'esprit conformista, nada implica em depreender que a resistência à modelagem neoliberal foi extinta ou que a sociedade contemporânea está fadada à repetição sincopada de um adágio global pretensamente universal. Pelo contrário, por todo o planeta eclodem mobilizações que questionam os rumos da globalização, cativando simpatizantes e ativistas que se empenham em denunciar e conter, com sucesso variado, a progressão das suas diretrizes, sendo uma das expressões deste 4 486 inconformismo, o Fórum Social Mundial (FSM), que no ano de 2005, completou o quinto encontro do movimento. Proposto inicialmente enquanto uma contraposição ao Fórum Econômico Mundial, cuja cúpula ocorre na cidade de Davos (Suíça), o FSM é um evento mundial organizado pelos movimentos sociais com objetivo de discutir temas relevantes e alternativas para as questões centrais da atualidade. Significativamente, os recursos hídricos é um dos temas que tem despertado maior interesse nas oficinas e grupos de discussão do FSM. Indicativo não menos importante, a defesa do direito do acesso à água doce, assim como a contestação das políticas de privatização, tem transparecido como verdadeiro consenso em todos os encontros. Claramente, as águas são uma instigante motivação na direção de mudanças, em especial porque apenas este líquido vital pode nos fazer observar de modo contundente, que a sede de rentabilidade econômica não conduzirá o mundo para nenhuma outra situação que não o da mercantilização da privação e do desespero. Assim, mais do que nunca, é preciso não só repensar o mundo na ótica da solidariedade, de uma outra mundialização, que consolide o caminho da comunhão dos bens ofertados pela natureza, como também agir para que a mudança ocorra, e o quanto antes, melhor (Ver SANTOS, 2000 e MORIN, 2002). Que deste modo se busque na satisfação das águas, o caminho privilegiado para honrar sonhos, projetos e esperanças! 4 487 PARTE IV GRANDE ABC, RECURSOS HÍDRICOS E A METRÓPOLE PAULISTA 4 488 CAPÍTULO 9 RECURSOS HÍDRICOS E QUESTÃO URBANA NO BRASIL 9.1. RECURSOS HÍDRICOS DO BRASIL Embora os debates relacionados aos recursos hídricos tenham conquistado relevante expressão somente nos últimos anos, isto não significa que a farta presença de água no espaço natural brasileiro tenha passado despercebida aos olhos dos diferentes protagonistas atuantes na história e na geografia brasílida, mesmo porque, nada permitiria ignorar a deslumbrante fruição das águas doces no território nacional. No que seria demonstrativo da majestade das águas doces no meio natural brasileiro, na própria Carta de Pero Vaz de Caminha já está sugerido que o Brasil seria o País das Muitas Águas. É o que se pode apreender ao conferirmos o documento. Conforme excerto destacado a seguir, confirme-se: “As águas [ deste país ] são muitas, infindas. E em tal maneira [ esta terra ] é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo por bem das águas que tem” (Vide CAMINHA, 1974: 82/83). Mas, mesmo que esta definição esteja apoiada por um cabedal de comprovações empíricas, uma análise mais apurada admitiria reparos e reconsiderações. A começar pelo simples fato de que o 4 489 espectro da escassez de água tem assombrado grandes segmentos da população brasileira, transformando-se num problema que assola o cotidiano de milhões de concidadãos. Portanto, nada mais justo que auscultar a respeito dos motivos que geraram o preocupante quadro referente ao abastecimento do precioso líquido. Antes de tudo, é necessário certificar que existem motivos de sobra para que o conjunto da nacionalidade se sinta prestigiado pelo magnífico volume de águas doces que escoam pelo território do país. Independentemente do fato de que tal percepção possa ser estendida cognitiva e concretamente a vários outros rincões latino-americanos 99, assinale-se que o Brasil, aparte qualquer arroubo laudatório ou ufanista, abarca em seu espaço uma prodigiosa quantidade de água. Como seria evidente, pressupostos naturais estão na raiz desta generosa difusão de águas doces. Dentre outros fatores, uma copiosa descarga pluvial explica a farta rede hidrográfica que drena as terras do Brasil. Em termos pluviométricos, calcula-se que mais de 90% do espaço brasileiro recebe chuvas abundantes, entre 1.000 e 3.000 mm por ano, indiscutivelmente alta em termos das médias da hidrosfera. É com base nesta farta precipitação pluviométrica, garantida por um regime tropical de chuvas decorrente de singularidades geofísicas (o Brasil é o maior país tropical do mundo), reforçada por condições orográficas favoráveis, que o território brasileiro ostenta a invejável malha hidrográfica de que dispõe (REBOUÇAS, 2002a: 29). A este respeito recorde-se que o topônimo Guiana significa justamente país de águas abundantes nas línguas dos povos indígenas da região; quanto à Venezuela, o nome parece derivar de Pequena Veneza, consistindo, pois numa menção metafórica a um território parceiro das águas e portanto, da exuberância dos corpos líquidos neste país. 99 4 490 A exceção a esta regra, isto é, o semiárido nordestino, consiste de qualquer modo um quadro hidrológico melhor aquinhoado do que muitas regiões verdadeiramente críticas ao redor do mundo. Nesta categoria, dentre diversos exemplos passíveis de citação, estariam o Oeste dos Estados Unidos, o Kalahari, o Atacama, o Deserto do Thar, o Deserto Australiano e a Grande Diagonal Árida, cuja grandiosidade se explicita na própria denominação 100. Concretamente, apenas a título excepcional as regiões afetadas pela aridez poderiam exibir rios caudalosos como o São Francisco, Parnaíba, Jaguaribe e outros flumes que atravessam o sertão. Estes rios permanentes drenam uma landschaft sujeita a fortes estiagens, mas que exclusivamente aos olhos de questionável senso comum estaria afeita a condenar seus habitantes aos tormentos da sede. Saliente-se que mesmo os rios intermitentes que atravessam os domínios de rochas do embasamento geomorfológico subaflorante do semiárido nordestino, tais como o Apodi, Sabito, Canindé, Paraíba e o Vaza-barris, cujos fluxos são efêmeros total ou parcialmente, em nada poderiam ser equiparados aos ueds 101 encontradiços nos desertos africanos e asiáticos. Ao contrário destes, os rios temporariamente secos do semiárido recebem vazão muito mais alta e persistente no tempo e no espaço. Razão para evitar sinonímias enganosas com o cenário hidrológico das áreas desérticas, com as quais, as afinidades A Grande Diagonal Árida abarca uma vasta região compreendida por terras africanas e asiáticas, assim como suas circunvizinhanças subtropicais, reunindo os países do Machrek, do Magreb, do Saara, dos planaltos do Iran e da Ásia Central. No entanto, em que pese a escassez de água, isto em nada impediu no passado a gênese de diversas civilizações, dotadas de cidades florescentes e de uma soberba vida agrícola, calcada na utilização parcimoniosa dos recursos hídricos existentes (Ver BRETON, 1990: 80). 101 Estes correspondem a cursos de água temporários típicos das extensões áridas da África Setentrional e do Oriente Médio. De origem árabe, o termo também consta nos mapas como ouadi, wadi ou wady (Ver OLIVEIRA, 1994: 1933 e 1983: 661). 100 4 491 ecossistêmicas são inexistentes, até porque, os desertos são biomas estranhos ao meio natural brasileiro. Na realidade, uma densa malha hidrográfica admite discriminar inúmeras bacias, emaranhado suficientemente pródigo para permitir debates e conceituações técnicas que intentam encarcerar uma dimensão hidrológica verdadeiramente monumental. Aliás, a definição das bacias hidrográficas no território brasileiro tem representado um desafio para sucessivas levas de geógrafos e hidrólogos. Na dependência dos objetivos do mapeamento e da concepção metodológica adotada, a compartimentação das bacias hidrográficas é objeto de polêmicas acesas, alterada de tempos em tempos nos termos da sua amplitude espacial e de uma nomenclatura geográfica pretendidamente modelar. Assim sendo, várias tentativas atendendo a clareamentos específicos resultaram em modelos de interpretação da hidrografia nacional com estofo institucional. A classificação hoje vigente corresponde a uma divisão que visa atender aos requisitos da Lei nº. 9.433/97 e do Plano Nacional de Recursos Hídricos (PNRH), que advogam a adoção das bacias hidrográficas como unidades de planejamento. Neste sentido, uma definição hidrográfica de âmbito nacional foi elaborada em 1985 pelo Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica (DNAEE), e encampada pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), após a extinção deste departamento. Em 1998, uma segunda classificação foi apresentada no Diagnóstico Nacional de Recursos Hídricos, elaborado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e para rematar, uma 4 492 terceira delimitação foi elaborada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A partir dessas considerações, foram estabelecidas com vistas ao PNRH, dez regiões hidrográficas (bacias ou conjunto de bacias hidrográficas contíguas), nas quais o rio principal deságua no mar ou em território estrangeiro. Essas regiões, identificadas através de carta publicada pelo IBGE no ano 2000, resultaram da adequação das propostas de divisão em bacias hidrográficas indicadas pelo DNAEE e pelo IBGE. O Brasil, de acordo com a definição endossada IBGE, abrigaria no seu território cinco bacias de maior porte e significação, caso da Amazônica, do Tocantins, do São Francisco, do Parnaíba, da Prata (através da qual escoam as águas dos rios Paraná, Paraguai e Uruguai) e ademais, cinco agrupamentos hidrográficos categorizados como bacias litorâneas ou costeiras (Vide Figura 25). Em particular, constituindo uma monumental expressão do meio natural, a bacia Amazônica, a maior reserva de recursos hídricos do mundo, seria merecedora de comentários específicos, podendo ser aquilatada por intermédio do parágrafo que transcrevemos a seguir: A área de drenagem do rio Amazonas, somada à da área do rio Tocantins, totaliza 6.869.000 km², representa cerca de uma vez e meia a segunda maior bacia do planeta, a do rio Zaire na África, e cerca de 1/3 da área da América do Sul. A descarga amazônica atinge valores acima de 6.700 km³/ano, equivalendo a quase cinco vezes a descarga do rio Zaire, o segundo em descarga do mundo, e a 20% de toda a água doce que é despejada nos 4 493 oceanos do planeta por todos os rios (BARTHEM, 2001: 61). Bacia Costeira Norte Bacia Amazônica Bacia do Tocantins Bacia Costeira NE Ocidental Bacia do Parnaíba Bacia Costeira NE Oriental Bacia do São Francisco Bacia da Prata (Paraguai) Bacia da Prata (Paraná) Bacia da Prata (Uruguai) Bacia Costeira NE Oriental Bacia Costeira Sudeste Bacia Costeira Sul FIGURA 25 - Mapa das Bacias Principais (azul-escuro) e das Bacias Costeiras (azul-claro), com respectivas áreas de abrangência territorial (Fonte: < h ttp://www.aguas.cnpm.embrapa.br/natureza/mapas/conteudo/rh_indice.php >, escala aproximada 1: 29.300.000, acesso: 01-03-2005) A grandiosidade da bacia amazônica se expressa nos inúmeros afluentes de grande caudal, rios que como o Xingu, Tapajós, Madeira, Negro e Branco, estão incluídos entre os maiores cursos d’água do mundo. Por outro lado, o fato de o Brasil abrigar no seu território esta pujante bacia hidrográfica não desmerece a excelência de redes fluviais como a da Prata, do Parnaíba, São Francisco e do Tocantins, 4 494 todas de grande expressão territorial, em nada devedoras às maiores bacias hidrográficas do planeta. Deve-se agregar a estes comentários, o significativo papel das bacias litorâneas ou costeiras, categorizadas ainda em data recente como “secundárias”. Agrupadas em blocos fluvio-regionais reunindo uma diversidade de cursos d’água, estas bacias hidrográficas seriam as do Norte, Nordeste Ocidental, Nordeste Oriental, Sudeste e do Sul. Ressalve-se que a despeito de possível desqualificação inerente à tipologia “secundária”, tais bacias reúnem rios que na maioria dos países, seriam considerados como de porte significativo. Embora de somenos expressão num contexto eminentemente nacional, nestes cinco agrupamentos hidrográficos estão presentes cursos fluviais de valiosa expressão geográfica, drenando áreas superiores a países com expressividade territorial. Dentre estes seria cabível mencionar os rios Taquari, Jequitinhonha, Doce, Oiapoque, Itapemerim e Ribeira do Iguape, com importância primordial no contexto dos espaços que drenam. Resultado direto do porte deste imponente conjunto hidrográfico, uma estimativa praticamente consensual, reserva ao Brasil 12% das águas superficiais do mundo. Sem sombra de dúvida o maior acervo hídrico existente na Terra, a descarga dos cursos d’água brasileiros concentraria algo como 53% do volume total da América do Sul, que se sabe, é o mais bem aquinhoado quadrante do mundo em termos de disponibilidade do líquido. 4 495 Note-se que a dominialidade geográfica do Brasil, país alojado na porção central/oriental da América do Sul, contribui para beneficiá-lo, particularmente no caso da bacia amazônica, da descarga de rios que nascem em países vizinhos a Oeste. Deste modo, embora 43% da bacia Amazônica esteja localizada nos países limítrofes, a descarga final encontra-se no Brasil. Observando por este prisma, estaria sob titularidade brasileira o escoamento de 77% das águas de superfície da América do Sul, somatória da vazão produzida no território brasileiro com aquela que escoa das nações vizinhas, no caso, vazão oriunda basicamente dos países do entorno amazônico. Com base neste parâmetro, justificamse, pois, os levantamentos que reservam ao Brasil a porcentagem de 17% dos recursos hídricos globais (TUCCI; HESPANHOL et NETTO, 2001: 42). A grandiosidade desta cifra tem sua contrapartida na exuberante naturalidade do espaço brasileiro. Saliente-se que a participação brasileira na biodiversidade global, estimada em aproximadamente 20% do total mundial, possui relação direta com a grandiosidade dos corpos líquidos encontrados no país. No que diz respeito à pujança da wilderness, os números do Brasil são arrebatadores: O país conta com a maior riqueza de animais e vegetais do mundo: entre 10 a 20% de 1,5 milhão de espécies já catalogadas. São cerca de 55 mil espécies de plantas com sementes (aproximadamente 22% do total mundial), 502 espécies de mamíferos, 1.677 de aves, 600 de anfíbios e 2.657 de peixes. Respectivamente 10,8%, 17,2%, 15,0% e 10,7% das espécies existentes no planeta. Considerando o fato de que a maior parte da 4 496 biodiversidade mundial ainda está por ser estudada, e que os países desenvolvidos estão muito à frente quanto a inventários biológicos, estima-se que as investigações no Brasil, em especial na Amazônia, elevarão significativamente a posição do país nestas estatísticas, baseadas nos números disponíveis atualmente (Vide CAPOBIANCO, 2001: 13). Para todos os efeitos, é inegável o vínculo entre a presença de generosas massas líquidas, a irradiação solar e a prodigalidade das formas de vida, fatores que articulados com a presença e a atuação das populações tradicionais 102, conferem ao espaço amazônico uma situação ímpar quanto à biodiversidade (CUNHA et ALMEIDA, 2002). Esta riqueza biológica pode igualmente ser corroborada pela rica ictiofauna brasileira, que sempre despertou legítima admiração entre os naturalistas estrangeiros. O célebre naturalista inglês Alfred Russel Wallace, célebre por ter proposto junto com Charles Darwin a teoria da evolução das espécies, se embrenhou nos vales dos rios Negro e do Uaupés, no setentrião amazônico, pelos idos dos anos 1850-1852, para coletar espécimes de peixes destes rios. Extasiado com o que encontrou, registrou o renomado naturalista: Tomando-se por base o número de peixes diferentes que eu encontrava continuamente em cada nova localidade e em cada samburá de pescador, pode-se presumir que existam pelo menos 500 espécies no Rio Negro, e em seus afluentes. Quanto ao total de espécies existentes na bacia amazônica, acredito ser impossível estimá-lo com um mínimo de precisão (WALLACE, 2002: 54). Quanto ao inter-relacionamento socioambiental que se estabeleceu entre populações tradicionais e biodiversidade, consulte-se CARVALHO, 2000. 102 4 497 Note-se que o tempo deferiu a suposição de Wallace. Nos anos 2000, levantamentos relativos à ictiofauna do Rio Negro indicam que esta excede a fabulosa soma de 700 espécies, totalização que ainda aguarda apuros pelas pesquisas (idem, 2002: 54). Outra joia do quadro natural do país são as águas subterrâneas. Considera-se que depósitos subterrâneos do líquido estão presentes em 90% do território brasileiro. Na atualidade, as águas subterrâneas são responsáveis pelo abastecimento de aproximadamente 90% das indústrias e de 62% da população nacional, seja por intermédio de poços profundos (70%), fontes (20%) ou de cacimbões e poços rasos escavados (10%). O uso de água subterrânea também tem destaque em setores como da fruticultura para exportação, especialmente no semiárido nordestino (REBOUÇAS, 2004: 97/121). No referente aos depósitos subterrâneos, cabe realçar o Aquífero Guarani, considerado o maior do mundo. O termo foi sugerido pelo geólogo uruguaio Danilo Antón em 1994 e sancionado posteriormente em maio de 1996. Até então, este corpo de águas profundas recebia denominações regionalizadas, dentre as quais: Misiones no Paraguai, Tacuarembó na Argentina e no Uruguai e Botucatu, no Brasil (Vide BORGHETTI et BORGHETTI, 2004). A denominação “Guarani” é uma homenagem à nação indígena que no pretérito, povoava naco considerável da área ocupada por este lençol subterrâneo. No mais, a designação Aquífero Cone Sul ou Mercosul, tem cativado a mídia, à vista deste reservatório estender-se através dos territórios dos quatro países integrantes da mesma subregião geográfica ou, do bloco econômico homônimo, qual seja, pelos 4 498 territórios do Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai. Localizado no Centro-Leste do continente sul-americano, a área abrangida pelo aquífero, supera a superfície da maioria dos países: 1.194.800 km² (Vide SCHIO, 2005). Embora compartilhado por quatro países, 70,3% do reservatório estão situados em território nacional (Vide Figura 26). Deste modo, 840 mil km² correspondem à parcela da terra brasilis, e o restante, é partilhado entre a Argentina (250 mil km²), o Paraguai (71.700 km²) e o Uruguai (58.500 km²). No Brasil, o reservatório ocorre em oito estados: Mato Grosso do Sul (213,2 mil km²), Rio Grande do Sul (157,6 mil km²), São Paulo (155,8 mil km²), Paraná (131,3 mil km²), Goiás (55 mil km²), Minas Gerais (51,3 mil km²), Santa Catarina (49,2 mil km²) e Mato Grosso (26,4 mil km²). Atine-se que bom número de unidades da federação detém área maior de abrangência territorial do Guarani do que aquelas sob jurisdição dos países vizinhos. Este reservatório ganhou grande notoriedade nos últimos anos, por conta de levantamentos que revelaram a quantidade de água que encerra. Suas águas subterrâneas, com exceção de áreas anômalas, apresentam excelente potabilidade e são adequadas a múltiplos usos (ROCHA, 1997: 196). Este depósito de água é constituído por um pacote de camadas arenosas depositadas na Bacia Sedimentar do Paraná ao longo do Mesozoico, entre 200 e 132 milhões de anos atrás. Funcionando tal como uma esponja, esta formação de arenito absorveu e armazenou água originária da infiltração imemorial de sucessivas precipitações pluviométricas, impregnando as camadas de rochas permeáveis. 4 499 FIGURA 26 - Mapa do Aqüífero Guarani na América do Sul: Área de abrangência dos países titulares (Imagem masterizada e adaptada por Maurício Waldman. Fonte: < http://www.moderna.com.br/ moderna/agua/imagem/aquifero.gif >, escala aproximada 1: 33.600.000, acesso: 12-02-2005) 5 500 Este processo natural originou um montante considerável: 37.000 km³. Comparativamente, recorde-se que a descarga total de água doce de todos os rios do mundo soma 41.000 km³/ano. Isto significa que o Guarani armazena uma porcentagem equivalente a 90,2% do total da água superficial de todo o planeta (REBOUÇAS, 2002a: 14). A potencialidade explotável do reservatório, em derredor de 25%, permitiria atender a cerca de 30 vezes a demanda total de água dos 15 milhões de habitantes do espaço de ocorrência do aquífero. Localizado numa profundidade média de 1.500 metros, além de água potável, este reservatório reuniria condições de fornecer água quente para uso residencial, suprindo-as de calefação, e somando-se a isto, possíveis usos industriais. No mais, extensão ponderável do Guarani é do tipo confinado, conferindo-lhe características de artesianismo, propiciando, portanto, a abertura de poços jorrantes em muitos locais. O vulto deste reservatório permitiu que um número considerável de municipalidades paulistas, como Araraquara, Bauru, Lins, Ribeirão Preto, Jaú e Marília, passassem a satisfazer suas demandas por meio da perfuração de poços (ROCHA, 1997: 192/194 e 202/203). Apesar de a visibilidade alcançada por este lençol de águas subterrâneas nos últimos anos, este seria, por sinal, apenas uma das potencialidades hidrogeológicas de águas subterrâneas do país, visto estar contemplado por vários outros aquíferos. Enfim, a cubagem do potencial do Guarani, isto é, a volumetria do reservatório, está longe de ser aceita como definitiva, aguardando, pois uma contabilidade final 103. Recorde-se que o potencial brasileiro em termos de reservatórios subterrâneos comportaria muitos estudos para dimensionar sua real expressão. Isto, em vista de que 103 5 501 A partir do que foi pontuado até este momento, o Brasil poderia transparecer como um país afortunado do ponto de vista dos recursos hídricos, até porque desfruta em larga escala da posse de um recurso verdadeiramente estratégico que é a água, reservas significativas não só do ponto de vista quantitativo como também do qualitativo. Certamente, nada semelhante ocorre pelo mundo afora. E é este majestoso conjunto de águas doces que credencia o Brasil, no milênio que se inicia, como uma das poucas nações teoricamente capacitadas a competir no mercado de água potável que tem sido desenhado nos últimos anos. Observação consignada nos capítulos precedentes, dos países pertencentes ao G7 da água, apenas o Brasil conta com um capital hidrológico indiscutivelmente abundante. O país, contrariamente aos demais participantes do grupo (Estados unidos, Canadá, Federação Russa, Índia, República Popular da China e República Democrática do Congo), está não só habilitado a ser um provedor de água doce em escala mundial, como é o único com capacidade de assumir uma posição de liderança. Nesta ordem de argumentações, a conservação dos recursos hídricos constituiria tanto uma estratégia visando o atendimento da população, quanto um imperativo e um pressuposto para atender a crescente demanda mundial de água, transformada desde finais do século passado, numa promissora commodity, fato que homologa de mesmo regiões próximas das grandes metrópoles aguardam avaliações técnicas quanto à sua capacitação enquanto provedoras de águas subterrâneas. Neste caso pode ser incluído, por exemplo, o município de Ribeirão Pires, cuja cubagem ainda é largamente desconhecida. 5 502 vez o marco inédito de metamorfose do líquido num bem de mercado pelo evangelho da economia-mundo (BARLOW et CLARKE, 2003). Assim, até que ponto a potencialidade hídrica do país poderia compor uma alternativa real diante da escassez que hoje já importuna segmento relevante da população brasileira? 9.2. SEDE NO PAÍS DAS MUITAS ÁGUAS Uma vez esboçados os aspectos referentes às vocações naturais do Brasil no tocante à água doce, agora caberia delinear, mesmo que sinteticamente, as restrições socioespaciais que transformaram, para um setor significativo da população do país, a cinematográfica fartura de recursos hídricos em mera figura de linguagem, sem contrapartida na realidade vivida. Nesta continuidade, o fato das bacias hidrográficas conotarem realidades demográficas apresentando toda sorte de contrastes tem sido insistentemente levantado, sendo lícito pespontar lineamentos espaciais e populacionais. Entretanto, respeitados os condicionantes sociais, históricos e geográficos da oferta e da demanda dos recursos hídricos no Brasil, seria plausível admitir que de facto, os mesmos estão marcados pela ausência de qualquer equanimidade. Por exemplo, a Amazônia representa somente 5% da população brasileira, mas concentra 71,1% das águas doces do país, donde se conclui que os demais 95% da população usufruem apenas os 28,9% da água restante. Outro dado que pode ser agregado é a informação 5 503 pela qual as quatro bacias menos densamente povoadas (Amazônica, Tocantins, Parnaíba e Paraguai), reúnem cerca de 83% dos recursos hídricos disponíveis no país. Considere-se que na região amazônica, a densidade demográfica oscila entre 2 e 5 hab./km²; quanto à bacia do São Francisco, a taxa de ocupação é ligeiramente maior, entre 5 e 25 hab./km² em média; contrariamente, este índice atinge a marca dos 53 hab./km² no caso da bacia do Paraná e, patamares bem superiores a este nos grandes conglomerados metropolitanos (Vide PEREIRA, 2002 e REBOUÇAS, 2002a: 29). Um dado sintomático é que as bacias litorâneas, mesmo que nacionalmente menos expressivas do ponto de vista da produção hídrica, abrigam numerosa população e um conjunto significativo de regiões metropolitanas. Dentre estas concentrações urbanas, pode-se mencionar conurbações com o porte de Porto Alegre, Rio de Janeiro, Fortaleza, Salvador, Santos, Curitiba e do Recife. Este descompasso, continuadamente recordado por mais de um material acadêmico dedicado ao assunto, repete-se no caso das bacias dos rios Paraná, do Sudeste e do Sul. Estes três conjuntos hidrográficos, cravando 12% dos recursos hídricos do país, aglutinam, entretanto, cerca de 54% da população total do país (Vide PEREIRA, 2002). Assim, a distribuição desigual no território nacional dos atributos físicos (climáticos, geológicos, geomorfológicos), contrapostos aos da geografia humana (caso da distribuição da população), seria origem 5 504 de dessimetrias que emprestam óbvia complexidade à discussão do usufruto da água doce. Numa locução que faria coro com comentários relativos a outros cenários do mundo atual, o Brasil disporia de muita água em áreas habitadas por pouca gente e simultaneamente, muita gente habitando espaços com pouca água doce disponível (passim VILLIERS, 2000). Decerto, uma rápida consulta cruzando os potenciais hídricos da malha hidrográfica com os referentes à distribuição da população, induziria por si mesmo esta avaliação (Vide Figura 27). Porém, seria pertinente adiantar de antemão que esta equação é insuficiente para tornar compreensível tanto a carência de água doce quanto os fatores que influenciam negativamente a disponibilidade do líquido. É o que se pode aduzir a partir da verificação da Tabela de Disponibilidade Hídrica Social e Demandas por Estado no Brasil (Cf. Figura 28). Evidência patente nos dados arrolados, é que virtualmente não existe carência de recursos hídricos no país. Pensando as demandas hoje existentes, as águas estocadas nos reservatórios naturais seriam suficientemente volumosas para, pela média, garantir disponibilidades hídricas satisfatórias para a totalidade da população. Sem contar os estados da Região Norte, nos quais a abundância de água está muito acima da média mundial, podemos perceber que mesmo nos estados do Nordeste, o estresse hídrico, tal como este é entendido por uma plêiade de especialistas, não é referendado pelos dados pertinentes à geografia física. 5 505 FIGURA 27 - Mapa das Bacias Demográficas e Distribuição da População (Fonte: IBGE, 2002: 159, escala aproximada 1: 23.527.700) 5 506 FIGURA 28 - Disponibilidade Hídrica Social por Estado no Brasil, Ano Base 1992 (Fonte: REBOUÇAS, 2002a: 31) No Brasil, todas as unidades da federação dispõem de mais de 1.000 m³/habitante/ano, desfrutando de uma situação em princípio, confortável. Logo, acontece no país uma realidade dessemelhante em tudo dos espaços efetivamente assolados pelo estresse hídrico. Para melhor compreendermos esta colocação, basta comparar as médias 5 507 destacadas na Figura 28, com a disponibilidade de países nos quais o abastecimento de água é crítico em todas as letras. No Kuwait são 10 m³/hab./ano disponíveis (isto é: uma oferta de água praticamente nula); na Faixa de Gaza, território ocupado por Israel, 52 m³/hab./ano; nos Emirados Árabes Unidos, 58 m³/hab./ano; nas Bahamas, 66 m³/hab./ano; Qatar, 94 m³/hab./ano; Maldivas, 103 m³/hab./ano; Líbia, 113 m³/hab./ano; Arábia Saudita, 118 m³/hab./ano; na ilha de Malta, 129 m³/hab./ano e em Cingapura, 149 m³/hab./ano (MARTINS, 2003). Complementando este corolário, dois países muito áridos, ambos no Machrek, também poderiam ser citados: o Bahrain, com 185 m³/hab./ano e a Jordânia, 185 m³/hab./ano (Cf. REBOUÇAS, 2002a: 19). Em paralelo a uma disponibilidade hídrica satisfatória, recorde-se que a destinação do consumo no Brasil não difere substancialmente do que vigora no mundo, com porcentuais similares à média global. No país, o segmento agrícola absorve 64,7% do consumo total; a indústria, 13,9%; o consumo residencial, 16,4%; e a dessedentação dos rebanhos, 4,9% (TUCCI, HESPANHOL et NETO, 2001: 64). Assim, dado que a disponibilidade está garantida e não ocorre nada excepcional em termos do perfil de consumo, restaria inquirir sobre as causas que determinam quadros de escassez de recursos hídricos no Brasil. Porque, no final das contas, existiria sede no País das Muitas Águas? Certamente, o caso do semiárido nordestino constitui menção obrigatória. O Nordeste conquistou junto ao imaginário nacional, após 5 508 décadas de pregação apaixonada, uma condição de sinonímia com relação aos tormentos inerentes à carência de água. Neste espaço, o sertanejo materializa, a priori, um personagem de um drama no qual todo o momento, é alvo das oscilações dos humores da pluviometria, compondo uma imagem emblemática do homem vitimado pela seca e por estiagens aniquiladoras. Afinal, quem desconhece as imagens dos retirantes retratadas por Cândido Portinari? Quem nunca tomou conhecimento de notícias relativas à seca do sertão ou de recorrentes campanhas de caráter cabotinamente humanitárias, voltadas quiçá, para dar assistência aos flagelados? Estas imagens, embora onipresentes e periodicamente realçadas nas páginas dos jornais, tem sido, outrossim, questionadas por largo espectro de estudos. Basicamente porque as secas, a despeito de espelharem um fenômeno climático, estão claramente articuladas a uma estratégia de dominação política, econômica e ideológica. Esta consideração, sublinhada em ponderável vade-mécum de avaliações, aponta a cooptação dessa ocorrência natural pelas elites da região, que a integraram ao seu mecanismo de reprodução de poder, em cujo cerne, localiza-se a grande propriedade rural e o mandonismo local. Por intermédio da contrafação do flagelo da seca, o segmento latifundista conseguiu agremiar em seu proveito, um capital simbólico que tem se mostrado eficaz para arrebanhar verbas e auxílio dos órgãos federais, tonificando ainda mais seu poder em nível regional, transformando um evento climático sazonal num codinome do arbítrio. 5 509 O histórico relacionado com o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS), pode ser reclamado para corroborar esta asserção. A gestão do órgão, escrupulosamente hegemonizada pelas conveniências das gemas latifundiárias, é que teria, contrariamente à propositura inicial, justificado sua transformação de instância nacional num departamento regionalizado. Na sagaz observação do sociólogo e economista Francisco de OLIVEIRA, ...mesmo o problema das secas não era concebido como um problema exclusivamente do Nordeste semiárido. O DNOCS era um departamento nacional, concebido para atuar no combate a esse fenômeno climático onde quer que ele fosse constatado no território do país. O fato de nunca ter realizado nenhuma obra fora do Nordeste, é um resultado de sua captura pela oligarquia regional, e não uma intenção ou objetivo inicial (1987: 51). Submetida assim a um controle político e, portanto, colocada fora do alcance daqueles que não usufruem o poder, a água ressente-se de óbices adicionais relacionados às metodologias de utilização. O líquido, seja aquele armazenado nos açudes ou retirado diretamente da rede fluvial, está sujeito à precariedade dos modelos de irrigação. No Nordeste, o método tradicional de espalhamento superficial vigora em toda sua grandeza, dominando cerca de três milhões de hectares, ou seja, 56% da área irrigada na região. O emprego desta metodologia para manter os cultivares, combinada com as elevadas médias térmicas de temperatura que caracterizam todo o semiárido, promovem desmesurada perda do líquido. Praticamente, seria como derramar água no solo para provocar sua evaporação (REBOUÇAS, 2004: 51). 5 510 Não se imagine, porém, que no semiárido, o predomínio dos usos perdulários do líquido, que de mais a mais, potencializam problemas relacionados às variações da disponibilidade hídrica, sejam um mero “obstáculo técnico”. Vale anotar que se compatibilizando à estrutura tradicional de dominação de cunho latifundista, a implantação, a partir dos anos 1970, dos chamados projetos especiais de assentamentos baseados na irrigação, novamente reproduziram formas perversas de espoliação dos recursos hídricos. Apropriando-se do essencial do crédito bancário e dos sistemas de drenagem, estes projetos, açambarcados por segmentos sociais que gozavam de proximidade com as fontes oficiais de financiamento, contribuíram para o agravamento do quadro social da região, sem em absoluto equacionar minimamente a estrutura de desconformidades e que para agravar, maximizaram a perpetuidade da indústria da seca. É neste contexto que o polêmico projeto da transposição do rio São Francisco, cujos objetivos seriam a expansão da irrigação, da indústria e da carcinicultura, provocou vívidas reações da sociedade civil e de organizações sociais. Secundando as questões relativas ao financiamento do discutível projeto (cuja fase inicial está orçada em R$ 4,5 bilhões, com custos finais que tendem, como em toda obra de infraestrutura, a superar as estimativas iniciais), os constrangimentos socioambientais são notórios (AB’SABER, 2004b). Observe-se que o projeto foi alvo de pareceres críticos do Comitê de Bacia Hidrográfica do São Francisco (CBHSF), da I Conferência Nacional do Meio Ambiente (CNMA), da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e do Centro de Estudos e Projetos do 5 511 Nordeste (CEPEN). Até mesmo o Banco Mundial, em announcement oficial divulgado em 2003, recomendou o adiamento da transposição, sugerindo a aplicação das dotações orçamentárias em sistemas de abastecimento de âmbito local, programas de porte comunitário e a revitalização do São Francisco, entendidos como primaciais 104. No entendimento de amplo segmento de opinião, a transposição do São Francisco privilegiará, do mesmo modo que os chamados projetos especiais, os setores já capitalizados do agrobusiness em detrimento da agricultura familiar, reforçando ações que tendem a fortificar a privatização e a mercantilização do ouro azul. Assim, o projeto se inscreveria no usual primado da manipulação da indústria da seca para privilegiar a nobiliarquia nordestina com projetos hídricos que tem servido concentrar terra, água, riqueza e poder. É neste exato sentido que as novas metodologias de produção agrícola, antes de atenuarem, tem acirrado os conflitos pela água na região, um quadro de resto descrito em variegados estudos e análises (Cf. CABREIRA, 1989). Deste modo a seca materializa, bem mais do que um fenômeno climático, uma estratégia de dominação secularmente capitaneada pelo coronelato imperante no espaço rural. Como foi observado, o Nordeste é agraciado pelo líquido numa volumetria substancialmente maior que as regiões do planeta listadas como críticas, o que depõe em contrário com as fabulações que rondam o imaginário da seca. Jornal O Estado de S. Paulo, Caderno de Ciência e Meio Ambiente, edição de 02-022005. 104 5 512 As limitações naturais vigentes no semiárido foram, na realidade, espicaçadas por formas de exploração predatória do capital natural, consorciadas a estruturas concentradoras de renda e poder político, acentuando os problemas de disponibilidade hídrica, que reforçam um quadro social e econômico insatisfatório (SALES, 2002: 115/116). Enquanto contraponto a este modelo hegemônico, e igualmente contrariando um preconceito subliminar bastante difundido, assentese que a cultura sertaneja tradicional é atenta ao entendimento dos ciclos da natureza, dos quais depende diretamente (HOEFLE, 1990). Nesta perspectiva, preconizando ações passíveis de manterem relação harmoniosa com os dinamismos hídricos presentes no meio natural, as formas tradicionais de manejo ambiental conformam um sólido registro de mandamentos calcados na vivência popular com os dinamismos ecológicos do sertão nordestino, merecedor de atenção pela viabilidade operacional e eficácia funcional (Vide Figura 29). Em resumo, os problemas socioambientais do Nordeste resultam, antes de tudo, de uma estrutura de privilégios que tem logrado grande longevidade no cenário político, e não propriamente em decorrência da carência de recursos hídricos. Por sinal, uma rápida consulta à Figura 28, nos revelaria que unidades da federação como São Paulo e o Rio de Janeiro, sobre as quais não incide o estigma da sede, detém promédios equiparáveis a muitos estados nordestinos. A título de apenso ratificador, a região disporia de potencialidade hídrica para atender suas necessidades econômicas, sociais e ecológicas até pelo menos o ano de 2020 (VIEIRA, 2002: 528). 5 513 FIGURA 29 - Súmulas de manejo agroambiental tradicional do semiárido, tal como explicitado na pregação do Padre Cícero (Fonte: MARQUES, 1986) 5 514 No mais, o imaginário relativo ao Nordeste seco deve também ser confrontado pela recordação de que as áreas mais críticas no tocante aos recursos hídricos no país não se localizam no semiárido. Bem mais séria e impactante do que o sertão nordestino, tanto pelas repercussões negativas para os recursos hídricos quanto em razão da massa populacional envolvida com esta problemática, é a questão urbana do Brasil atual. Esta consideração é especialmente verdadeira caso lembremos que o foco da discussão está centrado nas grandes metrópoles que caracterizam o chamado “Brasil moderno”. Não há, a rigor, nenhuma semana na qual os noticiosos não se refiram, de um modo ou de outro, à temática. Sem dúvida alguma, as cidades têm evidenciado franca dificuldade no trato da poluição do ar, do planejamento urbano, dos resíduos sólidos e do tratamento dos esgotos, todos desdobrando-se em impactos avassaladores para os provimentos de água potável (BRAGA, 2003: 119/123). Coincidindo com esta última anotação, os aterros e metodologias técnica e ambientalmente questionáveis de tratamento dos efluentes são implantados proximamente a cursos de água ou em áreas de recarga dos lençóis subterrâneos. No julgamento da geógrafa Sandra Elisa Contri PITTON, “grande parte das cidades brasileiras utiliza fossas sépticas como destino final do esgoto, contaminando a parte superior do aquífero” (2003: 42). Os problemas gerados pelo crescimento urbano desmesurado, além de amplificarem o problema da escassez quantitativa de água, intensificam perturbações no tocante à saúde pública, cissiparidades sociais, políticas, econômicas e de planejamento. Este quadro de 5 515 desarmonias está sintetizado de forma cabal pelo hidrólogo Aldo da Cunha REBOUÇAS: Vale ressaltar, ainda, que estas formas desordenadas de uso e ocupação do território em geral, engendram o agravamento dos efeitos das secas ou enchentes que atingem as populações e suas atividades econômicas. No meio urbano, esse quadro é especialmente agravado pelo crescimento de favelas nas áreas de alto risco ambiental (encostas dos morros e várzeas dos rios), falta de coleta ou lançamento de esgotos não tratados nos corpos de água utilizados para o abastecimento, não coleta do lixo urbano produzido (doméstico e industrial) ou deposição inadequada do resíduo coletado e grande desperdício da água disponível (2002a: 30). Obviamente, deste leque de embaraços não haveria como excluir os depósitos subterrâneos de água, que em numerosas avaliações despontam como a “tábua de salvação” do abastecimento do líquido, enormemente prejudicado por conta da deterioração das águas de superfície. Indo diretamente ao ponto, lembrando que a contaminação das águas superficiais decorreu do mau gerenciamento e displicência quanto à sua utilização no futuro, quem poderia então pretender que o abastecimento realizado a partir dos aquíferos estará resguardado, de vez que a atitude prevalecente para com as águas dos rios e lagos não foi alterada em absolutamente nada até o presente momento, e mais ainda, quando se recorda que a forma de atuação na superfície repercute, cedo ou tarde, nos recursos do subsolo? Abusus non tollit usum, verifica-se uma situação estruturalmente comprometedora do capital hídrico, afetando os estoques naturais das águas de superfície, as subterrâneas, assim como as represadas em objetos espaciais tais como barragens e represas. 5 516 Constituindo um problema permanente para a saúde dos corpos d’água, a poluição decorrente da falta de esgotamento sanitário e da vacuidade das políticas públicas no controle dos efluentes é crônica e permanente. Nas grandes, médias e pequenas cidades brasileiras, os rios, córregos, mangues e praias, tornaram-se destino ou canais das águas servidas urbanas (BRANCO, 2002, 1993 e 1991; REBOUÇAS, 2002a). Este quadro se complica quando se sabe que a própria poluição se diversificou com a expansão da vida urbana moderna, permitindo que às cargas de poluição pontuais, dizendo respeito a escoamentos industriais, pluviais e de origem cloacal, fosse possível acrescentar as cargas difusas, cujos componentes, vis-à-vis aos efeitos deletérios de uma urbanização acelerada, foram reforçados. Neste recorte, numa observação estribada por qualquer círculo de especialistas, a carga de esgotos constitui causa notória de problemas para a conservação dos recursos hídricos em praticamente todo o território brasileiro. Senão vejamos: A maioria dos rios que atravessam as cidades brasileiras estão deteriorados, sendo esse considerado o maior problema ambiental brasileiro. Essa deterioração ocorre porque a maioria das cidades brasileiras não possui coleta e tratamento de esgotos domésticos, jogando in natura o esgoto nos rios. Quando existe rede, não há estação de tratamento de esgotos, o que vem tornar mais grave as condições do rio, pois se concentra a carga em uma seção. Em algumas situações, é construída a estação, mas a rede não coleta o volume projetado porque existe um grande número de ligações clandestinas de esgoto no sistema pluvial, que de esgoto separado passa a misto. Muitos rios urbanos escoam esgoto, já que, devido à urbanização, grande parte da precipitação 5 517 escoa diretamente pelas áreas impermeáveis para os rios (TUCCI, HESPANHOL et NETTO, 2001: 47). Neste dramático quadro de desventuras socioambientais, agregase a deficiência crônica dos serviços de atendimento da população. Apesar de visível expansão do acesso aos serviços de água e esgoto ocorrida nos últimos vinte anos, existem inúmeras considerações a serem tecidas nos planos qualitativos e quantitativos. Lançando mão de dados divulgados na Conferência Nacional das Cidades (2003), aproximadamente 60 milhões de brasileiros (9,6 milhões de domicílios), não dispõem de coleta de esgoto e 15 milhões (3,4 milhões de domicílios), além de não desfrutar de esgotamento sanitário, não tem acesso à água encanada. Este quadro se agrava quando se sabe que a população carente de serviços de água e de esgoto concentra-se especialmente nas áreas periféricas dos grandes centros, e que à exclusão no atendimento destes serviços, somam-se vários outros agravos para a qualidade de vida destes brasileiros. Num âmbito geral, a amplitude do acesso à água tratada e de atendimento dos serviços de esgotamento sanitário seria, no Brasil, precária até mesmo na comparação com os demais países latinoamericanos e caribenhos. Somente 85% da população brasileira é atendida pela rede pública de água potável, contra 96% para Cuba e Belize, 94% para o Chile, 91% para o México, 90% para a Guiana e 88% para a Colômbia. Apenas 55% da população urbana é atendida por esgotamento sanitário e uma porcentagem menor ainda no setor rural, estimada em torno de 3%. Esta última cobertura seria inferior à 5 518 do Peru, cujo índice é de 10% e do Haiti - o país mais pobre da América Latina -, com 16% (Cf. HESPANHOL, 2002: 250). Paralelamente, há também que ser anotado o caráter esporádico do fornecimento, em particular na periferia das metrópoles brasileiras. Em outras palavras, os canos existem, mas por quanto tempo a água escoa no sistema de tubulações? Outro fator relacionado com a dificuldade de acesso à água potável vincula-se a considerações tais como o desperdício gerado pelos próprios sistemas de abastecimento, que seria em grande parte facilitado pelo gigantismo das redes de distribuição. Indubitavelmente, as imagens de sistemas ciclópicos de abastecimento contemplando cidades também gigantes, praticamente frequenta todas as projeções futuristas do meio urbano moderno. Mas, seria lícito indagar: existiria eficácia real nesta conjugação? Na realidade, acontece que estes sistemas, formados por intrincada trama de tubulações, estações elevatórias, reservatórios e instalações anexas, necessariamente significam perdas de vulto de água tratada. Sumamente porque inexiste sistema de distribuição de grande porte que consiga coibir totalmente as perdas. Neste particular, recorde-se que a média de extravios nos países desenvolvidos oscila entre 5 a 15% do total injetado na rede. Prova disso, o sistema de distribuição da Alemanha, com gerenciamento considerado como de extrema eficiência, trabalha com margem de perdas em torno de 8%. 5 519 Porém, no Brasil esta proporção é significativamente mais alta. Concorrendo para ampliar o deficit de oferta de água, a porcentagem abduzida pelos vazamentos, por falhas de manutenção, violação dos registros e ligações clandestinas, alcançaria cifras variando entre 40% a 60% da água distribuída pelos sistemas públicos (Ver entre outros REBOUÇAS, 2004: 47). O volume de água perdida no Brasil seria suficiente para abastecer 35 milhões de pessoas ao longo de um ano. Entre outros, este seria um dos motivos que posicionam o Brasil enquanto um dos campeões mundiais de desperdício do líquido (Cf. REBOUÇAS 2004: 38/41 e CAMARGO, 2003). Outras objeções estão assentadas nos dados qualitativos. Por exemplo, os indicadores de qualidade da água provisionada pelos sistemas públicos de abastecimento têm sido colocados à prova em por textos científicos. Pode ser que abrindo as torneiras, de pronto tenhamos água à disposição. Mas qual é seu padrão de qualidade? Sabe-se que em 1925 os serviços de saúde pública dos Estados Unidos regulamentavam, para a água potável, número inferior a dez parâmetros. Entrementes, em 1974, a Environment Protection Agency estipulava 20 parâmetros, sendo que este número estava próximo de 130 em 2000. Acompanhando tal escalada, em 2020 são previstos cerca de 200 indicadores de qualidade de água potável. Evidentemente, embora esta multiplicação de parâmetros não implique no fornecimento de uma água de beber com qualidade melhor do que aquela de 1925, certamente estampam uma ampliação dos cuidados técnicos que vão sendo acrescidos ao conceito de água apropriada para o consumo humano (HESPANHOL, 2002: 258/259). 5 520 No Brasil, o “tratamento convencional”, mediado pela resolução CONAMA nº. 20 (18/06/1986), constitui o padrão de referência para os sistemas de engenharia sanitária em operação no país. Tal normatização, regrando os procedimentos adotados nas estações de tratamento reporta, entretanto, a sistemas de purificação, desinfecção e filtração reconhecidamente incapazes de remover porcentagens significativas de metais pesados, compostos orgânicos sintéticos e naturais, tais como os ácidos húmicos e fúlvicos. Os problemas recrudescem quando sabemos que apenas 25,6% dos esgotos coletados recebe “tratamento convencional”, sendo o restante lançado in natura nos rios, contaminando também o solo, os lençóis freáticos, os estoques de águas profundas e derradeiramente, as massas oceânicas. Consequentemente, o esgotamento termina por alcançar espaços que em tese, atenderiam o consumo urbano. Assim, o desafio de ampliar a rede de tratamento e simultaneamente, de atualizar os parâmetros de qualidade da água segue em pleno vigor (HESPANHOL, 2002: 263/264 e WEHRHAHN, 1996: 63). Neste particular, um sinal explícito da dificuldade de acesso à água de boa qualidade foi o surgimento de um comércio urbano especializado em equipamentos de purificação e desinfecção de água e a multiplicação das vendas de garrafões água potável. Esta última comercialização, alastrou-se pelas cidades brasileiras tanto facilitada pela má reputação que persegue a água das torneiras, quanto pela escassez. Embora a cena fosse impensável apenas algumas décadas atrás, as cidades do país, da mesma forma como os grandes centros urbanos do mundo atual, constituem nos dias de hoje um excelente 5 521 mercado para as distribuidoras de água mineral, muitas delas de pequeno porte e localizadas ao longo das ruas dos bairros. A magnitude deste mercadeio pode ser aquilatada por dados elencados pelo Team Canada Market Research Center, pelos quais o Brasil destaca-se enquanto um promissor mercado de água mineral engarrafada, calculado em US$ 2,5 bilhões anuais. Mais ainda, ao transformar-se item obrigatório da pauta de gastos domésticos, este mercado está crescendo rapidamente: cravou um percentual de 122% entre 1990 e 1998. Esta expansão fomenta visível empreendedorismo de marcas tradicionais da indústria engarrafadora de água. Dados do Sumário Mineral do DNPM 2001, revelam a liderança de corporações como o Grupo Edson Queirós (responsável por 18,4% das vendas nacionais em 2000), Indaiá (15,5%), Minalba (2,84%), Ouro Fino (3,41%), Lindoya (2,06%) e Perrier/Nestlé (1,82%). Seria interessante registrar que cresceram no mesmo período as exportações de água mineral engarrafada. A produção das marcas destinadas ao exterior registrou aumentos significativos, passando, relativamente à produção total, de 3,9% em 2000, para 7,0% no ano 2001. A Espanha, seguida de Angola, Luxemburgo, Cabo Verde e dos Estados Unidos, constituem a clientela principal das águas minerais brasileiras. Somados, estes cinco países foram o destino de 83,2% do total das exportações deste item. Do ponto de vista geoeconômico, em 2001, os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), adquiriram 24,9% do total exportado, sendo Angola, como foi referido, o principal importador (Vide CRUZ, 2002). 5 522 A partir de 2000 uma tendência de diversificação dos clientes internacionais evidencia-se quando se sabe que a Noruega, Andorra e Taiwan tornaram-se importadores da água engarrafada brasileira. Por sinal, existe também um trânsito internacional de água mineral que, no entanto, não é incluída na cartografia do comércio do produto. Trata-se, por exemplo, da água mineral fornecida para as linhas aéreas, de ligação internacional rodoviária e aos navios cargueiros e de turismo nos portos brasileiros, cujo consumo atua, é evidente, enquanto um veículo de divulgação e de fidelização do produto no espectro global. Paralelamente, nota-se, numa escala bem menor, o crescimento do consumo de marcas estrangeiras, degustadas pelas altas-rodas urbanas. O Brasil, a despeito do seu estupendo acervo de água mineral, importou em 2002 de um país como a França, US$ 1,48 milhão do produto 105. Mas, recopilando a lógica inquietante sobredita parágrafos atrás, é de se notar que este comércio global se engrandece num momento em que a crise de abastecimento de água da rede pública bate às portas de milhões de concidadãos. Deste modo, dado sobremaneira fundamental para se meditar a respeito da questão da escassez de água relaciona-se diretamente com a velocidade e a forma como se materializou a expansão urbana no país. Confira-se que de modo fulminante, o país passou a conjuminarse em seu escopo territorial com a tecnoesfera, um espaço eminentemente artificial regrado por ciclos igualmente artificiais. Para 105 Jornal do Comércio (Porto Alegre, RS, edição de 05/02/2002), disponível on line em < http:www.rededasaguas.org.br/noticias/montanotic.asp?id=129 > (Acesso: 28-09-2005). 