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Memória discursiva e polissemia em Arrested Development

Uma das pedras fundamentais da análise de discurso em Michel Pechêux é a memória discursiva ou interdiscurso. Ela é definida como "aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem restabelecer os 'implícitos' [...] de que sua leitura necessita" 1. O interdiscurso trabalha como suporte semântico de um determinado discurso. Isso ocorre com a repetição de enunciados, formando uma regularidade discursiva-que nos remete a significados implícitos. Para Eni Orlandi, essa memória discursiva pode ser sumarizada no "(...) já-dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada da palavra" 2. A função primária da memória discursiva é a estabilização do discurso, mas seus resultados são frágeis. Novos acontecimentos discursivos aparecem constantemente para quebrar a estabilidade. Nesse contexto, precisamos falar sobre a manutenção do mesmo no discurso ou à chegada do diferente: paráfrase e polissemia. Enquanto a paráfrase é a produção dos efeitos de sentido na memória discursiva, ou seja, "um sempre retorno ao já dito na enunciação de um discurso que pela inscrição na história possibilita a realização e a ancoragem do dizer no interdiscurso 3 , a polissemia é o lugar em que a capacidade inventiva da língua é mostrada. Ela rompe com o discurso ou o desloca, e "abre caminhos com seus efeitos de sentido enunciados em processos de (re) significação no contato com o simbólico nos discursos em seus funcionamentos e tipos abrindo espaço para a deriva, o deslizamento de sentido, o sentido outro" 4. As diferentes significações provocadas pela polissemia são prato cheio para a criatividade de roteiristas de televisão. Um dos conteúdos que chama atenção por sua genialidade linguística é Arrested Development, série exibida pela FOX de 2003 à 2006 e adquirida pela plataforma de streaming Netflix em 2014. O interdiscurso e a polissemia estão fortemente presentes na narrativa da série. Como o conteúdo audiovisual seriado apresenta diferenças em suas apresentações originais feitas para 1 PÊCHEUX, M. Papel da Memória. In: Papel da Memória. ARCHARD, P.; ORLANDI, E. (Orgs.).

Memória discursiva e polissemia em Arrested Development Thamires Ribeiro de Mattos Uma das pedras fundamentais da análise de discurso em Michel Pechêux é a memória discursiva ou interdiscurso. Ela é definida como “aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem restabelecer os ‘implícitos’ [...] de que sua leitura necessita”1. O interdiscurso trabalha como suporte semântico de um determinado discurso. Isso ocorre com a repetição de enunciados, formando uma regularidade discursiva – que nos remete a significados implícitos. Para Eni Orlandi, essa memória discursiva pode ser sumarizada no “(...) já-dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada da palavra”2. A função primária da memória discursiva é a estabilização do discurso, mas seus resultados são frágeis. Novos acontecimentos discursivos aparecem constantemente para quebrar a estabilidade. Nesse contexto, precisamos falar sobre a manutenção do mesmo no discurso ou à chegada do diferente: paráfrase e polissemia. Enquanto a paráfrase é a produção dos efeitos de sentido na memória discursiva, ou seja, “um sempre retorno ao já dito na enunciação de um discurso que pela inscrição na história possibilita a realização e a ancoragem do dizer no interdiscurso3, a polissemia é o lugar em que a capacidade inventiva da língua é mostrada. Ela rompe com o discurso ou o desloca, e “abre caminhos com seus efeitos de sentido enunciados em processos de (re) significação no contato com o simbólico nos discursos em seus funcionamentos e tipos abrindo espaço para a deriva, o deslizamento de sentido, o sentido outro”4. As diferentes significações provocadas pela polissemia são prato cheio para a criatividade de roteiristas de televisão. Um dos conteúdos que chama atenção por sua genialidade linguística é Arrested Development, série exibida pela FOX de 2003 à 2006 e adquirida pela plataforma de streaming Netflix em 2014. O interdiscurso e a polissemia estão fortemente presentes na narrativa da série. Como o conteúdo audiovisual seriado apresenta diferenças em suas apresentações originais feitas para 1 PÊCHEUX, M. Papel da Memória. In: Papel da Memória. ARCHARD, P.; ORLANDI, E. (Orgs.). Campinas, SP: Pontes, 1999, p. 52. 2 ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes. 1999, p.31. 3 BRASIL, L. L. Michel Pechêux e a Teoria da Análise de Discurso: Desdobramentos importantes para a compreensão de uma tipologia discursiva. Linguagens – Estudos e Pesquisas, v. 15, n. 1, 2011, p. 180. 