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"A Jornada do Herói(?) em busca do Mito Aberto"

2012

Trabalho (sem alterações finais) realizado para o TCC de Bacharelado em Artes Visuais do Instituto de Artes UNESP - 2012 a respeito de adequações da Jornada do Herói idealizada por Campbell para temáticas contemporâneas

Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho Trabalho de Conclusão de Curso - TCC “A Jornada do Herói(?) em busca do Mito Aberto” Leonardo Reitano Orientador: José Leonardo do Nascimento 1 Índice: Introdução – Pág. 4 Do objeto – Pág. 6 Novos mitos e Gênero – Pág.23 Novos mitos e Posição econômica – Pág. 31 Novos mitos e Sexualidade – Pág. 36 Novos mitos e Violência – Pág. 41 Novos mitos e Maniqueísmo – Pág 46 Novos mitos e Estética – Pág, 50 Conclusão – Pág. 63 Bibliografia – Pág. 67 2 Choreography. Paint by numbers. Exchange hollow greetings with someone who'll do the same. Smile appropriately for the right kinds of people, with the right kinds of capital, financial or social. Craft your character, rehearse your performance. See which you sells the best and reinforce habits. Walk to the altar, read from the prompter, smile for your picture, and clap like a seal. Is everyone looking at me? Are they nodding their heads in approval? Does this convince you? It never convinced me... it never convinced me. Years don't teach anything if you're not listening... or plugging your ears with bargain priced fantasies that are cheap to adopt, but will surely break down right when you need a real understanding. Choreography. Don't think critically. It's all been figured out for you, and nothing means anything. (JOHANSON, Eric - Choreograpy - 2006) 3 INTRODUÇÃO “Os motivos básicos dos mitos são os mesmos e têm sido sempre os mesmos. A chave para encontrar a sua própria mitologia é saber a que sociedade você se filia. Toda mitologia cresceu numa certa sociedade, num campo delimitado. Então, quando as mitologias se tornam muitas, entram em colisão e em relação, se amalgamam, e assim surge uma outra mitologia, mais complexa. Mas hoje em dia não há fronteiras. A única mitologia válida, hoje, é a do planeta – e nós não temos essa mitologia. (...)Precisamos de mitos que identifiquem o indivíduo, não com seu grupo regional, mas com o planeta..” (CAMPBELL, Pág 36-38, 1988) Foi a partir desta frase, de Joseph Campbell, citada no livroentrevista “O Poder do Mito” de 1988 que passei a estudar com mais interesse o campo da mitologia e da teoria do mito. Até então, considerava o terreno do mito apenas como uma espécie de enredo limitado ao Ocidente, com heróis, donzelas e monstros. No decorrer de minha formação acadêmica, fui recebendo várias referências que me direcionaram a modificar o pensamento que tinha com relação à jornada do mito; o primeiro deles foi o contato com a semiótica a partir de C. S. Pierce, momento em que comecei a perceber um dos pontos que seria parte de minha base de raciocínio: de que a sociedade em que vivemos é uma sociedade simbólica, e que qualquer forma de normatização se dá pela via do símbolo, elemento constante na jornada do herói e na mitologia de um modo geral. Na época em que comecei a escrever meu primeiro TCC, familiarizei-me com as obras de Stuart Hall, Michel Foucault, Erving Goffman e Zygmunt Bauman, e tais autores (além de outros) modificaram minha visão acerca da noção de “universo simbólico”; ao ver novas visões que desconstruíam alguns discursos em voga durante o último século, como a sexualidade oprimida, a identidade cultural e o sistema capitalista-fordista, passei a considerar que as estruturas sociais não são meramente simbólicas, mas são construídas através do discurso e este é embasado pelos símbolos; e estes possuem vários significados: um mesmo símbolo, além de não permitir uma leitura única e ter a possibilidade de ser aceito ou refutado em diversos 4 graus, pode servir para mais de uma esfera de pensamento e configurar mais de uma dualidade, ainda que estas dualidades não estejam diretamente relacionadas. Este trabalho de conclusão de curso tem como objetivo buscar exemplos do que chamarei de “mito dialógico”: a história que, como todo o universo mítico estudado até então, serve como doutrinadora da sociedade e seus membros, porém, que executa tal doutrinamento pela via do diálogo. Busco histórias que, segundo a maioria dos mitólogos, são permeadas por variantes da jornada do herói, na qual a “moral” seja resultado de um diálogo não maniqueísta e, consequentemente, aberta, isto é, polissêmica. As mídias que escolhi para pesquisar estarão concentradas principalmente em videogames, quadrinhos e, quando necessário, filmes 1. Este enfoque será justificado pela atual relevância destas linguagens na cultura da juventude brasileira de classes altas e médias e pela natureza dispersa e rizomática com que é construído o repertório simbólico e social que constitui esta manifestação cultural. 1 Neste trabalho, parto da premissa de que os Videogames e os Quadrinhos são manifestações artísticas e culturais tão válidas quanto as artes plásticas, o cinema e as artes cênicas. O leitor precisa ter isto em mente ao ler este trabalho, caso discorde do teor dos argumentos aqui citados. 5 DO OBJETO: Aqui cabem as explicações do porque focarei minha pesquisa no “mito aberto”, nos jogos e nos quadrinhos. A indústria dos quadrinhos se comprovou como veículo de massas no decorrer do século XX, e ao contrário da indústria musical, por exemplo, não tem tido dificuldades em se adaptar às novas formas de funcionamento da modernidade tardia. A Marvel, uma das grandes corporações detentoras de títulos de quadrinhos de super-heróis, tem feito grande sucesso (re)lançando vários de seus títulos no cinema, ao ponto de existirem diversos filmes (“Homem de Ferro” I e II, “Capitão América”, “Hulk” I e II, “Thor”, etc.) sendo lançados para atrair a atenção para o grande nome da franquia (“Os Vingadores”, lançado em 2012). Tal tática obteve tanto êxito que os filmes ainda em processo de produção já contam com uma audiência ávida por informações dos blockbusters, uma vez que o sucesso de tais filmes antecipará o enredo de um outro, “Os Vingadores II”, já considerado bem sucedido antes mesmo da sua estreia, planejada para 2015. É importante notar que estes filmes em série se assemelham aos quadrinhos tradicionais pelas histórias sequenciais, divididas em unidades adquiríveis individualmente e fiéis à jornada do mito: a jornada mitológica dos diversos personagens (e dos estúdios, para a produção de tais filmes), as provações dos heróis (que neste caso podem ser encaradas como a recepção do público a cada filme individual dos super-heróis) e, por fim, o clímax, expresso naquele panteão de heróis personificados por grupos de grandes atores reunidos para coroar a saga da mídia, muito mais que a do enredo. Além dos heróis envolvidos na saga “Os Vingadores”, nos últimos dez anos muitos outros filmes baseados em histórias em quadrinhos foram lançados: “300” (2007), “Astro Boy” (2009), “Hellboy” I (2004) e II (2008), “Kick-Ass, quebrando tudo” (2010), “Oldboy” (2003), “Sin City” (2005), “The Spirit, o filme” (2008), “Scott Pilgrim contra o mundo” (2010), “V de vingança” (2005), “Watchmen” (2009), “O Corvo – vingança maldita” (2005), “Batman Begins” (2005), “O Cavaleiro das trevas” (2008), “O Cavaleiro das trevas renasce” (2012), “Superman Returns” (2006), “Homem Aranha” I (2002), II (2004) e III (2008), “X men” II (2003) e III (2006), “X men origens: Wolverine” (2007), “O Justiceiro” (2004), “O Quarteto fantástico” I (2005) e II (2007), “O Demolidor” (2003), “As 6 aventuras de Tintin” (2011), “Elektra” (2005), “O motoqueiro fantasma” I (2007) e II (2012), “O Lanterna verde” (2011), “A liga extraordinária” (2003), “R.E.D.” (2010), “O Procurado” (2008), “A mulher gato” (2004), “Constantine” (2005), “Jonah Hex” (2010), “Garfield” I (2004) e II (2006), “Mortadelo e Salaminho” (2003), “Asterix e Obelix: Missão Cleópatra” (2002), “Asterix e Obelix nos jogos olímpicos” (2008), “Os Dalton contra Lucky Luke” (2004), “Os Smurfs” (2011), “Dylan Dog e as criaturas da Noite” (2011), “Steamboy” (2004), “O Besouro Verde” (2011), American Splendor (2003) e muitos outros, que não chego a citar pois ou os filmes não chegaram a ter veiculação suficiente ou os quadrinhos que os originaram são pouco conhecidos demais. Filmes baseados em quadrinhos, não são uma novidade da modernidade tardia. Mesmo antes dos anos 90 se estabelecerem culturalmente, já existiam muitos outros filmes baseados em quadrinhos, como “Rockteer” (1991), “As tartarugas ninjas” I (1990), II (1991) e III (1993), a série de filmes “Batman” (1989, 1992, 1995 e 1997), “Super-Homem” I (1978), II (1981), III (1983), e IV (1987), “O Fantasma” (1996), “Heavy Metal” (1981), “O Máskara” (1994), “Riquinho” (1994), Spawn (1997), Tank Girl (1995), Barbarella (1968), Mulher-Maravilha (1974), Barbwire (1996), Conan, o Bárbaro (1982), Akira (1988), Batalha Real (2000), A série de animações de Asterix, o Gaulês (1967, 1968, 1976, 1985, 1986, 1989, 1995 e 2006), Flash Gordon (1980), O príncipe valente (1954 e 1997), Dennis, o Pimentinha (1993), Gasparzinho (1995), O Juiz (1995), Buck Rogers (1940) 2. O enorme rol supracitado prova que a aparente explosão de filmes blockbusters baseados em universos vindos dos quadrinhos não é algo verdadeiramente novo, mas sim, o desdobramento de uma tendência que já se anunciava há cerca de cinquenta anos, e que, ao ser analisada com mais abrangência, apenas reafirma a sedimentação da linguagem dos quadrinhos no meio das grandes mídias culturais (que, querendo ou não, dialoga com a “liquefação da modernidade” de Bauman) e sua relevância na cultura globalizada e, segundo Néstor Garcia Canclini, na cultura regional também. Alguns fatores que pesam na afirmação acima são: a Editora Marvel foi comprada em 2009 pela Walt Disney Studios, principalmente em função dos 2 Note-se que a lista que pus é extensa, mas creio que ajuda a compreender que nossa cultura midiática tem mais influência dos quadrinhos do que muitas vezes as pessoas estão inclinadas a acreditar. Pois muitas histórias que hoje fazem parte do imaginário popular tem origem (obscura) na mídia dos quadrinhos 7 sucessos dos primeiros filmes baseados nos heróis, que saíram durante a primeira década do séc. XXI. Nos filmes lançados nas décadas de 1970 e 1980, um dos principais pontos de interesse e debate que se via entre os espectadores era a questão da mensagem em função da mudança de meio: a troca da mídia impressa do quadrinho para a mídia gravada do cinema e os possíveis cortes e soluções de estética e enredo decorrentes dessa transição, apenas pelo fato de serem releituras já eram elementos válidos de serem vistos para serem discutidos, apreciados ou criticados. A partir da década de 90, o trânsito do enredo entre os meios deixou de ser uma exceção e passou a ser a regra: se antes um filme baseado em quadrinhos, ao fazer sucesso, influenciava em desenrolares futuros nos outros quadrinhos, atualmente é possível dizer que não há separação entre as linguagens, e, também, que o enredo (e o mito) presente na história não é mais dependente de um único meio, ficando em suspensão sobre as mídias e sobre os discursos. Os filmes e quadrinhos muitas vezes se complementam visualmente e narrativamente (como no caso da saga “Star Wars”), podendo inclusive serem parte de um mesmo “kit” publicitário, pois o mesmo produto passa a atrair espectadores de nichos de mercado distintos. 