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ÍNDICE
VOLUME I
PREFÁCIO…..………………………………………..………...…….....7-9
INTRODUÇÃO………………………………………………...……...10-16
PARTE I
ESPAÇO, GEOGRAFIA E MEIO AMBIENTE
Capítulo 1 - Pressupostos, Opções e Metamorfoses
1.1. O Matrimônio Sagrado do Tempo com o Espaço…………….18-33
1.2. Geografia, Crise Ambiental e Sociedade………………..…… 33-46
Capítulo 2 - Circuitos, Tensões e Amplitudes
2.1. Espaço, Sustentabilidade e os Desafios da Natureza Hostil..47-60
2.2. O Curso das Águas e o Domínio da Cidade……………….....60-75
PARTE II
MEIO URBANO, QUESTÃO AMBIENTAL E MODERNIDADE
Capítulo 3 - Tempo, Modernidade e Natureza
3.1. Repensando a Ecologia a partir do Oikos………………...…..77-93
3.2. Tradição, Questão Ambiental e Modernidade………...….....93-115
3.3. A Imperiosidade da Discussão do Tempo..…………………116-125
3.4. A Modernidade e a Falência do Mundo Tradicional
Europeu………………………………………………………...…...126-148
3.5. A Hegemonia dos Tempos Modernos e suas Sequelas…..149-163
2
2
Capítulo 4 - Urbanização, Tecnosfera e os Limites do Tempo
4.1. Progressividade, Modernidade e o Contexto da
Cidade………………………………………………………………..164-187
4.2. Rede Urbana Mundial: Cenários e Desafios……………….187-220
4.3. Buscando um Novo Ponto de Equilíbrio…………………….220-229
VOLUME II
PARTE III
SOCIEDADE, ÁGUA E MEIO AMBIENTE
Capítulo 5 - Água: Um Recurso Estratégico
5.1. A Água e Sua Importância para as Sociedades
Humanas…………………………………………………….……...231-242
5.2. As Águas Doces no Planeta Terra…………...……….…….242-263
5.3. Água: Avaliando um Recurso sob Tensão…………….…...263-271
Capítulo 6 - Água: Um Recurso Indispensável
6.1. Água e Energia…………...…………………………...……...272-300
6.2. Água e Produção de Alimentos…………………………,,,,,,300-317
6.3. Água e Industrialização………………………………,,,,…...317-326
Capítulo 7 - Recursos Hídricos e Resíduos Sólidos
7.1. Resíduos Sólidos: Um Problema Crescente……………….327-338
7.2. Lixo e Água: Uma Interface Perpétua…………………...….338-349
7.3. Classificação e Destinação dos Resíduos Sólidos………..349-365
7.4. Repensando os Resíduos Sólidos Domiciliares……...…...365-376
7.5. Recursos Hídricos, Fração Orgânica e Reciclagem……...376-387
7.6. Recursos Hídricos, Fração Inorgânica e Reciclagem…….387-397
3
3
Capítulo 8 - A Geografia da Sede
8.1. Água: Natureza, Sociedade e Escassez………………..….398-424
8.2. A Exaustão dos Recursos Hídricos……………………...….424-442
8.3. Água, Globalização e Neoliberalismo……...……………….442-450
8.4. Água: Um Direito a ser Assegurado…………….…………..450-476
8.5. Desafios da Geopolítica da Sede………………………..….476-486
VOLUME III
PARTE IV
GRANDE ABC,
PAULISTA
RECURSOS
HÍDRICOS
E
A METRÓPOLE
Capítulo 9 - Recursos Hídricos e Questão Urbana no Brasil
9.1. Recursos Hídricos do Brasil..………………………………..488-502
9.2. Sede no País das Muitas Águas………………….…………502-537
Capítulo 10 - A Metrópole Paulista e a Questão dos Mananciais
10.1. A Grande São Paulo no Contexto da Escassez de
Água…………………………………………………………………538-563
10.2. São Paulo, Águas Vadeantes e o Velho Caaguaçu…......563-586
Capítulo 11 - O Grande ABC e a Questão dos Mananciais
11.1. O Grande ABC no Contexto da RMSP……………...…….587-610
11.2. A Ecologia Política dos Mananciais………………...….......611-627
Capítulo 12 - Metrópole, Recursos Hídricos e Limites do Espaço
12.1. Represa Billings, Metrópole Sedenta e Metamorfoses da
Natureza………………………………………………………...…..628-650
12.2. Os Mananciais Frente a “Não-Política” de Água Doce….650-664
12.3. Metrópole Expansionista e Destruição dos Mananciais...665-692
4
4
PARTE V - CONCLUSÕES: EM BUSCA DE UM FINAL
TRANSITÓRIO
Repensando um Trajeto…………………………………………...694-696
A Encruzilhada dos Tempos Modernos....……………………….696-701
Os Limites da Grande Metrópole………………………..……….702-708
Pensando o Curso das Águas………………………….……..….709-716
Natureza e Alternativas da Metamorfose…………….………….716-722
VI. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
6.1. Livros e Artigos……………………….………………….….723-766
6.2. Jornais e Revistas
6.2.1. Jornais………………………………………………….….....…...766
6.2.2. Revistas…………………………………………………...……...767
6.3. Documentos, Obras de Consulta e Manuais………...…768-773
6.4. Cartografia………………………………..…………………..773-774
6.5. Sites da Internet………………………..……………..……..774-775
6.6. Informativos Eletrônicos………………………………………...776
6.7. Dicionários………………..…………………………...…….…….776
6.8. Iconografia………………………..…………………….…….776-777
5
5
6.9. Fonografia……………………..……………..…………….……...777
6.10. Palestras……………………..……………………………...777-778
6.11. Filmografia….…………...……………………………………….778
ANEXOS
ANEXO I - RIBEIRÃO PIRES: A REPRODUÇÃO DA METRÓPOLE
Recorte geograficamente pontual das dinâmicas metropolitanas na
relação com os recursos hídricos em Ribeirão Pires ………….780-811
Bibliografia do Anexo….……..……..…………………………..812-814
ANEXO II - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADICIONAIS
Textos, papers, capítulos de livro, ebooks, entrevistas e depoimentos
relativos à produção do autor no campo dos recursos hídricos
posteriormente à defesa da Tese de Doutorado USP Água e
Metrópole: Limites e Expectativas do Tempo, materiais disponíveis
para acesso livre na Internet ………………...……...…………...815-822
APÊNDICES
APÊNDICE 1: LEI Nº. 898, DE 18 DE DEZEMBRO DE 1975, que
“Disciplina o uso do solo para a proteção dos mananciais, cursos e
reservatórios de água e demais recursos hídricos de interesse da
Região Metropolitana da Grande São Paulo e dá providências
correlatas”…………………………………………………………..824-832
6
6
APÊNDICE 2: LEI Nº. 9.866, DE 28 DE NOVEMBRO DE 1997, que
“Dispõe sobre diretrizes e normas para a proteção e recuperação das
bacias hidrográficas dos mananciais de interesse regional do Estado
de São Paulo e dá outras providências”.………………………..833-858
SOBRE O AUTOR………………..…………………..……………859-863
7
7
PREFÁCIO
Água e Metrópole: Limites e Expectativas do Tempo - DOI:
10.11606/T.8.2006.tde-20062007-152538 -, corresponde a trabalho de
pesquisa em nível de Doutoramento no campo disciplinar da
geografia, tendo por orientador o Professor Doutor Ariovaldo
Umbelino de Oliveira, trabalho desenvolvido sob a titularidade do
Programa de Pós-Graduação do Departamento de Geografia da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade
de São Paulo (FFLCH-USP) ao longo dos anos 2000-2006.
Analisando a complexa questão dos recursos hídricos na região
metropolitana de São Paulo (RMSP), Água e Metrópole: Limites e
Expectativas do Tempo, lado a lado a um plano de investigação mais
amplo, atinente ao dramático problema da escassez crescente de
água doce num prisma global, atende do mesmo modo ao debate do
futuro do abastecimento do líquido na metrópole paulista, questão
essa que infelizmente, como pode ser aferido a partir da leitura deste
trabalho, agravou-se ano a ano no período posterior à defesa da tese,
evento acadêmico que transcorreu em 10 de abril de 2006.
Temos assim, um texto que tem por foco um dilema da mais alta
gravidade, que como poderá ser aferido, não possui outra solução
que não a revisão completa do modo e do sistema de vida constituído
sob a batuta da modernidade. Neste sentido, fundamentalmente com
base em inúmeras ponderações que destacam o texto desta tese
como uma contribuição para o entendimento do problema, e a mais
ver, em razão de que este persiste como nexo problemático para a
8
8
RMSP, Água e Metrópole: Limites e Expectativas do Tempo está,
pois, disponível nesta edição eletrônica confeccionada pela Editora
Kotev (Kotev©), agora disponível em texto revisado e reformatado,
assim como normatizado editorialmente para consulta e aferição dos
interessados.
No que respalda pareceres de que se trata de um encorpado
material informativo e de análise com foco na temática da água e das
metrópoles, nos plurifacetados ângulos com que o tema se apresenta
junto à materialidade social, importa registrar que Água e Metrópole:
Limites e Expectativas do Tempo é uma tese que foi aprovada sem
ressalvas e indicada para publicação pela Banca Examinadora que
analisou o trabalho, formada pelos professores Marcos Bernardino de
Carvalho, Arlete Moyses Rodrigues, Dirce Maria Antunes Suertegaray
e Jose William Vesentini, que colaboraram nos debates de uma longa
sessão de Defesa da Tese (onze horas), encabeçada pelo orientador,
o professor Ariovaldo Umbelino de Oliveira.
Neste cadenciamento, o trabalho reúne 863 páginas de texto, ou
então, 1.284.343 caracteres (incluindo espaços), emparceirados com
93 imagens: fotografias, planilhas, mapas, encartes, caixas de texto
(box), tabelas, diagramas e gráficos, que tomando por base o formato
modelar para teses acadêmicas, perfazem cinco volumes. No mais,
tal como para qualquer outra linha de investigação, nos anos que
seguiram à aprovação da tese, o autor manteve vínculos orgânicos
com o debate sobre a água, que tal como foi observado, confirmam
tanto o grave quadro de escassez do líquido, como do mesmo modo,
as premissas fundantes da crise hídrica, na forma de artigos, papers,
9
9
entrevistas, textos e livros do autor disponíveis para consulta no
Anexo II - Referências Bibliográficas Adicionais.
Finalmente, agradecendo e sempre recordando o incansável
compromisso mantido pelo Professor Ariovaldo Umbelino de Oliveira
com as metas e demandas do que então, era apenas um projeto de
pesquisa, manifesto minha expectativa de que o material contemple
as preocupações dos seus leitores.
São Paulo, 24 de Abril de 2020.
Maurício Waldman
A Metrópole Paulista em 2004
(Fonte: < http://www.brazilbrazil.com/s/sat_058.jpg >. Acesso em: 03-11-2005)
1
10
INTRODUÇÃO
Água e Metrópole: Limites e Expectativas do Tempo é um
trabalho que versa a respeito da dificuldade crescente das metrópoles
serem atendidas nas demandas por água doce. E esclarecendo de
vez sobre a questão central deste trabalho, o texto que se estende
desta página em diante discute uma hipótese básica: a de que não
será possível atender tais necessidades a não ser que mudanças
radicais em todas as escalas da sociedade humana moderna sejam
colocadas em ação.
Ainda que essa assertiva reporte a um amplo e complexo rol de
temáticas, elegemos como eixo organizador da análise dois arranjos
espaciais básicos, primacialmente conjuminados entre si: a Região
Metropolitana de São Paulo (RMSP) e o Grande ABC Paulista, a mais
importante das sub-regiões da RMSP após a capital. Em seu interior,
Ribeirão Pires, integrando o grupo de sete municípios que formam a
sub-região, foi o espaço urbano mais recentemente abordado pelo
pesquisador, vivência que permitiu certificarem muitas das hipóteses
trabalhadas nesta tese quanto aos dois outros arranjos espaciais
citados anteriormente.
Quanto ao tema deste trabalho, tanto a RMSP quanto o Grande
ABC, expressam uma problemática hídrica que de modo emblemático
prognosticam as mais duras conclusões. Na voz do povo, repete-se
que é muito difícil encarar a realidade de frente. Contudo, quando
esta é escancarada, não resta nenhuma opção. Uma seria resignar-
1
11
se às imposições da conjuntura e não reagir. A outra, seria indignar-se
e buscar respostas, revidando os desafios colocados pela realidade. A
escolha que motivou esta tese foi a segunda, e com este ofício é que
a análise que segue foi construída.
Como sentenciou o cientista social alemão Max Weber, no plano
das opções que o pesquisador realiza no campo da ciência, inexiste
objetividade despida de subjetividade. Do ponto de vista da vivência e
dos reflexionamentos emocionais, o Grande ABC Paulista reporta a
um longo histórico de vida para o proponente deste trabalho. Meu pai,
Wolf Waldman, imigrante judeu polonês que percorreu na condição de
comerciante, durante muitos e muitos anos, as cidades da sub-região,
fazia suas caminhadas intermináveis contando, quase sempre, com a
minha companhia.
Foi assim que tomei contato com São Caetano do Sul, Santo
André, São Bernardo do Campo, Diadema, Mauá e Ribeirão Pires,
cidades do Grande ABC que aprendi a reconhecer, acompanhando a
conversa dos adultos, tal como se fossem uma só. As recordações
destas andanças são assaz vívidas. Aprendi a identificar os marcos
característicos da paisagem do Grande ABC e a desfrutar do que este
encantador recanto da metrópole pode oferecer.
Nessa época, não se falava nem em greve e muito menos em
mobilização da sociedade. E, com o golpe militar de 1964, quem
conhecia algo a respeito destes temas refugiou-se, ao menos em
parte, num cauteloso silêncio. Porém, dificilmente uma região com a
vitalidade do Grande ABC poderia ser silenciada e assim, este espaço
se reapresentou na minha vida através do ativismo ambientalista.
1
12
A partir dos anos setenta, muitos segmentos da opinião pública
passaram a evidenciar crescente inconformismo com a degradação
da represa Billings e dos seus mananciais. Este temário, dantes
restrito ao movimento ecologista, afirmou-se nas décadas seguintes
tanto na consciência social quanto no plano das demandas objetivas
de água por parte da metrópole em expansão.
Capitaneada pela cidade de São Paulo, uma urbe que, dizia-se
nas décadas passadas, “não poderia parar de crescer”, a região
metropolitana expandiu-se, acirrando no seu interior toda sorte de
antagonismos sociais e econômicos. Simultaneamente, motivada pelo
seu dinamismo descontrolado, nesta marcha processual a metrópole
inevitavelmente confrontou-se com os ciclos da natureza, afetando
inclusive os que garantem aos humanos o desfrute da mais vital de
todas as substâncias, relacionada diretamente com o sistema-vida: a
água.
Deste modo, na esteira da militância ecologista e da ascensão do
Partido dos Trabalhadores (PT) terminei por exercer, no biênio 19911992, o cargo de Secretário do Meio Ambiente da Prefeitura Municipal
de São Bernardo do Campo (PMSBC).
Entretempos, postado no comando institucional de uma relevante
administração do Grande ABC, as dinâmicas socioespaciais que se
desenhavam na vida da cidade se explicitavam de modo irretorquível.
Ademais, dado ser impossível dissociar esse dinamismo de quaisquer
outras cidades do Grande ABC Paulista e destas, da RMSP, a agenda
cotidiana de trabalho se encarregava de destacar os dilemas da subregião, assim como os da metrópole paulista como um todo.
1
13
Mantendo nos anos que se seguiram toda sua atualidade e
potencialidade em termos dos desafios colocados para a questão do
acesso à água, foi possível, no interregno 2002/2005, conferir esta
problemática durante as pesquisas e o trabalho de campo visando
esta tese de doutorado, desenvolvido em paralelo com a participação
em projetos de educação ambiental voltados para o ABC Paulista,
financiados pelo Fundo Estadual de Recursos Hídricos (FEHIDRO), e,
no exercício do magistério em nível superior e desenvolvimento de
cursos de capacitação para professores da rede municipal de ensino
de Ribeirão Pires.
Deste modo, a partir de 2001, quando já participava oficialmente
do programa de pós-graduação em geografia humana da FFLCHUSP, e secundado por um processo de especulações pertinentes às
preocupações que foram expostas, lentamente foi se sedimentando
na proposta do trabalho de doutorado, a incorporação da temática da
questão do abastecimento de água nas grandes cidades brasileiras,
envolvendo a RMSP e o ABC Paulista, assim como, é evidente, a
experiência vivida na cidade de Ribeirão Pires, formando uma massa
de informações cruciais para esta tese.
Deve ser ressalvado que ao estar centrado na questão do meio
urbano e dos recursos hídricos, o temário proposto por Água e
Metrópole: Limites e Expectativas do Tempo articula-se com outras
problemáticas de importância fundamental para o futuro da RMSP,
dentre estas, as da matriz energética, do lixo e as relacionadas com a
questão do uso e ocupação do solo urbano. Assim sendo, esta tese
de doutorado inclui temáticas que se estendem da poluição da água
por cargas difusas, passando pela destinação dos resíduos sólidos e,
1
14
numa outra ponta deste espectro, com os problemas associados
como a ocupação dos mananciais.
Quanto ao Grande ABC em si mesmo, trata-se de um espaço
extremamente dinâmico, concentrando formidável parque industrial e
um pujante setor de serviços. Portanto, não é de se admirar que sua
história tenha sido atravessada pelas mais turbulentas performances
demográficas, com impactos evidentes nos mananciais da represa
Billings. Numa perspectiva ambiental, o ABC é uma área de grande
importância para os ciclos hidrológicos da RMSP, corporificados no
reservatório Billings, nas suas matas remanescentes e no seu rico
potencial de águas subterrâneas.
Deste modo, o ABC em sua contextura hídrica indica enormes
potencialidades em termos de animar expectativas voltadas para a
compreensão da realidade materializada na RMSP, contribuindo tanto
como dado adicional dirigido para a formulação de várias hipóteses,
quanto para certificar uma visão crítica desta mesma realidade.
Neste raiar do Século XXI, bem mais do que nas décadas
anteriores, a questão do acesso à água potável e a necessidade de
criar políticas urbanas empenhadas em contribuir de fato para com a
superação das contradições surgidas de um processo de acumulação
de capital que, em linhas gerais, tem mantido sua tendência em criar,
e explicitamente recriar, sempre de modo cada vez mais ampliado e
contraditório, desigualdades mais e mais profundas, atualizam de
modo radical esta problemática.
1
15
Acelerado por um dinamismo temporal que vincula a realidade
regional ao seu espelho global e vice-versa, as questões a serem
debatidas nesta tese, Água e Metrópole: Limites e Expectativas do
Tempo, constituem uma invitação para serem trilhados, a fortiori, as
mais diversas circunscrições factuais e travessias teóricas.
No entanto, todos conduzirão a um mesmo destino: a premência
de dar conta de problemas somente passíveis de resolução através
de novos paradigmas, habitados a decifrar dilemas e contradições
que se expressam no tempo e no espaço.
Com estas diretrizes à disposição, organizei a exposição numa
sequência composta por cinco partes, divididas em 12 capítulos e 35
subcapítulos, nos quais o aprofundamento dos temas arrasta consigo
as discussões precedentes, ao mesmo tempo em que as retoma e
amplia.
➢
Na primeira parte da investigação, Espaço, Geografia e Meio
Ambiente, discrimino as principais linhas teóricas que sustentam a
tese, assim como os principais eixos da discussão;
➢
Na segunda, Meio Urbano, Questão Ambiental e Modernidade,
os vínculos mantidos pela questão ambiental na modernidade com a
ordenação social do tempo e do espaço, indissociáveis do desenho
do meio urbano, estaqueiam-se de modo conjuminante, apontando
para a crítica do modus operandi da sociedade ocidental e das formas
desestabilizadoras que estabeleceu no relacionamento com o meio
natural. Retenha-se que nesta tripartição, a análise tem por meta
avaliar, de modo encadeante e norteador, a modelagem e progressão
1
16
da crise ambiental, lastro ontológico axial, complexo e multifacetado,
que perpassa pela totalidade da tese;
➢
A terceira parte, Sociedade, Água e Meio Ambiente, a exemplo
das anteriores, mantém-se rigidamente focada na geografia humana,
detendo-se especialmente nos aspectos contraditórios das interações
socioespaciais, ao mesmo tempo em que busca detalhar os vários
prognósticos e perspectivas atinentes à questão das águas doces, ou
como lhe seria consentâneo pelas lentes da economia, do ouro azul;
➢
Ao longo da quarta parte, Grande ABC, Recursos Hídricos e a
Metrópole Paulista, o texto registra primeiramente um balanço dos
recursos hídricos no Brasil e uma radiografia das dinâmicas urbanas
do país, para posteriormente, situar a problemática da RMSP e do
Grande ABC Paulista frente a um dinamismo socioespacial no qual a
hegemonia da temporalidade moderna é um dado essencial para sua
compreensão;
➢
Por último, na quinta parte, Em Busca de um Final Transitório,
procuro, discriminando os limites da institucionalidade, enfatizar a
necessidade de superação das contraposições encasteladas no que
com muita propriedade, poderia ser classificado como “bomba-relógio
do antropoceno”, cuja sintomatologia mais pungente, tem vedado a
grupos, povos e nações a consecução de sua humanidade, dilema
que como será argumentado, para ser ultrapassado não admite que
sejam dispensadas as expectativas em prol da revisão dos axiomas
da ordem global, a transformação da sociedade, a preservação da
naturalidade que dinamiza e envolve o sistema-vida, e tal-qualmente,
assegurar a conservação das águas doces, utopia maior deste texto.
1
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PARTE I
ESPAÇO, GEOGRAFIA E MEIO AMBIENTE
1
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CAPÍTULO 1
PRESSUPOSTOS, OPÇÕES E METAMORFOSES
1.1. O MATRIMÔNIO SAGRADO DO TEMPO COM O ESPAÇO
Este estudo localiza-se no campo do conhecimento geográfico.
Portanto, nada mais compreensível que o conceito de espaço e seus
desdobramentos constituam um foco obrigatório de análise e fonte de
subsídios para substantivar esta pesquisa.
Importa deixar claro que o enfoque da geografia é específico,
diferindo das demais especialidades. Como se verá adiante, para os
geógrafos, o espaço não se confunde com o espaço cultural, social
ou econômico, tratados pela antropologia, sociologia e economia. Por
outro lado, nada disto depõe em contrário quanto a geografia fazer
uso dos conceitos de espaço de disciplinas afins, e de outras a ela
menos relacionadas (Vide SILVA, 1978: 81/82).
Uma vez esclarecida esta vocação pelo espaço, não haveria
como marginalizar sua contrapartida, isto é, o tempo. Saliente-se que
a dimensão espacial somente é devidamente apreendida, tanto na
sua qualificação concreta quanto na imaginária, na hipótese de, na
sua intelecção, ser afiançado o vínculo mantido com a dimensão
temporal.
1
19
Salientemos, as esferas do espaço e do tempo configuram, vis-àvis, “realidades indissociáveis, em qualquer plano, escala ou sistema
de relações” (Cf. ANDRADE, 1971: 93). Envolvendo-se mutuamente
em termos de coexistência, permanência e transitoriedade, o binômio
espaço-tempo consubstancia um poderoso plano de entendimento da
realidade, daí decorrendo a importância dessa tematização para a
geografia (Cf. OLIVEIRA, 1982c).
Para a geografia, a interligação entre as dimensões temporal e
espacial, objetivamente presentes no dinamismo de todas as formas
conhecidas de organização do homem em sociedade, e, portanto, em
nível do imaginário e da sua concretude, permitiria identificar as
metamorfoses que marcam a transformação do espaço geográfico. A
interdependência entre estas duas fatorações, absolutamente cabal,
fulgura em toda sua luminância na análise das paisagens na pena do
geógrafo francês Olivier DOLLFUS:
A fisionomia da Terra está em perpétua transformação.
Toda paisagem que reflete uma porção do espaço ostenta
as marcas de um passado mais ou menos remoto,
apagado ou modificado de maneira desigual, mas sempre
presente. É um palimpsesto onde a análise das
sucessivas heranças permite que se rastreiem as
evoluções. O espaço geográfico se acha impregnado de
história (1972: 11).
Em especial, este debate é meritório devido seu entrelaçamento
com a conceituação de formação socioespacial ou abreviadamente,
espacial. Esta formulação, consensada ao longo de muitos debates
travados no seio da geografia, filia-se a um escopo teórico de matriz
marxista, embasando-se nos conceitos de formação social e de modo
2
20
de produção, modelos de análise intensamente debatidos pelas
ciências sociais ao longo dos anos 1970 e 1980, interregno durante o
qual, o campo acadêmico da geografia gerou uma literatura de vulto
dedicada ao tema.
Entretanto, seria cabível preliminarmente ponderar que antes da
discussão que resultou no conceito de formação espacial, disciplinas
como a sociologia, ciência política e a antropologia, desenvolveram
estudos que exaltavam o papel do espaço no tocante à trajetória
assumida pelas comunidades humanas. Em comum, tais análises
contestavam a noção de que o tempo se prontificasse enquanto
referência par excellence para o estudo da realidade, assim como a
noção de que a dimensão espacial pudesse ser reduzida a um reles
“receptáculo” do protagonismo do coletivo humano, um palco “neutro”
do homem em sociedade.
Essa orientação esteve presente na obra de sociólogos como
Émile Durkheim, cujas investigações identificaram a correspondência
entre as representações do espaço e sua respectiva origem social; de
Maurice Halbwachs, na sua ênfase da importância do espaço para a
memória coletiva; e de Georg Simmel, que avaliou a proeminência de
um centro espacial para um Kirchenstaat (Estado eclesiástico), caso
do Tibete, cuja capital, Lhasa, tinha na sua posição central o Potala,
um altaneiro convento que era a sede do governo e para o qual,
convergiam todas as estradas do país (Cf. BETTANINI, 1982: 81/110
e CUVILLIER, 1975: 138/161).
Quanto à antropologia, não seria difícil discernir uma cognição
consistente quanto ao espaço, que encontra justificativa no fato do
2
21
mundo tradicional operar insistentemente com base numa articulação
orgânica entre espaço social e sistemas míticos, nos quais um
entrosamento com os ciclos e dados naturais é indissociável da sua
reprodução social. Assim, as pesquisas dos antropólogos Carlos
SERRANO (1983), Marc AUGÉ (1985) e de Claude TARDITS (1985),
centradas respectivamente no reino Ngoyo, na área cultural Bakongo
1,
e na gubernatura Bamoun 2, na África centro-atlântica, reportaram
direta ou indiretamente ao espaço.
Cabe citar, elaborações aninhadas na seara da filosofia, também
poderiam ser arroladas, que desvendaram, desde os antigos gregos,
constructos axiais para a compreensão do espaço (ANDRADE, 1971).
Entretanto, as iniciativas encabeçadas por várias das ciências
humanas não necessariamente identificaram a espacialidade inerente
a qualquer formação social. Basicamente, em razão de que ao se
eximirem de articular conceitualmente uma totalidade socioespacial,
seus dinamismos internos e, em especial, suas contradições no plano
do espaço-tempo, tais esforços foram insuficientes para consolidar
uma teorização abrangente, operacional de espaço.
Atente-se para a sugestão do geógrafo Ruy MOREIRA, presente
no excerto abaixo transcrito:
O estudo mais e mais preciso do conceito e articulação de
formação econômico-social e de modo de produção, a par
Faz séculos, os Bakongo formam uma etnia espalhada pelas duas margens do Zaire,
especialmente na costa e adjacências do estuário deste rio, ocupando territórios que hoje
em dia integram Angola, a República Democrática do Congo e a República do Congo.
2 Estado tradicional africano localizado no trecho meridional da atual República dos
Camarões, cujo território foi dominado pela Alemanha no final do Século XIX e a partir
dos finais da I Guerra Mundial, repartido entre a França e o Reino Unido.
1
2
22
do estudo minucioso da economia política, das
instituições e da ideologia, sem o qual não se pode
mergulhar fundo na compreensão de uma formação
econômico-social, e a convergência de tudo isso ao
estudo do conceito, forma e processos da formação
espacial, eis o que nos parece necessário para um bom
trabalho de construção teórica do espaço (1982a: 63).
Recorde-se que o conceito de modo de produção não se
confunde com o de modo de produção de bens materiais. Este último
subentende uma expressão descritiva, referindo-se unicamente à
estrutura econômica da sociedade. Respaldar uma análise com base
no marco teórico dos modos de produção, implica na adoção de um
constructo apreendendo a materialidade social por inteiro, tanto a
estrutura socioeconômica da sociedade, quanto balizamentos junto às
esferas do jurídico, do político e do ideológico (Vide GEBRAN, 1978:
14), sopesamento que nesta vertente, credenciaria a formulação para
um estudo científico do espaço.
É importante precisar que o debate responsável pelos novos
conceitos que passaram a seduzir o pensamento geográfico a partir
dos anos 1980, esteve perpassado pela verve questionadora da
geografia crítica, uma das correntes que medraram no interior do
movimento de renovação de geografia. Constituindo um momento no
qual o marxismo ganhou notoriedade no interior das especulações
geográficas, a geografia crítica promoveu reavaliações teóricas cujo
denominador comum, endossavam uma visão crítica da realidade.
A receptividade encontrada pelo marxismo junto ao pensamento
geográfico foi encorajada, no caso brasileiro, por um contexto no qual
o país ensaiava os primeiros passos na direção da redemocratização.
2
23
Nessa perspectiva, estaria colocado à geografia, ao incorporar o
marxismo no seu plano de análise, dar conta de uma contribuição de
caráter eminentemente geográfico - isto é, espacial - de compreensão
do movimento contraditório da sociedade e dos atores que a integram
(MORAES, 1981: 112 et seq).
Neste sentido, conviria ponderar que embora a geografia crítica
tenha sido granjeada com adjetivações como geografia marxista,
radical, ou, de relevância social, que no âmago, seu desenvolvimento
teórico inspirou-se numa efervescência intelectual externa ao antigo
mundo socialista, cuja produção geográfica acatava outros ditames e
diretrizes.
É sabido que na ex-URSS e nas repúblicas populares do Leste
europeu, o saber geográfico se resumia a um arrolamento dos
recursos naturais, no geral, abordados numa ótica economicista ou
então, vinculado à geofísica e ciências naturais correlatas. Apenas a
título excepcional, nos países governados por regimes marxistas, é
encontrada uma geografia humana inspirada no chamado socialismo
científico, muitas vezes uma produção encetada por cientistas sociais
como sociólogos e antropólogos (Ver a respeito CHRISTOFOLETTI,
1985: 26/29 e MONTEIRO, 1980: 138/139).
Seria também obrigatório lembrar a pluralidade de concepções
que se abrigam no pensamento marxista. De fato, a geografia crítica
diz respeito, além de Marx e Engels, a variada gama de pensadores,
teóricos e ativistas. Numa listagem abrangente, pontificariam então,
nomes como os de Leon Trotsky, Antonio Gramsci, Karl Wittfogel,
Rosa Luxemburgo, Giorgy Luckács, Mao Tsé-Tung e Wladimir Ilitch
2
24
Ulianov (Lênin), cada um dos quais, defendendo posicionamentos
teóricos e programáticos que não eram necessariamente coincidentes
e longe disso, estiveram marcados por acentuadas discordâncias.
Nesta sequência, seria mister escriturar que a incorporação do
marxismo no pensamento geográfico não esteve isenta de obstáculos
conceituais e metodológicos. O principal deles é que o marxismo, em
igual medida com o conjunto das escolas filosóficas e dos sistemas
de pensamento do mundo ocidental que precederam o Século XX,
manteve-se sob o domínio do tempo.
Na lógica do marxismo, as dinâmicas e categorias temporais
constituem o âmago de sua argumentação. Teriam assegurado Karl
MARX e seu parceiro Friedrich ENGELS em A Ideologia Alemã: “a
única ciência que conhecemos é a ciência da história” (1977: 23) 3.
Exatamente por esta razão, como sublinhou o geógrafo e urbanista
norte-americano Edward Soja, o surgimento de um forte materialismo
histórico não foi correspondido por um também robusto materialismo
geográfico (SOJA, 1986: 4; ver também QUAINI, 1979: 34/47).
Essa lacuna do pensamento clássico marxista quanto ao espaço
mobilizou segmentos da geografia identificados com esta corrente na
senda de não só resgatar o espaço quanto de espacializar conceitos
marxistas temporalizantes, dentre estes, o de modo de produção
(BERNARDES, 2001). Tal releitura impunha-se por si mesma, pois o
Observa o geógrafo José Willian VESENTINI: “Essa frase, juntamente com algumas
outras, foi riscada pelos autores, que inicialmente pretenderam publicar o manuscrito,
mas desistiram após algumas dificuldades e, segundo argumentaram posteriormente,
porque essas ideias serviram somente como amadurecimento intelectual” (1989: 44).
Entretanto, independentemente dessa sentença ter constituído um exercício intelectual
ou não, o caráter eminentemente temporal das argumentações marxistas e marxianas é
inquestionável.
3
2
25
conceito de modo de produção, do ponto de vista epistemológico,
incorpora o tempo e não o espaço, como primado de interpretação da
realidade. O resultado destes esforços levou, muito sinteticamente, ao
entendimento de que modo de produção e formação social, conceitos
marxistas fortemente enraizados na tradição temporalizante ocidental,
poderiam ser desdobrados numa tradução espacial.
Nos termos pelos quais pretendo desenvolver esta avaliação,
essas aferições constituem um indicativo básico para incorporar as
contribuições de Milton Santos, “uma das mais amplas e substantivas
empreendidas pela geografia crítica” (MORAES, 1981: 123). O vulto,
vigor e a pertinência da produção deste estudioso da problemática do
espaço, profundamente identificada com uma leitura questionadora
da realidade, conquistou projeção principalmente a partir da década
de 1980, demonstrando-se um acervo teórico dotado de capilaridade
na escala nacional e internacional (MAMIGONIAN, 1996: 201/205).
Motivo de orgulho para a nação brasileira, Milton Santos foi o primeiro
geógrafo originário de um país periférico (único até o atual momento),
a ser laureado com o Prêmio Vautrin Lud (1994), a maior distinção da
geografia, considerado o Prêmio Nobel da disciplina.
Tal teorização, possuindo nota predominante no conceito de
espaço produzido, espaço habitado, espaço artificial ou simplesmente
natureza segunda, constitui um subsídio de grande quilate para a
geografia, hoje endossada como noção inseparável do patrimônio
científico da disciplina. A dimensão do espaço, dantes divorciada do
tempo, reencontra nessa ótica o pressuposto fundamental de sua
completude cognitiva: as sociedades agem sobre o espaço e, mais
precisamente, produzem um espaço específico enquanto expressão
2
26
do seu dinamismo histórico-social. Ocorre então que o espaço, ou
espaço-paisagem, testemunha um modo de produção nestas suas
manifestações concretas, o testemunho de um momento do mundo
(apud SANTOS, 1978a: 138).
Ao mesmo tempo, terminologias específicas como fixos, fluxos,
objetos espaciais, sistemas técnicos, processos de espacialização e
divisão espacial do trabalho, conquistaram popularidade nas análises
costuradas pela geografia em temas como a organização territorial,
exclusão espacial e a questão urbana.
Este rol de conceituações está embasado pela poderosa aliança
formada pelo binômio espaço-tempo, uma parceria onipresente nas
especulações de Santos. Como explícito em venerável sentença
deste notável geógrafo brasileiro, uma vez sendo verdadeiro que o
tempo se transforma em espaço, seria igualmente correto pensar que
o espaço também se transforma em tempo (Vide SANTOS, 1978a:
105).
Claramente, estes enfoques explicitam a incorporação da
preocupação com o espaço em processos dantes entendidos como
eminentemente temporais. Nesta ordem de argumentação, os
imperativos do espaço para o conceito de formação social poderiam
ser compendiados por algumas premissas básicas, dentre as quais:
1. Analisar como o tempo se transforma em espaço e como o
tempo passado e o tempo presente têm, cada qual, um papel
específico no funcionamento do espaço atual (SANTOS, 1978a: 105);
2
27
2. Interpretar o espaço, na acepção deste constituir um fator, um
fato e uma instância social (idem, 1978a: 130);
3. Compreender o papel pertinente às rugosidades, formas
espaciais criadas pela ação humana, cuja inércia espacial condiciona
novas localizações (idem, 1978a: 138);
4. Entender que as formas espaciais são duráveis, não se
desfazendo e influenciando a organização do espaço mesmo com o
fim dos processos que lhes deram origem, e neste passo, factíveis de
serem revivificadas pelo movimento social (idem, 1978a: 149).
5. Sublinhar que a relação entre o homem e a natureza é uma
relação que produz espaço, onde a natureza transformada,
socializada, é um arranjo espacial, uma natureza segunda. Em suma,
o espaço é uma herança dinâmica, no qual temos uma acumulação
desigual de tempos (idem, 1978a: 201 e 209).
Tais deduções prestam-se sumamente para a avaliação do papel
das rugosidades. Esta noção, é uma das que no cenário analítico
modelado na obra de Milton Santos, congraçam história e geografia,
mutação e estabilidade, sociedade e memória, tempo e espaço,
acenando no plano analítico, para “o espaço construído, o tempo
histórico que se transformou em paisagem, incorporado ao espaço”
(SANTOS, 1978a: 138).
Assim, o espaço, longe de corporificar um elemento estático é ele
mesmo agente de transformação, continuidade e/ou de revivescência.
Desta reflexão intui-se que as rugosidades:
2
28
Criam imposições sobre a ação presente da sociedade;
são uma ‘inércia dinâmica’ - tempo incorporado na
paisagem - e duram mais que o processo que as criou.
São assim uma herança espacial que influi no presente.
Por esta razão, o espaço é também uma instância, no
sentido de ser uma estrutura fixa e, como tal, uma
determinação que atua no movimento da totalidade social.
As formas espaciais são resultados de processos
passados, mas são também condições para processos
futuros. As velhas formas são continuamente revivificadas
pela produção presente, que as articula em sua lógica
(MORAES, 1981: 123/124).
Com base neste enfoque, contribuem em igual medida para a
organização do espaço os condicionamentos oriundos das heranças
espaciais do passado. Não raro, objetos e formas espaciais pretéritas,
tais como monólitos, sistemas de irrigação, vias de comunicação,
aglomerados de aldeias, fortificações, assim como arranjos e objetos
espaciais de todo tipo, constituem a base fixa para a rearticulação ou
continuidade de determinado dinamismo espacial, mantendo e
quando não, gerando novos fluxos no espaço. Caberia, deste modo,
compreender como este movimento se efetiva.
Em coerência com esta linha de raciocínio, dificilmente um modo
de produção faz tabula rasa das condições espaciais preexistentes.
Comumente, a nova organização social do espaço que sucede à
anterior assimila as antigas rugosidades, ressemantizando-as. Isto é,
decretando um novo regime de significados para as marcas e objetos
espaciais herdados do passado. Por isso mesmo, é necessário repetir
que as rugosidades, “são o espaço construído, o tempo histórico que
se transformou em paisagem, incorporado ao espaço” (Cf. SANTOS,
1978a: 138).
2
29
Dado subjacente a esta arguição, as formações sociais, tecendo
forte concordância com o espaço com o qual interagem, logo, não
podem ser desvencilhadas in abstracto deste substrato, que alicerça
a personalidade social, política, cultural e histórica das sociedades.
Embalados nessa dedução, temos que nenhuma sociedade poderia
ser plenamente compreendida sem levar o espaço em consideração.
Propugnar formações sociais expurgadas de um “piso espacial”
substantivaria, em todas as letras, um equívoco. Ademais, pensar um
modo de produção tão só pelo prisma do tempo, desespacializado,
seria pensar um tempo abstrato, prontificado a sinonimizar diferentes
formações sociais. Do mesmo modo, o espaço, sem a dimensão
tempo, torna-se um espaço congelado (Vide MOREIRA,1982a: 62 e
SANTOS, 1978a: 199).
No que evidencia o cabimento desse ajuizado, o conceito de
formação espacial é fundamental para revelar a “fisionomia concreta”
das sociedades. Nesta perspectiva, poder-se-ia inventariar diversos
problemas decorrentes da noção de tempo abstrato constatados nos
estudos das formações histórico-sociais.
Exemplificando, foi em face de communis error derivados da nãoespacialização da história é que se terminou conferindo à formação
feudal, fenômeno territorialmente restrito a uma porção do continente
europeu, uma universalidade que nunca teve, determinando, por
exemplo, fortes controvérsias sobre o modo de produção asiático,
base material de sortido conjunto de sociedades extraeuropeias (Cf.
MOREIRA, 1982a: 62; ver igualmente CARDOSO, 1990a e 1990b,
BARTRA, 1978 e SOFRI, 1977).
3
30
Outra atrativa lógica do pensamento de Milton Santos reside na
arguta visualização dos reflexos e desdobramentos decorrentes da
ordenação temporal da modernidade para a organização do espaço,
cuja feição mais representativa se expressa na geografia urbana. A
urbanização, um fenômeno recente, crescente e aparente na escala
do planeta por inteiro, constitui tema subjacente a todos debates que
pontuam a sociedade contemporânea. Confira-se que entre 1800 e
1950, a população dos terranos multiplicou-se 2,5 vezes; todavia, a
população urbana multiplicou-se vinte vezes nesse mesmo período
histórico (Cf. SANTOS, 1981: 3/4).
Particularmente, a maximização do fenômeno urbano, prontifica
tanto a tecnoesfera (espaço artificial que inclui a cidade moderna
assim como o meio rural a ela submetido), quanto a psicoesfera (o
reino das expectativas que norteia o espaço concreto e que a ele se
antecipa), enquanto ferramentas teóricas e conceituais de primeira
ordem. Assumindo hodiernamente a fisionomia de um meio técnicocientífico-informacional, a tecnoesfera tem por finalidade precípua,
subsidiar os fluxos do sistema, cuja velocidade impõe um cunho de
transitoriedade cada vez mais flagrante ao espaço artificial (passim
SANTOS, 1998).
Como não poderia deixar de ser, esta dinâmica transmuta-se nas
metamorfoses do espaço habitado e no direcionamento dos fluxos
espaciais, cuja intempestividade, reflete-se nos rebatimentos da ação
humana no meio físico-natural. Por isso mesmo,
O problema do espaço ganha, nos dias de hoje, uma
dimensão que ele não havia obtido jamais antes. Em
3
31
todos os tempos, a problemática da base territorial da
vida humana sempre preocupou a sociedade. Mas, nesta
fase atual da história, tais preocupações redobraram,
porque os problemas também se acumularam (SANTOS,
1998: 17/18).
Este é o mote por excelência para a compreensão da crise
socioambiental do mundo moderno. Exacerbado por uma ordenação
do tempo que se confunde com a apropriação privada da natureza,
eclodiu um cenário de distúrbios em cujo centro, estão as próteses
urbanas e a reverberação dos seus ciclos artificiais de funcionamento.
A agudização das contradições entre cultura e natureza no mundo
moderno constitui um epifenômeno impartível da torção do espaçotempo, e isto, de um modo como nunca foi observado na história.
No que é característico da vida social moderna, os distúrbios
presenciados na atualidade são eminentemente laicos. Ao contrário
do que ocorria no pretérito, não há lugar para propiciações mágicas
ou explicações de índole cosmológica. Fundamentalmente, porque os
transtornos derivam unicamente do saber institucionalizado.
Portanto, os riscos ecológicos do mundo moderno, virtualmente
secularizados, disto diferem de todas as atribulações ambientais que
ocorreram no mundo tradicional. Objetivamente, a faceta fundamental
da crise socioambiental da modernidade se relaciona diretamente
com o conteúdo de artificialidade da sociedade moderna e com os
procedimentos da civilização científica, que açulam os contratempos
com o meio ambiente e com os coletivos humanos (Cf. BETTANINI,
1982: 71/72).
3
32
Exposto este ponto, outra ordem de motivações quanto à obra de
Milton Santos justifica-se pela pauta deste texto indexar a questão
ambiental. Que fique claro: a crise ecológica, pensada enquanto um
nexo de desequilíbrios advindos diretamente de um cadenciamento
social do tempo e de uma crise espacial que com ela se relaciona,
encontraria uma vez mais sustentáculo na obra deste geógrafo:
O exame do que significa em nossos dias o espaço
habitado, deixa entrever claramente que atingimos uma
situação-limite, além da qual o processo destrutivo da
espécie humana pode tornar-se irreversível [...] Senhor do
mundo, patrão da Natureza, o homem se utiliza do saber
científico e das invenções tecnológicas sem aquele senso
de medida que caracterizará as suas primeiras relações
com o entorno natural. O resultado, estamos vendo, é
dramático (SANTOS, 1988: 44).
Concerniria asseverar que em resposta às possíveis objeções
eventualmente proferidas relativamente à “ausência de preocupações
ambientalistas” na obra de Milton Santos (quando não de óbices que
o autor esposaria para a temática em si mesma e aos seus expoentes
políticos e sociais), esta tese se fixa sobremaneira na abrangência do
método e das ferramentas conceituais desenvolvidas e propostas por
Santos para a compreensão da questão ambiental.
No mais, como em qualquer outra questão teórico-metodológica,
faculta-se proficiência ao instrumental quando seus pressupostos
estão apoiados na verificação de constituírem um critério de eficácia
científica, dizendo respeito à sua competência na peritagem analítica,
e em especial, ao paramento de que a toda teoria verdadeira deve
corresponder uma eficácia operatória real (COLLINSON, 2004).
3
33
Finalmente, os argumentos de Milton SANTOS, contribuindo para
realçar os vínculos inquebrantáveis existentes entre uma humanidade
socialmente organizada e o espaço habitado, destacam o afazer
geográfico no centro de um debate crucial: Nas condições atuais do
mundo, ainda mais que na era precedente, o espaço está destinado a
desempenhar um papel importante na escravidão ou na libertação do
homem (1978a: 218).
Assim sendo, nossa aspiração é a de que os capítulos seguintes
possam, em coerência ao estaqueamento de uma avaliação espaçotemporal e com a preocupação basilar de explicitar as implicações
dos desequilíbrios ecológicos, contribuir para esclarecer e inspirar
formas de resistência e de reivindicação por um outro espaço de vida,
socialmente justo e ecologicamente responsável.
1.2. GEOGRAFIA, CRISE AMBIENTAL E SOCIEDADE
Diz o senso comum que as situações de crise são pródigas em
propiciar releituras, recomendações e proposituras. Julgando com
isenção, dificilmente poder-se-ia proferir objeções a este enunciado.
Sabe-se intuitivamente que o desnudamento das contradições
em toda sua crueza, colocando a prova posturas estabilizadas e
vivenciadas como “naturais”, inauguram a consumação mais acabada
de um tipping point (ponto de inflexão), a prenunciar o desenlace do
point of no return (ponto de não retorno).
3
34
Nada como os estertores que prenunciam a crise para iluminar a
necessidade de revisão de condutas. No final das contas, uma vez
diante da aspereza do real, como lhe negar jurisprudência para rever
procedimentos? É exatamente a consciência da falibilidade que
justifica, dialeticamente, a superação das desventuras, a criação de
novos entendimentos, a abertura de novos caminhos e a afirmação
de novas pactuações. Nesta visada, a irrupção de crises inclui tanto a
possibilidade de estagnação quanto de superação. O sucesso - ou
insucesso -, simplesmente advém do que se aprende dessa vivência.
Seria o caso de se replicar, diante da gravidade dos problemas
ambientais, que a humanidade vive momentos fulcrais que solicitam
mudança de paradigma? Quero crer que sim. Mas, antes de tudo há a
necessidade de se certificar que essa transformação diz respeito a
concepções inseridas historicamente, refletindo determinadas noções
e consensos. Tais conformidades, que não são eternas, se dissolvem
ou são revistas mediante a apresentação de novos problemas, que
não encontrando resposta através do paradigma anterior, terminam
gradativamente mutuadas por outras, afeitas à nova circunstância
histórica (passim PRICE, 1976).
Numa única palavra, a elaboração de um paradigma exclui a
intervenção voluntarista e firma-se no terreno das práticas sociais
concretas. O progresso do conhecimento teórico, “incluindo as formas
mais elevadas da atividade científica, aparecem vinculadas com as
necessidades práticas dos homens” (VAZQUEZ, 1980: 245). Portanto,
não é uma teoria nova que reformula ordenação dos fatos, “mas é a
nova ordenação dos fatos que encerra ela mesma uma nova escala
3
35
de valores e obriga a construção de uma nova teoria” (Cf. SANTOS,
1978a: 157).
No que constitui exercício árduo, mas também enriquecedor,
elaborar um paradigma admite a importação de contribuições de
diferentes áreas do conhecimento. Propor paradigmas exclusivistas,
particulares, de uma única ciência isoladamente, seria, neste sentido,
um enunciado frágil em si mesmo. A noção de paradigma
...não pode ser derivada da história particular de uma
ciência ou de uma descoberta feliz de um cientista
caprichoso e genial. A noção de paradigma pertence à
história e se impõe ao mesmo tempo em que os
movimentos históricos de fundo (SANTOS, 1978a: 160).
Nesse sentido, a conjuntura vivida pela humanitas nos dias atuais
fornece azos para uma meditação ímpar. A crise socioambiental da
modernidade, evidenciando a problemática da continuidade da vida,
coloca radicalmente esta questão, obrigando a todos meditar sobre a
possibilidade de um quadro de breakdown (colapso), anunciado para
ocorrer nessa mesma geração:
“A história humana, tão cheia de promessas e
esperanças, chegaria por si própria para nos fazer
merecer outro futuro. Um futuro diferente daquele que
nos parece esperar nos próximos anos” (BOOKCHIN,
1989: 45).
Diante de um emaranhado de problemas caracterizados por uma
incisividade ecológica jamais vista, procuraremos respostas para tais
aflições nos templos do conhecimento. E, ao adotar tal atitude, não há
como se deixar enganar sequer por um instante: apenas a história é
3
36
quem pode instruir sobre o significado das coisas (SANTOS, 1998:
15). Ter-se-ia então pleno direito de perquirir: No que os saberes
institucionalizados poderão contribuir para pensar um novo espaço de
vida? Poderão fornecer programas de cunho decisório? Afinal, o que
existe de efetivo nos tabernáculos do saber geográfico?
É nessa ótica que a geografia se torna um caminho privilegiado,
pois apreciar o extraordinário acumulo de discussão amealhado pela
disciplina no tocante à inserção da temática ambiental junto ao seu
campo de conhecimento certamente revelaria insuficiências. Mas, do
mesmo modo explicitaria muitas potencialidades que magnetizam
estes dois polos entre si.
Ciência que pode orgulhosamente exibir na sua hagiografia
nomes como de Bernard Varenius (1628-1650), que em pleno Século
XVII foi responsável pela elaboração de requintado compêndio no
qual esquadrinhava o cabedal de potencialidades da disciplina frente
ao mundo natural 4, a este saber intuitivamente nosso olhar se dirige
na busca de conforto e de esperança.
Palmilhando esse cenário, não há como deixar de indexar a
geografia como um dos raros campos do conhecimento que nutriram
apaixonada cumplicidade com a questão ambiental, nexo certificado
por várias pesquisas, que patenteiam junto à consciência social, uma
associação que destaca o meio ambiente enquanto prerrogativa do
trabalho dos geógrafos e dos biólogos (Ver ALBERTO, 2002).
Trata-se de Geografia Generalis, obra escrita por este genial geógrafo na juventude de
uma vida muito breve. Impressionando gigantes como Newton e Kant, é considerada
seminal para os primeiros passos do conhecimento geográfico (Ver a respeito, ETGES,
2000).
4
3
37
Sendo claro e direto, este afilamento não encontraria nenhuma
dificuldade para ser chancelado. Ontologicamente, a geografia, tanto
quanto a biologia, de vez que ambas centram-se respectivamente nas
relações entre o homem e o meio natural e no estudo das formas de
vida, personificam por si mesmas mediações axiomáticas com o meio
ambiente.
Com base nesse dado objetivo, a percepção dos elos tanto da
geografia e quanto da biologia com a questão ambiental, legitimada
pelo próprio modus faciendi das duas disciplinas, desponta assim de
modo tão notório no imaginário social, que ambas terminam inclusive
identificadas com este telos de maneira quase que exclusiva (apud
ALBERTO, 2002). No caso da biologia, seria pertinente respaldar tal
consideração lançando mão de uma ponderação de Samuel Murgel
BRANCO, pelo qual:
A relação da questão ambiental com a biologia num
contexto interdisciplinar é inegável. Mais do que isso: é
fundamental, no sentido de que a biologia é, por definição,
a ciência que trata da vida em seu amplo sentido,
enquanto a preocupação com o meio ambiente diz
respeito, objetivamente, à prevenção contra a extinção da
vida em geral e, em particular, da vida humana (2001: 9).
Quanto à geografia, o relacionamento mantido pelos homens em
sociedade com o meio natural, estas mantiveram-se diuturnamente
presentes no foco de análise da disciplina. Classicamente, o afazer
geográfico, expondo a interconexão entre os humanos e a natureza,
sistematicamente descortinou juízos que concatenados a essa raison
d'être, não tinham como ser desvendados pelos demais saberes,
3
38
cujos objetos de análise, distanciavam-se em maior ou menor grau
deste foco (MORAES, 2002: 92/93).
Por exemplo, o geógrafo alemão Friedrich RATZEL discernia a
forte conexão entre as condições naturais e o homem em sociedade,
patente na classificação ratzeliana das vertentes que entendia como
matriciais para o saber geográfico: a geografia física, a biogeografia e
a antropogeografia (passim 1990), estaqueamento que, ao reclamar o
ambiental como pilar cognitivo, ratifica, portanto, junto à elaboração
teórica ratzeliana, a natureza enquanto um mandato epistemológico
pivoteante do conhecimento geográfico (MORAES, 1990: 9 e também
1981: 60).
Paul Vidal de la Blache, historiador e geógrafo, figura de proa da
escola francesa de geografia, sanciona, com premissas diferentes de
Ratzel, a centralidade desta proposição geográfica, calcadas no que o
sábio francês carimbou como possibilismo. Na herdade lablachiana, o
objeto dos estudos geográficos é a relação homem-natureza avaliada
no prisma da paisagem, argumentação teórica na qual o coletivo
humano, entendido como agente de transformação do espaço, está
ajuramentado das credenciais de fator geográfico de primeira ordem.
Na fisionomia do planeta, os humanos se impõem direta ou
indiretamente, por sua atuação modeladora, por suas obras e pelas
consequências dos seus artefatos. A visão lablachiana, a despeito de
classificar a geografia como uma ciência natural, lhe reservava, em
razão do antropismo, vocação substantiva em prol do estudo da interrelação entre o homem e o ambiente natural (Ver BLACHE, 1985: 37).
3
39
Como de resto está delineado no heterogêneo tecido conceitual
da geografia, seria praticamente inconcebível imaginar uma análise
geográfica na qual o espaço deixasse de evocar a atuação humana
no meio natural. Aqui, pode-se resgatar o desabafo do geógrafo
francês Pierre GEORGE, que diagnosticava com certa indignação:
“Que sentido se poderia atribuir a um estudo sintético de paisagem
natural a não ser definir as condições oferecidas à vida e à ação
humana pelas ações recíprocas dos fatores físicos? ” (1972: 15).
Porém, a despeito da geografia convergir para a relação homemnatureza, nada do que foi colocado excluiria insuficiências conceituais
no trato da questão do meio ambiente. O crescimento da consciência
ambiental, tonificado pelas profanações que vitimaram o meio natural,
lancetado por todo o tipo de violências e intrusões, não admite aceitar
como eficaz e satisfatório, meramente enfocar a inter-relação homemnatureza.
Mais do que pautar este pressuposto, o que está intrinsecamente
colocado pela crise ecológica é a criação de um saber ambiental
devotado a decifrar a problemática, conferindo a esta preceptoria, o
papel de provedor de proposições, alternativas e respostas (passim
LEFF, 2004).
Nesta perspectiva, o fato da inter-relação entre as sociedades
humanas e a natureza ser um elemento permanente na elaboração
geográfica, não obrigatoriamente posicionou a questão ambiental
como um tema de proa no seu horizonte de análises. E contrariando a
interpretação apressada de alguns, tal lacuna não resultou de uma
4
40
motivação de ordem exclusivamente cronológica, decorrente de um
“ineditismo” dos problemas ecológicos.
Na realidade, o conjunto de prédicas inseridas pela problemática
ambiental, questionando ideias, valores, condutas e procedimentos
que dinamizaram o mundo contemporâneo, dificilmente lhe granjearia
adesões. Tampouco, qualquer facilidade para ser aceita. A questão do
meio ambiente, tanto para as vertentes conservadoras quanto para as
progressistas, ofereceu dificuldades em diversos sentidos para ser
assimilada (Vide PIVOTTO, 2005; GONÇALVES, 2001; GUIMARÃES,
1991 e CAPRA, 1991).
Certo é que não estou, nessa discussão, respaldando fabulações
da questão ambiental, evocando inflexões de um naturalismo idealista
desvinculado do homem enquanto entidade histórica e social. Acima
de tudo porque o espaço geográfico que divisamos diante dos olhos,
resultou de uma intensa agregação de trabalho humano. Seja dito,
ecossistemas e biomas desembaraçados de alterações provocadas
pelos humanos, simplesmente não existem (Cf. QUAINI, 1979: 49).
Minha certificação suprema é o espaço, noção que encastoada
num plano humanista e vinculada aos processos do coletivo social,
atesta concomitantemente tanto a historicidade da natureza quanto a
naturalidade da história. Portanto, esta análise não se resumiria a
singelamente “levar em consideração” os ciclos naturais e seus
reflexos para a vida humana. Bem mais do que discutir o equilíbrio
ecológico, o que está priorizado nesta discussão é o estoicismo dos
enxertos artificiais forjados pelos humanos.
4
41
Para a geografia, tendo diante de si um quadro ambiental no qual
o fator determinante não é uma abstrata lei natural, mas acima de
tudo um universo calcado pela materialidade social, pensar o nexo
axiomático homem-natureza frente aos descompassos ecológicos
derivados do modo de ser da modernidade, implicaria em optar por
uma abrangência mais precisa, extensa e problematizadora.
Nesta acepção, simplesmente pautar a conjuminação entre as
sociedades e a natureza, além de insuficiente, seria abdicar da
expectativa de encontrar respostas para a questão ambiental. Importa
sobremaneira acentuar o caráter central do como a relação homemnatureza se concretiza, no que esta implica e em qual medida devese alterá-la para assegurar o futuro da sociedade humana. Ultima
ratio, o que a questão ambiental ensina são os limites da natureza em
um determinado contexto social, econômico e histórico. Em resumo,
para cada situação vários usos da natureza são possíveis, mas não
qualquer uso (Cf. GONÇALVES, 1988: 14, grifos nossos).
Deste modo, a conexão da produção do espaço com os
processos sociais, que se desenvolvem sob o signo da contradição
entre os homens, impõe para a análise ambiental um inegável campo
de interações com as determinações sociais. Decididamente, as lutas
sociais do Século XIX, eclodindo em meio à ascensão do capitalismo,
permitiram descortinar a existência de grupos com interesses opostos
no interior da mesma sociedade.
Os conflitos interclassistas, fossem estes vistos como “motores
da história” (Marx e Engels), ou como “problemáticas para a ordem
estabelecida” (Augusto Comte), passaram de um modo ou de outro a
4
42
reclamar as atenções dos cientistas sociais. Nos estudos geográficos,
os velhos adágios que facilitavam o ocultamento ou até mesmo uma
naturalização dos antagonismos presentes no seio das sociedades,
cederam diante das evidências que se acumularam quanto ao caráter
contraditório que perpassa pela construção do espaço, inferência
para cuja detecção o conceito de formação social demonstrou notável
protagonismo (Vide MAMIGONIAN, 1997 e 1996).
Todavia, a contestação ao saber geográfico tradicional enfrentou
resistências incrustadas no coração da disciplina. Recorde-se que a
geografia tradicional, cuja ascensão ocorreu na fase triunfal da classe
burguesa, assumiu um pendor manipulatório que suplantou em muito
suas potencialidades científicas. Periodicamente, o saber geográfico
terminou arregimentado como uma arma ideológica a serviço das
classes dominantes ou então, acoplado à engrenagem da máquina de
mando e da propaganda nacionalista dos governos.
Com este leitmotiv em pauta, dificilmente seria possível estranhar
o empenho da geografia pelo mascaramento das contradições na
análise do espaço, colocando-a a serviço do exercício do poder, da
condução da guerra e da atuação do aparato de Estado, acumulando
enfoques anódinos que desta maneira, ampararam e protegeram a
ordem político-social que a sustentava (GONÇALVES, 2001; QUAINI,
1979: 11/14; SANTOS, 1978a: 78/80 e LACOSTE, 1977).
Estes posicionamentos repercutem diretamente quando o tema
em debate é o ambiental. Pode-se perceber que embora a crise
ecológica tenha se alçado, dada a sua gravidade, a um assunto do
cotidiano, o relacionamento entre meio ambiente e organização social
4
43
continuou obscuro na literatura escolar, nos meios de comunicação e
na fala institucional em geral.
Posto isto, sequencialmente à abordagem dos problemas físicoambientais, de resto inevitável diante da escalada da devastação, o
esforço em não diferenciar os atores imiscuídos à crise ecológica
(ocultando deste modo a compreensão do problema), se evidencia
em si mesma.
É o que permite discernir, na galeria dos responsáveis anônimos
da destruição do ambiente natural, atores e fatores como “o homem”,
“a ganância”, “o egoísmo”, “a atividade industrial” e até mesmo um
“instinto predatório”, este último, objeto de inscrição, por correntes da
etologia e da teologia, como “inerente” à humanidade (WALDMAN et
GARCIA, 1991a e 1991b).
Estas argumentações, dado constituírem peças com propensão
nitidamente ideológica, não visam interpretar a questão ambiental,
nem mais, nem melhor, excluída a priori do plano de entendimento.
Basicamente porque estas interpretações, em vista de encamparem
argumentos mistificadores, actus simulatus nullius est momenti, não
expressam, propriamente uma teoria, mas sim seu oposto.
Como toda obstrução do entendimento do real, a pretensão é
antes a construção de um retrato invertido, através do qual, as coisas
passam a receber um significado que efetivamente não possuem,
confundindo, e não esclarecendo as referências da realidade concreta
que nos cerca (Ver a respeito ALTHUSSER, 1980: 69/104; SANTOS,
1978a: 157 e CUVILLIER, 1975: 19/30).
4
44
Replicada pelo campo educacional, pela comunicação de massa,
por órgãos institucionais e empresariais, esta peça mistificadora da
degradação ambiental lançou raízes na compreensão do cidadão
comum quanto à crise ambiental. Neste consenso fabricado, a crise
ecológica, ao endossar uma conceituação de humanidade anódina e
genérica enquanto marco explicativo geral, fez com que o status quo
ficasse isento de qualquer associação com o problema.
Dado que nessa interpretação estamos diante de uma narrativa
de cunho abrangente, e neste cabimento, “universal”, nada haveria de
impedir que as grandes empresas, responsáveis por considerável
devastação do meio ambiente, encabeçassem campanhas de defesa
da natureza, pelo que, esta diegese mostrou-se proveitosa em blindar
o establishment de críticas, paradoxalmente com base em pretensas
ações de conservação ecológica.
Exatamente por essa razão, seminal consideração do geógrafo
Carlos Walter Porto Gonçalves nos anos 1980, apontava para o
nódulo central dessa questão. De acordo com sua ponderação, seria
preciso:
Ir além daquela formulação tão em voga nos movimentos
ecológicos de que os homens estão destruindo a
natureza. Se um trabalhador opera uma serra elétrica que
derruba milhares de árvores em algumas horas, não se
pode responsabilizá-lo por esse ato sem que enfoquemos
as relações sociais sob as quais vive (GONÇALVES,
1982: 223, grifos nossos).
Entrementes, é claro que a análise da sociedade em si mesma,
mesmo sendo crucial para a discussão do meio ambiente, não esgota
4
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a compreensão da crise ecológica. Dada sua complexidade, nos
problemas ambientais se entrecruzam, ombro a ombro à problemática
da sociedade, aspectos relacionados com conhecimentos técnicos e
científicos, com a gestão estatal, normas estéticas, valores culturais,
sensos políticos e padrões econômicos. Essas derivações, ainda que
dinamizadas por arrazoados diferenciados entre si e mesmo não
sendo dicotômicas, reclamam rigor e diligência para com os múltiplos
aspectos levantados, visto serem indistintamente centrais para esta
discussão.
Claro também é que nas próprias formulações marxistas “sempre
se fala primeiramente da relação do homem trabalhando socialmente
a natureza e somente depois da relação dos homens entre si” (Cf.
WITTFOGEL, 1992: 80). Dito de modo claro e sintético: a oposição
entre o homem e o meio natural detém precedência. Logo, não seria
despropositado reclamar a proeminência desta formulação numa
época em que se assiste, de um modo jamais visto, uma acelerada
desaparição das grandes emanações da naturalidade.
Ao mesmo tempo, nada disso contradiz uma premissa essencial
da história dos humanos que é a potestade do dinamismo societário e
sua capacidade de imprimir mudanças no mundo real. É esta a força
habilitada a mudar o rumo dos acontecimentos, inaugurando o reino
do inédito:
Fluindo na direção da morte, a vida do homem arrastaria,
consigo, inevitavelmente, todas as coisas humanas para a
ruína e a destruição, se não fosse a faculdade humana de
interrompê-las e iniciar algo novo, faculdade inerente à
ação como perene advertência de que os homens,
4
46
embora devam morrer, não nascem para morrer, mas
para começar (Hanna Arendt, citada in DIÓGENES, 1992:
8).
Nesta argumentação, deve-se recordar que o aprendizado que
frutificou do relacionamento objetivo com o mundo real contribuiu no
passado, para gerar dos mais edificantes experimentos encetados na
rica trajetória de resistência dos povos e da insurgência dos grupos
oprimidos.
Hodiernamente, a reconsideração dos regimes de sentido que
seduzem o imaginário das coletividades admite, neste desenho, o
fomento de visões alternativas de mundo, endossando expectativas e
ideias que clamam por ação e emoção.
Preciosos como a naturalidade que se esvai e se despede deste
mundo a passos de gigante, são esses atos que poderão, quem sabe,
alavancar precauções, paliativos e medidas agilizadas somente a
título excepcional pela ordem dominante.
É assim que esta época, tão prenhe de vicissitudes quanto de
novos projetos, pode prenunciar momentos novos, inaugurando um
período de possibilidades sem precedentes, prenunciando um tempo
novo, correspondido por um novo espaço.
Tarefa que continua requerendo a necessária e bem-vinda
participação da geografia, uma dádiva que este texto pretende, nas
limitações e alcances colocados pelo tema adotado, modestamente
contribuir.
4
47
CAPÍTULO 2
CIRCUITOS, TENSÕES E AMPLITUDES
2.1. ESPAÇO, SUSTENTABILIDADE E OS DESAFIOS DA NATUREZA
HOSTIL
Entender a relação entre o homem e a natureza pressupõe a
compreensão de um leque significativo de interconexões, nas quais
se interpenetram estruturas sociais, culturais, políticas e econômicas.
Sobretudo, subentende que a produção do espaço pelo homem
em sociedade implica, moto-contínuo, num relacionamento específico
com o meio natural, marco da identidade social, cultural, histórica e
geográfica dos humanos.
A relação com o meio natural está indelevelmente retratada na
arena territorial esculturada, singularizada e mantida pelas formações
socioespaciais. As sociedades, na sua perpétua predisposição em
modelar o meio natural, se assenhorearam dos circuitos físicos e
biológicos dos ecossistemas, exibindo na paisagem criada, diferentes
“metabolismos” representativos do engajamento estabelecido através
da artificialização da natureza.
Sobejamente, estes atos conscientes, levados a efeito visando a
edificação do artifício seriam, por definição, um predicado solene do
homo faber. Tal peculiaridade constitui seu mais resoluto monopólio,
marco divisório essencial na diferenciação frente aos demais seres
vivos:
4
48
O animal apenas utiliza a natureza, nela produzindo
modificações somente por sua presença; o homem a
submete, colocando-a a serviço de seus fins
determinados, imprimindo-lhe as modificações que julga
necessárias, isto é, domina a natureza. E esta é a
diferença essencial e decisiva entre o homem e os demais
animais (ENGELS, 1979: 223).
A intervenção das sociedades junto aos fluxos e ciclos do meio
natural, na dependência dos desígnios sociais em voga, articula um
contratualismo com as forças da natureza, conotado pela criação de
arranjos espaciais aquinhoados com maior ou menor perdurabilidade,
um desdobramento direto dos seus compromissos ambientais (Vide.
QUAINI, 1979: 141/142). Para utilizar uma expressão muito em voga
nos dias de hoje, no transcorrer da história as sociedades colocaram
a prova graus variáveis de “sustentabilidade ecológica”, articulando
processos espaciais que levaram à continuidade ou desaparecimento
das culturas e das civilizações.
Implicitamente, essa evidência repudia a presumida possibilidade
de sociedades cotejadas por uma “simbiose com a natureza”. Tal
suposição, alicerçada a partir de uma quimérica noção “equilíbrio”,
tem sido consistentemente rejeitada com base nos mais diversos
argumentos científicos. Adverte o físico russo Ilya PRIGOGINE, “um
sistema em equilíbrio não tem, e nem pode ter história: apenas pode
persistir no seu estado, no qual as flutuações são nulas” (1991: 42).
De resto, esta aspiração sequer encontra respaldo em provas
arqueológicas ou de qualquer outro tipo.
Na realidade, o entorno natural foi transformado desde a entrada
em cena dos primeiros humanos, que encetaram, premeditadamente
4
49
ou não, mudanças no ambiente terrestre. Certamente, a fisionomia de
uma chusma de espaços, catalogados como pertencentes ao “reino
natural”, seria irreconhecível na ausência do trabalho sedimentado
por sucessivas comunidades humanas.
Um convincente memorial de pistas e documentos respalda o
juízo pelo qual as paisagens usualmente definidas por cartógrafos,
biólogos e biogeógrafos como “naturais”, correspondem na realidade,
a espaços extensivamente manipulados pelos humanos, nos quais o
papel transformador das populações tradicionais foi, desde sempre,
permanente e categórico (CARVALHO, 2000 e DIEGUES, 1994).
Este diagnóstico dos espaços tradicionais como sendo “naturais”
decorreu das veleidades da idiossincrasia ocidental, que posicionou
como válida apenas a sua modalidade de transformação do meio
natural. Consequentemente, recusou-se a conceder legitimidade para
quaisquer acepções de ocupação do espaço geográfico longamente
inventariadas pelas coletividades externas ao continente europeu.
O pensamento ocidental, operando uma noção de natureza em
estado puro e sugerindo o congelamento de dada situação ecológica,
declinou de analisar as paisagens artificializadas pelos povos nãoocidentais com base nos anseios inerentes ao modo de ser dessas
populações. Coerentemente, legendou como “naturais” as superfícies
constitutivas dos espaços tradicionais, quaisquer que fossem, pelo
que, em todos os continentes (inclusive o europeu), territórios inteiros,
supostamente devotados para um não-uso, foram considerados
“vazios” e, portanto, parte da natureza.
5
50
Uma vez constituindo interpretação carente de sentido, pode-se
asseverar que a naturalidade foi alvo de uma intensa e contínua
artificialização pelo conjunto das sociedades humanas, cada uma das
quais imprimindo sua feição ao espaço. Os humanos, interagindo com
o meio natural, e impulsionados por diferentes expectações históricosociais, sempre tiveram no espaço o suporte privilegiado dos seus
anseios, diferindo caso a caso consoante o livre curso de sua história.
Assim, independentemente da essencialidade de um pivot sinalizando
para o natural para definir o meio ambiente, é na pertença decisiva da
história que a natureza se afirma diante do coletivo humano (Ver entre
outros DIEGUES, 1994 e CARVALHO, 1991).
Acumulando sucessivas decantações de tempos pretéritos, o
espaço geográfico evoca uma metamorfose incessante, uma mutação
reveladora dos contratos assumidos com o dinamismo socioespacial.
Portanto, a espaço habitado refere-se ao espelhamento concreto da
transformação da natureza primeira, estando umbilicalmente atado
aos apelos e demandas das sociedades.
Recorrendo ao axioma do filósofo grego Heráclito de Éfeso, pelo
qual não se atravessa um mesmo rio por duas vezes 5, o espaço,
usufruindo da potencialidade de adquirir novas feições, tem na sua
plasticidade, um celebrado eixo de teorizações e dos estudos em
geografia. A natureza, sendo passível de arranjos e reacomodações,
ajustes e metamorfoses, apropriações e reconvenções, justifica sua
conceituação como entidade socialmente construída, culturalmente
vivenciada, historicamente configurada e espacialmente explicitada.
Note-se que tal juízo não é privativo deste filósofo, pois para o conjunto dos seus
predecessores pré-socráticos, a mudança é vista como sendo incessante e universal (Cf.
COLLINSON, 2004: 22).
5
5
51
Neste porte, uma vez que o modus operandi do espaço habitado
materializa dinamismos apoiados no binômio espaço-tempo e que
corporificam concomitantemente uma ordenação social dos ciclos de
matéria e energia, seria incongruente desconectar as crises espaciais
dos desequilíbrios ambientais que pari passu, contracenam com ela.
Na reflexão do geógrafo Antonio Carlos Robert MORAES, “o
ambiental não se homogeneíza num só alvo de ação, antes se
difunde como faceta inerente a todo ato de produzir espaço” (2002:
30). Neste prisma, natureza e espaço não intercambiam somente um
pleito de cumplicidade. Bem mais do que isso, convivem na condição
de sinônimos (SANTOS, 1978a: 201). Logo, fenômenos como a fome,
abundância, secas, epidemias, bonança, derrocada ou a continuidade
das civilizações, constituem injunções focadas no que coabita em seu
cerne: as relações mantidas entre o homem e o meio natural.
Coincidindo com transtornos espaciais e síncopes ambientais, a
hecatombe das civilizações assombrou a consciência social em todas
as épocas e em todos os continentes. Na maioria das sociedades do
mundo tradicional, a ruptura da unidade (diga-se: da espacialidade),
traduzia-se pela imagem do caos, da desordem, de crises espaciais e
ecológicas que punham a perder os fluxos socialmente apropriados
de matéria e de energia. A contraposição arquetípica entre o cosmo
(território habitado) e o caos (território estranho e/ou desconhecido),
peculiar ao mundo da tradição (Cf. BETTANINI, 1982: 86/88), tinha na
ruptura do espaço um momento marcado pelo triunfo da desordem.
Era o fim do mundo, tão visceralmente pressagiado nas invectivas
dos magos, dos sacerdotes e dos profetas vindicadores.
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52
Distintamente, os impérios baseados na formação social asiática
travavam uma guerra sem quartel contra a “abominação do caos” e
as “forças do abismo”. No antigo oriente, tão somente um criativo
gerenciamento das potencialidades naturais, apoiado numa base
técnica que primava pela rusticidade, poderia conter o esgarçamento
do arranjo espacial.
Daí a administração dos serviços ecossistêmicos numa linha de
perdurabilidade, a reposição da fertilidade dos solos e os equilíbrios
hidrotécnicos pautados pelo monitoramento dos canais de irrigação,
constituírem alvo prioritário do Estado oriental. Bem mais do que um
“compromisso ambiental” ou de uma idílica “preocupação ecológica”,
o zelo das realezas asiáticas pela integridade do espaço tinha por
pressuposto que bons ou maus governos seriam revelados pelas
colheitas, cujo desempenho, quando insatisfatório, era matricial para
a eclosão de “tempestades no céu oriental”, confirmando ou não o
benefício de um mandato celestial outorgado por deuses severos e
irascíveis à monarquia então reinante (MARX, 1976: 22).
Deste modo, em termos mais amplos vigora o auspício de que
uma civilização se esgota quando não mais consegue viabilizar o
“retrato ecológico” com o qual está identificada. Por conseguinte, a
superação de um sistema social remete diretamente ao esgotamento
das possibilidades de reprodução de um tempo social, do epílogo de
um arranjo territorial e pela exaustão de um balanço energético. Uma
vez inviabilizado o manejo dos fluxos de energia por parte do sistema
dominante, isto necessariamente conduz à “extinção ou superação do
modo de produção existente” (GUGLIELMO, 1991: 68).
5
53
Neste quesito, a discrepância identificada entre as sociedades de
outrora e a sociedade moderna é patente. Outrora a construção do
espaço prescrevia uma presença constante da naturalidade. As
grandes marcas ou obras sociais que demarcavam a implantação do
artifício (tais como canais, estradas ou diques), demandavam por
conteúdos de naturalidade, permitindo a vazão dos fluxos do meio
ambiente ou então, sua contenção dentro de limites de certo modo
fluídos, que oscilavam ao sabor dos humores ecológicos.
Deste modo, incorrendo amiúde em manejos de pequena monta
da paisagem original, os sítios urbanos e as estradas acomodavamse nas nervuras da topografia e no gradiente altimétrico da paisagem;
os canais de irrigação, adotavam como espinha dorsal o talhe de um
rio copioso, valendo-se da ação da gravidade na toposequência dos
banhados antrópicos; os diques, valorizavam os desníveis naturais da
topografia e os reservatórios, eram planejados tendo sempre à vista,
a oscilação do débito fluvial e a sazonalidade da pluviometria.
Mesmo os mais ousados objetos espaciais implementados pelas
civilizações do passado constituíam próteses assentadas num tecido
natural, sendo que tais adições não necessariamente conflitavam com
os fluxos da natureza. Fosse atuando nas franjas de um ecossistema
(caça, pesca, coleta), ou ainda, através da socialização dos grandes
ciclos presentes no ambiente natural (caso, por exemplo, do “controle
despótico” da água no modo de produção asiático), os processos de
territorialização detinham-se na charneira das manifestações maiores
das dinâmicas temporais e espaciais do meio natural, espaldados na
espessura úmida da naturalidade, acentuando um “colorido ecológico”
hoje festejado pelos movimentos em defesa da natureza.
5
54
Ressaltemos que de um modo ou de outro, a instauração do
artifício nas sociedades de outrora requisitava algum tipo de colóquio
com o meio natural, engendrando uma naturalidade da metamorfose
indissociável dos arranjos espaciais da antiguidade. Este precatório
fazia com que o epílogo das civilizações “arcaicas” não induzisse
necessariamente a esterilização das volições da wilderness. Pelo
contrário, episódios recorrentes desvelam que a Zusammenbruch der
Zivilisation (isto é: colapso ou hecatombe civilizatória), podia resenhar
um prólogo prescrevendo um momento ambiental inédito, através do
qual a reorganização do espaço apelava para o aproveitamento de
outros patamares ecológicos, assumidos agora enquanto um novo
ambiente de vida para as sociedades (Vide DIAMOND, 2005).
Entrementes, este contexto se altera severamente no mundo
contemporâneo. A expansão da sociedade moderna, tendo por base o
capitalismo e a instauração de paradigmas que acirraram a oposição
entre o homem e o meio natural, materializou um quadro sem paralelo
de desequilíbrios. O triunfo da civilização ocidental, perpassado pela
ideação de que a economia seria o pressuposto para a “libertação do
homem da natureza”, exteriorizou-se numa “vitória” acompanhada de
distúrbios socioambientais simplesmente impensáveis. O resultado
deste êxito, foi a aparição de um quadro perturbador, no qual “as
condições ambientais são ultrajadas, com agravos à saúde física e
mental das populações. Deixamos de entrever a natureza amiga e
criamos a natureza hostil” (SANTOS, 1988: 43).
A eclosão deste cenário, tendo por cadenciamento um extensivo
desfile de distúrbios resultantes do relacionamento institucionalizado
pelo Ocidente para com a natureza, destaca a questão ambiental na
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55
condição de reflexão-chave para qualquer campo do saber, inclusive
para os círculos de conhecimento alheios a uma apreciação técnica
ou científica em seu lato sensu. Este seria o caso da teologia, que
passou a endereçar ao meio ambiente, carga ponderável de debates,
assim como vertentes da gnose jurídica e das relações internacionais,
que até pouco tempo, ignoravam o meio ambiente.
Decididamente, a questão ambiental, tornando-se indissociável
da bagagem conceitual do mundo contemporâneo, trouxe toda sorte
de desafios, em particular pelo caráter premente que caracterizam
seus sintomas, agravos e epifenômenos. É o que deixa transparecer
o duro comentário do filósofo norte-americano Murray BOOKCHIN:
A civilização, tal como hoje a conhecemos, com sua
história e mitologia próprias, é ainda mais muda que a
própria natureza que pretende interpretar, é ainda mais
cega e elementar que as forças que ela pretende
controlar. Esta civilização vive na oposição permanente
com tudo que a rodeia a até consigo própria. As suas
cidades anormais e desventradas, as suas terras mortas,
seu ar envenenado, o seu espírito mercantil e estreito são
o repertório cotidiano da sua imoralidade e da sua
indiferença (1989: 45).
Para a geografia, a proeminência dessa composição incentivou,
acelerou ou colocou em xeque, determinadas tendências endógenas
à disciplina. Ainda que as inter-relações entre natureza e sociedade
sempre estivessem presentes no seu foco de análise (na verdade,
uma vocação cultivada desde os tempos clássicos da disciplina), este
filão não foi, todavia, internamente contemplado com a atenção que o
público não-acadêmico credencia como inerente ao saber geográfico.
5
56
Abrigando tendências díspares quanto à questão ambiental, faria
sentido relatar, por exemplo, que enquanto geógrafos brasileiros da
área física se enveredavam ativamente nas discussões sobre meio
ambiente, a geografia humana manteve-se cautelosamente ausente
deste debate, no qual, condiscípulos da antropologia, sociologia e da
economia, dentre as disciplinas correlatas, se embrenharam de modo
determinado (Cf. MAMIGONIAN, 1982 e 1997: 1/2 e COIMBRA, 2002:
279 e 284).
Porém, a emergência da crise socioambiental batendo à porta do
mundo moderno, alterou a agenda de especulações da disciplina. As
performances da natureza hostil, as dificuldades encontradas para a
viabilização do way of life da sociedade moderna e a necessidade de
reavaliação dos paradigmas correntes de relação o homem e o meio
natural, dentre outras oclusões, ditaram desafios para a geografia.
Inevitável enfatizar, a crise ambiental advoga outra roupagem
para a crise espacial da modernidade, perpassada por curtos-circuitos
que nada mais reproduzem do que as dicotomias implantadas nas
relações entre os humanos e a natureza (passim SANTOS, 1978a e
1988). Enquanto tal, estes espasmos do sistema de engenharia que
estorvam o desempenho do espaço da modernidade, externalizam a
progressiva inoperância e o caráter destrutivo do modelo civilizatório
em vigor, qual seja, sua insustentabilidade.
Neste sentido, uma ponderação amplificada pela crise do meio
ambiente diria respeito ao tempo nos inelutáveis compromissos que
este mantém com o espaço. Na análise da questão ambiental, hoje
vista como empapada por um sedutor geographic flavour, um fator
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crucial é que a sociedade ocidental constituiu a primeira formação
social junto a qual, a dimensão do tempo foi alçada à hegemonia,
desenlace que se confunde com os enunciados que nortearam a
economia de mercado desde seu surgimento.
No capitalismo, o ritmo da fruição do tempo, cujo encorpamento
materializou-se primeiramente em solo europeu, angariou amparo
substantivo na sobreposição desarmoniosa com o tempo dos ciclos
naturais, dos humanos e dos regramentos da temporalidade que
vicejavam nas sociedades tradicionais, indistintamente percebidos
enquanto obstáculos para a implantação dos ritmos e sequências da
temporalidade moderna.
A ordenação do tempo no espaço da modernidade maximaliza
uma contradição com os ecossistemas, cuja mola mestra imanente é
o desencaixe do tempo para com o espaço (passim GIDDENS, 1991).
Assim, este tempo soberano, auferindo autonomia e à testa dos
processos sociais, culturais, políticos e econômicos, imediatamente
subordinou o espaço sob seu tacão, tanto o natural quanto aquele
resultante da sua hegemonia. No que se refere à artificialidade, a
reconstrução permanente do espaço no mundo contemporâneo, uma
das suas marcas mais gritantes, expressa um dinamismo autofágico
do sistema, agilizado por num desequilíbrio ecológico estrutural, uma
circunstância indispensável para que a acepção de tempo autonômico
perpetuasse seu império sobre a humanidade.
Dada a relação de similaridade axial que articula a temporalidade
ocidental moderna com a degradação da natureza e a imposição do
5
58
seu cadenciamento junto a vasta maioria dos humanos, é possível, a
partir desta correlação, firmar o caráter igualmente correlato da torção
do espaço-tempo social com a de dois outros estratos, quais sejam, o
da natureza e dos humanos si mesmos.
Dos bastidores desta torção generalizada, projeta-se a lógica
funcional atinente à desconexão, desacoplamento, descolamento,
desencaixe ou desajuste entre o tempo e o espaço, basilar para a
compreensão do esgarçamento dos equilíbrios sociais, econômicos,
culturais, políticos e naturais que hoje fissuram a modernidade.
Ora, tais considerações trazem à baila um questionamento
seminal, direcionado a respeito da forma de como conviria à geografia
pensar a dimensão tempo. Recordando que na ótica que norteou a
elaboração do conceito de formação espacial a transformação do
tempo em espaço assume importância capital, faria sentido revisitar
tal discernimento metodológico na memorável tecedura traçada pelo
saudoso geógrafo Armando Corrêa da SILVA:
Desse modo, a principal categoria do pensamento
geográfico é o espaço e similarmente, por exemplo, ao
tempo para a história. Contudo, o tempo interessa ao
geógrafo, não tanto como sequência cronológica e
significativa de eventos, mas do ponto de vista de como o
espaço natural e o ocupado pelo homem estão
organizados e estruturados em cada momento. Do ponto
de vista do pesquisador, podem interessar, em particular,
os momentos - da história natural e da história humana por assim dizer, críticos, de organização espontânea ou
racional do espaço (1978: 82, grifos nossos).
5
59
Nesta ordem de preocupações, caberia à geografia responder a
três interrogações básicas. A primeira delas refere-se à origem da
crise espacial da modernidade. Uma segunda, diria respeito ao seu
dimensionamento nas diversas escalas nas quais se explicita. Por
último, teríamos uma indagação eivada por um senso propositivo,
nem que unicamente para delinear as limitações colocadas pelo
modelo civilizacional que comanda a humanidade.
Na órbita destas três especulações, o conceito de formação
socioespacial, ao lidar com as dimensões do tempo e do espaço,
desponta enquanto uma versátil ferramenta de análise, mais ainda
quando estamos às voltas com uma contribuição eminentemente
geográfica para este debate (MAMIGONIAN, 1997 e 1996).
O momento atual sugere a elaboração de um novo modo de
relação com o meio natural, que repense o tempo, o espaço e a
natureza na perspectiva de uma humanidade socialmente organizada
e solidariamente comprometida. Sugere enfim um novo espaço de
vida, cuja edificação transmuta-se mais e mais como uma prioridade
inquestionável para o coletivo humano, quer disto tenha ciência ou
não.
Portanto, a formulação de um cenário alternativo deve caminhar
numa direção oposta à temporalidade contemporânea, contrapondo
ao artificial, o reforço da conservação da natureza, balanço no qual a
historicidade da natureza, concerne ao ritmado da naturalidade da
história.
6
60
A cientista política Lorraine ELLIOTT advertiu no final dos anos
1990, que o Século XXI poderia consumar uma espécie de ponto de
não retorno ambiental. Portanto, devemos neste momento encetar
opções corretas (1998: 253).
E, que a análise ora em curso possa contribuir para alargar a
consciência da gravidade do momento que se vive, com a finalidade
única de superá-lo e promover uma nova perspectiva de futuro.
2.2. O CURSO DAS ÁGUAS E O DOMÍNIO DA CIDADE
Uma observação da qual não poderia furtar-me é o fato da tese
que estou expondo operar com dois marcos cuja inserção no mundo
atual, impõem demarcações e averbações de cunho radical. Um
destes, corresponde à cidade, espaço primevo no qual nidificou e se
agigantou a moderna civilização ocidental. O outro seria a água, o
mais indispensável de todos os recursos encontrados na natureza.
Trabalhando com essas duas polaridades, dificilmente se poderia
escapar da certificação de um itinerário crivado de questionamentos e
controvérsias. Isto porque os dois temários - a água e a cidade - têm
por pano de fundo, expressivos desequilíbrios socioambientais, que
prognosticados em muitas projeções futuristas, se consubstanciam
como dos mais corrosivos de toda a história humana, açulados que
estão por um ordenamento social do tempo despido de qualquer outra
meta que não a afirmação da sua materialidade disfuncional.
6
61
O acirramento das contradições entre a vida urbana e a utilização
dos recursos hídricos, hoje dispostos numa rota de franca colisão,
constitui a saliência mais dilacerante da cornucópia de desprazeres,
embaraços e inquietações gestados pelas obstruções ambientais da
modernidade. Reconhecidamente não há nenhuma questão que diga
respeito a parcela tão expressiva da humanidade e que em paralelo,
esteja concatenada a uma substância tão imprescindível para a vida.
Todavia, é necessário recordar que as palavras água e cidade,
em razão da densa conotação simbólica que perpassa por ambas,
sugerem uma carga afetiva que de certo modo, as descolam da
gravidade com que foram revestidas pelo mundo moderno. Raros são
os termos que suscitam imagens de plenitude, resgatam emoções ou
ensejam motivações existenciais tão envolventes. Isto significa que
no âmago sensível dos humanos habitam outras aspirações, cujas
declinações procuraremos apurar neste trabalho.
Reservando um primeiro momento para discorrer sobre a água,
assinale-se que ao líquido foram imputados os mais cativantes dos
simbolismos. Nas coletividades tradicionais, é visível a constância
que cerca a água no imaginário religioso, nos rituais e concepções
que regravam sua injunção no pensamento cultural das sociedades.
O filósofo, mitólogo e antropólogo romeno Mircea Eliade, baseado em
consistentes estudos comparativos das culturas do passado, propôs
atribuir ao líquido, em razão de um entendimento comum a todos os
povos, uma simbologia universal. Esta seria a tradição das águas
primordiais, constatada em numerosas linhagens das cosmogonias
arcaicas e primitivas (Vide ELIADE, 2000: 5).
6
62
Nesta derivação, a água, ao afirmar-se como origem do mundo
habitado e enquanto argumento fundante das manifestações da vida,
jamais é considerada uma substância inerte. Pelo contrário, as águas
são sempre germinativas, encerrando em sua unidade primordial não
fragmentada, a nobreza de todas as formas existentes. Simbolizando
a totalidade das virtudes, a água constitui um elemento primordial, da
qual nascem todas as matrizes e arquétipos, e para a qual, estes
retornam, por regressão ou cataclismo.
Tal percepção cósmica do líquido animou as noções de antanho
sobre a geografia terrestre, marcando presença nas representações
cartográficas, cosmográficas e em farta elaboração cosmológica e
modelos imagéticos (Vide ELIADE, 2000: 3/5 e SILVA, 1998: 19/25).
Ad exhibendum, nas representações do mundo elaboradas pelos
mesopotâmicos (Suméria, Caldeia, Babilônia), as terras emersas são
circundadas por águas salgadas, e na Grécia, assim ocorre na imago
mundi retratada pela Ilíada e a Odisseia de Homero. Nesta, as terras
conhecidas pelos helenos, abarcando a bacia do Mediterrâneo, eram
cingidas pelo Oceanus (na mitologia grega, origem de todas as águas
da Terra), massa oceânica única aconchegando o mundo conhecido.
Tal concepção reaparece em proposições do geógrafo grego
Hecateu (circa 157 a.C.), para o qual, a Terra seria um disco flutuante
cercado por um oceano sem fim. Por sua vez reencontra-se essa
visão no pensamento hebraico. Em Bereshit, o livro massorético da
criação (também conhecido como Gênesis), a instauração da criação
ocorre através da diferenciação das águas eternas que preenchem o
6
63
universo 6, incluindo os céus, que para os antigos hebreus (assim
como para outros povos do antigo Oriente), não era composto de ar,
mas sim, por água 7.
Quanto aos rios, escoando o fluxo de uma substância eivada de
significados cósmicos, igualmente foram adereçados com atribuições
simbólicas. Exemplificando, o curso do rio Meandro, situado na antiga
Ásia Menor helênica (hoje rio Büyük Menderes, Turquia), miticamente
identificado como filho de Oceanus e de Thetys (uma das cinquenta
nereiades, charmosas ninfas do mar, filhas do deus marinho Nereus),
era uma dádiva sagrada para os gregos jônicos.
As crenças de Mileto, cidade localizada próxima da foz deste rio,
referendavam que usufruir ritualmente das águas deste rio, poderia
garantir a vida eterna. Além do honrado líquido que escoava em seu
leito, as sinuosidades deste rio (origem da terminologia meandros, de
largo uso entre geólogos e geomorfólogos), foram sacralizadas. Suas
curvas graciosas, vadeando de um lado para outro, talhando vales e
dando forma final à Baía de Mileto, eram consideradas símbolos da
benevolência fluvial, sendo analogamente veneradas pelos frígios da
Anatólia (SILVA, 1998: 22).
Esse apanhado de liturgias louvando a essencialidade de um
cosmos aquático, reflete a importância das águas para os processos
vitais de continuidade da vida, uma consideração, aliás, amplamente
6
No primeiro versículo da gesta de origem, o Yom Echad (יום אחד: dia primeiro ou mais
corretamente, dia um), podemos conferir baseados na tradução hebraicizante do poeta
Haroldo de CAMPOS: 1. Nocomeçar Deus criando: o fogoágua e a terra; 2. Eaterra era
lodo torvo, Eatreva sobre orostodoabismo, Eosopro-Deus revoa sobre orostodágua
(1984).
7 Significativamente a palavra hebraica para o céu, Shamaim ( )שמיםé uma contração de
Shem e Maim, isto é, Deus e Água (Cf. BEREZIN, 1995: 640)
6
64
respaldada em fundamentos objetivos. A água perfaz nove décimos
do volume total do corpo humano e cerca de dois terços de seu peso
médio. Um ser humano pode deixar de comer por algumas semanas.
Entretanto, não consegue passar mais do que dez dias sem beber
(Vide RUTKOWSKI, 1999b: 5).
A perpetuação da espécie humana na Terra, indissoluvelmente
vinculada à presença da água, justifica o papel central que esta
desempenha nas manifestações culturais e religiosas da maioria das
sociedades. Quanto à cidade, seria obrigatório sublinhar a coleção de
conotações fervorosas despertadas pelo conceito no ideário cultural
dos povos e culturas. Prova disso é a profusão de alegorias urbanas
impregnadas de sentidos utópicos, metafísicos ou inscritos na ordem
do maravilhoso.
No exame de Yi Fu TUAN, a cidade transcende as incertezas da
vida; ela reflete a precisão, a ordem e a predição dos céus (Cf. 1980:
174). De um modo geral, a cidade transparece como sinônimo da
aglutinação consagradora, antípoda da solidão que arrebata a alma
humana. Logo, tal como subscritou Pierre DEFFONTAINES, a busca
de companhia e de contato social constitui reconhecido fator para o
surgimento dos aglomerados urbanos (Vide 2004: 131/133).
Porém, a cidade não é simplesmente um sítio no qual as pessoas
se concentram na busca de convívio com outros humanos. Na história
da humanidade, a cidade foi o espaço que esplendidamente propiciou
o despertar dos instintos criativos e a circulação do conhecimento.
Reconhecidamente, foi no meio urbano, como fruto do intercâmbio e
da medrança das ideias, que a civilização encontrou o seu berço.
6
65
Coerentemente, em muitas das línguas semíticas difundidas na
orla do Fértil Crescente (área em que se acredita ter o urbanismo
encontrado sua primeira arena geográfica, histórica e cultural), a
palavra cidade compartilha raízes etimológicas com a noção de elevar
e de despertar, tomar consciência do mundo concreto 8.
Deste modo, longe de constituir coincidência, a antropologia
elegeu a vida urbana como um dos traços mais típicos a singularizar
o surgimento de um padrão civilizatório. Aliás, etimologicamente a
própria palavra civilização decorre do latim civitas, isto é, cidade.
Naturalmente não teria cabimento fazer uso destas pontuações
para consagrar a cidade enquanto espaço isento de desacordos, a
principiar pelos sociais. Uma coisa seria constatar a existência de
imagens culturais e/ou metafóricas sobre a cidade, que reflexionam
consensos relacionados às suas atribuições e significados simbólicos
gerais. Outra coisa, seria esquecer sua sintaxe histórica. Não haveria
como negar, as cidades, mesmo nos seus estágios históricos mais
recuados, foram conflagradas por todo tipo de antagonismos e lutas
entre castas, estamentos e classes sociais.
Nesta linha de raciocínio, é interessante assinalar a centralidade
da noção de conflito para pensar o surgimento da cidade no tempo e
no espaço. Na ótica do processo de diferenciação social, a filiação da
cidade com as mudanças ocorridas na economia agrícola comunal,
natural ou autossuficiente, é patente.
8
Trata-se de raiz semítica que é origem da palavra hebraica ir ()עיר:
ִ cidade, vila ou aldeia
(Cf. BEREZIN, 1995: 500).
6
66
Foi apenas com a produção de um excedente alimentar que a
cidade passou a dispor de condições materiais para alicerçar sua
existência. Secundada pela criação de instituições que asseguraram
a transferência do mais-produto do trabalho agrícola para os grupos
dominantes, ficou aberto então o caminho para o surgimento da vida
urbana (Vide MAMIGONIAN, 1982: 204/205 e SINGER, 2002: 7/12).
Neste sentido, a origem da cidade se confunde com a eclosão da
sociedade de classes, inter-relação tão enfática que não é permitido
marginalizá-la, qualquer que seja o ângulo de análise. A expressão
região, conforme argutamente assinalou o geógrafo francês Etienne
Juillard, procede da raiz latina régis, diga-se, a área de dominação de
uma realeza. Por extensão, um território gerenciado por um centro
urbano, que coleta impostos e tributos (MAMIGONIAN, 1982: 205).
As concentrações urbanas, onde quer que tenham sido fundadas,
irrompem sob a égide das crispações socioeconômicas. Como tal,
quase sempre substantivando segmentações dessimétricas com viés
biestratificado, o meio urbano é deste modo referenciado numa antiga
e pujante sucessão de materiais. Exemplificando, nos escritos do
filósofo PLATÃO, a cidade não era uma, mas ao menos duas, ambas
ferrenhas inimigas uma da outra: a dos pobres e a dos ricos (422e,
1990: 166/167, grifos nossos), logicidade ancestral que não admitiria
visualizar a cidade enquanto uma entidade monolítica e tampouco,
fraterna (Vide SANTOS, 2003: 172).
Nesta correlação de forças, a cidade é por definição um espaço
gerenciado pelas classes dominantes de uma formação social. A
identificação da governança política com o meio urbano é nítida nos
6
67
anais militares dos impérios de toda a antiguidade. Toda vez que um
conquistador se jacta das suas conquistas, as crônicas relatam um
cipoal de saques das cidades conquistadas e a humilhação das elites
derrotadas. Conquistar um país é queimar as cidades adversárias,
ocupá-las e guarnecê-las com uma milícia leal ao novo governante.
A cidade é sumamente a sede do poder. Tal nuança, justificaria
longa série de étimos associados ao fenômeno urbano e seu universo
de valores. Ora, burguês deriva do germânico burg, isto é, cidade; os
adjetivos polido, o verbo polir, assim como as palavras política e
polícia, derivam do grego polis, identicamente significando cidade
(BRETON, 1990: 13).
Assim, como se pode perceber, seria absurdo identificar no
nascedouro das cidades as sementes da harmonia ou do equilíbrio.
Todavia, esta inconformidade se acentuaria ainda mais para o caso
das aglomerações modernas, que na modernidade, estão dilaceradas
por clivagens sociais, culturais, políticas e econômicas do mais alto
grau, contradições que repercutem sem desvios no espaço articulado.
A cidade, que tão esperançosamente surgiu como anteparo para
o florescimento das manifestações da arte, da ciência, do espírito e
do refinamento, transfigurou-se sobremaneira, no espaço no qual
viceja seu antônimo, seja sublinhado, a incivilidade (Vide SENNETT,
1993). Suprema manifestação da artificialidade da metamorfose, o
meio urbano parece agora determinado a desmantelar as próprias
pré-condições responsáveis pela sua manutenção, faina infatigável
pela qual “a humanidade move-se, lenta e segura, para um fenômeno
6
68
de vampirização do espaço. A grande cidade é o centro que engole e
drena os inumeráveis fluxos de circulação” (BETTANINI, 1982: 34).
Nesta sequência, dificilmente encontrar-se-ia uma exposição tão
flagrante da friabilidade da sociedade ocidental moderna quanto as
que se divisam nas interfaces que articulam o funcionamento do meio
urbano com a utilização dos recursos hídricos.
Na modernidade o papel da água, em si mesmo de importância
capital para os humanos, longe de perder importância, foi exacerbado
ainda mais. Mormente porque a água, exteriorizando-se como quesito
básico para todas as atividades, é uma substância verdadeiramente
imprescindível, nuança particularmente notada no meio urbano e no
aparato que o sustenta:
A cultura urbano-industrial, entendendo aquelas [as
águas] como recurso inesgotável, gera demandas hídricas
de crescimento exponencial, obrigando a uma procura
contínua por fontes hídricas, além de promover a
urbanização dos corpos d’água criando novos desenhos
hidrográficos interdependentes, que se sobrepõem na
mesma paisagem. Qualquer função urbana - residencial,
comercial ou industrial - depende prioritariamente da
existência da água para atender às suas necessidades,
tanto pela utilização direta, como dessedentação, quanto
indireta, como a produção de energia hidráulica (Cf.
RUTKOWSKI, 1999b: 16).
O tempestuoso estrelato da sociedade ocidental provocou um
desequilíbrio estrutural na utilização dos recursos naturais, dentre
estes, os que se referem às águas. Embora o debate relacionado com
os recursos hídricos esteja atualmente estampado em todos os
jornais, praticamente ninguém na escala de poucas décadas atrás
6
69
anteviu a enormidade das provações que se avizinhavam ao mundo.
A modernidade, vivenciando situação caracterizada por demandas
hídricas em descompasso flagrante com a possibilidade destas serem
atendidas, presencia a ameaça da generalização da sede.
Tal situação, característica desta época, habilitou a popularização
de um termo originalmente esboçado enquanto jargão específico de
um cabedal técnico: estresse hídrico, conceito pioneiramente lançado
no ano de 1989 pela hidróloga sueca Malin Falkenmark, um trabalho
modelado pelo esforço de integrar de contribuições angariadas das
ciências naturais e do campo das humanidades.
Singularmente, a conceituação de estresse hídrico é bastante
apropriada para explicitar a equação pela qual os recursos hídricos,
em face do comprometimento da capacidade de reciclagem e de
diluição dos poluentes pelo meio natural, foram colocados a uma
distância cada vez maior da satisfação das necessidades humanas.
Dado emblemático, a terminologia é proveniente de stress, palavra
inglesa que significa pressão, esforço ou tensão, sendo neste exato
sentido assumida no âmbito das geociências e das disciplinas afins
(OLIVEIRA, 1995).
Neste sentido, um acertado deferimento atenderia pela distinção
traçada pelos especialistas entre os termos água e recurso hídrico. O
primeiro refere-se ao elemento natural em si mesmo, desvinculado de
todo e qualquer uso ou utilização. Por sua vez, recurso hídrico seria a
consideração da água enquanto um bem utilizado pelas sociedades
humanas, passível de tal finalidade. A noção de recurso hídrico não
abarca a totalidade das águas presentes na Terra, pois estas não
7
70
necessariamente apresentam algum tipo de viabilidade econômica ou
temperança social (Cf. REBOUÇAS, 2002a: 1).
Neste contexto, seria inevitável recordar que o Brasil concentra o
maior quinhão hídrico planetário, calculado em 12% de toda água
doce de superfície (REBOUÇAS, 2002a: 29). O fato reunir gigantesco
volume de águas atribui ao Brasil, paralelamente ao importante papel
na discussão global sobre o futuro dos recursos hídricos mundiais (Cf.
MARTINS, 2003), a necessidade de um posicionamento muito sério
quanto à existência de regiões com carência de acesso à água doce.
Esta perspectiva por si só denuncia a proeminência do enfoque
socioeconômico, exaltando a associação da utilização dos serviços
ecossistêmicos com as contradições que contrapõem os humanos
entre si.
Deste modo, sendo a geografia humana o vértice da discussão
em pauta, mais do que propriamente uma análise sobre a água, este
material versa sobre a problemática dos recursos hídricos. Em suma,
mesmo que neste texto os aspectos gerais relativos à água sejam
obviamente fundamentais, o que se está discutindo é basicamente a
repercussão desta condicionalidade para as comunidades humanas.
Tratando-se de um debate que emerge tendo por pano de fundo
a deterioração dos corpos aquáticos por conta da intempestividade de
um modelo civilizatório, será então no terreno das inferências sociais
pertinentes a este padrão que esta problemática encontrará - ou não equacionamento apto a referendar a continuidade dos humanos no
espaço terrestre, seja esta qual for.
7
71
Em conclusão, com base no que foi exposto, poderia relacionar
aspectos diretamente envolvidos com as motivações que nortearam a
confecção da tese que segue, operando como linhas de procedimento
analítico e de pesquisa.
Neste caminho, repudio com veemência a empáfia narcísica que
seduz, muitas vezes, a confecção de trabalhos e de investigações
acadêmicas, que parecem mais preocupados em realçar modismos
teóricos e recortes temáticos repetitivos, do que esboçar o que seria
finalidade última da ciência: registrar de modo claro a essência do
que está em discussão.
Seduzindo muitos intelectuais, esta propensão é criticada pelo
geógrafo Armen MAMIGONIAN, para quem, a devoção em construir
elaborações pretensamente calcadas no “ineditismo”, no mais das
vezes somente recaindo numa discutível “especialização”, tem por
resultado contumaz - crítica esta endossada em vários pontos desta
tese -, eternalizar a invisibilidade dos problemas socioambientais (Cf.
1996: 205).
Neste afã, dado que as matrizes, próceres e cenários foram
anunciados, a pretensão implícita, portanto, não poderia ser outra que
não a de agregar com esta investigação, um possível donativo para o
conhecimento geográfico. Restaria então, evidenciar o que estou me
propondo a desenvolver.
Dessarte, seriam pontuações compulsoriamente indexadas às
preocupações desta tese:
7
72
1. Avaliação detalhada da questão dos recursos hídricos: A água
constitui suprimento prioritário na pauta dos recursos ambientais
básicos do mundo moderno, particularmente para a grande cidade.
Diversas análises apontam para uma grave situação de estresse
hídrico para esta década, acentuando-se em futuro próximo, contexto
que tem alavancado a comercialização da água em inúmeras escalas,
envolvendo diversificado e complexo conjunto de entretons.
Em tal forçante antropogênica, o saber geofísico, da distribuição
natural, das estratégias e logísticas de abdução das águas doces,
propiciando nitidez aos contornos da problemática, despontam como
uma linha obrigatória de investigação. No plexo solar desta diretriz, o
papel desempenhado pelo modelo de desenvolvimento existente,
assim como das expectativas civilizatórias frente ao meio natural,
junto aos quais os ordenamentos sociais do espaço e do tempo são
fundamentais, acompanharão o rumo geral da discussão.
2. Avaliação dos aspectos geopolíticos pertinentes à questão dos
recursos hídricos, em vista de que o recrudescimento da escassez da
água por conta do aumento da demanda, da degradação ambiental e
do uso perdulário do recurso, somado a um desenho urbano global
que opõe as metrópoles do Norte, consumidoras por excelência de
recursos hídricos, às metrópoles do Sul, também às voltas com o
problema de abastecimento de água potável, articulam objetivamente
a questão dos recursos hídricos com a estrutura de poder em seus
inevitáveis rebatimentos nos planos internacional, nacional e local.
Portanto, as contradições inscritas neste background, objetivamente
matriciais em si mesmas, ocuparão espaço generoso nessa análise.
7
73
3. Avaliação do estresse hídrico nas regiões metropolitanas: A
compreensão da questão dos recursos hídricos nas diferentes
interfaces incorporadas por essa discussão, referenda-se pelo vínculo
mantido especialmente com a questão urbana, incluindo, por
exemplo, a interconexão das temáticas dos recursos hídricos com a
dos resíduos sólidos e da matriz energética.
O fato do Brasil potencialmente despontar como um pretendido
provedor mundial de água doce, ao mesmo tempo em que reúne
diversas regiões metropolitanas nas quais o abastecimento de água
potável tem se mostrado notoriamente problemático, é decisivamente
uma das contradições a serem discutidas neste texto. Tal é o contexto
vivenciado pela Região Metropolitana de São Paulo, assim como pelo
Grande ABC e a cidade de Ribeirão Pires, referências geográficas de
peso nesta análise.
4. Analisar as políticas de abastecimento hídrico e seus vínculos
com a questão energética: A despeito de pressupor uma utilização
não-consuntiva dos recursos hídricos, isto de modo algum significa
que o aproveitamento hidrelétrico no Brasil tenha se compatibilizado
com as necessidades do abastecimento público de água potável.
Esta ausência de articulação de políticas de gerenciamento dos
recursos hídricos tem suscitado o aviltamento dos reservatórios,
prejudicando o abastecimento a partir dos mananciais próximos das
cidades e induzindo a contribuição de outras áreas mais distantes. É
assim que, por exemplo, o Sistema Cantareira, hoje responsável pelo
abastecimento de boa parte da capital paulista, foi implantado para
suprir a demanda comprometida pela contaminação do reservatório
7
74
Billings, que passou a recrudescer em razão de uma estratégia de
favorecimento dos interesses constituídos em função da geração de
energia, consorciado aos esquemas de ocupação dos mananciais.
5. Compreender as potencialidades e os limites da atuação
institucional frente a questão ambiental: Não haveria como dispensar
do corpo desta análise a tematização relacionada com o plano da
institucionalidade, até porque, como tal, esta se vincula objetivamente
com a articulação e organização do espaço e, por conseguinte, com o
gerenciamento dos recursos hídricos.
Fato por vezes pouco notado, a atuação do Estado diante da
questão ambiental materializa uma situação paradoxal: parte de sua
engrenagem refere-se a canais institucionais de defesa ambiental,
enquanto que outra parte, atua como um agente direto de devastação
do meio ambiente (MORAES, 2002: 57).
Além disso, mesmo quando se corporificam medidas em favor da
conservação da natureza (principalmente na forma de políticas de
planejamento e de ordenamento territorial), a limitação que estas
demonstram diante do dinamismo espacial hegemônico é manifesta.
Logo, o contexto sugere a necessidade de alertar para a fragilidade
das concepções que intuem as ordenações legais como dotadas da
mágica capacidade de regrar a apropriação do espaço urbano e de
alterarem o cerne determinativo da ação tradicional do Estado.
Nesta linha de especulações, a pressuposição é que o escopo
jurídico estará reiteradamente fadado ao insucesso na eventualidade
de insistir em ocultar, negar ou secundarizar uma leitura transparente
7
75
das cissiparidades sociais, em especial as que referendam a exclusão
de grandes massas da população carente.
Coerentemente, mais do que enfatizar a análise de decretos e de
arquiteturas jurídicas, os processos reais de espacialização, passíveis
de explicitar os limites das práticas e dos discursos políticos, é que
serão adotados como indicadores para assegurar a compreensão do
dinamismo concreto da formação socioespacial, tanto do que nele há
de nevrálgico, quanto em termos de propugnar mudanças.
6. Reforçar o nexo que envolve justiça social e a defesa do meio
ambiente. Em complementação ao item anterior, explicitar a limitação
e a entropia de medidas e propostas, institucionais ou não, com foco
na preservação ambiental, que se desdobra, na argumentação-chave
que norteia esta investigação, em reiterar o referencial ecológico,
sopesando numa perspectiva crítica, as estanqueidades interpostas à
efetiva defesa das águas doces.
Entende-se, pois que apenas neste prisma é que o exercício das
legislações ambientais e do planejamento urbano poderá, até prova
em contrário, se capacitar como instrumento efetivo para garantir o
acesso à água doce, nexo que acena para o convite em posicionar o
temário ambiental em agendas que ponderem sobre outros modos de
relação com o meio natural e de organização da política, da economia
e da sociedade, pensados e indicados como uma prática real, justa e
ecologicamente responsável.
7
76
PARTE II
MEIO URBANO, QUESTÃO AMBIENTAL
E MODERNIDADE
7
77
CAPÍTULO 3
TEMPO, MODERNIDADE E NATUREZA
3.1. REPENSANDO A ECOLOGIA A PARTIR DO OIKOS
Certamente, em função dos marcos que estão esboçados para
este trabalho, a primeira preocupação seria alinhavar diretrizes
centrais relacionadas com a conceituação de ecologia. A partir deste
ponto, tendo por parâmetro nodal a modernidade, a discussão será
retomada mais adiante na direção das concatenações que conjugam
questão ambiental e tempo social, assim como nas implicações que
este debate oferece para o conceito de meio urbano e tecnoesfera.
Evidentemente, um objetivo implícito seria delinear a contribuição
do enfoque geográfico nos termos de um melhor entendimento da
problemática ambiental. Esta preocupação poderia ser respaldada,
dentre muitos outros pronunciamentos, pelo proferido pela geógrafa
portuguesa Alzira Filipe ALBERTO. Na sua opinião, a geografia é uma
disciplina que subentende um projeto ambientalista, uma vez que, ao
longo da sua história, “sempre se tem preocupado com as relações
homem/meio” (2002).
Neste particular, assinale-se que a contemporaneidade do debate
relacionado ao meio ambiente imprime a esta discussão um cunho
bastante instigante. Basta recordar que unicamente a partir das três
últimas décadas do Século XX é que a defesa do meio natural,
7
78
envolvendo variegados segmentos sociais e de opinião, passou a
inspirar pronunciamentos numa confluência planetária. Tal pregação,
tomando partido em favor de uma relação equilibrada com a ecologia,
corporificou-se em reivindicações advogando solução para problemas
impensáveis mesmo em épocas historicamente recentes.
Embora a questão ambiental estivesse potencialmente colocada
desde a aurora do homem na Terra, apenas no Século XX é que esta
eclodiu em toda sua magnitude. Ressalva inerente a uma avaliação
com o perfil da que está sendo desenvolvida, inexiste história humana
descolada de uma intervenção transformadora da natureza.
Cada uma das formações socioespaciais articuladas ao longo da
história constituiu expressão de uma forma específica de apropriação
da natureza. Tal apropriação, numa assertiva que há muito se tornou
senso comum para o conjunto das ciências sociais, “é uma condição
necessária do intercâmbio material entre o homem e a natureza; é a
condição natural eterna da vida humana” (MARX, 1975b: 208).
Decididamente, já em longínquo passado detectam-se registros
evidenciando conexão entre meio ambiente e dinamismos sociais.
Além disso, na medida em que avançam as pesquisas arqueológicas,
recua cada vez mais no tempo a constatação da presença do homem
na Terra, e paralelamente, as provas de sua intervenção na natureza.
Sumamente, os humanos provocaram alterações profundas na
natureza original, acompanhadas da extinção de incontáveis espécies
animais e vegetais. As pesquisas dos antropólogos, meteorologistas,
biogeógrafos e historiadores, coletaram provas confirmando que as
7
79
sociedades do passado, impugnando a difusa fabulação de um antigo
“paraíso perdido”, engendraram severas crises ambientais.
Os desequilíbrios ecológicos que tiveram por palco a antiguidade,
resultaram dos mecanismos sociais, espaciais, culturais e temporais
que animavam as sociedades que nos antecederam. O declínio das
civilizações antigas raramente decorreu exclusivamente da irrupção
de desastres ou cataclismos naturais. Na pena do geógrafo e biólogo
norte-americano Jared DIAMOND,
Os povos do passado não eram maus administradores
ignorantes que merecessem ser exterminados ou
espoliados, nem ambientalistas conscientes que
resolviam problemas que não podemos resolver hoje em
dia [...] Tendiam ao sucesso ou ao fracasso, dependendo
de circunstâncias similares àquelas que atualmente nos
fazem tender ao sucesso ou ao fracasso (2005: 25).
Seguramente, débâcles ambientais contribuem para explicar o
porquê de civilizações como as da Núbia, do Ghana e do Zimbábue
na África, do antigo império Maia na Mesoamérica, dos Anasazi no
Oeste norte-americano e de Páscoa na Polinésia, dentre exemplos
mais paradigmáticos, ingressaram numa espiral de decadência para
finalmente sucumbirem de modo inarredável.
O vínculo existente entre a derrocada das civilizações da aurora
da história e o acirramento do relacionamento com o meio natural,
pode ser rastreado através de uma profusa coletânea de mitos e
relatos, nos quais os desequilíbrios ecológicos transparecem de modo
inequívoco. Via de regra, estes constituíam um resultado direto da
sobrecarga de tributos e do uso indevido do capital natural, gerando
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as mais assombrosas prefigurações junto à consciência social (Figura
1).
FIGURA 1 - A Visão do Caos no Imaginário Assírio: O mundo da antiguidade foi
assoberbado por contradições próprias, que no plano do imaginário, engendravam
as mais tenebrosas visões de desordem, todas com íntimas vinculações com a
desarticulação da ordem ambiental existente. A desorganização associava-se
quase sempre à noção de um fim de mundo, e não meramente com uma
desarticulação conjuntural. Uma exemplificação de ordem imagética é a
cataclísmica visão acima reproduzida, originaria da antiga assíria. Ela traduz por si
mesma os aterradores sentimentos envolvidos com a noção de desordem no
mundo antigo. As forças do abismo engolem num remoinho - que é uma espiral ao
contrário - todas as formas de vida, tragadas irremediavelmente para o nada
(Fonte: Charles James Ball, Light from the East, London: Eyre as Spottis, 1899, The
Jewish Encyclopedia, página 144, Verbete Abyss; Vide também: <
http://www.jewishencyclopedia.com/ >. Acesso em: 13-01-2005)
No caso romano, a crise do império incluiu um recorte ambiental
sub-repticiamente registrado pelas fontes da época. Roma, a odiada
capital de um império que se arrogava a assumir o controle total da
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81
bacia do Mediterrâneo (o mare nostrum), era o destino final de fluxos
de imensas riquezas, que transformavam esta cidade num verdadeiro
“ralo do mundo”. Eis como Aelius Aristides, documentalista grego do
Século I d.C., expressou esta gigantesca movimentação de recursos,
fruto do saque sistemático das províncias:
De todas as partes da terra e dos mares afluem para
vosso país produtos de todas as estações e de todos os
países, os dos rios e dos lagos, e tudo que pode conceber
a indústria dos gregos e dos bárbaros [ ... ] Há tantos
navios de carga aportando no cais do Tibre que Roma de
certa forma é o mercado universal do mundo. Os frutos da
Índia e da Arábia.., os tecidos da Babilônia, as joias da
Barbárie mais longínqua chegam a Roma em grande
quantidade e com muita facilidade (citado in CLÉVENOT:
1979).
Certamente muitas são as limitações das visões romanceadas
sobre as sociedades do passado quanto à utilização dos recursos
naturais, e neste recorte, o caso da ilha da Páscoa é um excelente
exemplo do que estamos afirmando. Páscoa constitui o rasgo de terra
habitada mais isolado do planeta, uma pequena ilha da Polinésia
oriental (163,6 km²), distante 3.700 quilômetros do litoral da América
do Sul e outros dois mil a leste do arquipélago das Pitcairn, um ponto
igualmente remoto do Pacífico.
Um detalhe importante é que esse espaço insular abrigou uma
civilização que contrariando a norma da história pré-moderna (mas
identicamente à moderna) não tinha nenhuma margem de manobra
territorial. O espólio desta civilização extinta, estátuas gigantescas
denominadas de moai na linguagem nativa, constituem testemunhas
mudas de um passado encerrado abruptamente.
8
82
Tais monumentos, pontos terminais e próteses silenciosas de um
padrão de relação com o meio ambiente que soçobrou de maneira
inapelável, deixaram de ser compreendidos pela própria população
remanescente. Em Páscoa, na esteira do implacável esgotamento
dos serviços ecossistêmicos, a derrocada da formação espacial não
tinha nenhum outro patamar ecológico para se realocar, razão de seu
inglório crepúsculo (A respeito, consultem-se os relatos de DIAMOND,
2005: 105/152 e de PONTING, 1995: 19/29).
Entretanto, este trágico cenário de esgotamento ecossistêmico
constituiu uma notória exceção no mundo pré-moderno. Isto porque
raramente as transformações ambientais da antiguidade, realizadas
no transcorrer de prolongados lapsos de tempo, colocaram em perigo
os ciclos ou os equilíbrios maiores atuantes na biosfera. Muito menos,
ameaçaram, como nos dias de hoje, a perpetuação do sistema-vida
na ecosfera do planeta.
Em contraste com a modernidade, jamais no passado o ambiente
de risco de uma dada cultura ou sociedade ameaçou a sobrevivência
do conjunto da humanidade e das formas de vida na sua totalidade,
concertação à qual pode-se agregar o episódio da ilha da Páscoa.
Delicta facti permanentis, as crises ambientais que precederam a que
se instalou no mundo contemporâneo, além de restritas a espaços
isolados e igualmente na escala do tempo, nem de longe seriam
equiparáveis aos pautados pela moderna civilização ocidental. As
repercussões dos desequilíbrios ecológicos foram indubitavelmente
menos intensas e inclusive, não necessariamente declinaram no
epílogo de processos socioespaciais. Pelo contrário, à derrocada do
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arranjo especial, comumente se apresentava a oportunidade de uma
continuidade da vida biológica e da social.
Um bom exemplo estaria substantivado na crise do Velho Império
Maia, decorrente do esgotamento dos frágeis solos dos patamares da
costa do Pacífico da América Central. Ponderando a respeito, Olivier
DOLLFUS, assinala que essa notável civilização estava estruturada
...na cultura do milho praticada em clareiras abertas na
floresta. O abandono desse meio talvez tenha sido
provocado pelo esgotamento dos solos: este por sua vez,
teria sido uma consequência da rotação demasiadamente
rápida das culturas, motivada pelo crescimento da
população (1972: 31/32).
Mas, isto não decretou o ocaso da civilização. Audaciosamente,
os maias deslocaram sua arena territorial para 400 quilômetros ao
norte, no seio da Península do Yucatán, espaço no qual esta cultura
pré-colombiana ganhou novo alento, lá erguendo cidades, pirâmides
e templos, e assim se mantendo até a conquista espanhola.
Ademais, tanto no caso Maia como em tantos outros, as áreas
esgotadas não estavam fadadas à esterilidade perpétua. Os espaços
territorializados pelas sociedades antigas, mesmo quando exauridos
por práticas agrícolas inadequadas, pastoreio intensivo, sobrecaça,
desmatamento e demais mazelas ambientais, terminaram, em muitos
teatros do mundo antigo, retomados pelos ciclos dinâmicos do meio
natural, que renaturalizaram áreas dantes humanizadas. Novamente
aludindo para a história maia, atente-se que:
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Certas regiões, atualmente abandonadas pelos homens e
que aparentam jamais terem sido povoadas, são na
realidade, setores transformados e empobrecidos por
uma ação humana inconscientemente devastadora. A
floresta que se estende ao Sul do Yucatán, na
proximidade da fronteira guatemalteca, é quase
desabitada. Ora, essa mesma região foi um dos focos da
civilização maia, há uma dezena de séculos (DOLLFUS,
1972: 32).
Deste modo, os dinamismos da natureza, ao resgatarem áreas
ecologicamente dilapidadas pelos humanos agilizavam um autêntico
movimento de “retorno da natureza”. Por isso os sítios de “cidades
desaparecidas” como Wagadu (Mauritânia), Nínive (Norte do Iraque),
Palenque (México) ou de majestosos complexos templários como os
de Borobudur (em Java, Indonésia) e Angkor-Wat (Camboja), foram
respectivamente retomados e agasalhados pela savana, pelo deserto
e pela floresta equatorial. Contrariamente ao vaticínio que ensombra
a consciência do homem contemporâneo, muitas das sociedades de
outrora tiveram a possibiidade de uma vez mais, usufruir recursos
reciclados pela natureza.
Embora não esgotando a tematização da relação construída
pelas sociedades de outrora com o meio natural, os exemplos citados
evidenciam que a problemática ambiental das sociedades do passado
difere em muito da que enfrentamos na atualidade. Indiscutivelmente,
nas coletividades do mundo tradicional, o quadro posterior ao kaput
ecológico contrastava de modo absoluto com o que é prognosticado
pelas sequelas da ação humana moderna. No fundamental, em razão
de que os padrões civilizatórios de antanho adotaram modos próprios
e diferentes de perceber e de se relacionar com o meio natural.
8
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O conjunto de sociedades que terminaram categorizadas como
pertencentes ao mundo tradicional, mesmo se diferenciando entre si,
resguardavam relativamente ao meio natural um complexo código de
conduta que não admitia sua redução à condição de mero elemento à
disposição da vontade humana e do incremento do artifício. Discorreu
a respeito Joan Martínez ALIER:
Até a grande experiência colonial que se inicia algo antes
de 1492 e vai até a industrialização maciça da Europa, a
relação com o meio ambiente não foi pensada como
dominação ou transformação da natureza, senão como
intercâmbio com forças naturais frequentemente
sacralizadas em mitos ou cosmologias religiosas (1992:
49).
Exatamente por esta razão que fica fragilizada a argumentação
de que os processos de degradação ambiental do passado poderiam
ser sinonimizados com os que se verificam no presente. Outra
nuança é que a despeito do problema de a exploração dos recursos
naturais estar objetivamente colocado para a sociedade ocidental
desde pelo menos o Renascimento, apenas nas últimas décadas é
que este reluziu na plenitude das suas implicações, caracterizando o
que passou a ser denominado como crise ambiental. Neste sentido,
não haveria como deixar de registrar que o Ocidente radicalizou uma
oposição para com o mundo natural que parece ser, sobremodo, uma
das características mais marcantes do seu modo de agir no mundo
(Ver GIDDENS, 1991).
Com toda certeza, este cenário enraíza-se nas peremptórias
mudanças concertadas pela modernidade no relacionamento com o
meio natural, e isto, com uma radicalidade que não têm precedentes.
8
86
Diferentemente da pré-modernidade, as anomalias ecológicas
que caracterizam o mundo atual reportam a um cabedal de ameaças
com feições assombrosamente alarmantes, inserindo perigos latentes
quaisquer que sejam os ângulos pelos quais esta problemática seja
analisada. Tudo isto faz com que a crise do meio ambiente conquiste
caráter emergencial, um temário colocado, ipsis litteris, na ordem do
dia. Desta inferência decorre que a ecologia tenha conquistado apelo
universal exclusivamente a partir dos anos 1970, clara resposta ao
acúmulo de passivos ambientais da modernidade (ELLIOTT, 1998).
Definitivamente, não existe problemática tão contemporânea, ou
em outras palavras, tão filha de nossa época quanto a ambiental. A
questão ambiental constitui acima de tudo uma marca registrada do
Século XX e de nenhum outro. Tendo por pano de fundo este cenário
é que o termo ecologia se tornou corrente para o grande público,
trafegando por todos os segmentos sociais. Difundida especialmente
pelo movimento ambientalista, a ecologia conquistou a imprensa, as
revistas, a televisão, o sistema escolar, os órgãos administrativos e
governamentais em todos os níveis (Vide GUIMARÃES, 1991: 103).
Retenha-se que isto aconteceu de um modo tão marcante, que a
expressão passou a estar relacionada com os mais diversos aspectos
da vida cotidiana. Assim sendo, as pessoas passaram a falar de um
estilo de vida ecológico; em uma atuação ecológica; em maneiras
ecologicamente corretas de ser e de viver; em defesa da natureza;
em produtos verdes; em uma política ambiental e uma série imensa
de posicionamentos em prol da natureza. O conceito de ecologia, que
inicialmente transitava apenas no mundo intelectual e na militância
8
87
ambientalista, tornou-se inseparável do estoque de terminologias
rotineiramente utilizadas por quase totalidade dos cidadãos.
Uma vez triunfante na consciência da sociedade e dado que a
terminologia encontrou aplicação para toda sorte de situações e
contextos, ainda assim restaria indagar: decididamente, o que é
ecologia? E o conceito com o qual mantém relação de sinonímia, a
crise ambiental, do que exatamente se trata? Certamente, pode-se
reportar a toda sorte de manuais e alfarrábios para responder esta
pergunta e igualmente, buscar auxílio na profusão de textos leigos
que nas quatro últimas décadas, se voltaram para discutir a temática.
Todavia, neste momento o objetivo seria sopesar os sentidos
prístinos da palavra ecologia. Pelo sim e pelo não, a enxurrada de
significados atinentes a este étimo, quaisquer que sejam, constituem
decantação das mais diversas compreensões, cujo piso conceitual
provém de sua inserção no tempo e no espaço.
Note-se que discutir uma terminologia, implica em descortinar
posicionamentos, frente aos quais, contrapondo-nos ou não a eles,
estes se apresentam enquanto uma rota de compreensão que além
de desvendar as diferentes conceituações que foram sedimentadas
com base na acepção original, permitem resgatar significados que, a
despeito de estarem borrados ou esmaecidos pelo tempo, permitem
aguçar a compreensão do seu significado atual.
Por conseguinte, podemos iniciar a resposta explorando o
significado etimológico da terminologia ecologia, acompanhada da
contextualização histórica, cultural e social da qual é oriunda. Seja
8
88
destacado: não há como não consignar a importância da etimologia
enquanto ferramenta de análise, procedente do fato de que os
códigos linguísticos, normatizam direta ou indiretamente a contextura
dos padrões cognitivos. Consequentemente, estes não podem ser
destituídos da condição de indicadores do modo como determinada
noção é auferida de concretude no mundo social (Ver SOUZA, 1991).
Como sentenciou em certa ocasião o antropólogo norte-americano
Edward HALL, “A própria percepção que o homem tem do mundo em
torno de si, é programada pela língua que fala” (1981: 13/14).
Certamente a definição clássica de ecologia é extensivamente
conhecida. Formatada no âmbito das ciências naturais pelo biólogo e
filósofo alemão Ernst Heinrich Haeckel, o termo aparece pela primeira
vez no ano de 1866 numa nota de pé de página na obra Generelle
Morphologie der Organismen, em substituição a biologia, cujo alcance
foi considerado, na opinião deste pensador, indevidamente restritivo
(ACOT, 1990: 27). Atente-se que ecologia é um termo dicionarizado,
definida como estudo da casa. Não por outra razão, senão pelo fato
de que numa etimologia literal, o termo decorre do grego oikos-logos,
onde oikos reporta a vivenda, casa ou aposento e logos, por sua vez,
corresponde a estudo, tratado, concepção ou entendimento (Além de
ecologia, tem-se habitat, corriqueira sobremodo nos textos de escopo
biológico, todavia, despossuída da mesma coloquialidade).
Vale lembrar que a compreensão do termo ecologia passou a ser
granjeada, por conta do dinamismo semântico que se assenhoreou
do vocábulo, de sentidos edificados consoante sortida coletânea de
interpelações romanceadas, nas quais a nota predominante são
acepções de cunho naturalizante. Em face do entendimento usual de
8
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ecologia, fica-se de um modo ou de outro diante de um universo
conceitual socialmente amorfo, destituído de contradições.
Sua meta suprema seria a perpetuação do “equilíbrio” e da
“harmonia”, locuções que mais se prestariam para uma manipulação
mistificadora (para não dizer reificadora), da relação das sociedades
com o espaço natural, do que para primados científicos. Nesta via, as
flexões sociais que perpassam na questão ambiental são expurgadas,
penalizando de sobejo, a cognição das contradições que norteiam a
relação entre o homem e a natureza (Ver a respeito, MORAES, 2002:
53).
No entanto, seria possível abstrair da definição clássica muitas
outras derivações, até porque a palavra grega oikos sugere uma
ordem de enunciados largamente insuspeitos. Observe-se, antes de
tudo, que além de “casa” relacionam-se ao termo oikos profícua oferta
de entendimentos, a saber: oikeiotês: relação, aparentado, amizade;
oikeiow: habitar, coabitar, reconciliar-se, manter-se familiarizado e
finalmente, oikoumene: terra povoada, ocupada, mundo conhecido
e/ou civilizado.
Quanto a esse último significado, originalmente dizendo respeito
aos territórios conhecidos pelo mundo greco-romano, posteriormente
agregou o sentido de uma humanitas que se reconhece enquanto
unidade, habitando um espaço unificado e convivendo uma mesma
historicidade, ita est, uma ampliação do oikos.
Mutatis mutandis e indo diretamente ao ponto, a primeira
pontuação a respeito da ecologia, reclama avaliar sua fundamentação
9
90
não só nas raízes gregas da palavra, proveniente do grego oikoslogos, como igualmente sua ambientação histórico-social. Isto porque
a recorrente definição estudo da casa, para além de não esgotar a
problemática ambiental, habilita, mais do que um entendimento real,
uma diversidade de entraves para sua intelecção (Ver este respeito,
BAITELLO JÚNIOR, 2005: 52/53 e GEORGE, 1997).
É válido ressalvar que oikos na descrição de Homero, tal como
este nos apresenta o conceito na Ilíada e na Odisseia, e consoante
com a consciência social do período arcaico grego, corresponderia a
uma unidade autossuficiente de produção e consumo, da qual
dependia a sobrevivência do grupo, subentendendo uma determinada
organização social, política e econômica, territorialmente alicerçada
numa porção específica do espaço geográfico (apud FLORENZANO,
1982: 14/23).
Sumamente, o oikos direciona para uma inflexão social, cultural e
histórica. Ontologicamente, seu pressuposto é um grupo socialmente
organizado, economicamente credenciado e por fim, politicamente
estruturado. No que seria significativo, o radical indo-europeu weik, do
qual oikos é derivado, acena para uma unidade social imediatamente
superior à residência do chefe de família. Plus aequo, a terminologia
suscitaria uma reverberação biocenótica, encontradiça nas acepções
consuetudinárias da palavra. Por conseguinte, não surpreende que os
biocenóticos da atualidade de bom grado definam a ecologia como
uma “ciência das comunidades” (Vide ACOT, 1990: 27).
Nesta senda, nos textos de Homero, o oikos está associado ao
comando de um chefe guerreiro, que encabeça a família e amplo rol
9
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de agregados. Não era estranho ao oikos o exercício da guerra. O
oikos encetava razzias contra as comunidades vizinhas, investidas
acompanhadas de saques e de pilhagens, com o que, se desfaz
qualquer antevisão idílica relativamente a esta organização social. Em
coerência com o que foi colocado, uma primeira pontuação sinalizaria
que se todo oikos na Grécia antiga constituía uma casa, nem toda
casa necessariamente constituiria um oikos.
Um segundo detalhamento é que oikos, dizendo respeito a
produção e consumo, implicaria na impossibilidade de se excisar o
conceito de ecologia do conceito de economia. Congruentemente,
ecologia e economia compartilham idêntica origem etimológica: oikos.
Deste modo, entendendo-se que ecologia significa estudo da casa, a
palavra economia é por sua vez derivada de oikos-nomos, diga-se,
ordem ou organização da casa.
Pois então, qualquer enunciado que divorcie a questão ambiental
das problemáticas econômicas, incorre num equívoco duplo. Isto
porque uma economia que honre sua etimologia deve se assumir
como uma economia ecológica, assim como uma ecologia coerente,
deve da mesma maneira se prontificar como uma ecologia econômica
(passim LEFF, 2004 e RAFFESTIN, 1993: 24).
Um terceiro aspecto (e nisto, aproximando-se ainda mais do
enfoque que desejo discutir), é que o oikos, independentemente da
aura de romantismo que perpassa pelo conceito, inseria relações
enfaticamente desiguais no seu interior. Poucos recordam que nesta
perspectiva, o oikos era regrado pelo trabalho escravo e perpassado
por clivagens de poder de todos os tipos.
9
92
Por este motivo, o modelo do oikos na Grécia desintegrou-se por
conta das acirradas contradições que nasceram e proliferaram em
seu interior, cujo desmonte, foi uma das origens seminais da polis, a
cidade-estado grega, uma nova articulação espacial que desponta
prioritariamente por conta dos antagonismos econômicos, sociais e
políticos intrínsecos ao sistema escravista, contraposições estas, que
as novas aglomerações se prontificaram em gerenciar.
Nesta linha de abordagem, as avaliações preocupadas com os
problemas ecológicos não podem (e não devem), dispensar os liames
que pavimentam conexões com temáticas de índole cultural, social,
políticas e econômicas. Tanto no passado do homem quanto nos dias
atuais, a questão ambiental relaciona-se sumamente com um sistema
de poder, não podendo ser aquilatada na ausência deste referencial.
Até porque, a ecologia é inegavelmente, um dado inerente a todas as
formas de dominação.
No mais, fosse este pressuposto descompassado da realidade,
as classes dominantes não se empenhariam no controle estratégico
das fontes de recursos naturais e energéticos, para deste modo,
submeter “os de baixo” à sua dependência. Outrossim, a apropriação
da natureza igualmente demarca um domínio ecológico das classes
dominadas (GUGLIELMO, 1991: 67).
Por conseguinte, o oikos não se restringiria de modo algum a
derivações “ecológicas”, ponto de partida para várias interpretações
ambientalistas. Pelo contrário, entenda-se que esta discussão é uma
temática muito mais ampla do que o “estudo da casa”, tal como é
singelamente sugerido pelas leituras superficiais do conceito.
9
93
Crucialmente, claro é que uma preocupação tão sugestiva como
esta, requereria, visando melhor elucidação, a agregação de outros
enunciados e de vários outros parâmetros. Sugestão que acatada,
pesponta nos parágrafos que seguem.
3.2. TRADIÇÃO, QUESTÃO AMBIENTAL E MODERNIDADE
Ponderar a respeito de um temário que incorpora a ecologia
como sustentação conceitual suscitaria, por definição, uma avaliação
sobre as relações existentes entre modernidade e a questão
ambiental. Constituindo uma noção que pressupõe estar a relação
entre o homem e o meio natural impregnada pelas mais diversas
contradições, nada mais correto do que se avaliar um momento da
história humana no qual estas atingiram as raias do paroxismo.
Recorde-se que além das proporções alcançadas pela crise do
meio ambiente nos tempos modernos, esta incorpora especificidades
extremamente bem demarcadas no espaço e no tempo, daí a
imperiosidade de delinear seus motes frente ao tema. Deixar de levar
em consideração este aspecto, além de implicar no comprometimento
dos nexos que pretendo imprimir a esta discussão, acarretaria uma
compreensão desestoricizada da questão ambiental, intercorrência
que, tal como foi colocado, está de antemão excluída deste trabalho.
Com base nesta preocupação, o primeiro ponto a ser pautado
remeteria às radicais distinções que ratificam um corpus cujos
pressupostos geográficos, culturais, históricos, sociais, políticos e
9
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econômicos são em tudo dessemelhantes dos que vigoraram no
antigo mundo tradicional.
Neste sentido, recorrendo a um parecer cunhado pelo sociólogo
britânico Anthony Giddens, a modernidade pode ser definida como
uma sociedade promotora de um enquadramento simultaneamente
técnico e unificador, via de regra grafada como ocidental, respaldando
um conjunto de modos de vida que desvencilharam a humanitas de
todos os tipos tradicionais de ordem social, e isto, de uma maneira
que não têm precedentes (passim GIDDENS, 1991).
Aditivamente, à civilização ocidental caberia, em função das
prerrogativas que endossou, a transposição das suas perspectivas
civilizatórias para o conjunto do globo, inaugurando uma Gesellschaft
construída a seu gosto e colocada sob seu comando. Saliente-se que
não seria fortuita a opção por este termo. No pensamento filosófico
alemão, Gesellschaft (sociedade) está em oposição a Gemeinschaft
(comunidade), uma antinomia que no memorável parecer do cientista
social alemão novecentista Ferdinand Tönnies transpareceria como a
seguir reproduzido:
...Gemeinschaft representava o passado, a aldeia, a
família, o calor. Tinha motivação afetiva, era orgânica,
lidava com relações locais e com interação. As normas e
o controle davam-se através da união, do hábito, do
costume e da religião. Seu círculo abrangia família, aldeia
e cidade. Já Gesellschaft era a frieza, o egoísmo, fruto da
calculista modernidade. Sua motivação era objetiva, era
mecânica, observava relações supralocais e complexas.
As normas e o controle davam-se através de convenção,
lei e opinião pública. Seu círculo abrangia metrópole,
nação, Estado e Mundo (RECUERO, 2001).
9
95
Nesta perspectiva, o mundo tradicional estaria inteiramente
apartado da turbulenta, agitada e frenética sociedade ocidental. E de
fato, procede em muito a constatação da existência de um dinamismo
“mais lento” para as sociedades tradicionais, justificado pela presença
de desígnios sociais que tipificam modos de vida e de percepção da
realidade sem qualquer relação com os que triunfaram no Ocidente.
Afirmação que dificilmente encontraria refutação, o homem imerso na
esfera da tradição era regido por um dinamismo societário no qual a
exigência de ordem e de continuidade sobrepujava sobre a entoação
de mudanças (BALANDIER, 1976a: 235).
Estas sociedades, consideradas “frias” ao gosto de uma linha de
corte recomendada pelo antropólogo francês Claude LÉVI-STRAUSS
(1970), contextualizariam, pois, modos de vida os quais, embora não
fossem pautados por um “equilíbrio absoluto”, nestas, a história se
“aqueceria” unicamente em lapsos mais prolongados de tempo. O
mundo da tradição seria então, radicalmente distinto das “sociedades
quentes”, no caso, as pertencentes ao contexto ocidental.
Tal como assim definido, o pressuposto implícito neste raciocínio
subentende o mundo inaugurado pela modernidade enquanto um
“divisor de águas” dos processos sociais colocados à prova pela
humanidade. Demarcando dois universos inteiramente opostos entre
si, o moderno terminaria nesta acepção por se especificar enquanto
um marco que dispensaria à tradição tudo o que está em desajuste
com seus predicados, pressupostos e interesses (GIDDENS, 1991:
14 et seq).
9
96
No tocante ao duramên dessa exposição, outro desdobramento
distinguindo modernidade e tradição como duas polaridades distintas,
evidencia-se quando nos deparamos com a avaliação dos modelos
adotados pela humanidade no relacionamento com o meio natural.
Analisando as diferentes modalidades resultantes da determinada
predisposição do homem em territorializar o espaço natural, pode-se
discernir no mundo moderno, dinâmicas opostas às que imperaram
nas sociedades tradicionais, inferência de resto, é passível de ser
identificada tanto na concretude quanto no imaginário do mundo
construído pelo Ocidente.
Obviamente, retomando uma sugestão comentada parágrafos
atrás, seria cabível recordar que o mundo tradicional, não obstante os
vínculos notórios mantidos com o meio natural, nunca esteve
facultado a esposar a aura de uma “idade do ouro perdida”. Tal visão
se ajustaria à postura de avaliar as sociedades tradicionais como
estáveis, isentas de contradições ou de conflitos, e por extensão, não
propensas a mudanças e transformações. Este horizonte idealizado
poderia filiar-se a um modelo de interpretação de sociedade calcado
no funcionalismo, corroborando uma perspectiva marcada pela
compreensão naturalista e harmônica de sociedade, sendo sua pedra
de toque, o conceito de totalidade social e cultural integrada.
Contrariando visões inspiradas neste arrazoado, hoje em dia é
amplamente admitido que os grupos galardoados com a etiqueta de
serem “povos dos ecossistemas”, forjaram profundas transformações
ambientais, afetando os biomas numa coleção de nuanças. A título de
exemplo, extensões a perder de vista de paisagens consideradas
“naturais”, foram resultanrtes da caça pelo fogo. Entre outros casos, é
9
97
justamente esta prática que explicaria a origem de extensos nacos
das savanas africanas e dos cerrados sul-americanos, com influência
muito mais profunda do que influências edáficas ou de mote climático
(Ver RIZZINI, 1979: 102 e também COUTINHO, 1977).
Além do mais, as mudanças provocadas pelos humanos neste
cenário natural, assim como em vários outros, teriam o privilégio da
senioridade. Confirmando tal linha de interpretação, o antropólogo e
geógrafo britânico David Russel HARRIS anotou, quanto aos espaços
savaneiros, que “a ocupação do meio ambiente da savana, na África
e na Ásia, remonta ao aparecimento do gênero homo, há mais de um
milhão de anos atrás” (1982: 181).
As migrações humanas deixaram atrás de si um rastro de
destruição e mudanças ambientais, diretamente relacionadas com a
implantação de novos assentamentos. Na pequena ilha de Malta, no
Mediterrâneo, o elefante anão, uma autêntica relíquia zoológica, foi
liquidado logo nas primeiras vagas de ocupação humana. Na Nova
Zelândia, os maoris extinguiram, muito antes dos europeus, o moa,
uma magnífica ave da Oceania. Durante o Paleolítico, a presença
humana na América do Norte havia eliminado por volta de 10.000 a.C.
...grandes animais como o mamute, o cavalo, o camelo, a
preguiça gigante, o tigre de dentes de sabre, e leões e
cães selvagens, além de muitas aves, que foram
totalmente dizimados e extintos do continente americano
(PASCHOAL, 1978: 7).
Nenhum espaço permaneceu incólume com a aparição dos
humanos. Foi o que ocorreu em Madagascar, a grande ilha africana
9
98
ocupada por vagas de malaios da Insulíndia em tempos históricos.
Destino semelhante acometeu a Ilha Maurício e as Kerguelen, ambas
situadas no Índico, abordadas pelos navegantes europeus durante o
processo da expansão marítima e comercial, assim como as ilhas
Orkneys, Shetlands e Faröe, arquipélagos alcançados pela expansão
viking
9
a partir da Escandinávia (Cf. DIAMOND, 2005: 219/258). No
povoamento do continente americano, os humanos que cruzaram o
estreito de Bering 14.000 anos atrás, transpondo a finisterra oriental
asiática
10,
foram cúmplices da extinção de grande quantidade de
exemplares da fauna em seu trajeto rumo às paragens meridionais
(TAKS et FOLADORI, 2002).
A adoção da agricultura, ao promover o surgimento de campos
de cultivo, que sumamente constituem “ecossistemas simplificados”,
derivou em alterações ainda mais dramáticas. O chamado Fértil
Crescente (o Vale do Nilo, da Mesopotâmia e áreas circunvizinhas),
um dos berços da agricultura, “foi outrora vegetado com florestas de
cedro e savanas ricas de fauna e flores” (Vide PASCHOAL, 1978: 7).
No caso do Egito Faraônico, uma bem documentada ação humana
permite avaliar a magnitude da transformação da paisagem pelas
coletividades agrícolas, alterando drasticamente a paisagem original
do vale do Nilo (VERCOUTTER, 1974: 17).
Os vikings não constituíam uma etnia, mas sim um conjunto de povos germânicos
estabelecidos na Europa setentrional. O termo parece derivar do germânico arcaico
vikingar: saqueadores.
10 O início do povoamento da América tem sido reavaliado mediante a descoberta de
novos jazigos arqueológicos. Se contada exclusivamente pelos registros fósseis da
paleontologia física, o homo sapiens teria povoado o continente por volta de 14 mil anos
atrás. Mas pela antropologia molecular, baseada no estudo do DNA de populações
modernas, a data recua alguns milhares de anos. Evidências genéticas apontam para
uma colonização anterior a 14 mil anos, segundo estudos apresentados no 51º
Congresso Brasileiro de Genética (Manchetes Socioambientais, edição de 12-09-2005).
9
9
99
Na calha do rio Nilo, a planície atual estende-se sobre o que foi
outrora, um terreno desértico. Desapareceram densas concentrações
de palmares, quase verdadeiras florestas de palmeiras. Além do
recuo do deserto, os pântanos, acompanhados de rica fauna e flora,
foram praticamente extintos. Antigamente, no limiar dos aluviões
anuais, “os confins do deserto eram charcos cobertos de grandes
juncos ondulantes, povoados por milhares de espécies de aves e por
numerosa fauna de pequenos carnívoros” (SAUNERON, 1970: 51).
Estas alterações não se restringiram unicamente à paisagem,
pois implicaram em importantes modificações hidrológicas, climáticas
e da fauna, muitas vezes de modo irreversível. Pari passu, as
atividades dos agricultores tradicionais, ao implicarem na seleção
empírica do germoplasma, foi origem dos modernos exemplares de
plantas como o milho, o arroz, feijões, batata, batata-doce, mandioca,
trigo, cevada, centeio, inhame, amendoim e o sorgo. Estas espécies,
fruto do labor humano, terminaram “naturalizadas” no transcorrer da
história e deste modo, percebidas como provenientes do meio natural.
O mesmo ocorreu quanto à domesticação dos animais, que além
de implicar na seleção de espécimes, foram ampla e repetidamente
introduzidos pelo homem em ambientes que lhes eram originalmente
estranhos. Ressalve-se que os esforços estiveram concentrados na
seleção de um pequeno número de animais, que foram a seguir
privilegiados como elementos de base pelas economias antigas.
Estes seriam, de acordo com o geógrafo Roland BRETON: a cabra e
o carneiro no Fértil Crescente, o asno no Egito, o boi e o pato no sul
da Europa, o boi zebu e talvez a galinha e o porco na Índia, o búfalo
aquático no Sudeste Asiático, o iaque no Tibete, o camelo da Tartária
1
100
na Ásia Central, o dromedário nos desertos da Arábia, o cavalo nas
estepes da Eurásia, a rena na Tundra, o peru na América do Norte e
finalmente, a cobaia, a lhama e a alpaca na América do Sul (1990:
47).
Os efeitos ecológicos das atividades antrópicas desenvolvidas
pelo mundo tradicional, grande maioria dos quais não-premeditados,
chamou a atenção de um leque de estudiosos, que registraram as
sequelas deixadas pelas sociedades pré-modernas. Eis como o olhar
arguto de Friedrich ENGELS captou estes acontecimentos:
Os homens que na Mesopotâmia, na Grécia, na Ásia
Menor e noutras partes destruíram os bosques para obter
terra arável, não podiam imaginar que dessa forma,
estavam dando origem à atual desolação dessas terras ao
despojá-las de seus bosques, isto é, dos centros de
captação e acumulação de umidade. Os italianos dos
Alpes, quando devastaram, na sua vertente Sul, os
bosques de pinheiros, tão cuidadosamente conservados
na vertente Norte, nem sequer suspeitavam que, dessa
maneira, estavam arrancando, em seu território, as raízes
da economia das granjas leiteiras; e menos ainda
suspeitavam que assim estavam eliminando a água das
vertentes da montanha, durante a maior parte do ano e
que, na época das chuvas, seriam derramadas furiosas
torrentes sobre as planícies (1979: 224).
Em decorrência, poder-se-ia rascunhar um ponderável elenco de
alterações promovidas pelo homem tradicional a partir de atividades
consideradas “ambientalmente brandas”, implicando na eliminação ou
rarefação de centenas de espécies. Houve uma época em que os
uros
11
deambulavam pelas florestas da Gália e da Bélgica; em que
Os uros ou auroques, extintos desde 1627, são relatados por várias fontes romanas,
em narrativas celtas, eslavas e germânicas. Em comum, se referem a um tipo de bovídeo
gigantesco, observado nas terras da Europa Ocidental ainda nos tempos de Júlio César.
11
1
101
manadas de camelos atravessavam o vale do Mississipi; em que os
leões se aqueciam ao Sol na Síria, Macedônia, Numídia, Pérsia, na
Lacedemônia e no Bokhara; em que os crocodilos se refestelavam no
delta do rio Nilo; em que os lobos e ursos tinham por habitat, os
campos da Nortúmbia, do Danelaw e da Cornualha; em que os mares
escandinavos pululavam de leões marinhos; em que os rinocerontes
chafurdavam nos rios da Borgonha e da Provença. Afinal, onde foram
parar estes admiráveis espécimes da fauna terrestre?
Assim, as sociedades não-ocidentais imprimiram sua marca no
meio natural e isto, de forma não necessariamente superficial. No que
importa ao núcleo dessa discussão, o imaginário de um “paraíso
ecológico”, mantendo estreita relação com o simbolismo da “idade do
ouro”, cultuando sociedades supostamente caracterizadas por um
suposto “entrosamento absoluto” com a paisagem natural, constituiria
simplesmente uma peça de ficção. Como recorda Joan Martínez
ALIER, nenhuma civilização foi ecologicamente inocente (1992: 49).
