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AS QUATRO CONCEPÇÕES OCIDENTAIS DA HISTÓRIA
Rafael Cronje Mateus1
Resumo
O presente artigo tem o objetivo de identificar e analisar brevemente as quatro
concepções da história do Ocidente, desde a visão Grega e Romana, passando pela visão
Católica e chegando nas duas modernas: a das filosofias da história e a que tem suas raízes
no protestantismo e termina no niilismo. À identificação está ligada, também, a visão que
os homens têm de si e de suas possibilidades de ação. Essa relação entre a auto
interpretação do indivíduo e as concepções da história é explicitada ao longo do artigo.
Ao fim, breves considerações são tecidas sobre o que o estudo comparado das diversas
concepções permite perceber.
Abstract
The objective of the present essay is to identify and briefly analyze the four
Western conceptions of history, since the Greek and Roman view, through the Catholic
until the two modern: the view of the philosophies of history and the view that, having its
roots in the Protestantism, ends in the Nihilism. The identification is also related with the
perspectives men have of themselves and of their possibilities of action. This relation
between the self-interpretation of the individual and the conceptions of history is made
clear throughout the essay. Brief considerations about what can be perceived with the
compared study of this conceptions are made at the end.
Riassunto
L'obiettivo di questo saggio è quello di identificare e analizzare brevemente
le quattro concezioni Occidentali della storia, dal punto di vista Greco e Romano,
attraverso il Cattolico fino ai due moderni: la filosofia della storia e quella visione che,
avendo le sue radici nel Il protestantesimo, finisce nel nichilismo. L'identificazione è
anche in relazione con le prospettive che gli uomini hanno di se stessi e delle loro
possibilità di azione. Questa relazione tra l'auto-interpretazione dell'individuo e le
1
Graduado em Direito pela Universidade Federal do Ceará.
[email protected]
2
concezioni della storia à chiarita durante il saggio. Alla fine vengono fatte brevi
considerazioni su ciò che può essere percepito con lo studio comparato di queste
concezioni.
1. INTRODUÇÃO
A busca pelo sentido da história não é uma tarefa simples. Essa questão, que
é tão antiga quanto a humanidade – ao menos tão antiga quanto os primeiros registros da
humanidade – se relaciona com outra, igualmente complexa e milenar: qual o sentido da
vida humana, individual e coletiva. Em termos cristãos, pode-se dizer: qual a vocação do
homem e dos povos?
A relação entre as duas questões se revela por uma simples mudança na
formulação da primeira. Se substituirmos "sentido da história" por "sentido de todas as
vidas humanas", percebemos que, talvez, as duas questões sejam, na verdade, uma só. E
esse é o tema desse ensaio.
Investigar-se-á as quatro respostas dadas a essas perguntas, as quatro mais
influentes e, ao que parecem, as quatro fundamentais, dadas no Ocidente desde que o
primeiro filósofo viveu e foi morto, até a época atual, na qual filosofia se tornou em
profissão universitária.
Elas são, respectivamente, a concepção da história Greco-Romana, a Cristã
(leia-se, Católica), e as duas que se manifestam plenamente na modernidade: a Protestante
originária e a que se opôs a ela, a das Filosofias da História.
Os resultados dessa pesquisa não pretendem ser mais do que preliminares,
mas, por isso mesmos, indicativos da necessidade de aprofundamentos e da relevância do
tema.
2. A HISTÓRIA COMO PARTE DO CICLO NATURAL: GRÉCIA E ROMA
ANTIGAS
A primeira concepção é a greco-romana, ou antiga. Essa é a concepção que
se pode chamar de natural, ou mesmo puramente racional. Isso porque ela surge da
observação racional da natureza, e termina percebendo o homem, a sociedade e a história
como integrantes dela.
Percebe-se, prontamente, que a natureza é cíclica: em primeiro lugar, o maior
e mais importante ciclo é o da vida. Todos os seres que vivem sob a lua nascem, crescem,
3
se reproduzem e morrem. Para os antigos, entretanto, isso é verdade também para a
sociedade e para a história, e da seguinte maneira: os homens nascem, crescem, se
reproduzem e morrem. Entretanto, como é da sua natureza serem sociais, eles vivem em
comunidades. Perceba-se: as comunidades humanas não são construções artificiais, mas
decorrem da própria natureza humana.
Em primeiro lugar, a família. Formada da união natural entre os dois tipos de
seres humanos, homem e mulher, ela garante a existência dos homens ao longo do tempo.
Não apenas isso, mas é para ela que os indivíduos vivem, pois se viverem isolados
estariam negando a sua própria natureza social.
Em seguida, se muitas famílias vivem em união, tem-se uma comunidade. A
diferença, porém, não é apenas de número. O fato de os indivíduos estarem unidos não
apenas com suas próprias famílias, mas com outras, é também natural. E o que surge a
partir disso são todas as necessidades sociais de administração da vida comum, que têm
como ápice a política: a ciência de ordenação da pólis.
Mas veja-se que, independente de quão grande seja uma "pólis", ela é o ponto
máximo da natureza humana. Não existe diferença natural entre uma cidade-estado e um
império. O que muda são os diversos aspectos internos e externos, mas não a natureza em
si, qual seja, a de comunidade.
O sentido da vida de um homem, nesse esquema, é apenas alcançar
participação em todos esses níveis (individual, familiar e político), e depois morrer
esperando que tudo recomece naturalmente.
A vida, portanto, não tem um sentido último. Tem um sentido apenas natural.
E, se entendermos a história como o conjunto sucessivo de feitos humanos, ela também
não tem um sentido, pois é a mera repetição cíclica dos mesmos fatos. Por isso não se
pode dizer que se dirija para algum lugar ou possa ser compreendida como tendo começo
e fim. A categoria do sentido, portanto, não se aplica à história, pois ela não tem uma
finalidade.
Os indivíduos têm fins, como se tornarem homens virtuosos (spoudaios); por
sua vez, integrando as famílias, têm o fim natural de manter viva a pólis, que, por sua vez,
tem a finalidade de dar a ordem correta à vida dos homens. Mas tudo isso tem um sentido
apenas natural. A sociedade, como se percebe, também faz parte do ciclo natural, e,
consequentemente, também a história.
