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A ETNOFÍSI DA CARPINTA NAVAL EM BRAGANÇ PARÁ -BRA

2017

https://doi.org/10.18542/amazonica.v9i1.5497

This research was intended to analyze the Ethnophysics present in the craft construction of boats, made by naval carpenters, who in their majority possess have a low level of education, in the municipality of Bragança-Pará, and it also has the purpose of extolling the cultural art of these workers, in a reality where fishing is one of the main generators of the economy in the region. An analysis of this traditional knowledge is made with the scientific knowledge of Physics. The need for this research is linked to the scarce production of Ethnophysics in Brazil. The methodology used was of a qualitative approach, where interviews were conducted with a pre-established script with three naval carpenters in the region of Bragança; these interviews yielded scientific and social discussions, essential to the elaboration of this manuscript. At the end of this research, we concluded that we could use the empirical knowledge of naval carpentry on Physics, putting into practice the precepts of Ethnophysics.

A ETNOFÍSI DA CARPINTA NAVAL EM BRAGANÇ PARÁ -BRA ICA ARIA ÇA ASIL A ETNOFÍSICA DA CARPINTARIA NAVAL EM BRAGANÇA PARÁ -BRASIL NIVIA M ARIA VIEIRA COSTA COSTA IFPA/Campus Bragança LANA GABRIELA GUIMARÃES MELO IFPA/Campus Bragança / UFOPA/Campus Santarém NORMA CRISTINA VIEIRA Universidade Federal do Pará/Campus Bragança Costa, N. M. V. C. | Melo, L. G. G. | Vieira, N. C. A ETNOFÍSICA DA CARPINTARIA NAVAL EM BRAGANÇAPARÁ-BRASIL Resumo Esta pesquisa teve o propósito de analisar a Etnofísica presente na construção artesanal de barcos, feita por carpinteiros navais, que na maioria possuem pouca escolaridade no município de Bragança-Pará, e também enaltecer a arte cultural desses trabalhadores, numa realidade em que uma das principais gerações da economia da região é a pesca. É feita uma análise deste saber tradicional com o saber científico da Física. A necessidade desta pesquisa está vinculada às escassas produções em Etnofísica no Brasil. A metodologia usada foi de abordagem qualitativa, onde realizamos entrevistas com roteiro pré-elaborado com três carpinteiros navais da região bragantina, estas entrevistas renderam discussões científicas e sociais, indispensáveis para a elaboração deste trabalho. Ao final desta pesquisa chegou-se à conclusão de que podemos utilizar os conhecimentos empíricos da carpintaria naval sobre a Física, pondo em prática os preceitos da Etnofísica. Palavras-chave: Etnofísica. Carpintaria Naval. Saberes Tradicionais 416 Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 9 (1): 414 - 436, 2017 A etnofísica da carpintaria naval em Bragança - Pará - Brasil THE ETHNOPHYSICS OF THE NAVAL CARPENTRY IN BRAGANÇA-PARÁ-BRAZIL Abstract This research was intended to analyze the Ethnophysics present in the craft construction of boats, made by naval carpenters, who in their majority possess have a low level of education, in the municipality of Bragança-Pará, and it also has the purpose of extolling the cultural art of these workers, in a reality where fishing is one of the main generators of the economy in the region. An analysis of this traditional knowledge is made with the scientific knowledge of Physics. The need for this research is linked to the scarce production of Ethnophysics in Brazil. The methodology used was of a qualitative approach, where interviews were conducted with a pre-established script with three naval carpenters in the region of Bragança; these interviews yielded scientific and social discussions, essential to the elaboration of this manuscript. At the end of this research, we concluded that we could use the empirical knowledge of naval carpentry on Physics, putting into practice the precepts of Ethnophysics. Keywords: Ethnophysics, naval carpentry, traditional knowledge. Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 9 (1): 414 - 436, 2017 417 Costa, N. M. V. C. | Melo, L. G. G. | Vieira, N. C. LA ETNOFÍSICA DE LA CARPINTERÍA NAVAL EN BRAGANÇA – PARÁ – BRASIL Resumen Esta investigación tuvo dos propósitos, el de analizar la etnofísica que está presente en la construcción artesanal de los barcos hechos por carpinteros navales, quienes en su mayoría poseen pocos estudios. Y destacar el arte cultural de estos trabajadores en una realidad donde la pesca es una de las principales generadoras de economía de toda la región, como es el caso del municipio de Bragança-Pará. Se hizo un análisis de este saber tradicional con el saber científico de la Física. La necesidad de esta investigación está relacionada con la escasez de producciones científicas en el área de la Etnofísica en Brasil. Se utilizó la metodología de un abordaje cualitativo, realizamos entrevistas basadas en un itinerario pre elaborado con tres carpinteros navales de la región bragantina. Estas entrevistas produjeron discusiones científicas y sociales que fueron indispensables para la elaboración de este trabajo. Finalmente, se concluyó que podemos utilizar el conocimiento empírico de la carpintería naval sobre la Física, practicando los principios de la Etnofísica. Palabras-clave: Tradicionales Etnofísica. Carpintería Nivia Maria Vieira Costa Costa1 [email protected] Lana Gabriela Guimarães Melo2 [email protected] Norma Cristina Vieira3 [email protected] 418 Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 9 (1): 414 - 436, 2017 Naval. Saberes A etnofísica da carpintaria naval em Bragança - Pará - Brasil 1. INTRODUÇÃO Os primeiros indícios da construção naval na Amazônia referem-se aos povos indígenas nativos que utilizavam pequenas canoas como transporte em muitas atividades diárias. O processo construtivo indígena de embarcações fluviais baseava-se puramente nas observações da natureza. Com o passar do tempo, as simples canoas evoluíram para embarcações modernas, cada vez mais adaptadas às necessidades das novas gerações e, persistem, nos dias atuais, como um importante meio de transporte e um item de primeira necessidade para a subsistência das populações ribeirinhas e da indústria pesqueira (Lins et al. 2010). Moraes (2007:35) enfatiza que “a relação entre homens e águas remonta à origem de nossas vidas, dada a importância dos oceanos, lagos e rios na evolução da espécie humana”. O aprendizado com a natureza e a necessidade de sobrevivência, provocou a praticidade da fabricação de transportes fluviais entre os ribeirinhos amazônicos, para