| ESPECIAL |
Comandando
da linha de frente
Entrevista exclusiva com o general Santos Cruz
G
aúcho de Rio Grande e filho de um oficial da Brigada
Militar, o general de divisão (R1) Carlos Alberto dos
Santos Cruz, 64, é reconhecido internacionalmente
por colegas e comandados como um dos mais brilhantes
militares brasileiros. Seu trabalho no Haiti tornou-se uma
referência e foi tão importante que, poucos meses depois
de ir para a reserva, ele foi convocado para retornar ao
serviço ativo com a finalidade de comandar na República
Democrática do Congo a maior e mais complexa missão de
paz da Organização das Nações Unidas (ONU), e a primeira
a possuir uma Brigada de Intervenção. Na selva africana,
sempre na linha de frente, liderou unidades de combate em
operações de alta complexidade e com meios tecnológicos
até então inexistentes na Força Terrestre, atingindo completo
êxito, vencendo o inimigo e abrindo espaço para a constru52 TECNOLOGIA & DEFESA
ção da paz, o que trouxe mais uma vez o reconhecimento
da comunidade internacional. Acompanhe a seguir uma
entrevista exclusiva com o general Santos Cruz concedida
ao jornalista de T&D Kaiser David Konrad.
Tecnologia & Defesa - General, o seu primeiro comando no exterior foi na MINUSTAH, quando deu início
a uma mudança radical na situação de segurança no
Haiti, chamando a atenção da ONU sobre seu comando
e sua estratégia para resolver o problema da criminalidade no país. O sr. poderia comentar?
General-de-Divisão (R1) Carlos Alberto do Santos
Cruz - A minha primeira participação na ONU foi no Haiti,
como comandante das tropas das Nações Unidas naquele
país. Eu fiquei na função por dois anos e três meses (janei-
Fotos: arquivo pessoal
ro de 2007 a abril de 2009). Quando cheguei ao Haiti, os
grupos criminosos, as famosas”street gangs”, estavam concentradas no bairro de Citè Soleil e com completo controle
da área já fazia alguns anos. As tropas da ONU possuíam
alguns pontos já estabelecidos no interior da área, chamados de pontos fortes. Logo após a chegada, a decisão foi de
acabar com esse domínio de “gangs” sobre a área e sobre
a população local a fim de possibilitar o restabelecimento
da autoridade pública. Não é possível tolerar grupos criminosos com domínio sobre uma área, usando armamento
ostensivamente, não permitindo o acesso do Estado e
submetendo a população a sequestros, extorsões, estupros, etc. Os ataques contra as tropas da ONU aconteciam
diariamente. Essa situação foi de grande vantagem para as
tropas, pois os militares são preparados exatamente para
situações de conflito. A idéia dos grupos armados, de que
era possível defender o território e enfrentar as tropas da
ONU em combate, foi determinante para o nosso sucesso.
A decisão imediata foi pelo enfrentamento. As tropas são
profissionais, com melhor treinamento, material, tecnologia,
logística e com muito melhor liderança. Nessas situações,
liderança e determinação são fundamentais. É importante manter um ritmo
intenso de ações de vulto contra os
grupos criminosos até o completo desmantelamento e eliminação. Não pode
haver descanso. Isso foi feito por tropas
bem comandadas e treinadas, de vários
países, sendo o contingente brasileiro o
mais numeroso. Na realidade as ações
não foram para resolver o problema da
criminalidade, mas sim para eliminar o
poder dos grupos armados que haviam
sido explorados politicamente em um
certo momento da história recente do
país. A diminuição dos problemas normais de segurança pública, os crimes
que acontecem na rotina da vida social,
foram uma consequência natural. Nesse
ponto é bom destacar que a taxa de crime de homicídio no Haiti, por exemplo,
é bem menor que a do Brasil. O objetivo
da ONU, normalmente, é eliminar a violência de origem política e não exatamente os crimes que
existem na dinâmica social, que são problemas de segurança
pública. No entanto, no caso haitiano, a eliminação das gangues também acarretou aumento de segurança nas áreas
sob controle da força militar das Nações Unidas. E isso tudo
foi conseguido sem os chamados danos colaterais, graças à
qualidade das tropas responsáveis pelas ações.
