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ANDERSON SCHREIBER • ALLAN ROCHA DE SOUZA· ANDRÉ BRANDÃO NERY COSTA
ANTÔNIO PEDRO MEDEIROS DIAS • BRUNO LEWICKI • CAROLlNE DIAS ANDRIOTII
EDUARDO NUNES DE SOUZA • GABRIEL ROCHA FURTADO • HELDER GALVÃO
IVANA PEDREIRA COELHO • LUIZ FELIPE CARNEIRO • MARCELA MAFFEI QUADRA
TRAVASSOS • REBECA DOS SANTOS GARCIA • THAís FERNANDA TENÓRIO SÊCO
RS
se
REIBER
COORDENADOR
VITOR DE AZEVEDO ALMEIDA JUNIOR
SÃO PAULO
EDITORA ATLAS 2013
© 2013 by Editora Atlas SA
Capa: Leonardo Hermano
Projeto Gráfico e Composição: Ronaldo Alexandre
Sumário
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (OP)
(Câmara Brasileira do livro, SP, Brasil)
Schreiber, Anderson
Direito e Mídia /
Anderson Schreiber, coordenador. - São Paulo: Atlas, 2013.
Bibliografia.
ISBN 978-85-224-7534-6
elSBN 978-85-224-7749-4
"}
1. Comunicação 2. Comunicação social 3. Direito e
comunicação 4. Liberdade de expressão 5. Meios de
Sobre os Autores 7
comunicação 6. Mídia I. Schreiber, Anderson
Direito e Mídia 9
12-15335
Anderson Schreiber
CDU-34:316.77
Direito de imagem e fotojornalismo 27
índice para catálogo sistemático:
Helder Galvão
1. Direito e comunicação
34:316.77
Controle de conteúdo no cinema? 48
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS - É proibida a reprodução total
Thaís Fernanda Tenório Sêco
ou parcial, de qualquer forma ou por qualquer meio. A violação dos
direitos de autor (Lei
n 9.610/98) é crime estabelecido pelo artigo 184
Q
Ensaio sobre o jabá 80
do Código Penal.
Bruno Lewicki
10.994,
Direito de sátira: conflitos e parâmetros de ponderação 97
2004.
/vana Pedreira Coelho
o terreno minado das
biografias não autorizadas no Brasil 118
Luiz Felipe Carneiro
Direito de resposta: perspectivas atuais 132
Editora Atlas SA
Rua Conselheiro Nébias, 1384
Antônio Pedro Medeiros Dias
Campos Elísios
01203 904 São Paulo SP
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atlas.com.br
Vitor de Azevedo Almeida Junior
Direito ao esquecimento na Internet: a scarlet
letter digital
185
1 Introdução
Direito ao esquecimento na Internet:
a scarlet letter digital
André Brandão Nery Costa
Time present and time past
Are both perhaps present in time future,
And time future contained in time pasto
If all time is eternally present
All time is unredeemable.
T. S. Elliot, Burnt Norton, primeiro poema dos Four Quartets
Sumário: 1 Introdução 2 Influência das tecnologias na memória humana 3 O triunfo da identidade da Internet 4 Tutela dos dados na Internet por meio do direito ao esquecimento 5 Decisões dos tribunais
sobre o direito ao esquecimento na Internet 6 Conclusão: neblina no
mundo da privacidade?
A humanidade sempre buscou obter e guardar o maior número de informações, já que não é possível se lembrar de tudo com vivacidade de detalhes.
Pelo contrário, o cérebro transforma as experiências do passado em algumas
lembranças simples. Não se trata de limitação biológica, mas de mecanismo
que, ao invés de permitir serem revividas as memórias continuamente, possibilita que cada indivíduo perdoe e esqueça, cresça e mude, sem estar eternamente ligado ao passado. 1
Entretanto, as mudanças tecnológicas potencializaram a alteração desse
panorama, de maneira que a regra, agora, são computadores e aparelhos eletrônicos que permitem a lembrança de tudo. Os transitórios tweets e as atualizações de status dos usuários no Facebook são transformados em registros
permanentes. Os sistemas de pesquisa buscam todos os registros na internet.
Os telefones celulares e serviços de e-mail geram logs das conversas, por mais
mundanas e efêmeras que possam ser. E não é preciso ser uma celebridade
para ser constantemente lembrado. Todos devem esperar serem tratados com
o escrutínio reservado outrora apenas aos famosos.
O dilema atual reside no fato de os registros do passado - capazes de
serem armazenados eternamente - poderem gerar consequências posteriormente à data em que o evento foi esquecido pela mente humana. Nesse contexto, a pior situação já vivenciada por determinada pessoa pode ser vinculada com a primeira e mais importante informação a seu respeito.
Exemplos não faltam. A carreira de uma professora pode ser arruinada
por sua foto em uma festa, tirada há muito tempo, segurando uma bebida e utilizando chapéu de pirata, com a legenda "pirata bêbado". Podese também perder o emprego porque este foi descrito como monótono no
Facebook. Há também o caso de um psicoterapeuta canadense com então
sessenta e seis anos que, ao tentar entrar nos Estados Unidos, foi barrado
e impedido permanentemente de ingressar nesse país porque o funcionário
da alfândega encontrou na internet um artigo de sua autoria, redigido trinta
anos antes, no qual descrevia sua experiência utilizando LSD, uma das mais
potentes substâncias alucinógenas. 2
1 Viktor Mayer-Schonberger, Delete: The Virtue of Forgetting in the Digital age, New Jersey: Princeton
University Press, 2009, passim.
2 Viktor Mayer-Schonberger, op. cit, p. 1-15.
186
Direito e Mídia
Schreiber
No Brasil, situações semelhantes também ocorrem. Uma apresentadora
de televisão de Maringá perdeu seu emprego de colunista social após terem
sido divulgadas por seu ex-namorado fotos em que aparecia nua. A comprovar a dinamicidade e a rapidez em que dados pessoais são propagados,
essas fotos chegaram a ser publicadas em 7 milhões de sites pornôs pelo
mundo. 3 Não só com casos emblemáticos é possível demonstrar a relevância
da questão. Pesquisa recente demontrou que, nos Estados Unidos, 75% dos
profissionais de recursos humanos relataram que suas empresas exigiam que
investigassem em redes sociais sobre os candidatos e 70% afirmaram que
utilizavam no processo seletivo as informações encontradas na Internet. 4
Perde-se com isso a capacidade de controlar a própria identidade, de realizar escolhas de estilo de vida, de preservar a opção de começar de novo e superar os fatos pregressos,5 dificultando a narrativa particular da autoidentidade. 6 Ao mesmo tempo em que a modernidade franqueia ao indivíduo escolher
dentre uma complexa variedade de planos de vida,? estreita o espectro das
opções ao tornar fatos passados eternamente vinculados ao presente. Ao contrário do que se supunha, com as novas tecnologias, está cada vez mais difícil
conseguir segundas chances, escapar à scarlet letter do passado digital. 8 Por
isso, "as tecnologias estão fazendo o passado fácil e eternamente presente".9
A despeito da distopia, que gera angústia em relação ao futuro, por se ter
a consciência da forte defasagem entre a rapidez do progresso técnico-científico e a lentidão com que amadurece a capacidade de controle dos proces3 Guilherme Genestreti e Juliana Vines, Superexposição na Web Deixa Nossa Reputação Mais Vulnerável,
Folha de S. Paulo, 28 jun. 2011, Disponível em: <http://wwwl.folha.uo!.com.brlequilibrioesaude/935603superexposicao-na-web-deixa-nossa-reputacao-mais-vulnerave!.shttnl>. Acesso em: 31 out. 2011.
4 Jeffrey Rosen, The Web Means the End of Forgetting, New York Times, 21 ju!. 2010. Disponível
em: <http://www.nytimes.com/2010/07/25/magazine/25privacy-t2.html?pagewanted=all>. Acesso em:
31 out. 2011. Vale destacar que contra essa situação se insurgiu Chris Hoofnagle, ao propor regulação
para os empregadores que buscam informações de seus empregados por meio do Coogle, conforme
informa Daniel Solove, The Future of Reputation: Cossip, Rumor, and Privacy on the Internet, New
Haven: Yale University Press, 2007, p. 203.
5 Jeffrey Rosen, The Web Means the End of Forggetting, cito
6 Anthony Giddens, Modernidade e Identidade, Rio de Janeiro: Zahar, 2002, p. 79.
7 Anthony Giddens, Modernidade e Identidade, cit., p. 79.
8 Alusão ao livro The Scarlet Letter, de Nathaniel Hawthorne, que narra história ambientada em
Massachusetts, nos Estados Unidos, no século XVII, de uma jovem que tem uma filha fruto de relacionamento adúltero e que luta para construir uma nova vida. Essa jovem é de tal forma estigmatizada
na comunidade em que vivia que deve carregar consigo a letra "A" vermelha escarlate bordada em seu
peito, como símbolo do pecado.