os quais foi necessário um acúmulo de saber. Nesse sentido, questiona-se: Como visibilizar os fenômenos físicos nas atividades desenvolvidas pelos mestres artesãos da carpintaria naval, do município de BragançaPA? O propósito desta pesquisa está em estabelecer um diálogo entre o conhecimento artesanal envolvido no processo de construção de embarcações de pequeno e médio porte e o saber científico físico, de forma a utilizá-lo como um artifício metodológico do ensino de Física e a valorização dos saberes locais, a partir dos conceitos da Etnofísica, entendida como expressão de diferentes linguagens culturais dos fenômenos físicos descritos pelas leis universais. Anacleto (2007) define esse conceito ao afirmar que, A Etnofísica nos ajuda a entender e estudar essa diversidade cultural e histórica nos diferentes contextos, gerando novas abordagens de tema, fazendo com que o educando se sinta parte do processo de ensino aprendizagem, e mais ainda, como partícipe da sociedade em que vive, aproximando as relações entre o indivíduo, a instituição e o sujeito, e o objeto de estudo (p.15) A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei nº 9394/96, no Art.3º traz os princípios que devem se basear o ensino escolar. Nela consta a vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais (Brasil 1996). O presente artigo está dividido em quatro momentos, no primeiro é feita a revisão da literatura sobre Saberes Tradicionais e a Etnofísica, no segundo trata-se da metodologia da pesquisa onde se descreve o procedimento das entrevistas feitas com os carpinteiros navais do município de Bragança-PA e no terceiro momento apresenta-se os resultados da correlação entre os saberes tradicionais e o científico que estão presentes na carpintaria naval. 2. A ETNOFÍSICA A SERVIÇO DO SABER TRADICIONAL O saber tradicional pode ser entendido como fruto do modo de vida de uma comunidade tradicional ou grupo Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 9 (1): 414 - 436, 2017 419 Costa, N. M. V. C. | Melo, L. G. G. | Vieira, N. C. social, construído a partir do seu relacionamento com a biodiversidade na qual está inserido. Esses saberes são produtos históricos que se reconstroem na transmissão de geração para geração. Para Silva (2005), os saberes tradicionais são frutos da cultura popular, ou seja, Os conhecimentos tradicionais nada mais são do que criações da mente, ou melhor, do intelecto coletivo ou cultural de um povo, provenientes do estreito relacionamento que possuem com a biodiversidade. Tais saberes tem uma aplicação prática extremamente visível, como, por exemplo, na fabricação de remédios, xampus, alimentos, adubos, inseticidas, dentre outros (...) (p.89). Mas, o que seria esta tradição? Para Ozaí (2005), A Tradição integra e monitora a ação à organização tempo-espacial da comunidade (ela é parte do passado, presente e futuro; é um elemento intrínseco e inseparável da comunidade). Ela está vinculada à compreensão do mundo fundada na superstição, religião e nos costumes; ela pressupõe uma atitude de resignação diante do destino, o qual, em última estância, não depende da intervenção humana, do “fazer história”. Dessa forma, conhecer é ter habilidade para produzir algo e está ligado à técnica e à reprodução das condições do viver. A ordem social sedimentada na tradição expressa a valorização da cultura oral, do passado e dos símbolos enquanto fatores que perpetuam a experiência das gerações (p.01). 420 O processo de construção artesanal sempre requer muitas habilidades e dedicação em qualquer que seja a área de atuação. Na construção artesanal o que garante as exatidões nos cálculos de espessura das tábuas, na madeira da caverna4 e todos os outros componentes de um barco é a vivência com a natureza que o carpinteiro naval artesanal tem. Um dos artesãos entrevistados para esta pesquisa diz que aprendeu tudo só olhando e se dedicando à arte, em uma de suas falas relata, Nós carpinteiros navais, a gente tem que aprender a trabalhar. Por exemplo, a armação de um barco grande como esse aí é muito complicada de armar, tem que estar bem desempenadinho, tem que ter uma visão muito boa, uma mente muito boa pra que saia tudo certinho de um lado e do outro, pra não ficar torto. Figura 1: Armação de uma embarcação de médio porte, feita em estaleiros da região bragantina. Fonte: Arquivo Pessoal (2015) Na pesquisa de campo realizada percebemos que em cada estaleiro os indivíduos possuem diferentes artifícios para o mesmo trabalho. E a isso cabe o conhecimento empírico de cada trabalhador, que por mais que se assemelhe ao saber tradicional, é algo particular do carpinteiro naval. Ao aproximar o saber tradicional do saber Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 9 (1): 414 - 436, 2017 A etnofísica da carpintaria naval em Bragança - Pará - Brasil científico percebemos que “ambos são formas de procurar entender e agir sobre o mundo. E ambos são também obras inacabadas, sempre se fazendo” (Cunha 2007:78). Normalmente o conhecimento tradicional e científico são vistos como opostos, sem permitir uma coexistência entre eles, mas isso desvaloriza a tradição em prol da ciência. Assim a desconstrução desse imaginário de segregação entre os dois conceitos é necessária, analisando uma dialógica que englobe esses sistemas de conhecimentos, tradicional e científico. Compreender também, que existe uma reciprocidade entre os saberes construídos dentro e fora de um grupo social. Nesse caso seria o conhecimento repassado, analisado, revisado e desenvolvido entre os carpinteiros navais para outros grupos, caracterizando a abordagem êmica que “procura compreender as características matemáticas dessa cultura com base nos referenciais e categorias desenvolvidas pelos seus membros” (Rosa & Orey 2014:135), em contrapartida têm-se o conhecimento frequentemente estudado na academia, o científico, uma abordagem ética “com a explicação objetiva de um fenômeno sociocultural a partir do ponto de vista externo” (Rosa & Orey 2014:135) Em defesa aos dois pontos de vista, êmico e ético, conhecimentos tradicionais com o científico, no ensino da Física por exemplo, é usando a Etnofísica, desenvolvendo-se com as práticas e métodos de membros de diferentes grupos culturais com o meio e biodiversidade na qual estão inseridos. Na busca por explicações do comportamento sociocultural do ser humano, destacamos a Etnociência, criada a partir dos diversos saberes/ fazeres e práticas de diferentes grupos sociais por meio da interação com os