Academia.eduAcademia.edu

SADE, NIETZSCHE - VERDADE E ASCETISMO

2014

Este artigo tem como finalidade lançar proximidades e convergências entre os pensamentos do Marquês de Sade (1740- 1814) e do filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900), particularmente na critica dos autores às verdades da moral vigente em suas épocas e ao ascetismo como modo de vida.

SADE, NIETZSCHE: VERDADE E ASCETISMO1 Aldones Nino Santos da Silva 2 Universidade São Judas Tadeu – São Paulo – SP Resumo Este artigo tem como finalidade lançar proximidades e convergências entre os pensamentos do Marquês de Sade (1740- 1814) e do filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900), particularmente na critica dos autores às verdades da moral vigente em suas épocas e ao ascetismo como modo de vida. Palavras- chave Marquês de Sade; Friedrich Nietzsche; Verdade; Ascetismo; Valores. Abstract This article will aim to launch nearby and convergences between the thoughts of the Marquis de Sade (1740 - 1814) and the German philosopher Friedrich Nietzsche (18441900), particularly in the author criticizes the truths of moral force in their times and asceticism as lifestyle. Keywords Marquis de Sade, Friedrich Nietzsche, Truth, Asceticism, Values. “- Bem e Mal são os preconceitos de Deus’ - disse a serpente”. Nietzsche, A Gaia Ciência. Em 1886 é publicado o livro Psychopathia Sexualis, do psiquiatra Richard Von Krafft-Ebing, uma espécie de tratado sobre “perversões”. Nele aparece pela primeira vez o termo “sadismo”, em homenagem ao célebre Marquês de Sade (1740-1814), um filósofo do século XVIII que gerou muita polêmica com suas obras. Os personagens de seus romances muitas vezes obtinham prazer com o sofrimento alheio, de modo que infligir dor a outrem era um ato que poderia levar ao mais extremo prazer. O gozo para seus personagens derivava quase sempre da dor de alguém. O Dr. Richard reconheceu uma pratica semelhante entre alguns de seus pacientes, viu que a obtenção do prazer com o sofrimento era algo que ia além da literatura, e o termo sadismo passa então a fazer parte do diagnóstico de alguns de seus pacientes. A obra do Dr. Richard, que de inicio 1 Texto apresentado no IV Encontro de Pesquisa da Graduação em Filosofia da UFSCar: Estética, em setembro de 2012, no campus de São Carlos. 2 E-mail: [email protected] Em curso, São Carlos, vol. 1, suplemento, 2014, pp. 122-131 Sade, Nietzsche: verdade e ascetismo era direcionada a um publico especializado, teve enorme repercussão na época, e o grande público começou a adotar o termo sadismo para classificar aquele que se deleitava com o sofrimento alheio. O alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900) dedicou grande parte da sua obra para fazer uma crítica às ideias basilares do cristianismo. Sua filosofia ecoou para além dos muros da academia, tornando seu nome reconhecido por muitos. Um autor tido como difícil, porém, o público leigo havia simpatizado com sua filosofia. No § 125 de A gaia ciência há uma passagem que descreve a seguinte cena: um homem “insensato” procura Deus em meio a uma praça pública, porém, não encontra nada além do deboche daqueles que o veem. Ele grita então a seguinte frase: Deus Morreu! E essa é a imagem vulgarizada que uma grande parcela do público leigo faz de Nietzsche, ou seja, ele é lembrado como o escritor que com seus livros declarou a morte de Deus. Tanto Sade quanto Nietzsche tiveram seus nomes conhecidos, no entanto, o essencial de suas obras é ignorado pela maioria do grande público. Sade é visto muitas vezes apenas como o “homenageado” com seu nome em uma doença, pois o termo “sadismo” é a primeira coisa que vem à cabeça quando dizem seu nome. Agora imaginemos como seria frustrante para um filósofo, dramaturgo e romancista ter sua imagem reduzida a uma parafilia 3 . Nietzsche, por outro lado, é encarado como o homem que com seus escritos “matou Deus”. Essas associações ignoram que tanto um quanto o outro foram pensadores além de seu tempo, escritores que enfrentaram a ordem vigente e, através de seus escritos, criticaram séculos de tradição. A polêmica sempre acompanhou as suas obras, pois os leitores, sempre imersos nos preconceitos de seu tempo, dificilmente conseguem apreciar uma obra deixando de lado a influencia de seus valores, valores esses que no século XVIII e XIX eram difundidos pela igreja e incrustados por meio da educação. Sade e Nietzsche, por meio das suas obras, criticaram esses valores que eram tidos como verdadeiros, absolutos e universais. 