19ª Fest Comix. Outubro de 2012 8 19ª Fest Comix. Outubro de 2012 A aproximação entre o mundo dos quadrinhos e do cinema não é mero acaso; ao se estudar os livros Quadrinhos e Arte Sequencial de Will Eisner e Desenhando Quadrinhos de Scott McCloud, dois dos maiores estudiosos da práxis dos quadrinhos, podemos perceber que muitos dos elementos acadêmicos e estéticos dos quadrinhos como os planos americano, câmera-alta, câmera-baixa, sombras e o conceito de tamanho do quadrinho como índice de temporalidade, são idênticos aos aplicados na prática de roteiros para cinema e animação, o storyboard é a base para a construção tanto de filmes quanto de quadrinhos, porém, enquanto o storyboard é convertido para a linguagem cinematográfica, o quadrinho prima por soluções e explorações no âmbito gráfico, utilizando ilusões diferentes para contar o mesmo mito. “Acho que a diferença básica é que a animação é sequencial em tempo, mas não espacialmente justaposta como nos quadrinhos. Cada quadro de um filme é projetado num mesmo espaço, enquanto nos quadrinhos eles ocupam espaços diferentes. O espaço é para os quadrinhos o que o tempo é para o filme. Só que você pode dizer que antes de ser projetado, o filme é só um gibi muito, muito, muito lento.” (McCLOUD, Pág. 7-8, 1995) 9 Quanto aos Jogos Digitais, sua trajetória é temporalmente mais curta. Enquanto o primeiro quadrinho – na forma como o conhecemos hoje – data de 1934, segundo o pensamento de Eisner, os primeiros jogos de videogame foram criados por Nolan Bushnell e Ted Dabney (futuros fundadores da empesa Atari) e lançados em 1971 3. O desenvolvimento de jogos digitais 4 tem estreita relação com o avanço tecnológico na área de informática e com o presente boom “tecnofílico”, onde só no Brasil existem aproximadamente 258 milhões de aparelhos celulares em uso (segundo a Anatel), 13 milhões de smartphones (colocando o Brasil como 10º mercado mundial para este tipo de aparelho), 5 milhões de notebooks vendidos em 2011, 2,6 milhões de tablets adquiridos em 2012. O frenesi nacional e mundial na compra destes aparelhos expandiu, e muito, o mercado consumidor de jogos para consoles, computadores e aparelhos móveis. O universo dos jogos digitais deixou de ser um nicho periférico do mercado cultural e passou a ser um dos grandes “chamarizes” em eventos e compras. 3 (Space Computer) e 1972 (Pong!) além do Magnavox Odyssey, criado por Ralph Baer e lançado em 1972. 4 no caso deixo de lado o amplo universo dos jogos analógicos, também conhecidos como jogos de tabuleiro, pois considero seu funcionamento muito mais ligado ao Ludus social do que à construção do discurso interno de um indivíduo em relação à sociedade na qual ele está submerso. Mas fica registrado nessa nota de rodapé que, com algumas ressalvas, o raciocínio que desenvolvo neste TCC pode também ser aplicado aos jogos de tabuleiro, cartas, brincadeiras de rua e atividades correlatas. 10 Brasil Game Show. Outubro de 2012 Alguns exemplos que presenciei este ano podem comprovar este crescimento do universo dos games na esfera cultural dominante: o evento “Brasil Game Show”, que aconteceu na capital paulista em Outubro (até ano passado era realizado no Rio de Janeiro), é um evento que busca mostrar aos visitantes todas as novidades no mercado dos jogos digitais, assim como promover eventos e outras atividades com a temática do universo gamer, além de servir como palco para negociações sobre jogos, divulgação e outras atividades do ramo empresarial. No ano de 2011, o evento teve 92 expositores e 60 mil visitantes, no ano seguinte, os números subiram para 150 expositores e 100 mil visitantes e a previsão para 2013 é de 200 expositores. Os números e a mudança do local do evento para uma cidade estrategicamente mais ligada aos grandes negócios é um reflexo do posicionamento da cultura gamer dentro das manifestações culturais abarcadas pelo estado dos consumidores. Outro evento que tem chamado a atenção no cenário dos jogos é a “Video Games Live”, que este ano fez sua sétima edição em São Paulo. Com um público disposto a desembolsar a quantia de 40 reais pela meia entrada – preço similar ao estabelecido na Brasil Game Show – o evento consiste em reunir orquestras musicais regionais (no caso de São Paulo, foi a orquestra 11 sinfônica Villa-Lobos) cujo repertório são os temas de jogos antigos e clássicos ou os novos sucessos dos consoles modernos. Em algumas fotos tiradas de cima do palco ao final do evento, podemos ver o impacto que este tipo de atividade tem exercido: Imagem da Video Games Live em São Paulo. Outubro de 2012 Imagem da Video Games Live no Rio de Janeiro. Outubro de 2012 Imagem da Video Games Live em Brasília. Outubro de 2012 12 O mundo de hoje é profuso em monitores, celulares, smartphones, tablets, laptops, computadores e outros aparelhos que poderiam não apenas ser chamados de produtos, mas sim de extensões do nosso corpo. Graças a estes aparelhos, conversamos por redes sociais, lemos em monitores textos que circulam na world wide web, medimos o status social de um indivíduo pelos aparelhos que ele possui e os softwares que ele usa. Aplicativos de jogos são o gênero mais baixado para celulares, e alguns jogos sociais (jogados em redes sociais, como o Facebook) têm potencial de verdadeiras empresas, rendendo inclusive lucro para alguns jogadores. Os jogos também se tornaram mundos compartilhados com outras linguagens, havendo filmes baseados em jogos como a série Resident Evil, Street Fighter, Final Fantasy, Doom, Silent Hill, Mortal Kombat, Mario, Double Dragon e Hitman (apenas para citar os que não são considerados “fracos” pela crítica especializada). Há também quadrinhos, figuras de ação e uma vasta gama de produtos nos mais diferentes suportes. Segundo a definição do dicionário Aurélio, o mito pode ser entendido como: 1. Relato sobre seres e acontecimentos imaginários, que fala dos primeiros tempos ou de épocas heroicas. 2. Narrativa de significação simbólica, transmitida de geração em geração dentro de determinado grupo e considerada verdadeira por ele. 3. Ideia falsa, que distorce a realidade ou não corresponde a ela. 4. Pessoa, fato ou coisa real valorizado pela imaginação popular, pela tradição, etc... 5. Coisa ou pessoa fictícia, irreal; fábula. Ao analisar estas definições, o mito parece ser algo distante, com a necessidade de uma consagração temporal. Parecem válidas quando em relação à mitologia greco-romana, védica e as outras mitologias clássicas estudadas por Joseph Campbell, Otto Rank, Vladmir E. Propp e Christopher Vogler. Ou também acerca das origens religiosas vistas nas Américas e na Oceania estudadas por Lévi-Strauss, Durkheim, Tylor, Schoolcraft e muitos outros antropólogos que observaram e ouviram da boca nativa dos próprios povos a respeito de seus mitos. Será então que as histórias em quadrinhos e os videogames podem ser estudados como mitos? 13 Talvez um dos argumentos que considero mais rico em todo o estudo de Joseph Campbell (e que aparece também no estudo de Propp e Vogler, mas talvez sem a mesma intensidade) é a questão da “mitologia comparada”, na qual Campbell coteja elementos mitológicos de tempos e culturas diferentes para evidenciar seus vários elementos em comum. O autor sustenta o argumento de que estes representam sentimentos e etapas da vida universais, algo que, ao menos no campo do discurso, é muito parecido com o conceito de “Inconsciente coletivo” do psicólogo C. G. Jung. Ao falar sobre a mitologia comparada e estendê-la à esfera do tempo, Campbell envereda pelo mesmo caminho no qual esta pesquisa está seguindo: O vôo da aeronave, por exemplo, atua na imaginação como libertação da terra. É a mesma coisa que os pássaros simbolizam, de certo modo. O pássaro é um símbolo da libertação do espírito em relação a seu aprisionamento à terra, assim como a serpente simboliza o aprisionamento à terra. A aeronave desempenha esse papel, hoje. (...) Star Wars certamente possui uma perspectiva mitológica válida. O filme encara o Estado como uma máquina e pergunta: “A máquina vai esmagar a humanidade ou vai colocar se a seu serviço?” A humanidade não provém da máquina mas da terra. O que vejo em Star Wars é o mesmo problema que o Fausto nos coloca: Mefistófeles, o homem máquina, pode nos prover de todos os meios e está igualmente apto a determinar as finalidades da vida. Mas a peculiaridade de Fausto, que o qualifica para ser salvo, é que ele busca finalidades diferentes das da máquina. Ora, quando tira a máscara de seu pai, Luke Skywalker cancela o papel de máquina que o pai tinha desempenhado. O pai era o uniforme. Isso é poder, o papel do Estado. (...) Sim. Mas então chega um momento em que a máquina começa a ditar ordens a você. Por exemplo, eu comprei uma dessas máquinas maravilhosas – um computador. Ora, como lido predominantemente com deuses, foi por aí que identifiquei a máquina: ela me parece um deus do Velho Testamento, com uma porção de regras e nenhuma clemência.(...) Há uma história encantadora sobre o presidente Eisenhower e os primeiros computadores. Eisenhower entrou numa sala repleta de computadores e propôs às máquinas a seguinte questão: “Existe um Deus?” Todas começam a funcionar, luzes se acendem, carretéis giram e após algum tempo uma voz diz: “Agora existe”. (CAMPBELL, Pág. 32-33, 1988) 14 O escritor e discípulo de Campbell, Christopher Vogler, autor do livro A jornada do escritor, considerado um dos pais da geração dos Blockbusters cinematográficos dos anos 80 em diante, sintetiza a apropriação moderna dos mitos: Cineastas e estudantes de vários países demonstraram seu interesse pela idéia da Jornada do Herói e sua aprovação ao livro como um guia prático para elaborar e consertar histórias. Enquanto isso, A Jornada do Escritor foi colocada em funcionamento de várias maneiras, não apenas por parte de escritores em seus diversos gêneros e formas, mas também por professores, psicólogos, executivos de publicidade, supervisores penitenciários, designers de vídeo games e acadêmicos que abordam os mitos e a cultura pop. Estou convencido de que os princípios da Jornada do Herói têm tido intensa influência sobre a concepção de histórias já criadas e de que terão impacto ainda mais profundo no futuro, à medida que mais contadores de histórias se conscientizarem destes princípios. A grande realização de Joseph Campbell foi articular claramente algo que sempre existiu — os princípios de vida embutidos na estrutura das histórias. Ele redigiu as regras não escritas da narrativa, e isso parece estimular os autores a desafiar, experimentar e aprimorar a Jornada do Herói. Vejo indícios de que os escritores estão interpretando as idéias e mesmo introduzindo a linguagem e os termos "Campbellianos" em suas produções dramáticas. (VOGLER, Pág. 13, 1993) Sendo assim, podemos considerar que as histórias em quadrinhos e os vídeo games apresentam uma carga mítica não por possuírem um enredo pautado nos temos de uma história mítica 5, isto é, algo da qual a sociedade possui um conhecimento amplamente disseminado e aplicado, mas por conterem elementos narrativos – a moral da história e seus personagens – homólogos à trajetória mítica tradicional (como argumentam Jung e Campbell). Além disso, há também o uso consciente da “teoria do mito” como uma ferramenta de produção cultural com o intuito de causar certas emoções no público consumidor, como argumenta Vogler. Esta pesquisa então pode se 5 Até porque, dada à natureza da cultura e da economia dos últimos anos, a renovação se tornou requisito necessário para agradar aos consumidores, então as histórias não são feitas para serem estáveis. 15 focar em sua busca pelos exemplos do “mito aberto” analisando um panorama de diversas obras e atentando-se em alguns aspectos que se mostram “complexos” em outras mídias: gênero, posição econômica, sexualidade, violência, maniqueísmo e estética6. Outra possibilidade interessante envolvendo as duas mídias é que há um considerável crescimento em suas vertentes não industriais, geralmente de produção cada vez mais acessível. No caso dos quadrinhos, a criação de softwares para edição de imagens como o Manga Studio e o Adobe Photoshop, possibilita que qualquer pessoa interessada em criar seu próprio HQ possa realizá-lo, valendo-se de uma grande qualidade gráfica ou simplesmente de um senso de humor ou narrativa aprimorados. E tais iniciativas, por serem amadoras e não vinculadas a estúdios dependentes de manutenção financeira, podem inclusive abordar temas polêmicos ou ainda produzirem quadrinhos que sejam voltados para grupos específico, lucrando com impressões on demand (em que os livros físicos são impressos apenas quando há um cliente interessado em adquiri-los). Atualmente, acompanho cerca de 13 quadrinhos amadores pela internet, desenvolvidos em países como Brasil, Estados Unidos, Inglaterra, Bélgica e China. Ocasionalmente poderei fazer referências a eles caso necessário. Em relação à produção independente de jogos digitais, o aumento de sua demanda – dada em função da quantidade de aparelhos vendidos e da popularização dos “jogos casuais” – para vários públicos, tornou o mercado mais simpático aos desenvolvedores independentes. Estes pequenos estúdios desenvolvem produtos para submissão em comunidades e lojas digitais, ou ainda a pedido de empresas maiores ou publishers. Como animador e assistente de arte de um estúdio independente de São Paulo, a Vortex Game Studios, conheço alguns estúdios independentes do estado de São Paulo e da região Sul do país, e posso me referir a eles caso necessário. Por fim, o que me interessa tanto no campo dos quadrinhos quanto no campo dos jogos digitais é a questão da recepção e apropriação promovida 6 Um estudo seria muito técnico ou profundo sobre os temas não é tarefa para um único trabalho, ainda mais de conclusão de graduação, muito menos para apenas um pesquisador, por isso opto pelo modelo de panorama para mostrar principalmente quais são os modelos mais comuns em cada área e possíveis vias alternativas que já existem na abordagem de tais temas. 