UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE BELAS-ARTES
PHARMAKON
A forma como formação e metamorfose
Renata Moura de Sousa Salvação Barreto
Trabalho de Projeto
Mestrado em Arte Multimédia
Especialização em Audiovisuais
Trabalho de Projeto orientado pela Profª Doutora Susana de Sousa Dias
2019
DECLARAÇÃO DE AUTORIA
Eu Renata Moura de Sousa Salvação Barreto, declaro que o presente trabalho de projeto de
mestrado intitulado Pharmakon, é o resultado da minha investigação pessoal e independente.
O conteúdo é original e todas as fontes consultadas estão devidamente mencionadas na
bibliografia ou outras listagens de fontes documentais, tal como todas as citações diretas
têm devida indicação ao longo do trabalho segundo as normas académicas.
O Candidato
Lisboa, 30 de janeiro de 2019
ii
RESUMO
É com base na incessante observação das nuvens assim como no estudo das suas
tipologias que surge o grande propósito deste estudo que dá sentido e complementa
Pharmakon. Pharmakon trata de um registo videográfico de nuvens que explora a relação
entre as infinitas possibilidades das variações das formas das nuvens, categorizáveis ou não,
os seus ritmos e expressões.
A vontade de fundamentação teórica surge no decorrer da leitura de “O Jogo das
Nuvens” de Goethe onde as características que lhes são atribuídas, tais como volatilidade,
constante mutação e serem qualquer coisa que perdura, suscita interesse. É com “O
Pensamento Morfológico de Goethe” de Maria Filomena Molder que decido centrar-me no
estudo da forma e metamorfose referido pela autora. A par da observação e do registo das
nuvens e do estudo das nuvens nas áreas de Nefologia e Morfologia é feito um
levantamento do papel das nuvens na História de Arte e Literatura, reunindo elementos
para uma melhor conceção de uma doutrina metafórica e simbólica.
As nuvens e as suas tipologias, segundo um método de observação singular, são
distinguidas e analisadas para um jogo de transformações e mutações. Ao mesmo tempo, o
estudo da forma é associado às nuvens, as formas do informe. Nos registos efetuados, é
suscitada a descoberta de continuidade e mudança e incentivado o pensar pelas nuvens. A
metamorfose das nuvens faz delas o incessante motor que espero ver e que seja visto
através de Pharmakon.
Por fim, Pharmakon é um convite para pensar na possibilidade de uma doutrina
morfológica das nuvens que ao reinventar as suas formas por meio da transformação e
metamorfose quer criar uma nova imagem do mundo.
Palavras-Chave:
Morfologia; Goethe; Forma; Nuvens; Pharmakon.
iii
ABSTRACT
It is from endless observation of clouds, as well as the study of cloud typology, that
the purpose of this study arises, which complements and gives meaning to Pharmakon.
Pharmakon is a video on clouds which explores the relationship between the infinite
possible varieties of forms in clouds, categorisable or not, their r expressions.
The theoretical foundation for this study links to the reading of “O Jogo das
Nuvens” by Goethe, where the characteristics attributed to clouds, such as volatility,
constant mutation and the fact that they are something that persists, evokes my interest.
Based on the reading of “O Pensamento Morfológico de Goethe” from Maria Filomena
Molder, I decided to focus this study on the form and metamorphosis mentioned by the
author. In addition, I survey the treatment in Art History and Literature of the observation
and study of clouds in the fields of Nephology and Morphology, bringing together themes
for a better understanding of metaphorical and symbolic meaning.
Clouds and their typology, according to a particular method of observation, are here
distinguished and analysed through a game of transformation and mutation. At the same
time, the study of clouds is related to the study of form: the shapes of shapeless.
Continuity and change are found in the footage and encourage thought clouds. The
metamorphosis of clouds makes them the never-ceasing engine that I hope can be seen
though Pharmakon.
Lastly, Pharmakon is an invitation to think about the possibility of a morphological
doctrine of clouds; that by reinventing their form through transformation and
metamorphosis, they create a new image of the world.
Key Words:
Morphology; Goethe; Form; Clouds, Pharmakon.
iv
AGRADECIMENTOS
Agradeço à minha orientadora, Prof. Susana de Sousa Dias a disponibilidade e incentivo
no decorrer do mestrado.
Aos vários professores de escolas por onde passei por fazer gerar o interesse pelo estudo
e pelas artes no geral.
À minha mãe por todo o apoio durante o meu percurso profissional.
À família e amigos a qualidade das horas livres entre os estudos.
À Helen Soares a ajuda na tradução.
v
ÍNDICE
DECLARAÇÃO DE AUTORIA ................................................................................................ ii
RESUMO .................................................................................................................................... iii
ABSTRACT ................................................................................................................................ iv
AGRADECIMENTOS ................................................................................................................ v
ÍNDICE DE FIGURAS ............................................................................................................... 1
INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 3
1 A OBRA, OBSERVAÇÃO DAS NUVENS ............................................................................ 6
1.1 Pharmakon, o título ............................................................................................................. 10
1.2 O tema das nuvens na arte ................................................................................................. 14
1.3 A Morfologia como estudo: mudanças na forma de pensar ............................................ 20
2 DOUTRINA MORFOLÓGICA DE GOETHE ................................................................... 26
2.1 A forma como problema em Goethe ......................................................................... 27
2.2 As nuvens em Goethe: as formas do informe.................................................................... 37
2.3 A arte e a natureza para a criação do conceito forma ..................................................... 41
3 REINVENTAR AS FORMAS............................................................................................... 45
3.1 Formas tornadas inteligíveis .............................................................................................. 45
3.2 Obra: imagem e som ........................................................................................................... 53
3.3 Movimentos de constante mudança ................................................................................... 55
CONCLUSÃO ........................................................................................................................... 57
BIBLIOGRAFIA ....................................................................................................................... 59
WEBGRAFIA............................................................................................................................ 60
vi
ÍNDICE DE FIGURAS
Fig. 1 Renata Barreto, Pharmakon, 2016, 33m50
(Fotograma 02:16) ......................................................................................................................... 7
Fig. 2 Renata Barreto, Pharmakon, 2016, 33m50
(Fotograma 10:36) ......................................................................................................................... 7
Fig. 3 Renata Barreto, Pharmakon, 2016, 33m50
(Fotograma 24:25) ......................................................................................................................... 7
Fig. 4 August Sander, Blacksmiths, 1926
(Imagem retirada de URL: http:// http://www.tate.org.uk/art/artworks/sander-blacksmithsal00039)......................................................................................................................................... 8
Fig. 5 - Fotografia de Reuben Goldberg, Colar de Nuvens Chinês com extra folheações, sem
data
https://www.amherst.edu/system/files/media/1560/Cammann__Schuyler__The_Symbolism_of_
the_Cloud_Collar.pdf .................................................................................................................. 15
Fig. 6 - Antonio da Correggio, Assumption of the Virgin, 1526 - 30
(Imagem retirada de URL: https://www.khanacademy.org/humanities/renaissancereformation/renaissance-venice/late-renaissance-venice/a/correggio-assumption-of-the-virgin
..................................................................................................................................................... 16
Fig. 7 - John Constable, Cloud Study, 1822
(Imagem retirada de URL: http://www.tate.org.uk/art/artworks/constable-cloud-study-n06065)
..................................................................................................................................................... 17
Fig. 8 - William Turner, Rainclouds Approaching over a Landscape, C. 1822-40
(Imagem retirada de URL: http://www.tate.org.uk/art/artworks/turner-rain-clouds-approachingover-a-landscape-d25460)
..................................................................................................................................................... 18
Fig. 9 - Nicola Sabbatini, Esboço para cenário, 1638
(Imagem retirada de URL: http://users.skynet.be/sabbattini/)
..................................................................................................................................................... 19
Fig. 10 - Luke Howard, Cloud Study, C. 1803 - 1811
(Imagem retirada de URL: http://journal.sciencemuseum.ac.uk/browse/issue-02/made-real/) .. 21
Fig. 11 - Pierre Jean François Turpin, Representação da Urpflanze, 1837
(Imagem retirada de URL: http://www.plantcell.org/content/23/4/1194)
..................................................................................................................................................... 34
1
Fig. 12 - Johann Wolfgang von Goethe, Cloud Study
(Imagem retirada de URL:
https://www.google.pt/search?q=goethe+drawings+clouds&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ve
d=0ahUKEwj736PS0cDXAhXGvRQKHYouDsEQ_AUICigB&biw=1920&bih=974#imgrc=f6
3V9VIlzY408M:)
..................................................................................................................................................... 38
Fig. 13 - Andrea Slováková, Clouds, 2017, 18 mins
(Fotograma 18m20, Imagem retirada de URL: https://dafilms.com/film/7144-clouds)
..................................................................................................................................................... 44
Fig. 14 - Autor desconhecido, Balão de Hidrogénio, 1783
(Imagem retirada de URL: http://
https://www.granger.com/results.asp?image=0109895&screenwidth=167)............................... 46
Fig. 15 - Renata Barreto, Pharmakon, 2016, 33m50
(Fotograma 09:00) ....................................................................................................................... 49
Fig. 16 Renata Barreto, Pharmakon, 2016, 33m50
(Fotograma 13:32) ....................................................................................................................... 50
Fig. 17 Renata Barreto, Pharmakon, 2016, 33m50
(Fotograma 07:06) ....................................................................................................................... 50
Fig. 18 Alfred Stieglitz, Equivalentz, 1929
(Imagem retirada de URL: http://media.artic.edu/stieglitz/portfolio_page/equivalent-1929-2/) 51
Fig. 19 Renata Barreto, Pharmakon, 2016, 33m50
(Fotograma 03:24) ....................................................................................................................... 52
Fig. 20 Guerin Pierre Narcisse , Morphéus and Iris, 1811
(Imagem retirada de URL:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Morfeu#/media/File:Guerin_Pierre_Narcisse__Morpheus_and_Iris_1811.jpg ................................................................................................... 56
2
INTRODUÇÃO
A presente dissertação de Mestrado em Arte Multimédia – Audiovisuais de
vertente teórico-prática, começa por sustentar o propósito do vídeo Pharmakon a que
dei início em 2013 no âmbito do mestrado.
No vídeo, é anunciado o tema das nuvens através de imagens de vários tipos de
nuvens que se apresentam como um organismo constituinte da natureza que não se
esgota na observação. Como premissa para o desenvolvimento do trabalho, começo por
colecioná-las segundo as suas diferentes tipologias para que sejam organizadas
consoante as suas formas, ritmos e expressões. Assim, é inevitável não considerar os
seus próprios indícios como ponto de partida para a reflexão, uma vez que neste
processo de trabalho está presente o próprio estudo das nuvens como um dos pontos
mais importantes aqui focados. Refiro aqui indícios como metamorfose, volatilidade, a
sua constante mutação e em simultâneo, qualquer coisa que perdura. Razão pela qual
estes elementos começaram por suscitar interesse e, por sua vez, a dar início à pesquisa
que aqui apresento.
Assim, esta reflexão foi pensada e concebida tendo como ponto de partida o
livro O Jogo das Nuvens, uma compilação de poemas, esboços e apontamentos sobre as
nuvens de Goethe (Barrento, 2012). Em paralelo com a observação e o registo das
nuvens fui desenvolvendo um estudo que passou por várias áreas como a Nefologia,
História da Arte, Literatura ou até a própria Morfologia, que irá ser referida no decorrer
da dissertação.
Dou sentido a esta reflexão com base nos estudos que Goethe fez sobre
morfologia, tendo mesmo vindo a criar a denominada Morfologia Goethiana. Goethe,
curioso de diversas áreas, proporciona uma visão única por relacionar a criação artística
com o conhecimento científico. Assim, é com base nesta visão e em estudos que fez,
tanto no campo da meteorologia como da osteologia, geologia, botânica, zoologia,
anatomia e mineralogia que encontro em Goethe a possibilidade de uma
correspondência entre a vertente prática e a vertente teórica deste trabalho.
Na sua vertente prática, a obra revela um carácter contemplativo e imersivo
que anuncia problemáticas da ordem do limite como parte integrante da questão do todo
e da relação do universal com o particular. Apresento ainda a ideia de que esta premissa,
tida como um dos motivos centrais para o desenvolvimento do trabalho, tem o dever de
poder reconstruir uma nova imagem do mundo.
3
Pelas
nuvens,
tema
específico
dos
textos
reunidos
neste
estudo,
compreendemos que foi com base na classificação das nuvens de Howard e de duas
ideias fundamentais da sua teoria que “as nuvens e as suas formas, sendo instáveis, são
classificáveis; e a observação das nuvens, das suas mudanças e transições, é uma boa
base para a previsão meteorológica), e ultrapassa, apesar do seu pragmatismo, o mero
âmbito taxonómico, na medida em que Howard acreditava – e Goethe ainda mais que
ele – que «também o céu faz parte da paisagem» humana” (Barrento,2012: 16). A teoria
de Howard serviu ainda para que Goethe desse seguimento “à sua teoria de
metamorfose das formas básicas” (Barrento, 2012: 17) da sua doutrina morfológica a
que Maria Filomena Molder se dedica em O Pensamento Morfológico de Goethe. É
também significativo que Goethe, graças a Howard e ao seu contributo com On
Modification of Clouds, tenha visto através das nuvens a possibilidade de transpor
conteúdos do domínio científico para a poesia e filosofia.
Já com Maria Filomena Molder, O Pensamento Morfológico de Goethe trata
sobretudo de, segundo as características de Goethe já aqui referidas entre “poesia e
filosofia e filosofia e ciência” (Molder, 1995: 13), pela “possibilidade de uma
linguagem teórica” (ibid.: 13), ainda que não se preocupe com a constituição de uma
prosa filosófica, o questionar a “legitimidade de uma linguagem teórica” (ibid.: 13) em
busca de uma linguagem simbólica.
Entre a arte e a natureza há uma oposição
harmoniosa. Seja no desencadear do poema, seja na
captação de uma imagem (como em outros modos de fazer
nascer as formas juntas), há um conflito feliz. É este que
começa por traçar uma barreira móvel e delicada entre o
interior e o exterior: de um lado a consciência, a reflexão,
atravessada pelo abismo da memória, que a instabiliza; do
outro
lado,
aquilo
que
fascina
por
ser
não-eu,
conservando, porém, em si a escrita indecifrável de uma
ligação anterior e a promessa de um mais além que se
estende da terra ao céu. Pelo infinito, pelo sofrimento que
nele se gera enquanto efeito inelutável de uma perda de
limites constantes, dá-se a expansão de uma experiência e
aviva-se a força criadora da natureza. É assim que a arte é
importante para a vida: sem interlocutor, a natureza
4
emudece, torna-se só agregado controlável ou só ameaça;
sem o indisponível, o homem estiola. (Lopes, 2000: 8)
No primeiro capítulo, A Obra, Observação das Nuvens, faço referência à
necessidade de ter começado a registar estes elementos justificando, expondo e
analisando decisões que foram sendo tomadas paralelamente às reflexões que faço
durante a conceção do filme sobre a minha própria experiência. Ainda no Capítulo 1,
Subcapítulo 1.1, é dado sentido ao título da obra, Pharmakon, com base na Farmácia de
Platão de Jaques Derrida, compreendendo-se a ambivalência do termo e o meu interesse
nessa ambivalência. Já no Subcapítulo 1.2 é exposta a razão pela qual a observação das
nuvens foi crucial para a estabilização do tema no séc. XVIII, tanto como objeto de
conhecimento como conceito.
