ALGUMAS QUESTÕES SOBRE ARTE E IMAGENS NO OCIDENTE MEDIEVAL
Maria Cristina Correia Leandro Pereira (UFES)
Quem quer que sejas, se pretendes exaltar a glória destas
portas, não te maravilhes pelo ouro, nem pelo custo, mas
sim pelo trabalho da obra. Resplandece a nobre obra, mas a
obra que nobremente resplandece clarifica as mentes, para
que se encaminhem pelas luzes para a verdadeira luz, onde
Cristo é a verdadeira porta. Como se entra neste mundo, a
porta dourada o determina. A mente, ofuscada, se eleva à
verdade pelas coisas materiais e, depois de ver essa luz,
ressurge da antiga submersão1.
Abade Suger (c. 1081-1151)
Os versos que Suger mandou gravar em letras de bronze dourado nas portas
principais da catedral de Saint Denis quando de sua consagração, na melhor tradição da
retórica medieval, poderiam ser associados a uma mudança de paradigma estético, como
defendia Erwin Panofsky em um artigo já clássico2. A importância da luz, explorada
habilmente pelos vitrais das catedrais, seria, de fato, um dos pontos chaves para se
caracterizar a arte gótica – ou, para usar um termo da época, a arte de França. No entanto,
não há que fazer dessa preocupação uma exclusividade do gótico. Bem antes de Suger e da
arte de França, o Liber Ordinum, em uso na Igreja visigótica e moçárabe do século V ao XI,
por exemplo, já insistia em que Deus é luz, é "lumen indeficiens, unici luminis lumen, fons
luminis, lumen auctor luminum"3. O bispo hispânico Fortunato, do século VI, afirmava,
poeticamente, que quando um peregrino passava a noite junto à igreja em atividade, ele
poderia ver que a terra também tem as suas estrelas4. Todos, incluindo Suger, beberam das
Doutora em História Medieval pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), professora de
História da Arte do Centro de Artes da Universidade Federal do Espírito Santo (CAR/UFES), coordenadora
do Grupo de Pesquisa em Imagens Cristãs (GPIC – CAR/UFES).
1
"Portarum quisquis attollere quaeris honorem / Aurum nec sumptus operis mirare laborem / Nobile claret
opus sed opus quod nobile claret / Clarificet mentes ut eant per lumina vera / Ad verum lumen ubi Christus
janua vera / Quale sit intus in his determinat aurea porta / Mens hebes ad verum per materialia surgit / Et
demersa prius hac visa luce resurgit". SUGER. Liber de rebus in administratione sua gestis, 27. Transcrição:
PANOFSKY, Erwin. "O abade Suger de S. Denis". In: _____. Significado nas artes visuais. São Paulo:
Perspectiva, 1979, p. 149-190, p. 174 (tradução nossa).
2
Embora não se refira explicitamente a essa inscrição, mas à obra de Suger com um todo, Panofsky afirma:
"Será que Suger percebeu que, ao concentrar artistas 'de todas as partes do reino', inaugurava, na então
relativamente deserta Île-de France, aquela grande síntese de todos os estilos regionais franceses que
chamamos de gótico? (...)". Idem, p. 188.
3
"Luz inesgotável, luz da única luz, fonte de luz, luz autora de luzes". CORBOZ, André. Haut Moyen Âge.
Fribourg: Office du Livre, 1970, p. 88. (tradução nossa).
4
Idem.
1
mesmas fontes neoplatônicas. E se os vitrais serão de fato mais característicos do gótico, o
gosto pelas cores brilhantes, pelo ouro, pelas pedras preciosas, é uma constante em quase
todo o período medieval.
O abade de Saint Denis tampouco estava criando algo novo quando se referia ao
poder da obra que resplandece como sendo o de clarificar e elevar a mente do espectador às
coisas divinas. Como veremos mais adiante, desde o papa Gregório Magno, no final do
século VI, mas sobretudo a partir dos séculos XII e XIII, a Igreja insistia no poder
anagógico, de transitus das imagens, ajudando na adoração do que nelas estava
representado.
Algo, porém, surpreende nestes versos de Suger: conhecido por sua defesa da
utilização de nobres materiais, do luxo na casa de Deus5, ele parece estar colocando em
primeiro lugar a obra, ou o que chamaríamos hoje de arte, de fazer artístico, quando fala em
"operis laborem", "trabalho da obra". Mas não devemos nos avançar muito nessa leitura: a
palavra ars, arte, não se encontra aí. E sim, dois outros termos próximos entre si: opus e
labor. Suger não utiliza o termo arte, embora pudesse fazê-lo, como vemos em outras
passagens suas6. Aqui, não é tanto o trabalho do artista que é elogiado, mas o da obra, o
trabalho que a própria obra opera. É ela quem "possui" o trabalho, como demonstra o
genitivo. E esse trabalho da obra é o de resplandecimento, possibilitado pelo material de
que é constituída, o ouro. Seria esse trabalho, pois, o de brilhar, de luzir, de resplandecer,
aquilo que deveria ser "mirado com admiração".
Essas reflexões iniciais, elaboradas a partir de um fragmento de uma das obras mais
ricas escritas na Idade Média sobre o que chamaríamos hoje de arte, nos levam a perceber
algumas das principais inquietações dos medievais a esse respeito. Por um lado, há
5
Ver, por exemplo, sua famosa argumentação: "Se jarras douradas, frascos dourados e pequenos almofarizes
dourados serviam antigamente, pela vontade de Deus ou por ordem do Profeta para coletar o sangue dos
bodes ou bezerros, ou da novilha vermelha, com muito mais razão os vasos de ouro, as pedras preciosas e
tudo o que houver de mais valioso entre as coisas criadas, deve servir, com reverência contínua e plena
devoção, como receptáculo para o sangue de Cristo". Citado por: PANOFSKY, Erwin. "O abade Suger de S.
Denis". Op. Cit., p. 166.
6
Por exemplo: "Mas para o painel posterior, o fizemos mais nobre, trabalhado com arte admirável e com
profusão de riqueza porque os artistas bárbaros eram mais hábeis que os nossos (...)". SUGER. Liber de rebus
in administratione sua gestis, 33. Citado por: MANZI, Ofélia; CORTI, Francisco (Org). Teorías y
realizaciones del arte medieval. Buenos Aires: Tekné, 1984, p. 63.
2
certamente uma preocupação estética: com o brilho e a riqueza da obra – duas faces de uma
mesma moeda. Mas também há, de outro lado, a preocupação que esse objeto admirado não
seja em vão, que ele tenha uma função e que a desempenhe bem7. E essa função, a mais
nobre de todas (à altura da nobre obra), seria a de elevação do espectador até a realidade
imaterial, ao mundo divino.
Esse fragmento nos dá a ver, pois, como a questão da arte, ou das imagens, no
Medievo ocidental era muito mais complexa do que muitas vezes se lê – nada de uma
limitada função didática, imagens feitas somente para ensinar os iletrados. Examinaremos,
pois, a seguir, algumas questões relativas ao status da arte, da imagem, do artista e do autor,
privilegiando a Europa ocidental dos séculos VI ao XII, e o que se convencionou chamar de
arte pré-românica e românica.
Arte e imagens
Desde que começara a se instituir como disciplina científica, no início do século
XIX, a História da Arte frequentemente relegara o estudo das imagens a um lugar
secundário. Tratava-se apenas de identificar o conteúdo iconográfico de uma obra de arte –
ela sim, o verdadeiro objeto de estudo – a partir de um repertório mais ou menos
codificado, em geral debitário da literatura, o que no caso da Idade Média significava
principalmente as Escrituras e as Vidas de santos. O foco principal dirigia-se aos estudos
estilísticos, voltados ao estabelecimento de genealogias de estilos, de datações, em uma
perspectiva biologizante (mostrando o nascimento, a maturidade e a decadência dos
estilos), sem grande preocupação com o contexto histórico. No caso da historiografia da
7
Encontramos aqui ecos de seu antigo opositor, o abade Bernardo de Claraval, autor de uma das cartas mais
citadas na historiografia da arte medieval, criticando, sem conseguir esconder, a presença de imagens: "(...)
Mas no claustro, debaixo dos olhos dos irmãos que aí lêem, que fazem aquelas ridículas monstruosidades,
aquela maravilhosa e disforme formosura, aquela graciosa disformidade? (...) Em resumo, são tantas e tão
maravilhosas as variedades de diversas formas, onde quer que apareçam, que nós somos mais tentados a ler
no mármore do que nos nossos livros, e a passar o dia admirando estas coisas, de preferência a meditar a lei
de Deus. (...)". SANCTI BERNARDI ABBATIS CLARAE-VALLENSIS. Apologia ad Guillelmum SanctiTheoderici Abbatem (PL 182, col. 914-916). Tradução: ESPINOSA, Fernanda. Antologia de textos
históricos medievais. Lisboa: Sá da Costa, 1981, p. 280-281.
3
arte medieval, um dos nomes mais representativos desta vertente formalista é Henri
Focillon, cujo livro mais conhecido traz o título significativo de "Vida das formas"8.
Esse panorama começou a sofrer alguma mudança já a partir do início do século
passado – apesar de que a História da Arte tradicional e formalista ainda tenha conservado
seu fôlego durante muito mais tempo. Os trabalhos de Aby Warburg, inseridos em sua
proposta de uma "Kulturwissenschaftliche Bildgeschichte", uma "História das imagens do
ponto de vista sócio-cultural", são nesse sentido um marco. Fazendo amplo uso da
documentação textual e não se limitando apenas às "obras-primas", como tradicionalmente
a História da Arte o fazia, mas a todo tipo de imagem, Warburg logrou interpretações novas
e instigantes sobre as obras e suas relações com a cultura da época9.
Entre seus herdeiros, o mais conhecido – embora um dos menos fiéis a seu
pensamento – é sem dúvida Erwin Panofsky, que criou um modelo bastante pragmático
para o estudo das imagens: o método iconológico10. Dividindo a abordagem da imagem em
três níveis, pré-iconográfico, iconográfico e iconológico, ele pretendia chegar a dar conta
da compreensão daquela como um "sintoma cultural". Apesar das críticas que se pode fazer
a Panofsky, como a rigidez de seu método que, entre outros fatores, não leva em
consideração a extrema complexidade, a polissemia das imagens, sem dúvida ele deu um
passo importante para o estabelecimento da imagem enquanto categoria de análise11.
8
FOCILLON, Henri. Vie des formes. Paris: PUF, 1934.