3 Parafilia é um padrão de comportamento sexual no qual a fonte predominante do prazer não se encontra na cópula, mas em outra atividade. Em determinadas situações o comportamento sexual parafílico pode ser considerado perversão ou anormalidade. 123 Aldones Nino Santos da Silva No século XVIII houve um grande debate em torno das questões religiosas. Tanto a critica à religião quanto a critica à monarquia absolutista foram temas centrais do pensamento de muitos escritores do período. Muitos ainda eram herdeiros do medo, medo esse ocasionado pela censura absolutista e pela intolerância da Igreja, intolerância essa que se arrastava por séculos. Havia alguns escritores que se colocavam em oposição ao clero, porém poucos foram ao cerne da questão, ou seja, poucos questionaram a ideia da existência de um Deus. Muitos pensadores brilhantes carregavam o fardo de medo ocasionado pelos séculos de tradição. A história da humanidade há muito era acompanhada pela sombra do monoteísmo, que, por mais que a racionalidade fosse usada, essa crença em uma entidade única e superior ainda persistia. Para nossos escritores tratados aqui, não se levava a razão às suas ultimas consequências até que fosse alcançada a conclusão de que Deus não existe. Atacar a lenda da existência de Deus era tarefa muito mais árdua, que exigia muito mais coragem e riscos. Ser deísta então passou a ser comum entre os filósofos da época, pois era uma forma de desafiar a religião sem pôr em xeque a existência da divindade. Sade foi além do deísmo que era adotado por muitos pensadores de sua época e, seguindo as ideias difundidas pelo Barão d'Holbach em seu livro O sistema da natureza, adotou o materialismo radical, assim defendendo, a posição da inexistência de Deus. Podemos perceber que o ateísmo gera muita oposição nos dias atuais, no século XVIII, porém, era muito mais forte os estereótipos em torno do ateu. Sade não apenas defendeu o ateísmo como foi longe na defesa de seus ideais, a ponto de ser capaz de abrir mão até mesmo de sua liberdade em nome da defesa de suas ideias. Em uma carta da prisão ele diz: Ateu até o fanatismo, eis em duas palavras como eu sou; e repito; matem-me ou aceitem-me assim, porque eu jamais mudarei4. Para completar a polêmica em torno de seu nome, Sade ainda causava grande notoriedade pelos escândalos envolvendo sua vida pessoal; ele era alvo 4 SADE M. Cartas de Vincennes. Londrina: Eduel, 2009, p. 83. 124 Sade, Nietzsche: verdade e ascetismo de acusações de tentativas de assassinatos e envolvimentos sexuais com prostitutas. Entre seus personagens é possível encontrar práticas sexuais pouco comuns como, por exemplo, a cropofagia e a necrofilia. Por meio de suas narrativas -com base no materialismo radical- muitos discursos foram interpretados, por alguns contemporâneos, como uma apologia ao crime. Muitos que desconhecem sua obra destacam apenas o seu lado mais polêmico. Sade é reduzido ora como um doente mental e ora como um simples escritor de livros eróticos. Nietzsche, por sua vez, ainda hoje é reduzido à condição de “assassino” de Deus por pessoas que desconhecem sua vasta obra. O público leigo, na dificuldade de entender sua obra, pega frases soltas e as transforma em teses esdrúxulas tidas como do autor. Nietzsche sofreu sabotagem até da própria irmã Elisabeth Förster-Nietzsche, que ao fundar o Nietzsche-Archiv em 1894 dizia ter como foco a missão de trazer à luz a importância decisiva de sua obra para o pensamento mundial. Sua irmã, na verdade, acabou deturpando suas ideias para fins particulares e ainda publicou um livro apócrifo chamado A vontade de poder, que deveria conter, segundo o Nietzsche-Archiv, a essência e a verdade do pensamento definitivo de Nietzsche. O nome de Nietzsche acabou sendo usado para fins políticos, tendo, por vários anos, suas ideias deturpadas, inclusive como uma das fontes inspiradora do nacional-socialismo5. Sade e Nietzsche são dois autores polêmicos e injustiçados, sendo possível achar outros pontos em comum, até mesmo entre suas ideias. Sade supõe a existência momentânea de Deus para, em seguida, poder não apenas “matá-lo”, mas confrontá-lo também. Na argumentação sadeana geralmente a ideia de Deus é admitida como real para, em seguida, ser desafiada pelo homem que há tanto tempo se ajoelha diante desta quimera. Portanto, de perceber que Deus não passaria de uma lenda, lenda esta que pode ser confrontada sem medo. Para exemplificar essa espécie de desafio a Deus eis um trecho dos escritos sadeanos: 5 GIACOIA J. O. Nietzsche. São Paulo: Publifolha, 2000, p.42. 