Academia.eduAcademia.edu

Presidencialismo de Coalizão em Movimento

A promulgação da Constituição Federal de 1988 (CF/1988) selou o processo de abertura política iniciado em princípios dos anos 1980, década que teve as eleições de 1985 como marco histórico do retorno à democracia no Brasil. Desde então, o país vive o mais longo período democrático de sua história. Mas, ao longo desse período, ainda que pesem a estabilidade e a ausência de eventos críticos capazes de causar rupturas radicais, mudanças institucionais significativas aconteceram. As instituições políticas no Brasil passaram por alterações incrementais e, especialmente nos últimos anos, uma aguda crise política impôs novas reflexões sobre papel do Poder Legislativo no funcionamento do presidencialismo de coalizão no país. Este livro discute as instituições políticas ao longo deste período, propondo interpretações plurais sobre suas continuidades e mudanças.

PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO edições câmara PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Câmara dos Deputados 56ª Legislatura | 2019-2023 Presidente Rodrigo Maia 1º Vice-Presidente Marcos Pereira 2º Vice-Presidente Luciano Bivar 1ª Secretária Soraya Santos 2º Secretário Mário Heringer 3º Secretário Fábio Faria 4º Secretário André Fufuca Suplentes de secretários 1º Suplente Rafael Motta 2ª Suplente Geovania de Sá 3º Suplente Isnaldo Bulhões Jr. 4º Suplente Assis Carvalho Secretário-Geral da Mesa Leonardo Augusto de Andrade Barbosa Diretor-Geral Sergio Sampaio Contreiras de Almeida Câmara dos Deputados PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Giovana Perlin Manoel Leonardo Santos (Organizadores) edições câmara Câmara dos Deputados Diretoria Legislativa: Afrísio de Souza Vieira Lima Filho Centro de Documentação e Informação: André Freire da Silva Coordenação Edições Câmara dos Deputados: Ana Lígia Mendes Diretoria de Recursos Humanos: Milton Pereira da Silva Filho Centro de Formação, Treinamento e Aperfeiçoamento: Juliana Werneck de Souza Coordenação de Pós-Graduação: Fabiano Peruzzo Schwartz Editores: Inaldo Marinho e Luzimar Gomes de Paiva Preparação de originais e revisão: Seção de Revisão Projeto gráfico: Giselle Sousa e Luiz Eduardo Maklouf Capa: Giselle Sousa Diagramação: Alessandra Castro e Giselle Sousa E-book Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) Coordenação de Biblioteca. Seção de Catalogação. Bibliotecária: Mariangela B. Lopes – CRB1: 1731 Presidencialismo de coalizão em movimento [recurso eletrônico] / Giovana Perlin, Manoel Leonardo Santos (organizadores). – Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2019. Versão e-book Disponível, também, em formato impresso. Modo de acesso: livraria.camara.leg.br ISBN 978-85-402-0776-9 1. Brasil. Congresso Nacional. Câmara dos Deputados. 2. Presidencialismo, Brasil. 3. Política e governo, Brasil. 4. Relação legislativo-executivo, Brasil. 5. Comissão parlamentar, Brasil. 6. Liderança política, Brasil. I. Perlin, Giovana. II. Santos, Manoel Leonardo. CDU 342.38(81) ISBN 978-85-402-0775-2 (papel) ISBN 978-85-402-0776-9 (e-book) Direitos reservados e protegidos pela Lei nº 9.610, de 19/2/1998. Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida por qualquer meio sem prévia autorização da Edições Câmara. Venda exclusiva pela Edições Câmara. Câmara dos Deputados Centro de Documentação e Informação – Cedi Coordenação Edições Câmara – Coedi Palácio do Congresso Nacional – Anexo 2 – Térreo Praça dos Três Poderes – Brasília (DF) – CEP 70160-900 Telefone: (61) 3216-5833 livraria.camara.leg.br Sumário Apresentação .................................................................... 7 por Juliana Werneck de Souza Apresentação .................................................................... 9 por Ricardo Fabrino Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 por André Rehbein Sathler Guimarães e Ricardo de João Braga Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13 Parte I – O presidencialismo de coalizão em movimento. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23 Do presidencialismo de coalizão ao parlamentarismo de ocasião: análise das relações entre Executivo e Legislativo no governo Dilma Rousseff . . . . . . 25 Fortalecimento das comissões mistas: poder de barganha e desgaste na coalizão a partir de 2012 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61 Tempo, estratégia e judicialização da agenda legislativa: as reações do Supremo Tribunal Federal aos mandados de segurança originários impetrados contra atos legislativos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89 Mutações orçamentárias e comportamentos políticos na democracia brasileira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 117 O Parlamento sob influência: transformações no Legislativo e na representação de interesses organizados (1983/2016). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 163 Parte II – Os partidos em movimento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 199 Por que chegamos a tanto e que importância isso tem? Considerações sobre a fragmentação partidária no Brasil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 201 Ideologia e comportamento na Câmara dos Deputados (2003-2015) . . . . . . . . 229 Inexistência de impacto dos ciclos eleitorais sobre a disciplina parlamentar na Câmara dos Deputados . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 259 A relação entre as estratégias eleitorais e a organização das lideranças partidárias na Câmara dos Deputados . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 287 Faces partidárias na esfera virtual: a atuação política das lideranças da Câmara dos Deputados no Facebook . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 315 Mudança institucional e financiamento político: o papel dos partidos nas eleições de 2014 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 353 Parte III – O poder das comissões em movimento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 401 Do plenário às comissões: mudança institucional na Câmara dos Deputados . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 403 Interesses organizados nas comissões parlamentares: percepções de grupos de interesse e assessores parlamentares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 433 Sub-representação feminina no sistema de comissões parlamentares: um indicador da exclusão das mulheres do jogo político . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 459 Considerações finais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 481 Sobre os autores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 491 7 Apresentação Este livro surge como o coroamento de uma iniciativa digna de celebração: a parceria técnico-científica entre os programas de pós-graduação do Centro de Formação, Treinamento e Aperfeiçoamento da Câmara dos Deputados (Cefor/CD) e da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Resulta do esforço coletivo, institucional e acadêmico e da inquietação epistemológica própria de pesquisadores e profissionais comprometidos não somente com a busca rigorosa de explicações para questões relevantes do ponto de vista científico, social e político, mas também com a disseminação de valores democráticos e com a reflexão crítica que contribua para o aprimoramento do desempenho institucional do Legislativo. É publicado em um momento particularmente especial, quando são celebrados os vinte anos de criação do Cefor, os dez anos de inauguração da nova sede – projetada para acolher alunos e docentes e múltiplas atividades de modo mais integrado e inspirador – e, ainda, os cinco anos do credenciamento junto ao MEC para a oferta do mestrado profissional em Poder Legislativo, na área de ciência política e relações internacionais. O propósito da obra é analisar as recentes mudanças no sistema político brasileiro sob a ótica da Câmara dos Deputados. Diversas perspectivas teórico-metodológicas são aqui representadas com unidade e coerência, de modo a propiciar aos interessados uma leitura aprazível, abrangente e bem articulada, que pode ser sequencial ou intercalada, a critério do leitor. A partir de três eixos ou dimensões estruturadoras do conteúdo – as relações entre o Legislativo e outros Poderes, os partidos políticos e as comissões parlamentares – o leitor sente-se enveredar por um percurso de perguntas instigantes e respostas eventualmente desconcertantes, que levam necessariamente a novas problematizações. Cada capítulo deixa ao final um gosto do porvir. Trata-se de publicação oportuna que, longe de pretender exaurir o complexo tema da evolução do presidencialismo de coalizão, lança novos olhares, oferece perspectivas de análise importantes, revisita modelos, abre espaço para novas questões e, finalmente, convida à continuidade do diálogo sobre o tema. 8 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Redigida a várias mãos e com precioso zelo, esta obra é mais uma evidência inequívoca da relevância institucional da atividade de pesquisa viabilizada pelo programa de pós-graduação, particularmente pelo mestrado profissional e pelas ações de cooperação científica, como a principiada com o Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFMG. O Cefor acredita nas potenciais implicações positivas desta publicação, do ponto de vista teórico, prático e sociopolítico, e no seu propósito mais elevado de contribuir para o fortalecimento do Poder Legislativo e, em certa medida, para o amadurecimento da democracia brasileira. Juliana Werneck de Souza Diretora do Centro de Formação, Treinamento e Aperfeiçoamento da Câmara dos Deputados 9 Apresentação Não se faz ciência sozinho. O trabalho contínuo de construir e testar hipóteses, de compreender fenômenos e seus significados e de avaliar o funcionamento de mecanismos causais e suas implicações depende da estruturação de uma comunidade de pesquisadores. Essa comunidade opera por meio da crítica sistemática e do escrutínio mútuo, os quais permitem verificar a validade das explicações elaboradas e dos achados encontrados. A comunidade também opera por meio da cooperação entre pesquisadores para a estruturação de investigações coletivas de maior monta. Enfrentar problemas significativos requer uma diversidade de enfoques, procedimentos, ângulos e questões, demandando a organização de equipes complexas com investigadores que detêm competências diversas. O problema enfrentado por esta obra é, claramente, desta natureza. Entender as mudanças no nosso presidencialismo de coalizão e, mais especificamente, as transformações no Poder Legislativo é uma empreitada necessariamente coletiva. Empreitada esta que se mostra particularmente relevante em um momento de grandes incertezas políticas, no qual as próprias instituições buscam repensar suas características e práticas. Nesse contexto, a compreensão do funcionamento das instituições políticas e das relações entre elas é fundamental não apenas para a revisão de formas canônicas de interpretar a política brasileira, mas também para a sobrevivência dessas mesmas instituições e da democracia no país. Essa tarefa demanda um conjunto de estudos voltados a flancos distintos do fenômeno, envolvendo pesquisadores dispostos a coopera, de forma crítica e constante, para o avanço do conhecimento em um terreno movediço. A parceria que alicerça este livro se estrutura nessa direção. Pesquisadores vinculados ao Programa da Pós-Graduação em Ciência Política da UFMG e ao Mestrado Profissional em Poder Legislativo do Cefor reuniram-se para pensar, de modo articulado, as transformações do processo legislativo, as relações entre Poderes e as formas por meio das quais grupos de interesse afetam decisões políticas. Fazem-no por meio de estudos voltados a diferentes facetas do fenômeno e de encontros de discussão crítica sobre os trabalhos produzidos. Desta forma, reúnem-se em um esforço conjunto para pensar um problema relevante do ponto de vista teórico e social. 10 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Esse esforço conjunto envolvendo Cefor e PPGCP/UFMG é extremamente rico e não se reduz a esta obra. Mais do que o fim de uma colaboração, o livro surge como um indício das possibilidades do trabalho em parceria. Pesquisadores das duas instituições têm interesse em uma agenda perene que articula pesquisa acadêmica de fronteira com conhecimentos práticos e dados sobre o Poder Legislativo brasileiro. Interessa-lhes viabilizar uma agenda ampla e multifacetada de investigações, capaz de compreender os desafios e as tendências que se colocam às Casas legislativas, contribuindo, assim, para repensá-las. O PPGCP/UFMG sente-se honrado em participar dessa cooperação, que parte da premissa de que o fortalecimento do Poder Legislativo é fundamental ao fortalecimento da própria democracia brasileira. Prof. Dr. Ricardo Fabrino Coordenador do Programa de Pós-graduação em Ciência Política da UFMG 11 Prefácio O presente livro surge em um momento de exasperação após vários anos de crise econômica e política. Em um momento assim, por que falar de Parlamento? A desesperança, prima gêmea da desconfiança, grassa. Segundo pesquisas com diferentes abordagens e metodologias, a percepção do Congresso Nacional perante a população afunda. Por que, afinal, falar de Parlamento? Para o bem ou para o mal, o Parlamento foi ator-chave ao longo da crise. Para citar dois episódios de maior grandeza, foi o Parlamento que afastou a chefe do Poder Executivo ao aprovar o impeachment da presidenta Dilma Rousseff e que decidiu manter o chefe do Poder Executivo em seu cargo ao rejeitar o prosseguimento das denúncias feitas pela Procuradoria-Geral da República ao presidente Michel Temer. Insista-se: duas decisões da maior gravidade e em um regime presidencialista, por vezes chamado de hiperpresidencialista, dada a alta concentração de poderes nas mãos do chefe do Poder Executivo. Essas decisões apontam para um Congresso forte ou fraco? A pergunta parece ser tola. Infelizmente, porém, não há resposta simples ou direta, que não implique várias reflexões e sob diversos ângulos, como as que são aqui tratadas. O Brasil deu uma contribuição muito rica ao debate sobre multipartidarismo em sistemas presidencialistas, ocasionando uma revisão no mainstream da ciência política internacional: já não é possível tratar do assunto sem fazer referência ao “presidencialismo de coalizão”, conceito autenticamente nacional. Em que pese o crédito a Sérgio Abranches, seu formulador original, pode-se dizer que é um conceito da academia brasileira, tal a quantidade de leituras, releituras e aperfeiçoamentos que sofreu ao longo das duas últimas décadas. A crise atual colocou em xeque também a academia. Será que, como afirmou um partido político em propaganda durante as eleições de 2018, o presidencialismo de coalizão é na verdade presidencialismo de cooptação? Será que a dinâmica entre multipartidarismo e presidencialismo só funcionou à base de transações espúrias? E, se assim for, por que as transações espúrias deixaram de funcionar? 12 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Bravamente, contudo, a academia segue buscando respostas. Entre elas, o presente livro, que assume o desafio de analisar justamente o presidencialismo de coalizão em movimento: a mudança institucional que estamos vivendo. Com todos os percalços de analisar o presente, o livro ultrapassa o campo da mera opinião e traz como fundamento de sua possibilidade científica a solidez das pesquisas anteriores e do que foi acumulado em termos de conhecimento sobre o funcionamento do sistema. Dilma Rousseff operou precariamente o sistema, por seu apego à tecnocracia e repúdio ao político. Michel Temer saturou o sistema, levando-o para seu outro limite. Seja na baixa intensidade dilmista, seja na altíssima intensidade temerista, subjaz o sistema. As instituições importam, afinal. Essa é apenas uma das hipóteses de leitura para o fenômeno. Mas as instituições também mudam, afinal. Essa é a proposta subjacente ao presente livro. Em artigos organizados em três partes, dedicadas ao presidencialismo de coalizão em si, aos partidos e às comissões, diversos autores exploram tendências, regências e imanências, virando e revirando do avesso o conceito de presidencialismo de coalizão e buscando mostrar o que mudou – permanência e impermanência em diálogo e tensão permanente. Vale ainda destacar que o presente livro é o primeiro produto da parceria de pesquisa entre a Universidade Federal de Minas Gerais e o Centro de Formação, Treinamento e Aperfeiçoamento (Cefor) da Câmara dos Deputados e, como todo primeiro fruto de uma colaboração, merece ser celebrado. Parabéns a todos os ouvintes e parabéns a você, leitor, pela escolha! André Rehbein Sathler Guimarães Ricardo de João Braga 13 Introdução A promulgação da Constituição Federal de 1988 (CF/1988) selou o processo de abertura política iniciado em princípios dos anos 1980, década que teve as eleições de 1985 como marco histórico do retorno à democracia no Brasil. Desde então, o país vive o mais longo período democrático de sua história. Mas, ao longo desse período, ainda que pesem a estabilidade e a ausência de eventos críticos capazes de causar rupturas radicais, mudanças institucionais significativas aconteceram. As instituições políticas no Brasil passaram por alterações incrementais e, especialmente nos últimos anos, uma aguda crise política impôs novas reflexões sobre papel do Poder Legislativo no funcionamento do presidencialismo de coalizão no país. Este livro discute as instituições políticas ao longo deste período, propondo interpretações plurais sobre suas continuidades e mudanças. Apesar dos turbulentos anos iniciais do período democrático, a sequência ininterrupta de eleições e a estabilização fiscal e econômica do país criaram as condições para a estabilidade política. À exceção de Fernando Collor de Melo, até 2014 todos os presidentes eleitos diretamente concluíram seus mandatos. O país experimentou uma significativa alternância de poder com a vitória de um partido de esquerda, o PT, contando com processo de transição estável e democrático. Especialmente Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio “Lula” da Silva, que somaram dezesseis anos de Presidência de República, tiveram significativa capacidade política e apoio parlamentar para implementar boa parte de suas agendas de políticas públicas. Nos últimos anos, contudo, durante o primeiro mandato da presidenta Dilma Rousseff, uma forte crise econômica e política afetou duramente essa estabilidade e, pelo menos desde junho de 2013, o sistema político brasileiro começou a dar demonstrações de fragilidade. Movimentos sociais se mobilizaram intensamente, levando milhões de pessoas às ruas em junho de 2013. A partir dali a polarização política se intensificou e se radicalizou. Ao mesmo tempo, as dificuldades de governabilidade e das relações entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário começavam a assumir novos contornos e um conjunto de fatores econômicos e políticos culminaram, em 2016, com a interrupção do 14 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO segundo mandato da presidenta Dilma Rousseff, eleita diretamente em 2014 para seu segundo mandato. Em seu lugar, assume a presidência o então vice-presidente Michel Temer. Especialmente este último evento, o mais polêmico e radical dos acontecimentos de todo o período pós-1988, impõe uma reflexão crítica acerca do funcionamento das nossas instituições políticas. A substituição de Dilma Rousseff por Michel Temer não colocou termo à crise, ao contrário, a aprofundou. Sob o impacto da crise econômica, de um forte deficit fiscal e das consequências da Operação Lava Jato, que afetou as principais lideranças políticas de quase todos os partidos, Michel Temer governou de forma precária. Refém do Congresso Nacional e, ele mesmo, alvo de graves denúncias de envolvimento com os atores centrais dos escândalos de corrupção, Temer concluiu seu mandato de forma inexpressiva, com a menor taxa de popularidade que um presidente já teve na história do país e com desempenho medíocre do candidato do seu partido à sua sucessão. Na eleição de 2018, as urnas interromperam um longo período de estabilidade na disputa presidencial, que, desde 1994, organizou a disputa entre as duas principais forças políticas do país, o PT e o PSDB. A ruptura deste padrão de competição leva ao Palácio do Planalto Jair Bolsonaro, candidato outsider, eleito por partido até então inexpressivo e com discurso de extrema direita. Desde Collor de Melo, o eleitor brasileiro não fazia opção por um candidato a presidente com essas características. Ademais, o quadro partidário foi profundamente alterado, inaugurando uma nova fase da correlação de forças políticas no país. Este livro parte da hipótese de que essas mudanças não são eventos contingenciais, ou seja, não foram resultado só da crise política recente, mas de um conjunto mais amplo de mudanças que vinham, gradativamente, modificando as bases institucionais do presidencialismo de coalizão no Brasil. Muito embora as crises política e econômica, iniciadas em 2013 e aprofundadas nos últimos anos, justifiquem, per se, um dedicado esforço analítico, a proposta desta obra é olhar para esses eventos em segundo plano. A crise aqui é vista tanto como consequência dessas mudanças de longo prazo, quanto como um evento crítico que impulsionou novas mudanças. A mudança institucional nos fundamentos do presidencialismo de coalizão, portanto, é o objeto de estudo das análises contidas nesta publicação. Os trabalhos aqui empreendidos têm como Introdução 15 objetivo principal descrever e explicar a mudança institucional no presidencialismo de coalizão brasileiro, com ênfase no Poder Legislativo. Para cumprir essa tarefa, três dimensões foram selecionadas: as relações entre o legislativo e outros Poderes, os partidos políticos e as comissões parlamentares. A escolha dessas três dimensões foi fortemente influenciada por pesquisas recentes que sugerem uma reinterpretação das explicações institucionalistas até aqui disponíveis sobre como funciona o sistema político brasileiro. Assume-se que teorias sobre instituições políticas devem oferecer causas, ou mecanismos causais, que permitam compreender as mudanças. Nesse sentido, os autores foram convidados a investigar a mudança para além da constatação da mudança. Eles foram instados a oferecer explicações causais sobre a mudança institucional. Encorajamos nossos autores a incluir causas para explicar a mudança institucional em quatro dimensões: a agência (ação dos atores), os elementos subjetivos e informais, as tensões dinâmicas e os efeitos não intencionais. Adicionalmente, recomendamos um enfoque da mudança institucional baseado mais em processos endógenos que em variáveis exógenas, procurando assim diminuir “o grau de exogeneidade das teorias da mudança institucional” (REZENDE, 2012). Dada a heterogeneidade das análises aqui disponíveis, o leitor encontrará diferentes caminhos escolhidos para explicar mudança. A depender do recorte escolhido, alguns autores consideraram as instituições como contexto que ajuda a moldar as ações e as interações políticas, outros consideraram as instituições como objeto da ação e da disputa política. Os múltiplos enfoques, assim, mostram uma visão multifacetada e nem sempre convergente do fenômeno, mas as análises aqui constantes guardam em comum pelo menos duas características: as instituições em movimento e a centralidade do Poder Legislativo em suas análises. Também compõem o livro novos olhares sobre o processo legislativo. Esses novos olhares exploram aspectos pouco conhecidos e sugerem revisões sobre algumas ideias, algumas delas bem consolidadas na literatura corrente. Em alguns capítulos, embora não apresentem necessariamente explicações sobre a mudança institucional em si, autores identificam importantes transformações e levantam novas hipóteses sobre o funcionamento do presidencialismo de 16 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO coalizão no Brasil. Seguramente essas contribuições ajudarão a compor um quadro explicativo mais robusto sobre o sistema político brasileiro. O presidencialismo de coalizão em movimento Na primeira parte do livro, denominada “O presidencialismo de coalizão em movimento”, são abordadas questões que remetem às relações entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, assim como da relação do Legislativo com os interesses organizados da sociedade. No primeiro capítulo, Guimarães e coautores interrogam sobre os motivos pelos quais as “ferramentas” tradicionais do presidencialismo de coalizão deixaram de ser eficientes na gestão do consórcio governativo. Mudanças graduais, observadas em diferentes momentos anteriores e durante o processo de impeachment da presidenta Dilma, ajudam a entender a deterioração das estratégias de gerenciamento da coalizão. Nesse período, mudanças no processo orçamentário, na distribuição de cargos, no poder de agenda do presidente e na centralização decisória no Parlamento tornaram o ambiente hostil à chefe do Executivo, culminando com seu afastamento. No capítulo seguinte, Bedritichuk e Araújo focam num essencial instrumento utilizado por presidentes na aprovação da sua agenda legislativa: a medida provisória. A mudança institucional, iniciada em 2001 e aprofundada em 2012, alterou o rito de tramitação das MPs, e, com isso, a dinâmica decisória desse importante instituto. Notadamente aqui se pode identificar a participação ativa do Poder Judiciário, que em 2012, seguindo a CF/1988, determinou que as medidas provisórias deveriam passar obrigatoriamente por comissão mista antes de serem avaliadas pelos Plenários da Câmara e Senado. Os impactos dessa mudança a partir de análise do primeiro mandado da presidenta Dilma Rousseff foram fortes. Entre eles, o aumento dos custos de aprovação das medidas provisórias e o aumento do poder de barganha dos parlamentares. O capítulo 3, contribuição de Barbosa e coautores, aborda mais um ponto relevante: a atuação decisiva que o STF teve no processo legislativo nos últimos anos. O Supremo Tribunal Federal vem tornando-se ator cada dia mais relevante politicamente, visto que a Corte passou a ser sistematicamente acionada pelos próprios parlamentares, através do instrumento do mandado de segurança. Devido à crise, surge um incômodo paradoxo: os próprios parlamentares con- Introdução 17 vidam a Corte a deliberar sobre como devem agir. Decidindo de forma estratégica sobre esses mandados de segurança, o tribunal passou a afetar diretamente a execução da agenda do Legislativo. A esse fenômeno os autores chamam judicialização da agenda legislativa. O capítulo 4 traz uma importante reinterpretação sobre a dinâmica orçamentária a partir da comparação entre os períodos 1946-1964 e o pós-1988. Bittencourt e Braga enfatizam que a instabilidade das relações orçamentárias entre os Poderes gera incerteza e, assim, deteriora as possíveis ações de coordenação das forças políticas – pensamento contrário ao da literatura, de que maiores poderes legislativos no período 1946-1964 ensejaram um Legislativo mais independente. Os autores defendem que a incerteza sobre o orçamento é que impacta as relações políticas entre Executivo e Legislativo e o próprio comportamento legislativo. No capítulo 5, que encerra a primeira parte do livro, Santos e Baird chamam atenção para a ação dos grupos de interesse na Câmara dos Deputados. Argumentam os autores que as relações entre Estado e sociedade vêm mudando, especialmente no que diz respeito ao padrão de atuação dos interesses organizados junto ao Parlamento. A conclusão é que as mudanças institucionais recentes no âmbito do Parlamento brasileiro têm efeitos que vão além da imbricação entre Executivo e Legislativo, afetando também as relações entre o Parlamento e a representação de interesses organizados da sociedade. O revigoramento do Poder Legislativo impactou a atividade dos grupos de interesse e dos lobbies, que passaram a agir cada vez mais intensamente na esfera legislativa, especialmente no âmbito das comissões parlamentares. Os partidos em movimento Sobre os partidos no Parlamento, as mudanças não são menos relevantes. A alta fragmentação partidária aponta para um problema de difícil superação. O capítulo 6 conclui que, no que diz respeito à fragmentação, o grande problema não se encontra no elevado número de pequenos partidos, mas no fato de a Câmara passar a ser progressivamente composta por expressivo número de partidos de porte médio. Como resultado, surge a necessidade de coalizões mais amplas e compostas por expressivo número de parceiros dotados de força legislativa 18 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO semelhante – o que potencializa o poder de chantagem de cada um deles e fragiliza o partido formador. No que diz respeito ao comportamento dos parlamentares, achados relevantes reforçam a conclusão sobre a dificuldade de lidar com um Parlamento tão fragmentado. Explorando as relações entre ideologia e comportamento dos parlamentares, Câmara, no capítulo 7, sustenta que o posicionamento ideológico funciona como um bom preditor para as opiniões dos parlamentares, já que os maiores partidos nacionais agiram de forma coerente com a ideologia que defendem no período estudado. Entretanto, o comportamento dos deputados não pode ser previsto com acurácia apenas a partir de sua ideologia, o que indica tensão entre aquilo que desejam e aquilo que podem efetivamente fazer, dadas as características do presidencialismo de coalizão. No capítulo 8, por sua vez, Ferreira Jr. e Schwartz contestam a ideia de alteração do padrão de voto dos parlamentares em Plenário nos ciclos eleitorais, como sugere a literatura mais relevante sobre o tema, e também o índice de 80% de adesão de parlamentares e partidos à orientação do Governo. A dificuldade de lidar com a fragmentação e a baixa previsibilidade no comportamento dos parlamentares e partidos afeta também as estratégias das lideranças partidárias. No capítulo 9, os autores demonstram como o desenho das assessorias legislativas das lideranças partidárias guarda correlação com as estratégias adotadas pelos partidos nas arenas eleitoral e legislativa. A conclusão apresentada por Ferreira Jr. e Rocha é que as estruturas de assessoramento são ferramentas à disposição dos líderes partidários e do presidente da República para induzir a disciplina partidária e a governabilidade. Em prol do pragmatismo político, afirmam que lideranças de partidos da base governista colocam em segundo plano a produção de informação para orientar seus parlamentares e optam por estruturas de assessoramento de cunho procedimentalista. Além da fragmentação, do comportamento e das estratégias das lideranças, identifica-se outro aspecto relevante e novo nos partidos políticos no Parlamento: o modo como as lideranças partidárias usam a internet, especialmente os seus perfis no Facebook. A análise do conteúdo e do potencial interativo das redes sociais mostra que em todos os perfis há predomínio da lógica da política de visibilidade, com o propósito de usar o perfil do Facebook para divulgar informações seletivas de acordo com os interesses do partido. Segundo Sathler e coautores, o foco Introdução 19 da política de visibilidade são os próprios partidos e os demais atores político-governamentais que fazem interlocução com a arena partidário-parlamentar. Por fim, nessa segunda parte, um olhar sobre o financiamento dos partidos alerta sobre uma variável pouco considerada nos estudos sobre o Parlamento no Brasil. No capítulo 11, Mancuso e coautores mostram que partidos se tornaram cada vez mais alvo do financiamento de empresas e interesses econômicos. Os autores constatam que as receitas dos partidos eram formadas, pelo menos até 2014, predominantemente por recursos procedentes de três fontes: empresas, fundo partidário e pessoas físicas. O financiamento por empresas, contudo, reinava soberano e representou, em 2014, nada menos que 73% do total de recursos mobilizados por partidos e candidatos. Em 2015 o STF proibiu doações de campanhas por empresas. O efeito dessa mudança ainda não pode ser avaliado plenamente, mas os autores fazem conjecturas muito bem informadas sobre o impacto dessa decisão no comportamento dos partidos. Entre as possibilidades estão a ampliação do financiamento público, o incremento da sustentação militante e um papel de destaque para os candidatos mais ricos nas eleições, seja como apoiadores seja como candidatos. O poder das comissões em movimento Sobre as mudanças no sistema de comissões parlamentares, importante e recente achado encontra-se no capítulo 12. Almeida registra que, de 1991 até 2014, é possível identificar dois períodos distintos: nas duas legislaturas, compreendidas entre 1995 e 2002, o Plenário foi o protagonista das deliberações, enquanto nas três seguintes (2003 a 2014) esse papel coube às comissões. O autor constata aumento substancial do protagonismo das comissões nas deliberações sobre iniciativas presidenciais e oferece uma interpretação para o fenômeno. Segundo Almeida, esse protagonismo reflete a descentralização do processo legislativo que ocorreu em razão de a maioria parlamentar ter transferido poderes de agenda da sua liderança para o sistema de comissões. Essa explicação supera até mesmo alternativas oferecidas pela literatura. Outro ponto relevante diz respeito ao tema abordado no capítulo 13, que investiga a participação dos grupos de interesses nas comissões parlamentares. Analisando dados de dois surveys realizados com grupos de interesse e 20 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO assessores parlamentares, Resende retrata onde e como atuam representantes de interesses organizados, considerando o complexo processo decisório que envolve múltiplas instituições políticas. Entre os principais achados: a existência de uma percepção de maior produtividade dos lobbies em múltiplas arenas, com destaque para a arena legislativa; a indicação das comissões parlamentares como um importante espaço de atuação dos interesses organizados e a ênfase atribuída ao elemento informacional nas atividades de lobbying. Por fim, no último capítulo, Perlin investiga a representação feminina no sistema de comissões parlamentares. Desenvolvendo um indicador da exclusão das mulheres na formação da agenda política, constata, ao contrário dos demais autores desse livro, que nesse campo nada mudou. A sub-representação feminina no Parlamento é perene e não se observa apenas no número reduzido de mulheres nas cadeiras do Legislativo, mas, também, na rara participação delas nos espaços estratégicos de formação de capital político e na influência no jogo de poder. É uma raridade mulheres na presidência de comissões, e a isso se soma a maior participação delas em comissões do tipo soft politics. Segundo a autora, esse quadro contribui para a manutenção de agendas com menor visibilidade, para a atuação concentrada na política social e para a exclusão das mulheres do processo de construção das agendas políticas consideradas mais importantes pelo governo. Embora este livro seja sobre a mudança institucional de longo prazo, procurando dar conta de todo o período pós-1988, as análises aqui disponíveis também foram fortemente influenciadas pela radicalidade do momento. O leitor verá que nem sempre é fácil separar claramente o efeito do tempo (mudanças incrementais) do efeito da própria crise e de seus protagonistas sobre as mudanças (conjuntura crítica). Nesse volume, as análises levam em consideração essas duas dimensões e variam, umas privilegiando a primeira, outras, a segunda, e muitas procurando articulá-las. Mas, ao final, é possível identificar uma visão amplamente compartilhada, segundo a qual houve sim mudanças relevantes nas bases institucionais do presidencialismo de coalizão brasileiro. Da mesma forma, a maioria dos atores concorda que essas mudanças já vinham sendo observadas de forma incremental ao longo do período, mas que a crise atual certamente as potencializou. Por fim, todos os resultados computados e cotejados sugerem que o sistema político brasileiro do pós-1988 se tornou mais complexo no que diz respeito Introdução 21 aos processos de tomada de decisão, apresentando hoje maior número de atores de veto e de arenas, nas quais minorias organizadas podem exercer influência. Governar o Brasil, segundo os resultados aqui contidos, vem ficando cada dia mais difícil. O debate continua Este livro apresenta novos achados e novas interpretações sobre o funcionamento do Parlamento e, por consequência, do próprio presidencialismo de coalizão no Brasil. Como o leitor constatará, o olhar sobre a mudança institucional permitiu identificar alterações significativas no nosso sistema político. Nem de longe o volume oferece uma explicação completa e totalmente alternativa sobre as bases institucionais do presidencialismo de coalizão no Brasil. Os fatos recentes sugerem um puzzle muito mais complexo do que aqui apresentado. Mas acreditamos que as contribuições que os autores dão nesta obra vão além dela mesma e certamente servirão para animar o debate sobre as instituições políticas no Brasil nos próximos anos. Nós esperamos sinceramente que esse debate seja intenso, inovador e que ajude a melhorar nossa compreensão sobre o sistema político brasileiro. Se isso nos ajudar também a aperfeiçoar nossas instituições políticas e a nossa democracia, ainda melhor. Desejamos a todos uma boa leitura. Os organizadores Parte I O presidencialismo de coalizão em movimento 25 Do presidencialismo de coalizão ao parlamentarismo de ocasião: análise das relações entre Executivo e Legislativo no governo Dilma Rousseff André Rehbein Sathler Guimarães Giovana Dal Bianco Perlin Lincon Macário Maia Introdução Os dezesseis anos dos governos de Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, marcados por relações majoritariamente estáveis e relativamente colaborativas entre Executivo e Legislativo, serviram para contradizer os prognósticos pessimistas que abundavam na literatura acadêmica sobre o desenho institucional do sistema de governo brasileiro. Essas análises da terceira onda de democratização alertavam, por exemplo, sobre “os perigos do presidencialismo” (LINZ, 1990) e a “difícil combinação” de presidencialismo e multipartidarismo (MAINWARING, 1993). Mas a forma eficaz como FHC e Lula geriram suas coalizões (FIGUEIREDO; LIMONGI, 2007; CHEIBUB; LIMONGI, 2010) parecia enterrar as perspectivas negativas do nosso “dilema institucional” (ABRANCHES, 1988) associadas ao desenho brasileiro e de tantas jovens democracias ao redor do mundo. Mesmo os momentos de instabilidade, observados na segunda metade do governo Sarney e no desastroso e inacabado governo Collor, pareciam esquecidos diante das evidências do “surpreendente sucesso” do presidencialismo multipartidário (PEREIRA; MELO, 2012). Veio então o governo Dilma Rousseff, quando o comportamento da Câmara dos Deputados, particularmente, mudou de maneira muito visível a partir de fevereiro de 2015. No segundo mandato, no prazo de apenas alguns meses, a presidente viu seu candidato à Presidência da Câmara ser derrotado em primeiro 26 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO turno; viu o nome de embaixador por ela indicado ser rejeitado para cargo na OEA de maneira inédita; passou a ser obrigada a executar parte das emendas parlamentares; assistiu a um ministro se demitir (para não ser demitido), após duro confronto com a Câmara dos Deputados; perdeu importantes votações como a regulamentação da terceirização, redução da maioridade penal, elevado reajuste (de até 78%) para servidores do Judiciário e correção do indexador das dívidas dos estados. Além de derrotas mais ostensivas, houve, também, derrotas veladas, como em itens da reforma política dos quais o Palácio do Planalto discordava. O governo ainda teve que desertar da promessa de propor uma regulação para a mídia, com a qual havia se comprometido com movimentos sociais durante sua campanha eleitoral. Ressalte-se que esses são apenas aspectos visíveis das relações conturbadas entre Executivo e Legislativo. É possível que muitas outras pautas – estruturais ou pontuais – tenham sofrido vetos semelhantes e sequer entrado na agenda pública de discussão, ficando ainda mais longe do debate e da deliberação na arena congressual. Ademais, o Executivo, cuja imagem histórica é de principal agente de definição da agenda, precisou lançar mão de instrumentos de obstrução para não ver temas de seu interesse derrotados por uma maioria suprapartidária no Congresso Nacional. Um dos exemplos foi a obstrução reiterada das sessões do Congresso Nacional, impedindo a formação de quórum, diante da iminência de derrota na apreciação do veto ao reajuste salarial do Poder Judiciário. Mas a maior demonstração de completo rompimento entre Legislativo e Executivo ainda estaria por vir. Menos de 16 meses após a posse da presidente da República para um novo mandato, a Câmara dos Deputados autorizava o prosseguimento para o Senado Federal de um processo de impeachment por crime de responsabilidade, com 367 votos favoráveis, 137 contrários, 7 abstenções e 2 ausências. A partir desse evento único – o impeachment de Dilma Rousseff – o objetivo geral deste capítulo é analisar as mudanças de caráter mais estruturante acontecidas no modelo do presidencialismo de coalizão brasileiro. Bates et al. (2000) afirmam a importância dos eventos únicos nas pesquisas em ciência política, devido a, entre outros motivos, possibilitarem uma avaliação da força de mecanismos causais difusos. Parte-se da interrogação sobre os motivos pelos quais as “ferramentas” tradicionais do presidencialismo de coalizão não foram suficientes ou eficientes na gestão do consórcio governativo. Ainda, cabe discutir a Do presidencialismo de coalizão ao parlamentarismo de ocasião: análise das relações entre Executivo e Legislativo no governo Dilma Rousseff 27 influência de mecanismos de mudança institucional como elementos causais do processo de desmonte da caixa de ferramentas. Seria a mudança institucional gradual necessária para a mudança ocorrida nas transações entre Executivo-Legislativo? Problemas complexos demandam delineamentos de pesquisa complexos. Para a compreensão do quadro que se conformou e se traduziu nas mudanças observadas nas relações Executivo-Legislativo, é necessário descrever o fenômeno em toda a sua complexidade. O foco central, no caso, é descrever a variável ou o fenômeno e as relações entre elementos e variáveis (VOLPATO, 2010). Um desafio é alcançar uma dosagem correta entre amplificação de detalhes e análise modelar, de modo a se buscar a descrição mais aproximada possível da estrutura causal. A partir dessa visão, o método adotado foi o de estudo de caso, com fontes diversificadas de coleta de dados, que incluem: pesquisa bibliográfica e documental, observação em campo e entrevista com informantes-chave. Ressalte-se que o recurso das entrevistas com informantes-chave, associado à observação direta dos autores, facilitou a reunião da riqueza factual à estrutura causal do argumento. Por essa razão, a forma redacional em que foi vertido o capítulo aproxima-se das técnicas de narrativa analítica. Referenciais teóricos para análise das mudanças institucionais Quando Sérgio Abranches cunhou a expressão “presidencialismo de coalizão”, em 1988, sua principal preocupação era o deficit de institucionalização da gestão de maiorias políticas e os reflexos disso nas relações do Executivo com o Legislativo. Essa falta de institucionalidade sempre foi vista como negativa pelo lado do poder excessivo do Executivo, especialmente sua capacidade de dominar a agenda de deliberações. Mas, a instabilidade política que marcou o início do segundo governo Dilma Rousseff, com uma incomum preponderância do Legislativo na definição de temas e imposição de derrotas ao governo, parece revelar que a carência de previsibilidade na ação política é bem mais complexa. O presidencialismo de coalizão é, portanto, um marco teórico basilar para a análise que se pretende. Além do artigo seminal de 28 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Abranches (1988), a pesquisa dialoga com as obras de Amorim Neto (2006b), Rennó (2006), Bertholini e Pereira (2015), Carreirão (2014) e Power (2015). O presidencialismo de coalizão brasileiro operacionaliza-se com suas “ferramentas”: práticas de gestão da governabilidade. Com base em Mayhew (1974), Pereira e Mueller (2003), Samuels (2000), Amorim Neto, Cox, McCubbins (2003), Figueiredo e Limongi (2007) e Ames (2001), identificam-se e analisam-se os constrangimentos supervenientes a essas práticas no evento único em estudo, os quais, por sua vez, estão conectados a mudanças institucionais. Trabalha-se com perspectiva microscópica sobre as efetivações verificadas de cada prática e com perspectiva macroscópica quanto aos efeitos de suas mudanças sobre o modelo, buscando explorar ao máximo as possibilidades interpretativas da teoria. Sobre esse tópico, buscaram-se contribuições nas obras de Raile, Pereira e Power (2006), Amorim Neto (2000, 2002), Power (2015), Cardoso (2015), Bittencourt (2012), Figueiredo e Limongi (2007), Mainwaring e Pérez Liñan (1998), Machado (2012), Neiva (2011), Zucco Jr. e Melo-Filho (2010), Schröder (2009), Moutinho (2012), Bertholini e Pereira (2015). Quanto aos poderes legislativos do presidente da República no Brasil, que são uma explicação recorrente e convincente para o funcionamento da democracia brasileira, dialoga-se com as obras de Pereira e Mueller (2000), Amorim Neto, Cortez e Pessoa (2011), Mainwaring e Shugart (1997). Em síntese, as ferramentas do presidente, como visto, têm sido analisadas e medidas separadamente. Mas há tentativas válidas de construir índices sintéticos para verificação estatística conjunta de como a governabilidade reage às características da coalizão e do contexto. Uma dessas tentativas é o Índice de Custo de Governabilidade (ICG), experimentado por Bertholini e Pereira (2015). A partir dos dados de distribuição de ministérios, alocação de recursos nesses ministérios e liberação de emendas parlamentares, eles constroem o ICG e o submetem a um modelo de correlação linear – como variável dependente –, com elementos endógenos da coalizão (coalescência, tamanho e heterogeneidade) e elementos exógenos (popularidade) – como variáveis independentes. Segundo o modelo, os três primeiros fatores afetaram de maneira efetiva o índice sintético, e o teste estatístico aplicado revela uma capacidade explicativa (R² ajustado) de 83,4%. A popularidade não demonstrou nenhuma significância estatística, mas ressaltamos que não há, no período analisado (até 2013), qualquer Do presidencialismo de coalizão ao parlamentarismo de ocasião: análise das relações entre Executivo e Legislativo no governo Dilma Rousseff 29 mudança significativa nesse índice que poderia ensejar uma correlação. Seria necessário que o modelo fosse experimentado em condições mais diversas de popularidade presidencial. Os autores inferem, a partir dos números: Quanto maior o número de partidos, quanto maior a heterogeneidade ideológica entre eles e quanto menor o compartilhamento de poder com os parceiros, maior o custo de governabilidade. [...] Ou seja, se o presidente não faz o seu “dever-de-casa” ao montar coalizões com menor número de parceiros, ideologicamente homogêneas e não compartilha poder de forma proporcional com os seus aliados, não importa o quanto o presidente gaste, este não consegue mais apoio do Legislativo. (BERTHOLINI; PEREIRA, 2015, p. 22) O gráfico abaixo mostra a evolução do ICG desde o governo FHC até o terceiro ano do governo Dilma. O início e o final do primeiro mandato Lula são pontos fora da curva ascendente dos custos de governabilidade, explicáveis em razão da coalizão minoritária que Lula montou ao chegar ao poder e pelas defecções após o escândalo do Mensalão. Gráfico 1 Índice de Custo de Governabilidade Fonte: Bertholini e Pereira (2015). Outro marco teórico a dialogar com o presente capítulo é o da Teoria da Mudança Institucional Gradual, de Mahoney e Thelen (2010), que também usam a perspectiva temporal alargada para analisar mudanças de padrão comportamental dos atores, bem como os resultados das relações 30 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO interinstitucionais. Essas formulações ressaltam que não apenas mudanças abruptas e guinadas de trajetórias precisam ser objeto de atenção dos pesquisadores das relações sociais e políticas, mas, também, aquelas que pela forma lenta e parcimoniosa nem sempre são efetivamente perceptíveis aos atores e observadores. Uma grande contribuição dessa nova geração de estudos do institucionalismo histórico é um foco nas interações entre fatores endógenos e exógenos. Como precursores da abordagem gradualista, Greif e Laitin (2004) consideram que os parâmetros de atuação dos atores e instituições não são tão estáveis como se convencionou esperar. Lieberman (2002) descreveu que os atores não têm as mesmas leituras sobre a realidade, as regras e seus efeitos; enquanto Mahoney e Thelen (2010) chamam essa característica de ambiguidade. As mudanças institucionais ocorreriam em razão da maior ou menor discricionariedade dos atores na interpretação das regras. “We see ambiguity as more permanent feature, even where rules are formalized.” (MAHONEY; THELEN, 2010, p. 11) Na tipologia que propõem, Mahoney e Thelen criam quatro grandes grupos de mudanças. O enxerto (layering) é inclusão de novas regras no topo das regras já existentes. A derivação (drift) é uma forma de mudança tendencial, a partir da interpretação das regras existentes. O deslocamento (displacement) corresponde à substituição de regras antigas por regras novas, mas sem alteração substancial do quadro normativo. Por fim, a conversão (conversion) é a mudança efetiva de rumo da instituição. Cada uma dessas formas de mudança é associada a agentes-chave de mudança, respectivamente: insurgentes, simbiontes, subversivos e oportunistas. Insurgentes desprezam as normas vigentes. Simbiontes podem ter compromissos com as regras, na medida em que elas lhes garantem sobrevida. Subversivos querem a mudança, mas jogam de acordo com as regras, para não serem alvo dos que resistem à mudança. Oportunistas adotam a estratégia do “ver para agir”. Há de se considerar a existência de coalizões entre agentes de diferentes tipos que, embora não necessariamente partilhem objetivos comuns, encontram afinidades táticas. Como identifica Rezende (2012), interação passa a ser uma palavra-chave desse conjunto de estudos que busca explicar as mudanças institucionais. Do presidencialismo de coalizão ao parlamentarismo de ocasião: análise das relações entre Executivo e Legislativo no governo Dilma Rousseff 31 Do presidencialismo de coalizão para o de colisão Compreendemos que a derrocada do presidencialismo de coalizão e a superveniência do parlamentarismo de ocasião é um fenômeno multicausal, com a conjunção de vários fatores. Por isso, a compreensão contextual é importante para a captura dos constrangimentos institucionais. Consagrou-se na literatura que, em regimes presidenciais multipartidários, o chefe do Executivo precisa formar coalizões para governar. Para isso, utiliza ferramentas para atrair potenciais aliados e manejar não apenas a coalizão, mas praticamente toda a relação do Executivo com o Legislativo. A literatura aponta como principais ferramentas o orçamento (RAILE; PEREIRA; POWER, 2006); os cargos (AMORIM NETO, 2002); o compartilhamento das políticas públicas, por meio de concessões ou cooperação (BERTHOLINI; PEREIRA, 2015); e os poderes legislativos do presidente – de agenda, negociais e de veto (PEREIRA; MUELLER, 2003; SANTOS, 1997). Essas ferramentas serão analisadas de forma iterativa, confrontando-se dinamicamente fatos e teoria, ressaltando como comportamentos fora do padrão passaram a ancorar o equilíbrio – as opções não exercidas determinando aquelas que viriam efetivamente a acontecer. Cargos Os cargos são o mais estereotipado dos “bens de coalizão” (AMORIM NETO, 2000; ARAÚJO; PEREIRA; RAILE, 2010). Elencam-se aqui três mudanças no que diz respeito às instrumentalizações dos cargos. A primeira foi uma redução da discricionariedade dos partidos na indicação de ocupantes dos cargos, em razão de uma centralização da palavra final sobre nomeações na Casa Civil. Trata-se de uma mudança institucional formal, mas também associada a elementos de agência presidencial e de atores-chave. Outra mudança foi a redução do número de cargos de direção e assessoramento superior disponíveis para indicações partidárias em razão do aumento dos cargos ocupados por servidores efetivos. Trata-se de uma mudança tendencial (drift) e formal, em razão de normas que preveem ocupação de parte importante desses cargos por concursados. O gráfico 2 demonstra essa tendência. O Decreto 32 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO nº 5.497/2005, por exemplo, limita a 25% os cargos DAS 1 a 3 que podem ser ocupados por não concursados e a 50% os cargos de DAS 4 (BRASIL, 2005). Como terceira mudança houve a queda de discricionariedade na indicação de ocupantes aos cargos, em alguns casos devido ao fortalecimento de carreiras estatais (BORGES; COELHO, 2015, p. 96-97), em outros, em razão do engessamento orçamentário (constitucional e legal) e da fragmentação dos ministérios (LOPEZ; BUGARIN; BUGARIN, 2015). Essas últimas são mudanças institucionais graduais, endógenas, do tipo enxertia (layering). Gráfico 2 Fonte: Lopez, Bugarin e Bugarin (2015). O informante-chave 1 ilustra a fragmentação dos ministérios em termos de ocupação dos cargos: Você sai de 2010 para 2011, com um novo governo, mas os mesmos partidos. Quem está do PMDB sentando numa cadeira não quer liberar. Tem mudança de parlamentares, governadores, e ninguém quer ceder. Tem um governo de continuidade, mas tem 40% de parlamentares diferentes querendo cargo. Se tem um cargo, na Codevasf, que tem um cara do PMDB querendo, vou ter que tirar alguém do PP, mas aí liga o governador. Você tem um problema. E ninguém mais tinha esse controle, esse mapa de quem era quem. Portanto, diante das mudanças apresentadas no tocante à possibilidade de utilização de cargos públicos como ferramenta de gestão do presidencialismo de Do presidencialismo de coalizão ao parlamentarismo de ocasião: análise das relações entre Executivo e Legislativo no governo Dilma Rousseff 33 coalizão, a crença de que uma patronagem difusa, supervisionada, seria suficiente para compensar a distância ideológica do PT com seus novos parceiros se mostrou equivocada. Compartilhamento das políticas públicas O movimento do PT na direção de centralizar decisões sobre políticas públicas foi outra mudança. Um equívoco, na visão do informante-chave 3, que teve visão privilegiada dos eventos políticos das últimas três décadas, acentuado nos mandatos de Dilma Rousseff. Ele explica que os parlamentares querem, efetivamente, participar da formulação política, contrariando o senso comum de que apenas cargos e emendas os contemplariam: Não significa necessariamente que o Executivo tem que concordar. Só de ser recebido, colocar seus pontos, suas propostas, o parlamentar já se sente muito satisfeito, por ter sido ouvido [...] vou lhe dar um testemunho: ouvi muitos parlamentares reclamando dessa falta de interlocução. A mim me parece que interlocução não foi boa, e até o início do segundo mandato também não estava legal. Quando a crise econômica eclodiu, aí houve uma aproximação com o Congresso. Outra atitude polêmica do governo foi negligenciar o potencial dos parlamentares – muitos deles experientes gestores públicos – para a formulação de políticas públicas. O informante-chave 3 relata que Itamar Franco e FHC, antes de apresentarem projetos de seu interesse, verificavam se não existiriam, em uma das Casas legislativas, proposições que servissem ao menos para iniciar o debate sobre o assunto, fenômeno conhecido como apropriação de agenda (SILVA; ARAÚJO, 2010). No governo Dilma, o problema ganha força. O informante-chave 5 analisa: Das grandes falhas que já vi acontecer várias vezes: existe esse projeto na Câmara, de um deputado. Aí o governo manda um projeto praticamente idêntico. O governo perde esse cara para sempre. Ele pode ser da base. O governo é mal assessorado. Porque não trabalha esse projeto aqui [do deputado]. Você faz isso, você ganha o cara. Silva e Araújo (2010) analisaram vinte casos de projetos de lei ou medidas provisórias enviadas pelo Executivo ao Congresso com textos semelhantes ou próximos de iniciativas parlamentares que já tramitavam nas duas Casas 34 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO legislativas. O estudo demonstrou a elevada relação entre as propostas parlamentares e as leis decorrentes das propostas do Executivo. Isso enfraqueceu a possibilidade de credit claiming dos parlamentares e gerou uma duradoura insatisfação com o governo. Orçamento As emendas individuais são o principal instrumento para uma relação clientelista dos parlamentares com suas bases (pork barrel), e do Executivo com os parlamentares (AMES, 2001). Elas são a “pedra de toque” da abordagem distributivista na análise da política brasileira. No que concerne a essa ferramenta, houve duas mudanças fundamentais: primeiro uma crescente frustração parlamentar com a capacidade de execução das emendas pelo Executivo, por motivações de duas naturezas – burocrática e financeira. A segunda foi uma reação do Congresso à primeira: a aprovação do orçamento impositivo. Essa nova regra, estabelecida por emenda constitucional, tirou do governo a capacidade de manejar discricionariamente parte relevante do orçamento, nivelando por baixo a execução e tirando capacidade gerencial e política dessa ferramenta. Além disso, o líder partidário, como negociador importante da liberação de emendas, perdeu capacidade de disciplinar sua bancada. Em resumo: a ferramenta perde muito de suas duas utilidades – tanto governabilidade quanto execução de políticas públicas no nível local. A importância que os governos petistas deram inicialmente às emendas individuais pode ser vista no gráfico 3. Ele mostra o significativo crescimento das dotações orçamentárias destinadas a essas emendas a partir do orçamento de 2004 (elaborado em 2003). Isso ocorre em números absolutos e também valores deflacionados. Entre 2009 e 2010, por exemplo, o crescimento é de quase 50%. Do presidencialismo de coalizão ao parlamentarismo de ocasião: análise das relações entre Executivo e Legislativo no governo Dilma Rousseff 35 Gráfico 3 Valor das emendas individuais por parlamentar na LOA (em milhões de reais) 20 15 10 5 0 Valor absoluto das emendas Valor deflacionado (dez./2015) Fonte: Siga Brasil (www.senado.gov.br/orcamento). Elaboração dos autores. Entretanto, o crescimento expressivo das dotações legais para as emendas individuais não se converte em capacidade de execução orçamentária, como ilustra o gráfico 4. Ao contrário: há uma brusca elevação entre 2006 e 2007, mas que não se consolida, pois é seguida de queda. Há outro crescimento de 2008 para 2009, quando se atinge o pico, mas a execução cai fortemente em 2010. Gráfico 4 Comportamento das emendas individuais (em milhões de reais) 3.000 2.500 2.000 1.500 1.000 500 0 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 LOA Dotação Empenhado Pago Restos inscritos Restos pagos Fonte: Siga Brasil (www.senado.gov.br/orcamento). Elaboração dos autores. 2012 36 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Ambas as ações orçamentárias – empenho e pagamento – são moedas de troca importantes no mercado de apoio parlamentar. O informante-chave 1 corrobora a situação ilustrada pelos dados acima: A disponibilidade de orçamento para emendas e programas cresceu acima do crescimento da receita. Uma peça de ficção científica, inexecutável [...] essa diferença vai para os restos a pagar [...] em 2009, 2010, os caras aumentaram muito o empenho, houve muito acréscimo, estava na crise, vamos consumir, então chama o prefeito, libera. Perderam o controle. Você tinha um orçamento inteiro de restos a pagar. Você tinha três orçamentos. O de ficção, que é o da lei, o real, e mais um que é a dívida. E a partir de 2011, não tinha mais dinheiro. [...] uma herança muito maldita. A disponibilidade de orçamento para emendas e programas cresceu acima do crescimento da receita. Uma peça de ficção científica, inexecutável [...] essa diferença vai para os restos a pagar [...] em 2009, 2010, os caras aumentaram muito o empenho, houve muito acréscimo, estava na crise, vamos consumir, então chama o prefeito, libera. Perderam o controle. Você tinha um orçamento inteiro de restos a pagar. Você tinha três orçamentos. O de ficção, que é o da lei, o real, e mais um que é a dívida. E a partir de 2011, não tinha mais dinheiro. [...] uma herança muito maldita. No início de 2011, a capacidade orçamentária do governo federal foi bastante reduzida, em razão da política anticíclica de combate à crise econômica de 20082009 e do tradicional incremento das transferências e gastos públicos em ano eleitoral – 2010. O resultado foi um contingenciamento recorde (MARTELLO, 2011), já no primeiro semestre daquele ano, que atingiu todas as áreas, especialmente as emendas parlamentares. A situação foi tão extrema que, em novembro daquele ano, deputados da base aliada chegaram a promover uma “greve branca”, esvaziando as sessões, para pressionar o governo a regularizar os pagamentos de emendas parlamentares do corrente ano e também os valores já empenhados – os restos a pagar. Os restos geravam mais desconforto aos parlamentares, pois se destinavam à quitação de obras ou ações já contratadas e em geral paralisadas por falta de pagamentos. Diante do quadro, o governo cedeu e destinou 5 dos 7 bilhões de reais programados para cumprir tais compromissos (CRUZ; CABRAL, 2011). Tal mudança é considerada endo-exógena, porque a dificuldade de caixa e os obstáculos para pagamentos foram criados pelo próprio governo, mas havia também os efeitos externos da crise financeira de 2008-2009. Do presidencialismo de coalizão ao parlamentarismo de ocasião: análise das relações entre Executivo e Legislativo no governo Dilma Rousseff 37 Com a deterioração da capacidade financeira do governo vieram mais obstáculos para a execução de emendas e as discussões para evitar o contingenciamento de emendas parlamentares, dispositivo colocado no projeto da LDO de 2012, que tramitou no ano de 2011. O dispositivo foi substituído por outro que reservava 10% do orçamento de cada ministério para a quitação de restos a pagar, artigo vetado pela presidente. Daí em diante, mecanismos semelhantes seriam colocados em todos os projetos de LDO, mas sempre vetados. Em paralelo a isso, uma proposta de emenda à constituição ganhou força – a PEC nº 358/2013, que tratava do orçamento impositivo. O assunto se tornou a principal bandeira de campanha do deputado Henrique Eduardo Alves à Presidência da Câmara, para o biênio 2013-2014. Vitorioso, o deputado impulsionou a votação da matéria na casa, que só não resultou em emenda constitucional mais rapidamente em razão da demora do Senado. Quando a matéria retornou do Senado aprovada, Henrique Eduardo Alves já não era mais presidente. Mas seu sucessor, Eduardo Cunha, colocou o assunto para votação em menos de 20 dias após sua posse. E, em 17 de março de 2015, foi promulgada a EC nº 86. Como as emendas individuais se tornaram obrigatórias, restou ao governo cortar outros gastos discricionários. O orçamento impositivo teve ainda outro efeito negativo, ao enfraquecer um poderoso instrumento de barganha do Executivo perante o Legislativo. A tendência, demonstrada por Jesus (2007), de aproximação das curvas de execução orçamentária de governistas e oposicionistas (gráfico 5) mantém-se no levantamento com dados disponíveis no sistema Siga Brasil, do Senado Federal, apresentados no gráfico 4. Esses dados mostram que o fenômeno ainda se acentua fortemente em 2009. Em 2012 a execução de emendas de partidos de oposição e independentes ultrapassou a execução de emendas individuais dos partidos com representação ministerial no governo de Dilma Rousseff. 38 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Gráfico 5 Execução de emendas individuais (em milhões de reais e % total) 100% 90% 80% 70% 60% 50% 40% 30% 20% 10% 0% 600 500 400 300 200 100 0 1999 2000 2001 2002 2003 2004 FHC 2 GOVERNO 2005 2006 Lula 1 OPOSIÇÃO GOVERNO OPOSIÇÃO Fonte: Jesus (2007) e Prodasen. Elaboração dos autores. O informante-chave 2, do Ministério da Fazenda, ressalta: [...] antes do governo Lula, não havia possibilidade de execução de emenda da oposição. Era do jogo e era entendido pelo lado da oposição. O instrumental foi piorando no jogo da governabilidade. E a gente não tinha percebido como reagir. Os relatos confirmam os dados e ainda explicam: o ano de 2012 foi marcado pela discussão e deliberação do novo Código Florestal, um tema sensível e prioritário para o governo, porém, fortemente influenciado pelas bancadas suprapartidárias, como a da Frente Parlamentar Agropecuária e a Frente Parlamentar Ambientalista. Com o elevado risco de defecções na base aliada, mas também a possibilidade de defecções nas oposições, a ferramenta do pork foi um elemento importante no processo de convencimento. Faz-se necessário esclarecer que a liberação de emendas mostrada no gráfico ultrapassa a marca dos 100% porque o montante de recursos pagos contabiliza também restos a pagar, ou seja, empenhos de leis orçamentárias anteriores. Mahoney e Thelen (2010) subsidiam a classificação das mudanças institucionais havidas. A primeira, a frustração na execução de emendas orçamentárias, é uma conversão, e tem dois aspectos. O primeiro, seu caráter de aprimoramento da burocracia, é uma mudança endógena, tendencial (drift). A segunda, o caráter de escassez financeira, é endógena e exógena. Inicialmente endógena pela priorização de recursos pelo Executivo para outras áreas em detrimento Do presidencialismo de coalizão ao parlamentarismo de ocasião: análise das relações entre Executivo e Legislativo no governo Dilma Rousseff 39 das emendas. Na sequência, exógena, por efetivamente faltarem recursos. Já a segunda mudança, o caráter impositivo das emendas, é totalmente endógena e surge gradualmente como uma enxertia (layering) na LDO, mas se torna desalojamento (displacement) pela EC nº 86/2015. Poderes legislativos do presidente Quanto às mudanças nos poderes legislativos do presidente da República, cabe uma segmentação: poder de agenda, poderes negociais (ou de barganha) e poder de veto. O primeiro segmento é onde teria ocorrido o maior número de mudanças relevantes. Destaca-se, antes, uma mudança seminal que marca o início de um processo ascendente de retomada de prerrogativas pelo Congresso. Trata-se da EC nº 32/2001, que estabeleceu novas regras para edição de MPs, restringindo sua reedição ilimitada e os temas de sua abrangência. É em razão desse último item específico que ocorre uma mudança fundamental no ciclo mais recente: em 2009, uma interpretação do então presidente da Câmara, Michel Temer, permitiu às duas casas do Congresso contornar o trancamento da pauta pelas medidas provisórias. Outra mudança ocorreu no próprio rito das MPs por imposição do Supremo Tribunal Federal (ADI 4.029/2012). Essa mudança fragmentou a negociação das MPs, antes extremamente concentrada na figura do relator na Câmara. A partir da decisão do STF, a negociação passou a contar com a participação mais efetiva dos membros das comissões especiais mistas – deputados e senadores. A quarta mudança, também imposta pelo STF, deu enorme poder ao presidente da Câmara ao determinar que ele, de ofício, define o que é ou não matéria estranha às medidas provisórias em apreciação (ADI 5.127, julgada em outubro de 2015). A mudança desestabilizou um instrumento negocial do Executivo, que permitia a entrada de matérias estranhas no texto da MP para facilitar a sua aprovação. E não foi fácil perceber a magnitude dessa mudança até o Executivo perder a colaboração da Presidência da Câmara. Poder de agenda Ao limitar as reedições, a EC nº 32/2001 buscou criar um mecanismo para que as MPs fossem efetivamente votadas e determinou o trancamento da pauta da Casa onde a matéria se encontrasse, 45 dias após a edição da medida provisória. 40 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Ao longo do tempo, tal mecanismo foi operacionalizado pelo Executivo como forma de monopolizar a pauta (PEREIRA; POWER; RENNÓ, 2005). Isso se intensificou num período em que aumentou o risco de entrarem na pauta aumentos de gastos. O informante-chave 3 relata: Em 2007, na gestão do presidente Chinaglia, o ano quase todo foi a pauta trancada. O que aconteceu? O Executivo ficou com poder de agenda sobre o Congresso. [O governo pensava:] “O atual cenário da Câmara nós não temos segurança que vamos conseguir. Vamos tentar segurar as pautas bombas”. Como é que se fazia? Organizava a edição das MPs de acordo com o tempo para trancar a pauta. Quase 2007, todo a pauta trancada [...]. Aí o Michel Temer [quando assume a Presidência da Câmara] me chamou na residência oficial e me falou: edição de MP pra trancar a pauta é um exagero, é uma coisa errada. E me mostrou um texto que ele tinha escrito no fim de semana. Qual era a tese? Não faz sentido a pauta ficar trancada para PEC. PEC não pode nunca vir por MP. A MP deve trancar outras matérias que possam vir por MP. O instrumento da mudança foi apenas uma reinterpretação. O episódio reforça o peso da ambiguidade das regras, conforme defendem Mahoney e Thelen (2010), reação que se encaixa na classificação dos autores como uma conversão, protagonizada por atores “oportunistas”. Acir Almeida (2015) detecta que, mesmo antes da mudança, o Congresso Nacional passou a assumir preponderância numérica na autoria de leis. Porém, o pico do fenômeno é justamente o ano de 2009 – ano da questão de ordem – demonstrando que havia um represamento do desejo de legislar do Congresso, resultante do trancamento de pauta por MPs. Poderes negociais – comissões mistas e “jabutis”1 Em março de 2012, o Supremo Tribunal Federal decidiu (ADI 4029) que as MPs sem parecer de comissão mista não poderiam ser votadas nos Plenários, ou se- 1 Jabuti é a como se denomina, informalmente, no Congresso Nacional, a matéria estranha incluída em uma medida provisória. A expressão faz referência ao provérbio português “Jabuti não sobe em árvore”, ilustrando que a matéria estaria “fora de lugar”. Outra expressão comumente usada para se referir à matéria estranha é “contrabando legislativo”. A Lei Complementar nº 95/1998, que disciplina a elaboração das leis, determina no art. 7º que cada lei tratará de um único objeto e que não conterá matéria estranha a este, não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão. “Essa carona na medida provisória recebe até hoje vários apelidos no Congresso Nacional, tais como ‘contrabando’, ‘jabutis’, ‘submarinos’, ‘cavalo de troia’ e ‘barriga de aluguel’. Tal procedimento é vedado pelo § 4º do art. 4º da Resolução n. 1/2002.” (AGUIAR, 2015, p. 46-47) Do presidencialismo de coalizão ao parlamentarismo de ocasião: análise das relações entre Executivo e Legislativo no governo Dilma Rousseff 41 riam consideradas inconstitucionais. O principal argumento do ministro-relator, Luiz Fux, era o de que a não apreciação das MPs pelas comissões resultava no “Império do relator”. Sobre isso diz o informante-chave 2: Esse cara [o relator] tinha que se legitimar como o cara que faria o filtro e a construção do consenso. Com a possibilidade de mudar o texto em cima da perna. O que você tem agora de ruim? Complexificou muito a discussão, porque o modelo de comissão mista não funciona na prática, pela dificuldade maior que é quórum. E você conferiu um poder enorme às emendas formais. Outro informante-chave 1 ressalta outro aspecto: Para onde que foi a negociação? Para dentro da comissão. O que antes se dava no plenário. E o Senado passou a ter um protagonismo enorme. [...] Depois da primeira MP os caras da Câmara estavam enlouquecidos e o Senado feliz. Em decorrência da mudança anterior ocorre outra importante alteração, também por imposição do STF. A ADI 5.127/2015 determinou que parecer de MP que contivesse matéria estranha ao assunto original deveria ser devolvido à comissão. A Confederação Nacional dos Profissionais Liberais acionou o Supremo em razão de emenda que extinguia a profissão de técnico de contabilidade. Se os custos negociais das MPs já haviam aumentado muito com obrigatoriedade de apreciação pelas comissões, o empoderamento dos presidentes da Câmara e Senado quanto ao acolhimento de emendas elevou ainda mais esses custos, alerta o informante-chave 2: A discricionariedade absoluta e total do presidente da Câmara de decidir qual matéria é ou não pertinente num PLV, sem nenhum critério objetivo, você decidir e considerar não escrito um artigo votado pela comissão mista [...] ou não ver aquilo que não tem realmente conexão [...] é uma mudança institucional total. Tais matérias estranhas, conhecidas internamente como “jabutis”, constituíam moeda de troca na construção do consenso necessário para aprovação das MPs. Na tipologia aqui adotada, apesar das mudanças nascerem exógenas, pela ação do STF, sua efetivação no Congresso se dá pela atuação de atores insurgentes, que geram, portanto, uma mudança do tipo desalojamento. O governo não só perdeu em parte esse instrumento de barganha, como viu esse instrumento 42 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO migrar para a mão de um ator-chave que veio a se tornar o principal adversário do governo: Eduardo Cunha. Vetos – novo rito de apreciação Durante mais de uma década, o poder de veto presidencial foi, na prática, a última palavra no processo legislativo, apesar de a Constituição assegurá-la ao Congresso Nacional. O acúmulo de vetos não apreciados chegou a 3.210, dos quais 38 diziam respeito às leis já revogadas. A mudança veio a partir de discordância acerca da distribuição de royalties do petróleo do pré-sal, tradicionalmente pagos apenas a municípios e estados próximos às áreas de exploração no mar. Apesar da aprovação pelo Congresso de lei que previa distribuição de royalties a todos os municípios, a Presidência da República optou pelo veto à matéria após acordo com os “estados produtores”. Seguiu-se então uma enorme mobilização peara derrubada do veto. Provocado, o STF determinou que o veto a essa lei específica não poderia ser apreciado pelo Congresso antes dos demais vetos presidenciais nunca analisados. Assim, a apreciação dos vetos ocorreu por ordem cronológica e, na votação, o conjunto de cédulas para cada parlamentar totalizava quantidade próxima à de uma resma de papel. Por fim, o veto à lei do pré-sal foi derrubado, e todos os demais, mantidos. O episódio motivou o Congresso a construir um novo rito de apreciação dos vetos, institucionalizado pela Resolução nº 1/2015. A regra prevê data mensal fixa para as sessões de apreciação – a terceira terça-feira de cada mês – e o trancamento da pauta para apreciação de qualquer outra matéria, inclusive orçamentária. Essa alteração deixou o Executivo atento ao maior risco de derrubada dos vetos, como diagnosticou o informante-chave 4: [...] gerou um novo foco de tensionamento [...]. Tem sido bem frequente o governo negociar algo que vai entrar numa Medida Provisória [...] pra não se ver derrotado é obrigado a fazer concessões. Algo que não acontecia no passado. Do ponto de vista da dificuldade de manutenção de vetos, a situação só não se deteriorou mais porque, em novembro de 2013, o Congresso Nacional acabou Do presidencialismo de coalizão ao parlamentarismo de ocasião: análise das relações entre Executivo e Legislativo no governo Dilma Rousseff 43 com o voto secreto2 para muitas modalidades de votações, incluindo para a análise de vetos. Assim, o Executivo passou a estar mais protegido contra eventuais traições de membros da base. Os informantes-chave foram unânimes em dizer que, sem o voto aberto, momentos de interlocução ruim entre Executivo e Legislativo se converteriam num festival de derrubada de vetos. “O Executivo pode exercer mais força, no sentido de preservar a vontade dele na questão dos vetos presidenciais”, avalia o informante-chave 6. Empregando a classificação de Mahoney e Thelen (2010), a mudança institucional na apreciação de vetos foi uma conversão pela aplicação inovadora das regras vigentes, tipo de mudança, em geral, protagonizado por agentes oportunistas em conjunto com simbiontes mutualistas (parte da base de apoio ao governo). Fragmentação partidária A fragmentação partidária no Parlamento brasileiro é sabidamente a mais elevada do mundo, resultado de uma trajetória ascendente de duas décadas (POWER, 2015) que resulta em dificuldade para a formação de maiorias e em aumento dos atores como poder de veto. Reforçou o fenômeno mais uma mudança institucional: decisão do Tribunal Superior Eleitoral que considerou a criação de partido como justa exceção para a infidelidade partidária. Bertholini e Pereira (2015) advogam a necessidade de coalizões menores. A pergunta que se faz é: o presidente tem escolha? Não é compelido a formar coalizões com os partidos dispostos a isso? E a crescente fragmentação não acaba por impor um número cada vez mais elevado de parceiros? Nossos informantes-chave consideram o fenômeno da fragmentação uma chave fundamental para compreender as dificuldades de interlocução do Executivo com o Legislativo. O informante-chave 3 resume: 2 A absolvição do deputado Natan Donadon (S.Part.-RO) do processo de cassação do seu mandato em agosto de 2013, mesmo condenado pelo STF e preso, gerou uma comoção pelo fim do voto secreto. A mudança acabou se concretizando três meses depois. Donadon foi condenado por desvios na Assembleia Legislativa de Rondônia, quando foi diretor financeiro da casa. Com o fim do voto secreto nos processos de cassação de mandato Donadon foi enfim cassado, em fevereiro de 2014. 44 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Uma coisa é você conversar, ajustar, trocar ideias, propor medidas, discutir medidas num universo de quatro partidos, outra coisa é você trabalhar com oito ou dez partidos. O informante-chave 5 descreve como a interlocução, mesmo entre os partidos, fica muito comprometida: Absurdo a quantidade de representantes. [...] O regimento [da Câmara] manda privilegiar o consenso. Quase não existe consenso. [...] O presidente vai passando a palavra para os partidos do maior para o menor. Quando chega nos pequenininhos os grandes já foram embora. O informante-chave 5 traz um outro elemento: a indisciplina partidária. A proliferação de legendas está intimamente ligada a uma instrumentalização eleitoral dos partidos. Não há coesão qualquer e, consequentemente, previsibilidade na maioria. A gente está vendo cada vez com mais frequência a liderança do governo liberar a bancada porque não consegue um mínimo de coesão [...] se a gente for chegar a um elemento caracterizador do presente, quando a gente falar de negociação parlamentar, é esse: como você se legitima como líder, como um intermediário, seja de um interesse partidário? [...] eu vejo isso no trato cotidiano, um esfacelamento do poder do líder. E quem dá a legitimidade do líder é o liderado. Em resumo, a fragmentação partidária ocasiona a elevação dos custos de negociação e seus resultados de duas formas: quantitativa e qualitativa. Não é apenas o problema de ter que negociar, monitorar ou reacomodar um número muito maior de atores e instituições; tais atores já não têm a mesma capacidade de cumprir acordos e entregar resultados, como fruto de uma concorrência crescente entre partidos e dentro dos partidos. Mudanças por agência O presente capítulo não tem a pretensão de atribuir valor a um determinado fenômeno ou conjunto de fenômenos, definindo-o como fator explicativo preponderante na crise de governabilidade que marca o segundo governo Dilma. A motivação primeira é descrever da melhor maneira possível esse conjunto de elementos. Alguns informantes asseguram que duas mudanças nos padrões Do presidencialismo de coalizão ao parlamentarismo de ocasião: análise das relações entre Executivo e Legislativo no governo Dilma Rousseff 45 pré-existentes foram fundamentais para o resultado observado: 1) a excessiva centralização da formulação de políticas ocorrida no âmbito da Presidência da República – contrariando o desenho institucional que prevê descentralização por meio dos ministérios; 2) o processo de confrontação entre Executivo e Legislativo, no âmbito da Presidência da Câmara dos Deputados, cuja regra geral vinha sendo o alinhamento ou, ao menos, a colaboração. Centralização Nos governos de Fernando Henrique Cardoso, descrevem os observadores, havia total centralização apenas da “agenda econômica”. Os ministérios tinham razoável independência na formulação de outras políticas, salvo quando essas afetassem de alguma maneira o núcleo da política econômica de então. Nos governos Lula, a centralização da agenda econômica permanece, mas começa a haver interferência direta da cúpula do Executivo e seu principal partido – o PT – na concepção e execução de outras políticas públicas. Esse fenômeno, porém, foi totalmente exacerbado na gestão Dilma Rousseff: a presidente da República, e não mais na cúpula do governo, é que passou a interferir diretamente na agenda econômica. Em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo em 2016, o ex-ministro e ex-deputado Delfim Neto, que atuou como conselheiro da presidente até 2012, relata seu estilo de gestão: Acho que a presidente sempre foi a chefe da Casa Civil, a ministra da Justiça, da Fazenda, do Planejamento, dos Transportes, do Bem-estar Social. Para o governo Dilma funcionar, o dia teria que ter 240 horas. Ela é compulsivamente detalhista e tem pouca confiança em seus auxiliares [...] torna tudo muito mais difícil, porque você está num sistema presidencialista de coalizão. O presidente tem que “presidencializar” e “coalizar”. Se Dilma Rousseff avocou para si tantas tarefas, não seria diferente na gestão da relação Executivo-Legislativo. O informante-chave 4 confirma a mudança ocorrida na agência presidencial: Principalmente a mudança do perfil da própria pessoa que é responsável pelo exercício do Poder Executivo, e em virtude disso o tipo de diálogo que ela se dispôs a manter com o Congresso Nacional e a forma como ela centralizou, nas suas mãos, papéis que antes eram desempenhados com maior liberdade pelos 46 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO ministros que eram responsáveis tanto pela coordenação política quanto pela coordenação administrativa. Se no âmbito do governo Lula o presidente dava uma certa dose de liberdade e reconhecia o papel dos seus ministros, e realizava um papel de diálogo em nível mais elevado, ela não deu o mesmo nível de autoridade aos seus ministros e passou a ser muito mais concentradora em relação a um grande número de decisões que em outros momentos poderiam ser adotadas pelos ministros. Ele prossegue esclarecendo que, mesmo na formação da coalizão, a escolha dos ministros não seguia os critérios mais eficientes: Tem um aspecto nessa questão que mostra um pouco de falta de habilidade por parte do Executivo, mas também o caráter da composição partidária do PMDB. Quando o presidente compõe seu ministério – e essa é uma forma de pacificação das bancadas, de articular a correlação de forças no Congresso – ele tem que escolher pessoas que tenham representatividade partidária. Sucessivamente, no entanto, o que vem acontecendo, especialmente a partir de 2011 pra cá, é o governo nomear ministros que no dia seguinte são apontados pelos seus partidos como não representantes de suas bancadas. Dado interessante sobre esse aspecto pode ser encontrado na série histórica do índice de coalescência de Amorim Neto (2012) e completado para o período Dilma Rousseff com a mesma fórmula. Se em valores o índice de Dilma Rousseff não é muito pior que o de Fernando Henrique Cardoso, o mesmo não pode ser dito sobre a longevidade dos gabinetes. Os melhores desempenhos de FHC são 0,70 e 0,68, contra 0,66 e 0,65 de Dilma. Porém, os gabinetes mais coalescentes de FHC foram também os mais duradouros, indo de abril de 1996 a janeiro de 1999 e de março de 1999 a outubro de 2001. Já os gabinetes de Dilma tiveram, todos, vida mais curta. Os mais coalescentes duraram, respectivamente, apenas o mês de março de 2014 e de janeiro a outubro de 2015. São 8 mudanças de gabinete em 5 anos sob Dilma, contra 5 mudanças em 8 anos de FHC. E parte disso pode estar relacionada a nomeações que não são efetivamente representativas da correlação de forças dentro do Congresso. A centralização resultou em efeitos diversos – a insatisfação dos aliados foi um deles. Outro foi a redução da capacidade de atuação do Estado, que passou a demorar mais tempo para a tomada de decisões. Segundo a avaliação de dois dos informantes-chave, o governo parou. Houve um represamento de ações Do presidencialismo de coalizão ao parlamentarismo de ocasião: análise das relações entre Executivo e Legislativo no governo Dilma Rousseff 47 do governo e de novas políticas públicas, mesmo daquelas que não envolviam elevação de gastos. Segundo Martin e Vanberg (2011, p. 33), manter o controle da discricionariedade é muito difícil: “Cabinet-level institutions – at least taken on their own – are likely to be insufficient for effective policing”. Os autores advogam que o Legislativo tem um papel importante no controle dos ministros e, consequentemente, de suas políticas: “Given these constraints, institutions at the Legislative level can provide an important substitute for, and complement to, cabinet-level institutions” (MARTIN; VANBERG, 2011, p. 33). O informante-chave 1 ainda acrescenta que um dos motivos para a relação do Executivo com o Legislativo ter se desgastado a níveis muito ruins foi a leitura equivocada de que o isolamento do Congresso Nacional era positivo para o governo. Em 2010, o que estava na cabeça de todo mundo: oito anos de Lula, oito anos de Dilma, depois mais oito anos de Lula. Acabou! Temos um vitorioso! Havia um imenso, enorme, gigantesco capital político [busca o computador, mostra um gráfico, com os recordes de avaliação positiva do governo Dilma, acima de 90%]. Aqui [mostra o auge] é a Dilma faxineira, que vai fazer a limpa, a valentona. Quanto mais ela batia no parlamento, mais ela brigava, mais ela crescia. “Bater no parlamento é bom! Eu sou o máximo”. Olha o parlamento aqui [mostra o gráfico]. Único momento na história de 20 anos em que avaliação positiva do parlamento está um pouquinho acima do negativo é dezembro de 2003 – na aprovação das reformas. Mas depois de junho de 2013, desabou. Aí ela vai precisar do Congresso e o Congresso lhe falta. Vamos fazer reforma política, vamos fazer um referendo. Em nossos referenciais teóricos, já classificamos a presidente Dilma Rousseff como uma agente do tipo subversiva, na nomenclatura de Mahoney e Thelen (2010), ou seja, alguém que quer a mudanças das regras da ação política – via centralização decisória, no caso –, mas ainda busca manter a aparência de que joga conforme as regras do jogo. Neste caso, os resultados da tentativa de subversão parecem ter sido totalmente frustrados. 48 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Confronto Apesar do presidente da República no Brasil concentrar muitos poderes, especialmente legislativos (FIGUEIREDO; LIMONGI; VALENTE, 1999), o poder de agenda que tradicionalmente é associado a ele depende efetivamente da colaboração do presidente da Câmara dos Deputados, Casa por onde deve iniciar a tramitação de todas as propostas de iniciativa do Executivo. O fato de quase a totalidade dos presidentes da Câmara desde a redemocratização terem sido aliados do presidente da República pode ter resultado numa impressão generalizada de mais poder do que o chefe do Executivo realmente dispõe. À exceção de Eduardo Cunha, nenhum outro presidente da Câmara dos Deputados na Nova República se declarou oposicionista ao governo vigente. Ibsen Pinheiro – responsável pela abertura do processo de impeachment de Collor – e Severino Cavalcanti – eleito contra a vontade do presidente Lula – não adotaram abertamente o confronto com o governo. A necessidade de o presidente da República ter uma relação de lealdade com o presidente da Câmara só ficou realmente clara quando este optou pelo confronto. O informante-chave 4 faz a seguinte avaliação sobre a relevância desse agente de mudança na deterioração da relação do Legislativo com o Executivo: Tem um problema que eu vejo como crítico, que foi o fato de coincidir esse período [de redução dos instrumentos de governabilidade] com a emergência no âmbito do PMDB de uma liderança que teve um papel extremamente desagregador, que é o atual presidente da Câmara dos Deputados. Ele já vinha desde o segundo mandato do presidente Lula atuando de forma destacada em alguns temas como membro da bancada do PMDB. Mas na medida em que ele passou a ser o líder da bancada e constitui em torno dele um grupo de parlamentares, que instrumentalizava propostas e demandas que ele tinha, [...] que atuavam como teleguiados dele – isso todo mundo sabia – e ele passou a tensionar progressivamente a relação com o governo e essa bancada, digamos que ele articulou em torno dele acabou também caminhando na mesma direção. O informante-chave 3, que conviveu de perto com o agente analisado, atribui ao estilo pessoal de trabalho de Eduardo Cunha um peso importante no fenômeno avaliado. O informante-chave 6, vivenciou de perto os dois anos que Eduardo Cunha esteve à frente da liderança do PMDB na Câmara (2013-2014). Ele revela: Do presidencialismo de coalizão ao parlamentarismo de ocasião: análise das relações entre Executivo e Legislativo no governo Dilma Rousseff 49 Ele tem uma agenda própria, dele e de quem o elegeu, tanto para o parlamento, como para presidir a casa, como para a liderança do PMDB. Você sabe que o PMDB é um partido de diversos, que congrega vários estilos político-ideológicos – e ele pegou uma parte desse grupo, que deseja alcançar essa bandeira dele e foi se posicionando. Foram inúmeros os embates entre Cunha e o governo tanto da liderança do PMDB quanto na presidência da Câmara, mas um merece ser citado, porque expôs de maneira clara esse enfrentamento: o relacionado à MP dos Portos. A medida provisória abria a exploração portuária para a iniciativa privada, porém, com muitas condicionantes. Cunha se empenhou por retirar muitas delas. As votações bateram recordes históricos de duração e duraram duas madrugadas seguidas, totalizando quase 24 horas. O resultado foi avaliado pelo informante-chave 1: Ali ela [Dilma Rousseff] já tinha perdido governabilidade dentro do Congresso. [...] Ali acabaram todas as fichas. O Eduardo Cunha claramente se posicionou contra o governo. Ele perdeu no conteúdo, mas ganhou na política. A derrota mesmo veio no Orçamento Impositivo. Depois vem a eleição do Cunha e aí acabou. [...] E fica claro que quem comanda a Câmara é a coalizão do Eduardo Cunha. Eduardo Cunha valeu-se da discricionariedade e ambiguidade das regras para ampliar seu poder de agenda e negociação. Em seu primeiro ano na Presidência da Câmara, instalou 70 comissões especiais, aumentando consideravelmente a média anual de 23 comissões da 53ª legislatura (2007-2011). Há maior influência política do presidente da Câmara na definição da relatoria das comissões especiais, diferentemente do que ocorre nas comissões permanentes, compostas por todos os partidos a partir do critério da proporcionalidade partidária. Ainda mais importante, comissões especiais de projetos de lei têm o prazo de 40 sessões para trabalhar. Findo o período, o presidente tem poder de avocar para o Plenário a matéria em discussão e designar novo relator, possivelmente afinado com suas posições. Cunha usou do poder de avocar proposições para o Plenário em três temas importantíssimos: na reforma política – gerando consternação na comissão especial –, no projeto que regulamentava a terceirização (PL nº 4.330/2004) e na votação do Código de Mineração (PL nº 37/2011). 50 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Já havíamos adiantado a classificação do agente de mudança Eduardo Cunha como oportunista, na nomenclatura criada por Mahoney e Thelen (2010). Isso se dá em razão da elevada capacidade de exploração da ambiguidade das regras, do desejo de preservação e controle da instituição, e pelo aproveitamento dos instrumentos a sua disposição. Isso leva a um quadro de conversão institucional, inflacionando custos negociais e reduzindo a previsibilidade, tão necessária para a estabilidade do sistema. Um panorama geral A quantidade de mudanças, suas interações e inter-relações demonstram a complexidade do quadro sob análise. Não apenas o gradualismo com que ocorreram, mas o largo espectro de regras e atores que envolveram, tecem um emaranhado de fenômenos. Some-se a isso a adoção da tipologia proposta por Mahoney e Thelen (2010) e temos um quadro de difícil compreensão. Para facilitar a visualização desse quadro, buscamos sintetizar em poucas linhas um modelo analítico das mudanças havidas. Como toda simplificação, o quadro a seguir não dá conta das nuances de comportamento dos atores políticos, mas sublinha os elementos que cremos preponderar nos eventos estudados. Quadro 1 Mudanças e Agentes de mudança da relação Executivo-Legislativo no governo Dilma Rousseff segundo a tipologia de Mahoney e Thelen (2010) Mudança Cargos Descrição Redução da discricionariedade nas nomeações Tipo de mudança Enxertia Derivação Agente Dilma Rousseff + cúpula do PT Burocracia Tipo de agente Subversiva Simbiontes Do presidencialismo de coalizão ao parlamentarismo de ocasião: análise das relações entre Executivo e Legislativo no governo Dilma Rousseff Mudança Descrição Tipo de mudança Agente Tipo de agente Frustração da execução de emendas Derivação → Conversão Burocracia Simbiontes → Oportunistas Obrigatoriedade da execução de emendas parlamentares Enxertia → Desalojamento Parlamentares Subversivos → Insurgentes Flexibilização do trancamento da pauta por MPs Conversão Parlamentares Oportunistas Orçamento Poder de agenda Poderes negociais Obrigatoriedade das comissões mistas de MPs Restrição à matéria estranha (“jabutis”) STF (exógeno) Desalojamento + Insurgentes Parlamentares Poderes de veto Retomada da apreciação dos vetos presidenciais Conversão Parlamentares Fragmentação partidária Ampliação da fragmentação Derivação STF (exógeno) Parlamentares + atores partidários Simbiontes Centralização Concentração decisória e baixo compartilhamento da formulação política Enxertia Dilma Rousseff Subversiva Confronto Rompimento da cooperação com o Executivo; agenda própria, por vezes oposta Conversão Eduardo Cunha Oportunista Elaboração dos autores. Oportunistas + Simbiontes 51 52 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Apesar de serem observadas praticamente todos os tipos de mudanças listadas por Mahoney e Thelen, as conversões se destacam. Isso por que, ressaltam os autores, elas são capitaneadas por agentes oportunistas, que, além da ousadia que lhes deve ser característica para que alcancem seus objetivos, precisam encontrar a sua frente instituições com elevado grau de discricionariedade na interpretação das regras e baixo grau de poder de veto sobre suas ações. Foi exatamente o que encontrou o agente Eduardo Cunha e o grupo por ele liderado, que o alça a condição de presidente depois de passar a se confundir com a maioria da Câmara dos Deputados. Os poderes deste cargo até então não haviam sido experimentados em todo o seu potencial, algo que Cunha fez. Do outro lado, encontrou uma presidente da República com poderes de barganha e veto minados e que, pelas pretensões subversivas – na tipologia dos autores, ressalte-se –, guardava dificuldades pessoais de jogar na arena legislativa. Conclusão Segundo Power (2015, p. 31), em abrangente compilação da literatura sobre o tema, “o principal insight do presidencialismo de coalizão é simples: os presidentes brasileiros precisam se comportar como primeiros-ministros europeus”. Esse insight se consolidou não apenas na literatura, mas também na prática política. O conjunto de informações reunidas nestas páginas são, a nosso ver, confirmações das teorias referenciadas sobre o presidencialismo de coalizão, mas por uma perspectiva diferente: se em geral as pesquisas vinham confirmando que essa instituição funcionava a partir da reunião de determinados instrumentos e comportamentos, o quadro descrito comprova que ela não funciona quando esses elementos são negligenciados ou aplicados apenas de maneira aparente. Não bastam coalizões meramente formais. Para Carlos Pereira (EVELIN, 2014) a “regra de ouro da gestão de coalizão” é dividir poder, levando em consideração o peso de cada um. A forma mais óbvia e também mais republicana de dividir poder é compartilhar a formulação e execução das políticas públicas. Cargos e verbas são ferramentas para isso, apesar da histórica instrumentalização desses elementos, gerando um desvio de finalidade – como a patronagem –, um descolamento entre meios e fins. Batizados de Caixa de Ferramentas Do presidencialismo de coalizão ao parlamentarismo de ocasião: análise das relações entre Executivo e Legislativo no governo Dilma Rousseff 53 do Executivo (Executive Toolbox) por Raille, Pereira e Power (2010), esses instrumentos também tiveram um uso crescentemente pró-forma na gestão Dilma Rousseff, quando o crescimento nominal das dotações orçamentárias para emendas parlamentares não foi acompanhado de um crescimento da capacidade de execução desses valores. Isso resultou primeiro em frustração e, depois, em reação, consignada numa das principais derrotas do governo Dilma Rousseff, a promulgação da Emenda Constitucional do Orçamento Impositivo (EC nº 86/2015). Uma afirmação frequentemente ouvida por quem acompanha o Congresso Nacional de perto é a de que o Executivo abusa dos seus poderes de agenda e veto. Essa leitura pode estar na raiz de mudanças institucionais importantes, como a definição de um novo rito de apreciação de vetos e o uso de prerrogativas asseguradas pelo Supremo Tribunal Federal na tramitação de MPs. Neste caso, a mudança é inicialmente exógena, mas foi a decisão (endógena) dos congressistas de lançar mão dessas prerrogativas que elevou tanto os custos negociais do Executivo na arena legislativa. Os informantes-chave reconheceram que o Congresso não necessariamente precisaria utilizar tais poderes se não houvesse discordâncias entre Legislativo e Executivo sobre o conteúdo das políticas. As discordâncias de conteúdo foram potencializadas também pelas discordâncias na forma como o Executivo conduzia suas negociações – excessivamente centralizadora sob a perspectiva de um Poder que tem o dever de participar da formulação das políticas públicas. As evidências reunidas também confirmam uma nova perspectiva da teoria da mudança institucional, que substitui a antiga preponderância das causas exógenas, dos choques e das mudanças bruscas pelo reconhecimento da importância de causas endógenas e de mudanças graduais. Os dois tipos de fenômenos passam a conviver de maneira mais harmoniosa na literatura, especialmente após a contribuição de Mahoney e Thelen (2010), entre outros tantos autores. As mudanças graduais, como necessárias para viabilizar mudanças institucionais, são indicadores da importância do investimento em estudos com viés histórico. Não há possibilidade ainda de saber se esse quadro de intensa dificuldade na relação Executivo-Legislativo é de fato definitivo. Foram inúmeros os elementos complicadores dessa relação trazidos pelos eventos de natureza política, jurídica e econômica. Se outros presidentes passarão pelo mesmo problema, só o tempo dirá. E só a partir dessas novas experiências será possível dizer o 54 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO que realmente preponderou na deterioração do quadro – agência, mudanças institucionais exógenas ou a conjuntura. Parece-nos, porém, pouco provável que, no curto prazo, outro presidente vivencie essa “tempestade perfeita”, essa conjunção de tantos elementos complicadores da gestão política, capazes de jogar ao rés do chão a governabilidade do nosso outrora poderosíssimo e festejado presidencialismo de coalizão. Destaque, no entanto, deve ser dado ao fenômeno da mudança gradual, que se apresentou em diferentes momentos anteriores ao processo de impeachment e deteriorou, assim, as ferramentas de gerenciamento da coalizão. Mensalão e todos os outros casos de corrupção não seriam novas ferramentas acrescentadas à caixa, empobrecida por mudanças institucionais graduais? Uma intensa agenda de pesquisa se impõe a partir dessa pergunta. Referências ABRANCHES, S. (1988). Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro. Dados: Revista Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 31, n. 1, p. 3-55. AGUIAR, O. O. (2015). As regras informais e o processo decisório na Câmara dos Deputados. 2015. Dissertação (mestrado) – Câmara dos Deputados, Centro de Formação, Treinamento e Aperfeiçoamento (Cefor), Brasília-DF. ALMEIDA, A. S. (2015). Processo legislativo: mudanças recentes e desafios. Boletim de Análise Político-Institucional, Brasília, n. 7. AMES, B. (2003). Os entraves da democracia no Brasil. Rio de Janeiro: FGV Ed. AMORIM NETO, O. (2000). Gabinetes presidenciais, ciclos eleitorais e disciplina legislativa no Brasil. Dados: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 43, n. 3, p.479-519. ______ (2006). Presidencialismo e governabilidade nas Américas: Rio de Janeiro: FGV Ed. Do presidencialismo de coalizão ao parlamentarismo de ocasião: análise das relações entre Executivo e Legislativo no governo Dilma Rousseff 55 ______ (2012). El presidencialismo moderno en Brasil. In: LANZARO, Jorge (Org.). Presidencialismo y parlamentarismo. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales. p. 103-132. ______; COX, G.; MCCUBBINS, M. (2003). Agenda Power in Brazil’s Câmara dos Deputados, 1989-1998. World Politics, New York, v. 55, n. 4, p. 550-578. ______; CORTEZ, B. F.; PESSOA, S. A. (2011). Redesenhando o mapa eleitoral do Brasil: uma proposta de reforma política incremental. Opinião Pública, Campinas, v. 17, n. 1, p. 45-75, jun. ARAÚJO, L.; PEREIRA, C.; RAILE, E. (2010). Negotiating democracy: exchange and governance in multiparty presidential regimes. in: ANNUAL MEETING OF THE AMERICAN POLITICAL SCIENCE ASSOCIATION, 106., 2010, Washington, DC. Conference papers. Washington, DC: APSA. p. 1-39. BATES, R. H.; GREIF, A.; LEVI, M.; ROSENTHAL, J.-L.; WEINGAST, B. R. (2000). The analytic narrative project. American Political Science Review, Cambridge, v. 94, n. 3, p. 696-702. BETHOLINI, F.; PEREIRA, C. (2015). Pagando o preço de governar: custos de governabilidade no presidencialismo de coalizão brasileiro. Rev. Adm. Pública, Rio de Janeiro, v. 51, n. 4, p. 528-550. Disponível em: <https://www.academia. edu/12491612/Pagando_o_Preço_de_Governar_Custos_de_Governabilidade_no_ Presidencialismo_de_Coalizão_Brasileiro>. Acesso em: 12 nov. 2015. BITTENCOURT, F. M. R. (2012). Relações Executivo-Legislativo no presidencialismo de coalizão: um quadro de referência para estudos de orçamento e controle. Brasília: Senado Federal, Núcleo de Estudos Políticos. (Textos para discussão; n. 112). BORGES, A.; COELHO, D. (2015). O preenchimento de cargos da burocracia pública federal no presidencialismo de coalizão brasileiro: análise comparada de dois ministérios – Ciência e Tecnologia e Integração Nacional. In: LOPES, Felix (Org.). Cargos em confiança no presidencialismo de coalizão brasileiro. Brasília: Ipea. p. 71-106. 56 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO BRASIL. Decreto nº 5.497, de 21 de julho de 2005. Dispõe sobre o provimento de cargos em comissão do Grupo-Direção e Assessoramento Superiores (DAS), níveis 1 a 4, por servidores de carreira, no âmbito da administração pública federal. Brasília: Congresso Nacional, 2005. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Decreto/D5497.htm>. Acesso em: 12 nov. 2015. CARDOSO, F. H. (2015). Diários da Presidência: 1995-1996. São Paulo: Cia. das Letras. CRUZ, Valdo; CABRAL, Maria Clara (2011). Planalto promete liberar verbas para acalmar aliados. Folha de S.Paulo, São Paulo, 12 ago. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/po1208201113.htm>. Acesso em: 19 abr. 2016. EVELIN, Guilherme (2014). Carlos Pereira: "O PT não sabe fazer coalizão de governo". Tempo. Época, Rio de Janeiro, 20 dez. 2014. Disponível em: <https://epoca.globo.com/tempo/noticia/2014/12/carlos-pereira-o-pt-nao-sabefazer-bcoalizao-de-governob.html>. Acesso em: 12 nov. 2015. FIGUEIREDO, A.; LIMONGI, F.; VALENTE, A. (1999). Governabilidade e concentração de poder institucional: o governo FHC. Tempo Social, São Paulo, v. 11, n. 2, p. 49-62. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo. php?script=sci_arttext&pid=S0103-20701999000200004&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 12 nov. 2015. ______; ______ (2007). Instituições políticas e governabilidade: desempenho do governo e apoio legislativo na democracia brasileira. In: MELO, C. R.; SAEZ, M. A. A democracia brasileira: balanço e perspectivas para o século 21. Belo Horizonte: UFMG. p. 147-198. GIDDENS, A. (1984). The constitution of society: outline of the theory of structuration. Berkley; Los Angeles: Univ. California Press. GREENSTEIN, F. G. (2010). The presidential difference. Princeton: Princeton Univ. Press. Do presidencialismo de coalizão ao parlamentarismo de ocasião: análise das relações entre Executivo e Legislativo no governo Dilma Rousseff 57 JESUS, A. L. (2007). Execução das emendas orçamentárias individuais: segundo mandato do Governo Fernando Henrique Cardoso (1999 a 2002) e primeiro mandato do Governo Lula (2003 a 2006). 2007. Monografia (Curso de Especialização em Instituições e Processos Políticos do Legislativo) – Centro de Formação, Treinamento e Aperfeiçoamento (Cefor), Câmara dos Deputados. Disponível em: <http://bd.camara.gov.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/5808/ execucao_emendas_jesus.pdf?sequence=2>. Acesso em: 12 nov. 2015. LOPES, F.; BUGARIN, M.; BUGARNI, K. (2015). Mudanças político-partidárias e rotatividade dos cargos de confiança (1999-2013). In: LOPES, Felix (Org.). Cargos em confiança no presidencialismo de coalizão brasileiro. Brasília: Ipea. p. 33-70. MACHADO, D. O. (2012). Relação entre disciplina e infidelidade partidária na Câmara dos Deputados. Brasília. Monografia (Curso de Especialização em Política e Representação Parlamentar) – Câmara dos Deputados, Centro de Formação, Treinamento e Aperfeiçoamento (Cefor). Disponível em: <http:// bd.camara.gov.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/13136/relacao_disciplina_ machado.pdf?sequence=2>. Acesso em: 12 nov. 2015. MAHONEY, J.; THELEN, K. (2010). Explaining institutional change: ambiguity, agency, and power. New York: Cambridge Univ. Press. MAINWARING, S.; PEREZ LINAN, A. (1998). Disciplina partidária: o caso da Constituinte. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, São Paulo, n. 44, p. 107-136. ______ (1997). Presidentialism and democracy in Latin America. Cambridge: Cambridge Univ. Press. MARTELLO, Alexandre. Governo anuncia corte recorde de R$ 50 bilhões no orçamento de 2011. G1, 9 fev. 2011. Disponível em: <http://g1.globo.com/ economia/noticia/2011/02/governo-anuncia-corte-recorde-de-r-50bilhoesnoorcamento-de-2011.html>. Acesso em: 19 abr. 2016. MARTIN, L.; VANBERG, G. (2011). Parliaments and coalitions: the role of legislative institutions in multiparty governance. Oxford: Oxford Univ. Press. 58 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO MAYHEW, D. R. (1974). Congress: the electoral conection. 2. ed. New Haven; London: Yale Univ. Press. NEIVA. P. R. P. (2011). Disciplina partidária e apoio ao governo no bicameralismo brasileiro. Revista de Sociologia Política, Curitiba, v.19, n. 39. PEREIRA, C.; MUELLER, B. (2003). Partidos fracos na arena eleitoral e partidos fortes na arena legislativa: a conexão eleitoral no Brasil. Revista Dados: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 46, n. 4. p. 735-771. ______; POWER, T.; RENNÓ, L. (2005). Under what conditions do presidents resort to decree power? theory and evidence from the Brazilian case. The Journal of Politics, v. 67, n. 1, p. 178-200. POWER, T. (2015). Presidencialismo de coalizão e o design institucional no Brasil: o que sabemos até agora? In: SATHLER, A.; BRAGA, Ricardo (Org.). Legislativo pós-1988: reflexões e perspectivas. Brasília: Câmara dos Deputados. RAILE, E.; PEREIRA, C.; POWER, T. (2010). The Executive toolbox: building legislative support in a multiparty presidential regime. Political Research Quartely, Salt Lake City, UT, v. 64, n. 2, p. 323-334. RENNÓ, L. R. (2006). Críticas ao presidencialismo de coalizão: processos institucionalmente constritos ou individualmente dirigidos? In: AVRITZER, L.; ANASTASIA, F. (Orgs.) Reforma política no Brasil. Belo Horizonte: UFMG. SAMUELS, D. (2000). Ambition and competition: explaining legislative turnover in Brazil. Legislative Studies Quarterly, v. 25, v. 3, p. 481-484. SILVA, R. S.; ARAÚJO, S. M. V. G. (2010). Apropriação da agenda do Legislativo: como aferir esse fenômeno. Brasília: Senado Federal, Consultoria Legislativa. (Textos para discussão; n. 76). Disponível em: <http://www2. senado.leg.br/bdsf/handle/id/18890497>. Acesso em: 12 nov. 2015. SANTOS, F. (1997). Patronagem e poder de agenda na política brasileira. Dados: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 40, n. 3. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S001152581997000300007&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 12 nov. 2015. Do presidencialismo de coalizão ao parlamentarismo de ocasião: análise das relações entre Executivo e Legislativo no governo Dilma Rousseff 59 VOLPATO, G. (2010). Dicas para redação científica. 3. ed. São Paulo: Cultura Acadêmica. ZUCCO JR., C.; MELO-FILHO, P. (2010). The political economy of ordinary politics: presidential-legislative relations in multiparty settings. Princeton, NJ: Princeton Univ. Disponível em: <http://www.fgv.br/professor/cesar.zucco/ files/UNPUBPolEconOrdinary.pdf>. Acesso em: 12 nov. 2015. 61 Fortalecimento das comissões mistas: poder de barganha e desgaste na coalizão a partir de 2012 Rodrigo Ribeiro Bedritichuk Suely Mara Vaz Guimarães de Araújo Introdução Não há como observar o terremoto político que sacudiu o Brasil a partir de 2015 sem perquirir sobre a solidez ou fragilidade do nosso sistema político. A crise convida e até impele à rediscussão dos diversos institutos que compõem o presidencialismo brasileiro. Do ponto de vista acadêmico, uma lição importante da crise, segundo Pereira (2015), é que os analistas parecem ter superestimado os poderes constitucionais do presidente, já que a eleição de um ator não alinhado totalmente com o Executivo para a presidência da Câmara colocou em xeque a capacidade da presidente da República em fazer avançar sua agenda legislativa e garantir governabilidade. Partindo dessa provocação, pode-se entrar mais a fundo no terreno dos poderes constitucionais do presidente para empreender investigação atualizada sobre os instrumentos à sua disposição. Nessa seara, constata-se relevante mudança no instituto da medida provisória (MP), ferramenta legislativa crucial no sistema político brasileiro. Em 2012, decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) alterou o rito de tramitação das MPs consolidado há mais de dez anos no Congresso, estabelecendo a obrigatoriedade de avaliação por comissão mista antes da apreciação em Plenário. Ao alterar o trâmite legislativo das MPs, a mudança institucional repercutiu na dinâmica decisória de um dos principais instrumentos do presidente. 62 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO O presente artigo pretende investigar os impactos dessa mudança. O objetivo central é entender melhor o poder de agenda do presidente no contexto recente, especialmente no que concerne à edição de medidas provisórias. Além de descrever o que mudou com o novo rito, cabe apontar possível relação entre a mudança institucional e a relação Executivo-Legislativo. A análise centra-se no primeiro governo Dilma (2011-2014), por permitir a comparação entre a sistemática antiga de tramitação das MPs e o novo rito a partir da decisão do STF. Procedeu-se ao rastreamento das tramitações de diversas MPs com o objetivo de analisar o funcionamento de mecanismos causais relacionados às MPs, investigando como esses mecanismos mudaram a partir de 2012 e afetaram o gerenciamento da coalizão governamental. Os resultados apontam para o fortalecimento do sistema de comissões no Congresso e sugerem o aumento do poder de barganha dos parlamentares, o que dificultou a aprovação da agenda legislativa do Executivo no período analisado. Medidas provisórias Um dos principais recursos do presidencialismo é o poder de editar decretos com força de lei. No Brasil, o poder de decreto expressa-se na possibilidade de edição de medidas provisórias, instrumentos legislativos com imediata força de lei e prazo de vigência de 120 dias. Presente no texto original da Constituição de 1988, a MP tem sido usada à exaustão por todos os presidentes desde então. Uma vez que altera imediatamente o status quo, a medida provisória confere vantagem estratégica ao presidente na barganha de seu programa de governo. Como a MP já entra em vigor no ato de sua edição, a escolha que cabe ao Congresso é entre o status quo alterado por ela e uma situação em que a MP é rejeitada após ter vigorado por certo tempo (LIMONGI; FIGUEIREDO, 1998). A vigência imediata altera a estrutura de escolhas disponíveis aos parlamentares antes mesmo de o jogo político começar, já que as políticas não são discutidas em tese, mas avaliadas a posteriori, aferindo-se o seu efeito prático no mundo real (MACHIAVELI, 2009). A rápida organização dos grupos beneficiados pelas MPs e a pressão exercida nos parlamentares são fatores consideráveis na decisão de atores políticos. Mesmo com o pouco tempo de vigência da MP, é razoável Fortalecimento das comissões mistas: poder de barganha e desgaste na coalizão a partir de 2012 63 supor a existência de efeitos lock-in e feedbacks positivos (REZENDE, 2012), mecanismos que favorecem a continuidade das alterações promovidas pela MP. Essa característica tende a elevar o custo de rejeição das MPs pelo Congresso, fator que pode forçar os parlamentares a cooperarem com a agenda do governo. Além disso, a MP interfere na agenda de votações do Congresso, posto que “tranca” a pauta de votações da Casa em que estiver tramitando se não for apreciada até o 45º dia de vigência. O recurso do trancamento de pauta, instituído em 2001, foi, segundo Pereira (2008), um incentivo institucional para maior uso do instrumento, uma vez que aumentou o poder de agenda do presidente e a capacidade de interferir na pauta do Congresso. Por essa natureza especial, a medida provisória é importante instrumento na caixa de ferramentas do Executivo. A estratégia presidencial no tocante à relação com o Legislativo levará em conta a utilização de MPs, de forma que as medidas provisórias podem reforçar uma situação de conflito ou funcionar como instrumentos de coordenação dos partidos da base. Sobre o assunto, a literatura se divide em duas visões (RENNÓ, 2006). A primeira visão, intuitiva, é a de que o decreto executivo é uma imposição legiferante do Executivo, sendo, geralmente, recurso unilateral de presidentes minoritários, que recorrem aos decretos pela impossibilidade de governar pela via ordinária. O pressuposto é que os decretos são instrumentos mais precários e polêmicos e que, se tivessem maioria, os presidentes teriam preferência em utilizar a legislação ordinária (COX; MORGENSTERN, 2001). Conhecida como teoria da ação unilateral, essa abordagem acentua a relação de conflito entre presidente e Congresso. Uma vez que a edição de decretos executivos é vista como tentativa de impor a agenda legislativa do Executivo à maioria parlamentar, tem-se um reforço da dicotomia entre esses dois atores. A segunda linha de pesquisa no tocante aos decretos é a teoria da delegação. Baseando-se no modelo principal-agente, a abordagem enxerga haver delegação parcial da função legislativa do Congresso ao presidente. Essa delegação é vantajosa aos parlamentares por resolver problemas de ação coletiva, especialmente em parlamentos fragmentados (SHUGART; CAREY, 2009), além de evitar a responsabilização por matérias impopulares (FIGUEIREDO; LIMONGI, 1997). A partir dessa ótica, o Executivo não impõe unilateralmente seus interesses ao Legislativo. Pelo contrário, a delegação pressupõe cooperação entre ambos, de 64 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO modo que quanto maior o apoio do presidente no Parlamento, mais frequente a edição de MPs. Em investigação sobre o processo constituinte brasileiro, Power (1998) mostra evidências de que a Assembleia Constituinte delegou ao Executivo a prerrogativa de editar MPs por entender que o processo legislativo ordinário no Congresso era lento e custoso. Diversos autores encampam a teoria da delegação em suas várias vertentes: Figueiredo e Limongi (1997; 1999) enxergam a MP como um instrumento de governabilidade que atenua os efeitos descentralizadores do sistema eleitoral e permite a agregação de uma maioria de governo; para Figueiredo, Canello e Vieira (2012), as MPs seriam instrumento de “solução de barganhas horizontais”; Amorim Neto e Tafner (2002) ressaltam os mecanismos de controle dos parlamentares para evitar as perdas da delegação; e Almeida (2014) enxerga a delegação sob a ótica informacional. Não obstante, os estudos de Pereira, Power e Rennó (2005) e Power (1998) concluem que não há base definitiva nem para a teoria da ação unilateral, nem para a teoria da delegação. A incidência de uma ou outra teoria parece ser contingente, e não uma regra geral aplicável ao sistema brasileiro. Em face dessa ambiguidade, é recomendável volver a análise para a dinâmica decisória interna de apreciação das MPs no Congresso, buscando clarear mecanismos causais relacionados às medidas provisórias. Desde a Constituição de 1988, apenas uma reforma constitucional alterou a estrutura do instituto das MPs. Aprovada em 2001, a Emenda Constitucional (EC) nº 32 mudou o rito de tramitação, estabelecendo, entre outros pontos: apreciação prévia por comissão mista; apreciação separada em cada uma das Casas; proibição de reedição; e previsão de trancamento da pauta da Casa em que a MP estiver, caso a matéria não tenha sido votada após 45 dias de sua promulgação. De acordo com a Resolução nº 1/2002-CN, que regulamentou a tramitação das MPs após a EC nº 32/2001, depois de editada a MP, deve ser constituída comissão mista com o objetivo de aprovar parecer sobre a matéria no prazo de 14 dias. Decorrido o prazo, com ou sem o parecer da comissão, a MP deve ser enviada ao Plenário da Câmara e, em seguida, ao Plenário do Senado. Caso a comissão não tenha aprovado parecer, esse deve ser oferecido diretamente no Fortalecimento das comissões mistas: poder de barganha e desgaste na coalizão a partir de 2012 65 Plenário de cada Casa, por relator designado na ocasião pelo presidente da respectiva Casa legislativa. Por mais de dez anos em que vigorou essa sistemática (2001-2012), nenhuma comissão aprovou o parecer antes do envio da MP ao Plenário da Câmara. A prática consolidada era de concentrar a tramitação das MPs nos Plenários. Sem as comissões, a negociação do texto deixava de ocorrer no Parlamento, às claras, para ser feita nos gabinetes ministeriais, entre o relator, os líderes partidários e a burocracia do governo (CLÈVE, 2010; AMARAL JÚNIOR, 2004; FIGUEIREDO; LIMONGI, 1997). Apesar de ter havido apenas uma reforma constitucional das MPs, operou-se mudança institucional relevante pela via judicial. Em março de 2012, o STF, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4029,3 declarou inconstitucional4 essa sistemática de tramitação que dispensa o parecer da comissão mista, porquanto a instrução por colegiado misto é determinação expressa da Constituição (art. 60, § 9º). A decisão determinou que todas as MPs deveriam passar primeiramente – e obrigatoriamente – por comissão mista antes de serem apreciadas pelos Plenários da Câmara e do Senado.5 A mudança ocorreu no primeiro mandato de Dilma Rousseff, alterando, de imediato, a dinâmica decisória do instituto. Abordagem metodológica Ao investigar o impacto de uma mudança institucional na dinâmica decisória do Congresso, colocou-se o foco na análise de mecanismos causais, geralmente definidos como conexões entre causas e efeitos. Para McAdam, Tarrow e Tilly (2004), mecanismos são classes delimitadas de eventos que alteram as relações entre elementos de maneira similar em uma variedade de situações. Assim, 3 Referida ação foi movida pela Associação Nacional dos Servidores do Ibama contra a Lei nº 11.516/2007 (proveniente da MP nº 366/2007), que criou o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). 4 ADI nº 4029, Relator: ministro Luiz Fux, Tribunal Pleno, julgado em 8/3/2012, Acórdão Eletrônico DJe-125; publicado em 27/6/2012. 5 O STF conferiu efeitos prospectivos à decisão, para não declarar a inconstitucionalidade de uma infinidade de leis provenientes de MPs, que, no trâmite congressual, dispensaram a etapa das comissões. 