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General Santos Cruz: comandando da linha de frente

2018, Tecnologia e Defesa

Entrevista com o general de divisão (R1) Carlos Alberto dos Santos Cruz, 64, reconhecido internacionalmente por colegas e comandados como um dos mais brilhantes militares brasileiros. Revista Tecnologia e Defesa n. 52

| ESPECIAL | Comandando da linha de frente Entrevista exclusiva com o general Santos Cruz G aúcho de Rio Grande e filho de um oficial da Brigada Militar, o general de divisão (R1) Carlos Alberto dos Santos Cruz, 64, é reconhecido internacionalmente por colegas e comandados como um dos mais brilhantes militares brasileiros. Seu trabalho no Haiti tornou-se uma referência e foi tão importante que, poucos meses depois de ir para a reserva, ele foi convocado para retornar ao serviço ativo com a finalidade de comandar na República Democrática do Congo a maior e mais complexa missão de paz da Organização das Nações Unidas (ONU), e a primeira a possuir uma Brigada de Intervenção. Na selva africana, sempre na linha de frente, liderou unidades de combate em operações de alta complexidade e com meios tecnológicos até então inexistentes na Força Terrestre, atingindo completo êxito, vencendo o inimigo e abrindo espaço para a constru52 TECNOLOGIA & DEFESA ção da paz, o que trouxe mais uma vez o reconhecimento da comunidade internacional. Acompanhe a seguir uma entrevista exclusiva com o general Santos Cruz concedida ao jornalista de T&D Kaiser David Konrad. Tecnologia & Defesa - General, o seu primeiro comando no exterior foi na MINUSTAH, quando deu início a uma mudança radical na situação de segurança no Haiti, chamando a atenção da ONU sobre seu comando e sua estratégia para resolver o problema da criminalidade no país. O sr. poderia comentar? General-de-Divisão (R1) Carlos Alberto do Santos Cruz - A minha primeira participação na ONU foi no Haiti, como comandante das tropas das Nações Unidas naquele país. Eu fiquei na função por dois anos e três meses (janei- Fotos: arquivo pessoal ro de 2007 a abril de 2009). Quando cheguei ao Haiti, os grupos criminosos, as famosas”street gangs”, estavam concentradas no bairro de Citè Soleil e com completo controle da área já fazia alguns anos. As tropas da ONU possuíam alguns pontos já estabelecidos no interior da área, chamados de pontos fortes. Logo após a chegada, a decisão foi de acabar com esse domínio de “gangs” sobre a área e sobre a população local a fim de possibilitar o restabelecimento da autoridade pública. Não é possível tolerar grupos criminosos com domínio sobre uma área, usando armamento ostensivamente, não permitindo o acesso do Estado e submetendo a população a sequestros, extorsões, estupros, etc. Os ataques contra as tropas da ONU aconteciam diariamente. Essa situação foi de grande vantagem para as tropas, pois os militares são preparados exatamente para situações de conflito. A idéia dos grupos armados, de que era possível defender o território e enfrentar as tropas da ONU em combate, foi determinante para o nosso sucesso. A decisão imediata foi pelo enfrentamento. As tropas são profissionais, com melhor treinamento, material, tecnologia, logística e com muito melhor liderança. Nessas situações, liderança e determinação são fundamentais. É importante manter um ritmo intenso de ações de vulto contra os grupos criminosos até o completo desmantelamento e eliminação. Não pode haver descanso. Isso foi feito por tropas bem comandadas e treinadas, de vários países, sendo o contingente brasileiro o mais numeroso. Na realidade as ações não foram para resolver o problema da criminalidade, mas sim para eliminar o poder dos grupos armados que haviam sido explorados politicamente em um certo momento da história recente do país. A diminuição dos problemas normais de segurança pública, os crimes que acontecem na rotina da vida social, foram uma consequência natural. Nesse ponto é bom destacar que a taxa de crime de homicídio no Haiti, por exemplo, é bem menor que a do Brasil. O objetivo da ONU, normalmente, é eliminar a violência de origem política e não exatamente os crimes que existem na dinâmica social, que são problemas de segurança pública. No entanto, no caso haitiano, a eliminação das gangues também acarretou aumento de segurança nas áreas sob controle da força militar das Nações Unidas. E isso tudo foi conseguido sem os chamados danos colaterais, graças à qualidade das tropas responsáveis pelas ações. T&D - Na sua