O segundo capítulo divide-se em três partes: A forma como problema em
Goethe, As nuvens em Goethe: as formas do informe e, por fim, A arte e a natureza
para a criação do conceito forma. Nestes subcapítulos é focado o conceito “forma” na
obra de Johann Wolgang Goethe, obra da qual me aproprio em parte por me reconhecer
no seu trabalho e por me sentir familiarizada com alguns dos seus conceitos. De
seguida, a forma e a forma das nuvens são relacionadas, tal como em O Jogo das
Nuvens de Goethe, para que se possa falar das nuvens, de “forma” e da forma das
nuvens no contexto artístico. Para isso, no terceiro subcapítulo, é referenciado o filme
Oblaka de Andrea Slováková que como Pharmakon, sugere que as formas das nuvens
podem ser entendidas como formação de ideias.
O terceiro capítulo, Reinventar as formas, acaba por justificar decisões
tomadas durante a realização do filme, assim como expõe de que forma algumas das
pesquisas que fui fazendo foram alterando o modo como me fui posicionando desde o
início do processo até à conceção da obra.
5
1 A OBRA, OBSERVAÇÃO DAS NUVENS
Foi tanto por gosto como pela necessidade de observar nuvens que comecei
numa primeira fase a registar momentos onde é possível fazer jus a um desejo de
solidão. Esta necessidade pessoal surge num período de luto profundo. Senti a
obrigação de transformar estes momentos em imagens e, por consequência, dar-lhes a
dignidade devida. Neste processo entre a observação e o registo das variantes das
formas das nuvens é lembrado, por meio de registos videográficos, outro modo de fazer
nascer novas formas. Deste modo, dou sentido a um olhar neutro e descomprometido na
medida em que aconteceu o despertar para uma nova experiência surgindo “O desejo
de dar forma ao informe e a tudo o que é acidental e amorfo uma qualquer
forma necessária” (Barrento, 2012: 20).
É de referir ainda que nestes registos videográficos foi propositadamente
registado o que é manifestamente exclusivo das nuvens, “seres, se não vivos, certamente
animados «reagindo» às solicitações, quer uns dos outros, quer da terra e da sua força de
atração” (Barrento, 2012: 11), partindo do que que lhes é característico, “porque as
nuvens não são, nem fixas nem voláteis (não «desaparecem»), mas como tudo na
natureza, formas em permanente transformação, elementos de uma coreografia cósmica
em que o olho e a alma são espectadores interessados e participantes” (ibid.: 11).
Assim, a par dos estudos das nuvens de Goethe e da sua Doutrina Morfológica
de base empírica e simbólica, dou ênfase ao que me move para o desenvolvimento da
dissertação teórico-prática: o tentar compreender um jogo que “é sempre o mesmo - o
das formas e a sua mutação -, como uma moeda de duas faces, uma onde tudo se
dissolve e outra onde tudo se fixa, que parecem querer anular-se, mas que Goethe é
claro, vê como necessariamente complementares” (ibid.: 22).
6
Fig. 1 Pharmakon, 2016, 02m16
Fig. 2 Pharmakon, 2016, 33m50
Fig. 3 Pharmakon, 2016, 33m50
7
Teoricamente, o Princípio Morfológico de Goethe que será aqui exposto, serve
como ferramenta para reflexão e contextualização teórica do presente trabalho. Goethe
estabeleceu novas e notáveis formas de estudar e classificar a natureza que foram
estabelecidas, influenciando profundamente não só o contexto científico como o próprio
contexto artístico. A título de exemplo refiro o trabalho de August Sander1, fotógrafo
que retratava não apenas a classe média como seria expectável para a época, mas
pessoas anónimas e minorias (Fig. 4).
Fig. 4 August Sander, Blacksmiths, 1926, printed, 1990
Como descreve Nélio Conceição, em Morphology – Questions on Method and
Language, os retratos produzidos segundo as práticas e possibilidades técnicas da
época, eram tirados com o indivíduo em pose frontal e sem qualquer artificialismo ou
dramatização. Segundo o autor, “Mais que procurar, como os seus colegas
vanguardistas fizeram, o uso devido de “poderes libertinos” da fotografia por explorar,
Fotógrafo alemão (1876 – 1964) considerado um dos fotógrafos mais importantes do séc. XX e cujas
fotografias foram proibidas em 1934.
1
8
Sander procurou até certo ponto um plano modesto de mostrar uma série de
combinações sequenciais que puseram a fotografia documental num novo nível de
significado visual e teórico” (Conceição, 2013: 134) que Walter Benjamin afirma ser a
sua dimensão morfológica.
Em Pharmakon, por comparação, a morfologia2 está na recolha, estudo e
classificação das nuvens e na sua apresentação segundo a análise e organização dessa
mesma recolha, o jogo a que Maria Filomena Molder chama “jogo entre o visível e o
invisível” (Molder, 1995: 255). Na captação e apresentação destes elementos, segundo
um olhar artístico e simultaneamente científico, tal como em Goethe, há o intuito de
sugerir um novo modo de olhar no qual estas duas áreas são análogas.
Os princípios que aqui apresento, tanto técnicos como teóricos, foram
desenhando a intenção da obra originando as transformações que o trabalho foi
sofrendo. É exemplo a composição sonora, captada propositadamente para a sequência
de imagens, constituída exclusivamente por sons da natureza como pássaros, insetos, o
vento nas árvores ou trovões.
Deste modo, a composição sonora de Pharmakon, mais que dar profundidade
às imagens de que se faz acompanhar, distingue-se por partir de uma recolha sonora que
é montada sem que os sons se repitam a não ser quando acontece o loop. Apesar de a
duração de cada plano ter sido alterada várias vezes durante o processo de trabalho,
houve a preocupação constante de cada plano ter tempo de deixar ver lentos
movimentos que acontecem, facultando ao espectador uma experiência de
imersibilidade. A sucessão de planos tal como são apresentados sugere vários sentidos e
significados que em loop, deixa intacta a prática singular e individual que aqui
proponho.
2
Do grego morfé (forma + logos, estudo).
9
1.1 Pharmakon, o título
O phármakon, sem nada por si mesmo, os excede
sempre como seu fundo sem fundo. Ele se mantém
sempre em reserva, ainda que não tenha profundidade
fundamental sem última localidade. Nós o veremos
prometer-se ao infinito e se escapar sempre por portas
secretas, brilhantes como espelho e abertas sobre um
labirinto. E também essa reserva de fundo que chamamos
[farmácia]. (Derrida, 2005: 75)
No contexto histórico da Grécia Antiga a designação do termo Pharmakon3,
assume uma diversidade de significados tendo sido utilizada para mais que uma
finalidade. Esta variedade de significados e a sua recorrente utilização nas mais variadas
áreas e contextos sempre foi um motivo de grande curiosidade ao longo da história
tendo sido citado e discutido consecutivamente em textos históricos, literários e
filosóficos. Em a Farmácia de Platão de Jaques Derrida, o termo pharmakon é
apresentado como um problema de tradução tanto pela ambivalência do termo como
pelo facto de não poder ser cingido a um único conceito. Interessou-me em Derrida o
que se compreende sobre o termo, a dificuldade de tradução da palavra pelos vários
significados que pode assumir e do uso propositado do termo para causar essa
ambiguidade.
Deste modo, baseado no diálogo entre Fedro (Phaedrus4) e Sócrates, o autor,
analisa o termo usado em Platão onde a escrita, como representação do discurso, é
anunciada como um pharmakon e posta em causa como uma questão moral. É ainda
posto em causa o conhecimento de quem escreve, uma vez que as ideias expostas não
são escritas e lidas pela mesma pessoa. No entanto, a escrita não surge como repetição,
cópia ou leitura dos conteúdos, uma vez que não é necessário ter total sabedoria sobre
os conteúdos expostos, mas surge como uma alternativa quando o orador não pode estar
presente permitindo a transmissão de conhecimento sem que seja necessário estar em
contacto direto com o autor, permitindo mesmo a leitura dos documentos após a sua
morte.
Platão, segundo Michael A. Rinella, apresenta o tema pondo em causa o poder
da palavra falada priorizando-a à escrita utilizada com o intuito de manter uma
3
Pharmakon, plural de pharmaka, remete à designação do termo como foi compreendido na Grécia Antiga,
ainda hoje assumido em vários textos filosóficos.
4
Deus Egípcio da escrita.
10
audiência sob a influência de um orador. O estudo do tema por vários autores tornou a
sua compreensão mais completa, mas também mais complexa, estando sempre presente
a sua relação com o poder da linguagem, do saber e do conhecimento como mecanismo
de mudança.
Vê-se como exemplo o uso da palavra pharmakon5 tanto para termos
relacionados com a medicina como com a filosofia sempre como propósito de busca
moral ou um tipo de justiça pública. Por sua vez, a doença tanto física como psíquica
era entendida como imoral e um tema central equitativamente social e político. Na Pólis
acreditava-se que para além da medicina ou da prática do desporto para a saúde do
indivíduo, estando a saúde física associada à saúde mental, dever-se-ia dar lugar ao
médico moral, o filósofo, que estaria encarregue da purificação da alma “todo o corpo
só pode ser curado na fonte – a alma – de todos só seus bens e males” (Derrida, 2005:
76). Segundo Rinella, a filosofia era vista como uma droga associada à prática da magia
ou à prática religiosa praticada por feiticeiros a quem eram atribuídos os nomes de goes
ou pharmakeus. Já a medicina fundada na ciência, duvidava também do que era
transmitido pelos textos dando prioridade ao que era transmitido oralmente por peritos
dos conteúdos transmitidos. A escrita, por outro lado, estava associada ao engano e à
transmissão de fundamentos duvidosos. O livro era assim considerado “o saber morto e
redigido encerrado nos bíblia, as histórias acumuladas, as nomenclaturas, as receitas e
as fórmulas apreendidas de cor, tudo isso é tão estranho ao saber vivo e à dialética
quanto o phármakon é estranho à ciência médica” (ibid.: 17).
No diálogo platónico Fedro, escolhido por Derrida em A Farmácia de Platão,
entre Fedro e Sócrates, Fedro persuade Sócrates a sair da cidade, de onde Sócrates não
quer sair, para lhe apresentar um texto do sofista Lísias que mantém escondido no seu
traje. Fedro sabe o texto de cor, e aqui reside a diferença entre os bíblia e os pharmaka.
Constituído por três discursos tendo como temática o amor, é propositadamente exposto
de forma a fomentar uma discussão em torno do uso da retórica, ainda que a retórica se
5
Em Pharmakon: Plato, Drug Culture, and Identity in Ancient Athens: Numa primeira leitura é entendida
a definição dualista de “remédio” ou “veneno”, ou seja, de uma substância capaz de curar, mas também capaz
de atuar no corpo humano para fins malignos. Este será o motivo pelo qual é conhecida hoje a sua
nomenclatura associada à industria farmacêutica. No entanto, na Grécia Antiga a palavra foi utilizada para
designar “perfume”, “pigmento”, “porção amorosa”, “talismã”, “droga psicotrópica, “máscara” ou
“maquilhagem” entre outras designações, estando quase sempre associada ao poder da intoxicação. Médicos,
parteiras, pintores ou oradores utilizavam uma mesma palavra cujo significado partia de um princípio comum.
A nível literário era regularmente utilizada pela ambivalência que acarreta estando presente em textos de
Homero ou Platão.
11
encontre em oposição ao ideal filosófico de procura de verdade. Aqui, a escrita, ou o
próprio texto de Lísias é um phármakon:
Esse phármakon, essa “medicina”, esse filtro, ao
mesmo tempo remédio e veneno, já se introduz no corpo
do discurso com toda a sua ambivalência. Esse encanto,
essa virtude de fascinação, essa potência de feitiço
podem ser – alternada ou simultaneamente – benéficas e
maléficas. O phármakon seria uma substância, com tudo
o que esta palavra possa conotar, no que diz respeito à
sua matéria, de virtudes ocultas, de profundidade
críptica recusando a sua ambivalência à análise,
preparando, desde então, o espaço da alquimia, caso não
devamos seguir mais longe reconhecendo-a como a
própria anti-substância: o que reside a todo o filosofema,
excedendo-o indefinidamente como não-identidade, nãoessência, não-substância, e fornecendo-lhe, por isso
mesmo, a inesgotável adversidade de seu fundo e de sua
ausência de fundo. (Derrida, 2005: 14)
A escrita como um pharmakon aparece como oposta à dialética sob a forma de
uma substância, com propriedades que podem servir tanto de “remédio” como de
“veneno”, para pôr em causa a própria dualidade do termo e por consequência a própria
ambivalência trazida pela escrita ou pelos próprios conteúdos escritos. Platão6 expõe o
mito de Theuth7, presente no mesmo diálogo, onde Theuth dá como oferenda ao Rei
Thamous8 a escrita como um remédio, uma arte de valor duvidoso que pode auxiliar a
memória e que Thamous recusa alegando que só trará esquecimento. “O livro e a droga,
a escrita e a eficácia oculta, ambígua, dada ao empirismo e ao acaso, operando segundo
as vias do mágico e não segundo as leis da necessidade.” (Derrida, 2005: 17).
É também referida a prática da logografia onde o logógrafo redige o discurso
falado sem conhecimento do que escreve, “Escrevendo o que não diz, não diria e, sem
dúvida, na verdade jamais pensaria, o autor do discurso escrito já está instalado na
posição do sofista: o homem da não-presença e da não-verdade” (ibid.: 12).
Compreende-se assim que phármakon é evocado para pôr em causa o jogo de
oposições binárias características da metafísica ocidental como é exemplo remédio e
veneno, mas também “alma/corpo, bem/mal, dentro/fora, memória/esquecimento,
discurso/escrita” (Derrida, 1981: 127) ou onde “… a ausência é a falta de presença, o
6
O Político.
Semideus Egípcio.
8
Deus de todo o Egipto.
7
12
mal é o cair do bem, o erro é uma distorção de verdade, etc.” (Derrida, 1981: viii).
Nestas e noutras dicotomias, uma das palavras tende a prevalecer sobre a outra, sendo
que a segunda existe em função da primeira. Estas oposições hierárquicas querem
“privilegiar a unidade, a identidade, o imediatismo, a presença temporal e espacial pela
distância, diferença, dissimulação e deferimento” (Derrida, 1981: viii). Neste caso o
discurso, a fala, o logós9, prevalece à escrita.