Ver, por exemplo, um artigo de Warburg publicado originalmente em 1902: WARBURG, Aby. Arte del
retrato y burguesia florentina. Domenico Ghirlandaio en Santa Trinità. Los retratos de Lorenzo de Medici y
de sus familiares. In: BURUCÚA, José Emilio (Org). Historia de las imágenes e historia de las ideas. La
escuela de Aby Warburg. Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1992, p. 18-43.
10
PANOFSKY, Erwin. "Iconografia e Iconologia: uma introdução ao estudo da arte da Renascença". In:
_____. Significado nas artes visuais. São Paulo: Perspectiva, 1979, p. 47-87 (Esse texto, publicado em 1955,
é a revisão de um artigo anterior, publicado em 1939. A principal diferença está no próprio nome de seu
método: antes chamado "iconográfico", depois de mais de quinze anos e de uma influência americana, ele
tornava-se "iconológico", a fim de evitar o excesso de descritivismo que o primeiro evocava, e parecer mais
interpretativo. Idem, p. 53-54).
11
Podemos citar, por exemplo, sua conhecida interpretação de uma obra de Francisco Maffei que apresenta
uma mulher com uma espada na mão direita e uma bandeja com a cabeça degolada de um homem degolada
na outra: ou seja uma mistura das figuras de Salomé e Judite. Panofsky acredita haver estabelecido sua
interpretação "definitiva", seu deciframento iconográfico: tratar-se-ia de uma representação de Judite
(PANOFSKY, Erwin. "Iconografia e Iconologia: uma introdução ao estudo da arte da Renascença". Op. Cit.,
p. 59-62). Como argumentam Jean Wirth e Georges Didi-Huberman, ele expõe seus argumentos, mas não
considera a hipótese de uma Salomé-Judite, de uma condensação, de uma justaposição dessas duas figuras
bíblicas – como era comum nas imagens, desde a Idade Média (WIRTH, Jean. L’image médiévale.
9
4
Bem mais que Panofsky, outra importante mudança nos estudos em História da Arte
ocorreu a partir da metade do século passado, com Pierre Francastel. Apesar de utilizar o
termo imagem quase como sinônimo de obra de arte, ele ressaltava seu caráter de criação,
apontando para as relações que necessariamente existiam entre ela e o imaginário, em cada
contexto histórico. Isso o levou a desenvolver um conceito que nos parece fundamental, o
de "pensamento figurativo"12 - aquilo que poderíamos chamar de "pensar em imagens".
Mais recentemente, em parte graças à via aberta por Francastel, pelos contatos com
outras disciplinas (sobretudo a Antropologia), estudiosos como David Freedberg e Hans
Belting têm buscado firmar a História das imagens (ou Antropologia das imagens, como
Belting tem preferido nos últimos anos)13 como campo de estudos "autônomo". Entre as
muitas questões colocadas por eles, está a grande preocupação com a análise dos poderes
das imagens e de suas funções na sociedade que as produz.
Mais especificamente em relação à Idade Média (embora Belting tenha trabalhos
nesta área), podemos citar um grupo de historiadores e historiadores da arte da École des
Hautes Études en Sciences Sociales: o Groupe d'Anthropologie Historique de l'Occident
Médiéval, de Jean-Claude Schmitt, Jean-Claude Bonne, Jérôme Baschet e Michel
Pastoureau14. Estes estudiosos têm proposto os trabalhos mais inovadores e aprofundado a
reflexão teórico-metodológica sobre as imagens medievais, chamando a atenção aos
procedimentos comparativos; ao estudo serial das imagens e de suas relações com o lugar
Naissance et développements (VIe-XVe siècles). Paris: Klincksieck, 1989, p. 16-17; DIDI-HUBERMAN,
Georges. Ninfa moderna. Essai sur le drapé tombé. Paris: Gallimard, 2002, p. 132). Ver também a
importante crítica de J. C. Bonne às idéias de Panofsky sobre a arte românica: BONNE, Jean-Claude. "Fond,
surfaces, support. Panofsky et l'art roman". In: ERWIN Panofsky. Paris: Centre Georges
Pompidour/Pandora, 1983, p. 117-134.
12
Ver, entre outros: FRANCASTEL, Pierre. "Art, forme, structure". In: _____. L'image, la vision et
l'imagination. L'objet filmique et l'objet plastique. Paris: Denoël/Gonthier, 1983, p. 19-63.
13
FREEDBERG, David. El poder de las imágenes. Estudios sobre la historia y la teoría de la respuesta.
Madrid: Cátedra, 1992; BELTING, Hans. Likeness and presence: A History of the image before the
Epoch of Art. Chicago: Chicago University, 1994; BELTING, Hans. Pour une anthropologie des images.
Paris: Gallimard, 2004.
14
Para citar apenas algumas obras da vasta bibliografia destes autores: SCHMITT, Jean-Claude. La raison
des gestes dans l'Occident médiéval. Paris: Gallimard, 1990; SCHMITT, Jean-Claude. O corpo das
imagens. Ensaios sobre a cultura visual na Idade Média. São Paulo: Edusc, 2007; BONNE, Jean-Claude.
L'art roman de face et de profil. Le tympan de Conques. Paris: Le Sycomore, 1984; BASCHET, Jérôme.
L’iconographie médiévale. Paris: Gallimard, 2008; BASCHET, Jérôme. A civilização feudal. Do ano mil à
colonização da América. São Paulo : Globo, 2006; PASTOUREAU, Michel. Couleurs, images, symboles.
Études d'histoire et d'anthropologie. Paris: Le Léopard d'Or, 1989.
5
que ocupam; ao papel da ornamentalidade; à corporalidade/"objetualidade"/"coisidade" das
imagens; à importância das funções, para citarmos apenas alguns aspectos. É nessa linha de
trabalhos que nos posicionamos, notadamente em nossas pesquisas sobre as esculturas do
claustro românico de Moissac15.
Sem avançarmos mais sobre esse campo de discussões, nos importa aqui perceber o
quanto para os estudiosos do Medievo o conceito de imagem é particularmente apropriado.
Na literatura e nos documentos medievais, imago é um termo encontrado com certa
frequência – ao lado de figura e historia – embora estes últimos se refiram mais
precisamente ao conteúdo plástico e narrativo das representações. É certo que a palavra
imago não se recorta precisamente como a "imagem" atual, mas existem muitos paralelos,
como o próprio escopo amplo de utilizações, fazendo referência tanto a objetos figurados,
como a figuras de linguagem ou a imagens mentais16. Mais importante ainda era a
legitimidade de que era revestida, por obra da tradição cristã já que, segundo o Gênesis, o
homem é antes de mais nada uma imagem de Deus-Pai: "E Deus criou o homem à sua
imagem; à imagem de Deus ele o criou" (Gn 1, 27). E o próprio Cristo possui uma relação
de similitude, pela imagem, com Deus – o "bom imaginário", segundo o monge do século
XII Guibert de Nogent17: "Ele é a imagem do Deus invisível" (Col 1, 15). Além disso,
como voltaremos mais adiante, a discussão intelectual medieval sobre a questão das
representações plásticas passava pelo conceito de imagem – e não de arte.
De fato, no que diz respeito à palavra ars, esta se distinguia em muito de nossa
"arte", quando nos referimos a objeto ou obra de arte. Ela estava mais ligada a uma
habilidade, a um saber técnico, e era em geral utilizada no plural, as artes mechanicae cuja etimologia fantasiosa, que fazia derivar a palavra mechanica de moechari (cometer
adultério), mostrava bem o pouco valor que a elas era atribuído, como lembra Piotr
15
Ver, notadamente, nossa tese de Doutoramento, orientada por J. C. Schmitt: Une pensée em images. Les
sculptures du cloître de Moissac. Paris, EHESS, 2001, 4v.
16
Ver, a esse respeito, SCHMITT, Jean-Claude. "Imagens". In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude
(Org). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: EDUSC, 2002, 2 v., v. 1, p. 591-605, esp. p.
593.
17
GUIBERT DE NOGENT. Autobiographie, l. 1, c. 2. Ed. Labande, E. R. Paris: Les Belles Lettres, 1981, p.
12-13. A expressão é de SCHMITT, Jean-Claude. "Imago: de l'image à l'imaginaire". In: BASCHET, Jérôme;
SCHMITT, Jean-Claude (Dir). L'image. Fonctions et usages des images dans l'Occident médiéval. Paris:
Le Léopard d'Or, 1996, p. 29-37, p. 32.
6
Skubiszewski18. Até o século XII as artes mechanicae eram, pois, consideradas unicamente
como atividades manuais, estando longe de serem incluídas no grupo prestigioso das sete
Artes Liberais, o Trivium (gramática, retórica e dialética) e o Quadrivium (aritmética,
geometria, astronomia e música)19. Seus praticantes não eram chamados de artistas, no
sentido moderno – tal termo, quando utilizado nas fontes medievais se referia àqueles que
se dedicavam às Artes Liberais. Quanto ao nosso "artista", na Idade Média ele era artifex,
ou então, mais especificamente, sculptor, marmorius, pictor, aurifex...
Por outro lado, a obra de arte como entende modernamente a História da Arte possui
um grau de autonomia que não se verifica na cultura medieval. No Medievo, não se
dissociava a imagem de suas funções/utilizações – dentre as quais estava certamente a
estética, embora esta não fosse a única. Poderíamos mesmo afirmar, com Jérôme Baschet e
Jean-Claude Schmitt, que se a imagem naquele período histórico não significava o mesmo
que arte, de toda forma havia arte nela20. Assim, de certa forma, a noção de imagem
mostra-se mais ampla, mais abrangente que a de arte, além de não estar submetida a juízos
de valor, sendo portanto mais útil não só aos historiadores da arte medieval, como aos
investigadores que se preocupam com a História Cultural.
Se quisermos ser mais precisos, podemos nos remeter ao conceito formulado por
Baschet de imagem-objeto. Para ele, somente um termo composto como este poderia
abarcar não só a dimensão visual das imagens mas também sua materialidade, de tão
fundamental importância para a cultura medieval. Afinal, como afirma este historiador, a
imagem medieval era sobretudo um objeto,
18
SKUBISZEWSKI, Piotr. "L'intellectuel et l'artiste face à l'oeuvre à l'époque romane". In: Le travail au
Moyen Âge. Une approche interdisciplinaire. Actes du Colloque International de Louvain-la-Neuve, 21-23
mai 1987. Louvain-la Neuve: Publications de l'Institut d'Études Médiévales - Université Catholique de
Louvain, 1990, p. 263-321, p. 300.