16 pelos fãs a respeito destas linguagens. Desde que a chamada “internet 2.0” 7 passou a se tornar uma das principais fontes de informação e formação de muitas pessoas, surgiram tentativas de criar uma “cultura única” e coesa valendo-se da world wide web, como é o caso da Wikipedia. Há outras iniciativas que visam à criação de uma cultura profusa e própria, completamente independente de qualquer manifestação diferente ou contrária; valendo-se do desprezo, do escárnio e da chacota como armas: Quanto ao poder, ele navega para longe da rua e do mercado, sas assembleias e dos parlamentos, dos governos locais e nacionais, para além do alcance do controle dos cidadãos, para a extra-territorialidade das redes eletrônicas. Os princípios estratégicos favoritos dos poderes existentes hoje em dia são a fuga, evitação e descompromisso, e sua condição ideal é a invisibilidade. Tentativas de prever seus movimentos e as consequências não-previstas de seus movimentos (sem falar dos esforços para deter ou impedir os mais indesejáveis entre eles) têm uma eficácia prática semelhante à da “Liga para Impedir Mudanças Metereológicas”. (BAUMAN, Pág. 50, 2000) O começo do século XXI têm se mostrado época de extremos conceituais: a internet possibilitou uma forma de democratização nunca antes vista, na qual o reconhecimento e os “15 minutos de fama” podem ser atingidos por qualquer pessoa, e tal reconhecimento é dado de forma muito mais direta por parte da comunidade digital, e não apenas imposta. Porém, a mesma internet criou um novo e íngreme estamento social: com a digitalização do entretenimento, dos negócios e das oportunidades (até mesmo na esfera estatal), os digitalmente marginalizados, que não possuem acesso regular a estes meios, simplesmente não existem para estas comunidades digitais, como se abaixo do “excluído” ou do chamado “vagabundo”, ficasse o “inexistente”. Outro paradoxo da internet 2.0 é que ao mesmo tempo em que se torna cada vez mais difícil manipular a informação e criar um discurso único, nunca as 7 Expressão atribuída a Tim O’Reilly para designar a internet das wikipedias, twitters, redes sociais e todo o conteúdo construído e gerido coletivamente. 17 pessoas estiveram tão confortáveis para se acomodarem em seu próprio discurso, e se retroalimentarem política, ideológica e culturalmente. Como na passagem de Bauman supracitada, considero que muitas dinâmicas sociais de hoje são propensas ao não-enfrentamento. Mazelas, desigualdades, preconceitos ou discordâncias não são mais postos em discussão. Tais “ruídos” na convivência são suprimidos, desconsiderados e ocultados, seja através de piadas, sarrismo ou desvio de foco. Em suma, não existe consenso nem dissenso, pois não existe conflito. Uma expressiva maioria das classes altas e médias abaixo dos 30 anos (em que o acesso à internet é, de fato, democratizado e real) tem como suas principais referências culturais as modalidades de Stand-up, 9gag, 4chan8 e outras manifestações que podem ser consideradas da seguinte maneira: foram alçadas a posições de destaque pelas mídias, apesar de originalmente serem manifestações de caráter limitado, que expressam a ideologia de apenas um tipo de pensamento, utilizando-se principalmente do humor para propagar tais ideias. Algo que lembra o que Bauman diz a respeito do atual esvaziamento do discurso público: “Nos programas de entrevistas, palavras e frases que se referem a experiências consideradas íntimas e, portanto, inadequadas como tema de conversa são pronunciadas em público – para aprovação, divertimento e aplauso universais. Pela mesma razão, os programas de entrevistas legitimam o discurso público sobre questões privadas. Tornam o indizível dizível, o vergonhoso, decente, e transformam o feio segredo em questão de orgulho. Até certo ponto são rituais de exorcismo – e muito eficazes. Graças aos programas de entrevistas, posso falar de agora em diante abertamente sobre coisas que eu pensava (equivocadamente, agora vejo) infames e infamantes e, portanto, destinadas a permanecer secretas e serem sofridas em silêncio. Como minha confissão não é mais secreta, ganho mais do que o conforto da absolvição: não preciso mais me sentir envergonhado ou temeroso de ser desprezado, condenado por imprudência 8 O 4chan é uma imageboard ou bulletin board system (BBS) destinada originalmente a compartilhamento de imagens sobre mangás e animes, de formato vagamente similar ao google groups, mas que com o passar do tempo e sua extensão, é considerada uma subcultura da internet; tendo sido ponto de partida para outros projetos como o Anonymous, considerada a “vertente politizada” do grupo na internet. O 9gag é uma página de conteúdo humorístico criada em 2008 e considerada como ponto de partida ou popularização de diversos memes (imagens simples usadas em diversas ocasiões) ou virais de imagens na internet. 18 (...) Estas são, afinal, as coisas que as pessoas falam compungidas na presença de milhões de espectadores. Seus problemas privados, e assim também seus próprios problemas, tão parecidos aos deles, são adequados para a discussão pública. Não que se tornem questões públicas; entram na discussão precisamente em sua condição de questões privadas (...) são reafirmadas como privadas e emergirão da exposição pública reforçadas em seu caráter privado. Afinal, todos os que falaram e concordaram que, na medida em que foram experimentadas e vividas privadamente, é assim que as coisas devem ser confrontadas e resolvidas.” (BAUMAN, Pág. 82, 2000) O panorama que Bauman descreve ao falar da invasão dos temas privados nas discussões públicas e do embate de “indivíduo” contra “cidadão” pode ser aplicado no caso em questão: muitas vezes, a vivência de certas experiências sociais (que, ao contrário dos mitos, não são tão abertas e aplicáveis ou adaptáveis para diversos grupos sociais) é colocada de forma bem-humorada e irônica no discurso público, pela reprodução em televisão de twitters de celebridades, imagens montadas e amplamente divulgadas nas redes sociais, programas de entrevistas e podcasts, nos quais indivíduos socialmente relevantes – ou não – colocam suas opiniões sobre assuntos diversos em sites de compartilhamento de vídeos. Caso tais manifestações ofendam ou indignem outros indivíduos, tais opiniões privadas no discurso público sempre serão defendidas pelo princípio de que “foi só uma piada” (ironia, humor) ou o abstrato princípio da liberdade de expressão (mudança de foco). De uma forma ou de outra, o cerne da questão parece escapar de nossas mãos. 19 Montagem colocando o relator do processo de julgamento do “mensalão”, Joaquim Barbosa, como Batman e um dos condenados, José Dirceu, como o coringa. Montagem coloca o lutador de MMA, Anderson Silva, como Kratos, do jogo “Godo f War”, e seu adversário, Chael Sonnen com o alvo característico das vítimas de Kratos. 20 “_Olhe, nós não precisamos de você. Temos um deus, o Hulk, o Homem de Ferro, o Capital America... _...Onde quer que eu aterrize, eu afasto minha perna e faço esta pose. _Quer saber? Você está certa. Nós precisamos disto.” Desenho sobre o filme “Avengers”, que faz piada sobre a personagem Viúva Negra (interpretada por Scarlett Johansson), a única mulher no time de heróis. Esta “cultura digital”, promovida pelas redes sociais da internet e criada por indivíduos das classes médias e altas entre os quinze e trinta anos, é amplamente reproduzida e, pensando no princípio de “dominação cultural” descrito por Nestór Garcia Canclini, tende a ser legitimada pelos meios de comunicação e pela opinião pública, pois é o repertório dos que, muito provavelmente, exercerão as funções socioeconômicas de destaque na sociedade da modernidade tardia. Mesmo que pensemos na perda de valor do conceito de “identidade nacional” ou dos conceitos étnicos descritos por Stuart Hall, resquícios deste pensamento ainda se manifestam nas gerações mais novas, distante do conceito de “cultura” descrito pelo próprio Hall, ainda que sem a limitação espacial. 21 Em vez de pensar as culturas nacionais como unificadas, deveríamos pensá-las como constituindo um dispositivo discursivo que representa a diferença como unidade ou identidade. Elas são atravessadas por profundas divisões e diferenças internas, sendo "unificadas" apenas através do exercício de diferentes formas de poder cultural. Entretanto — como nas fantasias do eu "inteiro" de que fala a psicanálise lacanianas identidades nacionais continuam a ser representadas como unificadas. (HALL, Pág.17, 1996) E é este o objetivo geral deste trabalho: através de um panorama superficial focado na relação mítica desenvolvida em obras de quadrinhos e vídeo games, entender como são elaborados fragmentos do discurso moral da classe média/alta brasileira (tomada como mais importante que outras formas culturais periféricas) e, também, apontar quais são as leituras alternativas vislumbradas no mesmo enfoque e pelas mesmas mídias, em função da liquidificação da modernidade e da popularização da internet. Este trabalho procura não conter um caráter moralizante a respeito das linguagens mobilizadas: sabe-se que ambas são ferramentas historicamente concentradas nas mãos de uma minoria considerada financeira e culturalmente mais relevante, como todas as ferramentas de expressão ou propagação de ideias. O foco neste estudo será apenas a compreensão de um painel social no qual a mudança real só poderá acontecer pela via da relativização e tolerância de valores. Assim, creio que aí o “mito aberto” encontra seu propósito social: doutrinar os indivíduos a encarar a pluralidade como simples pluralidade. 22 NOVOS MITOS E GÊNERO Ambas as mídias abordadas neste estudo possuem situações semelhante no que diz respeito à tratativa dos gêneros. Historicamente, quadrinhos e vídeo games foram reconhecidos como “coisas de menino/homem” em função de seus conteúdos, à medida que se encara como tradição da sociedade ocidental a imposição da defesa de territórios, lutas, guerras, conquistas e explorações aos homens, relegando às mulheres a ocupação do espaço doméstico e a geração dessa prole belicosa. Esta pesquisa considera a inexistência de uma divisão ontológica entre gêneros feminino e masculino, concordando com a visão da teoria Queer, que identifica o masculino e o feminino como construções sociais. Porém, como existe uma série de características, comportamentos e indícios que o senso comum separa por “masculinos” e “femininos”, manteremos esta definição para que possamos continuar entendendo a questão do enredo e do 23 discurso relacionado ao mito presente nos jogos de vídeo game e nos quadrinhos. “Gênero é uma representação – o que não significa que não tenha implicações concretas ou reais, tanto sociais quanto subjetivas, na vida material das pessoas. Muito pelo contrário” (DE LAURETIS, Pág. 209, 1994) Na obra Telenovela, consumo e gênero, a antropóloga Heloísa Buarque de Almeida afirma que o mercado da propaganda e dos anúncios televisivos costumam ser concebidos tendo como alvo o consumidor feminino, o que lhe permitiria referir-se ao consumidor genérico como “ela” (she). Isto indicaria a solidez deste pensamento na indústria do marketing e publicidade, e junto com esta constatação, os profissionais da área imprimiriam em seus trabalhos uma série de conceitos e pré-conceitos a respeito de gênero, com o objetivo de que o produto caia no gosto do público feminino uma vez que aquele compartilharia com este uma “linguagem comum”. “Pode-se compreender como a tipificação do gênero na publicidade constitui parte de uma “tecnologia do gênero”, um discurso disciplinar e normativo, que constitui algumas das representações hegemônicas acerca do gênero”. (ALMEIDA, Pág. 267, 2002) A mesma analogia pode ser vista no universo dos quadrinhos e vídeo game: assim como os produtos da publicidade, os jogos e os quadrinhos precisam ser “vendidos” aos jogadores e seus amigos, incentivando assim mais