Entretanto, outro é o parecer que povoa o imaginário social. No
mais das vezes, os saudosos “Jardins do Éden”, tragados pela
expansão do mundo ocidental, terminaram revestidos de expectativas
e valores que no plano das aspirações do senso comum, são alvo de
um resgate de tempos simultaneamente idílicos e nostálgicos. No
limite, estas sedutoras imagens pressupõem que do passado poderia
advir a solução para as angústias do presente.
Porém, entenda-se que uma coisa, seria sustentar a inexistência
de contradições entre homem e natureza nas sociedades de outrora;
As imagens mais antigas dos uros estão retratadas em pinturas rupestres do complexo
de cavernas de Lascaux (sudoeste da França), datadas em mais de 17.000 anos atrás.
1
102
uma outra, entender que o mundo tradicional comprometia em menor
escala os recursos naturais; e uma outra coisa ainda, entender como
possível transpor este modelo para o mundo da atualidade. De
qualquer modo, seria plausível sumarizar que independentemente
das implicações, estas posturas não deixam concretamente de frisar
que o objeto de discussão é a crise ambiental da modernidade, e não
a do mundo tradicional.
Nesta sequência, é a discussão da relação mantida pela
modernidade com o meio natural que se reveste de caráter central.
Não mais porque seria exclusivamente da compreensão deste locus
espacial e temporal que se torna possível compreender a eclosão da
crise ambiental no seu sentido mais pungente, e por consequência,
as alternativas de enfrentamento do problema e a possibilidade da
humanidade manter uma relação minimamente equilibrada com o
meio ambiente.
Por isso mesmo, ao constituir um desafio novo, seria descabido
entender o tradicional enquanto modelo capacitado a solucionar o que
não é tradicional, mesmo porque a crise do meio ambiente, tal como
atualmente materializada, não estava colocada para as sociedades
da antiguidade. Sem meias palavras: uma sociedade ecológica está
por ser instaurada, e não restaurada.
Nesta ótica, importa identificar os epifenômenos associados à
modernidade que atuaram de modo a ordená-la socialmente no plano
interno e externamente, a impor sua vontade a outros povos e
regiões, procedimentos que se desdobraram em comprometimentos
ambientais de todo tipo. É neste sentido que se torna possível, com
1
103
base em diversas avaliações disponíveis para consultas, combinadas
a comentários oriundos de diversas outras fontes (Vide entre outros
VESENTINI, 1989: 20 e CAPRA, 1991), enumerar cinco imperativos
pertinentes ao surgimento do mundo moderno e à sua consolidação
como uma altissonante weltanschauung, que resumidamente seriam:
1. O Estado como organização política por excelência. Notado
com pressuposto uma qualquer sociedade civilizada, evidentemente o
aparelho estatal é aquele concebido a partir das condições históricas
e sociais do mundo ocidental, sendo as demais formações estatais
desqualificadas enquanto modalidades aceitáveis de organização e
de exercício do poder.
Neste prisma, os increpados “Estados despóticos do Oriente”,
taxonomia que englobaria variegado conjunto de estruturas estatais
extraeuropeias, estariam, tal como na enviesada averbação de
Montesquieu consignada na obra O Espírito das Leis, caracterizados
pela ausência de regras e do senso de justiça. No juízo contestador
do antropólogo e sociólogo mexicano Roger BARTRA, neste enfoque,
as formações estatais orientais achariam-se então, subordinadas a
reis autocráticos, governando segundo sua vontade e seus caprichos,
cujo mando, estaria respaldo na escravidão generalizada dos súditos,
uma contestável acepção que transitou com afinco nas ideações dos
ocidentais sobre os regimes políticos extraeuropeus (1978: 11/42).
2. Noção de trabalho exaustivo e produtivo, significando, no caso,
o trabalho voltado para a produção de mercadorias, inserido na lógica
de acumulação do capital. Neste prisma, apenas um tipo de trabalho,
o voltado para a produção de valores de troca, seria considerado
1
104
válido e produtivo. Desta noção decorreu, por exemplo, a ideia de que
as populações tradicionais seriam preguiçosas e que a organização
econômica “pré-capitalista” seria arcaica e atrasada, dentre outros
motivos, evidentemente pela resoluta oposição ao acúmulo de bens e
revolucionamento das relações de produção.
Esta revolução, no modus operandi qual a esfera do econômico
passou a funcionar, embalou toda sorte de pontuações referentes aos
novos tempos inaugurados pela economia de mercado. Nesta linha
de argumentação, a diferença entre o mundo moderno e o tradicional,
teria na radical alteração das perspectivas existenciais dos humanos,
uma das suas notas mais marcantes. A economia, partindo de
sistemas preocupados com uma talvez singela e prosaica satisfação
limitada, atendendo desejos e anseios de coletividades fechadas e
autárquicas, passou, desde então, a empenhar-se na construção de
um estado permanente de insatisfação ilimitada, propensão que se
ampliou incessantemente, vindo a abarcar o conjunto do planeta.
Comparando as economias antigas com seu novel contraponto
moderno, assim ajuizou o pensador Karl MARX:
A antiga concepção segundo a qual o homem sempre
aparece (por mais estreitamente religiosa, nacional ou
política que seja a apreciação) como o objetivo da
produção, parece muito mais elevada do que a do mundo
moderno, na qual a produção é o objetivo do homem, e a
riqueza, o objetivo da produção [...] Por isto, de certo
modo, o mundo aparentemente infantil dos antigos
mostra-se superior: e é assim, pois, na medida em que
buscarmos contornos fechados, forma e limitação
estabelecida. Os antigos proporcionavam satisfação
limitada, enquanto o mundo moderno deixa-nos
1
105
insatisfeitos ou, quando parece satisfeito consigo mesmo,
é [visto como] vulgar e mesquinho (1975a: 80/81).
É com base nesta transformação que o mundo tangível dos
humanos se torna, antes de materializar uma fonte de abundância,
num epicentro da escassez. Nada doravante será como antes, pois a
escala da insatisfação, contrariamente à da satisfação, se estende na
escala do infinito, nisto ignorando o óbvio: a finitude do espaço e dos
seus recursos.
3. A ciência vista como um conhecimento voltado para o domínio
e o controle da natureza, conceituação que adquire crescente
influência paralelamente à importância cada vez maior da economia
de mercado. Seus pressupostos destacam o homem - sinonimizado
com o gênero masculino - como um ser predestinado ao domínio dos
demais seres vivos e da totalidade do meio natural, noção que reflete
uma negação e/ou despromoção da natureza que ganhou corpo nos
Séculos XVI e XVII com os novos métodos empíricos de investigação
desenvolvidos no âmago da revolução mecanicista, que revolucionou
as ideações até então em vigor no referente à relação com o meio
natural, lançando as bases de um prepotente “chauvinismo humano”.
A partir da revolução mecanicista, a ciência passa a alinhavar
uma nova inteligibilidade, baseada no desenvolvimento da física, das
experiências laboratoriais e numa verdadeira matematização do olhar.
Nesta nova perspectiva, o objetivo do cientista é a descrição racional
de todos os fenômenos naturais de acordo com leis matematizáveis,
um quadro analítico que se tornou o axioma dominante do saber
1
106
científico sistematizado, influenciando todos os ramos da chamada
ciência moderna (CARVALHO, 1991: 46/47).
Dado inseparável desta ótica é que a investigação científica,
tendo por meta finalidades predominantemente utilitárias, terminou
reinventada de modo a distinguir-se radicalmente da postura que
caracterizou as culturas antigas diante da natureza. Por isso mesmo,
respaldando ansiedades desde logo manifestadas pela nascente
civilização ocidental relativamente ao relacionamento com o ambiente
natural, o filósofo britânico Francis Bacon defendeu este novo método
de investigação em termos que seriam não só apaixonados, mas com
frequência, francamente rancorosos. A natureza, na sua opinião,
...tinha que ser acossada em seus descaminhos, obrigada
a servir e escravizada. Devia ser reduzida à obediência e
o objetivo do cientista seria extrair da natureza, sob
tortura, todos os seus segredos (CAPRA, 1991: 51/52).
Definitivamente, com a modernidade a wilderness deixou de ser
uma referência para tornar-se alvo de conquista e tornada uma “letra
morta”, atitude que redundaria nas mais peremptórias consequências.
4. Concepção de natureza como um mero recurso voltado para
manter e expandir incessantemente o progresso e o desenvolvimento
econômico; nesta acepção, está implícita uma leitura ocidental do
antropocentrismo, sugerindo não uma interlocução, mas sim a
submissão da natureza a um homem concretamente identificado com
os proprietários dos meios de produção, com os cidadãos ou mais
exatamente, com a nova classe burguesa. Por conseguinte, não seria
demasiado ressalvar a forte presença de um ideário patriarcal,
1
107
valorizando-se implicitamente o gênero masculino comparativamente
ao feminino, tanto em nível do imaginário quanto no da concretude e
do léxico social.
Ilustrando esta linha deste certame, pode-se novamente recorrer
ao pensamento de Francis Bacon. Com efeito, as imagens violentas
trabalhadas por este pensador quanto ao relacionamento a ser
mantido com a natureza, provavelmente foram inspiradas nos
julgamentos das bruxas, tal como eram habitualmente realizados na
sua época. A influência exercida por esta atmosfera persecutória na
linha de investigação elaborada pelo intratável filósofo foi palpável e
cabal. Dentre outros fatores, Francis Bacon estaria
...intimamente familiarizado com tais denúncias e libelos
e, como a natureza era comumente vista como fêmea,
não deve causar surpresa o fato dele transferir as
metáforas usadas no tribunal para os seus escritos
científicos. De fato, sua ideia da natureza como uma
mulher cujos segredos têm que ser arrancados mediante
tortura, com a ajuda de instrumentos mecânicos, sugere
fortemente a tortura generalizada de mulheres nos
julgamentos de bruxas do começo do Século XVII. A obra
de Bacon representa, pois, notável exemplo da influência
das atitudes patriarcais sobre o pensamento científico
(CAPRA, 1991: 52).
Essa visão cruamente antropocêntrica, reinante na Inglaterra do
Século XVIII, subentendia que a autoridade humana sobre o mundo
natural era soberanamente ilimitada. O matemático e filósofo francês
René Descartes conceituou a cissura entre o homem e a natureza de
modo extremo, pregando que os animais não seriam dotados de alma
e que Deus seria totalmente transcendente, externo à criação (Vide
DIEGUES, 1994: 36/37). Nesta derivação, os humanos, manifestação
1
108
única da esfera do racional, deteriam jurisdição inconteste sobre
todos os seres vivos, abrindo caminho, por decurso lógico, para que
fossem abandonados quaisquer pruridos no tratamento dispensado
ao meio natural.
Na tecedura desse arcabouço conceitual, deixando de encontrar
amparo junto aos sistemas morais e religiosos, a natureza perdeu
inexoravelmente toda a grandeza de que usufruía nos sistemas de
pensamento do mundo da tradição. Na aurora e na juventude da
humanidade, o mundo animal fora visto como parceiro a toda prova
dos humanos. Recorde-se que a própria palavra animal se origina de
anima, significando alma em latim, sentido que obviamente se enraíza
num antigo entendimento tradicional dos viventes não-humanos. Mas,
tudo isto deixa de ter qualquer sentido diante do antropocentrismo
ocidental, para o qual a esfera do natural cede, de um modo como
jamais ocorrera no passado, suas prerrogativas ancestrais em prol de
beneplácitos meramente utilitaristas.
5. Eclosão, no plano do imaginário, da aspiração a um domínio
simbólico da história, estimulando narrativas pautando o progresso e
o mercado enquanto fatoração eterna e imutável, vistos inclusive
como indissociáveis de uma suposta “natureza humana”. Em paralelo
à consolidação do capitalismo, verificou-se, no interior do ideário dos
ocidentais, uma tendência em compreender a economia de mercado
como referência máxima de compreensão da realidade, inseparável
do conceito de humanidade e de civilização.
Assim, a economia de mercado atuaria como linha divisória na
diferenciação do homem das demais espécies, cuja índole congênita,
1
109
incorporaria uma tendência natural inata para negociar, de trocar uma
coisa por outra. Destarte, esta pulsão “trocativa”, postulada como uma
característica-chave para deslindar a evolução da humanidade, seria,
no entendimento de Adam Smith pai da economia clássica, próprio
exclusivamente dos humanos. Eis como o economista ilustrou este
silogismo em seu clássico A Riqueza das Nações:
Ninguém nunca viu dois cães procederem a uma troca
equitativa e deliberada de ossos, nunca se viu um animal
tentando dizer a outro, através de gestos e gritos naturais,
que uma coisa é ou não sua, ou que pretende trocar uma
coisa pela outra (SMITH, 1979: 13).
Tais imperativos fundamentaram uma desqualificação universal
das sociedades não europeias. A economia de mercado e os valores
que a legitimavam, constituíram parâmetros máximos para julgar as
demais formações sociais, independentemente do fato dessas não
postularem o mercado como referência para sua organização social,
política, cultural e econômica. Largamente utilizados para alicerçar a
dominação europeia sobre os chamados povos coloniais, estes
conceitos conquistaram obviedade no ideário europeu, tornando-se
inseparáveis da idiossincrasia ocidental, perpassando, em termos do
imaginário do outro, como um dado óbvio. Portanto, aos “atrasados”,
percebidos como vegetando em meio a uma ilimitada estupidez, foilhes prescrita toda sorte de estigmas e sinais denunciadores de uma
abjeta e repulsiva condição de inferioridade:
...não acreditando em Deus, não tendo alma, não tendo
acesso à linguagem, sendo assustadoramente feio e
alimentando-se como um animal, o selvagem é
apreendido nos modos de um bestiário. E esse discurso
da alteridade, que recorre constantemente à metáfora
1
110
zoológica, abre o grande leque de ausências: sem moral,
sem religião, sem lei, sem escrita, sem Estado, sem
consciência, sem razão, sem objetivo, sem arte, sem
passado, sem futuro (LAPLANTINE, 1988: 41).
Para piorar, a estes malfadados primitivos estava reservado o
supremo pecado de serem economicamente subalternos. Os grupos
e populações que viviam sob regimes sociais estranhos à economia
de mercado, julgamento que recai de modo particularmente duro
sobre os grupos mais entrosados com o meio natural, estariam
prisioneiros da carência, da adversidade, do domínio da brutalidade
das forças da natureza e das intempéries, uma situação infeliz da
qual certamente seriam resgatados pelo congraçamento com o triunfo
do novo estilo de vida, impregnado pelos ideais de progresso e de
desenvolvimento. Evidentemente, a resistência destas populações em
adotar os novos modelos impostos pelos europeus foi codificada
intempestivamente como evidência de contrariedade ao progresso e
de indisposição à civilização, portanto, sujeita a sansões, medidas
corretivas e punitivas.
Logo, o atrasado seria inapelavelmente um “inferior”, alguém que
não se ajusta ou optou por não se ajustar ao que é considerado
avançado. Dele, simplesmente nada seria possível esperar. Na nova
linha do tempo elaborada com base num sentido progressivo da
história, é postulada uma sequência na qual os primitivos (do latim
primi, ou seja, “primeiros”), os aborígines (isto é, “originários”), os
silvícolas (“habitantes da selva”), ou então os naturvölker
12
(“povos
da natureza” ao pé da letra, em alemão), são deslocados para um
Expressão cunhada pela etnologia alemã, não se confunde com Urmensch, homem
primitivo. Admoeste-se que no jargão geográfico alemão clássico, a denominação
naturvölk não indicava povos vivendo relação íntima com a natureza, mas antes, sob o
império desta (RATZEL 1990: 72).
12
1
111
remoto princípio da história, uma noite dos tempos habitada por todos
aqueles que não foram agraciados pela reelaboração do tempoespaço promovida pela Europa. É neste sentido que o outro, no
Ocidente, mais que um espaço diverso, habita uma época diferente.
Destes paradigmas poucos atores do cosmo ocidental tentaram
ou conseguiram, total ou parcialmente, se desprender. Cumpre exarar
que estes parâmetros, ao tipificarem o ethos ocidental, relacionam-se
não só com os expoentes diretamente relacionados com os modos de
reprodução histórica deste padrão civilizatório, vale dizer, com a
classe proprietária dos meios de produção, quanto também poderiam
ser estendidos para linhas de pensamento que se posicionaram a
partir de um ponto de vista em tese crítico ou antagônico a ele, dentre
estas vertentes, as que fundamentam muitos primados marxistas
mereceriam menção obrigatória.
Vale lembrar, o fato de os genitores do materialismo histórico
terem desenvolvido uma poderosa teorização crítica do capitalismo,
não pode subentender uma ruptura completa com a visão imperante
sobre o mundo extraeuropeu, e tampouco, até por falta de alternativa,
com a matriz civilizatória na qual estavam imersos.
Não por outra razão, senão pelo fato de que tanto Karl Marx
quanto Friedrich Engels não estavam, e nem sequer poderiam deixar
de estar, alheios às concepções da sua época e do seu mundo. Foi
em função de uma atmosfera desenvolvimentista, reforçada pelo
cogito iluminista setecentista, por sua vez empapado pela ideologia
do progresso, que Karl Marx e Friedrich Engels foram categóricos, por
exemplo, na defesa de uma necessidade histórica de um máximo
1
112
desenvolvimento das forças produtivas, cuja prossecução, era vista
como uma alavanca para o progresso da história. Certamente
contagiados pelo autêntico triunfalismo que caracterizou a expansão
do capitalismo industrial, adscrições economicistas, produtivistas e
eurocêntricas não deixaram de impregnar a produção teórica e as
avaliações de Marx e Engels.
Detalhando melhor, pode-se destacar a predisposição dessa
vertente filosófica em considerar o avanço das forças produtivas
como epítome da transformação do meio ambiente pela ação
triunfante do homem, corporificando desse modo sua marca no meio
natural
13.
Promovida pelo capitalismo, tal tendência auguraria uma
festejada “vitória sobre as forças da natureza” e na esteira desta,
teríamos, fazendo jus ao panegírico desfecho do “progresso da
história”, a instauração apoteótica da esperada sociedade socialista
(COLLINSON, 2004: 190/196; MORIN et KERN, 2003: 79 e também
VESENTINI, 1989: 48/50).
Subliminarmente, às conceituações de “progresso” e também de
“desenvolvimento das forças produtivas”, basilares na lógica marxista,
se instala a estigmatização de “atrasado” a tudo que fosse entendido
como incompatível com as exigências estruturais da modernidade.
Daí que Marx e Engels, mesmo esboçando modelos preocupados
com as especificidades das formações sociais “pré-capitalistas”,
jamais deixaram de homenagear o Ocidente como parâmetro do
13
Lembre-se que a adoção do conceito de Produtvekraefte (forças produtivas), em
oposição a Produtiveenergien, (energias produtivas), um dos debates apócrifos da
parceria Marx-Engels, teve enormes repercussões para o marxismo, impedindo, por
exemplo, o avanço na direção de uma visão “histórico-energética”, que poderia ter se
estabelecido antes ou por si mesma (Cf. ALIER, 1992: 48. Ver também WITTFOGEL,
1992).
1
113
desenvolvimento geral da humanidade, uma meta obrigatoriamente
pavimentada por uma visão unitária do devir histórico. Deste modo,
ao desqualificarem o universo das plurifacetadas sociedades nãoocidentais, coerentemente se posicionaram em favor da dominação
colonialista, entendida como “suporte da civilização” (SOFRI, 1977:
30; BALANDIER, 1969: 12/13).
Dentre diversas exemplificações disponíveis, é possível recorrer
às que seguem, reveladoras da índole com que o marxismo avaliava
o mundo “pré-capitalista”. Karl MARX, no seu comentário sobre a
dominação britânica na Índia avaliava que esta teria dois papéis a
desempenhar naquele país: um “primeiramente destrutivo”, através
do aniquilamento da velha sociedade asiática, e um outro posterior,
de “caráter regenerador”, através do lançamento dos fundamentos
materiais da sociedade ocidental na Ásia (1976: 27, grifos nossos).
Marx também demonstrava grande indisposição para com a religião
indiana, em face dos seus adeptos desenvolverem “um degradante
culto à natureza, prostrando-se aos pés de Hanuman, a macaca, e de
Sabala, a vaca” (idem, 1976: 25).
Deve ser reconhecido que Marx e Engels, assim como Émile
Durkheim e outros mestres fundadores das ciências sociais (com a
notável exceção de Max Weber), observavam a era moderna como
uma época turbulenta, permeada por contradições, ambiguidades e
prenhe de quimeras de todo o tipo. Não obstante, acreditavam que
nesse período histórico (e muito mais do que em qualquer outro),
residiriam possibilidades promissoras, trazendo em seu bojo uma
sociedade de tipo novo, capacitada a dar conta das vicissitudes
ensejadas pela própria modernidade, superando indesejados efeitos
1
114
colaterais negativos. O marxismo entendia a luta de classes como
uma fonte de dissidências fundamentais na ordem burguesa. Mas, ao
mesmo tempo vislumbrava a partir dela a emergência de um sistema
social mais humano (Cf. GIDDENS, 1991: 17).
A linha clássica de argumentação do materialismo histórico,
exaltando a fé no progresso, na ciência e no desenvolvimento das
forças produtivas, termina basicamente por identificar como o grande
e quase único problema a questão da apropriação privada e da
irracionalidade burguesa na condução do mecanismo da economia.
Por estas vias, tanto Marx quanto Engels, jamais questionaram o
paradigma central, qual seja, a crença no primado da economia e no
desenvolvimento incessante. No interior do pensamento marxista, tal
como no da ordem imaginária moderna, a produção de riquezas não
possui limites. Deste modo, a própria crítica elaborada por Karl Marx
ao capitalismo,
...não é uma crítica ao desenvolvimento das forças
produtivas. Marx é estritamente falando, um clássico da
modernidade, tal como Adam Smith, David Ricardo e
Stuart Mill, para assinalar alguns poucos dos que seriam
conhecidos como economistas (GONÇALVES, 2001: 34).
Por extensão, a racionalidade científica que embalaria a futura
sociedade socialista, viria obviamente prosseguir com o progresso,
que agora dispensando os nefastos desequilíbrios intrínsecos à forma
de produção capitalista, derivados da anarquia de mercado e da
ausência de planejamento, teria então um livre curso, para benefício
da totalidade do corpo social (apud VESENTINI, 1989: 49).
1
115
A partir destes arrazoados, faria pleno sentido o consenso que
paulatinamente se estabelece quanto ao ponto de vista pelo qual o
socialismo, tal como foi efetivamente aplicado em muitos países, teve
basicamente o mesmo telos que o sistema capitalista em relação ao
meio natural, dispondo, para assegurar a “vitória” sobre as forças da
natureza, de concepções e de aparatos técnicos e científicos pelo
mínimo, assemelhados aos do Ocidente capitalista. O fato é que os
dois sistemas explicitaram, a seu modo e a seu tempo, sociedades
consagradas ao trabalho, tributárias do econômico, voltadas para a
produção, entendendo o espaço público enquanto uma órbita de
interesse do governo e do Estado, assentadas com base no primado
do racional, ou no que interessaria mais diretamente, na oposição ao
natural (Ver a respeito DIÓGENES, 1992).
É neste sentido que a questão ambiental suscita um debate que
se coloca qualitativamente adiante da mera discussão referente aos
sistemas econômicos. Na realidade, o ponto nodal desta discussão é
a crítica dirigida a um modelo civilizatório bifronte, modelado por duas
ramificações diametrais: o capitalismo e o socialismo. Por esta razão,
trabalhar com uma visão desmistificadora, demanda, para além do
estudo de epifenômenos, precipuamente os primados ontológicos
mais abrangentes que lhes caucionam sustentação.
Assim, é justamente por intermédio desta via que a questão da
ordenação social do tempo e da organização do espaço tornam-se
relevantes, certificando quanto ao conteúdo de novidade que o
mundo moderno historicamente inaugura, inclusive na comparação
com a sociedade medieval europeia que o precedeu.
1
116
3.3. A IMPERIOSIDADE DA DISCUSSÃO DO TEMPO
Até o presente momento, a análise em curso sumarizou as
implicações do relacionamento mantido pelas sociedades tradicional
e moderna no tocante ao meio ambiente. Entretanto, sublinhar a
descontinuidade demarcada pela modernidade requer abordar, daqui
em diante, as mudanças que o mundo ocidental instaurou no trato
com a natureza, assim como as construções imaginárias talhadas
para defini-la, apreendê-la e dominá-la.
Aqui, importa grifar que o vocábulo “ecologia” está impregnado,
como foi sopesado, de clara modernidade. Em consonância com esta
linha de abordagem, em nada as intempestividades ambientais de
outrora poderiam justificar qualquer identidade com o que se observa
no mundo atual. Uma coisa é entender que o homem do passado não
dispunha da “sensibilidade ambiental” muitas vezes apaixonadamente
apregoada pelas criações mentais ambientalistas. Mas outra coisa,
inteiramente diferente, é com isso pretender equipará-lo ao homo
occidentallis.
Nada mais falso e improcedente. Hoje, destrói-se o ambiente
natural numa escala e velocidade nunca vista anteriormente e, para
completar, numa ferocidade jamais registrada nas formações sociais
do passado. A este respeito, incisivo relatório divulgado pela entidade
World Wildlife Fundation (WWF), em outubro de 2004 informou que:
A cada 13 minutos uma espécie de animal desaparece no
mundo. As populações de animais terrestres, de água
doce e marinha tiveram uma redução de 40% no período
de 1970 a 2000. A redução da fauna é causada, de
1
117
acordo com o relatório Planeta Vivo 2004, pela crescente
demanda por alimentos, fibras, energia e água, assim
como pelos métodos não sustentáveis de produção. O
relatório mediu também a taxa de uso dos recursos
naturais do Planeta. A conclusão foi que a população
mundial consome cerca de 20% a mais de recursos do
que a Terra é capaz de repor. Desde 1961 a pressão
humana sobre fontes de recursos naturais aumentou, em
média, 160% (citado in Manchetes Socioambientais,
edição de 22-10-2004).
Como resultado, uma batelada dantesca de entropias ambientais
assedia o homem contemporâneo, que por sua intratabilidade são
repassadas, na premeditada busca de um “estado premeditado de
desatenção civil”, para um temerário segundo plano (Vide GIDDENS,
1991:130). O mundo moderno vê-se diante de um pathos saturado de
angústias, prisioneiro das ansiedades engendradas insensatamente
pelo próprio modelo civilizatório que propõe. Deve-se a Sigmund
Freud a célebre sentença mal-estar da cultura, título do conhecido
ensaio no qual o egrégio pensador, pai da psicanálise, expõe um
metódico alarma quanto as implicações de uma civilização técnica e
racionalista, estopim da possibilidade de destruição total conferida
pela lógica moderna na ciência à violência humana.
Sem titubear, Sigmund Freud divisava do modo que segue a
respeito das decorrências da propensão da razão ocidental em negar,
ignorar ou desqualificar os tentames sensíveis nos quais os humanos
se embeberam de afirmação existencial durante a maior parte de sua
trajetória na Terra:
Os homens alcançaram um domínio tal sobre as forças
da natureza que se lhes tornou difícil hoje em dia servirse delas para se exterminarem até o último. Eles sabem
1
118
disto, e daí provém uma boa parte da inquietação atual,
de seu mal-estar e de sua angústia. É de se esperar que
o outro dos dois poderes celestes, o Eros eterno faça um
esforço em afirmar-se na luta contra seu adversário, o
Thanatos, também eterno. Mas quem é que poderá
prever o resultado e o desfecho? (citado in LEÃO, 1992:
225).
Objetivamente gerados pela ação de sistemas de conhecimento
ocidentais, corporificou-se um ambiente de risco imantado por uma
perturbadora pauta de agressões ao meio natural, quase sempre sem
solução à vista (Vide ELLIOTT, 1998). Nada pior para embalar os
pesadelos do homem contemporâneo, uma contabilidade infatigável
de desequilíbrios difundiu-se planetariamente, tendo por pano de
fundo a elevação do nível dos oceanos, a destruição da atmosfera
terrestre, o exaurimento total do solo e o desaparecimento da maior
parte das espécies animais e vegetais. No que ninguém até poucas
décadas atrás ousou profetizar, até mesmo os abundantes (e vitais)
recursos hídricos da Terra, também terminaram por ingressar nos
prognósticos sombrios das substâncias colocadas cada vez mais à
distância da satisfação das necessidades humanas.
Este momento da civilização humana evidenciaria um mundo
vitimado por sua própria racionalização e despaganização do cosmos.
Deste modo, levada a defrontar-se com perigos laicos gerados pela
dessacralização de valores, crenças e posturas que durante a maior
parte da história da humanidade respaldavam sua conduta, a
weltanschauung da modernidade repudia as antigas contribuições do
mundo tradicional enquanto suporte ontológico e de percepção do
real. Fato que se impõe por si mesmo, a modalidade contemporânea
de crise ambiental estaria enraizada nesta nova correlação metafísica
1
119
que, reinando de modo absoluto, pode de fato vaticinar e conduzir a
sociedade humana global para um malfadado império da desordem
sem fim.
Posicionados no centro de uma crise ambiental sem precedentes,
o conjunto dos humanos possui motivos de sobra para repensar esta
questão de modo a visualizar possibilidades para sua superação.
Neste sentido, as construções sociais do espaço e do tempo, ao
serem reveladoras do caráter dos modelos de relacionamento com o
meio natural, constituem, mais do que quaisquer outros, aspectos
indispensáveis para o entendimento dos mecanismos de perpetuação
e reprodução dos sistemas de engenharia criados pelos humanos
(passim SANTOS, 1978a e 1988).
Não seria demasiado enfatizar, entre tempo e espaço se afirma
uma solidariedade de mote perpétuo. Para determinada organização
do espaço, associa-se determinado tempo social para assegurá-la,
vínculo este de caráter mútuo. No apontamento do geógrafo Ariovaldo
Umbelino de OLIVEIRA, as dimensões temporal e espacial, “tomadas
em sua indissolúvel unidade, caracterizam a plenitude de existência
do mundo material sob aspectos que se completam reciprocamente”
(1982c: 109). Cabe assinalar, este relacionamento entre estas duas
dimensões exclui mera interação mecânica. O traço geral do espaço
e do tempo, no matrimônio que sacramenta a sinergia eterna que os
mantém imantados, “consiste no fato de que neles estão unidos os
momentos da mutação e da estabilidade” (Vide OLIVEIRA, 1982c:
97).
1
120
A singularidade deste emparceiramento reclama a agregação de
comentários conceituais suplementares na órbita da temporalidade.
Aparte as narrativas nas quais tempo e temporalidade convivem em
condição de sinonímia, nas demais, estas terminologias remetem a
duas diferenciadas conceituações: enquanto que tempo implica em
um entendimento de uma acepção social mais geral, temporalidade
diria respeito à forma como diferentes apreensões da fruição temporal
se desenvolvem no interior do espaço de determinada sociedade.
Advertia a este respeito o geógrafo Milton SANTOS:
...O território é, na verdade, uma superposição de
sistemas de engenharia diferentemente datados, e
usados, hoje, segundo tempos diversos. As diversas
estradas, ruas, logradouros, não são percorridos por
todos. Os ritmos de cada qual - empresas ou pessoas não são os mesmos. Talvez fosse mais correto utilizar
aqui a expressão temporalidade em vez da palavra tempo
(1998: 45/46).
Seja como for, com base nesta pilastra cognitiva, a modernidade
calibraria um brocardo comum ao passado da humanidade, visto que
sumamente, não há nenhum sistema social que prescinda de uma
forma de percepção e de organização do tempo. Convém assinalar
que o significado forja o tempo na realidade simbólica da cultura e da
história, e, portanto, esta dimensão não pode ser definida enquanto
uma simplória sucessão de eventos (LEFF, 2004: 338).
Deste modo, no tocante ao tempo social, tal noção constitui um
dos traços identitários marcantes da personalidade histórica das
civilizações. Recorrendo às palavras do historiador judeu russo Aaron
Yakovlevich GOUREVITCH, as representações do tempo:
1
121
...são componentes essenciais da consciência social, cuja
estrutura, reflete os ritmos e as cadências que marcam a
evolução da sociedade e da cultura [...], sendo que cada
civilização percebe o tempo através de sistemas que lhe
são próprios. Estes se formam durante a atividade prática
dos homens, à base de sua própria experiência e da
tradição herdada das gerações anteriores. A cada etapa
do desenvolvimento da produção, da evolução da
economia e do homem com relação ao meio natural,
correspondem maneiras particulares de viver o mundo
(1975: 263).
Uma vez definido um percurso analítico que assume o espaço e
o tempo como seu cerne, torna-se factível, deste ponto em diante,
avaliar a asserção do mundo moderno resultar do predomínio de um
gabarito temporal específico. A modernidade capitalista, tal como as
demais formações socioespaciais da história, deve seu dinamismo a
uma leitura particular da fruição do tempo, que a mesmerizou e
direcionou rumo à hegemonia planetária. Nesta perspectiva, caberia
evidenciar seus traços específicos assim como a sua dinâmica, de
forma a resguardar a historicidade que lhe é inerente.
Por contraste, assevere-se em primeiro lugar que no universo
tradicional, de modo praticamente geral, os ritmos sociais estavam
encadeados com visões rotatórias, cíclicas e não-lineares do tempo.
Nas sociedades sob a tutela da tradição, a apreensão do tempo era
modelada por ciclos naturais e astronômicos, como as fases da Lua,
das estrelas ou da Terra em rotação e revolução. Entretanto, tal como
adverte o geógrafo sino-americano Yi-Fu-TUAN, a ordenação da vida
social por meio de fases ecológicas foi gradativamente escamoteada
com o avanço da modernidade, de modo que:
1
122
O homem moderno reconhece estas fases recorrentes,
mas para ele, pouco mais são do que ondas na direção
da corrente do tempo. O tempo, para ele, tem direção e a
mudança, é progressiva. Acredita-se que a visão
escatológica do cristianismo promoveu o sentido de
mudança progressiva. Entretanto, o sentido do tempo do
homem medieval, refletindo o seu cosmo vertical e
rotatório, era essencialmente cíclico. Foi somente no
Século XVIII que o conceito linear e direcional do tempo
tornou-se importante (1980: 170).
Na pré-modernidade, o tempo não se desenrolava de maneira
linear do passado para o futuro. O universo de valores do mundo da
tradição, a partir dessa decidida recusa ontológica, excluía qualquer
subordinação do fruir do tempo a lógicas que matematizassem o seu
encadeamento, abstraíssem sua organicidade com o meio natural ou
que as divorciassem de códigos rituais e simbólicos. Nas sociedades
tradicionais o tempo ora é imóvel, ora é cíclico:
Aquilo que já foi, retorna a intervalos determinados. Esta
concepção do tempo, que se encontra também muito
mais tarde, numa forma renovada e em sistemas muito
mais evoluídos, está em grande parte ligada ao fato de
que o homem não se desligou da natureza, e sua
consciência se subordinou às transformações periódicas
das estações do ano e dos ciclos de produção que lhe
são adaptados (GOUREVITCH, 1975: 265/266).
Na antiguidade, a interpretação do mundo natural e do universo
social, regrado pela noção da circularidade do tempo
14,
sustentava-
A discussão sobre o tempo cíclico é de grande complexidade, ultrapassando os limites
deste texto. Vale assinalar que a conceituação é objeto de controvérsias, em especial
quanto à tendência em entendê-la como universal ao conjunto das civilizações nãoeuropeias. No caso africano, Sulayman S. NYANG sugere, por exemplo, uma outra
interpretação, propondo uma introversão tridimensional pela qual o tempo seria
simultaneamente passado, presente e futuro, repudiando as interpretações unilineares,
tipicamente ocidentais, e a ascética, relativa ao Oriente (1983: 32). É possível,
entretanto, destacar conexões e traços comuns aos tempos sociais das populações
tradicionais, fundamentados na perdurabilidade e na afinidade para com aspectos
14
1
123
se num paradigma no qual este se renovava continuamente, que num
apuro arquetípico, amparou elaborações como a conhecida crença no
eterno retorno (Vide ELIADE, 1978).
O tempo cíclico era presidido em nível do imaginário por forças e
divindades poderosas, que presidindo o real a partir de um anteparo
cósmico, amparavam sua emanação e continuidade. A intelecção do
tempo, apelava para convocatórias mágicas e para uma idiossincrasia
cultural alicerçada em uma trajetória histórica e social específica.
Conclui-se então que o conceito de tempo cíclico, predominante
nas sociedades primitivas e nas civilizações antigas, bem como em
certos povos europeus 15, subentendia que este era:
...produzido por um outro estilo de vida, por uma
concepção particular do mundo, por um tipo
preponderante de sociedade. As concepções de tempo
nesta ou naquela sociedade ou região cultural, refletem a
cadência da evolução social. O predomínio, na
consciência social, do tempo cíclico sobre o tempo linear,
é condicionado pela relação específica entre os
elementos dinâmicos e os elementos estáticos no
processo histórico (GOUREVITCH, 1975: 283).
Considere-se que estes enunciados não são redutíveis a
elementos abstratos. Antes, estão impregnados por determinações
concretas. A acepção do tempo cíclico, prescrevendo uma lógica na
qual o passado, o presente e o futuro se entrelaçam numa única
expressão temporal, pavimentava o substrato de uma identidade
duradoura das relações sociais. O tempo circular, detendo um caráter
qualitativos, sensíveis ou “topológicos” da realidade (passim WALDMAN, 1997 e 1994b).
15 Convém sublinhar que o pensamento grego não omitia, por exemplo, a concepção de
tempo cíclico, prolóquio que transparece na filosofia e nos mitos dos helenos (Ver a
respeito, LLOYD, 1975).
1
124
reversível, declinava numa segurança ontológica imiscuída nas
práticas rotinizadas pela tradição, constituindo a mola mestra
propulsora da temporalidade (Cf. GIDDENS, 1991: 107). Tal postura
frente ao tempo, presente nas cosmogonias relativas ao tempo nas
sociedades antigas, integrava uma prefiguração imaginária maior, na
qual um tempo cósmico, articulado com os fluxos maiores do meio
natural, formava uma identidade inquebrantável do espaço-tempo
social com o natural, do espaço habitado com o cosmos no sentido
mais amplo (Cf. ELIADE, 1978 e BANU, 1969).
Ora, a modernidade altera radical e visceralmente este quadro de
organização do tempo. Na lógica de reprodução do capitalismo:
...as máquinas só são produtivas, ou seja, só funcionam
como capital em movimento. Os trabalhadores só
produzem no processo de trabalho. As matérias primas
são riquezas que por si só podem ser destruídas. É,
portanto da essência do processo de produção material
que as relações sejam um fluxo contínuo (SEABRA, 1987:
148, grifos nossos).
Neste sentido, a organização do tempo no capitalismo advoga
uma ordenação linear e progressiva da temporalidade, que esteve
(como ainda está), diretamente articulada com o tempo da produção,
da circulação, do consumo e da realização da mais valia (SANTOS,
1988). Naturalmente, este entendimento moderno da temporalidade
não surgiu de uma hora para outra. Antes, resultou dos anseios da
nascente ordem capitalista, aconchegada à axiomática auri sacra
fames, com a qual, enveredou por um longo, exaustivo e cumulativo
compêndio de especulações intelectuais.
1
125
E, no que há de singular, nada semelhante à temporalidade
moderna pode ser localizado no passado do homem. A temporalidade
inaugurada pela economia de mercado é alheia aos ciclos presentes
no espaço natural, que outrora foram referência determinante para a
organização do próprio tempo social. Uma vez extintos os laços de
solidariedade que sempre haviam conectado de forma inquebrantável
o espaço e o tempo, sobreveio então uma hegemonia inconteste do
tempo. Na modernidade, e unicamente a partir do seu surgimento, é
que o espaço passa a ser verdadeiramente remate de uma produção,
emanação direta dos fluxos do tempo, resultado objetivo, concreto e
material da dimensão temporal.
A irmandade imemorial que sempre havia governado as relações
do espaço com o tempo foi rompida, sobrevindo mecanismos que
alargaram cada vez mais o fosso entre estas duas esferas, disto
decorrendo a necessária menção ao que terminou categorizado como
desencaixe do tempo para com o espaço (GIDDENS, 1991: 25/27).
É deste modo que o ordenamento da temporalidade edificado
pela modernidade termina por calçar e afiançar, no final das contas,
os mecanismos catalisadores de entreveros ambientais. Contrastando
com todas as demais acepções do tempo a ele anteriores, este fato
impõe a exigência de discutirmos o tempo linear e progressivo.
Presente direta ou indiretamente em todas as manifestações do
mundo contemporâneo, tanto nas concretas quanto nas imaginárias,
uma linha de investigação tocada pela decifração desta normatização
temporal solicita obrigatoriamente uma exegese sobre sua gênese e
desdobramentos.
1
126
3.4. A MODERNIDADE E A FALÊNCIA DO MUNDO TRADICIONAL
EUROPEU
Em similitude com o que foi colocado, a investigação do tempo
social remete ao modelo de mundo engastado a este ou aquele
momento histórico, sua especificidade geográfica, suas expectativas
sociais, assim como os demais desdobramentos a ele pertinentes.
Nesta linha de análise, a plena compreensão da instauração do
tempo linear e progressivo ou então, vetorial (Cf. TUAN, 1980), não
poderia se circunscrever à modernidade. Resultando de um processo
que se estendeu ao longo de muitos séculos, esta análise requer que
seja passado a limpo o continuum que serviu de nascedouro para o
nascente sistema capitalista, qual seja, a Europa medieval.
Por esta via, o primeiro aspecto digno de nota é o fato da
temporalidade moderna nascer do interior de uma formação social, o
feudalismo, que de forma semelhante às demais sociedades prémodernas, tinha na perdurabilidade, na multiplicidade e numa
afinidade sensível para com a fruição do tempo, uma das suas
marcas mais proeminentes. No sistema feudal, a temporalidade
estava em consonância com um mundo agropastoril, autárquico,
autossuficiente e produtor de valores de uso, no qual o mercado era
uma entidade muito distante de posicionar-se uma esfera central da
sociedade (Vide POLANYI, 2000: 76/88).
Embora muitas análises notifiquem que o mundo feudal não era
regrado por uma economia propriamente “natural”, isto é, na qual as
1
127
transações monetárias e o comércio fossem inexistentes, ressalve-se,
de outra parte, que o mercado detinha expressão meramente local,
desprovido da autorregulação assumida nas etapas contemporâneas
capitalismo (POLANYI, 2000). Quanto ao intercâmbio mercantil com
terras estrangeiras, ocorrendo de modo esporádico e voltado para o
consumo suntuoso das elites, este não desempenha nenhum papel
determinante nos fins e nos métodos de produção, detendo escasso
poder de influência em uma sociedade orientada pelo costume e pela
tradição (Cf. SWEEZY, 1977: 22/23).
Neste recorte, o localismo de poder era regra. A ordem social
correspondente a este estado de coisas, formada por camponeses,
guerreiros e sacerdotes, primava por uma “lentidão” condicionada
pela sazonalidade da organização agrária predominante. O universo
medieval era ainda perpassado pela religiosidade, que expressava,
de modo bastante modelar, a acomodação com este estado geral de
coisas. Em suma, a partir dos escombros do Império Romano, o
feudalismo estabelece o tempo eclesiástico ou da Igreja.
Ao longo de toda a Idade Média, e semelhantemente ao mundo
tradicional em geral, o tempo, dado seu imbricamento com o meio
natural, encaixava-se com o espaço. Tal determinação, era reforçada
em nível do imaginário social, por representações simbólicas que
preconizavam e reafirmavam o isolamento de um pequeno mundo
povoado em grande parte por agricultores, cujo cotidiano apenas
excepcionalmente era constrangido pelas tempestades da política
16.
Numa das múltiplas exemplificações que poderiam ser perfilhadas quanto ao
conjuminamento do espaço das antigas coletividades humanas com o universo e a
convivialidade cósmica, observe-se que no idioma russo, a palavra mir (мир) significa
simultaneamente aldeia, paz e mundo.
16
1
128
Nesta formação social, o desconhecido, o estranho, o alienígena
enfim, era por motivos óbvios repudiado por ser um elemento
potencialmente perturbador de um universo avesso a novidades,
aferrado à repetição dos trabalhos, normas, ritmos e das técnicas
recebidos de forma hereditária, produzindo os mesmos produtos e
sistematicamente entregando parte da produção à mesma família
dominante, que se perpetuava no poder por um código estamental.
A territorialidade eminentemente local do feudalismo implicava
que a alteridade também estivesse concatenada nos planos concreto
e imaginário a uma contextualização espacial. Não fosse deste modo,
dificilmente esta poderia estar vinculada à construção de um discurso
justamente preocupado em assinalar sua singularidade por meio de
linhas identitárias que circunscrevia espacialmente o mundo feudal.
Os alienígenas, de modo comum ao conjunto do pensamento
tradicional, habitavam os bordos do espaço, situam-se após os limites
do mundo conhecido, vivendo para além das fronteiras reconhecidas.
Quando muito, “o outro” habitava na melhor das hipóteses os “poros”
de uma dada sociedade, manifestando-se enquanto uma organização
de alógenos que coabitava de modo estanque um espaço social e
politicamente referendado por elementos sociais com os quais não
comungavam anseios de qualquer índole.
Esta conformação é patente na relação com “o outro” medieval
que era, por excelência, o judeu. Os preconceitos contrários a esta
minoria, centrados na alegoria do Ahasverus (o judeu errante), tinha
por sustentação uma argumentação de fundo teológico e religioso
voltada contrariamente a um grupo etno-social que, face aos critérios
1
129
feudais, constituía um segmento desterritorializado. O Ahasverus
respondia por um imaginário por meio do qual o judeu era integrado
pela rejeição, engendrado como marginal e diferenciado para que não
deixasse de existir (Cf. PINSKY, 1981: 11).
Por conseguinte, este antagonismo, mais do que por critérios de
ordem religiosa, estava articulado com a atividade que lhes fora
reservada pelo próprio sistema feudal: a de responsáveis pela restrita
circulação monetária admissível num modus economicus autárquico,
atividade estigmatizada por estar em contradição com os mecanismos
maiores de reprodução social e econômica do feudalismo.
Em suma, o feudalismo materializa uma sociedade voltada para
si mesma, mostrando-se desinteressado pela ampliação dos contatos
e das comunicações. Na escala do continente, a indisposição em
ultrapassar os temidos limites conhecidos abrigou-se num imaginário
impeditivo da ultrapassagem das fronteiras geográficas. Em todo o
medievo, grassavam crenças pelas quais, por exemplo, as latitudes
equatoriais seriam inabitáveis devido ao calor escaldante.
Não fosse suficiente, existia o temor de monstros, espíritos e
criaturas malignas incrustadas em nichos mal conhecidos das terras
emersas, dos rios e oceanos (silfos, elfos, vampiros, bruxas, dragões,
serpentes marinhas, demônios, basiliscos, harpias e salamandras).
Este sentimento estava associado a uma visão demonizante das
paragens limítrofes à Europa, possível pátria de populações temidas
e estigmatizadas (lotófagos, antropófagos, pagãos e semi-humanos
em geral), que para piorar, também poderiam estar adereçadas, como
os países maometanos, do status de inimigos da Cristandade.
1
130
Além destas, crenças como as da terra quadrada, findando após
a ultrapassagem da última vaga do oceano num abismo sem fim,
literalmente aprisionaram os europeus durante séculos no seu
compartimento continental. Neste quesito recorde-se que a imagem
de um mundo quadrado, comum a diversas culturas e civilizações
pré-modernas, não poderia ser preconceituosamente indicativa de
“sinal de atraso” do homem tradicional. A humanidade, durante a
maior parte da história, habitou compartimentos territoriais dos quais
raramente se distanciava. A noção da “Terra chata” e/ou “quadrada”,
era alimentada pelo enraizamento do homem tradicional no seu
espaço vivido, que lhe fornecia uma base objetiva para este tipo de
compreensão. Assim sendo, a “quadratura do mundo” refletia tão só
uma apreciação empírica (a propósito, fenomenologicamente correta),
assumindo o compartimento territorial como observatório da trajetória
do Sol:
...A direção da marcha aparente do Sol no firmamento,
permitiu ao homem considerar um primeiro eixo estável,
com um ponto fixo correspondendo ao lado em que o Sol
aparece no horizonte, e outro lado em que ele
desaparece. A partir deste eixo Leste-Oeste, não foi difícil
estabelecer outro no sentido Norte-Sul (OLIVEIRA, 1978:
36).
Logo, refutando julgamentos plenificados por ilações indevidas,
Cristóvão Colombo, em sua jornada de “descoberta” da América, não
propriamente contestou, por exemplo, a “ignorância” da tripulação. No
fundamental, o navegante denegou uma concepção tradicional de
espaço que acudia no âmago dos corações e das mentes dos seus
marinheiros, repetida de geração em geração, e no que a revestia dos
1
131
lauréis de um axioma indefectível, empiricamente observada no dia a
dia, conquistando assim foro de verdade indiscutível.
Numa das variadas confirmações de que a visão geral do mundo
transcende a realidade objetiva, isoladamente ou em conjunto, tais
elementos imaginários constituíram fatores determinantes para o
enclausuramento dos europeus, reforçando o sentido autárquico do
sistema feudal. Os aterrorizantes sentimentos que inundavam a
mentalidade europeia são representativos do quanto o imaginário
termina pautando as relações dos humanos com o espaço habitado.
Como argumentou o geógrafo norte-americano David LOWENTHAL:
As esperanças e o medo da mente humana
frequentemente animam as percepções de senso comum.
A localização suposta e os aspectos do paraíso
estimularam muitos cartógrafos medievais, muitas
expedições de exploração procuraram alusivos Eldorados
(1985: 119).
Deste modo, mesmo quando o homem medieval encetava
formidáveis caminhadas para fora de seu compartimento continental
era em função de referências maravilhosas que impregnavam seu
espírito. Por exemplo, viajantes isolados partiram em busca de
impérios fabulosos, como o legendário reino de Prestes João, um
mirabolante governo cristão instalado em algum nebuloso rincão da
Etiópia ou das Índias. Muitas crônicas descreviam este reino mítico
repleto de riquezas infinitas. Ameaçado pelos irascíveis muçulmanos
e por pagãos convictos, este país, farol da mensagem do espírito
santo num espaço sufocado pelas forças do mal, aguardaria por um
auspicioso contato com a Cristandade. Esta notícia, espalhando-se
pela Europa ao longo do Século XII, inundou os mapas da época,
1
132
seduzindo aventureiros a assumirem as mais desatinadas peripécias.
Nos albores do Século XVI, este reino persistia em fazer-se presente
nos mapas confeccionados por Diogo Homem, Abraham Ortelius e
muitos ilustres cartógrafos, demonstrando a força das configurações
imaginárias na percepção do espaço, assim como o animus que as
mobilizava (NEBENZAHL, 2004: 9 e 52).
Todavia, a partir da Baixa Idade Média, o imaginário espacial do
mundo tradicional europeu termina profundamente convulsionado por
uma ordem de considerações associada ao avanço da modernidade,
expulsando os temores relacionados com seres desconhecidos e aos
espaços interditos aos ocidentais. Decididamente, os antigos móveis
da percepção do espaço expunham uma volição carente de quaisquer
analogias com o novo universo de valores, eivado pela racionalidade,
força motriz dos novos relacionamentos engendrados pela economia
de mercado. Os ensejos que passariam a alimentar as aventuras dos
viajantes europeus seriam outros, absolutamente diferentes da Era
Medieval. Lenta, mas inexoravelmente, uma outra ordem das coisas
vai sendo instaurada, desintegrando a antiga sociedade e todos os
elementos que a compunham, que durante gerações sucessivas, lhe
oferecia afago e segurança.
O fortalecimento do comércio no interior do espaço europeu
originou, ao longo das florescentes rotas comerciais de Flandres,
Borgonha e Norte da França e da Itália, um desenvolvimento urbano
que credenciou as cidades como uma articulação espacial passível
de desagregar o feudalismo. As concentrações urbanas passaram a
ser o cenário no qual se abrigou e fortaleceu um novo ator social, a
burguesia. Sintomaticamente, a classe burguesa deve sua identidade
1
133
ao burg, diga-se, à cidade, tal como este espaço é conhecido em
muitas das línguas germânicas. Os objetivos desta nova categoria
social para com o tempo diferiam consideravelmente de tudo aquilo
que até então havia sido formulado ao longo da história.
A classe burguesa, construindo uma compreensão de mundo
adequada aos seus interesses, foi, passo a passo, elaborando sua
própria concepção da temporalidade. Além das óbvias pré-condições
materiais, o tempo social da modernidade firmou-se com base em
elaborações filosóficas e científicas, vale dizer, na formação de um
imaginário, primeiramente evidenciado nas obras dos pensadores da
Renascença. Neste período,
...um conjunto de circunstâncias instituiu a prática da
observação atenta e metódica da natureza, acompanhada
pela intervenção do observador por meio de
experimentos, configurante de uma atitude mais tarde
denominada científica (SEVCENKO, 1984: 11).
O objetivo deste desenvolvimento científico e tecnológico era o
domínio do meio natural, garantindo a exploração de todos os
recursos possíveis em proveito do tempo de mercado. Definindo uma
visão de mundo sem paralelo na história humana, este imaginário
inseriu um alcance insuspeito mesmo para seus mais entusiasmados
próceres, arautos e apologistas. A ciência, objetivando a dominação
da natureza, passou a ser concebida com base em pressupostos
eminentemente racionais. Este posicionamento, tendo por pretensão
uma descrição matemática da realidade, induziu a preocupação com
as propriedades quantificáveis da matéria. Consequentemente, as
experiências decorrentes da sensibilidade estética e ética, valores,
1
134
qualidade e sentimentos, motivos e intenções, não redutíveis a este
paradigma, foram por definição expulsas dos domínios do discurso
científico e prontamente excluídas das especulações dos cientistas,
por serem consideradas desprovidas de respeitabilidade (Cf. CAPRA,
1991: 51).
Coerentemente, o conhecimento científico moderno abandonou
as dimensões qualitativas nas quais a consciência social dos
humanos movimentou-se durante a maior parte da história. A ciência
foi inteiramente laicizada e expurgada das considerações de ordem
cósmica que haviam influenciado seus fundamentos até um passado
não muito distante. Paralelamente, a compatibilidade entre ciência e
técnica de um lado, e a arte e a vida, do outro, patentes, por exemplo,
na etimologia da palavra tecnologia (do grego teckne, qual seja, arte),
desapareceu, criando um fosso que se aprofundou cada vez mais,
reverberando de modo inconteste até a atualidade.
Fato pouco sublinhado, o fenômeno renascentista prenunciava a
moderna sociedade capitalista. Neste sentido, como assinalou Pascal
ACOT, este período consuma antes uma transição que propriamente
um renascimento na qual o cosmos por inteiro foi geometrizado e
revisto matematicamente (Cf. 1990: 13). Neste paradigma, a natureza
deixa de reverberar significados cosmogênicos, sendo esvaziada dos
antigos sentidos sensíveis e transformada tão somente em uma fonte
de recursos para o sistema de produção de mercadorias em marcha.
As cosmogonias antigas, caracterizadas por uma proximidade
com a natureza e seus ciclos, foram definitivamente abandonadas.
Foram substituídas por uma nova mitologia, em cujo centro estava
1
135
assente uma versão do antropocentrismo negadora da natureza e dos
vínculos dos humanos com o cosmos. Esta nova relação com o meio
natural foi destacada em verso pelo poeta inglês John Donne (15721631). Sem maiores rodeios, este homem das letras registrou: “Nós
esporeamos, freamos as estrelas em seu curso. Elas se dispõem
diversamente para aceitar nosso comportamento” (in ACOT, 1990:
131).
Este antropocentrismo, diverso dos anteriores por justamente
ignorar as pulsões e os ritmos do meio natural, justificou acelerada
depleção dos recursos ecossistêmicos. Tal como foi observado, é
indiscutível que as populações tradicionais, ao estabelecerem formas
geralmente mais brandas na relação com o ambiente, preservaram,
conscientemente ou não, os recursos naturais. Ironicamente, poderse-ia ressaltar, foi esta a estratégia que assegurou, na escala do
planeta, a prodigalidade de bens naturais incorporados pela expansão
da sociedade moderna, propiciando aos ocidentais, a possibilidade de
posteriormente dilapidá-los sem piedade.
Nesta consideração poder-se-ia recordar o destino das florestas
europeias. Transformadas em fonte de matéria prima essencial para a
exigente indústria naval e como matriz energética para a produção do
ferro, foram abatidas com uma voracidade nunca dantes registrada na
história humana. Foi paradoxalmente devido aos elevados índices de
desmatamento que já no início do Século XIV surgiram os primeiros
decretos visando controlar o desflorestamento. A estes se agregaram
mais adiante, amplas e minuciosas legislações versando sobre o
tema, caso do célebre decreto do ministro Jean-Baptiste Colbert, Das
Águas e das Florestas (1669). Recorde-se, entretanto, que estas
1
136
normatizações não incluíam “compromissos ecológicos” de qualquer
tipo, pois miravam sobretudo, a consecução de uma base ambiental
de reprodução para o nascente sistema de produção de mercadorias.
A erosão ambiental ganhou velocidade conjuntamente com uma
erosão/desmantelamento cultural, consubstanciada na unificação, ou
melhor, homogeneização, no âmbito linguístico, religioso e nacional,
indiscernível do processo de centralização monárquica que alicerçou
o predomínio da nova classe burguesa. Nada disto ocorrera antes, e
certamente, sem o concurso da nova interpretação social do tempo,
tal não teria ocorrido. Inspirando um cabedal de noções científicas
estreantes, a novel acepção da temporalidade foi aceleradamente
implantada, animando o expansionismo colonial, rompendo e/ou
submetendo ao cadenciamento da produção, os diferentes tempos
eleitos como objeto de domesticação: o dos humanos, o da natureza
e o das formações histórico-sociais do cosmos extraeuropeu. Em
resumo, a legitimação global do processo de expansão do Ocidente
reportou a esta interpretação da fruição do tempo social.
A criação de um novo imaginário histórico-cultural dito “nacional”,
foi uma petulante peça imaginária associada a esta preocupação. Sua
predisposição foi, por definição, escorraçar e sobrepujar tudo o que
não fosse branco, ocidental e burguês. Neste imaginário, a burguesia
reinventou a totalidade da história humana, criou personagens novos,
privilegiou os detalhes que melhor se ajustavam ao padrão proposto e
ao mesmo tempo desqualificou ou negou o que não lhe interessava.
Atuando como polo organizador, o imaginário ocidental gestou novos
modelos identitários, inspirados na rememoração e ressemantização
1
137
da herança linguística, de marcadores territoriais e de “ancestrais
míticos”, hipotéticos povos fundadores das diversas nacionalidades.
Por isso mesmo, uma mitologia nacional passou a “provar” que
bretões, provençais, alsacianos, borgonheses e normandos, seriam
franceses (isto é, seriam descendentes dos francos), e que bávaros,
renanos, turíngios, pomeranos, silesianos e prussianos, seriam sem
exceção, alemães (ou seja, descendentes dos alamanos). Melhor
ainda, esta pretensiosa mitologia prescrevia que cada um dos novos
agrupamentos nacionais, ladrilhados numa mescla de falas e dialetos
díspares, de tradições locais e de particularismos irredutíveis, sempre
teriam formado a França e a Alemanha, afirmações que do ponto de
vista geográfico, histórico, econômico e antropológico, soariam como
grosseiras, rudimentares e insolentes. O mesmo sucedeu por toda a
Europa, na qual cedo ou tarde, a totalidade das populações viu-se
subitamente investida do privilégio de pertencer a esta ou aquela
“nacionalidade”.
Nos novos modelos de identidade nacional, a Gália ancestral,
povoada de celtas e adornada por menires, tornou-se uma evocação
romântica do “passado do povo francês”. A Dácia, inspirou poetas e
historiadores nacionalistas da Romênia na defesa de uma “ilha latina”
contra o desprezado mundo eslavo e magiar circundante. A avoenga
Germânia, miticamente coberta de névoa e por florestas de carvalho,
terminou transformada no “território ancestral” do moderno Estado
alemão. A antiga Panônia e seus cavaleiros ugrianos egressos das
estepes da Ásia, tornou-se o território mítico do moderno Estado
húngaro. A Roma Republicana, seus ícones e legendas teriam na
Itália hodierna a herdeira das suas antigas glórias. Quanto à velha
1
138
Hélade, mesmo dividida em poleis dilaceradas por guerras intestinas
entre si e que nunca desfrutaram de qualquer afinidade sociopolítica,
encontraria, apesar de tudo, sua aclamada reencarnação no prosaico
Estado nacional grego moderno.
Sem que a afirmação sugira qualquer exagero, este processo
redundou na criação de entidades étnicas e nacionais que outrora,
eram virtualmente inexistentes. Para tanto, apelou-se para uma dura
jurisprudência respaldada num estatuto de desnaturalização, aplicado
com denodado afinco junto a vastos contingentes populacionais. Este
processo, tipificado em diversas situações no transcorrer da criação
dos chamados Estados “nacionais” europeus, obcecado em lapidar as
novas identidades nacionais, sugeria implícita e necessariamente a
remodelagem dos marcos étnicos anteriores.
Entre outros exemplos, o rompante Criamos a Itália, resta-nos
criar os italianos, como se sabe, uma arguição textual do primeiroministro Cavour ao rei Vittorio Emanuele nos instantes finais da
unificação de uma península supostamente habitada por um único
povo, escancara inequivocamente este hiato. À propos, importaria
comentar que ainda hoje a Itália presencia a pertinaz militância dos
particularismos regionais, inconformados com a redução dos seus
linguajares (como o napolitano, vêneto, sardo e o siciliano) à condição
de “dialetos” do italiano, noção que do ponto de vista linguístico,
simplesmente não teria nenhum cabimento
17.
Tudo isso, nada mais
denuncia do que as dificuldades de construção de uma identidade
italiana, assim como de diversas outras “nacionalidades”, aceitas pelo
Por ocasião da unificação italiana (1870), rubrique-se que apenas 3% da população se
expressava no idioma toscano, proclamado como “língua oficial” do novo Estado italiano
(Cf. SOUZA, 1991: 21).
17
1
139
senso comum como realidades culturais dadas e raramente sujeitas a
uma avaliação crítica.
Em resumo, como negar que o imaginário nacional não enlevou
cenários míticos, que de um momento para outro, foram travestidos
dos lauréis de uma verdade? Na origem, o fenômeno de modelagem
das nacionalidades possuiu relação siamesa com a formação dos
mercados nacionais, com a criação das moedas únicas e com o
fortalecimento do absolutismo real. Paralelamente, foram decretadas
línguas nacionais (ou melhor, de Estado ou oficiais), geralmente com
base em um linguajar com maior proeminência literária (caso do
toscano, na Itália), política (o falar da corte, na França) ou comercial
(o holandês, nos Países Baixos). Nestes termos, a imposição de um
código linguístico unificado em nível de cada “nação”, normatizou
direta ou indiretamente um conjunto de padrões de compreensão da
realidade, pois programando os eventos de maneira completamente
diferente, estas línguas criaram percepcionamentos dantes difusos ou
inexistentes.
Este processo caminhou na contramão de uma heterogeneidade
que sempre, assim como para o conjunto da pré-modernidade, havia
caracterizado a totalidade do continente. Tradicionalmente, a Europa
esteve retalhada numa imensa Babel, aglutinando uma miríade de
idiomas por sua vez fracionados em um número incontável de
dialetos. No mundo medieval, a possível influência unificadora do
papado não conseguiu consolidar-se frente à fragmentação objetiva
do poder. Mesmo a liturgia da Igreja, vertida em latim, era um falar
estrangeiro para a maioria da população. O feudalismo se nutria ao
mesmo tempo em que reforçava relações de cunho local/patrimonial
1
140
que eram sua essência indiscutível. A espacialidade europeia estava
decomposta em unidades territoriais autárquicas e autossuficientes,
cuja fragmentação, era reforçada pela dependência funcional do meio
natural.
Secundando tal segmentação, povos e etnias se interpenetravam
uns relativamente aos demais, com papéis sociais engastados com
recortes e qualificações étnicas. Exemplificando, em regiões como a
Curlândia e a Livônia, no Báltico Oriental, a Ordem dos Cavaleiros
Teutônicos, classe senhorial de ascendência germânica, polarizava
com uma massa camponesa de origem estoniana ou leto-lituana. Por
toda a Rutênia, os latifundiários, denominados localmente de pans,
eram poloneses e não ucranianos. Nas extensas planuras da GrãBretanha, os daneses, um antigo grupo viking que havia migrado da
Escandinávia e se instalado em posições fortificadas na “nova pátria”,
exerciam seu poder sobre um campesinato de origem celta ou anglosaxônica. Para completar, as cidades europeias, quando de caráter
mercantil, reuniam fervilhantes colônias de alógenos, particularmente
de judeus, armênios e outras etnias cosmopolitas.
Por conseguinte, nada mais estranho ao mundo feudal do que a
homogeneização aplicada pela nova classe dominante burguesa no
espaço europeu. Muitas gerações antes de inaugurar o massacre das
populações indígenas, de escravizar milhões de africanos e de
submeter os povos da Ásia e Oceania ao seu tacão, a criação das
novas identidades nacionais europeias (por sinal das quais vasta
maioria seria dificilmente identificável no tecido étnico do continente
apenas alguns séculos antes), ensejou um genocídio físico e cultural
de proporções até então desconhecidas, acometendo centenas de
1
141
grupos, e concomitantemente, as falas, gostos, festividades, aptidões
e relações socioambientais que os particularizavam, majoritariamente
desmanteladas ou corrompidas, quando não, desaparecendo para
sempre.
A aguda percepção deste processo está contemplada nas ácidas
considerações com que o geógrafo Carlos Walter Porto GONÇALVES
registrou esta performance:
Geralmente fala-se muito que os europeus destruíram as
civilizações dos Maias e Astecas, quando da conquista da
América, mas nos esquecemos que eles primeiro
eliminaram os diferentes dentro da própria Europa. Onde
estão os godos, visigodos e celtas, por exemplo? No
próprio continente europeu, quem não era hegemônico,
quem não era dominante, também foi destruído (1992: 6).
Por conseguinte, e ao contrário do que é pensado por muitos, o
fortalecimento das modernas monarquias nacionais europeias não se
especificou exclusivamente na discriminação contra os judeus,
muçulmanos ou ciganos, mas também contra todos os que fossem
diferentes no próprio âmbito europeu, aí incluídos os etnicamente
assemelhados. Milhares de comunidades camponesas, seus hábitos,
suas tradições seculares e suas leituras da temporalidade, foram
destroçadas para que pudesse vingar o tempo progressivo e o novo
arranjo territorial que prontamente o acompanhava alguns passos
atrás.
A brutalidade destas “campanhas de homogeneização” pode ser
aquilatada em função do universo da temporalidade tradicional no
qual os camponeses europeus estavam imersos. Na Europa Feudal,
1
142
o tempo linear, completamente estranho ao mundo tradicional, era
objetivamente ignorado pela população camponesa. O campesinato
medieval estava em larga medida apegado a noções mitológicas e
mágicas derivadas de um estilo de vida regrado pela sazonalidade
das estações e dos ciclos agrícolas, o que justifica a popularidade das
antigas práticas pagãs, criminalizadas como “bruxaria” e “paganismo”
pelas autoridades eclesiásticas. Durante toda a Idade Média, o ideário
cristão “não conseguiu superar o apego característico da consciência
arcaica do arquétipo mítico, a atitude ritual e mágica diante da
realidade e em particular, do fluir do tempo” (Cf. GOUREVITCH, 1975:
275).
Isto posto, foi posteriormente a uma desmesurada operação de
“purificação étnica” realizada em solo europeu, que as potências
colonialistas se lançaram à imposição de seu domínio no além-mar,
com resultados que, aliás, rivalizaram com estrondoso sucesso frente
a estes primeiros, e nefandos, experimentos de aniquilação e de
genocídio (Vide CROSBY, 2000: 71/98).
A formação do Estado espanhol ilustra as linhas gerais desse
processo. Primeiramente foi selada a unificação monárquica, pela
união dos Reinos de Castela e de Aragão, no ano de 1479. Sucedese rapidamente a ofensiva contra o derradeiro reduto muçulmano na
Península Ibérica, o Reino de Granada e a expulsão dos judeus
espanhóis. Após esta purificação étnica, inicia-se então, a partir da
“descoberta” da América, o genocídio dos africanos e dos indígenas
americanos. A interconexão entre estes acontecimentos, transparece
cristalinamente em nível cronológico: a destruição do reino mouro de
Granada, o banimento dos judeus e a viagem de Cristóvão Colombo
1
143
(considerada como marco da opressão do negro e dos ameríndios),
são eventos que ocorreram num mesmo e fatídico ano: 1492.
Este prontuário de ações intempestivas foi referendado por um
novo imaginário sociocultural, germinando nas entranhas dos burgos
para posteriormente, impregnar integralmente a cultura ocidental.
Contrariamente às configurações do passado, este imaginário de tipo
novo não incluía as emanações e os fluxos naturais. Tratava-se de
uma percepção divorciada da natureza, propondo uma compreensão
totalmente artificial e geometrizada, expressão da matematização do
tempo e de sua autonomia frente a quaisquer outras dinâmicas. Este
“arquétipo” exaltou traços meliorativos como a humanidade, o limpo,
o retilíneo, o puro, o alto, o superior, o racional, o masculino e o nãosexual. Excluiu como antinomias as esferas da animalidade, do curvo,
do impuro, do sujo, do baixo, do inferior, do prazer, do feminino e da
sexualidade. Substantivamente, este dualismo esboçou processos de
significação ensaiados antes mesmo da constituição dos signos.
Tal construção imaginária teve nítidos reflexos na compreensão
do espaço e do tempo. Na Idade Média, como se pode presumir, o
imaginário espacial estava eivado de conotações hoje entendidas
como arcaicas ou ingênuas. Explicitariam esta interpretação fabulosa
do espaço do período medieval: a explicação ptolomaica do universo,
com uma Terra plana ocupando seu centro; Jerusalém como o
omphalos
18
do mundo habitado e em decorrência disto, do universo;
o registro, nos mapas medievais, de toda sorte de bestas e animais
fantásticos, procedentes de uma biologia maravilhosa; o domínio de
Omphalos significa umbigo em grego, sendo metaforicamente interpretado para referirse ao centro do universo. Na antiga Grécia era toponimicamente identificado com o sítio
ocupado pelo Oráculo de Delfos (Ver PLATÃO, 427a, 1990:175).
18
1
144
concepções mágicas relativas aos ventos, às marés, grutas, vulcões,
bosques, terremotos e tufões; a crença de que o espaço habitado
coexistiria com o Jardim do Éden, Babel, a Ilha das Sete Cidades e
Trapalanda, referências espaciais supostamente reais, desenhadas a
esmo nas cartas geográficas anteriores às navegações europeias (Cf.
SCHEINES, 1991: 13).
Pouco a pouco, mas determinadamente, o imaginário que surge
com a modernidade borrou por inteiro as representações precedentes
feudais. Constituindo uma representação matematizada e laicizada da
realidade, esta nova forma de entendimento da realidade expulsou da
consciência social aquelas representações típicas da iconografia
religiosa europeia medieval, desterrando topologias como o paraíso
terrestre do Éden, a Arca de Noé, a Torre de Babel e a posição central
de Jerusalém, costumeiras na cartografia dos séculos anteriores.
Desapareceram também diversos continentes insólitos, tais como
Thule e Atlântis. Criaturas fantásticas, integrantes de uma “zoologia
maravilhosa”, tais como sátiros, dragões, serpentes marinhas, grifos,
basiliscos, sereias, a ave roc, as harpias, o odradec, os unicórnios, as
salamandras e os antílopes de seis patas, foram empurrados para
uma reserva imaginária do natural, pois eram incompatíveis com um
espaço cada vez mais geometrizado.
Tais símbolos, referências, seres e territórios, em alguns casos
acompanhados dos povos e das populações que haviam constituído
seus interlocutores concretos, migraram penosamente para o domínio
das lendas, do folclore popular ou então para a esfera do irracional.
Desta derradeira fortaleza, estes excluídos, agora metamorfoseados
1
145
em criaturas monstruosas, lançaram-se, vez por outra, em investidas
no espaço do sono e dos sonhos, gerando pesadelos e sobressaltos.
No plano concreto, este processo terá rebatimentos, fora dos limites
europeus, materializados na desterritorialização dos não-ocidentais e
consequentemente, na releitura dos espaços que dantes ocupavam,
rotulados ao capricho dos novos dominadores europeus (Vide TUAN,
1980: 47/51 e passim NEBENZAHL, 2004).
Nada melhor exterioriza tais injunções imaginárias do que a
toponímia que passou a impregnar a cartografia desenvolvida no
Ocidente
19.
Para o caso da Europa recorreu-se a uma simbologia
cujas origens perdiam-se em meio à antiguidade clássica. Nos mitos
gregos, Europa correspondia a uma amante de Zeus, vista como
relacionada com a civilização minoica, e, não sem razão incorporada
com uma referência central para a identidade ocidental durante a
renascença. Porém, no exercício destas fantasmagorias, os novos
senhores do mundo se viram diante de certas dificuldades na tarefa
de inventarem a si próprios. Na cortante ponderação do geógrafo
Rogério HAESBAERT, seria oportuno lembrar que
...a Europa nunca existiu de fato. Nem mesmo a geografia
tradicional conseguiu resolver o dilema de definir a
Europa como algo mais do que uma grande península ou
‘um simples promontório da Ásia’, como disse Paul Valéry
(1997: 30).
A Cartografia espelha as prefigurações espaciais de uma dada cultura ou civilização.
Os mapas, ao resultarem de uma seleção de dados implementada em atendimento ao
que é considerado relevante para um imaginário espacial, guardam forte identidade com
coordenadas históricas, políticas e culturais (RAFFESTIN, 1993: 145). O saber e o afazer
cartográfico faz uso, seja este ato consciente ou não, de um aparato simbólico cujas
significações decorrem das expectativas espaciais pertinentes a um determinado padrão
civilizatório e sendo assim, seu papel extrapola a mera aferição objetiva do espaço
(passim NEBENZAHL, 2004).
19
1
146
Todavia, se existiram objeções para mapear as identidades que
vão sendo construídas no plano imaginário, estas foram inexistentes
quando o que estava em pauta eram as necessidades práticas do
mundo da economia e do poder. A cartografia ocidental, esboçada
com base em um sistema que repudiava os fluxos da natureza,
outorga substância social às novas prefigurações racionalizantes,
excluindo um conjunto de elementos míticos que deixaram de possuir
sentido com o avanço da modernidade.
O eurocentrismo, acompanhado da racionalização do espaço,
passou a imperar nas representações cartográficas. A Europa passou
a ser representada na parte superior dos mapas, posição antes
ocupada pela Ásia (caso do Mapa de Roda do medievo, ou Orbis
Terrarum). Jerusalém, que era costumeiramente destacada no centro
do mundo, perdeu esta investidura com a descoberta da rotundidade
da Terra.
Neste mesmo encadeamento de evocações, as representações
cartográficas passaram a ser, enquanto reflexo da matematização do
tempo, rigorosamente esquadrinhadas por uma rede de coordenadas
geográficas cada vez mais precisas. Ocupando o lugar dos antigos
conceitos, estas noções asseguravam a hegemonia da interpretação
progressiva do tempo social. O objetivo desta empreitada era claro:
“garantir a segurança e exatidão das viagens marítimas e sucesso
dos negócios dos mercadores europeus” (SEVCENKO, 1984: 11).
Expressão do domínio espacial incessante do capitalismo, as
grandes jornadas transoceânicas, tais como a Viagem de Colombo
(1492), a chegada de Vasco da Gama em Calicut, na Índia (1502) e a
1
147
circunavegação do globo por Fernão de Magalhães e Sebastião Del
Cano (1519 a 1522), não poderiam ser dissociados dos avanços da
geometria, da física, da matemática e da astronomia, assim como das
novas metodologias de confecção de mapas criadas pelo cartógrafo
flamengo Gerhard Kremer 20.
No plano epistemológico, a mundialização da formação social
capitalista foi legitimada por enfoques que traduziam as injunções do
novo cadenciamento temporal linear e progressivo, mesmo porque,
ontologicamente, este tempo social arrogava-se como universal. O
Ocidente passou a ser apresentado como o único a possuir história
efetiva, eivada de significados progressivos, desenvolvimentistas e
eurocêntricos.
Os demais povos, os ditos “atrasados” (expressão esta de nítida
conotação temporal), foram rechaçados, restritos e enclausurados em
marcações cronologicamente subalternas ou então, simplesmente
deixaram de possuir história. Em resumo, o atrasado é acima de tudo
definido pelo crivo da negatividade. Desta noção, decorre a conhecida
declinação desqualificante, presente inclusive no jargão acadêmico
de muitos concertos das ciências sociais, por intermédio dos quais, as
sociedades ditas “primitivas”, são caracterizadas por uma ótica da
negatividade, costumeiramente rotuladas como sem Estado, sem
classes sociais e sem propriedade privada.
No plano geográfico e espacial, este tempo, primordialmente
restrito a pequenos bolsões da Europa Ocidental, passou a pivotear
Também conhecido na forma latinizada de Gerhard Mercator (1512-1594), este
geógrafo foi autor da famosa projeção homônima, proveitosa nas navegações marítimas
por priorizar as coordenadas geográficas, vitais para determinar trajetos e a localização
nos trajetos transoceânicos.
20
1
148
os ritmos de uma produção material cujo cenário tangível confundiuse com o planeta por inteiro. Coerentemente, esta regulação social do
tempo opõe-se explicitamente aos particularismos e por extensão, à
heterogeneidade, manifesta na coexistência ladrilhada e simultânea
de diferentes regulações sociais do tempo-espaço.
Ao contrário das acepções perduráveis que geriam os antigos
tempos sociais, a concepção que irrompeu na Europa Ocidental não
era espacialmente circunscrita, e sua propensão, era a dominação do
horizonte terrestre: “Às caravelas e a imprensa, se junta a pólvora,
atrás de cujo poder de morte, a noção de obstáculo desaparece” (Cf.
BETTANINI, 1982: 24).
Esta profunda alteração dos padrões sensíveis que no passado
caracterizaram as sociedades humanas em geral e que atualmente
demarcam a maior encruzilhada de que a humanidade jamais teve
notícia, atenderam a uma estratégia deliberada de colocar povos e
regiões a serviço da acumulação de capital, sempre encabeçada pelo
tempo linear e progressivo.
Em função desta necessidade, foram profanados e mortificados
todos os espaços, criados ou reelaborados outros signos, símbolos e
estigmas, cruciais para a organização do tempo social, do espaço
habitado e requalificação posicional dos seus habitantes humanos e
não-humanos.
Corolário complexo que somente um detalhamento mais preciso
do tempo da modernidade poderia explicitar.
1
149
3.5. A HEGEMONIA DOS TEMPOS MODERNOS E SUAS SEQUELAS
Na análise das sociedades, dificilmente seria possível identificar
mudanças em qualquer âmbito, desobrigando-se da salutar atribuição
de anotar a substituição dos símbolos e das manifestações do poder
constituído na medida em que este, muda de mãos no decorrer do
tempo histórico. Tal ponderação, seria enfim indispensável em vista
dos próprios detentores do mando social, político e econômico, jamais
se eximirem de demonstrar quem, no final das contas, detém de fato,
as rédeas do comando da sociedade.
Nessa pauta de considerações, os aparatos que expressam o
controle material do fruir do tempo ocupam destaque obrigatório. Qual
observador das sociedades poderia ser descuidado a ponto de não
perceber a importância deste fato, que se manifesta em sociedades
tão díspares quanto as responsáveis pela construção do círculo
arqueoastronômico do Stonehange, as estabelecidas com base no
controle dos eventos sociais pelas realezas tradicionais da África e no
férreo exercício da instauração dos calendários nas sociedades
teocráticas por parte dos impérios orientais?
Exatamente movidos por este intuito, à guisa de comentar a
irrupção da nova ordenação social do tempo, é que primeiramente,
urgiria apreender o simbolismo político, histórico, geográfico e cultural
dos marcadores da marcha do tempo que irromperam sob signo do
capitalismo, vale dizer, dos relógios implantados nos burgos europeus
no transcorrer da supremacia interposta pela nova temporalidade
1
150
firmada com base na economia de mercado, assim como nos demais
epifenômenos dela decorrentes.
É preciso recordar primeiramente que longe de constituir uma
coincidência, a ascensão da burguesia como nova classe dominante
e a implantação de relógios mecânicos nos torreões das prefeituras
municipais no continente europeu constituíram fatos correlatos e
mutuamente interdependentes entre si. Esses relógios, requintados e
esplendidamente instalados, para além de um marco artístico ou
estético na paisagem urbana, eram o símbolo da supremacia de uma
temporalidade, linear e progressiva, que substantivou a imperiosidade
de um processo histórico que expurgou do universo da percepção as
conotações plásticas, sensíveis, pulsantes e qualitativas da fruição do
tempo, nuanças que caracteristicamente tinham orientado os povos
da Europa durante o interregnum medieval.
Neste particular, pistas denunciadoras das averbações temporais
dos antigos, fornecendo amplo cabedal de informações, podem ser
encontradas na história da relojoaria. Os gnomons (ou relógios de
Sol), as clepsidras (ou relógios de água) e as ampulhetas (ou relógios
de areia), acompanhados de uma série de habilidosos dispositivos
mecânicos, foram construídos com base em princípios cosmológicos
avessos à noção moderna de uma temporalidade abstrata, fluindo a
despeito do espaço. No que é absolutamente representativo das
inquietações temporais da antiguidade, o relógio solar greco-romano
“raramente indicava, por meio de números, as linhas das horas, mas
quase invariavelmente, as linhas do Equador e dos Trópicos estavam
ali adequadamente inscritas” (Cf. PRICE, 1976: 61).
1
151
Quanto aos relógios da antiguidade, embora em vários casos
tecnicamente muito consistentes e intuindo conceitos mecânicos
bastante avançados, dentre estes, o de simulacra e de automata
(respectivamente dispositivos que retratam e que se movem por si
mesmos), as acepções quantitativas do tempo raramente estavam
espelhadas nestes engenhos. Ao invés disto, os relógios mecânicos
da Europa pré-moderna conotavam, amiúde, preocupações de índole
inteiramente diferente. O mais complexo destes relógios, construído
por Giovanni de Dondi em Pádua no ano de 1264, dispunha de sete
mostradores, “cada um deles exibindo um planeta e apresentando
toda sorte de dados astronômicos e, mais um modesto mostrador
extra, que demarcava o tempo” (PRICE, 1976: 41, grifos nossos).
Vale a pena refletir que, alicerçado num vínculo de tempo e lugar,
no qual as ocorrências naturais regulares desempenham importante
papel, o mundo tradicional fundamentalmente se reconhecia em
razão de um espaço-tempo, e não de um tempo-espaço. Ao contrário
da modernidade, a tradição entendia o espaço enquanto a suprema
medida do tempo, paradigma plenamente constatado numa vasta
gama de manifestações da cultura espiritual dos antigos.
Não é à toa que mesmo nas chamadas línguas “modernas” do
tronco indo-europeu (alemão, inglês, holandês, castelhano, francês,
etc.), percebe-se esta tendência pela persistência, na nomenclatura
dos dias da semana, dos nomes de astros e planetas, adotados como
marcadores espaciais para a fruição do tempo. Seguramente, muito
mais que regido por um tempo próprio, o homem do passado sentiase em comunhão com inferências e contributos cosmológicos, que os
1
152
relógios da antiguidade e outros expedientes de acompanhamento da
fruição temporal procuravam atestar.
Em nada disto diferia a velha ordem feudal. Cabe aquilatar, no
medievo o tempo estava sacralizado, ordenado e ritualizado mediante
um calendário povoado por santos, procissões, peregrinações, cultos
e festividades religiosas dos mais diferentes matizes. O transcorrer do
dia, era normatizado pelos ofícios religiosos, por preces obrigatórias e
por toda sorte de rituais. O tempo não possuía aquele valor que mais
tarde se tornaria sua característica inseparável. O homem medieval
vivenciava o tempo como o tempo da vida dos homens, e não como
algo exterior a ele. O badalar dos sinos, representação máxima de um
tempo eclesiástico, não era sentido como uma entidade neutra, mas
antes, como uma materialidade, conectada com as práticas do
cotidiano. Esta regulação social do tempo era ainda influenciada pelo
predomínio dos ciclos agrícolas como principal meio de subsistência,
cuja sazonalidade foi, em maior ou menor grau, assumida pelo tempo
da Igreja.
Entretanto, sob o carrilhão dos torreões municipais, o ciclo de
produção do artesão deixou de ser determinado pela alternância das
estações ou pelas oscilações climáticas:
Se o agricultor estava diretamente envolvido no ciclo
natural e não podia livrar-se dele a não ser com
dificuldade e incompletamente, o artesão da cidade
estava ligado à natureza por relações mais complexas a
contraditórias. Havia criado entre ela e ele um ambiente
artificial constituído por seus diversos instrumentos de
trabalho e por todas as espécies de dispositivos e
1
153
mecanismos que mediatizavam suas relações com o
ambiente natural (GOUREVITCH, 1975: 279).
Crescentemente, o homem percebia-se como criador autônomo
de seu próprio mundo artificial, distinto da natureza:
A atividade dos vendedores exige que as distâncias entre
os pontos comerciais sejam vencidas rapidamente. Os
empresários se preocupam em produzir o mais possível
numa unidade de tempo determinada e de aumentar o
tempo de trabalho; os pequenos artesãos e os operários
têm interesse em que as horas de trabalho sejam
medidas com precisão. O tempo, ou mais precisamente a
hora se torna a medida do trabalho. Ele adquire grande
valor, transformando-se em fator essencial da produção
(GOUREVITCH, 1975: 280, grifos nossos).
Desta maneira, entendendo-se que a temporalidade eclesiástica
podia mostrar-se displicente quanto aos aspectos quantitativos do
tempo, evidentemente, tal não poderia ocorrer com o tempo social de
mercado. Assinalar a passagem do tempo através da posição do Sol
no horizonte, pela passagem dos equinócios e dos solstícios, pela
sucessão das dinastias, pela implantação dos pontificados, pela
celebração das festividades religiosas, pela passagem dos cometas e
das estrelas cadentes ou pelo calendário agrícola, deixou de fazer
sentido em um sistema no qual a própria hora transformou-se numa
mercadoria.
Esta inferência foi registrada pelo cientista e autor estadunidense
Benjamin Franklin no aforismo que se tornou a referência simbólica
fundante do mundo moderno: Tempo é Dinheiro. O tempo linear, ao
se infiltrar em sociometrias tão diferenciadas quanto as relações de
trabalho, o convívio social e o lazer, tem justamente nesta frase, um
1
154
reconhecido apotegma da modernidade. Na sua essencialidade mais
profunda, este postulado explicita um consenso social e cultural do
mundo moderno pelo qual uma eficaz administração do tempo, sob o
signo da velocidade, da rapidez e do revolucionamento permanente
da produção e do conhecimento técnico e científico, constitui a base
que habilita aos humanos a geração de riquezas. Isto posto, uma
pregação constante, por vezes apaixonada, em prol de um trabalho
físico e/ou mental incessante, coberta de objeções éticas e morais
quanto à indolência e a sensualidade, ao sono e conversas ociosas,
transformaram a perda de tempo no primeiro e principal de todos os
pecados (WEBER, 1967: 112).
Esse tempo impessoal, cujo caráter sobrenatural liga-se a sua
essência não-natural, foi gradativamente imposto ao conjunto da
sociedade, internalizado pelos seus atores sociais e posteriormente
colocado como regente da totalidade do mundo conhecido, isto é, do
planeta. No Renascimento, com a criação dos relógios de bolso, foi
dado o primeiro passo para tornar corporal o ritmo social hegemônico.
Mais tarde, com os relógios de pulso, desdobramento dos de bolso,
este ritmado fica permanentemente à vista dos seus portadores, uma
garantia da sincronia dos dinamismos corporais com as demandas
temporais solicitadas pelo sistema.
Embora em princípio esta obsessão com as finalidades práticas
do uso do tempo não estivesse necessariamente vinculada com uma
precisão de ordem técnica, ela não tardou em tornar-se referência
inquestionável, impondo-se virtualmente a todos os membros da
população. A difusão do relógio mecânico, um fenômeno que data dos
finais do Século XVIII, foi de significação-chave para universalizar um
1
155
tempo vazio, separado do espaço, quantificado de maneira a permitir
a designação precisa de zonas do dia, como por exemplo, a jornada
de trabalho (GIDDENS, 1991: 26).
A socialização do aparato biológico, constituindo uma fisiotécnica,
perpassada por relações desiguais e hierárquicas, passa a comportar
a explicitação de uma instrumentalização das diferenças dos corpos
preocupada com seu disciplinamento para levar a cabo os intuitos da
nova temporalidade triunfante (Cf. VIDART, 1996).
No caso da classe operária, essa domesticação incluiu processos
impecavelmente mortificadores, brutais e violentos. Por exemplo, no
Século XVI, a população rural inglesa, expropriada e expulsa de suas
terras e, em seguida, compelida à vagabundagem, “foi enquadrada na
disciplina exigida pelo trabalho assalariado por meio de um grotesco
terrorismo legalizado que empregava o acoite, o ferro em brasa e a
tortura” (MARX, 1975b: 854).
A vigilância patronal que se estabeleceu sobre o tempo de
trabalho foi desde o princípio, objeto de rude e escrupuloso controle,
corporificando, numa ótica normativa, um confisco da temporalidade
humana, repaginada em meio a um dos mais opressivos capítulos da
exploração do homem pelo homem. Na ausência dessa premissa, o
industrialismo, alicerçado sobre um terreno crivado de crimes contra o
campesinato, pavimentado por carceragens e reformatórios, incluindo
práticas genocidas, trabalho infantil, migrações forçadas e usurpação
de direitos das populações tradicionais, nunca teria obtido o menor
sucesso.
1
156
No detalhamento cada vez mais preciso da apropriação do tempo
alheio, o taylorismo
21,
edificado como doutrina disciplinar do trabalho
seriado nos Estados Unidos a partir dos princípios do Século XX,
prontificou-se como paradigma máximo da temporalidade capitalista.
Empenhado numa guerra aberta e declarada contra as leituras do
tempo social discrepantes das que endossava, o taylorismo impôs
uma estandardização forçada, quebrando, usurpando e submetendo
as formas tradicionais de organização do trabalho. Sob seu timbre,
nunca mais a rotina das oficinas foi a mesma:
...os capatazes impuseram a nova modalidade de trabalho
repetitivo e designaram tarefas segundo ordens patronais.
Os cronômetros se instalaram sobre os ombros dos
operários qualificados para descobrir seus tempos e
movimentos. Com estes índices, logo se elaboraram
tábuas de produção sujeitas a ritmos muito mais intensos.
Através do roubo do saber artesanal, o taylorismo
transferiu, em bloco, o conhecimento das operações e os
projetos à gerência (KATZ, 1995: 14, grifos nossos).
Nesta sina, o tempo social, acompanhando o frenético ritmo de
desenvolvimento das forças produtivas, distanciou-se das inferências
provenientes da natureza, sobrepondo-se a elas. O relógio atômico
do Século XX constituiria um dos símbolos quase paradigmáticos
deste tempo. Ele assinala a passagem dos segundos, minutos, horas,
dias, meses e anos, ativado por uma central própria de energia, sinal
de que o tempo social baniu o tempo da natureza. O novo tempo
inaugurado pelo mercado criou um mundo à sua própria imagem, no
qual o início e o final dos dias deixaram de ser governados, como
sempre o fora no passado do homem, pelo movimento do Sol, da Lua
Neologismo referente a Frederick Winslow Taylor (1856-1915), considerado “Pai da
produtividade”, autor de The Principles of Scientific Management (1911).
21
1
157
ou das estrelas. Agora, este passa a ser demarcado pelo transcorrer
da jornada de trabalho, independentemente dos ciclos naturais, do
período do ano ou das condições meteorológicas.
O tempo linear e progressivo, emanação de forças sociais que
subentendem os humanos e a natureza como elementos à disposição
do progresso e do desenvolvimento, excluiu todas as acepções
sensíveis porventura assimiláveis ao intelecto humano. As vigentes
em solo europeu num primeiro momento. As do restante do mundo,
no seguinte.
A dimensão cósmica que sempre havia habitado o tempo e o
espaço, entrelaçando a ambos e os unindo simultaneamente aos
humanos, foi abolida e substituída por uma outra, de cunho
eminentemente prático e quantitativo, descolando o tempo do espaço.
A ruptura desta parceria com o espaço representou a possibilidade do
tempo substantivar-se em uma cronologia temporal alheia a qualquer
outra derrelição, e nesta, um certo sentido de velocidade que passou
a ser a marca característica da modernidade (Cf. GREGOTTI, 1975:
77).
Preceituado retilineamente, o fruir do tempo, diferentemente das
concepções de outrora, deixou de possuir uma “respiração”, de ser
uma entidade viva e pulsante. Em franca oposição a um modelo
cíclico que foi, dentro de determinados limites, o grande paradigma
temporal das civilizações de outrora, o tempo linear projeta a história
continuamente para frente. Preconizando uma compulsiva ênfase
evolutiva estranha a qualquer outro padrão civilizatório do passado,
esse tempo necessariamente entra em contradição com modos de
1
158
vida regrados pela estabilidade, pela repetição, pelo convívio com as
energias sutis do corpo, do território e do cosmos.
Na dimensão dos regimes de sentido, visto que as dinâmicas
temporais são alçadas a plena soberania, o espaço, desencaixado do
tempo e a ele subordinado, é recalcado e subalternizado, perdendo
sua significação sensível. O homem da modernidade, contrariamente
aos seus ancestrais, é sumamente um ser que trafega junto aos
fluxos do tempo, que subordina seu cotidiano em meio a um espaço
crescentemente indiferenciado. Caracterizado por fluxos de produção
avessos ao tempo-espaço da natureza, o tempo linear e progressivo
termina por adiantar-se ao próprio espaço construído, que constitui
seu reflexo direto.
Esta prevalescência ontológica do tempo está muito longe de
constituir uma afirmação meramente conceitual. Pelo contrário, ela é
instilada no mundo material, refletindo-se no universo vocabular do
homem moderno, conotando formas específicas de apreensão do
espaço, justificando que em meio aos afazeres cotidianos, os homens
contemporâneos apelem constantemente, quase sem perceber, para
designativos de cunho temporalizante quando estes se defrontam
com a necessidade de mensurar ou de qualificar as distâncias.
Ex expositis, tem-se que habitualmente o cidadão comum refirase a “horas de viagem”, “minutos de trajeto”, “dias de viagem” e/ou
“tempo de percurso” para identificar distâncias no espaço geográfico.
Mesmo quando a referência é o espaço extraterrestre, esta tendência
manifesta-se pela utilização de marcadores como o “ano-luz”, cuja
conotação temporal se evidencia por si mesma.
1
159
Ao contrário das culturas tradicionais, nas quais o passado era
honrado e os símbolos valorizados por chancelarem a experiência de
gerações, na modernidade esta diligência temporal deixa de contribuir
para com que é definido como segurança ontológica. Nesta ótica, o
que é considerado pretérito passa a ser abstraído de significação em
um mundo no qual o próprio presente tornou-se um instante volátil e
fugidio, lapso que vai do passado para o futuro e que rapidamente,
transforma o futuro em passado (apud GOUREVITCH, 1975: 282).
Neste sequenciamento, o antes e o depois se tornaram marcos
de uma marcha processual na qual o futuro, assim que capturado
pelo presente, é rapidamente erodido e transformado em um aluvião,
composto de partículas cuja inteligibilidade, uma vez desfeito o
sentido organizador do presente, desaparece. Com isso, a própria
memória do passado também é eliminada. Os eventos, sucedendo-se
rapidamente, como que encarcerados num caleidoscópio a virtualizar
seu sentido, são metamorfoseados em simulacros, fluindo por breves
momentos perdidos na voragem de um tempo dominador e inflexível.
Sinteticamente, a modernidade é um modo de vida em que tudo se
torna prontamente parte do passado.
Desta forma, o tempo, não mais vivenciado como o tempo de
cada coisa, mas sim, como um ritmo ao qual todo homem deve se
submeter, é unificado em uma escala cada vez mais ampliada. O
sistema de redes ferroviárias construídas na Europa ao longo do
Século XIX, concorre para a padronização em nível do Estado-nação,
via implantação das horas oficiais nacionais e logo em seguida, na
sincronização dos continentes, por meio da institucionalização do
sistema internacional dos fusos horários. Os trilhos, estatuindo uma
1
160
comunicação regional, nacional e posteriormente global, expandem
ao longo de milhares de quilômetros um tempo único, tornado padrão
para os demais tempos.
Esta sincronização é sucedida pela exatidão. A temporalidade
moderna encontra sua explicitação mais acabada no relógio digital.
Ao contrário dos relógios confeccionados no Renascimento, que
ainda resguardavam reminiscências do extinto tempo cíclico, com
mostradores e ponteiros dando voltas ao redor de um eixo, esta
última manifestação da circularidade do tempo é secundada pelo
cristal líquido dos relógios digitalizados. O tempo passa a cristalizarse, desintegrando-se molecularmente para ressurgir com base em um
novo impulso elétrico. Graças aos cristais do quartzo, nem mesmo as
frações de segundo são poupadas do desperdício.
Nos locais de trabalho, nos meios de comunicação e ao longo
das vias expressas das urbes modernas, os relógios digitais lembram
incessantemente que sua onipresença é sinal de que os humanos,
paradoxalmente, deixaram de possuir qualquer tempo. Anteriormente
múltiplo, permeável e qualitativo, o tempo carrega agora consigo a
marca inelutável da opressão, inerente a um sistema de produção de
mercadorias sob cujo tacão, é mister que a produção e o trabalho se
efetuem ordenadamente, com vistas a um fim (MARX, 1978: 17).
Este modelo encontra seu grande paradigma na moderna linha
de montagem, primeiramente concebida nos matadouros nos finais
do Século XIX (Vide KATZ, 1995: 15), e meticulosamente aplicada na
indústria automobilística por um entrepreneur, o emblemático Henry
1
161
Ford, que sintomaticamente era, além de engenheiro, um aficionado
da relojoaria 22.
A Era Industrial somente pode ser explicada por uma máquinachave que não é a máquina a vapor, mas sim, o relógio. O contrário
seria fetichizar a máquina. Isto porque a máquina não existe sozinha,
mas sim, como representação concreta de uma organização do
tempo à qual está ajustada, cuja lógica, acata e obedece.
Então, resulta adequado enfatizar, a racionalidade na fabricação
inequivocamente antecede a operacionalidade do que é fabricado (Cf.
VIDART, 1996). Assim sendo, as engrenagens constituem antes a
materialização de uma concepção de tempo do que origem da sua
manifestação.
O severo reducionismo do tempo linear e progressivo, ao
encarcerar esta esfera sensível em prol de compromissos sem rosto,
que são sua tradução sociológica e antropológica, redundou em um
mundo universalmente povoado por estranhos (Vide GIDDENS, 1991:
84).
Submerso pelo narcisismo, o atomizado homem contemporâneo
está obcecado por dúvidas, angústias, perturbações e distúrbios toda
Henry Ford (1863-1947), também chegou a esta concepção com o concurso das ideias
de Frederick W. Taylor, de Henry Fayol (1841-1925), tido como o tutor da estrutura por
funções, autor de General Principles of Management (1916) e do sociólogo alemão Max
Weber (1864-1920), cujas teorias a respeito do modelo burocrático foram fundamentais
para a moderna teoria da organização. Caberia uma advertência aos que sinonimizam o
fordismo, assim entendido como o modelo implantado por Henry Ford nas suas
indústrias, ao sistema capitalista. Não poucos autores recordam o parentesco entre os
seus métodos e os que foram implantados na década dos anos 1930 na antiga URSS
sob a égide de Aleksei Grigorievich Stakhanov (1906-1977), Herói Socialista do Trabalho,
cujas proposições, raiz do neologismo Stakhanovismo, foram extensivamente
carimbadas como uma espécie de fordismo socialista.
22
1
162
vez que o reflexo do outro o alcança. Acostumado com a vida de cada
um por si, tornou-se difícil para o absorto homem contemporâneo,
“compreender que para a maior parte da história do homem, todos os
homens viviam uma vida, por necessidade, envolvida com o bemestar dos seus semelhantes” (MC LUHAN et FIORE, 1971: 24).
Sob o impulso catalisador da progressividade, os homens foram
induzidos a uma volatilidade pela qual, os relacionamentos, tal como
as coisas, foram se tornando cada vez mais transitórios, efêmeros.
Consolidou-se, pois o que foi magnificamente definido pelo escritor
norte-americano Alvin TOFLER (1973) como Era da Transitoriedade.
Enfraquecidos os laços que atavam um humano aos demais, o
mundo moderno substantivou-se a partir de uma ruptura radical com
a antiga vida pública, que se absteve de atuar como fator de interação
(passim SENNETT, 1993 e BETTANINI, 1982: 130/131).
Com isto, aquele equilíbrio no final das contas tão necessário
para a estabilidade emocional dos humanos, igualmente deixou de
existir. Multidões de pessoas estão agora preocupadas, mais do que
nunca, apenas com as histórias de suas próprias vidas e com as suas
emoções particulares (SENNETT, 1993: 17).
Anteriormente à eclosão do tempo linear e progressivo, o
entrelaçamento da convivialidade comunitária com os espaços de
vida, constituía um embasamento prioritário para os velhos modos de
produção, articulando-se com a personalidade cultural dos grupos e o
funcionamento dos arranjos espaciais.
1
163
As formações socioespaciais do passado prescreviam enquanto
códice magno para suas pretensões civilizacionais, as diretivas da
perdurabilidade, reciprocidade, sustentabilidade e da estabilidade,
observáveis nas convivialidades mantidas com a natureza assim
como nos que regravam a vida social. Deste prolóquio, raramente as
comunidades da pré-modernidade se distanciaram.
Contudo, tal normatização, outrora básica para uma apreensão
qualitativa do cosmos e do homem, foi preterida e abandonada pela
adoção das novas premissas reducionistas e quantitativas, afeitas à
implantação da temporalidade moderna. A sociedade contemporânea
perdeu de vista que, na história, ao lado da evolução, a cadência da
estabilidade desempenhou um papel igualmente fundamental (Vide
GOUREVITCH, 1975: 283).
Neste novo ditame, produzir é melhor do que viver; consumir,
melhor do que perpetuar; mudar, preferível a permanecer; e quem
sabe, como destacou o cineasta canadense David Cronemberg na
película Videodrome (1982), virtualizar, seria melhor do que existir.
Frente a tamanha e tão detalhada elaboração implicando numa
supremacia temporalmente totalizante, surgiria a tentação de indagar
sobre os rebatimentos espaciais desta postura. Afinal, o que poderia
se equiparar em termos de ineditismo frente a ela?
É exatamente este caráter nunca visto que incita a refletir um
pouco mais aprofundadamente sobre este tema, ampliando o nosso
próprio potencial de respostas e de perspectivas.
1
164
CAPÍTULO 4
URBANIZAÇÃO, TECNOESFERA E OS
LIMITES DO TEMPO
4.1. PROGRESSIVIDADE, MODERNIDADE E O CONTEXTO DA CIDADE
Refletir a respeito da temporalidade moderna em momento algum
poderia se desvencilhar do mapeamento dos indicadores concretos e
abstratos que motivaram o mundo europeu a encerrar de modo tão
abrupto os modos tradicionais de relação com a realidade. Foi
observado, à medida que se impunham os parâmetros cultivados pelo
pensamento renascentista, o mundo medieval europeu era sacudido
nos seus alicerces e substituído por um novo sistema de valores, que
desmantelava sem piedade as antigas verdades.
Inequivocamente, surgiria a predisposição em definir a nova
situação criada pelos tempos modernos como uma inversão profunda
da organização social humana, ao menos no tocante às formas
imemoriais de compreensão e de interação com o ambiente imediato.
O triunfo da razão como alicerce do entendimento da realidade inseriu
problemáticas inéditas, perceptíveis até os dias atuais. Ponderando a
respeito, a socióloga Glória Maria dos Santos DIÓGENES recorda
que tal racionalização do mundo estaria
...carregada daquela angústia mítica radicalizada
travestida de controle, de certeza, de onipotência, de
exatidão, da verdade, do não-medo. O homem seria o
mentor do progresso, o construtor de sua história, o
transformador da natureza, e com isso, mudaria a feição
1
165
do mundo e a de si próprio. Progresso vem significar
domínio, em relações reconhecidamente assimétricas,
onde se justifica em seu nome a morte das ‘culturas
atrasadas’, de povos que entravam o desenvolvimento,
das tradições que insistem em manter crenças fora dessa
‘nova’ ordem universal (1992: 3).
Constituindo seu sucedâneo obrigatório, o cadenciamento do
tempo proposto pela modernidade, em face da nítida precedência
conquistada na nova ordem das coisas, reclamaria sobremodo, naco
substancial das nossas atenções. Prisioneira de um tempo subtraído
do corpo vivo de uma história dantes saturada de significações e de
regimes de sentido, a sociedade humana observa-se ensombrada
pelo espectro de um tempo exclusivista e absoluto:
Dissemos que a cidade havia se tornado senhora de seu
próprio tempo; quer dizer que este fugira ao controle da
Igreja. Mas também é verdade que precisamente na
cidade o homem deixa de ser senhor do tempo, pois este,
tendo
futuramente
a
possibilidade
de
fluir
independentemente dos homens e dos eventos,
estabelece a sua tirania, à qual os homens são obrigados
a se sujeitar (GOUREVITCH, 1975: 282).
Visto que as dinâmicas temporais predominam sobre quaisquer
outras, uma consequência inevitável foi que a dimensão espacial,
uma vez desencaixada do tempo, terminasse esvaziada das suas
significações sensíveis. O homem da modernidade é sumamente um
ser que trafega junto aos fluxos do tempo, que subordinam seu
cotidiano em meio a um espaço crescentemente indiferenciado. Na
modernidade, como destacou Anthony GIDDENS, “a coordenação
através do tempo, é a base para o controle do espaço” (1991: 26).
1
166
Numa assertiva que constitui desdobramento direto do que
estamos pautando, no passado, a produção do espaço era um feito
condicionado por impulsos temporais encadeados ao próprio espaço,
e este, por sua vez, atendia como pré-condição para a reprodução de
determinado tempo social. Mas com o surgimento da economia de
mercado, é o tempo que está no comando processual de todos os
dinamismos, consideração que reportaria ao sentido de velocidade
que em particular, tipifica este novo estágio da história humana.
Por conseguinte, não surpreende que no cosmo da modernidade,
ao contrário das sociedades tradicionais, nas quais os fatos pretéritos
eram honrados e os símbolos, valorizados por conterem a experiência
de gerações, o passado tenha deixado de constituir um referencial
existencial. Estratificando um tempo descompassado das demais
dinâmicas e via de regra, adiantado a elas, a espacialidade do tempo
linear ganha uma conotação de transitoriedade que é, tão somente, a
manifestação de uma temporalidade que rege soberanamente a
edificação das marcas espaciais de um modelado eminentemente
artificial. Não por outra razão, basicamente pelo fato de que na flexão
temporal moderna, nada é permanente.
A velocidade dos fluxos, materializada numa espacialização
incontida e irrefreável dos tempos modernos, é uma característica
observável a todo o momento na paisagem urbana contemporânea
23.
O espaço, premido por um tempo febricitado pela vazão incontrolável
dos seus dinamismos, é induzido a uma transmutação constante.
Tal frénésie foi admiravelmente captada na película Koyaanisqatsi (1983), dirigida por
Geofrey Reggio. Avaliada pelos críticos como um poema sinfônico em time lapse, o filme
centra-se no registro de paisagens artificiais urbanas, moduladas exclusivamente pela
trilha sonora de Philip Glass. Na língua da etnia hopi, dos Estados Unidos, Koyaanisqatsi
significa vida fora de equilíbrio.
23
1
167
Disto decorre a ininterrupta territorialização do espaço, agregando
elementos novos que vão sendo constantemente incorporados à
paisagem criada na substituição das formas antigas, descartadas sem
demora. Caracterizado por fluxos de produção avessos ao espaçotempo natural, o tempo linear e progressivo termina por adiantar-se
ao próprio espaço artificial ou espaço-prótese, do qual constitui seu
reflexo direto.
Por esta razão, os sistemas voltados para a fruição do tempo são
constantemente esgotados e substituídos por outros mais novos e
mais velozes ainda. No caso da malha viária, é isto que leva, por
exemplo, ao asfaltamento das estradas de terra e à duplicação das já
asfaltadas
24.
No meio urbano, tal variável orienta a construção de
corredores de alta velocidade, implantação ou expansão dos sistemas
de metrô e surgimento de serviços de comunicação aérea (caso dos
helicópteros executivos). Idêntica expressão da proeminência destes
fluxos, os sistemas de comunicação que rasgaram o leito submarino e
desafiaram longos braços de mar, conectando a Grã-Bretanha ao
continente europeu e unificando as ilhas do arquipélago nipônico,
antecipam o dia em que o mundo inteiro poderá estar cortado por
escoadouros do tempo linear.
Na medida em que se decantam os fluidos do tempo, forma-se
um cenário artificial compósito formado por plásticos, vidro, alumínio,
aço, concreto e asfalto, materiais que se confundem com a própria
vida moderna. Os obstáculos a artificialização incessante do ambiente
são canalizados ou retificados (rios, córregos e arroios), drenados
Note-se também neste processo, a influência da força locacional das marcas espaciais
pretéritas, promovendo a reapropriação e ressignificação das rugosidades anteriormente
edificadas no espaço habitado.
24
1
168
(pântanos e alagadiços), aplainados (morros, colinas e matacões) ou
aterrados (reentrâncias da topografia). Os centros urbanos, nascendo
no entrecruzamento destes fluxos ou naqueles sítios nos quais são
circunstancialmente arrefecidos, interrompidos ou detidos, engendram
concreções, nódulos, terminais, polos e pontos fixos, espaços que
concentram um quantum de conteúdos de tempo, numa contiguidade
isocrônica que se expressa nos rebatimentos concretos e simbólicos
do cotidiano dos humanos.
Entretanto, a amplificação da artificialidade não está qualificada
exclusivamente pelas alterações da natureza primeira ou de suas
reminiscências. Vivências oriundas de uma acumulação passada de
tempos, terminam igualmente recompostas, refeitas e recombinadas,
pois na artificialidade moderna, tudo é transitório. Esta transmutação
do espaço é inerente ao predomínio do tempo linear e progressivo,
que vai corroendo inexoravelmente os sinais herdados do passado.
Deste modo, o arquiteto Luís Saia, recorda que no caso do primeiro
assentamento urbano de São Paulo, utilizando paredes de taipa de
pilão, dele nada restou nas reconstruções urbanas posteriores, que
apagaram todas as suas marcas (SAIA 1978. Ver também CARLOS,
2001: 33).
Disto decorre a dificuldade de se vislumbrar a história que se
descortina diante dos nossos próprios olhos: “Quem desembarca em
São Paulo reconhece a história dos objetos presentes, mas não a
história da cidade” (SANTOS, 1988: 68, 1998: 138). Neste processo
perpassado por (des)entendimentos, a cidade, uma obra humana lato
sensu, não impõe sua presença apenas pela acumulação de tempos.
A perda dos referenciais urbanos, respaldando um espaço amnésico
1
169
e um tempo efêmero, constituem um produto da celeridade com que a
morfologia urbana se transforma, redefinindo a prática socioespacial e
fazendo a todos mergulhar, queira-se ou não, na vertigem do vácuo
(CARLOS, 2001: 348).
Outro dado, é que, independentemente das metamorfoses da
paisagem urbana tidas como “espontâneas”, estas também podem
resultar de um planejamento premeditado, via de regra ocorrendo sob
o signo da prepotência dos planejadores, configurando, como no caso
da célebre intervenção promovida na Paris do Século XIX pelo Barão
Eugène Haussmann, uma indelével tabula rasa. Visando implantar
vias rápidas de circulação, racionalizar a ocupação do espaço urbano,
segregar espacialmente as classes sociais e inclusive, controlar a
turbulência do proletariado, Haussmann, entronizado nos registros
históricos como Le artisté démoliseur, não hesitou em desmantelar
severamente o traçado urbanístico da Paris oitocentista, considerado
inconveniente para exigências formadas num fruir urbano “moderno”.
Todavia, certifique-se que a cidade moderna, planejada ou não,
oriunda de tempos passados ou edificada de alto a baixo pelas
defluências da economia moderna, prima por estar sob a batuta da
artificialidade. Este é o seu mandato impreterível e a sua imanência
mais característica. Não existe cidade alheia ao espaço mundializado,
à economia-mundo ou ao seu elemento pivotante, que é o tempo
linear. Consequentemente, de uma forma ou de outra, o meio urbano
é mais e mais claramente, um meio artificial fabricado com restos de
uma natureza primitiva crescentemente encobertos pelas obras dos
homens (Vide SANTOS, 1988: 42).
1
170
Vale assentar que na modernidade, a inércia espacial, ou melhor
dizendo, a tendência de o espaço motivar revivificações e retomadas
do tempo social, constitui substancialmente um desdobramento
tendencial da instalação do tempo no espaço e não, como ocorria nas
sociedades tradicionais, uma irradiação do tempo a partir das marcas
espaciais preexistentes. Sobretudo, o modelado urbano hegemônico
reflete um torvelinho do tempo, sugando recursos e trabalho humano,
cristalizado em próteses urbanas, nódulos de tempo nos quais o
espaço é articulado para responder às suas demandas. É do tempo e
do seu dinamismo, concreto e simbólico, que se pode compreender a
disseminação e supremacia da vida urbana moderna, indiscernível do
padrão temporal com o qual se confunde.
A cidade, articulação espacial na qual primeiramente acomodouse o tempo linear, foi o eixo por excelência de sua difusão, daí a
urbanização como um fenômeno típico da modernidade. Funcionando
enquanto um foco de irradiação de dinâmicas temporais colocadas
permanentemente à sua frente em razão do dinamismo irrefreável do
próprio tempo, as cidades atraíram recursos materiais e humanos
numa razão diretamente proporcional à ampliação da influência do
campo de força do tempo linear.
Neste andamento, o ritmo temporal iniciado a partir de alguns
rincões isolados da Europa Ocidental, conquistou não só conotação
planetária como também, manifestou firme determinação em colocar
a maior parcela da humanidade sob seu controle direto. O espaço
urbano, constituindo o âmago da ordenação econômica, social e
geopolítica existente, transformou o planeta inteiro numa espécie
1
171
hinterland, num entorno da rede mundial de cidades (Cf. BOYDEN et
CELECIA, 1981).
Obviamente, ao formar um modelado artificial, o espaço urbano
não pode subentender os humanos enquanto um mero elo de uma
“cadeia” ou “sistema ecológico”. No final das contas, estou referindome a um espaço construído, e não aos que foram presenteados como
os adereços da naturalidade. De um ponto de vista ambiental, as
relações que os homens sustentam com a natureza num meio urbano
alteraram enormemente o ritmo e o funcionamento dos ecossistemas,
diferindo do que é encontrado nas inter-relações das fatorações
fisiográficas. Estas, passaram a variar ou adequarem-se de acordo
com a imperiosidade do artifício. À vista disso, dificilmente tendem à
perdurabilidade, podendo ser mais bem definidas como antagônicas
ao meio natural e de ruptura dos equilíbrios (Vide SEABRA, 1991;
AMARAL E SILVA et SOBRAL, 1989:75).
Suprema materialização do que se define como distanciamento
do tempo social para com os ritmos e cadências do tempo-espaço
natural, a cidade, enquanto um sistema de engenharia (Cf. SANTOS,
1978a e 1988), expressa uma construção do espaço que sendo de
caráter incessante, requisita um imenso volume de recursos naturais,
indispensáveis para o abastecimento e funcionamento dos seus ciclos
artificiais de vida. Embora dependente de uma vasta periferia de
ecossistemas, a grande cidade moderna, ao mesmo tempo em que
traga recursos do entorno natural, não retribui senão enquanto um
foco de permanente e sistemática agressão à natureza, tendência
esta, indissociável em razão da intensificação do volume de insumos
que incessantemente é instada a açambarcar.
1
172
As cidades, como insiste o ecólogo Genebaldo Freire DIAS, “são
pontos emanadores de indução de alterações ambientais globais”
(2002b: 15), observação confirmada pela grande influência das urbes
no quesito do consumo das matérias primas. Métrica apurada por
pesquisa desenvolvida pelo WorldWatch Institute, assegura que “as
cidades ocupam cerca de 2% da superfície terrestre, mas contribuem
para o consumo de 76% da madeira industrializada e 60% da água
doce” (JOHN, 2000). Na mesma linha de raciocínio, um demonstrativo
sintético aponta que o meio urbano absorve aproximadamente 75%
dos recursos naturais planetários (Vide DIAS, 2002b: 15).
Um outro tipo de avaliação quantitativa se insere no conceito de
ecological footprint (literalmente “pegada ecológica”), correspondendo
à área equivalente de terra produtiva e de ecossistemas aquáticos
necessários para gerar bens requeridos por determinado padrão
social, econômico e cultural e para assimilar os resíduos decorrentes
das demandas de uma dada população sob um determinado estilo de
vida. Com base neste parâmetro, evidencia-se que as cidades são
sustentadas à custa da apropriação dos recursos de espaços várias
vezes superiores à área que efetivamente ocupam, determinando um
“deficit ecológico” estrutural (ISA, 2004: 42 e 360); DIAS, 2002b: 31 e
185/194;
De acordo com Mathis WACKERNAGEL, especialista suíço em
planificação ambiental, o conjunto das 29 maiores urbes europeias
requisita, para o atendimento das suas necessidades, um ecological
footprint com áreas entre 565 a 1130 vezes mais extensas do que
aquelas que estão ocupando (Vide 998: 2/3). Outro bom exemplo é o
indicador de que uma metrópole como Londres, na Inglaterra, requer
1
173
uma área 58 vezes maior do que a que ocupa para obter alimentos e
madeira para sustentar seus habitantes. Neste raciocínio perturbador,
caso o padrão das metrópoles afluentes fosse estendido ao resto das
populações urbanas do mundo, seriam necessários três planetas
Terra para sustentar todos os terranos (Cf. JOHN, 2000).
Não existiria, então, qualquer exagero em afirmar que as cidades
“sugam” recursos ambientais numa escala territorial gigantesca. Esta
“vampirização” do espaço-tempo natural gera zonas devastadas que
se ampliam cada vez mais, em vista de que as cidades, necessitam
cobrir distâncias extraordinárias para captar os insumos necessários
à sua existência e para o depósito de seus resíduos sólidos e líquidos
(Vide VIOLA et LEIS, 1991: 33).
Assim sendo, pressionadas por suas demandas crescentes e sob
o risco de morrerem asfixiadas sob o acúmulo dos lixos que ejetam,
as metrópoles modernas geram impactos que se estendem numa
escala extremamente ampla do tempo-espaço. As cidades impactam
a totalidade da biosfera, pois articuladas entre si através de circuitos
que associam uma concreção urbana à outra, transformaram, por
definição, o mundo inteiro no vertedouro dos seus fluxos.
Contudo, nada disso caracterizou as sociedades da antiguidade.
Dado que as formações socioespaciais de outrora não dissociavam,
temporal e espacialmente, o campo da cidade, as redes urbanas
confundiam-se com os terminais dos fluxos, mesclando-se à rede de
tributação e às necessidades de sua perpetuação. Cidades maiores
ou menores traduziam fluxos maiores ou menores de tributos, não
correspondendo, portanto, em eventuais progressos de uma autêntica
1
174
economia urbana. Todavia, com o advento da modernidade o meio
rural, inversamente do passado, mais do que uma inferência para a
ruralização da cidade é, em si mesmo, um espaço progressivamente
urbanizado, calcado na reprodução das codificações simbólicas e da
própria espacialidade urbana (MARX, 1975a: 75).
Dada a dependência do meio agrícola para com as dinâmicas
temporais e espaciais cujo suporte é a cidade e seu aparato fabril e
de consumo, não há como este manter-se indiferente às solicitações
da urbanização, que deste modo, impõe assim uma “industrialização”
da agricultura (Vide SINGER, 2002: 25/26).
Para fornecer recursos ao meio urbano, e fazê-lo rapidamente, o
campo foi compelido a uma padronização da produção, inserindo
elevados custos energéticos, dispêndio de recursos e solapamento
dos serviços ecossistêmicos. Destarte, a agricultura, que se expande
apoiada em agrotóxicos, maquinário agrícola, fertilizantes artificiais e
na simplificação biótica, é matriz geradora de processos erosivos,
contaminação, adelgaçamento e compactação dos solos agrícolas, e
ademais, de consideráveis perdas de biodiversidade. Objetivamente,
as disfunções ecológicas localizadas no meio rural não podem ser
dissociadas das influências urbanas, que se tornam deste modo o
centro de qualquer discussão ambiental desenvolvida nos termos da
modernidade.
Saliente-se que este conjunto de agravos não se restringe aos
impactos disseminados no entorno urbano ou alhures. Para além de
influenciar ampla periferia geográfica, ressalve-se que o meio urbano
impacta, antes de tudo, a si mesmo, daí a necessidade de rediscuti-lo
1
175
criticamente. Basicamente, os transtornos presentes nos seus ciclos
artificiais de vida fundamentam-se na extrema velocidade dos inputs e
outputs que percorrem este imponente sistema artificial, configurando
o que muito apropriadamente, tem sido definido como curtos-circuitos
(passim SANTOS, 1988 e 1978a).
Exemplificando, a alteração dos equilíbrios naturais, vários deles
possivelmente irreversíveis, possibilitaram o surgimento, em meio ao
contexto urbano, de uma meteorologia distintamente artificial
25.
Estes
novos dinamismos climáticos, inaugurados pela urbe moderna, estão
consignados nas ilhas de calor, nas inversões térmicas, nos bolsões
de gases tóxicos e na chuva ácida, um ambiente condizente com a
artificialidade do tempo social que o engendrou.
Tais ciclos dinâmicos artificiais, se notabilizam pela nocividade,
intempestividade, extensividade e caráter destrutivo. A concentração
industrial, proliferação de megalojas, expansão da frota de veículos
particulares e a impermeabilização do solo pelo envelopamento das
redes fluviais, edificações e capeamento asfáltico, propiciariam, por
exemplo, a irrupção de disritmias pluviométricas acompanhadas de
fortes inundações. A presença de abundante material particulado em
suspensão na atmosfera acelera o processo de condensação, com
consequente ocorrência de pancadas de chuvas, que desabam em
curtos espaços de tempo, marcadas por avassaladora intensidade
pluviométrica (Vide CASSETI, 1991: 118).
Com a blindagem do espaço urbano, os cursos d’água, privados
dos meandros por obras de retificação ou transformados em canais,
A respeito da temática da meteorologia e do clima urbano artificial, ver TARIFA et
AZEVEDO, 2001.
25
1
176
são transformados em escoadouros de um sistema de drenagem
artificial, que ao potencializar o débito fluvial original, tornam inevitável
a ocorrência de enchentes e transbordamentos. As chuvas, agora
torrenciais, escoam pelos sulcos do traçado urbano (ruas e sarjetas),
acumulando-se nos espaços anteriormente ocupados por lagos, por
várzeas inundáveis, fundos de vale e áreas que dantes, admitiam a
absorção da água. Nestas ocasiões, os rios, os córregos e os arroios,
escorraçando intempestivamente as obras humanas que encontram
no seu trajeto, ignoram as formas artificiais que tentaram encarcerálos e transbordam violentamente, provocando cheias catastróficas,
rotineiras na pauta dos serviços noticiosos em todo o mundo
26.
Do mesmo modo que numerosos outros problemas de gestão do
meio ambiente urbano, as enchentes terminam instrumentalizadas
com base em soluções que agudizam ainda mais o problema. Isto em
razão de que as respostas institucionais a estas calamidades, correm
no sentido de reforçar os espaços impermeabilizados, via implantação
de coletores e sistemas de drenagem, obras que por motivos óbvios,
atraem as atenções das grandes empreiteiras. Deste modo, em nome
do equacionamento do problema, as inundações são transferidas
para locais mais distantes, o que além de não solucionar a questão,
tendem a acentuar o distúrbio ao agregarem ainda mais águas aos
volumes que não encontram infiltração no solo (Cf. BRAZIL/CANADA,
1991).
Estas ponderações, atribuem ao espaço urbano uma significação
matricial o futuro da maioria dos humanos. Particularmente, pelo fato
deste espaço ser o fulcro de uma torção do tempo-espaço na qual as
26
Quanto ao fenômeno das enchentes na Grande São Paulo, Ver CUSTÓDIO, 2001.
1
177
dinâmicas temporais são predominantes e pivoteantes. Defrontados
com um estranho mundo novo regido por um tempo inexorável, os
humanos, ou ao menos uma parcela destes, não deixam de serem
assaltados pela perplexidade ante uma dominação que se imiscui por
todos os poros da sociedade, que ao materializar-se desta forma,
difunde sua crise pela totalidade social que compõe a modernidade.
Por conseguinte, dada a crescente urbanização do espaço no
qual o essencial da vida moderna está assentado, avançam numa
mesma direção ritmos e sequências regidos de um modo cada vez
mais intenso pelo artifício e menos pela natureza (BALANDIER, 1988:
146).
A sociedade moderna, aprofundando visceralmente todas as
contradições possíveis com o meio natural, com “os outros” e com o
próprio homem, parece deslumbrada em replicar sem descanso o
cenário artificial emoldurado por urbes resplandecentes, encimadas
por esguias e flamejantes torres que despontam como seu traço mais
singular. Estes pináculos da modernidade, pioneiramente antevistos
nos rascunhos visionários da cinematografia futurista (caso da torre
central nas memoráveis películas Metropolis, de Fritz Lang e em
Blade Runner, de Ridley Scott), para depois serem materializados
junto ao real, são o ícone confesso da metrópole, espelhando suas
expectativas, devaneios e contradições (Figura 2)
Não restam, na modernidade, quaisquer vestígios das antigas
divindades ou forças cósmicas. O espaço foi esterilizado para que
pudesse servir de matéria-prima para a irrefreável propensão do
tempo linear em engendrar, a partir de suas entranhas, o cosmo da
1
178
mercadoria. Coerentemente, não é demasiado lembrar que mercado
e espaço passam a conviver em sinonímia, pois um, não tem como
ser entendido na ausência do outro (SANTOS, 1993b: 99).
FIGURA 2 - As Torres Reais da Modernidade: Nova York e as torres gêmeas do
World Trade Center (WTC), em Manhattan, enquanto ainda existiam (Fonte: <
http://www.ridgewoodcameraclub.org/WTC_Tribute.htm >. Acesso em: 24-08-2005)
Tal epítome se estruturou a partir das ações convergentes do
mercadeio, da intervenção do aparato de poder e da divisão espacial
do trabalho, reforçando uma hierarquia dos lugares, criando novas
centralidades, magnetizando e periferializando pessoas e espaços.
Nesta contextualização, a cidade torna-se a condição medular da
produção, formando elos de uma cadeia que integra, além da mão de
obra, os processos produtivos, centros de intercâmbio, de serviços e,
como não poderia deixar de ser, o próprio mercado (CARLOS, 2001:
14).
1
179
No terreno das relações econômicas, não há como duvidar que a
cidade se faz e refaz como garantia de reprodução da artificialidade
enquanto mercadoria. Nessa interpretação, o meio urbano, enquanto
o grande ambiente de risco da modernidade, resulta diretamente da
implicância do tempo vetorial em concentrar geograficamente aqueles
elementos, tais como homens, máquinas, matérias primas e matrizes
energéticas, que são garantia de sua reprodução material e subsídio
basilar de sua funcionalidade. A cidade é, pois, a máxima explicitação
de um contexto que assinala o predomínio do tempo sobre o espaço,
do interesse particular sobre o coletivo, do que é mundial sobre o que
é local.
Complementando esta convulsiva arquitetura da artificialidade,
irrompe, no interior da espacialidade urbana, uma ordem adjunta de
disritmias, cuja raison d'être, repete a constância do padrão temporal
que subordinou todos os tempos ao seu comando único. In extremis
expressão de uma civilização construída com a resoluta obstinação
de unificar, mas não de unir, seu resultado inevitável foi, em razão da
mundialização do tempo linear estar acompanhada da integração
desigual dos humanos na fruição temporal dominante, a formação de
um populoso conjunto de excluídos (apud SANTOS, 1998: 35).
Este processo foi sustentado pela desapropriação dos meios de
produção cuja posse era geralmente detida, nas formações sociais de
antanho, por daqueles que os utilizavam. O capitalismo, ao apropriarse de todos os pré-requisitos de reprodução da vida material e de
subsistência, ou seja, da possibilidade dos homens comandarem seu
1
180
próprio tempo, engendrou assim o trabalho livre e assalariado, um
eufemismo para mascarar a submissão dos humanos ao capital
27.
Convém destacar que o caráter excludente do tempo linear se
justifica, para além de substantivar-se como instrumento de domínio
político, de subordinação econômica e social, de domesticação
psíquica e corporal, pelo fato da modernidade imprimir um cunho de
mercadoria ao cadenciamento temporal.
Como argumenta Anthony GIDDENS, reportando ao historiador e
filósofo alemão Georg Simmel, o dinheiro constituiria, no prisma da
análise que aqui está sendo endossada, um potente mecanismo de
desencaixe, um meio de distanciamento temporal e espacial, pois
possibilita a realização de transações entre agentes amplamente
separados no tempo e no espaço (1991: 32). Assim, pode-se inverter
o preceito de Benjamim Franklin, afiançando que dinheiro também
pode ser tempo. Detendo a posse do capital, a burguesia dispõe da
última palavra na ordenação do tempo, permitindo-lhe coordenar o
dinamismo social e tutelá-lo sob seu tacão.
Presumivelmente, seria demasiado simplória a pretensão de
isentar a ação dessas forças em marcha, da irrupção de contradições.
Afinal, na medida em que o industrialismo se propaga vitoriosamente
pelo mundo, o operariado industrial, de igual modo como a burguesia,
uma das “classes puras” da sociedade capitalista (Cf. LUKÁCS, 1981:
Retenha-se que Karl Marx distingue claramente a forma-dinheiro da forma-capital: “a
circulação de mercadorias é o ponto de partida do capital. A produção de mercadorias e o
comércio, forma desenvolvida da circulação de mercadorias, constituem as condições
históricas quer dão origem ao capital. O comércio e o mercado mundiais inauguram no
Século XVI a moderna história do capital” (MARX, 1975b: 165). No texto em curso, o
termo dinheiro está sintonizado com o de capital.
27
1
181
31), estreia seu protagonismo no cenário social
28.
Aos trabalhadores
industriais é imposto, não sem que estes deixem de manifestar
denodadas provas de inconformismo, o papel de acatar os ritmos e
frequências da produção fabril. Paralelamente é engendrado um outro
contingente populacional, sazonalmente convocado pelas atividades
produtivas.
Categorizado profusamente como exército industrial de reserva,
este se apresenta como um stock de força de trabalho que extrapola
em muito as necessidades do capital, sendo na sua essencialidade,
um verdadeiro reservatório de tempo à disposição do sistema. Assim,
este subproletariado tem justamente na desocupação, um dos móveis
que asseguram as taxas de lucro, revigorando com sua paralisia
forçada, o poderio do próprio sistema que o oprime (Vide SINGER,
2002: 60 e VIANA, 1982: 126/127).
Esta lógica de exploração está sincronizada com os intuitos que o
tempo linear aspira quanto ao espaço. Na equação que promoveu o
adensamento de uma grande massa de protagonistas colocados
numa situação de subalternidade diante da temporalidade moderna,
pode-se identificar vários elos comuns. Quase sempre, os excluídos
são humanos procedentes do meio rural, pertencendo a uma variada
gama de grupos e coletividades, porém, sendo em geral não-brancos,
não-ocidentais e evidentemente, não-burgueses.
Estes segmentos, formam um largo caudal de novos estranhos
que tomou o rumo das cidades embalado pelos sonhos do progresso,
A noção de “classe pura” expressa uma polaridade social do capitalismo, possuindo
caráter essencialmente histórico. Portanto, pode suscitar reavaliações concatenadas com
mudanças estruturais operadas no plano da dinâmica das sociedades fundamentadas na
economia de mercado em seu sentido mais amplo.
28
1
182
do consumo, do desenvolvimento e porque não, do ingresso no fulgor
da modernidade. Entretanto, estes homens e mulheres descobrem
rapidamente que nas cidades, não existe espaço para eles. Cognita
causa: na ótica da estratificação hegemônica do meio urbano, estas
milionárias parcelas da humanidade, uma vez desapropriadas de seu
tempo, não tem como escapar da sina de serem impreterivelmente
desespacializadas.
Estes segmentos de excluídos são os eternos consumidores de
uma cidade imaginária, emblemática por não existir de fato para eles,
perversa por ser apropriada por poucos, por alguns. Estes forasteiros
do tempo hegemônico, marginalizados e punidos por, após terem sido
privados do seu tempo, não terem sido integrados ao próprio sistema
que os espoliou, fundam, quase sempre nas imediações da pujante e
aparentemente inexpugnável arquitetura dos segmentos que, direta
ou indiretamente, monitoram o fruir do tempo vetorial, uma cidade
díspar, materializando um espaço desigualmente integrado à grande
urbe, estigmatizado e não-reconhecido pelos paramentos da cidade
institucional. Fundamentalmente, isto acontece porque ao menos no
sentido convencional, é preciso reconhecer que para as massas
pobres, não há rede urbana (apud SANTOS, 1981: 151).
Na realidade, este espaço “informal”, que tipifica a periferia das
metrópoles do Terceiro Mundo
29,
materializa a forma como um
Os debates relacionados com a terminologia Terceiro Mundo inspiraram desde os anos
1970, acesos pronunciamentos na geografia, relacionados à taxonomia do conceito e as
implicações nas análises da ordem global (Cf. LACOSTE, 1980). A partir dos anos
noventa, alterações promovidas pela internacionalização dos fluxos de capitais,
integração das economias nacionais, deslocamento dos centros de poder e a dissolução
do Segundo Mundo (Leste Europeu), suscitaram novos modelos teóricos, fazendo jus a
uma Nova Ordem Mundial (Ver HAESBAERT, 1997 e MAGNOLI, 1993: 17/18 e 61/62).
Neste texto, a terminologia está despida das pretensões de postular um bloco monolítico
ou expressar linhas de protagonismo político, tais como o terceiro mundismo ou a
29
1
183
contingente expressivo dos novos metropolitas solucionou a questão
da habitação. Desassistidos pelos programas oficiais de moradia e
subestimados enquanto prioridade pelos gestores do planejamento
urbano, estes setores resolvem do seu próprio modo as agruras das
“não-políticas” de habitação. É o que um texto pioneiro datado dos
finais dos anos setenta com foco na RMSP registra, identificando os
loteamentos periféricos e a produção maciça de casa própria através
da autoconstrução, como estratégias visando solucionar demandas
objetivamente ignoradas pela cidade formal (Cf. OLIVEIRA, 1982b).
É deste modo que o território dos excluídos, a cidade excluída, o
espaço dos trabalhadores, repudiado enquanto expressão malévola
de um suposto “caos urbano”, se ergue, recusando-se a ser privado
da sua humanidade. Embora evidente, não seria demasiado repetir
que esta concepção de “caos urbano”, possui nítidos compromissos
ideológicos. Intensamente utilizada pela mídia e presente em muitas
análises, esta noção observa o ilógico no que é lógico, terminando
por respaldar manipulações de índole tecnocrática que subentendem
os desequilíbrios urbanos enquanto “expressões desviantes”, fatores
conjunturais e não estruturais do funcionamento do sistema, portanto,
passíveis de serem solucionados por meio de políticas de ajustes e
correções (SANTOS, 1993b: 105/107; OLIVEIRA, 1982b: 142/143).
Nesta ordem de averbações, impregnada pelo contraditório, por
conflitos e desequilíbrios, a metrópole moderna, bastião do tempo,
prótese dos fluxos e concreção da exclusão, conquista contornos e
solidariedade Sul-Sul. Antes, identifica realidades que na hierarquia espacial implantada
com base na ordenação desigual dos fluxos, formata zonas opacas, discrepantes das
zonas luminosas, ou ainda, os espaços do mandar e os espaços do fazer (SANTOS,
1998: 106/108; 1993b: 51, 114/116 e 1988: 50/53).
1
184
atributos imprevistos por um imaginário assoberbado pela justificação
ideológica da modernidade enquanto uma contraposição ao atraso, à
barbárie, à imutabilidade e à estagnação. Aparentemente alheios ao
fato de que a desordem é apenas a ordem do possível, já que nada é
desordenado, a cidade dita “informal” é corriqueiramente categorizada
no jargão dos administradores e planejadores urbanos, como áreas
de crescimento desordenado (SANTOS, 1988: 66).
Mas, é óbvio que tais espaços constituem dado indissociável do
padrão temporal vigente, em cuja lógica de reprodução espacial estão
encartados. Tal espacialidade mantém, na realidade, uma articulação
desigual e combinada com o tempo social dominante, no qual, o
descompasso e a desarmonia são as notas predominantes. Através
desta lógica funcional, compreende-se o surgimento destas áreas
junto à maioria das metrópoles da modernidade. De forma quase
imprevisível, tais espaços brotam literalmente do dia para a noite, ou
melhor, da noite para o dia, aparição quase mágica que se reflete na
linguagem coloquial, caso da palavra callampas (ita est: cogumelos),
usual nos países hispanófonos na América Latina.
Alheias aos critérios institucionais e espalhando-se por entre as
nervuras da topografia e artificializando a seu modo a natureza
primeira, este espaço é construído pelos principais arquitetos do
Terceiro Mundo: as famílias pobres que constroem sua própria casa
(SALAS, 1987: 16). Utilizando os mais inusitados e bizarros materiais,
como restos de demolições, sucata, lataria e pedaços de madeira,
sua natureza precária é evidente no termo bidonville (cidade de lata),
comum nos países francófonos. Estas favelas, enfim, formam uma
1
185
caricatura da cidade imaginária, uma rugosidade que prolifera em
terrenos pouco propícios à edificação.
Ressalvou Milton Santos, os nichos ocupados por estes humanos
desigualmente integrados ao tempo linear caracterizam-se por uma
inadaptação do habitat ao sítio. Estes são reiteradamente de caráter
clandestino, o que remete à constatação de que a cidade informal
comumente está implantada junto a áreas de risco e outros espaços
desprezados pela cidade formal. Neste caso, seria possível enumerar
regiões com declive acentuado ou afloramentos rochosos como os
cerros de Caracas e os morros do Rio de Janeiro; depósitos de lixo
urbano nas cidades de Lima e Manila; terrenos pantanosos na Ásia
das monções, caso de Kolkata (ex-Calcutá, Índia) e da Cidade Ho Chi
Min (ex-Saigon, na República do Vietnã); ou a orla insalubre dos rios,
estuários e braços de mar, exemplificados em Salvador, Hong Kong e
em Phnom Penh (SANTOS, 1981: 179).
O crescimento destes núcleos é incentivado por um processo
perverso de especulação imobiliária que sempre reserva as áreas
mais desfavoráveis para a população de baixa renda. No Brasil, por
exemplo, não há dúvida de que são sempre as baixadas sujeitas a
toda sorte de sinistros e inundações, ou as encostas, onde a planta
bidimensional esconde as medidas e a situação real do lote nos
banners das imobiliárias, as primeiras áreas colocadas à venda (Vide
PELOGGIA, 1998: 59/70 e OLIVEIRA, 1982b: 113).
Fato comum às principais concentrações urbanas do hemisfério
sul, este processo de ocupação atira-se ainda sobre as áreas de
preservação ambiental e mananciais de água potável. Mesmo à
1
186
margem dos planejamentos oficiais, o percentual de humanos que
habitam estes espaços é significativa em meio a todas as grandes
concentrações urbanas do Terceiro Mundo. No início do II Milênio, a
mídia começou a popularizar a expressão megafavela, destacando a
entrada em cena das primeiras “metrópoles informais”, aglomerando
concentrações milionárias de seres humanos. Este seria o caso de
Dharavi, favela situada em Mumbai (ex-Bombaim, Índia), que reúne
um milhão de domiciliados e que, de acordo com as previsões de
especialistas, seria apenas uma, das contas de um colar cosmopolita
de cidades informais milionárias 30.
Este quadro sintético de crises que está sendo exposto nos seus
incontroláveis rebatimentos socioespaciais (tanto no quadro natural
quanto no artificial), é indiscutivelmente o mais preocupante retrato da
modernidade, resultado de uma temporalidade irrefreável que abdicou
do espaço como seu espelho estável. Esta crise, torna-se ainda mais
espicaçada pelo fato de inexistir qualquer outro patamar espacial
exequível de dar conta das contradições geradas por este processo.
Pelo menos por enquanto, a colonização em massa do espaço sideral
habita exclusivamente as projeções futuristas, e neste prisma, apenas
nas mais entusiasmadas.
Restaria então, estabelecer respostas centradas nos espaços
efetivamente à mão, ao alcance imediato das expectativas e da ação
concreta. Certo é que nada pode ser colocado de taxativo na história
A favela de Dharavi, muito comentada como exemplo de “cidade informal” está, no
entanto, distante de constituir caso único. A despeito de algumas controvérsias quanto às
datações estatísticas, a favela de Neza-Chalco-Itza, na Cidade do México, teria quatro
vezes a população de Dharavi. Na Ásia, o distrito de Orangi, em Carachi (Paquistão),
teria mais habitantes do que Dharavi, sem contar que mesmo em Mumbai, há outras
concentrações “informais” que rivalizam e se equiparam a esta icônica megafavela em
superpovoamento e pobreza.
30
1
187
humana, mesmo quando o panorama que se desvela a vista de
todos, é justamente o que foi instituído pelo mundo contemporâneo.
Neste sentido, pensar as contradições que assenhoreiam a
modernidade deve, acima de tudo, ser um convite para amealharmos
modelos e conceitos que nos auxiliem a compreender a crise.
E isto para que a profundidade desta crise venha a constituir um
convite para que numa mesma direção, seja possível aprofundar a
compreensão e a magnitude das medidas que poderão - ou não contê-la e/ou ultrapassá-la.
4.2. REDE URBANA MUNDIAL: CENÁRIOS E DESAFIOS
Até este momento, delineamos um prontuário de sinais que em
princípio, são visíveis a um observador seduzido com a preocupação
de decodificar geograficamente a paisagem forjada pela sociedade
moderna, que por si mesma, denuncia as dissintonias estruturais
inauguradas pelo tempo linear, mormente na sua inscrição urbana.
Importa enfatizar que numa paisagem hegemonizada por fluxos,
a proeminência de estacas concretas é fundamental, mesmo porque,
uma geografia dos fluxos não tem como desprezar a geografia dos
fixos (apud SANTOS, 1999: 202).
Nesta sequência, pode-se considerar que o tempo vetorial, ao
condensar uma rede de pontos fixos interconectados em um tecido ou
malha de escopo planetário, implementou paralelamente, processos
1
188
de urbanização com características nitidamente diferentes daquelas
que imperaram no passado, daí a relevância em trazer a baila os
condicionantes e desdobramentos mesclados ao seu dinamismo.
Deslocando nossa atenção para este ângulo, a compreensão da
escala da rede urbana do mundo atual, e ademais, dos impactos a ela
relacionados, reclamaria discernir cinco fatos estruturais básicos, a
saber:
1. Em primeiro lugar, estariam os aspectos quantitativos da
urbanização mundial; A medida em que as vagas do tempo vetorial
alcançavam o espaço rural, este desprendia enormes contingentes
populacionais, anabolizando a vida urbana por meio de migrações
gigantescas, as maiores da história. Em 1973, alertava o historiador
britânico Arnold TOYNBEE que grupos de camponeses vivendo “em
comunidades aldeãs, no estilo da Idade Neolítica, ainda constituíam a
maioria da geração humana então viva” [ ... ], antepondo-se também
que estes, “estavam rapidamente escoando do campo para as favelas
que envolviam as cidades” (1979: 717).
Deste modo, pela régua delineada em 1984 durante o Colóquio A
Cidade, Hoje e Amanhã, realizado sob os auspícios da Organização
das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e Cultura (UNESCO),
antecipava que no início do Século XXI, o meio urbano estaria pela
primeira vez na história albergando a maior parte da humanidade sob
o seu domínio direto: não menos que 52% dos humanos, inferência
confirmada por documento divulgado no ano de 1997 pelo The World
Resources Institute em parceria com a UNEP (United Nations
Environment Programme), a UNDP (United Nations Development
Programme) e o Banco Mundial (World Bank).
1
189
O ineditismo desta cifra é flagrante quando se sabe que, tomando
o globo como um todo numa perspectiva histórica, que a população
“considerada urbana representava apenas 1,7% do total nos inícios
do Século XIX; em 1950, tal percentual era de 21%, percentagem que
ascende para 25% em 1960, 37,4% em 1970 e cerca de 41,5% em
1980” (SANTOS, 1988: 41).
Outra nota, discutida em 1996 na Conferência da ONU HABITAT
II
31,
prevê por sua vez, que as cidades aglutinarão no ano de 2025
uma porcentagem antevista em 60,1% da humanidade (1996: 3). Não
poderia, pois, existir divergência quanto ao fato de que este processo,
evidencia a urbanização enquanto fenômeno espacial, temporal,
cultural e socialmente cosmopolita, e por isso mesmo, um dado fulcral
para qualquer prognóstico alusivo ao futuro da humanidade.
2. Em segundo lugar, cumpriria avaliar os aspectos qualitativos
desta urbanização; No passado, mesmo as cidades que abrigaram a
nascente classe mercantil europeia eram modestas e ainda não
haviam perdido seus vínculos com o meio rural. Contudo, a partir do
Século XVIII, a população urbanizada tendeu a concentrar-se em
urbes cada vez mais populosas, primeiramente em metrópoles e
posteriormente, nas megalópoles, as maiores manchas urbanas de
todos os tempos. Pois então, a grande cidade, mais do que qualquer
outra obra esculturada pelos coletivos humanos, consiste no ícone
por definição da sociedade contemporânea (Cf. LEFF, 2004: 288), e
tendencialmente, as urbes que hoje ponteiam na superfície terrestre,
Esta conferência mundial foi convocada pela ONU para discutir a urbanização mundial.
Tratou-se da segunda e última reunião de cúpula internacional sobre o tema realizada
pela ONU no Segundo Milênio, realizada em Istambul, na Turquia (a primeira ocorreu em
Vancouver, no Canadá, em 1976).
31
1
190
formando uma contextura de fundamental importância do ponto de
vista demográfico, o serão, ao que tudo indica, mais ainda em futuro
próximo (Vide Figura 3).
FIGURA 3 - Concentrações urbanas no ano 2000 e projeção para 2015, com
respectivos rankings e cifras em milhões de habitantes (Fonte: World Prospects:
The 1994 Revision (1995), United Nations Department for Economic and Social
Information and Policy Analysis Population Division)
1
191
Agregue-se a este comentário a singularidade da urbanização ter
se difundido planetariamente. A expansão urbana aos tempos do
industrialismo primordial tinha fortalecido suas raízes particularmente
nas nações ocidentais. Outrossim, este processo transbordou seus
limites geográficos originais, que basicamente acatavam as fronteiras
naturais da Europa.
Atualmente, das 21 cidades superpovoadas do planeta, treze são
asiáticas (incluindo Tóquio, Osaka e Seul), quatro localizam-se na
América Latina (Cidade do México, São Paulo, Rio de Janeiro e
Buenos Aires), duas situam-se no continente africano (Lagos e Cairo)
e por fim, duas são norte-americanas (Nova York e Los Angeles).
Entrementes, seria interessante assinalar que a Europa, justamente o
berço da metrópole moderna, não abriga no ano 2000, nenhuma das
21 maiores cidades do mundo 32.
Para uma melhor apreciação deste tema, deve-se frisar que do
ponto de vista geográfico a urbanização passou a localizar-se, a partir
dos meados do Século XX, na periferia da ordem global. Sinal claro
Na perspectiva da economia urbana mundial, a urbanização asiática reclamaria certa
atenção. Particularmente na Ásia Oriental, estão sendo erguidos os maiores conjuntos de
torres, irrompendo em cidades como Bangcoc, Seul, Taipé, Cingapura, Kuala Lampur e
Djakarta. Estes novos e orgulhosos skyscrapers do Oriente não desafiam apenas os
ventos ou a instabilidade geológica de vários dos sítios nos quais foram construídos.
Para seus habitantes, constituem ícones de um capitalismo regional determinado a
assumir uma “fisionomia oriental”, desenhando uma leitura própria da modernidade.
Neste conjunto, repetindo a contradição Norte/Sul, encontramos metrópoles afluentes
(Tóquio, Osaka, Hong Kong e Seul) e periféricas (Manila, Bangcoc, Djakarta e Rangum).
Mas simultaneamente, esta contextura assegura-se em comum, de um marco identitário
próprio. Mantendo intenso intercâmbio entre si, essas novas metrópoles constituem as
estacas do espaço regionalizado Leste Asiático. O crescimento das trocas econômicas
regionais constitui um dos seus fundamentos. Fluxos migratórios internos, assim como
uma nascente “personalidade cultural” (baseada, por exemplo, na radiodifusão de uma
“música popular asiática” transmitida de Tóquio a Kuala Lampur, passando por Hong
Kong, Taipé, Seul e Manila), contribui para um crescente senso de identidade lesteasiático e de autonomia no espaço articulado por estas audaciosas megalópoles da Ásia
(O Mundo Hoje, 1996: 35).
32
1
192
de que algo grandiosamente diferente passou a interferir nos destinos
da maior parte da humanidade, as cidades do continente europeu e
norte-americanas, outrora capitaneando o processo urbano mundial,
perderam crescentemente sua importância demográfica diante das
novas cidades da periferia do sistema. Ainda que as cifras referentes
às aglomerações metropolitanas localizadas nos países periféricos
sejam consideradas espantosas aos olhos de muitos segmentos de
opinião, saliente-se que estas não constituem novidade em qualquer
sentido.
Recorrendo novamente aos dados do Colóquio A Cidade, Hoje e
Amanhã, estes esclareciam que por volta do ano 2.000, quando
metade dos seis bilhões de humanos estaria concentrada nas áreas
urbanas, dois bilhões residiriam em metrópoles dos países periféricos
e um bilhão, nas dos países centrais. Subscrevia igualmente que, das
60 cidades com mais de cinco milhões de residentes, 47 estariam
situadas no Terceiro Mundo. Esta parte do globo concentraria também
12 das 15 megalópoles (Vide UNESCO, 1984: 24).
Vale sublinhar, em larga medida, tais prognósticos demonstraram
grande precisão, confirmando o crepúsculo da supremacia das urbes
dos países centrais, relegando-a a um episódio perdido nas páginas
da história. Reflita-se que para o ano de 2015, prevê-se que apenas
duas metrópoles setentrionais, Tóquio e Nova York, constarão do
ranking das quinze maiores cidades do mundo. Também está previsto
para 2015 que das 27 maiores metrópoles, somente cinco estariam
localizadas no Norte: Nova York, Los Angeles, Tóquio, Osaka e Paris,
esta última, ocupando uma singela 22ª posição (passim HABITAT II,
1996).
1
193
Porém, em 1950, sete das 15 maiores aglomerações situavam-se
nos países afluentes, proporção que diminuiu drasticamente para 3
no ano 2000. Nesta relação das grandes cidades globais, Londres,
que sempre liderou mundialmente o mundo urbano, estará ausente. E
o que falar então das aristocráticas São Petersburgo e de Viena, que
em 1900 constavam do ranking das dez maiores cidades?
Novamente com base no ano de 2015, estima-se que a terceira
maior metrópole mundial será Lagos, na Nigéria, com 22,5 milhões de
habitantes. Só perderá para Tóquio e para Mumbai, que então, estará
apinhada com 27,4 milhões de urbanitas. Além de Mumbai e de
Lagos, um exaustivo elenco de metrópoles periféricas poderia ser
alinhavado. Dentre estas seria obrigatório registrar: Xangai, que terá
então 23,4 milhões; Djakarta, na Indonésia, com 21,2 milhões; São
Paulo, 20,8 milhões; Carachi, no Paquistão terá 20,6; Pequim, 19,4;
Daca, capital do miserável Bangladesh, 19 milhões e a Cidade do
México, 18,8 milhões de habitantes.