opinião, quais são as reais causas dos problemas do Haiti e qual seria a solução? General Santos Cruz - Para entender alguns problemas existentes no Haiti, há necessidade de algumas considerações. O Haiti é um país que tem marcas visíveis da sua evolução histórica, tais como: a) a violência do modelo escravagista; b) a independência feita por uma revolta heróica de escravos, mas que possuía muito poucas pessoas capacitadas a assumirem as tarefas econômicas e administrativas, ficando o país na mão dos poucos com alguns preparo cultural e técnico; c) a cobrança e o pagamento da «dívida» pela independência, que se alongou por uma centena de anos, consumindo muitos recursos financeiros do país; e d) a ocupação e interferência estrangeira no próprio território. A todos esses eventos históricos, é possível adicionar os ingredientes indesejáveis em qualquer país: a) domínio por um pequeno número de famílias mais bem estabelecidas e extremamente ricas; b) o continuado enriquecimento de muitos às custas do extremo sacrifício da grande massa; c) o desequilíbrio social, com poucos desfrutando dos recursos do país em detrimento da penúria da grande maioria; d) a falta de serviços públicos com qualidade mínima e até mesmo a impossibilidade de acesso à educação, saúde, alimentação, segurança, moradia, trabalho e Justiça; e) a fuga de recursos financeiros produzidos no país por um pequeno grupo para os ambientes mais seguros e atrativos como Estados Unidos e Canadá, por exemplo; f) a apropriação do país por grupos e interesses políticos que não se traduzem em ações concretas de desenvolvimento e que não trazem à população mais do que o discurso e a disputa eleitoral; e, como em muitos países, a corrupção. Ao longo do tempo a população desenvolveu um sentimento de desencanto, descrédito no poder público, com desesperança na classe política e percepção de incompetência, corrupção e abandono. O discurso político é bem elaborado, como em qualquer lugar, pois é possível construir um discurso com “padrões internacionais” utilizando meia dúzia de idéias, tais como democracia, educação, meio ambiente, igualdade, sustentabilidade, proteção aos mais vulneráveis, etc. No entanto, na prática isso não é traduzido em água, energia, alimentação, saúde, moradia, trabalho, desenvolvimento, etc. Essas considerações têm o objetivo de esclarecer algumas das causas do problema. Existem outros, sendo um deles a excessiva interferência internacional através de agências, fundos, programas e de organizações não governamentais (ONGs). O país é conhecido como a “República das ONGs” Apesar de não haver número oficiais, havia cerca de nove mil ONGs no país antes do terremoto de janeiro de 2010. Após a catástrofe o número aumentou para 12 mil, caindo para o nível anterior cerca de um ano após. Na emergência do terremoto, muitas organizações fizeram um grande trabalho. Fora da emergência, algumas fazem um trabalho exemplar. No entanto, um grande número, talvez mais de 90%, não são registradas no governo e atuam sem coordenação, visibilidade e transparência e não existe pleno conhecimento do orçamento e da capacidade técnica. É natural que pessoas e organizações com real sentimento humanitário queiram auxiliar os mais necessitados. Mas a pobreza e a miséria no Haiti já são por longo tempo motivo de obtenção de orçamento para muitas organizações. Mesmo com algum benefício direto para quem é auxiliado, não tem havido significante evolução estrutural no país. A situação deplorável dos mais necessitados no Haiti não pode servir de eterna fonte e justificativa permanente para a presença de milhares de organizações estrangeiras sem controle e com orçamentos desconhecidos. O pouco acesso que se tem aos valores destinados à atividades assistenciais são somas de vulto que, pelo menos, não correspondem a resultados visíveis. Não são agências, fundos, programas e ONGs que vão resolver o problema do Haiti. Isso é tarefa dos próprios haitianos. A presença maciça de organizações estrangeiras, com falta de controle, de subordinação a um plano de governo, cria e perpetua deformações graves no comportamento social e político. O terremoto foi um desastre natural, catastrófico. Os problemas do Haiti não estão ligados ao terremoto. Eles são os mesmos de antes e depois do infeliz acontecimento. TECNOLOGIA & DEFESA 53 Qual a solução para o Haiti? Não tenho a pretensão de apresentar solução. Vou dizer apenas algumas idéias que são fundamentais. Primeiro, a solução depende