A escrita não é melhor, segundo Platão, como
remédio do que como veneno. Antes mesmo que Thamous
anuncie a sua sentença pejorativa, o remédio é
inquietante em si. É preciso, com efeito, saber que Platão
suspeita do phármakon em geral, mesmo quando se trata
de drogas utilizadas com fins exclusivamente
terapêuticos, mesmo se elas são manejadas com boas
intenções, e mesmo se elas são eficazes como tais. Não
há remédio inofensivo. O phármakon não pode jamais
ser simplesmente benéfico. (Derrida, 2005: 46)
Em Violence and the Sacred, René Girard, acerca da Farmácia de Platão,
afirma que a palavra phármakon, quando usada por Platão quando se refere aos Sofistas
significa “veneno” enquanto quando usada para se referir a Sócrates é usada
significando o seu oposto, “remédio”. No entanto, Girard afirma que Derrida
“…demonstra que entre Sócrates e os Sofistas, a estrutura das oposições não nega a
diferença que Platão gostaria de ter estabelecido mas, em vez disso, a reciprocidade que
é sugerida no recurso a uma e à mesma palavra” (Girard, 2005: 311). Conclui-se que,
este jogo criado não quer privilegiar o gesto de ler ou escrever ou limitar o termo apenas
a um significado, em vez disso, vive das polaridades que lhe são inerentes.
No meu vídeo, o título Pharmakon vem assinalar a legitimidade dessa
dualidade. Contendo em si essas duas naturezas, faz com que na obra se concretize uma
experiência tanto ao nível do que é percetível, uma experiência conceptual e linguística,
como ao nível do que é sensível.
Essa concretização dá-se no construir de sentido e no percurso dessa
construção. É nessa tarefa que encontramos um pharmakon. Sugere-se então a
necessidade de correr o risco de encontrar sentido e ter como perigo ver ou não o que
está presente na obra. Será desse ponto de vista que Pharmakon é utilizado como título,
sugerindo o que é dual como ponto de partida para a experimentar e experienciar.
9
A representação do discurso / A palavra de Deus
13
1.2 O tema das nuvens na arte
Neste sub-capítulo poder-se-á perceber a importância do tema das nuvens na
arte, através de uma exposição feita e ordenada cronologicamente das várias e variadas
utilizações e situações onde o tema esteve presente, assim como da sua importância
simbólica e função muitas vezes de teor religioso ou social.
A época e o local exato do aparecimento das nuvens como elemento simbólico
no contexto artístico não são precisas. No entanto, são um elemento de grande relevo
com mais de 3000 anos no quotidiano do homem por diversas razões e propósitos. Não
se sabe se derivado de conceitos indígenas, se fundado pela cultura Oriental, mais
propriamente do Cristianismo na Europa, se levado para a Ásia pela influência da
cultura Bizantina, pelo Nestorianismo ou pelas Cruzadas, o tema das nuvens começam
por ser mais que um elemento ornamental associado à temática religiosa.
Segundo Schuyler Cammann, como se pode ler em The Symbolism of the
Cloud Collar Motif de 1951, Yün Chien, “colar de nuvens” como é traduzido, é a
designação chinesa mais antiga com um padrão com quatro abas usado primeiramente
na Idade Média para decorar o colarinho das vestes. Foi pintado também à volta de
bocas de vasos e frascos, assim como teve também inúmeros outros usos na China e por
toda a Ásia. Segundo Cammann, “Em séculos recentes o padrão foi considerado
puramente ornamental pelo povo chinês assim como por outros povos, contudo é
amplamente evidente que mostra que originalmente era usado como símbolo cósmico”
(Cammann, 1951: 1) É ainda posteriormente reproduzido em diversas épocas e locais
geográficos como vestes da Mongólia e Tibete para cerimónias religiosas, danças
espirituais e rituais, cerâmica da Pérsia e da Mongólia, em cúpulas de mosteiros
Medievais, arquitetura da Roma antiga, no Regime de Fujiwara no Japão ou nas
Mandalas Budistas, sempre segundo o mesmo princípio simbólico.
Pensa-se que o símbolo de forma cruciforme, com um centro evidente, como se
pode ver na (Fig. 5), possa estar relacionado com a representação do universo, o mais
antigo propósito do colar de nuvens. Citando o autor, “Esse propósito, como podemos
ver terá sido para delimitar a “Porta do Sol” ou a “Porta do Paraíso”, no centro do céu,
no apogeu do universo” (Ibid.: 1).
14
Fig. 5 – Fotografia de Reuben Goldberg, Colar de Nuvens chinês com extras folheações
O estudo das nuvens, todavia, assim como o estudo para a representação da sua
textura e da sua disposição no espaço pictórico, começa por ter lugar no séc. XV, tendo
início no Quattrocento, ou seja, na Itália, desde o final da Idade Média ao início do
Renascimento. Presentes em pinturas, frescos ou palcos de teatro as nuvens são, com
base no estudo aqui apresentado, uns dos elementos simbólicos mais importantes cujo
propósito se vai alterando lentamente, mas com consequências de grande dimensão no
decorrer da história. Em Itália por exemplo, é alterada a representação do céu. As
nuvens começam a estar presentes para sentar ou suster figuras como deuses, anjos ou
outras figuras de temática religiosa. Estas mudanças começam por ser a nível temático,
mas também técnico, onde a representação da tridimensionalidade e volume assume
avanços notáveis. Um exemplo é Masaccio autor do fresco Santíssima Trindade com a
Virgem, S. João e os doadores, que segundo Ernst Gombrich foi um dos primeiros
pintores a pintar em perspetiva, “uma das invenções de maior impacto no
Renascimento” (Janson, 2010: 528). São também exemplo as vertiginosas cúpulas de
15
Antonio da Correggio (Fig. 6) onde são notáveis os jogos de luz e sombra
característicos da sua técnica para que o Trompe L´oeil seja executado na perfeição.
Fig. 6 - Antonio da Correggio, Assumption of the Virgin, fresco 35' 10" x 37' 11"
As nuvens passam a ser entendidas e representadas como um elemento natural
capaz de inquietar estados de espírito tal como céu e o que nele acontece como algo
capaz de alterar a nossa interioridade. Elementos como as cores, os movimentos e as
formas que nelas se encontram, são veículos que permitem a capacidade de interiorizálas. Pela pintura, conseguiu-se explorar a representação do peso, volume, massa e
tridimensionalidade das nuvens, o que nos diz que já na altura havia uma sensibilidade
rigorosa para observar, reparar e olhar para os mais pequenos detalhes específicos do
comportamento das nuvens e das condições atmosféricas.
Em John Constable, pintor naturalista e estudioso das nuvens, tem-se
consciência do tempo que passa, pela representação do vento, da temperatura e de
outros fenómenos naturais (Fig. 7). Por vezes, as diferentes tonalidades, as tipologias
das nuvens e a representação de outros fatores atmosféricos, permitem-nos interpretar
elementos como a temperatura estações do ano ou as localizações das paisagens.
Segundo Kurt Badt, Constable, através das condições atmosféricas representadas pode
16
contar uma história e dar-nos a impressão do tempo que passa, criar ambientes capazes
de alterar emoções, estados de espírito e de sentir. (Badt: 1950)
Fig. 7 - John Constable, Cloud Study, 1822
John Ruskin, crítico de arte britânico no séc. XVII, poeta e desenhador, como
se pode ler na citação abaixo, fala-nos de o facto de numa paisagem, como tema de um
quadro, não constarem já cenas históricas ou bíblicas. Em vez disso, fazia-se evidenciar
o diálogo apaixonado do homem com a natureza, próprio do Romantismo, e onde se
evocavam as emoções que a natureza transmite salientando que essa relação era uma
relação consciente do ponto de vista científico.
Enquanto o medieval nunca pintou uma nuvem sem que o propósito fosse ter um
anjo em cima; e um Grego nunca entendeu um bosque sem esperar conhecer lá um Deus;
nós devemos pensar na existência de um anjo nas nuvens como qualquer coisa
completamente inatural, e devemos ficar seriamente surpreendidos por encontrar um deus
em toda a parte (…). Nós não temos a crença de que as nuvens contenham mais que muitas
polegadas de água ou granizo, e das nossas libras não esperamos nada mais divino que
patos ou agriões. (Ruskin, 1985: 257)
Uma outra mudança inevitável, emerge das alterações que a própria história
vem sofrendo e que por consequência, alteram também a vários níveis o tema que aqui
17
trato. Refiro-me à forma como a pintura moderna se comporta no que diz respeito ao
estilo, às ideias que defende e às que naturalmente desencadeou.
William Turner, considerado um dos precursores da modernidade na pintura, é
uma referência emblemática na temática das nuvens na arte por ter pensado em
possibilidade de técnicas invulgares, e em paralelo com as descobertas científicas que
surgem, ter pensado no céu debruçando-se sobre questões meteorológicas (Fig 8).
Fig. 8 - William Turner, Rainclouds Approaching over a Landscape, C. 1822-40
A partir de então, começa a haver interesse em perceber o que se vê, “os
aspetos percetíveis das nuvens, as suas objetivas configurações, os efeitos dos
nevoeiros, a aparência através das condições atmosféricas.” (Damisch, 1985: 187)
Com William Turner, ainda que a riqueza das combinações cromáticas tenham
sido sempre o que o melhor caracterizou e o que o acompanhou ao longo de toda a sua
carreira, Turner, deixa propositadamente de fazer a representação fiel das formas. Esta
mudança é possível pela vasta experiência que adquire ao longo dos anos de observador
da natureza, e da consciência de uma verdade contida nos céus e mares tempestuosos,
mas também nas nuvens. Por isso, foi um autor notório a representá-las e a percebê-las
18
assim como perceber “a verdade dos céus” (ibid.: 188), “…verdade onde certamente as
nuvens tiveram o seu papel”. (ibid.: 186) Verdade esta considerada por Turner uma das
mais importantes que a arte deve fazer perceber. O seu ponto de vista começa por ser
entendido pelas trovoadas, nevoeiros ou neblinas e o elemento das nuvens, também em
Turner, deixa de ser referido para se falar de otimismo, tranquilidade ou esperança,
passando antes a ser um elemento desorganizador e inquietante.
A consciência de que a arte e as condições atmosféricas nela representadas,
neste caso as nuvens, aparece já na Grécia Antiga com Aristófanes, um dos únicos
gregos que fez estudos rigorosos sobre as nuvens e que utilizou as nuvens para
transmitir o que pode ser também nocivo. Já no final do séc. XVIII, as tempestades em
Richard Wagner, também amante e estudioso das nuvens, fazem aparecer nos palcos o
transtornar os deuses nas passagens de uma cena para a outra por estrondosos trovões
acentuando o intemperamento e frustração das personagens. O elemento das nuvens
trazido para a ópera e a sua reprodução, até à data a mais próxima da realidade e mais
surpreendente à nossa perceção, foi possível pelas cenografias de Giacomo Torelli e
pelas maquinarias de Nicola Sabbatini, inventor de maquinarias para o palco, que em
1638, criara um mecanismo para as personagens aparecem a levitar numa nuvem (Fig.
9).
Fig. 9 - Nicola Sabbatini, Esboço para cenário, 1638
A novidade é o facto de as condições atmosféricas já não serem representadas
apenas por meio da imagem, mas por meio da luz, do som e maquinarias. É de referir
19
que grande parte destas inovações só foram possíveis graças à invenção da eletricidade
que faz revolucionar os palcos de todo o Mundo. Desta forma, foram exploradas
diferentes tipos de atmosferas segundo determinadas características meteorológicas tais
como as suas variações como a própria natureza das nuvens, trovoadas, nevoeiros ou
mesmo a natureza elétrica dos raios, ainda que muitos destes estudos não tenham sido
por completo baseados e fundamentados em novas descobertas de estudos científicos,
mas mais como consequência dos tempos que se viviam.
1.3 A Morfologia como estudo: mudanças na forma de pensar
A era dos coletores de nuvens, como o foi Goethe, tem início no séc. XVIII a
par de sucessivas invenções no campo da ciência como são exemplo o telescópio, o
microscópio, a bomba de ar, o relógio de pêndulo o termómetro ou o barómetro,
instrumentos científicos que alteraram e definiram o futuro das investigações científicas
até os dias de hoje.
Goethe, para além de poeta, dramaturgo, novelista, filósofo e político, teve
também ele um papel marcante nas ciências naturais pelos estudos sistemáticos que fez
na área da Morfologia, estudo das formas de padrões e formações naturais. Por sua vez,
a Nefologia, o ramo da Morfologia que estuda as nuvens, passa a ter um grande impacto
universal pelas constatações e pesquisas feitas, como é exemplo o facto de as nuvens
serem responsáveis pela regulação do clima e das alterações climáticas.
É também a época em que a nomenclatura de Luke Howard é reconhecida
internacionalmente segundo a publicação do seu ensaio On the Modification of Clouds
(1832). Posteriormente, em The Essay on Clouds, primeiro capítulo de The Climate of
London (1833), Luke Howard apresenta as classificações fundamentais do nome das
nuvens.
Embora não tenha tido tanto impacto como em On Modification of Clouds, The
Climate of London influencia pintores e poetas entre os quais já referidos Constable e
Turner, mas também Johan Cristian Dahl e Carl Blechen, Samuel Taylor Coleidg e
Percy Bysshe Shelley e o próprio Goethe. Goethe no entanto, dedicado a compreender
os fenómenos naturais assim como os fenómenos atmosféricos, faz consecutivas
observações e estudos das formações de nuvens segundo esta nova nomenclatura (Fig.
10). Em The Shape of Clouds According to Howard de 1920, Goethe dedica uma série
de poemas que tornam este autor um dos mais ilustres nomes da meteorologia, ainda
20
que tenha sido amador neste domínio, e de grande influência na época também para as
artes.
Atmosfera
«O mundo é tão vasto, espaçoso,
O céu tão amplo e majestoso!
Tudo quer ver o meu olhar,
Mas não sei como o imaginar».
Para me encontrar no infinito,
Primeiro distingo, depois junto:
Grato está meu pranto em seu lume
Ao homem que às nuvens deu nome.