125 Aldones Nino Santos da Silva Vamos, aparece se existes e não admitas que uma frágil criatura ouse te insultar, afrontar, ultrajar como faço, renegando tuas maravilhas e rindo de tua existência, feitor de pretensos milagres! Faz um só para provar que existes!6 Nietzsche dá o golpe em um Deus que já Morto, pois a ideia de Deus começou a ruir muito antes que Sade ou Nietzsche decretassem sua morte, restando a estes autores assinaram sua certidão de óbito. As virtudes tidas como verdades absolutas e universais também são alvo dos ataques destes dois singulares pensadores. Os dois eram adeptos da arte do deboche, que consiste não apenas em criticar mas em ridicularizar as crenças; essa forma de crítica visa mostrar o quão ridículo seria a submissão a esses preceitos. O deboche é usado por eles para poder apontar as falhas do pensamento vigente que adota a existência de verdades universais, Nietzsche, por exemplo, escreve: O homem da verdade, o pesquisador, o filósofo, trabalha e constrói, provém, se não de Cucolândia das Nuvens, em todo caso, não da essência das coisas7. Enquanto Sade em sua crítica aos universais escreve: Não derrubeis seus ídolos com cólera: pulverizai-os brincando, e a opinião caíra por si mesma. (...) convenhamos, seria um absurdo palpável desejar prescrever leis universais8. Sade e Nietzsche argumentam a favor da insignificância do homem perante o universo, homem esse que para eles não passa de um minúsculo ser que tem a pretensão de dominar tudo. O homem com a sua fraca racionalidade pretende alcançar o verdadeiro, buscando superar a sua insignificância ao estabelecer a ideia de um Deus, um além-mundo e valores a priori. Para esses pensadores o homem seria um animalzinho medíocre que tenta abarcar o absoluto. Ao se prostrar diante de um Deus, o homem presta um culto apenas a si mesmo, dito de outro modo, o homem cria Deus e se coloca como seu servo, mas, na Verdade, Deus é apenas uma criação de sua fértil e desesperada SADE M. Diálogo entre um padre e um moribundo: e outras diatribes e blasfêmias. São Paulo: Iluminuras, 2009, p. 15. 7 NIETZSCHE F. “Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral”. In: Nietzsche Vol. 1 (Os Pensadores). São Paulo: Nova Cultural, 1991, p.34. 8 SADE, 2009, p. 78-79. 6 126 Sade, Nietzsche: verdade e ascetismo imaginação. Para nossos autores qualquer um que use a razão pode perceber as falhas desse raciocínio que se segue: o homem cria a ideia de um ser perfeito e criador de todas as coisas, em seguida ele diz acreditar que ele mesmo foi criado a imagem e semelhança de tal ser, ou seja, ele cria uma ideia ligada à perfeição, e em seguida assemelha-se a ela, sendo então tal ação resultado de prepotência de alguns, já que a existência do homem pouco se difere da existência dos outros seres da natureza. Para Sade, as “verdades morais”, por exemplo, são apenas convenções, tudo está de acordo com os nossos costumes9; aquilo que condenamos como crime aqui pode ser louvado como virtude algumas milhas adiante. Uma moral não pode ser tida como universal já que os homens diferem muito entre si. A natureza, para Sade, é amoral e indiferente a qualquer ação humana. A existência do ser humano é indiferente diante da natureza. Uma de suas personagens enuncia: “Eh! Que lhe importa que a raça dos homens se extinga ou se aniquile na terra!" 