somente dos próprios haitianos. Honestidade e eliminação da corrupção são fundamentais, como em qualquer país. É necessária a existência de uma liderança com real espírito patriótico que inspire essa confiança de honestidade, priorize o povo e a quebra do “status quo” existente. É importante, também, que o governo negocie o apoio externo sem interferência e coloque todas as organizações estrangeiras que queiram trabalhar no país sob controle governamental para que atuem dentro de um plano de governo, com controles de resultados, orçamentário e fiscal. Em resumo, eu destaco a honestidade, a eliminação da corrupção, o patriotismo, a dedicação ao povo e o controle das agências, fundos, programas e ONGs. Isso não é tarefa fácil, mas o Haiti precisa de um líder disposto e uma classe política que faça na prática aquilo que é capaz de dizer no discurso, como acontece também em outros países e não somente no Haiti. T&D - Em 2013, o sr. foi reconvocado e assumiu o comando da MONUSCO, inclusive da primeira Brigada de Intervenção na história das missões de paz. Poderia nos falar mais sobre seu trabalho na República Democrática do Congo? Como eram as missões? Como conseguiu vencer o M-23? Existe uma solução para aquele conflito? General Santos Cruz - Eu havia deixado o serviço ativo do Exército em dezembro de 2012, e em abril de 2013 fui surpreendido com a possibilidade de comandar as tropas da ONU na República Democrática do Congo (RDC). A MONUSCO (Missão das Nações Unidas para a Estabilização da RDC) era - e ainda é - a maior missão da ONU e também a que tem maior orçamento. Naquele momento tinha um efetivo de mais de 20 mil homens e um orçamento de cerca de US$ 1,4 bilhões. Os problemas do Congo são extremamente complexos, em especial na faixa leste, onde faz fronteira com Sudão do Sul, Uganda, Ruanda, Burundi e Tanzânia. Toda aquela área tem uma história marcada por violência, sendo um dos eventos mais conhecidos o genocídio de 1994, quando cerca de 500 mil pessoas da etnia tutsi e mais 300 mil da etnia hutu foram mortos num período de aproximadamente três meses em Ruanda. Muitos deles fugiram para dentro do Congo. Posteriormente, ali, um número incontável de hutus e de outras etnias também foram massacrados durante vários conflitos. Estima-se que entre 5 e 6 milhões de pessoas morreram vítimas de violência no Congo nos últimos 20/25 anos. A imprecisão dos números mostra a perda da dimensão humana do problema. Em 2012, mais um movimento rebelde foi criado no Congo, denominado M-23. Era um grupo basicamente de etnia tutsi, com formação militar sólida, sendo grande parte de desertores do próprio exército congolês, fortemente armados e com apoio externo. Esse grupo, depois de alguns combates, ocupou Goma, uma das principais cidades do Congo no leste do país, com mais de 1 milhão de habitantes, na fronteira com Ruanda. O Exército do Congo recuou, a ONU não impediu a ocupação e isso trouxe uma situação de desprestígio, de vergonha para as Nações Unidas. O Conselho de Segurança emitiu novo Mandato com autorização mais contundente para o uso da força e reforçou a Missão com a chamada Brigada de Intervenção, composta por cerca de 3.000 militares da Tanzânia, África do Sul e Malaui. Eu cheguei no Congo nos primeiros dias de junho de 2013, logo após a chegada do primeiro contingente da Brigada de Intervenção vindo da Tanzânia. Posteriormente, chegaram África do Sul e Malaui. Existiam no Congo cerca de 45 grupos 54 TECNOLOGIA & DEFESA armados, mas a principal atenção, naquele momento, era liberar a cidade de Goma do cerco do M-23. Aquele grupo, por pressão política da ONU, havia saído de dentro da cidade e se estabelecido nas primeiras elevações ao norte, na periferia da área urbana, a cerca de 6/7 km do centro. Por outro lado, o M-23 possuía uma Artilharia com alcance de 18,5 km. Na área política havia sido aberta uma rodada de conversações de paz entre o governo do Congo e o M-23 em Kampala, capital de Uganda. A decisão imediata foi de apoiar o Exército congolês na luta contra o M-23 para liberar Goma, derrotar o movimento e recuperar a área ao norte que estava sob controle e administração daquele movimento rebelde, pois havia constituído uma espécie de governo paralelo naquela região. A batalha ocorreu no final de agosto de 2013, com a ONU apoiando o Exército do Congo. O M-23 estava em posições muito sólidas, em elevações difíceis de serem conquistadas e os combates duraram oito dias, culminando com a derrota e o recuo