(Goethe, 2012: 80)
Fig. 10 - Luke Howard, Cloud Study, C. 1803 - 1811
Centremo-nos agora em Essay on the Modification of Clouds. Nesta obra de
1803, Luke Howard distingue as nuvens em três categorias base, Cumulus, Stratus e
Cirrus, baseando-se em dois critérios principais, a relação entre altura e forma e a
estrutura das nuvens. Estas três categorias são por sua vez divididas em subcategorias e
combinações distinguidas por nomes em latim, uma das razões pela qual a sua
21
nomenclatura vingou em vez de nomenclaturas como a de Lamarck ou de Robert Hooke
(Hamblyn, 2001: 99). Uma segunda razão, e de igual importância, foi o facto de os
nomes lhes terem sido atribuídos segundo o critério de classificação de Carlos Lineu,
considerado o pai da taxonomia moderna. Este critério tem como base uma
nomenclatura binomial em latim, em que o primeiro nome diz respeito ao género da
espécie e o segundo ao epíteto, uma característica específica que pode estar relacionada,
por exemplo, com a sua localização ou organização corporal. A nomenclatura binomial
de Lineu não foi só aplicada às nuvens, mas a todos os seres orgânicos minerais,
vegetais e animais e utilizada na zoologia, osteologia e botânica. Systema Naturae, foi o
livro universalmente aceite que serviu para padronizar a forma de nomear espécies cujo
método é usado ainda hoje. (Carolus: 1735) Deste modo, os novos nomes dados às
nuvens e seres orgânicos estiveram diretamente associados a uma recém-adquirida
consciência, levando Richard Hamblyn a afirmar que “Como novas formas de
entendimento emergiram, novas formas de expressão, ambas literais e metafóricas,
apareceram lado a lado como suporte do seu trabalho. As novas formas de ver tornamse progressivamente associadas às novas formulações das palavras.” (Hamblyn, 2001:
13)
Em The Invention of Clouds (2001), Richard Hamblyn explica que “o Sistema
de classificação de Lineu serviu Howard no seu modelo organizacional, ainda que os
seus termos, quando aplicados às nuvens, lhes dessem uma impressão errada de fixidez”
(Hamblyn, 2001: 123).“Foi a grande mutabilidade das nuvens e a sua falta de fixidez,
que ofereceram o verdadeiro desafio para a sua classificação” (Hamblyn, 2001: 123),
perspetiva já apresentada e discutida por Lamarck, um evolucionista. Lamarck, dava
ênfase, assim como Georges Louis Leclerc, Conde de Buffon, à mudança e
mutabilidade das formas compreendendo que as nuvens não poderiam estar nunca, pelas
suas características, totalmente enquadradas segundo o método de classificação de
Lineu, visto que este método implicaria que as espécies fossem permanentes, distintas e
imutáveis.
Segundo Richard Hamblyn, Howard compreendeu ainda que as “Nuvens
podem mudar tanto genericamente como especificamente sofrendo transições de uma
forma para a outra. Elas podem passar, de uma para a outra, não apenas entre tipologias
mas entre famílias de inteiras formas.” (Hamblyn, 2001: 123). De facto, tanto Luke
Howard como também Thomas Ignatius Maria Foster, os dois nomes mais importantes
da meteorologia do séc. XVIII, introduzida pelos pioneiros franceses Ferdinard
22
Saussure, Jean André De Luc e Pierre Bertholon, trazem para o debate fatores
meteorológicos invisíveis que o olho não consegue ver e, portanto, importantes para
compreender o fenómeno e a descoberta da natureza como um reino de analogias e
contradições.
Como exemplo de um dos temas a debate esteve a mutabilidade das formas dos
organismos. A mutabilidade das nuvens foi uma das razões que levou a que fosse
adquirida esta consciência. Dada a velocidade das mudanças de tipologias de umas para
as outras, eram visível, de forma que, mesmo que a forma de todos os organismos
estejam também em constante mutabilidade, este era compreendida mais facilmente.
É de salientar que o interesse pelas nuvens e pela meteorologia não tem início
no séc. XVIII, ainda que esta tenha sido a época em que estudos e propostas foram
comprovados, reunidos e consolidados, enriquecendo o clima cultural e científico.
Compreende-se que o céu, em vários períodos históricos, tenha assumido
diferentes propósitos e tenha sido um recurso que, pelas suas propriedades de cariz
enigmático, serviu a imaginação de inúmeras culturas ao longo dos séculos desde o
Antigo Egipto, Caldeia e Babilónia à China, dinastia de Shang, onde havia jornais
meteorológicos com previsões da chuva, nevões e do vento e onde se encontrava já
manifesto o interesse em efeitos óticos como halos ou arco-íris.
A par dos estudos meteorológicos, as nuvens, o céu ou outros fenómenos
naturais, foram elementos usados com carácter fantástico para servir tanto a política
como a religião ou a arte10. Este carácter fantástico, foi o que levou artistas e estudiosos
a acreditar que o mundo natural, neste caso as suas características atmosféricas, podia
ser um elemento usado pela arte propositadamente para que fosse admirado e respeitado
pelos seus próprios atributos. Considerou-se então um elemento valioso para a
imaginação principalmente pela tomada de consciência de que os fenómenos naturais
são algo sobre o qual o ser humano não exerce controlo, sendo esta uma das suas mais
valiosas características.
10
No séc. IV a.C. a doutrina Yin-yang, conhecida na filosofia natural e moral chinesa, fala de duas forças
fundamentais que equilibram tudo na criação. Yin, a figura feminina que estaria associada às nuvens e à chuva
e Yang, figura masculina, que seria o calor, o sol e o fogo. Também na religião Taoísta foi interrogado o
mistério da trovoada. Uma “Administração Divina” como o autor lhe chama.Tinha elementos
meteorológicos como relâmpagos e trovoadas manifestações divinas e figuras místicas como o Conde do
Vento ou o Mestre da Chuva. O jovem aprendiz Yun-t´ung seria aquele que estaria encarregue de manter as
nuvens carregadas de água a flutuar.
23
Na exposição que segue, é focada a obra The Invention of Clouds de Richard
Hamblyn11, historiador de nuvens contemporâneo cujo estudo se mostra relevante neste
livro pelos dados históricos que contém, úteis para o desenvolvimento do capítulo.
Entre os séculos XVI e XVII a.C., foi estabelecida pelos filósofos a divisão entre as
ciências de relações divinas e religiosas. Aqui, há já divisões de ramos científicos como
a Astronomia, Brontologia12 e a Nefologia, tornando-se esta época, um dos mais longos
períodos e com os mais variados projetos de pesquisa da História Natural. Hamblyn
considera o tratado de Mileto como um dos mais importantes documentos da
Meteorologia Ocidental, uma vez que é segundo o tratado de Mileto que a meteorologia
é introduzida e reconhecida no ocidente como uma ciência tal qual a conhecemos hoje.
Pela sua relevância e dimensão, não apenas na Grécia, mas por várias cidades
do mediterrâneo, começam a estar expostos boletins meteorológicos nas praças
públicas. Como consequência, surgem também as primeiras teorias sobre a formação
das nuvens na tentativa de compreendê-las tanto quanto à sua formação como ao seu
comportamento. Ainda que não houvessem os meios necessários para confirmar e
avaliar grande parte destas teorias, pois muitas delas não passavam de suposições,
grande parte delas apontavam sugestões que se comprovaram anos mais tarde.
Demócrito, por exemplo, foi um dos mais notórios estudiosos de nuvens fazendo longas
viagens com o intuito de compreende-las a partir de localizações e climas diferentes,
assim como diferentes níveis de altitude. Alegava que as nuvens eram parte de um ciclo
semelhante ao nosso Ciclo Hidrológico tendo consciência que a água que evaporava
numa parte do globo poderia ser chuva, neve ou um rio numa outra parte. Estas
conclusões foram conseguidas por meio de estudos, alguns deles em viagens ao norte da
europa, onde observou o estado da água a diferentes temperaturas e sob diferentes
condições atmosféricas. Segundo Hamblyn, Demócrito para além de um dos grandes
estudiosos do modelo atómico, fez uma das mais persistentes descrições dos
movimentos das trovoadas por todo o mundo. (Hamblyn, 2001: 23).
No campo da filosofia grega do séc. XIV, as formas eram associadas a formas
do pensar, levando Richard Hamblyn a afirmar que o “Verdadeiro conhecimento, a
verdadeira ciência, faz apenas apreender esta autonomia real das formas.” (Hamblyn,
2001: 24).
11
Escritor e historiador ambiental britânico, professor universitário com uma vasta obra editada,
colaborações para jornais e com o UK Met Office.
12
Estudo dos trovões.
24
Neste campo, é importante referir o tratado de meteorologia de Aristóteles,
Aristotelis Stagiritae, que faz dele um dos mais prestigiados filósofos gregos na área da
meteorologia ainda hoje. Aristóteles deu grande ênfase à formação e duração das
nuvens e as conceções que apresentou tiveram grande influência no método de pensar as
nuvens durante os dois mil anos que se seguiram, ainda que a sua influência tenha
desaparecido quase por completo com a propagação do cristianismo.
Com o cristianismo, por muitos séculos, o olho humano foi confundido e
distraído com símbolos religiosos onde os artistas estiveram presentes para ilustrar a
Bíblia ou contos tradicionais. Os estudos feitos na Grécia Antiga, referência em todo o
Ocidente, deixaram de ter interesse já que o que se desconhecia dos céus passou a servir
para intervenção moral e divina. Ainda assim, alguns autores mediterrânicos como é o
caso de Séneca, Plínio e Lucrécio, fizeram por preservar alguns dos estudos por meio de
compilações e antologias sobre meteorologia e ciências naturais no geral, bases
fundamentais para as propostas que foram apresentadas nos tempos vindouros. A título
de exemplo, em Natural Questions, uma enciclopédia escrita em latim sobre o mundo
natural por volta do ano 65 a.C., Lucius Annaeus Séneca fala das nuvens como parte
integrante das transformações atmosféricas e Tito Lucrécio Caro inventa o modelo
atomístico da formação das nuvens revisto apenas no séc. XVIII.
Assim como Aristóteles, também Descartes teve especial interesse pelas
nuvens para aprofundar ideias relacionadas com a filosofia da natureza, pelas
propriedades que têm no campo da Física e pelo “…desafio que oferecem aos sentidos”
(Hamblyn, 2001: 29).
Uma vez que se deve virar os olhos para o céu para
vê-las, pensamos nelas como estando tão altas que até
poetas e pintores as veem como o trono de Deus e fingem
que Ele usa as suas próprias mãos para abrir e fechar as
portas dos ventos, para polvilhar o orvalho nas flores e
atirar relâmpagos contra as rochas. Isso faz-me esperar
que se eu explicar sua natureza aqui, para que não se
tenha mais oportunidade de admirar nada sobre o que é
visto vir de cima, acreditar-se-á facilmente que é
possível, de alguma forma, encontrar as causas de tudo o
que é maravilhoso pelo que é acima da terra. (Descartes
Apud Hamblyn, 2001: 30)
Para Descartes, as nuvens tinham capacidades filosóficas capazes de
transformar sentidos, opiniões e maneiras de pensar e por essa razão trouxeram para
25
discussão uma visão dinâmica em vez de uma visão fixa do mundo. Era portanto, não o
único mas um dos elementos recorrentemente citados, que oferecia, por meio da
imagem, da escrita ou da sua simples observação, novas conclusões sobre o
desconhecido. A par das citações que dizem respeito à arte e à ciência, o clima que se
sentia dizia também respeito às descobertas científicas que iam sendo feitas e que, agora
cada vez mais, iam sendo alargadas a toda a comunidade. Muitos foram os nomes que
conhecemos hoje que beneficiaram deste clima. Charles Darwin, por exemplo, não só
beneficiou deste clima como o beneficia, contrariando a religião, trazendo para debate
uma das mais discutidas descobertas científicas.
Goethe, também ele, “sabe que também não se pode mais ser um Antigo.
Antigo, aliás, e um nome para uma experiência radical que só aquele, que já tem uma
herança moderna pode ter, e corresponde a um olhar para trás, um ato de
reconhecimento de um gesto tomado como o primeiro gesto (na arte, no conhecimento)
(Molder, 2014: 68). Como se pode ler em As Nuvens e o Vaso Sagrado “a sua dedicação
à botânica, à geologia, à zoologia, à cor, à meteorologia, não lhe aparece nascida de uma
secreta aliança com os Antigos, mas contendo o selo da dispersão dos que vieram em
último lugar, die Neueren” (Molder, 2014: 69), os Modernos. Ainda assim, o
entendimento destas matérias, como é exemplo a natureza e o modo como os gregos a
estudavam e a que Maria Filomena Molder faz referência, não podia já ser
compreendida da mesma forma. Com os modernos não é possível apenas contemplá-la.
Razão pela qual é sugerida a doutrina Morfológica de Goethe associada à temática das
nuvens exposta no próximo capítulo.
2 DOUTRINA MORFOLÓGICA DE GOETHE
Neste capítulo é apresentada a doutrina morfológica de Goethe segundo Maria
Filomena Molder assim como a razão pela qual, tanto Goethe como o estudo da sua
doutrina, são destacados por mim para dar continuidade à estruturação teórica da
presente dissertação. A autora, é veículo para a introdução do pensamento de Goethe
pelo facto de ter elaborado um dos mais extensos estudos sobre o tema em português, a
minha língua materna. Refiro-me a O Pensamento Morfológico de Goethe, onde é
apresentado um grupo de ideias que nos permitem compreender várias faces da temática
assim como inúmeras relações com outros autores e possíveis objetos de estudo. Uma
destas possibilidades para estudo é por mim encontrada na intenção de Goethe reunir o
ofício poético com o ofício teórico. Isto é, dedicou grande parte da sua vida ao estudo
26
das questões naturais e morfológicas pois queria compreender o enigma dos seres vivos
presente em todos os seres. A compreensão deste enigma foi possível no entendimento
da forma como Theoria, a visão contemplativa. Como é possível compreender, no
próximo sub-capítulo, o termo forma não tem apenas a ver com a esfera do visível,
característica que vem acompanhando o termo ao longo dos tempos e remonta à Grécia
Antiga. Razão que leva o poeta a estudar o termo, mais propriamente a génese da
“forma como problema” (Molder, 2014:155) ou seja, a génese da própria forma. Deste
modo, o estudo da génese da própria forma, encontra-se na formação e sua apreensão.
Precisamente, segundo o autor, pelas formações manifestas no crescimento dos seres
vivos e pela a sua apreensão, o que se entende por Bildung. O facto de Goethe ser poeta
e investigador da natureza faz com que a sua escrita seja uma escrita particular e faz do
autor um dos primeiros exemplos onde se pode reconhecer o “estudioso da natureza e o
artista” (Molder, 1995: 51). Um exemplo são as cartas de Friedrich Schiller a Goethe ou
os textos que o poeta escreve para si “sobre coisas deste mundo (as coisas naturais e as
coisas da arte)” (Molder, 1995: 50) onde “formula a sua conceção da natureza e do
modo como chega ao seu conhecimento” (Molder, 1995: 50).
É a partir dos seus três notáveis contributos para a morfologia: A descoberta do
osso intermaxilar no crânio humano, a descoberta da planta originária Urpflanze e da
obra A Teoria das Cores que no primeiro sub-capítulo seguinte é focada a doutrina
morfológica de Goethe dando maior relevância ao conceito de forma. Neste contexto,
conceito de forma menciona tanto as formas visíveis como as invisíveis ou ocultas,
como lhes chama Filomena Molder. Por esse motivo, no sub-capítulo seguinte, as
nuvens são apresentadas como os organismos mais próximos destas formas por terem
como extraordinário atributo as suas formas orgânicas que melhor fazem a passagem de
umas formas para as outras.
Por fim, no terceiro e último sub-capítulo, é introduzida a obra Oblaka de
Andrea Slovaková que, a par dos autores já referidos, foi o que me incentivou a reflexão
sobre os registos de nuvens que já fazia há algum tempo e motivou para a conceção da
obra Pharmakon introduzida no terceiro capítulo.