5 523 conferir, nada melhor do que a visão das “galáxias de luz” brasileiras a confirmar, com vista da estratosfera, sua presença no território nacional. Quanto às repercussões antropogênicas da tecnoesfera para as águas doces, e rubricando parecer que se reveste da aura de um verdadeiro consenso, pode-se avocar: Entretanto, os problemas de abastecimento no Brasil decorrem, fundamentalmente, da combinação do crescimento exagerado das demandas localizadas e da degradação da qualidade das águas, em níveis nunca imaginados. Esse quadro é uma consequência da expansão desordenada dos processos de urbanização e industrialização, verificada a partir da década de 1950 (REBOUÇAS, 2002a: 29/30). Certificar a amplitude destas colocações não é difícil. Basta recordar que o último Censo Demográfico 2000 do IBGE confirmava que de um total de 169.872.856 de brasileiros, 81,25% (em números, 137.925.238 de pessoas), seriam habitantes de áreas urbanas. Este índice, considerado alto, é superior ao de países como Itália (67%), França (76%) e Estados Unidos (77%). No entanto, vale lembrar que as porcentagens resultam dos critérios adotados pelos países para diferenciar os meios rural e urbano, variando consoante a aplicação de conceitos endossados por diferentes modelos de gestão (Vide BORDO, 2005). Nesta perspectiva, poder-se-ia objetar que o conceito de cidade que serve de base para o Censo 2000 é meramente administrativo, obedecendo ao Decreto-Lei nº. 311, de 02-03-1938, emitido durante o Estado Novo getulista e que até hoje permanece em vigor. Acatando 5 524 esta diretriz, no Brasil toda sede de município é dignificada como cidade, e toda sede de um distrito, como vila, independentemente da sua população ou de critérios de ordem funcional ou estrutural, sendo a população destas aglomerações, catalogada estatisticamente, sem mais nem menos, como urbana. Nesta linha de raciocínio, registrando 5.507 sedes de município, o país seria considerado possuidor do maior número de cidades do planeta (superando países populosos como os EUA, Índia e China). É incontestável que esta generalização falseia, por vezes, a realidade. Com a conceituação em vigor, inúmeras localidades de pequena importância ingressam na contabilidade da urbanização, ainda que possam estar dela relativamente distantes (SANTOS, 1967: 79). Porém, como sempre acontece na eventualidade do nosso olhar se deter exclusivamente em numerários, existe a sedução latente de transformar cifras em paradigmas. Não é de outro modo que os “desurbanistas” se dispõem a brandir alegremente estatísticas que mostram uma diminuição das taxas de crescimento do núcleo das metrópoles como sinal de uma “ruralização da população”, “involução metropolitana” ou até mesmo conotando uma “desmetropolização”. Copiando este procedimento, outros pesquisadores almejam arrastar para o universo rural ponderável naco de pequenas cidades, cujo modesto contingente demográfico seria impeditivo de que as mesmas gozassem de um status urbano. Exemplificando, o último recenseamento do IBGE registra um município, União da Serra (RS), formado por 1.900 habitantes, dos 5 525 quais somente 286 habitariam a sede municipal e dois outros distritos. Existem também cerca de 90 municipalidades com população inferior a 500 habitantes e 1.176, com menos de 2.000 moradores (Cf. IBGE, 2000). Todos estes povoados seriam passíveis, de acordo com algumas opiniões, de serem reavaliados enquanto integrantes de um universo urbano. Mais ainda, este numeroso conjunto de pequenos vilarejos constituiria um depoimento em favor dos que opinam no sentido de que o Brasil seria, na realidade, “menos urbano do que de fato é” (Cf. VEIGA, 2004, 2002 e 2001). Todavia, o cogito geográfico se eximiria de sucumbir diante de tal armadilha demografista. O subsídio básico apresentado pelo espaço geográfico contemporâneo é a difusão de um meio técnico-científicoinformacional, presente em tempo real numa portentosa rede na qual os fixos, conectados a fluxos, articulam um sistema de engenharia cuja medula axial é inegavelmente urbana. Este fato transforma os espaços interligados, em copartícipes de um mesmo dinamismo, e no exato sentido, em reprodutores de uma idêntica lógica de reprodução do espaço, cujo centro emissor e tutelar seria, em última análise, a metrópole onipresente. Por isso mesmo é que podemos catalogar cidades com uma população formada por algumas centenas de pessoas e simultaneamente aldeias agrícolas com muitos milhares de habitantes. O fato urbano refere-se a uma dinâmica dinamismo amplamente distendida através da tecnoesfera, apoiada em nível da consciência 5 526 social pela psicoesfera. Nesta acepção, o espaço rural enquanto categoria analítica, declina sua proeminência em favor de um espaço agrícola. Desenhando uma nova dicotomia espacial, a contraposição entre o urbano e o agrícola torna-se um complicador adicional para as velhas teorizações cidade/campo, insistentemente estaqueadas na oposição entre um Brasil urbano e outro rural (Cf. SANTOS, 1998: 69148/149; 1996: 62/63; 1993b: 73/74 e 1989: 12/13). Deste modo, com base no último recenseamento o país disporia de 2.642 municípios compreendendo até 10 mil habitantes, reunindo 8% da população do país. Por outro lado, 13 municípios com mais de um milhão de habitantes, concentrariam 20% da população brasileira (Figura 30). Porém, descartando sedutoras “miragens demográficas”, o que os dados evidenciam, é a existência de uma malha urbana espargida nacionalmente e não localidades “mais urbanas” em meio a outras “mais rurais”. Dito diferentemente, em paralelo a uma “rarefação” demográfica diluída por uma miríade de pequenas cidades situadas na base da rede urbana nacional, o fenômeno da concentração da população brasileira num número reduzido de metrópoles revela antes o caráter hegemônico desfrutado por determinados polos urbanos, em especial em razão de estarem à testa dos fluxos que dinamizam o sistema como um todo. A realidade desta assertiva explicita-se quando se recorda que onze alterosas metrópoles, quais sejam, Porto Alegre, Curitiba, São 5 527 Paulo, Goiânia, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador, Recife, Belém, Fortaleza e Manaus, acolhem cerca de 33% da população total do Brasil (Cf. MARICATO, 2001). FIGURA 30 - AS MAIORES CIDADES BRASILEIRAS NO ANO 2000. Notar que das 18 cidades listadas, oito localizam-se na região Sudeste e duas, na região Sul (Fonte: Censo IBGE 2000) 5 528 Por fim, estes grandes aglomerados metropolitanos, localizados principalmente na faixa litorânea, sintetizam, agregados a Brasília, o fundamental da problemática urbana, um país “das doze cidades”. Apurando esta assertiva, a importância das concentrações urbanas no país é patente na adoção e alastramento do conceito de Regiões Metropolitanas (RM), uma ferramenta institucional que como princípio geral, permitiria melhor definição de políticas e programas de gestão, planejamento e ações institucionais nas grandes metrópoles, potencialmente factível nas 26 RM oficialmente estatuídas no espaço nacional (Figura 31). Importaria esclarecer que de um ponto de vista legal, a instituição das regiões administrativas, e paralelamente, das aglomerações urbanas e microrregiões, formadas por municípios limítrofes visando integrar a organização, o planejamento e a execução de intervenções públicas de interesse comum, foi oficialmente reconhecida. A saber, conforme a Constituição Federal de 1988, a criação das RM é de competência das autoridades estaduais. Para resumir, não é nem o governo federal e muito menos o IBGE, as instâncias que estabelecem as RM. Quanto ao IBGE, este órgão, estatutariamente federal, reconhece tão apenas a investidura de status atribuído pelos órgãos administrativos estaduais 106. As oito primeiras Regiões Metropolitanas foram instauradas em 1973 através da Lei Complementar Federal nº. 14 (08/06/1975), sendo estas as RM de Belém, Belo Horizonte, Curitiba, Fortaleza, Alerte-se que a atribuição do estatuto de RM não necessariamente coaduna com um dinamismo metropolitano, podendo se referendar em opções de cunho eminentemente político, despidas de justificativas socioespaciais no seu lato sensu. 106 5 529 Porto Alegre, Recife, Salvador e São Paulo. No ano seguinte, foi criada a do Rio de Janeiro (Lei Complementar nº. 20, de 01/07/74). No decurso deste processo, as análises e documentos do IBGE dão conta hoje de 26 RM oficialmente instituídas. FIGURA 31 - MAPA DAS 26 REGIÕES METROPOLITANAS DO BRASIL (Fonte: IBGE, 2002: 155, escala aproximada 1: 24.200.000) Note-se que as áreas metropolitanas do país, explicitam soberba concentração populacional: aglutinando 413 municípios numa área aproximada de 167 mil km², nelas viviam no ano 2000, um total de 69.041.352 de brasileiros (Ver Figura 32). De um ponto de vista demográfico, a massa populacional das regiões metropolitanas mais do que supera a população de vários países latino-americanos ou europeus juntos. O Rio de Janeiro tem população equivalente a um 5 530 país como o Chile; São Paulo, superior a um Chile e meio; Fortaleza equivale a uma Suíça; Porto Alegre, a uma Trinidad-Tobago. FIGURA 32 - POPULAÇÃO DAS REGIÕES METROPOLITANAS DO BRASIL EM 2000 (Fonte: EMPLASA e IBGE) 5 531 Constatação que dispensa questionamentos, esta concentração demográfica desigual sugeriria um quadro potencial de desequilíbrios nas mais diversas escalas quanto ao atendimento da demanda por recursos hídricos. Concentrações milionárias como o Recife, Brasília, Rio de Janeiro, Fortaleza, São Paulo, Goiânia e Belo Horizonte, ressentem-se, de uma forma ou de outra, do seu próprio gigantismo e por extensão, do fato de estarem acomodadas em sítios naturais não necessariamente capacitados a satisfazer as demandas imprevistas dos seus processos de urbanização. Além de materializarem contradições relacionadas com o uso dos recursos hídricos disponíveis, as grandes metrópoles brasileiras se ressentem de cissiparidades sociais e econômicas, com impactos diretos para a captação e o fornecimento de água potável. Embora as cidades parecessem prognosticar, a partir dos anos 1950, a promessa da superação do chamado “Brasil arcaico” rumo à modernização e emancipação social, política e econômica, os fatos contrariaram esta utopia. Pelo contrário, a imagem das grandes cidades brasileiras está hodiernamente marcada pela distopia: poluição do ar e das águas, favelas e moradores de rua, ausência de coleta de resíduos, crime organizado, enchentes, parques abandonados, desmoronamentos, violência e tráfico de drogas. A desigualdade nos grandes centros é flagrante quando se sabe que considerável proporção da riqueza nacional se concentra num número reduzido de grandes metrópoles. Estudo divulgado pelo IBGE em 2005, com base em dados coletados em 2002, esclarece que apenas nove municípios do país - 5 532 a saber, São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Manaus, Belo Horizonte, Duque de Caxias, Curitiba, Guarulhos e São José dos Campos - com 15,2% da população total, respondiam por 25% do PIB brasileiro, e que 70 municípios, reunindo 33,3% da população, concentravam 50% da produção total de bens e serviços. Embora os dados revelem certa retração neste processo, visto que em 1999 sete cidades reuniam 1/4 do PIB, a disparidade é óbvia quando estudos mostram que 1.272 municipalidades, agrupando 3,7% da população, totalizam apenas 1% do PIB (Vide LAGE, 2005). Evidentemente, tal situação remete ao quadro geral da economia brasileira e das contradições associadas ao modelo econômico que a orienta. Em 2001, a expectativa de vida dos brasileiros atingia 67,5 anos, e a alfabetização de adultos alcançava 84,9%. Mas, ao mesmo tempo, o Produto Interno Bruto (PIB) retrocedeu e a porcentagem de pobres ampliou-se na comparação com os índices já iníquos que caracterizaram os anos noventa. No ano de 2004, relativamente ao Coeficiente GINI, parâmetro internacionalmente reconhecido para determinar a concentração de renda, o Brasil seria o oitavo país em desigualdade social, superado tão só pela Guatemala, Suazilândia, República Centro-Africana, Serra Leoa, Botswana, Lesoto e Namíbia (ZIMMERMANN et SPITZ, 2005). Também em 2004, o país registrou o quinto ano consecutivo de perda do poder aquisitivo da população com registro em carteira. Isto ocorre simultaneamente ao fato de regiões metropolitanas como a Grande São Paulo, apresentarem no primeiro semestre de 2004, de 5 533 acordo com o IBGE, um nível de desemprego beirando 19,7% da População Economicamente Ativa (PEA). Outro diagnóstico, elaborado com base em dados do IBGE pelo economista Márcio Pochmann, professor da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), evidencia que a fatia dos assalariados encolheu. Entre 1980 e 2004, o segmento passou de 64% para 54% do conjunto dos trabalhadores ocupados no país. Até 1980, de cada grupo de 10 novas ocupações 8 eram de assalariados, dos quais sete com carteira assinada. De lá para cá, essa proporção caiu para 4 empregos assalariados em cada 10, dos quais apenas 2 são formais. Esse movimento é acompanhado por significativa deterioração das condições de trabalho. Por falta de opção, fração significativa dos desempregados opta pelo trabalho informal, implicando em baixos rendimentos e perda de direitos trabalhistas. Assim sendo, o avanço do desemprego fragilizou a capacidade de negociação dos sindicatos, favorecendo a “desregulamentação” do mercado de trabalho 107. Tudo isto repercute diretamente no tecido urbano. De acordo com levantamento divulgado no Congresso Nacional pelo Direito à Cidade (MARICATO, 2001), certifiquemos que: ➢ Aproximadamente metade da população do Rio de Janeiro e São Paulo, metrópoles nacionais, mora em favelas ou loteamentos clandestinos na periferia. A população das áreas de ocupações é de 33% em Salvador, 34% em Fortaleza, 40% em Recife, 20% em Belo Horizonte e Porto Alegre. Tal estudo agrega ainda outros dados Editorial do Diário Vermelho, edição de 19-07-2005, < http://www.vermelho.org.br/ >, (Acesso: 19-07-2005). 107 5 534 preocupantes quanto às condições de vida nas cidades brasileiras. Dentre estes, destacam-se os arrolados a seguir: ➢ A pobreza urbana concentra-se majoritariamente nas regiões metropolitanas, afirmando-se conjuntamente com os processos de conurbação incontroláveis que tiveram por core area as metrópoles, que no Brasil se confundem com a sede do poder político, cultural e econômico. Dos grupos mais pobres, 35% habitam as metrópoles do Sudeste, a região mais dinâmica do país. Concentram-se também nas regiões metropolitanas, cerca de 80% da população moradora de favelas. ➢ De acordo com os dados do Censo do IBGE 2000, no qual se constatou que as cidades médias crescem a taxas mais altas do que as RM e que nos espaços metropolitanos, possuem maior expansão os municípios da periferia dos que os da área metropolitana no seu stricto sensu, o que se tem é uma informação nada alvissareira. Isto porque considerando-se a ausência de políticas de planejamento para as cidades do país (nas intenções ou objetivamente), esta tendência pode bem mais caracterizar uma ampliação e radicalização das problemáticas urbanas e metropolitanas do que uma hipotética (e quiçá promissora), “descentralização” urbana. ➢ Mesmo a decantada cidade de Curitiba, incensada em múltiplas avaliações como um exemplo de planejamento urbano e ambiental, exibe um fantástico crescimento das assim chamadas áreas de crescimento desordenado, que formam um cerco completo em torno do núcleo central da aglomeração urbana. 5 535 Um desdobramento direto desta situação é a ocupação das áreas voltadas para o abastecimento de água doce das grandes cidades, movimento que tem se materializado de modo incessante nas últimas décadas. Este processo insere aspectos explosivos por comprometer reservatórios de água que justamente seriam os solicitados para o funcionamento do próprio sistema urbano. A ocupação do entorno das represas tem do mesmo modo contribuído para acentuar os efeitos de determinados processos naturais, dentre os quais, a erosão e o assoreamento, inserindo repercussão negativa para o equilíbrio das redes hídricas. O crescimento da cidade informal na direção das áreas voltadas em tese para fornecer água, constitui decorrência direta da exclusão social e da ausência de políticas habitacionais capacitadas a atender demandas decorrentes do crescimento desordenado. Conformando um entrave inextricavelmente associado com a depleção dos corpos líquidos dos arredores das metrópoles cidades brasileiras, a cidade informal se materializa na ocupação por conta própria por parte dos menos afortunados, de áreas de risco, nichos ecologicamente frágeis como a beira de córregos, encostas íngremes e várzeas inundáveis (ALVES, 1991: 68/69 e OLIVEIRA, 1982b). Neste prisma, o problema habitacional tornou-se uma poderosa ferramenta a catalisar o desmantelamento dos já precários equilíbrios urbanos. A expansão da cidade informal, única alternativa para os excluídos do mercado residencial formal, materializa-se, pois, na conversão do espaço social em espaço mercadoria, assimilando ao 5 536 seu modo de espacialização, os espaços não integrados à pauta do mercado imobiliário dominante (Vide CASSETI, 1991: 115). Quanto à atuação do Estado na crise habitacional, recorrendo ao veredicto da geógrafa Arlete Moysés RODRIGUES, o poder público tem infelizmente se restringido às consequências e não às causas, contribuindo assim para transformar esta questão num perseverante problema no espaço urbano nacional (1991: 62). Deste modo, uma meta importante para equacionar a questão da preservação dos corpos de água doce seria buscar compreender a realidade urbana, que corresponde no Brasil de hoje, ao espaço de vida da maioria da população. Dado que a questão urbana e da água são impartíveis, a conclusão óbvia é que as cidades mereceriam, no plano analítico, a mesma importância que ocupam na vida cotidiana. Coerentemente, a primeira providência a ser tomada seria atestar o foco no qual incidiria a análise, evidência agregada à necessidade de aprofundar o conhecimento/funcionamento do meio urbano e de suas especificidades. Magister dixit, caberia meditar a respeito de advertência proferida por Milton SANTOS: seria preciso reconhecer que muito poucos se dedicaram a analisar de perto os sistemas urbanos em meios subdesenvolvidos (1981: 139/140). Secundando estes comentários, importaria frisar que os recursos hídricos não estarão plenamente protegidos na hipótese de seguir inalterado o estilo de vida individualista, perdulário e consumista, a rigor, identificado com a cidade formal. 5 537 No mundo do mercado total, as predicatórias maravilhas da modernidade somente estão ao alcance de uns poucos, nunca das amplas maiorias. Assim, grande parte da maioria da humanidade padece de tribulações agoniantes como as da sede, da fome, da violência das instituições e do desamparo social, descompassos que constituem, na realidade, o lídimo epicentro da questão ambiental da cidade moderna, no Brasil e no cosmos global (OLIVEIRA, 1994: 22). Vale ressalvar que na voz de múltiplos atores que reivindicam o compromisso das pessoas para com a preservação das águas doces, está também presente a pretensão de manter um modo de vida afluente, acessível somente a grupos de privilegiados. É preciso, pois apurar o entendimento da fala de todos que se pronunciam a respeito do meio ambiente, identificando os móveis reais que sustentam seus discursos. Parafraseando o antropólogo Georges BALANDIER: o primeiro passo para solucionar um problema é justamente evidenciá-lo (passim 1976b). Conhecer de modo aprofundado os interesses sociais, políticos e econômicos envolvidos na problemática dos recursos hídricos, assim como a relação funcional que articula os dois tecidos urbanos - o formal e o informal - numa contextura contraditória, e por meio deste prisma, lançar luz nas insuficiências subscritas pela institucionalidade, nos mostra que assaz além de estratégias administrativas, o conjunto de questões relativas aos recursos hídricos reclama imperiosamente uma prática política real. 5 538 CAPÍTULO 10 A METRÓPOLE PAULISTA E A QUESTÃO DOS MANANCIAIS 10.1. A GRANDE SÃO PAULO NO CONTEXTO DA ESCASSEZ DE ÁGUA No cenário brasileiro de hoje, qualquer discussão relacionada com o abastecimento urbano de água sugere, quase instintivamente, pautar a problemática hídrica vivida pela Região Metropolitana de São Paulo (RMSP). Em função das suas dimensões, dinamismo e de seu conhecido repertório de dificuldades, a metrópole paulista conota uma situação verdadeiramente sui generis, particularmente por consistir na mais acintosa explicitação do problema da escassez de recursos hídricos nas grandes cidades brasileiras. Nesta perspectiva, seria conveniente ressalvar que o gigantismo da RMSP se destaca numa unidade da federação que dispõe de uma rede urbana complexa, a mais densa e intrincada do país. O estado de São Paulo (ESP), apresentando um conjunto de cidades de porte mediano que vem ganhando destaque nas últimas três décadas, é também o único a exibir, em 2004, três concentrações urbanas com mais de um milhão de habitantes. 5 539 Com base em estimativas do IBGE válidas para 2004, estas seriam a capital paulista (com 10.838.581 habitantes), a cidade de Guarulhos (1.218.862 hab.), e de Campinas (1.031.887 hab.). Para culminar, o território paulista desponta com preponderante proporção de população urbana, atingindo 92,8%, espalhando-se por intrincada rede de centros urbanos (RUTKOWSKI et OLIVEIRA, 1999: 39). Não fosse suficiente, o torrão paulista agrega, além da RMSP, duas outras influentes regiões metropolitanas (RM): a RM da Baixada Santista (institucionalizada em 1999), e a RM de Campinas (instituída em 2000), ambas constituindo, junto com a metrópole paulista, três nódulos axiais de forte impregnação demográfica e geoespacial. No plano da cercadura territorial paulista, estes três espaços metropolitanos são interdependentes economicamente e formam uma rede integrada, com funções nitidamente complementares. Fenômeno ímpar na realidade urbana brasileira, este grupo de RMs, mantendo, sob hegemonia da RMSP, intenso intercâmbio entre si, permitiu aos órgãos de planejamento aventar a hipótese de conceituar uma nova agremiação territorial, reunindo estas três grandes metrópoles, suas adjacências e respectivas áreas de influência direta, numa única tecedura espacial (Vide BORDO, 2005). Nesta concepção, primeiramente esboçada no ano de 1996 pelos técnicos da Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano SA (EMPLASA), os três polos urbanos mencionados, com fundamento na sinergia contínua decorrente do entrelaçamento econômico e de uma dinâmica demográfica acelerada, formariam o chamado Complexo Metropolitano Expandido (CME). 5 540 Com epicentro na capital paulista e se estendendo num raio de 150 km ao redor desta metrópole, o CME é perpassado por intensos intercâmbios de mercadorias, bens, serviços, informações e pessoas, detendo papel expressivo na atividade industrial, comercial, de alta tecnologia e de serviços especializados. O conceito, a despeito de aguardar maiores aprofundamentos, tem se prestado a subsidiar a argumentação de geógrafos e dos planejadores urbanos, transitando também em documentos do governo estadual paulista. Objetivamente, o CME teria por base os eixos econômicos que associam a RMSP com o interior e o litoral. Por isso mesmo, além das RMs mencionadas, outros aglomerados urbanos (AU), tal como seriam os casos de Sorocaba, Jundiaí, da seção paulista do Vale do Paraíba e seus arredores imediatos, são partícipes desta agigantada articulação espacial (Cf. Figura 33). Constituindo o desfecho de um processo de urbanização que alçou o Brasil à condição de um dos suportes da globalização na periferia do mundo global, o CME aglutinaria, de acordo com dados do ano 2000 (IBGE), 26.294.408 domiciliados, qual seja, 71,13% da população do ESP e 15,56% da brasileira. A área deste conjunto, 42.737 km², equivaleria a 17,18% do ESP e 0,5% da superfície total da república. Para complementar, o CME estaria no comando de 79,3% do PIB estadual e 27,7% do nacional (Cf. EMPLASA). Neste vasto processo de concentração, a proeminência reporta à cidade de São Paulo e aos processos socioespaciais capitaneados pelo seu dinamismo urbano. A cidade forma o núcleo central de uma 5 541 gigantesca conurbação que alicia os municípios limítrofes, que ao longo do século passado, magnetizou a eclosão da RM de São Paulo. FIGURA 33 - Mapa do Complexo Metropolitano Expandido: Neste mapa estão destacadas as três Regiões Metropolitanas (RM) que compõem o CME, as RM de São Paulo (1), Baixada Santista (2) e Campinas (3); os três Aglomerados Urbanos (AU) que constituem vias de expansão direta dos fluxos do CME, como os AU de Sorocaba (4), Jundiaí (5) e Macro-Eixo Paraíba (6). Para completar, 7 Micro-Regiões (MR), cumprindo funções acessórias no CME, correspondem às MR de São Roque (7), Bragantina (8), Circuito das Águas (9), Mantiqueira (10), Alto Paraíba (11), Litoral Norte (12) e de Bocaina (13). (Fonte: < http://www.stm.sp.gov.br/regioes/ regioes_metropolitanas.htm >, escala aproximada 1: 1.830.000, acesso: 10-07-2005) A cidade de São Paulo, que desde os anos 1940 e 1950 ensaiava assumir a condição de eixo da Grande São Paulo (GSP), adentra o II milênio sob o signo de uma notável metamorfose, reestruturando seu papel no tempo e no espaço. Este processo é propulsionado pela globalização, cujo motor é a generalização dos fluxos de informação e de mercadorias, patamar este fundamental para que se faça presente num sistema mundial hierarquicamente unificado. Nesta senda, a 5 542 metrópole paulista articula-se como um dos “centros múltiplos” de um espaço mundial, uma nova ordem espacio-temporal que se vislumbra a partir da mundialização da sociedade urbana (CARLOS, 2001: 31). Nestes termos, a GSP adentra o Século XXI investida da função de metrópole global, tonificando mais ainda sua projeção na formação socioespacial brasileira. É deste modo que a GSP, enquanto uma metrópole onipresente e informacional, se consolidando em paralelo à desconcentração fabril, torna-se, de modo simultâneo e irrecusável, um eixo pivotante através da sua persistente introjeção em todos os espaços do país. Confirmada no comando dos processos de territorialização, a grande metrópole está habilitada a desorganizar e organizar, “ao seu talante e em seu proveito, as atividades periféricas e de impor questões para o processo de desenvolvimento regional” (SANTOS, 1993b: 103). Seja qual for o parâmetro que venhamos a utilizar, sejam estes técnicos, administrativos e/ou de planejamento, nenhum destes oblitera a magnificência do dinamismo paulista, que arregimenta para si, o essencial da organização do espaço. Coadunando com estas considerações, por conta de arrazoados históricos e geográficos do passado e do presente, a capital persiste como principal núcleo de adensamento demográfico. A conurbação abrigava no ano 2000, exatos 17.878.703 urbanitas, total equivalente à cerca de 10,6 % da população brasileira e 47% da população do ESP (Vide Figura 34). 5 543 FIGURA 34 - POPULAÇÃO DOS MUNICÍPIOS DA RMSP EM 2000 (Fonte: SEADE/IBGE/EMPLASA, dados organizados por BORDO, 2005) A população da região metropolitana está concentrada, grosso modo, no sentido Oeste-Leste, do município de Jandira ao de Mogi das Cruzes, e, no sentido Norte-Sul, do Subdistrito de Parelheiros ao Sul, até o do Tucuruvi, ao Norte, estes dois últimos localizados no município de São Paulo. Mas, a cidadela paulista continua a agremiar 5 544 o essencial da realidade demográfica metropolitana, concentrando em 2005, cerca de 61% do contingente populacional total da RMSP. A RMSP é integrada por 39 municípios (Figura 35), compondo uma área total de 7.946,96 km², correspondendo a 0,9% da área total do Brasil e 3,5% do ESP, ou seja, somente um centésimo deste. Quanto à mancha urbana contínua, ela se espalha atualmente por cerca de 2.500 km², correspondendo a aproximadamente 150.000 quarteirões. Esta área, aumentou 436 km² em apenas 15 anos, e se lembrarmos que esta superfície era de 1.370 km² em 1980 e 335 km² em 1930, os números são incondicionalmente claros em indicar um crescimento verdadeiramente ímpar (Vide EMPLASA e CUSTÓDIO, 2001: 53). No plano econômico, a metrópole paulista representa 47,6% do PIB estadual e 16,7% do nacional (Cf. EMPLASA). Desde os anos 1990, a GSP, mesmo sediando cerca de 40.000 indústrias, deixou de ser preponderantemente fabril, passando a abrigar atividades do setor terciário, associado à gestão, controle e ao consumo. Tamanha concentração populacional e econômica, par a par ao processo de consolidação de um meio técnico-científico-informacional que emerge subsidiado pela desconcentração centralizada, torna-se matriz por definição de uma enorme demanda por água doce. Há, nesta perspectiva, que serem computados os impactos decorrentes da própria expansão da mancha urbana, que ocorre em consonância com o modus operandi da metrópole paulista. Assim, as previsões apontam para uma dilatação da área urbanizada numa ordem de 230 km² até 2020 (CUSTÓDIO, 2001: 72). 5 545 FIGURA 35 - Região Metropolitana de São Paulo nos anos 1990, com a área da mancha urbana em tom mais escuro (Fonte: GeoAtlas, Maria Helena Simielli, Editora Moderna, 1994: 89) Neste cenário, a dramaticidade de que se reveste a situação da RMSP quanto aos recursos hídricos é cristalina quando se alerta para o fato de que o ESP, embora constituindo a unidade da federação mais populosa do país e reunindo em torno de 22% da população brasileira (Cf. IBGE, 2000), está desproporcionalmente atendido, na contrapartida, com unicamente 1,638% do potencial hídrico disponível no país (Cf. REBOUÇAS, 2002a: 31). Por sua vez, esta situação se complica quando se sabe que a RMSP tem, à sua disposição, tão só 4% das águas doces disponíveis nesta mesma unidade da federação. Na RMSP, a malha hídrica responde essencialmente pelo fluxo da Bacia Hidrográfica do Alto Tietê. Esta perfaz 5.650 km² de área de drenagem, isto é, 70,17% da região metropolitana. Drenando 34 dos 39 municípios da Grande São Paulo, e sendo por sua vez subdividida 5 546 em seis sub-bacias, a Bacia Hidrográfica do Alto Tietê constitui o mais importante provimento de água superficial da metrópole paulista. Embora a rede hídrica do Alto Tietê seja densa, alimentada por, entre outros mecanismos naturais, pelas chuvas de convecção, tratase vis-à-vis de uma rede de sub-bacias de cabeceira. A vazão do escoamento, aproximadamente 90 m³/s, é muito baixa diante das necessidades da RMSP. A disponibilidade hídrica da metrópole, calculada em aproximadamente 112,57 m³/hab./ano (SABESP, 2004), equipararia a urbe com as regiões áridas do planeta, uma situação hidrologicamente lábil sob qualquer ponto de vista (CAMPOS, 2001). Deste modo, uma vez banhada pelo curso superior do Tietê e não possuindo grandes caudais à sua disposição, a cidade de São Paulo tem à disposição recursos hídricos obrigatoriamente exíguos (Vide RUTKOWSKI et OLIVEIRA, 1999: 39). Diante de tal realidade, as requisições por água pela RMSP repercutiram junto a uma vasta periferia espacial, formada por regiões que também devem dar conta das suas necessidades pelo líquido vital. Frente ao duro impasse de satisfazer as demandas da GSP (até porque a RMSP consome muito mais água do que a produzida na sua área específica de abrangência), e com a virtual inexistência de uma política de ações coordenadas, a metrópole passou a solicitar toda a água disponível das regiões sob sua influência direta. Assim, com o concurso da reversão de bacias hidrográficas vizinhas, os recursos hídricos oriundos de mananciais distantes dos consumidores finais, foram desviados para satisfazê-los, procedimento que se tornou fonte de toda sorte de conflitos, em curso ou potenciais. 5 547 Em princípio suscitando um sistema de distribuição de grande abrangência, a imperiosidade desta lógica é correspondida por uma empresa também gigantesca: a SABESP, que pontua como a maior companhia pública de águas do mundo (Ver a respeito BARLOW et CLARKE, 2003: 153). Sendo responsável pelos serviços de água e esgoto em 368 das 645 cidades do ESP, a SABESP é uma peça-chave do fornecimento de água para os municípios da região metropolitana. Exceto poucas autarquias municipais, a RMSP é em larga medida atendida por esta companhia. Através de interligação dos reservatórios que abastecem a conurbação (todos monitorados pela SABESP), o desenho final é a consecução do colossal Sistema Adutor Metropolitano (SAM). Tal como um intrincado sistema de vasos comunicantes, o SAM equaliza o suprimento para todas as cidades conectadas ao sistema, municiando-as de água que viaja por dezenas de quilômetros para finalmente escoar em torneiras muito distantes dos reservatórios de origem (Vide SAM, 1993). Esta constatação, evidencia-se em si mesma ao se conferir a relação dos oito grandes sistemas produtores de água voltados para o abastecimento da Grande São Paulo (Cf. Figura 36), cujas áreas de captação, estendem-se além dos limites da GSP, e no caso do Sistema Cantareira, alcançando o Sudeste de Minas Gerais, vale dizer, transbordando as fronteiras paulistas. 5 548 FIGURA 36 - Sistemas provedores de água para a RMSP (Fonte: Plano Diretor de Abastecimento de Água da RMSP, SABESP, março de 2004) Os sistemas de produção hídrica da RMSP, isto é, o Cantareira, Guarapiranga-Billings, Alto Tietê-Cabeceiras, Rio Grande, Alto Cotia, Baixo Cotia, Ribeirão da Estiva e de Rio Claro, inserem recortes extremamente específicos do ponto de vista socioambiental. Reconhecidamente, muitas das áreas provedoras, que conjuntamente formam o Sistema Integrado de Abastecimento de Água da RMSP (do mesmo modo gerenciado pela SABESP), estão distantes da área urbanizada e da região metropolitana, suscitando, por definição, a construção de um conjunto de portentosas obras de infraestrutura hídrica para atender esta finalidade. No referente ao sistema Cantareira, em vista de algumas das nascentes dos rios que o sustentam localizarem-se em Minas Gerais, temos um espelho fiel da repercussão tanto da escassez, quanto da volição perturbadora da sede da metrópole para o seu entorno geográfico. 5 549 No aspecto volumétrico, os oito sistemas de produção hídrica fornecem atualmente para a RMSP cerca de 66.000 litros de água doce por segundo, condizendo a 2.300 piscinas olímpicas por dia. Aparentemente volumosa, a quantidade de água injetada na rede de abastecimento redundaria, num ponto de vista quantitativo, no meiotermo de 326 litros/hab./dia, um provimento considerado inquietante por qualquer especialista da área. Porém, confirmando a “praxe” nacional de desperdício de água tratada, a proporção de perdas na distribuição na RMSP, megalópole sedenta que pela própria força da necessidade deveria primar pelo gerenciamento eficiente dos recursos hídricos, alcança a assustadora cifra de 40%, índice composto por perdas físicas (volumes produzidos que não chegam ao consumidor por conta de problemas logísticos e operacionais) e por perdas comerciais (volumes consumidos e não faturados devido a imprecisão dos medidores, ligações clandestinas, etc.). Em resumo: as estações de tratamento estão potabilizando muito mais água do que o efetivamente consumido, um nível de perdas que tão só agrava um contexto perpassado pela carência de água doce disponível, lembrando-se, é claro, que os cidadãos formalmente conectados à rede pública dependem de águas externas à metrópole (REBOUÇAS, 2004: 42; CUSTÓDIO, 1996: 15 e 2001: 55). Frente a este cenário, as possibilidades de expansão da oferta de água de qualidade são limitadas. Um expediente do qual a RMSP, analogamente a outras conurbações metropolitanas, lançou mão em passado recente, arrimado na reversão e abdução dos fluxos das 5 550 bacias adjacentes, atualmente está crivado de objeções por parte das populações que habitam o curso dos rios a serem aproveitados, sem contar o custo proibitivo destes projetos. Além do mais, a resiliente modalidade de outorga que garantia acesso ilimitado da RMSP às águas de terceiros, encontrou seu epitáfio em março de 2004. No caso do sistema Cantareira a outorga, isto é a concessão ao usuário do direito de uso da água de determinada bacia (estadual ou federal), datava de 1974 e garantia acesso intérmino aos recursos da bacia do rio Piracicaba. Entretanto, por pressão de movimentos e de grupos sociais das áreas que abastecem o sistema Cantareira, foi imposto um teto para a retirada de água para a metrópole paulista. Explicitamente, os mais variados segmentos de opinião pública da região provedora se insurgiram contra a captação privilegiada que a metrópole fazia dos recursos hídricos regionais, aos quais com todo direito, julgavam ter prioridade na utilização. Com base neste pano de fundo, reverter o que quer que seja estaria simplesmente fora de cogitação. Quanto ao menos melhorar a qualidade da água doce disponível para a RMSP, existe decerto a hipótese de paralisar o processo de deterioração dos reservatórios da Billings e Guarapiranga, encetando sua festejada recuperação. Entretanto, uma vez que ambos estão assediados desde os anos 1960 pela incessante expansão urbana, presumivelmente cotejando múltiplos agravos ambientais, o período de implementação da despoluição destes sistemas será longo, não podendo satisfazer iminentes necessidades e demandas reprimidas da população (Vide GIUSTI, 2005: 39). 5 551 Consequentemente, a RMSP poderia contar meramente com a ampliação da produção hídrica da sub-bacia das Cabeceiras ou do Alto Tietê. Esta malha hídrica compõe o Sistema Produtor do Alto Tietê (SPAT). Os reservatórios do Alto Tietê-Cabeceiras (Taiaçupeba, Jundiaí e Ponte Nova), situam-se todos a Leste da RMSP. O SPAT também recebe o caudal não aduzido do rio Claro, sendo estas águas retidas pelo reservatório Ponte Nova. Tecnicamente, este fato justifica que o sistema Rio Claro e o SPAT sejam considerados de modo integrado. Os reservatórios do Alto Tietê-Cabeceiras fornecem atualmente 9,7 m³/s para a metrópole, volume que pode ser expandido para um montante máximo de 15 m³/s, sendo que para além deste patamar, seria urgente operacionalizar outros barramentos. Porém, os tempos são outros e as facilidades para implantar novos reservatórios não mais existem. À vista disso, o licenciamento de novas obras está paralisado a décadas por conta de cautelas sugeridas por estudos de impacto ambiental e por ações judiciais relativas à propriedade dos terrenos. Assim, as barragens de Paraitinga e de Biritiba, localizadas na subbacia das Cabeceiras, não obstante terem sido programadas no início dos anos 1970, ainda não apresentam data prevista para entrar em funcionamento. Em face do que foi exposto, tudo conspiraria para recordar as potencialidades inerentes à gestão da demanda, ou seja, substituir os investimentos por procedimentos voltados para a conservação dos 5 552 recursos hídricos. Efetivamente, esta estratégia sugere mais uma vez, pautar a adoção imediata dos três “R”: Reduzir, Reutilizar e Reciclar, antecedidos, é óbvio, pelo Repensar. Nesta senda, o controle de perdas, a adoção das tecnologias de reúso e do mesmo modo, a utilização racional dos recursos hídricos 108, poderia contribuir ou postergar para mais adiante a eclosão de um turbulento cenário de carências, pelo qual a RMSP, empurrada para um cul-de-sac hidrológico, ingressaria numa incontida espiral de “curtos-circuitos” urbanos, marcada por oclusões e emperramentos do sistema de engenharia (Cf. SANTOS, 1988 e 1978a). Mesmo assim, seria difícil postular que por si só, as premissas da utilização racional da água disponham da faculdade de sanar os entraves hídricos da região metropolitana. A bem da verdade, adotar programas de preservação da água doce em momentos nos quais a crise hídrica se agudiza, tem por pressuposto confesso ou não, o grau acentuado ao qual chegou a penúria de recursos hídricos. O que mais então, além de racionalizar a demanda, poderia ser empreendido diante da escassez inconteste? Como seria óbvio, nada melhor do que novamente pleitear a emergência de uma estratégia visando proteger as águas doces existentes, pautando, por exemplo, o fim da prática de envelopar e retificar o curso dos rios, que somada à blindagem do solo urbano, tem por demérito prejudicar o escoamento e a infiltração das águas Na cidade de São Paulo, acompanhando uma tendência que se manifestou pioneiramente no Rio de Janeiro, foi sancionado no final de junho de 2005 o Programa Municipal de Conservação e Uso Racional da Água em Edificações, tendo por objetivo a aplicação de medidas de economia de água em nível residencial. 108 5 553 pluviais, impedindo a recarga dos aquíferos e potencializando as enchentes. Não custa redizer um cálculo orçado pelo economista Ladislau Dowbor, pelo qual uma chuva de 100 milímetros, fluindo sobre os 1.500 km² da área urbanizada do município de São Paulo, significa 150 milhões de toneladas de água, que privadas do talento congênito do escoamento e de infiltração no solo, são transformadas em vetores de catástrofes e da escassez de água (NOVAES, 2005). Outro direcionamento sugere, pelo mínimo, ações concretas de coleta e tratamento dos esgotos. Contudo, a RMSP não se dissocia do primado nacional firmado no modelo sanitário que responde pelo bordão tout à l’egout, predominante na Europa Ocidental desde a segunda metade do Século XVIII (Cf. REBOUÇAS, 2004: 174). Neste modelo, a rede de drenagem natural é transformada numa reles malha de escoamento de efluentes, induzindo efeitos malsões e impactos socioambientais. É o que podemos certificar com a análise dos dados constantes na Figura 37, referentes à coleta e tratamento das águas servidas na GSP. Elaborada com os levantamentos mais atualizados a disposição, entre outros pontos o prontuário esclarece: 1. A existência de índices alarmantes de ausência de tratamento, noutros termos, zero (isto é, nenhum), em numerosos municípios da RMSP, somado à outra observação importante: a precariedade dos arrolamentos, que excluem ligações clandestinas e transgressões de diversos tipos, logo, colocando em cheque para pior, a fiabilidade dos dados divulgados; 5 554 FIGURA 37 - Porcentagens da Coleta e de Tratamento de Esgotos na RMSP. Neste emolumento, os dados reportam a dezembro de 2004. As estatísticas referentes a 6 municípios (Santo André, São Caetano do Sul, Guarulhos, Mogi das Cruzes, Diadema e Mauá), que compram água da SABESP por atacado, não constam do site oficial da empresa. Quanto ao município de Santa Isabel, não existem dados disponíveis. (Fonte: < http://www.sabesp.com.br > e < http://www2.sabesp.com.br/ html/a_sabesp/sua_regiao/default.asp >) 5 555 2. O quadro alarmante apresentado pela cidade de São Paulo, catalisado pelo enorme volume de ejeções cloacais. O esgoto não tratado da capital, cidade líder da RMSP, equivaleria a uma vez e meia o total gerado pelo Grande ABC Paulista ou algo como três cidades e meia do porte de Guarulhos ou Campinas; 3. A existência de municípios situados em áreas de importância vital para a produção de água, caso por exemplo, de Itapecerica da Serra, do Embu e de Taboão da Serra (para a sub-bacia CotiaGuarapiranga), assim como São Bernardo do Campo, Rio Grande da Serra e Ribeirão Pires (sub-bacia da Billings), cidades que geram espesso caudal de esgotos, lançados in natura na rede hidrográfica do Alto Tietê; 4. Também chama a atenção o quadro dos municípios alinhados na região das cabeceiras do Alto Tietê, que possuem relação direta com o SPAT. Conforme foi sublinhado, esta é a única bacia em que é possível pensar uma expansão do fornecimento de água para a RMSP. Não obstante, a situação é muito precária em Biritiba Mirim, Ferraz de Vasconcelos, Itaquaquecetuba, Guararema e Suzano; nas cidades de Poá e Salesópolis, embora apresentando uma situação relativamente controlada, suscitam certa preocupação; 5. Outro aspecto pertinente seria o fato das engarrafadoras de água mineral estarem prospectando em larga escala o produto nos municípios da RMSP. Esta atividade, para auferir qualificação, exige, obligatio ad diligentiam nas intercessões antrópicas na superfície do solo e nos corpos aquáticos, pré-requisitos que de modo contumaz, não tem sido necessariamente acatados. 5 556 Intimamente associado à garantia de obter água de qualidade, o montante de resíduos sólidos gerados pela RMSP é um fator digno de atenção. Os 39 municípios da região metropolitana dispensam a cada dia, 11.456,6 toneladas de lixo doméstico, das quais, 86%, de acordo com os padrões normativos estabelecidos pela CETESB, recebe destinação catalogada como adequada 109. Porém, a “porcentagem residual” de 14% destituída de descarte tecnicamente paramentado, equivaleria a uma montanha de lixo equivalente ao ejetado por uma metrópole do porte de Salvador, terceira cidade nacional no ano 2000. Uma circunstância agravante revelada pelos levantamentos da CETESB é que um bom número de municípios com uma gestão e condições de tratamento do lixo consideradas inadequadas, situa-se em regiões com explícito interesse hídrico. Esta seria a situação, por exemplo, de Juquitiba, Mogi das Cruzes e Cotia. Isto, sem contar os descartes clandestinos de lixos químicos e industriais, uma ingente bomba de efeito retardado que pipoca de quando em quando nos bordos da RMSP. Um destes casos ocorreu em 2001. Neste ano, a opinião pública tomou conhecimento de um grave problema de contaminação ambiental no Grande ABC Paulista. No Parque São Vicente, bairro da cidade de Mauá, descobriu-se que um conjunto residencial habitado por 5.000 domiciliados, foi construído sobre um aterro de lixo industrial abandonado à própria sorte por uma empresa da região. Acumulando 44 tipos de compostos poluentes, tóxicos e voláteis, o local oferece perigos que se estendem 109 Vide Inventário dos Resíduos Sólidos 2002 (CETESB, 2002). 5 557 de explosões espontâneas aos mais drásticos prejuízos à saúde dos moradores. Assim, se for somada à deficiência dos serviços de tratamento de esgotos a precariedade das políticas setoriais referentes à destinação final dos resíduos sólidos, uso e ocupação do solo ou mesmo a falta pura e simples de planejamento urbano (na maior parte dos casos se restringindo a estratégias de remediação de danos e impactos já ocasionados), seria de se admirar que não ocorresse uma vertiginosa deterioração das águas doces. A RMSP apresenta, hoje, um quadro inapelavelmente crítico: 51% dos recursos hídricos presentes na área estariam comprometidos pela poluição, e cerca de 35% da água, é considerada de qualidade ruim ou péssima, especialmente em virtude da concentração de fósforo (CAMPOS, 2001). Esta calamitosa situação terminou endossando obras como o Projeto Tietê. Tido como um dos mais ambiciosos empreendimentos ambientais da América Latina, esta iniciativa teria por objetivo ampliar a coleta e o tratamento de águas residuárias na GSP, reduzindo o lançamento de compostos poluentes nos cursos d’água e melhorando a qualidade das águas da bacia do Tietê. Precedido de intensa pressão social, a proposta foi endossada em 1992 pelo governo do estado de São Paulo, envolvendo órgãos como a Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (CETESB), o Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE) e as administrações municipais. No entanto, na voz de um conhecido especialista em recursos hídricos, mesmo com a entrada em operação de outras estações de 5 558 tratamento integrantes deste projeto, a situação seria, de acordo com os dados disponíveis em 2002 110, a que segue: ...a capacidade de tratamento de esgotos na Região Metropolitana de São Paulo, ficará limitada uns meros 45%. Cabe considerar, ainda, que aproximadamente 15% dos esgotos gerados na região ainda não são coletados, e que as águas do rio Pinheiros, que cruzam uma das áreas mais nobres de São Paulo, se manterão com aproximadamente 90% de esgotos até o ano 2003, se não ocorrerem outros atrasos no desenvolvimento do Projeto Tietê (HESPANHOL, 2002: 270). Outro augúrio é que devido ao atual estágio de desestruturação ambiental da metrópole, a coleta e tratamento dos esgotos poderia até mesmo transparecer enquanto estratégia parcialmente zerada pela poluição difusa, que se amplia de modo ininterrupto devido ao incremento das substâncias nocivas dispersas no ambiente urbano. Consequentemente, a perda de qualidade das águas em razão do aumento crescente de substâncias poluidoras levou ao aumento do uso de produtos químicos necessários para obter potabilidade do líquido. Segundo extensamente noticiado em informes especializados 111, a despesa do tratamento da água dos reservatórios do Cantareira, Guarapiranga e Alto Tietê majorou em dobro as tarifas de água aos consumidores. Ainda assim, o padrão limnológico do líquido deixa muito a desejar: as reclamações da população têm aumentado ano a Os últimos dados da SABESP referem-se ao primeiro trimestre de 2003, não mostrando alterações relativamente a 2002 (< http://wwwabesp.com.br/ >, Acesso: 25-072005). 111 Cf. Manchetes Socioambientais, diversas edições. 110 5 559 ano, obrigando as autoridades a informar sobre a qualidade da água que fornecem 112. As dificuldades que se avolumam quanto ao acesso às águas superficiais de boa qualidade, contribuíram para a difusão de poços artesianos e a expansão de uma nova frente de negócios: empresas especializadas em captar águas subterrâneas. Particularmente, os condomínios fechados, a rede hoteleira, hospitais e as indústrias, são os principais usuários dos aquíferos. Porém, não só: municípios como Juquitiba, São Lourenço da Serra, Santana do Parnaíba, Francisco Morato, Guararema e Biritiba Mirim, obtém das águas subterrâneas, entre 25 a 50% do seu abastecimento (Cf. DEL PRETTE, 2000: 123). Para o ano de 2003, acredita-se que 10% da demanda da RMSP era satisfeita através de mananciais subterrâneos. Projeções de diversos especialistas do Instituto de Geociências da USP prognosticam a possibilidade dos aquíferos atenderem, em médio prazo, até 19% da demanda total. Já foi dito e vale reiterar: tudo depõe contra o otimismo fácil. A qualidade das águas do subsolo depende diretamente de uma gestão ótima das atividades desenvolvidas na superfície, e de um rigoroso monitoramento técnico das perfurações. Acredita-se que dos 12.000 poços existentes na RMSP, cerca de 80% são clandestinos, na maioria dos casos, abduzindo água além da capacidade natural de recarga. Decreto assinado pelo governo do Estado de São Paulo no início de maio de 2005, obriga os sistemas produtores da SABESP a informar a população relativamente à qualidade da água fornecida, disponibilizando-as em sua home-page ou nas agências de atendimento da empresa (Manchetes Socioambientais, edição de 02-06-2005). Contudo, note-se que as informações divulgadas são no mais das vezes, genéricas e inconstantes. 112 5 560 Dado que os problemas se estendem da ausência de rigor na disposição final dos resíduos à blindagem do solo urbano, impedindo que a água chegue às represas na qualidade e quantidade desejada, sem contar que fatia ponderável das perfurações ocorre ao arrepio de quaisquer acompanhamentos ou parâmetros geotécnicos, a situação declina em prejuízos de todo tipo para os lençóis subterrâneos. Nesta toada, substantivando dado verdadeiramente surrealista, sabe-se que ao menos 60% da água retirada dos aquíferos da RMSP procede de vazamentos das adutoras e extravios por vazamentos provocados por rompimento de tubulações da rede da SABESP e das concessionárias que operam na região. Paradoxalmente, as perdas de água tratada são de tal vulto que, de acordo com o geólogo Ricardo Hirata, do Instituto de Geociências da USP, “os aquíferos e a Bacia do Alto Tietê estariam numa situação crítica se não recebessem água dos vazamentos” 113. Deste modo, nada poderia calçar como definitiva a potencialidade da explotação das águas subterrâneas na RMSP. Outra variável para saciar a sede da conurbação (totalmente subserviente às regras mercadológicas), seria a comercialização das águas minerais. Conforme tem sido recidivamente notificado, a queda da qualidade da água que chega às torneiras, ao possuir vínculo direto com o consumo de água engarrafada, permitiria, pois relacionar o estrondoso sucesso do comércio do líquido com o sucateamento dos serviços públicos de água potável (Cf. REBOUÇAS, 2004: 174). 113 Manchetes Socioambientais, edição de 14-06-2005. 5 561 É o que explica a expansão do mercado de água mineral no estado de São Paulo, que no período de 1997 a 2000, foi de 52% e na RMSP, de 92%. Este crescimento está consignado em relatório do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), que assinala ser a RMSP, responsável por 58% da produção paulista de águas minerais e por 21,5% do engarrafamento em nível nacional. Tal concentração, que poderia surpreender o observador mais desavisado, está ligada a dois fatores básicos. O primeiro decorre das condições geológicas favoráveis existentes em muitos municípios da região metropolitana. O segundo associa-se à facilidade de acesso com o maior mercado consumidor da América Latina, um aspecto logístico de considerável importância para a comercialização de água engarrafada. De acordo com um levantamento do BNDES, o frete, ao representar cerca de 25% da composição do preço da água mineral, potencializa a proximidade como um fator geográfico de primeira ordem para a comercialização do produto (GUAZZELLI, 2004: 82). No entanto, nada depõe em favor destes desmesurados esforços em obter água que, em princípio, ao menos poderia oferecer uma dessedentação segura. Repetindo advertência já registrada, a água engarrafada nem sempre é mais confiável que a água da torneira e algumas delas o são menos ainda (BARLOW et CLARKE, 2003: 171). A despeito da importância crescente da água engarrafada para a população, o estado de São Paulo dispõe de apenas sete fiscais para acompanhar a captação e o engarrafamento das águas minerais. Visando o controle da assepsia dos poços de água mineral e aferir eventual contaminação por resíduos das atividades agropastoris ou 5 562 por esgotos, seriam necessários, segundo o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), responsável pelo acompanhamento da atividade no país, pelo menos 40 funcionários voltados unicamente para esta função. O quadro de problemas relacionados com os recursos hídricos na RMSP é ainda agigantado quando pensamos o recorte social da falta d’água, o chamado estresse hídrico social. Além da demanda ser capitaneada por um segmento social e por um estilo de vida cuja difusão poderia anular os eventuais ganhos de escala obtidos, não há como deixar de averbar o passivo hídrico que tem afrontado amplos segmentos populacionais da periferia da metrópole, cujas demandas deverão ser satisfeitas especialmente quando o que está em questão, é a universalização de um benefício básico e primordial. Com efeito, o “fantasma das torneiras secas”, mais do que uma apavorante metáfora dirigida para o futuro, é uma questão efetiva do dia a dia de milhões de metropolitas. A população de baixa renda, dos quais 35% não contam com água encanada, contra 3% dos setores mais abastados, é sabidamente a primeira a ser agrilhoada pelo racionamento ou pelo corte do serviço por conta das oscilações da economia e das periódicas estiagens que arrostam a metrópole (Vide REBOUÇAS, 2004: 174). Entretempos, ressalve-se que o prontuário composto por ações deletérias voltadas em desfavor dos ciclos hidrológicos é sumamente recente. A história da ocupação da RMSP poderia confirmar que nem sempre o contexto vivido foi este, e pelo contrário, que no passado, a 5 563 região usufruiu da condição de feliz integrante do País das Muitas Águas. Deste modo, algo saiu profundamente errado nesta história. Mas porquê? 10.2. SÃO PAULO, ÁGUAS VADEANTES E O VELHO CAAGUAÇU Procurando dar curso à indagação anterior, não haveria como deixar de detalhar a discussão relacionada com a escassez de água na RMSP sem que nos detivéssemos nos processos responsáveis pelo surgimento da cidade de São Paulo, e mais adiante, da região metropolitana e do ABC Paulista. Como se sabe, a problemática dos recursos hídricos na região metropolitana desenvolveu-se em inegável paralelismo com a eclosão da crise urbana e não poderia, de modo algum, ser desprendida do entendimento desta. Nessa ordem de considerações, deve-se recordar que dentre os arrazoados relacionados com a escassez dos recursos hídricos, o veredicto da futura metrópole ter sido fundada nas cabeceiras de uma malha fluvial detentora de características como as concernentes à Bacia Hidrográfica do Alto Tietê, tem sido corriqueiramente postulado para a explicação do fenômeno da falta de água na RMSP. 5 564 Para um amplo conjunto de análises, a opção pelo sítio que abrigou a futura metrópole paulista, esteve na contramão de um nexo comum à gênese da maioria das grandes cidades, brasileiras ou não, que sempre demonstraram vocação para recortes hidrológicos mais favoráveis (MONBEIG, 2004: 118/119). Prestando atenção a este pormenor, é possível vislumbrar que quase todas as urbes que ponteiam a tecnoesfera foram assentadas no curso inferior ou intermediário das grandes bacias hidrográficas. No primeiro caso constam cidades como Antuérpia, Hamburgo, Lisboa, Oslo, Xangai, Bangcoc, Nova Orleans, Buenos Aires, Karachi, Cairo e Kinshasa; na segunda opção, desfilariam sítios urbanos como Delhi, Abuja, Kartum, Bogotá, Belgrado, Moscou, Varsóvia, Paris, Ottawa e Budapeste. Estas metrópoles, localizadas à distância das nascentes que são a origem dos mais prestigiados cursos d’água do mundo, dispõem, até por obviedade, de caudais mais expressivos, unicamente passíveis de serem encorpados a jusante, e não a montante da cabeceira dos seus fluxos. Além disso, o questionamento relacionado com a localização da metrópole, argumentação esta exaustivamente repetida como razão das mazelas hídricas vivenciadas pela GSP, subentende a dificuldade de obter água em função de ditames que senão essencialmente, seriam pelo mínimo marcadamente de mote geográfico, associados à parca oferta natural do líquido. Todavia, permite-se indagar: este parecer estaria revestido dos ouropéis da verdade? O que existiria de verídico nesta afirmação? 5 565 Não podemos esquecer que mais de uma vez, a geografia foi requisitada para justificar os problemas que assediam o coletivo humano. Neste passo, o entendimento correria agora numa direção exatamente oposta, isto é, alcançar, com base na geografia, soluções para as adversidades que acometem a metrópole, ou então, ao menos respaldar sua compreensão. Justamente esta perspectiva, obrigaria a todos voltar os olhos para as origens de São Paulo, e a partir desta perspectiva, debruçarse na avaliação das influências históricas e geográficas responsáveis pelo surgimento da cidade que mais tarde viria encabeçar uma das maiores manchas urbanas globais. É neste atalho que encontramos a obra do historiador, geógrafo e filósofo Caio PRADO JÚNIOR (1998), e nesta proveniência, dois escritos centrados nos aspectos que estou discutindo, qual seja, relacionados com o nascedouro da cidade de São Paulo. As especulações deste pesquisador, datadas dos anos 1930 e imbuídas do mais autêntico espírito geográfico, inserem foros da mais pujante atualidade 114. A consulta às chamadas de Caio Prado Júnior, direcionariam o olhar tanto para as singularidades do espaço natural no qual a cidade de São Paulo foi implantada, quanto para as influências que destas Tomo a liberdade de comentar com base em depoimento pessoal a sensibilidade geográfica de Caio Prado Júnior. Em 2002, na qualidade de membro da Diretoria da Seção São Paulo da Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB), participei de visita institucional ao acervo deste notável brasileiro depositado no IEB (Instituto de Estudos Brasileiros), localizado na Universidade de São Paulo (USP). Folheando os manuscritos de Caio Prado Júnior, o senso geográfico patente nas fotos, na escrita e nos croquis desenhados a mão livre por este grandioso estudioso do Brasil, saltaria aos olhos de qualquer um. A obra de Caio Prado Júnior, que tal como Milton Santos, era advogado de formação, nos evidencia que a geografia, mais que uma titulação, é uma laboração, uma perspectiva de análise, um modo de compreensão da realidade e por que não, uma vocação. 