do M-23, mas também com muitas baixas do lado congolês e algumas baixas de mortos e feridos da ONU. Foi um combate clássico, com Infantaria no ataque e apoio extremamente forte de Artilharia, morteiros e helicópteros. O M-23 recuou para posições mais ao norte e, em outubro de 2013, houve novo enfrentamento nas localidades de Rutshuru-Kiwanja, quando também tivemos baixas, mas derrotamos o M-23 uma vez mais, fazendo com que o grupo rebelde ocupasse uma posição defensiva extremamente difícil de ser conquistada nas proximidades da fronteira com Uganda. Após algumas tentativas do Exército do Congo e apoio da ONU, com emprego de Infantaria, Artilharia e morteiros, os rebeldes foram derrotados com maciço bombardeio por helicópteros de ataque, e os remanescentes fugiram para Uganda. “Honestidade e eliminação da corrupção são fundamentais, como em qualquer país. É necessária a existência de uma liderança com real espírito patriótico que inspire essa confiança de honestidade, priorize o povo e a quebra do “status quo” existente” Na continuidade das operações foram desencadeadas ações contra outros grupos armados em áreas de selva, completamente diferente das áreas anteriores. O combate passou a ser de patrulhas pequenas e pelotões em área semelhante à da selva amazônica, contra grupos que evitavam o confronto direto e utilizavam emboscadas. Um desses grupos se chama ADF, com origem em Uganda, ideologicamente islâmico radical, aterrorizando a população com violência indiscriminada contra civis, inclusive assassinando de forma cruel crianças, mulheres e homens, quase que exclusivamente com machados e facões, usando o mínimo de armas de fogo. A utilização de técnica de emboscadas e o assassinato de civis (cerca de 500 em um ano) também acarretou muitas baixas no Exército do Congo e algumas na ONU. Em outras áreas do país também tínhamos outras operações contra diferentes grupos rebeldes. A solução do conflito do Congo, assim como em outros locais, passa pela vontade política de resolver o conflito, liderança e capacidade do Estado de se impor sobre os grupos armados. O problema do Congo é extremamente complexo, com a participação de vários países da região dos Grandes Lagos Africanos e influência da chamada Comunidade Internacional, da União Européia, União Africana, da comunidade dos países do Sul da África, etc. Os interesses são diversos, tendo em vista que o Congo é um dos países mais ricos do mundo, por conta dos seus imensos recursos naturais. Esse é o real motivo de toda a disputa de poder e da violência por lá. A solução dos problemas passa por uma disposição dos líderes políticos do Congo, Ruanda e Uganda, principalmente, e por medidas de fortalecimento da autoridade governamental nos locais mais remotos daquele imenso país, que é aproximadamente do tamanho da Europa Ocidental. A autoridade do Estado precisa se impor sobre os interesses regionais; a corrupção necessita ser reduzida; o combate ao contrabando, ao comércio ilegal de minerais, ao comércio internacional ilegal de armas e munições precisa ser implementado; é fundamental diminuir o desnível social e penalizar a exploração e incentivo político de problemas étnicos. A solução, mesmo parcial, transformará o Congo em um dos países mais ricos do mundo, por conta de suas imensas riquezas naturais. T&D - Na República Democrática do Congo, por diversas vezes, o sr. fez uso de equipamentos que ainda hoje o Exército Brasileiro não possui, como helicópteros de ataque e veículos aéreos não tripulados (VANTs). Qual é a importância desses sistemas, como eram utilizados e que ganho operacional traziam? Quais lições o sr. trouxe a respeito? General Santos Cruz - Para entrar em combate há a necessidade de equipamento, treinamento, conhecimento, etc, mas principalmente determinação, vontade de vencer, liderança, percepção, decisão. É preciso manter um ritmo forte nas ações e ter capacidade de escalar o conflito se for necessário. Todo o aparato militar de tecnologia, armamento, logística, apoio de fogo, precisa ser utilizado na sua eficiência máxima. Num ambiente ONU isso é muito difícil de conciliar, pois as motivações e as influências na organização são muito distintas. Tem que haver confiança na percepção, pois não há tempo disponível para ficar analisando tudo de maneira clássica. Tem que haver dinâmica operacional, mas também precisam ser seguidas todas as regras do direito internacional dos conflitos armados, os princípios de direitos humanos, etc, e não