T&D - Na sua opinião, quais são as reais causas dos
problemas do Haiti e qual seria a solução?
General Santos Cruz - Para entender alguns problemas
existentes no Haiti, há necessidade de algumas considerações. O Haiti é um país que tem marcas visíveis da sua
evolução histórica, tais como: a) a violência do modelo escravagista; b) a independência feita por uma revolta heróica
de escravos, mas que possuía muito poucas pessoas capacitadas a assumirem as tarefas econômicas e administrativas, ficando o país na mão dos poucos com alguns preparo
cultural e técnico; c) a cobrança e o pagamento da «dívida»
pela independência, que se alongou por uma centena de
anos, consumindo muitos recursos financeiros do país; e d)
a ocupação e interferência estrangeira no próprio território.
A todos esses eventos históricos, é possível adicionar os
ingredientes indesejáveis em qualquer país: a) domínio por
um pequeno número de famílias mais bem estabelecidas e
extremamente ricas; b) o continuado enriquecimento de
muitos às custas do extremo sacrifício da grande massa; c)
o desequilíbrio social, com poucos desfrutando dos recursos
do país em detrimento da penúria da grande maioria; d)
a falta de serviços públicos com qualidade mínima e até
mesmo a impossibilidade de acesso à educação, saúde,
alimentação, segurança, moradia, trabalho e Justiça; e)
a fuga de recursos financeiros produzidos no país por um
pequeno grupo para os ambientes mais seguros e atrativos como Estados Unidos e Canadá, por exemplo; f) a
apropriação do país por grupos e interesses políticos que
não se traduzem em ações concretas de desenvolvimento
e que não trazem à população mais do que o discurso e a
disputa eleitoral; e, como em muitos países, a corrupção.
Ao longo do tempo a população desenvolveu um sentimento
de desencanto, descrédito no poder público, com desesperança na classe política e percepção de incompetência,
corrupção e abandono. O discurso político é bem elaborado, como em qualquer lugar, pois é possível construir
um discurso com “padrões internacionais” utilizando meia
dúzia de idéias, tais como democracia, educação, meio
ambiente, igualdade, sustentabilidade,
proteção aos mais vulneráveis, etc. No
entanto, na prática isso não é traduzido
em água, energia, alimentação, saúde,
moradia, trabalho, desenvolvimento,
etc. Essas considerações têm o objetivo
de esclarecer algumas das causas do
problema. Existem outros, sendo um
deles a excessiva interferência internacional através de agências, fundos,
programas e de organizações não
governamentais (ONGs). O país é conhecido como a “República das ONGs”
Apesar de não haver número oficiais,
havia cerca de nove mil ONGs no país
antes do terremoto de janeiro de 2010.
Após a catástrofe o número aumentou
para 12 mil, caindo para o nível anterior
cerca de um ano após. Na emergência
do terremoto, muitas organizações
fizeram um grande trabalho. Fora da
emergência, algumas fazem um trabalho exemplar. No entanto, um grande número, talvez
mais de 90%, não são registradas no governo e atuam
sem coordenação, visibilidade e transparência e não existe
pleno conhecimento do orçamento e da capacidade técnica.
É natural que pessoas e organizações com real sentimento
humanitário queiram auxiliar os mais necessitados. Mas a
pobreza e a miséria no Haiti já são por longo tempo motivo de obtenção de orçamento para muitas organizações.
Mesmo com algum benefício direto para quem é auxiliado,
não tem havido significante evolução estrutural no país.