19
A partir desse momento, pouco a pouco as artes começam a ser associadas às ciências, a relevar de um
saber, como mostram as obras de Rupert de Deutz, Teófilo e Hughes de Saint Victor, por exemplo. Através
sobretudo da aproximação, da utilização da geometria, as artes mechanicae vão ganhando mesmo o status de
scientia que elas assumem na obra deste último autor. Ver, a esse respeito: SKUBISZEWSKI, Piotr.
"L'intellectuel et l'artiste face à l'oeuvre à l'époque romane". Op. Cit., p. 302-308.
20
BASCHET, Jérôme. “Introduction: l'image-objet”. In: _____; SCHMITT, Jean-Claude. L'image. Op. Cit.,
p. 7-26, p. 11 (disponível em: http://www.pem.ifcs.ufrj.br/Imagem.pdf); SCHMITT, Jean-Claude. "O
historiador e as imagens". In: _____. O corpo das imagens. Op. Cit., p. 25-54, p. 45.
7
dando lugar a usos, manipulações, ritos; um objeto que se
esconde e se revela, que se veste e se despe, que às vezes se
beija ou se come (pensemos nas hóstias que trazem muitas
vezes imagens); um objeto que demanda orações,
respondendo às vezes por gestos ou pela emissão de
humores (sangue, água, óleo...), reclamando também dons
materiais. E quando isso não acontece, pelo menos a imagem
adere a um objeto ou a um lugar que possui ele mesmo uma
função, uma utilização, seja ele um altar, um manuscrito ou
um objeto litúrgico.21
Um exemplo bastante significativo são as obras que possuem relíquias, sejam elas
esculturas de vulto, como as estátuas-relicários, ou mesmo capitéis historiados. Este último
caso não é tão estudado quanto o primeiro, apesar de podermos contar com vários
exemplos. Um deles é um capitel do claustro românico de Moissac, no sudoeste da França,
que apresenta cenas dos martírios de Pedro e Paulo. Na face sul, a da paixão de Paulo,
encontra-se uma pequena cavidade quadrada, hoje vazia, que serviu de relicário até o
século XVIII. Sua localização é deveras interessante: situa-se logo abaixo da cabeça de
Paulo que, curvado, prepara-se a ser decapitado. Se continuássemos esse movimento, a
cabeça iria "cair" no relicário – que continha, entre outras relíquias, as deste santo. Assim,
temos aí um exemplo de uma imagem ganhando materialidade graças à presença "real" de
restos do santo representado, da mesma forma que a imagem confere legitimidade às
relíquias22.
Mais frequentes ainda eram as estátuas-relicários23, como a famosa Santa Fé de
Conques, uma escultura em madeira recoberta de folhas de ouro, com incrustrações de
21
BASCHET, Jérôme. "Introduction: l'image-objet". Op. Cit., p. 9. Jean-Claude Bonne fala também em
"imagem-coisa", para ressaltar a "coisidade" da imagem, aquilo que não pode ser semantizado e nem é
figurativo, como uma gema no cruzamento dos braços da cruz que "funciona" como o corpo do Cristo.
BONNE, Jean-Claude. "Entre l'image et la matière: la choseité du sacré en Occident". In: SANSTERRE,
Jean-Marie; SCHMITT, Jean-Claude (Org.). Les images dans les sociétés médiévales. Pour une histoire
comparée. Actes du Colloque international (Rome, Academia Belgica, 19-20 juin 1998). Bulletin de
l'Institut Historique Belge de Rome, 69, 1999, p. 77-111. E Jean-Claude Schmitt propõe designar certas
imagens de "imagens-corpo" – aquelas que sangram e choram, aquelas com as quais os fiéis têm uma relação
que se assemelha a relação com uma pessoa. SCHMITT, Jean-Claude. "Imagens", Op. Cit., p. 598-599.
22
Sobre este capitel, ver: PEREIRA, Maria Cristina C. L. "Imagem-objeto, imagem-corpo: um capitelrelicário do claustro românico de Moissac". In: Anais eletrônicos do I Congresso Internacional
UFES/Université de Paris-Est e XVI Simpósio de História da UFES, 2007, Vitória. Para mais exemplos,
ver entre outros: DECLERCQ, Elisabeth. "La place des reliques dans le mobilier liturgique et l'architecture
d'après les 'Gesta Karoli magni' de l'abbaye de Lagrasse". Cahiers de Saint Michel de Cuxa 14, 1983, sp.
23
Ver, a esse respeito: SCHMITT, Jean-Claude. "As relíquias e as imagens". In: _____. O corpo das
imagens. Op. Cit., p. 279-299.
8
pedras preciosas e contas de vidro, composta de uma cabeça do Baixo Império Romano
sobre um corpo do século IX, modificado ulteriormente. A escultura da santa, que está
sentada em majestade, apresenta à altura do peito uma cavidade que conteria suas relíquias,
atraindo multidões de peregrinos até seu santuário em Conques. Muitos de seus supostos
milagres foram relatados por volta de 1040 por um clérigo, Bernardo de Angers, no "Livro
dos Milagres de Santa Fé", que nos informa também da recepção da imagem e de seus
poderes:
Imagem notável pelo seu ouro muito fino, as suas pedras de
grande preço, reproduzindo com tal arte as feições de um ser
humano, que os camponeses que a viam se sentiam
trespassados por um olhar clarividente e julgavam por vezes
distinguir, no radiar dos olhos, uma benevolência mais
indulgente para com os seus rogos.24
É interessante observar como transparecem, nessa citação, novamente alguns
elementos chaves para a compreensão das atitudes medievais face às imagens, que
desenvolveremos mais adiante: a atenção dada aos materiais, mais uma vez; o
maravilhamento com a arte-técnica que permitiu tal "realismo" à obra; e também uma certa
condescendência para com os espectadores, considerados como camponeses (e por
conseguinte rústicos – remetendo o leitor à famosa carta de São Gregório Magno 25). Sendo
"simples", eles seriam facilmente iludidos pela verossimilhança da imagem – notadamente
de seu olhar, que era motivo de espanto, pois acompanhava o espectador onde estivesse – e
dirigiriam suas preces e pedidos a ela.
Esse testemunho de Bernardo de Angers se insere em uma longa discussão que
ocupou pensadores cristãos ocidentais e orientais até a Idade Moderna sobre a validade e a
24
BERNARDO DE ANGERS. "Livro dos Milagres de Santa Fé". Apud BARRAL I ALTET, Xavier. "Sainte
Foy de Conques". In: DUBY, Georges (dir.). A Idade Média. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998, 2 v., v. 2, p.
118-131, p. 128. Em outra passagem do mesmo livro, Bernardo de Angers afirma que estátuas-relicários
como essa eram bastante comuns: "Existe um costume venerável e antigo, tanto nas regiões do Auvergne, de
Rodez e de Toulouse como nas terras vizinhas: cada um manda fazer ao seu santo, consoante os meios de que
disponha, uma estátua de ouro, de prata ou de qualquer outro metal, na qual guarda seja a cabeça do santo,
seja qualquer outra parte venerável do seu corpo". Citado por BARRAL I ALTET, Xavier. "O tesouro
eclesiástico medieval: economia, arte, liturgia". In: DUBY, Georges (Dir.). A Idade Média. Op. Cit., v. 2, p.
80-95, p. 90-91.
25
Ver, a esse respeito, mais adiante.
9
legitimidade das imagens cristãs. Sem entrarmos em detalhes aqui26, destacaremos apenas
que, face à oposição judaica às imagens, o cristianismo foi pouco a pouco as assumindo.
Inicialmente aquelas pintadas e de caráter simbólico (como as cruzes e peixes pintados nas
paredes das catacumbas), e depois cada vez mais as figurativas (herdadas em muito do
repertório iconográfico greco-romano, como por exemplo o Cristo realizador de milagres
de cura calcado no deus Esculápio27) e as narrativas, extraídas das Escrituras. As imagens
de vulto foram as que representaram maior problema, por sua proximidade em relação aos
"ídolos" pagãos. O caminho até sua aceitação e utilização como objeto de culto foi longo, e
poderíamos até pensar que a devoção popular se adiantou à doutrina oficial da Igreja. Uma
etapa intermediária bastante importante foi justamente o surgimento das estátuas-relicários,
que se difundiram no período carolíngio – época bastante marcada pelo forte apego às
relíquias, como o demonstra a construção de numerosas criptas em suas igrejas. A presença
das relíquias, e portanto, de certa forma, do santo representado na imagem em carne ou
osso (ou do que disso restava), legitimava não só a existência da imagem, mas o seu culto28.
Como bem conclui Jean-Claude Schmitt, as estátuas-relicários conjugam os poderes
milagrosos do corpo do santo com a força simbólica de sua efígie29.
Imagens e funções
Como vimos mais acima com a estátua-relicário de Santa Fé, uma das principais
funções das imagens cristãs medievais era de ordem cultual. Hans Belting a identifica
26
Sobre esse tema, destacamos o estudo fundamental de SCHMITT, Jean-Claude. "L'Occident, Nicée II et les
images du VIIIe au XIIIe siècle. In: BOESPFLUG, François et LOSSKY, Nicolas (Ed). Nicée II, 787-1987.
Douze siècles d'images religieuses. Paris: Cerf, 1987, p. 271-301. Ou ainda, sobre os primeiros séculos
cristãos: GINZBURG, Carlo. "Ídolos e imagens. Um trecho sobre Orígenes e sua sorte". In: _____. Olhos de
madeira. Nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 122-138. Para uma
compilação de textos medievais sobre as imagens, consultar MENOZZI, Daniele. Les images. L'Église et les
arts visuels. Paris: Cerf, 1991.
27
Ver, sobre esse tema, entre outros, GINZBURG, Carlo. "Ecce. Sobre as raízes culturais da imagem de culto
cristão". In: _____. Olhos de madeira. Op. Cit., p. 104-121.
28
É interessante observar que não só as imagens de vulto eram objeto de devoção. Muitas pinturas eram
cultuadas e mesmo relevos, como é o caso do citado capitel de Moissac, que era alvo de um ritual particular,
que envolvia procissão e incensamento no dia da festa dos dois santos. VIDAL, Marguerite. "Le culte des
saints et des reliques dans l'abbaye de Moissac". O Distrito de Braga 5, 1967, p. 7-18, p. 7.
29
SCHMITT, Jean-Claude. "Imago: de l'image à l'imaginaire". In: Jérôme BASCHET et SCHMITT, JeanClaude (Dir). L'image. Fonctions et usages des images dans l'Occident médiéval. Op. Cit., p. 29-37, p. 36.