4 BRASIL, L. L. Ibid., p. 180. televisão (semanal) ou streaming/video on demand (binge-watching)5, analisarei apenas eventos das temporadas exibidas pela FOX. Arrested Development tem um humor peculiar. A história é contada na forma de mockumentário, e segue a vida da proeminente família Bluth, dona de uma construtora na Califórnia. O patriarca George Bluth está comemorando sua aposentadoria quando é preso por autoridades federais. A acusação? Traição ao Governo dos Estados Unidos por construir casas no Iraque (lembre-se: o ano é 2003, George W. Bush é presidente dos EUA, o 11/09 ocorreu há pouco tempo, e Saddam Hussein está solto por aí). Seu filho do meio, Michael, fica responsável por cuidar dos negócios (agora, falidos) da família – e do maior problema: a própria família. A polissemia já começa com os nomes dos personagens. Michael, que luta constantemente para não se parecer com o pai, dá o nome do seu filho de George Michael (sim, igual ao cantor. Mais uma polissemia!). Há outro George na família: o filho mais velho, George Oscar Bluth, que assina “Gob”, mas pronuncia o apelido “Job”, como o livro da Bíblia. Gob se coloca constantemente como a vítima da família – parecido com Job –, embora suas ações sejam irresponsáveis. “Michael” também têm uma conotação clássica e bíblica: é o nome de um arcanjo do Apocalipse, que significa “Quem é como Deus?”, apresentando o caráter salvador da figura – assim como a tentativa do personagem. Maeby, filha da irmã gêmea de Michael, Lindsay, também tem um nome carregado de significações. Em inglês, sua pronúncia é idêntica à “maybe” (“talvez”). Agregam-se a isso dúvidas quanto à sua legitimidade como filha biológica de Lindsay e seu marido Tobias, declarações polêmicas feitas por outros personagens usando a palavra “maybe” e o alter-ego que Maybe usa durante o ensino médio para arrecadar dinheiro fazendo arrecadações de dinheiro para uma doença que não existe – uma cadeirante chamada Surely (em tradução literal: “certamente”). Em Arrested Development, até os títulos dos episódios são carregados de memória discursiva. Tomemos como exemplo os dois primeiros da segunda temporada: “The One Where Michael Leaves” e “The One Where They Build a House”, seguidos pelo terceiro episódio, nomeado “¡Amigos!”. Outra série de comédia bem mais conhecida pelo público, Friends, começava todos os títulos de seus episódios com “The One Where/With”. A junção de duas repetições e da tradução do título de Friends para 5 PELEGRINI, Christian Hugo. A poética do cômico em Arrested Development e a reassistibilidade. Palabra Clave, Chia, v. 15, n. 3, 2012, p. 621-648. o espanhol mostra que as referências em Arrested Development farão muito mais sentido para quem estiver mergulhado no mundo televisivo. Ao partir para a interdiscursividade e a polissemia presentes nos personagens da série, vemos que desde o segundo episódio da primeira temporada (“Top Banana”) existem quebras de sentido. Tobias é o marido da irmã gêmea de Michael, Lindsay. Ele atuava como psiquiatra, mas decidiu mudar de carreira e partir para a atuação. No entanto, ele não consegue trabalho. Para provar seu “talento” como ator, o ex-médico frequentemente cita um personagem de stand-up de Steve Martin: “exxxxccccuuuussseeee me”. No entanto, seu movimento corporal faz alusão à outro personagem criado por Martin – Yortuk Festrunk, um refugiado tcheco que tentava desesperadamente se encaixar na cultura americana –, quebrando o sentido intendido pelo enunciado, e, com isso, reforçando ao telespectador a impressão de que Tobias ainda é um estranho aos olhos dos Bluths, além de um péssimo ator. Figura 1: O fugitivo George Bluth é descoberto por George Michael em “Good Grief”. George Bluth também é protagonista de uma polissemia: ele finge ter um infarto para sair da prisão (alguma semelhança com qualquer novela não é mera coincidência), e, em um momento de distração por parte dos guardas, foge do hospital (episódio “Good Grief”). Enquanto é procurado pelas autoridades federais, ele se esconde em um buraco próximo à casa em que as famílias de Michael e Lindsay moram, e fica lá por um bom tempo. É seu neto, George Michael, quem o encontra. O patriarca Bluth está com uma barba longa. Esse pequeno arco narrativo faz alusão aos esconderijos de Saddam Hussein, que tinha sido fotografado vivendo em buracos na terra, e também era procurado pelo Governo dos Estados Unidos. Na série, George Bluth era suspeito de trabalhar para Hussein. Figura 2: Montagem. George Michael em “Good Grief” e frame do “The Charlie Brown and Snoopy Show”, série animada sobre as tirinhas da Peanuts (CBS, 1983-1985). No mesmo episódio, vemos George Michael caminhando cabisbaixo após o término de um namoro. Ao fundo, podemos ver uma casa de cachorro vermelha e um Beagle deitado. A postura de George Michael e o cenário ao fundo conversam com imagens clássicas das tirinhas Peanuts, cujos protagonistas são Charlie Brown, uma criança com problemas de socialização (assim como George Michael), e o cachorro Snoopy. O título do episódio em si – “Good Grief” – é um dos bordões de Charlie Brown. George Bluth, Gob e Tobias simulam a postura e o movimento de George Michael no mesmo episódio. Embora o cenário alusivo à Peanuts esteja presente apenas na cena citada anteriormente, todas as outras com a caminhada cabisbaixa acabam quebrando a narrativa esperada, e se tornam referências às tirinhas, além de mostrar sentimentos comuns à família Bluth. É através da interação dos membros da família Bluth e a colocação usual ou não de seus discursos que a maior parte do humor da série se deriva. Arrested Development continuamente trabalha com a interpretação da audiência baseada em uma vasta memória discursiva sobre diversas áreas, como política, relações internacionais, entretenimento, religião, sexualidade e culinária. É necessário entender as conotações ilógicas de ações e conversas para captar as piadas, e, por isso, em seu período de exibição na FOX, a série teve baixa audiência, mas um envolvimento massivo de seus (poucos) fãs6. 6 Disponível em: <https://www.popmatters.com/153279-arrested-development-returns-semioticiansrejoice-2495896444.html>. Acesso em: 06 nov. 2018.