A situação deplorável dos mais necessitados no Haiti não
pode servir de eterna fonte e justificativa permanente para
a presença de milhares de organizações estrangeiras sem
controle e com orçamentos desconhecidos. O pouco acesso
que se tem aos valores destinados à atividades assistenciais
são somas de vulto que, pelo menos, não correspondem a
resultados visíveis. Não são agências, fundos, programas
e ONGs que vão resolver o problema do Haiti. Isso é tarefa
dos próprios haitianos. A presença maciça de organizações
estrangeiras, com falta de controle, de subordinação a
um plano de governo, cria e perpetua deformações graves
no comportamento social e político. O terremoto foi um
desastre natural, catastrófico. Os problemas do Haiti não
estão ligados ao terremoto. Eles são os mesmos de antes
e depois do infeliz acontecimento.
TECNOLOGIA & DEFESA 53
Qual a solução para o Haiti? Não tenho a pretensão de
apresentar solução. Vou dizer apenas algumas idéias que
são fundamentais. Primeiro, a solução depende somente dos
próprios haitianos. Honestidade e eliminação da corrupção
são fundamentais, como em qualquer país. É necessária a
existência de uma liderança com real espírito patriótico que
inspire essa confiança de honestidade, priorize o povo e a
quebra do “status quo” existente. É importante, também,
que o governo negocie o apoio externo sem interferência
e coloque todas as organizações estrangeiras que queiram
trabalhar no país sob controle governamental para que
atuem dentro de um plano de governo, com controles de
resultados, orçamentário e fiscal. Em resumo, eu destaco
a honestidade, a eliminação da corrupção, o patriotismo,
a dedicação ao povo e o controle das agências, fundos,
programas e ONGs. Isso não é tarefa fácil, mas o Haiti
precisa de um líder disposto e uma classe política que faça
na prática aquilo que é capaz de dizer no discurso, como
acontece também em outros países e não somente no Haiti.
T&D - Em 2013, o sr. foi reconvocado e assumiu o
comando da MONUSCO, inclusive da primeira Brigada
de Intervenção na história das missões de paz. Poderia nos falar mais sobre seu trabalho na República
Democrática do Congo? Como eram as missões? Como
conseguiu vencer o M-23? Existe uma solução para
aquele conflito?
General Santos Cruz - Eu havia deixado o serviço ativo
do Exército em dezembro de 2012, e em abril de 2013 fui
surpreendido com a possibilidade de comandar as tropas da
ONU na República Democrática do Congo (RDC). A MONUSCO (Missão das Nações Unidas para a Estabilização da RDC)
era - e ainda é - a maior missão da ONU e também a que
tem maior orçamento. Naquele momento tinha um efetivo
de mais de 20 mil homens e um orçamento de cerca de
US$ 1,4 bilhões. Os problemas do Congo são extremamente
complexos, em especial na faixa leste, onde faz fronteira
com Sudão do Sul, Uganda, Ruanda, Burundi e Tanzânia.
Toda aquela área tem uma história marcada por violência,
sendo um dos eventos mais conhecidos o genocídio de 1994,
quando cerca de 500 mil pessoas da etnia tutsi e mais 300
mil da etnia hutu foram mortos num período de aproximadamente três meses em Ruanda. Muitos deles fugiram para
dentro do Congo. Posteriormente, ali, um número incontável
de hutus e de outras etnias também foram massacrados
durante vários conflitos. Estima-se que entre 5 e 6 milhões
de pessoas morreram vítimas de violência no Congo nos
últimos 20/25 anos. A imprecisão dos números mostra a
perda da dimensão humana do problema.