114 5 566 decorreram para sua evolução urbana e para o vasto hinterland que se estende para além da cidade. Assim, uma primeira constatação estaria dirigida para o Planalto Brasileiro, rugosidade natural particularizada na Baixada Santista por um invulgar estreitamento junto à faixa costeira. Neste ponto do compartimento geomorfológico, concernente à província do planalto Atlântico, os contrapés desta formação natural não se distanciam do estuário de Santos mais do que 15 km da praia. A importância desta peculiaridade se fez sentir de modo profundo na história do estado e da nacionalidade. Recordemos que grande parte do interior brasileiro se simetriza orograficamente a um domínio planáltico ladeado por serras paralelas ao litoral. Consequentemente, o povoamento português não teria nenhuma chance de sucesso de se alastrar pelo interior do Brasil ignorando a ultrapassagem deste obstáculo frontal montanhoso. E sendo esta a preocupação dos colonizadores, porque não iniciar a ocupação do território adentrandose pelo ponto mais facilmente acessível a partir da costa? Na sucessão de fatores que favoreceram a fundação de São Paulo exatamente no ponto em que ocorreu, a facilidade de acesso ao planalto a partir da Baixada Santista constituiu elemento de peso. As serras que se prolongam à Leste, compostas por larga vertente íngreme, altaneiras ao litoral, possuem desfiladeiros que de longe, são bem mais acentuados, caracterizados por altitudes proeminentes, alteadas por cumes que atingem 1.500 a 2.000 metros, sendo estes, antes de exceção, uma regra generalizada. 5 567 Por esta razão, Minas Gerais foi povoada a partir de São Paulo e não do Rio de Janeiro ou do Espírito Santo, espaços nos quais o povoamento deteve-se, devido à aspereza do terreno, nas fraldas do planalto. Reconhecidamente, a fenda natural que unia Piratininga à Baixada Santista era bem mais satisfatória do que todas as demais, justificando uma opção preferencial por esta via de acesso (PRADO JÚNIOR, 1998: 14/15). Contrariamente às demais passagens naturais que pesponteiam nas serras que se alinham ao longo do litoral brasileiro, é exatamente o trajeto ligando a Baixada Santista à direção do planalto que se destaca como o trajeto mais dócil e o menos oneroso de todos. Disto sabiam as populações indígenas, que aproveitando o trecho de menor declividade, atingiam Piratininga por meio da trilha autóctone batizada como dos Guaianases, dos Tupiniquins ou ainda, Caminho de Piassaguera 115. Rugosidade que mais tarde serviu de base para a Estrada de Ferro São Paulo Railway, esta rota, sugerida por vários historiadores e antropólogos como trecho paulista do famoso Caminho do Peabiru 116, demandando para o interior do Paraguai e chegando à Bolívia (onde se converteria na Rota Estrada Inca), foi a base para o primeiro percurso dos portugueses para chegar ao planalto, trilha igualmente utilizada pelos padres jesuítas para se encarapitarem serra acima e fundar no sítio do que hoje é o Pátio do Colégio, no atual centro velho de São Paulo, o marco de origem da metrópole paulista. Topônimo tupi que significa porto antigo. Topônimo tupi que significa caminho forrado ou ainda caminho gramado amassado, uma referência ao pisoteamento constante que mantinha a trilha livre de adensamento arbóreo. 115 116 5 568 Outro elemento que facilitou a colonização lusitana através desta passagem natural, é que deixando para trás o do bordo do planalto comumente denominado de Serra do Mar, deixam de existir quaisquer obstáculos naturais de monta, evidência que transparece no percurso da antiga Estrada de Ferro São Paulo Railway (atualmente sob tutela da Companhia Metropolitana de Transportes Metropolitanos, a CPTM) na seção que se estende desde a vila de Paranapiacaba (ou Alto da Serra), localidade do município de Santo André, postada na crista do planalto 117, prosseguindo na direção da pauliceia. Como pode ser observado por qualquer passageiro faça uso deste ramal ainda hoje, e concordando com o diagnóstico de Caio PRADO JÚNIOR, ...nenhuma obra de arte de vulto, nenhum túnel, nenhum corte notável foi necessário. Tais são os motivos que fazem desta passagem, já muito antes da vida dos portugueses, um caminho predileto dos índios. A colonização europeia não fez mais que aproveitá-lo. E sua preferência se justifica (1998: 12/13). A fundação de São Paulo como posto avançado do povoamento português no interior da América do Sul, perdurando durante décadas como a localidade mais interiorana do Brasil colonial, foi, é evidente, alicerçada pela presença de numerosas etnias assentadas em largos trechos do planalto. Estas se apresentavam ao conquistador europeu como farto abastecedouro de força de trabalho, doravante predado até a exaustão. Contudo, novamente devemos ressalvar a ingerência dos fatores naturais. A instalação de uma guarda avançada em pleno planalto usufruiu uma particularidade ecológica de primeira linha: a existência 117 Paranapiacaba significa em tupi local de onde se pode ver o mar. 5 569 de um espaçoso descampado que somente a título excepcional, era interrompido por adensamentos arbóreos e florestas, peculiaridade que bem antes da colonização tinha, aliás, justificado a presença de aldeamentos indígenas neste ecótopo. No Século XVIII, o monge beneditino Frei Gaspar da MADRE DE DEUS, que se destacou pela devoção por dissertações nobiliárquicas, contendas eclesiásticas, notas sobre o cotidiano brasileiro e por ter empreendido um dos primeiros rudimentos historiográficos da então Capitania de São Vicente, assim referiu-se ao território no qual foi assentado o núcleo inicial da metrópole paulista: Em cima da Serra de Paranapiacaba e debaixo do Trópico Austral 118, pouco mais ou menos, demora uma região deliciosa, a que os portugueses de princípio davam o nome de Campo, por distinção das terras de Beira-mar, que acharam cobertas de arvoredo muito alto quando aqui chegaram, e por isso diferentes daquelas mais vizinhas a São Paulo, as quais sem artifício não produzem árvores altas, senão em pequenos bosques distantes uns dos outros e dispersos por toda a campanha, a qual é um terreno desigual, cuja produção, espontânea e mais ordinária, consiste em feno e arbustos rasteiros: capões de mato, chamam no Brasil aos tais pequenos bosques. Pelo dito campo dos Antigos faz seu curso um Rio famoso, a que os títulos e cartas mais antigas dão o nome de Rio Grande e o de Anhambi as Sesmarias concedidas no princípio do século passado, e que hoje, todos vulgarmente denominam Tietê (1975: 119/120). Esta clareira, cortada por um rio de fluxo volumoso, conhecida desde antanho como Campos de Piratininga, resultou de um aluvião flúvio-lacustre de perfil argiloso, originando solos muito pobres. A área Referência ao Trópico de Capricórnio, que na RMSP, corta o Norte do atual município de São Paulo e também Guararema, Mogi das Cruzes, Itaquacetetuba, Guarulhos e Santana do Parnaíba. 118 5 570 que futuramente abrigaria a metrópole, de igual modo a numerosos outros compartimentos do planalto Atlântico, é geomorfologicamente um domínio dos “mares de morro”. Neste, ...rios e riachos possuíam cinturões meândricos ao centro de largas calhas aluviais. A planície por eles constituída era o seu próprio ‘leito maior’, espaço de reserva para o transbordamento das águas e sedimentos em transporte [...] nas várzeas, em face da sedimentação quase exclusivamente argilosa e da permanente hidratação, estendiam-se campos submersíveis, por lagos e tortuosos tratos de planícies. Somente nas bordas das planícies, encostadas a terraços e vertentes de colinas e morros, voltavam a existir matas e matinhas adaptadas a conviver em solos menos encharcados, aproveitando solos aluviais dotados de alguma mistura de partículas argilosas, sílticas e matéria orgânica (AB’SABER, 1996: 12). Embora de pouca valia para uma agricultura de vulto, este sítio aprumou-se como um privilegiado condensador demográfico para os novos colonizadores do território paulista. Recorde-se que de acordo com uma explicação do padre José de Anchieta, Piratininga significa peixe a secar ou seca-peixe, remetendo à oscilação dos fluxos do Tietê, que por efeito dos transbordamentos, deita os peixes fora e os expõe ao Sol inclemente, desidratando-os (Cf. SAMPAIO, 1914: 259). Cabalmente, esta denominação indígena nada mais infere do que as características da formação geológica da região, um largo depósito sedimentar vadeado por um grande rio, o Tietê, e os seus afluentes, que devido à fraca resistência de solos severamente desagregados, tinham curso modelado por uma profusão de meandros indolentes 119. A respeito das características e do comportamento dos meandros, vide PENTEADO (1983: 90/93). Relativamente à geomorfologia do sítio urbano de São Paulo, confira-se AB’SABER (2004: 91/101), CUSTÓDIO (2001: 58/67) e PELOGGIA (1998: 51/55). Quanto à ocupação das várzeas dos rios paulistanos e dos seus meandros, consultar 119 5 571 Dóceis à navegação, as águas serpenteantes deste rio foram um imperativo facilitador da ocupação territorial lusa. O Tietê, formava uma via natural de penetração para o interior do território, e de grande porte. Veja-se que em tupi, o topônimo Tietê significa rio caudaloso, de fluxo considerável 120, prontificando-se também como fonte de proteína animal (pesca). Para completar, o “promontório” localizado na planura de Piratininga na confluência dos rios Anhangabaú Tamanduateí 122, 121 e era por sua vez, encimado pela colina na qual seria fundada, no ano de 1554, a aldeia jesuítica (Vide Figura 38). Espaço hoje ocupado pelo centro velho de São Paulo, esta proeminência da topografia apresentou-se enquanto um elemento estratégico de considerável importância, aninhando a aldeia que mais tarde se transformaria no centro de uma gigantesca metrópole. Nas palavras do geógrafo Pierre MONBEIG, Dentre todas as colinas, os fundadores escolheram para o seu colégio as que dominam de um lado o Tamanduateí, de outro as barrancas do Anhangabaú. Em parte alguma a escarpa que se precipita sobre as várzeas é tão bem marcada. E em parte alguma parece haver tantas garantias de segurança (2004:120). Esta autêntica defesa natural, acastelada de modo a tutelar a investida de conquistadores decididos a se imporem como novos SEABRA (1987). 120 Cabe alertar para as crônicas do Século XVIII que dão conta ser o nome Tietê utilizado para designar o rio desde a nascente até a cidade de Salto, e, Anhembi, significando rio das anhumas ou das perdizes, desse ponto até a desembocadura no rio Paraná. Esta dualidade de nomes persistiu até por volta de meados do século XIX, quando então, firmou-se o nome Tietê para toda a extensão do rio (Ver também MADRE DE DEUS, 1975: 120). 121 O topônimo significa rio do malefício e da diabrura na língua tupi. 122 O topônimo significa rio com curvas ou rio de muitas voltas, isto é, meandros na língua tupi. 5 572 senhores de um território que lhes era soberanamente desconhecido e obviamente, hostil sob os mais diversos aspectos, tornou-se o berço de São Paulo, cujos primeiros passos se devem, portanto, a uma invulgar somatória de elementos geográficos, escorando nos tempos que se seguiram, uma indisputada supremacia espacial (AB’SABER, 2004a: 113/206; MONBEIG, 2004: 188/120 e PRADO JÚNIOR, 1998). FIGURA 38 - Esquema do espaço de assentamento de São Paulo de Piratininga: o número 1 assinala a localização estratégica do Colégio dos jesuítas e o número 2, a existência de um dos antigos atracadouros (atual Ladeira do Porto Geral), que no passado conectava São Paulo aos estabelecimentos do interior por via fluvial (Baseado em PRADO JÚNIOR, 1998) Este sítio marcou de modo indelével o imaginário paulistano. De fato, tão forte foi a marca desta localização espacial, que mesmo nos anos 1960 do século passado, a população da urbe ainda se referia a este espaço primordial como “cidade”, tanto em função da memória dos antigos limites do centro urbano de Piratininga, como também, pela longa persistência deste núcleo fundante como a cidade em si 5 573 até os finais do Século XIX, quando São Paulo passa a ganhar fôlego como grande metrópole (Figura 39). FIGURA 39 - Planta da cidade de São Paulo tal como cartografada pelo Capitão de Engenheiros Rufino J. Felizardo e Costa em 1810 e copiada pelas autoridades imperiais em 1841. Visivelmente, a cidade, quase três Séculos após a fundação, permanecia praticamente enquadrada na confluência dos rios Anhangabaú e Tamanduateí (MOURA, 1980: 16) Paralelamente, deixar de recordar que as informações sobre o piso territorial paulista foram amamentadas pela rica experiência das populações indígenas locais causaria justificada estranheza. Apenas os naturais da terra, veneráveis ocupantes ancestrais do território, dispunham de um conhecimento apurado da geografia local. Logo, se justifica o papel desempenhado pelos autóctones na indicação dos sítios urbanos no país, quase sempre decisivo para o sucesso da iniciativa. No essencial, porque o indígena era, acima de tudo, “um ser ecologicado e, portanto, capaz de uma seleção correta. Os colonos da primeira fase da colonização erravam frequentemente: 5 574 daí o abandono de muitos locais escolhidos em primeira mão” (SAIA, 1978: 237). O acesso a este cabedal de informações teve como background facilitador a atuação de João Ramalho, um degredado possivelmente lançado nas praias do litoral paulista por volta de 1515. Incorporado à sociedade indígena local, João Ramalho, tirando proveito de pactos e das relações de compadrio que cultivara, havia tomado conhecimento dos pormenores que caracterizavam a região. In totum, as crônicas do período colonial dão conta de frequentes perambulações do personagem, realizadas nas cumeadas da serra e do planalto. Esta experiência acumulada, repassada às novas vagas da colonização, influenciou as investidas lusas apoiadas na escalada da trilha indígena que galgando as encostas da serra, apontava para os campos de Piratininga como cenário nodal da ocupação do interior do território brasileiro. Decerto, na ausência desta instrução, a região do planalto não teria sido alcançada na prontidão como a história registrou, protelando assim o avanço rumo ao interior. A rápida ascensão rumo ao planalto e a consolidação da trilha que conduzia ao colégio dos jesuítas, influenciou amplo leque de desdobramentos. Tão logo fincaram os pés no planalto, os recémchegados relegaram o litoral, tirante localidades como São Vicente (fundada em 1532) e de Santos (em 1534), ambas com apreciável importância geoestratégica para a organização do espaço colonial, a um relativo abandono durante séculos. 5 575 A vida urbana na região seria reavivada tão só com a expansão metropolitana de Santos e pelos prazeres praianos dos metropolitas paulistas. Logo, apenas a partir dos anos 1950, mais de quatrocentos anos após os primeiros contatos lusitanos com a costa do estado, é que foi calçada a efetiva urbanização da porção paulista da costa atlântica (BORDO, 2005 e PRADO JÚNIOR, 1998). Além da negligência para com a orla marítima, o assentamento em Piratininga terminou induzindo o direcionamento de diversas rotas de expansão da colonização portuguesa. Acontece que este sítio, a Paulistarum Terra Mater, ocupa uma posição privilegiada: a cavaleiro de um ordenamento hidrográfico que terminaria por corporificar como um dos centros nodais de irradiação do povoamento colonial. Constituindo um viveiro natural de peixes e de numerosa fauna, em fonte de água para os rebanhos e em vários trechos, atapetado por solos de aluvião férteis para a agricultura, não haveria como dispensar a contribuição dos cursos d’água de Piratininga, a começar pelo Tietê. Coerentemente, até os finais do Século XVI, não era possível encontrar qualquer povoado planalto adentro que estivesse afastado das beiradas dos rios (Cf. PRADO JÚNIOR, 1998: 20/22). O rio Tietê e os seus afluentes, acessíveis por intermédio do Tamanduateí, cujo curso agasalhava a coxilha da altaneira aldeia jesuítica, representavam o que de melhor era oferecido pela natureza para a navegação e penetração rumo ao interior, inclusive com a Baixada Santista, que desfrutava, até o Século XIX, de ligação anfíbia com São Paulo através da aldeia de Pinheiros, da qual, por via fluvial, se alcançava Piratininga e Santos, pelo caminho terrestre. 5 576 Tendo por base o Tietê e os cursos tributários, os povoados, tanto do curso superior quanto do inferior do rio, conectavam-se à capital. Aliás, desde logo esta nímia malha fluvial motivou a instalação de atracadouros no espaço de Piratininga, o principal dos quais, situavase nas proximidades da atual rua Ladeira do Porto Geral, sítio no qual atracavam canoas, bergantins e barcos de porte médio, demandando dos aglomerados dos arredores da cidade ou de locais situados muito além do horizonte (LANGENBUCH, 1968: 33). Assinale-se que as movimentações bandeiristas foram, desde a segunda década do Século XVI, em grande parte tributárias da densa malha hidrográfica (Figura 40), por seu turno, regrada por um domínio orográfico especialíssimo, individualizado pelas dessimetrias planoaltimétricas do edifício geológico das terras do atual Estado de São Paulo, que opõem fisionomicamente uma vertente marítima confinada pelos robustos paredões rochosos da Serra do Mar aos espaçosos e monotonamente inclinados patamares planálticos que se estendem pelo alcantilado continental (AB’SABER, 2004a: 37). No tocante às rotas terrestres, a colonização avançou tendo por via primordial o Caminho do Mar, que desde cedo foi adotado como trajeto preferencial para quase todo o contato entre Piratininga e o Litoral. Tendo por suporte as cidades de São Paulo e Santos, ambas desde então formando um binômio inquebrantável, a trilha que as unia tornou-se desde os primeiros momentos do povoamento o eixo da organização espacial da colônia. Não sendo nada fácil transpor a Serra do Mar, que se impunha impiedosa entre o planalto paulista e o litoral, uma série de esforços 5 577 coroou o anseio em ligar estes dois pontos entre si. No ano de 1560, o governo português encarregou os jesuítas liderados por José de Anchieta de consolidar um caminho entre São Vicente e São Paulo. FIGURA 40 - Reprodução de fac-símile do Mapa de Dom Luiz de Céspedes Xeria, datado de 1628 (Fonte: TAUNAY, 1922). Este mapa, representativo do caráter matricial do curso do Tietê no segundo lustro do Século XVI, cujo original está tombado no Archivo General de Indias, em Sevilha (Espanha), retrata o trajeto fluvial do governador castelhano Cespedes de Xeria entre São Paulo (último ícone a Noroeste do mapa), até Guairá (atual Oeste do Paraná, último ícone a sudeste), região onde assumiu a representação do poder local do império espanhol. Lavrado durante a Era Filipina, o mapa traz indicações toponímias como a vila de sanpablo e o rio Anhemby, como então era corriqueiramente conhecido o rio Tietê. Escoando na direção dos extremos sul-americanos, os cursos d’água do Alto Tietê e os fluxos subsequentes a jusante foram esteio por excelência do bandeirismo e do ciclo das monções, em especial o caudaloso Tietê, em cujas nascentes fundou-se a cidadela de São Paulo, ou para ser mais exato, nas cabeceiras da rede fluvial, sítio que relativamente ao sistema hidrográfico do planalto, teve, desde os 5 578 primeiros momentos da colonização lusa, excepcional importância geoestratégica (PRADO JÚNIOR, 1998: 21). Em 1661, a Capitania de São Vicente começou a construir a Estrada do Mar e entre os anos 1790-1792, por ordem do governador Bernardo José Maria de Lorena, foi feita uma pavimentação deste trajeto com lajes de granito, passagem que terminou conhecida como Calçada de Lorena, mantendo trechos preservados até os dias de hoje. Mais adiante, a estrada da Maioridade ou do Vergueiro, aberta ao tráfego em 1844, aproveitava parcelas dos trajetos anteriores. A força inercial deste percurso repercutiu durante toda a história regional paulista: ainda no Século XX, aproveitando variáveis desta escarpa, seriam construídas a via Anchieta (1939/1947) e a rodovia dos Imigrantes, esta última inaugurada em 1976 e posteriormente duplicada em 2002. Além destas duas artérias, a de base terrestre (Caminho do Mar) e a fluvial (Tietê), mais quatro rotas surgiram nos Séculos XVI e XVII, motivadas pela busca de solos férteis para a agricultura, pastagens para os rebanhos, para a escravização dos indígenas e/ou a aventura do enriquecimento fácil, materializado em metais como o ouro e nas pedras preciosas. Uma grande passagem a Nordeste, passando por Mogi das Cruzes e Jacareí, foi aberta ligando São Paulo ao Vale do Paraíba, um segundo percurso, o Caminho dos Goitacazes, demandava na direção Norte, seguindo através de Jundiaí e Mogi Mirim atingindo os sertões do Triângulo mineiro e de Goiás; um terceiro caminho, ligava 5 579 São Paulo, através de Atibaia e de Bragança Paulista, com o Sul de Minas; finalmente a Oeste, uma artéria passou a ligar Piratininga com a região dos Campos de Sorocaba 123 e de Itapetininga 124, áreas forradas por um cerrado rarefeito que serviu de trampolim para que no início do Século XVII, fosse alcançada a região de Curitiba 125 (Figura 41). FIGURA 41 - Esquema do Binômio São Paulo-Santos e o “Bolsão” do Caaguaçu/São Bernardo (Baseado em PRADO JÚNIOR, 1998:30) Estas quatro rotas para o interior paulista não desprezavam as imposições da topografia, tomando por ponto de apoio varadouros e Topônimo tupi que significa terra rasgada, uma referência aos processos de ravinamento. 124 Topônimo tupi que significa vau ou passagem rasa que permite a travessia de um rio. 125 Topônimo tupi que significa pinhal, mata de pinheiros ou pinhões em abundância. 123 5 580 depressões que abriam caminhos naturais entre as serras e os mares de morros que dominam a paisagem do planalto adentro (Quanto aos mares de morro, consulte-se AB’SABER, 2003: 16/17). Relativamente ao que no futuro constituiria o ABC Paulista, os desdobramentos da opção por Piratininga e da rede de caminhos que se espraiaram a partir do núcleo jesuítico se fizeram sentir logo nos primeiros momentos da ocupação territorial, repercutindo ao longo das décadas e dos séculos que se seguiram. Um acontecimento associado a este direcionamento espacial foi o término do primeiro povoado instalado no planalto, no caso, Santo André da Borda do Campo. Aldeamento cuja exata localização é até hoje perpassada por controvérsias, Santo André foi fundado um ano antes de São Paulo (1553), com os préstimos de João Ramalho e dos seus liderados. Como o próprio topônimo informa, o sítio do vilarejo constituía uma área de transição, situada no limiar dos campos de Piratininga (a borda do campo), e da floresta pluvial peculiar aos domínios formados por terrenos graníticos e cristalinos que se sucedem a partir da crista da Serra do Mar (Vide PASSARELLI, 1990: 9/11) Reconheça-se que o sítio de Santo André da Borda do Campo, ao contrário do espaço no qual emerge o assentamento jesuíta, não dispunha de nenhuma defesa natural e para complicar, carecia de um rio de porte suficiente para manter a criação de gado e prover a população de peixe. Os reclamos dos habitantes de Santo André, 5 581 registrados em documentos da época, são bastante ilustrativos a este respeito. Por estas razões, o terceiro governador-geral do Brasil, Mem de Sá, ordenou em 1560 a evacuação de Santo André e o deslocamento dos seus habitantes para Piratininga. Foram motivações de ordem espacial e geográfica, bem mais taxativas do que as presumidas querelas mantidas por João Ramalho com os jesuítas do colégio de Piratininga 126, que justificaram a desaparição do primeiro aldeamento localizado no planalto, em terras nas quais futuramente se expandiria o Grande ABC. Uma segunda ordem de influências relaciona-se ao que se pode inferir da análise da Figura 41. Objetivamente, a abertura de artérias irradiantes a partir do burgo paulista não favorecia um crescimento concêntrico da cidade, nem dos seus arredores. Como seria possível observar, ...através de toda a história colonial da capitania, São Paulo ocupa o centro do sistema de comunicações do planalto. Todos os caminhos, fluviais ou terrestres, que cortam o território paulista vão dar nele e nele se articulam. O contato entre as diferentes regiões povoadas e colonizadas se faz necessariamente pela capital. O intercâmbio direto é impossível (PRADO JÚNIOR, 1998: 27/28). A organização dos caminhos com meão em São Paulo induziu uma expansão alveolar, sustentada por uma expansão dendrítica, como se tratasse de uma mão espalmada com centro firmado em São Paulo. Mais facilmente do que os espaços dispersos nas adjacências Algumas fontes historiográficas indicam que João Ramalho seria um marrano, isto é, judeu oculto. Neste aferimento, esposaria contrariedades relativamente ao catolicismo institucional, sendo na época um dos seus mais poderosos braços, a atuação do Tribunal do Santo Ofício, a Inquisição. Contudo, esta pontuação segue controversa, aguardando pesquisas históricas mais aprofundadas. 126 5 582 da futura metrópole, foram as regiões situadas ao longe, todavia assentadas na rede de artérias com marco inicial em Piratininga, as primeiras a serem bafejadas com as anuências e benesses que se irradiavam a partir da cidade. Como recorda Caio PRADO JÚNIOR: O território de São Paulo se povoou, e a sua estrutura geo-humana ainda reflete muito bem um tal fato, em faixas radiantes. Não se difundiu por contiguidade e por anéis concêntricos; nem as populações que o ocupam enxamearam por ele ao acaso de circunstâncias locais favoráveis. A distribuição do povoamento se fez de acordo com uma regra que tem sido até hoje invariável, e que consiste numa progressão, a partir de um centro, que é justamente a região ocupada pela capital, por linhas que penetram o interior em várias direções. Tais linhas representam, o papel de eixos em torno dos quais se agrupou a população; esta ficou assim distribuída em faixas mais ou menos largas que se irradiam de um centro comum: precisamente a capital. Faixas tão nitidamente diferenciadas que se conservam até hoje, apesar de todo o progresso das comunicações, quase independentes entre si; entre elas medeiam ainda os espaços vazios, às vezes perfeitos desertos humanos. São a configuração do território paulista e a ação de outros fatores naturais os grandes responsáveis por tão curiosa estrutura demográfica (1998: 42/43). A consequência mais resiliente desta invectiva séculos afora, é que o espaço concernente ao futuro Grande ABC seria perfilado como um dos inumeráveis “desertos humanos” que afloraram nos arredores dos campos de Piratininga, uma herança geoespacial diretamente condicionada pela organização das comunicações na nova colônia. Os espaços delimitados pelas vias de acesso então abertas rumo ao interior do planalto prefiguraram verdadeiros “bolsões”, espaços em maior ou menor grau marginalizados e/ou ignorados pela cidadela 5 583 paulistana, somente mais tardiamente englobadas pela dinâmica de crescimento da metrópole. Correspondendo a uma destas áreas, o Caaguaçu, até a primeira metade do Século XIX, designava o curso médio e superior do rio Tamanduateí. Topônimo de origem indígena, Caaguaçu significa no léxico tupi, mato cerrado, denso, fechado ou virgem, denominação apropriada para um território apoderado por um bioma mais adiante cientificamente classificado como mata atlântica. Espacialmente, o topônimo Caaguaçu refere-se a trechos do que hoje é conhecido como Grande ABC Paulista, formando um bairro rural 127 que abrangia os atuais municípios de Ribeirão Pires, Mauá, parte de Santo André e frações da zona leste da capital paulista. Outro destes espaços correspondia ao bairro de São Bernardo, compreendendo os municípios de São Bernardo do Campo, Santo André, Diadema, São Caetano e parte da zona sul de São Paulo (Ver a respeito MARQUES, 1996: 16/17). Estas duas entidades territoriais, o Caaguaçu e São Bernardo, delimitavam em linhas gerais o território do futuro ABC Paulista. A região, circundada a Sudeste pela crista da Serra de Paranapiacaba, era o nascedouro de múltiplos córregos e flumes, uma densa rede fluvial com escoadouro no vale do Tietê. O conceito de bairro rural ultrapassa o designativo puramente territorial de lugar, se caracterizando por um segundo elemento, “o sentimento de localidade existente nos seus moradores, e cuja formação depende não apenas da posição geográfica, mas também do intercâmbio entre as famílias e as pessoas, vestindo por assim dizer o esqueleto topográfico” (CANDIDO, 1977: 64/65). Recorde-se que a noção de bairro nas metrópoles fundamenta-se por outras conotações, muitas vezes consistindo mais num discurso ou demarcação imobiliária, do que uma espacialidade provida de paramentos identitários, históricos e/ou culturais (passim SEABRA, 2003). 127 5 584 Subalternizados enquanto bairros periféricos do assentamento de São Paulo, as áreas do Caaguaçu/São Bernardo, compartilhando de igual sorte a outros “bolsões” intercalados à rede de comunicações, quedaram em silencioso isolamento durante mais de trezentos anos. Integrado no universo da cultura tradicional que identificava o estilo de vida predominante nas terras paulistas, o Caaguaçu/São Bernardo manteve uma população esparsa e pouco representativa, somente em décadas mais recentes acordando para uma efetiva vida urbana, perpassada por dinamismos metropolitanos. À guisa de conclusão desse raciocínio pode-se perceber que foi antes da geografia, do que a despeito desta, que a metrópole paulista engatinhou, avançando em largas passadas rumo a uma inconteste primazia de um espaço luminoso. Foi dos caprichosos meandros dos rios que rodeiam a urbe, que se obtinha peixe para a alimentação dos citadinos, areia e pedregulho para a construção da cidade, argila para a taipa de pilão. Quanto à facilitação dos deslocamentos promovidos por via hidrográfica, quem poderia discordar da importância da malha fluvial das cabeceiras do Tietê para a grandeza da futura metrópole? De modo irretorquível, foi do curso dos rios planálticos que São Paulo se valeu para articular a hegemonia no espaço paulista e mais adiante, numa interminável extensão de territórios, terras até então da coroa de Espanha por obra e graça do Tratado de Tordesilhas, que consoante à avulsa atuação bandeirante (non ducor duco: não sou conduzido, conduzo), passaram a integrar o espaço luso-brasileiro. A despeito de certa “rusticidade” do ponto de apoio corporificado em Piratininga, a clareza de que a trama fluvial poderia espaldar as 5 585 deambulações dos sertanistas, foi a pedra de toque a permitir que os paulistanos encetassem marchas e trajetos do planalto na direção de espaços imensamente desconhecidos, razzias perigosas, exaustivas e desafiantes, que com a passagem do tempo, acarretaram incisivas alterações na jurisdição territorial brasileira e sul-americana (Figura 42). FIGURA 42 - O Mapa digitalizado acima, excerto de “Ensaio de Carta Geral das Bandeiras Paulistas” de Afonso Taunay, é uma das representações cartográficas da expansão da Capitania de São Paulo, no caso, adotando 1709 como ano-base, ápice da jurisdição territorial (TAUNAY, 1952: 3) 5 586 Portanto, nada mais incorreto do que marginalizar o caráter central da rede hídrica presente no espaço no qual a futura metrópole foi erguida, como gênese dos hodiernos infortúnios que a acometem. Visivelmente percebe-se que: Os rios propiciam condições para o surgimento da cidade em um primeiro momento. Depois a cidade o negligencia, estabelecendo uma relação não harmônica entre eles. Se observarmos o caso da cidade de São Paulo e seu relacionamento com seus rios, veremos um grande descaso e um convívio conflituoso com o meio ambiente. Ele é visto somente como suporte e insumo de trabalho, como fonte inesgotável de vida. Ao referir-se, atualmente, aos principais rios da cidade, Tietê, Pinheiros e Tamanduateí, pode-se ligá-los a questões como enchentes, mau cheiro, poluição, produtos expressivos da falta de planejamento ambiental (Vide FERREIRA e FRANCISCO, 2003: 89). Esta observação suscitaria enfim outra interrogação, direcionada num sentido inverso à colocação que está em pauta. Entendendo-se que a hidrografia no passado respaldou sucessão notável de eventos significantes, restaria aquilatar o que foi reservado a este patrimônio natural para que este, tornasse possível a irrupção de um cenário tão desabonador quanto ao que atualmente observamos. É assim que repensando a própria forma de entender a questão hídrica e urbana da RMSP, podemos aquilatar o papel da geografia, fundamental para que por sua vez, seja permitido melhor avaliar o papel do Grande ABC na realidade urbana materializada pela região metropolitana. O que sugere um mergulho no tempo e no espaço da região. 5 587 CAPÍTULO 11 O GRANDE ABC E A QUESTÃO DOS MANANCIAIS 11.1. O GRANDE ABC NO CONTEXTO DA RMSP A tranquilidade que grassava no que atualmente é o vibrante ABC Paulista, encontrou rápido seu ocaso nos meados do Século XIX. O velho “bolsão” do Caaguaçu/São Bernardo, até então um reduto do universo tradicional paulista, foi revolucionado por modalidades de territorialização irrefreáveis e contundentes, que impuseram à região, mudanças dificilmente previsíveis para o imaginário social da época. Paralelamente aos efeitos da urbanização que se difundia no torrão paulista oitocentista a partir da cidade de São Paulo, dois grandes empreendimentos, vinculados organicamente à dinâmica de reprodução territorial do espaço paulista, marcaram indelevelmente a história do Grande ABC. Estas duas obras, a ferrovia e a represa, em qualquer interpretação da história moderna do RMSP, transparecem enquanto marcos icônicos da metamorfose do espaço rumo a formas cada vez mais consagradas à artificialidade, protagonismo que ambas as obras endossaram de modo irretorquível. O primeiro destes empreendimentos marcantes, a ferrovia São Paulo Railway (SPR), ou então, “a ingleza”, tal como passou a ser reconhecida na voz do povo, entrou em operação em 1867, sendo nacionalizada pelo presidente Eurico Gaspar Dutra em 1946, alguns 5 588 anos antes do final da concessão sob titularidade britânica, quando então, passa a ser vinculada ao governo federal sob a razão social de Estrada de Ferro Santos-Jundiaí (EFSJ). Esta via-férrea, iniciativa originalmente esboçada por Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá, foi a quinta do país e a primeira a atravessar o torrão paulista, abrindo de vez o planalto para o mundo exterior. No final do Século XX, este trecho do caminho de ferro, tornandose um ramal metropolitano, passou a ser gerenciado pela Companhia Paulista de Trens Metropolitanos, empresa instituída pela Lei Paulista n°. 7.861, de 28/05/1992, com o mandato de explorar, honrando o artigo n°. 158 da Constituição Federal (1988), a prestação de serviços de transporte de passageiros sobre trilhos, na ambitude da região metropolitana e aglomerações urbanas. Acelerando diversas transformações econômicas, a construção e entrada em funcionamento da SPR são essenciais para compreender diversos aspectos da organização espacial do atual Grande ABC Paulista (PASSARELLI, 1993a e 1993b). Cortando ao meio o território dos bairros do Caaguaçu, de São Bernardo e imediações, através desta via de comunicação, a região foi convocada a contribuir para a fruição da riqueza cafeeira, que escoava do centro do planalto para Santos, e deste porto, rumando para o ultramar (Vide Figura 43). De um ponto de vista social, cultural e geográfico, a São Paulo Railway tornou-se um fator de transformação irreversível do espaço do Caaguaçu. Quanto ao custo ambiental da obra, que na época não era computado, foi devastador em todas as letras. A estrada de ferro, antecipando o que estaria por vir, “rasgou matas e campos com um 5 589 volume de destruição inédito até aquele momento na história do Grande ABC” (HERNANDES, 1991: 19). FIGURA 43 - Mapa do Trajeto da Estrada de Ferro Santos a Jundiaí (Fonte: < http://www.lib.unb.ca/archives/ketchum/santos_sp_railway.html >, escala aproximada 1: 470.000, acesso: 10-04-2005) A segunda obra de impacto foi a construção da represa Billings e a implantação do aparato logístico-energético voltado para mantê-la, 5 590 objeto hidrotécnico que mais do que qualquer outro, inscreveu a região na problemática dos recursos hídricos na RMSP. Importa sublinhar que o Sistema Billings, estendendo-se por seis dos atuais sete municípios do Grande ABC, guarda a maior reserva de água doce da região metropolitana. Implantado no início do século passado com o fito de fornecer água e energia para a nascente metrópole paulista, o eixo desse sistema é um vasto reservatório com 127,5 km² de área inundada, captando as águas de uma bacia com 582,8 km² e armazenando, quando da sua inauguração, 1,23 bilhão de m³ de água potabilizável. Longe de significar um objeto espacial de interesse meramente local, a Billings, em razão do seu vulto, foi crescentemente indexada às dinâmicas de atendimento por água potável pela metrópole. Hoje, as águas do reservatório, distantes de interagirem unicamente com a realidade local, se imiscuem, através de interligações e de outros sucedâneos técnicos, a um complexo sistema montado e monitorado pela SABESP. Tecnicamente, por meio de ajustes hidrotécnicos, a represa está acoplada ao reservatório Guarapiranga e também ao sistema Cotia. No mais, na dependência de variáveis conjunturais, as águas da Billings escoam pelo conjunto da RMSP, fazendo com que esta obra detenha indiscutível protagonismo metropolitano. É também manifesto que poucas problemáticas ambientais no Brasil alcançaram, ao longo das últimas quatro décadas, tamanha projeção quanto a que diz respeito à depredação as águas e dos 5 591 mananciais do reservatório da represa Billings. Afirmação que não está sujeita a qualquer tipo de contestação, a represa Billings constitui a mais antiga e documentada injúria envolvendo o achincalhe de um corpo aquático no território brasileiro (Cf. HERNANDES, 1991). Independentemente da escassa sensibilidade dos governantes, a insistente mobilização dos ambientalistas locais logrou transformar a problemática da represa Billings num assunto nacional, marcado por intensa notabilidade. A visão do esgoto in natura despejado nas suas águas, a eutrofização da massa líquida e a contínua mortandade de peixes, efeito mais claro da incúria dos gestores públicos e privados (Figura 44), conquistaram espaço no noticiário da grande imprensa e das cadeias de televisão em todo o país. Esta iconografia perturbadora tornou-se o símbolo mais acabado da negligência dos grandes interesses pela questão ambiental, assim como da omissão dos poderes constituídos. Por outro lado, o tema se tornou ainda mais dilacerante pelo fato da RMSP defrontar-se numa escala crescente com ameaças cada vez mais próximas de falta de água, desventura esta que se desenrola ao mesmo tempo em que a metrópole goza da proximidade de uma imensa massa líquida, qual seja, a própria Billings. No que serviria de alerta para as demais áreas metropolitanas, a RMSP, a mais açodada de todas pelo fantasma das torneiras secas, confere a um quadro de rarefação de um recurso básico, a água, que poderia prognosticar uma futura repetição deste cenário nas demais grandes cidades brasileiras, daí a preocupação com o destino deste reservatório e a exigência de conhecermos as origens do problema. 5 592 FIGURA 44 - Cartaz de Divulgação do Seminário Viva a Billings Viva 1992 (Fonte: Arquivo do Seminário Viva a Billings Viva, 29 e 30 de agosto de 1992) 5 593 Tal compreensão solicitaria primeiramente a pontuação de dados da geografia local. Pondere-se que a calmaria que reinava nas terras ainda largamente despovoadas do Grande ABC em pleno Século XIX, não correspondia aos dinamismos que animavam a vida concreta dos habitantes da futura metrópole. Entre a primeira e a quarta década do século passado, com a expansão da lavoura cafeeira e as profundas alterações decorrentes de mudanças sociais, culturais, econômicas e políticas, São Paulo ingressara numa espiral de crescimento que se acelerou com uma rapidez jamais vista no país. Neste período, reconhecido na sondagem cirúrgica do geógrafo Juergen Richard LANGENBUCH como o início da metropolização (1968), a cidade de São Paulo, a metrópole do café, transformara-se, na expressão de Pierre MONBEIG, na capital dos fazendeiros (2004). Em meados dos anos cinquenta, quando a cidade estava prestes a comemorar quase nove décadas de ligação ferroviária com o litoral, em nada sua fisionomia poderia lembrar a tecedura do espaço urbano precedente da Piratininga de outrora (Figura 45). Como seria previsível em qualquer análise dedicada ao estudo do dinamismo urbano da cidadela paulista, mais cedo ou mais tarde não haveria como o ABC furtar-se do torvelinho de transformações que se agigantava mais e mais, engolfando todo o ESP. Esta progressão foi a princípio muito lenta. Entre os Séculos XVII e XIX, a vida na região gravitava em torno de vilarejos e das capelas erguidas na região, que respaldavam um mínimo de sociabilidade e 5 594 institucionalidade a um nexo espacial disperso, pouco tocado por contatos externos ou por uma vida urbana mais plena. Os bairros do Caaguaçu e de São Bernardo, compunham circunscrições espaciais magnetizadas por igrejas e capelas, do mesmo modo que mais tarde, os subúrbios gravitariam em torno das estações de trem (MARQUES, 1996: 18). FIGURA 45 - São Paulo dos anos 1950: Vista da Praça Ramos de Azevedo (Fonte: Cartões Publicitários da Editora Melhoramentos, 2002, in Boletim AGB Informa, nº. 81, I Semestre de 2003) No Século XVIII, monges beneditinos fundaram duas fazendas, São Caetano e São Bernardo, sendo que mais adiante, estes dois estabelecimentos agrícolas serviram de base para a criação de novos núcleos coloniais apoiados pela ferrovia (1877), dos quais o de São Bernardo passou a ser conhecido como Santo André. 5 595 A chegada dos trilhos do trem, e com eles, da industrialização, permitiu que por volta dos anos 1920, se fizesse sentir determinado adensamento demográfico. Simultaneamente, a imigração europeia (principalmente italianos), de contingentes de asiáticos (japoneses) e os deslocamentos demográficos internos ao Brasil, contribuíram para alentar o breakdown do tecido sociocultural da sociedade tradicional que até então, reinara de modo inconteste nas velhas paragens do Caaguaçu (KUVASNEY, 1996: 28 et seq; PASSARELLI, 1990: 18/24). Porém, bem mais do que meramente desformar o tecido cultural tradicional, submergindo o contingente de povoadores enraizado na história colonial com levas sucessivas de europeus, asiáticos e outros conterrâneos brasileiros, a chegada de ferrovia funcionou como um fator decisivo para a organização de um novo arranjo espacial. Uma consequência importante provocada pela implantação do transporte ferroviário foi a derrocada do sistema tradicional apoiado nas tropas de muares, onipresente no espaço paulista (e também em grande parte do país), praticamente desde o início da colonização, que é claro, não tinha nenhuma condição de competir com o meio de circulação recém-introduzido: O contraste entre o sistema arcaico e o novo era muito mais acentuado do que aquele verificado na Europa e nos Estados Unidos, onde as ferrovias sucederam às diligências, que circulavam por estradas razoáveis ou mesmo boas. No entanto, mesmo as diligências não conseguiram fazer frente ao trem de ferro; que dizer então de nossas tropas de burro e de nossos precários caminhos! (LANGENBUCH, 1968: 142). 5 596 Adiante-se que não se tratou somente da substituição de um sistema de transporte por outro. As tropas de burros e as ferrovias subentendiam modos absolutamente diferentes de enraizamento territorial, declinando numa apropriação diferenciada dos fatores do relevo e da topografia. Por exemplo, contrariamente aos caminhos das tropas, a ferrovia manifestou desde cedo decidida preferência pelas várzeas, em vista da facilidade oferecida por estes terrenos para traçados retilíneos, assim como para que as composições ferroviárias alcançassem a velocidade desejada e igualmente, pelos custos menores requisitados para construir e desapropriar terrenos. Assim, rota ferroviária se expandiu ignorando a antiga malha das comunicações tecida pelas tropas de burros, esgarçando tout cour, o arranjo espacial preexistente (Cf. DEFFONTAINES, 2004: 128). Na sequência a esta lógica, é compreensível que as estradas de ferro tenham identicamente, desprezado a totalidade dos aglomerados da circunvizinhança paulistana, também definido como “cinturão caipira” (LANGENBUCH, 1968). Exemplificando, no Caaguaçu/São Bernardo a implantação da Estrada de Ferro São Paulo Railway se sustentou mediante a plotagem de estações cuja origem foi exclusivamente determinada pelas exigências do sistema ferroviário enquanto tal, e não devido à organização territorial precedente. A honrosa exceção a esta regra, o povoado de Rio Grande (atualmente a cidade de Rio Grande da Serra) tratou-se de caso absolutamente excepcional. Este núcleo urbano foi atingido por acaso pela linha do trem simplesmente em 5 597 razão de estar localizado no traçado previamente proposto pela equipe de engenharia da ferrovia (Cf. LAGENBUCH, 1968: 145). Para arrematar, a implantação da ferrovia condiz com a máxima de que ela impõe, em parceria com os trilhos, o triunfo de uma nova leitura do tempo, explicitamente moderna, suplantando a velha ordem tradicional. No estado de São Paulo, a marca deixada pelas estradas de ferro no espaço geográfico foi de tal monta, que estas lograram criar uma “consciência ferroviária”, pela qual as regiões atravessadas por este modal de comunicação passaram a ser geograficamente reconhecidas por intermédio dos nomes das linhas que as serviam (SOUZA, 1985: 5). Portanto, não seria de se admirar que o velho Caaguaçu/São Bernardo passasse a ser magnetizado pela ferrovia. Entre os Séculos XVI e XIX, esta região tivera sua vida social regulamentada pelo trote dos cascos dos muares, pela sequência das atividades da agricultura de subsistência e por uma sociabilidade perpassada pelas injunções do catolicismo rural paulista, cujos centros de gravitação estavam, conforme registrado, centralizado nas capelanias espalhadas no seu território. Mas, tudo isto foi alterado para sempre, deixando quando muito um ou outro resquício fugidio no imaginário espacial local, nem sempre subserviente aos processos de reinvenção do passado do Caaguaçu. As estações da Luz e de Paranapiacaba, exibindo magníficos relógios, testificam a anexação da beirada planaltina pelo tempo linear e pelos novos ritmos que passam a ordenar a territorialização do espaço. A parada do trem é o espaço em que a indústria alavanca 5 598 processos que futuramente viriam constituir o ABC Paulista, e com esta, toda sorte de mudanças sociais, políticas e econômicas (Cf. KUVASNEY, 1996: 4 et seq). Com efeito, a fisionomia original do que antes era conhecido como os bairros do Caaguaçu e de São Bernardo foi transfigurada nos mais diversos sentidos. Na quinta década do século passado, o geógrafo Pierre MONBEIG captou este dinamismo urbano-fabril que animava o ABC Paulista, rechaçando os remanescentes da sociedade tradicional para as áreas mais recuadas da região: Ao longo da via-férrea, o desenvolvimento do Parque da Moóca e de Vila Prudente [na capital paulista] atingiu a aldeia de São Caetano. Foi lá que nasceu um foco de subúrbio industrial, que dá à aglomeração paulista o seu caráter de cidade industrial. São Caetano, Santo André, com seu bairro de Utinga, foram revigorados pelo parque industrial. Se acrescentarmos São Bernardo, teremos três municípios com respectivamente 20.075, 98.313 e 55.797 habitantes, segundo o censo de 1950. O contraste é vivo entre a atividade dessas cidades fervilhantes, o ruído das fábricas, dos trens e dos caminhões com o arcaísmo de seus campos e de suas florestas, de onde o elemento caboclo ainda não desapareceu completamente (2004: 139). Nesta progressão, à medida que a região passou a ser granjeada de maior complexidade social, cotidiano local passou a ser encorpado por uma série inédita de mobilizações sociais, nas quais a liderança coube à nascente e impetuosa classe operária local. A greve geral de 1917, cujo epicentro foi a capital paulista, recebeu o apoio decidido de diversas categorias profissionais do ABC. 5 599 Na demarcação da atual divisão territorial, este movimento foi apoiado, desde o primeiro momento, pelos trabalhadores das olarias de Santo André, das carpintarias de São Bernardo, das fábricas de peças de São Caetano e das pedreiras e instalações de cantaria de Ribeirão Pires, na ocasião, um mobilizado centro de aspirações do proletariado paulista (Figura 46). O nível de organização do operariado permitiu que Santo André elegesse no ano de 1947, sob a legenda do Partido Social Trabalhista (PST), o primeiro prefeito comunista do Brasil, o veterano militante sindical Armando Mazzo (1923-1990), acompanhado de uma robusta bancada formada por treze vereadores. Embora a posse do prefeito e dos vereadores comunistas tenha sido impugnada por uma manobra cartorial da elite local, o fato é em si mesmo, um testemunho eloquente do grau de complexidade que haviam alcançado as relações sociais na região, antes um simplório domínio da agricultura de subsistência (Vide KUVASNEY, 1996 e MARQUES, 1996). Dessarte, embora poucas décadas antes a região estivesse amplamente coberta por matas e pouco alterada pelo homem, em meados do século passado a transformação do antigo “deserto” (para apelarmos para terminologia da pena de Caio Prado Júnior), estava por demais evidente. Nada mais no Grande ABC evocava o espaço de outrora. Principalmente dos anos 1950 em diante, iniciaram-se tempos regidos pelo motto emblemático São Paulo não pode parar. 6 600 FIGURA 46 - Senhor Mário, trabalhador do granito: Na foto, um dos trabalhadores remanescentes das cantarias de Ribeirão Pires. Nas duas primeiras décadas do século passado, o Sindicato dos Canteiros de Ribeirão Pires era a principal organização operária no que hoje é o ABC paulista (MARQUES, 1996). A exploração das pedreiras garantiu o calçamento de muitas das ruas da capital, e a construção de obras como a Catedral da Sé, em São Paulo. Atualmente esta atividade reúne poucos trabalhadores autônomos. O Sr Mário, migrante nordestino, opera no bairro do Tecelão (Norte de Ribeirão Pires) cortando paralelepípedos bem próximo da Pedra do Elefante. Abordado sobre seu ofício, informou: “Ainda tem muita pedra para cortar. Mas tem pouca gente nisso. Um pouquinho aqui em Ribeirão Pires, outro pouquinho em Mauá. Mas enquanto estiver vivo vou continuar a cortar granito” (Foto: Maurício Waldman, maio de 2005) 6 601 Este slogan, publicizado à exaustão como bordão durante os festejos do IV centenário da capital paulista, no ano de 1954, refletia um dinamismo urbano que repercutiu em todos os municípios do entorno, materializando-se no que é hoje conhecido como RMSP. Retratando uma tendência que se acelerava cada vez mais, a urbanização, alavancada pela estrada de ferro, progredia em parceria com o trajeto do trem, fazendo surgir novos subúrbios onde antes “tinha só mato” 128. Em toda a região pipocaram loteamentos, sinal de um processo de valorização fundiária que justificaria a argumentação pela qual a propriedade urbana valoriza-se no próprio processo de produção da cidade (SEABRA, 1987: 19). A partir deste movimento é que podemos melhor compreender o surgimento das novas circunscrições espaciais que hoje formam o Grande ABC Paulista. O que se conhece como “ABC” pertencera até os anos cinquenta a um único e extenso município, o de Santo André da Borda do Campo. Significativamente, entre 1945/1963, no momento em que se estruturava a metrópole paulista, desmembraram-se deste município, direta ou indiretamente, nada menos do que seis municipalidades: as de São Bernardo do Campo (desmembrado em 1945), São Caetano do Sul (1948), Mauá e Ribeirão Pires (1953), Diadema (1958) e Rio Grande da Serra (1963). Esta expressão, que suscita objeções no prisma da defesa do meio ambiente, continua, no entanto, a frequentar o discurso de inúmeros segmentos sociais, demonstrando o quanto a oposição entre cidade e meio natural foi instituída não só no plano vocabular como igualmente, no do imaginário. Nesta envergadura, o termo clarifica quanto à conexão existente entre as paisagens mentais e as físicas, em particular, no ímpeto propulsante das primeiras relativamente às segundas, o que revela sua índole enquanto fator de modelagem do espaço. 128 6 602 Emblematicamente, não é fortuito que a alcunha “ABC” tenha se banalizado nos anos 1950. Em busca de uma identidade territorial e política, grupos hegemônicos locais manipularam esta denominação como denotativa de uma nova identidade econômica responsável por sua articulação (a industrialização), sendo seu objetivo, ao expressar que os municípios formavam uma região distinta, manifestar o desejo de diferenciá-los da metrópole que os engolia, que neste dinamismo, “periferializava” o antigo subúrbio (KUVASNEY, 1996: 1 e 67/68). Isto posto, a fragmentação em vários municípios não quebrou o sentimento identitário que visivelmente marca a percepção local. A população do ABC como um todo continuou a entender a totalidade dos municípios como pertencentes a um mesmo conjunto. A título de comparação, pode-se colocar em pauta que na RMSP, os desmembramentos ocorridos em Itapecerica da Serra (gerando quatro municípios) e em Mogi das Cruzes (formando outros cinco), não foram acompanhados de quaisquer persistências associadas a uma identidade regional. O mesmo pode ser dito quanto a outros casos de emancipações ocorridas das adjacências paulistanas, esfacelamento que não deixou em seu rastro mais do que uma mera recordação desprovida de significado mais intenso (Vide LANGENBUCH, 1968: 337/338). Mais interessante ainda, é perceber a cooptação deste imaginário pelo próprio operariado. Afinal, nos anos 1980 passa a emergir a noção de um “sindicalismo do ABC”, parteiro mais adiante do que vira tornar-se o Partido dos Trabalhadores (PT). 6 603 Evidentemente, a noção de região se sustenta tanto por dados supraestruturais quanto infraestruturais (SANTOS, 1989: 14). Assim, o percepcionamento do Grande ABC como uma região, em paralelo aos laços culturais, históricos e geográficos, é alimentado por uma profunda articulação funcional e interdependência econômica, social e urbanística, recorte em que se notam evidentes sinais demonstrativos de uma relativa autonomia da sub-região no interior da GSP. Por exemplo, as sete prefeituras criaram em 1990, com o fito de articular a condução de políticas públicas integradas, o Consórcio Intermunicipal do Grande ABC; a maioria das associações de classe abarca total ou parcialmente a região e não exclusivamente uma cidade; Ceteris paribus, referências como o jornal Diário do Grande ABC, possuem indiscutível inserção regional; no plano da sociabilidade, é corriqueiro encontrarmos famílias e relações sociais disseminadas pelos municípios do Grande ABC Paulista, não sendo incomum que as pessoas morem, trabalhem e estudem em cidades diferentes da região, o mesmo acontecendo no plano político e econômico. Significativamente, pesquisa da Companhia do Metropolitano de São Paulo (Metrô), confirmava cerca de 72% dos deslocamentos nos anos 1990 ocorriam internamente ao Grande ABC. Plus: outro dado informa que na década seguinte, 90% dos deslocamentos passaram a ser realizados no interior da região (Cf. ZIOBER et PEREIRA, 1991: 96 e também, Plano Diretor de Ribeirão Pires, 2003: 17). 