Tais números, quase impensáveis em função do recorte social
que grava todas estas concentrações urbanas, seriam nesta ótica
estarrecedores em si mesmos, justificando presságios sombrios. No
ano de 1985, numa das audiências públicas preparatórias para o
Relatório Brundtland, da CMMDA, realizadas na cidade de São Paulo,
foram coletados veredictos dos participantes, sendo que um destes,
vaticinava o cenário que segue:
As cidades do Terceiro Mundo serão cada vez mais
centros de competição acirrada por um pedaço de terra
onde se possa construir um abrigo, por um quarto para
alugar, por um leito de hospital, por um lugar numa escola
1
194
ou num ônibus, sobretudo por uma vaga nos poucos
empregos estáveis adequadamente remunerados, e até
mesmo, pelo espaço numa praça ou calçada onde se
possa expor e vender mercadorias, atividade de que
dependem tantas famílias (1988: 266).
Estas considerações se impõem em qualquer discussão sobre o
meio urbano do mundo global, e simultaneamente, sinalizam para a
precariedade de se trabalhar com um conceito de metrópole calcado
na trajetória das sociedades do Norte. A metrópole que se apresenta
com força cada vez mais intensa é não-branca, não-ocidental e para
completar, periférica. É este meio urbano, caótico e em linhas gerais,
disfuncional, que deve absorver com todo denodo possível a atenção
dos que se dedicam ao estudo da questão urbana global.
3. Num terceiro apontamento, considere-se que as cidades no
mundo atual mantêm intenso intercâmbio entre si, reconhecidamente
dessimétrico em toda a sua extensão. A malha urbana mundial reflete
uma estruturação social, política e econômica, cujas contradições,
articuladas nas mais diversas normatizações, materializam-se, fato
óbvio, de um modo global, contudo, sempre desigualmente, tecedura
que varia de um contexto a outro. A saber, não existe um global
indistinto, porém, um global que se decanta dessimetricamente, daí a
necessidade de refletir sobre a especificidade dos diferentes espaços
urbanos do mundo atual.
Por conseguinte, temos que ao menos parcialmente, a explicação
relativa ao funcionamento das metrópoles da periferia reportaria ao
relacionamento mantido com as metrópoles do hemisfério norte (Cf.
SANTOS, 1982: 17/18). Desempenhando um papel subordinado, as
1
195
metrópoles da periferia materializam uma geografia urbana própria,
que mesmo mantendo diferentes fisionomias, compartilham várias
características comuns em todo o mundo subdesenvolvido, expressão
da sua integração desigual no mundo global:
Não se trata aqui de negar o caráter global do estudo do
espaço, já o mostramos em outro lugar: mas de distinguir,
num nível inferior de generalidade, o espaço dos países
desenvolvidos e o espaço dos países subdesenvolvidos
(SANTOS: 1978b: 103).
Sintetizando o que foi colocado, comentar de modo genérico a
respeito de uma crise urbana mundial, não faria nenhum sentido. O
relacionamento mantido entre as cidades está consubstanciado por
relações marcadamente desiguais, que por sua vez respaldam sua
interação na rede urbana global. Em paralelo, esta configuração
urbana articula as urbes num conjunto hierarquicamente diferenciado,
demograficamente polarizado e também, incompletamente integrado
na economia urbana hegemônica.
Reproduzindo uma lógica inerente à reprodução do sistema, o
relacionamento entre as metrópoles que formam a rede global está
crivado e demarcado, de alto a baixo, por contratos marcadamente
dessimétricos, transformando as megalópoles dos países do Sul em
pontos de apoio de uma vasta rede planetária, por intermédio da qual
os fluxos econômicos transitam continuamente da periferia na direção
do centro do sistema. Isto ocorre porque embora uma lógica funcional
articule as metrópoles do Norte e do Sul numa mesma rede urbana
mundial, esta é de fato hegemonizada de fato pelas metrópoles dos
1
196
países centrais (passim SANTOS, 1988. Ver também SINGER, 2002:
71/72).
Nesta linha de interpretação, categorizar as megacidades do
Terceiro Mundo como inviáveis, constituiria uma afirmação carente de
qualquer estatuto científico. Nada mais incorreto do que julgamentos
imprudentes como este, pois quem colocaria em questão que as
metrópoles afluentes do Norte constituem, em razão do seu estilo de
vida perdulário e consumista, o verdadeiro epicentro da crise urbana
e ambiental da modernidade? Poder-se-ia considerar “viáveis” as
grandes cidades dos países centrais regidas por uma consumolatria
conspícua e esbanjadora? E qual seria a base de sua viabilidade,
lembrando-se que para manterem-se em funcionamento, tenderão a
apelar cada vez mais para recursos obtidos à custa da espoliação de
outras áreas, insumos estes que no mais das vezes, são procedentes
dos países do Sul?
Neste sentido, a crise urbana dos países do Sul conquista caráter
estrutural, que por isso mesmo, deriva em descompassos dificilmente
solucionáveis nos marcos do relacionamento Norte/Sul atualmente
em vigor, que isto posto, sinaliza para uma revisão do modelo de
civilização que atualmente comanda a humanidade. O próprio fato
dos recursos naturais da Terra serem insuficientes para universalizar
o modelo urbano ideacionado pelo Ocidente, e numa mesma ordem,
o processo de globalização que o sustenta, é um dos pontos que,
portanto, entrelaçam a crise urbana com o explosivo descompasso
socioambiental da modernidade.
1
197
A civilização urbana, tal como foi estruturada nos países do
Norte, embora fulcral para que o fenômeno da globalização possa ser
compreendido, também nos revela que paradoxalmente, o processo
de globalização não dispõe de espaço para ser global. Disto decorre
a essencialidade de discutir-se não apenas o tempo social, mas numa
mesma direção, o espaço geográfico, e particularmente, o urbano.
4. Numa quarta pontuação, as metrópoles desempenham papel
de liderança no comando da rede urbana, eventualmente alterando
sua forma, porém salvaguardando seus vetores dominantes. No
encalço das transformações ocorridas nas últimas décadas do Século
XX, as regiões metropolitanas, polos axiais que titularizam os circuitos
que imantam a espacialidade urbana global, observaram alterações
qualitativas quanto aos seus dinamismos socioespaciais. Veja-se que
a partir dos anos 1970, uma constelação de mudanças inéditas
modificou as determinações até então válidas para a organização do
espaço, apontando novos desenhos para as áreas metropolitanas.
Basicamente, este quadro associou-se à imposição de novos
padrões de acumulação afiançados pelo processo de globalização da
economia. Tais transformações filiam-se sob diversos ângulos a uma
releitura das relações com o tempo e o espaço, associadas também
com marcantes inovações tecnológicas, no geral, passíveis de serem
agrupadas em algumas linhas básicas (tais como a microeletrônica,
robótica, automação e biotecnologia), e do mesmo modo, com uma
“repactuação” firmada com o objetivo de estipular novas regras entre
os trabalhadores e os pilares da economia. Deve-se acentuar que tais
processos (mudanças tecnológicas e reengenharia socioeconômica),
não são estanques, relacionando-se e interagindo entre si, tonificando
1
198
a impregnação da materialidade social com os valores transmitidos
pela globalização.
Nesta ampla redefinição que transcorre nos dias atuais, tem-se
um movimento contingente, sujeito a marchas e contramarchas, que
se apresenta sob diversas formas, mas deixando marca indelével na
sociedade global. O motor desta repaginação é a competitividade,
eleita enquanto paradigma central para a organização da economia e
da sociedade, tornando-se um eixo que por excelência, orienta os
movimentos da globalização, cujo anseio máximo é a afirmação da
velocidade absoluta (SANTOS, 1997:8).
Nutrificada por pregações floreadas por arroubos retóricos como
“anulação dos privilégios corporativos”, o “mercado como princípio
regulador geral” e a “desregulamentação das relações de trabalho”,
estas aporias transparecem como verdadeiras pedras de toque que
impulsionam o nexo assumido pela economia-mundo, sob comando
iniludível das nações do Norte.
A implementação destas teses pela ordem mundial capitalista foi
favorecida por um panorama geopolítico no qual o Leste Europeu (o
oponente por excelência do mundo ocidental durante mais de setenta
anos), deixou de existir enquanto contraponto ideológico, econômico,
político e cultural, ao mesmo tempo em que as forças sociais que se
mantém em contraposição ao modus faciendi global, enfrentam uma
dificuldade lapidar para formatar um conjunto minimamente articulado
de proposições e programas políticos que barrem efetivamente sua
afirmação (Vide HAESBAERT, 1997; OLIC, 1993: 81/83 e MAGNOLI,
1993: 46/62).
1
199
Pois então, a economia de mercado dispõe, neste momento de
mundo, de condições que lhes são mais do que favoráveis para impor
e exacerbar seu código de gerenciamento do tempo até as últimas
consequências, abrindo mão de eventuais volubilidades e aplicando
sem restrições a sistemática do mercado total.
Tais diretrizes destronaram conceitos consagrados no bojo da
antiga civilização industrial e urbana, abrindo caminho para que os
postulados “clássicos” (caso do exército industrial de reserva e da
mobilidade dos trabalhadores), passassem a ser revistos e refeitos
mediante uma ótica inteiramente nova. Com a admissão das novas
tecnologias, a força de trabalho, que no início da Era Capitalista tinha
importância fundamental, passa a contar cada vez menos. Dito de
outra forma, os aumentos de produtividade ocorrem em paralelo a
uma menor expressão da participação do trabalho vivo no interior dos
processos produtivos. Observa-se do que é catalogado no jargão
economicista como jobless growth, isto é, crescimento sem emprego.
Este balanço propicia uma potencialização da exclusão social,
hoje exponencializada como nunca. Tal como ressalvado no candente
ensaio da geógrafa Maria de Fátima Almeida MARTINS, a dianteira
técnica lograda a partir dos finais do Século XX, encerraria:
...não mais a virtualidade da emancipação do homem em
relação ao dispêndio intenso de trabalho vivo, uma vez
que isso já se constitui em fato histórico concreto. Mas, se
as forças sociais despertadas pelo capital engendram um
mundo onde a natureza bruta já não mais se põe como
ameaça à reprodução social, o horizonte do não-trabalho
posto por esta forma de sociedade não anuncia nada de
emancipatório, haja vista que a possibilidade do não
2
200
trabalho
se
transforma,
desgraçadamente,
em
desemprego, ou em trabalho precário, o que, não sem
alguma
razão,
tem
alimentado
algumas
das
interpretações que ultimamente vêm ganhando expressão
na explicação do mundo atual (1998: 56).
Fazendo uma reedição de comentário registrado nos parágrafos
anteriores, tem-se que se no passado, os grupos “liberados” do meio
rural foram, após serem subtraídos da sua temporalidade, conduzidos
para os centros urbanos para ingressarem no parque fabril e imersos
no cadenciamento temporal das indústrias, as declinações hodiernas
da modernidade sugerem induções desmesuradamente perversas.
Uma conduta idiossincrática da economia globalizada tem sido a
de excluir nacos expressivos da população trabalhadora das relações
de produção, fomentando a ampliação do contingente de pessoas
não diretamente incorporadas às relações formais de produção.
Este agrupamento, formado pelo que a literatura acadêmica das
ciências sociais define como “protoproletários”, são os excluídos e os,
“sobrantes” que não se ajustam sequer na conceituação tradicional de
exército industrial de reserva (MARTINS, 1998: 56, grifos nossos. Ver
também SANTOS, 2003: 16/17 e KURZ, 1992: 192/197).
Tal “reengenharia” vincula-se organicamente com a lógica interna
encontrada no cadenciamento da fruição linear e progressiva do
tempo. Nesta estratégia, se inscrevem as novas tecnologias aplicadas
na esfera da produção, comunicações e dos serviços, introjetadas
sob a égide tutelar do jobless growth.
2
201
Neste caso se inscreveriam, a título de exemplo, os sistemas de
transmissão instantânea, on line ou em tempo real. Paradigmáticos
no cotidiano contemporâneo, modelos informacionais como os caixas
24 horas e o comércio eletrônico, além contrariarem os sentidos
imemoriais dos intercâmbios, desfigurando a majestade relacional,
promovendo sua virtualização crescente e eliminarem postos de
trabalho, implicam numa releitura da relação com o espaço. Inferência
inquestionável, os objetos geográficos neste compasso são, a cada
dia, mais carregados de informação (apud SANTOS, 1998: 140).
No que tange à organização territorial urbana, a formação de
estruturas organizadas em redes horizontais, nas quais o fenômeno
da polarização de certo modo se dilui para dar lugar a um conjunto de
fixos funcionalmente articulados e integrados entre si com base em
fluxos rápidos e ágeis, implicou na ressignificação do tecido urbano,
agraciado com dispositivos afirmativos de um meio técnico-científicoinformacional.
Este direcionamento inclina-se a formatar uma única bacia de
empregos, de residências e de atividades, logística que alimenta forte
relacionamento com o mercado em todos os níveis. É preciso dizer
que se está claramente diante de um outro avatar da metrópole
moderna, cujo desempenho econômico e social se faz em estreito
intercâmbio entre núcleos que mantém entre si trocas permanentes,
impregnados da temporalidade de mercado e dos seus conteúdos.
Ora, este cenário difere substancialmente da antiga metrópole
industrial. O grande centro urbano esculturado a partir do triunfo da
maquinofatura, foi comutado por polos de serviços que agregam
2
202
tecnologias de ponta (high-tech), requisitando padrões específicos de
intercâmbio social e de trabalho. Esta realidade instiga, outrossim,
processos organizacionais que primam por uma menor verticalidade e
por segmentações menos rígidas. Daí que passa a ocorrer, conforme
pontuado no texto da geógrafa Rosa MOURA,
“uma refuncionalização dos espaços metropolitanos,
recolocando-os como polos modificados, que se tornam
cada vez mais seletivos para a alocação de atividades e
população. As funções de comando e gestão, que passam
a caracterizar as metrópoles, altamente tecnificadas,
dispensam trabalhadores, particularmente os menos
qualificados” (2003: 8).
Exatamente por esta razão, mais do que uma alegoria, o termo
“desindustrialização”, mais do que um conceito abstrato, transparece
a olhos vistos na concretude da grande urbe. Efetivamente o coração
das metrópoles “perdeu” indústrias, e não em pequena proporção.
Galpões em ruínas, chaminés que não soltam mais nenhuma fumaça,
armazéns destelhados que se transformam em habitação de pombos,
ramais ferroviários tomados pelo mato, pátios abandonados, muros e
portais em ruínas, construções abandonadas com vidros quebrados,
contêineres pichados, vagões relegados à ação da ferrugem e silos
que contemplam o vazio, são algumas das celebrizadas “miragens”
de desolação, ruína e da decadência das antigas zonas industriais,
onipresentes nas áreas metropolitanas de todo o mundo.
A consequência esperada deste leque de transformações foi a
diminuição das taxas de crescimento demográfico, especialmente no
núcleo das grandes manchas metropolitanas. Tendo por base esta
constatação do “esvaziamento” da grande cidade, passaram a medrar
2
203
fabulações, sub-repticiamente estimulando vozes a insinuar que as
metrópoles perderiam a capacidade de liderar redes urbanas. Existiria
nesta sugestão um raciocínio subliminar pelo qual população é poder,
e, por conseguinte, que a estagnação ou o retrocesso demográfico
dos grandes centros, constituiria sinal de fragilização das metrópoles
na hierarquia de comando das redes, um quadro no mais, acirrado
pela desindustrialização, que objetivamente a promoveu.
Entretanto, trabalhando mais detalhadamente esta exposição,
pode-se perceber que a realidade não estaria em concordância com
esta interpretação. Mais corretamente, as metrópoles colocaram em
marcha uma reengenharia das relações de poder econômico, político
e social que sustenta sua parti pris de mando com o concurso de
outros modelos de supremacia. Tratar-se-ia de uma reacomodação
dos elementos que articulam o espaço urbano, não para alterar esta
hegemonia, mas perpetuá-la, buscando assim confirmação, e não sua
negação.
Exemplificando, uma abordagem relacionada com a metrópole
paulista evidencia que os novos objetos urbanos enxertados neste
tecido, despertaram uma onda de valorização imobiliária, induzindo
...um deslocamento de atividades subsidiárias e de
ocupações menos solváveis para áreas mais distantes,
porém conectadas ao núcleo central. Assim, grandes
metrópoles e mesmo suas áreas metropolitanas podem
crescer menos, porém expandem-se. Mas também se
expandem as metrópoles de menor porte, estendendo
suas áreas periféricas e incorporando novos municípios
ao núcleo metropolitano, que se tornam similares às suas
próprias centralidades intraurbanas (MOURA, 2003: 8,
grifos nossos).
2
204
Seguindo os passos desta interpretação, o que temos pela frente
não seria uma desindustrialização, mas antes, uma desconcentração
industrial, que ao procurar pelo entorno das metrópoles e tendo nesta
periferia uma realocação preferencial, confirma em inúmeros casos,
uma desconcentração centralizada.
Esta terminologia, que não é um mero recurso semântico, nos
esclarece, que este reposicionamento intercorre mantendo o antigo
núcleo como core area, em cujos arredores as atividades econômicas
são reorganizadas, cabendo a este centro, o processo de gestão de
fluxos particularizados pela utilização intensa e maciça de ciência e
tecnologia. Disto desdobram-se não apenas as crescentes exigências
concernentes à especialização dos trabalhadores, mas também, uma
supressão seletiva da indexação e participação de trabalho vivo nos
processos produtivos, que realimentam deste modo, a dinâmica de
esvaziamento da urbe e da exclusão social (Cf. MARTINS, 1998: 56).
Verazmente, cabe atestar que a noção de “desmetropolização”,
requer no mínimo, certa cautela. Alicerçado numa releitura das formas
de reprodução da formação socioespacial capitalista, na realidade o
dinamismo metropolitano apenas tem reafirmado uma propensão de
expansão da grande cidade. Neste sentido, o papel das metrópoles
na liderança das redes urbanas é mantido e aliás, inclusive reforçado.
Trazendo a lume o parecer de Milton Santos quanto a aderência
do conceito à dinâmicas socioespaciais como a brasileira, fenômenos
aparentemente contraditórios como a metropolização e a sua putativa
contraface, a desmetropolização, são na verdade, complementares, e
o que assistimos seria muito mais verdadeiramente o reforço da
2
205
metropolização somado a uma matriz singular de desmetropolização
(apud SANTOS, 1993b: 286, grifos nossos. Ver também SANTOS,
2003).
Acatando esta linha de argumentação, é antes a natureza do
desafio urbano metropolitano que se alterou, entretanto não a sua
proeminência enquanto “nó górdio” da modernidade. A metrópole
mantém-se, para todos os efeitos, enquanto arena privilegiada para o
futuro dos humanos, instigando não só as reivindicações por outra
temporalidade, como também por uma nova espacialidade.
5. Em quinto lugar, a despeito da percepção das áreas pobres
das metrópoles enquanto espaço instigador de impactos ambientais,
não há como analisar os desequilíbrios ambientais urbanos em
desconsideração de uma visão crítica, dirigida no sentido exatamente
oposto, qual seja, polemizando o estilo de vida afluente, tutelado por
um sistema dual, reprodutor de cissiparidades. Podemos facilmente
localizar na iconografia e na literatura publicizada pelos meios de
comunicação, assim como por órgãos e instituições com mandato na
difusão de notícias e informes ambientais, farta informação revelando
um quadro de óbices ecológicos que conotam os espaços ocupados
pela população pobre das grandes cidades.
Na verdade, desde os primórdios da urbanização moderna são
abundantes os relatos detalhando condições adversas de vida urbana
em todos os campos da expressão cultural e do conhecimento. Por
exemplo, na literatura podemos mencionar a obra do escritor britânico
Charles Dickens (1812-1870), que conformou um libelo carregado de
2
206
denúncias explicitando o deteriorado ambiente de vida e de trabalho
imposto ao operariado da época em que Dickens viveu.
Seria também possível deparar com apontamentos relativos a
desequilíbrios ambientais em A Situação da Classe Trabalhadora na
Inglaterra, texto de autoria de Friedrich Engels. Esta obra, expõe um
cáustico relato centrado na condição operária num momento em que
se presenciavam as dores do parto do industrialismo, no qual o ruído,
a sujeira, os miasmas, as águas infectadas e as moradias insalubres,
estão descritas em todas as suas cores.
Estes problemas, que ninguém hoje obstaria em classificar como
ambientais, evidenciam que o silêncio histórico incidindo sobre a
questão ecológica, encontra sua justificativa no fato dos trabalhadores
terem sido por um longo tempo as vítimas exclusivas da degradação
ecológica. Apenas a partir do momento em que a destruição do meio
ambiente atingiu grupos pequeno-burgueses e passou a ameaçar os
setores dominantes, postando-se numa ordem de grandeza em si
mesma impeditiva do ocultamento da discussão, é que o debate
ambiental ganhou espaço nos meios de comunicação, promovendo
conjuntamente, dada sua popularidade, o alastramento de vigorosa
agenda de iniciativas e de produtos culturais dedicados ao tema (Vide
GONÇALVES, 1982: 222).
Assim, é possível identificar um itinerário que transitou da não
visibilidade da questão ambiental
33
33,
alcançando na outra ponta seu
Embora esporadicamente, considere-se que a percepção dos riscos ambientais, que
costuma ser exclusivamente identificada ao mundo contemporâneo, pode ser apontada
nos séculos passados. No Brasil, os protestos visionários de Frei Vicente Salvador
(1564-c. 1636), condenando o mau uso da terra e o eloquente posicionamento de José
Bonifácio em prol da conservação das florestas (1823), explicitam uma tradição
2
207
entendimento enquanto situação condizente com as más condições
de vida ou a condição de exclusão. Todavia esta constatação, em que
pese a existência de um conteúdo de verdade, não permite descuidos
relativamente às generalizações e determinados lugares comuns que
povoam avaliações sobre a questão ambiental. Uma destas refere-se
à associação mecânica entre pobreza e destruição da natureza. Esta
sinonímia, falsa por englobar contextos cuja concretude reclama nexo
específico de análise, é merecedora de apensos, notas e retificações.
É necessário recordar que na visão dominante, tudo aquilo que
não integra o regime de afluência proposto, é considerado “pobre”,
independentemente da sua relação funcional com a economia de
mercado. Este recorte, que restringe a compreensão do mundo a uma
perspectiva regrada por oposições binárias radicais, inevitavelmente
gera equívocos para a compreensão da equação que conjumina as
sociedades humanas e a natureza. Seria, neste caso, interessante
analisar a passagem reproduzida a seguir:
Enquanto populações ribeirinhas e migrantes podem ser
igualmente qualificadas como populações ‘pobres’, elas
apresentam diferentes culturas ecológicas e produzem
diferentes impactos ambientais, desafiando, deste modo,
o consenso expresso no Relatório Brundtland, na Eco 92
e em publicações oficiais, de que pobreza e degradação
ambiental
estejam
necessária
e
intimamente
relacionadas (LIMA et POZZOBON, 2000).
Desta forma, além da pobreza não estar necessariamente colada
à noção de desequilíbrio ecológico, existiria também o perigo desta
ser entendida não como resultado, mas sim enquanto condição para
esquecida de crítica ecológica, digna do interesse social e acadêmico (Ver a respeito,
MARCONDES, 2005 e PÁDUA, 2002).
2
208
o surgimento dos problemas ambientais, ou seja, ser sua causa. Tal
argumento surge de um modo ou de outro em diversas publicações,
dentre estas o celebrado Relatório Brundtland. Considerado uma das
principais matrizes das teses do “desenvolvimento sustentável”, podese conferir no corpo deste documento o que segue:
A própria pobreza polui o meio ambiente, criando outro
tipo de desgaste ambiental. Para sobreviver, os pobres e
os famintos muitas vezes destroem seu próprio meio
ambiente: derrubam florestas, permitem o pastoreio
intensivo excessivo, exaurem as terras marginais e
ocorrem em número cada vez maior para as cidades já
congestionadas (CMMAD, 1988: 30, grifos nossos).
Aparentemente, no Relatório Brundtland, como em muitos outros
materiais, as pessoas pobres são movidas por atos de pura vontade,
independentemente dos contextos e das relações sociais, ignorando
assim os soberbos e clamorosos apelos em defesa do meio natural.
Posturas com este perfil, desprezando compreensões de mote social,
tendem a construir axiomas pelos quais, a solução da problemática
ecológica termina por ser encontrada em políticas ou em estratégias
eminentemente econômicas.
Na sequência a esta formulação, e até por coerência pospositiva,
a pobreza, sendo-lhe imputado o papel de degradar o ambiente, teria
no seu contrário, a riqueza, o pressuposto para alcançar o tão caro e
almejado equilíbrio com a natureza. Desta feita, eis novamente o que
registra o citado relatório:
A pobreza reduz a capacidade das pessoas para usar os
recursos de modo sustentável, levando-as a exercer
pressão sobre o meio ambiente. A maioria dos pobres
2
209
absolutos vive nos países em desenvolvimento [...] Uma
condição necessária, mas não suficiente, para a
eliminação da pobreza absoluta é o aumento
relativamente rápido das rendas per capita do Terceiro
Mundo. Portanto, é essencial inverter as atuais
tendências de estagnação do crescimento (CMMAD,
1988: 53, grifos nossos).
Levando-se em conta esta perspectiva, os problemas sociais e
econômicos seriam corrigidos pela aceleração do desenvolvimento,
preferencialmente carregado de sustentabilidade. Nesta derivação, os
padecimentos da sociedade humana derivariam não propriamente da
lógica inerente à sua arquitetura social, cultural, política e econômica,
mas antes, das falhas em gerenciá-la de modo eficaz, problemáticas
que de resto, seriam plenamente solucionáveis mediante a aplicação
de um programa sistemático de ajustes e correções (Ver a respeito,
SANTOS, 1992 e 1991).
Fórmulas como estas constituem atalho para anistiar um sistema
reprodutor de desconformidades, justificando assim sua continuidade.
A fragilidade deste argumento é subentender que o problema reside
na esfera da produção, quando na realidade a questão precípua do
mundo contemporâneo centra-se na distribuição do produto social.
Aliás, ressalve-se que nunca existiu um período da história
humana no qual a produção de bens tenha alcançado patamares tão
avultados quanto os atuais, pelo que o postulado do desenvolvimento
termina encarcerado numa situação paradoxal, em vista de tornar
ininteligível a existência de uma crise de acesso aos bens num
mesmo momento em que a cornucópia de mercadorias opera com
velocidade total.
2
210
Neste sentido, um enfoque autenticamente operacional, não tem
como contestar que a questão da apropriação da riqueza e o seu
vínculo com a questão ambiental é que constitui o ponto de partida
para desconstrução da percepção da exclusão como geradora de
desequilíbrio ambiental.
De antemão, deve ser avaliado que seria a afluência, tal como
esta foi estipulada pelo mundo ocidental, o dado fundante para se
compreender a problemática ambiental urbana. E este esclarecimento
pode ser deduzido a partir da análise da ocupação do espaço da
cidade moderna e dos estilos de vida associados à sua reprodução.
Por extensão, a continuidade analítica desta temática conecta-se,
portanto, com a discussão da dinâmica vivenciada pelas metrópoles a
partir dos finais do século passado.
Foi comentado, desde os anos setenta tem-se conhecimento do
que terminou definido como sinais de estagnação do “núcleo duro”
das grandes manchas urbanas. Primeiramente nos países centrais,
este contexto foi acompanhado por um ponderável deslocamento
demográfico direcionado para a periferia das metrópoles, dinamismo
espacial cuja lógica expressaria um processo de suburbanização (Cf.
SANTOS, 1981: 3 et seq).
Os estudos confirmam, uma das nações onde primeiramente
detectou-se esta inclinação foi a Grã-Bretanha, onde a redistribuição
demográfica caminhou par a par com a retração populacional nos
principais centros urbanos, trasladação esta, propagandeada como
“revitalização de pequenas cidades rurais” (Vide HABITAT II, 1996: 3).
2
211
Obviamente, seria insuficiente esgotar esta discussão nos termos
de um “deslocamento populacional”. É necessário também indagar
quais grupos sociais, no final das contas, mudaram sua residência
para o entorno das grandes metrópoles.
Neste particular, as análises sinalizam que as ondas migratórias
intraurbanas foram imantadas especialmente pelas classes médias e
por segmentos sociais mais bem aquinhoados, instigados tanto pela
fuga da “violência urbana”, quanto pela reconquista da “qualidade de
vida perdida”. Esta transferência foi também motivada pela sedução
do discurso visando a retomada do “contato com a natureza” e do
“acesso ao verde”, legitimando novas experiências urbanísticas.
Nos EUA, o gigantesco movimento migratório das classes médias
urbanas para a periferia das grandes cidades, conhecido pela rubrica
urban sprawl (difusão ou alastramento urbano), integrou milhões de
estadunidenses em proposições eminentemente horizontais de uso e
ocupação do solo, baseadas em unidades residenciais familiares
aglutinadas em um tecido urbano de cunho condominial. Este modelo,
conhecido como suburb, constitui contraponto à visão tradicional da
“floresta de edifícios”.
Note-se que além de materializar um primado habitacional, este
“nicho imaginário” está subsidiado por um estilo de vida, tipificado por
elevados patamares de consumo energético e de matérias primas. A
expansão desta modalidade de ocupação do solo formou formidáveis
cinturões de casarios na circunvizinhança dos grandes complexos
metropolitanos, áreas nas quais um oceano de casas de alto padrão
constitui sua representação visível mais conhecida (Figura 4).
2
212
FIGURA 4 - O Oceano de Casas: registro fotográfico de um suburb localizado em
Las Vegas (Arizona), uma das áreas metropolitanas de maior crescimento nos EUA.
Os lagos artificiais deste condomínio são sustentados pela importação de água de
outras áreas e de lençóis subterrâneos, sobejamente porque a região é desértica, na
qual, em princípio, o líquido é escasso ou inexistente (Foto de Sarah Leen, National
Geography, julho de 2001, in MITCHEL, 2001:58/59)
Reconhecidamente, este dinamismo demográfico impulsionou a
multiplicação dos impactos ambientais. Primeiramente por ampliar
consideravelmente a superfície ocupada pelas áreas urbanas. Uma
série de estatísticas indicam que em 1950, cerca de 70 milhões de
2
213
norte-americanos que viviam em áreas urbanizadas, ocupando 13 mil
milhas quadradas de território (that is to say, 33.700 km²).
No entanto, no ano de 1990, quando a população urbana dos
Estados Unidos dobrou, alcançando a marca de 140 milhões de
pessoas, a superfície ocupada pelas cidades multiplicou-se por cinco,
cobrindo 60 mil milhas quadradas (ou 155.400 km²), transformando os
sistemas de vias expressas em meras avenidas unificando uma área
conurbada à imediatamente vizinha (MITCHELL, 2001: 55).
Por sinal, este processo não tem dado mostras de arrefecimento.
Acredita-se que em 2025 a população estadunidense agregará mais
63 milhões de novos habitantes, provocando uma demanda adicional
de 30 milhões de novas residências, agravando os impactos desta
suburbanização desenfreada.
A expansão dos suburbs tem absorvido uma superfície de 1,2
milhão de acres (ou seja, cerca de 4.860 km²) de solo por ano. Na voz
de todos os especialistas no tema, o urban sprawl tem atuado como
fator de comprometimento da preservação das florestas, da vida
selvagem e provocando perda de solo agrícola. Esta cifra, somada à
requisição de áreas já antropizadas, alcançaria então a espantosa
superfície de dois milhões de acres (equivalente a 8.093 km²), área
abduzida a cada doze meses (MITCHELL, 2001: 58).
Em segundo lugar, o padrão suburb insere impactos relacionados
com a infraestrutura e equipamentos necessários para sustentar esta
modalidade condominial. Dentre estes, figuram os concernentes ao
transporte individual, opção por excelência, até porque única, para os
2
214
deslocamentos dos que estão radicados nestes conjuntos. No geral,
cada família moradora de um suburb possui mais de dois automóveis,
realizando um promédio de dez viagens de carro diariamente.
Esta espantosa média de veículos gera congestionamentos que
aprisionam as pessoas no trânsito por tormentosas 500 horas/ano,
ocasionando perdas anuais de US$ 72 bilhões em gasolina (dados de
2001). Tal disfuncionalidade contribui para explicar o surpreendente
consumo de combustível dos norte-americanos, no patamar de 459
galões por pessoa/ano (cada galão equivale a 3,78 litros), índice este,
considerado o mais alto do mundo 34.
Muito embora a propalada “selva de pedra” formada pela intensa
aglomeração de edifícios esteja distante de ser propriamente um
paraíso ecológico, é evidente que o suburb, desmentindo o consenso
fabricado pelas imobiliárias, distancia-se ainda mais desta referência.
Nos níveis concreto e imaginário, este modelo individualista de vida
exige para sua sustentação muito mais insumos, intensificando a
pressão sobre o meio natural.
Nestes espaços horizontalizados, as “elites do tempo” usufruem
benesses que poucas décadas atrás eram oferecidas pelos arranhacéus de altíssimo padrão das metrópoles. Sintomaticamente, o urban
sprawl tem difundido estragos de tal monta, que se entrou na mira
34
Comparemos este índice com os de outros países do Norte global: Canadá, 303
galões habitante/ano; Alemanha, 140; Japão, 113; Rússia, 55 (Dados do US Energy
Information Administration, WorldWatch Institute e BP Amoco Statistical Review of World
Energy 2000, in National Geographic, edição de março de 2001). Evidentemente, os
níveis de consumo energético seriam outros, caso a organização do espaço propiciasse,
nos termos de mobilidade urbana, a implantação de circuitos de transporte coletivo e
formas alternativas para os deslocamentos - tais como as ciclovias -, e garantisse
seguridade e apoio ao pedestrianismo.
2
215
preferencial dos ecologistas radicais norte-americanos, numa escala
que se estende de pichações e pequenas travessuras, a incêndios
premeditados de residências colocadas à venda (Vide Figura 5).
FIGURA 5 - A Resistência ao Urban Sprawl: Ambientalistas radicais da Frente de
Libertação da Terra picharam esta casa em um condomínio de Long Island, Nova
York, e queimaram diversas outras. “A Terra não está morrendo, está sendo
assassinada”, proclamou um comunicado do grupo, “e aqueles que a estão
matando, possuem nomes e endereços” (Foto de Sarah Leen, National Geography,
julho de 2001, pp. 71 in MITCHEL, 2001: 71)
Confira-se que o suburb, após consolidar posição no imaginário
de afluência dos Estados Unidos, passou a ser adotado pelos setores
de alta renda em todo o mundo. Além dos grupos bem aquinhoados
da Europa Ocidental, a fina-flor dos países periféricos, por conta tanto
de um “efeito imitação”, quanto pelo desejo de um “refúgio tranquilo”
35
da própria temporalidade que os granjeia à condição de comando
Com efeito, este é um slogan recidivo no marketing voltado para a comercialização dos
condomínios fechados.
35
2
216
da sociedade local, passaram a instalar versões indígenas destes
condomínios
36,
implantando ilhas com “padrão californiano” muitas
vezes cercadas por bairros pobres ou por favelas. Encastelados em
sociedades crivadas por desigualdades de todo tipo, estes “bolsões
de opulência” recorrem a todo tipo de tecnologia de segurança para
conter a intratabilidade social urbana, subliminarmente inscrita em
amedrontadores “arrastões urbanos”.
Por sinal, estes temores não encontraram guarida somente na
psicose das natas metropolitas dos países sulistas. Após a II Guerra
Mundial, a prosperidade renovada dos países europeus inverteu a
tradicional corrente migratória que escoava dos países “velhos” na
direção de países “novos”.
Bafejadas por uma renovada afluência, as sociedades do Norte
passam a desdenhar funções estigmatizadas como schwartz arbeit
(“trabalho negro”: tarefas consideradas sujas, servis, indignas e/ou
degradantes), induzindo que recepcionassem maciços grupos de
imigrantes do Terceiro Mundo para o desempenho destas ocupações,
motivando movimentação que recorreu tanto para vias legais quanto
para esquemas clandestinos.
No tocante às migrações não-documentadas, estas, organizadas
pelas redes de snakeheads (tradução: cabeças de cobra, como são
conhecidos os contrabandistas de pessoas), transformaram-se num
verdadeiro rodamoinho demográfico. Dado seu caráter ilegal, o
envolvimento do crime organizado com o lucrativo tráfico de pessoas
Na RMSP, um dos empreendimentos inspirados na tipologia suburb, revestido dos
ouropéis de ícone imobiliário, atende pelo “modelo Alfaville”, pioneiramente implantado
em Barueri, município integrante da Grande São Paulo.
36
2
217
(homens, mulheres e crianças), caso da Yasuka japonesa, das Triads
chinesas e da Máfia italiana, tem se tornado praxe nos informes
policiais de todo o mudo. A despeito de serem alvo de rancorosas
recriminações por parte de políticos conservadores em todo o mundo,
estas altercações demográficas, ao acatarem necessidades objetivas
da ordem global, dificilmente deixarão de existir. Justamente neste
sentido é que a contraface da colonização, residiria na colorização da
Europa (SANTOS, 1988: 41).
Sobremaneira, é este o imperativo que torna compreensível a
insistência com que o bloqueio da linha de limites entre o Norte e o
Sul esteja sendo colocado à prova incessantemente, perpetrado por
ondas migratórias que burlando barreiras dispostas em terra, mar e
ar, reclamam inserção nos espaços afluentes.
Há quem considere esta massa de desvalidos como o dínamo de
um “arrastão planetário”, cenário que ensejaria redobrada vigilância
das entradas e saídas dos espaços centrais. Porém, a movimentação
dos “sobrantes”, apesar de contidos, detidos, expulsos ou mesmo
mortos, é pura e simplesmente incontrolável. Isto porque resulta das
pré-condições objetivas que tem restringido cada vez mais o espaço
de parcelas consideráveis dos humanos.
Esses alienígenas de tipo novo, obsequiados com uma série de
adjetivações universalizadas pelos meios de comunicação (foreign
people, ausländer, illegal migrants, clandestinos, gatecrasher, boat
people, émigrés, outsiders, refugees, displaced persons), integram
deslocamentos num tropel que se acentua em escala e impacto,
nutrido pela lógica do intercâmbio mundial, que expele os rejeitados
2
218
para fora do sistema. Conforme as forças da globalização se tornam
mais penetrantes e a fricção da distância excisando regiões e nações
se dilui, as vagas se encorpam de modo incontinenti, realimentando
estruturalmente a entropia do processo como um todo (Cf. HUGO,
1998: 11).
Ex ante, nas grandes cidades de todo o globo, a presença destes
alógenos afirma-se acompanhada de longo prontuário de conflitos e
animosidades dos recém-chegados com as sociedades receptoras.
Repudiados socialmente, marginalizados economicamente, banidos
politicamente e culturalmente exorcizados, os alógenos se organizam
em bolsões carregados de tensões étnicas e raciais, explodindo com
o estranhamento que lhes é devotado pela sociedade afluente.
Este estado de insolvência do sistema contraria profecias, como
as alentadas pelos economistas clássicos, pelas quais o capitalismo
difundiria em todas as camadas sociais a abundância generalizada
(Cf. SMITH, 1979: 11). Entrementes, na nova ordem mundial,
...a pobreza dissemina-se por toda a superfície do globo,
avançando sobre as fronteiras do Primeiro Mundo e
instalando-se no coração dos Estados Unidos e da
Europa ocidental. No mundo todo, microespaços de
prosperidade convivem com cinturões envolventes de
pobreza e desemprego. Vastas regiões da África
subsaariana, América Latina e Ásia meridional conhecem
as tragédias associadas à miséria absoluta (MAGNOLI,
1993: 62).
Por tudo isso, a urbanização moderna não só representa um
modelo de civilização como igualmente um modo de relacionamento
com o meio ambiente que experimenta uma crise estrutural profunda,
2
219
que exatamente por esta razão, solicita revisão urgente. Tendo por
cenário maior uma realidade crivada por contradições, todos seriam
tentados a compreender que não haveria como almejar expectativas
alvissareiras para os dilemas urbanos da sociedade moderna, pois
decididamente, as cidades estão doentes mais do que em qualquer
outra época da história do ser humano (DIAS, 2002b: 35).
No entanto, recordemos que “o sentido da cidade enquanto obra
da civilização, que não se reduz à sua construção física, diz respeito
à construção da humanidade do homem” (Cf. CARLOS, 2004: 29).
Neste senso, é necessário assomar que desde sua origem, a noção
de pertencer à cidade, a uma coletividade organizada que reúne um
conjunto de cidadãos, esteve, tal como ponderou o geógrafo francês
Roland Breton, ligada semanticamente à ideia de refinamento.
É o que se pode apreender quando se toma conhecimento que
os termos civilização e cidadania, da mesma forma que o advérbio
civilmente, o adjetivo civil e o conceito de civilidade, originaram-se do
latim civitas, isto é, cidade. De uma outra raiz latina, urbs, também
reportando à cidade, procedem os adjetivos urbano e o substantivo
urbanidade (Cf. BRETON, 1990: 13).
Seria oportuno comentar, a questão percepção do meio ambiente
enquanto móvel das atitudes que adotada com relação à natureza,
conquistou desde os anos 1980 o merecido reconhecimento que lhe
cabe nas ciências sociais e, no que interessa diretamente a este
trabalho, no pensamento geográfico (Ver GONÇALVES, 1982 e 1990;
MOREIRA, 1982b).
2
220
Caberia, pois certificar uma percepção ambiental tendo por cerne
o espaço urbano, e com base nesta preocupação, pensar um projeto
político de tipo novo, posicionando a cidade enquanto um espaço
habilitado a assegurar a inclusão da maioria dos humanos, e não sua
apartação.
Tendo-se em mente a sentença pela qual a crise ambiental da
modernidade ou será resolvida no meio urbano ou terá nas cidades
seu epitáfio, o resgate do sentido original da palavra cidade sinaliza
para a necessidade de repensar os valores que têm legitimado sua
existência na perspectiva de uma sociedade justa e ecologicamente
responsável.
Exatamente por esta razão é que poderíamos, neste momento,
finalizar este caudal de comentários e explicações apontando para
alguns dos entendimentos propostos por um oikos-logos ampliado,
uma outra oikoumene, alternativa à da modernidade excludente.
4.3. BUSCANDO UM NOVO PONTO DE EQUILÍBRIO
Em conformidade com o que foi exposto, a partir da modernidade
a interferência do homem no ambiente acentuou-se, gerando intensa
artificialização do espaço habitado.
A fruição linear e progressiva do tempo suscitou a eclosão de um
espaço normatizado por circuitos eminentemente artificiais, no qual
pespontam objetos técnicos mantidos por fluxos que perfazem uma
artificialidade avassaladora, uma concretude cuja reprodução, está
2
221
assegurada por fabulações imaginárias referendando a integração em
espaços gravados por disfuncionalidades em síncope (Figura 6).
FIGURA 6 - O cinema constitui uma das mais poderosas máquinas de geração de
imagens de mundo da sociedade moderna, antecipando ou ratificando tendências
da materialidade social e do imaginário cultural. A celebrada película Blade
Runner, do cineasta norte-americano Ridley SCOTT (1982), transpõe, numa
narrativa futurista, o tema da metrópole moderna (foto). Nesta obra, uma
emblemática distopia, às clivagens étnicas e degradação ambiental, soma-se uma
manifesta iconofagia, materializada numa Los Angeles regurgitante de imagens
videográficas, informatizada por meio de painéis gigantes, veiculando animações
publicitárias de modo flagrante e ininterrupto. Um espaço no qual o subtexto é a
subjugação do mundo concreto em nome da fabulação dos desejos imaginários
(Fonte: < http://www3.sympatico.ca/philippe.lemieux2/index.html >. Acesso em: 2611-2004)
Nesta visiva, a paisagem cultural substituiu a paisagem natural e
os artefatos assumiram sobre a superfície terrestre um status altivo.
Este espaço-prótese, pesponteado, ul possidetis, pela onipresença de
objetos espaciais idealizados pelos humanos e articulados entre si
por meio de sistemas, consubstancia um compartimento artificial
engendrado pela Gesellschaft humana e submetido unicamente ao
seu comando. A tecnoesfera, ou seja, uma esfera técnica ou então, o
antropoceno, forma o resultado final deste processo.
2
222
A tecnoesfera, distinguindo-se como um meio técnico-científicoinformacional, é sumamente a espacialidade da sociedade moderna.
Reunindo a cidade, imensas parcelas tecnificadas do espaço rural,
assim como seus predicativos técnicos, estruturais e sistêmicos, o
funcionamento deste meio artificial demanda a agregação incessante
de conteúdos maiores de tempo, assegurando fluidez e velocidade
cada vez intensas ao conjunto do sistema, uma aceleração que
constitui sua essência mais marcante e inescapável (Vide SANTOS,
1998: 31/33, 44/45, 127/128 e 139/140).
Verdadeiramente, a tecnoesfera é um espaço no qual a atuação
da espécie humana é tão incisiva e sua influência de tal envergadura,
que se tornou inevitável conceituá-la enquanto elemento operacional
distinto. Daí o consenso em perfilar a tecnoesfera como uma sexta
camada, uma cronostratigrafia humana e artificial, usufruindo estatuto
similar à litosfera, hidrosfera, criosfera, atmosfera e a biosfera.
As denominações eleitas ao gosto deste ou daquele autor,
apurando termos como esfera artificial, humana, da inteligência,
camada técnica ou noosfera
37,
em nada se omitem em decalcar este
significado ou de esclarecer o quanto este requerimento do artifício
confere a um crédito do engenho humano (SANTOS, 1988, 1998 e
REBOUÇAS, 2002a: 5).
Reconhecidamente, a tecnoesfera perde inteligibilidade no caso
de ser dissociada da cognição do meio urbano enquanto seu núcleo
ativante. As cidades, materializando o cerne da ordem econômica,
Termo cunhado por Teilhard de Chardin (1881-1955), definindo o mundo do espírito e
do pensamento humano, um lençol habitado por inteligências livres, tendo por meta a
ascensão da consciência.
37
2
223
social e política existente, transformaram a totalidade do globo num
espaço subordinado aos seus dinamismos de reprodução.
Em face desta inferência, rede urbana mundial e tecnoesfera
mantém íntima relação entre si, potencializada pela organicidade que
solda estas instâncias uma à outra. Tal interação, legitimada por fixos
e fluxos das mais diversas taxonomias e consistências, engendra a
mais singular das materialidades do mundo moderno (Figura 7).
FIGURA 7 - A Galáxia de Luz da Tecnoesfera: Montagem fotográfica da madrugada
terrestre de 27 de novembro de 2000, evidenciando galáxias de luzes formadas a
partir das aglomerações urbanas e outros objetos espaciais luminosos no
antropoceno (Fonte: Astronomy picture of the day, imagem divulgada pela Nasa: <
antwrp.gsfc.nasa.gov/apod/astropix.html >. Acesso em: 12-01-2005)
Portanto, não seria de estranhar que justamente em nível das
dinâmicas substantivadas na tecnoesfera vislumbra-se o retrato mais
fiel da torção do espaço-tempo da modernidade. Concretamente, as
problemáticas decorrentes da esfera técnica são de tal modo ubíquas,
que se torna obrigatório pautar este compartimento em todo debate
pertinente à contemporaneidade. Não existe a menor possibilidade de
pensar a crise socioambiental da atualidade ignorando a influência e
2
224
o caráter decisivo que este meio artificializado desempenha para a
existência presente e futura da totalidade dos humanos.
Entretanto, a complexidade deste fenômeno não se esgota nas
nuanças concretas da tecnoesfera. Pelo contrário, compreendê-la de
um modo mais pleno impõe o alargamento da percepção, atendendo
não só para as instâncias visíveis quanto também para as invisíveis,
colaborando para sua resiliência e perpetuação. As prefigurações
imaginárias, enredadas a sistemas sêmicos, arquétipos culturais e
códigos topológicos, revelam uma força insubstituível na objetivação
do espaço, cabendo-lhes papel central nas motivações que moldam e
remodelam incessantemente o espaço habitado pelos humanos.
As padronagens imaginárias do espaço, resultando de processos
históricos, culturais e sociais, articulam-se com o funcionamento do
arranjo espacial, gerando um continuum que assegura a ligação entre
os objetivos intencionais das sociedades e a materialização destas no
espaço. Logo, o engendramento das representações espaciais seria,
por si mesma, uma apropriação, uma empresa e um controle.
Mesmo quando esta permanece nos limites de um conhecimento
intelectivo, isto em nada compromete a noção de que qualquer
projeto expresso por uma representação revela a imagem desejada
de um território, de um local de relações, passível de ser, cedo ou
tarde, materializado no próprio espaço (Cf. RAFFESTIN,1993: 144). A
este respeito, também poder-se-ia recorrer à fala do geógrafo francês
Paul CLAVAL, para o qual:
2
225
O espaço é um dos apoios privilegiados da atividade
simbólica. Ele é percebido e valorizado de forma diversa
pelos que o habilitam e lhe dão valor; à extensão que
ocupam, percorrem e utilizam superpõe em seu espírito,
aquela que conhecem, amam e que é para eles signo de
segurança, motivo de orgulho ou fonte de apego. O
espaço vive assim sob a forma de imagens mentais; elas
são tão importantes para compreender a configuração de
grupos e forças que trabalham quanto às realidades reais
do território que ocupam (1979: 20/21).
Por tudo isso interessaria emendar que o pensamento de Milton
Santos, ao propor uma proposição de totalidade social que engloba
isocronicamente a esfera do concreto e a do ideal, subentende que a
fruição da tecnoesfera correlaciona-se a uma psicoesfera. Dessarte,
um apenso central reporta à noção de concrescência, elaborada pelo
filósofo britânico Alfred Whitehead. Este conceito, apresentado como
intelecção do processo de concreção, conjumina ao mesmo tempo,
aspectos físicos e espirituais, indissoluvelmente conectados e ativos
entre si, que se retroalimentando continuamente, são o amálgama de
um postulado epistemológico no qual o pressuposto basilar, é lajeado
por uma apreensão unificadora das sequências e encadeamentos do
dinamismo das sociedades (Vide ABBAGNANO, 1991: 210).
Nesta perspectiva, tecnoesfera e psicoesfera, longe de serem
estanques, formam um binômio inextricável, repleto de interações e
correspondências de todo tipo. Com base neste intercâmbio modelar,
a psicoesfera, agremiando as crenças, desejos, paixões, vontades e
hábitos que inspiram a prática concreta, assim como as relações
interpessoais, os comportamentos filosóficos e a comunhão com o
universo social, é confidente das expectativas sociais que antecedem,
apoiam e sustentam no plano imaginário, a futura materialidade do
2
226
meio lapidado pelos humanos (Cf. SANTOS, 1999: 203/204; 1998: 32
e 1993b: 50/51).
A importância da psicoesfera se torna patente por destrinchar,
contrariamente aos postulados caros às teceduras vulgares do
materialismo histórico, que a consciência detém um papel de magno
desempenho nos sequenciamentos da espacialização. Tal premissa é
manifesta pelo fato da reprodução do espaço ser sufragada por
pressupostos imaginários, capacitados a antecipar as expectativas
colocadas pela territorialização. No caso do Brasil,
...como tecnoesfera, o meio técnico-científico se dá como
um fenômeno contínuo na maior parte do Sudeste e do
Sul, desbordando para grande parte do Mato Grosso do
Sul. Como psicoesfera, ele é o domínio do país inteiro
(SANTOS, 1998: 32/33).
Por esta via de entendimento, mais do que prisioneiro de uma
lógica que o comanda, os humanos podem, a partir do que venha a
residir como expectativa de futuro em nível do imaginário, devassar
um outro porvir, absolutamente diverso do que se descortina diante
das disfuncionalidades que se abatem sobre as ordens macrossocial
e macroplanetária, cada vez mais descoladas de si mesmas.
Esta inferência se ancora no predicado pelo qual as informações
não criam ideias, mas pelo contrário, são as ideias que engendram
informações. A psicoesfera, reflexionando com um dado empírico (a
materialidade social), ao remeter para uma inscrição no campo das
ideações humanas, sugeriria assim, a possibilidade de releituras,
sinalizando para o reino da liberdade (SANTOS, 1998: 84).
2
227
Com este dado em mãos, pode-se advertir que a fragilidade da
oikoumene existente, do seu frenesi infrene que nada mais evidencia
do que as pulsões da sua crise, não está credenciada a arrastar de
modo irreversível a humanidade consigo no torvelinho do tempo que
engendrou. Afinal, neste momento da história, é a própria sociedade
ocidental, diferentemente dos tempos em que esta avançava sem
reconhecer quaisquer obstáculos à sua expansão, hoje admite a
existência de desequilíbrios. Tal postura é perceptível nos discursos
que colocam em questão os parâmetros nos quais o Ocidente se
amparou durante séculos, que par a par, propõem alternativas para
sua continuidade.
Assim, o famoso informe divulgado nos finais dos anos 1960 pelo
Clube de Roma, significativamente publicado sob o título Limites do
Crescimento (documento também citado como Relatório Meadows),
constitui ótima exemplificação deste ponto de inflexão. Esta escritura
materializou pela primeira vez no regaço de uma sociedade obcecada
pelo produtivismo, uma glosa com amarradura científica, assumindo
abertamente a existência de limites concretos para o desenvolvimento
(sempre sinonimizado com o crescimento material), advertindo para a
inexequibilidade da economia-mundo pretender a continuidade de
uma expansão ilimitada.
Daí a preocupação em ao menos enunciar as limitações e os
entraves objetivos colocados crescentemente à forma de reprodução
da sociedade contemporânea, dentre estes, obviamente aqueles com
base na relação mantida com o meio natural (GONÇALVES, 2001: 8).
É igualmente interessante notar que logo nos parágrafos iniciais de
Limites do Crescimento, o espaço-tempo está demarcado como
2
228
padrão de referência para a vida humana, um argumento imanente
que percorre o corpo da publicação num variado rol de temários, tais
como as limitações do crescimento exponencial, da capacidade de
suporte do ambiente, o estado de equilíbrio global, etc.
Nesta ordem de considerações, estaria a ecologia, entendida
como obstáculo às estratégias de desnaturalização e inserindo uma
discussão com conteúdos temporais, capacitada a assumir o papel,
tal como pontuado pelo antropólogo francês Georges BALANDIER
(1988:195), de uma ciência do tempo? Poder-se-ia pensar a ecologia
enquanto eixo motivador de rediscussão do espaço de vida dos
homens e de sua reavaliação em termos de um conceito humanista e
não-excludente?
Acredito que a resposta poderá ser dada não por meio de
conceitos abstratos, mas sim por uma prática real preocupada com
um novo projeto de oikoumene. Este seria um excelente momento
para escordar - dado que estamos nos referindo à crise de uma
ordenação social do tempo advinda do Renascimento e que terminou
por engolfar o planeta inteiro sob sua hegemonia - que seu calcanhar
de Aquiles é justamente a aceleração.
Tanto procede esta observação, que os grupos desigualmente
integrados à sociedade moderna cedo descobriram nas greves e nas
“operações-padrão”, ou “tartaruga”, modalidades eficazes de colocar
em cheque a fruição do tempo hegemônico. Resumidamente: a força
dos fracos é o seu ritmo lento (SANTOS, 1993a e 1998: 81/86).
2
229
Neste sentido, talvez os mais autênticos senhores do tempo não
sejam aqueles que habitam as imponentes torres das próteses do
tempo. Inversamente ao que muitos arautos da velocidade imaginam,
pode-se entender que nos “espaços opacos” das urbes modernas,
áreas ocupadas pela informalidade e pelos atores que de um modo
ou de outro, são colocados como externos ao que é pautado como
moderno, é que a aufklärung do que implica este momento de mundo,
e por extensão as respostas aos dilemas que entrepõe, pode ser
encontrada:
A força é dos ‘lentos’ e não dos que detêm a velocidade
elogiada por um Virílio em delírio na esteira de um Valéry
sonhador. Quem na cidade tem mobilidade - e pode
percorrê-la e esquadrinhá-la - acaba por ver pouco da
Cidade e do Mundo. Sua comunhão com as imagens,
frequentemente pré-fabricadas, é a sua perdição. Seu
conforto, que não desejam perder, vem exatamente do
convívio com essas imagens. Os homens ‘lentos’, por seu
turno, para quem estas imagens são miragens, não
podem, por muito tempo, estar em fase com este
imaginário perverso e acabam descobrindo as fabulações
(SANTOS, 1998: 84).
Trata-se então das possibilidades de uma nova temporalidade,
heterogênea, voltada para unir e não meramente unificar, capacitada
a resgatar os sentidos de humanidade e de naturalidade para que
estes possam ser materializados no espaço habitado.
Possibilidades que acima de tudo residem na esperança, que se
confunde com a resistência, cujo sentido último é dado pela história
concreta de homens dispostos a resgatarem seu próprio destino.
Desafio que se coloca a todos, em todos os espaços e todos os
tempos!
2
230
PARTE III
SOCIEDADE, ÁGUA E MEIO AMBIENTE
2
231
CAPÍTULO 5
ÁGUA: UM RECURSO ESTRATÉGICO
5.1. A ÁGUA E SUA IMPORTÂNCIA PARA AS SOCIEDADES
HUMANAS
Como se sabe, a água é um recurso natural essencial. Isto, em
razão de constituir um componente bioquímico indispensável para a
totalidade dos seres vivos, incluindo-se nesta acepção, o conjunto da
raça humana. O líquido é cabalmente, de jure et de facto, ambiente
vital para infindas espécies animais e vegetais. Seres extremamente
simples sobrevivem na ausência de oxigênio. Porém, nenhuma forma
de vida consegue sobreviver sem água (RUTKOWSKI, 1999b: 5).
Os vínculos que relacionam a água com as manifestações de
vida são de tal modo evidentes, que tornam obrigatória a recordação
desta associação qualquer que seja o estudo ou a avaliação técnica
versando sobre a importância do recurso. Importaria consignar,
especialidades relacionadas diretamente com o domínio das águas,
como seria possível citar, a hidrologia e a limnologia, de forma alguma
se omitem em recomendar este vínculo. Pelo contrário, frisam a todo
o instante este relacionamento.
Neste sentido, a limnologia, voltada para o estudo interdisciplinar
dos meios aquáticos, manifesta uma preocupação irrevogável com os
aspectos que interagem com o conjunto dos seres vivos. Quanto à
hidrologia, mesmo dando especial atenção à água em termos da sua
2
232
ocorrência, circulação e distribuição, suas propriedades físicas e
químicas, está igualmente voltada para a relação mantida com o
ambiente natural e com as formas de vida, categoria que obviamente
inclui os seres humanos (Cf. CHORLEY et HAGGETT, 1975: 104).
A água esteve presente em todas as etapas do surgimento e
posterior expansão da espécie humana na Terra. Na ausência deste
líquido vital, o surgimento das poderosas civilizações do passado,
fortemente identificadas com a presença da água, seria impensável.
Recorda Fernando de AVILA-PIRES, dentre os fatores ecológicos que
influenciaram na seleção dos locais propícios para o estabelecimento
dos primeiros núcleos de povoamento, um dos mais importantes foi
reconhecidamente a ocorrência de água potável (1983: 47).
De fato, a espacialidade tradicional foi claramente marcada pela
coalescência da proximidade aos veios do líquido. Exemplificando, no
continente africano, registros arqueológicos referentes ao intercâmbio
comercial transaariano dão conta de que as calçadas de comércio
acatavam premissas bastante claras, roteiros muito bem definidos
nos quais a reserva de água era a consideração primordial (JONES,
1966: 222/223).
Assim, não admira que no longínquo passado a proeminência da
substância já estivesse consolidada. Fato incontestável, as regiões
agraciadas com a presença de água, caso típico dos grandes vales
fluviais (Nilo, Hindus, Ganges, Amarelo, Mekong, Niger, Zambeze,
Tigre e Eufrates) e de regiões lacustres intensamente irrigadas (caso
do Vale do México e da bacia do lago Tonle Sap, na Indochina),
marcaram de modo indelével a vida e a organização social, política e
2
233
econômica dos povos que os ocuparam. Como ponderou o geógrafo
e antropólogo italiano Eugenio TURRI, isto o demonstra a história dos
grandes rios, de diversas formas e em épocas diferentes (1983: 4).
De outra parte, os perfilhamentos de oásis como os do SinkiangDzungária, do Kara-Kum e do colar de afloramentos saarianos de
brotos d’água, foram do mesmo modo fundamentais para a criação de
colônias agropastoris, paradas de reabastecimento e entrepostos
comerciais, sítios nos quais a convivialidade humana regurgitava em
marcante contraste com a opacidade que lustra os desertos (MAULL,
1959: 64/65).
Nas civilizações erguidas com base nas ocorrências naturais de
água (por sinal consistindo, do ponto de vista histórico, nos primeiros
arranjos espaciais de vulto), é possível identificar um embrião de
estratégias de gerenciamento dos recursos hídricos.
Esta constatação é a valer, particularmente verdadeira para as
sociedades ditas “hidráulicas” ou “de regadio”, regidas pela formação
social asiática, despótica, tributária ou oriental. No mundo “asiático”
(ou como advogavam Karl Marx e Friedrich Engels, na “Velha Ásia”),
a gestão dos insumos ambientais, sobejamente dos hídricos, era uma
prioridade indiscutível (MAMIGONIAN, 1997; BARTRA, 1978; SOFRI,
1977 e BANU, 1969).
Nestas antigas formações sociais, a prosperidade, decorrendo
diretamente do regadio, exaltava as águas e os drenos construídos
para escoá-las, como elemento-chave indissociável da perpetuação
do espaço articulado. Este seria o caso do Sri Lanka, país no qual
2
234
850 anos atrás, o líquido já era objeto de meticulosa regulamentação.
Esta previa não somente as modalidades de sua distribuição,
...como também determinava as responsabilidades
quanto à conservação dos reservatórios e canais de
irrigação. Até se tornarem obsoletas com o advento da
economia monetarista, essas disposições foram aplicadas
através de um sistema de cooperação mútua. A tradição
persiste em muitas aldeias isoladas (GURUGÉ, 1985: 30).
Esta “hidrofilia” das antigas sociedades baseadas na agricultura
irrigada dizia respeito a necessidades absolutamente objetivas, uma
questão de vida ou morte para os impérios asiáticos:
...essa fertilização artificial do solo, dependendo de um
governo central e caindo em decadência desde que a
irrigação ou a drenagem fosse negligenciada, explica o
seguinte tato, que de outro modo pareceria estranho:
territórios inteiros, outrora admiravelmente cultivados,
como Palmyra, Petra, as ruínas do Yêmen, vastas
províncias do Egito, da Pérsia e do Indostão, encontramse hoje estéreis e desérticos. Assim como explica porque
uma única guerra devastadora pôde despovoar o país
durante séculos e privá-lo de toda a sua civilização
(MARX, 1976: 22).
Exatamente esta fatalidade desmantelou para sempre a fortuna
da Felix Arábia de antanho (atual Yêmen), após a ruptura do açude
que represava o flume do Adhanat por um abalo sísmico em 542 d.C.,
barragem que coletava as oscilantes precipitações pluviais, reservas
de umidade das montanhas e as águas das torrentes ocasionais do
perímetro sul-arábico, caudais zelosamente conduzidos para campos
irrigados por intermédio de uma intrincada rede de canais.
2
235
Objeto artificial imprescindível para a manutenção do sistema de
irrigação que transformou a Arábia Meridional em um jardim de
especiarias ao longo de um milênio e meio, o rompimento do dique foi
golpe decisivo para destruir para sempre o arranjo espacial formado
pelos chamados “Reinos do Incenso”: Sabá (ou Sheba), Hadramaut e
Qataban. Estes principados, afamados na Antiguidade Oriental pela
produção de perfumes e essências aromáticas para todos os gostos,
como o aloés, mirra, especiarias e mais expressivamente, o incenso,
descreveram desde então, uma incontida trajetória de definhamento,
sendo por fim, sepultados pelas areias e pelo esquecimento.
Reconhecidamente, a proeminência da água para as atividades
agrícolas é cabal. Na atualidade, tal como outrora, em nível mundial a
agricultura é de longe, além de atividade mais suscetível à escassez
do líquido, o mais importante usuário de recursos hídricos. Em média,
esta atividade consome entre 65% e 70% do total global, percentual
respeitável na comparação com o bocado de 24% requisitado pela
indústria, e mais ainda, quando o termo de referência da comparação
é o consumo das residências. Rubrique-se, neste particular, que as
atividades domésticas, alvo frequente das campanhas de prevenção
do desperdício de água, respondem por uma fração de 8% a 10% do
consumo total, seguramente o menos representativo dos usos do
líquido (Vide Figura 8).
As lides agrícolas têm sido responsáveis por notável utilização
consuntiva dos recursos hídricos, inclusive por conta da necessidade
premente de expansão da oferta de alimentos, impulsionada em
especial pela irrigação. Nesta perspectiva, assinale-se que nos países
em desenvolvimento, o percentual utilizado pela agropecuária pode
2
236
ser até mais alto, chegando a alcançar o patamar de 80% (Ver entre
outros RODRIGUES, 1998: 25).
FIGURA 8 - Consumo médio residencial de água por atividade domiciliar
(Fonte: Armand, 1998, L’eau en danger, Collection Les Essentiels, Milan/Paris)
A magnitude do consumo de recursos hídricos pelas atividades
rurais é facilmente compreensível. Não por outro motivo senão pelo
fato da água ser insubstituível nos processos agrários e zootécnicos.
A importância do líquido transparece quando se sabe que a água
pode representar até 90% da composição dos vegetais.
A disponibilidade inadequada do recurso em períodos como os
do crescimento das plantas, pode comprometer lavouras inteiras e
gerar crises de fome em larga escala. Em vastas porções do meio
rural em todo o mundo, a ausência de chuva é interpretada como um
capricho cruel da natureza, preconizando toda sorte de ansiedades e
momentos tormentosos, um verdadeiro fantasma que amedronta o
camponês até os recônditos da sua alma.
No referente à pecuária, a importância da água não é menor.
Poucas imagens se tornaram tão familiares quanto às de rebanhos
calmamente se deleitando nas beiras de um afloramento aquático
2
237
qualquer. O líquido é vital para a dessedentação dos animais, para a
produção de ração, para o funcionamento dos matadouros e no mais,
para o processamento da carne pela indústria alimentícia. Além disso,
ressalve-se que a ração incorpora água não só para ser produzida,
como também solicita determinado teor de umidade para consumarse eficazmente enquanto forragem.
Contabilizando o volume total de água solicitado pelos rebanhos,
chegamos a um enorme input hídrico, fato raramente conhecido pelo
cidadão comum. Os índices de consumo do líquido pelos rebanhos,
variam, como seria de se esperar, em face das condições ambientais,
dos métodos de criação e das suas finalidades. Porém, de qualquer
modo, o volume consumido jamais pode ser considerado desprezível.
Uma avaliação elaborada com base em levantamentos procedentes
do semiárido do Nordeste nos indicaria, somente no referente às
quantidades para a dessedentação dos animais nos criadouros, os
seguintes valores: 53 litros diários para os rebanhos bovinos; 41 para
cavalos e jumentos; 6 para os suínos, cabras e ovelhas; 0,2 para
galinhas (REBOUÇAS, 2004: 49).
Coerentemente, dada a importância da água para a criação dos
animais, não admira que nas regiões áridas e semiáridas do planeta,
nas quais a escassez do líquido é notória, os pastores nômades
tenham desenvolvido agudo senso de reconhecimento do recurso no
ambiente natural, prospectando poços de água e explorando os veios
que afloram superficialmente, como no caso dos poços e dos oásis
que irrompem através dos desertos, nos quais é possível repousar,
desfrutar de sombra, obter alimento e matar a sede do gado.
2
238
Ao menos em tese, o consumo agropecuário de água se manterá
majoritário em termos do consumo global. O crescimento das áreas
de lavoura irrigada e das pastagens conquistadas ao meio natural
permanecerá, ao que tudo indica, responsável pela maior parcela da
utilização dos recursos hídricos nos próximos 25 anos.
O grande leitmotiv é que a água nunca pode estar ausente nas
atividades rurais. A título de exemplificação, deve-se atentar que “para
se produzir uma tonelada de grãos são necessárias mil toneladas de
água, e para uma tonelada de arroz, duas mil toneladas de água” (Cf.
SALATI, LEMOS et SALATI, 2002: 49).
Outra certeza é que a industrialização está cada vez mais se
destacando no consumo de água. Analisando esta questão, registra o
renomado agrônomo e ambientalista estadunidense Lester BROWN:
As mil toneladas de água utilizadas na Índia para produzir
uma tonelada de trigo, valendo talvez US$ 200, podem
também ser utilizadas para incrementar facilmente a
produção industrial em US$ 10 mil, ou seja, 50 vezes
mais. Essa relação ajuda a explicar por que, no Oeste
americano, a venda de direitos de água de irrigação para
os centros urbanos pelos fazendeiros é uma ocorrência
quase diária (2001).
Entretanto, nada nestes emolumentos obsta as considerações
primordiais relacionadas com a alimentação. Afinal, ninguém pode
comer vidro, papel, plástico, aço ou peças de alumínio. Nesta linha de
raciocínio, a ampliação da produção agrícola seria, em princípio,
indissociável de um consumo hídrico que é sua condição sine qua
non, inerente ao seu próprio dinamismo.
2
239
Tal assertiva é particularmente adequada quando o assunto em
pauta é a irrigação, prática que tem respondido pelos aumentos de
produtividade agrícola registrados em quase todo os países. Mesmo
que as terras irrigadas representem neste exato momento apenas um
sexto de toda a área agrícola mundial, recorde-se que este quinhão é,
na contramão, fornecedor de mais de um terço da produção global de
alimentos (VILLIERS, 2002: 199).
Dada a associação entre população humana e alimentação, a
expansão demográfica constitui um motivo frequentemente apontado
para explicar a ampliação do consumo de água doce. Atualmente, a
humanidade soma 6,2 bilhões de indivíduos. Acredita-se que este
total passará para 7 bilhões no ano de 2010, 8,5 bilhões em 2025 e
presumivelmente alcançando a cifra de 10,5 bilhões em 2050 (Ver a
respeito NYT, 2000: 482).
Sublinhe-se que a população humana cresce à razão de noventa
milhões de indivíduos por ano. Isto equivaleria, com base em dados
demográficos do ano 2005, à população de um país como o México a
cada doze meses, ou a três Marrocos, seis Repúblicas Malgaches ou
ainda a oito nações do porte da Grécia, no mesmo período de tempo
(Ver entre outros BROWN, 2001).
No entanto, é necessário ressalvar, de uma vez por todas, que o
crescimento populacional não constitui, em si mesmo, um elemento
motivador da ampliação das áreas voltadas para produzir alimentos e
tampouco, da ampliação do consumo de recursos hídricos. A saber,
na realidade,
2
240
...todo modo histórico de produção tem suas leis próprias
de população, validas dentro de limites históricos. Uma lei
abstrata de população só existe para plantas e animais, e
apenas na medida em que esteja excluída a ação humana
(MARX, 1975b: 733).
Bem mais do que a expansão demográfica, pesa a persistência,
dentre diferentes arrazoados, das inferências econômicas em nível da
atividade agropastoril consorciadas com modelos do uso do solo e
dos recursos naturais, e colateralmente, com indiscutíveis interfaces
culturais, sociais e políticas. Estas, por sua vez, estão vinculadas com
formas perdulárias de utilização dos recursos hídricos, largamente
hegemônicas como modelo preferencial para obter alimentos em
todos os cenários geográficos do planeta.
Em suma, são os fatos influentes da arquitetura social, bem mais
do que alegações demográficas, que têm respaldado os prognósticos
crescentemente preocupantes quanto à disponibilidade de água doce.
Nesta acepção, o crescimento populacional per se não constitui razão
para a aceleração do consumo do líquido. Sequer de epifenômenos
correlatos à expansão de modelos agrícolas, que tem sido objeto de
toda sorte de questionamentos socioambientais.
Num elenco sumário, poderíamos mencionar o alastramento de
campos antropogênicos, arroteamentos voltados para a produção de
carne (especialmente da bovina), e de culturas comerciais (cana-deaçúcar, soja, algodão), ambas as atividades lesionando diretamente
áreas florestadas e arbustivas, que de uma forma ou de outra, estão
assimiladas, de um modo ou de outro, a ambientes naturais
38.
Em maio de 2005, dados divulgados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais
(INPE) relevaram que no Brasil, a área desmatada entre agosto de 2004 e agosto de
2005 alcançou a assombrosa cifra de 26.130km² (quase uma Alagoas), o segundo maior
38
2
241
Em síntese, a grandiosidade da expansão demográfica, que em
algumas análises seria agravada por um caráter exponencial, não
evidenciaria uma problemática hidrológica singelamente vinculada
com o crescimento da população, ainda que este último tenha se
explicitado de um modo historicamente sem precedentes. Como se
verá adiante, muito mais do que na demografia, a explicação para o
crescente problema do acesso aos recursos hídricos reside numa
ordem de motivações bem mais complexa. Esta recusaria o atraente,
porém friável, entendimento superficial da realidade.
Entenda-se que o cerne da problemática hídrica é o modelo de
desenvolvimento em curso, gerador da crise socioambiental em nível
mais amplo e da penúria do líquido em seu sentido mais particular.
Deste modo, ainda que a distribuição natural dos recursos hídricos e
sua administração seja por definição objeto de interesse de toda
investigação com foco nos recursos hídricos, a problematização ora
apresentada reclamaria as atenções sejam concentradas no campo
das inferências sociais. Na ausência deste enfoque, as estatísticas e
as declinações contábeis, poderiam arvorar-se em ciência social e em
tal seguimento, a perspectiva endossada neste trabalho deixaria de
fazer qualquer sentido.
Clarifico que mesmo com o registro destes reparos, tal questão,
por demais complexa para ser esgotada na brevidade de alguns
poucos parágrafos, frequentará as notações desta explanação nos
mais diversos ângulos e perspectivas. O temário que será objeto de
índice desde o ano de 1988, quando o monitoramento começou a ser realizado. Quase
metade da devastação (12.586 km²), ocorreu em Mato Grosso. Em grande parte, o
desflorestamento foi motivado pela expansão da pecuária, do cultivo da soja e da
exploração madeireira (Manchetes Socioambientais, edição de 19-05-2005).
2
242
análise nos próximos parágrafos, referente à presença da água no
espaço terrestre e as atribuições concernentes às demandas dos
humanos, consistirá em mais um dos momentos que teremos pela
frente para exercitar o exame pertinente a este trabalho.
5.2. AS ÁGUAS DOCES NO PLANETA TERRA
A água é a substância mais abundante na superfície do mundo.
Visível por todo o planeta, a conhecida divisa A Terra é Azul, proferida
pelo astronauta soviético Yuri Gagarin ao entrar em órbita terrestre
em 12 de abril de 1961, reflete em grande parte este fato objetivo.
Esta imagem do planeta, um corpo celeste predominantemente
azul contrastando com a escuridão infinita do universo, constituiu um
experimento contundente e singular, alterando desde então a clássica
percepção do relacionamento dos humanos com o ambiente, e com a
água, em particular (REBOUÇAS, BRAGA et TUNDISI, 2002: III).
O surgimento do estoque natural de água existente no planeta,
estimado em 1.386.000.000 de km³, realizou-se na escala do tempo
geológico, somando dezenas de milhões de anos. O volume citado, é
geralmente tomado como referência básica para pensar a questão
dos recursos hídricos no planeta, que basicamente remonta a um
balanço hídrico em permanente circulação, que no transcorrer dos
tempos históricos, seria fundamentalmente o mesmo (Vide NEGRET,
1982: 35).
2
243
Este montante, formou-se durante as convulsões mais críticas da
Era Pré-cambriana, concomitantemente ao resfriamento da crosta e a
eclosão de chuvas torrenciais contínuas, originando os reservatórios
hídricos, processo este catalisado em menor escala, por vários outros
fenômenos, dentre os quais, seria possível mencionar os jazimentos
subterrâneos de águas com progenitura juvenil, qual seja, geradas
pelos processos magmáticos do interior da crosta terrestre, estimadas
em cerca de 300 m³ por ano e as águas que ingressam na biosfera
através do vulcanismo (Vide REBOUÇAS, 2002b: 127).
Quanto ao volume composto pelas águas superficiais, de modo
imemorial tem ocorrido o ingresso de porções alienígenas do líquido
por meio dos chamados cometas de água, que carregam consigo,
desde os confins do espaço sideral, uma ninfa azul encapsulada.
Entendimento postulado por vozes da física e do saber astronômico,
estes corpos celestes seriam responsáveis pelo ponderável regalo de
aproximadamente três trilhões de toneladas de água extraterrestre a
cada dez mil anos, que anonimamente se diluem nas massas líquidas
do planeta (Ver a respeito GARCIA et DAQUE, 2004: 13).
Mais notável, contudo, foram as modificações ocorridas na forma
de distribuição espacial, isto é, a presença em corpos líquidos como
rios, lagos, aquíferos, geleiras, oceanos e mares
39,
em alguns casos
de magnitude considerável. Foi o que ocorreu durante os períodos
Tradicionalmente, os mares constituem comumente parcelas dos oceanos. Todavia,
note-se que muitos lagos salgados, como no caso do Mar Morto (no Oriente Médio) e do
Mar de Aral (no Turquestão), recebem esta denominação, o que pode gerar equívocos de
compreensão. A respeito, ressalvem-se as justificativas decorrentes dos contextos
histórico-culturais. Por exemplo, o Mar Morto foi assim denominado por constituir a única
grande extensão de águas salgadas conhecida no passado pelas tribos hebraicas que
deambulavam por esta parte do mundo. O mesmo pode ser dito quanto ao Mar de Aral
relativamente aos povos turânicos da Ásia Central.
39
2
244
glaciais. Com o avanço das geleiras, a fisionomia das águas, e da
Terra em si mesma, foram profundamente transformadas, processos
que promoveram em igual medida amplas alterações ambientais. As
marchas e contramarchas das glaciações inscreveram ao seu tempo,
mudanças radicais na distribuição desta substância em toda extensão
da Terra, conformando o surgimento de um meio natural que mutatis
mutandis, seria aquele que acolheu as primeiras grandes sociedades
humanas (REBOUÇAS, 2002a: 6/8; SHIKLOMANOV, 1999 e POPP,
1983: 97/98).
Porém, independentemente das alterações na sua distribuição, a
continuidade dos mecanismos naturais de renovação das águas,
constitui um dado inerente à circulação do líquido no planeta. Assim
sendo, o estoque hídrico terrestre tem sido constantemente reciclado
por intermédio do ciclo hidrológico, ou da água, fundamental para o
sistema-vida e a sua perpetuação.
É em decorrência das águas planetárias serem constantemente
depuradas que as demandas do conjunto dos ecossistemas e dos
seres vivos têm sido satisfeitas. Isto, sem contar a participação das
vitais dinâmicas climáticas e geofísicas gerais da Terra, estreitamente
vinculadas a este ciclo.
A importância em explicitar um quadro geral da distribuição da
água reporta ao fato da totalidade da substância ao longo da Terra
formar, do ponto de vista geofísico, uma única entidade. Recorde-se
que nos movimentos da atmosfera, aos quais a água se associa de
modo inquebrantável, não se pode isolar nenhuma parte, pois cada
uma delas age sobre sua vizinha (BLACHE, 1985: 38, grifos nossos).
2
245
Assim, dado que a água disponível no globo integra um mesmo
ciclo hidrológico, temos uma sequência de fenômenos pelos quais a
água transita por diferentes estados físicos (liquido, sólido e gasoso),
ao mesmo tempo em que percorre os diversos reservatórios naturais
existentes no planeta. Deste modo, as águas salgadas, por exemplo,
tornam-se num dado momento, doces, e estas, por sua vez, retornam
à sua condição salina anterior (NEGRET, 1982: 34).
Neste contexto, como em muitos outros, pode-se perceber a
estreita correlação existente na natureza entre a água e a energia. A
movimentação da água está duplamente relacionada à energia. Em
primeiro lugar, porque a evaporação depende do fornecimento de
energia à água. Em segundo, em face da manutenção da umidade do
ar depender da temperatura, isto é, da energia contida na atmosfera.
Ocorrendo perda desta energia (resfriamento), o vapor retorna então
ao estado líquido. Atesta Samuel Murgel BRANCO (1993: 27/29), o
ciclo da água está intimamente ligado ao ciclo energético, ita est, com
a difusão na Terra da energia proveniente do Astro-rei.
O calor do Sol aquece a superfície das águas, dos oceanos, dos
lagos, dos rios, das geleiras e do próprio solo úmido, motivando a
evaporação, ou seja, o enriquecimento do ar em vapor. Quando o ar
absorve a máxima quantidade de vapor que é capaz de reter, ele fica
saturado. Uma vez sucedendo este fenômeno, o excesso de vapor
que não pode ser absorvido condensa-se. Retornando ao estado
líquido, sucedem as chuvas e outros hidrometeoros, dentre os quais
pode-se mencionar o orvalho, nevadas, geadas, garoas e nevoeiros.
Como é possível inferir, além da energia radiante do Sol, a força da
gravidade contribui poderosamente para a efetivação deste ciclo.
2
246
Geomorfologicamente, hidrosfera (do grego, “esfera de água”), é
a denominação dada ao conjunto dos corpos líquidos da Terra. Esta
corresponde, ao lado da atmosfera (“esfera de ar”), da litosfera
(“esfera de pedra”) e da biosfera (“esfera de vida”), a um dos quatro
grandes compartimentos naturais reconhecidos pela geografia física.
Quanto à tecnoesfera (esfera técnica) ou antropoesfera (esfera
humana), trata-se de um compartimento que substancializa, em
observância com o que foi comentado, o espaço artificial construído
pelos humanos. Atualmente sua influência sobre os ciclos naturais
terrestres é de tal monta, que torna essencial o conhecimento do
sistema de engenharia que o rege para o futuro das massas líquidas
e da natureza em geral.
No planeta, a ubiquidade da hidrosfera é clara e inequívoca.
Citando exclusivamente as superfícies ocupadas por oceanos e
mares, ressalve-se que estas remetem a 71% da superfície terrestre,
ou seja, 3/4 do total (361 milhões de km²). Quanto às terras emersas
(continentes e ilhas), estas ocupam somente os 29% restantes, ou
seja, aproximadamente 1/4 da superfície total (149 milhões de km²).
Em síntese, na ponta do lápis a Terra seria muito mais um Planeta
Água do que Terra.
Todavia, apenas uma fração diminuta da massa líquida existente
é apropriada para o consumo humano. Isto porque a água destinada
ao consumo residencial, industrial, agrícola e pecuário deve ser doce
(Freshwater). A água doce, tanto a presente na superfície do planeta
(Blue Water Flow), quanto no subsolo (Gray Water Flow) ou no
próprio organismo dos seres vivos (Green Water Flow), não pode, a
2
247
despeito de qualquer sinonímia, ser classificada em função da
quantidade de sais dissolvidos no líquido. Isto porque a referência de
salinidade não corresponde propriamente aos sais, mas sim, ao teor
de Sólidos Totais Dissolvidos (STD).
Neste particular, o critério mundial de classificação das águas
considera como doce apenas aquelas que apresentam STD inferior a
1.000 mg/l, presente, ordinariamente, no corpo líquido dos rios, lagos
e depósitos subterrâneos da Terra. Por sua vez, os montantes de
águas classificadas como salobras, alojadas nas camadas do subsolo
e na faixa de transição entre os oceanos e os estuários dos rios,
possuem STD entre 1.000 e 10.000 mg/l, e enfim, as que concentram
proporção superior a 10.000 mg/l, correspondem às águas salgadas,
associadas ao volume dos mares e oceanos (REBOUÇAS, 2002a: 1).
Outra sinonímia recorrente, gerando frequentes mal-entendidos,
é a que reporta à identificação da água doce como necessariamente
potável. Entretanto, nada mais incorreto. As águas entendidas como
potáveis condizem às soluções aquosas apropriadas para a ingestão
humana, preparo dos alimentos, assim como para tarefas de limpeza
e higienização. Coerentemente, devem apresentar baixa presença de
sólidos em suspensão, e ademais, devem ser saudáveis e seguras,
isentas de microrganismos patogênicos e de substâncias orgânicas
dissolvidas. Portanto, convém distinguir água doce de água potável,
pois se toda água potável constitui uma água doce, o contrário, não é
obrigatoriamente verdadeiro (CAMARGO et PEREIRA, 2003: 49).
Outra consideração a ser registrada quanto a potabilidade, está
relacionada com o surgimento da química moderna e a constituição
2
248
dos modernos sistemas urbanos de abastecimento. A partir deste
momento, adotou-se a convenção de que a água catalogada como
potável é, ou deveria ser, além de líquida na temperatura média anual
da Terra (14 ºC), pura, insípida, inodora e incolor.
Estes pré-requisitos limnológicos (alusivos às condições físicas,
químicas, meteorológicas e biológicas da água) e organolépticos (ou
seja, capazes impressionar os sentidos humanos), mesmo integrando
um difuso senso comum e repetidos ad nauseam, divergem, e em
várias nuanças, das características da água no seu soberbo estado
natural.
Sumamente porque a água na natureza não é “pura”. Mesmo a
água da chuva, que passou por um processo natural de purificação,
contém partículas de outras substâncias incorporadas durante a
precipitação, decorrente do contato com o ar, poluído pelos humanos
ou não. O mesmo poderia ser dito das águas de um regato tranquilo,
ou de um lago soberanamente indexado à paisagem natural dos seus
arredores. Não fosse esta a condição primeva deste líquido ímpar,
jamais a água poderia ser alcunhada como “solvente universal”. A
suposta água “pura, insípida, inodora e incolor”, simplesmente não
existe no meio natural. Tal definição é, acima de tudo, própria de um
manual de química, não fazendo qualquer sentido para o leque das
substâncias naturais existentes no planeta.
Sinteticamente, a água na natureza é uma “solução diluída de
elementos dissolvidos na superfície da Terra, ou precipitados do ar”
(VILLIERS, 2002: 157). Outro aspecto, é que a água quimicamente
pura pode não ser boa para inúmeras funções. Como já percebiam os
2
249
antigos, a água para ser adequada à vida deve carrear a qualidade de
ser germinativa, ita est, ser capaz de abrigar o surgimento de seres
vivos, o que sugere uma distância pelo mínimo cautelosa do critério
de “pureza”. Finalmente, é a presença de gases e também de sais e
de outros compostos, que tornam a água apta “a sustentar a vida
aquática: os peixes e outros seres não poderiam viver em água pura”
(BRANCO, 1993: 40).
Coerentemente, a água considerada potável possui, sim, os mais
diversos gostos e sabores. A água existente na Terra é sempre uma
mistura de quase todos os elementos encontrados na superfície do
globo terrestre (apud BRANCO, 1993: 22). Em sendo assim, o líquido
caracteriza-se por apresentar uma seriação infinitamente variável de
soluções aquosas acompanhadas de amplo rol de substâncias e/ou
compostos químicos.
À propos, sendo o solvente universal por excelência, dificilmente
a água poderia ser “insípida”. Não mais porque, a água potável deve
possuir substâncias que “lhe deem o gosto característico e um
mínimo de salinidade compatível com a composição de nossas
células. A água fervida, torna-se insípida exatamente por dissipar os
gases, como o gás carbônico, durante o aquecimento” (Cf. BRANCO,
1993:40).
Um exemplo concreto negando a insipidez enquanto propriedade
positivamente aceitável, reside no fato de presenciarmos nos dias de
hoje, enorme ofensiva comercial tendo por base as águas minerais. E
estas, por definição, são águas nobres cujo diferencial é justamente
seu sabor peculiar. Poderia tal situação sugerir a aferição pela qual os
2
250
humanos poderiam ser transformados em sommeliers da água? Dada
a popularidade conquistada pelas águas minerais, dificilmente esta
indagação poderia resultar numa resposta negativa. Claramente, a
água com gosto chegou para ficar, tendencialmente sinalizando para
considerá-la como as melhores safras dos tintos e brancos de Baco
(CARLONI, 2003).
Uma vez esclarecido nosso ajuizado referente ao critério técnico
de água doce (qual seja, a classificação englobando o líquido cuja
concentração de STD é inferior a 1.000 mg/l), restaria identificar sua
manifestação no planeta. Neste sentido, a única conclusão possível é
que esta constitui fração mínima dos estoques hídricos mundiais.
Ademais, dificilmente este veredicto técnico, sentenciando as
águas doces ao status de exiguidade, comportaria qualquer exercício
de revisão. Indo direto ao ponto, a descoberta de concentrações de
água doce em regiões distantes ou em ambientes nos quais sua
presença é inusual, ainda que ampliando os prognósticos referentes
ao estoque hídrico global, não alteraria em absolutamente nada o
julgamento referente à difusão restrita destas águas.
Neste pormenor, seria cabível registrar manifestações incomuns.
Dentre estas, a constatação de vastos depósitos de água doce nas
profundidades do subsolo marinho, formando reservatórios que tem
sido passim explotados, embora em pequena escala, com o concurso
de diversas inovações tecnológicas (LQES, 2003). Ocasionalmente,
são registradas fontes borbulhantes mar adentro, uma singularidade
providencial para os primeiros ilhéus que, por exemplo, pioneiramente
povoaram a ilha Henderson, na Oceania (Vide DIAMOND, 2005: 157).
2
251
Além destes depósitos, expedições encetadas pela antiga União
Soviética desde os anos 1950, evidenciaram a existência de corpos
líquidos gigantescos, nunca dantes imaginados, tais como os lagos
subglaciais da Antártida. Na última década do Século XX, pesquisas
sistemáticas comprovaram a existência sob a capa de gelo da calota
polar antártica de não menos que 76 lagos subglaciais, descoberta
inusitada sob qualquer ponto de vista.
Destes ambientes, o destaque caberia ao lago Vostok, cuja
existência foi confirmada em 1996 por glaciólogos russos e britânicos.
O Vostok (“oriente”, em russo), o maior de todos os lagos subglaciais,
localiza-se numa inóspita porção central do continente gelado (por
sinal, apontada como recordista mundial em baixas temperaturas),
patenteando-se enquanto uma descoberta que justificadamente, tem
reclamado a atenção dos geógrafos, biólogos, físicos e muitos outros
especialistas. Algumas avaliações indicam que o Vostok está pelo
mínimo a três e possivelmente trinta milhões de anos, sem quaisquer
contatos com os demais ecossistemas do planeta.
O Vostok possui 240 km de comprimento e 50 km de largura,
cobrindo uma área de 14.300 km², equivalente ao Lago Ontário, um
dos Cinco Grandes Lagos da América do Norte. Todavia, é muito mais
profundo. Enquanto o Ontário possui no ponto máximo, 244 metros
de profundidade, o Vostok alcança 1.000 metros em alguns pontos.
As águas do Vostok permanecem líquidas devido à pressão do gelo
(equivalente a 350 atmosferas) e também pela atividade de uma fonte
geotérmica no fundo do lago. Selado pela calota antártica numa
espessura variando entre 3.700 e 4.100 metros, este corpo d’água é o
2
252
mais importante ambiente aquático isolado da Terra (KAPITSA, A. P.,
RIDLEY, J.K., ROBIN, G.Q., SIEGERT, M.J. et ZOTIKOV, A., 1996).
Não obstante, descobertas como estas, surpreendentes nos mais
diversos sentidos, em nada desmerecem o sentenciamento primordial
quanto à exiguidade das águas doces no planeta. Em resumo: as
águas doces totalizam somente 2,5% do montante hídrico total do
planeta. De pronto, este dado remete diretamente a outro, referente
aos demais 97,5% das águas terrestres. Este percentual, atendendo
ao maior de todos os reservatórios da hidrosfera, refere-se à massa
líquida dos oceanos, mares e lagos salgados. Apesar de representar
volume gigantesco, esta proporção é evidentemente imprópria para o
consumo direto.
Neste particular, a proposta de dessalinização da água presente
nos corpos líquidos salinos (no caso incluindo, além da água do mar,
a potabilização das águas subterrâneas com elevado STD), exequível
de ser empreendida por meio de processos como os da destilação e
da osmose reversa, tem sido postulada com certa frequência. No final
das contas, a massa líquida dos oceanos, em vista de somente 3,5%
da sua composição ser constituída por sólidos em dissolução, poderia
ser rubricada como um tipo de “água doce disfarçada”, sugerindo
convincente potencialidade de conversão das águas marinhas a uma
condição de potabilidade.
A dessalinização tem, deste modo e não sem razão, magnetizado
a imaginação de não poucos segmentos de opinião. O impacto desta
tecnologia no imaginário é axiomático: inexistem cenários futuristas
dispensando turbinas eólicas, seres clonados, antenas parabólicas,
2
253
cidades artificialmente climatizadas, boards multimodais de controle e
naturalmente, gigantescas usinas de dessalinização. Nesta linha de
argumentação, a questão da escassez dos recursos hídricos deixaria
virtualmente de pertencer à pauta de preocupações da humanidade.
Contudo, a popularidade da proposta deve ser convenientemente
contrastada com alguns comentários elucidadores. O primeiro deles
seria endereçado às objeções decorrentes do mau entendimento da
própria terminologia. Corroborado por inúmeros pareceres, o termo
dessalinização, no perspicaz comentário do biólogo Samuel Murgel
BRANCO, seria tecnicamente contestável, justificando, deveras, que
fosse substituído por dessalgamento (1993: 61).
A alegação, longe de ser mero preciosismo de linguagem, é que
o processo de dessalinização não se destina a remover toda a
salinidade marinha. Antes, tais tecnologias se prestam apenas a
retirar o excesso de sais da água, tornando-a potável. Respaldando
esta colocação está o fato da água doce não ser, como se viu,
destituída de sólidos dissolvidos, seja qual for sua emanação no meio
natural.
Essa provocação de Samuel Murgel Branco sugere uma outra
consideração: a de que não necessariamente necessita-se de “águas
sem sal” para as atividades que asseguram a sobrevivência. Deve-se
levar em consideração que as águas grafadas como de “qualidade
inferior”, categoria que incluiria águas como as salobras, as servidas
ou com patamares de STD não obrigatoriamente condizentes como o
padrão das supostas “águas puras”, estarem habilitadas a atender
diversas necessidades humanas.
2
254
Assinale-se que esta taxonomia de águas pode se prestar,
apelando para a utilização de processos de dessalinização de menor
escala, ao atendimento de diferenciada gama de demandas, uma
compreensão inexistente em passado recente, visto que se estipulava
apenas as “águas com grau elevado de pureza” como apropriadas
para satisfazer as necessidades humanas.
Afora tais apontamentos, interessa ainda trazer considerações no
tocante à dessalinização no seu sentido clássico, isto é, aquela que
assume massa dos oceanos e mares como “matéria prima”, para a
qual, existiriam, neste sentido, três alentados busílis.
O primeiro seria o custo econômico da dessalinização. Caro por
excelência, este processo está situado fora do alcance da maioria das
nações. Um segundo obstáculo residiria no fato de que tanto a
destilação quanto a osmose reversa são notórias devoradoras de
energia
40.
Mormente derivada da queima de combustíveis fósseis,
em especial o petróleo e o carvão (e dos dois insumos, especialmente
o primeiro), tecnologicamente este processo tem por pressuposto
confesso um farto suprimento de combustíveis fósseis (BARLOW et
CLARKE, 2003: 157).
Em função do que foi exposto, temos que a implantação de
usinas de água dessalinizada não seria tão fácil quanto algumas
expectativas pressupõem. Nesta perspectiva, não é de se admirar
Os dois recursos, solo e água, que como acabamos de anotar são objeto de relações
de poder e estão no centro de múltiplas estratégias e logísticas de controle, estão
integrados a técnicas que evoluem constantemente. As técnicas de utilização do solo e
da água não param de ser aperfeiçoadas, para obter plantas e animais alimentares ou
não. Porém, essas técnicas são consumidoras, num nível cada vez mais elevado, de
recursos não renováveis e, em particular, de energia (apud RAFFESTIN, 1993: 232).
40
2
255
que a maioria das centrais de dessalinização estejam concentradas
nos países do Oriente Médio. Nesta parte do globo situam-se países
que além de contarem com polpudas receitas do petróleo, dispõem
de fartas jazidas de hidrocarbonetos à disposição. Das 7.500 usinas
de destilação em operação no mundo, dois terços localizam-se nesta
região, particularmente na Arábia Saudita, nação que concentra 26%
deste total, correspondendo à maior usuária de água dessalinizada do
mundo (VILLIERS, 2002: 392).
Existiriam ainda, em terceiro lugar, sequelas de ordem ambiental.
Ressalve-se que a dessalinização, para cada volume de água do mar
processado, produz apenas 1/3 deste mesmo volume em água doce,
sendo os 2/3 restantes, um efluente constituído por uma salmoura
altamente concentrada, que escoada em temperaturas elevadas para
os oceanos, é uma preocupante fonte de poluição marinha.
Por fim, conformando objeção bem mais séria que a precedente,
o processo de potabilização adiciona à atmosfera gases efeito estufa
(GEE), um dos principais inimigos dos suprimentos de água doce do
mundo, dentre os quais podemos destacar o gás carbônico (CO²), o
metano (CH4) e o óxido nitroso (N²O). Em razão destes contratempos,
esta alternativa defronta-se com óbvias inadequações do ponto de
vista ambiental.
Assim sendo, conclui-se que as atenções devem concentrar-se
nos 2,5% correspondentes às águas doces. Contudo, os problemas
persistem quando se recorda a questão do acesso humano a este
líquido. Para começar, seria bom frisar que 68,9% das águas doces
estão encarceradas nas neves eternas de altas regiões montanhosas
2
256
(caso dos Andes, Cáucaso, Atlas, Alpes, Himalaia, Rochosas, etc.),
em geleiras (na Rússia, Canadá, Noruega, Finlândia, Suíça, Islândia,
Áustria, Alasca, Patagônia, Groenlândia, etc.) ou nas calotas polares.
No tocante às calotas, reinam de modo inconteste os inlandsis,
gigantescas e compactas geleiras que agasalham quase totalmente a
topografia da Groenlândia e sobremaneira, da Antártida. Quanto ao
continente gelado, assinale-se que, em seu solene isolamento, este
armazena cerca 90% do gelo mundial.
Ocupando cerca de 10% da superfície total da Terra, as regiões
cobertas por água em estado sólido (isto é, gelo) constituem o mais
importante estoque de água doce do mundo. Sua importância para o
equilíbrio climático terrestre é simplesmente fundamental. No Brasil,
os avanços e os recuos da massa de ar polar antártica condicionam
diretamente as dinâmicas atmosféricas, a começar pela pluviometria,
de vastas porções do país.
Estes considerandos, inspiram no plano da ciência, a existência
de um quinto compartimento natural, a saber, a “esfera de gelo e das
neves”: a criosfera. Entendida como elemento operacional distinto, a
criosfera passaria a usufruir, de um ponto de vista conceitual, um
status compatível com sua importância objetiva para os destinos do
planeta (Ver a respeito REBOUÇAS, 2002a: 4).
Mas, estando ou não dispostos a concordar com tal proposição,
tornou-se de qualquer modo inevitável que a criosfera passasse a ser
percebida como um possível manancial
41
para satisfazer um mundo
Neste parágrafo e em outros pontos do texto, “manancial” refere-se a uma definição
genérica, definindo “qualquer corpo d’água, superficial ou subterrâneo, utilizado para
41
2
257
sedento. Afinal, se existem registros históricos de mineração de gelo
alpino no império romano, porque então se eximir de repetir este feito
amparado em máquinas e meios tecnológicos mais avançados?
Por isso, a apresentação de sugestões de “garimpar água” da
criosfera, suscitando cenários que a subentendem como uma reserva
destinada à prospecção de imensos blocos de gelo, rebocados com o
auxílio de cabos de aço pelos oceanos do mundo para aplacar a sede
dos homens, rotineiramente surgem no recesso das narrativas dos
seus defensores.
No entanto, aparentemente uma proposta interessante, minerar
os estoques de água congelada para obter água doce suscitaria pelo
mínimo algumas ressalvas. O procedimento oferece dificuldades de
toda ordem, a começar pela alteração da estabilidade das geleiras.
Irrevogavelmente, a extração e desestabilização das colossais
camadas de gelo da criosfera contribuiria para maximizar o fenômeno
do aquecimento global, que tem sido apontado como responsável por
mudanças climáticas em todo o planeta.
A comprovar esta dita, desde o ano de 1986, os glaciólogos têm
registrado, por exemplo, a multiplicação dos icebergs nos oceanos,
assim como a aparição de icebergs de proporções inusitadas, que se
destacam, quase sempre sem alarde, especialmente dos beirais da
Antártida e da Groenlândia (Figura 9).
abastecimento humano, industrial, animal ou para irrigação”, tal como discriminado no
Vocabulário de Meio Ambiente (FEEMA, 1991, in CEPAM-FPFL, 1991). As implicações
conceituais mais profundas desta terminologia serão retomadas adiante, particularmente
no item 4.2.4 do Capítulo IV.
2
258
FIGURA 9 - Montagem fotográfica de um Iceberg gigante vadeando na costa da
Terra Nova, no Canadá (Fonte: < http://www.canofenley.com/images/Iceberg. Jpg
>, Ralph A Clevenger/Corbis. Acesso em: 23-06-2005)
2
259
A gênese do fenômeno, tem sido relacionada com o derretimento
das calotas, apontada por diversos estudos como causa direta da
elevação do nível dos mares em nível mundial. Além disso, visto que
estas reservas hídricas se localizam em quadrantes de difícil acesso,
o custo econômico e logístico da empreitada seria elevadíssimo e
para complementar, estando consideravelmente distantes dos centros
consumidores, o frete requereria custos adicionais.
Obviamente, existem imensas massas de gelo concentradas nas
regiões montanhosas de todo o planeta, em alguns casos situadas
próximas dos prováveis consumidores. Neste particular, não há como
não listar países que, como a Áustria e a Noruega, ao disporem de
amplas reservas de água na forma de gelo, estariam predestinados
ao papel de mineradores das geleiras. A água potável obtida através
da empreitada poderia então alcançar os centros urbanos por meio de
sistemas de aquedutos, relegando a escassez do líquido a uma mera
declamação infundada de um ambientalismo inconsequente.
Nesta acepção, a realidade transformou em um dado concreto o
que um dia foi classificado como engenharia visionária: hoje, um
aqueduto de alta tecnologia transporta água dos Alpes para Viena,
existindo planos para construir corredores de aquedutos conduzindo,
através de uma Rede de Água Europeia, o líquido obtido destas
montanhas para a Espanha, Grécia e quiçá algures.
Como seria de se esperar, a proposta de exploração das geleiras
alpinas tem perturbado, com toda razão, mais de um segmento de
opinião. Na própria Áustria, este projeto instila temores justificados.
Seguidamente, os ecologistas locais têm advertido sobre os danos
2
260
que as exportações em grande volume do líquido poderão ocasionar
ao sensível ecossistema das altas montanhas, um dos celebrados
cartões-postais deste país alpino (BARLOW et CLARKE, 2003: 158).
Em nível mais amplo, assevere-se que a mineração do gelo, ao
contribuir com a aceleração do efeito estufa, poderá catalisar a
falência da prospecção glacial por contribuir ela mesma para com a
desaparição das próprias geleiras. Longe de ser um alarme falso, o
desnudamento total das neves do monte Kilimandjaro (Tanzânia, nas
proximidades da fronteira com o Quênia), de acordo com testemunho
fotográfico datado de 2005 divulgado pela mídia mundial, ilustra de
modo eloquente a ameaça real associada com a atividade mineradora
nos glaciares e as interdições inerentes à explotação das geleiras.
Diante disso, oferecendo obstáculos de monta, dentre os quais
os de mote ecológico, a obtenção de água das reservas congeladas
tem sido preterida em favor de alternativas menos impactantes, uma
destas, direcionada para obter o líquido dos depósitos subterrâneos
ou água fóssil, tal como controversamente estes reservatórios são
catalogados por parte da comunidade dos hidrólogos.
Evitando entendimentos errôneos, que fique claro que as águas
subterrâneas não existem independentemente do ciclo natural da
água. Em sentido estrito, isto significa que a água julgada “fóssil”,
acomodada nos reservatórios subterrâneos, não constitui uma água
estancada e tampouco, “que não esteja submetida a um processo de
renovação” [...] “isto simplesmente quer dizer que sua renovação é
extremamente lenta” (Cf. MARGAT et SAAD, 1985:15). Em função
das características deste mecanismo natural, as águas subterrâneas
2
261
devem ser alvo de exploração absolutamente criteriosa, cercada de
todas as cautelas técnicas possíveis (REBOUÇAS, 2004 e 2002b:
139/142).
Contudo, no afã de retirar a água escondida nos veios da Terra,
estima-se que cerca de 250 milhões de poços foram colocados em
operação no mundo, dos quais presumivelmente 10% no Brasil (Cf.
REBOUÇAS, 2004:45). Alegadamente, a intensidade das perfurações
justifica-se pelos números estonteantes das águas subterrâneas. De
fato, estes estoques, armazenando 29,9% da água doce do planeta,
acumulados notadamente em aquíferos, são simplesmente colossais.
Apesar disto, atente-se que a exploração destas reservas implica em
pesados investimentos em estudos geotécnicos preliminares, gastos
com perfuração e outras providências.
Outros cuidados estão relacionados com a recarga natural dos
reservatórios subterrâneos, que pode reivindicar dezenas, centenas
ou mesmo milhares de anos. Consequentemente, o pressuposto para
a exploração dos aquíferos solicita contrapartidas sérias, zelando pela
preservação das águas, sugerindo, para impedir a contaminação dos
veios subterrâneos, normatizações estritas quanto ao uso e ocupação
do solo na superfície. Infelizmente, a adoção de regras de proteção
destes reservatórios não tem progredido na velocidade desejada (Cf.
SAMPAT, 2000).
Desta forma, mesmo somando um enorme volume, pensar este
estoque como possibilidade habilitada a satisfazer as demandas por
água doce, solicita estratégias tecnicamente eficientes de gestão,
sugerindo descartar qualquer otimismo fácil no seu aproveitamento.
2
262
Finalmente, outros 0,9% corresponderiam às águas estocadas no
solo, isto é, nas camadas mais superficiais da litosfera, em contato
praticamente direto com as dinâmicas atmosféricas e com a biosfera
em geral. A umidade e a fração do líquido que impregna terras úmidas
como pântanos e alagadiços em geral (Okavango, Sundarbans, Barel-Ghazal, Asmat, Pripet, etc.) ou então, os volumes compactados no
permafrost, são exemplos do grupo das terras úmidas, que no saber
pedológico, são aquelas áreas nas quais o lençol d’água se encontra
em estado superficial durante a maior parte do ano (Vide ANDERSON
et alli, 1979: 56).
Quanto ao permafrost, trata-se de um tipo de terreno congelado
encontrado em latitudes circumpolares, como no Norte da Sibéria, na
Lapônia, no Canadá Setentrional e no Alasca, assim como solos em
domínios de elevadas altitudes (cadeias montanhosas como o Altai,
as Rochosas, o Himalaia e altos planaltos, caso do Tibete).
Neste caso, tal como nos anteriores, os óbices não são poucos.
Além de gerar fortes impactos ambientais, são óbvios os empecilhos
para obter água nestes ambientes. No caso do permafrost, a retirada
de água teria os mesmos inconvenientes da exploração das geleiras,
com a agravante de impactar um ecossistema muito suscetível frente
a intervenções antropogênicas.
No tocante ao caso específico das terras úmidas, recorde-se que
estes espaços funcionam como sistemas naturais de filtragem e
absorção das águas doces, áreas de armazenamento, criadouros e
habitat de considerável número de espécies da vida selvagem. Para
complicar, estes ambientes já foram, visando a expansão dos pastos,
2
263
ampliação da fronteira agrícola ou obter áreas para assentamentos
humanos, intensamente drenados no decorrer da história humana.
Em resumo, a água doce em estado livre na natureza, presente
em corpos d’água como rios, lagos e oásis, ao alcance imediato da
satisfação das necessidades humanas, perfaz ínfima porcentagem
das águas planetárias: 0,3% dos 2,5%, percentual que representaria
200.000 km³, diga-se, tão só 0,014% das reservas mundiais de águas
doces.
É deste reduzido estoque do líquido, também denominado águas
superficiais ou então, azuis, que cabalmente depende a continuidade
da existência humana e do sistema-vida em sua totalidade. Justificase, portanto, atenções redobradas relativamente ao gerenciamento
deste suprimento.
5.3. ÁGUA: AVALIANDO UM RECURSO SOB TENSÃO
Como foi possível inferir, embora em reciclagem ininterrupta pela
natureza, as águas doces constituem um recurso finito em termos da
disponibilidade para os humanos. Com base nos ciclos naturais, as
águas doces superficiais armazenadas nos rios e nos lagos sempre
foram eficientemente depuradas, contando-se dentre os mecanismos
naturais de limpeza das águas, a sedimentação, aeração, diluição e
os processos bacterianos. Contudo,
...o aumento da população e a acelerada industrialização
superaram as propriedades naturais de reciclagem dos
2
264
cursos d’água, o que resultou em uma brutal poluição e
uma crescente ameaça tanto à saúde humana como ao
abastecimento de água em geral (VILLIERS, 2002: 143).
Portanto, apresenta-se uma conjuntura dramática que induziria a
todos indagar a respeito da quantidade de água solicitada pelos seres
humanos. Quanta água, no final das contas, é reclamada para a
sobrevivência? Qual seria o mínimo necessário para tal? A partir de
que momento poder-se-ia então considerar uma situação de estresse
hídrico?
Respostas é que não faltam. Há quem proponha o índice de 25
litros diários enquanto volume de água voltado exclusivamente para a
subsistência (BARLOW et CLARKE, 2003: 285). No mais, ampliando
este dado, várias agências internacionais propõem que 50 litros por
pessoa/dia seriam suficientes para cobrir as necessidades humanas
básicas do líquido para consumo, limpeza, higiene e culinária (CMB,
2000). Entretanto, na hipótese de o indivíduo dispor de esgotamento
sanitário, a realidade demonstra a impossibilidade de pensarmos uma
taxa de consumo inferior a 100 litros/pessoa/dia (REBOUÇAS, 2004:
59).
Recorde-se que as quantidades consideradas vitais variam de
acordo com padrões climáticos, sociais e culturais. Por esta exata
razão, encontramos profícuo conjunto de prontuários e estatísticas a
respeito do assunto. Mas, existe certo consenso em considerar que o
volume de 100 litros per capita/dia, correspondendo a 36,5 m³ por
ano, poderia ser alçado como volumetria mínima para satisfazer o
consumo pessoal (SELBOURNE, 2002: 45).
2
265
Apurando a discussão, esta torna-se acirrada quando se visualiza
o conceito numa ótica mais ampla, abarcando os volumes destinados
para a indústria, agropecuária e geração de energia, atividades que
não poderiam, é óbvio, serem desvinculadas do way of life do mundo
moderno. Neste discernimento, divergências e descompassos, tanto
no sentido quantitativo quanto no qualitativo, podem ser arrolados
quanto à compreensão do mínimo de água doce indispensável para
perpetuar a vida humana.
Caso se queira levar em conta os pareceres propostos em 1989
pela hidróloga sueca Malin Falkenmark, a oferta de recursos hídricos
satisfatórios para o atendimento das demandas humanas (incluindo
nesta contabilidade as requisições da agricultura, da indústria e da
produção energética), não poderia ser inferior ao patamar de 1.700
m³/pessoa/ano.
Esta referência, também conhecida como Índice de Estresse
Hídrico (WSI, abreviatura técnica de Water Stress Index) ou Indicador
de Falkenmark, indicaria o chamado estado de alerta, que ocorre toda
vez em que este índice encontra dificuldades para ser disponibilizado.
Por sua vez, índices inferiores a 1.000 m³/hab./ano demarcariam para
Falkenmark uma situação de escassez crônica de água (Chronic
Water Scarcity), e abaixo de 500 m³/hab./ano, um estado de penúria
hídrica absoluta (Absolute Water Scarcity), ainda mais problemática
quanto à oferta de água.
Deve-se ressalvar que a noção de estresse hídrico, tal como
delimitada por Malin Falkenmark, convive com variados graus de
concordância e antagonismo com outras formulações. De um ponto
2
266
de vista quantitativo, é extremamente difícil, por exemplo, adotar um
padrão que contemple a heterogeneidade de situações vivenciadas
pela humanidade. No que parece constituir uma crítica procedente, os
indicadores propostos por Falkenmark parecem ignorar, por exemplo,
a existência de regiões que convivem relativamente bem com a
escassez e/ou penúria de recursos hídricos, dentre estas, a Andaluzia
(Sul da Espanha) e amplas regiões do Levante (Vide SHUVAL, 1998).
Logo, sem desconsiderar o arrojo indiscutível da cientista sueca
em lançar o conceito de estresse hídrico, este tem sido intensamente
debatido e sua sustentação teórica questionada das mais diversas
formas, inclusive no tocante à especificidade política, social e
geográfica (Ver a respeito RIJSBERMAN, 2004; GRANAHAN, 2002;
OHLSSON, 1999 e 1998; SHUVAL, 1998). Assim, nesta lógica de
especulações, não há rigorosamente ninguém que proclame como
definitivo o Indicador de Falkenmark (GRANAHAN, 2002: 20).
Outrossim, as análises de Falkenmark, sob as quais pesam o
justificado veredicto de refletirem o modo de vida das sociedades
afluentes (mas não do conjunto da humanidade), tem convivido com a
apresentação de outras indicações quantitativas.
Embora o índice de 1.700 m³/pessoa/ano seja fundamental para
avaliar número considerável de contextos, conjunto significativo de
pesquisadores, abarcando desde especialistas do Banco Mundial e
departamentos da ONU, até assessorias técnicas especializadas e
instituições dedicadas aos cuidados e manejo dos recursos hídricos,
tem proposto o patamar de 1.000 m³/pessoa/ano como parâmetro
mais universal para reconhecer uma condição de estresse hídrico.
2
267
Quanto à escassez de água, esta, se configuraria nas situações
nas quais a oferta é inferior a 500 m³/hab./ano. Não diferentemente,
seria desta forma que muitos pesquisadores brasileiros têm pautado a
insuficiência de água de um ponto de vista técnico e conceitual (Vide
REBOUÇAS, 2004: 68/69 e 2002a: 19).
Mas, note-se que critérios quantitativos, quaisquer que sejam, e
desde que pensados unicamente como medianidades matemáticas,
demonstram inaptidão para esgotarem as problemáticas econômicas,
políticas e sociais que rondam o debate dos recursos hídricos. Tanto
procede tal contestação, que seria possível identificar propostas que
trabalham com índices ainda menores que 1.000 m³/pessoa/ano.
Por exemplo, o engenheiro ambiental israelense Hillel SHUVAL
(1998), tem proposto uma média de consumo de 125 m³/pessoa/ano
para os habitantes das áreas urbanas dos países áridos do Oriente
Médio, o Minimum Water Requirement (MWR). Isto com base na
renomada experiência da gestão israelense de recursos hídricos, que
como se sabe, remete a uma nação reconhecidamente competente
na administração das águas doces (REBOUÇAS, 2004: 71 e 136).
Afora padrões numéricos, há com certeza um cabedal expressivo
de objeções quanto ao uso recorrente de promédios matemáticos na
avaliação da disponibilidade dos recursos hídricos. Estas poderiam
incluir as seguintes limitações: as médias anuais, particularmente as
de índole nacional, mascaram situações profundas de escassez em
escalas menores, locais, regionais e urbanas, ambas extremamente
significativas; os indicadores quantitativos não identificam o peso das
obras de infraestrutura quanto às modificações que provocam na
2
268
disponibilidade de água; igualmente, a adoção de limiares técnicos
não reflete importantes variações na demanda por água, decorrentes
de determinado estilo de vida, do clima e do contexto histórico- social
(passim RIJSBERMAN, 2004).
Por isso mesmo, a propensão quantitativa existente no Indicador
de Falkenmark, foi objeto de reavaliações e enriquecida por outras
contribuições, dentre as quais, caberia uma menção obrigatória para
o Índice de Estresse Hídrico Social (Social Water Stress Index),
proposto por outro cientista sueco, Leif Ohlsson, especialista em água
e ecopolítica.
Tomando por base a dificuldade de acesso aos recursos hídricos
e relacionando-o com o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH),
proposto pela ONU em 1990, o trabalho de Leif Ohlsson chama a
atenção para o entrelaçamento da condição de exclusão social com a
da situação de indigência hidrológica, contextualização que grava
vastos segmentos populacionais, inclusive em países considerados
ricos em água doce.
Portanto, a contribuição de OHLSSON (1999 e 1998), ao incluir
um componente sociométrico repetidamente vezes secundarizado em
avaliações que lançam mão exclusivamente métodos quantitativos, é
absolutamente pertinente, necessária e imprescindível.
Isto posto, saliente-se que não haveria como dispensar os dois
recortes em discussão, quais sejam, os de mote quantitativo e os
fundamentados em critérios qualitativos. A adoção de um parâmetro
numérico para um tema tão objetivo quanto a disponibilidade hídrica é
2
269
em si mesmo imperioso. Este contribui para identificar (mesmo que
cercado de ressalvas), questões associadas com a oferta de água
para atender necessidades humanas elementares de saúde, higiene
e bem-estar.
Simultaneamente, o necessário aporte referente aos cenários
sociais, culturais, políticos e econômicos, faria pleno sentido para
enriquecer estas avaliações com os aspectos contraditórios que
perpassam nos espaços da sociedade contemporânea. Em particular,
estes interessariam para a análise da escassez urbana de água, um
problema que arrosta as metrópoles da periferia, dentre as quais, as
aglomerações brasileiras.
A dramaticidade desta questão é evidente quando se sabe que,
segundo estimativas da ONU, cerca de 30% da população mundial,
mormente os setores excluídos, já vive a situação de estresse hídrico.
Pensando um referencial com base em 50 litros diários per capita (em
linhas gerais a quantidade consumida por uma cabeça de gado
bovino unicamente para dessedentação), um bilhão de pessoas vive,
nos dias de hoje, com uma oferta menor do que esta.
Em 2025, cerca de 3,5 bilhões de pessoas habitarão áreas com
carência de água, conjunto no qual o destaque caberia aos países
pobres. Em 2050, novamente adotando como referência o padrão de
50 litros diários, poderão ser 4,2 bilhões de pessoas para as quais
não será possível garantir sequer este volume (CMB, 2000).
Outro fator inquietante adicional são as projeções que acenam
para 2025 uma situação de estresse hídrico para muitos dos países
2
270
centrais, consumidores por excelência de água. Em mais de uma
acareação, repete-se que o consumo destes países é muitas vezes
superior ao dos países pobres. Uma criança nascida num país rico
utilizaria, por exemplo, cerca de 30 a 50 vezes mais água do que uma
de um país periférico 42.
A demanda dos países centrais, detentores de um padrão de
consumo de água muitíssimo mais elevado do que o dos países do
Terceiro Mundo, admite (quando não impõe), prognosticar cenários
perpassados por enfrentamentos e toda sorte de pendências políticas
e atritos interestatais centrados na questão do acesso a este líquido
vital.
Uma observação bastante instigante é a demarcada por meio da
comparação dos dados da disponibilidade per capita de água doce no
ano 2000 e 2025, isto é, avaliações centradas exclusivamente em
dados físicos e quantitativos, com aqueles perpassados pelo crivo da
dimensão social e econômica projetados para o ano 2025.
Atente-se, deste modo, que gorda parcela dos países periféricos
que despontam com excedente hídrico físico no ano 2000, vivenciará
situação de escassez econômica de água em 2025. Por outro lado, os
países do Norte, grande parte dos quais não são agraciados com
recursos hídricos, estarão pelo contrário, e a despeito do possível - e
esperado -, recrudescimento da escassez física de recursos hídricos,
desfrutando de largo acesso à água doce (Vide RIJSBERMAN, 2004).
42
Jornal O Globo (RJ), Caderno Ciência, edição de 6/3/2003.
2
271
Estes prognósticos em si mesmos constituiriam claro indicativo
de uma crise (em curso ou potencial) quanto ao abastecimento de
água potável, flertando com disfuncionalidades que atormentam o
conjunto da população global, agraciada ou não de acesso ao líquido.
Inserindo heterogênea coleção de conflitos, o temário da água
doce transparece como o dilema mais espicaçante a ser enfrentado
pela humanidade em futuro próximo. Justamente por isso, sublinhar
quanto à emergência de uma problemática internacional de água, é
uma asserção que supera em muito, uma mera nota especulativa (Cf.
VILLIERS, 2002: 56).
Meritoriamente, a preocupação com a preservação do líquido
passou a se difundir por tudo o mundo, motivando a adoção do dia 22
de março como Dia Mundial da Água, efeméride referendada pela
ONU em 1992. Entretanto, até que ponto a questão da escassez,
agora sub-repticiamente inscrita num evento comemorativo global,
atinge de fato os habitantes do planeta? E de que modo as atividades
humanas estão ou serão afetadas por esta problemática?
Isto posto, atinando-se que a natureza não dá saltos (natura non
facit saltus), alinhavar lineamentos na busca de respostas a estas
indagações é um convite para a confecção do panorama pertinente
ao futuro próximo dos humanos, que independentemente do que as
métricas e os arrazoados podem explicitar, será exatamente este, o
intuito assumido dos próximos capítulos.
2
272
CAPÍTULO 6
ÁGUA: RECURSO INDISPENSÁVEL
6.1. ÁGUA E ENERGIA
A energia é um aspecto sumamente vinculado à vida moderna,
nas suas mais diferentes derivações. É impossível conceber, nos
marcos da modernidade, um conglomerado urbano ou uma instalação
industrial, seja lá qual for seu porte, dispensando conexões funcionais
com provisões e/ou insumos energéticos.
Por conseguinte, o consumo de energia (ou melhor conferindo,
conversão da energia, terminologia considerada mais adequada do
ponto de vista técnico), cresceu exponencialmente com o advento do
mundo ocidental. Sem dúvida alguma, em nenhum outro momento da
história a demanda por suprimentos energéticos alcançou patamares
tão grandiloquentes.
Este crescimento se especificou particularmente na produção de
bens, na prestação de serviços e na contextura dos processos de
reprodução social e cultural que caracterizam a vida contemporânea.
Tal evidência está claramente consignada no quadro seguinte (Figura
10), que explicita o avanço das demandas energéticas ao longo da
história humana.
Contudo, a dependência do meio técnico-científico-informacional
no tocante à energia empresta a esta discussão um cunho de certa
2
273
excepcionalidade. Isto porque o mundo moderno, para atender
reclamos social e historicamente necessários para seu modo de vida,
reivindica vasto input energético.
FIGURA 10 - A Expansão do consumo de energia na escala do tempo histórico
(Fonte: SASSIN, 1981: 11)
Exemplificando, para produzir vidros, papéis, plásticos, aço e
alumínio, materiais que praticamente simbolizam a vida moderna, são
requeridos ponderáveis inputs energéticos. Numa visada meramente
quantitativa, para obter uma tonelada de vidro precisamos de 4,83 mil
kilowatt por hora (kWh); para o papel, 4,98 mil kWh para cada
tonelada produzida; para o plástico, 6,74 mil kWh por tonelada; cada
tonelada de aço solicita 6,84 mil kWh; finalmente, uma tonelada de
alumínio não pode ser produzida com menos de 17,6 mil kWh (Cf.
CALDERONI, 2003: 197, 213, 228, 242 e 183).
2
274
A magnitude destas métricas é evidente quando se compara o
custo energético do vidro com os demais materiais listados. Recordese que o vidro, apesar de constituir o produto menos exigente em
eletricidade da listagem, trata-se de um material cujo input energético
já é elevado pelo simples motivo de resultar da fusão de matérias
primas inorgânicas, dentre as quais, um papel fundamental caberia à
areia
43.
Não por acaso, o Líbano, país que corresponde em linhas
gerais à Fenícia da antiguidade, foi intensamente desmatado dezenas
de séculos atrás, inclusive devido as exigências da indústria vidreira
desta antiga civilização do Levante
44.
Neste recorte, um caso mais embaraçoso é sem dúvida alguma,
referente ao alumínio. Este metal, mais que qualquer outro, se tornou
representativo do estilo de vida da modernidade. Ele está fortemente
presente na construção civil, na indústria aeronáutica, na manufatura
de peças e implementos mecânicos, em objetos de uso diário, nas
embalagens e na exploração do cosmos.
O sucesso do alumínio é por demais evidente. A onipresença do
material é perceptível não só num ostensivo conjunto de itens e na
própria paisagem criada, quanto nas formas de consumo simbólico,
associadas que estão às faculdades estéticas e físicas deste metal,
Assinale-se que não existe propriamente vidro, mas sim, a tipologia vidros, cada um
dos quais, resultante de uma combinação específica de componentes minerais, o que
impõe trajetos diferenciados de reciclagem. De um modo ou de outro, esta asserção
poderia ser estendida a todo conjunto de recicláveis: papéis, plásticos e diferentes
processamentos e ligas de metais.
44 O antigo Líbano era coberto por densa vegetação, inclusive por florestas inteiras de
cedro, encantando os cronistas da Bíblia e todos os povos do Oriente Médio de outrora.
Note-se que muito embora a bandeira libanesa exibir um exemplar desta árvore em seu
campo central, o cedro foi praticamente extinto. Esta espécie está atualmente reduzida a
alguns exemplares protegidos por lei. A eliminação da cobertura vegetal do Líbano é um
dos exemplos de como as tecnologias ditas “pouco exigentes” ou de “baixo impacto”,
interferem de modo cumulativo no meio ambiente, promovendo transtornos irreversíveis.
43
2
275
explícitas nas representações que remetem às propriedades deste
metal em termos de textura, da cor, ou mesmo, do brilho.
Esta predileção pelo alumínio, em vista de que a prospecção e
beneficiamento do minério desdobram-se em impactos de todo o tipo
no ambiente, implica em externalidades de gestão extremamente
dificultosa. Incontestavelmente, pode-se precisar que os processos de
obtenção dos metais são, geral, lesivos para o meio natural. Por
exemplo, rejeitos e efluentes
45
provenientes da mineração do ferro
representam aproximadamente a metade da tonelagem do minério
retirado das jazidas.
Porém, esta proporção é significativamente mais alta para a
bauxita, minério do qual é obtida na prática, a totalidade do alumínio
primário: nada menos do que três quartos do montante removido das
minas é pura canga, rebute com grande impacto ecológico. Importa
registrar que a elevada carga de revolvimento do solo decorre do teor
médio relativamente baixo do metal na bauxita (ou terra vermelha,
como igualmente este mineral é denominado), no geral, oscilando em
torno de 25% (CALDERONI, 2003: 180; SEVÁ, 1997: 16 e GEORGE,
1980: 112).
Além dos impactos ocasionados pela mineração implicarem no
deslocamento de portentosas camadas de solo e poluição por uma
nefasta carga de detritos resultantes do beneficiamento nas usinas
metalúrgicas, o alumínio igualmente é, por definição, um produto
eletrointensivo. Os dados expostos esclarecem que a produção deste
45
“Efluente: Qualquer tipo de água ou líquido, que flui de um sistema de coleta, como
tubulações, canais, reservatórios, elevatórios ou de um sistema de tratamento ou
disposição final, com estações de tratamento e corpos de água” (Glossário Ambiental).
2
276
metal consome 17.600 kWh/tonelada. Ora, uma contabilidade simples
nos revela, portanto, que o material utiliza cerca de 3,6 vezes mais
energia que o vidro, 3,5 vezes mais que o papel, 2,61 vezes o plástico
e aproximadamente 2,57 vezes do que o aço. Outro cálculo indica
que uma latinha de alumínio incorpora energia suficiente para manter
uma lâmpada de 100 Watts acesa durante aproximadamente 3:30
horas ou manter a televisão ligada por pouco mais de 3 horas
46.
Fato plenamente observável, a identificação deste metal com o
estilo de vida da modernidade, difundiu extensivamente sua utilização
em todo o cotidiano e nos mais diversos campos da indústria e da
cadeia produtiva. Nesta linha de aferições, no prontuário ambiental do
alumínio deve-se indexar os agravos decorrentes da implantação e
manutenção de centrais de eletricidade cuja energia está destinada a
trazê-lo ao mundo. Por isso mesmo, dentre outras razões, o alumínio
é responsável por fração ponderável do consumo energético. No
Brasil, as empresas encarregadas da produção do metal, confiscam
cerca de 10% da hidroeletricidade gerada no território nacional (Cf.
CEMPRE, Cempre Informa).
O vulto da participação do alumínio no consumo energético,
também deve ser avaliado com base no fato de que os setores fabris
responsáveis por produzi-lo, são do mesmo modo, agraciados com
tarifas significativamente mais baixas do que as pagas pelo cidadão
comum. As medidas de apoio das administrações federais têm sido
explícitas quando se sabe que desde a entrada em operação da
Usina Hidrelétrica (UHE) de Tucuruí em 1984, as Centrais Elétricas
do Norte do Brasil SA (ELETRONORTE), tem fornecido a energia a
46
Informação divulgada no site da ALCOA Alumínio SA (Acesso: 22-03-2005).
2
277
preços subsidiados para as processadoras de alumínio do Pará e do
Maranhão (SANTOS FILHO, 1999: 134), prática que, a propósito,
prossegue até os dias de hoje. Comparativamente aos consumidores
residenciais, a megaempresa Companhia Alumínio Brasileiro SA
(ALBRÁS, sediada em Barcarena, Pará), cujas instalações produzem
alumínio para exportação, paga pela energia fornecida, tão só 10% do
total pago pelas residências. Um dos cálculos disponíveis avalia que
cerca de U$ 250 milhões são desta forma repassados a cada ano
para as indústrias exportadoras de alumínio, significando um claro
subsídio em prol do consumo deste metal por parte das economias
afluentes dos países do centro 47.
Estes dados são em si mesmo, reveladores dos pressupostos
que regem a matriz energética brasileira. Pensando-se que poucos
anos atrás a nação foi sacudida pelo fantasma do chamado “apagão”,
fica evidente a necessidade de antes de serem estabelecidas “regras
para a contenção do desperdício” e ou mesmo de “racionamento”,
que sejam revistas as prioridades do uso da energia produzida no
território nacional. Ao Brasil, constituindo uma nação com destacada
posição na geração da hidroeletricidade e que agrega a esta condição
a de ser grande produtor e exportador de alumínio, coloca-se na
ordem do dia repensar o gerenciamento da matriz energética.
Por outro lado, é evidente que mensurar os índices de consumo
energético dos materiais utilizados pelo mundo moderno, por mais
preocupantes que estes sejam, não esgota a discussão relativa à
energia no sentido mais amplo. Além dos aspectos mencionados,
destaque-se sobretudo, os que se prontificam a uma articulação com
Informação obtida na home-page do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB): <
http://www.mabnacional.org.br/ >,(Acesso: 19-06-2005).
47
2
278
a questão dos recursos hídricos. Basicamente em razão da geração
de energia sempre remeter a algum tipo de vínculo como os recursos
hídricos. Exatamente por isso, ponderações atinentes aos impactos
socioambientais constituem pauta obrigatória nesta discussão.
Antes de tudo, é válido lembrar que a água está presente em
praticamente todas as formas atualmente existentes de conversão da
energia. Esta locução se expressa de modo explícito para o caso da
hidroeletricidade; noutros processos, tais como a biomassa, energia
termonuclear e termoelétrica, a água também contempla parceria com
a produção de energia. Ademais, impactos ambientais com origem na
matriz energética terminam atingindo, de um modo ou de outro, os
corpos aquáticos.
Exemplificando, até mesmo as usinas maremotoras, funcionando
com base no aproveitamento energético do deslocamento das marés
48
e normalmente percebidas como isentas de comprometimentos
ambientais, apresentam efeitos colaterais para o ambiente. Embora
Esta fonte de energia interessa principalmente para as regiões com grande diferença
entre as marés alta e baixa, podendo ser explorada através das usinas maremotoras,
instalações que convertem a energia das marés em energia elétrica. Elas funcionam de
modo semelhante às hidrelétricas, dispondo de turbinas movimentadas pela água do mar
represada. Este represamento é obtido pela construção de barragens em recortes
apropriados do litoral, amplos e profundos. Quando ocorre a maré alta, estes trechos do
litoral são ocupados pela água do mar e antes que a água do mar recue, as comportas
são fechadas, represando a massa líquida. Mais adiante, este volume é gradativamente
liberado de modo a acionar turbinas geradoras de eletricidade. A construção de usinas
maremotoras solicita a existência de diversas pré-condições, tais como a ocorrência de
marés altas e condições geográficas apropriadas. Embora a energia maremotriz seja
uma das grandes fontes renováveis de energia do mundo, concentra-se, contudo, em
regiões litorâneas como o Canal da Mancha, o Mar da Irlanda, Mar de Barentz e o Mar
Branco. O uso da energia das marés pode diminuir a necessidade da emergia nuclear,
com seus riscos associados à radiação. O imenso potencial energético das marés é
ainda pouco utilizado na escala mundial. Uma das mais conhecidas experiências de
aproveitamento da energia maremotora é a estação maremotriz do Rance, situada na
península da Bretanha, na França. Concebida para ser a primeira de uma série de
estações maremotrizes, o programa de construção de estações maremotoras da França
foi paralisado, suplantado pela expansão da construção de usinas nucleares nos anos
1960.
48
2
279
diversos estudos evidenciem serem pontuais os impactos das usinas
maremotoras (que diferem de um sítio para outro, na dependência
direta das características geográficas de cada área), e da energia
maremotriz não resultar na emissão de gases responsáveis pelo
aquecimento global e tampouco em deposições ácidas, o bloqueio do
fluxo da maré, represado numa baía, canal, estuário ou qualquer
outra reentrância costeira por essas instalações, pode resultar em
molestas perturbações para os ecossistemas fluviais e marinhos. De
resto, a intervenção na linha da costa pode ser prejudicial para a
navegação, pesca e recreação.
A articulação entre as questões dos recursos hídricos e da matriz
energética se repete no caso das novas tecnologias de geração de
energia, caso das células de combustível. Esta tecnologia, proposta
pela primeira vez em 1839, adota por insumo energético a própria
água. No Século XIX, a descoberta da possibilidade de utilizar o
líquido para fornecer à humanidade toda a energia de que necessita
estimulou o fervor visionário de muitos pensadores, cientistas e
escritores. Escreveu Júlio Verne na sua obra A Ilha Misteriosa (1874):
“A água será um dia um combustível. O hidrogênio e o oxigênio que a
constituem, utilizados separadamente oferecerão uma fonte de calor
e de luz inexauríveis”.
Nas células de combustível, a energia é obtida pela separação
dos átomos de hidrogênio e de oxigênio presentes no líquido, que
através de transformação exotérmica, gera calor e energia elétrica.
Este processo, além de não acarretar qualquer tipo de poluição, tem
por efluente somente uma água despida de resíduos. Entretanto,
exatamente o fato de propor a utilização energética de um recurso
2
280
difuso (a água) e de não propiciar controle estatocêntrico (visto que a
energia é gerada nos locais de consumo), é que bloqueou sua difusão
e o aprofundamento das pesquisas. Numa realidade social em que a
economia foi construída com base em combustíveis fósseis e com o
intento declarado de dominar a vida dos humanos, é fácil adivinhar os
motivos que engavetaram os estudos para viabilizar as células de
combustível como opção factível. Assim, aguardando aprimoramentos
técnicos, a tecnologia hoje desperta renovado interesse, recolocando
na ordem do dia a conexão entre a energia e a água.
De qualquer modo, tudo isso confirma que os recursos hídricos
não podem, qualquer que seja o ponto de vista, serem dissociados
das avaliações relacionadas com a matriz energética, mesmo porque,
a produção de energia, de uma maneira ou de outra, sempre possui a
água enquanto pressuposto logístico e/ou funcional.
Neste sentido, avantajado escopo de argumentações pavimenta
a advertência no sentido de jamais desvincular o debate relacionado
com os recursos hídricos das condizentes com a matriz energética.
Gerar e disponibilizar energia implica, quando o assunto em pauta é a
sociedade moderna, em demanda amplificada de recursos hídricos, o
que por sua vez, se relaciona ordinariamente com plurimus impactos
socioambientais.
E, dificilmente poder-se-ia minimizar esta preocupação quando a
modalidade de matriz de energia é a hidroeletricidade. Constituindo
uma modalidade de geração de energia na qual a associação com os
recursos hídricos apresenta-se de modo indiscutível, a importância da
hidroeletricidade no universo das opções energéticas disponíveis no
2
281
Brasil é manifesta. O país ocupa atualmente a terceira posição no
ranking planetário em capacidade instalada de geração hidrelétrica,
superado apenas pelos Estados Unidos e Canadá. Na escala dos dez
maiores produtores globais, o Brasil perfila, acompanhado da Índia e
da China continental, como um dos três únicos grandes geradores de
hidroeletricidade situados fora do contexto dos países centrais ou das
nações tradicionalmente industrializadas.
Este fato contribui para justificar a expressiva participação da
hidroeletricidade no total da produção elétrica nacional. Nas últimas
décadas, a hidroeletricidade tem respondido, pelo mínimo, por 90%
da energia gerada, cabendo a produção da fração restante ao labor
das usinas termoelétricas e nucleares. Sublinhe-se que no Brasil, a
construção de hidrelétricas está associada ao imaginário referendado
com a modernização e decerto, a proliferação de barragens erguidas
desde primórdios do século passado em todo o território nacional
certamente corroboraria este julgamento.
A proeminência do primado energético baseado na construção de
represas tem sido, aliás, origem de um dos problemas mais sérios
vivenciados pela população urbana do país. Observe-se que em
linhas gerais, os interesses mobilizados pela geração de energia com
base na água armazenada em represas, respaldados solidamente no
poder econômico e político, tenderam a se afirmar frente aos voltados
para o abastecimento de água potável para a população.
Bem assim, embora os reservatórios possibilitem dupla finalidade
(gerar energia e fornecer água potável), a produção de energia foi
priorizada de facto, impondo aos demais usos dos recursos hídricos,
2
282
as prioridades e as expectativas deste segmento. Em tal perspectiva,
numa flagrante inversão dos termos pelos quais a água se prontifica
como fator básico para a continuidade da vida, o líquido represado
restringe-se à função de mera energia potencial a disposição da
movimentação das turbinas, inexistindo cuidados visando a qualidade
das águas.
Paralelamente a estas colocações, pode-se registrar outra ordem
de problemas, pois num ponto de vista ambiental, as hidrelétricas,
geralmente apontadas como forma ambientalmente adequada (ou até
mesmo “limpa”), de geração de energia, não escapariam, a bem da
verdade, de diversos outros questionamentos, atendendo inclusive a
problemáticas conceituais. Recorde-se que embora constitua uma
locução constantemente repetida, dificilmente se poderia apontar uma
forma verdadeiramente limpa de geração de energia. Neste particular,
existiriam, no máximo, apenas fontes de energia menos sujas, mas
não fontes verdadeiramente limpas, parecer este que incluiria as
matrizes consideradas alternativas.
Precisando melhor esta nota, as modalidades soft, carimbadas
como “limpas”, possuem como denominador comum o fato de serem
renováveis e serem bastante adaptadas ao meio natural. No entanto,
isto não significa ausência de impactos, pois as energias renováveis
também impactam o meio ambiente e ao bem-estar das populações.
Exemplificando, os painéis solares ocasionam desde ferimentos
ocasionados por quedas totais ou parciais dos equipamentos durante
a manutenção e o inconveniente brilho da luz solar nas superfícies de
vidro, até incômodos em termos da poluição sonora gerada pelas
2
283
modernas turbinas movidas a vento, podendo também afetar as
migrações e os voos dos pássaros.
No mais, certificando os comentários dos parágrafos anteriores,
pode-se agregar que a suposta característica “menos impactante” da
energia hidrelétrica constitui um discurso que amiúde, descarta uma
série de agressões socioambientais, a começar pelas que atingem as
populações deslocadas pela construção de barragens.
Praxe repetida em múltiplos cenários, os projetos hidrelétricos,
tanto no passado quanto hoje, resultam em alterações radicais de
ordem econômica, social, política e cultural. Não há como negar, a
implantação das plantas hidrelétricas, particularmente os chamados
megaprojetos, tem perturbado o modo de vida de significativos grupos
populacionais em todo o mundo. Onerados diretamente pelo impacto
da construção dos reservatórios, aos grupos de deslocados, resta,
quando muito, aderir a impositivos programas de reassentamento,
sendo indenizadas apenas quando se mobilizam com este fim.
Outro óbice é que dentre os segmentos atingidos pela construção
dos reservatórios das represas, um contingente muito significativo é
formado por povos indígenas, minorias étnicas e grupos tradicionais
como camponeses, ribeirinhos e extrativistas em geral (CMB, 2000).
Estruturadas em arranjos territorialmente singulares, tais populações
têm sua vida social alicerçada num entrosamento com o meio natural,
fatoração que as tornam enormemente sensíveis aos impactos
provocados pela construção de grandes barragens (Vide SANTOS et
ANDRADE, 1988).
2
284
De resto, dado que estes grupos estão em maior ou menor grau,
desigualmente integrados às sociedades sob cujos marcos vivem, tal
situação é origem de diversas dessimetrias no relacionamento com os
Estados nacionais, a começar pela fragilidade política das populações
afetadas diante das instâncias governamentais em todos os níveis, e
naturalmente, às construtoras. Assim sendo, estes segmentos sofrem
um nível desproporcionalmente alto de deslocamentos, ocasionando
impactos tremendamente negativos sobre nos meios de subsistência,
na sua cultura e práticas tradicionais (CMB, 2000). Não sem razão,
estas populações terminam por serem apreendidos como intérpretes
de mobilizações ecológicas contrárias à construção dos reservatórios.
Não fosse suficiente, os projetos hidrelétricos potencializam
desequilíbrios ambientais de ampla e diversificada taxonomia, no
geral pouquíssimo conhecidos pela opinião pública. Notadamente, um
destes remeteria às emissões dos GEE, decorrentes do enchimento
de reservatórios das hidrelétricas, construídos em áreas de florestas
tropicais densas. Com o afogamento e posterior putrefação da massa
dos vegetais, gera-se metano (conhecido como “gás dos pântanos”) e
dióxido de carbono, ambos em quantidades excepcionais. Os gases
oriundos dos reservatórios contribuem diretamente, lado a lado com a
queima de combustíveis de matriz fóssil, junto com as emissões
provenientes dos lixos e do esterco dos rebanhos, para vitaminar o
aquecimento global.
Certo é que a formação dos lagos artificiais hidrelétricos pode,
independentemente das alterações ecológicas que acompanham seu
surgimento, corresponder a um padrão de fornecimento de energia
sugerindo que os custos ecossistêmicos da construção de barragens
2
285
estariam, ao menos justificados por mercês ambientalmente eficientes
quanto ao fornecimento de energia para a sociedade mais ampla.
Nesta linha de interpretação seria o caso de se mencionar a UHE
de Paulo Afonso I-IV, responsável pela geração de 3.984 MW com
base numa área alagada de 1.600 hectares. Matematicamente, Paulo
Afonso gera 2.490 kW para cada hectare alagado, índice considerado
plausível na comparação com a maioria das hidrelétricas. No sistema
hidrelétrico brasileiro, em termos da capacidade instalada, Itaipu gera
93 kW/hectare alagado; o sistema Billings, 69,7
49;
Jupiá, 42; São
Simão, 41; patamares considerados tecnicamente bons ou aceitáveis.
Entretanto, numa outra ponta a usina de Sobradinho gera 1.050 MW
tendo por contrapartida um reservatório cobrindo 421.400 hectares,
consumando um índice de apenas dois kW por hectare alagado.
São considerações deste tipo que induzem muitos especialistas a
recomendarem,
...como menos prejudiciais do ponto de vista ecológicosanitário, represas que se caracterizem por um máximo
volume de água represada, com mínima superfície de
inundação ou, expresso de outra maneira, máxima
capacidade geradora por área inundada (BRANCO, 2002:
239, grifos nossos).
A despeito da sabedoria desta doutrina, não necessariamente os
órgãos estatais de planejamento atendem ao primado da utilização
minimamente racional do capital hídrico. Pelo contrário, são inúmeros
os exemplos de obras hidrelétricas construídas ignorando quaisquer
Valor obtido com base em informação prestada por Edson Fernando Escames, gestor
ambiental da Empresa Metropolitana de Águas e Energia (EMAE), em 07-12-2005.
49
2
286
arrazoados da boa engenharia e infelizmente, respondendo por
impactos socioambientais terrivelmente repetitivos.
Um caso notório que instrumentalizou a água enquanto item a
serviço do desequilíbrio ambiental foi o referente à UHE de Balbina,
construída no final dos anos 1980 no Amazonas, obra considerada
um dos piores desastres ecológicos de todos os tempos. O lago da
hidrelétrica, cuja área equivale à metade do Distrito Federal, afogou
compacta extensão de matas, destruiu sítios arqueológicos e inundou
parte da reserva indígena Waimiri-Atroari. A Hidrelétrica de Balbina
libera três milhões de toneladas de CO² por ano (o mais abundante
dos GEE, sendo nesta escala, o mais daninho de todos), e o fará
durante 20 anos, enquanto que uma termoelétrica a gás libera em
média 0,35 milhão de toneladas por ano (NOVAES, 2000). Assinalese que estes custos ambientais não se justificariam nem mesmo por
presumidos benefícios em termos de abastecimento energético:
Balbina gera um mísero quilowatt por hectare alagado, sendo seu
potencial energético insuficiente para abastecer Manaus, a capital do
Amazonas, que em tese atenderia.
Outro aspecto pertinente neste arrolamento, é que a proliferação
indiscriminada de barragens é em si mesma, elemento determinante
da diminuição da oferta dos recursos hídricos, em razão da elevação
das taxas de evaporação e destruição dos próprios sistemas naturais
provedores de água doce. Este fenômeno é alçado a proporções
verdadeiramente dantescas na República Popular da China. Além de
encaminhar a construção da maior hidrelétrica do mundo, a das Três
Gargantas
50,
recorde-se que a China reúne 46% das barragens no
Em razão da experiência acumulada pela engenharia nacional na construção de
grandes barragens, a empresa brasileira FURNAS Centrais Elétricas SA participa deste
50
2
287
mundo (Vide CMB, 2000). O protagonismo dos projetos chineses de
construção de barragens é incontestável:
Em 1900, não havia no mundo barragens mais altas do
que 15 metros. Por volta de 1950, havia 5.270, duas delas
na China. Trinta anos depois havia 36.562, das quais não
menos de 18.820 na China (VILLIERS, 2002: 179).
Para complicar, sequelas derivadas do gigantismo desmesurado
e inconsequente dos planejadores do setor elétrico implicam, de uma
maneira ou de outra, na concentração de águas que anteriormente,
estavam parcimoniosamente distribuídas no meio natural. Existe farta
documentação atestando que amiúde, os megaprojetos hidrelétricos,
incensados pela propaganda oficial, interferem cedo ou tarde nos
ciclos hidrológicos das bacias hidrográficas, comprometendo suas
características, como a velocidade e a vazão das águas dos rios.
Ocorrem também deterioração ambiental devido aos desmatamentos,
defaunação e inutilização de terras agrícolas com a instalação de
linhas de transmissão; perda de acervos históricos, paisagísticos e
culturais; potencialização da concentração de sedimentos; e para
completar, alterações nos microclimas locais.
Paralelamente, as barragens hidrelétricas são responsáveis por
solapar equilíbrios físicos e biocenóticos de importância imprescritível
para a manutenção dos recursos hídricos, afetando diversas formas
de vida dos cursos dos rios, e de modo particularmente direto, a
ictiofauna e as populações ribeirinhas dependentes da pesca.
polêmico empreendimento. As proporções monumentais desta represa, são patentes
quando se sabe que o lago artificial de Três Gargantas, com capacidade de acumular 40
km³ de água, alterará a rotação da Terra, prolongando a duração dos dias em 0,06
microssegundos devido ao represamento de imensas massas líquidas pela barragem.
2
288
Sendo assim, em face do número considerável de problemas
gerados pelos projetos hidrelétricos, as populações atingidas em todo
o mundo têm se organizado na defesa dos seus espaços de vida.
Recorde-se que o Brasil contabilizou em 2005, mais de duas mil
barragens construídas em todo território nacional, responsáveis pelo
alagamento de uma extensão de 34 mil km² (a título de comparação,
Alagoas cobre 29.107 km²), acarretando o deslocamento de mais de
1 milhão de pessoas. E apesar da enormidade destes números, nada
disto parece sensibilizar os órgãos governamentais em esmorecer a
construção de novas represas 51.
Não admira então que no país, os embaraços provocados pela
construção de hidrelétricas tenham movido a formação do Movimento
dos Atingidos por Barragens (MAB), movimento social considerado,
ao lado do seu congênere indiano, como um dos mais vigorosos de
todo o mundo. Recorde-se que mesmo nos países centrais, caso dos
Estados Unidos, a conscientização dos infortúnios provocados pelos
barramentos indiscriminados dos rios suscitou mobilizações inéditas
solicitando a desativação estas obras, consideradas contrárias aos
interesses vitais da população 52.
Em solo estadunidense, a era da edificação de represas parece
ter virtualmente cessado de existir. Embora posicionando-se desde o
Século XIX como um dos líderes mundiais na construção de represas,
Informações divulgadas em 17/06/2005 pelo Movimento dos Atingidos por Barragens
(MAB), davam conta de que até 2008, outras 100.000 pessoas seriam deslocadas no
Brasil pela construção de represas (nota postada no site do MAB).
52 Caberia admoestar que esta tendência deve ser acompanhada com cautela. Muitos
setores do ambientalismo sugerem que o lobby da indústria nuclear seria beneficiário
direto da desativação e demolição das barragens. Retenha-se que o nuclear tem
expandido sua capacidade geradora nas últimas três décadas e seu potencial para
influenciar decisões governamentais corre no mesmo sentido.
51
2
289
hoje os Estados Unidos lideram o desmantelamento das represas: “O
país está desativando mais do que construindo a cada ano, e já
removeu pelo menos 465 delas, consoante um estudo da American
Rivers, Friends of the Earth, e da Trout Unlimited. A França e outros
países estão seguindo o mesmo caminho” (RUNYAN, 2001: 31).
Apresentadas no alvorecer da modernização como marco do
“crescimento econômico” e da “vitória do homem sobre a natureza”,
as barragens, obras reconhecidamente emblemáticas da ascendência
dos humanos sobre o meio natural, ingressaram no novo milênio
marcadas por estigmas e pela indignação pelos problemas que tem
suscitado.
Porém, não se pode esquecer que este tipo de planta energética
não constitui o único vetor de dilapidação e comprometimento das
águas doces. Contradizendo difundido senso comum, um poderoso
agente de danos aos corpos aquáticos está compendiado por
termoelétricas. Neste aspecto, anote-se que em inúmeros segmentos
sociais, está sedimentado o parecer de que estas centrais, tendo por
base a produção de energia a partir da queima de combustíveis
fósseis, dispensariam a utilização de água para o seu funcionamento.
Este pressuposto transitou com muita tranquilidade nas polêmicas
relacionadas com o “apagão” durante o ano de 2001, quando então,
uma forte corrente de opinião advogou a criação de termoelétricas
enquanto alternativa válida às hidrelétricas, visto serem entendidas
como pouco ou nada dependentes do caudal fluvial e da pluviometria.
Todavia, a despeito do mencionado senso comum pelo qual as
hidrelétricas são consideradas consumidoras por excelência de água,
2
290
e que as plantas termoelétricas, pelo contrário, poupariam recursos
hídricos, cumpre salientar que a termoeletricidade também se destaca
como ávida devoradora do líquido. Fato largamente desconhecido
pela opinião pública, as termoelétricas requisitam água em diversas
etapas da sua operação. Dentre estas, podemos citar a geração de
vapor, refrigeração e manutenção do sistema, e isto, numa proporção
considerável. Não é de se admirar, portanto, que as termoelétricas
ocupem posição privilegiada na relação dos grandes consumidores
de água em diversos países, incluindo nesta observação os países do
Norte que estão às voltas com o problema do estresse hídrico.
Faria sentido, portanto, analisar a partir de um registro recente e
tecnicamente fidedigno (LANNA, 2002: 543), cômputos que ilustram
estas afirmações:
➢
O consumo de água pelas termoelétricas constitui nos Estados
Unidos, a segunda maior atividade de consumo de água doce (726
m³/hab./ano), perdendo por pouco apenas para a irrigação, a primeira
colocada (774 m³/hab./ano). Alerte-se que tais dados são por sua vez
significativamente superiores aos relativos ao abastecimento urbano
(218 m³/hab./ano) e do consumo das indústrias (128 m³/hab./ano).