Em 2012, mais um movimento rebelde foi criado no
Congo, denominado M-23. Era um grupo basicamente de
etnia tutsi, com formação militar sólida, sendo grande parte
de desertores do próprio exército congolês, fortemente armados e com apoio externo. Esse grupo, depois de alguns
combates, ocupou Goma, uma das principais cidades do
Congo no leste do país, com mais de 1 milhão de habitantes, na fronteira com Ruanda. O Exército do Congo recuou,
a ONU não impediu a ocupação e isso trouxe uma situação
de desprestígio, de vergonha para as Nações Unidas. O
Conselho de Segurança emitiu novo Mandato com autorização mais contundente para o uso da força e reforçou a Missão com a chamada Brigada de Intervenção,
composta por cerca de 3.000 militares da Tanzânia,
África do Sul e Malaui. Eu cheguei no Congo nos primeiros dias de junho de 2013, logo após a chegada
do primeiro contingente da Brigada de Intervenção
vindo da Tanzânia. Posteriormente, chegaram África
do Sul e Malaui. Existiam no Congo cerca de 45 grupos
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armados, mas a principal atenção, naquele momento, era
liberar a cidade de Goma do cerco do M-23. Aquele grupo,
por pressão política da ONU, havia saído de dentro da cidade e se estabelecido nas primeiras elevações ao norte, na
periferia da área urbana, a cerca de 6/7 km do centro. Por
outro lado, o M-23 possuía uma Artilharia com alcance de
18,5 km. Na área política havia sido aberta uma rodada de
conversações de paz entre o governo do Congo e o M-23
em Kampala, capital de Uganda.
A decisão imediata foi de apoiar o Exército congolês na
luta contra o M-23 para liberar Goma, derrotar o movimento
e recuperar a área ao norte que estava sob controle e administração daquele movimento rebelde, pois havia constituído
uma espécie de governo paralelo naquela região. A batalha
ocorreu no final de agosto de 2013, com a ONU apoiando o
Exército do Congo. O M-23 estava em posições muito sólidas,
em elevações difíceis de serem conquistadas e os combates
duraram oito dias, culminando com a derrota e o recuo do
M-23, mas também com muitas baixas do lado congolês e
algumas baixas de mortos e feridos da ONU. Foi um combate
clássico, com Infantaria no ataque e apoio extremamente
forte de Artilharia, morteiros e helicópteros. O M-23 recuou
para posições mais ao norte e, em outubro de 2013, houve
novo enfrentamento nas localidades de Rutshuru-Kiwanja,
quando também tivemos baixas, mas derrotamos o M-23
uma vez mais, fazendo com que o grupo rebelde ocupasse
uma posição defensiva extremamente difícil de ser conquistada nas proximidades da fronteira com Uganda. Após algumas tentativas do Exército do Congo e apoio da ONU, com
emprego de Infantaria, Artilharia e morteiros, os rebeldes
foram derrotados com maciço bombardeio por helicópteros
de ataque, e os remanescentes fugiram para Uganda.
“Honestidade e eliminação da
corrupção são fundamentais,
como em qualquer país.
É necessária a existência
de uma liderança com real
espírito patriótico que inspire
essa confiança de
honestidade, priorize
o povo e a quebra
do “status quo”
existente”
Na continuidade das operações foram desencadeadas
ações contra outros grupos armados em áreas de selva,
completamente diferente das áreas anteriores. O combate
passou a ser de patrulhas pequenas e pelotões em área semelhante à da selva amazônica, contra grupos que evitavam o
confronto direto e utilizavam emboscadas. Um desses grupos
se chama ADF, com origem em Uganda, ideologicamente
islâmico radical, aterrorizando a população com violência
indiscriminada contra civis, inclusive assassinando de forma
cruel crianças, mulheres e homens, quase que exclusivamente
com machados e facões, usando o mínimo de armas de fogo.
A utilização de técnica de emboscadas e o assassinato de civis
(cerca de 500 em um ano) também acarretou muitas baixas
no Exército do Congo e algumas na ONU.
Em outras áreas do país também tínhamos outras operações contra diferentes grupos rebeldes.
A solução do conflito do Congo, assim como em outros
locais, passa pela vontade política de resolver o conflito,
liderança e capacidade do Estado de se impor sobre os
grupos armados. O problema do Congo é extremamente
complexo, com a participação de vários países da região dos
Grandes Lagos Africanos e influência da chamada Comunidade Internacional, da União Européia, União Africana, da
comunidade dos países do Sul da África, etc. Os interesses
são diversos, tendo em vista que o Congo é um dos países
mais ricos do mundo, por conta dos seus imensos recursos
naturais. Esse é o real motivo de toda a disputa de poder
e da violência por lá.