compradores. Porém, enquanto o mundo da propaganda é orientado para as mulheres, tanto os quadrinhos quanto os vídeo games são (pela tradição) orientados para os homens, e tal característica tem papel central na operacionalização das dicotomias e convenções de gêneros pela linguagem da propaganda. “Se “comprar” significa esquadrinhar as possibilidades, examinar, tocar, sentir, manusear os bens à mostra, comparando seus custos com o conteúdo da carteira ou o credito restante nos cartões de crédito, pondo alguns itens no carrinho e outros de volta às prateleiras – então vamos ás compras na rua e em casa, no trabalho e no lazer, acordados ou em 24 sonhos. O que quer que façamos e qualquer que seja o nome que atribuamos à nossa atividade, é como ir ás compras, uma atividade feita nos padrões de ir ás compras.” (BAUMAN, Pág. 87, 2000) Quanto aos quadrinhos, um dos problemas que mais chamam a atenção é a compulsão por corpos femininos que se encaixem no padrão “universal” de beleza9. Este fenômeno se dá, em especial, no ramo de quadrinhos de super-heróis e mangás 10, gêneros de maior circulação no Brasil, em que se costuma aprender a desenhar tais modelos segundo formas canônicas de proporções e regras. Contudo, a busca por um estilo próprio que possa, ao mesmo tempo, expressar valores estéticos legítimos e possuir apelo comercial torna-se uma aporia, pois muitos dos modelos e cânones aceitos como sensuais se mostram, na verdade, irracionais, hiperssexualizados e anatomicamente aberrantes. Uma evidência de que minha afirmação não é exagero pode ser encontrada em sites da internet tais como o Escher Girls, batizado em referência ao artista holandês M.C. Escher, que ficou famoso por suas obras em gravura representando construções fisicamente impossíveis. O site reúne diversas obras de artistas de histórias em quadrinhos em que, na necessidade de buscar posições que ressaltem os quadris, o busto e as curvas femininas, alguns artistas acabam por criar composições muito desproporcionais. 9 A universalidade, aqui, entende-se como um modelo hegemônico veiculado por mídias legítimas na sociedade ocidental. 10 O que inclui o quadrinho Turma da Mônica Jovem, que apesar de críticas dos mais ortodoxos, é considerado mangá. 25 Página do Escher Girls Página do Escher Girls, mostrando um guia de desenho que apresenta as “variedades” de biótipos de cada gênero. 26 Página do Escher Girls Alguns desenhistas como Rob Liefeld e Mike Deodato se tornaram conhecidos por imagens de personagens cuja estilização é altamente irreal 11 e exagerada; é comum que as heroínas dos quadrinhos pareçam top models ao invés de heroínas. Nos jogos digitais a situação não é muito mais promissora: se, graças à natureza matemática e técnica que os jogos demandam, as personagens femininas se tornam mais reais (ainda estão presas ao ideal de beleza atribuído às mulheres, porém com um pouco menos de deformações 11 Aqui vale um comentário: a deformidade em personagens é um recurso estilístico. Robert Crumb, cartunista estadunidense famoso, tem desenhos estilizados de mulheres, com pernas grossas, seios fartos e mais de dois metros de altura, porém tal estética é tratada pelo próprio autor com um chauvinismo crítico e ácido, enquanto os trabalhos de Liefeld e Deodato seguem estas (deformações de) regras para que as mulheres dos quadrinhos estejam no modelo ideal, o tempo todo. 27 estéticas do que nos quadrinhos), ainda assim, tendem a ser representadas de forma excessivamente sexualizada, o que às vezes beira as raias do ilógico: 28 Três guerreiros-ninja homens (Sub-Zero, Scorpion e Rain) e três guerreiras-ninja mulheres (Mileena, Kitana e Jade) da franquia Mortal Kombat, um jogo de luta que prima pela violência física. Aparentemente no universo do jogo, faz muito sentido para as mulheres irem para um duelo físico mortal com armas, trajando um biquíni e saltos. Na franquia do jogo God of War, das poucas mulheres que aparecem no jogo, algumas delas têm a função de participar de uma espécie de mini-game dentro do jogo: o jogador deve acertar uma série de comandos com o controle para que o protagonista Kratos realize grandes movimentos sexuais, levando as beldades do Olimpo (que geralmente estão se acariciando no momento em que o jogador chega) ao orgasmo com seus dotes de homem viril. Para entendermos porque os quadrinhos e os jogos de vídeo game têm esta “inclinação”, podemos observar algumas das ações dos consumidores de tais produtos. Num evento recente de games ao qual compareci, o Video Games Live 2012, antes da atração principal e após as premiações, houve um concurso de cosplay, onde havia três moças e cinco rapazes concorrendo, e o vencedor seria premiado segundo votação popular. Uma das garotas que entrou no palco estava vestida como a personagem Lulu, de Final Fantasy, e em função disso as roupas que ela usava eram um pouco mais curtas que a das demais concorrentes, e desde o momento em que ela entrou, a simples 29 presença dela desencadeava gritos, urros e assovios do público, em sua maioria homens entre 15 e 30 anos. Ao perguntarem ao público quem deveria ganhar, este escolheu a garota fantasiada de Lulu, e as duas outras garotas foram finalistas. Já os cinco rapazes sequer foram páreo justo segundo a audiência. A cultura de quadrinhos e jogos de vídeo game é, como dito anteriormente, voltada para o consumo majoritariamente masculino, e uma expressiva parcela dos jogadores possui uma ideologia tradicionalmente descrita (de forma preconceituosa, vale lembrar) em termos androcêntricos e heterossexuais, justamente por corresponderem a um recorte identitário dominante. Outro exemplo é o que aconteceu com a blogueira Anita Sarkeesian, famosa por criticar os estereótipos femininos presentes em filmes. Há cerca de um ano, ela iniciou uma arrecadação de fundos on-line para criar um programa virtual analisando os estereótipos nos jogos de vídeo game. Foi de grande repercussão a reação de uma parcela da comunidade de jogadores, que derrubou o site da blogueira, lotando suas mídias sociais com insultos e ameaças de morte, fato que culminou na criação do jogo Beat up Anita Sarkeesian, que consiste em clicar numa foto do rosto da blogueira e, a cada clique, o rosto dela se deforma como se tivesse sido agredida. Este caso colocou de vez a questão do gênero nos jogos de vídeo game. Um ponto positivo sobre este assunto é que a indústria dos jogos de vídeo game tem se mostrado disposta a mudar este cenário machista. Se antes uma heroína protagonizando um jogo em que não havia um par amoroso era incomum – como Tomb Raider ou Metroid – hoje em dia muitos jogos têm retirado as figuras femininas da função de suporte romântico do protagonista (ou o “camaleão”, segundo definição de Christopher Vogler). São exemplos disso: Portal 2, Mirror’s Edge, XCOM II, ou ainda jogos que, mesmo presos à estrutura do romance de cavalaria, conseguem elaborar relações um pouco menos estereotipadas, ainda que com alguns escorregões, como na saga Mass Effect ou Half-Life 2. 30 Os quadrinhos, embora sem o mesmo apoio das empresas, têm tido iniciativas que questionam as tradições de gênero: em Y – O último homem, uma praga elimina todos os seres humanos portadores do cromossomo Y, deixando apenas um rapaz e um macaquinho. Nesta série o autor suprime muitos chavões de gênero criando um enredo apenas com mulheres, no qual estas devem exercer todas as funções de comando, ação e figuração (territórios tradicionalmente masculinos) e colocando um homem na condição de donzela em apuros. Resumindo, portanto. Num panorama geral, pudemos perceber que a questão de gênero é muito polêmica nas mídias analisadas nesta pesquisa, primeiro em função de uma dominância histórica do gênero masculino no usufruto das linguagens e, segundo, em função de uma necessidade de parte da classe de jogadores e leitores em manter aceso certos marcadores sociais de diferença, como o gênero. No capitulo dedicado à sexualidade, abordarei de forma mais profunda o motivo pelo qual tais manifestações são tão comuns nestes dois meios de linguagem. NOVOS MITOS E POSIÇÃO ECONÔMICA As mídias dos quadrinhos e dos videogames são, como comentei anteriormente, predominantes nas classes média e alta, pois o Brasil – cujo mercado é consideravelmente carente de títulos nacionais em quadrinhos e que tem na importação a maior parcela de obras aqui consumidas – confere aos quadrinhos um status de item importado. Pesa também o fato de que, recentemente, os quadrinhos foram incorporados como elementos da moda “geek” e, como todo artigo de moda, tendem a ficar ainda mais onerosos 12. 12 mesmo artigos culturais podem ser tratados como objetos de moda, e considero que isto não seja exclusividade das mídias abordadas neste estudo, mas de toda a arte no período da modernidade líquida 31 Os games até gozam de maior independência em relação ao mercado de importação brasileiro, ao menos enquanto as regras para este tipo de produto ainda são nebulosas, pois possuem canais próprios de vendas e divulgação, quase sempre vinculados à internet. Em novembro deste ano o sistema de venda digital de jogos Steam entrou no mercado brasileiro com o preço em moeda nacional, e os consoles mais atuais de empresas como Nintendo, Sony, Apple e Microsoft já possuem sistemas de venda online e acesso à internet nos próprios consoles de jogos. Aliado a isto, há uma sólida parcela do mercado de jogos ocupada por desenvolvedores independentes, que produzem conteúdo comercializado nos sistemas de venda online ou até mesmo em pequenos sites. E são destes desenvolvedores independentes que saíram sucessos recentes dos jogos, como Super Meat Boy, The Binding of Isaac e Fez. Porém, não é no domínio do software que os jogadores são afastados da cultura gamer, mas sim no campo do Hardware: mesmo que o acesso aos jogos esteja sendo democratizado, os consoles para jogos ainda são de um preço incompatível com o rendimento médio do brasileiro e, no caso dos computadores, os jogos mais modernos exigem computadores mais modernos, encarecendo a obtenção e manutenção de tais máquinas. Acerca disso, o tipo de jogo que mais se aproxima da popularização são os jogos para celular, pois os aparelhos do tipo Smartphone, por exemplo, possuem uma multifuncionalidade que acaba por “compensar” o preço que custam. E devemos lembrar também que a diversidade de linguagens de programação e compatibilidade de aparelhos fazem com que uma experiência ampla com a mitologia dos jogos pressuponha acesso a equipamentos que suportem tais jogos. Após estas considerações iniciais sobre as relações dos novos mitos dos vídeo games e dos quadrinhos com as diferentes posições econômicas que constituem o todo social, podemos perceber que esta mitologia ainda é de difícil acesso prático à parcela economicamente mais desfavorecida da nossa sociedade. Agora nos deteremos na questão de como os quadrinhos e os jogos retratam esta parcela da população. 