6 604 O conjunto formado pelos municípios do Grande ABC, também conhecido como Sete Cidades ou ABCDMR, forma nos dias de hoje a sub-região Sudeste da RMSP (Figura 47). No acrônimo ABCDMR, “A” representa Santo André, “B”, São Bernardo do Campo, “C”, São Caetano do Sul, “D”, Diadema, “M”, Mauá e “R”, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra. Quanto a ABC ou Grande ABC, dado que Santo André, São Bernardo do Campo e São Caetano correspondem aos três principais municípios, é fácil entender a origem da nomenclatura. FIGURA 47 - Mapa das sub-regiões da Região Metropolitana de São Paulo (Fonte: EMPLASA, 2004, escala aproximada 1: 697.000) De modo inquestionável, o conglomerado urbano formado por Santo André, São Bernardo do Campo, São Caetano do Sul, Diadema, Mauá, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra (Figura 48), posiciona-se enquanto um espaço detentor de enorme dinamismo político, econômico e social. A industrialização acelerada da região não só respalda este marco identitário como de fato dá início à decolagem econômica da região. 6 605 FIGURA 48 - As Sete Cidades ou Sete Municípios do Grande ABC Paulista (Fonte: < http://www.sehal.com.br/imagens/mapa.jpg >, escala aproximada 1: 182.857, acesso: 11-07-2005) No ESP, a região do Grande ABC é o conglomerado urbano mais importante após a Capital. Numa área dez mil vezes menor que a do Brasil, ita est, apenas 841 km², concentravam-se cerca de 2.500.000 pessoas (Vide Figura 49). Com base nesta informação, inferimos um índice de população relativa de 2.850 hab./km², bastante elevado sob o ponto de vista demográfico. O Grande ABC Paulista corresponde a 1,47% da população brasileira, concentração equivalente à de países como a Jamaica, Mongólia, Letônia ou o Kuwait 129. Dados demográficos obtidos no Population Reference Bureau, ano-base 2004, in < http://www.prb.org/ > (Acesso em: 13-06-2004) 129 6 606 FIGURA 49 - Área e População das Sete Cidades (Fonte: EMPLASA - Área e IBGE - População) Numa perspectiva econômica, a pujança regional fica evidente quando se sabe que o ABCDMR constitui o terceiro polo de consumo do país, com 2,18% do total nacional, superado apenas pela capital paulista, com 11,09%, e pelo Rio de Janeiro, 5,82% (FREITAS, 2004: 3). Atualmente, o PIB industrial do Grande ABC é de cerca de US$ 10 bilhões, correspondendo a cerca de 14% do PIB industrial do ESP e a aproximadamente 7% do PIB industrial brasileiro. De acordo com o Instituto Municipal de Ensino Superior (IMES), de São Caetano do Sul, a atividade das indústrias no ABC Paulista em 2004, seria equivalente à do Rio Grande do Sul, o quarto estado manufatureiro da federação. Fato comentado com indisfarçável orgulho pela influente classe média local, o Grande ABC Paulista exibe indicadores de padrão de 6 607 vida comparáveis ao Primeiro Mundo. São Caetano do Sul é, como se sabe, a cidade mais rica do Brasil e o bairro do Rudge Ramos, detêm a maior renda per capita do país. Como pode ser conferido na Figura 50, nenhuma das municipalidades do ABC, mesmo com diferenças marcantes de uma cidade para outra, apresenta baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). De resto, São Caetano do Sul detém o mais alto IDH do país e cidades como São Bernardo do Campo e Santo André, possuem IDH equivalente ao de países do porte da Polônia (34ª posição no ranking mundial). Outros dados consolidados pelo IMES, válidos para o ano de 2003, ilustram que no ABCDMR a geladeira está presente em 98,5% das residências; CD player em 94,2%; televisão em cores em 72,2%; máquina de lavar roupa em 65,7%; Vaporetto em 82%; DVD em 55,2%; e o forno de micro-ondas, em 64,2%. Poucas regiões do país poderiam superar estes scores, significativos mesmo na escala mundial. Historicamente, esta destacada posição resultou da implantação da indústria automobilística a partir da década de 1950, no exercício da administração do presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira (1956/1961). Graças a esta iniciativa, cidades como São Bernardo do Campo, considerada a “Detroit brasileira”, conquistaram visibilidade nacional, atraindo grandes contingentes de migrantes nordestinos. De modo patente, é recorrente no imaginário regional a introjeção da prosperidade econômica e do avanço industrial enquanto uma marca que a região incorpora dos mais diversos modos em seu cotidiano e na sua forma de ser. 6 608 FIGURA 50 - IDH dos municípios do Grande ABC. Adotado mundialmente, O IDH índice mensura a qualidade de vida, com base em médias aritméticas obtidas de três indicadores: esperança de vida ao nascer (longevidade), educação e renda. Variando de 0 a 1, o IDH é considerado baixo no intervalo 0-0,499; médio entre 0,500 e 0,799, e maior que 0,800, considerado alto. Sublinhe-se que no ano de 2005, o ESP possuía 645 municípios. Logo, no conjunto das Sete Cidades, os municípios de Mauá, Diadema e Rio Grande da Serra, são notavelmente dessimétricos relativamente a São Caetano do Sul, Santo André e São Bernardo do Campo, com Ribeirão Pires ocupando posição intermediária (Fonte: EMPLASA, 2004) Porém, a região não escapa do binômio crescimento e pobreza que marca o conjunto da sociedade urbana brasileira. O ABCDMR, em paralelo com a bonança econômica, explicita todos os clássicos sinais de degradação urbana, dentre estes, o comprometimento dos mananciais de água potável. O processo de urbanização incessante do ABC, alimentado por buliçosos movimentos migratórios, fomentou mais um episódio de metropolização acelerada, indissociável da lógica do dinamismo urbano brasileiro e da GSP em particular. Deste modo, a expansão urbana do ABC determinou impactos inevitáveis no Sistema Billings e no seu entorno, imprescindível para assegurar os ciclos hidrodinâmicos do reservatório. Nesse contexto, as dinâmicas urbanas do Grande ABC, materializando tendências que se repetem, mesmo que diferencialmente, no conjunto das cidades da sub-região, se apresentam, em virtude do pendor estrutural, como 6 609 das mais importantes para a questão dos recursos hídricos da região metropolitana. Outro aspecto, não menos importante, é que em termos do próprio ABC Paulista, a importância do Sistema Billings é acentuada pela precariedade do abastecimento fornecido pelas companhias de distribuição de água do ESP. Ao longo das últimas décadas, a subregião tem sido sazonalmente penalizada pelo racionamento de água, impondo em maior ou menor grau o impopular sistema de rodízio. Portanto, os 4 m³/s captados do braço Rio Grande da represa Billings (7% do abastecimento da RMSP), atendendo em primeira mão as demandas de São Bernardo do Campo, São Caetano do Sul e de Santo André, são indispensáveis para evitar um colapso no abastecimento regional do líquido. Certamente uma menção obrigatória caberia ao município de Santo André, um dos que no ESP, preservaram um serviço próprio de abastecimento. Trata-se do Serviço Municipal de Água e Saneamento de Santo André (SEMASA), autarquia municipal, pelo qual a cidade usufrui, embora em pequena escala, de serviços de água e esgoto prestados autonomamente. A água potável é na quase totalidade, fornecida pela SABESP (96%), sendo o restante obtido de pequenos mananciais situados no município (Cf. DANIEL, 2000). A SEMASA também opera a Estação de Tratamento de Água (ETA) de Guararã, com base na captação do manancial do Pedroso, localizado no interior do espaço urbano da cidade. Ainda que de pequena capacidade, Guararã atende entre 4% e 5% do consumo da 6 610 cidade, aporte fundamental em face da escassez hídrica da região. Ao mesmo tempo, os serviços prestados são insuficientes diante das necessidades objetivas da cidade (SEMASA, 1991: 33/35). Nestes marcos, não haveria como subalternizar a importância do reservatório Billings para o abastecimento da RMSP e do Grande ABC, mesmo porque a captação de água, não mais se restringe ao represamento do braço Rio Grande, “o reservatório do ABC”. Desde agosto de 2000, a Billings foi, através do braço Taquacetuba da represa, acoplada ao Sistema Guarapiranga. Assim sendo, as águas poluídas da represa, ao estarem interligadas ao Sistema Adutor Metropolitano, são objetivamente parte da estrutura de fornecimento de água para a metrópole paulista como um todo. Outro detalhe técnico relevante é que os efluentes da Billings, após serem diluídos no reservatório do rio das Pedras e passarem pelas turbinas da UHE de Henry Borden (ou Cubatão), são, a jusante desta instalação, captados para abastecer o município de Cubatão. Assim, a Billings, mesmo poluída e contaminada, tem concretamente se prontificado como um manancial de água, o qual, em razão de motivações técnicas e geográficas vitaminadas pela crise hídrica, reclama a recuperação do seu papel como reservatório voltado para matar a sede da metrópole paulista. Razão adicional para se acompanhar a trágica sucessão de eventos que conduziram à calamitosa situação que hoje está à vista de todos os metropolitas. 6 611 11.2. A ECOLOGIA POLÍTICA DOS MANANCIAIS Endossando premissa subliminar relacionada com a preservação das águas doces, insistentemente evocada no transcorrer desta tese, compreender a questão do monitoramento da represa Billings e da problemática dos seus mananciais não tem como ser dissociada da avaliação do verdadeiro emaranhado político, social e econômico que envolve, opõe e aglutina a opinião pública e as várias instâncias dos poderes públicos, atinentes à governança deste reservatório, ainda hoje o mais vasto e influente de toda a RMSP. Basicamente porque o conhecimento da forma como este lago artificial tem sido administrado, instrui relativamente às diretrizes que nortearam a elaboração das políticas públicas de gestão dos recursos hídricos na região metropolitana, as quais antecipamos, têm exaltado uma autêntica política de malbaratação deste capital ambiental. No final das contas, foi exatamente com o concurso desta lógica que as águas doces, tão abundantes no favorecido rincão planetário no qual está alojado o país, tem sido transformada, em soberba contradição com a oferta natural, num produto escasso, caro e de difícil obtenção. Sinteticamente, o aviltamento da Billings revela a existência de um leque de interesses que cimentou durante décadas, numa sólida aliança, as esferas do poder público e as empresas de produção de hidroeletricidade, aos insidiosos esquemas de endividamento externo e às grandes empreiteiras; estas, com as administrações de todos os níveis; e estas, por sua vez, com as expressões político-partidárias que agem em nível local, com sabidas conexões com a especulação 6 612 imobiliária. Este quadro, portanto, indica uma conjugação de óbices sociais, políticos e econômicos que para ir direto ao ponto, pouco ou nada comungariam com os ideários da justiça, da equidade e do zelo ecológico, mas que nem por isso, deixam de serem alardeados nas falas indiferenciadas dos atores políticos e partidários. Assim, a complexidade dos fatores em jogo na Bacia da Billings descarta qualquer leitura rápida e superficial. Discriminar aspectos pontuais, mesmo sendo razões relevantes para o comprometimento do perfil hidrológico da Billings, pode no máximo traçar um desenho nebuloso de um problema que é muito mais amplo. O que se coloca é a necessidade de decifrar uma gama articulada de questões e de interesses contraditórios, procedimento não só axial, mas igualmente essencial para compreender os calços objetivos que estaqueiam a problemática da represa Billings. Neste sentido, o histórico desse reservatório seria em si mesmo um dos mais gritantes alertas a respeito das dificuldades que uma perspectiva ambiental tem pela frente quando se contrapõe ao pragmatismo inconsequente e às triviais visões de curto prazo. Daí, a imperiosidade de resgatar uma sucessão de eventos que embalaram muitas vidas e expectativas, sejam estas conhecidas ou não. Evidentemente, em tempos nos quais a percepção é mutante devido à transitoriedade que habita o âmago do sistema, e deste modo, alterando rotineiramente o relacionamento dos humanos com o mundo, a problemática da represa Billings tem se metamorfoseado nas mais diversas acepções do termo. Esta questão, que terminou assimilando dados substancialmente diferentes dos que originaram 6 613 seu surgimento, em nada desvencilhariam das avaliações a interface pertinente à força inercial que esta portentosa massa de água impõe para os destinos da metrópole. Particularmente nos últimos anos, especialmente por conta da indignação quanto à depredação desmesurada dos seus mananciais, assim como pela premência da questão do abastecimento na RMSP como um todo, diversos segmentos sociais têm se somado a uma corrente de cidadãos cujo denominador comum é, acima de tudo, a preservação deste importante manancial de águas doces. Justamente por estas motivações é se torna prioritário antecipar, no tocante ao reservatório Billings e ao seu entorno, a apresentação de quatro premissas conceituais e políticas básicas. Estas seriam: 1. No referente ao gerenciamento das águas doces, uma vez que a RMSP é banhada exclusivamente pelo curso superior do rio Tietê e pelas nascentes responsáveis pelo seu fluxo, este contexto, frente às demandas da metrópole, sugeriria uma administração rigorosa de recursos hídricos exíguos. Nesta perspectiva, o atendimento das necessidades prioritárias de um meio urbano em contínua expansão (isto é, o abastecimento de água potável e fornecimento de energia elétrica), não poderia ser encaminhado dispensando uma utilização ótima e consorciada dos estoques de águas existentes. É também evidente que tal proposição não ofereceria, ao menos em princípio, qualquer dificuldade. No final das contas, a utilização da água para o abastecimento doméstico e para gerar energia é, em princípio, não-consuntiva. 6 614 Portanto, acatando este axioma, as duas destinações das águas doces deveriam estar apoiadas em metodologias para as quais, a conservação dos recursos hídricos seria uma preocupação central. Subsidiado por um plano coordenador comum e consignando um aproveitamento simultâneo das águas das bacias hidrográficas circunjacentes, seria possível requerer água para o abastecimento público e produzir energia sem prejuízo de nenhuma destas duas finalidades. Nesta lógica, a solvibilidade de um dos problemas, na ausência da resolução simultânea do outro, levaria o crescimento da cidade ao colapso, ou pelo mínimo, ao seu engastamento. Mas, “as águas na região de São Paulo foram utilizadas de acordo com as necessidades de cada setor, sem que houvesse uma política de ação coordenada” (RUTKOWSKI et OLIVEIRA, 1999: 39). 2. Outro aspecto, relativo ao universo conceitual, refere-se à definição espacial da bacia da represa Billings. A noção de bacia hidrográfica, correspondendo a uma área irrigada por um rio ou determinado sistema fluvial, tem sido extensivamente aceita em vista de tratar-se de uma unidade geomorfológica fundamental, sob cuja tutela, se pode apreender a dinâmica do fluxo superficial de uma rede de drenagem (CHRISTOFOLETTI, 1990). Por isso mesmo, o conceito de bacia hidrográfica tem sido assumido enquanto unidade territorial de suma importância para o planejamento integrado do manejo dos recursos hídricos e das atividades humanas relacionadas com o curso das águas fluviais. Outrossim, em anuência com o que será pormenorizado adiante, o 6 615 caso da Billings sugere que a valer, não estamos diante de uma bacia hidrográfica, ou em outras palavras, de uma rede de drenagem construída pela natureza. A bacia da represa Billings, criada a partir de objetos hidrotécnicos, resulta inequivocamente de uma volição antropogênica de primeiríssima grandeza, reportando a um leque de intervenções que contestam, sob qualquer ponto de vista, os ciclos inerentes ao meio físico-natural (Cf. CUSTÓDIO, 2001 e ISA, 2003). Nesta interpretação, o reservatório Billings não seria redutível ao conceito de bacia hidrográfica, enquadrando-se, antes de tudo, no que segmentos da literatura técnica concebem como bacia ambiental. Numa definição sintética, bacia ambiental materializaria um espaço de conformação dinâmica, no qual a dimensão física, relativizada e flexibilizada nos seus limites, estaria subordinada a um conjunto de inter-relações de variegados níveis, umbrella concept que se alarga quando o foco é uma landschaft urbanizada, um espaço intensamente antropizado, e, portanto, não-natural (passim RUTKOVSKI, 1999a). Confirmando esta apreciação, sopesa com retidão o geógrafo Antonio Cezar LEAL, que seria preciso analisar ...cada caso específico de delimitação territorial, não considerando apenas os limites naturais da bacia hidrográfica, mas o uso e ocupação do solo, a organização social e as integrações de sistemas hidráulicos de reversão de águas e esgotos (2003: 74). Em síntese, os limites de uma bacia ambiental não são físicos, mas, sobretudo, socioespaciais. Esta circunscrição, sendo dinâmica e flexível na sua delimitação, constitui espaço de vivências, de conflitos e de organização das relações sociais, variáveis fundamentais para a 6 616 compreensão e o equacionamento de problemáticas como as que vigoram no reservatório Billings e na sua periferia territorial, que não tem como ignorar a influência dos dinamismos antrópicos (Figura 51). FIGURA 51 - Contexto geográfico da Bacia Ambiental da Billings e arredores geoespaciais: (1) em rosa, a mancha urbana da RMSP; (2) Circunscrição territorial da bacia da Billings; (3) Reservatório do Guarapiranga; (4) Regiões limítrofes do Sistema Cantareira; (5) Áreas com cobertura predominante de mata atlântica, mais densa no alcantilado da Serra; (6) A mancha urbana da Região Metropolitana da Baixada Santista; (7) Oceano Atlântico (Fonte da imagem: ISA, 2000) 3. Nos últimos anos, teríamos que mencionar o surgimento de diversos Comitês de Bacia Hidrográfica, um dado historicamente novo na gestão das águas doces brasileiras. Como resultado direto das mobilizações ambientalistas, em especial as voltadas para a defesa dos corpos aquáticos, um amplo corpo jurisprudencial associado com a governança dos recursos hídricos conquistou interlocução legal. Seu marco maior foi a Constituição Federal de 1988. No tocante aos recursos hídricos, este documento estabeleceu a obrigatoriedade de instituir o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos 6 617 Hídricos (Título III, artigo 21, inciso XIX). Em nível das unidades da federação, esta competência se traduziu na formação dos sistemas estaduais, nos quais a participação da sociedade civil organizada, dispondo de poder deliberativo, foi legalmente assegurada. No ESP, a Lei nº. 7.663/91 (30/12/1991), implantou o Sistema Integrado de Gerenciamento de Recursos Hídricos (SIGRH), processando-se desde então a instalação dos 21 comitês de bacia hidrográfica hoje em funcionamento. O Comitê da Bacia Hidrográfica do Alto Tietê (CBH-AT), igualmente conhecido como Parlamento das Águas, circunscreve a pródiga rede hídrica que drena a região das cabeceiras e os rios formadores do curso superior do Tietê 130. O CBH-AT foi instalado em 1994 e a partir do ano de 1997, como desdobramento da descentralização desta instância, foram criados cinco Subcomitês: Cotia-Guarapiranga (1997), Juqueri-Cantareira (1997), Billings-Tamanduateí (1997), Tietê-Cabeceiras (1997) e o Pinheiros-Pirapora (1998). Relativamente ao Subcomitê BillingsTamanduateí, trata-se da instância que responde em termos do ABC e de parte da capital paulista pelo acompanhamento do estado das águas da Billings (Cf. Figura 52). É importante registrar que o Comitê de Bacia Hidrográficas do Alto Tietê (CBH-AT) foi o primeiro a ser criado no país. Conjuminando experiências pioneiras, o CBH-AT condensa um denso histórico de mobilizações sociais em defesa das águas doces na sua área de atuação. O CBH-AT mantém em seus quadros a representação de autoridades estaduais, prefeituras e instituições da Vide análise pormenorizada do CBH-AT realizada por Marcos Estevan DEL PRETTE (2000: 131/148). 130 6 618 sociedade civil. Um aspecto importante são os vínculos mantidos pelo CBH-AT com a região metropolitana. Dentre os 39 municípios que compõem a RMSP, apenas três (Santa Isabel, Guararema e Vargem Grande Paulista), não estão incluídos no CBH-AT. Outro ponto a ser destacado é que o CBH-AT começou a ganhar visibilidade pública e tornar-se referência para o debate dos recursos hídricos da GSP. FIGURA 52 - Mapa da Bacia Hidrográfica do Alto Tietê: área de abrangência e divisão em sub-bacias, correspondendo aos limites dos comitês de bacia (Fonte < http://www.rededasaguas.org.br/observando/alto_tiete.htm >, escala aproximada 1: 595.000, acesso: 10-07-2005) No entanto, trata-se de uma representação política ainda em construção, tendo por desafio fundamental postular uma atuação social junto a uma arquitetura política que como no caso da brasileira, tem imposto variadas altercações para o exercício da cidadania, num espectro que se estende desde o autoritarismo das agências e órgãos estatais a uma estrutura de medo profundamente internalizada no 6 619 ethos nacional (DURAN, 2005: 141/186). Deste modo, a tematização analítica dos comitês de bacia hidrográfica aguarda por avaliações e acompanhamentos para habilitar a certificação do alcance real da sua jurisprudência. 4. Dado que o foco da análise em curso não está centrado num problema ecológico, mas antes, socioambiental, a conceituação de manancial a ser adotada reclama certificação tendo por pressuposto esta variável. Um significado amplo deste termo pode ser encontrado, por exemplo, nas publicações da CETESB, nas quais, manancial é conceituado como “a fonte de abastecimento de água que pode ser, por exemplo, um rio, um lago, uma nascente ou poço, proveniente do lençol freático ou do lençol profundo” (Cf. CEPAM-FPFL, 1991: 154). Entretanto, até em razão da anunciada predileção pelo conceito de bacia ambiental, não poderíamos avocar parâmetros puramente eivados em nuanças naturais, em apensos exclusivamente técnicos e tampouco, amparar-nos em acepções ecológicas de senso comum. No tocante a estas últimas, a terminologia manancial termina por restringir-se à nascente dos rios ou aos locais onde pode ser obtido o líquido destinado ao abastecimento das pessoas, sendo esta noção, aliás, a que justifica genericamente a percepção e proteção da água como um “pecúlio natural” (CUSTÓDIO, 1996: 17). Entretanto, a geografia, física ou humana, simplesmente não poderia deter-se em variáveis naturalizantes 131. Na nossa aferição, os mananciais designariam as áreas destinadas à produção de água. Não esquecer que desde os anos 1950, a geografia física preconiza a importância da antropogenia no acompanhamento das transformações dos modelados naturais (passim MONTEIRO, 2000). 131 6 620 Assim, a definição não referendaria apenas os depósitos naturais do líquido que descansam nos aquíferos, fluem das nascentes ou escoam para os lagos, mas também inclui toda e qualquer obra (natural ou social), articulada ao que Milton SANTOS caracterizou como modernos sistemas de engenharia (passim 1978a e 1988). Adotando este critério, estaríamos privilegiando as malhas fluviais no sentido de partícipes de sistemas técnicos relacionados com o fornecimento de recursos hídricos, especialmente os voltados para o espaço urbano. Por conseguinte, a expressão “produção de água”, que poderia pecar por um viés “tecnicista” seria, neste exato sentido, muito feliz por realçar o fato de que este líquido, no mundo contemporâneo, não mais constitui um recurso livre da natureza, até porque, torna-se grosso modo acessível quando tutelado por uma intermediação humana. Fato axiomático, as quatro premissas arroladas são inteligíveis exclusivamente numa conjuntura em que a modernidade compele repensar os suprimentos de água doce de um modo bem diferente dos tempos em que o líquido era desfrutado sem a pluralidade de sansões que nos dias atuais regram sua obtenção e gerenciamento. Daí, a elaboração de complexos modelos teóricos que procuram equacionar as questões que envolvem o acesso a este recurso tão vital para a vida. Outrora, de um modo relativamente geral, a água era percebida como um bem livre que aparentava ser ilimitadamente difuso, do qual os humanos simplesmente usufruíam. Entretanto, a água passou a ser listada como um dos recursos ecossistêmicos tornados dia após 6 621 dia, intangíveis aos humanos pelo que se convencionou denominar de progresso e desenvolvimento. Na sucessão de eventos que marca o avanço da sociedade contemporânea, o líquido tornou-se passível de acesso quase que exclusivamente com intermediação técnica, propiciada por sistemas peritos (GIDDENS, 1991: 34/37), cuja coordenação e funcionamento é no todo, ignorada pelos cidadãos, respondendo prioritariamente às instâncias de poder que efetivamente capitaneiam a sociedade e a política. Por extensão, nada melhor do que subsidiar esta discussão dissecando notações conceituais e metodológicas relacionadas com as expectativas pelas quais a consciência social, assim como seus reflexionamentos nas posturas dos mais diferentes atores, tem sido objetivamente respaldada quando o tema em foco são os mananciais da área metropolitana. Por esta via, não há como dispensar da reflexão a minuciosa legislação elaborada quanto a este tema. Tendo em vista a garantia da potabilidade e dos ciclos dinâmicos configurados nos reservatórios e nos fluxos que os abastecem, a legislação referente aos mananciais fundamentalmente prescreve a normatização da ocupação humana destas áreas. Indiscutivelmente, este arcabouço legal constituiu uma emanação de um zeitgeist racionalizante, inspirando planejadores e urbanistas a se empenharem numa releitura da questão dos recursos hídricos passível de atenuar os agravantes que se avizinhavam para a contextura da metrópole paulista. As leis de proteção aos mananciais constituíram uma tentativa de conter formas predatórias de urbanização que passaram a visar áreas 6 622 perpassadas por notórios condicionantes ambientais (consideração esta, da qual o reservatório Billings dificilmente poderia se esquivar), sugerindo monitoramento e restrições devido à notória importância para a vida urbana metropolitana (Cf. SÓCRATES, GROSTEIN et TANAKA, 1985: 27/28). Embalados por esta preocupação, diversos círculos de opinião relacionados com o planejamento urbano pressionaram, a partir do início dos anos 1970, para que fossem materializados no imo do Plano Metropolitano de Desenvolvimento Integrado (conhecido pela sigla PMDI), dispositivos legais visando à proteção dos mananciais, consubstanciados nas legislações de número 898 (18/12/1975), 1.712 (17/11/1976), assim como pelo Decreto-Lei nº. 9.714 (19/04/1977). Deste rol de pronunciamentos, a precedência coube ao ato legal de 1975, a citada Lei nº. 898, que ao disciplinar “o uso do solo para a proteção dos mananciais, cursos e reservatórios de água e demais recursos hídricos de interesse da Região Metropolitana da Grande São Paulo”, é via de regra entendida enquanto matriz conceitual da preservação dos mananciais na RMSP (Vide Apêndice 1). Assim sendo, a partir destes atos legais, às normas de uso e ocupação do solo então vigentes na RMSP, veio somar-se a Lei Estadual n.º 9.866 (28/11/1997), cujo objetivo expresso era controlar o uso do solo para a proteção dos recursos hídricos da metrópole paulista (SÓCRATES, GROSTEIN et TANAKA, 1985:15). Assinale-se que a despeito destas diretrizes legais terem sido concebidas durante os anos do regime militar, o fato não desmerece 6 623 sua qualificação técnica e muito menos, a racionalidade que o PMDI procurava imprimir ao crescimento da metrópole. A este respeito, o engenheiro Sadalla Domingos, um dos criadores da Lei de Proteção aos Mananciais, teceu no final dos anos 1980, o considerando que segue: É interessante enfatizar uma contradição; embora a gente estivesse num momento autoritário, com a ditadura instalada, esse modelo de região metropolitana criou algumas figuras jurídicas, algumas alterações na ordem jurídica clássica, que eram extremamente progressistas. Por exemplo, a Lei de Proteção aos Mananciais nada mais é do que a tão decantada função social da propriedade, ou seja, existe uma propriedade e aquela propriedade está situada em um lugar tal, que lhe dá qualidades ligadas ao destino de alguma coisa que não é só o seu proprietário que dirige (SEMASA, 1991: 30). A legislação dos mananciais é bastante complexa, estabelecendo diferentes critérios de restrições quanto ao uso do solo. A Lei tem por pressuposto manter os equilíbrios hidrodinâmicos essenciais para um suprimento de água de qualidade, incluindo a preocupação em conter a blindagem do solo urbano. Por esta razão, prevê a preservação da cobertura vegetal e uma urbanização que não impermeabilize o solo, como a pavimentação das ruas com paralelepípedos, permitindo assim a infiltração das descargas pluviais, a manutenção dos veios subterrâneos e refreando o impacto das chuvas torrenciais. Sob o ponto de vista estritamente legal, a área de mananciais da RMSP equivale a 4.346 km², ita est, cerca de 54% da área metropolitana total, distribuída principalmente 6 624 nos sentidos Sul/Sudeste/Sudoeste e Norte/Nordeste, apreendendo diferencialmente a superfície dos municípios da região metropolitana. Numa perspectiva territorial, na RMSP, ex auctoritate legis, seis municípios estão localizados integralmente no interior da área legal de proteção (caso de Embu-Guaçu, Itapecerica da Serra, Juquitiba, São Lourenço da Serra, Rio Grande da Serra e Ribeirão Pires), enquanto quinze (Santana do Parnaíba, Francisco Morato, Pirapora do Bom Jesus, Carapicuíba, Cajamar, Barueri, Osasco, Jandira, Itapevi, Taboão da Serra, Vargem Grande Paulista, Guararema, Itaquaquecetuba, Poá e São Caetano do Sul), situam-se inteiramente fora da circunscrição dos mananciais. Municípios como Mairiporã, Santa Isabel, Salesópolis e Biritiba Mirim possuem grande parte da sua extensão incluída na legislação dos mananciais, ao passo que Guarulhos, Diadema e Mauá, dispõem tão só de frações mínimas em áreas de manancial. Obviamente, as diferentes inclusões geográficas dos municípios da região metropolitana na área coberta pela legislação, desdobramse em diferentes políticas territoriais e contextos diversos quanto ao gerenciamento do espaço. Todavia, qualquer que seja a superfície incluída na área sob proteção, a questão dos mananciais diz respeito, por conta de impactos diretos e indiretos, à totalidade da RMSP, ao CME e mesmo a inferências ainda mais distantes. Geograficamente, não haveria como delimitar uma política de proteção desconsiderando o entorno destes espaços e os possíveis agravos provocados pelas ações antropogênicas. 6 625 Neste sentido, recorde-se que o corpo jurídico relacionado aos mananciais surgiu numa época em que as mobilizações ecológicas eram virtualmente inexistentes. Assim, à revelia de terem sido a posteriori definidas como “legislação ecológica”, estas leis visavam, mais do que “preservar a natureza”, orientar formas mais adequadas de ocupação territorial, buscando regrá-la de modo a refrear a continuidade da degradação da malha hídrico-fluvial responsável pelo abastecimento de água da RMSP. Seria importante frisar, o estado de espírito que norteou a elaboração destes códigos legais, assim como a rede de apoio que surge na sociedade, indica claramente uma superestimação do poder legal como regulador da apropriação do espaço urbano, exatamente um dos motivos que levaram ao fracasso da estratégia protetiva das áreas de produção de água potável (BENÍCIO, 1995: 76/77). Como resultado, em face da crescente demanda por terra ter intensificado pressões no sentido de ocupar a área dos mananciais, estas leis, assim como do conjunto de portarias e decretos emitidos nos anos 1980 e 1990 132, acabaram transformados em verdadeira “letra morta”. Entrementes, ao menos institucionalmente, as leis que dispõem sobre diretrizes e normas para a proteção e recuperação das bacias hidrográficas e dos mananciais de interesse regional do ESP, seguem enquanto amparo legal para medidas de preservação dos mananciais (Ver Apêndice 2). Dentre as legislações disponíveis para acesso on line seguem: Lei nº. 989/1975: www.controleambiental.com.br/lei_898.htm e www.daeep.gov.br/legislacao/lei_898.htm; Lei nº. 9866/1997: www.daeep.gov.br/legislacao/lei_9866.htm; Todas as leis de recursos hídricos: www.daeep.gov.br/legislacao/leg_estadual.htm (Acesso: 19-07-2005). 132 6 626 É importante observar que a região dos mananciais se trata de uma área crivada por ampla diversidade de problemas urbanos e sociais. Reconhecidamente, este espaço congrega contradições de todo tipo, quer as relacionadas com o uso e ocupação do solo, quer os referentes à combinação de diferentes sistemas de infraestrutura que utilizam os reservatórios. Ademais, esta situação gerou polarizações para todos os gostos. Numa visada sintética teríamos: Os defensores da aplicação pura e simples da lei de proteção ➢ aos mananciais; Os proponentes de uma solução intermediária, oscilando entre ➢ o fato consumado e a aplicação da legislação; Os empreendedores particulares, empreiteiras e loteadores, ➢ interessados na revisão ou extinção da lei, abrindo caminho para os negócios imobiliários; A população carente de moradia, que em meio às adversidades ➢ da vida, os mananciais se tornam a única alternativa à mão. Nesta visada, é mister sublinhar que as extensões inseridas no perímetro de proteção aos mananciais correspondem à continuidade da periferia da metrópole paulista, sob cuja tutela é ininterruptamente tonificado o processo de ocupação de espaços em tese, sob proteção legal. 6 627 Outra nota relevante seria alvitrar que a despeito da legislação de 1997 adotar o conceito de bacia hidrográfica como marco de gestão, no caso da Billings estamos, na realidade, diante de uma típica bacia ambiental, consideração que determina formatos e procedimentos teóricos, metodológicos e de gestão em boa parte dessemelhantes dos que pespontam nos planos de ação, que em princípio, alimentam narrativas que em maior ou menor grau, ainda percepcionam a bacia da Billings como se este corpo líquido conformasse uma obra natural em seu stricto sensu. Tanto procede esta certificação, que no debate atinente à Billings, o aporte relacionado com as intervenções humanas e as implicações ambientais delas decorrentes corporificam uma essencialidade tanto para a pesquisa quanto para as proposições de gerenciamento deste reservatório. Não fosse assim, seria difícil listar, tal como foi feito, tão profícua listagem de contradições como as que estão em jogo no sistema da bacia ambiental da Billings. Acima de tudo, pode-se sentenciar que a Billings, ao substantivar uma tecedura técnica e artificial, somente encontrará solução para os seus desafios tendo à vista, o papel e as expectativas sociais que este mesmo espaço magnetiza. E seja este empreendimento revestido de sucesso ou não, isto tão só reforçaria, de um modo ou de outro, as dificuldades e virtudes, acima de tudo, humanas, que se emaranham no novelo de crispações explicitadas neste magnífico reservatório de águas doces. 6 628 CAPÍTULO 12 METRÓPOLE, RECURSOS HÍDRICOS E LIMITES DO ESPAÇO 12.1. REPRESA BILLINGS, METRÓPOLE SEDENTA E METAMORFOSES DA NATUREZA Uma vez discriminadas as fatorações em jogo na temática dos mananciais, visaremos nos parágrafos seguintes, aprofundar estes recortes, recorrendo-se no caso, para o histórico da Bacia da Billings na averbação relacionada ao abastecimento de água potável de uma conurbação que como no caso da urbe paulista, é uma metrópole preocupantemente sedenta. Nesta avaliação, lançaremos mão de uma grade conceitual que articula as três variáveis anteriormente comentadas, quais sejam: as relacionadas com os usos consuntivos da água doce, com a noção de bacia ambiental e com a conceituação de manancial, que numa notação comum, conjuminam da mesma sinergia socioespacial. No tocante aos mananciais, tal como observado, associa-se ao conceito, minucioso ordenamento jurídico, mote que condiciona os posicionamentos de diversos atores do Grande ABC Paulista, tanto os que se colocam a favor, quanto em contrário à sua aplicação. 6 629 Neste sentido, pode-se afirmar que a conceituação de manancial, dizendo respeito às águas e respectivos entornos que sustentam sistemas antropizados de abdução do líquido, constitui instrumental teórico dotado de eficaz potencial operatório em qualquer análise centrada na Billings, assim como dos desdobramentos políticos e sociais relacionados com a gestão deste reservatório para a região do ABCDMR no seu conjunto. Note-se que os mananciais, embora espacialmente disseminados no Norte e no Sul da RMSP, basicamente apreendendo áreas que se erguem altaneiras à calha do rio Tietê e dos seus afluentes, perfazem, na extensão meridional, justamente ao ABC Paulista, alvo recidivo do “crescimento desordenado” da urbe. Recorde-se que além do ABC, os mananciais da Billings abrangem nacos do município de São Paulo. Todavia, qualquer que seja o trecho estudado, os mananciais do ABC registram a mais persistente e dramática progressão de ocupação informal na RMSP, alimentando debates que se prolongam faz quatro décadas nos municípios detentores de áreas de proteção. Esta problemática é inerente a uma extensão ponderável do ABC Paulista. Relativamente à abrangência territorial dos mananciais nos municípios da região, São Bernardo do Campo possui 52,6% da sua área ocupada por mananciais; Santo André, 54,1%; Diadema, 21,4% e Mauá, 19,4%. Por sua vez, os municípios de Ribeirão Pires e de Rio Grande da Serra, estão totalmente inseridos no interior deste espaço, ambos 6 630 representando cerca de 30% dos mananciais do Grande ABC. Por último, São Caetano do Sul situa-se inteiramente fora da área da legislação. Percentualmente, 56,1% do ABC (472 km² de um total de 841 km²), são ocupados por mananciais, conferindo aos municípios da região, o papel de guardiões da qualidade da água produzida e consumida pelos dezessete milhões de habitantes da metrópole (Vide EMPLASA, 1997 e SEMASA, 1991: 7). Retroagindo no tempo, é possível observar que outrora, este espólio territorial subsidiou funções diversificadas, assumindo feições novas a medida em que as metamorfoses do espaço sucediam no fruir histórico. Primeiramente esculturado pela ação plurimilenar das etnias indígenas, este espaço foi posteriormente alterado, a partir do Século XVI, por vagas de colonizadores portugueses e por atores da nascente sociedade nacional brasileira. É esta vasta extensão de florestas e campos, várzeas e brejos nativos, incluindo clareiras, áreas de culturas, pastos antropogênicos, carvoarias, pousos de tropa, capelas, igrejas, calçadas e caminhos, resultantes de modificações contínuas processadas ao longo de 400 anos de colonização, que recebe o convite da modernidade paulista para assumir a função de área de manancial, modulação esta de índole estritamente histórica, cujas diretivas e intenções, garantem a inscrição deste espaço na delimitação que lhe adereça especificidade no contexto metropolitano. A compreensão do novo papel territorial postulado para este espaço, obviamente nos impõe o conhecimento dos processos que os direcionaram ao longo do tempo. Precisamente por isso, assimilar a 6 631 historicidade desta área, nos convidaria a adotar como providência primeira, pensarmos a cidade de São Paulo nos inícios do Século XX, período no qual Piratininga verdadeiramente inicia uma alavancagem rumo à metropolização. Particularmente nos anos 1915-1940, esta tendência se explicita espacialmente sob a batuta de uma verve crescimentista, pela qual o alastramento da metrópole intensifica a pressão exercida sobre sua periferia territorial, instaurando e consolidando um cadenciamento evolutivo inaugurado no eclipse do século anterior, modificando de modo irreversível o espaço que então ocupava e territorialidade das periferias das metrópoles em ascensão (LANGENBUCH, 1968: 199). Com base em levantamentos, pode-se identificar a decolagem da metrópole num notável incremento populacional registrado desde primórdios do século passado: 141% entre 1900-1920 e 124% entre 1920/1940. Os Censos oficiais indicam em números absolutos que a população paulista passou de 579.033 habitantes no ano de 1920, para 1.294.223 habitantes em 1940 (LANGENBUCH, 1968: 199). Estes números são representativos do novo contexto vivido pela capital paulista, que auferindo prestígio e riqueza amealhados a partir dos capitais acumulados com a cafeicultura, crescia vertiginosamente graças ao seu parque industrial e ampliação do mercado urbano de consumo (BEIGUELMAN, 1978; SILVA, 1976). Estes fatores, impulsionando a modernização do cotidiano da urbe, por definição lastreado no consumo de eletricidade, originou forte demanda por energia. Por isso, desenharam-se prognósticos e 6 632 cenários pelos quais a geração de eletricidade teria, cedo ou tarde, que ser ampliada. No período dos anos 1913-1921, em continuidade com indicadores dos anos precedentes, o consumo de energia expandiu na ordem de 10% anuais e no biênio 1922-23, a taxa de consumo saltou para 15% ao ano (Vide Figura 53). No biênio 1924-25, a ocorrência de forte estiagem desdobrou-se numa crise nunca vista de fornecimento de energia, levando o minguado serviço de fornecimento de eletricidade ao colapso. Sem outra saída, o então prefeito Firmiano de Morais Pinto, através do Ato nº. 2.499, de 13 de fevereiro de 1925, decretou severo racionamento do uso de eletricidade, medidas recrudescidas ainda mais no mês de março do mesmo ano. A gravidade da crise, assumindo feitios de verdadeira calamidade pública, suscitou a adoção, em caráter praticamente emergencial, de projeto encomendado pelo governo paulista à empresa canadense com controle acionário britânico The São Paulo Tramway, Light and Power, ou coloquialmente Light, tal como passou a ser referenciada pela voz do povo. Denominado como Projeto da Serra, este tinha por pressuposto o aproveitamento dos recursos hídricos do Alto Tietê e a construção do Reservatório Billings, empreendimento articulado a diversos outros objetos espaciais hidrotécnicos dispostos nas imediações da capital paulista, adotando como matriz logística e funcional, a especialíssima moldura territorial na qual foi assentada a vila de Piratininga, cerne espacial da metrópole paulista. 6 633 FIGURA 53 - Estatísticas do crescimento da capacidade instalada antiga Light e da expansão do consumo na capital paulista no período entre 1901-1925 (Fonte: Boletim Histórico, editado pela Eletropaulo, junho de 1985, página 4). 6 634 Singularmente, esta cidade, que atualmente constitui o epicentro de uma gigantesca conurbação reunindo 38 municípios limítrofes (justamente a RMSP), foi, conforme foi afirmado, erguida ao contrário da maioria das cidades do mundo, junto às cabeceiras de um grande rio, o Tietê, e das margens de dois de seus afluentes mais próximos, os rios Pinheiros e Tamanduateí, que formam uma espécie de letra “U” invertida, aberta no sentido Sudeste, no interior do qual cresceu a cidade de São Paulo e o Grande ABC. Muito arrojado em termos de concepção, o Projeto da Serra previa a instalação de uma usina hidrelétrica em Cubatão, no sopé do planalto, com pressuposto na geração de hidroeletricidade a partir da energia potencial sofreada pelo represamento de grande massa de água planalto acima, que despencando por gravidade, daria máximo aproveitamento da altura gravimétrica do reservatório. A ideia de aproveitar as características da topografia da região, bastante favorável se levarmos em consideração a existência de um desnível topográfico, no sentido contrário à drenagem hidrográfica, de mais de 700 metros entre o planalto e a orla litorânea, incendiava a imaginação da maioria dos paulistas. Afinal, as cristas da Serra do Mar, que transpareciam enquanto obstáculo indomável no imaginário espacial dos moradores do Planalto do Piratininga, seria doravante domada pelo progresso e colocada a serviço do desenvolvimento, incitamento encarnado no engenheiro hidroelétrico norte-americano Asa White Kenney Billings, encarregado da execução do projeto e figura-chave na construção do reservatório (Figura 54). 6 635 FIGURA 54 - Foto artística de White Kenney Billings (1876-1949), pioneiro da eletrificação do Brasil, cujo trabalho mais conhecido foi a construção da represa que desde 1949, ano de sua morte, passou a receber seu nome. Vivendo no Brasil desde 1922, Billings notabilizou-se por diversos trabalhos de grande envergadura, expandindo a capacidade de geração de energia elétrica do Estado de São Paulo e chegando ao posto de presidente da Light (Fonte: Arquivo Nacional) 6 636 Note-se que este sentimento não era desprovido de fundamento. A Serra sempre foi vista, pelos habitantes do Planalto de Piratininga, como uma rugosidade natural que impedia contatos mais frequentes com o exterior. De fato, os bordos da Serra são muito íngremes e as escarpas e penhascos que se alteiam na vertente marítima, sempre constituíram motivo de justificado assombro os observadores. Neste senso, eis como o mercador e mineralogista inglês John Mawe, que visitou o Brasil entre os anos 1809-1810, relatou, a partir de uma travessia través da Calçada do Lorena, a vista do alcantilado: Obtido um guia, montamos e caminhamos cerca de meia milha, quando chegamos ao sopé de magníficas montanhas, que teríamos de atravessar. A estrada é boa e bem pavimentada, mas estreita, e devido às subidas íngremes, foi talhada em zigue-zague, com voltas frequentes e abruptas em ascensão. As tropas de mulas, muito carregadas, que encontrávamos no caminho para Santos, dificultaram-nos a passagem, tornando-a desagradável, muitas vezes perigosa. Em alguns lugares, a estrada atravessa vários pés de rocha; em outros, sobe perpendicularmente, conduzindo, com frequência, a uma das montanhas cônicas, ladeando precipícios, onde o viajante está sujeito a ser lançado numa floresta inacessível, trinta jardas abaixo. Estes lugares perigosos estão protegidos por parapeitos. Depois de subirmos por hora e meia, dando numerosas voltas, chegávamos a um pouso, em cujas proximidades, num lugar pouco abaixo da estrada, encontramos água. Segundo nos informou o guia, distava apenas meio caminho do cume; ficamos pasmados com a informação, pois as nuvens estavam tão distantes, abaixo de nós, que obstruíam toda a visão (1978: 60/61). 6 637 Manifestadamente, o pioneirismo e a audácia do Projeto da Serra eram evidentes, pautando uma solução a partir do que seria um obstáculo intransponível: “Não se poderia supor, até quase a segunda década deste século, o papel que estaria reservado à serra do Mar, em São Paulo, sobretudo no ponto denominado serra de Cubatão. No auge da pior crise de energia elétrica de sua história (1924-25), e sem possuir quedas d’água significativas necessárias à construção de hidrelétricas, a serra de Cubatão, como era conhecido este lado da serra do Mar em São Paulo, surgiu como que o grande trunfo para a solução do problema, cuidadosamente escondido nas mangas de um mágico” (MACEDO, 1992:15). Diversas características meteorológicas favoreceram a opção pelo Projeto da Serra, a “Obra do Século” no laudatório dizer dos seus apologistas de outrora. No prisma da hidrologia, os elevados índices pluviométricos, proporcionados pelos ventos carregados de umidade provenientes da massa de ar tropical atlântica, constituíram desde tempos imemoriais a origem de chuvas nas cumeadas da serra e nos bordos adjacentes do planalto. Esta abundante pluviometria, oscilando entre 1.300 e 3.500 mm/ano, condizia a um dinamismo meteorológico apropriado para manter o nível do reservatório que movimentaria as turbinas da UHE Henry Borden, localizada no sopé da serra, em plena Baixada Santista. Em associação com destes pré-requisitos geofísicos, vantagens logísticas foram decisivas para a aprovação do projeto. Uma destas residia na facilidade no transporte dos materiais de construção por meio de dois desvios, um pela Estrada de Ferro São Paulo Railway e 6 638 o outro, através da antiga Estrada do Vergueiro ou Estrada Velha de Santos. Mas sumamente, a menor distância a ser percorrida pelas linhas de transmissão de energia na direção do centro consumidor paulista, endossou por si só, a viabilização do projeto. Contudo, este histórico da construção do Reservatório Billings, envolvendo a concessão da exploração dos recursos hídricos da Bacia do Alto Tietê para a Light, empresa que já havia desenvolvido diversos projetos de aproveitamento hidrelétrico em outras unidades da federação, no interior paulista e na periferia geográfica da capital (Figura 55), também respalda o relato de um primado energético que norteou de facto a elaboração das políticas de gestão dos recursos hídricos. A Light viria a transformar-se no maior grupo privado do Brasil, e, deste modo, sua influência junto às repartições públicas sempre foi manifesta. Esta experiência constitui um verdadeiro vaticínio sobre as possíveis reverberações dos interesses privados sobre um recurso de interesse público, no caso, a água, e por isso mesmo, solicitando uma atenção especial sobre esta nuance. Tal e qual notifica a geógrafa Vanderli CUSTÓDIO, o desempenho da empresa seria “o principal exemplo de apropriação quase privada, pois favoreceu, sobretudo as indústrias da RMSP e a própria Light” (1996: 9). Num momento em que o suprimento energético era vital para a expansão da indústria e da metrópole, o monopólio exercido com impecável maestria pela Light lhe caucionaria indisputada projeção econômica e política. Tanto assim que o cognome da cidade de São Paulo era, nos anos 1930, A Cidade da Light. 6 639 FIGURA 55 - Planta geral do aproveitamento hidrelétrico nas imediações de São Paulo, destacando os objetos hidrotécnicos do Sistema Light no período 19201930. Neste mapa, os números correspondem 1: Usina de Cubatão; 2: Canal de Ligação; 3: Barragem reguladora (Summit); 4: Usina de Recalque de Pedreira; 5: Barragem de Guarapiranga; 6: Usina de Recalque de Traição; 7: Estrutura do Retiro; 8: Usina de Parnaíba; 9: Usina de Rasgão; 10: Usina de porto Góes; 11: Usina de Ituparanga (Fonte: História e Energia, nº. 2, outubro de 1986, página 12) Este recorte também auxiliaria na compreensão de muitas das decisões tomadas por sucessivos governos nos âmbitos estadual e federal, concorrendo para que a concessionária Light, terminasse por assenhorear-se da totalidade das águas do Alto Tietê. Claramente, pouco a pouco a companhia canadense induziu em seu proveito, a gestação e implementação das políticas de gerenciamento das águas doces de um vasto território, abarcando áreas bastante longínquas do cenário original de implantação do Projeto da Serra. Com base nesta lógica, o sistema criado pela concessionária foi conotado de poder inercial de tal monta que mesmo a nacionalização da Light pelo governo federal no ano de 1978, em nada alterou as diretrizes traçadas e levadas a cabo com toda determinação possível pelos primeiros gestores. Rebatizada agora como Eletricidade de São 6 640 Paulo SA (ou Eletropaulo, designação mais usual), este novo avatar da companhia perseverou na reprodução de políticas de gestão que privilegiando uma matriz energética altamente inercial, acarretaria as mais graves repercussões para o futuro da RMSP. Consoante ao exposto, cientifique-se que conquanto constasse explicitamente na autorização governamental para a construção da Billings que o uso energético das águas do Alto Tietê não poderia prejudicar o abastecimento da população (Decreto-Lei nº. 16.884, de 27 de março de 1925, assinado pelo presidente Arthur Bernardes), tanto a Light, quanto sua sucessora, a Eletropaulo, jamais cumpriram os estatutos da concessão, tornando a companhia uma autêntica “proprietária” de todas as águas fluviais de São Paulo, prerrogativa esta, exercida com notável arrogância, a seu gosto e sem qualquer interferência (ALVES, 1991). Assim sendo, a diretriz básica para a utilização da massa líquida da Bacia do Alto Tietê sempre se manteve atrelada com a geração de energia, fio condutor que desvela a compreensão do vilipêndio dos recursos hídricos na metrópole paulista. É necessário focalizar que mesmo quando são pontuadas políticas de usos múltiplos (ou nãoconsuntivos) da água por sistemas de geração de energia, é preciso levar em conta que o aproveitamento das águas da Bacia do Tietê sempre foi direcionado pelo interesse energético predominando sobre os demais, sendo que esta regalia corporalizaria a principal causa da deterioração das águas da região metropolitana (BRANCO, 1991: 54). A UHE Henry Borden entrou em funcionamento em 1926, quando o vale do rio das Pedras foi represado com o barramento da Cascata 6 641 da Água Fria, no alto da Serra do Mar. Compreendendo 8 km² de área inundada e outros 30 km³ correspondendo à bacia de drenagem, este reservatório está inteiramente situado no município de São Bernardo do Campo. Sua função é receber as águas da represa Billings para posteriormente conduzi-las vertente abaixo por intermédio de grandes túbulos, para a UHE Henry Borden. Quanto ao vale do rio Grande, este foi “afogado” em 1937, transformado no reservatório Rio Grande (rebatizado de Billings em 1949 após a morte de Asa White Kenney Billings), uma peça central no sistema gerador de energia. Replicando um conhecido script de impactos da construção de barragens, a formação do reservatório desmantelou completamente a organização territorial preexistente. Constituída por aldeamentos “rústicos”, carvoarias e campos de lavouras, passando por pousadas, piscinas naturais, igrejas e cemitérios, estas marcas espaciais foram submersas para sempre, fantasmagoricamente emergindo das águas, como no caso de campanários das antigas igrejas, que reaparecem quando de estiagens ocasionalmente fortes que acometem a região. Este drástico acontecimento sobrevive ainda hoje na memória dos habitantes deste espaço: parte dos moradores da orla da Billings trata a represa por rio, numa alusão talvez inconsciente ao rio Grande, que represado, deu-lhe origem (apud MACEDO, 1992: 32/33). Mais tarde, esta alteração do curso natural das águas fluviais foi complementada pela autorização concedida pelo presidente Eurico Gaspar Dutra através do Decreto-Lei nº. 22.008, de 29/10/1946. Este instrumento legal, autorizava a reversão pela Light, da totalidade do curso do rio Tietê, via rio Pinheiros, para a represa Billings. Porém, ao mesmo tempo indicava a necessidade de represar as cabeceiras 6 642 desta bacia hidrográfica, indispensável para o controle das enchentes na metrópole paulista. Dessarte, este decreto reforçou a aspiração da grande empresa pelo domínio total das águas da bacia do Alto Tietê. Na realidade, a empresa colocou em prática apenas as obras que lhe interessavam. Nesta toada, engavetou os projetos de represamento das cabeceiras, recomendação defendida, por exemplo, pelo engenheiro Francisco Saturnino Rodrigues de Brito que, no entanto, jamais foi cumprida. Concretamente, a legislação contribuiu para que a metrópole paulista, nas jocosas palavras do Catullo Flaquer Branco, também engenheiro, se transformasse numa “cidade-represa” (PONTES, 2001: 6). Materializando esta linha de conduta, o monopólio canadense havia iniciado a retificação do curso do rio Pinheiros no final dos anos 1930 (desdenhando qualquer reservação para as cheias), eliminando todos os seus meandros, alterando in totum o fluxo original do rio, transformando-o num mero canal artificial. A consecução dessa obra hidráulica, um dos episódios que evocam o triunfo de uma visão retilínea sobre as sinuosidades da natureza, além de favorecer o domínio quase absoluto do rio e de suas várzeas por parte da empresa, transformou este curso d’água numa obra hidráulica com 25 quilômetros de extensão, vocacionado para unicamente escoar água para a Billings e a UHE Henry Borden, alterando-se totalmente as características da paisagem natural (Cf. SEABRA, 1987: 154/193 e Figuras 56 e 57). 