2.1 A forma como problema em Goethe
“De modo agudíssimo, os Gregos perceberam que a natureza era
criadora de formas e que, ao mesm o tempo, não as deixava estar muito
27
tempo na mesma posição, no mesmo estado, na mesma configuração. Eles
aperceberam-se da transformação interna das formas através daquilo a que
chamaram theoria, a visão contemplativa.” (Molder, 2014: 153)
A palavra “forma”, palavra utilizada hoje para que possamos
descrever o aspeto dos objetos que nos rodeiam e necessária para distinguilos de acordo com a aparência, aspeto ou configuração, é também usada
como sinónimo de método, norma ou outras relações que não tenham
obrigatoriamente a ver com a esfera do visível.
Em As Nuvens e o Vaso Sagrado, a autora começa por expor o
conceito de forma pelos vários significados que a palavra e os seus
derivados assumem na Grécia Antiga. O termo foi usado em diversos
contextos e épocas, assim como os seus derivados. O conceito que era já
habitual entre os gregos, ainda que “estabilizado em três termos diferentes,
eidos, ideia e morfe” (Molder, 2014: 150), termos já inscritos quer no “campo
do conhecimento, quer no da ação, quer no da criatividade”. (Molder, 2014:
150)
“Quer ideia, quer eidos, quer morfe podem
significar aspeto exterior, o ar de uma pessoa ou de
uma coisa; mas eidos também quer dizer os traços
do rosto de alguém, e morfe designa não só, por
oposição a eidos/ideia, a forma sensível, a
aparência, que assume uma intensidade única no
caso dos corpos dos homens e dos deuses, como
ainda as figuras da articulação e da gesticulação.
Eidos refere também a forma espiritual, a forma
própria de uma coisa (género, espécie), sintoma de
uma doença, encadeamento de operações ou de uma
discussão, modo de se orientar, método e maneira.
Ideia diz respeito à espécie disto e daquilo num
sentido particular, por exemplo, as formas da morte
ou da guerra; pode igualmente ser tomada como
princípio geral de classificação, princípio de
génese, ideia universal, mas também figura de
estilo. No caso de morfe, de onde vem, por exemplo,
morfologia, a ciência das formas, da classificação e
da comparação das formas, e de onde procede a
palavra, quase iniciática, “metamorfose”, s abemos
28
que na província grega da Lacedemónia,
transformando em Morpho, era o nome que recebia
a deusa da beleza e do amor, Afrodite. Além disso,
Morpheus, também derivado de morfe, literalmente
“aquele que reproduz as formas”, era o deus do
sono e dos sonhos, o que sublinha o elemento
imaginativo, secreto e noturno da forma. (Molder,
2014: 150)
Segundo Maria Filomena Molder, até Nietzche, os Gregos “foram os senhores
da forma” (Molder, 2014: 151), no sentido em que promoviam o amor à forma como
um movimento contra o caos e “enquanto constituição de uma figura sustentada por um
princípio interno de perfeição e beleza” (Molder, 2014: 151). Ou seja, a forma constitui
um princípio que anula as forças do caos, compreendendo a “inseparabilidade das forças
destrutivas e criativas da natureza, da vida”. (Molder, 2014: 152). Como afirma Molder,
é em Ilíada que o homem é referido pela primeira vez tanto como criativo como
ameaçador. Por um lado, tem a capacidade de criar e compreender as formas e de
conceber a forma como instrumento que anula o caos. Por outro lado, “se acreditamos
poder anular o caos (…) ficamos presos àquilo a que poderíamos chamar uma forma
morta, isto é, aquela que se petrifica numa falsa configuração”. (Molder, 2014: 152)
“Um dia nascemos, um dia acordamos, um dia
paramos para olhar, enxames de associações acodemnos à ideia, e dá-se uma estranheza que pede demora: o
mundo acabou de ser antecipado. Quer dizer,
percebemos com maior ou menor nitidez que andamos
por aqui e admiramo-nos por aqui estarmos, admiramonos por termos chegado e por nos exigirem que um dia
abandonemos isto”. (Molder, 2014: 43)
A forma, por meio da visão, aparece para que paremos para olhar
para ela. É neste simples processo que aparece o que a autora considera “a
forma como problema” (Molder, 2014: 155). Ou seja, uma vez que a forma que
vemos é considerada um “objeto problemático” (Molder, 2014: 155) “a forma
como problema não é simplesmente o aparecimento de uma dificuldade, é também o
aparecimento da sua resolução e é, ainda mais do que isso, a transformação da relação
29
entre dificuldade e resolução, que toma o aspeto de um reconhecimento surpreendente,
uma visão” (Molder, 2014: 156).
Em Goethe, aparece esta recorrente questão, a da visão da forma
como problema. Como já foi referido, Goethe, um estudioso exímio das
formas desde muito novo, “moderno, curioso, disperso e inquieto” como o
descreve
a autora de As Nuvens e o Vaso Sagrado (Molder, 2014: 68),
preocupou-se em compreender “a sua génese e o seu desenvolvimento, quer
na poesia e na arte, quer na natureza” (Molder, 2014: 157) e, a par de estudos nas
áreas da botânica, geologia, zoologia, ótica, meteorologia, osteologia, entre outras,
destaca-se como extraordinário na contemplação e comparação das formas no geral. É
no entanto, sobretudo sobre as formas naturais que dá os seus mais notáveis contributos,
razão pela qual talvez o próprio considere a sua obra científica mais relevante que a sua
obra poética. O seu contributo para a Morfologia13 foi notável, conceito desenvolvido
por Goethe em 1790 e autenticado por Karl Friedrich Burdach em 1800 como ciência
que estuda a forma e a estrutura tanto interna como externa dos organismos incluindo,
por exemplo, a cor, os ossos ou os órgãos. O seu contributo para a Morfologia foi um
grande investimento por parte do autor no campo científico que vem a estar ligado
sobretudo ao campo da ciência e do saber, mas também, no seu caso, ao campo da arte.
Em Goethe, como refere Filomena Molder, “A Morfologia pousa sobre a
convicção de que tudo o que é tem também de se significar a si próprio. (…)
A forma é algo em movimento, algo que advém, algo que está em transição
[ein bewegliches, ein werdendes, ein vergehendes]. A doutrina da forma é
doutrina da transformação [Gestaltlehre ist Verwandlungsl ehre]. A doutrina
da metamorfose é a chave de todos os sinais [Zeichen] da natureza” (Molder,
1995: 248).
A compreensão da noção de mobilidade, movimento e metamorfose das
formas em vez das formas fixas é uma das mais importantes condições para usar Goethe
e a sua doutrina morfológica como referência deste trabalho.
“Não devemos, diante de cada uma das manifestações
da natureza, em particular no caso das manifestações
13
Morfologia (do Gr. Morphé, forma + logos, tratado), s.f. parte da Biologia que trata da forma exterior
dos organismos e suas transformações. Na Biologia ainda que com especializações é também ainda um
ramo da Anatomia, da Fisiologia e da Gramática.
30
significativas, relevantes, ficar parados, atarmo-nos a
elas ou a elas nos colocarmos, não devemos observá-las
isoladamente, mas, inversamente, devemos realizar em
toda a natureza um ato de olhar em volta [umhersehen],
no ponto em que se mostra algo de semelhante, algo que
seja afim, porque só através da reunião do que é afim
[durch Zusammenstellen des Verwandten] nasce a pouco
e pouco uma totalidade, que se exprime a si própria e
não necessita de explicação ulterior”. (Molder, 1995:
284)
Entre as três mais notórias contribuições de Goethe na área da Morfologia
estão: (i) a descoberta do osso intermaxilar no crânio humano; (ii) a planta originária
Urpflanze e (iii) a obra A Teoria das Cores.
A primeira levou a comunidade científica a considerar o parentesco do ser
humano com outros mamíferos, uma vez que o osso intermaxilar tinha sido já
descoberto nos animais, fator que se acredita ter influenciado Charles Darwin a
conceber a teoria Evolucionista. Em As Nuvens e o Vaso Sagrado, a escritora apresentanos o que considera um duplo enigma. Este duplo enigma está já implícito no título da
obra sendo que um dos enigmas se encontra nas nuvens e o outro no vaso sagrado. Para
que se compreenda esta relação com a importância da descoberta do osso intermaxilar
no crânio humano é explicado este duplo enigma estando cada um dos enigmas num
pólo. Deste modo, num dos pólos encontramos as nuvens, no pólo oposto, o vaso
sagrado. Acerca das nuvens, pode ler-se: “Há dois pólos na compreensão das formas em
Goethe. Um deles revela-se nos seres mais fugitivos de todos, os seres que fogem pelo
céu, os seres que atravessam as altas montanhas, os seres que se despenham em água, os
seres que subitamente estavam num lugar e depois fogem e nunca mais os vemos, os
seres que as crianças e também os adultos vêm transformar-se em formas conhecidas e
desejadas, tesouros da imaginação”(Molder, 2014: 165). No outro pólo, o vaso sagrado,
é referida uma história onde é descrita a relação de amizade entre Schiller e Goethe e a
simbologia da caveira de Schiller que entretanto morre, em 1805. É de frisar que esta
história é uma das várias versões acerca da morte de Schiller, escrita por Paulo Quintela
em As Nuvens e o Vaso Sagrado: Após a transferência dos seus restos mortais para um
outro cemitério, surgiu a dificuldade em destrinçá-los dos restos mortais de outras
pessoas. Paulo Quintela acredita que “Goethe levou para sua casa vários crânios e após
31
múltiplas observações e comparações, descobriu o crânio de Schiller” (Molder, 2014:
166). Já uma outra versão conta que no ossário de Weimar o crânio foi identificado por
dois médicos tendo sido levado posteriormente para a Biblioteca14 de Weimar que
servia também de museu, razão pela qual o crânio foi exposto. Nesta Biblioteca, foi
feita uma cerimónia onde foi lido um poema de homenagem escrito por Goethe, cuja
tradução por Paulo Quintela se pode ler em As Nuvens e o Vaso Sagrado. Neste poema
com o título Ao contemplar o crânio de Schiller, foi evidenciada a “diferença tão
absolutamente incomensurável entre estar vivo e estar morto” (Molder, 2014: 168),
onde a escrita é “o vínculo secreto que une a morte à vida” (Molder, 2014: 168).
Apesar das duas versões, a autora afirma que “Goethe teve o crânio do seu
amigo Schiller em casa durante vários meses” (Molder, 2014: 167) e que também
através do crânio do seu amigo Schiller foi sublinhada a existência do osso intermaxilar.
“Um enigma é um desafio que o ser humano faz a si
próprio (e começou por ser um desafio que um deus, Apolo,
fazia aos seres humanos), um obstáculo que lança para os
seus próprios pés, um problema solúvel; por exemplo, as
nossas adivinhas, como em todas as outras línguas, são
formas enigmáticas da inteligências, resolúveis, nos seus
mesmos elementos, pela inteligência. Em contraste com o
mistério, que é uma visão que se comunica, o enigma é um
desafio que se resolve. O duplo enigma das nuvens e do vaso
sagrado foi um enigma que Goethe nos lançou”. (Molder,
2014: 168)
Neste duplo enigma, as nuvens são “dos seres mais passageiros e os ossos dos
mais persistentes (Molder, 2014: 169). Como diz a autora, Vaso Secreto seria assim o
vínculo secreto entre as formas ocultas e as formas visíveis uma vez que Goethe
considerava que na forma da caveira era possível rever todas as outras formas.
14
Nesta Biblioteca, foi feita uma cerimónia onde foi lido um poema de homenagem escrito
por Goethe, cuja tradução por Paulo Quintela se pode ler em As Nuvens e o Vaso Sagrado. Neste poema,
Ao contemplar o crânio de Schiller, citando Filomena Molder, foi evidenciada a “diferença tão
absolutamente incomensurável entre estar vivo e estar morto” (Molder, 2014: 168), onde a escrita é “o
vinculo secreto que une a morte à vida” (Molder, 2014: 168).
32
(ii) O segundo contributo mais notório foi Goethe ter encontrado, entre
setembro de 1786 e abril de 1780, o que chama a planta originária Urpflanze (Fig.11),
no Jardim Botânico de Palermo durante a viagem a Itália. É nesta viagem e durante este
ano e meio de estudos que o termo metamorfose ganha corpo a par de uma experiência
pessoal e de introspeção. Goethe, tinha já em vista o intuito de desenvolver observações
sobre plantas e dar continuidade aos estudos na área da Botânica. Por sua vez, os
estudos que realiza vêm dar origem ao livro A Metamorfose das Plantas onde é
anunciado o termo Urpflanze. “O termo é aqui formulado no seu modo mais visionário,
o poder de reconhecer advém do encontro com a forma. Não se deve tomá-lo, no
entanto, como tentativa ingénua de encontrar na realidade uma planta concreta que fosse
a Urpflanze” (Molder, 1995: 192). Goethe acreditava que quem verdadeiramente
percebesse a planta originária perceberia certamente todo o mundo natural. Deste modo,
“Não se trata por comparação, encontrar um tipo, trata-se de intuir a forma a partir da
qual nós podemos reconhecer na versatilidade das configurações a unidade de um reino
natural” (Molder, 1995: 192) o que é, como expõe Maria Filomena Molder, “Uma
imagem originária que se aplica a todos os vertebrados, e que Goethe pretende alargar
até aos invertebrados, aplicando-lhes analogicamente o modelo; no entanto, a sua
extensão há de restringir-se, mais exatamente aos mamíferos (…) uma imagem geral, na
qual estejam contidas, de acordo com a sua possibilidade, as formas de todos os
animais, e segundo a qual se descreva cada animal numa certa ordem” (Molder, 1995:
193). Compreende-se a diferença entre Typus e Urpflanze. Com Urpflanze, Goethe
permite identificar um reino cuja chave é a metamorfose enquanto Typus é estruturada
por meio da comparação e restringida aos mamíferos. Typus e Urpflanze são ambas
imagens originárias mas Typus é a “relação do indivíduo à ideia” (Molder, 1995: 412)
resultado do processo “que os nossos conceitos nunca conseguirão traduzir
convenientemente” (Molder, 1995: 384). Quando se reconhece um objeto na natureza
pela contemplação e conhecimento. “Se distinguirmos corretamente, os objetos
comparam-se espontaneamente. Se começarmos por achar as coisas iguais ou
semelhantes, caímos facilmente na situação de ficar com uma visão das nossas hipóteses
ou das nossas representações” (Molder, 1995: 224). Se, como exemplifica Scheler, o
termo Typus for substituído pelo termo símbolo, Typus “é um ser singular e de modo
algum uma generalidade” (Molder, 1995: 191). Ou seja, símbolo procede “a um duplo
processo de metamorfose, num primeiro momento, da manifestação em ideia, num
segundo, da ideia em imagem” (Molder, 1995: 191).
A suposta definição e
33
reconhecimento de uma forma natural depende do conceito empírico (sensível) que está
orientado “pelo reconhecimento de uma forma e por uma constelação de evocações
associadas à visão de forma” (Molder, 1995: 405).
A Urpflanze "corresponde mais rigorosamente à imagem matriz, à ideia de
planta, que a folha como folha proteica especifica através da chave da metamorfose”
(Molder, 1995: 214).