32 Por um lado, a superação de obstáculos é o mote básico da estrutura da jornada do mito; como a mitologia (e em certa escala, as religiões elementares, descritas por Durkheim e Lévi-Strauss) tem um caráter moralizante que, através de alegorias, busca guiar e doutrinar as ações de uma comunidade. E a melhor forma de doutrinação é a que ensina como se portar diante de dificuldades e obstáculos, dando um “sentido” para a existência deles. Jovens que passam por rituais para comemorar sua entrada no mundo “adulto”, rituais de purificação, luto, conduta e todo o tipo de atividade na qual se faça necessária a mão da coletividade. Todos os heróis recebem essa denominação, pois são os que passam pelo sacrifício e que cuja vida e ações personificam os ideais morais de um grupo. Aqui está o ponto crucial do raciocínio: a tradição simbólica ocidental associa a miséria a uma espécie de derrota, portanto, o herói se afasta da miséria em que vive, vence a mazela e, ao final, traz a “solução” para os problemas da sua vida original. Na análise de Christopher Vogler, esta é a etapa 12, o retorno com o elixir: “O herói retorna ao Mundo Comum, mas a jornada não tem sentido se ele não trouxer de volta um Elixir, tesouro ou lição do Mundo Especial. O Elixir é uma poção mágica com o poder de curar. Pode ser um grande tesouro, como o Graal, que, magicamente, cura a terra ferida, ou pode, simplesmente, ser um conhecimento ou experiência que algum dia poderá ser útil à comunidade.” (VOGLER, Pág. 46, 1993) Nos últimos 20 anos, nós vivemos num mundo em que toda economia globalizada é necessariamente capitalista e, estando imerso nesse modo de produção, a forma mais lógica, direta e fácil de passar a sensação de crescimento, avanço e superação é através da recompensa financeira, da prosperidade e da aquisição material. São frequentes os casos em que o final do jogo anuncia alguma espécie de prosperidade material: o encanador Mário e o herói de The Legend of Zelda, Link, têm suas princesas para salvar e estas frequentemente se mantêm na esfera abastada da realeza. A esmagadora maioria dos jogos sociais ou dos RPGs baseados em aumento de níveis e mundos abertos como Farmville, Sim City, Skyrim, Ragnarok, Pokemon, Second Life, Cityville e muitos outros, consistem em adquirir níveis maiores, 33 equipamentos melhores, e realizar missões para conseguir mais moedas do jogo (as vezes até comprando-as com dinheiro de verdade). Nestes jogos, os grandes desafios só são acessíveis aos heróis que prosperaram. Fora do enredo, as “microtransações”, como são chamadas as pequenas quantias gastas em itens para customizar seu avatar ou ainda conseguir uma pequena vantagem sobre outros jogadores já é uma realidade em muitos jogos, não apenas nos jogos sociais, mas nos jogos casuais, jogos para mobile e de console. Mas outro padrão interessante e muito comum é o que já foi assinalado por Vladmir Propp nos “contos maravilhosos” estudados por ele: a jornada pode ser empreendida pelo herói com o objetivo de reparar um dano ou uma privação da qual ele padece. No mundo globalizado de hoje, onde se veem relações de exploração e poder, é muito comum se atribuir certas mazelas a uma “raça”, profissão, empresa ou qualquer exemplo similar (falaremos mais disto nos capítulos dedicados a analise dos novos mitos em relação ao maniqueísmo), e, enquanto em muitos contos analisados por Propp ou Campbell esta vingança se resolve em lutas e duelos, na lógica capitalista moderna o raciocínio mais comum é o de levar o seu inimigo à miséria. Um dos heróis estadunidenses no período das guerras, o Sargento Rock e seu batalhão da Companhia Moleza, passavam incontáveis edições derrotando várias divisões nazistas, e mesmo que o esquadrão estivesse sempre na mesma situação em que começou, sua vitória consistia em deixar os nazistas mais desarmados, fracos e incapazes. A mesma fórmula se repete com o Superhomem, que vence Lex Luthor, pois sempre destrói os maquinários e investimentos que o vilão faz para cumprir seus objetivos, algo que coincide com a atemporalidade do Superhomem, descrita por Umberto Eco em Apocalípticos e integrados. O super-herói é atemporal para que o leitor possa encontrar nele sua válvula de escape das pressões sociais, mas o herói também permanece em eterna luta com um vilão de recursos infinitos, pois a grande missão de vida do homem burguês do regime capitalista é justamente manter a sua integridade financeira intacta. 34 Nos jogos modernos, o embate entre herói e antagonista não consiste apenas no primeiro derrotar ou matar o último, mas também tirar deste todas as suas posses, demolir suas bases, desmantelar seus exércitos e subtrair dele tudo o que tem de valor. Mapas são um elemento comum em muitos jogos com estrutura de fases ou missões. Isso se justifica de forma a mostrar a influência e o domínio que o antagonista possui sobre todo o universo do jogo (algo estabelecido ou arquitetado temporariamente ou em seus planos 35 malignos), e também mostra ao jogador o SEU poder e seu domínio prático ou ideológico crescendo neste mesmo universo. Vale lembrar que um inimigo com “posses” e “bases” permite um aumento na extensão do jogo, o que é similar à noção evolucionista que ocupa parte do nosso imaginário social, um utilitarismo pautado no simples acúmulo de capital, seja ele econômico, cultural, social, etc. O que se pode perceber quanto à representação de posição econômica nos quadrinhos e jogos de vídeo game é que há pouquíssimas representações de privações econômicas “reais”, frutos de uma série de entrelaçamentos de poder, que constituem os poderes globais. Tais privações raramente atingem ou constituem parte da identidade do protagonista. Geralmente as poucas representações mais dedicadas ao assunto tratam-no ou como uma questão panfletária e dual (atribuem as mazelas a um “inimigo” distante e planificado, que necessariamente deve ser destruído e reduzido à miséria similar ou pior), ou limitam-se à esquematização mais estrutural da jornada do mito, onde a carência tem a função de impulsionar o herói à aventura, sem muito desenvolvimento sobre a forma e a estrutura de tal carência. NOVOS MITOS E SEXUALIDADE Muito do que foi visto acerca da questão de gênero pode também ser aplicado à questão da sexualidade: os quadrinhos e os jogos são geralmente ambientes que possuem uma cultura normativa heterossexual e voltada para o casamento. Nos quadrinhos, os super-heróis comumente têm noivas(os) ou namoradas(os) para que não se questione sua sexualidade ou sua “capacidade reprodutiva”, mas quase nunca estão casados. Quando estão, o cônjuge costuma morrer ou abandoná-lo para que o herói entre numa nova fase. Nos jogos, a estrutura básica do mito da qual falam Campbell, Propp e Vogler permanece um mote comum: heróis e heroínas embarcam em busca do resgate de seus cônjuges ou, quando este já está morto, partem em busca de seus filhos, ou ainda, vão atrás do culpado de suas morte e consumar a 36 vingança. Muitas vezes o resgatado não terá uma relação com o herói, mas provavelmente serão de sexos diferentes, para induzir o leitor/jogador a esperar um relacionamento amoroso. Na maioria destes enredos, o modelo clássico implica que os heróis não tenham um impedimento próximo como família ou o cônjuge para que possam viver a aventura, mas tenham sempre o matrimônio como um objetivo em horizonte. Algo como uma promessa sem garantias, ou ainda, como um dever. Assim como a questão do gênero, as sexualidades consideradas como “periféricas” pelo discurso normativo estão ganhando espaço nos quadrinhos e nos jogos, mesmo que de forma bem lenta e gradual. A sexualidade não-conjugal e não-reprodutiva é um assunto polêmico a qualquer mídia, pois sempre paira sobre os dogmas sociais da moral, dos bons costumes e dos valores. Há uma série de regras para homens e principalmente mulheres a respeito da prática sexual, regras que falem sobre atributos, frequência, locais, graus de intimidade e todo tipo de regra que, mesmo não estando escritos em lugar nenhum, são cobrados constantemente e sua negação ou subversão é constantemente visto como ameaça. “A pretexto de dizer a verdade, em todo lado provocava medos, atribuía às menores oscilações da sexualidade uma dinastia imaginária de males fadados a repercutirem sobre as gerações; afirmou perigos à sociedade inteira os hábitos furtivos dos tímidos e as pequenas e mais solitárias manias; no final dos prazeres insólitos colocou nada menos do que a morte: a dos indivíduos, a das gerações, a da espécie.” (FOUCAULT, Pág. 54, 1993) Alguns quadrinhos até tentam abordar a sexualidade de forma despretensiosa, porém ela frequentemente está relacionada à questão do poder: em Y – o último homem, por a Yorick caber a condição de último representante do gênero masculino vivo na terra, seus atos sexuais têm uma carga de poder implícita. Porém o uso do poder na esfera sexual gera resultados muito interessantes, por exemplo, as subversões e manias apontadas por referências no gênero como Milo Manara e Guido Crepax, que com seus personagens Cláudia e Fausto, Valentina e Emanuelle, subvertem muito as regras e as normas da sexualidade legítima e, inclusive, mostram as 37 diferentes formas de sexo presentes no mundo, não aquele imperativo sacro e louvado. Páginas do quadrinho de Manara e Crepax, respectivamente. Nos jogos de vídeo game, a inserção de práticas sexuais como um todo é mais complicada. Jogos como GTA III e God of War possuem minigames dentro do jogo – atividades facultativas em que o jogador recebe pontos extras – que possibilitam uma experiência de simulacro sexual. Mas o diversos mediadores (comandos via joystick, a predeterminação dos movimentos e, de certa forma, a própria consciência do jogador durante o ato) mitigam um envolvimento mais idôneo do usuário. 38 Acima, imagem de GTA, abaixo, God of War No campo das representações de minorias sexuais, os quadrinhos têm tido avanços significativos. Recentemente a D.C. – editora de HQ’s – anunciou que Allan Scott, um dos Lanternas Verde, que está entre os personagens mais antigos da franquia, seria homossexual na nova fase da revista. Laerte, cartunista que recentemente assumiu publicamente uma postura crossdresser, possui a personagem Muriel, outra crossdresser, moradora de São Paulo. Os quadrinhos independentes, como Menáge a 3, Shadoweyes ou Go get a Roomie, têm apresentado histórias e ambientações onde as heteronormatizações sexuais não existem. Os jogos também possuem ganhos, como a possibilidade de definição acerca do sexo de seus personagens, já disponível em jogos como XCOM II, Mass Effect e Skyrim. Em uma das versões do jogo GTA IV, o protagonista Antony Price (chamado de “Gay” Tony) é o dono de um clube noturno e personagem recorrente no universo GTA, e o fato dele ser homossexual não é o grande diferencial muito menos o mote do personagem no jogo. A questão da sexualidade (assim como a do gênero) pode ser entendida melhor quando observamos o comportamento de uma parcela das comunidades consumidoras dos quadrinhos e vídeo games: ao mesmo tempo 39 em que a desmistificação da sexualidade (e também gênero e “raça”) é um objetivo da indústria dos quadrinhos e dos jogos – por motivos estratégicos, lembremos –, a comunidade dos fãs, leitores e jogadores aparenta ser a fonte de onde jorra com maior força a oposição a tais mudanças. Ao saber da mudança da opção sexual da personagem Allan Scott, os fãs do Lanterna Verde protestaram e ameaçaram o escritor responsável pela mudança. A ideologia presente nos jogos de vídeo game e nos quadrinhos é, em grande parte, um fanmade: são as piadas e comentários criados nas páginas dedicadas às obras, e popularizadas na internet através de canais como Facebook, 4chan e 9gag, que se estruturam parte do imaginário destas obras. Os fãs muitas vezes inventam romances entre personagens que, na cronologia oficial, não existem. E uma parcela destes fãs (chamados Trolls) se dedica a insultar outros fãs, geralmente pertencentes a uma minoria social ou que desvie das interpretações hegemônicas da obra, e tripudia qualquer acontecimento com os quais não concordem. É importante dizer que, grande parte destes indivíduos são geralmente menores de idade, cuja sociabilidade com o coletivo é apenas parcial, pois passa pela chancela e dependência dos pais. Estes jovens veem na internet a possibilidade da expressão resguardada pelo anonimato, tendo muito tempo livre para produzir conteúdo relacionado aos temas, jogos e obras que lhe interessam. Por isto parte da reação e cultura criada em torno dos jogos de vídeo game e quadrinhos é um reflexo da classe média-alta dominante e juvenil que compõe parte da sua base de fãs: histéricos, hiper sexualizados e que primam por sua ótica pessoal sobre questões sociais. Isto pode nos ajudar a compreender porque existem tantos comentários agressivos e hostis, principalmente voltados para as minorias, nas comunidades de jogos e de quadrinhos. Como Campbell comenta em A origem do Mito, os jovens de hoje criam rituais e mitos próprios, pois os mitos regionais e nacionais não suprem mais as necessidades da sociedade globalizada e os mitos mundiais ainda estão em formação. Portanto, eles se apegam a simulacros para estes mitos, que são as piadas populares, as frases feitas, o senso-comum e qualquer outro discurso que os diferencie dos demais. Assim, 40 as demonstrações de preconceito dos fóruns de quadrinhos e jogos assim como os discursos e piadas discriminatórias decorrentes destas manifestações são, em grande parte, formas que os diversos jovens conectados à internet encontram de “moralizar” sua identidade. NOVOS MITOS E VIOLÊNCIA Uma discussão muito comum durante toda a segunda metade do século XX foi a questão da violência das histórias em quadrinhos e se elas não gestaram uma geração mais violenta. Com o decorrer do tempo, a discussão também se estendeu aos desenhos animados e, nos anos 90 e começo do século XXI, atingiu com força o cenário dos vídeo games. Jogos e quadrinhos, assim como quase toda a mídia do século XX, possuem certos graus de violência, e podemos inferir qualquer teoria a respeito 41 do porque a violência tem se tornado foco dos discursos: a queda dos valores regionais em função da globalização, a idolatria à belicosidade pelo avanço cada vez mais rápido do conhecimento técnico ou qualquer outro motivo que seja proposto. Porém, o que importa para esta pesquisa é a forma com que a violência está presente e justificada no enredo dos quadrinhos e dos jogos de vídeo game. Grande parte da discussão da violência em jogos aconteceu de forma mais intensa pelo caráter “infantil” que as duas mídias sempre carregaram, mas como este rótulo tem gradativamente desaparecido, o peso desta questão no universo dos jogos e quadrinhos deixará de ser tão grande. Talvez em função da natureza exclusivamente pictórica e do peso que a narrativa possui, os quadrinhos não comportam mais na sua violência 13 um fator diferencial tão homogêneo. A violência que mais comumente se mostra nos quadrinhos, como os duelos de super-heróis ou as batalhas medievais, já se tornaram menos chocantes e, por serem repetidas diversas vezes, se tornaram uma linguagem estética, possuindo vários símbolos para camuflar uma violência gráfica (sombras ocultando a cena, jorros de sangue, câmera altas e baixas). E um dos gêneros que mais tem crescido no mercado de quadrinhos é o autoral, em que a tendência é que a narração seja mais introspectiva e a violência, quando existe, é dosada para que impacte o suficiente na narrativa, sem banalizá-la. Claro que ainda existem quadrinhos com foco na violência gráfica, como Battle Royale, DMZ ou o próprio Diomedes de Mutarelli, mas elas estão longe de ser o teor “dominante” do mercado. 