ambientes nos quais estão inseridos. Para Diegues (2001:78) “a Etnociência parte da linguística para estudar o conhecimento das populações humanas sobre os processos naturais, tentando descobrir a lógica subjacente ao conhecimento humano do mundo natural, as taxonomias e as classificações totalizadoras”. A etnociência pode ser considerada um corpo de conhecimentos que estabelece sistemas de explicação e maneiras diversas do saber e fazer dos membros de grupos culturais diversos, que foram acumuladas ao longo das gerações, em ambientes culturais específicos (D’Ambrósio 2000). Para D’Olne Campos (2002:71) poderíamos entender a etnociência como “uma etnografia da ciência do outro, construída a partir do referencial da academia”. Rosa e Orey (2014) ao abordar sobre Etnociência entendem que, (...) ela está vinculada a uma questão etimológica, pois o prefixo etno procede do grego éthnos, que indica a identidade de origem e condições socioculturais e inclui a identidade de crenças, valores, símbolos, mitos, ritos, morais, linguagem, códigos, ideias, procedimentos e práticas. (p.76) Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 9 (1): 414 - 436, 2017 421 Costa, N. M. V. C. | Melo, L. G. G. | Vieira, N. C. 422 O termo Etnociência surge pela primeira vez nos meios científicos no index do livro The Outline of Cultural Materials escrito em 1950 por George Peter Murdock (1897-1985) e seus colaboradores Clellan, Ford, Hudson, Kennedy, Simmons e Whiting (Clément 1998). A Etnofísica já constava neste livro juntamente com a etnobotânica, a etnozoologia, a etnometereologia. O livro trata de um sistema numérico utilizado para categorizar os dados culturais com o propósito de facilitar a realização de pesquisas de campo com a organização das informações culturais acumuladas no arquivo denominado Human Relations Area File, que foi inicialmente identificado como um conjunto de ideias sobre a natureza e a humanidade (Murdock et al. 1950). símbolos, mitos e pelas maneiras distintas de raciocinar e inferir. A Etnofísica, como parte da Etnociência, é um termo que “(...) apareceu como categoria na Antropologia no trabalho de Garfinkel com Menlovitz and Strodbeck de 1945” (Anacleto 2007:13). Para compreender a relação da Etnofísica com as Etno-x, recorremos à D’Ambrósio (1990) que esclarece que é essencial discutirmos sobre o surgimento de algumas terminologias importantes com relação aos campos de pesquisa denominados de etno-x. Com relação à etnociência partiremos desse termo genérico, no qual x denomina uma determinada disciplina ou campo de estudo pertencente à classificação metodológica do conhecimento acadêmico enquanto etno refere-se aos membros de grupos culturais distintos, que são identificados por meio de suas tradições, códigos de conduta, Existe uma busca pela reconceituação da etnociência e de suas múltiplas etno-x como a etnoecologia e a etnobiologia, que propuseram que o foco dessas ciências fosse direcionado para a diversidade e a pluralidade da dinâmica das relações que envolvem a sociedade e a natureza (D’Olne Campos 2002), assim como também se propõem a Etnofísica. D’Olne Campos (2002:47,48) alerta para o cuidado de que o pesquisador ao “(...)enfrentar o estranhamento e entender o outro partindo de uma “ferramenta” disciplinar nossa, pode produzir um recorte enganoso e muito parcial da realidade de saberes do outro — todos já classificados e recortados por nós. O autor, todavia, argumenta que, “(...)o conhecimento só poderá se estabelecer através do diálogo que pela consciência da diferença, permitirá aos dois o reconhecimento pela diferença, não só entre cada um deles, mas também em outras leituras de situações e contextos sócio-culturais (p.64). Para melhor entendermos a Etnofísica à serviço do saber tradicional utilizaremos os estudos de D’Ambrósio sobre Etnomatemática, pois com este conceito poderá ser feito uma analogia desses campos de conhecimento por serem pesquisas semelhantes metodologicamente. D’Ambrósio (2005) conceitua Etnomatemática da seguinte forma, O homem (espécie Homo sapiens sapiens), bem como as demais Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 9 (1): 414 - 436, 2017 A etnofísica da carpintaria naval em Bragança - Pará - Brasil espécies que a precederam, os vários hominídeos reconhecidos desde há 5 milhões de anos antes do presente, têm seu comportamento alimentado pela aquisição de conhecimento, de fazer(es) e de saber(es) que lhes permitiram sobreviver e transcender, através de maneiras, de modos, de técnicas, de artes (techné ou “ticas”) de explicar, de conhecer, de entender, de lidar com, de conviver com (mátema) a realidade natural e sociocultural (etno) na qual ele, homem, está inserido( p.112). Essa junção epistemológica gerou o termo Etnomatemática, fundamentada nos estudos sobre Etnometodologia, uma corrente metodológica desenvolvida nos Estados Unidos na década de 1960, tendo o sociólogo Harold Garfinkel como principal teórico que publicou o livro Studies in Ethnomethodology em 1967, descrevendo essa corrente que trabalha com uma perspectiva de pesquisa compreensiva. Haja vista que Etnometodologia não se refere aos métodos escolhidos para a análise da pesquisa, mas a uma abordagem teórico-metodológica de pesquisa. Como descreve Bogdan e Biklen (1994), Estas expressões referem-se ao estudo do modo como os indivíduos constroem e compreendem as suas vidas cotidianas – os seus métodos de realização da vida de todos os dias. Para os etnometodólogos os sujeitos não são os membros de tribos primitivas; são pessoas que se encontram em várias situações na sociedade moderna (p.60). Baseado em todos esses “etnos” Ubiratan D’Ambrósio explica que o sentido da Etnomatemática é compreender que existem várias formas de perceber, entender e lidar com contextos naturais e socioeconômicos da realidade. As publicações nacionais feitas sobre Etnofísica possuem como objetivo provocar, em boa medida, a interação do saber escolar da sala de aula e o saber tradicional em Física. A exemplo, a pesquisa bibliográfica e indagadora de Santos (2002), em seu artigo A Parábola no Oriente: Etnofísica, Psicogénese e Multiculturalidade, que deixa perguntas em aberto acerca da universalidade da Física, onde a Física Europeia conseguiu destaque sobre a Física oriental, por vários motivos, entre estes os diversos conflitos sociais e estruturais no oriente, resultando em poucos registros, como os da tecnologia milenar chinesa. Santos (2002) entende que, A Física que conhecemos, num certo