Neste último caso, constate-se que o parque fabril é o último item da
pauta de consumo do país mais industrializado do mundo;
➢
Além da nação norte-americana, muitos outros países seriam
exemplos da enorme demanda hídrica das centrais termoelétricas. Na
República Federal da Alemanha, tais instalações lideram na abdução
de água (534 m³/hab./ano), índice muito acima do consumo urbano
(79 m³/hab./ano) e industrial (30 m³/hab./ano);
2
291
➢
Identicamente, na França as termoelétricas detêm a liderança
(395 m³/hab./ano), relegando o abastecimento urbano a um modesto
segundo lugar (108 m³/hab./ano), sucedido pela agricultura irrigada
(87 m³/hab./ano) e pelo uso industrial (79 m³/hab./ano), padrão que é
repetido em países com matriz termoelétrica (LANNA, idem).
Nesta sequência, perceba-se que além de utilizarem recursos
hídricos em larga escala, há que serem considerados os impactos
indiretos das termoelétricas nos corpos d’água, como os relacionados
com as deposições ácidas. Atente-se que deposição úmida se refere
às chuvas, nevoeiro ou neve ácidas. Por sua vez, a deposição seca
refere-se aos gases e partículas ácidas. Fato pouco conhecido, quase
metade da acidificação da atmosfera decorre da deposição seca, não
tendo necessariamente como vetor, as precipitações pluviométricas.
Em muitas regiões industrializadas as deposições ácidas secas,
e não os nevoeiros, chuvas e as neves ácidas (todos pertencentes à
categoria das deposições úmidas), correspondem ao “carro-chefe” da
acidificação do meio ambiente. Deste modo, a chuva ácida constitui
um dos fenômenos relacionados com as deposições ácidas, e não
necessariamente a mais frequente. Assinale-se também que em seu
stricto sensu, toda chuva é ao menos levemente ácida, pela ação da
combinação com o dióxido de carbono do ar (Vide LEWGOY, 1986:
58/59). Obviamente, em nada isto se compara com a acidificação
promovida pelo industrialismo, diretamente responsável pela entrada
em cena das deposições secas.
Desta maneira, tanto as chuvas quanto os ventos constituem
fatores de acidificação do ambiente, difundindo gases e partículas
2
292
ácidas sobre edificações, automóveis, moradias, vegetação e corpos
aquáticos em geral. Suas consequências para a saúde humana e o
meio ambiente são tremendas e isto, sem contar os danos para a
economia, também notórios e indiscutíveis. Veja-se que os depósitos
ácidos, mesmo quando solubilizados pelas chuvas e tempestades, as
águas resultantes do contato com substâncias acidificantes terminam
por transferir o problema para áreas mais distantes.
Nesta linha de argumentações, uma vez que as termoelétricas
utilizam combustíveis fósseis para gerar eletricidade, tais instalações
o fazem de modo a emitir enorme quantidade de enxofre e de óxidos
de nitrogênio, ambos indissociáveis da gênese de substâncias ácidas
na atmosfera. Deste modo, as termoelétricas são um foco potencial
da acidificação dos recursos hídricos, que em razão das dinâmicas
atmosféricas, indexaria ao mapa de riscos deste processo, inclusive
os corpos d’água localizados a uma distância considerável destas. Os
vínculos existentes entre estas instalações e a deposição ácida na
massa líquida dos rios, lagos e mares, também seria origem, num
segundo momento, da infiltração e contaminação dos reservatórios
subterrâneos, constituindo, pois um fato preocupante a reclamar claro
posicionamento por parte da sociedade.
Registre-se ainda dentre os efeitos negativos das termoelétricas
para a preservação das águas doces, os decorrentes da mineração
do carvão e da prospecção dos hidrocarbonetos, matérias primas
energéticas mais comumente utilizadas por estas instalações. Por
exemplo, a indústria petrolífera lança mão do método de injetar água
nos poços, pressionando os lençóis de petróleo visando maximizar a
produção, procedimento que além de retirar água do ciclo hidrológico,
2
293
promove a contaminação do líquido. No tocante às minas de carvão,
estas trazem à tona volumes descomunais de água altamente salina
típica dos veios carboníferos, indiscriminadamente lançada no meio
ambiente. Posteriormente, tanto o beneficiamento do petróleo, quanto
do minério de carvão, reclama um quinhão adicional de impactos nos
recursos hídricos.
Neste recorte, direta ou indiretamente, o funcionamento e a
expansão das termoelétricas repercute diretamente na qualidade das
águas doces, conformando-se como importante fator de aceleração
da escassez. Por isso mesmo, é possível considerar que os recursos
hídricos estarão muito mais protegidos com o concurso da revisão da
matriz energética do que simplesmente substituindo hidrelétricas por
termoelétricas. Neste sentido, deveríamos agregar na discussão que
conjuga os recursos hídricos e a matriz energética, a reflexão sobre
os impactos provocados pelas formas através das quais a energia é
consumida, que se tornam, sem que disto o cidadão comum se dê
conta, em instrumentos da malversação dos recursos hídricos.
Confira-se, por exemplo, a questão referente às pilhas comuns.
Esse artefato, contendo metais pesados como o cádmio, chumbo e
mercúrio na composição, estimula, por extensão um enorme potencial
de danos ambientais. Deveras, as pilhas têm sido alvo de orientações
minuciosas quanto ao seu descarte final, procedimentos legais que
entretanto, reclamam fiscalização para terem efetividade. No caso do
Brasil, a Resolução nº. 257 do Conselho Nacional de Meio Ambiente
(CONAMA), tecnicamente em vigor desde 30-06-1999, prescreve a
proibição do lançamento de pilhas e baterias pós-uso a céu aberto,
tanto em áreas urbanas quanto rurais; proíbe seu despejo em corpos
2
294
aquáticos e áreas sujeitas a inundação; interdita a combustão em
ambiente aberto, assim como em instalações inadequadas; de resto,
obriga as empresas a criarem serviços de reutilização, reciclagem ou
de destinação final adequada para este resíduo. Entrementes, estas
diretivas legais têm sido ignoradas, abrindo, pois caminho para a
liberação de quantidade assombrosa de substâncias tóxicas no meio
ambiente.
Outro caso paradigmático poderia ser endereçado às lâmpadas
fluorescentes. Fato bastante conhecido, este modelo de iluminação é
mais econômico do que as lâmpadas incandescentes convencionais,
reduzindo entre 70 a 80% a demanda por energia. Esta peculiaridade
tem sido frisada pelos fabricantes e como estratégia adotada pelo
comércio para incentivar as vendas do produto em nome do uso
racional de energia. Por estes motivos, o item conquistou em 2001,
prestigiada reputação diante da ameaça do “apagão”, gerando uma
demanda tão alta naquele momento, que para ser atendida, teve que
apelar para a importação, inclusive com isenção de impostos. Afinal,
economizar energia seria pelo mínimo, uma forma de preservar um
fornecimento ameaçado de interrupção.
No entanto, aspecto raramente recordado é que cada lâmpada
fluorescente contém em média 15 miligramas de mercúrio metálico,
um metal pesado malfazejo. Por si só, esta quantidade é desprezível.
Porém, multiplicada por milhões de unidades, torna-se um perigo real.
Liberado na forma de vapor toda vez que o invólucro da lâmpada é
rompido, o mercúrio possui ação tóxica e afeta o sistema nervoso,
sendo que, aliás, a falta de critério na ruptura das lâmpadas, é uma
das mais nocivas injúrias ao meio ambiente e à saúde pública.
2
295
Não por acaso, a legislação ambiental norte-americana classifica
as lâmpadas fluorescentes como um resíduo perigoso, estando, pois,
sujeitas a uma legislação especial. Na Alemanha, as leis determinam
que estas lâmpadas precisam ser moídas, embaladas, enterradas e
lacradas para sempre em minas abandonadas. Outros códigos legais
europeus repetem esta preocupação por meio de recomendações
específicas, severas e contundentes. Nas grandes cidades europeias,
faz parte do cenário urbano observar o trabalho de pequenos veículos
e de profissionais especializados recolhendo de tempos em tempos,
maços de lâmpadas fluorescentes dispostas em espaços demarcados
nas ruas para encaminhá-las a um confinamento em local seguro.
O Brasil, embora descarte entre 100 e 150 milhões de lâmpadas
fluorescentes, não possui nenhuma legislação proibindo a disposição
destas lâmpadas no lixo domiciliar, inerte, hospitalar, comercial ou
industrial. Para exemplificar a respeito da gravidade desta situação,
pode-se anotar que na cidade de São Paulo, o consumo anual oscila
entre 8 e 10 milhões de lâmpadas fluorescentes por ano, um total que
corresponderia à assombrosa soma de 31.950 lâmpadas por dia útil
(Cf. Dossier Limpurb: A Questão das Lâmpadas Fluorescentes, 2000).
Em si mesmos, estes números sugeririam a implantação imediata de
serviço de coleta específica e destinação adequada para as lâmpadas
fluorescentes.
No que importa diretamente ao tema central deste texto, esta
discussão é inerente às características do próprio produto. Conforme
assinalado, quando fendidas, as lâmpadas liberam mercúrio metálico,
sendo que o destino desta substância nociva será, cedo ou tarde, um
corpo aquático, quando não rios, lagos ou reservatórios destinados ao
2
296
fornecimento de água “potável”. O volumoso e quase inacreditável
monturo de lâmpadas descartadas torna-se assim, mais uma nefasta
contribuição para o comprometimento do acervo hidrológico nacional.
Caberia, pois indagar: ao se utilizar lâmpadas fluorescentes sem
o amparo de medidas ambientalmente corretas de disposição final
dos resíduos, estar-se-ia, no final das contas economizando o que,
água ou energia? Ou estaríamos, na realidade, malbaratando os dois
recursos?
Em resumo, propor uma política de uso inteligente de cada gota
de água disponível prescreveria não só a aplicação de estratégias, tal
como sublinhado pelo jargão técnico, de conservação e energética,
mas do mesmo modo, a revisão do modelo de geração, distribuição e
acesso à energia. Na ausência deste horizonte conceitual, qualquer
proposição visando resguardar a água doce e de utilização racional
dos recursos hídricos na interface com a questão energética, perde
eficácia operacional em termos da saúde pública e do meio ambiente.
Isto posto, a mitigação dos impactos sobre os recursos hídricos
tendo por base a requalificação da matriz energética, sugeriria várias
medidas, colocadas no transcorrer de muitos posicionamentos (Cf.
SEVÁ, 1990: 19), mas nem por isso, menos atuais. Tais seriam:
➢
Maximização do aproveitamento das reservas energéticas
disponíveis;
➢
Endurecimento da legislação relacionada com o consumo
energético dos equipamentos domésticos e industriais;
2
297
➢
Implantação e expansão de programas de conservação de
energia nas residências, indústrias e em todos os campos da
atividade econômica;
➢
Revisão do modelo industrial, cessando os privilégios que
sustentam a industrialização de produtos eletrointensivos, como seria
o caso, em particular, do alumínio;
➢
Implantação de programas de educação ambiental e de projetos
de coleta seletiva de lixo (CSL), preferencialmente os primeiros
antecedendo a implantação dos segundos;
➢
Redução e controle da poluição do meio ambiente, com o
estabelecimento de normas adequadas para a disposição final de
resíduos que, como no caso das lâmpadas fluorescentes, possam
comprometer a saúde humana, o meio ambiente e os corpos d’água;
➢
Opção preferencial pela construção de barragens de pequeno e
médio porte, desativando-se os planos voltados para megabarragens.
A saber, anote-se que a hidroenergia das barragens de âmbito local é
menos dispendiosa do que o aproveitamento energético do vento, da
geotermia, das marés e do Sol;
➢
Adoção, incentivo e investimentos para a investigação de fontes
menos poluentes e alternativas de geração de energia, caso das
células de combustível, do gradiente térmico oceânico, das marés, da
energia maremotora, solar, biomassa e da energia eólica.
2
298
Quanto à energia solar e a biomassa, seria meritório destacar o
potencial brasileiro no concernente a estas duas fontes de energia,
maximizado pela articulação que do ponto de vista dos dinamismos
naturais, as irmana de modo irretorquível. O Brasil é a maior “nação
solar” do planeta: seu território recebe por dia o equivalente à energia
gerada por 320.000 hidrelétricas do porte de Itaipu.
Simultaneamente, nenhuma outra nação detém supera o Brasil
em água, contrapartida indispensável para a formação de hidratos de
carbono da biomassa, que é justamente fruto do entrosamento do Sol
com as águas. Estas duas potencialidades poderiam assegurar um
novo modelo energético para o país, que sendo renovável e sob
controle nacional, garantiria plena autonomia energética, fato que
ademais, apontaria para uma inserção potencialmente diferente do
país junto à ordem global (Cf. VASCONCELOS et VIDAL, 2001: 11 e
20. Quanto ao álcool carburante, ver ANDRADE, 1994).
Circa merita, repensar a utilização da energia também significa
sopesar tecnologias apropriadas para as finalidades desejadas. Por
exemplo, deve-se patrocinar a adoção de sistemas de aquecimento
doméstico preferencialmente com base na energia solar, que possui
custos ambientais bem menores. O Brasil, segundo consta, é o único
país do mundo que universalizou o chuveiro elétrico, sendo que os
investimentos necessários para garantir a instalação de apenas um
destes dispositivos, são da ordem de US$ 8.000. Logo, a substituição
dos sistemas de aquecimento com base na energia elétrica, pode
redundar numa formidável economia orçamentária e, além disso, em
forte diminuição dos impactos ambientais (DIAS, 2003: 529).
2
299
Arrematando a discussão, permite-se anotar que uma sociedade
preocupada em garantir acesso universal à água por parte da atual
geração, assim como das próximas, deve também ser uma sociedade
voltada para a conservação de energia e otimização dos processos
de produção e consumo energético. Nada do que foi exposto poderá
alcançar sucesso dispensando uma urgente revisão dos padrões de
consumo vigentes e do estilo de vida contemporâneo, calcado em
padrões manifestadamente perdulários e em absoluta contradição
com o ambiente, reforçados por flagrantes dicotomias sociais.
Neste senso, mais do que uma crítica enragé, qualquer avaliação
permitiria adjetivar como iníquo o quadro mundial de consumo de
energia. A nação-líder do planeta, os Estados Unidos, reúne somente
5% da população mundial, mas consumia em 1988 quase 30% da
produção global de energia. Neste mesmo lapso de tempo, a África,
cuja população é cerca de três vezes a dos EUA, consumia apenas
3% da energia planetária
53.
Pois então, a repetição deste modelo,
ostensivamente marcado pela desigualdade, seguramente implica em
ampliar a escala de constrangimentos ambientais, e em paralelo, os
de índole social.
Nos inícios dos anos 1980, o físico alemão Wolfgang SASSIN
ponderava, em paper disponibilizado pela UNESCO, que a solução
do problema energético estava se tornando cada vez mais uma
corrida contra o tempo (Cf. 1981: 12), cuja fruição, impõe avaliar que
a crise energética está relacionada à crise dos recursos hídricos, disto
53
US Energy Information Administration, WorldWatch Institute e BP Amoco statistical
review of World Energy (ano-base de 1998), in revista National Geography, março de
2001, pp. x/xi.
3
300
decorrendo a impossibilidade dissociar a questão da água da questão
da energia. Por isso mesmo, a questão dos recursos hídricos constitui
caminho privilegiado para repensar os desafios colocados pela matriz
energética, compatibilizando duas problemáticas que admitem, em
uníssono, substantivar uma solução.
6.2. ÁGUA E PRODUÇÃO DE ALIMENTOS
Como se sabe, o consumo de água no mundo contemporâneo
expandiu-se de modo incessante. Paralelamente, esta demanda tem
sido confrontada com uma exiguidade cada vez maior do recurso.
Uma vez que, a rigor, inexiste qualquer possibilidade de ampliação do
estoque natural das águas a disposição dos humanos, a necessidade
de repensar o uso dos recursos hídricos se impõe por si mesma.
Certamente, esta observação poderia com muita tranquilidade
ser dirigida à produção de alimentos. Afinal, em razão com o que foi
explicado, a agropecuária é responsável pela “parte do leão” da
utilização dos recursos hídricos mundiais, em média 70% do total (Cf.
REBOUÇAS, 2004: 9). Deixar de enfocar o papel da produção de
alimentos, inviabilizaria não só a compreensão do problema dos
recursos hídricos, como principalmente a sua resolubilidade, que se
apruma como pauta prioritária para o conjunto da humanidade já nos
próximos anos. Nesta ordem de considerações, sinaliza um relatório
da ONU:
...À medida que aumenta a população e crescem as
economias, a água vai convertendo-se em um recurso
3
301
mais escasso e valioso. Em muitos países, a competição
entre a agricultura, a indústria e os núcleos urbanos pelos
recursos hídricos já está limitando as iniciativas de
desenvolvimento (FAO, 1996).
Em particular, a agricultura irrigada, em função de notáveis taxas
de expansão e pela importância crescente que desempenha para a
oferta de alimentos, ocupa um papel central na discussão sobre as
águas doces. Confirmando esta asserção, note-se que entre o ano de
1800 e os dias que correm, a superfície irrigada no mundo cresceu
aproximadamente trinta vezes.
Compreensivelmente, uma tendência no sentido de concatenar a
escassez de água no mundo como decorrente pura e simplesmente
da irrigação é bastante sedutora, consignada em muitas avaliações.
Porém, a bem da verdade, relacionar mecanicamente escassez do
líquido com a agricultura irrigada pode endossar juízos precipitados,
como o equívoco de outra locução comentada neste texto, vinculando
o problema do acesso à água com o mero crescimento populacional.
Possivelmente, o primeiro quesito a ser problematizado seria não
propriamente a irrigação, mas sim a forma perdulária com que esta
prática tem sido levada adiante no mundo. Um detalhe que chama a
atenção dos pesquisadores é a onipresença de métodos de notória
baixa eficiência, utilizados inclusive em países assenhoreados pela
escassez de água. Uma ilha de excelência neste quesito, o Estado de
Israel e seus métodos de irrigação por gotejamento, monitorados on
demand em tempo real por sensores e redes informatizadas, é a rigor,
uma notória exceção num quadro crivado por desperdícios de todo o
tipo.
3
302
Na prática, imperam sistemas arcaicos operando com base em
elevado patamar de perdas, evaporação e infiltração descontrolada.
Dentre as técnicas consideradas perdulárias em recursos hídricos,
poder-se-ia citar a irrigação superficial, os sistemas autopropelidos e
os de pivô central, este último, uma autêntica norma do agronegócio
na América Latina e nos continentes africano e asiático. No Brasil,
relativamente ao esbanjamento de água pela agricultura,
...deve-se considerar que sobre cerca de 93% dos quase
três milhões de hectares irrigados no Brasil, ainda se
utilizam métodos de irrigação menos eficientes do mundo,
tais como o espalhamento superficial (56%), pivô central
(19%) e aspersão convencional (18%) (REBOUÇAS,
2004: 43).
Matematicamente, o que transparece com clareza, é que existe
algo de verdadeiro na ponderação de técnicos da área de recursos
hídricos pela qual, não ocorre propriamente uma crise de água, mas
antes, uma crise de gerenciamento do recurso. Julgamento repetido
em seminários e simpósios, é evidente que caso fosse poupada uma
fração aceitável de 10% da água utilizada na agricultura, então a
escassez de água potável no mundo virtualmente deixaria de existir,
detendo a ofensiva do império da sede e das mazelas da falta d’água.
Mas, esta equação tentadora é incompleta quando recordamos
que o dinamismo social não é redutível à contabilidade. Caso assim o
fosse, não existiria fome no Brasil e tampouco problemas com acesso
à terra e de moradia, pois não existe carência de alimentos, sequer
de solo agrícola ou de terrenos nas cidades. Arrematando, em face
dos estoques hídricos do país, também não haveria sede. Por esta
exata razão, importa aos preocupados com a questão dos recursos
3
303
hídricos, conhecer os dados culturais, políticos, sociais, econômicos,
técnicos e ambientais que entrelaçam a temática da água com a da
produção e consumo dos alimentos, decodificando-as numa ótica não
fragmentada, com lupa a focalizar os dissensos que os fenômenos do
mundo social mantêm entre si.
Este quadro mais detalhado pode contribuir na identificação dos
motes que condicionam a disputa cada vez mais acirrada pela posse
das águas azuis. Conforme diagnosticado, em futuro bem próximo,
“os usuários de água para fins doméstico e industrial vão competir
cada vez mais com a agricultura irrigada, principalmente em algumas
regiões da Ásia e da África” (SALATI, LEMOS et SALATI, 2002: 49).
Esta problemática conquista complexidade quando se sabe que a
expansão da agropecuária, no geral afetando ambientes que dantes
constituíam reservas de umidade, contribui para reforçar fenômenos
como os da aridez e da escassez de águas doces, embaladas pelo
acirramento das mudanças climáticas, a atingir com mais incisividade
as nações pobres, justamente o grupo de países que tem despontado
nas estatísticas como importadores líquidos de cereais, que em parte,
procede da agricultura tecnificada de economias afluentes do Norte
como a Austrália e os Estados Unidos. Nesta perspectiva, o que se
tem à frente é um quadro degradado das condições ambientais, atado
a conflitos, disputas e contradições sociais, políticas e econômicas.
Esmiuçando este ponto, salienta a australiana Lorraine ELLIOTT,
especialista em ecopolítica e direito ambiental internacional:
Estas nações, as quais são comumente tidas como as
mais afetadas pelos impactos das mudanças climáticas,
3
304
como as mudanças de temperatura, pela elevação do
nível dos oceanos, pelas alterações nas zonas agrícolas,
pelo possível incremento acelerado das condições
meteorológicas, pelas variações dos estoques de águas e
dos suprimentos pluviométricos, constituem as nações
mais pobres do mundo, cujos ecossistemas já estão
degradados e cujas economias e infraestruturas são
menos flexíveis e menos adaptadas face à degradação
ambiental (1998:227).
Dado que a agropecuária responde por percentual significativo do
consumo planetário de água, uma ponderação fundamental (apesar
de frequentemente esquecida), é o instigante exercício de se avaliar o
custo hídrico dos alimentos. Apenas satisfazendo esta preocupação é
que se pode tomar conhecimento da complexidade e a dimensão real
desta problemática, até porque, no tocante à continuidade da vida
humana, a água é consumida muito mais através da alimentação do
que pelo simplório ato da dessedentação.
Na sequência desta explanação, seria, pois, condizente recordar
a avaliação do engenheiro Antonio Eduardo LANNA, ressalvando que
1 m³ de água potável é suficiente para suprir a necessidade biológica
de dessedentação anual de um indivíduo e que outros 100 m³ anuais
em média, dariam conta dos propósitos domésticos (2002: 534). Uma
vez mais, deve-se recordar que a porcentagem consumida para o uso
residencial das águas globais, não passa, estatisticamente, dos 10%
do montante total.
Exatamente por conta do que foi exposto, esta aferição impõe
conclusivamente que não será controlando as torneiras no âmbito
doméstico que a crise dos recursos hídricos encontrará solução. Por
extensão, deve-se centrar as atenções nas atividades que reclamam
3
305
para si, na escala planetária, o essencial das águas doces. Com base
neste exercício, evocam-se então nexos que calçariam uma avaliação
crítica das interações mantidas entre a agropecuária e a questão dos
recursos hídricos.
Neste particular, é preciso primeiramente deter as atenções no
consumo de água pela agropecuária. Para a agricultura, uma gorda
literatura confirma a proporção maximalista de água tradicionalmente
solicitada pelo meio rural. Exemplificando, a produção de um quilo de
trigo reclama o suprimento de 900 litros de água. Para produzir um
quilo de milho, são necessários 1.400 litros. Um quilo de arroz implica
em 1.910 litros.
Quanto à criação de animais, um quilo de carne de frango solicita
3.500 litros e a carne bovina, pressupõe na melhor das hipóteses,
vultosos 16.193 litros para cada quilo produzido, quantum requerido
tomando por base uma pecuária zootecnicamente high-tech quanto
ao consumo do líquido. A pecuária bovina pode ainda alcançar a
fabulosa quantia de 100.000 litros de água para cada quilo no caso
da criação extensiva funcionando com escassos ou nulos apensos
tecnológicos, ou mesmo, cifras superiores a esta (Cf. SHUVAL, 1998
ARMAND, 1998 e também PIMENTEL, 1997).
Procurando assimilar o significado destes dados, assinale-se que
os 100.000 litros de água requisitados para produzir 1 quilo de carne
bovina equivalem a 100 caixas d’água residenciais, o que de chofre,
já significa muito líquido. Pois bem, recordando que uma caixa d’água
3
306
acumula 1 m³ de água, qual seja, um milhar de litros do líquido
54,
isto
significa que a produção de cada quilo de proteína bovina equivaleria
ao volume de 100 m³ d’água, dado perturbador quando se sabe que a
falta de água assola milhões de pessoas, que dispõem no dia a dia
bem menos do que uma fração deste volume.
Uma outra forma de contabilizar este montante é sopesar que
esta quantidade de água é suficiente para uma pessoa tomar banho
de ducha durante quatro anos e oito meses e banho de imersão
durante um ano e sete meses. Por conseguinte, poupa-se mais água
deixando de comer meio quilo de carne do que se isentando de tomar
banho durante um ano inteiro.
Para além dos impactos propriamente hídricos, a pecuária bovina
insere sequelas para a saúde humana. Estudos desenvolvidos nas
últimas décadas têm demonstrado que o mundo ocidental se alimenta
com uma dieta excessiva em proteína, gorduras saturadas com
colesterol, pesticidas e pouquíssima fibra. Este tipo de cardápio, cujo
esteio é em larga medida gabaritado pela proteína bovina, ocasiona
portentosos custos médicos, farmacêuticos e de saúde, matando as
pessoas e destruindo o ambiente. Este padrão alimentar, identificado
com as sociedades urbanas e opulentas do Norte, é responsável pelo
desaparecimento da pequena propriedade e avanços do latifúndio e
da agricultura industrializada, nunca beneficiando o trabalhador rural.
Além disso, dentre outros impactos socioambientais, a produção
de carne, tendo por pressuposto a criação de animais, igualmente
implica na produção de dejetos. A criação confinada em cocheiras
O comércio de materiais de construção também disponibiliza modelos que armazenam
500 litros de água, isto é, 0,5 m³.
54
3
307
geralmente abarrotadas transforma as modernas instalações de
criação de animais em verdadeiras “cidades sem esgoto”, com uma
geração de estrume em tal proporção que se torna difícil dispensá-lo
com segurança. O esterco é um produto orgânico altamente poluente,
podendo gerar a falência dos cursos d’água em razão da DBO
(Demanda Bioquímica de Oxigênio). A pecuária suína insere, neste
particular, aspectos bastante preocupantes. Isto porque um litro diário
de dejetos de porco polui tanto quanto a mesma quantidade de fezes
de cem pessoas.
Neste sentido, e tomando por base o município de Concórdia,
situado em Santa Catarina, temos que as 250.000 cabeças de gado
suíno da região, geram tanta poluição orgânica quanto uma cidade
com 25.000.000 habitantes. Nesta mesma linha de argumentação, o
Oeste catarinense, abrangendo uma área de 30.000 km² e formado
por 60 municípios, ao concentrar um plantel de 3.000.000 de porcos,
impactaria o meio natural no tocante aos excrementos, tanto quanto
uma concentração de 300.000.000 de pessoas (TELLES, 2002: 327),
total equivalente a mais do que o dobro dos habitantes do populoso
Bangladesh no ano de 2005 55.
Existem também implicações relacionadas, por exemplo, com a
disponibilização do produto para o consumidor final. No caso da
carne, o processamento nos matadouros e frigoríficos tem por précondição um volumoso consumo de água. Na preparação da carne de
aves são necessários 25 litros por quilo e no caso dos suínos, 1.200
litros por quilo. No caso do frango, as granjas brasileiras já trabalham
55
De acordo com várias estimativas, a população do Bangladesh alcançou em julho de
2005, o total de 144.319.628 habitantes.
3
308
com metas otimizadas, mas que ainda assim são altas: nada menos
do que 14 quilos de água por quilo de carne. Quanto aos bovinos,
estes consomem 2.500 litros para cada rês abatida. Além dos custos
hídricos na higienização e processamento das carcaças, os rejeitos
aquosos dos matadouros, caracterizados por alta DBO, presença de
sólidos suspensos e materiais graxos, são uma fonte inegável de
preocupações (SILVA et SIMÕES, 2002: 357 e BRANCO, 2002: 228).
Outro dado, é que lado a lado com a agropecuária, a aquicultura
igualmente se destaca enquanto atividade consumidora de água. A
aquicultura é um termo relativamente amplo, podendo ser entendido
como o cultivo de animais ou vegetais que requisitam ambientes
aquáticos para seu desenvolvimento (BORGHETTI et OSTRENSKY,
2002: 459). A atividade engloba o cultivo de peixes, répteis, ostras,
mexilhões, algas, abalones, ouriços do mar, anfíbios, lagostins e de
camarões, sendo esta última atividade, conhecida como carcinicultura
56.
Nesta acepção, a terminologia piscicultura (regularmente utilizada
como sinônimo de aquicultura ou aquacultura), se restringiria aos
criadouros em ambiente confinado dos peixes, que, aliás, geralmente
correspondem à maior parte das espécies cultivadas.
Seria aceitável sublinhar neste momento, o consumo de recursos
hídricos solicitado pela agricultura e pecuária poderá entrar em futuro
próximo em contradição com as demandas da aquicultura. Diante da
destruição dos meios aquáticos que tradicionalmente tem fornecido a
proteína dos peixes e de criaturas marinhas, lacustres e fluviais à
população humana, a produção aquícola tende a se tornar um forte
concorrente na disputa pelas águas azuis disponíveis.
A respeito da criação confinada de camarões, considerado o ouro rosa desta atividade,
conferir os comentários precisos e alarmantes de Joan Martínez ALIER (passim, 2005).
56
3
309
Mais um impacto é a introdução de espécies estrangeiras, que
escapando das fazendas de aquicultura e dos pesqueiros recreativos
invadem os ambientes nativos, eliminando ou causando a retração da
ictiofauna local. Este seria o caso da tilápia, peixe africano introduzido
no Brasil e que tende a dominar as águas nas quais é lançado. A
dimensão econômica alcançada pela aquicultura pode ser mais bem
avaliada na eventualidade de se frisar que na atualidade, um em cada
três peixes degustados pela população mundial é proveniente de
fazendas de piscicultura. No setor, ocupa posição de destaque a
República Popular da China, país em que uma plêiade de instalações
responde por cerca de 90% da produção mundial do setor.
Na escala global, a expansão da aquicultura tem promovido a
desaparição de mangues, alagadiços e pântanos
57,
que cedem
espaço para os criadouros de peixes e camarões. A criação confinada
uma vez mais reforça a tendência em encarcerar a água em sistemas
produtivos fechados, tendência que se torna inevitável diante da
destruição do recurso no meio natural livre (Vide também CMMAD,
1988: 151/152). Deve-se também atentar para os dados relativos para
impactos correlatos acarretados pela produção de alimentos nos
recursos hídricos. Neste entendimento, podemos arrolar:
➢
No Brasil, apenas quanto ao item dessedentação, os rebanhos
são responsáveis por 5% da água consumida no país, sendo que
deste total, o gado bovino absorve cerca de 93%, dos quais a região
Centro-Oeste é responsável pela terça parte do consumo (Cf. TUCCI,
HESPANHOL et NETTO, 2001: 60);
Outro caso bastante conhecido é o da piscicultura israelense, que surgiu ao custo da
destruição dos pântanos do Hule, situados no Norte desta nação.
57
3
310
➢
Em congruência com o que foi colocado, a produção de carne,
ao relacionar-se diretamente com criadouros de animais, significa
também produzir dejetos. Os restos orgânicos dos rebanhos, além de
contaminarem profundamente os cursos d’água, contribuem para com
o aquecimento global, dado que emitem metano, um potente GEE;
➢
Um aspecto importante do consumo de água reside no quesito
produção de bebidas e refrigerantes. Contando com uma legislação
corporativista atuando a seu favor, os fabricantes oferecem bebidas
engarrafadas a um preço mais baixo do que água mineral ou mesmo
do que o leite. Acatando esta lógica perversa, cada mexicano ingeria
em média nos anos 1990, uma quantidade três vezes maior de
refrigerantes do que de leite, apesar deste último ser mais barato e
nutritivo (DELPEUCH, 1990: 109);
➢
Aspecto também negligenciado nas discussões de alimentos, é
o custo energético que envolve a fabricação e a distribuição dos
alimentos, envolvendo um percentual energético tem expandido por
conta da refrigeração e refeições de consumo rápido, caso dos pratos
congelados e legumes pré-cozidos;
➢
Na sequência ao item anterior, na contabilidade da energia deve
ser incorporado o input energético das embalagens, cuja difusão
caminha paralelamente ao fortalecimento do modo ocidental de vida.
Recorde-se que enquanto nos Estados Unidos a indústria processa
de 70 a 90% dos alimentos, esta porcentagem cai para 70% no caso
da Europa e para um percentual entre 10 e 30% para os países
subdesenvolvidos, métricas que obviamente implicam em diferentes
3
311
perfis energéticos no que respeita à comercialização da produção
alimentícia (DELPEUCH, 1990);
➢
Neste prisma, embora a energia empregada na agricultura
represente somente 2% do total em um país como a França, a
atividade alimentar como um todo, desde a fabricação de adubos até
o consumidor final, reivindica entre 16 e 17% do total da energia
consumida neste país. Por conseguinte, não há, de fato, como se
desvencilhar da questão da alimentação dos aspectos pertinentes à
água e à energia (Ver a respeito DELPEUCH, 1990: 43);
➢
A importância dada pelos ocidentais ao consumo de carne e de
vegetais cultivados fora da estação é uma influência palpável no
acréscimo do input energético dos alimentos. De resto, os alimentos
“viajam” cada vez mais nos países afluentes: cerca de 2.100 km em
média nos Estados Unidos (Cf. SILVA, 2003);
➢
Ademais, articulando os aspectos mencionados com a questão
do comportamento alimentar, não haveria como deixar de pensar na
repercussão ambiental promovida pela alimentação. Visando ilustrar
este ponto, nada melhor do que as clarividentes palavras do geógrafo
Josué de CASTRO, que no seu célebre “Geografia da Fome”, assim
discorreu sobre o assunto:
Nenhum fenômeno se presta mais para ponto de
referência no estudo ecológico destas correlações entre
os grupos humanos e os quadros regionais que eles
ocupam, do que o fenômeno da alimentação - o estudo
dos recursos naturais que o meio fornece para
subsistência das populações locais e o estudo dos
processos através dos quais essas populações se
3
312
organizam para satisfazer as suas
fundamentais em alimentos (1965: 15).
necessidades
Levando-se estas premissas em consideração, admita-se então
albergar na contabilidade relacionada com os impactos provocados
nos recursos hídricos, os derivados das opções culturais. Estas
incorporam considerável importância, e não podem, de forma alguma,
serem negligenciadas. Para tanto, assinale-se que a pauta alimentar
é um dado cultural que conquista materialidade com base em gostos
e sabores socialmente preceituados, condicionando deste modo, o
perfil do consumo de água. Não por outra razão, senão pelo fato
objetivo de que toda e qualquer pauta culinária necessariamente
implica em um input hídrico igualmente específico.
Desta forma, temos que o consumo de água via alimentos variará
enormemente em função do universo cultural, pois deste decorre a
pauta alimentar das sociedades humanas. Exemplificando, enquanto
que nos Estados Unidos a produção da dieta californiana típica
reclama 2.200 m³/per capita/ano (dos quais 64 % são encaminhados
para a produção de carne), na Tunísia, nação norte-africana, metade
deste volume, ou seja, 1.100 m³/per capita/ano (dos quais somente
27% estão voltados para a produção de carne), são suficientes para
alimentar satisfatoriamente os habitantes deste país (FAO, 1996).
Seria interessante recordar que a tonificação do modelo ocidental
de alimentação, o qual igualmente associa-se um padrão de afluência
social, é normalmente acompanhado de uma demanda adicional de
água. Recorda a respeito o ambientalista Lester BROWN,
3
313
...à medida que as pessoas ascendem na cadeia
alimentícia e passam a consumir mais carne bovina,
suína, aves, ovos e laticínios, consomem mais grãos” (…)
“Uma dieta americana rica em produtos pecuários requer
800 quilos de grãos por pessoa por ano, enquanto as
dietas na Índia, dominadas por uma alimentação básica
de amidos como arroz, caracteristicamente necessitam
apenas de 200 quilos. O consumo quatro vezes maior de
grãos por pessoa significa igual crescimento no consumo
de água” (2001).
Face ao exposto, é necessário repensar não apenas a questão
do modelo gastronômico ocidental, fortemente apoiado no consumo
de proteína de origem animal, como também nas tensões ambientais
provocadas por este padrão, alheio aos impactos inerentes a sua
forma de relação com os insumos ecossistêmicos
58.
Todavia, saliente-se que apesar dos problemas gerados, o que se
pode perceber é a difusão ampliada da pauta alimentar afluente. O
consumo de proteína bovina tem sido respaldado por intermédio de
cadeias de lanchonetes fast food, cujas metas mercadológicas estão
marcadamente voltadas para a difusão do sanduíche de hambúrguer
59,
dos refrigerantes e da batata frita.
Configurando pela primeira vez na história um sistema dedicado
a oferecer lanches rápidos numa escala global, estas redes difundem
hábitos de consumo que corroem os padrões culinários locais, sem
58
Neste particular, o meio rural tradicional de muitas regiões do mundo encontrou
soluções ambientalmente mais eficientes do que as adotadas pelo padrão moderno de
agropecuária. Na Índia, por exemplo, registram-se prescrições contrárias ao descarte do
esterco bovino em corpos líquidos. A utilização dos dejetos animais como fonte de
energia, atenuou o problema da contaminação do ambiente e a transformação das
florestas em lenha.
59 Assinale-se que em alguns países, as “multinacionais do sanduíche” tiveram que
adaptar seus produtos em função de restrições religiosas locais. No caso da Índia,
substituindo a carne bovina pela de porco.
3
314
serem, do ponto de vista qualitativo, necessariamente melhores do
que estes últimos. Estas questões conquistam caráter geopolítico
quando se percebe a íntima articulação entre a questão alimentar e a
influência exercida pelo colonialismo. Corrobore-se que em países
historicamente marcados pelo mando colonial estrangeiro, a pauta
alimentar reproduz padrões impostos pelos colonizadores, articulados
com averbações sociais, econômicas e políticas.
Os aspectos históricos exercem, nesta contextualização, papel
determinante nas opções culinárias de povos, grupos e pessoas.
Estes contribuem, por exemplo, para compreender a razão do porquê
da Somália, parte qual constituiu ex-possessão italiana que jamais se
sobressaiu na produção de massas, ser uma nação consumidora de
espaguete e o porquê do Brasil, ex-colônia portuguesa, importar
azeitonas e azeite de oliva em tonelagem substancial, sem em
contrapartida posicionar-se como país olivicultor de vulto.
Esta propensão encontra confirmação no meio urbano de muitas
nações do Terceiro Mundo. As urbes da periferia, sendo fortemente
influenciadas pelos padrões culturais das antigas metrópoles e por
excelência, consistindo no espaço de vida das elites dominantes,
caracterizam-se por uma pauta alimentar absolutamente diversa dos
camponeses do interior, que ainda se atém aos padrões culinários
tradicionais, enraizados na realidade local e que geralmente, são
ambientalmente mais sadios e equilibrados.
Tomando como exemplo Dacar, capital do Senegal, os cidadãos
desta urbe africana, influenciados pela cultura da França, a exmetrópole, consomem uma média de 10 kg de milho miúdo, 77 kg de
3
315
arroz e de 33 kg de farinha de trigo. Pari passu, o cardápio dos seus
conterrâneos do campo requisita respectivamente um meão de 158
kg, 19 kg e 2 kg destes mesmos produtos (DELPEUCH, 1990: 63).
Necessário recordar, esta ocidentalização, e uniformização, dos
gostos gastronômicos contou, para além da influência cultural das exmetrópoles, com a estratégia do “auxílio alimentar” encaminhado para
regiões do Terceiro Mundo. Basicamente de origem norte-americana,
a doação de alimentos, concretamente materializa um procedimento
que reforça a demanda por produtos importados (DELPEUCH, 1990),
alterando a pauta nutricional das populações agraciadas com este
auxílio.
Inevitável comentar, através da oferta de alimentos gratuitos ou
oferecidos politicamente a baixo custo, esta estratégia transplantou
novos hábitos alimentares nos países periféricos, criando mercados
consumidores dantes inexistentes. Novamente reportando a Dacar,
metrópole senegalesa na qual a baguette preparada com farinha de
trigo tornou-se um verdadeiro ícone culinário, cereais como o painço,
o sorgo e o milhete, tradicionalmente apreciados na Senegâmbia,
passaram a representar menos de 10% do consumo dos metropolitas,
fato que de resto, condiz ao motto de que a cidade, seria a “Paris da
África Ocidental” (DELPEUCH, 1990: 99).
A mais ver, nos últimos anos, muita tinta tem sido gasta na crítica
ao modo ao padrão alimentar e culinário ocidental e ao lado disso, a
imprensa tem sido inundada com artigos advertindo quanto ao
paradoxal avanço da obesidade em um mundo faminto, fato que à luz
da lógica do concreto, ata-se tanto ao colonialismo cultural, quanto às
3
316
modalidades de utilização da água que primam por ignorarem o uso
equilibrado e eficiente do líquido.
Assim, uma vez que discutir alimentação reporta a discutir água,
e, dada a magnitude do consumo dos recursos hídricos na produção
de alimentos, vale a pena, por fim, frisar que mais do que fechar a
torneira é necessário ponderar a respeito do padrão de alimentação
adotado, assim como formas de produção, distribuição e preparo dos
alimentos.
Inexistindo uma estratégia que construa cenários incorporando as
complexidades do equacionamento da questão dos recursos hídricos
e da alimentação, fica comprometido o êxito de planos e de políticas
preocupadas com a preservação das águas. Como está implícito nas
considerações tecidas por este texto, a técnica, modalidades do uso
do solo e a incoercível pressão do poder econômico imprimem sua
marca na questão da alimentação e dos recursos hídricos.
No entanto, uma mudança de perspectivas sugere que ao lado
das variáveis citadas, que se faça sentir a necessidade uma nova
forma de usufruir a água, de observá-la nos alimentos. Dispensando
essa preocupação, a crise hídrica pode até mesmo ser atenuada no
curto e no médio prazo por conta de outras estratégias. Porém, com
certeza continuará sem solução no longo prazo.
A perdurabilidade dos recursos hídricos constituiria, praesumptio
juris et de jure, o cerne de condutas movidas pela preocupação com a
disponibilidade de água doce para as sociedades humanas. Razão
3
317
adicional para se repensar a conexão existente entre as águas doces
e os alimentos.
6.3. ÁGUA E INDUSTRIALIZAÇÃO
Dado que a competição pelo acesso às águas doces disponíveis
têm se recrudescido cada vez mais e sabendo-se que algo entre 24%
dos recursos hídricos são destinados para as manufaturas, importa
tomar conhecimento dos diversos perfis de demanda do líquido por
parte deste segmento da economia moderna.
A preocupação justifica-se porque mesmo sendo o consumo do
parque industrial menor que o da agropecuária, desde o início da
revolução industrial as solicitações do líquido pelas maquinofaturas se
avolumam incansavelmente.
A este respeito, recorde-se que, tal como para a agropecuária,
não há nenhuma atividade industrial que prescinda da água. O líquido
é fundamental para o funcionamento dos sistemas de refrigeração,
lavagem de tanques e caldeiras, cocção e hidratação dos insumos.
Qualquer produto oriundo das indústrias pressupõe um input hídrico
para ser elaborado ou processado. Mas, tal como acontece com a
produção rural, a importância dos recursos hídricos para os parques
industriais impregnou muito pouco o imaginário social. Daí a sugestão
de amealhar alguns comentários visando ilustrar este aspecto.
3
318
Neste sentido, os dados relacionados com a atividade industrial
quase sempre revelam elevada proporção de dependência para com
os recursos hídricos. Basta tomar ciência dos prontuários arrolados a
seguir: a fabricação de cerveja consome de 4 a 7 litros de água para
produzir 1 litro da bebida, rapidamente consumida numa festa ou
restaurante; para produzir 1 kg de açúcar, são consumidos 100 litros;
no caso da gasolina, 1 litro do combustível corresponde, em geral, a
um promédio de 10 litros de água; no caso do papel, 1 kg do material
implica na abdução de 250 litros de água (ARMAND, 1998).
O biólogo e engenheiro Samuel Murgel Branco expõe por sua
vez outros dados, igualmente reveladores do papel fundamental que
a água ocupa nas atividades industriais: os alimentos em conserva
requisitariam de 7 a 35 m³ de água para cada tonelada produzida;
numa refinaria de petróleo, são gastos 18 litros do líquido para cada
litro de petróleo processado; na fabricação de fibras sintéticas, são
consumidas entre 375 e 835 m³ por tonelada; no tocante à borracha
sintética, esta requisita de 83 a 2.800 m³ por tonelada; finalmente, nas
lavanderias, são utilizados de 20 a 50 m³ de água para cada tonelada
de roupa lavada (BRANCO, 2002: 228).
A metalurgia, basicamente entendida pelo senso comum como
atividade consumidora de energia, é uma insaciável consumidora de
água. Assinalam os engenheiros Gil Anderi da Silva e Reinaldo
Augusto Gomes Simões, que o trabalho de extração dos metais dos
seus minérios, ricos em óxidos e carbonatos, implica num elevado
consumo de água na etapa do beneficiamento primário, que ocorre
em seguida à extração do minério.
3
319
Mais adiante, os processos metalúrgicos continuam a solicitar
água. No caso do aço, é reclamado m volume entre 100 e 500 m³ por
tonelada. Nas coquerias, a água utilizada para resfriamento do coque
e dos gases é da ordem de 170 a 580 litros para cada tonelada de
carvão processada e no trato e recuperação dos gases voláteis, são
consumidos entre 75 a 95 litros (SILVA et SIMÕES, 2002: 361).
Existiria também uma menção obrigatória envolvendo o consumo
de água pela produção do alumínio. Este material, ocupando o topo
no ranking dos bens exigentes em água, solicita para sua fabricação
extraordinário input hídrico: 100.000 litros para cada quilo produzido
(ARMAND, 1998),
Deste modo, grande parte dos produtos finais que saem das
indústrias caracteriza-se pelo intenso consumo de água. Acredita-se
que sejam necessários 400.000 litros de água para produzir um único
automóvel (Vide BARLOW et CLARKE, 2003: 9). Mesmo computando
exclusivamente as etapas finais da montagem dos veículos, em razão
da indústria automobilística operar com um amplo leque de materiais
já processados (portanto materializando input hídrico pretérito), estas
também consomem muita água.
Deste modo, descontando a água já incorporada nos metais,
vidros, plásticos, tintas, pneus e borrachas de vedação, um automóvel
médio apresenta um custo hídrico de aproximadamente 700 litros de
água por unidade produzida. Por esta exata razão, a fábrica da Fiat
localizada na cidade de Betim (MG) apesar dos avanços técnicos
incorporados ao processo produtivo, consome mensalmente tanta
água quanto uma cidade de 60.000 habitantes (FREITAS, 1998).
3
320
Destas ressalvas não escaparia a chamada indústria high tech,
de alta tecnologia, incensada por diferentes correntes de opinião,
inclusive as preocupadas com o meio ambiente, como sendo uma
“indústria limpa”. Mas, contrariamente ao imaginado, este segmento
da economia moderna utiliza grandiosos volumes de água ionizada
para fabricar aparelhos e equipamentos, e por esta razão, requisita
incessantemente novas fontes do líquido.
Trocado em miúdos: os gadgets tecnológicos têm por legado uma
impressionante carga de poluição dos recursos hídricos. Atualmente,
o Vale do Silício, na Califórnia, acolhe mais locais de assentamento
de resíduos tóxicos registrados pela Agência de Proteção Ambiental
dos Estados Unidos (Environment Protection Agency, ou EPA), do
que qualquer outra área daquele país. Este levantamento indica nada
menos do que 150 locais de contaminação dos lençóis freáticos.
As empresas de alta tecnologia seriam responsáveis ainda, por
50% da contaminação da água subterrânea de Phoenix (Arizona),
polo da indústria tecnológica e dos seus arredores, comprometendo o
abastecimento da população urbana (BARLOW et CLARKE, 2003: 9).
Não fosse suficiente, aos dados do consumo industrial devemos
agregar os relativos à poluição das águas de superfície. Na maioria
das regiões industrializadas do planeta, os rios que percorrem os
centros urbanos funcionam como lixeiras das empresas. Na maior
parte dos casos, os efluentes, isto é, a carga líquida poluída lançada
pelos estabelecimentos industriais, alcança as águas dos rios, lagos e
dos oceanos dispensando qualquer tratamento prévio, prejudicando o
3
321
abastecimento humano e solapando o meio natural e as cadeias
tróficas das massas líquidas.
Por isso mesmo, a industrialização tem sido apontada como um
dos principais motivos da escassez de água em muitas regiões do
mundo. Recorde-se que os impactos provocados pela indústria não
são restritos àqueles que acometem diretamente os corpos de água
doce, podendo incluir os relacionados com o cultivo de matériasprimas.
Centrando as atenções na indústria do papel, este material tem
solicitado como fonte de celulose, a madeira oriunda de florestas
homogêneas de eucalipto, cultivado em regiões que dantes eram
cobertas por matas nativas, inclusive a título de sequestrar o carbono
e contribuir com a mitigação do aquecimento global e a preservação
do meio ambiente (passim ALIER, 2005).
No entanto, além de afetar as formas de vida locais, a silvicultura
baseada no eucalipto é extremamente exigente em água, implicando
no drástico rebaixamento dos lençóis freáticos e aridificação do solo.
Por isso mesmo, associações camponesas em todo o mundo têm
resistido à expansão deste cultivo. Num episódio umbrátil, datado de
agosto de 1983, milhares de lavradores de Karnataka (Sul da Índia),
revoltados com os menoscabos do plantio homogêneo do eucalipto,
“marcharam em massa para o viveiro florestal e arrancaram milhões
de mudas de eucalipto, colocando em seu lugar sementes de
tamarindo e de manga” (SHIVA et BANDYOPADHYAY, 1991: 65).
3
322
Contemporaneamente, a implantação de novos polos industriais
em espaços periféricos localizados no Brasil, México, China, Malásia,
Índia, Tailândia, África do Sul e Indonésia, além da expansão dos já
existentes, acirrará a disputa pelos estoques remanescentes de água
azul.
Esta inferência é comprovada por estudos indicando que o setor
industrial, avançando sem o amparo de qualquer cautela ambiental,
tem se apropriado dos corpos aquáticos tradicionalmente destinados
aos cultivos. Evidência que ninguém contesta, a produção agrícola,
ao constituir, na comparação com a indústria, atividade que incorpora
menor valor agregado, recuou em muitos países diante da avidez das
indústrias pelos recursos hídricos.
Pelo visto, o recrudescimento das tensões hídricas é inerente à
tendência de expansão dos polos fabris. Alavancada pela logística
hídrico-intensiva de um sistema que alicerça a hegemonia do setor, o
labor industrial, além do viés limitante da crise hídrica, bate de frente
com os ditames da reprodução biológica dos humanos.
Repetindo o que foi colocado parágrafos atrás, não é possível
alimentar-se de metais, plásticos e de materiais manufaturados. Dado
que as indústrias, persistindo a atual tendência de crescimento,
reclamarão, antes de 2025, a duplicação do quantum que lhes cabe
no consumo total do líquido (BARLOW et CLARKE, 2003: 8), um
panorama povoado de prognósticos sombrios pode ser radiografado
por qualquer observador mais atento.
3
323
Não seria improcedente recordar os violentos distúrbios ocorridos
em 1993 em Delhi, capital da Índia, provocados pela precariedade do
abastecimento, fazendo as torneiras roncarem. Em Daca, no vizinho
Bangladesh, os urbanitas sublevaram-se sem aviso prévio em 1999
contra as autoridades, indignados com a falta de água para beber
60.
Sintomaticamente, estes enfrentamentos revelam em si mesmos
as limitações da economia-mundo num momento em que esta se
confronta com as necessidades humanas mais elementares: água
para dessedentação e água para alimentação.
Em síntese, mesmo sabendo-se que o mundo moderno seria
impensável descartando a industrialização e a sua capacidade inata
em multiplicar bens, há também que ser lavrado o comentário de que
estes processos se dão em um mundo no qual a escassez de água já
é uma realidade, a qual tende, inequivocamente, a agravar-se cada
vez mais.
O ponto pacífico é que os processos industriais, ao menos da
forma como foram concebidos e desenvolvidos, não poderão ser
mantidos. Será necessário não só atenuar impactos, mas também
repensar os modelos tecnológicos hídrico-intensivos, apontando para
uma nova forma de convívio com o ambiente natural.
Neste sentido, a indústria pode oferecer contribuições positivas,
adotando, por exemplo, práticas conservacionistas na utilização de
águas de qualidade inferior. Ao lado de medidas gênero end-of-pipe,
Paradoxalmente, Bangladesh integra um seleto grupo de países considerados ricos em
água doce, avaliação esta, de mote quantitativo, referência que não implica na oferta de
líquido de boa qualidade para as solicitações humanas de base.
60
3
324
como estações de tratamento que livram previamente as águas dos
resíduos antes de despejá-las nos rios (Vide PEREIRA, 2002: 99), a
reciclagem habilita uma redução de consumo de material virgem num
promissor porcentual de 50% ou mais, com a vantagem adicional de
diminuir a carga poluidora da produção (SELBORNE, 2002: 36).
Estes avanços são patentes na experiência do parque fabril da
Alemanha Ocidental. Neste país, a reciclagem da água descartada
pelas indústrias (iniciada nos anos 1970), não obstante a expansão
da produção, permitiu manter um nível de consumo praticamente
idêntico dos recursos hídricos durante mais de vinte anos (BARLOW
et CLARKE, 2003: 278).
Recorde-se que, conforme sugerido nos parágrafos anteriores, os
processos de transformação industrial não necessariamente exigem
recursos hídricos com grau de pureza elevado. Podemos resgatar o
conceito formulado pelo Conselho Econômico e Social das Nações
Unidas, segundo o qual, “a não ser que exista grande disponibilidade,
nenhuma água de boa qualidade deve ser utilizada para usos que
toleram águas de qualidade inferior” (citado in REBOUÇAS, 2004:
31).
De resto, deve-se lembrar que a redução do consumo de água
bruta pode recorrer à substituição das tecnologias tradicionais, dentre
estas, a substituição da água nos processos de resfriamento pela
injeção de ar, que minimizam de modo extraordinário a utilização de
recursos hídricos (Ver a respeito, SILVA et SIMÕES, 2002: 351/353).
3
325
No entanto, a despeito da existência de modelos tecnicamente
exequíveis, viáveis e eficientes na otimização e minimização do uso
de recursos hídricos, sublinhe-se, contrariando o otimismo de grupos
de especialistas, que estes não tem sido incorporados pelo segmento
industrial na velocidade desejada.
Conduta aparentemente contraditória num mundo às portas de
um colapso hídrico sem precedentes, esta incorpora, acertadamente,
uma lógica sistêmica que a justifica. Logo, seria pertinente indagar as
razões desta resiliência, pois no final das contas, as “ecotécnicas”,
embora concretamente exequíveis, não são adotadas, convocadas,
quando muito, exclusivamente quando não há nenhuma outra forma
de manter em operação os circuitos de produção já existentes.
Neste momento, seria obrigatório frisar que nenhuma qualificação
técnica é, em si mesma, consagradora da sua aceitação ou de sua
difusão social. Nunca, em nenhum lugar e em época alguma, virtudes
abstratas conseguiram se impor ignorando os mecanismos sociais
existentes. Analisando por este ângulo, pressupor uma materialidade
social imanente para as técnicas, incorreria pelo mínimo, nos riscos
inerentes a um “idealismo” cabalmente despropositado.
Deste modo, ressalve-se que qualquer tecnologia inédita, aparte
sua viabilidade técnica e operacional, reclama ambientação histórica,
social e política que habilite sua materialização junto a concretude
social e ao mundo econômico real. Que fique então sublinhado: na
ausência destes pressupostos nenhuma nova criação do espírito
humano encontra sua devida materialidade.
3
326
Tais considerações, no tocante ao uso dos recursos hídricos pela
indústria, são particularmente verdadeiras quando recuperamos uma
questão que tem perpassado ao longo de todo este texto, remetendo
à forma de reprodução do sistema.
Os primados que governam os mecanismos centrais do sistema
de engenharia da modernidade, em correspondência com o que foi
exaustivamente explanado, têm por substrato medular a velocidade, a
transitoriedade e o tempo do capital, inferências que condicionam
diretamente suas formas de reprodução material.
Com base nesta aferição, estará o setor industrial fadado a se
tornar não um fator de prosperidade e de bem-estar para o homem,
mas sim, em um elemento desestabilizador da sociedade humana?
Tal indagação, que pode ser endereçada a quaisquer outras
ações de intervenção do homem no meio natural, não poderia deixar
de estar emaranhada com os ditames civilizatórios no seio dos quais,
a industrialização encontrou abrigo e sustentação.
Motivo adicional para registrarmos nos capítulos que seguem,
evitando assim conclusões precipitadas, lineamentos para aprofundar
a compreensão da problemática apontada ao longo do capítulo que
ora estamos a finalizar.
3
327
CAPÍTULO 7
RECURSOS HÍDRICOS E RESÍDUOS SÓLIDOS
7.1. RESÍDUOS SÓLIDOS: UM PROBLEMA CRESCENTE
Contrariamente à água, percepcionada de modo culturalmente
positivo pelo conjunto das culturas humanas, raras hermenêuticas
evocam significados e afetações tão negativadas quanto o vocábulo
lixo.
Fato notório, lixo reportaria, junto ao imaginário social, a toda
sorte de substâncias sujas, inúteis, contaminadas e/ou repugnantes.
Uma vez incomodando, oferecendo desconforto estético e perigos
latentes ou imediatos às coletividades humanas, o lixo deve então, e
por definição, permanecer longe do convívio das pessoas.
Não por acaso, a presença de sobras amontoadas nas calçadas
ou nas áreas que carecem de coleta adequada é interpretada como
indício de apartação social, desmazelo dos moradores, carência de
gestão e de depreciação imobiliária.
Nos lugares nos quais os descartes são depositados de modo
irregular, ou seja, em espaços coloquialmente definidos pelo cidadão
comum como “lixões”, são comuns os deslizamentos, as enchentes,
os odores pestilentos, focos de doenças, de insetos e a nidificação de
insetos e animais estigmatizados, caso emblemático das ratazanas,
3
328
baratas e dos urubus 61. Nesta ordem de considerações, o lixo tornouse sinônimo de itens, petrechos e bugigangas imprestáveis, fadadas a
serem colocadas longe da vista das pessoas o mais rápido possível.
Lado a lado com as abjeções que povoam o imaginário social, os
enormes volumes de materiais descartados que dia a dia entopem as
lixeiras e contaminam o meio ambiente, transmudaram a gestão dos
resíduos num desafio de primeira grandeza em praticamente todos os
países e em todas as cidades do globo (POSTIGLIONE, 1992).
As montanhas diárias de resíduos são um problema presente
numa escala verdadeiramente planetária, presente numa gama de
espaços que se estende desde as mais faustosas metrópoles até os
remotos assentamentos de populações tradicionais. Não constituísse
esta sentença uma realidade, ao menos as paragens esquecidas e
ermas do planeta estariam a salvo de serem entupidas com lixo.
Porém, mesmo no ponto culminante da Terra, o pico do Everest
(Nepal/Tibete), no Himalaia, desde a base da montanha até o cume,
calcula-se que existam centenas de toneladas de sobras a denunciar
a passagem do homo occidentalis: latas de alimentos em conserva,
tubos de oxigênio, utensílios, ferramentas, plásticos, cordas, roupas e
minudências em geral.
Notadamente, fatores de ordem cultural interferem na maledicência ou aversão pura e
simples devotada a estes seres. As formigas, por exemplo, convivem nos lixões com as
baratas, os pombos com os ratos, e as garças, com os urubus. No entanto, isto não
impede que a formiga seja percepcionada como “amante do trabalho”; o pombo, que está
vinculado pelo cristianismo ao espírito santo, é bem-visto; quanto à garça, esta seria uma
“ave elegante”. Assim, formigas, pombos e garças, a despeito de idênticas no convívio
com a sujeira com outras espécies (e inclusive, até mesmo num grau mais pronunciado
do que as baratas, ratos e urubus), terminam positivamente qualificados junto à natureza
idealizada que domina o imaginário social. Claro sinal do quanto as imagens mentais, ou
a fenomenologia dos signos que pesam na percepção do mundo natural, por certo,
fazem valer um caráter seletivo imposto às imagens coladas à natureza.
61
3
329
No Arquipélago das Pitcairn, um isolado grupo de ilhas situado na
Oceania e distante por completo de qualquer rota de navegação
62,
um pesquisador britânico, que lá desembarcou em 1991 para coletar
e pesquisar a entomofauna local, ficou indignado com a quantidade
de restolhos ao léu nas praias do atol. Em relatório encaminhado para
uma Organização Não-Governamental (ONG), o cientista registrou
volumoso achado de 953 objetos, que taxonomicamente, incluía, por
exemplo, 171 recipientes de vidro, 25 calçados, 2 cabeças de boneca
e uma bombinha de asma.
No total, atualmente o mundo gera a cada dia, dois milhões de
toneladas de resíduos sólidos domiciliares (RSD). Com base neste
dado, chega-se ao portentoso resultado de 730 milhões de toneladas
por ano. Jamais na história da humanidade descartou-se tamanho
volume de tralhas, objetos e substâncias. As proporções assumidas
pelos resíduos gerados pela produção e o consumo são de tal ordem,
que o geógrafo francês Jean Gottman não titubeou em referir-se à
época atual não como uma glamourosa “Idade do Aço”, “do Petróleo”,
“da Energia Nuclear” ou “da Conquista da Lua”, mas sim, como a Era
do Lixo ou do Refugo (Vide QUAINI, 1979: 142).
Como seria permitido antecipar, a progênie dos rebotalhos é
absolutamente dessimétrica, modalizada de acordo com indicadores
culturais, políticos, sociais e econômicos. Neste recorte, o destaque
d’un petit comité de economias na produção mundial de rebotalhos,
Situado a meio caminho entre a Nova Zelândia e a América do Sul, este arquipélago se
enquadraria no que é geograficamente definido como finisterra (BRETON, 1990: 33/34).
Estas ilhas isoladas foram ocupadas entre os Séculos IX-XV d.C. pelos polinésios, cuja
colonização soçobrou em virtude de descompassos ecológicos (Vide DIAMOND, 2005:
153/170). Em 1790, quando lá aportaram os amotinados do Bounty em fuga da justiça
naval britânica, a ilha estava carente de qualquer habitante.
62
3
330
que como seria esperado, pertencem ao grupo dos países centrais, é
um fato inobjetável.
Por exemplo, os Estados Unidos são responsáveis por 230
milhões de toneladas de descartes por ano, representando 31% do
total dos rebotalhos domiciliares gerados no mundo (Figura 11). Este
volume, somado com a contribuição do Canadá e dos países Europa
ocidental, totaliza um fabuloso percentual de 56% do lixo global (Cf.
GRIMBERG, 2002).
Conclusão inevitável, nos países do hemisfério norte a média de
geração de resíduos por habitante é bastante superior à dos países
do Sul. No Canadá a média é de 1,9 kg por pessoa/dia e nos Estados
Unidos, 1,5 kg/pessoa/dia. Outrossim, no Brasil, este volume se reduz
para 0,7 kg/pessoa/dia, e na Índia, para 0,4 kg/pessoa/dia. Em meio
aos segmentos sociais menos favorecidos, este índice pode baixar
para 0,3 kg/pessoa/dia ou até menos. Em geral, nos países pouco
industrializados, a média oscila entre 0,4 e 0,9 kg/pessoa/dia (Dados
da Organização Mundial da Saúde (OMS), para o ano de 1995, tal
como citados em GRIMBERG, 2002. Quanto às características dos
RSD no Brasil e no exterior, vide FIALHO, 1998: 59/63).
Outra observação pertinente é que a substancialização dos lixos
apresenta um vínculo explícito com o estilo ocidental de vida. A forma
de reprodução sistêmica deste padrão civilizatório, caracterizando-se
por uma incessante requisição dos insumos naturais, é, em si mesma,
um fator que outorga a todos os componentes do sistema, mesmo
que de modo desigual e acatando diferentes sequenciamentos, uma
parcela de responsabilidade pela proveniência dos refugos.
3
331
FIGURA 11 - Descarte de lixo domiciliar nos Estados Unidos. Observe-se o
predomínio de itens da fração seca, entremeados na massa dos resíduos
(Foto: POSTIGLIONE, 1992: 19)
3
332
Assim, embora os resíduos sejam majoritariamente gerados por
reduzido conjunto de nações ricas, afluentes e perdulárias, a questão
da destinação dos resíduos também conquistou gravidade na periferia
do mundo global, especialmente nas áreas metropolitanas. Neste
particular, assinale-se que na América Latina, mais de 100 milhões de
toneladas de refugos residenciais são ejetados anualmente, total que
corresponde a cerca de 13% do total mundial (Cf. GRIMBERG, 2002).
A escalada do descarte de resíduos assumiu tal proporção, que
nas décadas finais do Século XX o mundo assistiu ao surgimento de
um tipo inédito de deslocamento internacional: o envio de lixo dos
países centrais para sítios localizados no Terceiro Mundo (CMMAD,
1988: 253/254). O assunto, dada sua manifesta notoriedade, tornou
necessária uma legislação internacional voltada para normatizar a
disposição das sobras em locais diferentes daqueles nos quais foram
gerados.
Daí o surgimento da Convenção da Basileia (1989), preocupada
em regulamentar a movimentação dos lixos e inclusive, seu tráfico
transfronteiriço. Até junho de 2002, 151 países haviam ratificado a
convenção. Entretanto, ainda que seis dos países pertencentes ao
G7 (o bloco das nações mais industrializadas do planeta), tivessem
ratificado o tratado, os Estados Unidos, o campeão mundial na ejeção
de refugos, ainda em 2005 se recusavam a endossar o documento.
No que evidencia limitações objetivas dessa convenção, embora
a maioria das nações tenham firmado a Convenção da Basileia, isto
não significa que estejam se empenhando em efetivamente brecar o
tráfico ilegal de sobras, que prossegue à revelia das determinações
3
333
legais. No ano de 2004, mais de 50% do total de resíduos perigosos
produzidos no primeiro mundo foram transferidos para os países
periféricos (VEIGA, 2004: 73).
Na realidade, a simples existência da Convenção da Basileia,
embora definindo um referencial para discutir o problema, obviamente
não o solucionou. Existem brechas que permitem justificativas para o
trânsito de resíduos, até mesmo a título de prover a indústria da
reciclagem de matéria prima. Exemplificando, o Brasil é signatário da
convenção, ratificada desde 16/06/1992.
Todavia, isto não impediu o país de tornar-se alvo da polêmica
importação de pneus descartados. As previsões para 2005 estimam
que serão importados 11 milhões de unidades
63.
Acredita-se que em
2006 a questão irá se acirrar tanto no Brasil como em nível global,
pois neste ano, a Europa proibirá a desova de pneumáticos em
aterros e o continente terá 80 milhões de pneus/ano para descartar,
protegidos pelo anonimato de itens que constituindo marcas globais,
podem ter sido produzidos nos mais variados países.
Além disso, países como a China continental adotaram políticas
de permissionamento pago para recepcionar resíduos, que em 1997,
somou uma montanha de aproximadamente 11.000.000 de toneladas,
descartes no geral, oriundos do Primeiro Mundo, que para complicar,
mantêm taxas incessantes de ejeção de lixo (DIAMOND, 2005: 443).
Embora não constitua resíduo perigoso, os pneus provocam diversos estorvos
ambientais. Por isso, a controvertida problemática do descarte de pneus fora de uso, tem
gerado inconformismo em vários segmentos de opinião e mobilizado as atenções do
movimento ambientalista (Ver a respeito, ABES INFORMA, exemplar de maio/junho de
2004, página 5)
63
3
334
Agravando este problema, os rebotalhos, do ponto de vista
histórico, além de observarem uma expansão em termos de volume,
passaram a incorporar um número crescente de materiais novos, que
foram somando-se ao montante de tralhas e itens descartados. Na
medida em que os resíduos foram aumentando em quantidade e se
diversificava a natureza da composição dos monturos, as soluções
para o problema também conquistaram maior complexidade.
Neste sentido, em nada adiantaria advogar em favor da tese de
que o lixo constituiria um antigo e persistente problema para as
comunidades humanas. Apesar de correto, este argumento perde
força quando recordamos que na civilização moderna, contrariamente
ao mundo tradicional, os materiais são largamente industrializados,
consistindo de aglomerados cada vez mais artificializados. Por esta
razão, pura e simplesmente possuem um tempo de permanência no
ambiente muito mais amplo, resistindo à reintegração no meio natural.
Respaldar esta afirmação não ofereceria nenhuma dificuldade.
De acordo com comprovações coletadas de amplo leque de literatura
específica a respeito dos resíduos sólidos, sabe-se que a degradação
do papel no ambiente requereria pelo mínimo de 6 meses; as pontas
de cigarro, de 1 a 2 anos; a goma de mascar, 5 anos; as embalagens
tetrapak (comercialmente conhecidas como longa vida), cerca de 5
anos; quanto às latas de ferro, sua reincorporação ao ambiente
solicitaria entre 10 e 30 anos; latas de alumínio, entre 100 e 500 anos;
pilhas, entre 100 e 500 anos; sacos plásticos, entre 10 e 20 anos; os
termoplásticos, entre 400 e 500 anos; as garrafas plásticas, cerca de
100 anos; quanto a materiais como a espuma de nylon e o vidro,
estes demandariam lapsos indeterminados de tempo.
3
335
Assinale-se que a simples presença física de itens descartados
no ambiente, além de apresentarem degradabilidade dificultosa e
serem agentes de contaminação, promovem inúmeros distúrbios. Por
exemplo, o entupimento dos bueiros e das canaletas de drenagem
por garrafas e sacos plásticos têm sido apontados como um dos mais
persistentes motivos das enchentes nas grandes cidades do mundo.
Esta afirmação poderia estar dirigida ao próprio Brasil. No país,
são produzidas 210 mil toneladas anuais de plástico filme para sacos
descartáveis, montante que representou 9,7% de todo o lixo domiciliar
do país em 2003. Abandonadas indistintamente nos logradouros, as
sacolinhas plásticas, quando emaranhadas na rede de drenagem das
cidades, freiam o escoamento das águas pluviais, constituindo notório
fator complicador para as inundações urbanas e para o alastramento
de problemas sanitários (passim TRIGUEIRO 2003).
Face ao exposto, não há rigorosamente qualquer administração
urbana que não tenha que se defrontar com a questão da destinação
dos resíduos. Embora o Brasil possa apresentar números modestos
na comparação com os países economicamente desenvolvidos, estes
ainda assim seriam impressionantes.
Sabe-se que são jogados nas lixeiras cerca de 62 milhões de
copinhos de café todos os dias. Quanto ao papel branco usado
anualmente, este seria suficiente para circundar a Terra 48 vezes pela
linha do Equador e, somando-se outros tipos de papéis, poderíamos ir
e voltar da Terra à Lua 25 vezes por ano. Os brasileiros igualmente
descartam vultosas 4.980 toneladas de lenços e 15.000 toneladas de
guardanapos de papel todos os anos (Cf. LEGASPE, 1996: 157).
3
336
Agregue-se que este inventário de descartes pode ser ataviado
de apontamentos adicionais a formar um catálogo infindável e
estarrecedor. No Brasil, o ato de descartar resíduos implica na
geração de 130 mil toneladas de lixo domiciliar por dia. Isto é, seriam
47,5 milhões de toneladas por ano, em grande parte aguardando uma
destinação adequada. Recorde-se que apenas 60% dos resíduos
urbanos do Brasil são coletados, quase sempre nos bairros centrais,
zonas de comércio e residenciais de maior poder aquisitivo. O resto
permanece nas vias públicas, terrenos baldios, encostas, córregos e
rios.
Porém, mesmo quando coletado, em 88% dos 5.507 municípios
brasileiros, os rebotalhos são descartados de modo inadequado.
Costumeiramente, as sobras terminam desovadas a céu aberto nos
lixões ou em aterros ditos “controlados”, situação que implica em
óbvios impactos ambientais, dentre estes a contaminação do ar, dos
lençóis freáticos e de solos agricultáveis pelos efluentes originários da
degradação dos lixos. Num panorama como este, ressalve-se que tão
só 451 municípios brasileiros, irrisórios 8,11% do total, desenvolvem
programas de reciclagem, uma mostra supletiva da insensatez dos
governantes (CALDERONI, 2003)
Um tópico essencial são os encargos econômicos decorrentes do
gerenciamento dos lixos, envolvendo custos nada desprezíveis, em
especial quando muitos países se defrontam com carências em áreas
essenciais como saúde, educação e investimentos em infraestrutura.
No caso brasileiro, “os serviços de limpeza absorvem de 7 a 15%
dos recursos de um orçamento municipal, dos quais cerca de 50 a
3
337
70% são destinados para a coleta e ao transporte do lixo” (Cf.
CEMPRE, 2000: 45/46). A coleta de resíduos possui rebatimentos
para diversos outros setores da economia. No Brasil, os serviços de
coleta de lixo constituem o mercado preferencial de veículos pesados.
Praticamente a cada quatro anos, a totalidade frota de coleta de
resíduos do país é reposta com veículos novos (REMAI, 1991).
Por fim, a lógica da geração de resíduos termina por deslocar os
efeitos perversos do descarte para as áreas periféricas das cidades,
exatamente as que são habitadas pelos “de baixo”. Neste sentido, um
paradigmático estudo desenvolvido nos anos 1990 pelo California
Waste Management Board (Conselho de Administração de Rejeitos
da Califórnia), apontou as comunidades pobres, bem mais abertas ou
suscetíveis às promessas de benefícios econômicos, excluídas e
formadas por trabalhadores com pequena ou nenhuma qualificação,
como as de menor oposição ao locally undesirable land-use, diga-se,
uso localmente indesejável do solo.
Não há como negar, os lixões, aterros, incineradores e áreas de
desova em geral, tem localização preferencial nas cercanias urbanas,
espaço de vida dos excluídos (que seja dito de passagem, são os que
geram menor proporção de refugos), assim como, no que interessa à
discussão em curso, de produção de água doce.
Seja ressalvado algo importante: a problemática do lixo, ao afetar
das mais diversas formas o dinamismo social, econômico e ambiental
das comunidades, e num prisma geoespacial, o espaço habitado na
totalidade dos elementos que o constituem, dificilmente poderia ser
sonegada nos debates voltados para os recursos hídricos.
3
338
Detalhar e precisar melhor este foco torna-se, pois, um passo
que se soma aos que já foram dados até este momento.
7.2. ÁGUA E LIXO: UMA INTERFACE PERPÉTUA
Foi consignada nos parágrafos anteriores uma breve exposição
sobre o lixo, alinhavando aspectos relacionados ao perfil volumétrico
e gravimétrico, gastos relacionados com a sua destinação final, o
complexo rol de substâncias incorporados naquilo que sobra, e os
distúrbios suscitados no ambiente de vida dos humanos.
Além destes pontos, importaria é óbvio, ressalvar a articulação
mantida entre resíduos sólidos e recursos hídricos. Isto porque de um
ponto de vista eminentemente geográfico, dissociar os dois temas
poderia causar estranheza, em especial quando recordamos que de
um ponto de vista espacial, ambos relacionam-se entre si.
Por sinal, um relevante papel caberia à intersecção da temática
dos recursos hídricos, além da condizente com os resíduos sólidos,
com a da matriz energética. Formando um trinômio inextricavelmente
articulado entre si, esta tríade é indissociável de qualquer estudo
envolvendo estes três temários, em vista dos aspectos relacionados
com cada um, condicionar menção aos demais.
Sumarizando: não há como avalizar qualquer debate relevante
acerca dos recursos hídricos, resíduos sólidos e matriz energética,
renunciando a esta intersecção temática (Figura 12). Nesta interface,
3
339
a problemática urbana reclamaria proeminência. Afinal, o meio urbano
refere-se a uma modalidade de organização do espaço identificada,
mais do que qualquer outra, com a modernidade e o mundo
inaugurado pela economia de mercado.
FIGURA 12 - Esquema da Tríade Temática: Uma Proposição Gráfica
(Cf. Waldman, 2003a)
Ostensivamente, a cidade, exercendo papel de polo estaqueador
da produção e da circulação de mercadorias, avoca para si, o
essencial do nódulo que entrelaça os recursos hídricos, a matriz
3
340
energética e os resíduos sólidos
64.
Ademais, auferindo primazia
enquanto máxima emanação de um estilo de vida considerado matriz
do uso perdulário dos recursos naturais, o meio urbano é o palco por
excelência da geração de vasta quantidade de resíduos.
O vulto territorial conquistado pelos espaços urbanos, derivando
na alteração profunda de paisagens naturais inteiras, agora ocupadas
por redes viárias, edificações, fábricas e obras técnicas, resulta em
definitivo numa sequência de eventos nos quais o lixo repetidamente
se conjuga com a problemática das águas doces. Decididamente, as
estratégias de gerenciamento dos resíduos sólidos possuem vínculo
umbilical com a preservação da qualidade dos recursos hídricos que
abastecem as concentrações urbanas, não sendo possível, qualquer
que seja a mediação, dissociar uma temática da outra.
Ressalve-se que a questão dos resíduos sólidos urbanos, tem
sido apontada como uma das que poderão, sem que exista nesta
afirmação qualquer alarmismo, comprometer de modo irremediável o
abastecimento de água no espaço urbano nacional, um verdadeiro
paradoxo, pois o território do país é detentor da mais pródiga reserva
de água doce do mundo. A urgência da adoção de ações para o lixo
somaria, pois com esforços a serem desenvolvidos para preservar os
recursos hídricos, assegurando a potabilidade e a qualificação do
líquido. A este respeito, reconhece conceituado manual com foco no
gerenciamento dos resíduos sólidos:
A concretude desses vínculos encontra reflexo nas criações artísticas e culturais, tais
como na filmografia. Por exemplo, o curta-metragem “Ilha das Flores”, dirigido por Jorge
Furtado (1989), sintomaticamente localiza espacialmente um alegórico lixão numa ilha,
com monturos cercados por corpos aquáticos.
64
3
341
Num futuro não muito distante, será possível defrontar-se
com sérios problemas de disponibilidade de água potável
e de elevação dos custos para sua adução e tratamento,
sendo plausível estimar que, se nada for feito, em 10
anos, o desabastecimento poderá atingir grandes centros
urbanos, como São Paulo, Recife, Rio de Janeiro, Belo
Horizonte e a maioria das áreas metropolitanas do país,
em função da poluição e da queda de produção de
mananciais e conflitos do uso múltiplo não planejado:
irrigação, lazer, navegação, esgoto, etc. (CEMPRE, 2000:
8).
De resto, de vez que temos presenciado o aprofundamento da
crise de abastecimento de água, esta referência arroga a consecução
de trabalhos operando leques de variáveis os mais amplos possíveis.
Decerto, a sociedade brasileira está postada diante de um problema
ambiental de primeira grandeza, cuja gravidade se acentua em razão
da débil percepção de que desfruta no imaginário social. Neste senso,
atentemos ao excerto que segue:
Grande parte das cidades brasileiras ainda não chega ao
estágio de se preocupar com a poluição dos esgotos
pluviais, já que o esgoto cloacal é ainda o problema maior
[...] O lixo, conjugado com a produção de sedimentos e
com a lavagem das ruas, exige criativos procedimentos
de combate com custos razoáveis para se evitar que, no
início do período chuvoso, a qualidade dos cursos d’água
seja ainda mais deteriorada. Esse processo de poluição
ocorre, principalmente, na macrodrenagem das cidades.
Infelizmente, os grandes investimentos hoje existentes
nos programas de recuperação ambiental das metrópoles
brasileiras estão ainda no estágio de reduzir somente a
carga do cloacal (TUCCI, HESPANHOL et NETTO, 2001:
48).
Por esta razão, o meio urbano, ao explicitar forte interpenetração
das discussões do abastecimento de água potável e do saneamento
3
342
com a questão da drenagem urbana e das enchentes e destas, por
sua vez, com a dos resíduos sólidos e da energia, ensejaria a adoção
de um planejamento integrado, preocupado de modo simultâneo com
a performance destas temáticas, todas imprescindíveis para o efetivo
funcionamento do sistema de engenharia urbano, noção que deve
buscar respaldo em modelos conceituais aptos a trabalhar com tais
inter-relações, um debate que embora persistente, é em linhas gerais,
ainda incipiente (Ver a respeito, PITTON, 2003: 44/46).
Uma outra ordem de considerações, cujo palco privilegiado é do
mesmo modo, a cidade, decorre do universo da produção econômica,
particularmente a industrial. Com efeito, a relação simbiótica mantida
pelos resíduos sólidos com os recursos hídricos, manifesta-se no
ajuizado pelo qual toda sorte de bens produzidos materializa, direta
ou indiretamente, um certo input hídrico. Esta demanda pelo líquido
apresenta-se ao longo de todo o processo produtivo, e ademais, no
suprimento energético, cujo pressuposto é, quase sempre, a água.
A relevância da água pode ser conferida tomando por base a
chamada Análise do Ciclo de Vida dos produtos, ou simplesmente
ACV. Constituindo ferramenta conceitual por intermédio da qual, o
processo de produção dos materiais ou atividades é analisado por
completo, a ACV analisa a extração e o processamento de matériasprimas; sua fabricação; o transporte e a distribuição; consumo ou
utilização dos produtos; e por fim, sua reutilização, manutenção,
reciclagem e disposição final (SETAC, 1993).
No Brasil, os princípios e a estruturação, assim como os marcos
teóricos e os requisitos metodológicos para a condução de estudos
3
343
de ACV, são fornecidos pela NBR ISO 14040. Detalhes adicionais
relativos às metodologias e procedimentos, estão referendados por
normas complementares, tais como a ISO 14041, ISO 14042 e ISO
14043, todos se relacionando às diversas fases da ACV.
Em linhas gerais, a ACV documentaria a história de um produto,
envolvendo todas as etapas que induziram seu surgimento, desde a
fase de obtenção das matérias primas até sua transformação em lixo.
Este prisma, com base na análise funcional do inventário produtivo, é
de fundamental importância para a compreensão e a minimização dos
impactos ambientais. Na perspectiva da engenharia industrial,
...o mais importante efeito da aplicação do ACV é a
minimização da magnitude da poluição causada por um
determinado processo. A conservação de matérias primas
não renováveis, como as fontes de energia, podem ser
também o objetivo de uma avaliação, assim como a
conservação de sistemas ecológicos em áreas sujeitas a
um balanço de suprimentos delicado, como regiões onde
a água é escassa. A produção de resíduos representa
perda de reservas e resulta em degradação do meio
ambiente (RIBEIRO, GIANETTI et ALMEIDA, 2005).
Com base nestes princípios, quando, por exemplo, são
realizadas pesquisas sobre os impactos ambientais dos automóveis
(geralmente restritas aos indicadores de poluição decorrentes do
funcionamento dos veículos), a ACV procura distinguir os efeitos
causados pelo processo de fabricação, incluindo demandas por água,
energia convertida, matérias primas, a produção dos componentes
(peças de motores, válvulas, vidros, borrachas, plásticos, pneus, etc.)
e por último, a forma como ocorre a destinação final dos resíduos.
3
344
Por conseguinte, a ACV traça uma documentação ambiental dos
produtos literalmente “do berço ao túmulo”, ou considerando-se o
aproveitamento do produto após sua utilização, do “berço ao berço”
(Vide RIBEIRO, GIANETTI et ALMEIDA, 2005).
Com base nesta premissa, é patente que em praticamente todas
as etapas da produção, está presente uma demanda por recursos
hídricos. É o que ocorre no primeiro estágio (extração dos insumos
naturais), visando obter suprimentos brutos e seu beneficiamento
primário. No estágio seguinte, usinagem e montagem dos produtos, a
novo, a água segue presente. Na terceira etapa, o embalamento e o
transporte atuam como abdutores diretos ou indiretos de água.
Entenda-se bem: as duas últimas fases, referentes ao consumo e
à utilização dos bens, assim como o descarte ou a própria reciclagem,
formalizam etapas que para serem concretizadas, apelam de igual
modo para o consumo do líquido. Em síntese, a simbiose dos ciclos
de vida dos produtos com os recursos hídricos é de tal monta, que
seria impossível concebê-lo na ausência de água (Figura 13).
De resto, a interação com os recursos hídricos não cessa com a
“morte” do produto, ou seja, quando o mesmo se torna um resíduo.
No final das contas, toma-se por base uma sociedade geradora de
enorme quantidade de rebutes. Assim, este contexto oferece variado
elenco de interfaces com a questão da qualidade da água oferecida
no meio urbano, sendo uma destas, justamente a que transparece por
ocasião do descarte final.
3
345
A gestão dos resíduos sólidos objetivando a atenuação de
impactos, requer destinação correta e confinamento seguro, nexo que
compõe um pacote de tecnologias, normatizações e gerenciamento.
Dentre estes, constituindo modalidades nas quais a relação com a
água é mais evidente junto ao senso comum, pode-se citar a CSL, a
tipologia dos aterros, os incineradores e as usinas de compostagem.
FIGURA 13 - Cemitério de pneus fora de uso nos Estados Unidos. Um dia, estes
pneus foram água. Agora estorvam o fluxo das águas (Fonte: DIAS, 2002a: 56/57)
Mas nem sempre outras formas de monitoramento dos resíduos
são percebidas no alcance que possuem quanto à preservação das
águas doces. Por exemplo, a varrição das ruas e a limpeza urbana
em geral, interferem de modo decisivo para a manutenção dos corpos
líquidos. Será em decorrência da eficácia destes serviços que os
3
346
impactos provocados nas águas interiores pelas cargas difusas, serão
maximizados, atenuados ou eliminados.
As cargas difusas têm origem nas descargas pluviais, que em
função da dinâmica de escoamento da drenagem urbana, lavam
superfícies contaminadas por todo tipo de refugos, como telhados,
bueiros e vias públicas, reunindo enorme proporção de substâncias e
partículas poluentes com origem orgânica e inorgânica, uma massa
líquida que termina por afetar os mananciais voltados para o consumo
humano (TUCCI, HESPANHOL et NETTO, 2001: 48 et seq).
Certamente, além do lixo lançado às ruas, dos restolhos deixados
para trás por falhas dos serviços de limpeza, dos dejetos humanos e
de animais, tal e qual do vazamento de chorume dos sacos de lixo e
dos caminhões de coleta, outras interferências urbanas poderiam
ingressar nas cargas difusas, comprometendo a qualidade das águas
doces.
Este seria o caso do trânsito de automotores, que amplifica a
quantidade de resíduos nas ruas principalmente pela desagregação
do pavimento asfáltico, assim como o material particulado resultante
da decantação da fumaça das indústrias, catalisando uma ejeção de
poluentes que potencializa os resíduos enquanto matriz fundamental
desta problemática (Ver FIALHO, 1998: 59).
Fato pouco conhecido, as cargas difusas, por conta da expansão
da urbanização, da industrialização e da geração cada vez maior de
resíduos, têm sido responsabilizadas pela maximização das cargas
poluidoras nos rios e reservatórios. Estima-se que 25% da poluição
3
347
dos rios urbanos seja motivada por cargas difusas, sendo que durante
o período das cheias, “a carga poluente do pluvial pode chegar até a
80% da carga de esgoto doméstico” (TUCCI, HESPANHOL et
NETTO, 2001: 48). Portanto, estas não podem ser esquecidas nas
estratégias e logísticas de preservação dos corpos líquidos e
tampouco, secundarizadas pelo gerenciamento dos resíduos urbanos.
Em conclusão, pode-se pautar na discussão sobre as interfaces
entre resíduos sólidos e recursos hídricos, um trajeto que novamente
associa estas duas variáveis, agora no sentido oposto, isto é, dizendo
respeito aos desdobramentos do gerenciamento das águas urbanas
na direção dos refugos.
Este seria o caso do tratamento primário dos esgotos, conjunto
de processos cuja finalidade é remover os materiais insolúveis
contidos nas águas servidas. Após a passagem forçada dos esgotos
por grades metálicas, estas retêm detritos como latas, recipientes,
garrafas plásticas e toda sorte de petrechos, enviados posteriormente
para os aterros sanitários (Vide BRANCO, 1993: 56).
Quanto ao lodo residual subsequente à reciclagem das águas
servidas nas Estações de Tratamento de Esgoto (ETE), este também
segue para aterros ou incineradores, e isto, em enorme quantidade.
Por exemplo, de acordo com dados da Companhia de Saneamento
Básico do Estado de São Paulo (SABESP), apenas a ETE de Barueri,
na RMSP, despacha cerca de 250 toneladas de lodo todos os dias.
Portanto, o descarte destes volumes é um ponto nevrálgico. Sem
contar que a disposição final do lodo dos esgotos chega a perfazer
3
348
60% do custo operacional das plantas de purificação, o grande
volume de material despachado para os aterros sanitários contribui
para abrevar a vida útil destes equipamentos, já sobrecarregados
pelos refugos urbanos. Inexoravelmente, a expansão do esgotamento
sanitário no Brasil ampliará os volumes de lodo encaminhados aos
aterros. Mais uma vez estampando a indissociabilidade existente
entre o temário da água e a dos descartes, a carência de espaços
nos aterros têm sustentado denúncias persistentes de confinamento
irregular de lodo residual, inclusive em áreas de mananciais.
Uma forma de superar este problema seria a aplicação bruta do
lodo (tecnicamente classificado como biosólido), nos cultivos. Afinal,
embora a composição do lodo não apresente todos os suprimentos
solicitados pelo metabolismo dos vegetais, contém macronutrientes
importantes para o desenvolvimento das plantas.
Assim, procurando reforçar o rendimento das colheitas, pequenos
agricultores de Jundiaí e de Franca (SP), autorizam o despejo de
praticamente 100% do lodo obtido das ETE da região nos cultivos.
Porém, existem problemas. O lodo apresenta elevado porcentual de
metais pesados e significativa incidência de patógenos, neste último
caso, um claro reflexo das deploráveis condições sanitárias vigentes
no país. A deposição do lodo pode provocar queda da biodiversidade
dos solos, contaminar os lençóis freáticos e depósitos subterrâneos
de profundidade.
Em resumo, muitos são os elos que conectam reciprocamente a
água e o lixo, e ambos, com a vida urbana moderna. Taxativamente, a
preservação das águas doces dependerá diretamente do que vier a
3
349
ser estabelecido como estratégia de gerenciamento do lixo (SEMA,
1998). E, justamente tal somatória de problemas é que sugere uma
radiografia aprofundada dos resíduos sólidos, pré-condição inerente à
identificação do relacionamento desta questão com a dos recursos
hídricos.
Como será examinado em seguida, uma delimitação precisa dos
impactos, abrindo caminho para uma clara identificação da natureza
dos resíduos, das modalidades de descarte e de tratamento dos lixos,
ocupa nexo central quando o foco do debate se refere à água, fato
que em suma, advém, do engaste dos dois temários no constructo
teórico corporificado na tríade temática.
Enfocar o entrelaçamento de ambas questões interessaria, pois,
por lançar luz mais abrangente quanto à complexidade de problemas
que norteiam o gerenciamento das águas doces na atualidade, assim
como o pródigo ciclo virtuoso propiciado por um gerenciamento ótimo
dos resíduos sólidos.
7.3. CLASSIFICAÇÃO E DESTINAÇÃO DOS RESÍDUOS SÓLIDOS
Consideração praticamente ignorada pelo senso comum, a
terminologia lixo, dado reportar a uma variada gama de substâncias,
é em si mesma genérica, e, portanto, pouco consistente de um ponto
de vista técnico e teórico. Além disso, na linguagem corrente (e até
mesmo na literatura técnica), esta palavra guarda sinonímia com
resíduos e rejeitos, constatação que primeiramente, enseja recordar a
existência de diferenciações sutis.
3
350
Certamente um arrazoado de senso comum justificaria a adoção
de uma ou de outra terminologia, consoante o momento e a intenção
da nossa fala. Entretanto, isto não seria impeditivo de se buscar maior
precisão para ambos os termos.
Semanticamente, pode-se certificar que lixo seria todo o material
inútil, todo material descartado disposto em lugar público, tudo aquilo
que “se joga fora”, “não presta”, ao qual se agrega longas catilinárias
devotadas à sua nocividade, periculosidade e toxidade.
Quanto ao termo resíduo, este designaria as sobras do processo
produtivo, geralmente de origem industrial. Assinale-se também que
estes dois termos podem ser tratados com base em outras acepções,
consoante a visão institucional ou de acordo com sua significação
econômica (apud CALDERONI, 2003: 49).
No plano do jargão técnico e de gestão, de acordo com a Norma
Brasileira Registrada (NBR) 10.004 da ABNT, de setembro de 1987,
os resíduos sólidos seriam os refugos que se apresentam “no estado
sólido, resultante das atividades da comunidade de origem: industrial,
doméstica, hospitalar, comercial, de serviços de varrição e agrícola”
(citada em SCHALCH, LEITE et GOMES, 1990: 150). Em igual passo,
são também ínsitos nesta definição
...os lodos provenientes de sistemas de tratamento de
água, aqueles gerados em equipamentos e instalações de
controle da poluição, bem como determinados líquidos
cujas partículas tornem inviáveis o lançamento na rede
pública de esgotos ou corpos d’água, ou exijam para isso
soluções técnicas e economicamente inviáveis em face a
melhor tecnologia disponível (idem).
3
351
Nesta formulação técnica, tal como em muitas outras, o termo
resíduo (embora não excluindo de todo o uso da expressão lixo), é
amplamente utilizado, sendo costumeiro na maioria das publicações
científicas. Existem, é evidente, uma série de motivos que justificam
uma opção preferencial pelo termo resíduo no lugar de lixo.
Todavia, dado que a precedência neste momento é discutir a
classificação dos resíduos, seria suficiente manter por enquanto esta
indicação prévia, entendida como patamar para detalhamentos que
serão pespontados com maior precisão mais adiante.
Assim, as “sobras” da civilização moderna, contrariando o senso
comum, remetem a um conjunto eclético de materiais e substâncias,
admitindo classificação em categorias básicas quando é adotado um
crivo preocupado com a identificação da fonte geradora. Tendo por
foco o funcionamento do meio urbano, os experts em lixo distinguem:
os Resíduos ou Materiais Inertes, Resíduos Especiais, Resíduos
Industriais, Resíduos Comerciais e os Resíduos Sólidos Domiciliares.
Os Resíduos Inertes correspondem sobretudo ao entulho oriundo
de demolição e da construção de obras de todos os tipos. Os inertes,
normalmente compreendidos como um estorvo, podem ser de grande
valia para a recomposição paisagística e recuperação de áreas como
pedreiras abandonadas e regiões com solo pouco compactado, que
deste modo podem ser viabilizadas como parques, áreas de lazer e
equipamentos públicos. Sendo menos impactantes que os demais
resíduos, a sugestão dos técnicos prescreve o encaminhamento do
entulho para aterros destinados exclusivamente para esta tipologia de
sobras, cujo monitoramento tem um custo mais baixo.
3
352
Quanto aos Resíduos Especiais, estes são constituídos por
alimentos e fármacos com validade vencida, sobras de matadouros,
materiais descartados pelas clínicas veterinárias, produtos químicos
corrosivos, tóxicos e inflamáveis, e pelo chamado lixo hospitalar.
Este último, é atualmente classificado como Resíduo de Serviços
de Saúde (RSS), denominação que atende à lógica de que vários
tipos de estabelecimentos geram restos com características similares
às dos hospitais, caso das farmácias, consultórios médicos, postos de
saúde, clínicas veterinárias, ambulatórios e instalações assemelhadas
(Cf. MOREL, 1991). A partir de dezembro de 1987, a nomenclatura
Resíduos de Serviços de Saúde foi endossada pela ABNT, escorada
pelas normas da referida associação, estatuídas na NBR 12.807, com
validade a partir de 01-04-1993.
A intensa informatização das atividades administrativas, do setor
de serviços como um todo e a popularização em nível domiciliar dos
minicomputadores ou Personal Computers (PC), vitalizou a geração
de índices significativos do chamado lixo digital ou e-waste.
Além dos PC são incluídos nesta categoria gadgets chamados de
periféricos: cartuchos de impressoras, diversos tipos de fios e cabos,
transformadores, disquetes, teclados, mouses, scanners, CDs, HDs,
adaptadores e nobreaks, itens que passaram a engrossar em grau
acentuado a cornucópia dos rebotalhos urbanos. Tem sido proposta
uma nominata específica para esta tipologia de objetos descartados:
Resíduos de Equipamentos Eletroeletrônicos (REEE), tradução direta
do inglês Waste Electrical and Electronic Equipment (WEEE).
3
353
De um modo geral, os REEE resultam de produtos que inserem
quantidades elevadas de metais pesados e substâncias halogenadas,
ambas com forte periculosidade para a qualidade das águas doces. A
produção dos equipamentos eletroeletrônicos solicita o emprego de
ácidos, gases tóxicos e de solventes, além de grande conjunto de
substâncias químicas cancerígenas.
Uma definição mais abrangente dos REEE integraria, além dos
aparelhos rubricados como “digitais” e telefones celulares, bens como
fornos de micro-ondas, aspiradores de pó, aparelhos de televisão, CD
players, máquinas de lavar roupa, rádios e gadgets em geral. Estes
rebotalhos têm sido alvo de preocupação da opinião pública, dos
gestores do lixo urbanos e dos especialistas em resíduos, suscitando
posicionamentos institucionais para este segmento dos refugos.
Os Resíduos Industriais são os gerados pela transformação das
matérias primas por parte da indústria. Particularmente, os resíduos
resultantes da indústria química e petrolífera apresentam uma série
de substâncias que constituem fonte de preocupação das autoridades
e da comunidade ambientalista.
Por extensão, tais resíduos sugerem um controle rigoroso. Farta
literatura de cunho técnico justifica o encaminhamento destas sobras,
em conformidade com a tipologia dos impactos passíveis de serem
desencadeados no meio ambiente, para centrais de incineração ou
para equipamentos específicos, os aterros industriais.
Seria oportuno citar que um dos mais documentados desastres
ambientais da história, o de Minamata, ocorrido no Japão em 1956,
3
354
foi provocado pelo lançamento de resíduos industriais em corpos
líquidos. Este acidente teve origem no despejo de águas residuárias
contendo mercúrio por parte de uma indústria local, provocando a
contaminação dos peixes e dos crustáceos, que consumidos pela
população, deram origem, durante anos seguidos, a uma doença
incurável, deformante e assustadora, com sintomatologia implacável,
que se tornou conhecida como Mal de Minamata (SCHALCH, LEITE
et GOMES, 1990: 149).
No que concerne as Resíduos Comerciais, estes são compostos
essencialmente por papéis da área administrativa e por plásticos,
vidro e papelão resultante do descarte das embalagens. Portanto,
este tipo de rebotalho seria em tese, menos influenciado por fatores
externos (Ver a respeito, FIALHO, 1998: 56/57).
Por último, temos os Resíduos Sólidos Domiciliares (RSD). Estes
correspondem à parte mais volumosa dos refugos gerados pelo meio
urbano, reportando a um dos nexos medulares da análise ora em
curso por se tratar do elo final dos ciclos produtivos geradores de lixo.
Na composição dos RSD está presente elevada proporção de
matéria orgânica, proveniente dos restos de alimentos, serviços de
jardinagem e dos detritos oriundos da varrição de parques e
logradouros públicos, monturo que inclui folhas, galhos e troncos.
Simultaneamente, os RSD incluem itens inorgânicos como plásticos,
vidros, papéis e metais.
Tal composição dos resíduos sólidos domiciliares, heterogênea e
complexa, inspirou, junto à literatura especializada, a identificação de
3
355
duas categorias básicas dos RSD, a saber: a fração inorgânica, seca
ou ainda reciclável e a fração orgânica, também conhecida como
úmida ou molhada. Além destas duas frações, há ainda os rejeitos,
que como veremos, refere-se a uma nominata técnica específica.
Sinteticamente, tais categorias podem ser descritas na forma
como segue:
➢
Fração inorgânica, seca ou reciclável: categoria composta pelos
metais (caso do cobre, do aço e do alumínio na forma de cabos
elétricos descartados, embalagens, peças, chapas e qualquer produto
metálico fora de uso); vidros (frascos, garrafas, cacos e fragmentos
em geral); papel e papelão (das modalidades mais variadas); e pelos
plásticos (dos mais diversos tipos). Acredita-se que este conjunto de
materiais represente aproximadamente 20% do total dos RSD;
➢
Fração orgânica, úmida ou molhada: categoria formada pela
matéria orgânica presente no lixo urbano, incluindo restos de
alimentos, talos, cascas, palha, grãos recusados, filtro de papel para
café, da poda de jardim e assim por diante. No Brasil, estima-se que a
fração úmida represente entre 50% e 60% da massa do lixo;
➢
Rejeitos: categoria que abrange itens e substâncias que não
pertencem às duas frações anteriores. Nesta estão presentes o papel
higiênico, papel de fax, fraldas descartáveis, absorventes higiênicos,
jornais e revistas sujos de gordura, o isopor, o celofane, cerâmicas,
espelhos, cristais quebrados, fotografias, cinzas, tocos de cigarro, etc.
Estima-se que no país, os rejeitos representem cerca de 30% do perfil
dos lixos.
3
356
Saliente-se que a definição de rejeito solicita muita cautela,
repudiando conotações genéricas e aleatórias, pois com o avanço
das tecnologias de reciclagem, materiais anteriormente desprezados
tornam-se dignos das atenções da indústria recicladora.
Ajusta-se a este parecer a embalagem tetrapak, cuja participação
no montante dos rebotalhos tem expandido ano a ano. Observe-se
que até os anos 1980, esta embalagem era carimbada como nãoreciclável. Entretanto, constitui atualmente uma prestigiada fonte de
plástico, alumínio e de itens celulósicos recuperados por métodos de
reciclagem com base na:
na hidratação das mesmas, por equipamento apropriado,
ocorrendo a separação das fibras celulósicas, do plástico
com alumínio. As fibras celulósicas recuperadas são
utilizadas na fabricação de papel e o resíduo composto
por plástico com o alumínio é usado na fabricação de
peças plásticas (CEMPRE, 2000: 136).
No cômputo geral dos lixos, o portentoso volume dos RSD incitou
o surgimento de diversas propostas de gestão, que condizem a um
acúmulo de considerável de estudos sobre a temática.
Consensualmente, as proposições quanto à destinação final dos
RSD, todas implicando em recortes de interesse para o meio urbano
e as águas doces, estão apoiadas em três linhas básicas de políticas
públicas para os refugos urbanos: as usinas de compostagem, os
incineradores e os aterros.
Nas usinas de compostagem, a fração úmida dos rebotalhos é
transformada em composto orgânico. O processo de transformação
3
357
dos refugos orgânicos em composto é assaz antigo, constituindo uma
prática tradicional nas coletividades agrícolas em todo o mundo e em
todas as épocas. O composto orgânico, definido pelo linguajar comum
como “adubo”, é acima de tudo um revitalizador ou um condicionador
dos solos. Na realidade, o composto é deste modo classificado
...pelo fato de sua matéria orgânica humificada estar em
maior proporção e que corresponde a cerca de 40 a 70%.
No entanto, além do efeito condicionador ou melhorador
do solo, o composto é também classificado como um
fertilizante de baixa concentração em nutrientes, razão
pela qual, são sempre empregadas doses elevadas,
geralmente acima de 10 toneladas por hectare
(SCHALCH, LEITE et GOMES, 1990: 87).
A qualidade do composto produzido nestas usinas possui relação
direta com o rigor da segregação dos itens inorgânicos. Fato óbvio, a
presença maior ou menor de detritos procedentes da fração seca,
repercute no perfil final e na ação biológica do produto compostado.
É importante recordar quando bem orientada e monitorada, a
compostagem pode ser implantada nos quintais das residências,
jardins públicos, em hortas comunitárias e equipamentos urbanos,
promovendo sensível melhora dos cultivos, e para mais, minimizando
os impactos do descarte in natura dos lixos (GRIMBERG, 2002).
A implantação dos incineradores tem sido proposta por diversas
indicações técnicas, exaltando particularmente a redução do volume e
da massa dos RSD como seu principal benefício. Mais recentemente,
uma nova geração de incineradores (Waste to Energy, WTE) opera
com base no reaproveitamento energético, isto é, utiliza-se a energia
3
358
liberada pela queima dos refugos para a produção de vapor e de
eletricidade, que dependendo do porte da usina, pode ser apreciável.
O processamento de materiais de alto risco, caso em particular
dos resíduos especiais, tem sido costumeiramente endereçada para
as fornalhas dos incineradores
65.
Quanto às cinzas finais resultantes
da queima, em tese inócuas, estas são encaminhadas para aterros ou
reintroduzidas em ciclos produtivos como o do cimento.
Entrementes, num ajuizado ambiental, as usinas de incineração
tem sido culpabilizadas pela emissão de compostos tóxicos presentes
nas cinzas e por uma ponderável carga de emissões de furanos e
dioxinas, substâncias repetidamente denunciadas como altamente
tóxicas e lesivas à saúde humana e ao meio ambiente, prejudicando
em especial, a população residente no entorno destas instalações.
No rol de inconvenientes, há que ser arrolada a desvalorização
imobiliária, a insatisfação dos habitantes das redondezas, o incômodo
dos odores, a poluição visual, o elevado custo destes equipamentos
(pagos com os impostos dos contribuintes) e a dilapidação em larga
escala de recicláveis.
Last, but definitely not least, tem-se a contaminação dos recursos
hídricos por conta das emissões gasosas e das cargas difusas, que
alcançam espaços situados a jusante dos incineradores. Não admira
então que as normatizações estejam cada vez mais rigorosas em
relação a construção e operação dos incineradores (Cf. CALDERONI,
2003: 133/134; SCHALCH, LEITE et GOMES, 1990: 1).
65
A respeito, consultar SCHALCH, ANDRADE, et GAUSZER, 1995, assim como
SCHALCH, LEITE et GOMES, 1990: 212 e seguintes.
3
359
Nesta senda, os impactos acarretados pelos incineradores têm
motivado diversas críticas por parte dos ecologistas e da área técnica,
objeções subsidiadas por compilações científicas que de longa data,
refutam estes equipamentos como apropriados para o tratamento de
dos refugos, qualquer tipologia que seja (Vide GREENPEACE, 1991).
Por sinal, inclusive no corpus da comunidade médica, não existe
consenso no sentido de aprovar a operação dos incineradores como
opção de excelência na gestão do lixo hospitalar. A incineração pode,
em contextos específicos, até constituir pontualmente uma alternativa,
“embora não necessariamente um ótimo meio de destruição para
todos os resíduos clínicos” (NABHAN, 1986: 2).
A rigor, experiências de monitoramento dos refugos hospitalares,
embora atravessadas por polêmicas acirradas, contestam a opção da
incineração como solução adequada, única e exclusiva.
Em Vitória (ES), durante a gestão do prefeito Victor Buaiz (19891992), aliás, médico de profissão, a administração municipal levou a
cabo uma programação considerada radical, excluindo a utilização de
incineradores como destinação final para os resíduos hospitalares,
medida respaldada por amplo leque de considerandos médicos e
sanitários
66,
colocando em xeque metodologias de monitoramento e
noções estereotipadas tradicionalmente imputadas aos resíduos dos
serviços de saúde, que verdade seja dita, beneficiavam os consórcios
privados de incineração do lixo hospitalar (Figura 14).
Observe-se que “a maior parte dos resíduos produzidos em um hospital não oferece
maiores perigos que os associados aos resíduos municipais comuns” (MONREAL, 1992:
2). Ademais, as opções pela reutilização e reciclagem não podem ser esquecidas (Ver
entre outros, SALOMÃO et alli, 2004 e KARG JÚNIOR, 1991).
66
3
360
FIGURA 14 - O Fantasma da Incineração, Mito ou Realidade? Foi com
este enfoque que a campanha de esclarecimento da Prefeitura
Municipal de Vitória, enfocou a questão do lixo hospitalar, consignada
no folheto de campanha reproduzido acima (Fonte: Secretaria do Meio
Ambiente da Prefeitura Municipal de Vitória, 1991)
3
361
No Brasil, nos contextos nos quais as municipalidades dispõem
de serviços de coleta, os aterros constituem a modalidade de gestão
corrente. Os aterros constituem uma releitura da prática ancestral de
enterrar restos, constante nas comunidades camponesas tradicionais
e em tradições culturais e religiosas na maioria dos povos
67.
Diferenciados em comuns, controlados ou sanitários, os aterros,
na dependência da sua especificidade, inserem desdobramentos
técnicos, sociais e ambientais muito diferentes entre si. Destas três
categorias, os mais encontrados nos municípios brasileiros são os
aterros comuns, nominados como sumidouros, vazadouros, lixeiras,
ou como é mais frequente, de lixões.
Caberia, no entanto, advertir que na fala popular toda instalação
ou sítio destinado a recepcionar rebotalhos termina impropriamente
rotulado como lixão, termo que na condição de estigma, recai sobre
toda sorte de equipamentos: incineradores, aterros sanitários, usinas
de compostagem, bota-fora, e até mesmo, contêineres de recicláveis.
Este equívoco é infelizmente reforçado pelos jornais, e pelo noticiário
de rádio e televisão, que usualmente empregam esta terminologia de
um modo totalmente improcedente, confusão que deve ser evitada a
todo custo (CALDERONI, 2003: 118).
Reconhecidamente prejudiciais ao meio ambiente e à população,
os aterros comuns correspondem ao despejo direto dos descartes,
independentemente de sua taxonomia, para locais que não foram
merecedores de nenhum estudo prévio do ponto de vista geotécnico,
Podemos ler no Antigo Testamento: “Fora do acampamento, terás lugar onde te possas
retirar para as necessidades. Tu levarás no equipamento uma pá para fazer as
necessidades. Antes de voltar, cobrirás os excrementos” (Deuteronômio 23: 13-14).
67
3
362
procedimento que se acorre ignorando medidas de acompanhamento
e de mitigação dos impactos negativos, quaisquer que sejam.
Como confirma a própria definição da ABNT, o lixão consiste na
descarga de rebotalhos in natura a céu aberto, isenta de quaisquer
predicativos técnicos, sanitários ou ambientais (Vide NBR-1073/89). A
despeito dos malefícios inerentes a esta prática, estimativas apontam
para o número de 12.000 lixões em funcionamento, espalhados por
praticamente todo o território nacional (JURAS, 2000: 4).
Nas palavras do geógrafo Pompeu Figueiredo de CARVALHO,
concorre para esta onipresença dos lixões, a conduta omissiva das
autoridades, pois são “promovidos e permitidos pelas administrações
municipais, além dos depósitos ditos clandestinos, às vezes acusados
pela ineficácia dos serviços de coleta” (2003: 29).
Notadamente, estes espaços constituem origem de funesta série
de impactos negativos para a sociedade e o ambiente na maioria dos
municípios: “muitos destes lixões estão em áreas alagadiças ou nas
fronteiras d’água. É comum o uso de nascentes, ampliadas em vagas
recessivas de erosão, causadas pela urbanização, como solução para
os entulhos” (CARVALHO, 2003: 29).
Mas, estes problemas não constituem exclusividade dos “lixões”,
sendo também constatados nos assim chamados aterros controlados.
Considerados uma “versão melhorada” da prática anterior, o único
ponto a diferenciá-los dos lixões é que os descartes recebem uma
cobertura diária de material inerte, no geral entulho ou solo retirado
das proximidades.
3
363
Mas, esta medida não estanca o vazamento do chorume, nem do
metano. Da mesma forma que nos aterros comuns, o chorume infiltrase no solo ou então, escoa diretamente para os corpos líquidos. Outra
consideração cabível é a questão das emissões de metano, gerado
pela decomposição dos resíduos. Gás inflamável e passível, quando
em concentração entre 5 e 15% no ar, de combustão espontânea, o
metano constitui um emérito agente do efeito estufa, que no mínimo,
é cerca de vinte vezes mais potente que o CO². Em resumo, os lixões
e os aterros controlados, não dão conta de nenhum dos problemas
ambientais gerados pelos lixos.
Circa merita, os aterros sanitários, mesmo não constituindo uma
solução ideal, ao menos perfazem uma metodologia menos nociva do
que as duas anteriores. Fundamentados em critérios de engenharia e
contando com amplo cabedal de pré-condições técnicas, ao menos
em princípio, nos aterros sanitários os lixos permanecem confinados
de modo seguro, assegurando-se a proteção do meio ambiente. Ao
final da vida útil do equipamento, estando estabilizados os processos
de decomposição da matéria orgânica e finalizada a acomodação das
camadas de terra e dos recalques, as áreas destinadas aos aterros
podem atender outros usos, recepcionando equipamentos urbanos.
Recorde-se que a implantação dos aterros sanitários requer a
realização prévia de Estudos de Impacto Ambiental (EIA), objetivando
avaliar as características geotécnicas da área, prevendo igualmente a
proteção do subsolo e o controle das emissões do gás metano e da
infiltração do chorume (Quanto à drenagem de gases e percolados,
consulte-se CEMPRE, 2000: 284/285; SCHALCH, LEITE et GOMES,
1990: 81/85).
3
364
Contudo, é importante refletir que os aterros sanitários, por mais
bem administrados que sejam, integram um pacote de medidas, não
excluindo de modo algum, a utilização de tecnologias coadjuvantes
ou métodos de disposição final. Para as grandes cidades,
...é necessário, não mais apenas um aterro sanitário bem
planejado, bem projetado e bem localizado. Não se pode
prescindir da coleta seletiva para aumentar a vida útil dos
aterros. É necessário também incorporar as usinas de
tratamento e beneficiamento de lixo, incluindo os diversos
componentes, destacando a compostagem orgânica e a
reciclagem dos entulhos, em grande parte oriundos da
construção civil. Somente assim os cursos d’água
poderão deixar de ser repositório do lixo urbano
(CARVALHO, 2003: 29).
Finalmente, advirta-se que apesar do rigor técnico sugerido pelo
modelo, os aterros sanitários incorporam diversos questionamentos,
como a utilização de vastas áreas de terreno, além de implicarem em
custos milionários para encarcerar matéria prima, um contrassenso
manifesto.
Categorizados, numa sistematização geológica como “depósitos
tectogênicos construídos”, os aterros podem acarretar situações de
acidentes potenciais, como escorregamentos, escapes de metano e
chorume, recalques, trincamentos e rupturas estruturais (PELOGGIA,
1998: 129/136). Além do mais, este equipamento, estando sujeito a
falhas operacionais, pode igualmente promover acidentes ambientais
como o transbordamento e infiltração de lixiviado nos solos e nas
águas e o escapamento de gases.
3
365
Restaria, por conta do que foi colocado, reservar comentários
mais substantivos para a otimização e reaproveitamento dos itens
descartados, discernimento nos conduz diretamente para a seara da
coleta seletiva de lixo, procedimento pleiteado como sendo o aresto
mais adequado para o tratamento dos resíduos sólidos.
Esta forma de gestão, proposta inserida num debate bem mais
amplo, é que estará em debate nos próximos parágrafos.
7.4. REPENSANDO OS RESÍDUOS SÓLIDOS DOMICILIARES
O volume e os impactos gerados pelo lixo na sociedade moderna
originaram uma série de especulações por parte dos especialistas em
resíduos sólidos.
Neste toque, a conotação técnica do que é entendido como lixo
terminou colocada em questão. Conforme foi observado, os refugos
incorporam um prontuário de estereotipias
68
negativas, permitindo
evocar nesta discussão, ponderações de ordem cultural, histórica,
social e ambiental.
Assinale-se que em princípio, não estaria reservado ao termo lixo
um sentido a priori adjetivado. Etimologicamente, a palavra tem
origem na língua latina, aparentemente decorrendo de lix, significando
cinza ou lixívia. A lix associa-se o verbo lixare, reportando a polir,
O termo estereotipia procede do grego estéreo, que significa sólido. A estereotipia
corresponde ao um contexto psicológico e afetações imaginárias pelas quais, a repetição
constante de um conceito engendra sua materialidade social, isto é, sua integração ao
mundo concreto.
68
3
366
desbastar, arrancar o excedente. Assim, uma vez retirado o supérfluo,
impõe-se definir o destino do resíduo, isto é, do lixo.
A partir desta noção, paulatinamente lixo passou a estar ligado ao
universo semântico de sujeira, daquilo que não presta e que jogamos
fora. Esta conceituação transparece na curiosa expressão estar se
lixando para algo ou alguém, peculiar do português do Brasil. Em
outras palavras, reserva-se aos que estão em dissintonia com um
dado grupo social, o que não se deseja ou não faz falta a ninguém.
De qualquer modo, registros históricos revelam uma convivência
rotineira de diversas sociedades do passado com o lixo. Nos Séculos
XV e XVI, aos tempos do filósofo Erasmo de Roterdam, as cidades
europeias,
...não possuindo as casas esgotos, nem existindo o
serviço de lixo ou limpeza pública, as imundícies eram, à
noite, atiradas nas ruas, sendo impossível dar-se um
passo sem encontrar algo muito desagradável (LINS,
1967: 72).
Ademais, veredictos apontando a ausência de serviços de coleta
no mundo moderno, neste incluindo as cidades europeias nascidas
com o advento da modernidade, poderia ser subscrito com certa
tranquilidade (PONTING, 1995: 562/564).
Evidentemente, é possível identificar no antigo mundo tradicional,
definições desqualificantes relacionadas com os lixos. Nesta ordem
de considerações, recorde-se que a palavra hebraica para inferno,
גגי ב ִנ, gehena em grego, termo derivado do hebraico),
gehinom (ֶן־הנם
3
367
refere-se a um vale próximo de Jerusalém (Hinnom), no qual restos e
impurezas eram acumuladas e queimadas (Cf. BEREZIN, 1995: 72).
Todavia, isto de modo algum significa que o mundo da tradição
esposasse uma visão totalizante presumindo os rebotalhos como
materiais imprestáveis ou poluentes, até porque, a percepção do que
pode ou não integrar o mundo das substâncias com as quais se
admite algum tipo de convivência, não encontra fundamentação tão
só em apreciações objetivas, mas de igual modo, em entonações de
mote cultural.
Não fosse assim, divergências quanto à proximidade socialmente
permitida para com o que seria considerado nefasto ou impróprio de
convívio com os humanos, uma acepção que se estende dos mais
prosaicos atos culinários até os dejetos animais e humanos, seria
inexistente. A título de exemplo, note-se que em muitas civilizações
antigas, as fezes humanas eram utilizadas na agricultura
69,
e além
do mais, no extremo oriente, tal como expressamente colocado por
doutrinas religiosas como o Budismo, a matéria fecal é considerada
como associada aos ciclos da vida, e neste senso, seria portanto, um
recurso e não um refugo, legitimando o uso frequente das dejeções
como fertilizante (Ver a respeito, WARNER, 2000: 38).
Do modo como se pretende calçar este texto, as transformações
que se processaram na forma como a sociedade contemporânea (ou
ao menos parte desta), passou a perceber tanto a geração, quanto o
gerenciamento do lixo, constitui um aspecto primordial. Neste plano
A palavra fezes não evoca por si, um significado negativo. Geneticamente oriunda do
latim faex, significando lama ou sedimento, etimologicamente discrimina um ente isento
de adjetivação negativa.
69
3
368
de discussões, estas se inscrevem enquanto condição sine qua non
para a consolidação de novos ordenamentos teóricos, que passaram
a impregnar o corpo conceitual e as prioridades concretas suscitadas
pelo conhecimento científico dos resíduos sólidos. Justamente esta
evidência, é que permite entender o motivo de debates como os que
perpassam, por exemplo, sobre as implicações de palavras como lixo
e resíduo.
Quanto a este ponto, qualquer sinopse revelaria que no dia a dia,
ambos os termos são utilizados indistintamente. Porém, esta atitude
tem observado mudanças graduais. De tal sorte, embora nada obste
a menção coloquial ou utilização eventual da palavra lixo, um claro
elemento motivador para a opção pela terminologia resíduos sólidos
reside no fato de que este termo, contrariamente à palavra lixo, exclui
adjetivações negativas. No geral, considera-se que resíduos sólidos
conformam uma expressão muito mais adequada para o contexto das
novas estratégias de relacionamento com os bens materiais e o seu
descarte, e concretamente, a terminologia goza de clara preferência
nos círculos de especialistas, que evitam a utilização da expressão
lixo.
A conceituação de resíduos sólidos, além de preferível em função
de borrar reincidentes estereótipos culturais que rondam o “lixo”, é
mais apropriada para temário como, por exemplo, a reciclagem. É um
bom alvitre recordar que o trato dos resíduos domésticos, em face da
presença de metais, plásticos, vidros, papéis e de significativa matéria
orgânica, habilita a aplicação da recuperação em larga escala. Mas
não só neste caso.
3
369
Vários itens dos rebotalhos industriais, dos resíduos inertes e
mesmo de alguns que integram a categoria dos resíduos especiais,
também poderiam ser reciclados, pelo que, respeitável proporção de
matérias até poucas décadas atrás sentenciadas como “inúteis”, são
agora objeto de releitura técnica e conceitual pelas redes produtivas.
Nesta linha de argumentação, a cultura do lixo deveria desaparecer
para ceder lugar à cultura dos resíduos sólidos, insumos dignos de
reaproveitamento (DIAS, 2002a: 75).
Um ponto marcante é que as interpelações mais contemporâneas
sobre os refugos centram suas atenções muito mais na geração dos
resíduos do que no lixo em si mesmo. Em outras palavras, busca-se
focar a questão da gestão dos descartes antes e não depois da lata
de lixo. Desvendando singularidades técnicas, sociais, econômicas,
políticas e culturais que induzem a ejeção de materiais, tais linhas de
ação subsidiam estratégias de diminuição e otimização do uso dos
recursos naturais, diferindo dos enfoques clássicos, que priorizavam o
gerenciamento dos itens já descartados. Nesta ótica, a gestão dos
rebotalhos seria sumamente uma questão de procedimento, e não de
investimento.
Foi a preocupação com a diminuição da produção dos resíduos e
a minimização do descarte que justificou a receptividade, a partir dos
anos 1980, da proposição dos chamados três “Rs”, abreviatura que
corresponde em igual número de posturas iniciadas com a letra “R”.
Estas atendem ao R de Reduzir, R de Reutilizar e R de Reciclar. Nos
últimos anos, agregou-se um quarto R, o de Repensar, instado ao
primeiro posto da sequência.
3
370
Assinale-se que os quatro “Rs” formam uma sucessão que acata
uma hierarquia de posturas, iniciando-se com a revisão do modelo de
vida existente (Repensar), seguido, na ordem de disposição, dos
demais trâmites. É importante registrar que esta metodologia, embora
conquistando aceitação em especial entre os especialistas em RSD,
não exclui aplicabilidade para as demais categorias dos rebotalhos e
tampouco, quanto a temáticas como a água e a energia.
Das quatro atitudes citadas, a que conquistou maior notoriedade
social foi indiscutivelmente a reciclagem. O afazer reciclador esteariase no resultado “de uma série de atividades, pela qual os materiais
que se tornariam lixo, ou estão no lixo, são desviados, coletados,
separados e processados para serem usados como matéria-prima na
manufatura de novos produtos” (CEMPRE, 2000: 81).
Por consequência, do ponto de vista do reaproveitamento dos
recursos, lixo propriamente não existe, que seria apenas a coisa certa
colocada no lugar errado. A reciclagem, cabe ressalvar, transformouse numa atividade empresarial de grande porte, mobilizando grande
estofo de recursos financeiros e dotada de formidável engenharia de
processamento e circuitos econômicos que consolidam sua atuação,
em especial nas metrópoles (Vide LEGASPE, 1996: 123/160).
A popularidade granjeada pela recuperação de materiais é em
boa parte, resultante da intensa pregação ambientalista em favor da
CSL. De fato, a reciclagem de itens descartados implica em menor
ônus para o meio ambiente, economia de energia e preservação dos
recursos naturais, preservando o ambiente de vida das sociedades.
3
371
Não seria demasiado repetir, o custo dos serviços de limpeza é
alto e extremamente oneroso para a sociedade, ônus que pode ser
minimizado pela diminuição do volume de lixos a serem retirados das
ruas. Ademais, o reaproveitamento diminui a quantidade de detritos
destinadas aos aterros, ampliando sua vida útil e evitando a ocupação
de novas áreas para esta finalidade, aliás, cada vez mais exíguas nas
regiões urbanizadas (Vide CALDERONI, 2003; GRIMBERG, 2002 e
CEMPRE, 2000: 79/86).
Igualmente mereceria destaque a atuação dos trabalhadores da
catação, que nas últimas décadas tornaram-se parte do panorama
urbano das cidades do país. Os catadores, num parecer sintético,
...são profissionais que não tem carteira assinada, são
mal reconhecidos, estão desorganizados na quase
totalidade das cidades nas quais atuam e, no entanto,
alimentam poderosos setores industriais com matériaprima barata, aliviando os custos da limpeza pública com
cada tonelada de materiais que retiram das ruas
(WALDMAN et SCHNEIDER, 2000: 124).
A categoria, conhecida com o concurso de várias denominações,
tais como garrafeiro, carrinheiro, aparista e sucateiro
70,
mobiliza nos
dias atuais aproximadamente 300.000 pessoas em todo o país. Este
contingente, encorpado por crises econômicas consecutivas, tem por
teatro preferencial as áreas urbanas, em especial as mais populosas.
A visibilidade da categoria no cenário urbano tornou-se expressiva na
última década, resultando na formação de cooperativas de reciclagem
e na consolidação de um movimento nacional de catadores.
Note-se que estes vocábulos, a despeito de serem equalizados como sinônimos, são
relacionados a atividades específicas: carrinheiro é quem retira os resíduos das ruas e
das residências, sucateiro e aparista, quem armazena e vende.
70
3
372
Observe-se que a catação de materiais recicláveis passou a ser,
em diversos contextos, uma das únicas alternativas disponíveis de
geração de renda para os grupos excluídos. Neste senso, a irrupção
dos movimentos de catadores não se restringe enquanto evidência
objetiva das potencialidades inerentes à reciclagem, mas igualmente,
das formas que a população excluída tem encontrado para afirmar
sua sobrevivência e porque não, sua identidade enquanto cidadão
71.
Um aspecto bastante pertinente é que a reciclagem pressupõe,
dado entrelaçar-se com as práticas do cotidiano, um vínculo real com
a conservação da natureza. O exercício da reciclagem pode constituir
ato de conscientização ecológica, pelo que iniciativas norteadas pela
recuperação dos materiais inserem claro pendor pedagógico, sendo
facilmente ajustáveis aos programas de educação ambiental.
Animando finalidades ambientalmente corretas nas ações do
cotidiano urbano, o conjunto dos cidadãos pode deste modo, tomar
consciência de questões mais complexas, posicionando-se de modo
construtivo e participante na realidade em que vive.
Mas, o entusiasmo pela reciclagem não permite ignorar reparos
técnicos, sociais, econômicos e políticos, recomendação que corre no
sentido de sugerir que o protagonismo da reciclagem nas estratégias
de conservação da natureza e do gerenciamento dos resíduos, assim
como o seu lugar nos programas de preservação das águas doces,
solicitam maior detalhamento.
A psicóloga Marina DURAN, apreciando sobre a necessidade de reconhecimento de
inserção destes trabalhadores na coletividade cidadã, argutamente salienta que no
itinerário diário dos catadores pelas grandes cidades, “além de um cachorro que os
acompanha, não é raro encontrar uma bandeirinha do Brasil arranjada em algum lugar da
carroça junto aos objetos recolhidos” (2005: 188).
71
3
373
Caberia aqui a admoestação de que propugnar a reciclagem de
modo acrítico, pode suscitar equívocos, dos quais não se dissociam
enredamentos de cunho ideológico. Tal como sentenciou o geógrafo
Luciano LEGASPE, “não podemos cair no erro de enfocar o lixo e a
indústria da reciclagem sem manipularmos o arsenal publicitário que
subsidia todo o comércio atrelado à indústria” (1996: 123).
Nos últimos anos, os avanços da chamada “conscientização
ecológica” em setores do empresariado pouco teriam a ver com a
preocupação pelo equilíbrio ambiental. Basicamente, a adoção de
políticas de preservação por parte das empresas obedece tanto a
pressões utilitárias, da sociedade e do mercado internacional, quanto
a estratégias de puro marketing. Na argumentação da socióloga e
economista Raquel da Silva PEREIRA,
...as bandeiras ecológicas levantadas por empresas
agregam simpatia às que se apoiam no marketing
ecológico para atribuir força as suas marcas e à sua
imagem institucional. No Brasil, o mercado potencial para
produtos com apelo ecológico está em grande
crescimento (2002: 66).
Deste modo, note-se que a reciclagem, além de não se contrapor
à dinâmica geral do sistema de produção de mercadorias, contribui,
pelo contrário, para reproduzi-lo num outro patamar, inserindo agora
uma logicidade “sustentável” e “ecológica”, quando não, emprestando
funcionalidade ao que vozes críticas categorizam como capitalismo
verde ou então, eco-capitalismo.
Por isso mesmo, a forte expansão da reciclagem a partir das
últimas décadas do século passado, nada mais expressaria do que a
3
374
confirmação do veredicto pelo qual esta, se harmoniza a funções
metafóricas, condizentes a uma “fantasia do eco-capitalismo”, sendo
ao mesmo tempo, eficaz e necessária para a legitimação objetiva do
sistema econômico em curso (LEGASPE, 1996).
Pois então, caberia primeiramente certificar a abrangência e as
potencialidades do aproveitamento dos materiais. Recorde-se que no
geral, a reciclagem está praticamente centrada em cinco itens básicos
da fração seca: vidros, papéis, plásticos, aço e alumínio.
O fato de vigorar clara valorização destes componentes da fração
inorgânica decorre, em última análise, destas sucatas incorporarem
maior valor agregado. Seria exatamente esta, a nuança que licencia
estes itens para serem prioritariamente inseridos nos circuitos da
reciclagem, atividade com manifesta expressão empresarial. Destarte,
a partir de clarividente sentença emanada do mundo empresarial,
podemos conferir:
Deve ficar claro que a possibilidade de reciclar materiais
só existe se houver demanda por produtos gerados pelo
processamento destes [...] A análise do mercado de
recicláveis, principalmente da região, ditará quais os
produtos do lixo que poderão ser reciclados
industrialmente (CEMPRE, 2000: 81).
Deste modo, a fundamentação que justificaria a classificação dos
RSD em fração inorgânica, orgânica e em rejeitos, das quais somente
a primeira destas (a fração seca) é rubricada como reciclável, reclama
apontamentos adicionais, a começar pela sinonímia que iguala fração
seca com reciclagem, prédica que induz a um claro, porém coerente,
reducionismo conceitual.
3
375
Atente-se de que o termo reciclagem implica na retomada de um
ciclo, tornando o conceito aplicável para diversos contextos. Neste
particular, a fração orgânica do lixo domiciliar, ao ser formada por
substâncias que podem retornar à natureza através da compostagem,
seria merecedora de inclusão na categoria dos recicláveis, interesse
ou não esta atividade para as plantas ou para o mercado reciclador.
Entretanto, o que de fato interessa ressalvar, além das críticas
cabíveis quanto aos intuitos não necessariamente “ambientalistas” da
indústria da reciclagem (o que não nega seus méritos em termos da
minimização da geração de resíduos e de integrar uma estratégia
geral de conservação da natureza), é que, na realidade, melhor do
que reciclar resíduos impõe-se com maior rigor a necessidade de
diminuir a geração de lixo.
Não por outra razão a reciclagem é a última das quatro atitudes
iniciadas com a letra “R”. Basta retomar a sucessão pela qual antes
de Reciclar, alinham-se Repensar, Reduzir e Reutilizar. Logo, apenas
antecedida destas três condutas é que Reciclar faria sentido.
Este na realidade constitui o aspecto fundamental para se pensar
a associação dos recursos hídricos com os resíduos sólidos. Como
vimos, os resíduos resultam do descarte de bens que implicaram em
considerável input hídrico para serem trazidos ao mundo. Além disso,
impactam o meio ambiente por intermédio das cargas difusas e pelo
descarte inadequado.
3
376
Logo, será na ótica do uso racional dos recursos, aqui entendido
numa ótica em que o repensar está priorizado, que o debate sobre os
recursos hídricos pode ser enfocado com mais clareza e intensidade.
Por isso mesmo, a fração úmida conquistaria relevo especial, até
porque, ao consumir naco substancial das águas doces, dificilmente
permite-se conceber uma política eficiente dos recursos hídricos sem
o concurso de analisá-la detalhadamente nas interfaces que sustenta
no cômputo geral o uso dos recursos do meio natural e da questão
ambiental. Enfoque que estará no cerne das próximas considerações.
7.5. RECURSOS HÍDRICOS, FRAÇÃO ORGÂNICA E RECICLAGEM
Costumeiramente, as pontuações associadas com a conservação
dos recursos hídricos fazem uso da imagem da torneira doméstica, da
mangueira, das goteiras ou do chuveiro, que advertem as campanhas
de contenção do desperdício, devem ser rigorosamente fiscalizadas
pelo cidadão.
Tais imagens, efusivamente transmitidas e retransmitidas pela
mídia, induzem à conclusão de que basta fechar as torneiras para se
solucionar a escassez da água, simples assim. Porém, trata-se de
medidas que estão distantes de garantir que a água permaneça ao
alcance dos humanos.
Na crítica a estes apelos, o Seminário Abastecimento de Água na
Macro-Região de São Paulo: Perspectivas a Curto, Médio e Longo
Prazo, promovido pela Associação Brasileira de Engenharia Sanitária
3
377
e Ambiental (ABES), realizado na capital paulista entre 20 e 21-112003), aquilatou em meio às suas resoluções finais, que “além dos
tradicionais apelos anuais à população para que economize (água),
algo mais concreto deve ser feito”
72.
Este sentenciamento, sugere que existem formas de desperdício
de água que a despeito de serem menos “cinematográficas”, nem por
isso poderiam estar ausentes das reflexões atinentes à resolução do
problema. Um argumento expressivo é que as lides da agropecuária
consomem em média 70% dos recursos hídricos mundiais.
Portanto, avaliar o desperdício de alimentos transforma-se num
dado importância capital. Já foi explicitado nos capítulos anteriores os
vínculos que interligam a produção alimentícia com os recursos
hídricos no referente à esfera da produção. Restaria, então, avaliar os
impactos provocados com os descartes.
Refletindo primeiramente com base na informação de que os
resíduos orgânicos representam, em média, algo como 60% do lixo
brasileiro, a metáfora da montanha de alimentos desperdiçados seria,
infelizmente, bem mais do que mero arroubo de oratória. Nesta linha
de compreensão, cumpriria preliminarmente refletir para os números
a seguir, coletados do informe O Desperdício em Números, publicado
pelo Boletim do Compromisso Empresarial para a Reciclagem
(CEMPRE) 73:
➢
O Ministério da Agricultura do Brasil estima que cerca de 14
bilhões de toneladas de alimentos são perdidos anualmente;
72
73
ABES Informa, edição de novembro/dezembro de 2003, página 10.
Edição nº. 39, maio/junho de 1998, página 3.
3
378
➢
Pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Análises Sociais e
Econômicas (IBASE), demonstra que os brasileiros desperdiçam uma
verdadeira fábula em frutas, verduras, legumes e outros alimentos
perecíveis. Percentualmente, as laranjas registram perdas entre 10%
a 15%; hortaliças e pimentões 30%; grãos, 31%; arroz, 21%; carne de
frango, 25%; tubérculos, 15,8%; leite, 75%;
➢
No caso das bananas, se contabilizando a perda na estocagem
e na exposição para a venda, o comércio varejista dispõe 1,66 kg do
produto para cada quilo vendido, que somado à perda de 20% na
produção, responde pelo incrível desperdício de praticamente 60% da
produção;
➢
Outros 20% de milho, soja e feijão estragam por falhas na
operação das máquinas agrícolas no armazenamento. Verifica-se o
apodrecimento dos grãos em razão de excesso de umidade ou por
estarem acondicionados em sacos e embalagens impróprias;
➢
Por falta de informação, os brasileiros descartam 20% de certos
alimentos, como cascas e folhas, de alto poder nutritivo;
➢
As embalagens mal projetadas são responsáveis por 30% das
indenizações de seguros no transporte rodoviário;
➢
Nos bares e restaurantes, os brasileiros deixam no prato 20%
da comida que solicitam.
Estas estatísticas estonteantes são ombreadas pela averiguação
de que o país desperdiça em torno de 14 milhões de toneladas de
3
379
alimentos por ano. Isto numa conjuntura na qual 44 milhões de
nacionais vivem abaixo da linha de pobreza e uma entre cada quatro
crianças é vulnerável a alimentação insuficiente (GRIMBERG, 2002).
De forma inequívoca, o tema do desperdício residencial e do lixo
culinário, torna-se questão de interesse obrigatório para o conjunto da
sociedade brasileira: governantes, partidos políticos, órgãos estatais,
cientistas e homens do povo em geral.
Os efeitos da ejeção dos refugos domésticos ampliam-se quando
se sabe que estes, no geral, não encontram destinação tecnicamente
correta, sendo na maior parte dos casos despejados no curso dos
flumes, lagos e córregos, ou então, seguindo para os lixões ou para
os aterros ditos controlados.
Consequentemente, o gigantesco volume de lixo culinário tornase um elemento adicional no ciclo de impactos infringidos às águas
doces. Grande parte da imensa massa de matéria orgânica dos RSD,
dispostos sem critério no ambiente e entrando em decomposição,
apadrinha a proliferação de vetores de inúmeras doenças, tais como
ratos, baratas, moscas e outros insetos.
Pior ainda, a degradação da fração orgânica do lixo constitui uma
prodigiosa fonte geradora de chorume, fluído também designado por
denominações como sumeiro (ou chumeiro), calda negra, lixiviado e
líquido percolado, constituindo, lado a lado com o plutônio e a dioxina,
uma das três substâncias mais nocivas para o meio ambiente jamais
catalogadas.
3
380
Resultante da decomposição da fração orgânica e agregando
variados elementos biologicamente comprometedores dos equilíbrios
ambientais, o chorume é um líquido residual escuro, ácido e com
elevada concentração de elementos orgânicos, possuindo reduzida
biodegradabilidade e alta DBO, entre 30 e 100, ou mesmo 200 vezes
maior do que a do esgoto urbano. Para completar, a calda negra é
rica em metais pesados 74.
O estudo da gênese e dos efeitos do chorume tem suscitado
sortidas tentativas de enquadramento conceitual. Nos últimos anos, a
literatura científica tem indexado o termo “lixiviado” para referir-se o
efluente. Transitando em inúmeros seminários e debates relacionados
com a questão dos resíduos sólidos, a nova terminologia tem por
pretensão uma reconfiguração etimológica de caráter mais científico
dos que as terminologias precedentes, ou seja, calda negra, chorume
e percolado.
Num prisma técnico, o termo percolado destaca o processo de
lavagem dos detritos desovados nos aterros, em vista de que o
líquido apresenta diversificado leque de substâncias, todas originárias
dos processos aquosos de circulação na massa do lixo, assimilando
partículas e exsudações das frações orgânica e inorgânica.
Porém, seja qual for a denominação que se venha a utilizar, o
chorume é, para sintetizar, uma substância perigosamente poluidora,
à qual cabe elevada responsabilidade pela contaminação do solo,
tornando-o estéril e inútil para a agropecuária e o assento humano.
Informações técnicas mais pormenorizadas sobre o chorume estão disponíveis in
CEMPRE 2000: 295/312.
74
3
381
Outro óbice notório deste efluente são os corpos líquidos. A
imprensa tem noticiado ocorrências repetidas de reservatórios de
água potável transformados na foz dos fluxos incessantes de
percolado, com graves consequências para o abastecimento público.
Complicando este cenário, a infiltração do chorume alcança os
aquíferos, comprometendo de modo irremediável a qualidade da água
subterrânea (OLIVEIRA e PASCAL, 2004). Esta seria, aliás, uma das
ameaças que podem afetar o imenso aquífero Guarani. Ao que tudo
indica, este reservatório foi contaminado em vários pontos por plumas
de lixiviado, afetando um patrimônio hidrológico de inquestionável
importância para o conjunto da sociedade nacional (UNPP/BR, 2000
e também MISLEH, 2005).
Podemos nestes marcos subscritar que a questão da produção
de alimentos e dos recursos hídricos se entrelaça, amiúde, com a do
gerenciamento dos resíduos sólidos, e arrematando, numa variada
oferta de sequelas perversas. É o que ocorre nos grandes centros
urbanos, concretamente responsáveis pela geração da fração mais
embaraçosa dos resíduos, o que explica o incômodo dos gestores
urbanos em solucionar ou, pelo menos, minimizar os óbices gerados
pela fração orgânica do lixo.
Além de medidas objetivando maior eficiência no aproveitamento
dos alimentos, recomendando a revisão de hábitos e valores culturais
quanto às verduras, talos, folhas, raízes, sementes, cascas de frutas
e de ovos, sobras com potencial para serem plenamente utilizados e
de resto, garantindo alimentação mais saudável e nutritiva, as opções
mais conhecidas reportariam à prática da compostagem.
3
382
Processos ditos domésticos ou mesmo artesanais, capacitados a
transformar a fração orgânica do lixo culinário em recompositor de
solos, podem ser acordados mais uma vez. Estando ao alcance do
cidadão comum e de qualquer funcionário de limpeza, estes métodos
podem ser aplicados em áreas como parques, canteiros e recantos
ajardinados, requerendo basicamente uma pauta de orientação e
muito pouco, ou nada, do numerário público.
No plano das ações governamentais, as usinas de compostagem
constituem instalações cujo histórico, perfilando desempenhos bemsucedidos na gestão do lixo orgânico, justifica que sejam lembradas
como opção a ser pautada pelas administrações municipais.
Do ponto de vista técnico, tais instalações nada mais são do que
uma tradução contemporânea de práticas ancestrais constatadas nas
concepções rurais mais longínquas, e nem por isso, menos eficientes.
Para ser transformado em composto, o RSD é previamente triado em
esteiras móveis (que podem incluir sistemas de eletroímãs), visando
segregar os itens da fração seca (posteriormente vendidos para as
indústrias de reciclagem), dos resíduos orgânicos.
A seguir, esta massa orgânica é encaminhada para biodigestores,
nos quais, a ação dos microrganismos, catalisada por movimentos
mecânicos rotatórios, resulta em composto orgânico, posteriormente
recepcionado por uma rede de produtores rurais e administrações
municipais (SCHALCH, LEITE et GOMES, 1990: 87/121).
Todavia, as usinas de compostagem podem apresentar certo
número de entraves funcionais, desde os relacionados ao sítio (Figura
3
383
15) e administração gerencial destas instalações, até os aspectos
relativos à qualidade do produto obtido, nem sempre satisfatório.
Num plano logístico, o fato dos resíduos serem encaminhados
sem prévia segregação para as usinas, faz com que nem sempre a
seleção seja eficiente. Como resultância, o composto pode apresentar
fragmentos de cacos de vidro, metais, plásticos e pequenos objetos.
FIGURA 15 - Vista da Usina de Compostagem de São Mateus, na capital paulista:
(1) Biodigestores rotativos modelo Dano, desenvolvido nos anos 1950. Este
sistema opera com base em cilindros levemente inclinados de rotação lenta, no
interior dos quais a fração úmida é introduzida. (2) Galpão de cura do material
retirado dos biodigestores, onde o composto é estabilizado. Localizada no interior
de uma área de preservação ambiental na zona leste da capital paulista (a APA da
Mata do Carmo), a usina foi desativada na gestão da prefeita Marta Vasconcellos
Suplicy (2001/2004), e atualmente a área abriga um projeto de educação ambiental
(Foto: Hemeroteca do LIMPURB, 2000)
Além disso, constatam-se intercorrências derivadas da presença
de metais pesados e resíduos contaminados, sequelas do descarte
de frascos de remédios, lâmpadas fluorescentes, pilhas e baterias no
lixo doméstico, procedimentos acintosamente inadequados, que por
sinal, solicitam formas específicas de tratamento e destinação final.
3
384
Um complicador adicional advém da governança administrativa
das usinas. Constituindo uma instalação de cunho estruturalmente
industrial, a capacitação gerencial e a qualificação do corpo técnico,
lado a lado com manutenção constante do equipamento, obviamente
faz toda a diferença quanto às características do composto.
Paralelamente às usinas de compostagem, outra solução residiria
no encaminhamento dos rebotalhos para os aterros sanitários. Foi
observado anteriormente, esta modalidade de destinação final do lixo,
é um modelo fundamentado em critérios de engenharia e normas
operacionais específicas, permitindo uma confinação em tese segura
em termos de controle da poluição ambiental e proteção ao meio
ambiente.
Ao menos em princípio, num aterro sanitário o chorume é contido
por sistemas de impermeabilização, coletado por meio de drenagem e
encaminhado para lagoas de estabilização, evitando a contaminação
do solo e dos lençóis freáticos. Além do monitoramento dos efluentes
líquidos (chorume), realiza-se o acompanhamento e o controle da
difusão dos efluentes gasosos, em especial do metano.
No entanto, a realidade, em muitas situações, desmente estes
pressupostos. Os aterros sanitários solicitam gerenciamento técnico
sério, competente e contínuo, indicativos que não necessariamente
possuem, em virtude inclusive da labilidade da jactanciosa “função
pública” do Estado brasileiro, solução de continuidade na vida política
e administrativa
75
75.
Relativamente à situação dos aterros no Estado de São Paulo, consultar o documento
Inventário dos Resíduos Sólidos 2002 (CETESB, 2002).
3
385
Independentemente da proficiência da gestão, os problemas
ficam agravados pela própria dificuldade de monitorar a persistente
proliferação do lixiviado. Assim, a migração da calda negra para o
entorno do aterro, afetando águas superficiais e subterrâneas em
razão da governança deficiente, é uma possibilidade real, sinistro que
se verifica inclusive nos aterros tecnicamente bem gerenciados.
Além do mais, não se deve esquecer que os aterros mantêm a
geração de chorume, assim como a de metano, por várias décadas
após o esgotamento da capacidade das instalações, lapso temporal
no qual demandam por rigorosa fiscalização.
Evidentemente, quanto maior a dimensão do aterro, tanto mais
avultado será o problema. A título de exemplo, o aterro São João,
considerado de grande porte, localizado na capital paulista e ainda
em operação 76, regurgita 13 litros de chorume por segundo.
Embora contabilize uma emissão aparentemente insignificante,
este volume significa 780 litros por minuto, 46.800 litros por hora e
1.123.200 litros por dia, algo como a capacidade de 11.230 caixas
d’água a cada 24 horas de percolado. E este, seria tão só um dos
inúmeros aterros em funcionamento ou em processo de estabilização
na região da RMSP.
Certamente existem questões ainda mais problemáticas, caso
dos lixões, que substantivam um notório expediente para a disposição
final do lixo em quase 90% dos municípios brasileiros. Nestes locais,
O Aterro São João entrou em operação em dezembro de 1992. A área total deste
equipamento é 456.000 m² (45,60 ha), dispondo 200.000 m² (20,00 ha) de área útil (Cf.
CALDERONI, 2003:126; ter também SANTOS, ACHOA et BITAR, 1995).
76
3
386
a matéria orgânica, como se viu, resultante de um extraordinário input
de recursos hídricos captados do meio natural, tem por resultado sua
transformação em líquido percolado.
No que poderia compor um quadro orquestrado por uma sinfonia
trágica, poucos poderiam em algum momento advogar a origem do
percolado na captação da água de um regato silencioso ou de um
gotejante broto d’água silvestre. Contrastivamente, o chorume parece
simbolizar uma sucessão de maus tratos destinados à água, que se
transforma assim no retrato da sociedade que o criou.
Nesta ordem de pontuações, os modelos de gestão atinentes às
usinas de compostagem e aterros sanitários, constituem paliativos e
quando muito, formas de atenuar o problema do lixo, mas não de
efetivamente deslindá-lo.
Indo direto ao ponto, solução autêntica existirá somente com a
edificação de uma sociedade afeita ao respeito aos recursos naturais
e avessa ao desperdício, premissas para cuja consecução, concorre
em caráter obrigatório, a revisão das prioridades do sistema produtivo
acompanhada de maior justiça social.
Por conseguinte, a expansão dos serviços de CSL certamente
representa um atenuante, e ao lado destes, a compostagem dos lixos
orgânicos. Todavia, certo também é que ambas, não são uma solução
definitiva da questão.
Em concordância com o que foi abordado noutro momento deste
texto, a verdadeira chave para dar conta das montanhas de rebutes é
3
387
justamente não as criar. Para isto, é preciso, antes de tudo, Repensar
o padrão de vida, Reduzindo a geração de Lixo e Reutilizar tudo o
que for possível.
Eis com certeza, uma via para pensar e repensar a crise hídrica e
quiçá, em futuro próximo, aplicar uma gestão de excelência efetiva
para os recursos hídricos.
7.6. RECURSOS HÍDRICOS, FRAÇÃO INORGÂNICA E
RECICLAGEM
Neste trabalho, avalia-se que o lixo é acima de tudo, um produto
caro, ambientalmente oneroso e altamente impactante na ótica dos
recursos hídricos. Adiante, procuraremos evidenciar os vínculos que
conectam a temática dos recursos hídricos à dos resíduos sólidos
urbanos, enfatizando-se primeiro, o componente inorgânico dos lixos.
A despeito de raramente avaliados de modo articulado, caberia
observar que as problemáticas dos recursos hídricos e da fração seca
dos RSD compartilham interfaces inseparáveis em diversas escalas e
ângulos. É justamente esta visão de conjunto, consorciando ambas
questões, que evidencia um quadro de comprometimentos ambientais
mais complexo e detalhado do que o explicitado quando as temáticas
são analisadas em separado.
No referente ao reino das ações concretas, a proposição neste
trabalho é que uma visão mais abrangente poderá pontuar como um
3
388
dado adicional para repaginar posturas e procedimentos, sinalizando
para as possíveis soluções ou pelo menos, para a minimização dos
problemas a serem enfrentados quanto ao binômio água e lixo. No
caso brasileiro, a essencialidade desta discussão pode ser explicitada
pela própria participação da fração seca na contextura dos RSD.
Respaldando esta observação, sabe-se que apesar de escassas,
falhas e conflitantes, as estatísticas indicam que a fração inorgânica
dos refugos urbanos, alinha algo entre 20% e 30% do total dos lixos
domiciliares coletados no país, percentual que aumenta ano a ano.
O fenômeno tem explicação na consolidação dos processos
citadinos, matriz de novos hábitos de consumo, em parceria com os
quais, as práticas contemporâneas de embalamento e distribuição
tornam-se correntes. Por conseguinte, a proporção deste componente
na massa total dos resíduos sólidos domiciliares gradativamente se
amplia, alavancando a atuação de um setor voltado exclusivamente
para a reciclagem dos materiais nele encontrados.
Paralelamente ao avanço do parque reciclador, as narrativas que
enfatizam os ganhos ambientais da recuperação dos materiais, é
recorrente na comunicação institucional difundida pelas empresas do
setor e pelas instâncias governamentais facilitadoras da reciclagem.
Obviamente, é claro que esta informação procede. Sem contar a
poupança de matérias primas, constata-se a redução da poluição,
economia de energia (esta última vinculada intimamente com a água)
e uma efetiva conservação dos recursos hídricos. Afinal, como revela
a ACV, todas as etapas da produção requerem um consumo de
3
389
recursos hídricos e mesmo a “morte” de um bem, não significa que
seu relacionamento com a água tenha terminado.
Nesta linha de raciocínio, podemos apontar relevantes benefícios
ambientais. De pronto, tem-se a diminuição de volumoso montante de
bens em circulação com base em materiais recuperados, contexto
com óbvias implicações positivas para com a preservação das águas.