9 A. L. Allen, Dredging up the Past: Lifelogging Memory, and Surveillance, Chicago: University of Chicago Law Review 75: 47, 2008 apud Chris Conley, The Right do Delete. Disponível em: <http://www.
aaai.org/ocslindex.php/SSS/SSSl0/paperlview/115811482>. Acesso em: 31 out. 2011.
Direito ao esquecimento na Internet: a scarlet fetter digital
187
sos sociais que acompanham tal progresso, a sociedade não recusa as novas
tecnologias, porque, ao lado da percepção dos riscos, está a consciência da
impossibilidade de deter esse progresso. 10 Por isso, contra essas assustadoras
ameaças, surgem vozes que buscam proteger a esfera privada por meio de um
arsenal jurídico. Uma de suas principais ferramentas o direito ao esquecimento, potencializado atualmente pela nova concepção de direito à privacidade.
Frise-se que esse cenário encerra o delicado conflito de interesses no qual
se insere o direito ao esquecimento. Ao lado de um interesse público que
aponta no sentido de que fatos passados sejam relembrados, promovendo
uma sociedade mais transparente, há o direito de não ser perseguido ao longo de toda a vida por acontecimento pretérito. l l
2 Influência das tecnologias na memória humana
o equilíbrio existente na memória entre lembrança e esquecimento alterou-se radicalmente em razão do desenvolvimento tecnológico e sua impregnação em todos os campos da vida. A regra hoje é a recordação dos
fatos ocorridos, enquanto, curiosamente, esquecer se tornou a exceção,
cada vez mais difícil de se concretizar no mundo digital, invertendo-se talvez inevitavelmente - o mencionado equilíbrio. Não por outra razão,
Viktor Mayer-Sch6nberger enfaticamente asseverou que "em virtude das
tecnologias digitais, a habilidade da sociedade de esquecer foi reprimida,
sendo permutada pela memória perfeita" .12
A popularização da Internet permitiu que ela deixasse de ser uma rede
capaz apenas de receber informações, para se revelar poderoso instrumento
de compartilhamento de dados. Produzem-se, incessantemente, informações
pessoais na rede, seja diretamente, por meio do fornecimento pelo próprio
usuário, seja indiretamente, por meio de terceiros, através de postagens de
fotos, de indicações de amizades, de aposição de tags em fotos que identificam outro usuário e de fornecimento de dados geográficos de onde se está.
Sem mencionar as informações produzidas sem que se saiba, o que torna
10 Stefano Rodotà, A Vida na Sociedade da Vigilância: a Privacidade Hoje, Rio de Janeiro: Renovar,
2008, p. 41-42.
11 Anderson Schreiber, Direitos da Personalidade, São Paulo: Atlas, 2011, p. 166.
12 Viktor Mayer-Sch6nberger, op. cit., p. 50.
188
Direito e Mídia
Schreiber
ainda mais grave e acentua a dificuldade muitas vezes enfrentada de apagar
dados produzidos na rede. 13
Aliada a essa produção incansável de dados pessoais, as ferramentas de
busca na Internet são capazes de descobrir informações, disponibilizando-as
a milhões de usuários que se utilizam desse serviço, e de memorizá-las. Em
2007, o Google arquivava todas as pesquisas efetuadas por cada usuário,
bem como os resultados da busca acessados. Associava a esses resultados
informações atinentes ao usuário, constituindo, assim, perfis de cada internauta. 14 Portanto, não é exagero afirmar que os motores de busca conhecem
mais sobre nós do que nós mesmos.
No entanto, não só ferramentas de busca virtual são capazes de reter informações preciosas. A Biblioteca do Congresso Americano, por exemplo, comunicou que irá permanentemente armazenar todos os arquivos de tweets públi15
COS.
Desenvolveram-se, também, aplicativos como o Photo Finder, capaz de
reconhecer, por meio da fisionomia, usuários da lista de contatos do Facebook,
tornando praticamente impossível não ter sua identidade revelada na web. 16
Tal perspectiva consegue ser ainda mais atemorizadora quando são associadas essas a outras tecnologias, como a implementada nas ruas de Londres.
Câmeras de vigilância foram instaladas nessa cidade para que pudessem
identificar cada cidadão por meio de aspectos fisionômicos faciais em tempo
real, com base em um banco de dados mantido por essa municipalidade,
havendo no Reino Unido mais de 4 milhões de câmerasY
13 Tal apelo à produção de dados, especialmente na Internet, é narrado extraordinariamente por Stefano Rodotà, A Vida na Sociedade da Vigilância: a Privacidade Hoje, cit., passim.
14 Miguel Helft, Google Ads a Safeguard on Privacy for Searchers, New York Times, 15.3.2007. Disponível em: <http://www.nytimes.com/2007/03115/technology/15googles.htmb. Acesso em: 31 out. 2011.
Ainda segundo essa reportagem, o Google ainda manterá intacta as informações por 18 a 24 meses, mas
dificultará o acesso aos dados do usuário. Esse prazo foi reduzido para 9 meses segundo Jeffrey Rosen,
The Web Means the End of Forgetting, cito Vale destacar que, segundo informa Daniel Solove, os motores
de busca ainda não alcançaram todo seu potencial, sendo utilizado apenas 5% de sua capacidade. Ainda
haveria vasto material ainda não catalogado nem combinado pelo Google (Daniel Solove, op. cit., p. 205).
Direito ao eS'quecimento na Internet: a scar/et letter digital
189
Entretanto, a atual capacidade de memorização e armazenamento de
dados nem sempre é um fato negativo. É possível lembrar com maior detalhamento momentos importantes das vidas. Com maior quantidade de
dados, as empresas são capazes de seguir, de forma mais eficiente, as tendências do mercado. E também toda a sociedade se beneficia, pois evita que
erros sejam cometidos duas vezes: para aprender com a história requer-se a
capacidade social de lembrar.
Nesse contexto, a fim de examinar a influência das tecnologias sobre a
memória humana, alguns estudiosos sugerem que quando se esquece não se
perde a informação em si, mas a ligação até ela. Daniel Schacter, professor
da Universidade Harvard e um dos mais importantes pesquisadores do assunto, argumenta que a memória não funciona como um arquivo capaz de
armazenar um grande número de informações com precisão. A memória humana não é inalteravelmente esculpida; pelo contrário, ela é constantemente
reconfigurada, de maneira que o que se lembra é produto das preferências e
necessidades atuais. 18 Vale dizer, a memorização depende da frequência com
que se lembra e do quanto determinada memória é importante.
Por isso, no processo de construção da memória, muitas das lembranças são alteradas devido às influências externas. O fato de se ter memórias
do passado não quer dizer que ele ocorreu como se imagina, porque, ao
longo do tempo, as lembranças sofrem alterações para se adequarem às
situações atuais. 19
Essas constatações, contudo, não devem aborrecer nem deixar inseguros
quanto às experiências pregressas. Tal processamento da memória ajuda os
indivíduos na atividade de abstrair, generalizar e, ainda, de agir no tempo,
ao invés de permanecer constantemente nos conflitos do passado. Através
desse método de formação da memória, podem-se utilizar de forma eficaz
as experiências pregressas, bem como empregar ideias abstratas no processo
decisório diário, principalmente quando o nível de informação não permite
realizar com segurança dada decisão. 20
Como anota, sob outra perspectiva, Anthony Giddens,
15 Doug Gross, Library of Congress to Archive Your Tweets, CNN, 14 apr. 2010. Disponível em:
<http://articles.cnn.com/2010-04-14/tech/library.congress. twitter_Ltweets-micro-b logging -twitter?_
s=PM:TECH>. Acesso em: 31 out. 2011.
16 Saul Hansell, Google's Photo Face Recognition is Wow Marketing, New York Times, 4 sept. 2009.
Disponível em: <http://bits.blogs.nytimes.com/2008/09/04/googles-photo-face-recognition-is-wow
-marketing/>. Acesso em: 31 out. 2011.
18 Daniel L. Schacter, The Seven Sins of Memory: How the Mind Forgets and Remembers, 2002, New
York: Houghton Mifflin, p. 9.
17 CCTV Boom 'Failing to Cut Crime'. British Broadcasting Corporation, 6 ma 2008. Disponível em:
<http://news.bbc.co.ukl2/hi/uk_news/7384843.stm>. Acesso em: 31 out. 2011.