13 O conceito de violência é muito amplo, uma representação gráfica estereotipada de uma minoria também poderia ser considerada uma violência. Mas neste capítulo vamos nos focar no conceito da agressão e violência física através de armas brancas e armas de fogo, como zonas de guerra, pois era esta a violência que foi levantada em muitos debates nos últimos anos, e era ela que foi usada como justificativa para sanções e suspensões aplicadas contra quadrinhos e vídeo games. 42 Página do mangá Battle Royale. Cenas do quadrinho DMZ. Quanto aos vídeo games, podemos considerar que há muita violência, porém, devido à necessidade dos jogos se encaixarem nas “classificações etárias” dos países onde são feitos, os jogos que primam pela violência gráfica não correspondem à maioria, embora estes existam e alguns se tornem muito populares, como Duken Nuken, God of War e Mortal Kombat. 43 Sequência de luta do jogo God of War 44 Sequências de luta do jogo Mortal Kombat. Um dos fatores pelos quais estes jogos excessivamente violentos continuam sendo produzidos é a qualidade gráfica cada vez mais avançada dos softwares 3D, permitindo que estúdios explorem este filão. Entretanto, há outro fator de peso na relação entre jogos e violência que merece atenção justamente por perpassar muito mais jogos: há um grande número, entre os quais posso citar, além de God of War, Gears of War ou Call of Duty, que possuem uma comunidade de fãs de na qual, ocasionalmente, surgem comentários e posturas desnecessariamente agressivas, violentas e ofensivas. 45 É precipitado, contudo, atribuir tais comportamentos à natureza belicosa do jogo, pois existe uma variedade de exemplos (Team Fortress II, Resident Evil, Boarderlands, Skyrim) que se vale da mesma dinâmica e possui um número menor de comportamentos agressivos (que não costumam ser incentivados pelos outros membros das comunidades). A questão (ao menos a parte dela que tange este trabalho) é que, nos jogos citados mais acima, os protagonistas Kratos ou Marcus Pheonix possuem como característica de seu poder de “herói” a violência desmedida. Se nos outros jogos a violência é controlada ou ironizada, nos jogos em questão ela é justamente a fonte de poder do protagonista, é apenas através dela que ele interage com o mundo, tanto que a própria estrutura do personagem mostra-o como incapaz de qualquer outra ação além da luta e destruição. O herói não usa de violência, mas é um avatar que representa a ideia de violência, e é posto na condição de herói de uma parcela dos jogadores que almeja o poder para destruir qualquer opinião diferente da sua. 46 NOVOS MITOS E MANIQUEÍSMO A dualidade é parte estrutural fundamental da noção de mito. Joseph Campbell e Maureen Murdoch se referem à dualidade como um elemento da vida, Christopher Vogler fala no “Herói” e na “Sombra” e Vladmir Propp se refere ao “Herói” e o “Antagonista”. Porém, todos estes autores são unânimes em ponderar que não há um “perfil” único para o herói ou para sua nêmesis: Esse é o problema dos tempos de hoje. Será que o herói de um determinado Estado ou povo é o que necessitamos hoje, quando devemos estar preocupados com todo o planeta? (...) Ou você pode ser um deus local mas, para o povo conquistado por esse deus, você será o inimigo. Chamar alguém de herói ou monstro depende de onde se localize o foco da sua consciência. (CAMPBELL, Pág 141, 1988) O caminho mais comum é que a imagem do herói corresponda aos valores da sociedade na qual o mito está difundido. No entanto, quando a cultura é cada vez mais globalizada e a dominação cultural, nos termos de Nestor Garcia Canclini, faz-se valer, os papéis de heróis e vilões ganham novos contornos, como veremos em relação à alguns quadrinhos e jogos. Um clássico na história em quadrinhos, Watchmen (1986) publicado pela D.C. Comics foi escrito por Allan Moore e desenhado por Dave Gibbons (responsável também pelo jogo de vídeo game Beneath a Steel Sky) em que o autor desconstrói o mito do herói. Na história de Moore, o que vemos é um embate de forças e moralidades distintas dentro de uma mesma cidade (New York, no caso), onde, apesar dos super poderes, os heróis são psicologicamente e socialmente tão humanos quanto os personagens destituídos da condição heroica. A construção “amoral”, que neste caso significa que o enredo não é construído para doutrinar respostas, mas sim 47 doutrinar questões, permite ao leitor se identificar com personagens e seus defeitos, vendo os desafios e dúvidas pelas quais este personagem passa, criando na cabeça do leitor uma jornada do herói própria. Estas diversas “jornadas de heróis” latentes dentro do enredo permitem que pessoas de orientações sociais diferentes se identifiquem com a obra de uma forma muito mais profunda do que se houvesse apenas uma história e um protagonista únicos. Outro exemplo mais recente que segue a mesma linha de Watchmen é a série em quadrinhos Guerra Civil (2007) publicada pela Marvel, escrita por Mark Millar e desenhada por Steve McNiven. Esta série foi o objeto de estudo de minha iniciação científica realizada durante o ano de 2012, e sua mecânica se mostra muito interessante: os personagens envolvidos são os membros do panteão Marvel de super-heróis (Capitão América, Homem-deFerro, Thor, Demolidor, Quarteto fantástico...), portanto, já existe uma identificação e empatia prévias do leitor com as personagens envolvidas na estória, o que adiciona mais um fator de descentramento (termo de Stuart Hall para o funcionamento do sujeito múltiplo) à estrutura narrativa: quando o governo americano decide registrar os super-heróis estadunidenses como funcionários do governo, em busca de conter destruições causadas por superheróis mentalmente instáveis ou inexperientes na função, a comunidade de superseres se divide: uma parte liderada pelo Homem-de-Ferro é a favor desta ação, e outra parte, liderada pelo Capitão América é contra, e tal embate termina num confronto entre os dois grupos de heróis, apoiados pelo governo e/ou pela opinião pública. Este embate também simboliza a cisão de dois conceitos centrais do mito: a favor do registro de super-heróis, temos a questão do herói como representante dos ideais de uma sociedade, e do outro lado, o herói como doutrinador moral da sociedade e exemplo a ser seguido. A cisão do modelo de herói, da esferização de diversos personagens e do deslocamento moral que os heróis sofrem no imaginário dos leitores cria um ambiente propício à problematização (numa esfera mais crítica) do poder e sua relação com o indivíduo e o estado. É importante apontar que estas obras não subvertem nem substituem a jornada do herói; ela está presente no enredo, o que a diferencia 48 de sua versão mais clássica é que ao invés de um herói, você possui um elenco de heróis, sombra, pícaros, mentores e guardiões, e como diz Christopher Vogler, tais funções são máscaras, que podem ser trocadas e acumuladas entre as personagens. “Existe, contudo, um outro modo de representação artística que ocorre quando não se conhecem os confins do que se deseja representar, quando não se sabe quantas são as coisas das quais se fala e se pressupõe então um número, se não infinito, astronomicamente grande; ou ainda quando não se consegue dar uma definição de alguma coisa por essência e, portanto, para poder falar dela, para torná-la compreensível, perceptível de alguma maneira, se elencam suas propriedades...” (ECO, Pág. 15, 2010) Nos jogos de vídeo game também existem exemplos de obras onde o maniqueísmo é desconstruído, como por exemplo, a saga Mass Effect, iniciada em 2007 pela BioWare, na qual o protagonista deverá conter uma crise que ameaça destruir as civilizações do universo, porém, obviamente a personagem não poderá fazer isto sozinha. Então, uma expressiva parcela do jogo consiste em o jogador tomar decisões, forjar alianças e negociar acordos entre os grupos envolvidos na situação, numa versão interplanetária da diplomacia humana. Mesmo que só se possua um herói para controlar, este não detém o poder de subjugar os demais personagens, e suas ações e decisões afetam os acontecimentos do enredo desde o primeiro até o último capítulo da saga, de modo que em muitos momentos do jogo, os personagens secundários têm muito mais importância para o jogador do que o herói, ao contrário do modelo militar de enredo, onde o herói acumula poder e conhecimento dos desafios superados para que ele conclua o objetivo da trama. Vale citar que, ao fim da saga de três jogos de Mass Effect, muitos jogadores criticaram o final do enredo por apresentar “apenas” três opções de desfecho, chegando a criar abaixo-assinados para a modificação do fim da estória pois, a sensação de pluralidade obtida pelo jogo foi tanta, que os jogadores esperavam que houvesse um número de finais proporcionais ao número de escolhas feitas durante o jogo. 49 Há ainda outros jogos que se valem de uma dualidade descentrada e cambiante para descentrar o jogador: também da BioWare, o jogo Star Wars: Knight of Old Republic é baseado na mitologia de Star Wars e permite ao jogador que escolha seguir no caminho Jedi ou no caminho Sith (análogos do bem e do mal no universo em questão). Mesmo que não relativizem o conceito da dualidade e do bem-mal, certos jogos podem descentrar a noção de valores de um jogador desenvolvendo um ludus mais presente no campo administrativo de uma situação, do que apenas no campo operacional; Valkyria Chronicles (2008) é uma franquia de estratégia militar onde o jogador comanda um esquadrão em que cada unidade é um personagem e possui temperamento e atributos de sociabilidade próprios, e a cada missão (que é composta por objetivos, e o gameplay é um sistema de turnos onde as unidades são movimentadas uma-a-uma, numa estrutura similar a XCOM ou, mais remotamente, a Final Fantasy) tão importante quanto vencer os adversários, é a manutenção de seus soldados, disposição das equipes e até o terreno da batalha, pois todas estas variantes influenciam nos atributos e desempenho das suas unidades. Por fim, é preciso citar que esta relativização da moral de um jogo ainda é exceção à regra: muitos jogos e quadrinhos ainda se valem da estrutura de valor e razão em função da conduta do protagonista, que é o representante e modelo da sociedade em questão, em relação ao resto da estrutura mítica. Este modelo não deve ser considerado como “errado” muito menos “ultrapassado”; o modelo clássico da jornada do mito ainda é válido para estruturas de enredo menores ou que discutam valores mais amplos, ou ainda estórias onde os conceitos sejam mais abstratos e fantasiosos, não permitindo ao fruidor uma identificação muito intensa com qualquer um dos elementos constituintes, apenas de uma experiência estética diferente como um todo. O que deve ser observado com relação ao modelo não é o modelo em si, mas a roupagem moral que ele recebe: em muitos jogos, como God of War ou Duken Nuken, o enredo é tão centrado (e limitado) à noção de moral do protagonista que acaba por fomentar em jogadores menos habituados com o universo mítico a noção de que certos acontecimentos pessoais ou estados sociais que o indivíduo possua podem justificar ações ou atitudes que ataquem 50 o social, num maniqueísmo “eu x mundo”, um modelo que, mesmo sendo de fácil assimilação, possui o contraponto de extremar a ideologia “tribal” de certos grupos sociais. “...a arte da vida pública é reduzida à exposição pública das questões e a confissões de sentimentos privados (quanto mais íntimo, melhor)...” (BAUMAN, Pág. 46, 2000) NOVOS MITOS E ESTÉTICA Neste capítulo, falaremos genericamente da estética, um estudo das condições e dos efeitos da produção artística dos quadrinhos e jogos. No que diz respeito à ambientação, os quadrinhos e os jogos tem se mostrado cada vez mais abrangentes. No campo pictórico dos quadrinhos, onde a linguagem abstrata e artística tem mais voz, a ambientação de um cenário ou uma estética já mostraram infinitas vertentes. Analisemos, por exemplo o quadrinho “Diomedes”, do quadrinista brasileiro Lourenço Mutarelli; a história ácida e pessimista, conta sobre um delegado aposentado que tenta se tornar detetive particular, sem sucesso. Uma estética ricamente detalhada, mas que prima por ressaltar uma sujeira, saturação e desleixo, característicos do subúrbio paulistano, cidade de origem do quadrinista. 