A solução dos problemas passa por uma disposição dos
líderes políticos do Congo, Ruanda e Uganda, principalmente,
e por medidas de fortalecimento da autoridade governamental nos locais mais remotos daquele imenso país, que
é aproximadamente do tamanho da Europa Ocidental. A
autoridade do Estado precisa se impor sobre os interesses
regionais; a corrupção necessita ser reduzida; o combate ao
contrabando, ao comércio ilegal de minerais, ao comércio
internacional ilegal de armas e munições precisa ser implementado; é fundamental diminuir o desnível social e penalizar a exploração e incentivo político de problemas étnicos.
A solução, mesmo parcial, transformará o Congo em um
dos países mais ricos do mundo, por conta de suas imensas
riquezas naturais.
T&D - Na República Democrática do Congo, por
diversas vezes, o sr. fez uso de equipamentos que
ainda hoje o Exército Brasileiro não possui, como helicópteros de ataque e veículos aéreos não tripulados
(VANTs). Qual é a importância desses sistemas, como
eram utilizados e que ganho operacional traziam?
Quais lições o sr. trouxe a respeito?
General Santos Cruz - Para entrar em combate há a
necessidade de equipamento, treinamento, conhecimento,
etc, mas principalmente determinação, vontade de vencer,
liderança, percepção, decisão. É preciso manter um ritmo
forte nas ações e ter capacidade de escalar o conflito se
for necessário. Todo o aparato militar de tecnologia, armamento, logística, apoio de fogo, precisa ser utilizado na sua
eficiência máxima. Num ambiente ONU isso é muito difícil de
conciliar, pois as motivações e as influências na organização
são muito distintas. Tem que haver confiança na percepção,
pois não há tempo disponível para ficar analisando tudo
de maneira clássica. Tem que haver dinâmica operacional,
mas também precisam ser seguidas todas as regras do
direito internacional dos conflitos armados, os princípios de
direitos humanos, etc, e não acarretar
efeitos colaterais. Isso tudo é possível,
pois é só uma questão de percepção.
Equipamentos como helicópteros de
ataque, uma Artilharia eficiente, tropas
especiais com equipamentos também
especiais, veículos aéreos não tripulados com boa resolução de imagem,
etc, são essenciais para a inteligência,
para o conhecimento da situação e da
área de operações, para a tomada de
decisões com menor risco e para destruir o oponente, proteger a Infantaria
e a Cavalaria no seu avanço no terreno.
Quando se tem tropas e equipamentos
de qualidade é muito maior a sensação
de segurança ao se tomar decisões de
risco. A grande lição pessoal que eu
posso transmitir é de que o Exército
Brasileiro pode multiplicar muitas vezes
a sua capacidade se for equipado com
aquilo que pleiteia, já que o principal
componente já possui - a qualidade
do seu pessoal. Eu tive oportunidade
de comandar nosso pessoal em ação,
junto com combatentes de outros países, também excelentes. Os soldados,
cabos, sargentos, oficiais na linha de
frente são extremamente destemidos,
corajosos, cuidadosos, técnicos, precisos e disciplinados. Numa certa ocasião, eu tive a oportunidade de falar,
em uma reunião na ONU, que o maior
show não era lá na Broadway, em
Nova York. O maior de todos era ver
os soldados, cabos, sargentos e oficiais
em ação na linha de frente. E eu tive
a felicidade de ver nosso pessoal em
ação. Fica aqui o meu reconhecimento
e homenagem a eles e aos militares de
outros países também.