20 Viktor Mayer-Schõnberger, op. cit., p. 16-49.
19 Viktor Mayer-Schõnberger, op. cito
190
Direito e Mídia
Schreiber
"a reconstrução do passado anda junto com a trajetória provável
da vida no futuro. [... ], O eu tem uma trajetória de desenvolvimento
a partir do passado em direção ao futuro antecipado. O indivíduo
apropria seu passado peneirando à luz do que antecipa como um
futuro organizado" .21
Isso explica a razão pela qual memorizar sempre foi a exceção. Contudo,
com o desenvolvimento da civilização, apenas a lembrança do cérebro não
era suficiente. Por isso, a humanidade desenvolveu a linguagem para que pudesse transmitir conhecimentos, passados de geração a geração. 22 Mas esta
também não se mostrou suficiente.
Foi necessário, em seguida, criar uma verdadeira memória externa. Inicialmente, utilizou-se de pinturas e, posteriormente, de livros e jornais, cuja
popularização e barateamento foram essenciais para sua difusão. 23 Ainda assim, o custo de armazenagem revelava-se excessivo. 24 Nesse processo de incremento da memória externa, as novas tecnologias têm alterado totalmente
o panorama. Em razão delas, ampliaram-se as informações que podem ser
armazenadas, facilitou-se como são lembradas e barateou-se seu custO. 25 Dessa forma, a lembrança tem se tornado a regra e o esquecimento, a exceção.
Resultado de tal modificação pode ser verificado na alteração nos aspectos do poder e do tempo.26 Como já abordado em clássicos da literatura
mundial, o poder está no conhecimento das informações,27 as quais influenciam como indivíduos e a sociedade tendem a agir. Antigamente, se tudo falhasse no controle delas, havia a opção de partir sem deixar rastros, pois era
muito improvável que as informações, por permanecerem locais, perseguiriam o indivíduo eternamente. Hoje, inversamente, as informações circulam
com tamanha rapidez que não há muitas opções para se esquivar do passado.
Além da alteração desse aspecto, perde-se também parte da capacidade
de decidir. Esquecer é instrumental no processo de aprendizado, de modo
21 Anthony Giddens, op. cit., p. 72 e 75.
22 Viktor Mayer-Schonberger, op. cit., p. 23-28.
Direito ao esquecimento na Internet: a scarlet letter digital
191
que, como a memória digital faz lembrar vivamente dos fatos ocorridos
no passado, é possível concluir que atualmente a habilidade de aprender
é inibida. O mito da memória total poderá acarretar consequências semelhantes às sofridas pelo personagem Funes, no clássico conto de Jorge Luis
Borges, que apesar do conhecimento enciclopédico, não conseguia relacioná-lo a outras informações. 28
Torna-se também mais difícil mudar socialmente de opinião na medida
em que se amadurece, visto que a representação digital- que, em muitos casos, possui maior preponderância que a identidade real- irá sempre vincular
os indivíduos às suas ações pregressas, de tal sorte que será praticamente
impossível se desvencilhar delas. Essa representação digital, além disso, é
julgada não só por aqueles que estiveram presentes no momento em que as
informações foram produzidas, mas também por todos que tiverem acesso
a elas, sem que, nesse caso, seja explicado seu contexto, acarretando, conseguintemente, o empobrecimento dos julgamentos realizados na rede.
3 O triunfo da identidade da Internet
A Internet representa para a sociedade verdadeira revolução, porque
proporciona fácil acesso a uma abundância de informações. São mais de 150
milhões de homepages e um universo quase infinito de dados à disposição
dos internautas, sendo o maior desafio de seus usuários selecionar as informações úteis e confiáveis.
Diante dessa miríade informativa, sites de busca na Internet, tal qual o
Google, ajudam a organizar a informação mundial e a torná-la universalmente acessível. Por meio de sistemas de busca, além de ser realizado o page
ranP9 dos sítios eletrônicos relacionados ao termo pesquisado, é efetuada a
associação das páginas pesquisadas na web com o histórico do próprio usuário de acordo com suas preferências manifestadas anteriormente.
Tal expediente é definido como profiling, técnica de tratamento de dados que utiliza inteligência artificial, obtendo metainformações, isto é, sín-
23 Viktor Mayer-Schonberger, op. cit., p. 28-42.
24 Viktor Mayer-Schonberger, op. cit., p. 52-91.
25 Viktor Mayer-Schonberger, op. cit., p. 52-91.
28 Jorge Luis Borges, Punes el memorioso. In Artifícios, Madrid: Alianza, 1995, p. 7-18.
26 Viktor Mayer-Schonberger, op. cit., p. 92-127.
29 Page rank é uma família de algoritmos de análise de rede que dá pesos numéricos a cada elemento
de uma coleção de documentos hiperligados, como as páginas da Internet, com o propósito de medir a
sua importância nesse grupo por meio de um motor de busca. O algoritmo pode ser aplicado a qualquer
objeto com ligações recíprocas e referências.
27 Stefano Rodotà, A Vida na Sociedade da Vigilância: A Privacidade Hoje, cit., p. 25. No clássico livro
1984 de George Orwell o partido ditatorial "Socing" comanda toda a sociedade não apenas através da
força, mas também por meio do controle e manipulação das informações presentes e passadas.
192
Direito e Mídia
Schreiber
tese dos hábitos, preferências e registros da vida das pessoas. 30 Esse perfil
virtual pode se transformar em verdadeira representação da pessoa, sendo
seu único aspecto visívelY Por isso, faz-se necessário o alerta de que a unidade da pessoa está fragmentada, já que os indivíduos estão sendo transformados em abstrações do ciberespaço.32
Em artigo intitulado A Identidade nos Tempos de Google, Stefano Rodotà demonstra como, por meio de atividade aparentemente neutra, os motores
de busca acabam por ditar a compreensão que os usuários da Internet terão
de determinado fato ou de certa pessoa. 33 Imaginou-se que, com o advento
da rede mundial de computadores, inicialmente vista como o lo cus ideal para
uma liberdade quase que absoluta, seria possível criar novas identidades,
através de cada janela aberta. 34 Ela seria o instrumento capaz de atribuir a
seus usuários o poder de controlar suas contingentes identidades, cunhado
por Robert Jay Lifton como protean self.3s
No entanto, os planos não saíram como imaginados. A possibilidade de
controlar diversas identidades se tornou um mito, que cada vez mais se torna
distante,36 gerando, pelo contrário, a chamada crise coletiva de identidade. 37
Assevera-se que o indivíduo não mais possui o poder de controle sobre seus
dados, na medida em que é o Google que dita quem ele é. 38 A identidade passa a ser construída no catálogo do mundo e nos bancos de dados, em formas
que fogem ao controle do interessado. 39 Prevê-se também que as informações
Direito ao esquecimento na Internet: a scarlet letter digital
da web serão ainda mais interligadas, combinadas de diversas fontes, de maneira que num futuro próximo cada um poderá ser ranqueado e receber pontuação com base nas suas qualidades de pais, namorados, empregados etc. 40
Dessa forma, a identidade na Internet é capturada em determinado momento, desenvolvendo-se, posteriormente, com base em uma série de informações fornecidas por uma multiplicidade de fontes, sem qualquer participação
e conhecimento do interessado.41 A separação entre identidade e autonomia
tornar-se tota1. 42 Aduz Stefano Rodotà, em elo quente síntese, tal processo:
"sabíamos desde sempre, talvez, que o olhar do outro contribui para
definir a nossa identidade. [... ], Essa dependência cresceu de modo
determinante nos últimos 30 anos, desde quando a eletrônica não
só tornou possível reunir e conservar uma quantidade infinita de
dados, mas principalmente permitir encontrá-los rapidamente, colocá-los em relação entre si e, assim, traçar perfis que se tornam os