É Henri Charles Puech quem bem resume o pensamento grego sobre o tempo:
4
"Segundo a célebre definição platônica, o tempo que a revolução das esferas
celestes determina e mede é a imagem móvel da eternidade imóvel, que ele
imita ao se desenrolar em círculo. Consequentemente, todo o devir cósmico,
assim como a duração deste mundo de geração à corrupção que é o nosso,
desenvolver-se-á em círculo ou segundo sucessão indefinida de ciclos, no
decurso dos quais a mesma realidade se faz, se desfaz, se refaz, de acordo com
uma lei e alternativas imutáveis. Não somente se conserva aí a mesma soma
de ser, sem que nada se perca nem se crie, mas também, segundo alguns
pensadores do fim da Antiguidade – pitagóricos, estóicos, platônicos –, admitese que, no interior de cada um desses ciclos de duração, desses aiones, desses
aeva, se reproduzem as mesmas situações que se produziam já nos ciclos
anteriores e que se reproduzirão nos ciclos subsequentes – até o infinito.
Nenhum acontecimento é único, nenhum ocorre uma única vez (por exemplo,
a condenação e a morte de Sócrates), mas realizou-se e realizar-se-á
perpetuamente; os mesmos indivíduos apareceram, aparecem e reaparecerão
em cada retorno do círculo sobre si mesmo. A duração cósmica é repetição e
anakuklosis, eterno retorno."2
Imagine-se o que pensa um indivíduo vivendo sob essa mentalidade. Para ele
não existe qualquer sentido sobrenatural para vida, apenas o sentido natural – ou melhor,
o primeiro está absorvido pelo segundo. E o máximo que ele pode atingir é um grau de
participação elevado na sociedade, como ser um senador ou um rei. Mesmo nessa
situação, ele crê que, ao fim da vida, nada terá senão esperar voltar à existência
novamente, quando o novo ciclo natural começar – mas sem que ele tenha qualquer
lembrança disso.
Não se pode deixar de notar, entretanto, que essa visão natural do tempo tem
elementos de verdade. De fato, a vida natural é um ciclo, ou melhor, vários ciclos. Porém,
a vida do homem não é apenas natural, não é apenas cíclica. Os judeus já sabiam disso,
de certa maneira. Mas apenas com a Encarnação de Nosso Senhor a perspectiva
verdadeira e completa se abrirá para os homens: a concepção da história que tem a Igreja,
e que incorpora o que há de verdadeiro na visão antiga ao mesmo tempo que dá a ela seu
devido lugar.
Por isso é possível dizer que a visão da história antiga, do eterno retorno, não
é contra a razão, mas que se anula sob o dado da fé.
3. A HISTÓRIA COMO DRAMA DA REDENÇÃO HUMANA: A ENCARNAÇÃO
E A IGREJA
Nós temos, portanto, o surgimento de uma nova concepção da história com a
vinda de Jesus Cristo, verus Deus et homo.
2
PUECH, Henri Charles. La gnose e le temps. Eranosjahrbuch, XX, 1951, pgs. 60-61. Apud ELIADE,
Mircea. O sagrado e o profano. A essência das religiões. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 9697.
5
Como coloca o Jesuíta Jean Daniélou, o primeiro embate que os cristãos
enfrentaram na questão da concepção da história foi com a visão antiga (greco-romana)
da história. Nela não existiam fatos únicos – como fica claro da citação de Henri Charles
Puech –, mas para os cristãos os mistérios da vida de Cristo são não apenas únicos, mas
os principais de toda a história3.
Isso foi suficiente para que, desde o início, a Igreja tenha diferenciado a visão
antiga e a que surge com o mistério da Encarnação. É esse mistério que dá a justa medida
pela qual o cristão pode julgar todas as coisas. E também permite compreender,
verdadeiramente, o modo de existência da Igreja.
Mas o que é o Mistério da Encarnação? Conforme a definição dogmática dada
no Concílio da Calcedônia, de 451, a Igreja diz sempre o seguinte:
“[Definição] Seguindo, pois, os santos Padres, com unanimidade ensinamos
que se confesse que um só é o mesmo Filho, o Senhor nosso Jesus Cristo,
perfeito na sua divindade e perfeito na sua humanidade, verdadeiro Deus e
verdadeiro homem <composto> de alma racional e de corpo, consubstancial
ao Pai segundo a divindade e a nós segundo a humanidade, semelhante em
tudo a nós, menos no pecado, gerado do Pai antes do séculos segundo a
divindade e, nestes últimos dias, em prol de nós e de nossa salvação, <gerado>
de Maria, a virgem, a Deípara, segundo a humanidade;
Um só e o mesmo Cristo, Filho, Senhor, unigênito, reconhecido em duas
naturezas, sem mistura, sem mudança, sem divisão, sem separação, não sendo
de modo algum anulada a diferença das naturezas por causa da união, mas,
pelo contrário, salvaguardada a propriedade de cada uma das naturezas e
concorrendo numa só pessoa e numa só hipóstase; não dividido ou separado
em duas pessoas, mas um único e o mesmo Filho, unigênito, Deus Verbo, o
Senhor Jesus Cristo, como anteriormente nos ensinaram a respeito dele os
Profetas, e também o mesmo Jesus Cristo, e como nos transmitiu o Símbolo
dos Padres.”4
Com isso percebe-se que a encarnação é verdadeiramente um mistério, pois
o homem não pode, com sua razão sintetizadora, compreender como é possível que
alguém tenha duas naturezas e que essas estejam unidas, mas não confundidas (leia-se:
que não se torne uma só natureza). E é nessa fina tensão que se baseia toda a Igreja.
E é útil lembrar o porquê dessa definição existir. Os motivos são,
principalmente, dois, ou melhor, duas: a heresia de Nestório e a dos Monofisistas.
3
DANIÉLOU, Jean. The conception of history in the Christian tradition. Journal of Religion, vol. 30, no.
3, 1950, pp. 171–179, p. 171-172. Disponível em <www.jstor.org/stable/1197302>. Acessado em 22 de
agosto de 2019.
4
DENZINGER, H. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral. São Paulo:
Paulinas/ Loyola, 2007, p. 113
6
Elas são duas heresias chamadas cristológicas, pois se referem à natureza de
Cristo. Cada uma tem um conteúdo próprio, mas ambas estão unidas por cometerem o
mesmo erro: quebrarem a fina tensão da fé e buscarem uma explicação para o mistério.
Nisso erram igualmente, mas de maneira diferente: Nestório por negar a união das duas
naturezas, e Eutíques por negar a distinção.