T&D - Seus comandados, sejam
eles nacionais ou estrangeiros,
sempre destacaram sua liderança
e combatividade, e a forma única
de como tomava decisões em níveis tático e estratégico (político),
assumindo sempre as responsabilidades do Comando em prol do
cumprimento efetivo da missão. O
sr. também sempre foi visto liderando as colunas nas patrulhas e
participando ativamente dos combates. O sr. poderia nos falar mais
sobre isso?
General Santos Cruz - Quando a
missão, a tarefa que se tem, coincide
com a nossa personalidade, fica tudo
mais fácil. Quando não coincide, deve
ser um sofrimento insuportável. Eu tive
sorte de escolher uma profissão que
coincidiu com a minha personalidade.
E as coincidências profissionais me
levaram a tarefas que também tinham
a ver comigo. Assim, não precisa muita
perda de tempo para as decisões. A
percepção é um componente decisivo.
Eu não gosto de ficar na retaguarda
apenas no planejamento e na decisão.
Eu sempre gostei também de executar,
de ir com os soldados na linha mais
próxima dos acontecimentos. O pessoal
da linha de frente - soldados, cabos,
sargentos, oficiais - são extremamente corajosos. E aí a gente também é
contagiado, arrastado, vai junto. A
situação hierárquica e funcional de comandante me deu possibilidade dessa
realização: planejar, decidir e executar.
Enfim, participar de todas as fases da
ação militar. De ponta a ponta. Se a
idade traz algumas limitações, a melhor
maneira de eliminar isso é enfrentar o
desafio. Existe uma particularidade no
ambiente ONU: as motivações são as
mais diversas. É diferente de correr
risco pelo seu país, onde todos tem a
mesma motivação. Num ambiente de
tantos interesses e motivações distintas só tem uma maneira de transmitir
confiança e fazer o pessoal avançar:
é indo na frente, participando. Isso é
uma linguagem universal. Não precisa
falar nada. É só fazer.
T&D - Se fosse novamente
convidado, o sr. estaria pronto e
disposto para retornar ao serviço
ativo e comandar outra missão de
paz ou de combate no exterior?
Considerando os conflitos da atualidade, qual seria sua preferência
e a estratégia a ser implementada?
General Santos Cruz - Sem dúvida. Se eu tivesse nova oportunidade,
eu iria. Disposição não falta. E acho
até que, mesmo com a passagem
inexorável do tempo, eu ainda tenho
condições. Mas as oportunidades têm
também um tempo certo para acontecer. Em situação de conflito não dá para
ter preferência, mas tem que ser uma
tarefa que transmita a sensação de que
se está contribuindo para a defesa de
inocentes, para a defesa dos mais vulneráveis, para a proteção daqueles que
sofrem violência por conta de grupos
políticos e grupos armados criminosos.
A gente tem que ter a sensação de que
está contribuindo para a defesa dos
mais fracos. Assim, não fica tão difícil
de identificar a “preferência”.
Cada situação é única, mas a estratégia a ser implementada em qualquer situação segue alguns princípios:
planejamento, treinamento específico,
iniciativa e determinação para o enfrentamento.
T&D - Já na reserva,o sr. foi
convidado para gerenciar a FT-35,
trazendo sua experiência operacional em prol da reestruturação
do Exército. Qual é a importância
desse trabalho? Quais seriam as
No interior da selva congolesa, em 2014
principais mudanças a serem implementadas no seu entender?
Como deverá ser o Exército Brasileiro em 2035?
General Santos Cruz - Todas as
organizações, aí incluindo o Exército,
têm necessidade de fazer um planejamento de médio e longo prazos de
tempos em tempos. A sigla FT-35 é
uma pequena parte dos projetos que
têm como finalidade sugerir e realizar
as modificações do Exército com uma
perspectiva referenciada para 2035.
Em determinados momentos há necessidade de verificar a defasagem
tecnológica, a modernização estrutural
e a mudança de contextos de possíveis
empregos da Força Terrestre. O material militar está em constante evolução
na área de veículos, equipamentos e
armamentos individuais e coletivos,
comando e controle, cibernética, meios
aéreos, munições, etc. E o Exército está
com esse processo em andamento.