66 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO aplicada ao presente contexto, a pesquisa buscou encontrar padrões e mapear mecanismos causais, a partir da análise da tramitação de diversas MPs, relacionando medidas provisórias, mudança do rito de tramitação e relação Executivo-Legislativo. A estratégia de pesquisa focada em mecanismos pode contribuir para alargar o entendimento do processo decisório envolvendo as medidas provisórias. Ao contrário de pesquisas mais amplas, que englobam várias presidências e incluem diversas variáveis, trabalhar com período limitado permite fazer análise mais detalhada do processo de tramitação de MPs, clareando mecanismos causais. O sacrifício da parcimônia e da abrangência pode ser compensado pela riqueza descritiva (FLYVBJERG, 2011) e pelo maior poder explicativo para lidar com mecanismos causais (GEORGE; BENNET, 2005). Por exemplo, os partidários da teoria da delegação falam que as MPs podem servir para a solução de barganhas horizontais, mas não deixam claro como isso ocorre nem apresentam muitos casos concretos. O foco em mecanismos pode preencher essas lacunas. A abordagem metodológica utilizada foi o estudo de caso, escolha natural diante do foco em mecanismos, da necessidade de se incorporar o contexto à análise, além da brevidade da mudança institucional estudada. Trabalhou-se com o caso do primeiro governo Dilma (2011-2014), em que é possível fazer a comparação entre os dois ritos de tramitação de MPs. Além do rastreamento de tramitações de MPs dentro desse caso maior, foram utilizados alguns indicadores para avaliar os impactos da mudança institucional. No período analisado, Dilma editou 145 MPs; além disso, 21 medidas provisórias editadas por Lula foram apreciadas somente no governo Dilma. Descontando-se as MPs orçamentárias,6 tem-se um total de 52 MPs que tramitaram sob o rito antigo, com apreciação direta em Plenário; e 83 MPs que foram apreciadas previamente pelas comissões. Grande parte dos dados foi obtida a partir de análises documentais, como históricos de tramitação das MPs e notas taquigráficas de reuniões. Além do mais, foram realizadas entrevistas com cinco atores importantes no processo político, 6 Jurisprudência do STF indica que, em se tratando de norma que exaure seus efeitos na aplicação dos recursos financeiros, mesmo a perda de vigência ou eventual inconstitucionalidade não podem desfazer essa situação fática (ADI 1.979/SC-MC, Tribunal Pleno, Relator: ministro Marco Aurélio, DJ de 29/9/2006). Por isso, são de pouca relevância para a análise as MPs orçamentárias. Fortalecimento das comissões mistas: poder de barganha e desgaste na coalizão a partir de 2012 67 de modo a aprofundar o entendimento sobre o trâmite interno das MPs.7 Análise detalhada da tramitação de cada proposição permitiu enxergar o funcionamento de mecanismos antes e após a mudança do rito com a decisão do STF em 2012. Mecanismos de coordenação Analisando a tramitação das MPs sob o rito que dispensava a apreciação das comissões, observa-se o funcionamento de mecanismos causais que fizeram da MP, precipuamente, instrumento de coordenação horizontal das preferências da base. A edição de MPs beneficiou tanto o Executivo, pela vantagem estratégica na negociação da agenda legislativa, quanto a base parlamentar, contemplada com a participação no processo decisório. Dois mecanismos operaram nesse sentido: a concentração da tramitação em Plenário, sobretudo na Câmara, e o controle de relatorias. Além do prazo exíguo para a análise das comissões, há evidências de que o governo atuou para esvaziar as reuniões dos colegiados e concentrar a análise das MPs diretamente em Plenário (LIMA, 2011). Esse mecanismo de concentração da tramitação em Plenário facilitou a aprovação das MPs pelos seguintes motivos: i) sem a etapa das comissões, o custo de aprovação foi menor, já que as MPs tramitaram em apenas duas instâncias decisórias – os Plenários da Câmara e do Senado; ii) por serem arenas decisórias amplas, os Plenários favorecem a aprovação da pauta da maioria, tanto pela concentração de recursos legislativos nos líderes partidários quanto pela ineficácia da atuação individualizada por parte dos parlamentares (LIMONGI ; FIGUEIREDO, 1998; 1999); iii) ainda que não consiga o apoio efetivo dos líderes, o Executivo dispõe de enorme arsenal para conquistar votos no “varejo”, utilizando recursos como nomeação de cargos ou liberação de verbas (RAILE; PEREIRA; POWER, 2011). Nesse contexto de decisões centralizadas nos Plenários, houve menor custo de negociação e de aprovação das MPs, o que favoreceu sua aprovação conforme as preferências do Executivo. No biênio 2011-2012, Câmara e Senado foram comandados por aliados do governo, com Marco Maia (PT-RS) na presidência 7 Uma assessora da liderança do Governo no Congresso Nacional, um assessor do PMDB, um assessor do PTB, um assessor do DEM, e um assessor técnico das comissões de medidas provisórias. 68 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO da Câmara e José Sarney (PMDB-AP) à frente do Senado, o que também ajudou no encaminhamento das votações em Plenário. Além disso, as tramitações concentraram-se quase que na totalidade no Plenário da Câmara,8 o que significa que o governo teve mais “moeda” para conquistar o apoio dos deputados, fato importante ao se considerar que a Câmara foi o grande foco da instabilidade política no primeiro governo Dilma. Sem o funcionamento das comissões, os relatores de MPs eram designados diretamente em Plenário pelos presidentes de cada Casa legislativa. Isso conferia liberdade aos presidentes da Câmara e Senado para escolher os relatores de acordo com a conveniência política. Esse segundo mecanismo, de controle de relatorias, fortalecia o papel da MP como instrumento de coordenação, já que a relatoria poderia ser usada como ferramenta de coordenação da base. Os dados demonstram a discricionariedade dos presidentes das Casas legislativas no processo de distribuição de relatorias. Chama atenção o domínio da coalizão governista e a exclusão da oposição do processo, além de casos evidentes de sobrerrepresentação, mostrando que o critério da proporcionalidade partidária foi utilizado de forma maleável, conforme a conveniência política do momento (ver anexo). A liberdade na divisão dos relatores permitiu ao governo usar as relatorias de MPs como recursos de coordenação da coalizão por pelo menos três motivos. Primeiro, a relatoria permite que o parlamentar participe do processo de tomada de decisões e ganhe projeção política pela relevância da matéria. Segundo, a relatoria pode ser dada como forma de compensação para os membros da coalizão. Um exemplo é a sobrerrepresentação do PCdoB na Câmara: no final de 2011, o índice de governismo9 do partido foi de 95%, atrás apenas do PT. A distribuição das relatorias de MPs ao partido, em número superior ao de outras bancadas mais expressivas da base, pode ser interpretada como recompensa à fidelidade do partido. 8 Das 45 MPs aprovadas pela Câmara, o Senado deixou de votar 2 e promoveu alterações apenas em 3. Todas as outras 40 foram aprovadas conforme o texto proveniente da Câmara. 9 Indicador que calcula a porcentagem de deputados do partido que votam de acordo com o governo em votações nominais. Dados obtidos pelo banco de dados do Basômetro (disponível em: <http:// estadaodados.com/basometro/>; acesso em: 20 ago. 2016). Fortalecimento das comissões mistas: poder de barganha e desgaste na coalizão a partir de 2012 69 Terceiro, a relatoria pode servir na reconquista de um partido descontente com o governo. A distribuição de relatorias ao PR no Senado exemplifica tal possibilidade. Em julho de 2011, após a divulgação de escândalos de corrupção, foi exonerado o ministro dos Transportes, Alfredo Nascimento, senador pelo PR. Nascimento voltou ao Senado e anunciou em agosto a saída da sigla da base do governo, assumindo postura de independência (SEM..., 2011). Até então, o PR no Senado ainda não tinha sido contemplado com nenhuma relatoria de MP. Foi nesse contexto que o presidente Sarney designou, em 1º de setembro, o senador Alfredo Nascimento para relatar a MP nº 533/2011, menos de quinze dias depois do anúncio da saída do PR da base. Ao envolver o senador em um projeto do Executivo, de tema social (ampliação da oferta de creches) e com apelo eleitoral, o governo pôde utilizar as MPs como forma de recomposição da base. A partir daí mais três senadores do PR foram designados relatores de MPs, sugerindo esforço contínuo do governo para acalmar os ânimos da bancada do partido. O controle de relatorias das MPs no rito pré-2012 foi mecanismo que permitiu ao governo Dilma privilegiar sua coalizão partidária, resolvendo problemas de coordenação horizontal. Aliado ao mecanismo de concentração da tramitação em Plenário, o governo pôde usar as MPs como instrumentos eficientes para avançar sua pauta legislativa e também buscar o alinhamento de preferências na sua base de apoio. Impactos da mudança institucional Com a decisão do STF em 2012 e a mudança no instituto das medidas provisórias, observa-se o desmonte dos dois principais mecanismos causais que tornavam a MP instrumento de coordenação, a concentração em Plenário e o controle de relatorias. Concentração nas comissões O funcionamento efetivo das comissões mistas representou o desmonte do mecanismo de concentração da tramitação em Plenário, o que teve impactos consideráveis. As comissões tornaram-se não apenas nova arena no rito de tramitação das MPs; antes, afiguraram-se como as arenas mais importantes, 70 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO concentrando a maior parte do tempo de tramitação das medidas provisórias. A tabela 1 compara o tempo médio de tramitação em cada órgão antes e depois da decisão do STF. A diferença entre os períodos é clara, demonstrando a perda de protagonismo do Plenário da Câmara no processo de avaliação das MPs e a consequente primazia das comissões no processo. Tabela 1 Média do tempo de tramitação das MPs jan./2011 a mar./2012 abr./2012 a dez./2014 Comissões 12,5% Câmara 77,6% 77,3% 11,2% Senado 9,9% 11,5% Fonte: Senado Federal e Câmara dos Deputados. Elaboração dos autores. Por serem arenas decisórias menores, há nas comissões maior espaço para o debate especializado e também para o confronto político. O debate entre governo, oposição e grupos de pressão passou a ser travado no âmbito das comissões, com a realização de diversas audiências públicas e reuniões conflitivas, conferindo importância aos colegiados e maior abertura ao processo legislativo. Característica especial das comissões de MPs é que elas são obrigadas por força judicial a aprovarem parecer instrutivo, mas sem prazo definido para tanto, além de apreciarem matérias com força de lei e tempo limitado de vigência. Por isso as comissões podem, por exemplo, exercer o poder negativo, ou gatekeeping, barrando a tramitação de determinada MP e evitando que ela siga seu curso em Plenário (DEERING; SMITH, 1997). A agenda legislativa do Executivo, composta em grande parte por MPs, fica dependente da manifestação das comissões. O novo rito representa um desafio à visão corrente que se tem sobre o sistema de comissões no Congresso. Em geral, as comissões são vistas como órgãos pouco relevantes, dada a prerrogativa de líderes e do presidente da República em solicitar urgência para determinados projetos e levá-los diretamente à apreciação em Plenário (DINIZ, 1999; PEREIRA; MUELLER, 2003). No caso das Fortalecimento das comissões mistas: poder de barganha e desgaste na coalizão a partir de 2012 71 comissões de MPs não existe essa possibilidade – a manifestação dos colegiados é obrigatória. Uma vez que para cada MP é criada comissão específica, o processo decisório se tornou disperso, com a existência de diversos colegiados que funcionam concomitantemente. Do ponto de vista do governo, essa nova configuração exigiu imenso trabalho de coordenação, mobilização dos parlamentares para efeitos de quórum e monitoramento. Tal dispersão do processo decisório significou também maior especialização dos debates e maior participação dos parlamentares, diminuindo a assimetria de informações. Ora, na sistemática anterior, a MP ficava a maior parte do tempo na Câmara, nas mãos do relator de Plenário. A obscuridade na instrução – envolvendo geralmente o relator e os órgãos governamentais em reuniões privadas – fazia com que o texto a ser votado pelo Plenário fosse desconhecido da maioria. Nesse cenário de incerteza, na hora da votação tinha bastante força o encaminhamento do governo, que tinha autoridade sobre as informações prestadas. O quadro muda com a alteração do rito. Com mais uma etapa na tramitação, o trabalho do relator passa a ser analisado mais a fundo. A comissão, por ser uma instância decisória menor, favorece a análise mais cuidadosa do relatório. Além disso, a frequência considerável de audiências públicas,10 com a participação de diversos membros do governo, reduz sobremaneira a assimetria de informações, já que há compartilhamento público de dados e informações relevantes sobre a MP. Por fim, a maior participação dos parlamentares nas comissões tende a flexibilizar a força da orientação dos líderes ou do governo nas votações em Plenário. Se antes a incerteza sobre a matéria favorecia a fidelidade nas votações, agora, com informações disponíveis, o parlamentar tem maior embasamento para justificar um voto independente da orientação de liderança. A diminuição da assimetria de informações em Plenário e a dispersão do processo decisório, com maior dificuldade de mobilização e controle nas diversas comissões, tiveram como efeito a elevação do custo de aprovação das MPs para o governo. Efeito mais considerável da concentração da tramitação nas comissões foi o aumento do poder de barganha dos parlamentares. Isso porque a configuração 10 De 2012 a 2014, foram realizadas 57 audiências públicas no âmbito das comissões de MPs. 72 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO regimental da nova tramitação das MPs deu aos parlamentares maior acesso a recursos legislativos, de modo que se observou multiplicação dos pontos de veto. Com as comissões, passou a ser possível que atores agissem individualmente de modo a interromper o processo decisório.11 A inclusão da instância das comissões deu poder de veto a quatro grupos de atores, cada qual com a possibilidade de travar o processo: o presidente da comissão (que define o momento de pautar a matéria e pode procrastinar as reuniões), o relator (que pode apresentar um relatório inaceitável do ponto de vista do governo), a maioria da comissão (apenas oito parlamentares, que formam a maioria da comissão e têm o poder de barrar qualquer decisão) e os líderes partidários12 (que dispõem de uma série de prerrogativas regimentais, muitas de obstrução). Como reflexo do aumento dos pontos de veto nas comissões de MPs, começou-se a observar o fenômeno da obstrução cruzada, quando um partido obstruía a tramitação de uma ou mais MPs com objetivos externos, como a aprovação de uma determinada matéria no Plenário da Câmara, por exemplo. Tal recurso, segundo as entrevistas, é expediente comum na Câmara, mas utilizar a obstrução cruzada nas comissões de MPs é tática de maior potencial, porquanto as MPs são matérias com eficácia imediata e prazo temporário de vigência, o que torna a ameaça efetiva, consubstanciando-se na perda de eficácia de uma ou mais medidas. Análise da tramitação da MP nº 617/2013 exemplifica o fenômeno da obstrução cruzada decorrente do aumento dos pontos de veto, bem como o aumento do poder de barganha dos parlamentares com o novo rito de tramitação. A MP nº 617, editada em maio de 2013, reduziu tributos incidentes sobre a receita de transporte coletivo municipal. Menos de quinze dias após a edição da MP nº 617/2013, as ruas do país foram tomadas pelas manifestações de junho de 2013, cujo protesto inicial havia sido justamente contra o aumento das passagens de ônibus. Em face do teor popular, a MP era consensual, e seria difícil imaginar que ela não fosse aprovada. 11 Ver, por exemplo, as atuações obstrutivas por parte do deputado Manoel Junior na MP nº 612/2013; do deputado Mendonça Filho na MP nº 617/2013; do deputado Eduardo Cunha na MP nº 652/2014; e do deputado Ivan Valente na MP nº 653/2014. 12 Recursos como requerimento de destaque e pedido de verificação de votação podem ser exercidos por quaisquer líderes, ainda que não sejam membros dos colegiados (conforme decisão de questão de ordem publicada no Diário do Congresso Nacional de 13/12/2016, p. 2464). Fortalecimento das comissões mistas: poder de barganha e desgaste na coalizão a partir de 2012 73 Ocorre que a medida provisória continha teor quase idêntico ao PL nº 2.729/2011, de autoria do deputado Mendonça Filho (DEM-PE), apresentado em 2011. Nessa disputa pela paternidade dos projetos, a vantagem sempre pesou para o Executivo. Com efeito, a apropriação feita pelo governo em relação a projetos apresentados por parlamentares é fenômeno corrente da atividade política brasileira, no qual o Executivo atua, entre outros motivos, para manter seu domínio legislativo e gozar do credit claiming da política pública aprovada (SILVA, 2013). No rito anterior, não é difícil imaginar como se daria essa disputa em análise contrafactual: o PL nº 2.729/2011, ainda que aprovado pela Câmara, ficaria parado em alguma comissão do Senado; a MP nº 617/2013 seria votada diretamente no Plenário da Câmara por volta do centésimo dia de vigência, isto é, em meados de setembro de 2013; até lá, o governo já poderia anunciar a paternidade do projeto; provavelmente o deputado Mendonça Filho apresentaria requerimentos para obstruir a votação da matéria, os quais seriam rejeitados em Plenário; aprovada a MP nº 617/2013 nos Plenários da Câmara e do Senado, o governo poderia reivindicar o crédito da aprovação da matéria, enquanto o projeto do deputado seria prejudicado. Todavia, a inclusão das comissões acarretou aumento dos pontos de veto e deu aos deputados maior poder de barganha. Em entendimento com o presidente Henrique Eduardo Alves, Mendonça Filho conseguiu aprovar requerimento de urgência para o PL nº 2.729/2011.13 Um dia após a aprovação da urgência, em 12 de junho, o deputado conseguiu obstruir a reunião de instalação da comissão da MP nº 617/2013 com ameaça de obstrução de outras MPs. Nova reunião para instalar a MP nº 617/2013 foi marcada para o dia 7 de agosto, também sem sucesso. Nesse interim, o PL nº 2.729/2011 já havia sido aprovado na Câmara e estava em apreciação no Senado. O deputado Mendonça Filho continuou a obstaculizar a instalação da MP nº 617/2013 enquanto o governo não se comprometesse a aprovar seu projeto no Senado.14 13 Cf. no Diário da Câmara dos Deputados de 12/6/2013, p. 23516. 14 Cf. no Diário do Senado Federal de 20/9/2013, p. 65091. 74 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Em 13 de agosto, agendou-se nova reunião para instalar a MP nº 617/2013. Dessa vez, o deputado Mendonça Filho aquiesceu com a instalação, após receber do senador José Pimentel, líder do governo, o compromisso de que o PL nº 2.729/2011 seria aprovado no Senado:15 Eu estou dizendo aqui ao Senador Pimentel que nós não vamos obstruir a instalação dessa Comissão Mista, com o compromisso de que o texto da Medida Provisória nº 617 não venha a suplantar o texto do projeto de lei de minha autoria de 2011 e que o nobre Senador vai obter do Governo o compromisso de sanção de um projeto que mostra e que demonstra a autonomia do Legislativo em legislar matéria dessa ordem. Então, eu peço o compromisso de V. Exa e digo que, se porventura o governo não cumprir com o acordo, nós vamos, e eu pessoalmente, adotar todas as medidas para obstruir não só essa medida provisória, mas qualquer outra medida provisória que tramita aqui no Senado e na Câmara. (grifo nosso) De fato, o PL nº 2.729/2011 foi aprovado no Senado na semana seguinte, transformando-se na Lei nº 12.860/2013. Já a MP nº 617/2013 perdeu eficácia por decurso de prazo em 27 de setembro de 2013, sem ter sido votada por Câmara e Senado. O projeto de um deputado da oposição foi aprovado e transformado em lei em detrimento de uma MP do governo. O caso revela como as novas possibilidades de obstrução nas arenas das comissões deram aos parlamentares maior força para lidar com o Executivo. Rodízio de relatorias O outro mecanismo desarranjado com o novo rito foi o controle de relatorias pelo governo. A seleção das relatorias antes de 2012 funcionou como mecanismo útil ao governo para resolver problemas na coordenação da base. Com a inclusão das comissões, a designação dos relatores deixou de ser escolha discricionária dos presidentes das Casas Legislativas e passou a ocorrer no âmbito de um colegiado. Não tardou para que os partidos reclamassem por critério proporcional na distribuição. No ano de 2012, observa-se um período de adaptação dos partidos. As relatorias continuaram dominadas por partidos da coalizão governista, especialmente PT e PMDB. 15 Cf. no Diário do Senado Federal de 20/9/2013, p. 65087. Fortalecimento das comissões mistas: poder de barganha e desgaste na coalizão a partir de 2012 75 Em 2013, após a eleição das Mesas diretoras de ambas as Casas, os líderes partidários fizeram acordo para que fosse feito rodízio das relatorias de MPs segundo critério fixo, que respeitasse a proporcionalidade. Assim, de 2013 até o final da legislatura, vigorou acordo informal entre as lideranças no tocante à distribuição proporcional das relatorias. Em ambas as Casas as relatorias passaram a ser distribuídas segundo critério fixo. Efeito notável do rodízio de relatorias foi a maior amplitude de partidos beneficiados, inclusive com maior participação da oposição nas duas Casas. Se antes do acordo entre as lideranças apenas 4% dos relatores designados eram da oposição, essa proporção sobe para 19% após o acordo – quase 1/5 das principais matérias legislativas do governo foram relatadas por membros da oposição. Diante da redução do controle do processo decisório das MPs com a maior participação da oposição, o governo teve de adotar outras formas de controle. Uma tática utilizada foi abandonar e boicotar as MPs relatadas pela oposição – seja porque os textos propostos pelos relatores se afastavam demais de suas preferências, seja porque não era de seu interesse dar crédito aos parlamentares oposicionistas –, incorporando os respectivos textos em outras MPs relatadas pela base parlamentar de apoio.16 Além disso, com cada partido sabendo de antemão qual a MP que irá relatar, a relatoria deixa de ser vista como favor concedido pelo governo, pelas mãos do presidente da Casa Legislativa respectiva, para ser encarada como um direito que o partido tem de exercer. Ao perder sua vinculação como uma concessão do governo e se tornar um direito do partido, a relatoria pode, em tese, ser exercida de forma mais autônoma. O aumento do número de dispositivos vetados nas MPs alteradas pelo Congresso é indicativo que reforça essa ideia de maior liberdade dos relatores, conforme se verá na seção seguinte na tabela 2. Ademais, com a alternância entre Senado e Câmara nas relatorias, que consta de disposição regimental, os deputados perderam a primazia no processo de conversão em lei das MPs. Esse também é um efeito considerável ao se levar em conta que o grande foco de instabilidade política do governo foi na Câmara, especialmente dentro da coalizão governista. Considerando que as relatorias de 16 As MPs 612, 623 e 652, todas relatadas por parlamentares de oposição, perderam eficácia por decurso de prazo (com clara obstrução do próprio governo), mas seus textos foram incorporados no corpo das MPs 618, 610 e 656, respectivamente, essas relatadas por parlamentares da base. 76 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO MPs podiam ser vistas como recursos do governo para beneficiar deputados, com a alternância entre Senado e Câmara a disponibilidade desses recursos caiu pela metade. De forma sintética, podem-se elencar três principais efeitos do novo mecanismo de rodízio de relatorias: i) perda da discricionariedade do governo em usar a relatoria como forma de coordenação de conflitos na base; ii) diminuição da capacidade de controlar o perfil dos relatores, já que há participação mais ativa da oposição nas relatorias e, além disso, a relatoria passa a ser vista como direito do partido, e não concessão do governo; e iii) utilização menos frequente das relatorias de MPs como instrumentos de coordenação de deputados da base, em face da alternância das relatorias entre Câmara e Senado. Desgaste da coalizão O desarranjo dos mecanismos anteriores que faziam da MP importante instrumento de coordenação da coalizão e o surgimento de novos mecanismos a partir da decisão do STF, notadamente a concentração da tramitação nas comissões e o rodízio de relatorias, repercutiram na relação Executivo-Legislativo, potencializando conflitos internos da coalizão. Análises detalhadas da tramitação de algumas MPs, como a MP nº 595/2012 (a MP dos portos), as MPs nos 579/2012 e 605/2013 (redução na conta de luz) e a MP nº 623/2013 (créditos agrícolas), mostram o imenso desgaste sofrido pelo governo com o novo rito, o que é reforçado pelo depoimento dos entrevistados. Além disso, dois indicadores gerais mostram como a inclusão das comissões resultou em maior desgaste para a coalizão governista. O primeiro deles é a média dos dispositivos vetados. Ora, quando o governo tem o controle do processo decisório, consegue evitar que itens contrários à sua vontade sejam aprovados no Congresso como emendas às MPs. À medida que vai perdendo esse controle, o governo tem de recorrer ao veto presidencial como última instância de controle de texto. O aumento do número de dispositivos vetados sugere a perda de controle do processo decisório pelo governo. Além disso, o veto tem um grande potencial para criar um mal-estar entre o presidente e os parlamentares, reforçando o desgaste na coalizão. Fortalecimento das comissões mistas: poder de barganha e desgaste na coalizão a partir de 2012 77 A tabela 2 apresenta a média dos dispositivos vetados por MPs aprovadas, desconsiderando as MPs orçamentárias. O governo Dilma foi dividido entre antes e depois da decisão do STF em março de 2012. Tabela 2 Média de dispositivos vetados por MPs aprovadas Lula I Dilma I Período MPs aprovadas 2003-2004 2005-2006 Jan./2011 a fev./2012 Mar./2012 a dez./2014 108 51 28 56 Dispositivos vetados 71 62 38 380 Média 0,657 1,216 1,357 6,786 Fonte: Presidência da República. Elaboração dos autores. A diferença entre os períodos é nítida, observando-se verdadeira explosão do número de dispositivos vetados no segundo período. A cada MP convertida em lei pelo Congresso, Dilma vetou ao menos seis dispositivos, o que evidencia a perda de controle do texto pelo governo, mormente se comparado ao período anterior. Esse aumento pode ser atribuído a pelo menos duas hipóteses alternativas. A primeira delas é o desgaste natural do governo nos últimos dois anos de mandato, quando o ciclo eleitoral normalmente enfraquece os laços da coalizão (PEREIRA; POWER; RENNÓ, 2005). Como forma de dimensionar esse efeito, a tabela 2 também mostra a média de vetos no primeiro governo Lula. Tanto Lula quanto Dilma disputaram a reeleição, tinham coalizões semelhantes e viveram crises políticas na segunda metade do mandato (uma desencadeada pelo Mensalão em 2005 e outra pelas manifestações populares de 2013). Observa-se diminuição significativa do número de MPs aprovadas na segunda metade do primeiro governo Lula, mas com número ainda elevado. A média de dispositivos vetados sofre pequena variação positiva, chegando-se, porém, a uma média muito baixa – nada comparável à explosão de vetos observada no governo Dilma. Embora tanto Lula quanto Dilma tenham sofrido desgaste na metade final de seus mandatos, os dados sugerem que Lula conseguiu manter o controle dos textos das MPs aprovadas pelo Congresso, enquanto Dilma teve 78 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO de recorrer fortemente aos vetos pela ineficácia de sua articulação política em barrar alterações indesejadas. A segunda hipótese alternativa é que os vetos possuem correlação positiva com as alterações promovidas pelos parlamentares no texto original das MPs. No entanto, os dados mostram que o nível de alteração promovido pelo Congresso, medido pela diferença entre a quantidade de artigos da MP original e do projeto de lei de conversão aprovado, é semelhante nos dois períodos do governo Dilma, e que, além disso, não existe correlação entre alteração da MP e quantidade de vetos (ver anexo). O salto expressivo do número de dispositivos vetados, portanto, mostra a redução do controle do governo no processo decisório das MPs, e também maior ativismo e poder de barganha dos parlamentares. Outro indicador que mostra a influência do novo rito capta a estratégia legislativa do governo, a qual mudou drasticamente após o desgaste sofrido na votação da MP dos Portos (maio de 2013). A expectativa no Congresso era que, aprovada a MP dos Portos, o governo enviasse MP propondo novo Código de Mineração. A perda de capital político e o desgaste sofrido na votação da MP dos Portos,17 no entanto, fizeram o governo alterar sua estratégia, enviando ao Congresso um projeto de lei (PL nº 5.807/2013) em vez de uma MP para o novo Código de Mineração (NERY; CRUZ; FALCÃO, 2013). Referido PL foi enviado em junho de 2013 e, até o fim do governo Dilma, sequer chegou a ser votado nas comissões da Câmara. Após a edição da MP nº 623, em julho de 2013, pouco tempo depois da votação da MP dos Portos, Dilma ficou por 116 dias sem editar outra MP não orçamentária. Foi o maior período sem edição de MPs desde a aprovação da EC nº 32/2001. Esses dois casos mostram que o governo mudou sua estratégia legislativa no tocante às MPs após a MP dos Portos. Para analisar melhor a estratégia legislativa do presidente, pode-se analisar a taxa de dependência em decretos. Esse indicador, utilizado por Pereira et al. (2005), mede, mensalmente, a proporção de MPs editadas em comparação com 17 Segundo as entrevistas, a votação da MP dos Portos foi verdadeiro ponto de inflexão na análise das MPs, já que tornou evidentes a elevação dos custos de aprovação e o aumento do poder de barganha dos parlamentares. Fortalecimento das comissões mistas: poder de barganha e desgaste na coalizão a partir de 2012 79 toda a iniciativa legislativa presidencial, incluindo projetos de lei ordinária, projetos de lei complementar e também MPs. No presente caso, foram desconsiderados no cômputo da iniciativa legislativa os projetos de lei complementar e os projetos de lei vedados de serem tratados por MP, limitações materiais ao poder de decreto presidencial instituídas pela EC nº 32/2001. Além disso, foram desconsideradas as matérias de natureza orçamentária, excluindo-se, portanto, as MPs de crédito extraordinário e os projetos de lei de crédito adicional ou suplementar. Para efeitos de análise, os dados foram divididos em quatro períodos: i) de janeiro de 2011 a março de 2012, captando o rito antigo das MPs; ii) de abril de 2012 a maio de 2013, mostrando o momento inicial do novo rito; iii) de junho de 2013 a dezembro de 2013, mostrando o desgaste político após a MP dos Portos; e iv) o ano de 2014, quando o ciclo eleitoral esvaziou as atividades do Congresso. A tabela 3 mostra a média da taxa de dependência em decretos para cada um desses períodos. Tabela 3 Média da Taxa de Dependência em Decretos por período jan./2011 a fev./2012 mar./2012 a maio/2013 jun./2013 a dez./2013 jan./2014 a dez./2014 0,55 0,67 0,37 0,88 Fonte: Presidência da República e Câmara dos Deputados. Elaboração dos autores. O valor do indicador no período inicial do governo não significa que Dilma fez pouco uso das MPs. Há que se considerar que o ano já começou tendo na pauta 21 MPs editadas por Lula, o que congestionou a atividade congressual e fez o Executivo dosar o uso de MPs no primeiro ano de governo. No segundo período, observa-se o aumento do índice, a despeito da mudança do rito das MPs. O período coincide com o momento de intensificação da agenda legislativa do governo, com mudanças significativas no setor de infraestrutura (MPs nos 575/2012, 576/2012, 577/2012, 579/2012, 591/2012, 595/2012, 605/2013), expansão do crédito (MPs nos 564/2012, 565/2012, 581/2012, 600/2012, 606/2013) e desonerações tributárias (MPs nos 563/2012, 578/2012, 582/2012, 601/2012, 609/2013). Pode-se interpretar a continuidade da estratégia 80 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO legislativa como fruto do desconhecimento dos efeitos da reforma no rito de tramitação – simplesmente o Executivo agiu por inércia, utilizando o instrumento das MPs para veicular itens cruciais de sua agenda. Já no terceiro período, observa-se nítida mudança na estratégia do governo, com forte queda do índice de dependência em decretos em relação ao período anterior. Repara-se que, no período, as iniciativas legislativas do Executivo continuaram elevadas, já que, de junho a dezembro de 2013, Dilma editou apenas 15 MPs enquanto apresentou 26 projetos pela via ordinária. Em 2014, ano eleitoral, tem-se um aumento considerável da taxa de dependência em decretos, movimento comum diante do esvaziamento do Congresso, o que torna o envio de projetos pela via ordinária tarefa inócua pela improbabilidade de análise parlamentar. O que chama atenção, portanto, é a mudança na estratégia legislativa do governo no segundo semestre de 2013. Em face das manifestações populares de junho de 2013, era de se esperar que o governo reagisse com uma pauta positiva e célere, no que as medidas provisórias se afiguravam como os instrumentos adequados. Além disso, diante da desagregação da base parlamentar18 desencadeada pelas manifestações, as MPs ainda poderiam servir para coordenar horizontalmente as preferências e alinhar os interesses da coalizão. Em vez disso, preferiu-se a utilização da via ordinária. Ora, a mudança da estratégia legislativa do governo em momento de fragilidade política parece dar razão à teoria da delegação, indicando que o instrumento das MPs é usado em consonância com os interesses da base, e não em conflito. Mas a mudança da estratégia legislativa também mostra os efeitos do novo rito das MPs: o custo de aprovação tornou-se mais elevado, e a inclusão de nova arena decisória potencializou conflitos na base parlamentar. Essa alteração institucional parece ter colocado freio na edição de MPs, sobretudo após o desgaste da MP dos Portos, levando o Executivo a preferir a via ordinária e a passar o mais longo tempo sem editar MPs não orçamentárias desde 2001. Ao administrar a maior parte de sua agenda legislativa por MPs, o governo tinha garantia de votação da matéria e vantagem na barganha. Com a mudança de 18 Segundo dados do Basômetro, o índice de governismo da base caiu gradativamente durante o período. Fortalecimento das comissões mistas: poder de barganha e desgaste na coalizão a partir de 2012 81 estratégia, o Executivo perdeu capacidade de promover cooperação dentro da base, vide o caso do novo Código de Mineração, apresentado pela via ordinária e sequer votado nas comissões da Câmara. Conclusão A medida provisória é vista pela ótica popular como o instrumento por excelência a representar a dominância do Executivo, o qual legisla unilateralmente e se impõe sobre o Parlamento. Tal visão encontra eco em uma percepção mais geral sobre o sistema político brasileiro, que também enxerga uma Presidência forte em comparação com um Congresso fraco. Diversas mudanças institucionais nos últimos anos, no entanto, alteraram as relações entre os Poderes, conferindo maior protagonismo ao Congresso. A mudança no rito de tramitação das MPs é uma delas. Quando o STF determinou o cumprimento estrito da Constituição em março de 2012, estipulando a obrigatoriedade do funcionamento das comissões mistas de análise de MPs, alterou a dinâmica decisória há muito consolidada, o que impactou na relação Executivo-Legislativo. O presente capítulo investigou os impactos dessa alteração no rito de tramitação das MPs, analisando o caso do primeiro governo Dilma com foco no mapeamento de mecanismos causais. Uma das conclusões mais importantes do estudo aponta para o protagonismo das comissões mistas no processo decisório. Ao contrário das demais comissões do Parlamento, as comissões de MPs têm a obrigação constitucional de emitir parecer, não podendo outros atores interferirem no processo interno. Essa constatação desafia a visão de que as comissões teriam pouca importância no processo decisório do Congresso. Ao concentrar a maior parte do tempo de tramitação das MPs, as comissões centralizam os debates, conferem maior transparência ao processo e ampliam a participação dos parlamentares. A pesquisa também mostrou mecanismos que faziam da MP importante instrumento de governabilidade no rito antigo: a concentração da tramitação em Plenário e o controle das relatorias. Ambos davam ao governo maior controle do processo decisório e instrumental para coordenar os interesses dos membros da 82 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO coalizão. Com a mudança institucional de 2012, observa-se a descontinuidade desses mecanismos. A distribuição de relatorias deixou de ser tarefa discricionária, não funcionando mais como mecanismo de resolução de conflitos dentro da base. Inversamente, estabeleceu-se acordo partidário para o rodízio das relatorias, o que deu maior participação à oposição e mais liberdade aos parlamentares da base. Com a concentração de tramitação nas comissões, o processo tornou-se mais disperso, dificultando o controle do governo, ampliando os instrumentos legislativos dos parlamentares e aumentando os pontos de veto. Essa nova configuração do processo decisório potencializou conflitos no interior da coalizão. A média de dispositivos vetados e a taxa de dependência em decretos são indicadores que apontam nesse sentido. Quanto ao primeiro, o aumento expressivo do número de dispositivos vetados sinalizou que o governo teve diminuído seu controle sobre o processo de conversão em lei das MPs, barrando as alterações indesejadas pelo recurso do veto e, assim, desgastando ainda mais a relação entre Executivo e Legislativo. Em relação ao segundo indicador, a alteração da estratégia legislativa do governo evidenciou a elevação dos custos de aprovação das MPs com o novo rito. Portanto, o aumento considerável dos dispositivos vetados e a alteração da estratégia legislativa no meio do mandato são evidências gerais que se somam aos indícios encontrados nos rastreamentos das tramitações das MPs. Todos apontam para a elevação do custo de aprovação das medidas provisórias e para o aumento do poder de barganha dos parlamentares da base, elementos que contribuíram para o desgaste da coalizão governamental no primeiro governo Dilma. Observa-se, assim, processo paulatino de perda de força do Executivo no tocante à edição de MPs, a começar pela proibição da reedição com a EC nº 32/2001 até se chegar à instrução obrigatória por comissão mista a partir de 2012. A inclusão de nova instância decisória, a dispersão do processo, a especialização dos debates e, principalmente, a multiplicação dos pontos de veto aumentaram a participação e o poder de barganha dos parlamentares. Se esse rito continuará sendo fonte de embates ainda é questão que deve ser avaliada. Tanto no segundo governo Dilma quanto no início do governo Temer observa-se a renovação dos acordos partidários para o rodízio nas relatorias, o que indica que o mecanismo já está se consolidando. Certamente, com a inclusão Fortalecimento das comissões mistas: poder de barganha e desgaste na coalizão a partir de 2012 83 das comissões, há maior custo de aprovação das MPs. A incorporação desses custos pelo governo e o processo de aprendizado institucional devem ser objeto de análise futura. Referências ALMEIDA, A. (2014). Informação, delegação e processo legislativo: a política das medidas provisórias. Brasília: Ipea. (Texto para discussão Ipea; n. 1933). AMARAL JÚNIOR, J. L. M. (2004). Medida provisória e sua conversão em lei: a Emenda Constitucional n. 32 e o papel do Congresso Nacional. São Paulo: Rev. Tribunais. AMORIM NETO, O.; TAFNER, P. (2002). Governos de coalizão e mecanismos de alarme de incêndio no controle legislativo das medidas provisórias. Dados: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 45, n. 1, p. 5-38. CAREY, J.; SHUGART, M. (1998). Calling out the tanks or filling out the forms? In: ______ (Ed.). Executive decree authority. New York: Cambridge Univ. Press. CLÈVE, C. M. (2010). Medidas provisórias. São Paulo: Rev. Tribunais. COX, G. W.; MORGENSTERN, S. (2001). Latin America’s reactive assemblies and proactive presidents. Comparative Politics, v. 33, n. 2, p. 171-189. DEERING, C. J.; SMITH, S. S. (1997). Committees in Congress. 3. ed. Washington, DC: Congressional Quarterly Press. DINIZ, S. (1999). Processo legislativo e sistema de comissões. Revista do Legislativo, n. 26, p. 59-78. 84 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO FIGUEIREDO, A.; CANELLO, J.; VIEIRA, M. (2012). Governos minoritários no presidencialismo latino-americano: determinantes institucionais e políticos. Dados: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 55, v. 4, p. 839-875. ______; LIMONGI, F. (1997). O Congresso e as medidas provisórias: abdicação ou delegação? Novos Estudos Cebrap, n. 47, p. 127-154. FLYVBJERG, B. (2011). Case study. In: NORMAN, K. D.; YVONNA, S. L. (Ed.). The Sage handbook of qualitative research. Thousand Oaks, CA: Sage. GEORGE, A.L.; BENNETT, A. (2005). Case studies and theory development in the social sciences. Cambridge: Mit Press. LIMA, G. F. S. de. (2011). O rito de tramitação das medidas provisórias e a questão da instalação das comissões mistas. Brasília. Monografia – (Curso de Especialização em Processo Legislativo), Câmara dos Deputados, Centro de Formação, Treinamento e Aperfeiçoamento (Cefor). LIMONGI, F.; FIGUEIREDO, A. (1998). Bases institucionais do presidencialismo de coalizão. Lua Nova, n. 44, p. 81-106. ______; ______ (1999). Executivo e Legislativo na nova ordem constitucional. Rio de Janeiro: FGV Ed. MACHIAVELI, F. (2009). Medidas provisórias: os efeitos não antecipados da EC 32 nas relações entre Executivo e Legislativo. Mestrado (Dissertação) – Universidade de São Paulo. MCADAM, D.; TARROW, S.; TILLY, C. (2004). Dynamics of contention. Cambridge: Cambridge Univ. Press. NERY, Natuza; CRUZ, Valdo; FALCÃO, Márcio (2013). Após crise com base no Congresso, governo desiste de Código de Mineração. Poder. Folha de S.Paulo, São Paulo, 23 mai. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ poder/2013/05/1283386-apos-crise-com-base-no-congresso-governo-desistede-codigo-de-mineracao.shtml>. Acesso em: 5 ago. 2013. Fortalecimento das comissões mistas: poder de barganha e desgaste na coalizão a partir de 2012 85 NICOLAU, G. R. (2009). Medidas provisórias: o executivo que legisla, evolução histórica no constitucionalismo brasileiro. São Paulo: Atlas. PEREIRA, C. (2015). Durma-se com um barulho desses? Ou façamos uma orquestra? Disponível em: <http://www.cienciapolitica.org.br/durma-se-comum-barulho-desses-ou-facamos-uma-orquestra/#.Vwe3C5wrIdU>. Acesso em: 8 abr. 2016. ______ (2004). A theory of Executive dominance of congressional politics: the committee system in the Brazilian House of Deputies. The Journal of Legislative Studies, v. 10, n. 1, p. 9-49. ______ (2008). Agenda Power, executive decree authority, and the mixed results of reform in Brazilian Congress. Legislative Studies Quarterly, v. 33, n. 1, p. 5-33. ______; MUELLER, B. (2003). Partidos fracos na arena eleitoral e partidos fortes na arena legislativa: a conexão eleitoral no Brasil. Dados: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 46, n. 4, p. 735-771. ______; POWER, T.; RENNÓ, L. (2005). Under what conditions do presidents resort to decree power? theory and evidence from the Brazilian case. The Journal of Politics, v. 67, n. 1, p. 178-200. POWER, T. (1998). The pen is mightier than the Congress: presidential decree power in Brazil. In: CAREY, J.; SHUGART, M. (Ed.). Executive decree authority. New York: Cambridge Univ. Press SEM pasta’, PR anuncia saída da base governista. O Estado de S.Paulo, São Paulo, p. A8, 17 ago. 2011. RAILE, E. D; PEREIRA, C.; POWER, T. (2011). The executive toolbox: building legislative support in a multiparty presidential regime. Political Research Quarterly, v. 64, n. 2, p. 323-334. RENNÓ, L. (2006). Críticas ao presidencialismo de coalizão no Brasil: processos institucionalmente constritos ou individualmente dirigidos? In: AVRITZER, L.; ANASTASIA, F. (Org.). Reforma política no Brasil. Belo Horizonte: Ed. UFMG. 86 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO REZENDE, F. C. (2012). Da exogeneidade ao gradualismo: inovações na teoria da mudança institucional. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 27, n. 78, p. 113-194. SHUGART, M.; CAREY, J. (1992). Presidents and assemblies: constitutional design and electoral dynamics. Cambridge: Cambridge Univ. Press. SILVA, R. S. (2013). Construindo e gerenciando estrategicamente a Agenda legislativa do Executivo: o fenômeno da apropriação. 2013. 378 f. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Universidade de Brasília, Brasília. Anexo Distribuição de relatorias no rito antigo (jan./2011 a fev./2012) Câmara Partido Quantidade de relatorias Percentual de relatorias Percentual do Plenário PT 14 29% 17% PMDB 8 17% 15% PR 5 10% 8% PCdoB 4 8% 3% PP 4 8% 8% PSB 3 6% 6% PRB 2 4% 2% PDT 2 4% 5% PSC 2 4% 4% PTB 1 2% 4% PPS 2 4% 2% PSDB 1 2% 10% Fonte: Câmara dos Deputados. Elaboração dos autores. Senado Partido Quantidade de relatorias Percentual de relatorias Percentual do Plenário PMDB 15 33% 23% Fortalecimento das comissões mistas: poder de barganha e desgaste na coalizão a partir de 2012 87 Senado Partido Quantidade de relatorias Percentual de relatorias Percentual do Plenário PT 10 22% 19% PTB 8 18% 7% PCdoB 4 9% 2% PR 4 9% 6% PP 2 4% 6% PSDB 2 4% 12% Fonte: Senado Federal. Elaboração dos autores. Nota: A composição dos partidos foi considerada no dia 15/3/2011. Média de dispositivos vetados por MPs aprovadas (Teste da hipótese alternativa) O coeficiente de correlação de Pearson foi empregado com vistas a verificar o grau de relacionamento linear entre as variáveis “quantidade de vetos” e “percentual de alteração das MPs”. Para tanto, testou-se a hipótese de correlação nula entre a quantidade de vetos e o percentual de alteração das MPs durante todo o período. As estatísticas de teste foram ρ = – 0,1, e o p – valor 0,392, o qual sugere fortemente a aceitação da hipótese de correlação nula a um nível de significância de 5%. Ou seja, há evidências de que o coeficiente de correlação de Pearson para as duas variáveis seja nulo e, portanto, inexistente o relacionamento linear entre elas. 89 Tempo, estratégia e judicialização da agenda legislativa: as reações do Supremo Tribunal Federal aos mandados de segurança originários impetrados contra atos legislativos Luis Felipe Andrade Barbosa Ernani Carvalho José Mário Wanderley Gomes Neto Introdução Parte significativa da doutrina política vem tecendo uma preocupação latente sobre o tema do constitucionalismo e sua relação com os checks and balances19, principalmente no que diz respeito à questão da judicialização da política . Nas últimas duas décadas, vários trabalhos debruçam-se a respeito desta temática, trazendo importantes contribuições sobre o protagonismo político do Poder Judiciário nas democracias contemporâneas. (SWEET, 2000; HIRSCHL, 2008; TAYLOR, 2008; CARVALHO, 2009; NEUBAUER et al., 2010). Verifica-se que a literatura política brasileira tem explorado diversos aspectos desse processo (TAYLOR, 2008; ARANTES, 2009; CARVALHO et al., 2016). Contudo, esses trabalhos versam exclusivamente sobre as chamadas ações constitucionais, principalmente sobre as ações diretas de inconstitucionalidade 19 Baseada na teoria da tripartição dos poderes do Barão de Montesquieu, os checks and balances – ou sistema de freios e contrapesos – caracteriza-se como um mecanismo democrático criado para impedir o abuso de poder, em que os ramos do governo tornam-se responsáveis pela vigilância da atuação dos demais ramos, possuindo ferramentas formais de atuação. 90 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO (ADIs), consideradas como o principal mecanismo de atuação jurídica no contexto do controle de constitucionalidade20 (MENDES; BRANCO, 2015). Ocorre que o desenho institucional brasileiro possui um mecanismo específico de interferência judicial na pauta do Congresso Nacional. O art. 102, I, d, da Constituição Federal possibilita a impetração de mandado de segurança perante o Supremo Tribunal Federal (STF) contra atos das Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Por seu turno, o art. 5º, LXX, a, da Carta Magna prevê a legitimidade de propositura do mandado de segurança coletivo para os partidos políticos com representação no Congresso Nacional e para a organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou associados. Tal previsão constitucional é reproduzida na sua regulamentação, de acordo com a regra prevista no art. 21 da Lei nº 12.016/2009. O conceito de mandado de segurança está formalmente previsto no art. 5º, LIX e LXX, da Constituição Federal, sendo entendido pelos constitucionalistas como uma “especialização do direito de proteção judicial efetiva” (MENDES; BRANCO, 2015, p. 440). Relativamente aos partidos políticos, é pacífico o entendimento da literatura constitucional, assim como do próprio Supremo Tribunal Federal,21 de que o parlamentar pode propor adiamentos de discussões e/ou exclusões de projetos por questões formais ou alegações de vícios de constitucionalidade – a exemplo da inobservância de direitos fundamentais –, ficando a decisão a cargo do STF. Contudo, resta latente uma discussão na Corte Constitucional acerca da possibilidade de controle sobre o procedimento utilizado pelo Poder Legislativo federal, tendo como parâmetro o Regimento Interno das Casas do Congresso Nacional, e o controle sobre o conteúdo dos atos – mais restrito e, na maioria das vezes, 20 As ações constitucionais são o principal mecanismo de defesa da Constituição no desenho constitucional brasileiro. A partir delas, é possível discutir a compatibilidade de uma lei ou ato normativo frente aos dispositivos constitucionais. Por outro lado, os remédios constitucionais – gênero do qual é espécie o mandado de segurança –, visam a assegurar direitos e garantias expressos na Constituição Federal brasileira. 21 Para Gilmar Mendes e Paulo Branco (2015, p. 445), a hipótese corresponde a uma utilização especial do mandado de segurança, não sendo direcionada para assegurar direito líquido e certo de parlamentar, mas para “resolver peculiar conflito de atribuições ou ‘conflito entre órgãos’”. Para o STF, o remédio constitucional é utilizado pelo parlamentar para “coibir atos praticados no processo de aprovação de leis e emendas constitucionais que não se compatibilizam com o processo legislativo constitucional”. (MS 24.642/2004). Tempo, estratégia e judicialização da agenda legislativa: as reações do Supremo Tribunal Federal aos mandados de segurança originários impetrados contra atos legislativos 91 negado pelos ministros, por se entender que tal apreciação trata a respeito de matéria interna corporis.22 Mesmo diante da ampla utilização pelos atores deste instrumental na arena judicial, denotando-se sua relevância para a ciência política por versar sobre a interferência direta do Poder Judiciário sobre a formação/discussão da agenda legislativa federal, observa-se que há poucos trabalhos que versam sobre o tema no cenário nacional. No Brasil, há alguns anos, houve grande discussão no cenário político a respeito da interferência do Poder Judiciário na formação e execução da agenda do Poder Legislativo federal, em face da proposição de novas regras de partilha de royalties e participações especiais devidos em virtude da exploração de petróleo, gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos. Diante do Projeto de Lei (PL) nº 2.565/2011, que tratava sobre a temática exposta acima, foi impetrado o Mandado de Segurança (MS) nº 31.816 pelo deputado federal Alessandro Molon (PT/RJ), objetivando que o STF determinasse que a Mesa da Câmara dos Deputados se abstivesse de examinar o veto parcial da presidente da República, Dilma Rousseff, ao PL supramencionado. Salientou, na oportunidade, que os procedimentos adotados pela deputada Rose de Freitas (PMDB/ES), que presidiu a sessão do dia 12 de dezembro de 2012, aprovando o regime de urgência do exame do veto presidencial, ignoraram o devido processo legislativo ao descumprir dispositivos constitucionais e regras do Regimento Comum do Congresso Nacional sobre a análise de vetos pelos Parlamentos. Não obstante a mencionada utilização do remédio constitucional como mecanismo de controle da agenda legislativa federal, houve também a utilização maciça deste instrumental em um dos momentos políticos mais sensíveis da história recente do país: o processo de impedimento (impeachment) da presidente Dilma Roussef, com linhas delineadas em meados de 2015. Durante a discussão da admissibilidade da instauração do processo, foram impetrados por parlamentares governistas e da oposição uma série de mandados de segurança que questionavam o rito processual do impedimento na Câmara dos Deputados. 22 Diferencia-se no caso um típico controle de legalidade, baseado nas normas existentes nos Regimentos Internos das Casas Legislativas, de um controle do mérito dos atos, que versa sobre a interpretação e a aplicação dos respectivos Regimentos, conforme precedentes do próprio STF (MS 23.388, MS 24.356 e MS 26.074). 92 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Um dos mais significativos mandados de segurança ocorreu, porém, após a votação pela admissibilidade da instauração do processo de impedimento. No MS nº 34.193, parlamentares governistas questionaram a atuação viciada e o interesse pessoal do então presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB/RJ), na admissibilidade do processo, ressaltando-se uma série de atos que denotavam possível desvio de poder e que não se adequavam ao Regimento Interno da Câmara dos Deputados, que regulamenta o rito formal a ser observado. Diante de uma gama significativa de mandados de segurança impetrados, observou-se, durante este período, posicionamentos diversos e divergentes entre os próprios ministros do STF, destacando-se momentos de possível ativismo judicial e de inegável autorrestrição (autocontenção) da Corte sobre a apreciação da agenda legislativa. O tempo de resposta para os mandados de segurança seguiu a média – em decisões liminares, a Corte costuma se manifestar em 48 dias, independentemente do autor e da matéria discutida (FALCÃO; HARTMAN; CHAVES, 2014, p. 33). Considerando-se a urgência, a importância do tema e o clima de conflito político do país, questiona-se a efetividade de decisões extemporâneas acerca do debate legislativo travado. Tais exemplos ilustram a importância da utilização do instrumento pelos parlamentares, que preferem a participação do Poder Judiciário na condução dos seus trabalhos internos, reforçando-se o relevante papel político exercido pelo Supremo Tribunal Federal no controle da agenda do Poder Legislativo Federal e das escolhas sobre o momento para se discutir as demandas que versam sobre a pauta legislativa, o que delineia um possível comportamento estratégico dos ministros. Para os propósitos deste trabalho, é importante destacar o tempo de resposta aos mandados de segurança impetrados por partidos e parlamentares sobre a pauta legislativa, ou seja, em que momentos o STF responde a tais demandas, em sede liminar, de forma a interferir ou não na construção e/ou execução da agenda legislativa federal. Dessa forma, procura-se observar o tempo de resposta do Supremo Tribunal Federal nos casos que versam sobre possíveis intervenções na agenda do Congresso Nacional, através da análise dos dados referentes aos mandados de Tempo, estratégia e judicialização da agenda legislativa: as reações do Supremo Tribunal Federal aos mandados de segurança originários impetrados contra atos legislativos 93 segurança impetrados contra a agenda legislativa, que contemplam desde atos dos presidentes e das Mesas diretoras das duas Casas do Congresso Nacional, que tenham por objeto a tramitação de projetos de lei (Projeto de Emenda Constitucional – PEC, Projeto de Lei Complementar – PLC, Projeto de Lei Ordinária – PLO etc.), bem como atos das Comissões Especiais e discussões sobre a manutenção de direitos e garantias constitucionais dos parlamentares. Entende-se como relevante compreender o comportamento e o momento escolhido pelo Supremo ao decidir sobre os mandados de segurança impetrados por partidos e parlamentares contra tais atos legislativos, interferindo na execução e na formação da agenda (pauta) do Legislativo federal, a partir de variáveis categóricas colhidas nas respectivas decisões, submetidas à análise por estatística descritiva e regressão logística binária. Para tanto, valendo-se de um recorte temporal dos mandados de segurança impetrados de 1987 a julho de 2017, testam-se as hipóteses de que a identidade partidária dos Requerentes não exerce influência sobre o tempo de resposta das decisões liminares (H0), assim como de que os juízes decidem pensando nos resultados dos mandados de segurança, refletindo-se um comportamento estratégico dos mesmos (H1). Trata-se, por fim, de uma abordagem inovadora, pois trabalha com a relação entre os Poderes Legislativo e Judiciário, abordando temas clássicos da ciência política: formação da agenda e modelos decisórios. O panorama da judicialização da política e a inclusão dos mandados de segurança na análise Um dos mais recentes artigos sobre o tema da judicialização da política concebe o mesmo mediante uma abordagem mais ampla, versando sobre decisões judiciais que possuem grande impacto na vida política de um país.23 Neste trabalho, Hirschl (2008) analisa a natureza e o alcance do novo nível da política judicializada, bem como apresenta estudos recentes que avançam no sentido de fornecer uma explicação realista sobre o fenômeno em tela. Aponta, assim, para uma construção baseada em três níveis de judicialização, iniciando pela expansão no que concerne à determinação das políticas públicas, passando 23 A respeito do processo em tela, Hirschl (2008, p. 94) denomina de judicialização da megapolítica. 94 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO pela ampliação do alcance da fiscalização administrativa do Judiciário, através da proliferação de agências administrativas no Estado social moderno, e chegando à atribuição de confiança a juízes e tribunais para lidar com as questões atinentes à mega-política. O Judiciário passa a atuar em diversas questões antes alheias às funções primárias da jurisdição, desde questões atinentes ao processo democrático, às questões sobre as competências administrativas e legislativas dos outros Poderes. Há, nesta transposição institucional de atividades, a estratégia do blame deflection, onde os políticos transferem a decisão ao Judiciário se avaliam que esta delegação pode aumentar seu crédito ou reduzir os custos políticos e eleitorais (principalmente) advindos daquela decisão. Ao provocar decisões do Poder Judiciário em favor de suas preferências políticas individuais e coletivas, os atores buscam conter as mudanças de trajetória ou restaurar o equilíbrio de forças, naquilo que Dahl (1956) compreende como a instrumentalização da revisão judicial para a partilha institucional de poder entre os grupos e atores. Neste cenário, a Constituição Federal brasileira proporcionou um forte instrumental institucional para proteção judicial dos interesses políticos dos atores legitimados (CARVALHO, 2010; BARBOSA, 2012; VIANNA et al., 2007), a exemplo daqueles atores políticos autorizados a impetrar mandados de segurança no ambiente do STF, os partidos políticos. Os grupos políticos, dentre os quais os partidos políticos, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e outros grupos institucionalizados, são atores que buscam ampliar a sua influência no processo decisório, pela via excepcional da revisão judicial (CARVALHO; BARBOSA; GOMES NETO, 2014) – neste caso, via revisão difusa, pelos mandados de segurança. Outros trabalhos ainda apontam que o instrumental das ações constitucionais viabiliza que alguns atores, a exemplo dos partidos políticos minoritários, busquem a proteção de sua agenda contra a atividade de maiorias parlamentares, provocando decisões do Poder Judiciário para proteger suas preferências das maiorias legislativas (MCCUBBINS et al., 1987; 1989; MCNOLLGAST, 1992). Tempo, estratégia e judicialização da agenda legislativa: as reações do Supremo Tribunal Federal aos mandados de segurança originários impetrados contra atos legislativos 95 Ainda neste cenário, destacam-se algumas situações de atuação contra majoritária, na qual o objetivo da participação dos atores essencialmente políticos na revisão judicial abstrata é de postergação, ou seja, de conflito político. Ou seja, há uma propensão e incentivos institucionais para uma ampla judicialização do debate político (CARVALHO, 2006). Neste sentido, mesmo perdendo na seara legislativa, a oposição utiliza-se da prerrogativa dada pelo artigo 103 da Constituição Federal para provocar decisões judiciais sobre a constitucionalidade das políticas aprovadas no Poder Legislativo, gerando custos políticos para os partidos da base governamental (TAYLOR; DA ROS, 2008). Este processo é conhecido pela doutrina política como police-seeking approach, significando a expansão da jurisdição constitucional sobre o policy-making governamental. Mas qual seria o panorama a respeito da instrumentalização dos mandados de segurança impetrados contra atos legislativos do Congresso Nacional? Neste particular, em relação à atuação e ao comportamento decisório do Poder Judiciário, é relevante destacar o estado da arte acerca teoria sobre o comportamento judicial, notadamente a respeito dos três principais modelos formais explicativos das decisões judiciais, tal como disseminados na literatura sobre o tema. Inicialmente, o modelo legalista é relacionado a uma abordagem normativa e argumenta em linhas gerais que o comportamento judicial se restringe pela lei e pelo Direito, baseando-se sua análise em méritos exclusivamente jurídicos (BAUM, 1997). Já para o modelo atitudinal, os juízes decidem de acordo com as suas preferências políticas individuais, sendo identificáveis através de preferências quantificáveis, a partir de valores e ideologias categorizadas e arranjadas matematicamente ao longo de uma escala convencional (GILLMAN; CLAYTON, 1999). Baum (1997) argumenta que, para um modelo atitudinal puro, em termos de escolha racional, juízes atuam sinceramente (ou ingenuamente), ao invés de estrategicamente: eles atuariam diretamente em favor da realização das políticas públicas que melhor refletem suas preferências originais, sem qualquer cálculo referente às consequências de suas escolhas. 96 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Para este modelo, [...] as decisões judiciais são melhor explicadas pelas preferências políticas trazidas para cada caso. A maioria dos estudos tentam testar a teoria inferindo as preferências políticas dos juízes a partir do partido político do presidente que os indicou, embora reconheçam se tratar de um proxy ainda em estado bruto (POSNER, 2008, p. 20). Portanto, a variável partidária é uma proxy usual para a identificação da influência ideológica sobre o julgamento a ser realizado pelos Tribunais, especialmente em se tratando de Tribunais Superiores e de Cortes Constitucionais. As respostas que os juízes e as Cortes oferecem diante dos conflitos politicamente relevantes que lhes são apresentados, notadamente naqueles em que há identidade com a pauta de certos interesses e ideologias, podem trazer interessantes explicações para o comportamento judicial e para a relação interativa entre os Poderes constituídos, especialmente entre o Legislativo e o Judiciário. Tais variáveis são utilizadas para classificar os julgadores segundo tendências ideológicas e tentar prever a probabilidade individual do conteúdo de cada voto dos integrantes de um órgão judicial, em casos de relevância política, estar, ou não, alinhado com as preferências do partido político responsável por sua indicação (GOMES NETO, 2012, p. 109). Por outro lado, para o modelo estratégico, o juiz adota estratégias para chegar aos seus objetivos, uma vez que considera a existência de várias restrições externas ao seu comportamento. Neste sentido, como clara decorrência da Teoria da Escolha Racional, os magistrados levam em consideração a reação de todos os agentes no processo jurídico-político, seja no âmbito interno ou externo dos Tribunais, adotando uma conduta estratégica para atingir seus objetivos (POSNER, 2010). No que tange especificamente ao mandado de segurança, espécie de remédio constitucional, trata-se basicamente de uma forma de tutela jurisdicional dos direitos subjetivos ameaçados ou violados por uma autoridade pública ou no exercício de uma função pública (NOVELINO, 2015), que em sede liminar demanda um raciocínio de urgência da medida. A Constituição Federal define o seu campo de abrangência, sendo sua instrumentalização disciplinada pela Lei nº 1.533, de 31 de dezembro de 1951, com as alterações promovidas pela Lei nº 12.016, de 7 de agosto de 2009. Tempo, estratégia e judicialização da agenda legislativa: as reações do Supremo Tribunal Federal aos mandados de segurança originários impetrados contra atos legislativos 97 Entretanto, na literatura política nacional não há trabalhos que versem sobre a articulação de interesses dos atores políticos e os tempos de resposta (variável de natureza estratégica), em termos de interferência política na agenda legislativa federal, a partir da utilização de mandados de segurança coletivos impetrados por partidos e parlamentares no Supremo Tribunal Federal contra atos legislativos. Considera-se, sobretudo, este instrumental como um efetivo mecanismo de controle político da atividade legislativa, a nível federal. Mandados de segurança originários do STF impetrados contra atos legislativos: metodologia de análise Diante do panorama apresentado, verifica-se a importância da compreensão de como se processa a excepcional intervenção do STF na agenda do Congresso Nacional, a partir da instrumentalização dos mandados de segurança contra a agenda legislativa. Com este propósito, a base de dados utilizada nesta pesquisa trata da população de mandados de segurança visando à rediscussão de questões próprias da arena legislativa, inicialmente em sede liminar, sendo definido (0) para os casos onde a liminar do mandado de segurança fora negada e (1) quando a liminar do mandado de segurança fora concedida, tendo como recorte temporal o período compreendido entre janeiro de 1987 a julho de 2017 e considerando-se aqueles remédios constitucionais em que os requerentes são partidos e parlamentares no Congresso Nacional no momento de sua propositura ou o(a) presidente da República, em relação à questões envolvendo o processo de impedimento. As duas categorias citadas compõem a variável dependente (resultado) onde se busca mensurar a interferência da Suprema Corte na agenda legislativa federal, visto que depende do valor de outra medida variável. Por seu turno, como variáveis independentes são considerados a quantidade de dias sem decisão liminar, o período presidencial, o ano de impetração do MS, o tipo de decisão – monocrática ou colegiada, o requerente – deputado ou senador, o partido político do requerente, o alinhamento partidário do requerente com o Governo, o presidente da Casa legislativa e o ministro-relator do MS. 98 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO É importante ressaltar que o presente trabalho optou por não testar o modelo legalista, tendo em vista que a eleição de variáveis se restringe à interferência das variáveis independentes “procedimento” e “direitos e garantias fundamentais” para uma tomada de decisão pelo STF em sede de mandado de segurança. Ou seja, há apenas a possibilidade de identificação dos chamados “motivos técnicos” pelos quais o parlamentar impetrou o mandado de segurança, sem repercussão para os fins do trabalho. Ademais, como a eleição da variável tempo de resposta é ponto fundamental na lógica de urgência do mandado de segurança, procura-se identificar empiricamente quais seriam os incentivos estratégicos que estão associados a uma decisão liminar favorável pelos ministros do STF, em sede de mandado de segurança contra atos legislativos. Todos os dados necessários para a construção da base de dados do trabalho estão disponíveis no sítio do Supremo Tribunal Federal (www.stf.jus.br), através de consulta à aba “Processos → Acompanhamento Processual”, valendo-se dos critérios de pesquisa “presidente da Câmara dos Deputados”, presidente da Mesa Diretora da Câmara dos Deputados”, “presidente do Senado Federal”, “presidente da Mesa Diretora do Senado Federal”. A partir destes critérios, foi possível ter acesso ao universo dos mandados de segurança impetrados contra atos das Mesas das Casas Legislativas e das diversas Comissões, que visam a interferir na agenda legislativa, totalizando-se, até a última análise, 161 casos. Não obstante o levantamento dos dados especificados, o trabalho destaca sua atenção para uma questão central no que se refere à melhoria da qualidade dos dados: podem ocorrer questões futuras que despertem o interesse da pesquisa. (KING et al., 1994). Por fim, é importante destacar que trabalhos relevantes sobre o comportamento judicial sinalizam para a importância da utilização da regressão logística e da estatística descritiva para a compreensão de dados categóricos. (EPSTEIN et al., 2013; EPSTEIN; MARTIN, 2014). Tempo, estratégia e judicialização da agenda legislativa: as reações do Supremo Tribunal Federal aos mandados de segurança originários impetrados contra atos legislativos 99 Judicializando a agenda legislativa: o que o tempo de resposta (nos pedidos liminares em MS contra atos legislativos) nos diz sobre o comportamento dos ministros do STF? “O Supremo seria um tribunal político não apenas porque concorda ou discorda do Executivo ou do Congresso. Mas antes porque controla o tempo de concordar ou discordar” (FALCÃO, 2015, p. 93). Nas questões atinentes à interpretação e à aplicação dos Regimentos Internos das Casas legislativas, bem como naquelas relativas aos atos legislativos em sentido estrito, o Supremo Tribunal Federal, via de regra, considera os litígios a elas relacionados como matéria interna corporis, da alçada exclusiva da respectiva Casa e insuscetível de revisão judicial (v.g., MS nº 23.388; MS nº 24.356; MS nº 22.494; MS nº 26.074). Trata-se de uma delimitação temática, portanto, que inibe a possibilidade de intervenção do Tribunal nas deliberações tomadas pelos órgãos diretivos das Casas do Congresso Nacional. Se, de um lado, encontramos no STF vários pontos de ativismo judicial das mais variadas intensidades, indicando um comportamento dos Ministros que, baseado ou não em preferências ideológicas do juiz, vai além dos limites das suas atribuições primárias; noutro lado, vê-se também pontos de autorrestrição judicial (também chamada autocontenção), em que os órgãos judiciais apresentam os mais diversos argumentos para não invalidar os atos a eles submetidos via judicialização, recusando-se, ao exercício do poder que lhe foi institucionalmente atribuído, de forma a inviabilizar tentativas de interferências diretas deste poder em relação ao Executivo e ao Legislativo. Em matéria interna corporis, a Corte, de modo geral, tem “[…] em perspectiva a regra de autocontenção que lhe impede de invadir a esfera reservada à decisão política dos dois outros Poderes, […]” (STF, MS n. 25.579, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJe de 23/8/2007). Tal postura prestigia o Poder Legislativo como instituição e sinaliza no sentido de resgatar a legitimidade de suas deliberações, equalizando a distribuição de poderes institucionais, a afetar a dinâmica interativa entre os órgãos da União, que caracteriza o sistema de freios e contrapesos presente no desenho constitucional brasileiro. 100 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Em trabalho recente sobre o tema, Flávia Danielle Santiago Lima (2016, p. 323) adverte para a prática de verdadeiro controle preventivo de constitucionalidade pelo STF, pontuando-se os contornos de ativismo judicial mediante a utilização do instrumento processual do mandado de segurança, porém cujo resultado prático é de autocontenção, diante de aparente entendimento consolidado de que não é possível a interferência da Corte “em questões interna corporis das Casas Legislativas” (LIMA, 2016, p. 134). Entretanto, diante deste entendimento, o que levaria os ministros do STF a emitir decisões liminares favoráveis, em curtos períodos de tempo? De uma análise inicial dos mandados de segurança identificados que foram impetrados por partidos políticos e parlamentares em face de atos do Legislativo, verificam-se alguns casos com decisão liminar favorável, em curtos espaços de tempo. Em um cenário em que o Judiciário brasileiro assumiu um papel de protagonista na arena política (TAYLOR, 2008; VIANNA et al., 2007; CARVALHO, 2006 e 2010), seja em virtude de seu empoderamento institucional, seja pelo enfraquecimento de outras instituições, ou seja, em virtude do seu natural papel de árbitro nos conflitos de natureza pública, verifica-se duas trajetórias relevantes, que demandam análises institucionais aprofundadas dos fatores que influenciam a Corte, num dado momento histórico, ora a não decidir, ora a decidir, acerca da agenda legislativa do Congresso Nacional. Inicialmente, verifica-se uma relevante característica acerca do objeto de análise: na série temporal, há um crescente no número de mandados de segurança impetrados pelos atores políticos considerados. Tempo, estratégia e judicialização da agenda legislativa: as reações do Supremo Tribunal Federal aos mandados de segurança originários impetrados contra atos legislativos 101 Figura 1 Quantidade de MS impetrados contra atos legislativos entre jan./1987 e jul./2017 Fonte: elaboração dos autores com base em dados colhidos no sítio eletrônico do STF. Em linhas gerais, os números apontam um acréscimo na utilização da classe processual mandado de segurança contra atos legislativos, neste século, principalmente em momentos reconhecidamente de instabilidade política, onde o conflito político é mais intenso, como se identifica, na série temporal, a partir do ano de 2003. Os números identificados nos anos de 2016 e 2017 (parciais) são extremamente significativos, denotando-se a importância da discussão da instrumentalização do mecanismo em termos de judicialização da política. Aparentemente, observa-se que há recentes incentivos institucionais para o debate sobre a agenda legislativa no Supremo Tribunal Federal. Especificamente a respeito do ano de 2016, tem-se claro o debate travado especialmente em relação ao rito do processo de impedimento da então presidente Dilma Rousseff (PT), a partir do recebimento do pedido de impedimento, realizado pelo presidente da Câmara dos Deputados à época, Eduardo Cunha (PMDB/RJ). Neste sentido, o debate na arena judicial sobre atos legislativos é favorecido pelos atos perpetrados pelo presidente da Casa legislativa em 102 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO questão, o que gerou uma série de questionamentos dos principais líderes da coalizão governamental, na tentativa de inviabilizar judicialmente o impedimento. Em relação ao ano de 2017, aponta-se para a utilização maciça do instrumental como estratégia de enfrentamento político da oposição contra a maioria conquistada pelo Governo Temer, que passa a ter importantes vitórias em termos de propostas legislativas apresentadas no Congresso Nacional. Contudo, este cenário ainda será confirmado ao longo do ano de 2017. Mas estes dados isolados não dialogam com a realidade que se apresenta, de contornos mais profundos. Para o debate, é importante perceber qual o grau de responsividade do Supremo Tribunal Federal em relação aos mandados de segurança impetrados contra a agenda legislativa federal. Em termos universais, verifica-se que a posição da Corte se mantém na perspectiva autocontida, apreciando-se em sede liminar apenas 11% dos MS impetrados, o que aponta para a manutenção do entendimento da não interferência sobre questões tipicamente interna corporis do Congresso Nacional, conforme gráfico abaixo: Figura 2 Descrição das decisões liminares em sede de MS impetrados em face de atos legislativos Fonte: elaboração dos autores com base em dados colhidos no sítio eletrônico do STF. Identifica-se que o número de MS contra a agenda legislativa, cujos pedidos foram deferidos em sede liminar, é ínfimo se comparado ao universo de remé- Tempo, estratégia e judicialização da agenda legislativa: as reações do Supremo Tribunal Federal aos mandados de segurança originários impetrados contra atos legislativos 103 dios impetrados pelos parlamentares, partidos políticos ou pelo presidente da República, representando-se um percentual de apenas 11%. Mesmo diante de tal cenário, partindo-se da premissa que a regra geral é a consideração de que as matérias interna corporis das Casas legislativas não podem ser enfrentadas pelo STF, resta uma consideração importante: o que levou a Corte a conceder a liminar em determinados casos, indo de encontro à sua posição aparentemente consolidada em termos de autocontenção a respeito da agenda legislativa? Figura 3 Descrição dos MS impetrados e deferidos em face de atos legislativos Comparativo entre MS impetrados e deferidos 30 25 20 15 10 5 0 1985 1990 1995 2000 Quatidade MS impetrados 2005 2010 2015 2020 MS Deferidos Fonte: elaboração dos autores com base em dados colhidos no sítio eletrônico do STF. Observa-se na figura 3 a concessão pontual de mandados de segurança, com acréscimo interessante no panorama durante os momentos considerados de instabilidade político-institucional, onde há diálogos intensos entre os Poderes constituídos. Neste panorama, fica evidente a importância da análise sobre o que levou a uma decisão judicial favorável acerca da agenda legislativa. Ademais, um dado chama a atenção na análise: em que pese haver a média de 185,63 dias para uma decisão da Corte nos referidos processos contra atos 104 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO legislativos, há, por outro lado, um número significativo de decisões proferidas no intervalo de 24 horas após a distribuição do MS, representando-se um percentual de 26,7% do total dos casos analisados, de acordo com as informações abaixo: Figura 4 Tempo das decisões liminares em sede de MS impetrados em face de atos legislativos Fonte: elaboração dos autores com base em dados colhidos no sítio eletrônico do STF. O tempo médio para concessão de uma decisão nos MS impetrados em face de atos legislativos é significativamente superior ao encontrado no III Relatório Supremo em Números (FALCÃO; HARTMAN; CHAVES, 2014, p. 33), que aponta para uma média geral até a decisão liminar no STF (1988-2013) correspondente a 48 dias para a classe processual mandado de segurança. Contudo, os aspectos mais relevantes sobre este panorama temporal e a ausência de decisão podem ser expressos a seguir: Tempo, estratégia e judicialização da agenda legislativa: as reações do Supremo Tribunal Federal aos mandados de segurança originários impetrados contra atos legislativos 105 Figura 5 Tempo sem decisão em sede de MS impetrados em face de atos legislativos Fonte: elaboração dos autores com base em dados colhidos no sítio eletrônico do STF. Na figura 5, as três colunas apresentam tempos distintos de resposta do STF. A primeira coluna apresenta as decisões proferidas em um intervalo de 24 horas, totalizando o número de 43 mandados de segurança (26,7%); por sua vez, a segunda coluna apresenta as decisões proferidas em um intervalo de 12 dias, totalizando 81 casos (50,30%); por fim, a terceira coluna demonstra que em 72% dos casos analisados, a decisão é proferida em um intervalo de até 49 dias. Ao se realizar uma comparação com os dados levantados pelo III Relatório Supremo em Números (FALCÃO; HARTMAN; CHAVES, 2014, p. 33), observa-se que parte significativa das decisões liminares sobre mandados de segurança que versam sobre a agenda legislativa se encontram no intervalo da média geral apresentada no referido relatório. Entretanto, partindo-se da premissa de que os mandados de segurança são instrumentalizados segundo um regime de urgência, os resultados apontados, levando-se em consideração a variável tempo, mostram a sua baixa efetividade como regra geral. Visualizou-se na figura 1 que, dos números totais analisados, apenas 17 casos foram concedidos em sede liminar, em um intervalo de até 49 dias. Tal panorama é extremamente relevante, tendo em vista que: 106 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO [...] no âmbito do Supremo Tribunal Federal, o tempo aparece como uma variável explicativa relevante das decisões judiciais (variável dependente), que muito nos mostra sobre o comportamento estratégico dos Juízes membros daquele órgão: mudanças de trajetória, acelerando ou retardando a apreciação de questões, bem como pontos fora da curva (outliers) processos cujas decisões ocorreram em prazos de tempo notadamente mais lentos ou muito mais rápidos em comparação com a média dos processos de mesma natureza, podem esclarecer sobre as estratégias que são consideradas no momento do julgamento (LIMA; GOMES, 2017, p. 14). Registre-se que o natural é a alegação de plano de que a questão é de natureza interna corporis, como se percebe no número significativo de liminares indeferidas sobre atos legislativos, julgamento em momento futuro ou decisão por não conhecimento do MS – em um total de 143 casos. Não obstante, há a necessidade de destaque para alguns casos que fugiram à lógica da autocontenção supostamente propagada pela Corte, a respeito de atos legislativos, ao se verificar a concessão de medida liminar em um curto intervalo de tempo,24 totalizando 13 casos (MS nº 21.564, MS nº 21.793, MS nº 22.503, MS nº 25.004, MS nº 25.539, MS nº 25.906, MS nº 26.307, MS nº 26.900, MS nº 31.816, MS nº 32.033, MS nº 33.952, MS nº 34.562, MS nº 34.907). Os resultados observados contemplam, inclusive, períodos distintos em termos de composição do STF, variando entre os anos de 1992 a 2017. Mas sobre o que versam tais mandados de segurança, a ponto de alterar uma lógica maciçamente propensa à autocontenção, seja expressamente alegando a questão interna corporis, não conhecendo do remédio constitucional ou deixando a decisão para outro momento, em que o debate não se encontra mais na agenda das discussões políticas? Um dos exemplos observados de instrumentalização do remédio constitucional versa sobre a suspensão da impossibilidade de registro de filiações a deputados do PSD por ato da Mesa da Câmara dos Deputados (MS nº 21.793), que afetaria o direito líquido e certo do parlamentar exercer sua atividade; neste contexto, o STF concedeu, no prazo de 24 horas, liminar ao impetrante para que exercesse 24 Para os propósitos da análise, partindo-se da lógica de urgência do mandado de segurança, considera-se curto intervalo de tempo o primeiro período considerado na Figura 4, correspondente a até 12 dias para resposta do STF. Neste sentido, assume-se que o intervalo é apropriado para que a medida liminar tenha efeitos de ordem prática no contexto dos atos legislativos. Tempo, estratégia e judicialização da agenda legislativa: as reações do Supremo Tribunal Federal aos mandados de segurança originários impetrados contra atos legislativos 107 suas atividades parlamentares, através da apresentação de emendas, interferindo substancialmente nas nuances internas da produção legislativa. Como ponto de convergência a este fato, verifica-se também decisão do STF sobre atos legislativos em procedimentos adotados no seio de Conselhos e Comissões das Casas Legislativas, julgando-se favoravelmente à supressão de documentos, tendo em vista a necessidade de se resguardar o direito de defesa do parlamentar, constitucionalmente assegurado (MS nº 25.647; MS nº 25.539; MS nº 26.441; MS nº 26.900; MS nº 32.033; MS nº 33.952; MS nº 34.588). Outro exemplo deste panorama versa sobre liminar deferida acerca de tramitação de emenda constitucional (MS nº 22.503), em que o STF possui entendimento interessante da linha que separa atos tipicamente interna corporis, afetos exclusivamente às Casas legislativas, de atos que possuem “verdadeira natureza constitucional”, passíveis de análise da Corte, conforme trecho da decisão do ministro Marco Aurélio: Inicialmente, consigno que a hipótese está distanciada do campo relativo aos atos interna corporis. Em discussão não se fazem assuntos ligados à economia interna da Câmara dos Deputados, nem procedimento circunscrito ao âmbito da conveniência política, da discricionariedade. Evoca-se, na inicial deste mandado de segurança, o desprezo ao processo legislativo, que possui regência de estatura constitucional, sendo marcante os preceitos insculpidos nos artigos 59 a 69 da Carta Política da República. A expressão “processo legislativo” é conducente a presumir-se a organicidade e esta é balizada pelas normas em vigor. Percebe-se, assim, que se define uma diferenciação entre “atos internos” das Casas legislativas, regulamentados objetivamente nos seus Regimentos Internos, do chamado “processo legislativo”, viabilizando-se a interferência da Corte nestes casos, dada a sua magnitude e repercussão constitucional. Esta argumentação em termos da magnitude constitucional do processo legislativo, que deve ser preservada pelo STF, também é observada em liminar deferida contra a análise de veto presidencial sobre a distribuição dos royalties de petróleo e hidrocarbonetos fluidos, em regime de urgência, diante da necessidade de observância do regular processo legislativo (MS nº 31.816). Sobre a agenda legislativa, ainda é interessante pontuar decisões céleres em sede liminar que têm o condão de suspender a tramitação de projetos de lei, 108 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO ordenando-se as casas legislativas a observar os trâmites previstos nos preceitos constitucionais (MS nº 34.562; MS nº 34.697). Em síntese, as liminares concedidas em curto período de tempo versam substancialmente sobre dois pontos focais: a) preservação de “direitos e garantias fundamentais dos parlamentares”; b) observância do “devido processo legislativo constitucional”. Portanto, destaca-se que ambos os pontos possuem um pilar claramente alçado a nível constitucional, passível de leitura interpretativa dos ministros do STF. Figura 6 Temas das decisões liminares em MS impetrados em face de atos legislativos Temas das decisões liminares concedidas Direitos e garantias fundamentais Devido processo legislativo constitucional Fonte: dados colhidos no sítio eletrônico do STF. Elaboração dos autores. Em relação ao denominado “processo legislativo constitucional”, há entendimento consolidado da Corte sobre a sua conceituação, formalizada nos autos do MS nº 24.642/DF, de relatoria do ministro Carlos Velloso: CONSTITUCIONAL. PROCESSO LEGISLATIVO: CONTROLE JUDICIAL. MANDADO DE SEGURANÇA. I – O parlamentar tem legitimidade ativa para impetrar mandado de segurança com a finalidade de coibir atos praticados no processo de aprovação de leis e emendas constitucionais que não se compatibilizam com o processo legislativo constitucional. Legitimidade ativa do parlamentar, apenas. Tempo, estratégia e judicialização da agenda legislativa: as reações do Supremo Tribunal Federal aos mandados de segurança originários impetrados contra atos legislativos 109 II – Precedentes do STF: MS 20.257/DF, ministro Moreira Alves (leading case), RTJ 99/1031; MS 21.642/DF, ministro Celso de Mello, RDA 191/200; MS 21.303-AgR/DF, ministro Octavio Gallotti, RTJ 139/783; MS 24.356/DF, ministro Carlos Velloso, ‘DJ’ de 12.09.2003. III – Inocorrência, no caso, de ofensa ao processo legislativo, C.F., art. 60, § 2º, por isso que, no texto aprovado em 1º turno, houve, simplesmente, pela Comissão Especial, correção da redação aprovada, com a supressão da expressão ‘se inferior’, expressão dispensável, dada a impossibilidade de a remuneração dos Prefeitos ser superior à dos Ministros do Supremo Tribunal Federal. IV – Mandado de Segurança indeferido. (grifos nossos) Entretanto, a justificativa, por si só, é incipiente se for levado em consideração o universo de mandados de segurança impetrados contra atos legislativos. Verificam-se vários mandados em que o cerne da questão versa formalmente sobre pontos abordados em liminares concedidas, anteriormente mencionadas, mas que simplesmente são negadas mediante a roupagem jurídica de atos interna corporis, ou seja, de interpretação exclusiva de normas regimentais (MS nº 34.764; MS nº 34.802) ou que o cerne da discussão acaba se propagando no tempo sem decisão, restando prejudicada (MS nº 27.858). Neste panorama, que fatores influenciam para uma decisão célere dos ministros do STF? Um dos testes possíveis versa sobre a possibilidade do resultado favorável em termos de alinhamento partidário. Contudo, os dados apontam que não há resultados estatisticamente relevantes em termos de tal alinhamento: 110 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Figura 7 Alinhamento partidário do impetrante em MS impetrados em face de atos legislativos Fonte: dados colhidos no sítio eletrônico do STF. Elaboração dos autores. Ou seja, observa-se que o fato de o impetrante integrar bancada da situação ou oposição em termos de alinhamento partidário ao presidente da Casa legislativa não interfere estatisticamente no deferimento da medida liminar. Analisando-se os casos, identifica-se a argumentação baseada na sinalização da dicotomia existente entre “matéria interna corporis” e “devido processo legislativo constitucional”. Contudo, depreende-se que tais institutos são corporificados através de um viés nitidamente subjetivo, dado que os casos concretos demonstram linhas tênues na consideração do que seriam os seus contornos principais. Esta situação parece favorecer uma lógica de “11 ilhas”, na qual cada ministro possui margem de discricionariedade para identificar determinado panorama no caso concreto, como corolário de uma verdadeira sensibilidade constitucional para cada questão posta à apreciação da Corte (vide MS nº 31.816; MS nº 34.562; MS nº 34.907). Diante da realidade consideravelmente pouco efetiva, por que persistir na instrumentalização do MS em face de atos legislativos, se o nível de aproveitamento é baixo e o tempo de resposta do STF não está adequado à urgência da medida? Por outro lado, o que o tempo decisório nestas hipóteses nos mostra acerca do comportamento judicial estratégico? Tempo, estratégia e judicialização da agenda legislativa: as reações do Supremo Tribunal Federal aos mandados de segurança originários impetrados contra atos legislativos 111 Aparentemente, a identificação da interpretação do viés subjetivo dos ministros quanto às questões apreciadas pode mover deputados e senadores a provocar decisões do Supremo Tribunal Federal sobre atos legislativos, em que pese a inegável oportunidade oferecida de transferência do poder decisório ao Poder Judiciário. Por outro lado, o motivo pode residir, especificamente para os partidos políticos, na necessidade de manutenção da agenda política das bancadas em evidência, dados os baixos índices de aproveitamento decisório de temas levados à apreciação do STF, mas de repercussões midiáticas efetivas. Em linhas gerais, para os atores partidários, confirma-se a estratégia política da manutenção da agenda no debate nacional, com os partidos minoritários mantendo viva a discussão da questão, marcando, publicamente, através de todos os meios possíveis, o seu posicionamento político. (TAYLOR; DA ROS, 2008). Para o STF, a instrumentalização é importante em termos de ganhos políticos da Corte, dado que os próprios atores partidários demandam decisões dos ministros sobre assuntos íntimos da seara legislativa federal. Não obstante um posicionamento formal autocontido, em situações específicas o Supremo “decide por interferir” nos atos legislativos. Contudo, os critérios de eleição para tal interferência assumem feições nitidamente interpretativas sobre a essência constitucional da questão, submetida via mandado de segurança. Considerações Finais Os estudos da Ciência Política contemporânea têm demonstrado um nível de judicialização significativo no mundo, especialmente nos países que passaram recentemente por um processo de redemocratização, considerando-se o relevante protagonismo político do Poder Judiciário, especialmente na América Latina. No Brasil, os estudos versam quase que exclusivamente sobre as chamadas “ações constitucionais”, tendo em vista o seu importante papel no controle de constitucionalidade, conforme observado na Constituição Federal. Contudo, há outros mecanismos plenamente relevantes, que apontam para graus significativos de judicialização do debate político. Neste panorama, encontra-se o mandado de segurança, remédio constitucional previsto na Constituição e na Lei nº 12.016/2009, que sistematicamente tem sido 112 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO utilizado por parlamentares e partidos políticos na esfera federal para submeter questões a respeito de atos legislativos ao Supremo Tribunal Federal. Na série temporal analisada (1987-2017), observam-se pontos de ebulição em termos de utilização do instrumental e uma mudança clara de comportamento parlamentar aparentemente associados a momentos de instabilidade política, ou seja, clivagens críticas que precisam ser melhor compreendidas. Este cenário é visível a partir do ano de 2003. Ademais, são identificados números cada vez mais expressivos nos anos de 2016 e 2017 (parcial), que reforçam a necessidade de estudos aprofundados sobre este novo panorama. Ocorre que, no cenário dos mandados de segurança, a lógica é nitidamente diferente daquela observada nas ações constitucionais do judicial review: a urgência da medida é ponto determinante para a discussão na Corte Constitucional. Ademais, o mecanismo é empregado para a discussão de decisões adotadas no interior das Casas Legislativas, o que depreende uma análise da possibilidade jurídica da questão, frente aos preceitos constitucionais. Dessa forma, verifica-se a centralidade da discussão a respeito dos tempos de resposta dados pelos Ministros do STF sobre as questões submetidas via mandado de segurança contra atos legislativos, valendo-se especialmente das decisões emitidas em sede liminar – mais adequada à própria lógica do raciocínio da urgência. Ou seja, o tempo é absolutamente relevante para identificar um possível comportamento estratégico dos ministros do STF. A partir da identificação do universo de mandados de segurança impetrados por parlamentares e partidos políticos contra atos legislativos, é interessante apontar que as decisões liminares concedidas representam um percentual de 11% dos casos, de um total de 50,3% dos casos analisados em um curto intervalo de tempo, considerado para fins deste trabalho o período de até 12 dias para emissão da decisão liminar. Em meio a este panorama, observam-se dois pontos centrais que viabilizam a tomada de decisão do STF sobre decisão já adotada pela Casa Legislativa: questões envolvendo (a) direitos e garantias fundamentais dos parlamentares; e (b) devido processo legislativo constitucional. Entretanto, ao analisar o panorama do universo dos mandados de segurança impetrados contra atos legislativos, resta fortalecido o entendimento que a in- Tempo, estratégia e judicialização da agenda legislativa: as reações do Supremo Tribunal Federal aos mandados de segurança originários impetrados contra atos legislativos 113 terferência perpassa por uma lógica interpretativa dos ministros sobre o nível de nuance constitucional envolvida na questão, dadas as linhas tênues sobre o que seria matéria interna corporis das Casas Legislativas e efetivamente uma discussão sobre o “devido processo legislativo constitucional”. Este aspecto aparenta viabilizar a análise estratégica do ministro sobre a questão legislativa submetida à sua apreciação. Não obstante tal cenário, identificado inicialmente, novas estratégias metodológicas podem contribuir para um aprofundamento teórico do debate sobre os mandados de segurança impetrados no STF contra atos das Casas legislativas do Congresso Nacional. Referências ARANTES, R. B. (2008). Judicial contestation: a less decisive and more resolute political system, book review. Brazilian Political Science Review, v. 2, n. 2, p. 138-145. BAUM, L. (1997). The puzzle of judicial behavior. Michigan Univ. Press. BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2016]. BRASIL (2009). Lei nº 12.016, de 7 de agosto. Disciplina o mandado de segurança individual e coletivo e dá outras providências. Diário Oficial da União, Seção 1, 10 ago. 2009, p. 2. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Jurisprudência. CARVALHO, E. (2006). Revisão judicial da legislação e judicialização da política no Brasil: seletividade e especificidade. In: ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE CIÊNCIA POLÍTICA, 5., 2006, Belo Horizonte. [Anais...]. Belo Horizonte: ABCP. ______ (2010). Trajetória da revisão judicial no desenho constitucional brasileiro: tutela, autonomia e judicialização. Sociologias, Porto Alegre, n. 23. p. 176-207. 114 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO CARVALHO, E; BARBOSA, L. F. A.; GOMES NETO, J. M. W. (2014). OAB e as prerrogativas atípicas na arena política da revisão judicial. Revista Direito GV, São Paulo, n. 19, p. 69-98. CARVALHO, E.; SANTOS, M. L.; GOMES NETO, J. M. W.; BARBOSA, L. V. Q. (2016). Judicialización de la política y grupos de presión en Brasil: intereses, estrategias y resultados. América Latina Hoy, v. 72, p. 59. DAHL, R. (1957). Decision-making in a democracy: The Supreme Court as a national policy-maker. Journal of Public Law, Emory, v. 6, p. 279-295, Fall. EPSTEIN, L.; LANDES, W. M.; POSNER, R. A. (2013). The behavior of federal judges: a theoretical & empirical study of rational choice. Cambridge, MA: Harvard Univ. Press. EPSTEIN, L.; MARTIN, A. D. (2014). An introduction to empirical legal research. Oxford: Oxford Univ. Press. FALCÃO, J. (2015). O Supremo: compreenda o poder, as razões e as consequências das decisões da mais alta Corte do Judiciário no Brasil. Rio de Janeiro: FGV Ed. ______; HARTMANN, I. A.; CHAVES, V. P. (2014). III Relatório Supremo em números: o Supremo e o tempo. Rio de Janeiro: FGV Ed. GILLMAN, H.; CLAYTON, C. W. (1999). Beyond judicial attitudes: institutional approaches to Supreme Court decision-making. In: CLAYTON, C. W.; GILLMAN, H. (Ed.). Supreme Court decision-making: new institutionalist approaches. Chicago, IL: Univ. Chicago Press. p. 1-12. GOMES NETO, J. M. W. (2012). As várias faces de um leviathan togado: um espectro das abordagens teóricas em ciência política acerca do fenômeno da judicial politics. Mnemonise Revista, v. 3, p. 107-120. HIRSCHL, R. (2008). The judicialization of mega-politics and the rise of political courts. Annual Review of Political Science, Palo Alto, CA, v 11, p. 93-118. Tempo, estratégia e judicialização da agenda legislativa: as reações do Supremo Tribunal Federal aos mandados de segurança originários impetrados contra atos legislativos 115 LIMA, F. D. S. (2016). Perdedores no Congresso Nacional e no STF? A judicialização das questões interna corporis do Legislativo. Revista Jurídica da Presidência, Brasília, v. 18, n. 155, p. 307-330. MCCUBBINS, Mathew D.; NOLL, Roger G.; WEINGAST, Barry R. (1989). Structure and process, politics and policy: administrative arrangements and the political control of agencies. Virginia Law Review, Charlottesville, VA, v. 75, n. 2, p. 431-482. ______; ______; ______ (1992). Positive canons: the role of legislative bargains in statutory interpretation. Georgetown Law Journal, Washington, DC, v. 80, p. 705-742. MENDES, G.; BRANCO, P. G. G. (2015). Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva. NEUBAUER, D. W.; MEINHOLD, S. S. (2010). Judicial process: law, courts, and politics in the United States. Boston: Wadsworth Cengage Learning. NOVELINO, M. (2015). Direito constitucional. São Paulo: Método. POSNER, R. (2010). How judges think. Cambridge: Harvard Univ. Press. SWEET, A. S. (2000). Governing with judges: constitutional politics in Europe. Oxford: Oxford Univ. Press. ______ (2008). Judging policy: courts and policy reform in democratic Brazil. Redwood City, CA: Stanford Univ. Press. TAYLOR, M. M.; DA ROS, L. (2008). Os partidos dentro e fora do poder: a judicialização como resultado contingente da estratégia política. Dados: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 51, n. 4, p. 825-864, VIANNA, L. W.; BURGOS, M. B.; SALLES, P. M. (2007). Dezessete anos de judicialização da política. Tempo social: Revista de Sociologia da USP, São Paulo, v. 19, n. 2, p. 39-85. 117 Mutações orçamentárias e comportamentos políticos na democracia brasileira Fernando Moutinho Ramalho Bittencourt Ricardo de João Braga Introdução O estudo sobre o Legislativo brasileiro beneficia-se de uma comparação temporal bastante produtiva entre a República de 1946 e a Nova República. Trata-se em boa medida de um experimento natural, pois muitas das variáveis institucionais mantêm-se nos dois períodos, o que permite analisar da forma mais controlada possível importantes variáveis de interesse.25 A interpretação predominante na perspectiva comparada (SANTOS, 2003; FIGUEIREDO; LIMONGI, 1999) pode ser assim sintetizada: o Legislativo pós-1988 apresenta níveis maiores de fidelidade e de coesão partidária derivados do controle do presidente da República sobre o orçamento e também do seu poder de agenda superior, além da centralização de decisões intralegislativas nas mãos dos líderes partidários (o que compõe também o poder de agenda desses líderes). As relações Executivo-Legislativo, assim, seriam mais estáveis e coordenadas no período atual. Este artigo, a partir do levantamento e da análise de dados orçamentários ainda não explorados para o período da República de 1946 (levantados e sistematizados em BITTENCOURT, 2016; 2017a; 2017b) e sua comparação com o período 25 Como já ressaltado pela literatura desde Abranches (1998), ambos os períodos democráticos brasileiros conviveram com presidencialismo, federalismo, pluripartidarismo, Legislativo bicameral, Câmara dos Deputados composta por sistema proporcional de lista aberta (FIGUEIREDO; LIMONGI, 1999; SANTOS, 2003). Assim, ao se comparar variáveis institucionais político-orçamentárias e seu consequente desdobramento no Poder Legislativo entre as duas épocas, está-se diante de um cenário relativamente controlado no que se refere a essas macrovariáveis. Para uma breve revisão dos estudos comparativos que exploram essa oportunidade, cf. Bittencourt (2017). 118 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO pós-1988, qualifica um importante elemento teórico interpretativo da análise longitudinal. Para a literatura (SANTOS, 1994; 1997; 2003; 2007), a menor fidelidade dos partidos políticos na República de 1946, assim como as maiores dificuldades do Poder Executivo em formar e gerir uma coalizão, devem-se (além da falta de poder de agenda do presidente) aos maiores poderes orçamentários dos legisladores, o que os torna mais independentes das ações do Poder Executivo para a distribuição de benefícios orçamentários (pork barrel). A partir do estudo aqui empreendido, constata-se que maiores poderes institucionais dos legisladores quanto ao orçamento não redundam necessariamente em maior independência. Mostra-se mais adequado enfatizar a instabilidade das relações orçamentárias entre os Poderes, que gera incerteza e assim deteriora as possíveis ações de coordenação das forças políticas. A causa desta incerteza seria de fato uma maior fragilidade institucional do orçamento,26 vista principalmente na não observância da universalidade orçamentária e na instabilidade das rubricas nas suas várias fases (elaboração, deliberação e implementação orçamentária). O comportamento legislativo conforme aqui interpretado radica numa constatação estrutural de economia política: o projeto político predominante na República de 46 privilegiou o crescimento econômico por intermédio de forte intervenção estatal, o que, diante de fragilidades institucionais da política econômica do período, acabava por redundar numa consequência econômica negativa, a inflação, a qual consistia, acima de tudo, em um mecanismo de ajuste da dinâmica política (LAFER, 2002; FURTADO, 1962; BRAGA, 2011; SARETTA, 1995).27 A partir de 1994, dentro da nova ordem institucional disposta pela Constituição Federal de 1988 e sob um compromisso crível de combate à inflação, a dinâmica política perdeu a possibilidade de resolver seus conflitos distributivos via inflação, circunscrevendo os momentos de definição de gastos, e sobretudo a magnitude dos ajustes, a fases e dimensões pré-controladas. A fragilidade das instituições orçamentárias é vista, em primeiro lugar, na universalidade orçamentária. Hoje as despesas e receitas públicas são abarcadas 26 Não se ignora o papel central do poder de agenda na coordenação das relações Executivo-Legislativo, mas neste artigo avança-se apenas na análise dos elementos orçamentários. 27 Para um aprofundamento do papel da inflação segundo a perspectiva aqui delineada, cf. Bittencourt (2016, p. 193-202). Mutações orçamentárias e comportamentos políticos na democracia brasileira 119 pelo orçamento em proporção materialmente relevante,28 o que não era realidade na República de 46. Muitas despesas fluíam por canais não influenciados pelo Congresso, não estavam inseridas na lei orçamentária e chegavam a ser vultosas (mais de 50% dos gastos públicos em alguns exercícios). Sendo, como eram, despesas politicamente relevantes, recebiam atenção política por outras formas que não a definição do orçamento pelo Congresso.29 Da mesma forma, a compreensão da dinâmica orçamentária segmentada em previsão e realização ajuda a compreender a estabilidade/instabilidade das relações Executivo-Legislativo. Em ambos os períodos, os Poderes Legislativo e Executivo bailaram uma coreografia variada, em que determinadas rubricas eram aumentadas ou diminuídas na autorização e depois podiam ser revertidas na realização. Em vários momentos despesas não comprimíveis, mas politicamente sem apelo, eram fantasiosamente diminuídas para dar espaço a outras politicamente sensíveis. A necessidade prática, contudo, fazia o governo deparar-se com os indigestos cortes ou então, fundamentalmente no período de 1946, aceitar a silenciosa e pervasiva praga inflacionária. Deriva deste achado a crítica a uma ideia quase de senso comum que tomou conta de discussões sobre orçamento, o mito do Legislativo gastador versus Executivo guardião. Principalmente na República de 46 não se viu um Executivo guardião do equilíbrio fiscal, mas sim um agente envolvido numa dinâmica política própria de incentivo ao gasto. Já na Nova República, de forma concorde à mudança institucional, assistiu-se após 1994 a um crescente controle do Poder Executivo sobre o orçamento com vistas a garantir algum equilíbrio fiscal e o controle da inflação. Ao Legislativo pós-1988 não foi concedida a possibilidade 28 Para um breve apontamento sobre as ressalvas feitas na literatura à premissa de uma universalidade absoluta (100% das receitas e despesas públicas transitando pelo orçamento), bem como sobre a natureza relativa dessa observação, cf. Bittencourt (2016, p. 225). 29 A patronagem ganha destaque neste ponto, embora não seja aqui tratada no artigo. Para uma discussão sobre esse ponto específico, ver Bittencourt (2016, p. 226-250). 120 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO de ser gastador.30 Como decorrência, a dinâmica orçamentária do período atual gera mais estabilidade nas relações Executivo-Legislativo não apenas porque o Executivo tem mais controle na distribuição de benefícios, mas também porque as relações político-orçamentárias estabelecidas entre os Poderes são mais estáveis e previsíveis. É possível assim, a partir da economia política, apresentar uma hipótese de comportamento legislativo e relações Executivo-Legislativo: o papel da incerteza quanto ao controle sobre o orçamento altera a dinâmica das relações e dos comportamentos políticos. Na República de 1946 havia maior poder formal de influência dos parlamentares sobre o orçamento, o que está em linha com a literatura, como por exemplo em Santos (1994; 2003). Contudo, a não universalidade orçamentária e também o permanente jogo de inflação e remanejamento de rubricas, tanto na proposta tramitando no Legislativo quanto na execução do orçamento aprovado, faziam com que a probabilidade de se conseguir a realização de objetivos políticos dentro do orçamento fosse baixa. Maiores prerrogativas contrastavam com menor certeza de benefícios. Tal incerteza, em primeiro lugar, ressaltava a importância da patronagem – no sentido do controle de postos que efetivamente concretizassem decisões de gastos –, mas, em segundo lugar, aumentava a volatilidade da relação Executivo-Legislativo – um alto custo de transação nos acordos, aderente aos achados de menor fidelidade e coesão no Legislativo (SANTOS, 2003; AMES, 1986; 1987). Por fim, gerava também incentivos para uma inflação das demandas pelo fundo público formuladas pelos atores (dado que boa parte delas não seria efetivada), o que também aumentava sistemicamente a incerteza. Como coloca a literatura, o Legislativo podia ser mais independente do Executivo, mas acrescenta-se aqui que era também o Legislativo um ator que atuava dentro de um cenário mais incerto. Pode-se sintetizar o quadro da seguinte forma: perspectivas orçamentárias instáveis e 30 É certo que a deterioração fiscal realizada nos últimos anos de Dilma Rousseff põe à prova o argumento, pois com ela o próprio Poder Executivo decidiu quebrar o pacto das áreas e momentos de disputa por recursos estabelecidos posteriormente a 1994. Esta mutação no padrão de comportamento do Executivo requer, indubitavelmente, uma avaliação profunda de suas consequências (especialmente se for adotada a premissa de que a postura fiscal contencionista do Executivo pós-1988 represente um fator importante na institucionalidade pelo seu efeito anti-inflacionário, o que faria do seu abandono uma ameaça à produção do bem público representado pela estabilidade monetária). No entanto, o exame empírico realizado neste artigo somente alcança dados financeiros até 2013, quando tal tendência não havia atingido o auge. Assim, a afirmação de um “Executivo não gastador” no pós-1988 deve ser relativizada em modelos que abranjam o período final da experiência petista. Mutações orçamentárias e comportamentos políticos na democracia brasileira 121 acordos Executivo-Legislativo pouco críveis levam a uma situação de instabilidade governativa. No pós-1988, a maior previsibilidade orçamentária estabeleceu uma relação mais crível entre Executivo e Legislativo, diminuindo os custos para realização de acordos. É certo que a maior previsibilidade não extinguiu o conflito distributivo básico, pois atores políticos buscam todo o tempo amealhar recursos para seus projetos; contudo, os momentos de definição são mais claros quando se estabelece o orçamento por ministério, o volume de emendas parlamentares e os contingenciamentos orçamentários. Acresça-se ao quadro atual o fato de haver cada vez mais despesas obrigatórias dentro do orçamento, o que diminui a probabilidade de frustração de gastos. O conflito distributivo atual, com suas fases bem definidas, preserva assim mais facilmente o equilíbrio fiscal e seus efeitos sobre o controle da inflação, pois as concessões são bem definidas dentro do processo. Usando uma figura usual no ramo, a classe política decide em quais esferas ela ata as próprias mãos e em que momento a disputa por recursos é franqueada, e isso traz mais estabilidade para as relações Executivo-Legislativo. O artigo prossegue em duas seções de caráter empírico, baseadas em Bittencourt (2016), e uma conclusão. A primeira seção analisa as instituições políticas do processo orçamentário e a segunda, os números do orçamento. Na primeira, discutem-se o quadro de regras que distribui prerrogativas e a influência sobre o orçamento federal nos dois períodos democráticos, comparando Poderes Executivo e Legislativo. Quanto aos números, também em perspectiva longitudinal, compreendeu-se como se dava a dinâmica política em torno da definição de gastos e receitas enfeixadas pelo orçamento formal. Constatou-se que o quadro atual, pós CF/1988, aumentou as prerrogativas do Poder Executivo sobre o orçamento, o que está em linha com a literatura (SANTOS, 2003; FIGUEIREDO; LIMONGI, 1999), além de corroborar a constatação usual de que, após 1994, o governo passou a submeter-se mais incisivamente à restrição orçamentária. 122 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO As regras institucionais do orçamento: as inovações da Constituição de 1988 frente ao regime democrático anterior31 Esta seção traz uma sistematização das regras institucionais relativas ao papel dos Poderes Executivo e Legislativo na elaboração do orçamento, comparando as duas últimas ordens constitucionais democráticas32 (inclusive por meio de quantificação preliminar sob a forma de indicadores). Os poderes examinados não são apenas prerrogativas formais de autoridade, mas também incorporam variáveis de capacidade organizacional, como tempo para processamento da informação e especialização técnica. Os custos de transação necessários à superação dos problemas de ação coletiva envolvidos na decisão legislativa e de agência relativos à assimetria de informação vis-à-vis o Executivo fazem com que os poderes formais de decisão não sejam suficientes para assegurar a influência legislativa no processo orçamentário (WEHNER, 2010). Outro aspecto a considerar é que esta interpretação só faz sentido se considerado o contexto procedimental do orçamento como proposição legislativa específica, com caráter periódico e único (ou seja, deve haver um orçamento por exercício fiscal, e apenas um) e prazo determinado para a sua sanção. Assim, algumas medidas de avaliação de poder de agenda que fazem sentido no contexto legislativo geral33 deixam de ser aplicáveis para este exame específico. O apêndice traz a lógica da construção e atribuição de valores a cada critério de avaliação dentro do cenário teórico, e a tabela 1 contempla os resultados.34 31 O desenvolvimento completo dos dados desta seção está em Bittencourt (2016, p. 87-126; 2017a). 32 A análise não abrange exercícios posteriores a 2013, quando novos textos legais trouxeram uma suposta “impositividade” da parcela do orçamento relativa a emendas parlamentares, o que significa uma mudança substantiva – ao menos do ponto de vista formal – das regras de intervenção dos Poderes sobre a decisão orçamentária, cf. Bittencourt (2016, p. 313-314; 2107b, p. 32-33). 33 Tais como o controle do calendário de discussão e votação por parte das comissões, o poder de gatekeeping das comissões ao reter ou obstruir o acesso de matérias ao Plenário e o direito de iniciativa legislativa irrestrita de membros e comissões (DÖRING, 2001, p. 150-152). 34 Uma descrição completa dos aspectos fáticos e metodológicos dessas regras pode ser consultada em Bittencourt (2016, p. 110-117; 2017a, p. 14-29). Mutações orçamentárias e comportamentos políticos na democracia brasileira 123 Tabela 1 Poderes institucionais orçamentários do presidente Fator 1946 1988 Iniciativa da proposta orçamentária 0,66 1,00 Consequências da não apresentação de proposta orçamentária 0,00 0,50 Escolha dos membros das comissões que votam os pareceres ao orçamento 0,33 0,66 Tramitação bicameral ou não 0,00 0,50 Participação de comissões especializadas na matéria 0,00 0,00 Poder das comissões para deliberar sobre projetos 1,00 0,00 Simetria entre os Poderes das duas Casas legislativas 0,50 0,00 Consequências da não aprovação da lei orçamentária 0,33 0,66 Poder de legislar unilateralmente (“poder de decreto”) sobre orçamento – abrangência 0,66 0,66 Poder de legislar unilateralmente (“poder de decreto”) sobre orçamento – intervenção legislativa 1,00 0,66 Caráter meramente autorizativo do orçamento 1,00 1,00 Tempo disponível para exame da proposta orçamentária pelo Legislativo 0,00 0,66 Capacidade de o Legislativo emendar materialmente a proposta orçamentária 0,00 0,25 Poder de veto 1,00 0,66 Maioria necessária para derrubar o veto 0,33 0,66 Média 0,454 0,525 Fonte: Bittencourt (2016, p. 118; 2017a, p. 41). Os indicadores de poderes formais de natureza orçamentária permitem corroborar, com moderação, as afirmações da literatura no sentido de uma maior concentração desse poder nas mãos do Executivo no regime de 1988 (SANTOS, 2003; FIGUEIREDO; LIMONGI, 1999; NOBREGA JR., 2008). Em termos individuais, dos 15 indicadores, 8 registram aumento, 4 são reduzidos e 3 não apresentam alteração quando se compara o novo regime com o anterior. A diferença relativa da média dos indicadores aponta um aumento de 15,56% entre 124 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO 1946 e 1988, sintetizando a ideia de um aumento desses poderes do primeiro para o segundo período.35 Os recursos de veto do presidente tiveram modificações em ambos os sentidos: de um lado, sua capacidade de vetar parcialmente foi limitada a dispositivos específicos (e não mais a qualquer palavra ou expressão); de outro, as maiorias exigidas para derrubar o veto foram elevadas. Tendo em vista o formato específico da lei orçamentária, o efeito da limitação ao veto fragmentado parece menor que o efeito contrário do aumento do custo, em votos, da derrubada do veto pelo Legislativo, indicando um resultado líquido de uma maior capacidade presidencial como ator de veto. Já o tratamento da não decisão (o status quo quando o orçamento não é aprovado) inclinou-se fortemente em relação ao Executivo, pois a rejeição do orçamento não mais enseja o retorno automático a uma lei orçamentária já aprovada e conhecida, como em 1946, mas sim gera uma situação de vácuo normativo para o qual o ordenamento institucional não prevê solução permanente (elevando fortemente o custo da rejeição pura e simples, ou da demora do Legislativo em decidir).36 Um elemento, porém, é decisivo: o Parlamento tem, em 1988, restrições formais muito mais fortes para aumentar as despesas, uma vez que existe vedação formal à alteração dos montantes totais de receita e despesa no texto constitucional. Esse poder de elevar as despesas de moto próprio é o ponto fulcral do argumento teórico de Santos (2003) em relação aos efeitos do orçamento na relação entre os Poderes na República de 46 e é apontado na literatura técnica orçamentária do período como algo que era efetivamente exercido em grau elevado, a ponto de trazer transtornos alocativos para a administração pública (COELHO, 1952, 1958). A resultante dessas diferentes alterações parciais sugere que, em síntese, a anuência legislativa continua sendo 35 Naturalmente, uma média de indicadores dessa natureza há de ser vista cuidadosamente como apenas de uma ilustração, pois trata-se de uma média de valores de dimensões distintas e que, portanto, não são comensuráveis (NÓBREGA JR., 2008, p. 27). Por outro lado, uma média representa a consideração de vários fatores institucionais que ocorrem de forma simultânea sobre uma mesma polity e, por conseguinte, podem reduzir ou neutralizar entre si os efeitos individuais (WEHNER, 2010, p. 18; SCARTASCINI; STEIN, 2009, p. 5). Com tais ressalvas, o uso de médias de indicadores dessa natureza como recurso analítico é observado, com os cuidados acima referidos, na literatura sobre os presidencialismos (SHUGART; CAREY, 1992, p. 148-151) e, especificamente, sobre poderes orçamentários presidenciais formais (NOBREGA JR., 2008, p. 52; CHEIBUB, 2007, p. 176-177). 36 Mesmo se considerarmos a solução provisória adotada pelos agentes envolvidos (a execução de parcelas da proposta do Executivo em duodécimos até a aprovação final do orçamento), decisão esta que tem de renovar-se a cada ano na lei de diretrizes orçamentárias (FIGUEIREDO; LIMONGI, 1999, p. 45), trata-se de movimento favorável ao Executivo, pois o que se vai executar é aquilo que foi por ele demandado na proposta orçamentária, ou seja, a sua preferência. Mutações orçamentárias e comportamentos políticos na democracia brasileira 125 necessária para a decisão orçamentária; no entanto, a capacidade de influência do Parlamento no exercício desse poder de veto foi fortemente erodida. Já no controle positivo da agenda, fica claro que o Legislativo perdeu capacidade: ele não pode mais suprir o eventual silêncio de iniciativa na apresentação da proposta orçamentária com uma iniciativa de sua escolha – deve ater-se a um conjunto de valores já existente (o orçamento em vigor).37 Já o Executivo ganhou, por um lado, poder de agenda positivo na medida em que o seu “poder de decreto” ganhou em extensão (o Executivo pode abrir unilateralmente créditos orçamentários não mais apenas em casos de “guerra, calamidade pública ou comoção interna”, mas em qualquer situação de “urgência, relevância e imprevisibilidade”, o que amplia bastante a latitude de interpretação do poder de decreto); por outro, deixou de existir a autorização formal de execução de despesas a descoberto dos créditos orçamentários em determinadas situações, o que reduz as suas possibilidades de decisão unilateral sobre o gasto. Quanto ao tempo disponível para a deliberação legislativa, dois fatores influenciam em sentidos opostos. De um lado, a tramitação unicameral em 1988 faz com que o tempo que a comissão mista e o Plenário do Congresso tenham para o exame da matéria seja, em tese, o dobro daquele de que, na situação anterior, a comissão e o Plenário de cada Casa dispunham (uma vez que seria preciso tramitar por comissão e Plenário no Senado e na Câmara, sequencialmente, a mesma proposição que agora somente precisa passar por uma comissão mista e uma sessão plenária conjunta do Congresso). Por outro lado, o prazo de exame pelo Congresso foi diminuído de sete meses e meio para quatro meses, o que significa uma redução praticamente à metade. Desta forma, não há como apontar um sentido final resultante em relação ao efeito combinado das duas mudanças.38 Em outro quesito, a comissão bicameral em vigor atualmente para o exame do orçamento tem competências especializadas exatamente na matéria de 37 Na realidade, há relatos de que o poder de iniciativa do Congresso em 1946 era ainda maior do que o simples suprimento de omissões, envolvendo a completa reformulação do projeto do Executivo antes mesmo de iniciar-se o processo de emendamento (BRASIL. TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO, 1954, p. 170-171; SARETTA, 1995, p. 119; CAMARGO et al., 1986, p. 303-304). 38 Sendo válido, no entanto, lembrar que o Congresso de 1988 opera em um contexto histórico incomparavelmente mais bem-dotado de recursos tecnológicos e de informação, o que milita em favor do fortalecimento da posição do Legislativo. 126 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO orçamento e política fiscal, enquanto as comissões de cada uma das Casas39 que examinavam a proposta no regime anterior tinham um vasto leque de outras atribuições relativas a economia, comércio exterior, sistema financeiro e temas correlatos. Dentro da visão informacional do Parlamento, a uma maior especialização da jurisdição de uma comissão devem corresponder maiores capacidades para tratamento da informação e redução das incertezas associadas à política pública correspondente (KREHBIEL, 1992, p. 68), o que sugere que foram reduzidas as limitações informacionais com que se defronta o Legislativo, fortalecendo sua posição na interação estudada. Em termos comparados, a realidade brasileira atual é considerada como tendo elevados poderes de agenda orçamentários presidenciais quando comparados com outros países latino-americanos (PNUD, 2004; SANTISO, 2004). Quando comparamos os poderes presidenciais nos dois períodos constitucionais brasileiros com um survey de 30 países membros da OCDE, englobando tanto regimes parlamentaristas quanto presidencialistas (WEHNER, 2010),40 temos que o Brasil de 1988 posiciona-se entre os países com mais poderes presidenciais de agenda orçamentária do mundo, e o primeiro entre os presidencialistas, à exceção da Coréia do Sul; por outra parte, o presidente no Brasil de 1946-1964 localizava-se no extremo inferior da comparação, somente superando os poderes dos presidentes húngaro e norte-americano de 2003.41Assim, é plausível a impressão de que a diferença encontrada na comparação direta entre as duas Constituições brasileiras não é apenas de natureza relativa: a divergência é grande também em termos absolutos, avaliados pela projeção dos respectivos poderes sobre um conjunto significativo de países contemporâneos. A existência formal dos poderes, porém, é apenas um dos aspectos pelos quais o poder de agenda deve ser examinado, uma vez que é condição necessária, mas não suficiente, para que ele seja exercido. Assim, é preciso tentar identificar nos registros históricos a ocorrência concreta do exercício dos maiores poderes orçamentários facultados ao Executivo pela nova ordem constitucional. 