A definição, como se vê, corrige os dois erros, e estabelece, assim, a justa
medida entre as duas naturezas, essa fina tensão que é marca de todo pensamento católico.
Para o presente tema essa fina tensão se traduz nos seguintes termos: em que
medida a vida humana tem um sentido natural – como os antigos já haviam percebido –
e em que medida ela tem um sentido sobrenatural – como revela a mensagem de Cristo.
Ou ainda, em outros termos, em que medida a vida é humana e em que medida é divina.
Com isso fica clara a relevância do mistério da Encanação. Dando a justa
medida das naturezas de Cristo, dá também a justa medida da vida dos cristãos, que se
resume a imitar Cristo.
E, por sua vez, lança luz sobre uma nova dimensão da história. Se para os
antigos a história é apenas o conjunto de feitos humanos e naturais – sendo os deuses
também parte da natureza –, para os cristãos a história é o conjunto de feitos humanos e
divinos.
Ou, ainda: existe a história que é feita apenas pelos homens, que é chamada
de história profana. Ela não tem sentido em si mesma, mas pode ter sentido na medida
em que participa da natureza divina.
Todas as partes da história profana que participam da natureza divina,
ascendem – ou são assuntas – à história sagrada. Nessa história, que pode ser chamada de
história por excelência, as ações dos homens estão unidas, mas não confundidas, às ações
de Deus. Os homens agem como Cristo age.
E, por último, existe a pura divindade, a eternidade. Ela não é história, pois
nela não existe tempo – como ensina Santo Agostinho no final das suas Confissões5 –, e
tudo que aconteceu, acontece e acontecerá debaixo da lua, lá é presente.
São essas as três partes constitutivas da concepção Cristã da história, e que
tem sua existência e diferenciação devidas ao Mistério da Encarnação. E não apenas a
ele, mas também ao Mistério ou Milagre da Igreja – como coloca o Pe. Sertillanges6. Isso
é assim, pois é apenas pela encarnação que se compreende, propriamente, a Igreja.
5
6
Cf. Livro XI. AGOSTINHO, Santo, Bispo de Hipona. Confissões. São Paulo: Paulus, 2010.
SERTILLANGES, A.D-. O milagre da Igreja. São Paulo: Ecclesiae, 2010.
7
A explicação é a seguinte: a Igreja é o corpo místico (corpus mysticum) de
Cristo. Quem assim ensina é São Paulo, na carta aos colossenses (Colossenses 1, 18):
“[Cristo] É a Cabeça da Igreja, que é o seu Corpo.”
Se Cristo é um com a Igreja, isso significa que a diferença apontada entre
cabeça (caput) e corpo (corpus) é apenas funcional. Isso é, dentro da compreensão cristã,
a cabeça e o corpo têm a “mesma natureza”7.
Por causa da identidade de naturezas, tudo que é dito de Cristo pode ser dito
da Igreja, e ela também participa do mistério da Encarnação8. Ela, portanto, é tanto
humana quanto divina, tanto visível quanto invisível, tanto temporal quanto eterna9. Por
causa disso ela age como mediadora entre Deus e os homens – pois Cristo, sua cabeça, é
o mediador –, e isso lhe confere um papel único como sujeito histórico.
Se Ela é mediadora, isso significa que seus atos são tanto humanos quanto
divinos, logo são intermediadores entre a temporalidade e a eternidade. Com Cristo e a
Igreja um novo grau na dimensão histórica se abre: a história sagrada, intermediadora
entre a história profana e a eternidade, e o elo de ligação entre uma e outra.
É esse novo grau na dimensão cristã da participação do homem na natureza
divina. Por meio da Igreja, seus atos também podem ascender ao nível sagrado, sem
perderem sua natureza profana, isto é, temporal. “Já não sou eu que vivo, mas é Cristo
que vive em mim” (Gálatas 2,20), diz São Paulo, ecoando o mistério da vida cristã.
A interpretação da história, nesse cenário, não pode ser simples. Ela não é
nem apenas o conjunto dos feitos do homem (história profana), nem dos feitos divinos
(eternidade), mas a união hipostática da humanidade e da divindade, a História Sagrada,
existente na história profana e na eternidade ao mesmo tempo.
7
PAPA PIO XII. Mystici Corporis. O corpo místico de Jesus Cristo e nossa união nele com Cristo.
Disponível
em
<http://w2.vatican.va/content/pius-xii/pt/encyclicals/documents/hf_pxii_enc_29061943_mystici-corporis-christi.html> Acessado em 04 de maio de 2019.
8
Exemplo disso é a vocação de São Paulo, quando ainda era Saulo. Nessa ocasião Cristo diz (Atos dos
Apóstolos 9,4) “Saulo, Saulo, por que me persegues?”, ao que Saulo pergunta: Quem és, Senhor?”, e ouve
como resposta: “Eu sou Jesus, a quem tu persegues.” Nesse momento Cristo já havia ascendido aos céus.
Quem Saulo perseguia era a Igreja, Corpus Christi. O que for feito e dito a Ela, é feito e dito a Ele, viceversa.
9
“In this intimate and unique unity of Christ and His Church is rooted the identification of Christ and His
Church, taken not only abstractly as a corporate entity but also concretely with His members. For it is not
the actions, attributes, and perfections of Christ alone that are ascribed to that entity which is the Body of
Christ, but also the state, actions, and qualities of the members are predicated of it. As a result, we have a
variety of attributes, often widely disparate, referring to the same Body of Christ.” GRABOWSKI,
Stanislaus J. St. Augustine and the Doctrine of the Mystical Body of Christ. Theological Studies, vol. 7,
no. 1, Feb. 1946, pp. 72–125, p. 79. Disponível em <https://doi.org/10.1177/004056394600700103>.
Acessado em 06 de maio de 2019.