Exemplificando, para citarmos apenas a problemática do plástico,
as estimativas disponíveis informam que a produção do material,
passou de 6 milhões de toneladas no ano de 1960 (nos primórdios da
introdução deste produto), para 27 milhões em 1970; 53 milhões em
1980; 93 milhões em 1990 e alcançando em 1994, a estrondosa cifra
de 110 milhões de toneladas (CALDERONI, 2003: 225).
Confrontados com estes números e sabendo-se sobre a notável
resistência que este material apresenta em termos de degradação no
ambiente, não há como discordar que a reciclagem é bem-vinda e
reclamada pela sociedade moderna. Isto, sem contar um inventário
bem provido de ganhos passíveis de serem apontados não só para o
plástico, como para todos os itens da fração seca.
Assim, baseados em levantamentos amealhados por um pool de
empresas associadas ao CEMPRE, tais como a ABAL (Associação
Brasileira do Alumínio), ABIVIDRO (Associação Técnica Brasileira das
Indústrias Automáticas de Vidro), ABEPET (Associação Brasileira dos
Fabricantes
de
Embalagem
de
PET),
PLASTIVIDA (Instituto
Socioambiental de Plásticos), PROLATA (Programa de Valorização da
3
390
Embalagem Metálica), BRACELPA (Associação Brasileira de Celulose
e Papel) e na atuação do parque reciclador
➢
77,
permite-se pontuar:
Quando o aço é produzido inteiramente a partir de sucata, o
ganho de energia chega a 70% do que se gasta com a produção de
base do minério de origem. Além disso, tem-se a redução da poluição
do ar (em torno de 85%) e do consumo de água (cerca de 76%). São
eliminados, ainda, todos os impactos da atividade de mineração, que
afetam a atmosfera, o solo e as bacias hidrográficas;
➢
Quanto ao papel, para produzir uma tonelada do produto, são
solicitados aproximadamente 100 mil litros de água, muita energia e
mais de 50 árvores adultas. Entrementes, quando é reaproveitado o
papel descartado, os gastos são reduzidos para 2.000 litros de água,
economiza-se entre 50 a 80% de energia e o corte de 20 a 30 árvores
adultas. Ademais, há uma sensível redução de elementos poluentes
(gases e efluentes líquidos). Para finalizar, recorde-se que quase 25%
dos resíduos da fração seca são constituídos por papéis;
➢
O papel-jornal produzido a partir das aparas requer 25% a 60%
menos energia elétrica que a necessária para obter papel da polpa da
madeira. Produtos celulósicos feitos com material reciclável, além de
conterem a derrubada de árvores, reduzem em 74% os poluentes
liberados no ar e em 35% dos que são despejados nas águas;
➢
Na reciclagem do vidro é possível economizar cerca de 70% de
energia incorporada ao produto original e pelo menos 50% de água.
Informações consignadas na publicação CEMPRE Informa nº. 59, edição de
setembro/outubro de 2001.
77
3
391
Portanto, os efeitos diretamente benéficos para as águas doces
seriam em definitivo, pertinentes e louváveis. Pari passu aos números
e valores apresentados, a reciclagem proporciona economia de água
em todos os processos produtivos e no ciclo de vida dos produtos.
No caso das latas de aço e do papel, a quantificação dos valores
associados à redução do consumo de água, indica, na devida ordem,
4 m³/tonelada para a lata de aço e 29,2 m³/tonelada para o papel.
Logo, temos num plano consuntivo, exemplos concretos de economia
de recursos hídricos. Esta poupança de água, “deve-se ao fato de
que a produção a partir de recicláveis requer menos água do que a
produção de matérias-primas virgens” (CALDERONI, 2003: 88 e 266).
Ao mesmo tempo, a reciclagem, subtraindo resíduos das ruas e
das lixeiras, abriu nova frente de negócios e de renda, pavimentando
a adoção de tecnologias inovadoras. Tudo isso tem concorrido para,
por exemplo, para alavancar a reciclagem dos plásticos, incentivando
maior requisição deste material nos circuitos dos recicláveis e é óbvio,
do PET em especial.
No caso da indústria têxtil, as garrafas de polietileno tereftalato
(comumente conhecidas como garrafas PET), tem encontrado uma
promissora perspectiva com a utilização da fibra do PET descartado
como componente da trama de tecidos novos. Paralelamente a esta
recuperação de matéria prima, as indústrias têxteis obtêm um ganho
secundário em razão das roupas de fio reciclado possuírem um apelo
“ecológico”, devidamente explorado por um marketing especializado.
3
392
No Brasil, também se faz notar esta tendência. No ano 2000, o
índice de reciclagem de garrafas PET foi 24,8%, posicionando o país
entre os que mais reaproveitam esta sucata em todo o mundo
(estatística da Associação Brasileira dos Fabricantes de Embalagens
PET, a ABEPET). Igualmente no ano 2000, o país reciclou 67 mil
toneladas do produto, ou seja, cerca de 1,5 bilhão de garrafas.
Apesar da reciclagem de PET no país ter entrado em operação
somente em 1994, “o índice brasileiro é maior que o de países do
Primeiro Mundo que já realizam a atividade há 20 anos, como os
Estados Unidos e Japão, que reciclaram 23% e 22% de suas garrafas
PET no ano passado” (ESCOBAR, 2000).
A reciclagem do alumínio, ao se tratar de atividade na qual o
Brasil desponta com a maior porcentagem global, ensejaria alguns
comentários adicionais. Incentivada por campanhas promovidas pelas
recicladoras, as latas de alumínio, encaminhadas através de centros
de triagem ou provenientes do paciente trabalho dos catadores, são,
sem dúvida alguma, o reciclável mais valioso, com preço cinco vezes
superior ao plástico, o segundo, ad valorem.
A coleta das “latinhas” oferece remuneração vantajosa decorrente
do seu valor agregado, e não sem motivo, esta sucata é considerada
como “o ouro dos catadores”. Em 2003, o país se tornou campeão
mundial em reciclagem de invólucros de alumínio pelo terceiro ano
consecutivo, com 89% das embalagens recolhidas, pontuação que
decorre quase exclusivamente da faina diária dos trabalhadores da
catação (Cf. CORDIOLI, 2005; CALDERONI, 2003: 179).
3
393
Certamente, existiria no bojo destes prontuários uma miríade de
motivos suficientes para celebrar os índices de aproveitamento dos
recicláveis. Alicerçada com base neste panorama, a expansão da
reciclagem tem sido exibida com certo triunfalismo, fazendo uso de
discursos reiteradamente apoiados no conceito de desenvolvimento
sustentável.
Aparentemente, a reciclagem resolveria de uma vez por todas os
efeitos perniciosos da industrialização e o mundo moderno poderia
enfim encontrar tranquilidade para manter seus hábitos de consumo a
vontade. Entrementes, esta percepção deve ser balanceada com
objetividade, revelando que grosso modo, este elenco de conquistas
é acima de tudo condizente com a meta de assegurar a perpetuação
da economia de mercado e seu modelo de gestão da produção.
Neste sentido, recorde-se que a formação social capitalista se
acoplou, no trajeto que transcorre desde o surgimento dos burgos no
final da Idade Média até a globalização, a muitas ressignificações. No
bojo destas alterações, a prática capitalista adquiriu novas feições,
respondendo às inflexões históricas que se apresentavam.
Todavia, ainda que ininterruptamente mimoseando-se com o que
seria inédito, a linha mestra da economia de mercado permaneceu
intocada desde o princípio. Nesta vertente de continuidade, antes de
ser condicionado pela crise ambiental, foi o sistema econômico que
desta se apropriou em prol dos motes de reprodução socioespacial
que lhe apetecem.
3
394
Tome-se, por exemplo, o caso do alumínio. Material estratégico
no mundo contemporâneo, o fabrico do material está sob comando do
chamado “Cartel das Seis Irmãs”, composto pela Alcoa, Alusuisse,
Reynolds
78,
Kaiser, Pechiney e Alcan. Este grupo de firmas é quem
dá a última palavra quanto à plotagem espacial de qualquer fábrica de
alumínio no planeta.
Seguramente, este ramo da metalurgia constitui um dos mais
poderosos monopólios existentes no mundo. Consequentemente, não
seria estranho que a reciclagem deste material também materialize
um segmento altamente concentrado e monopolizado. Exemplificando
essa propensão, no Brasil, a LATASA é a única fabricante de latas de
alumínio e única compradora desta sucata
79,
logo, materializando um
misto de monopólio e monopsônio (CALDERONI, 2003: 177/188).
Este é um, dentre muitos relatos, explicitando que a reciclagem
simplesmente não está em contradição com as diretrizes maiores do
establishment econômico-industrial. Em tempo: a reciclagem observa
expansão tão só quando deixa de ser possível manter o processo
predatório anterior, questionado por modelos “ambientalmente mais
contemporâneos”.
A escassez de recursos, resultado direto do triunfo da moderna
economia de mercado, passa então a justificar a reciclabilidade dos
resíduos, inclusive enquanto estratégia para realimentar os fluxos da
economia. Atada às lógicas do mercado, a indústria da reciclagem
Confirmando este dinamismo, em junho de 2004 foi anunciada a fusão entre a ALCOA
e a Reynolds (Vide CAVALCANTI, 2005)
79 Esta empresa resultou de uma associação, datada de 1990, entre o Banco Bradesco,
J. P. Morgan e a Reynolds Metals Company, sendo que a participação desta última foi
repassada para a ALCOA, multinacional de capital norte-americano, a principal do
segmento da cadeia produtiva da bauxita e da metalurgia do alumínio.
78
3
395
passa a instrumentalizar e a nutrir-se das mesmas dinâmicas que
perpassam pelo modus operandi do sistema.
Assim, a captação dos recicláveis tem se avolumado através da
arregimentação de desempregados e da população de rua e não
como resultado de mudanças comportamentais. Muito mais do que
pelo esperado sucesso dos programas de educação ambiental, é pela
salvaguarda de sobrevivência mínima que o exército de catadores
das cidades brasileiras se anima a retirar das ruas tudo que possa ser
imediatamente comercializado no ponto de captação mais próximo.
Esta arguição, é respaldada por pesquisas do IBGE, que expõem
o contraste entre os índices de reciclagem e os serviços de coleta
seletiva dos resíduos. Enquanto que, por exemplo, 89% das latas de
alumínio são recicladas, apenas 1,9% dos descartes são coletados de
forma seletiva 80. Tais dados comprovam assim, a enorme capacidade
do mercado exercer hegemonia convocando numeroso contingente
de excluídos do mercado formal de trabalho para que atuem como
catadores.
Nesta lógica, fica bastante claro que não é devido aos progressos
da “conscientização ecológica” que a reciclagem avança. As inflexões
da “economia desregulamentada” orientam bem mais a estruturação
deste ramo empresarial do que a preocupação com a conservação
dos recursos naturais. Ipso facto, a cadência da incorporação destes
procedimentos pelo sistema econômico no seu sentido mais amplo,
tem avançado homeopaticamente.
80
Cf. Manchetes Socioambientais, edição de 05-11-2004.
3
396
Vale repetir, a testemunhar esta tendência, de acordo com dados
do IBGE referentes a 2002, somente 451 dos 5.507 municípios do
país promovem programas de reciclagem, como foi frisado, 8,11% do
total, porcentagem que fala bem alto quanto ao menoscabo oficial
pela catação e recuperação das sucatas.
Outro dado é que a adoção da reciclagem, ao ser assimilada de
modo gradativo (até porque, uma vez atendendo aos mecanismos de
reprodução do sistema estes tendem, sobremodo, a incidir nos elos
mais capitalizados da economia, o que reforça a adoção seletiva da
reciclagem), são dispensadas, à vista disso, mudanças estruturais no
universo econômico. Consequentemente, a cultura utilitarista de uso
dos insumos naturais e dos recursos hídricos, observa, quando muito,
alterações pontuais, mas não estruturais.
Não por outra razão senão pelo fato de que a reciclagem, uma
vez transcorrendo sem requalificar o conjunto do aparato produtivo,
anula eventuais “ganhos de produtividade” pela expansão do próprio
sistema de produção de mercadorias. Por conseguinte, um número
maior de empresas operando com base em “métodos racionais”,
termina por tensionar a requisição dos insumos naturais numa escala
ainda mais ampla do que antes.
Foi sinalizado nos parágrafos anteriores, a equação que articula
os recursos hídricos aos resíduos sólidos, tem na revisão das metas e
das premissas do padrão civilizatório hegemônico, uma precedência
que se explicita por si mesma. Em acerto com esta evidência, a
reciclagem ajusta-se à condição de paliativo, porém, não de solução
3
397
efetiva dos problemas ambientais, assim como não esgota a questão
da utilização racional das águas doces.
Concretamente, o que se impõe é o primeiro dos quatro “Rs”:
Repensar. Por extensão, impõe-se a necessidade de se rever o modo
de vida característico da Modernidade. Esta questão envolveria a
necessidade de revisão conceitual e procedimental da relação entre a
sociedade moderna e natureza, bem como das formas culturais de
concepção existentes a respeito do meio ambiente
81,
habilitando uma
compreensão mais profunda dos problemas e por esta via, da solução
destes.
Logo, repensar implica em menos embalagens na distribuição
das mercadorias; em restringir a utilização do alumínio; menor uso do
petróleo na produção de energia e menor consumo nos transportes;
diminuição do desperdício por parte dos cidadãos, potencializando os
efeitos cumulativos da somatória de cada atitude individual; significa
consumo responsável e não-consumista, tendo por fundamento uma
vida regrada pelo primado da simplicidade voluntária, atenta ao que
de fato é essencial para o futuro dos humanos no planeta; pressupõe
reforço da vida comunitária, com cidadãos integrados no contexto do
seu espaço de vida imediato e com o meio social no qual vivem e
reproduzem as suas esperanças.
E isto pelo simples motivo de que repensar, ao significar menos
lixo, significa mais água para todos.
81
A respeito, sublinhou o antropólogo Georges BALANDIER, “Toda sociedade possui
uma teoria de natureza que lhe é própria, que se expressa em suas configurações
intelectuais, senão igualmente em complexos de símbolos, de instrumentos e de
práticas” (1988: 194).
3
398
CAPÍTULO 8
A GEOGRAFIA DA SEDE
8.1. ÁGUA: NATUREZA, SOCIEDADE E ESCASSEZ
O contexto atualmente vivido pela humanidade é pródigo em
dilemas, descortinando embargos aos quais amplas camadas sociais
dispensavam, em tempos recentes, pouca ou nenhuma atenção.
Quem nos séculos passados ousaria pontuar questões como a
oferta decrescente de solo agrícola, madeira, pescado e de outros
recursos naturais? No entanto, hoje são corriqueiros os comentários a
respeito da erosão da biodiversidade, extremos climáticos globais,
refugiados ambientais, temas que não frequentavam, nem mesmo em
sonhos, a imaginação do mais visionário dos pensadores.
Nesta perspectiva, seria inevitável incluir na extensa seriação de
problemáticas contundentes relacionadas com o acesso à água doce,
a variante ambiental, que justamente constitui um dos tópicos centrais
desta tese de doutorado.
Certamente, em função de várias pontuações colocadas em
diversos momentos ao longo deste texto, os fatos relacionados com o
modo de funcionamento dos sistemas de engenharia (Vide SANTOS,
1978a e 1988), se destacariam de modo relevante nesta discussão.
Sentença esposada por diversos cientistas sociais, as contradições
mantidas pela humanidade com o meio natural não podem, em
3
399
nenhum momento, serem desvinculadas das contraposições que os
humanos sustentam entre si.
Consequentemente, na modelagem do espaço geográfico, nos
arranjos espaciais articulados pelos humanos com base nos acervos
ecológicos incrustados na natureza primeira, temos o espelhamento
das relações sociais mantidas pelos homens entre si, e destes, com o
meio natural.
Neste processo, a natureza original ou primeira, é transformada
numa natureza segunda, artificial, criada pelo homem. Constituindo
pontuação indissociável da obra de Karl Marx e de Friedrich Engels,
fundadores do materialismo histórico, a esta consideração, nem os
marxistas não geógrafos e tampouco os geógrafos marxistas, se
dispuseram a granjear uma merecida atenção (Vide SANTOS, 1978a:
201).
A despeito disto, este entendimento configura um soberbo quadro
conceitual apto a decifrar as formas como a desequilibrada plotagem
dos insumos naturais no espaço, terminou instrumentalizada para
formar, reafirmar e dar continuidade a uma multíplice forqueaduras de
poder.
A partir deste momento seria, pois, pertinente vincular os dados
referentes aos modos pelos quais as sociedades têm animado suas
modalidades de reprodução socioeconômica, com os relacionados
com a distribuição geográfica das águas doces. A desigual repartição
das águas doces ao redor do planeta constitui aspecto merecedor de
inúmeras pontuações. Não por outra razão, senão pelo fato da água
4
400
doce apresentar-se como um elemento de magna importância, visto
conferir, pela primeira vez na história, a um item marcante em nível de
preocupações globais.
Na sequência, uma primeira ponderação quanto à oferta natural
dos recursos hídricos, é que esta, ao ser reconhecidamente irregular,
engendraria por si mesma, disparidades quanto ao atendimento da
humana demanda por água.
No final das contas, como ignorar que os rios da Sibéria centrosetentrional descarregam enorme volume de água nos mares gélidos
do Ártico, lado a lado com a populosa demografia da Ásia Oriental?
Ou ainda, materializando outra situação bastante representativa, que
o sistema hidrográfico formado pelos rios Ganges e Bramaputra, no
Norte da Índia, ambos compreendendo 1% da superfície da Terra,
abrigam em seus vales, não menos que 10% da humanidade?
Num mundo em que o acesso à água confunde-se cada vez mais
com a lógica do poder, unicamente esta nuança justificaria a intenção
em identificar tanto as nações com fartos provimentos hídricos quanto
aquelas nas quais estes são escassos. Disto decorre que parâmetros
técnicos, de matriz volumétrica e quantitativa, largamente utilizados,
seriam propícios como ferramentas para identificar variada gama de
situações.
Estes discriminam como muito ricos os países que, segundo seu
potencial e uso dos recursos hídricos, apresentam índices superiores
a 100.000 m³ de água doce/habitante/ano. Quanto aos países ricos,
estes corresponderiam aos situados na faixa de disponibilidade entre
4
401
10.000 até 100.000 m³/habitante/ano. Numa ordenação decrescente,
poderíamos mencionar nações cujo potencial seria suficiente, entre
2.000/10.000 m³/habitante/ano; regular, com base em 1.000/2.000
m³/habitante/ano; pobre, entre 500 e 1.000 m³/habitante/ano; e muito
pobre, com potencial inferior a 500 m³/habitante/ano (Vide a respeito
REBOUÇAS, 2002a: 15).
Estes patamares permitiriam focalizar, em termos de abundância
de águas doces, um afortunado conjunto de nações. Um conjunto de
países muito ricos em recursos hídricos seria composto pela Guiana
Francesa, Islândia, República Cooperativa da Guiana, Suriname,
Gabão e a Papua-Nova Guiné. Na listagem dos países ricos, estariam
presentes, dentre outros, os “dois Congos”
82,
a República de Angola,
as Ilhas Salomão, Venezuela, Colômbia, Brasil, Mali, Bangladesh,
Camerun, Bolívia, Tchad, Vietnã, a Suécia, a Finlândia e a Indonésia,
nações que poderiam integrar seleto bloco de países potencialmente
provedores de água (Figura 16).
É de se notar quase todos os países mencionados são tropicais,
integram a periferia do sistema global e que ademais, três dos seis
países mais bem agraciados com reservas hídricas, estão situados na
área da Bacia Amazônica. Outra singularidade, é que quatro nações
da América Latina, dentre estas o Brasil, constam na lista dos países
ricos em água doce (MARTINS, 2003).
Entretanto, uma vez que vários dos países citados possuem área
e população pouco significativas na escala mundial, nada sugere que
Estes são a República Democrática do Congo (ex-Zaire ou Congo Kinshasa, no
passado uma colônia belga) e a República Popular do Congo (ou Congo Brazzaville,
anteriormente uma possessão francesa).
82
4
402
sejam necessariamente detentores de grandes provisões hídricas. A
título de exemplo, o Gabão, a Guiana Francesa e a Islândia, embora
consistindo de espaços formados por territórios drenados por uma
vigorosa trama de rios e córregos, perfazem territórios e populações
de pouca expressão.
FIGURA 16 - Perfil do acervo hidrológico dos países potencialmente provedores
de água doce (Esquema elaborado a partir de dados compilados em Margart, J.,
Repartition des ressources et des utilisations d’eau dans lê monde: Disparités
Présents et Futures, La Houille Blanche, nº. 2, pp. 40-51, 1998)
Na ponta do lápis, estes países possuem extensão relativamente
pequena (respectivamente 267.667 km², 91.000 km² e 103.000 km²),
4
403
concentram população absoluta muito modesta (1.208.435, 172.905 e
279.000 habitantes) e apresentam baixa população relativa (4,5; 2,7 e
1,9 hab./km²). Para completar, nestes países, a parte do leão do
contingente demográfico está concentrado numa fração mínima dos
espaços nacionais (a orla marítima, e nesta, basicamente as capitais),
fazendo sentido, portanto, anotar que são largamente despovoados.
Por isso mesmo, apesar de disporem de significativo excedente
hídrico per capita, do ponto de vista absoluto a importância destes
espaços quanto aos recursos hídricos globais, não seria em nada
comparável aos “gigantes hídricos”. Na realidade, o grupo de países
com maior concentração de recursos hídricos reúne nações com
vastos territórios e abundante rede hidrográfica, formando o que tem
sido denominado como “G6 da água”.
Este bloco, integrado pelo Brasil, Estado Unidos, Canadá, China,
Índia e Federação Russa, concentraria, de acordo com cálculos do
eminente hidrólogo russo Igor SHIKLOMANOV (1999), algo como
40% do escoamento da água de superfície de todo o mundo. Além
dos países citados, interessaria do mesmo modo consignar adendo
reparador, endereçado à República Democrática do Congo (RDC).
Observe-se então que apesar de a mídia insistir na existência de um
“G6”, este último país, em parceria com os seis primeiros, em virtude
de ser abundantemente irrigado pela bacia do rio Zaire, poderia mais
corretamente, justificar a identificação um G7 da Água.
Quanto ao quinhão brasileiro no montante total dos recursos
hídricos planetários, além da cifra de 12% (REBOUÇAS, 2002a:29),
praticamente um consenso no meio especializado, poderíamos citar
4
404
avaliações adicionais. Fala-se em 8% (cifra mais difundida na década
passada, eventualmente utilizada), em 11% (Cf. TUCCI, HESPANHOL
et NETTO, 2001:42), e 13% (Cf. MARTINS, 2003), levantamentos que
diferem em razão da discrepância das matrizes teóricas adotadas.
De qualquer modo, nenhum destes registros contesta o fato do
Brasil ser o maior possessor de recursos hídricos na escala mundial.
Francamente, em se tratando de 8, 11, 12 ou 13% da água mundial,
estamos nos referindo, em qualquer uma dessas circunstâncias, a um
volume descomunal do líquido.
Por fim, esclareça-se que a porcentagem de 17%, eventualmente
atribuída ao Brasil em alguns textos, refere-se à somatória da vazão
gerada no território brasileiro com a que escoa dos países vizinhos,
dita particularmente verdadeira no tocante à Bacia Amazônica (Vide
TUCCI, HESPANHOL et NETTO, 2001: 34 e 42).
Note-se que o Brasil é o único país pertencente ao G7 da Água
que se encontra em situação favorável em termos de disponibilidade
hídrica. Nos Estados Unidos, as solicitações da economia e do estilo
de vida consumolátrico em vigor neste país, a despeito do gigantismo
dos recursos em água, fazem com que se avizinhe grave carência
hídrica já na terceira década deste século.
O Canadá certamente dispõe de muita água congelada. Mas, tal
como foi alertado, a mineração deste estoque contribuiria diretamente
com o aquecimento global, comprometendo ainda mais o equilíbrio da
biosfera terrestre. O mesmo pode ser dito para a Federação Russa.
De resto, tanto o Canadá quanto a Rússia, nações com significativos
4
405
parques industriais, apresentam elevados níveis de poluição dos seus
rios e lagos, tendo ainda de dar conta das suas crescentes demandas
internas 83.
No tocante à China, Índia e a República Democrática do Congo,
países do Terceiro Mundo, o cenário não admitiria euforia. Na China e
na Índia, os recursos hídricos têm sido intensamente malbaratados
por um esgotamento sanitário deficiente, pelos efluentes resultantes
de uma industrialização/urbanização desenfreada, e no caso chinês e
indiano, pelo gigantismo demográfico, respectivamente a primeira e a
segunda posição no ranking da demografia mundial. Finalmente, a
RDC tem se caracterizado pela intermitente turbulência política e seu
quadro sanitário deixaria pelo mínimo, muito a desejar. Portanto, em
termos do G7 da Água, o Brasil seria uma nação propensa a ocupar
um papel de ponta no comércio internacional de água doce, de um
modo que dificilmente encontraria competidores (MARTINS, 2003).
Todavia, a escassez de água doce é difusa, não se restringindo
às nações citadas. Em paralelo aos países cujos acervos hídricos,
embora imensos, tornaram-se insuficientes, pode-se identificar no
extremo oposto do ranking da disponibilidade, nações extremamente
pobres em recursos hídricos. Estados insulares como Maldivas, Cabo
Verde, Malta, Bahamas, Chipre e Cingapura estariam incluídos nesta
relação, nações nas quais as condições naturais, somadas à pequena
extensão e à citada condição de insularidade, explicam a exiguidade
da rede hidrográfica e o baixo potencial de captação de descargas
fluviais, justifica objetivamente a escassez de recursos hídricos.
No caso canadense, recentes declarações das autoridades norte-americanas propondo
a construção de aquedutos para abastecer os Estados Unidos têm motivado vívida
contrariedade entre os agricultores e da população urbana do Canadá, temerosos de
serem vitimados com a falta de água em razão da exportação da água doce do país.
83
4
406
Porém, deve-se, vis-à-vis, encorpar a avaliação com o concurso
de notórias injunções de ordem socioeconômica e dos desequilíbrios
globais da biosfera
84.
Anote-se que apesar de países como Nauru,
Vanuatu, Kiribati, Micronésia e ilhas Marshall, na Oceania, recorrerem
à captação das precipitações pluviométricas para assegurarem seu
suprimento de água, estas, além de passíveis de serem afetadas
pelas mudanças climáticas, são açambarcadas em boa parte pela
atividade turística, vital para as economias destes arquipélagos. Logo,
não seria desmotivado profetizar que em futuro próximo muitas outras
ilhas ingressarão na lista dos territórios assolados pela sede, quando
não, fadados à desaparição pelas intercorrências ecológicas de uma
economia-mundo sobre a qual não detém nenhum controle, e que as
arrola às sistematizações econômicas que terminarão por destrui-las.
As regiões áridas e semiáridas formam outro sabido conjunto
crítico. Estas áreas caracterizam um quadro natural dificultoso ao qual
se agrega, em muitos casos, uma notável contabilidade de crispações
geopolíticos. No Oriente Médio, um exaustivo elenco de contradições
opõe países, etnias e classes sociais relativamente ao acesso às
águas doces, uma rivalidade que põe a nu a origem etimológica desta
palavra, procedente do latim rivus, que justamente significa rio.
Por exemplo, dos onze países mais pobres em água doce do
mundo, sete são nações árabes: Kuwait, Qatar, Arábia Saudita, Líbia,
Bahrain, Jordânia e os Emirados Árabes Unidos, aos quais pode-se
somar a Faixa de Gaza, ocupada por Israel, dramaticamente afetada
Exemplificando, a cidade de Cingapura representa um modelo clássico de urbe
faustosa devoradora de recursos hídricos, importando o líquido da vizinha Federação da
Malásia. A crise de abastecimento de Chipre, das Maldivas e das Bahamas se explica em
grande parte pelo fluxo turístico, cujo consumo de água é garantido, sendo praticamente
intocável.
84
4
407
pela escassez de água. Tais países e territórios integram uma região
estratégica, o Machrek
85,
conhecida pela turbulência política crônica,
suscetível de ser agravada pela escassez de água (Cf. REBOUÇAS,
2002a: 19).
Na Ásia Ocidental, não o abundante ouro negro, mas sim a água
rarefeita, é o recurso estratégico por excelência. É possível imaginar
um Oriente Médio sem petróleo. Todavia, sem água, esta região, tal
como qualquer outra, simplesmente deixaria de existir. É por esta
razão que a questão dos recursos hídricos não pode em nenhum
momento ser marginalizada da avaliação dos problemas geopolíticos
regionais. Insistir numa ótica exclusivamente política, econômica ou
cultural, além de irrealista, seria ineficaz para compreender situações
críticas, e de modo substantivo, em face dos conflitos do Machrek
subscritarem dilemas associados ao acesso à água.
Significativamente, um report do governo dos Estados Unidos,
elaborado nos anos 1980, alertava que dentre dez áreas nas quais
poderiam ser previstos conflitos associados com a escassez de água,
metade destas situava-se no Oriente Médio. Nesta parte do mundo,
quinze países competem com sofreguidão pelas águas de vazão
cada vez menor dos rios Tigre, Eufrates, Nilo e do Jordão. Por sinal,
em 1975 o Iraque e a Síria estiveram próximos de uma guerra por
conta da barragem de Al-Thawrah, construída por este último país no
trecho superior do Eufrates.
Trata-se de um topônimo de origem árabe significando “Ilha de Oriente”, sendo
empregado para designar as regiões que a geografia ocidental reconhece como “Oriente
Médio”. O Machrek, no imaginário espacial árabe, contrapõe-se ao Magreb, ou “Ilha de
Ocidente”, correspondendo à Berberia antiga da cartografia europeia, grosso modo, os
atuais Marrocos, Argélia e Tunísia.
85
4
408
Nem mesmo as copiosas águas do Nilo constituem uma fonte de
estabilidade regional. Quando o governo etíope anunciou planos de
represamento dos afluentes do Nilo, no distante planalto abissínio, o
então presidente Anwar Sadat, do Egito, nação definida no passado
pelo historiador grego Heródoto como “Dádiva do Nilo”, a luz do fato
do país depender das águas caudalosas deste grande rio, ameaçou a
Etiópia em 1979 com uma declaração de guerra.
Neste contexto, um dos conflitos mais espicaçados pela posse
dos recursos hídricos tem sido protagonizado pela Turquia, que, aliás,
é o único Estado-membro da Organização do Tratado do Atlântico
Norte (OTAN) situado no Oriente Médio. O Estado turco tem levado
adiante o Projeto Grande Anatólia, foco de desavenças com os países
vizinhos por apropriar-se dos recursos hídricos da alta mesopotâmia,
região que concentra os raros, porém dos mais extensos e volumosos
caudais d’água do antigo Fértil Crescente.
Este megaprojeto turco consiste no represamento a montante,
isto é, junto às cabeceiras do rio Eufrates, de imensas quantidades de
água, portanto, subtraindo a vazão natural rio abaixo, qual seja, a
jusante. Como não poderia deixar de ser, este plano foi interpretado
pelos vizinhos meridionais, a Síria e o Iraque, como uma ameaça aos
seus interesses vitais, pois necessariamente o programa turco implica
na diminuição do suprimento do líquido para ambos os países (Cf.
VILLIERS, 2002: 295/310 e ELLIOTT, 1998: 223).
Mas, nenhuma destas situações, conflitantes ou potencialmente
geradoras de conflagrações, repercute de modo tão intenso em nível
da política regional e internacional quanto às contendas que opõem
4
409
Israel e os países árabes. Para além das contradições políticas,
territoriais, religiosas e de identidade nacional, que grosso modo são
reconhecidamente “mais fotogênicas”, estão implicitamente colocadas
disputas associadas com a posse per se da água doce. Reproduzindo
um comentário sintético a este respeito,
...modernamente o conflito mais grave da água é
vivenciado por israelenses e palestinos, cujos mananciais
disponíveis dependem de acordos entre Jordânia, Síria,
Líbano, Egito e Arábia Saudita (REBOUÇAS, 2002a: 19).
Existe com toda certeza, um quadro hidrológico nada benfazejo
marcando a geografia dos países atualmente em conflito. Por sinal,
poucas regiões do mundo possuem relatos tão incisivos sobre a falta
de água quanto esta, a começar pelo que pode ser consultado no
Antigo Testamento e num repetitivo leque de relatos gerados pelas
culturas locais nos últimos três milênios.
Registros antropológicos documentam a luta ferrenha das tribos
do deserto pela posse dos oásis e dos acanhados, porém essenciais,
poços de água perdidos nas areias. Textos cuneiformes procedentes
das chancelarias da Suméria compilam, por sua vez, escaramuças
entre as cidades da mesopotâmia pelas águas do Tigre e do Eufrates.
Cidades como Meca e Reinos como o de Sabá, dependiam de
uma rigorosa administração de ínfimos veios d’água. Caberia atestar
que uma das áreas mais tórridas do mundo, o deserto do Rub Al-Khali
(“recanto seco” em árabe), alojado no Sudeste da península arábica,
é um autêntico “cul-de-sac” absolutamente árido, circundado por um
colar de superfícies desérticas que compõem os torrões do Machrek.
4
410
É possível também subsidiar estas observações com base em
outras referências, dentre estas, a sugestiva comparação feita entre
Israel e o semiárido nordestino, região que no mais das vezes, integra
um imaginário “geográfico” como sinônimo de a falta de água.
Relembre-se que nos anos 1970, quando a agricultura irrigada
israelense tinha conquistado a mídia mundial mediante a tonitruante
apresentação dos sucessos repetidos das suas colheitas, assinalou
com aguda perspicácia o geógrafo pernambucano Manuel Correia de
ANDRADE, relativamente à escassez de água neste país:
Convém salientar, para dar uma ideia do deficit de
umidade, que no sertão brasileiro, em Cabaceiras, na
Paraíba, o município mais seco do país, chove 259 mm
por ano, dez vezes a quantidade de chuvas que caem em
certas áreas de Israel (1977: 68, grifos nossos).
Como que confirmando a sagaz notação do geógrafo brasileiro,
esta ponderação reaparece de maneira emblemática numa célebre
declaração realizada pelo político israelense David Ben-Gurion em
um encontro público travado com a comunidade judaica de São Paulo
por ocasião de um tour em 1969 pelas coletividades da América
Latina. Consta que inquirido pelo presidente brasileiro a respeito de
um presente que o Brasil poderia oferecer ao Estado de Israel, diante
do repto, o visitante teria respondido sem pestanejar: “Por favor, me
presenteiem com um rio, qualquer um, pode ser um destes que eu vi
pelo caminho...”.
Deveras, na impossibilidade de receber um rio como presente, o
Estado de Israel, adotou, obrigatoriamente, padrões de indiscutível
4
411
eficiência na gestão dos recursos hídricos localizados nos territórios
sob sua administração direta, um know-how disputado no mercado
internacional de tecnologias de aproveitamento da água (Cf. DAR et
HERMONI, 2005). A magnificência técnica que tipifica a agricultura de
Israel, é um dado merecidamente recordado nas avaliações sobre o
uso inteligente da água nesta árida nação levantina (Cf. REBOUÇAS,
2004: 96). Recorde-se que este país
...pratica irrigação numa faixa do seu território onde a
pluviometria média é de apenas 200 mm/ano, logrando
alta produtividade agrícola com a aplicação de uma taxa
de irrigação da ordem de 6.000 m³/ha/ano. Esta taxa
situa-se entre 12.000 e 20.000 m³/ha/ano em outras
regiões do mundo, relativamente mais favorecidas em
termos de disponibilidades de água e clima (REBOUÇAS,
2002a: 19).
No entanto, sem desmerecer a proverbial competência israelense
na gestão das águas do seu território, esta é, no entanto, insuficiente
para o atendimento das demandas das redes produtivas e consumo
individual na escala mais ampla. Com base neste fato objetivo, esta
lacuna induziu o Estado de Israel a uma política premeditada de
apropriação de recursos hídricos alheios à sua circunscrição territorial
direta (aqui entendida como a delimitada pelas fronteiras de 1949).
Tal observação diz respeito de forma cabal à requisição da água
doce extraída dos territórios ocupados da Cisjordânia (West Bank) e
de Gaza (Gaza Strip), bem como da região das Colinas do Golan,
todos constituindo áreas em litígio com os povos vizinhos (Figura 17).
Apenas deste modo Israel tem logrado assegurar à sua população um
índice de consumo de água em média cinco vezes superior ao dos
4
412
países dos arredores, situação ímpar em todo o Levante (ELLIOTT,
1998: 224).
FIGURA 17 - O mapa evidencia Israel (em verde), Gaza e Cisjordânia (em laranja), e
o Golan, (Golan Heights), território sírio ocupado desde a Guerra dos Seis Dias
(1967). Gaza e Cisjordânia são partes do Estado Palestino programado para ser
estabelecido pela Partilha da Palestina. Entretanto, após a Guerra de
Independência de Israel (1948-1949), estes territórios foram respectivamente
ocupados pelo Egito e Jordânia, sendo em 1967 tomados por Israel. Hoje, Gaza
está sob controle do Hamas e a Cisjordânia, sob mando parcial da Autoridade
Nacional Palestina (ANP). Note-se que a ANP e o Hamas são hostis entre si,
protagonizando uma cruenta guerra civil após a vitória do Hamas nas eleições
parlamentares da Palestina, ocorrida no ano de 2006 (Fonte: Free World Maps, <
https://www.freeworldmaps.net/ >. Acesso em: 4-01-2015)
4
413
No caso dos territórios ocupados da Cisjordânia, a conflituosa
pendência da apropriação dos recursos hídricos locais explicita-se,
por exemplo, através da proibição imposta pela ocupação israelense
quanto à perfuração de novos poços pela população civil local e pelo
veto ao acesso desta às águas do rio Jordão.
Ao mesmo tempo, os assentamentos israelenses ilegalmente
instalados nestas regiões desfrutam de acesso irrestrito à água, em
flagrante contraste com a indigência hídrica da população palestina.
De acordo com o Banco Mundial, com paramento em informes
disponíveis para o ano 2000, cerca de 90% da água da Cisjordânia é
apropriada por Israel, enquanto que os locais dispõem dos 10%
restantes. As águas dos aquíferos da Cisjordânia hoje fornecem cerca
de 25% do total consumido pelos israelenses, cujo ritmo de retiradas,
extrapolando a capacidade natural, está conduzindo ao esgotamento
irrefreável destes reservatórios.
Em Gaza, a situação é ainda mais crítica. Neste pequeno enclave
com apenas 365 km², estão assentados aproximadamente 1,1 milhão
de palestinos (estimativa de 2002), elevada proporção dos quais
habitando campos de refugiados. A Faixa de Gaza é uma das regiões
mais densamente povoadas do planeta: 2.000 habitantes/km².
Em Gaza, o avanço dos níveis de poluição e o precário sistema
de evacuação dos efluentes domésticos, tornam o líquido dos lençóis
subterrâneos crescentemente impróprio para o consumo. Constata-se
paralelamente um aumento da salinidade decorrente da exaustão dos
aquíferos, pois a retirada excessiva de água favoreceu intrusão salina
4
414
provocada pela infiltração das águas salgadas do Mediterrâneo. Em
1996, um relatório elaborado pelo Banco Mundial assinala que Gaza
constitui o mais inquietante de todos os casos de estresse hídrico até
aquele momento registrado em todo o mundo.
Para tal situação, contribuiu o impacto dos assentamentos ilegais
implantados por Israel na região logo após a Guerra dos Seis Dias,
ocorrida em junho de 1967. Estudo da Fundação Americana para a
Paz no Oriente Próximo, datado de julho de 1998 e divulgado por
entidades palestinas e israelenses, relaciona a escassez diretamente
ao animus apropriandi de terras pelas colônias ilegais e áreas sob o
controle estratégico e militar de Israel.
Isto porque as instalações estão associadas ao confisco da água
doce, desviada para manter projetos de colonização, assentamentos
diretamente responsáveis pelo comprometimento do abastecimento
da população local. Em 2005, acredita-se que 40% da população de
Gaza não disponha de água segura para suas necessidades diárias.
Em Gaza, até o momento em que Israel encetou em setembro de
2005 a “Operação Desengajamento”, os 24 assentamentos ilegais
instalados nesse território perfaziam 0,6% da população residente da
Faixa de Gaza. Ao mesmo tempo, esta minoria controlava 25% das
terras agricultáveis, garantindo-lhes um índice 699 vezes maior de
acesso à terra do que os habitantes dos campos de refugiados, seus
vizinhos imediatos. Ademais, este grupo consumia 47% dos recursos
hídricos desta nesga sedenta de território.
4
415
O fim do controle direto exercido por Israel na Faixa de Gaza,
pouco modificou este horizonte de carestia hídrica. A retirada dos
colonos não implicou numa alteração da política israelense de gestão
dos recursos hídricos no território, até porque as autoridades de Israel
não renunciaram ao usufruto dos recursos hídricos locais e seguem
omissas quanto à transferência da titularidade das fontes regionais
para a administração palestina.
Com relação ao disputado planalto do Golan, o que está em jogo
é o controle dos mananciais setentrionais que abastecem o Jordão,
por sinal compartilhado por países conhecidos pela aridez e pelas
dificuldades quanto ao desfrute da água doce.
As nascentes deste rio, situadas nos cumes nevados da Síria e
do Líbano, originam um curso fluvial permanente, ocorrência muito
rara num espaço perpassado pela escassez de recursos hídricos, daí
o interesse israelense em manter a posse destas cobiçadas colinas.
Esta região, tomada aos sírios pelos israelenses durante a Guerra
dos Seis Dias e mantidas após a Guerra do Dia do Perdão (ou do
Yom Kipur) em 1973, é um território que reúne, ao lado dos seus
atributos geofísicos, uma cabal qualificação estratégica.
Assinale-se que o rio Jordão, nanico para os padrões brasileiros,
escoa em 251 quilômetros de extensão linear. A título de exemplo, o
rio Tietê, que é somente um dentre centenas de cursos d´água que
deságuam no rio Paraná, possui 1.100 quilômetros de extensão e é
deveras, mais caudaloso. Mas, a despeito de sua acanhada extensão
e caudal diminuto, ainda assim, o Jordão constitui o mais importante
curso d'água da região ocidental do Oriente Médio (Figura 18).
4
416
FIGURA 18 - Meandros do Rio Jordão: Esta foto, datada dos anos 1940, registra o
trecho final do Jordão, pouco antes deste desaguar no Mar Morto. Os inúmeros
meandros que serpenteiam ao longo da calha fluvial resultam da ação das águas
do rio. Tratando-se de uma calha formada por sedimentos recentes (Cenozoico), o
terreno oferece baixa resistência aos dinamismos hidrológicos do rio, que
desenha deste modo um trajeto errático. A Oeste do vale está o deserto da Judeia
e a Leste, o deserto de Moab. Ambos contrastam com a vegetação luxuriante que
ocupa a calha central do vale deste rio (Fonte: Israel - Die Goldenen Bücher, 1969,
página 81. A seta indica a direção norte)
O acirrado grau de contradições inseridos na disputa pelas águas
minguadas deste modesto curso d’água, é patente quando tomamos
conhecimento de que o Jordão é um rio internacional. Nada menos do
que cinco entidades nacionais existentes ou em formação relacionamse com o Jordão: Líbano, Síria, Israel, Jordânia e a ANP (Autoridade
4
417
Nacional Palestina). Do ponto de vista ambiental, é do adequado
aproveitamento e da preservação das águas da Bacia do Jordão que
depende o equilíbrio hidrológico da área drenada pelo seu fluxo.
Esta assertiva condiz, entre outros aspectos, com a questão da
evaporação do Mar Morto, lago salgado localizado na charneira
fronteiriça na qual confluem os territórios de Israel, Jordânia e da
Palestina, cuja retração resulta da diminuição do caudal do Jordão.
Lamentavelmente, em face do fluxo fluvial do Jordão corresponder
atualmente a apenas 1/8 do volume registrado cinco décadas atrás, o
apreensivo cenário pelo qual o Mar Morto pode estar eliminado dos
mapas da geografia física é, infelizmente, bem mais do que uma mera
premonição.
Outrossim, mesmo crivado por toda sorte de contradições, um
dado preocupante é que o Oriente Médio não constitui a única região
do mundo a vivenciar problemas sérios vinculados com os recursos
hídricos. Em função da degradação ambiental, espaços anteriormente
brindados com ampla oferta do líquido ressentem-se no início do II
Milênio da escassez de água doce.
Fenômenos como as mudanças climáticas estão promovendo
impactos múltiplos, todos relacionados com a redução dos estoques
de água. Dentre estes, poderíamos citar a desertificação, diminuição
do caudal e comprometimento da vazão das bacias hidrográficas,
supressão volumétrica drástica de bacias lacustres e a elevação do
nível dos mares.
4
418
Neste último caso, análises produzidas nas últimas oito décadas
demonstram elevação média do nível dos oceanos na ordem de 1,2
mm/ano. O fenômeno relaciona-se com o fato das massas oceânicas
estarem incorporando a cada ano, 430 km³ de água proveniente das
águas continentais. Ao mesmo tempo em que ocorrem acréscimos do
nível dos mares, estes provocam uma subtração ainda maior da área
das terras emersas e portanto, variações da quantidade e qualidade
dos recursos hídricos nas regiões litorâneas (NEGRET, 1982: 35).
Além do Machrek, tensões relacionadas com os direitos sobre os
recursos hídricos podem ser arrolados nas bacias dos rios Mekong
(compartilhada entre o Laos, Burma
86,
China, Tailândia, Vietnã e o
Camboja), da Prata (irrigando o Brasil, Bolívia, Uruguai, Paraguai e
Argentina) e do curso do rio Lauca (atravessando a Bolívia e o Chile).
Palpavelmente, as hostilidades entre a Índia e o Bangladesh tem
sido vitaminadas pela disputa em torno das águas do Ganges, o
mesmo ocorrendo na Europa Central entre os países banhados pelo
Danúbio. E estes constituem somente alguns dos enfrentamentos que
tem promovido desavenças entre nações, povos e etnias que ocupam
bacias fluviais e lacustres transfronteiriças.
Na realidade, o compartilhamento da água constitui atualmente
um problema difundido na escala internacional. Nada menos do que
155 dos maiores sistemas hidrográficos do mundo estão fracionados
entre duas nações e, além disso, 59 estão divididos entre três a doze
países. Por exemplo, no continente africano o rio Níger, percorre dez
Burma passou a ser conhecida como Mianmar por decisão unilateral dos governantes
militares deste país a partir de junho de 1989. Ressalve-se que além do movimento de
oposição ao regime, um largo segmento da opinião pública não reconhece a validade
desta decisão e continuam a se referir ao país como Burma.
86
4
419
países; os rios Nilo e o Zaire banham outros nove; o Zambeze, oito;
quanto ao Volta, são seis países. Quase 40% da população da Terra
habita bacias hidrográficas multinacionais (ELLIOTT, 1998: 223).
Ressalve-se que a pressão exercida sobre os estoques naturais
das águas doces, decorrente, por um lado, de demandas incessantes
pelo líquido por parte das residências, indústria e agricultura, e de
outro, pela contaminação em larga escala das reservas hídricas, tem
crescido de tal forma que a própria questão da destinação, ou não, de
recursos hídricos para os ecossistemas, ingressou, desde finais do
Século XX, na pauta das especulações técnicas e das proposições de
planejamento ambiental (SELBORNE, 2002:48).
Neste panorama, não há como deixar de registrar as recidivas
controvérsias opondo medidas de proteção à vida selvagem (inclusive
as ameaçadas de extinção), com as requisições da agricultura e da
pecuária, conflitos nos quais a produção de alimentos entra em rota
de colisão com a jurisprudência hídrica voltada para a conservação
do meio natural (BARLOW et CLARKE, 2003: 79).
Nesta conjuntura, os sistemas naturais listados como prioritários
numa estratégia de aproveitamento da água doce seriam aqueles
que, reconhecidamente, são considerados como indispensáveis para
o abastecimento humano, desempenhando marcante papel para o
atendimento das necessidades humanas, especialmente as do meio
urbano.
Nesta situação, se inscreveriam os ecossistemas concentradores
de umidade que concorrem para a perpetuação dos mananciais de
4
420
água potável, cuja localização geográfica, logo na circunvizinhança de
áreas de concentração urbana, valorizaria sua manutenção. Sendo
assim, se justificaria uma perturbadora indagação sobre o futuro dos
demais sistemas naturais que, num contexto de escassez crescente
de água, os tornariam “supérfluos”, e, por conseguinte, predestinados
ao aniquilamento.
De qualquer modo, quaisquer que sejam os contextos enfocados,
o rol de problemas relacionados com os recursos hídricos reclamaria
alguma concisão quando ao nódulo central que induz e reproduz este
instigante elenco de prognósticos, todos firmados, em maior ou menor
grau, na situação de estresse e/ou de rarefação da água.
Novamente, pode-se resgatar o primado pelo qual a crise dos
recursos hídricos da atualidade é um fato largamente subsidiado por
uma contextualização histórica, econômica e social, equação em cujo
seio, a fatoração natural, mesmo concorrendo para a eclosão da crise
dos recursos hídricos, não pode, sob nenhum pretexto, isoladamente
ser responsabilizada como fator desencadeador desta perturbação.
Há que ser sistematicamente repetido que o cosmos global é
conotado por desarmonias sociais sem paralelo em toda a história da
humanidade. Basta assinalar que os cinco países mais ricos, somam
86% do consumo de todos os bens produzidos no planeta, sendo que
estes contrastes que não cessam de se aprofundar.
Esta assertiva é inequívoca quando consultamos os dados do
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). No
ano de 2002, estes anunciavam que a quinta parte mais afluente da
4
421
população mundial consumia 45% de toda a carne e do pescado,
enquanto que a quinta parte mais pobre, somente 5%. Para outros
suprimentos, estes percentuais seriam respectivamente: 84% e 1,1%
para o papel; 74% e 1,5% para as linhas telefônicas; 87% contra
menos de 1% de toda a frota mundial de veículos; 58% contrapostos
a menos de 4% quanto à energia.
Os dados expostos balizam uma crítica de mão dupla. Ela estaria
endereçada para os setores de opinião que alertam para uma “crise
hídrica” exposta de modo alheio ao substrato social, assim como para
os que responsabilizam mecanicamente a “explosão demográfica”
como causa primordial de todos os males do mundo contemporâneo,
um argumento sorrateiro que açula o percepcionamento do Terceiro
Mundo como motivador sine qua non da escassez de água doce.
Um argumento em contrário é que não se pode negligenciar o
fato de que os países do Norte, graças aos seus hábitos referendados
num estilo de vida afluente, constituem não somente consumidores
de bens, como também, de recursos hídricos. Certificar esta situação
não oferece quaisquer dificuldades de monta. Basta prestar atenção
para o que segue:
Os norte-americanos usam 1.280 m³ de água por pessoa
todos os anos; os europeus usam 694; os asiáticos usam
535; os sul-americanos usam 311; e os africanos usam
186. Embora o europeu comum use apenas a metade da
água utilizada por um norte-americano comum, seus
níveis de consumo ainda são altos se comparados aos
níveis de cidadãos de países não-industrializados
(BARLOW et CLARKE, 2003: 68).
4
422
Por conseguinte, o mais provocativo dos cenários relacionados
com a água, está direcionado para a questão do abastecimento dos
países da União Europeia, Japão e Estados Unidos, que caminham a
passos de gigante da situação de estresse hídrico.
Em concordância com o que frisamos anteriormente, este grupo
de nações, detentoras de gigantescos parques fabris, compondo os
maiores polos de consumo e de esbanjamento de recursos, estarão
se defrontando em futuro próximo com a premência de dar conta da
“sua” crise hídrica, que se aproxima adereçada de fisionomia própria.
Promotoras do modelo de desenvolvimento ao qual cabem as
maiores responsabilidades pela crise hídrica que assola o planeta,
estas nações veem-se, pois à volta com os dilemas que retrogradam
aos espaços vetoriais de desequilíbrios carregados de radicalizado
leque de contradições, daí o recorrente apelo teledirigido e da grande
mídia insistindo na “dramaticidade” da crise.
A despeito do estresse hídrico já ser, desde muitas décadas, uma
realidade para a periferia pobre dos grandes centros urbanos, apenas
quando esta crise acudiu nos núcleos do sistema global, é que sua
visibilidade se impôs aos núcleos de afluência (VIANA, 2005).
Numa visada física, ambiental, geoeconômica e geopolítica (ou
mais acertadamente, estas quatro dimensões em sinergia), o contexto
suscitaria indagações quanto aos cenários que se desenham para
estes países satisfazerem suas exigências de água doce, escapando
assim, da sina que já acomete os países e as populações pobres.
4
423
Destarte, lado a lado com prognósticos otimistas, antecipando um
comércio de água beneficiando provedores e compradores do líquido,
pode-se também escriturar a possibilidade de conflitos, cenário este
que se materializou historicamente em diversos contextos nos quais
se acendeu o interesse por recursos indispensáveis.
De resto, mesmo existindo anuência que a água se transforme
em um bem de mercado, como estará garantido o abastecimento
daqueles segmentos colocados à margem da ordem mercadológica e
excluídos de participação na sociedade?
Decerto, a escassez atingirá, e com maior ênfase, as populações
do Terceiro Mundo, habitantes de países que em muitos casos serão
justamente os solicitados para atender o consumo dos países do
centro. Para complementar, quem contestaria a afirmação de que a
comercialização da água, prioritariamente garantirá o abastecimento
daqueles setores que, no Norte e no Sul do planeta, dispõem de
numerário para pagar pelo acesso ao líquido?
Esta somatória de problemas nos conduz inevitavelmente a
destacar o papel das reservas brasileiras de água. Uma reconhecida
avaliação, amplamente aceita, estabelece que o Brasil seria detentor,
no interior da sua cimalha territorial, de 12% da água superficial do
planeta (Cf. REBOUÇAS, 2002a: 29), montante significativo não só
do ponto de vista quantitativo como também do qualitativo. Situação
verdadeiramente ímpar no mundo, está comprovada a existência no
território brasileiro de imensos corpos líquidos altamente competitivos
em termos de pureza, passíveis de serem integrados à pauta do
comércio exterior.
4
424
Somente este fato justificaria a importância da problemática das
águas doces para o conjunto da sociedade brasileira, constituindo
motivo adicional para que esta preocupação seja discutida com maior
rigor e detalhamentos, apurando os aspectos econômicos, sociais e
políticos desta questão.
Iniciando então este detalhamento pelos que rondam o planeta
como um todo, cujos reflexos, cedo ou tarde, influenciarão pareceres
em todos os níveis sobre a destinação a ser proposta aos recursos
hídricos localizados sob jurisdição brasileira.
8.2. A EXAUSTÃO DOS RECURSOS HÍDRICOS
O mainstream se acostumou a apreender o petróleo, assim como
os metais, enquanto insumos pertencentes à pauta das provisões
estratégicas. Mais recentemente, a biodiversidade, ou o ouro verde,
também passou a integrar o cadastro de recursos inventariados como
estruturantes das molas da economia-mundo.
No entanto, o imaginário social ainda não se deu conta de que a
água possa igualmente estar em vias de se transformar, se é que tal
fato já não ocorreu, em mais um, senão o mais vital e cobiçado dos
recursos estratégicos, o ouro azul do II Milênio.
Isto porque em razão da escassez galopante, a água, recurso
natural renovável, mas não inesgotável, tornou-se um bem disputado,
constituindo-se na atualidade como um fator de estabilidade social
interna e da balança de poder na arena internacional. A água é cada
4
425
vez mais um recurso sobre o qual incidem com força as atenções do
poder. Deste modo, a disputa por esta substância consolida-se como
fonte de toda sorte de antagonismos, em curso ou potenciais.
É o que se pode inferir a partir do clarividente comentário do
geógrafo francês Claude RAFFESTIN:
Foi-se o tempo em que a água era considerada um bem
livre. Ela só o era, aliás - e a economia política que nos
desculpe - onde era superabundante em relação às
necessidades [...] De fato, no passado as sociedades que
elaboravam ‘políticas da água’ estavam localizadas em
zonas de fraca precipitação e de temperatura média
elevada, como no Egito, na Mesopotâmia, em certas
regiões da China, etc. Hoje, por causa da utilização e do
consumo aumentados pelo crescimento demográfico e
econômico, todos os países se confrontam com
problemas relacionados com a água. A água, como
qualquer outro recurso, é motivo para relações de poder e
de conflitos (1993: 231).
Os sinais de uma crise hídrica inédita na história humana estão
por toda parte. Um claro indício de que o precioso líquido escasseou,
é o surgimento de um negócio internacional de águas doces. Nos
anos finais do Século XX, a água potável passou a integrar a pauta
de importações de países tão diferentes quanto Chipre, Cingapura,
Kuwait, Japão, Israel e os Emirados Árabes Unidos.
Outra informação é que dos anos 1970 em diante, expandiu-se
apressuradamente a comercialização de água mineral engarrafada.
Fato simplesmente impensável décadas atrás, os galões de plástico
utilizados para acondicionar o líquido para vendê-lo, transformaram-
4
426
se em verdadeiros ícones urbanos, inseparáveis do cotidiano ubíquo
das grandes cidades do mundo.
O século passado, testemunhou a degradação de vales fluviais
inteiros, tanto pelo comprometimento da vazão natural em face da
destruição do meio ambiente, quanto da retirada excessiva de água
para as lavouras, atividades industriais e para o consumo residencial.
Nesta vertente, seria inescapável registrar o destino de rios como
o Colorado, que drena naco considerável do Sudoeste americano e
tem foz no México. Este curso d’água, que no passado chegou a ser
referido como “Nilo americano”, está praticamente secando. Quando
alcança a foz, no Golfo da Califórnia, grande parte do caudal (90%)
foi desviado pela agricultura irrigada do Arizona, do Colorado e de
Utah, e para atender as cidades do trecho norte-americano do vale.
Deste modo, a controvertida abdução das águas desta bacia
hidrográfica pelos EUA, paralelamente às considerações de mote
ambiental, tem motivado múltiplos incidentes e crispações entre a
federação norte-americana e o México (VILLIERS, 2002: 311/319).
Situação similar acomete o rio Amarelo, ou Hoang-Ho, na China.
Outrora correndo vigorosamente através das planícies de loess
87
do
Norte deste país e constituindo uma das bases do surgimento da
grandiosa civilização sínica, o rio Amarelo está morrendo. Sabe-se
que desde 1985 seu curso tem secado todos os anos, e o período em
que permanece sem água tem gradativamente se estendido. No ano
de 1996, o rio ficou seco por 133 dias. Entrementes, em 1997, ano
87
Depósito eólico composto de partículas muito finas, acumuladas marginalmente às regiões
desérticas, propiciando a formação de terrenos de alta fertilidade.
4
427
especialmente castigado pela seca, este rio deixou de atingir o mar
durante exatos 226 dias (Vide VILLIERS, 2002: 363). Embora fato
desalentador, este dramático acontecimento não constitui caso único.
Pelo contrário, integra vasto elenco de agressões que tem destruído
os mais diversos corpos líquidos, tanto na China quanto em boa parte
do planeta.
Indiscutivelmente as alterações impostas ao fluxo dos grandes
vales fluviais declinaram em soberbos desastres ambientais, e isto,
numa escala nunca vista. Dois destes exemplos seriam os rios AmuDarya e Syr-Daria, que banham as repúblicas da antiga Ásia Central
Soviética (ou Turquestão russo), alvos de desequilíbrios hidrológicos
de tal monta, que levaram à virtual destruição do vasto Mar de Aral.
Outrora formando um lago salgado localizado na confluência das
fronteiras do Cazaquistão e do Uzbequistão, o Aral observa um rápido
processo de desaparição. O desmatamento da vegetação nativa e o
uso intensivo do solo provocaram assoreamento acelerado. Este
processo agravou-se, em obediência aos Planos Quinquenais da
economia centralmente planejada, executados pela burocracia da exURSS, estipulando o desvio das águas dos rios Amu-Darya e SirDarya para a cultura mecanizada do algodão.
Como resultado, o Mar de Aral deixou de receber o essencial da
contribuição hídrica que mantinha o volume d’água. Perdendo metade
da massa do líquido nos últimos trinta anos, as margens do Mar de
Aral chegaram a recuar 80 km. A navegação interior ficou impedida e
a pesca, que sustentava a produção de caviar (10% da produção da
ex-URSS), praticamente findou. A salinidade multiplicou-se por três e
4
428
nas áreas agora secas correspondentes ao antigo leito marinho, os
ventos passaram a carregar uma poeira salina saturada de pesticidas
para pontos até 500 km de distância, criando e expandindo novos
desertos. Desastres semelhantes estão previstos para outros corpos
líquidos salgados, como o já mencionado Mar Morto, cujas margens
têm registrado estrondoso retrocesso nos últimos anos
88.
Outro problema sério é o destino das massas líquidas formadas
pelos lagos de águas doces. Embora cobrindo área 12 vezes menor
do que a calha dos rios, estes corpos líquidos acumulam um volume
aproximadamente 35 vezes maior de água do que os caudais fluviais
de toda a Terra, incluindo seus escaninhos (SHIKLOMANOV, 1999).
Regiões lacustres como os Grandes Lagos da América do Norte
(EUA/Canadá) e do Lago Baikal, na Sibéria oriental (Rússia), são
insistentemente citados como afetados pela poluição, muitas vezes
de modo irreversível. Assinale-se o vulto dos ambientes citados,
concentrando no primeiro caso 27% da água das regiões lacustres do
planeta, e 25%, no segundo (VILLIERS, 2002: 57).
Last but important, além dos esgotos e das águas residuárias das
indústrias, as deposições ácidas colaboram com o seu quinhão na
dilapidação das bacias lacustres em todas as regiões industrializadas.
Quanto aos aquíferos, sabe-se que os mesmos estão sendo
explotados num ritmo muito superior ao da recarga, disto resultando a
Com o objetivo de salvar o Mar Morto da agonia, em 2005 Israel e Jordânia iniciaram
estudos de viabilidade de um ambicioso projeto de transposição das águas do Mar
Vermelho para o Mar Morto, consistindo na construção de um canal que além de repor o
nível da lâmina de água deste lago salgado, abasteceria usinas de dessalinização, uma
iniciativa que também beneficiaria a população palestina (Ver AMBROSIO, 2005).
88
4
429
exaustão e o esgotamento dos reservatórios. Recorde-se que a água
subterrânea possui um tempo de renovação em média muito dilatado:
segundo estimativas dos especialistas, em torno de 1.400 anos (Vide
SHIKLOMANOV, 1999). Levando-se em consideração este tipo de
informação, salienta a especialista indiana Payal SAMPAT:
...à medida que nossa dependência da água subterrânea
aumenta, a disponibilidade deste recurso se torna mais
limitada. Em quase todos os continentes, muitos dos
principais aquíferos estão sendo exauridos com uma
rapidez maior do que sua taxa natural de recarga (2000:
12).
Intercorrências deste tipo são maximizadas pelo porte de projetos
nos quais o longo prazo não consta na planilha dos planejadores.
Cite-se o projeto de explotação do aquífero da Núbia, megaprojeto do
governo de Al-Gaddafi, da Líbia, propagandeado como “Grande Rio
Construído pelo Homem”, executado quando as fontes convencionais
litorâneas do país, exploradas até a exaustão, praticamente secaram.
Serpenteando por mais de 1.800 quilômetros de tubulações que
cortam o Saara, este aqueduto, a “Oitava Maravilha do Mundo”, tal
como o projeto é emulado pela propaganda governamental, conduz
água extraída de mais de mil poços da árida província saariana do
Fezzan e da região de Kufra, para a sedenta costa setentrional do
país. Contudo, esta água benfazeja, está sendo bombeada de um
lençol subterrâneo que se estende pelas nações vizinhas, provocando
inconformismo na opinião pública de países como o Egito, que rotula
o megaprojeto (aliás acertadamente), como um desavergonhado caso
de “roubo de água”, rixa que abespinha as relações com a Líbia, em
face do histórico de hostilidades do Egito com o regime de Al-Gaddafi.
4
430
Polêmicas à parte, em favor do Grande Rio Construído pelo
Homem, existe o fato concreto de que este, afugentou o “fantasma
das torneiras secas”, e ofereceu uma seguridade hídrica à população
desta árida nação norte-africana. Para mais, a oferta de água pelo
projeto tem sustentado a expansão de sistemas de agricultura irrigada
e inclusive, de bombeamento de águas servidas para recarregar e
assegurar o provimento futuro dos aquíferos litorâneos situados na
Cirenaica e na Tripolitânia.
Porém, a exploração dos veios destes reservatórios saarianos
está sendo operada dispensando quaisquer preocupações quanto ao
fato do estoque natural suportar não mais do que algumas décadas
de prospecção, ao menos no ritmo pelo qual, suas águas têm sido
extraídas. E após o esgotamento do aquífero da Núbia, onde os líbios
poderão encontrar água? E os países ao redor, caso reivindiquem sua
proporção de águas do aquífero, como será possível indenizá-los?
Comumente, o histórico da exploração dos lençóis subterrâneos
alude a impasses e contenciosos, que tal como no projeto líbio, tem
por epílogo, as incertezas que acodem as sociedades quando a água
deixa de jorrar dos poços.
Neste prisma, o caso do aquífero Ogallala, nos Estados Unidos, é
ilustrativo das repercussões ruinosas da sobre-exploração da água
subterrânea pelas coletividades humanas. O rebaixamento do nível
do Ogallala, que abastece 1/5 da agricultura irrigada estadunidense e
respondem pelo funcionamento de uma província agrícola de primeira
grandeza, pode conduzir a cenários muito preocupantes.
4
431
A saber, parte significativa da exportação americana de grãos é
proveniente do Ogallala, bem como metade da carne produzida neste
país, sendo básico para a economia de oito estados americanos:
Dacota do Sul, Nebraska, Wyoming, Colorado, Kansas, Oklahoma,
Novo México e Texas. Mas, o bombeamento indiscriminado da água
subterrânea, fez as profundidades dos poços baixarem de 30 metros,
40 anos atrás, para mais de 100 metros no raiar do novo Milênio (Cf.
REBOUÇAS, 2004: 91). Então, como tem sido prognosticado, caso
...a crise de água da China forçá-la a procurar o mercado
mundial em busca de grãos, e se esse aumento de
demanda vier quando o aquífero de Ogallala estiver
exaurido ou o bombeamento da água tiver se tornado
caro demais, isso poderá gerar uma crise global de
alimentos (VILLIERS, 2002: 227).
Face ao exposto, a gestão e utilização das águas de superfície
coloca-se na ordem do dia. Examine-se que mesmo configurando,
numa ótica quantitativa, um estoque reduzido, a fração formada pelos
fluxos classificados como superficiais pelo jargão dos especialistas
(quais sejam, os encontrados nos rios, lagos, oásis e afloramentos
que brotam na extensão da crosta), estampa um suprimento colossal,
que em tese, permitiria atender a comunidade mundial, que adentrou
o Século XXI com seis bilhões de membros. Restaria, pois indagar, o
porque da sede existir no mundo e principalmente as razões que a
tem acentuado.
Evidentemente, a opressão das minorias étnicas, a repressão
dos povos não-representados e as desigualdades sociais, contribuem
para explicar o consumo dessimétrico do líquido, e igualmente, as
mediações colocadas para seu acesso. Em muitas partes do Terceiro
4
432
Mundo, enquanto a alta sociedade urbana adquire água mineral, faz
perfurações à vontade e usufrui do acesso aos sistemas públicos de
abastecimento de água potável, as camadas pobres da população se
veem obrigadas a apelar para o oneroso e irregular fornecimento de
comerciantes particulares (CMMAD, 1988:283).
Esta água, vendida através de caminhões pipas, além de pouco
confiável quanto a potabilidade, chega a alcançar dez a doze vezes o
preço pago pelas moradias conectadas à rede oficial, e os clientes,
tem ainda que resguardá-la em baldes, garrafas e latões, geralmente
armazenando-a de modo precário. Em outras situações o privilégio de
dispor de água, articula-se explosivamente com marcadores sociais
étnicos e raciais. Na República da África do Sul, fazendeiros brancos
com genealogia bôer
89,
apropriaram-se, grosso modo do essencial
da água, comprometendo o abastecimento de imensas massas rurais
formadas por africanos autóctones, cujos territórios ancestrais lhes
foram, por sinal, ilegitimamente usurpados (ELLIOTT, 1998: 228).
Um levantamento sobejamente conhecido indica que neste país,
600 mil fazendeiros de origem europeia monopolizam 60% da água,
destinada à irrigação, enquanto que 15 milhões de negros nativos sulafricanos, vegetam em meio a uma profunda indigência hidrológica
(BARLOW et CLARKE, 2003: 71).
Neste recorte, tal como em fartos outros, não propriamente a
natureza, porém antes, a natureza dos sistemas sociais, parece
condenar os humanos às agruras da sede. Fato que se impõe por si
Bôer ou africâner é a denominação dada aos descendentes de europeus, basicamente
holandeses, que se instalaram na província do Cabo, na atual República Sul-Africana,
durante a colonização batava. No Século XX, constituíram o esteio do finado regime de
supremacia branca do Apartheid.
89
4
433
mesmo, o dinamismo do processo urbano inerente à modernidade, ao
qual estão associadas dessimetrias sociais, políticas e econômicas,
apresenta sua quota de responsabilidades, tornando insuficiente uma
oferta preexistente de água.
É o que a história do ancestral Vale do México pode revelar, cujo
epicentro, gravitava em torno do então lago Texcoco (ou “Lago da
Lua”, na língua materna dos antigos astecas). Antes abrigando numa
das suas ilhas a capital asteca, a cidade de Tenochtitlán, a região
formada por este notável corpo líquido (7.800 km²), o principal do
planalto de Anahuac
90,
jamais foi obsedada pela carência de água.
Aliás, os mitos fundadores dos indígenas esclarecem o papel deste
esplêndido afloramento de água e dos brotos d’água dos arredores,
que animaram o surgimento desta civilização singular.
O conglomerado urbano pré-colombiano do vale do México tinha
por núcleo central Tenochtitlán, dotada de esplêndida arquitetura. Sua
população alcançava 100.000 domiciliados no Século XVI, o dobro de
qualquer localidade europeia no mesmo período. Magnetizando todas
as localidades postadas nas margens do Texcoco, a metrópole asteca
era servida por um sofisticado sistema de distribuição de água, com
fontanários, tanques, bicas e reservatórios cuidadosamente plotados
ao longo da urbe.
A cidade, engastava um pujante quadriculado de jardins e hortas
flutuantes (as chinampas), que garantiam a alimentação de numerosa
população indígena. Relatos pré-colombianos, em paralelo com as
crônicas do interregno colonial espanhol, ressaltam a abundância dos
Emblematicamente, Anahuac na língua nahuatl, falada pelo povo asteca, significa
“próximo da água”.
90
4
434
recursos hídricos existentes nessa região. Sensatamente, o vale foi
nominado pelos espanhóis, em razão da prodigalidade dos lagos,
amuradas e canais, como “Veneza do Novo Mundo”.
Entretanto, a atual Cidade do México (Figura 19), a quinta maior
concentração urbana da tecnoesfera, implantada sobre as ruínas do
antigo assentamento asteca e em espaços aterrados tomados do que
antes, formava o corpo líquido do Texcoco, resultou numa metrópole
conhecida por notórios problemas quanto ao abastecimento de água.
A mancha urbana da metrópole, uma macrocefalia urbana de
primeira ordem que exerce o papel de núcleo da formação espacial
mexicana, constitui o teatro por excelência de um dos quadros mais
críticos de crise do abastecimento de água. O problema, reporta ao
dinamismo descontrolado desta megalópole, somado a um longo
histórico de agressões ambientais, através do qual as fontes locais de
recursos hídricos foram brutalizadas e esgotadas.
O ponto de partida desta situação foi a dominação espanhola.
Quase imediatamente à vitória de Fernão Cortez sobre o Império
Asteca (1521), encetou-se uma ensandecida demolição das grandes
construções e dos diques, recorrendo o poder colonial para tanto, ao
trabalho escravo dos novos súditos indígenas.
A cobertura vegetal das redondezas do vale também foi arrasada,
descompondo os equilíbrios hidrológicos do Texcoco. Assim, a meta
dos espanhóis, que a Cidade do México, agora capital da província da
Nova Espanha, se assemelhasse o máximo possível de uma urbe
castelhana, porém jamais de Veneza, foi finalmente alcançada.
4
435
FIGURA 19 - Vista de Netzahualcoyotl, populoso arrabalde da capital asteca
(Foto: Revista O Correio da UNESCO, março de 1985, nº. 3, página 25)
4
436
Contudo, este feito foi o prenúncio da falta de água. Hoje, para
abastecer a metrópole, mananciais distantes 300 km são reclamados
para satisfazê-la. Com a mesma finalidade, foram perfurados poços
com profundidades que alcançam mais de 1.900 metros, e que ainda
assim, não cessam de competir para ultrapassar esta marca.
Basicamente, a cidade depende em 70% destes aquíferos, cujas
águas estão sendo abduzidas em ritmos superiores em até 80% às
taxas de recarga. Simultaneamente, a metrópole vivencia problemas
de estabilidade do solo devido às drenagens inadequadas do Lago
Texcoco, decorrendo em recalques do solo que afetam áreas inteiras
do pavimento urbano. A Cidade do México está literalmente ficando
sem água, e para complicar, nada permite antever solução para o
problema (Vide BARLOW et CLARKE, 2003: 21/22; UNESCO, 1984).
Articulada como polo urbano que recorre à abdução das águas
de um entorno que se estendeu mais e mais, a progressiva expansão
da metrópole mexicana transformou-a num sorvedouro de recursos
hídricos de uma dilatada adjacência geográfica, um autêntico nódulo
indutor do ressecamento do espaço.
Além da Cidade do México, muitas outras metrópoles periféricas,
dentre as quais Djakarta (Indonésia), Mumbai (Índia), São Paulo
(Brasil), Damasco (Síria), Cairo (Egito), Bangcoc (Tailândia), Kolkata
(Índia), Sana (Yêmen), Daca (Bangladesh), Sana (Iêmen), Lagos
(Nigéria), Pequim (China) e Adis Abeba (Etiópia), apresentam quadros
preocupantes quanto à disponibilidade do líquido, situação também
motivada pela malversação dos recursos hídricos locais e regionais.
4
437
Os distúrbios que sacudiram Delhi e Dacca, ilustram o caráter
explosivo que a questão do abastecimento de água potável insere.
Em várias das metrópoles periféricas, parte significativa da população
conta quando muito, com água de má ou péssima qualidade para
atender as necessidades cotidianas, ocasionando gravíssima penúria
hídrica e más condições sanitárias. Recorde-se que em razão do
despejo de esgotos in natura nos rios, caudais potencialmente aptos
para atender as demandas das metrópoles, foram transformados em
depositários de efluentes de todo tipo. A degradação das reservas
urbanas de água, intensamente afetadas do ponto de vista ambiental
pelo reforço de nutrientes oriundos do lançamento indiscriminado de
esgotos, se explicita na turbidez, da emanação de maus odores, na
lama fecal e na eutrofização destes corpos líquidos.
Espetáculo mais “fotogênico”, o aumento do florescimento de
algas e de outras plantas aquáticas relaciona-se diretamente com o
material orgânico dos esgotos domésticos (Figura 20), afugentando a
avifauna, asfixiando peixes e moluscos, assim como afetando tanto o
aproveitamento econômico da água, quanto o consumo humano.
Adicionalmente, seria essencial registrar o viés político associado
à depredação dos reservatórios. Por exemplo, a Região Metropolitana
de São Paulo, mesmo dispondo de magníficos lagos artificiais, como
as represas Billings e Guarapiranga, adota o impopular sistema de
rodízio como consequência da poluição, da extensividade seletiva da
rede, assoreamento e comprometimento das águas destes sistemas,
óbices anabolizados pela implantação de loteamentos clandestinos,
solidamente articulados com esquemas de corrupção, pistolagem,
clientelismo e de favoritismo político.
4
438
FIGURA 20 - A eutrofização das águas: Por conta de fatores ambientais como o
reforço de nutrientes acompanhado do aumento da temperatura da água, tem
ocorrido um aumento crescente de florescimento de algas em todo o mundo,
asfixiando peixes, moluscos e outras espécies. Durante a seca do verão de 1999, a
lentilha d'água floresceu num ritmo milhares de vezes acima do normal nas águas
lentas do Rio Schuylkill, na Pensilvânia (EUA), ocupando por completo a superfície
da água. A planta nutriu-se dos despejos das estações de tratamento de esgotos, e
sua proliferação, afetou o abastecimento das cidades da região (Foto: Revista
World Watch, Volume 14, nº. 1, 2001, contracapa)
4
439
Ademais, noutras importantes regiões provedoras de água da
RMSP, incluindo a bacia do Alto Tietê e do Sistema Cantareira,
mesmo considerando-se a gravidade da situação vivida pela região
metropolitana, também não se reserva qualquer otimismo quanto à
preservação das represas. Por sinal, as cidades seriam, de um ponto
de vista sistêmico, vetor axial das agruras da sede. Os impactos
decorrentes das edificações e do asfaltamento, empreendimentos que
se generalizaram com a expansão do modelo urbanístico ocidental,
desempenham um papel desmantelador dos equilíbrios hidrológicos.
Pesquisas empreendidas pelo hidrólogo eslovaco Michal Kravcik
nos anos 1990, atestam que a impermeabilização do solo atua como
poderoso fator de rarefação dos recursos hídricos. O campo de
estudos deste pesquisador foi seu país de origem: a Eslováquia, uma
nação da Europa central com 49.000 km² (pouco maior que o Espírito
Santo, que totaliza 45.733 km²), cuja população, somando 5.400.000
habitantes, urbanizou-se celeremente, em resposta aos planos de
desenvolvimento econômico levados adiante pela antiga República da
Tchecoslováquia, a partir dos finais da II Guerra Mundial.
As dimensões relativamente pequenas deste país, assim como a
industrialização e urbanização historicamente recentes, possibilitaram
estudos de fundo sobre a dinâmica dos recursos hídricos. Através de
uma avaliação detalhada do território eslovaco, uma das conclusões
de Michal Kravcik é cada m² de asfalto provoca perdas anuais entre
200 e 300 litros de água. Matematicamente, chegou-se ao resultado
pelo qual anualmente, a Eslováquia dissipa de modo irreversível o
equivalente a 1% das águas de sua rede fluvial. Outra consequência
das intervenções antropogênicas seria a retração da pluviometria.
4
440
Acredita-se que no território da Eslováquia as precipitações tenham
diminuído em torno de 35% nos últimos 50 anos.
A explicação é que a água, em vez de se infiltrar ou impregnar
reservas de umidade no solo, campos, pântanos, bosques e florestas,
passa a escoar diretamente para os rios e destes, para as massas
oceânicas. Os objetos espaciais construídos pela ação humana, ao
eliminarem etapas como a reservação e a transpiração, induzem a
retirada de enormes volumes de água do ciclo hidrológico, ao mesmo
tempo em que conduzindo mais água para os oceanos, avolumam as
perdas do líquido em razão da elevação do nível dos mares.
Deste modo, a aceleração do índice de expansão urbana global
tenderá a acentuar o fenômeno, diminuindo assim a quantidade real
de água fresca disponível no planeta. Nas preocupantes projeções de
Michal Kravcik, o ciclo hidrológico terrestre como um todo estará
inapelavelmente exaurido nos próximos cem anos.
Convivendo com este cenário perpassado por nuanças das mais
ameaçadoras, certo é que a apresentação de soluções rubricadas
como “alternativas”, ofereceriam certa esperança. É, justamente esta
a razão que termina por granjeá-las com popularidade junto a atores
sociais e institucionais com mandato na gestão dos recursos hídricos,
assim como no imo da sociedade civil organizada.
Poderíamos, sem dúvida alguma, registrar benefícios irrefutáveis
nos programas de otimização e conservação dos recursos hídricos.
Dentre estes, os que prescrevem a implantação de “calçadas verdes”
(construídas com blocos vazados permitindo a infiltração da água), a
4
441
reservação da massa líquida captada da precipitação pluviométrica
91
e das águas servidas classificadas como “cinzas”, para usos nãopotáveis 92.
Neste quesito poder-se-ia incluir o esgotamento sanitário, assim
como a lavagem de calçadas e dos quintais das residências, funções
para as quais o uso da água tratada, clorada, fluoretada e encanada
constituiria procedimento exemplar de esbanjamento despropositado.
Também seria possível postular a substituição dos sistemas usuais de
expulsão dos efluentes residenciais em favor de modelos baseados
em descargas reduzidas, hidrologicamente mais eficientes e mais
adequados do ponto de vista ambiental. No caso dos Estados Unidos,
a simples aplicação de legislação datada do ano de 1994, impondo
maior eficiência nas instalações sanitárias, tornou factível a redução
em até 70%, da quantidade de água da rede consumida por milhões
de banheiros norte-americanos (BARLOW et CLARKE, 2003: 277).
Entretanto, como não poderia deixar de ser, caberia evidenciar
quanto à difusão das proposições técnicas o peso dos contextos
historicamente situados, que dão a última palavra no tocante à
incorporação de novas metodologias de gerenciamento dos recursos
naturais, inclusive as qualificadas em contribuir com a preservação da
qualidade das águas voltadas para o abastecimento das grandes
cidades.
No estado do Rio de Janeiro, a Lei nº. 4.248 (16-12-2003) instituiu o Programa de
Captação de Águas Pluviais, visando oferecer treinamento aos habitantes das cidades
para a coletar as águas das chuvas. Na cidade do Rio de Janeiro, o Decreto nº. 23.940
(30-01-2004), tornou obrigatória nos casos previstos, a adoção de reservatórios que
permitam o retardo do escoamento das águas pluviais para a rede de drenagem,
objetivando também o reúso para finalidades não potáveis.
92 As águas cinzas corresponderiam, neste contexto, à água de banho e da lavagem de
roupa, não se confundindo com as Gray Water Flow, jargão técnico anglófono para os
depósitos de águas subterrâneas.
91
4
442
Tal panorama certamente reservaria cenários pouco atraentes,
em especial porque injunções de ordem social, política e econômica,
estão frequentemente em exata oposição à conservação dos recursos
hídricos. No que constitui reapresentação de uma sentença histórica
e sociológica por demais conhecida e repetida, o pendor do modelo
de utilização dos recursos hídricos estará fadado a apelar, até o
último momento quanto for possível - optima video, deteriora sequor
-, para as pulsões perdulárias no uso do líquido.
Nesta ordem de argumentações, seria conveniente recordar
célebre diagnóstico lavrado pelo filósofo Karl Marx, segundo o qual:
Nunca uma ordem social desaparece antes de todas as
forças produtivas, que nela tem lugar, tenham se
desenvolvido; e nunca, novas e poderosas relações de
produção surgem antes das condições materiais de
existência tenham se esgotado no útero da velha
sociedade (in Uma Contribuição à Crítica da Economia
Política, citado em COLLINSON, 2004: 192).
Todavia, na hipótese desta citação reapresentar-se mais uma vez
junto ao panorama histórico concreto, quem arriscaria prognosticar a
possibilidade de uma nova pactuação com o meio natural num mundo
exaurido de sua água?
8.3. ÁGUA, GLOBALIZAÇÃO E NEOLIBERALISMO
O conjunto de prédicas arroladas permitiria considerar que,
indiscutivelmente, presencia-se o desenrolar de uma era marcada
pelo pipocar de espicaçadas atribulações. Atualmente, mais do que
4
443
em qualquer outra época precedente, o mundo assiste à irrupção de
uma pauta diversificada de contendas, dentre as quais, pespontam de
modo sistemático as relacionadas com a água doce.
Seria, pois, cabível aprofundar esta discussão nos termos pelos
quais as disputas centradas no controle do líquido terminaram por
encontrar fundamento em conceitos voltados para o enquadramento
da água enquanto recurso econômico. Lado a lado com a afirmação
deste paradigma noviciário para os recursos hídricos, a entronizada
fórmula que subentende a água enquanto um direito, passou a ser
crescentemente erodida. Quando muito, esta noção consuetudinária
foi substituída por uma locução de alcance bem menor, entendendo a
água enquanto uma necessidade.
Neste patamar, pode-se recorrer ao cotejamento do geógrafo
Claude RAFFESTIN pelo qual, todo recurso seria a priori, produto de
uma relação social e historicamente contextualizada com a natureza
e, com base neste ponto de vista, não existiriam recursos naturais em
si mesmos, mas antes e por princípio, matérias naturais (1993: 225).
Por conseguinte, qualquer matéria natural, categoria que é óbvio,
incluiria a água, seria passível de se tornar um recurso em função de
determinados entrosamentos das coletividades humanas com o meio
natural. Ademais, dado que “toda relação com a matéria é uma
relação de poder, que se inscreve no campo político por intermédio do
modo de produção” (RAFFESTIN, 1993: 225), não haveria como esta
conjugação deixar de encontrar respaldo numa arquitetura de mando,
que passa a subordinar a utilização dos recursos ao seu gosto e
vontade.
4
444
Estes enunciados destacam uma amarradura de arrazoados que
transformaram a questão dos recursos hídricos num debate central na
sociedade contemporânea, vicejando na esteira da globalização, e
articulada no interior desta, com o evangelho neoliberal. Nesta toada,
estejamos nos referindo ou não a este processo nas soldaduras da
privatização, precificação ou tarifação da água, a transformação da
água em mercadoria traz em seu cerne uma série de repercussões,
com influência determinante quanto ao acesso ao líquido.
Perceptível no horizonte global no qual está integrada a maioria
absoluta dos humanos, este movimento enseja as mais duras provas
para amplos segmentos sociais. Nesta sequência, os fatos inerentes
à totalidade social, política e econômica que soldam a globalização
não admitiram, de modo algum, minimizar a ordem de impactos que
inserem. Tampouco, uma tomada de posição diante das alterações
radicais costuradas quanto à reordenação dos usos da água doce.
Obviamente, esta inscrição reclama a voz da massa de excluídos
que se agigantou com o concurso da globalização. Como se sabe, no
bojo da modernidade vasta maioria dos humanos tem sido instada a
participar não como coadjuvante ativo, porém fundamentalmente,
enquanto atores nela desigualmente integrados, uma “universalização
perversa” que se recompõe dia a dia mediante exegeses cada vez
mais impetuosas (passim SANTOS, 1978a).
Paralelamente aos dolos que tem tipificado o cotidiano de amplas
maiorias, num espectro que se estende da falta de moradia e do
desemprego, incorporando a fome e a violência urbana, agora estes
4
445
mesmos segmentos são o alvo preferencial das inclemências da crise
hídrica global.
Fosse improcedente tal reflexão, não haveria como cadastrar que
26% da população mundial vive atualmente as agruras do estresse
hídrico, e grande parte desta, no Terceiro Mundo; que, de acordo com
a ONU, antes de 2025, do total de humanos, 47% serão formados por
cidadãos de baixa renda, atormentados pela falta d’água; que nas
megacidades, hoje um traço distintivo dos países do Sul, 50% da
população não tem à mão suprimentos confiáveis de água; que por
fim, antes de 2030, mais da metade da população das metrópoles da
periferia será moradora de favelas, carente de acesso aos serviços de
abastecimento e saneamento básico (MAUDE et CLARKE, 2003: 67).
Seria lícito refletir que a amplitude da exclusão social induziria
obrigatoriamente a apresentação de formulações que apreendessem
a origem da problemática. Daí a imperiosidade de categorias como a
da globalização, quase sempre flexionada concomitantemente com a
do neoliberalismo, justificando-se no fundamental, pelas premissas
que no seio deste proselitismo, realçam as notas mais impulsivas que
deram vazão à expansão do Ocidente e a supremacia da economia
de mercado nos últimos séculos.
Numa conceituação sintética, o neoliberalismo seria correlato às
proposições do capitalismo dito “liberalizado”, liberto das amarras do
“corporativismo” e dos obstáculos subsequentes a uma intervenção
“excessiva” por parte do aparato estatal. Marcando especialmente as
últimas décadas do Século XX, esta linha de interpretação se opõe a
uma série de experiências de índole social-democrática que sugeriam
4
446
a possibilidade de um “capitalismo com rosto humano”, assim como
versões advogando propostas de cunho democrático, progressista,
reformista, e/ou nacionalista.
De um ponto de vista político, o neoliberalismo irrompe numa
conjuntura em que setores conservadores ocidentais costuraram um
projeto que excluindo medidas sociais como forma de arrefecer a
pressão dos movimentos populares e do Leste Europeu, pautaram,
pelo contrário, uma conduta assentada no que o capitalismo teria de
mais seminal, a começar pelo primado do mercado.
À luz desta conjuntura, sem dúvida alguma o neoliberalismo
espelhou, no plano das ideias políticas, o endurecimento dos embates
com os países do bloco soviético, revigorando a atmosfera da Guerra
Fria, que surgida após a II Guerra Mundial, estava aparentemente
domesticada. Vis-à-vis, a propagação da catequese neoliberal ocorre
em sintonia com a da globalização econômica, amalgamando-se com
seu modus economicus nos planos cronológico e factual (OLIVEIRA,
1992: 12/19 e SANTOS, 2000).
Desde então, a totalidade dos teóricos neoliberais tem destacado
as “vantagens competitivas”, “integração” e “privatização” enquanto
tópicos inegociáveis de uma “condução eficiente” da economia e da
sociedade. A estas key-words, uma terminologia complementar, que
também tipifica o léxico globalizado, temos a “desregulamentação do
mercado”, sinonimizada aos assim chamados “ajustes estruturais”,
calibrando uma retórica cujo eixo, está firmado não nos reclamos ou
nas demandas sociais, porém prevalecentemente, nas expectativas
pautadas pela agenda das corporações (Cf. GEORGE, 1997).
4
447
O neoliberalismo ingressou no léxico coloquial contemporâneo
especialmente a partir dos anos 1980, quando secundado pelo triunfo
eleitoral de Ronald Reagan nos Estados Unidos (1981/1989) e de
Margareth Thatcher, no Reino Unido (1979/1990), passou a desfrutar
de indisputada popularidade no discurso não só dos economistas,
como igualmente, de apreciáveis parcelas da opinião pública global
(passim BOITO JÚNIOR, 1999).
Descartando arroubos reformistas, a interpretação neoliberal do
oikos-nomos postula uma sociedade regrada pelo mercado total, um
novo “reino iluminado” no qual o exercício do consumo, realizado por
indivíduos colocados à inteira disposição das pulsões do mercado,
constituiria o ápice da liberdade individual e porque não afirmar, do
progresso, plenificado por um mundo transformado num gigantesco
hipermercado.
Como frisado reiteradas vezes, em contraposição às leituras que,
direta ou indiretamente, estatuíam de algum modo, condicionalidades
sociais na forma de reprodução da economia, o modo de organização
econômico sob a égide neoliberal diverge dos que caracterizaram
conjunturas específicas da história ocidental. No neoliberalismo, o
capitalismo está compelido a dar vazão ao que nele existiria de mais
peculiar e característico, apresentando-se como uma weltanschauung
a reger soberanamente o edifício social do mundo contemporâneo
(SANTOS, 2000).
No que interessaria diretamente aos ditames da nossa discussão,
as políticas públicas que pautaram no século passado a gestão dos
recursos hídricos, tornaram-se objeto de questionamentos por esta
4
448
nova ideologia hegemônica, que propõe agora narrativas cujo estofo,
é uma reinterpretação das relações que mediatizam a conexão entre
meio ambiente e economia. Augurando as mais sérias consequências
para a questão do acesso às águas doces, os ditames estratégicos
do neoliberalismo realçam uma suposta competência do mercado em
solucionar o problema da escassez:
Se nos anos 1970, a crise ambiental alertou para a
necessidade de frear o crescimento diante da iminência do
colapso ecológico (Meadows et alli), agora o discurso
neoliberal afirma que não existe contradição entre
ambiente e crescimento. Os mecanismos de mercado se
convertem no meio mais certo e eficaz de internalizar as
condições ecológicas e os valores ambientais no processo
de crescimento econômico. Nesta perspectiva, os
problemas ecológicos não surgem como resultado da
acumulação de capital. Para a proposta neoliberal
teríamos que atribuir direitos de propriedade e preços aos
bens e serviços da natureza para que as clarividentes leis
do mercado se encarreguem de ajustar os desequilíbrios
ecológicos e as diferenças sociais, a fim de alcançar um
desenvolvimento sustentável com equidade e justiça
(LEFF, 2004: 22, grifos nossos).
Como se percebe, a intenção é “desobrigar” o mercado. Deste
modo, a sociedade global passou a relacionar-se com uma dimensão
autônoma da esfera da economia, “destravada” e “livre de amarras”,
um estridente convencionalismo econômico que procura aplicar com
empáfia as teses mais intransigentes da escola liberal de mercado,
sendo este, precisamente o élan mais pungente da globalização.
Pari passu, um fator essencial para a difusão do neoliberalismo
residiu no crepúsculo do Leste Europeu. Desde a queda do Muro de
Berlim em 1989, episódio que assinala o colapso do campo socialista,
4
449
a economia de mercado, agora campeando sem obstáculos políticos
e geoeconômicos, livrou-se dos antigos impedimentos e objeções em
relação ao chamado “livre curso da economia”. Desta cenarização,
afloraram as ideações neoliberais, que passam a campear junto à
intelligentsia do campo econômico a partir das duas décadas finais do
Século XX, ofertando às políticas e programas de privatização um
impulso ponderável, tipo bola de neve, arrostando tudo e a todos em
sua desabalada trajetória (GEORGE, 1997 e CHESNAIS, 1996: 23).
Evidentemente, como todo fenômeno localizado no tempo e no
espaço, recorde-se que a globalização não se explicita de um modo
homogêneo e tampouco, que os subtextos, molduras e os resultados
da ofensiva neoliberal sejam idênticos em todo a ordem global. Por
sinal, a “globalização” incorpora uma diversidade de matizes, e avaliar
de modo precipitado seus diferentes avatares, pode incitar inúmeras
equivocidades conceituais e políticas (Cf. BOITO JÚNIOR, 1999).
Em complemento, devido ao inter-relacionamento do discurso
político e ideológico neoliberal com a globalização, no olhar crítico de
vertentes de pesquisadores, esta transpareceria como um conceito
legitimador da estratégia mundial do capitalismo, solicitando, pois,
cautela quando de sua utilização. Motivando objeções, não seria nada
surpreendente que a expressão “mundialização do capital” tenha sido
pautada para permutar, numa percepção politicamente engajada, o
que foi popularizado como “globalização” (CHESNAIS, 1996: 13/25).
Outra consideração importante é que paralelamente, o ideário
neoliberal demonstrou enorme capacidade de tirar proveito da crise
ambiental de modo a alavancar a mercantilização da água. Permite-
4
450
se repertoriar outra vez, os recursos hídricos foram progressivamente
colocados a distância das demandas humanas através do processo
de artificialização da natureza, pelo qual, uma vez comprometidos em
quantidade e em qualidade, terminaram incorporados ao universo das
commodities 93, embasando o emergente mercado de água doce.
Insistindo na argumentação-chave, este processo em nada se
diferencia da exposição registrada anteriormente referente à lógica
pela qual o capitalismo, visando transmudar insumos dantes de livre
acesso no meio natural em mercadorias, é induzido a implementar
sua destruição ecológica estrutural, pelo qual estes são num segundo
momento, depois de tornados escassos, oferecidos exatamente aos
que precedentemente, destes usufruíam alheios a quaisquer outras
intermediações que não suas demandas concretas.
Nesta lógica, a água passou a ser reivindicada, sem que nesta
colocação esteja presente qualquer arroubo de linguagem, como o
Ouro Azul do Século XXI (BARLOW et CLARKE, 2003), constituindo
nesta derivação, um alvo prioritário das novas formas de afirmação do
sistema de produção de mercadorias.
8.4. ÁGUA: UM DIREITO A SER ASSEGURADO
Entretanto, neste corpus, um diferencial é que as conceituações
tradicionais, ao questionarem as novas diretrizes de apropriação da
água, constituem justificado ponto de referência.
O jargão econômico reconhece como commodities produtos in natura, oriundos da
agropecuária ou da extração mineral, que podem ser estocados por certo tempo sem
perda sensível de qualidade.
93
4
451
Tratando-se de uma substância de importância excepcional,
honrada e enaltecida desde tempos imemoriais no imaginário cultural
da totalidade das sociedades, o acesso à água constitui nota comum,
repetidamente reiterada, de um direito inalienável tanto para as
comunidades humanas quanto para as formas de vida que coabitam
o planeta Terra em parceria com os humanos (BARLOW et CLARKE,
2003: 250).
Esta relevância, aclamada ab integro por todas as concepções
jurídicas, filosóficas, éticas e religiosas do mundo da tradição, tem por
justificativa, o fato concreto de que não existe possibilidade da vida se
fazer presente independentemente deste líquido.
A água, essencial ao funcionamento das sociedades, constituiria
um recurso comum, passível de usufruto por todo e qualquer membro
dos coletivos humanos, ad vitam aeternam, auferida da condição de
imprescindibilidade para a contiguidade das relações sociais/culturais
que atravessam o tempo e o espaço.
A releitura deste padrão de relacionamento com a água doce,
materializando uma linha de ruptura inédita na história, foi certamente
tonificada pela crescente escassez do líquido. O grau de ineditismo
que ronda as polêmicas centradas nos recursos hídricos transparece
na gradativa substantivação de novas circunscrições semânticas em
paralelo com a agudização da crise do acesso às águas doces.
Este caráter de novidade é explícito, a título de exemplo, quando
lemos mais atentamente o relatório Limites do Crescimento. Este
documento, titularizado pelo Clube de Roma em abril do ano de 1968,
4
452
testificou um momento excepcional quanto à tomada de consciência
da crise ecológica, que adotou como base de análise, a investigação
de cinco grandes tendências de interesse global: o ritmo acelerado de
industrialização; o rápido crescimento demográfico; a desnutrição
generalizada; o esgotamento dos recursos naturais não-renováveis;
e, a deterioração ambiental.
Todavia, apesar da profundidade e do alcance do relato, o texto
deste documento dedica à questão dos recursos hídricos não mais
que menções esparsas, sequer sinalizando para a possibilidade de
uma crise na escala hoje à vista de todos.
Deste modo, a despeito de ter sido elaborado a pouco menos de
quatro décadas atrás (isto é, num lapso temporal que historicamente
poderíamos considerar como “ontem”), Limites do Crescimento, do
mesmo modo que muitos outros documentos confeccionados neste
mesmo período, ignora solenemente prognósticos mais detalhados a
respeito do esgotamento dos mananciais de águas doces, assunto
cuja proeminência nos dias de hoje é incontestável.
Obviamente, tal lacuna fundamenta-se em razão de um contexto
histórico específico, no qual a sugestão de que a água pudesse faltar
era simplesmente impensável, assim como é reveladora do quanto,
nas últimas décadas, a deterioração ambiental aprofundou-se.
Na realidade, quem poderia supor, lá pelos idos de 1960, um
panorama tão desolador da oferta quantitativa e qualitativa de água,
acompanhado de toda sorte de contratempos ambientais, da morte de
grandes rios e da destruição em larga escala dos sistemas aquáticos?
4
453
Quem levaria a sério a possibilidade da sede se alastrar e se
transformar num problema em escala global ou imaginar a irrupção de
um comércio de água engarrafada? E as dramáticas estatísticas
relacionadas com a exclusão hídrica, quem esboçaria tal cenário?
Ao lado destas considerações, augura-se factível agregar outras,
identificando as implicações políticas e a repercussão da crise dos
recursos hídricos junto às relações internacionais. Na atualidade, a
água doce constitui motivação estratégica e item inseparável da
soberania dos povos.
Fato em si mesmo emblemático, a primeira vez em que um caso
relacionado ao meio ambiente foi arbitrado pelo Tribunal de Haia dizia
respeito ao líquido, calçada numa contenda datada de 1988 opondo a
Hungria e a Eslováquia tendo por pomo da discórdia, o represamento
do rio Danúbio pela barragem Gabcikovo-Nagymaros, megaprojeto
hidrelétrico cingido por vívidas polêmicas, origem de um desacordo
que até o presente momento, continua sem solução à vista (BARLOW
et CLARKE, 2003: 89 e 239; VILLIERS, 2002: 244/254).
A depredação dos recursos hídricos, implicando na diminuição do
montante hidrológico disponível, exaltou a relevância dos estoques
remanescentes, que escassos, acirraram as disputas pelo líquido.
Escassa, a água tem-se revelado motivo de fortes antagonismos,
os quais assumem um caráter belicoso ao terem por alvo, mananciais
cuja distribuição, já desigual no meio natural, foi acentuada pela
devastação ambiental. Não por acaso, órgãos de informação tem-se
4
454
manifestado repetidamente quanto às guerras da água, explicitando
um papel inédito do recurso na organização geopolítica mundial.
Esta possibilidade transparece na apreciação do cientista político
norte-americano Daniel Horace Deudney: “As deficiências globais e a
degradação dos recursos naturais, acompanhadas da distribuição
desigual destas matérias-primas, podem conduzir a rivalidades
nacionais e, evidentemente, à guerra” (citado in ELLIOTT, 1998: 220).
Foi nesta mesma perspectiva que Warren Christopher, Secretário
de Estado dos EUA na gestão Bill Clinton entre 1993/1997, proclamou
serem “os temas vinculados aos recursos naturais extremamente
importantes para obter estabilidade política e econômica” (citado in
OHLSSON, 1998).
Evidentemente, é possível argumentar que o controle de recursos
para propósitos estratégicos têm sido, diuturni temporis, associado à
esfera do poder. Na medida em que as riquezas naturais constituem
subsídio essencial para assegurar o predomínio político, a intenção
permanente do poder é zelar e impedir que recursos de interesse
estejam ao alcance de adversários potenciais.
O especialista alemão em ecopolítica, o professor Lothar Brock,
pondera que, ao longo da história, a utilização dos recursos naturais
tem significado lutas entre entidades sociais, voltadas para o acesso
e distribuição dos insumos (ELLIOTT, 1998: 221). Por conseguinte, a
luta pelos recursos naturais seria tão antiga quanto a humanidade
(RAFFESTIN, 1993: 252).
4
455
Mas, embora os recursos naturais tenham desempenhado desde
passado mais remoto importante papel na definição do equilíbrio de
poder e inclusive tendo cumprido o papel de casus belli em inúmeras
conflagrações, estes não tiveram a complexidade e o ressalto que
hoje revestem os litígios em torno dos recursos hídricos. Basicamente
porque a água é, acima de tudo, fonte da vida, de continuidade da
existência humana e biológica em geral, sendo, portanto, essencial,
fundamental e insubstituível.
Não é a toa que o Tratado de Água Doce do Fórum Global da
Conferência Eco-92, considera que o usufruto da água potável “se
constitui num direito fundamental à qualidade de vida” (1992: 2). O
reconhecimento da disponibilidade e do acesso equitativo à água
enquanto uma prioridade está, deste modo, presente nas políticas
públicas de abastecimento, que endossam esta diretriz de um modo
praticamente universal.
No entanto, o neoliberalismo propõe nova e radical interpretação
desta máxima. Num contexto timbrado pela hegemonia do mercado, o
objetivo declarado passou a ser colocar as águas sob a tutela da
iniciativa privada, e preferencialmente, das grandes empresas. Esta
intenção é bem clara numa pretensiosa declaração de Rebecca Mark,
alta executiva da Azurix (empresa subsidiária da Enron), que nos
anos 1990 afirmou num só fôlego: “Não descansarei até que a água
de todo mundo esteja privatizada”.
Nesta ótica, o prioritário passa a ser apreciar a água enquanto
uma mercadoria em detrimento de qualquer outra consideração. A
privatização dos serviços públicos da água (captação, purificação,
4
456
distribuição, conservação e tratamento), passou a ser identificada
como uma forma de implementar uma “gestão racional dos recursos
hídricos”. Em tese, através da lei da oferta e da procura, assim como
em razão de metodologias mais avançadas de controle e gestão, tal
modelo asseguraria a redução do desperdício, da poluição e das
falhas de distribuição.
Ab argumentandum tantum, muitos debates se passaram desde
o momento em que o economista britânico David RICARDO, um dos
decanos da economia clássica, proclamou que “a água e o ar são
grandemente úteis; são de fato, indispensáveis à existência, embora,
em circunstâncias comuns, nada se possa obter em troca deles”
(1979: 259, grifos nossos).
Seguramente, a alteração abrupta da forma como o acesso às
águas doces têm sido estipulado, constitui leitmotiv de réplicas de
ordem ética. Eis como Lord Selbourne, presidente da Subcomissão
sobre Ética da Água Doce da COMEST
mondiale
d'éthique
des
94
(acrônimo de Commission
connaissances
scientifiques
et
des
technologies, qual seja, Comissão Mundial de Ética do Conhecimento
Científico e Tecnológico), pondera quanto a esta conexão:
O reconhecimento de que a água é um bem econômico,
manifestado agora em muitas declarações e na política
dos principais provedores de doações e empréstimos, tem
gerado um debate político intenso e muitos temores,
revelando valores culturais fundamentalmente diferentes
com respeito à água. Alguns reclamam que promover a
noção da água como um bem comercializável distrai a
94
A COMEST é um departamento criado em 1998 para assessorar o programa em
defesa da ética no conhecimento científico e tecnológico da UNESCO.
4
457
percepção do público da realidade de que a água é um
bem comum, e do sentido de responsabilidade e dever
compartilhados. Em outras palavras, há implicações
éticas profundas na percepção de que somos, com
relação à água, cidadãos e não simples consumidores.
Ver a água como um bem comum põe em foco essa sua
característica, enquanto a questão da propriedade pública
ou privada acentua a posição de consumidor
(SELBORNE, 2002: 59, grifos nossos).
Todavia, no prisma neoliberal, exames de ordem ética terminam
secundarizados por perspectivas consideradas “práticas”. Nesta ótica,
o entendimento da água como um bem econômico é defendido, por
exemplo, como a única maneira de eliminar a escassez.
Isto porque a comercialização da água acatando as regras da
livre concorrência permitiria a eliminação de conflitos cuja origem
seria a persistência de legislações e condutas incompatíveis com os
assim chamados “usos sustentáveis”, ao mesmo tempo em que faria
vigorar uma “remuneração justa” pelos serviços e acesso ao líquido.
Nesta linha de entendimento, a gestão pública dos recursos hídricos,
mormente quando movida por pontos de vista sociais, somente
poderia ser considerada inadequada e ineficaz.
Conviria, então, transferir a administração dos recursos hídricos
para as empresas, preferencialmente adotando o modelo francês de
gestão delegada, permitindo que a sociedade pudesse desfrutar de
um abastecimento eficiente e afinado com a realidade de mercado,
uma diretriz que a valer, está perfeitamente alinhada com a estratégia
de privatização dos serviços públicos de fornecimento de gás, energia
elétrica, transportes, telecomunicações, coleta de lixo e dos correios,
em voga no sistema global.
4
458
Evidentemente, a privatização rechaça o étimo da água como um
direito, pois tal formulação, postulando obrigações e restrições, tornase prejudicial para a “liberdade dos investidores”. Por isso mesmo, a
defesa da conceituação da água como mercadoria tem sido a tônica
constante, repetida com devoção apaixonada nos fóruns patrocinados
pelos órgãos financeiros internacionais, governos do hemisfério norte
e grandes empresas.
Nesse contexto, cabe recordar que a criação em 1994 do World
Water Forum (Conselho Mundial da Água) contou com o apoio de
governos dos países centrais, como a França, Holanda e Canadá e
de um poderoso bloco de empresas com interesses comerciais numa
nova jurisprudência para o ouro azul.
Por fim, o Banco Mundial (World Bank), articulado com órgãos da
Organização das Nações Unidas, tais como a UNESCO, o PNUD
(Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), o PNUMA
(Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente), a FAO
(Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação)
e OMS (Organização Mundial de Saúde), atua enquanto um dos
principais atores da entidade.
Em 1996 o World Water Forum atribuiu a si mesmo a prerrogativa
de definir uma visão global de longo prazo sobre a água, sendo seu
objetivo explícito a formulação de propostas visando a uma política
mundial de recursos hídricos tendo por base o novo credo mercantil
das águas, ita est, sua “comoditização”.
4
459
Nas palavras de Maurice Strong, secretário-geral da Eco-92 e
conselheiro do World Water Forum,
...a chave para a água é a economia de mercado [...] A
água barata subsidia a ineficiência. E já existem subsídios
perversos demais: o erário está sendo usado para
propósitos antipúblicos (citado in VILLIERS, 2002: 412).
As prédicas em torno da consolidação da água enquanto uma
mercadoria, é evidente nos eventos internacionais relacionados com
os recursos hídricos. Dentre estes, poderíamos destacar os Fóruns
Mundiais da Água de Marrakech (Marrocos, 1997), de Haia (Holanda,
2000), e de Kioto (Japão, 2003, neste último caso também tendo por
palco as cidades de Osaka e Shiga), assim como eventos como a
Conferência de Água Doce de Bonn (Alemanha, 2001).
Recorde-se, neste particular, que encontros internacionais como
a Cúpula Mundial para o Desenvolvimento Sustentável, ocorrida em
Johanesburgo (África do Sul, 2002), embora centrados em temários
ambientais, tiveram nos recursos hídricos um destaque indiscutível. O
mesmo pode ser afirmado para a Quarta Conferência da Organização
Mundial do Comércio de Doha (Emirados Árabes Unidos, 2001).
Neste sentido, a atuação do World Water Forum nos encontros
internacionais não tem deixado dúvidas quanto à sua predisposição
em reforçar, em âmbito mundial, a privatização da água doce. Patrick
McCully, especialista da Internacional Rivers Network, ONG voltada
para a atuação em áreas ribeirinhas degradadas nos cursos fluviais,
reservou palavras duras para a entidade.
4
460
No seu parecer, o Conselho Mundial da Água não passaria de um
“grupo lobista, constituído por
construtoras, financiadores de
barragens e corporações interessadas no tratamento, distribuição de
água e saneamento” (Cf. SACCHETTA, 2003). Buscando reforçar a
ofensiva em prol da privatização, o Banco Mundial encetou esforços
em lançar, no ano de 1996, a Global Water Partnership (GWP),
Parceria Mundial pela Água, cujo mandato organizacional é favorecer
a aproximação entre autoridades públicas e os investidores privados.
Sintomaticamente, o GWP é presidido pelo vice-presidente para
investimentos do Banco Mundial e o faturamento dos seus 67
membros empresariais soma parte expressiva do Produto Interno
Bruto (PIB) mundial. Entre as metas do GWP está a expansão do
modelo das Parcerias Público-Privada (PPP) e o fortalecimento do
International Centre for Settlement of Investiment Disputes (ou ICSID,
Centro Internacional para Resolução de Disputas e de Investimentos),
um tribunal de arbitragem internacional para o campo corporativo.
Ao lado da batalha pelos corações e mentes da opinião pública e
da liderança nas esferas de decisão, corporações empresariais têm
rapidamente implantado seu controle sobre os recursos hídricos.
A escalada da privatização da água avançou em todos os
continentes, numa progressão galopante. Nesta averbação, os anos
noventa evidenciaram o nascimento e expansão de um fenômeno
inédito: a companhia internacional de água, hoje formada por uma
soberba listagem de grandes empresas, dotadas de proeminente
musculatura econômica, e sem restrições, sediadas ou possuindo
controle acionário dos países afluentes (Figura 21).
4
461
FIGURA 21 - Listagem das nove principais corporações da água. Notar que
fundamentalmente, são empresas de países afluentes, e mais precisamente ainda,
com sede em nações do Velho Mundo (Fonte: REBRIP, 2004: 3 e MAUDE et
CLARKE, 2003: 128/129)
A súbita aparição destes conglomerados na economia mundial
constitui a mais pura comprovação de que a magnitude dos negócios
é gigantesca. Do petróleo dependem os proprietários de automóveis,
as indústrias e as plantas energéticas. Todavia, da água não há quem
dela não dependa.
Por isso acredita-se que as receitas anuais da indústria da água
tenham chegado em poucos anos a ganhos correspondentes a 40%
das rendas do setor petrolífero, que além do mais, seriam 1/3 maiores
do que as do opulento setor farmacêutico.
De acordo com planilhas do Banco Mundial, o mercado mundial
de água realizou em 1998, um giro de aproximadamente US$ 800
bilhões, projeção posteriormente elevada para US$ 1 trilhão (REBRIP,
2004: 3). E, certamente este mercado crescerá ainda mais, pois as
4
462
empresas de abastecimento de água atendem na atualidade em torno
de 10% da população mundial, percentual que tem crescido ano após
ano.
As novas multinacionais da água, possuidoras de forte projeção
no ranking dos grandes negócios, expressam através do vulto dos
seus lucros o fato indiscutível de que o comércio do líquido se tem
confirmado como uma empreitada de grande futuro. Tanto assim, que
caso porventura nos detenhamos na atuação destas corporações
numa radiciação geográfica, seria inevitável observar que estas estão
presentes em praticamente todo o planeta (Vide Figura 22).
Ad summam: a água é um excelente negócio, demarcando um
mercado de água doce que sob o império da globalização neoliberal,
está corporificado num pequeno número de empresas, oligopólios
que atuam em diferentes setores: gestão da água potável, sistemas
de tratamento de água, água engarrafada, bebidas gaseificadas, etc.
Contudo, note-se que os interesses destas grandes empresas
não são coincidentes, podendo implicar em confrontos e dissensos.
De acordo com o economista italiano Ricardo PETRELLA, cada um
dos setores hegemônicos no mercado dos recursos hídricos, água
potável, engarrafada, bebidas gaseificadas, tratamento de esgotos,
...tem no momento, seus protagonistas, suas
especialidades, seus mercados, seus conflitos. A água
potável das torneiras, por exemplo, tem Vivendi, SuezLyonnaise des Eaux, Thames Water, Biwater, SaurBouygues e suas filiais. A água mineral engarrafada tem,
sobretudo, a Nestlé e a Danone, respectivamente número
1 e número 2 mundiais, em muito superiores aos outros
4
463
engarrafadores. Estes últimos, além da Coca-Cola e da
Pepsi-Cola, tornaram-se concorrentes das empresas de
tratamento d’água, graças ao desenvolvimento e
comercialização (mesmo nas empresas e residências), de
uma água dita de síntese, purificada, apresentada como
mais sadia que a das torneiras (2003).
FIGURA 22 - Na repartição continental da atuação das grandes empresas da água,
chama a atenção que tanto a Vivendi quanto a RWE-Thames River, operam em
todos os continentes, assim como a força dos vínculos econômicos, o que explica
a presença da AGBAR, uma empresa espanhola, na América Latina, o que reporta
aos elos gerados desde o início da colonização das Américas, par a par com a
American Water, corporação estadunidense, nesta derivação, expressão de um
hegemonismo ultimado por uma circunscrição historicamente recente (Fonte: THE
WATER PAGE, in MAUDE et CLARK, 2003: 128 et seq)
Com base em fontes de índole diversa, sabe-se que em 2000, a
receita das duas maiores corporações de água, ambas de capital
francês, as empresas Vivendi (antiga Générale des Eaux) e Suez (ex-
4
464
Suez-Lyonnaise des Eaux), apontavam respectivamente para lucros
atingindo as fabulosas somas de US$ 12 e US$ 9 bilhões, renda
resultante do controle de 70% que estas companhias exercem sobre
o novo mercado de água doce ao redor do mundo.
A rápida supremacia conquistada pela Vivendi e pela Suez neste
novo mercado, origina-se da larga experiência destas corporações
enquanto prestadoras de serviço no setor do fornecimento de água
potável no seu país de origem, onde a privatização da água foi levada
a cabo em meados do Século XIX pelo Imperador Napoleão III, fato
que certamente contribui para a performance gaulesa no segmento.
Estas duas empresas, consideradas a “General Motors” e a “Ford
Motor Company” do mercadeio de água, reunindo grande experiência
a partir do trato no mercado doméstico, capacitaram-se para o passo
seguinte, qual seja, a busca pela hegemonia nas transações globais
do líquido.
Secundando as empresas veteranas nos negócios da água doce,
conglomerados empresariais, tais como a gigante alemã de energia,
mineração de carvão e distribuição de gás, a Rheinisch-Westfälisches
Elektrizitätswerk Aktiengesellschaft (RWE, fundada na Westfália em
1898), tem conquistado progressão constante no mercado da água.
Em 1990 a RWE adquiriu a Thames Water, do Reino Unido,
formando a RWE-Thames Water, com planos para expandir atuação
no cenário internacional. A Vivendi, a Suez e a RWE despontam entre
as cem maiores empresas do mundo, atuando em dezenas de países
4
465
em todos os continentes. A RWE opera atualmente em 46 países, a
Vivendi em 90, e a Suez-Lyonnaise, em 130 nações.
Mas, o rápido sucesso das novas corporações da água não pode
ser explicado unicamente pelo histórico empresarial, competência
administrativa e/ou experiência comercial. Para tanto, concorreu o
inestimável apoio materializado nas grandes instituições financeiras
globais, cujos arautos, não se cansam de tecer loas ao mercado.
A estratégica de mercantilização da água tem sido subsidiada
pelos chamados Structural Adjustment Programs (SAP), Programas
de Ajustes Estruturais, estipulados pelo Banco Mundial e pelo Fundo
Monetário Internacional (FMI). Estes programas são tradicionalmente
baseados na eliminação dos subsídios, na anulação das barreiras
protecionistas, no corte de investimentos públicos destinados para a
educação e a saúde, na flexibilização dos direitos trabalhistas e
evidentemente, no diktat da privatização.
Contudo, esta pauta foi ampliada ao longo dos últimos anos com
a inclusão de cláusulas laudatórias do mundo corporativo, claramente
comprometidas com a meta de privatizar os recursos hídricos.
Os acordos comerciais firmados pela Organização Mundial do
Comércio (OMC) procuram, por exemplo, impulsionar a privatização
dos serviços de água, exigindo que os convênios sejam abertos à
mercantilização e competição por parte das corporações privadas,
proposição que também aparece como exigência modelar do Banco
Mundial e do FMI na contratação de empréstimos internacionais.
4
466
Nesta amarradura, “uma folheada em históricos de dívida de 40
países com o FMI durante 2000 mostra que 12 deles tiveram como
imposição pelo Fundo o aumento nos preços e a privatização da
água” (KALILI, 2004).
Somando-se ao respaldo corporativo, a mercantilização da água
vem sendo apoiada por diversos governos periféricos alinhados com
a política econômica neoliberal, nações que se caracterizam, na sua
maioria, pelo escasso poder de mobilização da sociedade, pormenor
que justifica uma velocidade maior da privatização nos países do
Terceiro Mundo (Vide Figura 23).
FIGURA 23 - Na tabela acima, é evidente que os três continentes da periferia da
ordem global, isto é, a África, Ásia e a América Latina, são aqueles em que os
prognósticos indicam avanço acelerado da privatização da água doce (Fonte: THE
WATER PAGE, in MAUDE et CLARK, 2003: 128 et seq)
Na argumentação dos experts, este direcionamento transparece
não só na “flexibilização” das normatizações atinentes aos recursos
hídricos, mas conjuntamente com a defesa do “Estado mínimo” e do
4
467
expediente de sucatear os serviços públicos, induzindo de um modo
deliberado uma situação de insolvência e de não-operacionalidade
das empresas públicas através do corte e retração de investimentos.
Uma vez tornados inoperantes, tais serviços seriam, então, a pretexto
de implantar métodos modernos e eficientes de gestão, transferidos
para a iniciativa privada.
No Brasil, em especial no frigir das duas gestões do presidente
Fernando Henrique Cardoso (1995/1999 e 1999/2002), desenvolveuse claramente uma orientação no sentido de privatizar dos serviços
de água, até então sob titularidade exclusiva de empresas públicas.
Esta tendência é cristalina, por exemplo, na Lei nº. 9.433 de
08/01/1997, que institui a Política Nacional de Recursos Hídricos
(PNRH), estatui o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos
Hídricos (SNGRH) e regulamenta o inciso XIX do artigo 21 da
Constituição Federal 95.
Tal legislação, embora considerando a água como um “bem de
domínio público” (artigo 1º, I), e que em caso de escassez, caberia
priorizar “a pessoa humana e os animais” (artigo 1º, III), inova ao
estabelecer que a água seria igualmente “dotada de valor econômico”
(artigo 1º, II).
A implantação desta normatização foi propelida com respaldo das
agências internacionais de fomento. Dados do Banco Mundial para o
o quinquênio 1995-2000 mostram que a maior parte dos empréstimos
A saber: “Instituir sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos e definir
critérios de outorga de direitos de seu uso” (Constituição da República Federativa do
Brasil, 1988).
95
4
468
efetuados para o país, concentrou-se no segmento de água potável,
saneamento básico e obras contra enchentes. No biênio 1999-2000,
enquanto a título comparativo, a educação recebeu financiamento de
US$ 1 bilhão, estes alcançaram a vultosa soma de US$ 6 bilhões. Os
resultados desta política são evidentes: hoje, cerca de 58 municípios
(dentre os quais Manaus, Campo Grande e Limeira), estão com os
seus serviços de abastecimento controlados pela iniciativa privada.
Observe-se que esta linha de conduta não sofreu alterações na
gestão do presidente Luís Inácio Lula da Silva, que desde o início do
mandato (2002), deu clara continuidade a esta política. Deste modo,
as Parcerias Público-Privado, uma peça central dos mecanismos de
privatização, tem sido defendida na nova administração como forma
para ampliar investimentos nos serviços de água e saneamento.
Esta estratégia tem seguidamente recebido apoio de setores
empresariais com interesse na área, caso da PPP do saneamento,
perscrutada com zelo por grandes grupos de capital privado, como as
construtoras brasileiras Andrade Gutierrez e Odebrecht, e pela
Degremont, empresa de saneamento ligada à Suez Ambiental 96.
A posição do governo federal tem sido reiterada por declarações
de membros do staff governamental, como as expostas em entrevista
concedida pelo Secretário de Saneamento Ambiental do Ministério
das Cidades, Abelardo de Oliveira Filho, ao jornal O Estado de S.
Paulo, que inclusive se posicionando de modo contrário ao colocado
na campanha eleitoral de Lula em 2002, foi enfático ao destacar que
96
Nota divulgada na versão eletrônica do jornal Valor Econômico, edição de 22/4/2004,
4
469
“é importante a participação do setor privado […], não há divergências
quanto a isso” (OTTA, 2004).
Todavia, os resultados das privatizações têm contrastado com a
apologia que ronda sua difusão. Um exemplo paradigmático é o de
Cochabamba, a terceira mais populosa da Bolívia. Nesta cidade, os
serviços públicos de água foram privatizados no governo do general
Hugo Banzer com as bênçãos dos Programas de Ajuste Estrutural.
Coube à multinacional estadunidense Bechtel Corporation, por
intermédio da subsidiária Águas del Tunari, aplicar a “versão hídrica”
do receituário neoliberal em Cochabamba. O resultado da execução
da hipotética “gestão racional dos recursos hídricos”, desde logo se
fez sentir no bolso dos citadinos. Em Cochabamba, a majoração das
tarifas de água, entre dezembro de 1999 e janeiro do ano 2000, foi de
100% a 200%, chegando a consumir 80% da renda familiar.
No que constituiu a primeira grande mobilização popular do
Século XXI, a população, com os nervos à flor da pele, lotou as ruas,
participando em protestos generalizados (Figura 24), inconformada
com a majoração dos preços promovida pelos novos administradores
da água da cidade.
A “Guerra da Água”, tal como prontamente o conflito passou a ser
publicizado pela imprensa mundial, logrou colocar um basta nesta
experiência de privatização, lavrando o tento inédito de revertê-la e de
restabelecer o controle público sobre a distribuição da água. Embora
os desdobramentos deste embate aguardem sentença de pendências
jurídicas nas cortes internacionais, Cochabamba constituiu episódio
4
470
inequívoco da afirmação da água enquanto direito, e não mercadoria
(LOBINA, 2000).
FIGURA 24 - Cena da “Guerra da Água” em Cochabamba, Bolívia, no ano 2000, que
assumiu as proporções de um levante. (Foto: People’s Global Action, in: <
http://www.nadir.org/nadir/initiativ/agp/free/imf/bolivia/images/000205cochabamba_
youths.jpg >. Acesso em: 10-12-2004)
Há também, em termos das novas metodologias de fornecimento,
resultados decepcionantes do atendimento aos consumidores, dentre
estas o sistema pré-pago de água. No Brasil, existem, ao menos três
companhias testando este sistema: a SABESP (SP), a SANEATINS
(TO) e a SANEAGO (GO).
Este modelo funciona identicamente à telefonia celular, sendo o
acesso à água facultado na proporção dos créditos adquiridos, e
cortado, quando esgotado o valor (crédito) adquirido. Na ótica dos
4
471
seus defensores, este sistema permitiria melhor controle do consumo,
monitoramento da rede, gestão da demanda e detecção imediata de
vazamentos. Assim, graças a melhor utilização e controle mais rígido
do fornecimento, a medida repercutiria positivamente na distribuição e
preservação das águas doces.
Claramente, o sistema pré-pago se insere na ótica da eficiência e
da remuneração por serviços prestados presentes nas estratégias e
no discurso neoliberal, e por esta razão, tem sido implantado pelas
empresas de fornecimento de água com endosso do Banco Mundial.
Outro aspecto nodal é que o lucro das empresas de água é por
definição assegurado, uma vez que o fornecimento de água somente
é liberado com pagamento prévio. Deste modo, eventuais problemas
de inadimplência encontram uma “solução” definitiva na implantação
de uma tipologia de gestão vinculada ao que tem sido catalogado
como exclusão hídrica ou mais duramente, apartheid hidrológico,
catalisando sérios impactos sociais e sanitários.
O mais interessante é notar que o sistema pré-pago enfrentou
sua primeira grande oposição não em uma nação do Sul, mas sim no
refinado e tecnologicamente avançado Reino Unido. Em razão de
múltiplos problemas, dentre estes o aumento dos casos de disenteria
e de problemas de saúde relacionados com o corte de fornecimento
de água, o governo britânico decidiu em 1998, banir o sistema prépago do país.
Com base nesta resolução, restaria, pois, indagar sobre as
perspectivas sanitárias pouco animadoras que o sistema pré-pago
4
472
poderia engendrar em países com padrão de vida inferior (ou mesmo
muito inferior) aos vigentes na Grã-Bretanha.
Considere-se também que a própria excelência do produto
oferecido pelas empresas privadas não as posiciona necessariamente
como prestadoras de serviços de qualidade. Por exemplo, as águas
minerais obtiveram expressiva projeção econômica pela presumível
segurança oferecida pelo produto, permitindo a vertiginosa expansão
do mercado consumidor de água engarrafada.
No que seria indicativo das potencialidades deste mercado, nos
anos 1970, o volume anual mundial de águas engarrafadas foi de
aproximadamente um bilhão de litros. Antes do final desta década,
eram 2,5 bilhões de litros. No encerramento dos anos 1980, o total
atingia 7,5 bilhões de litros e no ano 2000, foram 84 bilhões de litros
de água engarrafada.
No entanto, um relatório da FAO informa que a água engarrafada
não possui qualidade melhor do que a oferecida pelas torneiras, até
porque, em muitos países, estas águas estão sujeitas a análises e
padrões bem menos rigorosos do que os aplicados aos sistemas
tradicionais de abastecimento (BARLOW et CLARKE, 2003: 170/172).
Isto, sem contar os impactos provocados pelo modelo de distribuição
de água engarrafada, particularmente os que envolvem a produção
de plásticos.
O uso de vasilhames plásticos tem se expandido com base numa
sinergia de fatores, dentre os quais podemos contar a influência da
indústria petroquímica, razões de ordem prática (como o peso menor
4
473
e a maior resistência à tração mecânica e ao rompimento por conta
da queda dos recipientes) e inclusive, o vínculo da matéria plástica
com o imaginário moderno, reforçado por insistentes campanhas de
marketing.
Pois então, em 2001, a banalização das garrafas descartáveis
implicou na produção de 1,5 milhão de toneladas de plásticos,
transformados em refugos tão logo o consumidor se satisfaz com o
último gole, acarretando deletérias sequelas para o meio ambiente,
advindas tanto da produção dos cascos, quanto pela multiplicação
do descarte inadequado dos vasilhames (RAMOS, 2004: 14).
Outro questionamento, é o fato de muitas empresas alterarem a
composição química original de fontes colocadas sob sua jurisdição.
Em particular, o contencioso opondo desde os anos 1990 a sociedade
civil e a multinacional Nestlé na cidade de São Lourenço (MG), são
reveladoras das implicações da mercantilização da água mineral.
Em 1992 a Nestlé adquiriu o controle mundial da empresa Perrier
Vittel, incluindo nesse espólio a concessão da exploração comercial
das fontes do Parque das Águas de São Lourenço. A cidade de São
Lourenço, que integra polo turístico do Circuito das Águas do Sul de
Minas Gerais, tem uma economia organicamente dependente das
fontes de água mineral, conhecidas desde 1826 e afamadas pelo
indiscutível valor medicinal.
A Nestlé, agora senhora do Parque das Águas da cidade,
perfurou em 1996 um novo poço com o intuito de fabricar a água de
marca Pure Life (isto é: Vida Pura). Nesse processo, a água mineral
4
474
(que por definição, trata-se de uma regalia natural invulgar, nobre e
específica), é, após a extração, desmineralizada e artificialmente
enriquecida de sais, acatando fórmula padrão colocada à venda nos
diversos países nos quais esta marca é industrializada. Este líquido,
na realidade um produto adereçado de apelos imaginários, constitui
uma malsinada espécie de ersatzwasser (qual seja, um sucedâneo da
água natural).
A desmineralização do líquido é contestada por pesquisadores,
repudiada pelos ambientalistas e criticada por entidades de defesa do
consumidor, que observam na prática da Nestlé, um capítulo adicional
do processo de estandardização inerente ao ethos da modernidade.
Para complementar, ressalve-se que este processo não é permitido
por lei.
Mas mesmo assim, a empresa continuou a fabricar a Pure Life.
Acresce-se que lado a lado das polêmicas jurídicas, a empresa,
visando atender suas ultimações comerciais, febricitou o ritmo de
bombeamento das fontes, comprometendo os lençóis subterrâneos e
provocando em 2002, a desaparição da fonte magnesiana, seguida
do recalque do terreno da área da concessão (Vide VILLELA, 2005).
Estes impactos ambientais, extremamente sérios, motivaram a
mobilização da comunidade local na defesa do Parque das Águas de
São Lourenço, impetrando ações judiciais contra a multinacional com
o apoio de movimentos sociais.
No que evidencia as limitações do Estado mínimo frente ao poder
político e econômico das megaempresas, esta mobilização, mesmo
4
475
angariando respaldo jurisprudencial no país de origem da Nestlé (a
Suíça), e farta visibilidade na mídia europeia (contrastando com o
cauteloso silêncio da imprensa nacional durante este episódio),
terminou frustrada por manobras burocráticas e pela influência da
poderosa multinacional.
Bastou a companhia anunciar o fechamento da unidade para que
as autoridades estaduais e federais corressem em seu socorro. No
Estado de Minas Gerais, foi prontamente concedida à Nestlé uma
licença corretiva permitindo a continuidade do funcionamento da
fábrica e, em nível federal, o Departamento Nacional de Produção
Mineral (DNPM) anunciou a publicação de nova portaria autorizando
a desmineralização “parcial” das águas minerais.
Este deletério elenco de posturas, postas em prática à revelia da
legislação, foram metodicamente analisadas pela Curadoria do Meio
Ambiente da cidade de São Lourenço. Na ação civil pública instruída
em dezembro de 2001 pelo promotor de justiça e curador do Meio
Ambiente do município, o Doutor Pedro Paulo Barreiros Aina, listou
um calhamaço de agravos lancetados ao arrepio da lei.
Notitia criminis, está subscritado nos autos: a perfuração do poço
foi ilegal, já que não houve autorização do DNPM; o DNPM constatou
a irregularidade e não tomou nenhuma atitude; a comunidade vem
sendo ameaçada pela degradação ambiental promovida pela Nestlé,
que pode afetar suas atividades sociais e econômicas, que giram em
torno do turismo e das águas; a produção da Pure Life configura uso
irracional de recurso ambiental raro e limitado por parte de uma
empresa cujo único interesse é o lucro.
4
476
No que explicita a força como o neoliberalismo se enraizou no
país e no que pese a consistência da argumentação legal que consta
na ação civil pública, o histórico de agressões aos recursos hídricos
inaugurado sem maiores delongas pela Nestlé nos anos 1990, em
plena gestão FHC, prolongou-se sem modificações na administração
do presidente Luís Inácio Lula da Silva.
Assim sendo, como evidencia o transcorrer deste episódio, seria
lícito questionar a encomiástica eficácia dos “marcos regulatórios” que
de modo repetido, são lisonjeiramente pleiteados como “modalidade
contemporânea” de gestão, habilitados a “controlar” a atuação das
grandes empresas no mundo globalizado.
Neste panorama, de vez que o que se tem à disposição é um
aparato estatal tão dócil aos grandes interesses, qual seria no final
das contas a contrapartida colocada à disposição da sociedade?
8.5. DESAFIOS DA GEOPOLÍTICA DA SEDE
No que foi exposto até agora, seria mister pontuar reparos quanto
ao polêmico modelo de gestão neoliberal dos recursos hídricos. Ao
mesmo tempo, este, além de suscitar aflitivas prognoses para o futuro
do planeta, permite, numa imantação inversa, preconizar pontuações
atentas para formas diferentes de compreensão de mundo, economia
e sociedade. Alvitrando a partir deste piso de especulações, seria
permitido alinhavar diversificada coletânea de ponderações, dentre as
quais:
4
477
1. Há que ser registrado que a escassez e a demanda crescente
por água doce é potencialmente indutora de prognósticos geopolíticos
cujos horizontes sinalizariam, no limite, para o controle exclusivista da
totalidade dos recursos hídricos planetários.
Tendo-se em vista de que este processo está tendencialmente
assentado na rarefação do líquido, esse poderia rapidamente
transmutar-se numa geopolítica da sede, inspirando uma cartilha
intervencionista cujo enunciado incondicional pontifica um poder azul,
ateste-se, formas de dominação sustentadas a partir do controle dos
ambientes aquáticos e dos insumos hídricos.
Conforme foi sugerido, a questão dos recursos hídricos explicita,
em termos do que ela representa para os interesses dominantes, uma
das formas pelas quais, algumas preocupações ecológicas terminam
por se tornar mais globais do que outras.
Portanto, o que se tem testemunhado não confere a um “global”
tal como apreendido nas acepções meramente coloquiais, que visam
criptografar uma presumida “interdependência ambiental global”, um
prolóquio veiculado, amiúde, pelos discursos de tradição reformista.
Mais do que isso, constitui um termo político, que de acordo com
a ambientalista indiana Vandana Shiva, testificaria para o Norte, um
novo espaço político para controlar o Sul, criando dessa forma uma
base moral para um “imperialismo verde” (ELLIOTT, 1998: 251/252).
Por isso mesmo, os espaços prenhes de águas doces poderão
conformar alvo de cobiça direta por parte dos países centrais. Neste
4
478
panorama, o fato de existirem grandes conglomerados baseados no
comércio das águas azuis seria, em si mesmo, um pressuposto para
a concretização deste cenário, com desdobramentos materializados
na intervenção militar estrangeira e guerras desencadeadas pela
posse do líquido. Como adverte o cientista político Armando BOITO
JÚNIOR: “Cada Estado imperialista adota os interesses das suas
empresas multinacionais como referência básica para a definição de
sua política internacional” (1999: 35).
2. No que diria respeito ao Brasil e países sul-americanos, seria
inescapável mencionar que esta região detém várias pré-condições
para ser alçada à condição de área de interesse prioritário em um
mundo assediado pela sede, a começar pela presença do gigantesco
estoque hídrico da Amazônia.
Esta conjuntura instigaria entabular um debate geoestratégico
habilitado a discernir, por exemplo, formas de relacionamento a serem
estabelecidas por nações como a Bolívia, Venezuela, Colômbia, Peru
e o Brasil, que simultaneamente usufruem a condição serem países
amazônicos e compossuidores deste reservatório transfronteiriço de
águas doces. E isto, com certa premência.
No passado, o presidente Theodore Roosevelt (1858-1919), um
dos próceres do ethos geopolítico estadunidense
97,
entendendo que
os Estados Unidos estavam predestinados a assumir a balança de
poder mundial (o manifest destiny: destino manifesto), inaugurou, com
Não sem razão, o monumento nacional de Mount Rushmore (Dakota do Sul), dispõe
Roosevelt ombro a ombro com três outros grandes ícones da americanidade: George
Washington, Thomas Jefferson e Abraham Lincoln.
97
4
479
base nas concepções geopolíticas do almirante Alfred Tayer Mahan, a
chamada política do big stick ou, do grande porrete.
O objetivo confesso desta doutrina, era manter e robustecer os
regimes alinhados com o hegemonismo norte-americano, assegurado
por intermédio de ações intervencionistas, especialmente no teatro
caribenho. Muito longe de ter desaparecido, esta lógica reaparece
num diversificado mostruário de predicações geopolíticas nas quais a
nota comum tem sido a “integração” da América Latina sob a égide
norte-americana (Vide MELLO, 1999: 113/114).
Conforme difusamente noticiado, desde os anos 1990 os Estados
Unidos têm realizado intervenções diretas na América do Sul a título
de combater a insurgência armada e o narcotráfico. A presença militar
deste país foi acompanhada pela criação de instalações militares no
Equador, Colômbia e Peru (PETRAS, 2002:33).
Mais recentemente, sinais insistentes apontam para o interesse
da administração George Walker Bush em manter instalações de
inteligência e militares no território do Paraguai, país estratégico no
tocante à Bacia da Prata e ao Aquífero Guarani. Assim, a percepção
de uma movimentação militar, inclusive por contar com antecedentes
históricos, seria bem mais consistente do que um devaneio da
imprensa politicamente engajada
98
98.
Ao lado da moderação necessária para evitar pressuposições fantasistas, é óbvio que
geoestrategicamente existem duas formas clássicas para dominar bacias hidrográficas,
fundamentalmente através do controle das cabeceiras ou da foz. É o que sugere a
localização de bases dos EUA nos países andinos e a pretensão por Alcântara
(Maranhão). Quanto ao Paraguai, as especulações se acentuaram com a visita do
secretário de defesa dos EUA Donald Rumsfeld a Assunção, ocorrida em agosto de 2005
(Manchetes Socioambientais, edição de 13-09-2005).
4
480
Além disso, a lógica das relações internacionais do mundo atual,
permite obter acesso aos recursos hídricos prescindindo de opções
manu militari. A proposta da Free Trade Area of the Americas (FTAA)
ou Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), constituiria um
excelente atalho para alcançar este objetivo.
Alicerçada na evangelização neoliberal, a ALCA é um tratado que
propõe, a título de arrostar a concorrência alógena dos europeus e
asiáticos, a desregulamentação e flexibilização comercial e financeira
entre a maior potência econômica, bancária, cultural, informacional,
científica, tecnológica e militar do continente, os EUA, e seus vizinhos
latino-americanos, desde o Rio Grande até a Terra do Fogo (Ver entre
outros, COGGIOLA, 2005).
Na voz dos seus críticos, a criação da ALCA não implicaria em
qualquer “integração”, com exceção da voltada para catapultar os
interesses econômicos hegemônicos. Logo, a ALCA intensificaria a
mercantilização dos bens naturais, impondo à biodiversidade, aos
recursos minerais e aos acervos hídricos, as leis do mercado e os
ditames das transnacionais.
Especificamente no quesito água, a aproximação dos Estados
Unidos da condição de estresse hídrico tem motivado propostas de
megaempreendimentos que anteveem a viabilização do transporte de
maciça volumetria do líquido.
Tal como argutamente foi registrado por Maude BARLOW e Tony
CLARKE, existem nada menos que cinco grandes projetos de canais
transoceânicos em andamento, programados para cortar o istmo
4
481
centro-americano visando consolidar a infraestrutura voltada para o
novo, e promissor, comércio mundial de água potável (Consulte-se
2003: 164/167).
Em suma, a titularidade da exploração dos estoques de água
doce, revestidos do laurel de um recurso estratégico de importância
capital, descartaria estas predicações enquanto simples fabulação de
uma imprensa xenófoba. Pelo contrário, trata-se de um tema a ser
discutido com toda seriedade e atenção possível. A mesma que os
grandes interesses econômicos têm dedicado a esta questão.
3. O avanço da mercantilização da água doce respaldaria o
questionamento de clássicas interpolações conceituais. Uma destas
reportaria ao significado que o neoliberalismo impingiu para a “esfera
do econômico”, referendada neste cânon como parâmetro exclusivo
de gerenciamento da totalidade das sociedades humanas.
Entretanto, contrariamente a este primado, vigoraram no passado
dos humanos, múltiplas interpretações e estratificações da economia,
sendo a presunção de confiná-la às volições modeladas no bojo da
expansão ocidental, além de ilegítima, uma inverdade absoluta.
Do mesmo modo que em muitas outras polêmicas, o resgate dos
sentidos que outrora perpassavam pelo imaginário e pelo léxico social
contribui para lançar uma nova luz sobre as (in)certezas metafísicas
esposadas pelo mundo contemporâneo.
Voltando novamente nosso olhar para as sociedades tradicionais,
toma-se conhecimento de que a economia se irmanava com outras
4
482
finalidades, por intermédio das quais esta era entendida como um
esteio voltado para satisfazer as pessoas e fortalecer os vínculos da
antiga Gemeinschaft, jamais a si mesma. No mundo da tradição, “em
vez da economia estar embutida nas relações sociais, são as
relações sociais que estão embutidas no sistema econômico” (Cf.
POLANYI, 2000: 77).
Neste senso, inverter o padrão que passou a guiar a experiência
econômica do mundo ocidental, qual seja, as relações econômicas
enquanto axis magnetizador das demais esferas da vida humana,
pressupõe repensar não apenas os axiomas que regem a economia e
a sociedade, mas também, sufragar outras dimensões tiradas de
cena pelo forçante econômico.
Isto porque sobejamente, o “espelhamento invertido” do mundo
moderno inspira refletir sobre os vínculos solenes da economia com a
dimensão do cultural e o engaste do coletivo humano com o meio
natural, premissa que não tem sido de modo algum, uma prioridade
no império da modernidade (CARVALHO, 1978).
Consequentemente, a economia deveria incorporar uma ótica
diferente da que hoje governa a sociedade humana, promovendo a
participação, inclusão e o equilíbrio ambiental, estendidos ao conjunto
dos atores que participam do mundo globalizado. Como foi sintetizado
pelo geógrafo Claude RAFFESTIN:
Em outros termos, coloca-se o problema fundamental da
repartição das coisas entre os seres humanos. Ou todo
mundo recebe a mesma quantidade de bens e de
serviços e então se trata de uma ‘eco-nomia’ no sentido
4
483
etimológico, ou então se estabelece um conjunto de
critérios que determinam aqui a abundância, e ali a
rarefação. Então, não se trata mais de uma economia,
mas de uma política cujas finalidades não são a
expressão de uma necessidade endógena que implica a
permanência de uma estrutura, mas a expressão de uma
vontade exógena que determina as finalidades das partes
da estrutura que se devem manter (1993: 34).
4. Como seria evidente, uma releitura da economia implicaria na
ampliação do universo de inquirições. Extrapolando o campo da
economia, percebe-se que grande maioria das instituições existentes,
como poderia ser anunciado pela mais rápida das consultas de uma
bibliografia basilar centrada na questão ambiental, não foi desenhada
para ocupar-se dos dilemas básicos da escassez ecológica.
Esta admoestação sugere que o Estado passe a ser repensado
nesta perspectiva, sob pena de não se dar conta da problemática
ambiental (GUIMARÃES, 1991: 123). Ademais, seria inerente a esta
proposição, que a intervenção estatal passe a ser exercitada numa
direção oposta aos defensores do “Estado mínimo”. Isto porque a
questão ambiental reclama um Estado forte e não fraco (ELLIOTT,
1998: 250).
No caso da água doce, esta é uma condição necessária para
caucionar que o recurso possa tornar-se, na lei e na prática, um
patrimônio da sociedade, sob o controle de modalidades públicas de
gestão. Entretanto, o fortalecimento da representação da sociedade é
uma equação passível de desventuras e desencontros, em vista de
que a instituição pura e simples de “canais de participação”, não
4
484
garante em si mesma (equívoco comum a muitas abordagens, incluso
as “bem-intencionadas”), uma real “democratização das decisões”.
Muitas vezes, os compromissos em prol de instituições baseadas
na soberania cooperativa reforçam processos políticos por meio dos
quais os interesses privilegiados de poucos, se tornam mais bem
representados do que os interesses democráticos da maioria.
As instituições internacionais e os processos de gerenciamento
socioambiental, não são nesta perspectiva, realmente democráticas,
censura também endereçada à atuação das ONG, mesmo porque,
diversas arguições admoestam que a participação destas entidades
em empreendimentos conjuntos com a esfera estatal, são, na prática,
um caminho aberto para uma cooptação a posteriori. Para mais, a
gestão ambiental prossegue, numa visão engajada, enquanto uma
coalizão de regimes afluentes e poderosos, corporações e esquemas
financeiros.
Por estas vias, o direcionamento oferecido pelas instituições
estatocêntricas, tem sido deslocar o debate relativo à resolução da
crise ambiental para fora das mãos daqueles que são, de fato, os
mais diretamente afetados por ela, uma nuança que solicita revisão
urgente (ELLIOTT, 1998: 251).
5. Finalizando, atente-se que a globalização não é um fenômeno
irreversível, sendo exequíveis outras possibilidades. O momento ora
vivido é uma das vias abertas pela história, mas não constitui, em
absoluto, o único caminho a ser trilhado.
4
485
Esta ressalva importa tanto em razão de que nada poderia obstar
o surgimento de circunstâncias que venham a agudizar a entropia e
os agravos socioambientais que tipificam o mundo contemporâneo,
quanto também, de sustar a eclosão de inciativas que imponham o
recuo do processo de degradação. Caberia ao movimento vivo da
sociedade descortinar alternativas ao que se tem presenciado e quem
sabe, substituir este panorama por outro, afeito às necessidades da
imensa maioria dos humanos. Refletindo sobre a possibilidade de
novas expectativas, asseverou François CHESNAIS:
Destacar que seriam ‘irreversíveis’ a hipertrofia financeira
e todo o seu séquito de desgraça é cair num molde muito
suspeito de determinismo histórico. No sentido mais forte,
seria atribuir a processos sociais, produtos da atividade
humana, caráter análogo ao das evoluções biológicas.
Para certos autores, apelar para a ideia de
‘irreversibilidade’, muitas vezes junto com um chamado ao
‘realismo’, sempre foi como justificar a ordem estabelecida
(‘a ordem natural das coisas’). Para outros, essa ideia
traduz uma submissão resignada diante de relações
econômicas e políticas das quais não parece fácil livrarse, quando parece não haver saídas ou alternativas claras
(1998: 32).
Por conseguinte, contrariando o état d'esprit conformista, nada
implica em depreender que a resistência à modelagem neoliberal foi
extinta ou que a sociedade contemporânea está fadada à repetição
sincopada de um adágio global pretensamente universal. Pelo
contrário, por todo o planeta eclodem mobilizações que questionam
os rumos da globalização, cativando simpatizantes e ativistas que se
empenham em denunciar e conter, com sucesso variado, a
progressão das suas diretrizes, sendo uma das expressões deste
4
486
inconformismo, o Fórum Social Mundial (FSM), que no ano de 2005,
completou o quinto encontro do movimento.
Proposto inicialmente enquanto uma contraposição ao Fórum
Econômico Mundial, cuja cúpula ocorre na cidade de Davos (Suíça), o
FSM é um evento mundial organizado pelos movimentos sociais com
objetivo de discutir temas relevantes e alternativas para as questões
centrais da atualidade.
Significativamente, os recursos hídricos é um dos temas que tem
despertado maior interesse nas oficinas e grupos de discussão do
FSM. Indicativo não menos importante, a defesa do direito do acesso
à água doce, assim como a contestação das políticas de privatização,
tem transparecido como verdadeiro consenso em todos os encontros.
Claramente, as águas são uma instigante motivação na direção
de mudanças, em especial porque apenas este líquido vital pode nos
fazer observar de modo contundente, que a sede de rentabilidade
econômica não conduzirá o mundo para nenhuma outra situação que
não o da mercantilização da privação e do desespero.
Assim, mais do que nunca, é preciso não só repensar o mundo
na ótica da solidariedade, de uma outra mundialização, que consolide
o caminho da comunhão dos bens ofertados pela natureza, como
também agir para que a mudança ocorra, e o quanto antes, melhor
(Ver SANTOS, 2000 e MORIN, 2002).
Que deste modo se busque na satisfação das águas, o caminho
privilegiado para honrar sonhos, projetos e esperanças!
4
487
PARTE IV
GRANDE ABC, RECURSOS HÍDRICOS E A METRÓPOLE
PAULISTA
4
488
CAPÍTULO 9
RECURSOS HÍDRICOS E QUESTÃO URBANA
NO BRASIL
9.1. RECURSOS HÍDRICOS DO BRASIL
Embora os debates relacionados aos recursos hídricos tenham
conquistado relevante expressão somente nos últimos anos, isto não
significa que a farta presença de água no espaço natural brasileiro
tenha passado despercebida aos olhos dos diferentes protagonistas
atuantes na história e na geografia brasílida, mesmo porque, nada
permitiria ignorar a deslumbrante fruição das águas doces no território
nacional.
No que seria demonstrativo da majestade das águas doces no
meio natural brasileiro, na própria Carta de Pero Vaz de Caminha já
está sugerido que o Brasil seria o País das Muitas Águas. É o que se
pode apreender ao conferirmos o documento. Conforme excerto
destacado a seguir, confirme-se: “As águas [ deste país ] são muitas,
infindas. E em tal maneira [ esta terra ] é graciosa que, querendo-a
aproveitar, dar-se-á nela tudo por bem das águas que tem” (Vide
CAMINHA, 1974: 82/83).
Mas, mesmo que esta definição esteja apoiada por um cabedal
de comprovações empíricas, uma análise mais apurada admitiria
reparos e reconsiderações. A começar pelo simples fato de que o
4
489
espectro da escassez de água tem assombrado grandes segmentos
da população brasileira, transformando-se num problema que assola
o cotidiano de milhões de concidadãos. Portanto, nada mais justo que
auscultar a respeito dos motivos que geraram o preocupante quadro
referente ao abastecimento do precioso líquido.
Antes de tudo, é necessário certificar que existem motivos de
sobra para que o conjunto da nacionalidade se sinta prestigiado pelo
magnífico volume de águas doces que escoam pelo território do país.
Independentemente do fato de que tal percepção possa ser estendida
cognitiva e concretamente a vários outros rincões latino-americanos
99,
assinale-se que o Brasil, aparte qualquer arroubo laudatório ou
ufanista, abarca em seu espaço uma prodigiosa quantidade de água.
Como seria evidente, pressupostos naturais estão na raiz desta
generosa difusão de águas doces. Dentre outros fatores, uma copiosa
descarga pluvial explica a farta rede hidrográfica que drena as terras
do Brasil. Em termos pluviométricos, calcula-se que mais de 90% do
espaço brasileiro recebe chuvas abundantes, entre 1.000 e 3.000 mm
por ano, indiscutivelmente alta em termos das médias da hidrosfera.
É com base nesta farta precipitação pluviométrica, garantida por
um regime tropical de chuvas decorrente de singularidades geofísicas
(o Brasil é o maior país tropical do mundo), reforçada por condições
orográficas favoráveis, que o território brasileiro ostenta a invejável
malha hidrográfica de que dispõe (REBOUÇAS, 2002a: 29).
A este respeito recorde-se que o topônimo Guiana significa justamente país de águas
abundantes nas línguas dos povos indígenas da região; quanto à Venezuela, o nome
parece derivar de Pequena Veneza, consistindo, pois numa menção metafórica a um
território parceiro das águas e portanto, da exuberância dos corpos líquidos neste país.
99
4
490
A exceção a esta regra, isto é, o semiárido nordestino, consiste
de qualquer modo um quadro hidrológico melhor aquinhoado do que
muitas regiões verdadeiramente críticas ao redor do mundo. Nesta
categoria, dentre diversos exemplos passíveis de citação, estariam o
Oeste dos Estados Unidos, o Kalahari, o Atacama, o Deserto do Thar,
o Deserto Australiano e a Grande Diagonal Árida, cuja grandiosidade
se explicita na própria denominação 100.