39 A Comissão de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados até 1955, e especialmente a Comissão de Finanças do Senado Federal durante todo o período. 40 As adaptações metodológicas para plena compatibilidade das duas escalas e uma comparação desagregada por fatores e indicadores específicos consta em Bittencourt (2016, p. 294-310; 2017a, p. 51-67). 41 Os valores e gráficos correspondentes constam em Bittencourt (2016, p. 125-127; 2017a, p. 39-40). Mutações orçamentárias e comportamentos políticos na democracia brasileira 127 O orçamento na prática: presidente e Congresso Nacional na determinação efetiva dos grandes números do orçamento Esta seção traz estudo quantitativo do conteúdo do orçamento federal nos períodos democráticos entre 1947 e 1963 e entre 1996 e 201342 ao longo de suas fases a cada exercício (proposta, deliberação orçamentária, modificações no correr do exercício e execução final), enfatizando as diferenças entre os valores decorrentes das decisões de Executivo e Legislativo ao longo dessas fases de vida do orçamento. O que se pretende é explicitar as decisões de cada poder na definição do orçamento. As diferentes fases do orçamento deixam isso claro, pois cada fase é determinada por um ator: a apresentação da proposta, a alteração da proposta e a execução do que foi aprovado. Apresentam-se tanto métricas voltadas à comparação de valores totais quanto aquelas relativas à distribuição interna dos números orçamentários, em qualquer caso abrangendo a visão restrita de deliberação sobre a despesa autorizada (examinando as propostas do Executivo e a lei orçamentária aprovada e suas modificações) e a visão mais ampla da realização efetiva43 dessa despesa (discutindo os valores efetivamente aplicados). Comparam-se quocientes de valores globais de receita e despesa em cada etapa e, para tratar a distribuição interna, utiliza-se a generalização do conceito de “distância orçamentária” (TSEBELIS; CHANG, 2004, p. 454). Esta métrica representa o grau em que dois orçamentos 42 As razões metodológicas para a definição desse marco temporal para os dois períodos (excluindo alguns anos como 1946, 1964, 1988-1995 e 2014-2016) estão apresentadas em Bittencourt (2016, p. 311-314; 2017b, p. 30-36). Para o pós-1988, trata-se basicamente das distorções que a hiperinflação causava na própria possibilidade de interpretação de dados monetários antes de 1994, bem como da presença, a partir de 2014, de novos textos legais que alegavam uma suposta “impositividade” da parcela do orçamento relativa a emendas parlamentares, o que significa uma mudança substantiva – ao menos do ponto de vista formal – das regras de intervenção dos Poderes sobre a decisão orçamentária. 43 Para medir a execução efetiva do orçamento, qualquer estudo baseado em registros contábeis somente pode alcançar aquelas parcelas de despesa que são contabilizadas formalmente como compromisso estatal a esse título, “despesa liquidada”, não sendo possível individualizar estágios posteriores do processamento do gasto como a comprovação final da entrega dos bens e serviços, o fluxo de caixa associado ao pagamento e a fiscalização da regularidade formal e material do gasto. Nos termos de modelos mais gerais de um “processo orçamentário” (BITTENCOURT, 2015, p. 8-9; MARTNER, 1972, p. 348-369), está-se falando das fases de “elaboração da proposta pelo Executivo” e “apreciação, alteração e aprovação pelo Legislativo”, e, parcialmente, de “execução do orçamento aprovado”, não sendo abrangida a fase de “controle e responsabilização pela execução”. Dentro da fase de execução, no modelo de Tommasi (2007, p. 280-288), abrangem-se os estágios de "authorization and apportionment of appropriations to spending units" e "commitment", não sendo possível captar com precisão os três estágios seguintes de "acquisition and verification ([..]liabilities are recognized), issuance of a payment order" e "payment". 128 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO diferem entre si em termos da sua distribuição proporcional entre categorias de uma mesma dimensão.44 Portanto, a distância orçamentária independe do valor absoluto dos orçamentos e não tem interpretação própria para o seu valor absoluto.45 As dimensões utilizadas para a distribuição dos orçamentos são: i) na despesa, a classificação institucional (distribuição do orçamento por Ministérios e órgãos) e a natureza da despesa (representando as características gerais do objeto do gasto, como gastos de pessoal ou gastos com obras e equipamentos); e ii) na receita, a natureza ou a origem (se provém de impostos, de venda de patrimônio, etc.).46 A discussão completa dos parâmetros de mensuração e sua interpretação, bem como das fontes dos dados, é apresentada em Bittencourt (2016, p. 127-138; 311-345; 2017b, p. 19-37; 39-228). Dados os elevados níveis de inflação em determinados anos de cada período e a defasagem no tempo entre a apresentação da proposta orçamentária, a sua deliberação e a sua execução, um componente não desprezível das alterações entre cada uma dessas configurações orçamentárias será a simples desvalorização da moeda, que conduz a elevações nominais tanto das receitas/despesas projetadas quanto da sua efetiva realização (GUARDIA, 1992; LIMA JR., 1977). Os indicadores de “distância orçamentária” baseiam-se nas proporções dos itens orçamentários relativas ao total do mesmo orçamento, portanto, não são diretamente afetados por uma eventual desvalorização nominal da moeda; porém, as alocações globais são obviamente afetadas por ela: uma elevação da receita prevista em função de simples desvalorização nominal da moeda no período intercorrente não é uma decisão equivalente a uma elevação de valores de receita previstos em função de cálculos diferentes sobre a capacidade arrecadatória. Neste sentido, a opção do estudo é a de apresentar os indicadores (exceto as dis44 Um exemplo facilita a compreensão: se o orçamento de um governo com apenas dois ministérios chega ao Parlamento autorizando metade da despesa total para cada um, e é emendado para que um deles passe a ter 10% da despesa e o outro 90%, houve uma mudança na distribuição interna desse orçamento no que se refere à dimensão “ministérios” (e, intuitivamente, essa mudança foi maior do que se um ministério saísse do legislativo com 49% e o outro com 51%). A “distância orçamentária” é uma medida numérica do tamanho dessa diferença (matematicamente, a distância orçamentária representa a distância entre os pontos que representam a distribuição de cada orçamento dentro de um espaço bidimensional euclidiano, no qual as coordenadas são a proporção de cada valor categórico da dimensão escolhida sobre o total dos dois orçamentos comparados). 45 O valor numérico de uma “distância orçamentária” entre dois orçamentos, portanto, não tem sentido em si mesmo; somente passa a ter sentido quando é usado comparativamente, ou seja, quando se compara um ou mais pares de distâncias (em outras palavras, o conceito é capaz apenas de medir se um certo par de orçamentos é mais distinto entre si do que outro par). 46 Para tratamento das mudanças de classificação ao longo do tempo e demonstração de sua adequação para os fins comparativos, cf. Bittencourt (2016, p. 132-134; 2017b, p. 23-25). Mutações orçamentárias e comportamentos políticos na democracia brasileira 129 tâncias orçamentárias, como já discutido) não apenas em valores nominais, mas também em valores deflacionados, usando o único índice de preços disponível consistentemente para todo o período (o IGP-DI mensal da FGV).47 As tabelas 2 e 3 abaixo permitem visualizar a síntese dos resultados, resumindo o quadro geral de indicadores por meio da média e do desvio-padrão dessas métricas em cada um dos dois períodos estudados. Todos os indicadores da tabela 2 estão definidos em valores percentuais, apresentados sob os enfoques de comparação entre os valores nominais e entre os valores deflacionados,48 enquanto os indicadores de distância orçamentária (tabela 3) não são afetados pelo deflacionamento e, portanto, têm tão somente um valor por cada período. Tabela 2 Síntese dos indicadores orçamentários agregados Em valores deflacionados a janeiro de cada ano Em valores nominais 1947-1963 1996-2013 1947-1963 1996-2013 Indicador Média Desviopadrão Média Desviopadrão Média Desviopadrão Média Desviopadrão Despesa total na LOA / Despesa total no PLOA (%) 114,62 8,49 101,76 1,49 96,79 9,18 98,04 3,00 Despesa total executada / Despesa total autorizada (%) 100,80 12,72 85,99 5,45 93,83 9,47 83,11 5,22 Receita total estimada na LOA / Receita total estimada no PLOA (%) 111,67 8,75 101,67 1,62 94,42 10,67 97,95 3,26 47 Série “IGP-DI - geral - índice (ago. 1994 = 100) – Mensal”, disponível em: <http://ipeadata.gov.br>. Para discussão da metodologia de aplicação dos valores a cada tipo de dado orçamentário, cf. Bittencourt (2006, p. 136-139; 2017-b, p. 26-29). 48 Alguns indicadores têm o mesmo valor nos dois casos, nas situações em que os totais originais que compõem o quociente têm o mesmo fator de deflacionamento (ou seja, quando são grandezas monetárias que são medidas no mesmo período de tempo). 130 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Em valores deflacionados a janeiro de cada ano Em valores nominais 1947-1963 1996-2013 1947-1963 1996-2013 Indicador Média Desviopadrão Média Desviopadrão Média Desviopadrão Média Desviopadrão Receita total arrecadada / Receita total estimada na LOA (%) 110,87 13,86 98,86 10,07 101,93 12,11 95,24 10,40 Créditos adicionais votados pelo Legislativo / Despesa total na LOA (%) 19,37 15,47 15,29 15,42 17,59 13,60 14,80 15,13 Créditos extraordinários abertos / Despesa total na LOA (%) 0,32 0,84 3,23 6,19 0,30 0,77 3,16 6,18 Despesas executadas sem crédito ou além do crédito / Despesa total executada (%) 8,72 5,04 n/a n/a 8,72 5,04 n/a n/a Fonte: Bittencourt (2016, p. 141; 2017b, p. 38-39). Tabela 3 Síntese dos indicadores de distância orçamentária Desvio-padrão Média Desvio-padrão 1996-2013 Média 1947-1963 Distância orçamentária entre o PLOA e a LOA, relativa à classificação institucional (por órgão) 0,010327 0,004676 0,002156 0,001018 Distância orçamentária entre o PLOA e a LOA, relativa à classificação por natureza 0,024801 0,007050 0,006860 0,003614 Indicador Mutações orçamentárias e comportamentos políticos na democracia brasileira Desvio-padrão Média Desvio-padrão 1996-2013 Média 1947-1963 131 Distância orçamentária entre a despesa constante da LOA e a despesa total autorizada, relativa à classificação institucional (por órgão) 0,014670 0,011350 0,007691 0,006814 Distância orçamentária entre a despesa constante da LOA e a despesa total autorizada, relativa à classificação por natureza 0,027748 0,017939 0,027727 0,029206 Distância orçamentária entre a despesa total autorizada e a execução orçamentária, relativa à classificação institucional (por órgão) 0,010547 0,007824 0,007163 0,003746 Distância orçamentária entre a despesa total autorizada e a execução orçamentária, relativa à classificação por natureza 0,019483 0,011886 0,024083 0,009474 Distância orçamentária entre a receita estimada pelo Executivo no PLOA e aquela estimada pelo Congresso na LOA, relativa à classificação por natureza 0,010237 0,008578 0,004133 0,003547 Distância orçamentária entre a receita estimada pelo Congresso na LOA e aquela efetivamente arrecadada pelo Executivo, relativa à classificação por natureza 0,017044 0,010868 0,026108 0,016811 Indicador Fonte: Bittencourt (2016, p. 141; 2017b, p. 39). Em primeiro lugar, vemos que o Congresso modifica a proposta do Executivo quando a recebe, em muito menor proporção no período pós-1988 que no período anterior, mas essa diferença deve ser relativizada quando se desconta o efeito inflacionário. Em termos nominais, a variação entre a despesa no PLOA e a despesa final da lei aprovada é significativamente superior no primeiro período, assim como a receita. No entanto, quando se tomam os valores corrigidos, essa diferença nas médias desaparece: as médias do primeiro período chegam a ser inferiores, na receita e na despesa, às do período atual, com desvios-padrão bastante elevados para sugerir qualquer diferença. Isso fica mais claro na visualização da figura 1 abaixo. 132 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Figura 1 Modificações feitas ao projeto de lei orçamentária Despesa total na LOA / Despesa total no PLOA Valores nominais Despesa total na LOA / Despesa total no PLOA Valores deflacionados a janeiro 160% 120% 140% 100% 120% 80% 100% 60% 80% 1947/63 1996/2013 60% 40% 40% 1947/63 1996/20... 20% 20% 0% 0% Receita estimada – LOA/ Receita total estimada – PLOA Valores nominais Receita estimada – LOA/ Receita total estimada – PLOA Valores deflacionados a janeiro 140% 120% 120% 100% 100% 80% 80% 60% 60% 40% 1947/63 1996/2013 40% 20% 20% 0% 0% 1947/63 1996/2013 Fonte: Bittencourt (2016, p. 143). Quanto às modificações49 do orçamento ao longo do exercício, a proporção em que ele é modificado é, em média, pequena nos dois períodos, mas com um elevado desvio-padrão que descaracteriza qualquer tendência. Da figura 2 abaixo, vê-se que, na maioria dos dois períodos, Executivo e Legislativo puseram-se de acordo para aprovar mudanças relativamente moderadas (inferiores a 20%) do orçamento original – em alguns poucos exercícios, porém, houve valores outliers (como em 1956, 1997 e 1998, quando os aumentos líquidos de despesa autorizada excederam a metade do orçamento original). Dentro desse comportamento heterogêneo (uma maioria de vezes com modificação moderada, com alguns poucos momentos de “pico”), não se pode afirmar que os Poderes dos dois períodos tiveram resultado decisório sistematicamente distinto – portanto, tampouco se pode afirmar que o diferencial de criação de autorização de despesa que não se enxerga nas leis orçamentárias sob a Constituição de 1946 aparece quando da deliberação legislativa dos créditos adicionais. 49 As modificações representam o valor líquido dos créditos adicionais (ou seja, se ocorreu eventual cancelamento de uma despesa para dar lugar ao aumento de outra, esse cancelamento está sendo descontado do valor total da modificação). Portanto, um valor positivo significa, nesta análise, um aumento líquido no valor da despesa. Mutações orçamentárias e comportamentos políticos na democracia brasileira 133 Figura 2 Alterações ao orçamento (créditos adicionais) Créditos adicionais votados / Despesa total na LOA Valores nominais Créditos adicionais votados / Despesa total na LOA Valores deflacionados a janeiro 80% 80% 70% 70% 60% 60% 50% 50% 40% 40% 1947/63 1996/2013 1947/63 1996/2013 30% 30% 20% 20% 10% 10% 0% 0% Fonte: Bittencourt (2016, p. 145). Passamos à análise da despesa efetivamente executada e da receita efetivamente arrecadada. Em relação ao total da receita, vemos que em média não há super ou subavaliação da receita no orçamento (especialmente quando se deflaciona a receita arrecadada, pois seu valor real é praticamente o mesmo do total estimado no período 1947-1963 e 95,24% no período atual). A figura 3 mostra uma aparente volatilidade maior do período 1947-1963, com erros de previsão (para mais e para menos) um pouco maiores que os do período 1996-2013, com alguns “picos” no início e no fim do período. O que não se vê é um diferencial de sub ou sobre-estimação da receita em relação aos dois períodos, ou seja, não se observa do gráfico e da série de dados um viés indicando que em 1946 a arrecadação sistematicamente superava uma receita subavaliada em grau maior do que em 1988, ou o viés contrário (uma arrecadação frustrada em proporção sempre superior que em 1988). Assim, pelo lado da receita não se vislumbra no orçamento de qualquer dos dois períodos nenhuma tendência sistemática a estimativas de receita irrealistas (para cima ou para baixo), nem qualquer viés de diferença significativa e sistemática entre os dois períodos (embora o primeiro período aparente uma menor precisão das estimativas). 134 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Figura 3 Receita prevista e arrecadada Receita total arrecadada / Receita total estimada – LOA Valores deflacionados a janeiro Receita total arrecadada / Receita total estimada – LOA Valores nominais 160% 160% 140% 140% 120% 120% 100% 100% 80% 80% 1947/63 1996/2013 60% 60% 40% 40% 20% 1947/63 1996/2... 20% 0% 0% Fonte: Bittencourt (2016, p. 146). Passando à despesa, verifica-se aí a primeira diferença nítida entre o comportamento fiscal nos dois períodos: a despesa executada (portanto, transformada em gasto efetivo pelo Executivo)50 em relação àquela autorizada formalmente pelo Congresso é sistematicamente maior no período da Constituição de 1946 que em 1988 (chegando sua média, em valores nominais, a ser superior a 100% em vários exercícios entre 1947 e 1963, o que indica a corriqueira realização de despesas não contempladas na lei orçamentária nem em créditos adicionais, como se verá logo adiante). As médias do primeiro período são muito superiores (quase 100% em termos nominais e 94% quando deflacionados, contra não mais que 85% do segundo período nas duas métricas), e o desvio-padrão, mais alto. Em suma, o Executivo de 1946 gasta parcela muito maior do que lhe é autorizado no orçamento, próxima ou superior a 100% (chegando a situações extremas como quase 140% de despesas em relação ao valor autorizado em 1961), enquanto o Executivo de 1988 pratica uma clara contenção fiscal, mantendo-se de forma sistemática entre 80% e 90% do valor autorizado. 50 Dizemos “pelo Executivo” porque é a esse agente que cabe ordenar a quase totalidade da despesa federal, sendo residual a parcela que Legislativo, Judiciário, Tribunal de Contas ou Ministério Público podem gastar de forma autônoma. Mutações orçamentárias e comportamentos políticos na democracia brasileira 135 Figura 4 Diferenças entre a despesa autorizada e a realizada Receita total executada / Despesa total autorizada Valores nominais Despesa total executada / Despesa total autorizada Valores deflacionados a janeiro 160% 160% 140% 140% 120% 120% 100% 100% 80% 80% 60% 60% 40% 20% 0% 1947/63 1996/2013 40% 1947/63 1996/2013 20% 0% Fonte: Bittencourt (2016, p. 147). A despesa executada pelo governo sob a direção do chefe do Executivo, acima examinada, inclui tanto aquela autorizada pelo Legislativo quanto aquela que é decidida de forma unilateral pelo próprio Executivo, sem interferência prévia do Legislativo. Esta parcela é composta dos créditos extraordinários51 e, para o período 1947-1963, também das chamadas “despesas sem crédito ou além dos créditos” permitidas pela legislação então vigente.52 Vemos que, em conjunto, os dois fenômenos são relevantes. Na simples média, os créditos extraordinários (embora praticamente desprezíveis em 1947-1963) representam 3% da despesa da LOA em 1996-2013 (mas com um elevado desvio-padrão, que denota alta volatilidade); já as despesas sem crédito alcançam a alta média de 8,72% da despesa executada na República de 46, com desvio-padrão menor, de 5%. A figura 5, alinhando essa execução de ambos os períodos com a mesma escala gráfica no eixo vertical, mostra mais claramente o quadro das despesas unilaterais. 51 Os créditos extraordinários sob a Constituição de 1988 são, do ponto de vista formal, suscetíveis de revisão a posteriori pelo Legislativo. No entanto, pela sua eficácia imediata permitindo realização igualmente imediata das despesas por ele autorizadas (imediatez essa que é, aliás, a própria razão de ser do instituto, destinado a despesas urgentes e imprevisíveis), representam na prática um instrumento de criação pelo Executivo de fatos consumados (não apenas o status quo legal, mas também uma efetiva assunção de compromissos e transferências de fundos) antes mesmo da possibilidade material de reação do Legislativo. Além disso, extensa literatura que relata o abuso desse mecanismo em volumes e condições inteiramente desvinculados dos pressupostos constitucionais de imprevisibilidade e urgência da despesa, exatamente para viabilizar a adoção unilateral da decisão de despesas por parte do Executivo (ROCHA; MARCELINO; SANTANA, 2013; MARSHALL, 2008; GOMES, 2008). Por essas razões, incluímos integralmente o montante dos créditos extraordinários nesta apresentação das decisões unilaterais de despesas por parte do Executivo. 52 Para detalhamento dessa figura jurídica, que permitia ao Executivo realizar despesas a descoberto de autorização orçamentária em praticamente qualquer situação, cf. Bittencourt (2016, p. 153-156). 136 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO O valor elevado da média dos créditos extraordinários está muito influenciado por um outlier em 1998 (27,16%), ainda que também tenham ocorrido montantes próximos a 5% da despesa da LOA em 2001, 2007 e 2012. Eliminando esse valor, a média cai para 1,82% com um bem-comportado desvio-padrão de 1,68%. Já a ocorrência de despesas sem crédito ou além do crédito no primeiro período democrático apresenta com regularidade valores entre 5% e 15%, com muito raras exceções inferiores (1948 e 1958), indicando uma prática habitual e não desprezível desse tipo de despesa. Acresce a isso o fato de que, por variadas razões,53 os demonstrativos não captam a totalidade desse padrão de despesa. Figura 5 Despesas decididas unilateralmente pelo Executivo (crédito extraordinário e despesa sem crédito/além do crédito) Créditos extraordinários abertos / Despesa total na LOA Valores deflacionados a janeiro 30% Despesas executadas sem crédito ou além do crédito / Despesa total executada Valores nominais 30% 25% 25% 20% 20% 1947/63 1996/2013 15% 15% 10% 10% 5% 5% 1947/63 0% 0% Fonte: Bittencourt (2016, p. 156).54 O resultado bastante moderado dos créditos extraordinários no período atual em relação à despesa orçamentária, no total agregado, choca-se aparentemente com a percepção encontrada na literatura de que tal prática representaria, mesmo no período atual, um verdadeiro “orçamento paralelo” a distorcer toda a arquitetura 53 Detalhadas em Bittencourt (2016, p. 148-151). 54 É conveniente relembrar que a comparação da esquerda, entre créditos extraordinários e despesa total na LOA, envolve grandezas monetárias em tempos diferentes (a primeira, aberta ao longo de todo o exercício, e a segunda, fixada para janeiro, no seu início), portanto, é necessário deflacionar. A comparação da direita (despesas sem crédito versus despesa executada) refere-se a dois fluxos que se realizam durante o ano, sendo possível, portanto, comparar-lhes em valores nominais, pois transcorrem durante o mesmo período de tempo. Mutações orçamentárias e comportamentos políticos na democracia brasileira 137 orçamentária, (ROCHA; MARCELINO; SANTANA, 2013; MARSHALL, 2008; GOMES, 2008). Porém, desagregando-se tais valores por categorias de gasto, verifica-se que esses créditos tendem a representar parcela minoritária do orçamento, porém de grande relevância para a negociação política com os parlamentares individuais – portanto, o baixo volume agregado não pode ser tomado isoladamente como demonstração da irrelevância da criação unilateral de despesa por parte do Executivo no jogo do período atual. Quanto à unilateralidade da criação de despesa no primeiro período democrático, a sua relevância não passou despercebida, sendo o seu impacto denunciado por várias manifestações de observadores das finanças públicas, na época, como um grave problema político e financeiro (BRASIL. TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO, 1957a, p. 127-128; 1958, p. 63-64; 1957, p. 12; 1962a, p. 15; 1961, p. 40; BRASIL. CONTADORIA-GERAL DA REPÚBLICA, 1964, p. 31-32). Dos totais fiscais agregados, passa-se então à análise do resultado das “distâncias orçamentárias”, as modificações nas proporções em que o orçamento é dividido. Quanto às distâncias entre a proposta do Executivo e a lei aprovada, as modificações introduzidas pelo Congresso são muito superiores no primeiro período, tanto na receita quanto na despesa. Esse padrão fica claro na visualização dos gráficos respectivos na figura 6 abaixo. Figura 6 Distâncias orçamentárias entre PLOA e LOA Distância orçamentária entre PLOA e LOA Classificação institucional (por órgão) 0,0250 1947/63 1996/2013 0,0200 0,0150 0,0100 0,0050 0,0000 138 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Distância orçamentária entre PLOA e LOA Classificação por natureza 0,0400 0,0350 0,0300 0,0250 0,0200 0,0150 0,0100 1947/63 1996/2013 0,0050 0,0000 Distância orçamentária entre a receita estimada no PLOA e estimada na LOA Classificação por natureza da receita 0,0350 1947/63 1996/2013 0,0300 0,0250 0,0200 0,0150 0,0100 0,0050 0,0000 Fonte: Bittencourt (2016, p. 156). Tais valores indicam que, sistematicamente, o Congresso modificou mais a peça orçamentária em 1946 que em 1988 – em que pese não aumentar o montante total de receita e despesa nessas proporções, como vimos acima. As mudanças pelo Legislativo alteram mais a composição da despesa dentro do orçamento, ou as proporções entre os seus diferentes componentes, e alteram em maior extensão a composição da despesa por natureza/verba (pessoal, material, dívida, etc.) do que a composição por órgão. A diferença em relação à receita é mais Mutações orçamentárias e comportamentos políticos na democracia brasileira 139 volátil.55 Está-se diante de um aparente paradoxo: não há diferencial significativo, entre os períodos, da intervenção legislativa no volume da receita ou da despesa (quando considerados os valores reais ou deflacionados); todavia, a modificação no que respeita à composição desse volume é significativamente maior na democracia de 1946. Na comparação da despesa entre a lei orçamentária e a despesa total autorizada (orçamento mais créditos adicionais) e a execução orçamentária, existe aparentemente uma similaridade nas curvas da figura 7, especialmente se desconsiderados os outliers relativos a 1997 (por natureza) e 1956 (por órgão).56 A média da modificação por órgão é maior em 1946, com desvio-padrão alto; mas, se retirarmos esse ano excepcional (1956), ficaremos com uma média de 0,013 e um desvio-padrão de 0,008 para esse período, indicando uma tendência sistemática de distâncias superiores (embora não muito maiores). No gráfico da distância por natureza, as curvas se confundem em grande medida, com proximidade de médias (e, se excluído o outlier de 1997, com média de 0,022 e desvio-padrão de 0,018 para 1996-2013, fica mais forte uma tendência também um pouco menor no segundo período). Portanto, as diferenças entre os dois períodos na fase da aprovação da lei orçamentária (maiores mudanças na composição do orçamento em 1946) são sucedidas também por diferenças entre a lei aprovada e o quadro final de autorização orçamentária por força dos créditos adicionais (também maiores mudanças em 1946, embora a diferença entre os períodos seja menor nesta etapa). 55 Na despesa, ocorre um outlier (exercício de 1957) que decorre de simples adaptação da LOA a mudanças de legislação tributária ocorridas depois do envio da proposta orçamentária ao Congresso (BITTENCOURT, 2016, p. 317-318; 2017b, p. 37). 56 Explicados por fatores exógenos de política econômica (BITTENCOURT, 2016, p. 317-318; 2017b, p. 37-38). 140 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Figura 7 Distância orçamentária entre LOA e despesa total autorizada (LOA mais créditos adicionais) Distância orçamentária entre LOA e total autorizado Classificação institucional (por órgão) 0,0500 0,0450 1947/63 1996/2013 0,0400 0,0350 0,0300 0,0250 0,0200 0,0150 0,0100 0,0050 0,0000 Distância orçamentária entre LOA e total autorizado Classificação por natureza 0,1400 1947/63 1996/2013 0,1200 0,1000 0,0800 0,0600 0,0400 0,0200 0,0000 Fonte: Bittencourt (2016, p. 158). E o que ocorreria quando da execução, pelo governo, dessa despesa autorizada? Conforme a figura 8, embora exista maior diferença entre autorização e execução em favor do primeiro período no que se refere à execução por órgão (concentrada nos anos finais), a distância orçamentária por natureza de despesa é claramente maior em 1996-2013, indicando que o grau em que o Executivo modifica a intenção legislativa quando da sua execução é maior no período atual. Se combinada essa informação com a constatação de que o grau de execução no Mutações orçamentárias e comportamentos políticos na democracia brasileira 141 período 1996-2013 é significativamente menor (figura 4 acima), vemos que a ação do Executivo difere na medida em que realiza no pós-1988 uma contenção de despesa57 bem maior do que aquela realizada pelo Executivo de 1946. Deve-se notar que o valor da despesa executada em 1946 utilizado para esse cálculo de distâncias inclui as despesas sem crédito ou além do crédito, o que revela que mesmo as mudanças introduzidas de moto próprio pelo presidente não são capazes de tornar as mudanças na execução maiores nessa etapa. Figura 8 Distâncias orçamentárias entre despesa autorizada e executada Distância orçamentária entre despesa autorizada e executada Classificação institucional (por órgão) 0,0600 1947/63 1996/2013 0,0500 0,0400 0,0300 0,0200 0,0100 0,0000 Distância orçamentária entre despesa autorizada e executada Classificação por natureza 0,0600 1947/63 1996/2013 0,0500 0,0400 0,0300 0,0200 0,0100 0,0000 Fonte: Bittencourt (2016, p. 160). 57 Contenção maior em algumas naturezas do que em outras, o que resulta em proporções significativamente distintas medidas pela maior distância orçamentária. 142 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Quanto às receitas, a mudança na composição da previsão feita pelo Legislativo no orçamento é inequivocamente maior no pós-1988 (mesmo se desconsiderado o já mencionado outlier de 1997), o que se verifica tanto na maior média (com desvio-padrão semelhante) quanto no formato da curva na figura 9. Esta circunstância pode ter origem na dependência quase absoluta do orçamento de 1988 em relação às receitas nele constantes, em decorrência da supressão do financiamento por emissão monetária e da adoção, no âmbito da receita, de práticas próximas à universalidade orçamentária. Isso faz com que a possibilidade de ação financeira governamental dependa crucialmente do comportamento das receitas orçadas, que passam a refletir quase todos os fenômenos econômicos e sua variabilidade. Figura 9 Distância orçamentária entre receita estimada na LOA e receita efetivamente arrecadada Distância orçamentária entre a receita estimada na LOA e a arrecadada Classificação por natureza da receita 0,0800 1947/63 1996/2013 0,0700 0,0600 0,0500 0,0400 0,0300 0,0200 0,0100 0,0000 Fonte: Bittencourt (2016, p. 162). O fenômeno, para o período de 1946, de uma despesa que não cresce em termos reais entre o PLOA e a LOA, mas que é modificada fortemente pelo Legislativo em sua composição, obriga a uma análise mais fina dos dados. Evidentemente, não há como ecoar banalidades de um Congresso “perdulário” baseado apenas Mutações orçamentárias e comportamentos políticos na democracia brasileira 143 em algumas platitudes sobre o aumento nominal do gasto.58 Por outro lado, os poucos relatos que localizamos sobre o processo interno legislativo são realmente no sentido de que a iniciativa dos parlamentares individuais é a de apresentação massiva de emendas de despesa, com pequena ou nenhuma intervenção de contenção por quaisquer atores (BRASIL. CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1953, p. 4; 1959, p. 2409-2413). Como conciliar esse quadro de suposta demanda por aumento indiscriminado da despesa com os números levantados sobre um aumento nominal e real bastante controlado? Uma possibilidade, compatível com as hipóteses mais gerais da literatura e abrigada nos relatos contemporâneos sobre as finanças públicas do período, contempla uma abordagem estratégica de ambos os poderes: subdimensionar despesas obrigatórias por lei (bem como as previsões de aumento dessas despesas ao longo do exercício e despesas que, não executadas, ensejariam algum tipo de situação de emergência) de forma que o montante total apresentado na proposta (e na lei aprovada) pudesse contemplar mais autorizações para despesas de outro tipo,59 na expectativa de que no decorrer do exercício as insuficiências da cobertura de despesas obrigatórias fossem sanadas mediante créditos adicionais60 ou mesmo por meio da realização de despesas sem crédito (BRASIL. TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO, 1962a, p. 128-129; 1960, p. 43-44), tudo isso em grandes proporções relativamente ao total da despesa (FURTADO, 1989). Não se trata de idiossincrasia: ao contrário, é uma estratégia clássica na teoria orçamentária, sempre suscetível de frutificar em processos incrementalistas de elaboração orçamentária (FÖLSCHER, 2007). Participam do jogo tanto o Executivo, que já formula a proposta com esse viés (BRASIL. CONTADORIA-GERAL DA REPÚBLICA, 1955, p. 25), quanto o Legislativo, que não o corrige. Aliás, o Legislativo tenderia a agravá-lo, elevando as despesas não obrigatórias de seu interesse e até mesmo reduzindo mais as que já vinham subavaliadas (BRASIL. TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO, 1964, p. 39-40). Os mencionados relatos 58 Baaklini (1993), por exemplo, crê demonstrar que o Congresso é a fonte do desequilíbrio fiscal pelo simples fato de que, entre 1960 e 1964, apresentou milhares de emendas ao orçamento a cada ano, aprovou outras tantas, elevou o valor nominal da autorização da despesa e viu o valor nominal da despesa e do deficit elevar-se ainda mais na fase de execução. 59 Um exemplo concreto é dado pelo exame do TCU à proposta de orçamento de 1961, indicando gritante subavaliação das despesas de pessoal, inativos e juros da dívida (BRASIL. TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO, 1962a, p. 11). 60 Para os quais não havia a obrigatoriedade legal de indicar fontes específicas de receita (BRASIL. TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO, 1962, p. 23; 1957a, p. 111–114; 1949, p. 85-88). 144 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO sugerem, ainda, a existência de objetos “favoritos”, como auxílios e subvenções, obras e, a título de “dispositivos constitucionais”, os fundos de aplicação no desenvolvimento regional (Nordeste e Amazônia) previstos na Constituição (BRASIL. TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO, 1961a, p. 132-133; 1962a, p. 126), contrapostos àquelas categorias como gastos de pessoal e com o serviço da dívida nos quais a rigidez contratual ou legal restringe as deliberações discricionárias da despesa pública (e que, por isso mesmo, despertariam menos interesse político). Esse cenário permite um entendimento preliminar plausível para o aparente paradoxo: o crescimento moderado dos orçamentos do período de 1946 (especialmente em termos reais), associado a uma intervenção legislativa intensa, decorreria do fato de os aumentos nominais da despesa não serem lineares em todas as categorias de despesa, mas sim concentrados todos em algumas de maior interesse tanto legislativo quanto presidencial, e que não estariam abrigadas pela rigidez de compromissos obrigatórios. Esse fenômeno ocorreria tanto na relação entre a proposta apresentada pelo Executivo e a lei aprovada (na qual sobressai o interesse dos parlamentares) quanto na relação entre a lei de orçamento e os créditos adicionais (na qual se pode verificar se a suposta subavaliação original da proposta do Executivo de fato é “corrigida”).61 Para verificação preliminar dessa interpretação, realizamos o exercício de apuração da diferença entre os percentuais de cada categoria de despesa no valor total da despesa: i) entre a proposta do Executivo (PLOA) e a lei de orçamento (LOA); ii) entre o valor do orçamento (LOA) e a despesa total autorizada (LOA mais créditos adicionais); e iii) entre a despesa total autorizada e a execução da despesa. Os resultados desse exercício constam da tabela 4 abaixo, que traz a média, por período, da variação da participação relativa de cada categoria de despesa, em cada exercício, nos três momentos comparativos definidos no parágrafo 61 Esse raciocínio guarda alguma similaridade com os achados de Lima Jr. (1977) no sentido de que: “[...] o Executivo, na expectativa de cortes nas dotações por parte do Congresso, propõe níveis elevados de dotações que, efetivamente, são reduzidas pelo Congresso para, no momento de execução, serem ligeiramente ampliadas pelo Executivo” (LIMA JR., 1977, p. 154). Naturalmente, essa convergência é apenas indicativa, uma vez que metodologia e foco do mencionado artigo são distintos. Mutações orçamentárias e comportamentos políticos na democracia brasileira 145 anterior.62 Esta primeira aproximação vai no sentido da explicação acima delineada. Comparando primeiro a LOA com a proposta recebida, no período de 1946, as categorias de despesas mais nitidamente vinculadas a despesas obrigatórias sofreram decréscimo de sua participação relativa. Entre 1947 e 1955, a categoria “Pessoal” decresceu 2,62%, e “Dívida Pública”, 0,61%; já entre 1956 e 1963, é ainda mais nítido: as verbas de “Custeio” decresceram em média 4,25%, ficando quase estável a parcela relativa à amortização de dívidas. Ao mesmo tempo, ganharam participação as categorias “interessantes” em termos políticos: entre 1947 e 1955, “Outros Serviços e Encargos” (que inclui os auxílios e subvenções) cresceu 1,17% e “Obras” aumentou 2,85%; já no período posterior, entre 1956 e 1963, cresceram as “Transferências” em 1,38%, os gastos com “Desenvolvimento Econômico e Social” (que constituem basicamente subvenção a empresas estatais) em 2,32% e “Investimentos” em 0,83%. Essas diferenças, ainda que existam, são mais modestas no período constitucional atual:63 despesas com pessoal e juros decresceram 0,23% e 0,38% apenas, enquanto os investimentos ascenderam 1,05%. Já entre a lei de orçamento e o valor final autorizado (orçamento mais créditos adicionais), o quadro é mais matizado: entre 1947 e 1955, a despesa com pessoal decaiu 1,46% de participação e a de dívida teve queda de 0,53%, contra um aumento de 2,3% em outros serviços e encargos (com uma queda de 0,89% nas obras). Entre 1956 e 1963, ocorreu o que se previa inicialmente: o “Custeio” (que inclui pessoal) retomou 3,47% de participação, a expensas basicamente de “Transferências” (menos 2,98%) e “Desenvolvimento Econômico e Social” (menos 1,13%) – embora os investimentos fossem preservados com um acréscimo de 0,64%. Para esses mesmos momentos orçamentários, a variação entre 1996 e 2013 é menos clara: dentre as categorias obrigatórias, decresceram “Pessoal” (1,01%) e “Juros” (0,89%), assumindo grande elevação a “Amortização de dívida” (2,74 %), mas também as “Inversões financeiras” (1,97%). Esta volatilidade das rubricas mostra, desde já, o alto grau de incerteza associado ao processo orçamentário: determinadas despesas de especial interesse político para os parlamentares saíam do Parlamento superestimadas, 62 Não constam do cálculo das médias aqueles exercícios para os quais não havia informações sobre um determinado momento (1948 a 1951 e 1958, para o PLOA), e todos os valores do exercício de 1997, pela existência de distorção associada a uma decisão específica de política econômica (BITTENCOURT, 2016, p. 317-318; 2017b, p. 37-38). 63 Até como reflexo da proibição constitucional de emendamento mediante redução dos valores atribuídos a pessoal, serviço da dívida e transferências constitucionais (art. 166, § 3º, II, da CF/1988). 146 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO com uma expectativa implícita de corte posterior (a qual confirmar-se-ia ou não em razão de circunstâncias do próprio embate político ao longo do exercício). Por fim, na hora de executar a despesa autorizada, fica mais clara a reversão das tentativas iniciais: no período de 1946, cresceu substancialmente a fração correspondente às despesas obrigatórias (1947-1955: 1,80% com pessoal e 0,64% com dívida; 1956-1963: 1,95% com pessoal) a expensas daquelas que foram privilegiadas nos momentos anteriores na metade inicial (1947-1955); a participação de “Outros Serviços” e “Encargos” caiu 0,61% e a de “Obras”, 0,61%; no final do período, a partir de 1956, as diminuições se concentraram em “Desenvolvimento Econômico e Social” com 0,69% e “Investimentos” com 1,98%, havendo uma ligeira ampliação do volume de “Transferências” em 0,25%. No pós-1988, a execução tornou a elevar a parcela de “Pessoal” (1,71%) e de “Outras despesas correntes”64 (3,82%), penalizando a “Participação de investimentos” (1,09%) e “Inversões financeiras” (0,35%) – ainda que os montantes da dívida assumam também uma queda significativa (juros em 1,79% e amortização em 0,96%). Tabela 4 Variação entre os momentos orçamentários na participação relativa de cada categoria na despesa total LOA/PLOA Média Autorizado/ LOA DesvioPadrão Executado/ Autorizado Média DesvioPadrão Média DesvioPadrão Período 1947-1955 64 Pessoal -2,62% 1,75% -1,46% 2,87% 1,80% 1,65% Material -0,79% 0,22% 0,45% 1,86% 0,00% 1,24% Outros Serviços e Encargos 1,17% 1,82% 2,30% 2,59% -0,61% 1,80% Obras, Equipamentos e Aquisição de Imóveis 2,85% 1,87% -0,89% 0,94% -1,70% 0,89% Eventuais 0,00% 0,00% 0,12% 0,36% -0,12% 0,35% No período atual, ainda que continue contemplando as transferências assistenciais tradicionais, essa categoria assume características muito mais rígidas quanto à exigibilidade legal, porque passa a registrar as transferências constitucionais relativas à repartição de impostos com estados e municípios e as despesas com o regime geral de previdência social, que juntos representam de longe a maior parte desse tipo de despesa. Mutações orçamentárias e comportamentos políticos na democracia brasileira LOA/PLOA Dívida Pública Autorizado/ LOA 147 Executado/ Autorizado Média DesvioPadrão Média DesvioPadrão Média DesvioPadrão -0,61% 0,59% -0,53% 0,36% 0,64% 0,25% Período 1956-1963 Custeio -4,25% 2,94% 3,47% 7,58% 1,95% 5,23% Transferências 1,38% 2,44% -2,98% 3,82% 0,25% 2,92% Desenvolvimento Econômico e Social 2,32% 1,74% -1,13% 2,89% -0,69% 2,78% Investimentos 0,83% 2,92% 0,64% 1,76% -1,98% 2,40% Participações Financeiras -0,04% 0,03% 0,02% 0,16% 0,45% 0,99% Amortização da Dívida Pública -0,05% 0,03% -0,02% 0,06% 0,00% 0,10% Despesas de exercícios anteriores 0,00% 0,00% 0,00% 0,00% 0,03% 0,06% Disponibilidade para suplementações -0,19% 0,51% 0,00% 0,00% 0,00% 0,00% Período 1996-2013 Pessoal e Encargos Sociais -0,23% 0,29% -1,01% 1,37% 1,71% 0,60% Juros e Encargos da Dívida -0,38% 0,36% -0,89% 1,37% -1,79% 1,98% Outras Despesas Correntes -0,30% 1,04% -2,42% 2,97% 3,82% 2,26% Investimentos 1,05% 0,38% 0,20% 0,52% -1,09% 1,12% Inversões Financeiras -0,15% 0,31% 1,97% 4,01% -0,35% 0,96% Amortização da Dívida 0,06% 1,05% 2,74% 2,99% -0,96% 2,66% Outras Despesas de Capital 0,00% 0,01% 0,00% 0,00% 0,00% 0,02% Reserva de Contingência -0,03% 0,54% -0,60% 0,29% -1,34% 0,92% Fonte: Bittencourt (2016, p. 171). Uma apresentação gráfica, por sua vez, reforça a sugestão inicial de pertinência dessa explicação. A Figura 10 abaixo plota a evolução, ao longo dos exercícios da participação de dois tipos de despesas distintas (as linhas horizontais de gráficos apresentam os períodos, respectivamente 1947-1955, 1956-1963 e 1996-2013). Na coluna da esquerda, as despesas mais típicas do perfil obrigatório e determinado por lei e contratos, menos suscetíveis a uso como pork ou instrumento de barganha política; na coluna da direita, aquelas que, ao contrário, mostram-se mais típicas desse interesse político. 148 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Figura 10 Variação da participação na despesa total de categorias de despesas selecionadas Pessoal + Dívida – 1947-1955 6,00% Outros Serviços e Encargos + Obras – 1947-1955 8,00% 4,00% 6,00% LOA – PLOA Autorizado – LOA Executado – Autorizado 2,00% 4,00% 0,00% 2,00% - 2,00% 0,00% - 4,00% - 2,00% - 6,00% LOA – PLOA - 4,00% Autorizado – LOA - 8,00% Executado – Autorizado Custeio + Amortização da Dívida – 1956-1963 20,00% - 6,00% Transferências + Desenvolvimento Econômico e Social + Investimentos – 1956-1963 15,00% 15,00% 10,00% 10,00% 5,00% 5,00% 0,00% 0,00% - 5,00% - 5,00% - 10,00% - 10,00% - 15,00% - 15,00% LOA – PLOA Autorizado – LOA - 20,00% LOA – PLOA Autorizado – LOA Executado – Autorizado Executado – Autorizado Pessoal + Outras Despesas de Custeio – 1996-2013 Investimentos – 1996-2013 15,00% 2,00% 10,00% 1,50% 1,00% 5,00% 0,50% 0,00% 0,00% - 5,00% - 10,00% - 15,00% - 0,50% LOA – PLOA Autorizado – LOA - 1,00% LOA – PLOA Executado – Autorizado - 1,50% Autorizado – LOA Executado – Autorizado Fonte: Bittencourt (2016, p. 173).65 65 Para o período 1988, as obrigatórias incluem “Pessoal” e “Outras despesas de custeio”, e as discricionárias são amostradas por meio dos “Investimentos” (obras físicas). A consideração de “Outras despesas de custeio” como obrigatórias decorre do fato de que essa categoria (não obstante registrar o valor dos auxílios e subvenções tradicionais) tem sua parcela amplamente majoritária correspondente a transferências constitucionais de receitas a estados e municípios e a benefícios previdenciários do Regime Geral de Previdência Social, dois gastos que estão entre os mais rigidamente predeterminados por lei. Não foram incluídas as despesas com a dívida pública nas obrigatórias pelo fato de que a dimensão macroeconômica que a dívida pública assumiu no período recente (como substituição à emissão monetária na condição de variável de ajuste do desequilíbrio fiscal), somado à sua sensibilidade a movimentos exógenos de juros e câmbio, torna o seu processo decisório também exógeno, em grande medida, à barganha orçamentária típica. Mutações orçamentárias e comportamentos políticos na democracia brasileira 149 Os gráficos tornam mais visível o argumento, e em todas as comparações o perfil é o mesmo. Vistas nos gráficos da coluna à esquerda, as despesas obrigatórias perdem espaço na elaboração da LOA (decisão parlamentar) e – com muito menos força – nas modificações feitas pelos créditos adicionais, recuperando em seguida sua proporção quando da execução real.66 Essa tendência é até maior no período de 1988, mas está presente em todos. Enquanto isso, as despesas que supostamente despertam interesses de barganha política (gráficos da coluna à direita) têm o perfil exatamente inverso: aumentam muito de participação na elaboração do orçamento, aumentam menos sua cota com os créditos adicionais e são devolvidas a participações inferiores quando da execução. Outra forma de testar a força desse argumento é avaliar também a distribuição por órgãos. Tomando uma amostra de ministérios que, em cada período, pudessem representar o perfil de despesas mais concentrado em despesas obrigatórias tradicionais (como pessoal e custeio administrativo, aqui cognominados “ministérios tradicionais”) e uma amostra daqueles cujo orçamento contempla em proporção maior as modalidades de gasto mais suscetíveis de interesse transacional político (como obras, auxílios e subvenções, apelidados “ministérios políticos”),67 vemos, na tabela 5 abaixo,68 que são ainda mais 66 No período 1996-2013, tendo em vista a virtual inexistência de despesas executadas sem crédito, essa recuperação significa uma contenção muito maior da execução das outras categorias de despesa que das obrigatórias. No período anterior, no qual já se observou que inexiste, quase, execução inferior aos valores autorizados, essa reversão em favor das obrigatórias combina uma (eventual) contenção da execução das demais categorias com uma significativa execução das despesas obrigatórias em valores superiores aos autorizados, na modalidade “sem crédito ou além do crédito”. 67 O grupo dos ministérios “tradicionais” representa a soma dos Ministérios militares (a partir de 1999, substituídos pelo Ministério da Defesa) e do Ministério das Relações Exteriores (perfil de despesa concentrada na folha de pagamento e no custeio tradicional). O grupo dos “políticos”, com ministérios cuja carteira de ações envolve a maior parcela de destinações discricionárias de recursos a terceiros por meio de subvenções e auxílios ou de obras e intervenções locais, contempla em 1946 os Ministérios da Justiça e Negócios Interiores, da Agricultura e da Viação e Obras Públicas, e em 1988 os Ministérios dos Transportes, de Esporte e Turismo (sucedido pelo de Turismo), de Integração Nacional, das Cidades, e pelo antecessor desses dois últimos, o então Ministério do Planejamento e Orçamento (quando incorporava as secretarias de execução de projetos de desenvolvimento urbano e regional antes da criação dos ministérios respectivos). Trata-se de uma seleção reconhecidamente ad hoc, baseada na experiência do autor em relação aos focos de interesse de emendas parlamentares – e, para 1946, na descrição de Hippólito (1985, p. 76-77), dos focos de interesse do PSD no acesso aos cargos ministeriais –, mas qualquer outra seleção nesses termos seria judgmental (portanto, arbitrária) em algum grau. Em se tratando de uma ilustração que busca exatamente apontar casos extremos de um ou de outro perfil de órgão, entende-se que a seleção é admissível para os propósitos da análise. 68 Aqui também não foram considerados para as médias os exercícios para os quais não havia informações sobre um determinado momento (1948 a 1951 e 1958, para o PLOA), e todos os valores do exercício de 1997, conforme já apontado na Tabela 4. 150 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO fortes que os decorrentes da análise por categoria de despesa, sendo os respectivos desvios-padrão menores em relação às médias. A média da participação dos ministérios tradicionais (despesa obrigatória) cai inequivocamente quando da aprovação do PLOA no Congresso, e sobe também de forma cabal quando da execução comparada com o total autorizado. O movimento dos ministérios “políticos” é exatamente o inverso. Por fim, todas essas variações são maiores em 1946 do que em 1988. Tabela 5 Variação entre os momentos orçamentários na participação relativa de grupos de ministérios selecionados na despesa total LOA/PLOA Autorizado/ LOA Executado/Autoriz. Média Desviopadrão Média Desviopadrão Média Min. “tradicionais” -2,25% 1,45% -2,27% 1,39% 1,26% 1,73% Min. “políticos” 2,73% 2,55% -1,86% 3,50% -2,22% 2,79% Min. “tradicionais” -0,09% 0,12% 0,22% 1,07% 0,35% 0,27% Min. “políticos” 0,67% 0,31% -0,09% 0,49% -0,83% 0,96% Desvio-padrão 1947-1963 1996-2013 Fonte: Bittencourt (2016, p. 176). Na Figura 11 abaixo, fica clara a distribuição das variações: a participação dos ministérios “tradicionais” é sistematicamente reduzida entre o PLOA e a LOA, e sistematicamente elevada entre a autorização total (LOA mais créditos) e a execução – o inverso, exatamente, ocorre com os ministérios políticos (tudo em proporções bem mais elevadas em 1946) –; o impacto dos créditos adicionais fica menos claro, situando-se a curva majoritariamente entre as duas outras. Mutações orçamentárias e comportamentos políticos na democracia brasileira 151 Figura 11 Variação da participação na despesa total de ministérios selecionados 1947/1963 – Ministérios “políticos” 1947/1963 – Ministérios “tradicionais” 6,00% PLOA/LOA 10,00% Autorizado/LOA 4,00% Executado/Autorizado 5,00% 2,00% 0,00% 0,00% - 5,00% - 2,00% - 4,00% - 10,00% PLOA/LOA Autorizado/LOA - 6,00% Executado/Autorizado - 15,00% 1996/2013 – Ministérios “políticos” 1996/2013 – Ministérios “tradicionais” 2,00% 3,00% 2,50% 2,00% PLOA/LOA Autorizado/LOA 1,50% 1,00% 1,00% 0,00% Executado/Autorizado - 1,00% 0,50% 0,00% - 0,50% - 2,00% - 3,00% - 1,00% - 1,50% - 2,00% PLOA/LOA Autorizado/LOA - 4,00% Executado/Autorizado - 5,00% Fonte: Bittencourt (2016, p. 177). Conclusão Este artigo analisou as regras do processo político-orçamentário, assim como seus grandes números nos dois períodos democráticos brasileiros. Trata-se, principalmente para o período da República de 46, da apresentação de dados inéditos e necessários ao aprofundamento de hipóteses de comportamento político, formando um quadro mais robusto de dados para uma comparação profícua com o período pós-1988. Teoricamente, é importante demarcar claramente as fases em que cada um dos Poderes, Executivo e Legislativo, detém controle sobre o orçamento. Para a literatura de comportamento legislativo, assim como de Relações Executivo-Legislativo, a maior ou menor latitude de ação que os parlamentares possuam sobre o orçamento influem fortemente em seu alinhamento ao Poder Executivo, que vem a ser, no Brasil, o centro de gravidade dos governos e de sua estabilidade. 152 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO O experimento natural, que é a comparação entre os dois períodos democráticos brasileiros, tem neste problema sua pedra de toque. A avaliação das prerrogativas e a influência do Executivo e do Legislativo sobre o orçamento denotam que o primeiro tornou-se mais influente após a CF/1988 e que tem poder significativo quando mensurado em perspectiva internacional. Quanto aos números, entre a apresentação da proposta por um poder, sua análise pelo outro e posterior implementação pelo primeiro, nos dois períodos houve uma coreografia de inflações e remanejamento de rubricas. A volatilidade dos grandes números, de forma até contrária ao que se esperava, foi similar nos dois períodos. Contudo, quando se desce ao detalhamento dessas mudanças, fica claro que o período da República de 1946 foi mais intenso em modificar rubricas entre as diferenças fases orçamentárias, buscando um gasto politicamente mais vantajoso, o que redundava, em momento posterior, em cortes por um lado e emissões inflacionárias por outro. No geral, há um quadro de maior instabilidade nas relações político-orçamentárias no primeiro período, o que corrobora a constatação de que a República de 1946 assistiu a relações Executivo-Legislativo mais instáveis (o que pôde refletir-se em menor fidelidade e coesão legislativa). Retomando a hipótese apresentada no início, os dados apresentados pelo artigo permitem aferir que houve uma maior instabilidade no processo político-orçamentário na República de 1946 em comparação ao período pós-CF/1988. Ao contrário do que diz a literatura, que maiores poderes legislativos no primeiro período ensejaram um legislativo mais independente, aqui se avança a explicação que o processo orçamentário é de fato uma peça-chave para a coordenação política; contudo, o que avulta na experiência brasileira é a natureza mais ou menos incerta deste processo. Tal incerteza impacta as relações políticas entre Executivo e Legislativo e o próprio comportamento legislativo. Referências ABRANCHES, Sérgio (1988). Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro. Dados: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 31, n. 31, p. 5-34. Mutações orçamentárias e comportamentos políticos na democracia brasileira 153 AMES, Barry (1986). O congresso e a política orçamentária no Brasil durante o período pluripartidário. Dados: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 29, n. 2, p. 177-205. AMES, Barry (1987). The congressional connection: The structure of politics and the distribution of public expenditures in Brazil’s competitive period. Comparative Politics, v. 19, n. 2, p. 147-171, jan. BAAKLINI, Abdo (1993). O Congresso e o sistema político no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra. BITTENCOURT, Fernando (2015). Instituições e teoria orçamentária: pontos para discussão econômica e gerencial. Brasília: Senado Federal, Consultoria de Orçamentos, Fiscalização e Controle. (Série Orçamento em discussão; n. 20). Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/ id/513740/OED%2020.pdf?sequence=1>. Acesso em: 2 abr. 2016. ______ (2015). De 1946 a 1988: os estudos comparativos sobre o presidencialismo de coalizão brasileiro. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais BIB, v. 80, 2. sem. (publicada em maio de 2017). Disponível em: <http://anpocs.org/index.php/universo/acervo/ biblioteca/periodicos/bib/bib-80/10560-de-1946-a-1988-os-estudoscomparativos-sobre-o-presidencialismo-de-coalizao-brasileiro/file>. Acesso em: 2 abr. 2016. ______ (2016). Poderes orçamentários no presidencialismo democrático brasileiro: contribuições aos modelos comparativos. Dissertação (Mestrado) – Câmara dos Deputados, Centro de Formação, Treinamento e Aperfeiçoamento (Cefor). Brasília. Disponível em: <http://bd.camara.leg.br/bd/handle/ bdcamara/31159>. Acesso em: 26 dez. 2016. ______ (2017). Regras constitucionais do orçamento nos períodos democráticos brasileiros: 1946/1964 e 1988/2013; nota de pesquisa. Brasília: Senado Federal, Consultoria de Orçamentos, Fiscalização e Controle. (Série Orçamento em Discussão; n. 35). Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/ bdsf/bitstream/handle/id/530146/OED0035.pdf?sequence=1>. Acesso em: 2 abr. 2017. 154 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO ______ (2017). Séries temporais para estudos históricos do orçamento federal brasileiro em democracia: nota de pesquisa: Brasília: Senado Federal, Consultoria de Orçamentos, Fiscalização e Controle. (Série Orçamento em Discussão; n. 36). Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/ handle/id/531066/OED0036.pdf?sequence=1>. Acesso em: 2 abr. 2017. BRAGA, Ricardo de João (2011). O processo decisório legislativo na criação e reforma do Bacen e do CMN em 1964 e 1994: incerteza, cooperação e resultados legislativos. Tese (Doutorado em Sociologia e Ciência Política. Área de Concentração: Ciência Política) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados (1953). Projeto no 3.180-A de 1953. Estima a receita e fixa a despesa da União para o exercício financeiro de 1954. Relator: deputado Lauro Lopes. Rio de Janeiro. ______ (1959). Diário do Congresso Nacional, 28 maio 1959: debates parlamentares. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional. BRASIL. Contadoria-Geral da República (1955). Balanços gerais da União relativos ao exercício de 1954: apresentados ao Excelentíssimo Senhor Ministro da Fazenda, Doutor Eugenio Gudin, pelo Contador Geral da República, Raul Fontes Cotia. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional. ______ (1964). Balanços gerais da União relativos ao exercício de 1963: apresentados ao Excelentíssimo Senhor Ministro da Fazenda, Doutor Ney Galvão, pelo Contador Geral da República, Raul Fontes Cotia. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional. BRASIL. Tribunal de Contas da União (1949). Relatório do Tribunal de Contas: exercício de 1948. Relator Min. Oliveira Vianna. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional. ______ (1954). Relatório do Tribunal de Contas: exercício de 1950. Relator Min. Rogério de Freitas. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional. ______ (1957). Parecer prévio sobre as contas do presidente da República: 1953. Relator Min. Vergniaud Wanderley. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional. Mutações orçamentárias e comportamentos políticos na democracia brasileira 155 ______ (1957a). Parecer prévio sobre as contas do presidente da República: 1956. Relator Min. Joaquim Henrique Coutinho. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional. ______ (1958). Parecer prévio sobre as contas do presidente da República: 1957. Relator Min. Ruben Rosa. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional. ______ (1960). Parecer prévio sobre as contas do presidente da República: 1958. Relator Min. Vidal da Fontoura. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional. ______ (1961). Parecer prévio sobre as contas do presidente da República: 1959. Relator Min. Sizenando Pinheiro. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional. ______ (1961a). Parecer prévio sobre as contas do presidente da República: 1960. Relator Min. Rogério de Freitas. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional. ______ (1962). Parecer prévio sobre as contas do presidente da República: 1954. Relator Min. Brochado da Rocha. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional. ______ (1962a). Parecer prévio sobre as contas do presidente da República: 1961. Relator Min. Ernani do Amaral Peixoto. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional,. ______ (1964). Parecer prévio sobre as contas do presidente da República: 1963. Relator Min. Jurandyr Coelho. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional. CAMARGO, Aspasia et. al (1986). Artes da política: diálogo com Amaral Peixoto. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. CHEIBUB, José Antônio (2007). Presidentialism, parliamentarism and democracy. Cambridge: Cambridge Univ. Press. 156 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO COELHO, Jurandir (1952). Teoria e processo do orçamento. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional. COELHO, Jurandir (1958). Introdução ao orçamento público. Rio de Janeiro: Dasp. FIGUEIREDO, Argelina Cheibub; LIMONGI, Fernando (1999). Executivo e Legislativo na nova ordem constitucional. Rio de Janeiro: FGV Ed. FÖLSCHER, Alta (2007). Budget methods and practices. In: SHAH, Anwar (Ed.). Budget and budgeting institutions. Washington: The World Bank. FURTADO, Celso (1962). A pré-revolução brasileira. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura. ______ (1989). A fantasia desfeita. Rio de Janeiro: Paz e Terra. GOMES, Claudia Cristina Aires (2008). O Impacto da edição de medidas provisórias no orçamento público. Monografia (Especialização em Orçamento Público) – Tribunal de Contas da União, Instituto Serzedello Corrêa; Câmara dos Deputados, Centro de Formação, Treinamento e Aperfeiçoamento e Senado Federal, Universidade do Legislativo Brasileiro, Brasília. GROHMAN, Luiz Gustavo Melo (2003). O veto presidencial no Brasil: 1946-1964 e 1999-2003. Tese (Doutorado em Ciências Humanas. Área de Concentração: Ciência Política) – Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. GUARDIA, Eduardo Refinetti (1992). Orçamento público e política fiscal: aspectos institucionais e a experiência recente, 1985/1991. Dissertação (Mestrado em Economia) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas. HIPPOLITO, Lucia (1985). De raposas e reformistas: o PSD e a experiência democrática brasileira, 1945-1964. Rio de Janeiro: Paz e Terra,. KREHBIEL, Keith (1992). Information and legislative organization. Ann Arbour: The Univ. of Michigan Press. LAFER, Celso (2002). JK e o Programa de Metas: 1956-1961, processo de planejamento e sistema político no Brasil. Rio de Janeiro: FGV Ed. Mutações orçamentárias e comportamentos políticos na democracia brasileira 157 LIMA JR., Olavo Brasil (1977). Mudança política e processo decisório: análise da política orçamentária brasileira. Dados: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 14, p. 141-163. MARSHALL, Carlos Mello (2008). Os créditos extraordinários abertos por medida provisória: um orçamento paralelo? Monografia (Especialização em Ciência Política) – Universidade Federal do Mato Grosso do Sul; Senado Federal, Universidade do Legislativo Brasileiro, Brasília. MARTNER, Gonzalo (1972). Planificación y presupuesto por programas. Santiago de Chile: Siglo Veintiuno Ed. MONTERO, Mercedes Garcia (2009). Presidentes y parlamentos: ¿quién controla la acividad legislativa en América Latina? Madrid: Centro de Investigaciones Sociológicas. MORAES, Alexandre (2011). Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. São Paulo: Atlas. NOBREGA JR., Josué Lima (2008). Mudanças constitucionais e poderes presidenciais nos presidencialismos da América Latina: 1945-2003. Tese (Mestrado em Ciência Política) – Universidade de São Paulo, São Paulo. PRAÇA, Sergio (2013). Corrupção e reforma orçamentária no Brasil: 1987-2008. São Paulo: Annablume Eds. PROGRAMA DE NACIONES UNIDAS PARA EL DESARROLLO (2004). La democracia en América Latina: hacia una democracia de ciudadanos y ciudadanas. Buenos Aires: PNUD; Aguilar; Altea; Taurus; Alfaguara. Disponível em: <http://www.resdal.org/ultimos-documentos/informe-pnuddemocracia.html>. Acesso em: 6 jan. 2016. ROCHA, Diones Gomes da; MARCELINO, Gileno Fernandes; SANTANA, Cláudio Moreira (2013). Orçamento público no Brasil: a utilização do crédito extraordinário como mecanismo de adequação da execução orçamentária brasileira. Revista de Administração da USP (RAUSP), São Paulo, v. 48, n. 4, p. 813-827, out./nov./dez. 158 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO SANTISO, Carlos (2004). Legislatures and budget oversight in Latin America: strengthening public finance accountability in emerging economies. OECD Journal on Budgeting, v. 4, n. 2. SANTOS, Fabiano (1994). Teoria de decisões legislativas: microfundamentos do clientelismo político no Brasil. Dissertação (Doutorado) – Iuperj, Rio de Janeiro. ______ (1997). Patronagem e poder de agenda na política brasileira. Dados: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 40, n. 3. ______ (2003). O Poder Legislativo no presidencialismo de coalizão. Belo Horizonte: Ed. UFMG; Rio de Janeiro: Iuperj. SANTOS, Fabiano. A República de 46: separação de poderes e política alocativa. In: MELO, Carlos Ranulfo; SÁEZ, Manuel Alcântara (Org.). A democracia brasileira: balanço e perspectivas para o século 21. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2007. SARETTA, Fausto (1995). A política econômica brasileira 1946/1950. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 4/5, p. 113-129. SCARTASINI, Carlos; STEIN, Ernesto (2009). A New Framework. In: HALLERBERG, Mark; SCARTASCINI, Carlos; STEIN, Ernesto (Ed.). Who decides the budget? A political economy analysis of the budget process in Latin America. Washington, DC: Inter-American Development Bank. SHUGART, Matthew; CAREY, John (1992). Presidents and assemblies. Cambridge: Cambridge Univ. Press. TOMMASI, Daniel (2007). Budget execution. In: SHAH, Anwar (Ed.). Budget and budgeting institutions. Washington, DC: The World Bank. TSEBELIS, George; CHANG, Eric (2004). Veto players and the structure of budgets in advanced countries. European Journal of Political Research, v. 43, p. 449-476. Mutações orçamentárias e comportamentos políticos na democracia brasileira 159 VON HAGEN, Jürgen (2007). Budgeting institutions for better fiscal performance. In: SHAH, Anwar (Ed.). Budget and budgeting institutions. Washington, DC: The World Bank. WEHNER, Joachim (2010). Legislatures and the budget process: the myth of fiscal control. London: Palgrave-MacMillan. Apêndice Critérios de avaliação de poderes de agenda orçamentário Este apêndice traz a lógica da construção de cada critério de avaliação utilizado para parametrizar os poderes de agenda presidenciais. Para a operacionalização dos indicadores, utilizou-se uma coleção ampliada das variáveis de poderes presidenciais desenvolvidas inicialmente por Shugart e Carey (1992, p. 133-146). Mensurando cada critério, foi construído um indicador de poderes presidenciais que varia de zero a um (quanto mais próximo de um, maior o poder do presidente vis-à-vis o Legislativo). Para a definição dos valores, foram distribuídas entre zero e um todas as possíveis variações desse critério, sempre ordenadas de forma crescente de modo que a um maior valor do indicador corresponda uma situação de maior poder institucional do Executivo frente ao Legislativo. A título de exemplo, se a um determinado critério correspondam três situações institucionais possíveis, estas assumirão os valores de 0, 0,5 e 1, sendo 0 o de menor poder institucional do presidente e 1, o maior. Se forem quatro situações, os valores ordenados serão de 0, 0,33, 0,66 e 1, e assim sucessivamente. Esta avaliação é inspirada na metodologia de construção de indicadores comparativos de potencialidade institucional legislativa apresentada por Montero (2009, esp. p. 182-189) e na tabela de avaliação de poderes presidenciais de Shugart e Carey (1992, p. 155), baseando-se amplamente na tipologia de Wehner (2010). INDICADOR OBSERVAÇÕES INICIATIVA DA PROPOSTA ORÇAMENTÁRIA A iniciativa é a competência que um ou mais poderes têm de submeter formalmente uma proposta para que seja deliberada. Quando a competência é privativa de um determinado agente, apenas ele pode apresentar projeto de lei sobre o assunto (não se confunde com a prerrogativa mais ampla de iniciar money bills, ou seja, legislação substantiva que implica elevação de impostos ou determina obrigações de política pública que, indiretamente, implicam aumento de despesa). 160 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO INDICADOR OBSERVAÇÕES CONSEQUÊNCIAS DA NÃO APRESENTAÇÃO DA PROPOSTA ORÇAMENTÁRIA As regras para não apresentação da proposta orçamentária definem o status quo, ou default, com que se defronta o Executivo na decisão de iniciar ou não a tramitação formal do orçamento, ou seja, o que acontecerá se não for proposto ao Legislativo. ESCOLHA DOS MEMBROS DAS COMISSÕES QUE VOTAM OS PARECERES AO ORÇAMENTO Trata-se da escolha dos parlamentares individuais dentro da fração que corresponde a cada partido dentro da comissão (que é fixa em função de normas constitucionais nos dois períodos). O quesito espelha poder presidencial porque um processo decisório centralizado permitirá maior predominância do Executivo (será mais fácil à coalizão majoritária eventualmente formada pelo presidente influenciar e controlar os parlamentares individuais). TRAMITAÇÃO BICAMERAL A necessidade de aprovação por cada uma das casas (mesmo em sessão conjunta) acrescenta mais um ponto de veto, elevando o custo de aprovação da agenda proposta pelo presidente, o que reduziria o seu poder frente ao Legislativo. PARTICIPAÇÃO DAS COMISSÕES ESPECIALIZADAS As comissões especializadas são um elemento central à capacidade institucional do Parlamento, elevando a produtividade pela divisão do trabalho e reduzindo as assimetrias de informação pela especialização de seus membros (SANTISO, 2004; WEHNER, 2010; PRAÇA, 2013). Quando não existem no âmbito do exame e votação do orçamento, fica enfraquecida a atuação parlamentar. PODER DAS COMISSÕES Pelas mesmas razões do critério anterior, sendo a comissão especializada um ator importante no empowerment do Legislativo, a dominância decisória do posicionamento da comissão (isto é, se o seu parecer é apenas opinativo e pode ser desconsiderado pelo Plenário, ou se há um leque de restrições que dificultem que a posição da comissão seja modificada) significará também uma posição mais forte do Parlamento. SIMETRIA DE PODERES ENTRE AS CASAS Quanto mais simétricos forem os poderes das duas Casas de um legislativo bicameral (como é o caso brasileiro nos dois períodos), mais poderão ambas as Casas atuarem plenamente em seu papel como atores decisórios (diminuindo proporcionalmente a discricionariedade do Executivo sobre a decisão final). CONSEQUÊNCIAS DA NÃO APROVAÇÃO DA LEI ORÇAMENTÁRIA (default) Sem orçamento ou alguma autorização provisória que o substitua, não é possível executar a ação pública, pois esta depende da realização de despesas. A ausência de uma alternativa quando o orçamento não é aprovado eleva os custos políticos da rejeição do orçamento (VON HAGEN, 2007). De outro lado, caso o Executivo possa gastar livremente os fundos públicos sem que o orçamento esteja aprovado, não terá qualquer incentivo para atingir, no processo, os acordos legítimos que representem decisões efetivas sobre o gasto. (WEHNER, 2010). Mutações orçamentárias e comportamentos políticos na democracia brasileira 69 161 INDICADOR OBSERVAÇÕES PODER DE LEGISLAR UNILATERALMENTE (“PODER DE DECRETO”) SOBRE ORÇAMENTO – ABRANGÊNCIA69 Trata-se de a prerrogativa do Executivo modificar unilateralmente o orçamento durante a execução orçamentária. (WEHNER, 2010). Este critério trata do rol de assuntos ou objetos de gasto que pode ser abrangido pelo poder de decreto (sobre todo o orçamento, sobre casos específicos definidos com maior ou menor grau, ou sobre nenhuma parcela do orçamento). PODER DE LEGISLAR UNILATERALMENTE (“PODER DE DECRETO”) SOBRE ORÇAMENTO – INTERVENÇÃO LEGISLATIVA Este critério trata da capacidade dada ao Legislativo, pelo rito procedimental, para influir ou interferir na modificação unilateral promovida pelo presidente. Pode não haver nenhuma (o Congresso não interfere na decisão presidencial), ou a exigência de aprovação a posteriori pelo Legislativo, com ou sem possibilidade emendar o ato modificativo (situação na qual há que ponderar o caso em que o presidente pode criar a autorização para a despesa e comprometer os recursos antes da deliberação final do Legislativo, criando um fato consumado que retira qualquer efeito concreto da prerrogativa parlamentar da aprovação última da despesa). CARÁTER MERAMENTE AUTORIZATIVO DO ORÇAMENTO Trata-se da prerrogativa do Executivo de recusar-se a gastar parte da despesa especificada na lei do orçamento (caso em que o Executivo passa a ter na prática a capacidade de modificar as proporções e a composição do orçamento ao executar alguns programas e não executar outros, a seu critério). O efeito de uma prerrogativa presidencial dessa natureza é o fortalecimento relativo do Executivo no controle do orçamento (WEHNER, 2010; SANTISO, 2004). TEMPO DISPONÍVEL PARA EXAME PELO LEGISLATIVO Tempo é um recurso escasso no Parlamento (DÖRING, 2001), e as matérias orçamentárias têm de disputá-lo com todas as demais, além de cumprir um deadline estrito. Um prazo excessivamente curto para o Parlamento examinar a massa de informações recebida (limitação informacional) e alcançar acordos decisórios (limitação de ação coletiva) implicariam em uma séria limitação de sua capacidade de decisão própria em termos orçamentários (WEHNER, 2010). CAPACIDADE DE O LEGISLATIVO EMENDAR MATERIALMENTE A PROPOSTA ORÇAMENTÁRIA Quanto mais liberdade tem o colegiado legislativo para modificar a proposta recebida, menor o poder de agenda centralizado nas mãos do Executivo, uma vez que mais alternativas à sua preferência original podem ser colocadas sobre a mesa (WEHNER, 2010; NOBREGA JR., 2008; PRAÇA, 2013). PODER DE VETO Situações em que o presidente não tem poder de veto, ou pode apenas vetar a totalidade da lei orçamentária, elevam os custos de rejeição do orçamento e fragiliza o presidente no exercício do poder de veto (VON HAGEN, 2007; MORAES, 2011; SHUGART; CAREY, 1992). A situação mais favorável ao presidente é a possibilidade de veto parcial incidindo sobre objetos de despesa específicos (WEHNER; 2010). Trata-se do poder de decreto no sentido estrito, que não inclui os casos de delegação expressa de poderes legislativos pelo Congresso em casos específicos, nem de decretos de caráter regulamentar ou administrativo (SHUGART; CAREY, 1992, p. 143-146). 162 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO INDICADOR OBSERVAÇÕES MAIORIA PARA DERRUBAR O VETO Assumindo a existência da possibilidade do veto e da respectiva derrubada em um legislativo bicameral (o caso brasileiro nos dois períodos), a escala de valores contempla de forma ordenada o diferente custo, em porcentagem dos membros do Congresso, exigido para a derrubada de vetos sob as diferentes regras de maioria possíveis (SHUGART; CAREY, 1992; GROHMAN, 2003). 163 O Parlamento sob influência: transformações no Legislativo e na representação de interesses organizados (1983/2016)70 Manoel Leonardo Santos Marcello Fragano Baird Introdução As decisões políticas em regimes democráticos resultam de complexos processos nos quais muitos atores interagem. Entre esses atores, os grupos que representam interesses organizados não devem ser desconsiderados, dada sua potencial capacidade de influência no processo decisório. Nesse sentido, grupos de pressão, movimentos sociais, interesses organizados, dentre outros precisam ser levados em conta, principalmente se forem vistos como um conjunto de organizações que oferece grande quantidade de inputs ao sistema político. No Brasil, as teorias sobre o funcionamento do presidencialismo de coalizão se desenvolveram substantivamente nos últimos 25 anos. Em que pese esse desenvolvimento, a maioria dos estudos negligenciou o papel dos grupos de interesse em pelo menos duas importantes dimensões: a primeira é a ação de lobby dos múltiplos interesses organizados no processo decisório; a segunda diz respeito às amplas transformações ocorridas no sistema de representação de interesses nos últimos anos. 70 Este capítulo é uma versão revisada e atualizada do texto para discussão do Ipea (TD 1975), intitulado Representação de interesses na arena legislativa: os grupos de pressão na Câmara dos Deputados (1983-2012). O TD 1975 foi publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em 2014. Os autores agradecem a Acir Almeida (Ipea), pelas contribuições na ocasião da pesquisa, e a André Rehbein Sathler Guimarães e Elaine Gontijo, pelos valiosos comentários à nova versão. 164 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Visando superar essa lacuna, assim como considerar as mudanças institucionais ocorridas pós-1988, este capítulo faz uma análise dos grupos de interesses que atuam no Parlamento brasileiro. Duas premissas gerais norteiam a argumentação apresentada. A primeira é que o Legislativo voltou a ser uma arena decisória relevante no período pós-1988. A segunda diz respeito às mudanças nos padrões de relação entre Estado e sociedade nos últimos 30 anos, transformando o sistema de representação de interesses no Brasil de um modelo corporativista para um modelo híbrido, que combina representação sindical com um pluralismo cada vez mais acentuado (DINIZ; BOSCHI, 1999; GOZETTO; THOMAS, 2014). Explicar a mudança institucional ocorrida no período recente é, portanto, a contribuição deste capítulo. Os resultados aqui apresentados apontam para o fortalecimento dessas duas premissas e ajudam a entender a relevância de incorporar à análise a ação dos interesses organizados no Parlamento. Os dados mostram que a arena legislativa tem atraído número crescente de organizações representativas de diferentes interesses econômicos e segmentos sociais, assim como um crescente número de assessores parlamentares dos diversos órgãos do próprio Estado. Da mesma forma, os dados aqui analisados apontam para a corroboração da tese do crescimento do pluralismo, ao mesmo tempo em que se mantém a representação de interesses pelas entidades da estrutura corporativista. O trabalho apresenta uma descrição dos grupos de interesse que atuam na Câmara dos Deputados, contando com evidências recolhidas de duas fontes: i) o cadastro de grupos de interesse e assessores parlamentares no período de 1983 a 2016; e ii) o registro de participação de interesses organizados em audiências públicas nas comissões permanentes no período de 2003 a 2015. Este capítulo está organizado de forma a refletir as duas discussões mencionadas. Além desta introdução, há duas seções, sendo que a primeira trata da revalorização do Legislativo como lócus central de atuação dos interesses organizados. A seção retoma as principais teses sobre o presidencialismo de coalizão, com especial foco nas relações Executivo-Legislativo, para discutir e mostrar dados que apontam para o fortalecimento do Parlamento como alvo da ação política dos grupos de interesse. Conclui-se que a presença crescente de grupos de pressão e de assessores parlamentares na Câmara dos Deputados sugere que o Parlamento está longe de ser um campo de atuação política menos relevante que o Poder Executivo. O Parlamento sob influência: transformações no Legislativo e na representação de interesses organizados (1983/2016) 165 Na segunda seção, debatem-se as mudanças no sistema de representação dos interesses organizados. Para tanto, observa-se a evolução do padrão de participação da sociedade no Parlamento, revelando o aumento do pluralismo e da representação corporativista, indicando que a tese da migração do sistema de representação de interesses para um modelo híbrido, marcado pela competição por influência, mostra-se factível. Por fim, nas conclusões estão sumarizados os resultados e algumas indicações sobre a agenda de pesquisa na área. Relações Executivo-Legislativo no presidencialismo de coalizão Estudos recentes têm apresentado explicações alternativas para a força do Parlamento e o efetivo papel que partidos e comissões desempenham no sistema político brasileiro na atualidade. A mudança institucional no pós-1988 é altamente significativa, na medida em que devolve prerrogativas ao Congresso – quanto a esse aspecto há pouca discordância. Mas essas diferentes visões marcam o debate em torno da proclamada delegação de poderes do Parlamento para o Executivo. Mudança institucional Embora a ampla literatura especializada encerre visões muito mais complexas do que as elencadas aqui, é possível, ainda que de forma estilizada, apontar pelo menos três perspectivas que se contrapõem. A primeira está fundamentada por autores como Ames (1995; 2000), Geddes (1994), Lamounier (1991) e Mainwaring (1997), que sugerem que o Legislativo estaria fortemente marcado por interesses particularistas e paroquiais, que prevaleceriam em detrimento das questões de caráter nacional. O presidente, nesta perspectiva, seria refém permanente de um legislativo com parlamentares autointeressados, o que se constituiria num óbice à aprovação de sua agenda com consequências negativas para a governabilidade. Resumidamente, dados a fragmentação partidária, os interesses localistas e as características dos partidos, o custo de governar no Brasil seria muito alto. Uma segunda visão, fundamentada nos trabalhos de Figueiredo e Limongi (2001), Meneguello (1998), Pereira e Mueller (2000), entre outros, sugere o 166 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO contrário e se apoia em dois argumentos centrais. O primeiro é que o presidente conta, desde 1988, com importantes prerrogativas constitucionais que permitem que ele tenha um controle sobre a agenda legislativa. Essas prerrogativas são, basicamente, o poder de decreto (medidas provisórias – MPV), a iniciativa exclusiva em áreas estratégicas (orçamentária, financeira, administração pública, entre outras) e o pedido de urgência constitucional. O segundo argumento, complementar ao primeiro, postula que a centralização do processo decisório no Legislativo (mais especificamente na Mesa Diretora e no Colégio de Líderes) permite ao Executivo um controle sobre sua coalizão de apoio no Parlamento. Nesse contexto, os líderes partidários da base e a elite parlamentar seriam accountables ao chefe do Executivo, possibilitando que o presidente governe com o apoio uma coalizão partidária. Mais recentemente, uma terceira interpretação se apresenta, matizando as demais perspectivas. Dois trabalhos podem ser citados como fundamentais. O primeiro, de Santos e Almeida (2011), explora o problema informacional no Parlamento e aponta para novas interpretacões sobre a organização legislativa. O resultado mais substantivo sugere que a lógica da delegação do Legislativo para o Executivo passa pela demanda de produção e disseminação no interior do Parlamento, mostrando que essa delegação não é assim tão flagrante e determinante quanto sugerem, por exemplo, Figueiredo e Limongi (2001). Sob certas circunstâncias, o Parlamento prefere aceitar passivamente as proposições do Poder Executivo; sob outras, alternativamente, opta por submetê-las ao exame crítico das suas comissões técnicas. Ao analisar aspectos fundamentais do processo legislativo, como o uso de medidas provisórias, da urgência regimental e da seleção de relatores nas comissões técnicas, os autores relativizam fortemente as explicações correntes, lançando luz sobre a lógica da delegacão e, consequentemente, sobre a própria dinâmica de funcionamento do presidencialismo de coalizão no Brasil. O trabalho de Freitas (2013) também traz aportes relevantes nesse sentido, ao mostrar que, mesmo quando a tramitação legislativa é acelerada por meio de pedidos de urgência, de tal forma que, muitas vezes, uma proposição legislativa vai direto ao Plenário, prescindindo do crivo das comissões, os congressistas ainda assim influem no texto por meio de seu emendamento. O segundo trabalho, de autoria de Almeida (2015), apresenta uma revisão extensa dos indicadores de governabilidade utilizados correntemente pela O Parlamento sob influência: transformações no Legislativo e na representação de interesses organizados (1983/2016) 167 literatura. Fortemente ancorado em dados empíricos, documenta o declínio do poder de agenda e do controle do Executivo sobre o processo legislativo. Entre os achados mais relevantes, o autor aponta que Nos últimos dez anos ocorreram importantes mudanças no processo legislativo federal, especialmente no que diz respeito às iniciativas de lei do Executivo. Diminuíram-se a edição de medidas provisórias e o uso do regime de urgência na tramitação de projetos de lei, permitindo, assim, que o sistema de comissões permanentes do Congresso passasse a exercer papel mais ativo. Ademais, a agenda legislativa, antes dominada por iniciativas do Executivo, passou a incluir quantidade muito maior de proposições de origem parlamentar. (ALMEIDA, 2015, p. 45) Embora o autor ainda não apresente propriamente uma nova teoria explicativa mais ampla, seus resultados preliminares são, no mínimo, desconcertantes para as teorias mais aceitas sobre as relações Executivo-Legislativo no Brasil. As consequências para a análise do processo decisório desses achados não são nada triviais. Segundo o autor, nos últimos dez anos, a agenda legislativa tornou-se mais aberta e descentralizada e pelo menos dois aspectos merecem atenção: i) o seu conteúdo passou a incluir quantidade substancial de proposições dos congressistas, deixando de ser dominado pelas do Executivo; e ii) o timing de quantidade crescente de decisões legislativas passou a ser definido pelas várias comissões permanentes, e não mais pelo Executivo (via uso de MPV e urgência constitucional) e pelas lideranças partidárias (via urgência regimental e o controle da pauta do plenário). (ALMEIDA, 2015, p. 48) Sobre os partidos Se observarmos essas teorias, especialmente no que concerne ao papel dos partidos políticos no Congresso Nacional, “pode-se dizer que existe um cisma básico entre duas perspectivas principais” (SANTOS, 2002). A primeira delas [...] afirma que os partidos no Brasil são indisciplinados e por isso o comportamento da Câmara é imprevisível. Além disto, afirma que os deputados estão sempre buscando transferir benefícios para seus redutos eleitorais e constituencies, o que converte o executivo em uma espécie de prisioneiro 168 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO dos interesses dos parlamentares (AMES, 1995; 2000; AMORIM NETO, 1998; GEDDES, 1994; LAMOUNIER, 1991; MAINWARING, 1997; 1999). (SANTOS, 2002) Num sentido contrário, a segunda interpretação sugere que [...] o comportamento dos partidos é disciplinado, as decisões da Câmara são previsíveis e seus membros não são capazes de fazer valer suas prodigalidades particularistas (FIGUEIREDO; LIMONGI, 1999; MENEGUELLO, 1998; PEREIRA, 2000; SANTOS, 1997). (SANTOS, 2002) É importante lembrar, contudo, que esta última perspectiva não descarta que a manutenção da base aliada gera custos ao governo, exigindo negociações permanentes com o Parlamento. Mas embora se considerem os custos de manutenção da coalizão, esta perspectiva difere fortemente da primeira na medida em que sugere que o sistema político brasileiro não é o caos indicado pelos analistas nos anos 1990. Estes vaticinavam, inclusive, as dificuldades de se erigir e manter uma democracia estável calcada nestas bases institucionais (MAINWARING, 2001). A análise do período mais recente, especialmente o primeiro governo e parte do segundo da ex-presidente Dilma Rousseff, serve para intensificar a polêmica. As sérias dificuldades enfrentadas pela coalizão de governo, em especial no início do segundo mandato, são indicativos de que as relações entre Executivo e Legislativo mudaram, afastando-se substancialmente da ideia de delegação e de controle da agenda e do processo legislativo por parte do Executivo. Sobre o sistema de comissões Como já mencionado, estudos recentes mostram que as comissões desempenham funções importantes no Legislativo, seja cumprindo um papel informacional (SANTOS; ALMEIDA, 2011), seja como trincheira dos grupos de pressão usada parra barrar proposições que contrariem seus interesses (MANCUSO, 2005; SANTOS, 2011). Ademais, o controle dos partidos sobre as comissões (MÜLLER, 2005) sugere que o Executivo tem que negociar com esses partidos se quiser controlar o sistema de comissões no Parlamento. Particularmente relevante para a interpretação do papel das comissões, os recentes achados corroboram a ideia de que as comissões são de fato relevantes. Como acima referido, “o timing de quantidade crescente de decisões legisla- O Parlamento sob influência: transformações no Legislativo e na representação de interesses organizados (1983/2016) 169 tivas passou a ser definido pelas várias comissões permanentes, e não mais pelo Executivo” (ALMEIDA, 2015). Especialmente nesse aspecto, os achados do autor matizam uma visão, até bem pouco tempo muito difundida, de que o sistema de comissões seria governado por agentes do Executivo, e sua função principal seria fortalecer e contribuir com a aprovação da agenda legislativa do presidente. Comissões, nessa perspectiva, agiriam como “agentes do Executivo”, o que parece, pelo menos no período recente, menos provável. Implicações para a ação dos grupos de interesses no Parlamento Mas quais seriam as implicações dessas diferentes visões sobre o Parlamento, seus partidos e seu sistema de comissões, que poderiam ajudar a entender a questão central deste capítulo, que é descrever os grupos de interesse no Congresso Nacional? Infelizmente, a literatura brasileira ainda não responde de maneira robusta a este questionamento. Como já considerado, esta variável tem ficado sistematicamente de fora das análises.71 O que não impede, claro, que se faça um exercício especulativo. Ao se pensar em um Congresso partidariamente fragmentado e com parlamentares autointeressados, poder-se-ia inferir que esse Parlamento estaria mais permeável a múltiplos interesses. Sendo assim, essa seria uma arena política privilegiada para a ação dos interesses organizados, tal como sugere a primeira visão. Se, por outro lado, leva-se ao extremo a visão que sugere um Congresso disciplinado e accountable ao Executivo, a tendência é pensar exatamente o contrário, ou seja, pouco ou nada valeria para os grupos de interesse atuar nas Casas legislativas, já que o processo decisório estaria marcado pela preponderância do Executivo. Nesse caso, faria muito mais sentido percorrer os corredores dos ministérios e da burocracia do que investir tempo e dinheiro no monitoramento e nas ações de lobby junto aos congressistas. 71 Importantes trabalhos no campo de estudos sobre lobby e grupos de interesses têm sido desenvolvidos mais recentemente, mas não se pode negar que são quase exceções. Os trabalhos mais relevantes são os de Baird e Fernandes (2014); Baird (2016), Baird (2017), Diniz e Boschi (1999); Diniz, Boschi e Santos (1993a; 1993b), Mancuso (2003; 2007a; 2007b; 2010), Santos (2014a; 2014b) e Santos et al. (2015). 170 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Os dados aqui recolhidos, se contrastados com a literatura, sugerem que a interpretação pode estar numa visão atenuada entre os dois extremos, e provavelmente muito mais próxima das interpretações mais recentes. Ou seja, se é verdade que o Executivo não “domina” com facilidade a agenda legislativa e que não tem mais o controle sobre o sistema de comissões (ALMEIDA, 2015), é também verdade que os interesses organizados têm atuado cada vez mais intensamente no Legislativo, como veremos a seguir. E é plausível supor que estas organizações não deslocariam seus recursos para a arena legislativa se não houvesse espaço para defender no Parlamento uma agenda favorável aos seus interesses. Ou, noutro sentido, na intenção de evitar a aprovação de uma agenda contrária a seus interesses. Outra especulação possível, e complementar, vem do recente esforço de aplicação da teoria informacional para o caso brasileiro por Santos e Almeida (2011). Os autores, como já mencionado, sugerem que boa parte do esforço realizado pelas comissões é no sentido de produzir e disseminar, dadas certas circunstâncias, informação para o Legislativo tomar decisões. Se pensados como “agentes informacionais”, os grupos de interesses passariam a interessar aos parlamentares que arcam com os custos informacionais, especialmente aos presidentes das comissões temáticas e aos relatores mais assíduos dessas comissões. É dizer que, esses grupos, pela sua expertise, passariam a ser mais importantes como interlocutores de parlamentares e partidos nas suas funções de legislar. Nas próximas seções estão relacionados alguns dados que apontam favoravelmente em defesa da tese da retomada do Legislativo como arena política relevante no processo decisório e como espaço privilegiado para a ação de interesses organizados. As evidências mostram que a representação de grupos de interesse no âmbito da Câmara dos Deputados vem cumprindo uma trajetória ascendente desde 1983 e que o sistema de comissões, cada vez mais ativo, é espaço altamente relevante para a ação desses interesses. Este dado pode ser interpretado, sem maiores dificuldades, como um indicador de que os interesses organizados têm deslocado para o Parlamento parte de seus recursos e de sua energia na expectativa de ver suas demandas consideradas pelo sistema político. O Parlamento sob influência: transformações no Legislativo e na representação de interesses organizados (1983/2016) 171 O cadastro da Primeira-Secretaria Levantamento no âmbito desta pesquisa identificou todos os cadastramentos de grupos de interesses e de assessores parlamentares na Câmara dos Deputados no período de 1983 a 2016, conforme o art. 259 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, que determina que a Primeira-Secretaria deve manter o cadastro dos grupos de pressão e da imprensa que atuam na Casa. O Regimento prevê, também, o cadastramento dos assessores parlamentares dos órgãos do Estado, representados pela burocracia estatal. Nesse período, foram catalogadas nada menos que 544 diferentes organizações da sociedade civil (73,1%), 165 órgãos de Estado (22,1%) e mais 37 organizações (4,9%) que foram classificadas como “Outros”.72 Ou seja, nos últimos 33 anos, 746 diferentes organizações e órgãos de Estado se registraram nesse cadastro. A observação mais detida da evolução desse cadastro, representada no gráfico 1, mostra um crescimento significativo da atuação dos interesses organizados no Parlamento no período em foco. O crescimento vai de 47 grupos cadastrados no biênio 1983-1984 a 436 no biênio 2015-2016. Para que se tenha uma ideia da magnitude do incremento por biênio, foi realizada uma regressão linear bivariada (reta de regressão no gráfico 1). O resultado mostra que o incremento de uma unidade na escala do tempo (expressa em biênios) impacta o crescimento de 17,703 registros, em média, no cadastramento (com significância estatística de 99,9% e R2 = 0,813). Os dados ajudam a sustentar, portanto, aquilo que a literatura já registrou: a revalorização do Legislativo como arena política relevante a partir da Constituição de 1988, dada a crescente atuação de grupos de interesse no parlamento. 72 A categoria “Outros” é formada por sociedades de economia mista, pelas instituições financeiras e pelas empresas públicas que, por motivos conceituais, não se encaixam nem como órgão de Estado nem como grupos de interesse da sociedade civil. 172 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Gráfico 1 Evolução do cadastro da Primeira-Secretaria da Câmara dos Deputados 1983-2016 500 450 436 y = 17,226x R² = 0,8122 400 350 300 257 250 200 150 100 47 50 0 Total Linear (Total) Fonte: dados da Primeira-Secretaria da Câmara dos Deputados (2017). Elaboração dos autores. O que se vê, portanto, é uma forte atuação dos grupos de interesse, que pautam suas ações basicamente com três objetivos: buscar influir no processo decisório, tentar abrir canais de comunicação com o Poder Legislativo e obter informações relevantes para o planejamento estratégico dos seus setores de interesse. Ou seja, o que se vê ao longo do tempo é o aumento do pluralismo de interesses representados, o que vem acompanhado, como revelam outras pesquisas (SANTOS et al., 2017), da profissionalização do lobby. Esta última, consequência da competição cada vez mais acentuada por influência e pela ocupação de um “novo” (novo, pois agora mais relevante e promissor) espaço político, o Congresso Nacional. Apesar de a trajetória crescente ser contínua no tempo, especial atenção deve ser dedicada à interpretação da variação atípica registrada no último biênio. Em 2013-2014, foram realizados 257 cadastramentos de entidades. No biênio seguinte, 2015-2016, o crescimento é exponencial, passando para 436 entidades cadastradas. A que se deve esse crescimento tão significativo e sem precedentes na série histórica? A hipótese mais plausível para tal crescimento, embora não seja única, é que nesses dois anos tivemos uma atividade parlamentar também atípica. Neste período de crise política, o acesso às dependências do Poder Legislativo O Parlamento sob influência: transformações no Legislativo e na representação de interesses organizados (1983/2016) 173 tornou-se significativamente mais restrito, o que, no nosso ponto de vista, pode ter induzido uma maior procura por credenciais de acesso via cadastramento na Primeira-Secretaria. De fato, o biênio 2015-2016 foi marcado por fatos muito relevantes. O mais importante foi o longo processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Nesse contexto, facções pró e contra o processo ocuparam com vigor a Casa, que passou a ser palco de inúmeras manifestações. No mesmo sentido, é importante lembrar que esse processo de impeachment foi precedido de uma atividade parlamentar atípica. Aqui nos referimos àquilo que a imprensa batizou de “pautas-bomba”. Essas pautas marcaram um período no qual o Executivo perdeu significativamente o seu poder de agenda nos trabalhos parlamentares, tendo a Mesa Diretora, os parlamentares, os partidos e as comissões assumido um protagonismo pouco comum da agenda. Esse período, como se sabe, foi resultado de duas causas básicas: i) as dificuldades do Executivo em administrar sua coalizão de governo; e ii) o conflito da coordenação política do Palácio do Planalto com o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, que se declarou desde o início de seu mandato como de oposição. Por esses motivos, no período pré-impeachment não foram raras as manifestações no interior do Parlamento, que passou a receber muitos grupos de interesse e manifestantes que, afetados direta ou indiretamente por essa pauta, procuravam participar e influir no processo decisório que envolvia proposições cujo conteúdo alterava significativamente o status quo. Assim, o que se observa é que esses dois anos foram bastante tumultuados na Câmara. O biênio foi marcado por muitas manifestações, que alteraram inclusive os procedimentos de segurança e de acesso ao Plenário, por exemplo. Todo o aparato para garantir a ordem nas atividades do Parlamento acabou dificultando o acesso às dependências da Casa e, à primeira vista, gerou maior demanda por credenciais. Cumpre registar que os dados do cadastro da Primeira-Secretaria inspiram cuidado. Embora úteis, não há razão para acreditar que eles retratam com precisão a magnitude dos múltiplos grupos de interesse que atuam na Câmara dos Deputados. Certamente este número está fortemente subestimado e é factível inferir que muitos outros interesses atuam ali, inclusive de maneira informal. Sobre esta atuação informal, infelizmente, não há informações precisas e seguras. De 174 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO todo modo, o uso dos dados se justifica porque a frequência bianual estabelecida para o recadastramento permite uma visão da evolução do cadastro numa longa série histórica. Além disso, ainda que o cadastro não seja obrigatório e, portanto, não impeça a atuação de assessores parlamentares e lobistas, o que gera indicadores apenas parciais, as vantagens do cadastramento (a emissão de um crachá de identificação que dá ao cadastrado credibilidade na abordagem ao parlamentar; o acesso facilitado às dependências fechadas do Congresso Nacional; o acesso privilegiado ao estacionamento e ao prédio do Congresso Nacional, por exemplo, em dias nos quais está fechado ao público; evitar passar pela revista e enfrentar filas) tendem a revelar os grupos de interesse que mantêm atividades permanentes e mais sistemáticas no Congresso Nacional. Estado e sociedade civil no Parlamento Considerando agora de forma mais criteriosa toda a série histórica dos dados da Primeira-Secretaria, ou seja, vendo separadamente a representação dos órgãos do próprio Estado e da sociedade civil, surgem outros padrões bastante interessantes. O mais significativo é o que mostra que a evolução da representação da sociedade civil cresce de forma um pouco mais acentuada em relação à representação dos órgãos de Estado (gráfico 2). Gráfico 2 Estado e sociedade civil na evolução do cadastro da Primeira-Secretaria da Câmara dos Deputados (1983-2016) 320 300 250 y = 12,311x - 18,037 R² = 0,7234 200 150 y = 4,428x + 9,845 R² = 0,90333 100 95 50 y = 0,9632x + 2,625 R² = 0,7548 0 Estado Soc. Civil outros Linear (Estado) Linear (Soc. Civil) Linear (outros) Fonte: dados da Primeira-Secretaria da Câmara dos Deputados (2017). Elaboração dos autores. 21 O Parlamento sob influência: transformações no Legislativo e na representação de interesses organizados (1983/2016) 175 A comparação da evolução do cadastramento dos três diferentes tipos de representação está demonstrada por três regressões lineares bivariadas (retas de regressão plotadas no gráfico 2). Da mesma forma que o modelo anterior, as regressões têm como variável independente o tempo (série histórica em biênios) e como variáveis dependentes a evolução do cadastro de entidades da sociedade civil, do Estado e de uma categoria residual denominada “outros”. Os resultados mostram que o incremento de um biênio na escala do tempo tem um efeito maior sobre o cadastramento da sociedade civil. No caso da representação dos órgãos e instituições de Estado, o incremento de um biênio na série histórica implica um aumento de 4,428, em média, de instituições cadastradas. Já no caso das entidades privadas e outras organizações da sociedade civil, o incremento de um biênio na série histórica implica um aumento, em média, de 12,311 organizações cadastradas. Por fim, na categoria “outros”, o incremento de um biênio na série histórica tem um impacto pouco relevante, representando um incremento de 0,963 novos cadastros em média. Todas as regressões apresentam um R2 ajustado bastante convincente, como se pode ver no gráfico 2, e os testes apresentam significância estatística satisfatória (99,9%). De fato, a interpretação do gráfico 2 sugere o resultado esperado, ou seja, um aumento significativo na representação de interesses no Congresso Nacional. No caso da sociedade civil, como a representação não tem limites, parece bastante coerente que seu incremento seja maior do que o incremento da representação dos órgãos do Estado, que está condicionado a limites institucionais. Mas efetivamente, o que se vê é que o crescimento deste último também é bastante acentuado. Mais uma vez aqui é possível identificar um crescimento exponencial no último biênio. Agora com os cadastros desagregados em três categorias, é possível ver mais claramente que esse crescimento está fortemente localizado nas organizações da sociedade civil. Esse dado ajuda a fortalecer a hipótese de que as atividades políticas induziram um aumento no número de cadastros, especialmente dos interesses organizados da sociedade civil. Esses dados, vistos em conjunto, ajudam a entender o ambiente político no qual os interesses organizados entram em ação no Parlamento. Resumidamente, os dados autorizam a afirmar que esse ambiente é cada vez mais competitivo, com diferentes grupos da sociedade civil em disputa por influência, inclusive com a 176 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO representação dos órgãos da burocracia estatal. Em suma, o Parlamento tem sido espaço de decisão e atuação política cada vez mais disputado. Considerando que o lobby e a representação sistemática de interesses têm custos elevados e exigem a mobilização de recursos por parte dos grupos de pressão, a mobilização cada vez maior desses grupos visando atuar no Parlamento parece um indicador relevante para confirmar, como já dito, as duas proposições que a literatura vem sugerindo. A primeira é que o Legislativo foi revalorizado pelos grupos de interesse e pelos representantes de órgão de Estado como espaço decisório, convertendo-se em uma arena política cada vez mais relevante. A segunda é que essa representação é cada vez mais plural. Contudo, o incremento no cadastro, visto de forma agregada, não mostra aspectos importantes. Outros achados interessantes podem ser registrados quando se verifica mais detidamente que existem diferenças relevantes na evolução da representação do Estado e da sociedade no Parlamento. A tabela 1 traz os valores desagregados por subtipos, referentes a três biênios – o primeiro da série (1983-1984) e os dois últimos. Ela traz, ainda, mais três indicadores que nos ajudam a pensar a evolução do cadastro de forma desagregada. O primeiro indicador é o incremento do cadastro considerando o primeiro biênio da série (1983-1984) e o último (2015-2016). Pode-se verificar que o incremento é realmente relevante, como já restou demostrado nos gráficos anteriores. O segundo é o incremento dos cadastros comparando apenas os dois últimos biênios (2013-2014 e 2015-2016). Apresenta-se essa comparação devido ao crescimento exponencial verificado entre os dois últimos biênios. Aqui, especificamente, pode-se verificar que o crescimento foi bem mais acentuado entre as organizações da sociedade civil, especialmente entre as associações livres. O mesmo pode ser observado na última coluna da tabela, que traz o maior valor encontrado em toda a série. Note-se que a maioria dos valores dessa coluna são os mesmos da coluna do último biênio, como, aliás, era de se esperar, dada a magnitude dos valores na última apuração dos dados. O Parlamento sob influência: transformações no Legislativo e na representação de interesses organizados (1983/2016) 177 Tabela 1 Órgãos do Estado e entidades da sociedade civil na evolução do cadastro da Primeira-Secretaria da Câmara dos Deputados (1983-2016) Incremento Incremento Biênios 1983- dois 1984 e últimos 2015-2016 biênios (c-a) (c-b) Maior valor da série Órgãos e entidades Estado Sociedade 19831984(a) 2013- 2015- 2014(b) 2016(c) Instituições financeiras 1 1 1 0 0 1 Agências reguladoras 0 7 9 9 2 9 Ministérios 12 27 28 16 1 28 Tribunais 0 6 8 8 2 16 Órgãos de controle 0 5 9 9 4 9 Conselhos 1 2 2 1 0 2 Secretarias ministeriais 0 7 13 13 6 13 Superintendências 2 0 1 -1 1 2 Fundações e institutos 1 9 8 7 -1 5 Departamentos 0 3 3 3 0 3 Governos subnacionais 0 0 0 0 0 1 Procuradorias 0 2 2 2 0 3 Outros 0 8 10 10 2 10 Total órg. de Estado 17 66 95 78 29 - Representação sindical 11 61 93 82 32 93 Associações livres 5 88 155 150 67 155 Movimentos sociais 0 0 1 1 1 1 Representação profissional 6 8 15 9 7 15 ONGs 0 0 18 18 18 18 Centrais sindicais 0 3 5 5 2 5 Conselhos 0 0 4 4 4 4 Fundações e institutos privados 0 0 10 10 10 10 Outros 4 8 19 15 11 19 Total sociedade civil 26 99 320 294 221 - 178 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Incremento Incremento Biênios 1983- dois 1984 e últimos 2015-2016 biênios (c-a) (c-b) Maior valor da série Órgãos e entidades Outros 19831984(a) 2013- 2015- 2014(b) 2016(c) Instituições financeiras 2 4 5 3 1 5 Grandes corporações 1 7 9 8 2 10 Fundações e institutos 0 1 0 0 -1 1 Outros 1 2 7 6 5 7 Total outros 4 14 21 17 7 - Fonte: dados da Primeira-Secretaria da Câmara dos Deputados (2017). Elaboração dos autores. Os números que mostram o incremento na representação de órgãos do Estado sugerem duas especulações sobre seus fatos geradores: a fragmentação do Executivo e a especialização da burocracia. Como se vê, o incremento do cadastramento entre o primeiro e o último biênio está concentrado no aumento do número de ministérios representados (incremento de 16 ministérios cadastrados) e das secretarias ministeriais (incremento de 13), assim como dos órgãos de controle (incremento de 9) e das agências reguladoras (incremento de 9). Outro aspecto que parece relevante é a participação do Judiciário, que entre o primeiro e o último biênio foi de 8 órgãos cadastrados. No que diz respeito à sociedade civil, a representação sindical e as associações livres representam a parte mais significativa do cadastro, acompanhadas das organizações profissionais e das ONGs – estas últimas, com representação bastante tímida. O aspecto interessante a observar é que as associações livres tiveram um incremento significativo em relação à representação sindical. Se observarmos a comparação entre o primeiro biênio (1983-1984) em relação ao último biênio da série (2015-2016), nota-se que apenas 5 associações livres estavam cadastradas no primeiro, e no último elas já somavam 155 cadastros. Um incremento, portanto, de nada menos que 150 cadastros entre o primeiro e o último biênio. O Parlamento sob influência: transformações no Legislativo e na representação de interesses organizados (1983/2016) 179 O que está denominado aqui como associações livres são organizações privadas (que reúnem nacionalmente associações locais e regionais) que se constituem para representar setores específicos e que se organizam “por fora” da representação sindical, seja patronal (setor produtivo), seja de trabalhadores ou servidores públicos. Elas poderiam ser chamadas também de entidades “extracorporativas”, pois não estão submetidas à legislação que regula a representação sindical. Mas, independentemente da nomenclatura, o mais importante a registrar é que essas associações representam interesses de segmentos que na maioria das vezes já têm representação sindical formal (via estrutura sindical regulada por lei). Portanto, o animus que leva a esta expressão associativa pode ser entendido como uma forma de organizar, paralelamente, interesses específicos na intenção de ver suas demandas consideradas. Elas são, portanto, a expressão do aumento do pluralismo. Se comparado o incremento deste tipo de representação com as entidades do sistema corporativista (entidades do sistema sindical nos três níveis, tais como sindicatos, federações e confederações), vê-se que a diferença é significativa, pois a representação sindical tem um incremento de 82 cadastramentos. Se tomados em conjunto, esses dados confirmam o aumento significativo do pluralismo, tal como sugere a literatura. Por fim, a tabela 1 mostra que a categoria residual diz pouco sobre o cadastro, mas ainda assim não deve ser desconsiderada. Embora o incremento seja muito mais discreto, ele existe e pode ser visto como um dado confirmatório da tese mais geral. A competição por influência e a representação dos órgãos de Estado Ao se verificar a tabela 1, observa-se que os números assinalam uma representação cada vez maior de órgãos do Estado no Parlamento. Os assessores parlamentares dos ministérios e dos órgãos de controle preponderam dentre os representantes estatais e sugerem um ambiente político no qual os interesses organizados atuam sob forte escrutínio e acompanhamento de diferentes setores do governo. É difícil, portanto, desconsiderar os impactos da presença da 180 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO burocracia estatal na competição por influência entre interesses, assim como nos resultados políticos que emergem do Legislativo. A presença cada vez maior de assessores dos ministérios no processo legislativo pode ter duas explicações que se complementam. A primeira diz respeito à fragmentação do Executivo e a segunda diz respeito à própria tese da revalorização do Legislativo como arena decisória relevante. No primeiro caso, pode-se sustentar que o incremento do cadastramento de assessores parlamentares dos ministérios reflete a fragmentação do Executivo. Esta fragmentação pode ser vista como consequência de dois fatores principais: um político e outro administrativo. Do ponto de vista político, a fragmentação que gera a ampliação do número de ministérios (e de secretarias com status de ministério) pode ser entendida como uma necessidade de acomodar as forças político-partidárias que compõem a base de apoio ao governo no Parlamento. Desta forma, o governo atende às necessidades políticas alocando ministérios segundo o critério partidário. Vários estudos já mostraram que a taxa de coalescência no presidencialismo de coalizão indica que, para tornar possível sua tarefa de governar, o Executivo tem que compartilhar o gabinete com os partidos que lhes dão sustentação no Parlamento (AMORIM NETO, 2000). A hipótese aqui parece tanto plausível quanto simples: a fragmentação partidária leva à fragmentação do Executivo, e isso por si já explicaria a presença de um número cada vez maior de assessores dos ministérios no processo legislativo. No que diz respeito à segunda explicação, a revalorização do Legislativo, a explicação é também autoevidente. Ela segue a mesma lógica argumentativa usada para os grupos de interesse, ou seja, os ministérios e demais órgãos de Estado (assim como os grupos de interesse) não mobilizariam recursos humanos e não canalizariam energia para o Parlamento se aquela arena não tivesse alguma relevância no processo decisório. Mesmo que o governo tenha um controle significativo sobre a agenda legislativa, como boa parte da literatura afirma, ele não pode contar somente com os líderes partidários da sua base para impedir que suas proposições sejam alvo de modificações significativas. Aliás, estudos recentes mostram que o Parlamento brasileiro tem uma atividade de emendamento nada desprezível. Essa atividade de emendamento pode, inclusive, ser pensada como proxy para medir a intensidade da ação dos grupos de interesses com relação a um determinado issue (SANTOS, 2011; FREITAS, 2013). O Parlamento sob influência: transformações no Legislativo e na representação de interesses organizados (1983/2016) 181 O mecanismo aqui sugerido pode ser descrito de duas formas. Uma proposição do governo afeta determinado grupo, que, alertado sobre as consequências da proposta sobre seus interesses, atua junto aos parlamentares para evitar ou minimizar os impactos negativos (emendando ou obstaculizando sua tramitação) ou potencializar os positivos (emendando ou agindo para acelerar o processo legislativo) (AMORIM NETO, 2002). Num segundo cenário possível, os grupos de pressão podem não contar com o apoio do governo para incluir na agenda política propostas de seu interesse. Nesse caso, uma alternativa é recorrer ao Legislativo para tentar introduzir na agenda suas demandas. A estratégia mais plausível aqui seria induzir um parlamentar ou comissão a iniciar proposições legislativas que contemplem essas demandas. O fato é que, em qualquer das duas formas sugeridas, o processo legislativo precisa ser monitorado de perto pelos assessores dos ministérios. Nesse sentido é que os órgãos de Estado devem ser vistos como elementos importantes na permanente disputa por influência no Legislativo. Mas os assessores parlamentares dos ministérios não são os únicos a acompanhar o processo legislativo. A tabela 1 mostra que além deles tem-se também o aumento no cadastro de órgãos de controle (incremento de 5) e das agências reguladoras (incremento de 7). Contudo, a presença desses órgãos precisa ser explicada de outra forma. No que diz respeito às agências reguladoras, o argumento é simples. Elas passam a aparecer no cadastro porque simplesmente não existiam antes de 1995. Portanto, os dados sugerem que aspectos gerenciais (e não políticos) relativos à reforma do Estado são os fatores explicativos. De maneira complementar, pode-se afirmar também que os órgãos de controle passaram a ter recentemente um protagonismo cada vez maior no processo político brasileiro. Polícia Federal, ABIN, Controladoria-Geral da União, entre outros são exemplos de entidades que recentemente se cadastraram na Câmara dos Deputados. Mas, qualquer que seja o motivo e a explicação para o incremento do cadastro, o ponto principal é que a afirmação de que o Legislativo é um espaço de disputa política relevante está mantido. As audiências públicas na Câmara dos Deputados Observamos, até o momento, que a representação dos grupos de interesse foi intensificada na Câmara dos Deputados, o que sinaliza a importância do 182 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Parlamento brasileiro na arquitetura político-institucional do país. Com vistas a reforçar esse argumento, trazemos a lume dados das audiências públicas realizadas na Câmara dos Deputados. As audiências públicas, previstas na Constituição Federal, são realizadas no âmbito das comissões temáticas e envolvem o convite a pessoas e organizações para que exponham suas opiniões e debatam sobre determinado tema. As comissões são um espaço extremamente importante para a participação e atuação dos grupos de interesse. De fato, conforme aponta Santos (2014a), com o controle maior exercido pelo Executivo no Plenário, no tocante à pauta de votações, a capacidade de influência dos grupos de interesse é potencializada nas comissões. Nesse sentido, a realização e a participação em audiências públicas emergem como relevantes estratégias de atuação dos grupos de interesse. E é justamente isso que os dados revelam. Analisando todas as audiências públicas em 20 comissões nas 52a, 53a e 54a legislaturas (2003 a 2015),73 conforme o gráfico abaixo, observa-se que há uma tendência de aumento contínuo desse tipo de instrumento de participação social – o incremento médio do número de audiências públicas por ano é de 9,660. Gráfico 3 Número de audiências públicas realizadas por ano (2003-2014) 550 y = 9,6084x + 250,05 R² = 0,0822 450 350 250 150 50 -50 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 Fonte: base de dados UFMG e Ipea. Elaboração dos autores. 