instrumentos por meio dos quais qualquer um de nós é conhecido,
avaliado, continuamente reconstruído" .43
Nessa direção, assinala Danilo Doneda que a partir do momento em que
o perfil eletrônico se torna a única fração da personalidade visível, a criação
de perfis pode efetivamente levar à diminuição da esfera de liberdade, visto
que aqueles que se relacionam com esse indivíduo partem do pressuposto
de que ele adotará certa atitude. 44 Corre-se o risco, portanto, de se criar,
na expressão de Alan Westin, um data shadow, isto é, conjunto de ações e
palavras armazenadas que acompanham o indivíduo onde quer que ele vá. 4s
30 Danilo Doneda, Da Privacidade à Proteção de Dados Pessoais, Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.
173. Cf. tb. Stefano Rodotà, La Società dell' Algoritmo, La Repubblica, seção R2, p. 41, 27.3.2011.
Disponível em: <http://ricerca.repubblica.it/repub blica/archivio/repub blica/20 1 0/03/2 7/la -societa -dell
-algoritmo.htmb. Acesso em: 31 out. 2011; e Marco Mensurati e de Fabio Tonacci, Grande Fratello
Google atto Navigatori su Dieci Schedati per la Pubblicità, seção Cronoca, p. 18, 13.8.2010. Disponível em: <http://ricerca.repubblica.itlrepubblica/archiviolrepubblica/2010/08/13/grande-fratello-google-otto-navigatori-su-dieci.htmb. Acesso em: 31 out. 2011; versão em português: Big Brother Google,
14.8.2011. Disponível em: <www.ihu.unisinos.br>. Acesso em: 31 out. 2011.
40 Jeffrey Rosen, The Web Means the End of Forgetting, cito
31 Danilo Doneda, Da Privacidade à Proteção de Dados Pessoais, cit., p. 174.
41 Stefano Rodotà, L' Identità aI Tempo di Google, cito
32 Stefano Rodotà, A Vida na Sociedade da Vigilância: a Privacidade Hoje, cit., p. 125.
42 Stefano Rodotà, L' Identità aI Tempo di Google, cito
33 Stefano Rodotà, L'Identità aI Tempo di Google, La Repubblica, seção Commenti, p. 31, 14.12.2009.
Disponível em: <http://ricerca.repubblica.it/repubblica/archivio/repubblica/2009/12/14/identita-al-tempo-di-google.htmb. Acesso em: 31 out. 2011; versão em português: A Identidade em Tempos de Google, 16.12.2009. Disponível em: <www.ihu.unisinos.br>. Acesso em: 31 out. 2011.
34 Stefano Rodotà, A Vida na Sociedade da Vigilância: a Privacidade Hoje, cit., p. 119-122.
35 Jeffrey Rosen, The Web Means the End of Forgetting, cito
36 Jeffrey Rosen, The Web Means the End of Forgetting, cito
37 Jeffrey Rosen, The Web Means the End of Forgetting, cito
38 Stefano Rodotà, L' Identità aI Tempo di Google, cito
39 Stefano Rodotà, L' Identità aI Tempo di Google, cito
193
Exemplo expressivo dessas consequências são as narradas por Riccardo
Staglianà. 46 Além de o jornalista descrever como os diversos sítios eletrôni-
43 Stefano Rodotà, L' Identità aI Tempo di Google, cito
44 Danilo Doneda, Da Privacidade à Proteção de Dados Pessoais, cit., p. 174. Cf. tb. o seguinte trecho
dessa obra: "Os dados pessoais passam a ser os intemediários entre a pessoa e a sociedade, prepostos
nem sempre autorizados e capazes, e é justamente isto que produz como efeito da perda de controle da
pessoa sobre o que se sabe em relação a si mesma - o que, em última análise, represente um diminuição
na sua própria liberdade" (cit., p. 181).
45 Danilo Doneda, Da Privacidade à Proteção de Dados Pessoais, cit., p. 175.
46 Riccardo Staglianô, La Mia Biografia Intrappolata nella Rete, seção R2, 19.5.2011. Disponível em:
<http://ricerca.repubblica.it/repubblica/archiviolrepubblica/2011/05/19/la-mia-biografia-intrappolata-nella
-rete.htmb. Acesso em: 31 out. 2011; versão em português: A Rede não Esquece Nenhuma Informação. E
Preserva a Nossa Identidade, 21.5.2011. Disponível em: <www.ihu.unisinos.br>. Acesso em: 31 out.2011.
194
Direito e Mídia
Schreiber
cos lembram de suas informações pessoais e, baseadas nelas, sugerem escolhas, o autor relata a experiência de solicitar; a empresas chamadas de web
listening seu perfil como usuário da Internet. As três empresas que realizaram
o serviço descobriram diversas informações pessoais, número do telefone
pessoal, sua qualificação profissional, bibliografia e, inclusive, sua orientação
política, além de traçar o perfil psicológico das palavras por ele utilizadas!
Outro exemplo desse fenômeno, em que a identidade passa a ser a projetada pela Internet, é o caso de Wolfgang Werlé e Manfred Lauber, condenados pelo assassinato de um ator alemão ocorrido em 1990. Agora, eles
buscam na justiça que a Wikipedia e outras publicações na Internet não os
mencionem após o cumprimento da pena imposta, por acreditarem já terem
pago o débito com a sociedade. 47
Direito ao esquecimento na Internet: a scarlet letter digital
195
- que potencializou o processo de memória digital- ao mesmo tempo em que
transmite a falsa impressão de conceder aos seus usuários a opção de criação
de diversas identidades acaba achatando o espectro de escolhas individuais,
em razão de sua memória constante, capaz de reduzir a complexidade de cada
indivíduo àquela identidade revelada pelos motores de busca na Internet.
Ao contrário do caminho a que as tecnologias têm levado, a noção de
vida moderna aponta em outra direção - contrária àquela imposta pela rede
mundial de computadores. A vida líquido-moderna, noção utilizada pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman, pode ser descrita como uma série de reinícios, permitindo que os segredos mais íntimos sejam ocultados de maneira
que a história de cada um é constituída de sucessivos finais. 50
Eric Schmidt, chefe executivo do Google, previu que os jovens poderão
exigir no futuro o direito a mudar seus próprios nomes para escapar do
passado na Internet. 48 Causa espécie essa esdrúxula solução. Ao invés de
se realizar a integral proteção da pessoa humana, sugere-se modificação de
aspecto estrutural de extrema relevância da identidade pessoal para solucionar o problema. Essa medida representa total inversão de valores, na
medida em que se privilegia a identidade construída na Internet em detrimento daquela erigida no seio social.
Por isso, na vida líquido-moderna a principal dificuldade não consiste
em recomeçar, mas em encerrar, sendo a ênfase em "esquecer, apagar, desistir
e substituir" ,51 o que torna as identidades individuais ainda mais volúveis.
Paradoxalmente, encontram-se em clara desvantagem aqueles que não possuem a possibilidade de se modificar em virtude da memória digital, a qual
os leva à diminuição das possibilidades de escolhas. Daí a necessidade de
ampliar a capacidade de controlar seus dados pessoais, de fazer com que a
memória digital o esqueça, permitindo que se comece uma nova vida, construindo uma nova identidade.
Amplifica-se, assim, imensamente o risco de ser representado por dados
selecionados na Internet, sem a sua participação ativa. Não se trata apenas
do perfil de utilização de dados falsos: mesmo os dados verdadeiros podem
ser apresentados de modo inadequado, sem a contextualização necessária ou
com um destaque incompatível com o papel que desempenham na composição da personalidade real do retratado. 49
Nesse atemorizador quadro, os indivíduos muitas vezes são levados a assumir uma identidade compulsória, mas necessária tanto para sua aceitação
social como para fugir de estigmatizações. 52 Na medida em que o indivíduo
perde o poder de construir sua própria esfera privada, o direito ao esquecimento torna-se instrumento útil, capaz de retirar da rede informações que se
referem a nós mesmos. 53
Dessa forma, a presença incisiva e constante das tecnologias, como exposto ao longo do texto, diminui a possibilidade de se ver esquecido. A Internet
47 John Schwartz, Two German Killers Demanding Anonymity Sue Wikipedia's Parent, New York Times, 12 novo 2009. Disponível em: <http://www.nytimes.com!2009/11113/us/13wiki.htmb. Acesso em:
31 out. 2011. A fim de ilustrar as diferentes perspectivas com as quais é vista a liberdade de expressão
na Europa e nos Estados Unidos, ao final da referida reportagem do New York Times, com uma boa
dose de ironia registrou-se a solicitação do advogado dos assassinos contida em e-mail: "In the spirit of
this discussion, I trust that you will not mention my c/ients' names in your artic/e", apesar de os nomes
de seus clientes terem sido explicitamente mencionados ao longo da reportagem.
4 Tutela dos dados na Internet por meio do direito ao esquecimento
No contexto narrado, a tutela dos dados pessoais assume a função de
traduzir a nova face da liberdade, na feliz expressão de Gustavo Tepedino
e Danilo Doneda,
50 Zygmunt Bauman, Vida Líquida, Rio de Janeiro: Zahar, 2009, p. 9 e 15.
48 Holman W. Jenkins Jr., Google and the Search for the Future, The Wall Street Journal, 14 out. 2011.
Disponível em: <online.wsj.com!article/SB10001424052748704901104575423294099527212.htmb.
Acesso em: 31 out. 2011.