Eu me sinto útil por estar participando desse processo e poder contribuir
com alguma coisa. É um trabalho importante, pois moderniza, racionaliza,
aumenta a eficiência do Exército.
O Exército segue o ritmo da sociedade e da disponibilidade de orçamento. Assim, a evolução acontece dentro
daquilo que é possível. As mudanças
a implementar, particularmente na
área de equipamentos, seguirão as
perspectivas orçamentárias. É bastante evidente que não é possível
fazer todas as modificações desejadas,
como acontece em qualquer área da
administração pública, mas têm alguns
pontos que o Exército tem mantido
em nível de excelência: a seleção de
pessoal, o sistema de ensino e treinamento - são pontos de excelência
do Exército, reconhecidos nacional e
internacionalmente; a conduta disciplinar do seu pessoal; a presença
nacional, possibilitando à população a
confiança na instituição; a lisura nos
atos administrativos e a boa aplicação
dos recursos alocados; a participação
em todas as emergências a fim de
prestar auxílio à população; a manutenção de tropas prontas para reação
estratégica imediata; a atualização de
tecnologia no emprego de meios aéreos do Exército; de elementos de forças
especiais; de sistemas de comando e
controle; de sistemas de Artilharia; de
Cavalaria mecanizada e blindada; de
mecanização de elementos de combate básico; de defesa cibernética e de
sistemas de vigilância e inteligência.
Dezoito anos à frente (2035) não é
um tempo tão longo e eu penso que o
Exército Brasileiro vai chegar lá com o
mesmo perfil de uma instituição altamente confiável, exemplar, prestigiada, referência em muitos pontos para
a população brasileira e com maior
poder de combate em alguns núcleos
internos selecionados para tal.
T&D - Falando em termos de
equipamentos, na sua opinião,
quais sistemas deveriam ser introduzidos para melhorar a capacidade de combate do Exército?
General Santos Cruz - Essa é
uma opinião exclusivamente pessoal,
pois essas definições dependem do
comandante do Exército, assessorado
pelo Estado-Maior. Eu penso que são
importantes as evoluções nas áreas
de helicópteros de ataque, nos sistemas de Artilharia
- como busca de alvos e munições modernas guiadas/
inteligentes, na mecanização e nos veículos blindados,
nas áreas de sensoriamento, comando e controle, veículos aéreos não tripulados, inteligência e cibernética.
Esses são exemplos de áreas onde o desenvolvimento
dos sistemas é fundamental.
T&D – O sr. participou de muitas operações de
combate urbano. Como vê a possibilidade de empregar
a Força Terrestre em missões do tipo? De que forma
elas poderiam proteger as fronteiras e pacificar o País,
no que se refere ao combate à criminalidade?
General Santos Cruz - O Exército é extremamente
bem preparado para missões de combate em área urbana. Nós tivemos enfrentamentos de alta intensidade, com
troca de milhares de tiros com grupos armados e jamais
houve qualquer dano físico ou ao patrimônio das pessoas
inocentes. O Exército Brasileiro é perfeitamente apto para
esse tipo de missão e também é muito bem preparado para
operações tipo polícia.