51 Há ainda outros autores que abusem de trabalhos altamente esmerados nos quadrinhos, como o maltês Joe Sacco, jornalista/quadrinista que ficou famoso pelas obras biográficos que contam sua passagem como jornalista de campo de zonas de guerra como a Iugoslávia e Palestina, e para tanto, se utiliza de uma estética realista e carregada de hachuras. Outro exemplo é o francês Jean Giraud, conhecido como “Moebius”, dono de um estilo hachurado muito detalhado, suas máquinas, cidades e vestuárias foram de grande contribuição visual para a ficção científica, em especial a de temática futurista; tanto que Moebius, assim como o artista plástico R.H. Giger, trabalhou criando concepções artísticas de diversos filmes, tais como “O segredo do Abismo” (1989), “O quinto elemento” (1997), “Tron” (1982) e “Alien” (1979), onde inclusive também trabalhou R.H. Giger. 52 Mas nem todo quadrinho busca ser carregado, há estéticas que primam pela simplicidade, como é o caso do estadunidense Mike Mignola, que ficou conhecido pela série em quadrinhos (que virou filme) Hellboy. A arte de Mignola valoriza volumes e o valor de claro/escuro, mas geralmente seus cenários são muito simples, retratando apenas o necessário para entendimento espacial da história. 53 Ou ainda, o cenário pode ser suprimido ou destituído de sua função literal em nome de um discurso ou de uma proposta estética pois, tal qual a pintura, os quadrinhos tem uma orientação exclusivamente visual, todas as iniciativas experimentais da pintura tem contrapartida no universo dos quadrinhos. Um exemplo é o trabalho do quadrinista francês Patrice Killoffer. Seu mais famoso trabalho 676 aparições de Killoffer, um quadrinho autobiográfico onde o personagem aparece 676 vezes, tem uma dinâmica original e inusitada, onde o cenário e texto se mesclam para que um mesmo elemento esteja presente em duas ou mais imagens, separadas cronologicamente porém juntas pictoricamente. Outro exemplo é o trabalho À sombra das torres ausentes de Art Spiegelman, famoso pela série Maus, sobre a experiência da família judaica em Auchwitz. À sombra das torres ausentes também tem um caráter auto-biográfico, onde o autor conta as impressões pessoais e sociais que o evento do ataque ao WTC em 2011 tiveram na sociedade americana. 54 Para tanto, Spiegelman se utiliza de quadrinhos próprios (onde varia o próprio traço), quadrinhos clássicos como Yellow Kid e Little Nemo, fotos, colagens e referências visuais diversas, transformando a estética do quadrinho em uma colagem. No campo dos jogos digitais, a estética de ambiente também é variada, porém sua exploração artística tem outras limitações: se a experiência sinestésica (áudio-visual e tátil, contando ainda com o elemento da “avatarização” e o suporte bidimensional e tridimensional) permite uma exploração conjunta da visualidade, sons e movimentos, há o contraponto da programação: um jogo de vídeo game é, acima de tudo, uma estrutura matemática e também uma estrutura interdisciplinar. Dito isso, devemos considerar que em função desta interdependência de sentidos, a tendência da obra de vídeo game (independente da estética utilizada) tende a ser mais organizada que uma obra de história em quadrinhos, que por ser constituída de um único elemento pode explorá-lo com mais liberdade. 55 Tal panorama cria o que podemos chamar de “universo” ou “ambientação” do jogo; sua aparência geral e a interação entre os elementos. E no campo dos universos dos jogos, há um fértil campo estético e referencial em uso constante: Vintage, Cartoon, Steampunk, Militar, Cyberpunk, Mecha, Guetto, Escatológico, Anime, Medieval, Infantil, Zumbi... As histórias e as estruturas dos mitos podem se repetir várias vezes em jogos distintos, mas as direções estéticas que eles possuem (quase) os transformam em jogos de esferas diferentes. Isto sem falar que, na esteira do desenvolvimento dos jogos, surge também a melhora de seus gráficos, e jogos como God of War III, Final Fantasy XIII ou Flower, são tão bonitos e realistas que, mesmo sendo jogos de apenas um jogador, é comum vê-los sendo assistidos por outras pessoas, tamanha é a qualidade gráfica de tais obras (emparelhando com filmes cinematográficos). Peguemos por exemplo a temática medieval: os contos das novelas de cavalaria são um gênero literário altamente mítico: O conflito com minha religião veio mais tarde, em relação aos estudos científicos e coisas desse teor. Mais tarde, me interessei por hinduísmo, e ali estavam as mesmas histórias, outra vez. E no meu trabalho de licenciatura eu estava lidando com a matéria do ciclo arturiano, das novelas de cavalaria medievais, e ali estavam as mesmas histórias, outra vez. Portanto, não venha você me dizer que não são as mesmas histórias. Tenho convivido com elas toda a minha vida. (CAMPBELL, Pág. 24, 1988) O jogo Castle Crashers (2008 – The Behemoth) é um jogo para um ou mais jogadores onde os cavaleiros coloridos devem ir avançando por diversos reinos para resgatar suas princesas. Na franquia Ghosts’n Goblins (1985 – Capcom) você controla o cavaleiro Artur, e deve adentrar em terrenos hostis para salvar sua princesa prim prim, ou livrar seu reino de inimigos diversos, e a cada dano recebido, você perde a sua armadura. Em Age of Empires II (1999 – Ensemble Studios) o gameplay é um pouco diferenciado, onde você administra um reino (uma dinâmica similar à Sim City ou Farmville) e deve subjulgar nações e tribos inimigas, sejam elas outros jogadores ou 56 inteligências artificiais. Na série The Elder Scrolls (1994 – Bethesda Softwork) o jogador se encontra em um mapa aberto, onde ele busca missões e objetivos que podem ou não estar vinculados ao enredo principal, valorizando o multiplayer online com outros jogadores. O quinto volume da série, Skyrim, lançado em 2011 fez tanto sucesso que pode ser seguramente classificado como uma das mais massivas influências na comunidade Gamer internacional entre os anos de 2011 e 2012. Diga-se de passagem, a estrutura de The Elder Scrolls, presente em outros jogos como Ragnarok, num esquema onde o cumprimento das missões dadas ao jogador por NPCs (non-playable character) e do qual também virá a recompensa pela conclusão da missão (geralmente itens, armas e poções que facilitam o avanço do jogador no desenvolvimento – isto é, ganho de níveis – do seu personagem) é uma estrutura extremamente similar às etapas XII, XIII e XIV da jornada do protagonista, descrita por Vladimir Propp em Morfologia do conto maravilhoso: Entra no conto um novo personagem, que pode ser denominado doador (seria, mais precisamente, o provedor). Geralmente, ele é encontrado por acaso na mata, no caminho etc. (cf. cap. VII, as formas de entrada em cena dos personagens). Tanto o heróibuscador, como o herói-vítima, recebem dele um objeto (geralmente um meio mágico) que lhes permite superar o dano sofrido. Mas artes de receber o meio mágico, o herói é submetido a certas ações bem diferentes entre si, embora todas elas o levem a tomar posse do objeto mágico. (PROPP, Pág. 25, 1928) Poderíamos nos deter em ainda mais exemplos, como as séries Legend of Zelda, Diablo e Final Fantasy, mas os exemplos já citados são o suficiente: 57 Castle Crashers Ghosts’n Goblins 58 Age of Empires II The Elder Scrolls V: Skyrim Apesar de todos os exemplos compartilharem da mesma temática e mitologia medieval de busca por princesas e de purificação do reino e do mundo, jornadas de heróis e outros elementos que permeiam a sociologia do mito, a tratativa gráfica dos universos de cada jogo em particular divergem 59 radicalmente, e este estilo “próprio” influencia na dinâmica e na impressão que o jogo causa: Castle Crashers tem um estilo cartunesco e até infantil, muito mais voltado para a diversão com personagens genéricos e caricaturais, enquanto The Elder Scrolls V – Skyrim, onde você customiza um avatar seu (uma projeção sua dentro do jogo), que se aventurará pelo mundo medieval com sangue e poder, possui uma representação muito mais realista, até mesmo dos elementos mais fantásticos do enredo. Ou ainda o estilo clássico de Ghosts’n Goblins, onde sua câmera segue o seu personagem em meio ao cenário hostil, escuro e assustador, pois seu personagem (o cavaleiro Arthur) é seu único ponto de controle em todo o jogo; enquanto em Age of Empires II, tem um mapa no qual você escolhe o que vai ver no qual ele fica distante o suficiente das unidades e edificações o suficiente para que elas sejam apenas reconhecíveis e não personalizáveis, e o ambiente é bastante neutro e indiferente a qualquer um dos “lados” na disputa, pois o jogo é justamente criar reinos e exércitos e através destas suas unidades, subjulgar o adversário. Quanto à ambientação de uma obra de quadrinhos ou vídeo games, seus cenários e temática, fica visível que ela é muito abrangente e diversa. Porém não se pode dizer o mesmo da caracterização de seus personagens (protagonistas, antagonistas, aliados e inimigos). A representação humana nos quadrinhos e jogos é mais complexa exatamente por que tende a ser mais importante. Estados psicológicos, sentimentais ou posturas sociais são mais facilmente entendidos se forem representadas através de ações ou gestos humanos (ou até mesmo humanizados), pois é justamente o homem e suas ações o centro da maioria das discussões de valor moral. E esta constatação tem valor tanto na estética quanto na simbologia: Decididamente, a imagem mais universal com que o artista sequencial tem que lidar é a forma humana. De todo o inumerável inventário de imagens que constituem a experiência dos homens, a forma humana é a mais assiduamente estudada, e, portanto, a mais familiar (...) o corpo humano, a estilização da sua forma, a codificação dos seus gestos de origem emocional e das suas posturas não-expressivas são acumulados e armazenados na memória, formando um vocábulo não-verbal de gestos. (...) O desenvolvimento inexorável da tecnologia das comunicações desde a 60 aurora da história intelectual do homem serviu para universalizar imagens da experiência humana comum. (EISNER, Pág. 100, 1989) E há outro ponto a se considerar: muitas personagens de um quadrinho ou vídeo game não permanecem em cena tempo o suficiente para que se possa aprofundar sua personalidade e, para que eles atinjam o efeito desejado no menor tempo possível, lança-se mão de um estereótipo. Tais construções de personagens (também chamados de figurantes, cameos ou tropes) não têm um caráter conscientemente preconceituoso, porém podem ser sim vetores de discriminação, inclusive reforçando tais culturas pois a tal “primeira impressão”, longe de ser uma expressão sem valor acadêmico, é o diferencial em encontros fugazes e importantes, sendo tema de textos sobre como conseguir um trabalho, como conseguir um(a) namorado(a), como conseguir se destacar e muitos outros “quereres”: “Será conveniente denominar de “fachada” a parte do desempenho do indivíduo que funciona regularmente de forma geral e se fixa com o fim de definir a situação para todos os que observam a representação. Fachada, portanto, é o equipamento expressivo do tipo padronizado intencional ou inconscientemente empregado pelo indivíduo durante sua representação (...) podemos tomar o termo “fachada pessoal” como relativo aos outros itens de equipamento expressivo, aqueles que de modo mais íntimo identificamos com o próprio autor, e que naturalmente esperamos que o sigam onde quer que ele vá (...) função ou categoria, vestuário, sexo, idade...” (GOFFMAN, Pág 29-31, 1975) Esta fachada pessoal é basicamente toda a substância destes personagens secundários, e suas ações padronizadas são sua função de existência: operários que aparecerão em cinco quadrinhos de uma história devem parecer operários e realizar apenas ações de operários, burocratas de um quadrinho com temática dos anos 50 devem estar impreterivelmente de terno e sempre cercados por papéis e os capangas do antagonista de um jogo de vídeo game devem estar sempre com seu uniforme, armas em punho e sua única atividade e necessidade deve ser “servir ao seu mestre”. 