52 Stefano Rodotà, L' Identità ai Tempo di Google, cito
49 Stefano Rodotà, L' Identità ai Tempo di Google, cito
53 Stefano Rodotà, L' Identità aI Tempo di Google, cito
51 Zygmunt Bauman, Vida Líquida, cit., p. 9.
196
Direito e Mídia
Schreiber
"as relações existenCIaIS, afetivas, comerciais e profissionais cada
vez mais se desenvolvem por meios informatizados - para os quais
é imprescindível o fornecimento de informações pessoais. Por isso,
franquear ao cidadão brasileiro instrumentos de efetivo controle sobre o uso e a integridade de suas informações torna -se mecanismo
de garantia da liberdade, tendo em conta o papel predominante da
informação para as escolhas individuais" .54
De fato, a possibilidade de manter um controle integral sobre as próprias
informações contribui de modo determinante para definir a posição do indivíduo na sociedade, devendo-se assegurar o controle individual do conjunto de
ações, comportamentos, opiniões e informações pessoais e a tutela das escolhas de vida contra toda forma de controle público e estigmatização socia1. 55
A simples proteção do direito a ser deixado só, na clássica concepção de
Warren e Bradais, ao constituir uma redoma protetora da intimidade, não
mais é suficiente para sua proteção. Por isso, o direito ao esquecimento na
Internet, rejuvenescido e redimensionado pelos novos contornos do direito à
privacidade, revela-se ferramenta eficaz para a tutela da personalidade e para
. da. 56
que cada um construa sua es f era pnva
Segundo a concepção aqui defendida, alterou-se qualitativamente o direito
à privacidade, que passa a englobar não apenas a defesa da esfera privada contra invasões externas, mas também a possibilidade de cada um controlar o uso
das informações que lhe dizem respeito e, em última análise, de sua própria
identidade. 57 Mesmo com tal controle, há a dificuldade de se individuar tipos
de informações acerca dos quais o cidadão estaria disposto a renunciar definitivamente, visto que até as informações aparentemente mais inócuas podem, se
integradas a outras, provocar danos à dignidade do interessado. 58
54 Gustavo Tepedino e Danilo Doneda, A Outra Face da Liberdade, O Globo, Rio de Janeiro, 15
jun. 2010. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/opiniao/mat/2010/06115/a-outra-face-da-liberdade-916885157.asp>. Acesso em: 31 out. 2011>.
55 Stefano Rodotà, A Vida na Sociedade da Vigilância: a Privacidade Hoje, cit., p. 92.
56 Stefano Rodotà, A Vida na Sociedade da Vigilância: a Privacidade Hoje, cit., passim.
57 Stefano Rodotà, A Vida na Sociedade da Vigilância: a Privacidade Hoje, cit., p. 125. Tal perspectiva
do direito à privacidade foi adotado por abalizada doutrina. Nessa esteira, v. cuidadoso e rico trabalho
mono gráfico sobre o tema Danilo Doneda, Da Privacidade à Proteção de Dados Pessoais, cit., passim.
Cf. tb. Maria Celina Bodin de Moraes, Ampliando os Direitos da Personalidade. In: Na Medida da
Pessoa Humana: Estudos de Direito Civil, Rio de Janeiro: Renovar, 2010; e Gustavo Tepedino e Danilo
Doneda, A Outra Face da Liberdade, cito
58 Stefano Rodotà, A Vida na Sociedade da Vigilância: a Privacidade hoje, cit., p. 36.
Direito ao esqueâmento na Intemet: a scarlet letter digital
197
Nesse contexto, o direito ao esquecimento seria o direito de impedir que
dados de outrora sejam revividos na atualidade, de modo descontextualizado,59 sendo conferido à pessoa revelar-se tal qual ela é atualmente, em sua
realidade existencial e coexistencial. 60 Dessa forma,"nem todas as pegadas
que deixei na minha vida devem me seguir implacavelmente, em cada momento da minha existência" .61
Nessa esteira, ganha relevante papel o consentimento, como afirmação
da autodeterminação informativa, na medida em que o próprio indivíduo
adquire o poder de controlar sua esfera privada e as informações que lhe
dizem respeito,62 a fim de determinar-se de acordo com sua identidade pessoal. Contudo, revela-se insuficiente a tutela jurídica que privilegie apenas o
consentimento na medida em que há situações em que as consequências de
decisões individuais podem infligir sua própria dignidade, notadamente sua
privacidade. 63 É necessário adotar práticas institucionais de elevada flexibilidade. 64 Dentre estas, a fixação de princípios de proteção de dados 65 ganha
relevância. Mostra-se especialmente útil o princípio da finalidade, o qual determina que a coleta de dados deve ser pertinente à finalidade perseguida, a
utilização destes não deve ser abusiva e - o que é de extrema relevância para
o fim aqui tratado - eles devem ser eliminados, ou transformados em dados
anônimos, quando não mais necessários. 66
59 Anderson Schreiber, Direitos da Personalidade, São Paulo: Atlas, 2011, p. 164. Na mesma direção,
Giorgio Pino: "É, portanto, o direito do indivíduo de evitar 'ressucitação' e de que seja projetado aos
olhos do público uma identidade agora pertencente ao passado, e talvez tenha tentado alterar" (n Diritto All'Identità Personale Ieri e Oggi: Informazione, Mercato, Dati Personali. In: R. Panetta (Org) Libera
Circolazione e Protezione dei Dati Personali, Milão: Giuffre, 2006, t. 1. Disponível em: <http://www.
unipa.it/gpinolIdentit%EO%20personale_Giuffr%E8.pdf>. Acesso em: 31 out. 2011).
60 Raul Choeri, O Direito à Identidade Pessoal na Perspectiva Civil-Constitucional, Rio de Janeiro:
Renovar, 2010, p. 245. Nessa esteira, cf. Ligia Fabris Campos, O Direito de Ser Si Mesmo: A Tutela
da Identidade Pessoal no Ordenamento Jurídico Brasileiro, 2006, Dissertação (Mestrado). Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, p. 169.
61 Stefano Rodotà, em entrevista disponível no site da Enciclopedia Multimediale delle Scienza Filosofiche (http://www.emsf.rai.it/grillo/trasmissioni.asp?d=120). Acesso em: 31 out. 2011.
62 Danilo Doneda, Da Privacidade à Proteção de Dados Pessoais, cit., p. 377-379.
63 Ressalte-se a dificuldade imposta pela Internet em permitir a visualização de exposição nela do que
em outros meios de comunicação. A fim de demonstrar essa percepção, informa Daniel Solove que, em
pesquisa realizada, foi criado perfil falso no Facebook que realizou diversas solicitações de amizades.
Revela-se assustador o número de usuários de aceitaram o convite, 30% (trinta por cento) (Daniel Solove, The Future of Reputation: Gossip, Rumor, and Privacy on the Internet, cit., p. 197).
64 Stefano Rodotà, A Vida na Sociedade da Vigilância: a Privacidade Hoje, cit., p. 87-88.
65 Veja-se o rol de princípios apresentados por Stefano Rodotà, A Vida na Sociedade da Vigilância: a
Privacidade Hoje, cit., p. 59.
66 Stefano Rodotà, A Vida na Sociedade da Vigilância: a Privacidade Hoje, cit., p. 59.
198 Direito e Mídia Schreiber
Entretanto, há quem defenda que a lei não seria capaz de solucionar a
questão do esquecimento na Internet. 67 Além de imbuída da noção norte-americana do amplo alcance da liberdade de expressão, não compartilhada
pelo ordenamento, a solução dessa questão não se pode fiar apenas em aspectos tecnológicos, sob pena de ser insuficiente. De maneira a favorecer a
tutela integral da pessoa humana, outra não pode ser a saída senão a adoção
de perspectiva integrada, em que o indivíduo digital é munido tanto das novas ferramentas tecnológicas como de todo aparato legal, o qual precisa ser
adequado à realidade dinâmica do mundo da rede mundial de computadores. Como outra forma de tutelar a identidade na Internet, Stefano Rodotà
sugere também que se devem projetar formas de identidade funcionais, que
comunicam ao exterior apenas aquela porção de identidade estritamente necessária para a realização de um determinado resultado. 68
Outras soluções têm sido propostas para remediar a questão do esquecimento na Internet. O professor de Harvard Jonathan Zittrain defende o que
ele chama de reputation bankrupcy, que daria a possibilidade de limpar a reputação da web. 69 Já David Ohm sustenta que se deve tornar ilegal demitir ou
recusar contratar uma pessoa com base nas informações extraídas do Google
ou do Facebook. 70 Já Daniel Solove prevê que será possível ajuizar ações contra os amigos virtuais que disponibilizarem informações constrangedoras. 71
Mayer-Sch6nberger, por sua vez, adotando uma estratégia com diversas
frentes, enfatiza a possibilidade de se inserir data de expiração nos documentos digitais, principalmente os produzidos na Internet. 72 Consequência
disso é que já há sites de busca cuja propaganda é não manter nenhuma
67 Cf. a contundente posição de Jeffrey Rosen, "But - and this is a big 'but' - Law is no always a good
remedy for these harms. Although there are proposals in Europe and around the world to create new
legal rights of oblivion that would allow us to escape our past, these rights pose grave threats to free
speech. And if forced to choose between my privacy instincts and my free speech instincts, I have no
hesitation in this case in choosing free speech over privacy, so if there are to be remedies for the problem
of digital forgetting, my sense is that the most promising ones involve technology and norms and not
law" (Free Speech, Privacy, and the Web that Nevers Forgets. Disponível em: <http://jthtl.org/content/
articlesN9I2/JTHTLv9i2_Rosen.PDF>. Acesso em: 31 out. 2011).