6 643 FIGURAS 56 e 57 - O rio Pinheiros em dois momentos da história paulista, conotativos da transformação da bacia hidrográfica do Tietê numa rede de drenagem artificial. Acima nos anos 1930, quando o Pinheiros constituía um curso fluvial gabaritando vários meandros vadeando por uma várzea de inundação. Abaixo, o Pinheiros nos anos 1990, transformado num canal por sucessivas obras de retificação, com terraços antropogênicos delimitando o novo curso (Fonte: < http://www.novomilenio.inf.br/santos/h0102r.htm > e < http://www.emae.sp.gov.br/canais.htm >. Acesso: 23-05-2005) 6 644 Em tal esquema, as águas do Tietê, que deveriam correr na direção da calha do Paraná, escoar através da Bacia da Prata e desembocar no Atlântico entre a Argentina e o Uruguai, ganharam um curso inteiramente novo. Primeiramente, foram barradas pela Usina Edgard de Souza, que passou a controlar sua vazão a jusante. Segundo, através da reversão do rio Pinheiros, as águas deste escoadouro natural foram empurradas por estações elevatórias (Usinas de Traição e Pedreira) até o reservatório da Billings e daí precipitadas, por meio de tubulações superficiais e subterrâneas, para a UHE Henry Borden em Cubatão, cujo efluente passou a ser vertido no rio de mesmo nome. Desta forma teve início o Sistema Billings, mantendo relação siamesa com um leque de objetos hidrotécnicos construídos pela Light nas imediações da capital paulista. O reservatório transformou o que dantes fora uma rede de drenagem que escoava através do caudal do rio Grande para os rios Pinheiros e Tietê, em fluxo tributário de um colossal lago artificial, cujo contorno dendrítico testemunha a existência de taludes, ravinas e vertentes afogadas pela represa. O espelho d’água do reservatório tornou-se indiscernível da paisagem do que viria tornar-se Grande ABC, que com exceção de Mauá e São Caetano do Sul, é compartilhado por todos os municípios da região (Figura 58). Seja dito que vis-à-vis às precípuas finalidades energéticas, a Represa Billings observou adaptações relacionadas à concentração num único ponto do espaço de considerável quantidade de águas, induzindo predicações e usos não-premeditados pelo projeto original. 6 645 O Reservatório Billings, de modo análogo a outras obras hidráulicas dispostas nas vizinhanças de São Paulo, tornou-se uma área de recreação campestre, de atividades de lazer e de esportes náuticos, atraindo banhistas e pescadores (LANGENBUCH, 1968: 419). FIGURA 58 - Mapa da Represa Billings e Limites Municipais (Fonte: ISA, 2002) As qualificações estéticas do entorno originaram uma ampla rede de restaurantes com clientela concentrada nos fins de semana. Estas atividades ativaram o comércio e a convivialidade, gerando milhares de empregos diretos, e isto, lado a lado com vendedores ambulantes, minhoqueiros e inclusive pescadores profissionais, cuja fonte de renda passou a gravitar em torno da represa, embrenhando-se pelas embocaduras dos rios que passaram a ter foz no reservatório artificial 6 646 e capturando pescado prontamente distribuído junto ao mercado informal. Faz 65 anos que a pesca profissional é desenvolvida na região da Billings. Nos anos 1990, quando formava base da sobrevivência de aproximadamente 500 famílias, estas fundaram, em setembro de 1991, com a assessoria de Wladimir Cabral Lustoza, advogado ambientalista do Grande ABC Paulista, a Associação Ecológica, de Pescadores Profissionais, Amadores e Amigos da Represa Billings. O peixe resultante da captura, com destaque para a tilápia, condenado por diversas agências governamentais e laudos técnicos, ainda assim encontra mercado seguro junto à população de baixa renda da região. Por último, e igualmente um desdobramento não previsto no Projeto da Serra, o reservatório, em razão de seu valioso acervo ecológico, tornou-se foco prioritário das mobilizações ambientalistas do ABC Paulista, mobilizando desde os anos 1970, expoentes da sociedade civil atentos ao avolumamento da destruição da represa. Neste aspecto, a importância dos mananciais da represa Billings não se resume aos seus estoques de água. A área abriga significativa cobertura de mata atlântica, formação biogeográfica do tipo pluvial ou chuvosa, constituindo uma das “muralhas verdes” que delimitam a mancha urbana da RMSP ao norte e ao sul. Esta formação vegetal conquistou notoriedade na esteira das mobilizações internacionais em defesa das rainforest ou regenwald, encetadas principalmente a partir dos anos 1970, agregando “signo ecológico” a uma formação florestal que era, até então, considerada, a fortiori, apropriada para a produção de lenha e de carvão vegetal 6 647 (PRADO JÚNIOR, 1998: 87/88). Num parecer fitogeográfico, a mata atlântica, definida do mesmo modo, como floresta pluvial atlântica, ...semelhantemente à Floresta Amazônica, designa um complexo vegetacional que, embora dominado pela floresta pluvial montana, engloba tipos muito díspares. Enquanto a floresta hileana é de planície, a atlântica é de altitude (RIZZINI, 1976: 75). Rubrique-se que este bioma confere a um dos mais importantes hot spots (centros de endemismo e alta biodiversidade), encontrados nas regiões tropicais do planeta. Outrora vicejando em toda a cadeia montanhosa litorânea, do Nordeste ao Rio Grande do Sul, a mata atlântica foi agredida desde os primórdios da colonização, restando, no início do II Milênio, apenas 7,3% da cobertura original. Outro dado de excelência é que a mata atlântica constitui um habitat que abriga número significativo de espécies que no Brasil, estão ameaçadas de extinção (SIMÕES et LINO, 2002: 13). Quanto ao perfil da vegetação dos mananciais, muitas foram as alterações provocadas pelas diversas intervenções antropogênicas. Outrora, abundavam as madeiras de lei, extintas pela atividade dos lenhadores. Foi comentado, as matas serviram de matéria prima nos Séculos XIX e XX para próspera indústria carvoeira, que funcionava em muitos sítios da extensão hoje coberta pelo reservatório. Com a implantação da ferrovia, a mata nativa foi explorada para a produção de dormentes e outras solicitações da estrada de ferro. A devastação da cobertura vegetal provocou quase desaparição de um capital natural que dantes, a floresta concedia de modo generoso. O 6 648 palmito (Euterpe edulis), ingrediente clássico da dieta regional do Caaguaçu e que sustentou as primeiras levas de imigrantes italianos, persiste hoje apenas nos redutos mais escondidos do alto da serra (Cf. MACEDO, 1992: 24/25). Mas, apesar de toda devastação, nos recantos mais recuados do Grande ABC ainda é possível localizar vários dos componentes da fauna original. Na região da Billings e do entorno, ainda podem ser encontrados o veado do mato, a onça-pintada, a paca, a capivara, o quati, sagui e diversas espécies de primatas. Aves como arapongas, garças e tiribas esvoaçam de um canto a outro da floresta. No chão, rastejam cascavéis, urutus e jararacuçus. Inclusive nas beiradas do reservatório, aparentemente alheios a toda poluição dos arredores, nidificam muitas aves. Este seria o caso das garças e dos colhereiros, que sobrevivem dos peixes e de pequenos animais que encontram, vivos ou mortos, nas margens da represa. No tocante à ictiofauna, dentre os peixes que deambulam pela massa líquida do reservatório e dos rios que o alimentam, a traíra (Hoplias Malabaricus) e o lambari (Astynax bimaculatus), são nativos. Quanto à carpa (Cyprinus carpio) e a tilápia (T. Melanopleura), tratamse de espécies alienígenas: a primeira, introduzida pelo antigo serviço de piscicultura da Light em 1948 e a segunda, importada do Congo quando este país ainda era uma colônia belga. Solta na Billings em 1953, a tilápia, em razão de suas características, viria dominar quase totalmente o nicho ecológico. 6 649 Assim, certas espécies habitam unicamente nos braços menos poluídos, pois não toleram a contaminação e/ou a competição com a tilápia. Nesta conspecção, estão incluídos peixes como o bagre (Rhamdia sp), o cascudo (Plecostomus sp), o cará (Geophagus sp) e o piau (Leporinus copelandi), todos nativos do bioma original. É importante frisar que a despeito das alterações antropogênicas verificadas na região dos mananciais, estes não deixam de constituir um importante acervo ambiental. Além dos remanescentes do meio natural, este espaço, até mesmo por contraste com a artificialidade fulgurante da metrópole, terminou percebido como parte da natureza. Deste modo, a represa, um objeto espacial eminentemente artificial, e à revelia de ter sido projetada apenas como um reservatório, terminou apaixonadamente adotada pelo imaginário ambientalista. A Billings certamente constituiria motivo para recordar a prédica segundo a qual os objetos artificiais, desde que apreendidos como um dado inerente ao espaço habitado, terminam incorporados à natureza: Muitas vezes o que é imaginamos natural não o é, enquanto o artificial se torna ‘natural’ quando se incorpora a natureza. Nesta, as coisas criadas diante de nossos olhos, e que para cada um de nós é novo, já aparece às novas gerações como um fato banal. O que vimos ser construído é, para as gerações seguintes, o que existe diante delas como natureza. Descobrir se um objeto é natural ou artificial, exige a compreensão de sua gênese, isto é, de sua história (SANTOS, 1988: 75). No que exemplifica as venturas e as desventuras da experiência humana no tempo e no espaço, será justamente esta percepção do 6 650 reservatório, subentendendo-o enquanto um “objeto ecológico”, que energizará grande parte das polêmicas relacionadas com este reservatório artificial nos anos finais do Século XX. Desta feita, seria também possível esperar que o dinamismo da sociedade, tão pródigo em caminhos e em opções, possa oferecer aos metropolitas a desejada solução para os problemas da Billings, tendo à frente o interesse público, a preservação das águas doces e a continuidade da vida. 12.2. OS MANANCIAIS FRENTE A “NÃO-POLÍTICA” DE ÁGUA DOCE Paralelamente à percepção da Billings que foi sendo pouco a pouco delineada no imaginário dos metropolitas, a necessidade de obter água potável passou a inserir o reservatório na ótica dos prementes interesses hídricos da região metropolitana, interpondo a revisão dos propósitos até então colocados para o funcionamento da represa. Vale lembrar que a qualidade das águas do reservatório foi boa durante a maior parte de sua história. Mesmo a reversão do Tietê não chegou a alterar drasticamente as características de suas águas. Até a década os anos cinquenta, embora existissem sinais evidentes de um processo de contaminação em expansão, o rio ainda se mantinha relativamente limpo. 6 651 Os paulistanos recorriam ao Tietê para desfrutar de lazer, com clubes dispostos nas margens exibindo trampolins utilizando o curso d’água como uma piscina natural, dentre estes, os famosos clubes Esperia e Tietê, localizados próximos da atual ponte das Bandeiras. Assim sendo, a água da represa, que tanto poderia gerar energia elétrica quanto abastecer a população (utilizações ao menos em tese não-excludentes), transformou-se em alvo de uma disputa na qual os interesses relativos à matriz energética e ao abastecimento público de água potável, entraram em clara contradição. Neste enfrentamento, o primado energético soube se impor explorando em seu proveito uma ideologia do progresso (SEVÁ, 1999 e 1997), e de resto, combinar as mazelas da desmesurada expansão urbana da região metropolitana às suas expectativas. Explicitamente, as pressões exercidas pela antiga Light e pela Eletropaulo, procuravam justificar a perpetuação do funcionamento da represa Billings em nome da irreversibilidade do modelo energético em operação. Paralelamente, manipulava-se a hipótese de uma crise no fornecimento de eletricidade devido à suposta incapacidade de atender à demanda de energia diante de uma eventual paralisação do aparato implantado, argumentação que tradicionalmente, se inscreve nos postulados que têm articulado as grandes empreiteiras ao setor elétrico, garantindo uma pródiga profusão de megaprojetos. Outro fator que explica a resiliência do Sistema Billings residiu nas dinâmicas urbanas registradas na Grande São Paulo. Tendo por pivô o processo desenrolado nos anos 1970 sob a rubrica do “milagre brasileiro”, o período foi marcado pela consolidação da RMSP, um 6 652 vasto conglomerado de 39 municípios capitaneados pela cidade de São Paulo. A GSP, pelo próprio fato de tomar a dianteira no processo de espacialização da formação social brasileira, foi detentora dos mais assombrosos índices de expansão urbana. Neste recorte, reforçando o que foi comentado, seria impossível pautar qualquer análise credível concatenando os recursos hídricos e o meio urbano brasileiro deixando de avaliar o gigantismo dos dados referentes aos deslocamentos demográficos, responsáveis tanto pela expansão da RMSP quanto pela metropolização do país. No Brasil, os deslocamentos do meio rural rumo às metrópoles, consecutivos ao modelo econômico implantado pelo regime militar de 1964, assumiram proporções verdadeiramente ciclópicas. Em 1920, 10% da população brasileira habitava as cidades; mas em 1970, esta porcentagem alcançava 55,9%. Nos anos 1960, quarenta milhões de brasileiros deixaram a zona rural e deste contingente, nada menos do que nove milhões foram atraídos para a metrópole paulista. No que referenda o crescimento da RMSP, esta absorveu entre 1970 e 1980, 17,37% da massa de migrantes do país, aproximadamente o dobro dos que procuraram o Grande Rio (SANTOS, 1993b: 59). A despeito de ocupar uma superfície pequena no conjunto do território nacional (Repetimos: 7.946,96 km², ou 0,9% da área total do país e 3,5% do ESP), a GSP congrega a maior aglomeração humana da república. Em poucas décadas, o incremento populacional carreou centenas de milhares de novos moradores para a conurbação, 6 653 despreparados para enfrentar um mercado de trabalho exigente e uma economia complexa e sofisticada. Oriundos em especial do meio rural nordestino, estes novos metropolitas careciam de condições de inserção em face das transformações do perfil socioeconômico que vagarosamente, foram se desenhando na região, raiz de não poucos problemas que poderiam ser antevistos quanto aos mananciais (Ver entre outros, FATHEUER, 1992). Aspecto importante, os municípios do Grande ABC absorveram fatia significativa deste boom migratório, inédito na história do país. Centro de propulsão de um “milagre econômico” do qual um dos eixos foi a indústria automobilística, a população da região multiplicou-se por dois em duas décadas e por quatro em três décadas (Figura 59). FIGURA 59 - Centro de Mauá nos anos 1970, quando a cidade ainda apresentava uma fisionomia de centro urbano periférico dos arrabaldes da metrópole. Neste momento, a cidade era o lar de 100.000 habitantes, contra 10.000 somente duas décadas antes (Fonte:< https://mauamemoria.blogspot.com/ >. Acesso: 01-01-2004) 6 654 Demograficamente, o Grande ABC passou de 200 mil habitantes nos anos cinquenta para pouco mais de 500 mil habitantes em 1960 e nos anos noventa, para 2,2 milhões. Em São Bernardo do Campo, a população saltou de 82 mil habitantes em 1960 para 650 mil em 1991; Mauá passou de 29 mil para mais de 300 mil; Diadema, que radicava 12 mil habitantes, alcançou cerca de 475 mil habitantes. Em 2004, a sub-região era o lar de 2.511.743 habitantes, algo como a terceira ou quarta cidade brasileira (dados SEMASA, 1991: 7 e IBGE). Os impactos socioambientais gerados por tamanha concentração populacional numa fração da RMSP (1,41% da população nacional em 0,01% do território), e pela profusão de aparatos produtivos em uma área reduzida em tão curto lapso de tempo foram tremendos. Por exemplo, São Caetano do Sul, considerada a cidade líder em renda per capita no Brasil, ostenta níveis alarmantes de poluição do ar (WEHRHAHN, 1996: 55). Ao mesmo tempo, Diadema e o bairro da Vila Paulicéia, em São Bernardo do Campo, destacam-se entre os episódios mais agudos de poluição por partículas inaláveis na RMSP (Cf. EMPLASA, 1997). A poluição hídrica desencadeada pelos esgotos domésticos, atirados sem vacilação no corpo líquido da represa, foi reforçada pela enorme concentração industrial. Uma geração vultosa de resíduos sólidos e efluentes líquidos e gasosos, passou a contribuir com seu mórbido quinhão de contaminação das águas doces, atingindo, direta ou indiretamente o solo, terrenos abandonados, a atmosfera e os pequenos riachos que no geral, deságuam na Billings (Figura 60). 6 655 FIGURA 60 - Trecho final do córrego Ribeirão Pires: poluído, mais adiante suas águas alcançam o reservatório Billings. Dados da SABESP (2004) informam que neste município 65% do esgoto é coletado, do qual 70% recebe tratamento. Contudo, o curso dos rios na área urbana exibe, de modo contumaz, múltiplos focos de águas malsãs (Foto: Maurício Waldman, dezembro de 2003) Contudo, os comprometimentos ambientais não se restringiram aos efeitos infaustos da industrialização ou das demais atividades desenvolvidas no meio urbano. Na década de cinquenta, em pleno alvorecer do rodoviarismo, cuja pedra angular foi a instalação do parque automobilístico em São Bernardo do Campo, a quilometragem das estradas de rodagem brasileiras cresceu 48%, e quanto à rede pavimentada, esta foi quadruplicada. Os caminhos de ferro, que no século anterior haviam simbolizado o suprassumo da modernidade, foram aposentados em favor das vias asfaltadas, o novo símbolo do progresso e do desenvolvimento (Cf. 6 656 KUVASNEY, 1996: 57). Com a metropolização, a ferrovia tornou-se o meio de transporte dos setores de baixa renda, os pobres, segmento sem outra opção que não aceitar as benesses estigmatizadas deste meio de transporte. A antiga região do Caaguaçu/São Bernardo, cujo impulso urbano metropolitano inicial havia sido catapultado pelo trem, passa a ser conotada por um processo de reterritorialização direcionado em favor dos veículos automotores: o carro particular como nova modalidade para os deslocamentos diários, e os caminhões para o transporte de cargas. A região do ABC Paulista torna-se um corredor através do qual, transitam cargas galgando e descendo a serra, utilizando como eixo dos fluxos de tráfego, a via Anchieta e posteriormente, a rodovia dos Imigrantes. Trespassando o Grande ABC precisamente em meio aos mananciais, a rede rodoviária promoveu adensamentos populacionais ao longo das vias de tráfego, induzindo uma ocupação que se tornou ainda mais inevitável e irreversível pela valorização deste modal de transporte pelas esferas governamentais, avessas ao ferroviarismo. Um agravante suplementar foi a deterioração da Serra do Mar e do patrimônio natural que abarca, verdadeiramente excepcional, que tem sido ameaçado por estas intervenções antropogênicas. A área da Serra, detentora de uma proeminência planetária, é reconhecida como a mais importante das escarpas tropicais do planeta: ...na categoria de grande borda assimétrica do Planalto Brasileiro, é o mais contínuo e monumental acidente 6 657 geológico e geomorfológico de toda a face oriental do continente sul-americano [...] Ainda em termo macro, a Serra do Mar é considerada o maior banco genético remanescente da natureza tropical atlântica, em toda a face leste do Brasil, o que vale dizer em toda a vertente oriental da América do Sul (AB’SABER, 2004a: 381). Consequentemente, as novas vias asfaltadas não só passam a reorganizar o espaço (seja promovendo a escalada urbana da serra por intermédio dos bairros-cota que emergem a partir da Baixada Santista no sopé da Serra do Mar e pelos núcleos que eclodem nos rebordos do planalto), como igualmente inauguram novas variantes de contaminação do ar, da água e do solo, arregimentando assim, novos espaços ao mapa de riscos ambientais do ESP. Além do ruído e da elevada concentração de gases veiculares, rigorosamente ninguém pode afirmar o que exatamente circula nas rodovias que cortam as encostas. Possivelmente de tudo: cargas perigosas, substâncias contaminadas, materiais radioativos, resíduos industriais e um profuso coquetel de substâncias perniciosas que de quando em quando, os serviços noticiosos notificam em denúncias, textos e imagens, como insistentes causus fortuitus de calamidades que empesteiam as encostas serranas e os mananciais da Billings, peniticiando nesta cenografia, os grupos sociais neles assentados. Nesta ordem de exposição, seria um juízo duvidoso imaginar que esta sucessão de malefícios ambientais transcorreu sem algum tipo de sansão estrutural. Afinal, a qualidade das águas metropolitanas é decorrência direta da gestão do espaço da RMSP. Neste sentido, é que se poderia, justificadamente, obsequiar relativamente à posição 6 658 assumida pela Light/Eletropaulo, sob cuja responsabilidade mantevese um volume significativo destas águas. Recorde-se que tanto a Light quanto a Eletropaulo posicionavamse determinadamente enquanto empresas de energia. Pois então, foram parceiras no processo de comprometimento das águas da conurbação, isto pelo fato de estarem interessadas exclusivamente nos volumes desviados para o esquema energético, à revelia da qualidade do líquido, juízo afiançado pelo benemérito defensor do meio ambiente, Samuel Murgel BRANCO: “À companhia Light, então detentora do monopólio energético, não interessava a questão do abastecimento, e muito menos da despoluição do Tietê e da Billings, uma vez que esgotos, ao passarem por turbinas, geram eletricidade do mesmo jeito. Na medida em que o Sistema Billings foi-se tornando insuficiente - e como à Light não interessavam os aproveitamentos de outros potenciais a jusante, que contrariavam seu monopólio -, começou a crescer uma demanda de esgotos, para acionar novas unidades instaladas em Cubatão” (1991: 55, grifos nossos). Assim, objetivamente, a Light-Eletropaulo consorciaram-se a uma política de proliferação de esgotos, pela simples razão de que quanto mais esgotos fossem encaminhados para os geradores, tanto melhor, pois desta maneira, seria possível gerar mais energia sem arcar com qualquer custo adicional. Esta proposição é subjacente nas proposições pensadas desde pelo menos os anos 1950 para proteger o Sistema Billings (Projetos Greeley-Hansen, Hazen-Sawyer e Hibrace), nas quais, os interesses 6 659 da Light-Eletropaulo para direcionar os esgotos a UHE Henry Borden, maximizando assim a geração de eletricidade, foram manifestos. Estes projetos contrastavam com a Solução Integrada, idealizada no bojo do PMDI, datada do início dos anos 1970, que protocolava a preservação dos mananciais da Billings para prover o abastecimento de água da RMSP. Esta meta explicita-se pelo fato da Solução Integrada subscrever o fim das reversões e o tratamento dos efluentes atrás da Serra da Cantareira, que só depois de purificados seriam lançados no Tietê. Excluindo a importação de aviamentos e de know-how (que também implicam em dependência tecnológica), a proposta era mais barata, cerca de 40% do custo total dos outros projetos, e ao mesmo tempo, destacava-se por sua singularidade prática. A Represa Billings, livre do flagelo do bombeamento de esgotos, permitiria o fornecimento de água mais facilmente potabilizável para a RMSP, ao mesmo tempo em que acentuaria sua vocação para o lazer, balneabilidade, esportes náuticos, recreação, pesca amadora e profissional. Concentrando apenas águas limpas, a represa deixaria de representar perigo para a saúde pública, sem contar que o meio ambiente aquático e das matas dos mananciais seriam intensamente revitalizadas. Neste plano, nas palavras do engenheiro Rodolfo Costa e Silva, “não era o primado energético que dominava. Era o primado metropolitano, o primado do desenvolvimento, a defesa da Billings” (SEMASA, 1990: 21). Entrementes, a engenhosa Solução Integrada 6 660 contrariava abertamente os interesses da empresa, e assim, foi descartada e devidamente engavetada (Figuras 61 e 62). FIGURA 61 e 62 - Acima, os Projetos Greeley-Hansen, Hazen-Sawyer e Hibrace (favoráveis à Light/Eletropaulo), previam o barramento do Tietê em Pirapora e Edgar de Souza e dispositivos de bombeamento em Traição e Pedreira para levar os esgotos até a represa Billings, para daí, despencar pela Serra do Mar e gerar energia em Cubatão. Na Solução Integrada, os esgotos seriam conduzidos por um túnel, de Leopoldina, na confluência do Pinheiros com o Tietê, para detrás da serra, onde seriam tratados em Pirapora, numa cota mais baixa (Croqui referente às soluções propostas para o Sistema Billings, reproduzido de SEMASA, 1990) Assinale-se que se levando em conta os interesses matriciais da Light e da Eletropaulo, não seria surpreendente o descaso de ambas 6 661 quanto aos problemas relacionados ao saneamento e abastecimento de água. Na realidade, existe na raiz desta omissão uma ordem de motivações concreta, que parecendo mais preocupada em produzir esgotos do que água potável constituiu-se verdadeiramente numa “não-política”, ou para apensar, numa antipolítica de águas doces. Ademais, a inviabilização dos recursos hídricos como provimento de água potável para a população, além de ser uma garantia para o monopólio energético da empresa (por reforçar sua utilização para fins energéticos na ausência de qualquer outra utilização possível), paralelamente fornecia sólido argumento para implantar caríssimos sistemas de abastecimento, filão de contratos milionários disputados pelas empreiteiras e evidentemente, pelas agências de financiamento externo. Seria possível ainda arrolar disfuncionalidades que passaram a comprometer a Bacia Hidrográfica Billings em termos da produção hídrica. Dentre estes estão a eutrofização da água, a contaminação por metais pesados, a proliferação de microrganismos patogênicos e de algas tóxicas. Outra anomalia foi o assoreamento da represa, desdobramento direto da erosão e do transporte dos mais variados resíduos urbanos pelas chuvas, assim como pelo acúmulo de lama fecal, resultante da decantação da parte sólida dos dejetos humanos presentes nos esgotos, formando camadas com até sete metros de espessura em alguns pontos do reservatório. Por isso, estima-se que a capacidade da Billings, da cubagem original de 1,23 bilhão de m³, retraiu, em 6 662 decorrência do acúmulo e decantação de sedimentos, para algo em torno de 1,16 bilhão de m³ (GIUSTI, 2005: 1). O comprometimento incessante das águas do reservatório chegou a tal ponto que visando a preservar o braço do Rio Grande que abastece o ABC desde 1958, o governo paulista construiu em 1982 a Barragem Anchieta, situada à altura da Via Anchieta, criando com isso dois compartimentos na Billings: Rio Grande e Pedreira (Figura 63). FIGURA 63 - Mapa da bacia ambiental da Represa Billings destacando o braços Rio Grande (1) do reservatório, considerado relativamente limpo, classificação que somente faz sentido na comparação com a profunda contaminação que tomou conta da Billings como um todo. Note-se que a rede de cursos d’água que deságuam na Billings, percorrem no mais das vezes áreas urbanizadas em maior ou menor intensidade, explicando a razão de funcionarem como canais de esgoto a céu aberto (Fonte: SABESP, imagem reformatada e masterizada pelo autor) Este barramento, que teve por fito vedar a penetração do bombeamento de esgoto no setor em que a SABESP capta água para a rede pública, expôs de modo indireto que o destino da Billings como um todo não era do interesse da Light, que perseverou nos tratos que 6 663 restringiram a represa ao papel de massa líquida para gerar energia (Vide MACEDO, 1992: 61 e BRANCO, 1991: 50). Entretanto, mesmo sendo as águas desse segmento da Billings coloquialmente definidas como “mais limpas”, seria pertinente aferir que, na melhor das hipóteses, em face dos processos de degradação também se repetirem nesta área, tão só considerá-las como “menos sujas”. Objetivamente, a Billings, mais do que um reservatório, tornou-se na voz dos críticos da dilapidação dos mananciais, no sucedâneo de uma lagoa de estabilização, onde a DBO dos esgotos é atenuada, antecipando processos técnicos objetivando menor morbidez. A gravidade do passivo ambiental da represa Billings não passou despercebida ao nascente movimento ecológico da região. No ano de 1971, em pleno regime militar, foi organizada a primeira grande manifestação alertando para a destruição da represa. Encabeçada pelo ambientalista Fernando Vitor, neste protesto, dadas as condições de repressão vigentes na época e visando impedir a identificação por parte da polícia da ditadura militar, os manifestantes participaram no ato totalmente encapuzados (Vide Figura 64). A partir deste episódio, nunca mais a degradação da Billings abandonou a mídia. Reunindo mais e mais cidadãos preocupados com este lago artificial construído e mantido pela vontade humana, 6 664 protestos se avolumaram no campo político e das manifestações populares, incluindo peças culturais. FIGURA 64 - Manifestação contra a contaminação da Represa Billings em pleno regime militar: ecologistas do Grande ABC, liderados pelo ambientalista Fernando Vitor de Araújo Alves, protestam nas margens da represa no bairro de Eldorado Paulista, em Diadema, denunciando a poluição do reservatório (Fonte: Jornal O Povo, de Diadema, edição de 21 de novembro de 1971) Na voz dos cantadores nordestinos que se tornaram patrimônio musical do ABC, os mananciais são agora tema de cantorias, forrós e da literatura de cordel, claro sinal de adoção da causa da Billings pela sociedade mais ampla. A Billings tornou-se, pois inseparável de todo debate ambiental relacionado com o Grande ABC e a RMSP. 6 665 12.3. METRÓPOLE EXPANSIONISTA E DESTRUIÇÃO DOS MANANCIAIS Retomando a juízo exposto sobre a questão dos mananciais, esta particularizou-se pela incorporação de sentidos insuspeitos, que lhe foram agregados no cadenciamento da história social da RMSP. Deste modo, a represa Billings transitou da percepção enquanto “barragem energética” para um entendimento radicado na imagem de uma “caixa d’água metropolitana”, passando, em seguida, à sua metamorfose em um “objeto ecológico”. Em face do agravamento da crise hídrica e da irrupção no seio da consciência social de uma generalização da rarefação da água numa escala global, é evidente que o contexto habilitou o fortalecimento de um debate no qual as nuanças ambiental e hídrica no seu stricto sensu, além de amalgamadas entre si, tornaram-se indispensáveis na avaliação de um corpo aquático que como a represa Billings, não tem como serem desassociadas. Contudo, as mudanças ocorridas na forma de compreensão da Billings não implicaram na paralisação ou recuo da deterioração do reservatório. Pelo contrário, os anos setenta e oitenta assistiram uma acentuação dos desequilíbrios, que alcançou uma dimensão jamais observada numa área metropolitana brasileira. Ao mesmo tempo, as necessidades hídricas da GSP induziram o rebatimento e delegação da responsabilidade pelo abastecimento da grande metrópole para áreas assaz distantes, aliciadas ao papel de provedoras de água doce para a metrópole sedenta. 6 666 Como é sabido, a passagem do tempo se encarregou de mostrar o equívoco desta estratégia, tendo por resultado mais evidente, a semeadura de desgastantes disputas regionais relacionadas com a posse dos recursos hídricos. Numa situação passível de ser apontada noutras regiões metropolitanas do país, a adoção da estratégia de reverter bacias hidrográficas vizinhas à RMSP, agravou um quadro de inibições relativas ao acesso aos recursos hídricos, pois ao importar águas procedentes de regiões externas à metrópole paulista, estas foram transformadas a contragosto em credoras de um ônus hídrico que não era da sua responsabilidade. Neste particular, recorde-se que a partir de meados dos anos 1970, a sobrevivência da RMSP passou a depender do suprimento fornecido pelo Sistema Cantareira, cujas provisões do líquido, advém da reversão de considerável volume de água doce da bacia do Piracicaba. Fato em si mesmo gerador de tensões evidentes (até porque a região do rio Piracicaba representa um importante polo econômico do estado), a disputa pelo capital hidrológico desta bacia acabou determinando a revisão, em 2004, da outorga original das águas, datada de 1974, em favor de nova partição dos patamares de utilização dos recursos hídricos. Este é um dos motivos que instiga a considerar que a questão dos recursos hídricos na metrópole tem conquistado contornos cada vez mais radicalizados, solicitando revisão dos procedimentos usuais de enfrentamento da situação. Neste sentido, o histórico socioambiental do Sistema Billings é sem dúvida alguma, dos mais ilustrativos. Resumidamente, com base 6 667 nos pressupostos que alicerçaram a gestão do sistema Billings, os “tributos pagos pelo cidadão paulista para a manutenção de um genial sistema de geração de energia” (BRANCO, 1991: 57), incluiriam ao menos quatro graves consequências para o conjunto da RMSP, das quais todos os metropolitas, em maior ou menor grau, se ressentem: 1. O engavetamento dos projetos de saneamento e de contenção das enchentes na RMSP, sumariamente descartados pelo poder de influência da velha Light, uma vez que contrariavam os interesses comerciais da empresa. Entre estes projetos, estavam os propostos pelo engenheiro Saturnino de Brito, responsável pelo saneamento de mais de cem cidades brasileiras e, com razão, considerado uma das glórias da engenharia nacional. O plano de Saturnino de Brito de 1904 previa o barramento de vários tributários do Tietê a montante de São Paulo, ou seja, antes da cidade de São Paulo, contribuindo para regularizar as enchentes e igualmente, como reserva hídrica para irrigação das lavouras e abastecimento urbano. No mais, propostas de engenharia esboçadas por Catullo Flaquer Branco nos anos 1930, previam a construção de barragens a jusante de São Paulo, as quais seriam beneficiadas pelas obras regularizadoras de Saturnino de Brito. Porém, ...à Light não interessava nem uma, nem outra coisa. Assim como não lhe interessou, mais tarde, o desvio dos esgotos da metrópole para o rio Juqueri, desaguando, tratado, no Tietê a jusante e não a montante das suas barragens energéticas (BRANCO, 1991: 5). 6 668 Por conseguinte, a metrópole paulista, que poderia ter controlado ou minimizado desde o início do século passado o problema das enchentes, enfrenta até hoje os prejuízos derivados das inundações (Ver a respeito, BRANCO, 2000: 22/23). Ao mesmo tempo, a urbe passou a arcar com as sequelas da destruição dos equilíbrios vitais do reservatório Billings, determinando a desvalorização das margens da represa, o comprometimento da indústria pesqueira (no vale do Tietê, no reservatório e no estuário de Santos), acarretando perda de oportunidades de lazer e prejuízos ambientais, sem contar com o mau cheiro que nos dias quentes, devassa os domicílios num vasto entorno da metrópole. 2. Uma vez inviabilizada a captação de água potável do Alto Tietê e da Billings, foi desenvolvido em seu lugar o fantástico sistema Cantareira, “muito mais caro, e em prejuízo das regiões doadoras” (ALVES, 1991: 66). O “torvelinho hídrico” criado pela Light agravou em escala estadual a crise dos recursos hídricos, pois objetivamente “o problema da necessidade de reversão tende a criar possíveis situações de conflito entre usuários de água de regiões vizinhas” (Cf. AMARAL E SILVA, 1991: 61). Através do Sistema Cantareira, passa a ser feita a reversão das águas de cabeceira dos fluxos formadores do rio Piracicaba, pelo que se transferiu o problema do abastecimento da RMSP para a região de Campinas e partes do estado de Minas Gerais. Ademais, este sistema funciona em detrimento de outra região metropolitana do ESP, a de Campinas, ela mesma às voltas com demandas crescentes de água 6 669 doce, e de quebra, perturba redes hidrográficas que estão sob sobrecarga constante: Vários são os exemplos de ecossistemas sob stress ou quase mortos por causa de reversões de águas entre bacias hidrográficas para suprir as necessidades humanas. Esta é a situação da Bacia do Rio Piracicaba (São Paulo), que possui grande parte de suas nascentes revertidas para o abastecimento de água potável da Região Metropolitana de São Paulo, deixando a segunda maior região de crescimento econômico do Estado em uma situação periclitante (Cf. RUTKOWSKI, 1999: 18). Obra cara, gastando milhares de quilowatts de energia para transpor a Serra da Cantareira, trata-se, no cortante veredito do engenheiro Rodolfo Costa e Silva, de “um projeto de antiengenharia e de antidesenvolvimento” (SEMASA, 1990: 15 e Figura 65). FIGURA 65 - Esquema do Sistema Cantareira, revelando a complexidade dos percursos da captação da água e os consideráveis desníveis a serem vencidos para a adução do líquido, direcionando-o para a RMSP (Fonte: SABESP. Imagem institucional reformatada e masterizada pelo autor) 6 670 Não obstante, do ponto de vista da concessionária era, sobremaneira, uma obra desejável, ...uma vez que traria para o Sistema Billings 33 m³/s de águas provenientes de outras bacias, as quais, transformadas em esgotos, iriam poluir a Represa Billings e o estuário santista, mas aumentariam significativamente o seu potencial em Cubatão. Mesmo que em detrimento da região de Piracicaba que, justamente no momento em que elevava o seu potencial poluidor pela instalação de indústrias de celulose, de álcool, de açúcar, etc., teve reduzidas as vazões diluidoras de seu rio (BRANCO, 1991: 57). O ponto culminante da reversão de águas na direção da RMSP teria epítome na execução do ciclópico Projeto Juquiá, programado para abduzir os caudais da bacia do Ribeira do Iguape, que irriga o Sul do estado de São Paulo e Nordeste do Paraná. O Vale do Ribeira do Iguape, uma das derradeiras reservas de mata atlântica de grande porte do país, é o espaço de vida de grupos de quilombolas e de grupos indígenas, cujo modo de viver, tradicional na forma e na essência, seria irremediavelmente comprometido pelo barramento, seguido de seríssimos impactos socioambientais. Transformado assim numa área de captação com mais de 700 metros de desnível com relação à metrópole, as águas do Projeto Juquiá, para alcançar a metrópole, teriam que ser bombeadas por instalações ciclópicas, uma verdadeira cachoeira ao contrário. 3. Nesta perversa associação da política de geração de esgotos com o torvelinho hídrico, o incentivo à “indústria das ocupações” 6 671 constituiu sequela direta desta estratégia. As áreas dos mananciais, ao deixarem de incorporar qualquer sentido em vista do descaso com a manutenção dos equilíbrios hidrológicos da Billings, terminaram informalmente solicitadas para absorver as mazelas das não-medidas metropolitanas, principalmente a demanda por moradia. Mais ainda, a consecução jurisprudencial de uma legislação de ocupação territorial (as Leis de Proteção aos Mananciais), terminou contraditoriamente incorporada aos mecanismos de reprodução da especulação imobiliária. Estes espaços, na perspectiva da ocupação irregular, oferecendo alto risco para seus ocupantes e incorrendo em restrições legais, são subvalorizadas no mercado imobiliário e, por conseguinte, oferecidas a preços baixos para a população carente (LUSTOZA, 1991 e ALVES, 1991). Os mananciais, abandonados pelo governo estadual, que exemplarmente sucateou a fiscalização, foram deixados a sua própria sorte, tornando-se presa fácil dos loteadores clandestinos. Isto posto, estes espaços passaram a integrar, fraus omnia corrumpit, a carteira imobiliária, plotando bairros inteiros como resultado da especulação de terrenos vendidos em “lotes e prestações”, prática esta que, tal como refletiu Caio PRADO JÚNIOR, consistiu no “maior veio de ouro que se descobriu nesta São Paulo de Piratininga do Século XX” (1998: 74). Este processo, abraçando práticas políticas clientelísticas, licitou favoritismos e criou base de apoio para muitas carreiras políticas: 6 672 Uma vez efetivada não só a venda como a ocupação dos lotes, saem os loteadores ou seus testas de ferro na defesa dos trabalhadores aí residentes, ajudando-os a formarem comissões ou associações de bairro com a finalidade de reivindicarem junto ao poder público toda sorte de infraestrutura e serviços (OLIVEIRA, 1982b: 134). 4. Por fim, terminando por materializar profunda desestruturação ambiental, tendo-se em vista que os seus impactos geomorfológicos provocados são complexos e de solução extremamente dificutosa (quando não insolúveis), a região ocupada dos mananciais tornou-se palco privilegiado de deslizamentos, enchentes e outras calamidades que assombram a pauta dos noticiosos da região (Figura 66). FIGURA 66 - Situação de Risco nos Mananciais do ABC: A foto acima mostra uma favela situada na região dos mananciais de São Bernardo do Campo no início dos anos 1990. Observe-se que em razão do perfil pedológico do solo, as precipitações pluviométricas, em vista da ação da erosão laminar, originam a formação de sulcos profundos, na ordem de dez a quinze metros, que terminam por engolir em meio a chuvas torrenciais, os habitantes destas precárias construções (Foto: Iconoteca do Vereador Wagner Lino Alves, 1991, São Bernardo do Campo, SP, gentilmente fornecida ao autor) 6 673 Outro detalhamento desta discussão corre por conta de que os problemas que emergiram da ocupação da região dos mananciais, em tese protegidas por um polpudo e minucioso corpo de leis e decretos, constituem clara demonstração de que a existência de um aparato legal não é, por si só, capaz de conter a ocupação dessas áreas (DEL PRETTE, 2000: 18; BENÍCIO, 1995: 76/77 e SÓCRATES, GROSTEIN et TANAKA, 1985), óbice que acontece tanto pelo fato do governo estadual ter abandonado a aplicação da lei, renunciando gradativamente à sua fiscalização, quanto por problemas estruturais da expansão da malha urbana, problemas aos quais se agregou a prática generalizada do loteamento clandestino, sintomas distintos de uma mesma postura. No que seria sintomático, diretrizes que nos anos 1980 deveriam funcionar encadeadas com a preservação dos mananciais, também não foram encaminhadas. Dentre estas, pode-se mencionar a criação do Núcleo Industrial da Zona Leste da capital e a implementação de obras de transporte de massa, como a linha Leste-Oeste do Metrô. Estas duas iniciativas, postulando um direcionamento espacial de expansão da região metropolitana tomando por eixo a calha do Tietê, poderiam ao menos atenuar em certa medida a pressão que sempre foi imposta aos cruciais e desamparados mananciais do ABCDMR, contendo o avanço urbano e a assegurando a vital função de produzir água potável (Vide SÓCRATES, GROSTEIN et TANAKA, 1985: 29). Estas considerações evidenciam o quanto a metrópole não está situada no vácuo, isto é, num locus ideal, apartada da interferência de agentes atuando de modo a desequilibrar um sistema que por sua 6 674 própria gênese, declinaria de modo inapelável para a entropia. Deste modo seria permitido indagar: ➢ Até que ponto as políticas de planejamento estão habilitadas a dar conta de um problema que se avoluma ano após ano, se de facto, a dinâmica da expansão da metrópole é antes regrada pelas “nãopolíticas” do que por normas legislatórias diuturnamente ignoradas ou derrogativamente transformadas em letra morta? ➢ Qual seria a repercussão deste contexto para a questão dos mananciais, que adentrou nos anos 1990 e no novo milênio marcada por ampla notoriedade do interesse público a ela investida? A mais ver, existiria espaço para respostas institucionais novas? ➢ Quais seriam as alternativas colocadas para a represa Billings em face das novas articulações e remodelagem econômicas, todas com inegável reflexo para a sociedade metropolitana? Repetindo a advertência contestadora do otimismo fácil, um dado crucial é que a ocupação dos mananciais, que conquistou impulso nas décadas anteriores, não tem dado mostras de arrefecimento. Ao invés disso, a destruição das áreas de preservação foi catalisada a partir dos anos noventa pelo recrudescimento da crise social. Seria prudente clarificar, esta nova onda de ocupações ocorre ao mesmo tempo em que o país se integra num ajuste neoliberal que envolve uma estratégia de gerenciamento da economia objetivamente associada com a expansão da pobreza e ao esgarçamento do tecido social (BOITO JÚNIOR, 1999: 86/110). 6 675 No Brasil, o receituário neoliberal pautou a conduta do governo Fernando Collor de Mello (1990-1992), do interregno Itamar Franco (1992-1994), as duas gestões do presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-1999 e 1999-2002), e para completar, na presidência de Luís Inácio Lula da Silva (2003- ). Explicitamente, o histórico deste processo revela o modo subalterno da forma como se deu o ingresso do país na globalização. Similarmente a várias nações periféricas, não foi propriamente o Brasil que decidiu entrar na globalização, mas antes, foi esta que decidiu entrar no país, um diktat regido pela rapidez, propulsiva de um atractor promotor de desordem incontrolável (apud SANTOS, 1997: 4/5). Assim, paralelamente à desregulamentação da economia, outra consequência desta lógica econômica foi uma acelerada terceirização da economia regional (que, aliás, também se verificou na capital e em inúmeras cidades brasileiras), eclodindo em meio a uma torrente de mudanças abruptas que acirraram ainda mais o conhecido quadro de desarmonias existentes no Grande ABC. Neste novo marco, nota-se uma queda do peso relativo da indústria, substituído pelo crescimento do comércio e do setor de serviços. Todavia, esta tendência não redundou nem no robustecimento e tampouco em saúde econômica para o Grande ABC Paulista. O setor industrial protagonizou drástica redução de mão de obra industrial. Porém simultaneamente, o setor terciário não teve capacidade de absorver os trabalhadores dispensados pelas fábricas, uma minoria num “mar” de novos desempregados (PENHA, 1992). 6 676 Afiançando a constatação do parágrafo anterior, ressalve-se que a expansão global do terciário nos finais do Século XX, não reflete meramente a “absorção” das atividades produtivas por uma nebulosa “esfera de serviços”. Na realidade, antes condiz com a transformação das atividades produtivas, que passam a incorporar mais tecnologias, mais conhecimentos e mais trabalho indireto, sem efetivamente dar cabo de problemáticas sociais e econômicas que irrompem a partir da ordem global (DOWBOR, 2001: 11). Pois bem, tal como assevera o engenheiro e economista francês Alain LIPIETZ, o processo de terceirização da economia em curso, é indissociável de uma incessante polarização das qualificações e dos rendimentos, revertendo em nítidos rebatimentos na concretude socioespacial (1986). No Grande ABC Paulista, este direcionamento maximizou mecanismos de exclusão social em curso, confirmando os mananciais enquanto uma alternativa para a “moradia de baixo custo”. A transformação na paisagem urbana no espaço regional como consequência deste movimento, transparece nitidamente no relato da geógrafa Elaine KUVASNEY do percurso da CPTM em meados dos anos noventa: No trem, é fácil perceber o quanto essa parte do ABC funciona como “dormitório” da população trabalhadora nas indústrias e, principalmente, no setor de serviços de São Paulo e das cidades mais próximas: pelo fluxo de pessoas que embarcam - a partir das cinco horas da tarde - que 6 677 cresce continuamente a partir do Ipiranga, e que começam a desembarcar, em grandes contingentes, somente a partir das estações de Mauá, Guapituba distrito de Mauá - Ribeirão Pires, que ainda cultiva um ar bucólico de cidadezinha do interior, e Rio Grande da Serra, onde predomina, em grandes loteamentos, o estilo denominado de ‘autoconstrução’, cujo único componente da infraestrutura urbana parece ser o poste de luz para a quase totalidade de suas residências (1996: 8). Regionalmente, uma consequência direta da reformulação das dinâmicas urbanas foi o incremento da ocupação dos mananciais. No caso da região metropolitana, e longe de constituir mera coincidência, a sensível desaceleração nos índices de crescimento demográfico das áreas centrais da metrópole, foi acompanhada de uma dinâmica exatamente oposta nas regiões e nos municípios dispostos em colar ao núcleo central da mancha urbana (Figuras 67 e 68). Analisando este fenômeno, acentua o geógrafo Marcos Estevan DEL PRETTE: ...A expulsão da população das áreas centrais, tanto do polo principal, a cidade de São Paulo, quanto nos polos secundários, como o ABCD, tem deixado um rastro de problemas para a própria RMSP. A ‘faxina’ do centro, patrocinada pelas novas demandas de triunfante sociedade das finanças, da alta tecnologia, do marketing e dos serviços sofisticados, em substituição à unidade fabril que tem procurado o interior do estado, tem varrido para baixo do tapete um grande contingente populacional, bem como uma massa de força de trabalho sem qualificação ou semiqualificada. A cobrança dessa pesada conta tem sido feita de diversas formas: no caso dos mananciais, a RMSP tem cada vez mais dificuldades de suprir a todos com água de boa qualidade (2000: 188). 6 678 FIGURA 67 - Mapa do Crescimento da Mancha Urbana da RMSP entre 1881 e 1997 (Fonte: < http://barreiros.arq.br/RMSP/metropolitana.htm >, escala aproximada 1: 846.242, acesso: 21-07-2005) FIGURA 68 - Mapa do Crescimento Demográfico na RMSP no período 1991-1996, por distritos na capital paulista e por municípios da região metropolitana (Fonte: < http://www.usp.br/fau/docentes/depprojeto/c_deak/CD/5bd/1rmsp/m04-adm/ >, escala aproximada 1: 846.242, acesso: 21-07-2005) 6 679 Por isso mesmo, a Bacia Hidrográfica Billings perdeu, entre 1989 e 1999, mais de 6% da cobertura florestal, ao mesmo tempo em que as áreas urbanas consolidadas e não-consolidadas, apresentaram relativamente a 1989, expansão de 27,3% e 47,9%, progressão que comporta impactos de toda ordem para a saúde dos mananciais e evidentemente, para o abastecimento de água e a qualidade de vida urbana (Figuras 69 a 74). Esta aferição é também ensombrada por prognósticos sombrios quando se sabe que 37% da ocupação urbana registrada no período em questão (1989-1999), ocorreu em áreas caracterizadas por sérias ou severas restrições ambientais. Quanto às favelas, foco de variados infortúnios socioambientais, estas registraram em 1996, relativamente a 1991, um índice de crescimento 54,53% mais alto (WHATELY et CAPOBIANCO, 2002: 7 e 33/42). A população instalada nos mananciais do ABC foi calculada no ano 2000 em 700 mil pessoas, na maioria absoluta, vivendo em condições habitacionais precárias, à margem das possíveis benesses que o meio urbano poderia oferecer. Indubitavelmente, esta vaga de ocupações, fulcro de sérios desafios urbanos, está fadada a se tornar móvel de proa do recrudescimento das disritmias urbanas, a começar pela intratabilidade dos problemas que suscita. Ora, estivesse tal emaranhado de obstruções restrito à ocupação irregular dos mananciais, a discussão desta questão sugeriria uma pauta bem menos fornida do que aquela que engorda a agenda dos planejadores e dos ativistas conservacionistas. Acontece que além dos conflitos relativos à especulação imobiliária, desenvolve-se, por exemplo, uma pertinaz atividade minerária, gerando uma diversidade de agressões ambientais. 6 680 FIGURA 69 - Bacia Billings: Cobertura Florestal em 1999 (Fonte: ISA, 2002) FIGURA 70 - Bacia da Billings: Unidades de Conservação e Áreas de Proteção Especial (Fonte: ISA, 2002) 6 681 FIGURA 71 - Mapa da Bacia da Billings: Uso do Solo em 1989 (Fonte: ISA, 2002) FIGURA 72 - Mapa da Bacia da Billings: Uso do Solo em 1999 (Fonte: ISA, 2002) 6 682 FIGURA 73 - Bacia da Billings: Urbanização 1989-1999 (Fonte: ISA, 2002) FIGURA 74 - Bacia da Billings: Atividade Minerária (Fonte: ISA, 2002) 6 683 Na bacia da Billings, explora-se areia para construção, granito para brita, cascalho e água mineral. Destas atividades, apenas esta última é considerada compatível com as especificidades da região. A mineração clandestina é contumaz, capitaneada por portos de areia, disseminados por toda a bacia da Billings e nem sempre alcançados pela fiscalização ou por medidas judiciais. Paralelamente aos efeitos deletérios diretos decorrentes das atividades empresariais, os mananciais são ainda requisitados para subsidiar a expansão da rede de comunicação interna da RMSP, caso do Anel Rodoviário ou Rodoanel Mário Covas, que corta em cheio os mananciais da Billings. Esta megaobra viária (cuja seção Oeste foi liberada para o tráfego em 2002), possui mais de duas terças partes dos trechos Sul, Norte e Leste projetados para atravessar áreas de mananciais, acelerando os comprometimentos ambientais de regiões submetidas durante décadas seguidas a toda sorte de achaques e malversações antropogênicas (Figuras 75 e 76). Para completar, o reservatório foi eleito como sítio de destinação final de prodigiosa gama de efluentes líquidos e de resíduos sólidos (Figura 77). Originários de descargas industriais, eflúvios de lixões desativados ou em operação, das ligações clandestinas de esgoto, do descarte aleatório de entulho e da disposição “informal” de descartes compostos por sortida taxonomia, de rebotalhos industriais às pilhas de uso domiciliar jogadas ao léu por lojistas e pelos shoppings, tudo isso conforma uma somatória de adversidades cujo epílogo, não pode ser outro que não a malbaratação das águas da represa. 6 684 FIGURA 75 - Trajeto do Rodoanel na RMSP (Fonte: < http://www.seade.gov.br/negocios/Mapa%20Rodoanel.jpg >, escala aproximada 1: 307.690, acesso: 11-06-2005) FIGURA 76 - Mapa do Trajeto do Rodoanel na Bacia Billings (Fonte: ISA, 2002) 6 685 FIGURA 77 - Mapa da Bacia da Billings: Disposição Irregular de efluentes líquidos e de resíduos sólidos (Fonte: ISA, 2002) A dramaticidade desta situação se evidencia quando se sabe que a partir de agosto de 2000 a escassez de água na RMSP obrigou a SABESP a desviar 2 m³/s de água bruta do compartimento Pedreira da Billings (qual seja, sem tratamento), para o Sistema Guarapiranga, responsável pelo atendimento da porção Sudeste do município de São Paulo. O dado alarmante é que mesmo este patamar de retiradas foi considerado insuficiente, sendo o nível de abdução logo ampliado para 4 m³/s, transpostos da Billings para os sistemas GuarapirangaCotia. Essa apreciável transposição de águas, autorizada e implantada em 2000 pelo então governador Mario Covas ao arrepio de qualquer estudo ambiental prévio, poderá contaminar e inviabilizar de vez o 6 686 Sistema Guarapiranga, sistema violentado nos últimos trinta anos por toda sorte de agressões e transgressões ambientais (Vide BENÍCIO, 1995), que para completar, assiste, de acordo com estudo ventilado pela pesquisadora Marussia Whately, do Instituto Socioambiental (ISA) em 2002, a um fenomenal avanço da ocupação antropogênica, da ordem de 50% entre 1989 e 1996 133. Finalizando, o primado hídrico/energético que durante décadas hegemonizou na prática o gerenciamento da represa, não tem dado mostras de recuo na sua derrelição em pensar a Billings como mero depósito de águas indiferenciadas, destinada a mover as turbinas da Usina Henry Borden. Um claro indício desta linha de conduta foi a proposta do governador Mário Covas no ano 2000, de incorporar a Empresa Metropolitana de Águas e Energia SA (EMAE) à Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (SABESP). Este primado, como se viu, materializado primeiramente pela antiga Light e sustentado pela Eletropaulo, mantém toda a sua atualidade para a atual EMAE, que busca recuperar o antigo privilégio do sistema. A EMAE é herdeira e sucessora histórica do binômio LightEletropaulo. Com o programa de privatização de coloração neoliberal proposto pela administração Mario Covas em 1995, a Eletropaulo, a partir da reestruturação oficializada em 31 de dezembro de 1997, foi desconjuntada em quatro empresas: a Eletropaulo Metropolitana Eletricidade de São Paulo SA, a Empresa Bandeirante de Energia SA (EBE), a Empresa Paulista de Transmissão de Energia Elétrica SA (EPTE) e a Empresa Metropolitana de Águas e Energia SA (EMAE). Destas, as duas últimas permanecem estatais. A EMAE, sociedade Diário do Grande ABC, edição de 24-03-2002, in Mananciais da Região Metropolitana de São Paulo: < http://www.socioambiental.org/prg/man.shtm >. 