Fig. 11- Pierre Jean François Turpin, Representação da Urpflanze, 1837
(iii) Por fim, o terceiro contributo e de igual importância, como já referi,
consiste em A Teoria das Cores de 1810, obra na qual Goethe trabalhou durante
décadas e com a qual acaba por refutar a Teoria das Cores de Isaac Newton, sobretudo
porque considera que a cor branca não pode ser resultado da união das restantes cores
34
como o defendeu Newton. Trata-se de um estudo onde se compreende, para além da
teoria em si, que com a ajuda de um prisma a luz do sol poderia ser decomposta em
diferentes cores, ainda que, contrariamente do que defendeu Newton, a união das cores
não resultasse na cor branca; compreende-se também a relação do autor tanto com a arte
e a natureza como com a arte e a ciência e entende-se a ciência como metamorfose do
saber. Ainda acerca de A Teoria das Cores, Goethe acredita que a visão é tida como um
problema, ou seja, sucintamente, Goethe considera que a cor não é conseguida apenas
pela luz, mas também pelos olhos e apenas segundo a reunião destes dois fatores é
possível reconhecer e distinguir as cores.
Molder considera que “É no cruzamento dos caminhos da arte, do saber e da
ciência que a morfologia tem precisamente origem (cf. «Die Absicht eingeleitet», idem).
Ela parte de uma captação da forma, não apenas como figura desenhada no espaço, mas
como dinâmica que se revela numa história, na passagem de uma manifestação a outra,
história que não se constitui como uma sequência indiferenciada, mas que tende a
alcançar um clímax de perfeição” (Molder, 1995: 248).
É sobretudo Goethe que começa por usar a palavra “morfologia para designar
uma ciência da descrição e da comparação das formas” (Molder, 2014: 158).
“A morfologia repousa sobre a convicção de que
tudo o que é tem também de se significar a si
próprio. Admitimos este princípio desde os
primeiros elementos físicos e químicos até à
manifestação espiritual do homem. Voltamo-nos
imediatamente para o que tem forma, o inorgânico,
o vegetativo, o animal, o humano. Tudo se significa
a si próprio e aparece como o que é ao nosso
sentido externo e ao nosso sentido interno . A forma
é uma coisa em movimento, uma coisa que advé m,
uma coisa em transição. A doutrina da metamorfose
é a chave de todos os sinais da Natureza”(Goethe
apud Molder, 2014: 158)
Deste modo, as formas em Goethe são compreendidas como
transformação e o momento de uma forma à outra compreendido como
passagem, outro termo significativo e inúmeras vezes referid o por Filomena
Molder. Hoje, ainda no que diz respeito à forma, é na medida em que a sua
aparência nos permite reconhecê-la, distingui-la e nomeá-la, que somos
35
conduzidos ao que é próprio do conhecimento, o que quer dizer que passa a
haver não só a categorização dos seres, como já foi referido, como se
valoriza,
por
consequência,
a
compreensão
de
uma
nova
doutrina
Morfológica, a doutrina morfológica da forma e da transformação.
Por conseguinte, na doutrina morfológica de Goethe é de destacar
os termos Bildung, Verwandlung ou Gestalt, sob os quais assenta o seu paradigma
morfológico. Bildung, por exemplo, pressupõe uma noção de forma como formação,
Verwandlung refere-se a transformação e Gestalt como figuração estática.
Gestalt, por exemplo, “é um termo que fixa a forma na sua configuração
(numa configuração exterior), enquanto aparência estática, determinada num
certo momento, quase uma abstração, por que, se observarmos atentamente
os seres, em particular orgânicos, não encontramos nunca uma forma
subsistente [ein Bestehendes], uma forma posta em quietude [ ein Ruhiges],
uma forma que esteja acabada [ein Abgeschlossenes]; inversamente, a forma
como ritmo formativo, está investida de um sentido dinâmico que sup õe uma
energia própria, uma ânsia de realizaç ão, é a forma que qualifica o espaço
numa sequência de tempo alteradora” (Molder, 1995: 249). O termo Bildung surge
para caracterizar a forma na sua plasticidade e mobilidade posto que estas características
não são compreendidas no termo referido anteriormente, Gestalt. Isto é, segundo a
autora, “Verificamos que, para se alcançar o modo como Goethe compreendia a
natureza, o conceito de metamorfose é o conceito-chave, só ele permite transitar da
forma (Bildung), enquanto matriz, pólo da significação na orla da ideia, para a forma
(Gestalt), enquanto vestígio, configuração concreta” (Molder, 1995: 436).
Quer isto dizer que tanto quanto à forma Bildung como quanto à forma Gestalt,
a metamorfose tem um papel fulcral para a compreensão da mesma, como já tinha sido
mencionado, e o termo “forma”, como aqui é entendido, passa essencialmente pelo
encontro destes dois estados.
“O pensamento morfológico de Goethe pode ser tomado
como a exemplificação viva da reunião dos três tipos de
atividade, assinalados por Jünger neste texto em forma de
parábola: perceção, observação, contemplação. O pescador
observa a linha, enquanto o peixe a descobre. A perceção é
sempre uma forma de descoberta, para a qual
simultaneamente nunca se está preparado e se estava
preparado desde sempre: é-se apanhado pela linha e, no
limite, nenhuma precaução nos defenderá, a não ser que
36
abdiquemos de perceber o mundo” (Molder, 1995: 356) ou
seja: “o desenvolvimento da estrutura patética da perceção
envolve um movimento de correspondência entre ser
apanhado e apanhar”. (Molder, 1995: 356)
Como foi dito, podemos ver agora a metamorfose da forma como um
movimento da perceção que envolve simultaneamente um vínculo entre ser apanhado e
apanhar, uma descoberta para a qual se está preparado, mas que inspira também
estranheza e admiração, talvez o motivo que leva Goethe a afirmar que “Qualquer
pessoa vê a matéria à sua frente, o conteúdo só o descobre aquele que tem alguma coisa
a fazer com ele, e a forma é um mistério para a maioria” (Goethe apud Molder, 1995:
434).
2.2 As nuvens em Goethe: as formas do informe
Com se compreendeu no capítulo anterior, a Nefologia foi também
uma área de interesse de Goethe, e as formas das nuvens, o que as fez
distintas de todas as outras formas estudadas por Goethe (Fig. 12). Em
primeiro lugar, porque agora com a possibilidade de serem categorizadas
graças à nomenclatura de Luke Howard, estão agrupadas também elas no seu
próprio reino. Em segundo lugar, porque têm características únicas que não
encontramos em nenhum outro organismo, como por exemplo, como refere o
próprio Goethe o facto de serem não apenas um organismo, mas um
organismo vivo.
Em O Jogo das Nuvens, João Barrento afirma que “As nuvens são
então para Goethe seres, se não vivos, certamente animados, «reagindo» às
solicitações, quer uns dos outros, quer da Terra e da sua força de atração. E
isto é assim porque as nuvens
não são fixas, nem voláteis (não
«desaparecem »), mas, como tudo na natureza, formas em permanen te
transformação, elementos de uma coreografia cósmica em que o olho e a
alma são espectadores interessados e participantes” (Barrento, 2012: 11).
37
Fig. 12 - Johann Wolfgang von Goethe, Cloud Study
Outras duas características, estas já não exclusivas das nuvens mas
de todos os seres e que graças à sua natureza, servem para evidenciar as
suas convicções teóricas tanto filosóficas como científicas são: a da
observação da natureza como infinita, sendo ela um organismo em
permanente mutação que não se esgota na observação e, uma outra que surge
por consequência da primeira, a da relação entre o particular e o universal,
ambas expostas na sua doutrina morfológica e de grande consideração para a
compreensão da mesma.
Howard permitiu que a humanidade pudesse fin almente compreender
os céus e, como já foi dito, teve um papel fundamental no desenvolvimento
e entusiasmo de Goethe por esta área, influenciando também outros artistas
e cientistas. Por exemplo, graças ao entendimento da tipologia das nuvens,
passa a ser possível não só distingui-las mas representá-las segundo
critérios científicos e de forma fidedigna, de modo qu e são notórias estas
mudanças tanto na pintura, nas representações anatómicas, de perspetiva,
38
fisiologia ou ótica como se podem ver, por exemplo, em ilustrações
científicas também nesta área. No entanto, estas representações ou
ilustrações científicas de que falo não foram consideradas no campo
artístico uma vez que tinham propósitos específicos na altura.
A par dos estudos tanto por meio da escrita como do desenho, quer
Goethe, quer Luke Howard fizeram notórios registos de espécies de nuvens .
A par destes registos Goethe escreve também um grupo de poemas sobre
nuvens entre os quais se podem encontra r alguns dedicados a Howard.
Em honra e memória de Howard
Quando Camapura 15 , a deusa em seu
altar
Atravessa, leve e grave, o ar
Do véu as pregas juntando, desfazendo,
Com a mudança das formas se
alegrando,
Parando, rígida, qual fumo se
esfumando,
Não crê um homem no que os olhos estão
vendo.
Já a força se agita que é capaz
De ao que é informe forma dar, e faz
Nascer no ar um leão, um elefante,
Do camelo sai dragão flamejante,
Chega um exército, mas não logo a
vitória,
Na alta escarpa tem fim sua glória;
Já o fiel arauto da nuvem se dissipa,
Seu fito é o horizonte, mas aqui abdica.
Mas ele, Howard, homem clarividente,
Com sua doutrina ensinou toda a gente.
O que o céu não retém e o sentido não
vê,
Ele primeiro o fixa, e enfim o lê;
Dá forma ao informe, seu domínio
estreita,
Com o nome certo – honra lhe seja feita!
–
15
Divindade indiana cujo atributo principal é o de mudar as formas das coisas visíveis.
39
A nuvem sobe, adensa, esgarça, desce,
E o mundo pensa em ti e agradece.
(Goethe, 2012: 80)
Segundo João Barrento no prefácio de o Jogo das Nuvens, onde
podemos encontrar alguns destes poemas de Goethe, a teoria de Howard
baseia-se na ideia de que “as nuvens e as suas formas, sendo instáveis, são
classificáveis; e a observação das nuvens, das suas mudanças e transições, é
uma boa base para a previsão meteorológica, e ultrapassa apesar do seu
pragmatismo, o mero âmbito taxonómico, na medida e m que Howard
acreditava – e Goethe ainda mais que ele – que o céu faz parte da paisagem
humana” (Barrento, 2012:16).
A meu ver, de certa forma, Goethe procurava nas nuvens, parte integrante da
natureza, contrariedades e adversidades que não encontrava noutros organismos. “Ele
acreditava descobrir na natureza, tanto animada como inanimada, alguma coisa que só
se manifestava, sob a forma de contradições, e que não se podia encaixar em nenhum
conceito, e ainda menos numa palavra […] Parecia comprazer-se só com o impossível, e
afastar de si com desprezo o que era possível. A essa essência, que entre todas as outras
parecia interpor-se, separá-las, uni-las, chamava-lhe o eu demoníaco, segundo o
exemplo dos antigos […] lutava por escapar desse ser terrível, procurando auxílio, de
acordo com o seu costume, atrás de uma imagem” (Molder, 2014: 35).
Mais uma vez, faço referência ao que Filomena Molder chama a metamorfose
do saber e que como se compreende na citação seguinte
só tem um sentido: “a
suspensão é uma expressão poética rítmica da renúncia demoníaca, geradora de
mudanças, da ressurreição da morte, a reserva fértil que redime o excesso de
proximidade com as forças elementares: mudar de pele, deixar cair a cauda, transmutar
a forma, como a crisálida ser borboleta, ser bicho-da-seda ainda melhor, metamorfose
que não é propriamente catarse, purificação, mas esquecimento irisado da vida anterior”
(Molder, 2014: 36).
Ou melhor, no conceito de forma como metamorfose goethianos, o
autor apresenta a ideia de forma como cada forma em si, focando forma
como formação, isto é, a sua transformação, a compreensão da forma na
passagem de uma forma para a outra e no nascimento, crescimento e morte
das formas. A formação, transformação e a metamorfose são tidas como
40
passagens e esta doutrina, a Doutrina da Metamorfose de Goethe, está
obrigatoriamente relacionada com a natureza , uma vez que é através dela
que se manifesta.
2.3 A arte e a natureza para a criação do conceito forma
“Ao observador atento, a natureza não
aparece em nenhum momento silenciosa ou muda; a
expressividade do que há é tal que faz nascer no
sujeito novos sentidos, fá-lo vibrar e essa vibração
é meio de autodescobrimento, como vimos. A
intencionalidade
da
natureza,
da
miríade,
desencadeada,
por
um
processo
mimético
explicitado a partir de uma faculdade de julgar
intuitiva, a intencionalidade humana a tomar
forma; os sentidos são compreendidos como
intermediários insubstituíveis dessa manifestação e
da sua receção intencional. A Natureza fala através
de tudo o que há, o todo exprime-se em cada uma
das suas partes e a razão humana é parte da
natureza.” (Molder, 1995: 267)
O presente subcapítulo tem como propósito explicar qual a relação
apresentada entre a arte e a natureza e de que forma isso é significativo para
Pharmakon,
assim
como
a
relevância
da
doutrina
morfológica,
independentemente das classes dos organismos a que Goethe se refere
quando a expõe. Ainda que Goethe tenha defendido uma unidade entre a
poesia e a ciência, tal como entre arte e natureza, é relevada também a sua
posição quando a doutrina morfológica é aplicada à arte e explícita a razão
pela qual esta doutrina não poderá ter a mesma relação com a arte que tem
com a natureza.
Por exemplo, como expõe Maria Filomena Molder, “uma obra de arte
não cresce e não cresce à maneira de um ser vivo, a sua transformação interna que é, na
verdade, princípio de subsistência, renova constantemente o seu motivo, a sua unidade,
sem que se atinja um limite definitivo, iniciando um ciclo e encerrando outro, como no
41
crescimento da planta” (Molder, 1995: 430). Na arte ou numa obra de arte, segundo
Goethe, não há vida no sentido estrito da palavra, ou seja, uma obra de arte nasce pela
mão do Homem, não como fruto da natureza. Esta pode entender-se como a primeira e
mais a óbvia diferença entre elas. No entanto, como introdução a esta problemática, é
focado o nascimento de um organismo vivo como magia ou como um milagre próprio
da vida enquanto que por outro lado, como foi referido, a arte ainda que seja qualquer
coisa que à semelhança a um organismo da natureza, também nasce, não partilha do
mesmo processo de criação. Enquanto a “arte não é, propriamente falando, criação,
porque não se produz a partir do nada”, (Molder, 1995: 430) a vida nasce a partir do
caos. Por outras palavras, “Se a arte não quer rivalizar com a natureza, é a arte que
restitui a natureza à natureza, o que para Goethe quer dizer rigorosamente que a obra de
arte não é para colocar ao lado ou no lugar da natureza, porque a natureza forma um ser
vivo e a arte um ser morto” (Molder, 1995: 432). É de referir que parte destas
considerações eram reações de Goethe próprias da época e contra o Naturalismo, de
modo que quando falamos de obra de arte e lhe queremos atribuir as mesmas condições
de quando se fala de metamorfose da forma, essa relação não pode ser atribuída pela
diferença que existe entre uma e outra; uma obra de arte não é uma forma natural, um
organismo vivo, e por esse motivo, não é nesse sentido que a doutrina morfológica é
aqui relacionada com Pharmakon. Esta relação é assim aqui exposta para que seja claro
que ainda que o autor reunisse, como foi referido, o poeta e o amante e observador da
natureza, e ainda que tenha sido estudioso de várias áreas e tenha feito contribuições
notórias em todas elas, teve sempre presente a consciência do que delimita e está
contido em cada uma delas. Ainda assim, compreende-se que não se quer aqui uma ou
outra num patamar mais favorável mas antes deixar clara esta comparação. Como se
pode ler, aqui é apresentado outro ponto de vista em que “Cada obra de arte é mais do
que uma forma natural, é a própria natureza em esforço, a um tempo fixada, redimida e
transfigurada num dos seus momentos” (Molder, 1995: 431). Ou seja, contrariamente à
ideia anterior, a obra de arte é diferente da natureza não “por ser criada a partir do
nada”, (Molder, 1995: 430) mas como resultado de um esforço extra ao esforço habitual
na criação da natureza tratando-se de um esforço de outra ordem tão difícil de explicar
como o esforço da criação na natureza.
