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José Carlos Estêvão - Abelardo e Heloisa [Resumo]

2017, Revista Aquinate

Resumo do livro "Abelardo e Heloísa" do autor José Carlos Estêvão, publicado pelas editoras Paulus e Discurso Editorial em 2015

ESTÊVÃO, José Carlos. Abelardo e Heloísa. São Paulo: Discurso Editorial; Paulus, 2015. 164p. João Pedro da Luz Neto1. Entre as estrelas do século XIII, é certo que o brilho do filósofo e teólogo medieval Pedro Abelardo, que viveu no século anterior, se ofusca. É verdade que o destino não lhe reservaria a completa ignomínia: suas tragédias pessoais, e principalmente o seu idiossincrático casamento com Heloísa de Argentuil lhe tornaria, junto de sua esposa, o casal mais famoso do medievo (deste ‘romance’, temos notícia através das famosas cartas trocadas entre os esposos). Mas o próprio brilho de suas obras não-epistolares também tem relevância; Abelardo é um dos fundadores do método escolástico, um dos propulsores da retomada aos clássicos que tanto marcou o “renascimento do século XII”, e autor de uma das poucas auto-biografias que temos no período. O livro “Abelardo e Heloísa”, de José Carlos Estêvão 2, tem como objetivo apresentar a biografia do célebre casal e também demonstrar os principais “momentos” na filosofia de Abelardo. O livro, de 164 páginas, percorre ao longo de oito capítulos o 1 Mestrando em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná. Estêvão é professor da Universidade de São Paulo e livre docente pela mesma universidade. Pesquisador na área de Filosofia Medieval, tem diversas publicações acerca da filosofia de Pedro Abelardo, bem como Ockham, Agostinho e Tomás de Aquino. É ainda membro fundador do CEPAME - Centro de Estudos de Filosofia Patrística e Medieval de São Paulo e membro do conselho editorial de diversos periódicos. 2 itinerário biográfico e filosófico de Abelardo, desde seus primeiros estudos, seu relacionamento com Heloísa, até as publicações em Teologia, Lógica e Ética, e concluindo com o destino do casal. Contribuem, ainda, os apêndices, que constituem uma Antologia de textos, uma breve nota sobre a discussão da veracidade da correspondência entre o casal, uma bibliografia que, longe de constituir uma mera listagem de obras referenciais para a elaboração do livro, perfaz uma apresentação da bibliografia mais adequada para aqueles que desejam aprofundar sobre o assunto, e finalmente um índice de nomes citados. Os dois primeiros capítulos, “O Cavaleiro da Dialética” e “A Jovem Heloísa” são uma narrativa da trajetória inicial de Abelardo e de seu encontro com Heloísa. Analisando as fontes disponíveis, sobretudo a já citada auto-biografia de Abelardo, Historia Calamitatum, mas também tentando suprir as lacunas que esta nos deixa (como por exemplo a ausência de citações a Roscelino de Compiégne, primeiro mestre de Abelardo e seu inimigo na posteridade), Estêvão apresenta brevemente a trajetória do peripatético palatino em suas principais datas e ações, relata o contexto filosófico da época e também ensaia sobre o romance com Heloísa. Já envolvido na vida e na tragédia de Abelardo, o leitor é convidado, no capítulo III, a compreender os desenvolvimentos teológicos feitos pelo mesmo. Estêvão nota que o desenvolvimento surge com o próprio termo “Teologia”, que visa substituir o estudo até então realizado e chamado de “Sacra Pagina”. A mudança não é uma mera questão de nomes: o termo “teologia” indica uma pretensão científica, no sentido aristotélico de ciência, e seus adeptos, como Abelardo, tentarão organizar sistematicamente o conteúdo da fé, a partir de um método. Este processo, indica Estêvão, está longe do que os adversários de Abelardo faziam: um estudo da Doutrina Cristã, pautado pela exposição da Bíblia e dos Padres da Igreja, que constituía antes de tudo uma mística. O autor esclarece que as obras teológicas de Abelardo, como Sic et Non e as que investigam a Trindade são frutos deste novo modo de pensar teologia, a partir dos “enunciados através dos quais falamos de Deus” (Estêvão, 2015, p. 34). Conforme indica o autor do livro, as posições teológicas de Abelardo são compreendidas a partir de uma nova postura filosófica, que investigará no quarto capítulo “A Lógica Moderna”. Nele, Estêvão aponta que uma nova lógica está em surgimento no século XII, e indica como a questão dos universais é relevante neste panorama. Abelardo, ao romper com a vertente realista de seus professores, elabora uma teoria própria, em que as palavras universais concebem intelecções da semelhança comum de coisas distintas. Para Abelardo, as coisas distintas e individuais são realmente distintas (não há uma “coisa comum” entre ambas, como argumentavam os defensores das teorias chamadas de realistas), mas refere-se a um estado, um modo de ser daquela coisa individual. Como lembra Estêvão, esta noção é profundamente moderna: A mais importante obra lógica do século XX, o Tractatus logico-philosophicus (...) inicia afirmando que ‘o fato é a existência de estados de coisas. O estado de coisas é uma ligação de objetos (coisas).’ Mesmo que as noções em causa já sejam bastante diversas, Abelardo, com certeza, se sentiria em casa numa discussão acerca do tema (Estêvão, 2015, p. 50). Para Estêvão, este giro linguístico na compreensão dos universais é o que torna compreensível a teologia do filósofo medieval, tão atenta à análise da linguagem, bem como a idiossincrasia de sua auto-biografia (tão incomum no mundo medieval) e até mesmo a sua concepção de ética. Por fim, vale destacar uma marca interessante no texto de Estêvão, que é a aproximação da questão dos universais à história de Romeu e Julieta. Através dos Capuleto e dos Montecchio, o autor apresenta o longo alcance da discussão; mas sobre este assunto, nos calamos, para suscitar no leitor a vontade de ler o original. O quinto capítulo é justamente sobre a surpreendente reflexão ética que o peripatético palatino3 fez ao longo de sua vida. Estêvão trabalha, sobretudo, a partir de dois textos de Abelardo: a “Ética: Conhece-te a ti mesmo” e “Diálogo entre um Judeu, um Filósofo e um Cristão”. A primeira obra é representativa da ética da intentio inaugurada por Abelardo. Estêvão esclarece que nessa nova reflexão ética, o fundamental não é a ação má ou boa, frutos da natureza caída ou da graça, respectivamente, pois não há propriamente uma natureza humana. O pecado é, em Abelardo, uma questão de consciência, dependendo da intenção e do consentimento. Pecar é, portanto, não agir de acordo com aquilo que achamos que Deus quer que façamos. Como bem esclarece Estêvão, esta reflexão ética não recai, no entanto, no subjetivismo, porque Abelardo afirma que somos capazes de conhecer a vontade divina através da nossa razão natural. O “Diálogo”, por sua vez, é visto por Estêvão como a obra em que melhor se explica os pressupostos dessa ética, sobretudo como o desenvolvimento necessário da reflexão teológica, dirigida ao Sumo Bem. Estêvão ainda faz notar que, diferente de Agostinho, a centralidade da reflexão sobre a vida interior não é um conhecimento de Deus, mas um exame da consciência. O capítulo 6, por sua vez, mescla as novas peripécias do filósofo com a correspondência que teve com Heloísa. Neste momento, Estêvão esclarece melhor as Dois epítetos de Abelardo são famosos: “peripatético palatino”, cunhado por João de Salisbury em seu “Metalogicon” e “pássaro errante”, cunhado por Pedro, o Venerável, em carta a Heloísa. 3 intenções da redação da auto-biografia de Abelardo, momento em que decidira tomar a radical decisão de abandonar o posto de Abade de seu mosteiro. As cartas de Heloísa são importantes porque conseguem exprimir o caráter profundo da ética de Abelardo. Heloísa está sempre atormentada entre a ação boa que faz no mosteiro em que é abadessa e a intenção ruim em ser monja, que não é a de agradar a Deus, mas Abelardo. Finalmente, os capítulos 7 e 8 narram o desenrolar de toda esta história, a condenação e morte de Abelardo e a redenção de seu projeto intelectual, por conta da elaboração das Sentenças, feita por seu discípulo Pedro Lombardo. No final do capítulo 8 Estêvão ainda percorre a compreensão que os séculos posteriores tiveram do pássaro errante, de sua condenação à redenção. Terminado o texto corrido de Estêvão, o livro passa, conforme já havíamos comentado acima, a apresentar excertos das obras de Abelardo: “Lógica para Principiantes”, “Ética”, “Teologia do sumo bem”, “Sim e não” e também a primeira carta de Heloísa. São trechos (alguns de tradução inédita) que ilustram bem a explicação de Estêvão. O autor tem o cuidado de indicar, a cada texto, o tradutor, a obra de referência e outros pontos que julgue necessários para esclarecer o texto. Segue ainda uma nota sobre o estado atual da controvérsia da autenticidade das cartas entre os dois amantes, tema que gerou prolífico debate no século XX, e uma bibliografia detalhada, listando todas as obras de Abelardo, as principais traduções e os comentadores centrais. O índice de nomes citados também oferece descrições primorosas, sempre que possível enfatizando a relação do citado com Abelardo. A língua portuguesa carece de boas apresentações gerais de Abelardo: apresentações nacionais como “Paixão, Violência e Solidão”, de Zeferino Rocha, ou “O drama Heloísa-Abelardo” de Orlando Vilela enfatizam muito mais o aspecto biográfico do casal, em detrimento dos seus dilemas intelectuais; esta ênfase é conseguida, com sucesso, no livro português “Lógica e paixão. Abelardo e os universais”, de Mário Santiago de Carvalho4. Estevão se distingue do autor além-mar, no entanto, ao abordar o pensamento de Abelardo ao longo de sua biografia: enquanto aquele narra toda a trajetória de Abelardo, para então descrever os aspectos centrais de sua reflexão, este vê o desenvolvimento de sua obra como parte integrante da sua idiossincrática biografia, que por sua vez está sempre dependente de suas opções intelectuais. Há, ainda, a recente tradução da obra de Marco Rosmini, “Abelardo – Pensamento Dinâmico”, que não abordamos por se tratar de uma obra traduzida posteriormente à publicação de Estêvão, e por não ser originalmente escrita em português. O critério linguístico também foi utilizado para não elencar a famosa apresentação feita por Gilson, “Heloísa e Abelardo”. 4