133 6 687 criada pela Lei Estadual nº. 9.631 (de julho de 1996), detém a concessão de produção e comercialização de energia hidrelétrica e termelétrica gerada a partir dos recursos hídricos da RMSP, com obrigação legal de controlar as cheias nas sub-bacias do Alto Tietê. Assinale-se que em 1993, depois de continuada mobilização do movimento ecologista e atendendo a recomendação do Conselho Estadual do Meio Ambiente (CONSEMA), o governo de São Paulo restringiu definitivamente o bombeamento Tietê-Billings à situação de ameaça de enchentes. Inelutavelmente, esta decisão acatava uma preliminar constitucional, na realidade uma grande vitória lograda em 1989 pelos ambientalistas do ESP, que adjudicava na Constituição do Estado de São Paulo, junto às Disposições Transitórias constantes no Artigo 46, o prazo de três anos para impedir o bombeamento de esgotos. Independentemente de prejulgamentos, esta amarradura jurídica impunha o que está reproduzido a seguir: ...No prazo de três anos, a contar da promulgação desta Constituição, ficam os Poderes Públicos Estadual e Municipal obrigados a tomar medidas eficazes para impedir o bombeamento de águas servidas, dejetos e de outras substâncias poluentes para a represa Billings. Parágrafo Único: Qualquer que seja a solução a ser adotada, fica o Estado obrigado a consultar permanentemente os Poderes Públicos dos Municípios afetados (Constituição do Estado de São Paulo, 1989:44). É importante considerar que frente ao quadro de deterioração apresentado pelo reservatório, mesmo o bombeamento esporádico contribui consideravelmente para agravar as condições ambientais da 6 688 represa, pondo em risco sua capacidade de recuperação (WHATELY et CAPOBIANCO, 2002:16). Além disso, o governo paulista continuou pressionado pelos mais diversos círculos e grupos econômicos com o objetivo confesso de reativar a hidrelétrica. Na ótica destes setores, a potência instalada de 889 MW da UHE Henry Borden (63% da capacidade instalada total da EMAE), cuja produção foi, desde outubro de 1992 reduzida em 75% em virtude do fim do bombeamento da água proveniente da reversão das águas do Tiête-Pinheiros, é consagrado motivo de insatisfação. Destarte, muitos segmentos empresariais da RMSP e da Baixada Santista constantemente colocam a questão da reativação da Usina em nome de uma argumentação que repete, a inclusione unius ad exclusionem alterius, os clássicos jargões crescimentistas. Entretanto, em face dos impeditivos legais existentes, é óbvio que seria necessário encontrar outro caminho para reconquistar o que poderia ser julgado como “privilégio perdido”. Nesse contexto, eis que é apresentado pela administração Geraldo Alckmin o polêmico projeto de “recuperação” do rio Pinheiros, baseado na flotação das águas. Nuda repromissio, essa metodologia constitui, na realidade, apenas uma das etapas dos sistemas convencionais de tratamento de águas servidas, e como tal, utiliza processos físico-químicos para agrupar as partículas sólidas de sujeira, concentrando-as na superfície da água para facilitar sua retirada. Mas, a técnica jamais foi aplicada em rios do porte do Pinheiros e tampouco como método único de despoluição de águas destinadas ao abastecimento. Embora os técnicos estaduais sustentem que a 6 689 flotação pode disponibilizar água um padrão de qualidade compatível para o abastecimento público (seria, no caso, o gabarito de Classe 2 para as águas, assim definido na Resolução nº. 20/86 do CONAMA), não existe consenso entre os especialistas quanto ao sucesso e à excelência da iniciativa. Assim, na opinião do engenheiro Élio Lopes dos Santos, perito do Ministério Público, o sistema de tratamento pela flotação vai enviar muito material orgânico para a Billings, piorando a qualidade da água. Diz ele, “como a flotação só tira 65% do material orgânico, a Billings passará a receber 17,5 m³ de esgoto por segundo, além de amônia total, metais pesados em estado solúvel e pesticidas organoclorados” (MUG, 2004). Um outro parecer, do engenheiro Ivanildo Hespanhol, conhecido expert em saneamento e reutilização da água, aponta risco para a saúde da população, pois o líquido revertido para a Billings poderia carrear mais contaminações: “Em 40 anos de trabalho, nunca vi um método de despoluição baseado num processo de uma fase só, como a flotação, dar certo” (Cf. GONÇALVES NETO, 2001). Existem também problemas de gestão que aguardam resposta adequada. Exemplificando, ninguém logrou até o presente momento determinar qual seria o destino final do formidável montante de lodo resultante da flotação. Para a exequibilidade logística do projeto, são necessárias áreas aptas a receberem enorme quantidade de lodo em cuja compleição existem substâncias perigosas de índole diversa. 6 690 Estima-se que seria necessário um caminhão com capacidade para dez toneladas saindo a cada exatos sete minutos das estações do projeto de flotação para dar conta das cerca de 540 toneladas de rejeitos diários (Vide PRECONEA, 2003). Na sequência, diante das incertezas existentes, o mínimo a se esperar do governo estadual seria a realização de um estudo prévio de impacto ambiental apontando riscos e a viabilidade ambiental de um empreendimento desse porte (CAMPANILLI, 2002). Entretanto, no que evidencia a precariedade das salvaguardas ambientais e dos mecanismos de participação da sociedade civil, o projeto sequer foi apresentado ao Comitê de Bacia Hidrográfica do Alto Tietê (CBH-AT), um claro descumprimento da legislação em vigor e desrespeito desta instância de decisões. Naturalmente, a atitude suscita justificadas suspeitas sobre os reais motivos que impediriam a apresentação da recomendação pelo governo estadual junto à sociedade civil, assim como a presumível debilidade do cabedal técnico que respalda a proposta da flotação. Na realidade, a atuação do governo estadual reproduz o script do comportamento habitual das administrações de atropelar as cautelas ambientais que entende enquanto obstáculos para a efetivação das propostas que apresenta. Outro ponto preocupante é que novamente, o que está exposto é um projeto pontual, fragmentado e divorciado da visão de conjunto, neste prisma, condenado a reproduzir equívocos inerentes às visões de curto prazo. Esta apreciação é flagrante, por exemplo, no próprio aspecto setorial da proposta, pois isola a questão do tratamento da 6 691 água das intercorrências que como foi visto, impactam os recursos hídricos, a começar pela ocupação dos mananciais. Implicitamente, o projeto repete o foco energético como epicentro do gerenciamento dos recursos hídricos metropolitanos, relegando o planejamento urbano e o abastecimento de água a um simplório segundo plano. De resto, a insistência dos pronunciamentos oficiais em apontar a flotação como forma de alavancar uma projeção bem mais auspiciosa para a EMAE no parque nacional gerador de energia sugere que, acima de tudo, o que está em jogo é o retorno, sob novas roupagens, do bombeamento do Tietê na direção da Billings com o objetivo de recompor a capacidade de produção de energia da UHE Henry Borden. Com isso, o cenário que se desenha é a continuidade do fornecimento para a população de uma água bebível - mas não potável - com o que, o torvelinho hídrico torna-se mais do que nunca, uma ameaça direta para o futuro da RMSP. É nesta conjuntura que a Billings se prontifica novamente ao papel de “divisor de águas” das políticas públicas, especialmente das voltadas para os recursos hídricos. A Billings, com o concurso das suas derivações, atende com base na média de 112,57 m³/hab./ano (SABESP, 2004), as demandas de 3,75 milhões pessoas, contingente que pode ser dilatado até um máximo de 4,2 milhões, nesta última métrica, pressupondo o aproveitamento da vazão total da represa, calculada em torno de 15 m³/s (GIUSTI, 2005: 39). Com este dado em mãos e atentos à radicalização visceral da escassez de água potável, a tragédia dos mananciais do ABC tornase uma das mais dantescas e inacreditáveis agressões encetadas 6 692 contra o meio ambiente e a sociedade civil brasileira. A conclusão, de caráter inevitável, aponta para a necessidade de repensar a pauta de prioridades colocadas para os recursos hídricos. In nuce, a falta de zelo quanto à qualidade dos corpos líquidos, sequente à opção de priorizar a geração de energia, ocorrendo em absoluto detrimento das demandas essenciais da população, evidencia uma perigosa inversão de valores, colocando em risco os mais genuínos interesses dos cidadãos. E nada melhor do que estimular este debate para que então se possa, com toda tenacidade possível, resgatar o conceito de que a vida é a finalidade última da água. E que assim seja! 6 693 PARTE V CONCLUSÕES: EM BUSCA DE UM FINAL TRANSITÓRIO... 6 694 REPENSANDO UM TRAJETO Exibir um mostruário de conclusões constitui sumamente um exercício de síntese. Uma tábua explicativa composta por parágrafos breves, auxilia aqueles que atravessaram uma discussão no sentido de alinhavar o que haveria de mais significativo num determinado tema. Condicionalmente, a pretensão suprema deste esforço seria despertar apontamentos que, por sedução ou intelecção, passaram a habitar os recônditos da memória. Não há como detalhar excessivamente este empreendimento. Especialmente por estar inscrito no campo do saber geográfico, este solicita cautela quanto às escalas utilizadas e assim, sendo este o nexo da explanação, não seria aceitável abusar desta prerrogativa. Não existe inimigo maior da compreensão da realidade do que o furor da minuciosidade. Esta, antes de colaborar para o entendimento, tem por intenção oculta exatamente o oposto: o aleitamento das ficções, quando não, instrumentalizando a concretude para alçar-se a uma legitimidade que procura contraditoriamente negar. Como me empenhei em demonstrar, Água e Metrópole: Limites e Expectativas do Tempo é um trabalho que versa sobre a dificuldade crescente da maioria dos humanos serem atendidos na demanda por água doce. Como recorte analítico foram postuladas três referências básicas. Duas destas, água e metrópole, constituíram o plano fulcral da discussão. Ambas, por sua vez, tiveram como lastro argumentativo o crivo da modernidade e particularmente, de sua temporalidade, esta 6 695 última uma polaridade que conforma o sustentáculo da sociedade ocidental enquanto marco civilizacional. Ordenação que se impõe por si mesma no simples ato de folhear as laudas desta tese, estes pontos foram exaustivamente debatidos nas implicações mantidas com a questão ambiental, avaliada nos inelutáveis realçamentos que tanto o espaço quanto o tempo fixam para a percepção de uma questão tão intrincada e vital para o futuro próximo que se descortina para toda a humanidade, que seja dito novamente, habita um mesmo planeta. Em especial, esta admoestação foi dirigida para a RMSP e ao Grande ABC, espaços urbanos que geograficamente, acalentaram as proposituras do autor deste material. Enquanto subscrição manifesta, ambos foram entendidos como presságio concreto do que pode ser esperado quanto à gestão das águas doces brasileiras na hipótese de ser postergada a implantação de uma política justa, séria e decente para o recurso, averbação que se consorcia de modo irrevogável ao enfrentamento de diversas outras questões, dentre estas a social e a urbana. Carecendo desta disposição, não há como pensar uma política real de defesa ambiental. Talvez exatamente esta seja a dificuldade principal desta empreitada: pensar, perceber, decidir. Credita-se ao filósofo alemão Gunther Anders, o ácido diagnóstico pelo qual o conceito de progresso ilimitado nos faz cegos frente ao apocalipse (Di Antiquierbeit des Menschen). Nesta perspectiva, 6 696 ...isto equivale dizer que nossos olhos foram anestesiados, sedados, para não mais ver os cenários catastróficos que o homem constrói no seu afã de apropriação ilimitada do mundo (Cf. BAITELLO JUNIOR, 2005: 19). Exatamente por esta razão, quaisquer pruridos que poderiam cativar eventual timidez em proclamar o óbvio devem ser de pronto, abandonados em favor de uma posição clara e inequívoca. Com este intuito, darei forma às conclusões, provisórias no tempo e no espaço, entretanto, finais nos marcos da tecedura da narrativa, amealhando especulações reunidas com base em quatro blocos formados por considerações relacionadas aos recortes básicos desta tese. A saber, estas seriam alusivas ao tempo e ao espaço, as cabíveis à cidade, as dirigidas à água e finalmente, as que se inseririam no anel definidor das expectativas deste trabalho, quer dizer, as opções possíveis frente a questão ambiental. A ENCRUZILHADA DOS TEMPOS MODERNOS Seguramente, seria impossível deixar de registrar as sequelas que o desencaixe promovido pelo tempo linear e progressivo imprimiu ao cotidiano moderno, responsável por parte substancial do cardápio relativo à crise socioambiental da modernidade. Elemento constitutivo do seu modo específico de ser, o mundo contemporâneo, nada obstante ao fato de vivenciar uma crise cuja origem é a poderosa fruição da temporalidade, se vê instado a lançar 6 697 mão da mesma ordenação do tempo que lhe é peculiar quando busca solucionar os desequilíbrios gerados pela sua apresentação junto ao espaço. Alicerçada no tempo e não no espaço, a modernidade voltase, em vista de lastrear-se com base em estaqueamentos temporais, busca, no equacionamento e superação dos dilemas gerados por ela mesma, aplicar conteúdos ainda mais superlativos de tempo ao espaço articulado. A rigor, todas as recentes inovações tecnológicas se inscreveriam nesta pulsão. Estas, são impingidas verbi gratia, nos domínios da produção econômica e dos serviços, caso da robótica, da informática, telefonia celular e das redes computadorizadas on-line, indissociáveis do sistema de engenharia moderno. Estas matrizes eletroeletrônicas têm como denominador comum, o aprofundamento do distanciamento do homem das referenciais espaciais, exaltando, em vez de atenuar, a rapidez enquanto um sinônimo da vida moderna, particularmente do cotidiano urbano. Contudo, estas soluções desfrutam de fôlego curto. Mesmo quando bem-sucedidas, as novas matrizes temporais são usufruídas por poucos, fragilizando, ao contrário de fortalecer, as premissas nas quais se assenta o status quo. O resultado, como se pode observar, tem sido a dramática acentuação da desigualdade entre classes, grupos, povos e nações. Neste admirável novo mundo global, as elites procuram precaverse dos avanços de uma “horda moderna” composta por uma incontida multidão de excluídos, de “outros”, que primeiramente usurpados do seu tempo, para a seguir, serem desespacializados, alimentam moto- 6 698 contínuo, o crescimento desmesurado da chamada “cidade informal”, satanizada pelo imaginário afluente como origem de todos os males. Deste modo, o mundo contemporâneo é instado a reinventar os antigos espaços estanques que ornamentavam o cosmos-natureza de outrora. As fronteiras dos bolsões de afluência, enrijecendo-se a cada dia, constituem na sua nevralgia, emolumentos do engenho humano a serviço dos senhores do tempo. O objetivo destes dispositivos, formados por guaritas, muros de concreto, cães amestrados, alarmes sonoros, serviços de segurança terceirizados, alertas sonoros, cancelas seletivas, cercas eletrônicas e barreiras panópticas, é deter, praticamente a qualquer custo, uma multidão de alienígenas recidivos, que gradativamente, são revestidos dos signos da bestialidade social, cultural e biológica. A imagem do excluído é cada vez mais conotada por uma iconografia de horrores, um retrato invertido das qualidades que os afluentes julgam possuir. No passado, as prepotentes monarquias da Velha Ásia ergueram longas muralhas visando impedir a fuga de seus súditos. Hoje, ocorre justamente o inverso: elas são construídas para impedir que entrem. As novas muralhas da China, dividindo hemisférios, países, regiões, bairros e cidades, materializam, portanto, lógicas de exclusão, e não apenas de contenção. Isto porque as barreiras não são erguidas para manter os aspirantes a novos bárbaros nos limites de uma “periferia cósmica” do universo. Antes, o ultimatum é perpetuá-los como objeto de uma integração desigual no sistema mundial existente. 6 699 Fazendo uso de uma logística peculiar aos bunkers, os setores afluentes da modernidade parecem empenhados em encarceraremse a si mesmos, erguendo por toda parte sofisticados mecanismos de controle das entradas e das saídas dos seus sistemas de engenharia, enquistando residências e emparedando bairros, cidades, regiões e países. Neste contexto, não é nada fortuito o sucesso da Internet e de outras formas de contato virtual, pois permitem que as relações sejam empreendidas prescindido do espaço e da convivialidade enquanto patamar de contatos. Não falta ainda a muitos destes closed sistems um “toque ecológico”, atrativo adicional que busca restaurar nestes espaços, certa intimidade com o “meio natural”, colocado a salvo dos humanos hostis. Aprumando desajustes funcionais, ou então, uma desordem que é apenas a ordem do possível (SANTOS, 1988: 66), esta entropia não é sentida unicamente a partir de uma ótica de exterioridade, dos outros que objetivamente, são copartícipes do espaço geográfico. O homem contemporâneo está em conflito permanente com o outro de si mesmo, visto como uma espécie de intruso alojado no seu interior, um “invasor de corpo” preocupado em devorá-lo por dentro e, quem sabe, assumir de vez a corporalidade hospedeira. Excisado física e psicologicamente dos seus semelhantes, fica comprometido para o homem moderno, qualquer vínculo duradouro e sincero do indivíduo com o coletivo e o espaço público, pavimentando como resultado, a emergência de uma “sociedade incivilizada” (SENNETT, 1993). 7 700 No estágio atual, a modernidade propõe rupturas de amplitude radical, provocadora de intervenções científicas que afetam o ser físico do homem e a sua constituição biológica. A fascinação com sofisticados dispositivos eletrônicos potencializando nos humanos, as suas potencialidades e habilidades (congênitas ou não), e por seres naturais recombinados, respondem pelas inflexões profundas que germinaram das expectativas do tempo linear. Assunto popularizado por uma filmografia science fiction de certo vulto, sua veiculação pode ser entendida pela genealogia de metanarrativas atinentes a novos territórios imaginários, através dos quais, uma cadeia de estampas ficcionais coloniza antecipam a fecundação do real. Contudo, a despeito da força potencial que estas prefigurações incorporam e do movimento inercial dos sistemas de engenharia modernos, ainda assim poder-se-ia objetar o entendimento de que os humanos sejam prisioneiros de uma torrente que irresistivelmente os arrasta para um abismo sem fim. Note-se que comumente, as construções imaginárias intercalam, no final das contas, antinomias e contraposições, cotejamento que em tempos idos, transpareceu em sucessivas ideações culturais. Deste modo, na antiga mesopotâmia, a entidade Tiamat, sintetizando o caos e as forças do abismo, polarizava com Marduk, augusto instaurador da ordem. Na Pérsia, o Zoroastrismo repete esta locução, e tal como no duelo mesopotâmico, a ordem, agora encarnada em Ahura Mazda, o Senhor Sábio, duela com o dragão Ariman, considerado Príncipe das Trevas, da morte, da mentira e do engano. 7 701 Em suma, a totalidade dos sistemas religiosos e de pensamento propõem continuamente a possibilidade de alternativas e de abertura de novos caminhos, assertiva igualmente válida para momentos como estes que vivenciamos, no qual a modernidade depara-se com uma encruzilhada. Resgatando um ensinamento do físico Ilya Prigogine, a produção de entropia sempre enseja dois elementos dialéticos: um elemento criador de desordem, mas também um elemento gerador de ordem, estando ambos, continuadamente associados entre si (apud PRIGOGINE, 1991: 39). Esta dinâmica, permite amealhar arrazoados que, na contestação do modus vivendi, essendi et pensandi da modernidade, respondem propositivamente em diferentes interfaces nas quais a aceleração do tempo linear firmou seu império processual. Sumariamente, poder-seia citar a agricultura orgânica, a energia solar, reeducação alimentar, as condutas baseadas no minimalismo e na simplicidade voluntária, recortes associados aos movimentos antiautomóvel, de contestação à televisão e das mobilizações voltadas para a renaturalização dos rios, todas assimilando um nítido referencial ambientalista. Todavia, na torrente impetuosa de um tempo voraz e aniquilador, supremo animador de um sistema autopropelido, obcecado com a promoção da insatisfação permanente, constituiria uma ingenuidade cabal subestimar o potencial destrutivo da temporalidade moderna e o quanto ela já foi internalizada por vasta maioria dos humanos. Sinal de que as tentativas de fazer retroceder este quadro serão submetidas às mais duras provas. 7 702 OS LIMITES DA GRANDE METRÓPOLE Faz 34 anos que um polêmico prefeito da capital paulista, José Carlos de Figueiredo Ferraz (1918/1994), engenheiro de formação, discípulo de Catullo Branco e adversário da velha Light and Power 134, conquistou notoriedade invertendo uma fórmula que contradizia o ethos metropolitano. Em 1971, sem mais nem menos, em alto e bom som, anunciou para pasmo dos metropolitas, o mandatário da cidade: “São Paulo precisa parar de crescer”. Esta frase incomodou o ufanismo hegemônico num período em que o slogan era o motto “São Paulo, a cidade que mais cresce no mundo”, que o alcaide questionava ao verter luz para dilemas fundamentais, como a incapacidade do poder público acompanhar a explosão da expansão da metrópole, cujo erário, crescentemente se tornou incompatível com a interminável tarefa de calçar a urbe com serviços básicos adequados, sistemas de infraestrutura e logística de gestão. A sincera pregação de Figueiredo Ferraz também foi incômoda aos ouvidos do regime militar, inebriado com os autoproclamados sucessos do “milagre econômico”, e para arrematar, não tinha como encontrar ressonância numa atmosfera em que a nação se mantinha mesmerizada pelo enganoso canto de sereia desenvolvimentista, embalado por fabulações compassadas por números e estatísticas estonteantes, que se presumia, antecipavam o surgimento do “Brasil Potência” (Cf. SINGER, 2002: 120/121 et seq). Figueiredo Ferraz criticava o não cumprimento por parte da Light, do decreto de Eurico Gaspar Dutra de 20/10/1946, pelo qual era obrigada a construir obras de represamento nas cabeceiras do Tietê, o que nunca foi feito (Cf. PONTES, 2001: 6). 134 7 703 Entrementes, as palavras do prefeito refletiam o zeitgeist que ecoava na década de 1970 nas concertações dos especialistas de planejamento metropolitano. O controverso alcaide, que contabilizou dentre os projetos de sua lavra a primeira - e até agora única -, Lei de Zoneamento da capital (1972), a criação da Empresa Municipal de Urbanização (EMURB) e empreendendo obras sofisticadas, tais como o Museu de Arte de São Paulo (MASP), na avenida Paulista, teve um fado inglório. O burgomestre, ao recusar-se a ingressar na Aliança Renovadora Nacional (ARENA), partido de sustentação da ditadura militar e se indispor com José João Abdala (mais conhecido como JJ Abdala), o famigerado “mau patrão” (empresário cuja fábrica, a Cimento Perus, na época uma das principais fontes de poluição da cidade, que Ferraz intentara fechar), o destino político do prefeito foi selado. José Carlos de Figueiredo Ferraz acabou perdendo o posto: o governador Laudo Natel, responsável pela sua nomeação, demitiu-o sumariamente com uma reles carta (1973). Todavia, a frase impregnou a memória de todos. Especialmente para os que entenderam que a metrópole alcançara seus limites, se tornou, pela lucidez, um chamamento de primeira linha. Dois anos após sua demissão, Figueiredo Ferraz, ao proferir uma palestra, definiu o paradoxo do crescimento urbano de São Paulo recorrendo a um maroto “causo” caipira: “A cobra estava muito feliz: não precisava mais se mover para conseguir alimento; certo dia, apavorada, percebeu que comia a si mesma, pela cauda”. 7 704 O engenheiro fez uso da parábola, pois entendia que a imagem fazia sentido com o que atinava ser o destino das grandes cidades brasileiras na hipótese de estas ignorarem o constructo estratégico do planejamento urbano. Na sua avaliação, a metrópole estava atingindo o limite, chegando a um tipping point a partir do qual a entropia se tornaria imperante, fazendo com que investimentos cada vez maiores redundassem em retornos cada vez menores: uma verdadeira “lei dos rendimentos urbanos decrescentes”. Obviamente, seria imprescindível indagar a respeito do que seria entendido como “limite metropolitano”. Numa retrospectiva histórica, o que se tem de um ponto de vista meramente demográfico, é que a cidade reunia em 1970, contexto em que Figueiredo Ferraz assumiu o comando da capital, exatos 5.641.330 residentes (IBGE, 1970). Mas, após três décadas e meia, a nova Piratininga abrigava 10.838.581 cidadãos (estimativa IBGE 2005), praticamente o dobro da totalização anterior. Trabalhando exclusivamente com ordens matemáticas de grandeza, decerto seria difícil deixar de ficar sobressaltado com as cifras, e de concordar que a cidade de fato cresceu muito, até demais. Mas, sob qual aspecto este montante poderia ser considerado “muito”? Afinal, vale advertir que fazer uso irrefletido de indicadores aritméticos implica simplesmente em comparar nada com nada (Cf. SINGER, 2002: 74). Por conseguinte, retomando uma discussão feita noutro momento neste mesmo material, o meio urbano moderno, e particularmente a grande metrópole reporta a uma taxonomia que sinaliza para um contexto espacial marcado por acesos desequilíbrios estruturais, coexistindo com antagonismos permanentes e a ruptura seriada da operacionalidade dos serviços ecossistêmicos. Por isso 7 705 mesmo, seria inteligível que mais eficaz do que discutir números, interessaria compreender a natureza do sistema metropolitano, suas funções e o estatuto mantido com os habitantes da cidade. Primeiro, quanto ao fato da metrópole não garantir bem-estar aos seus habitantes, vale a pena recordar que sua função simplesmente não é essa. Enquanto sistema de engenharia, a metrópole não coloca o equilíbrio socioambiental como meta. Tanto assim que as iniciativas que procuram o afago da natureza amiga no seio do meio urbano se corporificam a despeito, e não com o concurso, das lógicas concretas de reprodução da metrópole. Mutatis mutandis, em boa parte estas experiências estão sintonizadas com ideais ambientalistas, ou seja, na contramão do discurso e da prática que tem incessantemente mobilizado a cidade na direção dos desafios aos quais ela está, neste momento de mundo, ungida a enfrentar. Basicamente, a grande cidade, atendendo aos mecanismos de reprodução do capital, funciona enquanto um espaço econômico, que absorve recursos e trabalho humano em larga escala. Contando com áreas cada vez restritas para depositar seus resíduos, desperdiçando energia a um custo de obtenção cada vez maior e se deparando com um fatídico estresse hídrico, a metrópole tem dado mostras evidentes de cansaço, de fadiga crônica. Nesta perspectiva seria mais plausível deter-nos no significado das transformações urbanas mais do que nas considerações atadas em anódinas curvas de expansão demográfica. Assim, houve um tempo em que Paranapiacaba era um ponto do qual se divisava o mar. No passado, a vila foi definida, no tocante à sua localização, como “crista” ou “alto da serra”. Mas atualmente, esta 7 706 localidade, que exerceu no passado o papel de primeira estação da ferrovia na entrada do planalto, constitui tão somente, uma beirada da metrópole paulista. Sinal de que os relógios ferroviários cumpriram sua missão, em 2005 bastam vinte minutos de ônibus para alcançá-la a partir da cidade de Rio Grande da Serra, situada nos bordos do ABC. Poucos quilômetros serra abaixo, aguardam os bairros-cota, progredindo da Baixada Santista na direção do coração do Complexo Metropolitano Expandido. Hoje, o sítio de Paranapiacaba não passa de um mirante privilegiado desta fração da tecnoesfera que é a Grande São Paulo. Certo estava Caio PRADO JÚNIOR, que anotou a chegada de uma época na qual a metrópole paulista - contínua e homogênea - seria somente a monotonia de uma imperativa urbe moderna, suprimindo roças, cursos d’água e todos os obstáculos naturais que encontrasse no seu caminho (1998: 79, grifos nossos). Dificilmente pode-se imaginar que esta expansão continue sem suscitar disrupções que deteriorem uma textura urbana já regrada por exasperantes dificuldades. A metrópole, propensa pela sua dinâmica a não ter nenhum limite, apontaria objetivamente para a torção do seu espaço articulado. No que seria sintomático da intuição que vislumbra uma débâcle metropolitana, o planejamento urbano “macro” desponta em inúmeros círculos, dos movimentos sociais à academia, das ONG aos organismos governamentais, como a pedra de toque do repensar a cidade, no mais das vezes, revestido com a auréola das soluções redentoras. 7 707 Para muitos que se enamoraram do macro-planejamento, este se tornou a antessala da nova metrópole, renascida triunfante das ruínas e do caos. Planejada racionalmente, a urbe portentosa, indexada no plano das idealizações como objeto de intervenções que permitiriam normatizar e corrigir seus desatinos, poderia enfim encontrar uma saída para as suas angústias. Todavia, ainda que em princípio a normatização do dinamismo citadino venha a estatuir “um outro mundo urbano possível”, esta pretensão solicitaria mais cautela e menos entusiasmo. Como foi visto, inexiste planejamento que ocorra no vácuo. Este, para se tornar concreto, solicita o lastro da esfera política, que sumamente é quem dá as cartas. Anote-se que justamente por minimizar sua importância é que promissoras iniciativas urbanísticas, numa escala pontua desde os planos metropolitanos, passando pela legislação dos mananciais e incluindo na outra ponta os planos diretores, foram engavetadas ou coroados por fracassos. Na realidade, a “urbanização caótica” corresponde a um estágio de constituição territorial de um meio técnico-científico-informacional equipando a metrópole para fazer frente aos apetites do capitalismo globalizado, preceituando um padrão modelar que, acima de tudo, reforça formas de inserção subalterna na ordem internacional. Nestes moldes, o móvel seminal dinâmico, reforça o cisalhamento da textura social, o acirramento do esgotamento ecossistêmico, o alargamento do edifício segregativo e ab integro, a radicalização da sociedade dual. Nesta cadência, o planejamento urbano, que nesta derivação tanto faz que seja imbuído de boas ou más intenções, pouco pode efetivamente realizar caso subestime as forças que na prática, estão 7 708 postadas no comando da organização do espaço, o que de um modo direto, reporta à dimensão do poder (Vide SANTOS, 2003: 34 e 2001: 5; CLAVAL, 1979). Adotando-se a formulação axial do economista mexicano Enrique LEFF, por meio da qual a crise ambiental coloca claramente o limite das economias de aglomeração, dando margem a deseconomias de congestão, tendo por lápide a contaminação urbana e a incapacidade de oferecer equipamento básico aos metropolitas (em especial aos excluídos), então, a epígrafe que por excelência pautaria o repensar da cidade seria a emergência de deter seu transbordamento rumo ao entorno, impedindo a multiplicação seus impactos (2004: 289 et seq). Deste modo, a necessidade de frear a expansão do sistema de engenharia urbano destaca sub-repticiamente o caráter político da sua crise. Na Grécia, a 2.400 anos atrás, o filósofo Platão, meditando com seus parceiros a respeito dos descompassos vivenciados pela cidade, atinou que a aplicação da justiça, acima de tudo resulta daqueles que detém a força, sendo esta uma conveniência dos mais fortes (1990: 24, grifos nossos). Ontem, como hoje, a gestão da cidade recoloca a questão da centralidade política, da gerência social e do horizonte aparentemente inultrapassável da economia. O resultado da equação que modelou a grande metrópole está à vista de todos. Seja então dito às claras, alterá-la implica em revolucionar o equilíbrio de forças em curso, engendrando um dinamismo inédito. Uma necessidade urgente em face do que salta à vista de todos. 7 709 PENSANDO O CURSO DAS ÁGUAS Qualquer que seja a intenção ao discutir um tema como a água, nada permite esquecer que esta substância desde sempre exerceu forte fascínio sobre a mente humana. Deste modo, não hesitaria em consignar comentários generosos sobre a importância do líquido no imaginário social das culturas do passado. A celebração da água, presente em todos os continentes e em todas as épocas, forma um ilustrado painel de imagens cheias de respeito afetivo e de carinho por este líquido vital. Obviamente o encanto das sociedades de outrora pelas águas não se desvinculava de sentidos práticos e objetivos, relacionados com a agricultura, com a pastorícia e o fortalecimento da coletividade enquanto entidade social, política, econômica e cultural. Certamente foi esta a obstinação que inspirou um dos mais insignes soberanos do Sri Lanka, Parakramabahu I (1153/1186), a anunciar diante de seu povo: Que nenhuma gota de chuva que caia nesta ilha se perca antes de ter servido a humanidade (Cf. GURUGÉ, 1985: 29). Porém, passados mais de oitocentos anos da proclamação desta máxima, a contaminação dos recursos hídricos globais progride numa escala inimaginável. Rios inteiros, lagos e reservatórios subterrâneos, todos estão sendo alvo de contaminação pelo esgoto e por resíduos tóxicos, perigosos e radioativos. Mananciais e rios que abastecem as populações são conspurcados, depredados e inviabilizados. Horresco referens, as regras contemporâneas são a exata negação das sábias recomendações do antigo soberano do Sri Lanka, fazendo com que 7 710 no mundo atual, as águas sejam destruídas antes mesmo de servir aos homens. Como foi observado, um dos motivos básicos que justificam este processo de destruição dos recursos hídricos reporta, é óbvio, à engrenagem da economia moderna. Relatórios, estatísticas, análises e muitas publicações esclarecem em uníssono, que o processo que está transformando a água numa substância suspeita e rarefeita em nível mundial, tem sido basicamente alavancado em concomitância com o avanço indômito da produção econômica, hoje encimada pela economia-mundo pavimentada pela globalização onipresente e no mais, substantivada na disfuncionalidade integral do antropoceno. Tal tendência, prontamente detectada pelo ideário ambientalista, foi profusamente pontuada em muitos documentos, quase sempre se postando na defesa da função social na apropriação dos recursos hídricos. É o que se pode conferir tomando conhecimento de um excerto do Tratado de Água Doce, firmado no Fórum Paralelo da Eco92, no qual, o parágrafo que aborda o tema dedicado à água e ao desenvolvimento dispõe: “As soluções pontuais que supõem a privatização e fragmentação do ciclo d’água tende a piorar a situação atual. As soluções dos problemas que se apresentam no uso e reúso requer uma visão de conjunto das bacias e deve ser obtida através do processo de participação e cooperação. O mercado de qualquer forma, não é a solução per si ao conjunto dos problemas do manejo dos sistemas hídricos, sendo que a primeira alternativa ambiental para a resolução destes problemas implica na gestão da água, onde prioridades e decisões são resultantes de processos coletivos de debate, com 7 711 participação dos diversos setores sociais, e decisão com ampla participação popular, sendo assim assumidos pela coletividade” (1992: 2). Entretanto, este alerta parece não ter logrado qualquer sucesso. Outras advertências repetindo este corolário, proferidas em encontros mundiais como o FSM, caíram do mesmo modo, em ouvidos moucos. O resultado, é que no início do novo milênio, cujo proêmio é o Século XXI, a questão dos recursos hídricos foi contemplada de calamitoso vulto, encimada pela adjetivação mercadológica que tem sob suas rédeas, o acesso ao ouro azul e as destinações que lhe são impostas. Na mesma sequência em que o termo estresse hídrico passou a integrar a cartilha anglófona da modernidade, observou-se a difusão de um pacote de controversos “produtos hídricos” que quando muito, apenas rasteiramente poderiam se aproximar da antiga, soberana e honrada altivez da água, que dantes fluía pelos regatos e córregos da Terra. Versões ersatz da boa e velha água doce agora circulam na forma das águas de síntese e de águas engarrafadas cuja qualidade, não é necessariamente fiável e noutros criativos itens universalizados pelo marketing da dessedentação. Hoje, regiões inteiras, tais como a zona setentrional do México, dependem diretamente de refrigerantes, e não da água, para aplacar a sede. Este rincão do planeta, considerado o maior território “cocacolonizado” do mundo, seria, entretanto, somente o primeiro numa fornida compilação de espaços nos quais é pressagiada a repetição do fenômeno (BARLOW et CLARKE, 2003: 71 et seq). 7 712 A rarefação da água, convertida num dado estrutural do modus operandi da modernidade, passa, precisamente por esta razão, a ocorrer mesmo em regiões nas quais, como no caso brasileiro, o líquido foi abundantemente concentrado pela natureza. No Brasil, uma somatória perversa de privilégios, desperdício e ausência de uma visão de longo prazo, consolidam o ingresso do país (ou melhor aferindo, dos seus sobrantes), nas cirandas da sede. No que assegura que o problema não remete exclusivamente à distribuição natural da substância, no nosso país, o que mais falta não é água, mas sim, “determinado padrão cultural que agregue ética e melhore a eficiência de desempenho político das administrações, da sociedade organizada lato sensu, das ações públicas e privadas, promotoras do desenvolvimento econômico em geral e da sua água doce, em particular” (REBOUÇAS, 2002a: 32/33). Conjuminando aspectos discutidos ao longo deste material, a concatenação das problemáticas da escassez e da mercantilização dos recursos hídricos com as do tempo linear, complementariam a exposição deste panorama. Logo, a água está escasseando devido à velocidade com que a substância tem sido requisitada pelos diversos interesses do sistema produtivo, pela forma acelerada com que os resíduos - incorporando enormes inputs hídricos e energéticos -, são descartados, e muito particularmente, pelo consumo pantagruélico do escol afluente. Por sua vez, as temáticas da água e do tempo se acoplam com as da cidade, até porque, o meio urbano é a mais altivo bastião da temporalidade moderna. Uma vez que as metrópoles constituem os 7 713 fixos por excelência dos fluxos do tempo linear e progressivo, os centros urbanos, em especial as metrópoles, terminam por expressar, direta ou indiretamente, as contradições matriciais deste processo. É justamente neste rol de contradições socioespaciais que se torna possível identificar os desacordos relativos com a ocupação das áreas de preservação ambiental, cujos atores mais proeminentes são os grupos excluídos dos circuitos da modernidade, os outsiders do sistema formal. Apartados do tempo, do espaço, da cidade e também da água, paradoxalmente a cidade formal os atira para as reservas de água doce que deveriam dessedentá-la. Na RMSP, este fenômeno atende principalmente pela ocupação da região dos mananciais, um cenário urbano embrutecido que se agrava pelas performances que exaltam um crescimento aureolar da estigmatizada “cidade informal”, que se consolida com base num fornido cinturão de favelas que cerca a cidadela paulista. No segundo semestre do ano de 2005, assim noticiou um conhecido órgão da imprensa paulista: A expansão das favelas ultrapassou os limites da periferia de São Paulo. São 400 mil habitações precárias espalhadas por uma área de 60 km², onde vivem cerca de 1.600.000 pessoas. Boa parte dessas favelas invadiu áreas de proteção ambiental e de mananciais em Osasco, Guarulhos, São Bernardo do Campo, Diadema, Taboão da Serra e Embu e de produção de hortifrutigranjeiros de Suzano, Mogi das Cruzes e Biritiba Mirim. As informações constam de 64 mapas, cujas imagens foram extraídas de satélite entre 2003 e junho deste ano, que serão 7 714 divulgados hoje pela EMPLASA. Só no entorno das Represas Billings e Guarapiranga vivem dois milhões de pessoas: ‘Esse número cresce a uma taxa anual de 7% na Billings e de 3,5% na Guarapiranga’, afirmou Marcos Campagnone, presidente da EMPLASA 135. A dimensão deste problema ensejou diversas tentativas, nem sempre satisfatórias ou convincentes, visando solucionar ou mitigar os impactos encetados no meio ambiente. Mas há também propostas que procuram nutrir-se da crise. Uma destas, foi, para exemplificar, a concepção do “loteamento ecológico”, proposto nos anos noventa em São Bernardo do Campo para ser implantado, com o entusiástico apoio dos órgãos de planejamento do município, no seio da região dos mananciais. Mas, constituindo uma proposta que como qualquer outra, se materializou num campo de relações políticas, esta peça projetual conciliava na realidade o loteamento clandestino com o poder público municipal, sendo apenas uma, num escabroso cipoal de proposições, que reclamavam chancela “técnica”, e até mesmo ambiental, para justificar o injustificável 136. De modo símil a outras tarjas físico-ecológicas, os mananciais permitem muitos usos possíveis (Cf. Apêndices 1 e 2), porém não qualquer uso. Por isso mesmo, resgatando um parecer igualmente datado da década dos 1990, é evidente que qualquer que seja a solução para a questão dos mananciais, o que parece claro é que o modelo de preservação da qualidade das águas doces e o modelo de crescimento urbano das urbes brasileiras são fenômenos totalmente 135 136 Jornal O Estado de São Paulo, edição de 5-10-2005, Caderno Metrópole, página C1. Análise detalhada deste contexto pode ser apreciada em WALDMAN, 1994c. 7 715 incompatíveis. Assim sendo, parece-nos irretorquível asseverar que diante da necessidade de um dos dois ter que ser alterado, a única posição consequente é que então, o modelo urbano seja mudado (Cf. SEMASA, 1991: 14). No mais, seria conveniente realçar que a adoção desta posição, embora importante, integra um elenco de medidas bem mais amplo. A bem da verdade, mudar a dinâmica urbana não poderia se resumir a estratégias de “contenção” do crescimento no aspecto meramente territorial. O espaço urbano é sustentado por uma acentuada pegada ecológica. Logo, modificar o funcionamento do sistema de engenharia urbano significa mudar sua cartilha funcional, o estilo de vida e o de consumo, retroagindo a pressão do ecological footprint das cidades, medidas imprescindíveis para manter os mananciais de água doce. Aquiescendo com o que foi pleiteado em vários momentos, certo é que a conservação dos recursos hídricos solicita o suporte de diversas estratégias, tais como as centradas na questão do consumo. Por intermédio desta enunciação, a preservação das águas azuis se entrelaça com programas como os voltados para a conservação de energia, da coleta seletiva de lixo e pelas condutas incrementais do consumo responsável. Fato indiscutível, estas práticas substantivam procedimentos que induzem um novo padrão de aproveitamento dos recursos hídricos, colaborando para os equilíbrios hídricos e a saúde das águas, e por extensão, para a preservação do sistema-vida. 7 716 Sem embargo, retenha-se que a aplicabilidade destas premissas alcança quando muito, aqueles segmentos que dotados de melhor inserção social e educacional, foram convertidos ao ideal da salvação do planeta, sendo que no prisma da sociedade contemporânea, as duas camadas bem definidas da população, detém um poder de compra desigual, com o consumo variando em qualidade, quantidade e em frequência (Cf. SANTOS: 1981: 40), recorte que problematiza axiomas que com certa frequência, são pautados de modo simplista e esquematizante. Daí que o handicap inconfesso de muitas das abordagens, é que a melhoria da qualidade de vida de amplos segmentos sociais sugere de uma forma ou de outra, incorporá-los a algum tipo de consumo, implicando, é óbvio, numa disponibilidade hídrica que quando melhor aferida, pode ser inadequada ou simplesmente inexistente. Tal como também é evidente, o way of life contemporâneo não é condiz com a conservação dos recursos hídricos. Tal apontamento leva a todos compreender que o curso do aproveitamento das águas, solicita mudanças estruturalmente radicais, apoiadas na alteração de padrões culturais e civilizatórios profundamente arraigados. Pensar a dimensão deste problema, e aquilatando o poder de uma indústria cultural que converteu boa parte das consciências em consumidoras passivas de sinais, como não sufragar o ponto de vista de Lorraine ELLIOTT (1998: 253), pelo qual a sociedade moderna, tal como a conhecemos, estaria próxima de um ponto de não retorno? 7 717 NATUREZA E ALTERNATIVAS DA METAMORFOSE A tese Água e Metrópole: Limites e Expectativas do Tempo colocou insistentemente em discussão temas como água, metrópole, o espaço e o tempo, que implicitamente recomendam uma leitura e um posicionamento direcionado para o ambiental, ponderação que seja dito, está distante de constituir um preciosismo ativista. Indiscutivelmente vislumbro no horizonte a aproximação dos mais dramáticos efeitos derivados do trato mediatizado pela modernidade relativamente ao meio natural, que se vê diante de uma incontida aceleração da bomba-relógio do antropoceno. Atentemos assim, para o que Friedrich ENGELS, antevendo as ruinosas regurgitações da natureza hostil como reação ao desmesurado desejo pelo domínio do ambiente, ponderou: Mas não nos regozijemos demasiadamente em face dessas vitórias humanas sobre a Natureza. A cada uma dessas vitórias, ela exerce a sua vingança. Cada uma delas, na verdade, produz, em primeiro lugar, certas consequências com que podemos contar; mas, em segundo e terceiro lugares, produz outras muito diferentes, não previstas, que quase sempre anulam essas primeiras consequências (1979: 223/224). Deste modo, a crise ambiental da modernidade, ou coadunando com o que é frisado por narrativas congêneres, da ordem global, se retroalimentando das contradições geradas por ela mesma, traça uma analogia com a imagem da serpente que tende a desaparecer, vítima de sua incontida voracidade. 7 718 Historicamente, os que perceberam este movimento e em especial, os que assumiram o encargo da advertência, não raramente tornaram-se alvo de objeções e da repreensão do modo de pensar dominante. Todavia, quem hoje em dia ousaria estigmatizar as preocupações ambientais, como foi comum somente poucas décadas atrás, enquanto devaneio de românticos, preocupação de insensatos, dos pouco afeitos ao trabalho ou pior ainda, dos “inimigos do progresso”? O fato é que mobilizada por uma compulsão verdadeiramente tanática, a civilização ocidental, vitimada pela propensão da rapidez, ao não dispor de espaço para locar os incontroláveis fluxos de tempo, poderá soçobrar, com o cipoal de consequências que este fato trará à maioria, senão a todos os humanos, por faltar-lhe o calço do espaço. Utilizando uma metáfora, e nela há muito de realidade, poder-seia dizer que a torção provocada pelo tempo da modernidade está fazendo o espaço desmoronar para dentro de si mesmo, arrastando de roldão, o homem e a natureza. Diante de um panorama como este, como contradizer que um estado premeditado de desatenção civil, diagnosticado pelo sociólogo inglês Anthony GIDDENS (1991: 130), não faria sentido completo? Nesta direção, não é permitido silenciar a respeito das tentativas do establishment em mascarar uma engrenagem política, cultural, econômica e social que, sucintamente, é em si mesma, geradora de desordem, um modus faciendi que engasta, embora de um modo nem sempre consciente nos que esposam o ideário ambientalista, o credo do desenvolvimento sustentável. 7 719 Como muitos outros termos adjetivados, dentre os quais política social (que de modo indireto assume que a política não está voltada para a sociedade), planejamento urbano (que denuncia que na cidade a planificação não tem lugar) e política pública (que admite que o Estado não leva em consideração as aspirações dos cidadãos), o desenvolvimento sustentado espelha que a forma de convivência com o meio natural na sociedade contemporânea, pouco ou nada possui de sustentável. No melhor dos mundos, tal como certeiramente observou Selene Herculano dos SANTOS (1992), especialista em sustentabilidade e em justiça ambiental, a pregação do desenvolvimento sustentável tem se destacado mais como discurso do que enquanto uma prática real, sendo que na realidade, restringe as possíveis ambições em prol do natural a pavimentar uma transição entre o insuportável e o sofrível. Neste senso, o ecologismo e os movimentos sociais relacionados a reivindicações com este perfil, sejam estes “novos” ou “velhos”, sejam rotulados de ecológicos ou não, intrinsecamente formam o horizonte de novas formulações, dissociadas da lógica temporal e espacial da modernidade, e justamente por esta razão, não admitem vinculação com formulações que advogam a compatibilização entre o status quo e o meio ambiente. Não mais porque, antes de compatibilizar as formas existentes de produção com uma quimérica “preocupação ambiental”, o que está colocado é uma revolução completa em nossa forma de ser, abdicando das fabulações do ter. O ambientalismo refere-se a uma tomada de posição em prol da defesa dos direitos do homem e da 7 720 sua participação real no mundo concreto, sentido este impregnado de história (Cf. ACOT, 1990: 190/192). Por isso mesmo, o ambientalismo traz per se, uma conexão perpétua com as demandas primordiais por democracia e justiça social, enlace que, aliás, é uma prioridade para todos os países, e de um modo particular, para o Brasil e o Terceiro Mundo numa acepção alargada (VIOLA, 1988). Em sua volição mais profunda, o ecologismo preconiza a releitura da temporalidade linear, conectada a uma perspectiva espacial, daí que o resgate da natureza, implica, num parecer geográfico, em uma nova territorialidade. Sobretudo porque o ambientalismo diz respeito à possibilidade de viver radicalmente a condição humana, devolvendo à natureza seus mitos e ciclos, e por extensão, seu cadenciamento do tempo. Assim, é a partir do dinamismo histórico das sociedades, e não das árvores e nem dos peixes, que depende a opção de vida a ser encetada pelos humanos, uma humanidade que para sua própria sobrevivência, tem um compromisso marcado com a naturalidade (Cf. DIÓGENES, 1992: 10 e CARVALHO, 1991: 62/63). Não existe mudança despojada de visão crítica da realidade, e do mesmo modo, nenhuma mudança ocorre privando-se da aspiração de que uma nova realidade, acompanhada de rigor e serenidade, para se tornar possível (passim SANTOS, 2000). 7 721 Mais do que nunca, o senso de que estamos diante de uma encruzilhada, impondo ações de superação é vital. Daí, inferimos que o esforço “deve ser o de buscar entender os mecanismos dessa nova solidariedade, fundada nos tempos lentos da metrópole e que desafia a perversidade difundida pelos tempos rápidos da competitividade” (SANTOS, 1988: 86). Daí que, entendendo-se que de uma parte, a contingência pelo inédito reclama novas metodologias científicas, de outro, prefigura um convite para a ação junto à materialidade social, o que no reino das práticas reais, reporta à decisão de alterar o curso da história e criar uma realidade nova, embrião prenhe de novas perspectivas e novas esperanças. Assim sendo, Boas Notícias: Lutemos por elas! 7 722 Águas que fluem hoje: Bica de água da Fazenda Santo Antônio das Palmeiras, em Mineiros do Tietê, município do Estado de São Paulo (Foto: Maurício Waldman, dezembro de 2004). 7 723 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 6.1. LIVROS E ARTIGOS AB’SABER, AZIZ. Tipologia dos Sítios Inundáveis por Ocasião de Grandes Chuvas. SVMA: que sigla é essa? 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VAMOS CUIDAR DO BRASIL, 2005, Conferência Nacional do Meio Ambiente, II, Política Ambiental Integrada e Uso Sustentável dos Recursos Naturais, Texto Base, Brasília, Ministério do Meio Ambiente. 6.4. CARTOGRAFIA ATLAS DE POCHE. 12ª ed. Kartographie Praha, ed. Librarie Générale Française, França, 1981. ENCYCLOPÉDIE GÉOGRAPHIQUE. Garzanti Editeur, Editora Stock, França, 1981. BRASIL VISTO DO ESPAÇO. EMBRAPA - Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária. Disponível em: <www.cdbrasil.cnpm.embrapa.br>. Acesso em: 22 ago. 2005. IBGE, ATLAS GEOGRÁFICO ESCOLAR. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2002. ISA. Mapas da Bacia Hidrográfica Billings. In: Relatório Billings 2000. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2002. ISA. Mapa Billings - O Maior Reservatório de Água de São Paulo Ameaçado pelo Crescimento Urbano. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2003. 7 774 Mapa Base Oficial da Estância Turística de Ribeirão Pires. 1997, Secretaria de Desenvolvimento Sustentado, Coordenadoria de Informação ao Planejamento, 1:17.500, Ribeirão Pires (SP). Mapas da Revisão do Plano Diretor de Ribeirão Pires. 2003, elaborados pelo IPT - Instituto de Pesquisas Tecnológicas e pela CIP - Coordenadoria de Informação ao Planejamento Instituto Polis, Prefeitura Municipal da Estância Turística de Ribeirão Pires e Instituto Polis, Ribeirão Pires e São Paulo. SAM. 1993, Mapa do Sistema Adutor Metropolitano, SABESP. In: Intervenção Programada no Sistema Cantareira, São Paulo. 6.5. SITES DA INTERNET AGDS: Associação Global para o Desenvolvimento Sustentado, seção Mídia Ambiente: < http://www.agds.org.br/midiaambiente/ >. Acessado em: 12 abr. 2005. ALCOA Alumínio SA: < http://www.alcoa.com/brazil/pt/home.asp > e dados sobre a reciclagem de alumínio: < http://www.alcoa.com/brazil/pt/alcoa_brazil/ recycling.asp >. 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Paz Agora, informativo eletrônico elaborado pelo Movimento Amigos Brasileiros do Paz Agora, Moises Storch (sponsor). 6.7. DICIONÁRIOS ABBAGNANO, Nicola. Diccionario de Filosofia,. 2ª ed. 8ª reimp. México: Fondo de Cultura Econômica, 1991. BEREZIN, Jaffa Rifka. Dicionário Hebraico-Português. São Paulo: EDUSP, 1995. Glossário Ambiental. In: Ambiente Brasil. Disponível em: < http://www.ambientebrasil.com.br >. Acesso em: 19 jun. 2005. OLIVEIRA, Cêurio de. Dicionário Cartográfico. 2ª ed. Rio de Janeiro: IBGE, 1983. OLIVEIRA, Cêurio de. Vocabulário Inglês/Português de Geociências. Rio de Janeiro: IBGE, 1995. 6.8. ICONOGRAFIA Imagens Históricas da Limpeza Pública, São Paulo, organizada por Dan Moche Schneider, 2000. Israel, Die Goldenen Bucher, Suíça, Hallwag SA Berne, 1966. 7 777 A Água Nossa de Cada Dia, cartilha de conscientização com ilustrações de Ziraldo, SAAE Sorocaba e Governo Municipal de Sorocaba, 2005. 6.9. FONOGRAFIA Cantoria dos Mananciais - Seleção organizada pela Secretaria de Meio Ambiente do estado de São Paulo, Forró dos Mananciais (Chico Salem), e Cordel dos Mananciais (Sebastião Marinho), sem data, São Paulo. 6.10. PALESTRAS Prof. Dr. Carlos Nobre, do INPE, no Painel Mudanças Climáticas, desenvolvido no IVº Encontro da ANPEGE, Associação Nacional de Pós-Graduação em Geografia, Encontro do ANPEGE, 23-26 mar. 2002, no Departamento de Geografia da USP, São Paulo. Prof. Dr. Jefferson Simões, da UFRGS, no Painel Mudanças Climáticas, desenvolvido no IV Encontro da ANPEGE, Associação Nacional de Pós-Graduação em Geografia, Encontro do ANPEGE, 23-26 mar. 2002, no Departamento de Geografia da USP, São Paulo. Profª. Dra. Monica Porto, Instituto Politécnico da USP, na Mesa Redonda A Exploração da Água Subterrânea em Centros Urbanos, promovido pelo Instituto de Geociencias da USP e pela Associação Brasileira de Águas Subterrâneas, 11 set. 2003, no Instituto de Geologia da USP, São Paulo. Drª Nadia Cacciandra, do Instituto Politécnico di Milano, Itália, no Seminário Internacional Água: Avanços Tecnológicos para um Reúso Sustentável, Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, 06 dez. 2005. 