8
“A visão cristã da história não se reduz, meramente, a uma crença no
direcionamento da história pela divina providência, mas se apresenta como a
crença na direta intervenção de Deus na vida da humanidade, através de Sua
ação concreta e pessoal em momento e lugares definidos. A doutrina da
encarnação, que é a doutrina central da fé cristã, é, ao mesmo tempo, o centro
da história e, portanto, torna-se natural e apropriado que nossa tradicional
história cristã esteja enquadrada em um sistema cronológico que toma o ano
da encarnação como seu ponto de referência, estabelecendo a contagem dos
tempos pretéritos e futuros a partir desse centro fixo.”10
Quem formulou essa tensão com uma fórmula irretocável foi Santo
Agostinho, na Cidade de Deus contra os Pagãos (412-426), que foi escrita para
“responder as acusações de que a deterioração que afligia o Império Romano
era atribuível ao crescimento do Cristianismo. Depois de argumentar que a
desintegração do império era facilmente rastreável à outras causas – p. ex. as
invasões bárbaras –, Agostinho começa, na segunda parte da obra, a traçar a
evolução da ‘cidade de Deus’ desde o seu início no começo da era do Velho
Testamento.”11
O cerne da demonstração de Santo Agostinho está na percepção de um sentido
na história profana apenas na medida em que ela participa da história sagrada, ou, em
outras palavras, “as civilizações, ao fim e ao cabo, revelam-se mortais como os homens;
não é isso o que importa. O que importa é compreender o sentido do drama e o seu lugar
no tempo e nas intenções divinas.”12
Se as cidades, os impérios e as civilizações são passageiros, neles não pode
estar o sentido da vida dos homens, pois de que isso tudo adiantaria? O verdadeiro sentido
só pode estar na cidade que nunca passa, a verdadeira cidade eterna: a cidade de Deus. E
só na medida em que os homens, individualmente ou coletivamente, participam da vida
da cidade de Deus, é que as suas vidas ganham sentido13.
“A história é, pois, um drama, o drama que põe frente a frente duas formações
humanas; e o seu fim deve ser elevar, tanto quanto possível, a cidade dos
homens até o seu arquétipo divino, até a Cidade ideal. Em outras palavras: o
esforço da civilização deve ser aproximar o homem do seu destino divino, isto
é, fazer aquilo que o poeta Baudelaire viria a resumir admiravelmente, quando
10
DAWSON, Christopher. Dinâmicas da história do mundo. São Paulo: É realizações, 2010, p. 344.
“Augustine’s City of God, as the first major attempt at the development of a comprehensive political
theology, is apologetic in its motivation, concerned with responding to accusations that the deterioration
afflicting the Roman Empire was attributable to the rise of Christianity. After arguing that the disintegration
of the empire was easily traceable to other causes – e.g. the barbarian incursions – Augustine begins in the
second half of the work to trace the evolution of the ‘city of God’ from its beginnings in the early Old
Testament eras.” KAINZ, Howard P. Democracy and the “Kingdom of God”. Wisconsin: Marquette
University Press, 1993, p. 84.
12
DANIEL-ROPS. História da Igreja: A Igreja dos tempos bárbaros, vol. 2. São Paulo: Quadrante, 1991,
p. 47.
13
“What really matters in history, according to Augustine, is not the transitory greatness of empires, but the
salvation or damnation in the world to come.” LÖWITH, Karl. Meaning in History. Chicago: The
University of Chicago Press, 1949, p. 168.
11
9
um dia exclamou que a verdadeira civilização não consiste nem nos lampiões
a gás nem nas máquinas a vapor, mas ‘na diminuição dos vestígios do pecado
original’.”14
E as duas cidades se diferenciam desde os seus fundamentos:
“Capítulo 28. Da Natureza das duas cidades, a terrena e a celeste.
Assim, as duas cidades são formadas por dois amores: a terrena pelo amor de
si (amor sui), até o desprezo de Deus; a celeste pelo amor a Deus (amor Dei),
até o desprezo de si. A primeira, em uma palavra, se gloria em si mesma; a
última no Senhor. Uma busca a glória dos homens; mas a maior glória da outra
é Deus, a testemunha da consciência. Uma eleva sua cabeça em sua própria
glória; a outra diz ao seu Deus: ‘Tu és minha glória e O que eleva minha
cabeça.’. Na primeira, os príncipes e as nações que ela subjuga são regidos
pelo amor ao poder; na outra, os príncipes e os súditos servem uns aos outros
em amor, os últimos obedecendo enquanto os primeiros pensam por todos. A
primeira se alegra com a própria força, representada nas pessoas dos seus
governantes; a segunda diz ao seu Deus: ‘Eu Te amarei, Ó Senhor, força
minha.’.”15
A diferença de fundamentos, por sua vez, implica diferentes caminhos
históricos percorridos pelas duas cidades, diferentes genealogias espirituais:
“A genealogia ancestral da cidade de Deus, no que estima Agostinho, foi
narrada explicitamente no Antigo Testamento: de um lado, a linha dos eleitos
e abençoados é traçada de um descendente de Adão, Abel, por meio de Noé e
seus filhos, Sem e Jafé, até os patriarcas Abraão, Isaque e Jacó, e daí por meio
de Jó (um não-Hebreu) e Israel, a Moisés, Josué e Davi até a emergência do
Messias, Jesus Cristo, e a Nova Dispensação. De outro lado, a linha da cidade
dos homens traça sua ancestralidade de outro descendente de Adão, Caim, por
meio do filho de Noé, Cam, e então por meio de Ismael, Esaú, os povos sem
Deus que se opunham a Israel – os Canaanitas, Assírios, Babilônicos etc.”16
Essa divisão, entretanto, não é estanque, pois, pela conversão (metanoia), os
homens podem passar de uma cidade para a outra, como foi caso de Santo Agostinho,
relatado em suas Confissões.
Dentro desse quadro, Agostinho distingue seis épocas na história, de acordo
com os seis dias da criação:
14
Ibid., p. 48.
AGOSTINHO, Santo, Bispo de Hipona. The city of God. 31ª Edition. Chicago, USA: Encyclopædia
Britannica, Inc., 1952. (The Great Books of the Western World, v. 18), p. 397.
16
“The ancient genealogy of the city of God, in Augustine’s estimation, was spelled out quite explicitly in
the Old Testament: On the one side, the line of the elect and the blessed is traced from Adam’s descendant
Abel through Noah and Noah’s sons Shem and Japeth, to the patriarchs Abraham, Isaac and Jacob, thence
through Job (a non-hebrew) and Israel, to Moses, Joshua, and David to the emergence of the Messiah, Jesus
Christ, and the new dispensation. On the other side, the line of the city of man traces its ancestry from
Adam’s descendant, Cain, through Noah’s son, Ham, then through Ishmael, Esau, and the various ungodly
people opposed to Israel – the Caananites, Assyrians, Babylonians etc.” KAINZ, Howard P. Democracy
and the “Kingdom of God”. Wisconsin: Marquette University Press, 1993, p. 85.