68 Stefano Rodotà, L' Identità al Tempo di Google, cito
69 Jonathan Zittrain, Reputation Bankruptcy, 7 set. 2010. Disponível em: <http://futureoftheInternet.
org/reputation-bankruptcy>. Acesso em: 31 out. 2011.
70 Jeffrey Rosen, The Web Means the End of Forgetting, cito
71 Daniel Solove, op. cit., passim.
72 Viktor Mayer-Schonberger, op. cit, p. 128-168. Essa hipótese já foi adotada por alguns browsers,
como o Firefox, da Mozilla, que agora já vêm de fábrica em sua versão beta com a opção Do Not Track.
Além deste, a nova versão do Internet Explorer virá com um gerenciamento de monitoramento através
de listas, bem como o Chrome, que desenvolveu extensão Keep My Opt-Outs.
Direito ao esquecimento na Internet: a scarlet letter digital
199
informação pessoal. Desenvolveram-se também aplicativos capazes de fazer
desaparecer mensagens de texto, tanto do celular de quem as recebeu quanto
do de quem as enviou e de destruir informações, desde e-mails e fotos a posts
armazenados na "nuvem".73
Contra essas representações que os indivíduos têm por falsas ou descontextualizadas criaram-se diversas empresas capazes de modificar a identidade
na Internet, como a ReputationDefender e a reputation.com e, no Brasil, a
Legaltech. 74 Essas empresas podem monitorar a reputação do indivíduo on-tine, entrando em contato com as páginas da web e requerendo que deletem
itens ofensivos à reputação. Utilizam também tecnologia capaz de melhorar
o perfil construído pelo Google com informações positivas ou neutras, que
passam a aparecer no topo da pesquisa, diminuindo, assim, a possibilidade
de se encontrarem links negativos.
A situação do direito ao esquecimento na União Europeia encontra-se em
momento auspicioso, diante do anúncio de que a atual diretiva de proteção
de dados seria revista. Comunicou-se à imprensa que serão reforçados os controles das informações pessoais, facilitando o acesso aos dados e permitindo em alteração controversa - modificá-los e apagá-los com facilidade, inclusive
as fotografias, hoje ainda uma tarefa com frequência frustrante.7 5 Constituiriam essas faculdades um direito fundamental garantido no mundo digital. 76
Por meio dessa revisão, pretende-se também determinar a possibilidade de ser
informado de maneira transparente sobre quem recolhe e utiliza, como usa,
com que finalidades e por quanto tempo utiliza os dados pessoais. 77
Com efeito, a comissão para revisão da Diretriz Europeia de Proteção
de Dados definiu o direito ao esquecimento como "o direito de indivíduos
73 Viktor Mayer-Schonberger, op. cit., p. 128-168.
74 Segundo afirmou José Milagre da Legaltech, a forma de atuação dessa empresa é através de publicações de conteúdos positivos na Internet de maneira a afastar os resultados ditos negativos do topo de
pesquisa realizada no Google, mantendo-os, conseguintemente, em nível de frequência baixo (Guilherme Genestreti e Juliana Vines, Superexposição na Web Deixa nossa Reputação mais Vulnerável, cit.).
75 Rosário G. Gómez, Quiero que Internet se Olvide de Mí, El País, Madrid, 7.1.2011. Disponível em:
<http://www.elpais.comJarticulo/sociedadlQuierolInternet/olvidelelpepisoc/20 11 O1 07 elpepisoc_l/Tes>.
Acesso em: 31 out. 2011. Essa dificuldade é retratada pela criação da empresa espanhola salirdelnternet.com. Por 50 euros é possível retirar a associação do nome a multas ou a sentença não transitadas em
julgado. Primeiro, se realiza requerimento para que as informações sejam retiradas dos boletins oficiais,
das redes sociais, dos buscadores ou dos diários digitais.
76 Europa Quiere Regular el 'Derecho aI Olvido', El País, Barcelona, 5.11.2010. Disponível em: <http://
www.elpais.comJarticulo/tecnologialEuropa/quierelregularlderechololvidolelpeputec/20 1 O11 05 elpeputec_l/Tes>. Acesso em: 31 out. 2011.
77 Europa Quiere Regular el 'Derecho aI Olvido', cito
200
Direito e Mídia
Schreiber
de terem seus dados não mais processados e deletados quando não são mais
necessários para propósitos legítimos".78 O desafio apresentado por essa comissão no desenvolvimento do direito ao esquecimento seria demonstrar sua
relevância e autonomia frente a outros direitos lá já existentes como o direito
de deletar e de objetar e em que contexto ele seria instrumento hábil na tutela
da pessoa humana. 79
Independentemente da aprovação dessa nova regulamentação de proteção de dados, atitudes já estão sendo tomadas para garantir a tutela da
privacidade na Internet. As autoridades nacionais de proteção de dados de
vinte e sete países da União Europeia notificaram os principais buscadores
da Internet para garantir o anonimato dos dados de busca dos usuários (e,
portanto, seu direito ao esquecimento), em razão de não estarem sendo respeitadas as diretrizes europeias, que previam a manutenção de dados por no
máximo seis meses, antes de convertê-los em anônimos. 80
No entanto, mesmo na Europa, onde tradicionalmente nutriu-se uma
invejável cultura de proteção de dados, há limites para a autodeterminação
informativa na Internet. A Agência Espanhola de Proteção de Dados considera que não se pode retirar documento da web, pois tal medida alteraria a
própria história e possibilitaria a manipulação de documentos públicos, mas
destacou que seria possível impedir que os sistemas de busca na Internet realizem o enlace com determinada informação. 81 Esse expediente adotado pela
referida agência parece imbuído do lema de que nenhum cidadão, que não
78 Carta enviada, em 14.1.2011, à Comissária da Justiça dos Direitos Fundamentais e da Cidadania
Comissão Europeia, Vivianne Reding, pelo Grupo de Trabalho na proteção de dados que objetiva atua
lizar a Diretiva da União Europeia de proteção de dados, Disponível em: <http://ec.europa.eu/justice/
policies/privacy/docs/wpdocs/others/20 1 L 01_14_letter_artwp _ vp _reding_commissionJommunication_approach_dp_en.pdf>. Acesso em: 31 out. 2011.
79 Segundo essa visão, seriam os casos de solicitação de retirada do consentimento para processamento
de um dado pessoal ou quando o prazo de armazenamento estourou.
80 Convém destacar que em 19 de janeiro de 2001 foi noticiado que a Agência Espanhola de Preteção
de Dados, em decisão inédita na Europa, solicitou que o Google cancelasse os dados pessoais de cinco
cidadãos. Nessa direção, Rosário G. Gómez, Google Niega a Protección de Datos Legitimidad para
Ordenar la Cancelación de Contenidos, El País, Madrid, 19.1.2011. Disponível em: <http://www.elpais.
com/articulo/sociedad/Google/niega/Proteccion/Datos/legitimidad/ordenarlcancelacion/contenidos/elpepusoc!2011011gelpepusoc_5/Tes>. Acesso em: 31 out. 2010.
81 Google, Condenada en Francia a Retirar Enlaces a un Vídeo Pornográfico de una Profesora, El País,
Barcelona, 16.3.2011. Disponível em: <http://www.elpais.com/articulo/tecnologia/Google!condenadalFrancia/retirar/enlaces/video/pornografico/profesora/elpeputec!20110316elpeputec_6/Tes>. Acesso em: 31 out.
2011; e Editorial, Internet y EI Olvido, El País, Madrid, 24.1.2011. Disponível em: <http://www.elpais.com/
articul%pinionlInternetlolvido/elpepiopi/20110124elpepiopi_2lTes>. Acesso em: 31 out. 2011.