Concretamente, apenas a título excepcional as regiões afetadas
pela aridez poderiam exibir rios caudalosos como o São Francisco,
Parnaíba, Jaguaribe e outros flumes que atravessam o sertão. Estes
rios permanentes drenam uma landschaft sujeita a fortes estiagens,
mas que exclusivamente aos olhos de questionável senso comum
estaria afeita a condenar seus habitantes aos tormentos da sede.
Saliente-se que mesmo os rios intermitentes que atravessam os
domínios de rochas do embasamento geomorfológico subaflorante do
semiárido nordestino, tais como o Apodi, Sabito, Canindé, Paraíba e o
Vaza-barris, cujos fluxos são efêmeros total ou parcialmente, em nada
poderiam ser equiparados aos ueds
101
encontradiços nos desertos
africanos e asiáticos. Ao contrário destes, os rios temporariamente
secos do semiárido recebem vazão muito mais alta e persistente no
tempo e no espaço. Razão para evitar sinonímias enganosas com o
cenário hidrológico das áreas desérticas, com as quais, as afinidades
A Grande Diagonal Árida abarca uma vasta região compreendida por terras africanas
e asiáticas, assim como suas circunvizinhanças subtropicais, reunindo os países do
Machrek, do Magreb, do Saara, dos planaltos do Iran e da Ásia Central. No entanto, em
que pese a escassez de água, isto em nada impediu no passado a gênese de diversas
civilizações, dotadas de cidades florescentes e de uma soberba vida agrícola, calcada na
utilização parcimoniosa dos recursos hídricos existentes (Ver BRETON, 1990: 80).
101 Estes correspondem a cursos de água temporários típicos das extensões áridas da
África Setentrional e do Oriente Médio. De origem árabe, o termo também consta nos
mapas como ouadi, wadi ou wady (Ver OLIVEIRA, 1994: 1933 e 1983: 661).
100
4
491
ecossistêmicas são inexistentes, até porque, os desertos são biomas
estranhos ao meio natural brasileiro.
Na realidade, uma densa malha hidrográfica admite discriminar
inúmeras bacias, emaranhado suficientemente pródigo para permitir
debates e conceituações técnicas que intentam encarcerar uma
dimensão hidrológica verdadeiramente monumental. Aliás, a definição
das bacias hidrográficas no território brasileiro tem representado um
desafio para sucessivas levas de geógrafos e hidrólogos.
Na dependência dos objetivos do mapeamento e da concepção
metodológica adotada, a compartimentação das bacias hidrográficas
é objeto de polêmicas acesas, alterada de tempos em tempos nos
termos da sua amplitude espacial e de uma nomenclatura geográfica
pretendidamente modelar. Assim sendo, várias tentativas atendendo a
clareamentos específicos resultaram em modelos de interpretação da
hidrografia nacional com estofo institucional.
A classificação hoje vigente corresponde a uma divisão que visa
atender aos requisitos da Lei nº. 9.433/97 e do Plano Nacional de
Recursos Hídricos (PNRH), que advogam a adoção das bacias
hidrográficas como unidades de planejamento. Neste sentido, uma
definição hidrográfica de âmbito nacional foi elaborada em 1985 pelo
Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica (DNAEE), e
encampada pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), após
a extinção deste departamento. Em 1998, uma segunda classificação
foi apresentada no Diagnóstico Nacional de Recursos Hídricos,
elaborado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e para rematar, uma
4
492
terceira delimitação foi elaborada pelo Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE).
A partir dessas considerações, foram estabelecidas com vistas ao
PNRH, dez regiões hidrográficas (bacias ou conjunto de bacias
hidrográficas contíguas), nas quais o rio principal deságua no mar ou
em território estrangeiro. Essas regiões, identificadas através de carta
publicada pelo IBGE no ano 2000, resultaram da adequação das
propostas de divisão em bacias hidrográficas indicadas pelo DNAEE
e pelo IBGE.
O Brasil, de acordo com a definição endossada IBGE, abrigaria
no seu território cinco bacias de maior porte e significação, caso da
Amazônica, do Tocantins, do São Francisco, do Parnaíba, da Prata
(através da qual escoam as águas dos rios Paraná, Paraguai e
Uruguai) e ademais, cinco agrupamentos hidrográficos categorizados
como bacias litorâneas ou costeiras (Vide Figura 25).
Em particular, constituindo uma monumental expressão do meio
natural, a bacia Amazônica, a maior reserva de recursos hídricos do
mundo, seria merecedora de comentários específicos, podendo ser
aquilatada por intermédio do parágrafo que transcrevemos a seguir:
A área de drenagem do rio Amazonas, somada à da área
do rio Tocantins, totaliza 6.869.000 km², representa cerca
de uma vez e meia a segunda maior bacia do planeta, a
do rio Zaire na África, e cerca de 1/3 da área da América
do Sul. A descarga amazônica atinge valores acima de
6.700 km³/ano, equivalendo a quase cinco vezes a
descarga do rio Zaire, o segundo em descarga do mundo,
e a 20% de toda a água doce que é despejada nos
4
493
oceanos do planeta por todos os rios (BARTHEM, 2001:
61).
Bacia Costeira
Norte
Bacia
Amazônica
Bacia do
Tocantins
Bacia Costeira
NE Ocidental
Bacia do
Parnaíba
Bacia
Costeira NE
Oriental
Bacia do
São
Francisco
Bacia da
Prata
(Paraguai)
Bacia da
Prata
(Paraná)
Bacia da
Prata
(Uruguai)
Bacia
Costeira NE
Oriental
Bacia
Costeira
Sudeste
Bacia
Costeira Sul
FIGURA 25 - Mapa das Bacias Principais (azul-escuro) e das Bacias Costeiras
(azul-claro), com respectivas áreas de abrangência territorial (Fonte: < h
ttp://www.aguas.cnpm.embrapa.br/natureza/mapas/conteudo/rh_indice.php
>,
escala aproximada 1: 29.300.000, acesso: 01-03-2005)
A grandiosidade da bacia amazônica se expressa nos inúmeros
afluentes de grande caudal, rios que como o Xingu, Tapajós, Madeira,
Negro e Branco, estão incluídos entre os maiores cursos d’água do
mundo. Por outro lado, o fato de o Brasil abrigar no seu território esta
pujante bacia hidrográfica não desmerece a excelência de redes
fluviais como a da Prata, do Parnaíba, São Francisco e do Tocantins,
4
494
todas de grande expressão territorial, em nada devedoras às maiores
bacias hidrográficas do planeta.
Deve-se agregar a estes comentários, o significativo papel das
bacias litorâneas ou costeiras, categorizadas ainda em data recente
como “secundárias”. Agrupadas em blocos fluvio-regionais reunindo
uma diversidade de cursos d’água, estas bacias hidrográficas seriam
as do Norte, Nordeste Ocidental, Nordeste Oriental, Sudeste e do Sul.
Ressalve-se que a despeito de possível desqualificação inerente
à tipologia “secundária”, tais bacias reúnem rios que na maioria dos
países, seriam considerados como de porte significativo. Embora de
somenos expressão num contexto eminentemente nacional, nestes
cinco agrupamentos hidrográficos estão presentes cursos fluviais de
valiosa expressão geográfica, drenando áreas superiores a países
com expressividade territorial. Dentre estes seria cabível mencionar
os rios Taquari, Jequitinhonha, Doce, Oiapoque, Itapemerim e Ribeira
do Iguape, com importância primordial no contexto dos espaços que
drenam.
Resultado direto do porte deste imponente conjunto hidrográfico,
uma estimativa praticamente consensual, reserva ao Brasil 12% das
águas superficiais do mundo. Sem sombra de dúvida o maior acervo
hídrico existente na Terra, a descarga dos cursos d’água brasileiros
concentraria algo como 53% do volume total da América do Sul, que
se sabe, é o mais bem aquinhoado quadrante do mundo em termos
de disponibilidade do líquido.
4
495
Note-se que a dominialidade geográfica do Brasil, país alojado na
porção central/oriental da América do Sul, contribui para beneficiá-lo,
particularmente no caso da bacia amazônica, da descarga de rios que
nascem em países vizinhos a Oeste. Deste modo, embora 43% da
bacia Amazônica esteja localizada nos países limítrofes, a descarga
final encontra-se no Brasil.
Observando por este prisma, estaria sob titularidade brasileira o
escoamento de 77% das águas de superfície da América do Sul,
somatória da vazão produzida no território brasileiro com aquela que
escoa das nações vizinhas, no caso, vazão oriunda basicamente dos
países do entorno amazônico. Com base neste parâmetro, justificamse, pois, os levantamentos que reservam ao Brasil a porcentagem de
17% dos recursos hídricos globais (TUCCI; HESPANHOL et NETTO,
2001: 42).
A grandiosidade desta cifra tem sua contrapartida na exuberante
naturalidade do espaço brasileiro. Saliente-se que a participação
brasileira na biodiversidade global, estimada em aproximadamente
20% do total mundial, possui relação direta com a grandiosidade dos
corpos líquidos encontrados no país. No que diz respeito à pujança
da wilderness, os números do Brasil são arrebatadores:
O país conta com a maior riqueza de animais e vegetais
do mundo: entre 10 a 20% de 1,5 milhão de espécies já
catalogadas. São cerca de 55 mil espécies de plantas
com sementes (aproximadamente 22% do total mundial),
502 espécies de mamíferos, 1.677 de aves, 600 de
anfíbios e 2.657 de peixes. Respectivamente 10,8%,
17,2%, 15,0% e 10,7% das espécies existentes no
planeta. Considerando o fato de que a maior parte da
4
496
biodiversidade mundial ainda está por ser estudada, e que
os países desenvolvidos estão muito à frente quanto a
inventários biológicos, estima-se que as investigações no
Brasil,
em
especial
na
Amazônia,
elevarão
significativamente a posição do país nestas estatísticas,
baseadas nos números disponíveis atualmente (Vide
CAPOBIANCO, 2001: 13).
Para todos os efeitos, é inegável o vínculo entre a presença de
generosas massas líquidas, a irradiação solar e a prodigalidade das
formas de vida, fatores que articulados com a presença e a atuação
das populações tradicionais
102,
conferem ao espaço amazônico uma
situação ímpar quanto à biodiversidade (CUNHA et ALMEIDA, 2002).
Esta riqueza biológica pode igualmente ser corroborada pela rica
ictiofauna brasileira, que sempre despertou legítima admiração entre
os naturalistas estrangeiros. O célebre naturalista inglês Alfred Russel
Wallace, célebre por ter proposto junto com Charles Darwin a teoria
da evolução das espécies, se embrenhou nos vales dos rios Negro e
do Uaupés, no setentrião amazônico, pelos idos dos anos 1850-1852,
para coletar espécimes de peixes destes rios. Extasiado com o que
encontrou, registrou o renomado naturalista:
Tomando-se por base o número de peixes diferentes que
eu encontrava continuamente em cada nova localidade e
em cada samburá de pescador, pode-se presumir que
existam pelo menos 500 espécies no Rio Negro, e em
seus afluentes. Quanto ao total de espécies existentes na
bacia amazônica, acredito ser impossível estimá-lo com
um mínimo de precisão (WALLACE, 2002: 54).
Quanto ao inter-relacionamento socioambiental que se estabeleceu entre populações
tradicionais e biodiversidade, consulte-se CARVALHO, 2000.
102
4
497
Note-se que o tempo deferiu a suposição de Wallace. Nos anos
2000, levantamentos relativos à ictiofauna do Rio Negro indicam que
esta excede a fabulosa soma de 700 espécies, totalização que ainda
aguarda apuros pelas pesquisas (idem, 2002: 54).
Outra joia do quadro natural do país são as águas subterrâneas.
Considera-se que depósitos subterrâneos do líquido estão presentes
em 90% do território brasileiro. Na atualidade, as águas subterrâneas
são responsáveis pelo abastecimento de aproximadamente 90% das
indústrias e de 62% da população nacional, seja por intermédio de
poços profundos (70%), fontes (20%) ou de cacimbões e poços rasos
escavados (10%). O uso de água subterrânea também tem destaque
em setores como da fruticultura para exportação, especialmente no
semiárido nordestino (REBOUÇAS, 2004: 97/121).
No referente aos depósitos subterrâneos, cabe realçar o Aquífero
Guarani, considerado o maior do mundo. O termo foi sugerido pelo
geólogo uruguaio Danilo Antón em 1994 e sancionado posteriormente
em maio de 1996. Até então, este corpo de águas profundas recebia
denominações regionalizadas, dentre as quais: Misiones no Paraguai,
Tacuarembó na Argentina e no Uruguai e Botucatu, no Brasil (Vide
BORGHETTI et BORGHETTI, 2004).
A denominação “Guarani” é uma homenagem à nação indígena
que no pretérito, povoava naco considerável da área ocupada por
este lençol subterrâneo. No mais, a designação Aquífero Cone Sul ou
Mercosul, tem cativado a mídia, à vista deste reservatório estender-se
através dos territórios dos quatro países integrantes da mesma subregião geográfica ou, do bloco econômico homônimo, qual seja, pelos
4
498
territórios do Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai. Localizado no
Centro-Leste do continente sul-americano, a área abrangida pelo
aquífero, supera a superfície da maioria dos países: 1.194.800 km²
(Vide SCHIO, 2005). Embora compartilhado por quatro países, 70,3%
do reservatório estão situados em território nacional (Vide Figura 26).
Deste modo, 840 mil km² correspondem à parcela da terra brasilis, e
o restante, é partilhado entre a Argentina (250 mil km²), o Paraguai
(71.700 km²) e o Uruguai (58.500 km²).
No Brasil, o reservatório ocorre em oito estados: Mato Grosso do
Sul (213,2 mil km²), Rio Grande do Sul (157,6 mil km²), São Paulo
(155,8 mil km²), Paraná (131,3 mil km²), Goiás (55 mil km²), Minas
Gerais (51,3 mil km²), Santa Catarina (49,2 mil km²) e Mato Grosso
(26,4 mil km²). Atine-se que bom número de unidades da federação
detém área maior de abrangência territorial do Guarani do que
aquelas sob jurisdição dos países vizinhos.
Este reservatório ganhou grande notoriedade nos últimos anos,
por conta de levantamentos que revelaram a quantidade de água que
encerra. Suas águas subterrâneas, com exceção de áreas anômalas,
apresentam excelente potabilidade e são adequadas a múltiplos usos
(ROCHA, 1997: 196). Este depósito de água é constituído por um
pacote de camadas arenosas depositadas na Bacia Sedimentar do
Paraná ao longo do Mesozoico, entre 200 e 132 milhões de anos
atrás. Funcionando tal como uma esponja, esta formação de arenito
absorveu e armazenou água originária da infiltração imemorial de
sucessivas precipitações pluviométricas, impregnando as camadas de
rochas permeáveis.
4
499
FIGURA 26 - Mapa do Aqüífero Guarani na América do Sul: Área de abrangência
dos países titulares (Imagem masterizada e adaptada por Maurício Waldman.
Fonte: < http://www.moderna.com.br/ moderna/agua/imagem/aquifero.gif >,
escala aproximada 1: 33.600.000, acesso: 12-02-2005)
5
500
Este processo natural originou um montante considerável: 37.000
km³. Comparativamente, recorde-se que a descarga total de água
doce de todos os rios do mundo soma 41.000 km³/ano. Isto significa
que o Guarani armazena uma porcentagem equivalente a 90,2% do
total da água superficial de todo o planeta (REBOUÇAS, 2002a: 14).
A potencialidade explotável do reservatório, em derredor de 25%,
permitiria atender a cerca de 30 vezes a demanda total de água dos
15 milhões de habitantes do espaço de ocorrência do aquífero.
Localizado numa profundidade média de 1.500 metros, além de água
potável, este reservatório reuniria condições de fornecer água quente
para uso residencial, suprindo-as de calefação, e somando-se a isto,
possíveis usos industriais. No mais, extensão ponderável do Guarani
é do tipo confinado, conferindo-lhe características de artesianismo,
propiciando, portanto, a abertura de poços jorrantes em muitos locais.
O vulto deste reservatório permitiu que um número considerável
de municipalidades paulistas, como Araraquara, Bauru, Lins, Ribeirão
Preto, Jaú e Marília, passassem a satisfazer suas demandas por meio
da perfuração de poços (ROCHA, 1997: 192/194 e 202/203).
Apesar de a visibilidade alcançada por este lençol de águas
subterrâneas nos últimos anos, este seria, por sinal, apenas uma das
potencialidades hidrogeológicas de águas subterrâneas do país, visto
estar contemplado por vários outros aquíferos. Enfim, a cubagem do
potencial do Guarani, isto é, a volumetria do reservatório, está longe
de ser aceita como definitiva, aguardando, pois uma contabilidade
final 103.
Recorde-se que o potencial brasileiro em termos de reservatórios subterrâneos
comportaria muitos estudos para dimensionar sua real expressão. Isto, em vista de que
103
5
501
A partir do que foi pontuado até este momento, o Brasil poderia
transparecer como um país afortunado do ponto de vista dos recursos
hídricos, até porque desfruta em larga escala da posse de um recurso
verdadeiramente estratégico que é a água, reservas significativas não
só do ponto de vista quantitativo como também do qualitativo.
Certamente, nada semelhante ocorre pelo mundo afora. E é este
majestoso conjunto de águas doces que credencia o Brasil, no
milênio que se inicia, como uma das poucas nações teoricamente
capacitadas a competir no mercado de água potável que tem sido
desenhado nos últimos anos.
Observação consignada nos capítulos precedentes, dos países
pertencentes ao G7 da água, apenas o Brasil conta com um capital
hidrológico indiscutivelmente abundante. O país, contrariamente aos
demais participantes do grupo (Estados unidos, Canadá, Federação
Russa, Índia, República Popular da China e República Democrática
do Congo), está não só habilitado a ser um provedor de água doce
em escala mundial, como é o único com capacidade de assumir uma
posição de liderança.
Nesta ordem de argumentações, a conservação dos recursos
hídricos constituiria tanto uma estratégia visando o atendimento da
população, quanto um imperativo e um pressuposto para atender a
crescente demanda mundial de água, transformada desde finais do
século passado, numa promissora commodity, fato que homologa de
mesmo regiões próximas das grandes metrópoles aguardam avaliações técnicas quanto
à sua capacitação enquanto provedoras de águas subterrâneas. Neste caso pode ser
incluído, por exemplo, o município de Ribeirão Pires, cuja cubagem ainda é largamente
desconhecida.
5
502
vez o marco inédito de metamorfose do líquido num bem de mercado
pelo evangelho da economia-mundo (BARLOW et CLARKE, 2003).
Assim, até que ponto a potencialidade hídrica do país poderia
compor uma alternativa real diante da escassez que hoje já importuna
segmento relevante da população brasileira?
9.2. SEDE NO PAÍS DAS MUITAS ÁGUAS
Uma vez esboçados os aspectos referentes às vocações naturais
do Brasil no tocante à água doce, agora caberia delinear, mesmo que
sinteticamente, as restrições socioespaciais que transformaram, para
um setor significativo da população do país, a cinematográfica fartura
de recursos hídricos em mera figura de linguagem, sem contrapartida
na realidade vivida.
Nesta continuidade, o fato das bacias hidrográficas conotarem
realidades demográficas apresentando toda sorte de contrastes tem
sido insistentemente levantado, sendo lícito pespontar lineamentos
espaciais e populacionais. Entretanto, respeitados os condicionantes
sociais, históricos e geográficos da oferta e da demanda dos recursos
hídricos no Brasil, seria plausível admitir que de facto, os mesmos
estão marcados pela ausência de qualquer equanimidade.
Por exemplo, a Amazônia representa somente 5% da população
brasileira, mas concentra 71,1% das águas doces do país, donde se
conclui que os demais 95% da população usufruem apenas os 28,9%
da água restante. Outro dado que pode ser agregado é a informação
5
503
pela qual as quatro bacias menos densamente povoadas (Amazônica,
Tocantins, Parnaíba e Paraguai), reúnem cerca de 83% dos recursos
hídricos disponíveis no país.
Considere-se que na região amazônica, a densidade demográfica
oscila entre 2 e 5 hab./km²; quanto à bacia do São Francisco, a taxa
de ocupação é ligeiramente maior, entre 5 e 25 hab./km² em média;
contrariamente, este índice atinge a marca dos 53 hab./km² no caso
da bacia do Paraná e, patamares bem superiores a este nos grandes
conglomerados metropolitanos (Vide PEREIRA, 2002 e REBOUÇAS,
2002a: 29).
Um dado sintomático é que as bacias litorâneas, mesmo que
nacionalmente menos expressivas do ponto de vista da produção
hídrica, abrigam numerosa população e um conjunto significativo de
regiões metropolitanas. Dentre estas concentrações urbanas, pode-se
mencionar conurbações com o porte de Porto Alegre, Rio de Janeiro,
Fortaleza, Salvador, Santos, Curitiba e do Recife.
Este descompasso, continuadamente recordado por mais de um
material acadêmico dedicado ao assunto, repete-se no caso das
bacias dos rios Paraná, do Sudeste e do Sul. Estes três conjuntos
hidrográficos, cravando 12% dos recursos hídricos do país, aglutinam,
entretanto, cerca de 54% da população total do país (Vide PEREIRA,
2002).
Assim, a distribuição desigual no território nacional dos atributos
físicos (climáticos, geológicos, geomorfológicos), contrapostos aos da
geografia humana (caso da distribuição da população), seria origem
5
504
de dessimetrias que emprestam óbvia complexidade à discussão do
usufruto da água doce.
Numa locução que faria coro com comentários relativos a outros
cenários do mundo atual, o Brasil disporia de muita água em áreas
habitadas por pouca gente e simultaneamente, muita gente habitando
espaços com pouca água doce disponível (passim VILLIERS, 2000).
Decerto, uma rápida consulta cruzando os potenciais hídricos da
malha hidrográfica com os referentes à distribuição da população,
induziria por si mesmo esta avaliação (Vide Figura 27).
Porém, seria pertinente adiantar de antemão que esta equação é
insuficiente para tornar compreensível tanto a carência de água doce
quanto os fatores que influenciam negativamente a disponibilidade do
líquido. É o que se pode aduzir a partir da verificação da Tabela de
Disponibilidade Hídrica Social e Demandas por Estado no Brasil (Cf.
Figura 28).
Evidência patente nos dados arrolados, é que virtualmente não
existe carência de recursos hídricos no país. Pensando as demandas
hoje existentes, as águas estocadas nos reservatórios naturais seriam
suficientemente volumosas para, pela média, garantir disponibilidades
hídricas satisfatórias para a totalidade da população.
Sem contar os estados da Região Norte, nos quais a abundância
de água está muito acima da média mundial, podemos perceber que
mesmo nos estados do Nordeste, o estresse hídrico, tal como este é
entendido por uma plêiade de especialistas, não é referendado pelos
dados pertinentes à geografia física.
5
505
FIGURA 27 - Mapa das Bacias Demográficas e Distribuição da População
(Fonte: IBGE, 2002: 159, escala aproximada 1: 23.527.700)
5
506
FIGURA 28 - Disponibilidade Hídrica Social por Estado no Brasil, Ano Base 1992
(Fonte: REBOUÇAS, 2002a: 31)
No Brasil, todas as unidades da federação dispõem de mais de
1.000 m³/habitante/ano, desfrutando de uma situação em princípio,
confortável. Logo, acontece no país uma realidade dessemelhante em
tudo dos espaços efetivamente assolados pelo estresse hídrico. Para
melhor compreendermos esta colocação, basta comparar as médias
5
507
destacadas na Figura 28, com a disponibilidade de países nos quais o
abastecimento de água é crítico em todas as letras.
No Kuwait são 10 m³/hab./ano disponíveis (isto é: uma oferta de
água praticamente nula); na Faixa de Gaza, território ocupado por
Israel, 52 m³/hab./ano; nos Emirados Árabes Unidos, 58 m³/hab./ano;
nas Bahamas, 66 m³/hab./ano; Qatar, 94 m³/hab./ano; Maldivas, 103
m³/hab./ano; Líbia, 113 m³/hab./ano; Arábia Saudita, 118 m³/hab./ano;
na ilha de Malta, 129 m³/hab./ano e em Cingapura, 149 m³/hab./ano
(MARTINS, 2003). Complementando este corolário, dois países muito
áridos, ambos no Machrek, também poderiam ser citados: o Bahrain,
com 185 m³/hab./ano e a Jordânia, 185 m³/hab./ano (Cf. REBOUÇAS,
2002a: 19).
Em paralelo a uma disponibilidade hídrica satisfatória, recorde-se
que a destinação do consumo no Brasil não difere substancialmente
do que vigora no mundo, com porcentuais similares à média global.
No país, o segmento agrícola absorve 64,7% do consumo total; a
indústria, 13,9%; o consumo residencial, 16,4%; e a dessedentação
dos rebanhos, 4,9% (TUCCI, HESPANHOL et NETO, 2001: 64).
Assim, dado que a disponibilidade está garantida e não ocorre
nada excepcional em termos do perfil de consumo, restaria inquirir
sobre as causas que determinam quadros de escassez de recursos
hídricos no Brasil. Porque, no final das contas, existiria sede no País
das Muitas Águas?
Certamente, o caso do semiárido nordestino constitui menção
obrigatória. O Nordeste conquistou junto ao imaginário nacional, após
5
508
décadas de pregação apaixonada, uma condição de sinonímia com
relação aos tormentos inerentes à carência de água.
Neste espaço, o sertanejo materializa, a priori, um personagem
de um drama no qual todo o momento, é alvo das oscilações dos
humores da pluviometria, compondo uma imagem emblemática do
homem vitimado pela seca e por estiagens aniquiladoras.
Afinal, quem desconhece as imagens dos retirantes retratadas
por Cândido Portinari? Quem nunca tomou conhecimento de notícias
relativas à seca do sertão ou de recorrentes campanhas de caráter
cabotinamente humanitárias, voltadas quiçá, para dar assistência aos
flagelados?
Estas imagens, embora onipresentes e periodicamente realçadas
nas páginas dos jornais, tem sido, outrossim, questionadas por largo
espectro de estudos. Basicamente porque as secas, a despeito de
espelharem um fenômeno climático, estão claramente articuladas a
uma estratégia de dominação política, econômica e ideológica. Esta
consideração, sublinhada em ponderável vade-mécum de avaliações,
aponta a cooptação dessa ocorrência natural pelas elites da região,
que a integraram ao seu mecanismo de reprodução de poder, em cujo
cerne, localiza-se a grande propriedade rural e o mandonismo local.
Por intermédio da contrafação do flagelo da seca, o segmento
latifundista conseguiu agremiar em seu proveito, um capital simbólico
que tem se mostrado eficaz para arrebanhar verbas e auxílio dos
órgãos federais, tonificando ainda mais seu poder em nível regional,
transformando um evento climático sazonal num codinome do arbítrio.
5
509
O histórico relacionado com o Departamento Nacional de Obras
Contra as Secas (DNOCS), pode ser reclamado para corroborar esta
asserção. A gestão do órgão, escrupulosamente hegemonizada pelas
conveniências das gemas latifundiárias, é que teria, contrariamente à
propositura inicial, justificado sua transformação de instância nacional
num departamento regionalizado. Na sagaz observação do sociólogo
e economista Francisco de OLIVEIRA,
...mesmo o problema das secas não era concebido como
um problema exclusivamente do Nordeste semiárido. O
DNOCS era um departamento nacional, concebido para
atuar no combate a esse fenômeno climático onde quer
que ele fosse constatado no território do país. O fato de
nunca ter realizado nenhuma obra fora do Nordeste, é um
resultado de sua captura pela oligarquia regional, e não
uma intenção ou objetivo inicial (1987: 51).
Submetida assim a um controle político e, portanto, colocada fora
do alcance daqueles que não usufruem o poder, a água ressente-se
de óbices adicionais relacionados às metodologias de utilização. O
líquido, seja aquele armazenado nos açudes ou retirado diretamente
da rede fluvial, está sujeito à precariedade dos modelos de irrigação.
No Nordeste, o método tradicional de espalhamento superficial
vigora em toda sua grandeza, dominando cerca de três milhões de
hectares, ou seja, 56% da área irrigada na região. O emprego desta
metodologia para manter os cultivares, combinada com as elevadas
médias térmicas de temperatura que caracterizam todo o semiárido,
promovem desmesurada perda do líquido. Praticamente, seria como
derramar água no solo para provocar sua evaporação (REBOUÇAS,
2004: 51).
5
510
Não se imagine, porém, que no semiárido, o predomínio dos usos
perdulários do líquido, que de mais a mais, potencializam problemas
relacionados às variações da disponibilidade hídrica, sejam um mero
“obstáculo técnico”. Vale anotar que se compatibilizando à estrutura
tradicional de dominação de cunho latifundista, a implantação, a partir
dos anos 1970, dos chamados projetos especiais de assentamentos
baseados na irrigação, novamente reproduziram formas perversas de
espoliação dos recursos hídricos.
Apropriando-se do essencial do crédito bancário e dos sistemas
de drenagem, estes projetos, açambarcados por segmentos sociais
que gozavam de proximidade com as fontes oficiais de financiamento,
contribuíram para o agravamento do quadro social da região, sem em
absoluto equacionar minimamente a estrutura de desconformidades e
que para agravar, maximizaram a perpetuidade da indústria da seca.
É neste contexto que o polêmico projeto da transposição do rio
São Francisco, cujos objetivos seriam a expansão da irrigação, da
indústria e da carcinicultura, provocou vívidas reações da sociedade
civil e de organizações sociais. Secundando as questões relativas ao
financiamento do discutível projeto (cuja fase inicial está orçada em
R$ 4,5 bilhões, com custos finais que tendem, como em toda obra de
infraestrutura, a superar as estimativas iniciais), os constrangimentos
socioambientais são notórios (AB’SABER, 2004b).
Observe-se que o projeto foi alvo de pareceres críticos do Comitê
de Bacia Hidrográfica do São Francisco (CBHSF), da I Conferência
Nacional do Meio Ambiente (CNMA), da Sociedade Brasileira para o
Progresso da Ciência (SBPC) e do Centro de Estudos e Projetos do
5
511
Nordeste (CEPEN). Até mesmo o Banco Mundial, em announcement
oficial divulgado em 2003, recomendou o adiamento da transposição,
sugerindo a aplicação das dotações orçamentárias em sistemas de
abastecimento de âmbito local, programas de porte comunitário e a
revitalização do São Francisco, entendidos como primaciais
104.
No entendimento de amplo segmento de opinião, a transposição
do São Francisco privilegiará, do mesmo modo que os chamados
projetos especiais, os setores já capitalizados do agrobusiness em
detrimento da agricultura familiar, reforçando ações que tendem a
fortificar a privatização e a mercantilização do ouro azul.
Assim, o projeto se inscreveria no usual primado da manipulação
da indústria da seca para privilegiar a nobiliarquia nordestina com
projetos hídricos que tem servido concentrar terra, água, riqueza e
poder. É neste exato sentido que as novas metodologias de produção
agrícola, antes de atenuarem, tem acirrado os conflitos pela água na
região, um quadro de resto descrito em variegados estudos e análises
(Cf. CABREIRA, 1989).
Deste modo a seca materializa, bem mais do que um fenômeno
climático, uma estratégia de dominação secularmente capitaneada
pelo coronelato imperante no espaço rural. Como foi observado, o
Nordeste é agraciado pelo líquido numa volumetria substancialmente
maior que as regiões do planeta listadas como críticas, o que depõe
em contrário com as fabulações que rondam o imaginário da seca.
Jornal O Estado de S. Paulo, Caderno de Ciência e Meio Ambiente, edição de 02-022005.
104
5
512
As limitações naturais vigentes no semiárido foram, na realidade,
espicaçadas por formas de exploração predatória do capital natural,
consorciadas a estruturas concentradoras de renda e poder político,
acentuando os problemas de disponibilidade hídrica, que reforçam um
quadro social e econômico insatisfatório (SALES, 2002: 115/116).
Enquanto contraponto a este modelo hegemônico, e igualmente
contrariando um preconceito subliminar bastante difundido, assentese que a cultura sertaneja tradicional é atenta ao entendimento dos
ciclos da natureza, dos quais depende diretamente (HOEFLE, 1990).
Nesta perspectiva, preconizando ações passíveis de manterem
relação harmoniosa com os dinamismos hídricos presentes no meio
natural, as formas tradicionais de manejo ambiental conformam um
sólido registro de mandamentos calcados na vivência popular com os
dinamismos ecológicos do sertão nordestino, merecedor de atenção
pela viabilidade operacional e eficácia funcional (Vide Figura 29).
Em resumo, os problemas socioambientais do Nordeste resultam,
antes de tudo, de uma estrutura de privilégios que tem logrado grande
longevidade no cenário político, e não propriamente em decorrência
da carência de recursos hídricos. Por sinal, uma rápida consulta à
Figura 28, nos revelaria que unidades da federação como São Paulo
e o Rio de Janeiro, sobre as quais não incide o estigma da sede,
detém promédios equiparáveis a muitos estados nordestinos. A título
de apenso ratificador, a região disporia de potencialidade hídrica para
atender suas necessidades econômicas, sociais e ecológicas até pelo
menos o ano de 2020 (VIEIRA, 2002: 528).
5
513
FIGURA 29 - Súmulas de manejo agroambiental tradicional do semiárido, tal como
explicitado na pregação do Padre Cícero (Fonte: MARQUES, 1986)
5
514
No mais, o imaginário relativo ao Nordeste seco deve também
ser confrontado pela recordação de que as áreas mais críticas no
tocante aos recursos hídricos no país não se localizam no semiárido.
Bem mais séria e impactante do que o sertão nordestino, tanto pelas
repercussões negativas para os recursos hídricos quanto em razão
da massa populacional envolvida com esta problemática, é a questão
urbana do Brasil atual. Esta consideração é especialmente verdadeira
caso lembremos que o foco da discussão está centrado nas grandes
metrópoles que caracterizam o chamado “Brasil moderno”.
Não há, a rigor, nenhuma semana na qual os noticiosos não se
refiram, de um modo ou de outro, à temática. Sem dúvida alguma, as
cidades têm evidenciado franca dificuldade no trato da poluição do ar,
do planejamento urbano, dos resíduos sólidos e do tratamento dos
esgotos, todos desdobrando-se em impactos avassaladores para os
provimentos de água potável (BRAGA, 2003: 119/123).
Coincidindo com esta última anotação, os aterros e metodologias
técnica e ambientalmente questionáveis de tratamento dos efluentes
são implantados proximamente a cursos de água ou em áreas de
recarga dos lençóis subterrâneos. No julgamento da geógrafa Sandra
Elisa Contri PITTON, “grande parte das cidades brasileiras utiliza
fossas sépticas como destino final do esgoto, contaminando a parte
superior do aquífero” (2003: 42).
Os problemas gerados pelo crescimento urbano desmesurado,
além de amplificarem o problema da escassez quantitativa de água,
intensificam perturbações no tocante à saúde pública, cissiparidades
sociais, políticas, econômicas e de planejamento. Este quadro de
5
515
desarmonias está sintetizado de forma cabal pelo hidrólogo Aldo da
Cunha REBOUÇAS:
Vale ressaltar, ainda, que estas formas desordenadas de
uso e ocupação do território em geral, engendram o
agravamento dos efeitos das secas ou enchentes que
atingem as populações e suas atividades econômicas. No
meio urbano, esse quadro é especialmente agravado pelo
crescimento de favelas nas áreas de alto risco ambiental
(encostas dos morros e várzeas dos rios), falta de coleta
ou lançamento de esgotos não tratados nos corpos de
água utilizados para o abastecimento, não coleta do lixo
urbano produzido (doméstico e industrial) ou deposição
inadequada do resíduo coletado e grande desperdício da
água disponível (2002a: 30).
Obviamente, deste leque de embaraços não haveria como excluir
os depósitos subterrâneos de água, que em numerosas avaliações
despontam como a “tábua de salvação” do abastecimento do líquido,
enormemente prejudicado por conta da deterioração das águas de
superfície. Indo diretamente ao ponto, lembrando que a contaminação
das águas superficiais decorreu do mau gerenciamento e displicência
quanto à sua utilização no futuro, quem poderia então pretender que
o abastecimento realizado a partir dos aquíferos estará resguardado,
de vez que a atitude prevalecente para com as águas dos rios e lagos
não foi alterada em absolutamente nada até o presente momento, e
mais ainda, quando se recorda que a forma de atuação na superfície
repercute, cedo ou tarde, nos recursos do subsolo?
Abusus non tollit usum, verifica-se uma situação estruturalmente
comprometedora do capital hídrico, afetando os estoques naturais
das águas de superfície, as subterrâneas, assim como as represadas
em objetos espaciais tais como barragens e represas.
5
516
Constituindo um problema permanente para a saúde dos corpos
d’água, a poluição decorrente da falta de esgotamento sanitário e da
vacuidade das políticas públicas no controle dos efluentes é crônica e
permanente. Nas grandes, médias e pequenas cidades brasileiras, os
rios, córregos, mangues e praias, tornaram-se destino ou canais das
águas servidas urbanas (BRANCO, 2002, 1993 e 1991; REBOUÇAS,
2002a).
Este quadro se complica quando se sabe que a própria poluição
se diversificou com a expansão da vida urbana moderna, permitindo
que às cargas de poluição pontuais, dizendo respeito a escoamentos
industriais, pluviais e de origem cloacal, fosse possível acrescentar as
cargas difusas, cujos componentes, vis-à-vis aos efeitos deletérios de
uma urbanização acelerada, foram reforçados. Neste recorte, numa
observação estribada por qualquer círculo de especialistas, a carga
de esgotos constitui causa notória de problemas para a conservação
dos recursos hídricos em praticamente todo o território brasileiro.
Senão vejamos:
A maioria dos rios que atravessam as cidades brasileiras
estão deteriorados, sendo esse considerado o maior
problema ambiental brasileiro. Essa deterioração ocorre
porque a maioria das cidades brasileiras não possui
coleta e tratamento de esgotos domésticos, jogando in
natura o esgoto nos rios. Quando existe rede, não há
estação de tratamento de esgotos, o que vem tornar mais
grave as condições do rio, pois se concentra a carga em
uma seção. Em algumas situações, é construída a
estação, mas a rede não coleta o volume projetado
porque existe um grande número de ligações clandestinas
de esgoto no sistema pluvial, que de esgoto separado
passa a misto. Muitos rios urbanos escoam esgoto, já
que, devido à urbanização, grande parte da precipitação
5
517
escoa diretamente pelas áreas impermeáveis para os rios
(TUCCI, HESPANHOL et NETTO, 2001: 47).
Neste dramático quadro de desventuras socioambientais, agregase a deficiência crônica dos serviços de atendimento da população.
Apesar de visível expansão do acesso aos serviços de água e esgoto
ocorrida nos últimos vinte anos, existem inúmeras considerações a
serem tecidas nos planos qualitativos e quantitativos.
Lançando mão de dados divulgados na Conferência Nacional
das Cidades (2003), aproximadamente 60 milhões de brasileiros (9,6
milhões de domicílios), não dispõem de coleta de esgoto e 15 milhões
(3,4 milhões de domicílios), além de não desfrutar de esgotamento
sanitário, não tem acesso à água encanada. Este quadro se agrava
quando se sabe que a população carente de serviços de água e de
esgoto concentra-se especialmente nas áreas periféricas dos grandes
centros, e que à exclusão no atendimento destes serviços, somam-se
vários outros agravos para a qualidade de vida destes brasileiros.
Num âmbito geral, a amplitude do acesso à água tratada e de
atendimento dos serviços de esgotamento sanitário seria, no Brasil,
precária até mesmo na comparação com os demais países latinoamericanos e caribenhos. Somente 85% da população brasileira é
atendida pela rede pública de água potável, contra 96% para Cuba e
Belize, 94% para o Chile, 91% para o México, 90% para a Guiana e
88% para a Colômbia. Apenas 55% da população urbana é atendida
por esgotamento sanitário e uma porcentagem menor ainda no setor
rural, estimada em torno de 3%. Esta última cobertura seria inferior à
5
518
do Peru, cujo índice é de 10% e do Haiti - o país mais pobre da
América Latina -, com 16% (Cf. HESPANHOL, 2002: 250).
Paralelamente, há também que ser anotado o caráter esporádico
do fornecimento, em particular na periferia das metrópoles brasileiras.
Em outras palavras, os canos existem, mas por quanto tempo a água
escoa no sistema de tubulações?
Outro fator relacionado com a dificuldade de acesso à água
potável vincula-se a considerações tais como o desperdício gerado
pelos próprios sistemas de abastecimento, que seria em grande parte
facilitado pelo gigantismo das redes de distribuição. Indubitavelmente,
as imagens de sistemas ciclópicos de abastecimento contemplando
cidades também gigantes, praticamente frequenta todas as projeções
futuristas do meio urbano moderno.
Mas, seria lícito indagar: existiria eficácia real nesta conjugação?
Na realidade, acontece que estes sistemas, formados por intrincada
trama de tubulações, estações elevatórias, reservatórios e instalações
anexas, necessariamente significam perdas de vulto de água tratada.
Sumamente porque inexiste sistema de distribuição de grande porte
que consiga coibir totalmente as perdas.
Neste particular, recorde-se que a média de extravios nos países
desenvolvidos oscila entre 5 a 15% do total injetado na rede. Prova
disso, o sistema de distribuição da Alemanha, com gerenciamento
considerado como de extrema eficiência, trabalha com margem de
perdas em torno de 8%.
5
519
Porém, no Brasil esta proporção é significativamente mais alta.
Concorrendo para ampliar o deficit de oferta de água, a porcentagem
abduzida pelos vazamentos, por falhas de manutenção, violação dos
registros e ligações clandestinas, alcançaria cifras variando entre 40%
a 60% da água distribuída pelos sistemas públicos (Ver entre outros
REBOUÇAS, 2004: 47). O volume de água perdida no Brasil seria
suficiente para abastecer 35 milhões de pessoas ao longo de um ano.
Entre outros, este seria um dos motivos que posicionam o Brasil
enquanto um dos campeões mundiais de desperdício do líquido (Cf.
REBOUÇAS 2004: 38/41 e CAMARGO, 2003).
Outras objeções estão assentadas nos dados qualitativos. Por
exemplo, os indicadores de qualidade da água provisionada pelos
sistemas públicos de abastecimento têm sido colocados à prova em
por textos científicos. Pode ser que abrindo as torneiras, de pronto
tenhamos água à disposição. Mas qual é seu padrão de qualidade?
Sabe-se que em 1925 os serviços de saúde pública dos Estados
Unidos regulamentavam, para a água potável, número inferior a dez
parâmetros. Entrementes, em 1974, a Environment Protection Agency
estipulava 20 parâmetros, sendo que este número estava próximo de
130 em 2000. Acompanhando tal escalada, em 2020 são previstos
cerca de 200 indicadores de qualidade de água potável.
Evidentemente, embora esta multiplicação de parâmetros não
implique no fornecimento de uma água de beber com qualidade
melhor do que aquela de 1925, certamente estampam uma ampliação
dos cuidados técnicos que vão sendo acrescidos ao conceito de água
apropriada para o consumo humano (HESPANHOL, 2002: 258/259).
5
520
No Brasil, o “tratamento convencional”, mediado pela resolução
CONAMA nº. 20 (18/06/1986), constitui o padrão de referência para
os sistemas de engenharia sanitária em operação no país. Tal
normatização, regrando os procedimentos adotados nas estações de
tratamento reporta, entretanto, a sistemas de purificação, desinfecção
e filtração reconhecidamente incapazes de remover porcentagens
significativas de metais pesados, compostos orgânicos sintéticos e
naturais, tais como os ácidos húmicos e fúlvicos.
Os problemas recrudescem quando sabemos que apenas 25,6%
dos esgotos coletados recebe “tratamento convencional”, sendo o
restante lançado in natura nos rios, contaminando também o solo, os
lençóis freáticos, os estoques de águas profundas e derradeiramente,
as massas oceânicas. Consequentemente, o esgotamento termina
por alcançar espaços que em tese, atenderiam o consumo urbano.
Assim, o desafio de ampliar a rede de tratamento e simultaneamente,
de atualizar os parâmetros de qualidade da água segue em pleno
vigor (HESPANHOL, 2002: 263/264 e WEHRHAHN, 1996: 63).
Neste particular, um sinal explícito da dificuldade de acesso à
água de boa qualidade foi o surgimento de um comércio urbano
especializado em equipamentos de purificação e desinfecção de água
e a multiplicação das vendas de garrafões água potável. Esta última
comercialização, alastrou-se pelas cidades brasileiras tanto facilitada
pela má reputação que persegue a água das torneiras, quanto pela
escassez. Embora a cena fosse impensável apenas algumas décadas
atrás, as cidades do país, da mesma forma como os grandes centros
urbanos do mundo atual, constituem nos dias de hoje um excelente
5
521
mercado para as distribuidoras de água mineral, muitas delas de
pequeno porte e localizadas ao longo das ruas dos bairros.
A magnitude deste mercadeio pode ser aquilatada por dados
elencados pelo Team Canada Market Research Center, pelos quais o
Brasil destaca-se enquanto um promissor mercado de água mineral
engarrafada, calculado em US$ 2,5 bilhões anuais. Mais ainda, ao
transformar-se item obrigatório da pauta de gastos domésticos, este
mercado está crescendo rapidamente: cravou um percentual de 122%
entre 1990 e 1998.
Esta expansão fomenta visível empreendedorismo de marcas
tradicionais da indústria engarrafadora de água. Dados do Sumário
Mineral do DNPM 2001, revelam a liderança de corporações como o
Grupo Edson Queirós (responsável por 18,4% das vendas nacionais
em 2000), Indaiá (15,5%), Minalba (2,84%), Ouro Fino (3,41%),
Lindoya (2,06%) e Perrier/Nestlé (1,82%).
Seria interessante registrar que cresceram no mesmo período as
exportações de água mineral engarrafada. A produção das marcas
destinadas ao exterior registrou aumentos significativos, passando,
relativamente à produção total, de 3,9% em 2000, para 7,0% no ano
2001. A Espanha, seguida de Angola, Luxemburgo, Cabo Verde e dos
Estados Unidos, constituem a clientela principal das águas minerais
brasileiras. Somados, estes cinco países foram o destino de 83,2% do
total das exportações deste item. Do ponto de vista geoeconômico,
em 2001, os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP),
adquiriram 24,9% do total exportado, sendo Angola, como foi referido,
o principal importador (Vide CRUZ, 2002).
5
522
A partir de 2000 uma tendência de diversificação dos clientes
internacionais evidencia-se quando se sabe que a Noruega, Andorra
e Taiwan tornaram-se importadores da água engarrafada brasileira.
Por sinal, existe também um trânsito internacional de água mineral
que, no entanto, não é incluída na cartografia do comércio do produto.
Trata-se, por exemplo, da água mineral fornecida para as linhas
aéreas, de ligação internacional rodoviária e aos navios cargueiros e
de turismo nos portos brasileiros, cujo consumo atua, é evidente,
enquanto um veículo de divulgação e de fidelização do produto no
espectro global. Paralelamente, nota-se, numa escala bem menor, o
crescimento do consumo de marcas estrangeiras, degustadas pelas
altas-rodas urbanas. O Brasil, a despeito do seu estupendo acervo de
água mineral, importou em 2002 de um país como a França, US$
1,48 milhão do produto 105.
Mas, recopilando a lógica inquietante sobredita parágrafos atrás,
é de se notar que este comércio global se engrandece num momento
em que a crise de abastecimento de água da rede pública bate às
portas de milhões de concidadãos. Deste modo, dado sobremaneira
fundamental para se meditar a respeito da questão da escassez de
água relaciona-se diretamente com a velocidade e a forma como se
materializou a expansão urbana no país.
Confira-se que de modo fulminante, o país passou a conjuminarse em seu escopo territorial com a tecnoesfera, um espaço
eminentemente artificial regrado por ciclos igualmente artificiais. Para
105
Jornal do Comércio (Porto Alegre, RS, edição de 05/02/2002), disponível on line em <
http:www.rededasaguas.org.br/noticias/montanotic.asp?id=129 > (Acesso: 28-09-2005).
5
523
conferir, nada melhor do que a visão das “galáxias de luz” brasileiras
a confirmar, com vista da estratosfera, sua presença no território
nacional. Quanto às repercussões antropogênicas da tecnoesfera
para as águas doces, e rubricando parecer que se reveste da aura de
um verdadeiro consenso, pode-se avocar:
Entretanto, os problemas de abastecimento no Brasil
decorrem, fundamentalmente, da combinação do
crescimento exagerado das demandas localizadas e da
degradação da qualidade das águas, em níveis nunca
imaginados. Esse quadro é uma consequência da
expansão desordenada dos processos de urbanização e
industrialização, verificada a partir da década de 1950
(REBOUÇAS, 2002a: 29/30).
Certificar a amplitude destas colocações não é difícil. Basta
recordar que o último Censo Demográfico 2000 do IBGE confirmava
que de um total de 169.872.856 de brasileiros, 81,25% (em números,
137.925.238 de pessoas), seriam habitantes de áreas urbanas. Este
índice, considerado alto, é superior ao de países como Itália (67%),
França (76%) e Estados Unidos (77%).
No entanto, vale lembrar que as porcentagens resultam dos
critérios adotados pelos países para diferenciar os meios rural e
urbano, variando consoante a aplicação de conceitos endossados por
diferentes modelos de gestão (Vide BORDO, 2005).
Nesta perspectiva, poder-se-ia objetar que o conceito de cidade
que serve de base para o Censo 2000 é meramente administrativo,
obedecendo ao Decreto-Lei nº. 311, de 02-03-1938, emitido durante o
Estado Novo getulista e que até hoje permanece em vigor. Acatando
5
524
esta diretriz, no Brasil toda sede de município é dignificada como
cidade, e toda sede de um distrito, como vila, independentemente da
sua população ou de critérios de ordem funcional ou estrutural, sendo
a população destas aglomerações, catalogada estatisticamente, sem
mais nem menos, como urbana.
Nesta linha de raciocínio, registrando 5.507 sedes de município,
o país seria considerado possuidor do maior número de cidades do
planeta (superando países populosos como os EUA, Índia e China). É
incontestável que esta generalização falseia, por vezes, a realidade.
Com a conceituação em vigor, inúmeras localidades de pequena
importância ingressam na contabilidade da urbanização, ainda que
possam estar dela relativamente distantes (SANTOS, 1967: 79).
Porém, como sempre acontece na eventualidade do nosso olhar
se deter exclusivamente em numerários, existe a sedução latente de
transformar cifras em paradigmas. Não é de outro modo que os
“desurbanistas” se dispõem a brandir alegremente estatísticas que
mostram uma diminuição das taxas de crescimento do núcleo das
metrópoles como sinal de uma “ruralização da população”, “involução
metropolitana” ou até mesmo conotando uma “desmetropolização”.
Copiando este procedimento, outros pesquisadores almejam
arrastar para o universo rural ponderável naco de pequenas cidades,
cujo modesto contingente demográfico seria impeditivo de que as
mesmas gozassem de um status urbano.
Exemplificando, o último recenseamento do IBGE registra um
município, União da Serra (RS), formado por 1.900 habitantes, dos
5
525
quais somente 286 habitariam a sede municipal e dois outros distritos.
Existem também cerca de 90 municipalidades com população inferior
a 500 habitantes e 1.176, com menos de 2.000 moradores (Cf. IBGE,
2000).
Todos estes povoados seriam passíveis, de acordo com algumas
opiniões, de serem reavaliados enquanto integrantes de um universo
urbano. Mais ainda, este numeroso conjunto de pequenos vilarejos
constituiria um depoimento em favor dos que opinam no sentido de
que o Brasil seria, na realidade, “menos urbano do que de fato é” (Cf.
VEIGA, 2004, 2002 e 2001).
Todavia, o cogito geográfico se eximiria de sucumbir diante de tal
armadilha demografista. O subsídio básico apresentado pelo espaço
geográfico contemporâneo é a difusão de um meio técnico-científicoinformacional, presente em tempo real numa portentosa rede na qual
os fixos, conectados a fluxos, articulam um sistema de engenharia
cuja medula axial é inegavelmente urbana.
Este fato transforma os espaços interligados, em copartícipes de
um mesmo dinamismo, e no exato sentido, em reprodutores de uma
idêntica lógica de reprodução do espaço, cujo centro emissor e tutelar
seria, em última análise, a metrópole onipresente. Por isso mesmo é
que podemos catalogar cidades com uma população formada por
algumas centenas de pessoas e simultaneamente aldeias agrícolas
com muitos milhares de habitantes.
O fato urbano refere-se a uma dinâmica dinamismo amplamente
distendida através da tecnoesfera, apoiada em nível da consciência
5
526
social pela psicoesfera. Nesta acepção, o espaço rural enquanto
categoria analítica, declina sua proeminência em favor de um espaço
agrícola.
Desenhando uma nova dicotomia espacial, a contraposição entre
o urbano e o agrícola torna-se um complicador adicional para as
velhas teorizações cidade/campo, insistentemente estaqueadas na
oposição entre um Brasil urbano e outro rural (Cf. SANTOS, 1998: 69148/149; 1996: 62/63; 1993b: 73/74 e 1989: 12/13).
Deste modo, com base no último recenseamento o país disporia
de 2.642 municípios compreendendo até 10 mil habitantes, reunindo
8% da população do país. Por outro lado, 13 municípios com mais de
um milhão de habitantes, concentrariam 20% da população brasileira
(Figura 30). Porém, descartando sedutoras “miragens demográficas”,
o que os dados evidenciam, é a existência de uma malha urbana
espargida nacionalmente e não localidades “mais urbanas” em meio a
outras “mais rurais”.
Dito diferentemente, em paralelo a uma “rarefação” demográfica
diluída por uma miríade de pequenas cidades situadas na base da
rede urbana nacional, o fenômeno da concentração da população
brasileira num número reduzido de metrópoles revela antes o caráter
hegemônico desfrutado por determinados polos urbanos, em especial
em razão de estarem à testa dos fluxos que dinamizam o sistema
como um todo.
A realidade desta assertiva explicita-se quando se recorda que
onze alterosas metrópoles, quais sejam, Porto Alegre, Curitiba, São
5
527
Paulo, Goiânia, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador, Recife,
Belém, Fortaleza e Manaus, acolhem cerca de 33% da população
total do Brasil (Cf. MARICATO, 2001).
FIGURA 30 - AS MAIORES CIDADES BRASILEIRAS NO ANO 2000. Notar que das 18
cidades listadas, oito localizam-se na região Sudeste e duas, na região Sul (Fonte:
Censo IBGE 2000)
5
528
Por fim, estes grandes aglomerados metropolitanos, localizados
principalmente na faixa litorânea, sintetizam, agregados a Brasília, o
fundamental da problemática urbana, um país “das doze cidades”.
Apurando esta assertiva, a importância das concentrações urbanas
no país é patente na adoção e alastramento do conceito de Regiões
Metropolitanas (RM), uma ferramenta institucional que como princípio
geral, permitiria melhor definição de políticas e programas de gestão,
planejamento e ações institucionais nas grandes metrópoles,
potencialmente factível nas 26 RM oficialmente estatuídas no espaço
nacional (Figura 31).
Importaria esclarecer que de um ponto de vista legal, a instituição
das regiões administrativas, e paralelamente, das aglomerações
urbanas e microrregiões, formadas por municípios limítrofes visando
integrar a organização, o planejamento e a execução de intervenções
públicas de interesse comum, foi oficialmente reconhecida.
A saber, conforme a Constituição Federal de 1988, a criação das
RM é de competência das autoridades estaduais. Para resumir, não é
nem o governo federal e muito menos o IBGE, as instâncias que
estabelecem as RM. Quanto ao IBGE, este órgão, estatutariamente
federal, reconhece tão apenas a investidura de status atribuído pelos
órgãos administrativos estaduais 106.
As oito primeiras Regiões Metropolitanas foram instauradas em
1973 através da Lei Complementar Federal nº. 14 (08/06/1975),
sendo estas as RM de Belém, Belo Horizonte, Curitiba, Fortaleza,
Alerte-se que a atribuição do estatuto de RM não necessariamente coaduna com um
dinamismo metropolitano, podendo se referendar em opções de cunho eminentemente
político, despidas de justificativas socioespaciais no seu lato sensu.
106
5
529
Porto Alegre, Recife, Salvador e São Paulo. No ano seguinte, foi
criada a do Rio de Janeiro (Lei Complementar nº. 20, de 01/07/74).
No decurso deste processo, as análises e documentos do IBGE dão
conta hoje de 26 RM oficialmente instituídas.
FIGURA 31 - MAPA DAS 26 REGIÕES METROPOLITANAS DO BRASIL (Fonte: IBGE,
2002: 155, escala aproximada 1: 24.200.000)
Note-se que as áreas metropolitanas do país, explicitam soberba
concentração populacional: aglutinando 413 municípios numa área
aproximada de 167 mil km², nelas viviam no ano 2000, um total de
69.041.352 de brasileiros (Ver Figura 32). De um ponto de vista
demográfico, a massa populacional das regiões metropolitanas mais
do que supera a população de vários países latino-americanos ou
europeus juntos. O Rio de Janeiro tem população equivalente a um
5
530
país como o Chile; São Paulo, superior a um Chile e meio; Fortaleza
equivale a uma Suíça; Porto Alegre, a uma Trinidad-Tobago.
FIGURA 32 - POPULAÇÃO DAS REGIÕES METROPOLITANAS DO BRASIL EM 2000
(Fonte: EMPLASA e IBGE)
5
531
Constatação que dispensa questionamentos, esta concentração
demográfica desigual sugeriria um quadro potencial de desequilíbrios
nas mais diversas escalas quanto ao atendimento da demanda por
recursos hídricos. Concentrações milionárias como o Recife, Brasília,
Rio de Janeiro, Fortaleza, São Paulo, Goiânia e Belo Horizonte,
ressentem-se, de uma forma ou de outra, do seu próprio gigantismo e
por extensão, do fato de estarem acomodadas em sítios naturais não
necessariamente capacitados a satisfazer as demandas imprevistas
dos seus processos de urbanização.
Além de materializarem contradições relacionadas com o uso dos
recursos hídricos disponíveis, as grandes metrópoles brasileiras se
ressentem de cissiparidades sociais e econômicas, com impactos
diretos para a captação e o fornecimento de água potável. Embora as
cidades parecessem prognosticar, a partir dos anos 1950, a promessa
da superação do chamado “Brasil arcaico” rumo à modernização e
emancipação social, política e econômica, os fatos contrariaram esta
utopia.
Pelo contrário, a imagem das grandes cidades brasileiras está
hodiernamente marcada pela distopia: poluição do ar e das águas,
favelas e moradores de rua, ausência de coleta de resíduos, crime
organizado, enchentes, parques abandonados, desmoronamentos,
violência e tráfico de drogas. A desigualdade nos grandes centros é
flagrante quando se sabe que considerável proporção da riqueza
nacional se concentra num número reduzido de grandes metrópoles.
Estudo divulgado pelo IBGE em 2005, com base em dados
coletados em 2002, esclarece que apenas nove municípios do país -
5
532
a saber, São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Manaus, Belo Horizonte,
Duque de Caxias, Curitiba, Guarulhos e São José dos Campos - com
15,2% da população total, respondiam por 25% do PIB brasileiro, e
que 70 municípios, reunindo 33,3% da população, concentravam 50%
da produção total de bens e serviços. Embora os dados revelem certa
retração neste processo, visto que em 1999 sete cidades reuniam 1/4
do PIB, a disparidade é óbvia quando estudos mostram que 1.272
municipalidades, agrupando 3,7% da população, totalizam apenas 1%
do PIB (Vide LAGE, 2005).
Evidentemente, tal situação remete ao quadro geral da economia
brasileira e das contradições associadas ao modelo econômico que a
orienta. Em 2001, a expectativa de vida dos brasileiros atingia 67,5
anos, e a alfabetização de adultos alcançava 84,9%. Mas, ao mesmo
tempo, o Produto Interno Bruto (PIB) retrocedeu e a porcentagem de
pobres ampliou-se na comparação com os índices já iníquos que
caracterizaram os anos noventa.
No ano de 2004, relativamente ao Coeficiente GINI, parâmetro
internacionalmente reconhecido para determinar a concentração de
renda, o Brasil seria o oitavo país em desigualdade social, superado
tão só pela Guatemala, Suazilândia, República Centro-Africana, Serra
Leoa, Botswana, Lesoto e Namíbia (ZIMMERMANN et SPITZ, 2005).
Também em 2004, o país registrou o quinto ano consecutivo de
perda do poder aquisitivo da população com registro em carteira. Isto
ocorre simultaneamente ao fato de regiões metropolitanas como a
Grande São Paulo, apresentarem no primeiro semestre de 2004, de
5
533
acordo com o IBGE, um nível de desemprego beirando 19,7% da
População Economicamente Ativa (PEA).
Outro diagnóstico, elaborado com base em dados do IBGE pelo
economista Márcio Pochmann, professor da Universidade Estadual
de Campinas (UNICAMP), evidencia que a fatia dos assalariados
encolheu. Entre 1980 e 2004, o segmento passou de 64% para 54%
do conjunto dos trabalhadores ocupados no país. Até 1980, de cada
grupo de 10 novas ocupações 8 eram de assalariados, dos quais sete
com carteira assinada. De lá para cá, essa proporção caiu para 4
empregos assalariados em cada 10, dos quais apenas 2 são formais.
Esse movimento é acompanhado por significativa deterioração
das condições de trabalho. Por falta de opção, fração significativa dos
desempregados opta pelo trabalho informal, implicando em baixos
rendimentos e perda de direitos trabalhistas. Assim sendo, o avanço
do desemprego fragilizou a capacidade de negociação dos sindicatos,
favorecendo a “desregulamentação” do mercado de trabalho
107.
Tudo isto repercute diretamente no tecido urbano. De acordo com
levantamento divulgado no Congresso Nacional pelo Direito à Cidade
(MARICATO, 2001), certifiquemos que:
➢
Aproximadamente metade da população do Rio de Janeiro e
São Paulo, metrópoles nacionais, mora em favelas ou loteamentos
clandestinos na periferia. A população das áreas de ocupações é de
33% em Salvador, 34% em Fortaleza, 40% em Recife, 20% em Belo
Horizonte e Porto Alegre. Tal estudo agrega ainda outros dados
Editorial do Diário Vermelho, edição de 19-07-2005, < http://www.vermelho.org.br/ >,
(Acesso: 19-07-2005).
107
5
534
preocupantes quanto às condições de vida nas cidades brasileiras.
Dentre estes, destacam-se os arrolados a seguir:
➢
A pobreza urbana concentra-se majoritariamente nas regiões
metropolitanas, afirmando-se conjuntamente com os processos de
conurbação incontroláveis que tiveram por core area as metrópoles,
que no Brasil se confundem com a sede do poder político, cultural e
econômico. Dos grupos mais pobres, 35% habitam as metrópoles do
Sudeste, a região mais dinâmica do país. Concentram-se também
nas regiões metropolitanas, cerca de 80% da população moradora de
favelas.
➢
De acordo com os dados do Censo do IBGE 2000, no qual se
constatou que as cidades médias crescem a taxas mais altas do que
as RM e que nos espaços metropolitanos, possuem maior expansão
os municípios da periferia dos que os da área metropolitana no seu
stricto sensu, o que se tem é uma informação nada alvissareira. Isto
porque considerando-se a ausência de políticas de planejamento para
as cidades do país (nas intenções ou objetivamente), esta tendência
pode bem mais caracterizar uma ampliação e radicalização das
problemáticas urbanas e metropolitanas do que uma hipotética (e
quiçá promissora), “descentralização” urbana.
➢
Mesmo a decantada cidade de Curitiba, incensada em múltiplas
avaliações como um exemplo de planejamento urbano e ambiental,
exibe um fantástico crescimento das assim chamadas áreas de
crescimento desordenado, que formam um cerco completo em torno
do núcleo central da aglomeração urbana.
5
535
Um desdobramento direto desta situação é a ocupação das áreas
voltadas para o abastecimento de água doce das grandes cidades,
movimento que tem se materializado de modo incessante nas últimas
décadas. Este processo insere aspectos explosivos por comprometer
reservatórios de água que justamente seriam os solicitados para o
funcionamento do próprio sistema urbano. A ocupação do entorno das
represas tem do mesmo modo contribuído para acentuar os efeitos de
determinados processos naturais, dentre os quais, a erosão e o
assoreamento, inserindo repercussão negativa para o equilíbrio das
redes hídricas.
O crescimento da cidade informal na direção das áreas voltadas
em tese para fornecer água, constitui decorrência direta da exclusão
social e da ausência de políticas habitacionais capacitadas a atender
demandas decorrentes do crescimento desordenado.
Conformando um entrave inextricavelmente associado com a
depleção dos corpos líquidos dos arredores das metrópoles cidades
brasileiras, a cidade informal se materializa na ocupação por conta
própria por parte dos menos afortunados, de áreas de risco, nichos
ecologicamente frágeis como a beira de córregos, encostas íngremes
e várzeas inundáveis (ALVES, 1991: 68/69 e OLIVEIRA, 1982b).
Neste prisma, o problema habitacional tornou-se uma poderosa
ferramenta a catalisar o desmantelamento dos já precários equilíbrios
urbanos. A expansão da cidade informal, única alternativa para os
excluídos do mercado residencial formal, materializa-se, pois, na
conversão do espaço social em espaço mercadoria, assimilando ao
5
536
seu modo de espacialização, os espaços não integrados à pauta do
mercado imobiliário dominante (Vide CASSETI, 1991: 115).
Quanto à atuação do Estado na crise habitacional, recorrendo ao
veredicto da geógrafa Arlete Moysés RODRIGUES, o poder público
tem infelizmente se restringido às consequências e não às causas,
contribuindo assim para transformar esta questão num perseverante
problema no espaço urbano nacional (1991: 62).
Deste modo, uma meta importante para equacionar a questão da
preservação dos corpos de água doce seria buscar compreender a
realidade urbana, que corresponde no Brasil de hoje, ao espaço de
vida da maioria da população. Dado que a questão urbana e da água
são impartíveis, a conclusão óbvia é que as cidades mereceriam, no
plano analítico, a mesma importância que ocupam na vida cotidiana.
Coerentemente, a primeira providência a ser tomada seria atestar
o foco no qual incidiria a análise, evidência agregada à necessidade
de aprofundar o conhecimento/funcionamento do meio urbano e de
suas especificidades. Magister dixit, caberia meditar a respeito de
advertência proferida por Milton SANTOS: seria preciso reconhecer
que muito poucos se dedicaram a analisar de perto os sistemas
urbanos em meios subdesenvolvidos (1981: 139/140).
Secundando estes comentários, importaria frisar que os recursos
hídricos não estarão plenamente protegidos na hipótese de seguir
inalterado o estilo de vida individualista, perdulário e consumista, a
rigor, identificado com a cidade formal.
5
537
No mundo do mercado total, as predicatórias maravilhas da
modernidade somente estão ao alcance de uns poucos, nunca das
amplas maiorias. Assim, grande parte da maioria da humanidade
padece de tribulações agoniantes como as da sede, da fome, da
violência das instituições e do desamparo social, descompassos que
constituem, na realidade, o lídimo epicentro da questão ambiental da
cidade moderna, no Brasil e no cosmos global (OLIVEIRA, 1994: 22).
Vale ressalvar que na voz de múltiplos atores que reivindicam o
compromisso das pessoas para com a preservação das águas doces,
está também presente a pretensão de manter um modo de vida
afluente, acessível somente a grupos de privilegiados.
É preciso, pois apurar o entendimento da fala de todos que se
pronunciam a respeito do meio ambiente, identificando os móveis
reais que sustentam seus discursos. Parafraseando o antropólogo
Georges BALANDIER: o primeiro passo para solucionar um problema
é justamente evidenciá-lo (passim 1976b).
Conhecer de modo aprofundado os interesses sociais, políticos e
econômicos envolvidos na problemática dos recursos hídricos, assim
como a relação funcional que articula os dois tecidos urbanos - o
formal e o informal - numa contextura contraditória, e por meio deste
prisma, lançar luz nas insuficiências subscritas pela institucionalidade,
nos mostra que assaz além de estratégias administrativas, o conjunto
de questões relativas aos recursos hídricos reclama imperiosamente
uma prática política real.
5
538
CAPÍTULO 10
A METRÓPOLE PAULISTA E A QUESTÃO DOS
MANANCIAIS
10.1. A GRANDE SÃO PAULO NO CONTEXTO DA ESCASSEZ
DE
ÁGUA
No cenário brasileiro de hoje, qualquer discussão relacionada
com o abastecimento urbano de água sugere, quase instintivamente,
pautar a problemática hídrica vivida pela Região Metropolitana de São
Paulo (RMSP).
Em função das suas dimensões, dinamismo e de seu conhecido
repertório de dificuldades, a metrópole paulista conota uma situação
verdadeiramente sui generis, particularmente por consistir na mais
acintosa explicitação do problema da escassez de recursos hídricos
nas grandes cidades brasileiras.
Nesta perspectiva, seria conveniente ressalvar que o gigantismo
da RMSP se destaca numa unidade da federação que dispõe de uma
rede urbana complexa, a mais densa e intrincada do país. O estado
de São Paulo (ESP), apresentando um conjunto de cidades de porte
mediano que vem ganhando destaque nas últimas três décadas, é
também o único a exibir, em 2004, três concentrações urbanas com
mais de um milhão de habitantes.
5
539
Com base em estimativas do IBGE válidas para 2004, estas
seriam a capital paulista (com 10.838.581 habitantes), a cidade de
Guarulhos (1.218.862 hab.), e de Campinas (1.031.887 hab.). Para
culminar, o território paulista desponta com preponderante proporção
de população urbana, atingindo 92,8%, espalhando-se por intrincada
rede de centros urbanos (RUTKOWSKI et OLIVEIRA, 1999: 39).
Não fosse suficiente, o torrão paulista agrega, além da RMSP,
duas outras influentes regiões metropolitanas (RM): a RM da Baixada
Santista (institucionalizada em 1999), e a RM de Campinas (instituída
em 2000), ambas constituindo, junto com a metrópole paulista, três
nódulos axiais de forte impregnação demográfica e geoespacial.
No plano da cercadura territorial paulista, estes três espaços
metropolitanos são interdependentes economicamente e formam uma
rede integrada, com funções nitidamente complementares. Fenômeno
ímpar na realidade urbana brasileira, este grupo de RMs, mantendo,
sob hegemonia da RMSP, intenso intercâmbio entre si, permitiu aos
órgãos de planejamento aventar a hipótese de conceituar uma nova
agremiação territorial, reunindo estas três grandes metrópoles, suas
adjacências e respectivas áreas de influência direta, numa única
tecedura espacial (Vide BORDO, 2005).
Nesta concepção, primeiramente esboçada no ano de 1996 pelos
técnicos da Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano SA
(EMPLASA), os três polos urbanos mencionados, com fundamento na
sinergia contínua decorrente do entrelaçamento econômico e de uma
dinâmica demográfica acelerada, formariam o chamado Complexo
Metropolitano Expandido (CME).
5
540
Com epicentro na capital paulista e se estendendo num raio de
150 km ao redor desta metrópole, o CME é perpassado por intensos
intercâmbios de mercadorias, bens, serviços, informações e pessoas,
detendo papel expressivo na atividade industrial, comercial, de alta
tecnologia e de serviços especializados. O conceito, a despeito de
aguardar maiores aprofundamentos, tem se prestado a subsidiar a
argumentação de geógrafos e dos planejadores urbanos, transitando
também em documentos do governo estadual paulista.
Objetivamente, o CME teria por base os eixos econômicos que
associam a RMSP com o interior e o litoral. Por isso mesmo, além
das RMs mencionadas, outros aglomerados urbanos (AU), tal como
seriam os casos de Sorocaba, Jundiaí, da seção paulista do Vale do
Paraíba e seus arredores imediatos, são partícipes desta agigantada
articulação espacial (Cf. Figura 33).
Constituindo o desfecho de um processo de urbanização que
alçou o Brasil à condição de um dos suportes da globalização na
periferia do mundo global, o CME aglutinaria, de acordo com dados
do ano 2000 (IBGE), 26.294.408 domiciliados, qual seja, 71,13% da
população do ESP e 15,56% da brasileira. A área deste conjunto,
42.737 km², equivaleria a 17,18% do ESP e 0,5% da superfície total
da república. Para complementar, o CME estaria no comando de
79,3% do PIB estadual e 27,7% do nacional (Cf. EMPLASA).
Neste vasto processo de concentração, a proeminência reporta à
cidade de São Paulo e aos processos socioespaciais capitaneados
pelo seu dinamismo urbano. A cidade forma o núcleo central de uma
5
541
gigantesca conurbação que alicia os municípios limítrofes, que ao
longo do século passado, magnetizou a eclosão da RM de São Paulo.
FIGURA 33 - Mapa do Complexo Metropolitano Expandido: Neste mapa estão
destacadas as três Regiões Metropolitanas (RM) que compõem o CME, as RM de
São Paulo (1), Baixada Santista (2) e Campinas (3); os três Aglomerados Urbanos
(AU) que constituem vias de expansão direta dos fluxos do CME, como os AU de
Sorocaba (4), Jundiaí (5) e Macro-Eixo Paraíba (6). Para completar, 7 Micro-Regiões
(MR), cumprindo funções acessórias no CME, correspondem às MR de São Roque
(7), Bragantina (8), Circuito das Águas (9), Mantiqueira (10), Alto Paraíba (11),
Litoral Norte (12) e de Bocaina (13). (Fonte: < http://www.stm.sp.gov.br/regioes/
regioes_metropolitanas.htm >, escala aproximada 1: 1.830.000, acesso: 10-07-2005)
A cidade de São Paulo, que desde os anos 1940 e 1950 ensaiava
assumir a condição de eixo da Grande São Paulo (GSP), adentra o II
milênio sob o signo de uma notável metamorfose, reestruturando seu
papel no tempo e no espaço. Este processo é propulsionado pela
globalização, cujo motor é a generalização dos fluxos de informação e
de mercadorias, patamar este fundamental para que se faça presente
num sistema mundial hierarquicamente unificado. Nesta senda, a
5
542
metrópole paulista articula-se como um dos “centros múltiplos” de um
espaço mundial, uma nova ordem espacio-temporal que se vislumbra
a partir da mundialização da sociedade urbana (CARLOS, 2001: 31).
Nestes termos, a GSP adentra o Século XXI investida da função
de metrópole global, tonificando mais ainda sua projeção na formação
socioespacial brasileira. É deste modo que a GSP, enquanto uma
metrópole onipresente e informacional, se consolidando em paralelo à
desconcentração fabril, torna-se, de modo simultâneo e irrecusável,
um eixo pivotante através da sua persistente introjeção em todos os
espaços do país.
Confirmada no comando dos processos de territorialização, a
grande metrópole está habilitada a desorganizar e organizar, “ao seu
talante e em seu proveito, as atividades periféricas e de impor
questões para o processo de desenvolvimento regional” (SANTOS,
1993b: 103). Seja qual for o parâmetro que venhamos a utilizar, sejam
estes técnicos, administrativos e/ou de planejamento, nenhum destes
oblitera a magnificência do dinamismo paulista, que arregimenta para
si, o essencial da organização do espaço.
Coadunando com estas considerações, por conta de arrazoados
históricos e geográficos do passado e do presente, a capital persiste
como principal núcleo de adensamento demográfico. A conurbação
abrigava no ano 2000, exatos 17.878.703 urbanitas, total equivalente
à cerca de 10,6 % da população brasileira e 47% da população do
ESP (Vide Figura 34).
5
543
FIGURA 34 - POPULAÇÃO DOS MUNICÍPIOS DA RMSP EM 2000
(Fonte: SEADE/IBGE/EMPLASA, dados organizados por BORDO, 2005)
A população da região metropolitana está concentrada, grosso
modo, no sentido Oeste-Leste, do município de Jandira ao de Mogi
das Cruzes, e, no sentido Norte-Sul, do Subdistrito de Parelheiros ao
Sul, até o do Tucuruvi, ao Norte, estes dois últimos localizados no
município de São Paulo. Mas, a cidadela paulista continua a agremiar
5
544
o essencial da realidade demográfica metropolitana, concentrando em
2005, cerca de 61% do contingente populacional total da RMSP.
A RMSP é integrada por 39 municípios (Figura 35), compondo
uma área total de 7.946,96 km², correspondendo a 0,9% da área total
do Brasil e 3,5% do ESP, ou seja, somente um centésimo deste.
Quanto à mancha urbana contínua, ela se espalha atualmente por
cerca de 2.500 km², correspondendo a aproximadamente 150.000
quarteirões. Esta área, aumentou 436 km² em apenas 15 anos, e se
lembrarmos que esta superfície era de 1.370 km² em 1980 e 335 km²
em 1930, os números são incondicionalmente claros em indicar um
crescimento verdadeiramente ímpar (Vide EMPLASA e CUSTÓDIO,
2001: 53).
No plano econômico, a metrópole paulista representa 47,6% do
PIB estadual e 16,7% do nacional (Cf. EMPLASA). Desde os anos
1990, a GSP, mesmo sediando cerca de 40.000 indústrias, deixou de
ser preponderantemente fabril, passando a abrigar atividades do setor
terciário, associado à gestão, controle e ao consumo.
Tamanha concentração populacional e econômica, par a par ao
processo de consolidação de um meio técnico-científico-informacional
que emerge subsidiado pela desconcentração centralizada, torna-se
matriz por definição de uma enorme demanda por água doce. Há,
nesta perspectiva, que serem computados os impactos decorrentes
da própria expansão da mancha urbana, que ocorre em consonância
com o modus operandi da metrópole paulista. Assim, as previsões
apontam para uma dilatação da área urbanizada numa ordem de 230
km² até 2020 (CUSTÓDIO, 2001: 72).
5
545
FIGURA 35 - Região Metropolitana de São Paulo nos anos 1990, com a área da
mancha urbana em tom mais escuro (Fonte: GeoAtlas, Maria Helena Simielli,
Editora Moderna, 1994: 89)
Neste cenário, a dramaticidade de que se reveste a situação da
RMSP quanto aos recursos hídricos é cristalina quando se alerta para
o fato de que o ESP, embora constituindo a unidade da federação
mais populosa do país e reunindo em torno de 22% da população
brasileira (Cf. IBGE, 2000), está desproporcionalmente atendido, na
contrapartida, com unicamente 1,638% do potencial hídrico disponível
no país (Cf. REBOUÇAS, 2002a: 31). Por sua vez, esta situação se
complica quando se sabe que a RMSP tem, à sua disposição, tão só
4% das águas doces disponíveis nesta mesma unidade da federação.
Na RMSP, a malha hídrica responde essencialmente pelo fluxo
da Bacia Hidrográfica do Alto Tietê. Esta perfaz 5.650 km² de área de
drenagem, isto é, 70,17% da região metropolitana. Drenando 34 dos
39 municípios da Grande São Paulo, e sendo por sua vez subdividida
5
546
em seis sub-bacias, a Bacia Hidrográfica do Alto Tietê constitui o mais
importante provimento de água superficial da metrópole paulista.
Embora a rede hídrica do Alto Tietê seja densa, alimentada por,
entre outros mecanismos naturais, pelas chuvas de convecção, tratase vis-à-vis de uma rede de sub-bacias de cabeceira. A vazão do
escoamento, aproximadamente 90 m³/s, é muito baixa diante das
necessidades da RMSP. A disponibilidade hídrica da metrópole,
calculada em aproximadamente 112,57 m³/hab./ano (SABESP, 2004),
equipararia a urbe com as regiões áridas do planeta, uma situação
hidrologicamente lábil sob qualquer ponto de vista (CAMPOS, 2001).
Deste modo, uma vez banhada pelo curso superior do Tietê e
não possuindo grandes caudais à sua disposição, a cidade de São
Paulo tem à disposição recursos hídricos obrigatoriamente exíguos
(Vide RUTKOWSKI et OLIVEIRA, 1999: 39). Diante de tal realidade,
as requisições por água pela RMSP repercutiram junto a uma vasta
periferia espacial, formada por regiões que também devem dar conta
das suas necessidades pelo líquido vital.
Frente ao duro impasse de satisfazer as demandas da GSP (até
porque a RMSP consome muito mais água do que a produzida na sua
área específica de abrangência), e com a virtual inexistência de uma
política de ações coordenadas, a metrópole passou a solicitar toda a
água disponível das regiões sob sua influência direta. Assim, com o
concurso da reversão de bacias hidrográficas vizinhas, os recursos
hídricos oriundos de mananciais distantes dos consumidores finais,
foram desviados para satisfazê-los, procedimento que se tornou fonte
de toda sorte de conflitos, em curso ou potenciais.
5
547
Em princípio suscitando um sistema de distribuição de grande
abrangência, a imperiosidade desta lógica é correspondida por uma
empresa também gigantesca: a SABESP, que pontua como a maior
companhia pública de águas do mundo (Ver a respeito BARLOW et
CLARKE, 2003: 153).
Sendo responsável pelos serviços de água e esgoto em 368 das
645 cidades do ESP, a SABESP é uma peça-chave do fornecimento
de água para os municípios da região metropolitana. Exceto poucas
autarquias municipais, a RMSP é em larga medida atendida por esta
companhia. Através de interligação dos reservatórios que abastecem
a conurbação (todos monitorados pela SABESP), o desenho final é a
consecução do colossal Sistema Adutor Metropolitano (SAM).
Tal como um intrincado sistema de vasos comunicantes, o SAM
equaliza o suprimento para todas as cidades conectadas ao sistema,
municiando-as de água que viaja por dezenas de quilômetros para
finalmente escoar em torneiras muito distantes dos reservatórios de
origem (Vide SAM, 1993). Esta constatação, evidencia-se em si
mesma ao se conferir a relação dos oito grandes sistemas produtores
de água voltados para o abastecimento da Grande São Paulo (Cf.
Figura 36), cujas áreas de captação, estendem-se além dos limites da
GSP, e no caso do Sistema Cantareira, alcançando o Sudeste de
Minas Gerais, vale dizer, transbordando as fronteiras paulistas.
5
548
FIGURA 36 - Sistemas provedores de água para a RMSP (Fonte: Plano Diretor de
Abastecimento de Água da RMSP, SABESP, março de 2004)
Os sistemas de produção hídrica da RMSP, isto é, o Cantareira,
Guarapiranga-Billings, Alto Tietê-Cabeceiras, Rio Grande, Alto Cotia,
Baixo Cotia, Ribeirão da Estiva e de Rio Claro, inserem recortes
extremamente
específicos
do
ponto
de
vista
socioambiental.
Reconhecidamente, muitas das áreas provedoras, que conjuntamente
formam o Sistema Integrado de Abastecimento de Água da RMSP (do
mesmo modo gerenciado pela SABESP), estão distantes da área
urbanizada e da região metropolitana, suscitando, por definição, a
construção de um conjunto de portentosas obras de infraestrutura
hídrica para atender esta finalidade.
No referente ao sistema Cantareira, em vista de algumas das
nascentes dos rios que o sustentam localizarem-se em Minas Gerais,
temos um espelho fiel da repercussão tanto da escassez, quanto da
volição perturbadora da sede da metrópole para o seu entorno
geográfico.
5
549
No aspecto volumétrico, os oito sistemas de produção hídrica
fornecem atualmente para a RMSP cerca de 66.000 litros de água
doce por segundo, condizendo a 2.300 piscinas olímpicas por dia.
Aparentemente volumosa, a quantidade de água injetada na rede de
abastecimento redundaria, num ponto de vista quantitativo, no meiotermo de 326 litros/hab./dia, um provimento considerado inquietante
por qualquer especialista da área.
Porém, confirmando a “praxe” nacional de desperdício de água
tratada, a proporção de perdas na distribuição na RMSP, megalópole
sedenta que pela própria força da necessidade deveria primar pelo
gerenciamento eficiente dos recursos hídricos, alcança a assustadora
cifra de 40%, índice composto por perdas físicas (volumes produzidos
que não chegam ao consumidor por conta de problemas logísticos e
operacionais) e por perdas comerciais (volumes consumidos e não
faturados devido a imprecisão dos medidores, ligações clandestinas,
etc.).
Em resumo: as estações de tratamento estão potabilizando muito
mais água do que o efetivamente consumido, um nível de perdas que
tão só agrava um contexto perpassado pela carência de água doce
disponível, lembrando-se, é claro, que os cidadãos formalmente
conectados à rede pública dependem de águas externas à metrópole
(REBOUÇAS, 2004: 42; CUSTÓDIO, 1996: 15 e 2001: 55).
Frente a este cenário, as possibilidades de expansão da oferta de
água de qualidade são limitadas. Um expediente do qual a RMSP,
analogamente a outras conurbações metropolitanas, lançou mão em
passado recente, arrimado na reversão e abdução dos fluxos das
5
550
bacias adjacentes, atualmente está crivado de objeções por parte das
populações que habitam o curso dos rios a serem aproveitados, sem
contar o custo proibitivo destes projetos. Além do mais, a resiliente
modalidade de outorga que garantia acesso ilimitado da RMSP às
águas de terceiros, encontrou seu epitáfio em março de 2004.
No caso do sistema Cantareira a outorga, isto é a concessão ao
usuário do direito de uso da água de determinada bacia (estadual ou
federal), datava de 1974 e garantia acesso intérmino aos recursos da
bacia do rio Piracicaba. Entretanto, por pressão de movimentos e de
grupos sociais das áreas que abastecem o sistema Cantareira, foi
imposto um teto para a retirada de água para a metrópole paulista.
Explicitamente, os mais variados segmentos de opinião pública
da região provedora se insurgiram contra a captação privilegiada que
a metrópole fazia dos recursos hídricos regionais, aos quais com todo
direito, julgavam ter prioridade na utilização. Com base neste pano de
fundo, reverter o que quer que seja estaria simplesmente fora de
cogitação.
Quanto ao menos melhorar a qualidade da água doce disponível
para a RMSP, existe decerto a hipótese de paralisar o processo de
deterioração dos reservatórios da Billings e Guarapiranga, encetando
sua festejada recuperação. Entretanto, uma vez que ambos estão
assediados desde os anos 1960 pela incessante expansão urbana,
presumivelmente cotejando múltiplos agravos ambientais, o período
de implementação da despoluição destes sistemas será longo, não
podendo satisfazer iminentes necessidades e demandas reprimidas
da população (Vide GIUSTI, 2005: 39).
5
551
Consequentemente, a RMSP poderia contar meramente com a
ampliação da produção hídrica da sub-bacia das Cabeceiras ou do
Alto Tietê. Esta malha hídrica compõe o Sistema Produtor do Alto
Tietê (SPAT).
Os reservatórios do Alto Tietê-Cabeceiras (Taiaçupeba, Jundiaí e
Ponte Nova), situam-se todos a Leste da RMSP. O SPAT também
recebe o caudal não aduzido do rio Claro, sendo estas águas retidas
pelo reservatório Ponte Nova. Tecnicamente, este fato justifica que o
sistema Rio Claro e o SPAT sejam considerados de modo integrado.
Os reservatórios do Alto Tietê-Cabeceiras fornecem atualmente
9,7 m³/s para a metrópole, volume que pode ser expandido para um
montante máximo de 15 m³/s, sendo que para além deste patamar,
seria urgente operacionalizar outros barramentos. Porém, os tempos
são outros e as facilidades para implantar novos reservatórios não
mais existem.
À vista disso, o licenciamento de novas obras está paralisado a
décadas por conta de cautelas sugeridas por estudos de impacto
ambiental e por ações judiciais relativas à propriedade dos terrenos.
Assim, as barragens de Paraitinga e de Biritiba, localizadas na subbacia das Cabeceiras, não obstante terem sido programadas no início
dos anos 1970, ainda não apresentam data prevista para entrar em
funcionamento.
Em face do que foi exposto, tudo conspiraria para recordar as
potencialidades inerentes à gestão da demanda, ou seja, substituir os
investimentos por procedimentos voltados para a conservação dos
5
552
recursos hídricos. Efetivamente, esta estratégia sugere mais uma vez,
pautar a adoção imediata dos três “R”: Reduzir, Reutilizar e Reciclar,
antecedidos, é óbvio, pelo Repensar.
Nesta senda, o controle de perdas, a adoção das tecnologias de
reúso e do mesmo modo, a utilização racional dos recursos hídricos
108,
poderia contribuir ou postergar para mais adiante a eclosão de um
turbulento cenário de carências, pelo qual a RMSP, empurrada para
um cul-de-sac hidrológico, ingressaria numa incontida espiral de
“curtos-circuitos” urbanos, marcada por oclusões e emperramentos do
sistema de engenharia (Cf. SANTOS, 1988 e 1978a).
Mesmo assim, seria difícil postular que por si só, as premissas da
utilização racional da água disponham da faculdade de sanar os
entraves hídricos da região metropolitana. A bem da verdade, adotar
programas de preservação da água doce em momentos nos quais a
crise hídrica se agudiza, tem por pressuposto confesso ou não, o grau
acentuado ao qual chegou a penúria de recursos hídricos. O que mais
então, além de racionalizar a demanda, poderia ser empreendido
diante da escassez inconteste?
Como seria óbvio, nada melhor do que novamente pleitear a
emergência de uma estratégia visando proteger as águas doces
existentes, pautando, por exemplo, o fim da prática de envelopar e
retificar o curso dos rios, que somada à blindagem do solo urbano,
tem por demérito prejudicar o escoamento e a infiltração das águas
Na cidade de São Paulo, acompanhando uma tendência que se manifestou
pioneiramente no Rio de Janeiro, foi sancionado no final de junho de 2005 o Programa
Municipal de Conservação e Uso Racional da Água em Edificações, tendo por objetivo a
aplicação de medidas de economia de água em nível residencial.
108
5
553
pluviais, impedindo a recarga dos aquíferos e potencializando as
enchentes.
Não custa redizer um cálculo orçado pelo economista Ladislau
Dowbor, pelo qual uma chuva de 100 milímetros, fluindo sobre os
1.500 km² da área urbanizada do município de São Paulo, significa
150 milhões de toneladas de água, que privadas do talento congênito
do escoamento e de infiltração no solo, são transformadas em vetores
de catástrofes e da escassez de água (NOVAES, 2005).
Outro direcionamento sugere, pelo mínimo, ações concretas de
coleta e tratamento dos esgotos. Contudo, a RMSP não se dissocia
do primado nacional firmado no modelo sanitário que responde pelo
bordão tout à l’egout, predominante na Europa Ocidental desde a
segunda metade do Século XVIII (Cf. REBOUÇAS, 2004: 174).
Neste modelo, a rede de drenagem natural é transformada numa
reles malha de escoamento de efluentes, induzindo efeitos malsões e
impactos socioambientais. É o que podemos certificar com a análise
dos dados constantes na Figura 37, referentes à coleta e tratamento
das águas servidas na GSP. Elaborada com os levantamentos mais
atualizados a disposição, entre outros pontos o prontuário esclarece:
1. A existência de índices alarmantes de ausência de tratamento,
noutros termos, zero (isto é, nenhum), em numerosos municípios da
RMSP, somado à outra observação importante: a precariedade dos
arrolamentos, que excluem ligações clandestinas e transgressões de
diversos tipos, logo, colocando em cheque para pior, a fiabilidade dos
dados divulgados;
5
554
FIGURA 37 - Porcentagens da Coleta e de Tratamento de Esgotos na RMSP. Neste
emolumento, os dados reportam a dezembro de 2004. As estatísticas referentes a
6 municípios (Santo André, São Caetano do Sul, Guarulhos, Mogi das Cruzes,
Diadema e Mauá), que compram água da SABESP por atacado, não constam do
site oficial da empresa. Quanto ao município de Santa Isabel, não existem dados
disponíveis. (Fonte: < http://www.sabesp.com.br > e < http://www2.sabesp.com.br/
html/a_sabesp/sua_regiao/default.asp >)
5
555
2. O quadro alarmante apresentado pela cidade de São Paulo,
catalisado pelo enorme volume de ejeções cloacais. O esgoto não
tratado da capital, cidade líder da RMSP, equivaleria a uma vez e
meia o total gerado pelo Grande ABC Paulista ou algo como três
cidades e meia do porte de Guarulhos ou Campinas;
3. A existência de municípios situados em áreas de importância
vital para a produção de água, caso por exemplo, de Itapecerica da
Serra, do Embu e de Taboão da Serra (para a sub-bacia CotiaGuarapiranga), assim como São Bernardo do Campo, Rio Grande da
Serra e Ribeirão Pires (sub-bacia da Billings), cidades que geram
espesso caudal de esgotos, lançados in natura na rede hidrográfica
do Alto Tietê;
4. Também chama a atenção o quadro dos municípios alinhados
na região das cabeceiras do Alto Tietê, que possuem relação direta
com o SPAT. Conforme foi sublinhado, esta é a única bacia em que é
possível pensar uma expansão do fornecimento de água para a
RMSP. Não obstante, a situação é muito precária em Biritiba Mirim,
Ferraz de Vasconcelos, Itaquaquecetuba, Guararema e Suzano; nas
cidades de Poá e Salesópolis, embora apresentando uma situação
relativamente controlada, suscitam certa preocupação;
5. Outro aspecto pertinente seria o fato das engarrafadoras de
água mineral estarem prospectando em larga escala o produto nos
municípios da RMSP. Esta atividade, para auferir qualificação, exige,
obligatio ad diligentiam nas intercessões antrópicas na superfície do
solo e nos corpos aquáticos, pré-requisitos que de modo contumaz,
não tem sido necessariamente acatados.
5
556
Intimamente associado à garantia de obter água de qualidade, o
montante de resíduos sólidos gerados pela RMSP é um fator digno de
atenção. Os 39 municípios da região metropolitana dispensam a cada
dia, 11.456,6 toneladas de lixo doméstico, das quais, 86%, de acordo
com os padrões normativos estabelecidos pela CETESB, recebe
destinação catalogada como adequada
109.
Porém, a “porcentagem
residual” de 14% destituída de descarte tecnicamente paramentado,
equivaleria a uma montanha de lixo equivalente ao ejetado por uma
metrópole do porte de Salvador, terceira cidade nacional no ano 2000.
Uma circunstância agravante revelada pelos levantamentos da
CETESB é que um bom número de municípios com uma gestão e
condições de tratamento do lixo consideradas inadequadas, situa-se
em regiões com explícito interesse hídrico. Esta seria a situação, por
exemplo, de Juquitiba, Mogi das Cruzes e Cotia.
Isto, sem contar os descartes clandestinos de lixos químicos e
industriais, uma ingente bomba de efeito retardado que pipoca de
quando em quando nos bordos da RMSP. Um destes casos ocorreu
em 2001. Neste ano, a opinião pública tomou conhecimento de um
grave problema de contaminação ambiental no Grande ABC Paulista.
No Parque São Vicente, bairro da cidade de Mauá, descobriu-se
que um conjunto residencial habitado por 5.000 domiciliados, foi
construído sobre um aterro de lixo industrial abandonado à própria
sorte por uma empresa da região. Acumulando 44 tipos de compostos
poluentes, tóxicos e voláteis, o local oferece perigos que se estendem
109
Vide Inventário dos Resíduos Sólidos 2002 (CETESB, 2002).
5
557
de explosões espontâneas aos mais drásticos prejuízos à saúde dos
moradores.
Assim, se for somada à deficiência dos serviços de tratamento de
esgotos a precariedade das políticas setoriais referentes à destinação
final dos resíduos sólidos, uso e ocupação do solo ou mesmo a falta
pura e simples de planejamento urbano (na maior parte dos casos se
restringindo a estratégias de remediação de danos e impactos já
ocasionados), seria de se admirar que não ocorresse uma vertiginosa
deterioração das águas doces. A RMSP apresenta, hoje, um quadro
inapelavelmente crítico: 51% dos recursos hídricos presentes na área
estariam comprometidos pela poluição, e cerca de 35% da água, é
considerada de qualidade ruim ou péssima, especialmente em virtude
da concentração de fósforo (CAMPOS, 2001).
Esta calamitosa situação terminou endossando obras como o
Projeto Tietê. Tido como um dos mais ambiciosos empreendimentos
ambientais da América Latina, esta iniciativa teria por objetivo ampliar
a coleta e o tratamento de águas residuárias na GSP, reduzindo o
lançamento de compostos poluentes nos cursos d’água e melhorando
a qualidade das águas da bacia do Tietê. Precedido de intensa
pressão social, a proposta foi endossada em 1992 pelo governo do
estado de São Paulo, envolvendo órgãos como a Companhia de
Tecnologia de Saneamento Ambiental (CETESB), o Departamento de
Águas e Energia Elétrica (DAEE) e as administrações municipais.
No entanto, na voz de um conhecido especialista em recursos
hídricos, mesmo com a entrada em operação de outras estações de
5
558
tratamento integrantes deste projeto, a situação seria, de acordo com
os dados disponíveis em 2002 110, a que segue:
...a capacidade de tratamento de esgotos na Região
Metropolitana de São Paulo, ficará limitada uns meros
45%. Cabe considerar, ainda, que aproximadamente 15%
dos esgotos gerados na região ainda não são coletados, e
que as águas do rio Pinheiros, que cruzam uma das áreas
mais nobres de São Paulo, se manterão com
aproximadamente 90% de esgotos até o ano 2003, se não
ocorrerem outros atrasos no desenvolvimento do Projeto
Tietê (HESPANHOL, 2002: 270).
Outro augúrio é que devido ao atual estágio de desestruturação
ambiental da metrópole, a coleta e tratamento dos esgotos poderia
até mesmo transparecer enquanto estratégia parcialmente zerada
pela poluição difusa, que se amplia de modo ininterrupto devido ao
incremento das substâncias nocivas dispersas no ambiente urbano.
Consequentemente, a perda de qualidade das águas em razão
do aumento crescente de substâncias poluidoras levou ao aumento
do uso de produtos químicos necessários para obter potabilidade do
líquido. Segundo extensamente noticiado em informes especializados
111,
a despesa do tratamento da água dos reservatórios do Cantareira,
Guarapiranga e Alto Tietê majorou em dobro as tarifas de água aos
consumidores. Ainda assim, o padrão limnológico do líquido deixa
muito a desejar: as reclamações da população têm aumentado ano a
Os últimos dados da SABESP referem-se ao primeiro trimestre de 2003, não
mostrando alterações relativamente a 2002 (< http://wwwabesp.com.br/ >, Acesso: 25-072005).
111 Cf. Manchetes Socioambientais, diversas edições.
110
5
559
ano, obrigando as autoridades a informar sobre a qualidade da água
que fornecem 112.
As dificuldades que se avolumam quanto ao acesso às águas
superficiais de boa qualidade, contribuíram para a difusão de poços
artesianos e a expansão de uma nova frente de negócios: empresas
especializadas em captar águas subterrâneas. Particularmente, os
condomínios fechados, a rede hoteleira, hospitais e as indústrias, são
os principais usuários dos aquíferos.
Porém, não só: municípios como Juquitiba, São Lourenço da
Serra, Santana do Parnaíba, Francisco Morato, Guararema e Biritiba
Mirim, obtém das águas subterrâneas, entre 25 a 50% do seu
abastecimento (Cf. DEL PRETTE, 2000: 123). Para o ano de 2003,
acredita-se que 10% da demanda da RMSP era satisfeita através de
mananciais subterrâneos. Projeções de diversos especialistas do
Instituto de Geociências da USP prognosticam a possibilidade dos
aquíferos atenderem, em médio prazo, até 19% da demanda total.
Já foi dito e vale reiterar: tudo depõe contra o otimismo fácil. A
qualidade das águas do subsolo depende diretamente de uma gestão
ótima das atividades desenvolvidas na superfície, e de um rigoroso
monitoramento técnico das perfurações. Acredita-se que dos 12.000
poços existentes na RMSP, cerca de 80% são clandestinos, na
maioria dos casos, abduzindo água além da capacidade natural de
recarga.
Decreto assinado pelo governo do Estado de São Paulo no início de maio de 2005,
obriga os sistemas produtores da SABESP a informar a população relativamente à
qualidade da água fornecida, disponibilizando-as em sua home-page ou nas agências de
atendimento da empresa (Manchetes Socioambientais, edição de 02-06-2005). Contudo,
note-se que as informações divulgadas são no mais das vezes, genéricas e inconstantes.
112
5
560
Dado que os problemas se estendem da ausência de rigor na
disposição final dos resíduos à blindagem do solo urbano, impedindo
que a água chegue às represas na qualidade e quantidade desejada,
sem contar que fatia ponderável das perfurações ocorre ao arrepio de
quaisquer acompanhamentos ou parâmetros geotécnicos, a situação
declina em prejuízos de todo tipo para os lençóis subterrâneos.
Nesta toada, substantivando dado verdadeiramente surrealista,
sabe-se que ao menos 60% da água retirada dos aquíferos da RMSP
procede de vazamentos das adutoras e extravios por vazamentos
provocados por rompimento de tubulações da rede da SABESP e das
concessionárias que operam na região.
Paradoxalmente, as perdas de água tratada são de tal vulto que,
de acordo com o geólogo Ricardo Hirata, do Instituto de Geociências
da USP, “os aquíferos e a Bacia do Alto Tietê estariam numa situação
crítica se não recebessem água dos vazamentos”
113.
Deste modo,
nada poderia calçar como definitiva a potencialidade da explotação
das águas subterrâneas na RMSP.
Outra variável para saciar a sede da conurbação (totalmente
subserviente às regras mercadológicas), seria a comercialização das
águas minerais. Conforme tem sido recidivamente notificado, a queda
da qualidade da água que chega às torneiras, ao possuir vínculo
direto com o consumo de água engarrafada, permitiria, pois relacionar
o estrondoso sucesso do comércio do líquido com o sucateamento
dos serviços públicos de água potável (Cf. REBOUÇAS, 2004: 174).
113
Manchetes Socioambientais, edição de 14-06-2005.
5
561
É o que explica a expansão do mercado de água mineral no
estado de São Paulo, que no período de 1997 a 2000, foi de 52% e
na RMSP, de 92%. Este crescimento está consignado em relatório do
Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), que assinala ser a RMSP,
responsável por 58% da produção paulista de águas minerais e por
21,5% do engarrafamento em nível nacional.
Tal concentração, que poderia surpreender o observador mais
desavisado, está ligada a dois fatores básicos. O primeiro decorre das
condições geológicas favoráveis existentes em muitos municípios da
região metropolitana. O segundo associa-se à facilidade de acesso
com o maior mercado consumidor da América Latina, um aspecto
logístico de considerável importância para a comercialização de água
engarrafada. De acordo com um levantamento do BNDES, o frete, ao
representar cerca de 25% da composição do preço da água mineral,
potencializa a proximidade como um fator geográfico de primeira
ordem para a comercialização do produto (GUAZZELLI, 2004: 82).
No entanto, nada depõe em favor destes desmesurados esforços
em obter água que, em princípio, ao menos poderia oferecer uma
dessedentação segura. Repetindo advertência já registrada, a água
engarrafada nem sempre é mais confiável que a água da torneira e
algumas delas o são menos ainda (BARLOW et CLARKE, 2003: 171).
A despeito da importância crescente da água engarrafada para a
população, o estado de São Paulo dispõe de apenas sete fiscais para
acompanhar a captação e o engarrafamento das águas minerais.
Visando o controle da assepsia dos poços de água mineral e aferir
eventual contaminação por resíduos das atividades agropastoris ou
5
562
por esgotos, seriam necessários, segundo o Departamento Nacional
de Produção Mineral (DNPM), responsável pelo acompanhamento da
atividade no país, pelo menos 40 funcionários voltados unicamente
para esta função.
O quadro de problemas relacionados com os recursos hídricos na
RMSP é ainda agigantado quando pensamos o recorte social da falta
d’água, o chamado estresse hídrico social. Além da demanda ser
capitaneada por um segmento social e por um estilo de vida cuja
difusão poderia anular os eventuais ganhos de escala obtidos, não há
como deixar de averbar o passivo hídrico que tem afrontado amplos
segmentos populacionais da periferia da metrópole, cujas demandas
deverão ser satisfeitas especialmente quando o que está em questão,
é a universalização de um benefício básico e primordial.
Com efeito, o “fantasma das torneiras secas”, mais do que uma
apavorante metáfora dirigida para o futuro, é uma questão efetiva do
dia a dia de milhões de metropolitas. A população de baixa renda, dos
quais 35% não contam com água encanada, contra 3% dos setores
mais abastados, é sabidamente a primeira a ser agrilhoada pelo
racionamento ou pelo corte do serviço por conta das oscilações da
economia e das periódicas estiagens que arrostam a metrópole (Vide
REBOUÇAS, 2004: 174).
Entretempos, ressalve-se que o prontuário composto por ações
deletérias voltadas em desfavor dos ciclos hidrológicos é sumamente
recente. A história da ocupação da RMSP poderia confirmar que nem
sempre o contexto vivido foi este, e pelo contrário, que no passado, a
5
563
região usufruiu da condição de feliz integrante do País das Muitas
Águas.
Deste modo, algo saiu profundamente errado nesta história. Mas
porquê?
10.2. SÃO PAULO, ÁGUAS VADEANTES E O VELHO
CAAGUAÇU
Procurando dar curso à indagação anterior, não haveria como
deixar de detalhar a discussão relacionada com a escassez de água
na RMSP sem que nos detivéssemos nos processos responsáveis
pelo surgimento da cidade de São Paulo, e mais adiante, da região
metropolitana e do ABC Paulista.
Como se sabe, a problemática dos recursos hídricos na região
metropolitana desenvolveu-se em inegável paralelismo com a eclosão
da crise urbana e não poderia, de modo algum, ser desprendida do
entendimento desta.
Nessa ordem de considerações, deve-se recordar que dentre os
arrazoados relacionados com a escassez dos recursos hídricos, o
veredicto da futura metrópole ter sido fundada nas cabeceiras de uma
malha fluvial detentora de características como as concernentes à
Bacia Hidrográfica do Alto Tietê, tem sido corriqueiramente postulado
para a explicação do fenômeno da falta de água na RMSP.
5
564
Para um amplo conjunto de análises, a opção pelo sítio que
abrigou a futura metrópole paulista, esteve na contramão de um nexo
comum à gênese da maioria das grandes cidades, brasileiras ou não,
que sempre demonstraram vocação para recortes hidrológicos mais
favoráveis (MONBEIG, 2004: 118/119).
Prestando atenção a este pormenor, é possível vislumbrar que
quase todas as urbes que ponteiam a tecnoesfera foram assentadas
no curso inferior ou intermediário das grandes bacias hidrográficas.
No primeiro caso constam cidades como Antuérpia, Hamburgo,
Lisboa, Oslo, Xangai, Bangcoc, Nova Orleans, Buenos Aires, Karachi,
Cairo e Kinshasa; na segunda opção, desfilariam sítios urbanos como
Delhi, Abuja, Kartum, Bogotá, Belgrado, Moscou, Varsóvia, Paris,
Ottawa e Budapeste. Estas metrópoles, localizadas à distância das
nascentes que são a origem dos mais prestigiados cursos d’água do
mundo, dispõem, até por obviedade, de caudais mais expressivos,
unicamente passíveis de serem encorpados a jusante, e não a
montante da cabeceira dos seus fluxos.
Além disso, o questionamento relacionado com a localização da
metrópole, argumentação esta exaustivamente repetida como razão
das mazelas hídricas vivenciadas pela GSP, subentende a dificuldade
de obter água em função de ditames que senão essencialmente,
seriam pelo mínimo marcadamente de mote geográfico, associados à
parca oferta natural do líquido.
Todavia, permite-se indagar: este parecer estaria revestido dos
ouropéis da verdade? O que existiria de verídico nesta afirmação?
5
565
Não podemos esquecer que mais de uma vez, a geografia foi
requisitada para justificar os problemas que assediam o coletivo
humano. Neste passo, o entendimento correria agora numa direção
exatamente oposta, isto é, alcançar, com base na geografia, soluções
para as adversidades que acometem a metrópole, ou então, ao
menos respaldar sua compreensão.
Justamente esta perspectiva, obrigaria a todos voltar os olhos
para as origens de São Paulo, e a partir desta perspectiva, debruçarse na avaliação das influências históricas e geográficas responsáveis
pelo surgimento da cidade que mais tarde viria encabeçar uma das
maiores manchas urbanas globais. É neste atalho que encontramos a
obra do historiador, geógrafo e filósofo Caio PRADO JÚNIOR (1998),
e nesta proveniência, dois escritos centrados nos aspectos que estou
discutindo, qual seja, relacionados com o nascedouro da cidade de
São Paulo. As especulações deste pesquisador, datadas dos anos
1930 e imbuídas do mais autêntico espírito geográfico, inserem foros
da mais pujante atualidade 114.
A consulta às chamadas de Caio Prado Júnior, direcionariam o
olhar tanto para as singularidades do espaço natural no qual a cidade
de São Paulo foi implantada, quanto para as influências que destas
Tomo a liberdade de comentar com base em depoimento pessoal a sensibilidade
geográfica de Caio Prado Júnior. Em 2002, na qualidade de membro da Diretoria da
Seção São Paulo da Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB), participei de visita
institucional ao acervo deste notável brasileiro depositado no IEB (Instituto de Estudos
Brasileiros), localizado na Universidade de São Paulo (USP). Folheando os manuscritos
de Caio Prado Júnior, o senso geográfico patente nas fotos, na escrita e nos croquis
desenhados a mão livre por este grandioso estudioso do Brasil, saltaria aos olhos de
qualquer um. A obra de Caio Prado Júnior, que tal como Milton Santos, era advogado de
formação, nos evidencia que a geografia, mais que uma titulação, é uma laboração, uma
perspectiva de análise, um modo de compreensão da realidade e por que não, uma
vocação.
114
5
566
decorreram para sua evolução urbana e para o vasto hinterland que
se estende para além da cidade.
Assim, uma primeira constatação estaria dirigida para o Planalto
Brasileiro, rugosidade natural particularizada na Baixada Santista por
um invulgar estreitamento junto à faixa costeira. Neste ponto do
compartimento geomorfológico, concernente à província do planalto
Atlântico, os contrapés desta formação natural não se distanciam do
estuário de Santos mais do que 15 km da praia.
A importância desta peculiaridade se fez sentir de modo profundo
na história do estado e da nacionalidade. Recordemos que grande
parte do interior brasileiro se simetriza orograficamente a um domínio
planáltico ladeado por serras paralelas ao litoral. Consequentemente,
o povoamento português não teria nenhuma chance de sucesso de
se alastrar pelo interior do Brasil ignorando a ultrapassagem deste
obstáculo frontal montanhoso. E sendo esta a preocupação dos
colonizadores, porque não iniciar a ocupação do território adentrandose pelo ponto mais facilmente acessível a partir da costa?
Na sucessão de fatores que favoreceram a fundação de São
Paulo exatamente no ponto em que ocorreu, a facilidade de acesso
ao planalto a partir da Baixada Santista constituiu elemento de peso.
As serras que se prolongam à Leste, compostas por larga vertente
íngreme, altaneiras ao litoral, possuem desfiladeiros que de longe,
são bem mais acentuados, caracterizados por altitudes proeminentes,
alteadas por cumes que atingem 1.500 a 2.000 metros, sendo estes,
antes de exceção, uma regra generalizada.
5
567
Por esta razão, Minas Gerais foi povoada a partir de São Paulo e
não do Rio de Janeiro ou do Espírito Santo, espaços nos quais o
povoamento deteve-se, devido à aspereza do terreno, nas fraldas do
planalto. Reconhecidamente, a fenda natural que unia Piratininga à
Baixada Santista era bem mais satisfatória do que todas as demais,
justificando uma opção preferencial por esta via de acesso (PRADO
JÚNIOR, 1998: 14/15).
Contrariamente às demais passagens naturais que pesponteiam
nas serras que se alinham ao longo do litoral brasileiro, é exatamente
o trajeto ligando a Baixada Santista à direção do planalto que se
destaca como o trajeto mais dócil e o menos oneroso de todos. Disto
sabiam as populações indígenas, que aproveitando o trecho de
menor declividade, atingiam Piratininga por meio da trilha autóctone
batizada como dos Guaianases, dos Tupiniquins ou ainda, Caminho
de Piassaguera 115.
Rugosidade que mais tarde serviu de base para a Estrada de
Ferro São Paulo Railway, esta rota, sugerida por vários historiadores
e antropólogos como trecho paulista do famoso Caminho do Peabiru
116,
demandando para o interior do Paraguai e chegando à Bolívia
(onde se converteria na Rota Estrada Inca), foi a base para o primeiro
percurso dos portugueses para chegar ao planalto, trilha igualmente
utilizada pelos padres jesuítas para se encarapitarem serra acima e
fundar no sítio do que hoje é o Pátio do Colégio, no atual centro velho
de São Paulo, o marco de origem da metrópole paulista.
Topônimo tupi que significa porto antigo.
Topônimo tupi que significa caminho forrado ou ainda caminho gramado amassado,
uma referência ao pisoteamento constante que mantinha a trilha livre de adensamento
arbóreo.
115
116
5
568
Outro elemento que facilitou a colonização lusitana através desta
passagem natural, é que deixando para trás o do bordo do planalto
comumente denominado de Serra do Mar, deixam de existir quaisquer
obstáculos naturais de monta, evidência que transparece no percurso
da antiga Estrada de Ferro São Paulo Railway (atualmente sob tutela
da Companhia Metropolitana de Transportes Metropolitanos, a CPTM)
na seção que se estende desde a vila de Paranapiacaba (ou Alto da
Serra), localidade do município de Santo André, postada na crista do
planalto
117,
prosseguindo na direção da pauliceia. Como pode ser
observado por qualquer passageiro faça uso deste ramal ainda hoje,
e concordando com o diagnóstico de Caio PRADO JÚNIOR,
...nenhuma obra de arte de vulto, nenhum túnel, nenhum
corte notável foi necessário. Tais são os motivos que
fazem desta passagem, já muito antes da vida dos
portugueses, um caminho predileto dos índios. A
colonização europeia não fez mais que aproveitá-lo. E
sua preferência se justifica (1998: 12/13).
A fundação de São Paulo como posto avançado do povoamento
português no interior da América do Sul, perdurando durante décadas
como a localidade mais interiorana do Brasil colonial, foi, é evidente,
alicerçada pela presença de numerosas etnias assentadas em largos
trechos do planalto. Estas se apresentavam ao conquistador europeu
como farto abastecedouro de força de trabalho, doravante predado
até a exaustão.
Contudo, novamente devemos ressalvar a ingerência dos fatores
naturais. A instalação de uma guarda avançada em pleno planalto
usufruiu uma particularidade ecológica de primeira linha: a existência
117
Paranapiacaba significa em tupi local de onde se pode ver o mar.
5
569
de um espaçoso descampado que somente a título excepcional, era
interrompido por adensamentos arbóreos e florestas, peculiaridade
que bem antes da colonização tinha, aliás, justificado a presença de
aldeamentos indígenas neste ecótopo.
No Século XVIII, o monge beneditino Frei Gaspar da MADRE DE
DEUS, que se destacou pela devoção por dissertações nobiliárquicas,
contendas eclesiásticas, notas sobre o cotidiano brasileiro e por ter
empreendido um dos primeiros rudimentos historiográficos da então
Capitania de São Vicente, assim referiu-se ao território no qual foi
assentado o núcleo inicial da metrópole paulista:
Em cima da Serra de Paranapiacaba e debaixo do Trópico
Austral 118, pouco mais ou menos, demora uma região
deliciosa, a que os portugueses de princípio davam o
nome de Campo, por distinção das terras de Beira-mar,
que acharam cobertas de arvoredo muito alto quando aqui
chegaram, e por isso diferentes daquelas mais vizinhas a
São Paulo, as quais sem artifício não produzem árvores
altas, senão em pequenos bosques distantes uns dos
outros e dispersos por toda a campanha, a qual é um
terreno desigual, cuja produção, espontânea e mais
ordinária, consiste em feno e arbustos rasteiros: capões
de mato, chamam no Brasil aos tais pequenos bosques.
Pelo dito campo dos Antigos faz seu curso um Rio
famoso, a que os títulos e cartas mais antigas dão o nome
de Rio Grande e o de Anhambi as Sesmarias concedidas
no princípio do século passado, e que hoje, todos
vulgarmente denominam Tietê (1975: 119/120).
Esta clareira, cortada por um rio de fluxo volumoso, conhecida
desde antanho como Campos de Piratininga, resultou de um aluvião
flúvio-lacustre de perfil argiloso, originando solos muito pobres. A área
Referência ao Trópico de Capricórnio, que na RMSP, corta o Norte do atual município
de São Paulo e também Guararema, Mogi das Cruzes, Itaquacetetuba, Guarulhos e
Santana do Parnaíba.
118
5
570
que futuramente abrigaria a metrópole, de igual modo a numerosos
outros compartimentos do planalto Atlântico, é geomorfologicamente
um domínio dos “mares de morro”. Neste,
...rios e riachos possuíam cinturões meândricos ao centro
de largas calhas aluviais. A planície por eles constituída
era o seu próprio ‘leito maior’, espaço de reserva para o
transbordamento das águas e sedimentos em transporte
[...] nas várzeas, em face da sedimentação quase
exclusivamente argilosa e da permanente hidratação,
estendiam-se campos submersíveis, por lagos e tortuosos
tratos de planícies. Somente nas bordas das planícies,
encostadas a terraços e vertentes de colinas e morros,
voltavam a existir matas e matinhas adaptadas a conviver
em solos menos encharcados, aproveitando solos aluviais
dotados de alguma mistura de partículas argilosas, sílticas
e matéria orgânica (AB’SABER, 1996: 12).
Embora de pouca valia para uma agricultura de vulto, este sítio
aprumou-se como um privilegiado condensador demográfico para os
novos colonizadores do território paulista. Recorde-se que de acordo
com uma explicação do padre José de Anchieta, Piratininga significa
peixe a secar ou seca-peixe, remetendo à oscilação dos fluxos do
Tietê, que por efeito dos transbordamentos, deita os peixes fora e os
expõe ao Sol inclemente, desidratando-os (Cf. SAMPAIO, 1914: 259).
Cabalmente, esta denominação indígena nada mais infere do que
as características da formação geológica da região, um largo depósito
sedimentar vadeado por um grande rio, o Tietê, e os seus afluentes,
que devido à fraca resistência de solos severamente desagregados,
tinham curso modelado por uma profusão de meandros indolentes
119.
A respeito das características e do comportamento dos meandros, vide PENTEADO
(1983: 90/93). Relativamente à geomorfologia do sítio urbano de São Paulo, confira-se
AB’SABER (2004: 91/101), CUSTÓDIO (2001: 58/67) e PELOGGIA (1998: 51/55).
Quanto à ocupação das várzeas dos rios paulistanos e dos seus meandros, consultar
119
5
571
Dóceis à navegação, as águas serpenteantes deste rio foram um
imperativo facilitador da ocupação territorial lusa. O Tietê, formava
uma via natural de penetração para o interior do território, e de grande
porte. Veja-se que em tupi, o topônimo Tietê significa rio caudaloso,
de fluxo considerável
120,
prontificando-se também como fonte de
proteína animal (pesca). Para completar, o “promontório” localizado
na planura de Piratininga na confluência dos rios Anhangabaú
Tamanduateí
122,
121
e
era por sua vez, encimado pela colina na qual seria
fundada, no ano de 1554, a aldeia jesuítica (Vide Figura 38).
Espaço hoje ocupado pelo centro velho de São Paulo, esta
proeminência da topografia apresentou-se enquanto um elemento
estratégico de considerável importância, aninhando a aldeia que mais
tarde se transformaria no centro de uma gigantesca metrópole. Nas
palavras do geógrafo Pierre MONBEIG,
Dentre todas as colinas, os fundadores escolheram para o
seu colégio as que dominam de um lado o Tamanduateí,
de outro as barrancas do Anhangabaú. Em parte alguma
a escarpa que se precipita sobre as várzeas é tão bem
marcada. E em parte alguma parece haver tantas
garantias de segurança (2004:120).
Esta autêntica defesa natural, acastelada de modo a tutelar a
investida de conquistadores decididos a se imporem como novos
SEABRA (1987).
120 Cabe alertar para as crônicas do Século XVIII que dão conta ser o nome Tietê
utilizado para designar o rio desde a nascente até a cidade de Salto, e, Anhembi,
significando rio das anhumas ou das perdizes, desse ponto até a desembocadura no rio
Paraná. Esta dualidade de nomes persistiu até por volta de meados do século XIX,
quando então, firmou-se o nome Tietê para toda a extensão do rio (Ver também MADRE
DE DEUS, 1975: 120).
121 O topônimo significa rio do malefício e da diabrura na língua tupi.
122 O topônimo significa rio com curvas ou rio de muitas voltas, isto é, meandros na língua
tupi.
5
572
senhores de um território que lhes era soberanamente desconhecido
e obviamente, hostil sob os mais diversos aspectos, tornou-se o berço
de São Paulo, cujos primeiros passos se devem, portanto, a uma
invulgar somatória de elementos geográficos, escorando nos tempos
que se seguiram, uma indisputada supremacia espacial (AB’SABER,
2004a: 113/206; MONBEIG, 2004: 188/120 e PRADO JÚNIOR, 1998).
FIGURA 38 - Esquema do espaço de assentamento de São Paulo de Piratininga: o
número 1 assinala a localização estratégica do Colégio dos jesuítas e o número 2,
a existência de um dos antigos atracadouros (atual Ladeira do Porto Geral), que no
passado conectava São Paulo aos estabelecimentos do interior por via fluvial
(Baseado em PRADO JÚNIOR, 1998)
Este sítio marcou de modo indelével o imaginário paulistano. De
fato, tão forte foi a marca desta localização espacial, que mesmo nos
anos 1960 do século passado, a população da urbe ainda se referia a
este espaço primordial como “cidade”, tanto em função da memória
dos antigos limites do centro urbano de Piratininga, como também,
pela longa persistência deste núcleo fundante como a cidade em si
5
573
até os finais do Século XIX, quando São Paulo passa a ganhar fôlego
como grande metrópole (Figura 39).
FIGURA 39 - Planta da cidade de São Paulo tal como cartografada pelo Capitão de
Engenheiros Rufino J. Felizardo e Costa em 1810 e copiada pelas autoridades
imperiais em 1841. Visivelmente, a cidade, quase três Séculos após a fundação,
permanecia praticamente enquadrada na confluência dos rios Anhangabaú e
Tamanduateí (MOURA, 1980: 16)
Paralelamente, deixar de recordar que as informações sobre o
piso territorial paulista foram amamentadas pela rica experiência das
populações indígenas locais causaria justificada estranheza. Apenas
os naturais da terra, veneráveis ocupantes ancestrais do território,
dispunham de um conhecimento apurado da geografia local.
Logo, se justifica o papel desempenhado pelos autóctones na
indicação dos sítios urbanos no país, quase sempre decisivo para o
sucesso da iniciativa. No essencial, porque o indígena era, acima de
tudo, “um ser ecologicado e, portanto, capaz de uma seleção correta.
Os colonos da primeira fase da colonização erravam frequentemente:
5
574
daí o abandono de muitos locais escolhidos em primeira mão” (SAIA,
1978: 237).
O acesso a este cabedal de informações teve como background
facilitador a atuação de João Ramalho, um degredado possivelmente
lançado nas praias do litoral paulista por volta de 1515. Incorporado à
sociedade indígena local, João Ramalho, tirando proveito de pactos e
das relações de compadrio que cultivara, havia tomado conhecimento
dos pormenores que caracterizavam a região.
In totum, as crônicas do período colonial dão conta de frequentes
perambulações do personagem, realizadas nas cumeadas da serra e
do planalto. Esta experiência acumulada, repassada às novas vagas
da colonização, influenciou as investidas lusas apoiadas na escalada
da trilha indígena que galgando as encostas da serra, apontava para
os campos de Piratininga como cenário nodal da ocupação do interior
do território brasileiro. Decerto, na ausência desta instrução, a região
do planalto não teria sido alcançada na prontidão como a história
registrou, protelando assim o avanço rumo ao interior.
A rápida ascensão rumo ao planalto e a consolidação da trilha
que conduzia ao colégio dos jesuítas, influenciou amplo leque de
desdobramentos. Tão logo fincaram os pés no planalto, os recémchegados relegaram o litoral, tirante localidades como São Vicente
(fundada em 1532) e de Santos (em 1534), ambas com apreciável
importância geoestratégica para a organização do espaço colonial, a
um relativo abandono durante séculos.
5
575
A vida urbana na região seria reavivada tão só com a expansão
metropolitana de Santos e pelos prazeres praianos dos metropolitas
paulistas. Logo, apenas a partir dos anos 1950, mais de quatrocentos
anos após os primeiros contatos lusitanos com a costa do estado, é
que foi calçada a efetiva urbanização da porção paulista da costa
atlântica (BORDO, 2005 e PRADO JÚNIOR, 1998).
Além da negligência para com a orla marítima, o assentamento
em Piratininga terminou induzindo o direcionamento de diversas rotas
de expansão da colonização portuguesa. Acontece que este sítio, a
Paulistarum Terra Mater, ocupa uma posição privilegiada: a cavaleiro
de um ordenamento hidrográfico que terminaria por corporificar como
um dos centros nodais de irradiação do povoamento colonial.
Constituindo um viveiro natural de peixes e de numerosa fauna,
em fonte de água para os rebanhos e em vários trechos, atapetado
por solos de aluvião férteis para a agricultura, não haveria como
dispensar a contribuição dos cursos d’água de Piratininga, a começar
pelo Tietê. Coerentemente, até os finais do Século XVI, não era
possível encontrar qualquer povoado planalto adentro que estivesse
afastado das beiradas dos rios (Cf. PRADO JÚNIOR, 1998: 20/22).
O rio Tietê e os seus afluentes, acessíveis por intermédio do
Tamanduateí, cujo curso agasalhava a coxilha da altaneira aldeia
jesuítica, representavam o que de melhor era oferecido pela natureza
para a navegação e penetração rumo ao interior, inclusive com a
Baixada Santista, que desfrutava, até o Século XIX, de ligação anfíbia
com São Paulo através da aldeia de Pinheiros, da qual, por via fluvial,
se alcançava Piratininga e Santos, pelo caminho terrestre.
5
576
Tendo por base o Tietê e os cursos tributários, os povoados, tanto
do curso superior quanto do inferior do rio, conectavam-se à capital.
Aliás, desde logo esta nímia malha fluvial motivou a instalação de
atracadouros no espaço de Piratininga, o principal dos quais, situavase nas proximidades da atual rua Ladeira do Porto Geral, sítio no qual
atracavam canoas, bergantins e barcos de porte médio, demandando
dos aglomerados dos arredores da cidade ou de locais situados muito
além do horizonte (LANGENBUCH, 1968: 33).
Assinale-se que as movimentações bandeiristas foram, desde a
segunda década do Século XVI, em grande parte tributárias da densa
malha hidrográfica (Figura 40), por seu turno, regrada por um domínio
orográfico especialíssimo, individualizado pelas dessimetrias planoaltimétricas do edifício geológico das terras do atual Estado de São
Paulo, que opõem fisionomicamente uma vertente marítima confinada
pelos robustos paredões rochosos da Serra do Mar aos espaçosos e
monotonamente inclinados patamares planálticos que se estendem
pelo alcantilado continental (AB’SABER, 2004a: 37).
No tocante às rotas terrestres, a colonização avançou tendo por
via primordial o Caminho do Mar, que desde cedo foi adotado como
trajeto preferencial para quase todo o contato entre Piratininga e o
Litoral. Tendo por suporte as cidades de São Paulo e Santos, ambas
desde então formando um binômio inquebrantável, a trilha que as
unia tornou-se desde os primeiros momentos do povoamento o eixo
da organização espacial da colônia.
Não sendo nada fácil transpor a Serra do Mar, que se impunha
impiedosa entre o planalto paulista e o litoral, uma série de esforços
5
577
coroou o anseio em ligar estes dois pontos entre si. No ano de 1560,
o governo português encarregou os jesuítas liderados por José de
Anchieta de consolidar um caminho entre São Vicente e São Paulo.
FIGURA 40 - Reprodução de fac-símile do Mapa de Dom Luiz de Céspedes Xeria,
datado de 1628 (Fonte: TAUNAY, 1922). Este mapa, representativo do caráter
matricial do curso do Tietê no segundo lustro do Século XVI, cujo original está
tombado no Archivo General de Indias, em Sevilha (Espanha), retrata o trajeto
fluvial do governador castelhano Cespedes de Xeria entre São Paulo (último ícone
a Noroeste do mapa), até Guairá (atual Oeste do Paraná, último ícone a sudeste),
região onde assumiu a representação do poder local do império espanhol. Lavrado
durante a Era Filipina, o mapa traz indicações toponímias como a vila de sanpablo
e o rio Anhemby, como então era corriqueiramente conhecido o rio Tietê.
Escoando na direção dos extremos sul-americanos, os cursos
d’água do Alto Tietê e os fluxos subsequentes a jusante foram esteio
por excelência do bandeirismo e do ciclo das monções, em especial o
caudaloso Tietê, em cujas nascentes fundou-se a cidadela de São
Paulo, ou para ser mais exato, nas cabeceiras da rede fluvial, sítio
que relativamente ao sistema hidrográfico do planalto, teve, desde os
5
578
primeiros momentos da colonização lusa, excepcional importância
geoestratégica (PRADO JÚNIOR, 1998: 21).
Em 1661, a Capitania de São Vicente começou a construir a
Estrada do Mar e entre os anos 1790-1792, por ordem do governador
Bernardo José Maria de Lorena, foi feita uma pavimentação deste
trajeto com lajes de granito, passagem que terminou conhecida como
Calçada de Lorena, mantendo trechos preservados até os dias de
hoje. Mais adiante, a estrada da Maioridade ou do Vergueiro, aberta
ao tráfego em 1844, aproveitava parcelas dos trajetos anteriores.
A força inercial deste percurso repercutiu durante toda a história
regional paulista: ainda no Século XX, aproveitando variáveis desta
escarpa, seriam construídas a via Anchieta (1939/1947) e a rodovia
dos Imigrantes, esta última inaugurada em 1976 e posteriormente
duplicada em 2002.
Além destas duas artérias, a de base terrestre (Caminho do Mar)
e a fluvial (Tietê), mais quatro rotas surgiram nos Séculos XVI e XVII,
motivadas pela busca de solos férteis para a agricultura, pastagens
para os rebanhos, para a escravização dos indígenas e/ou a aventura
do enriquecimento fácil, materializado em metais como o ouro e nas
pedras preciosas.
Uma grande passagem a Nordeste, passando por Mogi das
Cruzes e Jacareí, foi aberta ligando São Paulo ao Vale do Paraíba,
um segundo percurso, o Caminho dos Goitacazes, demandava na
direção Norte, seguindo através de Jundiaí e Mogi Mirim atingindo os
sertões do Triângulo mineiro e de Goiás; um terceiro caminho, ligava
5
579
São Paulo, através de Atibaia e de Bragança Paulista, com o Sul de
Minas; finalmente a Oeste, uma artéria passou a ligar Piratininga com
a região dos Campos de Sorocaba
123
e de Itapetininga
124,
áreas
forradas por um cerrado rarefeito que serviu de trampolim para que
no início do Século XVII, fosse alcançada a região de Curitiba
125
(Figura 41).
FIGURA 41 - Esquema do Binômio São Paulo-Santos e o “Bolsão” do
Caaguaçu/São Bernardo (Baseado em PRADO JÚNIOR, 1998:30)
Estas quatro rotas para o interior paulista não desprezavam as
imposições da topografia, tomando por ponto de apoio varadouros e
Topônimo tupi que significa terra rasgada, uma referência aos processos de
ravinamento.
124 Topônimo tupi que significa vau ou passagem rasa que permite a travessia de um rio.
125 Topônimo tupi que significa pinhal, mata de pinheiros ou pinhões em abundância.
123
5
580
depressões que abriam caminhos naturais entre as serras e os mares
de morros que dominam a paisagem do planalto adentro (Quanto aos
mares de morro, consulte-se AB’SABER, 2003: 16/17).
Relativamente ao que no futuro constituiria o ABC Paulista, os
desdobramentos da opção por Piratininga e da rede de caminhos que
se espraiaram a partir do núcleo jesuítico se fizeram sentir logo nos
primeiros momentos da ocupação territorial, repercutindo ao longo
das décadas e dos séculos que se seguiram.
Um acontecimento associado a este direcionamento espacial foi
o término do primeiro povoado instalado no planalto, no caso, Santo
André da Borda do Campo. Aldeamento cuja exata localização é até
hoje perpassada por controvérsias, Santo André foi fundado um ano
antes de São Paulo (1553), com os préstimos de João Ramalho e dos
seus liderados.
Como o próprio topônimo informa, o sítio do vilarejo constituía
uma área de transição, situada no limiar dos campos de Piratininga (a
borda do campo), e da floresta pluvial peculiar aos domínios formados
por terrenos graníticos e cristalinos que se sucedem a partir da crista
da Serra do Mar (Vide PASSARELLI, 1990: 9/11)
Reconheça-se que o sítio de Santo André da Borda do Campo,
ao contrário do espaço no qual emerge o assentamento jesuíta, não
dispunha de nenhuma defesa natural e para complicar, carecia de um
rio de porte suficiente para manter a criação de gado e prover a
população de peixe. Os reclamos dos habitantes de Santo André,
5
581
registrados em documentos da época, são bastante ilustrativos a este
respeito.
Por estas razões, o terceiro governador-geral do Brasil, Mem de
Sá, ordenou em 1560 a evacuação de Santo André e o deslocamento
dos seus habitantes para Piratininga. Foram motivações de ordem
espacial e geográfica, bem mais taxativas do que as presumidas
querelas mantidas por João Ramalho com os jesuítas do colégio de
Piratininga
126,
que justificaram a desaparição do primeiro aldeamento
localizado no planalto, em terras nas quais futuramente se expandiria
o Grande ABC. Uma segunda ordem de influências relaciona-se ao
que se pode inferir da análise da Figura 41. Objetivamente, a abertura
de artérias irradiantes a partir do burgo paulista não favorecia um
crescimento concêntrico da cidade, nem dos seus arredores. Como
seria possível observar,
...através de toda a história colonial da capitania, São
Paulo ocupa o centro do sistema de comunicações do
planalto. Todos os caminhos, fluviais ou terrestres, que
cortam o território paulista vão dar nele e nele se
articulam. O contato entre as diferentes regiões povoadas
e colonizadas se faz necessariamente pela capital. O
intercâmbio direto é impossível (PRADO JÚNIOR, 1998:
27/28).
A organização dos caminhos com meão em São Paulo induziu
uma expansão alveolar, sustentada por uma expansão dendrítica,
como se tratasse de uma mão espalmada com centro firmado em São
Paulo. Mais facilmente do que os espaços dispersos nas adjacências
Algumas fontes historiográficas indicam que João Ramalho seria um marrano, isto é,
judeu oculto. Neste aferimento, esposaria contrariedades relativamente ao catolicismo
institucional, sendo na época um dos seus mais poderosos braços, a atuação do Tribunal
do Santo Ofício, a Inquisição. Contudo, esta pontuação segue controversa, aguardando
pesquisas históricas mais aprofundadas.
126
5
582
da futura metrópole, foram as regiões situadas ao longe, todavia
assentadas na rede de artérias com marco inicial em Piratininga, as
primeiras a serem bafejadas com as anuências e benesses que se
irradiavam a partir da cidade. Como recorda Caio PRADO JÚNIOR:
O território de São Paulo se povoou, e a sua estrutura
geo-humana ainda reflete muito bem um tal fato, em
faixas radiantes. Não se difundiu por contiguidade e por
anéis concêntricos; nem as populações que o ocupam
enxamearam por ele ao acaso de circunstâncias locais
favoráveis. A distribuição do povoamento se fez de acordo
com uma regra que tem sido até hoje invariável, e que
consiste numa progressão, a partir de um centro, que é
justamente a região ocupada pela capital, por linhas que
penetram o interior em várias direções. Tais linhas
representam, o papel de eixos em torno dos quais se
agrupou a população; esta ficou assim distribuída em
faixas mais ou menos largas que se irradiam de um centro
comum: precisamente a capital. Faixas tão nitidamente
diferenciadas que se conservam até hoje, apesar de todo
o progresso das comunicações, quase independentes
entre si; entre elas medeiam ainda os espaços vazios, às
vezes perfeitos desertos humanos. São a configuração do
território paulista e a ação de outros fatores naturais os
grandes responsáveis por tão curiosa estrutura
demográfica (1998: 42/43).
A consequência mais resiliente desta invectiva séculos afora, é
que o espaço concernente ao futuro Grande ABC seria perfilado como
um dos inumeráveis “desertos humanos” que afloraram nos arredores
dos campos de Piratininga, uma herança geoespacial diretamente
condicionada pela organização das comunicações na nova colônia.
Os espaços delimitados pelas vias de acesso então abertas rumo
ao interior do planalto prefiguraram verdadeiros “bolsões”, espaços
em maior ou menor grau marginalizados e/ou ignorados pela cidadela
5
583
paulistana, somente mais tardiamente englobadas pela dinâmica de
crescimento da metrópole.
Correspondendo a uma destas áreas, o Caaguaçu, até a primeira
metade do Século XIX, designava o curso médio e superior do rio
Tamanduateí. Topônimo de origem indígena, Caaguaçu significa no
léxico tupi, mato cerrado, denso, fechado ou virgem, denominação
apropriada para um território apoderado por um bioma mais adiante
cientificamente classificado como mata atlântica. Espacialmente, o
topônimo Caaguaçu refere-se a trechos do que hoje é conhecido
como Grande ABC Paulista, formando um bairro rural
127
que
abrangia os atuais municípios de Ribeirão Pires, Mauá, parte de
Santo André e frações da zona leste da capital paulista.
Outro destes espaços correspondia ao bairro de São Bernardo,
compreendendo os municípios de São Bernardo do Campo, Santo
André, Diadema, São Caetano e parte da zona sul de São Paulo (Ver
a respeito MARQUES, 1996: 16/17). Estas duas entidades territoriais,
o Caaguaçu e São Bernardo, delimitavam em linhas gerais o território
do futuro ABC Paulista. A região, circundada a Sudeste pela crista da
Serra de Paranapiacaba, era o nascedouro de múltiplos córregos e
flumes, uma densa rede fluvial com escoadouro no vale do Tietê.
O conceito de bairro rural ultrapassa o designativo puramente territorial de lugar, se
caracterizando por um segundo elemento, “o sentimento de localidade existente nos seus
moradores, e cuja formação depende não apenas da posição geográfica, mas também
do intercâmbio entre as famílias e as pessoas, vestindo por assim dizer o esqueleto
topográfico” (CANDIDO, 1977: 64/65). Recorde-se que a noção de bairro nas metrópoles
fundamenta-se por outras conotações, muitas vezes consistindo mais num discurso ou
demarcação imobiliária, do que uma espacialidade provida de paramentos identitários,
históricos e/ou culturais (passim SEABRA, 2003).
127
5
584
Subalternizados enquanto bairros periféricos do assentamento de
São Paulo, as áreas do Caaguaçu/São Bernardo, compartilhando de
igual sorte a outros “bolsões” intercalados à rede de comunicações,
quedaram em silencioso isolamento durante mais de trezentos anos.
Integrado no universo da cultura tradicional que identificava o estilo
de vida predominante nas terras paulistas, o Caaguaçu/São Bernardo
manteve uma população esparsa e pouco representativa, somente
em décadas mais recentes acordando para uma efetiva vida urbana,
perpassada por dinamismos metropolitanos.
À guisa de conclusão desse raciocínio pode-se perceber que foi
antes da geografia, do que a despeito desta, que a metrópole paulista
engatinhou, avançando em largas passadas rumo a uma inconteste
primazia de um espaço luminoso. Foi dos caprichosos meandros dos
rios que rodeiam a urbe, que se obtinha peixe para a alimentação dos
citadinos, areia e pedregulho para a construção da cidade, argila para
a taipa de pilão. Quanto à facilitação dos deslocamentos promovidos
por via hidrográfica, quem poderia discordar da importância da malha
fluvial das cabeceiras do Tietê para a grandeza da futura metrópole?
De modo irretorquível, foi do curso dos rios planálticos que São
Paulo se valeu para articular a hegemonia no espaço paulista e mais
adiante, numa interminável extensão de territórios, terras até então da
coroa de Espanha por obra e graça do Tratado de Tordesilhas, que
consoante à avulsa atuação bandeirante (non ducor duco: não sou
conduzido, conduzo), passaram a integrar o espaço luso-brasileiro.
A despeito de certa “rusticidade” do ponto de apoio corporificado
em Piratininga, a clareza de que a trama fluvial poderia espaldar as
5
585
deambulações dos sertanistas, foi a pedra de toque a permitir que os
paulistanos encetassem marchas e trajetos do planalto na direção de
espaços imensamente desconhecidos, razzias perigosas, exaustivas
e desafiantes, que com a passagem do tempo, acarretaram incisivas
alterações na jurisdição territorial brasileira e sul-americana (Figura
42).
FIGURA 42 - O Mapa digitalizado acima, excerto de “Ensaio de Carta Geral das
Bandeiras Paulistas” de Afonso Taunay, é uma das representações cartográficas
da expansão da Capitania de São Paulo, no caso, adotando 1709 como ano-base,
ápice da jurisdição territorial (TAUNAY, 1952: 3)
5
586
Portanto, nada mais incorreto do que marginalizar o caráter
central da rede hídrica presente no espaço no qual a futura metrópole
foi erguida, como gênese dos hodiernos infortúnios que a acometem.
Visivelmente percebe-se que:
Os rios propiciam condições para o surgimento da cidade
em um primeiro momento. Depois a cidade o negligencia,
estabelecendo uma relação não harmônica entre eles. Se
observarmos o caso da cidade de São Paulo e seu
relacionamento com seus rios, veremos um grande
descaso e um convívio conflituoso com o meio ambiente.
Ele é visto somente como suporte e insumo de trabalho,
como fonte inesgotável de vida. Ao referir-se, atualmente,
aos principais rios da cidade, Tietê, Pinheiros e
Tamanduateí, pode-se ligá-los a questões como
enchentes, mau cheiro, poluição, produtos expressivos da
falta de planejamento ambiental (Vide FERREIRA e
FRANCISCO, 2003: 89).
Esta observação suscitaria enfim outra interrogação, direcionada
num sentido inverso à colocação que está em pauta. Entendendo-se
que a hidrografia no passado respaldou sucessão notável de eventos
significantes, restaria aquilatar o que foi reservado a este patrimônio
natural para que este, tornasse possível a irrupção de um cenário tão
desabonador quanto ao que atualmente observamos.
É assim que repensando a própria forma de entender a questão
hídrica e urbana da RMSP, podemos aquilatar o papel da geografia,
fundamental para que por sua vez, seja permitido melhor avaliar o
papel do Grande ABC na realidade urbana materializada pela região
metropolitana.
O que sugere um mergulho no tempo e no espaço da região.
5
587
CAPÍTULO 11
O GRANDE ABC E A QUESTÃO DOS MANANCIAIS
11.1. O GRANDE ABC NO CONTEXTO DA RMSP
A tranquilidade que grassava no que atualmente é o vibrante ABC
Paulista, encontrou rápido seu ocaso nos meados do Século XIX. O
velho “bolsão” do Caaguaçu/São Bernardo, até então um reduto do
universo tradicional paulista, foi revolucionado por modalidades de
territorialização irrefreáveis e contundentes, que impuseram à região,
mudanças dificilmente previsíveis para o imaginário social da época.
Paralelamente aos efeitos da urbanização que se difundia no
torrão paulista oitocentista a partir da cidade de São Paulo, dois
grandes empreendimentos, vinculados organicamente à dinâmica de
reprodução territorial do espaço paulista, marcaram indelevelmente a
história do Grande ABC. Estas duas obras, a ferrovia e a represa, em
qualquer interpretação da história moderna do RMSP, transparecem
enquanto marcos icônicos da metamorfose do espaço rumo a formas
cada vez mais consagradas à artificialidade, protagonismo que ambas
as obras endossaram de modo irretorquível.
O primeiro destes empreendimentos marcantes, a ferrovia São
Paulo Railway (SPR), ou então, “a ingleza”, tal como passou a ser
reconhecida na voz do povo, entrou em operação em 1867, sendo
nacionalizada pelo presidente Eurico Gaspar Dutra em 1946, alguns
5
588
anos antes do final da concessão sob titularidade britânica, quando
então, passa a ser vinculada ao governo federal sob a razão social de
Estrada de Ferro Santos-Jundiaí (EFSJ). Esta via-férrea, iniciativa
originalmente esboçada por Irineu Evangelista de Souza, o Barão de
Mauá, foi a quinta do país e a primeira a atravessar o torrão paulista,
abrindo de vez o planalto para o mundo exterior.
No final do Século XX, este trecho do caminho de ferro, tornandose um ramal metropolitano, passou a ser gerenciado pela Companhia
Paulista de Trens Metropolitanos, empresa instituída pela Lei Paulista
n°. 7.861, de 28/05/1992, com o mandato de explorar, honrando o
artigo n°. 158 da Constituição Federal (1988), a prestação de serviços
de transporte de passageiros sobre trilhos, na ambitude da região
metropolitana e aglomerações urbanas.
Acelerando diversas transformações econômicas, a construção e
entrada em funcionamento da SPR são essenciais para compreender
diversos aspectos da organização espacial do atual Grande ABC
Paulista (PASSARELLI, 1993a e 1993b). Cortando ao meio o território
dos bairros do Caaguaçu, de São Bernardo e imediações, através
desta via de comunicação, a região foi convocada a contribuir para a
fruição da riqueza cafeeira, que escoava do centro do planalto para
Santos, e deste porto, rumando para o ultramar (Vide Figura 43).
De um ponto de vista social, cultural e geográfico, a São Paulo
Railway tornou-se um fator de transformação irreversível do espaço
do Caaguaçu. Quanto ao custo ambiental da obra, que na época não
era computado, foi devastador em todas as letras. A estrada de ferro,
antecipando o que estaria por vir, “rasgou matas e campos com um
5
589
volume de destruição inédito até aquele momento na história do
Grande ABC” (HERNANDES, 1991: 19).
FIGURA 43 - Mapa do Trajeto da Estrada de Ferro Santos a Jundiaí
(Fonte: < http://www.lib.unb.ca/archives/ketchum/santos_sp_railway.html >,
escala aproximada 1: 470.000, acesso: 10-04-2005)
A segunda obra de impacto foi a construção da represa Billings e
a implantação do aparato logístico-energético voltado para mantê-la,
5
590
objeto hidrotécnico que mais do que qualquer outro, inscreveu a
região na problemática dos recursos hídricos na RMSP. Importa
sublinhar que o Sistema Billings, estendendo-se por seis dos atuais
sete municípios do Grande ABC, guarda a maior reserva de água
doce da região metropolitana.
Implantado no início do século passado com o fito de fornecer
água e energia para a nascente metrópole paulista, o eixo desse
sistema é um vasto reservatório com 127,5 km² de área inundada,
captando as águas de uma bacia com 582,8 km² e armazenando,
quando da sua inauguração, 1,23 bilhão de m³ de água potabilizável.
Longe de significar um objeto espacial de interesse meramente
local, a Billings, em razão do seu vulto, foi crescentemente indexada
às dinâmicas de atendimento por água potável pela metrópole. Hoje,
as águas do reservatório, distantes de interagirem unicamente com a
realidade local, se imiscuem, através de interligações e de outros
sucedâneos técnicos, a um complexo sistema montado e monitorado
pela SABESP.
Tecnicamente, por meio de ajustes hidrotécnicos, a represa está
acoplada ao reservatório Guarapiranga e também ao sistema Cotia.
No mais, na dependência de variáveis conjunturais, as águas da
Billings escoam pelo conjunto da RMSP, fazendo com que esta obra
detenha indiscutível protagonismo metropolitano.
É também manifesto que poucas problemáticas ambientais no
Brasil alcançaram, ao longo das últimas quatro décadas, tamanha
projeção quanto a que diz respeito à depredação as águas e dos
5
591
mananciais do reservatório da represa Billings. Afirmação que não
está sujeita a qualquer tipo de contestação, a represa Billings constitui
a mais antiga e documentada injúria envolvendo o achincalhe de um
corpo aquático no território brasileiro (Cf. HERNANDES, 1991).
Independentemente da escassa sensibilidade dos governantes, a
insistente mobilização dos ambientalistas locais logrou transformar a
problemática da represa Billings num assunto nacional, marcado por
intensa notabilidade. A visão do esgoto in natura despejado nas suas
águas, a eutrofização da massa líquida e a contínua mortandade de
peixes, efeito mais claro da incúria dos gestores públicos e privados
(Figura 44), conquistaram espaço no noticiário da grande imprensa e
das cadeias de televisão em todo o país.
Esta iconografia perturbadora tornou-se o símbolo mais acabado
da negligência dos grandes interesses pela questão ambiental, assim
como da omissão dos poderes constituídos. Por outro lado, o tema se
tornou ainda mais dilacerante pelo fato da RMSP defrontar-se numa
escala crescente com ameaças cada vez mais próximas de falta de
água, desventura esta que se desenrola ao mesmo tempo em que a
metrópole goza da proximidade de uma imensa massa líquida, qual
seja, a própria Billings.
No que serviria de alerta para as demais áreas metropolitanas, a
RMSP, a mais açodada de todas pelo fantasma das torneiras secas,
confere a um quadro de rarefação de um recurso básico, a água, que
poderia prognosticar uma futura repetição deste cenário nas demais
grandes cidades brasileiras, daí a preocupação com o destino deste
reservatório e a exigência de conhecermos as origens do problema.
5
592
FIGURA 44 - Cartaz de Divulgação do Seminário Viva a Billings Viva 1992
(Fonte: Arquivo do Seminário Viva a Billings Viva, 29 e 30 de agosto de 1992)
5
593
Tal compreensão solicitaria primeiramente a pontuação de dados
da geografia local. Pondere-se que a calmaria que reinava nas terras
ainda largamente despovoadas do Grande ABC em pleno Século XIX,
não correspondia aos dinamismos que animavam a vida concreta dos
habitantes da futura metrópole.
Entre a primeira e a quarta década do século passado, com a
expansão da lavoura cafeeira e as profundas alterações decorrentes
de mudanças sociais, culturais, econômicas e políticas, São Paulo
ingressara numa espiral de crescimento que se acelerou com uma
rapidez jamais vista no país.
Neste período, reconhecido na sondagem cirúrgica do geógrafo
Juergen Richard LANGENBUCH como o início da metropolização
(1968), a cidade de São Paulo, a metrópole do café, transformara-se,
na expressão de Pierre MONBEIG, na capital dos fazendeiros (2004).
Em meados dos anos cinquenta, quando a cidade estava prestes a
comemorar quase nove décadas de ligação ferroviária com o litoral,
em nada sua fisionomia poderia lembrar a tecedura do espaço urbano
precedente da Piratininga de outrora (Figura 45).
Como seria previsível em qualquer análise dedicada ao estudo
do dinamismo urbano da cidadela paulista, mais cedo ou mais tarde
não haveria como o ABC furtar-se do torvelinho de transformações
que se agigantava mais e mais, engolfando todo o ESP.
Esta progressão foi a princípio muito lenta. Entre os Séculos XVII
e XIX, a vida na região gravitava em torno de vilarejos e das capelas
erguidas na região, que respaldavam um mínimo de sociabilidade e
5
594
institucionalidade a um nexo espacial disperso, pouco tocado por
contatos externos ou por uma vida urbana mais plena. Os bairros do
Caaguaçu e de São Bernardo, compunham circunscrições espaciais
magnetizadas por igrejas e capelas, do mesmo modo que mais tarde,
os subúrbios gravitariam em torno das estações de trem (MARQUES,
1996: 18).
FIGURA 45 - São Paulo dos anos 1950: Vista da Praça Ramos de Azevedo (Fonte:
Cartões Publicitários da Editora Melhoramentos, 2002, in Boletim AGB Informa, nº.
81, I Semestre de 2003)
No Século XVIII, monges beneditinos fundaram duas fazendas,
São Caetano e São Bernardo, sendo que mais adiante, estes dois
estabelecimentos agrícolas serviram de base para a criação de novos
núcleos coloniais apoiados pela ferrovia (1877), dos quais o de São
Bernardo passou a ser conhecido como Santo André.
5
595
A chegada dos trilhos do trem, e com eles, da industrialização,
permitiu que por volta dos anos 1920, se fizesse sentir determinado
adensamento demográfico. Simultaneamente, a imigração europeia
(principalmente italianos), de contingentes de asiáticos (japoneses) e
os deslocamentos demográficos internos ao Brasil, contribuíram para
alentar o breakdown do tecido sociocultural da sociedade tradicional
que até então, reinara de modo inconteste nas velhas paragens do
Caaguaçu (KUVASNEY, 1996: 28 et seq; PASSARELLI, 1990: 18/24).