Pegando no que foi exposto no capítulo anterior e considerando a
importância da natureza e a relação da natureza com a arte, pela relação
42
direta que existe entre um assunto e o outro, volto a referir a passagem,
como noção fundamental para a compreensão da forma.
O momento da passagem é entendido como o momento que
“configura ao mesmo tempo uma forma quer seja na natureza, quer naquele
que anseia conhecer a natureza” (Molder, 1995: 189). Deste modo, a forma é
o que é criado, independentemente de ser na natureza, pela natureza sem que
haja um desejo de teor conceptual, e simultaneamente por quem anseia
conhecer a natureza, ou seja, por esse esforço conceptual, de quem quer ver.
Em ambos os casos pode-se identificar um esforço, ainda que de diferentes
ordens, onde se origina nesse processo o momento da passagem e
consecutivamente a forma.
“A arte é uma história de escorços, um inventário de
qualidades, de privilégios do tempo e do espaço, uma
história de vestígios. Delimitar, delimitar o instante e o seu
devir suspenso, mas também desenvolver, ocultar são alguns
dos seus gestos comuns, apagar e mostrar são gestos
inseparáveis: Não há modo mais seguro de nos retirarmos
do mundo do que através da arte e não há modo mais
seguro de nos enlearmos com o mundo do que através da
arte”. (Goethe apud Molder, 1995: 435)
Oblaka de Andrea Slovaková, ou Clouds como é traduzido, é uma curta
metragem documental onde, à semelhança de Pharmakon, os elementos filmados são
nuvens que remetam para meteorologia, criação, e para, como se pode ver no descritivo
do filme que se pode ver no site16, “sobre como o invisível (ex. água na atmosfera) se
pode tornar visível e de que forma a criação de ideias é semelhante à das nuvens”.
Mesmo que o que se possa ouvir no filme em voz-off seja um conjunto de várias ideias
sem uma coerência completamente lógica, este discurso vai lançando várias ideias ao
longo do filme com frases como, imediatamente depois da legenda que aparece na
imagem (Fig.13) “Grandes ideias destroem pequenas ideias que ainda não nasceram”
ou, na abertura do filme “Uma nuvem é uma forma de tornar visível o que não é visível
de outra forma”. Esta ideia é também sugerida nos textos sobre Goethe e apresentada
como descrição do filme onde é acrescentada a ideia de que o que é invisível pode
16
https://dafilms.com/film/7144-clouds
43
tornar-se visível da mesma maneira que a formação de ideias é semelhante à formação
de nuvens. Ainda assim, é relevante referir que a frase que se pode ler na imagem é dita
na sequência de uma conversa onde se está a falar da imaginação e do limite imposto
pelo professor ao aluno neste processo.
Dando seguimento ao que estava a ser dito anteriormente, a combinação da
imagem e da frase são escolhidas para salientar a ideia de que durante o processo de
criação, como refere Goethe, há a necessidade tanto de distanciamento como de
envolvimento com o mundo independentemente do facto de ambas as necessidades
fazerem parte do mesmo processo. Deste modo, posso afirmar que ambos, Oblaka e
Pharmakon, existem não apenas como possibilidades de nos retirarmos e de nos
envolvermos com o mundo, mas como possibilidades de perceber a pertinência dessa
questão e por isso, também como possibilidades de experienciá-la.
Fig. 13 - Andrea Slováková, Clouds, 2017
Filomena Molder fala-nos de um envolvimento íntimo entre aquele
que vê e o que é visto. A observação das nuvens, como objetos que não se
extinguem é um exercício que presencia a natureza em excesso quando em relação
como o nosso entendimento. Segundo a autora, este excesso, só existe pelo esforço
conceptual da mesma forma que só pode ser reduzido pelo esforço conceptual, isto
porque, há necessidade de fazê-lo para que possa ser apreendido. “Para conhecer a
totalidade da natureza era necessário que o homem fosse ela própria” (Molder, 1995:
44
268), isto porque, a “natureza fala através de tudo o que há, o todo exprime-se em cada
uma das suas partes e a razão humana é parte da natureza” (Molder, 1995: 267). Assim,
apresenta-se a afinidade íntima entre aquele que vê e aquilo que é visto como primeira
etapa e o que excede o nosso entendimento como o que torna possível a possibilidade de
um problema e da sua resolução. A forma, é então qualquer coisa que aparece diante de
nós e que nos prende para que seja criado um problema. A forma é em simultâneo o
problema e a sua resolução.
3 REINVENTAR AS FORMAS
“Sabemos como é convicção de Goethe que tudo o que é decisivo já foi
pensado, nem há nada de verdadeiramente original, uma originalidade é um valor
em si (…) a cada momento, só temos de tentar pensar uma vez mais nisso que já
foi pensado. Tal significa que o alargamento do campo do saber, a transformação
da ciência no seu sentido real, enquanto acum ulação progressiva e multiplicação
voluntária, dá-se sempre no interior de um mesmo círculo de formas de pensar e
de modos possíveis de representação, que assim adquirem o estatuto de
necessários, enquanto formas espontâneas, condições do próprio pensar, a ele
ínsitas”. (Molder, 1995: 163)
Este terceiro e último capítulo tem como finalidade expor e clarificar decisões
tomadas na concretização do filme Pharmakon e desenvolver alguns aspetos que
determinam essas escolhas. Numa primeira parte, menciona-se e evidencia-se os aspetos
conceptuais que estiveram na base da sua realização, numa segunda parte, descreve-se,
numa perspetiva empírica assente e fundamentada nas referências citadas até aqui, o
processo que culminou no filme. A terceira parte do capítulo sintetiza as ideias
apresentadas ao longo deste estudo.
3.1 Formas tornadas inteligíveis
Após o registo e observação sistemática de nuvens, senti a
necessidade de aprofundar o meu conhecimento sobre o tema, tanto quanto a
respeito da sua própria história, como da pertinência do tema na arte, ou
visto segundo uma ótica científica, da qual me fui aproximando como fruto
de um interesse que progressivamente foi crescendo, ainda que de um ponto
45
de vista amador. Este interesse e a informação que fui recolhendo alteraram
por completo a minha relação com as nuvens assim como a minha relação
com o próprio trabalho que estava no princípio do seu desenvolvimento.
Segundo a Cloud Appretiation Society, sociedade de cloudspotters
para a qual já contribuí com fotografias q ue registei, o desporto de viajar de
balão, conhecido por balonismo (Fig.13), foi uma das primeiras e mais
significativas razões pela qual a nossa relação com as nuvens mudou. Isto
porque, pela primeira vez, os seres humanos, entre os quais os próprios
observadores de nuvens, puderam voar à troposfera e não apenas aproximarse das nuvens. Conseguiram voar ao ritmo das nuvens, à sua altura ou até
acima das delas, o que significa poder observá-las de todos os ângulos. Se
por um lado, as nuvens deixaram de ser tão misteriosas, por outro, os
avanços científicos resultantes desta observação foram notáveis, como são
exemplo o estudo de cargas elétricas ou o mapeamento de correntes de ar na
troposfera.
Fig. 14 Autor desconhecido, Balão de Hidrogénio, 1783
Segundo a World Metereologic Organization, até ao momento, há
cerca de cento e cinquenta tip os de nuvens já categorizados cientificamente
46
e é sabido que muitos outros não têm ainda uma designação. Razão pela
qual a Nefologia continua a ser um campo que tanto entusiasmo suscita.
No livro The Cloudspotter Guide, Garvin Pretor Pinney faz
referência a Leonardo da Vinci que considerava que as nuvens eram “corpos
sem forma” (Pinney, 2007: 21) e descreve-as como tendo um aspeto
fantasmagórico,
efémero
e
nebuloso.
O
autor
considera
ainda
que
conseguimos “ver as sua formas no entanto é difícil ver onde as suas formas
começam e acabam” (Pinney, 2007: 21). Para a maioria de nós, pouco mais
se pode saber sobre as nuvens para além de que são elementos que provocam
ideias que remetam para a transcendência, a espiritualidade, cosmologia,
mobilidade e mudança e que têm características específicas que fazem delas
elementos que criam espaços para pensar e sentir. Têm a capacidade de
transformar estados de espírito e criar espaço para a ambiguidade, para o
desafio ou a indeterminação. Está sempre presente também o facto de qu e o
que vemos das nuvens é o que se torna visível como resultado de processos
atmosféricos invisíveis que o nosso olhar não presencia. Quando olhamos
para cima, perdemos o contacto com o nosso corpo e somos convidados a
experienciar o vazio. Somos fascinad os com o constante sessar de partículas
de água ou de gelo que flutuam, que se fundem-se, elevam, descem,
ascendem, caiem, desenvolvem, dispersam ou espa lham.
São, por isso, elementos que trazem consigo um código genético
para o qual é difícil haver uma linguagem. Apesar dos avanços científicos e
de toda a informação que está hoje ao nosso dispor, faz parte das nuv ens
este lugar sem nome. Motivo pelo qual continuam a fascinar e a surpreender
observadores do céu, onde estão compreendidos não só estudantes de
Nefologia, artistas, poetas ou escritores, mas qualqu er pessoa pertencente a
um sistema global.
Assim, acredito nas nuvens como componentes
promissoras de um desencadear de mudança, geradoras de novas formas e da
consciência de que “as nossas construções são só um rodapé do infinito,
coisa de nada face à imensidão que nos rodeia e à qual podemos elevar-nos
desprendendo-nos do terrível hábito de não cuidar senão de ter os pés bem
assentes na terra” (Lopes, 2000: 10).
47
Espera-se que Pharmakon faculte ao espectador esta possibilidade, a de poder
transitar de uns universos para os outros, tendo como ponto de partida o conjunto de
campos aqui propostos, ou até, apenas, se quisermos, as próprias imagens onde foi
propositado deixar em evidência a diferença entre as nuvens registadas.
Pharmakon totaliza trinta e três minutos e cinquenta segundos, onde são
apresentados dezassete planos fixos de nuvens com durações que variam sensivelmente
entre três e um minuto. Os planos, diferentes pelas variações entre as nuvens, como as
tipologias que apresentam, a sua densidade, tonalidade e velocidade, ou a proximidade a
que estão a ser filmadas, são executados segundo os mesmos critérios. Ou seja, foi
importante na conceção do vídeo, que todos os planos fossem planos fixos de longa
duração e que as imagens gravadas fossem apenas de nuvens, filmadas em momentos
que eu própria experienciei. É relevante na obra, a relação que existe entre os planos,
relação esta que vive do que varia de uns planos para os outros. Isto é, a obra sendo o
conjunto dos planos e da composição sonora que os acompanha, é o que difere nas
nuvens, as suas transformações, e o que difere de umas nuvens para as outras, elementos
também eles que podem ser vistos como múltiplos, ou como fazendo parte apenas de
um único, com a característica excecional de que mudam de forma para voltar a ter uma
nova forma. Já o som, ao contrário dos planos, que não deixam de ter sentido
separadamente, compreende os planos e a forma como estão organizados, cingindo a
possibilidade de outra ordem de cada vez que um grupo de planos é organizado
novamente.
Uma tipologia de nuvens facilmente reconhecível e que surge na sequência
apresentada em Pharmakon, tem o nome de Mammatus Clouds ou Mamma Clouds.
Como se pode ver na figura 15, este é um dos casos em que, apesar das inesgotáveis
diferenças que há entre elas, as Mammatus surgem ocasionalmente para ficarem
circunscritas na sua tipologia. Na figura, destacam-se de uma camada superior com a
aparência de bolsas ou seios, como o próprio nome mamma indica em latim. As
Mammatus Clouds, podem aparecer na parte inferior de uma grande variedade de
tipologias ainda que seja mais comum que apareçam na parte inferior das
Cumulonimbus, uma outra tipologia típica do clima tropical tempestuoso e de dias de
temperaturas elevadas. Cada um destes lobos de enormes dimensões emerge e escondese lentamente e consecutivamente, cada um deles por cerca de dez minutos. A forma
atípica desta tipologia dada como exemplo, torna inédita tanto a nuvem como a própria
imagem. Isto é, o registo da nuvem, falando do registo de uma só tipologia, faculta a
48
alternativa de voltar a ver o momento registado, e, portanto, o voltar a ser visto e
partilhado.
Fig. 15 Pharmakon, 2016, 09:00m
Um exemplo das Virga clouds, também conhecidas por Jellyfish pela
sua forma, pode ver-se na figura 16. A forma desta tipologia deve-se a uma
reação única que pode surgir das altocumulus, cumulus ou cirrostratus.
Devido às condições a que se encontram, quanto à temperatura e nível de
humidade, acontece a precipitação que também nas Virga pode ser de água
ou gelo. A água ou gelo que cai da nuvem acaba por desaparecer evaporando
novamente. Acontece ainda a singularidade de a temperatura estar boa a
uma grande altitude mas onde há zonas frias e húmidas o suficiente para
causar precipitação. Estas diferenças de temperatura levam a que as caudas
formadas não sejam demasiado longas fazendo com que seja possível uma
evaporação completa impedindo que cheguem ao chão. É depois o vento a
mudar de direção nos dez quilómetros de altitude mais próximos da
superfície terrestre que lhes dá a aparência de caudas ou tentáculos. Estas
nuvens desenvolvem-se durante dias amenos, mas com condições adversas
em algumas zonas como frio, humidade e vento. É a pequena escala destas
condições, frio, humidade e vento, que definem a sua aparência. Este é o
motivo pelo qual aos nossos olhos a sua dimensão aparenta ser reduzida
comparativamente a outras nuvens.