73 Dados coletados pelo Centro de Estudos Legislativos-UFMG em parceria com o Ipea (2017). O Parlamento sob influência: transformações no Legislativo e na representação de interesses organizados (1983/2016) 183 De forma correspondente, como seria de se esperar, o número de participantes dessas audiências públicas apresenta aumento significativo, de 71,71 por ano. Importante chamar a atenção para o fato de que existe uma sazonalidade na séria histórica. Ela é marcada pela queda substantiva de audiências públicas e de participantes em anos eleitorais, como era de se esperar, dado que a atividade parlamentar diminui nos anos nos quais os parlamentares precisam estar mais envolvidos com as eleições do que com os trabalhos parlamentares. Note-se, ainda, que a diminuição é ainda mais acentuada nos anos eleitorais nos quais os parlamentares estão envolvidos diretamente com sua reeleição. Os anos das eleições gerais (2006, 2010 e 2014). Gráfico 4 Número de participações em audiências públicas por ano (2003-2014) 2500 y = 71,71x + 950,3 R² = 0,2029 2000 1500 1000 500 0 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 Fonte: base de dados UFMG e Ipea. Elaboração dos autores. O próximo gráfico ajuda a interpretar, com outro indicador, o crescimento da participação. Esse indicador é a razão entre o número de participantes e o número de audiências. Nele se pode ver mais claramente que o acesso dos grupos de interesse apresenta uma tendência de crescimento. No início da série, a razão era de 3,9 grupos por audiência; ao final, já passa para 4,7. Em média, o incremento é de 0,08 por ano, totalizando 0,8 ao longo de 10 anos. 184 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Gráfico 5 Razão entre número de participações e número de audiências (2003-2014) 5,5 y = 0,0858x + 3,9747 R² = 0,504 5 4,724 4,5 4 3,918539326 3,5 3 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 Fonte: base de dados UFMG e Ipea. Elaboração dos autores. É plausível supor que o aumento no número de audiências públicas, participações e acesso ocorra, dentre outros fatores, por pressão dos próprios grupos sociais, interessados em ter maior participação no processo legislativo. Novamente, tal movimento não ocorreria se não houvesse a percepção, por parte desses grupos, de que a influência pode, de fato, ser exercida nesses espaços. Tal argumentação torna-se mais clara quando se tem em mente que as comissões, órgãos que realizam essas audiências, têm sido a expressão maior do fortalecimento do Legislativo vis-à-vis o Poder Executivo. Nesse sentido, o incremento desse mecanismo participativo soma como mais um fator a demonstrar o revigoramento do Parlamento brasileiro. Se identificamos, por um lado, a revalorização do Legislativo brasileiro, que passa a ser objeto de intensa atuação dos grupos de interesse, por outro, a observação mais atenta do tipo de representação existente no Parlamento sugere mudanças importantes no próprio modelo de interação entre Estado e sociedade no país. A essa discussão nos dedicamos doravante. O Parlamento sob influência: transformações no Legislativo e na representação de interesses organizados (1983/2016) 185 Transformações no sistema de representação de interesses no Brasil e o Parlamento As mudanças nos padrões de relação entre Estado e sociedade nos últimos 30 anos no país foram significativas. Estudos recentes mostram que o sistema de representação de interesses no Brasil migrou de um modelo corporativista para um modelo híbrido, que combina representação sindical com um pluralismo cada vez mais acentuado. Assim, o fortalecimento das organizações sociais e a migração de um modelo corporativista (assentado na representação sindical) para um modelo híbrido (que combina tradicionais instituições corporativistas com um pluralismo cada vez mais acentuado) sugerem novas interpretações sobre o papel dos grupos de interesse no processo decisório. Como há bastante tempo já afirmaram Diniz, Boschi e Santos (1993b), as transformações ocorridas nos últimos anos sugerem uma sociedade civil cada vez mais robusta, assim como uma mudança em direção à consolidação de um sistema híbrido de representação de interesses, no qual as lógicas pluralista e corporativista convivem em permanente combinação. Nesse contexto, a representação de interesses da sociedade junto ao Estado, que tem nas ações de lobby uma de suas expressões mais significativas, assume diferentes formas. Significa dizer que particularmente o aumento do pluralismo, que promove a competição por influência entre interesses múltiplos, acaba dando novos contornos ao contexto político. O aumento e a diversificação das organizações sociais acabam por gerar competição por influência, levando ao aprofundamento e à intensificação das ações de lobby. Ações que se caracterizam, diferentemente do modelo corporativista de negociações centralizadas e tripartites, pela preponderância de estratégias mais atomizadas de representação de interesses. Dado este pluralismo crescente, o Parlamento passa a ser também um espaço de atuação relevante. Evidências sugerem que esta forma atomizada não se apresenta como única, nem mesmo predominante. O pluralismo, na verdade, convive lado a lado com formas corporativistas, como as negociações centralizadas no Executivo (do tipo tripartite). De forma resumida, o sistema de representação de interesse que hoje se observa pode ser interpretado como “resultado da persistência de velhas práticas políticas corporativistas, de um legado de executivos fortes e da expansão 186 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO de um pluralismo particularmente incrementado com o empoderamento do Congresso Nacional no pós-88” (GOZETTO; THOMAS, 2014). Esse quadro, portanto, sugere um complexo processo decisório que precisa pensar a arena legislativa de pelo menos duas formas interligadas: como uma extensão da disputa no Executivo e como caminho alternativo (o lobby) para a inclusão de temas de interesses específicos na agenda política. Este cenário exige dos interesses organizados estratégias de dois tipos: a primeira é maximizar as vantagens da representação corporativista aliada às oportunidades da representação plural; a segunda é ampliar a mobilização de recursos no sentido de profissionalizar as atividades de lobby. A seguir serão mobilizados dados que oferecem evidências nos dois sentidos. A representação da sociedade: corporativismo, pluralismo e interesses difusos A tabela 1 mostra que a representação de interesses da sociedade se dá predominantemente por duas formas mais frequentes: associações livres (extracorporativas) e sindicatos. Este será, portanto, o foco priorizado nesta seção. Mas como estas não são as únicas formas de representação de interesses da sociedade no Parlamento, adicionalmente serão sugeridas possíveis hipóteses explicativas para a tímida representação das organizações não governamentais e demais formas de organização. Corporativismo vs pluralismo O padrão de evolução do cadastro mostra uma dinâmica bastante compatível com as recentes transformações do sistema de representação de interesses apontadas pela literatura. Seguindo os números da tabela 1, seguramente o ponto que merece mais destaque nesta análise é a evolução da representação plural vis-à-vis a representação sindical. A literatura, embora reduzida, aponta que este fenômeno é resultado das transformações que impuseram mudanças significativas no sistema de representação de interesses no Brasil. A partir de uma dupla chave analítica, alguns autores propõem duas teses complementares. A primeira diz respeito às mudanças O Parlamento sob influência: transformações no Legislativo e na representação de interesses organizados (1983/2016) 187 institucionais no processo decisório, antes marcado por negociações nos moldes corporativistas (ou neocorporativistas, se preferir). Neste modelo, as decisões sobre as políticas macroeconômicas e de desenvolvimento tinham como espaço privilegiado o Executivo. O modelo de negociação era centralizado e envolvia geralmente negociações tripartites (governo, trabalhadores e empresários). A segunda considera a variável econômica, isso é, as transformações no modelo de desenvolvimento econômico, marcado pela abertura de mercado em contraposição ao modelo de industrialização por substituição de importação. A modernização da economia gera especialização e fragmentação no setor produtivo e, consequentemente, uma representação de interesses cada vez mais setoriais. Por outro lado, as mudanças no marco legal que regula o mercado e as condições econômicas e infraestruturais de vários setores ocorridas a partir dos anos 90 ajudam a entender por que setor produtivo e trabalhadores mudaram de estratégia na forma de fazer política. Basicamente, diante do novo ambiente, os empresários buscavam sobrevivência e os trabalhadores, a manutenção dos postos de trabalho e a efetivação dos direitos adquiridos. As implicações desses fatos para a representação de interesses e sua relação com o Estado podem ser resumidas no termo cunhado por Diniz e Boschi que sugere a “desconstrução da ordem corporativa”, gerando novos padrões de relacionamento entre Estado e sociedade. A consequência mais evidente disto, segundo os autores, foi o aumento do pluralismo como expressão da diferenciação social. Segundo Diniz e Boschi (2004), o momento decisivo na desconstrução do modelo corporativista de negociação foi a mudança empreendida pelo governo Collor, “quando foram eliminados os espaços de negociação corporativa no interior do aparelho executivo do Estado” (DINIZ; BOSCHI, 2004). Nas palavras dos autores, [...] na medida em que tal entrecruzamento resulta de características ligadas ao padrão preexistente de diferenciação da estrutura de representação de interesses e de sua articulação com o estado, observa-se a emergência de um sistema híbrido. Antigos interesses organizados sob o modelo corporativo, bem como novos grupos de interesse assumindo formatos mais pluralistas se combinam em uma estrutura fragmentada, que busca formas de se articular com o estado. (DINIZ; BOSCHI, 2004) O gráfico 3 mostra a evolução do cadastro das entidades da sociedade civil, contrastando a presença da representação sindical (corporativista) com as 188 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO associações livres (pluralista). A mesma metodologia dos gráficos anteriores foi aqui replicada. As regressões bivariadas mostram uma tendência de crescimento constante entre a representação das associações livres em contraste com a representação sindical, sendo significativamente mais acentuado entre as primeiras. Este dado sugere uma tendência que confirma o aprofundamento da conformação de um modelo híbrido de representação, tanto plural quanto corporativa. O incremento de um biênio na série histórica implica o crescimento de 6,220 cadastramentos, em média, de associações livres (R2=0,723; significância estatística de 99,9%). Para a representação sindical, o incremento da mesma unidade representa em média o crescimento de 4,056 cadastros (R2=0,837; significância estatística de 99,9%). Gráfico 6 Evolução da representação sindical e das associações livres (1983-2016) 180 160 155 140 120 100 y = 6,2206x - 14,397 R² = 0,7231 93 80 60 40 y = 4,0564x - 2,8603 R² = 0,8377 20 0 -20 Rep. Sindical Associações livres Linear (Rep. Sindical) Linear (Associações livres) Fonte: dados da Primeira-Secretaria da Câmara dos Deputados. (2017). Elaboração dos autores. Quanto à tese da efetiva desconstrução da ordem corporativista, o fato é que o gráfico mostra uma diferença pequena na evolução do cadastro das associações em relação aos sindicatos. Assim, se o pluralismo é de fato inevitável e tão forte, a expectativa seria que a representação plural (associações livres) fosse incrementada de forma mais significativa, visto que os sindicatos têm limitações impostas por lei para a sua constituição (tais como as regras da unicidade e da territorialidade sindicais), ao passo que as associações são de livre constituição. O Parlamento sob influência: transformações no Legislativo e na representação de interesses organizados (1983/2016) 189 Nesse sentido, a tese da efetiva “desconstrução da ordem corporativista” fica à espera de maiores evidências, cabendo dar melhor interpretação aos dados. Provavelmente, a frustrada expectativa com relação aos dados sugere outra intepretação. Esta interpretação se fundamenta na legislação brasileira que regula a representação sindical. Ela foi marcada, desde os anos 1930, por um modelo hierárquico e centralizado, permitindo inclusive o controle do Estado sobre a organização sindical. De fato, a Constituição de 1988 traz muitas mudanças, como o direito de livre organização (art. 5º) e a liberdade sindical (garantida pela CLT), mas não elimina por completo as estruturas corporativistas antigas. Assim, embora atenuada, a organização do sistema sindical continua regida pelo princípio da unicidade sindical. Esse princípio determina que um único sindicato representará uma categoria profissional (para o caso dos trabalhadores) e uma categoria econômica (para o caso das empresas). Desta forma, embora a filiação de uma empresa ou de um trabalhador a um determinado sindicato não seja obrigatória desde 1988, as categorias se agrupam por força de lei, tanto no caso dos trabalhadores como dos empresários, atando-as a um modelo com fortes traços herdados do corporativismo. Por outro lado, embora o imposto e a filiação sindical não sejam compulsórios desde 1988, a manutenção da contribuição sindical compulsória constitui-se como mais um ponto de amarração deste sistema, uma vez que garante os recursos para a organização e mobilização de interesses, contribuindo para que os sindicatos superem os típicos problemas de ação coletiva que, em regra, afetam os grupos de pressão. A interpretação aqui defendida sugere que, ao invés de uma contradição, essa é justamente a chave para entender a configuração do sistema híbrido. Ou seja, de um lado a manutenção das estruturas corporativistas oferece os elementos necessários para dotar os sindicatos, federações e confederações com lideranças de verdadeiros empreendedores políticos capazes de superar os dilemas de ação coletiva. Segundo Geddes (1994), Political entrepreneurs are individuals who, because of their connection with a government or some other organization, such as a party or a union, can further their own individual interests by “selling” public goods to some group of individuals in exchange for their support. (GEDDES, 1994) 190 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO A referência ao empreendedorismo político aqui é retirada de Mancuso (2007b). Na percepção do autor, diante da mudança de contexto e dispondo dos recursos procedentes dos pilares tradicionais do sistema, a estrutura corporativista [a CNI] mostrou-se capaz de assumir o papel do “empreendedor político” – ou seja, o ator que decide, por conta própria, assumir o custo necessário para deflagrar e organizar a ação coletiva, com vistas à provisão do benefício desejado por todos. De outro lado, a liberdade de associação e os aspectos econômicos levaram a uma diferenciação social cada vez maior, induzindo a representação de interesses setoriais e acentuando o pluralismo. Sindicatos e associações livres devem ser vistos, portanto, como dois lados de uma mesma moeda, que tem em uma de suas faces o corporativismo e na outra, o pluralismo. Como conclusão, confirma-se a tese do hibridismo no sistema de representação de interesses no Brasil, acentuado depois de 1988, sugerindo a atenuação do termo colocado pela literatura, que anuncia “a desconstrução da ordem corporativista”, uma vez que seus elementos continuam presentes. Organizações não governamentais e interesses difusos A tabela 1 revela que praticamente não houve aumento da presença de organizações não governamentais e de representação profissional no cadastro da Primeira-Secretaria – pelo menos não no mesmo padrão e intensidade incremental encontrados entre sindicatos e associações. Nesse sentido, os dados aqui também causam certa frustração, porque se esperava uma presença mais significativa dos movimentos sociais,74 já que a sociedade civil é a cada dia mais robusta no Brasil. 74 Até agora, todas as organizações cadastradas foram tratadas como grupos de interesse, interesses organizados ou grupos de pressão, indistintamente. Contudo, é importante qualificar o termo “movimentos sociais”, porque aqui ele tem significado relevante para nossa análise. Assume-se a diferenciação sugerida por Thomas (2004): i) grupos de pressão “são grupos organizados em torno de uma issue, ou um conjunto delas, visando interesses particulares ou para a sociedade como um todo, mas que não tem interesse em chegar ao poder a ponto de assumir o controle da máquina governamental”; ii) já os movimentos socais “tentam emplacar visões mais amplas e gerar mudanças sociais mais profundas (usualmente em favor de grandes segmentos desfavorecidos da população) e/ou, defende questões específicas (como o movimento negro, os ambientalistas e as feministas); e iii) por último, os partidos políticos devem ser vistos como “uma coleção de grupos de interesses que se alimenta da energia desses grupos e movimentos, com o objetivo de ganhar as eleições e assumir o controle do Governo” (THOMAS, 2004 apud SANTOS, 2011, p. 17). O Parlamento sob influência: transformações no Legislativo e na representação de interesses organizados (1983/2016) 191 De fato, pesquisa recente denominada O Perfil das Fundações Privadas e Associações, realizada em 2010 pelo IBGE, mostra números inequívocos da robustez e do crescimento das Fundações Privadas e Associações sem Fins Lucrativos (Fasfil). A pesquisa indica que, em 2010, as 290,7 mil Fasfil representavam 5,2% do total de entidades públicas e privadas existentes em todo o país. Segundo essa publicação, [...] uma análise geral mostra que as atividades desenvolvidas por essas instituições revelam sua enorme diversidade, entre as quais se destacam as entidades voltadas para a defesa de direitos e interesses dos cidadãos (30,1%) e as religiosas (28,5%). Atuando nas áreas tradicionais de políticas públicas de Saúde, Educação e pesquisa e Assistência social encontram-se apenas 18,6% dessas entidades. (IBGE, 2012) Porém, mesmo diante desse quadro, a série mostra uma presença mínima dos movimentos sociais cadastrados na Câmara dos Deputados, sugerindo que não vem evoluindo a participação sistemática desses grupos, pelo menos no que diz respeito à sua atuação registrada no Congresso Nacional. Quatro hipóteses, não mutuamente excludentes, são sugeridas como possíveis interpretações para esses dados. A primeira diz respeito ao fato de que os interesses desses grupos são em geral difusos, o que os levaria a concluir que se cadastrar não representa uma vantagem, visto que eles atuam esporadicamente, apenas em momentos nos quais os grandes temas estão mais fortemente considerados na agenda política. A segunda diz respeito à sua baixa capacidade de influência e seus escassos recursos para a atuação sistemática e permanente. Sabe-se que estratégias de atuação que contemplem um lobby mais estruturado e sistemático custam caro, e esses grupos menos influentes e detentores de menos recursos talvez não tenham as condições objetivas para manter um acompanhamento permanente das atividades políticas. Em suma, para essas organizações, os custos de mobilização estão além de suas capacidades. A terceira hipótese refere-se à organização de movimentos e organizações da sociedade civil face aos requisitos burocráticos exigidos para o cadastramento na Primeira-Secretaria. Frequentemente, a atuação desses grupos ocorre de maneira concertada, em coalizão, de forma a reduzir os custos de mobilização e potencializar a influência exercida. Uma frente de ONGs ou movimentos sociais, por exemplo, poderia ter dificuldades para se registrar na Câmara dos Deputados por diversas razões: i) apenas entidades plenamente constituídas e detentoras 192 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO de um CNPJ podem se cadastrar; ii) somente entidades de âmbito nacional têm direito a esse benefício; e iii) apenas um representante por organização faz jus ao credenciamento. Por fim, a quarta hipótese aposta numa explicação baseada na escolha de uma estratégia diferenciada por parte dos movimentos sociais. A ideia é que esses movimentos não desenvolvem exatamente ações de lobby, mas sobretudo apostam na mobilização coletiva como estratégia dominante. Portanto, a forma de participar, para esses grupos, seria o engajamento frequente em atividades de mobilização política que não podem ser desconsideradas – diversas entidades vêm denominando essa atuação de advocacy. De fato, as ONGs e as associações profissionais (juntamente com sindicatos e outras formas de organização social) estão frequentemente presentes em mobilizações e atos políticos que de alguma maneira podem representar, pelo menos para elas, a estratégia de participação e de influência política mais eficiente. Obviamente essas atividades não podem ser consideradas como lobby propriamente dito, mas não resta dúvida de que têm relevância no processo decisório. De toda forma, as estratégias de atuação desses grupos no Parlamento carecem de melhores explicações e devem ser foco de estudos mais aprofundados. Outros interesses representados Por fim, cabe analisar a categoria remanescente de grupos de interesses, as grandes corporações e empresas (incremento de 10 entre o primeiro e o último biênio, conforme a tabela 1). Na verdade, essas organizações privadas não podem – num sentido estrito – ser tratadas como grupos de interesses propriamente ditos. Elas são sobretudo corporações e empresas de grande porte, e pelo menos em termos hipotéticos, trabalham em “faixa própria”, atuando cada vez mais no âmbito do Legislativo. No cadastro aparecem organizações como a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba, a Companhia Hidrelétrica do São Francisco, a Companhia Vale do Rio Doce, a Eletronuclear (Eletrobrás Termonuclear), a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, a Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária, Furnas Centrais Elétricas S.A., Itaipu Binacional, Petrobrás, Telecomunicações Brasileiras S.A, entre outras. O Parlamento sob influência: transformações no Legislativo e na representação de interesses organizados (1983/2016) 193 Como se pode observar, trata-se, majoritariamente, de empresas públicas, o que ajuda a explicar a estratégia não associativa, comum e cada vez mais relevante para as empresas privadas. Assim, pode-se afirmar que esses casos são residuais e confirmam a tendência geral de as empresas privadas servirem-se de sindicatos ou associações livres para sua representação junto ao Poder Legislativo. Este é o quadro descritivo sugerido pelos dados sobre o ambiente no qual se dá a disputa por interesses na arena legislativa. Um ambiente marcado pela competição por influência política cada vez mais acirrada e por um pluralismo de interesses cada vez mais acentuado. Conclusões Este capítulo mostrou que as mudanças institucionais recentes no âmbito do Parlamento brasileiro têm efeitos que vão além da imbricação entre Executivo e Legislativo, tratada em diversos textos desta obra, afetando também as relações entre Congresso e sociedade. O revigoramento recente do Poder Legislativo no país impactou a atuação dos grupos de interesse, que passaram a valorizar crescentemente a esfera legislativa. Com todas as limitações existentes no cadastro da Câmara dos Deputados, os dados são inequívocos ao revelar que o Legislativo tem se consolidado como uma arena decisória cada vez mais relevante, de tal forma que múltiplos interesses têm ocupado esse espaço político. Se antes, no período ditatorial, ao se tratar de interesses organizados, falava-se recorrentemente em anéis burocráticos (CARDOSO, 1975), cujo eixo gravitacional era o Poder Executivo, é preciso que nossos olhares, cada vez mais, tenham um foco duplo, observando e investigando o papel e a atuação dos interesses organizados também no Poder Legislativo. Do ponto de vista normativo, é fundamental que se pense, nesse cenário, em como potencializar essa participação social, fruto e conquista da redemocratização, ao mesmo tempo em que se busca incentivar e resguardar o maior equilíbrio possível na atuação dos grupos de interesse junto ao Poder Legislativo. Buscamos mostrar também que, paralelamente ao fortalecimento do Parlamento, as mudanças na sociedade e economia brasileiras nas últimas décadas alteraram 194 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO o padrão de relação entre Estado e sociedade, com um crescente pluralismo na representação de interesses. Conjugado à histórica estrutura corporativa do país, vislumbra-se um modelo de representação de interesses complexo e multifacetado, permeado por um número cada vez maior de organizações que oferecem, na mesma proporção, uma grande quantidade de inputs ao sistema político. O significado desse modelo híbrido de representação e as possíveis diferenças na atuação das organizações dos distintos modelos são temas de alto interesse e merecem ser aprofundados em novos estudos. Referências ALMEIDA, A. S. (2015). Processo legislativo: mudanças recentes e desafios. Boletim de Análise Político-Institucional, Brasília, n. 7. AMES, Barry (2013). Os entraves da democracia no Brasil. Rio de Janeiro: FGV Ed. AMORIM NETO, Octavio (2000). Gabinetes presidenciais, ciclos eleitorais e disciplina legislativa no Brasil. Dados: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 43, n. 3, p. 479-519. ______ (2002). Governos de coalizão e mecanismos de alarme de incêndio no controle legislativo de medidas provisórias. Dados: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 45, n. 1, p. 5-38. BAIRD, Marcello Fragano (2016). O lobby na regulação da publicidade de alimentos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 24, n. 57, mar. ______ (2017). Redes de influência, burocracia, política e negócios na Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Tese (Doutorado) – Departamento de Ciência Política, USP, São Paulo. ______; FERNANDES, I. F. A. L. (2014). Flying in clear skies: technical arguments influencing Anac regulations. Brazilian Political Science Review, v. 8, p. 70-92. O Parlamento sob influência: transformações no Legislativo e na representação de interesses organizados (1983/2016) 195 CARDOSO, Fernando Henrique (1975). Autoritarismo e democratização. Rio de Janeiro: Paz e Terra. DINIZ, Eli; BOSCHI, Renato (1999). O Legislativo como arena de interesses organizados: a atuação dos lobbies empresariais. Locus Revista Histórica, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, p. 7-32. ______; ______ (2004). Empresários, interesses e mercado: dilemas do desenvolvimento no Brasil. Belo Horizonte: Ed. UFMG; Rio de Janeiro: Iuperj. ______; ______; ______ (1993a). Lideranças Empresariais e Problemas da Estratégia Liberal no Brasil. Dados: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 8, n. 23. ______; ______; ______ (1993b). Elites políticas e econômicas no Brasil contemporâneo: a desconstrução da ordem corporativa e o papel do Legislativo no cenário pós-reformas. Rio de Janeiro: Konrad Adenauer. FIGUEIREDO, Argelina; LIMONGI, Fernando (2001). Executivo e Legislativo na nova ordem constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: FGV Ed. FREITAS, Andréa (2013). O presidencialismo da coalizão. Tese (Doutorado) – Departamento de Ciência Política, USP, São Paulo. GEDDES, B. Politician’s dilemma: building state capacity in Latin America. Berkley and Los Angeles: Univ. of California Press, 1994. GOZETTO, Andréa Cristina Oliveira; THOMAS, Clive S. (2014). Interest groups in Brazil: a new era and its challenges. Public Affairs, v. 14, n. 3/4, p. 212-239. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (2012). As fundações privadas e associações sem fins lucrativos no Brasil: 2010, estudos e pesquisas. Informação Econômica, n. 20. LAMOUNIER, B (1991). Parlamentarismo, sistema eleitoral e governabilidade. Nova economia, v. 2, n. 2, p. 9-25. 196 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO MAINWARING, S. (2001). Sistemas partidários em novas democracias: o caso do Brasil. Rio de Janeiro: FGV Ed.; Porto Alegre: Mercado Aberto. MAINWARING, S. Multipartism, robust federalism, and presidentialism in Brazil. In: MAINWARING, S.; SHUGART, M. S. (Ed.). Presidentialism and democracy in Latin America. New York: Cambridge Univ. Press, 1997. MANCUSO, Wagner Pralon (2003). Construindo leis: as construtoras e as concessões de serviços. Lua Nova: Rev. de Cultura e Política. ______ (2005). O lobby e democracia no Brasil. ComCiência, n. 67. ______ (2007a). O empresariado como ator político no Brasil: balanço da literatura e agenda de pesquisa. Rev. Sociol. Política, Curitiba, v. 28, p. 131146, jun. ______ (2007b). O lobby da indústria no Congresso Nacional: empresariado e política no brasil contemporâneo. São Paulo: Edusp. ______ (2010). Buying power in the Brazilian Congress? The influence of business campaign contributions on the electoral success and the parliamentary behavior of “paulistas” federal deputies, 2003-2010. In: LATIN AMERICAN STUDIES ASSOCIATION INTERNATIONAL CONGRESS, 29., 2010, Toronto. [Proceedings...]. Pittsburgh, PA: LASA. MENEGUELLO, Rachel (1998). Partidos e governos no Brasil contemporâneo: 1985-1997. São Paulo: Paz e Terra. MÜLLER, Gustavo (2005). Comissões e partidos políticos na Câmara dos Deputados: um estudo sobre os padrões partidários de recrutamento para as comissões permanentes. Dados: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 48, n. 1, p. 371-394. PEREIRA, Carlos; MUELLER, Bernardo (2000). Uma teoria da preponderância do Poder Executivo: o sistema de comissões no Legislativo brasileiro. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 15, n. 43, jun. SANTOS, F. (2002). Partidos e comissões no presidencialismo de coalizão. Dados: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 45, n. 2. O Parlamento sob influência: transformações no Legislativo e na representação de interesses organizados (1983/2016) 197 SANTOS, F. G. (2011); ALMEIDA, A. Fundamentos informacionais do presidencialismo de coalizão. São Paulo: Appris. SANTOS, Manoel Leonardo (2011). O Parlamento sob influência: o lobby da indústria na Câmara dos Deputados. 2011. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife. ______ (2014a). Representação de interesses na Câmara dos Deputados: o lobby e o sucesso da Agenda Legislativa da Indústria. Revista Iberoamericana de Estudos Legislativos, v. 1, p. 52-70. ______ (2014b). Representação de interesses na arena legislativa: os grupos de pressão na Câmara dos Deputados, 1983-2012. Brasília: Ipea. p. 7-39. (Texto para Discussão; v. 1975). ______; BATISTA, Mariana; FIGUEIREDO FILHO, Dalson Britto; ROCHA, E. C. (2015). Financiamento de campanha e apoio parlamentar à agenda legislativa da indústria na Câmara dos Deputados. Opinião Pública, v. 21, p. 33-59. ______; MANCUSO, Wagner; BAIRD, Marcello; RESENDE, Ciro (2017). O lobby no Brasil: profissionalização, estratégias e influência. Brasília: Ipea. (Textos para Discussão; n. 2334). THOMAS, Clive S. (Ed.) (2004). Research guide to US and international interest groups. Westpost, CT: Praeger Publ. Parte II Os partidos em movimento 201 Por que chegamos a tanto e que importância isso tem? Considerações sobre a fragmentação partidária no Brasil Carlos Ranulfo Melo Introdução Desde 2010, o Número Efetivo de Partidos (NEP) na Câmara dos Deputados mantém-se acima dos dois dígitos. Este capítulo aborda o problema tendo em vista dois objetivos. O primeiro é o de reconstituir a trajetória ascendente do NEP. O segundo, discutir o impacto de seu crescimento sobre o sistema político brasileiro. São dois os argumentos desenvolvidos. Em primeiro lugar, sustenta-se que o crescimento da fragmentação no Brasil não pode ser explicado com base em uma única variável independente, exigindo, pelo contrário, a mobilização de outros fatores intervenientes. Em um segundo momento, o capítulo mostra que o principal problema enfrentado pela democracia brasileira, no que se refere à composição do sistema partidário, não se encontra no elevado número de pequenos partidos, mas no fato de que progressivamente as maiores legendas deixaram de ser “grandes” e a Câmara passou a ser composta por expressivo número de partidos de porte médio. A consequência seria a necessidade de coalizões não apenas mais ampliadas, mas compostas por elevado número de parceiros dotados de força legislativa semelhante – o que potencializa o poder de chantagem de cada um deles e fragiliza o partido formador, dificultando a coordenação da base governista. O tema da fragmentação partidária há muito faz parte das discussões sobre o sistema político e partidário brasileiro. No Congresso, medidas como a adoção de uma cláusula de barreira e a proibição de coligação para as eleições proporcionais estiveram por diversas vezes na pauta. Em 1995, uma cláusula de 5% chegou a ser aprovada, mas foi declarada inconstitucional pelo STF em 2006. Pesquisas realizadas pelo Centro de Estudos Legislativos do Departamento de 202 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Ciência Política da UFMG mostraram que a partir de então cresceu o apoio a medidas que pudessem conter a fragmentação. No período 2007-2011, 72% dos deputados entrevistados posicionaram-se favoravelmente a uma cláusula de 2%. Na legislatura 2011-2015, o percentual subiu para 86%. Nos mesmos períodos, o apoio às coligações proporcionais, tais como realizadas no país, caiu de 49,1% para 21,3%. Não obstante, em 2015, quando os deputados voltaram a debater o tema, as coligações sobreviveram e a cláusula de desempenho aprovada mantinha o acesso ao Fundo Partidário e ao Horário Gratuito Político Eleitoral a todos os partidos que tivessem conseguido eleger ao menos um representante para uma das casas do Congresso. A proposta não tinha qualquer efeito prático e sequer chegou a ser discutida no Senado. Somente em 2017 o Congresso Nacional conseguiu alterar o status quo legal e aprovou: i) a proibição de coligações nas eleições proporcionais a partir de 2022; ii) a introdução de uma cláusula de desempenho como condição para acesso aos recursos do Fundo Partidário e ao Horário Gratuito no rádio e na TV; e iii) o fim do quociente eleitoral como cláusula de barreira nos estados. Ficou estabelecido que o percentual de votos exigido aumentaria com o tempo: 1,5% dos votos válidos para a Câmara dos Deputados em 2018; 2,0% em 2022; 2,5% em 2026; e, finalmente, 3,0% em 2030. A votação recebida terá que estar distribuída pelo território nacional de modo a alcançar pelo menos 1,0% em nove estados em 2018 e em onze em 2022. Caso a cláusula não seja atingida, o partido deverá eleger 9 e 11 deputados, respectivamente, no mesmo número de estados. Em 2026 e 2030, a votação deverá estar distribuída em nove estados com um mínimo de 1,5% e 2,0%, respectivamente, em cada. Novamente, a alternativa será a eleição de 13 deputados e 15 deputados, a depender do ano, sempre em nove estados. Este capítulo retoma a discussão sobre a fragmentação partidária analisando o período entre 1986 e 2018. Na próxima seção, se tratará de explicar porque chegamos a tamanha fragmentação ou, em outras palavras, serão discutidas as relações causais existentes no processo. Para tanto, será descrita a trajetória do NEP – apontando os seus momentos-chave – e analisada sua interação com fatores como o sistema eleitoral, o grau de estruturação do sistema partidário, a legislação eleitoral e partidária e a movimentação da elite política no interior do quadro partidário. A seguir o texto se voltará para as implicações de tal pro- Por que chegamos a tanto e que importância isso tem? Considerações sobre a fragmentação partidária no Brasil 203 cesso, buscando responder se, e em que medida, a elevação no Número Efetivo de Partidos representa um problema para a democracia brasileira. A conclusão retoma os pontos levantados no texto. Uma democracia com muitos partidos Pontos-chave em uma longa trajetória Para entender porque chegamos ao país com o maior Número Efetivo de Partidos entre as democracias consolidadas (NICOLAU, 2017), será preciso examinar como o índice evoluiu, quais foram os momentos-chave nessa trajetória e que variáveis – políticas ou institucionais – podem tê-la influenciado. A discussão pode ter início por meio de um contraste entre os pontos iniciais e finais do percurso. Como as eleições de 1982 se realizaram ainda sob a ditadura militar e, portanto, não apenas sob a influência da clivagem ditadura/democracia, mas também da legislação imposta pelo regime, é melhor tomar o pleito de 1986 como o ponto de partida. Com base nas eleições daquele ano, dois partidos (PMDB e PFL) passaram a controlar 77,6% da Câmara dos Deputados. Tão importante quanto, os dois partidos permitiam a conformação de uma coalizão governista ideologicamente contígua. O quadro resultante da eleição de 2018 é completamente diverso: as duas maiores legendas (PSL e PT) somam apenas 21% das cadeiras na Câmara. Um cenário semelhante, diga-se de passagem, ao encontrado por Dilma Rousseff em 2014 – a presidente precisou somar 10 partidos (PT, PMDB, PP, PSD, PR, PRB, PTB, PDT, PCdoB e PROS) para, em tese, alcançar 63,9% dos votos. Tivesse Aécio Neves vencido aquela eleição, o quadro seria numericamente semelhante, ainda que os partidos coligados fossem ideologicamente mais próximos. Após o impeachment, Michel Temer montou uma coalizão de doze partidos (PMDB, PSDB, PP, PSD, PR, PSB, PTB, DEM, PPS, SD, PRB E PV) para chegar a pouco mais de 70% dos votos na Câmara. Por qualquer ângulo que se observe, e por mais que se possa argumentar que a eleição de 1986 foi conjunturalmente influenciada pelo sucesso do Plano Cruzado, a diferença é muito expressiva. A tabela 1, a seguir, mostra a evolução do quadro na Câmara e ajuda a conduzir a análise. Embora o ponto de partida 204 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO escolhido para a análise tenha sido 1986, optou-se por incluir a eleição de 1982 por razões que ficarão claras a seguir. O primeiro ponto a ser destacado na trajetória aqui analisada encontra-se entre as eleições de 1986 e 1990. A bem da verdade, o resultado eleitoral de 1986 começou a se desenhar no ano anterior, quando o fim de uma ditadura militar que não deixaria defensores deu vazão a um rearranjo das forças no Congresso. A volta a um ambiente democrático, logo sacramentado pela Emenda Constitucional nº 25, de maio de 1985, que, entre outras providências, tornava livre a criação de partidos políticos, ajuda a entender o surgimento de seis novos partidos na Câmara: PDC, PSC, PL, PCdoB, PCB e PSB. Mas a mudança mais expressiva seria decorrência do esvaziamento do PDS, iniciado ainda em 1984, com o surgimento da dissidente Frente Liberal, e sacramentado com a fundação do PFL após a eleição de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral, em janeiro de 1985. Ao final da legislatura, o PDS havia perdido 141 dos deputados eleitos em 1982; a imensa maioria filiou-se ao PFL, não obstante 22 deles tenham se dirigido ao PMDB. Tabela 1 – Câmara dos Deputados: bancadas partidárias após as eleições (%), número absoluto (N) e efetivo de partidos (NEP) (1982-2018) Partido 1982 1986 1990 1994 1998 2002 2006 2010 2014 2018 PDS/PP* 49,1 6,8 8,3 9,9 11,7 9,6 8,0 8,6 7,4 7,2 PMDB 41,8 53,4 21,5 20,9 16,2 14,6 17,4 15,2 12,9 6,6 PDT 4,8 4,9 9,1 6,6 4,9 4,1 4,7 5,3 3,9 5,5 PTB 2,7 3,5 7,6 6,0 6,0 5,1 4,3 4,3 4,9 2,0 PT 1,7 3,3 7,0 9,8 11,5 17,7 16,2 16,8 13,3 10,9 PFL/DEM 24,2 16,5 17,3 20,7 16,4 12,7 8,4 4,1 5,7 PL/PR 1,2 3,2 2,5 2,3 5,1 4,5 8,0 6,6 6,4 Por que chegamos a tanto e que importância isso tem? Considerações sobre a fragmentação partidária no Brasil Partido 1982 205 1986 1990 1994 1998 2002 2006 2010 2014 2018 PCB/PPS 0,6 0,6 0,4 0,6 2,9 4,3 2,3 1,9 1,6 PCdoB 0,6 1,0 1,9 1,4 2,3 2,5 2,9 1,9 1,8 PSB 0,2 2,2 2,9 3,5 4,3 5,3 6,8 6,6 6,2 7,6 12,3 19,3 13,7 12,9 10,5 10,5 5,7 1,2 0,6 0,4 0,2 1,8 3,3 2,5 1,6 0,2 0,2 1,0 2,5 2,5 1,6 0,8 0,2 1,6 4,1 5,9 PSD 7,0 6,6 SD 2,9 2,5 PROS 2,1 1,6 PSL 0,2 10,1 PSDB PSC 0,2 PV PRB Outros 0,0 1,1 14,2** 8,7*** N 5 12 19 NEP 2,4 2,8 8,7 1,3 3,0 2,7 3,5 5,6 11,3 18 18 19 21 22 28 30 8,2 7,1 8,5 9,3 10,5 13,3 16,7 Fonte: Nicolau (1998), Melo (2007, 2015), Gomes (2016), sites do TSE e da Câmara dos Deputados. Elaboração do autor. Nota: * Em 1993, o PDS fundiu-se ao PDC e deu origem ao PPR. Este, por sua vez, se fundiu ao PP em 1995 dando origem ao PPB. Em 2003, o partido assumiu sua designação atual: Partido Progressista (PP). ** Em 1990, PRN (41 deputados) e PDC (22 deputados) respondiam por 87% deste total. *** Em 1994, o antigo PP (35 deputados) respondia por 78% deste total. Ainda que o resultado das eleições de 1986 tenha referendado a então denominada “Aliança Democrática”, algo deu errado logo depois. Na eleição presidencial de 1989, Ulisses Guimarães (PMDB) ficou com 4,7% dos votos 206 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO válidos, enquanto Aureliano Chaves (PFL) não passou de 0,9%. Na sequência, como resultado da eleição de 1990, o NEP na Câmara dos Deputados saltou para 8,7: um presidente que desejasse constituir uma coalizão ideologicamente coerente e capaz de aprovar emendas constitucionais teria que contar com a adesão de cinco partidos, PMDB, PFL, PDS, PRN e PTB, o que lhe conferiria 61,9% dos votos na Casa. O ano em que Fernando Henrique Cardoso se reelegeu (1998) marcou o segundo ponto a ser analisado na trajetória do NEP. De 1990 a 1994, o Número Efetivo de Partidos havia apresentado ligeira queda, mas mantivera-se no mesmo patamar. Após 1998, no entanto, a comparação com o início da década mostrou uma redução de quase 20%, com o NEP recuando para 7,1. Neste contexto, PMDB, PSDB, PFL e PPB podiam compor uma coalizão ideologicamente coerente e controlar 67,7% dos votos no início da legislatura na Câmara dos Deputados. O ponto é importante porque, como veremos, permite supor que a trajetória ascendente do Número Efetivo de Partidos não era a única possível. Após a eleição de 2002, no entanto, o NEP voltou ao patamar de 1990 e a partir de então não parou de crescer. Os quatro “grandes” de 1998 saíram da primeira eleição do século XXI somando apenas 54,2% das cadeiras na Câmara, percentual que na posse ainda seria reduzido a 48,7%. Ademais, o recuo dos quatro não seria compensado pelo crescimento do bloco de esquerda liderado pelo PT. Em 2003, na posse dos deputados, podia se constatar que, enquanto os quatro partidos anteriormente mencionados haviam recuado 19,1 pontos percentuais, a esquerda – basicamente o PT – havia aumentado seu poder de fogo em apenas 7,6%.75 Tal como em 1998, após 2002 seria possível agregar os quatro maiores partidos para se alcançar os 60% de votos na Câmara, mas agora isso implicava em colocar PT, PMDB, PSDB e PFL na mesma coalizão. Como se sabe, a primeira coalizão de Lula era composta por oito partidos (PT, PDT, PPS, PCdoB, PSB, PL, PTB e PV) e controlava apenas 42,9% dos votos na Câmara. Somente no segundo ano de governo, com o ingresso do PMDB e não obstante a saída do PDT, a coalizão governista atingiu 62,4% dos votos na Casa (FIGUEIREDO, 2007). 75 Os dados sobre a composição das bancadas por ocasião da posse estão disponíveis no site da Câmara dos Deputados. Por que chegamos a tanto e que importância isso tem? Considerações sobre a fragmentação partidária no Brasil 207 Por fim, após a eleição de 2010, o crescimento do NEP foi acelerado. Em 2011, recém-criado no interior do Congresso, o PSD conseguiu a adesão de 48 deputados federais, tornando-se a quarta bancada da Casa. Em 2013 foi a vez de PROS e SD, que atraíram 22 e 19 legisladores, respectivamente (NICOLAU, 2017). No final de 2013, o site da Câmara dos Deputados informou que os três partidos controlavam 15,4% das cadeiras. O impacto sobre as eleições de 2014 foi imediato e o NEP teve seu maior crescimento relativo (26,7%) desde o “grande salto” entre 1986 e 1990. A curva manteria a inclinação na eleição seguinte. A razão desta vez não estaria na criação de novos partidos, ainda que alguns tivessem mudado de nome, mas na crise política na qual o país se viu mergulhado e cujos desdobramentos tornaram atípica a eleição de 2018. Uma eventual coalizão de centro-direita, na Casa, a partir de 2019, necessitaria somar doze partidos para ultrapassar 60% dos votos. Em busca de relações causais O que poderia explicar a trajetória apresentada pela variável dependente em questão, ou seja, o Número Efetivo de Partidos na Câmara dos Deputados? O argumento a ser desenvolvido é o de que um conjunto de fatores deve ser levado em conta, mas nenhum deles é suficiente para explicar o que aconteceu. Nesta seção será discutido o impacto de duas variáveis independentes, a saber, o sistema eleitoral e o grau de estruturação nacional do sistema partidário – nos termos colocados por Sartori (1996) – e de duas outras variáveis, aqui tratadas como intervenientes: as modificações realizadas na legislação eleitoral e partidária e a movimentação dos legisladores no interior do Congresso. Essa última inclui a fusão de legendas, a criação de novos partidos e a migração partidária, e na grande maioria dos casos tem a ver com cálculos relativos à sobrevivência política, sendo menos expressivas as situações onde a motivação é de ordem programática ou ideológica. Enquanto o impacto da fusão ou criação de legendas teve um sentido claro – uma contribuindo para diminuir e outra para aumentar a fragmentação –, a variável migração partidária, como se perceberá adiante, apresentou impacto variado. A primeira hipótese a ser analisada é a de que o sistema eleitoral adotado no país seja o principal fator responsável pela evolução da variável dependente. A hipótese não necessita maior fundamentação: é consensual que, nas democracias, sistemas de representação proporcional, por colocarem menores barreiras à 208 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO obtenção de cadeiras legislativas, tendem a favorecer uma maior fragmentação partidária. No caso do Brasil, tal tendência seria acentuada pela magnitude dos distritos – sabidamente o fator de maior impacto sobre o número de partidos no Legislativo (BARTOLINI; MAIR, 1990; PAPPALARDO, 2007) – e pelo mecanismo de distribuição de cadeiras no interior das coligações realizadas para o Legislativo – as legendas coligadas, no período aqui analisado, sempre foram contadas como um só partido, o que resultava na eleição dos candidatos mais votados independente do partido ao qual pertencessem. Mas, ainda que o sistema eleitoral brasileiro, de fato, favoreça o ingresso de pequenos partidos na Câmara, tratá-lo como fator suficiente, ou mesmo necessário, na explicação da trajetória aqui examinada esbarra em dois problemas. Em primeiro lugar, seria preciso explicar por que, na República de 1946, sob um arranjo institucional semelhante ao atual em seus lineamentos gerais, o Número Efetivo de Partidos na Câmara dos Deputados manteve-se praticamente constante a partir de 1950 e em valores muito inferiores aos atuais, não ultrapassando a marca de 4,5.76 O segundo problema vem do Senado Federal, constituído por meio de um sistema majoritário, ora por maioria simples, ora pela variante do “voto em bloco”77 – quando são eleitos dois senadores por estado. E não obstante o sistema eleitoral, a Câmara Alta brasileira também apresentou uma trajetória de crescimento no Número Efetivo de Partidos, chegando a 7,8 como resultado das eleições de 2010, 8,3 após 2014 e a espetaculares 13,6 como resultado da eleição de 2018. Resposta aos dois problemas pode ser dada com o auxílio da segunda variável independente: a estruturação do sistema partidário. Segundo Sartori (1996), sistemas eleitorais, por si só, não geram nada. Para que seus efeitos potenciais se materializem, é necessário saber se existem ou não partidos enraizados em todo o país e com capacidade para constranger as opções do eleitor, canalizando o seu voto e mantendo-o em uma relação de relativa fidelidade. Isso significa que um 76 Ainda que existam diferenças entre os dois períodos, como a ocorrência de eleições solteiras para a Presidência de República, os traços gerais do arranjo institucional foram mantidos: presidencialismo, federalismo, bicameralismo, representação proporcional com distritos de grande magnitude, sistema de votação em lista aberta e possibilidade de coligação nas eleições proporcionais. Segundo Nicolau (2004), para o período democrático anterior, os valores do NEP para a Câmara dos Deputados foram os seguintes: 2,7 (1945); 4,1 (1950); 4,3 (1954); 4,4 (1958) e 4,5 (1962). 77 No voto em bloco, o eleitor pode votar em tantos candidatos quantas forem as cadeiras em disputa no distrito sem a necessidade de se manter “fiel” a um só partido. São eleitos os mais votados. O sistema é utilizado em poucos países. Por que chegamos a tanto e que importância isso tem? Considerações sobre a fragmentação partidária no Brasil 209 sistema eleitoral “fraco” (no que diz respeito ao grau de constrangimento imposto ao eleitor), como o de representação proporcional, pode ser contrabalanceado por um sistema partidário “forte”, no qual duas ou três grandes máquinas eleitorais nacionalmente enraizadas canalizem o voto da maioria do eleitorado – o que se torna condição suficiente para inibir um processo de fragmentação. É o que acontece, por exemplo, no Uruguai. No caso brasileiro, uma explicação para a estabilidade do NEP na Câmara dos Deputados durante a República de 46 reside no fato de que a competição partidária se manteve estruturada em torno de três partidos razoavelmente implantados em todo o território nacional. O resultado foi um multipartidarismo moderado, no qual o surgimento de pequenos partidos, a maioria deles dotados de inserção em apenas alguns estados, não impediu que o sistema partidário mantivesse o mesmo formato do princípio ao fim. O mesmo não pode ser dito para o atual período. Se, em 1986, PMDB, em especial, e PFL eram os maiores partidos em quase todos os estados,78 já em 1990, como visto, o sistema partidário estava povoado por novas legendas de porte médio e teria início um processo de diferenciação regional da força dos partidos. Por essa razão, o sistema eleitoral “forte” para o Senado não foi capaz de inibir a fragmentação.79 Ao que se pode perceber, faz sentido apontar a baixa estruturação do sistema partidário brasileiro como condição necessária para que o NEP na Câmara dos Deputados chegasse a um nível muito mais elevado do que o verificado na experiência democrática anterior. No entanto, restaria explicar por que o Número Efetivo de Partidos: i) recuou entre 1990 e 1998; e ii) cresceu 9,6 pontos percentuais a partir daquele último ano. A variável, sozinha, não dá conta do recado. Sendo assim, a alternativa será voltar ao exame dos momentos apontados na seção anterior como pontos-chave na trajetória do NEP e analisar o impacto das variáveis intervenientes, a saber, as mudanças na legislação eleitoral e partidária e a movimentação dos legisladores no interior da Câmara dos Deputados. 78 Em 1986, o PMDB foi o partido que elegeu mais deputados em 19 dos 26 estados. Em outros três (Alagoas, Amazonas e Maranhão), a primeira posição foi dividida com o PFL. O Partido da Frente Liberal ocupou, ainda, a primeira posição no Piauí, em Roraima e Sergipe, chegando em segundo lugar em outros 14 estados. De forma significativa, o PFL foi suplantado apenas no Rio de Janeiro, pelo PDT, no Rio Grande do Sul, por PDS e PDT, e em São Paulo, por PT e PTB. 79 De forma complementar, pode-se argumentar que a fragmentação encontrada para o Senado guarda relação também com as coligações realizadas para os governos estaduais, ocasião em que os partidos que encabeçam a chapa para o Poder Executivo estadual podem abrir espaço para legendas aliadas na chapa para o Senado. 210 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO A partir desse ponto, portanto, a narrativa assume uma ordem cronológica e as variáveis são mobilizadas quando entendidas como necessárias à configuração de relações causais. O crescimento do NEP entre 1986 e 1990 foi fortemente influenciado pela movimentação dos deputados no curso da legislatura. O fracasso do Plano Cruzado precipitou o governo Sarney numa crise de projeto e atingiu em cheio o PMDB, que rapidamente viu volatilizar o capital político acumulado nas eleições de 1986. A crise não apenas fragilizou o partido, que se dividiria ao meio nas votações mais importantes da Assembleia Constituinte (KINZO, 1990), como se estendeu ao sistema partidário. A consequência imediata foi a deflagração, entre 1987 e 1989, de um processo de reacomodação parlamentar no interior da Câmara, com intensa migração entre as siglas existentes e a criação de novas. Ao final da legislatura, 154 deputados haviam trocado de partido, vários deles mais de uma vez. O PMDB perdeu 108 membros de sua bancada. No PFL, 15 deputados decidiram buscar outra legenda. O processo deu origem a sete novos partidos na Câmara (PSDB, PSD, PRS, PMN, PTR, PJ/PRN e PST) e provocou sensíveis alterações no tamanho das bancadas existentes: o PTB ganhou 13 novos deputados; PDT e PDC, dez cada um, enquanto PSB e PL receberam sete e seis, respectivamente. Dos novos partidos, o PSDB foi o destino de 53 deputados, enquanto o PRN abrigou outros dezessete (MELO, 2004). A frenética movimentação dos deputados foi ainda facilitada pela legislação eleitoral e partidária à época. Além da já mencionada Emenda Constitucional nº 25, que aboliu a exigência de fidelidade às decisões partidárias e liberou a mudança de partido por parte do legislador, caberia destacar: i) a reintrodução da permissão para as coligações eleitorais nas eleições proporcionais, por meio da Lei nº 7.454, de setembro de 1985 (NICOLAU, 1996); e ii) a determinação, por meio da Lei nº 7.773, de que, para a distribuição do tempo de propaganda no rádio e na TV, seria considerada a representação do partido no Congresso Nacional em abril de 1989, “acrescidas as adesões ou coligações realizadas posteriormente a esta data, até o encerramento do prazo de registro das candidaturas” (NOBLAT, 1990); e iii) a não observação da distinção entre registro provisório e definitivo para os partidos, estabelecida pela Lei nº 6.767, de dezembro de 1979 (e não formalmente modificada), sinalizando que qualquer grupo de pelo menos 101 pessoas capazes de se entenderem – a ponto de eleger uma Comissão Diretora Por que chegamos a tanto e que importância isso tem? Considerações sobre a fragmentação partidária no Brasil 211 Nacional Provisória e encaminhar o pedido de registro ao TSE – estaria apto a lançar candidatos às eleições proporcionais e majoritárias (MELO, 2004). Partidos são criados de forma endógena ao jogo político, através das opções feitas por atores racionais. Como mostrou Aldrich (1995), tais escolhas dependem da estrutura de oportunidades à disposição dos políticos, e partidos poderão ser criados se: i) existirem incentivos para tanto; ii) sua criação for exequível; e iii) não existir solução melhor. Num quadro que em linhas gerais mantém-se até os dias de hoje, no Brasil pós-redemocratização a resposta a tais questões era claramente positiva: o custo de entrada no sistema político mostrava-se baixo e os benefícios auferidos a partir dos postos alcançados poderiam ser muito vantajosos. Um cenário estimulante para novos “empresários” políticos e que faz com que seja sempre extensa a fila de pedidos de registro de novos partidos junto ao TSE. Contudo, a movimentação dos legisladores entre os partidos nem sempre implicou em um aumento da fragmentação. Foi o que ocorreu entre 1994 e 1998, quando o NEP sofreu expressiva diminuição. Naquele período, a migração partidária, ao contrário do que ocorrera na década anterior, foi impulsionada pelas perspectivas abertas pelo bom desempenho e popularidade do primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso e, em consequência, contribuiu para fortalecer os dois principais partidos da base governista e reduzir a fragmentação. O movimento no sentido do governo se fez sentir desde os primeiros meses de 1995, favorecendo PSDB e PFL e provocando um imediato recuo no NEP. Ao final da legislatura, 58 deputados haviam se dirigido ao primeiro e 50, ao segundo (MELO, 2004). E ainda que nem todos tenham permanecido em suas novas legendas, nos dois casos o saldo foi extremamente positivo: segundo registros obtidos por Gomes (2016), no início da sessão legislativa de 1998, os pefelistas contavam com uma bancada de 109 membros, 20 a mais do que os eleitos em 1994, enquanto os tucanos contabilizavam 96 membros, ao invés dos 63 eleitos. Também contribuiu para a redução do NEP a fusão entre PP e PPR, dando origem ao PPB em setembro de 1995.80 Já no início de 1996, o PPB contava com 88 deputados (GOMES, 2016). A estratégia já havia sido executada com relativo sucesso pela liderança do antigo PDS ao dar origem ao PPR, em 1993, depois 80 Disponível em: <http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/partido-progressista-brasileiro-ppb>. 212 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO de se fundir com o PDC – o resultado, naquela ocasião, foi o crescimento da bancada na eleição de 1994, resultado que se repetiria em 1998 (tabela 1). Além disso, a movimentação se realizou em um momento em que as dificuldades do governo FHC, no encaminhamento da Reforma da Previdência, já apontavam para a necessidade de uma ampliação da base aliada: em abril de 1996, o PPB seria incorporado ao Ministério (FIGUEIREDO, 2007). A fusão estava, ainda, em consonância com a Lei nº 9.096, também de setembro de 1995. A lei representou a mais notável iniciativa do Congresso no sentido de conter a fragmentação partidária na medida em que determinava, em seu art. 13, que somente os partidos capazes de alcançar 5% dos votos válidos para a Câmara dos Deputados, distribuídos em 1/3 dos estados, teriam direito a funcionamento parlamentar. De maneira complementar, estabelecia as condições para que o montante de recursos disponível no Fundo Partidário crescesse de forma significativa, ao mesmo tempo em que determinava que 99% de tais recursos fossem distribuídos entre as legendas que cumprissem a cláusula. O recado era claro: cresçam, mas sem se multiplicar. Sob este ângulo, a fusão interessava às lideranças do antigo PP, partido que havia perdido metade de sua bancada de 17 deputados no ano de 1995 em função do movimento migratório na Câmara (MELO, 2004). De mais a mais, a estratégia era compatível com a letra da lei, que estabelecia que, no caso de fusões, o cálculo do tamanho das bancadas, para efeito de distribuição dos recursos do Fundo e do tempo no horário gratuito no Rádio e TV, deveria levar em conta a soma das bancadas originais no início da legislatura.81 De acordo com os legisladores à época, a cláusula não teria aplicação imediata, entrando em vigor apenas para a legislatura iniciada em 2007. Mas, antes disso, o NEP voltou a subir, chegando a 8,3 como resultado das eleições de 2002 (tabela 1) e iniciando uma curva ascendente que não mais se interrompeu – o que remete a outro ponto de nossa trajetória e demanda explicação. Em 2003, tal como ocorrera logo após a primeira eleição de Fernando Henrique, as trocas de partido realizadas na Câmara apresentavam um claro sentido gover81 Efeito não esperado da nova lei, a referência ao “início da legislatura” como critério para a definição do tamanho das bancadas esteve entre os fatores que terminaram estimulando o movimento migratório entre a eleição e a posse dos deputados (DINIZ, 2000; FREITAS, 2012; GOMES, 2016). Somente na legislatura 2003-2007 a situação foi modificada e a aferição do tamanho das bancadas para efeito da distribuição de recursos passaria a levar em conta apenas e tão somente o resultado das eleições (GOMES, 2016). Por que chegamos a tanto e que importância isso tem? Considerações sobre a fragmentação partidária no Brasil 213 nista. Mas agora o governo era outro e, apenas no primeiro ano da legislatura, PSDB e PFL perderam 16 deputados cada (MELO; MIRANDA, 2006). No final do período, em 2006, o NEP alcançaria 9,41 (GOMES, 2016) – valor praticamente igual ao constatado na abertura da legislatura seguinte. O crescimento do NEP poderia ter sido amenizado ou neutralizado caso as migrações houvessem fortalecido o partido formador da coalizão governista, no caso, o PT. Mas o crescimento dos petistas limitou-se àquele derivado do resultado eleitoral (tabela 1), descontadas dez defecções causadas pelo dissenso relativo à proposta de Reforma da Previdência e pelo episódio do mensalão – 7 deputados dirigiram-se ao PSOL, criado naquela legislatura, 2 foram para o PDT e 1 para o PV. Para os deputados que buscavam a base do novo governo, destinos mais atraentes seriam o PL e o PTB. As escolhas foram consistentes com a origem dos migrantes. Dentre os 26 deputados que, apenas em 2003, buscaram o PL, 20 provinham de partidos situados à direita do espectro ideológico, com destaque para o PFL (9) e o PPB (4), enquanto outros 6 vinham do PSDB e do PMDB. Dos 30 legisladores que inicialmente aportaram no PTB, 10 provinham do PSDB, 5 do PMDB e outros 11 de partidos situados à direita, com destaque para o PFL, que “cedeu” 5 (MELO; MIRANDA, 2006). No início de 2005, PL e PTB chegaram a contar com 46 e 51 deputados, respectivamente, recuando para 37 e 42 um ano depois (GOMEZ, 2016) – de toda maneira, um crescimento expressivo para partidos que haviam elegido 26 deputados cada. Por outro lado, um balanço da situação dos cinco maiores partidos mostrava, ao final da legislatura, um “deficit” de 36 deputados. Ao contrário do que ocorrera no primeiro governo FHC, mas à semelhança do verificado com Sarney, a movimentação dos deputados no interior da Câmara contribuiu para aumentar o Número Efetivo de Partidos. Por outro lado, a eminência da entrada em vigor, na legislatura seguinte, da cláusula de barreira não foi capaz de neutralizar o forte impacto da mudança de governo sobre a força dos partidos na Câmara. Em 2003, chegaram a se realizar duas incorporações na Casa: o antigo PSD diluiu-se no PTB, enquanto PSL e PGT foram atraídos para o PL. Posteriormente, em 2005, o Prona e os liberais fundiram-se, dando origem ao Partido da República (PR). Mas em todos os casos, as legendas absorvidas possuíam bancadas muito reduzidas para gerar impacto significativo. Um último movimento, como lembra Gomes (2016), seria aventado por PPS, PMN 214 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO e PHS, mas a pretendida fusão foi abortada após o STF, em setembro de 2006, considerar inconstitucional a aplicação da cláusula. A decisão do STF freou o esforço dos legisladores no sentido de conter a fragmentação e pode ser apontada como o fator institucional de mais duradouro impacto sobre a trajetória do NEP no período analisado. Houvesse a cláusula de desempenho entrado em vigor, e mantido constantes os demais fatores, a legislatura iniciada em 2007 teria apenas sete partidos: PMDB, PT, PSDB, PFL, PP, PSB e PDT. Mas o recado agora era diferente daquele emitido pela Lei nº 9.096 de 1995: por suposto ainda valia a pena crescer, dada a distribuição proporcional dos recursos disponíveis, mas a multiplicação deixava de ser proibitiva. Pelo contrário, com o vigoroso aumento do Fundo Partidário, pequenas legendas poderiam perfeitamente se adequar à sustentação de pequenas ambições. Lula reeleito, e afastada a ameaça da cláusula, o NEP cresceria novamente como resultado das eleições de 2006. O que precisa ser explicado, no entanto, são as mudanças mais substantivas, verificadas após 2010. No caso do NEP de 2014, a movimentação da elite política aparece como o fator explicativo mais imediato; a diferença é que, no lugar das migrações partidárias – inibidas pela resolução de 2007 do TSE, por meio da qual se definia que os mandatos eletivos pertenciam aos partidos –, aparecem novos partidos dotados de bancadas expressivas. A criação do PSD, em 2011, encontra-se nitidamente relacionada ao fato de que a eleição de Dilma Rousseff abria a possibilidade de que o ciclo de governos petistas, a depender do que ocorresse em 2014, se estendesse por 16 anos. Pesquisa CNI/Ibope, realizada em abril de 2011, mostrava que o percentual dos que consideravam o governo Dilma ótimo/bom era superior aos obtidos por FHC e Lula para períodos semelhantes.82 O ritmo de crescimento do PIB em 2011 recuara para 2,7%, mas, ainda no embalo dos 7,5% de 2010, o país ultrapassou o Reino Unido, tornando-se a “sexta economia do mundo”.83 Nesse contexto, o custo de manter-se na oposição começou a tornar-se muito elevado. Apresentado como partido que não seria “nem esquerda, direita ou centro”, o PSD serviu de estuário para aqueles que pretendiam aderir ao governo. Dentre os 51 deputados que ao 82 Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2011/04/01/dilma-supera-lula-e-fhc-em-aprovacao-de-inicio-de-governo-diz-cniibope>. Dilma manteria avaliações positivas até março de 2013, quando chegou a 79% segundo o Ibope. 83 Disponível em: <http://economia.ig.com.br/economia-brasileira-cresce-27-em-2011 n1597665838398. html>. Por que chegamos a tanto e que importância isso tem? Considerações sobre a fragmentação partidária no Brasil 215 longo da legislatura migraram para o partido, 36 tinham como partido de origem uma legenda situada fora da base governista, com destaque para o DEM, que “contribuiria” com 22 adesões.84 Paradoxalmente, a decisão de 2007 tomada pelo TSE, abrindo a possibilidade de perda de mandato em decorrência da troca de partidos, daria sua contribuição para a aceleração do ritmo de crescimento do NEP. Afinal, a tentativa de “congelamento” do quadro partidário entre uma eleição e outra também indicava os caminhos pelos quais seria possível contornar o novo obstáculo à livre movimentação dos congressistas: as fusões, incorporações ou criação de novos partidos, além, é claro, da comprovação de desvios programáticos por parte do partido em questão ou de grave discriminação pessoal sofrida pelo legislador. Para piorar o quadro, em uma decisão que contrariava o próprio “espírito” da resolução de 2007, o TSE firmou entendimento, em 2012, que, no caso da criação de novos partidos, estes teriam direito ao tempo de rádio e TV correspondente aos deputados que aderissem à sigla, driblando a regra que determinava que a aferição do tamanho das bancadas fosse feita por ocasião da proclamação do resultado eleitoral. Em outras palavras, o mandato era do partido, mas o tempo no HGPE, bem como as parcelas do Fundo Partidário, pertenciam aos deputados! Definidas as coisas desse modo, ficou facilitada a criação do Partido Republicano de Ordem Social (PROS) e do Partido Social Democrático (PSD), ainda a tempo de disputar a eleição de 2014. No início deste último ano, as bancadas dos dois partidos registravam 19 e 22 deputados, respectivamente, enquanto o PSD controlava 42 cadeiras na Casa (GOMES, 2016). Por fim, o último salto do NEP, alcançando 16,7 como resultado da eleição de 2018, foge ao padrão de explicação aqui apresentado, uma vez que sua principal força motriz deve ser localizada na crise política que terminou por alterar de forma expressiva a feição do sistema partidário nacional. Sem pretender qualquer análise mais detalhada do ponto – algo não compatível com os objetivos deste capítulo –, o fato é que a renovação conservadora que emergiu das urnas em 2018: i) alterou a “estrutura da competição” pela Presidência da República, ao deslocar o PSDB; ii) fez emergir novos atores nas disputas pelos governos estaduais (NOVO e PSL); e iii) deu origem aos maiores níveis de renovação 84 Dados obtidos no Histórico de Movimentação Parlamentar do site da Câmara dos Deputados. Consulta feita em 11 de novembro de 2014. Além do DEM, perderiam deputados: PPS e PMN (3, cada); PSDB, PV e PSC (2, cada) e PSL e PHS (1, cada). 216 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO parlamentar do período da Nova República. No que aqui interessa mais de perto, a correlação de forças na Câmara dos Deputados foi profundamente alterada. Enquanto MDB, PSDB, PTB e PT perderam 32, 25, 15 e 13 cadeiras, respectivamente, PSL ficou com 51 cadeiras a mais, PDT e PRB, com 9, NOVO, com 8, DEM e PODEMOS (ex-PTN), com 7 e AVANTE (ex-PTdoB), com 6, registrando os maiores crescimentos. Qual o problema? Trata-se agora de procurar responder se o crescimento do número efetivo de partidos chega a se constituir em um problema. Não há consenso quanto ao ponto e uma boa maneira de iniciar a discussão é com base em texto de Figueiredo e Limongi (2007). Segundo os autores, as evidências disponíveis na literatura mostram que os maiores riscos à democracia surgem quando três partidos controlam mais ou menos o mesmo número de cadeiras – o que poderia levar à radicalização. Já a tese de que um grande número de partidos representa um obstáculo à governabilidade não passaria de um mito, uma suposição teoricamente infundada: [...] pequenos partidos não podem alimentar esperanças de virem a governar sozinhos e podem, então, facilmente ser atraídos para a área de influência do governo. Quanto maior o número de pequenos partidos nesta situação, mais baixo o custo de formar uma coalizão. O governo sempre terá alternativas caso um pequeno partido faça exigências muito altas para apoiá-lo. Logo, reformas políticas para reduzir o número de partidos com representação na Câmara dos Deputados são desnecessárias. Não há como sustentar que pequenos partidos tenham poder de chantagem que ameacem o bom funcionamento da democracia. (FIGUEIREDO; LIMONGI, 2007, p. 151) De fato, seria ingenuidade responsabilizar os pequenos partidos pelos problemas da democracia brasileira. Para tocar em pontos que não correspondem ao núcleo de preocupações deste capítulo, basta lembrar quais são as legendas implicadas na Operação Lava Jato. Ou discutir a questão da (falta de) representatividade: o problema aí se torna espinhoso e tentar resolvê-lo apenas pela quantidade de votos recebidos obrigaria a acreditar que o PSD, que obteve 7,2% dos votos válidos para a Câmara em 2014, seria uma legenda mais representativa do que o PCdoB, por exemplo. Pode-se, é claro, destacar o caráter cartorial de vários Por que chegamos a tanto e que importância isso tem? Considerações sobre a fragmentação partidária no Brasil 217 dos partidos “nanicos”, controlados por seu fundador ou um preposto. Mas o que dizer de partidos como o PR, que funciona à base de comissões provisórias em todos os estados, ou como o PTB, que, possuindo diretórios estaduais nos estados mais fortes, não registra nenhum diretório municipal em Minas Gerais, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul ou Pernambuco e é “dirigido” por comissões provisórias em 90% dos municípios paulistas, inclusive a capital?85 Em todos os casos, trata-se de organizações totalmente à mercê do que determine o presidente da legenda e, quando muito, seu reduzidíssimo círculo de apoiadores. Chega a ser constrangedor, é verdade, assistir aos programas veiculados por vários dos “nanicos”, mas o comentário vale também para as peças produzidas por legendas como o PSD ou o PP. Basta assistir e comparar. Os pequenos partidos, ressalva feita aos de contorno ideológico, apenas aproveitam regras não criadas por eles. Entrando em cena, aumentam a cacofonia. Contribuindo para elevar a patamares absurdos o número de candidatos a deputado e vereador, ajudam a conformar uma oferta que não tem como ser processada pelos cidadãos e a tornar patética a parcela do HGPE dedicada às eleições proporcionais. Mas, em todos os casos, apenas somam-se aos que vieram antes. Retomando o ponto que aqui mais interessa – a questão da governabilidade –, o argumento é de que o problema exposto pelo crescimento do NEP não se resume aos “pequenos”, mas à evidente perda de força dos “grandes”. As duas situações não são necessariamente complementares. É possível haver um número expressivo de pequenos partidos e, do outro lado, algumas poucas legendas que concentrem a maioria dos votos. Como resultado da eleição de 1998, cinco partidos possuíam mais de 10% das cadeiras da Câmara e juntos somavam 79,4% dos votos. Do outro lado, outras 12 legendas chegavam a 14,7% dos deputados na Casa. A partir de 2019, apenas PT e PSL ocuparão mais de 10% das cadeiras, de modo que, se atuassem juntos, somariam 21% dos votos. Do outro lado, 19 legendas – possuindo menos que 5% das vagas cada uma – chegariam, se somadas, a 22,2% dos parlamentares. O gráfico 1 organiza os dados da tabela 1 de modo a facilitar a visualização do problema que aqui se pretende evidenciar. Seguindo a sugestão de Tafner (1996) e com a dose de arbitrariedade comum a tentativas como essa, a composição partidária da Câmara dos Deputados será apresentada tendo como referência 85 Cf. o sítio do TSE. Consulta feita no dia 30 de abril de 2017. 218 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO quatro “categorias” de partido. Partidos tipo A serão aqueles com o controle de pelo menos 10% das cadeiras. Serão considerados de tipo B os que se situarem entre 5,0% e 9,9%. Entre 1,0% e 4,9% estarão os de tipo C. A quarta categoria, D, será composta pelas legendas que não chegam a 1,0%. Uma tabela com todos os dados encontra-se anexa a este capítulo. Gráfico 1 Percentual de cadeiras por tamanho do partido na Câmara (1986-2018) 90 80 70 60 50 40 30 20 10 0 1986 1990 A (mais de 10%) 1994 1998 B (entre 5% e 10%) 2002 2006 2010 C (entre 1,0% e 5%) 2014 2018 D (menos de 1,0%) Elaboração do autor. Os dados mostram de forma clara a alteração na força relativa dos partidos. Depois do recuo em 1990, o peso das maiores legendas (aquelas de tipo A) volta a crescer até 1998 para depois cair de forma sistemática até 2014. Tal como em 1990, em 2018 o mais forte dos blocos será aquele composto pelos partidos “médios” (os de tipo B, que possuem entre 5,0 e 9,9% das cadeiras), enquanto o peso dos “grandes” assemelha-se ao dos “pequenos”. Uma situação em que não existem grandes partidos – entre o primeiro de tipo A (PT) e o último de tipo C (PHS), a diferença é de apenas 9,8% das cadeiras. Uma das variáveis apontadas pela literatura (FIGUEIREDO; LIMONGI, 1999; dentre outros) para o bom desempenho do presidencialismo de coalizão está no poder regimental dos líderes partidários na Câmara. A partir de 1989, o poder formal de determinado partido seria tanto maior quanto maior a bancada, seja em relação às demais legendas, seja no que se refere aos seus liderados. Isso permite supor que, em um partido com 105 deputados, a chance de que um deles tenha sucesso ao iniciar uma articulação contrária aos desejos do líder seja Por que chegamos a tanto e que importância isso tem? Considerações sobre a fragmentação partidária no Brasil 219 menor do que em uma bancada composta por 21 legisladores. Da mesma forma, o poder do maior partido na Casa, relativamente aos demais, varia a depender de ele eleger 108 membros, como o PMDB em 1990, ou apenas 56, como o PT em 2018. Do ponto de vista da relação entre os partidos, uma situação em que a distinção entre grandes, médias e pequenas legendas deixe de ser significativa pode ter pelo menos dois tipos de consequência. Por um lado, tende a elevar o grau de incerteza na definição da Mesa Diretora e das presidências das comissões permanentes, aumentando a importância da formação dos blocos. Por outro, além de apontar para um quadro em que não apenas qualquer coalizão governativa que se produza terá que contar com elevado número de parceiros, diminui a relevância do partido formador sobre os demais – supondo, é claro, que ele possua a maior bancada. No que se refere ao apoio legislativo ao governo, o formador deixa de ser o primeiro entre os pares, para se tornar mais um. Em um cenário de partidos “médios”, todos passam a ser importantes e o poder de chantagem de cada um começa a se assemelhar, tornando mais custosa uma coordenação eficiente da base governista. Ao fim e ao cabo, chegou-se ao ponto em que os partidos, enquanto tais, perderam o controle sobre a Casa, como ocorreu por ocasião da eleição de Eduardo Cunha para a Presidência da Câmara em 2015. Cunha se elegeu apoiado por bancada própria, muito maior do que seu partido e constituída a partir de generosas doações nas campanhas de 2014, “segredo” relatado pelo doleiro e operador do PMDB, Lucio Funaro, em delação premiada no âmbito da Operação Lava Jato. Pesquisadores do Departamento de Computação da UFCG, com base nas votações realizadas no primeiro semestre de 2015, estimaram essa bancada em cerca de 140 deputados pertencentes, pelo menos, a dez partidos: PMDB, PR, PSD, PP, PTB, PRB, PEN, PHS, PTdoB e PRP.86 Na Mesa Diretora eleita à época, mais um “instantâneo” de uma Casa na qual o peso dos partidos e suas lideranças encontravam-se relativizados: enquanto PR e PRB ocupavam a terceira e quarta posições (Segunda-Vice-Presidência e Primeira-Secretaria), apenas dois dentre os seus dez novos membros (sem 86 Disponível em: <http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/house-of-cunha-os-homens-do-presidente-da-camara/>. 220 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO contar o presidente) figuravam entre os deputados mais influentes da Câmara: Alex Canziani (Quarto-Secretário) e Luiza Erundina (Suplente).87 Conclusão Este capítulo buscou cumprir dois objetivos: apresentar a trajetória do NEP na Câmara dos Deputados, analisando as relações entre o fenômeno e variáveis selecionadas, e discutir sua importância para a democracia brasileira. A análise da trajetória permitiu que se chegasse a algumas conclusões. Em primeiro lugar, ficou claro que a continuidade do sistema de representação proporcional com distritos de elevada magnitude, coligações e lista aberta não pode ser apontada como condição suficiente para o crescimento do NEP e consequente grau de atomização alcançado pelo sistema partidário em 2014. O resultado poderia ter sido um multipartidarismo de feição moderada, como na República de 1946. Na verdade, mantidos constantes outros fatores, pode-se dizer que a representação proporcional sequer seria condição necessária à existência de um multipartidarismo moderado no Brasil. Mesmo sob um sistema majoritário para a Câmara dos Deputados, o número de partidos guardaria relação com a distribuição da força eleitoral dos mesmos pelos estados. A existência de subsistemas estaduais diferenciados ou, para dizer de modo mais claro, a prevalência de uma situação em que a força relativa das legendas mostrasse variação regional expressiva fariam, por si só, com que a composição da Casa refletisse o somatório de diferentes configurações estaduais (TAVARES, 1994). Mas o acontecido entre 1990 e 1998 permitiu supor que, mesmo em um contexto de precária estruturação do sistema partidário, a explosão do número de partidos relevantes não seria a única alternativa. Se isso ocorreu, foi porque duas outras variáveis continuaram presentes no cenário. Por um lado, parte expressiva da elite política manteve uma movimentação essencialmente pragmática, aderindo ou abandonando governos com a ligeireza recomendada pelos cálculos eleitorais. A migração partidária fornece a mais clara evidência neste sentido. O abandono do governo Sarney e a adesão ao 87 Disponível em: <http://www.diap.org.br/index.php/noticias/agencia-diap/25490-diap-divulga-lista-dos-cabecas-do-congresso>. Por que chegamos a tanto e que importância isso tem? Considerações sobre a fragmentação partidária no Brasil 221 governo FHC e depois ao governo Lula obedeceram à mesma lógica, mas como visto tiveram impactos diferenciados sobre a trajetória do NEP. Digno de nota foi o fato de que, mesmo quando a migração mostrou forte sentido governista, seu impacto foi diferenciado: sob FHC fortaleceu os dois principais partidos da base governista, mas sob Lula, ao invés de fortalecer o partido formador da coalizão, o movimento migratório fez crescer a força de partidos “periféricos”, como o PTB e o PL. Já a criação de novos partidos, um movimento de forte impacto entre os anos 1986 e 1990, voltaria a se manifestar após 2010, diante da percepção, que acabou não confirmada, de que o ciclo petista poderia se estender por mais oito longos anos. Por outro lado, pelo menos até 2015, o resultado das modificações na legislação eleitoral e partidária manteve as portas abertas às estratégias de sobrevivência desenvolvidas pela elite política. O esforço feito pelo Congresso com a Lei nº 9.096, de 1995, foi fulminado pela decisão do STF em 2006: se crescer continuava sendo bom, multiplicar já não seria proibitivo, de modo que, ao invés de crescerem as fusões, aumentou o número de partidos. A restrição imposta pelos tribunais superiores à migração partidária em 2007 gerou efeitos não esperados: atentas à estrutura de oportunidades, lideranças políticas trataram de explorar a via da criação de novos partidos com o objetivo de manter sua movimentação. O quadro tornou-se ainda pior quando em 2012 o TSE decidiu que se os partidos eram os donos dos mandatos, estranhamente os deputados deveriam ser considerados os proprietários legítimos de suas parcelas no HGPE e no Fundo Partidário, podendo, portanto, levá-los consigo para onde fossem. A discussão deixou claro, ainda, que o foco não deve ser posto nos pequenos partidos. Não reside aí o problema, mas sim no fato de que a Câmara dos Deputados chegou a uma situação em que se tornou pouco perceptível a diferença entre pequenas, médias e grandes legendas, com evidentes desdobramentos para o processo decisório no circuito Legislativo-Executivo. Desnecessário dizer que, dado o desenrolar dos acontecimentos após a eleição de 2014, o crescimento do número efetivo de partidos aqui discutido não se constitui como o principal problema enfrentado pela democracia brasileira. Para dizê-lo em poucas palavras, o período de estabilidade vivenciado entre 1994 e 2014 chegou ao fim e a busca de saídas para a crise política terá que ir muito além de pontos como a adoção de uma cláusula de desempenho a ou a proibição de coligações para as eleições proporcionais. Não obstante, é preciso dar a César o que é de César, e 222 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO a prevalência de uma Câmara de Deputados onde todos se parecem e os atores com capacidade de veto se multiplicam em nada ajudará a melhorar a situação. Pelo contrário. Hiperfragmentação e crise política convergem e tendem a se retroalimentar. Um contexto como o atual, de crise dos e nos maiores partidos e também de criminalização da política,88 tende a rebaixar ainda mais o alcance dos primeiros e abrir espaço para personagens bastante conhecidos – os que afirmam vir de um mundo onde não existe política. Por sua vez, quanto mais fragmentado o sistema partidário, mais difícil se torna a busca de soluções para os problemas enfrentados pela democracia brasileira. Nesse sentido, as mudanças aprovadas pelo Congresso em 2017 devem ser saudadas como positivas. O que possibilitou que tais medidas fossem aprovadas apenas dois anos após a fracassada tentativa de 2015? O agravamento da crise política e a decisão das lideranças partidárias de desvinculá-las de medidas mais polêmicas, como a mudança no sistema eleitoral e a criação de um fundo público para o financiamento das campanhas em resposta à decisão do STF de tornar inconstitucional a doação de pessoas jurídicas aos partidos e às campanhas. Em 2015, por imposição de Eduardo Cunha, a criação da cláusula e a proibição das coligações haviam se tornado moedas de troca na tentativa de aprovar o distritão89 e de constitucionalizar a doação de empresas às campanhas eleitorais (MELO; SANTOS, 2015). Mas, em 2017, o agravamento da crise fez com elas fossem percebidas como parte de uma necessária linha de defesa a ser traçada pelas grandes e médias legendas. Na negociação levada a cabo, optou-se pela cláusula de 1,5% ao invés da aprovada um ano antes pelo Senado, de 2%. A alteração aumentou a segurança de partidos como o PV, PROS, PPS, PCdoB e PSOL, cuja votação em 2014 havia ficado entre 2,06% e 1,79% dos votos válidos para a Câmara dos Deputados. 88 Não é possível entrar aqui em maiores considerações a respeito da Operação Lava Jato e seus desdobramentos. Apenas ressalto que a cruzada moralizadora que assola o país faz com que o que deve ser punido – a corrupção pura e simples – inclua o comportamento estimulado pelas regras vigentes até a pouco. Dessa maneira, o fato de que um deputado ou um partido, após encaminhar demandas advindas do setor empresarial, crie a expectativa, como afirmou Marcelo Odebrecht, de uma doação de campanha, tornou-se evidência de um crime. Ora, para dizer o óbvio, vivemos em uma sociedade em que a imensa maioria vota de maneira convencional, ou seja, nas urnas, enquanto uns poucos o fazem também por outra via: a doação. O político que busca a retribuição do eleitor em função de uma melhoria para sua comunidade, ao se dirigir ao empresário deseja mais do que o voto – e a legislação, com todas as letras, o incentivava a fazê-lo. 89 Pelo formato “distritão” seriam eleitos os candidatos mais votados, independentemente da votação agregada do partido ou da coligação a que pertençam. Por que chegamos a tanto e que importância isso tem? Considerações sobre a fragmentação partidária no Brasil 223 No entanto, como evidenciam os dados aqui mostrados, a introdução da cláusula não teve qualquer efeito imediato. Pelo contrário, o NEP subiu ainda mais. Por um lado, isso pode ser explicado pelo fato de que o patamar inicialmente estabelecido foi baixo. Por outro, é preciso levar em conta que o Brasil não atravessa um período “normal”. Conforme Papalardo (2007), avaliar o impacto de reformas eleitorais é um exercício mais fácil quando se está diante de sistemas partidários estruturados. No caso brasileiro, o período entre 1994 e 2014 parecia apontar nesse sentido. Hoje o quadro mudou e, como se afirmou anteriormente, a crise aberta após 2014 alterou de forma significativa a feição do sistema partidário nacional, rompendo o padrão observado nas disputas presidenciais dos últimos 20 anos, fazendo emergir novos partidos nas disputas para os governos estaduais, renovando fortemente as bancadas no Congresso e diminuindo a força do PT, MDB e PSDB na Câmara, ao mesmo tempo que partidos nanicos, pequenos e médios viram suas bancadas crescerem. Por outro lado, é preciso levar em conta que: i) nove partidos (DC, PATRIOTAS, PCdoB, PHS, PMN, PPL, REDE, PRP e PTC) elegeram deputados, mas não alcançaram a cláusula; e ii) outros sete não atingiram os 2% que serão exigidos em 2022 (SD, PTB, PROS, PPS, PSC, AVANTE e PV). Isso permite supor que, mantidas as regras atuais, a Câmara deverá ser palco nos próximos anos de uma movimentação no sentido da fusão de siglas, sob pena de perda de recursos do Fundo e de tempo no HGPE. Há que se considerar ainda que, a partir da próxima eleição, as coligações para as eleições proporcionais não serão mais permitidas. Em publicação recente, Nicolau (2017) mostrou o que ocorreria se na eleição de 2014 tal proibição já estivesse em vigor. O resultado teria sido o aumento das bancadas do PT, MDB e PSDB, que ganhariam 43 deputados. Do outro lado, a nova regra teria impacto negativo sobre 19 bancadas, propiciando a redistribuição de 54 vagas na Câmara: 8 dos 10 partidos nanicos sobreviveriam, com bancadas ainda mais reduzidas, o mesmo acontecendo com alguns dos partidos pequenos e médios (aqueles classificados como B e C na seção anterior) – o SD perderia 33% de seus deputados; PCdoB e PPS ficariam sem 30% de suas cadeiras; PSC e PTB veriam seu tamanho reduzido em 24%, enquanto PRB e PR ficariam, respectivamente, 19% e 15% menores. Isso posto, é razoável supor que a fragmentação partidária deve diminuir no Congresso brasileiro. A médio prazo, com a cláusula de 3% em vigor a partir de 224 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO 2030 e a proibição de coligações nas proporcionais, dificilmente o Congresso terá mais do que dez partidos. Resta saber que sistema partidário teremos. As urnas de 2018 literalmente desidrataram os partidos situados ao centro do espectro ideológico e sinalizaram para um processo de radicalização, com a emergência de um polo à direita, ao passo que a esquerda manteve suas posições. A partir daí emergem duas possibilidades: i) uma recomposição das forças ao centro, de modo a forçar o retorno a uma dinâmica moderada de competição; e ii) a consolidação de um campo assumidamente da direita em torno do PSL, ou do que surgir como resultado das negociações nesse campo. Mas por enquanto ainda estamos no meio da tormenta. Referências ALDRICH, John H. (1995). Why Parties? The origin and transformation of political parties in America. Chicago: Univ. Chicago Press. BARTOLINI, Stefano; MAIR, Peter (1990). Identity, competition, and electoral availability: the stabilization of European electorates, 1885-1985. Cambridge: Cambridge Univ. Press. FIGUEIREDO, Argelina (2007). Government coalitions in Brazilian democracy. Brazilian Political Science Review, v. 1, n. 2, p. 182-206. ______; LIMONGI, Fernando (1999). Executivo e Legislativo na Nova Ordem Constitucional. Rio de Janeiro: FGV Ed. ______; ______ (2007). Instituições políticas e governabilidade: desempenho do governo e apoio legislativo da democracia brasileira. In: MELO, Carlos Ranulfo; SÁEZ, Manuel Alcântara (Org.). A democracia brasileira: balanço e perspectivas para o século 21. Belo Horizonte: Ed. UFMG. GOMES Ana Lucia H. T. (2016). Rebeldes com causa? Investigando o multipartidarismo e a fragmentação partidária na Câmara dos Deputados sob a nova Lei Orgânica dos Partidos. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Goiás, Goiânia. Por que chegamos a tanto e que importância isso tem? Considerações sobre a fragmentação partidária no Brasil 225 KINZO, Maria Dalva Gil (1990). O quadro partidário na Constituinte. In: LAMOUNIER, Bolívar (Ed.). De Geisel a Collor: o balanço da transição. Sumaré, SP: Idesp. p. 105-131. LAVAREDA, Antônio (1991). A democracia nas urnas: o processo partidário eleitoral brasileiro. Rio de Janeiro: Rio Fundo; Iuperj. LIMA JUNIOR, Olavo (1983). Os partidos políticos brasileiros: a experiência federal e estadual, 1945-1964. Rio de Janeiro: Graal. MELO, Carlos Ranulfo (2004). Retirando as cadeiras do lugar: migração partidária na Câmara dos Deputados (1985-2002). Belo Horizonte: Ed. UFMG. ______ (2007). Nem tanto ao mar, nem tanto a terra: elementos para uma análise do sistema partidário brasileiro. In: ______; SÁEZ, Manuel Alcántara (Ed.). A democracia brasileira: balanço e perspectivas para o século 21. Belo Horizonte: Ed. UFMG. ______ (2015). The 2014 elections and the Brazilian party system. Brazilian Political Science Review, v. 9, n. 1, p. 93-114. ______; MIRANDA, Geralda (2006). Migrações e partidos no governo Lula. In: ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE CIÊNCIA POLÍTICA, 5., 2006, Belo Horizonte. [Anais...]. Belo Horizonte: ABCP. ______; SANTOS, Bruno Arcas (2015). A reforma na Câmara: poderia ter sido pior. Em Debate, v. 7, n. 3, p. 19-28. NICOLAU, Jairo (1996). Multipartidarismo e democracia: um estudo sobre o sistema partidário brasileiro, 1985-1994. Rio de Janeiro: FGV Ed. ______ (1998). Dados eleitorais do Brasil: 1982-1996. Rio de Janeiro: Revan; Iuperj. ______ (2004). Partidos na República de 1946: velhas teses, novos dados. Dados: Revista de Ciências Sociais, v. 47, n. 1, p. 85-129. _______ (2017). Representantes de quem? os (des)caminhos de seu voto da urna à Câmara dos Deputados. Rio de Janeiro: Zahar Ed. 226 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO NOBLAT, R. (1990). Céu dos favoritos: o Brasil de Sarney a Collor. Rio de Janeiro: Rio Fundo. PAPALARDO, Adriano (2007). Electoral systems, party systems: Lijphart and beyond. Party Politics, v. 13, n. 6, p. 721-740. SARTORI, Giovanni (1996). Engenharia constitucional: como mudam as constituições. Brasília: EdUnb. SOARES, Gláucio Ary Dillon (2001). Democracia interrompida. Rio de Janeiro: FGV Ed. TAVARES, José Antônio Giusti (1994). Sistemas eleitorais nas democracias contemporâneas: teoria, instituições e estratégia. Rio de Janeiro: Relume Dumará. TAFNER, Paulo (1996). Proporcionalidade e exclusão no sistema político-eleitoral brasileiro. Brasília: Ipea. (Texto para Discussão; n. 450). p. 1-54. Anexo Tabela 2 Tipo e número de partidos por percentual de cadeiras na Câmara (1986-2018) Eleição Categoria Número de partidos Mínimo e máximo % de cadeiras A 2 24,2 – 53,4 77,6 B 1 6,8 6,8 C 5 1,0 – 4,9 13,9 D 4 0,2 – 06 1,6 A 2 16,5 – 21,5 38,0 B 6 7,0 – 9,1 47,6 C 5 1,0 – 4,3 12,0 D 6 0,2 – 0,8 2,5 1986 1990 Por que chegamos a tanto e que importância isso tem? Considerações sobre a fragmentação partidária no Brasil Eleição Categoria Número de partidos Mínimo e máximo % de cadeiras A 3 12,3 – 20,9 50,5 B 5 6,0 – 9,9 39,1 C 3 1,9 – 2,9 7,4 D 7 0,2 – 0,8 2,9 A 5 11,5 – 20,7 79,4 B 1 6,0 6,0 C 4 1,4 – 4,9 12,0 D 8 0,2 – 0,6 2,7 A 4 13,7 – 17,7 62,4 B 3 5,1 – 9,6 19,8 C 6 1,0 – 4,3 15,8 D 6 0,2 – 0,8 2,1 A 4 12,7 – 17,4 59,2 B 2 5,3 – 8,0 13,3 C 7 1,8 – 4,7 24,5 D 8 0,2 – 0,6 3,1 A 3 10,5 – 16,8 42,5 B 5 5,3 – 8,6 37,1 C 6 1,6 – 4,3 16,9 D 8 0,2 – 0,8 3,6 A 3 10,5 – 13,3 36,7 B 4 6,6 – 7,4 27,6 C 12 1,0 – 4,9 31,9 D 9 0,2 – 0,8 3,9 A 2 10,1 – 10,9 21,0 B 9 5,7 – 7,8 48,5 C 13 1,2 – 3,1 23,9 D 6 0,32 – 0,84 6,6 1994 1998 2002 2006 2010 2014 2018 Fonte: Nicolau (1998), Melo (2007, 2015), Gomes (2016), sites do TSE e da Câmara dos Deputados. Elaboração do autor. 227 229 Ideologia e comportamento na Câmara dos Deputados (2003-2015) Rafael Câmara Introdução É de conhecimento dos cientistas políticos que as crenças, atitudes e opiniões dos representantes do Parlamento são um fator determinante para a qualidade de uma democracia (DAHL, 1971; 1989). Parlamentares são atores políticos relevantes, os quais recebem da sociedade a tarefa de participar diretamente dos processos políticos. Segundo Robert Dahl, o bom desempenho das democracias guarda íntima relação com as atitudes e opiniões dessa elite de indivíduos, uma vez que esses possuem uma maior capacidade de interferir nos processos políticos. Nos últimos anos, principalmente a partir da implantação do projeto Elite Parlamentares na América Latina (PELA), vários estudiosos têm se debruçado sobre as visões e percepções dos parlamentares (ALCÁNTARA; LUNA, 2004; RODRIGUEZ, 2006; DIAS, 2006; LUNA; ALTMAN, 2011; MELO; CÂMARA 2012; PUIGI; CUÉ, 2006). Esses estudos têm sido cruciais para captar e analisar a percepção dos deputados a respeito de seu papel legislativo, bem como suas crenças e atitudes. Ademais, esses estudos mostram-se importantes para mapear as preferências parlamentares sobre diversos temas dentro de um mesmo país (RODRIGUEZ, 2006; MELO; CÂMARA 2012), ou para comparar diversos países em relação a apenas uma questão específica, por exemplo, autoposicionamento ideológico dos deputados (PUIGI; CUÉ, 2006; DIAS, 2006). Todavia, ainda são raros os estudos que buscam estabelecer ligações diretas entre os achados sobre as percepções políticas dos deputados e seu comportamento dentro da arena legislativa. Isto é, há poucos estudos sobre as relações entre o que pensam e o que fazem os deputados. O capítulo se propõe a analisar essa relação para o caso dos deputados brasileiros através da observação do papel da ideologia na estruturação das preferências e na determinação do comportamento 230 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO dos deputados do país. Para tanto, procura-se investigar (1) se, e em que medida, os deputados e partidos estudados mantêm um posicionamento ideológico coerente ao longo de diferentes legislaturas, (2) se o autoposicionamento dos deputados na escala ideológica funciona como um bom preditor de suas respectivas opiniões sobre questões políticas substantivas e (3) se o comportamento dos deputados nas votações em plenário pode ser tomado como reflexo de suas posições ideológicas. Cada um desses pontos é discutido em uma seção específica deste capítulo. Para que se possa avançar em direção a esse objetivo, uma discussão fundamental trata das questões da coesão e da disciplina dos principais partidos do país. O capítulo busca demonstrar como esses dois fenômenos são claramente distinguíveis, tanto do ponto de vista conceitual quanto empírico, e salientar como a incorreta compreensão dessa distinção prejudica a compreensão da dinâmica de funcionamento do presidencialismo de coalizão. Do ponto de vista conceitual, é preciso estabelecer, primeiramente, que coesão diz respeito à similaridade de preferências (ou proximidade ideológica) entre os membros de um determinado partido ou coalizão, enquanto disciplina é definida como a capacidade que o partido tem para controlar os votos de seus membros em um parlamento (TSEBELIS, 1995). Já do ponto de vista empírico, a estratégia de análise será contrastar a distribuição de preferências (distribuição ideológica) dos partidos, medida através de pesquisas de surveys, com o posicionamento dos partidos nas votações nominais em plenário em cada uma das legislaturas estudadas. Nesse sentido, coesão é um fenômeno ligado à ideologia dos partidos, enquanto a disciplina diz respeito ao comportamento dos mesmos nas votações nominais em plenário. Entretanto, essa distinção nem sempre é observada pelos estudiosos do tema. Um exemplo disso são os trabalhos de Figueiredo e Limongi (1999; 2007) sobre o presidencialismo no Brasil, os quais insistem no ponto de que os partidos brasileiros não são apenas disciplinados como também coesos, tendo como evidência disso apenas os resultados de votações nominais na Câmara dos Deputados. Como consequência, o argumento desses autores não é capaz de incorporar o papel que a dispersão ideológica dos partidos e da coalizão exerce sobre o comportamento dos parlamentares, e consequentemente, sobre as relações entre Executivo e Legislativo no país. Além disso, a correta compreensão da coesão e disciplina como dois fenômenos distintos foi, e continua sendo, prejudicada pela aplicação dos chamados mo- Ideologia e comportamento na Câmara dos Deputados (2003-2015) 231 delos espaciais para análise de dados de escolha binária, largamente utilizados para a mensuração ideológica dos partidos a partir de dados sobre votações nominais. Os defensores desse método para mensuração do posicionamento ideológico dos partidos partem do pressuposto de que os legisladores possuem pontos ideais em uma dimensão política latente e votam pela alternativa política mais próxima a esse ponto. Nesse cenário, o voto do legislador refletiria a distância entre seu ponto ideal e uma proposta política sobre a qual ele deve decidir (POOLE, 2005; MCCARTY; POOLE; ROSENTHAL, 2006). Dessa forma, seria possível utilizar os dados sobre votações nominais para obter os pontos ideais de cada legislador em uma ou mais dimensões latentes. Um exemplo desse tipo de trabalho é o estudo de Bernabel (2015), o qual avalia as votações nominais realizadas na Câmara e no Senado entre 1994 e 2010 e conclui que a ideologia é a dimensão latente mais importante para predizer os resultados dessas votações. Todavia, alguns autores apresentam ressalvas ao uso das votações nominais para a identificação das preferências políticas pelos parlamentares (COX; MCCUBBINS, 2005; ARMSTRONG et al., 2014). Segundo esses autores, o voto dos deputados poderia ser influenciado por diversos fatores externos à sua preferência pessoal, tais como influência do líder partidário, barganhas e ameaças por parte do Executivo. Nesse sentido, o deputado poderia ser constrangido a votar de maneira distinta de seu ponto ideal. Na pesquisa aqui proposta, os resultados das análises das votações nominais não serão tomados como sendo relativos às “posições ideais” dos parlamentares, mas sim como o produto de um conjunto de fatores os quais podem influenciar as decisões dos deputados. Nesse sentido, o voto do parlamentar poderá ser compreendido como um comportamento estratégico no qual são levadas em consideração não apenas as preferências pessoais do próprio parlamentar, mas também os eventuais constrangimentos políticos e institucionais que o deputado possa enfrentar. A correta compreensão da distinção entre ideologia e comportamento, ou coesão e disciplina, é um requisito necessário para o bom entendimento do perfil ideológico de uma legislatura e do grau de correlação que este guarda com o comportamento efetivo dos deputados que a integram. 232 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO O posicionamento ideológico de partidos e deputados na Câmara dos Deputados Nos últimos anos, vários são os autores que têm se debruçado sobre a questão da distribuição de preferências políticas na Câmara dos Deputados (POWER; ZUCCO 2011; ZUCCO, 2012; LUCAS; SAMUELS, 2011; MELO; CÂMARA, 2012). Timothy Power e Cesar Zucco (2011) afirmam ser possível distinguir de forma clara os principais partidos brasileiros e mostram que este ordenamento se manteve constante a despeito das mudanças que o país passou em duas décadas. Os autores sustentam suas conclusões com base nos dados do Brazilian Legislative Surveys entre 1990 e 2009. A partir dessa base de dados, Power e Zucco constroem as estimativas sobre o posicionamento ideológico dos partidos com base em perguntas diretas sobre ideologia feitas ao deputado. Isto é, pede-se ao parlamentar para que posicione a si mesmo, ao seu partido e aos demais partidos na escala ideológica, e a partir daí se obtém o indicador do posicionamento dos partidos e dos deputados. Embora os resultados sejam muito interessantes e até certo ponto impressionantes, um possível problema desse tipo de análise é que pode não haver grande correspondência entre a forma pela qual os deputados classificam os partidos na escala ideológica e o posicionamento dos parlamentares com relação a issues específicos, ponto que já foi apontado por Luna e Altman (2011) e será levado em consideração no presente capítulo. Vale ressaltar que Power e Zucco (2011) até buscam estabelecer relações entre o posicionamento dos deputados e suas opiniões sobre outros temas políticos, porém os autores esbarram nas limitações do próprio survey que utilizam, o qual tem como foco principal as questões procedimentais relativas à organização legislativa da Câmara dos Deputados, em detrimento de um maior número de questões sobre políticas substantivas. Outro trabalho importante sobre o tema é o de Lucas e Samuels (2011), que utiliza também os dados do projeto Brazilian Legislative Surveys com intuito de desvendar o posicionamento ideológico dos partidos brasileiros entre 1990 e 2009. Esses autores buscam utilizar perguntas sobre questões substantivas (entre outras) para obter o posicionamento ideológico dos partidos, todavia, há uma boa razão para não se utilizar os dados obtidos pelos autores no presente capítulo. Ideologia e comportamento na Câmara dos Deputados (2003-2015) 233 Para escolher as questões usadas para a geração de seu indicador de posicionamento ideológico dos partidos, os autores fizeram uso de todas as perguntas que haviam sido realizadas em todas as ondas do survey até a data do estudo. Ocorre, porém, que os surveys utilizados têm um enfoque grande sobre questões procedimentais relativas à organização legislativa, bem como sobre o partidarismo dos deputados.90 Com tantas questões sobre o mesmo tema, é muito provável que a medida de ideologia criada pelos autores acabe sendo influenciada por um tema específico, enquanto as opiniões sobre outros temas relevantes (como intervenção do Estado na economia, para a qual só há uma pergunta), acabem tendo uma importância muito reduzida. Dessa forma, optou-se neste capítulo pela utilização dos dados dos questionários aplicados pela pesquisa Elites Parlamentares da América Latina (PELA), os quais possuem uma grande diversidade de perguntas sobre os diferentes temas que tocam a atuação parlamentar. Serão utilizados os dados das três ondas de survey realizadas no Brasil, aplicadas em 2005, 2010 e 2014. Retomando o plano do capítulo, a primeira questão a ser respondida é se, e em que medida, os deputados e partidos estudados mantêm um posicionamento ideológico coerente ao longo de diferentes legislaturas. Para respondê-la será utilizado o método conhecido como Aldrich-Mckelvey Scaling (ARMSTRONG et al., 2014) para posicionar adequadamente os deputados na escala esquerda-direita. O método é adequado para lidar com o problema da incomparabilidade interpessoal das respostas dos entrevistados (KING et al., 2004), o qual deriva do fato de que os respondentes podem interpretar o significado de uma mesma escala de maneira distinta. A técnica permite estimar a distorção de percepção de cada respondente e, a partir disso, reescalonar a locação estimada dos respondentes ao longo do assunto analisado. De acordo com Armstrong et al. (2014), há três causas principais de distorção das percepções dos entrevistados. Em primeiro lugar, as preferências e orientações afetivas dos respondentes podem enviesar sua percepção do cenário político. É o caso de um membro de um partido 90 Por exemplo, há perguntas sobre: (1) se um deputado deve perder o mandato se mudar de partido, (2) se um deputado deve perder o mandato se não votar com o partido, (3) se um deputado deve votar de acordo com sua crença pessoal ou com o partido, (4) se o partido deve fechar questões em votação ou não, (5) se o deputado deve votar de acordo com seu partido ou com os eleitores de sua região. 234 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO localizado no extremo esquerdo do espectro ideológico e que considera todos os demais partidos como partidos de direita, ou de um político que despreza um partido rival e tende a posicioná-lo o mais distante possível de si próprio na escala ideológica. Uma segunda fonte de distorção tende a ocorrer mesmo que os respondentes não sejam enviesados, uma vez que o significado dos pontos em uma escala pode ser ambíguo, especialmente quando o número de categorias de resposta cresce. Por fim, uma terceira causa de distorção pode ocorrer se os respondentes forem mal informados sobre o assunto perguntado. No caso de deputados posicionando partidos sobre o espectro ideológico, isso poderia ocorrer tanto por “culpa” do deputado, quando ele não conhece bem o sistema partidário, quanto por “culpa” do partido a ser posicionado, no caso de o partido não possuir uma posição ideológica muito clara. O gráfico 1 apresenta as curvas de densidade de PT, PSDB, PMDB e DEM, obtidas pelo método de Aldrich-Mckelvey para o período entre 2003 e 2007. Para tanto, foi utilizado o pacote basic space (POOLE et al., 2016) no software R. O método adotado incorpora informações sobre como os deputados posicionam a si próprios e aos partidos na escala ideológica, mais especificamente, foram utilizadas as respostas dos deputados a três perguntas sobre posicionamento ideológico. f Quando se fala de política, se utiliza frequentemente as expressões esquerda e direita. Numa escala em que 1 indica “esquerda” e 10, “direita”, em que lugar o(a) Sr.(a) posicionaria os seguintes partidos: f Como já foi dito anteriormente, quando se fala de política se utiliza normalmente as expressões esquerda e direita. Levando em conta as suas ideias políticas, onde o(a) Sr.(a) se posicionaria na escala seguinte, sendo que 1 indica a “esquerda” e 10, a “direita”. f E, nesta mesma escala, onde o(a) Sr.(a) situaria seu próprio partido? Para a correta utilização do método, através do basic space, os dados da primeira e da terceira perguntas foram agrupados em apenas uma variável, contendo as respostas de cada entrevistado para o posicionamento de seu próprio partido e dos demais partidos sobre o qual ele foi perguntado. De um total de 134 deputados entrevistados, 12 foram excluídos por não terem respondido a uma ou mais questões sobre o posicionamento ideológico. Dos 122 respondentes restantes, 5 receberam pesos negativos, isto é, não foram capazes de Ideologia e comportamento na Câmara dos Deputados (2003-2015) 235 interpretar de maneira minimamente coerente a escala ideológica. Comparando os resultados dos deputados brasileiros com outros exemplos obtidos em Armstrong et al. (2014), pode-se dizer que a compreensão da escala esquerda-direita não apresenta uma grande dificuldade para os parlamentares brasileiros. O gráfico 1 apresenta os pontos ideais, estimados pelo método de Aldrich-Mckelvey, para os deputados dos quatro maiores partidos brasileiros91 na escala ideológica (esquerda-direita). As curvas de densidade são formadas a partir das respostas de cada deputado em relação ao seu próprio posicionamento na escala. É possível perceber que os deputados tenderam a se posicionar mais à esquerda do espectro ideológico do que seria esperado caso houvesse uma distribuição mais homogênea entre os lados direito e esquerdo do espectro. Há de se chamar atenção para como os parlamentares do PT foram aqueles que mais se distanciaram dos demais, ocupando o canto esquerdo do espectro, enquanto os deputados do PMDB e do PSDB se mantiveram bastante próximos, mais perto do centro do espectro, ao passo que os deputados do DEM92 se posicionaram mais à direita. Gráfico 1 Pontos ideais dos deputados brasileiros (2003-2007) Fonte: dados da PELA. Elaboração do autor. 91 Os dados da PELA não contêm as variáveis necessárias para a estimação do posicionamento de todos os partidos do Congresso pelo método de Aldrich-Mckelvey, razão pela qual optou-se por selecionar um grupo de partidos para os quais havia os dados necessários. Considerando todo o período entre 2003 e 2015, PT, PSDB, PMDB e PFL/DEM foram os partidos com maior número de cadeiras na Câmara Baixa. 92 Tecnicamente, o antigo PFL só adotaria a sigla DEM em 2007. Todavia, para facilitar a comparação entre o período de 2003 a 2015, optou-se por chamar o PFL/DEM sempre de DEM. 236 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO É importante destacar que as medidas geradas pelo método de Aldrich-Mckelvey não possuem um valor intrínseco, sendo mais importante analisar as posições relativas dos partidos e deputados e não os valores absolutos de seus pontos ideais. O método permite a comparação numérica entre o autoposicionamento dos deputados e o posicionamento dos partidos para a mesma legislatura, uma vez que esses posicionamentos são gerados em uma mesma escala, mas o mesmo não vale para comparações entre legislaturas. Neste último caso, o que importa observar são as posições relativas dos partidos. Um resultado interessante surge quando comparamos os resultados obtidos no gráfico 1, os quais refletem o autoposicionamento dos deputados na escala ideológica, com os dados sobre o posicionamento dos partidos, também obtidos pelo método de Aldrich-Mckelvey. O gráfico 2 apresenta os valores médios do posicionamento dos partidos e dos deputados na escala ideológica entre 2003 e 2007. Gráfico 2 Posicionamento médio dos partidos e dos deputados na escala ideológica (2003-2007) DEM -0,1 PMDB -0,18 -0,58 0,38 PSDB -0,06 -0,59 PT -0,77 -1,35 -1,5 -1 Posicionamento dos Partidos -0,5 0 0,5 Autoposicionamento dos Deputados Fonte: dados da PELA. Elaboração do autor. É importante observar que os dados de “posicionamento dos partidos” referem-se à visão geral que o total de entrevistados teve sobre o posicionamento ideológico de determinado partido. Já os dados de “autoposicionamento dos deputados” referem-se à média dos valores de autoposicionamento dos deputados de cada partido. O gráfico 2 mostra que os deputados tendem a posicionar a si próprios Ideologia e comportamento na Câmara dos Deputados (2003-2015) 237 mais à esquerda do espectro ideológico em relação à percepção geral que tanto eles como os demais parlamentares têm sobre seu partido. Em seu conjunto, esses dados podem estar relacionados com o fenômeno da “direita envergonhada”, ou da direita que não se assume como tal, o qual teve origem na transição do regime militar para o período democrático atual (SOUSA, 1988). Power e Zucco (2009) já identificaram esse fenômeno em pesquisa anterior e ofereceram a explicação de que os deputados pertencentes aos partidos de direita se assumem como parlamentares de centro para desvincular sua imagem do antigo regime ditatorial. Todavia, se essa hipótese é capaz de explicar por que os parlamentares PFL/DEM se posicionam mais ao centro do espectro ideológico do que se poderia esperar e seria condizente com a maneira que os demais membros da Câmara dos Deputados classificam o partido, ela é incapaz de explicar por que os parlamentares de todos os partidos pesquisados apresentam o mesmo comportamento. O que o gráfico 2 mostra é que todos os parlamentares se posicionam mais à esquerda do que seria esperado de acordo com a percepção dos próprios parlamentares sobre os partidos. Um deputado do PT que se posiciona mais à esquerda do que o esperado não o faz por ter vergonha em se assumir de direita, pois mesmo que ele se posicionasse no exato local médio em que os demais parlamentares posicionam o PT, esse deputado ainda estaria localizado entre o centro e a esquerda do espectro. Dessa forma, não são especificamente os deputados da direita que se mostram envergonhados de assumir sua posição, não sendo a expressão “direita envergonhada” aquela que melhor descreve o fenômeno em questão. Uma vez que os deputados de todas as partes do espectro ideológico não querem se aproximar do lado direito do mesmo, caracterizando uma aversão generalizada ao posicionamento mais à leste da escala, o fenômeno seria melhor caracterizado como um caso de “direita repulsiva”. Não no sentido de se tratar de uma direita sórdida, suja ou desagradável, mas no sentido do polo direito do espectro ideológico exercer uma força de repulsão sobre os deputados de todos os partidos, os quais buscam se distanciar desse ponto. Cria-se, assim, um viés à esquerda no autoposicionamento dos deputados, quando comparado à visão geral que a casa legislativa tem sobre os partidos. 238 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Dando prosseguimento à análise, a diferença mais importante entre o posicionamento dos partidos e dos deputados, apresentada no gráfico 2, se dá em relação aos deputados do PSDB e PMDB. Isto porque na visão geral dos parlamentares, o PMDB encontra-se mais à esquerda do que o PSDB, mas levando-se em consideração a maneira como os deputados posicionam a si próprios, os dois partidos encontram-se praticamente no mesmo ponto da escala. Esse fato provavelmente está ligado à origem do PSDB, partido que surge como dissidência à esquerda do PMDB em sua criação: é possível que alguns parlamentares do PSDB busquem se manter fiéis a essa imagem de fundação do partido. Para além disso, o ordenamento dos partidos se mantém coerente nos dois gráficos, com o PT e o PFL/DEM ocupando cantos opostos do espectro, e o PSDB e o PMDB se mantendo mais ao centro. O gráfico 3 apresenta os pontos ideais dos deputados brasileiros para a legislatura que vai de 2007 a 2011. Do total de 129 deputados entrevistados, 6 foram excluídos devido a não terem respondido todas as questões sobre posicionamento ideológico. Dos 123 deputados restantes, 116 receberam pesos positivos e 7, negativos, indicando mais uma vez que a maioria dos deputados consegue ordenar os partidos na escala esquerda-direita de maneira coerente. Gráfico 3 Pontos ideais dos deputados brasileiros (2007-2011) Fonte: dados da PELA. Elaboração do autor. Ideologia e comportamento na Câmara dos Deputados (2003-2015) 239 A análise dos pontos ideais dos quatro partidos revela mais uma vez PT e DEM nos cantos opostos do espectro, enquanto PMDB e PSDB se posicionam mais ao centro. Cabe observar que desta vez os parlamentares do PSDB posicionaram-se ligeiramente mais à direita do que os deputados do PMDB. Ademais, conforme se pode observar no gráfico 4, que apresenta o posicionamento médio dos partidos e dos deputados na escala ideológica para essa legislatura, os parlamentares de todos os partidos posicionaram-se mais à esquerda do espectro em relação à percepção geral do posicionamento dos partidos. Gráfico 4 Posicionamento médio dos partidos e dos deputados na escala ideológica (2007-2011) DEM 0,52 0,14 PMDB -0,01 -0,53 PSDB 0,14 -0,26 -0,79 -1 PT -0,49 -0,8 -0,6 -0,4 Posicionamento dos Partidos -0,2 0 0,2 0,4 0,6 Autoposicionamento dos Deputados Fonte: dados da PELA. Elaboração do autor. A principal diferença entre os dados apresentados no gráfico 4, em relação aos dados do gráfico 2 que trataram da legislatura anterior, é que desta vez o ordenamento dos partidos no espectro ideológico permanece igual tanto quando se leva em consideração o autoposicionamento dos deputados, como também quando se olha como os deputados classificaram os partidos. Isso mostra como a tendência dos parlamentares se posicionarem mais à esquerda do que o esperado atingiu os quatro partidos pesquisados de maneira similar. Passando a legislatura que se iniciou em 2011 e terminou em 2015, o gráfico 5 apresenta os pontos ideais dos deputados e mais uma vez revela uma distribuição ideológica que tem o PT destacadamente à esquerda, e o DEM destacadamente à direita. Por sua vez, PMDB e PSDB encontram-se mais ao centro da escala, sendo que o PSDB se encontra, na média, ligeiramente mais à direita do que o 240 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO PMDB. Do total de 123 deputados entrevistados, 9 foram excluídos devido a não terem respondido todas as questões sobre posicionamento ideológico. Dos 114 deputados restantes, 109 receberam pesos positivos e 5 negativos. Gráfico 5 Pontos ideais dos deputados brasileiros (2011-2015) Fonte: dados da PELA. Elaboração do autor. Já em relação ao posicionamento médio dos partidos e dos deputados na escala ideológica, a análise dos dados do gráfico 6 apresenta uma novidade em relação aos períodos anteriores. Pela primeira vez os deputados de um partido não se posicionaram mais à esquerda do que seria esperado de acordo com a visão geral que os deputados da Câmara têm sobre esse partido. Os deputados do DEM se posicionaram exatamente no mesmo ponto que o conjunto dos deputados da casa legislativa classificou o partido. Ideologia e comportamento na Câmara dos Deputados (2003-2015) 241 Gráfico 6 Posicionamento médio dos partidos e dos deputados na escala ideológica (2011-2015) DEM 0,57 0,57 -0,02 -0,3 PMDB PSDB 0,16 -0,045 PT -0,51 -0,99 -1,2 -1 -0,8 -0,6 -0,4 Posicionamento dos Partidos -0,2 0 0,2 0,4 0,6 0,8 Auto-posicionamento dos deputados Fonte: dados da PELA. Elaboração do autor. Verificar o que causou essa mudança está além do alcance deste capítulo, não obstante, é possível levantar hipóteses para pesquisas posteriores. Uma dessas hipóteses é a de que essa mudança de comportamento esteja ligada ao desgaste enfrentado pela então presidente Dilma Rousseff, integrante de um partido e de um governo de esquerda, no ano de realização da pesquisa (2014). Outra possível explicação seria a de que, com o passar do tempo, a associação entre os partidos de direita e o regime ditatorial esteja se enfraquecendo no imaginário popular e das elites, de maneira a tornar mais fácil que um parlamentar se posicione mais à direita do espectro. Por último, uma terceira hipótese seria a de que com a migração de vários parlamentares do DEM para o PSD, teriam restado no DEM apenas os deputados mais claramente situados à direita do espectro. Tais deputados não teriam sido seduzidos pela estratégia de mudar para um novo partido mais próximo ao governo petista. O gráfico revela ainda que, assim como ocorreu na legislatura anterior, o ordenamento dos partidos no espectro ideológico permanece igual tanto quando se leva em consideração o autoposicionamento dos deputados, como também quando se olha como os deputados classificaram os partidos. 242 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO A ideologia como variável preditora Esta seção busca investigar se o posicionamento dos deputados na escala ideológica funciona como um bom preditor de suas respectivas opiniões sobre questões políticas substantivas. Conforme afirmado anteriormente, pode não haver correspondência entre a forma pela qual os deputados se posicionam na escala ideológica e o posicionamento dos parlamentares com relação a issues específicos. Para testar se existe ou não essa correspondência no caso dos deputados brasileiros, foram realizados testes de correlação entre a medida de autoposicionamento ideológico dos deputados gerada na seção anterior e as opiniões dos deputados relativas a diversos temas de sua atuação parlamentar. Para a escolha de quais questões deveriam ser submetidas aos testes de correlação, foram seguidos os passos de Melo e Câmara (2012), que investigaram as diferenças de opiniões entre os diferentes blocos partidários da Câmara dos Deputados entre 2003 e 2010. Dessa forma, os testes envolvem a relação da ideologia com as opiniões dos deputados sobre: i) o papel do Estado na economia; ii) política externa e iii) valores. Ideologia e papel do Estado na economia O primeiro tema a ser analisado diz respeito às opiniões dos deputados com relação ao papel que o Estado deve ocupar na economia. Para examinar essa questão, foram utilizadas cinco perguntas, sendo as duas primeiras do survey realizado em 2005 e as outras três de 2010 e 2014. A formulação das questões “ECON1” e “ECON3” é a mesma; apenas a escala foi alterada entre um survey e outro. Como os resultados serão discriminados por survey, optou-se por mantê-las como questões distintas. f ECON1. O (a) senhor (a) poderia me dizer se é mais favorável a uma economia regulada pelo Estado ou pelo mercado? Utilize a seguinte escala, em que 1 indica “máxima presença do Estado na economia” e 5, “máxima liberdade para o mercado”. f ECON2. Qual dos critérios a seguir sintetiza sua atitude pessoal em relação ao tema das privatizações dos serviços públicos? 1. Privatizaria todos os serviços públicos. 2. Privatizaria todos os serviços públicos com exceção dos que tivessem maiores consequências para a maior parcela da Ideologia e comportamento na Câmara dos Deputados (2003-2015) 243 população. 3. Só privatizaria aqueles serviços públicos de pouca rentabilidade. 4. Não privatizaria nenhum serviço público. f ECON3. O (a) Sr. (a) poderia me dizer se é mais favorável a uma economia regulada pelo Estado ou pelo mercado? Utilize a seguinte escala, em que 1 indica “máxima presença do Estado na economia” e 10, “máxima liberdade para o mercado”. f ECON4. Qual é, na opinião do (a) Sr. (a), o nível de controle que o Estado deve ter sobre a gestão de serviços públicos como água, eletricidade ou transporte, entre outros. Utilize a seguinte escala, em que 1 significa que “os serviços públicos devem ser prestados e gerenciados pelo Estado”, e 10, que “os serviços públicos devem ser prestados e gerenciados por empresas privadas”. f ECON5. Que nível de controle o Estado deve ter sobre os recursos naturais como gás, petróleo ou minerais? Utilize a seguinte escala, em que 1 significa que “os recursos naturais devem ser explorados e gerenciados pelo Estado” e 10, que “os recursos naturais devem ser explorados e gerenciados por empresas privadas”. A tabela 1 apresenta as correlações entre o posicionamento ideológico dos deputados e suas atitudes em relação ao papel do Estado na economia. Em primeiro lugar, salta aos olhos o fato de que todas as correlações encontradas apresentaram significância estatística (para valor abaixo de 0,05), mesmo se tratando de uma amostra relativamente pequena de deputados. Além disso, quase todas as correlações apresentaram valores altos para os padrões das ciências sociais, indicando que existe uma associação forte entre o posicionamento dos deputados na escala ideológica e suas opiniões sobre temas econômicos.93 Tabela 1 – Correlações entre ideologia e o papel do Estado na economia Ano Variável Correlação Coeficiente Significância ECON1 Pearson 0,483 0,000 ECON2 Spearman -0,382 0,000 2005 93 Com relação ao tipo de correlação utilizado em cada cruzamento, optou-se por realizar a de Pearson para as correlações entre a variável de autoposicionamento e outra variável intervalar, e a de Spearman para as correlações entre a variável de autoposicionamento e uma variável ordinal. 244 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Ano 2010 2014 Variável Correlação Coeficiente Significância ECON3 Pearson 0,412 0,000 ECON4 Pearson 0,219 0,019 ECON5 Pearson 0,350 0,000 ECON3 Pearson 0,516 0,000 ECON4 Pearson 0,302 0,002 ECON5 Pearson 0,327 0,001 Fonte: dados da PELA. Elaboração do autor. Além disso, todas as correlações apresentaram o sentido esperado de acordo com o que se espera de partidos de esquerda e direita, isto é, os parlamentares mais à direita foram mais favoráveis a uma maior liberdade para o mercado e menos favoráveis à presença do Estado na economia. As correlações entre a ideologia do deputado e as variáveis ECON1 e ECON2, do survey de 2005, mostram que os deputados mais à direita do espectro tendem a preferir a liberdade para o mercado em detrimento de uma maior presença do Estado na economia, assim como esses deputados são mais favoráveis às privatizações em relação aos congressistas mais à esquerda do espectro. Já as correlações entre a ideologia e as variáveis ECON3, ECON4, ECON5, dos surveys de 2010 e 2014, mostram que existe uma forte relação entre estar à direita do espectro ideológico e preferir que: (1) o mercado tenha mais liberdade em relação ao estado, (2) os serviços públicos sejam gerenciados por empresas privadas e (3) os recursos naturais sejam gerenciados por empresas privadas. Ideologia e política externa Outro tema por meio do qual se pode distinguir as opiniões dos parlamentares é a política externa. Com base nos dados dos surveys procurou-se distinguir o posicionamento dos deputados em relação às questões internacionais com base em três questões: (1) o interesse a ser demonstrado pelo Brasil nas relações com determinados países ou regiões, (2) a importância do Tratado de Livre Comércio com os Estados Unidos para a América Latina (ALCA), e (3) a avaliação da Aliança Bolivariana para a América Latina e Caribe (ALBA). A primeira questão está elaborada da seguinte maneira no questionário de 2005: Ideologia e comportamento na Câmara dos Deputados (2003-2015) f 245 EXT. Em sua opinião, com relação às áreas e países enumerados em seguida, quanto interesse o governo brasileiro deveria ter ao formular sua política externa: muito interesse, interesse médio, pouco interesse ou nenhum interesse? f EXT1. Países vizinhos f EXT2. América Latina f EXT3. Estados Unidos As questões referentes à ALCA e à ALBA foram retiradas do questionário aplicado em 2010 e continham o seguinte enunciado: f EXT4. Qual é, na opinião do (a) Sr. (a), o grau de interesse do Brasil em pertencer à ALCA: muito interesse, interesse médio, pouco interesse ou nenhum interesse? f EXT5. Na seguinte escala, em que 1 significa “muito negativo” e 10, “muito positivo”, como o (a) Sr. (a) avalia o papel da Alternativa Bolivariana para América Latina e Caribe (ALBA)? No survey de 2010, a questão sobre o interesse do Brasil nas relações com determinados países ou regiões foi reelaborada e passou a ter o seguinte formato: f EXT6. Com referência às relações internacionais das áreas e países listados, qual é, na opinião do (a) Sr. (a), a área prioritária na qual o governo brasileiro deveria formular sua política externa? 