15
10
“A primeira se estende de Adão até o Dilúvio; a segunda de Noé até Abraão, e
a terceira de Abraão até Davi, com Nimrod e Nimus como seus opostos
perversos. A quarta se estende de Davi até o Exílio Babilônico, e a quinta daí
até o nascimento de Jesus Cristo. A sexta e última época se estende da primeira
até a segunda vinda de Cristo, no fim do mundo.”17
“Os dois primeiros períodos têm dez gerações cada um; o terceiro, o quarto e
o quinto têm catorze gerações cada, sendo a sexta idade indeterminada.”18
Essas épocas, como se pode ver, são da história sagrada, não da história
profana. O motivo disso é que, pra Agostinho e a Igreja, apenas a primeira tem um sentido,
logo é a única história que pode ser contada do começo ao fim do mundo. A história
profana não passa, por sua vez, de um conjunto de fatos em si mesmos desordenados, que
só ganham sentido à luz da história da salvação e apenas na medida em que participam
dela.
Vê-se com claridade que, nessa visão, o sentido da vida do homem –
indivíduo ou sociedade – não é horizontal, histórico e temporal, mas vertical, pois embora
exista no tempo e na história, é assunto e ascende, por meio de Cristo e da Igreja, para a
Eternidade. A vida genuína, portanto, se dá na história sagrada.
Isso tudo, como já foi dito, só pode ser concebido pela compreensão católica
do mistério da Encarnação, que era a de Santo Agostinho:
“A concepção de Cristo como um com a Igreja é a chave para a correta
compreensão da psicologia de Santo Agostinho frente a Igreja Católica (a
Catholica, como ele a chamava), da qual ele era bispo. Era uma Igreja
concebida na Encarnação e nascida da Redenção; animada pela vida divina de
Cristo; continuação da Sua vida na terra, ou melhor, era uma com Ele. O Santo
não poderia deixar de antever Cristo, Seu trabalho e Sua vida na Igreja. A Igreja
como o Corpo de Cristo é trazida ao alto relevo na escolha pela sua concepção
institucional; Cristo como a Cabeça é trazido ao foco a partir da concepção
completa da Igreja como o Corpo. Pois é a Cabeça que confere sua vida e
dignidade aos membros assumidos em união com ela. É a Cabeça que garante
um valor inestimável à Igreja como um todo. A atenção em Cristo como a
Cabeça não distrai nossa mente do teocentrismo nem menospreza a doutrina
da união com Deus. Pois o Bispo Africano está sempre consciente, na sua
doutrina, do Corpo Místico, da inseparabilidade da humanidade e da divindade
de Cristo, ou, para usar sua própria fala, da ‘divindade humana e humanidade
divina’ de Cristo. Na união de Cristo com Seus membros – na vida e
santificação de Cristo, que se impregna pelo seu organismo espiritual – repousa
17
“On the basis of this theological framework Augustine distinguishes six epochs, according to the sic days
of creation. The first extends from Adam to the Great Flood; the second from Noah and Abraham, and the
third from Abraham to David, with Nimrod and Nimus as their wicked counterparts. The fourth epoch
extends from David to the Babylonian Exile, the fifth from there to the birth of Jesus Christ. The sixth and
last epoch, finally, extends from the first to the second coming of Christ at the end of the world.” LÖWITH,
Karl. Meaning in History. Chicago: The University of Chicago Press, 1949, p. 170-171.
18
VOEGELIN, Eric. História das ideias políticas: Helenismo, Roma e Cristianismo Primitivo, vol. 01.
São Paulo: É Realizações Editora, 2012, p. 275.
11
a explicação do brilho da devoção, do zelo e do amor de Agostinho pela Igreja,
brilho que raramente encontramos.”19
Surge, então, a seguinte questão: como o homem pode participar na e da
história sagrada por meio da Igreja? Santo Agostinho responde com toda a Igreja: por
meio do batismo o homem é incorporado na Igreja20, em Cristo, recebe o perdão dos seus
pecados e tem o pecado original apagado – que é a santificação estática. E não apenas
isso, mas agora suas obras podem valer como as de Cristo, em virtude da união corporal,
e podem contribuir para a salvação e santificação – não mais estática, e sim dinâmica (Cl.
1,24)21. Desse modo o homem age na história sagrada e participa da natureza divina.
Em suma, a visão Cristã da história vê duas histórias que correm em paralelo.
A sagrada, história propriamente dita, pode ser contada desde a criação do mundo até o
19
“The conception of Christ as one with the Church is the key to a right understanding of St. Augustine’s
psychology toward the Catholic Church (the Catholica, as he calls it) of which he was a bishop. It was a
Church conceived in the Incarnation and born of the Redemption; it was animated by the divine life of
Christ; it was a continuation of His life on earth, or rather, it was one with Him. The Saint could not but
envisage Christ, His work and His life in the Church. The Church as the Body of Christ is brought into bold
relief in preference to the institutional conception; Christ as the Head is brought into sharp focus from the
whole concept of the Church as the Body. For it is the Head that lends its life and dignity to members
assumed into union with it. It is the Head that assures inestimable value to the Church as a whole. Nor does
the attention focused upon Christ the Head distract our mind from theocentricism or detract from the
doctrine of union with God. For the African Bishop is ever mindful in his theology of the Mystical Body,
of the inseparability of Christ’s humanity from His divinity, or to use his own phrase, of Christ’s ‘human
divinity and divine humanity.’ In the union of Christ with His members – in Christ’s life and sanctification
which suffuses itself through this spiritual organism – lies the explanation of Augustine’s glow of devotion,
zeal, and love for the Church, the like of which we seldom find.” GRABOWSKI, Stanislaus J. St. Augustine
and the Doctrine of the Mystical Body of Christ. Theological Studies, vol. 7, no. 1, Feb. 1946, pp. 72–125,
p. 103-104. Disponível em <https://doi.org/10.1177/004056394600700103>. Acessado em 06 de maio de
2019.