10
mesmo como a principal30. De toda forma, ela é em grande parte responsável pela polêmica
em relação à aceitação das imagens pelo cristianismo. Afinal de contas, cultuar uma
imagem estava perigosamente perto de adorar um ídolo – a prática pagã por excelência,
sendo idolatria quase sinônimo de paganismo.
No entanto, até essa questão ser resolvida – e mesmo depois – procurava-se
canalizar a atenção a outras funções legítimas atribuídas às imagens. Estamos nos referindo
à tríplice construção teórico-ideológica expressa pelo papa Gregório Magno: as imagens
cristãs serviriam para ensinar os iletrados, lembrar as histórias sagradas e provocar um
sentimento de compunção no espectador, que o elevaria até a adoração de Deus31. Essa
construção, mesmo se ecoada por um grande número de pensadores da Igreja, não dá
certamente conta da totalidade das funções exercidas pelas imagens. Apenas das
idealizadas.
É importante frisar que, quando nos referimos a funções, não estamos nos
remetendo a uma concepção funcionalista, no sentido durkheimiano, como se houvesse um
sistema perfeito, fechado, no qual tudo ocuparia um lugar bem definido, "funcionando"
bem32. Ao contrário, as funções – aquilo para que servem as imagens – podem ser
múltiplas, contraditórias, ambíguas e polivalentes. Jérôme Baschet fala mesmo em "modos
de funcionamento", a fim de evitar todo equívoco, toda tentação de estudar as funções
isoladamente33. Com efeito, é isso que verificamos ainda com frequência em várias obras
que tratam, ou que apenas mencionam a arte medieval: a limitação de todas as imagens
30
BELTING, Hans. Likeness and presence: A History of the image before the Epoch of Art. Op. Cit.,
Entretanto, pensamos, com Jean-Claude Schmitt (SCHMITT, Jean-Claude. "O historiador e as imagens". In:
_____. O corpo das imagens. Op. Cit., p. 25-54, p. 42-46), que essa afirmação é um pouco redutora para toda
a diversidade de funções que as imagens medievais desempenham.
31
GREGORIUS MAGNUM. Epistola ad Serenum (600). Epistolae, X, 4, 13 (PL 77, col. 1128-1130). Mais
tarde, essa noção de transitus, de passagem da realidade material à imaterial, seria bastante frisada pelos
autores cristãos. E de modo geral, essa carta de Gregório Magno seria repetida à exaustão pela Igreja, sendo
encontrados ecos seus até no Concílio de Trento, por exemplo. Ver, a esse respeito: DUGGAN, Lawrence D.
"Was art really the book of illiterate?". Word and image, 5, 1989, p. 227-251; CHAZELLE, Celia M.
"Pictures, books and the illiterate. Pope Gregory's letters to Serenus of Marseille". Word and Image, 6, 1990,
p. 138-153; CAMILLE, Michael. "The Gregorian definition revisited: writing and the medieval image". In:
BASCHET, Jérôme BASCHET et SCHMITT, Jean-Claude (Dir). L'image. Fonctions et usages des images
dans l'Occident médiéval. Op. Cit., p. 89-101.
32
Ver as críticas extremamente relevantes nesse sentido de DIDI-HUBERMAN, Georges. "Imitation,
représentation, fonction. Remarques sur um mythe épistémologique". In: BASCHET, Jérôme; SCHMITT,
Jean-Claude (Dir). L'image. Op. Cit., p. 59-86.
33
BASCHET, Jérôme. "Introduction". Op. Cit., p. 24.
11
apenas a uma função didática, de acordo com a primeira parte da carta de Gregório
Magno34 – a mais conhecida e repetida também na Idade Média35.
Sem nos determos muito nessa discussão, apontaremos apenas uma única – e crucial
– incoerência nesse raciocínio: como explicar a função didática de imagens que não podem
ser vistas, como será frequente no período gótico com muitos vitrais colocados em locais
demasiado elevados para serem apreendidos a olho nu – portanto, com conteúdo
iconográfico inacessível aos fiéis.
Percebe-se, assim, que a localização espacial das imagens tem uma relação direta
com as funções que desempenham. Uma escultura em um tímpano, na fachada da igreja,
não provocará os mesmos efeitos que um capitel em um claustro. E isso, antes de mais
nada, porque seu público alvo é distinto. Os tímpanos, por exemplo, podem ser vistos por
todos os passantes, mesmo os que não ingressam na igreja. Um claustro, ao contrário, é o
local mais reservado de um mosteiro, onde os visitantes são raros, e onde os monges que aí
circulam têm em geral acesso a livros, são letrados36. Examinemos um caso por nós
bastante conhecido, o mosteiro de Moissac. Na sua fachada, que data das primeiras décadas
do século XII37, o tímpano apresenta Cristo em majestade, rodeado do Tetramorfo e dos 24
Anciãos do Apocalipse. É sem dúvida um modelo de autoridade – religiosa, moral, jurídica,
política – que guarda e anuncia a igreja. Mais abaixo, à altura e na dimensão do espectador,
os relevos laterais do pórtico apresentam outras imagens de ordem moral e pedagógica,
como, no lado esquerdo, as representações da Luxúria e da Avareza, acompanhadas cada
34
Na historiografia, o exemplo mais conhecido, e que influenciou algumas gerações de historiadores vem de
Émile Mâle, que criou no fim do século XIX a expressão "Bíblia dos pobres", para se referir às imagens que
ensinariam as Escrituras aos que não teriam acesso à leitura. MÂLE, Émile. L'art religieux au XIIIe siècle
en France. Paris: A. Colin, 1922. Poderíamos, ainda, mencionar uma outra crítica: muitas imagens são
complexas demais, trazem interpretações das Escrituras que as tornam incompreensíveis para aqueles que não
dominassem bem não só o texto, como a tradição exegética.
35
Por exemplo, no Beatus de San Miguel de Escalada (New York, Pierpont Morgan Library, ms. 644, fol.
293r), da metade do século XI, o pintor Maius afirma no colofão que através das imagens pintadas pode-se
conhecer os terrores que ocorrerão no Juízo Final. Ver o texto em: NEUSS, Wilhelm. Die Apokalyse des hl.
Johannes in der altspanischen und altchristlichen Bible-Illustration (Das Problem der BeatusHandschriften), 2v. Münster: Aschendorff, 1931, v. 1, p. 12.
36
Ver, a respeito dos claustros – e especificamente no que concerne às suas imagens, arquitetura e origens:
KLEIN, Peter. Der Mittelalterliche Kreuzgang. Architektur, Funktion und Programm. Regensburg:
Schnell und Steiner, 2003.
37
A igreja foi reconstruída na época do sucessor de Ansquitil, o abade Roger (1115-c.1131), e com ela, a
fachada. SCHAPIRO, Meyer. The sculpture of Moissac. Londres: Thames and Hudson, 1985, p. 4-5.
12
uma de um diabo, e do lado direito, a Anunciação e a Visitação. Nesse caso, o programa
iconográfico da fachada demonstra uma forte tendência em transmitir mensagens didáticas
ao espectador: os modelos a seguir ou a evitar, encimados por aquele que a tudo julga e
julgará.
Quanto ao claustro, construído alguns anos antes, não se percebe um programa
iconográfico tão pedagógico e uniforme. As imagens, bastante variadas, inspiradas nas
Escrituras e em hagiografias, constituem diversos sub-grupos, com diferentes temas e
funções38. Há os que desempenham papéis litúrgicos, como o já citado capitel de Pedro e
Paulo. Há os que se revestem de uma função econômico-pedagógica: posicionados em
torno da porta da sala capitular, local do claustro onde poderiam ser recebidos visitantes
laicos ilustres para a realização de doações39, estão quase todos os capitéis do claustro que
de uma forma ou de outra se relacionam à questão do dom, da "largesse" e da caridade: a
Adoração dos Magos, as bodas de Canaã, a parábola de Lázaro e do mau rico e a paixão de
São Lourenço40. As imagens que desempenham funções políticas são em grande número.
Citaremos apenas um exemplo: o capitel da galeria norte que representa as Cruzadas. Tratase de uma das primeiras imagens a fazer referência à Primeira Cruzada, ao mostrar
soldados com cruzes, um anjo e um monge ao lado de uma construção com cúpula
octogonal, lembrando o Santo Sepulcro. Quando se conhece o papel ativo desempenhado
por Moissac na propaganda da Cruzada, pregada pelo papa Urbano II, pois o scriptorium do
mosteiro falsificou uma carta com pedido de socorro dos cristãos de Jerusalém que ajudou a
justificar a expedição religiosa e militar41, esse capitel constitui-se em mais uma peça dessa
construção, marcando o alinhamento do mosteiro do lado do papado42.
38
PEREIRA, Maria Cristina C. L. "As esculturas de Moissac: lógicas de representação e funções das
imagens". Signum 1, 1999, p. 45-75.
39
Ver, por exemplo, WHITE, Stephen D. Custom, kinship and gifts to saints. The Laudatio Parentum in
Western France, 1050-1150. Chapel Hill/London: The University of North Caroline Press, 1988, p. 249.
40
PEREIRA, Maria Cristina C. L. "Le lieu et les images. Les sculptures de la galerie est du cloître de
Moissac". In: VON HÜLSEN-ESCH, Andrea; SCHMITT, Jean-Claude (Org). Die Methodik der
Bildinterpretation. Les méthodes de l'interprétation de l'image. Deutsch-französische Kolloquien 19982000. Göttingen: Wallstein, 2002, 2 v., v. 2, p. 417-470, p. 440-445; 452-454.
41
Ver, a respeito desta carta: GIEYSZTOR, Alexender. "The genesis of the Crusades: the Encyclical of
Sergius IV (1009-1012)". Medievalia et Humanistica 6, 1950, p. 3-34.
42
PEREIRA, Maria Cristina C. L. "Quando o claustro dominou a cidade: os monges de Moissac e a primeira
Cruzada". In: Anais Eletrônicos do II Congresso Internacional de História Ufes/Université de Paris-Est:
cidade, cotidiano e poder. Vitória: PPGHIS, 2009. v.1. p.1-12.
13
É importante frisar que as imagens não têm que se limitar a uma única função. Elas
são muito mais complexas. Tomemos mais um exemplo do claustro de Moissac, o pilar
com a efígie do abade Durand, que implantou a reforma cluniacense no mosteiro, na
metade do século XI. Essa imagem, que em princípio lembra uma laje funerária, pois
mostra o abade de corpo inteiro, gravado em relevo com pouca profundidade sobre uma
placa de mármore, possui uma riqueza de "modos de funcionamento" que vão muito além
da simples vontade de imortalizar a memória daquele membro ilustre da comunidade43.