1. Os países vizinhos; 2. Os países da América Latina em geral; 3. Os Estados Unidos; 4. O Japão; 5. A China; 6. A União Europeia. Para poder realizar uma análise de correlação, optou-se por agregar tanto as alternativas 1 e 2 como as de número 3, 4, 5 e 6. Dessa forma, passou-se a trabalhar com duas alternativas: 1. Países vizinhos e América Latina; 2. Outros países/regiões. No survey de 2014, a questão sobre o interesse do Brasil nas relações com determinados países ou regiões foi reelaborada novamente e passou a ter o seguinte formato: f EXT7. Na opinião do (a) Sr. (a), a orientação da política externa brasileira deveria ser predominantemente: 1. De estreitamento da cooperação Sul-Sul; 2. Depende da situação; 3. De estreitamento da cooperação Norte-Sul. 246 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO A tabela 2 evidencia a existência de correlações entre o posicionamento ideológico dos deputados e suas opiniões sobre temas ligados à política externa brasileira. Em cinco das sete perguntas utilizadas as correlações se mostraram significativas. Tabela 2 – Correlações entre ideologia e política externa Ano 2005 2010 2014 Variável Correlação Coeficiente Significância EXT1 Spearman -0,127 0,174 EXT2 Spearman -0,178 0,055 EXT3 Spearman 0,322 0,000 EXT4 Spearman 0,518 0,000 EXT5 Spearman -0,259 0,007 EXT6 Pearson 0,227 0,015 EXT7 Spearman 0,498 0,000 Fonte: dados da PELA. Elaboração do autor. As correlações entre a ideologia e as variáveis Ext1 e Ext2 indicam que os parlamentares posicionados mais à direita do espectro ideológico acreditam que o Brasil não deveria ter muito interesse nos países vizinhos e na América Latina, entretanto, essas correlações não apresentaram significância do ponto de vista estatístico. Ainda no survey de 2005, aferiu-se que existe uma forte correlação entre estar mais à direita do espectro ideológico e acreditar que o Brasil deveria ter grande interesse nos Estados Unidos ao formular sua política externa. Já as correlações entre a variável ideologia e as variáveis Ext4, Ext5 e Ext6, da pesquisa de 2010, mostram que os parlamentares que se encontram mais à direita do espectro ideológico acreditam que o Brasil tem mais interesse em pertencer à ALCA, avaliam menos positivamente a ALBA e tendem a preferir que o Brasil não eleja os países vizinhos e da América latina como prioritários para formular sua política externa. Por fim, a correlação com a variável Ext7, do survey de 2014, indica que os parlamentares de direita tendem a preferir que se priorize a cooperação Norte-Sul em detrimento da cooperação com outros países do Sul. Ideologia e comportamento na Câmara dos Deputados (2003-2015) 247 Ideologia e valores Em todos os surveys analisados os deputados foram questionados a respeito de temas considerados polêmicos. Em 2005, os assuntos foram o divórcio e o aborto. As perguntas utilizadas possuíam as seguintes formulações: f VAL1. Como o (a) Sr. (a) se posicionaria em relação ao divórcio na escala seguinte, sendo que 1 significa “discordar totalmente” e 10, “concordar totalmente”? f VAL2. Por favor, indique na escala seguinte sua opinião pessoal a respeito do aborto. 1. A mulher grávida é a única que tem direito a decidir sobre a moralidade do aborto e sua prática e 10. O Estado deve declarar ilegal o aborto e penalizá-lo como qualquer outro delito. Em 2010 não foi utilizada a questão sobre o divórcio. Em seu lugar se procurou verificar a opinião dos deputados sobre a união civil de pessoas do mesmo sexo. As formulações utilizadas foram as seguintes. f VAL3. Indique na seguinte escala sua opinião sobre a descriminalização do aborto. 1. A favor. 10. Contra. f VAL4. Mudando de tema, com que firmeza o (a) Sr. (a) aprova ou desaprova que casais do mesmo sexo possam ter direito a casar-se? Por favor, utilize esta escala que vai de 1 a 10, na qual 1 significa que “desaprova firmemente” e 10 que “aprova firmemente”. Em 2014 as questões sobre descriminalização do aborto e casamento de pessoas do mesmo sexo foram reformuladas e passaram a ter o seguinte formato: f VAL5. Agora vou enumerar uma série de temas debatidos na sociedade brasileira. Utilize a escala a seguir sobre a legalização do aborto, em que 1 significa a favor e 10 significa contra. f VAL6. Agora vou enumerar uma série de temas debatidos na sociedade brasileira. Utilize a escala a seguir sobre a união civil de pessoas do mesmo sexo, em que 1 significa a favor e 10 significa contra. Os resultados apresentados na tabela 3 evidenciam a existência de correlações entre o posicionamento ideológico dos deputados e suas opiniões sobre temas polêmicos, cujas respostas se relacionam aos valores dos deputados. Em cinco 248 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO das seis perguntas utilizadas, verificou-se a presença de uma correlação estatisticamente significativa. Tabela 3 – Correlações entre a ideologia e as opiniões dos deputados sobre temas polêmicos Ano Variável Teste Coeficiente Significância VAL1 Pearson -0,092 0,324 VAL2 Pearson 0,265 0,005 VAL3 Pearson 0,233 0,015 VAL4 Pearson 0,367 0,000 VAL5 Pearson 0,317 0,001 VAL6 Pearson 0,446 0,000 2005 2010 2014 Fonte: dados da PELA. Elaboração do autor. Os resultados da onda de 2005 da pesquisa mostraram que não há correlação estatisticamente significativa no tocante ao apoio ao divórcio e o posicionamento ideológico. E que os parlamentares mais à direita do espectro ideológico tendem a ser mais favoráveis a que o aborto seja considerado um crime. Embora as perguntas sobre o aborto estejam formuladas de maneira diferente em 2010 e 2014 (Val3 e Val5), os resultados de todas as ondas apontam na mesma direção. Em todos os casos existe uma correlação estatisticamente significativa entre estar mais à direita do espectro ideológico e ser contrário à descriminalização do aborto. O survey de 2010 e 2014 perguntava ainda se os deputados consideravam que pessoas do mesmo sexo deveriam ter direito a casar-se. Os dados evidenciam que os parlamentares de direita tendem a ser menos favoráveis à união civil de pessoas do mesmo sexo. De maneira geral, esses resultados sinalizam que os parlamentares posicionados mais à direita do espectro ideológico possuem valores mais tradicionais, tendendo a adotar posições mais conservadoras quando perguntados sobre temas polêmicos. Para concluir esta seção, pode-se dizer que existe sim uma correspondência entre a maneira como os deputados se posicionam no espectro ideológico e as opiniões dos mesmos em relação a diversos temas de sua atuação parlamentar. Isso significa que não apenas os parlamentares sabem se posicionar na escala ideológica, como também que esse posicionamento diz muito sobre as opiniões Ideologia e comportamento na Câmara dos Deputados (2003-2015) 249 do deputado sobre questões substantivas. A próxima seção irá investigar se a ideologia é também o fator determinante para a compreensão do comportamento dos deputados em plenário. O comportamento dos deputados na Câmara No presente capítulo, os resultados das análises das votações nominais não são tomados como sendo relativos às “posições ideais” dos parlamentares, mas sim como o produto de um conjunto de fatores os quais podem influenciar as decisões dos deputados. Nesse sentido, o voto do parlamentar pode ser compreendido como um comportamento estratégico no qual são levadas em consideração não apenas as preferências pessoais do próprio parlamentar, mas também os eventuais constrangimentos políticos e institucionais que o deputado possa enfrentar. A partir desse entendimento, foi utilizado o método conhecido como W-Nominate, desenvolvido por Keith Poole e Howard Rosenthal (1997) para estimar o posicionamento dos deputados brasileiros em torno de duas dimensões latentes. O gráfico 7 revela os scores obtidos através do W-Nominate para os quatro maiores partidos presentes na Câmara dos Deputados durante o primeiro governo do presidente Lula (2003-2007). De acordo com os dados, com base apenas na primeira dimensão (horizontal), é possível prever com sucesso 90,7% das votações dos deputados no período. Para além do fato de que o modelo apresenta um bom nível de ajuste, esse resultado significa também que esse conjunto de dados expõe uma dimensão altamente dominante a partir da qual se estruturam as votações dos deputados. 250 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Gráfico 7 W-Nominate Scores para PT, PMDB, PFL, PSDB na Câmara dos Deputados (2003- 2007) 0.5 0.0 -1.0 -0.5 Second Dimension 1.0 W-Nominate Scores RO R R O O O O O O O OO OO O O O OOO B B B OO O O O B O O B O G OO O O O O B BBB R O O BOO OOO O O BB OO O OO O O BBBBB O BB O O B O O O O O O O B G O O O B R BB O O B O OO OR O B G O O O O R R G O O B B O G B BB BO O G O B O B O O G O G G GGBB BB B OO O O B G GB OOO BB G O O RR R B GG BB G B B G O O B G GG RRR R O G G G RR RR O RR RR R GGG G G OO O O G G R RR G B B G G R RR R R O GB R GB G BB R B R OO G R RR GGG G B GBB RR R G R R R RR G R RR G G GG RRR O GB G B R RR R R GR G BOO O G RR RR RR G GG G R GG G G R R G G R R GG R GGG R R R O G R G GG RR R G R B G RR R R RR G R O B R R B RR R B R BG BG BG RR R R R B B BB -1.0 -0.5 0.0 0.5 PT PMDB PFL PSDB R 1.0 First Dimension: Oposiçao - Governo Fonte: dados do Banco de Dados Legislativos do Cebrap. Elaboração do autor. O gráfico 7 mostra uma distribuição espacial distinta daquela observada nos surveys da primeira seção. Enquanto o período entre 2003 e 2007 foi marcado por uma proximidade ideológica entre PSDB e PMDB, conforme os dados do gráfico 1, o posicionamento dos deputados desses partidos foi bastante distinto nas votações do Congresso. Enquanto o PSDB se manteve alinhado ao PFL na maioria das votações, o PMDB esteve mais próximo ao PT.94 A interpretação aqui é que é o eixo governo e oposição que delimita o posicionamento dos parlamentares de PT, PMDB, DEM e PSDB nas votações da Câmara dos Deputados. 94 É importante lembrar que é a dimensão horizontal a responsável por explicar mais de 90% da variação desses dados e é essa dimensão que deve ter prioridade na interpretação dos resultados. Ideologia e comportamento na Câmara dos Deputados (2003-2015) 251 Esse ponto fica ainda mais claro quando se analisa os dados do gráfico 8, que apresenta os scores obtidos através do W-Nominate para os quatro partidos durante o segundo termo do presidente Lula, entre 2007 e 2011. Gráfico 8 W-Nominate Scores para PT, PMDB, PFL, PSDB na Câmara dos Deputados (2007- 2011) 1.0 W-Nominate Scores 0.5 0.0 B BB B B G BBBBB B BBBB B B B B B BBB BB B BB BB B BBB B B BBB BB B B BB B BB B B OB B B O O O O O OOO O O O OO OO OO OO O OOOO O O O OOO OOGO OO O OO O O O G OOO OO O OO OO O O OO OO O OO O OOO O O O O O O O O O OOO OO B O O O OO O O O O O R OR G OO O G O O O O R RR R G G RR R RRRR O GG R GO R G RR RR G R R R R B G G G G G RRR R R OR RR R GG GG RR R R R GG OG R R B R R O R R R G GG R R R R G G R GG G R R G GG G G G G G G G GGG G G R GG G G G G G GGG R G R G -1.0 -0.5 Second Dimension O PT PMDB DEM PSDB -1.0 -0.5 0.0 0.5 1.0 First Dimension: Oposiçao - Governo Fonte: dados do Banco de Dados Legislativos do Cebrap. Elaboração do autor. Os dados desse período revelam uma distinção ainda mais clara entre os partidos pertencentes ao governo e à oposição. A diferença em relação ao período anterior pode ser explicada pelo fato de o primeiro mandato do governo Lula (2003-2007) ter sido marcado por diversas mudanças nas coalizões de governo e pelo PMDB só ter se tornado membro oficial da coalizão de governo durante o decorrer do mandato, enquanto no segundo mandato do presidente Lula, o PMDB fez parte da coalizão de governo do início ao fim. Voltando à interpretação dos scores do W-Nominate para o período entre 2007 a 2011, os dados mostram que a dimensão estruturante dos dados é certamente 252 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO a dimensão governo e oposição, e não a dimensão ideológica. Esses dados vão de encontro aos achados de Bernabel (2015), segundo o qual seria a ideologia a principal dimensão estruturante das votações nominais no Congresso. Essa divergência pode ser explicada pelas diferenças metodológicas entre o estudo do autor e o presente trabalho. Para identificar quais as dimensões latentes sobre as quais se estruturam as votações nominais, Bernabel, ao invés de investigar separadamente cada legislatura, utiliza o W-Nominate para analisar conjuntamente as votações na Câmara dos Deputados para o período entre 1989 a 2010. Ao fazer isso, o autor passa a comparar conjuntos de deputados diferentes (pois há muitas mudanças na composição de uma legislatura para outra), votando proposições legislativas diferentes (os projetos de lei votados em cada legislatura são diferentes), de maneira a produzir scores não comparáveis entre si. Dito de outra maneira, a lógica do método W-Nominate consiste em analisar as escolhas de um conjunto de deputados (votos), e procurar por dimensões latentes que se correlacionem com essas escolhas. Para isso, é fundamental que o mesmo conjunto de deputados decida sobre as mesmas questões, para que então se possa realizar uma análise das coordenadas espaciais desses deputados. Essas coordenadas, ou os scores do W-Nominate, não possuem um valor intrínseco, sendo mais importante analisar as posições relativas dos partidos e não os valores absolutos de seus scores. O problema é que em legislaturas diferentes os deputados votam questões diferentes, produzindo scores distintos e, em última análise, não diretamente comparáveis.95 Por fim, o gráfico 9 apresenta os scores do W-Nominate para o período entre 2011 e 2015. Os dados mostram que a distribuição espacial das votações do primeiro governo da presidente Dilma Rousseff seguiu um padrão semelhante ao perfil das votações dos dois mandatos do presidente Lula. Entre 2011 e 2015, foi possível prever corretamente 87% das votações dos deputados a partir da primeira dimensão latente. 95 Uma analogia possível seria com as pesquisas de survey, neste caso, o procedimento do Bernabel equivaleria a aplicar dois questionários compostos por perguntas diferentes, para duas populações distintas e, posteriormente, comparar os resultados dessas pesquisas como se os scores obtidos pudessem dizer respeito a uma dimensão comum, quando na verdade não são diretamente incomparáveis. Ideologia e comportamento na Câmara dos Deputados (2003-2015) 253 Gráfico 9 W-Nominate Scores para PT, PMDB, PFL, PSDB na Câmara dos Deputados (2011- 2015) 1.0 W-Nominate Scores R R R 0.5 0.0 -0.5 Second Dimension B B G -1.0 G O -1.0 RR R R R R RR R R RR RR R RR R R R R R RR RRR R R RR R RR R R RR R R R R R R RR R RR R RRRRR R R R R R R R RRR R R RRR R R RR RR R RRR RR R R B BBBB B BB BBBBBB BB B B B BG B BB B G B BBB B BB B BBBB BB B BBBB G B BGB BG G B B O B B B B GG G BG G G B G GGGGBG GB G G B G GG G G G G GG G G G GG G G G B G G O G R O O O O G O O O OO O O O O GO O OO O O O O O OO O O O O O OO O OOO O OO O OO OO O O O O O O O O O O OO OO O O OOO O O O O OO O O OO O OOO O O O O O O OO ROOO -0.5 0.0 PT PMDB DEM PSDB O O 0.5 1.0 First Dimension: Oposiçao - Governo Fonte: dados do Banco de Dados Legislativos do Cebrap. Elaboração do autor. O gráfico 9 mostra mais uma vez como PSDB e DEM se mantêm muito alinhados na condição de partidos de oposição ao governo, enquanto os deputados do PT e do PMDB permanecem do meio para a direita do espaço. Os dados evidenciam também que o PMDB se mostrou menos alinhado ao governo Dilma em comparação com o segundo governo do presidente Lula, prova da dificuldade de coordenação da coalizão enfrentada pela presidente Dilma Rousseff em seu primeiro termo (MELO; SANTOS, 2013). Todavia, ainda é possível concluir que é o pertencimento ao governo e não a ideologia a variável principal para a explicação do comportamento dos deputados nas votações em plenário. Evidência disso está no posicionamento dos parlamentares do PSDB e do PMDB, dois partidos que se mostraram ideologicamente próximos na análise realizada na primeira seção deste capítulo, mas que se comportam de maneira bastante diferente nas votações em plenário. 254 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Conclusão A análise do posicionamento ideológico dos partidos e dos deputados nas três legislaturas permitiu a observação de como os deputados mantiveram um posicionamento ideológico coerente ao longo de diferentes legislaturas. Das seis medidas de posicionamento criadas, três relacionadas ao posicionamento dos partidos e três relacionadas ao posicionamento dos deputados, cinco apresentaram o mesmo ordenamento dos partidos no espectro ideológico. A única exceção foi a medida de autoposicionamento dos deputados na legislatura que ocorreu entre 2003 e 2007, na qual os deputados do PSDB se posicionaram de forma praticamente idêntica aos deputados do PMDB. Já em todas as outras medidas, o posicionamento dos partidos e dos deputados na escala seguiu a sequência (da esquerda para a direita) PT, PMDB, PSDB, DEM. Outro ponto importante a ser destacado é que poucos deputados distorceram tanto a escala ideológica a ponto de serem descartados da análise. Isso mostra que os deputados conseguem compreender razoavelmente bem a escala e que suas respostas sobre o posicionamento ideológico tendem a manter um certo nível de coerência. Ademais, foi possível observar que os parlamentares de todos os partidos apresentaram uma tendência de posicionar a si próprios mais à esquerda do que o esperado, levando em consideração a percepção geral dos parlamentares da Câmara sobre seu partido. Esse fenômeno não pode ser explicado apenas pela tese da direita envergonhada, uma vez que diz respeito a partidos de centro e de esquerda também. Um dado interessante é que na última legislatura analisada, o DEM não se posicionou mais à esquerda do que seria esperado, fato que pode sinalizar uma mudança desse padrão entre os partidos de direita, algo que pesquisas futuras podem investigar. Na segunda seção do capítulo, verificou-se a existência de uma correspondência entre a maneira como os deputados se posicionam no espectro ideológico e as opiniões dos mesmos em relação a diversos temas de sua atuação parlamentar. Isso significa que não apenas os parlamentares sabem se posicionar na escala ideológica, como também que esse posicionamento diz muito sobre as opiniões do deputado referentes a questões substantivas. As análises das relações entre a ideologia dos deputados e suas opiniões relativas ao papel do estado na economia, à política externa e aos valores revelaram que os deputados mais à direita Ideologia e comportamento na Câmara dos Deputados (2003-2015) 255 do espectro ideológico tendem a preferir que: 1) o estado intervenha menos na economia, (2) o país formule uma política externa privilegiando as relações com os EUA e/ou países do Norte, e (3) o aborto e a união civil de pessoas do mesmo sexo não sejam permitidos pelo estado. Em comparação com a análise realizada na segunda seção, a análise das votações deixa evidente como o comportamento dos parlamentares em plenário possui um padrão distinto da lógica do posicionamento ideológico dos deputados. Os parlamentares se mostraram consistentes ao longo tempo ao se posicionarem sobre o eixo esquerda-direita e ainda mostraram opiniões políticas firmes com esse posicionamento. Todavia, a análise dos dados deste capítulo mostrou que o parlamentar brasileiro, na maioria dos casos, exerce sua atividade em meio à tensão existente entre seguir suas preferências políticas ou cooperar com o governo. Em outras palavras, existe uma tensão entre o que o deputado deseja e aquilo que ele efetivamente pode fazer dentro do presidencialismo de coalizão. Por fim, cabe a ressalva de que os resultados das análises sobre as votações nominais representam um padrão descoberto a partir de todas as votações do período entre 2003 e 2015, marcado por coalizões de governo ideologicamente heterogêneas. Não é prudente afirmar que os resultados encontrados aqui devem ser estendidos também para os governos formados por coalizões ideologicamente homogêneas. Nesses casos, o mais provável é que exista uma coincidência entre as preferências ideológicas dos parlamentares e seu comportamento em plenário. Além disso, o fato de o padrão geral das votações indicar que a ideologia é a principal variável para explicar o comportamento dos deputados não significa que em votações específicas (e excepcionais) a ideologia não possa ter sido o fator decisivo. Essas são ainda questões que podem ser investigadas por futuros estudos. Referências ARMSTRONG II, D. A.; BAKKER, R.; CARROLL, R.; HARE, C.; POOLE, K. T.; ROSENTHAL, H. (2014). Analyzing spatial models of choice and judgment in R. Boca Raton, FL: CRC Press. 256 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO BERNABEL, R. (2015). Does the electoral rule matter for political polarization? the case of Brazilian legislative chambers. Brazilian Political Science Review, v. 9, n. 2, p. 81-108. COX, G.; MCCUBBINS, M. (1993). Legislative leviathan: party govern in the House. Berkeley: Univ. of California Press. DAHL, R. (1971). Polyarchy: participation and opposition. New Haven; London: Yale Univ. Press. DAHL, R. (1989). Democracy and its critics. New Haven; London: Yale Univ. Press. DIAS, A. (2006). Los significados de la democracia y la confianza institucional. In: ALCÂNTARA, M. (Ed.). Políticos y política en América Latina. Madrid: Fund. Carolina; Siglo XXI Ed. p.83-116. FIGUEIREDO, A.; LIMONGI, F. (1999). Executivo e Legislativo na nova ordem constitucional. Rio de Janeiro: FGV Ed. ______; ______ (2007). Instituições políticas e governabilidade: desempenho do governo e apoio legislativo da democracia brasileira. In: MELO, C. R.; ALCÂNTARA, M. (Ed.). A democracia brasileira: balanço e perspectivas para o século 21. Belo Horizonte: Ed. UFMG. p. 147-198. KING, G.; MURRAY, C.; SALOMON, J.; TANDON, A. (2004). Enhancing the validity and cross-cultural comparability of measurement in survey research. American Political Science Review, v. 98, n. 1, p. 191-207. LUCAS, K.; SAMUELS, D. (2011). A “coerência” ideológica do sistema partidário brasileiro: 1990-2009. In: POWER, T.; ZUCCO, C. (Ed.). O Congresso por ele mesmo: autopercepções da classe política brasileira. Belo Horizonte: Ed. UFMG. p. 61-104. MCCARTY, N.; POOLE, K.; ROSENTHAL, H. (2006). Polarized America: The dance of ideology and unequal riches. Cambridge: MIT Press. Ideologia e comportamento na Câmara dos Deputados (2003-2015) 257 MELO, C. R.; CÂMARA, R. (2012). Estrutura da competição pela presidência e consolidação do sistema partidário no Brasil. Dados: Revista de Ciências Sociais, v. 55, n. 1, p.71-117. ______; SANTOS, M. L. (2013). Y la nave va: Brasil barro Dilma Rousseff. Revista de Ciência Política, v. 33, n. 1, p. 55-81. POOLE, K. (1998). Recovering a basic space from a set of issue scales. American Journal of Political Science, v. 42, n. 3, p. 954-993. ______ (2005). Spatial models of parliamentary voting. New York: Cambridge Univ. Press. ______; ROSENTHAL, H. (1997). Congress: a political-economic history of 42 roll call voting. New York: Oxford Univ. Press. POWER, T.; ZUCCO, C. (2012). Elite preferences in a consolidating democracy: the Brazilian legislative surveys, 1990-2009. Latin American Politics and Society, v. 54, n. 4, p. 1-27. PUIGI, S.; CUÉ, S. (2006). La isquierda parlamentaria em América Latina: Nuevas percepciones sobre la democracia y el mercado? In: ALCÁNTARA, M. (Ed.). Políticos e Política en América Latina. Madri: Fund. Carolina; Siglo XXI Ed. p.311-342. RODRIGUEZ, L. (2006). El sistema de partidos chileno. In: ALCÁNTARA, M.; RODRIGUEZ, L. (Ed.). Chile: política y modernizacion democrática. Madri: Sociedad Española de Pedagogía. p. 73-110. SOUZA, M. (1988). A Nova República sobre a espada de Dâmocles. In: STEPAN, A. (Ed.) Democratizando o Brasil. São Paulo: Paz e Terra. p. 568-591. TSEBELIS, G. (1995). Decision making in political systems: veto players in presidentialism, parliamentarism, multicameralism and multipartyism. British Journal of Political Science, v. 25, n. 3, p.289-325. ZUCCO, C. (2011). A ideologia dos partidos políticos brasileiros. In: POWER, T.; ZUCCO, C. (Ed.). O Congresso por ele mesmo: autopercepções da classe política brasileira. Belo Horizonte: Ed. UFMG. 259 Inexistência de impacto dos ciclos eleitorais sobre a disciplina parlamentar na Câmara dos Deputados Nivaldo Adão Ferreira Júnior Fabiano Peruzzo Schwartz Introdução Segundo William Keech (1995), uma das maneiras de se medir o custo de dada democracia é verificar o quanto os membros do governo se preocupam em perseguir interesses pessoais (aumento do capital eleitoral ou financeiro, busca por reeleição, satisfação dos interesses partidários) em detrimento de interesses coletivos gerais. A busca por interesses coletivos gerais tende a produzir resultados econômicos mais satisfatórios do que a perseguição dos interesses pessoais dos governantes. Dentro dos estudos de qualidade da democracia, ganha relevo a teoria de ciclos econômicos ou ciclos eleitorais, consistente na alternância na atuação dos incumbentes em buscar políticas que ora geram melhor desempenho econômico e ora geram maior retorno eleitoral. Os defensores da vertente racional dessa teoria apontam que em períodos pré-eleitorais, os incumbentes tendem a mudar de comportamento e a optar por políticas econômicas de efeitos benéficos a curto prazo, potencialmente ineficazes ou mesmo prejudiciais a médio e longo prazo, com vistas a ludibriar o eleitor em relação aos resultados econômicos do governo e conseguir para o partido no poder a reeleição de seus membros (ALESINA, 1987; PREUSSLER, 2001). Se o eleitor fosse capaz de analisar retrospectivamente todo o mandato do incumbente e de compreender que ações eleitoreiras podem reverter em degradação dos índices socioeconômicos após as eleições, as ações oportunistas dos incumbentes não seriam recompensadas. Contudo, Nordhaus (1975) aponta para o fato de que os cidadãos têm visão míope acerca da política econômica, enxergando apenas os últimos resultados na hora da avaliação retrospectiva do mandato 260 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO do incumbente (o que se dá na eleição). Além do mais, há enorme desnível de informação entre governantes e governados, o que permite àqueles simular bons resultados de seu governo (ALESINA, 1987; PREUSSLER, 2001). Dessa forma, o mandatário teria incentivos suficientes para causar ciclos recessivos ou de desempenho inferior na economia (mas de retorno positivo, ainda que provisório, para os eleitores) durante o período pré-eleitoral, na expectativa de manter a si mesmo (reeleição) ou ao próprio partido no poder, revertendo a tendência ineficaz do ciclo no período imediatamente subsequente às eleições. A teoria dos ciclos eleitorais é geralmente utilizada para explicar mudanças de estratégias e comportamentos do chefe do Executivo representadas, por exemplo, pelo aumento acentuado de inaugurações de obras públicas, concessão de benesses, redução de impostos (como as reduções/isenções de IPI para automóveis de baixa cilindrada ou para eletrodomésticos da “linha branca”, recentemente concedidas no Brasil às vésperas do início de períodos de campanha eleitoral), que geram “resultados satisfatórios visíveis a curto prazo, mesmo que economicamente ineficientes a médio ou longo prazo” (BORSANI, 2003). Muito pouco tem sido estudado acerca da existência (ou não) desse fenômeno no Legislativo. Uma das razões é que o chefe do Executivo, para muitas situações de governo, dispõe do poder de decidir unilateralmente, sem a necessidade de submeter sua vontade à aprovação do Legislativo. A exemplo, citam-se o poder de alterar alíquotas de vários impostos federais, dentro dos limites da lei, o poder de editar decretos regulamentares ou mesmo o poder de emitir Medidas Provisórias, que apesar de terem de ser submetidas à avaliação do Congresso Nacional, vigoram com força de lei desde a sua edição. O Legislativo, ao contrário, como corpo coletivo, toma decisões necessariamente por meio da busca de consensos ou pela regra da maioria. Além do mais, suas tomadas de decisões são feitas em etapas, em longo e complexo processo de tramitação das proposições legislativas. De um lado, isso exige a manifestação por maioria dos membros em várias arenas com poder de filtro e veto umas sobre as outras, e de outro lado, as ações do membro do Legislativo não se transformam em uma política que se possa aplicar e vincular a sua realização ao voto parlamentar de forma tão imediata quanto às ações do chefe do Executivo. Dessa forma, as decisões tomadas individualmente por um deputado ou senador, como a decisão de votar contra ou a favor de determinada medida, têm, compa- Inexistência de impacto dos ciclos eleitorais sobre a disciplina parlamentar na Câmara dos Deputados 261 rativamente às decisões do chefe do Executivo, menor possibilidade de alterar resultados econômicos no curto prazo e de proporcionar retorno eleitoral. Além disso, como afirmam estudos para o legislativo brasileiro, baseados na Teoria Partidária, os deputados da base do governo costumam votar de acordo com a orientação do líder do governo em uma média de 85% das votações nominais do Plenário da Câmara dos Deputados, o que nos leva a inferir que essa base desconsidera eventuais demandas locais em prol das demandas do Poder Executivo (AMORIM NETO, 2000; FIGUEIREDO; LIMONGI, 1999; 2007; SANTOS, 2003). Isso não significa dizer que parlamentares não consigam sinalizar às bases e demonstrar suas ações em prol do eleitorado e nem que ajam sempre da mesma forma durante toda a legislatura. Primeiro, porque mesmo que a decisão de um parlamentar individual não tenha grande impacto econômico, isso não impede que o próprio parlamentar divulgue essas decisões para seu eleitorado, produzindo resultados eleitorais importantes. Essa realidade pode ser verificada por meio de análise de seus discursos em plenário, por meio de análise de conteúdo de suas publicações em redes sociais, etc., questões que fogem, contudo, ao escopo do presente capítulo. Segundo, porque também é bem razoável supor que parlamentares às vésperas da eleição procurem por políticas de cunho mais distributivistas e, ao fazê-lo, atuem de forma mais independente em relação às orientações ou demandas do Executivo, votando de acordo com a base eleitoral e, não, (tão) de acordo com a base do governo. Terceiro, a afirmação de que no Brasil há preponderância do Executivo e que este obtém apoio médio de 80 a 85% dos membros da base governista no Congresso Nacional para suas políticas públicas carece, ainda, de análises mais qualitativas, como afirma Acir Almeida (2014). Considere-se que, embora o governo FHC tenha implementado algumas de suas reformas pretendidas, os presidentes que o sucederam (Lula, Dilma e, atualmente, Temer) encontraram dificuldades significativas para qualquer aprovação que necessitasse de quóruns qualificados diferentes do quórum mínimo de aprovação de leis ordinárias (cf. no art. 37 da Constituição Federal, o quórum para aprovação de matérias ordinárias é uma maioria mínima de votos, presente na votação a maioria absoluta dos membros). 262 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO O presente capítulo não se preocupa, como dito, com a sinalização do parlamentar por meio de discursos, aparições midiáticas ou em redes sociais, ou seja, não se avalia o que Mayhew denominou de tomada de posições e reivindicação de créditos (MAYHEW, 1974). Busca-se (dentre as várias possibilidades de atuação parlamentar) verificar tão somente se o deputado apresenta padrão de voto diferente entre períodos eleitorais e períodos não eleitorais. Para tanto, desafia-se os limites dos estudos baseados na teoria partidária e propõe-se que, se verdadeira a premissa de que o comportamento parlamentar segue, ainda que só em momentos específicos da legislatura, as previsões da teoria dos ciclos econômicos, então essa taxa de fidelidade parlamentar da base ao Executivo não deve ser constante e tenderá a apresentar percentuais médios mais baixos nos períodos pré-eleitorais. Para os partidos de oposição, a previsão é de que haja sempre oposição sistemática durante toda a legislatura, uma vez que os ganhos em votar com o governo não se mostram razoáveis em nenhum período. Mais uma vez, contudo, apresentamos hipótese para parlamentar de oposição só para ilustrar, pois iremos, neste capítulo, avaliar o comportamento do parlamentar da base governista. Dessas observações, decorre a pergunta de pesquisa, traduzida pela hipótese de que os parlamentares da base governista apresentam índice médio de fidelidade ao Executivo menor em períodos imediatamente anteriores à eleição. Se verdadeira a hipótese, o índice médio de votos favoráveis ao governo diminui nesses períodos. A hipótese negativa, portanto, traduz-se na assertiva de que não há diferença nas médias do posicionamento parlamentar quando comparados períodos normais e períodos pré-eleitorais. Para o teste da hipótese, a metodologia empregada consiste em recalcular o índice de apoio médio da base governista ao Executivo (apontado por Figueiredo e Limongi – 1999; 2002; 2006 – como sendo de 80 a 85%), utilizando-se os dados das votações nominais da Câmara dos Deputados do período pós-redemocratização, disponíveis na base de dados do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), para os anos de 1989 a 2012, ou seja, a mesma base utilizada pelos autores citados. A partir dos primeiros achados, realiza-se comparação das médias do resultado das votações para períodos pré-eleitorais e para períodos não eleitorais. Inexistência de impacto dos ciclos eleitorais sobre a disciplina parlamentar na Câmara dos Deputados 263 Para o alcance do intento, nos tópicos seguintes, define-se o que será considerado neste capítulo como período eleitoral, resume-se a literatura com a qual dialogamos, descreve-se a base de dados utilizada e a metodologia adotada para testar a hipótese de que deputados devem mudar seu padrão de voto em períodos pré-eleitorais. Definição de período pré-eleitoral Para a presente pesquisa, é essencial apontar o que se delimita, aqui, como período pré-eleitoral. Chama-se de período pré-eleitoral aquele tempo em que o deputado federal, paralelamente ao cumprimento de suas obrigações parlamentares e da agenda legislativa, dedica-se com maior energia do que no resto do mandato à construção de sua candidatura ao mesmo cargo ou a outros postos. A delimitação tem por inspiração artigo de Emerson Cervi, que definiu o tempo da política para o cidadão mediano como sendo o momento em que o Horário Gratuito do Programa Eleitoral é iniciado no rádio e na Televisão (CERVI, 2010). Para o político, esse tempo começa, contudo, bem antes, e exige do observador que tenta delimitá-lo, um diálogo com as várias instâncias que influenciam o discurso político. Primeiro, analisando-se a arena eleitoral e seus contornos normativos, tem-se que as regras eleitorais vigentes à época dos anos analisados nesse trabalho definiam o início do período oficial de campanha em 5 de julho de cada ano eleitoral,96 segundo se extrai das normas do art. 36, da Lei nº 9.504/1997 (BRASIL, 1997). No entanto, o próprio art. 36 da mesma lei, em seu parágrafo primeiro, informava que o pré-candidato poderia iniciar as campanhas intrapartidárias (ou seja, para a base de filiados) quinze dias antes da indicação de seu nome à candidatura partidária. O período de escolha partidária dos candidatos, por sua vez e segundo o art. 8º da citada lei, se estendia do dia 10 ao dia 30 de junho dos anos eleitorais, logo, oficialmente, a campanha de cada futuro candidato poderia ser iniciada na última semana de maio. Dessa forma, olhando para as regras eleitorais vigentes à 96 Os prazos para campanha eleitoral aqui referidos foram alterados pela Lei nº 13.165/2015, com vigência para eleições a partir de 2016 (BRASIL, 2015). 264 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO época da pesquisa, poderia afirmar-se que o período pré-eleitoral se estenderia da última semana de maio até as eleições de outubro de cada ano eleitoral. Esse seria o período a ser considerado ao olhar apenas a arena eleitoral. Na arena parlamentar há outras condicionantes para a definição desse tempo em março de cada ano, e não em maio. Primeiro, tem-se que o ano legislativo começa em fevereiro (começava em 15 de fevereiro de cada ano até 2006 e em 2 de fevereiro a partir de 2007, por força da Emenda Constitucional nº 26/2006). No início dos trabalhos de cada ano, na Câmara dos Deputados, boa parte das atenções políticas está voltada para as eleições das mesas que irão presidir as Comissões Permanentes, o que coloca em disputa cargos importantes para a construção/ mantença do capital político em quantidade correspondente a mais de 10% do número total de deputados. Nesse período, como esses cargos eletivos sofrem influência da força do líder partidário para sua ocupação, assume-se que, ainda que o parlamentar esteja preocupado com as eleições de outubro, a força centrípeta do partido é mais forte, fazendo com que o parlamentar seja fiel ao líder ou à base pelo menos até o final da escolha para as mesas das comissões e, assim, os ciclos eleitorais não seriam sentidos. Explica-se: hoje, há 25 comissões permanentes na estrutura da Câmara. No período estudado, esse número variou crescentemente de 16 a 22 comissões. Cada uma dessas comissões conta com quatro cargos, que são distribuídos proporcionalmente a cada partido ou bloco partidário, de acordo com o tamanho relativo da bancada (presidência e três vice-presidências), totalizando para o período um total variável de 64 a 88 cargos em disputa (sempre maior, portanto, que 10% do total de membros da Casa, 513 deputados). O líder partidário é quem indica os candidatos preferenciais a elas e as vagas destinadas a cada partido devem ser referendadas em eleição pelos membros da comissão, prevalecendo-se quase sempre a indicação do líder. Ocupar qualquer desses postos de poder, segundo estudo clássico de Jacobson (1978), significa aumentar o capital político e, consequentemente, as chances de eleições. Como esses postos são uma função da indicação do líder partidário, é razoável supor que os parlamentares, até a eleição das mesas das comissões, são mais fiéis ao partido e à orientação da liderança nas votações e hipótese de ocorrência de ciclos eleitorais, se verdadeira, ocorreria somente após essas eleições internas do Congresso. Inexistência de impacto dos ciclos eleitorais sobre a disciplina parlamentar na Câmara dos Deputados 265 Necessário se faz apontar quando as mesas das comissões são eleitas, portanto. Muito embora o Congresso Nacional, constitucionalmente, comece seus trabalhos no mês de fevereiro, as eleições para as comissões costumam ocorrer somente após o extenso feriado de carnaval, como se observa no quadro abaixo. Isso significa dizer que somente em março os deputados da base que vão concorrer às eleições de outubro de cada ano eleitoral teriam incentivos para considerar mais fortemente as bases constituintes do que a base governamental. Quadro 1 Quarta-Feira de Cinzas e eleição das comissões ANO 4ª Feira de Cinzas ELEIÇÃO DA MESA 2004 25/2/2004 Penúltima semana de março 2006 1º/3/2006 Última semana de março 2008 6/2/2008 Primeira semana de março 2010 17/2/2010 Primeira semana de março 2012 22/2/2012 Segunda semana de março 2014 5/3/2014 Última semana de fevereiro Fonte: Diário da Câmara dos Deputados. Elaboração dos autores. Um segundo ponto acerca do tempo na arena legislativa guarda relação direta com a ocorrência de eleições federais e municipais e se traduz no fato de que, em todo ano eleitoral, há certa paralisia decisória no processo legislativo, com poucas deliberações ocorrendo até que aconteçam as citadas eleições. Os esforços parlamentares nesse ano ficam todos voltados para as campanhas eleitorais, no que se convencionou informalmente denominar de recesso branco. Em 2006, por exemplo, ano em que o ex-presidente Lula disputou a reeleição presidencial e em que concomitantemente 491 deputados disputavam algum cargo eletivo, o Congresso Nacional ficou em recesso branco durante todo o período que antecedeu às eleições, ao ponto do Senador Jefferson Peres reclamar do fato em pronunciamento no plenário do Senado (PERES, 2006). O recesso branco, que é mais intenso nos anos de eleições federais, mas que ocorre também nos anos de eleições municipais, denota que bem cedo no ano eleitoral, todo o campo político volta as atenções para as campanhas políticas e as eleições de outubro. Juntando-se os dois fenômenos, recesso branco e eleições 266 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO para as comissões permanentes, decidiu-se por adotar como início do período pré-eleitoral o mês de março e como fim desse período o mês de outubro de todo ano eleitoral. Comportamento parlamentar no presidencialismo de coalizão Apresentada a delimitação de período eleitoral, a tarefa agora é apontar os estudos para as relações entre Executivo e Legislativo e entre representantes e representados nos quais se baseia este capítulo. As relações entre os poderes, especialmente entre o Poder Legislativo e o Poder Executivo, é um dos temas mais estudados na Ciência Política brasileira contemporânea. Após 1988, com a redemocratização e a retomada pelo Congresso Nacional do papel de ator central na formatação das políticas públicas, ao lado do Executivo, esse campo de pesquisa ganhou enorme impulso e ao menos duas vertentes estão distintamente traçadas: a primeira defende que a conjugação de regras com caráter centrífugo em relação ao poder (federalismo, presidencialismo, regras eleitorais que favorecem a fragmentação partidária) tendem a gerar baixa institucionalização partidária, personalismo das campanhas eleitorais, preferências por políticas fiscalmente irresponsáveis e de cunho distributivista, tudo a convergir para um ambiente de difícil governabilidade (ABRANCHES, 1988; 2016; ABRÚCIO, 1998; AMES, 2001). A partir desses estudos, defende-se que a relação entre Executivo e Legislativo tende à instabilidade, pois ao presidente, eleito em circunscrição nacional, cabe realizar a aplicação das políticas públicas, sendo o Executivo o ramo do poder mais visível aos olhos do eleitorado. O presidente teria, portanto, incentivo para realizar políticas de cunho nacional. Os parlamentares, por seu turno, são eleitos em circunscrições estaduais, sendo que os deputados passam por disputas em eleições proporcionais. Para estes, vigoraria a tendência de buscar políticas localistas, direcionadas à sua base, e políticas populares, que garantissem melhor posicionamento nas eleições subsequentes, uma vez que a eleição proporcional, no modelo de lista aberta adotado no Brasil, resulta, ao final, em disputas internas às legendas por votos dos eleitores do partido (MAINWARING, 1999; SAMUELS, 2001). Inexistência de impacto dos ciclos eleitorais sobre a disciplina parlamentar na Câmara dos Deputados 267 A diferença entre a forma de eleição dos membros do Executivo e do Legislativo federais, portanto, causaria dissonância na preferência por tipos de políticas públicas. Em relação ao deputado federal, a eleição em circunscrições estaduais e o personalismo vigente nas campanhas gerariam políticos irresponsáveis, no que tange às políticas nacionais. Enfim, Legislativo e Executivo apontariam para rumos distintos no que tange a preferências políticas. Uma segunda visão acerca do funcionamento das instituições políticas, hoje predominante e baseada fortemente nos estudos de Figueiredo e Limongi (1999; 2000; 2002; 2006; 2007), desenha cenário menos caótico, demonstrando que a racionalidade dos atores e as ferramentas disponíveis ao chefe do Executivo geram ambiente propício à coexistência de graus elevados de governabilidade e de representatividade no sistema. Esses estudos apontam que o processo legislativo federal brasileiro é controlado pelo chefe do Poder Executivo, que dispõe de prerrogativas constitucionais como medidas provisórias; ampla iniciativa legislativa, muitas delas exclusivas a exemplo de matérias tributárias e orçamentárias (AMORIM NETO, 2000); e possibilidade de pedido de urgências constitucionais para essas iniciativas. O presidente da República dispõe, ainda, de recursos como controle da execução orçamentária e de nomeações em cargos na Administração Pública, entre eles cargos de ministros de Estado, que possibilitam arregimentar partidos para a base do governo e formar coalizões (LIMONGI; FIGUEIREDO, 2002). Dentro do parlamento, a organização do processo decisório leva à concentração de poderes nas mãos de atores específicos: os presidentes das mesas diretoras e das comissões têm poder de agenda sobre as proposições, designando momento e forma de apreciação das matérias. Cabe a eles ainda designar relatores, evitando indicar atores com opiniões extremadas para essas funções. Líderes partidários possuem poder de indicar e retirar membros das comissões a qualquer momento, forçando-os a atuarem de acordo com as diretrizes da bancada; dispõem também da prerrogativa de apresentar proposições (emendas, destaques) e instrumentos procedimentais (requerimentos vários) em nome de todos os membros de seu partido. Relatores são responsáveis por indicar o âmbito e a temática da discussão de cada matéria em tramitação nas casas legislativas, aumentando ou diminuindo a amplitude de informações que carreiam ao processo (LIMONGI, 1999; SANTOS, 2003). 268 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Juntando-se esse cenário de regras regimentais que concentram o processo legislativo em alguns atores do Parlamento (líderes partidários, presidentes das casas legislativas e das comissões e relatores) às regras constitucionais favoráveis ao Executivo que atraem grande parte dos atores centrais do Legislativo para a coalizão governista, a literatura aponta, por um lado, que o Executivo controla a agenda do Congresso Nacional e exerce preponderância na atividade legislativa (LIMONGI, 2006; SANTOS, 2003; AMORIM NETO, 2000). Por outro lado, afirma que o Legislativo é composto por partidos altamente disciplinados, conduzidos por líderes que falam e atuam em nome da bancada, o que faz do Legislativo arena de atuação colaborativa ou complementar em relação às propostas de políticas públicas do Executivo (LIMONGI; FIGUEIREDO, 1999; 2002; 2007). Os resultados apresentados por essa segunda linha de pensamento acerca do funcionamento político brasileiro consistem em asseverar que o Executivo brasileiro tem o controle da agenda legislativa e apresenta índices de sucesso na aprovação de suas propostas de políticas públicas muito assemelhados aos índices de sistemas parlamentaristas, em que Executivo e Legislativo são praticamente corpos fundidos. Tal fato desafia as expectativas negativas, construídas para o funcionamento de presidencialismos multipartidários e desenhadas por autores como Barry Ames (2001) e Juan Linz (1990). Apesar de suas divergências, o interessante é perceber que as duas visões propõem a atuação racional dos membros do Congresso Nacional. A primeira defende que os parlamentares se movem pelo desejo de aumentar seu capital eleitoral por meio de adoção de políticas distributivistas às suas bases eleitorais. A segunda prevê políticos que enxergam os benefícios da atuação coordenada como superação das dificuldades da ação pulverizada dentro do Congresso Nacional. Hipoteticamente, defende-se que embora os modelos explicativos construídos para ambas as alternativas sejam coerentes (até por ambos serem possíveis de ocorrer), o parlamentar, ao longo de sua vida política, pode agir ora de uma maneira ora de outra, sendo essa a explicação por trás da hipótese inicial da pesquisa. Um desses momentos de inversão da forma de atuar dos parlamentares da base governista, migrando da ação em prol do Executivo para ações de cunho distributivista ou em prol dos partidos, pode ocorrer às vésperas das eleições. Segundo a teoria dos ciclos econômicos (ALESINA, 1987; BORSANI, 2003), Inexistência de impacto dos ciclos eleitorais sobre a disciplina parlamentar na Câmara dos Deputados 269 os motivos que fazem com que o chefe do Executivo atue gerando subótimos de desempenho econômico é o desejo de angariar votos em eleições próximas, uma vez que, por pressuposto teórico, o voto do eleitor é dado, em boa medida, em contrapartida a políticas populistas de expansão creditícia e de benesses com dinheiro público (principalmente em nações desiguais, de rincões carentes, como o Brasil). O mesmo mote – maximização de votos – deve orientar o parlamentar, que também aufere seu poder a partir das urnas. O fato de o membro do Legislativo não dispor de meios tão imediatos quanto os do Executivo para disponibilização imediata de recursos à base eleitoral não significa dizer que ele não aja buscando convencer a sua base de que atua em benefício desta. Segundo Mayhew (1974), parlamentares sinalizam às suas constituencies por meio da tomada de posição política, reivindicação de créditos por suas ações e divulgação de seus atos junto à base eleitoral (advertising, credit claiming e position taking, nas palavras de Mayhew). Em todas essas situações, o parlamentar – ainda que participante da coalizão governista – pode estar de acordo com a política governamental do Executivo ou contra ela, a depender de vários fatores (regionalismos, bandeiras individuais ou partidárias, compromissos com a base ou com classes sociais específicas, ideologias, realização de chantagens ao Executivo e, por que não, ocorrência de ciclos eleitorais). Ciente dessa dificuldade, governos buscam construir suas coalizões com número de parlamentares superior ao necessário para formar maiorias e aprovar proposições no Legislativo (PEREIRA; POWER; RENNÓ, 2005; GAYLORD; RENNÓ, 2015). Em abordagem assemelhada à deste trabalho, Fernando Limongi e Argelina Cheibub (2000) apresentaram artigo que buscava “a congruência de deputados individualmente em relação ao governo, tendo por variável de controle o fato de o governador de seu estado ser ou não da base governista”. A hipótese de pesquisa defendia que deputados sofrem tanto atração do Executivo federal quanto do Executivo estadual. Por essa razão, deputados de estados membros em que os governadores fossem de oposição tenderiam a ser menos fiéis ao presidente da República do que deputados de estados em que o governador fosse da base de apoio do Executivo federal. A hipótese, contudo, foi rejeitada: Os resultados, é evidente, contam exatamente a mesma história: entre os deputados que pertencem aos partidos governistas, ser eleito em um estado 270 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO “oposicionista” aumenta a probabilidade de o legislador votar com o governo em aproximadamente 2,3%. Os resultados, portanto, são contrários à expectativa de que, em face de pressões antagônicas entre as esferas nacional e estadual, deputados atenderiam às pressões da última, seguindo a posição do governador, e não a das forças nacionais. (CHEIBUB; FIGUEIREDO; LIMONGI, 2009) Contradizendo esses achados, que negam a possibilidade de mudança de comportamento do parlamentar, em recente tese de doutorado, Adriano Silva (2015) afirma que na votação de medidas provisórias podem ocorrer situações em que o Executivo não tenha condições de controlar a sua base e alcançar os resultados desejados, por maior que seja a coalizão, e os deputados ou atropelam o governo ou o abandonam, tudo dependendo da taxa de coalescência da coalizão. Aceitando, com Silva (2015), que deputados podem abandonar ou atropelar o Executivo, espera-se encontrar situações em que deputados da base se comportem como deputados de oposição. Figueiredo e Limongi demonstraram que não é o confronto entre interesses estaduais e nacionais a explicação (nem mesmo parcial) para esse fenômeno. Talvez ciclos eleitorais o sejam. Dada essa assertiva, formulou-se a hipótese central de pesquisa na qual, partindo do pressuposto de que parlamentares se preocupam com a reeleição e buscam sinalizar para seu eleitorado suas ações na tentativa de demonstrar que os representa no Congresso, eles agem de forma distributivista em períodos pré-eleitorais, ainda que à custa de sua disciplina ao partido ou à coalizão. Noutras palavras, o parlamentar, às vésperas das eleições, estaria por um lado muito pouco afeito a votar em proposições impopulares defendidas ou propostas pelo Executivo. Por outro lado, tenderia a defender políticas distributivistas, não desejadas pelo Executivo, ainda que isso representasse irresponsabilidade fiscal. Frise-se que, ainda que o Executivo controle a agenda do Legislativo, ele por vezes necessita submeter ao Congresso medidas de ajuste fiscal ou de redução de benefícios de determinados nichos sociais, mesmo em períodos próximos a eleições. Da mesma sorte, ainda que tente evitar a apresentação de medidas impopulares em períodos eleitorais, o Executivo não consegue, com precisão, determinar o tempo e a forma em que as propostas legislativas serão votadas. Assim, em determinadas situações, não consegue evitar que proposições legislativas populistas e irresponsáveis do ponto de vista fiscal sejam propostas (ou pautadas) em períodos eleitorais e cheguem às diversas arenas de deliberação Inexistência de impacto dos ciclos eleitorais sobre a disciplina parlamentar na Câmara dos Deputados 271 do Congresso Nacional, correndo o risco, portanto, de gerar conflitos entre sua agenda e a agenda da coalizão formada no Congresso Nacional. A premissa foi testada utilizando-se os dados para votações nominais ocorridas no plenário da Câmara dos Deputados, disponíveis na Base de Dados do Cebrap, conforme descrito abaixo. Metodologia e análise de dados Reitera-se que o objetivo principal do presente capítulo é verificar se o parlamentar muda de estratégia e atitude no decorrer da legislatura (mais especificamente, durante o período de campanha eleitoral), desafiando o centralismo decisório ao buscar políticas mais distributivistas. Das possibilidades de atuação parlamentar em prol das bases nesse período (discursos, tomadas de posição, assunção de bandeiras, votos), analisa-se a tomada de posição nas votações nominais ocorridas no plenário da Câmara dos Deputados nos períodos de campanha eleitoral. Dessa forma, separam-se todas as votações ocorridas até outubro do segundo ano de cada legislatura (eleições municipais) e o quarto ano de cada legislatura (eleições gerais). A opção por se analisar o comportamento parlamentar também nos períodos de eleições municipais se deve ao fato observado, entre outros, por Campos (2009), de uma expressiva massa de parlamentares disputarem a eleição para prefeito (em raras vezes visando inclusive às eleições para vereador). Além disso, é verdade que mesmo quando não participam como candidatos das eleições municipais, os deputados federais se envolvem profundamente nas campanhas dos prefeitos e dos vereadores, que apoiam para emprestar-lhes a sua imagem na tentativa de angariar-lhes votos. Por fim, observa-se que as eleições de meio de mandato servem ainda aos deputados federais como oportunidade para diminuir o ciclo de duração da accountability vertical, possibilitando um reencontro prematuro entre representante e eleitor. O deputado federal candidato a eleições municipais, durante o período eleitoral, volta ao corpo a corpo com o eleitor, retorna às mídias e participa de programas eleitorais e debates, tudo isso, segundo Graça e Souza (2014), possibilitando-lhe o aumento do capital político e dando-lhe vantagem 272 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO competitiva nas eleições federais seguintes, quando comparado àqueles candidatos que não concorreram ao pleito municipal. A importância das eleições municipais para o sistema político, por fim, é ressaltada pelo fato de que o Congresso Nacional praticamente para no semestre que a antecede, ocorrendo o que, no jargão do Legislativo, convencionou-se denominar de recesso branco. Conforme aponta reportagem jornalística de setembro de 2016, vésperas da última eleição municipal, mesmo os deputados que não são candidatos nas eleições municipais se empenham na eleição de prefeitos e vereadores (GARCIA, 2016). Estes, eleitos ou não, por sua vez, irão compor a base de apoio dos candidatos a deputados, senadores, governadores e presidentes da República das eleições federais subsequentes, revelando orquestração para crescimento e mantença do capital político para as campanhas eleitorais e também a forma com que as políticas das esferas municipais, estaduais e federal se entrelaçam. Estatística descritiva Como passo inicial da metodologia aplicada, fez-se necessário definir o que se compreende como sendo período eleitoral e período não eleitoral. Conforme explicação já apresentada, nesta pesquisa o período eleitoral considerado se inicia em 1º de março e se estende até 31 de outubro de cada ano par. Períodos não eleitorais são aceitos como sendo: 1) os meses de novembro e dezembro dos anos pares e 2) os anos ímpares, em sua totalidade. Definido o que será considerado período eleitoral (variável independente) e justificado o porquê da escolha de se analisar o comportamento do deputado federal também nos anos de eleições municipais, passa-se a descrever os dados que foram objeto de análise. Na pesquisa, é comparado o apoio médio dado por parlamentares da base governista ao Executivo nos períodos eleitorais com esse apoio médio durante períodos não eleitorais. O apoio médio é obtido pela porcentagem de vezes em que o deputado vota de acordo com as orientações do Executivo. Como dito, espera-se que o apoio médio seja menor em períodos pré-eleitorais. Os dados analisados, portanto, são as votações nominais em plenário, que se traduzem na nossa variável dependente. Os registros completos dessas votações são encontrados no Banco de Dados Legislativos do Cebrap, disponível no sítio eletrônico do Núcleo de Estudos Comparados e Internacionais Inexistência de impacto dos ciclos eleitorais sobre a disciplina parlamentar na Câmara dos Deputados 273 (http://neci.fflch.usp.br). Os dados nesse banco são organizados por legislatura em dois tipos de tabelas. O primeiro tipo apresenta votações nominais ocorridas no plenário da Câmara dos Deputados no período analisado, organizadas pelo nome da proposição, data e resultado da votação. O segundo tipo de tabela individualiza cada votação a partir da orientação do líder do governo (que indica a posição do Executivo para a matéria em votação), da orientação dos líderes partidários, do voto e do partido de cada parlamentar, o que permite a verificação do alinhamento de cada parlamentar e da base governista ao Executivo, por período e por votação. Para a presente pesquisa, fundimos esses dois bancos, obtendo um universo de mais de 836 mil votos parlamentares, que albergavam os dados desde 1989 até o ano de 2014, e tratamos os dados. Na tabela resultante, a variável voto parlamentar recebe as ocorrências sim, não, abstenção, obstrução e falta. A variável indicação do líder do governo (que corresponde à orientação que o líder faz em plenário a cada votação) pode receber as ocorrências sim, não, libera, ausente. Por fim, a variável indicação do líder partidário pode receber as ocorrências sim, não, libera, ausente e obstrução. Tratamento inicial dos dados se fez necessário para sua posterior análise. Foram excluídas, inicialmente, todas as votações em que os líderes indicaram “obstrução” (25.774). Essa decisão deu-se porque 1) a obstrução nem sempre é discordância com o Executivo e 2) porque não raro o líder em plenário orienta a sua bancada a votar sim ou não, só depois mudando a orientação para obstrução (e vice-versa), impedindo de se verificar se a discordância entre o parlamentar e o líder do partido se dá por uma indisciplina partidária ou pelo fato de ter o parlamentar acatado a primeira das orientações e não ter tido a oportunidade de mudar o voto. Também foram excluídas as votações em que o líder do governo ou o líder do partido liberou a bancada para votar livremente e as hipóteses em que esses líderes não encaminharam a votação, pelas mesmas razões de nesses momentos não ser possível verificar divergências entre líder e liderados. Igualmente, foram excluídos os deputados que, no momento do voto, estavam sem partido, porque para esses não há como verificar se eram ou não membros da coalizão (1.331 ocorrências). Desconsideram-se para a análise as ocorrências em que a variável nome do parlamentar apresentava-se em branco (por não ser possível no mundo real) 274 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO assim como todas as ocorrências para os anos de 2013 e 2014. Para esses dois anos, a base de dados Cebrap apresentou inconsistência ao não computar o percentual de faltas dos parlamentares, sendo que no dia a dia da Câmara, raramente há uma votação com a presença de todos os 513 parlamentares. Decidiu-se por retirar da base esses anos devido ao receio de que outras incoerências estivessem presentes. Portanto, o corpus da pesquisa (que incialmente contemplaria os anos de 1989 a 2014) abarcou as votações nominais de plenário ocorridas dos anos de 1989 a 2012. Por fim, diferentemente da metodologia que Figueiredo e Limongi (1998, 2002) adotam para calcular o índice de apoio dos parlamentares ao Executivo, na presente pesquisa, esse índice foi calculado não a partir de percentuais dos votos válidos dados em plenário; mas a partir do percentual de deputados, dentre o total dos membros da Câmara dos Deputados, que votaram em dada deliberação. Adotando-se essa postura, o índice aqui calculado será ligeiramente menor do que o encontrado pelos autores citados, uma vez que foi encontrado percentual médio de 25,28% de deputados faltosos nas votações analisadas. Após esse tratamento dos dados, construiu-se script para extrair do banco de dados os votos de parlamentares não membros da coalizão governista. O quantitativo para a perseguição da hipótese equivalia, após esses passos, a 615.310 votos de deputados federais, distribuídos por 1.450 votações em 7 legislaturas e 24 anos. Sobre esses dados é que se calculou e avaliou o comportamento da variável de interesse da pesquisa (variável dependente), qual seja, a média de votos da base governista consoante a orientação do líder do governo para períodos eleitorais e períodos não eleitorais. Análise dos dados A análise realizada consistiu basicamente em 1) calcular o percentual de acompanhamento dos deputados (de situação e de oposição) em relação às orientações da liderança do governo; 2) comparar as médias de fidelidade dos deputados da base ao líder do governo em dois períodos: o período eleitoral (aqui determinado como as votações ocorridas de março a outubro dos anos pares) e o período não eleitoral (os demais períodos). A primeira parte da análise trouxe que, dos 615.310 votos analisados (dados por deputados da base e deputados de oposição), 344.803 acompanharam a orien- Inexistência de impacto dos ciclos eleitorais sobre a disciplina parlamentar na Câmara dos Deputados 275 tação do líder do governo e 270.507 foram contrários a essa orientação, o que se traduz em uma taxa de sucesso governamental histórica de apenas 56,04%. Além disso, o percentual de acompanhamento em relação ao Executivo por parte dos governistas para todo o período analisado (mesmo não se considerando a opção “obstrução” como um voto contrário ao governo) foi de apenas 61,11%, bem inferior ao índice de pelo menos 80% defendido pela literatura hoje dominante para o presidencialismo de coalizão brasileiro. Ressalte-se que essa diferença nos índices foi obtida simplesmente considerando-se, votação a votação, a quantidade de ausentes às deliberações como fuga de votos da base. A segunda parte da análise buscou verificar se há diferenças entre os votos dados em plenário para períodos eleitorais e períodos não eleitorais. Observe-se que os anos pares se constituem de um período eleitoral (1º de março a 31 de outubro) e de um período não eleitoral (ou pós-eleitoral, 1º de novembro a 31 de dezembro), enquanto que os anos ímpares têm somente períodos não eleitorais. Para estes, consideraram-se votações ocorridas entre 1º de janeiro a 31 de dezembro, pois se hoje não ocorrem mais votações nos meses de janeiro e fevereiro, até 2005 era costume se convocar o Congresso Nacional para sessões extraordinárias e esses meses também eram de produtividade legislativa. O cálculo das médias, para os dois períodos dos anos pares (período eleitoral e período não eleitoral) retornou os seguintes resultados: Quadro 2 Médias de fidelidade do parlamentar à orientação do governo nos anos pares Ano par Média período eleitoral Nº Votações Período Média período não eleitoral Nº votações Período 1990 0.5054648 27 – 0 1992 0.2707629 28 – 1 1994 0.4555329 6 – 0 1996 0.5145350 89 0.4062728 13 1998 0.6107945 63 0.5938865 17 2000 0.2822488 46 0.5267401 11 2002 0.6366015 16 0.5525876 4 2004 0.5530909 26 0.7281307 8 2006 0.3151822 23 0.7116921 4 276 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Ano par Média período eleitoral Nº Votações Período Média período não eleitoral Nº votações Período 2008 0.6842072 45 0.5514242 20 2010 0.2772940 22 0.4595530 10 2012 0.4405520 21 0.3532299 15 Média 0,462 34,33 0,488 DP 0,141 0,198 Fonte: banco de dados Cebrap. Elaboração dos autores. O cálculo das médias dos anos ímpares (anos em que não ocorrem eleições) apresentou os seguintes resultados: Quadro 3 Médias de fidelidade do parlamentar à orientação do governo nos anos ímpares ANO ÍMPAR Nº VOTAÇÕES PERÍODO MÉDIA PERÍODO NÃO ELEITORAL 1989 26 0.1833414 1991 75 0.3252661 1993 53 0.5149520 1995 119 0.5122823 1997 108 0.6056696 1999 105 0.5979019 2001 57 0.5636328 2003 87 0.7130045 2005 38 0.6349597 2007 126 0.6165672 2009 85 0.5762861 2011 56 0.6728169 Média 0,543 DP 0,14 Fonte: banco de dados Cebrap. Elaboração dos autores. A partir desses resultados procedeu-se à análise com o objetivo de se negar a hipótese nula: não há diferença nas médias do posicionamento parlamentar quando Inexistência de impacto dos ciclos eleitorais sobre a disciplina parlamentar na Câmara dos Deputados 277 comparados períodos normais e períodos pré-eleitorais. Para tanto, comparou-se as médias de acompanhamento da base dos períodos de votação para períodos pré-eleitorais dos anos pares com os períodos de votação para períodos não eleitorais dos anos pares e dos anos ímpares. Antes, contudo, os dados para períodos eleitorais e períodos não eleitorais foram submetidos ao teste de normalidade de Shapiro-Wilk (script em anexo). Para esse teste, só as médias de votações dos anos ímpares (ou seja, votações em períodos não eleitorais) são distribuições normais. A razão para esse resultado decorre do fato de que há uma redução drástica do número de votações efetivamente realizadas nos períodos pré-eleições. Esse fato pode significar a ausência de vontade política do Parlamento em deliberar nesse período, seja pela dedicação dos parlamentares aos seus redutos eleitorais, seja pela ação estratégica do governo e sua base em não submeter as casas legislativas a desgastes nesses períodos. No Congresso Nacional, esse período de poucas deliberações, como já salientado, é informalmente denominado de recesso branco. O resultado negativo do teste de normalidade para os anos eleitorais impediu o uso de testes paramétricos para essas amostras. Dessa sorte, optou-se por analisar se as distribuições dos índices de acompanhamento do governo, correspondentes aos anos pares e ímpares, são idênticas ou não, utilizando o teste de Wilcoxon Signed-Rank. O nível de significância utilizado foi de 0.05, sem assumir que as distribuições são normais e os resultados obtidos apontam para a impossibilidade de se afirmar que as médias entre as duas amostras são diferentes. Mais uma vez, a sintaxe aplicada às médias amostrais segue no Anexo A. Além disso, os resultados de todas as análises, o banco de dados compilado, os scripts para linguagem R, estão disponíveis para acesso e download no link https:// github.com/Cefor/fidelidadedabase, o que representa a busca de se garantir a reprodutibilidade da pesquisa ora apresentada. Discussão dos resultados e conclusões O presente capítulo dialogou com as pressuposições de preponderância do Executivo e da prevalência da influência do Executivo sobre os parlamentares da base de apoio ao governo no Congresso. Pressuposições essas construídas 278 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO para o presidencialismo de coalizão brasileiro a partir de estudos baseados na teoria partidária. Para tanto, trouxe como hipótese de pesquisa a possibilidade de o deputado federal mudar seu padrão de votação – e ser menos fiel ao Executivo – nas proximidades de períodos eleitorais. A metodologia empregada consistiu no comparativo da coincidência média dos votos dos deputados da base governista com a orientação do líder do governo na Câmara dos Deputados para períodos eleitorais e períodos não eleitorais. O comparativo dessas médias apontou que, com um intervalo de confiança de 95%, não há diferença significativa, entre períodos eleitorais e períodos não eleitorais, para a distribuição de votos da base governista em prol do Executivo. Tal fato não permitiu comprovar a hipótese de que deputados dão menos apoio ao Executivo perto das eleições, ou que votam mais favoravelmente à base de eleitores no mesmo período. Noutras palavras, ao nível de significância de 0,05, refuta-se, de acordo com o método adotado, o princípio da teoria dos ciclos eleitorais para o caso da Câmara dos Deputados. Isso não significa dizer que deputados não se preocupam com suas bases (ou que não se preocupam mais com suas bases às vésperas das eleições). Igualmente, buscou-se comprovar, pelo método estatístico descritivo de cálculo da média de votos dados em prol do governo, a afirmação da literatura dominante de que o Executivo, no período pós-democratização, goza de índices de sucesso e apoio parlamentar assemelhados ao de governos parlamentaristas. Para os estudos do presidencialismo de coalizão brasileiro (em especial os vários textos de Figueiredo e Limongi exaustivamente citados nesta pesquisa), parlamentares membros da coalizão votam de acordo com a orientação do líder partidário e do líder do governo em índices próximos a 85% das vezes. No entanto, ao analisar-se a base de dados Cebrap, esses índices só são comprovados se a porcentagem for calculada se considerando apenas os deputados votantes. Para a presente pesquisa, a metodologia adotada incluiu nos cálculos os deputados da base governista faltantes em cada votação e os considera como indisciplinados. Ao proceder assim, o Executivo continua preponderante, apresentando historicamente índice de sucesso superior a 50% (considerando votos da base e da oposição). Para os deputados da base, a média de apoio se reduz a meros 61,11% Inexistência de impacto dos ciclos eleitorais sobre a disciplina parlamentar na Câmara dos Deputados 279 (contra os 85% apontados pela literatura dominante), raramente superando os 70% em votações pontuais. Isso explica a histórica dificuldade de se aprovar reformas mais profundas no Congresso Nacional. Outras hipóteses de pesquisa Apesar de as análises deste capítulo não poderem afirmar a existência de ciclos eleitorais, o tema ainda não pode ser desconsiderado para o Legislativo e pesquisas com cunho mais qualitativo se fazem necessárias. Em duas recentes monografias apresentadas no âmbito do Programa de Pós-Graduação da Câmara dos Deputados, discutiu-se a questão do centralismo decisório no plenário da Câmara dos Deputados e a existência (ou não) de ciclos eleitorais no parlamento brasileiro. A primeira pesquisa trouxe a informação de que o Plenário da Câmara dos Deputados, em um período de dez anos (de 2007 a 2016), rejeitou apenas um projeto de lei (LIRA, 2017). Em outras palavras, a pesquisa nos diz que há um forte filtro realizado pelas reuniões do presidente da Câmara com o Colégio de Líderes, pelo qual só é colocado na pauta de deliberações aquelas proposições com acordos previamente consertados. É de se supor, portanto, que em períodos pré-eleitorais, temas sensíveis aos deputados e às suas bases não passam do filtro do colégio de líderes e não são pautados, o que justificaria não se ter encontrado, nesta pesquisa, fuga de votos de parlamentares da base às vésperas das eleições. Essa hipótese, contudo, precisa ser comprovada em nova pesquisa. Uma segunda monografia, que objetivou verificar qualitativamente quais características comuns determinado grupo de deputados reeleitos apresentavam, dialogou (igualmente a esta pesquisa) com a teoria dos ciclos eleitorais. Nos resultados apresentados, fruto de entrevistas com parlamentares, realçou-se a impossibilidade de se comprovar a existência de ciclos eleitorais na Câmara dos Deputados porque embora o parlamentar aja ora distributivamente, ora partidariamente, a mudança de estratégia ocorre durante todo o mandato, de acordo com as nuances do jogo político e não apenas às vésperas das eleições (CUNHA, 2017) Juntando-se esse achado com o índice de faltas significativo encontrado nos dados desta pesquisa (25,38%), é possível supor que o parlamentar prefira não contrariar a nenhum de seus dois senhores (o eleitor e o Executivo) 280 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO e simplesmente se abstenha nas votações em que os desejos de um e de outro estejam em conflito. Igualmente, essa é uma nova hipótese, não respondida nesta pesquisa que fica, contudo, como sugestão para novos mergulhos nesse imbricado tema. Por fim, o achado de que a base não é tão disciplinada como afirmam os estudos do presidencialismo de coalizão citados neste capítulo merece discussão mais aprofundada para se apontar quando o deputado decide por abandonar a base, negando votos ao Executivo, mas esquivando-se de deixar isso registrado por meio de votos contrários, e para se verificar as variáveis que podem explicar esse seu comportamento fugidio (temas, contextos, bancada do parlamentar, momentos da legislatura, etc.). Referências Abranches, Sérgio (1988). Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro. Dados: Revista de Ciências Sociais, 31: 5-38. ______ (2016). Os ciclos do presidencialismo de coalizão. Rio de Janeiro: 2016, (Ensaio). Disponível em: <http://www.ecopolitica.com.br/2016/03/>. Acesso em: 28 ago. 2019. Abrucio, Fernando L. (1998). Os barões da federação: os governadores e a redemocratização brasileira. São Paulo: Hucitec. Alesina, A. (1987). Macroeconomic policy in a two-party system as a repeated game. Quarterly Journal of Economics, v. 102, p. 651-678. ALMEIDA, Acir (2014). Informação, delegação e processo legislativo: a política das medidas provisórias. Brasília; Rio de Janeiro: Ipea. (Texto para discussão; n. 1933). Ames, Barry (2001). The deadlock of democracy in Brazil. Ann Harbor: Univ. of Michigan Press. Inexistência de impacto dos ciclos eleitorais sobre a disciplina parlamentar na Câmara dos Deputados 281 AMORIM NETO, Octavio (2000). Gabinetes presidenciais, ciclos eleitorais e disciplina legislativa no Brasil. Dados: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 43, n. 3, p. 479-519. BRASIL (2006). Emenda Constitucional nº 50, de 14 de fevereiro. BRASIL (1997). Lei n. 9.504, de 30 de setembro de 1997. Estabelece normas para eleições; altera as Leis nos 9.504, de 30 de setembro de 1997, 9.096, de 19 de setembro de 1995, e 4.737, de 15 de julho de 1965 (Código Eleitoral), para reduzir os custos das campanhas eleitorais, simplificar a administração dos partidos políticos e incentivar a participação feminina. BRASIL (2015). Lei n. 13.165, de 29 de setembro de 2015. Altera as Leis nos 9.504, de 30 de setembro de 1997, 9.096, de 19 de setembro de 1995, e 4.737, de 15 de julho de 1965 (Código Eleitoral), para reduzir os custos das campanhas eleitorais, simplificar a administração dos partidos políticos e incentivar a participação feminina. BORSANI, Hugo (2013). Eleições e economia: instituições políticas e resultados macroeconômicos na América Latina, 1979-1988. Belo Horizonte: Ed. UFMG. CAMPOS, M. M. (2009). Democracia, partidos e eleições: os custos do sistema partidário-eleitoral no Brasil. 2009. 237 f. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, UFMG, Belo Horizonte. CERVI, Emerson Urizzi (2010). O “tempo da política” e distribuição dos recursos: uma análise do HGPE. Em Debate, Belo Horizonte, v. 2, n. 8, p. 12-17, ago. CHEIBUB, José Antonio; FIGUEIREDO, Argelina; LIMONGI, Fernando (2009). Partidos políticos e governadores como determinantes do comportamento legislativo na Câmara dos Deputados: 1988-2006. Dados: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 52, n. 2, p. 263-299, jun. 282 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO CUNHA, Lianna Cosme (2017). Arenas políticas e reeleição: onde os deputados federais focam sua atuação para se reelegerem. Monografia (Especialização em Processo Legislativo) – Centro de Formação, Treinamento e Aperfeiçoamento (Cefor), Câmara dos Deputados. FIGUEIREDO, Argelina; LIMONGI, Fernando (1999). Executivo e Legislativo na nova ordem constitucional. Rio de Janeiro: Editoral FGV. ______; ______ (2000). Presidential power, legislative organization, and party behavior in the legislature. Comparative Politics, v. 32, n. 2, p. 151-170. ______; ______ (2002). Incentivos eleitorais, partidos e política orçamentária. Dados: Revista Brasileria de Ciências Sociais, v. 45, n. 2, p. 303-344. ______; ______ (2006). Poder de agenda na democracia brasileira: desempenho do governo no presidencialismo pluripartidário. In: SOARES, G.; RENNÓ, L. (Org.). Reforma política: lições da história recente. Rio de Janeiro: FGV Ed. ______; ______ (2007). Instituições políticas e governabilidade: desempenho do governo e apoio legislativo na democracia brasileira. In: MELO, C.; ALCÂNTARA, M. (Org.). A democracia brasileira: balanços e perspectivas para o século 21. Belo Horizonte: UFMG. GARCIA, Gustavo (2016). Deputados e senadores viram cabos eleitorais de luxo na eleição municipal. G1. Brasília. Disponível em: <http://g1.globo.com/ politica/eleicoes/2016/noticia/2016/09/deputados-e-senadores-viram-caboseleitorais-de-luxo-na-eleicao-municipal.html>. Acessoem em: 28 ago. 2019. GAYLORD, Sylvia; RENNÓ, Lúcio R. (2015). Opening the black box: cabinet authorship of legislative proposals in a multiparty presidential system. Presidencial Studies Quartely, v. 45, n. 2, p. 247-269, June. GRACA, Luís Felipe Guedes da; SOUZA, Cíntia Pinheiro Ribeiro de (2014). Uso estratégico de eleições alternadas? efeitos da candidatura para prefeito sobre a votação dos concorrentes ao cargo de deputado federal no Brasil. Opinião Publica, Campinas, v. 20, n. 3, p. 326-345, dez. Inexistência de impacto dos ciclos eleitorais sobre a disciplina parlamentar na Câmara dos Deputados 283 JACOBSON, G. C. (1978). The effects of campaign spending in congressional elections. American Political Science Review, v. 72, n. 2, p. 469-491. KEECH, William R. (1995). Economic politics: the costs of democracy. New York: Cambridge Univ. Press. Linz, Juan J. (1990). The perils of presidentialism. Journal of democracy, v. 1, p. 51-69. LIRA, Kelly Vieira (2017). Recurso contra a apreciação conclusiva: um instrumento de não decisão. Monografia (Especialização em Processo Legislativo) – Centro de Formação, Treinamento e Aperfeiçoamento (Cefor), Brasília. Mainwaring, Scott (1999). Rethinking party systems in the third wave of democratization: the case of Brazil. Stanford, CA: Stanford Univ. Press. MAYHEW, D. (1974). Congress: the electoral connection. New Haven: Yale Univ. Press. NORDHAUS, William (1975). The political business cycle. Review of Economic Studies, v. 49, p. 196-190. PEREIRA, C.; POWER, T. J.; RENNÓ, L. (2005). Under what conditions do presidents resort to decree power? theory and evidence from the Brazilian case. The Journal of Politics, v. 67, n. 1, p. 178-200. PERES, Jefferson (2006). [Pronunciamento dado na tribuna do Plenário do Senado em 30/8/2006]. Diário do Senado Federal, Brasília, 31 ago. 2006. Disponível em: <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/ pronunciamentos/-/p/texto/364112>. Acesso em: 28 ago. 2019. PREUSSLER, A. P. S. (2001). Um estudo empírico dos ciclos políticos-econômicos no Brasil. 2001. 102 f. Dissertação (Mestrado em Economia) – Programa de Pós-Graduação em Economia, UFRS, Porto Alegre. SAMUELS, David (2003). Ambition, federalism, and legislative politics in Brazil. Cambridge: Cambridge Univ. Press. 284 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO SANTOS, Fabiano (2003). O poder legislativo no presidencialismo de coalizão. Belo Horizonte: Ed. UFMG. SILVA, Adriano da Nóbrega (2015). Medidas provisórias: delegação legislativa e lógica partidária na Câmara dos Deputados, 1998 a 2010. 2015. 264 f. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Instituto de Ciência Política, UnB, Brasília. Anexos Scripts e sintaxes dos principais cálculos realizados. Utilizou-se a linguagem R. Quadro A1 Teste de normalidade para as médias das amostras # Teste de normalidade para o índice de acompanhamento do governo, # excluindo-se os faltosos, para os parlamentares da coalizão shapiro.test(par1$indAcompanhaGovCxF) ## Shapiro-Wilk normality test ## data: par1$indAcompanhaGovCxF ## W = 0.92766, p-value = 0.3559 shapiro.test(par2$indAcompanhaGovCxF) ## Shapiro-Wilk normality test ## data: par2$indAcompanhaGovCxF ## W = 0.84766, p-value = 0.05448 ## Shapiro-Wilk normality test ## data: impar$indAcompanhaGovCxF ## W = 0.8293, p-value = 0.02058 Conclusões: O teste de Shapiro-Wilk revela que apenas o índice para anos ímpares possui distribuição normal, o que inviabilizou a utilização de testes paramétricos. Inexistência de impacto dos ciclos eleitorais sobre a disciplina parlamentar na Câmara dos Deputados 285 Quadro A2 Teste Wilcox para comparação de médias entre períodos não eleitorais e períodos pós-eleitorais wilcox.test(par1$indAcompanhaGovCxF,par2$indAcompanhaGovCxF,paired=TRUE) indAcompanhaLiderCxF.1 periodo.2 indAcompanhaLiderCxF.2 Wilcoxon signed rank test data: par1$indAcompanhaGovCxF and par2$indAcompanhaGovCxF V = 26, p-value = 0.9219 alternative hypothesis: true location shift is not equal to 0 Quadro A3 Teste Wilcox para comparação de médias entre períodos não eleitorais e períodos eleitorais wilcox.test(par1$indAcompanhaGovCxF,impar$indAcompanhaGovCxF,paired=TRUE) Wilcoxon signed rank test data: par1$indAcompanhaGovCxF and impar$indAcompanhaGovCxF V = 24, p-value = 0.2661 alternative hypothesis: true location shift is not equal to 0 Quadro A4 Testes de hipótese Foram testadas as seguintes hipóteses, considerando-se os parlamentares da coalizão: f Ano par – período 1/Mar a 31/Out pertence à mesma distribuição de Ano par – período 1/Nov a 31/Dez f Ano par – período 1/Mar a 31/Out pertence à mesma distribuição de Ano ímpar – período 1/Jan a 31/Dez 286 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO # Ano par - período 1/Mar a 31/Out par1 <- estimaPeriodo[(estimaPeriodo$ano %% 2) == 0 & estimaPeriodo$periodo == 1, ] # Ano par - período 1/Nov a 31/Dez par2 <- estimaPeriodo[(estimaPeriodo$ano %% 2) == 0 & estimaPeriodo$periodo == 2, ] # Ano ímpar - período 1/Jan a 31/Dez impar <- estimaPeriodo[(estimaPeriodo$ano %% 2) == 1 & estimaPeriodo$periodo == 3, ] df <- data.frame(impar[,c(“ano”,”qtdVotacoes”,”indAcompanhaGovGxF”)], par1[,c(“ano”,”qtdVotacoes”,”indAcompanhaGovGxF”)], par2[,c(“qtdVotacoes”,”indAcompanhaGovGxF”)]) rownames(df) <- NULL names(df) <- c(“Ano Ímpar”, “Qtd Votações período 3”, “Período não eleitoral”, “Ano Par”, “Qtd Votações período 1”, “Período Eleitoral”, “Qtd Votações período 2”, “Período pós eleições”) library(knitr) ## Warning: package 'knitr' was built under R version 3.2.4 kable(df, caption=“Médias de fidelidade do parlamentar à orientação do governo: período 1 - 1/Mar a 31/Out; período 2 - 1/Nov a 31/Dez; período 3 - 1/Jan a 31/Dez”) 287 A relação entre as estratégias eleitorais e a organização das lideranças partidárias na Câmara dos Deputados Nivaldo Adão Ferreira Júnior Aldenir Brandão da Rocha Introdução O presente capítulo retrata pesquisa desenvolvida no âmbito de Grupo de Pesquisa e Extensão da Câmara dos Deputados97 e busca mensurar a influência de pressupostos da teoria partidária na composição das lideranças partidárias e, de certa forma, suscitar a parca aplicação de preceitos da teoria informacional na produção legislativa na Câmara dos Deputados. Seu objetivo é o de analisar o papel dos gabinetes das lideranças partidárias na Câmara dos Deputados (mais especificamente, de suas assessorias técnicas) no processo de tomada de decisões, não se olvidando da influência que a arena eleitoral possa exercer na arena legislativa. Espera-se que o papel desempenhado na arena legislativa guarde correlação com a imagem e com as promessas realizadas pelos partidos na arena eleitoral. Como informam alguns estudos para o campo, na arena eleitoral federal, os partidos brasileiros podem ser divididos em dois tipos básicos: os que desejam ocupar o posto principal do sistema de governo adotado (a presidência da República) e os que desejam apoiar o ocupante desse posto em troca de cargos e de posições políticas, atuando, portanto, como partidos coadjuvantes (MENEGUELLO, 1998; FERRARI, 2011). No que tange à arena legislativa, é demonstrado pelos estudos do presidencialismo de coalizão no Brasil, por meio da abordagem do modelo partidário, que o líder partidário na Câmara dos Deputados é espécie de atalho cognitivo para a compreensão do comportamento parlamentar durante as votações importantes em plenário. Dessa sorte, 97 GPE.5.13 – PROCESSOS DECISÓRIOS DO PODER LEGISLATIVO BRASILEIRO: decisões, não decisões, obstrução parlamentar 288 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO a observância da orientação de bancada desses atores permite ao observador presumir que o comportamento médio dos parlamentares da bancada, ao votar em plenário, converge para a posição externada pelo líder. Esse fenômeno ocorre porque os regimentos das casas legislativas deferem aos líderes partidários prerrogativas para fazer valer suas vontades sobre as de seus liderados, o que tem sido denominado na literatura como uma das ferramentas para se realizar a delegação do poder decisório aos líderes partidários e destes ao Executivo. Conforme Miranda (2010), é possível constatar “a centralidade dos líderes partidários na coordenação do processo legislativo e na distribuição dos cargos, especialmente na Câmara dos Deputados, ou seja, sua importância para a superação dos imperativos práticos da ação coletiva legislativa”. Ao se observar, contudo, a reiteração das orientações em plenário para os diversos líderes partidários, assim como a divisão histórica do Parlamento em partidos da base e partidos de oposição (sendo poucos os partidos que se mantêm como independentes), percebe-se que também as orientações de liderança são igualmente previsíveis, com os partidos da base acompanhando de forma sistemática a orientação da liderança do governo e sendo deste coadjuvantes. Os partidos de oposição historicamente colocam-se contrários a essa orientação, o que demonstra, tanto no posicionamento desses partidos quanto no dos partidos da base um forte pragmatismo. A reiterada consonância entre a orientação dos diversos líderes da base e a orientação do líder do governo indica ser provável a sincronização entre esses atores para a construção de políticas públicas, disso decorrendo a necessidade de as assessorias técnicas das lideranças partidárias atuarem de acordo com esse concerto prévio. Como realça Acir Almeida (2014), esse alinhamento no momento da indicação da posição dos partidos pelo líder nas votações nominais em plenário é possível porque, durante o processo político de construção das posições partidárias, pontos sensíveis a cada deputado são negociados com o corpo legislativo e também com o Executivo. Já a reiterada divergência entre líderes de partidos de oposição e o líder do governo indica pragmatismo político e oposição sistemática desses partidos. Ora, se a posição dos partidos da base coincide majoritariamente com a posição do governo, que por seu turno é na maioria das vezes contrária à posição dos partidos de oposição (não sendo relevante o conteúdo em discussão), é de se A relação entre as estratégias eleitorais e a organização das lideranças partidárias na Câmara dos Deputados 289 imaginar, primeiro, que a produção de informação dos partidos da base seja preterida por esse pragmatismo (ou que seja utilizada como justificante dessas posições adotadas), e que as estruturas dessas lideranças desempenhem papel proeminentemente estratégico, no sentido de se construir e defender saídas regimentais para o alcance dos objetivos partidários. Segundo, que talvez partidos de oposição precisem produzir informações em conteúdo mais abundante, para poderem confrontar as informações trazidas ao Congresso Nacional pelo Executivo, muito embora também se note pragmatismo na adoção da estratégia de oposição sistemática. A partir dessas premissas iniciais e partindo-se do entendimento de que (embora o processo de decisão política envolva análise e política) a análise é elemento parcial que serve na maioria das vezes tão somente ao propósito de se justificar as opções políticas adotadas (LINDBLOM, 1981). As questões de pesquisa propostas partem do pressuposto de que é plausível imaginar que as estruturas das lideranças partidárias sejam organizadas de acordo com o papel de cada partido dentro do presidencialismo de coalizão, ou seja, espera-se que partidos que optem por adotar estratégias coadjuvantes nas arenas eleitorais e legislativas (partidos coligados e partidos da coalizão, respectivamente) e que tenham estratégias de office seeking (MÜLLER; STROM, 1999), apresentem tendência de estruturar a burocracia de suas lideranças apenas para a assessoria regimental, em detrimento da produção de informação e análise. O corte temporal para este capítulo retrata a situação das lideranças partidárias no ano de 2015 a partir de coleta de dados por meio de survey eletrônico, realizada em outubro daquele ano. Entrevistas em profundidade, realizadas com assessores das lideranças em 2016 e 2017, e observação participante da atuação das lideranças nas arenas decisórias da Câmara dos Deputados auxiliaram na análise qualitativa das lideranças para o corte indicado. Revisão de literatura Nos estudos do presidencialismo de coalizão pela visão da teoria partidária (desenvolvida inicialmente por Cox e McCubbins, em 1993), advoga-se que a dificuldade sistêmica de se tomar decisões em situação de concorrência de várias forças centrípetas (presidencialismo, federalismo, tripartição dos poderes, 290 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO sistema partidário multifracionado) é superada pela racionalidade dos atores e por ferramentas disponíveis ao chefe do Executivo, as quais geram ambiente propício à coexistência de governabilidade e de representatividade do sistema. Para essa corrente, o processo legislativo federal é capitaneado pelo Poder Executivo, que ao lançar mão das várias ferramentas constitucionais ao seu dispor (medidas provisórias, ampla iniciativa legislativa, urgências constitucionais; iniciativas legislativas exclusivas) consegue superar problemas de ação coletiva e fazer com que o Legislativo atue de forma cooperativa na formatação de políticas públicas (AMORIM NETO, 2000; 2006; MIRANDA, 2010). Fernando Limongi e Argelina Figueiredo ressaltam ainda que o Executivo dispõe de recursos que podem ser distribuídos aos partidos da base para a construção de coalizões, a exemplo de liberação de emendas orçamentárias e de nomeação a cargos na Administração Pública, entre eles, cargos de Ministros de Estado (LIMONGI; FIGUEIREDO, 1999; 2002). Dentro do Legislativo, além de instrumentos de composição e direção de uma base de apoio no Congresso, como a indicação de líderes do governo na Câmara, no Senado e no Congresso, regras regimentais centralizam as possibilidades de intervenção no processo decisório nas mãos de determinados atores (Presidentes das casas legislativas e de suas comissões, líderes partidários e relatores de proposições), dificultando sobremaneira a atuação atomizada dos parlamentares e gerando razoáveis graus de disciplina partidária (PEREIRA; MUELLER, 2003). Esses atores centrais são fortemente atraídos para a base governista, devido aos recursos à disposição do Executivo. Para obter esses recursos, o líder partidário oferece não só a sua fidelidade, mas a fidelidade de toda a sua bancada, conseguida devido ao centralismo decisório. Logo, disciplina partidária e atratividade do Executivo são as engrenagens principais do mecanismo que fazem com que o processo legislativo fique preponderantemente condicionado pelas vontades do presidente da República (MENEGUELLO, 1998; PEREIRA; MUELLER, 2003; SANTOS, 2003; AMORIM NETO, 2006; LIMONGI, 2006). No entanto, conforme explicitam Pereira, Power e Rennó (2005) e Rennó (2006), os recursos finitos fazem com que o Chefe do Executivo racionalmente procure constituir a sua base de apoio de maneira tal que permita aprovar suas políticas públicas sem comprometer a gestão dos recursos. De qualquer sorte, está presente nessas abordagens a percepção de que os partidos, de acordo com os incentivos perseguidos e conseguidos e apesar do sistema partidário multi- A relação entre as estratégias eleitorais e a organização das lideranças partidárias na Câmara dos Deputados 291 fracionado, se aliam em dois polos principais em relação ao governo, distinguindo-se em partidos da base governista (identificados também como partidos da situação, da coalizão governista) ou em partidos de oposição, que desejam alcançar o poder e controlar esses recursos (LIMONGI; FIGUEIREDO, 1999; 2002; SANTOS, 2003; RENNÓ, 2006; MOISÉS, 2011; FERRARI, 2011; LIMONGI; GUARNIERI, 2014; 2015). Quando muito, há um terceiro grupo de partidos, denominados de independentes ou de terceira via, que por não se adequarem momentaneamente a um dos dois grupos anteriores, buscam posição alternativa intermediária que lhes possibilitem em algum momento ocupar os papéis centrais de situação ou de oposição (LIMONGI; GUARNIERI, 2014). Dentro desses dois ou três polos, contudo, as agremiações partidárias não são necessariamente homogêneas quanto a seus anseios e a suas estratégias. Há as que, como o PT e o PSDB, até o presente momento, buscaram ocupar o posto principal da política nacional – a presidência da República – e há partidos que desejam apenas serem destinatários das benesses distribuídas à base governista dentro do modelo de presidencialismo de coalizão (MENEGUELLO, 1999). Essa divisão de anseios (e de funções) se assemelha ao comportamento partidário teórico imaginado por Strom e Müller (1999), para quem os partidos podem ser divididos, de acordo com suas estratégias, em office seeking, vote seeking e policy seeking. Assim, há partidos que na arena eleitoral buscam ocupar o principal posto do Executivo e outros que amiúde se lançam como coadjuvantes nesse processo. Igualmente, na arena legislativa, há partidos que buscam participar mais fortemente da produção de informação e da discussão aprofundada dos temas de política pública e outros que se esmeram e se especializam nas disputas regimentais. Neste momento, portanto, parece necessário tentar tipologia para classificação dos partidos que considere essas estratégias nas arenas eleitoral e legislativa, o que se faz no quadro 1, a seguir: Quadro 1 Tipologia para partidos no presidencialismo de coalizão Arena Eleitoral Estratégia principal do partido Classificação Conquistar o Executivo Principal Ser partido coligado Satélite 292 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Situação estratégica do Partido Classificação Partido elegeu o presidente ou Arena Legislativa Partido compõem a base Partido da Base Partido se opõe ao presidente Oposição Partido não se identifica com a Independente oposição ou com o governo Elaboração dos autores. Reconhece-se que identificar em dado momento como se posicionam os partidos nessas arenas pode equivaler a um mero retrato de situação passageira. Em verdade, na arena eleitoral, partidos podem trocar de estratégias de uma eleição para outra e na arena legislativa podem mudar seu posicionamento mais de uma vez dentro de uma mesma legislatura. Feita essa consideração, percebe-se que há partidos que na arena eleitoral historicamente sempre buscaram o poder (PT e PSDB), partidos que sempre foram oposição um do outro na esfera federal (PT e DEM) e partidos, que, não importando quem ocupe a presidência da República, são/foram sempre base governista (PP, PR, PMDB). A situação, principalmente deste último grupo, reforça o pragmatismo da política brasileira. Compulsando-se os dados do Tribunal Superior Eleitoral para candidaturas às eleições para presidência da República pós 1988, encontra-se que de fato PT e PSDB se lançaram à presidência da República desde a redemocratização. O PSOL lançou candidato em 2006, 2010 e 2014, enquanto que o PDT disputou a presidência da República em 1989, 1994 e 2006, sendo aliado histórico do PT nas eleições em que não apresentou candidato e no segundo turno das demais. O PPS disputou a presidência da República em 1998 e 2002 e se tornou oposição durante o primeiro governo Dilma. O PSB disputou a presidência da República em 2002 e em 2014. Esses são os partidos que na pesquisa foram considerados como principais, na arena eleitoral. O PMDB, por ter oferecido candidato à presidência apenas em 1994 e o PV, que disputou a presidência da República somente em 2010, com uma candidata que não era oriunda de sua base, foram classificados como coadjuvantes nessa arena. Essa classificação será utilizada para análise dos dados apresentados posteriormente no quadro 3. Na arena legislativa, partidos ocupam posições estratégicas que decorrem de suas escolhas nas arenas eleitorais e se apresentam como partidos da base (o A relação entre as estratégias eleitorais e a organização das lideranças partidárias na Câmara dos Deputados 293 partido principal da arena eleitoral que se sagrar vencedor da eleição presidencial e partidos satélites que em relação ao principal não lhe sejam extremamente opositores) e partidos de oposição (partidos principais derrotados nas eleições presidenciais). Cabe observar que partidos principais derrotados podem também ocupar a posição de independentes (ou seja, que não fazem oposição sistemática ao partido na presidência) ou podem vir a compor a base de coalizão. Nessa arena legislativa, para partidos da base, de oposição, ou independentes, tem-se que o líder partidário é visto como ator-chave devido a enfeixar em suas mãos prerrogativas regimentais que lhe conferem o poder de condicionar a atuação do parlamentar liderado. Fernando Limongi e Argelina Figueiredo (1999, 2006, 2007) afirmam, inclusive, que a partir da opinião do líder acerca de determinada proposição, externada em plenário pela orientação de votação, é possível predizer o resultado da votação dessa proposição. Os regimentos das casas legislativas conferem a esse ator poder de agenda dentro do Congresso Nacional por meio de algumas prerrogativas, como as prerrogativas de substituir a vontade de toda a bancada em requerimentos durante o processo legislativo, de indicar ou de retirar membros das várias comissões parlamentares a qualquer momento e, principalmente, de influenciar na definição da pauta deliberativa no plenário das casas legislativas, por meio de participação no colégio de líderes. São, ainda, prerrogativas regimentais dos líderes orientar a bancada nas votações de plenário; participar dos trabalhos em qualquer comissão, mesmo que dela não seja membro, por si ou por intermédio dos seus vice-líderes; pedir verificação de votação em qualquer comissão. Como não pode ser onisciente e onipresente, o líder partidário necessita de uma assessoria especializada que lhe auxilie, em cada arena, a se utilizar com efetividade de todo esse ferramental. A questão que se coloca, contudo, é como cada líder, de acordo com o tipo de partido que coordena, vai organizar sua assessoria especializada para se utilizar desses poderes centrais. Espera-se que essa organização seja reflexo das estratégias que o líder e seu partido desenham, de acordo com os seus objetivos principais. Nesse contexto, a hipótese de pesquisa é que os objetivos partidários condicionam os papéis desempenhados pelos partidos na arena parlamentar e na arena eleitoral, que, por sua vez, vão se correlacionar ao (ou condicionar o) formato das assessorias das lideranças partidárias. 294 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Se é esperado que estruturas de lideranças partidárias se diferenciem em função da estratégia dos partidos nas arenas eleitoral e legislativa, não se pode olvidar que elas também se diferenciam devido ao tamanho do partido. É que a divisão de poder dentro da Casa Legislativa é orientada pelo princípio da proporcionalidade da representação partidária. Em decorrência desse princípio, tem-se que alguns partidos muito pequenos não podem indicar um de seus membros como líder e não dispõem de liderança partidária. Para as bancadas que dispõem de liderança partidária, a estrutura burocrática a elas deferida é tanto maior e mais complexa quanto maior for o número de parlamentares do partido com assento na Câmara dos Deputados. Feita essa ressalva da diferenciação pelo tamanho, tem-se que cada líder dispõe de plena autonomia para distribuir os recursos deferidos à sua liderança, de acordo com as prioridades estabelecidas por ele ou por seu partido. Quanto a isso, não há regra linear que vincule uma liderança a outra, ou que imponha formatos preestabelecidos, existindo, tão somente, o critério proporcional para definição do quantitativo de servidores que cabe a cada uma. É essa liberdade de constituição que vai possibilitar a cada líder direcionar sua assessoria para perseguir os objetivos e adotar as estratégias partidárias. O papel das lideranças: o desenho burocrático como reflexo do posicionamento partidário Frente às considerações encontradas na literatura para presidencialismo de coalizão e comportamento partidário dentro do quadro do neoinstitucionalismo, passou-se a buscar a compreensão da engenharia organizacional das lideranças partidárias a partir dos papeis dos partidos nas arenas eleitoral e legislativa. Para essa etapa, realizou-se pesquisa inicialmente exploratória, com caráter majoritariamente quantitativo, com o objetivo de se mensurar a distribuição efetiva de servidores pelas lideranças e as funções que mais corriqueiramente as lideranças desempenham, considerando que nem todos os nomeados para os cargos que cabem a cada liderança são efetivamente lotados nesses órgãos.98 Numa segunda 98 Os dados coletados foram utilizados, inicialmente, para verificar a estrutura de cada liderança voltada para o processo legislativo e foram tratados em artigo apresentado ao 10º Encontro da Associação Brasileira de Ciência Política. (FERREIRA JR., 2016). A relação entre as estratégias eleitorais e a organização das lideranças partidárias na Câmara dos Deputados 295 etapa, foram realizadas entrevistas em profundidade com assessores dessas lideranças para se compreender qualitativamente como se apresenta a arquitetura de cada liderança para o assessoramento do líder partidário, considerando-se os papeis do partido nas arenas eleitoral e legislativa. Inicialmente, percebeu-se que para o assessoramento imediato nas deliberações do processo legislativo, cada liderança dispõe de assessores de cunho mais técnico e temático (aqui denominados de assessores técnicos) e de assessores de cunho mais estratégico, de cunho finalístico e processual (aqui denominados de assessores regimentais). A partir da análise quantitativa, construiu-se índice (denominado aqui de Índice de Assessoramento Parlamentar – IAP) que correlaciona o número de assessores dedicados ao processo de tomada de decisão em cada liderança (somatório de assessores técnicos e regimentais) ao tamanho da bancada. Já, a partir da análise qualitativa da distribuição desses assessores, segundo critérios políticos do partido ou do líder da bancada, decompôs-se o IAP em dois outros índices, o índice de assessores técnicos por deputado (IAPt) e o índice de assessores regimentais por deputado (IAPr). Para a primeira aproximação à realidade das estruturas burocráticas das lideranças, foi necessária a compreensão de como o poder é distribuído a cada partido, segundo o princípio da proporcionalidade. Inicialmente observa-se que segundo o art. 9º do Regimento da Câmara dos Deputados (BRASIL, 1989), somente os partidos que contarem com pelo menos um centésimo da composição da Casa (cinco parlamentares) podem indicar um de seus membros como líder. Esses partidos gozam, ainda, do direito de ter a estrutura de uma liderança partidária, destinada a fornecer suporte técnico, administrativo, jurídico e político ao líder. Em outubro de 2015, havia representados na Câmara dos Deputados 26 partidos; destes, em obediência ao critério do tamanho da bancada, somente 20 partidos dispunham de lideranças partidárias. Esses 20 partidos albergavam 490 deputados (95,5% dos membros da Casa), o que garante representatividade à análise que se segue. Segundo informações disponíveis no Sistema de Gestão do Departamento de Pessoal (Sigesp), estavam lotados nessas lideranças 1,2 mil servidores na data de 15 de outubro de 2016. No entanto, se observa, até por força de resolução editada pela Câmara dos Deputados (BRASIL, 2015), que os quadros das lideranças podem ser compartilhados com os gabinetes parlamentares, o que significa dizer que é 296 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO necessário outro meio para se descobrir o efetivo contingente de servidores à disposição das lideranças. Dessa forma, para o conhecimento da estrutura efetiva de cada uma das lideranças, em outubro de 2015, foram realizadas entrevistas semiestruturadas (VIEIRA, 2009), por telefone, com chefes de gabinetes e/ou chefes de assessorias jurídico/legislativas e regimentais com dezenove das vinte lideranças (a Liderança do PCdoB foi a única em que não se conseguiu colher dados para o estudo). Nesse início de exploração, buscou-se verificar a quantidade de servidores efetivamente dedicados a assessorar os parlamentares no processo político e legislativo. Ou seja, descartaram-se as informações para secretarias; assessorias de imprensa, administrativa, de informática; motoristas, contínuos (embora os dados para esses cargos também tenham sido colhidos). Focou-se a pesquisa nos servidores que atuavam diretamente com o processo legislativo, geralmente, denominados pela própria Casa de assessores técnicos e assessores regimentais, todos esses, servidores com funções de consultoria e assessoramento aos parlamentares. A razão para esse filtro inicial decorre do fato de que, em todas as lideranças, as funções de assessoramento citadas se mostram presentes, sendo que os órgãos se diferenciam exatamente pela quantidade de assessores destinados ao assessoramento direto à bancada partidária no processo político de tomada de decisão e pela função que esses assessores desempenham no processo legiferante: se em tom mais analítico ou mais político. Aos entrevistados, foram feitas perguntas fechadas quanto ao quantitativo de servidores que se destinam para o assessoramento parlamentar, de caráter meritório/temático (com apelo jurídico) e para o assessoramento regimental. Foram feitas, ainda, perguntas abertas, para se depreender, em cada liderança, o tipo de assessoria às comissões que a liderança mantém (técnica e/ou regimental) e a existência ou destinação de assessor exclusivo para acompanhamento de comissões permanentes mais específicas e com peso maior no processo político, como as comissões especiais para Medida Provisória, a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania e a Comissão de Finanças e Tributação. O resultado dessa primeira etapa apresenta a existência de 255 assessores que atuam diretamente no processo de tomada de decisões políticas nas 19 lideranças analisadas (como a liderança do PCdoB, a única não entrevistada, en- A relação entre as estratégias eleitorais e a organização das lideranças partidárias na Câmara dos Deputados 297 contra-se entre as menores, estimou-se que o total de servidores dedicados ao assessoramento legislativo nas lideranças em outubro de 2015 não alcançava os 270 servidores). Das entrevistas, percebeu-se que esses servidores não estão uniformemente distribuídos, mas variam, por força de Resolução citada (BRASIL, 2015), de acordo com o tamanho da representação do partido na Câmara dos Deputados, isto é, bancadas maiores dispõem de mais assessores, conforme quadro 2, a seguir: Quadro 2 Número total possível de servidores na liderança, de acordo com o tamanho da bancada Faixa 1 Faixa 2 Faixa 3 Faixa 4 Faixa 5 Faixa 6 Número de deputados 5a7 8 a 10 11 a 15 16 a 19 20 a 21 22 a 34 Número de servidores 25 38 45 60 67 77 Faixa 7 Faixa 8 Faixa 9 Faixa 10 Faixa 11 Faixa 12 Número de deputados 35 a 42 43 a 60 61 a 75 76 a 86 87 a 100 > 100 Número de servidores 88 108 114 123 129 134 Fonte: Resolução nº 1/2007, alterada pela Resolução nº 61/2014 (BRASIL, 2007). O quadro acima representa o quantitativo de servidores a que tem direito cada liderança, de acordo com o número de deputados do partido com assento na Câmara dos Deputados. O número efetivo de servidores que ficam à disposição da liderança, contudo, depende do desenho que cada líder vai dar ao gabinete da liderança. Esse número efetivo, conforme demonstra a pesquisa, varia em razão da posição da bancada nas arenas eleitoral e parlamentar, não só no que tange à quantidade de servidores dedicados ao processo político decisório, mas, principalmente, na função que ali exercem. Por fim, é desse número de servidores que efetivamente estão lotados nas lideranças que se extrai o quantitativo de assessores voltados ao apoio mais direto ao processo de tomada de decisão, aqui denominados de assessores técnicos (ou de mérito) e de assessores regimentais (ou estrategistas), objeto da pesquisa ora relatada, e que serviram para a consecução do IAP. 298 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Construção e análise do IAP Na primeira rodada de entrevistas, perceberam-se três pontos de destaque no que tange ao efetivo dedicado a cada liderança partidária e que orientaram a consecução do IAP: primeiro, que a distribuição dos servidores pelas lideranças varia de acordo com o tamanho da representação do partido na Câmara dos Deputados (partidos maiores têm mais servidores). Segundo, que os servidores dedicados ao assessoramento mais direto ao parlamentar nas arenas decisórias são divididos em dois grupos básicos: assessores regimentais, de índole estratégica/processual, que auxiliam os parlamentares a se utilizarem dos recursos regimentais e atingir os objetivos do próprio parlamentar ou do partido; e assessores técnicos, que auxiliam na produção de informações que vão subsidiar a tomada de decisão. Terceiro, e o que mais caracteriza a distribuição desses servidores, percebeu-se que o papel do partido nas arenas eleitoral e legislativa é fundamental no balanço distributivo dos cargos disponíveis para assessores técnicos e assessores regimentais, revelando a prevalência de critério qualitativo na estruturação das lideranças. Assim, duas são as principais variáveis explicativas que causam efeito sobre a estrutura da assessoria das lideranças: o tamanho da bancada e a posição do partido nas arenas eleitoral e legislativa. Contudo, para o melhor dimensionamento do IAP é necessário perceber que as faixas de distribuição do quadro 2 seguem critério político, o que gera alguma incongruência na distribuição de servidores por número de deputados. Por exemplo, a explicação para a variação no número de servidores entre as faixas 1 e 2 ou entre as faixas 4 e 5 não é derivada diretamente de alguma proporcionalidade ou de alguma regra matemática. Outro fator que influencia o IAP é o número necessário de servidores mínimos para funcionamento de uma liderança partidária, ou, para a questão específica deste momento da pesquisa, o número mínimo necessário para o assessoramento jurídico e político direto ao líder e seus partidários. Segundo Abreu Júnior (2009), há serviços comuns em todas as lideranças, divididos em dois ramos: administrativo e técnico- jurídico. No ramo administrativo, repete-se em quase todas as lideranças a existência de chefia de gabinete, secretaria administrativa e assessorias de informática e imprensa. No ramo técnico-jurídico, encontram-se amiúde as assessorias técnica, de orçamento, de plenário e de comissões. A relação entre as estratégias eleitorais e a organização das lideranças partidárias na Câmara dos Deputados 299 São cargos indispensáveis, seja porque são repetidos em todas as lideranças, seja porque se dedicam ao mister de realizar as tarefas básicas para as quais as lideranças foram imaginadas, a chefia de gabinete e uma assessoria administrativa, a assessoria de plenário e a assessoria de comissões. Os demais cargos (e.g. assessorias de imprensa, de redação, política) existirão naquelas lideranças que disponham de quantitativo de servidores disponíveis para as tarefas. Para a pesquisa relatada neste capítulo e também para a consecução do IAP, centraram-se esforços na análise do número de servidores dedicados à assessoria ao processo decisório (assessores regimentais e assessores técnicos). Esses assessores são destinados fisicamente para apoio em três arenas específicas: a assessoria técnica na própria liderança, o setor de comissões (comissões da Câmara e comissões mistas do Congresso Nacional), o Plenário da Câmara dos Deputados (e por vezes o Plenário do Congresso Nacional, cujas sessões não são concomitantes às do Plenário da Câmara dos Deputados). Toda liderança destina 2 a 3 assessores para acompanhar o Plenário (a arena de deliberação máxima da Casa, com sessões que não raro duram mais que 8 horas seguidas), com exceção do PMDB, que dispunha de 6 assessores para essa função. Esses assessores de plenário, sem exceção, têm caráter extremamente estratégico, voltados para as disputas regimentais em plenário. Por esse fato e devido ao número de assessores de plenário ser quase constante, decidiu-se por não considerar esses assessores no cálculo do IAP, construindo-o somente os assessores técnicos da liderança e os assessores regimentais que acompanham as comissões. Em 2015, eram arenas decisórias que demandavam o acompanhamento por um ou mais assessores, o Plenário e o sistema de comissões da Câmara, constituído por 24 comissões permanentes, e mais de 50 comissões temporárias (além das comissões mistas permanentes), não raro com várias reuniões marcadas para um mesmo horário e tendo em discussão uma infinidade de temas e de matérias. Tudo isso exige que as assessorias sejam compostas por vários servidores, sendo que o número médio encontrado nas lideranças gira em torno de 10 assessores de comissão (mas com desvio padrão grande), decorrente não só do número de deputados de cada partido, mas, também, da estratégia de cada qual. Por essas razões, espera-se que lideranças maiores tenham maior número absoluto de assessores, mas com tendência de apresentar menor número de assessores por deputado. Isso decorre do fato de que, como há um mínimo de servidores exigidos para o funcionamento de qualquer liderança, compreende-se 300 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO que as pequenas lideranças destinam proporcionalmente um número de servidores maior (ainda assim, às vezes insuficiente) para atendimento aos parlamentares, o que influencia no aumento esperado para o IAP desses atores. Igualmente, olhando-se para os serviços comuns de uma liderança (ABREU JR., 2009), acredita-se que haja um número médio de servidores que represente o teto para lideranças maiores. Esse teto ainda carece de apuração. Um último fator que influencia a construção e a análise do IAP é o uso político da estrutura da liderança partidária e de seus cargos e funções. Historicamente, o líder partidário cede servidores da liderança para a lotação em gabinetes de deputados de sua bancada (e por vezes, a parlamentares até de outras bancadas). Esse costume, que era uma regra informal até julho de 2015 e que passou a ser normatizado a partir da Resolução de nº 9/2015 (BRASIL, 2015), faz com que o número de servidores efetivamente disponíveis à estrutura das lideranças seja diferente daquele disponibilizado de acordo com o tamanho do partido e conforme a citada Resolução de nº 1/2007 (BRASIL, 2007). De fato, em quase todas as lideranças, a maioria dos servidores não estão lotados em sua estrutura. Tendo em vista todas as variáveis acima e a partir das entrevistas feitas em outubro de 2015, elaborou-se o IAP, tendo por expectativas dois pontos principais: 1) como há um número mínimo de servidores necessário ao funcionamento desses órgãos e um teto médio que lhes proporcione o funcionamento efetivo, pelo critério meramente quantitativo, esperava-se que lideranças menores apresentassem maior IAP que lideranças maiores. 2) pelo critério qualitativo, contudo, esperava-se alguma incongruência ou diferença nos dados do IAP de partidos assemelhados em tamanho (quando analisados só pelo critério quantitativo), que poderiam ser explicadas pelo uso mais ou menos político de sua estrutura. Assim, elaborou-se o IAP, conforme quadro 3, abaixo, com ênfase no tamanho da bancada partidária. A análise do índice permite inferir, por um lado, que partidos que sistematicamente se colocam como satélites nas eleições presidenciais e como partidos componentes da base – PMDB, PP, PR, PRB, PROS, PSC, SD e PTB – apresentam tendência de IAP menor e ausência de assessores de cunho mais técnico. Por outro lado, partidos que se lançaram à disputa presidencial e/ou que se colocaram como oposição na Câmara dos Deputados apresentam tendências de alto IAP e de prevalência numérica de assessores técnicos sobre assessores regimentais. A relação entre as estratégias eleitorais e a organização das lideranças partidárias na Câmara dos Deputados 301 Igualmente, houve a pressuposição de que partidos pequenos (situados nas duas primeiras faixas do quadro 2, portanto, com até 10 deputados e até 38 Cargos em comissão) apresentassem alto número de assessores por deputado (i.e., alto IAP). Por esse fato, não se considerou as participações do PSOL e do PV nas disputas presidenciais como fator preponderante do alto IAP dessas bancadas. Também se percebeu que o tamanho da bancada está correlacionado à variação gradual do IAP em bancadas satélites, pois, iniciando-se pelo PMDB e passando pelo PP, PR, PSB, PTB, PRB, SD, e PROS, o Índice de Acompanhamento Parlamentar sofre acréscimo sensível à medida que o tamanho da bancada diminui. O tamanho da bancada, contudo, não é variável explicativa para as discrepâncias encontradas para DEM, PMDB, PP, PSD, PPS. Da mesma sorte, o IAP é incapaz de explicar porque assessorias como o DEM, o PT e o PSDB possuem maior número de assessores técnicos do que assessores regimentais (ou porque o PPS não possui, praticamente, assessores regimentais). Para esses casos, houve a necessidade de se decompor o IAP em dois outros índices: o Índice de Assessoramento Parlamentar de Caráter Técnico (IAPt) e o Índice de Assessoramento Parlamentar de Caráter Regimental (IAPr). Decomposição do IAP e possibilidade alargada de análise Para se compreender a razão de tantos partidos sem assessorias de cunho mais técnico e para a percepção mais qualitativa da estrutura das lideranças partidárias na Câmara dos Deputados, realizaram-se entrevistas em profundidade com dezesseis assessores, de dez lideranças da Câmara dos Deputados (DEM, PHS, PMDB, PMN, PPS, PR, PROS, PSC, PSD e PTB), durante o último semestre de 2016 e o primeiro semestre de 2017. Como se nota, com exceção do DEM, do PSD e do PPS, os demais partidos com os quais se realizaram entrevistas apresentam IAP nulo. Os dados colhidos nessa segunda aproximação, de caráter estritamente qualitativo, foram tratados por meio da ferramenta metodológica da análise de conteúdo, utilizando-se a plataforma on-line para compilação e análise conjunta das entrevistas (DEDOOSE, 2017). Por eles, buscou-se testar a hipótese de que partidos com estratégias assemelhadas apresentariam estruturas burocráticas também assemelhadas. 