20
“Hence all such as have received the sacrament of baptism in the Church are said ‘to have been
regenerated in Christ and born from above’; as they become new men, renovated by the baptism, and have
put on Christ. These effects produced in the baptized subject are concomitant with, and inseparable from,
the incorporation into the Body of Christ. For Augustine tells his hearers: ‘When you have been baptized,
then you have been born members.’ Just as he pointed out that it is impossible to become a member of the
visible Church except by the sacrament of baptism, so the incorporation he now speaks of is impossible
unless it be by baptism or martyrdom (passio) in behalf of Christ. So closely united, therefore, in the
sacrament of baptism with incorporation into the Body of Christ, that Augustine speaks of baptism as the
actual incorporation into the Body of Christ (‘compages Corporis Christi’), which is the effect of baptism,
rather than the sacrament which causes that incorporation. ‘For this is to evangelize Christ, no to say only
that which is to be believed about Christ, but also that which is to be observed by him who approaches the
union of the Body of Christ [ad compagem Corporis Christi].’” Ibid., p. 84-85.
21
“The Head, of course, sanctifies the Body by imparting its own life and power. This sanctification is of
a twofold nature, which we may term, in modern nomenclature, static and dynamic. Static sanctification,
which may be described as automatic, is that which results from the very union of the Body with Head.
Dynamic sanctification, which may be described as meritorious, results from the powers bestowed upon
members of the Body by the Head in order that they may sanctify themselves through the actions which
they perform with the aid of grace. Whilst the former type of sanctification is common to all who are united
in the Body of Christ, the latter is measured according to the degree of co-operation by the members with
the powers bestowed upon them by the Head for their self-sanctification. Some, therefore, are more holy,
others less, and still others are sinners.” Ibid., p. 81.
12
seu fim, e seu sentido é a salvação dos homens que, pela Graça divina e pela sua ação,
buscarem o Reino de Deus e a sua justiça.
E a profana, em si sem sentido último, por ser passageira, mas que pode ser
redimida quando os homens e as sociedades colocam seus feitos à serviço de Cristo em
direção à eternidade. Em outras palavras, a história profana se torna história sagrada na
medida em que participa da natureza divina.
Aqui vemos com claridade que a vida dos homens nessa concepção é muito
mais viva, têm muito mais sentido, do que na visão meramente natural dos antigos. Aqui
o homem tem um verdadeiro sentido para viver, e sabe que viver e morrer, sendo
realidades naturais, não são realidades últimas.
Manter esse balanço, entretanto, é difícil22. Só pelo auxílio da graça, e, ao
mesmo tempo, pela cooperação ativa com ela. E por causa da dificuldade de manter esse
balanço, não poucas vezes muitos homens o abandonaram. O surgimento da modernidade
se dá pelo maior de todos os abandonos feitos até hoje: o do protestantismo.
4. A DIVISÃO DA CRISTANDADE: AS HERESIAS DAQUELES QUE
PROTESTAM
Quando Lutero rompeu com a Igreja e fundou sua seita, ele destruiu, para si
e para todos que influenciaria – direta ou indiretamente – a visão cristã da história. Como
visto, ela só existe porque vê a Igreja como tendo a mesma natureza de Cristo, sendo a
mesma realidade com Ele, isto é, humana e divina.
É isso que permite que ela seja mediadora entre Deus e os homens, bem como
que os homens, por participarem dela, participem da natureza divina e também da história
sagrada.
Se a Igreja não for compreendida dessa maneira, mas de outra, a história
sagrada – se é que sobra alguma – já não é mais a mesma.
22
"Uncertainty is the vey essence of Christianity. The feeling of security in a 'world full of gods' is lost with
the gods themselves; when the world is de-divinized, communication with the world-transcendent God is
reduced to the tenuous bond of faith, in the sense of Heb. 11:1, as the substance of thins hoped for and the
proof of thing unseen. Ontologically, the substance of things hoped for is nowhere to be found but in faith
itself; and, epistemologically, there is no proof for things unseen but again this very faith. The bon is
tenuous, indeed, and it may snap easily. The life of the soul in openness toward God, the waiting, the periods
of aridity and dullness, guilt and despondency, contrition and repentance, forsakenness and hope against
hope, the silent stirrings of love and grace, trembling on the verge of a certainty that if gained is loss – the
very lightness of this fabric may prove too heavy a burden for men who lust for massively possessive
experience." VOEGELIN, Eric. (1952). New Science of Politics. 1º Edition. Missouri, USA: University of
Missouri Press, 2000. (The Collected Works of Eric Voegelin, v. 5), p. 187-188.
13
Analisando os traços característicos da modernidade – bem como sua relação
com o protestantismo – o sociólogo luterano Ernst Troeltsch nota que
"Uma vez que não é mais possível separar e diferenciar um do outro a vida
puramente terrena e a vida guiada pelo poder de Deus, a vida aparece como ou
puramente humana, ou preenchida totalmente com o Espírito de Deus; que, no
mais das vezes, trabalham ambas para o mesmo resultado final."23
Essas duas visões modernas da vida, que parecem contraditórias, são ambas
consequências da quebra da visão cristã, de forma espantosamente semelhante à que as
heresias cristológicas são da quebra do Mistério da Encarnação: a primeira procede pela
negação da união entre a natureza humana e divina, que acontece na história sagrada; e a
segunda pela confusão entre as duas, que resulta numa confusão entre a história profana
e a Eternidade, que não é mais a história sagrada, mas a história universal.
A primeira é o que no presente artigo se chama de visão da história
estritamente protestante, e a segunda de Filosofias da História. Como as duas são
existentes hoje, e são fonte de constante tentação para os cristãos – pois podem, a qualquer
momento, abandonar a fina tensão na qual se baseia a visão da Igreja, e cair numa negação
completa do sentido da história ou numa afirmação da história como tendo sentido em si
mesma –, a análise se faz útil para, compreendendo as possibilidade de desvio, entender
o justo e fino caminho da concepção da história católica.
Antes, porém, é necessário apontar algo que ficou pendente sobre a visão
greco-romana, mas que agora é adequado: sim, a visão dela quanto a história é o que
podemos chamar de visão natural ou visão da história como parte do processo cíclico
natural. Ao mesmo tempo, porém, ela é uma visão divinizada da história, pois a crença
greco-romana era de que o cosmos era eterno, e que os movimentos dele eram os
movimentos divinos.
Esse aspecto, que foi inteiramente rejeitado pela Igreja, retorna de certa
maneira nas duas visões modernas: na primeira pela redução, novamente, da sociedade à
natureza, mesmo que não divinizado, mas ainda assim sofrendo como se fosse; e a
segunda pela divinização do cosmos, mas que agora já não se move circularmente, mas
"progride" até atingir seu estágio de perfeição.