Trata-se, em primeiro lugar, de elevar sua importância. A imagem é acompanhada de uma
inscrição que informa que o abade foi também bispo de Toulouse (a acumulação de cargos
era comum no sudoeste da França à época) e santo: "S(AN)C(TV)S DVRANNVS
E(PISCO)P(V)S TOLOSANVS ET ABB(A)S MOYSIACO". Mais que a exposição do
curriculum do abade, nos deparamos aí com sua "canonização", por obra da comunidade,
pois Durand não consta do santoral da Igreja. Além disso, a forma como ele é representado,
de corpo inteiro e no interior de um arco, e em um pilar, marca um paralelo com outros
relevos encontrados nos pilares no claustro: os dos apóstolos. Assim, o abade moissaguês,
santificado, é ainda elevado ao grau de isoapóstolo, mostrando a vontade daqueles monges
de se identificarem o mais próximo possível com o ideal de vita vere apostolica – mais que
seus rivais, os cônegos agostinianos de Saint Sernin de Toulouse. Toda essa exibição de
poder do abade reformador não tinha como alvo apenas o público externo ao mosteiro, não
servia apenas como expressão da identidade político-religiosa da comunidade. Sua
localização no claustro mostra como ele funcionava também como fonte de autoridade
internamente. De fato, originalmente esse relevo situava-se em frente à porta da sala
capitular, local do claustro onde, entre outras atividades, diariamente os monges
confessavam suas faltas e eram por elas punidas. Assim, aquele local onde era reforçada a
obediência e a observância dos costumes cluniacenses, e onde era exercida a autoridade
moral do abade, era como que velado pela representação do abade Durand, referência de
poder e autoridade para a comunidade.
Outro tipo de imagem a possuir um público restrito eram as miniaturas em
manuscritos, feitos para um elite laica ou eclesiástica. Aqui também as funções das imagens
43
PEREIRA, Maria Cristina C. L. "Memória de pedra: os pilares centrais das galerias leste e oeste do claustro
de Moissac". Farol, 3, 2003, p. 74-89.
14
são bastante diversas, variando de acordo com as próprias funções dos livros onde se
encontram. No entanto, as imagens nunca se limitam a simplesmente ilustrar o texto que
acompanham – até porque se trata de duas instâncias que não são redutíveis uma a outra.
Elas são sempre interpretações, em muitos casos desenvolvendo uma exegese visual
bastante profunda e original. Um exemplo é o famoso frontispício do Saltério da Primeira
Bíblia de Carlos o Calvo (também conhecida como Bíblia de Vivien, BNF lat. 1, fol. 215v),
que apresenta Davi rodeado de músicos – um tipo de imagem comum, em princípio, para
abrir o livro dos Salmos, considerados como tendo sido compostos por esse rei
veterotestamentário. Entretanto, como demonstra com grande habilidade Isabelle
Marchesin, essa imagem é bastante particular, mostrando em sua composição uma
combinação bastante erudita de geometria e música, tendo sido feita para um rei igualmente
erudito como uma espécie de apologia-espelho ("louanges miroirs"), frisando o caminho
para a sabedoria cristã através das artes liberais44 – e das imagens, acrescentaríamos.
Outro exemplo de função bastante particular das imagens em manuscritos é o caso
das famosas páginas-tapetes da arte celto-saxônica, ou insular45. Feitas com enorme
precisão,
inteiramente
ornamentadas
com
motivos
geométricos,
zoomórficos
e
fitomórficos, elas têm a cruz como elemento principal, como estruturador da ornamentação
– embora não se possa realmente falar em uma relação figura-fundo. O objetivo maior
dessas obras era propiciar ao monge artista uma meditação, uma ruminatio – sobre a cruz,
sobre o cristianismo46.
Através deste último exemplo, podemos perceber não só um outro tipo de utilização
devocional das imagens, mas também como a ornamentalidade funcionava na Idade Média.
Muito mais que simplesmente "embelezar" a imagem, seu suporte, ou ainda o local onde
ela se encontrava, tem-se que pensar em ornamentação e decoração de acordo com a
44
MARCHESIN, Isabelle. "Temps et espaces dans le frontispice du Psautier de la Première Bible de Charles
le Chauve". In: VON HÜLSEN-ESCH, Andrea; SCHMITT, Jean-Claude (Org). Die Methodik der
Bildinterpretation. Les méthodes de l'interprétation de l'image. Op. Cit., p. 317-353.
45
Como por exemplo, no Evangelho de Durrow, do século VII (Dublin, Trinity College, ms. 57, fol. 1v).
46
BONNE, Jean-Claude. "De l'ornemental dans l'art médiéval (VIIe-XIIe siècle). Le modèle insulaire". In:
BASCHET, Jérôme; SCHMITT, Jean-Claude (Dir). L'image. Op. Cit., p. 207-240, p. 235-236.
15
acepção medieval. Como bem observa Jean-Claude Bonne, decorar é conceder decus, ou
seja, a honra que é devida a algo, através de uma beleza honorífica47.
Em geral, a História da Arte costuma fazer uma grande diferença entre o conteúdo
iconográfico de uma imagem e os "motivos ornamentais" que nela se encontram – em
detrimento destes últimos. Com poucas palavras, no máximo uma referência a uma grade
de motivos e suas variantes, é comum que os historiadores contentem-se com atribuir um
valor decorativo aos ornamentos, considerados quase supérfluos se não fosse pelo auxílio
que prestam ao estabelecimento de genealogias estilísticas e datações48. Ora, falar em
ornamentação como se ela fosse um fim em si só, e o ornamento uma entidade autônoma,
não basta para dar conta da importância que ele possuem para a arte medieval, e que é
atestada pela sua quase que onipresença nas imagens49. E nem tampouco falar
simplesmente em uma função estética. Para Bonne, seria mais apropriado falar em um
"modo de tratamento estético" que os ornamentos propiciam às imagens. E que não é único
nem imutável, e tampouco constante:
A ornamentalidade sabe variar funcionalmente suas
modalidades estéticas (particularmente os efeitos
cromáticos) de uma forma coerente – organizada de acordo
com uma verdadeira sintaxe interna – permitindo acentuar a
importância e a significação de diferentes níveis da
imagem.50
Ele nos oferece como exemplo desses procedimentos o mosaico da abside de San
Clemente de Roma: a ornamentalidade serve aí não só para acentuar o caráter grandioso e
triunfal da abside, da igreja e da representação, mas ela trabalha também de forma mais
sutil, como um "intensificador", como um "advérbio, um comparativo ou ainda uma
47
BONNE, Jean Claude. "Les ornements de l'histoire (à propos de l'ivoire carolingien de saint Remi)".
Annales HSS, ano 51, n. 1, jan/fev. 1996, p. 37-70, p. 45.
48
Ver, por exemplo, VIDAL, Marguerite. "Moissac". In: _____; MAURY, Jean; PORCHER, Jean. Quercy
roman. Yonne: Zodiaque, 1959, p. 42-135.
49
Ver a crítica de J. C. Bonne a essa postura em: BONNE, Jean-Claude. "Repenser l'ornement, repenser l'art
médiéval". In: Le rôle de l'ornement dans la peinture murale du Moyen Âge. Op. Cit., p. 217-220.
50
BONNE, Jean-Claude. "De l'ornement à l'ornementalité. La mosaïque absidiale de San Clemente de
Rome". Op. Cit., p. 103.
16
entonação"51, entre as diferentes partes da imagem. E sobretudo, colocando em destaque a
figura principal, o Cristo crucificado.
A ornamentalidade é, pois, portadora de sentido (ou de sentidos), e pode
desempenhar muitas outras funções que a de propiciadora de decus: funções iconográfica,
simbólica, expressiva, sintáxica, emblemática, ritual ou mágica, como demonstra JeanClaude Bonne52. Um exemplo que encontramos bastante significativo é uma placa de
bronze dourado irlandesa, provavelmente do século VIII, conhecida como a crucificação de
Athlone. Com exceção da cabeça, mãos e pés, que são figurativos, o corpo do Cristo é
formado por uma grande riqueza de motivos ornamentais célticos – notadamente espirais.
Como bem percebeu Bonne, o artista "faz literalmente uma demonstração ornamental e
figurativa do Cristo; a melhor demonstração de que era capaz, e a mais prestigiosa aos
olhos de sua sociedade. Ele provou celticamente o Cristo"53. A ornamentalização da figura
do Cristo contribui para transmitir a idéia teológica de glorificação causada pela
crucificação, ao conferir-lhe um "corpo glorioso". Além disso, o fato do Cristo ser
constituído tanto por elementos figurativos como ornamentais mostra que para eles não
havia uma separação entre essas duas instâncias. Mais ainda, elas servem para marcar o
dualismo indissolúvel próprio ao Cristo54.
Artistas, conceptores e comitentes
Examinemos agora um tema particularmente delicado, no que concerne à arte
medieval no período que nos ocupamos, pela pouca quantidade de fontes e de estudos.
Usando um termo nosso contemporâneo, falaríamos em autoria das imagens – o que muitas
vezes na Idade Média se desdobrava em torno de três papéis: o do artista, do conceptor e do
comitente.
As fronteiras entre eles não eram muito estanques, assim como de modo geral a
noção de autoria, no que concerne textos e também imagens, era algo um tanto fluido (por
51
Idem, p. 106.
Idem.
53
BONNE, Jean-Claude. "De l'ornemental dans l'art médiéval (VIIe-XIIe siècle). Le modèle insulaire". Op.
Cit., p. 230.
54
Idem, p. 229-231.
52
17
exemplo, os termos factor, auctor e dator, para as obras de arte, eram quase genéricos55). E
muitas vezes mesmo inexistente. Eram comuns nas obras teológicas, por exemplo, autorias
"emprestadas": já que o princípio da auctoritas se impunha, frequentemente autores
assumiam a identidade de outros mais conhecidos, "autoridades", até se tornarem eles
próprios conhecidos. E como isso não era corrente, o resultado é termos até hoje uma série
de obras não identificadas, de Pseudos-Agostinho, Jerônimo etc.
No caso das imagens, não havia essas autoridades às quais recorrer – salvo a
autoridade dos milagres. São conhecidas, de fato, sobretudo a partir do fim do século XI,
muitas imagens aqueiropoiéticas, não feitas pela mão do homem. Um exemplo, estudado
mais recentemente por Jean-Claude Schmitt, é o Volto Santo, um crucifixo de madeira da
passagem do século XI ao XII, da igreja de San Martino di Lucca, cujo rosto teria sido
esculpido por um anjo56. Outro exemplo é a cruz dos Anjos, asturiana, do início do século
IX, cuja fatura a Crônica de Silos (1115) atribui a dois anjos disfarçados de peregrinos que
teriam se apresentado ao rei Alfonso II57.