10 . Para alguns libertinos de Sade não há verdades morais, portanto; existiria apenas movimento na natureza. Nietzsche em Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral Demonstra, entre outras coisas, que a verdade pode ser encarada como um acordo comum, uma convenção humana. Uma vez que verdades absolutas são apenas aqueles princípios adotados pela maioria, a verdade passa a ser encarada como uma ilusão, tal como é dito no trecho a seguir: As verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas11. Em A genealogia da moral, na primeira dissertação, Nietzsche investiga a origem do conceito de bom e mau. Ele segue a ideia anteriormente postulada por Sade de que não existe bom e mau a priori, já que tudo advém do homem. Uma ação é sempre uma ação, sem um valor intrínsecotribuir um juízo de valor SADE M. A filosofia na alcova, São Paulo: Circulo do Livro, 1995, p.48. Idem, p. 124. 11 NIETZSCHE, 1991, p. 34. 9 10 127 Aldones Nino Santos da Silva a uma ação humana seria simplesmente querer sair da realidade e render-se às ilusões. Sade diz que “Os lobos nunca comem um ao outro” 12 , dito de outro modo o homem não se coloca acima de seus iguais, apenas os homens rendidos às quimeras da tradição poderiam ser enganados, na sociedade então alguns adotariam a postura do lobo. Atribuir valor de bom ou mal é apenas uma questão de ponto de vista, para nossos autores em questão. Existe apenas uma inversão de papéis, ou seja, sempre quem está oprimido quer tomar o lugar de seu opressor. Nessa mesma direção, Nietzsche afirma que a nossa sociedade atribui o valor de bom ao miserável e ao fraco graças a uma “revolta dos escravos na moral” 13 . A vingança dos fracos foi inverter os valores e colocarem-se como bons e os mais poderosos como os maus: Que as ovelhas tenham rancor ás grandes aves da rapina não surpreende: mas não é motivo para censurar ás aves de rapina o fato de pegarem as ovelhinhas14. Atribuição de juízos de bondade e maldade está ligada apenas à posição que se ocupa, posição esta que pode ser a de vítima ou de carrasco. Para a ovelha um lobo que está prestes a devorá-la é mau, enquanto que para o lobo a ovelha é apenas uma refeição. A ovelha, sendo fraca e incapaz de lutar com o lobo, vinga-se atribuindo lhe um valor de maldade. segundo Nietzsche esses juízos advêm apenas da incapacidade de lutar como igual. Bastaria uma inversão de papéis para inverter os valores. Vamos supor que uma ovelha seja forte e capaz de destruir o lobo, logo, o lobo atribuiria à ovelha o conceito de maldade, e ai poderíamos ter a ovelha como mau e o lobo como bom. Toda essa atribuição de valores é obra daquele que atribui os valores, sendo uma questão subjetiva e parcial. Para Nietzsche, o homem não merece ser colocado em nenhum patamar superior na natureza em razão do conhecimento humano, já que o conhecimento não seria nada mais do que uma antropomorfização do mundo ao seu redor. Uma barata, caso fosse produzir conhecimento, reduziria todo o 12 SADE, 1995, p. 83. NIETZSCHE, 2001, p. 23. 14 Idem, p. 32. 13 128 Sade, Nietzsche: verdade e ascetismo mundo ao seu redor a uma visão de barata. Em suma, o conhecimento seria uma particularidade humana que em nada o tornaria superior, já que é apenas a visão do homem diante da complexidade do mundo. Sade também coloca o homem em pé de igualdade com os outros seres que compõe a natureza. Tudo é reduzido à matéria. “Hoje homem, amanhã verme, depois de amanhã mosca” 15 . Para Sade, o homem seria apenas uma forma particular de organização da matéria; nada de divino pode ser visto ao encararmos o homem. A matéria que compõe a natureza seria a origem de tudo, do homem, do elefante e da mosca16. Como se pode perceber na história, o homem sempre gostou de se colocar como parte importante no cosmos. O homem é prepotente e cheio de si, mas Sade e Nietzsche feriram o orgulho humano, vendo-os como próximos aos outros animais; rebaixaram o orgulho humano para assumir a perspectiva que os homens sempre relutaram aceitar. Colocar-se em pé de igualdade com a natureza nunca foi foco do pensamento humano, a intenção geralmente é, por meio da racionalidade, distanciar-se da natureza e buscar controlá-la, como é problematizado por muitos teóricos da Escola de Frankfurt. O que Nietzsche denomina “virtude brutal” é a virtude dos santos, a virtude daqueles que não suportam a vida e desprezam a si próprios17. Essa virtude brutal é o que Sade também busca combater com seus escritos. Na sociedade muitos aspiram ao divino, e em busca do divino estes renegam o seu corpo e a sua existência. Não se pode renegar a vida, para Sade: “a vida é a soma dos movimentos de todo o corpo” 18 . A vida é a soma de todas as nossas relações com o mundo. Só vivo a partir da minha relação com o meu exterior, portanto, renegar o meu corpo em nome do invisível é odiar a vida. Em A genealogia da moral, em sua terceira dissertação, Nietzsche define o que são os ideais ascéticos: “São aqueles que querem o nada, preferem querer o nada ao nada querer” 19 . 