sentido, é, também uma Etnofísica pois emergiu de uma subcultura dentro da sociedade europeia, a partir do intercâmbio de várias culturas (...) que cada estudante vive e coexiste com várias culturas identificadas por nação, linguagem, sexo, classe social, religião, etc., e que sua identidade cultural pode chocar em um grau variável com a cultura da Ciência Ocidental (p.4). Ao conceituar Etnofísica, Anacleto (2007) diz que, A Etnofísica busca a Física que usamos sem mesmo saber, aquela Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 9 (1): 414 - 436, 2017 423 Costa, N. M. V. C. | Melo, L. G. G. | Vieira, N. C. Física que crianças se apropriam de forma intuitiva em suas brincadeiras, em suas práticas diárias, em simples movimentos que incluem velocidade, tempo, distância, numa corrida de carrinhos, ângulos, lançamentos oblíquos, em jogos de voleibol, e tenta relacioná-las com a Física “adulta”, “universitária”, escolar, onde mesmo entre adultos escolarizados há uma enorme discrepância entre ela em sua natureza real e a formal, entre um ser urbano e outro rural (p.41). Como já foi discutido a cima o termo Etnofísica já vem sendo utilizado na literatura desde a década de 50. E no Brasil o estudo sobre esse tema e das demais etnos-x, está sendo cada vez mais pesquisado e publicado com o intuído de levar esse conhecimento para dentro da academia e também para fora dela. 3. METODOLOGIA DA PESQUISA 3.1 Tipo de pesquisa e instrumentos utilizados A pesquisa realizada teve uma abordagem qualitativa. Para Minayo (1994:21) “a pesquisa qualitativa responde a questões muito particulares. Ela se preocupa, nas ciências sociais, com um nível de realidade que não pode ser quantificado”. A pesquisa está apoiada nas cinco características básicas apresentadas Bogdan e Bilken (1994), quais sejam, 1. A pesquisa qualitativa tem o ambiente natural como sua fonte 424 direta de dados e o pesquisador como seu principal instrumento; 2. Os dados coletados são predominantes descritivos; 3. A preocupação com o processo é muito maior do que com o produto; 4. O significado que as pessoas dão as coisas e à sua vida são focos de atenção especial pelo pesquisador; 5. A análise dos dados tende a seguir um processo indutivo (p.11). Quanto a primeira característica, visitou-se os estaleiros da cidade em seu ambiente natural e os artesãos foram os sujeitos, fonte direta de dados. Assim, para a realização deste trabalho foi feita uma pesquisa de campo, que segundo Marconi e Lakatos (2003) é (...) aquela utilizada com o objetivo de conseguir informações e/ ou conhecimentos acerca de um problema, para o qual se procura uma resposta, ou de uma hipótese, que se queira comprovar, ou, ainda, descobrir novos fenômenos ou as relações entre eles (p.186). Quanto a característica “os dados coletados são predominantes descritivos” optou-se por utilizar um roteiro pré-determinado para realizar entrevistas orais com os carpinteiros navais para posteriores transcrições, visando uma pesquisa aberta a possíveis acréscimos de indagações, executando assim a terceira característica “a preocupação com o processo é muito maior do que com o produto”. Para que as entrevistas pudessem ser realizadas, foi necessário incialmente um primeiro contato com os gerentes dos estaleiros para sondar os dias mais favoráveis à cada entrevista. Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 9 (1): 414 - 436, 2017 A etnofísica da carpintaria naval em Bragança - Pará - Brasil Depois de definida data e hora foram consolidadas conversas/entrevistas seguindo o roteiro, mas permitindo outros assuntos que viessem a ser relevantes para a análise do material. O objetivo principal da pesquisa foi identificar os fenômenos físicos presentes na construção artesanal de barcos feitos em madeira, no município de Bragança-PA, a partir dos relatos dos carpinteiros navais. Para alcançar tal objetivo, analisamos os depoimentos para buscar os significados científicos dos métodos de trabalho e ensino/ aprendizagem do dia a dia de um estaleiro, pondo em prática a quarta e quinta característica da pesquisa qualitativa, como afirmam Bogdan e Bilken (1994:12) “neste estudo há sempre uma tentativa de capturar a ‘perspectiva dos participantes’, isto é, a maneira como os informantes encaram as questões que estão sendo focalizadas”. Após a coleta de dados a análise seguiu um processo indutivo, onde “o desenvolvimento do estudo aproximase a um funil: ao início há questões ou focos de interesse muito simples, que no final se tornam mais diretos e específicos” (Ludke & André 1986:13). Como instrumentos da pesquisa utilizou-se a observação sistemática e entrevistas semiestruturadas com o intuito de averiguar os conhecimentos físicos presentes no dia a dia dos carpinteiros navais e o porquê de cada passo e atividade realizada a partir do histórico social de cada um. O estudo foi desenvolvido no segundo semestre de 2015 a partir de entrevistas individuais, combinando história de vida com perguntas abertas e orientadas por um roteiro, registradas em gravações fonográficas e registros fotográficos. Foram autorizados pelos sujeitos o uso de suas imagens e depoimentos. 3.2 Cenário e lócus da pesquisa O município de Bragança se encontra no norte do país, na costa nordeste paraense, com área de 2091,930 km² e uma população estimada em 120.124 habitantes, segundo dados do IBGE (2010). É o segundo município mais antigo do Pará com atuais 403 anos, sua sede está às margens do rio Caeté (que em tupi significa mato bom), por isso é conhecida por “Pérola do Caeté”. Revela potencial turístico pela arquitetura colonial e pelas tradições culturais marcantes que envolve estilos musicais rústicos entrelaçados com a religiosidade predominante, como por exemplo o retumbão no festejo de um dos padroeiros da cidade o Glorioso São Benedito, carinhosamente chamado pelos bragantinos como Santo Preto e o xote bragantino característico das festas de juninas. Além da diversidade cultural encontrada no município temos os recursos naturais que são a base da economia local, como a atividade pesqueira que faz exportação para diversos estados brasileiros e países estrangeiros, agricultura familiar e o extrativismo de crustáceos como camarão (Litopenaeus schmitti) e caranguejo (Ucides cordatus) e moluscos como os de ostra (Crassostrea phizophorge) e sururu (Mytella sp.). Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 9 (1): 414 - 436, 2017 425 Costa, N. M. V. C. | Melo, L. G. G. | Vieira, N. C. Bragança faz parte da região nordeste do Pará, rica em estuários5 e manguezais, propícia a zona pesqueira, corrobora Botelho et al (2011), [...] atualmente tem sido referência para descrever a importância a participação do setor pesqueiro, sendo os principais portos de desembarque do Estado representados pelos municípios de Bragança, Vigia e Belém, podese então inferir a importância da construção naval, especialmente de embarcações tradicionais, nesta região (p.117). A presença da Reserva Extrativista Marinha de Caeté Taperaçu, criada em maio de 2005, que segundo Botelho et al (2011) beneficia uma população de 3.500 habitantes e cobre uma área de 42.068,86 ha, reforça a necessidade da pesca artesanal, sendo um território constantemente fiscalizado para o manejo sustentável dos produtos pesqueiros e é nessa realidade que se encontram os estaleiros e os mestres artesãos alvo desta pesquisa (Botelho et al. 2011). Para esse trabalho foi escolhido três estaleiros situados no município de Bragança – PA, desses, dois localizados na sede do município e um em uma vila chamada Bacuriteua, na PA-458, a saber: Estaleiro I – Estaleiro Sapucaia localizado na sede do município de Bragança, sob a Ponte do Sapucaia, à margem esquerda do Rio Caeté e do lado esquerdo da ponte no sentido Bragança – Viseu (PA-306), é conhecido por fabricar lanchas (embarcação de médio porte), que duram em média 426 6 meses para concluir a fabricação. A pessoa que está à frente dos trabalhos desenvolvidos pelo referido estaleiro é o senhor Benedito Brito Figueiredo (45 anos), um dos entrevistados neste trabalho. Figura 2. Lócus de pesquisa, Estaleiro I Sob a Ponte do Sapucaia, lado direito da ponte no sentido Bragança – Viseu. Fonte: Arquivo pessoal, 2015 Estaleiro II – Também chamado Estaleiro Sapucaia, situado do lado direito da ponte do Sapucaia. Apesar de ter o mesmo nome do primeiro local estudado, este possui proprietário diferente, Sr. Jumbinho. Esse estaleiro funciona desde 2002. Nesse local tivemos o prazer de entrevistar o senhor Gregório Santana Guimarães (51 anos), que no momento da entrevista estava trabalhando em um catamarã6. Figura 3. Lócus de pesquisa, Estaleiro II -Sob a Ponte do Sapucaia, lado esquerdo da ponte no sentido Bragança – Viseu. Fonte: Arquivo pessoal, 2015 Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 9 (1): 414 - 436, 2017 A etnofísica da carpintaria naval em Bragança - Pará - Brasil Estaleiro III – E o últimos lócus de pesquisa foi no estaleiro mais antigo, com 48 anos de funcionamento, situado na vila do Bacuriteua, nomeado por Estaleiro Remédios, é uma empresa familiar que teve início com o Sr. Mário dos Remédios Silva e atualmente é comandado pelos seus quatro filhos, o entrevistado foi um dos proprietários Sr. Ivan Douglas Barroso dos Remédios (44 anos). Esse estaleiro normalmente produz lanchas de pesca e embarcações de pequeno porte. mais experientes do estaleiro Sapucaia, natural do município de Viseu-PA. Veio para Bragança quando jovem para estudar e ao fim do ensino médio, começou a profissão de carpinteiro naval há aproximadamente 35 anos; - Ivan Douglas Barroso dos Remédio, 41 anos, há 30 anos o Sr. Ivan é carpinteiro naval, e ele assim como seus irmãos aprenderam os conceitos da profissão com o pai, guiados pela beleza e praticidade da arte da carpintaria naval. Seu nível de escolaridade é até a 5ª série do ensino fundamental. 4. A ETNOFÍSICA NOS SABERES DA CARPINTARIA NAVAL LOCAL Figura 4. Lócus de pesquisa, Estaleiro III “Estaleiro Remédios”, Vila Bacuriteua. Fonte: Arquivo pessoal, 2015 Os três locais possuem alvará de funcionamento, reconhecidos pela prefeitura de Bragança. 3.3 Descrição dos sujeitos participantes da pesquisa - Benedito Brito Figueiredo, 45 anos, estudou até a 4ª série do ensino fundamental, trabalha há treze anos no mesmo local. É conhecido sob a alcunha de “Esquerdinho”, natural de Viseu-PA, da Vila de Fernandes Belo, onde por muitos anos trabalhou construindo canoas e embarcações de pequeno porte; - Gregório Santana Guimarães, 51 anos, conhecido como Louro em seu local de trabalho, é um dos carpinteiros Na perspectiva de relacionar a teoria com a prática, identificamos alguns conceitos físicos que estão implicados com a construção artesanal de barcos em alguns estaleiros presentes no município de Bragança-PA: (a) empuxo; (b) densidade e (c) pressão. Estes fenômenos foram identificados in loco e na fala dos mestres artesãos entrevistados. Aqui a construção e navegação de canoas e barcos de pequeno e médio porte mostrará que são utilizados vários conceitos físicos, tais como conceitos de força, energia, pressão, volume, peso, densidade, equilíbrio do ponto material, equilíbrio do corpo extenso, centro de gravidade, atrito e outros, podem ser facilmente abordados quando os relacionamos com a construção artesanal de barcos. Um dos entrevistados disse algo muito importante sobre o processo de Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 9 (1): 414 - 436, 2017 427 Costa, N. M. V. C. | Melo, L. G. G. | Vieira, N. C. aprendizagem do seu ofício, que pode ser concebido por qualquer outro profissional. mesmo, ele fica um pouco flutuando, mas se alagar com muito peso nele aí ele vai pro fundo mesmo. Pra te ser sincero, pra a gente acostumado não tem dificuldade. Tem que aprender, né?! Tem que ter tempo de trabalho, mesmo a pessoa aprendendo, isso exige muito tempo também. A gente que já tá há muito tempo nessa profissão, se surpreende as vezes, por que a gente pensa que sabe tudo mas a gente não sabe ainda, então é um processo que a gente nunca para de aprender (Sr. Gregório Guimarães). Sob essa explicação podemos dar início ao conceito científico de flutuação, onde se o sólido for ocado obviamente será menos denso, pois assim o seu volume terá um aumento significativo em relação a massa, sobre densidade. Quando falamos sobre os formatos dos cascos dos barcos e o porquê de uma embarcação flutuar, os entrevistados deram explicações significativas. Em termos acadêmicos sobre o estudo de corpos sólidos imersos em fluidos (líquidos e gases), sabe-se que se o sólido for menos denso que o fluido onde é imerso, este irá flutuar. O que nos remete ao teorema de um estudioso de Siracusa, Arquimedes, o qual “Todo corpo mergulhado total ou parcialmente em fluido, recebe uma força vertical de baixo para cima denominada de empuxo, que é igual ao peso do líquido deslocado” (Hewitti 2002) Na explicação do Sr. Benedito Figueiredo, ele observou que os formatos dos cascos variam de um para o outro, a exemplo