Dos três papéis citados mais acima, o do artista é aquele sobre o qual há mais
testemunhos de época – ainda que muitas vezes eles se limitem a fornecer o nome.
Entretanto, a idéia de assinatura, como conhecemos a partir do Renascimento, não existia,
mas sim uma inscrição que fazia com que a própria obra apontasse seu executor. Era o "me
fecit", ou "hoc fecit", acompanhando o nome do artista, tão abundante na arte medieval. É
bastante conhecido o exemplo do tímpano da catedral de São Lázaro de Autun, do século
XII, que apresenta gravada abaixo dos pés do Cristo a frase: "GISLEBERTVS HOC FECIT"
("Gislebertus fez isso"). No entanto, essa expressão é suficientemente ambígua como para
não deixar claro se está referindo ao escultor, ao arquiteto, ou mesmo ao conceptor do
tímpano, embora a historiografia em geral assuma como garantida pelo menos a primeira
55
Ver as observações de SKUBISZEWSKI, Piotr. "L'intellectuel et l'artiste face à l'oeuvre à l'époque
romane". Op. Cit., p. 283-284.
56
SCHMITT, Jean-Claude. "Cinderela crucificada: a propósito do Volto Santo de Lucca". In: _____. O corpo
das imagens. Op. Cit., p. 219-278. E também: SCHMITT, Jean-Claude. "Translação de imagem e
transferência de poder: o crucifixo de pedra de Waltham (Inglaterra, séculos XI-XIII)". In: _____. O corpo
das imagens. Op. Cit., p. 201-217.
57
FONTAINE, Jacques. El Prerrománico. Madri: Encuentro/Zodique, 1978, p. 372.
18
possibilidade, através da comparação com outras esculturas no interior da igreja58. Há
muitos outros casos, porém, em que essas dúvidas não se colocam: na antiga colegiada de
Saint Pierre de Chauvigny, por exemplo, da segunda metade do século XII, o capitel da
Adoração dos magos possui gravada a inscrição "GOFRIDVS ME FECIT".
Raramente o artista é mais prolixo, como é o caso de Girbertus (que é em realidade
arquiteto), que deixou inscrito no portal do priorado de Saint Pierre de Carennac:
"GIRBERTVS CEMENTARIVS FECIT ISTVM PORTARIVM. BENDICTA SI ANIMA EJVS"
("Girbertus arquiteto fez esse portal. Bendita seja sua alma"). Com esse último exemplo
temos uma pista da função dessas inscrições: mais que identificar o artista, tratava-se de
uma forma imperecível de encomendação. Deixar o nome junto àquelas imagens sagradas,
seria como pedir – e talvez garantir – a intercessão destas. Em outros casos, bem mais
incomuns até o século XII, a inscrição traz, além do nome do artista, sua apologia. Assim,
na fachada ocidental da catedral de Módena, lemos: "INTER SCVLTORES QVANTO SIS
DIGNVS ONORE CLARET SCVLTVRA NVNC WILIGELME TVA" ("De quanta honra tu és
digno, entre os escultores, tuas esculturas o demonstram agora, Wiligelmo"). Se pensarmos
no discurso indireto como uma marca de humildade, uma forma do artista não incorrer no
pecado do orgulho (já que o Criador por excelência é a divindade), nesse caso do escultor
modenense chegaríamos a um limite59. Além disso, a placa com a inscrição está sustentada
pelos profetas Elias e Enoque, o que dá ainda mais peso ao elogio feito ao artista.
Entretanto, é importante perceber que esta inscrição não é a única na placa. De acordo com
Giuseppe Pistoni, ela seria mesmo um acréscimo posterior, já que está escrita com letras
menores60.
Por vezes, o artista não só deixa seu nome inscrito, mas também sua própria
imagem61. Um exemplo pode ser encontrado em um manuscrito moçárabe conhecido como
58
O que não significa que ele não possa também ter sido o arquiteto e o conceptor, como afirma
VERGNOLLE, Éliane. L'art roman en France. Paris: Flammarion, 1994, p. 43.
59
Enrico Castelnuovo critica a visão demasiado romântica dos artistas medievais que via na ausência de
assinatura uma marca da humildade característica deles. CASTELNUOVO, Enrico. "L'artiste". In: LE GOFF,
Jacques (Org). L'homme médiéval. Paris: Seuil, 1989, p 233-266, p. 234.
60
PISTONI, Giuseppe. Il Duomo di Modena. Modena: Immacolata Concezione, 1972, p. 12.
61
Certamente não se trata ainda de retratos, como será o caso mais tarde, no fim do período medieval e
sobretudo no Renascimento. Não há nos séculos medievais de que nos ocupamos preocupação com a
verossimilhança do "modelo" representado.
19
a Bíblia de 960: tanto o escriba, Sancho, como o iluminador, Florencio, estão representados
na imagem. Eles levantam cada um uma taça, se felicitando pela conclusão da obra, como
diz a inscrição62. Tampouco este é um hápax. Conhecemos outros exemplos em que o
artista se representa em imagem, como o pintor vidreiro Gerlacus, em um vitral da antiga
abadia premonstratense de Arnstein63. Ele está com um pincel na mão, como se escrevesse
naquele momento a frase no arco acima de sua cabeça: "REX REGVM CLARE GERLACHO
PROPICIARE" ("Ó Rei dos reis seja favorável a Gerlacus"). Aqui a mensagem muda. Fica
claro que o dom feito pelo artista – não só material, já que ele doou o vitral à igreja, mas
também o de sua "arte" – é realizado em troca da intercessão divina.
Quando não se conhece o nome do artista, muitas vezes os historiadores da arte o
designam de acordo com a região em que trabalhou, como o caso do prolífico Mestre de
Cabestany, cuja primeira obra estudada pela historiografia foi o tímpano da igreja desta
cidade da Catalunha francesa, embora o escultor tivesse trabalhado no Languedoc, no
Roussillon, na Catalunha espanhola e na Toscana (provavelmente seu local de nascimento).
A atribuição é feita por características formais, bastante fáceis de se perceber, no que
concerne este Mestre, de traços bem marcantes64.
Examinando a trajetória do Mestre de Cabestany, podemos perceber um elemento
comum a muitos artistas laicos da Idade Média: sua mobilidade. Isso era comum sobretudo
no caso dos escultores, já que os mosteiros e igrejas, seus principais clientes, não tinham
condições de formar essa mão de obra especializada da mesma forma que podiam fazer
com os iluminadores. A competição entre as diferentes comunidades, ou as relações de
dependência que estas possuíam, além da fama do artista, entre outros fatores, concorriam
para provocar esse deslocamento. O caso de Moissac é novamente bastante representativo:
artistas que trabalharam no atelier da catedral de Saint Sernin foram chamados para o
claustro de Moissac, que estava então no auge de seu poderio econômico e político. De lá,
62
León, Colegiada de San Isidoro, cod. 2, fol. 515v.
O vitral data de c. 1150, e está atualmente no Westfalisches Landesmuseum für Kunst und Kunstgeschichte,
em Münster. Para outros exemplos: CASTELNUOVO, Enrico. "L'artiste". Op. Cit., p. 245-246.
64
Suas esculturas possuem em geral elementos bastante característicos, como os olhos amendoados e
globulosos, com perfurações no canto das pálpebras; os cantos da boca marcados por perfurações; e as mãos
com dedos muito longos. Para um amplo dossiê iconográfico e analítico: BONNERY, André et al. Le Maître
de Cabestany. Saint Léger Vauban: Zodiaque, 2000.
63
20
alguns foram enviados a igrejas pertencentes a Moissac, como La Daurade, em Toulouse65.
Esse percurso dos escultores, traçado apenas com fontes materiais, mostra bem não só as
redes de poder na região, mas também como as imagens desempenhavam um forte papel
político, servindo de forma explícita como exibição de status.
Já no caso das miniaturas de manuscritos, na Alta Idade Média e na Idade Média
Central a produção era feita basicamente pelos monges no interior dos próprios mosteiros
(com exceção do período carolíngio, com as Escolas episcopais e reais) – os maiores
consumidores. Certamente nem todos possuíam scriptoria, devido aos custos, mas em geral
todos deveriam possuir livros, sobretudo quando se se tratava de mosteiros beneditinos,
hegemônicos na Europa ocidental entre os séculos IX e XIII66.
Mais problemática ainda que a autoria "material" das obras é sua "autoria
intelectual" – para usarmos um outro termo atual – ou seja, a elaboração do programa
iconográfico, implicando na escolha do tema, das imagens, da maneira como elas iriam ser
compostas e de sua localização. Vasto programa. Somente através de hipóteses pode-se
chegar a alguns nomes, pela falta de documentos atestando esse tipo de autoria na Idade
Média – embora possamos, uma vez mais, citar o caso de pelo menos uma "concepção"
milagrosa. Trata-se de uma história envolvendo o monge e artista Tuotilo, do século IX,
homem de vida santa segundo seu biógrafo, que teria sido encarregado de ciselar uma
imagem da Virgem: esta lhe teria aparecido para ensinar o que fazer ("docet quid faciat")67.
Diferentemente do Volto Santo e de outros exemplos, não se trata aqui de uma imagem
aqueiropoiética: a imagem é "elaborada" pela Virgem e realizada por Tuotilo. Dessa lenda
podemos ter uma idéia da importância desse papel no pensamento medieval: tão elevado a
ponto de ser exercido pela Virgem em pessoa.
65
Essa é a hipótese de HORSTE, Kathrine. Cloister design and monastic reform in Toulouse. The
romanesque sculpture of La Daurade. Oxford: Clarendon Press, 1992, p. 115.
66
De acordo com a Regra Beneditina, os monges eram obrigados a ler as Escrituras e seus comentários. A
Regra de São Bento, 9, 8. Tradução D. João Evangelista Enout. Rio de Janeiro: Lumen Christi, 1990, p. 5455 (edição bilíngüe).
67
EKKEHART IV. Casus sancti Galli, 45. In: HAEFELE, Hans F. (Ed.). St. Galler Klostergeschichten.
Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1980. Ver, a esse respeito, entre outros: MARIAUX, Pierre
Alain. La Vierge dans l'atelier de Tuotilo. De l'artiste médiéval considéré comme um "théodidacte". Revue de
l'histoire des religions, 218, 2001, p. 171-193.