15 SADE, 2009, p. 26. Idem, p. 194. 17 NIETZSCHE, 2001, p. 160. 18 SADE, 2009, p. 31. 19 NIETZSCHE F. Genealogia da moral. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 80. 16 129 Aldones Nino Santos da Silva Ao atacar todas as crenças do além-vida, Sade e Nietzsche afirmam a vida e a vontade, cada um ao seu modo. Reconhecem que a vida é a única coisa que temos, então temos de aproveitá-la ao máximo. Ambos reconhecem que somos seres humanos, que podemos ser livres dos dogmas sociais, e que temos o corpo e os sentidos como único meio de fruição da vida em sua totalidade. Ao gozar, afirmo-me como humano. Adotando essa postura, assumo o meu papel. E dirijo a minha vida sem me importar com o que a tradição afirma. Se após a morte não devo esperar por nada, então tenho que aproveitar ao máximo o meu breve período de permanência no tempo. Ao colocar o homem em seu devido lugar, ou seja, ao comparar o homem com um animal qualquer jogado na natureza, a intenção não é rebaixar o homem e sim reconhece-lo como um ser livre e capaz de viver a sua existência como um animal, que vive sem ligar para pretensos valores a priori, absolutos e universais. Animal entendido apenas como aquele que vive plenamente suas vontades, já que o homem se diferencia dos animais especialmente por suprimir as suas vontades, ou seja, ao tentar, por meio da racionalidade, alcançar o ideal ascético da negação. Ao negar o corpo, nego tudo que tenho e, sobretudo, nego aquilo que sou. No geral, o que Sade e Nietzsche nos dizem é que os que vivem de acordo com a tradição são apenas covardes que não fazem uso de sua condição de homem. Existiriam então dois momentos para se afirmar como senhor de si. O primeiro é o de se reconhecer como algo surgido no mundo, sozinho e à mercê da deterioração causada pelo tempo. Nesse primeiro momento é onde muitos se apegam às religiões, às fábulas e às quimeras ditadas pela cultura. Ao seguirmos o que é ditado por essa cultura sem refletir não conseguimos perceber que são apenas criações tolas. Assim, acabamos fazendo parte de uma “moral de rebanho” 20 . Em um rebanho todos são iguais, e a moral visa nos colocar num rebanho sujeito a preceitos únicos e universais. Estes nada mais são do que uma forma de controle, uma forma de negar a individualidade e rotular uns aos outros negando toda a singularidade humana. 20 NIETZSCHE, 2001, p. 142. 130 Sade, Nietzsche: verdade e ascetismo O segundo momento, que é alcançado por poucos, é o de superar esse “niilismo” e chegar a viver de acordo com suas vontades e desejos. Após o “niilismo que é a desvalorização de todos os valores, ou seja, sua perda de autoridade reguladora” 21 , o homem deve enfrentar o nada e, então, deve aproveitar ao máximo sua existência. As realizações particulares e subjetivas são a afirmação de cada um enquanto ser no mundo. Devemos nos livrar dos ídolos e renegar o ideal ascético, apenas assim podemos superar o nosso “instinto de rebanho” e alcançarmos a plenitude da existência. Em suma, estes seriam os denominadores comuns entre a filosofia radical de Sade e o pensamento iconoclasta de Nietzsche. Referência bibliográfica: GIACOIA J. O. Nietzsche. São Paulo: Publifolha, 2000. NIETZSCHE F. “Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral”. In: Nietzsche Vol. 1 (Os Pensadores). São Paulo: Nova Cultural, 1991. ______. A Gaia Ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. ______. Genealogia da moral. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. SADE M. A filosofia na alcova, São Paulo: Circulo do Livro, 1995. ______. Cartas de Vincennes. Londrina: Eduel, 2009. ______. Diálogo entre um padre e um moribundo: e outras diatribes e blasfêmias. São Paulo: Iluminuras, 2009. ______. Os infortúnios da virtude. São Paulo: Iluminuras, 2009. WOTLING P. Vocabulário de Friedrich Nietzsche. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. 21 WOTLING P. Vocabulário de Friedrich Nietzsche. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011, p.49. 131