as lanchas de canto que têm o casco quadrado e os barcos tradicionais tem o casco roliço. Em seguida explicou o que faz o barco flutuar, Como existem diversas intepretações culturais sobre o conceito de flutuação, para o Sr. Gregório Guimarães, o barco flutua porque o seu casco está todo vedado, impossibilitando a entrada de água. Assim relata, Ele flutua porque ele é todo tapado, ele pode ser de qualquer formato, até uma caixa, se tu fizer ele como uma caixa e colocar na água ele vai flutuar, só tem que tá todo tapado e todo calafetado. O que remete a ideia de um sólido sem fissura, que impede a entrada de quantidades extras de fluidos, apresentar maior possibilidade de manter sua densidade inicial. E essa vedação é feita no processo de calafetagem, procedimento em que o trabalhador, denominado calafate, faz a mistura de alguns produtos químicos como breu8 com estopa de algodão e preenche todos pequenos espaços existentes entre as tábuas que constituem o casco do barco, com o auxílio de uma espátula. É porque ele é ocado7, né?! E também a madeira tem tudo pra ele boiar, mesmo se ele alagar, mas, se ele alagar com muito peso aí ele afunda, mas se tiver só ele 428 Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 9 (1): 414 - 436, 2017 A etnofísica da carpintaria naval em Bragança - Pará - Brasil Figura 5: Trabalhador, denominado calafate, preparando a massa para a calafetagem, à esquerda. Calafates realizando a calafetagem do casco de uma embarcação de médio porte, à direita. Fonte: Arquivo Pessoal, 2015 O Sr. Ivan do Remédios, exemplificou como seria o casco do barco para que pudesse flutuar, Rapaz, um barco flutua devido a forma que a gente faz. A gente faz ele aberto, faz um fundo nele, igual um prato. Tu faz aquele fundo aí tu já vai levantando os lados dele, aí tu coloca na água e tem como flutuar. Quando tu entaboa, tu faz aquela armação, aí tu vai entaboando todo abeirando dele, por dentro dele todinho, ele é oco, daí tem como ele flutuar, tu coloca na água e ele flutua. A pintura feita nos barcos não tem somente a finalidade de decoração, mas também de proteger a madeira, pois a tinta utilizada possui um certo tipo de veneno que inibi os moluscos parasitas, segundo relatos dos entrevistados. E nessa pintura também pode aparecer o que é conhecida como linha d’agua, servindo para determinar o quanto a embarcação irá submergir na água. Os anos de experiência dos carpinteiros navais, os possibilitam determinar com precisão, essa linha d’agua. O Sr. Ivan dos Remédios chama atenção para a pintura nos barcos, A gente aqui quando faz um barco desse, a gente entaboa... E se marcar, por exemplo, eu se for marcar certinho aqui... A água vai dar bem aqui, a gente chuta que vai calar esse tanto de água aqui, eu posso marcar e botar no mar e pode ver se não vai dar certinho aonde ele enterra na água. A gente já marcar certinho, pode marcar, a gente coloca uma linha d’agua. Bota uma listra, que nem tem aquele lá, aí tu pode colocar na água, olha a água vai dar certinho aqui, e carregado onde vai dar? Nós marca certinho e dá. Além das dúvidas rotineiras sobre como um barco pode flutuar quando submerso na água, são geradas as questões sobre a sua capacidade de transportar tanta matéria, além da sua própria natureza, que numa concepção acadêmica/física, altera os módulos de volume e massa. Sobre essa diferença o Sr. Ivan dos Remédios, nos explica, A balsa por exemplo tem o casco todo chato, tem uns rebocadores pra puxar ela, e ela é feita justamente pra carregar peso. Pelo que eu sei a balsa tem uns tanques do lado dela, esses tanques servem pra quando não tiver um ponto próprio pra descer a mercadoria eles baixam umas compotas que enche de água pro bicho baixar um pouco pra poder colocar o material. Mas ela é somente uma caixa de ferro. Para explicar as condições de flutuação de corpos, Máximo e Alvarenga (2002), citam: 1) Empuxo < Peso: Nesse caso, a resultante dessas forças estará dirigida para baixo e o corpo afundará, até atingir o fundo do recipiente. É isso o que acontece quando, por exemplo, abandonamos uma pedra na água. 2) E = P: Nesse caso, será nula a resultante dessas forças e o corpo ficará em repouso na posição em Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 9 (1): 414 - 436, 2017 429 Costa, N. M. V. C. | Melo, L. G. G. | Vieira, N. C. que foi abandonado. É isso o que acontece com um submarino, em repouso, a uma certa profundidade. 3) E > P: Nesse caso a resultante dessas forças estará dirigida para cima e o corpo sobe no interior do líquido. (pag.254 e 255) Quando nesse último caso, se um corpo for abandonado e estiver completamente mergulhado notaremos que o empuxo será maior que o peso do corpo até ele atingir a superfície do líquido, e nessa situação o corpo flutuará, adotando a segunda condição, em que as forças se anulam. Voltando para o foco de estudo, segundo essas informações, uma embarcação quando dentro da água tem o seu peso igual ao empuxo, e esse é o conhecido princípio da flutuação (Máximo & Alvarenga 2002). Durante a entrevista com o Sr. Ivan dos Remédios, perguntamos se havia diferença da navegação na água do mar e na água do rio, e nos explicou o seguinte, Rapaz eu acho assim, que a água do mar ela é uma água mais grossa, é mais pesada... a água.... ela tem como o barco flutuar mais. E a água doce do rio é uma água mais que tu bota e ele enterra.... a água do mar por causa do sal ele flutua mais. Igual lá no mar morto lá tu pode nadar nele que tu não vai pro fundo, por causa do sal, tu pode fazer força pra mergulhar nele mas ele te flutua. Podemos nomear esse fenômeno observado pelo Sr. Ivan dos Remédios como densidade, sendo essa definida como a relação da massa de um material pelo seu volume. Segundo Hewitt (2002:117) “concebemos a densidade como sendo a “leveza” ou o “peso” 430 de materiais de mesmo tamanho. Ela dá uma medida de como a matéria está compactada, ou de quanta massa ocupa um certo espaço”. Sendo assim, analisando o depoimento do Sr. Ivan dos Remédios, a água do mar é mais “grossa” por ter sais em sua composição, tornando-a mais densa. E o barco não “enterra” tanto quanto na água doce (água de rio) porque a densidade do fluido do mar é maior e isso aumenta o empuxo, haja vista que são grandezas diretamente proporcionais. O Sr. Gregório Guimarães relata que, “A água salgada, ela exige mais do barco, então ele tem que ter uma estrutura segura pra ele passar. Se ele for fraco com certeza ele vai abrir e não vai conseguir fazer a viagem”. Mas como