Direito ao esquecimento na Internet: a scar/et letter digital
201
goze de condições de pessoa pública nem seja objeto de um fato de relevância
pública, tenha que se resignar que seus dados circulem na rede. 82
Por outro lado, o Google, expressando os anseios dos buscadores da
Internet, se mostra contrário à imposição de desindexação de conteúdo,
como vem sendo determinado por diversas agências de proteção de dados,
argumentando que tal medida atentaria contra a liberdade de informação e
de expressão. 83 Seria a página da web onde estão contidas as informações
questionadas à qual se deve peticionar para retirar o conteúdo. 84 Argumenta
também que, ao se eliminarem essas indexações de conteúdos, a Internet
perderia sua objetividade, prejudicando a sociedade da informação. 85 Além
do aspecto ideológico, por trás dessas alegações há também motivos econômicos, eis que os termos de pesquisa são indexados automaticamente e
desassociá-Ios representaria tarefa onerosa para os provedores. 86
Apesar da relutância em efetuar a desindexação de conteúdo da web,
essa empresa disponibilizou serviço capaz de realizar a proteção, ao menos
parcialmente, dos seus usuários. Esse serviço, chamado de Eu na Web,87 embora limitado em suas possibilidades, permite aos indivíduos criarem e reescreverem seu próprio perfil pessoal, informa quando seu nome for veiculado
na Internet e enumera instruções para que dados pessoais sejam retirados do
ambiente digital.
Conquanto não seja possível retirar o material ofensivo do ar por meio
dessa ferramenta, há recomendação que se entre em contato com o webmaster do site onde publicadas essas informações; caso essa solução não funcio82 Rosário G. Gómez, Quiero que Internet se Olvide de Mí, cito
83 Rosário G. Gómez, Google Asegura que Borrar Datos Va Contra la "Objetividad" de Internet, El
País, 20.1.2011. Disponível em: <http://www.elpais.com/articulo/sociedadlGoogle/asegura/borrarldatos/va/objetividadlInternet/elpepisoc!20110120elpepisoc_3/Tes>. Acesso em: 31 out. 2011.
84 Google, Condenada en Francia a Retirar Enlaces a un Vídeo Pornográfico de una Profesora, cito
85 Por isso, Artemi Rallo, presidente da Agência Espanhola de Proteção de Dados, afirma que a "Internet
es un marco global y necesita una norma global, con tratados internacionales de protección de privacidad.
Esa es la única lógica que puede satisfacer la exigencia de proteger la privacidad. La fuerza está en la unión" (Rosário G. Gómez, Google Niega a Protección de Datos Legitimidad para Ordenar la Cancelación
de Contenidos, El País, Madrid, 19.1.2011. Disponível em: <http://www.elpais.com/articulo/sociedad/
Google/niega/ProteccionlDatos/legitimidadlordenarlcancelacion/contenidos/elpepusoc!20 11 O119elpepusoc_5/Tes>. Acesso em: 31 out. 2010.). Contra esse argumento, aduz-se que o Google para realizar suas
pesquisas utiliza dados (cookies) situados em cada país, por isso seria permitido seu controle.
86 Rosário G. Gómez, Google Asegura que Borrar Datos va Contra la "Objetividad" de Internet, cito
Tal informação confirma que a regra na sociedade da tecnologia é mesmo a recordação, na medida em
que se tornou mais caro esquecer do que lembrar.
87 Informações disponíveis em http://www.google.com/support/accounts/bin/answer.py?hl=pt-BR&
answer=1l81793>. Acesso em: 31 out. 2011.
202
Direito e Mídia
Schreiber
ne, a saída seria adotar medidas legais pertinentes, exceto nos casos em que
é envolvida a numeração do CPF, da seguridade social, de contas bancárias e
de cartão de crédito - quando é possível a desindexação pelo próprio Google
sem recorrer aos expedientes legais.
5 Decisões dos tribunais sobre o direito ao esquecimento
na Internet
A despeito de o Brasil não ter forte cultura de proteção de dados pessoais,
os números fornecidos pelo Google demonstram preocupação da sociedade
brasileira com a sua proteção, estando no topo do ranking dos países que
apresentaram o maior número de solicitações a esse site para remoção de conteúdo na Internet. 88 Conforme informado pelo Google,89 tal resultado pode ser
explicado pelas solicitações da Justiça Eleitoral, bem como do Governo, principalmente diante da popularidade do site de relacionamentos Orkut no país.
O entendimento atual delineado no Superior Tribunal de Justiça, cristalizado no Recurso Especial nº 1.186.616, recentemente julgado,90 tem auxiliado no processo de retirada de informações da Internet, em razão de ter
fixado como standard de conduta dos provedores de serviço a remoção de
conteúdo ofensivo a usuário assim que ciente de sua existência. Vale dizer, o
dever de reparar do provedor nasce quando instado a remover o conteúdo,
mas não o faz nem explica a razão para tanto.
Dessa forma, diante desse entendimento que já vinha sendo adotado pelos tribunais estaduais,91 criou-se forma efetiva de proteger os usuários de
ofensas perpetradas na rede mundial de computadores, que antes - sem a
88 Informações contidas no site http://www.google.com/transparencyreport/governmentrequests/removals/>. Acesso em: 31 out. 2011.
89 <http://www.google.com/transparencyreportlgovernmentrequests/removals/>. Acesso em: 31 out. 2011.
90 STJ, REsp 1.1186.616/MG, 3ª T., ReI. Min. Nancy Andrighi, julgo 23.8.2011. Note-se que, apesar
de ter-se ressaltado que a não retirada do ar de conteúdo considerado por usuário ofensivo acarretaria
responsabilidade do provedor de serviço, o Google não foi responsabilizado nesse caso porque, uma vez
ciente da existência do material, adotou as providências para retirá-lo do ar.
91 Nesse sentido, a título exemplificativo, cf. TJRJ, AI 2009.002.30774, 20ª CC, ReI. Des. Odete Knaack
de Souza, julgo 25.9.2009; TJRJ, AI 2008.002.24127, 1ª CC, ReI. Des. Maldonado de Carvalho, julgo
14.10.2008; TJRJ, Ap. Cív 2009.001.03180, 14ª CC, ReI. Helena Candida Lisboa Gaede, julgo 25.3.2009;
TJRJ, Ap. Cív. 01321233-42.2009.8.19.0001, 2ª CC, ReI. Des. Leila Mariano, julgo 23.3.2010. Ao propósito, veja-se a ilustrativa classificação do entendimento dos tribunais sobre responsabilização dos provedores na rede, especificamente no que respeita à criação de perfis falsos: Anderson Schreiber, Twitter, Orkut
e Facebook: Considerações sobre a Responsabilidade Civil por Danos Decorrentes de Perfis Falsos nas
Redes Sociais, In: Diálogos de Direito Civil, V. 3, Rio de Janeiro: Renovar, 2012, p. 159-164.
Direito ao esquecimento na Internet: a scarlet fetter digital
203
responsabilização do provedor nem o fornecimento de informações sobre o
ofensor - ficavam sem qualquer indenização.
N o entanto, com esse entendimento, cria -se o verdadeiro risco para o
exercício da liberdade de expressão na rede, porque estimularia a retirada
de material da Internet, mesmo diante de legítimas manifestações de liberdade de expressão. 92
Em julgamento realizado pela décima nona câmara cível do Tribunal
de Justiça do Estado do Rio de Janeiro consideraram-se improcedentes os
pedidos veiculados por internauta, a cujo nome foram vinculadas notícias
que, segundo alega, não seriam condizentes com sua conduta social, além de
ofensivas a sua honra. Em virtude disso, pleiteou-se a responsabilização civil
do Google, bem como obrigação de fazer. 93
O Desembargador Relator, para adotar tal posicionamento, alegou que:
"Portanto, não há qualquer ato ilícito a ser imputado a Ré na exibição dos fatos citados. Até porque as notícias ali veiculadas podem
ser obtidas através de consulta processual ao E. Tribunal de Justiça,
cujo conteúdo dos autos são públicos."
Negar, em abstrato, que a construção de perfil virtual por sistema de busca
não possa violar a dignidade da pessoa humana é permitir que essa identidade prepondere sobre aquela que tem sido desenvolvida no meio social. Além
disso, tratar os conteúdos organizados pelo sistema de busca do Google, que
permite fácil acesso a diversas informações, originalmente dispersas na rede,
como semelhante ao disponibilizado pelo site desse tribunal, é fechar os olhos
para evidente diferença. A despeito de o conteúdo dos atos do Judiciário serem públicos, seu acesso se mostra muito mais difícil, tornando-o, portanto,
menos acessado, do que os resultados indicados pela busca na Internet, que
não exige maior esforço do interessado para encontrar a informação desejada.
Esta é também muito mais abrangente do que o fornecido pelo site do
Tribunal de Justiça. A simples pesquisa do nome da autora no Google mostra
diversas informações sobre sua vida pregressa, enquanto as presentes no site
do tribunal se limitam àquelas em que a autora foi parte processual. Entre92 Confira-se acerca dessa problemática Anderson Schreiber, Twitter, Orkut e Facebook: Considerações
sobre a Responsabilidade Civil por Danos Decorrentes de Perfis Falsos nas Redes Sociais, cit., passim. Vale
destacar que essa questão ainda deverá ser debatida diante da formulação do Marco Civil da Internet.