21
Em geral, a historiografia busca o conceptor entre homens de grande cultura,
acostumados ao trabalho de exegese bíblica, "artistas" – no sentido de serem versados nas
Artes Liberais – intelectuais, diríamos hoje. É o caso dos tímpanos de La Charité sur Loire,
que Marie-Louise Thérel defende terem sido "pensados" por Pedro, o Venerável, abade de
Cluny, a partir da comparação entre as imagens esculpidas e as idéias teológico-políticas
desse abade, descritas em suas obras68. No caso do claustro de Moissac, Leah Rutchick
levanta a hipótese do programa haver sido inspirado em grande parte pelo armarius
Gerardus, responsável pela biblioteca do mosteiro, mestre de gramática e música, e mais
tarde arcebispo de Braga, o único monge contemporâneo à construção do claustro sobre o
qual se têm informações a respeito da vida intelectual69. Seus conhecimentos justificariam
uma participação importante na concepção do programa iconográfico.
No entanto, é importante observar que não necessariamente o conceptor e o artista
teriam de ser pessoas distintas. Jean Wirth, por exemplo, critica fortemente a visão
tradicional que rebaixa o artista medieval ao nível do "modesto artesão iletrado e submisso,
a fim de louvar a emancipação daquele [artista] do Renascimento"70. É evidente que
quando se trata de artistas religiosos, tal coincidência de papéis na criação de imagens é
bastante mais frequente, como no caso de Bernardo, bispo de Hildesheim (993-1022)71. E
também do monge Teófilo, talvez pseudônimo do ourives alemão Roger de Helmarshaum,
do início do século XII72, que deixou um dos raros manuais de artes medievais, o Schedula
diversarum artium, no qual, além de descrever várias técnicas, aconselha que tipo de
imagens deveriam ser feitas em algumas peças. Assim, por exemplo, em vasos de ouro ou
prata, a fim de estar à altura da riqueza e do poder que delas emanava, elas deveriam ser
representações de Davi ou Sansão lutando contra o leão, ou de leões e grifos lutando73.
68
THÉREL, Marie-Louise. "Pierre le Vénérable et la création iconographique au XIIe siècle". In: LOUIS,
René (Ed.). Pierre Abélard, Pierre le Vénérable: les courants philosophiques, littéraires et artistiques en
Occident. Colloque International du CNRS, Cluny, 2 à 9 juillet 1972. Paris: CNRS, 1975, p. 733-744.
69
RUTCHICK, Leah. Sculpture programs in the Moissac cloister: benedictine culture, memory systems,
and liturgical performance. PhD, Universidade de Chicago, 1991, p. 35.
70
WIRTH, Jean. L'image à l'époque romane. Paris: Cerf, 1999, p. 62.
71
Como veremos mais adiante.
72
PETZOLD, Andreas. Le monde roman. Paris: Flammarion, 1995, p. 33.
73
THEOPHILUS, De diversibus artibus, 3, 78 (Edição: C. R. Dodwell. THEOPHILUS, The various arts.
Oxford: Clarendon Press, 1986, p. 141).
22
No entanto, alguns historiadores chegam a apontar mesmo artistas laicos como os
únicos responsáveis pelo programa iconográfico, como pensa Géza de Francovich a
respeito do escultor Benedetto Antelami74, mas esses casos permanecem raros. E sempre
tratava-se de pessoas com conhecimentos teológicos, "dogmate clarus", como o escultor
Nicolaus se descreveu na fachada de São Zenão de Verona75.
Entretanto, nos parece que, no que concerne as grandes obras, do vulto do claustro
de Moissac, com seus 76 capitéis, dos quais 40 historiados, e 8 pilares, não se deva atribuir
o programa iconográfico a um só responsável, seja ele um intelectual do mosteiro, ou o
mestre-escultor (considerando que em Moissac teria havido a participação de pelo menos 5
ou 6 escultores76). É mais provável pensar em um acordo entre pelo menos dois
personagens: o armarius Gerardus e o comanditário, o abade Ansquitil77. Podemos inferir a
participação deste último não através de uma comparação não com obras teóricas de sua
autoria (não há referências de que ele as tenha escrito), nem com sua bagagem intelectual
(ela também desconhecida), mas sim com dados históricos relativos a seu abaciado78. Por
exemplo, sua eleição havia sido envolta em conflitos com o abade anterior, que fora
deposto, sendo o apoio do papa fundamental para sua confirmação. Assim, essa conjuntura
poderia estar relacionada à escolha de algumas esculturas do claustro, como o capitel dos
Cruzados (mostrando sua aliança com o papa), um grande número de capitéis com imagens
de combate (referência ao contexto local e talvez também à Cruzada), além da posição
privilegiada de Durand (legitimador de seu próprio poder abacial).
Através desse último exemplo, podemos intuir algo a respeito de onde vem a
motivação para a escolha de alguns temas do programa. No entanto, como observou P.
74
FRANCOVICH, Géza de. Benedetto Antelami, architetto e scultore e l'arte del suo tempo. MilanoFirenze, Electa,1952, p. 151.
75
SKUBISZEWSKI, Piotr. "L'intellectuel et l'artiste face à l'oeuvre à l'époque romane". Op. Cit., p. 296-297.
76
HORSTE, Kathrine, Cloister design and monastic reform in Toulouse. The romanesque sculpture of
La Daurade. Op. Cit., p. 116.
77
Uma inscrição no claustro, contemporânea às esculturas, afirma que o claustro foi construído no tempo do
abade Ansquitil. A tradição o reconhece como seu realizador, como demonstra a Crônica da abadia escrita na
virada do século XIV ao XV pelo abade Aymeric de Peyrac: "Qui dictus Asquilinus fecit claustrum magnum
subtilli artifficio operatum dicti monasterii" (O dito Ansquitil fez o grande claustro da abadia, construído com
uma arte sutil). BNF Lat. 4991A, fol. 160va, 2-4.
78
Além disso, sendo ele a autoridade máxima no mosteiro à época da construção e, portanto, muito
provavelmente o responsável pela encomenda do claustro, é difícil pensar que não teria tido uma participação
na elaboração do programa.
23
Skubiszewski, conseguir conhecer como "um pensamento teológico preciso se transforma
em um conjunto de representações" é muito difícil, pela falta de documentos. E se constitui
sempre como uma "construção altamente hipotética"79. A existência de cadernos com
modelos iconográficos como a compilação de desenhos de Adémar de Chabannes, do
século XI80, ainda que bastante raros, não pode se constituir como uma pista decisiva, como
um processo generalizado.
No último exemplo moissaguês encontramos também o terceiro personagem de
nossa tríade, o comitente, que poderia igualmente participar da "autoria" da obra – seja pelo
fato de ter apenas criado a necessidade da obra (e pago por ela); ou de ter também
participado, ou mesmo elaborado o programa iconográfico; ou ainda, de ter também
realizado materialmente a obra. Todas essas situações poderiam se verificar, não existindo
uma norma, ou uma constante. Um caso próximo ao de Moissac seria um manuscrito sobre
a Vida de Saint Aubin (BNF n.a.l. 1390), cujo programa Beat Brenk acredita ter sido
proposto pelo clérigo comitente81. Se quisermos nomear algum comitente-artista,
poderíamos citar talvez novamente o caso de Bernardo, bispo de Hildesheim, cujo biógrafo
nos informa de sua competência nas Artes Liberais, que teria sido o elaborador e comitente,
entre outras obras, da célebre porta de bronze de Hildesheim82. Além disso, como ele
também era iluminador, escultor e ourives, temos aqui um caso que reúne os três aspectos
da criação de imagens.
No que tange ao comitente, as informações sobre eles costumam ser mais
numerosas, visto que em geral trata-se de membros da elite laica e eclesiástica, capazes de
custear os trabalhos. Além disso, as inscrições acompanhando as obras comumente eram
mais prolixas que a fórmula "me fecit". No entanto, as menções explícitas à encomenda em
si eram raras: como a obra era feita sobretudo para ser doada, é essa a ação que é apontada.
79
SKUBISZEWSKI, Piotr. "L'intellectuel et l'artiste face à l'oeuvre à l'époque romane". Op. Cit., p. 313.
Leyde, Universiteitsbibliotheek, ms. Voss. Lat. 8° 15. GABORIT-CHOPIN, Danielle. "Les dessins
d'Adémar de Chabanne". Bulletin Archéologique, 1967, p. 163-225.
81
BRENK, Beat. "Le texte et l'image dans la 'vie des saints' au Moyen Âge. Rôle du concepteur et rôle du
peintre". In: Texte et image. Actes du Colloque Interantional de Chantilly (13 au 15 octobre 1982). Paris,
1984, p. 36-38. Skubiszewski cita vários outros exemplos, como uma inscrição acompanhando uma pintura da
Ascensão na basílica de San Clemente de Roma que atribui ao papa Leão IV, do século IX, a escolha do tema
e talvez da iconografia (SKUBISZEWSKI, Piotr. "L'intellectuel et l'artiste face à l'oeuvre à l'époque romane.
Op. Cit., p.279-280 ; p. 281-283).
82
Idem, p. 288-290.
80
24
Uma das poucas exceções é uma inscrição encontrada em um ábaco de um capitel
de Saint Hilaire de Melle, do fim do século XI, que identifica explicitamente a encomenda:
"FACERE ME AIMERICVS ROGAVIT" ("Aimericus pediu que me fizessem")83.
Sem dúvida, o mais corrente era a inscrição mencionar a doação e não a encomenda,
como no verso da já citada Cruz dos Anjos:
Que esta doação seja acolhida com benevolência e
permaneça em honra a Deus. É a oferenda de Alfonso [o rei
Alfonso II], humilde servidor de Cristo. Quem tiver a
pretensão de tomá-la, que pereça sob o raio divino, se este
objeto não permanecer no local ao qual minha real vontade
doou. Esta obra foi terminada em 846 da era [hispânica,
correspondendo a 808]. Este símbolo protege o fiel, este
símbolo obtém a vitória contra o inimigo.84
Vale a pena determo-nos um pouco no exame desta inscrição. Inicialmente, ela se
faz remarcar por sua forma: o texto acompanha o traçado da cruz, constituindo-se mesmo
em uma outra cruz. Esta plasticidade da inscrição reforça seu conteúdo e propicia uma certa
união do texto com o objeto, fazendo-o ganhar corpo com a cruz, ser "crucificado". Além
disso, ela nos fornece muito mais informações do que a maioria de suas congêneres: não só
o nome do comitente (e doador) é mencionado, como também a data. Mais ainda: a função
primeira, "oficial", da imagem-objeto está aí explicitada. Seguindo o modelo das cruzes
asturianas, tratava-se de um símbolo de vitória – terrena, como ocorreu na batalha de
Covadonga, em 722, quando a lenda atribui a vitória de Pelayo contra os muçulmanos à
aparição no céu de uma cruz, que ele teria copiado e brandido contra seus oponentes; mas
também espiritual, contra o "antigo inimigo", o diabo. Além de uma função comemorativa,
de exibição de poder e de humildade ao mesmo tempo, era também apotropaica85.