302 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO O perfil dos entrevistados para essa rodada apresenta 100% de servidores pós-graduados (a maioria com formação relacionada ao processo legislativo, em cursos oferecidos pela própria Câmara dos Deputados), com média de dedicação à área legislativa superior a 10 anos (sendo que apenas quatro servidores assessoram lideranças em tempo inferior a 4 anos) e 71,4% dos servidores com experiência de assessoramento em pelo menos duas lideranças. Buscou-se esse perfil para os entrevistados no intuito de se extrair o máximo de percepção comparativa do funcionamento das diversas lideranças da Câmara dos Deputados. Enfim, em um resultado não pretendido, há exata paridade de gênero na amostra, muito embora aqui todos os relatos sejam trazidos no gênero masculino, para se garantir o anonimato dos participantes. A compilação dos dados e a decomposição do IAP resultaram no quadro 3, abaixo, o qual possibilitou a percepção de duas tendências principais: Quadro 3 Estrutura das lideranças na Câmara dos Deputados Partidos coadjuvantes na arena eleitoral Partido N. Dep. Assessores Técnicos Assessores Regimentais IAPt IAPr IAP PMDB 66 0 15 0 0.22 0.22 PP 39 0 12 0 0,3 0,3 PR 34 0 12 0 0,35 0,35 PTB 25 0 9 0 0,36 0,36 PRB 20 0 7 0 0,35 0,35 SD 17 0 5 0 0,29 0,29 PSC 13 0 4 0 0,84 0,84 PROS 12 0 8 0 0,66 0,66 PV 8 0 9 0 1,12 1,12 PHS 5 0 5 0 1 1 PMN 3 0 4 0 1.33 1.33 PSD 33 23 13 0,7 0,39 1,09 A relação entre as estratégias eleitorais e a organização das lideranças partidárias na Câmara dos Deputados 303 Partidos que disputaram a presidência da República Partido N. Dep. Assessores Técnicos Assessores Regimentais IAPt IAPr IAP PT 62 18 16 0,29 0,26 0,55 PSDB 54 16 8 0,3 0,15 0,45 PSB 33 0 15 0 0,45 0,45 PDT 19 12 12 0,63 0,63 1,26 PSOL 5 4 1 0,8 0,2 1 DEM 21 18 6 0,86 0,28 1,14 PPS 10 20 1 2 0,1 2,1 Elaboração dos autores. Nota: excluiu-se o PCdoB, para o qual não há dados coletados. Tendência 1: Partidos principais na arena eleitoral possuem assessores técnicos na arena legislativa e lideranças mais bem estruturadas Com a decomposição do IAP, foi possível apontar tendência dos dados, sendo a primeira o fato de que restou mais evidente a afirmação de que a postura do partido nas arenas eleitoral e legislativa condiciona a estrutura da liderança. No quadro acima, percebe-se que partidos que lançam candidatos à presidência no pós-1988 (PDT, PPS, PSB, PSDB, PSOL) ou os que se colocam sistematicamente como opositores na arena legislativa (DEM) sentem necessidade de constituírem assessorias técnicas e têm IAPt maior que zero. Essas lideranças mantêm em seus quadros assessores regimentais (que têm a função de propiciar subsídios para que os líderes e seus seguidores possam, nas arenas de deliberações, aplicar os instrumentos regimentais de obstrução ou de consecução das pautas legislativas) e assessores técnicos/temáticos (que propiciam estudo mais aprofundado do conteúdo das proposições, construindo cenários de aplicação da futura norma e sugerindo ao líder a forma de encaminhamento da bancada na votação das proposições). Embora tenham os dois tipos de assessores, nessas lideranças predominam assessorias de mérito. Observa-se nessas assessorias técnicas a presença de especialistas requisitados de outros órgãos (Judiciário, Executivo, Ministério Público, Tribunais de Contas, Receita Federal), que com conhecimento, expertise e experiência, contribuem na discussão e formatação das políticas públicas, como relatado por um dos 304 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO entrevistados acerca da estrutura dos Democratas para assessoria às comissões mistas para medidas provisórias: Emendas mais complexas exigem do assessor muito conhecimento, dedicação exclusiva. Um cara experiente na área econômica, um cara só da área tributária. Então muitas assessorias têm auditores da Receita cedidos para cuidar só da área tributária, porque exige velocidade, dada pelo conhecimento prévio. Não dá, nesses casos, para adquirir conhecimento de qualidade na hora. É o caso dos Democratas. O DEM tem um analista do Banco Central, um analista da Receita Federal, que são caras que conseguem (depoente estala o dedo, indicando velocidade instantânea) mais rapidamente absorver a demanda e dar uma resposta técnica, na forma de emendas, ou mesmo de qualquer outra proposição, como destaque, parecer, projetos. É possível verificar no quadro 3 que mesmo no caso de partidos pequenos (PSOL e PPS), em que logicamente o assessor acumula atribuições devido ao número insuficiente de cargos à disposição da liderança, há a preocupação em produzir alguma informação e denominar de técnicos a seus assessores. A exceção é o PV, que embora tenha concorrido às eleições presidenciais em 2010, não apresenta IAPt positivo. A explicação pode ser o fato de a candidata Marina Silva não ser ideologicamente ligada ao PV, tendo sua origem política vinculada à CUT e ao PT e ter se utilizado da legenda apenas para ter espaço para candidatura à presidência. Nas eleições seguintes, inclusive, a candidata lançou-se na disputa pelo PSB. Tendência 2: Partidos satélites na arena eleitoral tendem a ser coadjuvantes na arena legislativa e a apresentar estruturas de liderança mais procedimentalistas Uma segunda tendência dos dados diz respeito à correlação entre papel secundário na disputa à presidência da República e papel secundário na arena legislativa, levando o partido a estruturar sua liderança com número reduzido de assessores, quando comparado proporcionalmente às demais lideranças e sem estruturas de produção mais técnica de informação. Iniciando-se pelo PMDB, a maior bancada da Câmara dos Deputados durante a realização da pesquisa, tem-se que na arena legislativa esse partido historicamente se posiciona como membro da coalizão governista (é assim desde o governo FHC, passando pelos dois governos Lula e os dois governos Dilma). Na arena eleitoral, o PMDB A relação entre as estratégias eleitorais e a organização das lideranças partidárias na Câmara dos Deputados 305 também apresenta histórico de ser partido coadjuvante na disputa pela presidência da República (1994 foi o último ano em que o partido lançou candidato ao cargo). Essa qualidade de coadjuvante nas duas arenas, segundo visão dos entrevistados, condiciona a forma de composição e de atuação da assessoria do PMDB na Câmara dos Deputados. Nessa liderança, segundo o Entrevistado 1, “Não há especialistas em temas de política pública. Todos os assessores são generalistas. O acompanhamento que esses servidores proporcionam é meramente regimental”. Infere-se na pesquisa que o grande interesse dos parlamentares dessa bancada em relação à estrutura da liderança é receber cargos. Isso fica bem ressaltado na fala do Entrevistado 1: A liderança do PMDB é moldada para fornecer esse assessoramento mínimo, de acompanhamento das proposições. Nós não temos quadros para estudos mais aprofundados, porque isso requer estudos e destacar uma pessoa para fazer esses estudos e produzir material. Como o nosso quadro de pessoal é pequeno relativamente ao tamanho da bancada, fica impossibilitado esse tipo de assessoria. Esse quadro é diminuto porque a prática do partido tem sido a de conceder aos parlamentares o direito de requisitar servidores para os seus gabinetes. Então, você dilui esses quadros no atendimento direto aos parlamentares. Então, a gente nem estimula a produção de material e informação porque não temos condições de atender a toda a bancada de quase setenta parlamentares e receamos o precedente de fazer para um e todos desejarem atendimento igualitário. Eventualmente poderíamos produzir para um, para o líder. Mas nem para ele há o costume dessa produção no PMDB. Esse posicionamento tem sido passado aos parlamentares, e eles compreendem a situação. Além da falta de pessoal, também o espaço físico do PMDB é precário. Não temos um ambiente apropriado para produção de estudos e informação. (Entrevista concedida aos autores em 1º/8/2016) Na visão dos entrevistados, o grande interesse dos parlamentares em relação à estrutura da liderança é receber cargos. Como compensação, os deputados compreendem que não terão da assessoria da liderança qualquer produto de cunho mais técnico, ou estudos aprofundados acerca de qualquer política em 306 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO discussão na Câmara dos Deputados. Essa é a percepção que igualmente sobressai das palavras do Entrevistado 13: Para mim é claro. O PMDB tomou a decisão política, isso há pelo menos vinte anos, (..) de dividir todos os CNEs [Cargo de Natureza Especial: cargos de livre nomeação e exoneração] entre os deputados. Isso inviabiliza a montagem de qualquer estrutura que funcione. Você tem até um número, pequeno, de CNEs que ficam no PMDB, mas isso é muito desequilibrado para o tamanho da bancada. A relação da quantidade de servidores efetivos para CNEs também é única no PMDB, além do fato de que os CNEs que ficam não passam por nenhum filtro prévio de competência. Tem CNEs que estão lá porque um prefeito pediu. O PMDB não privilegia o funcionamento da sua estrutura. Até o espaço físico. Metade do espaço físico é destinado ao partido, e isso leva também alguns servidores. Ora, o partido é uma organização privada que não deveria funcionar dentro do Congresso. Então, se o PMDB quisesse manter uma estrutura assemelhada [a de partidos com assessorias maiores], não teria espaço para alocar os assessores. O PMDB, como é muito grande, deveria ter no mínimo setenta assessores para atender a sua bancada. Agora, foi uma questão de política, ou de falta de política, de distribuir os CNEs entre os deputados e deputado não pode pedir nada lá. O acordo é mais ou menos este, o assessor tem a orientação expressa de informar que não pode fazer nada, não pode gerar uma informação, um produto legislativo. (Entrevista concedida aos autores em 7/7/2017) A razão para a cessão de tantos servidores, com prejuízo para o bom assessoramento, segundo três entrevistados, é propiciar uma bancada mais coesa e obediente ao líder, em espécie de quid pro quo. Quanto à questão das informações e auxílio necessários ao desempenho do mandato, infere-se que o PMDB se utiliza das informações carreadas ao processo decisório pela liderança do governo na Câmara (uma das principais fontes de auxílio dos assessores do PMDB na condução de suas estratégias regimentais, segundo afirma a maioria dos entrevistados). Se há a necessidade de produção de alguma proposição, ou de trabalho técnico mais elaborado, o assessor do PMDB encaminha o deputado de sua bancada à Consultoria. Já para construir a orientação que é dada ao deputado em plenário ou nas comissões, o assessor do PMDB observa a orientação dada pelo líder do governo à base e a repercute aos deputados da bancada. A relação entre as estratégias eleitorais e a organização das lideranças partidárias na Câmara dos Deputados 307 Dessa sorte, explica-se, a uma só vez, a razão de o PMDB não dispor de assessoria técnica (que decorre da escolha política de não a ter em sua estrutura) e de apresentar o menor IAP (fato que decorre da escolha de ceder espaço e recursos humanos ao partido e aos parlamentares em troca de disciplina partidária). Embora o baixo IAP seja uma característica mais marcante do PMDB, extraiu-se das entrevistas que PP, PR, PSC, PSB, PTB, PRB, SD, e PROS também seguem a sistemática de ceder boa parte de seus servidores com cargos em comissão para os gabinetes parlamentares. Assim, esses partidos, igualmente ao PMDB, apresentam IAPt nulo, revelando tendência à política de se abdicar da mantença de uma estrutura de liderança apta a prestar consultoria mais adequada ao auxílio na construção de políticas públicas. Nesse sentido, interessantes as revelações de dois entrevistados do PR: 1º Entrevistado: No PR só há assessoria regimental. A diferença é só quem são os assessores de plenário, quem são os de comissões. [...] As orientações para os deputados do PR vêm do próprio assessor. A gente segue sempre as orientações do governo e as outras que a gente colhe. Mas isso não é suficiente para um deputado decidir como votar. O deputado do PR precisa de fontes externas, não daria para decidir só com as informações da assessoria. O que eu percebo muito dos parlamentares do PR é que eles acompanham muito a liderança do governo, o quê que o governo quer. Acho que é difícil eles irem contra. (Entrevistado 6. Entrevista concedida aos autores em 6/2/2017). 2º Entrevistado: A Assessoria do PR não é dividida em mérito e regimental. Nas comissões, o quê que a gente faz? A gente faz mais assessoria regimental, mas a gente faz todo o estudo da pauta, então, querendo ou não, a gente se aprofunda um pouco, na parte temática, mas para uma explicação superficial para o deputado, não é uma coisa aprofundada. O deputado do PR não tem condições de decidir só com a informação produzida pela liderança, acho que a nossa informação não é mais para decisão, é mais para, como ele acompanha muita coisa, só para ele se situar qual que é o assunto que ele vai tratar aquele dia, mas não para embasar a decisão dele. O PR não indica para o deputado como ele deve votar, se sim ou se não, a não 308 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO ser quando seja um projeto mais polêmico, mas são questões mais em plenário, nas comissões dificilmente acontece isso. (Entrevistado 7. Entrevista concedida aos autores em 7/2/2017) No entanto, algumas diferenças foram notadas nas atribuições específicas de assessores do PHS, PSC e PTB (e que deve se repetir em alguma das outras lideranças não entrevistadas na segunda fase da pesquisa) em que, embora predomine a primazia para a atuação estratégico processual, algum produto técnico é realizado no âmbito da assessoria. Pela codificação e análise das entrevistas, contudo, percebeu-se que o conteúdo técnico produzido por essas lideranças pouco contribui para o acréscimo de informação ao Legislativo ou para a construção de políticas públicas. Elas servem, por exemplo, ao intento de garantir ao líder ou ao membro da bancada a apresentação de inúmeras proposições, às vezes, sem um liame ideológico entre elas, elevando as estatísticas de sua atuação parlamentar. Outras vezes, sinalizam às bases ou respondem a apelos midiáticos, em qualquer situação, contribuindo para o já inflacionado ambiente institucional.99 Nesse sentido, é o relato de um dos assessores do PSC, corroborado por assessor do PDT: Assessor do PSC: No PSC, a assessoria de comissões ou a de plenário não elaboram emendas, elas só acompanham a discussão das proposições. Quem faz as emendas é essa assessoria técnica. Já essa assessoria técnica não estuda as pautas, nem do plenário nem das comissões. Ela fica encarregada mesmo é de elaborar essas pequenas proposições e as emendas, caso as assessorias de comissões e do plenário solicitem. Essa assessoria também prepara complementação de voto e votos em separados. O objetivo era verificar matérias nos jornais, que eram polêmicas, que a população não estava se sentido agradada com aquilo, ou se sentindo lesada e, com isso, tanto o chefe de gabinete quanto o líder falavam “Viram o que saiu no jornal? Viram o que saiu no Fantástico? Tem essa situação na escola não sei das quantas, está acontecendo isso no Rio de Janeiro, está acontecendo isso não sei ‘aonde’. Vamos apresentar uma proposição!”. 99 Pesquisa no Sistema de Informação Legislativa da Câmara dos Deputados, na data de 20 de julho de 2017, apontou que havia em tramitação 23.173 proposições principais. A relação entre as estratégias eleitorais e a organização das lideranças partidárias na Câmara dos Deputados 309 Há um vínculo entre a mídia e o feitio de proposições, logo, essa assessoria técnica não foi criada para nutrir o PSC de informação relativa às proposições em pauta, seus efeitos e objetivos. É uma ferramenta para dar resposta à população... (Entrevistado 2. Entrevista concedida aos autores em 25/11/2016). Assessor do PDT: Na época, era assim: [...] a gente definiu, “olha, o PDT tem 5% dos membros, tem de apresentar 5% das emendas, 5% das emendas de deputados têm de ser do PDT”. A gente chegou a pressionar para ter isso. Eu sei que a gente perde em qualidade, mas para forçar uma produção, e na época eles seguiam isso: “olha, a qualidade é com vocês, vocês têm de cuidar disso, mas a quantidade, pelo menos 5% tem de ter”. (Entrevistado 15. Entrevista concedida aos autores em 4/7/2017) Noutras situações, a denominada produção técnica, assim considerada pelo entrevistado, nada mais é do que mero resumo da matéria em pauta: Os assessores técnicos do PHS fazem notas técnicas das matérias que estão em plenário, que são espécies de resumos da matéria da pauta. O chefe de gabinete gosta que se faça uma análise mais profunda, ele é muito exigente, que significa dizer o que o projeto de lei altera da lei em vigor. Analisando impactos. Mas a gente não analisa impactos econômicos, ou ambientais, algo assim específico, que só dá para fazer quando há dados dos ministérios, dos órgãos do governo, quando eles enviam. Para as matérias em geral a gente utiliza a internet como fonte de informação. A gente não coloca orientação nos resumos. (Entrevistado 8. Entrevista concedida aos autores em 8/2/2017). Portanto, a eventual existência e produção de análise mais técnica nos partidos que compõem a base do Executivo no Congresso não desdizem a tendência de estratégias de cunho procedimentalista. Considerados todos esses parâmetros, são pontos fora da curva a liderança do PSD (que, apesar de ser partido governista do tipo satélite, apresenta alto IAP e presença de assessoria técnica), e a liderança do PPS (que apesar de contar com poucos parlamentares, dispõe de assessoria volumosa). Na pesquisa, não foi possível encontrar explicação para o número comparativamente elevado de assessores no PPS. Supõe-se que naquela bancada haja menor cessão de servidores para os gabinetes parlamentares, o que, como dito, carece de outras incursões para a sua comprovação. No que diz respeito ao PSD, um dos entrevistados 310 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO na segunda rodada da pesquisa informou que essa liderança, estruturada em 2013-2104, foi imaginada à semelhança da liderança do PDT, adotando, desta, a sistemática de se ter uma assessoria bem estruturada, técnica e regimentalmente. Há indícios, contudo, de que a sequência de legislaturas trará a estrutura dessa liderança para os moldes adotados pelas demais, com adoção da prática de empréstimo de servidores aos gabinetes parlamentares, sendo essa a percepção de três dos entrevistados. Também, para esse caso, se fazem necessárias novas incursões, em momento posterior. Considerações finais O presente capítulo, por meio de entrevistas e observação participante, buscou enxergar e compreender a organização das lideranças partidárias na Câmara dos Deputados a partir de classificação dos partidos que considera as arenas eleitoral e legislativa. A análise dos dados sugere que há correlação entre o papel desempenhado pelo partido na arena eleitoral e na arena legislativa e a forma de prover a organização da burocracia da respectiva liderança na Câmara dos Deputados. Partidos principais e oposicionistas digladiam-se pelo poder e buscam produzir informações. Por sua vez, há indícios de que partidos que historicamente não disputam as eleições para presidente da República desempenham papel de coadjuvantes na arena legislativa (partidos da base) e apresentam estrutura burocrática de liderança menos especializada. O fato de as estruturas de apoio desses partidos dedicarem pouco esforço à produção de informação pode significar espécie de delegação à liderança do governo na Câmara dos Deputados ou ao Executivo da função de formatar políticas públicas. Porém, essa foi hipótese não perseguida neste capítulo e que fica como proposta para outras pesquisas. Fica ressaltado, principalmente pela análise dos dados para partidos da base governista, o pragmatismo político vigente no modelo de presidencialismo de coalizão brasileiro. Deputados, além da procura pelas prebendas comumente apontadas pela literatura, como cargos no Executivo e liberação de emendas, também se beneficiam de cargos na estrutura do Legislativo. Esses cargos são mais fortemente usados como moeda de troca por partidos do tipo office seeking. A relação entre as estratégias eleitorais e a organização das lideranças partidárias na Câmara dos Deputados 311 Assim, o presente capítulo reforça os estudos que apontam quais são as ferramentas que possibilitam o centralismo decisório no Congresso Nacional e a governabilidade média que se tem experimentado no período pós 1988. Contribui, ainda, para a compreensão do presidencialismo de coalizão. Referências ABREU JR, Diogo (2009). As lideranças partidárias na Câmara dos Deputados. Monografia (Especialização em Processo Legislativo) – Cefor, Câmara dos Deputados, Brasília. ALMEIDA, Acir (2014). Informação, delegação e processo legislativo: a política das medidas provisórias. Brasília; Rio de Janeiro: Ipea. (Texto para discussão; n. 1933). AMORIM NETO, Octavio (2000). Gabinetes presidenciais, ciclos eleitorais e disciplina legislativa no Brasil. Dados: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 43, n. 3, p. 479-519. ______ (2006). Presidencialismo e governabilidade nas Américas. Rio de Janeiro: FGV Ed. BRASIL (1989). Congresso. Câmara dos Deputados. Resolução nº 17 de 1989: Regimento Interno da Câmara dos Deputados, atualizado até a Resolução nº 20, de 2016. ______ (2007). Resolução nº 1 de 2007, alterada pela Resolução nº 61, de 2014. ______ (2015). Resolução nº 9 de 2015. COX, Gary; MCCUBBINS, Mathew (1993). Legislative leviathan: party government in the House. Berkeley, CA: Univ. California Press. 312 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO DEDOOSE (2017). Version 7.6.6, web application for managing, analyzing, and presenting qualitative and mixed method research data. Los Angeles, CA: SocioCultural Research Consultants, LLC. Disponível em: <www.dedoose. com>. Acesso em: 28 ago. 2019. FERREIRA JR., Nivaldo A (2016). Processo legislativo e lobby: estudo da percepção institucional dos agentes de lobby pela Câmara dos Deputados e graus de colaboratividade. In: ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE CIÊNCIA POLÍTICA, 10., 2016, Belo Horizonte. [Anais...]. Belo Horizonte: ABCP. FERRARI, Diogo (2011). O Congresso Nacional e apreciação de tratados internacionais entre 1999 e 2006. In: FISCHER-BOLLIN, Peter (Ed.). O Congresso e o presidencialismo de coalizão. Rio de Janeiro: Fund. Konrad Adenauer. (Série Cadernos Adenauer XII; n. 2). FIGUEIREDO, Argelina; LIMONGI, Fernando (1999). Executivo e Legislativo na nova ordem constitucional. Rio de Janeiro: FGV Ed. ______; ______ (2002). Incentivos eleitorais, partidos e política orçamentária. Dados: Revista de Ciências Sociais, v. 45, p. 303-344. ______; ______ (2006). Poder de agenda na democracia brasileira: desempenho do governo no presidencialismo pluripartidário. In: SOARES, G.; RENNÓ, L. (Org.). Reforma política: lições da história recente. Rio de Janeiro: FGV Ed. ______; ______ (2007). Instituições políticas e governabilidade: desempenho do governo e apoio legislativo na democracia brasileira. In: MELO, C.; ALCÂNTARA, M. (Org.). A democracia brasileira: balanços e perspectivas para o século 21. Belo Horizonte: UFMG. LIMONGI, Fernando (2006). A democracia no Brasil: presidencialismo, coalizão partidária e processo decisório. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n. 76, p. 17-41, nov. ______; GUARNIERI, F. (2014). A base e os partidos: as eleições presidenciais no Brasil pós-redemocratização. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n. 99, p. 5-24, jul. A relação entre as estratégias eleitorais e a organização das lideranças partidárias na Câmara dos Deputados 313 ______; ______ (2015). Competição partidária e voto nas eleições presidenciais no Brasil. Opinião Pública, Campinas, v. 21, p. 60-86. LINDBLOM, Charles E. (1981). O processo de decisão política. Brasília: EdUnB. MENEGUELLO, Rachel. Partidos e governos no Brasil contemporâneo: 1985-1997. São Paulo: Paz e Terra, 1998. MIRANDA, Geralda Luiza de (2010). A delegação aos líderes partidários na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. Revista de Sociologia Política, Curitiba, v. 18, n. 37, p. 201-225, out. MOISÉS, J. A. (2011). Desempenho do Congresso Nacional no presidencialismo de coalizão: 1995-2006. In: FISCHER-BOLLIN, Peter (Ed.). O Congresso e o presidencialismo de coalizão. Rio de Janeiro: Fund. Konrad Adenauer. (Série Cadernos Adenauer XII; n. 2). MULLER, Woflgang C.; STROM, Kaare (1999). Political parties and hard choices. In: ______; ______ (Ed.). Policy, office, or votes: how political parties in Western Europe make hard decisions. Cambridge: Cambridge Univ. Press. PEREIRA, C.; MULLER, B. (2003). Partidos fracos na arena eleitoral e partidos fortes na arena legislativa: a conexão eleitoral no Brasil. Dados: Revista Brasileira de Ciências Socias, Rio de Janeiro, v. 46, n. 4, . ______; POWER, T. J.; RENNÓ, L. (2005). Under what conditions do presidents resort to decree power? theory and evidence from the Brazilian case. The Journal of Politics, v. 67, n. 1, p. 178-200 RENNÓ, Lucio (2006). Críticas ao presidencialismo de coalizão no Brasil: processos institucionalmente constritos ou individualmente dirigidos? In: AVRITZER, L.; ANASTASIA, F. (Org.). Reforma política no Brasil. Belo Horizonte: Ed. UFMG. SANTOS, Fabiano (2003). O poder legislativo no presidencialismo de coalizão. Belo Horizonte: Ed. UFMG. 315 Faces partidárias na esfera virtual: a atuação política das lideranças da Câmara dos Deputados no Facebook Malena Rehbein Rodrigues Sathler Antônio Barros Cristiane Brum Bernardes Introdução Com o avanço das tecnologias digitais, a política passou a ser um fenômeno de penetração difusa nas diversas esferas da sociedade, ou seja, consegue atingir o cidadão mesmo fora do âmbito político no sentido estrito, pois as mídias digitais contribuem para a inserção ampliada dos temas políticos nas relações sociais. O elevado potencial de sedução dessas mídias, calcado na lógica do poder simbólico (Bourdieu, 1989) e do poder de agência dos usuários (RIBEIRO, 2000), em muito contribui para a reconfiguração dos fluxos e dos circuitos de informação nas sociedades metropolitanas, o que inclui o campo político, as formas partidárias e as suas lideranças. As redes sociais digitais são vistas como mecanismos importantes na democracia digital, pois pressupõem o uso de tecnologias para suplementar, reforçar ou corrigir aspectos das práticas políticas numa comunidade democrática (GOMES, 2011). Para entender como essa prática ocorre em uma das redes mais usadas – o Facebook – o trabalho apresenta dois focos de análise: de conteúdo (tema, objetivo, comentários do post, etc.) e potencial interativo dialógico (número de compartilhamentos, curtidas, seguidores, respostas, etc.). São analisados todos os posts das doze100 lideranças de partidos na Câmara com página no Facebook, no período de 1º a 31 de outubro de 2015. Adicionalmente, realizamos regressões 100 No item referente à Metodologia esclarecemos os critérios para escolha das doze lideranças partidárias analisadas neste estudo. 316 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO multivariadas com as seguintes variáveis independentes: assunto, linguagem, conteúdo, e presença ou ausência de recursos de multimídia no conteúdo. As variáveis dependentes, por sua vez, são: compartilhamento, curtida e comentários. O propósito é avaliar as táticas discursivas dos principais partidos que dominam a cena das disputas políticas no contexto nacional atualmente. Estudos recentes mostram que as mídias sociais passaram a configurar um espaço relevante de atuação dos partidos políticos e de suas lideranças, especialmente o Facebook, que “vem se configurando como uma das ferramentas comunicativas mais intensamente utilizadas pelos partidos políticos brasileiros” (ROCHA; BRAGA, 2013, p. 217). Com 1,59 bilhão de usuários no mundo todo, o Facebook mantém a liderança das redes sociais, de acordo com o sexto mapa elaborado pela organização do Congresso Ibero-americano sobre Redes Sociais (iRedes), apresentado em fevereiro de 2016, com base em dados de crescimento das redes durante o ano de 2015 (FACEBOOK, 2016). O mapa reúne todas as redes sociais do mundo com mais de 10 mil usuários organizadas por temas. Em segundo, terceiro, quarto e quinto lugares estão respectivamente: Qzone, uma rede social chinesa (1 bilhão de usuários); Youtube (1 bilhão de usuários); Instagram (400 milhões de usuários); e Twitter (320 milhões de usuários). Segundo a Pesquisa Brasileira de Mídia 2015, feita pela Secretaria de comunicação da Presidência da República (2015), entre os internautas brasileiros, 83% estão conectados por meio do Facebook. Essa rede social conta com 90 milhões de usuários no Brasil, dos quais 59 milhões acessam a página diariamente (PIVA, 2014). Com base nesse pressuposto mais amplo, o artigo aqui apresentado analisa como as lideranças partidárias101 da Câmara dos Deputados usam seus perfis no Facebook. Por que estudar as lideranças partidárias? Parte-se do pressuposto de que as lideranças partidárias são consideradas bunkers estratégicos dos partidos nas casas legislativas. Nelas são construídos os posicionamentos das agremiações nas questões legislativas e mesmo de projetos de políticas do Poder Executivo no Congresso. É no âmbito das lideranças que são decididos 101 Os partidos políticos com mais de cinco deputados federais têm direito a um espaço próprio e a um grupo de servidores destinados ao assessoramento técnico do líder e da bancada partidária. Geralmente, as lideranças são compostas por três núcleos: 1) parlamentar (o líder e os demais deputados); 2) administrativo (servidores que executam as tarefas de Chefia de Gabinete, Secretaria Administrativa, Assessoria de Imprensa e Assessoria de Informática); e 3) técnico (assessorias de orçamento, de plenário, de comissões e assessoria técnica) (ABREU JR., 2009). Faces partidárias na esfera virtual: a atuação política das lideranças da Câmara dos Deputados no Facebook 317 e/ou discutidos os principais projetos e as principais relatorias assumidas pelo partido. Sendo a Câmara uma das casas legislativas mais importantes no quesito representação da sociedade civil, como se dá a interface do partido na casa representativa com a sociedade que representa? Que imagem a liderança constrói pela rede social Facebook? Que estratégias e assuntos divide com a sociedade? Há diálogo entre elas? Há participação cidadã e feedback partidário? Em suma, como se mapeia essa relação de rede social entre liderança partidária e cidadã? Mais do que avaliar ou criticar o retrato desta atuação, este estudo tem caráter exploratório, com o propósito de avaliar e entender como esse espaço está sendo utilizado. Conforme explica Abreu Jr. (2009), o setor encarregado da comunicação das lideranças torna-se cada vez mais importante, especialmente por conta da “necessidade de divulgação das realizações das bancadas de deputados federais para que os cidadãos brasileiros possam acompanhar o desempenho dos seus representantes e também contribuir com o trabalho parlamentar, fazendo críticas ou sugestões” (ABREU JR., 2009, p. 47). Obviamente, os interesses eleitorais na visibilidade do trabalho parlamentar são lembrados pelo autor, que destaca ainda a ênfase dada no trabalho de comunicação às novas ferramentas tecnológicas à disposição dos políticos. Antes do advento da internet no Brasil, a área de comunicação das lideranças resumia-se ao assessor de imprensa. Hoje a comunicação torna-se cada vez mais importante, devido ao surgimento e ao número crescente de usuários de serviços provenientes da internet, como os sites, blogs e as comunidades virtuais (YouTube, Orkut, Twitter, Facebook etc.). As lideranças partidárias aos poucos vão-se adaptando a esses novos serviços (ABREU JR., 2009, p. 47). A partir da pesquisa realizada sobre essas estruturas partidárias, Abreu Jr. afirma que a utilização da internet tem sido crescente, com a criação de sites e blogs, além do uso cada vez mais comum de plataformas de mídias sociais como YouTube, Twitter e Facebook, entre outras (ABREU JR., 2009, p. 48). Além da Assessoria de Imprensa, a Assessoria de Informática, estrutura presente em todas as quinze lideranças estudadas por ele em 2009, também desenvolve tarefas conectadas ao uso das tecnologias digitais de informação e de comunicação. Optou-se por uma análise fora do período eleitoral, com base no diagnóstico de Rocha e Braga (2015) de que há uma concentração de estudos em períodos eleitorais. Vários autores destacam a relevância de pesquisas que cobrem os 318 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO períodos não eleitorais (ROCHA; BRAGA, 2015; SANTANA, 2012; SILVA, 2012). Afinal, a política vai além das épocas de campanha ou o tempo da política, reconhecido como o período eleitoral (GOLDMAN; PALMEIRA, 1996; BARREIRA; BARREIRA, 2012). Para Rocha e Braga (2015, p. 213) a relevância de análises que cobrem períodos não eleitorais se justifica pela necessidade de se compreender como os partidos e suas lideranças fomentam a prática democrática para além dos períodos eleitorais, “que são mais extensos e permanentes do que os momentos episódicos de campanhas”. Além disso, os autores acrescentam mais dois motivos que justificam as pesquisas fora das épocas de campanhas: [...] o primeiro é porque a comunicação partidária, inclusive, na internet, ocorre de forma diferente em períodos eleitorais e não eleitorais, pela necessidade que os partidos possuem em intensificar e qualificar sua comunicação nos períodos em que diretamente dependem da simpatia do eleitorado. Segundo, pela importância de entender como os partidos fomentam a prática democrática, a participação nas esferas de poder, não apenas na época de pleitos eletivos (ROCHA; BRAGA, 2015, p. 213). Do ponto de vista teórico, o artigo usa como suporte elementos da sociologia dos partidos políticos e os estudos sobre a relação entre internet e política na atualidade. Cabe salientar, no entanto, que não se pretende apresentar uma ampla revisão de literatura sobre esses temas. Devido à amplitude da bibliografia, optou-se por um enquadramento mais aplicado às questões aqui analisadas, com enfoque mais voltado para as abordagens sociológicas que relacionam as formas simbólicas e sua utilização pelos partidos políticos, no contexto de redefinição das formas de mediação dessas instituições com os variados segmentos eleitorais. Formas tecnológicas e reconfigurações partidárias A sociologia dos partidos políticos tem atribuído pouca relevância ao estudo empírico da atuação partidária virtual. Esse diagnóstico estimulou a análise de como os partidos políticos brasileiros (aqui representados pelas lideranças) marcam presença nesse universo de ação política à distância, por meio da copresença proporcionada pelas interações e mediações digitais. Para tanto, recorremos ao conceito de formas tecnológicas de Scott Lasch, entendidas como Faces partidárias na esfera virtual: a atuação política das lideranças da Câmara dos Deputados no Facebook 319 mediadoras típicas da ação social nas sociedades interconectadas (LASCH, 2005; ANDRADE, 1996). Também recorremos às contribuições de Anthony Giddens no que se refere às configurações sociotécnicas das sociedades destradicionalizadas, nas quais as formas tecnológicas atuam como reformadoras da vida cotidiana e potencializadoras de escolhas ativas em contextos em que a individualização é crescente (GIDDENS, 1994). As formas tecnológicas ampliam o espaço de ação política, com um novo tipo de copresença on-line, além de múltiplas possibilidades de interação, permitidas pela ação à distância, ancoradas na lógica dos sistemas peritos. As formas tecnológicas podem ser entendidas no atual contexto como resultado do desenvolvimento de ações e práticas recursivas, ou seja, que resultam da cognoscitividade dos atores e de sua capacidade de reflexividade. Esse processo resulta em aprendizados práticos continuados, sob a dinâmica da plasticidade dos atores e da ação social, como defende Giddens (1994). Os partidos representam a pluralidade ideológica da sociedade, pois oferecem, no âmbito do sistema de representação democrático-liberal, as possibilidades de adesão política (PEIRANO, 2011). As diferentes agremiações correspondem às distintas visões e divisões do mercado político. Embora haja redefinições frequentes, frutos das dinâmicas políticas, as legendas ainda conservam algumas características, objetivos e funções que lhes são peculiares na esfera de pertinência da mediação política. Como destaca Rodrigues: Conjugando os dados sobre a volatilidade eleitoral com os de outras pesquisas – influência das organizações partidárias locais nos resultados eleitorais, trocas de legenda, tipos de coligações, disciplina das bancadas nas votações na CD, perfis ideológicos no Congresso e nas assembleias legislativas, etc. – parece ser mais correto trabalhar com a hipótese de que o sistema partidário brasileiro está em processo de estruturação e não com a de que se trata de um sistema em desestruturação ou intrinsecamente incapaz de organização. (RODRIGUES, 2002, p. 48) Para alcançar seus objetivos – com destaque para a busca contínua de confiança dos eleitores e, consequentemente, de legitimidade na disputa política, uma das estratégias desenvolvidas contemporaneamente pelas siglas é a comunicação digital com seus públicos, a fim de reforçar sua atuação no plano institucional, na arena eleitoral e na esfera legislativa, já que a identificação partidária e a 320 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO estabilidade nas preferências partidárias não são fortes no Brasil (PEREIRA, 2014; VEIGA, 2007). Peter Mair (2003) sustenta a tese de que os partidos não estão em decadência, mas sim em transformação e adaptação aos novos contextos, o que se aplica ao ambiente virtual. O autor sugere que os partidos não são mais intermediários entre a sociedade e o Estado, mas o Estado é que passou a exercer a função de mediador entre a sociedade e os partidos. Essa ideia é compartilhada por Manin (2013), Mendonça (2008) e Urbinati (2013). Para esses autores, em linhas gerais, apesar das crises e metamorfoses da democracia e dos partidos, tais instituições permanecem relevantes e passam por processos de adaptação e reconfiguração atualmente, mas não de decadência ou declínio. Nesses processos de reconfiguração as tecnologias podem ser aliadas dos partidos, devido à sua elevada penetração na sociedade, além de permitirem a comunicação instantânea e direta com os públicos eleitorais ou com os interlocutores políticos preferenciais das lideranças. Apesar das redefinições frequentes, os partidos políticos ainda conservam algumas características e funções que lhes são peculiares na esfera de pertinência da mediação política e das configurações associativas (WEBER, 1999). Segundo Manin, apesar de perderem força em várias áreas, os partidos continuam dominando a política parlamentar (o que se aplica diretamente às lideranças) e as campanhas eleitorais em todos os países (MANIN, 2013). Mesmo com a pluralidade de funções, interesses e desenhos institucionais, há um elemento que define por essência um partido político, ou seja, seu caráter de associação (WEBER, 1999; OPPO, 2000), uma das causas de afirmação de seu poder. É por essa razão que, nos termos weberianos, o partido é antes de tudo uma associação no seio da comunidade política, independentemente de seus fins ou objetivos, dotada, por isso, de potencial de criação de capital social e político. Nesse ponto, é preciso, como afirma Reis, ter em mente a complexa articulação entre identidade e instrumentalidade exercida pelos partidos e suas lideranças, isto é, a relação paradoxal que eles executam ao combinarem valores e interesses no processo político e nas negociações internas no âmbito dos parlamentos (REIS, 1988, p. 304). A natureza da associação realizada pelos partidos está intrinsecamente relacionada a uma formação que luta pela dominação, ou seja, o objetivo é assegurar um campo de exercício de influência e poder, seja pelos recursos econômicos obtidos, pela influência social ou pelo poder de palavra. Nesse último quesito Faces partidárias na esfera virtual: a atuação política das lideranças da Câmara dos Deputados no Facebook 321 situam-se as estratégias de publicidade política, entendidas como uma forma de propaganda das legendas a fim de consolidar seu poder discursivo e simbólico, nos termos de Bourdieu (1989). Em suma, as formas tecnológicas funcionam como revitalizadores da mediação entre os cidadãos e as instituições partidárias ou entre as próprias lideranças entre si. Apesar de serem fruto da globalização e da tecnicalização, como decorrência do processo civilizatório (ELIAS, 1990), as novas mídias são utilizadas de acordo com as lógicas culturais específicas ou as lógicas políticas definidas pelos atores. Em outras palavras, as complexidades da dinâmica das trocas comunicativas são ancoradas nos substratos da formação cultural e da ambiência política, que compreende os valores e as maneiras como a sociedade se relaciona com suas instituições e autoridades. As redes sociais digitais exercem cada vez mais repercussão na esfera pública, mas tal repercussão também depende de fatores culturais e das práticas sociais típicas de cada sociedade (TAVARES, 2014). Do ponto de vista político, tais ferramentas são vistas sob a ótica de mídias táticas, ou seja, meios alternativos aos veículos convencionais, capazes de produzir agendamentos e enquadramentos diferenciados que contemplem os interesses e valores dos emissores ou enunciadores, como no caso dos partidos políticos e das instituições governamentais (JURIS, 2005). Uma característica das mídias táticas é a divulgação seletiva de informações e de opiniões favoráveis aos atores políticos que as divulgam. Mesmo no caso de informações aparentemente objetivas, elas carregam enquadramentos interpretativos e opinativos. Afinal, como argumenta Bourdieu (2011, p.119), “como a força está sempre do lado dos governados, os governantes não têm nada que os sustente a não ser a opinião”. Ao adotarem essa tática, tais atores pretendem fortalecer um determinado tipo de doxa política, entendida como “um ponto de vista particular, o ponto de vista dos dominantes, que se apresenta e se impõe como o ponto de vista universal” (BOURDIEU, 2011, p.120). Os estudos realizados até o momento sobre o uso de tecnologias digitais por instituições políticas destacam duas características: a primazia das funções das novas mídias como veículos de divulgação de informações políticas de interesse dos emissores dessas mídias e o uso padronizado dessas ferramentas. O uso das mídias em rede se dá segundo a lógica de mídias táticas. Nielsen e Vaccari (2014) preferem a nomenclatura de pull medias, entendidas em oposição a push medias. Para esses autores, as mídias sociais atuam prioritariamente como pull 322 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO medias, ou seja, funcionam segundo a lógica da demanda. Isso significa que o receptor exerce um papel ativo na escolha de acessar tais informações, em vez de serem expostos a elas de forma involuntária, como ocorre no caso das mídias anteriores à internet (TV e Rádio – denominadas de push medias), que são regidas pela lógica da oferta de conteúdos (WOLTON, 1994). Nas novas mídias o receptor é empoderado, com maior poder de agência (TORRES, 2011; RIBEIRO, 2000). De forma ativa e autônoma o usuário de internet pode escolher de forma seletiva os canais e os conteúdos informativos, pois as pull medias são mais interativas, descentralizadas e individualizadas: Como um ambiente principalmente pull, a internet dá aos usuários mais poder de controlar os conteúdos que são trocados no processo de comunicação do que ocorre nos mass media. Como resultado, para que a comunicação direta entre políticos e cidadãos ocorra, via sites de mídias sociais, os usuários devem optar por se envolver em tal interação. Os meios digitais permitem aos eleitores interessados se conectarem diretamente com as elites, mas também proporcionam uma miríade de oportunidades para que aqueles que não estão interessados evitem a política completamente. (NIELSEN; VACCARI, 2014, p. 234) Na perspectiva oposta, push medias referem-se a estratégias direcionadas às pessoas, independentemente do fato de elas desejarem ou não a informação (por meio de publicidade na televisão, mala direta, telemarketing, e várias formas de publicidade on-line) e são contrastadas com estratégias pull, cujo objetivo é fazer com que o público-alvo opte ativamente por isso e se engaje de maneira mais efetiva com a mensagem” (NIELSEN; VACCARI, 2014, p. 231). Em suma, as formas tecnológicas funcionam como amplos painéis para se visualizar e compreender as funções que os partidos e suas lideranças exercem na Web, além de oferecer pistas relevantes para a análise de seu lugar de fala, dos públicos preferenciais e do seu habitus partidário. Nesse sentido, ferramentas digitais de comunicação têm sido apontadas como potenciais auxiliares na chamada democracia digital: “Qualquer forma de emprego de dispositivos (computadores, celulares, smartphones, palmtops, ipads...), aplicativos (programas) e ferramentas (fóruns, sites, redes sociais, mídias sociais...) de tecnologias digitais de comunicação para suplementar, reforçar ou corrigir aspectos das práticas políticas e sociais do Estado e dos cidadãos, em benefício do teor democrático da comunidade política” (GOMES, 2011). Faces partidárias na esfera virtual: a atuação política das lideranças da Câmara dos Deputados no Facebook 323 É nesse contexto que podemos situar a chamada democracia digital. No ambiente das TICs (tecnologias de informação e comunicação), a democracia digital vem dar forma à discussão sobre a ampliação e aperfeiçoamento das práticas democráticas e viabilizar mecanismos de participação e deliberação públicas (COLEMAN; BLUMER, 2009; SAMPAIO, 2010; MARQUES, 2008). Isso porque a democracia digital é apontada como potencial instrumento para (GOMES, 2011, p. 28-30): 1) fortalecer a capacidade concorrencial de cidadania (aumentar quotas do poder cidadão, pois as lutas concorrenciais são permanentes na política); 2) consolidar e reforçar uma sociedade de direitos, isto é, uma comunidade política organizada como Estado de Direito (minorias); 3) promover o aumento da diversidade de agentes, de agências e de agendas na esfera pública. Ou seja, dando possibilidades mais amplas para viabilizar o processo participativo, aqui visto como um potencial complemento ou aprimoramento do sistema representativo. Pesquisadores de vários países percebem o incremento nas estratégias de comunicação e interação com a sociedade por parte de órgãos governamentais e, especificamente, legislativos nos últimos anos. Para autores como Leston-Bandeira (2012) e Ward e Lusoli (2005), o desenvolvimento dessa relação por meio das mídias digitais é uma tentativa de reação ao descrédito e à apatia política das atuais sociedades, preocupantes não só pela sua importância para as eleições, do ponto de vista parlamentar, mas ainda mais para a democracia. As mudanças trazidas pela internet afetam principalmente o relacionamento das instituições políticas com a sociedade. A tendência é que os parlamentos utilizem a internet como forma de suprir lacunas de transparência e accountability e de, com isso, buscar legitimidade perante a opinião pública. Considerando os requisitos listados acima, no que se refere a aspectos fora da estrutura institucional interna da política, a internet se constitui em arena de potencial democrático ao propiciar não só a veiculação de grande volume de informações, com interpretações e participações dos mais variados grupos, tanto em período eleitoral como no acompanhamento da cena política, mas também em um locus de concentração das mais diversas fontes alternativas de informação. Também favorece a associação coletiva, ampliando as chances de fortalecimento de capital social,102 tarefa que, segundo Baquero e González (2010), não é nada 102 Entendemos capital social como a realização de atividades deliberativas e de colaboração coletiva de forma horizontal, como associações e cooperativas, que geram confiança interpessoal. 324 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO simples na América Latina: “[...] não se compreende como países com tantas possibilidades tenham, simultaneamente, tanta pobreza e estejam polarizados, minando as possibilidades de aproveitar o potencial de capital social” (p. 281). Obviamente que aqui não se desconsideram os problemas já apontados na chamada democracia digital ou simplesmente no uso da internet para formação e informação política, como informação política pouco qualificada, desigualdade de acesso, cultura política, predomínio de atuação dos meios de comunicação de massa como autoridades no ambiente virtual, excesso de controle e ciberameaça, entre outros (GOMES, 2008, p. 315-323). Estudos empíricos já realizados mostram um descompasso entre as possibilidades e o uso efetivo da internet pelas instituições parlamentares. Stanley e Weare (2004), por exemplo, citam vários estudos que mostram que o uso predominante das TICs na primeira década do século XXI foi feito por indivíduos e organizações que já participavam do processo político antes da internet. Isto é, a tão propalada diversidade de vozes não se confirmou nos veículos digitais, assim como é uma realidade ainda distante da mídia convencional, pelo menos na América Latina. Entretanto, como afiança a própria pesquisa de Stanley e Weare, a internet pode, em certos contextos, expandir o alcance de vozes no processo e mobilizar alguns indivíduos inativos politicamente a participarem (2004, p. 505). Hindman (2009) também aponta limites claros do que considera política on-line: os níveis baixos de tráfico relevante de material político pela net; baixa estrutura de visibilidade (facilidade de visibilidade de informação) nos sites políticos; estratégias limitadas de busca de conteúdo pelo próprio cidadão, que busca mais o que lhe é familiar; alto custo de profissionalização de investimento em mídias virtuais, que seriam essenciais para facilitar o acesso e o entendimento do material (p. 133). É preciso lembrar, ainda, que o debate sobre democracia digital, transparência política dos parlamentos, accountability e temas afins está diretamente relacionado à questão da confiança do cidadão nas instituições. A discussão está conectada à ideia de que a confiança103 da população nas instituições de seus 103 Neste texto não fazemos a diferença entre trust e confidence, como Norris (2011, p. 19). Segundo a autora, trust seria uma crença afetiva ou racional na motivação benevolente e capacidade de performance de outra parte. Confidence seria acreditar na capacidade de performance efetiva de um agente. Em português, ambas as palavras são traduzidas como confiança. Dessa forma, entendemos confiança como um conceito que engloba os dois significados que recebem em inglês. Faces partidárias na esfera virtual: a atuação política das lideranças da Câmara dos Deputados no Facebook 325 países ou comunidades é um aspecto essencial para a legitimidade do regime político e, portanto, para a estabilidade do sistema social. De maneira geral, podemos dizer que quanto mais confiança nas instituições, maiores as chances de desenvolvimento de um regime democrático satisfatório para a população (DAHL, 1989; NORRIS, 1999; LIJPHART, 2001; TILLY, 2008). No sistema representativo, com parlamentos, isso adquire ainda mais importância. A intenção, neste artigo, é ver como essa relação se dá na realidade cotidiana das práticas de rede social digital, e que potenciais podem e são explorados. Estudos recentes, como os de Nogueira e Castro (2014) e Farranha (2015), corroboram o que se tem encontrado sobre o uso de redes sociais em geral e não só no Brasil (LESTON-BANDEIRA; BENDER, 2013; BARROS et al.; BRAGA, 2014), ao verificar que o governo ainda não busca participar ativamente de um diálogo nas redes sociais, assim como ocorre no âmbito do Legislativo (em relação aos parlamentares), na generalidade. O espaço é usado mais para divulgar ações, como uma assessoria de imprensa, o que não deixa de ser uma forma de accountability. Bitencourt da Silva (2014) analisa os posts partidários no Facebook, mas, especificamente sobre os protestos de 2013. Percebe, entretanto, a relação verticalizada entre partidos e sociedade. Além de verificar se o mesmo processo identificado pelos autores aqui citados ocorre nas instituições que podem ser consideradas as lideranças parlamentares, este estudo busca observar ainda que outro tipo de uso também ocorre e, mais do que isso, as diferentes estratégias partidárias. Metodologia Como já colocado na introdução, o trabalho tem dois focos de análise: de conteúdo (tema, objetivo e comentários do post) e potencial interativo dialógico (número de compartilhamentos, curtidas, seguidores e respostas). São analisados todos os posts de doze lideranças de partidos na Câmara com página no Facebook, no período de 1 a 31 de outubro de 2015: PT, PSDB, PSB, PSD, PRB, MINORIA, PSOL, PCdoB, PROS, DEM, PPS e SOLIDARIEDADE. 326 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Foram escolhidos os partidos com mais de cinco deputados na bancada, com exceção para o PSOL, que tem só cinco também,104 mas tem uma atividade muito diferenciada na web e foi incluído pelo grande uso de tecnologias e pela mobilização na arena digital. Entre os partidos que têm mais de cinco, ficaram de fora ainda PMDB, PP, PR e PV por não possuírem páginas na rede estudada. As páginas das lideranças do PDT e do PSC tiveram os dados coletados, porém não foram incluídas por terem publicado menos de cinco posts (ambas só tiveram um post no período). Na parte de conteúdo, seguimos parte dos critérios de Nogueira e Castro (2014), como tipo de conteúdo, assunto e linguagem, mas ampliamos o escopo das categorias para poder observar mais aspectos, conforme consta no quadro 1: Quadro 1 Critérios observados em relação ao conteúdo dos posts Formal Tipo de linguagem Informal Divulgação de eventos Notícias próprias Notícias de imprensa geral Campanhas Sondagem de opinião Objetivo do conteúdo Divulgação de opinião Respostas ao cidadão Mensagem de otimismo Reforço da imagem Humor 104 Na época da análise, o PSOL tinha apenas cinco parlamentares, atualmente conta com seis deputados federais. Faces partidárias na esfera virtual: a atuação política das lideranças da Câmara dos Deputados no Facebook Educação Bastidores Política interna do partido Conflito entre partidos Recrutamento eleitoral Internacional Social (trabalho, previdência...) Infraestrutura Cultura Assuntos do post Tecnologia Política geral Corrupção Soft Meio ambiente Agricultura Direito do consumidor Segurança Misto Nacional Foco geográfico do post Regional Internacional Posição política do post em relação ao governo petista de Dilma Rousseff Favor Contra Não se aplica Executivo Legislativo Partido ou Liderança Atores envolvidos no post Parlamentares individuais Sociedade civil/ cidadão Mídia Lideranças internacionais 327 328 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Apenas texto Texto e foto Texto e vídeo Recursos de multimídia Texto e áudio Apenas foto Apenas vídeo Apenas áudio Em relação às categorias, é importante ressaltar que o conteúdo das postagens poderia englobar mais de um ator político envolvido ou mesmo assunto. Para solucionar essa ambiguidade, optou-se pela construção da categoria “misto” em relação aos temas. Nos demais aspectos, a análise considerou aquilo que era preponderante em cada postagem, ainda que houvesse uma citação secundária a outros elementos. Dessa forma, espera-se observar os principais aspectos de conteúdo do material veiculado e como ele é veiculado. Quanto ao potencial interativo dialógico de cada postagem, as categorias estão detalhadas no quadro 2. Quadro 2 Critérios observados em relação ao caráter interativo dos posts Número de seguidores Número de posts Número de compartilhamentos por posts Número de curtidas por posts Número de comentários por posts Elogio Concordância Crítica Pergunta Tipo de comentário Resposta do partido Resposta do usuário Interação entre usuários Opinião do usuário Opinião do partido/líderes Faces partidárias na esfera virtual: a atuação política das lideranças da Câmara dos Deputados no Facebook 329 Até um dia de 1 a 3 dias Tempo mínimo de resposta ao comentário de 3 a 7 dias Mais de uma semana Sem resposta Após a contabilização das postagens, realizamos regressões logísticas com a finalidade de perceber a variação desses itens em conjunto. As seguintes variáveis independentes foram analisadas: assunto, linguagem, conteúdo e presença ou ausência de recursos de multimídia no conteúdo. As variáveis dependentes, por sua vez, são referentes ao impacto numérico das postagens: compartilhamento, curtida e comentários. Com esses dados, espera-se poder observar o potencial interativo em termos de público potencialmente atingido e relação (ou não) com esse público, além do comportamento do próprio público a partir do tipo de comentário feito. A intenção é observar se há padrões comuns ao uso do perfil pelas diferentes lideranças, ou se eles se diferenciam de acordo com o partido. Ao final, espera-se poder avaliar como a democracia digital acontece na prática via uma das redes sociais mais usadas no mundo, o Facebook, isto é, que aspectos são favorecidos, de fato, na democracia digital conforme compreendida pelas representações partidárias da Câmara dos Deputados. Análise dos dados O volume de posts e de seguidores Durante o período pesquisado, o Solidariedade foi o partido que mais postou no Facebook (quadro 3). Seguido pelo PSOL, PSD, PCdoB e PPS, portanto sem uma homogeneidade em termos de perfil ideológico.105 Entretanto, como veremos no decorrer da análise, um maior número de posts não irá se refletir, automaticamente, em mais interação e capacidade de mobilização ou diálogo 105 Para esta pesquisa, são considerados partidos de direita: PSD, PRB, PROS e SOLIDARIEDADE; de esquerda: PT, PCdoB e PSOL; de centro: PSDB, PSB e PPS. A Minoria está fora da classificação por poder abranger partidos com diferentes matizes ideológicas. 330 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO com os usuários. Entre as legendas com menor volume de postagens estão: DEM, PRB, PSB, Minoria106 e PROS. Quadro 3 Quantidade de posts Partido Quantidade de posts SOLIDARIEDADE 188 PSOL 173 PSD 158 PCdoB 135 PPS 126 PROS 82 PSDB 76 PT 68 MINORIA 54 PSB 41 PRB 23 DEM 7 Elaboração dos autores. Quanto ao número de seguidores, observa-se que PSDB e PT são as agremiações com maior presença junto aos usuários, muito provavelmente por serem os partidos que disputaram as cinco últimas eleições presidenciais. Mesmo assim, o PSDB tem mais que o dobro (77 mil) de seguidores que o PT (30 mil). Na perspectiva de Nielsen e Vaccari, ambos os perfis seriam exemplos de pull medias, funcionando numa lógica de demanda que atende aos usuários favoráveis e contrários ao governo de Dilma Rousseff, em um rescaldo da disputa que transbordou do período eleitoral. Quadro 4 Quantidade de seguidores Partido Quantidade de seguidores PSDB 77.051 PT 30.428 106 Cabe esclarecer que há a inclusão da liderança da Minoria porque na época da pesquisa a liderança do governo figurava como a Maioria. Faces partidárias na esfera virtual: a atuação política das lideranças da Câmara dos Deputados no Facebook Partido Quantidade de seguidores PSOL 15.268 PCdoB 14.733 PPS 13.375 SD 6.622 PSB 4.997 PRB 4.744 DEM 3.520 PSD 3.140 MINORIA 765 331 Elaboração dos autores. Nota: nos sites que não tinham perfil de página, o número de amigos foi considerado como número de seguidores, como no caso do Democratas. Na sequência, PSOL, PCdoB e PPS aparecem com uma quantidade similar de usuários que curtem seus perfis, na faixa entre 10 e 15 mil seguidores. As demais agremiações têm uma quantidade bem menor de seguidores, variando entre 6 mil e algumas dezenas de usuários, conforme mostra o quadro 4. Linguagem dos posts Conforme mostra o quadro 5, a grande maioria dos partidos usa uma linguagem mais formal nos posts. Isso porque a linguagem mais usada é a jornalística, já que, como se vê mais adiante, vários partidos acabam usando a web primordialmente para veicular matérias jornalísticas que disseminam informações sobre a atuação de líderes e de parlamentares. A estratégia confirma que o Facebook é usado de forma tática pelos partidos, conforme teorizado por Juris (2005), com divulgação seletiva de informações e opiniões que interessam às legendas, e não em busca de um diálogo permanente com os usuários. O uso do discurso midiático convencional, nesse sentido, serve como estratégia para conferir credibilidade às opiniões e às críticas emitidas e endossadas pelos partidos. Apenas uma legenda, o PRB, tem percentual maior de posts com linguagem informal (56,5%). Apesar de usar a linguagem jornalística, o PRB faz chamadas informais para as notícias, tentando adequar o material à informalidade que marca a linguagem do Facebook. PSD, PSOL e DEM têm um percentual um pouco expressivo (entre 20% e 30%) de linguagem informal, mais adequada à internet. Entretanto, é preciso destacar que a linguagem informal do PSD está 332 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO vinculada a posts pessoalizados com mensagens de autoajuda que veicula na sua página, como será visto mais adiante. Quadro 5 Tipo de linguagem LINGUAGEM Fomal Informal PT 100 0 MINORIA 100 0 PPS 100,0 0,0 PROS 100 0 PSDB 93,4 6,6 PSB 92,7 7,3 PCdoB 80 20 PSOL 78,6 21,4 DEM 71,4 28,6 PSD 63,3 36,7 SOLIDARIEDADE 46,3 53,7 PRB 43,5 56,5 Elaboração dos autores. Objetivo do conteúdo dos posts Como podemos observar no Quadro 6, a maior parte dos partidos está preocupada em divulgar notícias, seja da imprensa comercial, de um modo geral, ou notícias produzidas por equipe própria, geralmente a Assessoria de Imprensa da liderança. Interessante observar que partidos grandes, como PSDB e PT, priorizam a divulgação de notícias de segunda mão, ou seja, extraídas da imprensa privada. Como são os partidos que historicamente se polarizaram e dividem a maior batalha política no país, imagina-se que a intenção é trazer um argumento de autoridade para o material divulgado, do tipo “não somos nós que estamos dizendo, mas é a imprensa” (que desfrutaria de maior imparcialidade). Já o PSB vai na contramão, com cerca de 90% de seus posts divulgando notícias feitas por equipe própria, seguido por PSD (75,9%) e PRB (73,9%). O motivo deve ser basicamente o mesmo, mas pela razão inversa: esses partidos não têm muita cobertura da imprensa nacional privada, então dependem de material próprio para divulgarem seus feitos e opiniões. O fato é que a reprodução de conteúdos de mídias consagradas revela um tipo de comportamento das lideranças partidárias que favorece o reforço da “concepção publicista da opinião pública” (CARVALHO, 2010, p. 37). Uma concepção que confere centralidade às empresas de comunicação enquanto “representantes da opinião pública”. Nessa mesma perspectiva, Panebianco (2005) destaca que os partidos são sensíveis a estímulos políticos externos; entre esses estímulos o autor destaca as mídias e suas perspectivas de difusão de informação e de opinião. Como mostra o quadro 6, o PSDB e a Minoria recorrem com maior frequência a conteúdos publicados por outras fontes devido ao maior volume de notícias Faces partidárias na esfera virtual: a atuação política das lideranças da Câmara dos Deputados no Facebook 333 e de reportagens de teor negativo em relação ao PT no período da análise. As investigações sobre as denúncias de corrupção envolvendo integrantes do PT abasteciam a mídia diária de material com teor negativo em relação ao PT e ao governo, o que certamente explica a opção do PSDB e da Minoria pela reprodução desse tipo de noticiário. Além de ser mais fácil e barata a publicação, trata-se de uma estratégia que utiliza o capital de credibilidade da imprensa como um órgão especializado na apuração e na denúncia de desvios de conduta no campo político. Segundo Wilson Gomes (2015, p.2), “o jornalismo é um sistema de autentificação e de checagem”. Por essa razão, passa credibilidade ao público. Outro fator que confere credibilidade ao jornalismo na visão de Patrick Champagne (2012, p.70) é a semelhança com a investigação judiciária. “A objetividade consiste, como em um processo judicial, em dar a palavra a todas as partes envolvidas, os jornalistas buscando explicitamente, em cada caso, representantes da defesa e da acusação, o pró e o contra, a versão oficial de um incidente e a das testemunhas.” É oportuno salientar que a internet é a fonte principal que abastece os perfis das duas lideranças mencionadas. O material reproduzido das mídias privadas é extraído dos portais dos veículos na internet. Mesmo no caso da reprodução, os partidos recorrem a mecanismos discursivos para construir uma determinada perspectiva interpretativa, ou seja, um enquadramento retórico favorável a seus propósitos, segundo a lógica de mídias táticas abordadas anteriormente. Seja para defender ou atacar o governo, observa-se a tática de usar o conteúdo jornalístico a favor do interesse partidário, seja para denunciar, seja para ressaltar aspectos positivos. Cabe menção especial ao modo como os posts são introduzidos, em textos que colocam em relevo expressões como “denúncias gravíssimas” ou “grave denúncia”. Em suma, o modo de qualificação das matérias já aponta para os sentidos que o partido quer acentuar e chamar atenção de seus partidários. PSOL (27,7%), PCdoB (34,1%), PROS (23,2%), DEM (14,3%) e SOLIDARIEDADE (38,3%) chamam atenção por divulgarem suas opiniões diretamente nos posts sem intermediação da imprensa. É uma forma de divulgação adequada aos perfis de rede social, que demandam conteúdos curtos e diretos. Em várias postagens, PSOL e Solidariedade utilizam-se de memes e de linguagem humorística, especialmente quando trazem críticas a seus adversários políticos, respectivamente, Eduardo Cunha e Dilma Rousseff. 334 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO O DEM chama atenção pela maioria de seus sete posts serem de campanha de opinião, como “Rejeita, TCU”, um pedido para o Tribunal de Contas da União rejeitar as contas do governo da presidente Dilma Rousseff. O PSD destaca-se, por sua vez, pelo percentual curioso de mensagens de otimismo, do tipo: “Bem-vinda, quarta-feira!!! As grandes ideias surgem da observação de pequenos detalhes (Paulo Coelho)”. Quadro 6 Objetivo do conteúdo dos posts OBJETIVO DO CONTEÚDO Campanhas Divulgação de eventos Divulgação de opinião Humor Mensagens de Otimismo Notícias de imprensa em geral Notícias próprias Reforço da imagem DEM 42,9 0,0 14,3 0,0 0,0 14,3 28,6 0,0 MINORIA 0 0 0 0 0 83,3 16,7 0 PCdoB 7,4 4,4 34,1 0 5,2 1,5 45,9 1,5 PRB 13,0 0,0 0,0 0,0 4,3 0,0 73,9 8,7 PROS 0,0 2,4 23,2 0,0 0,0 0,0 74,4 0,0 PPS 2,4 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 PSB 2,4 2,4 0,0 0,0 0,0 2,4 90,2 2,4 PSD 5,1 0 0,6 0 13,3 0 75,9 5,1 PSDB 0 0 0 5,3 0 75 19,7 0,0 PSOL 2,9 12,1 27,7 4,6 1,7 3,5 45,7 1,7 PT 0 0 0 0 0 72,1 27,9 0 SOLIDARIEDADE 6,9 1,6 38,3 6,9 3,2 18,6 23,4 1,1 Elaboração dos autores. Se fizermos a média por post, comparando os que divulgam notícias próprias (atuação da bancada) e mensagens de otimismo, percebemos que estas últimas têm maior público, já que podem ser aproveitadas pelos usuários para compartilhamento. Assim, enquanto a média de compartilhamentos por post de notícias próprias é de três, a de mensagens de otimismo é de dez por postagem. A média de curtidas para notícias próprias é 6,3 (em muitos casos, percebe-se que são os próprios funcionários das lideranças ou conhecidos que curtem), enquanto a média de curtidas nas mensagens de otimismo é de 13,7 por postagem.107 A média de comentários é igualmente baixa para os dois tipos de post (0,1), ou seja, há praticamente ausência total de diálogo, o que se explica pelo tipo de conteúdo divulgado, que se enquadra no tipo de material e linguagem usualmente veiculados em redes sociais: temas polêmicos, autoajuda e serviços úteis para o dia a dia. O processo legislativo ordinário tem pouco apelo público, assim como baixa noticiabilidade. Isso também explica a baixa divulgação desses aspectos pela mídia. 107 Detalhes de correlação entre as variáveis serão possíveis após as regressões que ainda estão em andamento. Sendo esta, portanto, uma versão preliminar do artigo. Faces partidárias na esfera virtual: a atuação política das lideranças da Câmara dos Deputados no Facebook 335 Abrangência dos conteúdos dos posts Para detalhar mais os aspectos do conteúdo, dividimos os posts entre aqueles que abordavam os diferentes assuntos sob uma perspectiva nacional, regional ou internacional. Percebe-se, pelo quadro 7, que a quase totalidade dos posts de todos os partidos têm conteúdo nacional. Ou seja, por reunirem as bancadas dos diferentes estados e terem como público potencial todos os usuários brasileiros do Facebook, os partidos chamam atenção para os temas nacionais, em busca de consolidar uma imagem positiva mais geral na sociedade brasileira. Provavelmente, seus temas regionais devem ser divulgados de forma setorizada, para veículos de imprensa escrita e eletrônica nos estados, que pautam a atuação parlamentar em âmbito local ou regional, ao contrário da mídia nacional, cujo foco está naquilo que acontece em Brasília. Um ponto interessante a ser observado, contudo, é o foco do Solidariedade e do PCdoB no debate ideológico de temas relacionados à política externa. Enquanto o PCdoB traz a discussão de temas internacionais em 4,4% dos seus posts (especialmente a crise econômica e as críticas ao modo de organização capitalista das economias contemporâneas), o Solidariedade faz, em grande parte, críticas à condução da política externa pelo governo Dilma em 2,1% de suas postagens. Quadro 7 Foco do conteúdo dos posts FOCO Nacional Regional Internacional DEM 100,0 0,0 0,0 MINORIA 98,1 0,0 1,9 PCdoB 95,6 0,0 4,4 PRB 100 0 0 PROS 98,8 0,0 1,2 PPS 95,2 4,0 0,8 PSB 95,1 4,9 0 PSD 99,4 0,6 0 PSDB 98,7 1,3 0 PSOL 96,5 2,9 0,6 PT 98,5 1,5 0 SOLIDARIEDADE 95,2 2,7 2,1 Elaboração dos autores. Passando agora propriamente aos conteúdos de cada post, percebe-se, pelo quadro 8, que o tema mais tratado é economia, com oito partidos (PT, PSDB, PSB, PRB, Minoria, PCdoB, DEM e Solidariedade) que dedicam entre 10% e 43% de seus posts a isso, muito provavelmente em razão da crise econômica vivida pelo Brasil desde 2015. Em seguida, aparece o item Misto (quando há mais de um assunto no post ou noticiário geral do partido), que ganha prioridade nos perfis de PROS (41,5%), PSD (23,4%), PCdoB (17%), PSB (14,6%), DEM (14,3%) e PSOL (11,6%). 336 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Com menos partidos, apenas cinco (PT, PSDB, PRB, Minoria e PPS), mas não com menos importância está o tema política geral.108 Esse tópico chega a ocupar 86,8% dos posts do PSDB e 54,4% do PT, justamente por causa da crise política, sendo enfatizado também pelas lideranças da Minoria (59,3%) e do PPS (65,9%). O PCdoB (19,3%) e o Solidariedade (44,7%), por sua vez, abordam a crise mais como um conflito entre partidos, fazendo acusações aos partidos de oposição (PCdoB) ou às legendas que compõem a base do governo (Solidariedade). Já o PSOL dedica 39,9% dos seus posts à corrupção, tema importante dentro da crise política, mas com foco exclusivo no escândalo envolvendo o presidente da Câmara, Eduardo Cunha. O tema social é o próximo tópico com mais posts, com destaque para o PT (17,6%), PSB (17,1%), PSOL (13,9%) e DEM (14,3%), sendo este o único partido de direita a se dedicar um pouco mais ao tema. Nessa categoria estão os posts sobre políticas sociais, assistência social, previdência, trabalho e outros. Em seguida vem o tema Soft, que inclui mensagens de ânimo ou autoajuda, com destaque para o PSD (22,2%) e PRB (17,4%). No caso do PSD chama atenção, de fato, o uso pessoalizado da página do partido no Facebook, com mensagens sobre o humor do dia que o partido apresentaria. Presume-se que a estratégia de “personalizar” a sigla faça parte de alguma estratégia de aproximação dos usuários ou parta de uma iniciativa individual da pessoa responsável pelas postagens da legenda. Nesse caso, observa-se que há uma falta de entendimento do partido como uma entidade política, pelo menos no tocante ao uso dessa rede social. O único partido a dedicar uma parcela razoável de posts à educação é o PCdoB (10,4%), enquanto o tema da saúde é abordado com maior ênfase pelo PSB (12,2%) e a segurança aparece com mais força nas postagens do PROS (12,2%). 108 No item “Política Geral” foram agrupadas as postagens que tratam da crise política, relacionadas à discussão sobre o sistema político brasileiro, e da situação política mais geral do país, enquanto a categoria “Política interna do partido” inclui as postagens que tratam de questões partidárias organizativas ou estruturais. Já o item “Conflito entre partidos” agrupa os posts mais diretamente relacionados à disputa entre as legendas e ao ataque das demais agremiações. Faces partidárias na esfera virtual: a atuação política das lideranças da Câmara dos Deputados no Facebook 337 Quadro 8 Assunto tratado nos posts ASSUNTO Agricultura Conflitos entre partidos Corrupção Cultura Direito do consumidor Direito e Justiça Economia Educação Esportes Infra-estrutura Internacional Meio ambiente Misto Política geral Política interna do partido Recrutamento Saúde Segurança Social Soft Tecnologia DEM 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 42,9 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 14,3 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 14,3 0,0 0,0 MINORIA PCdoB 0 0,0 0 19,3 0 0,0 0 4,4 0 0,0 0 0,0 37,0 10,4 0,0 10,4 0,0 0,0 0,0 4,4 0,0 3,0 0,0 0,0 0,0 17,0 59,3 7,4 0,0 3,7 0,0 0,0 0,0 5,2 0,0 5,9 3,7 8,1 0,0 0,7 0,0 0,0 PRB 0 0 0 0 17,4 0,0 13,0 4,3 0,0 8,7 0,0 0,0 4,3 13,0 4,3 4,3 8,7 0,0 4,3 17,4 0,0 PROS 0,0 0,0 1,2 0,0 0,0 0,0 8,5 7,3 0,0 7,3 0,0 0,0 41,5 6,1 1,2 0,0 8,5 12,2 3,7 2,4 0,0 PPS 0,8 0,0 0,0 0,0 0,0 7,1 7,1 1,6 2,4 2,4 0,0 2,4 0,0 65,9 0,8 0,0 7,1 0,0 0,8 0,0 1,6 PSB 0,0 0,0 4,9 0,0 0,0 2,4 17,1 4,9 0,0 7,3 0,0 0,0 14,6 2,4 4,9 0,0 12,2 2,4 17,1 4,9 4,9 PSD 4,4 0,0 0,6 0,6 3,2 1,3 2,5 1,9 5,1 6,3 0,6 7,0 23,4 1,3 0,0 0,0 6,3 3,8 9,5 22,2 0,0 PSDB 0 0 0 0 0 0 10,5 0 0 0 0 0 0 86,8 1,3 0 0 0 1,3 0 0 PSOL 0,0 3,5 39,9 0,6 0,0 0,0 2,3 7,5 0,0 2,3 0,0 1,2 11,6 4,0 6,9 0,0 0,6 4,0 13,9 0,0 1,7 PT 0 0 0 0 0 7,4 13,2 1,5 1,5 0,0 0,0 0,0 0,0 54,4 0,0 0,0 1,5 1,5 17,6 0,0 1,5 SOLIDARIEDADE 1,6 44,7 1,1 0,0 0,0 0,0 21,8 0,5 0,0 0,5 0,0 1,6 5,9 1,6 2,1 0,0 4,3 1,6 6,4 6,4 0,0 Elaboração dos autores. Obviamente nem todos os posts apresentam alguma posição crítica ou de apoio em relação ao governo, mas, considerando aqueles que o fazem, o quadro 9 mostra que as posições são radicalmente polarizadas. Ou são praticamente 100% contra (PSDB, PSB, PRB, Minoria, PSOL, DEM e PPS), ou 100% a favor (PT, PSD, PCdoB). Curiosamente, o PROS aparece como o único partido com um exato equilíbrio entre as posições, com 50% para cada. Num balanço quantitativo, temos então o dobro de partidos com páginas que postam contra o governo. A confrontação política é predominante nos seguintes temas: política governamental e partidária, corrupção e economia. A confrontação reflete-se, portanto, em duas estratégias: enquanto a oposição ataca o PT e o governo, o PT dedica-se a divulgar material favorável à defesa do próprio partido e do governo. PSOL, apesar de atacar o governo, pouco se refere ao partido da presidenta, o PT. Por sua vez, o PCdoB também participa da defesa do governo, sem muito se referir aos demais partidos da coalizão. A política representada por esse enquadramento nos perfis partidários no Facebook limita-se, portanto, ao jogo político marcado pela disputa e confrontação. O principal objetivo é marcar e demarcar posição, segundo a lógica de disputa eleitoral e a tradicional divisão parlamentares entre base do governo e oposição. 338 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Quadro 9 Posição dos posts em relação ao governo POSIÇÃO EM RELAÇÃO AO GOVERNO A favor Contra PT 100 0 PCdoB 97,9 2,1 PSD 97,5 2,5 PROS 50 50 PSOL 5,6 94,4 DEM 0 100 MINORIA 0 100 PPS 0 100 PRB 0 100 PSB 0 100 PSDB 0 100 SOLIDARIEDADE 0 100 Elaboração dos autores. Para verificar a inserção ou não das minorias no conteúdo dos posts, fizemos a tipologia descrita no quadro 10. A maioria dos partidos simplesmente não traz nenhum deles, com exceção de PSOL e PCdoB, com baixas parcelas de quase todos. O DEM se destaca por um número maior de posts com atores vindos de movimentos sociais, especialmente tratando da convocação dessas lideranças sociais para os protestos contra o governo. A conclusão é de que as minorias não são o público-alvo da maior parte dos posts das lideranças. Quadro 10 Tipos de atores sociais presentes nos posts ATORES Lideranças étnicas Lideranças femininas Lideranças juvenis Movimentos de gênero Movimentos sociais Sindicatos Não se aplica DEM 0 0 0 0 28,6 0 71,4 MINORIA PCdoB 0 4,4 0 6,7 0 1,5 0 0,7 0 1,5 0 0,0 100 85,2 PRB 0 0 0 0 0 0 100 PROS 0 0 0 0 0 0 100 PPS 0 0 0 0 0,8 0,8 98,4 PSB 0 0 0 2,4 2,4 0 95,1 PSD 0 0 0 0 0 0 100 PSDB 0 0 0 0 0 0 100 PSOL 9,2 0,6 1,2 6,9 6,9 0,0 75,1 PT 0 0 0 0 0 0 100 SOLIDARIEDADE 0 1,1 1,1 0,0 2,1 0,0 95,7 Elaboração dos autores. Potencial Interativo Para sabermos como é a reação aos posts, fizemos uma tipologia para os comentários que, como veremos mais abaixo, são bastante escassos na maioria dos perfis. Três partidos, contudo, foram exceções a essa regra, apresentando um número considerável de comentários: PCdoB (411), PSOL (476) e Solidariedade (1237). Nesses casos, a análise dos comentários foi feita a partir de uma amostra, considerando a totalidade deles quando menores ou iguais a dez, e levando em conta 10% deles quando em quantidades maiores. Os comentários analisados foram coletados aleatoriamente da totalidade de cada post. Analisando o quadro 11, destaca-se que 100% dos comentários do PT, da Minoria e do PPS são de concordância, ou seja, é a própria militância da le- Faces partidárias na esfera virtual: a atuação política das lideranças da Câmara dos Deputados no Facebook 339 genda que frequenta a página, o que torna o diálogo naturalmente enviesado para um lado. No caso do PSDB, a maioria dos comentários se divide em críticas (51,3%) e em opinião do usuário (40,8%), este último quando não há claramente concordância ou crítica, mas uma ponderação. Como a militância do PT parece mais atuante, inclusive pelo que veremos adiante sobre o compartilhamento, imagina-se que ela também frequente a página do PSDB com críticas, já o contrário não acontece. O único nível de crítica semelhante (46,7%) é apresentado pelo PSB, partido que se destacou por ter alcançado o terceiro lugar nas eleições presidenciais de 2014. PSOL (41,4%), PCdoB (32%), PROS (99,5%), DEM (50%) e Solidariedade (67,3%) – além do PSDB (40,8%) já citado acima – se destacam pelo alto percentual de opiniões do usuário, revelando um potencial de diálogo mais forte, já que as pessoas se preocupam menos em defender um lado e mais em dizer o que pensam. São três partidos de direita e dois de esquerda. PRB (63,6%) e PSD (57,1%) evidenciam-se pelos comentários elogiosos, que revelam um pouco mais do que a simples concordância. Nesses dois casos, parece que a construção de uma identidade pública para as siglas, suas lideranças e os usuários pode estar sendo feita também por meio do Facebook, e não mais pelos processos tradicionais de construção identitária nos partidos políticos. A interação entre os próprios usuários acontece mais no perfil do PRB (22,7%), o que talvez mostre uma maior identificação entre os usuários.109 Quase a totalidade dos comentários fica sem resposta, com exceção de raros casos do PSOL, PCdoB e Solidariedade. Isso denota mais uma vez a não preocupação dos partidos com o diálogo típico de rede social (até porque os grandes números de concordância e elogio não demandariam mesmo resposta; já as críticas e opiniões do usuário, sim). Tal diagnóstico reitera o uso das redes sociais digitais como mídias táticas, conforme abordado anteriormente, e não como canais efetivos de interação política e debate público. 109 Para confirmar essa possibilidade, contudo, precisaríamos realizar uma análise de conteúdo pormenorizada desses comentários, o que não será possível nos limites deste trabalho. 340 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Quadro 11 Tipos de comentários COMENTÁRIOS Concordância Crítica Elogio Interação entre usuários Opinião do partido/líderes Opinião do usuário Pergunta Resposta do partido Resposta do usuário DEM 25 25 0,0 0,0 0,0 50,0 0,0 0,0 0,0 MINORIA 100 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 PCdoB 5,4 12,3 23,6 19,2 0,5 32,0 4,4 1,0 1,5 PRB 0 0 63,6 22,7 0,0 4,5 9,1 0,0 0,0 PROS 0,0 0,0 10,5 0,0 0,0 89,5 0,0 0,0 0,0 PPS 100 0 0 0 0 0 0 0 0 PSB 13,3 46,7 13,3 0,0 0,0 26,7 0,0 0,0 0,0 PSD 0 14,3 57,1 7,1 0,0 21,4 0,0 0,0 0,0 PSDB 7,9 51,3 0,0 0,0 0,0 40,8 0,0 0,0 0,0 PSOL 20,7 7,8 10,4 12,9 0,0 41,4 3,6 0,6 2,6 PT 100 0 0 0 0 0 0 0 0 SOLIDARIEDADE 11,5 4,0 2,3 11,7 0,0 67,3 2,3 0,0 0,9 Elaboração dos autores. Chegando finalmente ao potencial de interação, há o quadro 12, com a média de compartilhamentos, curtidas e comentários por post. Os partidos que se destacam nessa categoria são PT, PSDB e PSOL. Analisando os dados dos partidos polarizados – PSDB e PT – reitera-se o que já foi falado sobre a militância ativa. A média de compartilhamentos por post do PT (682,9) é o dobro do PSDB (321,9), ou seja, os apoiadores são mais preocupados em espalhar o conteúdo, a fim de mobilizar a militância. Já a média de curtidas por post é muito maior nas publicações do PSDB (40.698,3) do que nas do PT (387,9). O perfil do PSDB está focado na guerra política contra o governo, com alto apelo público e noticiabilidade, o que pode explicar sua alta média de curtidas. O enquadramento de guerra incita as pessoas a se manifestarem e tomarem um lado. A média de compartilhamentos de comentários também é muito maior do que nos outros, muito provavelmente pelo mesmo motivo. Entretanto, percebemos que os comentários são majoritariamente de pessoas que concordam e dão opiniões pessoais de forma mais alinhada ao post (92,1%). Somente 7,9% criticam veementemente o conteúdo da postagem. Por isso, no perfil tucano, o protagonismo não é dado à atuação da bancada geral (partido e liderança + parlamentares individuais somam 30,3%), mas obviamente ao Executivo (59,2%), principal alvo dos posts. No caso do PT, o fato de o número de compartilhamentos ser maior que o de curtidas também parece ser um claro sinal de atuação da militância. O enquadramento de guerra, como do PSDB, também funciona para a mobilização militante. Se os partidos continuam dominando não apenas a política parlamentar, mas também as campanhas eleitorais, faz todo o sentido encontrar a militância organizada para um uso estratégico do Facebook. Dessa forma, os perfis das lideranças são mais um espaço disponível para a disseminação de informações relevantes e para a produção de um discurso político que busca uma identidade coletiva. Faces partidárias na esfera virtual: a atuação política das lideranças da Câmara dos Deputados no Facebook 341 Por seu turno, a alta média do PSOL, tanto nos compartilhamentos (4.948), quantos nas curtidas (6.422), não parece ter a mesma explicação, uma vez que o enquadramento da guerra não é usualmente o preferido no discurso do partido. Apesar de também fazer a maioria dos posts com críticas ao Executivo, o partido convoca os usuários a darem sua opinião sobre os temas abordados. Esse parece ser o motivo para o diferencial, em relação aos outros dois partidos, do alto número de comentários por post (275,1), o segundo maior encontrado em toda a pesquisa. No caso do PSOL, não apenas a média de comentários por postagem é mais alta, mas o partido também é um dos que tem maior índice de comentários do tipo “opinião do usuário”, “concordâncias”, “elogios” e “interação entre usuários”. Observando os posts do PSOL, do ponto de vista qualitativo, percebe-se uma postura mais dialógica, com vídeos que pretendem falar diretamente ao cidadão e com a convocação do usuário para emitir sua opinião sobre os temas abordados. Quadro 12 Médias interativas (compartilhamentos, curtidas e comentários) MÉDIA POR POST COMPARTILHAMENTOS CURTIDAS COMENTÁRIOS DEM 0,6 8,1 0,6 MINORIA 2,2 5,8 1,6 PCdoB 86,0 43,7 3,0 PRB 39,7 18,1 0,8 PROS 0,2 1,7 0,2 PPS 6,5 32,8 1,6 PSB 0,3 9,9 0,9 PSD 4,1 7,6 0,1 PSDB 321,9 40698,3 122,7 PSOL 4948,0 6422,0 275,1 PT 682,9 387,9 7,2 SOLIDARIEDADE 282,6 52,3 1237,0 Elaboração dos autores. O Solidariedade chama atenção por apresentar a maior média de comentários (1.237) por postagem, ainda que apresente um índice mediano de curtidas por post (52,3) e tenha uma boa média de compartilhamentos (282,6). Em geral, os posts com mais comentários recebidos eram extremamente críticos ao governo de Dilma Rousseff e utilizavam de uma linguagem informal, alguns deles recorrendo ao humor e aos memes, tão caros ao público das redes sociais. Boa parte desses comentários apresentava a interação entre os usuários, isto é, a possibilidade oferecida pelo Facebook de um usuário marcar seus amigos na publicação, compartilhando com eles o conteúdo visto no perfil do partido. PRB, PPS e PCdoB têm níveis medianos nos três quesitos de interação. PSB, PSD, PROS e DEM são os que têm menor atividade, ainda que tenham todos mais de 3 mil seguidores. Os dados apresentados pelo DEM talvez sejam explicados pelo baixo número de posts no período analisado (conforme quadro 3), mas PSB, PSD e PROS têm todos pelo menos mais de uma publicação por dia. No caso do PSD, como mostra o quadro 8, há muitos posts soft (22,2%), que 342 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO não demandariam muita ação. Mas também há no PSB e no PROS uma característica comum: os três investem muito em posts mistos (respectivamente 23,4%, 14,1% e 41,4%) em relação a outros temas. Mistos são os posts com vários assuntos misturados, geralmente noticiários gerais dos partidos, que as pessoas precisam abrir o link para saber o que há. Esse tipo de conteúdo não é o mais adequado ao perfil imediatista das redes sociais, já que as pessoas não podem identificar a mensagem só de “bater o olho”, muito menos são instigadas a interagir com elas. Ainda nesse caso também observamos que as curtidas, poucas, em geral são das mesmas pessoas, que são, em muitos casos, funcionários das próprias lideranças. Finalmente, analisando o quadro 13, quanto ao uso de recursos de multimídia, percebe-se, como esperado, que o material mais usado em todos os partidos contém texto e foto, seguido por texto e vídeo. No caso do PROS, a totalidade dos posts segue o padrão “foto com texto”. Em todos os perfis, contudo, quase não há posts com apenas texto ou foto, pois juntos é que facilitam o entendimento do cidadão com apenas um olhar. Com exceção dos perfis do PCdoB e do Solidariedade, que ainda investem muito em texto desprovido de outros recursos (respectivamente 23,7% e 23,4%). O áudio ainda é uma mídia pouco usada, talvez por ter menos apelo midiático, quando comparado com o poder da imagem e da força da cultura televisiva entre os usuários das mídias sociais. Quadro 13 Uso de multimídia MULTIMÍDIA Apenas foto Apenas texto Texto e áudio Texto e foto Texto e vídeo DEM 0,0 0,0 0,0 71,4 28,6 MINORIA 0,0 0,0 0,0 88,9 11,1 PCdoB 3,0 23,7 5,9 41,5 25,9 PRB 4,3 0,0 0,0 91,3 4,3 PROS 0,0 0,0 0,0 100,0 0,0 PPS 0,0 19,8 1,6 57,9 20,6 PSB 0 2,4 0,0 92,7 4,9 PSD 0,6 1,3 7,6 67,1 23,4 PSDB 1,3 2,6 2,6 71,1 22,4 PSOL 1,7 23,7 0,0 41,6 32,9 PT 1,5 2,9 1,5 69,1 25,0 SOLIDARIEDADE 3,2 23,4 0,0 62,8 10,6 Elaboração dos autores. Análise multivariada Por último, foram feitas regressões logísticas buscando identificar correlações entre atributos dos diversos posts e sua repercussão em termos de compartilhamentos, curtidas e comentários. Adotaram-se como variáveis independentes, sucessivamente, o assunto, a linguagem, o conteúdo e a presença ou a ausência Faces partidárias na esfera virtual: a atuação política das lideranças da Câmara dos Deputados no Facebook 343 de recursos de multimídia no conteúdo. Os resultados foram não significativos para todas as regressões, o que é contra intuitivo à expectativa de que o assunto, por exemplo, seja um grande influenciador da repercussão das postagens. Por outro lado, a questão do que repercute e do que não repercute em redes sociais ainda é uma questão em aberto. O fenômeno da viralização, por exemplo, ainda é estudado de forma apenas aproximativa. Ademais, considera-se que o nível de granularidade em que os dados foram tratados não contribuiu para os resultados, sendo, porém, impróprio um tratamento simples de aglutinação dos posts. A seguir, há a regressão respectiva a cada uma das variáveis independentes analisadas. Regressão do assunto Regressão da linguagem 344 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Regressão do conteúdo Regressão do multimídia Conforme mostram os dados, o adj r squared110 apresenta valores muito baixos em todas as regressões. Desse modo, não é possível atribuir a variação nos compartilhamentos, curtidas e comentários a nenhuma das variáveis que tentamos isolar. Conclusões De maneira geral, em todos os perfis analisados há predomínio da lógica da política de visibilidade, com o propósito de usar o perfil do Facebook para 110 Adjusted R-Squared (R-quadrado ajustado) fornece a porcentagem de variação explicada pelas variáveis independentes que afetam a variável dependente. Faces partidárias na esfera virtual: a atuação política das lideranças da Câmara dos Deputados no Facebook 345 divulgar informações seletivas sobre o mundo da política, de acordo com os enquadramentos alinhados aos interesses do partido. Apesar de ser comum à comunicação política a busca por visibilidade das ações e discursos dos atores políticos, a redução do uso das redes sociais nesse aspecto é um bom motivo para questionamento das estratégias das lideranças no Facebook. Os perfis do PSDB e do PT, mais fortemente, revelam uma intensa polarização política. Diante desse cenário dicotômico, o objetivo da divulgação se enquadra em duas possibilidades: atacar ou defender o governo. O caso do PSOL é menos óbvio, uma vez que, apesar da maioria dos posts da legenda conterem críticas ao governo, o tom usado não é o mesmo do restante da oposição. Além disso, a convocação do usuário para expor sua opinião é mais intensa, não revelando a mesma postura de “torcida organizada” presente nos perfis de PSDB e PT. Nessa perspectiva, o foco da política de visibilidade e de divulgação dos perfis das lideranças são os próprios partidos e os demais atores políticos e agentes governamentais que fazem interlocução com a arena partidária e a esfera parlamentar. Trata-se, portanto, de um circuito restrito de interlocução política, e não de um sistema amplo e aberto de debate com usuários da ferramenta ou com a própria sociedade brasileira. Por essa razão, os demais atores sociais são quase totalmente excluídos desse limitado diálogo político, com algumas poucas exceções, como mostram os perfis do Solidariedade e do PSOL, com uma quantidade expressiva de comentários e de compartilhamentos. No levantamento de dados, mapeou-se os possíveis atores sociais envolvidos no debate. As conclusões mostram que, em geral, não há interesse dos partidos em envolver atores da sociedade civil no debate político protagonizado pelos perfis das lideranças no Facebook. Isso mostra que o foco das lideranças são as dinâmicas internas das lutas políticas e dos embates entre os próprios partidos, no âmbito da esfera legislativa, o que limita o potencial de interação das redes sociais. Isso faz sentido ao se levar em conta as finalidades das lideranças enquanto órgãos de organização interna da ação coletiva dos parlamentares dentro da Casa Legislativa. Contudo, acreditamos que um uso estratégico das redes sociais permitiria ultrapassar o diálogo com os atores institucionais e incluir a sociedade no debate político das questões discutidas no parlamento. De qualquer forma, parece que os perfis das lideranças não propõem a consecução dos objetivos citados por Gomes para as ferramentas de democracia 346 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO digital e que consistiriam no fortalecimento da capacidade concorrencial da cidadania, no reforço da sociedade de direitos e no aumento da diversidade dos agentes, agências e agendas na esfera pública (2011, p.28-30). Ainda que permitam alguma forma de accountability, centrada na disseminação das informações sobre ações e opiniões das lideranças, esses perfis não ampliam a capacidade participativa da sociedade civil na decisão política. Por ficarem restritos à conversa entre os atores parlamentares, os perfis são praticamente monotemáticos, com foco no jogo político polarizado entre oposição e situação, com ênfase para os enquadramentos de conflito, disputa política e controvérsias. Dessa perspectiva, não há diferenciação em relação à cobertura midiática convencional. Inclusive, o compartilhamento de material produzido pela mídia convencional é uma estratégia comum a todos os perfis. O elenco temático é dominado pelas categorias política geral e economia. Os demais temas da agenda que fogem ao escopo central de disputas e lutas políticas aparecem com menor frequência nas postagens. Saúde, educação, segurança e meio ambiente figuram em patamares pouco expressivos. Outra constatação da pesquisa que reforça essa perspectiva, portanto, é que os conteúdos publicados pelos perfis das lideranças são prioritariamente matérias jornalísticas propagadas por veículos convencionais de mídia ou materiais informativos produzidos pela própria equipe de comunicação dos partidos. Assim, os perfis das lideranças se resumem a uma amplificação e disseminação desses conteúdos, os quais são divulgados de modo seletivo, segundo os interesses de cada liderança. Entre as lideranças que divulgam conteúdo próprio, destacam-se PSD, PSB, PCdoB e PROS, talvez por não terem grande espaço nas mídias convencionais para se posicionarem. Já PSDB e PT, que também possuem equipe própria, usam a imprensa convencional como argumento de autoridade, para dar mais credibilidade e legitimidade a suas opiniões, que são reproduzidas pelos veículos tradicionais, diferentemente da maior parte dos outros partidos. Quanto à interatividade, os dados mostram que não existe a função de mediação pelos agentes que gerenciam os perfis das lideranças. A preocupação é apenas publicar os conteúdos previamente selecionados, sem prioridade para responder os comentários dos cidadãos. De todos os partidos analisados, apenas PSOL e PCdoB demonstraram alguma preocupação em responder os questionamentos de usuários por intermédio do Facebook. Por essa razão, o que predomina é a interação entre os próprios cidadãos, sem a participação das lideranças no Faces partidárias na esfera virtual: a atuação política das lideranças da Câmara dos Deputados no Facebook 347 debate. O papel das lideranças se resume a oferecer os inputs, com a postagem dos conteúdos selecionados. Esses inputs servem de estímulo para os cidadãos continuarem a discussão política, a partir do tema e do enquadramento oferecido pela liderança. Ainda do ponto de vista da interação entre os próprios cidadãos, os dados mostram que existe uma adesão irrestrita a cada perspectiva política dominante nos perfis analisados, quase uma lógica de fidelidade ideológica. Assim, o que se observa é uma lógica paroquial de adesão política dos cidadãos aos perfis das lideranças. Isso significa que aqueles internautas que são a favor do governo, aderem de forma entusiasmada e radical, curtindo, compartilhando e oferecendo comentários favoráveis diante dos conteúdos divulgados. Exemplares desse comportamento são os perfis de PT e PCdoB. O mesmo ocorre com os partidários da oposição, cuja adesão também é irrestrita e radical, quase com a “repetição de mantras” contrários ao governo e ao PT, o que se verifica nas páginas de PSDB e Solidariedade. O que alimenta essa adesão, em ambos os casos, são argumentos de reiteração, caracterizados pela repetição e a redundância discursiva, com um repertório limitado de clichês, estereótipos e chavões políticos. No caso dos partidários do governo, predominam as operações de neutralização discursiva das postagens que atacam e criticam o atual governo, enquanto os partidos de oposição reproduzem as críticas e memes humorísticos repetidos à exaustão no ambiente digital. No cômputo geral dos perfis analisados, observa-se que no plano da interação entre os cidadãos o elemento característico predominante é a opção “curtir”, em segundo lugar está o “compartilhamento”. A alternativa “comentário” é utilizada em menor escala. Trata-se, portanto, de uma configuração de interação passiva ou semiativa, ou seja, basta clicar em curtir ou compartilhar. A interação ativa propriamente dita, ou seja, o comentário, a expressão da opinião, a crítica ou as perguntas, é menos utilizada, pois exige mais atenção, habilidades cognitivas e o ato de escrever, além de demandar mais tempo do cidadão conectado. Chama atenção ainda no levantamento de dados o poder de atração dos vídeos como mecanismos incitantes para o incremento da interação. Certamente trata-se da força que a cultura televisa exerce na cultura brasileira. Os dados mostram que as postagens com vídeos apresentam maior audiência on-line dos usuários. Quanto maior o número de vídeos publicados, maior o número de curtidas e de compartilhamentos. Os tradicionais textos com foto ou apenas textos apresentam 348 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO índices menores de atratividade para a audiência on-line dos usuários. Apesar disso, observa-se um predomínio dos recursos texto e foto nas postagens. Obviamente, os dados podem e devem ser desdobrados em análises futuras. Essa é uma tarefa ainda inconclusa, que não caberia no espaço de análise específico deste artigo. Referências ABREU JUNIOR, D. A. (2009). As lideranças partidárias na Câmara dos Deputados. 2009. 83 f. Monografia (Especialização em Processo Legislativo) – Centro de Formação, Treinamento e Aperfeiçoamento (Cefor), Câmara dos Deputados, Brasília. ANDRADE, P. (1996). Sociologia (interdimensional) da internet. In: CONGRESSO PORTUGUÊS DE SOCIOLOGIA, 3., 1996, Porto. Actas... Porto: Associação Portuguesa de Sociologia; Celta Ed. BAQUERO, M. (2000). A vulnerabilidade dos partidos políticos e a crise da democracia na América Latina. Porto Alegre: Ed. UFRGS. BARREIRA, C.; BARREIRA, I. A. F. (2012). Campos de ajuda e modos de pertencimento: um mapa moral da representação política em campanha eleitoral. Horizontes Antropológicos, v. 37, p. 307-335. BOURDIEU, P. (1989). O poder simbólico. Lisboa, Portugal: Difel. ______ (2011). Espíritos de Estado: gênese e estrutura do campo burocrático. In: ______. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas, SP: Ed. Papirus. BRAGA, S. (2014). O uso das mídias sociais é um bom preditor do sucesso eleitoral dos candidatos? uma análise das campanhas on-line dos vereadores das capitais das regiões sul, sudeste, e nordeste do Brasil no pleito de outubro de 2012. Política Hoje, Recife, v. 22, p. 125-148. CARVALHO, A. C. (2010). A rede da democracia: O Globo, O Jornal e Jornal do Brasil na queda do governo Goulart, 1961-1964. Niterói: Nitpress ; EdUFF. Faces partidárias na esfera virtual: a atuação política das lideranças da Câmara dos Deputados no Facebook 349 CHAMPAGNE, P. (1993). La vision médiatique. In: BOURDIEU, P. (Org.). La misère du monde. Paris: Seuil Libre Examun. ELIAS, N. (1990). O processo civilizador: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Zahar. v. 1. GOLDMAN, M.; PALMEIRA, M. (1996). Antropologia, voto e representação política. Rio de Janeiro: Contra Capa Ed. FACEBOOK mantém liderança no mapa mundial das redes sociais. Revista Exame, 22 fev. 2016. Disponível em: <http://exame.abril.com.br/tecnologia/ noticias/facebook-mantem-lideranca-no-mapa-mundial-das-redes-sociais>. Acesso em: 5 jul. 2016. GOMES, W. (2015). Redes sociais pautam novas agendas políticas. Entrevista à jornalista Lívia Araújo. Jornal do Comércio, Porto Alegre, 28 set. 2015, p. 3. Disponível em: <http://jcrs.uol.com.br/_conteudo/2015/09/politica/458472politicos-estao-perdendo-oportunidades-fora-das-redes-avalia-gomes.html>. Acesso em: 12 dez. 2015. JURIS, J. S. (2005). The new media and activist networking within anticorporate globalization movements. The Annals of the American Academy of Political and Social Science, v. 597, p. 189-208. LASCH, S. (2005). Crítica de la información. Buenos Aires: Amorrortu. LESTON-BANDEIRA, C; BENDER, D. (2013). How deeply are parliaments engaging on social media? Information Polity, v. 18, n. 4, p. 281-297. LIMA, B. (2013). Comunicação interna partidária: os partidos políticos e o uso social da internet. In: SEMANA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA POLÍTICA, 1., 2013, São Carlos. Anais... São Carlos: UFSCar. MAIR, P; KATZ, R. (2009). The cartel party thesis: a restatement. Perspectives on Politics, v. 7, n. 4, p. 753-766, Dec. MAIR, P. (2003). Os partidos políticos e a democracia. Análise Social, v. 37, n. 167, p. 277-293. 350 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO MANIN, B. (1995). As metamorfoses do governo representativo. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 10, n. 29, p. 5-34, out.. ______ (2013). A democracia do público reconsiderada. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 97, p. 115-127. MENDONÇA, J. C. (2008). Partidos políticos: da visão dos clássicos aos desafios da (pós?)-modernidade. Em Tese, v. 4, n. 2, p. 67-83. MOUFFE, C. (2003). Democracia, cidadania e a questão do pluralismo. Política & Sociedade, v. 2, n. 3, p. 11-26. NIELSEN, R. K; VACCARI, C. (2014). As pessoas curtem os políticos no Facebook? não mesmo! a comunicação direta em larga escala entre candidatos e eleitores como um fenômeno outlier. Revista Eletrônica de Ciência Política, v. 5, n. 2, p. 227-256. OPPO, A. (2000). Partidos políticos. In: BOBBIO, N.; MATTEUCCI, N.; PASQUINO, G. Dicionário de política. 5. ed. Brasília: EdUnB. p. 898-905. PANEBIANCO, A. (2005). Modelos de partido: a organização e poder nos partidos políticos. São Paulo: Martins Fontes. PEIRANO, M. (2011). O dito e o feito. São Paulo: Relume-Dumará. PIVA, R. (2014). A influência das redes sociais no processo eleitoral. Disponível em: <http://www.tre-sc.jus.br/site/resenha-eleitoral/edicoes/n6-juldez-2014/integra/2014/11/a-influencia-das-redes-sociais-no-processoeleitoral/index.html>. Acesso em: 10 jul. 2016. RIBEIRO, G. L. (2000). Cultura e política no mundo contemporâneo. Brasília: EdUnB. ROCHA, L. C.; BRAGA, S. S. (2015). Novas mídias e partidos políticos: ação política das instituições partidárias brasileiras na internet. Anuário Unesco Metodista de Comunicação Regional, v. 17, n. 17, p. 209-221. SANTANA, C. T. A. (2012). A comunicação digital partidária em períodos não eleitorais. 2012. 123 f. Dissertação (Mestrado em Ciências da Comunicação) – Universidade do Porto, Porto. Faces partidárias na esfera virtual: a atuação política das lideranças da Câmara dos Deputados no Facebook 351 SECRETARIA DE COMUNICAÇÃO DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. 2015. <http://www.secom.gov.br/atuacao/pesquisa/lista-de-pesquisasquantitativas-e-qualitativas-de-contratos-atuais/pesquisa-brasileira-demidia-pbm-2015.pdf>. Acesso em: 10 jul. 2016. SILVA, C. (2012). A comunicação partidária on-line: os websites num contexto não eleitoral. 2012. 113 f. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) – Universidade de Aveiro. VACCARI, C. (2008). Italian parties websites in the 2006 Elections: research note. European Journal of Communication, Los Angeles, v. 23, n. 1, p.69-77. SILVA, R. B. (2014). Mídias sociais e política: os partidos no Facebook. Alceu, Rio de Janeiro, v. 14, n. 28, p. 202-223. TAVARES, Daniel Nardin. Nos esconderijos da virtualidade: o “homem cordial” nas vinculações via redes sociais on-line entre senadores e cidadãos. 2014. 212 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Universidade de Brasília, Brasília. TORRES, E. C. (2011). A crítica jornalística na era do receptor empoderado. Contemporanea, v. 9, n. 1, p. 5-21. URBINATI, N. (2013a). Crise e metamorfoses da democracia. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v.28, n. 82, p. 5-16. ______ (2013b). Da democracia dos partidos ao plebiscito da audience. Lua Nova, São Paulo, n. 89, p. 85-105. VEIGA, L. F. (2007). Os partidos brasileiros na perspectiva dos eleitores. Opinião Pública, Campinas, v. 13, n. 2, p. 340-365. WEBER, M. (1999). Economia e sociedade: comunidades políticas, natureza e conformidade à lei (legitimidade) das associações políticas. Brasília: EdUnB. p.155-186. WOLTON, D. (1994). Elogio do grande público: uma teoria crítica da televisão. Porto: Asa. 353 Mudança institucional e financiamento político: o papel dos partidos nas eleições de 2014 Wagner Pralon Mancuso Rodrigo Rossi Horochovski Neilor Fermino Camargo Introdução De 2014 para cá, pelo menos duas importantes alterações no modelo de financiamento de campanhas eleitorais no Brasil foram de iniciativa do Poder Judiciário: a obrigatoriedade de identificação dos doadores originários e a proibição de doações empresariais. Em ambos os casos, a mudança institucional é exógena, vinda de fora do mundo da política. Seus efeitos diretos, porém, agem sobre os atores que operam neste campo e que, ordinariamente, seriam os responsáveis pela produção normativa mais geral. Trata-se, pois, de exemplo da declamada judicialização da política pela qual, mediante a produção de dispositivos infralegais ou de judicial review, as cortes absorvem a função de legislar ou modificar o legislado atinente à competição político-eleitoral, tendência que se teria incrementado a partir de 2002 (MARCHETTI, 2008). A primeira alteração, trazida pela Resolução no 23.406/2014, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), vigorou já nas eleições daquele ano e obrigou todos os prestadores de contas das campanhas eleitorais a informarem os doadores originários dos recursos que não constituíssem doações diretas. A medida nasceu das pressões em torno da accountability do processo eleitoral, no sentido de sua transparência, para evitar as denominadas “doações ocultas”. Havia suspeitas de que os partidos escamoteavam o elo entre financiadores e candidatos111, já que 111 A medida e suas motivações foram objeto de ampla cobertura jornalística, em geral favorável, pelos principais meios de comunicação do país, como, por exemplo, O Estado de S.Paulo (TSE ...), Folha de S.Paulo (TSE..., 2014), O Globo (CONFIRA..., 2014). 354 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO nos pleitos anteriores os prestadores de contas não tinham obrigação de especificar o caminho exato que o dinheiro percorria, não havendo como rastrear as doações que tivessem um ou mais intermediários. Reportagem da Folha de S. Paulo mostra, por exemplo, que, nas eleições de 2010, 72% do valor despendido pelos 10 maiores doadores daquela campanha destinaram-se a partidos e comitês financeiros (Principais financiadores optaram por doação oculta 2011). A segunda mudança tem, por certo, implicações mais profundas para a estrutura do modelo de financiamento eleitoral. Trata-se da proibição das doações empresariais às campanhas, determinada, em 2015, pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na análise da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4.650, requerida pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), tendo como amici curiae diversas organizações da sociedade civil. A ação foi relatada pelo ministro Luiz Fux, que, entre as justificativas para provê-la, argumentou que o financiamento empresarial no Brasil atendia mais à ação estratégica de grupos privados nas suas relações com agentes políticos do que a princípios democráticos, como liberdade de expressão, pluralismo e isonomia, criando condições muito desiguais de disputa e influência. Poucos dias depois da decisão do STF, o Congresso Nacional tentou reinstituir as doações empresariais, pelo menos para partidos políticos, no ordenamento jurídico nacional, no âmbito de uma “minirreforma política”. Sob forte pressão de sua base, a então presidenta Dilma Rousseff sancionou a Lei nº 13.165/2015, mas vetou o dispositivo que permitia a volta do financiamento eleitoral empresarial. O Congresso não foi capaz de derrubar este veto. Neste capítulo, do ponto de vista empírico, nos debruçamos especificamente sobre a primeira mudança institucional, que já produziu efeitos sobre as eleições gerais de 2014. Interessa-nos particularmente suas implicações sobre os partidos políticos, que vêm sendo os principais intermediadores de recursos de campanha no Brasil – as 32 agremiações que participaram do referido pleito, por meio de suas direções nacionais, estaduais/distritais e municipais, receberam e repassaram valores que ultrapassam os dois bilhões de reais. A mudança em tela deve acarretar efeitos importantes nas estratégias e no comportamento dessas organizações, menos no sentido de perder centralidade no financiamento eleitoral e mais no de serem forçadas a ser mais transparentes, o que, no fim das contas, permite à sociedade compreender melhor o peso do financiamento empresarial. É nesse sentido que se apresenta a possibilidade de Mudança institucional e financiamento político: o papel dos partidos nas eleições de 2014 355 analisar os partidos e suas ações enquanto elementos centrais do financiamento eleitoral no país. Nesse ponto, uma explicação é necessária. Partidos não geram recursos per se, de modo que praticamente a integralidade de seu caixa provém de doações de pessoas jurídicas, pessoas físicas e do fundo partidário – respectivamente, do mercado, da sociedade civil e do estado. Assim, toda doação partidária é um repasse dentro do complexo fluxo de transações financeiras em uma campanha eleitoral. O que almejamos é descrever e analisar este fluxo. Nosso principal objetivo é, portanto, identificar as fontes e o destino dos recursos que os partidos políticos repassaram nas eleições gerais de 2014, à luz das coerções institucionais engendradas pela obrigatoriedade de se declarar suas origens primitivas. Para a operacionalização do estudo, o passo inicial foi efetuar o download das prestações de contas disponibilizadas pelo TSE em seu Repositório de Dados Eleitorais, dispostas em 81 arquivos correspondentes às planilhas de três diferentes tipos de prestadores de contas (candidatos, comitês financeiros e partidos) em cada uma das 27 unidades da federação. O gerenciador de banco de dados PostgreSQL permitiu reunir todos os dados em uma planilha única, com as quase 450 mil doações então declaradas. O objeto específico deste texto são as 38.912 receitas tipificadas nas planilhas como recursos de partidos políticos, i.e., doações feitas por estes organismos para os diferentes agentes que participaram da competição eleitoral em 2014 – candidatos, comitês e partidos. O texto está dividido em quatro partes, além desta introdução. A primeira apresenta aspectos institucionais do financiamento de campanhas políticas no Brasil e discute questões teórico-metodológicas relacionadas ao estudo deste fenômeno. Desse modo, a seção situa o debate sobre o tema, descreve seu arcabouço normativo, reflete sobre a influência da regulação no comportamento dos atores e mostra como um campo próprio de investigação acadêmica se constituiu em torno dessas questões. As duas seções seguintes relatam os resultados empíricos, começando pela exposição das origens das receitas objetos de transações pelos partidos políticos em 2014, sob dois enfoques: I) o da concentração de recursos, ou seja, a parcela de cada tipo de fonte originária (fundo partidário, pessoa jurídica e pessoa física) apropriada pelas diferentes agremiações; e, II) o da dependência de recursos, isto é, a importância relativa de cada fonte originária no montante total de dinheiro angariado pelas siglas. Com isso, é possível saber quais são os partidos que mais recebem de cada fonte e de que forma se compõem suas arrecadações. 356 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO A seção posterior aborda o destino dos recursos. Trata-se, portanto, de verificar para quem os partidos distribuem o dinheiro que arrecadam, a partir de dois focos principais: I) o fluxo intra e interpartidário – ou seja, o quanto os partidos repassam para si ou para outras siglas; e, II) o fluxo entre os diferentes níveis de direção partidária – sobretudo entre as direções nacionais e estaduais/distritais. Isso viabiliza divisar semelhanças e diferenças no modo como os partidos alocam os valores que intermedeiam. Por fim, na conclusão, apresentamos uma síntese analítica dos principais achados do capítulo e conjecturamos sobre possíveis efeitos da segunda mudança institucional tratada acima (a proibição do financiamento eleitoral empresarial) no comportamento dos partidos políticos, o que descortina uma nova agenda de pesquisa sobre o comportamento das agremiações partidárias diante dos constrangimentos institucionais que enfrentam. Aspectos conceituais e institucionais do financiamento eleitoral no Brasil O tema do financiamento político, notadamente dos partidos e das eleições, vem obtendo progressivo destaque, mormente nas duas últimas décadas. Nas arenas política e midiática, sua visibilidade aumenta conforme propagam-se escândalos de corrupção decorrentes das relações que grupos de interesses privados estabelecem com agentes políticos em função da produção de normas e de políticas públicas, assim como da alocação de recursos estatais. No campo acadêmico, o assunto também desperta a atenção de um número cada vez maior de pesquisadores, sobretudo na ciência política (MANCUSO, 2015). As razões para isso são tanto de ordem operacional quanto substantiva. Do ponto de vista operacional, o recente desenvolvimento exponencial da informática possibilitou o armazenamento e, principalmente, a ampla divulgação de dados eleitorais dos mais diversos, incluindo os relativos a resultados de eleições, perfis de candidatos e partidos e, o que é mais importante aqui, receitas e despesas de campanha. À medida que tal divulgação passa a compor o quadro legal-normativo da política, algo usual em democracias razoavelmente consolidadas, basta dispor dos meios técnicos para que qualquer cidadão, jornalista, militante, pesquisador, etc. possa obter os dados mencionados. O Brasil Mudança institucional e financiamento político: o papel dos partidos nas eleições de 2014 357 é um exemplo bem-sucedido disso e o órgão que gerencia as eleições no país, o TSE, divulga dados completos de receitas e despesas de campanha desde 2002, por meio de seu portal na internet.112 São as razões de ordem substantiva que demandam, contudo, um debate mais acurado, particularmente em face da decisiva influência do dinheiro nos resultados eleitorais nos mais diferentes países, em todos os continentes. Vale ressaltar que se trata de uma agenda internacional e que a relação entre dinheiro e política vem sendo discutida e demonstrada em várias pesquisas sobre o tema, podendo-se citar, entre diversos trabalhos de qualidade, o relatório “Funding of political parties and election campaigns: a handbook on political finance”, publicado pelo International Institute for Democracy and Electoral Assistance – International IDEA (FALGUERA et al., 2014). Logo, é possível postular que o poder econômico traz repercussões decisivas para a distribuição de pessoas nas posições de governo, para o processo decisório e para a própria construção e execução de políticas públicas. As implicações para a qualidade da democracia são evidentes, daí derivando uma questão central: a quem os agentes políticos eleitos são mais accountable e responsivos? Ao conjunto de eleitores formalmente dotados do igual direito de escolher quem os governa e os rumos da política estatal ou aos grupos de interesses financiadores, geralmente empresas, organizações que não são cidadãos que portam direitos políticos? A questão acima é especialmente delicada onde o arcabouço institucional do financiamento político gera condições de forte assimetria entre os competidores, com a prevalência dos interesses de grupos organizados. Não se trata de um problema tipicamente brasileiro, já que outros países, onde o princípio da liberdade econômica sobressai sobre o princípio da igualdade de condições entre os competidores no debate normativo do financiamento político, também sofrem os efeitos da força do poder econômico em seus processos eleitorais – nessa direção, análises sobre os EUA podem ser encontradas em Fortier e Malbin (2013) e Tokaji e Strause (2014), autores que descrevem o sistema de financiamento eleitoral naquele país e suas repercussões na agenda legislativa. 112 Consultar http://www.tse.jus.br/eleicoes/estatisticas/repositorio-de-dados-eleitorais. 358 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO O Brasil historicamente construiu uma trajetória institucional em que a desigualdade de condições de financiamento e disputa é muito intensa, com claros efeitos nas estratégias e ações dos participantes do jogo eleitoral. Faz-se necessário, então, descrever minimamente o desenho institucional do financiamento de campanha, em especial o que vigorou em 2014. O primeiro aspecto a se ter em conta são as possíveis trajetórias do dinheiro. Quanto à origem, a Lei nº 9.504/1997 (Lei das Eleições) estipulou uma mescla de financiamento público – por meio do fundo partidário, composto por recursos orçamentários da União – e privado, com amplo predomínio deste (tabela 1). No pleito investigado, a principal fonte de recursos privados foram as pessoas jurídicas, seguidas de forma distante pelas pessoas físicas e pelos recursos próprios dos candidatos. Além dessas origens principais, a legislação previu outras possibilidades: doações pela internet, rendimentos de aplicações financeiras e comercialização de bens e realização de eventos. Outra rubrica possível, ainda, são os recursos de origens não identificadas. Todavia, essas quatro últimas fontes foram de importância ínfima em 2014, não havendo ganhos no aprofundamento de seu estudo. Quando se observam os possíveis destinos dos recursos de campanha, há três tipos de receptores: candidatos, partidos e comitês financeiros. Tabela 1 Composição do financiamento eleitoral no Brasil na eleição de 2014, segundo principais fontes de recursos (em R$) Tipo de doador R$ % PESSOAS JURÍDICAS 3.050.308.391,24 73,6% PESSOAS FÍSICAS 556.860.093,90 13,4% RECURSOS PRÓPRIOS 377.006.656,10 9,1% FUNDO PARTIDÁRIO 159.731.231,71 3,9% TOTAL 4.143.906.372,95 100,0% Fonte: dados do TSE. Elaboração dos autores. Nesse ponto, vale a pena discorrer brevemente sobre uma liberalidade que caracteriza o financiamento eleitoral no Brasil, especialmente até 2014. Do lado das fontes dos recursos, dentro de certos limites de que trataremos a seguir, os financiadores podem destinar suas doações a quem desejarem, incluindo candidatos, partidos e comitês de coligações diferentes e mesmo rivais. Os receptores Mudança institucional e financiamento político: o papel dos partidos nas eleições de 2014 359 podem, por seu turno, empregar os valores que recebem não apenas para fazer frente às suas despesas de campanha, mas também para efetuar doações, na verdade repasses, a quaisquer outras candidaturas, partidos ou comitês, também dentro ou fora de seu partido/coligação. A liberalidade do modelo ajuda a explicar, em parte, o tamanho do fenômeno, em outros termos, a quantidade de dinheiro que compõe o financiamento eleitoral no Brasil e como se chega a tal montante, o segundo aspecto a ser observado. A tabela 1 mostra que nas eleições de 2014, os doadores privados aportaram pouco mais de 4,1 bilhões de reais, com amplo predomínio das pessoas jurídicas, em conjunto responsáveis por quase três quartos do montante total. Na outra ponta, as pessoas físicas pouco contribuíram para o volume de doações – sua parcela era de apenas 13,4%. Pode-se, então, afirmar que antes de 2015 o financiamento eleitoral no país era tipicamente empresarial. Para se entender como se chega a esses valores, é preciso considerar outra liberalidade estabelecida pelo arcabouço institucional brasileiro, que são os limites proporcionais à capacidade econômica dos potenciais doadores. Nas eleições de 2014, conforme os arts. 23 e 81 da Lei nº 9.504/1997, as pessoas físicas puderam doar até 10% de seus rendimentos declarados no Imposto de Renda do ano anterior. Enquanto no caso das pessoas jurídicas, este limite perfazia 2% de seu faturamento bruto, também no ano anterior. Os candidatos, partidos políticos e comitês financeiros podiam empregar todos os seus recursos disponíveis na campanha, dentro dos limites de gastos previamente informados à justiça eleitoral, de acordo com o disposto no art. 18 do diploma legal em apreço. O resultado da ausência de limites fixos e predeterminados produz a desigualdade intensa na capacidade dos atores de doar e angariar recursos, mencionada anteriormente. A título de exemplo, basta comparar uma empresa, cujo faturamento anual importe dez bilhões de reais e que pode, portanto, doar até duzentos milhões de reais, com quase todos os cidadãos comuns, para quem 10% dos rendimentos anuais são insignificantes diante dessa quantia. O quadro é agudizado na medida em que os limites são estipulados para o faturamento de cada CNPJ, não havendo impedimento que um grupo corporativo formado por várias empresas tenha multiplicada sua capacidade de financiar a política, por meio de doações de suas subsidiárias. 360 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Acontece que instituições importam e exercem coerções sobre as preferências e decisões dos atores que participam de qualquer processo político e em seu resultado. Em outros termos, o comportamento dos atores políticos só pode ser compreendido no contexto das instituições, aqui entendidas como o conjunto de regras e procedimentos que presidem esses processos (IMMERGUT, 2007). Da mesma forma, câmbios institucionais – alterações nas referidas regras – provocam reações dos atores, no sentido da readequação de suas estratégias visando à maximização dos recursos de que dispõem nas disputas em que se colocam (TSEBELIS, 1998). Não é diferente com o financiamento eleitoral e o instrumental teórico-metodológico do institucionalismo de escolha racional pode orientar a investigação do tema. A primeira das alterações normativas a que nos referimos neste trabalho, a identificação obrigatória dos doadores originários, encaixa-se no que Mahoney e Thelen (2009) denominam mudanças institucionais graduais, pelas quais transformações incrementais podem produzir efeitos importantes sobre o comportamento dos atores. Mais especificamente, é uma mudança gradual por acúmulo (MAHONEY; THELEN 2009, p. 17), pelas quais regras novas são inseridas por cima ou ao lado de regras existentes, não envolvendo a introdução de regras ou instituições totalmente inéditas, mas sim emendas, revisões e adições às regras existentes. Exemplo nesse sentido é o estudo de Clève (2016) sobre como participantes das eleições de 2014, sejam doadores, sejam receptores de recursos de campanha, moldaram suas condutas aos constrangimentos institucionais trazidos pela Resolução nº 23.406/2014, aqui analisada. Conforme a autora, os partidos mantiveram-se como agentes centrais na intermediação de recursos, o que relativiza a força do argumento de que a ausência de identificação dos doadores originários servia para, basicamente, ocultar a origem e/ou o destino do dinheiro transacionado. Tiveram, todavia, de ser mais transparentes no exercício deste papel. A proibição das doações empresariais, por sua vez, pode ser entendida como uma mudança radical, pela qual alterações drásticas nas regras do jogo praticamente criam uma nova institucionalidade, obrigando os atores a uma reorientação muito expressiva de suas ações para conseguirem continuar a perseguir suas preferências. Eleições vindouras mostrarão os efeitos da medida no comportamento dos atores, incluindo os partidos políticos. Mudança institucional e financiamento político: o papel dos partidos nas eleições de 2014 361 Em suma, os participantes das campanhas, sejam eles financiadores, sejam partidos ou candidatos, especialmente os mais bem informados e competitivos, têm o desenho institucional descrito acima em mente quando desenvolvem, executam e, eventualmente, reelaboram seus planos de ação, os quais geram efeitos dos mais diversos na disputa eleitoral. A análise desses efeitos produziu um extenso conjunto de pesquisas sobre financiamento eleitoral no Brasil. De acordo com Mancuso (2015), as pesquisas distribuem-se em três vertentes. A primeira mensura a influência do dinheiro sobre os resultados eleitorais, em outros termos, como se dá a conversão do investimento em votos e mandatos, podendo-se citar, como exemplos, os estudos de Samuels (2001), Figueiredo Filho (2009), Peixoto (2010), Lemos, Marcelino e Pederiva (2010), Cervi (2010) e Mancuso e Speck (2012). Uma segunda abordagem – representada, entre outros, por Bandeira de Mello e Marcon (2005), Araújo (2008), Rocha (2011), Mezzarana (2011), Santos (2011), Boas; Hidalgo e Richardson (2014) – perscruta as relações entre financiamento de campanhas e benefícios para os doadores. A terceira discussão volta-se às determinações do investimento eleitoral, notadamente em termos de atributos de candidatos e partidos, e inclui pesquisadores como Samuels (2002), Bandeira de Melo, Marcon e Alberton (2008), Santos (2009), Sacchet e Speck (2011). A despeito da qualidade das pesquisas sobre o tema, Mancuso (2015) aponta a existência de uma lacuna importante, que é o estudo mais específico do papel dos órgãos partidários no financiamento eleitoral no Brasil, em face das dificuldades que os pesquisadores tinham para identificar com precisão o caminho do dinheiro que passa por essas organizações. Esforços mais recentes neste sentido podem ser encontrados em Horochovski et al. (2015; 2016), com uso da metodologia de análise de redes. A superação do desafio de identificar o percurso do dinheiro começa a tornar-se viável com a exigência de identificação dos doadores originários. Em trabalho anterior, apresentamos o fluxo de doações empresariais intermediadas ou não pelos partidos nas eleições presidenciais de 2014, com ênfase na identificação dos setores econômicos dos doadores (MANCUSO; HOROCHOVSKI; CAMARGO, 2016). Na próxima seção, trazemos resultados da continuidade da investigação, agora para os partidos políticos. 