Não há qualquer dificuldade para o Exército em ser empregado em missões de combate urbano ou em operações
tipo polícia. Isso não quer dizer que o Exército pode ou deve
substituir a polícia. O problema do nível de criminalidade no
nosso País é muito mais amplo do que a atuação da força
policial ou a participação eventual do Exército. Na sua raiz
tem questões de administração, de liderança, de impunidade, de corrupção, de mau exemplo, desequilíbrio social, entre
outros. Os crimes que envolvem violência compõem apenas
uma parcela dos graves problemas existentes. O combate
à criminalidade é uma cruzada que precisa ser feita contra
todos os tipos de crimes, em todos os níveis, e não apenas
contra aqueles crimes de violência direta contra a integridade
física ou o patrimônio. O espectro é muito mais amplo. Isso
vai além da capacidade de uma Força Armada empregada
em uma ação subsidiária ou de Garantia da Lei e da Ordem,
em uma situação emergencial. Sobre a expectativa da participação do Exército no combate à criminalidade, seja onde
for, faixa de fronteira ou não, é importante fazer mais algumas considerações. Em qualquer lugar do mundo as Forças
Armadas são empregadas em situações emergenciais, em
apoio às demais instituições responsáveis pela área onde
ocorre a emergência. O Exército não deve ser empregado
rotineiramente em combate à criminalidade ou em qualquer
outro item de segurança pública. Existem os órgãos específicos para isso. O frequente emprego da Força Terrestre
em segurança pública é sintoma de problemas crônicos, de
desequilíbrio social e não de situação emergencial. A situação
alarmante de criminalidade no Brasil tem razões que vão
além da segurança pública. A segurança pública possui três
pilares: Polícia, Justiça e Sistema Prisional. Numa sociedade
equilibrada esses três pilares precisam funcionar de maneira
eficiente. Essa harmonia não é possível quando não se tem
exemplo, liderança e eficiência na alta administração. Enquanto os três pilares não funcionarem de modo eficaz não
haverá solução. A deterioração na segurança pública ocorre,
em parte, por conta do mau funcionamento e da falta de
sincronização de pontos que vão de um extremo a outro. No
nível de execução da segurança, as Polícias civis e militares
precisam ser valorizadas, equipadas, receber investimentos,
ter seus problemas econômicos e sociais bem equacionados,
com adequada proposta profissional, e apoiadas, para que
possam realizar seu trabalho com eficácia e segurança. Isso
não é problema que se resolve com Forças Armadas. Os
problemas da Justiça, atualmente, estão em evidência na
primeira página dos jornais. Da mesma forma, as questões
do sistema prisional são estampadas como catastróficas. To-
58 TECNOLOGIA & DEFESA
Em um local remoto no Congo, instruindo o
piloto do helicóptero. Ao fundo, o coronel
canadense André Demers, oficial de operações
dos esses assuntos têm razões que aconteceram ao longo do
tempo, por diversos motivos. Assim, tem-se que diferenciar
muito bem o que é situação de emergência e o que é deterioração de longo prazo, perfeitamente identificável como
catástrofe anunciada. A definição de responsabilidade pelos
problemas existentes é tão importante como a execução
direta da segurança. Não é difícil para qualquer cidadão com
um regular nível de conhecimento identificar os problemas
existentes, suas origens, causas e o que precisa ser feito.
A Força Terrestre é um recurso para emergência e o
emprego em atividades que são da competência de outros
órgãos não deve ser frequente, não deve ser um emprego
de rotina. Isso pode funcionar como cortina de fumaça
para turvar a visão dos problemas reais ou até mesmo ser
explorado com outras finalidades.
Quanto à participação do Exército no combate aos ilícitos
que ocorrem na faixa de fronteira, as organizações militares
participam da segurança normalmente em apoio aos órgãos
responsáveis, como Polícia Federal, Receita Federal, IBAMA,
Polícias Estaduais, etc, como ação subsidiária, quando determinado. Esse é um assunto perfeitamente normatizado,
pois existe legislação específica que concede poder de polícia
ao Exército na faixa de fronteira.
T&D – O sr. tem a seguir um espaço para suas
considerações.
General Santos Cruz- Eu agradeço a consideração de
ter sido convidado para a entrevista. É uma honra. Como
militar do Exército, desejo que a Força continue sendo uma
referência para o nosso País. Como cidadão, desejo que o
Brasil seja um exemplo de honestidade, liderança, patriotismo, igualdade e responsabilidade para que seja possível
reduzir e evitar aqui alguns problemas similares aos que
tive oportunidade de presenciar durante as funções que
desempenhei no exterior.
N. da R.: As opiniões expressadas pelo entrevistado são
pessoais e não necessariamente refletem o pensamento
do Exército Brasileiro.