7 778 Prof. Dr. Wagner Bettiol, do CNPMA/ Embrapa Ambiental, no Seminário Internacional Água: Avanços Tecnológicos para um Reúso Sustentável, Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, 06 dez. 2005. 6.11. FILMOGRAFIA Metrópolis (Alemanha, 1927), direção de Fritz Lang. Tempos Modernos (Estados Unidos, 1936), direção de Charles Chaplin. Vozes do Medo (Brasil, 1969/1970), direção de Gianfrancesco Guarnieri et alli. Blade Runner (Estados Unidos, 1982), direção de Ridley Scott. Videodrome - A Síndrome do Vídeo (1982), direção de David Cronemberg. Koyaanisqatsi (Estados Unidos, 1983), direção de Geofrey Reggio, música de Philip Glass. Ilha das Flores (Brasil, 1989), curta-metragem dirigido por Jorge Furtado. Ecologia do Cotidiano, (Brasil, 2005), Entrevista de Maurício Waldman para o Programa TV Ratinbum da TV Cultura. 7 779 ANEXOS 7 780 ANEXO I RIBEIRÃO PIRES: A REPRODUÇÃO DA METRÓPOLE O debate que procura equacionar a dificultosa relação envolvendo água e metrópole é dos que mais tem inspirado estudos e avaliações. A acirrada contradição que tem contraposto estes dois polos da análise, teria, pois, estaqueamento na fruição do tempo social, isto é, referente à acepção linear e progressiva, típica da modernidade. Esta, engendrando o predomínio da velocidade em todas as esferas da vida contemporânea, obrigatoriamente obsequia a todas as formas presentes no espaço, um cunho de transitoriedade (Cf. TOFLER, 1973). Contudo, não se pode incorrer em simplificações, pois a cidade, enquanto uma formação socioespacial, refere-se a uma acumulação desigual de tempos. Logo, o meio urbano apresenta uma diversidade de ritmos, inferência passível de ser notada na própria vida cotidiana. Observe-se que a existência de fluxos de intensidade desigual não é contraditória com o funcionamento do sistema. Na realidade, as intensidades desiguais da fruição do tempo mantêm entre si uma relação de complementaridade, por intermédio da qual o edifício da 7 781 materialidade social se mantém e se reproduz incessantemente (Cf. SANTOS, 1998 e 1988). Por isso mesmo, detectar especificidades que acodem no âmago dos processos socioespaciais, certifica não propriamente “desvios”, mas sim, especificidades que irrompem organicamente na construção do espaço habitado. Não há como secundarizar o pressuposto de que a dinâmica urbana atina a um sistema, com um todo articuladamente orquestrado. No âmbito eminentemente geográfico, este nexo não tem como passar despercebido: “O lugar é ao mesmo tempo particular e geral. Enquanto forma não revela necessariamente, a própria essência e enquanto conteúdo, o lugar é uma relação historicamente constituída” (SEABRA, 1987: 274). Neste lampejo, pontuação congênere, destaca que “a realidade do mundo moderno se reproduz em diferentes níveis. No lugar encontramos as mesmas determinações da totalidade sem com isso eliminar-se as particularidades, pois cada sociedade produz seu espaço, determina os ritmos da vida, os modos de apropriação expressando sua função social, seus projetos e desejos” (CARLOS, 1996: 17). Neste sentido, o município de Ribeirão Pires, localizado no Grande ABC Paulista, constitui cenário privilegiado para discernir problemáticas que em nível da Grande São Paulo e por extensão, da Bacia Hidrográfica do Alto Tietê (Figura 1), articulam os recursos 7 782 hídricos com as problemáticas urbanas e estas duas, com a questão ambiental. FIGURA 1 - Bacia Hidrográfica do Alto Tietê (Fonte: Educação Ambiental em Área de Manancial: Conceitos e Práticas, 2002: 9) Esta cidade, uma das sete que integram o Grande ABC Paulista, ao mesmo tempo em que apresenta personalidade própria quanto à sua inserção no tempo e no espaço, simultaneamente reproduz, num recorte particular, os dinamismos regionais e os da metrópole como um todo. Transformando-se nos últimos 20 anos numa das “franjas ativas” da vasta mancha urbana formada pela Região Metropolitana de São Paulo (a RMSP), Ribeirão Pires (Figura 2), configura-se como um espaço que habilita a percepção do movimento expansivo da metrópole rumo aos seus “bordos”, that is to say, na direção de áreas 7 783 nas quais a imposição dos seus códigos temporais, espaciais e culturais, defronta-se com um meio integrado de um modo incompleto à dinâmica hegemônica da metrópole. FIGURA 2 - A RMSP e Ribeirão Pires: Foto de satélite destacando a localização de Ribeirão Pires no espaço da região metropolitana (Fonte: Agenda 21 Local - A Cidade, o Meio Ambiente e o Homem, 2003: 14) A “chegada da metrópole” em Ribeirão Pires, reflete-se num variado leque de desdobramentos, consubstanciando-se numa escala que abarca desde as intervenções encaminhadas pelas gestões municipais, passa pela cotidianidade vivida pelos seus habitantes, e alcançando, na outra ponta, marcas espaciais e culturais comuns a todo meio urbano moderno (Figura 3). 7 784 As transformações espaciais que incidem neste centro urbano, explicitam o poder de interferência da temporalidade da metrópole, cujo poderio se difunde por toda a conurbação, induzindo diferentes vocações que terminam materializadas no espaço. Exatamente nesta significação, este veredicto impõe primeiramente a necessidade de alinhavar aspectos relacionados com o surgimento da cidade e seus vínculos com a dinâmica da metrópole. FIGURA 3 - Pichação em Ribeirão Pires: As pichações emaranhadas constituem um típico fenômeno cultural metropolitano (Vide AB’ SABER, 2004: 21/26). Em Ribeirão Pires esta manifestação tem eclodido com persistência na área central da cidade. Na foto, os pichadores enfearam a entrada do “Shopinho”, galeria de lojas situada no Centro Novo de Ribeirão Pires (Foto: Maurício Waldman, julho de 2004) Assim, um dado básico é que de um ponto de vista histórico, o território que atualmente forma Ribeirão Pires vinculou-se ao antigo Caaguaçu, território regido por formas tradicionais de vida no largo período que se alastrou desde as primeiras décadas da colonização 7 785 portuguesa até o Século XIX, quando a ferrovia desmantela o arranjo socioespacial tradicional. Durante mais de trezentos anos, portanto, a sociedade local do Caaguaçu formou um universo intrinsecamente estranho às vivências que hoje caracterizam a região. Um dos marcos da história da cidade foi a chegada do capitãomor Antônio Corrêa de Lemos. Este fundou no ano de 1714, a Capela da Nossa Senhora do Pilar, ou simplesmente, do Pilar, situada junto ao caminho que ligava, no Século XVII, Piratininga à atual Mogi das Cruzes. Integrada à jurisdição da Freguesia da Sé, sediada na cidade de São Paulo, a Capela do Pilar corresponde, comprovadamente, ao marco mais proeminente até então edificado na região do atual ABC Paulista. Além dos ofícios religiosos, a capela normatizava funções de caráter associativo, de ordem político-social e complementando, nas suas imediações realizava-se igualmente um comércio sazonal que abastecia a população de artigos forâneos. A Capela do Pilar, de cunho religioso, integrada ao patrimônio histórico do ABCDMR, é considerada pelos mais diversos segmentos sociais de Ribeirão Pires como uma espécie de “marco zero” do nascimento da cidade. No entanto, qualquer um que se detenha a analisar o mapa da cidade e os arredores atuais da Capela do Pilar, percebe que na realidade, foi a ferrovia, e não a capela, o móvel que magnetizou o crescimento efetivo da cidade. Ainda hoje, esta construção e os seus arredores, integrando o bairro do Pilar Velho, são, quando muito, uma 7 786 área semi-urbanizada, apresentando arruamento pouco significativo, com grande número de sítios de propriedade de nipo-brasileiros devotados à produção hortifrutigranjeira. Na realidade, a adoção da capela enquanto pedra fundamental da cidade justifica-se basicamente como uma tradição inventada (Cf. HOBSBAWM, 1984), calcada de modo ostensivo numa mitologia com apensos em ideações bandeirantes (Cf. Figura 4). Adotada por ser conveniente à construção de um passado histórico para a cidade, esta peça de ficção foi, na mesma direção, legitimada por uma coleção de ações institucionais, determinando que sua apresentação junto à consciência social passasse a se revestir dos foros de verdade inquestionável. Entrementes, seja dito às claras que a Capela do Pilar enquanto objeto espacial, conferia a um marco de sociabilidade atinente a uma espacialidade tradicional, conotada pela condição de bairro rural extenso e escassamente povoado, características estas, das quais o velho Caaguaçu nunca se distanciou durante toda a sua história. Para dirimir eventuais dúvidas, bastaria consultar o mapa da população do Caaguaçu datado de 1776, apontando um contingente de 779 brancos, 385 pretos livres e escravos e 456 mulatos livres. No total, minguadas 1.620 almas. Esta população dedicava-se a uma agricultura de subsistência e pecuária extensiva, predominantemente voltada para o autoconsumo e gerando um excedente escasso, pouco significativo no plano da 7 787 economia. Claramente, o Caaguaçu formava um dos “desertos” que se espraiavam, na interpretação de Caio PRADO JÚNIOR, pelos interstícios dos caminhos abertos a partir de Piratininga (Cf. 1998: 42/43). FIGURA 4 - A Reprodução da Mitologia Bandeirante: Em Ribeirão Pires, o esforço de criar um imaginário histórico para a cidade buscando guarida em ícones da capital explicita-se claramente nesta foto. Este relevo, que forma a base da estátua do Mirante de São José, padroeiro da cidade, evidencia uma típica iconografia bandeirante, inclusive no tocante aos seus traços supremacistas. O jesuíta, o bandeirante e o indígena, embora juntos, mantém entre si relações desiguais. Note-se que o índio deixou de possuir descendência: uma das crianças indígenas esta acudida pelo jesuíta; a outra está acompanhada da mãe, que busca apoio no bandeirante; O índio está sozinho, desacompanhado da mulher, agora parceira do europeu (Foto: Maurício Waldman, maio de 2004) 7 788 Mas, a chegada do trem, ao constituiu vetor de transformações profundas, altera radicalmente esta situação, encetando celeremente uma reorganização territorial completa do espaço do Caaguaçu. O funcionamento da estrada de ferro determinou, por exemplo, a formação de “povoados-estação” enfileirados ao longo do seu trajeto. Dentre estes, podemos mencionar os de Pilar (atual Mauá), São Bernardo (atual Santo André), Paranapiacaba (ou Alto da Serra) e Ribeirão Pires, todos mantendo, sem exceção, íntimo relacionamento com a estrada de ferro (LANGENBUCH, 1968: 151). Inequivocamente, o surgimento de sete municípios nesta região, dentre os quais Ribeirão Pires (que se emancipou de Santo André em 1953), reporta, em última análise, a um dos dinamismos territoriais induzidos por este meio de locomoção. A região de Ribeirão Pires, outrora parte de um “bolsão”, cujos contatos com São Paulo eram esporádicos (e inclusive menos frequentes do que os mantidos com Mogi das Cruzes), torna-se, por intermédio da ferrovia, um espaço fortemente associado com a capital paulista. Diferentemente dos tempos em que a Capela do Pilar coroava a temporalidade da região, agora, esta passa a ser monitorada pelas exegeses do tempo linear, que impõe ao Caaguaçu, seus ritmos e suas frequências. Tal ponderação constituiria bem mais do que uma figura de linguagem. Foi a conexão com o tempo que determinou, por exemplo, a construção da estação de Ribeirão Pires, localizada num ponto topologicamente simétrico quanto ao trajeto entre Santos e São 7 789 Paulo: uma hora de percurso para qualquer um dos dois destinos (Cf. SOUZA, 1985: 8). Inaugurada em 1885, a implantação da estação ferroviária foi um decisivo fator de territorialização. Foi a partir dela, e não da Capela do Pilar, que o núcleo urbano original de Ribeirão Pires foi implantado. Em 1887, uma leva inicial de imigrantes italianos instalou-se, com o apoio do Visconde de Parnaíba, presidente da província de São Paulo, no que hoje forma o bairro de Colônia, situado na banda direita da ferrovia no sentido para Santos. Este núcleo, assentado numa topografia mais elevada (daí o fato de ser também conhecido como Centro Alto), tinha por eixo a Igreja Matriz. Embora um segundo núcleo tenha sido fundado nos arredores da Capela do Pilar, o assentamento da ferrovia, desfrutando de uma associação privilegiada com a temporalidade dominante, rapidamente se arvorou à condição de eixo da organização espacial, repaginando a territorialidade local. Neste sentido é que se torna possível dividir a história de Ribeirão Pires em antes e depois da ferrovia (MARQUES, 1996: 16). A estação ferroviária constituiu apoio indispensável para o projeto de colonização que de facto, deu origem à cidade. Fato incontestável, a Capela do Pilar não tem nada a ver com processo oitocentista de espacialização. Aliás, o próprio nome da cidade é uma referência a uma família de proprietários de terras do Caaguaçu, os Pires, cuja presença na região é atestada desde os primórdios do Século XVIII (BOTACINI, 1979: 23/31). 7 790 Em Ribeirão Pires, como em múltiplos outros pontos do território brasileiro, as vias férreas determinaram a ruína das aglomerações preexistentes, que desaparecem ou quando muito se adaptam aos novos eixos de circulação, mesmo porque, foi estaqueada no núcleo ferroviário que o município foi sancionado no tempo e no espaço, mediatizado pelo seu papel de parada do trem (Cf. DEFFONTAINES, 2004: 128 e BOTACINI, 1995, 1980 e 1979). Por conseguinte, a Capela do Pilar, antes de constituir “o começo de Ribeirão Pires”, seria mais bem definida como um objeto espacial inserido no interior do que futuramente se configurou como os limites da municipalidade, para cuja delimitação, a senioridade deste objeto espacial não foi de modo algum determinante (Figura 5). Todavia, pensar o surgimento de Ribeirão Pires a partir da ferrovia e da associação com a cidadela paulistana nos obriga novamente a alertar quanto a simplificações imprudentes. Por certo, a fricção da distância é um fator adicional que auxilia a compreender a dinâmica urbana da cidade. Isto porque Ribeirão Pires, ao situar-se a meio caminho entre São Paulo e Santos, convive com determinada condição de isolamento, promovendo um ingresso mais gradativo nos ritmos regionais e metropolitanos. Corporificando primeiramente um núcleo urbano de proporções modestas agarrado ao leito da ferrovia, a localidade - não obstante a operosidade dos canteiros que exploram os prodigiosos afloramentos de granito do território e de atividades embrionárias, centralizadas na produção de lenha e carvão, nas olarias, cultivos, pecuária e algumas fábricas e moinhos -, se caracteriza nas primeiras décadas de sua 7 791 existência por um modo de vida menos tocado por um senso metropolita. FIGURA 5 - Vista da Capela de Nossa Senhora do Pilar: Este objeto espacial, localizado no Morro de Pilar. Em área suburbana da atual Ribeirão Pires, é um remanescente da antiga espacialidade tradicional. A estrutura básica desta construção, erguida com a técnica da taipa de pilão, recebeu acréscimos posteriores, como a torre do sino e outras agregações arquitetônicas. Enquanto uma rugosidade, esta capela, tombada pelo CONDEPHAAT em 1975, detém, como todo templo religioso, enorme força inercial (Cf SANTOS, 1981: 185). Trata-se de uma herança espacial cujo significado foi envelopado aos ditames dos dias presentes. Hoje, seu papel é o de subsidiar uma interpretação histórica que se mostra adequada para dar um cunho de senioridade à cidade, assim como para subsidiar eventos turísticos que agitam o comércio local. Um destes é a Festa de Nossa Senhora do Pilar, evento recorrente na agenda de eventos do município, ocorrendo pela 69ª vez em 2005 (Foto: Maurício Waldman, março de 2004) Tudo isto se coaduna com a evocação de um “clima serrano” do qual a cidade em tese desfrutaria. As características climáticas de Ribeirão Pires (tropical de altitude, com temperatura média de 16 ºC e elevada umidade relativa do ar), somadas à presença frequente de 7 792 nevoeiros e garoas, bem como a localização num domínio geológico de “mares de morro”, favoreceram a difusão de uma alegoria “alpina” para a cidade. Tratando-se de uma fabulação geográfica elaborada a partir de um imaginário ambiental eurocentrado, este foi um dos alegados motivos que concederam ao espaço de Ribeirão Pires, o papel de “refúgio tranquilo”, acolhendo principalmente segmentos de santistas afluentes, que entediados do calor e da praia, passaram a buscar a cidade para o desfrute dos finais de semana. Porém, um dado mais objetivo se confrontaria com este suposto “atrativo alpino”. É que várias fontes argumentam que foi basicamente o preço muito baixo dos terrenos, e não o clima, o elemento decisivo que atraiu forasteiros para Ribeirão Pires, sendo que factualmente, diversos documentos atestam que estes eram cedidos praticamente de graça (LANGENBUCH 1968: 141). De qualquer modo, nas primeiras décadas do Século XX foram instaladas diversas chácaras de segunda residência, principalmente nos bairros da Quarta Divisão e do Ouro Fino 137, assim como residências de veraneio em outros pontos do município. Na cidade, o bairro de Vila Suissa (ou Vila Suissa Santista), atualmente um reduto dos setores mais ricos de Ribeirão Pires, recorda a influência deste fator enquanto um dos marcos da identidade espacial de Ribeirão Pires (Vide Figura 6). 137 Quanto ao Ouro Fino enquanto espaço de lazer, consultar SILVA, 1998. 7 793 Evidentemente a análise da articulação do povoado-estação com a capital paulista, impõe avaliar a inserção diferenciada mantida com a realidade metropolitana. Ribeirão Pires, embora integrada em grau crescente nas rotinas da grande cidade, permanece como um espaço pertencente à periferia metropolitana. Disto decorre um ritmo mais lento, ou melhor, menos rápido, na realidade apenas a antessala de uma futura aceleração. FIGURA 6 - Vista panorâmica da Vila Suissa Santista: Observe-se o padrão arquitetônico das residências e a presença de arborização, denunciando sua condição de bairro afluente de Ribeirão Pires (Foto: Maurício Waldman, maio de 2005) Em suma, o que se tem diante dos olhos é um tecido urbano menos compacto, um espaço no qual a RMSP torna-se mais rarefeita e começa a entremear-se com espaços dominados por chácaras e pequenos estabelecimentos agrícolas. Estas características é que permitiriam entender a cidade sob uma “aura rural”, recordando uma bucólica vida interiorana (Vide KUVASNEY, 1996: 8). 7 794 Nos inícios dos anos 1960, Ribeirão Pires exibia uma série de sinais que tipificavam uma “diluição da metrópole”. No núcleo urbano, a névoa contínua, as baixas temperaturas, a persistente chuva fina que lavava a cidade e as ruas pavimentadas com paralelepípedos formavam uma imagem paradigmática da cidade, envolta por uma natureza não-hostil. Poucos automóveis circulavam nas suas ruas e as ligações de ônibus nem de longe tinham a assiduidade que nos dias atuais ligam Ribeirão Pires com os municípios vizinhos e São Paulo. Enquadrada como uma “cidade-dormitório” que abastecia as fábricas da região com força de trabalho, Ribeirão Pires era uma espécie de “fim do ABC” e os comerciantes árabes da área central da cidade, sempre atentos ao movimento da rua, a ela se referiam como “uma cidade tranquila até demais”. Por conseguinte, a decolagem do crescimento de Ribeirão Pires, contrariamente a São Bernardo, Santo André e Diadema, que desde a década de 1950 foram bafejadas pelo contato com o progresso e com a proximidade com o mercado de trabalho alavancado pela indústria automobilística na região, ganha intensidade somente a partir dos anos 1970. Os novos habitantes de Ribeirão Pires são trabalhadores que tem seu ganha-pão nos municípios mais industrializados do Grande ABC, caracterizando a já citada situação de cidade-dormitório, cuja ligação primordial com o mundo do trabalho era compassada pelo apito do trem (Vide LANGENBUCH, 1968: 452/453. Ver também figura 7). 7 795 Esta expansão foi reforçada pelo rodoviarismo. Além da ferrovia, que havia sustentado a implantação do núcleo urbano original e vitaminado um entrelaçamento mais orgânico com a metrópole e o Grande ABC, a cidade passou a contar com a rodovia Índio Tibiriçá (SP-31), inaugurada em 1963. Ligando a Baixada Santista a Mogi das Cruzes através do território de Ribeirão Pires, esta via acelerou o adensamento populacional ao longo do seu trajeto, estimulando a implantação de loteamentos e magnetizando a eclosão de novos vetores para a expansão urbana. FIGURA 7 - Estação ferroviária de Ribeirão Pires: A atual estação da cidade foi inaugurada em 1912. Este meio de transporte, utilizado em larga escala pela população trabalhadora, é ainda hoje vital para a vida da cidade (SOUZA, 1985). Entretanto, pesa sobre o trem o estigma da pobreza. Pegar o trem é “out”. Andar de carro é “in”. Poucos gostam de recordar que do trem é que a cidade de fato originou. Na foto, vista parcial da plataforma sentido Rio Grande da Serra-Estação da Luz (Foto: Maurício Waldman, dezembro de 2003) Nesta sequência, bairros como o Roncon, Barro Blanco, Pouso Alegre e o Ouro Fino, dispostos nas margens da rodovia, tornaram-se referências de adensamento populacional. Estas áreas ingressaram no universo da mancha urbana metropolitana investidas do papel de 7 796 “guarda avançada”, abertas para recepcionar pulsões cada vez mais intensas da temporalidade metropolitana. A expansão de Ribeirão Pires caracterizou-se nas décadas dos anos 1970-1990, por médias superiores às do ABCDMR e da RMSP como um todo. De modo bastante claro, os acréscimos demográficos ocorrem apoiados em formas de ocupação que ignoram à socapa as leis de proteção aos mananciais. Estima-se que o crescimento anual foi da ordem de 6,89% nos anos 1970-1980 (contra 5,27% do Grande ABC) e de 3,79% nos anos 1990 (contra a média regional de 1,96%). A população da cidade, calculada em 15.000 almas por ocasião da emancipação em 1953, salta para 29.048 em 1970, 56.532 em 1980, 85.085 em 1991 e 104.508 no ano 2000. Embora seja nítida a desaceleração do crescimento demográfico (2,33% em 2002), esta taxa continua a ser superior às médias do ABCDMR e da RMSP, estimadas respectivamente em 1,57% e 1,65% anuais (Vide IBGE e Plano Diretor de Ribeirão Pires, 2003: 13/14). Neste cadenciamento, surge uma coleção de novos bairros. O antigo Centro Alto, no qual se instalaram os imigrantes italianos, é rapidamente ilhado pela expansão da mancha urbana. A ocupação da ilharga esquerda da ferrovia, formando o chamado Centro Novo da cidade com eixo na Rua do Comércio, assumiu rapidamente a função de novo polo dinâmico da cidade. No frenesi desta expansão, as várzeas são ocupadas, fontes de água são tamponadas e a cidade, recém-ingressa no circuito dos problemas urbanos “típicos”, passa a conviver com a formação de 7 797 “vazios” da mancha urbana (por conta da especulação imobiliária), poluição urbana, assoreamento dos rios e também, com as enchentes (Vide SILVA, 1998: 14/15). Relativamente à destinação dos resíduos sólidos domiciliares, de serviços de saúde, inertes e os gerados pelas indústrias, existe um diferencial de Ribeirão Pires (assim como de Rio Grande da Serra), na comparação com os demais municípios do Grande ABC. A Lei de Proteção aos Mananciais prescreve que estes resíduos devem ser removidos para fora das áreas protegidas, e deste modo, a cidade encaminha seus rebotalhos para o Incinerador e para o Aterro do Lara, situados em Mauá. No entanto, existem incompletudes na legislação que criam embaraços para a destinação do entulho da construção civil, assim como para resíduos resultantes da remoção de solo, pneumáticos, mobiliário descartado, lixo digital e itens inservíveis em geral. Sem contar que os aterros e incineradores do ABC não podem ser desprezados de um mapa de riscos do município, existem na cidade, dezenas de pontos de disposição irregular e/ou clandestina, os chamados “bota-fora”, que comprometem a preservação do meio ambiente, da paisagem urbana e obviamente, os mananciais da região (Plano Diretor de Ribeirão Pires, 2003: 64/65). Isto posto, como seria meritório registrar, a metropolização pode tardar, mas não deixa de chegar, sendo que o ingresso da cidade na ciranda metropolitana repercutiu dos mais diversos modos no seu 7 798 cotidiano, materializando lenta, mas inexoravelmente, os rasgos que tipificam a grande cidade e os seus desequilíbrios. Um dos aspectos que denunciam a aceleração temporal é o incontestável avanço do capeamento asfáltico, que recobre ou substitui os paralelepípedos, calçamento que constituía uma das marcas mais singulares da cidade até pelo menos os anos 1980 (Fig. 8). FIGURA 8 - Três tipos de pavimento à mostra: azulejos, paralelepípedos e asfalto em trecho de rua do Centro Alto de Ribeirão Pires, nas proximidades da Igreja da Matriz (Foto: Maurício Waldman, dezembro de 2003) O esgotamento da capacidade do sistema viário em dar conta do trânsito de veículos constitui outro the sign of the times. Desde os anos 1990, o termo rush passou a integrar o vocabulário do cidadão ribeirãopirense das áreas centrais, e pari passu, vias de acesso como a rodovia Índio Tibiriçá operam claramente no limite da capacidade. 7 799 No mais, a introjeção da modernidade urbana na cidade também inclui a exclusão social. No final das contas, dinâmicas metropolitanas embasadas na automação flexível, na reconversão, na reengenharia e na polivalência, não deixaram de alcançar a cidade, promovendo o desemprego e a chamada economia informal. É este contexto que justifica a presença dos catadores que passaram a operar no Centro Novo e a nítida expansão do “comércio informal”, neste último caso adotando a metrópole paulista enquanto modelo (Figura 9). FIGURA 9 - O Brazinho: Esta é a denominação dada ao espaço dos “marreteiros” em Ribeirão Pires, uma referência explícita ao bairro do Brás em São Paulo, na capital paulista. Ao fundo, pode-se observar a porteira que permite a passagem dos pedestres atravessando a linha da CPTM, ligando o Centro Alto da cidade ao Centro Novo. A construção à esquerda da foto, corresponde parcialmente às instalações originais da estação ferroviária de Ribeirão Pires (Foto: Maurício Waldman, fevereiro de 2003) Isto posto, será justamente a partir da articulação de Ribeirão Pires com a metrópole que se torna compreensível o surgimento de várias contradições que podem ser notadas quanto à questão dos recursos hídricos no município. 8 800 Neste aspecto, ressalve-se que apesar de possuir uma superfície modesta (107 km², representando 13% do Grande ABC), Ribeirão Pires é extremamente rico do ponto de vista hidrológico. Agraciado com um pico alto de pluviosidade (1.400/1.500 mm anuais em média), contanto com uma considerável extensão de remanescentes de mata atlântica e possuindo 100% da sua área coberta pela legislação dos mananciais, o território do município é drenado por inúmeros cursos d’água, agrupados em três bacias hidrográficas: Guaió, Taiaçupeba ou Taiaçupeba-Açu e a da Billings. Quanto ao reservatório Billings, suas águas ocupam 7 km² do território do município. É interessante registrar que o Ribeirão Pires constitui área de interesse para dois dos Subcomitês do Comitê da Bacia Hidrográfica do Alto Tietê (CBH-AT): Billings-Tamanduateí e o Tietê-Cabeceiras, particularidade administrativa e técnica que exalta o caráter estratégico usufruído por este município para a gestão das águas doces na Grande São Paulo (Vide Figuras 10 e 11). Objetivamente, a drenagem das águas fluviais é reveladora da importância de Ribeirão Pires para o contexto hidrológico regional. A título de exemplo, as águas das bacias do Guaió convergem para o Tietê, desaguando entre Poá e Suzano. Com relação ao curso do Taiaçupeba, este segue diretamente na direção do reservatório do mesmo nome, localizado entre Suzano e Mogi das Cruzes. Estas duas bacias hidrográficas estão vinculadas ao Sistema Produtor do Alto Tietê (SPAT), um dos oito que atendem a RMSP. Quanto à Bacia Hidrográfica da Billings, o Braço do Rio Grande, cujas águas são destinadas para o atendimento das demandas de 8 801 São Bernardo do Campo, Diadema e Santo André, seu trecho inicial confina diretamente com Ribeirão Pires. Em termos da realidade municipal, esta bacia é de longe a mais importante. Além de abarcar 75% da área total do município (contra 15% do Taiaçupeba e 10% do Guaió), nesta área se concentra o essencial da população e das atividades econômicas de Ribeirão Pires. FIGURA 10 - Mapa das Bacias Hidrográficas de Ribeirão Pires (Fonte: Educação Ambiental em Área de Manancial: Conceitos e Práticas, 2002:7, escala aproximada: 1: 83.750) 8 802 FIGURA 11 - Mapa do potencial de Águas Subterrâneas em Ribeirão Pires (Fonte: Instituto de Pesquisas Tecnológicas, in Plano Diretor do Município de Ribeirão Pires, 2003, escala aproximada 1: 116.700) Além das águas de superfície, o município dispõe de um notável potencial de águas subterrâneas. Verdadeiramente, Ribeirão Pires foi agraciado pela natureza com uma verdadeira profusão de fontes de águas minerais. Os últimos levantamentos de águas subterrâneas realizados pelo Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), dão conta de que a cidade literalmente repousa em um extenso veio de água mineral, um fenômeno singular sob os mais diversos aspectos da geografia física (Figura 11). Embora estas pesquisas não tenham avançado a ponto de certificar a cubagem das águas subterrâneas do município (logo, não 8 803 quantificando a proporção possível de retiradas), ao menos em princípio, as características naturais de Ribeirão Pires em termos geológicos, geomorfológicos e climáticos, permite entender a cidade como um possível provedor de água doce, daí o redobrado interesse que Ribeirão Pires tem despertado quanto às suas singularidades hidrológicas. Atualmente, de acordo com o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), o município é o polo de produção de água mineral na RMSP que mais tem despertado interesse dos empresários do setor, perdendo apenas para a capital paulista. Neste recorte, além de duas empresas engarrafadoras de água em funcionamento (Águas Pilar e Vênus Olímpica), o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), enumera 25 pedidos de pesquisa, registro e exploração de lavras do líquido destinados à comercialização. Outras empresas planejam montar linhas de engarrafamento visando exportar o líquido em larga escala. Uma destas empresas, a Fonte Santa Luzia, foi formada por um grupo de seis empresários de São Paulo com a perspectiva de proceder ao envasamento de 150/200 mil galões/mês, sendo seu intuito aproveitar a proximidade do Porto de Santos para direcionar grande parte da produção para o mercado externo (GUAZELLI, 2004:82 e CAMPANILI, 2003). Um fator que se associa a este contexto foi o fato da cidade ter se assegurado da titulação de Estância Turística (Lei nº. 10.130 de 09/12/98). Esta titulação foi obtida após ter sido inviabilizado o status de Estância Climática motivada pela poluição industrial gerada pelo município vizinho de Suzano (Cf. SILVA, 1998: 17). 8 804 Esta classificação, também coroou esforços desenvolvidos nas duas gestões da prefeita Maria Inês Soares Freire (1997/2000 e 2001/2004), na senda de orientar o desenvolvimento urbano na direção do que veio a ser definido como vocação desejada para o município (CAMPANILI, 2003). Na condição de Estância Turística, o município de Ribeirão Pires habilitou-se à condição de possível agraciado com recursos visando o desenvolvimento de atividades compatíveis com esta titulação. Entretempos, procurando reforçar este status, a administração municipal executou estudos da viabilidade econômica para empreendimentos turísticos, sistematizados num Guia de Negócios (1999), bem como encaminhou o Censo Turístico (2000), ambos constituindo a base do Plano Diretor do turismo local. A prefeitura também investiu em infraestrutura turística. Dentre as obras mais significativas estão a revitalização dos mirantes da cidade (São José e Santo Antônio), a drenagem do entorno da Pedra do Elefante (ponto mais alto do município), construção de pier no Parque Municipal Milton Marinho de Moraes (135 mil m², de frente para a Billings), a criação de um novo Parque, o Pérola da Serra (40 mil m², contando com arvorismo) e investimentos no programa de coleta seletiva de lixo. Porém, seja dito que Ribeirão Pires não está situado num “vácuo metropolitano”. As contradições inevitáveis inerentes aos processos hegemônicos presentes na RMSP, todas com repercussão morbígera quanto à saúde dos recursos hídricos, igualmente fazem sentir sua presença na cidade. 8 805 Estes impõem sua marca na questão ambiental, incorporando dinamismos espaciais indissociáveis da progressão do tempo da metrópole, com o qual, a cidade mantém relação de cumplicidade. Assim sendo, poder-se-ia elencar aspectos pelos quais Ribeirão Pires, tal como no Grande ABC e na RMSP como um todo, tem colocado em risco a preservação das águas doces: 1. Como foi possível certificar na Figura 11, a cidade inteira está assentada justamente na área de maior potencial de águas minerais, a área cisalhada que se confunde com a calha do Córrego Ribeirão Pires, exatamente o corredor natural que tem sido adotado como eixo pela progressão da mancha urbana. Este contexto espacial torna imprescindível um rigoroso acompanhamento do uso e da ocupação do solo, uma diretriz que como se sabe, tem sido de difícil ou nula aplicação na GSP. 2. Especificamente quanto ao abastecimento público de água, uma contradição patente é o fato de Ribeirão Pires, uma cidade situada na beira da Billings - o maior reservatório de água da RMSP paradoxalmente satisfazer suas demandas por meio da importação do líquido, fornecido pelo sistema Rio Claro. Nitidamente, a cidade reproduz um modelo de “ressecamento das águas”: a metrópole, ao se estender, distende suas fontes de provimento hídrico, destruindo os recursos hídricos locais e repassando para regiões mais recuadas o ônus do fornecimento de água doce. Ostensivamente, Ribeirão Pires integra esta lógica absolutamente perversa de inviabilização do acesso às águas doces (Figuras 12, 13 e 14). 8 806 FIGURA 12 - Trecho Assoreado da Billings: situado nas proximidades do píer do Parque Municipal Milton Marinho de Moraes, em Ribeirão Pires, o assoreamento tornou-se visível durante a estiagem que ao longo do II Semestre de 2003, assolou a região da RMSP (Foto: Maurício Waldman, dezembro de 2003) FIGURA 13: Proibido Pescar e Nadar: Placa colocada na entrada do Parque Municipal Milton Marinho de Moraes, em Ribeirão Pires. Apesar do aviso, o local é um concorrido espaço para a pesca amadora de tilápia, degustada em braseiros montados ao ar livre (Foto: Maurício Waldman, maio de 2005) 8 807 FIGURA 14 - Ramal do Sistema Rio Claro: Estas tubulações, atravessando o bairro do Ouro Fino, abastecem a cidade de Ribeirão Pires (Foto: Maurício Waldman, abril de 2005) 3. É interessante registrar que ao mesmo tempo em que Ribeirão Pires importa água potável, a cidade se projeta como possível polo de comercialização em larga escala de água engarrafada, visando tanto o mercado consumidor regional/nacional quanto o do exterior. Mesmo que a exportação de água mineral ainda não tenha efetivamente se materializado, é digno de nota que este comércio já ocorre de modo informal. A água mineral da marca Pilar, por exemplo, é vendida para os depósitos de Santos, que por sua vez abastecem navios de carga e de passageiros que ancoram no estuário. Este procedimento, um dos que contribuem para a fidelização dos consumidores, poderá ser 8 808 rapidamente alavancado por iniciativas empresariais, as quais já começam a se movimentar nesta direção. 4. No que constitui expressão emblemática do estresse hídrico, Ribeirão Pires passou a registrar situações impensáveis de escassez, mesmo poucos anos atrás. A vigilância sanitária da cidade, assim como diversas ONGs, têm denunciado casos de engarrafamento clandestino e captação direta da água das fontes por caminhõestanque, que revendem o líquido com estupenda margem de lucro. Operando de madrugada, pequenas vans provenientes da zona leste da capital engarrafam água de fontes abertas sem qualquer amparo sanitário, comercializando o produto nos bairros pobres de São Paulo e áreas carentes do Grande ABC, inclusive de Ribeirão Pires. Num momento em que a cidade ensaia uma inserção mais forte no mercado de água doce, ela vive assim o aparente paradoxo da falta d’água de qualidade para sua própria população. 5. Evidentemente, estas mudanças foram acompanhadas de alterações do quadro ambiental do município. As matas que cobriam quase todo o município foram derrubadas em muitos trechos, abrindo espaço para habitações e infraestrutura ou substituídas por bosques de eucaliptos e de pinheiros. O “clima de montanha” da região, que até passado recente era um atrativo para que Ribeirão Pires se posicionasse enquanto refúgio turístico, foi se esvaindo, e a cidade, passou a assimilar rapidamente os traços mais característicos da meteorologia artificial metropolitana. A névoa fria que frequentemente acobertava a região, praticamente desapareceu. Atualmente, apenas em caráter esporádico a neblina agasalha a área edificada da cidade, claro sinal a confirmar o recuo dos ciclos naturais para paragens mais 8 809 distantes. O enlace úmido da cerração foi substituído pelo bolsão de gases da metrópole, que por sinal, foi o handicap que tecnicamente impediu que fosse outorgado à cidade o status de Estância Climática. Veja-se então que de um modo ou de outro, a aproximação da “natureza hostil” é inquestionável. 6. Fato evidente, a consolidação de um modelo metropolitano em Ribeirão Pires, assim como nas demais cidades que se dispõem em colar nos arredores da cidadela paulistana, é um fator que contribuirá de modo cabal para engendra a escassez de água, do mesmo modo suscitando, com base na estratégia do fait accompli, da apresentação de propostas apontando para a captação das águas doces de regiões ainda mais distantes. Deste modo, a cidade passa a se inserir num contexto perpassado pelo acirramento das tensões pela posse do líquido, e a conferir, do recrudescimento da crise urbana na metrópole numa extensão ainda maior. Em resumo, Ribeirão Pires, ainda que dotada de particularismos quanto ao dinamismo temporal e espacial, sintetiza num microcosmo, os dilemas metropolitanos aos quais está articulada. Na realidade, a cidade apenas repete poucos passos atrás contextos já vivenciados pelo Grande ABC e pela RMSP. Assim sendo, Ribeirão Pires, tal como o ABCDMR como um todo, teve o arranjo espacial tradicional original desarticulado pela ferrovia e posteriormente pelo rodoviarismo; tal como outras localidades, a cidade passou da condição de um pequeno núcleo ferroviário ao de guarda avançada da mancha urbana em expansão da Grande São Paulo, reproduzindo suas determinações concretas, assim como as 8 810 imaginárias; em continuidade com o item anterior, é exatamente esta, a necessidade que orientou o imaginário institucional a copiar, por exemplo, uma mitologia bandeirante para a história da cidade; a cidade passa da situação de acesso livre aos corpos aquáticos imediatos, no caso as águas doces das represas, dos poços e das cacimbas, para o papel de importadora do líquido de regiões mais distantes; assim, se observa a expansão do comércio clandestino de água, alimentado por impedimentos de acesso ao líquido aos setores excluídos, ao mesmo tempo a cidade desenvolve seus primeiros passos na direção de provedora de água engarrafada. Ribeirão Pires é um município situado num mundo que “fabrica” a escassez de água e, que imprime ao ato de beber uma conotação de poder. Reflexo da cissiparidade que perpassa pelo mundo moderno nos mais diversos níveis, a cidade não poderia permanecer alheia a esta lógica perversa. Constatação adicional do quanto a sede é um fenômeno catalisado pelas contradições que regem a vida social dos humanos, sua resolução, apenas poderia ser alcançada por uma sociedade em que o acesso à água não reflita um privilégio, mas sim um direito que deve ser preservado. As dificuldades com que a cidade, assim como o Grande ABC e a RMSP se defrontam, são ponderáveis. A estrutura do espaço, como explica o geógrafo Milton SANTOS, é resistente, colocando a prova os intuitos que procuram modificar seu rumo: 8 811 O fato, porém, é que cada estrutura do todo reproduz o todo. Assim, em uma fase de transição, as estruturas vindas do passado, ainda que parcialmente renovadas, tenderão a continuar a reproduzir o todo tal como na fase precedente. Todavia, se cada estrutura conhece seu próprio ritmo de mudança, a estrutura do espaço é a instância social de mais lenta metamorfose e adaptação. Por isso, ela poderá continuar, por muito tempo, a reproduzir o todo anterior, que se deseja eliminar (1986: 54, grifos nossos). Explicitada em toda sua rudeza, a reprodução da metrópole sugere um desafio inédito, frente ao qual a sociedade civil da RMSP deverá disponibilizar toda a inventividade ao seu alcance. No mais, uma necessidade também colocada para a sociedade ribeirãopirense e seu espaço, geral e particular nas suas demandas e expectativas. 8 812 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DO ANEXO LIVROS E ARTIGOS BOTACINI, Roberto. Ribeirão Pires: Sua história. Ribeirão Pires: Acervo do Arquivo Histórico de Ribeirão Pires, 1979. Mimeografado. ______. Ribeirão Pires Era Assim. Ribeirão Pires: Combrig, 1980. ______. A Parada do Trem: Ribeirão Pires (1985-1995). Ribeirão Pires: Acervo do Arquivo Histórico de Ribeirão Pires, 1995. Mimeografado. BOTACINI, Roberto et SILENE, Maria. Cem Anos de Colonização Italiana no ABC. Ribeirão Pires: Combrig, 1976. CARLOS, Ana Fani Alessandri. O lugar no/do mundo. São Paulo: Hucitec, 1996. (Col. Geografia teoria e tealidade, 38). DEFFONTAINES, Pierre. Como se Constituiu no Brasil a Rede de Cidades. Cidades, Presidente Prudente, vol. 1, nº. 1, pp. 119146, jan-jun 2004. (Publicação do GEU - Grupo de Estudos Urbanos). GOUREVITCH, A.Y. O Tempo como problema de História Cultural. In: UNESCO. As Culturas e o Tempo. Petrópolis: Vozes; São Paulo: EDUSP, 1975. HOBSBAWM, Eric. A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. (Col. Pensamento Crítico, 55). KUVASNEY, Eliane. “Separar para Reinar”: Desmembramentos na gênese da metrópole paulistana. 1996. Dissertação (Mestrado em Geografia) Departamento de Geografia, Universidade de São Paulo. São Paulo, 1996. 8 813 LANGENBUCH, Juergen Richard. A Estruturação da Grande São Paulo: Estudo de geografia urbana. 1968. Tese (Doutorado em Geografia) Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Rio Claro, Universidade de Campinas. Campinas, 1968. MARQUES, Antônio José. A Organização Sindical dos Canteiros e as Lutas Operárias no Começo do Século XX. 1996. Dissertação (Mestrado em História). Departamento de História, Universidade de São Paulo. São Paulo, 1996. PRADO JÚNIOR, Caio. A Cidade de São Paulo: Geografia e História. São Paulo: Brasiliense, 1998. (Col. Tudo é História, 78). SANTOS, Milton. Pensando o Espaço do Homem. São Paulo: Hucitec, 1986. ______. Metamorfoses do Espaço Habitado: fundamentos teóricos e metodológicos da geografia. Texto escrito com a colaboração de Denise Elias. São Paulo: Hucitec, 1988. ______. 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Mapas da Revisão do Plano Diretor de Ribeirão Pires. 2003, elaborados pelo IPT - Instituto de Pesquisas Tecnológicas e pela CIP - Coordenadoria de Informação ao Planejamento Instituto Polis, Prefeitura Municipal da Estância Turística de Ribeirão Pires e Instituto Polis, Ribeirão Pires e São Paulo. 8 815 ANEXO II REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADICIONAIS O que segue, é um elenco de textos, papers, capítulos de livro, ebooks, entrevistas e depoimentos relativos à produção do autor no campo dos recursos hídricos e temáticas coadjuvantes, materiais posteriores e/ou masterizados na sequência à defesa da Tese de Doutorado USP Água e Metrópole: Limites e Expectativas do Tempo, disponíveis, no geral, com acesso livre na Internet: LIVROS, CAPÍTULOS DE LIVROS E EBOOKS Água: Escassez e Conflitos no Império da Sede. Coleção Água em Foco Nº. 1, segunda edição, revisada. São Paulo (SP): Editora Kotev. 2019. Material disponível on line no link: < http://www.mw.pro.br/mw/agua_escassez_e_conflitos_no_imperio_da _sede.pdf >.Acesso: 5-12-2019. Waters of Metropolitan Area of São Paulo: Technical, Conceptual and Environmental Aspects. In: Sustainable water management in the tropics and subtropics, Volume 4, Capítulo 53. BILIBIO, Carolina et alli (Organizers). Witzenhausen (República Federal da Alemanha): Universität Kassel - Department of Agricultural Engineering and Agricultural Engineering in the Tropics and Subtropics. 2012. Texto disponível on line em: < http://mw.pro.br/mw/geog_UNIKassel.pdf >. Acesso: 5-12-2019. Recursos Hídricos, Resíduos Sólidos e Matriz Energética: Notas Conceituais, Metodológicas e Gestão Ambiental. In: Política Nacional de Resíduos Sólidos e suas Interfaces com o Espaço Geográfico: Entre Conquistas e Desafios, Capítulo 5, pp. 59-70. Porto Alegre (RS): Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS): 2016. 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RELATÓRIOS DE PÓS-DOUTORADO Dilemas da Gestão do Lixo: Reciclagem, Catadores e Incineração. Relatório de Pesquisa de Pós-Doutorado. Programa Nacional de Pós Doutorado (PNPD) e Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Brasília (DF): PNPD-CAPES, Ministério da Educação. 2015; O Papel de Angola na África Centro-Meridional: Recursos Hídricos, Cooperação Regional e Dinâmicas Socioambientais. Relatório de Pesquisa de Pós-Doutorado. São Paulo (SP) e Brasília (DF): Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP) e Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico (CNPq). 2014; Lixo Domiciliar no Brasil: Dinâmicas Sócio-Espaciais, Gestão de Resíduos e Ambiente Urbano. Relatório de Pesquisa de PósDoutorado. Campinas (SP): Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). 2011; 8 817 PAPERS, ENSAIOS, ARTIGOS & TEXTOS DE SUPORTE Crise Hídrica: A Persistência do Controle Desagregador do Estado. In: Direitos Humanos no Brasil 2017, pp. 123-129, Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. Série Recursos Hídricos Nº. 1. São Paulo (SP): Editora Kotev. 2018. Material disponível on line no link: < http://mw.pro.br/mw/RSJDH.pdf >. Acesso: 5-12-2019. A Ideologia das Águas Bastardas. Série Recursos Hídricos Nº. 2. São Paulo (SP): Editora Kotev. 2018. Material disponível on line no link: < http://mw.pro.br/mw/contemporartes_a_ideologia_das_aguas_bastard as.pdf >.Acesso: 5-12-2019. Recursos Hídricos e Rede Urbana Mundial: Dimensões Globais da Escassez. In: Anais do XIII Encontro Nacional de Geógrafos, João Pessoa (PA), 16/21-07-2002, página 122. Série Recursos Hídricos Nº. 3. São Paulo (SP): Editora Kotev. 2019. Material disponível on line no link: < http://www.mw.pro.br/mw/recursos_hidricos_03.pdf >. Acesso: 5-12-2019. Para Repensar os Resíduos Sólidos: Notas Sobre o Pensamento Vivo de Milton Santos. Série Resíduos Sólidos Nº. 17. São Paulo (SP): Editora Kotev. 2018. Material disponível on line no link: < http://mw.pro.br/mw/residuos_solidos_17.pdf >. Acesso: 16-12-2019. A Conta D’Água do Boi: Impactos Hídricos do Rebanho Bovino. Série Recursos Hídricos Nº. 4. São Paulo (SP): Editora Kotev. 2018. Material disponível on line no link: < http://www.mw.pro.br/mw/eco_coluna_do_waldman_conta_do_boi.pdf >. Acesso: 5-12-2019. Desafios da Cidadania Ambiental. Série Meio Ambiente, Nº. 14. São Paulo (SP): Editora Kotev. 2018.Material disponível on line no link: < http://mw.pro.br/mw/meio_ambiente_14.pdf >.Acesso: 16-12-2019. Mais Água, Menos Lixo: Reciclar ou Repensar?. In: Boletim Paulista de Geografia (BPG), nº. 79, pp. 91-106, 2003, publicação da Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB), Seção Local São Paulo. Série Recursos Hídricos Nº. 5. São Paulo (SP): Editora Kotev. 2019. Material disponível on line no link: < http://www.mw.pro.br/mw/recursos_hidricos_05.pdf >. Acesso: 5-122019. 8 818 Água no Século XXI: Recurso Precioso e Estratégico. Artigo eletrônico primeiramente divulgado na home-page da Cortez editora aos 23-03-2013. Série Recursos Hídricos Nº. 6. São Paulo (SP): Editora Kotev. 2019. Material disponível on line no link: < http://www.mw.pro.br/mw/recursos_hidricos_06.pdf >. Acesso: 5-122019. Sede no País das Muitas Águas. Material elaborado em 2005 para cursos de Capacitação da Associação Global para o Desenvolvimento Sustentado (AGDS), com apoio do FEHIDRO. Série Recursos Hídricos Nº. 7. São Paulo (SP): Editora Kotev. 2019. Material disponível on line no link: < http://www.mw.pro.br/mw/recursos_hidricos_07.pdf >. Acesso: 5-122019. A Paz Está Pedindo Água!: Recursos Hídricos e o Conflito ÁrabeIsraelense. In: Revista Cosmos, publicação do Grupo de Pesquisa Linguagens Geográficas da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus Presidente Prudente, nº 2, pp. 29-34. Presidente Prudente (SP): UNESP. 2004. Série Recursos Hídricos Nº. 8, Segunda edição, revisada e ampliada. São Paulo (SP): Editora Kotev. 2019. Material disponível on line no link: < http://www.mw.pro.br/mw/recursos_hidricos_08.pdf >. Acesso: 5-12-2019. Água: Desafios e Oportunidades. Série Recursos Hídricos Nº. 9. São Paulo (SP): Editora Kotev. 2019. Material disponível on line no link: < http://www.mw.pro.br/mw/recursos_hidricos_09.pdf >. Acesso: 5-122019. Extraterrestres na Caixa D'Água. Série Recursos Hídricos Nº. 10. São Paulo (SP): Editora Kotev. 2018. Material disponível on line no link: < http://www.mw.pro.br/mw/recursos_hidricos_10.pdf >. Acesso: 5-122019. O Padre Cícero Ecológico. Série Meio Ambiente Nº. 5. São Paulo (SP): Editora Kotev. 2018. Material disponível on line no link: < http://mw.pro.br/mw/rel_padim_cico.pdf >. Acesso: 16-12-2019. Seis Propostas Para Uma Educação Ambiental Crítica. Série Meio Ambiente, Nº. 21. São Paulo (SP): Editora Kotev. 2019. Material 8 819 disponível on line no link: < http://mw.pro.br/mw/meio_ambiente_21.pdf >. Acesso: 16-12-2019. Racismo Ambiental: Imaginário Espacial e Conflitos Socioambientais. Série Meio Ambiente Nº. 17. São Paulo (SP): Editora Kotev. 2018. Material disponível on line no link: < http://mw.pro.br/mw/meio_ambiente_17.pdf >. Acesso: 16-12-2019. Justiça Ambiental: Atualidade e Incompletudes do Pensamento de Joan Martínez Alier. Série Meio Ambiente, Nº. 15. São Paulo (SP): Editora Kotev. 2018. Material disponível on line no link: < http://mw.pro.br/mw/meio_ambiente_15.pdf >. Acesso: 16-12-2019. Águas do Grande ABC: A Ecologia Política dos Mananciais. Material elaborado em 2004 para cursos de Capacitação da Associação Global para o Desenvolvimento Sustentado (AGDS), com o apoio do Fundo Estadual de Recursos Hídricos (FEHIDRO). Série Recursos Hídricos Nº. 11. São Paulo (SP): Editora Kotev. 2019. Material disponível on line no link: < http://www.mw.pro.br/mw/recursos_hidricos_11.pdf >. Acesso: 5-122019. Águas de Angola: Pilar essencial de uma natureza sem igual. Série Africanidades Nº. 6. São Paulo (SP): Editora Kotev. 2017. Material disponível on line no link: < http://mw.pro.br/mw/africanidades_06.pdf >. Acesso: 5-12-2019. O Incrível Lago Vostok. Série Meio Ambiente Nº. 2. São Paulo (SP): Editora Kotev. 2018. Material disponível on line no link: < http://mw.pro.br/mw/meio_ambiente_02.pdf >. Acesso: 5-12-2019. A Tragédia dos Mananciais do Grande ABC: Crise Hídrica e a Gestão Petista de São Bernardo do Campo (1988-1992) - Relato de uma Ruptura. Série Política e Sociedade Nº. 1. São Paulo (SP): Editora Kotev. 2018. Material disponível on line no link: < http://mw.pro.br/mw/politica_e_sociedade_01.pdf >. Acesso: 5-122019. Águas da Discórdia: A Disputa entre Angola e África do Sul pelas Águas Doces. Série Professor Mourão Nº. 7. Segunda edição. São Paulo (SP): Editora Kotev. 2018. Material disponível on line no link:< 8 820 http://www.mw.pro.br/mw/serie_professor_mourao_07.pdf >. Acesso: 5-12-2019. Água: Debate Estratégico para Brasileiros e Angolanos. XIV Jornadas Técnico-Científicas da Fundação Eduardo dos Santos (FESA), 21-24 de Setembro de 2010, Luanda, República de Angola. Série Africanidades Nº. 1. São Paulo (SP): Editora Kotev. 2017. Material disponível on line no link: < http://mw.pro.br/mw/africanidades_01.pdf >. Acesso: 5-12-2019. Recursos Hídricos: Impactos da Produção dos Alimentos e dos Resíduos Orgânicos. Série Gastronomia, Culinária e Alimentação Nº. 2. São Paulo (SP): Editora Kotev. 2018. Material disponível on line no link: < http://mw.pro.br/mw/geog_recursos_hidricos_impactos.pdf >. Acesso: 5-12-2019. Eco-Logia: Muito Além do “Estudo da Casa”. Série Meio Ambiente Nº. 9. Segunda edição, revisada. São Paulo (SP): Editora Kotev. Texto disponível on line em: < http://mw.pro.br/mw/meio_ambiente_09.pdf >. Acesso em: 25-11-2019. 2018. Retornos da Natureza. Série Meio Ambiente Nº. 4. São Paulo (SP): Editora Kotev. 2018. Texto disponível on line em: < http://mw.pro.br/mw/eco_retornos_da_natureza.pdf >. Acesso em: 2511-2019. 2018. Tempo, Modernidade e Natureza. Série Antropologia do Espaço, Nº. 1. São Paulo (SP): Editora Kotev. Título resultante da reformatação, masterização e ampliação de paper homônimo originalmente publicado pelo Caderno Prudentino de Geografia em 1995 (Cf. Referências Bibliográficas). Texto disponível on line em: < http://mw.pro.br/mw/antropologia_do_espaco_01.pdf >. Acesso em: 12-12-2019. 2018; Meio Ambiente: Repensando o Debate Conceitual. Texto-base para Conferência de Abertura do II º Simpósio de Pesquisa e Inserção Social, organizado pelo Programa de Mestrado em Meio Ambiente e Desenvolvimento Regional (MMADRE) e realizado pelo Núcleo de Estudos Ambientais e Geoprocessamento (NEAGEO), dias 23-25 de abril de 2014, Universidade do Oeste Paulista (UNOESTE). Texto disponível on line em: < http://mw.pro.br/mw/meio_ambiente_12.pdf >. Acesso em: 25-11-2019. 2014; 8 821 Limites da Modernidade: Dilemas do Esgotamento dos Recursos. Texto de apoio para Conferencia de Abertura da XII Jornada de Educação, XII Simpósio de Iniciação Científica da Faculdade de Ciências, Letras e Educação da Universidade do Oeste Paulista (UNOESTE), 02 a 06 de Maio de 2011. Presidente Prudente (SP), UNOESTE: Anais XII Jornada de Educação. 2011. Texto disponível on line em: < http://mw.pro.br/mw/geog_limites_da_modernidade_2011.pdf >. Acesso em: 25-09-2019. 2011; Crise Ambiental: Ponderando a Respeito de um Dilema da Modernidade. In: Revista Crítica Histórica, volume 4, pp. 295-313. Maceió (AL): Centro de Pesquisa e Documentação Histórica (CPDHis), da Universidade Federal de Alagoas (UFA). 2011. Texto disponível on line em: < http://mw.pro.br/mw/eco_palestra_MWPP_2011.pdf >. Acesso em: 25-09-2019. 2011; TRADUÇÕES Manifesto Eco Modernista. Breakthrough Institute. Oakland (EUA), 2015. Tradução de Maurício Waldman e Tadeu Alcides Marques. Série Meio Ambiente Nº. 8. São Paulo (SP): Editora Kotev. Texto disponível on line em: < http://mw.pro.br/mw/meio_ambiente_08.pdf >. Acesso em: 25-09-2019. 