Porém, bem mais do que meramente desformar o tecido cultural
tradicional, submergindo o contingente de povoadores enraizado na
história colonial com levas sucessivas de europeus, asiáticos e outros
conterrâneos brasileiros, a chegada de ferrovia funcionou como um
fator decisivo para a organização de um novo arranjo espacial.
Uma consequência importante provocada pela implantação do
transporte ferroviário foi a derrocada do sistema tradicional apoiado
nas tropas de muares, onipresente no espaço paulista (e também em
grande parte do país), praticamente desde o início da colonização,
que é claro, não tinha nenhuma condição de competir com o meio de
circulação recém-introduzido:
O contraste entre o sistema arcaico e o novo era muito
mais acentuado do que aquele verificado na Europa e nos
Estados Unidos, onde as ferrovias sucederam às
diligências, que circulavam por estradas razoáveis ou
mesmo boas. No entanto, mesmo as diligências não
conseguiram fazer frente ao trem de ferro; que dizer então
de nossas tropas de burro e de nossos precários
caminhos! (LANGENBUCH, 1968: 142).
5
596
Adiante-se que não se tratou somente da substituição de um
sistema de transporte por outro. As tropas de burros e as ferrovias
subentendiam modos absolutamente diferentes de enraizamento
territorial, declinando numa apropriação diferenciada dos fatores do
relevo e da topografia.
Por exemplo, contrariamente aos caminhos das tropas, a ferrovia
manifestou desde cedo decidida preferência pelas várzeas, em vista
da facilidade oferecida por estes terrenos para traçados retilíneos,
assim como para que as composições ferroviárias alcançassem a
velocidade desejada e igualmente, pelos custos menores requisitados
para construir e desapropriar terrenos.
Assim, rota ferroviária se expandiu ignorando a antiga malha das
comunicações tecida pelas tropas de burros, esgarçando tout cour, o
arranjo espacial preexistente (Cf. DEFFONTAINES, 2004: 128). Na
sequência a esta lógica, é compreensível que as estradas de ferro
tenham identicamente, desprezado a totalidade dos aglomerados da
circunvizinhança paulistana, também definido como “cinturão caipira”
(LANGENBUCH, 1968).
Exemplificando, no Caaguaçu/São Bernardo a implantação da
Estrada de Ferro São Paulo Railway se sustentou mediante a
plotagem de estações cuja origem foi exclusivamente determinada
pelas exigências do sistema ferroviário enquanto tal, e não devido à
organização territorial precedente. A honrosa exceção a esta regra, o
povoado de Rio Grande (atualmente a cidade de Rio Grande da
Serra) tratou-se de caso absolutamente excepcional. Este núcleo
urbano foi atingido por acaso pela linha do trem simplesmente em
5
597
razão de estar localizado no traçado previamente proposto pela
equipe de engenharia da ferrovia (Cf. LAGENBUCH, 1968: 145).
Para arrematar, a implantação da ferrovia condiz com a máxima
de que ela impõe, em parceria com os trilhos, o triunfo de uma nova
leitura do tempo, explicitamente moderna, suplantando a velha ordem
tradicional. No estado de São Paulo, a marca deixada pelas estradas
de ferro no espaço geográfico foi de tal monta, que estas lograram
criar uma “consciência ferroviária”, pela qual as regiões atravessadas
por este modal de comunicação passaram a ser geograficamente
reconhecidas por intermédio dos nomes das linhas que as serviam
(SOUZA, 1985: 5).
Portanto, não seria de se admirar que o velho Caaguaçu/São
Bernardo passasse a ser magnetizado pela ferrovia. Entre os Séculos
XVI e XIX, esta região tivera sua vida social regulamentada pelo trote
dos cascos dos muares, pela sequência das atividades da agricultura
de subsistência e por uma sociabilidade perpassada pelas injunções
do catolicismo rural paulista, cujos centros de gravitação estavam,
conforme registrado, centralizado nas capelanias espalhadas no seu
território. Mas, tudo isto foi alterado para sempre, deixando quando
muito um ou outro resquício fugidio no imaginário espacial local, nem
sempre subserviente aos processos de reinvenção do passado do
Caaguaçu.
As estações da Luz e de Paranapiacaba, exibindo magníficos
relógios, testificam a anexação da beirada planaltina pelo tempo
linear e pelos novos ritmos que passam a ordenar a territorialização
do espaço. A parada do trem é o espaço em que a indústria alavanca
5
598
processos que futuramente viriam constituir o ABC Paulista, e com
esta, toda sorte de mudanças sociais, políticas e econômicas (Cf.
KUVASNEY, 1996: 4 et seq).
Com efeito, a fisionomia original do que antes era conhecido
como os bairros do Caaguaçu e de São Bernardo foi transfigurada
nos mais diversos sentidos. Na quinta década do século passado, o
geógrafo Pierre MONBEIG captou este dinamismo urbano-fabril que
animava o ABC Paulista, rechaçando os remanescentes da sociedade
tradicional para as áreas mais recuadas da região:
Ao longo da via-férrea, o desenvolvimento do Parque da
Moóca e de Vila Prudente [na capital paulista] atingiu a
aldeia de São Caetano. Foi lá que nasceu um foco de
subúrbio industrial, que dá à aglomeração paulista o seu
caráter de cidade industrial. São Caetano, Santo André,
com seu bairro de Utinga, foram revigorados pelo parque
industrial. Se acrescentarmos São Bernardo, teremos três
municípios com respectivamente 20.075, 98.313 e 55.797
habitantes, segundo o censo de 1950. O contraste é vivo
entre a atividade dessas cidades fervilhantes, o ruído das
fábricas, dos trens e dos caminhões com o arcaísmo de
seus campos e de suas florestas, de onde o elemento
caboclo ainda não desapareceu completamente (2004:
139).
Nesta progressão, à medida que a região passou a ser granjeada
de maior complexidade social, cotidiano local passou a ser encorpado
por uma série inédita de mobilizações sociais, nas quais a liderança
coube à nascente e impetuosa classe operária local. A greve geral de
1917, cujo epicentro foi a capital paulista, recebeu o apoio decidido de
diversas categorias profissionais do ABC.
5
599
Na demarcação da atual divisão territorial, este movimento foi
apoiado, desde o primeiro momento, pelos trabalhadores das olarias
de Santo André, das carpintarias de São Bernardo, das fábricas de
peças de São Caetano e das pedreiras e instalações de cantaria de
Ribeirão Pires, na ocasião, um mobilizado centro de aspirações do
proletariado paulista (Figura 46).
O nível de organização do operariado permitiu que Santo André
elegesse no ano de 1947, sob a legenda do Partido Social Trabalhista
(PST), o primeiro prefeito comunista do Brasil, o veterano militante
sindical Armando Mazzo (1923-1990), acompanhado de uma robusta
bancada formada por treze vereadores.
Embora a posse do prefeito e dos vereadores comunistas tenha
sido impugnada por uma manobra cartorial da elite local, o fato é em
si mesmo, um testemunho eloquente do grau de complexidade que
haviam alcançado as relações sociais na região, antes um simplório
domínio da agricultura de subsistência (Vide KUVASNEY, 1996 e
MARQUES, 1996).
Dessarte, embora poucas décadas antes a região estivesse
amplamente coberta por matas e pouco alterada pelo homem, em
meados do século passado a transformação do antigo “deserto” (para
apelarmos para terminologia da pena de Caio Prado Júnior), estava
por demais evidente. Nada mais no Grande ABC evocava o espaço
de outrora. Principalmente dos anos 1950 em diante, iniciaram-se
tempos regidos pelo motto emblemático São Paulo não pode parar.
6
600
FIGURA 46 - Senhor Mário, trabalhador do granito: Na foto, um dos
trabalhadores remanescentes das cantarias de Ribeirão Pires. Nas
duas primeiras décadas do século passado, o Sindicato dos
Canteiros de Ribeirão Pires era a principal organização operária no
que hoje é o ABC paulista (MARQUES, 1996). A exploração das
pedreiras garantiu o calçamento de muitas das ruas da capital, e a
construção de obras como a Catedral da Sé, em São Paulo.
Atualmente esta atividade reúne poucos trabalhadores autônomos.
O Sr Mário, migrante nordestino, opera no bairro do Tecelão (Norte
de Ribeirão Pires) cortando paralelepípedos bem próximo da Pedra
do Elefante. Abordado sobre seu ofício, informou: “Ainda tem muita
pedra para cortar. Mas tem pouca gente nisso. Um pouquinho aqui
em Ribeirão Pires, outro pouquinho em Mauá. Mas enquanto estiver
vivo vou continuar a cortar granito” (Foto: Maurício Waldman, maio
de 2005)
6
601
Este slogan, publicizado à exaustão como bordão durante os
festejos do IV centenário da capital paulista, no ano de 1954, refletia
um dinamismo urbano que repercutiu em todos os municípios do
entorno, materializando-se no que é hoje conhecido como RMSP.
Retratando uma tendência que se acelerava cada vez mais, a
urbanização, alavancada pela estrada de ferro, progredia em parceria
com o trajeto do trem, fazendo surgir novos subúrbios onde antes
“tinha só mato” 128.
Em toda a região pipocaram loteamentos, sinal de um processo
de valorização fundiária que justificaria a argumentação pela qual a
propriedade urbana valoriza-se no próprio processo de produção da
cidade (SEABRA, 1987: 19). A partir deste movimento é que podemos
melhor compreender o surgimento das novas circunscrições espaciais
que hoje formam o Grande ABC Paulista.
O que se conhece como “ABC” pertencera até os anos cinquenta
a um único e extenso município, o de Santo André da Borda do
Campo. Significativamente, entre 1945/1963, no momento em que se
estruturava a metrópole paulista, desmembraram-se deste município,
direta ou indiretamente, nada menos do que seis municipalidades: as
de São Bernardo do Campo (desmembrado em 1945), São Caetano
do Sul (1948), Mauá e Ribeirão Pires (1953), Diadema (1958) e Rio
Grande da Serra (1963).
Esta expressão, que suscita objeções no prisma da defesa do meio ambiente,
continua, no entanto, a frequentar o discurso de inúmeros segmentos sociais,
demonstrando o quanto a oposição entre cidade e meio natural foi instituída não só no
plano vocabular como igualmente, no do imaginário. Nesta envergadura, o termo clarifica
quanto à conexão existente entre as paisagens mentais e as físicas, em particular, no
ímpeto propulsante das primeiras relativamente às segundas, o que revela sua índole
enquanto fator de modelagem do espaço.
128
6
602
Emblematicamente, não é fortuito que a alcunha “ABC” tenha se
banalizado nos anos 1950. Em busca de uma identidade territorial e
política, grupos hegemônicos locais manipularam esta denominação
como denotativa de uma nova identidade econômica responsável por
sua articulação (a industrialização), sendo seu objetivo, ao expressar
que os municípios formavam uma região distinta, manifestar o desejo
de diferenciá-los da metrópole que os engolia, que neste dinamismo,
“periferializava” o antigo subúrbio (KUVASNEY, 1996: 1 e 67/68).
Isto posto, a fragmentação em vários municípios não quebrou o
sentimento identitário que visivelmente marca a percepção local. A
população do ABC como um todo continuou a entender a totalidade
dos municípios como pertencentes a um mesmo conjunto.
A título de comparação, pode-se colocar em pauta que na RMSP,
os desmembramentos ocorridos em Itapecerica da Serra (gerando
quatro municípios) e em Mogi das Cruzes (formando outros cinco),
não foram acompanhados de quaisquer persistências associadas a
uma identidade regional.
O mesmo pode ser dito quanto a outros casos de emancipações
ocorridas das adjacências paulistanas, esfacelamento que não deixou
em seu rastro mais do que uma mera recordação desprovida de
significado mais intenso (Vide LANGENBUCH, 1968: 337/338).
Mais interessante ainda, é perceber a cooptação deste imaginário
pelo próprio operariado. Afinal, nos anos 1980 passa a emergir a
noção de um “sindicalismo do ABC”, parteiro mais adiante do que vira
tornar-se o Partido dos Trabalhadores (PT).
6
603
Evidentemente, a noção de região se sustenta tanto por dados
supraestruturais quanto infraestruturais (SANTOS, 1989: 14). Assim,
o percepcionamento do Grande ABC como uma região, em paralelo
aos laços culturais, históricos e geográficos, é alimentado por uma
profunda articulação funcional e interdependência econômica, social e
urbanística, recorte em que se notam evidentes sinais demonstrativos
de uma relativa autonomia da sub-região no interior da GSP.
Por exemplo, as sete prefeituras criaram em 1990, com o fito de
articular a condução de políticas públicas integradas, o Consórcio
Intermunicipal do Grande ABC; a maioria das associações de classe
abarca total ou parcialmente a região e não exclusivamente uma
cidade;
Ceteris paribus, referências como o jornal Diário do Grande ABC,
possuem indiscutível inserção regional; no plano da sociabilidade, é
corriqueiro encontrarmos famílias e relações sociais disseminadas
pelos municípios do Grande ABC Paulista, não sendo incomum que
as pessoas morem, trabalhem e estudem em cidades diferentes da
região, o mesmo acontecendo no plano político e econômico.
Significativamente, pesquisa da Companhia do Metropolitano de
São Paulo (Metrô), confirmava cerca de 72% dos deslocamentos nos
anos 1990 ocorriam internamente ao Grande ABC. Plus: outro dado
informa que na década seguinte, 90% dos deslocamentos passaram
a ser realizados no interior da região (Cf. ZIOBER et PEREIRA, 1991:
96 e também, Plano Diretor de Ribeirão Pires, 2003: 17).
6
604
O conjunto formado pelos municípios do Grande ABC, também
conhecido como Sete Cidades ou ABCDMR, forma nos dias de hoje a
sub-região Sudeste da RMSP (Figura 47). No acrônimo ABCDMR, “A”
representa Santo André, “B”, São Bernardo do Campo, “C”, São
Caetano do Sul, “D”, Diadema, “M”, Mauá e “R”, Ribeirão Pires e Rio
Grande da Serra. Quanto a ABC ou Grande ABC, dado que Santo
André, São Bernardo do Campo e São Caetano correspondem aos
três principais municípios, é fácil entender a origem da nomenclatura.
FIGURA 47 - Mapa das sub-regiões da Região Metropolitana de São Paulo
(Fonte: EMPLASA, 2004, escala aproximada 1: 697.000)
De modo inquestionável, o conglomerado urbano formado por
Santo André, São Bernardo do Campo, São Caetano do Sul,
Diadema, Mauá, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra (Figura 48),
posiciona-se enquanto um espaço detentor de enorme dinamismo
político, econômico e social. A industrialização acelerada da região
não só respalda este marco identitário como de fato dá início à
decolagem econômica da região.
6
605
FIGURA 48 - As Sete Cidades ou Sete Municípios do Grande ABC Paulista
(Fonte: < http://www.sehal.com.br/imagens/mapa.jpg >, escala aproximada 1:
182.857, acesso: 11-07-2005)
No ESP, a região do Grande ABC é o conglomerado urbano mais
importante após a Capital. Numa área dez mil vezes menor que a do
Brasil, ita est, apenas 841 km², concentravam-se cerca de 2.500.000
pessoas (Vide Figura 49). Com base nesta informação, inferimos um
índice de população relativa de 2.850 hab./km², bastante elevado sob
o ponto de vista demográfico. O Grande ABC Paulista corresponde a
1,47% da população brasileira, concentração equivalente à de países
como a Jamaica, Mongólia, Letônia ou o Kuwait
129.
Dados demográficos obtidos no Population Reference Bureau, ano-base 2004, in <
http://www.prb.org/ > (Acesso em: 13-06-2004)
129
6
606
FIGURA 49 - Área e População das Sete Cidades
(Fonte: EMPLASA - Área e IBGE - População)
Numa perspectiva econômica, a pujança regional fica evidente
quando se sabe que o ABCDMR constitui o terceiro polo de consumo
do país, com 2,18% do total nacional, superado apenas pela capital
paulista, com 11,09%, e pelo Rio de Janeiro, 5,82% (FREITAS, 2004:
3). Atualmente, o PIB industrial do Grande ABC é de cerca de US$ 10
bilhões, correspondendo a cerca de 14% do PIB industrial do ESP e a
aproximadamente 7% do PIB industrial brasileiro.
De acordo com o Instituto Municipal de Ensino Superior (IMES),
de São Caetano do Sul, a atividade das indústrias no ABC Paulista
em 2004, seria equivalente à do Rio Grande do Sul, o quarto estado
manufatureiro da federação.
Fato comentado com indisfarçável orgulho pela influente classe
média local, o Grande ABC Paulista exibe indicadores de padrão de
6
607
vida comparáveis ao Primeiro Mundo. São Caetano do Sul é, como se
sabe, a cidade mais rica do Brasil e o bairro do Rudge Ramos, detêm
a maior renda per capita do país. Como pode ser conferido na Figura
50, nenhuma das municipalidades do ABC, mesmo com diferenças
marcantes de uma cidade para outra, apresenta baixo Índice de
Desenvolvimento Humano (IDH).
De resto, São Caetano do Sul detém o mais alto IDH do país e
cidades como São Bernardo do Campo e Santo André, possuem IDH
equivalente ao de países do porte da Polônia (34ª posição no ranking
mundial). Outros dados consolidados pelo IMES, válidos para o ano
de 2003, ilustram que no ABCDMR a geladeira está presente em
98,5% das residências; CD player em 94,2%; televisão em cores em
72,2%; máquina de lavar roupa em 65,7%; Vaporetto em 82%; DVD
em 55,2%; e o forno de micro-ondas, em 64,2%. Poucas regiões do
país poderiam superar estes scores, significativos mesmo na escala
mundial.
Historicamente, esta destacada posição resultou da implantação
da indústria automobilística a partir da década de 1950, no exercício
da administração do presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira
(1956/1961). Graças a esta iniciativa, cidades como São Bernardo do
Campo, considerada a “Detroit brasileira”, conquistaram visibilidade
nacional, atraindo grandes contingentes de migrantes nordestinos. De
modo patente, é recorrente no imaginário regional a introjeção da
prosperidade econômica e do avanço industrial enquanto uma marca
que a região incorpora dos mais diversos modos em seu cotidiano e
na sua forma de ser.
6
608
FIGURA 50 - IDH dos municípios do Grande ABC. Adotado mundialmente, O IDH
índice mensura a qualidade de vida, com base em médias aritméticas obtidas de
três indicadores: esperança de vida ao nascer (longevidade), educação e renda.
Variando de 0 a 1, o IDH é considerado baixo no intervalo 0-0,499; médio entre
0,500 e 0,799, e maior que 0,800, considerado alto. Sublinhe-se que no ano de 2005,
o ESP possuía 645 municípios. Logo, no conjunto das Sete Cidades, os municípios
de Mauá, Diadema e Rio Grande da Serra, são notavelmente dessimétricos
relativamente a São Caetano do Sul, Santo André e São Bernardo do Campo, com
Ribeirão Pires ocupando posição intermediária (Fonte: EMPLASA, 2004)
Porém, a região não escapa do binômio crescimento e pobreza
que marca o conjunto da sociedade urbana brasileira. O ABCDMR,
em paralelo com a bonança econômica, explicita todos os clássicos
sinais de degradação urbana, dentre estes, o comprometimento dos
mananciais de água potável. O processo de urbanização incessante
do ABC, alimentado por buliçosos movimentos migratórios, fomentou
mais um episódio de metropolização acelerada, indissociável da
lógica do dinamismo urbano brasileiro e da GSP em particular.
Deste modo, a expansão urbana do ABC determinou impactos
inevitáveis no Sistema Billings e no seu entorno, imprescindível para
assegurar os ciclos hidrodinâmicos do reservatório. Nesse contexto,
as dinâmicas urbanas do Grande ABC, materializando tendências que
se repetem, mesmo que diferencialmente, no conjunto das cidades da
sub-região, se apresentam, em virtude do pendor estrutural, como
6
609
das mais importantes para a questão dos recursos hídricos da região
metropolitana.
Outro aspecto, não menos importante, é que em termos do
próprio ABC Paulista, a importância do Sistema Billings é acentuada
pela precariedade do abastecimento fornecido pelas companhias de
distribuição de água do ESP. Ao longo das últimas décadas, a subregião tem sido sazonalmente penalizada pelo racionamento de água,
impondo em maior ou menor grau o impopular sistema de rodízio.
Portanto, os 4 m³/s captados do braço Rio Grande da represa
Billings (7% do abastecimento da RMSP), atendendo em primeira
mão as demandas de São Bernardo do Campo, São Caetano do Sul
e de Santo André, são indispensáveis para evitar um colapso no
abastecimento regional do líquido.
Certamente uma menção obrigatória caberia ao município de
Santo André, um dos que no ESP, preservaram um serviço próprio de
abastecimento. Trata-se do Serviço Municipal de Água e Saneamento
de Santo André (SEMASA), autarquia municipal, pelo qual a cidade
usufrui, embora em pequena escala, de serviços de água e esgoto
prestados autonomamente. A água potável é na quase totalidade,
fornecida pela SABESP (96%), sendo o restante obtido de pequenos
mananciais situados no município (Cf. DANIEL, 2000).
A SEMASA também opera a Estação de Tratamento de Água
(ETA) de Guararã, com base na captação do manancial do Pedroso,
localizado no interior do espaço urbano da cidade. Ainda que de
pequena capacidade, Guararã atende entre 4% e 5% do consumo da
6
610
cidade, aporte fundamental em face da escassez hídrica da região.
Ao mesmo tempo, os serviços prestados são insuficientes diante das
necessidades objetivas da cidade (SEMASA, 1991: 33/35).
Nestes marcos, não haveria como subalternizar a importância do
reservatório Billings para o abastecimento da RMSP e do Grande
ABC, mesmo porque a captação de água, não mais se restringe ao
represamento do braço Rio Grande, “o reservatório do ABC”. Desde
agosto de 2000, a Billings foi, através do braço Taquacetuba da
represa, acoplada ao Sistema Guarapiranga. Assim sendo, as águas
poluídas da represa, ao estarem interligadas ao Sistema Adutor
Metropolitano, são objetivamente parte da estrutura de fornecimento
de água para a metrópole paulista como um todo.
Outro detalhe técnico relevante é que os efluentes da Billings,
após serem diluídos no reservatório do rio das Pedras e passarem
pelas turbinas da UHE de Henry Borden (ou Cubatão), são, a jusante
desta instalação, captados para abastecer o município de Cubatão.
Assim, a Billings, mesmo poluída e contaminada, tem concretamente
se prontificado como um manancial de água, o qual, em razão de
motivações técnicas e geográficas vitaminadas pela crise hídrica,
reclama a recuperação do seu papel como reservatório voltado para
matar a sede da metrópole paulista.
Razão adicional para se acompanhar a trágica sucessão de
eventos que conduziram à calamitosa situação que hoje está à vista
de todos os metropolitas.
6
611
11.2. A ECOLOGIA POLÍTICA DOS MANANCIAIS
Endossando premissa subliminar relacionada com a preservação
das águas doces, insistentemente evocada no transcorrer desta tese,
compreender a questão do monitoramento da represa Billings e da
problemática dos seus mananciais não tem como ser dissociada da
avaliação do verdadeiro emaranhado político, social e econômico que
envolve, opõe e aglutina a opinião pública e as várias instâncias dos
poderes públicos, atinentes à governança deste reservatório, ainda
hoje o mais vasto e influente de toda a RMSP.
Basicamente porque o conhecimento da forma como este lago
artificial tem sido administrado, instrui relativamente às diretrizes que
nortearam a elaboração das políticas públicas de gestão dos recursos
hídricos na região metropolitana, as quais antecipamos, têm exaltado
uma autêntica política de malbaratação deste capital ambiental. No
final das contas, foi exatamente com o concurso desta lógica que as
águas doces, tão abundantes no favorecido rincão planetário no qual
está alojado o país, tem sido transformada, em soberba contradição
com a oferta natural, num produto escasso, caro e de difícil obtenção.
Sinteticamente, o aviltamento da Billings revela a existência de
um leque de interesses que cimentou durante décadas, numa sólida
aliança, as esferas do poder público e as empresas de produção de
hidroeletricidade, aos insidiosos esquemas de endividamento externo
e às grandes empreiteiras; estas, com as administrações de todos os
níveis; e estas, por sua vez, com as expressões político-partidárias
que agem em nível local, com sabidas conexões com a especulação
6
612
imobiliária. Este quadro, portanto, indica uma conjugação de óbices
sociais, políticos e econômicos que para ir direto ao ponto, pouco ou
nada comungariam com os ideários da justiça, da equidade e do zelo
ecológico, mas que nem por isso, deixam de serem alardeados nas
falas indiferenciadas dos atores políticos e partidários.
Assim, a complexidade dos fatores em jogo na Bacia da Billings
descarta qualquer leitura rápida e superficial. Discriminar aspectos
pontuais, mesmo sendo razões relevantes para o comprometimento
do perfil hidrológico da Billings, pode no máximo traçar um desenho
nebuloso de um problema que é muito mais amplo. O que se coloca é
a necessidade de decifrar uma gama articulada de questões e de
interesses contraditórios, procedimento não só axial, mas igualmente
essencial para compreender os calços objetivos que estaqueiam a
problemática da represa Billings.
Neste sentido, o histórico desse reservatório seria em si mesmo
um dos mais gritantes alertas a respeito das dificuldades que uma
perspectiva ambiental tem pela frente quando se contrapõe ao
pragmatismo inconsequente e às triviais visões de curto prazo. Daí, a
imperiosidade de resgatar uma sucessão de eventos que embalaram
muitas vidas e expectativas, sejam estas conhecidas ou não.
Evidentemente, em tempos nos quais a percepção é mutante
devido à transitoriedade que habita o âmago do sistema, e deste
modo, alterando rotineiramente o relacionamento dos humanos com o
mundo, a problemática da represa Billings tem se metamorfoseado
nas mais diversas acepções do termo. Esta questão, que terminou
assimilando dados substancialmente diferentes dos que originaram
6
613
seu surgimento, em nada desvencilhariam das avaliações a interface
pertinente à força inercial que esta portentosa massa de água impõe
para os destinos da metrópole.
Particularmente nos últimos anos, especialmente por conta da
indignação quanto à depredação desmesurada dos seus mananciais,
assim como pela premência da questão do abastecimento na RMSP
como um todo, diversos segmentos sociais têm se somado a uma
corrente de cidadãos cujo denominador comum é, acima de tudo, a
preservação deste importante manancial de águas doces.
Justamente por estas motivações é se torna prioritário antecipar,
no tocante ao reservatório Billings e ao seu entorno, a apresentação
de quatro premissas conceituais e políticas básicas. Estas seriam:
1. No referente ao gerenciamento das águas doces, uma vez que
a RMSP é banhada exclusivamente pelo curso superior do rio Tietê e
pelas nascentes responsáveis pelo seu fluxo, este contexto, frente às
demandas da metrópole, sugeriria uma administração rigorosa de
recursos hídricos exíguos.
Nesta perspectiva, o atendimento das necessidades prioritárias
de um meio urbano em contínua expansão (isto é, o abastecimento
de água potável e fornecimento de energia elétrica), não poderia ser
encaminhado dispensando uma utilização ótima e consorciada dos
estoques de águas existentes. É também evidente que tal proposição
não ofereceria, ao menos em princípio, qualquer dificuldade. No final
das contas, a utilização da água para o abastecimento doméstico e
para gerar energia é, em princípio, não-consuntiva.
6
614
Portanto, acatando este axioma, as duas destinações das águas
doces deveriam estar apoiadas em metodologias para as quais, a
conservação dos recursos hídricos seria uma preocupação central.
Subsidiado por um plano coordenador comum e consignando um
aproveitamento simultâneo das águas das bacias hidrográficas
circunjacentes, seria possível requerer água para o abastecimento
público e produzir energia sem prejuízo de nenhuma destas duas
finalidades.
Nesta lógica, a solvibilidade de um dos problemas, na ausência
da resolução simultânea do outro, levaria o crescimento da cidade ao
colapso, ou pelo mínimo, ao seu engastamento. Mas, “as águas na
região de São Paulo foram utilizadas de acordo com as necessidades
de cada setor, sem que houvesse uma política de ação coordenada”
(RUTKOWSKI et OLIVEIRA, 1999: 39).
2. Outro aspecto, relativo ao universo conceitual, refere-se à
definição espacial da bacia da represa Billings. A noção de bacia
hidrográfica, correspondendo a uma área irrigada por um rio ou
determinado sistema fluvial, tem sido extensivamente aceita em vista
de tratar-se de uma unidade geomorfológica fundamental, sob cuja
tutela, se pode apreender a dinâmica do fluxo superficial de uma rede
de drenagem (CHRISTOFOLETTI, 1990).
Por isso mesmo, o conceito de bacia hidrográfica tem sido
assumido enquanto unidade territorial de suma importância para o
planejamento integrado do manejo dos recursos hídricos e das
atividades humanas relacionadas com o curso das águas fluviais.
Outrossim, em anuência com o que será pormenorizado adiante, o
6
615
caso da Billings sugere que a valer, não estamos diante de uma bacia
hidrográfica, ou em outras palavras, de uma rede de drenagem
construída pela natureza. A bacia da represa Billings, criada a partir
de objetos hidrotécnicos, resulta inequivocamente de uma volição
antropogênica de primeiríssima grandeza, reportando a um leque de
intervenções que contestam, sob qualquer ponto de vista, os ciclos
inerentes ao meio físico-natural (Cf. CUSTÓDIO, 2001 e ISA, 2003).
Nesta interpretação, o reservatório Billings não seria redutível ao
conceito de bacia hidrográfica, enquadrando-se, antes de tudo, no
que segmentos da literatura técnica concebem como bacia ambiental.
Numa definição sintética, bacia ambiental materializaria um espaço
de conformação dinâmica, no qual a dimensão física, relativizada e
flexibilizada nos seus limites, estaria subordinada a um conjunto de
inter-relações de variegados níveis, umbrella concept que se alarga
quando o foco é uma landschaft urbanizada, um espaço intensamente
antropizado, e, portanto, não-natural (passim RUTKOVSKI, 1999a).
Confirmando esta apreciação, sopesa com retidão o geógrafo Antonio
Cezar LEAL, que seria preciso analisar
...cada caso específico de delimitação territorial, não
considerando apenas os limites naturais da bacia
hidrográfica, mas o uso e ocupação do solo, a
organização social e as integrações de sistemas
hidráulicos de reversão de águas e esgotos (2003: 74).
Em síntese, os limites de uma bacia ambiental não são físicos,
mas, sobretudo, socioespaciais. Esta circunscrição, sendo dinâmica e
flexível na sua delimitação, constitui espaço de vivências, de conflitos
e de organização das relações sociais, variáveis fundamentais para a
6
616
compreensão e o equacionamento de problemáticas como as que
vigoram no reservatório Billings e na sua periferia territorial, que não
tem como ignorar a influência dos dinamismos antrópicos (Figura 51).
FIGURA 51 - Contexto geográfico da Bacia Ambiental da Billings e arredores
geoespaciais: (1) em rosa, a mancha urbana da RMSP; (2) Circunscrição territorial
da bacia da Billings; (3) Reservatório do Guarapiranga; (4) Regiões limítrofes do
Sistema Cantareira; (5) Áreas com cobertura predominante de mata atlântica, mais
densa no alcantilado da Serra; (6) A mancha urbana da Região Metropolitana da
Baixada Santista; (7) Oceano Atlântico (Fonte da imagem: ISA, 2000)
3. Nos últimos anos, teríamos que mencionar o surgimento de
diversos Comitês de Bacia Hidrográfica, um dado historicamente novo
na gestão das águas doces brasileiras. Como resultado direto das
mobilizações ambientalistas, em especial as voltadas para a defesa
dos corpos aquáticos, um amplo corpo jurisprudencial associado com
a governança dos recursos hídricos conquistou interlocução legal.
Seu marco maior foi a Constituição Federal de 1988. No tocante
aos recursos hídricos, este documento estabeleceu a obrigatoriedade
de instituir o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos
6
617
Hídricos (Título III, artigo 21, inciso XIX). Em nível das unidades da
federação, esta competência se traduziu na formação dos sistemas
estaduais, nos quais a participação da sociedade civil organizada,
dispondo de poder deliberativo, foi legalmente assegurada.
No ESP, a Lei nº. 7.663/91 (30/12/1991), implantou o Sistema
Integrado de Gerenciamento de Recursos Hídricos
(SIGRH),
processando-se desde então a instalação dos 21 comitês de bacia
hidrográfica hoje em funcionamento. O Comitê da Bacia Hidrográfica
do Alto Tietê (CBH-AT), igualmente conhecido como Parlamento das
Águas, circunscreve a pródiga rede hídrica que drena a região das
cabeceiras e os rios formadores do curso superior do Tietê
130.
O CBH-AT foi instalado em 1994 e a partir do ano de 1997, como
desdobramento da descentralização desta instância, foram criados
cinco Subcomitês: Cotia-Guarapiranga (1997), Juqueri-Cantareira
(1997), Billings-Tamanduateí (1997), Tietê-Cabeceiras (1997) e o
Pinheiros-Pirapora (1998). Relativamente ao Subcomitê BillingsTamanduateí, trata-se da instância que responde em termos do ABC
e de parte da capital paulista pelo acompanhamento do estado das
águas da Billings (Cf. Figura 52). É importante registrar que o Comitê
de Bacia Hidrográficas do Alto Tietê (CBH-AT) foi o primeiro a ser
criado no país.
Conjuminando experiências pioneiras, o CBH-AT condensa um
denso histórico de mobilizações sociais em defesa das águas doces
na sua área de atuação. O CBH-AT mantém em seus quadros a
representação de autoridades estaduais, prefeituras e instituições da
Vide análise pormenorizada do CBH-AT realizada por Marcos Estevan DEL PRETTE
(2000: 131/148).
130
6
618
sociedade civil. Um aspecto importante são os vínculos mantidos pelo
CBH-AT com a região metropolitana. Dentre os 39 municípios que
compõem a RMSP, apenas três (Santa Isabel, Guararema e Vargem
Grande Paulista), não estão incluídos no CBH-AT. Outro ponto a ser
destacado é que o CBH-AT começou a ganhar visibilidade pública e
tornar-se referência para o debate dos recursos hídricos da GSP.
FIGURA 52 - Mapa da Bacia Hidrográfica do Alto Tietê: área de abrangência e
divisão em sub-bacias, correspondendo aos limites dos comitês de bacia (Fonte <
http://www.rededasaguas.org.br/observando/alto_tiete.htm >, escala aproximada 1:
595.000, acesso: 10-07-2005)
No entanto, trata-se de uma representação política ainda em
construção, tendo por desafio fundamental postular uma atuação
social junto a uma arquitetura política que como no caso da brasileira,
tem imposto variadas altercações para o exercício da cidadania, num
espectro que se estende desde o autoritarismo das agências e órgãos
estatais a uma estrutura de medo profundamente internalizada no
6
619
ethos nacional (DURAN, 2005: 141/186). Deste modo, a tematização
analítica dos comitês de bacia hidrográfica aguarda por avaliações e
acompanhamentos para habilitar a certificação do alcance real da sua
jurisprudência.
4. Dado que o foco da análise em curso não está centrado num
problema ecológico, mas antes, socioambiental, a conceituação de
manancial a ser adotada reclama certificação tendo por pressuposto
esta variável. Um significado amplo deste termo pode ser encontrado,
por exemplo, nas publicações da CETESB, nas quais, manancial é
conceituado como “a fonte de abastecimento de água que pode ser,
por exemplo, um rio, um lago, uma nascente ou poço, proveniente do
lençol freático ou do lençol profundo” (Cf. CEPAM-FPFL, 1991: 154).
Entretanto, até em razão da anunciada predileção pelo conceito
de bacia ambiental, não poderíamos avocar parâmetros puramente
eivados em nuanças naturais, em apensos exclusivamente técnicos e
tampouco, amparar-nos em acepções ecológicas de senso comum.
No tocante a estas últimas, a terminologia manancial termina por
restringir-se à nascente dos rios ou aos locais onde pode ser obtido o
líquido destinado ao abastecimento das pessoas, sendo esta noção,
aliás, a que justifica genericamente a percepção e proteção da água
como um “pecúlio natural” (CUSTÓDIO, 1996: 17).
Entretanto, a geografia, física ou humana, simplesmente não
poderia deter-se em variáveis naturalizantes
131.
Na nossa aferição,
os mananciais designariam as áreas destinadas à produção de água.
Não esquecer que desde os anos 1950, a geografia física preconiza a importância da
antropogenia no acompanhamento das transformações dos modelados naturais (passim
MONTEIRO, 2000).
131
6
620
Assim, a definição não referendaria apenas os depósitos naturais do
líquido que descansam nos aquíferos, fluem das nascentes ou
escoam para os lagos, mas também inclui toda e qualquer obra
(natural ou social), articulada ao que Milton SANTOS caracterizou
como modernos sistemas de engenharia (passim 1978a e 1988).
Adotando este critério, estaríamos privilegiando as malhas
fluviais no sentido de partícipes de sistemas técnicos relacionados
com o fornecimento de recursos hídricos, especialmente os voltados
para o espaço urbano. Por conseguinte, a expressão “produção de
água”, que poderia pecar por um viés “tecnicista” seria, neste exato
sentido, muito feliz por realçar o fato de que este líquido, no mundo
contemporâneo, não mais constitui um recurso livre da natureza, até
porque, torna-se grosso modo acessível quando tutelado por uma
intermediação humana.
Fato axiomático, as quatro premissas arroladas são inteligíveis
exclusivamente numa conjuntura em que a modernidade compele
repensar os suprimentos de água doce de um modo bem diferente
dos tempos em que o líquido era desfrutado sem a pluralidade de
sansões que nos dias atuais regram sua obtenção e gerenciamento.
Daí, a elaboração de complexos modelos teóricos que procuram
equacionar as questões que envolvem o acesso a este recurso tão
vital para a vida.
Outrora, de um modo relativamente geral, a água era percebida
como um bem livre que aparentava ser ilimitadamente difuso, do qual
os humanos simplesmente usufruíam. Entretanto, a água passou a
ser listada como um dos recursos ecossistêmicos tornados dia após
6
621
dia, intangíveis aos humanos pelo que se convencionou denominar
de progresso e desenvolvimento.
Na sucessão de eventos que marca o avanço da sociedade
contemporânea, o líquido tornou-se passível de acesso quase que
exclusivamente com intermediação técnica, propiciada por sistemas
peritos (GIDDENS, 1991: 34/37), cuja coordenação e funcionamento
é no todo, ignorada pelos cidadãos, respondendo prioritariamente às
instâncias de poder que efetivamente capitaneiam a sociedade e a
política. Por extensão, nada melhor do que subsidiar esta discussão
dissecando notações conceituais e metodológicas relacionadas com
as expectativas pelas quais a consciência social, assim como seus
reflexionamentos nas posturas dos mais diferentes atores, tem sido
objetivamente respaldada quando o tema em foco são os mananciais
da área metropolitana.
Por esta via, não há como dispensar da reflexão a minuciosa
legislação elaborada quanto a este tema. Tendo em vista a garantia
da potabilidade e dos ciclos dinâmicos configurados nos reservatórios
e nos fluxos que os abastecem, a legislação referente aos mananciais
fundamentalmente prescreve a normatização da ocupação humana
destas áreas. Indiscutivelmente, este arcabouço legal constituiu uma
emanação de um zeitgeist racionalizante, inspirando planejadores e
urbanistas a se empenharem numa releitura da questão dos recursos
hídricos passível de atenuar os agravantes que se avizinhavam para
a contextura da metrópole paulista.
As leis de proteção aos mananciais constituíram uma tentativa de
conter formas predatórias de urbanização que passaram a visar áreas
6
622
perpassadas por notórios condicionantes ambientais (consideração
esta, da qual o reservatório Billings dificilmente poderia se esquivar),
sugerindo monitoramento e restrições devido à notória importância
para a vida urbana metropolitana (Cf. SÓCRATES, GROSTEIN et
TANAKA, 1985: 27/28).
Embalados por esta preocupação, diversos círculos de opinião
relacionados com o planejamento urbano pressionaram, a partir do
início dos anos 1970, para que fossem materializados no imo do
Plano Metropolitano de Desenvolvimento Integrado (conhecido pela
sigla PMDI), dispositivos legais visando à proteção dos mananciais,
consubstanciados nas legislações de número 898 (18/12/1975), 1.712
(17/11/1976), assim como pelo Decreto-Lei nº. 9.714 (19/04/1977).
Deste rol de pronunciamentos, a precedência coube ao ato legal
de 1975, a citada Lei nº. 898, que ao disciplinar “o uso do solo para a
proteção dos mananciais, cursos e reservatórios de água e demais
recursos hídricos de interesse da Região Metropolitana da Grande
São Paulo”, é via de regra entendida enquanto matriz conceitual da
preservação dos mananciais na RMSP (Vide Apêndice 1).
Assim sendo, a partir destes atos legais, às normas de uso e
ocupação do solo então vigentes na RMSP, veio somar-se a Lei
Estadual n.º 9.866 (28/11/1997), cujo objetivo expresso era controlar
o uso do solo para a proteção dos recursos hídricos da metrópole
paulista (SÓCRATES, GROSTEIN et TANAKA, 1985:15).
Assinale-se que a despeito destas diretrizes legais terem sido
concebidas durante os anos do regime militar, o fato não desmerece
6
623
sua qualificação técnica e muito menos, a racionalidade que o PMDI
procurava imprimir ao crescimento da metrópole. A este respeito, o
engenheiro Sadalla Domingos, um dos criadores da Lei de Proteção
aos Mananciais, teceu no final dos anos 1980, o considerando que
segue:
É interessante enfatizar uma contradição; embora a gente
estivesse num momento autoritário, com a ditadura
instalada, esse modelo de região metropolitana criou
algumas figuras jurídicas, algumas alterações na ordem
jurídica clássica, que eram extremamente progressistas.
Por exemplo, a Lei de Proteção aos Mananciais nada
mais é do que a tão decantada função social da
propriedade, ou seja, existe uma propriedade e aquela
propriedade está situada em um lugar tal, que lhe dá
qualidades ligadas ao destino de alguma coisa que não é
só o seu proprietário que dirige (SEMASA, 1991: 30).
A legislação dos mananciais é bastante complexa, estabelecendo
diferentes critérios de restrições quanto ao uso do solo. A Lei tem por
pressuposto manter os equilíbrios hidrodinâmicos essenciais para um
suprimento de água de qualidade, incluindo a preocupação em conter
a blindagem do solo urbano.
Por esta razão, prevê a preservação da cobertura vegetal e uma
urbanização que não impermeabilize o solo, como a pavimentação
das ruas com paralelepípedos, permitindo assim a infiltração das
descargas pluviais, a manutenção dos veios subterrâneos e refreando
o impacto das chuvas torrenciais. Sob o ponto de vista estritamente
legal, a área de mananciais da RMSP equivale a 4.346 km², ita est,
cerca de 54% da área metropolitana total, distribuída principalmente
6
624
nos sentidos Sul/Sudeste/Sudoeste e Norte/Nordeste, apreendendo
diferencialmente a superfície dos municípios da região metropolitana.
Numa perspectiva territorial, na RMSP, ex auctoritate legis, seis
municípios estão localizados integralmente no interior da área legal
de proteção (caso de Embu-Guaçu, Itapecerica da Serra, Juquitiba,
São Lourenço da Serra, Rio Grande da Serra e Ribeirão Pires),
enquanto quinze (Santana do Parnaíba, Francisco Morato, Pirapora
do Bom Jesus, Carapicuíba, Cajamar, Barueri, Osasco, Jandira,
Itapevi, Taboão da Serra, Vargem Grande Paulista, Guararema,
Itaquaquecetuba, Poá e São Caetano do Sul), situam-se inteiramente
fora da circunscrição dos mananciais. Municípios como Mairiporã,
Santa Isabel, Salesópolis e Biritiba Mirim possuem grande parte da
sua extensão incluída na legislação dos mananciais, ao passo que
Guarulhos, Diadema e Mauá, dispõem tão só de frações mínimas em
áreas de manancial.
Obviamente, as diferentes inclusões geográficas dos municípios
da região metropolitana na área coberta pela legislação, desdobramse em diferentes políticas territoriais e contextos diversos quanto ao
gerenciamento do espaço. Todavia, qualquer que seja a superfície
incluída na área sob proteção, a questão dos mananciais diz respeito,
por conta de impactos diretos e indiretos, à totalidade da RMSP, ao
CME e mesmo a inferências ainda mais distantes. Geograficamente,
não haveria como delimitar uma política de proteção desconsiderando
o entorno destes espaços e os possíveis agravos provocados pelas
ações antropogênicas.
6
625
Neste sentido, recorde-se que o corpo jurídico relacionado aos
mananciais surgiu numa época em que as mobilizações ecológicas
eram virtualmente inexistentes. Assim, à revelia de terem sido a
posteriori definidas como “legislação ecológica”, estas leis visavam,
mais do que “preservar a natureza”, orientar formas mais adequadas
de ocupação territorial, buscando regrá-la de modo a refrear a
continuidade da degradação da malha hídrico-fluvial responsável pelo
abastecimento de água da RMSP.
Seria importante frisar, o estado de espírito que norteou a
elaboração destes códigos legais, assim como a rede de apoio que
surge na sociedade, indica claramente uma superestimação do poder
legal como regulador da apropriação do espaço urbano, exatamente
um dos motivos que levaram ao fracasso da estratégia protetiva das
áreas de produção de água potável (BENÍCIO, 1995: 76/77).
Como resultado, em face da crescente demanda por terra ter
intensificado pressões no sentido de ocupar a área dos mananciais,
estas leis, assim como do conjunto de portarias e decretos emitidos
nos anos 1980 e 1990
132,
acabaram transformados em verdadeira
“letra morta”.
Entrementes, ao menos institucionalmente, as leis que dispõem
sobre diretrizes e normas para a proteção e recuperação das bacias
hidrográficas e dos mananciais de interesse regional do ESP, seguem
enquanto amparo legal para medidas de preservação dos mananciais
(Ver Apêndice 2).
Dentre as legislações disponíveis para acesso on line seguem: Lei nº. 989/1975:
www.controleambiental.com.br/lei_898.htm e www.daeep.gov.br/legislacao/lei_898.htm;
Lei nº. 9866/1997: www.daeep.gov.br/legislacao/lei_9866.htm; Todas as leis de recursos
hídricos: www.daeep.gov.br/legislacao/leg_estadual.htm (Acesso: 19-07-2005).
132
6
626
É importante observar que a região dos mananciais se trata de
uma área crivada por ampla diversidade de problemas urbanos e
sociais. Reconhecidamente, este espaço congrega contradições de
todo tipo, quer as relacionadas com o uso e ocupação do solo, quer
os referentes à combinação de diferentes sistemas de infraestrutura
que utilizam os reservatórios.
Ademais, esta situação gerou polarizações para todos os gostos.
Numa visada sintética teríamos:
Os defensores da aplicação pura e simples da lei de proteção
➢
aos mananciais;
Os proponentes de uma solução intermediária, oscilando entre
➢
o fato consumado e a aplicação da legislação;
Os empreendedores particulares, empreiteiras e loteadores,
➢
interessados na revisão ou extinção da lei, abrindo caminho para os
negócios imobiliários;
A população carente de moradia, que em meio às adversidades
➢
da vida, os mananciais se tornam a única alternativa à mão.
Nesta visada, é mister sublinhar que as extensões inseridas no
perímetro de proteção aos mananciais correspondem à continuidade
da periferia da metrópole paulista, sob cuja tutela é ininterruptamente
tonificado o processo de ocupação de espaços em tese, sob proteção
legal.
6
627
Outra nota relevante seria alvitrar que a despeito da legislação de
1997 adotar o conceito de bacia hidrográfica como marco de gestão,
no caso da Billings estamos, na realidade, diante de uma típica bacia
ambiental, consideração que determina formatos e procedimentos
teóricos, metodológicos e de gestão em boa parte dessemelhantes
dos que pespontam nos planos de ação, que em princípio, alimentam
narrativas que em maior ou menor grau, ainda percepcionam a bacia
da Billings como se este corpo líquido conformasse uma obra natural
em seu stricto sensu.
Tanto procede esta certificação, que no debate atinente à Billings,
o aporte relacionado com as intervenções humanas e as implicações
ambientais delas decorrentes corporificam uma essencialidade tanto
para a pesquisa quanto para as proposições de gerenciamento deste
reservatório.
Não fosse assim, seria difícil listar, tal como foi feito, tão profícua
listagem de contradições como as que estão em jogo no sistema da
bacia ambiental da Billings.
Acima de tudo, pode-se sentenciar que a Billings, ao substantivar
uma tecedura técnica e artificial, somente encontrará solução para os
seus desafios tendo à vista, o papel e as expectativas sociais que
este mesmo espaço magnetiza.
E seja este empreendimento revestido de sucesso ou não, isto
tão só reforçaria, de um modo ou de outro, as dificuldades e virtudes,
acima de tudo, humanas, que se emaranham no novelo de crispações
explicitadas neste magnífico reservatório de águas doces.
6
628
CAPÍTULO 12
METRÓPOLE, RECURSOS HÍDRICOS E LIMITES DO
ESPAÇO
12.1. REPRESA BILLINGS, METRÓPOLE SEDENTA E
METAMORFOSES DA NATUREZA
Uma vez discriminadas as fatorações em jogo na temática dos
mananciais, visaremos nos parágrafos seguintes, aprofundar estes
recortes, recorrendo-se no caso, para o histórico da Bacia da Billings
na averbação relacionada ao abastecimento de água potável de uma
conurbação que como no caso da urbe paulista, é uma metrópole
preocupantemente sedenta.
Nesta avaliação, lançaremos mão de uma grade conceitual que
articula as três variáveis anteriormente comentadas, quais sejam: as
relacionadas com os usos consuntivos da água doce, com a noção
de bacia ambiental e com a conceituação de manancial, que numa
notação comum, conjuminam da mesma sinergia socioespacial.
No tocante aos mananciais, tal como observado, associa-se ao
conceito, minucioso ordenamento jurídico, mote que condiciona os
posicionamentos de diversos atores do Grande ABC Paulista, tanto os
que se colocam a favor, quanto em contrário à sua aplicação.
6
629
Neste sentido, pode-se afirmar que a conceituação de manancial,
dizendo respeito às águas e respectivos entornos que sustentam
sistemas antropizados de abdução do líquido, constitui instrumental
teórico dotado de eficaz potencial operatório em qualquer análise
centrada na Billings, assim como dos desdobramentos políticos e
sociais relacionados com a gestão deste reservatório para a região do
ABCDMR no seu conjunto.
Note-se que os mananciais, embora espacialmente disseminados
no Norte e no Sul da RMSP, basicamente apreendendo áreas que se
erguem altaneiras à calha do rio Tietê e dos seus afluentes, perfazem,
na extensão meridional, justamente ao ABC Paulista, alvo recidivo do
“crescimento desordenado” da urbe. Recorde-se que além do ABC,
os mananciais da Billings abrangem nacos do município de São
Paulo.
Todavia, qualquer que seja o trecho estudado, os mananciais do
ABC registram a mais persistente e dramática progressão de
ocupação informal na RMSP, alimentando debates que se prolongam
faz quatro décadas nos municípios detentores de áreas de proteção.
Esta problemática é inerente a uma extensão ponderável do ABC
Paulista. Relativamente à abrangência territorial dos mananciais nos
municípios da região, São Bernardo do Campo possui 52,6% da sua
área ocupada por mananciais; Santo André, 54,1%; Diadema, 21,4%
e Mauá, 19,4%.
Por sua vez, os municípios de Ribeirão Pires e de Rio Grande da
Serra, estão totalmente inseridos no interior deste espaço, ambos
6
630
representando cerca de 30% dos mananciais do Grande ABC. Por
último, São Caetano do Sul situa-se inteiramente fora da área da
legislação. Percentualmente, 56,1% do ABC (472 km² de um total de
841 km²), são ocupados por mananciais, conferindo aos municípios
da região, o papel de guardiões da qualidade da água produzida e
consumida pelos dezessete milhões de habitantes da metrópole (Vide
EMPLASA, 1997 e SEMASA, 1991: 7).
Retroagindo no tempo, é possível observar que outrora, este
espólio territorial subsidiou funções diversificadas, assumindo feições
novas a medida em que as metamorfoses do espaço sucediam no
fruir histórico. Primeiramente esculturado pela ação plurimilenar das
etnias indígenas, este espaço foi posteriormente alterado, a partir do
Século XVI, por vagas de colonizadores portugueses e por atores da
nascente sociedade nacional brasileira.
É esta vasta extensão de florestas e campos, várzeas e brejos
nativos, incluindo clareiras, áreas de culturas, pastos antropogênicos,
carvoarias, pousos de tropa, capelas, igrejas, calçadas e caminhos,
resultantes de modificações contínuas processadas ao longo de 400
anos de colonização, que recebe o convite da modernidade paulista
para assumir a função de área de manancial, modulação esta de
índole estritamente histórica, cujas diretivas e intenções, garantem a
inscrição deste espaço na delimitação que lhe adereça especificidade
no contexto metropolitano.
A compreensão do novo papel territorial postulado para este
espaço, obviamente nos impõe o conhecimento dos processos que os
direcionaram ao longo do tempo. Precisamente por isso, assimilar a
6
631
historicidade desta área, nos convidaria a adotar como providência
primeira, pensarmos a cidade de São Paulo nos inícios do Século XX,
período no qual Piratininga verdadeiramente inicia uma alavancagem
rumo à metropolização.
Particularmente nos anos 1915-1940, esta tendência se explicita
espacialmente sob a batuta de uma verve crescimentista, pela qual o
alastramento da metrópole intensifica a pressão exercida sobre sua
periferia territorial, instaurando e consolidando um cadenciamento
evolutivo inaugurado no eclipse do século anterior, modificando de
modo irreversível o espaço que então ocupava e territorialidade das
periferias das metrópoles em ascensão (LANGENBUCH, 1968: 199).
Com base em levantamentos, pode-se identificar a decolagem da
metrópole num notável incremento populacional registrado desde
primórdios do século passado: 141% entre 1900-1920 e 124% entre
1920/1940. Os Censos oficiais indicam em números absolutos que a
população paulista passou de 579.033 habitantes no ano de 1920,
para 1.294.223 habitantes em 1940 (LANGENBUCH, 1968: 199).
Estes números são representativos do novo contexto vivido pela
capital paulista, que auferindo prestígio e riqueza amealhados a partir
dos capitais acumulados com a cafeicultura, crescia vertiginosamente
graças ao seu parque industrial e ampliação do mercado urbano de
consumo (BEIGUELMAN, 1978; SILVA, 1976).
Estes fatores, impulsionando a modernização do cotidiano da
urbe, por definição lastreado no consumo de eletricidade, originou
forte demanda por energia. Por isso, desenharam-se prognósticos e
6
632
cenários pelos quais a geração de eletricidade teria, cedo ou tarde,
que ser ampliada. No período dos anos 1913-1921, em continuidade
com indicadores dos anos precedentes, o consumo de energia
expandiu na ordem de 10% anuais e no biênio 1922-23, a taxa de
consumo saltou para 15% ao ano (Vide Figura 53).
No biênio 1924-25, a ocorrência de forte estiagem desdobrou-se
numa crise nunca vista de fornecimento de energia, levando o
minguado serviço de fornecimento de eletricidade ao colapso. Sem
outra saída, o então prefeito Firmiano de Morais Pinto, através do Ato
nº. 2.499, de 13 de fevereiro de 1925, decretou severo racionamento
do uso de eletricidade, medidas recrudescidas ainda mais no mês de
março do mesmo ano.
A gravidade da crise, assumindo feitios de verdadeira calamidade
pública, suscitou a adoção, em caráter praticamente emergencial, de
projeto encomendado pelo governo paulista à empresa canadense
com controle acionário britânico The São Paulo Tramway, Light and
Power, ou coloquialmente Light, tal como passou a ser referenciada
pela voz do povo.
Denominado como Projeto da Serra, este tinha por pressuposto o
aproveitamento dos recursos hídricos do Alto Tietê e a construção do
Reservatório Billings, empreendimento articulado a diversos outros
objetos espaciais hidrotécnicos dispostos nas imediações da capital
paulista, adotando como matriz logística e funcional, a especialíssima
moldura territorial na qual foi assentada a vila de Piratininga, cerne
espacial da metrópole paulista.
6
633
FIGURA 53 - Estatísticas do crescimento da capacidade instalada antiga Light e da
expansão do consumo na capital paulista no período entre 1901-1925 (Fonte:
Boletim Histórico, editado pela Eletropaulo, junho de 1985, página 4).
6
634
Singularmente, esta cidade, que atualmente constitui o epicentro
de uma gigantesca conurbação reunindo 38 municípios limítrofes
(justamente a RMSP), foi, conforme foi afirmado, erguida ao contrário
da maioria das cidades do mundo, junto às cabeceiras de um grande
rio, o Tietê, e das margens de dois de seus afluentes mais próximos,
os rios Pinheiros e Tamanduateí, que formam uma espécie de letra
“U” invertida, aberta no sentido Sudeste, no interior do qual cresceu a
cidade de São Paulo e o Grande ABC.
Muito arrojado em termos de concepção, o Projeto da Serra
previa a instalação de uma usina hidrelétrica em Cubatão, no sopé do
planalto, com pressuposto na geração de hidroeletricidade a partir da
energia potencial sofreada pelo represamento de grande massa de
água planalto acima, que despencando por gravidade, daria máximo
aproveitamento da altura gravimétrica do reservatório.
A ideia de aproveitar as características da topografia da região,
bastante favorável se levarmos em consideração a existência de um
desnível topográfico, no sentido contrário à drenagem hidrográfica, de
mais de 700 metros entre o planalto e a orla litorânea, incendiava a
imaginação da maioria dos paulistas.
Afinal, as cristas da Serra do Mar, que transpareciam enquanto
obstáculo indomável no imaginário espacial dos moradores do
Planalto do Piratininga, seria doravante domada pelo progresso e
colocada a serviço do desenvolvimento, incitamento encarnado no
engenheiro hidroelétrico norte-americano Asa White Kenney Billings,
encarregado da execução do projeto e figura-chave na construção do
reservatório (Figura 54).
6
635
FIGURA 54 - Foto artística de White Kenney Billings (1876-1949), pioneiro
da eletrificação do Brasil, cujo trabalho mais conhecido foi a construção da
represa que desde 1949, ano de sua morte, passou a receber seu nome.
Vivendo no Brasil desde 1922, Billings notabilizou-se por diversos
trabalhos de grande envergadura, expandindo a capacidade de geração de
energia elétrica do Estado de São Paulo e chegando ao posto de presidente
da Light (Fonte: Arquivo Nacional)
6
636
Note-se que este sentimento não era desprovido de fundamento.
A Serra sempre foi vista, pelos habitantes do Planalto de Piratininga,
como uma rugosidade natural que impedia contatos mais frequentes
com o exterior. De fato, os bordos da Serra são muito íngremes e as
escarpas e penhascos que se alteiam na vertente marítima, sempre
constituíram motivo de justificado assombro os observadores.
Neste senso, eis como o mercador e mineralogista inglês John
Mawe, que visitou o Brasil entre os anos 1809-1810, relatou, a partir
de uma travessia través da Calçada do Lorena, a vista do alcantilado:
Obtido um guia, montamos e caminhamos cerca de meia
milha, quando chegamos ao sopé de magníficas
montanhas, que teríamos de atravessar. A estrada é boa
e bem pavimentada, mas estreita, e devido às subidas
íngremes, foi talhada em zigue-zague, com voltas
frequentes e abruptas em ascensão. As tropas de mulas,
muito carregadas, que encontrávamos no caminho para
Santos, dificultaram-nos a passagem, tornando-a
desagradável, muitas vezes perigosa. Em alguns lugares,
a estrada atravessa vários pés de rocha; em outros, sobe
perpendicularmente, conduzindo, com frequência, a uma
das montanhas cônicas, ladeando precipícios, onde o
viajante está sujeito a ser lançado numa floresta
inacessível, trinta jardas abaixo. Estes lugares perigosos
estão protegidos por parapeitos. Depois de subirmos por
hora e meia, dando numerosas voltas, chegávamos a um
pouso, em cujas proximidades, num lugar pouco abaixo
da estrada, encontramos água. Segundo nos informou o
guia, distava apenas meio caminho do cume; ficamos
pasmados com a informação, pois as nuvens estavam
tão distantes, abaixo de nós, que obstruíam toda a visão
(1978: 60/61).
6
637
Manifestadamente, o pioneirismo e a audácia do Projeto da Serra
eram evidentes, pautando uma solução a partir do que seria um
obstáculo intransponível:
“Não se poderia supor, até quase a segunda década
deste século, o papel que estaria reservado à serra do
Mar, em São Paulo, sobretudo no ponto denominado
serra de Cubatão. No auge da pior crise de energia
elétrica de sua história (1924-25), e sem possuir quedas
d’água significativas necessárias à construção de
hidrelétricas, a serra de Cubatão, como era conhecido
este lado da serra do Mar em São Paulo, surgiu como que
o grande trunfo para a solução do problema,
cuidadosamente escondido nas mangas de um mágico”
(MACEDO, 1992:15).
Diversas características meteorológicas favoreceram a opção
pelo Projeto da Serra, a “Obra do Século” no laudatório dizer dos
seus apologistas de outrora. No prisma da hidrologia, os elevados
índices pluviométricos, proporcionados pelos ventos carregados de
umidade provenientes da massa de ar tropical atlântica, constituíram
desde tempos imemoriais a origem de chuvas nas cumeadas da serra
e nos bordos adjacentes do planalto. Esta abundante pluviometria,
oscilando entre 1.300 e 3.500 mm/ano, condizia a um dinamismo
meteorológico apropriado para manter o nível do reservatório que
movimentaria as turbinas da UHE Henry Borden, localizada no sopé
da serra, em plena Baixada Santista.
Em associação com destes pré-requisitos geofísicos, vantagens
logísticas foram decisivas para a aprovação do projeto. Uma destas
residia na facilidade no transporte dos materiais de construção por
meio de dois desvios, um pela Estrada de Ferro São Paulo Railway e
6
638
o outro, através da antiga Estrada do Vergueiro ou Estrada Velha de
Santos. Mas sumamente, a menor distância a ser percorrida pelas
linhas de transmissão de energia na direção do centro consumidor
paulista, endossou por si só, a viabilização do projeto.
Contudo, este histórico da construção do Reservatório Billings,
envolvendo a concessão da exploração dos recursos hídricos da
Bacia do Alto Tietê para a Light, empresa que já havia desenvolvido
diversos projetos de aproveitamento hidrelétrico em outras unidades
da federação, no interior paulista e na periferia geográfica da capital
(Figura 55), também respalda o relato de um primado energético que
norteou de facto a elaboração das políticas de gestão dos recursos
hídricos.
A Light viria a transformar-se no maior grupo privado do Brasil, e,
deste modo, sua influência junto às repartições públicas sempre foi
manifesta. Esta experiência constitui um verdadeiro vaticínio sobre as
possíveis reverberações dos interesses privados sobre um recurso de
interesse público, no caso, a água, e por isso mesmo, solicitando uma
atenção especial sobre esta nuance. Tal e qual notifica a geógrafa
Vanderli CUSTÓDIO, o desempenho da empresa seria “o principal
exemplo de apropriação quase privada, pois favoreceu, sobretudo as
indústrias da RMSP e a própria Light” (1996: 9).
Num momento em que o suprimento energético era vital para a
expansão da indústria e da metrópole, o monopólio exercido com
impecável maestria pela Light lhe caucionaria indisputada projeção
econômica e política. Tanto assim que o cognome da cidade de São
Paulo era, nos anos 1930, A Cidade da Light.
6
639
FIGURA 55 - Planta geral do aproveitamento hidrelétrico nas imediações de São
Paulo, destacando os objetos hidrotécnicos do Sistema Light no período 19201930. Neste mapa, os números correspondem 1: Usina de Cubatão; 2: Canal de
Ligação; 3: Barragem reguladora (Summit); 4: Usina de Recalque de Pedreira; 5:
Barragem de Guarapiranga; 6: Usina de Recalque de Traição; 7: Estrutura do
Retiro; 8: Usina de Parnaíba; 9: Usina de Rasgão; 10: Usina de porto Góes; 11:
Usina de Ituparanga (Fonte: História e Energia, nº. 2, outubro de 1986, página 12)
Este recorte também auxiliaria na compreensão de muitas das
decisões tomadas por sucessivos governos nos âmbitos estadual e
federal, concorrendo para que a concessionária Light, terminasse por
assenhorear-se da totalidade das águas do Alto Tietê. Claramente,
pouco a pouco a companhia canadense induziu em seu proveito, a
gestação e implementação das políticas de gerenciamento das águas
doces de um vasto território, abarcando áreas bastante longínquas do
cenário original de implantação do Projeto da Serra.
Com base nesta lógica, o sistema criado pela concessionária foi
conotado de poder inercial de tal monta que mesmo a nacionalização
da Light pelo governo federal no ano de 1978, em nada alterou as
diretrizes traçadas e levadas a cabo com toda determinação possível
pelos primeiros gestores. Rebatizada agora como Eletricidade de São
6
640
Paulo SA (ou Eletropaulo, designação mais usual), este novo avatar
da companhia perseverou na reprodução de políticas de gestão que
privilegiando uma matriz energética altamente inercial, acarretaria as
mais graves repercussões para o futuro da RMSP.
Consoante ao exposto, cientifique-se que conquanto constasse
explicitamente na autorização governamental para a construção da
Billings que o uso energético das águas do Alto Tietê não poderia
prejudicar o abastecimento da população (Decreto-Lei nº. 16.884, de
27 de março de 1925, assinado pelo presidente Arthur Bernardes),
tanto a Light, quanto sua sucessora, a Eletropaulo, jamais cumpriram
os estatutos da concessão, tornando a companhia uma autêntica
“proprietária” de todas as águas fluviais de São Paulo, prerrogativa
esta, exercida com notável arrogância, a seu gosto e sem qualquer
interferência (ALVES, 1991).
Assim sendo, a diretriz básica para a utilização da massa líquida
da Bacia do Alto Tietê sempre se manteve atrelada com a geração de
energia, fio condutor que desvela a compreensão do vilipêndio dos
recursos hídricos na metrópole paulista. É necessário focalizar que
mesmo quando são pontuadas políticas de usos múltiplos (ou nãoconsuntivos) da água por sistemas de geração de energia, é preciso
levar em conta que o aproveitamento das águas da Bacia do Tietê
sempre foi direcionado pelo interesse energético predominando sobre
os demais, sendo que esta regalia corporalizaria a principal causa da
deterioração das águas da região metropolitana (BRANCO, 1991: 54).
A UHE Henry Borden entrou em funcionamento em 1926, quando
o vale do rio das Pedras foi represado com o barramento da Cascata
6
641
da Água Fria, no alto da Serra do Mar. Compreendendo 8 km² de área
inundada e outros 30 km³ correspondendo à bacia de drenagem, este
reservatório está inteiramente situado no município de São Bernardo
do Campo. Sua função é receber as águas da represa Billings para
posteriormente conduzi-las vertente abaixo por intermédio de grandes
túbulos, para a UHE Henry Borden. Quanto ao vale do rio Grande,
este foi “afogado” em 1937, transformado no reservatório Rio Grande
(rebatizado de Billings em 1949 após a morte de Asa White Kenney
Billings), uma peça central no sistema gerador de energia.
Replicando um conhecido script de impactos da construção de
barragens, a formação do reservatório desmantelou completamente a
organização territorial preexistente. Constituída por aldeamentos
“rústicos”, carvoarias e campos de lavouras, passando por pousadas,
piscinas naturais, igrejas e cemitérios, estas marcas espaciais foram
submersas para sempre, fantasmagoricamente emergindo das águas,
como no caso de campanários das antigas igrejas, que reaparecem
quando de estiagens ocasionalmente fortes que acometem a região.
Este drástico acontecimento sobrevive ainda hoje na memória dos
habitantes deste espaço: parte dos moradores da orla da Billings trata
a represa por rio, numa alusão talvez inconsciente ao rio Grande, que
represado, deu-lhe origem (apud MACEDO, 1992: 32/33).
Mais tarde, esta alteração do curso natural das águas fluviais foi
complementada pela autorização concedida pelo presidente Eurico
Gaspar Dutra através do Decreto-Lei nº. 22.008, de 29/10/1946. Este
instrumento legal, autorizava a reversão pela Light, da totalidade do
curso do rio Tietê, via rio Pinheiros, para a represa Billings. Porém, ao
mesmo tempo indicava a necessidade de represar as cabeceiras
6
642
desta bacia hidrográfica, indispensável para o controle das enchentes
na metrópole paulista.
Dessarte, este decreto reforçou a aspiração da grande empresa
pelo domínio total das águas da bacia do Alto Tietê. Na realidade, a
empresa colocou em prática apenas as obras que lhe interessavam.
Nesta toada, engavetou os projetos de represamento das cabeceiras,
recomendação defendida, por exemplo, pelo engenheiro Francisco
Saturnino Rodrigues de Brito que, no entanto, jamais foi cumprida.
Concretamente, a legislação contribuiu para que a metrópole paulista,
nas jocosas palavras do Catullo Flaquer Branco, também engenheiro,
se transformasse numa “cidade-represa” (PONTES, 2001: 6).
Materializando esta linha de conduta, o monopólio canadense
havia iniciado a retificação do curso do rio Pinheiros no final dos anos
1930 (desdenhando qualquer reservação para as cheias), eliminando
todos os seus meandros, alterando in totum o fluxo original do rio,
transformando-o num mero canal artificial.
A consecução dessa obra hidráulica, um dos episódios que
evocam o triunfo de uma visão retilínea sobre as sinuosidades da
natureza, além de favorecer o domínio quase absoluto do rio e de
suas várzeas por parte da empresa, transformou este curso d’água
numa obra hidráulica com 25 quilômetros de extensão, vocacionado
para unicamente escoar água para a Billings e a UHE Henry Borden,
alterando-se totalmente as características da paisagem natural (Cf.
SEABRA, 1987: 154/193 e Figuras 56 e 57).
6
643
FIGURAS 56 e 57 - O rio Pinheiros em dois momentos da história paulista,
conotativos da transformação da bacia hidrográfica do Tietê numa rede de
drenagem artificial. Acima nos anos 1930, quando o Pinheiros constituía um
curso fluvial gabaritando vários meandros vadeando por uma várzea de
inundação. Abaixo, o Pinheiros nos anos 1990, transformado num canal por
sucessivas obras de retificação, com terraços antropogênicos delimitando o
novo curso (Fonte: < http://www.novomilenio.inf.br/santos/h0102r.htm > e <
http://www.emae.sp.gov.br/canais.htm >. Acesso: 23-05-2005)
6
644
Em tal esquema, as águas do Tietê, que deveriam correr na
direção da calha do Paraná, escoar através da Bacia da Prata e
desembocar no Atlântico entre a Argentina e o Uruguai, ganharam um
curso inteiramente novo.
Primeiramente, foram barradas pela Usina Edgard de Souza, que
passou a controlar sua vazão a jusante. Segundo, através da
reversão do rio Pinheiros, as águas deste escoadouro natural foram
empurradas por estações elevatórias (Usinas de Traição e Pedreira)
até o reservatório da Billings e daí precipitadas, por meio de
tubulações superficiais e subterrâneas, para a UHE Henry Borden em
Cubatão, cujo efluente passou a ser vertido no rio de mesmo nome.
Desta forma teve início o Sistema Billings, mantendo relação
siamesa com um leque de objetos hidrotécnicos construídos pela
Light nas imediações da capital paulista. O reservatório transformou o
que dantes fora uma rede de drenagem que escoava através do
caudal do rio Grande para os rios Pinheiros e Tietê, em fluxo tributário
de um colossal lago artificial, cujo contorno dendrítico testemunha a
existência de taludes, ravinas e vertentes afogadas pela represa. O
espelho d’água do reservatório tornou-se indiscernível da paisagem
do que viria tornar-se Grande ABC, que com exceção de Mauá e São
Caetano do Sul, é compartilhado por todos os municípios da região
(Figura 58).
Seja dito que vis-à-vis às precípuas finalidades energéticas, a
Represa Billings observou adaptações relacionadas à concentração
num único ponto do espaço de considerável quantidade de águas,
induzindo predicações e usos não-premeditados pelo projeto original.
6
645
O Reservatório Billings, de modo análogo a outras obras hidráulicas
dispostas nas vizinhanças de São Paulo, tornou-se uma área de
recreação campestre, de atividades de lazer e de esportes náuticos,
atraindo banhistas e pescadores (LANGENBUCH, 1968: 419).
FIGURA 58 - Mapa da Represa Billings e Limites Municipais (Fonte: ISA, 2002)
As qualificações estéticas do entorno originaram uma ampla rede
de restaurantes com clientela concentrada nos fins de semana. Estas
atividades ativaram o comércio e a convivialidade, gerando milhares
de empregos diretos, e isto, lado a lado com vendedores ambulantes,
minhoqueiros e inclusive pescadores profissionais, cuja fonte de
renda passou a gravitar em torno da represa, embrenhando-se pelas
embocaduras dos rios que passaram a ter foz no reservatório artificial
6
646
e capturando pescado prontamente distribuído junto ao mercado
informal.
Faz 65 anos que a pesca profissional é desenvolvida na região
da Billings. Nos anos 1990, quando formava base da sobrevivência
de aproximadamente 500 famílias, estas fundaram, em setembro de
1991, com a assessoria de Wladimir Cabral Lustoza, advogado
ambientalista do Grande ABC Paulista, a Associação Ecológica, de
Pescadores Profissionais, Amadores e Amigos da Represa Billings. O
peixe resultante da captura, com destaque para a tilápia, condenado
por diversas agências governamentais e laudos técnicos, ainda assim
encontra mercado seguro junto à população de baixa renda da região.
Por último, e igualmente um desdobramento não previsto no
Projeto da Serra, o reservatório, em razão de seu valioso acervo
ecológico, tornou-se foco prioritário das mobilizações ambientalistas
do ABC Paulista, mobilizando desde os anos 1970, expoentes da
sociedade civil atentos ao avolumamento da destruição da represa.
Neste aspecto, a importância dos mananciais da represa Billings não
se resume aos seus estoques de água. A área abriga significativa
cobertura de mata atlântica, formação biogeográfica do tipo pluvial ou
chuvosa, constituindo uma das “muralhas verdes” que delimitam a
mancha urbana da RMSP ao norte e ao sul.
Esta formação vegetal conquistou notoriedade na esteira das
mobilizações internacionais em defesa das rainforest ou regenwald,
encetadas principalmente a partir dos anos 1970, agregando “signo
ecológico” a uma formação florestal que era, até então, considerada,
a fortiori, apropriada para a produção de lenha e de carvão vegetal
6
647
(PRADO JÚNIOR, 1998: 87/88). Num parecer fitogeográfico, a mata
atlântica, definida do mesmo modo, como floresta pluvial atlântica,
...semelhantemente à Floresta Amazônica, designa um
complexo vegetacional que, embora dominado pela
floresta pluvial montana, engloba tipos muito díspares.
Enquanto a floresta hileana é de planície, a atlântica é de
altitude (RIZZINI, 1976: 75).
Rubrique-se que este bioma confere a um dos mais importantes
hot spots (centros de endemismo e alta biodiversidade), encontrados
nas regiões tropicais do planeta. Outrora vicejando em toda a cadeia
montanhosa litorânea, do Nordeste ao Rio Grande do Sul, a mata
atlântica foi agredida desde os primórdios da colonização, restando,
no início do II Milênio, apenas 7,3% da cobertura original. Outro dado
de excelência é que a mata atlântica constitui um habitat que abriga
número significativo de espécies que no Brasil, estão ameaçadas de
extinção (SIMÕES et LINO, 2002: 13).
Quanto ao perfil da vegetação dos mananciais, muitas foram as
alterações provocadas pelas diversas intervenções antropogênicas.
Outrora, abundavam as madeiras de lei, extintas pela atividade dos
lenhadores. Foi comentado, as matas serviram de matéria prima nos
Séculos XIX e XX para próspera indústria carvoeira, que funcionava
em muitos sítios da extensão hoje coberta pelo reservatório.
Com a implantação da ferrovia, a mata nativa foi explorada para
a produção de dormentes e outras solicitações da estrada de ferro. A
devastação da cobertura vegetal provocou quase desaparição de um
capital natural que dantes, a floresta concedia de modo generoso. O
6
648
palmito (Euterpe edulis), ingrediente clássico da dieta regional do
Caaguaçu e que sustentou as primeiras levas de imigrantes italianos,
persiste hoje apenas nos redutos mais escondidos do alto da serra
(Cf. MACEDO, 1992: 24/25).
Mas, apesar de toda devastação, nos recantos mais recuados do
Grande ABC ainda é possível localizar vários dos componentes da
fauna original. Na região da Billings e do entorno, ainda podem ser
encontrados o veado do mato, a onça-pintada, a paca, a capivara, o
quati, sagui e diversas espécies de primatas.
Aves como arapongas, garças e tiribas esvoaçam de um canto a
outro da floresta. No chão, rastejam cascavéis, urutus e jararacuçus.
Inclusive nas beiradas do reservatório, aparentemente alheios a toda
poluição dos arredores, nidificam muitas aves. Este seria o caso das
garças e dos colhereiros, que sobrevivem dos peixes e de pequenos
animais que encontram, vivos ou mortos, nas margens da represa.
No tocante à ictiofauna, dentre os peixes que deambulam pela
massa líquida do reservatório e dos rios que o alimentam, a traíra
(Hoplias Malabaricus) e o lambari (Astynax bimaculatus), são nativos.
Quanto à carpa (Cyprinus carpio) e a tilápia (T. Melanopleura), tratamse de espécies alienígenas: a primeira, introduzida pelo antigo serviço
de piscicultura da Light em 1948 e a segunda, importada do Congo
quando este país ainda era uma colônia belga. Solta na Billings em
1953, a tilápia, em razão de suas características, viria dominar quase
totalmente o nicho ecológico.
6
649
Assim, certas espécies habitam unicamente nos braços menos
poluídos, pois não toleram a contaminação e/ou a competição com a
tilápia. Nesta conspecção, estão incluídos peixes como o bagre
(Rhamdia sp), o cascudo (Plecostomus sp), o cará (Geophagus sp) e
o piau (Leporinus copelandi), todos nativos do bioma original.
É importante frisar que a despeito das alterações antropogênicas
verificadas na região dos mananciais, estes não deixam de constituir
um importante acervo ambiental. Além dos remanescentes do meio
natural, este espaço, até mesmo por contraste com a artificialidade
fulgurante da metrópole, terminou percebido como parte da natureza.
Deste modo, a represa, um objeto espacial eminentemente
artificial, e à revelia de ter sido projetada apenas como um
reservatório, terminou apaixonadamente adotada pelo imaginário
ambientalista. A Billings certamente constituiria motivo para recordar a
prédica segundo a qual os objetos artificiais, desde que apreendidos
como um dado inerente ao espaço habitado, terminam incorporados à
natureza:
Muitas vezes o que é imaginamos natural não o é,
enquanto o artificial se torna ‘natural’ quando se incorpora
a natureza. Nesta, as coisas criadas diante de nossos
olhos, e que para cada um de nós é novo, já aparece às
novas gerações como um fato banal. O que vimos ser
construído é, para as gerações seguintes, o que existe
diante delas como natureza. Descobrir se um objeto é
natural ou artificial, exige a compreensão de sua gênese,
isto é, de sua história (SANTOS, 1988: 75).
No que exemplifica as venturas e as desventuras da experiência
humana no tempo e no espaço, será justamente esta percepção do
6
650
reservatório, subentendendo-o enquanto um “objeto ecológico”, que
energizará grande parte das polêmicas relacionadas com este
reservatório artificial nos anos finais do Século XX.
Desta feita, seria também possível esperar que o dinamismo da
sociedade, tão pródigo em caminhos e em opções, possa oferecer
aos metropolitas a desejada solução para os problemas da Billings,
tendo à frente o interesse público, a preservação das águas doces e a
continuidade da vida.
12.2. OS MANANCIAIS FRENTE A “NÃO-POLÍTICA” DE ÁGUA
DOCE
Paralelamente à percepção da Billings que foi sendo pouco a
pouco delineada no imaginário dos metropolitas, a necessidade de
obter água potável passou a inserir o reservatório na ótica dos
prementes interesses hídricos da região metropolitana, interpondo a
revisão dos propósitos até então colocados para o funcionamento da
represa.
Vale lembrar que a qualidade das águas do reservatório foi boa
durante a maior parte de sua história. Mesmo a reversão do Tietê não
chegou a alterar drasticamente as características de suas águas. Até
a década os anos cinquenta, embora existissem sinais evidentes de
um processo de contaminação em expansão, o rio ainda se mantinha
relativamente limpo.
6
651
Os paulistanos recorriam ao Tietê para desfrutar de lazer, com
clubes dispostos nas margens exibindo trampolins utilizando o curso
d’água como uma piscina natural, dentre estes, os famosos clubes
Esperia e Tietê, localizados próximos da atual ponte das Bandeiras.
Assim sendo, a água da represa, que tanto poderia gerar energia
elétrica quanto abastecer a população (utilizações ao menos em tese
não-excludentes), transformou-se em alvo de uma disputa na qual os
interesses relativos à matriz energética e ao abastecimento público de
água potável, entraram em clara contradição. Neste enfrentamento, o
primado energético soube se impor explorando em seu proveito uma
ideologia do progresso (SEVÁ, 1999 e 1997), e de resto, combinar as
mazelas da desmesurada expansão urbana da região metropolitana
às suas expectativas.
Explicitamente, as pressões exercidas pela antiga Light e pela
Eletropaulo, procuravam justificar a perpetuação do funcionamento da
represa Billings em nome da irreversibilidade do modelo energético
em operação. Paralelamente, manipulava-se a hipótese de uma crise
no fornecimento de eletricidade devido à suposta incapacidade de
atender à demanda de energia diante de uma eventual paralisação do
aparato implantado, argumentação que tradicionalmente, se inscreve
nos postulados que têm articulado as grandes empreiteiras ao setor
elétrico, garantindo uma pródiga profusão de megaprojetos.
Outro fator que explica a resiliência do Sistema Billings residiu
nas dinâmicas urbanas registradas na Grande São Paulo. Tendo por
pivô o processo desenrolado nos anos 1970 sob a rubrica do “milagre
brasileiro”, o período foi marcado pela consolidação da RMSP, um
6
652
vasto conglomerado de 39 municípios capitaneados pela cidade de
São Paulo. A GSP, pelo próprio fato de tomar a dianteira no processo
de espacialização da formação social brasileira, foi detentora dos
mais assombrosos índices de expansão urbana.
Neste recorte, reforçando o que foi comentado, seria impossível
pautar qualquer análise credível concatenando os recursos hídricos e
o meio urbano brasileiro deixando de avaliar o gigantismo dos dados
referentes aos deslocamentos demográficos, responsáveis tanto pela
expansão da RMSP quanto pela metropolização do país.
No Brasil, os deslocamentos do meio rural rumo às metrópoles,
consecutivos ao modelo econômico implantado pelo regime militar de
1964, assumiram proporções verdadeiramente ciclópicas. Em 1920,
10% da população brasileira habitava as cidades; mas em 1970, esta
porcentagem alcançava 55,9%.
Nos anos 1960, quarenta milhões de brasileiros deixaram a zona
rural e deste contingente, nada menos do que nove milhões foram
atraídos para a metrópole paulista. No que referenda o crescimento
da RMSP, esta absorveu entre 1970 e 1980, 17,37% da massa de
migrantes do país, aproximadamente o dobro dos que procuraram o
Grande Rio (SANTOS, 1993b: 59).
A despeito de ocupar uma superfície pequena no conjunto do
território nacional (Repetimos: 7.946,96 km², ou 0,9% da área total do
país e 3,5% do ESP), a GSP congrega a maior aglomeração humana
da república. Em poucas décadas, o incremento populacional carreou
centenas de milhares de novos moradores para a conurbação,
6
653
despreparados para enfrentar um mercado de trabalho exigente e
uma economia complexa e sofisticada. Oriundos em especial do meio
rural nordestino, estes novos metropolitas careciam de condições de
inserção em face das transformações do perfil socioeconômico que
vagarosamente, foram se desenhando na região, raiz de não poucos
problemas que poderiam ser antevistos quanto aos mananciais (Ver
entre outros, FATHEUER, 1992).
Aspecto importante, os municípios do Grande ABC absorveram
fatia significativa deste boom migratório, inédito na história do país.
Centro de propulsão de um “milagre econômico” do qual um dos eixos
foi a indústria automobilística, a população da região multiplicou-se
por dois em duas décadas e por quatro em três décadas (Figura 59).
FIGURA 59 - Centro de Mauá nos anos 1970, quando a cidade ainda apresentava
uma fisionomia de centro urbano periférico dos arrabaldes da metrópole. Neste
momento, a cidade era o lar de 100.000 habitantes, contra 10.000 somente duas
décadas antes (Fonte:< https://mauamemoria.blogspot.com/ >. Acesso: 01-01-2004)
6
654
Demograficamente, o Grande ABC passou de 200 mil habitantes
nos anos cinquenta para pouco mais de 500 mil habitantes em 1960 e
nos anos noventa, para 2,2 milhões. Em São Bernardo do Campo, a
população saltou de 82 mil habitantes em 1960 para 650 mil em 1991;
Mauá passou de 29 mil para mais de 300 mil; Diadema, que radicava
12 mil habitantes, alcançou cerca de 475 mil habitantes. Em 2004, a
sub-região era o lar de 2.511.743 habitantes, algo como a terceira ou
quarta cidade brasileira (dados SEMASA, 1991: 7 e IBGE).
Os impactos socioambientais gerados por tamanha concentração
populacional numa fração da RMSP (1,41% da população nacional
em 0,01% do território), e pela profusão de aparatos produtivos em
uma área reduzida em tão curto lapso de tempo foram tremendos.
Por exemplo, São Caetano do Sul, considerada a cidade líder em
renda per capita no Brasil, ostenta níveis alarmantes de poluição do
ar (WEHRHAHN, 1996: 55). Ao mesmo tempo, Diadema e o bairro da
Vila Paulicéia, em São Bernardo do Campo, destacam-se entre os
episódios mais agudos de poluição por partículas inaláveis na RMSP
(Cf. EMPLASA, 1997).
A poluição hídrica desencadeada pelos esgotos domésticos,
atirados sem vacilação no corpo líquido da represa, foi reforçada pela
enorme concentração industrial. Uma geração vultosa de resíduos
sólidos e efluentes líquidos e gasosos, passou a contribuir com seu
mórbido quinhão de contaminação das águas doces, atingindo, direta
ou indiretamente o solo, terrenos abandonados, a atmosfera e os
pequenos riachos que no geral, deságuam na Billings (Figura 60).
6
655
FIGURA 60 - Trecho final do córrego Ribeirão Pires: poluído, mais adiante suas
águas alcançam o reservatório Billings. Dados da SABESP (2004) informam que
neste município 65% do esgoto é coletado, do qual 70% recebe tratamento.
Contudo, o curso dos rios na área urbana exibe, de modo contumaz, múltiplos
focos de águas malsãs (Foto: Maurício Waldman, dezembro de 2003)
Contudo, os comprometimentos ambientais não se restringiram
aos efeitos infaustos da industrialização ou das demais atividades
desenvolvidas no meio urbano. Na década de cinquenta, em pleno
alvorecer do rodoviarismo, cuja pedra angular foi a instalação do
parque automobilístico em São Bernardo do Campo, a quilometragem
das estradas de rodagem brasileiras cresceu 48%, e quanto à rede
pavimentada, esta foi quadruplicada.
Os caminhos de ferro, que no século anterior haviam simbolizado
o suprassumo da modernidade, foram aposentados em favor das vias
asfaltadas, o novo símbolo do progresso e do desenvolvimento (Cf.
6
656
KUVASNEY, 1996: 57). Com a metropolização, a ferrovia tornou-se o
meio de transporte dos setores de baixa renda, os pobres, segmento
sem outra opção que não aceitar as benesses estigmatizadas deste
meio de transporte.
A antiga região do Caaguaçu/São Bernardo, cujo impulso urbano
metropolitano inicial havia sido catapultado pelo trem, passa a ser
conotada por um processo de reterritorialização direcionado em favor
dos veículos automotores: o carro particular como nova modalidade
para os deslocamentos diários, e os caminhões para o transporte de
cargas.
A região do ABC Paulista torna-se um corredor através do qual,
transitam cargas galgando e descendo a serra, utilizando como eixo
dos fluxos de tráfego, a via Anchieta e posteriormente, a rodovia dos
Imigrantes. Trespassando o Grande ABC precisamente em meio aos
mananciais, a rede rodoviária promoveu adensamentos populacionais
ao longo das vias de tráfego, induzindo uma ocupação que se tornou
ainda mais inevitável e irreversível pela valorização deste modal de
transporte pelas esferas governamentais, avessas ao ferroviarismo.
Um agravante suplementar foi a deterioração da Serra do Mar e
do patrimônio natural que abarca, verdadeiramente excepcional, que
tem sido ameaçado por estas intervenções antropogênicas. A área da
Serra, detentora de uma proeminência planetária, é reconhecida
como a mais importante das escarpas tropicais do planeta:
...na categoria de grande borda assimétrica do Planalto
Brasileiro, é o mais contínuo e monumental acidente
6
657
geológico e geomorfológico de toda a face oriental do
continente sul-americano [...] Ainda em termo macro, a
Serra do Mar é considerada o maior banco genético
remanescente da natureza tropical atlântica, em toda a
face leste do Brasil, o que vale dizer em toda a vertente
oriental da América do Sul (AB’SABER, 2004a: 381).
Consequentemente, as novas vias asfaltadas não só passam a
reorganizar o espaço (seja promovendo a escalada urbana da serra
por intermédio dos bairros-cota que emergem a partir da Baixada
Santista no sopé da Serra do Mar e pelos núcleos que eclodem nos
rebordos do planalto), como igualmente inauguram novas variantes
de contaminação do ar, da água e do solo, arregimentando assim,
novos espaços ao mapa de riscos ambientais do ESP.
Além do ruído e da elevada concentração de gases veiculares,
rigorosamente ninguém pode afirmar o que exatamente circula nas
rodovias que cortam as encostas. Possivelmente de tudo: cargas
perigosas, substâncias contaminadas, materiais radioativos, resíduos
industriais e um profuso coquetel de substâncias perniciosas que de
quando em quando, os serviços noticiosos notificam em denúncias,
textos e imagens, como insistentes causus fortuitus de calamidades
que empesteiam as encostas serranas e os mananciais da Billings,
peniticiando nesta cenografia, os grupos sociais neles assentados.
Nesta ordem de exposição, seria um juízo duvidoso imaginar que
esta sucessão de malefícios ambientais transcorreu sem algum tipo
de sansão estrutural. Afinal, a qualidade das águas metropolitanas é
decorrência direta da gestão do espaço da RMSP. Neste sentido, é
que se poderia, justificadamente, obsequiar relativamente à posição
6
658
assumida pela Light/Eletropaulo, sob cuja responsabilidade mantevese um volume significativo destas águas.
Recorde-se que tanto a Light quanto a Eletropaulo posicionavamse determinadamente enquanto empresas de energia. Pois então,
foram parceiras no processo de comprometimento das águas da
conurbação, isto pelo fato de estarem interessadas exclusivamente
nos volumes desviados para o esquema energético, à revelia da
qualidade do líquido, juízo afiançado pelo benemérito defensor do
meio ambiente, Samuel Murgel BRANCO:
“À companhia Light, então detentora do monopólio
energético, não interessava a questão do abastecimento,
e muito menos da despoluição do Tietê e da Billings, uma
vez que esgotos, ao passarem por turbinas, geram
eletricidade do mesmo jeito. Na medida em que o Sistema
Billings foi-se tornando insuficiente - e como à Light não
interessavam os aproveitamentos de outros potenciais a
jusante, que contrariavam seu monopólio -, começou a
crescer uma demanda de esgotos, para acionar novas
unidades instaladas em Cubatão” (1991: 55, grifos
nossos).
Assim, objetivamente, a Light-Eletropaulo consorciaram-se a uma
política de proliferação de esgotos, pela simples razão de que quanto
mais esgotos fossem encaminhados para os geradores, tanto melhor,
pois desta maneira, seria possível gerar mais energia sem arcar com
qualquer custo adicional.
Esta proposição é subjacente nas proposições pensadas desde
pelo menos os anos 1950 para proteger o Sistema Billings (Projetos
Greeley-Hansen, Hazen-Sawyer e Hibrace), nas quais, os interesses
6
659
da Light-Eletropaulo para direcionar os esgotos a UHE Henry Borden,
maximizando assim a geração de eletricidade, foram manifestos.
Estes projetos contrastavam com a Solução Integrada, idealizada no
bojo do PMDI, datada do início dos anos 1970, que protocolava a
preservação dos mananciais da Billings para prover o abastecimento
de água da RMSP.
Esta meta explicita-se pelo fato da Solução Integrada subscrever
o fim das reversões e o tratamento dos efluentes atrás da Serra da
Cantareira, que só depois de purificados seriam lançados no Tietê.
Excluindo a importação de aviamentos e de know-how (que também
implicam em dependência tecnológica), a proposta era mais barata,
cerca de 40% do custo total dos outros projetos, e ao mesmo tempo,
destacava-se por sua singularidade prática.
A Represa Billings, livre do flagelo do bombeamento de esgotos,
permitiria o fornecimento de água mais facilmente potabilizável para a
RMSP, ao mesmo tempo em que acentuaria sua vocação para o
lazer, balneabilidade, esportes náuticos, recreação, pesca amadora e
profissional. Concentrando apenas águas limpas, a represa deixaria
de representar perigo para a saúde pública, sem contar que o meio
ambiente aquático e das matas dos mananciais seriam intensamente
revitalizadas.
Neste plano, nas palavras do engenheiro Rodolfo Costa e Silva,
“não era o primado energético que dominava. Era o primado
metropolitano, o primado do desenvolvimento, a defesa da Billings”
(SEMASA, 1990: 21). Entrementes, a engenhosa Solução Integrada
6
660
contrariava abertamente os interesses da empresa, e assim, foi
descartada e devidamente engavetada (Figuras 61 e 62).
FIGURA 61 e 62 - Acima, os Projetos Greeley-Hansen, Hazen-Sawyer e Hibrace
(favoráveis à Light/Eletropaulo), previam o barramento do Tietê em Pirapora e
Edgar de Souza e dispositivos de bombeamento em Traição e Pedreira para levar
os esgotos até a represa Billings, para daí, despencar pela Serra do Mar e gerar
energia em Cubatão. Na Solução Integrada, os esgotos seriam conduzidos por um
túnel, de Leopoldina, na confluência do Pinheiros com o Tietê, para detrás da
serra, onde seriam tratados em Pirapora, numa cota mais baixa (Croqui referente
às soluções propostas para o Sistema Billings, reproduzido de SEMASA, 1990)
Assinale-se que se levando em conta os interesses matriciais da
Light e da Eletropaulo, não seria surpreendente o descaso de ambas
6
661
quanto aos problemas relacionados ao saneamento e abastecimento
de água. Na realidade, existe na raiz desta omissão uma ordem de
motivações concreta, que parecendo mais preocupada em produzir
esgotos do que água potável constituiu-se verdadeiramente numa
“não-política”, ou para apensar, numa antipolítica de águas doces.
Ademais, a inviabilização dos recursos hídricos como provimento
de água potável para a população, além de ser uma garantia para o
monopólio energético da empresa (por reforçar sua utilização para
fins energéticos na ausência de qualquer outra utilização possível),
paralelamente fornecia sólido argumento para implantar caríssimos
sistemas de abastecimento, filão de contratos milionários disputados
pelas empreiteiras e evidentemente, pelas agências de financiamento
externo.
Seria possível ainda arrolar disfuncionalidades que passaram a
comprometer a Bacia Hidrográfica Billings em termos da produção
hídrica. Dentre estes estão a eutrofização da água, a contaminação
por metais pesados, a proliferação de microrganismos patogênicos e
de algas tóxicas.
Outra anomalia foi o assoreamento da represa, desdobramento
direto da erosão e do transporte dos mais variados resíduos urbanos
pelas chuvas, assim como pelo acúmulo de lama fecal, resultante da
decantação da parte sólida dos dejetos humanos presentes nos
esgotos, formando camadas com até sete metros de espessura em
alguns pontos do reservatório. Por isso, estima-se que a capacidade
da Billings, da cubagem original de 1,23 bilhão de m³, retraiu, em
6
662
decorrência do acúmulo e decantação de sedimentos, para algo em
torno de 1,16 bilhão de m³ (GIUSTI, 2005: 1).
O comprometimento incessante das águas do reservatório
chegou a tal ponto que visando a preservar o braço do Rio Grande
que abastece o ABC desde 1958, o governo paulista construiu em
1982 a Barragem Anchieta, situada à altura da Via Anchieta, criando
com isso dois compartimentos na Billings: Rio Grande e Pedreira
(Figura 63).
FIGURA 63 - Mapa da bacia ambiental da Represa Billings destacando o braços Rio
Grande (1) do reservatório, considerado relativamente limpo, classificação que
somente faz sentido na comparação com a profunda contaminação que tomou
conta da Billings como um todo. Note-se que a rede de cursos d’água que
deságuam na Billings, percorrem no mais das vezes áreas urbanizadas em maior
ou menor intensidade, explicando a razão de funcionarem como canais de esgoto
a céu aberto (Fonte: SABESP, imagem reformatada e masterizada pelo autor)
Este barramento, que teve por fito vedar a penetração do
bombeamento de esgoto no setor em que a SABESP capta água para
a rede pública, expôs de modo indireto que o destino da Billings como
um todo não era do interesse da Light, que perseverou nos tratos que
6
663
restringiram a represa ao papel de massa líquida para gerar energia
(Vide MACEDO, 1992: 61 e BRANCO, 1991: 50).
Entretanto, mesmo sendo as águas desse segmento da Billings
coloquialmente definidas como “mais limpas”, seria pertinente aferir
que, na melhor das hipóteses, em face dos processos de degradação
também se repetirem nesta área, tão só considerá-las como “menos
sujas”.
Objetivamente, a Billings, mais do que um reservatório, tornou-se
na voz dos críticos da dilapidação dos mananciais, no sucedâneo de
uma lagoa de estabilização, onde a DBO dos esgotos é atenuada,
antecipando processos técnicos objetivando menor morbidez.
A gravidade do passivo ambiental da represa Billings não passou
despercebida ao nascente movimento ecológico da região. No ano de
1971, em pleno regime militar, foi organizada a primeira grande
manifestação alertando para a destruição da represa.
Encabeçada pelo ambientalista Fernando Vitor, neste protesto,
dadas as condições de repressão vigentes na época e visando
impedir a identificação por parte da polícia da ditadura militar, os
manifestantes participaram no ato totalmente encapuzados (Vide
Figura 64).
A partir deste episódio, nunca mais a degradação da Billings
abandonou a mídia. Reunindo mais e mais cidadãos preocupados
com este lago artificial construído e mantido pela vontade humana,
6
664
protestos se avolumaram no campo político e das manifestações
populares, incluindo peças culturais.
FIGURA 64 - Manifestação contra a contaminação da Represa Billings em pleno
regime militar: ecologistas do Grande ABC, liderados pelo ambientalista Fernando
Vitor de Araújo Alves, protestam nas margens da represa no bairro de Eldorado
Paulista, em Diadema, denunciando a poluição do reservatório (Fonte: Jornal O
Povo, de Diadema, edição de 21 de novembro de 1971)
Na voz dos cantadores nordestinos que se tornaram patrimônio
musical do ABC, os mananciais são agora tema de cantorias, forrós e
da literatura de cordel, claro sinal de adoção da causa da Billings pela
sociedade mais ampla.
A Billings tornou-se, pois inseparável de todo debate ambiental
relacionado com o Grande ABC e a RMSP.
6
665
12.3. METRÓPOLE EXPANSIONISTA E DESTRUIÇÃO DOS
MANANCIAIS
Retomando a juízo exposto sobre a questão dos mananciais,
esta particularizou-se pela incorporação de sentidos insuspeitos, que
lhe foram agregados no cadenciamento da história social da RMSP.
Deste modo, a represa Billings transitou da percepção enquanto
“barragem energética” para um entendimento radicado na imagem de
uma “caixa d’água metropolitana”, passando, em seguida, à sua
metamorfose em um “objeto ecológico”.
Em face do agravamento da crise hídrica e da irrupção no seio da
consciência social de uma generalização da rarefação da água numa
escala global, é evidente que o contexto habilitou o fortalecimento de
um debate no qual as nuanças ambiental e hídrica no seu stricto
sensu, além de amalgamadas entre si, tornaram-se indispensáveis na
avaliação de um corpo aquático que como a represa Billings, não tem
como serem desassociadas.
Contudo, as mudanças ocorridas na forma de compreensão da
Billings não implicaram na paralisação ou recuo da deterioração do
reservatório. Pelo contrário, os anos setenta e oitenta assistiram uma
acentuação dos desequilíbrios, que alcançou uma dimensão jamais
observada numa área metropolitana brasileira. Ao mesmo tempo, as
necessidades hídricas da GSP induziram o rebatimento e delegação
da responsabilidade pelo abastecimento da grande metrópole para
áreas assaz distantes, aliciadas ao papel de provedoras de água
doce para a metrópole sedenta.
6
666
Como é sabido, a passagem do tempo se encarregou de mostrar
o equívoco desta estratégia, tendo por resultado mais evidente, a
semeadura de desgastantes disputas regionais relacionadas com a
posse dos recursos hídricos. Numa situação passível de ser apontada
noutras regiões metropolitanas do país, a adoção da estratégia de
reverter bacias hidrográficas vizinhas à RMSP, agravou um quadro de
inibições relativas ao acesso aos recursos hídricos, pois ao importar
águas procedentes de regiões externas à metrópole paulista, estas
foram transformadas a contragosto em credoras de um ônus hídrico
que não era da sua responsabilidade.
Neste particular, recorde-se que a partir de meados dos anos
1970, a sobrevivência da RMSP passou a depender do suprimento
fornecido pelo Sistema Cantareira, cujas provisões do líquido, advém
da reversão de considerável volume de água doce da bacia do
Piracicaba. Fato em si mesmo gerador de tensões evidentes (até
porque a região do rio Piracicaba representa um importante polo
econômico do estado), a disputa pelo capital hidrológico desta bacia
acabou determinando a revisão, em 2004, da outorga original das
águas, datada de 1974, em favor de nova partição dos patamares de
utilização dos recursos hídricos.
Este é um dos motivos que instiga a considerar que a questão
dos recursos hídricos na metrópole tem conquistado contornos cada
vez mais radicalizados, solicitando revisão dos procedimentos usuais
de enfrentamento da situação.
Neste sentido, o histórico socioambiental do Sistema Billings é
sem dúvida alguma, dos mais ilustrativos. Resumidamente, com base
6
667
nos pressupostos que alicerçaram a gestão do sistema Billings, os
“tributos pagos pelo cidadão paulista para a manutenção de um genial
sistema de geração de energia” (BRANCO, 1991: 57), incluiriam ao
menos quatro graves consequências para o conjunto da RMSP, das
quais todos os metropolitas, em maior ou menor grau, se ressentem:
1. O engavetamento dos projetos de saneamento e de contenção
das enchentes na RMSP, sumariamente descartados pelo poder de
influência da velha Light, uma vez que contrariavam os interesses
comerciais da empresa. Entre estes projetos, estavam os propostos
pelo engenheiro Saturnino de Brito, responsável pelo saneamento de
mais de cem cidades brasileiras e, com razão, considerado uma das
glórias da engenharia nacional.
O plano de Saturnino de Brito de 1904 previa o barramento de
vários tributários do Tietê a montante de São Paulo, ou seja, antes da
cidade de São Paulo, contribuindo para regularizar as enchentes e
igualmente, como reserva hídrica para irrigação das lavouras e
abastecimento urbano. No mais, propostas de engenharia esboçadas
por Catullo Flaquer Branco nos anos 1930, previam a construção de
barragens a jusante de São Paulo, as quais seriam beneficiadas
pelas obras regularizadoras de Saturnino de Brito. Porém,
...à Light não interessava nem uma, nem outra coisa.
Assim como não lhe interessou, mais tarde, o desvio dos
esgotos da metrópole para o rio Juqueri, desaguando,
tratado, no Tietê a jusante e não a montante das suas
barragens energéticas (BRANCO, 1991: 5).
6
668
Por conseguinte, a metrópole paulista, que poderia ter controlado
ou minimizado desde o início do século passado o problema das
enchentes, enfrenta até hoje os prejuízos derivados das inundações
(Ver a respeito, BRANCO, 2000: 22/23).
Ao mesmo tempo, a urbe passou a arcar com as sequelas da
destruição dos equilíbrios vitais do reservatório Billings, determinando
a desvalorização das margens da represa, o comprometimento da
indústria pesqueira (no vale do Tietê, no reservatório e no estuário de
Santos), acarretando perda de oportunidades de lazer e prejuízos
ambientais, sem contar com o mau cheiro que nos dias quentes,
devassa os domicílios num vasto entorno da metrópole.
2. Uma vez inviabilizada a captação de água potável do Alto Tietê
e da Billings, foi desenvolvido em seu lugar o fantástico sistema
Cantareira, “muito mais caro, e em prejuízo das regiões doadoras”
(ALVES, 1991: 66). O “torvelinho hídrico” criado pela Light agravou
em escala estadual a crise dos recursos hídricos, pois objetivamente
“o problema da necessidade de reversão tende a criar possíveis
situações de conflito entre usuários de água de regiões vizinhas” (Cf.
AMARAL E SILVA, 1991: 61).
Através do Sistema Cantareira, passa a ser feita a reversão das
águas de cabeceira dos fluxos formadores do rio Piracicaba, pelo que
se transferiu o problema do abastecimento da RMSP para a região de
Campinas e partes do estado de Minas Gerais. Ademais, este sistema
funciona em detrimento de outra região metropolitana do ESP, a de
Campinas, ela mesma às voltas com demandas crescentes de água
6
669
doce, e de quebra, perturba redes hidrográficas que estão sob
sobrecarga constante:
Vários são os exemplos de ecossistemas sob stress ou
quase mortos por causa de reversões de águas entre
bacias hidrográficas para suprir as necessidades
humanas. Esta é a situação da Bacia do Rio Piracicaba
(São Paulo), que possui grande parte de suas nascentes
revertidas para o abastecimento de água potável da
Região Metropolitana de São Paulo, deixando a segunda
maior região de crescimento econômico do Estado em
uma situação periclitante (Cf. RUTKOWSKI, 1999: 18).
Obra cara, gastando milhares de quilowatts de energia para
transpor a Serra da Cantareira, trata-se, no cortante veredito do
engenheiro Rodolfo Costa e Silva, de “um projeto de antiengenharia e
de antidesenvolvimento” (SEMASA, 1990: 15 e Figura 65).
FIGURA 65 - Esquema do Sistema Cantareira, revelando a complexidade dos
percursos da captação da água e os consideráveis desníveis a serem vencidos
para a adução do líquido, direcionando-o para a RMSP (Fonte: SABESP. Imagem
institucional reformatada e masterizada pelo autor)
6
670
Não obstante, do ponto de vista da concessionária era, sobremaneira,
uma obra desejável,
...uma vez que traria para o Sistema Billings 33 m³/s de
águas provenientes de outras bacias, as quais,
transformadas em esgotos, iriam poluir a Represa Billings
e o estuário santista, mas aumentariam significativamente
o seu potencial em Cubatão. Mesmo que em detrimento da
região de Piracicaba que, justamente no momento em que
elevava o seu potencial poluidor pela instalação de
indústrias de celulose, de álcool, de açúcar, etc., teve
reduzidas as vazões diluidoras de seu rio (BRANCO, 1991:
57).
O ponto culminante da reversão de águas na direção da RMSP
teria epítome na execução do ciclópico Projeto Juquiá, programado
para abduzir os caudais da bacia do Ribeira do Iguape, que irriga o
Sul do estado de São Paulo e Nordeste do Paraná.
O Vale do Ribeira do Iguape, uma das derradeiras reservas de
mata atlântica de grande porte do país, é o espaço de vida de grupos
de quilombolas e de grupos indígenas, cujo modo de viver, tradicional
na forma e na essência, seria irremediavelmente comprometido pelo
barramento, seguido de seríssimos impactos socioambientais.
Transformado assim numa área de captação com mais de 700
metros de desnível com relação à metrópole, as águas do Projeto
Juquiá, para alcançar a metrópole, teriam que ser bombeadas por
instalações ciclópicas, uma verdadeira cachoeira ao contrário.
3. Nesta perversa associação da política de geração de esgotos
com o torvelinho hídrico, o incentivo à “indústria das ocupações”
6
671
constituiu sequela direta desta estratégia. As áreas dos mananciais,
ao deixarem de incorporar qualquer sentido em vista do descaso com
a manutenção dos equilíbrios hidrológicos da Billings, terminaram
informalmente solicitadas para absorver as mazelas das não-medidas
metropolitanas, principalmente a demanda por moradia.
Mais ainda, a consecução jurisprudencial de uma legislação de
ocupação territorial (as Leis de Proteção aos Mananciais), terminou
contraditoriamente incorporada aos mecanismos de reprodução da
especulação imobiliária. Estes espaços, na perspectiva da ocupação
irregular, oferecendo alto risco para seus ocupantes e incorrendo em
restrições legais, são subvalorizadas no mercado imobiliário e, por
conseguinte, oferecidas a preços baixos para a população carente
(LUSTOZA, 1991 e ALVES, 1991).
Os mananciais, abandonados pelo governo estadual, que
exemplarmente sucateou a fiscalização, foram deixados a sua própria
sorte, tornando-se presa fácil dos loteadores clandestinos. Isto posto,
estes espaços passaram a integrar, fraus omnia corrumpit, a carteira
imobiliária, plotando bairros inteiros como resultado da especulação
de terrenos vendidos em “lotes e prestações”, prática esta que, tal
como refletiu Caio PRADO JÚNIOR, consistiu no “maior veio de ouro
que se descobriu nesta São Paulo de Piratininga do Século XX”
(1998: 74).
Este processo, abraçando práticas políticas clientelísticas, licitou
favoritismos e criou base de apoio para muitas carreiras políticas:
6
672
Uma vez efetivada não só a venda como a ocupação dos
lotes, saem os loteadores ou seus testas de ferro na
defesa dos trabalhadores aí residentes, ajudando-os a
formarem comissões ou associações de bairro com a
finalidade de reivindicarem junto ao poder público toda
sorte de infraestrutura e serviços (OLIVEIRA, 1982b: 134).
4. Por fim, terminando por materializar profunda desestruturação
ambiental, tendo-se em vista que os seus impactos geomorfológicos
provocados são complexos e de solução extremamente dificutosa
(quando não insolúveis), a região ocupada dos mananciais tornou-se
palco privilegiado de deslizamentos, enchentes e outras calamidades
que assombram a pauta dos noticiosos da região (Figura 66).
FIGURA 66 - Situação de Risco nos Mananciais do ABC: A foto acima mostra uma
favela situada na região dos mananciais de São Bernardo do Campo no início dos
anos 1990. Observe-se que em razão do perfil pedológico do solo, as precipitações
pluviométricas, em vista da ação da erosão laminar, originam a formação de sulcos
profundos, na ordem de dez a quinze metros, que terminam por engolir em meio a
chuvas torrenciais, os habitantes destas precárias construções (Foto: Iconoteca
do Vereador Wagner Lino Alves, 1991, São Bernardo do Campo, SP, gentilmente
fornecida ao autor)
6
673
Outro detalhamento desta discussão corre por conta de que os
problemas que emergiram da ocupação da região dos mananciais,
em tese protegidas por um polpudo e minucioso corpo de leis e
decretos, constituem clara demonstração de que a existência de um
aparato legal não é, por si só, capaz de conter a ocupação dessas
áreas (DEL PRETTE, 2000: 18; BENÍCIO, 1995: 76/77 e SÓCRATES,
GROSTEIN et TANAKA, 1985), óbice que acontece tanto pelo fato do
governo estadual ter abandonado a aplicação da lei, renunciando
gradativamente à sua fiscalização, quanto por problemas estruturais
da expansão da malha urbana, problemas aos quais se agregou a
prática generalizada do loteamento clandestino, sintomas distintos de
uma mesma postura.
No que seria sintomático, diretrizes que nos anos 1980 deveriam
funcionar encadeadas com a preservação dos mananciais, também
não foram encaminhadas. Dentre estas, pode-se mencionar a criação
do Núcleo Industrial da Zona Leste da capital e a implementação de
obras de transporte de massa, como a linha Leste-Oeste do Metrô.
Estas duas iniciativas, postulando um direcionamento espacial de
expansão da região metropolitana tomando por eixo a calha do Tietê,
poderiam ao menos atenuar em certa medida a pressão que sempre
foi imposta aos cruciais e desamparados mananciais do ABCDMR,
contendo o avanço urbano e a assegurando a vital função de produzir
água potável (Vide SÓCRATES, GROSTEIN et TANAKA, 1985: 29).
Estas considerações evidenciam o quanto a metrópole não está
situada no vácuo, isto é, num locus ideal, apartada da interferência de
agentes atuando de modo a desequilibrar um sistema que por sua
6
674
própria gênese, declinaria de modo inapelável para a entropia. Deste
modo seria permitido indagar:
➢
Até que ponto as políticas de planejamento estão habilitadas a
dar conta de um problema que se avoluma ano após ano, se de facto,
a dinâmica da expansão da metrópole é antes regrada pelas “nãopolíticas” do que por normas legislatórias diuturnamente ignoradas ou
derrogativamente transformadas em letra morta?
➢
Qual seria a repercussão deste contexto para a questão dos
mananciais, que adentrou nos anos 1990 e no novo milênio marcada
por ampla notoriedade do interesse público a ela investida? A mais
ver, existiria espaço para respostas institucionais novas?
➢
Quais seriam as alternativas colocadas para a represa Billings
em face das novas articulações e remodelagem econômicas, todas
com inegável reflexo para a sociedade metropolitana?
Repetindo a advertência contestadora do otimismo fácil, um dado
crucial é que a ocupação dos mananciais, que conquistou impulso
nas décadas anteriores, não tem dado mostras de arrefecimento. Ao
invés disso, a destruição das áreas de preservação foi catalisada a
partir dos anos noventa pelo recrudescimento da crise social.
Seria prudente clarificar, esta nova onda de ocupações ocorre ao
mesmo tempo em que o país se integra num ajuste neoliberal que
envolve uma estratégia de gerenciamento da economia objetivamente
associada com a expansão da pobreza e ao esgarçamento do tecido
social (BOITO JÚNIOR, 1999: 86/110).
6
675
No Brasil, o receituário neoliberal pautou a conduta do governo
Fernando Collor de Mello (1990-1992), do interregno Itamar Franco
(1992-1994), as duas gestões do presidente Fernando Henrique
Cardoso (1995-1999 e 1999-2002), e para completar, na presidência
de Luís Inácio Lula da Silva (2003- ).
Explicitamente, o histórico deste processo revela o modo
subalterno da forma como se deu o ingresso do país na globalização.
Similarmente a várias nações periféricas, não foi propriamente o
Brasil que decidiu entrar na globalização, mas antes, foi esta que
decidiu entrar no país, um diktat regido pela rapidez, propulsiva de um
atractor promotor de desordem incontrolável (apud SANTOS, 1997:
4/5).
Assim, paralelamente à desregulamentação da economia, outra
consequência desta lógica econômica foi uma acelerada terceirização
da economia regional (que, aliás, também se verificou na capital e em
inúmeras cidades brasileiras), eclodindo em meio a uma torrente de
mudanças abruptas que acirraram ainda mais o conhecido quadro de
desarmonias existentes no Grande ABC. Neste novo marco, nota-se
uma queda do peso relativo da indústria, substituído pelo crescimento
do comércio e do setor de serviços.
Todavia, esta tendência não redundou nem no robustecimento e
tampouco em saúde econômica para o Grande ABC Paulista. O setor
industrial protagonizou drástica redução de mão de obra industrial.
Porém simultaneamente, o setor terciário não teve capacidade de
absorver os trabalhadores dispensados pelas fábricas, uma minoria
num “mar” de novos desempregados (PENHA, 1992).
6
676
Afiançando a constatação do parágrafo anterior, ressalve-se que
a expansão global do terciário nos finais do Século XX, não reflete
meramente a “absorção” das atividades produtivas por uma nebulosa
“esfera de serviços”.
Na realidade, antes condiz com a transformação das atividades
produtivas, que passam a incorporar mais tecnologias, mais
conhecimentos e mais trabalho indireto, sem efetivamente dar cabo
de problemáticas sociais e econômicas que irrompem a partir da
ordem global (DOWBOR, 2001: 11).
Pois bem, tal como assevera o engenheiro e economista francês
Alain LIPIETZ, o processo de terceirização da economia em curso, é
indissociável de uma incessante polarização das qualificações e dos
rendimentos, revertendo em nítidos rebatimentos na concretude
socioespacial (1986).
No Grande ABC Paulista, este direcionamento maximizou
mecanismos de exclusão social em curso, confirmando os mananciais
enquanto uma alternativa para a “moradia de baixo custo”. A
transformação na paisagem urbana no espaço regional como
consequência deste movimento, transparece nitidamente no relato da
geógrafa Elaine KUVASNEY do percurso da CPTM em meados dos
anos noventa:
No trem, é fácil perceber o quanto essa parte do ABC
funciona como “dormitório” da população trabalhadora nas
indústrias e, principalmente, no setor de serviços de São
Paulo e das cidades mais próximas: pelo fluxo de pessoas
que embarcam - a partir das cinco horas da tarde - que
6
677
cresce continuamente a partir do Ipiranga, e que
começam a desembarcar, em grandes contingentes,
somente a partir das estações de Mauá, Guapituba distrito de Mauá - Ribeirão Pires, que ainda cultiva um ar
bucólico de cidadezinha do interior, e Rio Grande da
Serra, onde predomina, em grandes loteamentos, o estilo
denominado de ‘autoconstrução’, cujo único componente
da infraestrutura urbana parece ser o poste de luz para a
quase totalidade de suas residências (1996: 8).
Regionalmente, uma consequência direta da reformulação das
dinâmicas urbanas foi o incremento da ocupação dos mananciais. No
caso da região metropolitana, e longe de constituir mera coincidência,
a sensível desaceleração nos índices de crescimento demográfico
das áreas centrais da metrópole, foi acompanhada de uma dinâmica
exatamente oposta nas regiões e nos municípios dispostos em colar
ao núcleo central da mancha urbana (Figuras 67 e 68).
Analisando este fenômeno, acentua o geógrafo Marcos Estevan
DEL PRETTE:
...A expulsão da população das áreas centrais, tanto do
polo principal, a cidade de São Paulo, quanto nos polos
secundários, como o ABCD, tem deixado um rastro de
problemas para a própria RMSP. A ‘faxina’ do centro,
patrocinada pelas novas demandas de triunfante
sociedade das finanças, da alta tecnologia, do marketing
e dos serviços sofisticados, em substituição à unidade
fabril que tem procurado o interior do estado, tem varrido
para baixo do tapete um grande contingente populacional,
bem como uma massa de força de trabalho sem
qualificação ou semiqualificada. A cobrança dessa pesada
conta tem sido feita de diversas formas: no caso dos
mananciais, a RMSP tem cada vez mais dificuldades de
suprir a todos com água de boa qualidade (2000: 188).
6
678
FIGURA 67 - Mapa do Crescimento da Mancha Urbana da RMSP entre 1881 e 1997
(Fonte: < http://barreiros.arq.br/RMSP/metropolitana.htm >, escala aproximada 1:
846.242, acesso: 21-07-2005)
FIGURA 68 - Mapa do Crescimento Demográfico na RMSP no período 1991-1996,
por distritos na capital paulista e por municípios da região metropolitana (Fonte: <
http://www.usp.br/fau/docentes/depprojeto/c_deak/CD/5bd/1rmsp/m04-adm/
>,
escala aproximada 1: 846.242, acesso: 21-07-2005)
6
679
Por isso mesmo, a Bacia Hidrográfica Billings perdeu, entre 1989
e 1999, mais de 6% da cobertura florestal, ao mesmo tempo em que
as áreas urbanas consolidadas e não-consolidadas, apresentaram
relativamente a 1989, expansão de 27,3% e 47,9%, progressão que
comporta impactos de toda ordem para a saúde dos mananciais e
evidentemente, para o abastecimento de água e a qualidade de vida
urbana (Figuras 69 a 74). Esta aferição é também ensombrada por
prognósticos sombrios quando se sabe que 37% da ocupação urbana
registrada no período em questão (1989-1999), ocorreu em áreas
caracterizadas por sérias ou severas restrições ambientais.
Quanto às favelas, foco de variados infortúnios socioambientais,
estas registraram em 1996, relativamente a 1991, um índice de
crescimento 54,53% mais alto (WHATELY et CAPOBIANCO, 2002: 7
e 33/42). A população instalada nos mananciais do ABC foi calculada
no ano 2000 em 700 mil pessoas, na maioria absoluta, vivendo em
condições habitacionais precárias, à margem das possíveis benesses
que o meio urbano poderia oferecer. Indubitavelmente, esta vaga de
ocupações, fulcro de sérios desafios urbanos, está fadada a se tornar
móvel de proa do recrudescimento das disritmias urbanas, a começar
pela intratabilidade dos problemas que suscita.
Ora, estivesse tal emaranhado de obstruções restrito à ocupação
irregular dos mananciais, a discussão desta questão sugeriria uma
pauta bem menos fornida do que aquela que engorda a agenda dos
planejadores e dos ativistas conservacionistas. Acontece que além
dos conflitos relativos à especulação imobiliária, desenvolve-se, por
exemplo, uma pertinaz atividade minerária, gerando uma diversidade
de agressões ambientais.
6
680
FIGURA 69 - Bacia Billings: Cobertura Florestal em 1999 (Fonte: ISA, 2002)
FIGURA 70 - Bacia da Billings: Unidades de Conservação e Áreas de Proteção
Especial (Fonte: ISA, 2002)
6
681
FIGURA 71 - Mapa da Bacia da Billings: Uso do Solo em 1989 (Fonte: ISA, 2002)
FIGURA 72 - Mapa da Bacia da Billings: Uso do Solo em 1999 (Fonte: ISA, 2002)
6
682
FIGURA 73 - Bacia da Billings: Urbanização 1989-1999 (Fonte: ISA, 2002)
FIGURA 74 - Bacia da Billings: Atividade Minerária (Fonte: ISA, 2002)
6
683
Na bacia da Billings, explora-se areia para construção, granito
para brita, cascalho e água mineral. Destas atividades, apenas esta
última é considerada compatível com as especificidades da região. A
mineração clandestina é contumaz, capitaneada por portos de areia,
disseminados por toda a bacia da Billings e nem sempre alcançados
pela fiscalização ou por medidas judiciais.
Paralelamente aos efeitos deletérios diretos decorrentes das
atividades empresariais, os mananciais são ainda requisitados para
subsidiar a expansão da rede de comunicação interna da RMSP, caso
do Anel Rodoviário ou Rodoanel Mário Covas, que corta em cheio os
mananciais da Billings. Esta megaobra viária (cuja seção Oeste foi
liberada para o tráfego em 2002), possui mais de duas terças partes
dos trechos Sul, Norte e Leste projetados para atravessar áreas de
mananciais, acelerando os comprometimentos ambientais de regiões
submetidas durante décadas seguidas a toda sorte de achaques e
malversações antropogênicas (Figuras 75 e 76).
Para completar, o reservatório foi eleito como sítio de destinação
final de prodigiosa gama de efluentes líquidos e de resíduos sólidos
(Figura 77). Originários de descargas industriais, eflúvios de lixões
desativados ou em operação, das ligações clandestinas de esgoto, do
descarte aleatório de entulho e da disposição “informal” de descartes
compostos por sortida taxonomia, de rebotalhos industriais às pilhas
de uso domiciliar jogadas ao léu por lojistas e pelos shoppings, tudo
isso conforma uma somatória de adversidades cujo epílogo, não pode
ser outro que não a malbaratação das águas da represa.
6
684
FIGURA 75 - Trajeto do Rodoanel na RMSP
(Fonte: < http://www.seade.gov.br/negocios/Mapa%20Rodoanel.jpg >, escala
aproximada 1: 307.690, acesso: 11-06-2005)
FIGURA 76 - Mapa do Trajeto do Rodoanel na Bacia Billings (Fonte: ISA, 2002)
6
685
FIGURA 77 - Mapa da Bacia da Billings: Disposição Irregular de efluentes líquidos
e de resíduos sólidos (Fonte: ISA, 2002)
A dramaticidade desta situação se evidencia quando se sabe que
a partir de agosto de 2000 a escassez de água na RMSP obrigou a
SABESP a desviar 2 m³/s de água bruta do compartimento Pedreira
da Billings (qual seja, sem tratamento), para o Sistema Guarapiranga,
responsável pelo atendimento da porção Sudeste do município de
São Paulo. O dado alarmante é que mesmo este patamar de retiradas
foi considerado insuficiente, sendo o nível de abdução logo ampliado
para 4 m³/s, transpostos da Billings para os sistemas GuarapirangaCotia.
Essa apreciável transposição de águas, autorizada e implantada
em 2000 pelo então governador Mario Covas ao arrepio de qualquer
estudo ambiental prévio, poderá contaminar e inviabilizar de vez o
6
686
Sistema Guarapiranga, sistema violentado nos últimos trinta anos por
toda sorte de agressões e transgressões ambientais (Vide BENÍCIO,
1995), que para completar, assiste, de acordo com estudo ventilado
pela pesquisadora Marussia Whately, do Instituto Socioambiental
(ISA) em 2002, a um fenomenal avanço da ocupação antropogênica,
da ordem de 50% entre 1989 e 1996
133.
Finalizando, o primado hídrico/energético que durante décadas
hegemonizou na prática o gerenciamento da represa, não tem dado
mostras de recuo na sua derrelição em pensar a Billings como mero
depósito de águas indiferenciadas, destinada a mover as turbinas da
Usina Henry Borden. Um claro indício desta linha de conduta foi a
proposta do governador Mário Covas no ano 2000, de incorporar a
Empresa Metropolitana de Águas e Energia SA (EMAE) à Companhia
de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (SABESP). Este
primado, como se viu, materializado primeiramente pela antiga Light e
sustentado pela Eletropaulo, mantém toda a sua atualidade para a
atual EMAE, que busca recuperar o antigo privilégio do sistema.
A EMAE é herdeira e sucessora histórica do binômio LightEletropaulo. Com o programa de privatização de coloração neoliberal
proposto pela administração Mario Covas em 1995, a Eletropaulo, a
partir da reestruturação oficializada em 31 de dezembro de 1997, foi
desconjuntada em quatro empresas: a Eletropaulo Metropolitana Eletricidade de São Paulo SA, a Empresa Bandeirante de Energia SA
(EBE), a Empresa Paulista de Transmissão de Energia Elétrica SA
(EPTE) e a Empresa Metropolitana de Águas e Energia SA (EMAE).
Destas, as duas últimas permanecem estatais. A EMAE, sociedade
Diário do Grande ABC, edição de 24-03-2002, in Mananciais da Região Metropolitana
de São Paulo: < http://www.socioambiental.org/prg/man.shtm >.
133
6
687
criada pela Lei Estadual nº. 9.631 (de julho de 1996), detém a
concessão de produção e comercialização de energia hidrelétrica e
termelétrica gerada a partir dos recursos hídricos da RMSP, com
obrigação legal de controlar as cheias nas sub-bacias do Alto Tietê.
Assinale-se que em 1993, depois de continuada mobilização do
movimento ecologista e atendendo a recomendação do Conselho
Estadual do Meio Ambiente (CONSEMA), o governo de São Paulo
restringiu definitivamente o bombeamento Tietê-Billings à situação de
ameaça de enchentes. Inelutavelmente, esta decisão acatava uma
preliminar constitucional, na realidade uma grande vitória lograda em
1989 pelos ambientalistas do ESP, que adjudicava na Constituição do
Estado de São Paulo, junto às Disposições Transitórias constantes no
Artigo 46, o prazo de três anos para impedir o bombeamento de
esgotos.
Independentemente de prejulgamentos, esta amarradura jurídica
impunha o que está reproduzido a seguir:
...No prazo de três anos, a contar da promulgação desta
Constituição, ficam os Poderes Públicos Estadual e
Municipal obrigados a tomar medidas eficazes para
impedir o bombeamento de águas servidas, dejetos e de
outras substâncias poluentes para a represa Billings.
Parágrafo Único: Qualquer que seja a solução a ser
adotada, fica o Estado obrigado a consultar
permanentemente os Poderes Públicos dos Municípios
afetados (Constituição do Estado de São Paulo, 1989:44).
É importante considerar que frente ao quadro de deterioração
apresentado pelo reservatório, mesmo o bombeamento esporádico
contribui consideravelmente para agravar as condições ambientais da
6
688
represa, pondo em risco sua capacidade de recuperação (WHATELY
et CAPOBIANCO, 2002:16).
Além disso, o governo paulista continuou pressionado pelos mais
diversos círculos e grupos econômicos com o objetivo confesso de
reativar a hidrelétrica. Na ótica destes setores, a potência instalada de
889 MW da UHE Henry Borden (63% da capacidade instalada total da
EMAE), cuja produção foi, desde outubro de 1992 reduzida em 75%
em virtude do fim do bombeamento da água proveniente da reversão
das águas do Tiête-Pinheiros, é consagrado motivo de insatisfação.
Destarte, muitos segmentos empresariais da RMSP e da Baixada
Santista constantemente colocam a questão da reativação da Usina
em nome de uma argumentação que repete, a inclusione unius ad
exclusionem alterius, os clássicos jargões crescimentistas.
Entretanto, em face dos impeditivos legais existentes, é óbvio
que seria necessário encontrar outro caminho para reconquistar o que
poderia ser julgado como “privilégio perdido”. Nesse contexto, eis que
é apresentado pela administração Geraldo Alckmin o polêmico projeto
de “recuperação” do rio Pinheiros, baseado na flotação das águas.
Nuda repromissio, essa metodologia constitui, na realidade, apenas
uma das etapas dos sistemas convencionais de tratamento de águas
servidas, e como tal, utiliza processos físico-químicos para agrupar as
partículas sólidas de sujeira, concentrando-as na superfície da água
para facilitar sua retirada.
Mas, a técnica jamais foi aplicada em rios do porte do Pinheiros e
tampouco como método único de despoluição de águas destinadas
ao abastecimento. Embora os técnicos estaduais sustentem que a
6
689
flotação pode disponibilizar água um padrão de qualidade compatível
para o abastecimento público (seria, no caso, o gabarito de Classe 2
para as águas, assim definido na Resolução nº. 20/86 do CONAMA),
não existe consenso entre os especialistas quanto ao sucesso e à
excelência da iniciativa.
Assim, na opinião do engenheiro Élio Lopes dos Santos, perito do
Ministério Público, o sistema de tratamento pela flotação vai enviar
muito material orgânico para a Billings, piorando a qualidade da água.
Diz ele, “como a flotação só tira 65% do material orgânico, a Billings
passará a receber 17,5 m³ de esgoto por segundo, além de amônia
total, metais pesados em estado solúvel e pesticidas organoclorados”
(MUG, 2004).
Um outro parecer, do engenheiro Ivanildo Hespanhol, conhecido
expert em saneamento e reutilização da água, aponta risco para a
saúde da população, pois o líquido revertido para a Billings poderia
carrear mais contaminações: “Em 40 anos de trabalho, nunca vi um
método de despoluição baseado num processo de uma fase só, como
a flotação, dar certo” (Cf. GONÇALVES NETO, 2001).
Existem também problemas de gestão que aguardam resposta
adequada. Exemplificando, ninguém logrou até o presente momento
determinar qual seria o destino final do formidável montante de lodo
resultante da flotação. Para a exequibilidade logística do projeto, são
necessárias áreas aptas a receberem enorme quantidade de lodo em
cuja compleição existem substâncias perigosas de índole diversa.
6
690
Estima-se que seria necessário um caminhão com capacidade
para dez toneladas saindo a cada exatos sete minutos das estações
do projeto de flotação para dar conta das cerca de 540 toneladas de
rejeitos diários (Vide PRECONEA, 2003). Na sequência, diante das
incertezas existentes, o mínimo a se esperar do governo estadual
seria a realização de um estudo prévio de impacto ambiental
apontando riscos e a viabilidade ambiental de um empreendimento
desse porte (CAMPANILLI, 2002).
Entretanto, no que evidencia a precariedade das salvaguardas
ambientais e dos mecanismos de participação da sociedade civil, o
projeto sequer foi apresentado ao Comitê de Bacia Hidrográfica do
Alto Tietê (CBH-AT), um claro descumprimento da legislação em vigor
e desrespeito desta instância de decisões.
Naturalmente, a atitude suscita justificadas suspeitas sobre os
reais motivos que impediriam a apresentação da recomendação pelo
governo estadual junto à sociedade civil, assim como a presumível
debilidade do cabedal técnico que respalda a proposta da flotação.
Na realidade, a atuação do governo estadual reproduz o script do
comportamento habitual das administrações de atropelar as cautelas
ambientais que entende enquanto obstáculos para a efetivação das
propostas que apresenta.
Outro ponto preocupante é que novamente, o que está exposto é
um projeto pontual, fragmentado e divorciado da visão de conjunto,
neste prisma, condenado a reproduzir equívocos inerentes às visões
de curto prazo. Esta apreciação é flagrante, por exemplo, no próprio
aspecto setorial da proposta, pois isola a questão do tratamento da
6
691
água das intercorrências que como foi visto, impactam os recursos
hídricos, a começar pela ocupação dos mananciais. Implicitamente, o
projeto repete o foco energético como epicentro do gerenciamento
dos recursos hídricos metropolitanos, relegando o planejamento
urbano e o abastecimento de água a um simplório segundo plano.
De resto, a insistência dos pronunciamentos oficiais em apontar a
flotação como forma de alavancar uma projeção bem mais auspiciosa
para a EMAE no parque nacional gerador de energia sugere que,
acima de tudo, o que está em jogo é o retorno, sob novas roupagens,
do bombeamento do Tietê na direção da Billings com o objetivo de
recompor a capacidade de produção de energia da UHE Henry
Borden. Com isso, o cenário que se desenha é a continuidade do
fornecimento para a população de uma água bebível - mas não
potável - com o que, o torvelinho hídrico torna-se mais do que nunca,
uma ameaça direta para o futuro da RMSP.
É nesta conjuntura que a Billings se prontifica novamente ao
papel de “divisor de águas” das políticas públicas, especialmente das
voltadas para os recursos hídricos. A Billings, com o concurso das
suas derivações, atende com base na média de 112,57 m³/hab./ano
(SABESP, 2004), as demandas de 3,75 milhões pessoas, contingente
que pode ser dilatado até um máximo de 4,2 milhões, nesta última
métrica, pressupondo o aproveitamento da vazão total da represa,
calculada em torno de 15 m³/s (GIUSTI, 2005: 39).
Com este dado em mãos e atentos à radicalização visceral da
escassez de água potável, a tragédia dos mananciais do ABC tornase uma das mais dantescas e inacreditáveis agressões encetadas
6
692
contra o meio ambiente e a sociedade civil brasileira. A conclusão, de
caráter inevitável, aponta para a necessidade de repensar a pauta de
prioridades colocadas para os recursos hídricos.
In nuce, a falta de zelo quanto à qualidade dos corpos líquidos,
sequente à opção de priorizar a geração de energia, ocorrendo em
absoluto detrimento das demandas essenciais da população,
evidencia uma perigosa inversão de valores, colocando em risco os
mais genuínos interesses dos cidadãos.
E nada melhor do que estimular este debate para que então se
possa, com toda tenacidade possível, resgatar o conceito de que a
vida é a finalidade última da água.
E que assim seja!
6
693
PARTE V
CONCLUSÕES: EM BUSCA DE UM FINAL TRANSITÓRIO...
6
694
REPENSANDO UM TRAJETO
Exibir um mostruário de conclusões constitui sumamente um
exercício de síntese. Uma tábua explicativa composta por parágrafos
breves, auxilia aqueles que atravessaram uma discussão no sentido
de alinhavar o que haveria de mais significativo num determinado
tema. Condicionalmente, a pretensão suprema deste esforço seria
despertar apontamentos que, por sedução ou intelecção, passaram a
habitar os recônditos da memória.
Não há como detalhar excessivamente este empreendimento.
Especialmente por estar inscrito no campo do saber geográfico, este
solicita cautela quanto às escalas utilizadas e assim, sendo este o
nexo da explanação, não seria aceitável abusar desta prerrogativa.
Não existe inimigo maior da compreensão da realidade do que o furor
da minuciosidade. Esta, antes de colaborar para o entendimento, tem
por intenção oculta exatamente o oposto: o aleitamento das ficções,
quando não, instrumentalizando a concretude para alçar-se a uma
legitimidade que procura contraditoriamente negar.
Como me empenhei em demonstrar, Água e Metrópole: Limites e
Expectativas do Tempo é um trabalho que versa sobre a dificuldade
crescente da maioria dos humanos serem atendidos na demanda por
água doce. Como recorte analítico foram postuladas três referências
básicas. Duas destas, água e metrópole, constituíram o plano fulcral
da discussão. Ambas, por sua vez, tiveram como lastro argumentativo
o crivo da modernidade e particularmente, de sua temporalidade, esta
6
695
última uma polaridade que conforma o sustentáculo da sociedade
ocidental enquanto marco civilizacional.
Ordenação que se impõe por si mesma no simples ato de folhear
as laudas desta tese, estes pontos foram exaustivamente debatidos
nas implicações mantidas com a questão ambiental, avaliada nos
inelutáveis realçamentos que tanto o espaço quanto o tempo fixam
para a percepção de uma questão tão intrincada e vital para o futuro
próximo que se descortina para toda a humanidade, que seja dito
novamente, habita um mesmo planeta.
Em especial, esta admoestação foi dirigida para a RMSP e ao
Grande ABC, espaços urbanos que geograficamente, acalentaram as
proposituras do autor deste material. Enquanto subscrição manifesta,
ambos foram entendidos como presságio concreto do que pode ser
esperado quanto à gestão das águas doces brasileiras na hipótese de
ser postergada a implantação de uma política justa, séria e decente
para o recurso, averbação que se consorcia de modo irrevogável ao
enfrentamento de diversas outras questões, dentre estas a social e a
urbana.
Carecendo desta disposição, não há como pensar uma política
real de defesa ambiental. Talvez exatamente esta seja a dificuldade
principal desta empreitada: pensar, perceber, decidir. Credita-se ao
filósofo alemão Gunther Anders, o ácido diagnóstico pelo qual o
conceito de progresso ilimitado nos faz cegos frente ao apocalipse (Di
Antiquierbeit des Menschen). Nesta perspectiva,
6
696
...isto equivale dizer que nossos olhos foram
anestesiados, sedados, para não mais ver os cenários
catastróficos que o homem constrói no seu afã de
apropriação ilimitada do mundo (Cf. BAITELLO JUNIOR,
2005: 19).
Exatamente por esta razão, quaisquer pruridos que poderiam
cativar eventual timidez em proclamar o óbvio devem ser de pronto,
abandonados em favor de uma posição clara e inequívoca. Com este
intuito, darei forma às conclusões, provisórias no tempo e no espaço,
entretanto, finais nos marcos da tecedura da narrativa, amealhando
especulações reunidas com base em quatro blocos formados por
considerações relacionadas aos recortes básicos desta tese.
A saber, estas seriam alusivas ao tempo e ao espaço, as cabíveis
à cidade, as dirigidas à água e finalmente, as que se inseririam no
anel definidor das expectativas deste trabalho, quer dizer, as opções
possíveis frente a questão ambiental.
A ENCRUZILHADA DOS TEMPOS MODERNOS
Seguramente, seria impossível deixar de registrar as sequelas
que o desencaixe promovido pelo tempo linear e progressivo imprimiu
ao cotidiano moderno, responsável por parte substancial do cardápio
relativo à crise socioambiental da modernidade.
Elemento constitutivo do seu modo específico de ser, o mundo
contemporâneo, nada obstante ao fato de vivenciar uma crise cuja
origem é a poderosa fruição da temporalidade, se vê instado a lançar
6
697
mão da mesma ordenação do tempo que lhe é peculiar quando busca
solucionar os desequilíbrios gerados pela sua apresentação junto ao
espaço. Alicerçada no tempo e não no espaço, a modernidade voltase, em vista de lastrear-se com base em estaqueamentos temporais,
busca, no equacionamento e superação dos dilemas gerados por ela
mesma, aplicar conteúdos ainda mais superlativos de tempo ao
espaço articulado.
A rigor, todas as recentes inovações tecnológicas se inscreveriam
nesta pulsão. Estas, são impingidas verbi gratia, nos domínios da
produção econômica e dos serviços, caso da robótica, da informática,
telefonia celular e das redes computadorizadas on-line, indissociáveis
do sistema de engenharia moderno. Estas matrizes eletroeletrônicas
têm como denominador comum, o aprofundamento do distanciamento
do homem das referenciais espaciais, exaltando, em vez de atenuar,
a rapidez enquanto um sinônimo da vida moderna, particularmente do
cotidiano urbano.
Contudo, estas soluções desfrutam de fôlego curto. Mesmo
quando bem-sucedidas, as novas matrizes temporais são usufruídas
por poucos, fragilizando, ao contrário de fortalecer, as premissas nas
quais se assenta o status quo. O resultado, como se pode observar,
tem sido a dramática acentuação da desigualdade entre classes,
grupos, povos e nações.
Neste admirável novo mundo global, as elites procuram precaverse dos avanços de uma “horda moderna” composta por uma incontida
multidão de excluídos, de “outros”, que primeiramente usurpados do
seu tempo, para a seguir, serem desespacializados, alimentam moto-
6
698
contínuo, o crescimento desmesurado da chamada “cidade informal”,
satanizada pelo imaginário afluente como origem de todos os males.
Deste modo, o mundo contemporâneo é instado a reinventar os
antigos espaços estanques que ornamentavam o cosmos-natureza de
outrora. As fronteiras dos bolsões de afluência, enrijecendo-se a cada
dia, constituem na sua nevralgia, emolumentos do engenho humano a
serviço dos senhores do tempo.
O objetivo destes dispositivos, formados por guaritas, muros de
concreto, cães amestrados, alarmes sonoros, serviços de segurança
terceirizados, alertas sonoros, cancelas seletivas, cercas eletrônicas e
barreiras panópticas, é deter, praticamente a qualquer custo, uma
multidão de alienígenas recidivos, que gradativamente, são revestidos
dos signos da bestialidade social, cultural e biológica. A imagem do
excluído é cada vez mais conotada por uma iconografia de horrores,
um retrato invertido das qualidades que os afluentes julgam possuir.
No passado, as prepotentes monarquias da Velha Ásia ergueram
longas muralhas visando impedir a fuga de seus súditos. Hoje, ocorre
justamente o inverso: elas são construídas para impedir que entrem.
As novas muralhas da China, dividindo hemisférios, países, regiões,
bairros e cidades, materializam, portanto, lógicas de exclusão, e não
apenas de contenção. Isto porque as barreiras não são erguidas para
manter os aspirantes a novos bárbaros nos limites de uma “periferia
cósmica” do universo. Antes, o ultimatum é perpetuá-los como objeto
de uma integração desigual no sistema mundial existente.
6
699
Fazendo uso de uma logística peculiar aos bunkers, os setores
afluentes da modernidade parecem empenhados em encarceraremse a si mesmos, erguendo por toda parte sofisticados mecanismos de
controle das entradas e das saídas dos seus sistemas de engenharia,
enquistando residências e emparedando bairros, cidades, regiões e
países.
Neste contexto, não é nada fortuito o sucesso da Internet e de
outras formas de contato virtual, pois permitem que as relações sejam
empreendidas prescindido do espaço e da convivialidade enquanto
patamar de contatos. Não falta ainda a muitos destes closed sistems
um “toque ecológico”, atrativo adicional que busca restaurar nestes
espaços, certa intimidade com o “meio natural”, colocado a salvo dos
humanos hostis.
Aprumando desajustes funcionais, ou então, uma desordem que
é apenas a ordem do possível (SANTOS, 1988: 66), esta entropia não
é sentida unicamente a partir de uma ótica de exterioridade, dos
outros que objetivamente, são copartícipes do espaço geográfico. O
homem contemporâneo está em conflito permanente com o outro de
si mesmo, visto como uma espécie de intruso alojado no seu interior,
um “invasor de corpo” preocupado em devorá-lo por dentro e, quem
sabe, assumir de vez a corporalidade hospedeira. Excisado física e
psicologicamente dos seus semelhantes, fica comprometido para o
homem moderno, qualquer vínculo duradouro e sincero do indivíduo
com o coletivo e o espaço público, pavimentando como resultado, a
emergência de uma “sociedade incivilizada” (SENNETT, 1993).
7
700
No estágio atual, a modernidade propõe rupturas de amplitude
radical, provocadora de intervenções científicas que afetam o ser
físico do homem e a sua constituição biológica. A fascinação com
sofisticados dispositivos eletrônicos potencializando nos humanos, as
suas potencialidades e habilidades (congênitas ou não), e por seres
naturais recombinados, respondem pelas inflexões profundas que
germinaram das expectativas do tempo linear. Assunto popularizado
por uma filmografia science fiction de certo vulto, sua veiculação pode
ser entendida pela genealogia de metanarrativas atinentes a novos
territórios imaginários, através dos quais, uma cadeia de estampas
ficcionais coloniza antecipam a fecundação do real.
Contudo, a despeito da força potencial que estas prefigurações
incorporam e do movimento inercial dos sistemas de engenharia
modernos, ainda assim poder-se-ia objetar o entendimento de que os
humanos sejam prisioneiros de uma torrente que irresistivelmente os
arrasta para um abismo sem fim.
Note-se que comumente, as construções imaginárias intercalam,
no final das contas, antinomias e contraposições, cotejamento que em
tempos idos, transpareceu em sucessivas ideações culturais. Deste
modo, na antiga mesopotâmia, a entidade Tiamat, sintetizando o caos
e as forças do abismo, polarizava com Marduk, augusto instaurador
da ordem. Na Pérsia, o Zoroastrismo repete esta locução, e tal como
no duelo mesopotâmico, a ordem, agora encarnada em Ahura Mazda,
o Senhor Sábio, duela com o dragão Ariman, considerado Príncipe
das Trevas, da morte, da mentira e do engano.
7
701
Em suma, a totalidade dos sistemas religiosos e de pensamento
propõem continuamente a possibilidade de alternativas e de abertura
de novos caminhos, assertiva igualmente válida para momentos como
estes que vivenciamos, no qual a modernidade depara-se com uma
encruzilhada. Resgatando um ensinamento do físico Ilya Prigogine, a
produção de entropia sempre enseja dois elementos dialéticos: um
elemento criador de desordem, mas também um elemento gerador de
ordem, estando ambos, continuadamente associados entre si (apud
PRIGOGINE, 1991: 39).
Esta dinâmica, permite amealhar arrazoados que, na contestação
do modus vivendi, essendi et pensandi da modernidade, respondem
propositivamente em diferentes interfaces nas quais a aceleração do
tempo linear firmou seu império processual. Sumariamente, poder-seia citar a agricultura orgânica, a energia solar, reeducação alimentar,
as condutas baseadas no minimalismo e na simplicidade voluntária,
recortes associados aos movimentos antiautomóvel, de contestação à
televisão e das mobilizações voltadas para a renaturalização dos rios,
todas assimilando um nítido referencial ambientalista.
Todavia, na torrente impetuosa de um tempo voraz e aniquilador,
supremo animador de um sistema autopropelido, obcecado com a
promoção da insatisfação permanente, constituiria uma ingenuidade
cabal subestimar o potencial destrutivo da temporalidade moderna e o
quanto ela já foi internalizada por vasta maioria dos humanos.
Sinal de que as tentativas de fazer retroceder este quadro serão
submetidas às mais duras provas.
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702
OS LIMITES DA GRANDE METRÓPOLE
Faz 34 anos que um polêmico prefeito da capital paulista, José
Carlos de Figueiredo Ferraz (1918/1994), engenheiro de formação,
discípulo de Catullo Branco e adversário da velha Light and Power 134,
conquistou notoriedade invertendo uma fórmula que contradizia o
ethos metropolitano. Em 1971, sem mais nem menos, em alto e bom
som, anunciou para pasmo dos metropolitas, o mandatário da cidade:
“São Paulo precisa parar de crescer”.
Esta frase incomodou o ufanismo hegemônico num período em
que o slogan era o motto “São Paulo, a cidade que mais cresce no
mundo”, que o alcaide questionava ao verter luz para dilemas
fundamentais, como a incapacidade do poder público acompanhar a
explosão da expansão da metrópole, cujo erário, crescentemente se
tornou incompatível com a interminável tarefa de calçar a urbe com
serviços básicos adequados, sistemas de infraestrutura e logística de
gestão.
A sincera pregação de Figueiredo Ferraz também foi incômoda
aos ouvidos do regime militar, inebriado com os autoproclamados
sucessos do “milagre econômico”, e para arrematar, não tinha como
encontrar ressonância numa atmosfera em que a nação se mantinha
mesmerizada pelo enganoso canto de sereia desenvolvimentista,
embalado por fabulações compassadas por números e estatísticas
estonteantes, que se presumia, antecipavam o surgimento do “Brasil
Potência” (Cf. SINGER, 2002: 120/121 et seq).
Figueiredo Ferraz criticava o não cumprimento por parte da Light, do decreto de
Eurico Gaspar Dutra de 20/10/1946, pelo qual era obrigada a construir obras de
represamento nas cabeceiras do Tietê, o que nunca foi feito (Cf. PONTES, 2001: 6).
134
7
703
Entrementes, as palavras do prefeito refletiam o zeitgeist que
ecoava na década de 1970 nas concertações dos especialistas de
planejamento metropolitano. O controverso alcaide, que contabilizou
dentre os projetos de sua lavra a primeira - e até agora única -, Lei de
Zoneamento da capital (1972), a criação da Empresa Municipal de
Urbanização (EMURB) e empreendendo obras sofisticadas, tais como
o Museu de Arte de São Paulo (MASP), na avenida Paulista, teve um
fado inglório.
O burgomestre, ao recusar-se a ingressar na Aliança Renovadora
Nacional (ARENA), partido de sustentação da ditadura militar e se
indispor com José João Abdala (mais conhecido como JJ Abdala), o
famigerado “mau patrão” (empresário cuja fábrica, a Cimento Perus,
na época uma das principais fontes de poluição da cidade, que Ferraz
intentara fechar), o destino político do prefeito foi selado. José Carlos
de Figueiredo Ferraz acabou perdendo o posto: o governador Laudo
Natel, responsável pela sua nomeação, demitiu-o sumariamente com
uma reles carta (1973).
Todavia, a frase impregnou a memória de todos. Especialmente
para os que entenderam que a metrópole alcançara seus limites, se
tornou, pela lucidez, um chamamento de primeira linha. Dois anos
após sua demissão, Figueiredo Ferraz, ao proferir uma palestra,
definiu o paradoxo do crescimento urbano de São Paulo recorrendo a
um maroto “causo” caipira: “A cobra estava muito feliz: não precisava
mais se mover para conseguir alimento; certo dia, apavorada,
percebeu que comia a si mesma, pela cauda”.
7
704
O engenheiro fez uso da parábola, pois entendia que a imagem
fazia sentido com o que atinava ser o destino das grandes cidades
brasileiras na hipótese de estas ignorarem o constructo estratégico do
planejamento urbano. Na sua avaliação, a metrópole estava atingindo
o limite, chegando a um tipping point a partir do qual a entropia se
tornaria imperante, fazendo com que investimentos cada vez maiores
redundassem em retornos cada vez menores: uma verdadeira “lei dos
rendimentos urbanos decrescentes”.
Obviamente, seria imprescindível indagar a respeito do que seria
entendido como “limite metropolitano”. Numa retrospectiva histórica, o
que se tem de um ponto de vista meramente demográfico, é que a
cidade reunia em 1970, contexto em que Figueiredo Ferraz assumiu o
comando da capital, exatos 5.641.330 residentes (IBGE, 1970). Mas,
após três décadas e meia, a nova Piratininga abrigava 10.838.581
cidadãos (estimativa IBGE 2005), praticamente o dobro da totalização
anterior. Trabalhando exclusivamente com ordens matemáticas de
grandeza, decerto seria difícil deixar de ficar sobressaltado com as
cifras, e de concordar que a cidade de fato cresceu muito, até demais.