podemos identificar e exemplificar a importância e diferença dos tipos de madeiras na prática da carpintaria naval e aplicá-los no ambiente escolar? O Sr. Benedito Figueiredo relatou que as madeiras são escolhidas pela sua “dureza”, a mais dura, por exemplo, será adequada para o revestimento (custeamento) da embarcação. Vejamos nas palavras do entrevistado, As tábuas, que é o chamado custeamento, a gente bota sapucaia ou louro, mas a gente usa mais a sapucaia que é uma madeira bem dura e que custa mais a dar turú ou pode ser o louro também, só que ele é mais mole então tem uma menor durabilidade. A gente não tem aqui, mas lá pra Abaetetuba tem uma madeira chamada itauba é uma madeira que não dá o turú. Só que como lá é mais longe pra cá pra nós, aí não temos ela aqui. Mas ela é uma madeira boa. Aqui eu tô usando Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 9 (1): 414 - 436, 2017 A etnofísica da carpintaria naval em Bragança - Pará - Brasil 3,5 cm de grossura, que é sapucaia. Se for o louro tem que ser 4cm de grossura, por que ele é molhe. Figura 6: Tábuas de madeira da espécie sapucaia, com espessura de aproximadamente 3,5 cm. Utilizada para o custeamento do barco Fonte: Arquivo Pessoal, 2015 Os anos de experiência no ofício da carpintaria naval são os que justificam a escolha certa da madeira adequada para a construção dos diferentes tipos de embarcação, todos os entrevistados frisaram que cada conjunto de parte de uma embarcação é feita com uma madeira diferente. O sr. Benedito Figueiredo demonstra esse conhecimento a partir do seguinte depoimento; No caso a madeira tu tem que conhecer, tipo o carvernami feito de piquiá, que é a madeira da caverna, a estrutura do barco. Tem que ser uma madeira diferente, a gente começa pela quilha, que é o primeiro ponta pé do barco, ela pode ser feita de ipê ou a sapucaia também, mas o que mais apropriado é o ipê. E pra saber disso é só o nosso conhecimento mesmo Por exemplo a madeira usada para fazer o custeamento (revestimento externo do barco), precisa ser resistente, e nos estaleiros pesquisados é usada a da espécie Sapucaia (Lecythis pisonis) em tábuas com 3,5 cm de espessura, e são pintadas com tinta especial e envernizadas para proteger de parasitas que podem danificar o casco da embarcação. Eles citam um molusco muito comum na região amazônica, o turú (Teredo navalis) que fura a madeira úmida em busca de alimento. A caverna, também conhecida como a costela do barco, é a estrutura do barco e pode ser feita de Piquiá (Caryocar villosum) que possui densidade absoluta de 0,93 g/cm³, considerada uma madeira pesada e porosa. Com um olhar analítico podemos perceber que essa espécie de madeira poderia flutuar sobre a água, haja vista que, o Piquiá tem uma densidade de 0,93 g/cm³ e a água 1 g/cm³. O trabalho desses carpinteiros exige uma precisão dos cálculos, que segundo o depoimento dos entrevistados, ‘é tudo no olho’. Sobre essa questão, o Sr. Gregório Guimarães destaca, (...) a gente só sabe. Pois é, essa pergunta é uma boa pergunta. Porque a embarcação é toda torta, por exemplo uma caverna que tem distância de trinta ou quarenta centímetros longe uma da outra, vai dá diferença uma da outra, por que vai afunilando desde o meio até as pontas. As quatro cavernas do meio, são só um padrão do mesmo tamanho. O Sr. Ivan dos Remédios, também deixa claro que aprendeu a reconhecer a melhor madeira para cada finalidade, Porque a gente vai vendo o pau, quando ele é mole ou quando ele é duro, por exemplo no caso do Cumarú ele é duro. A madeira mole serve pra caverna, no caso do Piquiá. A melhor madeira que a gente usa, pra começar a fazer o barco é a sapucaia, que é feita a quilha9, porque Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 9 (1): 414 - 436, 2017 431 Costa, N. M. V. C. | Melo, L. G. G. | Vieira, N. C. ela é uma madeira dura é mais resistente e passa muitos anos. Em um manual escrito por Gonzaga (2006), estão descritas as mais variadas espécies de madeira de lei, sobre suas finalidades nas mais variadas construções, o autor também descreve as classificações científicas/física de cada uma, definindo-as como muito pesada quando, por exemplo, atingem a densidade de 0,99 g/cm³ e moderadamente pesadas quando a densidade é, por exemplo, 0.67 g/cm³. A densidade de um material depende geralmente de fatores ambientais como a pressão. Por exemplo, ao aplicarmos uma pressão significativa em um fluido, este irá sofrer uma diminuição em seu volume. A relação entre pressão e volume é chamada de compressibilidade. Se a compressibilidade de um material for alta então é necessária uma grande pressão para produzir uma significativa variação de volume, para esses materiais chamamos de incompressíveis. Se for baixo, o volume varia com a menor diferença de pressão, conhecidos como compressíveis. “Os sólidos, em geral, possuem módulos de compressibilidade superiores aos dos líquidos, devido às fortes ligações atômicas neles presente” (Halliday 2007:39). Podemos conceber pressão como “a intensidade da força normal por unidade de área da superfície (...). A pressão é uma grandeza escalar; ela não possui propriedades direcionais” (Halliday 2007:37). Ou seja, a pressão é o quanto de força é exercido sobre uma determinada área. 432 Mas no que isso influencia quando o assunto é barcos? Podemos fazer observações sobre essa grandeza nas falas dos entrevistados desta pesquisa. Como a do Sr. Gregório Guimarães, que disse, Se você for fazer um barco com as cavernas tudo só de um tamanho ele vai ficar no formado de uma caixa né? pode até flutuar, mas fica ruim pra navegar. Já com as cavernas diferentes, ele vai tomando um formato, vai afunilando pra frente, de um jeito pra cortar água. Então é isso que te digo, as cavernas vão tomando um formato mediante a forma de que ele é feito. E cada carpinteiro, cada mestre, ele tem um tipo de forma de barco, uns já fica mais largo e outro mais estreito. O que vai influenciar na navegação é a estabilidade do barco, a largura do barco, se ele for mais largo ou estreito. Ou seja, as cavernas têm um fator determinante na estabilidade da embarcação. Se esta tiver as cavernas muito largas, notavelmente a área do fundo do barco será maior e a pressão exercida na superfície em que está em contato, no caso a água, será menor, e vice-versa, haja vista que as grandezas área e pressão são inversamente proporcionais. O formato do sólido influencia na pressão exercida na superfície do fluído, por exemplo, forma pontiaguda exercerá maior pressão