2018. ENTREVISTAS & DEPOIMENTOS O Império da Sede. Entrevista com Heródoto Barbeiro, Programa Record News (12:45 minutos), 20-06-2019: < https://www.youtube.com/watch?v=FondnlIL69s >. Acesso: 5-122019. O avanço do império da sede e as disputas geopolíticas pelos recursos hídricos. Entrevista Especial para O Instituto Humanitas Unisinos, 6-08-2019. Disponível on line em: < http://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevistas/591383-o-avancodo-imperio-da-sede-e-as-disputas-geopoliticas-pelos-recursos- 8 822 hidricos-entrevista-especial-com-mauricio-waldman >. Acesso: 5-122019. Água: O Mundo e um Recurso Precioso. Programa Especial apresentado pela Rádio Nações Unidas em língua Portuguesa, formatado em cinco capítulos e levado ao ar em Agosto/Setembro de 2011 (Acesso: 8-02-2019). Arquivos de áudio em formato mp3 disponíveis on line em: Capítulo 1, O Mundo e um Recurso Precioso: < http://mw.pro.br/mw/RadioONU_Programa1.mp3 >; Capítulo 2 - O Drama da Seca e do Deserto: < http://mw.pro.br/mw/RadioONU_Programa2.mp3 >; Capítulo 3 - Água, Agricultura e Insegurança Alimentar: < http://mw.pro.br/mw/RadioONU_Programa3.mp3 >; Capítulo 4 - Fonte de Influência em Conflitos, Mas Também de Cooperação: < http://mw.pro.br/mw/RadioONU_Programa4.mp3 >; Capítulo 5 - A Água e a Rio + 20: < http://mw.pro.br/mw/RadioONU_Programa1.mp3 >. Não Adianta Pensar em Políticas de Água Fechando a Torneira. Entrevista concedida para a Revista Ambiente Urbano, nº. 34, Abril/Maio de 2009, pp. 4-6. Santo André (SP): Instituto Triângulo. 2009. Material disponível on line no link: < http://mw.pro.br/mw/eco_entrevista_ambiente_urbano.pdf >. Acesso: 5-03-2019. Recursos Hídricos em Perigo. Entrevista para o jornal Primeiro Argumento, Nº. 10, pp. 4-5, Abril de 2006. Material disponível on line no link: < http://mw.pro.br/mw/geog_recursos_hidricos_em_perigo.pdf >. Acesso: 5-12-2019. Especialista não crê na despoluição total do Tietê. Entrevista para o jornal Primeiro Argumento, Nº. 11, página 6, Maio de 2006. Material disponível on line no link: < http://mw.pro.br/mw/geog_projeto_tiete_e_as_aguas_da_metropole.p df >. Acesso: 5-12-2019. 8 823 APÊNDICES 8 824 APÊNDICE 1 LEI N.º 898, DE 18 DE DEZEMBRO DE 1975 Disciplina o uso do solo para a proteção dos mananciais, cursos, reservatórios de água e demais recursos hídricos de interesse da Região Metropolitana da Grande São Paulo e dá providências correlatas. O GOVERNADOR DO ESTADO DE SÃO PAULO: Faço saber que a Assembléia Legislativa decreta e eu promulgo a seguinte lei: Artigo 1º - Esta Lei disciplina o uso do solo para a proteção dos mananciais, cursos e reservatórios de água e demais recursos hídricos de interesse da Região Metropolitana da Grande São Paulo, em cumprimento ao disposto nos incisos II e III do artigo 2º e inciso VIII do artigo 3º da Lei Complementar n.º 94, de 29 de maio de 1974. Artigo 2º - São declaradas área de proteção e, como tais, reservadas, as referentes aos seguintes mananciais, cursos e reservatórios de água e demais recursos hídricos de interesse da Região Metropolitana da Grande São Paulo: I - reservatório Billings; II - reservatórios do Cabuçu no Rio Cabuçu de Cima, até a barragem no Município de Guarulhos; III - reservatórios da Cantareira, no Rio Cabuçu de Baixo, até as barragens no Município de São Paulo; 8 825 IV - reservatório do Engordador, até a barragem no Município de São Paulo; V - reservatório de Guarapiranga, até a barragem no Município de São Paulo; VI - reservatório de Tanque Grande, até a barragem no Município de Guarulhos; VII - Rios Capivari e Monos, até a barragem prevista da SABESP, a jusante da confluência do Rio Capivari com Ribeirão dos Campos, no Município e São Paulo; VIII - Rio Cotia, até a barragem das Graças no Município de Cotia; IX - Rio Guaió, até o cruzamento com a Rodovia São Paulo-Mogi das Cruzes, na divisa dos Municípios de Poá e Suzano; X - Rio Itapanhaú, até a confluência com o Ribeirão das Pedras, no Município de Biritiba-Mirim; XI - Rio Itatinga, até os limites da Região Metropolitana; XII - Rio Jundiaí, até a Confluência com o Rio Oropó, exclusive, no Município de Mogi das Cruzes; XIII - Rio Juqueri, até a barragem da SABESP, no Município de Franco da Rocha; XIV - Rio Taiaçupeba, até a confluência com o Taiaçupeba-Mirim, inclusive, na divisa dos Município de Suzano e Mogi das Cruzes; XV - Rio Tietê, até a confluência com o Rio Botujuru, no Município de Mogi das Cruzes; XVI - Rio Jaguari, afluente da margem esquerda do Rio Paraíba até os limites da Região Metropolitana; XVII - Rio Biritiba, até a sua foz; XVIII - Rio Juquiá, até os limites da Região Metropolitana. 8 826 Artigo 3º - As áreas de proteção de que trata esta Lei corresponderão, no máximo, às de drenagem referentes aos mananciais, cursos e reservatórios de água e demais recursos hídricos, especificados no artigo 2º. Parágrafo único - Nas áreas de proteção, os projetos e a execução de arruamentos, loteamentos, edificações e obras, bem assim, a prática de atividades agropecuárias, comerciais, industriais e recreativas dependerão de aprovação prévia da Secretaria dos Negócios Metropolitanos, e manifestação favorável da Secretaria de Obras e Meio Ambiente, mediante parecer da Companhia Estadual de Tecnologia de Saneamento Básico e de Defesa do Meio Ambiente CETESB, quanto aos aspectos de proteção ambiental, sem prejuízo das demais competências estabelecidas na legislação, em vigor, para outros fins. Artigo 4º - As atividades mencionadas no parágrafo único do artigo anterior, se exercidas sem licenciamento e aprovação da Secretaria do Negócios Metropolitanos, com inobservância desta Lei, ou em desacordo com os projetos aprovados, poderão determinar a cassação do licenciamento, se houver, e a cessação compulsória da atividade ou o embargo e demolição das obras realizadas a juízo da Secretaria dos Negócios Metropolitanos, sem prejuízo da indenização, pelo infrator, dos danos que causar. Artigo 5º - As áreas de proteção referida no artigo 2º serão delimitadas por lei, que poderá estabelecer, nos seus limites, faixas, ou áreas de maior ou menor restrição, conforme o interesse público o exigir. Parágrafo único - As faixas, ou áreas, de maior restrição, denominadas de 1º categoria, abrangerão inclusive o corpo de água, enquanto que as demais, denominadas de 2º categoria, serão 8 827 classificadas na ordem decrescente das restrições a que estarão sujeitas. Artigo 6º - Nas áreas de proteção, o licenciamento das atividades e a realização das obras, referidas no parágrafo único do artigo 3º desta Lei, ficarão sujeitos às seguintes exigências: I - destinação e uso da área, perfeitamente caracterizados e expressos nos projetos e documentos submetidos à aprovação; II - apresentação, nos projetos, de solução adequada para a coleta, tratamento e destino final dos resíduos sólidos líquidos e gasosos, produzidos pelas atividades que se propõem exercer ou desenvolver nas áreas; III - apresentação, nos projetos, de solução adequada, relativamente aos problemas de erosão e de escoamento das águas, inclusive as pluviais. § 1º - O licenciamento das atividades hortifrutícolas independerá de projetos, desde que o documento submetido à aprovação contenha os demais requisitos previstos neste artigo. § 2º - O licenciamento de atividades e a aprovação de projetos por quaisquer outros órgãos públicos, dependerá de aprovação prévia da Secretaria dos Negócios Metropolitanos e manifestação da Secretaria de Obras e Meio Ambiente, mediante parecer da Companhia de Tecnologia de Saneamento Básico e de Defesa do Meio Ambiente -CETESB, relativamente ao cumprimento dos incisos I a III e § 1º deste artigo. § 3º - Dos documentos de aprovação constará, obrigatoriamente, que o uso da área só será admitido em conformidade com esta Lei. Artigo 7º - Os órgãos e entidades responsáveis por obras públicas, a serem executadas nas áreas de proteção, deverão submeter, previamente, os respectivos projetos à Secretaria dos 8 828 Negócios Metropolitanos, que estabelecerá os requisitos mínimos para a implantação dessas obras, podendo acompanhar sua execução. Artigo 8º - Nas áreas ou faixas de maior restrição, denominadas de 1ª categoria, somente serão permitidas atividades recreativas e a execução de obras ou serviços indispensáveis ao uso e aproveitamento do recurso hídrico, desde que não coloquem em risco a qualidade da água. Parágrafo único - As faixas de 1ª categoria, observadas as normas desta Lei, poderão ser computadas no cálculo das áreas reservadas para sistemas de recreio em loteamentos. Artigo 9º - Na elaboração, implantação e adequação dos planos de urbanização e desenvolvimento, a serem executados na Região Metropolitana da Grande São Paulo, a Secretaria dos Negócios Metropolitanos observará o disposto nesta Lei. Artigo 10 - Em cada área de proteção, a Secretaria dos Negócios Metropolitanos aplicará as medidas necessárias à adaptação das urbanizações, edificações e atividades existentes, às disposições nesta Lei. Parágrafo único - As urbanizações, edificações e atividades existentes, ou exercidas anteriormente a esta Lei, gozarão de prazo adequado para se adaptarem às suas exigências ou procederem às suas transferências para outro local, e, na impossibilidade de o fazerem, poderão ser suprimidas mediante indenização ou desapropriação. Artigo 11 - As restrições, a serem estabelecidas em lei e correspondentes às áreas de proteção a que se refere o artigo 2º, sem prejuízo da legislação em vigor para outros efeitos, constarão de normas relativas a: 8 829 I - formas de uso do solo permitidas e as características de sua ocupação e aproveitamento; II - condições mínimas para parcelamento do solo e para a abertura de arruamentos; III - condições admissíveis de pavimentação e impermeabilização do solo; IV - condições de uso dos mananciais, cursos e reservatórios de água, obedecidos a classificação e o enquadramento previstos em leis e regulamentos; V - formas toleráveis de desmatamento nas áreas de proteção; VI - condições toleráveis para a movimentação de terras nas áreas de proteção; VII - ampliação e aumento de produção dos estabelecimentos industriais, localizados nas áreas de proteção que possam oferecer riscos à qualidade dos recursos hídricos; VIII - exigências a serem cumpridas pelas indústrias existentes ou em construção nas áreas de proteção, e o plano de remanejamento das que nele não puderem permanecer; IX - emprego de defensivos e fertilizantes e prática de atividades horti-fruti-granjeiras, que deverão ser limitadas às formas que não contribuam para a deterioração dos recursos hídricos; X - condições e limites quantitativos de produtos nocivos que poderão ser armazenados nas áreas de proteção, sem riscos para a qualidade dos recursos hídricos; XI - condições de passagem de canalizações que transportem substâncias, consideradas nocivas às áreas de proteção; XII - condições de coleta, transporte e destino final de esgotos e resíduos sólidos, nas áreas de proteção; XIII - condições de transporte de produtos considerados nocivos. 8 830 Artigo 12 - As restrições a que se refere o artigo anterior serão fixados em conformidade com as normas desta Lei, e com base em critérios de proteção ao meio ambiente, fornecidos pela Secretaria de Obras e do Meio Ambiente, através da Companhia Estadual de Tecnologia de Saneamento Básico e de Defesa do Meio Ambiente CETESB, e de uso ao solo, fornecidos pela Secretaria dos Negócios Metropolitanos. Artigo 13 - Os infratores das disposições desta Lei e respectivos regulamentos ficam sujeitos à aplicação das seguintes sanções, sem prejuízo de outras, estabelecidas em leis especiais: I - advertência, com prazo a ser estabelecido em regulamento, para a regularização da situação nos casos de primeira infração, quando não haja perigo iminente à saúde pública; II - multa de Cr$ 100,00 (cem cruzeiros) a Cr$ 5.000,00 (cinco mil cruzeiros) por dia, tendo-se em vista o patrimônio do agente infrator, localizado na área de proteção, se não efetuada a regularização dentro do prazo fixado pela Administração; a) - pela execução de arruamento, loteamento, edificação ou obra, sem aprovação prévia da Secretaria dos Negócios Metropolitanos; b) - pela prática de atividades agropecuárias, comerciais, industriais e recreativas sem aprovação prévia da Secretaria dos Negócios Metropolitanos; c) - pela execução de arruamento, loteamento, edificação ou obra e pela prática de atividades agropecuárias, comerciais, industriais e recreativas em desacordo com os termos da aprovação ou com infração das disposições desta Lei e respectivos regulamentos. III - interdição, nos casos de iminente perigo à saúde pública e nos de infração continuada; 8 831 IV - embargo e demolição da obra ou construção executada sem autorização ou aprovação, ou em desacordo com os projetos aprovados, quando a sua permanência ou manutenção contrariar as disposições desta Lei ou ameaçar a qualidade do meio ambiente, respondendo o infrator pelas despesas a que der causa. § 1º - As medidas previstas neste artigo serão aplicadas pela Secretaria dos Negócios Metropolitanos; § 2º - As penalidades de interdição, embargo ou demolição, poderão ser aplicadas sem prejuízo daquelas objeto dos incisos I e II deste artigo; § 3º - O valor da multa prevista no inciso II deste artigo será de Cr$ 100,00 (cem cruzeiros) a Cr$ 500,00 (quinhentos cruzeiros) por dia no caso de atividades hortifrutícolas; § 4º - O valor da multa prevista no inciso II deste artigo e em seu parágrafo 3º será automaticamente reajustado mediante a aplicação dos coeficientes de atualização monetária de que trata o artigo 2º da Lei Federal n.º 6205, de 29 de abril de 1975. Artigo 14 - A aplicação de sanções às infrações ao disposto na presente Lei, quando ocorrer poluição, também do meio ambiente, não impedirá a incidência de outras penalidades por ação da Companhia Estadual de Tecnologia de Saneamento Básico e de Defesa do meio Ambiente - CETESB, nos termos da legislação estadual sobre proteção do meio ambiente do Estado de São Paulo, contra agentes poluidores. Artigo 15 - O produto da arrecadação das multas decorrentes das infrações previstas nesta Lei construirá receita do Fundo Metropolitano de Financiamento e Investimento, quando aplicadas pela Secretaria dos Negócios Metropolitanos, cabendo a 8 832 responsabilidade pela cobrança à instituição do Sistema de Crédito do Estado, encarregada de administrá-lo. Artigo 16 - Da aplicação das sanções previstas nesta Lei caberá recurso ao Secretário dos Negócios Metropolitanos. Artigo 17 - Esta Lei será regulamentada dentro de 180 (cento e oitenta) dias, a contar de sua publicação. Artigo 18 - Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação. Palácio dos Bandeirantes, 17 de novembro de 1975. PAULO EGYDIO MARTINS Francisco Henrique Fernando de Barros, Secretário de Obras e do Meio Ambiente Roberto Metropolitanos. Cerqueira César, Secretário dos Negócios 8 833 APÊNDICE 2 LEI Nº. 9.866, DE 28 DE NOVEMBRO DE 1997 (Inclui retificação feita no Diário Oficial de 09/12/1997) Dispõe sobre diretrizes e normas para a proteção e recuperação das bacias hidrográficas dos mananciais de interesse regional do Estado de São Paulo e dá outras providências O GOVERNADOR DO ESTADO DE SÃO PAULO: Faço saber que a Assembléia Legislativa decreta e eu promulgo a seguinte Lei: CAPÍTULO I Objetivos e Abrangência Art. 1º - Esta lei estabelece diretrizes e normas para a proteção e a recuperação da qualidade ambiental das bacias hidrográficas dos mananciais de interesse regional para abastecimento das populações atuais e futuras do Estado de São Paulo, assegurados, desde que compatíveis, os demais usos múltiplos. Parágrafo único - Para efeito desta Lei, consideram-se mananciais de interesse regional as águas interiores subterrâneas, superficiais, fluentes, emergentes ou em depósito, efetiva ou potencialmente utilizáveis para o abastecimento público. Art. 2º - São objetivos da presente Lei : 8 834 I - preservar e recuperar os mananciais de interesse regional no Estado de São Paulo; II - compatibilizar as ações de preservação dos mananciais de abastecimento e as de proteção ao meio ambiente com o uso e ocupação do solo e o desenvolvimento socioeconômico; III - promover uma gestão participativa, integrando setores e instâncias governamentais, bem como a sociedade civil; IV - descentralizar o planejamento e a gestão das bacias hidrográficas desses mananciais, com vistas à sua proteção e à sua recuperação; V - integrar os programas e políticas habitacionais à preservação do meio ambiente. Parágrafo único - As águas dos mananciais protegidos por esta Lei, são prioritárias para o abastecimento público em detrimento de qualquer outro interesse. Art. 3º - Para os fins previstos nesta Lei, considera-se Área de Proteção e Recuperação dos Mananciais - APRM uma ou mais subbacias hidrográficas dos mananciais de interesse regional para abastecimento público. Parágrafo único - A APRM referida no "caput" deste artigo deverá estar inserida em uma das Unidades de Gerenciamento de Recursos Hídricos - UGRHI, previstas no Sistema Integrado de Gerenciamento de Recursos Hídricos - SIGRH, instituído pela Lei nº. 7663, de 30 de dezembro de 1991. Art. 4° - As APRMs serão definidas e delimitadas mediante proposta do Comitê de Bacia Hidrográfica e por deliberação do Conselho Estadual de Recursos Hídricos - CRH, ouvidos o Conselho Estadual de Meio Ambiente - CONSEMA e o Conselho de 8 835 Desenvolvimento Regional - CDR, e criadas na forma do artigo 18 desta Lei. CAPÍTULO II Sistema de Planejamento e Gestão Art. 5º - A gestão das APRMs ficará vinculada ao Sistema Integrado de Gerenciamento de Recursos Hídricos - SIGRH, garantida a articulação com os Sistemas de Meio Ambiente e Desenvolvimento Regional. Art. 6º - O sistema de gestão das APRMs contará com: I - órgão colegiado; II - órgão técnico; III - órgãos da administração pública. Parágrafo único - Na hipótese de mananciais de interesse regional sob a influência de mais de uma UGRHI, o CRH poderá deliberar por uma gestão compartilhada ou unificada das APRMs, a partir de proposta dos Comitês de Bacia Hidrográfica - CBH correspondentes. Art. 7º - O Órgão Colegiado, de caráter consultivo e deliberativo, será o CBH correspondente à UGRHI na qual se insere a APRM, ou o Sub Comitê a ele vinculado e que dele receba expressa delegação de competência nos assuntos de peculiar interesse da APRM. § 1º - A composição do órgão colegiado da APRM atenderá ao princípio da participação paritária do Estado, dos Municípios e da sociedade civil, todos com direito a voz e voto. § 2º - As entidades da sociedade civil, sediadas necessariamente nos Municípios contidos total ou parcialmente nas respectivas 8 836 APRMs, respeitado o limite máximo de um terço do número total de votos, serão representadas por: 1. entidades de classe de profissionais especializadas em saneamento básico, recursos hídricos e planejamento físico e territorial; 2. entidades de classe patronais e empresariais; 3. organizações não governamentais defensoras do meio ambiente e associações não governamentais; 4. associações comunitárias e associações de moradores; e 5. universidades, institutos de ensino superior e entidades de pesquisa e desenvolvimento tecnológico. § 3º - O órgão colegiado terá, entre outras, as seguintes atribuições: 1. aprovar previamente o Plano de Desenvolvimento e Proteção Ambiental - PDPA e suas atualizações, bem como acompanhar sua implementação; 2. manifestar-se sobre a proposta de criação de Áreas de Intervenção e respectivas diretrizes e normas ambientais e urbanísticas de interesse regional, bem como suas revisões e atualizações; 3. recomendar diretrizes para as políticas setoriais dos organismos e entidades que atuam na APRM, promovendo a integração e a otimização das ações, objetivando a adequação à legislação e ao PDPA; 4. recomendar alterações em políticas, ações, planos e projetos setoriais a serem implantados na APRM, de acordo com o preconizado na legislação e no PDPA; 8 837 5. propor critérios e programas anuais e plurianuais de aplicação de recursos financeiros em serviços e obras de interesse para a gestão da APRM; e 6. promover, no âmbito de suas atribuições, a articulação com os demais Sistemas de Gestão institucionalizados, necessária a elaboração, revisão, atualização e implementação do PDPA. Art. 8º - O órgão técnico será a Agência de Bacia, prevista no artigo 29 da Lei nº. 7663, de 30 de dezembro de 1991 ou, na sua inexistência, o organismo indicado pelo CBH, e terá, entre outras, as seguintes atribuições: I - subsidiar e dar cumprimento às decisões do órgão colegiado da APRM; II - elaborar Relatório de Situação da Qualidade Ambiental da APRM, que deverá integrar Relatório de Situação da Bacia Hidrográfica correspondente; III - elaborar e atualizar o PDPA; IV - elaborar proposta de criação das Áreas de Intervenção e respectivas diretrizes e normas ambientais e urbanísticas de interesse regional, suas atualizações, e propostas de enquadramento das Áreas de Recuperação Ambiental; V - promover, com os órgãos setoriais, a articulação necessária a elaboração de proposta de criação das Áreas de Intervenção e respectivas diretrizes e normas, de proposta de enquadramento das Áreas de Recuperação Ambiental, do PDPA, e de suas respectivas atualizações; VI - propor a compatibilização da legislação ambiental e urbanística estadual e municipal ; 8 838 VII - subsidiar e oferecer suporte administrativo e técnico necessário ao funcionamento do órgão colegiado, dando cumprimento às suas determinações; VIII - implantar, operacionalizar e manter sistematicamente atualizado Sistema Gerencial de Informações, garantindo acesso aos órgãos da administração pública municipal, estadual e federal e à sociedade civil; IX - promover assistência e capacitação técnica e operacional a órgãos, entidades, organizações não governamentais e Municípios, na elaboração de planos, programas, legislações, obras e empreendimentos localizados dentro da APRM; e X - articular e promover ações objetivando a atração e indução de empreendimentos e atividades compatíveis e desejáveis, de acordo com as metas estabelecidas no PDPA e com a proteção aos mananciais. Parágrafo único - As ações desenvolvidas pelo órgão técnico devem obedecer às diretrizes dos Sistemas de Recursos Hídricos, Meio Ambiente e Desenvolvimento Regional. Art. 9º - Os órgãos da administração pública serão responsáveis pelo licenciamento, fiscalização, monitoramento e implementação dos programas e ações setoriais e terão, entre outras, as seguintes atribuições: I - promover e implantar fiscalização integrada com as demais entidades participantes do sistema de gestão e com os diversos sistemas institucionalizados; II - implementar programas e ações setoriais definidos pelos PDPAs; e III - contribuir para manter atualizado o Sistema Gerencial de Informações. 8 839 CAPÍTULO III Instrumentos de Planejamento e Gestão Art. 10 - Nas APRMs serão implementados instrumentos de planejamento e gestão, visando orientar as ações do poder público e da sociedade civil voltadas à proteção, à recuperação e à preservação dos mananciais de interesse regional. Art. 11 - São instrumentos de planejamento e gestão: I - áreas de intervenção e respectivas diretrizes e normas ambientais e urbanísticas de interesse regional; II - normas para implantação de infraestrutura sanitária; III - mecanismos de compensação financeira aos Municípios; IV - Plano de Desenvolvimento e Proteção Ambiental - PDPA; V - controle das atividades potencialmente degradadoras do meio ambiente, capazes de afetar os mananciais; VI - Sistema Gerencial de Informações; e VII - imposição de penalidades por infrações as disposições desta Lei e das leis específicas de cada APRM. CAPÍTULO IV Disciplinamento da Qualidade Ambiental Seção I Das Áreas de Intervenção Art. 12 - Nas APRMs, para a aplicação de dispositivos normativos de proteção, recuperação e preservação dos mananciais e para a 8 840 implementação de políticas públicas, serão criadas as seguintes Áreas de Intervenção: I - Áreas de Restrição à Ocupação; II - Áreas de Ocupação Dirigida; e III - Áreas de Recuperação Ambiental. Art. 13 - São Áreas de Restrição à Ocupação, além das definidas pela Constituição do Estado e por lei como de preservação permanente, aquelas de interesse para a proteção dos mananciais e para a preservação, conservação e recuperação dos recursos naturais. Art. 14 - São Áreas de Ocupação Dirigida aquelas de interesse para a consolidação ou implantação de usos rurais e urbanos, desde que atendidos os requisitos que garantam a manutenção das condições ambientais necessárias a produção de água em quantidade e qualidade para o abastecimento das populações atuais e futuras. Art. 15 - São Áreas de Recuperação Ambiental aquelas cujos usos e ocupações estejam comprometendo a fluidez, potabilidade, quantidade e qualidade dos mananciais de abastecimento público e que necessitem de intervenção de caráter corretivo. Parágrafo único - As Áreas de Recuperação Ambiental serão reenquadradas através do PDPA em Áreas de Ocupação Dirigida ou de Restrição à Ocupação, quando comprovada a efetiva recuperação ambiental pelo Relatório de Situação da Qualidade da APRM. Art. 16 - Para cada APRM serão estabelecidas diretrizes e normas ambientais e urbanísticas de interesse regional, respeitadas as competências Municipais e da União, considerando as especificidades e funções ambientais das diferentes Áreas de Intervenção, com o fim de padrões de qualidade e quantidade de 8 841 água bruta, passível de tratamento convencional para abastecimento público. Parágrafo único - As diretrizes e normas referidas no "caput" deste artigo serão relativas a: 1. condições de ocupação e de implantação de atividades efetiva ou potencialmente degradadoras do meio ambiente, capazes de afetar os mananciais; 2. condições para a implantação, operação e manutenção dos sistemas de: a) tratamento de água; b) drenagem de águas pluviais; c) controle de cheias; d) coleta, transporte, tratamento e disposição de resíduos sólidos; e) coleta, tratamento e disposição final de efluentes líquidos; e f) transmissão e distribuição de energia elétrica. 3. condições de instalação de canalizações que transportem substâncias consideradas nocivas à saúde e ao meio ambiente; 4. condições de transporte de produtos considerados nocivos a saúde e ao meio ambiente; 5. medidas de adaptação de atividades, usos e edificações existentes às normas decorrentes desta Lei; 6. condições de implantação de mecanismos que estimulem ocupações compatíveis com os objetivos das Áreas de Intervenção; e 7. condições de utilização e manejo dos recursos naturais. Art. 17 - Na delimitação e normatização das Áreas de Intervenção serão considerados: I - a capacidade de produção hídrica do manancial; II - a capacidade de autodepuração e assimilação das cargas poluidoras; 8 842 III - os processos de geração de cargas poluidoras; IV - o enquadramento do corpo d’água nas classes de uso preponderante; V - a infraestrutura existente ; VI - as condições ambientais essenciais à conservação da qualidade e da quantidade das águas do manancial; e VII - o perfil dos agravos à saúde cujas causas possam estar associadas às condições do ambiente físico. Art. 18 - As APRMs, suas Áreas de Intervenção e respectivas diretrizes em normas ambientais e urbanísticas de interesse regional serão criadas através de Lei estadual. Art. 19 - As leis municipais de planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano, previstas no artigo 30 da Constituição Federal, de 5 de outubro de 1988, deverão incorporar as diretrizes e normas ambientais e urbanísticas de interesse para a preservação, conservação e recuperação dos mananciais definidas pela lei específica da APRM. Parágrafo único - O Poder Executivo Municipal deverá submeter ao órgão colegiado da APRM as propostas de leis municipais a que se refere o "caput" deste artigo. Seção II Da InfraEstrutura Sanitária Art. 20 - A implantação de sistema coletivo de tratamento e disposição de resíduos sólidos domésticos em APRM será permitida, desde que: I - seja comprovada a inviabilidade de implantação em áreas situadas fora da APRM; 8 843 II - sejam adotados sistemas de coleta, tratamento e disposição final, cujos projetos atendam a normas, índices e parâmetros específicos para as APRMs, a serem estabelecidos pelo órgão ambiental competente; e III - sejam adotados, pelos Municípios, programas integrados de gestão de resíduos sólidos que incluam, entre outros, a minimização dos resíduos, a coleta seletiva e a reciclagem. Art. 21 - Os resíduos sólidos decorrentes de processos industriais deverão ser removidos das APRMs, conforme critérios estabelecidos pelo órgão ambiental competente. Parágrafo único - A lei específica de cada APRM definirá os casos em que poderão ser dispostos os resíduos sólidos inertes decorrentes de processos industriais. Art. 22 - Os resíduos decorrentes do sistema de saúde deverão ser tratados e dispostos fora das áreas protegidas. Parágrafo único - A lei específica de cada APRM definirá os casos em que poderá ser admitida a incineração, ou outra tecnologia mais adequada, dos resíduos de sistema de saúde. Art. 23 - Não será permitida a disposição de resíduos sólidos em Áreas de Restrição à Ocupação. Art. 24 - Fica proibida a disposição, em APRM, de resíduos sólidos provenientes de Municípios localizados fora das áreas protegidas. Art. 25 - O lançamento de efluentes líquidos sanitários em APRM, será admitido, desde que: I - fique comprovada a inviabilidade técnica econômica de seu afastamento ou tratamento para infiltração no solo, (Vetado) II - haja o prévio enquadramento dos corpos d’água conforme a legislação vigente; e 8 844 III - os efluentes recebam tratamento compatível com a classificação do corpo d’água receptor. § 1º - O enquadramento de que trata este artigo fica restrito às Classes Especial, 1, 2 e 3 estabelecidas pelo artigo 1º, da Resolução CONAMA n.º 20, de 18 de junho de 1986. § 2º - Somente será admitido o reenquadramento do corpo d’água em classe de nível de qualidade inferior àquele em que estiver enquadrado, quando não for possível a efetivação do enquadramento do corpo d’água na Classe de enquadramento atual e for demonstrada a inviabilidade de se atingir tais índices. § 3º - Não serão permitidas captações em trechos classificados como Classe 3. § 4º - O órgão ambiental competente deverá definir os limites de carga a serem lançados em corpos d’água classificados como Classe 3. § 5º - Somente será admitido o enquadramento dos corpos d’água em Classes que possibilitem índices progressivos de melhoria da qualidade das águas. § 6º - O corpo d’água que, na data de enquadramento, apresentar qualidade inferior à estabelecida para a sua Classe, não poderá receber novos lançamentos no trecho considerado em desconformidade, nem tampouco novos lançamentos industriais na rede pública de esgoto, que comprometam os padrões de qualidade da Classe em que o corpo d’água receptor dos efluentes estiver enquadrado. Art. 26 - Os efluentes líquidos de origem industrial deverão ser afastados das APRMs, conforme critérios estabelecidos pelo órgão ambiental competente. 8 845 § 1º - Poderá ser admitido o lançamento de efluentes líquidos industriais em APRMs, desde que: 1. seja comprovada a inviabilidade técnica e econômica do afastamento ou tratamento para infiltração no solo; 2. haja o prévio enquadramento dos corpos d’água, conforme o disposto nos parágrafos do artigo anterior; e 3. os efluentes contenham exclusivamente cargas orgânicas não tóxicas e sejam previamente tratados de forma compatível com a classificação do corpo d’água receptor. § 2º - Os estabelecimentos industriais existentes à data de promulgação da lei específica da APRM deverão apresentar ao órgão ambiental competente, conforme critérios previamente estabelecidos, planos de controle de poluição ambiental, plano de transportes de cargas tóxicas e perigosas e estudos de análise de riscos para a totalidade do empreendimento, comprovando a viabilidade de sua permanência nos locais atuais. CAPÍTULO V Controle e Monitoramento da Qualidade Ambiental Art. 27 - O cumprimento das normas e diretrizes desta Lei e da lei específica da APRM será observado pelos órgãos da administração pública quando da análise de pedidos de licença e demais aprovações e autorizações a seu cargo. Art. 28 - O licenciamento de construção, instalação, ampliação e funcionamento de estabelecimentos, usos e atividades em APRMs por qualquer órgão público estadual ou municipal dependerá de apresentação prévia de certidão do registro de imóvel que mencione 8 846 a averbação das restrições, estabelecidas nas leis específicas para cada APRM. § 1º - As certidões de matrícula ou registro que forem expedidas pelos Cartórios de Registro de Imóveis deverão conter, expressamente, as restrições ambientais que incidem sobre a área objeto da matrícula ou registro, sob pena de responsabilidade funcional do servidor. § 2º - A lei específica de cada APRM deverá indicar o órgão da administração pública responsável pela expedição de certidão que aponte as restrições a serem averbadas. § 3º - Caberá ao órgão público normalizador de cada lei específica da APRM comunicar aos respectivos Cartórios de Registros de Imóveis as restrições contidas em cada lei. Art. 29 - As atividades de licenciamento, fiscalização e monitoramento, a cargo do Estado, poderão ser objeto de convênio com os Municípios, no qual se estabelecerão os limites e condições da cooperação. Parágrafo único - O órgão estadual responsável pela ação fiscalizadora poderá credenciar servidores da administração direta do Estado e dos Municípios para atuar como fiscais das áreas protegidas. Art. 30 - As APRMs contarão com um Sistema Gerencial de Informações, destinado a: I - fornecer apoio informativo aos agentes públicos e privados que atuam nas bacias; II - subsidiar a elaboração e os ajustes nos planos e programas previstos; e III - monitorar e avaliar a qualidade ambiental. 8 847 § 1º - O Sistema Gerencial de Informações consiste em um banco de dados, permanentemente atualizado com informações dos órgãos participantes do sistema, contendo no mínimo: 1. características ambientais das sub-bacias; 2. áreas protegidas; 3. dados hidrológicos de quantidade e qualidade das águas; 4. uso e ocupação do solo e tendências de transformação; 5. mapeamento dos sistemas de infraestrutura implantados e projetados; 6. cadastro dos usuários dos recursos hídricos; 7. representação cartográfica das normas legais; 8. cadastro e mapeamento das licenças, autorizações e outorgas expedidas pelos órgãos competentes; 9. cadastro e mapeamento das autuações efetuadas pelos órgãos competentes; 10. informações sobre cargas poluidoras e outras de interesse; e 11. indicadores de saúde associados às condições do ambiente físico, biológico e socioeconômico, e 12. informações das rotas de transporte de cargas tóxicas e perigosas. § 2º - O Sistema Gerencial de Informações será operacionalizado pelo órgão técnico da APRM, que dá acesso aos órgãos da administração pública municipal, estadual e federal e à sociedade civil. § 3º - O órgão técnico fará publicar, anualmente, na imprensa oficial, relação dos infratores com a descrição da infração, do devido enquadramento legal e da penalidade aplicada. 8 848 CAPÍTULO VI Plano de Desenvolvimento e Proteção Ambiental Art. 31 - Para cada APRM, será elaborado Plano de Desenvolvimento e Proteção Ambiental - PDPA, contendo: I - diretrizes para o estabelecimento de políticas setoriais relativas a habitação, transporte, manejo de recursos naturais, saneamento ambiental e infraestrutura que interfiram na qualidade dos mananciais; II - diretrizes para o estabelecimento de programas de indução à implantação de usos e atividades compatíveis com a proteção e recuperação ambiental da APRM; III - metas de curto, médio e longo prazos, para a obtenção de padrões de qualidade ambiental; IV - proposta de atualização das diretrizes e normas ambientais e urbanísticas de interesse regional; V - proposta de reenquadramento das Áreas de Recuperação Ambiental; VI - programas, projetos e ações de recuperação, proteção e conservação da qualidade ambiental; VII - Programa Integrado de Monitoramento da Qualidade Ambiental; VIII - Programa Integrado de Educação Ambiental; IX - Programa Integrado de Controle e Fiscalização; X - Programa de Investimento Anual e Plurianual. § 1º - O PDPA obedecerá às diretrizes dos Sistemas de Meio Ambiente, Recursos Hídricos e Desenvolvimento Regional. 8 849 § 2º - O PDPA, após apreciação pelo CBH e a aprovação pelo CRH, comporá o Plano de Bacia da UGHRI e integrará o Plano Estadual de Recursos Hídricos, para aprovação pelo Governador do Estado na forma do artigo 47, inciso III, da Constituição do Estado, de 5 de outubro de 1989. CAPÍTULO VII Suporte Financeiro Art. 32 - Caberá aos Poderes Públicos Estadual e Municipais meios e recursos para implementação dos programas integrados de Monitoramento da Qualidade das Águas e de Controle e Fiscalização, bem como a operacionalização do Sistema Gerencial de Informações. Parágrafo único - Os recursos financeiros necessários à implementação dos planos e programas previstos pelo PDPA deverão constar dos Planos Plurianuais, Diretrizes Orçamentárias e Orçamento Anual dos órgãos e entidades da administração pública. Art. 33 - Os CBHs destinarão uma parcela dos recursos da cobrança pela utilização da água e uma parcela dos recursos da Subconta do Fundo Estadual de Recursos Hídricos - FEHIDRO, para implementação de ações de controle e fiscalização, obras e ações visando à proteção e recuperação dos mananciais. Art. 34 - O Estado á compensação financeira aos Municípios afetados por restrições impostas pela criação das APRMs, e respectivas normas, na forma da lei. 8 850 CAPÍTULO VIII Infrações e Penalidades Art. 35 - As infrações a esta Lei e às leis específicas das APRMs classificam-se em: I - leves: aquelas em que o infrator seja beneficiado por circunstâncias atenuantes; II - graves: aquelas em que for verificada circunstância agravante ou em que o dano causado não possibilite recuperação imediata; e III - gravíssimas: aquelas em que seja verificada a existência de duas ou mais circunstâncias agravantes ou em que o dano causado não possibilite recuperação a curto prazo ou, ainda, na hipótese de reincidência do infrator. § 1º - Havendo o concurso de circunstâncias atenuantes e agravantes, a penalidade será aplicada levando-se em consideração a circunstância preponderante, entendendo-se como tal aquela que caracteriza o conteúdo da vontade do autor ou as consequências da conduta assumida. § 2º - Para imposição e gradação da penalidade, a autoridade ambiental observará: 1. a classificação da infração, nos termos deste artigo; 2. a gravidade do fato, tendo em vista as suas consequências para a saúde pública e o manancial; e 3. os antecedentes do infrator quanto ao cumprimento da legislação de proteção aos mananciais. § 3º - Constituem circunstâncias atenuantes: 1. menor grau de instrução e escolaridade do infrator; 8 851 2. arrependimento do infrator, manifestado pela espontânea reparação do dano, ou limitação significativa da degradação ambiental causada; 3. comunicação prévia, pelo infrator, de perigo iminente da degradação ambiental; 4. colaboração com os agentes encarregados da vigilância e do controle ambiental; 5. a ação do infrator não ser determinante para a consecução do dano; e 6. ser o infrator primário e a falta cometida, leve. § 4º - Constituem circunstâncias agravantes: 1. ser o infrator reincidente ou cometer a infração de forma continuada; 2. ter o agente cometido a infração para obter vantagem pecuniária para si ou para outrem; 3. o infrator ter coagido outrem para a execução material da infração; 4. ter a infração consequências graves para a saúde pública ou para o manancial; 5. ter o infrator deixado de tomar providências tendentes a evitar ou sanar a situação que caracterizou a infração; 6. a infração ter concorrido para danos à propriedade alheia; 7. a utilização indevida de licença ou autorização ambiental; e 8. a infração ser cometida por estabelecimento mantido, total ou parcialmente, por verbas públicas ou beneficiado por incentivos fiscais." Art. 36 - Os infratores das disposições desta Lei e das leis específicas das APRMs, pessoas físicas ou jurídicas, ficam sujeitos 8 852 às seguintes sanções, sem prejuízo de outras estabelecidas em leis específicas: I - advertência, pelo cometimento da infração, estabelecido o prazo máximo de 30 (trinta) dias, para manifestação ou início dos procedimentos de regularização da situação compatível com sua dimensão e gravidade, para o reparo do dano causado; II - multa de 450 a 220.000 vezes o valor da Unidade Fiscal de Referência - UFIR, pelo cometimento da infração, levando em conta sua dimensão e gravidade; III - multa diária, quando não sanada a irregularidade no prazo concedido pela autoridade competente, cujo valor diário não será inferior ao de 450 UFIRs, nem superior a 220.000 UFIRs; IV - interdição definitiva das atividades não regularizáveis, ou temporária das regularizáveis, levando em conta sua gravidade; V - embargo de obra, construção, edificação ou parcelamento do solo, iniciado sem aprovação ou em desacordo com o projeto aprovado; VI - demolição de obra, construção ou edificação irregular e recuperação da área ao seu estado original; VII - perda, restrição e ou suspensão de incentivos e benefícios fiscais concedidos pelo Poder Público; e VIII - perda, restrição ou impedimento, temporário ou definitivo, de obtenção de financiamentos em estabelecimentos estaduais de crédito. Parágrafo único - Os materiais, máquinas, equipamentos e instrumentos utilizados no cometimento da infração serão apreendidos para instrução de inquérito policial, na forma do disposto nos artigos 26 e 28 da Lei Federal nº. 4.771, de 15 de setembro de 1965. 8 853 Art. 37 - As penalidades de multas serão impostas pela autoridade competente, observados os seguintes limites: I - de 450 a 8.700 vezes o valor da UFIR, nas infrações leves; II - de 8.701 a 87.000 vezes o valor da UFIR, nas infrações graves; e III - de 87.001 a 220.000 vezes o valor da UFIR, nas infrações gravíssimas. § 1º - A multa será recolhida com base no valor da UFIR do dia de seu efetivo pagamento. § 2º - A multa diária será aplicada no período compreendido entre a data do auto de infração e a cessação do ato infracional, comprovada pelo protocolo do processo de licenciamento do empreendimento ou atividade. § 3º - Nos casos de atividades ou empreendimentos não licenciáveis por esta Lei e por leis específicas, a multa incidirá desde a notificação da infração até a comprovação de providências visando à reconstituição da área ao seu estado original, à demolição, ou à cessação de atividade. § 4º - Ocorrendo a extinção da UFIR, adotar-se-á, para efeito desta Lei, o mesmo índice que a substituir. § 5º - Nos casos de reincidência, caracterizada pelo cometimento de nova infração de mesma natureza e gravidade, a multa corresponderá ao dobro da anteriormente imposta. § 6º - A reincidência caracterizará a infração como gravíssima. § 7º - Nos casos de infração continuada ou não atendimento das exigências impostas pela autoridade competente, será aplicada multa diária de acordo com os limites e a caracterização da infração prevista no presente artigo. 8 854 § 8º - O produto da arrecadação das multas previstas nesta Lei, assim como as decorrentes da aplicação das Leis nº. 898, de 18 de dezembro de 1975, e 1172, de 17 de novembro de 1976, constituirá receita do órgão ou da entidade responsável pela aplicação das penalidades e deverá ser empregado obrigatoriamente na APRM onde ocorreram as infrações e em campanhas educativas. § 9º - A penalidade de interdição, definitiva ou temporária, será imposta nos casos de risco à saúde pública e usos ou atividades proibidos pela legislação, podendo também ser aplicada a critério da autoridade competente, nos casos de infração continuada, eminente risco ao manancial ou a partir da reincidência da infração. § 10 - As penalidades de embargo e demolição poderão ser impostas na hipótese de obras ou construções feitas sem licença ou com ela desconformes, podendo ser aplicadas sem prévia advertência ou multa, quando houver risco de dano ao manancial. § 11 - As penalidades de suspensão de financiamento e de benefícios fiscais serão impostas a partir da primeira reincidência, devidamente comprovada por relatório circunstanciado, devendo ser comunicadas pelo órgão responsável pela fiscalização ao órgão ou entidade concessionária. § 12 - As penalidades estabelecidas nos incisos I, II e III do artigo 36 desta Lei poderão ser aplicadas cumulativamente às dos incisos IV, V, VI, VII e VIII do mesmo dispositivo. § 13 - As sanções estabelecidas neste artigo serão impostas sem prejuízo das demais penalidades instituídas por outros órgãos ou entidades, no respectivo âmbito de competência legal. Art. 38 - Quando as infrações forem cometidas pelo Poder Público Municipal, as parcelas referentes à compensação financeira prevista no artigo 34 desta Lei, ficarão retidas até que sejam 8 855 regularizados ou sanados os danos ambientais, conforme determinação da autoridade competente. Art. 39 - Respondem solidariamente pela infração: I - o autor material; II - o mandante; e III - quem de qualquer modo concorra para a prática do ato ou dele se beneficie. Art. 40 - Da aplicação das penalidades previstas nesta Lei caberá recurso à autoridade imediatamente superior, sem efeito suspensivo, no prazo de 15 (quinze) dias úteis, contados da notificação do infrator. § 1º - A notificação a que se refere este artigo poderá ser feita mediante correspondência com aviso de recebimento enviado ao infrator. § 2º - Para julgamento do recurso interposto, a autoridade julgadora ouvirá a autoridade que impôs a penalidade no prazo de 15 (quinze) dias. Art. 41 - Os débitos relativos a multas e indenizações não saldadas, decorrentes de infração a leis ambientais, serão cobrados de acordo com o disposto no § 1º do artigo 37 desta Lei. Art. 42 - No exercício da ação fiscalizadora, ficam asseguradas, nos termos da lei, aos agentes administrativos credenciados, a entrada, a qualquer dia ou hora, e a permanência, pelo tempo que se tornar necessário, em estabelecimentos públicos ou privados. § 1º - Os agentes credenciados são competentes para verificar a ocorrência de infrações, sugerir a imposição de sanções, solicitar informações, realizar vistorias em órgãos e entidades públicas ou privadas. § 2º - Quando obstados, os agentes poderão requisitar força policial para o exercício de suas atribuições. 8 856 Art. 43 - Os custos ou as despesas resultantes da aplicação das sanções de interdição, embargo ou demolição correrão por conta do infrator. Art. 44 - Constatada infração às disposições desta Lei e das leis específicas das APRMs, os órgãos da administração pública encarregados do licenciamento e fiscalização ambientais deverão diligenciar, junto ao infrator, no sentido de formalizar termo de compromisso de ajustamento de conduta ambiental, com força de título executivo extrajudicial, que terá por objetivo precípuo a recuperação do manancial degradado, de modo a cessar, adaptar, recompor, corrigir ou minimizar os efeitos negativos sobre o meio, independentemente da aplicação das sanções cabíveis. § 1º - As multas pecuniárias aplicadas poderão ser reduzidas em até 90% (noventa por cento) de seu valor e as demais sanções terão sua exigibilidade suspensa, conforme dispuser o regulamento desta Lei. § 2º - A inexecução total ou parcial do convencionado no termo de ajustamento de conduta ambiental ensejará sua remessa à Procuradoria Geral do Estado, para a execução das obrigações dele decorrentes, sem prejuízo das sanções penais e administrativas aplicáveis à espécie. CAPÍTULO IX Disposições Finais e Transitórias Art. 45 - Na Região Metropolitana da Grande São Paulo, até que sejam promulgadas as leis específicas das APRMs, ficam mantidas as disposições das Leis nº. 898, de 18 de dezembro de 1975, e 1172, 8 857 de 17 de novembro de 1976, com execução do inciso XIX, do artigo 2º da Lei nº. 898 de 18 de dezembro 1975, incluída pela Lei nº. 7.384, de 24 de junho de 1991, que ficará expressamente revogada à partir da data da publicação desta Lei. Parágrafo único - As penalidades previstas nas Leis nº. 898, de 18 de dezembro de 1975, e 1172, de 17 de novembro de 1976, ficam expressamente revogadas, passando a vigorar aquelas definidas por esta Lei. Art. 46 - Os Comitês de Bacias - CBHs correspondentes às áreas de proteção aos mananciais estabelecidas pelas Leis nº. 898, de 18 de dezembro de 1975, e 1172, de 17 de novembro de 1976, deverão encaminhar, no prazo de até 60 (sessenta) dias, proposta de delimitação das APRMs, conforme estabelecido no artigo 4º desta Lei. Art. 47 - Nas áreas de proteção de mananciais de que tratam as Leis nº. 898, de 18 de dezembro de 1975, e 1172, de 17 de novembro de 1976, até que sejam promulgadas as leis específicas para as APRMs, poderão ser executadas obras emergenciais nas hipóteses em que as condições ambientais e sanitárias apresentem riscos de vida e à saúde pública ou comprometam a utilização dos mananciais para fins de abastecimento. § 1º - Para os efeitos desta Lei, consideram-se obras emergenciais as necessárias ao abastecimento de água, esgotamento sanitário, drenagem de águas pluviais, contenção de erosão, estabilização de taludes, fornecimento de energia elétrica, controle da poluição das águas e revegetação. § 2º - As obras a que se refere o "caput" deste artigo deverão constar de Plano Emergencial de Recuperação dos Mananciais da Região Metropolitana da Grande São Paulo, contemplando o disciplinamento das áreas de intervenção de acordo com a legislação. 8 858 § 3º - Os projetos emergenciais deverão ser aprovados pelo órgão colegiado. §4º - Os recursos dos projetos emergenciais que ão sua efetiva implementação deverão provir do Estado e ressarcidos posteriormente pelo FEHIDRO. (Vetado) § 5º - O Plano Emergencial de Recuperação dos Mananciais da Região Metropolitana da Grande São Paulo será elaborado pelo Poder Público Estadual, em articulação com os Municípios, no prazo de até 120 (cento e vinte) dias da publicação desta Lei, contendo justificativa técnica, agentes executores, custos e fontes de recursos, cronograma fisico-financeiro e resultados esperados. § 6º - O Plano Emergencial de Recuperação dos Mananciais da Região Metropolitana da Grande São Paulo deverá ser aprovado pelo CRH e pelo CONSEMA, após o Poder Público Estadual realizar audiências públicas no prazo de 30 dias. § 7º - Após a realização de audiências públicas o Plano Emergencial de Recuperação dos Mananciais da Região Metropolitana da Grande São Paulo deverá ser aprovado pelo CRH e pelo CONSEMA no prazo de até 30 dias. Art. 48 - Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação. Mário Covas Governador do Estado Palácio dos Bandeirantes, 28 de novembro de 1997. 8 859 SOBRE O AUTOR Maurício Waldman em evento editorial na Livraria Cultura, São Paulo, Abril de 2006 8 860 Maurício Waldman nasceu em 1955 na capital paulista. É antropólogo, jornalista, editor, professor universitário e consultor ambiental, autor de 22 livros e capítulos de livros, 18 ebooks e de mais de 700 artigos, textos acadêmicos e pareceres de consultoria. Waldman lançou, dentre outras obras, Ecologia e Lutas Sociais no Brasil (Editora Contexto, 1992) e Antropologia & Meio Ambiente (SENAC, 2006), primeira obra brasileira no campo da antropologia ambiental. Nos anos 1970 e 1980, atuou como professor de geografia e de história em escolas da rede particular da capital paulista e entre 1997-2000, como Diretor da Escola do Serviço SOS Criança e dos Cursos Profissionalizantes da Fundação Estadual do Menor (FEBEM). Militante ambientalista histórico do Estado de São Paulo, Waldman integrou no ano de 2004, lista dos 30 ambientalistas mais antigos do Estado de São Paulo em enquete do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP). Em 2010, foi indexado no elenco de 96 personalidades brasileiras de origem judaica (Books LLC, Memphis, EUA, http://www.mw.pro.br/mw_mw/index.php/compendiosbiograficos/119-brazilian-jews%20). Waldman soma em sua trajetória, experiências institucionais na área do meio ambiente, dentre as quais, o exercício da função de Coordenador do Meio Ambiente em São Bernardo do Campo (1992) e Chefe da Coleta Seletiva de Lixo da capital paulista (2000-2001). Maurício Waldman foi colaborador do líder seringueiro Chico Mendes, participou no CEDI (Centro Ecumênico de Documentação e Informação), em movimentos em defesa da Represa Billings no Grande ABC Paulista e em diversas entidades ecológicas, tais como 8 861 a Assembleia Permanente de Entidades em Defesa da Natureza (APEDEMA) e no Comitê de Apoio aos Povos da Floresta de São Paulo. Waldman atuou como professor e conferencista na área dos recursos hídricos em cursos e palestras voltadas para encontros e congressos, em universidades, secretarias municipais de ensino, comitês de bacia hidrográfica, ONGs, empresas de abastecimento de água e de energia. Em 2015, a convite da Editora Cortez, tornou-se coordenador editorial desta casa publicadora no campo dos recursos hídricos. Maurício Waldman desenvolveu uma carreira acadêmica plural e interdisciplinar, com contribuições nas áreas da antropologia, geografia, sociologia e das relações internacionais. Sua Tese de Doutorado, Água e Metrópole: Limites e Expectativas do Tempo (USP, 2006), é um reconhecido trabalho acadêmico na área dos recursos hídricos, com foco na gestão das águas da Região Metropolitana da Grande São Paulo. No ano de 2011, contribuiu com o texto Waters of Metropolitan Area of São Paulo: Tecnichal, Conceptual and Environmental Aspects, paper com foco na gestão das águas doces na Grande São Paulo, capítulo 56 da coletânea Sustainable Water Management in the Tropics and Subtropics: Case Studies (Coedição Brasil-Alemanha), a maior iniciativa editorial no campo dos estudos das águas doces. Também em 2011, Waldman participou como especialista no programa Água: O Mundo e um Recurso Precioso, produção especial da Rádio Nações Unidas (ONU), transmitido diretamente de Nova York. 8 862 Em 2016, Waldman publicou como capítulo de livro o texto Recursos Hídricos, Resíduos Sólidos e Matriz Energética: Notas Conceituais, Metodológicas e Gestão Ambiental, parte da coletânea “Política Nacional de Resíduos Sólidos e suas Interfaces com o Espaço Geográfico: Entre Conquistas e Desafios” (UFRGS, 2016). Enquanto coautor, Waldman assinou em parceira obras como Meio Ambiente e Missão: A Responsabilidade Ecológica das Igrejas (Editora da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista, 2003), Guia Ecológico Doméstico (Editora Contexto, 2000), A Eco-92 e a Necessidade de um Novo Projeto (Associação dos Geógrafos Brasileiros, Seção Local de Fortaleza, 1992) e Oito Críticas Ecológicas à Conversão da Dívida (Coedição CEDI e Editora Global, 1991). Maurício Waldman desenvolveu dois trabalhos acadêmicos na área dos recursos hídricos: Doutorado (USP, 2006) e Pós Doutorado (USP, 2013). Ademais, traduziu duas obras clássicas: El Ecologismo de los Pobres - Conflictos Ambientales y Lenguajes de Valoración (de Joan Martínez Alier) e com a colaboração da filósofa Bia Costa, Fifty Major Philosophers (de Diané Collinson). Waldman é Graduado em Sociologia (USP, 1982), Licenciado em Geografia Econômica (USP, 1983), Mestre em Antropologia (USP, 1997), Doutor em Geografia (USP, 2006), Pós Doutor em Geociências (UNICAMP, 2011), Pós Doutor em Relações Internacionais (USP, 2013) e Pós Doutor em Meio Ambiente (PNPD-CAPES, 2015). Mais Informação: Portal do Professor Maurício Waldman: www.mw.pro.br Textos Masterizados: http://mwtextos.com.br/ 8 863 Currículo Lattes-CNPq: http://lattes.cnpq.br/3749636915642474 Verbete Wikipédia: http://en.wikipedia.org/wiki/Mauricio_Waldman Contato E-Mail: [email protected] REFERÊNCIA ESSENCIAL SOBRE A CRISE HÍDRICA http://www.mw.pro.br/mw/agua_escassez_e_conflitos_no_imperio_da_sede.pdf SAIBA MAIS SOBRE A CRISE HÍDRICA NO BRASIL http://mw.pro.br/mw/RSJDH.pdf TEXTO DE REFERÊNCIA SOBRE AS ÁGUAS DA RMSP WATERS OF METROPPOLITAN AREA OF SÃO PAULO: TECHNICAL, CONCEPTUAL AND ENVIRONMENTAL ASPECTS, COEDIÇÃO KASSEL-UNIPAMPA, 2012, ISBN 978-85-63337-23-8, 57.607 CARACTERES, SEIS FIGURAS E DUAS TABELAS. ACESSO: http://mw.pro.br/mw/geog_UNIKassel.pdf SAIBA MAIS SOBRE O VÍNCULO ÁGUA - LIXO - ENERGIA http://mw.pro.br/mw/pnrs_cap_05_mauricio_waldman_01.pdf CONHEÇA A SÉRIE RECURSOS HÍDRICOS http://mwtextos.com.br/serie-recursos-hidricos/ CONHEÇA A EDITORA KOTEV http://kotev.com.br/