Mas, sob qual aspecto este montante poderia ser considerado
“muito”? Afinal, vale advertir que fazer uso irrefletido de indicadores
aritméticos implica simplesmente em comparar nada com nada (Cf.
SINGER, 2002: 74). Por conseguinte, retomando uma discussão feita
noutro momento neste mesmo material, o meio urbano moderno, e
particularmente a grande metrópole reporta a uma taxonomia que
sinaliza para um contexto espacial marcado por acesos desequilíbrios
estruturais, coexistindo com antagonismos permanentes e a ruptura
seriada da operacionalidade dos serviços ecossistêmicos. Por isso
7
705
mesmo, seria inteligível que mais eficaz do que discutir números,
interessaria compreender a natureza do sistema metropolitano, suas
funções e o estatuto mantido com os habitantes da cidade.
Primeiro, quanto ao fato da metrópole não garantir bem-estar aos
seus habitantes, vale a pena recordar que sua função simplesmente
não é essa. Enquanto sistema de engenharia, a metrópole não coloca
o equilíbrio socioambiental como meta. Tanto assim que as iniciativas
que procuram o afago da natureza amiga no seio do meio urbano se
corporificam a despeito, e não com o concurso, das lógicas concretas
de reprodução da metrópole. Mutatis mutandis, em boa parte estas
experiências estão sintonizadas com ideais ambientalistas, ou seja,
na contramão do discurso e da prática que tem incessantemente
mobilizado a cidade na direção dos desafios aos quais ela está, neste
momento de mundo, ungida a enfrentar.
Basicamente, a grande cidade, atendendo aos mecanismos de
reprodução do capital, funciona enquanto um espaço econômico, que
absorve recursos e trabalho humano em larga escala. Contando com
áreas cada vez restritas para depositar seus resíduos, desperdiçando
energia a um custo de obtenção cada vez maior e se deparando com
um fatídico estresse hídrico, a metrópole tem dado mostras evidentes
de cansaço, de fadiga crônica. Nesta perspectiva seria mais plausível
deter-nos no significado das transformações urbanas mais do que nas
considerações atadas em anódinas curvas de expansão demográfica.
Assim, houve um tempo em que Paranapiacaba era um ponto do
qual se divisava o mar. No passado, a vila foi definida, no tocante à
sua localização, como “crista” ou “alto da serra”. Mas atualmente, esta
7
706
localidade, que exerceu no passado o papel de primeira estação da
ferrovia na entrada do planalto, constitui tão somente, uma beirada da
metrópole paulista.
Sinal de que os relógios ferroviários cumpriram sua missão, em
2005 bastam vinte minutos de ônibus para alcançá-la a partir da
cidade de Rio Grande da Serra, situada nos bordos do ABC. Poucos
quilômetros serra abaixo, aguardam os bairros-cota, progredindo da
Baixada Santista na direção do coração do Complexo Metropolitano
Expandido. Hoje, o sítio de Paranapiacaba não passa de um mirante
privilegiado desta fração da tecnoesfera que é a Grande São Paulo.
Certo estava Caio PRADO JÚNIOR, que anotou a chegada de uma
época na qual a metrópole paulista - contínua e homogênea - seria
somente a monotonia de uma imperativa urbe moderna, suprimindo
roças, cursos d’água e todos os obstáculos naturais que encontrasse
no seu caminho (1998: 79, grifos nossos).
Dificilmente pode-se imaginar que esta expansão continue sem
suscitar disrupções que deteriorem uma textura urbana já regrada por
exasperantes dificuldades. A metrópole, propensa pela sua dinâmica
a não ter nenhum limite, apontaria objetivamente para a torção do seu
espaço articulado. No que seria sintomático da intuição que vislumbra
uma débâcle metropolitana, o planejamento urbano “macro” desponta
em inúmeros círculos, dos movimentos sociais à academia, das ONG
aos organismos governamentais, como a pedra de toque do repensar
a cidade, no mais das vezes, revestido com a auréola das soluções
redentoras.
7
707
Para muitos que se enamoraram do macro-planejamento, este se
tornou a antessala da nova metrópole, renascida triunfante das ruínas
e do caos. Planejada racionalmente, a urbe portentosa, indexada no
plano das idealizações como objeto de intervenções que permitiriam
normatizar e corrigir seus desatinos, poderia enfim encontrar uma
saída para as suas angústias.
Todavia, ainda que em princípio a normatização do dinamismo
citadino venha a estatuir “um outro mundo urbano possível”, esta
pretensão solicitaria mais cautela e menos entusiasmo. Como foi
visto, inexiste planejamento que ocorra no vácuo. Este, para se tornar
concreto, solicita o lastro da esfera política, que sumamente é quem
dá as cartas. Anote-se que justamente por minimizar sua importância
é que promissoras iniciativas urbanísticas, numa escala pontua desde
os planos metropolitanos, passando pela legislação dos mananciais e
incluindo na outra ponta os planos diretores, foram engavetadas ou
coroados por fracassos.
Na realidade, a “urbanização caótica” corresponde a um estágio
de constituição territorial de um meio técnico-científico-informacional
equipando a metrópole para fazer frente aos apetites do capitalismo
globalizado, preceituando um padrão modelar que, acima de tudo,
reforça formas de inserção subalterna na ordem internacional. Nestes
moldes, o móvel seminal dinâmico, reforça o cisalhamento da textura
social, o acirramento do esgotamento ecossistêmico, o alargamento
do edifício segregativo e ab integro, a radicalização da sociedade
dual. Nesta cadência, o planejamento urbano, que nesta derivação
tanto faz que seja imbuído de boas ou más intenções, pouco pode
efetivamente realizar caso subestime as forças que na prática, estão
7
708
postadas no comando da organização do espaço, o que de um modo
direto, reporta à dimensão do poder (Vide SANTOS, 2003: 34 e 2001:
5; CLAVAL, 1979).
Adotando-se a formulação axial do economista mexicano Enrique
LEFF, por meio da qual a crise ambiental coloca claramente o limite
das economias de aglomeração, dando margem a deseconomias de
congestão, tendo por lápide a contaminação urbana e a incapacidade
de oferecer equipamento básico aos metropolitas (em especial aos
excluídos), então, a epígrafe que por excelência pautaria o repensar
da cidade seria a emergência de deter seu transbordamento rumo ao
entorno, impedindo a multiplicação seus impactos (2004: 289 et seq).
Deste modo, a necessidade de frear a expansão do sistema de
engenharia urbano destaca sub-repticiamente o caráter político da
sua crise. Na Grécia, a 2.400 anos atrás, o filósofo Platão, meditando
com seus parceiros a respeito dos descompassos vivenciados pela
cidade, atinou que a aplicação da justiça, acima de tudo resulta
daqueles que detém a força, sendo esta uma conveniência dos mais
fortes (1990: 24, grifos nossos).
Ontem, como hoje, a gestão da cidade recoloca a questão da
centralidade política, da gerência social e do horizonte aparentemente
inultrapassável da economia. O resultado da equação que modelou a
grande metrópole está à vista de todos. Seja então dito às claras,
alterá-la implica em revolucionar o equilíbrio de forças em curso,
engendrando um dinamismo inédito.
Uma necessidade urgente em face do que salta à vista de todos.
7
709
PENSANDO O CURSO DAS ÁGUAS
Qualquer que seja a intenção ao discutir um tema como a água,
nada permite esquecer que esta substância desde sempre exerceu
forte fascínio sobre a mente humana. Deste modo, não hesitaria em
consignar comentários generosos sobre a importância do líquido no
imaginário social das culturas do passado. A celebração da água,
presente em todos os continentes e em todas as épocas, forma um
ilustrado painel de imagens cheias de respeito afetivo e de carinho
por este líquido vital.
Obviamente o encanto das sociedades de outrora pelas águas
não se desvinculava de sentidos práticos e objetivos, relacionados
com a agricultura, com a pastorícia e o fortalecimento da coletividade
enquanto entidade social, política, econômica e cultural. Certamente
foi esta a obstinação que inspirou um dos mais insignes soberanos do
Sri Lanka, Parakramabahu I (1153/1186), a anunciar diante de seu
povo: Que nenhuma gota de chuva que caia nesta ilha se perca antes
de ter servido a humanidade (Cf. GURUGÉ, 1985: 29).
Porém, passados mais de oitocentos anos da proclamação desta
máxima, a contaminação dos recursos hídricos globais progride numa
escala inimaginável. Rios inteiros, lagos e reservatórios subterrâneos,
todos estão sendo alvo de contaminação pelo esgoto e por resíduos
tóxicos, perigosos e radioativos. Mananciais e rios que abastecem as
populações são conspurcados, depredados e inviabilizados. Horresco
referens, as regras contemporâneas são a exata negação das sábias
recomendações do antigo soberano do Sri Lanka, fazendo com que
7
710
no mundo atual, as águas sejam destruídas antes mesmo de servir
aos homens.
Como foi observado, um dos motivos básicos que justificam este
processo de destruição dos recursos hídricos reporta, é óbvio, à
engrenagem da economia moderna. Relatórios, estatísticas, análises
e muitas publicações esclarecem em uníssono, que o processo que
está transformando a água numa substância suspeita e rarefeita em
nível mundial, tem sido basicamente alavancado em concomitância
com o avanço indômito da produção econômica, hoje encimada pela
economia-mundo pavimentada pela globalização onipresente e no
mais, substantivada na disfuncionalidade integral do antropoceno.
Tal tendência, prontamente detectada pelo ideário ambientalista,
foi profusamente pontuada em muitos documentos, quase sempre se
postando na defesa da função social na apropriação dos recursos
hídricos. É o que se pode conferir tomando conhecimento de um
excerto do Tratado de Água Doce, firmado no Fórum Paralelo da Eco92, no qual, o parágrafo que aborda o tema dedicado à água e ao
desenvolvimento dispõe:
“As soluções pontuais que supõem a privatização e
fragmentação do ciclo d’água tende a piorar a situação
atual. As soluções dos problemas que se apresentam no
uso e reúso requer uma visão de conjunto das bacias e
deve ser obtida através do processo de participação e
cooperação. O mercado de qualquer forma, não é a
solução per si ao conjunto dos problemas do manejo dos
sistemas hídricos, sendo que a primeira alternativa
ambiental para a resolução destes problemas implica na
gestão da água, onde prioridades e decisões são
resultantes de processos coletivos de debate, com
7
711
participação dos diversos setores sociais, e decisão com
ampla participação popular, sendo assim assumidos pela
coletividade” (1992: 2).
Entretanto, este alerta parece não ter logrado qualquer sucesso.
Outras advertências repetindo este corolário, proferidas em encontros
mundiais como o FSM, caíram do mesmo modo, em ouvidos moucos.
O resultado, é que no início do novo milênio, cujo proêmio é o Século
XXI, a questão dos recursos hídricos foi contemplada de calamitoso
vulto, encimada pela adjetivação mercadológica que tem sob suas
rédeas, o acesso ao ouro azul e as destinações que lhe são impostas.
Na mesma sequência em que o termo estresse hídrico passou a
integrar a cartilha anglófona da modernidade, observou-se a difusão
de um pacote de controversos “produtos hídricos” que quando muito,
apenas rasteiramente poderiam se aproximar da antiga, soberana e
honrada altivez da água, que dantes fluía pelos regatos e córregos da
Terra. Versões ersatz da boa e velha água doce agora circulam na
forma das águas de síntese e de águas engarrafadas cuja qualidade,
não é necessariamente fiável e noutros criativos itens universalizados
pelo marketing da dessedentação.
Hoje, regiões inteiras, tais como a zona setentrional do México,
dependem diretamente de refrigerantes, e não da água, para aplacar
a sede. Este rincão do planeta, considerado o maior território “cocacolonizado” do mundo, seria, entretanto, somente o primeiro numa
fornida compilação de espaços nos quais é pressagiada a repetição
do fenômeno (BARLOW et CLARKE, 2003: 71 et seq).
7
712
A rarefação da água, convertida num dado estrutural do modus
operandi da modernidade, passa, precisamente por esta razão, a
ocorrer mesmo em regiões nas quais, como no caso brasileiro, o
líquido foi abundantemente concentrado pela natureza. No Brasil,
uma somatória perversa de privilégios, desperdício e ausência de
uma visão de longo prazo, consolidam o ingresso do país (ou melhor
aferindo, dos seus sobrantes), nas cirandas da sede.
No que assegura que o problema não remete exclusivamente à
distribuição natural da substância, no nosso país, o que mais falta não
é água, mas sim, “determinado padrão cultural que agregue ética e
melhore a eficiência de desempenho político das administrações, da
sociedade organizada lato sensu, das ações públicas e privadas,
promotoras do desenvolvimento econômico em geral e da sua água
doce, em particular” (REBOUÇAS, 2002a: 32/33).
Conjuminando aspectos discutidos ao longo deste material, a
concatenação das problemáticas da escassez e da mercantilização
dos recursos hídricos com as do tempo linear, complementariam a
exposição deste panorama. Logo, a água está escasseando devido à
velocidade com que a substância tem sido requisitada pelos diversos
interesses do sistema produtivo, pela forma acelerada com que os
resíduos - incorporando enormes inputs hídricos e energéticos -, são
descartados, e muito particularmente, pelo consumo pantagruélico do
escol afluente.
Por sua vez, as temáticas da água e do tempo se acoplam com
as da cidade, até porque, o meio urbano é a mais altivo bastião da
temporalidade moderna. Uma vez que as metrópoles constituem os
7
713
fixos por excelência dos fluxos do tempo linear e progressivo, os
centros urbanos, em especial as metrópoles, terminam por expressar,
direta ou indiretamente, as contradições matriciais deste processo.
É justamente neste rol de contradições socioespaciais que se
torna possível identificar os desacordos relativos com a ocupação das
áreas de preservação ambiental, cujos atores mais proeminentes são
os grupos excluídos dos circuitos da modernidade, os outsiders do
sistema formal.
Apartados do tempo, do espaço, da cidade e também da água,
paradoxalmente a cidade formal os atira para as reservas de água
doce que deveriam dessedentá-la. Na RMSP, este fenômeno atende
principalmente pela ocupação da região dos mananciais, um cenário
urbano embrutecido que se agrava pelas performances que exaltam
um crescimento aureolar da estigmatizada “cidade informal”, que se
consolida com base num fornido cinturão de favelas que cerca a
cidadela paulista.
No segundo semestre do ano de 2005, assim noticiou um
conhecido órgão da imprensa paulista:
A expansão das favelas ultrapassou os limites da periferia
de São Paulo. São 400 mil habitações precárias
espalhadas por uma área de 60 km², onde vivem cerca de
1.600.000 pessoas. Boa parte dessas favelas invadiu
áreas de proteção ambiental e de mananciais em Osasco,
Guarulhos, São Bernardo do Campo, Diadema, Taboão
da Serra e Embu e de produção de hortifrutigranjeiros de
Suzano, Mogi das Cruzes e Biritiba Mirim. As informações
constam de 64 mapas, cujas imagens foram extraídas de
satélite entre 2003 e junho deste ano, que serão
7
714
divulgados hoje pela EMPLASA. Só no entorno das
Represas Billings e Guarapiranga vivem dois milhões de
pessoas: ‘Esse número cresce a uma taxa anual de 7%
na Billings e de 3,5% na Guarapiranga’, afirmou Marcos
Campagnone, presidente da EMPLASA 135.
A dimensão deste problema ensejou diversas tentativas, nem
sempre satisfatórias ou convincentes, visando solucionar ou mitigar
os impactos encetados no meio ambiente. Mas há também propostas
que procuram nutrir-se da crise. Uma destas, foi, para exemplificar, a
concepção do “loteamento ecológico”, proposto nos anos noventa em
São Bernardo do Campo para ser implantado, com o entusiástico
apoio dos órgãos de planejamento do município, no seio da região
dos mananciais.
Mas, constituindo uma proposta que como qualquer outra, se
materializou num campo de relações políticas, esta peça projetual
conciliava na realidade o loteamento clandestino com o poder público
municipal, sendo apenas uma, num escabroso cipoal de proposições,
que reclamavam chancela “técnica”, e até mesmo ambiental, para
justificar o injustificável 136.
De modo símil a outras tarjas físico-ecológicas, os mananciais
permitem muitos usos possíveis (Cf. Apêndices 1 e 2), porém não
qualquer uso. Por isso mesmo, resgatando um parecer igualmente
datado da década dos 1990, é evidente que qualquer que seja a
solução para a questão dos mananciais, o que parece claro é que o
modelo de preservação da qualidade das águas doces e o modelo de
crescimento urbano das urbes brasileiras são fenômenos totalmente
135
136
Jornal O Estado de São Paulo, edição de 5-10-2005, Caderno Metrópole, página C1.
Análise detalhada deste contexto pode ser apreciada em WALDMAN, 1994c.
7
715
incompatíveis. Assim sendo, parece-nos irretorquível asseverar que
diante da necessidade de um dos dois ter que ser alterado, a única
posição consequente é que então, o modelo urbano seja mudado (Cf.
SEMASA, 1991: 14).
No mais, seria conveniente realçar que a adoção desta posição,
embora importante, integra um elenco de medidas bem mais amplo. A
bem da verdade, mudar a dinâmica urbana não poderia se resumir a
estratégias de “contenção” do crescimento no aspecto meramente
territorial. O espaço urbano é sustentado por uma acentuada pegada
ecológica. Logo, modificar o funcionamento do sistema de engenharia
urbano significa mudar sua cartilha funcional, o estilo de vida e o de
consumo, retroagindo a pressão do ecological footprint das cidades,
medidas imprescindíveis para manter os mananciais de água doce.
Aquiescendo com o que foi pleiteado em vários momentos, certo
é que a conservação dos recursos hídricos solicita o suporte de
diversas estratégias, tais como as centradas na questão do consumo.
Por intermédio desta enunciação, a preservação das águas azuis se
entrelaça com programas como os voltados para a conservação de
energia, da coleta seletiva de lixo e pelas condutas incrementais do
consumo responsável.
Fato indiscutível, estas práticas substantivam procedimentos que
induzem um novo padrão de aproveitamento dos recursos hídricos,
colaborando para os equilíbrios hídricos e a saúde das águas, e por
extensão, para a preservação do sistema-vida.
7
716
Sem embargo, retenha-se que a aplicabilidade destas premissas
alcança quando muito, aqueles segmentos que dotados de melhor
inserção social e educacional, foram convertidos ao ideal da salvação
do planeta, sendo que no prisma da sociedade contemporânea, as
duas camadas bem definidas da população, detém um poder de
compra desigual, com o consumo variando em qualidade, quantidade
e em frequência (Cf. SANTOS: 1981: 40), recorte que problematiza
axiomas que com certa frequência, são pautados de modo simplista e
esquematizante.
Daí que o handicap inconfesso de muitas das abordagens, é que
a melhoria da qualidade de vida de amplos segmentos sociais sugere
de uma forma ou de outra, incorporá-los a algum tipo de consumo,
implicando, é óbvio, numa disponibilidade hídrica que quando melhor
aferida, pode ser inadequada ou simplesmente inexistente.
Tal como também é evidente, o way of life contemporâneo não é
condiz com a conservação dos recursos hídricos. Tal apontamento
leva a todos compreender que o curso do aproveitamento das águas,
solicita mudanças estruturalmente radicais, apoiadas na alteração de
padrões culturais e civilizatórios profundamente arraigados.
Pensar a dimensão deste problema, e aquilatando o poder de
uma indústria cultural que converteu boa parte das consciências em
consumidoras passivas de sinais, como não sufragar o ponto de vista
de Lorraine ELLIOTT (1998: 253), pelo qual a sociedade moderna, tal
como a conhecemos, estaria próxima de um ponto de não retorno?
7
717
NATUREZA E ALTERNATIVAS DA METAMORFOSE
A tese Água e Metrópole: Limites e Expectativas do Tempo
colocou insistentemente em discussão temas como água, metrópole,
o espaço e o tempo, que implicitamente recomendam uma leitura e
um posicionamento direcionado para o ambiental, ponderação que
seja dito, está distante de constituir um preciosismo ativista.
Indiscutivelmente vislumbro no horizonte a aproximação dos mais
dramáticos efeitos derivados do trato mediatizado pela modernidade
relativamente ao meio natural, que se vê diante de uma incontida
aceleração da bomba-relógio do antropoceno. Atentemos assim, para
o que Friedrich ENGELS, antevendo as ruinosas regurgitações da
natureza hostil como reação ao desmesurado desejo pelo domínio do
ambiente, ponderou:
Mas não nos regozijemos demasiadamente em face
dessas vitórias humanas sobre a Natureza. A cada uma
dessas vitórias, ela exerce a sua vingança. Cada uma
delas, na verdade, produz, em primeiro lugar, certas
consequências com que podemos contar; mas, em
segundo e terceiro lugares, produz outras muito
diferentes, não previstas, que quase sempre anulam
essas primeiras consequências (1979: 223/224).
Deste modo, a crise ambiental da modernidade, ou coadunando
com o que é frisado por narrativas congêneres, da ordem global, se
retroalimentando das contradições geradas por ela mesma, traça uma
analogia com a imagem da serpente que tende a desaparecer, vítima
de sua incontida voracidade.
7
718
Historicamente, os que perceberam este movimento e em
especial, os que assumiram o encargo da advertência, não raramente
tornaram-se alvo de objeções e da repreensão do modo de pensar
dominante. Todavia, quem hoje em dia ousaria estigmatizar as
preocupações ambientais, como foi comum somente poucas décadas
atrás, enquanto devaneio de românticos, preocupação de insensatos,
dos pouco afeitos ao trabalho ou pior ainda, dos “inimigos do
progresso”?
O fato é que mobilizada por uma compulsão verdadeiramente
tanática, a civilização ocidental, vitimada pela propensão da rapidez,
ao não dispor de espaço para locar os incontroláveis fluxos de tempo,
poderá soçobrar, com o cipoal de consequências que este fato trará à
maioria, senão a todos os humanos, por faltar-lhe o calço do espaço.
Utilizando uma metáfora, e nela há muito de realidade, poder-seia dizer que a torção provocada pelo tempo da modernidade está
fazendo o espaço desmoronar para dentro de si mesmo, arrastando
de roldão, o homem e a natureza. Diante de um panorama como este,
como contradizer que um estado premeditado de desatenção civil,
diagnosticado pelo sociólogo inglês Anthony GIDDENS (1991: 130),
não faria sentido completo?
Nesta direção, não é permitido silenciar a respeito das tentativas
do establishment em mascarar uma engrenagem política, cultural,
econômica e social que, sucintamente, é em si mesma, geradora de
desordem, um modus faciendi que engasta, embora de um modo nem
sempre consciente nos que esposam o ideário ambientalista, o credo
do desenvolvimento sustentável.
7
719
Como muitos outros termos adjetivados, dentre os quais política
social (que de modo indireto assume que a política não está voltada
para a sociedade), planejamento urbano (que denuncia que na cidade
a planificação não tem lugar) e política pública (que admite que o
Estado não leva em consideração as aspirações dos cidadãos), o
desenvolvimento sustentado espelha que a forma de convivência com
o meio natural na sociedade contemporânea, pouco ou nada possui
de sustentável.
No melhor dos mundos, tal como certeiramente observou Selene
Herculano dos SANTOS (1992), especialista em sustentabilidade e
em justiça ambiental, a pregação do desenvolvimento sustentável tem
se destacado mais como discurso do que enquanto uma prática real,
sendo que na realidade, restringe as possíveis ambições em prol do
natural a pavimentar uma transição entre o insuportável e o sofrível.
Neste senso, o ecologismo e os movimentos sociais relacionados
a reivindicações com este perfil, sejam estes “novos” ou “velhos”,
sejam rotulados de ecológicos ou não, intrinsecamente formam o
horizonte de novas formulações, dissociadas da lógica temporal e
espacial da modernidade, e justamente por esta razão, não admitem
vinculação com formulações que advogam a compatibilização entre o
status quo e o meio ambiente.
Não mais porque, antes de compatibilizar as formas existentes de
produção com uma quimérica “preocupação ambiental”, o que está
colocado é uma revolução completa em nossa forma de ser,
abdicando das fabulações do ter. O ambientalismo refere-se a uma
tomada de posição em prol da defesa dos direitos do homem e da
7
720
sua participação real no mundo concreto, sentido este impregnado de
história (Cf. ACOT, 1990: 190/192).
Por isso mesmo, o ambientalismo traz per se, uma conexão
perpétua com as demandas primordiais por democracia e justiça
social, enlace que, aliás, é uma prioridade para todos os países, e de
um modo particular, para o Brasil e o Terceiro Mundo numa acepção
alargada (VIOLA, 1988).
Em sua volição mais profunda, o ecologismo preconiza a releitura
da temporalidade linear, conectada a uma perspectiva espacial, daí
que o resgate da natureza, implica, num parecer geográfico, em uma
nova territorialidade. Sobretudo porque o ambientalismo diz respeito à
possibilidade de viver radicalmente a condição humana, devolvendo à
natureza seus mitos e ciclos, e por extensão, seu cadenciamento do
tempo.
Assim, é a partir do dinamismo histórico das sociedades, e não
das árvores e nem dos peixes, que depende a opção de vida a ser
encetada pelos humanos, uma humanidade que para sua própria
sobrevivência, tem um compromisso marcado com a naturalidade (Cf.
DIÓGENES, 1992: 10 e CARVALHO, 1991: 62/63).
Não existe mudança despojada de visão crítica da realidade, e do
mesmo modo, nenhuma mudança ocorre privando-se da aspiração de
que uma nova realidade, acompanhada de rigor e serenidade, para
se tornar possível (passim SANTOS, 2000).
7
721
Mais do que nunca, o senso de que estamos diante de uma
encruzilhada, impondo ações de superação é vital. Daí, inferimos que
o esforço “deve ser o de buscar entender os mecanismos dessa nova
solidariedade, fundada nos tempos lentos da metrópole e que desafia
a perversidade difundida pelos tempos rápidos da competitividade”
(SANTOS, 1988: 86).
Daí que, entendendo-se que de uma parte, a contingência pelo
inédito reclama novas metodologias científicas, de outro, prefigura um
convite para a ação junto à materialidade social, o que no reino das
práticas reais, reporta à decisão de alterar o curso da história e criar
uma realidade nova, embrião prenhe de novas perspectivas e novas
esperanças.
Assim sendo, Boas Notícias: Lutemos por elas!
7
722
Águas que fluem hoje: Bica de água da Fazenda Santo Antônio das
Palmeiras, em Mineiros do Tietê, município do Estado de São Paulo (Foto:
Maurício Waldman, dezembro de 2004).
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Folha de Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra.
Água Viva, órgão informativo do Consórcio Intermunicipal das Bacias
dos Rios Piracicaba e Capivari, 1991/1993.
7
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6.2.2. Revistas
ABES INFORMA – Órgão de Informação da ABES, ABES Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental,
Rio de Janeiro.
Bio: Revista Brasileira de Saneamento e Meio Ambiente, publicação
da ABES - Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e
Ambiental, Rio de Janeiro.
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ELETRONIC WASTE GUIDE: < http://www.e-waste.ch/ >
7
776
6.6. INFORMATIVOS ELETRÔNICOS
Manchetes Socioambientais, informativo eletrônico elaborado pelo
Instituto Socioambiental, São Paulo (ISA), São Paulo.
Paz Agora, informativo eletrônico elaborado pelo Movimento Amigos
Brasileiros do Paz Agora, Moises Storch (sponsor).
6.7. DICIONÁRIOS
ABBAGNANO, Nicola. Diccionario de Filosofia,. 2ª ed. 8ª reimp.
México: Fondo de Cultura Econômica, 1991.
BEREZIN, Jaffa Rifka. Dicionário Hebraico-Português. São Paulo:
EDUSP, 1995.
Glossário Ambiental. In: Ambiente Brasil. Disponível em: <
http://www.ambientebrasil.com.br >. Acesso em: 19 jun.
2005.
OLIVEIRA, Cêurio de. Dicionário Cartográfico. 2ª ed. Rio de Janeiro:
IBGE, 1983.
OLIVEIRA, Cêurio de. Vocabulário Inglês/Português de Geociências.
Rio de Janeiro: IBGE, 1995.
6.8. ICONOGRAFIA
Imagens Históricas da Limpeza Pública, São Paulo, organizada por
Dan Moche Schneider, 2000.
Israel, Die Goldenen Bucher, Suíça, Hallwag SA Berne, 1966.
7
777
A Água Nossa de Cada Dia, cartilha de conscientização com
ilustrações de Ziraldo, SAAE Sorocaba e Governo Municipal
de Sorocaba, 2005.
6.9. FONOGRAFIA
Cantoria dos Mananciais - Seleção organizada pela Secretaria de
Meio Ambiente do estado de São Paulo, Forró dos
Mananciais (Chico Salem), e Cordel dos Mananciais
(Sebastião Marinho), sem data, São Paulo.
6.10. PALESTRAS
Prof. Dr. Carlos Nobre, do INPE, no Painel Mudanças Climáticas,
desenvolvido no IVº Encontro da ANPEGE, Associação
Nacional de Pós-Graduação em Geografia, Encontro do
ANPEGE, 23-26 mar. 2002, no Departamento de Geografia
da USP, São Paulo.
Prof. Dr. Jefferson Simões, da UFRGS, no Painel Mudanças
Climáticas, desenvolvido no IV Encontro da ANPEGE,
Associação Nacional de Pós-Graduação em Geografia,
Encontro do ANPEGE, 23-26 mar. 2002, no Departamento de
Geografia da USP, São Paulo.
Profª. Dra. Monica Porto, Instituto Politécnico da USP, na Mesa
Redonda A Exploração da Água Subterrânea em Centros
Urbanos, promovido pelo Instituto de Geociencias da USP e
pela Associação Brasileira de Águas Subterrâneas, 11 set.
2003, no Instituto de Geologia da USP, São Paulo.
Drª Nadia Cacciandra, do Instituto Politécnico di Milano, Itália, no
Seminário Internacional Água: Avanços Tecnológicos para
um Reúso Sustentável, Escola Politécnica da Universidade
de São Paulo, 06 dez. 2005.
7
778
Prof. Dr. Wagner Bettiol, do CNPMA/ Embrapa Ambiental, no
Seminário Internacional Água: Avanços Tecnológicos para
um Reúso Sustentável, Escola Politécnica da Universidade
de São Paulo, 06 dez. 2005.
6.11. FILMOGRAFIA
Metrópolis (Alemanha, 1927), direção de Fritz Lang.
Tempos Modernos (Estados Unidos, 1936), direção de Charles
Chaplin.
Vozes do Medo (Brasil, 1969/1970), direção de Gianfrancesco
Guarnieri et alli.
Blade Runner (Estados Unidos, 1982), direção de Ridley Scott.
Videodrome - A Síndrome do Vídeo (1982), direção de David
Cronemberg.
Koyaanisqatsi (Estados Unidos, 1983), direção de Geofrey Reggio,
música de Philip Glass.
Ilha das Flores (Brasil, 1989), curta-metragem dirigido por Jorge
Furtado.
Ecologia do Cotidiano, (Brasil, 2005), Entrevista de Maurício
Waldman para o Programa TV Ratinbum da TV Cultura.
7
779
ANEXOS
7
780
ANEXO I
RIBEIRÃO PIRES: A REPRODUÇÃO DA METRÓPOLE
O
debate
que
procura
equacionar
a
dificultosa
relação
envolvendo água e metrópole é dos que mais tem inspirado estudos e
avaliações.
A acirrada contradição que tem contraposto estes dois polos da
análise, teria, pois, estaqueamento na fruição do tempo social, isto é,
referente à acepção linear e progressiva, típica da modernidade.
Esta, engendrando o predomínio da velocidade em todas as
esferas da vida contemporânea, obrigatoriamente obsequia a todas
as formas presentes no espaço, um cunho de transitoriedade (Cf.
TOFLER, 1973).
Contudo, não se pode incorrer em simplificações, pois a cidade,
enquanto uma formação socioespacial, refere-se a uma acumulação
desigual de tempos. Logo, o meio urbano apresenta uma diversidade
de ritmos, inferência passível de ser notada na própria vida cotidiana.
Observe-se que a existência de fluxos de intensidade desigual
não é contraditória com o funcionamento do sistema. Na realidade, as
intensidades desiguais da fruição do tempo mantêm entre si uma
relação de complementaridade, por intermédio da qual o edifício da
7
781
materialidade social se mantém e se reproduz incessantemente (Cf.
SANTOS, 1998 e 1988).
Por isso mesmo, detectar especificidades que acodem no âmago
dos processos socioespaciais, certifica não propriamente “desvios”,
mas sim, especificidades que irrompem organicamente na construção
do espaço habitado. Não há como secundarizar o pressuposto de que
a dinâmica urbana atina a um sistema, com um todo articuladamente
orquestrado.
No âmbito eminentemente geográfico, este nexo não tem como
passar despercebido: “O lugar é ao mesmo tempo particular e geral.
Enquanto forma não revela necessariamente, a própria essência e
enquanto conteúdo, o lugar é uma relação historicamente constituída”
(SEABRA, 1987: 274).
Neste lampejo, pontuação congênere, destaca que “a realidade
do mundo moderno se reproduz em diferentes níveis. No lugar
encontramos as mesmas determinações da totalidade sem com isso
eliminar-se as particularidades, pois cada sociedade produz seu
espaço, determina os ritmos da vida, os modos de apropriação
expressando sua função social, seus projetos e desejos” (CARLOS,
1996: 17).
Neste sentido, o município de Ribeirão Pires, localizado no
Grande ABC Paulista, constitui cenário privilegiado para discernir
problemáticas que em nível da Grande São Paulo e por extensão, da
Bacia Hidrográfica do Alto Tietê (Figura 1), articulam os recursos
7
782
hídricos com as problemáticas urbanas e estas duas, com a questão
ambiental.
FIGURA 1 - Bacia Hidrográfica do Alto Tietê (Fonte: Educação Ambiental em Área
de Manancial: Conceitos e Práticas, 2002: 9)
Esta cidade, uma das sete que integram o Grande ABC Paulista,
ao mesmo tempo em que apresenta personalidade própria quanto à
sua inserção no tempo e no espaço, simultaneamente reproduz, num
recorte particular, os dinamismos regionais e os da metrópole como
um todo.
Transformando-se nos últimos 20 anos numa das “franjas ativas”
da vasta mancha urbana formada pela Região Metropolitana de São
Paulo (a RMSP), Ribeirão Pires (Figura 2), configura-se como um
espaço que habilita a percepção do movimento expansivo da
metrópole rumo aos seus “bordos”, that is to say, na direção de áreas
7
783
nas quais a imposição dos seus códigos temporais, espaciais e
culturais, defronta-se com um meio integrado de um modo incompleto
à dinâmica hegemônica da metrópole.
FIGURA 2 - A RMSP e Ribeirão Pires: Foto de satélite destacando a localização de
Ribeirão Pires no espaço da região metropolitana (Fonte: Agenda 21 Local - A
Cidade, o Meio Ambiente e o Homem, 2003: 14)
A “chegada da metrópole” em Ribeirão Pires, reflete-se num
variado leque de desdobramentos, consubstanciando-se numa escala
que abarca desde as intervenções encaminhadas pelas gestões
municipais, passa pela cotidianidade vivida pelos seus habitantes, e
alcançando, na outra ponta, marcas espaciais e culturais comuns a
todo meio urbano moderno (Figura 3).
7
784
As transformações espaciais que incidem neste centro urbano,
explicitam o poder de interferência da temporalidade da metrópole,
cujo poderio se difunde por toda a conurbação, induzindo diferentes
vocações que terminam materializadas no espaço. Exatamente nesta
significação, este veredicto impõe primeiramente a necessidade de
alinhavar aspectos relacionados com o surgimento da cidade e seus
vínculos com a dinâmica da metrópole.
FIGURA 3 - Pichação em Ribeirão Pires: As pichações emaranhadas constituem
um típico fenômeno cultural metropolitano (Vide AB’ SABER, 2004: 21/26). Em
Ribeirão Pires esta manifestação tem eclodido com persistência na área central da
cidade. Na foto, os pichadores enfearam a entrada do “Shopinho”, galeria de lojas
situada no Centro Novo de Ribeirão Pires (Foto: Maurício Waldman, julho de 2004)
Assim, um dado básico é que de um ponto de vista histórico, o
território que atualmente forma Ribeirão Pires vinculou-se ao antigo
Caaguaçu, território regido por formas tradicionais de vida no largo
período que se alastrou desde as primeiras décadas da colonização
7
785
portuguesa até o Século XIX, quando a ferrovia desmantela o arranjo
socioespacial tradicional. Durante mais de trezentos anos, portanto, a
sociedade local do Caaguaçu formou um universo intrinsecamente
estranho às vivências que hoje caracterizam a região.
Um dos marcos da história da cidade foi a chegada do capitãomor Antônio Corrêa de Lemos. Este fundou no ano de 1714, a Capela
da Nossa Senhora do Pilar, ou simplesmente, do Pilar, situada junto
ao caminho que ligava, no Século XVII, Piratininga à atual Mogi das
Cruzes.
Integrada à jurisdição da Freguesia da Sé, sediada na cidade de
São Paulo, a Capela do Pilar corresponde, comprovadamente, ao
marco mais proeminente até então edificado na região do atual ABC
Paulista. Além dos ofícios religiosos, a capela normatizava funções de
caráter associativo, de ordem político-social e complementando, nas
suas imediações realizava-se igualmente um comércio sazonal que
abastecia a população de artigos forâneos.
A Capela do Pilar, de cunho religioso, integrada ao patrimônio
histórico do ABCDMR, é considerada pelos mais diversos segmentos
sociais de Ribeirão Pires como uma espécie de “marco zero” do
nascimento da cidade.
No entanto, qualquer um que se detenha a analisar o mapa da
cidade e os arredores atuais da Capela do Pilar, percebe que na
realidade, foi a ferrovia, e não a capela, o móvel que magnetizou o
crescimento efetivo da cidade. Ainda hoje, esta construção e os seus
arredores, integrando o bairro do Pilar Velho, são, quando muito, uma
7
786
área semi-urbanizada, apresentando arruamento pouco significativo,
com grande número de sítios de propriedade de nipo-brasileiros
devotados à produção hortifrutigranjeira.
Na realidade, a adoção da capela enquanto pedra fundamental
da cidade justifica-se basicamente como uma tradição inventada (Cf.
HOBSBAWM, 1984), calcada de modo ostensivo numa mitologia com
apensos em ideações bandeirantes (Cf. Figura 4).
Adotada por ser conveniente à construção de um passado
histórico para a cidade, esta peça de ficção foi, na mesma direção,
legitimada por uma coleção de ações institucionais, determinando que
sua apresentação junto à consciência social passasse a se revestir
dos foros de verdade inquestionável.
Entrementes, seja dito às claras que a Capela do Pilar enquanto
objeto espacial, conferia a um marco de sociabilidade atinente a uma
espacialidade tradicional, conotada pela condição de bairro rural
extenso e escassamente povoado, características estas, das quais o
velho Caaguaçu nunca se distanciou durante toda a sua história.
Para dirimir eventuais dúvidas, bastaria consultar o mapa da
população do Caaguaçu datado de 1776, apontando um contingente
de 779 brancos, 385 pretos livres e escravos e 456 mulatos livres. No
total, minguadas 1.620 almas.
Esta população dedicava-se a uma agricultura de subsistência e
pecuária extensiva, predominantemente voltada para o autoconsumo
e gerando um excedente escasso, pouco significativo no plano da
7
787
economia. Claramente, o Caaguaçu formava um dos “desertos” que
se espraiavam, na interpretação de Caio PRADO JÚNIOR, pelos
interstícios dos caminhos abertos a partir de Piratininga (Cf. 1998:
42/43).
FIGURA 4 - A Reprodução da Mitologia Bandeirante: Em Ribeirão Pires, o esforço
de criar um imaginário histórico para a cidade buscando guarida em ícones da
capital explicita-se claramente nesta foto. Este relevo, que forma a base da estátua
do Mirante de São José, padroeiro da cidade, evidencia uma típica iconografia
bandeirante, inclusive no tocante aos seus traços supremacistas. O jesuíta, o
bandeirante e o indígena, embora juntos, mantém entre si relações desiguais.
Note-se que o índio deixou de possuir descendência: uma das crianças indígenas
esta acudida pelo jesuíta; a outra está acompanhada da mãe, que busca apoio no
bandeirante; O índio está sozinho, desacompanhado da mulher, agora parceira do
europeu (Foto: Maurício Waldman, maio de 2004)
7
788
Mas, a chegada do trem, ao constituiu vetor de transformações
profundas, altera radicalmente esta situação, encetando celeremente
uma reorganização territorial completa do espaço do Caaguaçu. O
funcionamento da estrada de ferro determinou, por exemplo, a
formação de “povoados-estação” enfileirados ao longo do seu trajeto.
Dentre estes, podemos mencionar os de Pilar (atual Mauá), São
Bernardo (atual Santo André), Paranapiacaba (ou Alto da Serra) e
Ribeirão Pires, todos mantendo, sem exceção, íntimo relacionamento
com a estrada de ferro (LANGENBUCH, 1968: 151).
Inequivocamente, o surgimento de sete municípios nesta região,
dentre os quais Ribeirão Pires (que se emancipou de Santo André em
1953), reporta, em última análise, a um dos dinamismos territoriais
induzidos por este meio de locomoção. A região de Ribeirão Pires,
outrora parte de um “bolsão”, cujos contatos com São Paulo eram
esporádicos (e inclusive menos frequentes do que os mantidos com
Mogi das Cruzes), torna-se, por intermédio da ferrovia, um espaço
fortemente associado com a capital paulista.
Diferentemente dos tempos em que a Capela do Pilar coroava a
temporalidade da região, agora, esta passa a ser monitorada pelas
exegeses do tempo linear, que impõe ao Caaguaçu, seus ritmos e
suas frequências.
Tal ponderação constituiria bem mais do que uma figura de
linguagem. Foi a conexão com o tempo que determinou, por exemplo,
a construção da estação de Ribeirão Pires, localizada num ponto
topologicamente simétrico quanto ao trajeto entre Santos e São
7
789
Paulo: uma hora de percurso para qualquer um dos dois destinos (Cf.
SOUZA, 1985: 8).
Inaugurada em 1885, a implantação da estação ferroviária foi um
decisivo fator de territorialização. Foi a partir dela, e não da Capela do
Pilar, que o núcleo urbano original de Ribeirão Pires foi implantado.
Em 1887, uma leva inicial de imigrantes italianos instalou-se, com o
apoio do Visconde de Parnaíba, presidente da província de São
Paulo, no que hoje forma o bairro de Colônia, situado na banda direita
da ferrovia no sentido para Santos.
Este núcleo, assentado numa topografia mais elevada (daí o fato
de ser também conhecido como Centro Alto), tinha por eixo a Igreja
Matriz. Embora um segundo núcleo tenha sido fundado nos arredores
da Capela do Pilar, o assentamento da ferrovia, desfrutando de uma
associação privilegiada com a temporalidade dominante, rapidamente
se arvorou à condição de eixo da organização espacial, repaginando
a territorialidade local. Neste sentido é que se torna possível dividir a
história de Ribeirão Pires em antes e depois da ferrovia (MARQUES,
1996: 16).
A estação ferroviária constituiu apoio indispensável para o projeto
de colonização que de facto, deu origem à cidade. Fato incontestável,
a Capela do Pilar não tem nada a ver com processo oitocentista de
espacialização. Aliás, o próprio nome da cidade é uma referência a
uma família de proprietários de terras do Caaguaçu, os Pires, cuja
presença na região é atestada desde os primórdios do Século XVIII
(BOTACINI, 1979: 23/31).
7
790
Em Ribeirão Pires, como em múltiplos outros pontos do território
brasileiro, as vias férreas determinaram a ruína das aglomerações
preexistentes, que desaparecem ou quando muito se adaptam aos
novos eixos de circulação, mesmo porque, foi estaqueada no núcleo
ferroviário que o município foi sancionado no tempo e no espaço,
mediatizado pelo seu papel de parada do trem (Cf. DEFFONTAINES,
2004: 128 e BOTACINI, 1995, 1980 e 1979).
Por conseguinte, a Capela do Pilar, antes de constituir “o começo
de Ribeirão Pires”, seria mais bem definida como um objeto espacial
inserido no interior do que futuramente se configurou como os limites
da municipalidade, para cuja delimitação, a senioridade deste objeto
espacial não foi de modo algum determinante (Figura 5).
Todavia, pensar o surgimento de Ribeirão Pires a partir da
ferrovia e da associação com a cidadela paulistana nos obriga
novamente a alertar quanto a simplificações imprudentes. Por certo, a
fricção da distância é um fator adicional que auxilia a compreender a
dinâmica urbana da cidade. Isto porque Ribeirão Pires, ao situar-se a
meio caminho entre São Paulo e Santos, convive com determinada
condição de isolamento, promovendo um ingresso mais gradativo nos
ritmos regionais e metropolitanos.
Corporificando primeiramente um núcleo urbano de proporções
modestas agarrado ao leito da ferrovia, a localidade - não obstante a
operosidade dos canteiros que exploram os prodigiosos afloramentos
de granito do território e de atividades embrionárias, centralizadas na
produção de lenha e carvão, nas olarias, cultivos, pecuária e algumas
fábricas e moinhos -, se caracteriza nas primeiras décadas de sua
7
791
existência por um modo de vida menos tocado por um senso
metropolita.
FIGURA 5 - Vista da Capela de Nossa Senhora do Pilar: Este objeto espacial,
localizado no Morro de Pilar. Em área suburbana da atual Ribeirão Pires, é um
remanescente da antiga espacialidade tradicional. A estrutura básica desta
construção, erguida com a técnica da taipa de pilão, recebeu acréscimos
posteriores, como a torre do sino e outras agregações arquitetônicas. Enquanto
uma rugosidade, esta capela, tombada pelo CONDEPHAAT em 1975, detém, como
todo templo religioso, enorme força inercial (Cf SANTOS, 1981: 185). Trata-se de
uma herança espacial cujo significado foi envelopado aos ditames dos dias
presentes. Hoje, seu papel é o de subsidiar uma interpretação histórica que se
mostra adequada para dar um cunho de senioridade à cidade, assim como para
subsidiar eventos turísticos que agitam o comércio local. Um destes é a Festa de
Nossa Senhora do Pilar, evento recorrente na agenda de eventos do município,
ocorrendo pela 69ª vez em 2005 (Foto: Maurício Waldman, março de 2004)
Tudo isto se coaduna com a evocação de um “clima serrano” do
qual a cidade em tese desfrutaria. As características climáticas de
Ribeirão Pires (tropical de altitude, com temperatura média de 16 ºC e
elevada umidade relativa do ar), somadas à presença frequente de
7
792
nevoeiros e garoas, bem como a localização num domínio geológico
de “mares de morro”, favoreceram a difusão de uma alegoria “alpina”
para a cidade.
Tratando-se de uma fabulação geográfica elaborada a partir de
um imaginário ambiental eurocentrado, este foi um dos alegados
motivos que concederam ao espaço de Ribeirão Pires, o papel de
“refúgio tranquilo”, acolhendo principalmente segmentos de santistas
afluentes, que entediados do calor e da praia, passaram a buscar a
cidade para o desfrute dos finais de semana.
Porém, um dado mais objetivo se confrontaria com este suposto
“atrativo alpino”. É que várias fontes argumentam que foi basicamente
o preço muito baixo dos terrenos, e não o clima, o elemento decisivo
que atraiu forasteiros para Ribeirão Pires, sendo que factualmente,
diversos documentos atestam que estes eram cedidos praticamente
de graça (LANGENBUCH 1968: 141).
De qualquer modo, nas primeiras décadas do Século XX foram
instaladas diversas chácaras de segunda residência, principalmente
nos bairros da Quarta Divisão e do Ouro Fino
137,
assim como
residências de veraneio em outros pontos do município. Na cidade, o
bairro de Vila Suissa (ou Vila Suissa Santista), atualmente um reduto
dos setores mais ricos de Ribeirão Pires, recorda a influência deste
fator enquanto um dos marcos da identidade espacial de Ribeirão
Pires (Vide Figura 6).
137
Quanto ao Ouro Fino enquanto espaço de lazer, consultar SILVA, 1998.
7
793
Evidentemente a análise da articulação do povoado-estação com
a capital paulista, impõe avaliar a inserção diferenciada mantida com
a realidade metropolitana. Ribeirão Pires, embora integrada em grau
crescente nas rotinas da grande cidade, permanece como um espaço
pertencente à periferia metropolitana. Disto decorre um ritmo mais
lento, ou melhor, menos rápido, na realidade apenas a antessala de
uma futura aceleração.
FIGURA 6 - Vista panorâmica da Vila Suissa Santista: Observe-se o padrão
arquitetônico das residências e a presença de arborização, denunciando sua
condição de bairro afluente de Ribeirão Pires (Foto: Maurício Waldman, maio de
2005)
Em suma, o que se tem diante dos olhos é um tecido urbano
menos compacto, um espaço no qual a RMSP torna-se mais rarefeita
e começa a entremear-se com espaços dominados por chácaras e
pequenos estabelecimentos agrícolas. Estas características é que
permitiriam entender a cidade sob uma “aura rural”, recordando uma
bucólica vida interiorana (Vide KUVASNEY, 1996: 8).
7
794
Nos inícios dos anos 1960, Ribeirão Pires exibia uma série de
sinais que tipificavam uma “diluição da metrópole”. No núcleo urbano,
a névoa contínua, as baixas temperaturas, a persistente chuva fina
que lavava a cidade e as ruas pavimentadas com paralelepípedos
formavam uma imagem paradigmática da cidade, envolta por uma
natureza não-hostil.
Poucos automóveis circulavam nas suas ruas e as ligações de
ônibus nem de longe tinham a assiduidade que nos dias atuais ligam
Ribeirão Pires com os municípios vizinhos e São Paulo. Enquadrada
como uma “cidade-dormitório” que abastecia as fábricas da região
com força de trabalho, Ribeirão Pires era uma espécie de “fim do
ABC” e os comerciantes árabes da área central da cidade, sempre
atentos ao movimento da rua, a ela se referiam como “uma cidade
tranquila até demais”.
Por conseguinte, a decolagem do crescimento de Ribeirão Pires,
contrariamente a São Bernardo, Santo André e Diadema, que desde a
década de 1950 foram bafejadas pelo contato com o progresso e com
a proximidade com o mercado de trabalho alavancado pela indústria
automobilística na região, ganha intensidade somente a partir dos
anos 1970.
Os novos habitantes de Ribeirão Pires são trabalhadores que tem
seu ganha-pão nos municípios mais industrializados do Grande ABC,
caracterizando a já citada situação de cidade-dormitório, cuja ligação
primordial com o mundo do trabalho era compassada pelo apito do
trem (Vide LANGENBUCH, 1968: 452/453. Ver também figura 7).
7
795
Esta expansão foi reforçada pelo rodoviarismo. Além da ferrovia,
que havia sustentado a implantação do núcleo urbano original e
vitaminado um entrelaçamento mais orgânico com a metrópole e o
Grande ABC, a cidade passou a contar com a rodovia Índio Tibiriçá
(SP-31), inaugurada em 1963. Ligando a Baixada Santista a Mogi das
Cruzes através do território de Ribeirão Pires, esta via acelerou o
adensamento populacional ao longo do seu trajeto, estimulando a
implantação de loteamentos e magnetizando a eclosão de novos
vetores para a expansão urbana.
FIGURA 7 - Estação ferroviária de Ribeirão Pires: A atual estação da cidade foi
inaugurada em 1912. Este meio de transporte, utilizado em larga escala pela
população trabalhadora, é ainda hoje vital para a vida da cidade (SOUZA, 1985).
Entretanto, pesa sobre o trem o estigma da pobreza. Pegar o trem é “out”. Andar
de carro é “in”. Poucos gostam de recordar que do trem é que a cidade de fato
originou. Na foto, vista parcial da plataforma sentido Rio Grande da Serra-Estação
da Luz (Foto: Maurício Waldman, dezembro de 2003)
Nesta sequência, bairros como o Roncon, Barro Blanco, Pouso
Alegre e o Ouro Fino, dispostos nas margens da rodovia, tornaram-se
referências de adensamento populacional. Estas áreas ingressaram
no universo da mancha urbana metropolitana investidas do papel de
7
796
“guarda avançada”, abertas para recepcionar pulsões cada vez mais
intensas da temporalidade metropolitana.
A expansão de Ribeirão Pires caracterizou-se nas décadas dos
anos 1970-1990, por médias superiores às do ABCDMR e da RMSP
como um todo. De modo bastante claro, os acréscimos demográficos
ocorrem apoiados em formas de ocupação que ignoram à socapa as
leis de proteção aos mananciais. Estima-se que o crescimento anual
foi da ordem de 6,89% nos anos 1970-1980 (contra 5,27% do Grande
ABC) e de 3,79% nos anos 1990 (contra a média regional de 1,96%).
A população da cidade, calculada em 15.000 almas por ocasião
da emancipação em 1953, salta para 29.048 em 1970, 56.532 em
1980, 85.085 em 1991 e 104.508 no ano 2000. Embora seja nítida a
desaceleração do crescimento demográfico (2,33% em 2002), esta
taxa continua a ser superior às médias do ABCDMR e da RMSP,
estimadas respectivamente em 1,57% e 1,65% anuais (Vide IBGE e
Plano Diretor de Ribeirão Pires, 2003: 13/14).
Neste cadenciamento, surge uma coleção de novos bairros. O
antigo Centro Alto, no qual se instalaram os imigrantes italianos, é
rapidamente ilhado pela expansão da mancha urbana. A ocupação da
ilharga esquerda da ferrovia, formando o chamado Centro Novo da
cidade com eixo na Rua do Comércio, assumiu rapidamente a função
de novo polo dinâmico da cidade.
No frenesi desta expansão, as várzeas são ocupadas, fontes de
água são tamponadas e a cidade, recém-ingressa no circuito dos
problemas urbanos “típicos”, passa a conviver com a formação de
7
797
“vazios” da mancha urbana (por conta da especulação imobiliária),
poluição urbana, assoreamento dos rios e também, com as enchentes
(Vide SILVA, 1998: 14/15).
Relativamente à destinação dos resíduos sólidos domiciliares, de
serviços de saúde, inertes e os gerados pelas indústrias, existe um
diferencial de Ribeirão Pires (assim como de Rio Grande da Serra),
na comparação com os demais municípios do Grande ABC. A Lei de
Proteção aos Mananciais prescreve que estes resíduos devem ser
removidos para fora das áreas protegidas, e deste modo, a cidade
encaminha seus rebotalhos para o Incinerador e para o Aterro do
Lara, situados em Mauá.
No entanto, existem incompletudes na legislação que criam
embaraços para a destinação do entulho da construção civil, assim
como para resíduos resultantes da remoção de solo, pneumáticos,
mobiliário descartado, lixo digital e itens inservíveis em geral.
Sem contar que os aterros e incineradores do ABC não podem
ser desprezados de um mapa de riscos do município, existem na
cidade, dezenas de pontos de disposição irregular e/ou clandestina,
os chamados “bota-fora”, que comprometem a preservação do meio
ambiente, da paisagem urbana e obviamente, os mananciais da
região (Plano Diretor de Ribeirão Pires, 2003: 64/65).
Isto posto, como seria meritório registrar, a metropolização pode
tardar, mas não deixa de chegar, sendo que o ingresso da cidade na
ciranda metropolitana repercutiu dos mais diversos modos no seu
7
798
cotidiano, materializando lenta, mas inexoravelmente, os rasgos que
tipificam a grande cidade e os seus desequilíbrios.
Um dos aspectos que denunciam a aceleração temporal é o
incontestável avanço do capeamento asfáltico, que recobre ou
substitui os paralelepípedos, calçamento que constituía uma das
marcas mais singulares da cidade até pelo menos os anos 1980 (Fig.
8).
FIGURA 8 - Três tipos de pavimento à mostra: azulejos, paralelepípedos e asfalto
em trecho de rua do Centro Alto de Ribeirão Pires, nas proximidades da Igreja da
Matriz (Foto: Maurício Waldman, dezembro de 2003)
O esgotamento da capacidade do sistema viário em dar conta do
trânsito de veículos constitui outro the sign of the times. Desde os
anos 1990, o termo rush passou a integrar o vocabulário do cidadão
ribeirãopirense das áreas centrais, e pari passu, vias de acesso como
a rodovia Índio Tibiriçá operam claramente no limite da capacidade.
7
799
No mais, a introjeção da modernidade urbana na cidade também
inclui a exclusão social. No final das contas, dinâmicas metropolitanas
embasadas na automação flexível, na reconversão, na reengenharia
e na polivalência, não deixaram de alcançar a cidade, promovendo o
desemprego e a chamada economia informal. É este contexto que
justifica a presença dos catadores que passaram a operar no Centro
Novo e a nítida expansão do “comércio informal”, neste último caso
adotando a metrópole paulista enquanto modelo (Figura 9).
FIGURA 9 - O Brazinho: Esta é a denominação dada ao espaço dos “marreteiros”
em Ribeirão Pires, uma referência explícita ao bairro do Brás em São Paulo, na
capital paulista. Ao fundo, pode-se observar a porteira que permite a passagem
dos pedestres atravessando a linha da CPTM, ligando o Centro Alto da cidade ao
Centro Novo. A construção à esquerda da foto, corresponde parcialmente às
instalações originais da estação ferroviária de Ribeirão Pires (Foto: Maurício
Waldman, fevereiro de 2003)
Isto posto, será justamente a partir da articulação de Ribeirão
Pires com a metrópole que se torna compreensível o surgimento de
várias contradições que podem ser notadas quanto à questão dos
recursos hídricos no município.
8
800
Neste aspecto, ressalve-se que apesar de possuir uma superfície
modesta (107 km², representando 13% do Grande ABC), Ribeirão
Pires é extremamente rico do ponto de vista hidrológico. Agraciado
com um pico alto de pluviosidade (1.400/1.500 mm anuais em média),
contanto com uma considerável extensão de remanescentes de mata
atlântica e possuindo 100% da sua área coberta pela legislação dos
mananciais, o território do município é drenado por inúmeros cursos
d’água, agrupados em três bacias hidrográficas: Guaió, Taiaçupeba
ou Taiaçupeba-Açu e a da Billings.
Quanto ao reservatório Billings, suas águas ocupam 7 km² do
território do município. É interessante registrar que o Ribeirão Pires
constitui área de interesse para dois dos Subcomitês do Comitê da
Bacia Hidrográfica do Alto Tietê (CBH-AT): Billings-Tamanduateí e o
Tietê-Cabeceiras, particularidade administrativa e técnica que exalta o
caráter estratégico usufruído por este município para a gestão das
águas doces na Grande São Paulo (Vide Figuras 10 e 11).
Objetivamente, a drenagem das águas fluviais é reveladora da
importância de Ribeirão Pires para o contexto hidrológico regional. A
título de exemplo, as águas das bacias do Guaió convergem para o
Tietê, desaguando entre Poá e Suzano. Com relação ao curso do
Taiaçupeba, este segue diretamente na direção do reservatório do
mesmo nome, localizado entre Suzano e Mogi das Cruzes. Estas
duas bacias hidrográficas estão vinculadas ao Sistema Produtor do
Alto Tietê (SPAT), um dos oito que atendem a RMSP.
Quanto à Bacia Hidrográfica da Billings, o Braço do Rio Grande,
cujas águas são destinadas para o atendimento das demandas de
8
801
São Bernardo do Campo, Diadema e Santo André, seu trecho inicial
confina diretamente com Ribeirão Pires. Em termos da realidade
municipal, esta bacia é de longe a mais importante. Além de abarcar
75% da área total do município (contra 15% do Taiaçupeba e 10% do
Guaió), nesta área se concentra o essencial da população e das
atividades econômicas de Ribeirão Pires.
FIGURA 10 - Mapa das Bacias Hidrográficas de Ribeirão Pires (Fonte: Educação
Ambiental em Área de Manancial: Conceitos e Práticas, 2002:7, escala aproximada:
1: 83.750)
8
802
FIGURA 11 - Mapa do potencial de Águas Subterrâneas em Ribeirão Pires (Fonte:
Instituto de Pesquisas Tecnológicas, in Plano Diretor do Município de Ribeirão
Pires, 2003, escala aproximada 1: 116.700)
Além das águas de superfície, o município dispõe de um notável
potencial de águas subterrâneas. Verdadeiramente, Ribeirão Pires foi
agraciado pela natureza com uma verdadeira profusão de fontes de
águas minerais. Os últimos levantamentos de águas subterrâneas
realizados pelo Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), dão conta
de que a cidade literalmente repousa em um extenso veio de água
mineral, um fenômeno singular sob os mais diversos aspectos da
geografia física (Figura 11).
Embora estas pesquisas não tenham avançado a ponto de
certificar a cubagem das águas subterrâneas do município (logo, não
8
803
quantificando a proporção possível de retiradas), ao menos em
princípio, as características naturais de Ribeirão Pires em termos
geológicos, geomorfológicos e climáticos, permite entender a cidade
como um possível provedor de água doce, daí o redobrado interesse
que Ribeirão Pires tem despertado quanto às suas singularidades
hidrológicas.
Atualmente, de acordo com o Instituto de Pesquisas Tecnológicas
(IPT), o município é o polo de produção de água mineral na RMSP
que mais tem despertado interesse dos empresários do setor,
perdendo apenas para a capital paulista. Neste recorte, além de duas
empresas engarrafadoras de água em funcionamento (Águas Pilar e
Vênus Olímpica), o Departamento Nacional de Produção Mineral
(DNPM), enumera 25 pedidos de pesquisa, registro e exploração de
lavras do líquido destinados à comercialização.
Outras empresas planejam montar linhas de engarrafamento
visando exportar o líquido em larga escala. Uma destas empresas, a
Fonte Santa Luzia, foi formada por um grupo de seis empresários de
São Paulo com a perspectiva de proceder ao envasamento de
150/200 mil galões/mês, sendo seu intuito aproveitar a proximidade
do Porto de Santos para direcionar grande parte da produção para o
mercado externo (GUAZELLI, 2004:82 e CAMPANILI, 2003).
Um fator que se associa a este contexto foi o fato da cidade ter
se assegurado da titulação de Estância Turística (Lei nº. 10.130 de
09/12/98). Esta titulação foi obtida após ter sido inviabilizado o status
de Estância Climática motivada pela poluição industrial gerada pelo
município vizinho de Suzano (Cf. SILVA, 1998: 17).
8
804
Esta classificação, também coroou esforços desenvolvidos nas
duas gestões da prefeita Maria Inês Soares Freire (1997/2000 e
2001/2004), na senda de orientar o desenvolvimento urbano na
direção do que veio a ser definido como vocação desejada para o
município (CAMPANILI, 2003).
Na condição de Estância Turística, o município de Ribeirão Pires
habilitou-se à condição de possível agraciado com recursos visando o
desenvolvimento de atividades compatíveis com esta titulação.
Entretempos, procurando reforçar este status, a administração
municipal
executou
estudos
da
viabilidade
econômica
para
empreendimentos turísticos, sistematizados num Guia de Negócios
(1999), bem como encaminhou o Censo Turístico (2000), ambos
constituindo a base do Plano Diretor do turismo local.
A prefeitura também investiu em infraestrutura turística. Dentre as
obras mais significativas estão a revitalização dos mirantes da cidade
(São José e Santo Antônio), a drenagem do entorno da Pedra do
Elefante (ponto mais alto do município), construção de pier no Parque
Municipal Milton Marinho de Moraes (135 mil m², de frente para a
Billings), a criação de um novo Parque, o Pérola da Serra (40 mil m²,
contando com arvorismo) e investimentos no programa de coleta
seletiva de lixo.
Porém, seja dito que Ribeirão Pires não está situado num “vácuo
metropolitano”. As contradições inevitáveis inerentes aos processos
hegemônicos presentes na RMSP, todas com repercussão morbígera
quanto à saúde dos recursos hídricos, igualmente fazem sentir sua
presença na cidade.
8
805
Estes impõem sua marca na questão ambiental, incorporando
dinamismos espaciais indissociáveis da progressão do tempo da
metrópole, com o qual, a cidade mantém relação de cumplicidade.
Assim sendo, poder-se-ia elencar aspectos pelos quais Ribeirão
Pires, tal como no Grande ABC e na RMSP como um todo, tem
colocado em risco a preservação das águas doces:
1. Como foi possível certificar na Figura 11, a cidade inteira está
assentada justamente na área de maior potencial de águas minerais,
a área cisalhada que se confunde com a calha do Córrego Ribeirão
Pires, exatamente o corredor natural que tem sido adotado como eixo
pela progressão da mancha urbana. Este contexto espacial torna
imprescindível um rigoroso acompanhamento do uso e da ocupação
do solo, uma diretriz que como se sabe, tem sido de difícil ou nula
aplicação na GSP.
2. Especificamente quanto ao abastecimento público de água,
uma contradição patente é o fato de Ribeirão Pires, uma cidade
situada na beira da Billings - o maior reservatório de água da RMSP paradoxalmente satisfazer suas demandas por meio da importação
do líquido, fornecido pelo sistema Rio Claro. Nitidamente, a cidade
reproduz um modelo de “ressecamento das águas”: a metrópole, ao
se estender, distende suas fontes de provimento hídrico, destruindo
os recursos hídricos locais e repassando para regiões mais recuadas
o ônus do fornecimento de água doce. Ostensivamente, Ribeirão
Pires integra esta lógica absolutamente perversa de inviabilização do
acesso às águas doces (Figuras 12, 13 e 14).
8
806
FIGURA 12 - Trecho Assoreado da Billings: situado nas proximidades do píer do
Parque Municipal Milton Marinho de Moraes, em Ribeirão Pires, o assoreamento
tornou-se visível durante a estiagem que ao longo do II Semestre de 2003, assolou
a região da RMSP (Foto: Maurício Waldman, dezembro de 2003)
FIGURA 13: Proibido Pescar e Nadar: Placa colocada na entrada do Parque
Municipal Milton Marinho de Moraes, em Ribeirão Pires. Apesar do aviso, o local é
um concorrido espaço para a pesca amadora de tilápia, degustada em braseiros
montados ao ar livre (Foto: Maurício Waldman, maio de 2005)
8
807
FIGURA 14 - Ramal do Sistema Rio Claro: Estas tubulações, atravessando o bairro
do Ouro Fino, abastecem a cidade de Ribeirão Pires (Foto: Maurício Waldman, abril
de 2005)
3. É interessante registrar que ao mesmo tempo em que Ribeirão
Pires importa água potável, a cidade se projeta como possível polo de
comercialização em larga escala de água engarrafada, visando tanto
o mercado consumidor regional/nacional quanto o do exterior. Mesmo
que a exportação de água mineral ainda não tenha efetivamente se
materializado, é digno de nota que este comércio já ocorre de modo
informal. A água mineral da marca Pilar, por exemplo, é vendida para
os depósitos de Santos, que por sua vez abastecem navios de carga
e de passageiros que ancoram no estuário. Este procedimento, um
dos que contribuem para a fidelização dos consumidores, poderá ser
8
808
rapidamente alavancado por iniciativas empresariais, as quais já
começam a se movimentar nesta direção.
4. No que constitui expressão emblemática do estresse hídrico,
Ribeirão Pires passou a registrar situações impensáveis de escassez,
mesmo poucos anos atrás. A vigilância sanitária da cidade, assim
como diversas ONGs, têm denunciado casos de engarrafamento
clandestino e captação direta da água das fontes por caminhõestanque, que revendem o líquido com estupenda margem de lucro.
Operando de madrugada, pequenas vans provenientes da zona leste
da capital engarrafam água de fontes abertas sem qualquer amparo
sanitário, comercializando o produto nos bairros pobres de São Paulo
e áreas carentes do Grande ABC, inclusive de Ribeirão Pires. Num
momento em que a cidade ensaia uma inserção mais forte no
mercado de água doce, ela vive assim o aparente paradoxo da falta
d’água de qualidade para sua própria população.
5. Evidentemente, estas mudanças foram acompanhadas de
alterações do quadro ambiental do município. As matas que cobriam
quase todo o município foram derrubadas em muitos trechos, abrindo
espaço para habitações e infraestrutura ou substituídas por bosques
de eucaliptos e de pinheiros. O “clima de montanha” da região, que
até passado recente era um atrativo para que Ribeirão Pires se
posicionasse enquanto refúgio turístico, foi se esvaindo, e a cidade,
passou a assimilar rapidamente os traços mais característicos da
meteorologia artificial metropolitana. A névoa fria que frequentemente
acobertava a região, praticamente desapareceu. Atualmente, apenas
em caráter esporádico a neblina agasalha a área edificada da cidade,
claro sinal a confirmar o recuo dos ciclos naturais para paragens mais
8
809
distantes. O enlace úmido da cerração foi substituído pelo bolsão de
gases da metrópole, que por sinal, foi o handicap que tecnicamente
impediu que fosse outorgado à cidade o status de Estância Climática.
Veja-se então que de um modo ou de outro, a aproximação da
“natureza hostil” é inquestionável.
6. Fato evidente, a consolidação de um modelo metropolitano em
Ribeirão Pires, assim como nas demais cidades que se dispõem em
colar nos arredores da cidadela paulistana, é um fator que contribuirá
de modo cabal para engendra a escassez de água, do mesmo modo
suscitando, com base na estratégia do fait accompli, da apresentação
de propostas apontando para a captação das águas doces de regiões
ainda mais distantes. Deste modo, a cidade passa a se inserir num
contexto perpassado pelo acirramento das tensões pela posse do
líquido, e a conferir, do recrudescimento da crise urbana na metrópole
numa extensão ainda maior.
Em resumo, Ribeirão Pires, ainda que dotada de particularismos
quanto ao dinamismo temporal e espacial, sintetiza num microcosmo,
os dilemas metropolitanos aos quais está articulada. Na realidade, a
cidade apenas repete poucos passos atrás contextos já vivenciados
pelo Grande ABC e pela RMSP.
Assim sendo, Ribeirão Pires, tal como o ABCDMR como um todo,
teve o arranjo espacial tradicional original desarticulado pela ferrovia
e posteriormente pelo rodoviarismo; tal como outras localidades, a
cidade passou da condição de um pequeno núcleo ferroviário ao de
guarda avançada da mancha urbana em expansão da Grande São
Paulo, reproduzindo suas determinações concretas, assim como as
8
810
imaginárias; em continuidade com o item anterior, é exatamente esta,
a necessidade que orientou o imaginário institucional a copiar, por
exemplo, uma mitologia bandeirante para a história da cidade; a
cidade passa da situação de acesso livre aos corpos aquáticos
imediatos, no caso as águas doces das represas, dos poços e das
cacimbas, para o papel de importadora do líquido de regiões mais
distantes; assim, se observa a expansão do comércio clandestino de
água, alimentado por impedimentos de acesso ao líquido aos setores
excluídos, ao mesmo tempo a cidade desenvolve seus primeiros
passos na direção de provedora de água engarrafada.
Ribeirão Pires é um município situado num mundo que “fabrica” a
escassez de água e, que imprime ao ato de beber uma conotação de
poder. Reflexo da cissiparidade que perpassa pelo mundo moderno
nos mais diversos níveis, a cidade não poderia permanecer alheia a
esta lógica perversa.
Constatação adicional do quanto a sede é um fenômeno
catalisado pelas contradições que regem a vida social dos humanos,
sua resolução, apenas poderia ser alcançada por uma sociedade em
que o acesso à água não reflita um privilégio, mas sim um direito que
deve ser preservado.
As dificuldades com que a cidade, assim como o Grande ABC e a
RMSP se defrontam, são ponderáveis. A estrutura do espaço, como
explica o geógrafo Milton SANTOS, é resistente, colocando a prova
os intuitos que procuram modificar seu rumo:
8
811
O fato, porém, é que cada estrutura do todo reproduz o
todo. Assim, em uma fase de transição, as estruturas
vindas do passado, ainda que parcialmente renovadas,
tenderão a continuar a reproduzir o todo tal como na fase
precedente. Todavia, se cada estrutura conhece seu
próprio ritmo de mudança, a estrutura do espaço é a
instância social de mais lenta metamorfose e adaptação.
Por isso, ela poderá continuar, por muito tempo, a
reproduzir o todo anterior, que se deseja eliminar (1986:
54, grifos nossos).
Explicitada em toda sua rudeza, a reprodução da metrópole
sugere um desafio inédito, frente ao qual a sociedade civil da RMSP
deverá disponibilizar toda a inventividade ao seu alcance.
No mais, uma necessidade também colocada para a sociedade
ribeirãopirense e seu espaço, geral e particular nas suas demandas e
expectativas.
8
812
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DO ANEXO
LIVROS E ARTIGOS
BOTACINI, Roberto. Ribeirão Pires: Sua história. Ribeirão Pires:
Acervo do Arquivo Histórico de Ribeirão Pires, 1979.
Mimeografado.
______. Ribeirão Pires Era Assim. Ribeirão Pires: Combrig, 1980.
______. A Parada do Trem: Ribeirão Pires (1985-1995). Ribeirão
Pires: Acervo do Arquivo Histórico de Ribeirão Pires, 1995.
Mimeografado.
BOTACINI, Roberto et SILENE, Maria. Cem Anos de Colonização
Italiana no ABC. Ribeirão Pires: Combrig, 1976.
CARLOS, Ana Fani Alessandri. O lugar no/do mundo. São Paulo:
Hucitec, 1996. (Col. Geografia teoria e tealidade, 38).
DEFFONTAINES, Pierre. Como se Constituiu no Brasil a Rede de
Cidades. Cidades, Presidente Prudente, vol. 1, nº. 1, pp. 119146, jan-jun 2004. (Publicação do GEU - Grupo de Estudos
Urbanos).
GOUREVITCH, A.Y. O Tempo como problema de História Cultural. In:
UNESCO. As Culturas e o Tempo. Petrópolis: Vozes; São
Paulo: EDUSP, 1975.
HOBSBAWM, Eric. A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1984. (Col. Pensamento Crítico, 55).
KUVASNEY, Eliane. “Separar para Reinar”: Desmembramentos na
gênese da metrópole paulistana. 1996. Dissertação
(Mestrado em Geografia) Departamento de Geografia,
Universidade de São Paulo. São Paulo, 1996.
8
813
LANGENBUCH, Juergen Richard. A Estruturação da Grande São
Paulo: Estudo de geografia urbana. 1968. Tese (Doutorado
em Geografia) Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de
Rio Claro, Universidade de Campinas. Campinas, 1968.
MARQUES, Antônio José. A Organização Sindical dos Canteiros e as
Lutas Operárias no Começo do Século XX. 1996.
Dissertação (Mestrado em História). Departamento de
História, Universidade de São Paulo. São Paulo, 1996.
PRADO JÚNIOR, Caio. A Cidade de São Paulo: Geografia e História.
São Paulo: Brasiliense, 1998. (Col. Tudo é História, 78).
SANTOS, Milton. Pensando o Espaço do Homem. São Paulo:
Hucitec, 1986.
______. Metamorfoses do Espaço Habitado: fundamentos teóricos e
metodológicos da geografia. Texto escrito com a colaboração
de Denise Elias. São Paulo: Hucitec, 1988.
______. Técnica, Espaço e Tempo: globalização e meio técnicocientífico informacional. 4ª ed. São Paulo: Hucitec, 1998.
(Col. Geografia e Realidade, 25).
SEABRA, Odette Carvalho de Lima. Os Meandros dos Rios nos
Meandros do Poder, Tietê e Pinheiros: Valorização dos rios e
das várzeas na cidade de São Paulo. 1987. Tese (Doutorado
em Geografia) Departamento de Geografia, Universidade de
São Paulo. São Paulo, 1987.
SILVA, Maria Águeda Farias. Ouro Fino: Lugar de lazer na região
metropolitana de São Paulo. Ribeirão Pires: Arquivo Histórico
de Ribeirão Pires; São Paulo: Depto de Geografia da
FFLCH-USP, 1998. Mimeografado.
SOUZA, Edméia Maria Fortunato. Estação Ferroviária de Ribeirão
Pires. Santos: Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de
Santos; Ribeirão Pires: Acervo Histórico de Ribeirão Pires,
1985. Mimeografado.
TOFLER, Alvin. O Choque do Futuro. São Cristóvão: Arte Nova, 1973.
8
814
TUAN, Yi Fu. Topofilia: Um estudo da percepção, atitudes e valores
do meio ambiente. São Paulo: DIFEL, 1980.
DOCUMENTOS, OBRAS DE CONSULTA E MANUAIS
AGENDA 21 LOCAL – A CIDADE, O MEIO AMBIENTE E O HOMEM.
Ribeirão Pires, Estância Turística, Prefeitura Municipal de
Ribeirão Pires, São Paulo. 2003
IBGE. ANUÁRIO ESTATÍSTICO DO BRASIL. Vol. 58. Rio de Janeiro:
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1998.
PLANO DIRETOR DO MUNICÍPIO DE RIBEIRÃO PIRES: leitura
técnica do município. rev. São Paulo: Instituto Polis, 2003.
CARTOGRAFIA
Mapa Base Oficial da Estância Turística de Ribeirão Pires. 1997,
Secretaria de Desenvolvimento Sustentado, Coordenadoria
de Informação ao Planejamento, 1:17.500, Ribeirão Pires,
SP.
Mapas da Revisão do Plano Diretor de Ribeirão Pires. 2003,
elaborados pelo IPT - Instituto de Pesquisas Tecnológicas e
pela CIP - Coordenadoria de Informação ao Planejamento
Instituto Polis, Prefeitura Municipal da Estância Turística de
Ribeirão Pires e Instituto Polis, Ribeirão Pires e São Paulo.
8
815
ANEXO II
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADICIONAIS
O que segue, é um elenco de textos, papers, capítulos de livro,
ebooks, entrevistas e depoimentos relativos à produção do autor no
campo dos recursos hídricos e temáticas coadjuvantes, materiais
posteriores e/ou masterizados na sequência à defesa da Tese de
Doutorado USP Água e Metrópole: Limites e Expectativas do Tempo,
disponíveis, no geral, com acesso livre na Internet:
LIVROS, CAPÍTULOS DE LIVROS E EBOOKS
Água: Escassez e Conflitos no Império da Sede. Coleção Água em
Foco Nº. 1, segunda edição, revisada. São Paulo (SP): Editora Kotev.
2019. Material disponível on line no link:
<
http://www.mw.pro.br/mw/agua_escassez_e_conflitos_no_imperio_da
_sede.pdf >.Acesso: 5-12-2019.
Waters of Metropolitan Area of São Paulo: Technical, Conceptual and
Environmental Aspects. In: Sustainable water management in the
tropics and subtropics, Volume 4, Capítulo 53. BILIBIO, Carolina et alli
(Organizers). Witzenhausen (República Federal da Alemanha):
Universität Kassel - Department of Agricultural Engineering and
Agricultural Engineering in the Tropics and Subtropics. 2012. Texto
disponível on line em: < http://mw.pro.br/mw/geog_UNIKassel.pdf >.
Acesso: 5-12-2019.
Recursos Hídricos, Resíduos Sólidos e Matriz Energética: Notas
Conceituais, Metodológicas e Gestão Ambiental. In: Política Nacional
de Resíduos Sólidos e suas Interfaces com o Espaço Geográfico:
Entre Conquistas e Desafios, Capítulo 5, pp. 59-70. Porto Alegre
(RS): Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS): 2016.
Texto disponível on line em Formato PDF:
8
816
<
http://mw.pro.br/mw/pnrs_cap_05_mauricio_waldman_01.pdf >.
Acesso: 3-11-2018.
Espaço e Modo de Produção Asiático: A Organização do Espaço
Geográfico nas Primeiras Sociedades Estatais. Série Antropologia do
Espaço, Coleção Acadêmica Nº. 1. São Paulo (SP): Editora Kotev.
Ebook resultante da reformatação, masterização e ampliação de
paper originalmente publicado pelo Boletim Paulista de Geografia em
1994 sob o título Espaço eModo de Produção Asiático (Cf.
Referências Bibliográficas). Texto disponível on line em:
< http://mw.pro.br/mw/espaco_e_modo_de_producao_asiatico.pdf >.
Acesso em: 12-12-2019. 2018.
Lixo: Cenários e Desafios - Abordagens Básicas para Entender os
Resíduos Sólidos. São Paulo (SP): Cortez Editora. 2010;
Meio Ambiente & Antropologia. Série Meio Ambiente, nº. 6, 1ª. edição.
São Paulo (SP): Editora do Serviço Nacional de Aprendizagem
Comercial (SENAC). 2006.
RELATÓRIOS DE PÓS-DOUTORADO
Dilemas da Gestão do Lixo: Reciclagem, Catadores e Incineração.
Relatório de Pesquisa de Pós-Doutorado. Programa Nacional de Pós
Doutorado (PNPD) e Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior (CAPES). Brasília (DF): PNPD-CAPES, Ministério
da Educação. 2015;
O Papel de Angola na África Centro-Meridional: Recursos Hídricos,
Cooperação Regional e Dinâmicas Socioambientais. Relatório de
Pesquisa de Pós-Doutorado. São Paulo (SP) e Brasília (DF):
Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas (FFLCH-USP) e Conselho Nacional de Pesquisa e
Desenvolvimento Tecnológico (CNPq). 2014;
Lixo Domiciliar no Brasil: Dinâmicas Sócio-Espaciais, Gestão de
Resíduos e Ambiente Urbano. Relatório de Pesquisa de PósDoutorado. Campinas (SP): Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP) e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq). 2011;
8
817
PAPERS, ENSAIOS, ARTIGOS & TEXTOS DE SUPORTE
Crise Hídrica: A Persistência do Controle Desagregador do Estado. In:
Direitos Humanos no Brasil 2017, pp. 123-129, Rede Social de
Justiça e Direitos Humanos. Série Recursos Hídricos Nº. 1. São Paulo
(SP): Editora Kotev. 2018. Material disponível on line no link:
< http://mw.pro.br/mw/RSJDH.pdf >. Acesso: 5-12-2019.
A Ideologia das Águas Bastardas. Série Recursos Hídricos Nº. 2. São
Paulo (SP): Editora Kotev. 2018. Material disponível on line no link: <
http://mw.pro.br/mw/contemporartes_a_ideologia_das_aguas_bastard
as.pdf >.Acesso: 5-12-2019.
Recursos Hídricos e Rede Urbana Mundial: Dimensões Globais da
Escassez. In: Anais do XIII Encontro Nacional de Geógrafos, João
Pessoa (PA), 16/21-07-2002, página 122. Série Recursos Hídricos Nº.
3. São Paulo (SP): Editora Kotev. 2019. Material disponível on line no
link: < http://www.mw.pro.br/mw/recursos_hidricos_03.pdf >. Acesso:
5-12-2019.
Para Repensar os Resíduos Sólidos: Notas Sobre o Pensamento
Vivo de Milton Santos. Série Resíduos Sólidos Nº. 17. São Paulo
(SP): Editora Kotev. 2018. Material disponível on line no link: <
http://mw.pro.br/mw/residuos_solidos_17.pdf >. Acesso: 16-12-2019.
A Conta D’Água do Boi: Impactos Hídricos do Rebanho Bovino. Série
Recursos Hídricos Nº. 4. São Paulo (SP): Editora Kotev. 2018.
Material disponível on line no link:
<
http://www.mw.pro.br/mw/eco_coluna_do_waldman_conta_do_boi.pdf
>. Acesso: 5-12-2019.
Desafios da Cidadania Ambiental. Série Meio Ambiente, Nº. 14. São
Paulo (SP): Editora Kotev. 2018.Material disponível on line no link: <
http://mw.pro.br/mw/meio_ambiente_14.pdf >.Acesso: 16-12-2019.
Mais Água, Menos Lixo: Reciclar ou Repensar?. In: Boletim Paulista
de Geografia (BPG), nº. 79, pp. 91-106, 2003, publicação da
Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB), Seção Local São Paulo.
Série Recursos Hídricos Nº. 5. São Paulo (SP): Editora Kotev. 2019.
Material disponível on line no link:
< http://www.mw.pro.br/mw/recursos_hidricos_05.pdf >. Acesso: 5-122019.
8
818
Água no Século XXI: Recurso Precioso e Estratégico. Artigo
eletrônico primeiramente divulgado na home-page da Cortez editora
aos 23-03-2013. Série Recursos Hídricos Nº. 6. São Paulo (SP):
Editora Kotev. 2019. Material disponível on line no link:
< http://www.mw.pro.br/mw/recursos_hidricos_06.pdf >. Acesso: 5-122019.
Sede no País das Muitas Águas. Material elaborado em 2005 para
cursos de Capacitação da Associação Global para o Desenvolvimento
Sustentado (AGDS), com apoio do FEHIDRO. Série Recursos
Hídricos Nº. 7. São Paulo (SP): Editora Kotev. 2019. Material
disponível on line no link:
< http://www.mw.pro.br/mw/recursos_hidricos_07.pdf >. Acesso: 5-122019.
A Paz Está Pedindo Água!: Recursos Hídricos e o Conflito ÁrabeIsraelense. In: Revista Cosmos, publicação do Grupo de Pesquisa
Linguagens Geográficas da Faculdade de Ciências e Tecnologia da
Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus Presidente
Prudente, nº 2, pp. 29-34. Presidente Prudente (SP): UNESP. 2004.
Série Recursos Hídricos Nº. 8, Segunda edição, revisada e ampliada.
São Paulo (SP): Editora Kotev. 2019. Material disponível on line no
link: < http://www.mw.pro.br/mw/recursos_hidricos_08.pdf >. Acesso:
5-12-2019.
Água: Desafios e Oportunidades. Série Recursos Hídricos Nº. 9. São
Paulo (SP): Editora Kotev. 2019. Material disponível on line no link:
< http://www.mw.pro.br/mw/recursos_hidricos_09.pdf >. Acesso: 5-122019.
Extraterrestres na Caixa D'Água. Série Recursos Hídricos Nº. 10. São
Paulo (SP): Editora Kotev. 2018. Material disponível on line no link: <
http://www.mw.pro.br/mw/recursos_hidricos_10.pdf >. Acesso: 5-122019.
O Padre Cícero Ecológico. Série Meio Ambiente Nº. 5. São Paulo
(SP): Editora Kotev. 2018. Material disponível on line no link: <
http://mw.pro.br/mw/rel_padim_cico.pdf >. Acesso: 16-12-2019.
Seis Propostas Para Uma Educação Ambiental Crítica. Série Meio
Ambiente, Nº. 21. São Paulo (SP): Editora Kotev. 2019. Material
8
819
disponível on line no link:
< http://mw.pro.br/mw/meio_ambiente_21.pdf >. Acesso: 16-12-2019.
Racismo Ambiental: Imaginário Espacial e Conflitos Socioambientais.
Série Meio Ambiente Nº. 17. São Paulo (SP): Editora Kotev. 2018.
Material disponível on line no link:
< http://mw.pro.br/mw/meio_ambiente_17.pdf >. Acesso: 16-12-2019.
Justiça Ambiental: Atualidade e Incompletudes do Pensamento de
Joan Martínez Alier. Série Meio Ambiente, Nº. 15. São Paulo (SP):
Editora Kotev. 2018. Material disponível on line no link:
< http://mw.pro.br/mw/meio_ambiente_15.pdf >. Acesso: 16-12-2019.
Águas do Grande ABC: A Ecologia Política dos Mananciais. Material
elaborado em 2004 para cursos de Capacitação da Associação
Global para o Desenvolvimento Sustentado (AGDS), com o apoio do
Fundo Estadual de Recursos Hídricos (FEHIDRO). Série Recursos
Hídricos Nº. 11. São Paulo (SP): Editora Kotev. 2019. Material
disponível on line no link:
< http://www.mw.pro.br/mw/recursos_hidricos_11.pdf >. Acesso: 5-122019.
Águas de Angola: Pilar essencial de uma natureza sem igual. Série
Africanidades Nº. 6. São Paulo (SP): Editora Kotev. 2017. Material
disponível on line no link: < http://mw.pro.br/mw/africanidades_06.pdf
>. Acesso: 5-12-2019.
O Incrível Lago Vostok. Série Meio Ambiente Nº. 2. São Paulo (SP):
Editora Kotev. 2018. Material disponível on line no link:
< http://mw.pro.br/mw/meio_ambiente_02.pdf >. Acesso: 5-12-2019.
A Tragédia dos Mananciais do Grande ABC: Crise Hídrica e a Gestão
Petista de São Bernardo do Campo (1988-1992) - Relato de uma
Ruptura. Série Política e Sociedade Nº. 1. São Paulo (SP): Editora
Kotev. 2018. Material disponível on line no link:
<
http://mw.pro.br/mw/politica_e_sociedade_01.pdf >. Acesso: 5-122019.
Águas da Discórdia: A Disputa entre Angola e África do Sul pelas
Águas Doces. Série Professor Mourão Nº. 7. Segunda edição. São
Paulo (SP): Editora Kotev. 2018. Material disponível on line no link:<
8
820
http://www.mw.pro.br/mw/serie_professor_mourao_07.pdf >. Acesso:
5-12-2019.
Água: Debate Estratégico para Brasileiros e Angolanos. XIV Jornadas
Técnico-Científicas da Fundação Eduardo dos Santos (FESA), 21-24
de Setembro de 2010, Luanda, República de Angola. Série
Africanidades Nº. 1. São Paulo (SP): Editora Kotev. 2017. Material
disponível on line no link: < http://mw.pro.br/mw/africanidades_01.pdf
>. Acesso: 5-12-2019.
Recursos Hídricos: Impactos da Produção dos Alimentos e dos
Resíduos Orgânicos. Série Gastronomia, Culinária e Alimentação Nº.
2. São Paulo (SP): Editora Kotev. 2018. Material disponível on line no
link: < http://mw.pro.br/mw/geog_recursos_hidricos_impactos.pdf >.
Acesso: 5-12-2019.
Eco-Logia: Muito Além do “Estudo da Casa”. Série Meio Ambiente Nº.
9. Segunda edição, revisada. São Paulo (SP): Editora Kotev. Texto
disponível on line em: < http://mw.pro.br/mw/meio_ambiente_09.pdf >.
Acesso em: 25-11-2019. 2018.
Retornos da Natureza. Série Meio Ambiente Nº. 4. São Paulo (SP):
Editora Kotev. 2018. Texto disponível on line em: <
http://mw.pro.br/mw/eco_retornos_da_natureza.pdf >. Acesso em: 2511-2019. 2018.
Tempo, Modernidade e Natureza. Série Antropologia do Espaço, Nº.
1. São Paulo (SP): Editora Kotev. Título resultante da reformatação,
masterização e ampliação de paper homônimo originalmente
publicado pelo Caderno Prudentino de Geografia em 1995 (Cf.
Referências Bibliográficas). Texto disponível on line em:
< http://mw.pro.br/mw/antropologia_do_espaco_01.pdf >. Acesso em:
12-12-2019. 2018;
Meio Ambiente: Repensando o Debate Conceitual. Texto-base para
Conferência de Abertura do II º Simpósio de Pesquisa e Inserção
Social, organizado pelo Programa de Mestrado em Meio Ambiente e
Desenvolvimento Regional (MMADRE) e realizado pelo Núcleo de
Estudos Ambientais e Geoprocessamento (NEAGEO), dias 23-25 de
abril de 2014, Universidade do Oeste Paulista (UNOESTE). Texto
disponível on line em: < http://mw.pro.br/mw/meio_ambiente_12.pdf
>. Acesso em: 25-11-2019. 2014;
8
821
Limites da Modernidade: Dilemas do Esgotamento dos Recursos.
Texto de apoio para Conferencia de Abertura da XII Jornada de
Educação, XII Simpósio de Iniciação Científica da Faculdade de
Ciências, Letras e Educação da Universidade do Oeste Paulista
(UNOESTE), 02 a 06 de Maio de 2011. Presidente Prudente (SP),
UNOESTE: Anais XII Jornada de Educação. 2011. Texto disponível
on line em:
< http://mw.pro.br/mw/geog_limites_da_modernidade_2011.pdf >.
Acesso em: 25-09-2019. 2011;
Crise Ambiental: Ponderando a Respeito de um Dilema da
Modernidade. In: Revista Crítica Histórica, volume 4, pp. 295-313.
Maceió (AL): Centro de Pesquisa e Documentação Histórica
(CPDHis), da Universidade Federal de Alagoas (UFA). 2011. Texto
disponível on line em:
< http://mw.pro.br/mw/eco_palestra_MWPP_2011.pdf >. Acesso em:
25-09-2019. 2011;
TRADUÇÕES
Manifesto Eco Modernista. Breakthrough Institute. Oakland (EUA),
2015. Tradução de Maurício Waldman e Tadeu Alcides Marques.
Série Meio Ambiente Nº. 8. São Paulo (SP): Editora Kotev. Texto
disponível on line em: < http://mw.pro.br/mw/meio_ambiente_08.pdf >.
Acesso em: 25-09-2019. 2018.
ENTREVISTAS & DEPOIMENTOS
O Império da Sede. Entrevista com Heródoto Barbeiro, Programa
Record News (12:45 minutos), 20-06-2019:
< https://www.youtube.com/watch?v=FondnlIL69s >. Acesso: 5-122019.
O avanço do império da sede e as disputas geopolíticas pelos
recursos hídricos. Entrevista Especial para O Instituto Humanitas
Unisinos,
6-08-2019.
Disponível
on
line
em:
<
http://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevistas/591383-o-avancodo-imperio-da-sede-e-as-disputas-geopoliticas-pelos-recursos-
8
822
hidricos-entrevista-especial-com-mauricio-waldman >. Acesso: 5-122019.
Água: O Mundo e um Recurso Precioso. Programa Especial
apresentado pela Rádio Nações Unidas em língua Portuguesa,
formatado em cinco capítulos e levado ao ar em Agosto/Setembro de
2011 (Acesso: 8-02-2019). Arquivos de áudio em formato mp3
disponíveis on line em:
Capítulo 1, O Mundo e um Recurso Precioso:
< http://mw.pro.br/mw/RadioONU_Programa1.mp3 >;
Capítulo 2 - O Drama da Seca e do Deserto:
< http://mw.pro.br/mw/RadioONU_Programa2.mp3 >;
Capítulo 3 - Água, Agricultura e Insegurança Alimentar:
< http://mw.pro.br/mw/RadioONU_Programa3.mp3 >;
Capítulo 4 - Fonte de Influência em Conflitos, Mas Também de
Cooperação: < http://mw.pro.br/mw/RadioONU_Programa4.mp3 >;
Capítulo 5 - A Água e a Rio + 20:
< http://mw.pro.br/mw/RadioONU_Programa1.mp3 >.
Não Adianta Pensar em Políticas de Água Fechando a Torneira.
Entrevista concedida para a Revista Ambiente Urbano, nº. 34,
Abril/Maio de 2009, pp. 4-6. Santo André (SP): Instituto Triângulo.
2009. Material disponível on line no link:
<
http://mw.pro.br/mw/eco_entrevista_ambiente_urbano.pdf
>.
Acesso: 5-03-2019.
Recursos Hídricos em Perigo. Entrevista para o jornal Primeiro
Argumento, Nº. 10, pp. 4-5, Abril de 2006. Material disponível on line
no link: < http://mw.pro.br/mw/geog_recursos_hidricos_em_perigo.pdf
>. Acesso: 5-12-2019.
Especialista não crê na despoluição total do Tietê. Entrevista para o
jornal Primeiro Argumento, Nº. 11, página 6, Maio de 2006. Material
disponível
on
line
no
link:
<
http://mw.pro.br/mw/geog_projeto_tiete_e_as_aguas_da_metropole.p
df >. Acesso: 5-12-2019.
8
823
APÊNDICES
8
824
APÊNDICE 1
LEI N.º 898, DE 18 DE DEZEMBRO DE 1975
Disciplina o uso do solo para a proteção dos mananciais, cursos,
reservatórios de água e demais recursos hídricos de interesse da
Região Metropolitana da Grande São Paulo e dá providências
correlatas.
O GOVERNADOR DO ESTADO DE SÃO PAULO:
Faço saber que a Assembléia Legislativa decreta e eu promulgo
a seguinte lei:
Artigo 1º - Esta Lei disciplina o uso do solo para a proteção dos
mananciais, cursos e reservatórios de água e demais recursos
hídricos de interesse da Região Metropolitana da Grande São Paulo,
em cumprimento ao disposto nos incisos II e III do artigo 2º e inciso
VIII do artigo 3º da Lei Complementar n.º 94, de 29 de maio de 1974.
Artigo 2º - São declaradas área de proteção e, como tais,
reservadas, as referentes aos seguintes mananciais, cursos e
reservatórios de água e demais recursos hídricos de interesse da
Região Metropolitana da Grande São Paulo:
I - reservatório Billings;
II - reservatórios do Cabuçu no Rio Cabuçu de Cima, até a
barragem no Município de Guarulhos;
III - reservatórios da Cantareira, no Rio Cabuçu de Baixo, até as
barragens no Município de São Paulo;
8
825
IV - reservatório do Engordador, até a barragem no Município de
São Paulo;
V - reservatório de Guarapiranga, até a barragem no Município
de São Paulo;
VI - reservatório de Tanque Grande, até a barragem no Município
de Guarulhos;
VII - Rios Capivari e Monos, até a barragem prevista da SABESP,
a jusante da confluência do Rio Capivari com Ribeirão dos Campos,
no Município e São Paulo;
VIII - Rio Cotia, até a barragem das Graças no Município de
Cotia;
IX - Rio Guaió, até o cruzamento com a Rodovia São Paulo-Mogi
das Cruzes, na divisa dos Municípios de Poá e Suzano;
X - Rio Itapanhaú, até a confluência com o Ribeirão das Pedras,
no Município de Biritiba-Mirim;
XI - Rio Itatinga, até os limites da Região Metropolitana;
XII - Rio Jundiaí, até a Confluência com o Rio Oropó, exclusive,
no Município de Mogi das Cruzes;
XIII - Rio Juqueri, até a barragem da SABESP, no Município de
Franco da Rocha;
XIV - Rio Taiaçupeba, até a confluência com o Taiaçupeba-Mirim,
inclusive, na divisa dos Município de Suzano e Mogi das Cruzes;
XV - Rio Tietê, até a confluência com o Rio Botujuru, no
Município de Mogi das Cruzes;
XVI - Rio Jaguari, afluente da margem esquerda do Rio Paraíba
até os limites da Região Metropolitana;
XVII - Rio Biritiba, até a sua foz;
XVIII - Rio Juquiá, até os limites da Região Metropolitana.
8
826
Artigo 3º - As áreas de proteção de que trata esta Lei
corresponderão, no máximo, às de drenagem referentes aos
mananciais, cursos e reservatórios de água e demais recursos
hídricos, especificados no artigo 2º.
Parágrafo único - Nas áreas de proteção, os projetos e a
execução de arruamentos, loteamentos, edificações e obras, bem
assim, a prática de atividades agropecuárias, comerciais, industriais e
recreativas dependerão de aprovação prévia da Secretaria dos
Negócios Metropolitanos, e manifestação favorável da Secretaria de
Obras e Meio Ambiente, mediante parecer da Companhia Estadual de
Tecnologia de Saneamento Básico e de Defesa do Meio Ambiente CETESB, quanto aos aspectos de proteção ambiental, sem prejuízo
das demais competências estabelecidas na legislação, em vigor, para
outros fins.
Artigo 4º - As atividades mencionadas no parágrafo único do
artigo anterior, se exercidas sem licenciamento e aprovação da
Secretaria do Negócios Metropolitanos, com inobservância desta Lei,
ou em desacordo com os projetos aprovados, poderão determinar a
cassação do licenciamento, se houver, e a cessação compulsória da
atividade ou o embargo e demolição das obras realizadas a juízo da
Secretaria
dos
Negócios
Metropolitanos,
sem
prejuízo
da
indenização, pelo infrator, dos danos que causar.
Artigo 5º - As áreas de proteção referida no artigo 2º serão
delimitadas por lei, que poderá estabelecer, nos seus limites, faixas,
ou áreas de maior ou menor restrição, conforme o interesse público o
exigir.
Parágrafo único - As faixas, ou áreas, de maior restrição,
denominadas de 1º categoria, abrangerão inclusive o corpo de água,
enquanto que as demais, denominadas de 2º categoria, serão
8
827
classificadas na ordem decrescente das restrições a que estarão
sujeitas.
Artigo 6º - Nas áreas de proteção, o licenciamento das atividades
e a realização das obras, referidas no parágrafo único do artigo 3º
desta Lei, ficarão sujeitos às seguintes exigências:
I - destinação e uso da área, perfeitamente caracterizados e
expressos nos projetos e documentos submetidos à aprovação;
II - apresentação, nos projetos, de solução adequada para a
coleta, tratamento e destino final dos resíduos sólidos líquidos e
gasosos, produzidos pelas atividades que se propõem exercer ou
desenvolver nas áreas;
III -
apresentação, nos projetos, de solução adequada,
relativamente aos problemas de erosão e de escoamento das águas,
inclusive as pluviais.
§ 1º - O licenciamento das atividades hortifrutícolas independerá
de projetos, desde que o documento submetido à aprovação
contenha os demais requisitos previstos neste artigo.
§ 2º - O licenciamento de atividades e a aprovação de projetos
por quaisquer outros órgãos públicos, dependerá de aprovação prévia
da Secretaria dos Negócios Metropolitanos e manifestação da
Secretaria de Obras e Meio Ambiente, mediante parecer da
Companhia de Tecnologia de Saneamento Básico e de Defesa do
Meio Ambiente -CETESB, relativamente ao cumprimento dos incisos I
a III e § 1º deste artigo.
§ 3º - Dos documentos de aprovação constará, obrigatoriamente,
que o uso da área só será admitido em conformidade com esta Lei.
Artigo 7º - Os órgãos e entidades responsáveis por obras
públicas, a serem executadas nas áreas de proteção, deverão
submeter, previamente, os respectivos projetos à Secretaria dos
8
828
Negócios Metropolitanos, que estabelecerá os requisitos mínimos
para a implantação dessas obras, podendo acompanhar sua
execução.
Artigo 8º - Nas áreas ou faixas de maior restrição, denominadas
de 1ª categoria, somente serão permitidas atividades recreativas e a
execução
de
obras
ou
serviços
indispensáveis
ao
uso
e
aproveitamento do recurso hídrico, desde que não coloquem em risco
a qualidade da água.
Parágrafo único - As faixas de 1ª categoria, observadas as
normas desta Lei, poderão ser computadas no cálculo das áreas
reservadas para sistemas de recreio em loteamentos.
Artigo 9º - Na elaboração, implantação e adequação dos planos
de urbanização e desenvolvimento, a serem executados na Região
Metropolitana da Grande São Paulo, a Secretaria dos Negócios
Metropolitanos observará o disposto nesta Lei.
Artigo 10 - Em cada área de proteção, a Secretaria dos Negócios
Metropolitanos aplicará as medidas necessárias à adaptação das
urbanizações, edificações e atividades existentes, às disposições
nesta Lei.
Parágrafo único - As urbanizações, edificações e atividades
existentes, ou exercidas anteriormente a esta Lei, gozarão de prazo
adequado para se adaptarem às suas exigências ou procederem às
suas transferências para outro local, e, na impossibilidade de o
fazerem,
poderão
ser
suprimidas
mediante
indenização
ou
desapropriação.
Artigo 11 - As restrições, a serem estabelecidas em lei e
correspondentes às áreas de proteção a que se refere o artigo 2º,
sem prejuízo da legislação em vigor para outros efeitos, constarão de
normas relativas a:
8
829
I - formas de uso do solo permitidas e as características de sua
ocupação e aproveitamento;
II - condições mínimas para parcelamento do solo e para a
abertura de arruamentos;
III - condições admissíveis de pavimentação e impermeabilização
do solo;
IV - condições de uso dos mananciais, cursos e reservatórios de
água, obedecidos a classificação e o enquadramento previstos em
leis e regulamentos;
V - formas toleráveis de desmatamento nas áreas de proteção;
VI - condições toleráveis para a movimentação de terras nas
áreas de proteção;
VII - ampliação e aumento de produção dos estabelecimentos
industriais, localizados nas áreas de proteção que possam oferecer
riscos à qualidade dos recursos hídricos;
VIII - exigências a serem cumpridas pelas indústrias existentes
ou em construção nas áreas de proteção, e o plano de
remanejamento das que nele não puderem permanecer;
IX - emprego de defensivos e fertilizantes e prática de atividades
horti-fruti-granjeiras, que deverão ser limitadas às formas que não
contribuam para a deterioração dos recursos hídricos;
X - condições e limites quantitativos de produtos nocivos que
poderão ser armazenados nas áreas de proteção, sem riscos para a
qualidade dos recursos hídricos;
XI - condições de passagem de canalizações que transportem
substâncias, consideradas nocivas às áreas de proteção;
XII - condições de coleta, transporte e destino final de esgotos e
resíduos sólidos, nas áreas de proteção;
XIII - condições de transporte de produtos considerados nocivos.
8
830
Artigo 12 - As restrições a que se refere o artigo anterior serão
fixados em conformidade com as normas desta Lei, e com base em
critérios de proteção ao meio ambiente, fornecidos pela Secretaria de
Obras e do Meio Ambiente, através da Companhia Estadual de
Tecnologia de Saneamento Básico e de Defesa do Meio Ambiente CETESB, e de uso ao solo, fornecidos pela Secretaria dos Negócios
Metropolitanos.
Artigo 13 - Os infratores das disposições desta Lei e respectivos
regulamentos ficam sujeitos à aplicação das seguintes sanções, sem
prejuízo de outras, estabelecidas em leis especiais:
I - advertência, com prazo a ser estabelecido em regulamento,
para a regularização da situação nos casos de primeira infração,
quando não haja perigo iminente à saúde pública;
II - multa de Cr$ 100,00 (cem cruzeiros) a Cr$ 5.000,00 (cinco mil
cruzeiros) por dia, tendo-se em vista o patrimônio do agente infrator,
localizado na área de proteção, se não efetuada a regularização
dentro do prazo fixado pela Administração;
a) - pela execução de arruamento, loteamento, edificação ou
obra,
sem
aprovação
prévia
da
Secretaria
dos
Negócios
Metropolitanos;
b) - pela prática de atividades agropecuárias, comerciais,
industriais e recreativas sem aprovação prévia da Secretaria dos
Negócios Metropolitanos;
c) - pela execução de arruamento, loteamento, edificação ou obra
e pela prática de atividades agropecuárias, comerciais, industriais e
recreativas em desacordo com os termos da aprovação ou com
infração das disposições desta Lei e respectivos regulamentos.
III - interdição, nos casos de iminente perigo à saúde pública e
nos de infração continuada;
8
831
IV - embargo e demolição da obra ou construção executada sem
autorização ou aprovação, ou em desacordo com os projetos
aprovados, quando a sua permanência ou manutenção contrariar as
disposições desta Lei ou ameaçar a qualidade do meio ambiente,
respondendo o infrator pelas despesas a que der causa.
§ 1º - As medidas previstas neste artigo serão aplicadas pela
Secretaria dos Negócios Metropolitanos;
§ 2º - As penalidades de interdição, embargo ou demolição,
poderão ser aplicadas sem prejuízo daquelas objeto dos incisos I e II
deste artigo;
§ 3º - O valor da multa prevista no inciso II deste artigo será de
Cr$ 100,00 (cem cruzeiros) a Cr$ 500,00 (quinhentos cruzeiros) por
dia no caso de atividades hortifrutícolas;
§ 4º - O valor da multa prevista no inciso II deste artigo e em seu
parágrafo 3º será automaticamente reajustado mediante a aplicação
dos coeficientes de atualização monetária de que trata o artigo 2º da
Lei Federal n.º 6205, de 29 de abril de 1975.
Artigo 14 - A aplicação de sanções às infrações ao disposto na
presente Lei, quando ocorrer poluição, também do meio ambiente,
não impedirá a incidência de outras penalidades por ação da
Companhia Estadual de Tecnologia de Saneamento Básico e de
Defesa do meio Ambiente - CETESB, nos termos da legislação
estadual sobre proteção do meio ambiente do Estado de São Paulo,
contra agentes poluidores.
Artigo 15 - O produto da arrecadação das multas decorrentes das
infrações
previstas
nesta
Lei
construirá
receita
do
Fundo
Metropolitano de Financiamento e Investimento, quando aplicadas
pela
Secretaria
dos
Negócios
Metropolitanos,
cabendo
a
8
832
responsabilidade pela cobrança à instituição do Sistema de Crédito
do Estado, encarregada de administrá-lo.
Artigo 16 - Da aplicação das sanções previstas nesta Lei caberá
recurso ao Secretário dos Negócios Metropolitanos.
Artigo 17 - Esta Lei será regulamentada dentro de 180 (cento e
oitenta) dias, a contar de sua publicação.
Artigo 18 - Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação.
Palácio dos Bandeirantes, 17 de novembro de 1975.
PAULO EGYDIO MARTINS
Francisco Henrique Fernando de Barros, Secretário de Obras e
do Meio Ambiente
Roberto
Metropolitanos.
Cerqueira
César,
Secretário
dos
Negócios
8
833
APÊNDICE 2
LEI Nº. 9.866, DE 28 DE NOVEMBRO DE 1997
(Inclui retificação feita no Diário Oficial de 09/12/1997)
Dispõe sobre diretrizes e normas para a proteção e recuperação
das bacias hidrográficas dos mananciais de interesse regional do
Estado de São Paulo e dá outras providências
O GOVERNADOR DO ESTADO DE SÃO PAULO:
Faço saber que a Assembléia Legislativa decreta e eu promulgo
a seguinte Lei:
CAPÍTULO I
Objetivos e Abrangência
Art. 1º - Esta lei estabelece diretrizes e normas para a proteção e
a recuperação da qualidade ambiental das bacias hidrográficas dos
mananciais de interesse regional para abastecimento das populações
atuais e futuras do Estado de São Paulo, assegurados, desde que
compatíveis, os demais usos múltiplos.
Parágrafo único - Para efeito desta Lei, consideram-se
mananciais de interesse regional as águas interiores subterrâneas,
superficiais, fluentes, emergentes ou em depósito, efetiva ou
potencialmente utilizáveis para o abastecimento público.
Art. 2º - São objetivos da presente Lei :
8
834
I - preservar e recuperar os mananciais de interesse regional no
Estado de São Paulo;
II - compatibilizar as ações de preservação dos mananciais de
abastecimento e as de proteção ao meio ambiente com o uso e
ocupação do solo e o desenvolvimento socioeconômico;
III - promover uma gestão participativa, integrando setores e
instâncias governamentais, bem como a sociedade civil;
IV - descentralizar o planejamento e a gestão das bacias
hidrográficas desses mananciais, com vistas à sua proteção e à sua
recuperação;
V - integrar os programas e políticas habitacionais à preservação
do meio ambiente.
Parágrafo único - As águas dos mananciais protegidos por esta
Lei, são prioritárias para o abastecimento público em detrimento de
qualquer outro interesse.
Art. 3º - Para os fins previstos nesta Lei, considera-se Área de
Proteção e Recuperação dos Mananciais - APRM uma ou mais subbacias hidrográficas dos mananciais de interesse regional para
abastecimento público.
Parágrafo único - A APRM referida no "caput" deste artigo deverá
estar inserida em uma das Unidades de Gerenciamento de Recursos
Hídricos - UGRHI, previstas no Sistema Integrado de Gerenciamento
de Recursos Hídricos - SIGRH, instituído pela Lei nº. 7663, de 30 de
dezembro de 1991.
Art. 4° - As APRMs serão definidas e delimitadas mediante
proposta do Comitê de Bacia Hidrográfica e por deliberação do
Conselho Estadual de Recursos Hídricos - CRH, ouvidos o Conselho
Estadual de Meio Ambiente - CONSEMA e o Conselho de
8
835
Desenvolvimento Regional - CDR, e criadas na forma do artigo 18
desta Lei.
CAPÍTULO II
Sistema de Planejamento e Gestão
Art. 5º - A gestão das APRMs ficará vinculada ao Sistema
Integrado de Gerenciamento de Recursos Hídricos - SIGRH,
garantida a articulação com os Sistemas de Meio Ambiente e
Desenvolvimento Regional.
Art. 6º - O sistema de gestão das APRMs contará com:
I - órgão colegiado;
II - órgão técnico;
III - órgãos da administração pública.
Parágrafo único - Na hipótese de mananciais de interesse
regional sob a influência de mais de uma UGRHI, o CRH poderá
deliberar por uma gestão compartilhada ou unificada das APRMs, a
partir de proposta dos Comitês de Bacia Hidrográfica - CBH
correspondentes.
Art. 7º - O Órgão Colegiado, de caráter consultivo e deliberativo,
será o CBH correspondente à UGRHI na qual se insere a APRM, ou o
Sub Comitê a ele vinculado e que dele receba expressa delegação de
competência nos assuntos de peculiar interesse da APRM.
§ 1º - A composição do órgão colegiado da APRM atenderá ao
princípio da participação paritária do Estado, dos Municípios e da
sociedade civil, todos com direito a voz e voto.
§ 2º - As entidades da sociedade civil, sediadas necessariamente
nos Municípios contidos total ou parcialmente nas respectivas
8
836
APRMs, respeitado o limite máximo de um terço do número total de
votos, serão representadas por:
1. entidades de classe de profissionais especializadas em
saneamento básico, recursos hídricos e planejamento físico e
territorial;
2. entidades de classe patronais e empresariais;
3. organizações não governamentais defensoras do meio
ambiente e associações não governamentais;
4. associações comunitárias e associações de moradores; e
5. universidades, institutos de ensino superior e entidades de
pesquisa e desenvolvimento tecnológico.
§ 3º - O órgão colegiado terá, entre outras, as seguintes
atribuições:
1. aprovar previamente o Plano de Desenvolvimento e Proteção
Ambiental - PDPA e suas atualizações, bem como acompanhar sua
implementação;
2. manifestar-se sobre a proposta de criação de Áreas de
Intervenção e respectivas diretrizes e normas ambientais e
urbanísticas de interesse regional, bem como suas revisões e
atualizações;
3. recomendar
diretrizes para as políticas setoriais dos
organismos e entidades que atuam na APRM, promovendo a
integração e a otimização das ações, objetivando a adequação à
legislação e ao PDPA;
4. recomendar alterações em políticas, ações, planos e projetos
setoriais a serem implantados na APRM, de acordo com o
preconizado na legislação e no PDPA;
8
837
5. propor critérios e programas anuais e plurianuais de aplicação
de recursos financeiros em serviços e obras de interesse para a
gestão da APRM; e
6. promover, no âmbito de suas atribuições, a articulação com os
demais Sistemas de Gestão institucionalizados, necessária a
elaboração, revisão, atualização e implementação do PDPA.
Art. 8º - O órgão técnico será a Agência de Bacia, prevista no
artigo 29 da Lei nº. 7663, de 30 de dezembro de 1991 ou, na sua
inexistência, o organismo indicado pelo CBH, e terá, entre outras, as
seguintes atribuições:
I - subsidiar e dar cumprimento às decisões do órgão colegiado
da APRM;
II - elaborar Relatório de Situação da Qualidade Ambiental da
APRM, que deverá integrar Relatório de Situação da Bacia
Hidrográfica correspondente;
III - elaborar e atualizar o PDPA;
IV - elaborar proposta de criação das Áreas de Intervenção e
respectivas diretrizes e normas ambientais e urbanísticas de interesse
regional, suas atualizações, e propostas de enquadramento das
Áreas de Recuperação Ambiental;
V - promover, com os órgãos setoriais, a articulação necessária a
elaboração de proposta de criação das Áreas de Intervenção e
respectivas diretrizes e normas, de proposta de enquadramento das
Áreas de Recuperação Ambiental, do PDPA, e de suas respectivas
atualizações;
VI - propor a compatibilização da legislação ambiental e
urbanística estadual e municipal ;
8
838
VII - subsidiar e oferecer suporte administrativo e técnico
necessário
ao
funcionamento
do
órgão
colegiado,
dando
cumprimento às suas determinações;
VIII - implantar, operacionalizar e manter sistematicamente
atualizado Sistema Gerencial de Informações, garantindo acesso aos
órgãos da administração pública municipal, estadual e federal e à
sociedade civil;
IX - promover assistência e capacitação técnica e operacional a
órgãos, entidades, organizações não governamentais e Municípios,
na
elaboração
de
planos,
programas,
legislações,
obras
e
empreendimentos localizados dentro da APRM; e
X - articular e promover ações objetivando a atração e indução de
empreendimentos e atividades compatíveis e desejáveis, de acordo
com as metas estabelecidas no PDPA e com a proteção aos
mananciais.
Parágrafo único - As ações desenvolvidas pelo órgão técnico
devem obedecer às diretrizes dos Sistemas de Recursos Hídricos,
Meio Ambiente e Desenvolvimento Regional.
Art. 9º - Os órgãos da administração pública serão responsáveis
pelo licenciamento, fiscalização, monitoramento e implementação dos
programas e ações setoriais e terão, entre outras, as seguintes
atribuições:
I - promover e implantar fiscalização integrada com as demais
entidades participantes do sistema de gestão e com os diversos
sistemas institucionalizados;
II - implementar programas e ações setoriais definidos pelos
PDPAs; e
III - contribuir para manter atualizado o Sistema Gerencial de
Informações.
8
839
CAPÍTULO III
Instrumentos de Planejamento e Gestão
Art. 10 - Nas APRMs serão implementados instrumentos de
planejamento e gestão, visando orientar as ações do poder público e
da sociedade civil voltadas à proteção, à recuperação e à
preservação dos mananciais de interesse regional.
Art. 11 - São instrumentos de planejamento e gestão:
I - áreas de intervenção e respectivas diretrizes e normas
ambientais e urbanísticas de interesse regional;
II - normas para implantação de infraestrutura sanitária;
III - mecanismos de compensação financeira aos Municípios;
IV - Plano de Desenvolvimento e Proteção Ambiental - PDPA;
V - controle das atividades potencialmente degradadoras do meio
ambiente, capazes de afetar os mananciais;
VI - Sistema Gerencial de Informações; e
VII - imposição de penalidades por infrações as disposições
desta Lei e das leis específicas de cada APRM.
CAPÍTULO IV
Disciplinamento da Qualidade Ambiental
Seção I
Das Áreas de Intervenção
Art. 12 - Nas APRMs, para a aplicação de dispositivos normativos
de proteção, recuperação e preservação dos mananciais e para a
8
840
implementação de políticas públicas, serão criadas as seguintes
Áreas de Intervenção:
I - Áreas de Restrição à Ocupação;
II - Áreas de Ocupação Dirigida; e
III - Áreas de Recuperação Ambiental.
Art. 13 - São Áreas de Restrição à Ocupação, além das definidas
pela Constituição do Estado e por lei como de preservação
permanente, aquelas de interesse para a proteção dos mananciais e
para a preservação, conservação e recuperação dos recursos
naturais.
Art. 14 - São Áreas de Ocupação Dirigida aquelas de interesse
para a consolidação ou implantação de usos rurais e urbanos, desde
que atendidos os requisitos que garantam a manutenção das
condições
ambientais
necessárias a
produção
de
água
em
quantidade e qualidade para o abastecimento das populações atuais
e futuras.
Art. 15 - São Áreas de Recuperação Ambiental aquelas cujos
usos e ocupações estejam comprometendo a fluidez, potabilidade,
quantidade e qualidade dos mananciais de abastecimento público e
que necessitem de intervenção de caráter corretivo.
Parágrafo único - As Áreas de Recuperação Ambiental serão
reenquadradas através do PDPA em Áreas de Ocupação Dirigida ou
de Restrição à Ocupação, quando comprovada a efetiva recuperação
ambiental pelo Relatório de Situação da Qualidade da APRM.
Art. 16 - Para cada APRM serão estabelecidas diretrizes e
normas ambientais e urbanísticas de interesse regional, respeitadas
as
competências
Municipais
e
da
União,
considerando
as
especificidades e funções ambientais das diferentes Áreas de
Intervenção, com o fim de padrões de qualidade e quantidade de
8
841
água bruta, passível de tratamento convencional para abastecimento
público.
Parágrafo único - As diretrizes e normas referidas no "caput"
deste artigo serão relativas a:
1. condições de ocupação e de implantação de atividades efetiva
ou potencialmente degradadoras do meio ambiente, capazes de
afetar os mananciais;
2. condições para a implantação, operação e manutenção dos
sistemas de:
a) tratamento de água;
b) drenagem de águas pluviais;
c) controle de cheias;
d) coleta, transporte, tratamento e disposição de resíduos sólidos;
e) coleta, tratamento e disposição final de efluentes líquidos; e
f) transmissão e distribuição de energia elétrica.
3. condições de instalação de canalizações que transportem
substâncias consideradas nocivas à saúde e ao meio ambiente;
4. condições de transporte de produtos considerados nocivos a
saúde e ao meio ambiente;
5. medidas de adaptação de atividades, usos e edificações
existentes às normas decorrentes desta Lei;
6. condições de implantação de mecanismos que estimulem
ocupações compatíveis com os objetivos das Áreas de Intervenção; e
7. condições de utilização e manejo dos recursos naturais.
Art. 17 - Na delimitação e normatização das Áreas de Intervenção
serão considerados:
I - a capacidade de produção hídrica do manancial;
II - a capacidade de autodepuração e assimilação das cargas
poluidoras;
8
842
III - os processos de geração de cargas poluidoras;
IV - o enquadramento do corpo d’água nas classes de uso
preponderante;
V - a infraestrutura existente ;
VI - as condições ambientais essenciais à conservação da
qualidade e da quantidade das águas do manancial; e
VII - o perfil dos agravos à saúde cujas causas possam estar
associadas às condições do ambiente físico.
Art. 18 - As APRMs, suas Áreas de Intervenção e respectivas
diretrizes em normas ambientais e urbanísticas de interesse regional
serão criadas através de Lei estadual.
Art. 19 - As leis municipais de planejamento e controle do uso, do
parcelamento e da ocupação do solo urbano, previstas no artigo 30
da Constituição Federal, de 5 de outubro de 1988, deverão incorporar
as diretrizes e normas ambientais e urbanísticas de interesse para a
preservação, conservação e recuperação dos mananciais definidas
pela lei específica da APRM.
Parágrafo único - O Poder Executivo Municipal deverá submeter
ao órgão colegiado da APRM as propostas de leis municipais a que
se refere o "caput" deste artigo.
Seção II
Da InfraEstrutura Sanitária
Art. 20 - A implantação de sistema coletivo de tratamento e
disposição de resíduos sólidos domésticos em APRM será permitida,
desde que:
I - seja comprovada a inviabilidade de implantação em áreas
situadas fora da APRM;
8
843
II - sejam adotados sistemas de coleta, tratamento e disposição
final, cujos projetos atendam a normas, índices e parâmetros
específicos para as APRMs, a serem estabelecidos pelo órgão
ambiental competente; e
III - sejam adotados, pelos Municípios, programas integrados de
gestão de resíduos sólidos que incluam, entre outros, a minimização
dos resíduos, a coleta seletiva e a reciclagem.
Art. 21 - Os resíduos sólidos decorrentes de processos industriais
deverão ser removidos das APRMs, conforme critérios estabelecidos
pelo órgão ambiental competente.
Parágrafo único - A lei específica de cada APRM definirá os
casos em que poderão ser dispostos os resíduos sólidos inertes
decorrentes de processos industriais.
Art. 22 - Os resíduos decorrentes do sistema de saúde deverão
ser tratados e dispostos fora das áreas protegidas.
Parágrafo único - A lei específica de cada APRM definirá os
casos em que poderá ser admitida a incineração, ou outra tecnologia
mais adequada, dos resíduos de sistema de saúde.
Art. 23 - Não será permitida a disposição de resíduos sólidos em
Áreas de Restrição à Ocupação.
Art. 24 - Fica proibida a disposição, em APRM, de resíduos
sólidos provenientes de Municípios localizados fora das áreas
protegidas.
Art. 25 - O lançamento de efluentes líquidos sanitários em APRM,
será admitido, desde que:
I - fique comprovada a inviabilidade técnica econômica de seu
afastamento ou tratamento para infiltração no solo, (Vetado)
II - haja o prévio enquadramento dos corpos d’água conforme a
legislação vigente; e
8
844
III - os efluentes recebam tratamento compatível com a
classificação do corpo d’água receptor.
§ 1º - O enquadramento de que trata este artigo fica restrito às
Classes Especial, 1, 2 e 3 estabelecidas pelo artigo 1º, da Resolução
CONAMA n.º 20, de 18 de junho de 1986.
§ 2º - Somente será admitido o reenquadramento do corpo
d’água em classe de nível de qualidade inferior àquele em que estiver
enquadrado, quando não for possível a efetivação do enquadramento
do corpo d’água na Classe de enquadramento atual e for
demonstrada a inviabilidade de se atingir tais índices.
§ 3º - Não serão permitidas captações em trechos classificados
como Classe 3.
§ 4º - O órgão ambiental competente deverá definir os limites de
carga a serem lançados em corpos d’água classificados como Classe
3.
§ 5º - Somente será admitido o enquadramento dos corpos
d’água em Classes que possibilitem índices progressivos de melhoria
da qualidade das águas.
§ 6º - O corpo d’água que, na data de enquadramento,
apresentar qualidade inferior à estabelecida para a sua Classe, não
poderá receber novos lançamentos no trecho considerado em
desconformidade, nem tampouco novos lançamentos industriais na
rede pública de esgoto, que comprometam os padrões de qualidade
da Classe em que o corpo d’água receptor dos efluentes estiver
enquadrado.
Art. 26 - Os efluentes líquidos de origem industrial deverão ser
afastados das APRMs, conforme critérios estabelecidos pelo órgão
ambiental competente.
8
845
§ 1º - Poderá ser admitido o lançamento de efluentes líquidos
industriais em APRMs, desde que:
1. seja comprovada a inviabilidade técnica e econômica do
afastamento ou tratamento para infiltração no solo;
2. haja o prévio enquadramento dos corpos d’água, conforme o
disposto nos parágrafos do artigo anterior; e
3. os efluentes contenham exclusivamente cargas orgânicas não
tóxicas e sejam previamente tratados de forma compatível com a
classificação do corpo d’água receptor.
§ 2º - Os estabelecimentos industriais existentes à data de
promulgação da lei específica da APRM deverão apresentar ao órgão
ambiental competente, conforme critérios previamente estabelecidos,
planos de controle de poluição ambiental, plano de transportes de
cargas tóxicas e perigosas e estudos de análise de riscos para a
totalidade do empreendimento, comprovando a viabilidade de sua
permanência nos locais atuais.
CAPÍTULO V
Controle e Monitoramento da Qualidade Ambiental
Art. 27 - O cumprimento das normas e diretrizes desta Lei e da lei
específica da APRM será observado pelos órgãos da administração
pública quando da análise de pedidos de licença e demais
aprovações e autorizações a seu cargo.
Art. 28 - O licenciamento de construção, instalação, ampliação e
funcionamento de estabelecimentos, usos e atividades em APRMs
por qualquer órgão público estadual ou municipal dependerá de
apresentação prévia de certidão do registro de imóvel que mencione
8
846
a averbação das restrições, estabelecidas nas leis específicas para
cada APRM.
§ 1º - As certidões de matrícula ou registro que forem expedidas
pelos
Cartórios
de
Registro
de
Imóveis
deverão
conter,
expressamente, as restrições ambientais que incidem sobre a área
objeto da matrícula ou registro, sob pena de responsabilidade
funcional do servidor.
§ 2º - A lei específica de cada APRM deverá indicar o órgão da
administração pública responsável pela expedição de certidão que
aponte as restrições a serem averbadas.
§ 3º - Caberá ao órgão público normalizador de cada lei
específica da APRM comunicar aos respectivos Cartórios de
Registros de Imóveis as restrições contidas em cada lei.
Art. 29 - As atividades de licenciamento, fiscalização e
monitoramento, a cargo do Estado, poderão ser objeto de convênio
com os Municípios, no qual se estabelecerão os limites e condições
da cooperação.
Parágrafo único - O órgão estadual responsável pela ação
fiscalizadora poderá credenciar servidores da administração direta do
Estado e dos Municípios para atuar como fiscais das áreas
protegidas.
Art. 30 - As APRMs contarão com um Sistema Gerencial de
Informações, destinado a:
I - fornecer apoio informativo aos agentes públicos e privados que
atuam nas bacias;
II - subsidiar a elaboração e os ajustes nos planos e programas
previstos; e
III - monitorar e avaliar a qualidade ambiental.
8
847
§ 1º - O Sistema Gerencial de Informações consiste em um
banco de dados, permanentemente atualizado com informações dos
órgãos participantes do sistema, contendo no mínimo:
1. características ambientais das sub-bacias;
2. áreas protegidas;
3. dados hidrológicos de quantidade e qualidade das águas;
4. uso e ocupação do solo e tendências de transformação;
5. mapeamento dos sistemas de infraestrutura implantados e
projetados;
6. cadastro dos usuários dos recursos hídricos;
7. representação cartográfica das normas legais;
8. cadastro e mapeamento das licenças, autorizações e outorgas
expedidas pelos órgãos competentes;
9. cadastro e mapeamento das autuações efetuadas pelos
órgãos competentes;
10. informações sobre cargas poluidoras e outras de interesse; e
11. indicadores de saúde associados às condições do ambiente
físico, biológico e socioeconômico, e
12. informações das rotas de transporte de cargas tóxicas e
perigosas.
§ 2º - O Sistema Gerencial de Informações será operacionalizado
pelo órgão técnico da APRM, que dá acesso aos órgãos da
administração pública municipal, estadual e federal e à sociedade
civil.
§ 3º - O órgão técnico fará publicar, anualmente, na imprensa
oficial, relação dos infratores com a descrição da infração, do devido
enquadramento legal e da penalidade aplicada.
8
848
CAPÍTULO VI
Plano de Desenvolvimento e Proteção Ambiental
Art. 31 - Para cada APRM, será elaborado Plano de
Desenvolvimento e Proteção Ambiental - PDPA, contendo:
I - diretrizes para o estabelecimento de políticas setoriais relativas
a habitação, transporte, manejo de recursos naturais, saneamento
ambiental
e
infraestrutura
que
interfiram
na
qualidade
dos
mananciais;
II - diretrizes para o estabelecimento de programas de indução à
implantação de usos e atividades compatíveis com a proteção e
recuperação ambiental da APRM;
III - metas de curto, médio e longo prazos, para a obtenção de
padrões de qualidade ambiental;
IV - proposta de atualização das diretrizes e normas ambientais e
urbanísticas de interesse regional;
V - proposta de reenquadramento das Áreas de Recuperação
Ambiental;
VI - programas, projetos e ações de recuperação, proteção e
conservação da qualidade ambiental;
VII - Programa Integrado de Monitoramento da Qualidade
Ambiental;
VIII - Programa Integrado de Educação Ambiental;
IX - Programa Integrado de Controle e Fiscalização;
X - Programa de Investimento Anual e Plurianual.
§ 1º - O PDPA obedecerá às diretrizes dos Sistemas de Meio
Ambiente, Recursos Hídricos e Desenvolvimento Regional.
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849
§ 2º - O PDPA, após apreciação pelo CBH e a aprovação pelo
CRH, comporá o Plano de Bacia da UGHRI e integrará o Plano
Estadual de Recursos Hídricos, para aprovação pelo Governador do
Estado na forma do artigo 47, inciso III, da Constituição do Estado, de
5 de outubro de 1989.
CAPÍTULO VII
Suporte Financeiro
Art. 32 - Caberá aos Poderes Públicos Estadual e Municipais
meios e recursos para implementação dos programas integrados de
Monitoramento da Qualidade das Águas e de Controle e Fiscalização,
bem como a operacionalização do Sistema Gerencial de Informações.
Parágrafo único - Os recursos financeiros necessários à
implementação dos planos e programas previstos pelo PDPA deverão
constar
dos
Planos
Plurianuais,
Diretrizes
Orçamentárias
e
Orçamento Anual dos órgãos e entidades da administração pública.
Art. 33 - Os CBHs destinarão uma parcela dos recursos da
cobrança pela utilização da água e uma parcela dos recursos da
Subconta do Fundo Estadual de Recursos Hídricos - FEHIDRO, para
implementação de ações de controle e fiscalização, obras e ações
visando à proteção e recuperação dos mananciais.
Art. 34 - O Estado á compensação financeira aos Municípios
afetados por restrições impostas pela criação das APRMs, e
respectivas normas, na forma da lei.
8
850
CAPÍTULO VIII
Infrações e Penalidades
Art. 35 - As infrações a esta Lei e às leis específicas das APRMs
classificam-se em:
I - leves: aquelas em que o infrator seja beneficiado por
circunstâncias atenuantes;
II - graves: aquelas em que for verificada circunstância agravante
ou em que o dano causado não possibilite recuperação imediata; e
III - gravíssimas: aquelas em que seja verificada a existência de
duas ou mais circunstâncias agravantes ou em que o dano causado
não possibilite recuperação a curto prazo ou, ainda, na hipótese de
reincidência do infrator.
§ 1º - Havendo o concurso de circunstâncias atenuantes e
agravantes, a penalidade será aplicada levando-se em consideração
a circunstância preponderante, entendendo-se como tal aquela que
caracteriza o conteúdo da vontade do autor ou as consequências da
conduta assumida.
§ 2º - Para imposição e gradação da penalidade, a autoridade
ambiental observará:
1. a classificação da infração, nos termos deste artigo;
2. a gravidade do fato, tendo em vista as suas consequências
para a saúde pública e o manancial; e
3. os antecedentes do infrator quanto ao cumprimento da
legislação de proteção aos mananciais.
§ 3º - Constituem circunstâncias atenuantes:
1. menor grau de instrução e escolaridade do infrator;
8
851
2. arrependimento do infrator, manifestado pela espontânea
reparação do dano, ou limitação significativa da degradação
ambiental causada;
3. comunicação prévia, pelo infrator, de perigo iminente da
degradação ambiental;
4. colaboração com os agentes encarregados da vigilância e do
controle ambiental;
5. a ação do infrator não ser determinante para a consecução do
dano; e
6. ser o infrator primário e a falta cometida, leve.
§ 4º - Constituem circunstâncias agravantes:
1. ser o infrator reincidente ou cometer a infração de forma
continuada;
2. ter o agente cometido a infração para obter vantagem
pecuniária para si ou para outrem;
3. o infrator ter coagido outrem para a execução material da
infração;
4. ter a infração consequências graves para a saúde pública ou
para o manancial;
5. ter o infrator deixado de tomar providências tendentes a evitar
ou sanar a situação que caracterizou a infração;
6. a infração ter concorrido para danos à propriedade alheia;
7. a utilização indevida de licença ou autorização ambiental; e
8. a infração ser cometida por estabelecimento mantido, total ou
parcialmente, por verbas públicas ou beneficiado por incentivos
fiscais."
Art. 36 - Os infratores das disposições desta Lei e das leis
específicas das APRMs, pessoas físicas ou jurídicas, ficam sujeitos
8
852
às seguintes sanções, sem prejuízo de outras estabelecidas em leis
específicas:
I - advertência, pelo cometimento da infração, estabelecido o
prazo máximo de 30 (trinta) dias, para manifestação ou início dos
procedimentos de regularização da situação compatível com sua
dimensão e gravidade, para o reparo do dano causado;
II - multa de 450 a 220.000 vezes o valor da Unidade Fiscal de
Referência - UFIR, pelo cometimento da infração, levando em conta
sua dimensão e gravidade;
III - multa diária, quando não sanada a irregularidade no prazo
concedido pela autoridade competente, cujo valor diário não será
inferior ao de 450 UFIRs, nem superior a 220.000 UFIRs;
IV - interdição definitiva das atividades não regularizáveis, ou
temporária das regularizáveis, levando em conta sua gravidade;
V - embargo de obra, construção, edificação ou parcelamento do
solo, iniciado sem aprovação ou em desacordo com o projeto
aprovado;
VI - demolição de obra, construção ou edificação irregular e
recuperação da área ao seu estado original;
VII - perda, restrição e ou suspensão de incentivos e benefícios
fiscais concedidos pelo Poder Público; e
VIII - perda, restrição ou impedimento, temporário ou definitivo,
de obtenção de financiamentos em estabelecimentos estaduais de
crédito.
Parágrafo único - Os materiais, máquinas, equipamentos e
instrumentos
utilizados
no
cometimento
da
infração
serão
apreendidos para instrução de inquérito policial, na forma do disposto
nos artigos 26 e 28 da Lei Federal nº. 4.771, de 15 de setembro de
1965.
8
853
Art. 37 - As penalidades de multas serão impostas pela
autoridade competente, observados os seguintes limites:
I - de 450 a 8.700 vezes o valor da UFIR, nas infrações leves;
II - de 8.701 a 87.000 vezes o valor da UFIR, nas infrações
graves; e
III - de 87.001 a 220.000 vezes o valor da UFIR, nas infrações
gravíssimas.
§ 1º - A multa será recolhida com base no valor da UFIR do dia
de seu efetivo pagamento.
§ 2º - A multa diária será aplicada no período compreendido entre
a data do auto de infração e a cessação do ato infracional,
comprovada pelo protocolo do processo de licenciamento do
empreendimento ou atividade.
§ 3º - Nos casos de atividades ou empreendimentos não
licenciáveis por esta Lei e por leis específicas, a multa incidirá desde
a notificação da infração até a comprovação de providências visando
à reconstituição da área ao seu estado original, à demolição, ou à
cessação de atividade.
§ 4º - Ocorrendo a extinção da UFIR, adotar-se-á, para efeito
desta Lei, o mesmo índice que a substituir.
§ 5º - Nos casos de reincidência, caracterizada pelo cometimento
de nova infração de mesma natureza e gravidade, a multa
corresponderá ao dobro da anteriormente imposta.
§ 6º - A reincidência caracterizará a infração como gravíssima.
§ 7º - Nos casos de infração continuada ou não atendimento das
exigências impostas pela autoridade competente, será aplicada multa
diária de acordo com os limites e a caracterização da infração
prevista no presente artigo.
8
854
§ 8º - O produto da arrecadação das multas previstas nesta Lei,
assim como as decorrentes da aplicação das Leis nº. 898, de 18 de
dezembro de 1975, e 1172, de 17 de novembro de 1976, constituirá
receita do órgão ou da entidade responsável pela aplicação das
penalidades e deverá ser empregado obrigatoriamente na APRM
onde ocorreram as infrações e em campanhas educativas.
§ 9º - A penalidade de interdição, definitiva ou temporária, será
imposta nos casos de risco à saúde pública e usos ou atividades
proibidos pela legislação, podendo também ser aplicada a critério da
autoridade competente, nos casos de infração continuada, eminente
risco ao manancial ou a partir da reincidência da infração.
§ 10 - As penalidades de embargo e demolição poderão ser
impostas na hipótese de obras ou construções feitas sem licença ou
com
ela
desconformes,
podendo
ser
aplicadas
sem
prévia
advertência ou multa, quando houver risco de dano ao manancial.
§ 11 - As penalidades de suspensão de financiamento e de
benefícios fiscais serão impostas a partir da primeira reincidência,
devidamente comprovada por relatório circunstanciado, devendo ser
comunicadas pelo órgão responsável pela fiscalização ao órgão ou
entidade concessionária.
§ 12 - As penalidades estabelecidas nos incisos I, II e III do artigo
36 desta Lei poderão ser aplicadas cumulativamente às dos incisos
IV, V, VI, VII e VIII do mesmo dispositivo.
§ 13 - As sanções estabelecidas neste artigo serão impostas sem
prejuízo das demais penalidades instituídas por outros órgãos ou
entidades, no respectivo âmbito de competência legal.
Art. 38 - Quando as infrações forem cometidas pelo Poder
Público Municipal, as parcelas referentes à compensação financeira
prevista no artigo 34 desta Lei, ficarão retidas até que sejam
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855
regularizados
ou
sanados
os
danos
ambientais,
conforme
determinação da autoridade competente.
Art. 39 - Respondem solidariamente pela infração:
I - o autor material;
II - o mandante; e
III - quem de qualquer modo concorra para a prática do ato ou
dele se beneficie.
Art. 40 - Da aplicação das penalidades previstas nesta Lei caberá
recurso à autoridade imediatamente superior, sem efeito suspensivo,
no prazo de 15 (quinze) dias úteis, contados da notificação do infrator.
§ 1º - A notificação a que se refere este artigo poderá ser feita
mediante correspondência com aviso de recebimento enviado ao
infrator.
§ 2º - Para julgamento do recurso interposto, a autoridade
julgadora ouvirá a autoridade que impôs a penalidade no prazo de 15
(quinze) dias.
Art. 41 - Os débitos relativos a multas e indenizações não
saldadas, decorrentes de infração a leis ambientais, serão cobrados
de acordo com o disposto no § 1º do artigo 37 desta Lei.
Art. 42 - No exercício da ação fiscalizadora, ficam asseguradas,
nos termos da lei, aos agentes administrativos credenciados, a
entrada, a qualquer dia ou hora, e a permanência, pelo tempo que se
tornar necessário, em estabelecimentos públicos ou privados.
§ 1º - Os agentes credenciados são competentes para verificar a
ocorrência de infrações, sugerir a imposição de sanções, solicitar
informações, realizar vistorias em órgãos e entidades públicas ou
privadas.
§ 2º - Quando obstados, os agentes poderão requisitar força
policial para o exercício de suas atribuições.
8
856
Art. 43 - Os custos ou as despesas resultantes da aplicação das
sanções de interdição, embargo ou demolição correrão por conta do
infrator.
Art. 44 - Constatada infração às disposições desta Lei e das leis
específicas das APRMs, os órgãos da administração pública
encarregados do licenciamento e fiscalização ambientais deverão
diligenciar, junto ao infrator, no sentido de formalizar termo de
compromisso de ajustamento de conduta ambiental, com força de
título executivo extrajudicial, que terá por objetivo precípuo a
recuperação do manancial degradado, de modo a cessar, adaptar,
recompor, corrigir ou minimizar os efeitos negativos sobre o meio,
independentemente da aplicação das sanções cabíveis.
§ 1º - As multas pecuniárias aplicadas poderão ser reduzidas em
até 90% (noventa por cento) de seu valor e as demais sanções terão
sua exigibilidade suspensa, conforme dispuser o regulamento desta
Lei.
§ 2º - A inexecução total ou parcial do convencionado no termo
de ajustamento de conduta ambiental ensejará sua remessa à
Procuradoria Geral do Estado, para a execução das obrigações dele
decorrentes, sem prejuízo das sanções penais e administrativas
aplicáveis à espécie.
CAPÍTULO IX
Disposições Finais e Transitórias
Art. 45 - Na Região Metropolitana da Grande São Paulo, até que
sejam promulgadas as leis específicas das APRMs, ficam mantidas
as disposições das Leis nº. 898, de 18 de dezembro de 1975, e 1172,
8
857
de 17 de novembro de 1976, com execução do inciso XIX, do artigo
2º da Lei nº. 898 de 18 de dezembro 1975, incluída pela Lei nº. 7.384,
de 24 de junho de 1991, que ficará expressamente revogada à partir
da data da publicação desta Lei.
Parágrafo único - As penalidades previstas nas Leis nº. 898, de
18 de dezembro de 1975, e 1172, de 17 de novembro de 1976, ficam
expressamente revogadas, passando a vigorar aquelas definidas por
esta Lei.
Art. 46 - Os Comitês de Bacias - CBHs correspondentes às áreas
de proteção aos mananciais estabelecidas pelas Leis nº. 898, de 18
de dezembro de 1975, e 1172, de 17 de novembro de 1976, deverão
encaminhar, no prazo de até 60 (sessenta) dias, proposta de
delimitação das APRMs, conforme estabelecido no artigo 4º desta Lei.
Art. 47 - Nas áreas de proteção de mananciais de que tratam as
Leis nº. 898, de 18 de dezembro de 1975, e 1172, de 17 de novembro
de 1976, até que sejam promulgadas as leis específicas para as
APRMs, poderão ser executadas obras emergenciais nas hipóteses
em que as condições ambientais e sanitárias apresentem riscos de
vida e à saúde pública ou comprometam a utilização dos mananciais
para fins de abastecimento.
§ 1º - Para os efeitos desta Lei, consideram-se obras
emergenciais
as
necessárias
ao
abastecimento
de
água,
esgotamento sanitário, drenagem de águas pluviais, contenção de
erosão, estabilização de taludes, fornecimento de energia elétrica,
controle da poluição das águas e revegetação.
§ 2º - As obras a que se refere o "caput" deste artigo deverão
constar de Plano Emergencial de Recuperação dos Mananciais da
Região Metropolitana da Grande São Paulo, contemplando o
disciplinamento das áreas de intervenção de acordo com a legislação.
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§ 3º - Os projetos emergenciais deverão ser aprovados pelo
órgão colegiado.
§4º - Os recursos dos projetos emergenciais que ão sua efetiva
implementação
deverão
provir
do
Estado
e
ressarcidos
posteriormente pelo FEHIDRO. (Vetado)
§ 5º - O Plano Emergencial de Recuperação dos Mananciais da
Região Metropolitana da Grande São Paulo será elaborado pelo
Poder Público Estadual, em articulação com os Municípios, no prazo
de até 120 (cento e vinte) dias da publicação desta Lei, contendo
justificativa técnica, agentes executores, custos e fontes de recursos,
cronograma fisico-financeiro e resultados esperados.
§ 6º - O Plano Emergencial de Recuperação dos Mananciais da
Região Metropolitana da Grande São Paulo deverá ser aprovado pelo
CRH e pelo CONSEMA, após o Poder Público Estadual realizar
audiências públicas no prazo de 30 dias.
§ 7º - Após a realização de audiências públicas o Plano
Emergencial
de
Recuperação
dos
Mananciais
da
Região
Metropolitana da Grande São Paulo deverá ser aprovado pelo CRH e
pelo CONSEMA no prazo de até 30 dias.
Art. 48 - Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação.
Mário Covas
Governador do Estado
Palácio dos Bandeirantes, 28 de novembro de 1997.
8
859
SOBRE O AUTOR
Maurício Waldman em evento editorial na Livraria Cultura, São Paulo, Abril de 2006
8
860
Maurício Waldman nasceu em 1955 na capital paulista. É
antropólogo, jornalista, editor, professor universitário e consultor
ambiental, autor de 22 livros e capítulos de livros, 18 ebooks e de
mais de 700 artigos, textos acadêmicos e pareceres de consultoria.
Waldman lançou, dentre outras obras, Ecologia e Lutas Sociais no
Brasil (Editora Contexto, 1992) e Antropologia & Meio Ambiente
(SENAC, 2006), primeira obra brasileira no campo da antropologia
ambiental. Nos anos 1970 e 1980, atuou como professor de geografia
e de história em escolas da rede particular da capital paulista e entre
1997-2000, como Diretor da Escola do Serviço SOS Criança e dos
Cursos
Profissionalizantes
da
Fundação
Estadual
do
Menor
(FEBEM).
Militante ambientalista histórico do Estado de São Paulo,
Waldman integrou no ano de 2004, lista dos 30 ambientalistas mais
antigos do Estado de São Paulo em enquete do Centro Brasileiro de
Análise e Planejamento (CEBRAP). Em 2010, foi indexado no elenco
de 96 personalidades brasileiras de origem judaica (Books LLC,
Memphis, EUA, http://www.mw.pro.br/mw_mw/index.php/compendiosbiograficos/119-brazilian-jews%20). Waldman soma em sua trajetória,
experiências institucionais na área do meio ambiente, dentre as quais,
o exercício da função de Coordenador do Meio Ambiente em São
Bernardo do Campo (1992) e Chefe da Coleta Seletiva de Lixo da
capital paulista (2000-2001).
Maurício Waldman foi colaborador do líder seringueiro Chico
Mendes, participou no CEDI (Centro Ecumênico de Documentação e
Informação), em movimentos em defesa da Represa Billings no
Grande ABC Paulista e em diversas entidades ecológicas, tais como
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861
a Assembleia Permanente de Entidades em Defesa da Natureza
(APEDEMA) e no Comitê de Apoio aos Povos da Floresta de São
Paulo. Waldman atuou como professor e conferencista na área dos
recursos hídricos em cursos e palestras voltadas para encontros e
congressos, em universidades, secretarias municipais de ensino,
comitês de bacia hidrográfica, ONGs, empresas de abastecimento de
água e de energia. Em 2015, a convite da Editora Cortez, tornou-se
coordenador editorial desta casa publicadora no campo dos recursos
hídricos.
Maurício Waldman desenvolveu uma carreira acadêmica plural e
interdisciplinar, com contribuições nas áreas da antropologia,
geografia, sociologia e das relações internacionais. Sua Tese de
Doutorado, Água e Metrópole: Limites e Expectativas do Tempo (USP,
2006), é um reconhecido trabalho acadêmico na área dos recursos
hídricos, com foco na gestão das águas da Região Metropolitana da
Grande São Paulo.
No ano de 2011, contribuiu com o texto Waters of Metropolitan
Area of São Paulo: Tecnichal, Conceptual and Environmental Aspects,
paper com foco na gestão das águas doces na Grande São Paulo,
capítulo 56 da coletânea Sustainable Water Management in the
Tropics and Subtropics: Case Studies (Coedição Brasil-Alemanha), a
maior iniciativa editorial no campo dos estudos das águas doces.
Também em 2011, Waldman participou como especialista no
programa Água: O Mundo e um Recurso Precioso, produção especial
da Rádio Nações Unidas (ONU), transmitido diretamente de Nova
York.
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862
Em 2016, Waldman publicou como capítulo de livro o texto
Recursos Hídricos, Resíduos Sólidos e Matriz Energética: Notas
Conceituais, Metodológicas e Gestão Ambiental, parte da coletânea
“Política Nacional de Resíduos Sólidos e suas Interfaces com o
Espaço Geográfico: Entre Conquistas e Desafios” (UFRGS, 2016).
Enquanto coautor, Waldman assinou em parceira obras como Meio
Ambiente e Missão: A Responsabilidade Ecológica das Igrejas
(Editora da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista, 2003), Guia
Ecológico Doméstico (Editora Contexto, 2000), A Eco-92 e a
Necessidade de um Novo Projeto (Associação dos Geógrafos
Brasileiros, Seção Local de Fortaleza, 1992) e Oito Críticas
Ecológicas à Conversão da Dívida (Coedição CEDI e Editora Global,
1991).
Maurício Waldman desenvolveu dois trabalhos acadêmicos na
área dos recursos hídricos: Doutorado (USP, 2006) e Pós Doutorado
(USP, 2013). Ademais, traduziu duas obras clássicas: El Ecologismo
de los Pobres - Conflictos Ambientales y Lenguajes de Valoración (de
Joan Martínez Alier) e com a colaboração da filósofa Bia Costa, Fifty
Major Philosophers (de Diané Collinson). Waldman é Graduado em
Sociologia (USP, 1982), Licenciado em Geografia Econômica (USP,
1983), Mestre em Antropologia (USP, 1997), Doutor em Geografia
(USP, 2006), Pós Doutor em Geociências (UNICAMP, 2011), Pós
Doutor em Relações Internacionais (USP, 2013) e Pós Doutor em
Meio Ambiente (PNPD-CAPES, 2015).
Mais Informação:
Portal do Professor Maurício Waldman: www.mw.pro.br
Textos Masterizados: http://mwtextos.com.br/
8
863
Currículo Lattes-CNPq: http://lattes.cnpq.br/3749636915642474
Verbete Wikipédia: http://en.wikipedia.org/wiki/Mauricio_Waldman
Contato E-Mail:
[email protected]
REFERÊNCIA ESSENCIAL SOBRE A CRISE HÍDRICA
http://www.mw.pro.br/mw/agua_escassez_e_conflitos_no_imperio_da_sede.pdf
SAIBA MAIS SOBRE A CRISE HÍDRICA NO BRASIL
http://mw.pro.br/mw/RSJDH.pdf
TEXTO DE REFERÊNCIA SOBRE AS ÁGUAS DA RMSP
WATERS OF METROPPOLITAN AREA OF SÃO PAULO: TECHNICAL, CONCEPTUAL AND
ENVIRONMENTAL ASPECTS, COEDIÇÃO KASSEL-UNIPAMPA, 2012, ISBN 978-85-63337-23-8, 57.607
CARACTERES, SEIS FIGURAS E DUAS TABELAS. ACESSO: http://mw.pro.br/mw/geog_UNIKassel.pdf
SAIBA MAIS SOBRE O VÍNCULO ÁGUA - LIXO - ENERGIA
http://mw.pro.br/mw/pnrs_cap_05_mauricio_waldman_01.pdf
CONHEÇA A SÉRIE RECURSOS HÍDRICOS
http://mwtextos.com.br/serie-recursos-hidricos/
CONHEÇA A EDITORA KOTEV
http://kotev.com.br/