23
"Since it is no longer possible to separate and mark off from one another the purely earthly life and the
life led by the power of God, life appears wither as purely human, or as filled in its whole extent with the
Spirit of God; which often enough works out in the end to much the same result." TROELTSCH, Ernst.
Protestantism and progress. A historical study of the relation of protestantism to the modern world.
Eugene, OR: Wipf and Stock Publishers, 1999, p. 24.
14
É disso que tratam os tópicos seguintes.
4.1 A história como fofoca: a rejeição da história pela rejeição da sociedade
É comumente notado por quem quer que se debruce sobre o problema do
protestantismo que as diversas seitas que surgiram depois da revolta de Lutero têm, como
ponto em comum, apenas a oposição à Igreja.
Embora isso pareça um pouco caricato – e mesmo reducionista – há uma
verdade aí: que os diversos grupos que surgem à partir do protestantismo têm perfeita
liberdade de escolher como irão se guiar, e não precisam – como muitas vezes não fazem
– seguir as diretrizes que seguem os luteranos e os calvinistas.
Eles podem, como dizem alguns grupos batistas, mesmo idealizarem para si
ascendentes em todas as épocas, e traçarem – retroativamente, claro – sua história até
mesmo a São João Batista ou a Adão24.
Mas não há qualquer limite verdadeiro que os impeça de fazer o que bem
entenderem. Tudo depende de um mínimo de aceitação social para que se forme um
pequeno grupo, e a partir daí já é possível se chamar de igreja.
O que eles não podem fazer é admitir a existência da Igreja tal e qual a Igreja
afirma, pois se assim fizerem, terão que se unir à Ela, e então deixarão de estarem
separados.
E, à luz do que foi formulado sobre a visão cristã da história, sabemos que
negar a existência da Igreja, mesmo que parcialmente, traz sérias consequências para a
compreensão da história.
Pois a Igreja tal como concebida por Ela mesma ocupa uma posição diferente
dos outros agentes históricos. Não que tenha uma terceira natureza, mas que, sendo tanto
divina como humana, age sobre a história profana não apenas como agem os homens: age
também como age Deus, ou seja, concedendo graça. E mais, faz a passagem da história
profana para a eternidade.
Por isso, quando os protestantes negam que a Igreja seja visível, negam
também – em graus diferentes, claro – que os homens possam participar da natureza
divina por meio da graça, pois negam que exista alguém responsável por fazer a mediação
da graça. Negam, por consequência, a existência da história sagrada.
24
Cf. o panfleto de J. M. Caroll chamado Trail of Blood.
15
Assim, separando o aspecto visível e o invisível da Igreja, fazem duas coisas:
reduzem a organização institucional da Igreja a uma instituição meramente humana e
permitem a participação na natureza divina apenas por um modo espiritual, a fé no sentido
luterano.
A história, portanto, torna-se apenas profana, pois tudo que existe são
instituições humanas. Ao mesmo tempo, porém, o indivíduo pode, por um dom espiritual
e íntimo, estar com Deus, mas sem que isso implique qualquer efeito prático para a sua
vida.
Em outras palavras, a história não tem um sentido, apenas a vida individual,
e é um sentido estático25, puramente vertical: o sentido é crer em Deus e ser redimido, e
esperar passivamente o fim da vida ou da história.
É essa a visão estritamente protestante. É verdade que nem todas as igrejas
protestantes a aceitam, mas mesmo os calvinistas de hoje – que falam em influência do
cristão na cultura et cetera26 – não conseguem se desvencilhar desse fundamento.
Como ela nega sentido para a vida de uma sociedade, ou mesmo de uma
família – por afirmar o sentido último apenas para o indivíduo –, reduz a disciplina da
história a, como dizia Malebranche27, mera fofoca, conhecimento inútil. É esse o clima
de opinião que se segue ao protestantismo, e que, sim, tem profunda relação com as
correntes racionalistas do começo da modernidade, mas que não parece deixar de beber
nas fontes do protestantismo. Não apenas a história perde qualquer sentido possível, mas
deixa de ser relevante.
Entretanto, sob consideração mais detalhada, a história apenas é relevante na
medida em que tem um sentido. Não foi apenas por não terem meios de registro que os
gregos e os romanos escreveram poucas histórias. É certo que eles têm suas obras, mas
se comparadas com a quantidade de obras que existem sobre o assunto nessa nossa
sociedade ocidental, quiça até mesmo no começo já tínhamos mais obras de história que
os gregos e romanos. Quanto a isso é necessário lembrar que Aristóteles dizia que o mito,
ou a poesia, é mais verdadeiro que a história28.
25
Cf. nota 20, pg. 11.
Os maiores expoentes dessa corrente são Abraham Kuyper (Lectures on Calvinism) e Herman
Dooyeweerd (Roots of Western Culture, Christian Philosophy and the Meaning of History e In The
Twilight of Western Thought).
27
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: Do humanismo a Kant, vol. 2. São Paulo:
Paulus, 1990, p. 640.
28
51b "The historian and the poet are not distinguished by their use of verse or prose; it would be possible
to turn the works of Herodotus into verse, and it would be a history in verse just as much as in prose. The
distinction is this: the one says what has happened, the other the kind of thing that would happen.
26
16
Para os cristãos, especificamente católicos, a história é importante não por si
mesma, mas por ser, também, história da redenção e lugar no qual Deus se manifesta. É
apenas pelo fato da Encarnação que, desde sempre, foram feitos relatos sobre a história
da Igreja.29
Essa parte termina notando que essa visão, chamada aqui de estritamente
protestante, é raramente encontrada hoje em dia. Apenas os grupos mais sectários a
mantêm, e ainda assim não sem algumas atenuações.
A verdade é que ela é uma negação da história, do sentido da história, o que
termina, por sua vez, negando também o sentido da vida para um indivíduo. A cor dessa
vida terrena existe na medida em o homem vê a possibilidade de que ela seja mais do que
parece a olhos nus, de que ela seja também santificada. Se essa possibilidade não existe,
a vida perde a cor, e o homem cai no desespero.
O luterano pode até se manter vivo pelo desejo que chama de fé, mas fé sem
obras é morta, e esse é o destino dessa negação do sentido da história: a morte, o niilismo.