83
VERGNOLLE, Éliane. L'art roman en France. Op. Cit., p. 39.
Tradução de FONTAINE, Jacques. El Prerromanico. Op. Cit., p. 373. Atualmente a cruz encontra-se na
Câmara Santa da catedral de Oviedo.
85
De acordo com D. Rigaux, as imagens apotropaicas e milagrosas serão mais frequentes a partir da virada do
século XII para o XIII (RIGAUX, Dominique. "Réflexions sur les usages apotropaïques de l'image peinte.
Autour de quelques peintures murales novaraises du Quattrocento". In: BASCHET, Jérôme et SCHMITT,
Jean-Claude (Dir). L'image. Op. Cit., p. 155-177, p. 156). Temos aqui, pois, um exemplar bastante mais
precoce – ainda que neste caso não há relatos de milagres realizados pela cruz, mas sim de milagre feito
"para" ela.
84
25
A partir do século XII o comitente é cada vez mais frequentemente representado em
imagem, na imagem. É o que nos mostra um vitral da catedral Saint Pierre de Poitiers (c.
1165-1170), o da Crucificação, cujos doadores são representados na parte inferior,
entregando uma miniatura da obra a São Pedro86. Ou então, um mosaico da catedral de
Monreale (c. 1183), que apresenta o doador oferecendo uma "maquete" da igreja à Virgem.
O fato dos comitentes pouco a pouco "entrarem" nas imagens, carregando as obras que
encomendaram e que estão agora doando, tem seguramente a ver com a necessidade de
tornar visível, de "materializar" sua presença e sua ação, e de forma perene.
Imagens e materialidade
Nos dois exemplos citados acima, todos os comitentes-doadores pertencem à
realeza: o casal real francês Henrique II Plantageneta e Eleonor de Aquitânia e Guilherme
II, rei da Sicília. Como já mencionamos antes, a produção de imagens na Idade Média,
sobretudo até o século XII, era algo que exigia grandes investimentos. Não por causa do
trabalho dos artistas, pois estes em geral não eram bem remunerados87 – quando o eram,
pois no caso dos artistas-monges, por exemplo, isso estava fora de questão. A maior
despesa era para com os materiais empregados. De uma parte estava a dificuldade de
encontrá-los ou de produzi-los (no caso dos pigmentos, por exemplo). Mas também havia a
busca pelos materiais mais preciosos: o mármore, o marfim, mas sobretudo os metais,
dentre os quais o ouro em primeiro lugar.
As esculturas em mármore não eram muito comuns, devido à dificuldade em obter o
produto. Era mais fácil encontrá-lo empregado na arquitetura, sobretudo em colunas – em
geral reutilizadas de monumentos antigos. Era em grande parte graças a essa associação à
Antiguidade, ao Império Romano, em particular, que fazia do mármore um dos materiais
mais cobiçados. Heiric de Auxerre, por exemplo, em seus "Milagres de São Germano", do
século IX, ao narrar a construção das criptas de Saint Germain de Auxerre, nos conta como
86
Abaixo da crucificação do Cristo, há uma imagem menor da crucificação de São Pedro, e abaixo desta estão
os ofertantes.
87
Um exemplo significativo encontra-se em uma troca epistolar entre o ourives G. (talvez Godefroy de Huy)
e seu comitente, o abade Wibaud de Stavelot, em 1148. Ao abade, que pede pressa na realização do trabalho,
o artista responde que ele assim o fará desde que não haja obstáculos em seu caminho: "Minha bolsa está
vazia e nenhuma das pessoas a quem servi me pagou". Citado por: CASTELNUOVO, Enrico. "L'artiste". Op.
Cit., p. 243.
26
alguns monges foram enviados em uma missão cheia de perigos e milagres ao sul da França
buscar mármore das "ruínas de velhos edifícios"88. Todos essa dificuldade se justificava
porque "para uma construção tão magnificamente elaborada, não havia ornamento que não
se colocasse toda energia para encontrar"89.
Um conjunto de capitéis esculpidos em mármore como os do priorado de
Serrabonne, na Catalunha francesa, era raro. Em Moissac, encontramos mármore nos
ábacos – feitos de pequenas placas de mármore, mais fáceis de serem obtidas – e nas placas
adossadas aos pilares – talvez reemprego de lajes funerárias. Nos dois casos, a riqueza do
material fazia parte da função decorativa (no sentido do termo medieval decus) das peças:
no caso dos ábacos, reforçando seu papel ornamental, e no caso das placas, honrando os
apóstolos e o abade Durand nelas representados.
Outro material bastante valorizado na Idade Média era o marfim – sobretudo o de
elefante, o mais caro e mais raro, muito apreciado por seu grão fino e cor branca. Quando
este não era disponível, substituía-se pelas presas de morsa, bastante mais comuns, ou
mesmo simplesmente chifres e ossos – quando não se reutilizavam marfins antigos, à
semelhança do que ocorria em relação ao mármore90. Sua principal utilização na Alta Idade
Média era a confecção de placas de encadernação e de relicários. Nos dois casos, por sua
preciosidade o marfim representava um acréscimo de ornamentalidade: tanto a placa como
o relicário tinham por função, além de guardar e proteger seu conteúdo precioso
(lembrando que no período carolíngio, quando ele foi mais utilizado como placa de
encadernação, os manuscritos eram considerados como verdadeiros tesouros, e a imitação
88
HEIRIC DE AUXERRE. Miracula sancti Germani, II, 92 (PL 124). Tradução francesa em: ABBAYE DE
AUXERRE. Intellectuels et artistes dans l'Europe carolingienne. IXe-XIe siècles [catálogo]. Auxerre:
Musée d'Art et d'Histoire, 1990, p. 97-101, p. 98. O ápice dessa aventura marcada pelo signo do maravilhoso
– afinal estava em jogo a construção do local que abrigaria as relíquias do santo protetor do mosteiro, São
Germano – foi quando no momento de colocar em seu lugar uma das colunas de mármore, esta caiu. Mas
antes que ela se rompesse em pedaços no solo, a intervenção divina resgatou-a e colocou-a no lugar. Como
diz Heiric, "assim fixada em seu lugar, ela oferece de forma sublime um testemunho imóvel de um milagre
perpétuo". Essa é uma das grandes vantagens da pedra, a sua perenidade. A coluna que ajudaria a sustentar o
edifício, o faria não apenas fisicamente, mas também simbolicamente, através da lembrança desse milagre,
que Heiric registrou e ajudou a divulgar. É importante destacar, ainda, que a preciosidade do material torna
mais que justificado e necessitado o milagre que o preserva.
89
Idem.
90
GABORIT-CHOPIN, Danielle. "O marfim na Idade Média". In: DUBY, Georges. A Idade Média. Op. Cit.,
v. 1, p. 222-236.
27
do Império Romano era um valor positivo), honrá-lo com todo o decus possível. E isso
implicava não só em imagens "ornamentais", como folhagens, mas também em imagens
narrativas e sintéticas.
Em um crescendo de valor – e de brilho – estão o ouro e as pedras preciosas,
onipresentes: seja nas coroas votivas visigóticas, nas placas de encadernação carolíngias,
nas estátuas-relicários etc. Além de toda uma tradição artística que remonta de uma parte à
Antiguidade oriental (da qual Bizâncio é herdeira direta) e de outra aos povos germânicos,
existe uma tradição literário-religiosa que será fundamental para esse papel preponderante
dos metais preciosos, e particularmente das gemas: o Apocalipse de João. Nesse texto
profundamente imagético, os muros da Jerusalém celeste são descritos como sendo de
jaspe, e seus alicerces,
adornados de todo tipo de pedras preciosas: o primeiro era
de jaspe, o segundo de safira, o terceiro de calcedônia, o
quarto de esmeralda, o quinto de sardônio, o sexto de
cornalina, o sétimo de crisólito, o oitavo de berilo, o nono de
topázio, o décimo de crisópraso, o undécimo de jacinto e o
duodécimo de ametista. (Ap. 21, 19-20)
A própria divindade é descrita como sendo uma gema: "E quem estava sentado [no
trono] tinha a aparência de uma pedra de jaspe ou de sardônio" (Ap. 4, 3)91. Assim
legitimadas, o ouro e as gemas ornamentam e enriquecem as imagens. E mais ainda,
permitem que seja emitida luz diretamente e perenemente a partir destas, promovendo o
transitus da mente do fiel para as realidades divinas, como a citação de Suger à guisa de
epígrafe já nos anunciava.
O material levando ao espiritual, a pedra à luz. O caminho também pode ser
inverso: o espiritual levando ao material. Como conclui, brilhantemente, Jean-Claude
Schmitt,
91
Nesse contexto, não é de se surpreender que a ourivesaria fosse um dos mais importantes ofícios artísticos.
Conhecemos mesmo santos que eram ourives, como o francês São Elói, dos séculos VI/VII, e o inglês São
Dunstan, do século X, que chegou a ser arcebispo da Cantuária (mas que não se dedicava somente ao trabalho
com metal, esculpindo também sobre madeira e osso, além de pintar). CASTELNUOVO, Enrico. "L'artiste".
Op. Cit., p. 241.
28
a imagem medieval "presentifica", sob as aparências do
antropomorfo e do familiar, o invisível no visível, Deus no
homem, o ausente no presente, o passado ou o futuro no
atual. Ela reitera assim, à sua maneira, o mistério da
Encarnação, pois dá presença, identidade, matéria e corpo
àquilo que é transcendente e inacessível.92
Assim, pois, o trabalho da imagem na Idade Média é de uma amplidão remarcável.
Analisá-la permite ao medievalista conhecer melhor aquela sociedade que a fabricava e que
era por ela fabricada. A imagem medieval, com sua polissemia, suas ambivalências,
hierarquias, simetrias, jogos de espelhos e associações, constitui-se como um campo de
estudos extremamente fértil, convidando a abordagens multidisciplinares e a uma contínua
colocação de problemas que só têm a enriquecer a História e a História da Arte.
92
SCHMITT, Jean-Claude. "Imagens". Op. Cit., p. 545.
29