e maior possibilidade de não flutuar, já achatada ou roliça aumentará a área de contato com o fluído diminuindo proporcionalmente a pressão exercida, aumentando a possiblidade de flutuação. O Sr. Ivan dos Remédios chama atenção para essa questão, Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 9 (1): 414 - 436, 2017 A etnofísica da carpintaria naval em Bragança - Pará - Brasil Conforme o fundo do barco, tu fazendo ele chato, o pé de caverna, o barco chato ele fica assim. Se tu fazer o pé de caverna tu alevanta assim a forma dele, aí ele vai calar mais água, ele enterra mais na água, por que um barco chatinho assim, ele é boiero, ele não cala muita água, não é um barco bacana. Aí tu diz assim que um barco ficou largo e ele não vai balançar, mas é ele que vai balançar lá fora, por que ele não enterra na água, pode botar peso, mas ele fica ali flutuando, ele tem força sabe. Um barco largo ele tem força, tu pode botar peso e ele não é barco de se enterrar, igual o fundo de uma balsa. Só que uma balsa é grande, mas é cheia de compartimento, por que se ela chegar a furar ela não chegar a alagar tudinho, mas tem muitas balsas se quebram tudinho no mar. Eles fazem ela assim larga e chata devido o rio, pra ele não calar a água, passar assim no raso. Geralmente existem tabelas de valores para determinar as curvaturas certas de cada caverna, para embarcações de, por exemplo, 15 metros de comprimento. Por mais que existam muitos manuais que ensinam a construir uma embarcação, neles o conhecimento empírico é bem frisado. Segundo Nasseh (2011), Normalmente, os projetos são uma série de desenhos de linhas e detalhes de construção. Muitas vezes, especificações de construções e de materiais acompanham esse jogo de plantas. Entretanto, não espere que todo projetista forneça um jogo completo de planos. Cada um tem seu jeito próprio de trabalhar e passar informações. Alguns podem até enviar um conjunto completo e detalhado de tudo que se possa pensar para construir um barco, mas isso não é normal. (p.23-24) Então é necessário que cada sujeito identifique seu modo de trabalhar. O Sr. Ivan dos Remédios lembra que, As forma da gente de fazer barco não é idêntica à que o papai fazia as forma dele. Cada carpinteiro vai tendo uma nova forma, então em cada barco que a gente faz, a gente vai procurando aperfeiçoar mais a forma pra fazer uma coisa mais bonita né? O papai já tinha assim uma forma melhor, uma forma mais bonita, aí a gente tenta imitar ele, mas não consegue fazer. Ele tem mais paciência, porque um barco desse tu tem que ter paciência, pra ti cortar, pra ti poder talhar uma peça dessa, tem que todos os detalhes, um patilhão desse aqui atrás onde pega o hélice do barco, isso aqui gasta um tempo, tu tem as tuas medidas tudinho pra poder tu cortar a peça tu tem de ter a medida certa e o tamanho do hélice que vai passar. Com esses depoimentos compreendese o quanto a experiência e a individualidade do pensar são importantes para qualquer ação do ser humano. Nesta pesquisa discutimos sobre o saber-fazer dos carpinteiros navais e sobre suas interpretações da profissão. Analisando a relação e aplicação dos fenômenos físicos no cotidiano dos carpinteiros navais e o que essa relação vai influenciar nas comunidades que estão inseridas, os três fenômenos físicos destacados nessa pesquisa, empuxo, densidade e pressão, são, dentre muitos outros, considerados os mais relevantes no entendimento geral sobre construção naval, pois estão interligados ao processo de flutuação de um sólido submerso em líquidos ou gases (fluidos). Os resultados dessa pesquisa se agregam às demais Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 9 (1): 414 - 436, 2017 433 Costa, N. M. V. C. | Melo, L. G. G. | Vieira, N. C. investigações em Etnofísica e trazem em seu bojo o (re)conhecimento dos diferentes olhares sobre esses ou demais fenômenos físicos presentes no cotidiano de uma comunidade. voltado para a arte da construção naval aprendido pela prática, pela observação da natureza e pelas relações geracionais repassadas de pai para filho. NOTAS CONSIDERAÇÕES FINAIS O saber tradicional se faz pela aprendizagem que se transfere de geração para geração e pelo método da observação, como compreendemos nas falas dos mestres entrevistados da construção naval. Apresentamos no desenvolver deste trabalho que os carpinteiros navais têm domínio de sua profissão. E dentro desta construção percebemos muitos conhecimentos científicos presentes em suas práticas. Com esta pesquisa se propôs visibilizar os fenômenos físicos presentes na carpintaria naval possibilitando o reconhecimento dos saberes tradicionais para a economia pesqueira da região, para os estudos da Etnofísica e para os conhecimentos e currículos escolares, sobretudo locais. Merece atenção especial a relação da Etnofísica com outras Etno-x, bem como com a possibilidade de sua utilização de uma maneira inovadora uma vez que se tratam de estudos aprofundados, mas ainda pouco popularizados em especial nas instituições escolares. Por fim, destaca-se que o conhecimento dos entrevistados não está relacionado à escolaridade uma vez que dois dos três mestres artesãos não possuem o ensino fundamental completo e demonstraram ter um saber complexo 434 Professora Doutora do IFPA/Campus Bragança- Membro do Grupos de Pesquisa ETTHOS/ IFPA e ESAC/ UFPA. 1 Licenciada em Física IFPA/Campus Bragança. Professora de Física da Rede Estadual de Educação. Ex-Bolsista do PIBID/IFPA. Graduanda de Arqueologia/ UFOPA-Campus Santarém. 2 Professora Doutora da UFPA/Campus Bragança. Membro do Grupo de Pesquisa ESAC/UFPA. 3 Armação principal de uma embarcação, também conhecida como esqueleto do barco. 4 Ambiente aquático de transição entre um rio e o mar. (PRITCHARD, 1967) 5 6 Embarcação de médio porte com dois cascos utilizada na região bragantina para turismo. 7 Termo coloquial que se refere ao que é oco, vazio por dentro, sem miolo. 8 Betume. Piche. Material viscoelástico, derivado do petróleo. 9 Peça central da armação de uma embarcação. REFERÊNCIAS Anacleto, B. da S. 2007. Etnofísica na lavoura de arroz. Dissertação, Mestrado em Ensino de Ciências e Matemática, Universidade Luterana do Brasil, Canoas. Brasil. 1996. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei número 9394, 20 de dezembro. Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 9 (1): 414 - 436, 2017 A etnofísica da carpintaria naval em Bragança - Pará - Brasil Bogdan, R. Biklen, S. 1994. 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