61 Final Fantasy XIII Gears of War III Aqui temos um grupo de protagonistas de dois jogos distintos: Final Fantasy XIII é extremamente fiel à estética de construção de personagens do estilo de Mangá, onde costumam ser ressaltados atributos como leveza, beleza e magreza. No outro exemplo temos Gears of War III, um jogo em que toda a base estética e de enredo busca o ideal de homem “bruto”? musculoso e violento. Alguns jogos às vezes possuem estéticas tão canônicas que podem dificultar a identificação dos jogadores com certos jogos. O ambiente excessivamente delicado e andrógino de Final Fantasy pode dificultar a identificação de jogadores que não se encaixem nos padrões estéticos do universo pop nipônico, com os corpos magros e poucos pelos, assim como 62 jogadores sem porte atlético ou de perfil delicado também poderão ter dificuldades em se identificar com os personagens de Gears of War, e isto sem se delongar muito no fato que as jogadoras aparentemente têm ainda menos opções, pois em ambos os casos, os modelos femininos são parecidos (mas isto será tratado com mais atenção no capítulo referente a gênero). E o mais importante: estes personagens reforçam os modelos destes ideais de beleza, pois nestes casos suas figuras se encaixam perfeitamente no cenário em que estão ambientados e podemos até dizer que os figurantes e coadjuvantes se tornam elementos de cenário, tamanha é sua homogeneização estilística. Pensemos que por exemplo, os personagens “feios” que existem em no quadrinho Diomedes de Mutarelli ou os belos personagens do jogo Borderlands II, só podem se desviar dos padrões de beleza pois tais obras são de teor mais cômico e satírico, pois tais desvios ainda são vistos como incompatíveis com personagens e enredos mais sérios ou mais românticos, por exemplo. Ao analisar a questão da estética nos quadrinhos e jogos, percebemos que quanto à ambientação, as linguagens têm se mostrado muito abundades em opções, permitindo que elementos muitas vezes postos como secundários ganhem um cuidado e um trabalho maiores, contribuindo em muito para a expansão, diversificação e a entrelaçamento de referenciais estéticos globais e regionais; porém, no que tange aos personagens dos quadrinhos ou jogos, também vemos a estilização, porém as vezes tal repetição de modelos acaba por se impor aos jogadores reforçando a tese de que “se encaixar não é para todos”, criando ou repetindo padrões únicos. Mas vale ressaltar aqui que os quadrinhos, em especial os autorais ou on-lines, têm expandido a variedade de modelos e ajudado a diminuir as limitações de identificação estética e estilística, os trabalhos de Robert Crumb, Will Eisner e Lourenço Mutarelli por exemplo, subvertem tais modelos (e no caso de Eisner, por exemplo, com seriedade e crítica). O mesmo têm acontecido com os vídeo games, principalmente em função da popularização de ferramentas de customização de personagem, que permite além da mudança de vestuário, mudanças físicas; jogos como Fifa Street, XCOM II, Skyrim e alguns jogos sociais, permitem que o jogador escolha sua aparência e o modelo estético com o qual quer se 63 identificar, ajudando a refrear a retroalimentação da cultura com relações a modelos estéticos. CONCLUSÃO No desenvolvimento deste trabalho, ficaram claras as variadas possibilidades que o campo simbólico dos quadrinhos e dos vídeo games possuem, e que, além do campo referencial próprio, promovido por características das duas linguagens, como a “avatarização” do usuário ou a liberdade pictórica do conceito de “espaço como tempo”, possuem também toda a simbologia mitológica que permeia outras artes 14. Os mitos presentes nos quadrinhos e vídeo games têm os mesmos vícios e virtudes dos mitos em qualquer outra linguagem justamente por serem elementos de caráter moralizante e doutrinador da sociedade. Sabe-se, de fato, que nenhuma sociedade é composta de valores homogêneos, mas apenas do senso comum de uma maioria, e este senso comum (em sua necessidade de perpetuação) é a raiz de muitos dos preconceitos envolvendo os marcadores sociais de diferenças sociais. Neste caso, podemos perceber que a sociologia do mito nos quadrinhos e videogames pode agir como vetor de manutenção de preconceitos, como vimos em vários exemplos citados nesta pesquisa. Porém, é um erro considerar que a sociologia do mito seja uma espécie de ciência discriminatória ou que quadrinhos e vídeo games sejam apenas diversão descerebrada, ou ainda, que sejam uma espécie de algoz da sociedade. O maniqueísmo e a panfletaria (mesmo que contendo o mérito justificado da denúncia) não costumam ser meios razoáveis de solução de conflitos, pois costumam atribuir todos os problemas a ações de apenas um ou mais indivíduos, e todas os envolvidos – que de alguma forma se identificarem com o grupo apontado como o “vilão” ou “sombra”, como chama Vogler – se sentirão diretamente acusados e ameaçados, tomando como função se oporem à denúncia para se defenderem das acusações, criando, assim, uma oposição 14 neste caso consideraremos a definição de arte que consta em dicionário como “capacidade ou atividade humana de criação plástica ou musical”) como a literatura, o cinema, o teatro, a publicidade e todas as manifestações artísticas assentadas na passagem do tempo (ou na ilusão deste). 64 surda, assustada e desinformada sobre a situação. E vale lembrar que, segundo Stuart Hall, os indivíduos possuem cada vez mais identidades, o que significa que o maniqueísmo e a panfletaria afetam cada vez mais as pessoas. Porém, isso por si só apenas aumentará a indisposição das pessoas para discussão e o aumento da oposição surda, assustada e desinformada, muito comum nas redes sociais. “...Identifica-se o poder a uma lei que diz não. O fundamental seria a força da proibição. Ora, creio ser esta uma noção negativa, e esquelética do poder que curiosamente todo mundo aceitou. Se o poder fosse somente repressivo, se não fizesse outra coisa a não ser dizer não você acredita que seria obedecido?” (FOUCAULT, Pág. 8, 1979) É importante lembrar que, em certos casos citados aqui, os discursos de exclusão e intolerância não são produzidos nem difundidos pela obra em si, mas por aqueles que delas usufruem. Tais discursos podem ir pelo caminho da evasão, da ironia e do desengajamento – e como Bauman sugere, tais táticas desmobilizam as iniciativas contrárias –: ridicularizam-se os engajamentos e diz-se que tais ações “são apenas uma piada”, com o intuito de desvincularem-se do embate e do problema. Outra forma de construção dos discursos de exclusão e intolerância é simplesmente a via do comodismo: se as regras sociais já estão lá, por que perder tempo problematizando-as? A fluidez dos meios, discursos e assuntos eleva o ignorar a um patamar de solução, pois em breve o indivíduo estará em outro lugar e em outra situação, sem necessariamente ter-se resolvido a questão anterior. E é neste cenário que cabe o “Mito Aberto”. Como alguns dos jogos e quadrinhos aqui citados nos mostraram (com diferentes graus de engajamento) há pelo menos duas formas de se produzir o que considero histórias com mitologia aberta: a primeira consiste em assumir os embates ideológicos, indenitários, sociais ou estéticos que possam surgir no enredo, não apenas mostrando uma dualidade, mas também não moralizando o enredo, permitindo que o leitor/jogador que possa se identificar com (ou entre) qualquer um dos dois lados, ao mesmo tempo que não permite que ele se “acomode” a nenhuma postura ou opinião, mantendo a tensão circulando entre as possíveis 65 identidades do fruidor, e quem sabe até não incentivando o desenvolvimento de novas identidades neste. Tal modelo permite que a não-dualização da questão abra maiores possibilidades de enredo e até de gameplay, tomando-se um relativo cuidado, pois num mundo globalizado, em que estas obras podem chegar às mãos dos mais diferentes grupos sociais/étnicos/nacionais, certos assuntos possuem graus diferentes de problemática e polêmica. Então, um manuseio bem-pensado pode render bons debates públicos em nível internacional, sem necessariamente se enviesar pelo caminho do preconceito, exclusão ou discriminação. O outro caminho é, em aparência, o oposto: tentar relativizar a importância dos marcadores sociais de diferença e criar quadrinhos ou jogos nos quais gêneros e raças diferentes convivam sem estarem presos ao senso comum relacionados a eles, em que a relativização permite que uma identidade mais forte do fruidor, como condição econômica ou gênero, possa ser (mesmo que temporariamente) posta de lado e dê espaço para que outras identidades recebam mais atenção, buscando, assim, diminuir a necessidade que alguns indivíduos têm de se apoiar e se retroalimentar de apenas uma identidade própria. Estes dois exemplos são apenas algumas das possibilidades de Mito Aberto que podemos utilizar, pessoalmente são as que eu já tenho tentado pôr em prática em meus trabalhos, ainda que todo o produtor de quadrinhos e vídeo games pode buscar o seu modelo de Mito Aberto. E ressalto que uma cultura profusa em mitos abertos não irá “resolver” as desigualdades ou suprimir os marcadores sociais de diferença. O que pode ser considerado importante neste modelo é que ele visa permitir que referências distintas se aproximem de forma crítica, permitindo a identificação de novos pontos em comum e o debate de elementos distintos, sem que estas discordâncias sejam postas como a única base de apoio em ambos os lados (o que diminuiria a tendência pós-moderna em dividir as discussões no campo público em: aceitar, refutar e ridicularizar) e para isto, pode se fazer uso de todo o arcabouço histórico da sociologia do mito, doutrinando a sociedade como o mito faz, mas buscando uma doutrinação para a tolerância. 66 BIBLIOGRAFIA ALMEIDA, Heloísa Buarque de. “Telenovela, consumo e gênero”. São Paulo. EDUSC. 2002. BAUMAN, Zygmunt. “A modernidade líquida”. Rio de Janeiro. Zahar. 2001. CAMPBELL, Joseph. “O poder do mito”. São Paulo: Palas Athena. 21° edição. 2003. ECO, Umberto. “Apocalípticos e Integrados”. São Paulo. Perspectiva. 1975. ____________. “A vertigem das listas”. Rio de Janeiro. Editora Record. 2010. EISNER, Will. “Quadrinhos e arte sequencial”. São Paulo. Martins Fontes, 2ª edição,2010. FOUCAULT, Michel. “Microfísica do Poder”. São Paulo. Editora Graal. 2009. ________________. “História da sexualidade I – A vontade de saber”. São Paulo. Editora Graal. 2007. GOFFMAN, Erving. “A Representação do Eu na vida cotidiana”, Petrópolis. Editora Vozes. 17ª edição, 2009. HALL, Stuart. “A identidade cultural na pós-modernidade”. Rio de Janeiro. DP&A editora. 2006. JUNG, Carl Gustav. “Os arquétipos e o inconsciente coletivo”. Rio de Janeiro. Vozes. 2008 67 MCCLOUD, Scott. “Desvendando os quadrinhos”. São Paulo: M Books. 2ª edição. 2004. PROPP, Vladimir I. “Morfologia do conto maravilhoso”, Rio de Janeiro, Forense Universitária. 2002. VOGLER, Christopher. “A jornada do escritor”, Rio de Janeiro. Editora nova fronteira. 2ª edição. 2006. 68 “Now that we know who you are, I know who I am. I'm not a mistake! It all makes sense! In a comic, you know how you can tell who the arch-villain's going to be? He's the exact opposite of the hero. And most times they're friends, like you and me! I should've known way back when... You know why, David? Because of the kids. They called me Mr. Glass. “ (Elijah Price, interpretado por Samuel L. Jackson no filme Unbreakable, de M. Night Shayamalan) 69