362 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO A origem dos recursos oficiais recebidos pelos partidos políticos brasileiros na eleição de 2014 Nas eleições de 2014, os partidos políticos – por meio de suas direções nacionais, estaduais/distritais e municipais – receberam um montante de 2,056 bilhões de reais das mais diversas origens. Como mencionamos anteriormente, naquele pleito os prestadores de contas foram obrigados a identificar os doadores originários das receitas oriundas de partidos e de outros candidatos e comitês, em face da Resolução no 23.406/2014, do TSE. Em função da referida exigência normativa, conseguimos apurar, a partir das planilhas de prestação de contas do repositório de dados eleitorais do TSE, a origem de praticamente todas as doações indiretas repassadas pelas agremiações partidárias.113 O anexo 1 mostra como essas doações se distribuem segundo sua fonte original declarada. As pessoas jurídicas exercem nítida centralidade no financiamento eleitoral intermediado pelos partidos, com 87,1% do montante total. Num distante segundo lugar, encontram-se os recursos oriundos do fundo partidário, com 7,8%. As pessoas físicas respondem por apenas 1,8% dos recursos destinados aos partidos. Outras fontes declaradas, como direções partidárias e outros candidatos e comitês, a rigor não são doadores originários, já que seus recursos não são próprios, advêm de outras fontes, tratando-se, provavelmente, de erros no preenchimento da prestação de contas. No entanto a soma das duas origens não chega a um por cento. Desse modo, nossas análises recaem sobre as três primeiras fontes, em relação às quais investigamos o grau de concentração e dependência de cada partido. Por concentração, entendemos a proporção que cada partido detém de cada uma das três fontes principais nas eleições de 2014. Por dependência, entendemos a proporção de cada uma das três fontes principais no montante que os partidos arrecadaram naquele ano. No que se refere à concentração, três grandes partidos – Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) e Partido dos Trabalhadores (PT) – juntos, arrecadam praticamente 60% 113 Do total de recursos, 2,4%, ou 48,9 milhões de reais, não puderam ter sua origem identificada, provavelmente por equívocos de alguns prestadores de contas de campanha. O valor é pouco expressivo em relação aos mais de dois bilhões de reais que compõem o nosso objeto. Mudança institucional e financiamento político: o papel dos partidos nas eleições de 2014 363 das doações empresariais (figura 1). Não por acaso, trata-se das agremiações com melhor desempenho eleitoral, seja em votos, seja em mandatos, dada a proeminência do dinheiro empresarial no financiamento da política no Brasil. Com percentuais entre três e seis por cento, encontram-se diversos partidos médios. Vale destacar ainda o baixo ou mesmo nulo financiamento empresarial de pequenos partidos de esquerda, sendo que dois deles, Partido Comunista Brasileiro (PCB) e Partido da Causa Operária (PCO), não contam com nenhum recurso desta origem. Figura 1 Gráfico de concentração de recursos oriundos de doações de pessoas jurídicas recebidos pelos partidos políticos em 2014 (%) Fonte: dados do TSE. Elaboração dos autores. Quando se observa a distribuição de recursos oriundos do Fundo Partidário e empregados nas disputas eleitorais, os resultados são bastante distintos (figura 2). Nesse caso, partidos médios se mesclam com agremiações maiores nas primeiras posições do ranking, o que reflete a distribuição desse fundo em função de resultados eleitorais prévios – o PT é a grande exceção, pois apesar de ser um partido grande, parece não ter direcionado recursos desta fonte para financiar suas campanhas em 2014. 364 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Os pequenos partidos também se agrupam com os menores percentuais. Todavia, diferentemente do que acontece com os recursos empresariais, não encontramos apenas siglas à esquerda no espectro ideológico. Com efeito, há partidos mais à direita, ainda que de pequeno porte, entre os que menos concentram recursos do fundo partidário. Figura 2 Gráfico de concentração de recursos oriundos do Fundo Partidário recebidos pelos partidos políticos em 2014 (%) Fonte: dados do TSE. Elaboração dos autores. No caso das doações de pessoas físicas, os três maiores partidos voltam a ocupar as primeiras posições na concentração de recursos (figura 3). No entanto, vale destacar a presença de pequenos partidos de esquerda, como PCB e Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU) em posições superiores ou médias. A despeito da cautela necessária nesta análise, em função do baixo volume relativo de dinheiro doado pelas pessoas físicas aos partidos, é possível vislumbrar aqui um padrão pelo qual o financiamento eleitoral por esses doadores possui um caráter mais ideológico. Mudança institucional e financiamento político: o papel dos partidos nas eleições de 2014 365 Figura 3 Gráfico de concentração de recursos oriundos de doações de pessoas físicas recebidos pelos partidos políticos em 2014 (%) Fonte: dados do TSE. Elaboração dos autores. Por sua vez, no que concerne à dependência dos partidos em relação às fontes de seus recursos, mais de três quartos das siglas dependem majoritariamente de doações empresariais e praticamente metade tem pelo menos 80% de seus recursos vindos dessa origem, incluindo aí todos os partidos mais competitivos do Brasil (figura 4). Esse resultado reforça a centralidade que os agentes empresariais tinham no financiamento de campanha até a eleição em apreço. 366 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Figura 4 Gráfico de dependência de recursos oriundos de doações de pessoas jurídicas recebidos pelos partidos políticos em 2014 (%) Fonte: dados do TSE. Elaboração dos autores. Na análise em curso, destaca-se o PT, que nos seus primeiros anos contava quase que integralmente com a sustentação de sua militância de base, Meneguello (1989) inventaria e interpreta o período. Em 2014, o partido apresentou mais de 95% de dependência em relação ao financiamento empresarial de campanha, sendo a segunda agremiação no ranking, atrás somente do Solidariedade (SD). A dependência em relação às pessoas jurídicas é forte mesmo entre pequenos partidos de centro e de direita. Apenas pequenos partidos de esquerda se afastam deste padrão. O gráfico de dependência de doações de pessoas jurídicas contrasta com o gráfico relativo ao fundo partidário, e o complementa (figura 5), a despeito das diferenças expressivas nos volumes de uma e outra origem. Em 2014, partidos mais dependentes desta fonte formada por recursos públicos tenderam, em geral, serem menos dependentes daquela, constituída de capital privado. Mudança institucional e financiamento político: o papel dos partidos nas eleições de 2014 367 Figura 5 Gráfico de dependência de recursos oriundos do Fundo Partidário recebidos pelos partidos políticos em 2014 (%) Fonte: dados do TSE. Elaboração dos autores. Finalizam esta seção os resultados concernentes às pessoas físicas (figura 6). Apenas um partido, o PSTU, é majoritariamente dependente das doações desses indivíduos. Pode-se destacar, também, a relevante proporção desses recursos no PCB, outro pequeno partido de esquerda.114 Entre outros partidos em que esta fonte é importante, independentemente de sua posição no espectro ideológico, não se encontram partidos grandes e competitivos. Estes, por seu turno, apresentam dependência ínfima do dinheiro de pessoas físicas. 114 A soma da dependência das três fontes (pessoas jurídicas, pessoas físicas e fundo partidário) deveria aproximar-se a 100%. Tal não ocorre no caso desses dois partidos, possivelmente em função de problemas nas prestações de contas. De fato, não pode ser identificada a fonte de parcela considerável dos recursos dessas agremiações, respectivamente 49% e 33%. 368 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Figura 6 Gráfico de dependência de recursos oriundos de pessoas físicas recebidos pelos partidos políticos em 2014 (%) Fonte: dados do TSE. Elaboração dos autores. Todavia, dado que a contribuição financeira do cidadão comum é diminuta em relação a outras origens, especialmente as pessoas jurídicas, contar com este recurso praticamente não trazia qualquer vantagem aos partidos enquanto vigeu o financiamento empresarial legal. No entanto, como vimos acima, este foi proibido em 2015. Resta saber o impacto nas estratégias e ações dos partidos. De um lado, o fundo partidário experimentou robusto crescimento nos últimos anos. Outra novidade que as eleições a partir de 2016 podem trazer é um novo papel, mais destacado, para as pessoas físicas no financiamento da política e, em consequência, na própria vida partidária. Voltaremos a esse ponto nas considerações finais. A distribuição de recursos oficiais pelos partidos políticos brasileiros na eleição de 2014 Até aqui, focalizamos os órgãos partidários como recebedores de recursos eleitorais oficiais, procedentes de diversas fontes, sobretudo de empresas privadas, Mudança institucional e financiamento político: o papel dos partidos nas eleições de 2014 369 mas também do Fundo Partidário e de pessoas físicas. A partir de agora os focalizaremos como distribuidores dos recursos oficiais recebidos. Os órgãos partidários que distribuíram recursos nas eleições de 2014 foram diretórios nacionais, estaduais/distritais115 e municipais, responsáveis, respectivamente, por 52,1%, 47,5% e 0,4% do total de repasses. Como a proporção de repasses realizados pelos diretórios municipais é comparativamente muito pequena, esta seção se deterá apenas sobre os repasses operados pelos diretórios nacionais e estaduais. O anexo 2 revela a distribuição de recursos realizada pelos diretórios nacionais dos 32 partidos políticos que disputaram as eleições brasileiras de 2014. Em primeiro lugar, o anexo 2 mostra que, no geral, nada menos que 97,1% das receitas distribuídas pelos diretórios nacionais têm por destino candidaturas, comitês e órgãos de direção de seus próprios partidos. Os diretórios nacionais com menor proporção de repasses intrapartidários são os do Partido Humanista da Solidariedade (PHS), do Partido Trabalhista do Brasil (PT do B), e do Partido Republicano da Ordem Social (PROS). Mesmo assim, esses três diretórios atingem, respectivamente, elevados patamares de 67,5%, 68,9% e 78% em repasses internos às próprias agremiações. Em segundo lugar, o anexo aponta que a notável maioria dos diretórios nacionais opta, predominantemente, por realizar repasses intrapartidários de cima para baixo, isto é, por investir nas disputas da própria sigla em nível estadual. No total, 78,1% dos recursos distribuídos pelos órgãos nacionais de direção partidária destinam-se a agentes do mesmo partido situados nos estados. Compreensivelmente, as principais exceções ficam por conta de seis partidos pequenos que concentram os recursos escassos de seus órgãos diretores nacionais nas candidaturas a presidente que decidiram lançar: PCB (100% das receitas para a candidatura de Mauro Iasi), Partido Social Democrata Cristão – PSDC (91,3% para a candidatura de Eymael), PSTU (89,8% para a candidatura de José Maria), Partido Renovador Trabalhista Brasileiro – PRTB (75,7% para a candidatura de Levy Fidélix), Partido Verde – PV (75,5% para a candidatura de Eduardo Jorge) e, por fim, Partido Socialismo e Liberdade – PSOL (71,7% para a candidatura de Luciana Genro). 115 Nesta seção, as menções ao nível estadual incluem o Distrito Federal (DF). 370 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Em outras palavras, os recursos oficiais obtidos pelos órgãos partidários superiores junto ao estado (fundo partidário), ao mercado (empresas privadas) e à sociedade (pessoas físicas) são utilizados precipuamente para financiar as campanhas de seus correligionários, em parte no nível nacional (sobretudo se houver candidatura presidencial), mas principalmente no nível estadual. Então, se um partido decide coligar-se a outro em nível nacional, para apoiar o candidato deste partido à Presidência da República, a contrapartida típica nesse nível não parece ser o recebimento de recursos de campanha (pelo menos de recursos oficiais), mas talvez a obtenção de outros tipos de benefício, tais como projeção política para seus líderes (que comporão a chapa presidencial, ou então aparecerão junto aos candidatos em eventos oficiais ou na propaganda política) e acesso a recursos de poder em caso de vitória eleitoral (por exemplo, cargos no governo federal). Investigações recentes conduzidas pelo Ministério Público e pela Polícia Federal mostram que não se pode excluir a hipótese de que um fluxo de recursos ilícitos e não declarados entre agentes partidários também fomente a formação de coligações.116 Estes fatos não devem ser ignorados, mas são de difícil escrutínio para o analista, pois pertencem ao mundo subterrâneo da política. Poucos recursos dos diretórios nacionais são repassados de forma interpartidária, ou seja, para candidaturas, comitês e órgãos partidários de outras agremiações políticas, em nível nacional ou estadual (apenas 2,9% do total). Quando isso ocorre, predominam as transferências para siglas coligadas com o partido financiador. É o que mostram abaixo as tabelas 2 e 3. Tabela 2 Transferência interpartidária de recursos pelos diretórios nacionais para agentes de nível nacional na eleição de 2014, por pertença à coligação nacional (em R$) O recebedor integra a coligação nacional do doador? Total Partido Sim $ Não % $ % $ % PP 300.000,00 54,5 250.000,00 45,5 550.000,00 100,0 PT 950.000,00 100,0 - 0,0 950.000,00 100,0 116 Veja-se, por exemplo, a delação de Joesley Batista, da JBS, sobre a compra do apoio político de partidos coligados em 2014 (CERTEZA de vitória: JBS comprou partidos das coligações de Dilma e Aécio em 2014, 2017). Mudança institucional e financiamento político: o papel dos partidos nas eleições de 2014 371 O recebedor integra a coligação nacional do doador? Total Partido Sim Não $ % $ % $ % PMDB 9.600.000,00 100,0 - 0,0 9.600.000,00 100,0 DEM 5.290.000,00 100,0 - 0,0 5.290.000,00 100,0 PHS - 0,0 250.000,00 100,0 250.000,00 100,0 PSDB 618.500,00 100,0 - 0,0 618.500,00 100,0 PT do B 184.250,00 100,0 - 0,0 184.250,00 100,0 TOTAL 16.942.750,00 97,1 500.000,00 2,9 17.442.750,00 100,0 Fonte: dados do TSE. Elaboração dos autores. A tabela 2 indica que 97,1% das receitas transferidas lateralmente por diretórios nacionais para agentes nacionais de outras agremiações destinam-se a coligados na eleição presidencial. A maior parte desses repasses procede de dois partidos importantes: PMDB (que financiou a coligação vitoriosa encabeçada por Dilma Rousseff, do PT, e a integrou com Michel Temer, como candidato a vice-presidente) e o Democratas – DEM (que integrou e financiou a coligação liderada por Aécio Neves, do PSDB). Vale a pena observar que o fluxo predominante de recursos nesse nível foi do partido coadjuvante para o partido que detinha a cabeça de chapa, e não o contrário. Tabela 3 Transferência interpartidária de recursos pelos diretórios nacionais para agentes de nível estadual na eleição de 2014, por pertença à coligação estadual (em R$) O recebedor integra coligação estadual com o doador? Total Partido Sim Não $ % $ % $ % PP 200.000,00 44,4 250.000,00 55,6 450.000,00 100,0 PT 3.896,00 3,8 97.500,00 96,2 101.396,00 100,0 PTB 2.500,00 100,0 0,0 2.500,00 100,0 PMDB 5.000.000,00 100,0 ,0 5.001.100,00 100,0 PSL 30.000,00 100,0 0,0 30.000,00 100,0 PCB 150,00 100,0 0,0 150,00 100,0 1.100,00 372 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO O recebedor integra coligação estadual com o doador? Total Partido Sim $ Não % $ % $ % PSC 0,0 118.000,00 100,0 118.000,00 100,0 PR 0,0 400.000,00 100,0 400.000,00 100,0 75.000,00 3,1 2.445.000,00 100,0 DEM 2.370.000,00 96,9 PMN 173.800,00 100,0 0,0 173.800,00 100,0 PSB 200.000,00 100,0 0,0 200.000,00 100,0 PSDB 2.716.054,41 66,8 1.348.880,00 33,2 4.064.934,41 100,0 0,0 3.225,00 100,0 3.225,00 100,0 0,0 184.250,00 100,0 PEN PT do B 184.250,00 100,0 PROS 110.000,00 11,8 825.000,00 88,2 935.000,00 100,0 TOTAL 10.990.650,41 77,9 3.118.705,00 22,1 14.109.355,41 100,0 Fonte: dados do TSE. Elaboração dos autores. Por sua vez, a tabela 3 mostra que 77,9% dos recursos repassados de cima para baixo por diretórios nacionais para agentes estaduais de outras siglas canalizam-se para partidos coligados em eleições para governador, senador, deputado federal ou estadual. Destacam-se aqui novamente o PMDB e o DEM, junto agora com o PSDB, três partidos importantes que compuseram diversas coligações eleitorais em praticamente todas as unidades da federação brasileiras e que, em algumas delas, ajudaram a financiar seus aliados. O estudo mais detalhado dos contextos estaduais – algo que foge ao escopo deste capítulo – é necessário para compreender os critérios de escolha dos agentes contemplados pelos diretórios nacionais e para explicar por que uma parcela, ainda que baixa, dos recursos dos diretórios nacionais vai para candidaturas, comitês e partidos com os quais não estão coligados em âmbito estadual. O quadro observado acima não muda muito quando focalizamos a transferência de recursos operada pelos diretórios estaduais nas últimas eleições gerais. Os dados apresentados no anexo 3 permitem essa constatação. Mudança institucional e financiamento político: o papel dos partidos nas eleições de 2014 373 Também no nível estadual, a grande maioria das transferências (85,9%) ocorre no interior das fronteiras dos partidos. Novamente as principais exceções ficam por conta de partidos pequenos: o PROS e o Partido Trabalhista Nacional (PTN), cujos diretórios estaduais destinaram respectivamente apenas 23,6% e 41,3% de seus recursos para correligionários. Dentre os partidos de maior porte, aqueles que apresentam taxas relativamente menores de transferências intrapartidárias – mas ainda assim, muito significativas – são o Partido Progressista (PP), com 74,7%, e o PMDB, com 78,1%. Nada menos que 82,7% dos recursos distribuídos pelos diretórios estaduais consistem em repasses laterais intrapartidários internos, ou seja, repasses para agentes do mesmo partido, no mesmo estado. É ínfimo o volume de transferências laterais intrapartidárias externas ou interestaduais (apenas 0,6% do total). Também é muito pequena a proporção de transferências intrapartidárias feitas de baixo para cima, destinadas a candidaturas, comitês ou diretórios de âmbito nacional (2,6% do total). Os dois partidos que se destacam neste caso são justamente aqueles cujos candidatos foram ao segundo turno da eleição presidencial: os diretórios estaduais do PT e do PSDB repassaram, respectivamente, 16,6% (cerca de 16,4 milhões de reais) e 4,6% (cerca de 7,1 milhões de reais) de seus recursos para o nível nacional. Em síntese, os dados discutidos nos parágrafos anteriores mostram que o financiamento de campanhas próprias – sobretudo realizadas neste mesmo nível – também predomina amplamente no caso dos diretórios partidários estaduais. Deste modo, mais uma vez o repasse de financiamento oficial de campanha para agentes de outros partidos, em troca da formação de coligações eleitorais, não parece ser o procedimento dominante. É antes a exceção que a regra. Sendo assim, é possível especular que, também em nível estadual uma sigla se coliga com outra e apoia o candidato desta agremiação para a chefia do poder executivo porque espera, em caso de vitória da chapa, ter acesso a recursos de poder comandados pelo governador. Quando a coligação se estende às eleições proporcionais, a ideia é ampliar o número de cadeiras conquistadas pelo agrupamento partidário e, assim, facilitar que os candidatos mais competitivos de cada agremiação coligada efetivamente ocupem um espaço no parlamento. Fluxos de recursos ilícitos podem viabilizar a formação de coligações deste nível, mas o estudo desses fluxos é aqui igualmente difícil. 374 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO A tabela 4 focaliza a transferência interpartidária de recursos operada pelos diretórios estaduais dos partidos brasileiros nas eleições de 2014. Destaca-se aqui, exclusivamente, a transferência interpartidária no âmbito da própria unidade da federação, pois praticamente inexistem repasses interpartidários interestaduais ou para o nível nacional, tornando desnecessária uma análise detalhada desses casos. Tabela 4 Transferência interpartidária de recursos pelos diretórios estaduais para agentes de nível estadual na eleição de 2014, por pertença à coligação estadual (em R$) O recebedor integra coligação estadual com o doador? Total Sim Partido Não $ % $ % $ % PRB 100.000,00 100,0 42,50 ,0 100.042,50 100,0 PP 9.546.174,94 83,8 1.852.082,10 16,2 11.398.257,04 100,0 PDT – 0,0 1.915,00 100,0 1.915,00 100,0 PT 1.165.230,47 99,6 4.221,33 ,4 1.169.451,80 100,0 PTB 974.500,00 43,4 1.269.300,00 56,6 2.243.800,00 100,0 PMDB 51.723.567,69 83,7 10.090.140,20 16,3 61.813.707,89 100,0 PSTU 10.927,39 100,0 – 0,0 10.927,39 100,0 PSL 25.000,00 44,8 30.769,30 55,2 55.769,30 100,0 PCO 2.939.524,35 97,4 80.000,00 2,6 3.019.524,35 100,0 PSC 537.693,01 99,1 4.988,00 ,9 542.681,01 100,0 PR 2.229.935,10 65,4 1.180.269,50 34,6 3.410.204,60 100,0 PPS 255.940,00 100,0 – 0,0 255.940,00 100,0 DEM 1.416.130,00 75,6 457.500,00 24,4 1.873.630,00 100,0 PRTB 30.370,10 100,0 – 0,0 30.370,10 100,0 Mudança institucional e financiamento político: o papel dos partidos nas eleições de 2014 375 O recebedor integra coligação estadual com o doador? Total Sim Partido Não $ % $ % $ % PHS 102.554,56 52,5 92.890,00 47,5 195.444,56 100,0 PMN 391.190,27 100,0 – 0,0 391.190,27 100,0 PTC 3.020,00 100,0 – 0,0 3.020,00 100,0 PSB 5.984.527,13 81,0 1.399.925,23 19,0 7.384.452,36 100,0 PV 82.754,68 71,4 33.083,00 28,6 115.837,68 100,0 PSDB 4.975.639,94 61,1 3.161.791,30 38,9 8.137.431,24 100,0 PSOL 2.000,00 100,0 – 0,0 2.000,00 100,0 PEN 23.689,30 10,8 195.206,41 89,2 218.895,71 100,0 PSD 5.522.510,00 93,6 374.814,00 6,4 5.897.324,00 100,0 PC do B – 0,0 40.000,00 100,0 40.000,00 100,0 PT do B 46.337,90 100,0 – 0,0 46.337,90 100,0 SD 701.858,60 98,6 10.292,00 1,4 712.150,60 100,0 PROS 27.585.400,00 98,5 425.815,00 1,5 28.011.215,00 100,0 TOTAL 116.376.475,43 84,9 20.705.044,87 15,1 137.081.520,30 100,0 Fonte: dados do TSE. Elaboração dos autores. Novamente fica claro que os repasses interpartidários, além de escassos (somam 14% do total de transferências), destinam-se preponderantemente a agremiações coligadas ao partido financiador. De fato, a tabela 4 mostra que 84,9% das transferências interpartidárias realizadas no interior do mesmo estado vão para siglas coligadas nos pleitos para governador, senador, deputado federal ou deputado estadual. Os partidos que mais financiam coligados, em valores absolutos, são 376 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO o PMDB e o PROS, seguidos pelo PP, pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), pelo Partido Social Democrático (PSD) e pelo PSDB. Trata-se de partidos importantes que integram diversas coligações nos mais diferentes estados. Mais uma vez será necessário descer às particularidades estaduais para se entender por que o repasse interpartidário ocorre em alguns casos, mas não em outros, e por que alguns diretórios decidem financiar candidaturas, comitês e partidos que, formalmente, são seus adversários no plano eleitoral. Conclusão Os resultados empíricos relatados neste trabalho revelam que, pari passu uma precisão cada vez maior na identificação dos doadores, a mudança institucional que obrigou os prestadores de contas a declararem os doadores originários de repasses jogou luzes sobre o papel dos partidos políticos no financiamento eleitoral. Do ponto de vista das origens dos recursos, a análise dos dados apresentados trouxe três achados principais: a) O financiamento privado dos partidos políticos tem origem predominantemente empresarial. Embora bastante inferior, o fundo partidário fornece montante razoavelmente expressivo. A contribuição de pessoas físicas é residual. b) Os partidos maiores, vale dizer, são mais competitivos, concentram a maior parte dos recursos empresariais e, em consequência, do financiamento eleitoral. Partidos médios concentram percentuais menores, porém ainda significativos. Pequenos partidos de esquerda têm financiamento empresarial baixo ou nulo. Quanto ao fundo partidário, a concentração segue aproximadamente, como é de se esperar, o desempenho eleitoral prévio das agremiações, com a importante exceção do PT. No que tange à concentração de doações de pessoas físicas, os três maiores partidos (PT, PSDB e PMDB) voltam a se destacar, todavia, pequenos partidos de esquerda colocam-se em posições médias ou superiores, sugerindo que o financiamento eleitoral por pessoas físicas apresenta um caráter mais ideológico. Mudança institucional e financiamento político: o papel dos partidos nas eleições de 2014 c) 377 Os maiores partidos, assim como os pequenos e médios partidos de direita, apresentam maior dependência de doações de pessoas jurídicas. Pequenos partidos de esquerda dependem mais de recursos de outras origens – Fundo Partidário e de pessoas físicas. Do ponto de vista do destino dos recursos transacionados pelos partidos políticos, as análises autorizam três conclusões: a) O destino dos recursos distribuídos pelos diretórios é predominantemente intrapartidário, isto é, consiste majoritariamente em candidaturas, comitês e diretórios pertencentes à mesma sigla. b) A maior parte dos recursos distribuídos pelos diretórios é canalizada para disputas estaduais. Sendo assim, no caso dos diretórios nacionais, embora certa parcela da receita permaneça neste nível, prevalecem os repasses de cima para baixo, isto é, dirigidos para candidaturas, comitês e diretórios de nível estadual. Já no caso dos diretórios estaduais, preponderam de forma quase absoluta os repasses laterais internos, isto é, destinados a agentes que estão situados no próprio estado. Os repasses laterais externos ou interestaduais, bem como os repasses de baixo para cima (ou seja, de diretórios estaduais/distritais para agentes de nível nacional), são exceções. c) Relativamente escassos, os repasses interpartidários operados pelos diretórios (ou seja, repasses destinados a candidaturas, comitês e diretórios de outras siglas) vão predominantemente para agremiações que integram coligações eleitorais com o partido financiador. Em suma, a primeira mudança institucional analisada, provocada pelo Poder Judiciário, joga luzes sobre o fenômeno investigado, evidenciando o papel central dos partidos no financiamento de campanhas no Brasil. Esta mudança institucional é gradual por acúmulo, para usar a tipologia de Mahoney e Thelen (2009), de menor impacto se a comparamos com a segunda mudança, a qual suscita uma série de dúvidas, a serem dirimidas após observação dos efeitos advindos das eleições gerais de 2018. A principal questão, para nossa agenda de estudos, são as implicações da proibição das doações empresariais de campanha nos papéis, nas estratégias e nas ações dos partidos políticos, visto que, no modelo anterior a 2015, esta fonte era 378 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO predominante. Disso levanta-se um problema sociopolítico e acadêmico: como essas dimensões se comportarão a partir de agora? Por ora é possível apenas construir conjecturas, de onde poderemos derivar hipóteses de trabalho. Em face da redução no volume de recursos disponíveis, os partidos políticos inicialmente devem perder relevância nas interações entre financiadores privados – doravante apenas pessoas físicas – e candidaturas e comitês financeiros. Em tal quadro, tal como sói acontecer em todo jogo de atores, os partidos tenderiam a promover conversões em suas estratégias, visando a manter seu posicionamento na correlação de forças. Na tentativa de esquadrinhar as possibilidades mais plausíveis, podemos, por exemplo, prognosticar que eles busquem novas formas de centralizar a arrecadação de recursos. Isso poderá ocorrer de diversas maneiras, porém duas podem ser prognosticadas. Uma primeira tendência seria a cartelização dos partidos (KATZ; MAIR, 2009), com estes procurando aumentar a disponibilidade de recursos de origem estatal, o que poderia colocar partidos de diferentes portes em lados opostos. Nessa direção, grandes partidos poderiam defender a concentração de recursos públicos em si mesmos, sob os argumentos do combate à fragmentação partidária e do incremento da governabilidade, ao passo que pequenas siglas propugnariam maior dispersão dos recursos estatais no sentido do fortalecimento do pluralismo e da competição política. A segunda tendência seria a retomada da busca pela sustentação militante (que os referidos autores denominam party on the ground), em face dos ocupantes de cargos públicos (party in public office) e da burocracia partidária (party in central office), especialmente durante as campanhas. Possibilidade nesse sentido é o uso intensivo de novas tecnologias, como as doações pela internet, ou mesmo, o que não é excludente, a aposta no trabalho de base, mais orientado ideologicamente. De outro lado, como até o momento não houve alteração nos limites de gastos de pessoas físicas, indivíduos mais ricos continuarão a ser um alvo dos partidos mais próximos do tipo catch-all, tanto para financiá-los, quanto para colocarem recursos próprios, aí na condição de candidatos. Em suma, o programa de pesquisa estimulado pela mudança institucional em exame tem como um de seus pontos fundamentais o monitoramento das estratégias partidárias a partir das posições relativas que as siglas terão nos fluxos Mudança institucional e financiamento político: o papel dos partidos nas eleições de 2014 379 de financiamento. Isso poderá ser feito a partir da consolidação dos dados das eleições municipais de 2016 e das eleições gerais de 2018, cotejando-os com os dados das eleições correspondentes anteriores. Referências ARAÚJO, G. B. (2008). O deficit entre acordado e realizado no Mercosul. Dissertação (Mestrado) – Universidade de São Paulo, São Paulo. BANDEIRA DE MELLO, R.; MARCON, R.; ALBERTON, A. (2008). Drivers of discretionary firm donations in Brazil. Brazilian Administration Review, v. 5, n. 4, p. 275-288. BOAS, T. C.; HIDALGO, F. D.; RICHARDSON, N. P. (2014). The spoils of victory: campaign donations and government contracts in Brazil. The Journal of Politics, v. 76, n. 2, p. 415-429. BRASIL. Lei nº 13.165, de 29 de setembro de 2015. Altera as Leis nos 9.504, de 30 de setembro de 1997, 9.096, de 19 de setembro de 1995, e 4.737, de 15 de julho de 1965 (Código Eleitoral), para reduzir os custos das campanhas eleitorais, simplificar a administração dos Partidos Políticos e incentivar a participação feminina. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 29 set. 2015. Disponível em: <http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13165.htm>. Acesso em: 3 jun. 2017. BRASIL. Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997. Estabelece normas para as eleições. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 1 out. 1997. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/ L9504.htm>. Acesso em: 11 dez. 2016. BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Resolução nº 23.406, de 30 de setembro de 1997. Dispõe sobre a arrecadação e os gastos de recursos por partidos políticos, candidatos e comitês financeiros e, ainda, sobre a prestação de contas nas Eleições de 2014, Brasília, DF. Disponível em: <http://www.tse. jus.br/eleicoes/eleicoes-anteriores/eleicoes-2014/normas-e-documentacoes/ resolucao-no-23.406>. Acesso em: 27 maio 2017. 380 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO ______. Repositório de dados eleitorais. Disponível em: <http://www.tse.jus. br/eleicoes/estatisticas/repositorio-de-dados-eleitorais>. Acesso em: 28 ago. 2019. CERVI, E. U. (2010). Financiamento de campanhas e desempenho eleitoral no Brasil: análise das contribuições de pessoas físicas, jurídicas e partidos políticos às eleições de 2008 nas capitais de Estado. Revista Brasileira de Ciência Política, v. 4, p. 135-167. CLÈVE, A. C. C. (2016). As instituições contam? influência da Resolução/ TSE nº 23.406 nos padrões de comportamento dos financiadores de campanha nas eleições 2010 e 2014. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba. CONFIRA 10 novas regras que o TSE aprovou para as eleições deste ano. G1. 6 abr. 2014. Disponível em: <http://g1.globo.com/politica/eleicoes/2014/ noticia/2014/04/confira-10-novas-regras-que-o-tse-aprovou-para-eleicoesdeste-ano.html>. Acesso em: 3 jun. 2017. FALGUERA, E.; JONES, S.; OHMAN, M. (2014). Funding of political parties and election campaigns: a handbook on political finance. Stockholm: International Idea (International Institute for Democracy and Electoral Assistance). FIGUEIREDO FILHO, D. B. (2009). O elo corporativo? grupos de interesse, financiamento de campanha e regulação eleitoral. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife. FORTIER, J. C.; MALBIN, M. J. (2013). An agenda for future research on money in politics in the United States. The Forum, v. 11, n. 3, p. 455-479. CERTEZA de vitória: JBS comprou partidos das coligações de Dilma e Aécio em 2014. Gazeta do Povo, Curitiba, 19 maio 2017. Disponível em: <http://www.gazetadopovo.com.br/politica/republica/certeza-devitoria-jbs-comprou-partidos-das-coligacoes-de-dilma-e-aecio-em-20146gw44iisgklee0iwdv6d585ld>. Acesso em: 19 jun. 2017. Mudança institucional e financiamento político: o papel dos partidos nas eleições de 2014 381 HOROCHOVSKI, R. R.; JUNCKES, I. J.; SILVA, E. A.; SILVA, J. M.; CAMARGO, N. F. (2015). Redes de partidos políticos tecidas por financiadores: um estudo das eleições de 2010 no Brasil. Teoria & Sociedade, v. 23, n. 2, p. 49-78. ______; ______; ______; ______; ______ (2016). Estruturas de poder nas redes de financiamento político nas eleições de 2010 no Brasil. Opinião Pública, v. 22, n. 1, p. 28-55. IMMERGUT, E. O núcleo teórico do novo institucionalismo. In: SARAVIA, E.; FERRAREZI, E. (Org.). Políticas públicas: coletânea. Brasília: Enap. v. 1, p. 155-195. KATZ, R.; MAIR, P. (2009). The cartel party thesis: a restatement. Perspectives on Politics, v. 7, n. 4, p. 753-766. LEMOS, L. B.; MARCELINO, D.; PEDERIVA, J. H. (2010). Porque dinheiro importa: a dinâmica das contribuições eleitorais para o Congresso Nacional em 2002 e 2006. Opinião Pública, v. 16, n. 2, p. 366-396. MAHONEY, J.; THELEN, K., 2009. Explaining institutional change: ambiguity, agency, and power. New York: Cambridge Univ. Press. MANCUSO, W. P. (2015). Investimento eleitoral no Brasil: balanço da literatura (2001-2012) e agenda de pesquisa. Revista de Sociologia e Política, v. 23, n. 54, p. 155-183. ______; HOROCHOVSKI, R. R.; CAMARGO, N. F. (2016). Empresários e financiamento de campanhas na eleição presidencial brasileira de 2014. Teoria & Pesquisa, v. 25, n. 3, p. 38-64. ______; SPECK, B. W. (2012). Financiamento empresarial e desempenho eleitoral no Brasil: um estudo das eleições para deputado federal em 2010. In: WORKSHOP EMPRESA, EMPRESÁRIOS E SOCIEDADE, 3., 2012, Curitiba. [Anais...]. Curitiba: 8WEES. MARCHETTI, Vitor. (2008). Poder judiciário e competição política no Brasil: uma análise das decisões do TSE e do STF sobre as regras eleitorais. Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. 382 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO MENEGUELLO, R. (1989). PT: a formação de um partido, 1979-1982. Rio de Janeiro: Paz e Terra. MEZZARANA, F. S. (2011). Poder econômico na política: a influência dos financiadores de campanha na atuação parlamentar. 2011. Monografia (Graduação em Gestão de Políticas Públicas) – Universidade de São Paulo, São Paulo. PEIXOTO, V. M. (2010). Eleições e financiamento de campanhas no Brasil. Tese (Doutorado) – Instituto Universitário de Pesquisas do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. PRINCIPAIS financiadores optaram por doação oculta. Folha de S.Paulo, 7 maio 2011. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/ po0705201109.htm>. Acesso em: 3 jun. 2017. ROCHA, D. (2011). Relações entre dispêndios do BNDES e financiamento eleitoral no governo Lula: uma análise empírica. In: ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM CIÊNCIAS SOCIAIS, 35., 2011, Caxambu. [Anais...]. Caxambu, MG: ANPOCS. SACCHET, T.; SPECK, B.W. (2011). Partidos políticos e (sub)representação feminina nas esferas legislativas: um estudo sobre recrutamento eleitoral e financiamento de campanhas. In: CONFERÊNCIA IPSA-ECPR “WHATEVER HAPPENED TO NORTH SOUTH?”, 2011, São Paulo. [Anais…]. São Paulo: IPSA. SAMUELS, D. (2001). Money, elections, and democracy in Brazil. Latin American Politics and Society, v. 43, n. 2, p. 27-48. ______ (2002). Pork barreling is not credit claiming or advertising: campaign finance and the source of the personal vote in Brazil. The Journal of Politics, v. 64, n. 3, p. 845-863. SANTOS, M. L. (2011). O parlamento sob influência: o lobby da indústria na Câmara dos Deputados. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife. Mudança institucional e financiamento político: o papel dos partidos nas eleições de 2014 383 SANTOS, R. D. (2009). A economia política das eleições 2002: um estudo sobre a concentração de financiamento de campanha para deputado federal. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal Fluminense, Niterói. TOKAJI, D. P.; STRAUSE, R. E. (2014). The new soft money: outside spending in congressional elections. Columbus: Ohio State Univ. Moritz of Law. TSE exige identificação da origem de doações. Folha de S.Paulo., São Paulo, 1º abr. 2014. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com. br/fsp/poder/159210-tse-exige-identificacao-da-origem-de-doacoes. shtml?cmpid=hardassinanteuol>. Acesso em: 3 jun. 2017. TSE tenta dificultar doações ocultas nas campanhas. O Estado de S.Paulo, 1º abr. 2014a. Disponível em: <http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,tsetenta-dificultar-doacoes-ocultas-nas-campanhas,1147948>. Acesso em: 3 jun. 2017. TSEBELIS, G. (1998). Jogos ocultos: escolha racional no campo da política comparada. São Paulo: Edusp. 384 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Anexos Anexo 1 R$ % R$ % R$ % PMDB 479.390.740,72 26,8 31.208.894,57 19,5 7.797.884,20 21,2 PSDB 311.080.025,33 17,4 4.618.505,00 2,9 7.879.288,74 21,4 PT 277.886.753,35 15,5 419.976,82 0,3 3.695.984,51 10,0 PSD 123.059.398,48 6,9 6.994.206,59 4,4 1.425.101,74 3,9 PP 108.069.419,33 6,0 19.710.872,56 12,3 1.027.337,00 2,8 PR 71.370.341,17 4,0 34.930.550,83 21,9 322,00 0,0 PSB 89.280.943,47 5,0 2.929.004,16 1,8 1.440.636,30 3,9 DEM 78.833.418,83 4,4 14.465.030,00 9,1 646.712,55 1,8 PTB 64.450.887,88 3,6 814.393,72 0,5 1.072.000,00 2,9 SD 55.134.744,96 3,1 971.093,52 0,6 480.838,00 1,3 PROS Físicas 36.641.212,22 2,0 15.972,12 0,0 3.186.750,00 8,7 PCdoB Pessoas 26.901.390,84 1,5 3.539.160,36 2,2 1.432.669,07 3,9 PV Fundo Partidário 9.191.699,30 0,5 12.779.604,01 8,0 773.401,21 2,1 PRB Pessoas Jurídicas 9.105.514,35 0,5 9.626.572,73 6,0 249.199,90 0,7 PDT Partido Origens dos recursos partidários (em R$) 5.418.229,05 0,3 5.029.858,37 3,1 445.512,14 1,2 R$ % R$ % R$ % PSC 9.309.274,94 0,5 1.522.440,79 1,0 21.009,20 0,1 PTN 8.719.430,95 0,5 240.111,60 0,2 1.215.146,92 3,3 PPS 8.523.138,66 0,5 1.374.816,42 0,9 251.957,62 0,7 PMN 5.300.439,30 0,3 1.174.956,45 0,7 14.025,00 0,0 PSL 1.822.048,78 0,1 3.480.269,62 2,2 151.700,00 0,4 PEN 2.916.039,53 0,2 1.101.690,97 0,7 80.908,65 0,2 PCB 0,00 0,0 53.364,69 0,0 1.570.242,64 4,3 PRTB 2.657.217,70 0,1 284.505,16 0,2 76.746,00 0,2 PTdoB 881.666,29 0,0 823.734,26 0,5 787.231,60 2,1 PHS 1.839.300,37 0,1 7.727,90 0,0 116.160,00 0,3 PPL 1.808.138,76 0,1 22.629,31 0,0 18.677,00 0,1 PSOL 275.000,00 0,0 1.274.865,27 0,8 187.521,19 0,5 PRP 1.048.552,76 0,1 11.377,29 0,0 42.116,00 0,1 PSDC Físicas 446.847,85 0,0 98.505,43 0,1 253.494,08 0,7 PSTU Pessoas 9.500,00 0,0 83.833,70 0,1 445.574,12 1,2 PTC Fundo Partidário 369.860,00 0,0 90.172,57 0,1 26.109,50 0,1 PCO Pessoas Jurídicas 0,00 0,0 32.534,92 0,0 0,00 0,0 TOTAL Partido Mudança institucional e financiamento político: o papel dos partidos nas eleições de 2014 1.791.741.175,17 87,1 159.731.231,71 7,8 36.812.256,88 1,8 385 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Outros candidatos Não Partidos Total % R$ % R$ % R$ % 619.181,52 21,3 408.171,99 2,6 6.675.430,67 13,6 525.692.131,68 25,6 425.059,91 14,6 2.245.910,39 14,1 5.279.231,86 10,8 329.282.110,84 16,0 PT 73.784,50 2,5 1.455.868,20 9,1 9.465.918,99 19,3 291.542.418,17 14,2 PSD 4.987,02 0,2 1.929.372,00 12,1 925.531,00 1,9 132.409.224,83 6,4 PP 4.159,68 0,1 1.159.336,84 7,3 2.456.220,31 5,0 131.268.008,88 6,4 PR 0,00 0,0 0,00 0,0 16.295,04 0,0 106.317.509,04 5,2 PSB 1.399,63 0,0 2.068.621,77 13,0 4.663.895,95 9,5 98.315.879,51 4,8 DEM 64.986,00 2,2 7.138,33 0,0 230.174,42 0,5 94.240.321,80 4,6 PTB 630.080,94 21,7 878.570,32 5,5 4.215.031,91 8,6 71.182.394,45 3,5 SD 3.336,00 0,1 44.225,00 0,3 906.197,10 1,9 57.496.209,58 2,8 PROS 22.905,98 0,8 258.090,90 1,6 769.586,98 1,6 40.636.427,30 2,0 PCdoB 396.149,36 13,6 1.333.800,00 8,4 3.941.740,58 8,0 36.211.110,21 1,8 PV 3.500,00 0,1 24.979,50 0,2 964.500,89 2,0 23.712.705,41 1,2 PRB 9.500,00 0,3 5.105,53 0,0 1.442.264,56 2,9 20.433.051,54 1,0 PDT 0,00 0,0 18.403,00 0,1 1.313.857,35 2,7 12.207.456,91 0,6 24.141,80 0,8 12.742,25 0,1 843.181,71 1,7 11.720.048,44 0,6 23.538,89 0,8 551.264,32 3,5 320.487,67 0,7 10.518.716,03 0,5 242.064,24 8,3 456.835,02 2,9 115.746,82 0,2 10.507.723,76 0,5 PSDB PMDB R$ PSC Identificável PTN E comitês PPS Partido 386 Outros candidatos Não Partidos Total % R$ % R$ % R$ % PMN 1.225,02 0,0 245.722,20 1,5 236.672,70 0,5 6.727.318,47 0,3 PSL 27.320,00 0,9 132.060,00 0,8 232.480,81 0,5 5.713.819,21 0,3 PEN 79,48 0,0 33.600,00 0,2 309.554,12 0,6 4.408.272,75 0,2 PCB 73.601,71 2,5 2.314.890,70 14,5 1.635.070,07 3,3 3.332.279,11 0,2 5.280,00 0,2 0,00 0,0 66.770,89 0,1 3.090.519,75 0,2 51.929,45 1,8 800,00 0,0 533.465,02 1,1 3.078.026,62 0,1 PHS 17.311,80 0,6 182.800,00 1,1 476.053,95 1,0 2.456.554,02 0,1 PPL 42.237,55 1,5 24.705,33 0,2 440.028,41 0,9 2.331.711,03 0,1 PSOL 0,00 0,0 16.500,00 0,1 47.452,68 0,1 1.784.839,14 0,1 PRP 11.377,29 0,4 0,00 0,0 81.359,91 0,2 1.194.783,25 0,1 PSDC 500,00 0,0 135.822,00 0,9 59.569,27 0,1 858.916,63 0,0 PSTU 0,00 0,0 0,00 0,0 276.934,83 0,6 815.842,65 0,0 125.234,00 4,3 0,00 0,0 22.990,01 0,0 634.366,08 0,0 0,00 0,0 0,00 0,0 4.171,37 0,0 36.706,29 0,0 2.904.871,77 0,1 15.945.335,59 0,8 48.967.867,85 2,4 PTdoB PRTB R$ PTC Identificável PCO E comitês 387 TOTAL Partido Mudança institucional e financiamento político: o papel dos partidos nas eleições de 2014 Fonte: dados do TSE. Elaboração dos autores. 2.056.102.738,97 100,0 388 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Anexo 2 Transferência de recursos pelos diretórios nacionais na eleição de 2014 (em R$) Intrapartidário PARTIDO Nacional % Estadual % Subtotal 1 % PRB 3.806.015,10 26,6 10.517.840,73 73,4 14.323.855,83 100,0 PP 12.092.495,13 13,9 74.034.746,43 85,0 86.677.241,56 98,9 PDT 850.000,00 33,7 1.671.000,00 66,3 2.521.000,00 100,0 PT 22.045.000,00 11,4 170.539.360,47 88,1 193.534.360,47 99,5 PTB 129.500,00 1,5 8.661.757,50 98,5 8.791.257,50 100,0 PMDB 36.837.530,40 15,2 190.543.744,07 78,7 236.981.274,47 94,0 PSTU 87.164,70 89,8 9.860,00 10,2 97.024,70 100,0 PSL 1.777.990,00 50,2 1.736.208,85 49,0 3.514.198,85 99,2 PTN - 0,0 5.928.255,10 100,0 5.928.255,10 100,0 PSC 2.043.700,00 30,0 4.661.014,19 68,3 6.704.714,19 98,3 PCB 53.364,69 100,0 - 0,0 53.364,69 100,0 PR 16.514.313,16 19,9 65.879.090,69 79,6 82.393.403,85 99,5 PPS 30.000,00 1,0 2.862.900,00 99,0 2.892.900,00 100,0 DEM 6.710.000,00 11,2 45.261.970,00 75,8 57.261.970,00 87,0 PSDC 200.767,27 91,3 19.075,50 8,7 219.842,77 100,0 PRTB 243.428,88 75,7 78.337,28 24,3 321.766,16 100,0 PCO 10.799,99 29,4 25.906,30 70,6 36.706,29 100,0 Mudança institucional e financiamento político: o papel dos partidos nas eleições de 2014 389 Intrapartidário PARTIDO Nacional % Estadual % Subtotal 1 % PHS 136.000,00 17,7 383.170,00 49,8 769.170,00 67,5 PMN 422.242,30 15,5 2.120.685,77 78,1 2.542.928,07 93,6 PTC - 0,0 33.812,56 100,0 33.812,56 100,0 PSB 18.726.510,58 35,9 33.297.635,22 63,8 52.024.145,80 99,6 PV 10.956.434,27 75,5 3.554.494,96 24,5 14.510.929,23 100,0 PRP - 0,0 256.240,00 100,0 256.240,00 100,0 PSDB 63.944.949,83 36,9 104.556.614,98 60,4 169.120.064,81 97,3 PSOL 531.874,25 71,7 210.352,03 28,3 742.226,28 100,0 PEN - 0,0 2.033.945,97 99,8 2.033.945,97 99,8 PPL 136.000,00 10,7 1.138.000,00 89,3 1.274.000,00 100,0 PSD 3.287.227,58 5,6 55.497.227,58 94,4 58.784.455,16 100,0 PC do B 1.660.014,00 8,7 17.359.216,00 91,3 19.019.230,00 100,0 PT do B 408.402,23 34,5 408.402,23 34,5 1.001.054,46 68,9 SD - 0,0 29.730.009,00 100,0 29.730.009,00 100,0 PROS - 0,0 3.310.000,00 78,0 3.310.000,00 78,0 TOTAL 203.641.724,36 19,0 836.320.873,41 78,1 1.057.405.347,77 97,1 390 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Interpartidário PARTIDO TOTAL % Nacional % Estadual % Subtotal 2 % PRB - 0,0 - 0,0 – 0,0 14.323.855,83 100,0 PP 550.000,00 0,6 450.000,00 0,5 1.000.000,00 1,1 87.127.241,56 100,0 PDT - 0,0 - 0,0 – 0,0 2.521.000,00 100,0 PT 950.000,00 0,5 101.396,00 0,1 1.051.396,00 0,5 193.635.756,47 100,0 PTB - 0,0 2.500,00 0,0 2.500,00 0,0 8.793.757,50 100,0 PMDB 9.600.000,00 4,0 5.001.100,00 2,1 14.601.100,00 6,0 241.982.374,47 100,0 PSTU - 0,0 - 0,0 – 0,0 97.024,70 100,0 PSL - 0,0 30.000,00 0,8 30.000,00 0,8 3.544.198,85 100,0 PTN - 0,0 150,00 0,0 150,00 0,0 5.928.405,10 100,0 Mudança institucional e financiamento político: o papel dos partidos nas eleições de 2014 391 Interpartidário PARTIDO TOTAL % Nacional % Estadual % Subtotal 2 % PSC - 0,0 118.000,00 1,7 118.000,00 1,7 6.822.714,19 100,0 PCB - 0,0 - 0,0 - 0,0 53.364,69 100,0 PR - 0,0 400.000,00 0,5 400.000,00 0,5 82.793.403,85 100,0 PPS - 0,0 - 0,0 – 0,0 2.892.900,00 100,0 DEM 5.290.000,00 8,9 2.445.000,00 4,1 7.735.000,00 13,0 59.706.970,00 100,0 PSDC - 0,0 - 0,0 – 0,0 219.842,77 100,0 PRTB - 0,0 - 0,0 – 0,0 321.766,16 100,0 PCO - 0,0 - 0,0 – 0,0 36.706,29 100,0 392 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Interpartidário PARTIDO TOTAL % Nacional % Estadual % Subtotal 2 % PHS 250.000,00 32,5 - 0,0 250.000,00 32,5 769.170,00 100,0 PMN - 0,0 173.800,00 6,4 173.800,00 6,4 2.716.728,07 100,0 PTC - 0,0 - 0,0 - 0,0 33.812,56 100,0 PSB - 0,0 200.000,00 0,4 200.000,00 0,4 52.224.145,80 100,0 PV - 0,0 - 0,0 - 0,0 14.510.929,23 100,0 PRP - 0,0 - 0,0 - 0,0 256.240,00 100,0 PSDB 618.500,00 0,4 4.064.934,41 2,3 4.683.434,41 2,7 173.184.999,22 100,0 PSOL - 0,0 - 0,0 - 0,0 742.226,28 100,0 Mudança institucional e financiamento político: o papel dos partidos nas eleições de 2014 393 Interpartidário PARTIDO TOTAL % Nacional % Estadual % Subtotal 2 % PEN - 0,0 3.225,00 0,2 3.225,00 0,2 2.037.170,97 100,0 PPL - 0,0 - 0,0 - 0,0 1.274.000,00 100,0 PSD - 0,0 - 0,0 - 0,0 58.784.455,16 100,0 PC do B - 0,0 - 0,0 - 0,0 19.019.230,00 100,0 PT do B 184.250,00 15,5 184.250,00 15,5 368.500,00 31,1 1.185.304,46 100,0 SD - 0,0 - 0,0 - 0,0 29.730.009,00 100,0 PROS - 0,0 935.000,00 22,0 935.000,00 22,0 4.245.000,00 100,0 TOTAL 17.442.750,00 1,6 14.109.355,41 1,3 31.552.105,41 2,9 1.071.514.703,18 100,0 Fonte: dados do TSE. Elaboração dos autores 394 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Anexo 3 Transferência de recursos pelos diretórios estaduais na eleição de 2014 (em R$) Intrapartidário Partido Mesmo estado % Outro estado % Nacional % Subtotal 1 % PRB 3.752.753,74 94,9 100.000,00 2,5 - 0,0 3.852.753,74 97,5 PP 33.459.571,57 74,2 219.978,00 0,5 - 0,0 33.679.549,57 74,7 PDT 9.285.964,43 98,9 99.000,00 1,1 - 0,0 9.384.964,43 100,0 PT 81.218.069,25 82,1 110.716,50 0,1 16.448.359,55 16,6 97.777.145,30 98,8 PTB 57.429.714,24 91,5 3.122.486,00 5,0 - 0,0 60.552.200,24 96,4 PMDB 221.319.466,65 78,0 291.046,35 0,1 - 0,0 221.610.513,00 78,1 PSTU 697.183,78 97,7 - 0,0 5.353,47 0,8 702.537,25 98,5 PSL 2.186.411,06 97,3 4.000,00 0,2 - 0,0 2.190.411,06 97,5 PTN 2.126.050,90 41,3 - 0,0 - 0,0 2.126.050,90 41,3 PSC 4.065.811,49 81,8 - 0,0 360.000,00 7,2 4.425.811,49 89,1 PCB 16.295,04 100,0 - 0,0 - 0,0 16.295,04 100,0 PR 27.737.091,23 89,1 - 0,0 - 0,0 27.737.091,23 89,1 PPS 7.741.568,78 96,6 - 0,0 - 0,0 7.741.568,78 96,6 DEM 28.331.525,71 91,4 - 0,0 790.000,00 2,5 29.121.525,71 94,0 Mudança institucional e financiamento político: o papel dos partidos nas eleições de 2014 395 Intrapartidário Partido Mesmo estado % Outro estado % Nacional % Subtotal 1 % PSDC 303.901,24 100,0 - 0,0 - 0,0 303.901,24 100,0 PRTB 2.638.482,49 95,3 - 0,0 100.000,00 3,6 2.738.482,49 98,9 PCO - PHS 1.674.739,46 89,5 - 0,0 - 0,0 1.674.739,46 89,5 PMN 3.723.144,33 87,4 60.000,00 1,4 24.000,00 0,6 3.807.144,33 89,4 PTC 511.638,52 99,4 - 0,0 - 0,0 511.638,52 99,4 PSB 37.771.180,04 80,8 1.533.000,00 3,3 75.000,00 0,2 39.379.180,04 84,2 PV 8.281.946,67 98,6 - 0,0 - 0,0 8.281.946,67 98,6 PRP 936.802,25 100,0 - 0,0 - 0,0 936.802,25 100,0 PSDB 143.406.627,11 90,3 - 0,0 7.085.751,64 4,5 150.492.378,75 94,8 PSOL 996.720,52 95,0 - 0,0 51.000,00 4,9 1.047.720,52 99,8 PEN 2.180.497,42 90,9 - 0,0 - 0,0 2.180.497,42 90,9 PPL 1.081.787,05 99,9 629,31 0,1 - 0,0 1.082.416,36 100,0 PSD 69.256.846,55 92,1 30.000,00 0,0 - 0,0 69.286.846,55 92,2 PC do B 18.323.044,30 99,2 - 0,0 100.000,00 0,5 18.423.044,30 99,8 PT do B 1.789.301,86 94,4 60.802,40 3,2 - 0,0 1.850.104,26 97,6 - - – 396 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Intrapartidário Partido Mesmo estado % Outro estado % Nacional % Subtotal 1 % SD 26.581.295,37 96,9 150.000,00 0,5 - 0,0 26.731.295,37 97,4 PROS 8.385.578,20 22,9 250.000,00 0,7 - 0,0 8.635.578,20 23,6 TOTAL 807.211.011,25 82,7 6.031.658,56 0,6 25.039.464,66 2,6 838.282.134,47 85,9 Interpartidário Partido Total % Mesmo estado % Outro estado PRB 100.042,50 2,5 - 0,0 - 0,0 100.042,50 2,5 3.952.796,24 100,0 PP 11.398.257,04 25,3 - 0,0 - 0,0 11.398.257,04 25,3 45.077.806,61 100,0 PDT 1.915,00 0,0 - 0,0 - 0,0 1.915,00 0,0 9.386.879,43 100,0 PT 1.169.451,80 1,2 - 0,0 - 0,0 1.169.451,80 1,2 98.946.597,10 100,0 PTB 2.243.800,00 3,6 - 0,0 - 0,0 2.243.800,00 3,6 62.796.000,24 100,0 PMDB 61.813.707,89 21,8 140.000,00 0,0 32.750,00 0,0 61.986.457,89 21,9 283.596.970,89 100,0 % Nacional % Subtotal 2 % Mudança institucional e financiamento político: o papel dos partidos nas eleições de 2014 397 PSTU 10.927,39 1,5 - 0,0 80,00 0,0 11.007,39 1,5 713.544,64 100,0 PSL 55.769,30 2,5 - 0,0 - 0,0 55.769,30 2,5 2.246.180,36 100,0 PTN 3.019.524,35 58,7 - 0,0 - 0,0 3.019.524,35 58,7 5.145.575,25 100,0 PSC 542.681,01 10,9 - 0,0 - 0,0 542.681,01 10,9 4.968.492,50 100,0 PCB - 0,0 - 0,0 - 0,0 – 0,0 16.295,04 100,0 PR 3.410.204,60 10,9 - 0,0 - 0,0 3.410.204,60 10,9 31.147.295,83 100,0 PPS 255.940,00 3,2 - 0,0 13.000,00 0,2 268.940,00 3,4 8.010.508,78 100,0 DEM 1.873.630,00 6,0 - 0,0 - 0,0 1.873.630,00 6,0 30.995.155,71 100,0 PSDC - 0,0 - 0,0 - 0,0 – 0,0 303.901,24 100,0 PRTB 30.370,10 1,1 - 0,0 - 0,0 30.370,10 1,1 2.768.852,59 100,0 398 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO PCO - PHS 195.444,56 10,5 - 0,0 - 0,0 195.444,56 10,5 1.870.184,02 100,0 PMN 391.190,27 9,2 - 0,0 61.800,00 1,5 452.990,27 10,6 4.260.134,60 100,0 PTC 3.020,00 0,6 - 0,0 - 0,0 3.020,00 0,6 514.658,52 100,0 PSB 7.384.452,36 15,8 - 0,0 - 0,0 7.384.452,36 15,8 46.763.632,40 100,0 PV 115.837,68 1,4 - 0,0 - 0,0 115.837,68 1,4 8.397.784,35 100,0 PRP - 0,0 - 0,0 - 0,0 – 0,0 936.802,25 100,0 PSDB 8.137.431,24 5,1 - 0,0 150.000,00 0,1 8.287.431,24 5,2 158.779.809,99 100,0 PSOL 2.000,00 0,2 - 0,0 - 0,0 2.000,00 0,2 1.049.720,52 100,0 PEN 218.895,71 9,1 - 0,0 - 0,0 218.895,71 9,1 2.399.393,13 100,0 - - - – Mudança institucional e financiamento político: o papel dos partidos nas eleições de 2014 399 PPL - 0,0 - 0,0 - 0,0 – 0,0 1.082.416,36 100,0 PSD 5.897.324,00 7,8 - 0,0 - 0,0 5.897.324,00 7,8 75.184.170,55 100,0 PC do B 40.000,00 0,2 - 0,0 - 0,0 40.000,00 0,2 18.463.044,30 100,0 PT do B 46.337,90 2,4 - 0,0 - 0,0 46.337,90 2,4 1.896.442,16 100,0 SD 712.150,60 2,6 - 0,0 - 0,0 712.150,60 2,6 27.443.445,97 100,0 PROS 28.011.215,00 76,4 - 0,0 - 0,0 28.011.215,00 76,4 36.646.793,20 100,0 TOTAL 137.081.520,30 14,0 140.000,00 0,0 257.630,00 0,0 137.479.150,30 14,1 975.761.284,77 100,0 Fonte: dados do TSE. Elaboração dos autores. Parte III O poder das comissões em movimento 403 Do plenário às comissões: mudança institucional na Câmara dos Deputados Acir Almeida Introdução Os estudos sobre a produção legislativa no pós-1988 costumam destacar três padrões: forte dominância do Poder Executivo, atuação reativa do Congresso e predomínio do plenário nas deliberações, com consequente escanteamento do sistema de comissões (FIGUEIREDO; LIMONGI, 2001; PEREIRA; MUELLER, 2000). De fato, esses aspectos predominaram até o início dos anos 2000. Desde então, contudo, ocorreram mudanças substanciais: leis presidenciais perderam espaço para as de origem parlamentar e as comissões passaram a participar com mais frequência das deliberações, tendo suas decisões inclusive natureza final (ALMEIDA, 2015). Essas mudanças são indicativas de inédito e intrigante protagonismo legislativo do Congresso e, mais especificamente, dos sistemas de comissões das suas Casas. O fenômeno, contudo, não encontra explicação satisfatória na literatura. Este capítulo oferece uma investigação empírica da participação das comissões da Câmara dos Deputados no processo legislativo. Com base no universo de iniciativas de lei não orçamentárias de origem presidencial ou parlamentar, aprovadas pelos deputados em cada uma das seis legislaturas do período 1991-2014, realizam-se análises descritivas quantitativas da frequência com que se permitiu que as comissões exercessem sua função institucional, de examinar e dar parecer às proposições de lei, e da frequência com que se delegou a elas a palavra final no processo decisório. Além disso, propõe-se uma explicação original para as variações longitudinais observadas naqueles dois fenômenos, assentada na ideia de que elas refletem diferentes escolhas de maiorias de deputados a respeito da delegação de poderes de agenda – e, por extensão, da própria organização do processo legislativo –, 404 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO escolhas essas condicionadas pela distribuição das preferências parlamentares. Para sustentar essa hipótese, apresenta-se evidência empírica original. A título de antecipação, a análise descritiva revela forte crescimento da participação das comissões da Câmara dos Deputados no processo decisório, ao longo dos anos 2000. Conquanto, nas legislaturas de 1995-1998 e 1999-2002, a maior parte das iniciativas de lei aprovadas pelos deputados seguiu processos legislativos que impossibilitam ou restringem a atuação institucional do sistema de comissões, nas legislaturas seguintes inverteu-se esse quadro, com as comissões recebendo delegação do plenário para dar a palavra final sobre a maioria absoluta das proposições aprovadas. Embora isso se deva, em boa medida, ao progressivo aumento da produção legislativa de origem congressual, quando se analisam exclusivamente as iniciativas de lei presidenciais observa-se que, especialmente nesse caso, houve forte aumento no protagonismo das comissões. Evidência produzida por meio de um modelo de regressão Logit multinomial das probabilidades de diferentes processos legislativos é consistente com a hipótese de que o recente crescimento do protagonismo das comissões (e consequente secundarização do plenário) decorreu de mudanças na distribuição das preferências parlamentares, mais precisamente da diminuição da polarização entre a maioria governista e a minoria opositora. A evidência também mostra que essa hipótese se ajusta melhor aos dados que outras, disponíveis na literatura. O restante deste capítulo está organizado em mais quatro seções. Na próxima, descrevem-se brevemente algumas regras do processo legislativo da Câmara dos Deputados, particularmente os dispositivos que conferem centralidade ao sistema de comissões permanentes e os que permitem contorná-lo, de maneira a transferir a deliberação para o plenário da Casa. Na terceira seção, realiza-se análise descritiva da frequência de uso desses dispositivos, por meio da qual se revelam padrões de evolução do protagonismo das comissões e do plenário. Na quarta, se oferece uma explicação teoricamente fundamentada para esses padrões e evidência empírica para apoiá-la. Por último, na quinta seção, apresentam-se um breve resumo dos principais achados e algumas considerações finais. Do plenário às comissões: mudança institucional na Câmara dos Deputados 405 Processos legislativos O Regimento Interno da Câmara dos Deputados (RICD) estabelece que toda proposição de lei deve ser inicialmente distribuída a pelo menos uma comissão permanente, para exame do mérito, de acordo com a pertinência da matéria às áreas ou temas de política pública de competência exclusiva de cada comissão. Excepcionalmente, para projetos de código ou cuja matéria é pertinente a mais de três comissões, deve-se constituir comissão especial ad hoc, em substituição às permanentes com jurisdição sobre a matéria, mas formada por pelo menos metade dos seus titulares. É nas comissões que a proposição e eventuais emendas a ela apresentadas devem ser discutidas e, por fim, um parecer final deve ser aprovado, recomendando a rejeição ou aprovação da matéria, com ou sem alteração. Relativamente ao plenário, nas comissões são mais amplas as oportunidades de exame e debate. É onde se realizam audiências públicas, para se ouvir especialistas, e as discussões são abertas à participação de parlamentares individuais. A exigência de que sua composição siga o princípio da proporcionalidade da representação partidária garante espaço de atuação às minorias. Como esse princípio também se aplica à distribuição das suas presidências, e tendo em vista que os presidentes detêm a prerrogativa exclusiva de designar os relatores das proposições, as comissões conferem capacidade de influência efetiva a partidos minoritários. Note-se ainda que, embora o regimento estabeleça prazos para a conclusão dos trabalhos das comissões, não há qualquer mecanismo de encaminhamento automático de proposições que tramitam em regime ordinário, quando aqueles prazos se esgotam totalmente.117 Pareceres de comissão especial e de comissões permanentes, desde que convergentes, dispensam apreciação em plenário, salvo no caso de matéria reservada a lei complementar e poucas outras exceções (art. 24 do RICD). Esse poder de apreciação conclusiva das comissões permite, a princípio, que se decidam a grande maioria das iniciativas de lei exclusivamente no âmbito dessas arenas. Contudo, o Regimento garante ao plenário o direito de dar a palavra final sobre qualquer matéria, bastando para tanto que uma maioria aprove recurso contra o 117 Somente o presidente da Câmara pode determinar a retirada de proposição da comissão quando seus prazos regimentais se esgotam (art. 52 do RICD). Contudo, até onde foi possível apurar, essa prerrogativa nunca foi utilizada com frequência significativa. 406 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO poder conclusivo. Nesse caso, a inclusão da proposição, junto com o parecer das comissões, na pauta do plenário fica a cargo do presidente da Câmara. Não havendo recurso, considera-se a matéria aprovada (ou rejeitada) automaticamente, na forma do parecer das comissões. Não obstante a centralidade que o regimento confere ao sistema de comissões no processo legislativo, existem dispositivos regimentais e constitucionais que permitem contorná-lo. O primeiro deles é a “urgência”, que estabelece regime de tramitação abreviado e da qual podem se valer o Plenário da Câmara e o presidente da República. O RICD permite que uma maioria do plenário, mediante aprovação de requerimento submetido por pelo menos um terço dos deputados (ou líderes que representem esse número), adote regime de urgência para qualquer projeto de lei (doravante PL), a qualquer momento da sua tramitação, mesmo que as comissões não tenham concluído seus pareceres (arts. 154 e 155 do RICD). Um PL em regime de urgência passa a ocupar o primeiro lugar da pauta do plenário na sessão imediata, para discussão e votação. No caso de já haver duas matérias em regime de urgência, tanto a apresentação como a aprovação de novo requerimento requer maioria absoluta dos deputados. Aprovando-se a urgência com essa maioria qualificada, o PL pode ser votado imediatamente, na mesma sessão em que tenha sido requerida. A Constituição Federal de 1988 (CF/1988), por sua vez, confere ao presidente o poder unilateral de atribuir urgência somente a PLs de sua inciativa, a qualquer tempo, impondo-se, assim, prazo de 45 dias para que o Congresso conclua a deliberação (CF, art. 64). O outro dispositivo, também previsto na CF/1988, é a medida provisória (doravante MP). De uso exclusivo do presidente da República, a MP é um instrumento de proposição de lei ordinária, restrito a casos de relevância e urgência, que tem força imediata de lei, mas requer posterior aprovação do Congresso (art 62). São poucas as restrições materiais ao uso desse dispositivo, entre elas algumas matérias de código e as reservadas a lei complementar. Diferentemente do PL, MPs não passam pelo sistema de comissões da Câmara, sendo distribuídas a comissões mistas ad hoc, para exame de admissibilidade (inclusive sua relevância e urgência) e mérito. Em seguida, devem ser necessariamente votadas em plenário, dentro de prazo constitucionalmente definido, com ou sem parecer da comissão. Esse dispositivo sofreu modificações substanciais ao longo do pós-1988, sendo três delas especialmente relevantes para os propósitos desta análise, quais Do plenário às comissões: mudança institucional na Câmara dos Deputados 407 sejam: (i) a “autorização” dada pelo Congresso, no início de 1989, por meio do Parecer nº 1, de 1989, para que o Executivo reeditasse medidas não votadas no prazo constitucional, de maneira a preservar a validade delas; (ii) a revogação dessa autorização pela Emenda Constitucional nº 32, de setembro de 2001, que também alongou o prazo total de deliberação, de 30 para 120 dias; e (iii) a simultânea instituição do trancamento automático da pauta do plenário sempre que uma MP não seja votada até o 45º dia da sua edição, impedindo a deliberação que qualquer outra matéria legislativa nessa arena, até que se conclua a apreciação da medida pelos deputados. A possibilidade de reeditar continuamente MPs não votadas ampliou o poder legislativo do presidente, por duas razões: tornou desnecessário mobilizar uma maioria parlamentar para aprová-las no prazo constitucional, transferindo para o Congresso o ônus de mobilizar uma maioria de veto, e facilitou a realização de mudanças na lei, bastando para tanto alterar os textos de medidas no momento da sua reedição. Não está claro se a regra de trancamento da pauta afeta a taxa de edição de MPs e, de forma mais geral, a relação estratégica entre presidente e congressistas, na produção de leis. Porém, a ocorrência frequente de trancamentos pode ter implicações importantes para o processo legislativo, como será apontado mais adiante. A urgência e a MP são mais do que dispositivos para se agilizar a deliberação sobre matérias consideradas urgentes. Em certas circunstâncias, pode ser vantajoso para a liderança da maioria governista lançar mão deles para sistematicamente alijar do processo decisório comissões com preferências divergentes da sua (SANTOS; ALMEIDA, 2011). Esse comportamento tem potenciais implicações negativas tanto para a produção de leis como para a institucionalização do sistema de comissões. No primeiro caso, porque reduz as oportunidades de exame e debate de proposições. No segundo, porque reduz os benefícios esperados pelos membros das comissões de se especializarem nos temas sobre os quais a comissão detém jurisdição. Encontra-se fartamente documentado na literatura que, pelo menos até o início dos anos 2000, predominaram processos legislativos que privilegiam o plenário, em detrimento das comissões. Mais especificamente, a liderança da maioria governista recorreu intensamente a MPs e, em boa medida, à urgência, principalmente a regimental, para avançar a agenda do governo, contribuindo, assim, para que as comissões fossem relegadas a papel secundário, 408 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO se não subordinado aos interesses do Executivo. A constatação dessa situação levou Figueiredo e Limongi (2007, p. 168) a concluir que “o lócus decisório por excelência é o plenário e não as comissões”. Contudo, mudanças recentes na produção legislativa questionam a atualidade dessa caracterização. Na próxima seção, com base em dados que contemplam anos mais recentes, verifica-se em que medida se tem privilegiado ou o plenário ou as comissões, no processo legislativo da Câmara dos Deputados. Do plenário às comissões Esta seção investiga o uso de dispositivos extraordinários – no caso, urgência e MP – e a participação das comissões permanentes no processo legislativo da Câmara dos Deputados, durante as seis legislaturas do período 1991-2014. Como será mostrado a seguir, nos últimos doze anos o plenário perdeu espaço para as comissões, como protagonista no processo legislativo. Compõem a base de dados da análise as proposições de natureza não orçamentária, de lei ordinária ou complementar, originadas na Presidência da República ou no Congresso, que tramitaram segundo as regras definidas na CF/1988 e no atual regimento e, por fim, que foram aprovadas pelos deputados federais, independentemente de posteriormente terem sido convertidas em lei. Em todos os casos, considerou-se somente a decisão da Câmara anterior à deliberação do Senado (exceto, claro, pelos projetos de origem na segunda Casa). Ao todo, compõem a base de dados 5.101 proposições, distribuídas por origem e tipo conforme discriminado na tabela 1. Tabela 1 Proposições de lei não orçamentária aprovadas pelos deputados federais, por origem e tipo de proposição (1991-2014) MP* PL (ordinária) PL (complementar) Total Presidência da República 1.602 814 49 2.465 Câmara dos Deputados n.a. 2.162 40 2.202 Senado Federal Total n.a. 414 20 434 1.602 3.390 109 5.101 Fonte: elaboração do autor, com base em Câmara dos Deputados, Casa Civil da Presidência da República e Senado Federal. Notas: *inclui reedições com alteração substantiva de texto e as diferentes matérias de medidas multitemáticas; n.a.= não se aplica. Do plenário às comissões: mudança institucional na Câmara dos Deputados 409 A contagem de MPs seguiu critérios distintos, em razão de duas peculiaridades no uso desse instrumento. A primeira foi a prática, frequente a partir de 1995, de reeditar continuamente medidas não votadas pelo Congresso, muitas vezes com alteração substantiva de texto, prática que perdurou até setembro de 2001, quando foi proibida pela Emenda Constitucional nº 32 (AMORIM NETO; TAFNER, 2002, p. 10). A segunda peculiaridade, frequente desde 2009, é a inclusão de diferentes matérias, muitas vezes não relacionadas, no corpo da mesma MP (CABRAL, 2014, p. 50). A respeito das medidas reeditadas mais de uma vez, considerou-se como data de aprovação (tácita) pelos deputados o prazo constitucional para sua votação, que era de trinta dias. No caso de a medida ter sido reeditada com alteração substantiva de texto, cada reedição foi computada como uma nova proposição. Com relação às medidas multitemáticas, considerou-se como proposição em separado cada uma das diferentes matérias constantes no seu corpo, sem contar matérias eventualmente incluídas por meio de emenda parlamentar. Para cada PL verificou-se a data da sua aprovação pelos deputados, se tramitava em regime de urgência (e, se positivo, se constitucional ou regimental) e a data em que fora adotada, relativamente à data em que o último parecer de mérito havia sido aprovado em comissão. Esse último critério justifica-se pelo interesse em se analisar o uso da urgência como mecanismo de cerceamento do trabalho das comissões. Assim, consideraram-se como aprovados em regime de urgência apenas os PLs para os quais esse regime de tramitação fora adotado antes que as comissões permanentes (ou a especial) tivessem aprovado todos os seus pareceres de mérito. Por fim, verificou-se também quais projetos foram aprovados mediante poder conclusivo das comissões, sem que recurso em sentido contrário tenha sido aprovado pelo plenário. O gráfico 1, a seguir, ilustra a evolução da distribuição das proposições da amostra por legislatura e regime de tramitação. As proposições aprovadas por meio de MP constituíram maioria absoluta nas legislaturas de 1995-1998 e 1999-2002, perdendo essa posição nas legislaturas seguintes, para as proposições aprovadas mediante poder conclusivo das comissões, que chegaram a representar três quartos do que os deputados aprovaram na legislatura 2007-2010. As proposições aprovadas sob um ou outro regime de urgência ocorreram com frequência menor, sendo que o uso da regimental declinou gradativamente ao longo de todo o período, enquanto que o da constitucional foi insignificante 410 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO (menos de 5%) em todas as legislaturas. Existe um quinto conjunto de proposições, não apresentado no gráfico, que são PLs aprovados em plenário sem que regime de urgência tenha sido adotado antes de concluídos todos os pareces de mérito das comissões. Exceto pela primeira legislatura, quando representou 12% do total aprovado pelos deputados, em nenhuma das demais esse conjunto chegou a 10%. Gráfico 1 Distribuição das proposições da amostra, por legislatura e regime de tramitação Fonte: Câmara dos Deputados, Casa Civil da Presidência da República e Senado Federal. Elaboração do autor. Notas: MP: medida provisória; URGc: urgência constitucional; URGr: urgência regimental; PCT: poder conclusivo. Os dados mostram claramente que, ao longo dos anos 2000, tanto aumentou a participação das comissões permanentes nas deliberações sobre mérito – evidenciada pela forte redução relativa nas proposições aprovadas mediante MP ou adoção prematura de urgência – quanto cresceu a frequência com que decisões finais foram tomadas exclusivamente no seu âmbito, por meio do poder conclusivo. Esses movimentos são indicativos de uma mudança legislativa, na direção de tornar as comissões permanentes protagonistas na produção de leis. A validade dessa caracterização, contudo, requer que se descarte a hipótese de que a mudança decorre simplesmente de transformações no perfil da agenda legislativa. Estudos mostram que, pelo menos até o início dos anos 2000, a agenda era dominada por iniciativas do Executivo, sendo a maior parte delas Do plenário às comissões: mudança institucional na Câmara dos Deputados 411 sobre gestão da administração pública ou da política econômica, matérias que o governo geralmente tem pressa em aprovar e sobre as quais o Congresso tem menos expertise (AMORIM NETO; TAFNER, 2002, p. 11-13; FIGUEIREDO; LIMONGI, 2001, p. 61-62). Ao longo dos anos 2000, contudo, ocorreram duas alterações significativas no perfil da agenda: crescimento absoluto e relativo tanto da produção legislativa de origem congressual quanto de matérias que versam sobre questões sociais ou de natureza simbólica (ALMEIDA, 2015; CARNEIRO, 2009; GOMES, 2013, p. 112). Quaisquer que sejam as causas dessa alteração de perfil, o ponto a ser destacado é que o maior protagonismo das comissões pode ser reflexo do crescimento de proposições de origem parlamentar, por um lado, e de matérias sociais e simbólicas, por outro, pela simples razão de ser menos frequente o recurso à urgência e a MP para agilizar a aprovação de proposições desses tipos. Para avaliar essa hipótese, analisou-se a evolução do uso dos dispositivos extraordinários e do poder conclusivo, separadamente para iniciativas de origem parlamentar e presidencial, controlando-se pelo conteúdo da proposição e, por fim, excluindo-se os 109 projetos de lei complementar da amostra original (tabela 1), em razão de não serem sujeitos ao poder conclusivo das comissões nem poderem ser objeto de MP. Classificou-se o conteúdo da proposição segundo duas dimensões separadas, quais sejam o tema e a natureza da matéria. Para a primeira, utilizou-se um esquema classificatório com cinco categorias, quais sejam: administração pública; relações e políticas de Estado; economia (macro); economia (outros); e sociedade. A primeira categoria engloba a gestão e organização dos três poderes, exceto assuntos relativos às forças armadas. A segunda, relações institucionais entre poderes ou entes da federação, relações exteriores, sistema político e defesa, incluindo a gestão e organização das forças armadas. A terceira, temas relacionados a impostos, dívida pública, moeda, preços, salários e comercio exterior. A quarta engloba todos os demais assuntos relacionados à economia. Por fim, a quinta categoria abarca políticas sociais, assuntos relacionados à aplicação da justiça e a proteção do meio ambiente. Para a natureza da matéria também se utilizaram cinco categorias, que visam capturar o tipo de ação ou política proposta. São elas: administrativa, regulatória, financeira, jurídica e simbólica. Por matéria administrativa entendem-se as autorizações para atos ou procedimentos relacionados à gestão de cargos, processos, 412 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO servidores (inclusive salários) ou patrimônio no âmbito do setor público, assim como a criação ou modificação de órgãos e suas atribuições institucionais, também nesse âmbito. Matéria regulatória consiste na definição de regras de conduta, direitos ou deveres, assim como a criação ou modificação de órgãos de natureza regulatória, inclusive no setor público. As de natureza financeira são as que gerenciam ou distribuem recursos financeiros, inclusive por meio de fundos e transferências governamentais, ou que modificam tributos e taxas, inclusive sua incidência. Consideram-se de natureza jurídica matérias que tratam de processos ou procedimentos estritamente judiciais. Por fim, definem-se como simbólicas a criação de dias comemorativos, denominação de equipamentos ou órgãos públicos, e concessão de homenagem, doação, pensão ou indenização especial. Os gráficos 2 e 3 ilustram a evolução da distribuição das proposições da amostra por legislatura e, respectivamente, tema e natureza da matéria. Note-se, no primeiro, o forte aumento da parcela de proposições sobre tema social, nos anos 2000, em detrimento principalmente das parcelas de proposições que tratam da administração pública ou de assuntos macroeconômicos. No segundo gráfico, a mudança mais notável nos anos 2000 foi o forte aumento da parcela de matérias de natureza simbólica, na legislatura 2007-2010. Notam-se também diminuições substanciais tanto em proposições de natureza financeira quanto regulatória. Gráfico 2 Distribuição das proposições da amostra, por legislatura e tema Fonte: Câmara dos Deputados, Casa Civil da Presidência da República e Senado Federal. Elaboração do autor. Do plenário às comissões: mudança institucional na Câmara dos Deputados 413 Gráfico 3 Distribuição das proposições da amostra, por legislatura e matéria Fonte: Câmara dos Deputados, Casa Civil da Presidência da República e Senado Federal. Elaboração do autor. Se o novo protagonismo das comissões decorre simplesmente de mudanças no perfil da agenda legislativa, então os padrões temporais que mostram a substituição do plenário pelas comissões ao longo dos anos 2000 (gráfico 1), deverão desvanecer ao se controlar por esse perfil. Com isso em mente, estimaram-se modelos Logit multinomial das probabilidades de uma proposição ser aprovada mediante dois tipos de processo legislativo, sendo um que privilegia o plenário e outro que privilegia as comissões. O tipo “plenário” consiste simplesmente na combinação dos casos de aprovação por meio ou de MP ou de PL em regime de urgência adotado antes de concluídos todos os pareces de mérito das comissões. O tipo “comissão” compreende os PLs aprovados mediante poder conclusivo. Como base de referência para a estimação, utilizou-se um terceiro tipo (“comissão-plenário”), que abarca PLs encaminhados à votação em plenário somente após aprovados todos os pareces de mérito das comissões. Do lado direito da equação, incluíram-se indicadores da legislatura, da origem da proposição (se parlamentar ou presidencial), do tema e da natureza da matéria. Para avaliar eventuais diferenças na evolução daquelas probabilidades como função da origem, também se incluiu a interação entre essa variável e a legislatura. Os gráficos 4 e 5 apresentam as probabilidades estimadas, respectivamente para as proposições de origem parlamentar e presidencial. A despeito de em todas as legislaturas se ter privilegiado as comissões na aprovação de iniciativas congressuais e o plenário na aprovação de proposições presidenciais, as variações longitudinais observadas nos dois gráficos – principalmente no segundo 414 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO – são consistentes com o que se observou no gráfico 1. Ou seja, que nos anos 2000 houve crescimento relativo das proposições aprovadas exclusivamente no âmbito das comissões, e correspondente diminuição das aprovadas em plenário antes de concluída a apreciação do mérito pelas comissões. Em suma, a evidência dos gráficos 4 e 5 permite concluir que a mudança em direção a maior protagonismo das comissões não pode ser atribuída a eventuais transformações do perfil da agenda legislativa. Gráfico 4 Probabilidades dos processos do tipo plenário e comissão em proposições de origem congressual, por legislatura Elaboração do autor. Obs.: estimativas de modelo Logit multinomial. Valores em negrito são significativamente diferentes (ao nível de 5%) do relativo à legislatura 1991-1994. Gráfico 5 Probabilidades dos processos do tipo plenário e comissão em proposições de origem presidencial, por legislatura Elaboração do autor. Obs: estimativas de modelo Logit multinomial. Valores em negrito são significativamente diferentes (ao nível de 5%) do relativo à legislatura 1991-1994. Do plenário às comissões: mudança institucional na Câmara dos Deputados 415 Também se notam dois outros padrões potencialmente relevantes nesses gráficos. O primeiro é o comportamento fortemente simétrico de cada par de séries: aumentos/diminuições da probabilidade de se privilegiar o plenário são sempre acompanhados de diminuições/aumentos da probabilidade de se privilegiar as comissões. Note-se que essa simetria não é necessária, haja vista a possibilidade de um terceiro processo legislativo (o tipo de referência, “comissão-plenário”). Na verdade, a simetria sugere que as probabilidades de se privilegiar o plenário e de se privilegiar a comissão são duas faces da mesma moeda e que, por isso, devem ter causa comum. O outro padrão de potencial relevância é a diferença entre a evolução do protagonismo das comissões nas proposições de origem parlamentar e nas presidenciais. No primeiro conjunto, nota-se crescimento gradual e contínuo a partir da legislatura 1999-2002, com pequena diminuição na última (2011-2014). Entre as proposições de origem presidencial, o movimento é ondular, com forte redução nas duas legislaturas do período 1995-2002 e aumento acelerado nas duas seguintes. Essa diferença na dinâmica das séries indica a existência de causas específicas do protagonismo das comissões, de acordo com a origem da proposição, se parlamentar ou presidencial. Enfim, a evidência quantitativa oferecida nesta seção deixa claro que, nos anos 2000, o processo legislativo da Câmara dos Deputados mudou, diminuindo-se o uso relativo de dispositivos extraordinários de tramitação (MP e urgência) e conferindo-se ao sistema de comissões permanentes maior protagonismo. Essa mudança ocorreu tanto para proposições de origem parlamentar quanto presidencial, porém com muito mais intensidade nas últimas, e não se deveu a transformações da agenda legislativa. Explicando a mudança O primeiro passo na compreensão dessa mudança legislativa é caracterizá-la conceitualmente. Parte-se aqui da hipótese de trabalho de que se trata de uma mudança institucional. A seguir, justificam-se os fundamentos dessa caracterização e, então, discutem-se potenciais explicações. Por instituição, entende-se qualquer conjunto de regras ou procedimentos, formais ou informais, que: (i) estruturam a interação entre indivíduos em situações específicas, definindo quem pode fazer o que, como e quando; (ii) são de 416 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO conhecimento comum entre esses indivíduos; e (iii) são relativamente independentes de preferências idiossincráticas (NORTH, 1990, p. 3-6). A partir dessa definição, instituições legislativas são simplesmente as regras ou procedimentos que estruturam a produção de leis. Nesse subconjunto, são especialmente relevantes os poderes de agenda, isto é, as regras que conferem prerrogativas sobre o fluxo de proposições para votação final, na forma de direitos de proposição e de aceleração do processo legislativo (poder de agenda positivo) ou de veto e obstrução (poder negativo). A urgência e a MP são exemplos dos primeiros. A distribuição de poderes de agenda está associada à forma como os trabalhos legislativos são organizados. Basicamente, a literatura distingue dois modelos organizacionais ideal-típicos e opostos: o modelo de comissão, pelo qual se dispersa o controle da agenda entre comissões permanentes, cada uma com monopólio sobre certos temas de políticas públicas; e o modelo de partido-cartel, pelo qual se concentra esse controle no partido ou coalizão que detém maioria legislativa (COX; MCCUBBINS, 1993). Note-se que esse modelo é compatível com comissões atuantes, desde que elas se comportem como agentes do partido majoritário. Com relação à Câmara dos Deputados, existe razoável consenso de que prevaleceu o modelo de partido-cartel durante as duas legislaturas do período 1995-2002, com as coalizões governistas fazendo uso intenso da urgência e da MP para avançar sua agenda legislativa (ALMEIDA; SANTOS, 2009; AMORIM NETO; COX; MCCUBBINS, 2003; FIGUEIREDO; LIMONGI; VALENTE, 1999). Embora não haja uma caracterização dominante a respeito das legislaturas posteriores, análisesz sugerem fortemente que, não obstante a persistência de coalizões de governo majoritárias, não se constituiu um cartel legislativo (AMORIM NETO, 2007; SANTOS; VILAROUCA; MANTOVANI, 2007). O fato de dois períodos legislativos relativamente longos e contíguos (1995-2002 e 2003-2014) apresentarem padrões de organização legislativa significativamente distintos sugere fortemente que as mudanças observadas na seção anterior expressam uma reorganização do próprio jogo legislativo, e não apenas oscilações ocasionais. Por isso, pode-se caracterizar o fenômeno como uma mudança institucional. Um aspecto interessante dessa mudança é que ela não ocorreu por meio de alterações das regras formais. Tal como mencionado anteriormente, dos três Do plenário às comissões: mudança institucional na Câmara dos Deputados 417 dispositivos analisados – poder conclusivo, urgência e MP –, apenas o último sofreu alterações, sendo as mais relevantes a autorização legislativa para a reedição de medidas não votadas e a reforma que posteriormente proibiu essa prática. Note-se que a primeira alteração se deu por meio de interpretação (generosa) da CF/1988, e que a segunda, embora tenha consistido em reforma dessa Carta, veio apenas reestabelecer seu sentido original. Por isso, parece mais correto descrever o modus faciendi da mudança em direção a maior protagonismo das comissões como adoção progressiva e sistemática de um subconjunto das regras formais existentes, qual seja o que confere papel central ao sistema de comissões na definição da agenda legislativa e do conteúdo das leis. Explicações existentes O que explica o afastamento do modelo partido-cartel e consequente aproximação do modelo de comissões, na Câmara dos Deputados? A literatura sobre o Congresso Nacional e, de forma mais geral, sobre relações Executivo-Legislativo no Brasil, não fornece elementos que permitam responder de maneira satisfatória essa pergunta. A seguir, justifica-se essa leitura. Figueiredo e Limongi (2001) explicam a centralidade do plenário nas decisões legislativas como decorrência da combinação, por um lado, de uma estrutura institucional que concentra poderes formais no presidente e nos líderes partidários e, por outro, de um padrão de governança baseado em coalizões de governo majoritárias partidárias. Segundo os autores, o uso frequente da urgência e da MP resulta de uma delegação da maioria governista para sua liderança, com os objetivos de viabilizar acordos de intracoalizão e reduzir sua exposição ao debate em matérias politicamente sensíveis. Como o padrão de governança não se alterou no pós-2002, depreende-se dessa explicação que a causa mais provável da mudança legislativa foi uma redução nos poderes da liderança da maioria – no caso, a vedação da reedição continuada de MPs, pela Emenda Constitucional nº 32 (EC nº 32), de setembro de 2001. De maneira complementar, outros estudos argumentam que, embora a natureza das coalizões de governo não tenha se alterado no pós-2002, o seu gerenciamento foi diferente, no sentido de ter se concentrado mais recursos políticos no partido do presidente, particularmente postos ministeriais, o que teria gerado conflitos intracoalizão e, por extensão, reduzido a capacidade da liderança 418 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO governista de controlar a agenda legislativa (PEREIRA, 2015; PEREIRA; BERTHOLINI; RAILE, 2016). Por outra perspectiva, Vieira (2015) sugere que a transferência de decisões legislativas para as comissões foi uma solução organizacional para o congestionamento frequente da pauta do plenário da Câmara, decorrente de mudanças promovidas pela EC 32. Essa Emenda determinou, dentre outras coisas, que a tramitação de MPs passasse a ser bicameral e que se alguma medida não fosse votada em até 45 dias da sua edição a pauta da Casa onde estivesse tramitando ficaria “trancada”, ou seja, não se poderia votar outra proposição. A inclusão das MPs na pauta do plenário da Câmara, somada à ocorrência frequente de trancamento, reduziu sobremaneira a oportunidade para se aprovar PLs em plenário. Segundo o autor, foi essa a razão pela qual os deputados (ou seus líderes) teriam passado a recorrer com maior frequência ao poder conclusivo das comissões. Não obstante serem empiricamente plausíveis, essas explicações deixam importantes questões teóricas em aberto. A hipótese de que a perda de centralidade do plenário é decorrência da redução dos poderes legislativos do presidente, especificamente da proibição de se reeditar MPs, impõe que se pergunte por que uma maioria governista escolheria reduzir o poder de agenda da sua liderança. Se o uso de MPs pelo presidente reflete uma delegação legislativa, então as regras que regulam aquele uso também devem ser entendidas como parte desta delegação e, por isso, precisam ser explicadas. A hipótese de que a diminuição da capacidade do Executivo de priorizar o plenário na aprovação da sua agenda decorreu de um gerenciamento inadequado da coalizão governista não fornece elementos para se entender por que sucessivos presidentes persistiram por tanto tempo em uma estratégia – no caso, de concentrar ministérios em seu partido, em detrimento dos parceiros da coalizão – que se mostrou custosa do ponto de vista legislativo. Por fim, a hipótese do congestionamento do plenário da Câmara nos faz questionar a razão pela qual os deputados sistematicamente não votam MPs dentro do prazo de 45 dias. Além disso, ela compartilha da mesma limitação da primeira hipótese, de não ser capaz de explicar por que uma maioria governista não teve interesse ou não foi capaz de mudar a regra de trancamento, de maneira a manter o protagonismo do plenário, onde são menores os custos de transação para a aprovação da sua agenda. Do plenário às comissões: mudança institucional na Câmara dos Deputados 419 Tendo em vista essas limitações, a seguir elabora-se uma explicação alternativa, fundamentada teoricamente e, acredita-se, com capacidade de responder as questões deixadas em aberto pelas explicações existentes. Governo presidencial condicionado A chave explicativa adotada aqui fundamenta-se na principal hipótese da teoria do governo de partido condicional (doravante TGPC), segundo a qual o incentivo da maioria para concentrar poderes legislativos na sua liderança, vis-à-vis dispersá-los entre as comissões, é crescente no grau com que as preferências dos seus membros são distintas das preferências da minoria, ou seja, no grau com que as preferências desses dois grupos localizam-se em polos opostos do espectro político (ALDRICH, 1994). A rationale subjacente a essa hipótese é a seguinte. Supondo que existe uma maioria partidária, a dispersão do poder de agenda entre as comissões, onde a minoria opositora supostamente tem mais oportunidade de exercer influência, implica resultados legislativos mais próximos da preferência mediana do plenário e maiores custos de transação (por exemplo, com debates e manobras de obstrução da minoria). Por outro lado, quando a maioria concentra poderes de agenda na sua liderança, os resultados legislativos tornam-se mais próximos da preferência mediana do partido e diminuem-se os custos de transação. Assim, membros da maioria cujas preferências são mais próximas da mediana do partido (vis-à-vis a mediana do plenário) têm incentivo para delegar poderes ao seu líder, e esse incentivo é crescente na distância entre as medianas do partido minoritário e do majoritário, em razão de o incentivo da minoria para impor maiores custos de transação ser crescente nessa distância. Essa hipótese foi originalmente pensada para o Congresso norte-americano, no qual é frequente a existência de maioria unipartidária, em pelo menos uma das casas legislativas. Não obstante, lógica semelhante pode ser aplicada a contextos multipartidários. Por exemplo, Martin e Vanberg (2005) mostram que, em democracias parlamentares governadas por coalizões, partidos governistas recorrem às comissões parlamentares para examinar as políticas propostas por seus parceiros de coalizão. Esse monitoramento mútuo possibilita a resolução de eventuais problemas de agência decorrentes da delegação entre parceiros com preferências heterogêneas. Por isso, aposta-se que, no contexto do presidencialismo de coalizão, no qual o presidente é o líder em última instância da 420 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO coalizão de governo, opere lógica semelhante – uma forma de governo presidencial condicionado. Aplicando-se a hipótese ao caso brasileiro recente, tem-se o seguinte enredo. A redução e posterior ampliação da participação das comissões no processo legislativo, ocorridas nos períodos 1995-2002 e 2003-2014, refletiram, respectivamente, ampliação e encolhimento da delegação de poderes da maioria governista à sua liderança – no caso, o presidente da República e os líderes partidários. Esses movimentos, por sua vez, foram causados por variações no grau de diferenciação entre as preferências da maioria e da minoria opositora. A respeito dessa diferenciação, pode-se dizer que ela se ampliou no período 1995-2002 e diminuiu no 2003-2014. Evidência do primeiro movimento é a formação de uma coalizão de governo relativamente mais homogênea, formada por partidos de centro-direita (PSDB-PFL-PMDB-PTB e, posteriormente, PPB), tendo um partido de esquerda (PT) como principal força opositora. Essa coalizão se comportou tal como um cartel legislativo até o início do ano 2001 (ALMEIDA; SANTOS, 2009). O segundo movimento, de diminuição da diferença entre as preferências da maioria e da minoria, consistiu na formação de uma coalizão de governo bem mais heterogênea, composta por partidos localizados desde a esquerda (p.ex., PT e PCdoB) até a direita (PP). No que se refere à delegação, nota-se que, a partir de 1995 e até 2001, a maioria governista se tornou muito mais leniente com o uso de MPs pelo presidente e com o uso da urgência regimental pelos líderes partidários. Em apoio a essa ideia, podem-se listar: o forte aumento de MPs reeditadas, muitas delas por vários meses sucessivos (AMORIM NETO; TAFNER, 2002); as frequentes alterações substantivas no texto de medidas reeditadas (idem); e o forte aumento no uso não consensual da urgência parlamentar em PLs do Executivo (ALMEIDA; SANTOS, 2009). Por outro lado, observa-se o exato oposto nos anos 2000: diminuíram significativamente tanto a taxa de edição de MPs originais (ou seja, sem considerar as reedições) quanto a de uso da urgência regimental em PLs do Executivo (ALMEIDA, 2014; ALMEIDA; SANTOS, 2009). Talvez o principal questionamento que se possa levantar à aplicação da TGPC no contexto da Câmara dos Deputados seja a validade da premissa de que políticas públicas (policy) são importantes para os parlamentares. Afinal, parte considerável da literatura considera que a principal motivação dos deputados consiste Do plenário às comissões: mudança institucional na Câmara dos Deputados 421 em transferir benefícios localizados (pork) para suas bases eleitorais, o que é feito basicamente por meio de atividades voltadas para a aprovação e execução do orçamento, sobre o que as comissões permanentes da Câmara não têm qualquer prerrogativa (PEREIRA; MUELLER, 2002). Nesse caso, os parlamentares não têm incentivo para delegar poderes de agenda ao sistema de comissões. Em contraposição, pode-se oferecer número igualmente considerável de estudos que argumentam que preferências por policy são relevantes para o comportamento e as decisões legislativas dos deputados (HAGOPIAN; GERVASONI; MORAES, 2009). Além disso, achados recentes sugerem que o incentivo para a produção de pork está perdendo espaço para a representação de interesses de grupos organizados, sem base territorial. Evidência nesse sentido são: (i) a redução do número de deputados eleitos com perfil de votação localista (TAVARES, 2018); (ii) a diminuição da proporção do valor das emendas orçamentárias destinada a municípios (MESQUITA et al., 2014, p. 1); (iii) o aumento das chamadas frentes ou bancadas parlamentares, de defesa de interesses particulares ou difusos (CORADINI, 2009); e (iv) o crescimento dos vínculos entre deputados e empresas ou grupos econômicos de setores específicos, por meio de doações de campanha (SPECK; MARCIANO, 2015). Na medida em que a produção de policy se torna eleitoralmente importante para os deputados, e dado que as comissões são as arenas que regimentalmente oferecem maior oportunidade de participação no processo legislativo, há incentivos para que se delegue poderes de agenda a essas arenas. No que diz respeito à hipótese explicativa da TGPC, as implicações analíticas do debate sobre a relevância empírica de policy vs. pork é bastante simples: se o primeiro tipo de política não for suficientemente importante para a maior parte dos deputados, então aquela hipótese se mostrará inconsistente com os fatos. Testando as hipóteses Nesta seção, avalia-se o mérito empírico da hipótese do governo presidencial condicionado na explicação do novo protagonismo das comissões permanentes da Câmara dos Deputados, confrontando-a com as principais hipóteses alternativas oferecidas pela literatura. Para tanto, estimam-se modelos econométricos das probabilidades de se privilegiar ou o plenário ou as comissões na aprovação de proposições de lei de origem presidencial, desde o ano 1991 até 2014. Restringe-se a análise às iniciativas presidenciais por duas razões: 422 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO apresentam maior variação naquelas probabilidades e são o foco das hipóteses discutidas anteriormente. Para testar as hipóteses do TGPC (ALDRICH, 1994), do gerenciamento da coalizão (PEREIRA, 2015; PEREIRA; BERTHOLINI; RAILE, 2016) e do congestionamento do plenário (VIEIRA, 2015), computaram-se, respectivamente, as variáveis Polarização, Concentração e Trancamento, cujos valores têm como referência a data da aprovação da proposição pelos deputados. A primeira consiste no valor absoluto da estatística t de Student do teste de diferença entre as médias das preferências políticas de dois grupos de deputados, quais sejam, a maioria governista e a minoria opositora.118 Para as preferências políticas utilizaram-se as estimativas unidimensionais produzidas por Power e Zucco (2009 e 2011) a partir de pesquisas de opinião realizadas com amostras de deputados de cada legislatura, especificamente das respostas sobre onde, na dimensão esquerda-direita, o parlamentar posiciona a si próprio e os principais partidos parlamentares. A justificativa para se usar a estatística t é que ela capta as duas causas subjacentes à hipótese, quais sejam, a distância entre os dois grupos e a dispersão da maioria. Espera-se que os efeitos dessa variável sobre as probabilidades dos tipos plenário e comissão sejam, respectivamente, positivo e negativo. Concentração e trancamento consistem, respectivamente, na diferença entre as porcentagens de ministérios e de cadeiras legislativas do partido do presidente, no âmbito da coalizão de governo, e na porcentagem das sessões ordinárias da Câmara nas quais havia pelo menos uma matéria trancando a pauta, levando-se em conta os seis meses anteriores à aprovação da proposição. De acordo com a literatura, essas duas variáveis devem ser negativamente associadas com a probabilidade do tipo plenário e, principalmente a segunda, positivamente associada com a probabilidade do tipo comissão. A tabela 2 apresenta as médias, por legislatura, dessas três variáveis explicativas. Note-se que todas apresentam diferenças substanciais entre os períodos 19952002 e 2003-2014, que a princípio podem explicar o recente protagonismo das comissões. O par com menor correlação é Polarização-Concentração (r= – 0,71) e o com maior é Polarização-Trancamento (r= – 0,80). 118 Ver o apêndice para a lista de maiorias legislativas. Do plenário às comissões: mudança institucional na Câmara dos Deputados 423 Tabela 2 Médias das variáveis explicativas, por legislatura Legislatura Polarização Concentração (%) Trancamento (%) 1991-94 1995-98 1999-02 2003-06 2007-10 2011-14 6,16 11,4 9,58 2,87 2,80 1,60 -2,04 5,83 -9,60 22,2 22,7 24,3 0,00 0,00 6,38 69,6 74,8 74,4 Fonte: Power e Zucco (2009; 2011), Amorim Neto (2007), Figueiredo (2007, p. 190), Inácio e Rezende (2015, p. 306-307). Elaboração do autor. O gráfico 6 ilustra as estimativas dos efeitos decorrentes do aumento de um desvio padrão em cada uma das variáveis explicativas, sobre as probabilidades dos tipos plenário e comissão (em relação ao tipo comissão-plenário), para proposições de origem presidencial. Essas estimativas foram geradas por meio de um modelo Logit multinomial com controles que indicam a legislatura em que se aprovou a proposição, se foi aprovada durante governo de minoria e, por fim, o tema e a natureza da matéria, tal como definidos anteriormente.119 Gráficos 6 Efeitos de polarização, concentração e trancamento, sobre as probabilidades dos tipos plenário e comissão Elaboração do autor. Obs.: valores são estimativas do efeito do aumento de um desvio padrão na respectiva variável, em unidade de ponto percentual. Estimativas destacadas em negrito tem p – valor < 1%. 119 As estimativas foram geradas pelo módulo margins do Stata. Resultados de testes adicionais se mostraram favoráveis aos pressupostos do modelo, no sentido de que categorias da variável dependente não podem ser combinadas e que não se viola a independência de alternativas irrelevantes. 424 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Nota-se que a evidência somente corrobora a hipótese proposta neste estudo, de que a polarização entre maioria governista e minoria opositora aumenta a probabilidade de se privilegiar o plenário e diminui a de se privilegiar as comissões. No caso, ao aumento de um desvio padrão da polarização corresponde crescimento médio de 18,8 pontos percentuais (pp) na primeira dessas probabilidades e diminuição de 14,3 pp na segunda. Essas estimativas são estatisticamente significativas, ao nível de 1%. Além de não se mostrarem significativas, as estimativas de concentração e trancamento apresentam valores substantivamente irrelevantes.120 A respeito dos efeitos das variáveis de controle, os resultados (não reportados) mostram que a probabilidade de se privilegiar decisões em plenário/comissão é significativamente menor/maior em governos minoritários. Sobre o conteúdo, têm maior/menor probabilidade de serem aprovadas em processo do tipo plenário/comissão proposições sobre os temas “administração pública” ou “macroeconomia”, ou cuja matéria é regulatória ou financeira. Para avaliar o ajuste do modelo e da variável explicativa aos dados, computaram-se a medida de Akaike (AIC) e o R2 de Efron ajustado ao modelo multinomial. A primeira medida, que expressa a quantidade de informação perdida pelo modelo estimado (relativamente ao “verdadeiro”), não tem interpretação substantiva, mas é apropriada para a comparação do ajuste relativo de diferentes modelos. No caso, valores menores da medida refletem melhor ajuste, sendo a diferença considerada relevante somente quando maior ou igual a dez unidades. O R2 de Efron é o equivalente do R2 do modelo linear em modelos de variável binária e, portanto, pode ser interpretado substantivamente como a porcentagem da variância “explicada”. No caso, também se calculou essa medida para cada uma das duas probabilidades estimadas. A tabela 3 apresenta os valores para três modelos. O primeiro (“completo”) é o modelo por meio do qual se obtiveram os resultados do gráfico 6. O segundo exclui as variáveis concentração e trancamento. No terceiro e último excluem-se as três variáveis explicativas, mantendo-se apenas os controles. Pela medida AIC, relativamente ao modelo apenas com os controles, o que melhor se ajusta aos dados é o que inclui, entre as variáveis explicativas, apenas polarização. Por 120 Esses resultados são robustos a operacionalizações alternativas de trancamento, com base nos últimos três meses e no último mês. Também são robustos à exclusão da amostra das 704 reedições de MP com alteração de texto. Do plenário às comissões: mudança institucional na Câmara dos Deputados 425 outro lado, pelo R2 de Efron os modelos não apresentam diferença relevante de desempenho. Tabela 3 Medidas de ajuste Modelo completo Modelo sem concentração e trancamento Modelo apenas com controles 2.181 2.174 2.188 R de Efron (total) 0,203 0,203 0,198 R2 de Efron (plenário) 0,247 0,247 0,240 0,203 0,203 0,198 Critério de informação Akaike (AIC) 2 2 R de Efron (comissão) Elaboração do autor. Em suma, pode-se concluir, com base na evidência econométrica, que existe suporte empírico para a hipótese de que o novo protagonismo do sistema de comissões da Câmara dos Deputados resultou de mudanças na configuração das preferências da maioria governista vis-à-vis a minoria opositora. Não há evidência de que a concentração de postos ministeriais no partido do presidente ou o trancamento frequente da pauta do plenário da Câmara tenha contribuído para o protagonismo das comissões. Considerações finais Este capítulo demonstrou empiricamente que a forma de organização do processo legislativo da Câmara dos Deputados mudou de maneira relevante e sistemática nas últimas três legislaturas, distanciando-se de um modelo centralizado, dominado pela liderança da maioria, e aproximando-se de outro, mais descentralizado, no qual o sistema de comissões tem o protagonismo na definição da agenda e nas decisões finais. Caracterizou-se esse movimento como uma mudança institucional e argumentou-se que ela reflete uma transferência de poderes de agenda, da liderança da maioria governista para as comissões, motivada pela ampliação das divergências políticas entre, de um lado, os membros da maioria governista e, de outro, a minoria opositora. Ao empoderarem as comissões, membros da maioria viabilizam o monitoramento legislativo das políticas propostas pela sua liderança e pelos seus parceiros de coalizão. Evidência econométrica, com base nos regimes de tramitação das proposições de lei presidenciais aprovadas pelos 426 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO deputados desde 1991 até 2014, oferece suporte empírico para a relação entre distribuição de preferências parlamentares e processo legislativo. Deve-se reconhecer que esses achados se baseiam em medida demasiadamente superficial do protagonismo das comissões, que consiste apenas nas frequências com que se permitiu que aquelas arenas concluíssem seus pareceres de mérito e decidissem conclusivamente. Não obstante, tal como a outrora predominância do plenário provavelmente desmotivou estudos sobre as comissões, espera-se que a evidência oferecida neste capítulo seja suficientemente relevante para estimular análises mais detalhadas sobre essas arenas, incluindo aspectos relacionados a resultados legislativos e, principalmente, ao conteúdo final das proposições. Existem razões para crer que o alcance das contribuições desta investigação ultrapasse a questão específica que a motivou. Por exemplo, a perspectiva endógena aqui adotada, pela qual a organização legislativa dependente das preferências e da natureza dos interesses políticos representados no parlamento, tem recebido pouca atenção da literatura sobre o Congresso, que costuma enfatizar os efeitos da estrutura organizacional sobre o comportamento parlamentar. Considerar também o sentido contrário dessa relação é essencial para se entender as recentes mudanças legislativas, tanto em termos das suas causas quanto dos seus processos políticos. De forma mais geral, pensando-se o próprio funcionamento do presidencialismo de coalizão, esta investigação também fornece contribuição potencial para a especificação teórica da tese da delegação legislativa, na medida em que identifica incentivos de natureza política para que os parlamentares deleguem mais ou menos poderes de agenda ao Executivo. Assim, instrumentaliza-se a análise da variação do escopo dessa delegação, trazendo-se para o centro da investigação os atores que efetivamente delegam poderes, ou seja, os parlamentares. Referências ALDRICH, J. A. (1994). A model of a legislature with two parties and a committee system. Legislative Studies Quarterly, v. 19, n. 3, p. 313-339. Do plenário às comissões: mudança institucional na Câmara dos Deputados 427 ALDRICH, J. H.; BERGER, M. M.; ROHDE, D. W. (2002). The historical variability in conditional party government, 1877-1994. In: BRADY, D. W.; MCCUBBINS, M. D. (Ed.). Party, process, and political change in Congress: new perspectives on the history of Congress. Stanford: Stanford Univ. Press. p. 17-35. ALMEIDA, A. (2014). Informação, delegação e processo legislativo: a política das medidas provisórias. Brasília: Ipea. (Texto para Discussão; n. 1933). ______ (2015). Processo legislativo: mudanças recentes e desafios. Boletim de Analise Político-Institucional, Brasília, n. 7, p. 45-50, jan.-jun. ______; SANTOS, F. (2009). Urgency petitions and the informational problem in the Brazilian Chamber of Deputies. Journal of Politics in Latin America, v. 3, p. 81-110. AMORIM NETO, O. (2007). Algumas consequências políticas de Lula: novos padrões de formação e recrutamento ministerial, controle de agenda e produção legislativa. In: NICOLAU, J. M.; POWER, T. J. (Ed.). Instituições representativas no Brasil: balanço e reforma. Belo Horizonte: Ed. UFMG. p. 55-73. ______; COX, G. W.; MCCUBBINS, M. D. (2003). Agenda Power in Brazil’s Câmara dos Deputados: 1989-1998. World Politics, v. 55, p. 550-578. ______; TAFNER, P. (2002). Governos de coalizão e mecanismos de alarme de incêndio no controle legislativo das medidas provisórias. Dados: Revista de Ciências Sociais, v. 45, n. 1, p. 5-38. CABRAL, C. E. N. (2014). Processo legislativo heterodoxo: a multiplicação de temas em medidas provisórias. Dissertação (Mestrado) – Universidade de Brasília, Brasília. CARNEIRO, A. C. S. (2014). Legislação simbólica e poder de apreciação conclusiva no Congresso Nacional. Dissertação (Mestrado) – Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro; Centro de Formação, Treinamento e Aperfeiçoamento da Câmara dos Deputados, Brasília. 428 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO CORADINI, O. L. (2010). Frentes parlamentares, representação de interesses e alinhamentos politicos. Revista de Sociologia e Política, v. 18, n. 36, p. 241-256. COX, G. W.; MCCUBBINS, M. D. (1993). Legislative leviathan: party government in the House. New York: Cambridge Univ. Press. FIGUEIREDO, A. C.; LIMONGI, F. (2001). Executivo e Legislativo na nova ordem constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: FGV Ed. ______; ______ (2007). Instituições políticas e governabilidade: desempenho do governo e apoio legislativo na democracia brasileira. In: MELO, C. R.; SÁEZ, M. A. (Org.). A democracia brasileira: balanço e perspectivas para o século 21. Belo Horizonte: Ed. UFMG. p. 147-198. ______; _______; VALENTE, A. L. (1999). Governabilidade e concentração de poder institucional: o governo FHC. Tempo Social, v. 11, n. 2, p. 49-62. GOMES, F. B. C. (2013). Produção legislativa no Brasil: visão sistêmica e estratégia no presidencialismo de coalizão. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara. HAGOPIAN, F.; GERVASONI, C.; MORAES, J. A. (2009). From patronage to program: the emergence of party-oriented legislators in Brazil. Comparative Political Studies, v. 42, n. 3, p. 360-391. INÁCIO, M.; REZENDE, D. (2015). Partidos legislativos e governo de coalizão: controle horizontal das políticas públicas. Opinião Pública, v. 21, n. 2, p. 296-335. MARTIN, L. W.; VANBERG, G. (2005). Coalition policymaking and legislative review. American Political Science Review, v. 99, n. 1, p. 93-106. MESQUITA, L.; SILOTTO, G.; LUZ, J.; HUBERT, P. (2014). Emendas individuais e concentração de votos: uma análise exploratória. Teoria e Pesquisa, v. 23, n. 2, p. 82-106. NORTH, D. C. (1990). Institutions, institutional change, and economic performance. New York: Cambridge Univ. Press. Do plenário às comissões: mudança institucional na Câmara dos Deputados 429 PEREIRA, C. (2015). O custo dos governos petistas. Cepesp, 14 set. 2015. Disponível em: <https://cepesp.wordpress.com/2015/09/14/carlos-pereira-ocusto-dos-governos-petistas/>. Acesso em: 28 ago. 2019. ______; BERTHOLINI, F.; RAILE, E. D. (2016). All the president’s men and women: coalition management strategies and governing costs in a multiparty presidency. Presidential Studies Quarterly, v. 46, n. 3, p. 1-19. ______; MUELLER, B. (2000). Uma teoria da preponderância do poder executivo. O sistema de comissões no legislativo brasileiro. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 15, n. 43, p. 45-67. ______; ______ (2002). Comportamento estratégico em presidencialismo de coalizão: as relações entre Executivo e Legislativo na elaboração do orçamento brasileiro. Dados: Revista de Ciências Sociais, v. 45, n. 2, p. 265-301. POWER, T. J.; ZUCCO JR., C. (2009). Estimating ideology of Brazilian legislative parties: 1990-2005, a research communication. Latin American Research Review, v. 44, n. 1, p. 218-246. ______; ______ (2011). Brazilian legislative surveys. Disponível em: <http:// hdl.handle.net/1902.1/14970>. Acesso em: 28 ago. 2019. SANTOS, F.; ALMEIDA, A. (2011). Fundamentos informacionais do presidencialismo de coalizão. Curitiba: Editora Appris. ______; VILAROUCA, M. G.; MANTOVANI, T. M. L. (2007). Do cartel ao condomínio parlamentar: análise comparativa dos governos Fernando Henrique Cardoso e Lula. In: Diniz, E. (Org.). Globalização, estado e desenvolvimento: dilemas do Brasil no novo milênio. Rio de Janeiro: FGV Ed. p. 155-179. SPECK, B.; MARCIANO, J. L. (2015). O perfil da Câmara dos Deputados pela ótica do financiamento privado das campanhas. In: SATHLER, A.; BRAGA, Ricardo (Org.). Legislativo pós-1988: reflexões e perspectivas. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara. p. 267-292. 430 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO TAVARES, D. D. (2018). Localismo na Câmara dos Deputados: evolução e efeitos sobre a atividade legislativa. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Brasília. VIEIRA, F. S. (2015). O poder de apreciação conclusiva das comissões da Câmara dos Deputados: uma avaliação. Monografia (Especialização) – Universidade de Brasília, Brasília. Anexo Maioria legislativa e minoria opositora, 1991-2014 Maioria legislativa Principais partidos de oposição 1º/2/1991 31/3/1992 PRN-PFL-PTB-PDS-PL-PDC-PMDB PT-PCdoB-PSB-PDT-PSDB 1º/4/1992 30/9/1992 PRN-PFL-PTB-PDS-PL-PDC-PMDB PT-PCdoB-PSB-PDT-PSDB 2/10/1992 31/8/1993 PSDB-PTB-PFL-PMDB-PSB PT-PCdoB-PDT 1º/9/1993 31/12/1994 PSDB-PTB-PFL-PMDB-PP PT-PCdoB-PSB-PDT 1º/1/1995 25/4/1996 PSDB-PFL-PTB-PMDB PT-PCdoB-PSB-PDT 26/4/1996 31/12/1998 PSDB-PFL-PTB-PMDB-PPB PT-PCdoB-PSB-PDT 1º/1/1999 5/3/2002 PSDB-PFL-PPB-PMDB PT-PCdoB-PSB-PDT-PPS 6/3/2002 31/12/2002 PSDB-PMDB-PPB-PFL PT-PCdoB-PSB-PDT-PPS 1º/1/2003 22/1/2004 PT-PL-PCdoB-PSB-PTBPDT-PPS-PV-PMDB PSDB-PFL 23/1/2004 21/7/2005 PT-PL-PCdoB-PSB-PTBPPS-PV-PMDB PSDB-PFL 22/7/2005 31/12/2006 PT-PL-PCdoB-PSB-PTB-PMDB-PP PSDB-PFL-PPS 1º/1/2007 31/8/2009 PT-PR-PCdoB-PSB-PTBPMDB-PP-PDT-PV-PSC PSDB-PFL-PPS Do plenário às comissões: mudança institucional na Câmara dos Deputados 431 Maioria legislativa Principais partidos de oposição 1º/9/2009 31/12/2010 PT-PR-PCdoB-PSB-PTBPMDB-PP-PDT-PSC PSDB-PFL-PPS 1º/1/2011 17/9/2013 PT-PMDB-PCdoB-PSB-PPPDT-PRB-PR-PSC-PTB PSDB-PFL-PPS 18/9/2013 31/12/2014 PT-PMDB-PCdoB-PP-PDTPRB-PR-PSC-PTB-PROS PSDB-PFL-PPS Fonte: Amorim Neto (2007); Figueiredo (2007, p. 190); Inácio e Rezende (2015, p. 306-307). Elaboração do autor. Notas: em negrito, partido do presidente; em itálico, partido sem ministério; sublinhado, partido sem ministério e que não apoiou formalmente o governo. 433 Interesses organizados nas comissões parlamentares: percepções de grupos de interesse e assessores parlamentares121 Ciro Antônio da Silva Resende Introdução O sistema político brasileiro tem passado por significativas mudanças institucionais, sobretudo no que se refere ao Poder Legislativo e sua relação com outros poderes e com a sociedade. Entre as principais transformações das instituições políticas, a literatura tem enfatizado as mudanças nas relações Executivo-Legislativo e o papel protagonista que assumem legisladores e o sistema comissional do processo legislativo (ALMEIDA, 2015). O enfoque deste capítulo recai sobre as percepções de atores ligados a interesses organizados acerca de sua ação junto às instituições políticas. Essa análise é fundamental, uma vez que as decisões políticas em regimes democráticos resultam de complexos processos nos quais muitos atores interagem. Entre esses atores, os grupos que representam interesses organizados, sejam ou não econômicos, não devem ser desconsiderados, dada sua capacidade de influência no processo decisório (SANTOS, 2011). Ao longo do texto, esses grupos serão referidos pelas expressões grupo de interesse e grupo de pressão, adotadas como sinônimas, assim como se faz em parte da literatura (BROWNE, 1998; THOMAS, 2004). Nesse sentido, Baird (2016, p. 71) destacou que, tanto do ponto de vista teórico quanto empírico, houve uma desatenção acerca da influência dos grupos de interesse na construção de políticas públicas, sendo “fundamental que se traga a lume quais grupos são esses e se explicite como atuam politicamente acionando essas instituições em defesa de seus interesses”. É grande, portanto, o desconhecimento acerca do tema e, especialmente, de um dado básico, que se 121 Agradeço enormemente aos revisores deste capítulo, Osmar de Oliveira Aguiar, Manoel Leonardo Santos e Wagner Pralon Mancuso, pelos valiosos comentários e sugestões. 434 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO refere a quais grupos de interesse atuam nas arenas decisórias. Compreender a atuação dos grupos de pressão no processo político é uma questão complexa e, ao mesmo tempo, essencial. Dessa forma, o objetivo deste capítulo é retratar onde e como atuam representantes de interesses organizados, considerando o complexo processo decisório que envolve múltiplas instituições. Pretende-se, assim, verificar de que maneira as percepções desses atores se aproximam ou se distanciam dos recentes achados da literatura que apontam na direção de mudanças institucionais. Para tanto, lança-se mão de duas tentativas de aproximação do dado concernente aos grupos de interesse que estão presentes nas arenas decisórias: uma por meio de um cadastro da Câmara dos Deputados e outra por meio de uma das principais associações nacionais de profissionais de relações institucionais e governamentais. Deve-se registrar que as amostras utilizadas para esses dois grupos apresentam vieses a ser considerados. No primeiro caso, o dado advém de uma arena específica de atuação dos grupos de interesse. No segundo caso, participaram da pesquisa, em grande medida, membros de uma associação, com sua composição específica. A discussão empreendida procura, ainda, observar a existência de diferenças nas percepções dos dois grupos. Os dados apresentados são oriundos de duas pesquisas,122 as quais consistiram na realização de surveys online. A primeira (“Lobby e representação de interesses no Congresso Nacional”) foi realizada pelo Centro de Estudos Legislativos da Universidade Federal de Minas Gerais (CEL-UFMG), em parceria com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).123 Sua atenção foi direcionada aos representantes de grupos de interesse e assessores parlamentares do governo cadastrados na Primeira Secretaria da Câmara dos Deputados, no biênio 2011-2012. A coleta de dados foi realizada entre 2012 e 2013 e, do total de 179 profissionais cadastrados, 65 responderam ao questionário online (36,3%). Ao longo do texto, esses respondentes serão referidos como “grupo um” (G1). A segunda pesquisa (“Relações institucionais e governamentais: uma radiografia da atividade profissional”) foi desenvolvida por meio de uma parceria entre 122 Ambas as pesquisas foram realizadas sob a coordenação do Professor Manoel Leonardo Santos (UFMG), a quem agradeço pela ampla disponibilização dos dados que embasam a discussão empreendida neste capítulo. 123 Uma análise mais aprofundada acerca dessa pesquisa pode ser encontrada em Santos et al. (2017). Em Santos e Cunha (2015), há uma ampla discussão acerca das percepções sobre a regulamentação do lobbying no Brasil. Interesses organizados nas comissões parlamentares: percepções de grupos de interesse e assessores parlamentares 435 o CEL-UFMG e a Associação Brasileira de Relações Institucionais e Governamentais (Abrig), direcionando-se a dois grupos de profissionais de relações institucionais e governamentais: (i) associados à Abrig e (ii) não associados presentes em um cadastro fornecido pela organização. A coleta de dados aconteceu em 2016 e as questões cujos resultados serão apresentados foram respondidas, em média, por 104 associados e 34 não associados.124 Por não se observar diferenças significativas entre os padrões de respostas de associados e de não associados e visando simplificar a apresentação dos resultados, essas respostas serão analisadas de maneira agregada. Assim, nessa segunda pesquisa, o número médio de respondentes é 138, os quais serão referidos, ao longo do texto, como “grupo dois” (G2). É importante registrar, no que concerne à política de tratamento dos dados e disponibilização de resultados, que todas as informações prestadas pelos entrevistados de ambas pesquisas são sigilosas e divulgadas de forma não individualizada. Cumprem-se, dessa forma, dois critérios: (i) tratamento não individualizado e (ii) uso exclusivo para fins institucionais e acadêmicos. Ademais, as duas pesquisas foram autorizadas pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFMG (Coep-UFMG), no qual estão devidamente registradas. Este capítulo, portanto, apresenta os principais resultados da percepção desses dois grupos sobre as arenas, os atores e as estratégias acionados em sua atuação como representantes de interesses organizados. A primeira seção analisa as percepções relativas às arenas políticas de atuação, destacando a existência de uma percepção de produtividade do trabalho de pressão em múltiplas arenas, com destaque para o Poder Legislativo. A seção seguinte se debruça sobre as percepções concernentes a arenas e atores do Congresso Nacional, emergindo uma clara indicação das comissões como espaço de atuação dos interesses organizados. A terceira seção, por sua vez, discute o posicionamento dos respondentes sobre as estratégias e as atividades de lobbying mais frequentemente utilizadas, sendo expressiva a importância atribuída ao elemento informacional. Na sequência, apresentam-se algumas considerações finais. 124 Há uma pequena variação no número de respondentes das questões aqui discutidas. Isso se deve ao fato de que ao participante era dada a possibilidade de avançar no questionário online sem registrar nenhuma resposta. Em cada tabela, é reportado o número de profissionais que respondeu à questão. 