No final, Nietzsche não é mais alemão do que Lutero.30
4.2 A história como progresso: as filosofias da história
Mas essa visão estritamente protestante não é a única que decorre da rejeição
da Igreja. Outra, que é a mais influente na modernidade, decorre do mesmo erro, mas de
uma maneira diferente: ao invés de negar o sentido para a história, afirma total sentido
para ela, a ponto de não conceber qualquer visão sobrenatural.
Foi dito acima que os católicos consideram que a história profana tem sentido
na medida em que participa da história da sagrada, da natureza divina. O que acontece é
que, não tendo mais a Igreja, o pensamento moderno escolheu confundir a história
profana com a eternidade, a humanidade com a divindade, e forma com isso a concepção
de uma história que progride no tempo, e que é a realização e progressiva revelação do
For this reason poetry is more philosophical and more serious than history. Poetry tends to express
universals, and history particulars. The universal is the kind of speech or action which is consonant with a
person of a given kind in accordance with probability or necessity; this is what poetry aims at, even though
it applies individual names. The particular is the actions or experiences of (e.g.) Alcibiades." ARISTOTLE.
Poetics. London: Penguin Books, 1996, p. 16.
29
O primeiro é, inclusive, o livro canônico dos Atos dos Apóstolos, escrito por São Lucas.
30
" Whenever in modern intellectual history a revolt against the maximum of differentiation was undertaken
systematically, the result was the fall into anti-Christian nihilism, into the idea of the superman in one or
the other of its variants – be it the progressive superman of Condorcet, the positivistic superman of Comte,
the materialistic superman of Marx, or the Dionysiac superman of Nietzsche." VOEGELIN, Eric. (1952).
New Science of Politics. 1º Edition. Missouri, USA: University of Missouri Press, 2000. (The Collected
Works of Eric Voegelin, v. 5), p. 152.
17
Espírito de Deus, que terminará com o estabelecimento de um paraíso na terra, no fim da
história.
Karl Löwith, que é uma das referências principais nesses estudos, define uma
filosofia da história como “uma interpretação sistemática da história universal de acordo
com o princípio pelo qual os eventos históricos e suas sucessões estão unificados e
dirigidos para um último sentido.”31
Desse erro tomam parte quase todos os pensadores modernos, especialmente
os da Europa Continental. Os mais notáveis são Hegel, Marx e Comte, mas muitos outros
também pensaram da mesma maneira.
Até hoje esse é o modo comum de pensamento. Quando se diz que a tarefa
do homem é criar um mundo melhor, que o progresso é inevitável, quando se acusa
alguém de ser retrógrado, quando o STF decide uma questão com base no princípio da
vedação ao retrocesso, está se ecoando essa ideia fundamental, de que existe progresso
na história, e que o rumo inevitável do mundo é caminhar em tal ou qual sentido.
Também de outra maneira esse pensamento se manifesta: quando se dá mais
importância aos bens materiais e se descuida dos bens da alma, esquecendo-se que esses
bens só têm verdadeiro sentido se forem santificados pela graça recebida e a eles aplicada
pelo uso ordenado ao bem.
Em outras palavras: as filosofias da história imanentizam tudo aquilo que é
próprio da eternidade, a começar pelo próprio Deus, que se torna meramente a força da
história que se manifesta progressivamente, e o homem passa a ver como sentido da sua
vida a realização futura, especificamente, a realização material – mesmo que numa utopia.
Essa é a concepção da história mais aceita no Ocidente atual, e a quarta e
última que esse breve ensaio pretendia abordar. É verdade que os diversos pensadores
divergem quanto a certos detalhes na construção das suas próprias filosofias da história,
mas a mentalidade, a forma mentis, se mantém, e ainda é uma "força" ativa na sociedade.
5. CONCLUSÃO
31
“In the following discussion the term “philosophy of history” is used to mean a systematic interpretation
of universal history in accordance with a principle by which historical events and successions are unified
and directed toward an ultimate meaning”. LÖWITH, Karl. Meaning in History. Chicago: The University
of Chicago Press, 1949, p. 1.
18
Esse ensaio tinha o objetivo de apresentar as quatro concepções Ocidentais
da história – bem como suas respectivas relações com as visões da vocação ou do modo
de vida dos homens.
Dessa perspectiva comparada algumas conclusões podem ser tiradas.
Em primeiro lugar, não há concepção da história que prescinda dos elementos
teológicos. Mesmo as visões modernas têm como origem a adaptação da visão católica
da história, que é fundamentalmente teológica.
Parece, portanto, que, a única possibilidade para o homem que busca uma
vida sem qualquer resquício de religião é o mais absoluto niilismo. Mas é necessário
lembrar que esse niilismo, se não leva a morte do corpo, leva à soberba máxima: o
homem, sem ter sentido e sem ter quem lhe dê sentido para a vida, toma para si a
capacidade de criar o sentido. Acaba, portanto, retornando a uma visão religiosa, mesmo
que assim rejeite ser.
Em segundo lugar, que, por comparação, é possível perceber os diferentes
graus de complexidade e de tensão das quatro concepções. Dentre todas, a católica é a
que se destaca por ser a mais complexa. Na linguagem de Voegelin, por ser a mais
diferenciada, a que diferencia mais os elementos da realidade e que melhor os mantém
em tensão.
A visão antiga, embora seja complexa, é sólida, isto é: tem sólidos
fundamentos e tende à imobilidade. O mundo existe como existe, e ao homem cabe a ele
se submeter.
E as duas concepções modernas são, por sua própria "natureza",
pretensamente simples. Mas essa pretensa simplicidade vem pela tentativa de explicar
por um princípio todos os elementos que diferenciou a concepção católica. Acabam, por
esse motivo, estando perpetuamente em crise, pois toda diferença de opinião sobre
qualquer aspecto específico da realidade exige a discussão dos fundamentos e a efetiva
refundação dessas concepções.
São, portanto, instáveis e inconstantes, e apenas formam a mentalidade dos
homens por alguns instantes, até serem substituídas por suas novas irmãs.
E, em terceiro lugar, da comparação se percebe a relevância das concepções
da história. Se é verdade que isso era um pressuposto do trabalho, é verdade também que,
tendo se desenvolvido, não falhou na sua capacidade explicativa. E, ainda, lançou luz
sobre como a existência das sociedades tal qual existem depende dessas visões e dos
homens que as aceitam.
19
6. BIBLIOGRAFIA
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