acarretar efeitos colaterais. Isso tudo é possível, pois é só uma questão de percepção. Equipamentos como helicópteros de ataque, uma Artilharia eficiente, tropas especiais com equipamentos também especiais, veículos aéreos não tripulados com boa resolução de imagem, etc, são essenciais para a inteligência, para o conhecimento da situação e da área de operações, para a tomada de decisões com menor risco e para destruir o oponente, proteger a Infantaria e a Cavalaria no seu avanço no terreno. Quando se tem tropas e equipamentos de qualidade é muito maior a sensação de segurança ao se tomar decisões de risco. A grande lição pessoal que eu posso transmitir é de que o Exército Brasileiro pode multiplicar muitas vezes a sua capacidade se for equipado com aquilo que pleiteia, já que o principal componente já possui - a qualidade do seu pessoal. Eu tive oportunidade de comandar nosso pessoal em ação, junto com combatentes de outros países, também excelentes. Os soldados, cabos, sargentos, oficiais na linha de frente são extremamente destemidos, corajosos, cuidadosos, técnicos, precisos e disciplinados. Numa certa ocasião, eu tive a oportunidade de falar, em uma reunião na ONU, que o maior show não era lá na Broadway, em Nova York. O maior de todos era ver os soldados, cabos, sargentos e oficiais em ação na linha de frente. E eu tive a felicidade de ver nosso pessoal em ação. Fica aqui o meu reconhecimento e homenagem a eles e aos militares de outros países também. T&D - Seus comandados, sejam eles nacionais ou estrangeiros, sempre destacaram sua liderança e combatividade, e a forma única de como tomava decisões em níveis tático e estratégico (político), assumindo sempre as responsabilidades do Comando em prol do cumprimento efetivo da missão. O sr. também sempre foi visto liderando as colunas nas patrulhas e participando ativamente dos combates. O sr. poderia nos falar mais sobre isso? General Santos Cruz - Quando a missão, a tarefa que se tem, coincide com a nossa personalidade, fica tudo mais fácil. Quando não coincide, deve ser um sofrimento insuportável. Eu tive sorte de escolher uma profissão que coincidiu com a minha personalidade. E as coincidências profissionais me levaram a tarefas que também tinham a ver comigo. Assim, não precisa muita perda de tempo para as decisões. A percepção é um componente decisivo. Eu não gosto de ficar na retaguarda apenas no planejamento e na decisão. Eu sempre gostei também de executar, de ir com os soldados na linha mais próxima dos acontecimentos. O pessoal da linha de frente - soldados, cabos, sargentos, oficiais - são extremamente corajosos. E aí a gente também é contagiado, arrastado, vai junto. A situação hierárquica e funcional de comandante me deu possibilidade dessa realização: planejar, decidir e executar. Enfim, participar de todas as fases da ação militar. De ponta a ponta. Se a idade traz algumas limitações, a melhor maneira de eliminar isso é enfrentar o desafio. Existe uma particularidade no ambiente ONU: as motivações são as mais diversas. É diferente de correr risco pelo seu país, onde todos tem a mesma motivação. Num ambiente de tantos interesses e motivações distintas só tem uma maneira de transmitir confiança e fazer o pessoal avançar: é indo na frente, participando. Isso é uma linguagem universal. Não precisa falar nada. É só fazer. T&D - Se fosse novamente convidado, o sr. estaria pronto e disposto para retornar ao serviço ativo e comandar outra missão de paz ou de combate no exterior? Considerando os conflitos da atualidade, qual seria sua preferência e a estratégia a ser implementada? General Santos Cruz - Sem dúvida. Se eu tivesse nova oportunidade, eu iria. Disposição não falta. E acho até que, mesmo com a passagem inexorável do tempo, eu ainda tenho condições. Mas as oportunidades têm também um tempo certo para acontecer. Em situação de conflito não dá para ter preferência, mas tem que ser uma tarefa que transmita a sensação de que se está contribuindo para a defesa de inocentes, para a defesa dos mais vulneráveis, para a proteção daqueles que sofrem violência por conta de grupos políticos e grupos armados criminosos. A gente tem que ter a sensação de que está contribuindo para a defesa dos mais fracos. Assim, não fica tão difícil de identificar a “preferência”. Cada situação é única, mas a estratégia a ser implementada em qualquer situação segue alguns princípios: planejamento, treinamento específico, iniciativa e determinação para o enfrentamento. T&D - Já na reserva,o sr. foi convidado para gerenciar a FT-35, trazendo sua experiência operacional em prol da reestruturação do Exército. Qual é a importância desse trabalho? Quais seriam as No interior da selva congolesa, em 2014 principais mudanças a serem implementadas no seu entender? Como deverá ser o Exército Brasileiro em 2035? General Santos Cruz - Todas as organizações, aí incluindo o Exército, têm necessidade de fazer um planejamento de médio e longo prazos de tempos em tempos. A sigla FT-35 é uma pequena parte dos projetos que têm como finalidade sugerir e realizar as modificações do Exército com uma perspectiva referenciada para 2035. Em determinados momentos há necessidade de verificar a defasagem tecnológica, a modernização estrutural e a mudança de contextos de possíveis empregos da Força Terrestre. O material militar está em constante evolução na área de veículos, equipamentos e armamentos individuais e coletivos, comando e controle, cibernética, meios aéreos, munições, etc. E o Exército está com esse processo em andamento. Eu me sinto útil por estar participando desse processo e poder contribuir com alguma coisa. É um trabalho importante, pois moderniza, racionaliza, aumenta a eficiência do Exército. O Exército segue o ritmo da sociedade e da disponibilidade de orçamento. Assim, a evolução acontece dentro daquilo que é possível. As mudanças a implementar, particularmente na área de equipamentos, seguirão as perspectivas orçamentárias. É bastante evidente que não é possível fazer todas as modificações desejadas, como acontece em qualquer área da administração pública, mas têm alguns pontos que o Exército tem mantido em nível de excelência: a seleção de pessoal, o sistema de ensino e treinamento - são pontos de excelência do Exército, reconhecidos nacional e internacionalmente; a conduta disciplinar do seu pessoal; a presença nacional, possibilitando à população a confiança na instituição; a lisura nos atos administrativos e a boa aplicação dos recursos alocados; a participação em todas as emergências a fim de prestar auxílio à população; a manutenção de tropas prontas para reação estratégica imediata; a atualização de tecnologia no emprego de meios aéreos do Exército; de elementos de forças especiais; de sistemas de comando e controle; de sistemas de Artilharia; de Cavalaria mecanizada e blindada; de mecanização de elementos de combate básico; de defesa cibernética e de sistemas de vigilância e inteligência. Dezoito anos à frente (2035) não é um tempo tão longo e eu penso que o Exército Brasileiro vai chegar lá com o mesmo perfil de uma instituição altamente confiável, exemplar, prestigiada, referência em muitos pontos para a população brasileira e com maior poder de combate em alguns núcleos internos selecionados para tal. T&D - Falando em termos de equipamentos, na sua opinião, quais sistemas deveriam ser introduzidos para melhorar a capacidade de combate do Exército? General Santos Cruz - Essa é uma opinião exclusivamente pessoal, pois essas definições dependem do comandante do Exército, assessorado pelo Estado-Maior. Eu penso que são importantes as evoluções nas áreas de helicópteros de ataque, nos sistemas de Artilharia - como busca de alvos e munições modernas guiadas/ inteligentes, na mecanização e nos veículos blindados, nas áreas de sensoriamento, comando e controle, veículos aéreos não tripulados, inteligência e cibernética. Esses são exemplos de áreas onde o desenvolvimento dos sistemas é fundamental. T&D – O sr. participou de muitas operações de combate urbano. Como vê a possibilidade de empregar a Força Terrestre em missões do tipo? De que forma elas poderiam proteger as fronteiras e pacificar o País, no que se refere ao combate à criminalidade? General Santos Cruz - O Exército é extremamente bem preparado para missões de combate em área urbana. Nós tivemos enfrentamentos de alta intensidade, com troca de milhares de tiros com grupos armados e jamais houve qualquer dano físico ou ao patrimônio das pessoas inocentes. O Exército Brasileiro é perfeitamente apto para esse tipo de missão e também é muito bem preparado para operações tipo polícia. Não há qualquer dificuldade para o Exército em ser empregado em missões de combate urbano ou em operações tipo polícia. Isso não quer dizer que o Exército pode ou deve substituir a polícia. O problema do nível de criminalidade no nosso País é muito mais amplo do que a atuação da força policial ou a participação eventual do