436 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Frente a um emaranhado de instituições, atuação em múltiplas arenas O sistema político brasileiro é um complexo emaranhado de instituições, o que desafia a atuação de grupos de interesse e coloca a indagação acerca da valorização de algumas arenas em detrimento de outras. Diante desse cenário, almeja-se, ao longo desta seção, discutir as perspectivas dos dois grupos respondentes sobre as principais arenas acionadas, procurando visualizar em que medida há similaridades e diferenças. A tabela 1 elenca os resultados concernentes à produtividade da atividade de representação de interesses em cada arena política, indicando onde, segundo os respondentes, é mais factível obter resultados positivos para o seu grupo. Tabela 1 Produtividade da atividade em cada arena política (%) Arena política Nada produtivo Pouco produtivo Produtividade moderada Produtivo Muito produtivo NS / NR G1 G2 G1 G2 G1 G2 G1 G2 G1 G2 G1 G2 1. Câmara dos Deputados 0 1,5 1,5 2,2 10,8 8,9 47,7 36,3 32,3 41,4 7,7 9,7 2. Senado 0 1,5 1,5 3 23,1 9,6 49,2 45,9 18,5 29,6 7,7 10,4 3. Poder Executivo 3,1 0 12,3 2,2 21,5 18,5 30,8 34,1 16,9 37,0 15,4 8,2 4. Agências reguladoras 7,7 0 10,8 4,4 20 14,8 20 37 7,7 31,9 33,8 11,9 5. Poder Judiciário 4,6 - 18,5 - 21,6 - 16,9 - 1,5 - 36,9 - Interesses organizados nas comissões parlamentares: percepções de grupos de interesse e assessores parlamentares Arena política Nada produtivo Pouco produtivo Produtividade moderada Produtivo Muito produtivo 437 NS / NR G1 G2 G1 G2 G1 G2 G1 G2 G1 G2 G1 G2 6. Ministério Público - 9,6 - 13,3 - 23,7 - 9,6 - 4,5 - 39,3 7. STF - 11,1 - 20,8 - 17 - 11,1 - 1,5 - 38,5 8. STJ - 11,9 - 20 - 17 - 9,6 - 0,8 - 40,7 Fonte: dados do survey “Lobby e representação de interesses no Congresso Nacional” (UFMG; Ipea) (G1) e do survey “Relações institucionais e governamentais: uma radiografia da atividade profissional” (UFMG; Abrig) (G2). Elaboração do autor. Notas: – N G1: 65; N G2: 135 (103 associados e 32 não associados). – Na primeira pesquisa, o questionário apresentava a opção Poder Judiciário, ao passo que, na segunda, as opções eram Supremo Tribunal Federal (STF), Superior Tribunal de Justiça (STJ) e Ministério Público. Por essa razão, existem campos na tabela sem a indicação de percentuais. É possível observar que, na perspectiva dos representantes de grupos de interesse e assessores parlamentares cadastrados na Primeira Secretaria da Câmara dos Deputados (grupo um), a Câmara dos Deputados é a arena na qual o trabalho de pressão é mais produtivo. As respostas à opção muito produtivo representam 32,3%, percentual que, somado às respostas à opção produtivo, passa a ser de 80%. Os percentuais correspondentes à elevada produtividade das demais arenas são: 18,5% para o Senado, 16,9% para o Poder Executivo, 7,7% para as Agências reguladoras e 1,5% para o Poder Judiciário. A comparação desses resultados com os dados acerca do segundo grupo pesquisado indica diferenças, a citar os maiores percentuais de resposta à opção muito produtivo atribuídos às arenas políticas. A ordem de produtividade reportada também é distinta: Câmara dos Deputados (41,4%), Poder Executivo (37%), Agências reguladoras (31,9%) e Senado (29,6%). Às demais arenas listadas foi indicado um grau de produtividade inferior. Assim, Ministério Público, Supremo Tribunal Federal (STF) e Superior Tribunal de Justiça (STJ) registraram, respectivamente, 4,5%, 1,5% e 0,8%. É importante destacar que muitos respondentes reportaram as opções não sei ou prefiro não responder para essas três 438 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO arenas (39,3%, 38,5% e 40,7%, respectivamente), o que também foi observado para o Poder Judiciário no caso dos respondentes do grupo um (36,9%). Os números apresentados parecem sinalizar uma dificuldade no acesso às arenas judiciárias e ao Ministério Público e precisam ser melhor compreendidos. Nesse sentido, vale citar o trabalho de Carvalho et al. (2016), que se debruçou sobre a interação entre grupos de pressão e o STF por meio do uso de Ações Diretas de Inconstitucionalidade. Os autores mostraram que grupos com mais recursos e aqueles melhor posicionados institucionalmente no Estado conseguem resultados mais expressivos, apontando também que a judicialização do conflito de interesses, embora tenha baixa probabilidade de êxito, é uma importante estratégia. Chamam a atenção, ainda, os distintos graus de produtividade atribuídos pelos grupos respondentes à atuação no Poder Executivo e nas Agências reguladoras, os percentuais registrados na segunda pesquisa são muito superiores. A distinção relativa às Agências reguladoras é digna de registro: 7,7% de resposta à opção muito produtivo entre os respondentes do grupo um e 31,9% no grupo dois. É possível que essa diferença se deva, em grande medida, ao fato de os respondentes da primeira pesquisa serem profissionais registrados na Câmara dos Deputados, o que pode estar associado a uma atuação mais especializada nessa arena. A discussão que se estabelece é central, uma vez que os ambientes políticos recebem e processam inputs de maneiras distintas, e o que se procura observar é a possível percepção dos respondentes acerca desse processo, o qual se refere à factibilidade da obtenção de resultados positivos em diferentes espaços de atuação. Em ambas as pesquisas, fica claro o maior grau de produtividade atribuído às atividades de representação de interesses no Legislativo, com destaque para a Câmara dos Deputados. Esse dado vai ao encontro de outros achados na literatura. Santos (2014), por exemplo, ao analisar o cadastro de grupos de interesse e assessores parlamentares da Primeira Secretaria da Câmara dos Deputados, observou uma ampliação significativa da atuação dos interesses organizados: o crescimento vai de 47 grupos cadastrados no biênio 1983/1984 a 179 grupos no biênio 2011/2012. Dados atualizados para o biênio 2015/2016 Interesses organizados nas comissões parlamentares: percepções de grupos de interesse e assessores parlamentares 439 mostram que o número chegou a 423.125 Assim, diante da significativa mudança institucional acarretada pela Constituição de 1988, a qual devolve ao Congresso Nacional importantes prerrogativas, considerar que o Executivo não “domina” facilmente a agenda legislativa (ALMEIDA, 2015) é um relevante indicativo de que os interesses organizados têm espaço cada vez maior para atuar no Legislativo. Infere-se, portanto, que essas organizações não deslocariam seus recursos para a referida arena se não houvesse espaço para defender no Congresso Nacional uma agenda favorável a suas demandas. Dessa forma, em consonância com a perspectiva dos respondentes, o que outros trabalhos têm mostrado é que o Legislativo se tornou um espaço de decisão e atuação política altamente disputado (SANTOS, 2014). Espaço esse que se revigora com o processo de redemocratização, uma vez que “a atuação dos grupos de pressão no Congresso Nacional perdeu impulso frente ao deslocamento do eixo das decisões políticas para o Executivo controlado pelos militares” (ARAGÃO, 1994, p. 21-22). Nesse sentido, Almeida (2015, p. 45) mostrou que “a agenda legislativa, antes dominada por iniciativas do Executivo, passou a incluir quantidade muito maior de proposições de origem parlamentar”. Na mesma direção, Freitas (2016) destacou a importância do Poder Legislativo no processo de formatação das leis, exercendo um grande papel na deliberação sobre as propostas e na alteração das mesmas. Dos números elencados nesta seção, alguns merecem investigação mais acurada, a citar: (i) os elevados percentuais de resposta, em ambos os grupos respondentes, às opções não sei e prefiro não responder acerca da produtividade da atuação no Poder Judiciário (grupo um) e no Ministério Público, no STF e no STJ (grupo dois); e (ii) a menor percepção de produtividade indicada pelos respondentes cadastrados na Primeira Secretaria da Câmara dos Deputados (grupo um) para a atuação no Poder Executivo e nas Agências reguladoras. Por outro lado, os resultados são claros no que se refere à centralidade do Legislativo, especialmente da Câmara dos Deputados, o que corrobora os recentes achados da literatura no sentido de uma revalorização desse Poder e de modificações concernentes às suas relações com o Executivo. Desse modo, sinaliza-se que a arena congressual se constitui em espaço proeminente e indispensável à atuação de interesses organizados. 125 Essa atualização se deu no âmbito da pesquisa Dinheiro e política: a influência do poder econômico na Câmara dos Deputados (Ipea). 440 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Arenas e atores legislativos: a comissão como o lócus da atuação dos interesses organizados Constatada a importância do Legislativo para o trabalho dos profissionais que responderam aos surveys, é fundamental direcionar o olhar para o funcionamento desse Poder, em especial para suas regras, suas arenas e seus atores-chave. A indagação referente à relevância estratégica de arenas políticas do Congresso Nacional, apontadas pela literatura como importantes no processo legislativo, esteve presente em ambas pesquisas, sendo os resultados apresentados na sequência. Tabela 2 Relevância estratégica de arenas políticas do Congresso Nacional (%) Irrelevante Pouco relevante Relevância moderada Relevante Muito relevante G1 G2 G1 G2 G1 G2 G1 G2 G1 G2 G1 G2 NS / NR Arena política 1. Comissões 0 0,7 0 0 3,1 5,2 29,2 25 63,1 61 4,6 8,1 2. Presidência 0 2,2 3,1 0,7 10,8 8,8 27,7 27,2 53,8 51,5 4,6 9,6 3. Plenário 0 2,9 10,8 6,6 21,5 16,2 32,3 37,5 30,8 28,7 4,6 8 4. Consultoria legislativa 4,6 1,5 10,8 2,9 21,6 24,3 41,5 42,6 16,9 19,9 4,6 8,8 5. Mesa diretora 1,5 2,9 21,6 8,8 26,2 22,1 29,2 40,4 16,9 16,2 4,6 9,6 6. Primeira Secretaria 6,2 3,7 21,5 15,4 30,8 19,1 29,2 36 6,2 16,2 6,1 9,6 Fonte: dados do survey “Lobby e representação de interesses no Congresso Nacional” (UFMG; Ipea) (G1) e do survey “Relações institucionais e governamentais: uma radiografia da atividade profissional” (UFMG; Abrig) (G2). Elaboração do autor. Nota: N G1: 65; N G2: 136 (103 associados e 33 não associados). Interesses organizados nas comissões parlamentares: percepções de grupos de interesse e assessores parlamentares 441 Como pode ser observado, entre os respondentes do grupo um, são registrados os seguintes percentuais de relevância estratégica para as arenas legislativas: 63,1% (de resposta à opção muito relevante) para as Comissões, 53,8% para a Presidência das Casas, 30,8% para o Plenário, 16,9% para a Consultoria legislativa, 16,9% para a Mesa diretora e 6,2% para a Primeira Secretaria. A ordem de relevância atribuída a essas arenas pelos respondentes do grupo dois é a mesma: Comissões (61%), Presidência (51,5%), Plenário (28,7%), Consultoria legislativa (19,9%), Mesa diretora (16,2%) e Primeira Secretaria (16,2%). Se consideradas de forma agregada as opções relevante e muito relevante, verifica-se que, no grupo um, apenas a Mesa diretora e a Primeira Secretaria não foram avaliadas como relevantes ou muito relevantes pela maioria dos participantes da pesquisa. Já no grupo dois, todas as arenas mencionadas foram consideradas estrategicamente relevantes ou muito relevantes pela maioria dos profissionais de relações institucionais e governamentais. Alguns resultados se aproximam do que é apontado em outros trabalhos, a exemplo da importância da consultoria legislativa para os grupos de interesse já indicada por Taglialegna (2005). Ademais, chama a atenção o elevado grau de relevância atribuído às comissões. Esse resultado converge com a análise de Zampieri (2013), indicando que, nas comissões permanentes, são encontrados os mais variados tipos de grupos de pressão, exercendo ações de influência e defesa de interesses dos seus associados. O autor asseverou que grande parte da função institucional da Câmara dos Deputados e do Senado é realizada sob a estrutura de comissões permanentes. Também Almeida (2015), por meio da revisão de indicadores utilizados na literatura, ressaltou que o timing de um número crescente de decisões legislativas passou a ser definido no escopo das comissões. Nesse sentido, o autor matizou uma visão de que o sistema de comissões seria governado por agentes do Executivo e que sua principal função estaria associada à contribuição para a aprovação da agenda legislativa do presidente da República. Santos (2011, p. 11), por sua vez, ao estudar o lobbying da indústria, enfatizou a importância dessa arena, apresentando resultados que elucidam “que o sucesso legislativo do setor produtivo é alto, mas se dá apenas sob certas condições. O lobby funciona no âmbito das comissões, mas no Plenário [...] a probabilidade de influenciar a decisão é menor”. Considerando que, segundo a literatura especializada (BAUMGARTNER; LEECH, 1998; SCAROW, 2007; SMITH, 1995; 442 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO STRATMAN, 2005), o financiamento de campanhas eleitorais e as atividades de lobbying são elementos centrais na análise da influência, outro resultado merece ser citado na presente discussão. Santos et al. (2015, p. 51) analisaram a votação dos deputados federais brasileiros em Plenário, no que se refere aos projetos de interesse da Confederação Nacional da Indústria (CNI), concluindo que “a hipótese sobre a influência do financiamento específico da indústria sobre o comportamento parlamentar em matérias de interesse do setor não se confirmou”.126 Diante desse achado, é importante indagar se a fase comissional do processo legislativo seria o momento no qual essa influência se manifestaria, encontrando-se, aqui, mais um indicativo da necessidade de se atentar para o comportamento dos deputados no âmbito das comissões. De forma geral, esses e outros estudos recentes reforçaram a importância das funções desempenhadas pelas comissões permanentes no Legislativo, o que não pode ser desconsiderado em quaisquer análises do sistema político brasileiro. Deve-se ressaltar que o papel das comissões legislativas é tema corrente na literatura americana. Segundo Shepsle e Weingast (1987), persistem diferenças de opinião acerca do papel das comissões, entretanto, há um consenso substancial no que se refere, dentre outros fatos, a sua atuação como gatekeepers em suas jurisdições, como repositórios de expertise em políticas e como controladoras da agenda em seus domínios de política. Redimensionar, portanto, a relevância dessas arenas, que cumprem um grande papel informacional (SANTOS; ALMEIDA, 2011), é indispensável para se compreender a dinâmica de atuação dos interesses organizados. Isso porque, como alguns trabalhos mostraram (MANCUSO, 2007; SANTOS, 2011), as comissões funcionam como arena indispensável para os grupos de pressão na tentativa de barrar proposições contrárias a seus interesses. Sobre esse ponto, Mancuso (2007) identificou que, entre os processos de produção legislativa relativos ao custo Brasil, são mais frequentes os sucessos do setor industrial que mantêm o status quo do que os sucessos que o alteram. Na mesma direção, Santos (2011, p. 163) afirmou que “boa parte do sucesso da indústria reside em não mudar a realidade, impedindo o avanço de ideias contrárias aos seus interesses no Parlamento”. 126 Apesar da não confirmação dessa hipótese, os autores encontraram alguns resultados substantivos. Pode-se destacar o achado de que, quanto mais recursos recebidos de empresas (de modo geral, e não apenas das indústrias) durante a campanha, maior é a cooperação dos deputados com os interesses da CNI. Interesses organizados nas comissões parlamentares: percepções de grupos de interesse e assessores parlamentares 443 No espaço das comissões e no Legislativo como um todo, diversos atores assumem importantes papéis no processo decisório. Conhecer a relevância que profissionais ligados à representação de interesses atribuem a esses atores também é fundamental para uma maior aproximação com a dinâmica estratégica levada a cabo pelos grupos de pressão. A tabela 3 apresenta a perspectiva dos respondentes dos dois surveys acerca da relevância de alguns postos-chave do Congresso Nacional. Tabela 3 Relevância de postos-chave do Congresso Nacional (%) Irrelevante Posto-chave Pouco relevante Relevância moderada Relevante Muito relevante NS / NR G1 G2 G1 G2 G1 G2 G1 G2 G1 G2 G1 G2 1. Relator 0 1,5 0 0 0 2,2 23,1 20,4 73,8 69,3 3,1 6,6 2. Líder do governo 0 2,9 1,5 0 0 6,6 24,6 32,1 70,8 51,1 3,1 7,3 3. Líderes partidários 0 2,9 1,5 2,2 10,8 6,6 29,2 32,1 53,9 48,2 4,6 8 4. Presidentes das comissões 0 1,5 1,5 0 7,7 5,1 46,2 28,5 41,5 58,4 3,1 6,5 5. Líder da oposição 0 2,9 6,1 2,2 18,5 16,8 30,8 31,4 41,5 38 3,1 8,7 6. Outros titulares das comissões 0 2,2 3,1 2,2 43,1 21,9 36,9 50,4 13,8 17,5 3,1 5,8 7. Líderes das bancadas suprapartidárias e frentes 4,6 2,2 10,8 2,2 27,7 16,8 41,5 45,2 12,3 24,8 3,1 8,8 8. Membros da Mesa diretora 3,1 3,7 12,3 6,6 36,9 24,8 32,3 42,3 10,8 14,6 4,6 8 Fonte: dados do survey “Lobby e representação de interesses no Congresso Nacional” (UFMG; Ipea) (G1) e do survey “Relações institucionais e governamentais: uma radiografia da atividade profissional” (UFMG; Abrig) (G2). Elaboração do autor. Nota: N G1: 65; N G2: 137 (104 associados e 33 não associados). A ordem de relevância dos postos-chave do Legislativo, segundo os respondentes do grupo um, é a seguinte: relator (73,8% de resposta à opção muito 444 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO relevante), líder do governo (70,8%), líderes partidários (53,9%), presidentes das comissões (41,5%), líder da oposição (41,5%), outros titulares das comissões que não o relator e o presidente (13,8%), líderes das bancadas suprapartidárias e frentes parlamentares (12,3%) e membros da Mesa diretora (10,8%). Por sua vez, entre os respondentes do grupo dois, a ordem de relevância atribuída aos postos-chave apresenta algumas diferenças. Ao relator é indicada a maior relevância estratégica (69,3% de resposta à opção muito relevante), posto que é seguido por outro ator central na atividade das comissões, qual seja o presidente dessa arena (58,4%). Adiante, aparecem as figuras dos diversos líderes que atuam no processo legislativo: líder do governo (51,1%), líderes partidários (48,2%), líder da oposição (38%) e líderes das bancadas suprapartidárias e frentes parlamentares (24,8%). Por fim, são registrados, para os outros titulares da comissão (que não o relator e o presidente) e para os membros da Mesa diretora, os seguintes percentuais, respectivamente: 17,5% e 14,6%. Em geral, pode-se dizer que é alta a relevância atribuída pelos respondentes a muitos atores-chave mencionados em ambas as pesquisas. Apenas no grupo um, registrou-se um percentual inferior a 50% de resposta às opções relevante e muito relevante, o qual foi atribuído aos membros da Mesa diretora. Por outro lado, em ambas as pesquisas, destacam-se os atores com grande importância no sistema comissional do Legislativo. Considerando apenas as respostas à opção muito relevante, observa-se que, na percepção dos respondentes, o relator é o posto-chave mais relevante, ao passo que o presidente da comissão aparece como o quarto mais relevante no grupo um e o segundo mais relevante no grupo dois. Nesse sentido, Freitas (2016, p. 83) ressaltou que a deliberação acerca dos projetos se dá nas comissões e que é “nelas que o conteúdo dos projetos é definido, e o relator é um ator central no processo de tramitação das matérias. Desconsiderar sua importância ou classificá-las como fracas sem observar o seu trabalho cotidiano impossibilita uma visão completa do sistema político brasileiro”. Esses resultados vão ao encontro de outros argumentos encontrados na literatura. Taglialegna e Carvalho (2006), por exemplo, destacaram que, para o exercício de influência no processo legislativo, é fundamental que os grupos de pressão estabeleçam bons relacionamentos com os relatores de matérias ligadas aos seus interesses. Mancuso (2007) apontou que, no âmbito das comissões, o relator é um alvo privilegiado da ação política da indústria. Zampieri (2013), por sua vez, Interesses organizados nas comissões parlamentares: percepções de grupos de interesse e assessores parlamentares 445 empreendeu a análise da ação dos grupos de interesse nas comissões, apontando que três são os momentos principais de decisão aos quais as ações de influência devem se direcionar: (i) definição de relatoria, (ii) formulação do parecer e (iii) definição do posicionamento da comissão. Considerando esses momentos, é no processo de formulação do parecer que o relator se coloca como figura central, quando, na conclusão a que chegou Zampieri (2013, p. 133), “a ação dos grupos de pressão é realizada com mais facilidade [...], pois é o momento de apresentar ao relator o posicionamento dos grupos sob determinada proposição”. Dos números reportados nesta seção, é possível observar que, seja olhando para as arenas acionadas pelos grupos de interesse no processo de influência ou para os atores-chave da dinâmica legislativa, há uma clara indicação de que as comissões são loci da atuação dos interesses organizados. Ademais, a relevância atribuída ao relator parece sugerir a existência de uma dinâmica de representação de interesses na qual a informação apresenta-se como insumo indispensável. Esse é o tema da seção subsequente, a qual direciona a atenção para as estratégias e atividades desenvolvidas pelos grupos de interesse. Estratégias e atividades: a relevância da dimensão informacional A discussão relativa a estratégias e atividades utilizadas por grupos de interesse com vistas a influenciar o processo decisório não pode ignorar o momento pelo qual passa o Brasil, em que a Operação Lava Jato tem mostrado a existência de fortes conexões entre influência política e práticas ilícitas. No entanto, como assinalou Mancuso (2007), a relação entre público e privado, em sua faceta legal, oferece um importante espaço para a investigação acadêmica, o qual é ainda pouco explorado. O foco desta seção é essa faceta legal, abordando ações que podem ser mobilizadas por grupos de pressão em suas interações com os tomadores de decisão. Nesse sentido, Zampieri (2013) analisou a ação dos grupos de pressão no âmbito das comissões permanentes do Congresso Nacional a partir de três modelos tradicionalmente utilizados em estudos acerca do comportamento dos atores do 446 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Legislativo: distributivista, informacional e partidário127. Segundo o autor, ações de influência e defesa de interesses nessas arenas possuem como momento ideal aquele em que predomina o modelo teórico informacional. Isso porque é “função básica dos grupos de pressão instruir os membros das comissões permanentes por meio de documentos técnicos” (ZAMPIERI, 2013, p. 135). Dessa forma, as incertezas de parlamentares acerca das políticas em debate seriam reduzidas, sendo esse o momento no qual o sistema político mais se abre às informações externas. Os dados apresentados na seção anterior, sobretudo a relevância atribuída ao sistema comissional e ao posto de relator, parecem corroborar as teses sobre a atuação dos grupos de pressão por meio de estratégias que têm a informação como principal insumo. O propósito agora é analisar especificamente estratégias e atividades desenvolvidas pelos grupos de interesse visando influenciar o processo decisório. É importante considerar que o desenvolvimento dessas estratégias e atividades é condicionado a outros fatores, como o fato de que grupos têm recursos distintos e, por conseguinte, acesso diferenciado às arenas decisórias (SMITH, 1984). A tabela 4 destaca os resultados do survey aplicado ao grupo um, ou seja, a representantes de grupos de interesse e assessores parlamentares cadastrados na Primeira Secretaria da Câmara dos Deputados,128 apresentando suas percepções acerca da eficiência de estratégias tipicamente utilizadas. Tabela 4 Eficiência das estratégias utilizadas pelos grupos de pressão (%) (G1) Estratégias Ineficiente Eficiente Altamente eficiente NS / NR Total 1. Oferecer notas ou relatórios técnicos 1,5 40 57 1,5 100 2. Fazer gestões junto ao relator 1,5 40,1 55,4 3 100 3. Visitas preventivas a parlamentares 3,1 46,1 47,7 3,1 100 127 É importante ressaltar que, respectivamente, esses modelos estão ligados a: (i) motivações dos parlamentares em se reeleger, mobilizando, para tal, benefícios distributivos para seus distritos; (ii) utilização da maior quantidade possível de informação no processo de tomada de decisões; e (iii) visualização das comissões como uma forma de governo partidário (LIMONGI, 1994). 128 No que se refere à discussão acerca das estratégias, serão reportadas tabelas distintas para os dois grupos respondentes, uma vez que, para o grupo um, a indagação se referiu à eficiência das estratégias elencadas, enquanto, para o grupo dois, referiu-se à relevância. Interesses organizados nas comissões parlamentares: percepções de grupos de interesse e assessores parlamentares 447 Estratégias Ineficiente Eficiente Altamente eficiente NS / NR Total 4. Tentar influir na indicação do relator 7,7 43,1 44,6 4,6 100 5. Sugerir minutas de emendas 4,6 52,3 41,6 1,5 100 6. Tentar influir na agenda da comissão 13,8 36,9 36,9 12,4 100 7. Encontros informais com parlamentares 7,7 46,1 32,3 13,9 100 8. Fazer gestões junto aos líderes partidários 6,2 61,5 29,2 3,1 100 9. Fazer gestões junto ao líder do governo 18,5 53,8 23,1 4,6 100 10. Sugerir minutas de proposições legislativas 6,2 67,7 21,5 4,6 100 11. Fazer gestões junto ao líder da oposição 27,7 50,8 16,9 4,6 100 Fonte: dados do survey “Lobby e representação de interesses no Congresso Nacional” (UFMG; Ipea). Elaboração do autor. A partir desses resultados, verifica-se que as estratégias consideradas pelos respondentes do grupo um como as mais eficientes são: oferecer notas ou relatórios técnicos sobre os impactos de uma determinada proposição legislativa em apreciação e a posição da entidade/órgão (57% de resposta à opção altamente eficiente); fazer gestões junto ao relator tentando influir no conteúdo de determinada proposição legislativa (55,4%); realizar visitas preventivas para preparar/convencer o parlamentar, chamando a atenção para questões de interesse do grupo (47,7%); fazer gestões junto ao presidente da comissão tentando influir na indicação de um relator para determinada proposição legislativa de interesse (44,6%); e sugerir minutas de emendas para que o parlamentar avalie a possibilidade de apresentá-las (41,6%). Esses resultados também apontam para a centralidade das comissões e de seus principais atores políticos estratégicos. Dentre as cinco estratégias consideradas mais eficientes, duas ocorrem diretamente em seu âmbito (gestões junto ao relator e tentativa de influenciar na indicação do relator) e as outras três apresentam forte relação com o seu escopo de atividades. Por sua vez, a pesquisa realizada em parceria com a Abrig indagou a opinião dos profissionais de relações institucionais e governamentais sobre o grau de relevância das mesmas estratégias listadas anteriormente. Os resultados encontram-se na tabela 5. 448 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Tabela 5 Relevância das estratégias utilizadas pelos grupos de pressão (%) (G2) Irrelevante Pouco relevante Relevância moderada Relevante Muito relevante NS / NR Total 0,7 0 8 21 64,5 5,8 100 1,4 1,4 8,7 32,6 49,3 6,6 100 3. Visitas preventivas a parlamentares 1,4 1,4 10,9 31,9 48,6 5,8 100 4. Fazer gestões junto ao relator 5,8 2,2 13 24,6 45,7 8,7 100 5. Sugerir minutas de proposições legislativas 1,4 2,9 12,3 32,6 44,2 6,6 100 6. Fazer gestões junto aos líderes partidários 2,9 2,9 16,7 31,9 34 11,6 100 7. Fazer gestões junto ao líder do governo 4,3 2,9 18,1 31,9 32,6 10,2 100 8. Tentar influir na indicação do relator 4,4 6,5 18,8 26,8 31,2 12,3 100 9. Tentar influir na agenda da comissão 4,4 7,2 23,9 26,1 26,8 11,6 100 10. Fazer gestões junto ao líder da oposição 4,3 5,1 24,6 29 25,4 11,6 100 11. Encontros informais com parlamentares 10,1 12,3 17,4 29 17,4 13,8 100 Estratégias 1. Oferecer notas ou relatórios técnicos 2. Sugerir minutas de emendas Fonte: dados do survey “Relações institucionais e governamentais: uma radiografia da atividade profissional” (UFMG; Abrig). Elaboração do autor. Nota: N G2: 138 (104 associados e 34 não associados). Para o grupo dois, as cinco estratégias às quais se atribui maior relevância são: oferecer notas ou relatórios técnicos (64,5% de resposta à opção muito relevante); sugerir minutas de emendas (49,3%); realizar visitas preventivas a parlamentares (48,6%); fazer gestões junto ao relator (45,7%); e sugerir minutas de proposições legislativas (44,2%). Mesmo considerando que a discussão se refere, no primeiro grupo, à eficiência das estratégias e, no segundo grupo, à relevância, a comparação entre os dois grupos respondentes é interessante. A ordem de importância atribuída às estra- Interesses organizados nas comissões parlamentares: percepções de grupos de interesse e assessores parlamentares 449 tégias é distinta, entretanto, no que se refere às cinco primeiras opções, há uma coincidência de quatro. Além disso, o oferecimento de notas ou relatórios técnicos é a opção considerada mais eficiente, no caso do grupo um, e mais relevante, no caso do grupo dois. O elemento informacional presente na atividade de representação de interesses pode ser facilmente percebido por meio dos números apresentados. Associado a esse aspecto, destaca-se a centralidade das comissões, a qual é reportada também na avaliação das estratégias. Dessa forma, vale assinalar a aplicação da teoria informacional para o caso brasileiro empreendida por Santos e Almeida (2011). Os autores sugeriram que, em grande medida, o trabalho das comissões consiste na produção e disseminação de informação, vista como insumo indispensável ao processo de tomada de decisão. Nessa direção, Groseclose e King (2001, p. 3), ao apresentar as teorias acerca do papel das comissões, ressaltaram que há, no escopo da teoria informacional, a seguinte visão: “a committee is better informed about the consequences of a policy than the full member ship of the House or Senate”. Sendo assim, grupos de interesse, dada sua expertise em áreas específicas, poderiam ser considerados como importantes agentes informacionais.129 Outra dimensão da representação de interesses abordada em ambas as pesquisas se refere às atividades desenvolvidas por grupos de pressão na tentativa de influenciar o processo decisório. A tabela 6 destaca os resultados do survey aplicado ao grupo um130, apresentando a frequência indicada pelos respondentes. Tabela 6 Frequência de atividades desenvolvidas (%) (G1) Atividade Nunca Raramente Frequência moderada Muita frequência 1. Acompanhamento de reuniões das comissões 0 4,6 13,8 23,1 Sempre Total 58,5 100 129 Em Ambrus et al. (2013, p. 112), pode ser encontrada uma análise das comissões legislativas enquanto intermediária informacional. Uma das conclusões a que chegaram os autores é: “if the legislative process requires informational input from outside interest groups, it can be in the legislature’s interest to appoint a biased committee to communicate with the expert”. 130 No que se refere à discussão acerca das atividades, também serão reportadas tabelas distintas para os dois grupos respondentes. Para o grupo um, a indagação se referiu à frequência de desenvolvimento das atividades elencadas, ao passo que, para o grupo dois, referiu-se à relevância das atividades. 450 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Atividade Nunca Raramente Frequência moderada Muita frequência 2. Contato direto com os parlamentares 1,5 1,5 27,7 29,3 40 100 3. Participação em audiências públicas 4,6 7,7 23,1 35,4 29,2 100 4. Acompanhamento das reuniões plenárias 1,5 16,9 38,5 18,5 24,6 100 5. Visitas aos gabinetes 1,5 10,8 35,4 32,3 20 100 6. Contato com a assessoria das comissões 3,1 12,3 33,8 32,3 18,5 100 7. Contato com outros grupos de pressão 4,6 10,8 36,9 29,2 18,5 100 8. Contato com os líderes e acompanhamento das bancadas suprapartidárias e frentes 4,6 15,4 40 24,6 15,4 100 9. Contato com a consultoria legislativa 4,6 24,6 44,6 16,9 9,3 100 Sempre Total Fonte: dados do survey “Lobby e representação de interesses no Congresso Nacional” (UFMG; Ipea). Elaboração do autor. Como pode ser observado, o acompanhamento de reuniões das comissões é citado como a atividade mais frequentemente desenvolvida (58,5% de resposta à opção sempre). Na sequência, aparecem o contato direto com os parlamentares (40%) e a participação em audiências públicas (29,2%). Esses números reforçam o que apontou Mancuso (2007), segundo o qual, no espaço das comissões, a defesa de interesses se dá em eventos como audiências públicas e reuniões de trabalho, quando representantes de grupos de pressão ficam face a face com os tomadores de decisão e manifestam suas demandas. Além disso, os números confirmam o argumento de que as audiências públicas são espaços altamente importantes nos quais interagem e se articulam os mais variados interesses (CESÁRIO, 2016). As outras duas atividades mais frequentemente desenvolvidas são o acompanhamento das reuniões plenárias (24,6%) e a visita aos gabinetes (20%). O survey aplicado ao grupo dois, por sua vez, indagou os profissionais de relações institucionais e governamentais acerca da relevância das atividades Interesses organizados nas comissões parlamentares: percepções de grupos de interesse e assessores parlamentares 451 desenvolvidas, sendo os números apresentados na tabela 7. A título de comparação com os resultados do grupo um, deve-se registrar que frequência de desenvolvimento de determinada atividade e relevância a ela indicada são atributos consideravelmente distintos. No entanto, assume-se que ambos contêm uma indicação de importância, o que possibilita o exercício aqui desenvolvido. Tabela 7 Relevância de atividades desenvolvidas (%) (G2) Atividade Irrelevante Pouco relevante Relevância moderada Relevante Muito relevante NS / NR Total 1. Contato direto com os parlamentares 0,7 0,7 7,1 26,9 59,6 5 100 2. Contato com os líderes e acompanhamento das bancadas suprapartidárias e frentes 1,4 2,8 11,3 27,7 53,2 3,6 100 3. Contato com outros grupos de pressão 0,7 2,1 12,8 27,7 52,5 4,2 100 4. Contato com a assessoria das comissões 1,4 4,3 14,2 35,5 40,4 4,2 100 5. Acompanhamento de reuniões das comissões 2,1 2,8 17,7 36,2 37,6 3,6 100 6. Visitas aos gabinetes 2,8 3,5 15,6 37,6 35,5 5 100 7. Participação em audiências públicas 0 7,8 19,9 39 29,8 3,5 100 8. Contato com a consultoria legislativa 3,5 5 20,6 39 27,7 4,2 100 9. Acompanhamento das reuniões plenárias 3,6 12,8 26,2 36,2 17,7 3,5 100 Fonte: dados do survey “Relações institucionais e governamentais: uma radiografia da atividade profissional” (UFMG; Abrig). Elaboração do autor. Nota: N G2: 141 (106 associados e 35 não associados). O contato direto com os parlamentares é o trabalho considerado, do ponto de vista estratégico, como o mais relevante (59,6% de resposta à opção muito relevante), sendo seguido pelas seguintes atividades: contato com os líderes e acompanhamento das atividades das bancadas suprapartidárias e frentes (53,2%) e contato com outros grupos de pressão para o desenvolvimento de ações articuladas 452 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO (52,5%). Na sequência, aparecem atividades diretamente associadas ao funcionamento das comissões: contato com a assessoria dessas arenas (40,4%) e acompanhamento de suas reuniões (37,6%). Observando as cinco principais atividades reportadas pelos dois grupos, é possível verificar que duas se repetem: contato direto com os parlamentares e acompanhamento de reuniões das comissões. Sobre o primeiro ponto, vale registrar o balanço da literatura realizado por Figueiredo e Richter (2013), apontando que legisladores poderosos são alvos mais propensos de lobbying. Segundo os autores, esses legisladores geralmente têm poder para definir a agenda, estão em comissões poderosas e influentes e ocupam postos de lideranças no Legislativo. Certamente, o argumento dos autores dialoga com a discussão empreendida quando da análise dos postos-chave existentes no Poder Legislativo. Os dados indicam que os grupos de interesse percebem a importância de se estabelecer contatos diretos com os legisladores e, mais do que isso, com legisladores específicos e decisivos no processo legislativo. A análise das atividades também aponta para a importância das comissões, claramente percebidas como uma arena na qual é essencial estar presente e desenvolver ações de influência. Chama atenção, ainda, a relevância atribuída, entre os respondentes do grupo dois, ao contato com os líderes e acompanhamento das bancadas suprapartidárias e frentes e ao contato com outros grupos de pressão, o que não é fortemente indicado pelos respondentes do grupo um. O fato de que a segunda pesquisa tenha sido, em grande medida, respondida por profissionais de uma associação específica pode estar relacionado a essa maior articulação no processo de representação de interesses, tanto com bancadas e frentes parlamentares como com outros grupos de pressão. Esse aspecto requer, entretanto, maior investigação. Conclusão Este capítulo procurou retratar onde e como atuam representantes de interesses organizados, considerando o complexo processo decisório que envolve múltiplas instituições. Para isso, foram utilizados dados de dois surveys: o primeiro aplicado a representantes de grupos de interesse e assessores parlamentares cadastrados na Primeira Secretaria da Câmara dos Deputados e o segundo aplicado a associados à Abrig e outros profissionais de relações institucionais e gover- Interesses organizados nas comissões parlamentares: percepções de grupos de interesse e assessores parlamentares 453 namentais constantes em cadastro fornecido pela associação. Os resultados dos surveys trazem informações sobre arenas, atores e estratégias acionados pelos grupos de interesse, o que possui potencial para agregar conhecimento à área, sobretudo no que se refere às estratégias que têm, na perspectiva dos respondentes, maior capacidade de influenciar decisões políticas (SANTOS et al., 2017). A discussão empreendida procurou, ainda, verificar a existência de diferenças nas percepções dos dois grupos respondentes, observando-se, entretanto, considerável correspondência entre elas. Diante de um sistema político complexo como o brasileiro e da consequente exigência de atuação em múltiplas arenas, os dados indicam que os profissionais respondentes percebem a produtividade da atuação em diversas instâncias. Todavia, é no Legislativo, mais especificamente na Câmara dos Deputados, que a representação de interesses é percebida com maior factibilidade de produzir resultados positivos na direção das demandas defendidas. Quando a atenção se dirigiu para a atuação dos interesses organizados no Congresso Nacional, tanto no que se refere às arenas relevantes quanto no que diz respeito aos atores acionados, fica claro que as comissões se constituem como um espaço fundamental para a defesa de interesses. Há, assim, uma ênfase dos profissionais respondentes no Legislativo, em sua estrutura de comissões e em seus postos-chave, com destaque para o relator. Esse dado indica que a percepção dos profissionais acerca de uma atuação produtiva está relacionada ao seu maior ativo, qual seja, a informação qualificada. A importância da dimensão informacional também se coloca na análise das estratégias e das atividades empreendidas tradicionalmente pelos grupos de interesse. Apesar de alguma variação nas repostas entre os dois grupos respondentes, o oferecimento de notas ou relatórios técnicos foi a opção considerada mais eficiente, no caso do grupo um, e mais relevante, no caso do grupo dois. Associado a esse aspecto, destaca-se a centralidade das comissões, a qual é reportada também na avaliação das estratégias. Isso é, ainda, percebido pela observação das principais atividades reportadas. Mesmo com algumas diferenças entre os grupos, dentre as cinco principais atividades, duas se repetem, destacando-se o contato direto com os parlamentares e o acompanhamento de reuniões das comissões. Diante desses dados, o caminho da influência parece 454 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO ser percebido, pelos profissionais, como o caminho da negociação, cuja moeda de maior valor é a informação. Os resultados apresentados mostram, portanto, que percepções dos profissionais ligados à representação de interesses corroboram os recentes achados da literatura que apontam na direção de mudanças institucionais. Assim, há uma forte indicação da centralidade do Legislativo, reforçando o argumento de revalorização desse Poder e sinalizando que há espaço para a atuação de interesses organizados na arena legislativa. Mais do que isso, comissões legislativas e seus atores-chave, como relatores, são indicados como muito importantes, indicando que é para essa arena que os esforços dos profissionais predominantemente se deslocam, dada a percepção de que nesse espaço se encontram as maiores chances de influência. Ademais, as estratégias com maior atribuição de importância são associadas à produção e disseminação de informação qualificada, a qual se apresenta como o principal insumo na dinâmica de atuação dos interesses organizados no complexo sistema político brasileiro. É importante ressaltar que o debate apresentado neste capítulo acerca de onde e como atuam os representantes de interesses organizados direciona sua atenção para a dimensão legal da interação entre grupos de interesse e instituições políticas. Esse ponto deve ser enfatizado diante do contexto vivenciado pelo Brasil, em que a Operação Lava Jato tem mostrado a existência de fortes conexões entre influência política e práticas ilícitas, a citar corrupção, tráfico de influência e financiamento ilegal de campanhas eleitorais. O foco em atividades de lobbying públicas e legais não significa ignorar essas conexões. Pelo contrário, o esforço empreendido na discussão das percepções de representantes de grupos de interesse, marcado por duas tentativas de aproximação do dado concernente aos grupos presentes nas arenas decisórias, pretendeu contribuir com a área de estudos relativa à influência política. Dessa forma, muitos estudos fazem-se necessários e, avançando-se no conhecimento da dimensão legal das interações entre público e privado, torna-se possível explorar a relação entre essa dimensão e episódios de corrupção como os que têm dominado a pauta dos noticiários brasileiros. Interesses organizados nas comissões parlamentares: percepções de grupos de interesse e assessores parlamentares 455 Referências ALMEIDA, A. (2015). Processo legislativo: mudanças recentes e desafios. Boletim de Análise Político-Institucional, n. 7, p. 45-50. AMBRUS, A.; AZEVEDO, E.; KAMADA, Y.; TAKAGI, Y. (2013). Legislative committees as information intermediaries: A unified theory of committee selection and amendment rules. Journal of Economic Behavior & Organization, n. 94, p.103-115. ARAGÃO, M. (1994). Grupos de pressão no Congresso Nacional: como a sociedade pode defender licitamente seus direitos no Poder Legislativo. São Paulo: Maltese. BAIRD, M. (2016). O lobby na regulação da publicidade de alimentos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Revista de Sociologia e Política, v. 24, n. 57, p. 67-91. BAUMGARTNER, F.; LEECH, B. (1998). Basic interests: the importance of groups in politics and in political science. New Jersey: Princeton Univ. Press. BROWNE, W. (1998). Interests and US Public Policy. Washington: Gergetown Univ. Press. CARVALHO, E.; SANTOS, M.; GOMES NETO, J.; BARBOSA, L. (2016). Judicialización de la política y grupos de presión en Brasil: intereses, estrategias y resultados. América Latina Hoy, n. 72, p. 59-88. CESÁRIO, P. (2016). Redes de influência no Congresso Nacional: como se articulam os principais grupos de interesse. Revista de Sociologia e Política, v. 24, n. 59, p.109-127. FREITAS, A. (2016). O presidencialismo da coalizão. Rio de Janeiro: Fund. Konrad Adenauer. FIGUEIREDO, J.; RICHTER, B. (2014). Advancing the empirical research on lobbying. Annual Review of Political Science, n. 17, p.163-185. 456 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO GROSECLOSE, T.; KING, D. (2001). Committee theories reconsidered. In: DODD, L.; OPPEINHEIMER, B. (Ed.). Congress reconsidered. Washington, DC: CQ Press. p. 191-216. LIMONGI, F. (1994). O novo institucionalismo e os estudos legislativos: a literatura norte-americana recente. Boletim Informativo Bibliográfico, n. 37, p. 3-38. MANCUSO, W. (2007). O lobby da indústria no Congresso Nacional: empresariado e política no Brasil contemporâneo. São Paulo: Humanitas. SANTOS, F.; ALMEIDA, A. (2011). Fundamentos informacionais do presidencialismo de coalizão. São Paulo: Appris. SANTOS, M. (2011). O Parlamento sob influência: o lobby da indústria na Câmara dos Deputados. 2011. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife. ______ (2014). Representação de interesses na arena legislativa: os grupos de pressão na Câmara dos Deputados, 1983-2012. Brasília: Ipea. p. 5-39. (Texto para discussão; 1975). ______; MANCUSO, W.; BAIRD, M.; RESENDE, C. (2017). Lobbying no Brasil: profissionalização, estratégias e influência. Brasília: Ipea. p.7-59. (Texto para discussão; 2334). ______; CUNHA, L. (2015). Percepções sobre a regulamentação do lobby no Brasil: convergências e divergências. Brasília: Ipea. p. 5-51. (Texto para discussão; 2141). ______; SILVA, M.; FIGUEIREDO FILHO, D.; ROCHA, E. (2015). Financiamento de campanha e apoio parlamentar à agenda legislativa da indústria na Câmara dos Deputados. Opinião Pública, v. 21, n. 1, p. 33-59. SCARROW, S. (2007). Political finance in comparative perspective. Annual Review of Political Science, n. 10, p. 193-210. SHEPSLE, K.; WEINGAST, B. (1987). The Institutional Foundations of Committee Power. American Political Science Review, v. 81, n. 1, p. 85-194. Interesses organizados nas comissões parlamentares: percepções de grupos de interesse e assessores parlamentares 457 SMITH, R. (1995). Interest group influence in the US Congress. Legislative Studies Quarterly, v. 20, n. 1, p. 89-139. ______ (1984). Advocacy, interpretation, and influence in the US Congress. American Political Science Review, v. 78, n. 1, p. 44-63. STRATMAN, T. (2005). Some talk: money in politics, a (partial) review of the literature. Public Choice, v. 124, n. 1, p. 135-156. TAGLIALEGNA, G. (2005). Grupos de pressão e a tramitação do projeto de lei de biossegurança no Congresso Nacional. Brasília: Senado Federal, Consultoria Legislativa. p. 2-83. (Texto para discussão; n. 28). ______; CARVALHO, P. (2006). Atuação de grupos de pressão na tramitação do projeto de lei de biossegurança. Revista de Informação Legislativa, v. 43, n. 169, p.161-188. THOMAS, C., 2004. Research guide to US and international interest groups. Westpost, CT: Praeger Publ. ZAMPIERI, E. (2013). Ação dos grupos de pressão no processo decisório das comissões permanentes do Congresso Nacional. E-Legis, Brasília, n. 12, p. 122-136. 459 Sub-representação feminina no sistema de comissões parlamentares: um indicador da exclusão das mulheres do jogo político Giovana Dal Bianco Perlin Introdução Nada de novo em constatar a sub-representação feminina no parlamento brasileiro. Não só no Brasil, mas em quase todas as democracias, as mulheres ocupam pouco espaço no sistema político. Mas o que isso significa, para além da sub-representação numérica? A partir do mapeamento da ocupação de espaços de poder por mulheres parlamentares na Câmara dos Deputados, este trabalho propõe analisar algumas consequências de sua diminuta participação, com foco em sua ausência no jogo da governabilidade e de negociação de agendas políticas no presidencialismo de coalizão, que resulta em pouca força para se envolver em barganhas e inexpressiva capacidade de negociar agendas junto ao Executivo. Não há dúvida de que a inequidade de gênero experimentada pelas mulheres ao longo dos últimos séculos foi, em parte, superada. Os pesquisadores e estatísticos José Alves e Suzana Cavenaghi (2012) expuseram vários indicadores que corroboram essa afirmação no contexto brasileiro. As mulheres galgaram a educação formal em todos os níveis de ensino, mas ainda estão pouco presentes nas ciências exatas e na liderança dos grupos de pesquisa. Aumentaram as taxas de participação no mercado de trabalho, mas concentram-se em setores de atividade menos valorizados, são submetidas a diferenças salariais para realizar as mesmas atividades e arcam com a dupla jornada de trabalho (ALVES; CAVENAGHI, 2012). Conquistaram avanços na legislação nacional, mas trata-se de direitos que ainda não são efetivamente usufruídos, porque seus 460 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO efeitos práticos são obstruídos por tetos de vidro131 culturais ou firewall132 de gênero. A expectativa de vida das mulheres é, em média, sete anos acima da média masculina, e elas são maioria da população e do eleitorado. Obtiveram o direito de voto, em 1932, mas não conseguiram ultrapassar o teto de 10% de deputadas federais. O que falta para que a equidade seja plena? Um caminho profícuo para compreender os desafios da equidade de gênero é a ideia da “perspectiva” social, utilizada por Marion Young (2006) no contexto teórico da representação política. Em seu artigo sobre representação política e minorias, Marion Young sugere o conceito de perspectiva como opção explicativa para a compreensão da importância da participação de mulheres na política. Marcadores sociais tão primevos, como sexo, desenvolvem nas pessoas perspectivas diferenciadas do mundo, ou seja, as interações sociais que se estabelecem e se constroem são forjadas de forma a desenvolver relações pautadas em diretrizes e regras sociais diferenciadas. Conforme suas posições sociais, as pessoas estão sintonizadas com determinados tipos de significados e relacionamentos sociais, com os quais outras pessoas estão menos sintonizadas. Eventualmente estas últimas não estão posicionadas sequer de forma a ter consciência deles. A partir das suas posições sociais as pessoas têm compreensões diferenciadas dos eventos sociais e de suas consequências. Uma vez que suas posições sociais derivam parcialmente das construções que outras pessoas fazem delas, assim como das construções que elas fazem de outras pessoas em diferentes posições, pessoas diferentemente posicionadas podem interpretar de modos diferentes o significado de ações, eventos, regras e estruturas. Assim, as posições sociais estruturais produzem experiências particulares, relativas ao posicionamento, e compreensões específicas dos processos sociais e de suas consequências. Cada grupo diferentemente posicionado tem uma experiência ou um ponto de vista particular acerca dos processos sociais precisamente porque cada qual faz parte desses processos e contribui para produzir suas configurações. É especialmente quando estão situadas em diferentes lados das relações de 131 Barreira invisível para a ascensão ou promoção das mulheres. (POWELL; BUTTERFIELD, 1994). 132 Um constructo mais velado a respeito da dominação masculina nas organizações que impede o desenvolvimento feminino. (MENEZES, 2012) Sub-representação feminina no sistema de comissões parlamentares: um indicador da exclusão das mulheres do jogo político 461 desigualdade estrutural que as pessoas entendem essas relações e suas consequências de modos diferentes. (YOUNG, 2006, p. 162). A representação política a partir de uma perspectiva no mundo implica que a presença de mulheres no parlamento representa, em verdade, a perspectiva de quase metade da população mundial. Apesar disso, as mulheres ocupam muito menos da metade (22% em média) das cadeiras nos parlamentos das democracias: em apenas 25% dos parlamentos elas representam mais de 30% dos membros. Em 2015 o aumento do número de mulheres em cadeiras dos parlamentos foi de 0.5 percentual em relação ao ano de 2014 (INTER-PARLIAMENTARY UNION, 2016), o que mostra uma preocupante estabilização dessa participação. O Brasil, em 2015, ocupava, num total de 189 países, o 115º lugar em presença de mulheres no Poder Legislativo, com 10% de mulheres na Câmara dos Deputados. Mesmo o número de cadeiras ocupadas no Parlamento é insuficiente para a compreensão da sub-representação política feminina. Estudos, como o que nosso grupo de pesquisa realizou, sugerem que, quando conseguem adentrar na esfera da representação política, as mulheres continuam ocupando espaços periféricos e distantes do lócus de tomada estratégica de decisão política, repetindo e mantendo limitações e padrões de gênero seculares (PERLIN et al., 2016), permanecendo distantes dos espaços que permitem participar da construção das agendas políticas importantes. Ou seja, a sub-representação feminina pode ser ainda mais grave do que indicam os dados sobre a presença de mulheres nas cadeiras dos parlamentos. No presidencialismo de coalizão, a questão relacionada ao custo de gestão da coalizão é ponto fundamental, assim como a negociação de agendas. A compreensão do jogo entre os atores nas coalizões multipartidárias é ponto nodal, isso porque esse jogo que envolve o peso dos possíveis custos apresenta promissoras contrapartidas: abre portas para possibilidades de ganhos de troca e de cooperação entre os atores políticos (PEREIRA; MELO, 2012), benefícios e vantagens aos quais, como desenvolveremos neste texto, as mulheres raramente têm acesso. Elas estão, em verdade, fora do jogo. Identificar o alcance da sub-representação demanda observar o que se passa com as parlamentares dentro da instituição legislativa. Uma das formas de fazê-lo é por meio do estudo das comissões parlamentares permanentes e especiais da 462 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Câmara dos Deputados, espaços decisórios que vem ganhando cada vez mais atenção. Neste estudo analisamos a distribuição das mulheres parlamentares nas presidências de comissões, conforme os eixos temáticos das comissões. Buscamos identificar as comissões com maior e menor participação de mulheres no cargo de presidência e analisá-las conforme sua relevância temática, por meio de um levantamento de dados das Comissões permanentes da Câmara dos Deputados, desde 1934 até 2016. Analisamos, ainda, com o mesmo foco, a participação das parlamentares em cargos de presidência nas comissões temporárias especiais. Com esse trabalho, pretendemos mostrar que os espaços nos quais se constrói capital político para acessar benefícios no gerenciamento da coalizão e, mais especificamente, nos quais se negocia e define a agenda política, não estão ao alcance das mulheres parlamentares. Sub-representação política feminina: estamos falando de quê? Vários estudos têm buscado compreender o fenômeno da sub-representação feminina nos parlamentos (AZEVEDO; RABAT, 2012; MIGUEL; BIROLI, 2011; PHILIPS, 2001; PINTO, 1998; INGLEHART; NORRIS, 2003; YOUNG, 1990; PATEMAN, 1989). Reconhecidas as questões teóricas mais seminais relacionadas à discriminação de gênero, ou seja, a ideia geral de que, na cultura, durante a história da humanidade, desenvolveram-se e multiplicaram-se padrões generificados de inequidade (SCOTT, 1995), vários estudos vêm apontando fatores que explicam a estagnação da sub-representação política feminina. A participação política demanda, basicamente, três tipos de recursos: dinheiro (financiamento), tempo livre e rede de contatos (influência). Os grupos que estão em posição desfavorável, como o das mulheres, normalmente não possuem um ou mais desses recursos (MIGUEL; BIROLI, 2011). A hipótese de que os eleitores são fator determinante para compreensão da sub-representação, tendendo a não votar em mulheres, vem sendo descartada (FOX; LAWLESS, 2012). Financiamento político é variável dependente em relação a sexo, sendo necessário vinculá-la ao funcionamento dos sistemas eleitorais, de partidos e de Sub-representação feminina no sistema de comissões parlamentares: um indicador da exclusão das mulheres do jogo político 463 governo vigentes (ZOVATTO, 2005). Mulheres candidatas têm arrecadações de campanha significativamente menores do que homens candidatos (SACCHET; SPECK, 2012). Os partidos políticos no Brasil possuem autonomia para realizar a distribuição dos recursos, mesmo considerando a decisão do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral em relação aos repasses dos recursos. No primeiro semestre de 2018, por unanimidade, o Tribunal determinou que pelo menos 30% do Fundo Especial de Financiamento de Campanha devem ser gastos em candidaturas de mulheres. Mesmo com essa delimitação, os partidos possuem autonomia para repassar os recursos conforme suas preferências, deixando mulheres candidatas com pouco ou nenhum recurso. Considerando a alta correlação entre financiamento e sucesso eleitoral, o escasso financiamento eleitoral de mulheres pode ser fundamental para explicar seu baixo desempenho eleitoral (SACCHET; SPECK, 2012). O tempo da mulher e a forma como é utilizado também é variável importante para a compreensão da sub-representação. O peso das tarefas domésticas ainda recai de forma desproporcional sobre as mulheres, apesar de terem ocorrido mudanças nos arranjos maritais (MIGUEL; BIROLI, 2011). A maior quantidade de horas trabalhadas pelas mulheres, no Brasil, aproximadamente 5 horas a mais de trabalho semanal (IBGE, 2013), não significa ampliação de seu poder econômico, porque atuam mais em trabalhos não remunerados e não contabilizados, como as atividades domésticas, o cuidado com os filhos e com pessoas idosas ou doentes. Com maior sobrecarga laboral elas têm menos tempo livre para participar de movimentações políticas. Essas tarefas são permanentes, o que compromete a participação no competitivo mundo político (MIGUEL; BIROLI, 2011). A questão da divisão sexual do trabalho afeta, também, o pool de elegibilidade. Poucas mulheres ocupam posições estratégicas nas ocupações que servem como via para carreiras na política (FOX; LAWLESS, 2012). Essa escassez implica que as ocupações que permitem estabelecer relações de influência são pouco acessíveis a elas, que têm menos chance de receber incentivos para uma candidatura advindos de uma fonte política. Quando um líder, ou outro ator político, oferece apoio, o candidato potencial tende a levar adiante uma candidatura (FOX; LAWLESS, 2012). Além disso, as mulheres não se percebem suficientemente preparadas para participar do mundo político, influência de educação e socialização tradicionais 464 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO (FLAMMANG, 1997; FOX, 1997; KAHN, 1996; NIVEN, 1998). Independentemente de suas qualificações ou credenciais, e mesmo pertencendo à camada superior de realização profissional, elas não se consideram suficientemente qualificadas para concorrer a um cargo político (FOX; LAWLESS, 2012). Os espaços tradicionais de gênero também refletem as especialidades e ideologias das mulheres na política. As mulheres se envolvem mais em políticas relacionadas aos interesses de mulheres e crianças (SWERS, 2002; THOMAS, 1994; DODSON, 1998; FOX; LAWLESS, 2012). Também obtêm mais confiança dos eleitores quando se trata de “temáticas de mulheres”, como saúde, educação, meio-ambiente e ajudar os pobres (HUDDY; TERKILDSEN, 1993, 1993; LEEPER, 1991; FOX; LAWLESS, 2012). Esses espaços tradicionais de gênero, construídos e mantidos ao longo da história, são conformados por compreensões polarizadas acerca da natureza dos sexos, geralmente pautadas nas diferenças reprodutivas, e multiplicadas por ideias como a natureza predominantemente racional dos homens e predominantemente emocional das mulheres. Predisposições naturais para o cuidado e para a empatia são consideradas essencialmente femininas, o que circunscreve as mulheres a atividades e competências aderentes a essas características (FÁVERO, 2010). Ao tecer análise crítica acerca das construções dos espaços naturalizados de gênero, Fávero destaca o valor social que é atribuído a essas diferenças: o racional possui mais valor do que o emocional, considerado sinônimo de fragilidade. Da mesma forma, atividades que envolvem cuidado, como de dona de casa, de professora primária, de enfermeira, são desvalorizadas. As áreas que envolvem trabalhos de cuidado são também pouco prioritárias na pauta de políticas públicas de países como o Brasil. Estudos de Figueiredo e Limongi (1995) já identificaram as agendas políticas mais caras no cenário político, e não são as pautas sociais. Parlamentares, de forma geral, alcançam maior sucesso legislativo nas questões com menos importância na hierarquia legislativa, consideradas como agenda social, enquanto o Poder Executivo se dedica mais à agenda econômico-administrativa, mais cara. Os principais temas de atuação política podem ser divididos por categorias, conforme o impacto nas políticas públicas ou de governança. Para Miguel e Feitosa (2009) Hard politics constituem o núcleo do processo político, em especial o exercício do poder de Estado e a gestão da economia. Soft politics abarcam Sub-representação feminina no sistema de comissões parlamentares: um indicador da exclusão das mulheres do jogo político 465 assuntos voltados para a temática social. Middle politics contemplam temas de abordagens mistas, como “previdência social”, incluindo questões relativas aos pensionistas e às contas públicas. Mulheres atuam, proporcionalmente, mais do que homens em soft politics (PERLIN et. al., 2016). Como exposto, a sub-representação relaciona-se a múltiplos fatores, alguns estruturais, o que demanda soluções diferenciadas e muito difíceis de serem implantadas, mesmo em médio e longo prazo, principalmente pelo caráter retroalimentador de alguns fatores que mantêm o status quo do sistema. Mulheres e as presidências de Comissões da Câmara Apesar da importância das proposições legislativas e das relatorias de projetos de lei como investimentos no capital político do parlamentar (o que pode acarretar, direta ou indiretamente, repercussões no âmbito da conexão eleitoral para a manutenção de um mandato), o que realmente conta é a agenda da maioria (LIMONGI; FIGUEIREDO, 2009). Para fazer parte do grupo que constrói esta agenda, o cargo de presidente de comissão é privilegiado. [...] torna-se relevante fazer parte dos processos de discussão e tomada de decisão sobre os projetos de lei e outras proposições legislativas, não apenas no âmbito dos plenários das casas legislativas, mas também nas comissões permanentes e temporárias, especialmente quando o parlamentar está à frente de determinado processo, centralizando as negociações em torno do futuro texto legal e servindo de ponto de referência para o governo e os grupos organizados. Ou seja, aquele que está cuidando e orientando as discussões das matérias em tramitação, enfim, que consegue atuar como agenda holder. (SILVA; ARAUJO, 2013, p. 22). O presidente de comissão possui várias importantes atribuições estabelecidas pelo Regimento Interno da Câmara dos Deputados (BRASIL, 2012). Entre elas: dirigir os trabalhos legislativos do órgão colegiado pelo qual é responsável; dar à comissão e às lideranças conhecimento da pauta de reuniões; designar relatores e relatores-substitutos e distribuir a matéria sujeita a parecer, ou avocá-la, nas suas faltas; conceder a palavra aos membros da comissão, aos líderes e aos deputados que a solicitarem; submeter a votos as questões sujeitas à deliberação da comissão e proclamar o resultado da votação; resolver, de acordo com o 466 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Regimento, as questões de ordem ou reclamação suscitadas na comissão e definir a pauta das reuniões da comissão (AGUIAR, 2013). O controle do processo de discussão e votação também está em suas mãos, sendo sua competência declarar aprovação ou rejeição de proposições a partir da votação, cabendo àqueles que discordarem pedir a verificação do resultado ou do quórum. O presidente também dispõe de prerrogativas regimentais que podem interferir no resultado final de uma deliberação, quando decide o momento exato da votação, o que pode influenciar no quórum favorável ou contrário à matéria (AGUIAR, 2013). Silva e Araújo (2013) consideram, inclusive, que nas comissões especiais, nas quais há apenas um processo capitaneado por um relator e um presidente, a centralização das decisões é potencializada. Nessas comissões há maior ingerência do governo na indicação de presidentes, que adquirem grande poder no processo de negociação política. No processo legislativo ordinário, os projetos de lei passam por até três comissões de mérito, mais a CFT (Comissão de Finanças e Tributação) e a CCJC (Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania), o que exige mais gastos políticos com negociações e articulações. O Regimento Interno da Câmara dos Deputados (RICD), em seu inciso I do art. 22, define comissões permanentes como sendo [...] as de caráter técnico-legislativo ou especializado integrantes da estrutura institucional da Casa, copartícipes e agentes do processo legiferante, que têm por finalidade apreciar os assuntos ou proposições submetidos ao seu exame e sobre eles deliberar, assim como exercer o acompanhamento dos planos e programas governamentais e a fiscalização orçamentária da União, no âmbito dos respectivos campos temáticos e áreas de atuação. (BRASIL, 2012). São importantes órgãos na função legislativa e fiscalizadora da Câmara dos Deputados, podendo concluir a tramitação de alguns projetos sem que sejam submetidos ao plenário. Atualmente, são 25 as Comissões Permanentes. Já as Comissões Especiais (inciso II do art. 22 do RICD) são “criadas para apreciar determinado assunto, que se extinguem ao término da legislatura, ou antes dele, quando alcançado o fim a que se destinam ou expirado seu prazo de duração” (BRASIL, 2012). Elas constroem parecer sobre proposta de emenda à Constituição, projeto de código e proposições que versem matéria de compe- Sub-representação feminina no sistema de comissões parlamentares: um indicador da exclusão das mulheres do jogo político 467 tência de mais de três comissões de mérito. Dependendo do tema, a comissão especial pode ter poder conclusivo. Para este estudo, as comissões foram divididas em categorias temáticas, utilizando a classificação de Miguel e Feitosa (2009): Hard politics (núcleo do processo político, ou seja, o exercício do poder de Estado e a gestão da economia), Soft politics (temáticas sociais, como pobreza, desigualdade, fome, meio ambiente, educação, cultura e esporte, direitos do consumidor, família, direitos reprodutivos, infância e adolescência) e Middle politics (emprego, trabalho e formação social, ciência e tecnologia, funcionalismo público, comunicação social, propriedade intelectual, pirataria, biopirataria e assemelhados, previdência social, e questões consideradas irrelevantes, como homenagens e comemorações, questões religiosas e outros). Quadro 1 Lista de Comissões Permanentes da Câmara dos Deputados e categoria temática Comissões Permanentes Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural (CAPADR) Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) Categoria temática hard middle Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) hard Comissão de Cultura (CCULT) soft Comissão de Defesa do Consumidor (CDC) soft Comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência (CPD) soft Defesa dos Direitos da Mulher – CMULHER soft Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa – CIDOSO soft Comissão de Desenvolvimento Urbano (CDU) soft Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio (CDEIC) hard Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) soft Comissão de Educação (CE) soft Comissão do Esporte (CESPO) soft 468 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Comissões Permanentes Categoria temática Comissão de Finanças e Tributação (CFT) hard Comissão de Fiscalização Financeira e Controle (CFFC) hard Comissão de Integração Nacional, Desenvolvimento Regional e da Amazônia (CINDRA) soft Comissão de Legislação Participativa (CLP) middle Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (CMADS) soft Comissão de Minas e Energia (CME) hard Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional (CREDN) hard Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado (CSPCCO) hard Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF) soft Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público (CTASP) middle Comissão de Turismo (CTUR) soft Comissão de Viação e Transportes (CVT) hard Fonte: dados da Câmara dos Deputados e Miguel e Feitosa (2009). Elaboração da autora. Quadro 2 Distribuição das Comissões Permanentes em Categorias Temáticas Freq. % Comissões de Soft Politics 13 52,0% Comissões Hard Politics 9 36,0% Comissões Middle Politics 3 12,0% TOTAL 25 100% Categorias Temáticas Fonte: tipologia de Miguel e Feitosa (2009) e dados da Câmara dos Deputados. Elaboração da autora. Sub-representação feminina no sistema de comissões parlamentares: um indicador da exclusão das mulheres do jogo político 469 Presidências de Comissões Permanentes ao longo da história Dados fornecidos pela Câmara dos Deputados, que vão de 1934 (as mulheres passam a ter direito ao voto em 1932), até 2016, mostram o histórico da participação das mulheres nas presidências de comissões permanentes. De fato, a primeira comissão presidida por uma mulher na Câmara se deu 55 anos depois do início da contagem, em 1989, na Comissão de Serviço Público, pela deputada Irma Passoni, do PT de São Paulo. Gráfico 1 Mulheres na presidências de comissões permanentes ao longo do tempo, por legislatura 60 52 50 42 40 30 30 51 45 43 39 29 20 10 8 6 2 1 0 1934 1951 a 1955 1955 a 1959 2 1 1959 a 1963 1963 a 1967 1 1967 a 1971 1971 a 1975 4 1 1975 a 1979 1979 a 1983 4 2 1983 a 1987 n. de comissões presididas por mulheres 1987 a 1991 1991 a 1995 2 1995 a 1999 1999 a 2003 10 7 4 2003 a 2007 5 2007 a 2011 2011 a 2015 7 2015 a 2016 n. de mulheres eleitas Fonte: elaboração da autora. As mulheres aparecem na presidência de 41 comissões permanentes ao longo de 82 anos de participação feminina na Câmara. A maioria foram comissões de soft politics, com menor relevância política. Tabela 1 Participação de mulheres nas presidências e tipo de comissões, desde 1934 Tipo de política Número de presidências middle 4 (9.7%) hard 11 (26.8%) soft 26 (63.5%) total 41 (100%) Fonte: tipologia de Miguel e Feitosa (2009) e dados da Câmara dos Deputados. Elaboração da autora. 470 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Com poucas mulheres nas presidências de comissões de hard politics, a possibilidade de fazer parte do grupo que constrói a agenda política, o que implica grande capital político (LIMONGI; FIGUEIREDO, 2009), fica comprometida, deixando as mulheres à margem do sistema e mantendo sua posição predominantemente coadjuvante. Os espaços permitidos ou escolhidos para a atuação parlamentar feminina são repetições dos tradicionais espaços de gênero. Os locais nos quais ocorrem os processos decisórios estratégicos são ocupados por homens. Miguel e Feitosa (2009) atribuem essa distribuição, em parte, a questões partidárias, já que a distribuição dos deputados nas comissões depende de indicações e anuências dos partidos. Os partidos, por sua vez, conforme aponta Pippa Norris (2004), funcionam como ponte entre a sociedade e o governo, estruturando a escolha eleitoral, recrutando candidatos legislativos, provendo uma agenda legislativa no governo. Presidências e comissões especiais na 55ª legislatura Na 55ª Legislatura (2015-2019), de 31 comissões especiais constituídas para apreciação de PEC, 2 são presididas por mulheres. A que analisa a PEC 134, de 2015, (Participação Feminina no Legislativo), presidida pela deputada Carmen Zanotto, e a que cuida da PEC 214, de 2003, (Consultorias Jurídicas para a CD, o SF e o TCU) presidida por Cristiane Brasil. A PEC 134, de 2015, pleiteia cadeiras para mulheres no Poder Legislativo brasileiro, tema considerado de interesse feminino e hard politics. A PEC 214, de 2003, trata de direito administrativo, midle politics. Das demais 48 Comissões especiais, 3 possuem mulheres à frente da presidência: Bruna Furlan, PL 4060, de 2012, (Tratamento e Proteção de Dados Pessoais); Tereza Cristina, PL 6299, de 2002, (Regula Defensivos Fitossanitários); e Gorete Pereira, PL 7420, de 2006 (Lei de Responsabilidade Educacional). As Comissões especiais observadas neste estudo foram as que estavam em funcionamento até o final de 2016. Em síntese, das 79 comissões especiais, 5 são presididas por mulheres, o que representa 6,3% de mulheres em presidências, porcentagem inferior à proporção de mulheres na Câmara (9,94%). Dessas, apenas uma trata de hard politics e, cabe considerar, é um assunto que interessa diretamente às mulheres. A proporcionalidade, aqui, não é o principal foco, Sub-representação feminina no sistema de comissões parlamentares: um indicador da exclusão das mulheres do jogo político 471 mas, sim, a importância temática da política. O reduzido número de mulheres na Câmara torna a mera análise de proporcionalidade insuficiente para explicar a gravidade da sub-representação feminina. Frentes Parlamentares Incluímos no estudo, como dado complementar, as Frentes Parlamentares. São associações suprapartidárias destinadas a aprimorar a legislação referente a um tema específico. São importantes porque aproximam parlamentares de grupos de interesse e de eleitorado, dão visibilidade e possuem baixo custo para os gabinetes, já que a estrutura da Câmara dos Deputados, inclusive para divulgação, pode ser utilizada. Para que tenham seu registro oficial, deverão ser integradas por, no mínimo, um terço de membros do Poder Legislativo Federal.133 Em 2015 foram criadas 212 Frentes Parlamentares, com 159 deputados e deputadas como Coordenadores, já que um mesmo parlamentar pode coordenar mais de uma frente. Também foram classificadas de acordo com seus assuntos nas categorias temáticas hard, soft e middle politics. Gráfico 2 Distribuição das Frentes Parlamentares por Categorias Temáticas Tema Hard Middle 33,0% Soft 49,1% 17,9% Fonte: tipologia de Miguel e Feitosa (2009) e dados da Câmara dos Deputados. Elaboração da autora. 133 Ato da Mesa nº 69, de 10/11/2005, que trata sobre a criação de Frentes Parlamentares na Câmara dos Deputados. 472 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Mais flexíveis em termos institucionais e com maior autonomia quando comparadas às comissões permanentes e especiais, as frentes parlamentares parecem abrigar as agendas de hard politics reprimidas nas comissões. Verificamos (gráfico 2) uma predominância de Frentes Parlamentares que tratam de temas de hard politics com 49,1% do total, seguido de soft politics com 33% e, por último, temas de middle politics com 17,9% de frentes. Tabela 2 Distribuição de homens e mulheres nas Frentes Parlamentares Sexo Freq. % Masculino 191 90,1% Feminino 21 9,9% Total Cit. 212 100,00% Fonte: dados da Câmara dos Deputados. Elaboração da autora. As mulheres (tabela 2) ocupam 9,9% das coordenações de frentes, porcentagem similar à proporção de mulheres na Câmara (9,94%). Já em relação aos temas, a distribuição de homens e mulheres segue a mesma tendência das comissões. As mulheres se concentram na coordenação de temas de soft politics e os homens em temas de hard politics, como verificamos no gráfico abaixo (gráfico 3). Gráfico 3 Distribuição nas Coordenadorias das Frentes por Sexo 57,10% Soft 30,40% 19,00% Middle Mulheres 17,80% Homens 23,80% Hard 0,00% 51,80% 10,00% 20,00% 30,00% 40,00% 50,00% 60,00% Fonte: tipologia de Miguel e Feitosa (2009) e dados da Câmara dos Deputados. Elaboração da autora. Sub-representação feminina no sistema de comissões parlamentares: um indicador da exclusão das mulheres do jogo político 473 Conclusão A sub-representação feminina no parlamento não se observa meramente no número reduzido de mulheres nas cadeiras do legislativo, mas, principalmente, na rara participação delas nos espaços estratégicos de formação de capital político e na influência no jogo de poder, como é o caso da construção e negociação da agenda política. As mulheres concentram sua atuação no âmbito das Comissões em soft politics, área temática menos valorizada no processo político, enquanto os homens se concentram em Comissões hard politics. Nas presidências das Comissões, posições que promovem influência na construção da agenda política, a presença de mulheres é mínima. A raridade de mulheres nas presidências de comissões, somada à maior participação delas em comissões soft politics, contribui para a manutenção de agendas com menor visibilidade, para a atuação concentrada na política social e para a exclusão das mulheres do processo de construção das agendas políticas consideradas mais importantes pelo governo. O poder de agenda e a capacidade do parlamentar de influenciar a agenda legislativa são formas de avaliar a força dos parlamentares em relação à representação e ao cumprimento dos interesses de seus eleitores (POWELL, 2005). A pouca influência na conformação da agenda implica pouca força para garantir os interesses de seus eleitores, o que leva a uma ruptura no processo de representação, tanto de interesses quanto de opiniões e perspectivas. É nessa posição que se encontram as mulheres parlamentares. O parlamento reproduz as diferenças de gênero da sociedade, circunscrevendo as parlamentares aos espaços menos estratégicos para o processo decisório. As mulheres encontram, na política, outro teto de vidro, similar ao encontrado no ambiente profissional. A elas é permitida a participação no processo político do ponto de vista formal, mas, de fato, elas não alcançam os espaços nos quais as negociações políticas envolvem um capital político mais caro e maior influência. Assim, ficam excluídas das negociações com o governo que envolvem alto custo, não tendo similar acesso aos possíveis benefícios que uma gestão de coalizão ou mesmo uma barganha de agenda permitem. A integração de fatores como a falta de mulheres nas presidências e a maior participação delas em colegiados soft politics faz com que as suas agendas tenham menos visibilidade e importância do que a agenda dos homens. A naturalização das características consideradas femininas, como o cuidado e a 474 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO sensibilidade, já perpetuadas no ambiente doméstico e laboral, se estendem para o ambiente político, mantendo um padrão e um ciclo de invisibilidade e coadjuvância difíceis de mudar. A equidade na representação política perpassa, necessariamente, pela quebra do padrão que mantém este círculo vicioso, o que não se dará, como observado nos resultados deste trabalho, naturalmente, com o passar do tempo. Com poucas mulheres representantes, circunscritas a temas sociais e raramente ocupando postos estratégicos, o potencial efetivo de representação política feminina tende a continuar com pouca expressão e, muitas vezes, meramente figurativo. Referências AGUIAR, O. O. (2013). Os atores-chave no processo decisório no âmbito das comissões permanentes. E-legis, Brasília, n. 12, p. 137-152 ALVES, J. E. D.; CAVENAGHI, S. M. (2012). Indicadores de desigualdade de gênero no brasil. Mediações, Londrina, v. 17, n. 2, p. 83-105. AVELAR, L. (2001). Mulheres na elite política brasileira. São Paulo: Fund. Konrad Adenauer; Ed. Unesp. AZEVEDO, D. B. de; RABAT, M. N. (Org.) (2012). Palavra de mulher: oito décadas do direito de voto. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara. BIROLI, F. (2013). Autonomia e desigualdade de gênero: contribuições do feminismo para a crítica democrática. São Paulo: Ed. Horizonte. BOURDIEU, P. (1989). O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. BRAGA, S. S.; NICOLAS, M. A. (2008). Prosopografia a partir da web: avaliando e mensurando as fontes para o estudo das elites parlamentares brasileiras na internet. Revista de Sociologia Política, Curitiba, v. 16, n. 30, p. 107-130. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ arttext&pid=S0104-44782008000100008&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 16 nov. 2015. Sub-representação feminina no sistema de comissões parlamentares: um indicador da exclusão das mulheres do jogo político 475 BRASIL. (2012). Congresso. Câmara dos Deputados. Regimento Interno da Câmara dos Deputados: Resolução nº 17, de 1989. 9. ed. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara. CARREIRAO, Y. S. (2014). O sistema partidário brasileiro: um debate com a literatura recente. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 14, p. 255-295, ago. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo. php?script=sci_arttext&pid=S0103-33522014000200255&lng=en&nrm =iso>. Acesso em: 24 out. 2015. ______; KINZO, M. D’Alva G. (2004). Partidos políticos, preferência partidária e decisão eleitoral no Brasil: 1989-2002. Dados: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 47, n. 1, p. 131-167. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S001152582004000100004&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 24 out. 2015. DEPARTAMENTO INTERSINDICAL DE ASSESSORIA PARLAMENTAR (2014). Radiografia do Novo Congresso: legislatura 2015-2019. Disponível em: <http://www.diap.org.br/index.php?option=com_ jdownloads&Itemid=513&view=viewcategory&catid=41>. Acesso em: 16 nov. 2015. DODSON, D. L. (1998). Representing women’s interests in the US House of Representatives. In: THOMAS, S.; WILCOX, C. (Org.). Women and elective office. New York: Oxford Univ. Press. FÁVERO, M. H. (2010). Psicologia do gênero: psicobiografia, sociocultura e transformações. Curitiba: UFPR. FIGUEIREDO, A.; LIMONGI, F. (1995). Mudança constitucional, desempenho do Legislativo e consolidação institucional. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 10, n. 29, p. 175-200. FLAMMANG, J. (1997). Women’s political voice: how women are transforming the practice and study of politics. Philadelphia: Temple Univ. Press. FOX, R. L. (1997). Gender dynamics in congressional elections. Thousand Oaks: Sage. 476 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO ______ ; LAWLESS, J. L. (2012). Entrando na arena: gênero e a decisão de concorrer a um cargo eletivo. Revista Brasileiras de Ciência Política, Brasília, v. 8, p. 129-163. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ arttext&pid=S0103-33522012000200006&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 15 mar. 2016. HUDDY, L.; TERKILDSEN, N. (1993). The consequences of gender stereotypes for women candidates at different levels and types of office. Political Research Quarterly, v. 46, n. 3, p. 503-525. IBGE (2013). Síntese de Indicadores Sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira, 2013. Rio de Janeiro: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de População e Indicadores Sociais. (Estudos e Pesquisas, Informação Demográfica e Socioeconômica; n. 32). ______ (2014). Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios: síntese de indicadores 2014. Rio de Janeiro: IBGE, Coordenação de Trabalho e Rendimento. Disponível em: <http://loja.ibge.gov.br/pnad-2014-sintese-dosindicadores.html>. Acesso em: 16 nov. 2015. INGLEHART, R.; NORRIS, P. (2003). Rising tide: gender, equality and cultural change around the word. New York: Cambrige Univ. Press. INTER-PARLIAMENTARY UNION (2016). Women in Parliament in 2015. Geneva: IPU. Disponível em: <http://www.ipu.org/pdf/publications/ WIP2015-e.pdf>. Acesso em: 15 mar. 2016. KAHN, K. F. (1996). The political consequences of being a woman. New York: Columbia Univ. Press. LEEPER, M. (1991). The impact of prejudice on female candidates: an experimental look at voter inference. American Politics Quarterly, v. 19, n. 2, p. 248-261. LIMONGI, F. M. P.; FIGUEIREDO, A. (2009) Poder de agenda e políticas substantivas. In: INÁCIO, M.; RENNÓ, L. (Org.). Legislativo brasileiro em perspectiva comparada. Belo Horizonte: Ed. UFMG. Sub-representação feminina no sistema de comissões parlamentares: um indicador da exclusão das mulheres do jogo político 477 MENEZES, R. S. S. (2012). Feminilidades em primeira pessoa: narrativas plurais, vivências singulares de mulheres nos "negócios". Belo Horizonte: Cepead, UFMG. MIGUEL, L. F.; BIROLI, F. (2011). Caleidoscópio convexo: mulheres, política e mídia. São Paulo: Ed. Unesp. ______; FEITOSA, F. (2009). O gênero do discurso parlamentar: mulheres e homens na tribuna da Câmara dos Deputados. Dados: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 52, n. 1, mar. Disponível em: <http://www.scielo. br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0011-52582009000100006>. Acesso em: 15 mar. 2016. NIVEN, D. (1998). Party elites and women candidates: the shape of bias. Women and Politics, v. 19, n. 2, p. 57-80. NORRIS, P. (2004). Electoral engineering: voting rules and political behavior. Cambridge: Cambridge Univ. Press. PATEMAN, C. (1898). Feminist critiques of the public/private dichotomy. In: PATEMAN, Carole. The disorder of women: democracy, feminism and political theory. Stanford: Stanford Univ. Press. PERLIN, G. D. B. et al. (2016). Women’s presence in the Brazilian Chamber of Deputies and political representation: how women represent women? WORLD CONGRESS OF POLITICAL SCIENCE, 24., 2016, Poznan, Poland. Panels. Disponível em: <https://wc2016.ipsa.org/my-ipsa/events/ istanbul2016/paper/womens-presence-brazilian-chamber-deputies-andpolitical-represent>. Acesso em: 15 mar. 2016. PEREIRA, Carlos; MELO, Marcus Andre (2012). The surprising success of multiparty presidentialism. Journal of Democracy, v. 23, n. 3, p. 156-170. PHILLIPS, A. (2001). De uma política de ideias a uma política de presença? Revista Estudos Feministas, v. 9, n. 1, p. 268-290. ______ (1997). So what’s wrong with liberal democracy? In: ______. Engendering democracy. University Park, PA: Penn State Univ. Press. 478 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO PINTO, C. R. J. (1998). Paradoxos da participação política da mulher no Brasil. Revista USP, São Paulo, v. 49, p. 98-113. POWEL, G. B. (2005). The chain of responsiveness. In: DIAMOND, L.; MORLINO, L. Assessing the quality of democracy. Baltimore: Johns Hopkins Univ. Press. POWELL, G. N.; BUTTERFIELD, D. A. (1994). Investigation of the “glass ceiling” phenomenon: an empirical study of actual promotions to top management. Academy of Management Journal, v. 37, n. 1, p. 68-86. SACCHET, T.; SPECK, B.W. (2012). Financiamento eleitoral, representação política e gênero: uma análise das eleições de 2006. Opinião Pública, Campinas, v. 18, n. 1, p. 177-197. Disponível em: <http://www.scielo.br/ scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-62762012000100009&lng=en&nrm =iso>. Acesso em: 16 mar. 2016. SCOTT, J. (1995). Gênero: uma categoria útil para a análise histórica. Educação e Realidade, v. 20, n. 2, p. 71-99. SILVA, R. S.; ARAÚJO, S. M. V. G. (2013). Ainda vale a pena legislar: a atuação dos agenda holders no Congresso brasileiro. Revista de Sociologia Política, Curitiba, v. 21, n. 48, p. 19-50. Disponível em <http://www.scielo.br/ scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-44782013000400002&lng=pt&nrm =iso>. Acesso em: 9 fev. 2017. SWERS, M. L. (2002). The difference women make. Chicago: Univ. Chicago Press. THOMAS, S. (1994). How women legislate. New York: Oxford Univ. Press. WORLD CLASSIFICATION. Women in national Parliaments. Geneva: IPU. Disponível em: <http://www.ipu.org/wmn-e/classif.htm>. Acesso em: 13 fev. 2015. YOUNG, I. M. (1990). Justice and the politics of difference. Princeton: Princeton Univ. Press. Sub-representação feminina no sistema de comissões parlamentares: um indicador da exclusão das mulheres do jogo político 479 ______ (2006). Representação política, identidade e minorias. Lua Nova, São Paulo, n. 67, p. 139-190. ZOVATTO, D. Financiamento dos partidos e campanhas eleitorais na América Latina: uma análise comparada. Opinião Pública, Campinas, v. 11, n. 2, p. 287-336. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ arttext&pid=S0104-62762005000200002&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 16 mar. 2016. 481 Considerações finais Mudanças institucionais relevantes foram identificadas neste volume. Na primeira parte foram identificadas mudanças nas relações Executivo-Legislativo e Judiciário-Legislativo. De forma resumida, o chefe do Executivo passou a contar menos com as vantagens relacionadas à edição de medidas provisórias, outrora identificadas como um dos mais importantes instrumentos de governabilidade. Sobre esse instrumento observou-se um processo incremental de perda de força do Executivo, a começar pela proibição da reedição com a EC nº 32/2001 até se chegar à instrução obrigatória, por comissão mista, a partir de 2012, por decisão do STF. A inclusão de nova instância decisória, a dispersão do processo legislativo das MPs, a especialização dos debates e, principalmente, a multiplicação dos pontos de veto aumentaram a participação e o poder de barganha dos parlamentares, mitigando o controle do Executivo sobre a agenda legislativa exercido pela via das MPs. Outro instrumento, o veto presidencial, identificado como fundamental para conter a oposição do Legislativo ao presidente, também passou por transformações. Até bem pouco tempo os vetos presidenciais sequer eram apreciados e, na prática, representavam a decisão final do processo legislativo. Mas duas mudanças importantes aconteceram. Primeiro a decisão do STF sobre apreciação em ordem cronológica, que ao criar embaraço para o Legislativo acabou motivando uma segunda mudança, de natureza regimental. Trata-se da mudança aprovada em 2015, que determina período específico para a apreciação dos vetos em Plenário, inclusive prevendo o trancamento de pauta. Tal mudança aumentou a capacidade dos parlamentares de ameaçar o chefe do Poder Executivo com a apreciação e a derrubada dos seus vetos a dispositivos legais aprovados pelo Parlamento. Também no campo orçamentário observaram-se importantes mudanças. Elas apontam para a perda da eficiência do uso do orçamento como importante instrumento utilizado pela coordenação política da coalizão de governo para conseguir a cooperação dos parlamentares. A perda de capacidade de execução do orçamento pelo Executivo afetou as emendas de interesse dos parlamentares e um intenso debate sobre a dinâmica orçamentária desaguou na aprovação do 482 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO “orçamento impositivo” em 2015. A perda, pelo menos em parte, da discricionariedade da execução orçamentária criou constrangimentos ao Executivo, que ao mesmo tempo em que viu diminuída a força de sua moeda de troca, também se vê agora obrigado a contingenciar orçamento em outras áreas, com possíveis prejuízos para a implementação e execução de políticas públicas de sua prioridade. Isso se deu porque como as emendas individuais se tornaram obrigatórias, restou ao governo cortar outros gastos discricionários. Em suma, as restrições orçamentárias e o subsequente orçamento impositivo enfraqueceram um poderoso instrumento de barganha do Executivo perante o Legislativo. Outra mudança relevante afetou importante moeda de troca entre o Poder Executivo e sua coalizão parlamentar, a nomeação para cargos na administração pública federal. Houve diminuição da força da indicação partidária para esses cargos. Essa diminuição foi determinada por três fatores: a centralização das decisões na Casa Civil, a redução do número de cargos à disposição para recrutamento amplo e o fortalecimento da burocracia pela via das carreiras estatais. Com a diminuição da disponibilidade desse recurso, partidos ficam menos dóceis ao mesmo tempo em que o executivo vê sua “caixa de ferramentas” ainda mais esvaziada. No que diz respeito ao papel do Poder Judiciário, resta claro que o STF passou a ser um ator com poder de veto mais poderoso no sistema político brasileiro. Em grande parte, esse poder vem do desenho constitucional de 1988, mas foi sendo reforçado à medida em que o próprio tribunal avançava, por ação própria, em seu ativismo judicial. Além das decisões do STF que impactaram a “caixa de ferramentas” do presidente, como já visto, um ponto relevante tratado neste volume foi a análise dos mandados de segurança, impetrados por parlamentares e partidos junto ao STF. A análise dos mandados de segurança impetrados contra atos legislativos mostrou que a interferência perpassa por uma lógica interpretativa dos ministros sobre a nuance constitucional envolvida na questão: as linhas tênues sobre o que seria matéria interna corporis das Casas legislativas e efetivamente uma discussão sobre o “devido processo legislativo constitucional”. Assim, a judicialização do processo legislativo (termo dos autores) dá novo significado à ideia de judicialização da política e convida a perquirir sobre suas consequências sobre a governabilidade e o papel da política na construção do consenso. Seja nas Casas legislativas, seja fora delas. Considerações finais 483 Outro achado relevante diz respeito à atuação cada vez mais intensa dos grupos de interesse no Parlamento. A arena legislativa passou a ser um ambiente político cada vez mais competitivo, com diferentes grupos da sociedade civil, de interesses econômicos e de representantes do próprio Estado em disputa por influência. Esse aumento do pluralismo vem acompanhado de uma recente profissionalização da atividade de lobby, e a presença mais ativa dos interesses organizados no Parlamento representa mais um desafio, tanto para o próprio Legislativo quanto para o Executivo. Estando o processo legislativo mais suscetível a múltiplos inputs oferecidos por uma miríade de grupos de interesse, dificuldades adicionais de formação de consenso se estabelecem. A forte presença de assessores parlamentares representando os órgãos da própria burocracia estatal nas atividades legislativas (com destaque para os assessores parlamentares dos ministérios) mostra que o Executivo esteve atento ao problema. Tanto quanto quaisquer outros atores políticos, o presidente e seus ministros entenderam que precisam monitorar o processo legislativo e fazer lobbying, se quiserem ver suas agendas plenamente implementadas. Ou, se preferir, se quiserem que o resultado do processo legislativo não se afaste significativamente das suas preferências. Em suma, o Parlamento tem sido espaço de decisão e atuação política cada vez mais disputado por interesses econômicos, por movimentos sociais e por agentes públicos, o que torna o ambiente político ainda mais complexo. A segunda parte deste volume dirige o foco para os partidos políticos, e aqui os autores também identificam mudanças institucionais bastante relevantes. Resta demonstrado que a extrema fragmentação partidária e o financiamento empresarial de partidos e eleições também se somam às dificuldades políticas enfrentadas, tanto na arena eleitoral quanto no Parlamento. Melo (neste volume) analisa a hiperfragmentação partidária e chama a atenção para o fato de que não “chegamos a tanto” apenas por causa das regras eleitorais, mas também por causa da migração partidária. O resultado é que Parlamento conta hoje com muitos partidos de porte médio, que acabaram se convertendo em muitos atores com poder de veto. O problema não é exatamente o número elevado de partidos, e sim a força relativa dos muitos partidos de médio porte. Sobre o financiamento de partidos e candidatos os números no Brasil chegaram a valores alarmantes. A eleição de 2014 movimentou nada menos que 4,1 bilhões de reais, sendo 73% desses recursos oriundos de doações da campanha por 484 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO pessoa jurídica (leia-se, empresas). O grau de dependência dos partidos e candidatos dessa fonte de recursos não pode ser ignorado, e é factível que isso tenha efeito sobre comportamento dos partidos, tanto na arena eleitoral quanto na arena parlamentar. Em revisão recente da literatura intitulada Investimento eleitoral no Brasil, publicada na Revista de Sociologia e Política em 2015, Mancuso já identificava que, além de vultoso, o investimento eleitoral crescia a cada pleito e em ritmo muito superior ao da inflação. Neste volume Mancuso e coautores analisam duas importantes mudanças institucionais que puderam ser identificadas desde 2014: a obrigatoriedade de identificação dos doadores originários e a proibição de doações empresariais. Sobre a primeira, a regra gerou mais transparência, permitindo identificar a dependência de partidos e candidatos dessa fonte, assim como a concentração de recursos nos grandes partidos e por grandes doadores. Sobre a segunda não se pode ainda identificar os impactos, mas seguramente gerarão mudanças significativas na estratégia de sobrevivência dos partidos nas próximas eleições, visto que mexe com a principal fonte de recursos que vinha, pelo menos até agora, determinando de forma desmedida os resultados eleitorais e a força dos partidos no Parlamento. Tanto na legislação que regula as regras eleitorais quanto na do financiamento de campanhas e partidos, as interações entre o Parlamento e o STF acabaram gerando, ao longo do tempo, idas e vindas e efeitos não intencionais advindos dessa instabilidade. Em boa medida, tanto a extrema fragmentação partidária quanto a elevada força do dinheiro empresarial nas eleições é resultado do comportamento estratégico das elites parlamentares diante das oportunidades criadas pela instabilidade das regras do jogo. Ao longo do período analisado, as falhas sequenciais nas tentativas de reforma política pelo Parlamento impediram mudança institucional que fosse capaz de conter tanto a fragmentação partidária quanto alterar o modo de financiamento dos partidos. No caso das reformas nas regras eleitorais, nas poucas vezes que foi possível fazer alterações via maioria parlamentar, decisões judiciais do STF reverteram o quadro, ajudando a deixar que o número de partidos aumentasse até estressar ao extremo o sistema político. Registre-se, contudo, que as reformas mais recentes nesse campo são profundas. O Congresso aprovou em 2017 medidas que são, para muitos, positivas. O agravamento da crise política criou as condições para mudanças relevantes e, ao final, o Parlamento aprovou uma nova reforma política, cujos principais pontos são a cláusula de barreira de 1,5% (que será progressiva até 3% em 2030) e a Considerações finais 485 proibição de coligações nas disputas proporcionais (a entrar em vigor em 2022). É razoável supor que essa combinação de novas regras tenha efeito positivo e ajude a diminuir a hiperfragmentação partidária, pelo menos em longo prazo. Por outro lado, a decisão do STF, em 2015, de proibir o financiamento das eleições por empresas também foi radical. Mudanças significativas nas estratégias dos partidos para financiar suas campanhas já começaram a acontecer. Na reforma política de 2017, os parlamentares aprovaram um fundo eleitoral no valor de 1,7 bilhões de reais, o que garante o financiamento de campanha em 2018 com dinheiro público. São esperadas, ainda, mudanças estratégicas de arrecadação financeira dos partidos junto aos seus militantes e mudanças também nas estratégias de seleção de candidatos, provavelmente privilegiando aqueles que podem aportar recursos próprios nas campanhas eleitorais – leia-se, os mais ricos. Esses movimentos, contudo, ainda estão por gerar seus efeitos, e só poderão ser adequadamente avaliados em tempo futuro. Ainda na segunda parte do livro, que tem como foco os partidos, achados relevantes ajudam a entender as estratégias de partidos e parlamentares na arena parlamentar. Importante achado, baseado na distinção conceitual e empírica entre a coesão e a disciplina partidárias, identifica uma coerência ideológica (coesão) entre os maiores partidos ao longo de três legislaturas. Ao mesmo tempo em que chama a atenção o fato de que o eixo estruturador do comportamento do parlamentar em votações nominais no Plenário (disciplina) é a clivagem governo/oposição. Um importante puzzle se coloca na medida em que se conclui que deputados agem sob uma tensão entre o que pensam e os constrangimentos e os incentivos das regras institucionais. Há pelo menos duas implicações dessa análise para o processo decisório. A primeira é que aprovar uma agenda legislativa certamente dependerá de como as lideranças partidárias conduzirem o processo de coordenação política de seus membros. A segunda, reforça a ideia da necessidade de o Executivo gerenciar de forma eficiente suas coalizões governamentais, problema já conhecido de todos. Resultado que se comunica com o anterior encontra-se no capítulo 8, oferecido por Ferreira Júnior e Fabiano Schwartz. Eles apresentam achados que deixam a intepretação sobre o comportamento parlamentar em Plenário ainda mais intrigante. Análise empírica robusta não foi capaz de confirmar a hipótese segundo a qual as votações nominais respondem a ciclos eleitorais, como sugere a literatura sobre o tema. Os autores sustentam que a taxa de apoio ao governo é de 61%, 486 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO percentual significativamente menor que o apresentado pela literatura corrente (entre 80% e 85%). Ao empregar nova metodologia no tratamento dos dados sobre as votações nominais, chamam a atenção para dois pontos importantes. O primeiro é que um número maior do que se acreditava de parlamentares abandona a base de governo quando em confronto com a orientação do seu líder. Não raramente essa orientação pode ser conflituosa com seus interesses e com suas ideias. A segunda sugere que é possível levantar hipóteses sobre o comportamento fugidio de cerca de 25% dos parlamentares, que faltam votações talvez para não enfrentar a situação na qual tenham que escolher entre acompanhar o governo e contrariar sua constituence. Segundo os autores, o apoio ao governo e a previsibilidade do comportamento dos parlamentares e dos partidos no Plenário vinham sendo superestimados. Duas estratégias dos líderes partidários para lidar com o dia a dia em um Congresso fragmentado também foram alvo de análise neste volume. A primeira buscou enxergar e compreender a organização burocrática dos gabinetes dessas lideranças partidárias. Conclui-se que há correlação entre o papel desempenhado pelo partido na arena eleitoral e na arena legislativa e a forma de prover a organização da burocracia da respectiva liderança na Câmara dos Deputados. Partidos principais e oposicionistas digladiam-se pelo poder e buscam produzir mais informação. Para tanto, optam por estruturas burocráticas especializadas. Por outro lado, o pragmatismo político determina também essa composição. Deputados também se beneficiam de cargos na estrutura do Legislativo, e esses cargos são mais fortemente usados como moeda de troca por partidos do tipo office seeking. A segunda estratégia utilizada pelas lideranças partidárias no dia a dia da atividade parlamentar é o uso das redes sociais como forma de comunicação. Avaliando as táticas discursivas utilizadas no Facebook pelas lideranças dos principais partidos, Sathler, Barros e Bernardes afirmam que essa estratégia é pouco interativa e que regra geral não envolve conteúdo próprio. Basicamente os perfis reproduzem o conteúdo da mídia convencional e a interação entre os partidos e os cidadãos fica em segundo plano. A estratégia dominante nesses perfis é a comunicação com os próprios partidos e os demais atores políticos e agentes governamentais que fazem interlocução na esfera parlamentar. Esse ambiente virtual, segundo os autores, caracteriza-se muito mais como um circuito restrito de interlocução utilizado como política de visibilidade seletiva. Considerações finais 487 Na última parte do livro, que volta suas atenções para o sistema de comissões parlamentares, mudanças institucionais significativas também foram relatadas. A descentralização do processo legislativo é a principal delas. Almeida registra que o processo legislativo da Câmara dos Deputados mudou, diminuindo o uso relativo de dispositivos extraordinários de tramitação (MP e urgência) e conferindo ao sistema de comissões permanentes maior protagonismo. As comissões parlamentares passaram a exercer um papel cada vez mais relevante no processo decisório, vis-à-vis o Plenário. A investigação apresenta sólida evidência empírica e explica que o recente crescimento do protagonismo das comissões decorreu de mudanças na distribuição das preferências dos parlamentares. Mais precisamente, da diminuição da polarização entre a maioria governista e a minoria opositora. Segundo o autor, a polarização (menor no período mais recente) aumentou a probabilidade de se privilegiar as comissões, em detrimento do Plenário. A análise se contrapõe às interpretações mais correntes na literatura e convida a refletir sobre a revisão de aspectos relevantes das explicações sobre as bases institucionais do presidencialismo de coalizão no Brasil. Outro achado relevante diz respeito à atuação dos grupos de interesse no âmbito das comissões parlamentares. Resende registra que é predominantemente para as comissões que os grupos de interesse deslocam seus esforços de lobbying. Comissões, na visão desses grupos, são os loci privilegiados para tentar influir no processo decisório. Para os interesses organizados, segundo pesquisas analisadas pelo autor, presidentes de comissões e relatores são atores centrais e têm (para eles) papel mais relevante no processo legislativo do que os poderosos líderes partidários, por exemplo. A intensa ação dos interesses organizados nas comissões representa um enorme número de inputs ao processo legislativo. Não há razão, claro, para ver esse quadro como negativo do ponto de vista normativo, afinal, quanto mais interesses forem considerados no processo decisório, mais democrático e participativo ele será. Mas a intensa presença de múltiplos (e frequentemente conflitivos) inputs somados ao recente protagonismo das comissões, sugere um processo legislativo com maior número de atores com poder de veto. E como nos ensina Tsebelis, isso afeta negativamente a probabilidade de mudança do status quo. Embora mais estudos precisem ser feitos nesta direção, há motivos para crer que isso se configura como mais uma barreira ao controle da atividade legislativa pelo Poder Executivo e, consequentemente, para a aprovação da sua agenda legislativa. 488 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Por fim, uma perversa estabilidade é constatada. Trata-se da continuidade da exclusão das mulheres como atores centrais no processo decisório. Perlin mostra que, nesse campo, nada mudou e o Parlamento continua reproduzindo as diferenças de gênero da sociedade, circunscrevendo as parlamentares aos espaços menos estratégicos para o processo decisório. A elas é permitida a participação no processo político do ponto de vista formal, mas, de fato, não alcançam os espaços nos quais as negociações políticas envolvem um capital político mais caro e maior influência. A estabilidade encontrada mostra que essa mudança não acontecerá “naturalmente” ou “com o tempo”, como versam os pouco interessados em promovê-las. Ela dependerá de mudanças institucionais (formais e informais) claramente intencionadas. Infelizmente não se encontram em marcha mudanças nessa direção, o que demonstra a necessidade e urgência do debate sobre o tema. Afinal, permanecendo o quadro, o viés representativo de gênero continuará a reproduzir injustiças e a minar as bases da representação política necessárias ao aperfeiçoamento da democracia. As análises aqui empreendidas mostraram um sistema político em movimento. As transformações nos poderes de agenda do presidente, nas relações Executivo-Legislativo, o crescente protagonismo do Supremo Tribunal Federal, a descentralização do processo legislativo, a fragmentação partidária e a crescente influência dos grupos de interesse foram as principais mudanças institucionais identificadas. De forma resumida, a principal e mais relevante conclusão é que o sistema político brasileiro conta, hoje, com mais atores com poder de veto. Esse quadro sugere um sistema político significativamente diferente daquele observado no início da nova ordem constitucional, iniciada em 1988. A opção de tomar como ponto de partida a análise do Parlamento e suas relações com outros Poderes permitiu ver que algumas dessas mudanças foram impulsionadas de fora para dentro, como as pressões para soluções institucionais a crises políticas. Outras foram produzidas a partir da própria Casa, de dentro para fora, como as transformações na institucionalidade das comissões parlamentares e as tentativas das lideranças partidárias de lidarem com os problemas de coordenação política. Assim, seja por seus fazeres, por pressões externas ou por contingência de sucessivas crises, o Parlamento e o presidencialismo de coalizão brasileiro seguem sempre convidando a novas interpretações. Seria mais fácil se as instituições políticas fossem mais estáveis, para que pudessem ser melhor dissecadas e conhecidas cientificamente. Mas, como o Considerações finais 489 termo diz, a dissecação é para os mortos. Uma instituição viva e dinâmica como o Parlamento requer que os estudos tenham sempre uma dimensão exploratória, aproximativa e que, acima de tudo, estejam abertos a novos olhares, em diferentes momentos e a partir de múltiplos ângulos. A presente obra é mais um fotograma nesse filme de longa-metragem. 491 Sobre os autores Giovana Dal Bianco Perlin Doutora e mestra em Psicologia, especialista em Ciência Política, professora e psicóloga. Exerce o cargo de analista legislativo na Câmara dos Deputados, atuando na área de processo legislativo e treinamento, desenvolvimento e educação. É docente e pesquisadora do Mestrado em Poder Legislativo da Câmara dos Deputados. E-mail: [email protected] Manoel Leonardo Santos Professor do Dep. de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestre e doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco/Universidad de Salamanca (Espanha). Foi pesquisador visitante do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) (2011/2013 e 2016/2017). Atualmente é diretor do Centro de Estudos Legislativos (UFMG). E-mail: [email protected] Acir Almeida Pesquisador de carreira do Ipea e doutorando em Ciência Política no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de janeiro (Iesp/Uerj). Suas áreas de interesse são estudos legislativos e instituições políticas. E-mail: [email protected] Aldenir Brandão da Rocha Possui graduação em Ciências Econômicas pela Universidade Católica de Brasília (1991) e graduação bacharelado em Direito pela Universidade Paulista (2004). Pós-graduado em Direito Público, pela Universidade Católica de Brasília (2005) e especialista em Processo Legislativo, pelo Centro de Formação, Treinamento e Aperfeiçoamento da Câmara dos Deputados (2008), mestre em Ciência Política pela Universidade de Brasília, área de concentração: Políticas e Instituições. tem experiência na área de Direito. Atualmente é técnico legislativo da Câmara dos Deputados e advogado, com ênfase em Direito Civil. E-mail: [email protected] André Rehbein Sathler Guimarães Economista pela UFMG, mestre em Informática pela PUC-Campinas, mestre em Comunicação pela Umesp, doutor em Filosofia pela UFSCar. Consultor da Capes, do Ministério da Educação, do Ministério da Justiça e membro do Comitê Gestor do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (CNPq). Atualmente é analista legislativo na Câmara dos 492 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Deputados, atuando como docente do Mestrado Profissional em Poder Legislativo e assessor econômico da Liderança do Partido Socialista Brasileiro. E-mail: [email protected] Antônio Teixeira de Barros Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília (1999). Pós-doutor em Comunicação pela Universidade Fernando Pessoa (2008). Docente e pesquisador do Programa de Mestrado em Ciência Política do Centro de Formação, Treinamento e Aperfeiçoamento (Cefor), da Câmara dos Deputados, vinculado à linha de pesquisa Política Institucional do Poder Legislativo. Coordenador do grupo de pesquisa, interatividade, visibilidade e transparência: estratégias da Câmara dos Deputados para aperfeiçoamento da democracia. E-mail: [email protected] Carlos Ranulfo Melo Professor titular do Departamento de Ciência Política da UFMG e pesquisador 1D do CNPq. É autor de Retirando as cadeiras do lugar: migração partidária na Câmara dos Deputados (Ed. UFMG), coautor de Governabilidade e representação política na América do Sul (Konrad-Adenauer/Unesp) e coeditor de La democracia brasileña: balance y perspectivas para el siglo 21 (Ed. Salamanca). Tem artigos publicados sobre partidos, sistemas partidários, estudos legislativos e instituições comparadas com foco no Brasil e nos países da América do Sul. E-mail: [email protected] Ciro Antônio da Silva Resende Mestre em Ciência Política pela UFMG e pesquisador do Centro de Estudos Legislativos da UFMG (CEL-UFMG). É graduado em Gestão Pública pela mesma Universidade e foi assistente de pesquisa no Ipea. Suas áreas de interesse são estudos relacionados a Poder Legislativo e lobbying. E-mail: [email protected] Cristiane Brum Bernardes Doutora em Ciência Política (2010) pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp) da UERJ. Mestra em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2004). Docente do Mestrado Profissional em Poder Legislativo da Câmara dos Deputados. Pesquisadora visitante no Centro de Estudos Legislativos da Escola de Política, Filosofia e Estudos Internacionais da Universidade de Hull, no Reino Unido (2013). Tem experiência na área de Comunicação e Política, atuando principalmente nos seguintes temas: Legislativo e internet, representação e participação política, internet e política no Brasil, relações entre campo midiático e campo político, comunicação pública, jornalismo popular. E-mail: [email protected] Sobre os autores 493 Ernani Carvalho Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (2005), foi Visiting Research na Universidade de Coimbra (2003-04) e na Universitat Pompeu Fabra (2012-2013). Foi coordenador do curso de bacharelado em Ciência Política e Relações Internacionais na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) (2008-2010). Foi diretor da Associação Brasileira de Relações Internacionais (ABRI / 2009-2011). Foi coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFPE (2010-2012). Foi assessor do reitor da UFPE (2011-2012). Atualmente é professor associado I do Departamento de Ciência Política da UFPE, onde exerce a função de pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação. Também é bolsista de Produtividade em Pesquisa (Nível 2) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e é o atual editor da Revista Política Hoje e editor associado da Revista Brasileira de Ciências Sociais. Coordenou projetos de pesquisa financiados pela Facepe, CNPq e Capes. Publicou artigos na Análise Social, America Latina Hoy, Brazilian Political Science Review, Revista de Sociologia e Política, Lua Nova, Sociologias, Revista Direito GV, entre outras e é parecerista da America Latina Hoy, Brazilian Political Science Review, Revista Brasileira de Ciências Sociais, Dados, Análise Social (Lisboa), Revista de Sociologia e Política, Latin American Policy, Revista Colombia Internacional, Revista Direito GV, entre outras. Tem interesse nas áreas de política brasileira, política comparada e política internacional. E-mail: [email protected] Fabiano Peruzzo Schwartz Analista legislativo na Câmara dos Deputados, atual diretor da Coordenação de Pós-Graduação do Cefor. Graduado em Processamento de Dados (UCB – 1993) e em Engenharia Elétrica (UnB – 1995), é mestre em Ciência da Computação (UnB – 1997) e doutor em Engenharia de Sistemas Eletrônicos e de Automação (UnB – 2010). Professor/Pesquisador no Curso de Mestrado Profissional em Poder Legislativo, ensina e orienta nas áreas de gestão pública e estatística. E-mail: [email protected] Fernando Moutinho Ramalho Bittencourt Possui graduação em Ciências Econômicas pela Uerj (1990). É mestre em Poder Legislativo (Mestrado Profissional em Poder Legislativo do Cefor da Câmara dos Deputados). Atualmente é professor universitário e consultor legislativo em orçamentos do Senado Federal. Atua principalmente nos seguintes temas: orçamento, fiscalização, controle, auditoria e assessoramento legislativo. E-mail: [email protected] José Mário Wanderley Gomes Neto Advogado, cientista político, professor e pesquisador do Praetor – Grupo de estudos sobre Poder Judiciário, Política e Sociedade (UFPE) e do Logos – Processo, Linguagem e Tecnologia (Universidade Católica de Pernambuco). Possui graduação em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (2000), mestrado em Direito pela UFPE (2003) e doutorado em Ciência 494 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Política pela UFPE (2015). Atualmente é professor da Universidade Católica de Pernambuco. Tem experiência nas áreas de Direito e Ciência Política, atuando principalmente nos seguintes temas: democracia, controle de constitucionalidade, instituições políticas, judicialização da política, direitos humanos e acesso à justiça. E-mail: [email protected] Lincoln Macário Maia Jornalista pela UnB; mestre em Ciência Política pela Câmara dos Deputados; especialista em Políticas Públicas pela UnB. Analista legislativo da Câmara dos Deputados; editor-chefe da Rádio Câmara. Repórter setorista no Congresso Nacional por mais uma década em vários veículos. Presidiu o Sindicato dos Jornalistas do DF e preside a Associação Brasileira de Comunicação Pública. E-mail: [email protected] Luis Felipe Andrade Barbosa Advogado, cientista político, professor de Direito na Asces/Unita e pesquisador do Praetor (UFPE), com bacharelado em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (2006) e bacharelado em Ciências Sociais pela UFPE (2009). Possui mestrado em Ciência Política pelo PPGCP/UFPE e é atualmente doutorando em Ciência Política da mesma instituição. Tem experiência nas áreas de Direito e Ciência Política, atuando principalmente nos seguintes temas: democracia, Poder Judiciário, controle de constitucionalidade, instituições políticas, judicialização da política, ativismo e autocontenção judicial, direitos fundamentais e acesso à justiça. E-mail: [email protected] Malena Rehbein Rodrigues Sathler Doutora em Ciência Política e Sociologia pelo Iuperj, hoje Iesp-Uerj, em janeiro de 2011. Possui mestrado em Relações Internacionais e Teoria Política Contemporânea no Centro de Estudos para a Democracia da Universidade de Westminster/Londres (2003), mestrado em Comunicação (1997) e graduação em Comunicação Social – habilitação Jornalismo – pela UnB (1994). É analista legislativa da Câmara dos Deputados, onde trabalha como jornalista e professora do mestrado em Poder Legislativo (Cefor). Tem experiência na área de Ciência Política e Jornalismo, atuando principalmente nos seguintes temas: democracia, mídia/política, jornalismo político, participação e representação política, democracia digital, corrupção. E-mail: [email protected] Marcello Fragano Baird Mestre e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). Foi pesquisador visitante na Columbia University (NY). Possui graduação em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2006) e em Ciências Sociais pela USP (2007). Atualmente, é professor do curso de pós-graduação Legislativo e Democracia da Escola do Parlamento da Câmara Municipal de São Paulo, professor assistente do curso de Relações In- Sobre os autores 495 ternacionais na ESPM e professor do MBA em Relações Governamentais na Fundação Getúlio Vargas (FGV). Tem experiência na área de Relações Internacionais e Ciência Política, com ênfase em grupos de interesse, lobby, advocacy, agências reguladoras, políticas públicas, processo decisório e segurança pública. E-mail: [email protected] Neilor Fermino Camargo Possui mestrado em Informática na Área de Tecnologia da Informação pela Universidade Federal do Paraná (2003), graduado em Ciências Econômicas pela Fundação de Estudos Sociais do Paraná (1975). Atualmente é professor na Universidade Federal do Paraná – Setor Litoral. Tem experiência com mais de trinta anos no desenvolvimento, administração e consultoria de sistemas de informação, redes e bancos de dados, com atuação no Ministério do Trabalho na Caixa Econômica Federal e em empresas privadas nas áreas financeira, industrial e educacional. E-mail: [email protected] Nivaldo A. Ferreira Júnior Analista Legislativo da Câmara dos Deputados e pesquisador e professor colaborador do programa de pós-graduação do Cefor. Doutorando (UnB, 2014) e mestre Ciência Política (UnB, 2013). Especialista em Direito Administrativo e Processo Administrativo (Ucam, 2004) e em Processo Legislativo, (Cefor, 2007), licenciado em Letras-Português (IESA, 2013) e bacharel em Direito (Ceub, 1998). E-mail: [email protected] Rafael Câmara de Melo Doutor em Ciência Política pela UFMG. Graduado em Ciências Sociais pela mesma instituição. Pesquisador do Centro de Estudos Legislativos vinculado ao Departamento de Ciência Política da UFMG. Trabalha na área de Instituições Democráticas, com ênfase nos estudos sobre os Poderes Executivo e Legislativo. E-mail: [email protected] Ricardo de João Braga Professor no Cefor da Câmara dos Deputados e coordenador da área de Pós-Graduação. Atua em seu curso de Mestrado em Poder Legislativo, cursos de especialização e cursos livres. Trabalhou anteriormente no Poder Executivo como gestor governamental, especificamente nos Ministérios da Fazenda, Previdência Social e Meio Ambiente. Na Câmara dos Deputados exerceu também atividades de analista legislativo em lideranças partidárias. Obteve seu doutoramento em Ciência Política pelo Iesp/Uerj em 2011 (Mestrado UnB, 2006). Suas áreas de interesse são estudos legislativos, política comparada e relações Política-Economia, com foco especial no Brasil Democrático (período 1946-1964 e pós-1985). As palavras-chaves mais comuns em suas atividades são representação política, processo legislativo e Câmara dos Deputados. E-mail: [email protected] 496 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO EM MOVIMENTO Rodrigo Bedritichuk Analista legislativo do Senado Federal. Mestre em Ciência Política pela UnB. Especialista em Ciência Política pelo Instituto Legislativo Brasileiro. Graduado em Economia pela UnB e Direito pelo UniCeub. E-mail: [email protected] Rodrigo Rossi Horochovski Professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Programas de Pós-graduação em Ciência Política e em Desenvolvimento Territorial Sustentável, Setor Litoral, Matinhos, PR, Brasil. E-mail: [email protected] Suely Mara Vaz Guimarães de Araújo Consultora legislativa da Câmara dos Deputados. Doutora e mestre em Ciência Política pela UnB. Graduada em Arquitetura e Urbanismo pela UnB e Direito pelo UniCeub. Atualmente é presidente do Ibama. E-mail: [email protected] Wagner Pralon Mancuso Professor da USP, Escola de Artes, Ciências e Humanidades, Programas de Pós-graduação em Ciência Política e em Relações Internacionais, São Paulo, SP. E-mail: [email protected] Presidencialismo de coalizão em movimento é uma coletânea de artigos de pesquisadores vinculados ao Programa da Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e ao Mestrado Profissional em Poder Legislativo do Centro de Formação, Treinamento e Aperfeiçoamento (Cefor) da Câmara dos Deputados, resultado da parceria técnico-científica entre os programas de pós-graduação das duas instituições. Os autores buscam descrever e explicar a mudança institucional no presidencialismo de coalizão brasileiro com ênfase nas relações entre o Poder Legislativo e os outros poderes, os partidos políticos e as comissões parlamentares. A obra decorre do esforço institucional e acadêmico e da inquietação epistemológica própria de pesquisadores e profissionais comprometidos com a busca de explicações para questões relevantes do ponto de vista científico, social e político, com a disseminação de valores democráticos e com o oferecimento de uma reflexão crítica que contribua para a melhoria do desempenho institucional do Legislativo. Longe de pretender exaurir o complexo tema da evolução do presidencialismo de coalizão, com um razoável grau de unidade e coerência, de modo a propiciar uma leitura aprazível, abrangente e bem articulada, esta obra lança novos olhares, oferece perspectivas de análise importantes, revisita modelos, abre espaço para novas questões e, finalmente, convida à continuidade do diálogo sobre o tema. edições câmara ESTUDOS E DEBATES