93 TJRJ, Ap. Cív. 0148281-75.2009.8.19.0001, 19ª CC, ReI. Des. Guaraci de Campos Vianna,
julgo 22.6.2010.
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Direito ao esquecimento na Internet: a scarlet letter digital
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tanto, não se defende aqui a possibilidade de ser esculpida, ao alvedrio do
interessado, sua identidade virtual, permitindo apenas que as informações
benéficas sejam a ele relacionadas. Objetiva-se somente colocar à disposição
ferramenta para que o indivíduo alcançe a correspondência entre a identidade
virtual e a real.
A Agência de Proteção de Dados da Espanha tem pioneiramente construído jurisprudência facilitando a desindexação de informações. A título exemplificativo, uma mulher conseguiu que fossem desassociadas informações a
ela referentes, que diziam respeito a sua condenação que ocorrera 13 anos
antes. 96
Dessa forma, nesses casos, para que se julgue procedente o pleito autoral
de desindexação de informações do Google com o nome da autora seria preciso verificar se, de fato, as diversas acusações de reiterado exercício ilegal da
profissão, de favorecimento à prostituição, de prostituição infantil e de rufianismo são verídicas e se efetivamente refletem a identidade atual da autora.
Em outro caso emblemático, tribunal francês considerou que na associação do nome de professora a vídeo pornográfico, o Google foi responsável
pela violação da vida privada. O tribunal considerou essa restrição justificável para respeitar a vida privada. 97
Ressalte-se que não se pode tolerar que os conteúdos dos sites indicados na busca não possam ser monitorados, cabendo como única solução
questionar os sites que diretamente tenham divulgado a informação. Embora os buscadores não possam evidentemente modificar o conteúdo da
rede mundial de computadores, é possível desvincular o nome de determinado usuário de certas informações resultantes da busca, na medida em
que elas não reflitam a realidade.
Com semelhante raciocínio, afirmou-se em apelação cível julgada pelo
Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro ser evidente que "a ferramenta de busca não é capaz, por si só, de causar o dano que o Apelante afirma ter sofrido,
considerando que as informações acerca de sua prisão, tenha sido ela devida
ou indevida, já se encontravam na rede, tendo o Apelante apenas facilitado/
organizado o acesso a tais dados" .94 Como já destacado, não é porque o
conteúdo não foi elaborado pelo sistema de busca que se devem cruzar os
braços. A Internet pode e deve, em determinadas circunstâncias, esquecer.
Por outro lado, mostra-se exemplar o acolhimento de pretensão para
desindexar dos resultados do buscador Google o nome do Autor, cujas informações on-line a eles relacionadas indicariam que estaria respondendo à
ação penal relativamente ao artigo 171 do Código Penal, mesmo após ter
sido absolvido das acusações. Privilegiou, assim, a tutela da identidade do
autor tal como se mostra na sociedade, não podendo ser eternamente vinculado à ação penal, que socialmente gera veementes sanções, podendo, por
exemplo, afastá-lo do convívio de determinados grupOS.95
6 Conclusão: neblina no mundo da privacidade?
Com a mesma intensidade em que se levantam vozes a favor de um direito ao esquecimento, há aqueles que defendam que a busca pelo direito ao esquecimento dos usuários poderia levar a violações à liberdade de expressão.
É o que expressa Peter Fleischer, conselheiro do Google sobre questões
de privacidade, para quem a privacidade tem sido utilizada atualmente para
justificar a censura, notadamente pelo fato de ser mais elástica em comparação com outras medidas de proteção da reputação, visto que sua tutela é justificada mesmo quando o fato em questão não seja falso. 98 Acusa, também,
que o debate sobre o direito ao esquecimento, especialmente se necessária
sua positivação, está permeado de confusões conceituais, de maneira que
haveria uma neblina relativamente às discussões do direito ao esquecimento.
No entanto, como visto, se há que se falar em neblina, ela diz respeito a
como é tratada a identidade dos usuários na Internet, que cada vez mais se
torna opaca e se distancia da realidade. Com esse artigo, objetiva-se somente
conferir aos indivíduos instrumentos capazes de se revelarem tal como são,
principalmente na web, local onde facilmente pode ser construída imagem pessoal que não corresponde à realidade, sem que isso signifique censura alguma.
Por outro lado, cumpre apenas advertir que não se pode, da necessidade
de franquear aos indivíduos a possibilidade de (re)construção da identidade
na Internet, cair no perigo de se criar um revisionismo histórico ou da perda
96 Rosário G. Gómez, Quiero que Internet se Olvide de Mí, cito
97 Google, Condenada en Francia a Retirar Enlaces a un Vídeo Pornográfico de Una Profesora, cito
94 TJRJ, Ap. Cív. 0280797-93.2008.8.19.0001, 9" CC, ReI. Des. Rogério de Oliveira Souza, julgo 15.2.2011.
95 TJRJ, Ap. Cív. 0015746-54.2010.8.19.0000, 7" CC, ReI. José Geraldo Antonio, julgo 26.5.2010.
98 V. a esse respeito Peter Fleischer, Foggy Thinking About the Right to Oblivion. Disponível em: <http://
peterfleischer.blogspot.comJ2011103/foggy-thinking-about-right-to-oblivion.htrnl. Acesso 31 out. 2011.
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da memória como consequência de um direito ao esquecimento - preocupação externa da por Martin Heidegger. 99
A humanidade já conviveu em diversos regimes totalitários com esse temor, nos quais, em nome do suposto "bem comum", a história teria que ser
reescrita, sendo tal contexto histórico brilhantemente transplantado para o
mundo ficcional na obra 1984, de George Orwell. Nesse livro, o personagem
principal é funcionário do Ministério da Verdade, possuindo a função de re-escrever o passado e alterar dados de acordo com a conveniência e interesse
do partido que se encontra no poder.
Não há como negar que certos episódios são insuscetíveis de serem esquecidos. São fatos que se prendem à própria essência de um povo ou um
indivíduo, que marcaram de forma indelével sua história, que deve ser recontada para formação da identidade cultural do país.
Não há como falar da história americana sem mencionar o assassinato
de Kennedy em novembro de 1963 por um homem chamado Lee Oswaldo
Tampouco é razoável supor a possibilidade de lançar no esquecimento as
circunstâncias que levaram à morte de Euclides da Cunha e mais tarde de
seu próprio filho. Não é possível simplesmente se desvincular completamente
de fatos que marcaram a vida de cada um, na medida em que a identidade é
fruto dessas experiências. Deve-se, pelo contrário, controlar como tais informações são organizadas e o contexto em que disponibilizadas, sem que isso
implique alteração da história.
Em que pese a necessidade de se afirmar o direito ao esquecimento, não
se pode descurar que, nas palavras de Anderson Schreiber, o "desafio atual
da privacidade não está na sua afirmação, mas na sua efetividade" .100 Então,
mãos à obra na tarefa de preservação da nova face da liberdade, porque ainda há um longo caminho a ser percorrido.
99 Cf. seu ensaio O Que é Pensar apud Danilo Doneda, Da Privacidade à Proteção de Dados Pessoais,
cit., p. 405. Semelhante receio é o de Danilo Doneda: "a preservação da memória coletiva é um aspecto
da disciplina da informação e também se relaciona com a proteção de dados pessoais, e certamente
levantará ainda muitas dúvidas sobre os procedimentos a serem observados na conservação de informações pessoais" (Da Privacidade à Proteção de Dados Pessoais, cit., p. 406).
100 Anderson Schreiber, cit., p. 136.
Transmissão de eventos desportivos
e direito de arena: contornos de
um direito peculiar
Rebeca dos Santos Garcia
Por quê? Por que amar o esporte? Convém em primeiro lugar lembrar que tudo o que acontece com o jogador também acontece com
o espectador. [...] Assistir, aqui, não é apenas viver, sofrer, ficar na
expectativa, compreender, mas também - e sobretudo - o que se diz,
com a voz, o gesto, o rosto; é tomar o mundo inteiro como testemunha. Resumindo, é comunicar-se.
Roland Barthes, O que é o esporte?
Sumário: 1 Introdução 2 Da Lei de Direito Autoral à Lei Pelé: a transmissão de eventos desportivos e a regulamentação da matéria no Brasil 3 Um direito peculiar: visão geral - e crítica - do direito de arena 3.1 Direito de arena e direito de imagem 3.1.1 Heróis do Tri: a
distinção em evidência 4 Exclusividade e direito à informação: limitações ao direito de arena 5 Conclusão