Exército. Na sua raiz tem questões de administração, de liderança, de impunidade, de corrupção, de mau exemplo, desequilíbrio social, entre outros. Os crimes que envolvem violência compõem apenas uma parcela dos graves problemas existentes. O combate à criminalidade é uma cruzada que precisa ser feita contra todos os tipos de crimes, em todos os níveis, e não apenas contra aqueles crimes de violência direta contra a integridade física ou o patrimônio. O espectro é muito mais amplo. Isso vai além da capacidade de uma Força Armada empregada em uma ação subsidiária ou de Garantia da Lei e da Ordem, em uma situação emergencial. Sobre a expectativa da participação do Exército no combate à criminalidade, seja onde for, faixa de fronteira ou não, é importante fazer mais algumas considerações. Em qualquer lugar do mundo as Forças Armadas são empregadas em situações emergenciais, em apoio às demais instituições responsáveis pela área onde ocorre a emergência. O Exército não deve ser empregado rotineiramente em combate à criminalidade ou em qualquer outro item de segurança pública. Existem os órgãos específicos para isso. O frequente emprego da Força Terrestre em segurança pública é sintoma de problemas crônicos, de desequilíbrio social e não de situação emergencial. A situação alarmante de criminalidade no Brasil tem razões que vão além da segurança pública. A segurança pública possui três pilares: Polícia, Justiça e Sistema Prisional. Numa sociedade equilibrada esses três pilares precisam funcionar de maneira eficiente. Essa harmonia não é possível quando não se tem exemplo, liderança e eficiência na alta administração. Enquanto os três pilares não funcionarem de modo eficaz não haverá solução. A deterioração na segurança pública ocorre, em parte, por conta do mau funcionamento e da falta de sincronização de pontos que vão de um extremo a outro. No nível de execução da segurança, as Polícias civis e militares precisam ser valorizadas, equipadas, receber investimentos, ter seus problemas econômicos e sociais bem equacionados, com adequada proposta profissional, e apoiadas, para que possam realizar seu trabalho com eficácia e segurança. Isso não é problema que se resolve com Forças Armadas. Os problemas da Justiça, atualmente, estão em evidência na primeira página dos jornais. Da mesma forma, as questões do sistema prisional são estampadas como catastróficas. To- 58 TECNOLOGIA & DEFESA Em um local remoto no Congo, instruindo o piloto do helicóptero. Ao fundo, o coronel canadense André Demers, oficial de operações dos esses assuntos têm razões que aconteceram ao longo do tempo, por diversos motivos. Assim, tem-se que diferenciar muito bem o que é situação de emergência e o que é deterioração de longo prazo, perfeitamente identificável como catástrofe anunciada. A definição de responsabilidade pelos problemas existentes é tão importante como a execução direta da segurança. Não é difícil para qualquer cidadão com um regular nível de conhecimento identificar os problemas existentes, suas origens, causas e o que precisa ser feito. A Força Terrestre é um recurso para emergência e o emprego em atividades que são da competência de outros órgãos não deve ser frequente, não deve ser um emprego de rotina. Isso pode funcionar como cortina de fumaça para turvar a visão dos problemas reais ou até mesmo ser explorado com outras finalidades. Quanto à participação do Exército no combate aos ilícitos que ocorrem na faixa de fronteira, as organizações militares participam da segurança normalmente em apoio aos órgãos responsáveis, como Polícia Federal, Receita Federal, IBAMA, Polícias Estaduais, etc, como ação subsidiária, quando determinado. Esse é um assunto perfeitamente normatizado, pois existe legislação específica que concede poder de polícia ao Exército na faixa de fronteira. T&D – O sr. tem a seguir um espaço para suas considerações. General Santos Cruz- Eu agradeço a consideração de ter sido convidado para a entrevista. É uma honra. Como militar do Exército, desejo que a Força continue sendo uma referência para o nosso País. Como cidadão, desejo que o Brasil seja um exemplo de honestidade, liderança, patriotismo, igualdade e responsabilidade para que seja possível reduzir e evitar aqui alguns problemas similares aos que tive oportunidade de presenciar durante as funções que desempenhei no exterior. N. da R.: As opiniões expressadas pelo entrevistado são pessoais e não necessariamente refletem o pensamento do Exército Brasileiro.