49
Fig. 16 Pharmakon, 2016, 13:32m
As formações que conseguimos ver na figura 17, difíceis de
categorizar pela falta de informação quanto à sua altura, podem ser tanto
Altostratus, Cirrocumulus ou Altocumulus ou formações entre umas
tipologias e outras. Esta imagem interessou-me por ter uma abertura ou
passagem para onde é inevitável olhar. Se pararmos a observá-la reparamos
que, depois de algum tempo, há uma outra camada de nuvens de outra
tipologia a mover-se lentamente por de trás. Relaciono a incerteza de uma
tipologia durante o seu registo e a presença de uma outra camada de sentido.
Estas imagens vão-se construindo e desconstruindo à medida que vai
aparecendo mais um e outro plano.
Fig. 17 Pharmakon, 2016, 07m06
Ainda que a temática do artigo de Rosalind Krauss que escolho seja
fotografia, é neste artigo que encontro a referência a Alfred Stieglitz autor
50
da série fotográfica Equivatents 17 cujo exemplo se pode ver na fi gura 18. As
fotografias desta série assumem um carácter abstrato e segundo Stieglitz,
qualidades
não-representacionais
semelhantes
às
da
música.
Estas
fotografias de nuvens foram, portanto das primeiras fotografias abstratas d a
história
da
fotografia
particularidade.
Outra
e
o
primeiro
semelhança
que
registo
de
tem
com
nuvens
com
Pharmakon
esta
é
a
característica de as imagens terem sido conseguidas pela procura de
composições específicas enquadrando e, neste caso por se tratar de
fotografia, fotografando
pequenas frações da
totalidade do céu em
movimento.
A imprevisibilidade do que se vai captar acontece em função do
movimento das nuvens dependendo das condições atmosféricas e das suas
tipologias. Enquanto uma nuvem pode mudar completamente ou até mesmo
desaparecer em poucos minutos outras podem ficar no mesmo local largas
horas alterando pouco ou nada a sua aparência. Portanto, durante este
processo de captura, é necessário estar atento às alterações do que se
consegue observar em massas de água gigantes e seguir atentam ente, ou
mesmo prever movimentos ou outras transformaçõe s que vão sofrendo.
Fig. 18 - Alfred Stieglitz, Equivalents, 1929
Na figura 19 vê-se o topo de uma Cumulus que passa à tangente em frente ao
sol. Ainda que as Cumulus sejam as nuvens mais comuns por todo o planeta, nesta
imagem acontece uma casualidade, o instante em que por breves momentos a nuvem
17
Série fotográfica realizada entre 1925 e 1931.
51
tende a cobrir o sol. Durante o período que dura este aproximar e afastar, parece que a
plenitude acontece com a exatidão casual com que estes elementos se cruzam.
Coincidentemente, são os elementos responsáveis pela temperatura que possibilita a
existência, sendo que as nuvens têm água que condensa e precipita, o papel principal no
equilíbrio essencial para a existência de vida em todos os organismos vivos. Serão então
as nuvens, “elementos de uma coreografia cósmica em que o olho e a alma são
espectadores interessados e participantes” (Barrento, 2003: 11) e que Goethe
considerava organismos vivos, e que mesmo sem terem lugar quanto à sua designação
tipológica, dão a todos os outros organismos a possibilidade de existir, e portanto, a
possibilidade de um nome.
Fig. 19 Pharmakon, 2016, 03:24m
Uma vez que a Morfologia foi uma noção com grande importância em todo o
processo de conceptualização do filme, é importante referir que este termo engloba
também parte a da gramática que se ocupa da forma e da transformação das palavras.
Esta relação existe tanto nos escritos de Goethe como nos estudos e abordagens que
Maria Filomena Molder faz. Morphology – Questions on Method and Language (2013),
um outro exemplo que reúne um grupo de ensaios sobre o tema Morfologia e que, como
se pode ler, associa a Morfologia aos estudos de Goethe sobre a teoria da cor, a artistas
como August Sander, já referido, a Gerhard Richter, ou à forma como corpo, como
território, entre outros. Por exemplo, no ensaio Form in Humboldt de Ana Agud pode
ler-se que:
“Ao contrário do conceito dominante moderno, para
Humboldt a forma não é um esqueleto abstrato sublinhando
52
as configurações concretas e constituinte da sua essência
lógica, matemática ou arquitetónica. A forma é o que se dá
a ver do espírito da vida implantando e obtendo a realidade
exterior compreensível. Não é abstrato: é real. A forma não
é simplesmente a forma de um assunto: está em tensão com
o assunto porque o espírito humano é apenas uma força
instintiva de criar formas com a finalidade de tornar o
mundo inteligível.” (Agud, 2013: 207)
3.2 Obra: imagem e som
Como já foi mencionado, o processo de realização do filme passou por várias
fases. Estas fases podem ser facilmente identificáveis e distintas: a da recolha de
imagens e sons, a da seleção da recolha feita e arquivada, a da escolha de momentos
destes registos tanto visuais como sonoros e a montagem dos mesmos.
Na recolha dos elementos naturais - nuvens se nos reportarmos aos registos
imagéticos, vento, insetos, pássaros e trovões, se nos reportarmos aos registos sonoros -,
cada registo foi feito e pensado individualmente com o objetivo de serem registos
realizados da forma mais perfeita possível destes elementos. Deste modo, o filme pode
ser visto plano a plano e cada plano é o registo de um momento e de uma nuvem
diferente sem que nunca nenhum plano tenha sido repetido. O mesmo se pode dizer
quanto ao som, uma vez que nenhum registo sonoro foi repetido durante a montagem.
Tanto as imagens registadas como os registos sonoros foram realizados a diferentes
horas do dia e em diferentes locais, de acordo com a qualidade e características do
registo em questão. No caso das nuvens interessava-me diversidade, tanto quanto às
suas tipologias como ao espaço que cada uma ocupa no plano. Interessou-me, para além
das tipologias ou da impossibilidade de categorizar as nuvens filmadas, as diferentes
composições de plano assim como as possíveis composições cromáticas. Dado o tipo de
montagem, não se reconhece um princípio nem um fim, pois trata-se de um filme que
não assenta em princípios narrativos. Os planos estão organizados com ritmos e
durações regulares e a montagem dos mesmos pensada para ser apresentada em loop.
O ritmo calmo, silencioso e contínuo que se pode vivenciar é por vezes
interrompido por pássaros que, apesar de em termos de imagem se encontrarem a maior
parte das vezes fora-de-campo, entram dentro dos planos sonoros ouvindo-se a uma
mais próxima ou longínqua distância. Estes súbitos momentos fazem com que o
espectador possa ser surpreendido pelo imprevisto quebrando e transformando cada um
53
destes momentos que, em termos de imagem, parecem prosseguir um curso linear. Uma
experiência semelhante acontece com os inesperados sons de alguns insetos ou dos
trovões uma vez que a composição sonora, independentemente do volume, foi elaborada
para simular uma “atmosfera silenciosa”. Ainda que na maioria dos filmes o silêncio
seja usado como ferramenta para acentuar a carga dramática ou como experiência
específica como o suspense, ou para contrastar com cenas de violência e, portanto,
acentuar tipos de experiências particulares. No caso de Pharmakon, serve exatamente o
efeito oposto. Ou seja, pretende-se aqui que os ruídos que foram captados e
propositadamente trabalhados para esse efeito, permitam ampliar o leque de
experiências do espectador, de forma que seja possível que vários espectadores tenham
experiências diferentes. Ainda assim, o silêncio serve também para fazer renascer novas
características na imagem de cada um destes momentos. O pitch18 destes registos foi
também estudado e reeditado para este fim específico. Em ambos os tipos de registo não
há qualquer registo de seres humanos ou de elementos que provenham do ser humano,
assim como não é revelado o local onde é feito cada registo videográfico ou sonoro,
nem é feita qualquer referência cronológica. Estes aspetos têm por objetivo permitir que
fique em aberto a possibilidade de este filme poder referir-se a qualquer época histórica,
sendo que está latente a possibilidade da existência de vida ou até com a origem de vida.
Esta é a razão pela qual estiveram sempre presentes na história e que permite ao
espetador de Pharmakon, cruzar-se com esta imensidão de possibilidades temporais a
nível global. Ainda relativamente aos registos sonoros19, a partir da coincidência de em
18
Pitch ou altura de um som. É um dos parâmetros sonoros que nos permite, pela sua frequência,
classificá-lo de grave ou agudo.
19
A prática de registar sons da natureza, de arquivá-los, analisá-los e classificá-los, a par da classificação
das nuvens, surge como um compromisso e contribuição para a conservação da vida selvagem no fim de
1920. Segundo o artigo de Shannon Mattern, Cloud and Field (nota), Ludwig Koch, pioneiro desta
prática, começa a gravar sons de animais desde a sua infância com um fonógrafo capaz de reproduzir e
registar sons. Os métodos usados como compromisso para a conservação da vida selvagem, assim como
para o seu estudo e mapeamento tornaram-se métodos particulares da época relativamente à forma de
recolher e construir estes arquivos não existentes até à data. É segundo estes métodos que são
estabelecidas bibliotecas de cantos de aves ou mesmo de coleções de vários tipos de sons como, por
exemplo, a considerada a mais vasta coleção mundial, Library of Natural Sounds, a Tierstimmenarchiv
em Berlim ou a British Library of Wildlife Sounds. Estas coleções, ganhavam pela sua dimensão uma vez
que quando maior variedade de registos tivesse a coleção melhor o seu potencial como fonte de estudo. É
importante também referir que estes registos e o interesse por estudar, catalogar e mapear a vida animal
54
muitos destes registos se ouvirem pássaros, é assumida a existência desses elementos e
até evidenciada, nalguns momentos. Muitos destes piares e cantares fazem com que os
mais experientes possam reconhecer o tipo de aves e que seja possível referenciar um
local. É exemplo, o caso das gaivotas, que indicam um local perto do mar.
De ambas as vezes que a obra foi apresentada o som dos pássaros assumiu
especial relevância ainda que em coexistência com sons de trovões. Numa outra versão,
para além destes elementos a que dou destaque, o som dos pássaros e dos trovões, pode
ouvir-se o som de um grande grupo de sapos que vai aumentando até atingir grande
intensidade. É minha intenção que estas dimensões, a da imagem e do som, possam vir
a ser reeditadas caso sejam recolhidos mais registos de elementos naturais que considere
pertinentes. Trata-se de uma obra que tem como característica intrínseca ser aberta, no
sentido em que comporta variações quanto à montagem e aos próprios conteúdos que
vão sendo adicionados ou excluídos, quanto ao som, que também vou alterando com
novos elementos que vou recolhendo e, portanto, que tenho que ajustar aos já existentes.
3.3 Movimentos de constante mudança
Pharmakon expõe a vontade de fazer reinventar as formas, ou seja,
suscitar a vontade de fazer pensar, tanto no leitor como no espetador. É
então um veículo para o processo de fazer entender as formas como formas
de pensar usando a forma das nuvens, analogamente por mim propostas.
Deste modo é atribuída à arte o ofício de tornar possível e inteligível a
leitura que aqui construo e exponho. Morphéus (Fig. 20), deus dos sonhos
da mitologia grega, cujo nome significa forma no vocabulário da Grécia
Antiga, é também de onde provém “morfologia, a ciência das formas, da
classificação e da comparação das formas, e de onde procede a palavra,
quase iniciática, “metamorfose” (Molder, 2014: 150). É ainda “derivado de
morfe, literalmente “aquele que reproduz as formas”, o deus do sono e dos
sonhos, o que sublinha o elemento imaginativo, secreto e noturno da forma”
(ibid.: 150).
foram também o que fez nascer consciência desta necessidade, a de não só de conservar como de
compreender e respeitar a vida animal.
55
Fig. 20 – Guerin Pierre Narcisse, Morphéus and Iris, 1811
Esta é a figura com a qual proponho fechar a dissertação, dando evidência ao
facto de que a forma como metamorfose, tem como particularidade a sua constante
transformação e mudança.
Desta maneira, acredito haver em Pharmakon a
possibilidade de uma das mais importantes premissas, a de que cada um de nós pode,
por meio da contemplação, observação e reflexão, construir uma nova imagem do
mundo pela constante mudança do que é visto e de quem vê.
56
CONCLUSÃO
A proposta de, com Pharmakon – A forma como formação e metamorfose,
construir uma nova imagem do mundo, existe por meio de uma doutrina morfológica
das nuvens e apenas das nuvens, quando aplicada à arte. Isto porque, uma doutrina
morfológica das nuvens vai para além do âmbito taxonómico razão que faz dela uma
doutrina interessa à arte.
É uma doutrina que para além de distinguir, identificar e classificar formas sem
forma, usa a arte para falar de natureza, e de formas que, como seres naturais que são,
nascem a partir do caos, resultante da verdadeira força da criação. Em simultâneo,
enfatiza-se o conflito feliz e necessário entre a criação artística e a criação da natureza.
Sem a captação de uma imagem para falar de natureza, ou seja, sem a arte para falar de
natureza, a captação de uma imagem não seria um modo de fazer nascer formas. A
natureza precisa da arte como interlocutor para, por um lado, não nos perdermos nos
limites, por outro, para intensificar a força criadora da natureza. Este interlocutor: o
homem, a palavra e a sua visão, é o que faz nascer as formas tanto visíveis como
invisíveis. Razão que me leva a acreditar que não basta olhar para as nuvens, para as
suas formas e características, é preciso pensar nelas segundo as formas da arte.
No reinventar as formas, tarefa que nasce da necessidade de dar forma às
nuvens, depreendo que apenas as nuvens, organismos de características exclusivas seres não vivos mas animados e em permanente mutação, que não morrem mas que
desaparecem, elementos de uma coreografia cósmica do antípoda e da humanidade - são
capazes, sob vários aspetos e várias aparências, separar-nos do abismo do infinito. Por
sinal, esta tarefa que nos separa do abismo do infinito, que surge da necessidade de dar
forma às nuvens, acontece porque, quase que intuitivamente, o olho e a alma humana
fazem por ser espectadores interessados e participantes das transformações e
metamorfoses que nelas acontecem. Aqui está o jogo, o jogo da mutação, mais
propriamente, o jogo da mutação dos conceitos, onde a morfologia aparece, como
estudo que salienta isso mesmo, que as nuvens, ainda que agrupadas no seu próprio
reino, quando inseridas num modelo organizacional, dão uma impressão errada de
fixidez.
As questões naturais e morfológicas, que fazem por compreender os enigmas
naturais e dos seres vivos, são no caso das nuvens, pelos fatores meteorológicos
invisíveis que o olho não consegue ver, o verdadeiro desafio aos sentidos. Em
57
Pharmakon, a dimensão morfológica presente nas combinações possíveis, recolha,
estudo e seleção dos registos das nuvens fala-nos, de forma análoga, da génese da
própria forma. Ao mesmo tempo, alteramos a relação que temos com as nuvens e esta
relação passa a ser um desafio e uma ocupação para a imaginação que promove uma
visão dinâmica do mundo. É no fundo o tentar aproximar-nos de uma linguagem própria
das nuvens geradora de novas formas de consciência e esperar que o humano continue a
ter a força intuitiva de criar formas com a finalidade de tornar o mundo inteligível.
58
BIBLIOGRAFIA
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